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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FURIA / Steven James
FURIA / Steven James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Existem quatro agências governamentais que não constam do orçamento nacional dos Estados Unidos. Oficialmente, elas não possuem funcionários. Não há registro de seus recursos financeiros.
O governo dos Estados Unidos continua a negar sua existência.
Uma dessas agências buscou, durante quase um ano, um local apropriado para desenvolver suas pesquisas.
E acabou por encontrá­-lo.
Perto de uma prisão estadual nas isoladas florestas do norte do estado de Wisconsin.
­-Você sabe por que está aqui, Daniel?
Daniel Byers sentiu que estava piscando e pendendo a cabeça para o lado. Uma forte luz fluorescente o iluminava. Ele estava numa cama, deitado de costas, desorientado.
– O quê?
– Eu lhe perguntei se você sabe por que está aqui.
Olhando ao redor, viu que estava num quarto de hospital. Uma janela na parede distante lançava pesadas sombras no ambiente, permitindo que apenas um silencioso raio de sol se infiltrasse por seus cantos.
Era impossível dizer a quantas andava o dia. Ele sentiu uma dor de cabeça aguda, os pensamentos se embaralharam como fios estranhos e incontroláveis. De uma coisa, porém, ele se lembrava com clareza.
– Dizem que eu machuquei alguém – murmurou ele.
Quem? Quem ele teria machucado?
– É só isso?
– É.
Um homem com distintivo de detetive surgiu ao lado do leito. O médico descarnado ao lado dele usava um avental branco de laboratório, mas permanecia em silêncio enquanto o detetive falava.
– Então você não se lembra do que aconteceu com o seu pai?
– Com o meu pai?
Daniel forçou a cabeça, tentando lembrar, mas só lhe vinham à mente imagens difusas de seu jogo de basquete no colégio na noite anterior, da visita a um galpão, de estar na neve ao lado de um lobo morto – mundos de sonho e vigília que giravam e emergiam, com pesadelos escuros girando em torno de si mesmos.
Não havia como afirmar quais dessas imagens eram lembranças e quais eram sonhos.
Você ainda está sonhando. Isto é um sonho.
Tem que ser um sonho.
Seu pai está bem.
Não aconteceu nada com ele.
Daniel tentou se erguer, mas descobriu que isso era impossível. Olhou para a cama. Seus pulsos e tornozelos estavam amarrados. O que está acontecendo aqui?
– O que aquela enfermeira quis dizer ao afirmar que eu machuquei alguém? Ela estava se referindo ao meu pai?
– Então você não se lembra de nada do que aconteceu ontem à noite?
– Diga que ele está bem. Você tem que...
– Sangue – interrompeu o detetive. – Isso o faz lembrar de alguma coisa?
– O quê?
– Sangue.
– Não sei nada de sangue nenhum.
– Quem é Madeline? – perguntou ele, inclinando­-se sobre Daniel.
– Madeline?
– Estamos com seu celular. Sabemos das suas mensagens de texto. O que você fez com ele, rapaz?
– Com quem?
– Com seu pai.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando.
Mas ele se lembrou das mensagens.
E também do nome Madeline.
– Ele precisa descansar – disse o médico. – Está na hora dos remédios.
– Contem­-me o que está havendo – pediu Daniel. – Meu pai está bem?
O detetive olhou para Daniel com o rosto sério.
– É o que você precisa nos dizer.
– Vou lhe dar alguma coisa para dormir – disse o médico, fazendo um gesto em direção à porta, e uma enfermeira entrou. Ela pegou uma seringa e entregou ao médico, que se inclinou para Daniel.
– Eu não quero dormir – disse ele, forçando as tiras que o prendiam. – Eu quero lembrar!
O detetive finalmente se afastou, enquanto a enfermeira segurava o braço do rapaz e o médico enfiava a agulha nele.
– Não!
Mas o mundo já começava a turvar­-se, esmaecendo como uma luz que alguém apagasse lentamente.
Daniel só conseguiu pensar numa palavra enquanto o vazio profundo se espalhava sobre ele: sangue.
Então, ele se lembrou.
Sim.
Lembrou­-se do sangue em suas mãos, do sangue que respingava por toda parte.
O que você fez com seu pai, Daniel?
O que você fez?
E, então, tudo ficou escuro.

 

 

 

 

 

 

1

7h55

Daniel olhou para o seu armário.

Alguém havia prendido com fita adesiva um DVD do velho filme Psicose na porta dele.

Então, alguém sabia.

Ty Bell?

Talvez. Provavelmente. Ele era o tipo de cara que faria isso. Mas como ele podia ter descoberto o que estava acontecendo estava além da compreensão de Daniel.

Nos últimos dois meses, Daniel fizera o que podia para manter em segredo o que estava acontecendo com ele. Seus amigos mais próximos sabiam de tudo, mas ele confiava neles e sabia que nunca contariam.

Eles não poriam o DVD ali.

Ele o arrancou do armário e o colocou lá dentro; então, retirou seus livros e foi para a primeira aula, que era de Literatura.

***

Enquanto avançava pelo corredor, os outros alunos abriram caminho para ele passar, com os rapazes acenando com a cabeça, as garotas rindo timidamente e desviando o olhar dele.

Os esportes eram fortes naquela escola e, como atacante intrépido e eficiente, Daniel era alguém que os caras respeitavam e que atraía as garotas – embora isso não significasse que ele estivesse a fim de arrumar uma namorada. Ele estava com uma aluna do ensino médio, Nicole Martin, desde outubro.

Felizmente, as coisas estavam indo muito bem ultimamente, não apenas com ela, mas também em outras frentes. Muito melhor do que já haviam sido.

As distorções – visões, alucinações, ou qualquer outro nome que se quisesse dar a elas – haviam cessado, pelo menos por enquanto. Tudo parecia ter voltado ao normal depois do que acontecera em setembro, quando o corpo de uma garota foi encontrado e ele a viu sentar­-se no caixão, ouvindo­-a implorar­-lhe por socorro, sentindo­-a agarrá­-lo pelo braço.

Naquele dia do enterro ocorrera a primeira distorção, a primeira vez que a realidade mentira para ele.

Mas não foi a última.

Toda aquela semana foi estranha, surreal, mas depois que o cara que havia matado Emily e as duas garotas de escolas da área desapareceu da cena, as distorções não voltaram.

Tudo isso havia acabado.

Tudo pertencia ao passado.

As distorções morreram junto com o assassino.

Aquele era o último dia antes das férias de inverno, e Daniel tinha uma prova final de cálculo, mas o restante de suas provas havia terminado e, com exceção dessa, as outras eram fáceis, dando início às férias. O último jogo de basquete antes do Natal seria naquela noite contra a Coulee High.

Mentalmente, ele revisou a agenda do dia: ir às aulas de manhã, almoçar com Kyle em vez de com Nicole, pois ela estaria em aula, e ir à consulta médica antes de voltar para casa. Por fim, por volta das 16h45, voltar à escola para sair com o ônibus do time para o jogo das sete da noite.

Daniel olhou pela janela. Flocos de neve caíam suavemente sobre a neve que já se acumulara durante o mês anterior. Em algumas partes do país, isso pareceria demais, mas nesta longínqua parte norte de Wisconsin ainda se estava, na verdade, muito aquém do que caíra de neve no ano passado nessa época.

Aqui, as pessoas estavam acostumadas a dirigir na neve, e, assim, seria preciso uma tempestade daquelas para que um jogo fosse adiado ou cancelado. Mesmo assim, Daniel esperava que o tempo não piorasse.

Encontrou­-se com Nicole no final do corredor da sala de Literatura.

Embora normalmente tivesse cabelo cor de avelã, ela o tingira de vermelho algumas semanas atrás. Ela sempre fora moderada com a maquiagem; era uma dessas garotas que realmente não precisam desse artifício. Hoje, o suéter que escolhera combinava com seus olhos perspicazes e verdes. Vivaz e divertida, era uma pessoa que Daniel conhecia há muitos anos, muito antes de eles começarem a namorar alguns meses atrás.

– Oi – disse ele, dando­-lhe um beijo.

– Oi – respondeu ela, parecendo agitada.

– O que aconteceu?

– Você soube que encontraram mais um ontem à noite?

– Mais um?

– Mais um lobo. Na margem do lago.

– Ele foi...?

– Foi. Tomou um tiro e morreu... como os outros.

– Bem, já são quatro – disse Daniel, mais para ele mesmo.

– Quatro que encontraram. Quem sabe quantos outros foram mortos, mas, você sabe como é, isso a gente desconhece. Não consigo imaginar que alguém esteja fazendo isso.

Os lobos cinzentos eram protegidos por lei e começaram, há cerca de dez anos, a voltar às densas e vastas florestas que cercavam a cidade de Beldon. Mas agora alguém os estava caçando.

E não era pela pele dos animais.

Era apenas por diversão.

Se é que se podia chamar aquilo de diversão.

Uma linha para denúncias anônimas foi instalada no escritório do agente florestal, e o xerife, pai de Daniel, vasculhou a área com alguns guardas florestais locais para tentar descobrir quem estava matando os lobos, mas, pelo que Daniel soubera, eles não estavam obtendo muito sucesso.

Nicole preocupava­-se seriamente com as questões ambientais e, desde que soube da matança dos lobos, ficou profundamente perturbada. As notícias mais recentes só pioraram as coisas.

– Vai ficar tudo bem – disse­-lhe Daniel. – Meu pai vai descobrir quem está fazendo isso.

– Espero que essa gente fique presa por muito tempo.

Entraram na sala de aula e foram para seus lugares. Kyle Goessel, o amigo de Daniel, já estava lá. Ele empurrou para trás uma mecha do cabelo loiro que lhe descia até os ombros e perguntou a Daniel:

– Alguma novidade?

– Praticamente nada – respondeu Daniel distraidamente, ainda pensando nos lobos.

Ele estava acompanhando as notícias sobre a matança dos lobos pela internet, lendo tudo o que podia a respeito.

Então, já eram quatro lobos mortos.

Quantos mais haveria por lá?

Por que só os lobos daquela área? Será que o matador morava por ali?

Perguntas que precisavam ser respondidas.

Mas isso teria que ficar para mais tarde.

Foi dado o sinal, e a aula de Literatura começou.


2

A Srta. Flynn gostava que seus alunos a chamassem de “Prô”. Para alguns professores, isso poderia parecer uma maneira de serem “legais” com os alunos, ou de se relacionar melhor com eles, mas não era o que acontecia com ela.

Estava há uns dois anos na escola e era atraente o bastante para que alguns rapazes da classe de Daniel ficassem ligados nela; ela via como clássicos as histórias de terror de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe, e não os livros que outros professores de Literatura indicavam. Tudo isso junto acabou por torná­-la uma das professoras prediletas do ensino médio.

– Bem – disse ela –, sei que as férias de inverno estão para começar e, como vocês já entregaram o trabalho final, provavelmente querem um dia livre, mas baseada no que já li dos trabalhos, precisamos gastar um certo tempo discutindo um aspecto da literatura que aparentemente não discutimos como devíamos ter feito: as forças que contribuem para impedir que o protagonista atinja seu objetivo ou consiga o objeto de seu desejo. Vocês devem se lembrar do termo que se refere à pessoa que interfere na jornada da personagem principal ao longo da história... – E olhou ao redor da sala.

– Bradley?

– O vilão? – respondeu ele. Na verdade, para Brad Talbot aquela resposta parecia perspicaz.

– É isso. Mas e a outra designação...?

– Antagonista – disse Stephanie Mills, com a mão erguida e falando de modo entusiasmado, antes que Prô tivesse a oportunidade de chamá­-la.

– Isso mesmo. Uma história inesquecível precisa de um antagonista inesquecível. A força do protagonista é medida em relação às forças do antagonismo que ele precisa superar. Então, quando escreverem suas histórias, vocês precisam se assegurar de que o antagonista (o vilão) é suficientemente cruel, persistente ou frio para representar um perigo grande o suficiente de modo a revelar ou desenvolver as características básicas de seu protagonista. Faz sentido para vocês?

Alguns concordaram com um movimento de cabeça. Daniel anotou algumas coisas em seu caderno.

– Prô – perguntou Stephanie –, o protagonista também pode ser o antagonista? Quero dizer, existe alguma forma de a personagem principal ser o herói e o vilão ao mesmo tempo?

– É uma boa pergunta – respondeu a professora atentamente. – Pode acontecer quando o protagonista não se dá conta de que também é o antagonista. Assim, talvez numa história em que se tenha um narrador não confiável, ou seja, quando ele ou ela está contando a história, mas ainda desconhece a verdade total do que vai acontecer. Ele pode ser louco, alucinado ou as duas coisas.

Daniel não tinha certeza, mas pareceu que Prô olhou em sua direção um instante antes de desviar o olhar. Foi tudo muito rápido, não chegou a ser um olhar, mas ele percebeu.

Talvez ela soubesse mais do que devia.

Ele esperava que não.

– Mas isso não é tudo – prosseguiu ela. – Por exemplo, naquele conto de Poe que estudamos, intitulado O barril de amontillado, o personagem principal é também quem empareda o outro homem vivo na cripta. Acho que, neste caso, o protagonista está lutando contra si mesmo, contra o que é capaz de fazer. Então, num sentido real, ele é, ao mesmo tempo, o protagonista e o antagonista. O mesmo vale para a história do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (O médico e o monstro). Na verdade, podemos afirmar que todos nós somos o protagonista e o antagonista de nossas próprias vidas, nas histórias que vivenciamos todos os dias.

Quando ela voltou à discussão do que torna um antagonista memorável, Daniel já não estava mais ouvindo. Em vez disso, seus pensamentos vagavam em direção à lenda dos índios ojibwe que seu pai lhe contara depois dos eventos do último outono, quando Emily foi morta.

De acordo com essa lenda, um velho estava ensinando a seu neto a moral e os valores da tribo e disse que havia uma luta dentro dele entre dois lobos: um feroz e mau, cheio de escuridão na alma; o outro, bom e justo, estava cheio de esperança e encanto. “Qual dos dois vai vencer?”, perguntou o menino. “O que eu alimentar mais”, replicou o avô.

Então, o pai de Daniel disse: “O homem que matou Emily alimentou o lobo errado durante um longo tempo, até que o animal ficasse forte e, por fim, pudesse matar o outro”.

E, desde então, Daniel teve consciência de que também dentro dele havia dois lobos.

Qual dos dois você está alimentando, Daniel?

Qual dos lobos vencerá?

Isso o fez pensar nos filmes favoritos de Nicole, a série Star Wars, e a passagem de Anakin Skywalker para o lado sombrio da Força.

Ele atrai todos nós, ele...

Soou o sinal do fim da aula, e Daniel foi arrancado abruptamente de seus pensamentos.

Baixou o olhar e viu que seu caderno estava coberto de palavras rabiscadas numa escrita que não se parecia em nada com sua caligrafia. Repetidas vezes, ele escrevera as palavras “Cova Perdida é a chave”.

Mas não tinha ideia do que aquilo significava.

Em silêncio, fechou o caderno, recolheu suas coisas e saiu para o corredor. Nicole saíra para sua próxima aula, mas Kyle o estava esperando.

Seu amigo estava um tanto longe dele e começou a se aproximar com um andar desajeitado, meio de girafa, até que começou a correr e tudo nele se sincronizou. Kyle provavelmente seria capaz de correr mais rápido que a metade dos corredores das equipes da escola, mas ele não era chegado a nenhum esporte. Daniel sempre se perguntara o motivo, mas nunca abordara o assunto, pois era fácil perceber que o amigo nunca estava a fim de falar disso.

– Você já descobriu quem está mandando aquelas mensagens? – perguntou Kyle em voz baixa.

– Ainda não. O número está bloqueado.

– Já contou sobre elas para a Nicole?

– Não. Acho que não é uma boa ideia.

Daniel achava que sua namorada não ficaria muito entusiasmada ao descobrir que ele estava recebendo mensagens misteriosas de alguém chamada Madeline.

– É isso aí.

Começaram a caminhar pelo corredor.

Daniel não conhecia nenhuma Madeline e não havia nenhuma garota com esse nome na escola, pelo menos que ele soubesse. Havia uma garota do segundo ano chamada Maddie, o nome que mais lembrava o da autora das mensagens. É claro que sempre era possível que uma caloura ou aluna transferida se chamasse Madeline, mas, se esse fosse o caso, por que ela estaria lhe mandando mensagens de texto? E como teria conseguido seu número?

Existem aplicativos que podem ocultar o número de alguém que está enviando uma mensagem, o que não constitui nenhum mistério. Contudo, com sua ligeira tendência conspiratória, Kyle lembrou que sequer havia prova de que Madeline fosse uma garota; poderia ser um cara usando um nome de mulher – ou uma garota usando um nome diferente. Afinal, quando se está on­-line ou lendo mensagens de texto, não se pode ter certeza de que as pessoas são realmente o que dizem ser.

Quando passaram pelo ginásio, Kyle disse:

– Ei, no almoço tenho um quebra­-cabeça para você. Eu mesmo o inventei.

Ele estava sempre tentando bolar um problema de lógica ou matemática que Daniel não conseguisse resolver na hora.

Até então, não tinha conseguido ter sucesso em sua empreitada.

Matemática e lógica não eram coisas nas quais Daniel tivesse tentado se destacar; para ele, eram apenas coisas instintivas, como aprender uma língua estrangeira para certas pessoas. Durante um tempo, ele não tinha resolvido enigmas propostos pelo amigo, mas ultimamente Kyle estava ficando cada vez mais criativo, e ele teve que passar a resolvê­-los.

– Aposto um refrigerante que você não consegue solucioná­-lo em um minuto – disse Kyle, detendo­-se um instante.

– Não sei. Hoje estou me sentindo em plena forma.

– É bom que esteja.

– Aceito a aposta.

Depois que Kyle foi embora, Daniel respondeu a algumas mensagens e, quando estava terminando, recebeu uma nova: Estou aqui esperando por você, Daniel – Madeline.

Madeline outra vez.

Em vez de apagar a mensagem, ele a arquivou, na esperança de acabar descobrindo quem ela era.

Durante a prova de cálculo, fez o que pôde para não deixar que as questões referentes à identidade dela ou à Cova Perdida o distraíssem, mas não se saiu muito bem em sua tentativa; ainda bem que Cálculo era uma matéria fácil para ele, ou teria realmente tido problemas com a prova.

Acabou sendo o último a entregar a prova, e o professor, o Sr. Carrigan, olhou para ele preocupado.

– Você está se sentindo bem, Daniel?

– Sim – respondeu ele. Normalmente, Daniel entregava a prova pelo menos dez ou quinze minutos antes de qualquer outro aluno; assim, não ficou surpreso com a preocupação do Sr. Carrigan. – Eu estou bem.

***

Na hora do almoço, Kyle sentou­-se à frente de Daniel nos fundos da cantina.

– O meu enigma – disse ele – é um paradoxo do mentiroso.*

– Eu gosto de paradoxos do mentiroso – disse Daniel. Naquele dia, em vez de comer a carne misteriosa da cantina, Daniel trouxera seu próprio almoço de casa: um pouco de fajita de frango do dia anterior. Era muito melhor que qualquer coisa que a cantina pudesse servir. – Vamos ouvi­-lo.

– Vamos lá – disse Kyle, colocando uma lata fechada de refrigerante ao lado de seu prato. – Imagine o seguinte: existem quatro portas, duas de cada lado de um corredor, com um guarda postado ao lado de cada uma. Atrás de uma dessas portas está a princesa; atrás das outras está um bilhete só de ida para a masmorra. Antes de escolher a porta, o nosso cavaleiro Elvin...

– Cavaleiro Elvin?

– Isso mesmo. Por que não?

– Fala sério.

– Não lhe parece suficientemente medieval?

– Bem...

– Que tal Elvinore? – propôs Kyle.

Parece mais nome de princesa que de cavaleiro.

– Tudo bem. Tanto faz. Vá em frente.

– Que seja Elvinore; ele faz uma pergunta a cada guarda para tentar encontrar a princesa para que possa se casar com ela e viverem felizes para sempre. Mas aqui está o problema: o guarda diante da porta dela e o que está diante de uma outra sempre dizem a verdade, mas os outros dois guardas sempre mentem.

– Puxa!

– Muito bem. Ele vai até a primeira porta à esquerda e pergunta: “A princesa está atrás dessa porta?”. “Sim”, responde o guarda. Ele passa para a segunda porta daquele lado do corredor e pergunta: “A princesa está atrás dessa porta?”. “Sim”, responde o guarda.

– Duas portas, duas respostas afirmativas.

– Isso. Então, ele atravessa o corredor e pergunta ao guarda seguinte: “A princesa está atrás da porta diretamente à sua frente, do outro lado do corredor?”. Outra vez a resposta é sim. Por fim, Elvinore vai para a última porta. “A princesa está atrás dessa porta?”. “Não”, responde o guarda.

Kyle pegou o celular e procurou o cronômetro no menu.

– Bem, Elvinore pensa um segundo e, então, caminha para a porta correta e... – interrompendo­-se, toca a tela. – Vá em frente.

– A primeira porta.

– O quê? – exclama Kyle, encarando­-o.

– Ela estava atrás da primeira porta.

– Como você...?

– A princesa não podia estar atrás da última porta, pois seu guarda sempre deve dizer a verdade, e ele disse que ela não estava lá. Se estivesse, ele teria que dizer sim.

– Certo. Mas...

– Ela não podia estar atrás da terceira porta porque o guarda disse que ela estava atrás de uma porta diferente, e, mais uma vez, se ele a estivesse guardando, teria que dizer a verdade. Então, isso significa que ela só pode estar na primeira ou na segunda porta.

– Mas por que você achou que fosse a primeira porta?

– Se a princesa estivesse atrás da segunda porta, então três guardas teriam dito a verdade sobre onde ela estava: o segundo, o terceiro e o quarto. Mas sabemos que apenas dois dizem a verdade, então ela tem que estar atrás da primeira porta. O primeiro e o quarto guardas disseram a verdade; o segundo e o terceiro mentiram.

Daniel comeu outro pedaço de fajita.

Estava muito boa mesmo.

Kyle balançou a cabeça, parou o cronômetro e empurrou a lata de refrigerante para o lado de Daniel.

– Você vai me pegar qualquer dia desses – disse Daniel, olhando as horas e, em seguida, acabando rapidamente com o restante de sua comida, deixou que Kyle ficasse com o refrigerante e se levantou. – Preciso ir embora.

– Sua consulta com o médico.

– Isso mesmo.

Ele não precisava contar ao amigo com que tipo de médico ia se consultar.

Kyle já sabia.

E não era um clínico geral.

– Ei!– disse Kyle. – Mia e eu vamos ao jogo hoje à noite.

Mia Young, a garota de Kyle, dedicava­-se a escrever ficção quase tanto quanto ele e estava trabalhando num romance: uma história de terror sobre fantasmas que assombram um velho mosteiro. Os dois estavam juntos desde o último verão e, pelo que Daniel podia perceber, eram feitos um para o outro.

– Vamos nos encontrar depois do jogo. Traga a Nicole. Podemos ir curtir lá em casa.

– Boa sugestão.

– Jogue bem. Você comanda aqueles caras.

– Tomara que você tenha razão.

Depois de sair da cantina, Daniel foi até seu armário e arrancou o DVD de Psicose que tinham prendido na porta dele. Então foi até a diretoria e entregou o bilhete que seu pai havia mandado para que fosse dispensado das aulas da tarde e de Educação Física. Quando estava saindo da escola, ficou pensando no que escrevera em seu caderno na aula da Prô.

Não era bom sinal não se lembrar de ter rabiscado aquela frase, e era ainda mais bizarro que sua caligrafia parecesse a de outra pessoa. O que queria dizer aquilo tudo?

Está começando de novo.

As distorções estão voltando.

Tentou dizer a si mesmo que nada daquilo era verdade quando começou a dirigir o carro até o consultório de seu psiquiatra.

* Nome dado ao clássico sofisma “Eu minto”, referência ao lendário Epimênides (séc. IV a.C.), que diz: “Todos os cretenses mentem; ora, ele é cretense; logo, mente. Conclusão: os cretenses não mentem. No entanto, se Epimênides diz a verdade, os cretenses mentem” etc. Logo, se Epimênides diz a verdade, está mentindo, e se mente diz a verdade. Fora da verdadeira conclusão lógica que se impõe e impede essa falsa regressão ao infinito (“não é verdade que os cretenses mentem sempre”), esse tipo de paradoxo é útil para distinguir a linguagem da metalinguagem, o que se diz e o fato de dizê­-lo. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008) (N.T.)


3

Eles não dizem que você está “ficando louco”.

Daniel tinha aprendido isso em sua primeira visita ao psiquiatra.

O cara tivera o grande cuidado de evitar o uso dessa frase.

Mas quando você começa a ver coisas, a ouvir vozes, a ficar sonâmbulo e a desenterrar animais de estimação do túmulo, obviamente existe motivo para preocupação. Foi o que levou Daniel para o psiquiatra.

A tomografia e a ressonância deram negativo. Pelo que o médico podia observar, não havia nada de errado com ele fisicamente, o que era tranquilizador e preocupante ao mesmo tempo.

Porque alguma coisa, sem dúvida, estava errada.

E se não era física, então tinha que ser mental, psicológica.

O que não é exatamente algo que um garoto de 16 anos quer ouvir.

Essa era a quinta visita de Daniel ao Dr. Fromke. Enquanto estava na sala de espera, pegou o telefone e consultou o Google. “Cova Perdida é a chave”. Mais de um milhão de resultados apareceram na tela.

Tudo bem, era um pouco demais para ser consultado no momento.

Deu uma olhada rápida nos doze primeiros resultados, mas não viu nada que lhe pudesse ser particularmente útil.

Depois de colocar o telefone de lado, folheou distraidamente uma Sports Illustrated velha de quatro meses e que estava na mesinha ao lado de sua cadeira. Uma conversa que tivera com Nicole algumas semanas antes lhe veio à mente. Ela lhe perguntara que diferença havia entre alguém que é psicopata e alguém que é psicótico.

– Bem... Por motivos óbvios, ele havia lido muito sobre o tópico desde outubro. – Os psicopatas, ou sociopatas, seja lá o termo que se queira usar, sabem a diferença entre o certo e o errado. Mas alguém que é psicótico não sabe.

– Então... E alguém que sofre de esquizofrenia?

– Essa pessoa nem sempre sabe o que é real e o que não é.

– Mas o que é certo e o que é errado?

– Pelo que eu li, a pessoa sabe o que é certo, mas como a diferença entre a realidade e suas alucinações é tão imprecisa, nem sempre ela consegue fazer isso.

Agora, enquanto folheava a revista, lembrou­-se da lenda do lobo e ficou imaginando se uma pessoa podia estar alimentando o lobo errado sem sequer saber disso, bem como se era possível chegar ao ponto de não distinguir entre as duas atitudes.

– Daniel Byers? – chamou a recepcionista, informando­-o de que o médico ia recebê­-lo.

Entrou no consultório: numa mesa desarrumada via­-se o canivete que ele usava como abridor de cartas ao lado da caixa de entrada de correspondência, uma cadeira virada para o sofá, diplomas na parede, um certificado de conselheiro voluntário da Penitenciária Estadual de Derthick, uma prateleira com 28 livros, com um total de 471 letras nas lombadas. Daniel notou o número, pois não conseguiu evitar observá­-lo. Sempre acontecia isso com tudo que envolvesse matemática e números.

O Dr. Fromke parecia ter a mesma idade do pai de Daniel, mas estava quase careca e tinha uma barba um tanto desgrenhada. Ele se levantou da cadeira para apertar a mão de Daniel e fez um gesto indicando o sofá.

– Sente­-se, por favor.

Depois que Daniel se sentou, o médico instalou­-se em sua cadeira e perguntou:

– Como você está se sentindo hoje?

– Estou bem.

– Teve dor de cabeça recentemente?

– Não.

O Dr. Fromke escreveu alguma coisa em seu bloco de notas e, então, foi direto ao assunto:

– E as distorções? Você ainda as tem?

Na verdade, fora Kyle quem cunhara o termo “distorção” para designar quando a fantasia e a realidade – ou talvez a sanidade e a insanidade – se misturavam em Daniel. A palavra acabou pegando, e desde a primeira consulta em que Daniel contara ao Dr. Fromke o que estava acontecendo, ele se descobriu usando­-a de maneira natural. Desde então, o médico também optou por usá­-la, no lugar de “alucinações”.

– Não – respondeu Daniel. – Nada de distorções.

Mas e o que aconteceu na aula de Literatura? Escrever aquela frase tantas vezes? Será que isso conta?

Não. Foi apenas porque você estava distraído.

Mas e quanto a...

– Fico feliz em saber disso – disse o Dr. Fromke, afastando Daniel de seus pensamentos.

Ele esperava que o médico não lhe perguntasse se estava tomando os remédios. Não queria admitir, mas tinha se livrado deles, jogando dois comprimidos no vaso sanitário todos os dias, mas não sabia mentir. Provavelmente seria melhor que o assunto não viesse à tona.

Felizmente, o Dr. Fromke não tocou nele.

– Você tem dormido bem?

– Muito bem.

– Tem tido crises de sonambulismo?

– Nadinha.

– E o relacionamento com seus pais? Diga­-me como está indo.

– Tudo vai bem. Com meu pai, pelo menos.

Daniel não tinha certeza se saberia explicar como estavam as coisas com sua mãe. Isso era um pouco mais complicado. Ela tinha ido embora na última primavera, sem dizer por que a ninguém, e não falou muito com Daniel desde então. Porém, em outubro, pela primeira vez ela saiu de Minneapolis­-Saint Paul, onde estava morando, para assistir a um dos jogos de futebol de Daniel.

Isso era estranho.

Muito estranho.

No último fim de semana, ela voara até Anchorage, no Alasca, para visitar o irmão, mas planejava voltar ao Meio­-Oeste na próxima terça­-feira, em tempo de ver Daniel no Natal.

Ele nem conseguia imaginar como isso aconteceria.

– E a sua mãe? – perguntou o Dr. Fromke.

– Como sempre.

Ela ainda não contara a Daniel por que tinha ido embora. Ela não estava com nenhum outro homem, e o pai de Daniel não tivera nenhum caso ou coisa do tipo que a tivesse desagradado – o que, basicamente, significava que ela preferia ficar sozinha a conviver com o marido e o filho.

Era aquilo mesmo.

Tudo indicava que eles iam se divorciar, e Daniel estava surpreso que isso ainda não tivesse acontecido.

Ele estava dividido.

Por um lado, queria que eles ficassem juntos, mas, por outro, se sua mãe não quisesse isso, tudo bem. Ele conseguiria se acostumar com a ideia.

Ele a queria perto dele.

Ele não a queria perto dele.

Queria perdoá­-la por ter ido embora.

Queria apenas esquecê­-la e deixá­-la viver sua própria vida. Era atraído por essas duas direções e, às vezes, achava que ia pirar por causa disso, mas esse não era exatamente o tipo de coisa que queria compartilhar com seu psiquiatra naquele momento.

Ele a amava?

Já nem tinha mais certeza disso.

– Você tem conversado com ela? – perguntou o Dr. Fromke.

– Um pouco. Sim. As coisas não melhoraram, mas também não pioraram. Como eu disse, estão como sempre.

O Dr. Fromke escreveu alguma coisa e perguntou a Daniel sobre suas notas, como estavam a escola e o basquete, se ele estava se sentindo deprimido ou ansioso, se estava achando difícil se concentrar. Achando que o incidente na aula de Literatura provavelmente não fosse nada com que se preocupar, preferiu não mencioná­-lo.

– Então – concluiu o médico –, os remédios devem estar fazendo bem a você.

Isso não soou como uma pergunta.

Daniel não disse nada.

Continuaram a conversar por mais uns vinte minutos, com Daniel reiterando que tudo estava indo bem e o Dr. Fromke parecendo satisfeito.

– Da última vez que você esteve aqui, conversamos sobre a morte de sua avó.

– Isso mesmo – disse Daniel. Era verdade, esse assunto fora levantado, embora ela tivesse morrido quando ele tinha nove anos.

– Como você tem lidado com isso?

– Bem. Estou muito bem.

Ele explorou os sentimentos de Daniel com relação àquele assunto por uns dois minutos e, então, escreveu uma nova receita e a entregou a ele.

– Dê isto ao seu pai. Ele pode aviá­-la na farmácia.

– Claro.

– Não esqueça. Dois comprimidos pela manhã. Tome­-os junto com algum alimento.

– Não vou esquecer.

Ele não tinha exatamente certeza do motivo que o levara a não tomar os remédios. Talvez fosse porque as distorções tinham parado sozinhas. Talvez porque não quisesse correr o risco de ter algum resultado positivo se fosse testado com relação ao doping nos esportes, ou porque os remédios pudessem turvar seu raciocínio ou retardar suas respostas.

Ou talvez porque simplesmente não gostasse da ideia de admitir que precisava de ajuda.

Esquizofrenia?

Sim, era possível que fosse isso o que havia de errado com ele.

Ou, pelo menos, parte do que estava errado.

Para a pessoa que ouve vozes dentro de sua cabeça, estas podem ser tão reais que ela sequer as questiona. As alucinações podem ser tão convincentes que as pessoas simplesmente as aceitam como fato consumado.

Quando ele tinha as distorções, elas eram quase como a realidade ao seu redor, mas havia frestas nelas, rachaduras invisíveis que deixavam penetrar pensamentos que ele não devia ter de modo algum.

Daniel estava na idade certa para ser diagnosticado como esquizofrênico.

Ele apresentava sintomas suficientes para que o Dr. Fromke achasse que pudesse ser esquizofrenia, e é por isso que lhe prescrevera drogas antipsicóticas.

Mas Daniel não estava convencido.

Tinha que haver mais alguma coisa.

Afinal, quando a garota morta agarrou­-lhe o braço, deixou nele uma marca, vermelha e inchada, no formato de sua mão, como se seus dedos tivessem lhe queimado a carne.

Aquilo foi real.

A dor foi real.

A marca foi real.

Ele não tinha imaginado nada daquilo.

Mesmo quando se começa a ouvir vozes que não são reais ou a ver coisas que não são reais devido à esquizofrenia, marcas não aparecem na pele sem motivo. Particularmente tão fortes como aquela, marcas que, como por milagre, desaparecem em menos de 24 horas.

Não, a esquizofrenia não provoca isso.

Daniel não sabia em que acreditar no paranormal, no sobrenatural, mas não estava disposto a descartar nada. Alguma coisa lhe acontecera, algo que a lógica, o raciocínio e a ciência normais não conseguiam explicar.

***

Depois da consulta médica, Daniel foi para casa.

O consultório ficava a seis quilômetros da cidade, e ele teve que passar pela prisão para chegar em casa.

Torres de vigilância. Cerca de arame farpado. Tudo o que era necessário.

Ele sempre diminuía a marcha quando passava por ali.

Talvez apenas por curiosidade.

Algumas pessoas aceleravam.

Porque ficavam nervosas.

Depois que a Penitenciária Estadual de Derthick foi construída dois anos antes, ela se tornou um dos maiores empregadores do distrito, que sempre dependeu principalmente do turismo ao ar livre para a oferta de empregos: passeios guiados no verão, aluguel de motos de neve e esquis no inverno.

Mas as pessoas da região tinham sentimentos diferentes com relação à penitenciária. É claro que estavam satisfeitas com os empregos que ela oferecia, mas a ideia de ter uma prisão tão perto não as entusiasmava exatamente, embora o governo tivesse lhes garantido que ela era segura e que não havia nada com que se preocupar.

***

Enquanto Daniel estava no consultório do psiquiatra, as nuvens se foram e a neve cessou. Pelo que ele podia perceber, só uns 2,5 centímetros de neve haviam caído desde a noite anterior.

A menos que a Coulee High, que ficava a uma hora de distância, tivesse ficado bloqueada pela neve, o jogo daquela noite aconteceria – o que era bom, pois Beldon High estava invicta depois de seis partidas naquela temporada, já entrando no novo ano.

Além disso, ele já teria recebido uma mensagem de texto se o jogo tivesse sido adiado.

A neve que cobria o chão brilhava à luz do sol. Tudo parecia tão puro e limpo, como sempre acontecia depois de cada nevasca.

Como de costume, o limpa­-neve passava – principalmente quando a neve estava meio derretida – e juntava a neve manchada com a areia que o distrito por vezes colocava nas estradas para facilitar a tração dos veículos.

Montes de neve acumulavam­-se ao longo das estradas e, quando a neve fresca derretia, deixava uma camada de sujeira na crosta da que ficava por baixo. Mas uma nova nevasca sempre a cobria, de modo que tudo parecia imaculado novamente, embora houvesse algo feio sob a superfície.

Provavelmente havia ali um significado mais profundo; um simbolismo sobre as aparências de nossas vidas e como elas podem esconder o que realmente acontece debaixo delas.

Somos todos tanto protagonistas quanto antagonistas das histórias que vivemos todos os dias.

Dois lobos dentro de nós.

Travando um combate mortal onde ninguém pode vê­-los.

***

A viatura do pai estava na entrada na garagem.

Daniel pensara que ele estivesse fazendo uma patrulha, mas seu horário de trabalho não era nada regular e, muitas vezes, não era incomum que ele estivesse em casa – ou fora – nas horas mais inesperadas.

Ele estava na cozinha esvaziando a lavadora de pratos quando Daniel entrou.

– Oi, Dan.

– Oi.

– Como foi com o médico? – perguntou o pai, evitando usar a palavra “psiquiatra”. Ficava mais fácil para os dois.

– Ele quer que você providencie isto – disse Daniel, entregando­-lhe a receita.

– Certo. Obrigado.

Naquela casa, o dinheiro não sobrava, e Daniel não ficou muito entusiasmado com o fato de o pai ter que comprar um remédio que ele sequer ia tomar, mas não estava preparado para lhe dizer que não vinha tomando os medicamentos regularmente. Ele realmente não sabia como aquilo ia terminar.

Talvez começasse a tomá­-los pela manhã.

Sim, talvez seja preciso, pois você está outra vez fazendo coisas sem lembrar, como escrever aquelas frases misteriosas em seu caderno – com a letra de outra pessoa.

– Há mais alguma coisa que eu deva saber? – perguntou o pai.

– Que você precise saber?

– Do médico.

– Ah, sim. Não... Está tudo bem. Tudo vai bem. Você quer que eu ajude?

– Não. Já acabei – disse o pai, tirando os últimos pratos da máquina. – Então, você está pronto para o jogo?

– Estou. Ei, ouvi dizer que acharam outro lobo.

O pai confirmou com um soturno movimento de cabeça e fechou a máquina.

– Estamos investigando. Na verdade, isso me fez lembrar de uma coisa que preciso lhe dizer: não vou conseguir assistir ao seu jogo de hoje à noite. Tenho que seguir uma pista relacionada ao caso.

– Tudo bem.

Seu pai sempre soube equilibrar bem as coisas: estava presente na maioria de seus jogos, mas não em todos eles. Ele deixava claro o quanto Daniel era importante para ele, mas não queria fazer alarde disso.

– Bem – disse o pai, tirando as chaves do bolso. – Preciso ir. Tenha um bom jogo.

– Vou ter.

– Mande­-me uma mensagem contando como foram as coisas.

– Claro.

***

A dor de cabeça começou quando Daniel estava guardando os livros.

Começou na parte de trás da cabeça e, então, deslocou­-se com firmeza para a frente, como um enxame de abelhas avançando por seu cérebro, zumbindo, desviando sua atenção, penetrando­-lhe os pensamentos com seus ferrões.

No último outono, quando ele teve as distorções, as dores de cabeça intensas quase sempre as precediam, e não lhe parecia um bom sinal tornar a senti­-las.

Ele se dizia que a dor ia passar sozinha.

Você sabe que isso não vai acontecer até ver outra distorção.

Bem, se esse fosse o caso, seria melhor que a distorção acontecesse logo, para que a dor de cabeça já tivesse desaparecido durante o jogo, mas levando em consideração que da última vez que tivera esse tipo de sintoma tinha visto uma garota morta se levantar diante dele, não era exatamente o que gostaria que acontecesse.

Depois de responder a algumas mensagens, Daniel pegou o uniforme e o tênis do basquete, colocou­-os em sua mochila e foi para o estacionamento da escola, onde o ônibus do time estaria esperando.


4

Nesta época do ano, no norte de Wisconsin, os dias são curtos, e às cinco horas da tarde, quando o ônibus partiu para Coulee High, já estava escuro.

Durante a viagem, alguns caras do time conversavam ou brincavam uns com os outros, mas a maioria mandava mensagens de texto, jogava em seus celulares ou ouvia música com fones de ouvido.

Stephen Layhe, que dividia algumas aulas com Daniel e estava sentado ao lado dele, perguntou­-lhe onde ele estivera naquela tarde.

– No médico.

– Você está legal?

– Estou, está tudo bem. Foi só uma espécie de checkup, sabe, para ver como eu estou.

– Puxa – disse Stephen. – Então você está preparado para vencer esses caras hoje à noite.

– Estou.

– Como nas finais do ano passado.

– Isso mesmo.

Continuaram a conversar por alguns minutos. A dor de cabeça não dava trégua, dificultando­-lhe a concentração. Por fim, disse a Stephen que ia ouvir um pouco de música.

Nicole havia gravado um programa de música para Daniel, que agora o consultou. Em vez de bandas de garotos ou o top 20 de música pop, ela gravara música eletrônica para violino e música techno. Uma batida hipnotizante. Sem letra. Ela gostava de dançar ao som dessa música, e ele também gostava do estilo porque o ajudava a se preparar mentalmente para o ritmo do jogo.

Olhou pela janela para a escuridão lá de fora, observando o reflexo do interior do ônibus criado pela luz esverdeada dos fones de ouvido misturada ao luar que refletia a paisagem coberta de neve do exterior.

Os dois mundos passavam um pelo outro no vidro da janela: uma floresta coberta de neve e a linha dos rapazes em torno de Daniel. Ali, as duas imagens se encontravam, tornando­-se uma só. E era possível até se enganar, confundindo onde uma terminava e a outra começava.

Mas você sabe bem.

Você sabe distinguir o real do irreal.

A música pulsava em sua cabeça.

Ele diminuiu o volume, mas isso só fez com que sentisse ainda mais a dor de cabeça; então, tornou a aumentar o volume para se distrair dela.

Enquanto observava o negror da noite misturar­-se na janela com o fraco reflexo do interior do ônibus, Daniel descobriu­-se, de alguma maneira, puxado para fora, ficando em pé na neve. Não estava mais escuro. A luz do dia espalhava­-se sobre ele.

A neve estava desaparecendo, não derretendo, mas simplesmente indo para dentro da terra, e, então, era outono, com o ciclo das estações retrocedendo. Folhas cobriam o chão. As árvores sem folhas erguiam­-se para um vasto céu de um azul de aço.

É um sonho.

Você só está sonhando.

Mas essa convicção não impediu que as imagens se desdobrassem diante dele.

Ele estava caminhando paralelamente a uma cerca de arame farpado. Tinha percorrido metade do caminho até um celeiro no final do campo, quando surgiu uma garota de trás de uma das árvores próximas.

Não conseguia ver o rosto dela, mas baseado em sua altura e constituição, imaginou que talvez tivesse uns 10 ou 11 anos.

Estava usando uma camisola branca fora de moda, com franjas de renda.

Quando ela virou o rosto para ele, Daniel sentiu­-se enregelar.

Ela abria e fechava a boca lentamente, sem falar, sem emitir som, apenas deixando que a boca abrisse, como se quisesse que as palavras saíssem, porém sem conseguir fazer isso. Um sangue escuro escorria­-lhe dos olhos, descendo pelo rosto em duas listras macabras.

Lágrimas de sangue.

Daniel recuou, mas ela foi em sua direção como se estivesse tentando manter a mesma distância entre eles. Ela ergueu uma das mãos e apontou para ele; então tornou a abrir a boca em silêncio.

Ele queria perguntar­-lhe quem ela era, o que ela queria, mas, então, ela se virou e começou a caminhar em direção ao celeiro.

Perturbado com a aparência dela e curioso a seu respeito, Daniel a seguiu.

Não conseguiu evitar.

Ela parecia caminhar lentamente, mas também parecia se movimentar com rapidez, e ele sabia que era porque aquilo era um sonho, e os sonhos seguem seu próprio conjunto de regras.

Então, eles estavam junto do celeiro. Ela entrou nele.

Um tanto apreensivo, ele a seguiu.

E descobriu que ela estava a três metros dele, olhando­-o com aqueles terríveis olhos vertendo sangue.

Ela abriu a boca outra vez e ele conseguiu ouvir o que ela dizia. Sua voz era áspera e dura, mas também, de certo modo, era marcada pela suave inocência de uma criança:

– Madeline está esperando você, Daniel. Madeline está esperando.

– Quem é Madeline?

A garota não respondeu; em vez disso, ergueu os braços e olhou para o palheiro.

– Quem é você? – perguntou ele. – O que quer de mim?

As chamas surgiram na barra da camisola dela, mas se ergueram rapidamente, à medida que absorviam o tecido.

Em seu sonho.

Seu sonho...

Daniel correu para derrubar a garota no chão, para ajudá­-la a rolar e apagar o fogo, mas quando tentou tocá­-la, suas mãos passaram através dela.

Sentiu uma dor forte nos braços devido ao fogo e quase gritou ao se afastar.

Contudo, não acordou. Ele queria acordar, tentou acordar, mas não conseguiu.

O fogo era voraz e consumiu a garota rapidamente, até que nada sobrasse além de um corpo enegrecido em pé diante dele enquanto as chamas se extinguiam. Finas ondulações de fumaça negra subiam do corpo dela e se dissipavam no ar.

Ela baixou a cabeça, mas manteve os braços erguidos.

De alguma forma, conseguiu sorrir, revelando dentes alvos que contrastavam fortemente com sua pele horrível e carbonizada.

– Depressa, Daniel, você tem que detê­-lo – disse ela com aquela voz áspera, mas, ao mesmo tempo, terna e infantil. – Antes que aconteça outra vez.

E, então, começou a desintegrar­-se.

– Deter quem? – perguntou ele, afoito. – Antes que o que aconteça outra vez?

Pedacinhos de seu rosto se desprendiam e voavam como fagulhas negras de uma fogueira, brasas sopradas pelo vento.

E, então, não era só o seu rosto, mas ela inteira; camada por camada, as partículas negras que constituíam aquela garota viva voaram para longe e nada mais sobrou.

Naquele momento, embora ele quisesse ficar e ver se ela voltaria, sentiu que se afastava do celeiro e mergulhava na luz do dia, ouvindo o uivar distante e solitário de um lobo que ecoava pelas colinas no horizonte.

Uma tempestade se formara, e o campo, que alguns minutos antes se mostrava ensolarado, foi coberto pela sombra cinzenta de uma fria chuva outonal.

Vindo de algum lugar do ronco do trovão, ele ouviu seu nome: “Daniel”.

Outros trovões rolaram pela paisagem, que estava se transformando de um campo para o que parecia um mar encapelado ou as águas do vizinho lago Superior ou...

– Dan?

Um raio rasgou o céu, enquanto a chuva tombava sobre ele e...

– Você está legal?

Daniel não abriu os olhos conscientemente, mas, de repente, eles estavam abertos e ele reconheceu que estava no ônibus. Stephen estava em pé ao lado dele.

– Você está bem? – perguntou Stephen.

– Estou – respondeu Daniel, esfregando os olhos. Não estava mais usando os fones de ouvido. Ele os tinha tirado sem perceber ou haviam caído sozinhos. – Devo ter pegado no sono.

O ônibus tinha parado.

Estavam na Coulee High.

A dor de cabeça de Daniel não havia passado completamente, mas as abelhas continuavam a zumbir tão forte quanto antes.

Normalmente, sempre que acordava, seus sonhos se desfaziam quase imediatamente, até ficar apenas uma vaga lembrança do que havia sonhado. Desta vez, entretanto, o sonho parecia se tornar mais claro quanto mais ele ficava acordado e alerta.

A garota.

Os olhos vertendo sangue.

As chamas a envolvendo.

Seu corpo se desfazendo e sendo soprado para longe diante dos olhos dele.

***

Todos os rapazes à frente dele estavam saindo do ônibus.

Daniel pegou suas coisas.

No último outono, quando a garota morta agarrou seu braço, deixara­-lhe um ferimento no braço; ele olhou inquieto para as mãos para ver se, por ter tocado as chamas no sonho, apresentavam alguma marca, se tinham sido realmente queimadas, mas, felizmente, elas estavam intactas.

A dor passou.

A lembrança não passou.

Como ele era o capitão, seus colegas de equipe o esperavam fora do ônibus.

Daniel tentou agir como se tudo estivesse bem, mas notou que sua mão estava tremendo enquanto seguia o treinador e à frente dos rapazes que iam jogar na Coulee High.


5

As pessoas falam em estar na zona* e estão certas. Acontece. É uma coisa real.

Há um momento para brincar com seu arremesso, e há um momento para jogar o jogo. Durante o treino, você pode corrigir as coisas, ajustar a posição da mão na bola, trabalhar a forma, mas no jogo é preciso responder ao que está acontecendo na quadra.

Assim que você começa a se concentrar nos aspectos técnicos da partida e não apenas em estar presente e confiar em seu preparo, você acaba se distraindo.

Mas quando você está em sua zona, as coisas fluem naturalmente. Você encontra seu ritmo e responde sem pensar. O barulho da torcida fica lá no fundo, lá no limite de sua consciência, mas se transforma em alguma coisa que você, de certa maneira, efetivamente nota e não nota ao mesmo tempo.

O jogo se torna o centro de tudo.

Nessa noite, apesar do pesadelo com aquela garota, apesar de as coisas estarem se tornando novamente estranhas, Daniel estava na zona.

Mas os demais jogadores não estavam.

O treinador tentou diferentes combinações com os que estavam no banco, mas na metade do jogo, a Beldon estava perdendo por oito pontos.

No vestiário, não gritou com eles (não era o seu estilo), mas, em vez disso, disse­-lhes que estavam tensos demais.

– Eles têm que ser pressionados no fundo da quadra. Façam bons bloqueios. Não fiquem muito agitados. Caprichem nos arremessos, e vamos ganhar desses caras.

A segunda parte começou bem para a Beldon.

O time se recuperou e passou à frente, revertendo a diferença para seis pontos à frente.

Mas a equipe do Coulee jogava pesado e conseguiu assumir a liderança outra vez; até um minuto antes do final, ganhava da Beldon por quatro pontos.

Daniel conseguiu fazer uma cesta de três, baixando a diferença para apenas um ponto, mas o Coulee marcou numa devolução para seu jogador mais próximo do garrafão.

Diferença de três pontos para o Coulee.

Vinte segundos para o término do jogo.

Daniel levou a bola para a área do garrafão, fingiu atacar pela esquerda e, quando a defesa se confundiu, atirou a bola para Stephen, que a lançou mas errou, com a bola passando bem ao lado do garrafão.

Coulee ficou com o rebote e avançou pela quadra, mas Beldon pressionou. Raymond Keillor, o armador do Beldon, cometeu falta, propiciando dois lances livres para a equipe do Coulee.

O lado do ginásio com a torcida do Beldon ficou em silêncio, enquanto os torcedores do Coulee irromperam em gritos de incentivo.

Doze segundos para o término do jogo.

O jogador acertou o primeiro, mas errou o segundo.

Stephen lançou para Daniel, que ergueu a bola.

A diferença era de quatro pontos.

Oito segundos.

A menos que ele acertasse um lançamento de três pontos e sofresse uma falta que possibilitaria um lance livre, seriam necessárias duas cestas de dois pontos.

Agora.

Um jogador do Coulee que gostava de tentar bloquear os arremessos estava marcando Daniel um pouco em cima, então ele decidiu tentar a falta e deter o cronômetro. Faltando cinco segundos, ele preparou o arremesso, enquanto seus colegas faziam o bloqueio, e atirou a bola, conseguindo os três pontos e a falta.

A falta significava que ele teria um lance livre, dando­-lhe a oportunidade de empatar o jogo.

Dois segundos pelo cronômetro.

Ele só tinha que encestar seu lance livre, mandar o jogo para a prorrogação e liquidar a partida.

Daniel colocou o pé 2,5 centímetros atrás da marca, no meio da linha de tiro livre que havia em todos os ginásios para que os jogadores soubessem onde era o centro dela.

Olhou para a cesta.

O árbitro entregou­-lhe a bola e começou a contagem regressiva dos segundos; Daniel tinha dez segundos para arremessar.

Quando batia a bola e se preparava para arremessar, com o canto do olhou vislumbrou a garota que tinha sido queimada viva.

Ela estava em pé ao lado do final das arquibancadas, um corpo vivo e carbonizado. Estava com uma das mãos erguidas e apontava para Daniel como fizera no campo.

De alguma forma ele ouviu a voz dela atravessando o ruído dos torcedores do Coulee, que gritavam para tirar sua concentração: “Ele não pode marcar”.

O coração se contraiu dentro dele, que se virou na direção da garota para vê­-la melhor – não conseguiu evitá­-lo –, mas quando fez isso, ela já havia desaparecido. Ele olhou para aquele lado do ginásio, mas tudo parecia normal. Nada de garota morta.

Você está imaginando isso.

Ela não é real.

Concentre­-se!

Você precisa acertar este arremesso.

Ele perdera toda a concentração e não sabia quantos segundos haviam se passado, mas imaginou que tivesse menos de cinco.

Preparou o arremesso, mas se descobriu pensando no mecanismo do lance: manter o cotovelo junto ao corpo, o arco, a rotação, a palma da mão segurando a bola de leve, a mão esquerda guiando o arremesso...

E também pensando na garota.

Tomando fôlego, levou a bola acima do rosto e lançou do mesmo modo que lançara centenas de vezes durante os treinos.

Antes de a bola chegar à cesta, ele sabia que ela não entraria.

Enquanto observava o arco de sua trajetória, alguma coisa se manifestou naquela parte escondida de seu cérebro, a parte da matemática, a parte que calculava as coisas – tantas coisas – instantaneamente, subconscientemente. O instinto prevaleceu e ele previu a trajetória que a bola ia descrever ao bater no aro e cair.

A bola fez isso, e ele correu para ela. O jogador do Coulee na frente dele não usou o corpo para detê­-lo, e Daniel girou ao redor dele, achando o caminho à esquerda da quadra lotada, apanhou a bola fora do bloqueio, girou no ar e a lançou antes de aterrissar.

O alarme soou.

A bola ricocheteou na tabela com suavidade.

E entrou. Placar final: 61 a 60.

Beldon era o vencedor.

O lado do ginásio em que estava sua torcida foi à loucura, e os rapazes do time de Daniel correram para ele, dando­-lhe tapinhas no ombro ou golpes leves para cumprimentá­-lo.

Mas ele estava apenas meio consciente do que se passava à sua volta, pois também examinava o ginásio para ver se a garota tornaria a aparecer.

Ela não era real. Da mesma forma que Emily não era real naquele jogo de futebol.

Ela não está aqui.

Mas mesmo que isso fosse verdade, não significava que ele não tornaria a vê­-la. Quando teve aquelas distorções, a realidade tinha muito pouco a ver com o que ele estava vivenciando.

Ele não tinha certeza, mas, pelo menos, parecia que ele estava dormindo quando a viu durante a viagem de ônibus para o jogo.

Daniel podia descartar isso como um pesadelo, mas agora, ali no ginásio, as coisas eram diferentes porque ele a tinha visto enquanto estava acordado.

Bem acordado.

Sim. As coisas estavam piorando.

***

Daniel sempre se preocupou mais com reposições de bola para lançamentos finais que garantissem a vitória, e não com estatísticas, mas sua mente não conseguia evitar o controle dos números e ele sabia, mesmo sem olhar para a folha com os registros da partida, que havia terminado o jogo com 8 assistências, 32 pontos e 3 rebotes.

Definitivamente, ele tinha estado na zona, quer dizer, até que a garota que havia queimado viva aparecesse para ele.

Antes de ir para o vestiário, Daniel conversou com Kyle, Nicole e Mia, e todos concordaram em se encontrar na casa de Kyle às dez. Como Kyle não morava muito longe da escola, onde Daniel havia deixado o carro, parecia a coisa mais prática.

Chegar tarde em casa não era problema para o pai de Daniel quando não havia escola no dia seguinte, mas, ainda assim, ele gostava que o filho chegasse por volta da meia­-noite, e Daniel fazia o que podia para não o contrariar.

Assim, quando mandou uma mensagem ao pai contando sobre o resultado do jogo, também o avisou que estava planejando comemorar com os amigos, mas que estaria em casa por volta de meia­-noite.

Depois de tomar banho e se trocar, Daniel estava voltando do vestiário quando viu um homem encostado na parede perto da vitrine dos troféus da escola. Quando se aproximou dele, o homem o olhou, deu um passo em sua direção e estendeu­-lhe a mão.

– Belo jogo, Daniel.

– Obrigado – respondeu Daniel, apertando­-lhe a mão.

Não conseguia se lembrar de já ter visto aquele homem, e era um pouco estranho que ele o tivesse chamado pelo nome, mas, por outro lado, qualquer pessoa que tivesse assistindo ao jogo teria descoberto o nome dele ao ouvir o locutor.

Ele parecia ter trinta e poucos anos, tinha cabelo preto cuidadosamente penteado e um aperto de mão bastante forte.

Então o encontro terminou. Foi só aquilo. O homem estava se virando para ir embora e Daniel ia seguir seu caminho, mas, alguns segundos depois, ele se virou para dar mais uma olhada nele.

O homem havia desaparecido.

Daniel se deteve.

Talvez ele tivesse se esgueirado por alguma outra porta, mas isso parecia pouco provável, ou descido rápido o corredor e voltado ao ginásio, mas isso também parecia improvável. Ele tinha mesmo era que estar caminhando pelo corredor.

Um pensamento perturbador ocorreu a Daniel: e se o homem, na verdade, não o tivesse encontrado?

Não seria a primeira vez que você conversou com alguém que não existia.

Não... Você apertou a mão dele. Se você vê uma coisa apenas imaginária, não poderia tê­-lo tocado.

Fora da escola, Daniel e o resto do time acomodaram­-se no ônibus.

Ele se certificou de que não dormiria durante a viagem de volta a Beldon.

* No basquete, cada jogador “cuida” de uma parte da quadra (zona). Se você está marcando alguém e ele muda de zona, o outro jogador do seu time é que passa a marcá­-lo. Isso evita que o jogador tenha que ficar correndo por toda a quadra. Na zona, o jogador tem que estar atento o tempo todo. (N.T.)


6

Daniel pegou o carro no estacionamento e foi para a casa de Kyle.

Nicole ainda não tinha chegado, mas Mia já estava lá.

Ela estava usando uns jeans rasgados bem justos e uma camiseta desbotada com o rosto de Kurt Cobain. Magra e esbelta, ela sabia tirar proveito de suas formas. Com piercing na língua e no lábio, tinha um certo ar irascível, que era mais emo que gótico.

– Você esteve incrível esta noite – disse ela, apontando para ele.

– Obrigado.

– É isso aí – disse Kyle, que estava colocando molho tabasco numa tigela de salgadinhos de queijo em cima da mesa de centro. – Você tem uma habilidade incrível, meu amigo.

– Mas acho que eu devia ter acertado aquele lance livre. E também acho que já chega de molho tabasco.

Kyle deu mais uma chacoalhada no vidro de pimenta e o colocou na mesinha, então tornou a pegá­-lo e espalhou mais um pouco antes de guardá­-lo de uma vez.

– Foi o melhor que aconteceu... não foi preciso ir para a prorrogação.

– É verdade.

Kyle ofereceu­-lhe salgadinhos de queijo.

– Obrigado, não estou a fim.

Mia também recusou e Kyle deu de ombros, mergulhando a mão nos petiscos.

Daniel deduziu que Michelle, a irmã de 4 anos de Kyle, estivesse dormindo. A mãe dele estava com o som da televisão baixinho em seu quarto, mas veio até a sala para dizer a Daniel:

– Não pude ir ao jogo, mas Kyle disse que você jogou muito bem.

– Estou feliz por termos vencido.

– É claro.

O pai de Kyle morrera em um acidente de carro dois anos antes. Recentemente, sua mãe começara a namorar alguém da imobiliária em que trabalhava. Daniel não sabia até que ponto a coisa era séria, mas ela parecia realmente feliz pela primeira vez desde a morte do marido, e ele estava contente por ela ter encontrado alguém.

A Sra. Goessel voltou para o seu quarto e, enquanto Daniel e os amigos esperavam por Nicole, Kyle observou que os “salgazoides” ficavam muito melhores com o molho tabasco.

– “Salgazoides?” – perguntou Daniel.

– É uma coisa nova de linguística em que tenho trabalhado. Acrescente o sufixo “zoide” a qualquer substantivo e “idar” a qualquer verbo. Voilà. Uma palavra vanguardista instantânea.

– Então, você quer dizer que no basquete você pode “lancizar” um “tirozoide”?

– Exatamente.

– Fica esquisito.

– Quem sabe? Pode ser que a coisa pegue.

– Você também pode acrescer “natar” ou “zação”, como em “desqualificanatar” ou “desqualificazação”.

– E também – disse Daniel, pensando algo – “digenatar” ou “digeszação”.

– Mas não “digestazoide” – disse ela, com um aceno de cabeça.

– De jeito nenhum – concordou Kyle.

– Vocês foram feitos um para o outro – disse Daniel.

Logo a conversa desviou para a escola e em como eles estavam empolgados com as férias que finalmente estavam chegando. Mia mencionou o “Natalzoide”, que estava muito próximo, e Daniel perguntou o que eles iam fazer.

– Michelle, mamãe e eu vamos ficar por aqui mesmo. E acho que o Glenn também vem pra cá – respondeu Kyle.

– Esse é o cara com quem sua mãe está namorando?

– Isso aí. Glenn Kramer.

Pelo tom de voz do amigo, Daniel não conseguiu saber se ele estava ou não animado com a perspectiva de passar o Natal com Glenn.

– O que foi?

– Nada. É só que... Bem, estou cheio de ouvir ele falar de sua coleção de armas. Ele coleciona armas de fogo antigas. Para ele é uma coisa importante. É isso aí – disse Kyle, agitando a mão no ar como se estivesse apagando o que acabara de dizer. – Tanto faz.

– Vamos visitar meus avós em Eau Claire – disse Mia. – Acho que vamos sair na segunda de manhã e voltar na quarta por volta do meio­-dia. Está combinado, desde que não neve mais.

– Ainda não consigo acreditar que você não goste de neve – disse Kyle, com a mão na tigela de salgadinhos. Que já estava na metade.

– Pode acreditar.

– O que eu quero dizer é que, morando aqui tão ao norte dos Estados Unidos, você devia gostar de neve. Como é que você consegue não amar a neve? Os inuítes, ou esquimós, têm dezenas de palavras para designar a neve.

– Ouvi dizer que isso não passa de uma lenda ou coisa assim.

– Só temos um jeito de descobrir – disse Kyle, puxando seu celular para pesquisar no Google. – Muito bem. Um antropólogo descobriu que diferentes ramos da língua deles realmente têm dezenas de palavra para designar a neve. E o que é ainda melhor: os lapões, um povo da Rússia, têm mais de uma centena de palavras para a neve. Estão vendo?

– Bem, eu tenho uma palavra para isso – disse Mia.

– Qual?

– Chato. Se Deus desejasse que as pessoas vivessem ao ar livre no inverno, teria nos coberto de pelos.

Kyle lambeu os grânulos de queijo de seus dedos.

– Vocês já viram as costas do Jason Berring? Eu o vi no vestiário depois da Educação Física e acho que, sem dúvida, Deus o fez para brincar na neve.

– Ora. Isso está errado.

Um carro parou na entrada da garagem.

Enquanto Daniel ouvia Kyle e Mia, o pesadelo com a garota em chamas o havia deixado em paz.

No último outono, quando as distorções começaram, ele achou que seu subconsciente estivesse relembrando coisas, juntando o que o seu consciente sequer conhecia.

Era quase como se uma parte inexplorada de seu cérebro estivesse folheando a enorme quantidade de informações a que somos expostos todos os dias, observando coisas que ninguém mais consegue observar e, então, revelando­-as a ele por meio das distorções.

Tentou imaginar a que a garota do pesadelo estava se referindo quando disse: “Você tem que detê­-lo, antes que aconteça outra vez” e “Você não pode deixá­-lo continuar”.

Deter quem?

Continuar com quê?

– Você está legal? – perguntou Kyle.

Daniel ergueu o olhar e viu que os dois estavam olhando para ele.

– O quê?

– Você voou daqui por um minuto.

– Estou legal – disse ele, estendendo a mão para os salgadinhos que haviam sobrado e escolhendo cuidadosamente os que não tinham sido encharcados de pimenta.

A porta de um carro se fechou e, alguns segundos depois, Nicole apareceu na porta da sala e fez sinal para que Daniel saísse da casa.

– Quero lhe mostrar uma coisa.

– O que é?

– É surpresa, seu bobo. Venha.


7

O céu noturno não mostrava nenhuma nuvem e até havia luar; numa região interiorana como aquela, as estrelas brilhavam com força. De onde estavam, ele podia ver o céu nas três direções dos pontos cardeais, com exceção do norte, que estava escondido pela casa.

– O que você quer me mostrar?

À luz da varanda, seu hálito ficava visível.

– Venha cá – disse ela, tomando­-o pela mão e o levando para trás da casa, onde tiveram uma clara vista do céu do norte. – Olhe para cima.

Ele olhou.

Listras verdes bruxuleantes deslocavam­-se e tremeluziam bem no alto do céu silencioso, enquanto as luzes da aurora boreal dançavam pelo firmamento. Elegantes.

Misteriosas.

Belas.

Naquela parte do estado, especialmente sem a poluição luminosa que existe perto de uma cidade maior, podia se ver muito bem a aurora boreal, e a melhor época para apreciá­-la era o inverno.

Faixas de azul e amarelo esmaecidos tremulavam brevemente antes de desaparecer, mas as fitas de um verde reverberante continuavam lá, debatendo­-se e se enrolando pelo céu como se estivessem vivas.

– São maravilhosas – disse Nicole com suavidade. Ela ainda estava segurando a mão de Daniel.

O que não o incomodava.

– Você sabe o que as provoca? – perguntou ele.

– Não é alguma coisa referente aos polos magnéticos da Terra?

– Isso pode ser parte da causa, mas, pelo que meu pai me disse, são causadas pela colisão de partículas eletricamente carregadas. Elas vêm do sol e colidem com partículas da atmosfera terrestre.

Nicole se encostou mais nele. Mal deu para notar – mas ele conseguiu. Isso tampouco o incomodava.

– Então, quando duas delas se encontram – disse ela –, voam faíscas.

– Isso mesmo.

Tudo bem, nisso havia um pouco mais de simbolismo que ninguém precisaria lhe explicar.

A noite os abraçou, e o tempo não significava nada enquanto ficaram lá, debaixo da beleza etérea da aurora boreal.

Por fim, as faixas tremulantes de luz desapareceram, e as estrelas e a luz ficaram com o céu só para elas.

Por um longo momento, nem Daniel nem Nicole disseram nada; então, finalmente, ainda segurando a mão dele, ela o conduziu até o gramado e disse:

– Faça um anjo de neve comigo.

– Bem, sabe, eu não sou o tipo de cara que faz anjos de neve. Sou mais para serpentes de neve.

– Serpentes de neve? Como você as faz?

– Já lhe mostro num minuto. Primeiro, vá em frente com o seu anjo.

Nicole deitou de costas no lençol de neve que cobria o quintal, com os pés juntos e os braços abertos; então, separou as pernas e levou os braços acima da cabeça, abaixando­-os em seguida para afastar a neve.

Ela ficou em pé e os dois puseram­-se a olhar a marca que ela deixara na neve. Onde movera os braços parecia um par de asas; onde movera as pernas, um vestido ou túnica.

– Muito bem – disse ela. – Vamos ver sua serpente de neve.

– Não apenas uma serpente de neve. É uma sucuri de neve.

– Oh! – disse ela, parecendo impressionada. – Agora você me deixou curiosa.

Daniel foi em frente, empurrando um pé ostensivamente pela neve num movimento parecido com o rastejar de uma cobra por cerca de cinco metros. Então, jogou a neve para os lados no final para fazer a cabeça da cobra um pouco mais larga que o resto do corpo.

– É só isso?

– É mais difícil do que parece.

– Realmente.

– É isso aí. Isso é uma arte.

– A arte de arrastar o pé no chão?

– Exige anos de experiência.

– É mesmo?

– Talvez eu a ensine... Se quiser trabalhar comigo, reserve longas horas de treino.

– Humm – disse ela, pondo­-se ao lado dele perto da cabeça da cobra de neve. – E eu teria que passar o tempo todo sob a sua tutela?

– Parece uma palavra do Kyle.

– Presa a você.

– E então?

– Acho que posso fazer o sacrifício.

– Está combinado?

– Humm­-humm.

O silêncio se instalou entre eles.

Confortável.

Faíscas pelo ar.

Havia apenas a luz da varanda e o luar brilhando na neve para que ele conseguisse olhar nos olhos dela.

Cuidadosamente, tirou um pouco da neve que havia ficado presa no cabelo dela quando estava fazendo o anjo.

– Assim está melhor.

– O que você está fazendo?

– Só olhando a vista.

– Você nem está olhando para o céu.

– Não, não estou.

Ela não desviou o olhar. Em vez disso, fechou os olhos e se aninhou mais para receber um beijo, mas, quando estava fazendo isso, a porta da frente se abriu e Kyle e Mia disseram:

– Ei, vocês.

Nicole se afastou um pouco quando Kyle e Mia se aproximaram do fundo da casa.

– Espero que a gente não esteja interrompendo nada.

Na verdade...

– O que foi? – perguntou Daniel.

– A Gina está dando uma festa – disse Mia. – Ela nos convidou para ir lá. Sabe, uma espécie de festa pré­-natalina. Não precisamos ficar muito tempo. Vamos só dar uma passada, dizer um alô para todos e depois podemos vazar. Vamos?

Daniel e Nicole, que estavam mais interessados em ficar por ali sozinhos, sob as estrelas, pareceram pouco motivados, mas por fim concordaram. Os quatro entraram no Mustang antigo de Kyle e foram para a casa de Gina Schroeder.

 

 

8

Nove carros estavam estacionados ao longo da rua quando eles chegaram. Gina morava perto da floresta nacional, entre Beldon e a Penitenciária Estadual de Derthick, sem nenhum vizinho por perto.

Luzes multicoloridas de árvores de Natal espalhavam­-se pela sala. Perto da lareira, uma árvore carregada com enfeites demais, mas não com suficientes bengalinhas doces. Um amontoado de presentes espalhava­-se debaixo dela.

Alguns jovens dançavam ao som das faixas de música eletrônica que Gina havia posto para tocar, mas a maioria estava espalhada conversando. Alguns seguravam cervejas.

Houve uma época em que o pessoal da classe de Daniel ficava nervoso quando o filho do xerife aparecia em festas, com medo de que ele pudesse denunciá­-los por estarem bebendo, mas isso não era do feitio dele e, nessa noite, seus colegas de classe nem se deram ao trabalho de esconder suas cervejas quando o viram.

Brad Talbot e Sephanie Mills, que pareciam constituir o par mais disparatado da escola, estavam indo de mãos dadas pelo corredor até um dos quartos.

Pela atmosfera que reinava na casa, ficava claro que os pais de Gina não estavam lá.

Embora Daniel algumas vezes tivesse a tentação de beber, com a possibilidade de uma bolsa de estudos com base em seu desempenho esportivo, haveria muito a perder se fosse flagrado bebendo. Além disso, não pegaria muito bem com o xerife local.

Gina cumprimentou­-os perto da cozinha. Bonita, um pouco agitada demais e já um pouco “alta”, deu um abraço rápido em Mia e em Nicole.

– É ótimo ver você, menina – disse ela a Nicole.

– Idem.

– O que está rolando, Mia?

– A vida. O amor. O terror. A alegria. O enigma da existência. O de sempre.

– Hum... certo... Ótimo jogo, Daniel.

– Obrigado.

– Oi, Kyle.

– Oi, Gina. Obrigado pelo convite.

– Por nada.

Na mesa da cozinha, alguns rapazes estavam misturando nicotina líquida de cigarros eletrônicos com energéticos e engolindo tudo de uma só vez.

Quando perguntaram a Daniel e a Kyle se queriam um pouco, Kyle lembrou­-os de que uma garota havia morrido com aquela mistura em Milwaukee algumas semanas antes.

– Não que isso vá acontecer com algum de vocês – acrescentou ele.

Os rapazes que estavam entornando a mistura olharam para Kyle e, depois, para a nicotina líquida. No final, optaram por tomar os energéticos puros, seguidos de uma cerveja.

Enquanto suas garotas estavam ocupadas com Gina, Daniel e Kyle foram para o porão.

Ali, as luzes eram mais fracas, e a música não tão alta quanto lá em cima, mas parecia estar pulsando com uma batida mais profunda e mais escura.

Ali havia mais casais que na sala, aparentemente em busca dos cantos mais escuros da casa para maior privacidade.

Na extremidade do porão, Ty Bell e os três caras que normalmente andavam com ele haviam se reunido em torno do sofá.

– O que eles estão fazendo aqui? – sussurrou Kyle para Daniel.

– Não consigo imaginar por que Gina os teria convidado.

– Provavelmente entraram de penetras.

Daniel ficou pensando que, se Ty e os três rapazes tivessem aparecido à porta, teria sido um pouco intimidador fazê­-los ir embora, especialmente para alguém como Gina, que sempre tentava agradar todo mundo.

De todo modo, existem caras como Ty em toda escola. Mas no caso dele, não se tratava apenas de um arruaceiro. Ele tinha uma aparência fria e sádica que intimidava a maioria dos outros alunos, e pelo que Daniel sabia, até professores e funcionários.

Ty era aluno da última série e havia implicado com Daniel algumas vezes ao longo dos anos, mas parecia ter aprendido a lição depois que puxou uma faca e Daniel o desarmou com um golpe que o pai lhe ensinara.

Depois disso, em vez de enfrentá­-lo pessoalmente, Ty apelara para postar coisas on­-line tentando constranger Daniel.

Nada para levar muito a sério.

Daniel conseguia conviver com aquilo.

O pai de Ty era guarda florestal e, assim, ele e o pai de Daniel tinham trabalhado juntos na tentativa de desvendar o problema da matança de lobos e, depois que Ty descobriu uma das pessoas que encontrou um lobo morto, na criação de um serviço de disque denúncia.

Daniel e Kyle cruzaram o aposento e demorou só um instante para que ele percebesse o que estava acontecendo. Lisa Scalf, uma garota de sua turma, havia desmaiado e estava deitada no sofá. Ty tinha na mão um marcador de texto preto e estava inclinado sobre ela, pronto para escrever alguma coisa em sua testa. Os amigos de Ty estavam ao redor dando risadinhas abafadas, sem os fones de ouvido para poder tirar fotos dela.

Nenhum dos outros rapazes que estavam no porão parecia disposto a confrontar Ty ou detê­-lo.

Daniel podia imaginar que tipo de frase ele escreveria na testa de Lisa, mas escrever era apenas o começo do que Ty e seus amigos poderiam acabar fazendo se fossem deixados sozinhos com ela inconsciente daquele jeito.

– Deixe­-a em paz, Ty – disse Daniel, avançando.

– Oh, salve, Daniel – respondeu Ty olhando para ele.

– Abaixe esse marcador.

Ty deu um meio sorriso aos amigos e disse a Daniel:

– Você recebeu o presente que eu lhe deixei?

– O DVD?

– Então você o recebeu. Todos nós sabemos de suas visitinhas ao psiquiatra.

Numa cidade pequena era totalmente possível que um conhecido de Ty tivesse visto Daniel entrar ou sair do consultório do Dr. Fromke. De qualquer modo, isso agora não importava.

– Gostei do presente – disse Daniel. – É bom saber que você esteve pensando em mim, mas não vai me impressionar com presentes. Além disso, eu já tenho namorada.

Os olhos de Ty se transformaram em adagas. Seus punhos se fecharam.

Com exceção de Kyle e dos caras que estavam com Ty, todo mundo que estava no porão se afastou, abrindo­-lhes espaço. Mais jovens pegaram o celular.

– Não vou tornar a lhe pedir – disse­-lhe Daniel. – Afaste­-se dela e abaixe esse marcador.

– Se não o quê?

– Vou tirá­-lo de você – disse ele, fazendo um gesto para que o grupo ficasse com os celulares pontos. – E eles vão registrar tudo em vídeo.

Daniel não queria brigar com Ty, mas não ia retroceder e deixá­-lo humilhar Lisa.

Ty olhou para os jovens que seguravam os celulares. Por um instante, pareceu desafiador, como se estivesse para levar o confronto com Daniel adiante, mas deve ter pensado melhor, pois atirou o marcador no ar para Daniel, que o apanhou antes que o atingisse no peito.

Por fim, Ty fez sinal para que seus companheiros se juntassem a ele, atirou um beijo de escárnio para Lisa e levou seus amigos para cima.

Kyle, que tinha sido salva­-vidas no último verão e conhecia os primeiros socorros, foi até Lisa e certificou­-se de que ela não tivesse vomitado e engasgado enquanto estava desmaiada.

Depois que Ty saiu, algumas pessoas que estavam no porão agradeceram a Daniel. Outras pareceram nem se importar e se limitaram a voltar ao que estavam fazendo na obscuridade antes que o confronto com Ty as tivesse distraído.

Daniel e Kyle ficaram por ali um pouco, conversando com alguns rapazes de sua turma; então, Daniel olhou as horas.

– Eu disse a meu pai que estaria em casa antes da meia­-noite. Precisamos voar.

Enquanto subiam, Kyle perguntou a Daniel:

– De que DVD ele estava falando?

– Alguma coisa que ele deixou no meu armário. Uma cópia de um antigo filme. De algum modo, ele descobriu que estou indo ao psiquiatra.

– Que filme era esse?

– Psicose.

– Já ouvi falar, mas nunca vi.

– Nem eu, mas acho que o título fala por si só.

Encontraram Nicole conversando na sala e Mia fumando um cigarro lá fora. Depois de explicar a Gina por que precisavam ir embora, foram para a casa de Kyle.

Contudo, não muito longe da festa, viram que um carro tinha saído da estrada. Sua frente estava afundada no banco de neve que os limpadores haviam jogado no acostamento.

O cara no volante estava tentando voltar à estrada, mas os pneus da frente apenas giravam inutilmente na neve.

Depois de estacionar, Daniel e Kyle se aproximaram da porta do motorista. Daniel bateu no vidro para perguntar ao homem se ele estava bem e se precisava de ajuda.

Ele baixou o vidro.

Era o mesmo sujeito que lhe apertara a mão no corredor depois do jogo.


9

­- Olá, Daniel – disse ele.

Aquilo era mesmo estranho.

– Oi, você está legal?

– Estou bem, mas meu carro não quer sair do lugar. Talvez vocês pudessem dar uma empurrada.

– Me passe dois tapetes do carro.

– Tapetes?

– Vou colocá­-los junto aos pneus. Isso vai produzir a tração de que você precisa.

– Certo. Puxa! – disse ele, passando­-lhe os tapetes.

Daniel tinha uma pá de tamanho médio em seu porta­-malas para usar em caso de sair da estrada e encalhar na neve. Pensou em pegá­-la, mas achou que primeiro devia tentar os tapetes e ver se funcionavam.

Ele e Kyle posicionaram os tapetes bem embaixo dos pneus; então, subiram no banco de neve e empurraram a frente do veículo.

– Tudo bem – Daniel disse ao homem. – Acelere, mas não exagere.

Ele acelerou um pouco, engatando a ré; com os tapetes dando tração e Daniel e Kyle empurrando a frente, conseguiu voltar à estrada.

Depois que o carro foi liberado, devolveram­-lhe os tapetes e ele pegou a carteira.

– Quanto eu lhes devo?

– Não – disse Daniel –, você não nos deve nada. Ficamos felizes em ajudar.

– Vocês têm certeza?

– Temos.

– Bem, muito obrigado. Acho que fico lhes devendo uma.

Daniel não soube exatamente o que responder.

– Acho que devemos ir.

– Claro. Bem, mais uma vez, obrigado.

– Certo.

De volta ao Mustang, Kyle perguntou a Daniel:

– Quem era esse cara?

– Não faço a menor ideia.

– Ele sabia o seu nome.

– Sim, ele também me cumprimentou depois do jogo, mas eu nunca o tinha visto antes.

– Tudo bem, mas foi uma enorme coincidência, não foi? – exclamou Mia. – Quero dizer, que ele tivesse encalhado bem antes de nós passarmos, uma hora depois de ter visto você no jogo.

– É verdade.

Sob a luz dos faróis de Kyle, Daniel pôde ver que o carro tinha placa da Geórgia. Se o motorista era do sul, isso poderia explicar por que ele encalhara na neve numa noite em que as estradas nem estavam congeladas.

Mas não explica por que ele estava dirigindo bem à sua frente.

O homem desapareceu na noite.

Ele os deixou um pouco apreensivos, e acharam que fosse melhor evitá­-lo; assim, na encruzilhada seguinte, embora fosse um pouco mais longe, Kyle fez um trajeto alternativo para chegar em casa.

Durante o trajeto, Nicole perguntou o que todos fariam no dia seguinte, e Kyle lhes disse que tinha que trabalhar no restaurante do Rizzo umas duas horas durante o almoço, das onze à uma.

A pizzaria era o melhor lugar do norte de Wisconsin para comer uma pizza de pepperoni e pimenta­-jalapenho, e Rizzo estava ensinando Kyle a trabalhar com a massa e girá­-la no ar. Até então, o garoto não tinha se saído muito bem e deixara cair uma tonelada de massa no chão nos últimos dois meses.

Ainda bem que Rizzo era um homem paciente.

Kyle mencionou um filme que estava estreando naquela semana.

– É uma fantasia distópica a respeito de um mundo em que todos só se preocupam com o tempo que vão viver. O dinheiro não tem utilidade, mas é possível fazer negócio com o tempo de duração de sua vida, pois é essa a moeda que eles usam: o tempo. Pode­-se comprar o que quiser, mas isso custa alguns minutos, horas ou anos de seu tempo. Ouvi dizer que é muito bom.

– Boas novas: a vida é tempo, tempo é vida – disse Mia reflexivamente. – O que se gasta com um se gasta com o outro. Assim é e sempre será.

– Profundo – disse Kyle. – Então, estão interessados?

– Por que não? – respondeu ela, dando de ombros.

Beldon era tão pequena que só tinha um cinema que passava filmes antigos; assim, os quatro decidiram ir na noite seguinte até Superior ou Duluth, às margens do lago Superior, para verificar se o filme valia a pena. Essas cidades ficavam a uma hora de viagem, mas, morando ali no meio do nada, estavam acostumados a viajar.

***

Na casa de Kyle, Daniel perguntou a Nicole se ela queria se encontrar com ele antes do cinema.

– Claro.

– Eu lhe mando uma mensagem de manhã.

Um beijo rápido, um boa­-noite rápido, e cada um foi para o seu lado.

Com a ida à casa de Gina, o tempo extra gasto com a ajuda ao homem atolado na neve e o caminho mais longo até a casa de Kyle, era um pouco mais tarde do que Daniel previra. Ele não controlara o tempo e só depois que saiu da casa de Kyle é que percebeu que já era 0h15.

Mandou uma mensagem ao pai contando o que acontecera, imaginando que, por eles terem “ajudado um motorista em apuros”, o pai não criaria muito caso.


10

O pai estava sentando à mesa da sala de jantar lendo as notícias em seu iPad quando Daniel chegou em casas às 0h35.

– Oi, Dan.

– Oi, pai.

– Sua mensagem diz que vocês ajudaram alguém a sair de um atoleiro de neve.

– Bem, foi do banco de neve junto à estrada. Nós estávamos voltando para a casa do Kyle.

– Voltando?

– Nós paramos na casa da Gina.

– Da Gina?

– Sim, da Gina Schroeder.

Conto­-lhe ou não que havia uma festa?

Provavelmente, é melhor não contar.

– Nós fomos até lá um pouco – explicou ele de maneira um tanto ambígua.

– E esse homem que atolou na neve, ele saiu da estrada numa noite como esta? Nem estava nevando.

– Acho que ele perdeu o controle do carro.

– Ao fazer uma curva talvez?

– Não. Foi numa reta.

– Bem, então talvez ele tenha brecado para não atropelar um veado ou coisa semelhante.

Ele está questionando a sua história? Ele não acredita em você?

– A placa era da Geórgia. Talvez ele não esteja acostumado a dirigir na neve.

A conversa mergulhou no silêncio.

Mas não era um silêncio confortável.

– Mas vocês ganharam? – perguntou o pai.

– Ganhamos.

– E você jogou bem?

– Joguei. Acho que sim – respondeu Daniel, que não queria fazer um relato completo do que havia acontecido, especialmente com relação ao motivo de ele ter se distraído e perdido aquele lance livre.

Mas, pelo menos, você conseguiu pegar o rebote.

Embora o pai soubesse sobre as distorções do último outono, Daniel não se entusiasmava com a ideia de lhe contar como elas tinham voltado. Ele não queria preocupá­-lo.

– Estou contente – disse o pai, referindo­-se ao jogo.

Daniel pensou em lhe perguntar se ele havia descoberto alguma coisa com relação aos lobos, mas achou melhor encerrar a conversa.

– Bem, acho que vou pra cama.

– Você me mandou uma mensagem dizendo que ia chegar em casa à meia­-noite.

– Sim.

– Eu preciso que você cumpra com sua palavra, Daniel.

Como até agora ele não tinha dito nada a respeito de chegar em casa tarde, suas palavras contundentes e frias surpreenderam Daniel. Ele não tinha certeza de como deveria interpretá­-las.

– Eu lhe contei que estávamos ajudando aquele cara.

– Sim. Mas não quero ficar imaginando se você vai chegar em casa no horário prometido.

– Certo. Entendi.

Ele não se deu conta do quanto sua resposta provavelmente tinha soado desafiadora até ela ser dita e ele ficar esperando uma reprimenda, mas o pai simplesmente se levantou e, sem dizer palavra, foi para o seu quarto.

Tudo bem, tinha sido estranho. E um pouco intrigante.

Daniel quase desejou que o pai tivesse discutido com ele um pouco mais. O pai não era dado ao silêncio; então, ficava mais claro que alguma coisa estava acontecendo. Fosse o que fosse que estava lhe passando pela cabeça, Daniel adivinhou que era algo mais sério do que o filho ter chegado em casa mais tarde do que prometera.

A última coisa que ele soube é que o pai havia investigado a matança dos lobos naquela noite.

Talvez alguma coisa a ver com o caso o tivesse aborrecido.

***

Em seu quarto, Daniel encontrou um frasco plástico cheio de seu remédio na cômoda. Pelo visto, seu pai não tinha perdido tempo e foi buscá­-lo na farmácia antes que fechasse no fim da tarde.

As distorções estão de volta.

Talvez você devesse tomar os remédios.

Durante sua primeira consulta com o psiquiatra no último outubro, o homem lhe disse que levaria uma ou duas semanas para que o remédio começasse a operar em seu sistema nervoso e se mostrasse eficiente; então, mesmo que começasse a tomá­-lo naquela manhã, ele não resolveria as coisas de imediato.

Um passo na direção certa, mas não uma solução.

Recapitulando todas as coisas estranhas que haviam acontecido durante o dia, ele pegou seu caderno de Literatura e reviu a página em que havia escrito “Cova Perdida é a chave” várias vezes.

Como ele pôde escrever aquilo com a uma letra que não era a sua?

Tentou pensar se poderia ter visto essa letra antes, e achou que isso poderia ter acontecido, mas não conseguia pensar em nada específico.

Qualquer que fosse o motivo, na maior parte das vezes ele conseguia dizer, apenas olhando o que fora escrito, se a letra era de um rapaz ou de uma moça.

Esta parecia a de um rapaz, mas definitivamente não era a dele.

Então, de quem era?

Tornou a pesquisar no Google “Cova Perdida é a chave”, como tinha feito no consultório do psiquiatra enquanto esperava ser atendido.

Passando por alguns dos primeiros resultados que encontrou, descobriu que havia uma cidade chamada Lost Cove,* na Carolina do Norte, uma suposta cidade fantasma com o mesmo nome no Tennessee, e centenas de estabelecimentos comerciais, áreas de camping e coisas do tipo, mas não conseguia perceber como uma delas poderia ser a chave para o que estava acontecendo com ele naquela semana.

E, com certeza, nada explicava como ele fora capaz de escrever palavras com uma letra que em nada se parecia com a dele.

Fixou o olhar na folha do caderno.

Ao fazer isso, as letras começaram a mudar, a se mover livremente pelo papel, aproximando­-se umas das outras, tornando­-se vivas, deslizando pela página e se combinando, criando criaturas eriçadas e semelhantes a vermes que se deslocavam rapidamente do caderno para os seus dedos.

Deixou cair o caderno, mas os vermes ainda estavam nas costas de sua mão e começavam a se deslocar em direção ao pulso. Começou a bater neles com a outra mão e conseguiu esmagar dois, mas os três restantes entranharam­-se em sua carne imediatamente, provocando uma dor aguda e dilacerante no braço enquanto a pele era aberta para alojá­-los.

Mas isso não foi nada comparado com a dor que sentiu quanto eles começaram a subir por seu braço, bem abaixo da pele.

Ele chegou a pensar em pegar uma faca e abrir o braço para tirá­-los, mas então percebeu que isso era irracional, pois os vermes estreitos e negros que se movimentavam sob sua pele não podiam ser reais.

Não, não podiam ser.

Mas são.

Estão deslizando por seu bíceps.

Não podem ser reais!

Mas são!

Por fim, os sulcos se achataram e as criaturas avançaram para os músculos de seu ombro.

Esperou para ver se eles voltariam, para sentir se alguma dor começaria a se manifestar, mas nada aconteceu.

A princípio.

Mas, então, sentiu­-os na base do pescoço, contorcendo­-se, entrando por trás de sua garganta.

Sufocando, Daniel correu para o banheiro, mas não chegou a tempo; estava no corredor quando os sentiu contorcendo­-se e rastejando por sua língua. Cuspiu­-os no chão.

Três vermes escuros e cintilantes caíram de sua boca.

Pisou neles enquanto eles se esgueiravam pelo carpete, tentando fugir, mas quando ergueu o pé já tinham desaparecido.

No último outono, quando as distorções começaram, ele conseguia perceber quando ia ter uma delas, por causa da dor de cabeça penetrante que as precedia – como no início daquela noite, com a distorção da garota de camisola. Agora, contudo, ele estava perdendo o contato com a realidade sem qualquer espécie de advertência.

Não era bom sinal.

Novamente no quarto, pegou o caderno.

Todas as palavras ainda estavam na página.

Chega disso.

Remexendo o material de acampar que estava no armário, achou uma caixa de fósforos.

Arrancou a página com a letra estranha e a segurou acima do cesto de lixo; então, acendeu um fósforo e aproximou a chama do canto inferior da página.

Enquanto o papel pegava fogo, tornou a pensar na garota, a que estava usando uma camisola branca, a que se queimou diante de seus olhos e então se desintegrou em pequenas brasas negras que se dispersaram no ar.

Daniel descartou o papel no cesto de lixo e ficou observando­-o arder e se transformar em cinza negra.

Tirou o DVD de Psicose da mochila da escola e o jogou no cesto, em cima das cinzas da folha do caderno, que flutuaram em torno da caixinha do DVD e tornaram a se aquietar, como se ela fosse um caixão depositado numa cova e elas, a terra jogada para cobri­-lo.

Abriu um pouco a janela para que o ar entrasse no quarto e ele não tivesse que aspirar a fumaça. Então, examinando o celular, levou alguns minutos para responder a umas duas mensagens, incluindo uma de Nicole tornando a lhe desejar boa noite e uma de Kyle perguntando se seu pai ficara zangado por ele ter chegado tarde.

Quando estava acabando de responder, recebeu outra mensagem: Verifique o porão – M.

M.

Madeline.

Um pensamento inquietante o assaltou: Haveria alguém esperando por ele lá embaixo? Será que ela está lá?

Daniel sentiu um aperto desconfortável no peito.

Por um instante, pensou em contar ao pai o que estava acontecendo, mas então decidiu não fazer isso, pois ele perguntaria quem era Madeline e por que cargas d’água ela estaria convidando Daniel a verificar o portão àquela hora da noite.

Além disso, ele pareceu não estar muito bem e Daniel não queria complicar as coisas agora e ter que explicar tudo o que estava acontecendo.

Então, preparando­-se para descer sozinho, pegou um taco de beisebol, foi para a cozinha, abriu a porta que dava para o porão e acendeu a luz.

Começou a descer os degraus.

* Cova perdida, em inglês. (N.E.)


11

No final da escada, na sala de ginástica onde seus halteres estavam dispostos, ficou atento para ouvir algum som, alguma indicação de que alguém poderia estar ali, mas nada ouviu.

Verificou o banheiro, o quarto de hóspedes, a área ao redor da caixa de fusíveis, a lavadora e a secadora, mas não encontrou sinal de nada extraordinário. Nada fora do lugar.

Não havia ninguém lá.

Ninguém o estava esperando.

Só havia mais um lugar para verificar: a despensa embaixo da escada.

Ali, provavelmente, haveria espaço suficiente para alguém ficar entre as prateleiras e a porta.

Apertou o taco com mais força.

E abriu a porta.

Com a luz que entrou por trás dele, pôde ver que o espaço estava vazio, exceto por quatro caixas de papelão empilhadas no chão.

Um pensamento: Está aqui.

O que é?

O que você está procurando.

Puxou o cordão para acender a luz que havia dentro do armário.

Daniel não tinha certeza quanto a qual das caixas devia examinar, ou mesmo quanto ao que estava procurando, mas apoiou o taco contra a parede e abriu a caixa de cima.

Roupas que não lhe serviam mais.

A segunda caixa continha luvas velhas e gastas de beisebol em que ele e o pai tinham investido antes de ele começar a se concentrar no futebol e no basquete alguns anos atrás.

Na terceira havia decorações para o Dia das Bruxas e de Ação de Graças que sua mãe pendurava pela casa nesses dias de festa quando morava com eles.

A última caixa continha uma pilha de mapas que ele e o pai haviam colecionado ao longo dos anos em suas excursões de caça, acampamento e pescaria.

Por algum motivo que ele não conseguia apreender, sentiu como se precisasse dar uma olhada mais de perto e começou a examinar os mapas.

Havia cartas topográficas da cordilheira Wind River,* onde eles haviam feito trilhas no último verão; mapas de pesca dos cursos d’água que têm origem no lago Algonquin, o maior lago local; e até um mapa náutico mostrando a localização de naufrágios ao longo do lago Superior, a cerca de uma hora de distância.

Nenhum deles chamou­-lhe a atenção, mas um mapa topográfico da floresta nacional das proximidades atiçou sua curiosidade.

Estudou o mapa, avaliando a área e os locais em torno dela, e comparou­-os com aqueles em que os lobos mortos haviam sido encontrados.

Havia um centro de pesquisa – o Instituto Traybor – que havia sido construído perto da margem da floresta que cercava o lago Waunakee. Ele não tinha certeza quanto ao que era feito nele. Tinha ouvido alguma coisa sobre controle da população de peixes.

O local era novo, construído no outono, e não constava no mapa, mas a localização coincidia. Ficava bem no meio dos locais onde os lobos mortos tinham sido encontrados.

Amanhã você vai encontrar Nicole. Vai poder verificar isso com ela.

***

De volta a seu quarto, Daniel pensou na garota vertendo lágrimas de sangue, a que lhe dissera que Madeline estava esperando.

Ficou pensando nos lobos, no mapa e nas mensagens, bem como no homem que não conhecia e que acabara por encalhar na neve à frente deles.

O que isso significava?

Teria algo a ver com o centro de pesquisa?

Não era como a matemática, em que a lógica e o raciocínio claro levam às respostas. Era mais como a interpretação de um sonho, com apenas sugestões e imagens, vagas indicações que não levavam a nada de concreto.

Não era exatamente o tipo de coisa com que ele se identificava.

As distorções que ele tinha tido no último outono eram sobre uma garota que havia morrido.

Não, não havia morrido apenas – havia sido assassinada.

Será que mais alguém morreu? Mais alguém terá sido assassinado?

Dessa vez, ele não apenas teria que adivinhar o que significavam as distorções, mas que crime elas poderiam estar ajudando­-o a desvendar.

Por fim, depois de se certificar de que não conseguia chegar a nenhuma conclusão, Daniel resolver ir para a cama, deitou­-se e, embora suspeitasse que não conseguiria dormir bem com tanta coisa na cabeça, de fato adormeceu.

Quando acordou, contudo, ainda não havia amanhecido. Ainda era o meio da noite.

E ele estava no quarto do pai, segurando uma faca de caça e olhando para ele, que dormia.

* Localiza­-se no oeste do estado de Wyoming, sendo uma subcordilheira das Montanhas Rochosas. Ao longo de cerca de 160 quilômetros, apresenta mais de 50 picos com altitudes próximas a 4 mil metros. (N.T.)


12

Sábado, 22 de dezembro | 3h22

O pálido luar filtrava­-se pela janela e pousava no pé da cama, mas iluminava suficientemente o quarto do pai para que Daniel pudesse vê­-lo deitado de lado, virado para a parede.

A lâmina da faca brilhou ao luar, lustrosa e ávida no meio da noite.

Ávida de sangue.

Sangue.

Não!

Sim, Daniel. Sim.

Ele recuou e chocou­-se contra a cômoda, fazendo oscilar uma foto que estava em cima dela.

Quando caiu no chão, o vidro espatifou­-se.

O pai acordou assustado e se levantou, instantaneamente alerta, examinando o quarto para descobrir o que o acordara.

Daniel escondeu a faca atrás da perna.

– Dan? – perguntou o pai, arfante. – O que você está fazendo aqui?

– Sonambulismo – murmurou ele. – Devo ter caminhado no sono.

Não era a primeira vez que ele caminhava no sonho. Além de ter feito isso certa vez, quando era criança, tornou a acontecer no último outono, quando estavam ocorrendo os encontros com Emily e as distorções. Certa noite, ele saiu na chuva e desenterrou o corpo de seu cachorro de estimação que havia sido atropelado por um carro três meses antes. Mais tarde, quando acordou na cama, encharcado e enlameado, não se lembrava de ter desenterrado Akira.

Na verdade, só descobriu o que tinha feito na manhã seguinte, quando seu pai descobriu o corpo do cachorro no capô de seu carro.

Daniel sabia que seu pai tinha um revólver ao lado da cama, na gaveta de um pequeno criado­-mudo, e estava contente que ele não o tivesse pegado. Isso não teria terminado bem para nenhum dos dois.

O pai acendeu o abajur do criado­-mudo. Cacos de vidro brilharam no chão em torno dos pés descalços de Daniel.

Mantendo a faca escondida, ele olhou para o vidro quebrado.

Uma faca. Por que você está com uma faca?

Seu coração batia forte e ele se sentiu tomado por um tipo cáustico de medo.

Como sempre, os chinelos de dedo que seu pai usava em casa estavam ao lado da cama; ele os colocou e se levantou.

– Não se mexa. Não quero que você pise nesse vidro. Vou pegar uma vassoura e uma pá de lixo.

Ele desapareceu no corredor, e Daniel jogou a faca atrás da cômoda, onde seu pai não a veria e de onde a poderia recuperar pela manhã.

O que está acontecendo?

Você está começando a perdê­-lo.

Você está...

O pai voltou, varreu o vidro quebrado e o despejou no cesto de lixo do banheiro.

– Você está bem? – perguntou ele.

– Estou bem.

– Vá dormir – disse o pai, mas não pareceu uma ordem. Soou mais como preocupação e nada mais.

– Tudo bem.

***

Depois de voltar para a cama, Daniel fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Sua mente ficava repetindo o que havia acontecido.

Está ficando pior.

Você precisa começar a tomar os remédios antes que seja tarde. Antes que faça alguma coisa de que se arrependa. Alguma coisa que não pode ser desfeita.

Embora não tivesse certeza se faria muita diferença, trancou a porta do quarto, pegou a barraca de acampamento no armário, soltou uma das cordas de fixação, enrolou­-a no tornozelo e amarrou a outra ponta na cabeceira da cama.

Certificou­-se de que o nó estava suficientemente seguro para que não se soltasse enquanto ele dormia. Assim, se tornasse a andar no sono, a corda o impediria de ir ao quarto do pai.

Mas nada disso acabou tendo importância, pois ele mal conseguiu dormir.

Ficou só deitado, pensando em como acordara no quarto do pai segurando aquela faca e ouvindo aquela voz em sua cabeça dizendo­-lhe que a faca estava ávida de sangue.


13

8h01

Depois de soltar a corda do tornozelo, Daniel tornou a guardá­-la em seu equipamento de camping.

Ele não conseguia tirar a faca do pensamento.

Por que cargas d’água você teria feito aquilo? O que o teria levado a pegar aquela faca e entrar no quarto de seu pai daquele jeito? O que você ia fazer com ela?

Esperou até ouvir o ruído do chuveiro no banheiro, antes de entrar no quarto do pai; então, com muito cuidado, afastou a cômoda e localizou a faca de caça.

A lâmina tinha sido projetada especificamente para cortar músculos e carne. Era a que ele usava para abrir os veados caçados.

Nicole nunca se entusiasmou muito com suas caçadas, mas sem um número adequado de predadores naturais no estado, a população de veados precisava ser abatida ou problemas de superpopulação – doença, especificamente – poderiam dizimar a manada.

É claro que ela sabia disso, e a última coisa que desejava era que o animal sofresse, mas, mesmo assim, não aprovava a ideia de alguém abater os veados, quanto mais seu namorado.

A água parou de correr no chuveiro do banheiro.

Daniel empurrou a cômoda para o lugar, voltou para o seu quarto, recolocou a faca na bainha e a pôs no armário.

***

Estava na metade do café da manhã quando o pai juntou­-se a ele na cozinha.

– Você se levantou cedo para um sábado.

– Eu não dormi muito bem.

O pai foi buscar pães e uma maçã.

– Você se lembra de ter andado durante o sono esta noite?

– Lembro­-me de ter acordado em seu quarto – disse ele, sem maiores comentários.

– Você derrubou uma fotografia. Fiquei preocupado que você pudesse se cortar nos cacos de vidro.

– Não, eu estou bem.

– Devo confessar que você me assustou. Está se sentindo bem?

– Estou. Desculpe pela foto.

– Não precisa se desculpar. Estou feliz por você estar bem.

– Estou um pouco cansado, mas estou bem – disse ele. Depois de algumas colheradas de cereal, acrescentou: – Uma vez você me disse que eu tive um ataque de sonambulismo quando o vovô morreu.

– É verdade.

– Você disse que, quando me perguntou o que eu estava fazendo, respondi que ia encontrá­-lo.

– Isso mesmo.

– O que aconteceu depois?

– Nós levamos você para o seu quarto e o pusemos na cama.

– Eu disse mais alguma coisa?

– Você disse que ia salvá­-lo antes que eles chegassem.

– Salvá­-lo? Mas era tarde demais para isso.

– Era, sim.

– E antes que quem chegasse?

– Não sei. Você estava dormindo, falando no sono. Não sei se isso queria dizer alguma coisa.

Daniel não conseguia saber se aquilo tinha ou não algo a ver com o que estava acontecendo agora.

– Você descobriu alguma coisa a respeito da morte dos lobos?

– A avaliação de balística voltou. A mesma arma foi usada para disparar todos os tiros que mataram os lobos até agora. Uma arma de calibre .30; com balas de ponta oca – respondeu o pai, sentando­-se à mesa. – Então, quais são seus planos para hoje?

– Vou encontrar Nicole e depois, à tarde, estávamos pensando em ir ver um filme em Superior com o Kyle e a Mia.

– Ouça, eu fui severo com você ontem à noite. Sinto muito. É que está acontecendo muita coisa. Eu devia ter pegado leve.

– Sim, não. Está certo. Tudo bem. Eles acharam outro lobo?

– Não. Mas eu diria que quatro são suficientes.

– Você vai trabalhar hoje?

O pai confirmou com um movimento de cabeça.

– Devo voltar às seis.

***

Depois do café da manhã, Daniel pegou o vidro de remédio que o pai tinha lhe comprado no dia anterior e foi para o banheiro.

Colocou dois comprimidos na palma da mão.

Eles vão lhe fazer bem, Daniel. Vão melhorar as coisas, fazê­-las voltar ao normal.

Mas outra voz dizia: As coisas não vão voltar ao normal. Não depois do último outono. Tudo mudou e não há como voltar.

Ele aninhou os comprimidos na palma da mão.

Não vão voltar.

Tome­-os, Daniel.

Não. Livre­-se deles.

Daniel sabia que todo mundo ouvia vozes dentro da cabeça. Todos nós temos conversas imaginárias, reformulando o que aconteceu e pensando em reações mais inteligentes depois do fato. E não é só isso: nossas consciências nos enganam e nos afligem, e palavras fantasmas de insultos e golpes baixos que há muito já se foram podem nos assombrar. Às vezes pela vida inteira.

Mas isso era diferente. Não eram apenas palavras sussurradas em sua mente. Era quase como se uma das vozes viesse de fora de sua cabeça, como se ele a estivesse ouvindo enunciada completamente por outra pessoa.

Eu sou real, Daniel. Eu sou. Você pode me ouvir e eu vou lhe dizer o que você precisa fazer.

Então, a voz dentro de sua cabeça replicou: Não, você não é real. É apenas uma ilusão, uma ilusão que eu ouço.

Eu sou tão real quanto sua consciência, quanto seus sonhos, quanto suas memórias. Todo mundo ouve vozes, Daniel.

Mas você não é real. Eu sei que não é.

Você consegue me ouvir. Pode conversar comigo. O que me torna menos real que alguém que você pode ver?

O fato de essas pessoas estarem realmente lá.

Se eu não fosse real, você não seria capaz de me ouvir. Se eu não fosse real, por que você estaria discutindo comigo?

Em conflito, Daniel olhou para os comprimidos.

Seus pensamentos continuavam a ir e vir, dispersando­-se, hesitando, transformando­-se numa discussão com ele mesmo.

Se o remédio ia demorar uma ou duas semanas para fazer efeito, mesmo se começasse a tomá­-lo agora, as coisas continuariam a acontecer por certo tempo.

Foi até o banheiro, como tinha feito tantas vezes nos últimos dois meses, para jogar os comprimidos no vaso e dar descarga – sempre dois de uma vez, nunca o vidro inteiro, caso o pai resolvesse verificar seus remédios.

Contudo, tomá­-los seria, pelo menos, o começo de uma ajuda. O problema era esse. Tudo tinha ficado cada vez mais estranho desde a manhã anterior, e ele precisava reverter essa tendência o mais cedo possível, antes que alguma coisa séria acontecesse.

Você precisa deles. Você precisa de qualquer ajuda que possa conseguir.

Pôs água num copo e tomou um golpe; então, engoliu os comprimidos.

Daniel disse a si mesmo que agora as coisas seriam diferentes, que o incidente da última noite não era algo com que se preocupar. Mas, por mais que tentasse, não conseguia se convencer de que havia levado aquela faca para o quarto do pai sem a intenção de usá­-la.

Ele precisava de respostas e precisava delas antes do anoitecer, quando tornaria a dormir e talvez tivesse outro pesadelo – ou, o que seria pior, outro ataque de sonambulismo.

E talvez não se limitasse a ficar perambulando com uma faca.

Talvez a usasse.

***

Mandou uma mensagem a Nicole, pedindo­-lhe que telefonasse assim que pudesse; apenas alguns minutos depois, o telefone tocou.

– Oi – disse ela. – O que está havendo?

– Você já está em pé?

– Tive uns sonhos estranhos. E você?

– Tive problemas para dormir. Ouça, tenho que verificar uma coisa com você. Você pode me encontrar no estacionamento, no começo da trilha para o rio Pine?

– Quando?

– Ainda esta manhã. Lá pelas dez?

– Combinado.

– Use roupa apropriada para esse tempo.

– Você vai me contar o que vamos fazer?

– É surpresa, sua boba.

– Você pegou essa fala emprestada de mim – disse ela, e ele quase a ouviu sorrindo.

– É possível.

***

Tudo bem, até lá, ele teria mais de uma hora para verificar as coisas antes de sair.

Tinha planejado procurar informações sobre os lobos para seguir com algumas ideias que tinha com relação à matança, mas, naquele momento, ler sobre sonambulismo parecia ser prioridade maior.

No último verão, ele ouvira dizer que algumas pessoas chegavam a dirigir pela cidade enquanto dormiam, tendo mesmo assassinado pessoas em seus ataques de sonambulismo, e, embora parecesse incrível, não demorou a encontrar informações on­-line para confirmar isso tudo.

Descobriu­-se lendo relato após relato de pessoas que tinham feito coisas estranhas enquanto dormiam: preparar uma refeição, enviar mensagens coerentes, atravessar um lago a nado e, sim, até matar pessoas.

Só de pensar que era possível matar alguém enquanto se dorme, teve vontade de nunca mais voltar a dormir.

Como é que se pode lutar contra uma coisa dessas? Como controlar o que se faz durante o sonambulismo?

Quando olhou as horas, viu que já eram mais de 9h40, e ele precisava ir andando se ainda queria chegar à trilha do rio Pine às dez horas.

Mandou uma mensagem a Nicole dizendo que estava a caminho, calçou as botas de inverno, pegou o casaco, chapéu e luvas e saiu.


14

Embora ainda coberta de neve, a trilha estava plana e cheia de gente deslizando por ela de esquis.

Enquanto caminhavam, Daniel ficou indeciso se contava ou não a Nicole o que havia escrito naquele caderno, sobre a garota com lágrimas de sangue ou, especialmente, sobre acordar no quarto do pai segurando uma faca de descarnar veados.

Ela já sabia sobre as distorções do último verão, de modo que nada disso seria um choque para ela. Mas, ainda assim, as coisas que tinham acontecido a ele nas últimas 24 horas estavam ficando cada vez mais perturbadoras e ele não queria assustá­-la ou deixá­-la preocupada.

No final, decidiu que talvez ela fosse capaz de ajudá­-lo a resolver as coisas.

– Nicole, eu caminhei durante o sono na noite passada.

– Você... quero dizer...

– Não, não tentei desenterrar nenhum animal morto. Acabei no quarto de meu pai. Ele acordou comigo em pé no meio do quarto. O que o assustou muito.

– Não é para menos...

Ela ouviu em silêncio enquanto ele resumia as visões da garota de camisola branca, a que se consumira em chamas. Por ora, não mencionou a faca ou as mensagens de Madeline.

– Acho que as distorções estão tentando me dizer alguma coisa – disse ele. – Como se parte da minha mente estivesse trabalhando as coisas e tentando... Bem...

– Revelar­-lhe respostas.

– Isso.

– Como com a Emily no último outono.

– Exatamente.

– Mas respostas para o quê?

– Esse é o ponto: não sei.

Ele ainda não tinha certeza se devia mencionar a faca.

Vá devagar ao abordar esse assunto.

– Hoje de manhã pesquisei sobre sonâmbulos homicidas: quando alguém mata outra pessoa enquanto caminha no sono.

– Por quê?

– Por que elas matam alguém?

– Não, por que você pesquisou isso?

– Porque... Bem, porque eu queria descobrir se eu seria capaz de machucar alguém em meu sonambulismo.

– Mas sonambulismo homicida? Isso é loucura.

– Eu sei, mas a coisa acontece mesmo, normalmente entre membros de uma família. Certa vez, na Inglaterra, um cara estrangulou a esposa enquanto dormia e, quando acordou, não se lembrava disso. E foi julgado inocente pela justiça. Outro cara jogou a filha pela janela. Uma mulher...

– Tudo bem. Já entendi. Não quero ouvir mais nada. É muito perturbador.

– Certo.

– E, então, tudo isso o assustou? Foi isso? Quero dizer, considerando que você voltou a ser sonâmbulo?

– Isso mesmo.

Os dois caminharam em silêncio durante algum tempo; então, Daniel finalmente disse:

– A coisa mais assustadora é: como é possível impedir­-se de fazer alguma coisa terrível quando se está dormindo? Quero dizer, se você nem tem consciência das coisas, pode sair da cama, matar alguém, voltar a deitar e acordar sem se lembrar de nada.

– Acho que você não tem que se preocupar com isso.

Conte­-lhe sobre a faca.

Não.

Sim. Você pode confiar nela.

Não, ela vai ficar com medo de você. Você vai assustá­-la.

Como ele não respondia, ela reiterou:

– Realmente, Daniel. Você nunca faria nada de terrível durante o sono.

Você precisa lhe contar. Vá em frente.

– Nicole, na noite passada, quando acordei no quarto de meu pai, eu estava segurando uma faca.

– O quê?

– Eu estava segurando uma faca. Uma faca de caça.

– Então foi por isso que você pesquisou esse negócio de sonambulismo homicida.

– Foi.

– Você nunca o machucaria, Daniel. Você nunca machucaria alguém, quanto mais matar, a menos que isso fizesse parte de você, a menos que houvesse alguma coisa dentro de você... Não sei, quero dizer ódio, raiva ou alguma outra coisa do tipo que o motivasse. E você não é assim. De jeito nenhum.

Dois lobos lá dentro.

Lutando.

Sempre lutando.

– Não tenho tanta certeza – disse ele. – Mas sei de uma coisa.

– O quê?

– Precisamos descobrir por que as distorções recomeçaram. E precisamos descobrir antes desta noite.

– Quando você tornar a dormir.

– Isso.

Precisaram sair da trilha para chegar aonde Daniel planejava levá­-la. Depois que saíram, ele a levou através dos bosques na direção sul, para o Instituto Traybor.

Havia algumas lagoas por ali. Os lagos e os rios dessa parte do estado congelavam, nem sempre tão cedo quanto neste inverno, mas tudo dependia do tempo. Naquele momento, o gelo estava naquele estágio em que provavelmente se possa caminhar por ele com segurança, mas pegar um carro de andar na neve ou um automóvel normal não seria boa ideia.

– Não é muito longe – disse ele enquanto passavam pela lagoa mais próxima.

Cruzaram uma trilha para carros de andar na neve que terminava numa estrada isolada que levava a uma série de cabanas ao redor do lago Waunakee.

– Então, você vai me dizer aonde estamos indo ou ainda é surpresa? – perguntou ela.

Nesse ponto, ele não conseguia pensar em um bom motivo para não contar a ela o que havia.

– É o lugar que eles construíram no último outono, à beira da floresta, aquele instituto de pesquisa.

– Por que estamos indo lá?

– Andei olhando alguns mapas na noite passada que me deram o que pensar.

– Vá em frente.

Ele ainda não contara a ela sobre as misteriosas mensagens que vinha recebendo. Tudo, até aquele ponto, envolvia o que ele fizera ou pensara, mas as mensagens envolviam outra pessoa, pois, obviamente, alguém as estava enviando.

A mensagem da noite anterior o levara até o porão.

Ela vai ficar magoada se souber das mensagens. Vai ficar imaginando quem é Madeline. Vai achar que está havendo alguma coisa entre você e outra garota.

– É uma longa história – disse ele. – Mas um determinado mapa me fez pensar no instituto. Fiquei imaginando se ele tem alguma coisa a ver com a matança dos lobos.

– O que o fez pensar isso?

– Depois que o instituto foi construído, talvez há um mês e pouco, os lobos começaram a ser mortos. Além disso, ele está localizado bem no meio da área onde os lobos estão morrendo.

Caminharam pesadamente pela neve até verem o contorno do instituto a uma centena de metros, através das árvores nuas, destituídas de folhagem.

Aproximando­-se, encontraram uma cerca de metal que isolava toda a propriedade. O topo era inclinado, guarnecido com arame farpado.

– Você sabe o que eles fazem aqui? – perguntou Nicole.

– Estudos ictiológicos. Foi o que eu ouvi.

– Um lugar que estuda peixes ladeado por uma cerca de arame como essa?

– Não faz muito sentido, não é mesmo?

– Estou achando que não.

Enquanto estavam ali, uma van do Departamento de Correção de Wisconsin surgiu na curva de uma estrada municipal das vizinhanças e avançou para o edifício. O portão se abriu e o veículo entrou na propriedade.

– Tudo bem – disse Nicole –, e por que uma van de transporte da penitenciária estaria visitando um local de pesquisas sobre peixes?

– Não faço a mínima ideia.

Os dois se colocaram atrás de uma tora de árvore derrubada, mas se inclinaram o suficiente para observar o que estava acontecendo. Dois agentes de polícia – que poderiam ser guardas de prisão, era difícil dizer – tiraram outro homem da traseira da van.

– Aquele cara está algemado? – perguntou Nicole num sussurro.

– Acho que sim.

– Ora, isso também é estranho. A gente devia dar o fora.

– Se fizermos isso, eles podem nos ver. Temos que esperar até que eles entrem.

Daniel reconheceu num dos guardas o homem que havia encalhado na neve na noite passada, o que o cumprimentara depois do jogo.

Quando ele e Kyle foram socorrê­-lo, Nicole não desceu do carro, de modo que Daniel não achou que ela pudesse reconhecê­-lo.

– Aquele guarda da esquerda – disse ele – é o homem da noite passada, o que saiu da estrada.

– Você está brincando...

– Não, é ele mesmo.

A conversa foi interrompida por uma série de grunhidos guturais vindos do outro lado da propriedade cercada.

Vultos escuros movimentaram­-se entre as árvores, enquanto quatro cães de guarda avançaram na direção deles.

Os guardas que estavam conduzindo o prisioneiro pararam e olharam na direção de Daniel e Nicole, mas os dois escorregaram rapidamente para trás da tora.

Daniel não tinha certeza se fizeram isso com rapidez suficiente para evitar serem vistos. Imaginou os homens se aproximando, descobrindo ele e Nicole e os interrogando. Tentou imaginar um bom motivo para eles estarem escondidos atrás de uma tora, algo que pudesse satisfazê­-los, mas não conseguiu pensar em nada que parecesse muito razoável.

Ele esperou, esperou e esperou, até achar que talvez os guardas tivessem desistido de procurar na direção deles. Quando olhou para Nicole, viu que ela o fitava com os olhos muito abertos e nervosos.

Pelo som, os cães estavam perto.

Lentamente, Daniel ergueu a cabeça o suficiente para dar uma olhada.

Os guardas e os prisioneiros haviam desaparecido pela porta da frente do edifício, mas os cães haviam chegado até a cerca, saltando contra ela e a arranhando com as patas.

– Ok. Hora de ir embora – disse ele a Nicole. – Antes que alguém descubra por que aqueles cães estão agindo daquela forma.

Retornaram pelo mesmo caminho pela neve e já estavam quase perto da trilha do rio Pine quando um tiro de espingarda soou no ar.

Não vinha do instituto, mas do outro lado da colina, bem à esquerda deles.


15

Daniel examinou a floresta atentamente para ver se conseguia localizar a pessoa que fizera o disparo. Embora não conseguisse ver ninguém, para realmente dar uma boa olhada teria que subir a colina e procurar nos bosques vizinhos.

– Já é a estação de caça? – perguntou Nicole, pouco à vontade.

– Talvez para perus e caça miúda, mas isso soou como um tiro de rifle, e não de espingarda.

Se alguém estava caçando com rifle, o tiro podia ter sido disparado de uma distância de mais de mil metros, dependendo da habilidade do atirador.

– E não existe nenhum campo de tiro por aqui – disse ela.

– Nem perto.

– Então é um caçador ilegal.

– Sim. Talvez. Provavelmente.

– O que acha que devemos fazer?

– Acho que devemos verificar, pelo menos dar uma olhada rápida e ver se conseguimos localizar o atirador.

– Você acha isso seguro? Dar uma olhada, quero dizer...

– Desde que a gente tenha cuidado.

– Mas se a pessoa que atirou estiver realmente caçando lobos de maneira ilegal, ela não vai querer ser descoberta.

– Você acha que vão querer atirar em nós?

Ela ficou quieta.

Se Daniel estivesse sozinho, poderia estar mais apto a dar uma olhada pelo lugar, mas, com Nicole, percebeu que não queria correr riscos.

– Bem pensado.

Contornaram a base da colina. Ninguém apareceu; nenhum outro tiro foi disparado.

Não tinham andado muito quando descobriram um rastro de sangue espumoso na neve.

Ainda estava fresco e seguia paralelo a um conjunto de pegadas de lobos.

– Oh, não – disse Nicole, a voz cheia de tristeza. – Por favor, não.

De suas caçadas com o pai, Daniel sabia que o sangue espumoso significava que o animal tinha sido atingido nos pulmões. Muito possivelmente um tiro fatal.

Ele observou o bosque diante deles, em busca de algum sinal do lobo.

Então, olhou para trás a fim de ver se o atirador estaria seguindo o rastro de sangue. Não viu o animal, e a floresta atrás deles estava vazia.

– Nós devíamos seguir o rastro para ver se ele está bem – disse Nicole, olhando para Daniel.

– Não acho que ele esteja bem, Nicole.

O rastro desaparecia num espesso grupo de pinheiros do qual ele mal podia ver o interior.

– Esse lobo provavelmente está morrendo. Não devemos realmente nos aproximar dele agora. Não se sabe como ele pode reagir.

– Então vamos nos manter a distância. Eu preciso vê­-lo, Daniel.

Como ela insistisse, ele acabou cedendo.

– Tudo bem, acho que podemos contornar esses pinheiros, ver se ele saiu pelo outro lado. Mas não vamos entrar nos pinheiros. Não me importo em nos mantermos a distância, como você disse, mas não quero assustar um lobo agonizante.

– Ok – disse ela, já se pondo a caminho. – Vamos.

Em silêncio, contornaram o bosque de pinheiros, passando ao largo daquele trecho sombreado de floresta.

Chegaram ao outro lado bem a tempo de ver o lobo morrer.


16

O lobo estava deitado na borda do bosque de pinheiros e, com base na localização do laivo de sangue em seu pelo, Daniel viu que tinha razão: o animal havia sido baleado no peito.

Ele respirava superficialmente e ficou claro que não estava em condições de atacá­-los, de modo que ele e Nicole se aproximaram mais, até ficarem a cerca de seis metros do animal.

O lobo ergueu a cabeça ligeiramente e olhou na direção deles, mas não grunhiu.

Foi perturbador o modo silencioso com que o animal morreu.

Por um instante, seus olhos pareceram argutos e alertas. No momento seguinte, quando a cabeça tombou no chão, pareciam simplesmente olhar, de maneira inexpressiva e fixa, para a floresta ao redor.

Vivo em um momento.

Morto no momento seguinte.

Apenas isso.

Daniel e Nicole esperaram alguns minutos em meio ao silêncio do dia, quase que de modo a prestar homenagem à morte do lobo, antes de se aproximarem dele.

Nicole tirou as luvas e tocou no lobo com suavidade, mergulhando os dedos no pelo, mas tendo o cuidado de manter a mão longe do sangue.

– Nós vamos descobrir quem fez isso – prometeu ela num tom comedido, mas firme. – Eles não vão continuar a fazer isso.

Daniel tornou a olhar ao redor em busca de algum sinal de que alguém pudesse estar se aproximando, talvez seguindo as pegadas do lobo para se certificar de que o animal estava morto. Não viu ninguém, mas sempre era possível que o atirador estivesse avançando pelo bosque de pinheiros, como fizera o lobo.

Ajoelhou­-se ao lado de Nicole.

– É melhor voltarmos para o carro.

Ao ajudá­-la a se levantar, notou que a orelha do lobo tinha uma etiqueta eletrônica, provavelmente colocada pelos guardas florestais para que pudessem monitorá­-lo e estudar seus padrões de movimento.

Ele não sabia quantos lobos naquela área haviam recebido uma etiqueta como aquela, mas, pelo que ouvira, o serviço florestal estava tentando marcar o maior número possível de lobos para ver se a população desses animais estava se recuperando.

– Fico imaginando se os outros também estavam etiquetados – disse ele, sem se dar conta de que tinha dito isso em voz alta, em vez de apenas mentalmente.

– Os outros também estavam o quê? – perguntou Nicole.

– Etiquetados – respondeu ele, apontando para a orelha do lobo. – Como ele.

– Você quis dizer os outros que foram mortos?

– Isso mesmo.

– Em que você está pensando?

– É apenas uma ideia – disse ele, enquanto usava o celular para tirar uma foto da etiqueta eletrônica na orelha do lobo. – Quero dizer que sei que existem mais lobos por aqui atualmente, mas quantos chegamos efetivamente a ver?

– Eu não sei. Acho que nunca tinha visto um lobo na floresta, mas não passo tanto tempo nela quanto você.

– E eu só os vi umas duas vezes. Os lobos são arredios. Então, como é que essa pessoa, seja quem for que está atirando neles, conseguiu descobrir tantos para matar em um período tão curto?

– Você está achando que esse cara está atirando nos que foram marcados? – perguntou ela, enquanto iam para o carro. – Que ele os localiza usando o rastreador, ou o GPS da etiqueta?

– É um ponto de partida. Acho que devemos contar ao meu pai sobre essa etiqueta eletrônica.

Seu pai não verificava mensagens com frequência, então Daniel resolveu ligar. Como não atendesse, deixou uma breve mensagem dizendo que tinham encontrado um lobo morto e pedindo que lhe telefonasse de volta. Mandou­-lhe também a foto da etiqueta do lobo.

Daniel e Nicole voltaram ao começo da trilha. Quando chegaram lá, ele disse:

– Precisamos descobrir o que pudermos sobre o programa de monitoramento dos lobos.

Sugeriu que Nicole fosse com ele para sua casa, mas ela explicou que havia se esquecido de dar comida para o gato naquela manhã e seus pais estavam fora.

– Eu preciso tomar conta do Harley – disse ela. – Passe pela sua casa e pegue seu laptop. Vamos nos encontrar na minha casa.

– Por mim, tudo bem. Vejo você em meia hora.


17

As paredes do quarto de Nicole eram decoradas com quadros de pássaros e bailarinas. Como fã da série Star Wars, ela também tinha pôsteres de Darth Vader e Han Solo, todos dos filmes originais das décadas de 1970 e 1980 – ela não era muito fã dos acréscimos mais recentes à série.

Na parede, Darth Vader convidava Daniel a se juntar ao lado sombrio da Força.

Como estava fazendo aquele lobo dentro deles.

Lobos em luta.

Matando...

... Morrendo, como o de hoje na floresta.

Nicole se acomodou na cama com as costas contra a parede e abriu o laptop sobre as pernas. Harley, seu gato cor de canela, agora bem alimentado e satisfeito, acomodou­-se numa almofada no chão. Daniel sentou­-se na beira da cama com o notebook no colo.

– A propósito – disse Nicole –, tenho um presente de Natal para você.

– Também tenho um para você.

– É mesmo? O que é? Não, espere, não me conte. Eu não quero saber... sim, eu quero saber. Detesto surpresas... bem, nem sempre; às vezes sim, mas...

– Não vou contar o que é, e você só vai ganhá­-lo no Natal. Mas vai gostar.

– Tenho certeza de que vou. Não me conte.

– Não vou contar.

– Mas estou curiosa.

– Que pena.

– Bom, eu não quero saber nada sobre ele... mas faço uma ideia.

– Eu sei.

Enquanto Nicole se aconchegava em meio a seus bichos de pelúcia e bonecas, que ela conservava sem nenhum constrangimento junto ao travesseiro, Daniel teve sua atenção voltada para um deles.

– Eu nunca disse isso para você e não quero bancar o Capitão Óbvio, mas sua boneca só tem um braço.

– Isso mesmo – disse ela, pegando a boneca com ternura. – Ela foi, por assim dizer, sendo amada com o passar dos anos. A princípio, minha mãe tentou consertá­-la, costurando o braço no lugar, entende? Mas eu ficava carregando­-a por aquele braço e ele acabou por se rasgar novamente. Por fim, minha mãe me disse que existem pessoas que só têm um braço, e que Rebecca não era diferente delas. Ela disse que a boneca era única, especial, da mesma forma que essas pessoas.

– Isso foi legal.

– Foi mesmo.

– Você fala dela quase como se falasse de uma menina de verdade.

– É claro que sim. Rebecca é uma menina. Todas as bonecas são meninos ou meninas. Você provavelmente teve bonecos.

– Sinto desapontá­-la, mas eu nunca brinquei nem com bonecas nem com bonecos.

– É mesmo?

– É. Nada de bonecas na casa dos Byers.

– Nem o boneco do Batman?

– Não, mas aquilo não é boneco.

– Ah, então o que é?

– É a figura de brinquedo de um herói antigo.

– Isso... um boneco antigo.

– Uma reprodução de brinquedo de um herói de ação. O que faz uma grande diferença.

– Ceeeeeerto...

Sem dúvida, era hora de mudar de assunto. Ele apontou para um caderno de desenho que estava na escrivaninha de Nicole.

– Você fez algum desenho novo?

– Alguns.

– Posso vê­-los?

– Humm...

Pelo que ele descobrira no passado, Nicole não achava que fosse boa desenhista e não se mostrava muito disposta a mostrá­-los a ele – na verdade, ele estava com ela há quase seis semanas quando ela finalmente deixou­-o ver alguns de seus desenhos.

Mas ela estava equivocada quanto a eles.

Eram surpreendentes.

Ela desenhava principalmente paisagens e, por vezes, animais silvestres. Tendo visitado um lugar uma vez, visto um cervo na floresta ou um mergulhão num lago, ao voltar para casa ela os desenhava com detalhes tão intrincados e precisos que Daniel duvidava que fosse capaz de percebê­-los mesmo se estivesse olhando diretamente para eles na natureza.

– Prometo que vou adorá­-los – disse ele. – Você sabe que vou.

– Você diz que vai adorá­-los, mesmo não gostando, porque não quer ferir meus sentimentos.

– Quanto a isso... prometo que vou ferir seus sentimentos se for preciso.

– Oh... bem, isso é muito melhor.

– Tudo o que eu puder fazer para incentivá­-la.

– A­-ha!

Ele estendeu a mão e ela, depois de dar um pequeno suspiro, se inclinou, pegou o caderno de desenho e o entregou a ele.

Ele passou pelos desenhos que já tinha visto.

– Você quase encheu o caderno.

– Só sobraram algumas páginas.

Chegou aos desenhos novos.

O primeiro era um desenho do Arco de Gateway e da linha do horizonte de Saint Louis. Ele sabia que Nicole tinha ido lá com os pais no último mês de junho, mas o fato de ela só ter feito aquele desenho recentemente deixou­-o surpreso.

– Não, ainda não posso ferir seus sentimentos.

Ele virou a página e viu um bando de gansos voando acima de um charco.

– Ainda não dá para feri­-los.

– Bem, só espere. Você acha que suas distorções são perturbadoras. Espere até ver o último desenho.

Ele virou a página.

E ficou mudo.

Ela havia desenhado um homem que, aparentemente, estava dormindo, deitado numa espécie de esteira ou catre. Pelo que parecia, um demônio esvoaçava acima dele. Não era uma daquelas caricaturas de quadrinhos de um demônio com chifres, pés com cascos, uma cauda pontuda e um tridente. Não, esse demônio parecia uma coisa saída diretamente de um pesadelo.

Ela captara a perversidade, o mal e o horror numa linha simples que parecia perturbadoramente real. A carne do demônio, semelhante a couro, esticava­-se firmemente pelo contorno de seu esqueleto, e havia algo na maneira como ela desenhara a criatura que fazia com que parecesse estar pronta a erguer­-se da página com suas escuras asas de morcego e voar diretamente para dentro do pensamento de alguém ou infestar sua alma.

– Está vendo? Eu avisei.

– Isso veio só da sua imaginação?

– Claro, quero dizer, eu estava num lugar estranho quando desenhei isso. Estive lendo a Bíblia, deparei com a história de Jó e, bem, parece que a coisa tomou conta de mim.

Nicole não tinha medo de falar de sua fé, então Daniel não ficou surpreso por ela agora mencionar sua leitura da Bíblia. Algumas pessoas não gostam de falar do sobrenatural, mas Nicole sempre havia sido honesta e direta quanto às suas crenças, o que era verdadeiramente tranquilizador e uma das coisas que o atraíam nela.

Ele não estava muito familiarizado com a Bíblia, mas conhecia o suficiente de suas idas à igreja com a mãe quando ela ainda morava com eles para saber que Jó fora um homem rico e, então, perdera tudo.

– O demônio o está tentando?

– É mais provável que o esteja aterrorizando – disse Nicole, digitando em seu laptop e puxando uma Bíblia on­-line. – Jó, 7:13­-15.

– O que diz aí?

– Jó está tendo uma de suas visões aterrorizantes e escreve: “Quando eu digo: Minha cama me confortará, meu leito aliviará a minha queixa, então me espantas com sonhos, e com visões me atemorizas, de modo que eu escolheria antes a estrangulação e a morte do que a vida”.

– Então Deus enviou­-lhe pesadelos tão aterrorizantes que ele preferiria ser estrangulado e morto? Por que Deus enviaria pesadelos como esses a uma pessoa?

– Jó achou que eles provinham de Deus, mas, bem, é meio complicado. Deus permitiu a Satã que basicamente o torturasse para ver se ele abandonaria sua fé. Mas Jó não sabia disso e, então, presumiu que fosse Deus quem estava lhe mandando essas aflições.

– Bem, em último caso, qual é a diferença? Quero dizer... – Daniel não estava tentando argumentar, mas deixou isso escapar. – Deus mandou esses pesadelos ou os autorizou; de qualquer modo, ele podia impedi­-los de acontecer.

– Sim – disse ela, um pouco incerta. – Acho que sim.

Ele fechou o caderno e tornou a colocá­-lo na escrivaninha.

– Uma vez nós conversamos sobre demônios e você me disse que acreditava neles.

– Eu me lembro disso.

– Como você sabe... bem...

– O quê?

– Se eles estão à nossa volta. Nos tentando, nos torturando... o que mais eles fazem?

Ela olhou para ele, preocupada.

– É o que você acha? Que os demônios o estão torturando?

– Baseado em algumas das coisas que vi, não sei bem o que pensar... apesar de que, devo confessar, nunca quis ser estrangulado ou morto para não ver outra distorção. Pelo menos tem sido assim.

– Bem, não sou especialista em demônios, mas acho que as pessoas cometem um erro quando os superestimam ou os subestimam.

– Você quer dizer que elas acham que os demônios são mais poderosos do que realmente são, ou acham que eles talvez não existam de jeito nenhum.

– Algo assim. Quero dizer, se você fosse um demônio, a última coisa que desejaria é que as pessoas conhecessem a verdade, certo? Você desejaria que elas ficassem mortas de medo de você ou sequer acreditassem que você existe.

– Você está dizendo que a verdade está no meio.

– Sim, mas eu acredito que Deus seja mais poderoso que os demônios, que existe um propósito maior em ação do que aquilo que podemos ver. Como com Jó, e agora com suas distorções... há mais coisas por trás disso. Só precisamos descobrir o que é.

Nenhum dos dois sabia aonde aquela conversa os levaria.

– Acho que devemos começar a trabalhar – disse ele por fim. – Com os lobos, quero dizer.

– Boa ideia.

Os dois lobos.

Qual dos dois você está alimentando?

Quando olhou para a escrivaninha da namorada, viu o demônio sentado em cima dela, olhando para ele, as asas abertas.

Piscou os olhos para que a imagem desaparecesse, mas isso não funcionou e o demônio alçou­-se no ar até ficar acima da escrivaninha. Então, voou através da parede e desapareceu.

Respirando devagar para acalmar­-se, Daniel desviou o olhar daquele canto do quarto e olhou para Nicole, que o observava com certo cuidado.

– Você está bem? – perguntou ela.

– Estou.

– O que foi?

– Nada.

– Você viu alguma coisa. Eu percebi. O que você viu?

– Não faz diferença.

– Daniel...

– Vamos dizer que você desenhou um dragão muito realista.

– E você o viu.

– Vi, mas ele voou para longe. Foi uma coisa boa, não foi?

– Eu diria que sim, mas... o fato de tê­-lo visto é um tipo de distúrbio.

– Se você está dizendo...

Cara, você não precisa ser atormentado por demônios neste exato momento.

Voltando a se ocupar do motivo de estarem ali, ele disse:

– Acho que devemos investigar mais que apenas o fato de os lobos estarem recebendo etiquetas.

– O que você quer dizer com isso?

– Aquele centro de pesquisas, o Instituto Traybor. Precisamos ver como aquele lugar e a matança podem estar relacionados.

– Eu me ocupo dos lobos – propôs Nicole. – Você com o lugar de pesquisa dos peixes e que tem uma cerca de arame farpado.

– Para onde levam prisioneiros algemados.

– Exatamente.


18

Ficaram pesquisando por cerca de meia hora, depois foram para a cozinha almoçar e trocar informações sobre o que tinham conseguido até então.

Enquanto preparavam sanduíches de queijo quente, Nicole disse:

– Não havia nada na internet a respeito dos outros lobos que foram mortos estarem também etiquetados, mas eu descobri que duas dúzias deles eram parte de um projeto conjunto de pesquisa do Departamento de Recursos Naturais com o serviço florestal e com um programa de monitoramento da vida selvagem da Universidade de Wisconsin­-Superior.

– Então, pelo menos, existe uma possibilidade de que os outros lobos também estivessem etiquetados.

– Sim, é possível.

– Vou contar ao meu pai o que estamos achando. Talvez ele saiba alguma coisa.

Ele ainda não tinha recebido nenhum contato do pai desde que deixara a mensagem de voz naquela manhã, então tornou a lhe mandar uma mensagem de texto para que ligasse assim que pudesse.

Nicole virou os sanduíches para tostar do outro lado.

– O que você levantou sobre o Instituto Traybor?

– Honestamente, não muito, o que é estranho. Mas como aquela van veio do Departamento de Correção, decidi procurar se havia alguma ligação entre o Instituto Traybor e a Penitenciária Estadual de Derthick. Como é a prisão mais próxima, decidi começar por aí.

– Achou alguma coisa?

– Uma coisa interessante. No site do instituto há uma lista dos funcionários. Procurei os nomes no Google e não apareceu nada com relação à maioria deles, mas um tal Dr. Waxford participou de um programa particular de pesquisa a respeito de como os seres humanos processam o tempo. Achei meio estranho que ele tenha acabado contando trutas e dourados para viver.

– Um estudo sobre como processamos o tempo?

– Sim, um cronobiólogo. Acho que houve um famoso pesquisador na década de 1960 que passou dois meses vivendo numa caverna sem nenhuma maneira de verificar há quanto tempo estava lá, quanto tempo dormia, nada desse tipo. Então, o Dr. Waxford fez a mesma coisa, por quatro meses. Ele escreveu um diário e, por fim, perdeu a noção do tempo de tal modo que, quando foram procurá­-lo, ele achava que só haviam se passado algumas semanas. Ele quase ficou louco. Algumas pessoas afirmam que ficou.

– Louco?

– É o que dizem em alguns sites.

– Mas você não acha que o tempo passa dessa maneira para todo mundo? Às vezes ele se arrasta; às vezes voa.

– É aí que a pesquisa dele estava chegando. De qualquer modo, o Dr. Waxford acabou por testar a maneira como a escuridão, a privação do sono e diferentes medicamentos afetam a experiência que as pessoas têm com a passagem do tempo.

– E o que isso tem a ver com o estudo dos peixes?

– Esse é que é o problema.

***

Depois do almoço, voltaram para a internet, mas não conseguiram descobrir nada importante. Pouco depois das 13 horas, Daniel recebeu uma mensagem de Kyle dizendo que ele já tinha saído do trabalho. E também queria saber se a ida ao cinema ainda estava de pé.

Daniel achou que, se mandasse uma mensagem a Kyle sobre tudo o que ele e Nicole tinham descoberto, o texto ficaria realmente longo. Em vez disso, pensou que seria melhor apenas explicar tudo pessoalmente quando se encontrassem.

Respondeu que não tinha certeza quanto ao cinema, mas será que poderiam se encontrar assim mesmo? Talvez na casa de Nicole?

Kyle respondeu que ele e Mia estariam lá assim que pudessem.

Depois que Daniel largou o celular, Nicole disse:

– Acho que você devia contar a eles sobre as distorções, o sonambulismo da noite passada e o sonho da garota chorando lágrimas de sangue.

Quando ela lembrou Daniel da garota, ele pensou novamente em como as distorções que tivera no outono haviam ajudado a resolver o mistério da morte de Emily Jackson.

Então, o que a garota de camisola estava tentando lhe comunicar? Ela lhe disse que Madeline estava esperando por ele e que ele precisava se apressar antes que acontecesse de novo.

Antes de quê?

Quanto mais pensava no assunto, mais vagamente se lembrava daquele celeiro, não como pertencente a um sonho, mas como uma lembrança da vida real, como se fosse parte de seu passado e não apenas a imagem fugidia de um pesadelo.

Talvez tenha alguma coisa a ver com o instituto ou com os lobos.

Ele não conseguia afastar o pensamento de que o celeiro era real.

– Estou achando que seria melhor desistir do cinema – disse ele. – Lembra que eu lhe contei que a garota de camisola branca me levou para um celeiro?

– Lembro.

– Estou curioso para saber se já estive lá antes. Se é um lugar real, quero saber se tem alguma coisa a ver com tudo o que está acontecendo.

– Como você vai saber se já esteve lá antes?

– Se conseguirmos encontrá­-lo, talvez isso ative a minha memória.

***

Quando Kyle e Mia apareceram, Daniel contou­-lhes sobre seu sonho envolvendo a garota e como também teve uma distorção com ela durante o jogo.

Então, contou­-lhes sobre o que ele e Nicole tinham testemunhado no Instituto Traybor.

– Um dos agentes, ou guarda da prisão, era o homem de ontem à noite, o que encalhou no banco de neve.

– Você está brincando – disse Kyle, inclinando­-se para a frente.

– Não. Não sei como é que tudo isso se encaixa, mas um dos caras que trabalha no instituto estudava um modo de fazer com que o tempo parecesse passar mais rápido ou mais lento para as pessoas, usando drogas, privação do sono e coisas assim. – E explicou tudo sobre os estudos de cronobiologia.

– Ouvi dizer que Einstein certa vez disse algo como “Se você puser a mão num forno quente por um minuto, vai parecer uma hora, mas sente­-se com uma garota bonita durante uma hora, e vai parecer um minuto” – disse Mia. – Isso é relatividade.

– Isso é verdade, Daniel? – perguntou Nicole inocentemente.

– A parte da garota bonita?

– Exatamente.

– Essa é a resposta correta.

– E a minha também – disse Kyle, colocando a mão no joelho de Mia.

– Ainda bem, caubói.

– Mas essa tal de cronobiologia – disse Kyle a Daniel – não tem nada a ver com o estudo dos peixes, não é mesmo?

– Não. Não consigo imaginar como as duas coisas poderiam se relacionar.

Depois de um instante de deliberação, prosseguiu e compartilhou com eles o que havia acontecido na noite anterior, quando andou durante o sono.

Seus amigos ouviram em silêncio quando ele mencionou a faca de caça.

Por fim, resumiu como ele e Nicole estavam por perto quando o caçador furtivo atirou no lobo.

– Nós estávamos lá quando ele morreu.

– Bem – disse Mia –, você dois tiveram um dia memorável.

– Sem brincadeira. Ah, eu deixei duas mensagens para o meu pai, mas ele até agora não me deu retorno. Normalmente ele me liga logo, não sei o que está acontecendo. De qualquer modo, espero que a gente descubra se os outros lobos que foram mortos também tinham etiquetas. Se tinham, pode ajudar a descobrir quem os está matando. Enquanto isso, quero descobrir o que aquela garota de camisola branca quer de mim.

– Como? – perguntou Kyle.

– No sonho, eu a segui até um celeiro que ficava no final de uma cerca de arame farpado. Havia um campo de milho já cultivado ao lado dela.

– Detesto lhe dizer isto, mas você acabou de descrever metade do estado de Wisconsin no outono.

– Mas a julgar pelo que aconteceu com Emily, acho que minha mente não está tirando essas coisas do nada. Fico imaginando se, em algum momento do meu passado, eu poderia ter estado nesse lugar. Tenho essa vaga lembrança de visitar o celeiro, mas não posso garantir se a minha mente só a está criando com base no sonho ou se estou me lembrando realmente do que aconteceu.

– Então o que você sugere?

– Quero procurar esse lugar. Se eu já estive lá, deve ser o lugar mais provável para buscar as respostas sobre o que realmente está acontecendo aqui. Vamos dar uma volta de carro por aí, visitar algumas fazendas das vizinhanças que eu conheço e, quem sabe, uma delas seja a do meu sonho. Podemos ver o filme depois se não encontrarmos nada.

– Estou dentro – disse Kyle, concordando.

As garotas também concordaram.

Daniel pegou as chaves.

– Então, vamos. Só temos algumas horas antes que escureça.

 

 

19

Enquanto Daniel dirigia, Kyle ajudava com a navegação e o planejamento do melhor caminho a ser tomado para que realizassem sua busca antes do escurecer.

Embora passassem por algumas fazendas que a princípio se mostravam promissoras, quando Daniel se concentrava na de seu sonho, percebia que nenhuma delas era a certa.

Nicole teve a ideia de que, se encontrassem a propriedade, seriam capazes de descobrir quem era o proprietário, pesquisando no cartório de registro de imóveis. Assim, embora a cobertura da telefonia móvel fosse instável no campo, ela e Mia ficaram on­-line com seus celulares e procuraram uma maneira de obter informações.

À medida que a tarde declinava, Daniel foi ficando cada vez menos convencido de conseguir um resultado positivo naquela busca.

– Tudo bem – disse ele, com os olhos no sol, que estava baixo no céu. – Existe outra propriedade na Rodovia Municipal N, perto de onde minha avó morava. Vamos checá­-la e, se não der em nada, vamos direto para Superior. É caminho.

***

Quando chegaram, viram uma faixa de terra cultivável que se estendia ao lado de um extenso pântano congelado que a separava da floresta nacional.

Um celeiro desolado e parcialmente em ruínas erguia­-se no final de um campo coberto de neve. Caules mortos de milho dispersos despontavam na neve, mas, fora isso, o campo parecia intocado.

A madeira do celeiro estava esmaecida pelo sol e pela exposição a anos de intempéries. Uma parte do telhado havia ruído. Um silo deteriorado erguia­-se por perto.

Tudo o que restara da casa da fazenda ao lado era o esqueleto carbonizado de uma residência que, tendo em vista o emaranhado de galhos nodosos de espinheiros que pareciam brotar do que dela restara, parecia ter sido incendiada há muitos anos.

– Você disse que sua avó morava aqui? – perguntou Kyle.

– A casa dela – respondeu Daniel – ficava talvez a uns 200, 250 metros daqui, do outro lado daquele bosque. Meus pais a venderam depois que ela morreu, quando eu tinha 9 anos.

– Eu lembro quando essa casa de fazenda pegou fogo – disse Mia. – Ou pelo menos ouvi falar. Foi há uns cinco ou seis anos. Mas acho que nunca estive aqui.

Daniel ficou imaginando se a garota em chamas de suas distorções e a casa meio queimada tinham alguma coisa em comum.

Você já esteve aqui? Pense, Daniel.

Ele forçou a memória, seguindo suas lembranças em meio a imagens fugidias do passado, e descobriu que algumas delas efetivamente levavam a esse lugar. Fazia anos, e ele não pensava no celeiro há muito tempo, mas se lembrou dele.

Sim.

Ele já tinha estado ali.

Na época em que ele e os pais vinham visitar a avó.

– É esta – disse Daniel, parando o carro.

– Você tem certeza? – perguntou Mia?

– Tenho. É a que apareceu no meu sonho.

– Mas não sabemos de quem é a propriedade – disse Kyle.

Nicole checou os dados sobre o município.

– De alguém chamado Hollister.

Daniel estava com a mão na maçaneta, mas se deteve.

– Hollister?

– Isso. Você já ouviu falar nele?

– Havia um Hollister que costumava andar com o Ty Bell; acho que ele matou alguém. E foi para a cadeia.

– Para a cadeia? Ele não seria muito jovem para isso, quero dizer, se era amigo do Ty?

– Ele era mais velho. Vinte e poucos anos, acho. Talvez sua família seja dona desta terra – disse Daniel, abrindo a porta e saindo do carro. – Vamos. Quero saber por que sonhei com este lugar.

Enquanto o sol descia em direção ao topo das árvores, os quatro começaram a atravessar o campo.


20

Seguiram a cerca até o celeiro.

O fim da tarde estava claro, friorento e cheio da quietude do inverno.

Ao caminharem, a neve chegou­-lhes a meio caminho dos joelhos, mas era mais profunda perto das árvores e dos mourões da cerca, onde o vento a acumulava.

Por mais que a neve a incomodasse, Mia comportou­-se admiravelmente durante a travessia, sem se queixar.

O único som que se ouvia era o de seus passos em atrito contra a neve à medida que avançavam até o celeiro.

Por passar tanto tempo ao ar livre durante o inverno, Daniel já tinha notado isso – uma quietude realmente notável acaba virando uma verdadeira companhia. Então, como se estivesse lendo sua mente, Kyle disse:

– “Você conhece O Grande Silêncio Branco, sem o farfalhar de um único ramo coberto de neve...”

– De onde é isso? – perguntou Nicole.

– De um poema de Robert Service,* “O chamado da floresta”. Ele foi um poeta que escreveu muito sobre o Yukon. Seu poema mais famoso provavelmente é “A cremação de Sam McGee”. O cara é muito bom.

– O Yukon tem neve – disse Mia. – Não gosto da neve. Nunca permitam que eu me mude para Yukon.

Quando já estavam perto do celeiro, Nicole perguntou a Daniel:

– Você tem alguma ideia do que estamos efetivamente procurando aqui?

– Alguma coisa a ver com o meu passado. É tudo o que posso lhe dizer.

Os gonzos da porta do celeiro guincharam em protesto quando Daniel e Kyle fizeram força para abri­-la.

Havia feno espalhado pelo local, com estreitas faixas de neve sopradas pelo vento que conseguira passar pelas frestas entre as tábuas das paredes.

Onde o teto ruíra, a fraca luz do dia abria caminho pelo espaço bem acima deles. Um pouco de luz entra pelas frestas entre as tábuas e, é claro, pela porta aberta, mas a maior parte do celeiro estava tomada por uma rede de sombras profundas e frias.

Daniel foi até um ponto não muito distante da entrada do celeiro.

– Foi aqui que a garota de camisola ardeu em chamas, onde ela... bem... vocês sabem.

Achando que a localização poderia ter algum significado, vasculharam a área, mas não encontraram nada.

Um trator enferrujado, que devia ter 30 ou 40 anos, jazia abandonado no meio do celeiro. Perto da parte do teto que ruíra, havia um quadro de avisos e uma bancada com ferramentas com décadas de uso.

Um palheiro com uma escada de madeira de aspecto frágil havia sido construído no outro extremo do celeiro. De onde estava, Daniel pôde ver as pilhas de fardos de feno nele armazenadas.

A garota olhou para aquele lugar antes de arder em chamas. Ela ergueu os braços em direção ao palheiro.

Uma velha enfardadeira aguardava perto do palheiro. Ela parecia ameaçar, com suas lâminas giratórias, cortar e puxar o feno antes de arrumá­-lo em um fardo.

– Parece que ninguém vem aqui há anos – disse Nicole. – Fico imaginando por que está abandonado.

Mia olhou ao redor do celeiro.

– É melhor verificar se vamos ter tempo de terminar nossa busca e voltar para o carro antes de escurecer.

Kyle e Mia se ofereceram para inspecionar a maior parte do celeiro, enquanto Daniel e Nicole subiam até o palheiro.

Ele subiu as escadas primeiro para verificar se os degraus eram confiáveis.

Enquanto subia, ele finalmente se lembrou da última vez que estivera naquele celeiro, ou pelo menos o que achava ter sido a última vez.

Ele tinha 9 anos de idade, e a lembrança estava à beira do esquecimento, como acontece com tantas memórias da infância.

Tinha caminhado até ali vindo da casa da avó. Isso foi apenas 64 dias antes de ela morrer.

Matemática.

Era difícil desligá­-la.

Mesmo quando queria.

Daniel chegou ao topo e entrou no palheiro.

Satisfeito por tudo estar em segurança, pediu a Nicole que subisse e a tomou pela mão para ajudá­-la.

O doce odor do feno pairava no ar, e Daniel percebeu que conhecia aquele cheiro, bem como o gosto seco e áspero do pó do feno, dos dias em que era criança e pulava do palheiro para os fardos que estavam preparados abaixo dele.

Sim, ele tinha certeza de que estivera naquele local mais de uma vez, mas só agora, de volta, é que a lembrança retornara.

As lembranças se juntaram imediatamente.

Lembranças das aterrissagens.

Dos resvalos.

De rolar no feno.

Ali, ali naquele lugar.

Sim. Até aquele último dia. E, desde então, ele ficou com medo de ir até lá, ou mesmo à casa da avó. Com medo de que...

Mas se você passou tanto tempo aqui quando criança, por que só se lembrou desse lugar agora? Por que bloqueou isso em sua memória?

Sim, talvez as lembranças de ter estado ali tenham sido bloqueadas, ou talvez, como acontece com tantas coisas, ele só precisava de uma centelha para trazer de volta o passado.

Realmente, as lembranças são estranhas. Às vezes, quanto mais você tenta esquecer alguma coisa, mais acaba por lembrá­-las. E, então, havia aquelas coisas de que você queria se lembrar, mas quanto mais tentava, menos conseguia. Era tudo impreciso.

– Alguma coisa? – perguntou Nicole.

– Eu costumava vir brincar aqui no palheiro.

– Com seus amigos?

– Sozinho. Era o meu lugar secreto. Às vezes eu vinha para cá escondido quando nós visitávamos minha avó. Ela era muito depressiva, e era meio difícil ficar perto dela. Mas não tenho certeza quanto ao significado disso tudo. É como se eu soubesse que existem mais coisas, mas não consigo lembrar o quê.

Olhando ao redor, Daniel observou os ninhos de passarinho bem lá em cima, nos caibros. A corda grossa e trançada que às vezes ele usava para se balançar pendia de uma das vigas do teto.

A corda.

A enfardadeira.

Memórias confusas. Nada era claro.

Mas algo acontecia.

E não era uma coisa boa.

Ao longo dos anos, as pessoas gravaram palavras e frases ao lado do celeiro. Havia nomes e iniciais de casais com muitos símbolos entre eles, corações e datas, tudo gravado na madeira. Algumas pessoas tinham escrito seu nome seguido de “esteve aqui” e, às vezes, o ano.

Algumas datas eram anteriores ao nascimento de Daniel. Ele examinou as inscrições para ver se alguma delas podia lhe trazer alguma coisa específica e se pôs a calcular quantos dias atrás aquelas pessoas tinham estado ali no celeiro.

Sete nomes, embora diferentes, pareciam ter sido gravados pela mesma pessoa, como se alguém tivesse se entusiasmado e escrito sozinho vários deles.

Enquanto Daniel os observava, Nicole começou a vasculhar o palheiro, afastando o feno com a bota, procurando alguma coisa que pudesse estar enterrada embaixo dele.

Quanto mais Daniel ficava por ali, mais lembranças vinham­-lhe à superfície da mente.

Verões.

Balançando­-se na corda.

Mas por que você parou de vir aqui, Daniel?

Por que você...?

– Aqui, Daniel.

Nicole estava batendo com o pé numa tábua solta acima de um banco encaixado na extremidade do palheiro.

Quando estava indo até ela, tornou a ver aquele demônio, o que ela havia desenhado no caderno de esboços.

Sentiu seu corpo paralisado.

O demônio o espreitava à esquerda dela, e, embora a luz do sol que entrava pela parte aberta do telhado estivesse incidindo sobre ele, a luz parecia engolida pelo espesso anel de escuridão que o cercava.

A criatura olhava para ele com ódio, a boca aberta como a de uma serpente enfurecida e incrivelmente escancarada.

Ela avançou, voando diretamente para Daniel.

O rapaz se abaixou instintivamente, mas sentiu o deslocamento de ar enquanto ela passava. Uma de suas asas arranhou­-lhe a nuca, enquanto o demônio voava pelo palheiro.

Virou­-se a fim de ver para onde o demônio voaria, mas ele desapareceu através da parede do celeiro, através de uma das frases gravada na madeira: Grady Planisek esteve aqui.

Espere... Ele conhecia aquele nome.

– Você está vendo coisas outra vez, não é mesmo? – perguntou Nicole, com a voz carregada de preocupação. – O que foi que você viu?

Não foi Grady aquele garoto que desapareceu quando você era menino?

– Nada com que se preocupar.

– Outra distorção?

– Tomara que sim.

Ele quase acrescentou: “Pelo menos assim eu saberia que não era um demônio de verdade”. Mas preferiu não dizer nada.

Ainda pensando em Grady, juntou­-se a Nicole e forçou a tábua até soltá­-la.

Dentro, encontrou uma caixa de madeira quase do tamanho de uma caixa de sapato.

Pegou­-a e removeu uma camada espessa e persistente de poeira.

A caixa tinha sido fechada com um cadeado. Ele tentou abri­-la, mas o fecho resistiu. Quando balançou a caixa, não ouviu o som de nada que pudesse se quebrar lá dentro. Talvez alguns livros. Difícil dizer.

– Encontramos alguma coisa – gritou para Kyle e Mia lá embaixo.

– O que foi? – perguntou Mia.

Daniel foi até a beira do palheiro e mostrou­-lhes a caixa.

– Está fechada. Temos que usar uma alavanca para abri­-la.

Kyle procurou entre as ferramentas da bancada e encontrou um martelo.

Daniel estava prestes a atirar a caixa no chão do celeiro, mas, percebendo que ela poderia, afinal, conter alguma coisa frágil, optou por abri­-la com Kyle enquanto descia a escada.

Nicole seguiu­-o de perto e, quando chegaram ao chão, Daniel aceitou o martelo de Kyle e posicionou­-o entre o fecho e o cadeado para ver se conseguia soltá­-lo.

Foram necessárias algumas tentativas, mas, por fim, o fecho se soltou da madeira e saiu.

Os três outros o rodearam enquanto ele abria a caixa.

Dentro havia dois velhos diários encapados em couro, uma pilha de papéis amarelados e uma de fotografias em preto e branco.

Ele pegou o diário de cima e o abriu. Nicole pegou o outro, enquanto Mia examinava as fotografias e Kyle desdobrava os papéis cuidadosamente para não danificá­-los.

Foi preciso apenas um momento para Daniel perceber que tinha nas mãos os registros de um diário pessoal. A escrita era um pouco rabiscada e difícil de ler, mas ele reconheceu a letra imediatamente.

Tinha o mesmo estilo com que ele escrevera aquela frase sobre a Cova Perdida várias vezes em seu caderno na aula de Literatura.

* Robert William Service (1874­-1958), poeta e escritor britânico­-canadense, muitas vezes chamado de “o Bardo do Yukon”. Suas vívidas descrições do Yukon, um dos três territórios federais do Canada, situado no noroeste do país, e de seu povo ficaram famosas e são populares até hoje em sua terra e nos Estados Unidos. (N.T.)


21

Ele se deu conta de que não havia contado aos amigos sobre o que escrevera na aula. Contou­-lhes, então, a história e concluiu:

– E essa é a mesma letra.

– Puxa, isso é assustador – disse Nicole, parecendo agitada.

– Como isso é possível? – perguntou Mia.

– Não faço a menor ideia.

– Que tal um distúrbio de personalidade múltipla? – sugeriu Kyle. – É o que acontece com pessoas que têm personalidades completamente diferentes: nomes, hábitos, letras diferentes, tudo isso.

– Já ouvi dizer que isso não existe – disse Mia, balançando a cabeça. – Que se trata apenas de outros problemas ou mesmo fingimento das pessoas.

Daniel pensou em suas consultas com o Dr. Fromke e imaginou que, se personalidade múltipla era o que estava acontecendo com ele, isso teria surgido em uma das sessões.

– Bem, seja ou não verdadeiro, vamos presumir, por ora, que não é isso que está acontecendo comigo.

– Você já tinha visto esse diário? – perguntou Kyle.

– Talvez, mas não tenho certeza – respondeu Daniel, forçando a memória. – Posso tê­-lo visto quando estive nesse celeiro antes. Só não tenho certeza.

– Mas você sabe que esteve aqui?

– Eu me lembro do lugar, mas não está totalmente claro na minha cabeça, e é como se eu estivesse observando a mim mesmo enquanto algo acontece, em vez de vê­-lo com meus próprios olhos.

– Memórias observáveis – disse Nicole balançando a cabeça de maneira compreensiva.

– O que é isso?

– Eu soube delas quando estive pesquisando para um trabalho no ano passado. É quando você se lembra de uma coisa de outra perspectiva, como se estivesse observando a si mesmo num filme. A maioria das pessoas tem esse tipo de lembrança em algum momento.

– Mas como é que isso pode ser chamado de lembrança? – perguntou Mia. – Quero dizer, se você está observando a si mesmo, não está se lembrando de nada, certo? Se você está vendo alguma coisa como se a estivesse vendo pelos olhos de outra pessoa, sua mente, é claro, está inventando coisas. Isso é imaginação, não memória.

– Eu sei. É realmente estranho, mas não é tão incomum. Às vezes é o modo que nossa mente encontra para nos proteger ou nos distanciar de alguma coisa aterradora ou traumática. Às vezes esquecemos totalmente coisas que são assustadoras. Quero dizer, pense nas crianças que são abusadas: elas podem bloquear essas lembranças completamente. Ou quando uma mulher é violentada; às vezes ela não se lembra dos detalhes, mesmo logo depois de tudo ter acontecido. É uma espécie de mecanismo de defesa, pois o evento é terrível demais para ser processado.

Daniel ficou pensativo.

– Não tenho certeza se alguma coisa desse tipo tem a ver comigo.

– A menos que alguma coisa traumática tenha acontecido com você aqui, enquanto estava nesse celeiro.

Todos ficaram em silêncio.

Daniel balançou a cabeça.

– É uma coisa que parece um tanto estranha de acreditar, que eu não consiga lembrar o que realmente aconteceu aqui.

– Mas se você reprimiu alguma coisa – observou Nicole. – Quero dizer, a coisa está começando a voltar para você, mas é só porque estamos aqui.

Enquanto tentava voltar no tempo por meio de suas lembranças, ele sentiu como se houvesse uma porta ali, uma porta sobre a qual ele apoiava a mão, mas não conseguia abri­-la.

Ou talvez você não queira e esteja se reprimindo.

– Eu não disse? – disse ele aos amigos. – Não me vem nada.

Quando Nicole perguntou se ele sabia quem teria deixado aquela caixa ali, ele respondeu:

– Não tenho certeza, mas neste momento estou mais preocupado com o que tem nela e a relação disso com o que está acontecendo nesta semana do que com a maneira como ela veio parar aqui.

Mia deu uma olhada nas fotos.

– Bem, são fotos de pessoas perto da água, uma praia, um oceano, alguma coisa assim... esta parece ser um piquenique e as pessoas estão jogando críquete. No fundo se pode ver um farol.

Kyle estava folheando os papéis.

– Tenho aqui alguns registros de compra, registros antigos. Não reconheço todas as cidades listadas, mas conheço Bayfiel. É onde o Larry mora.

Larry Richter era tio de Kyle e tinha uma agência de passeios e aluguel de barco perto das ilhas Apostle, a cerca de uma hora e meia de Beldon. Ele já havia convidado o sobrinho e os amigos para um passeio de caiaque ou esquife quando quisessem, mas Daniel nunca fora até lá.

– Este outro livro – disse Nicole, folheando o outro volume encapado em couro – também é um diário. É de um faroleiro da década de 1930.

– O meu também – disse Daniel, olhando para os amigos. – Ouçam, já está quase escuro. Vamos para o carro. Podemos verificar esse negócio do farol quando voltarmos para a casa de Nicole.

As estrelas já começavam a perfurar o céu escuro quando entraram no carro de Daniel.

Não havia aurora boreal, apenas uma luz pálida que começava a se elevar na borda do horizonte.

Os quatro concordaram que podiam ver aquele filme outro dia, pois, naquela noite, o conteúdo da caixa era definitivamente uma prioridade.

***

De volta à casa de Nicole, o celular de Daniel tocou enquanto ele a seguia até a sala de estar.

Era o toque do pai.

– Oi, desculpe não ter retornado mais cedo – disse ele, quando Daniel atendeu. – Esqueci onde havia colocado meu telefone. Você disse, em sua mensagem, que viu outro lobo ser morto.

Daniel foi para o corredor para ter mais privacidade.

– Foi isso mesmo, nesta manhã, na floresta nacional. Ouvimos um disparo e achamos o rastro do lobo. Ele foi atingido no peito. E morreu bem diante de nós.

Uma pequena pausa.

– E você viu quem era o atirador?

– Não, mas o lobo tinha uma etiqueta na orelha do serviço florestal para o estudo de alcateias. Eu lhe mandei uma foto. E estive pensando em como essa pessoa que está matando os lobos os descobriu. Fico imaginando se conseguia localizá­-los pela etiqueta. Os outros lobos também a tinham?

– Acho que sim, mas muitos lobos estão sendo monitorados nesta parte do estado.

– Mas não parece estranho que só os lobos etiquetados estejam sendo mortos? Só alguém com acesso ao banco de dados do serviço florestal poderia ter descoberto a exata localização deles.

– Então, você está sugerindo que se alguém pudesse entrar no banco de dados, como hacker ou algo assim, conseguiria dados em tempo real de GPS da localização dos lobos?

O pai sabia como as distorções de Daniel o tinham levado a descobrir o assassino de Emily no outono passado. Embora não o agradasse muito saber que seu filho estivesse vendo e ouvindo coisas, ele aprendera a confiar nos instintos do rapaz.

– Certo – disse Daniel. – Talvez você pudesse checar quem acessou esses arquivos ou quando eles foram abertos. Se alguém os estava visualizando quando os lobos foram mortos, isso seria, no mínimo, algo a ser investigado, não é verdade?

– Quem mais sabe sobre isso? – perguntou o pai, em vez de lhe responder diretamente.

– Só Nicole, Kyle e Mia.

– Vamos manter a coisa assim. Vou ver o que consigo descobrir, mas não quero que você conte a mais ninguém. Isso poderia lançar suspeitas contra alguém que não tem culpa de nada, e isso é a última coisa que eu desejo. Deixe que eu cuido disso. Vocês fiquem longe.

– Claro.

Daniel descreveu onde tinham visto o lobo e contou ao pai que, se ele seguisse as pegadas de botas do início da trilha em direção ao Instituto Trybor, encontraria o local.

Ele esperava que o pai fosse até lá pela manhã, pois já estava quase escuro; assim, ficou surpreso quando ele disse:

– Eu preciso registrar esse lugar o mais rápido possível. Você está em Superior?

– Não, nós decidimos não ir ao cinema. Na verdade, estamos na casa da Nicole.

Conto­-lhe sobre a caixa?

Não. Primeiro, descubra o que puder sobre ela. Examine o que houver dentro dela, então você saberá que perguntas deverá fazer a ele.

– Vejo você em casa, Dan.

– Até lá.

Depois que tornou a se juntar aos amigos, os pais de Nicole sugeriram que comessem pizza no jantar.

Ninguém fez objeção.

Foram para o quarto de Nicole esperar as pizzas assarem, e Daniel contou a eles o que seu pai lhe dissera pelo telefone:

– Estou imaginando que tudo está ligado de alguma maneira: minhas distorções, o celeiro, a matança de lobos, o Instituto Traybor.

– E os diários também – acrescentou Mia –, pois a frase que você escreveu em seu caderno foi naquele mesmo tipo de letra.

Nicole sentou­-se na cama junto aos bichos de pelúcia.

– Então, qual é o seu próximo passo?

Daniel pegou os diários.

– Vamos descobrir quem escreveu essas belezinhas, quem era o faroleiro.


22

Depois de dividirem o conteúdo da caixa como haviam feito no celeiro, os quatro puseram­-se a trabalhar.

Enquanto Daniel e Nicole ficaram com o trabalho mais adequado para eles, a pesquisa página por página nos diários, Kyle e Mia não demoraram muito tempo para examinar os papéis e as fotos. Quando terminaram, passaram à tentativa de descobrir o que podiam a respeito de faróis, usando os celulares para pesquisar on­-line.

Para ganhar tempo, Daniel e Nicole decidiram ler os diários em profundidade mais tarde. De momento, passaram rapidamente pelas anotações, procurando a identidade do autor ou qualquer coisa incomum, especialmente algo que tivesse a ver com as distorções de Daniel ou os eventos dos últimos dias.

Em um diário, a pessoa não menciona necessariamente seu próprio nome, e foi o que aconteceu nesse caso, de modo que eles ainda não sabiam quem era o autor.

A mãe de Nicole avisou­-os que as pizzas estavam prontas, e os quatro amigos dirigiram­-se à cozinha. Nicole distribuiu refrigerantes e, depois de trazer alguns pratos de papelão com os pedaços de pizza para o quarto dela, Mia e Kyle passaram alguns minutos compartilhando o que tinham descoberto sobre faróis.

– Isso realmente – disse Mia – não tem nada a ver com nada, mas quando se começa a falar de faróis, a ideia de advertir navios a partir da costa remonta aos antigos gregos. Eles acendiam fogueiras nas colinas perto do mar em áreas nas quais havia rochedos.

– E todo farol tem um sinal diferente – acrescentou Kyle, entre enormes bocados de sua fatia cheia de pimentão vermelho. – Tem a ver com a duração da luz e da obscuridade. A luz de um farol pode ficar acesa por dois segundos e se desligar por três, enquanto outro acende e apaga a luz a cada quatro segundos. Isso acontece quando a lente gira. Alguns dos faróis das ilhas Apostle também têm luzes de cores diferentes: verde, branca, vermelha. Assim, quem está nos barcos sabe a diferença, sabe onde está enquanto passa pelas ilhas.

Mia tomou um gole de seu refrigerante.

– Quanto mais eu penso, mais acho que deveria escrever um romance sobre um farol mal­-assombrado, em vez de um mosteiro. Quero dizer, algumas histórias de faróis são incríveis. Com todos aqueles naufrágios e tragédias, as horas solitárias, os faroleiros ficando loucos e...

Ela se deteve, olhou para Daniel e deve ter percebido que a expressão “ficando loucos” não era a mais indicada para ser usada perto dele.

– Quero dizer, eles provavelmente começaram a ter problemas mentais.

– Claro.

– Isso não ajudou muito, não é mesmo?

– Não necessariamente, mas você é boa nessas coisas.

– Agora vou ficar calada.

– Vamos dar uma olhada em algumas das anotações desse diário – sugeriu Nicole.

Daniel abriu o que estava com ele.

– A verdade é que a maioria das anotações que li são bastante triviais.

Ele leu algumas:

12 de maio, 1936

Café da manhã: mingau de aveia, geleia com o pão que eu fiz ontem, estou planejando fazer panquecas e muffins para esta semana.

15 de maio, 1936

Plantei cebolas, cenouras, rabanetes e um pouco de alface e repolho.

– Então, em junho, os morangos e as framboesas amadurecem e ele guarda as geleias no porão. E assim vai. Mas nem todas são assim monótonas:

1º de julho, 1936

Nesta noite, trazido pelo vento, ouvi o que pareceu o grito de uma mulher.

Acendi uma lanterna e procurei pela ilha, chamando por alguém que, por um estranho acaso, estivesse por ali. Tudo inútil. Pois esta é a verdade: estou sozinho nesta ilha e sei que foi tudo produto de minha mente, procurando uma companhia ou um consolo aqui neste lugar de rochas, gaivotas e recifes que mergulham nas profundidades.

– Ok, isso é um pouco tétrico – disse Nicole. – Você consegue se imaginar sozinho numa ilha como essa, começando a ouvir coisas?

– E é um tom completamente diferente com relação às primeiras anotações – observou Mia. – Mais poético.

– E então, o que acontece? – Kyle perguntou a Daniel.

– Só posso dizer que a mulher gritando não volta a ser mencionada, pelo menos nas anotações que li. Mas ouçam isto:

30 de agosto, 1936

Chegaram as tempestades, a estação mais ventosa do ano.

Às vezes fico na torre e olho através do lago no meio da noite.

Em meio à tormenta, ouço as ondas quebrando contra as rochas abaixo de mim e só consigo pensar nas almas dos que estão no mar e à procura de um lampejo de minha luz.

Talvez isso seja válido para todos os faroleiros, talvez só seja válido para mim, mas um pensamento arrasta­-se por minha mente, espontâneo, indesejado: uma tentação de apagar a luz.

Não sei de onde vem esta ideia execrável, de um demônio ou de um local escuro de minha própria alma, mas é real e sobe­-me à cabeça quando sopram os ventos mais fortes e rugem as tormentas mais terríveis. Ó, meu Deus, eu preciso resistir!

– E ele acabou fazendo isso? – perguntou Kyle, terminando seu pedaço de pizza e colocando o prato vazio na escrivaninha de Nicole. – Ele apagou a luz?

– Se apagou, não escreveu nada a respeito disso. A última anotação é do final de outubro. Aparentemente, como os navios não passavam por ali quando havia gelo no lago, os faróis não funcionavam durante os meses de inverno. A última página só fala dele se preparando para voltar para o continente.

– Então, ok – disse Nicole, abrindo o diário que estava com ela. Ela havia dobrado a ponta de algumas páginas e agora se voltou para a primeira delas. – O meu se refere ao ano seguinte de sua ida para trabalhar no farol. As anotações do início do verão são como as que Daniel leu: sobre plantar uma horta e coisas assim, mas depois fica interessante.

12 de junho, 1937

E assim é.

A luz.

Tenho que mantê­-la acesa. Tenho!

Trinta minutos antes do poente, eu subo na torre.

Usando um pano de algodão, limpo a lente e os espelhos, corto o pavio, acendo­-o e o posiciono no meio da lente. Ajusto a chama e a coloco em posição, então solto os freios para que os contrapesos mantenham a lente girando. Seis vezes por noite, subo a escada em espiral e a examino.

Não se pode deixar a luz apagar: é o que a voz ininterrupta dentro de minha cabeça está me dizendo.

Mia, que estava segurando as fotos, as coloca no chão.

– Esse cara é obcecado por manter a luz acesa.

– Ou por não a manter acesa – acrescentou Nicole.

– Será que se pode culpá­-lo? – perguntou Daniel. – O que eu quero dizer é que ele passa meses sozinho e só tem uma tarefa, uma coisa que tem que fazer todos os dias. Faz sentido que isso tenha se tornado um tipo de obsessão para ele.

– Ele não estava sempre sozinho – disse Nicole, balançando a cabeça.

– O que você quer dizer?

Ela consultou as páginas cuja orelhas havia dobrado.

22 de junho, 1937

Aqui reina uma profunda solidão.

Os dias se alongam e ficam ocos, correndo juntos em minha mente. Subo as escadas, acendo a luz e a verifico a noite toda para que permaneça acesa.

Talvez tudo isso mude depois de 4 de julho. Talvez com companhia o tédio tenha um fim.

– Companhia? – exclamou Mia. – Quem é que vai lhe fazer companhia?

Mia avançou as páginas do diário.

4 de julho, 1937

Minha irmã trouxe sua filha para passar duas semanas comigo. A menina fez 11 anos ontem. Prometi tomar conta dela como se fosse minha própria filha.

– Uma garota de 11 anos? – disse Mia, olhando para ela de modo inquisitivo.

– Sim. Por quê?

– Espere um pouco – respondeu, examinando rapidamente as fotos e, em seguida, estendendo uma para Daniel. – É esta a garota de sua distorção?

Ao tornar a vê­-la, Daniel sentiu um arrepio percorrer­-lhe a espinha.

– É – disse ele, pegando a foto de Mia. – É ela.

A garota estava em pé contra as rochas de um litoral. Em vez da camisola que estava usando na distorção, na foto ela usava uma saia lisa que, embora antiga, Daniel imaginou estar na moda naquela época. Ela estava sorrindo e segurando um regador de metal.

Quem é você? O que quer de mim?

Nicole fizera uma pausa enquanto Daniel olhava a fotografia, mas agora, enquanto ele se sentava, ela disse:

– Eu fui até esse ponto.

– Bem, vamos ouvir a anotação seguinte – disse ele.

Ela virou a página.

9 de julho, 1937

Betty tem me ajudado a controlar a luz. Ela gosta de subir as escadas e olhar pela janela da torre para o lago, ou ficar no estreito balcão que a cerca.

Ela gosta de carregar a lanterna para mim, de abrir o caminho pela escuridão.

– Na sua distorção, a camisola dela pegou fogo, não foi? – perguntou Kyle a Daniel em voz baixa.

– Foi.

Ele fez um sinal para Nicole prosseguir, ela passou para a página seguinte e balançou a cabeça:

– É só uma descrição de um pôr do sol.

Ela pulou a descrição e prosseguiu.

12 de julho, 1937

Ela pousou a lanterna ao lado dela. Ó, meu Deus, ela fez isso mesmo.

Não foi minha culpa, não, não, não foi mesmo... é o que eu fico dizendo a mim mesmo, mas foi!

Eu estava na torre e a vi saindo da casa lá embaixo. Ela me chamou e acenou, mas, então, alguma coisa, algum movimento no meio da noite, perto da clareira, deve ter chamado a atenção dela, pois ela olhou para aquela direção e, então, inclinou­-se para o lado.

O lampião.

Ó, meu Deus!

A barra de sua camisola.

Não, por favor!

Eu não pude descer da torre a tempo.

Ninguém disse nada por um longo tempo.

Por fim, Nicole leu a anotação seguinte.

13 de julho, 1937

Nesta manhã enterrei minha sobrinha aqui na ilha.

Ninguém vai encontrá­-la. Mas agora... oh! O que virá a seguir?

A mãe dela vai voltar em cinco dias. E eu não sei o que vou dizer a ela. O que existe para dizer?

Talvez que ela tenha ido nadar e nunca mais voltou?

Mas não... a verdade.

Meu Deus, não a verdade! Foi uma maneira terrível demais de morrer.

– Aqui há algumas palavras ao acaso, como se ele tivesse começado a escrever algo e mudasse de ideia. Nada que faça sentido. Mas, então, ele prossegue:

Gaivotas pairavam no mar e mergulhavam nas ondas que se chocavam contra a praia.

Eu vi um espectro.

A garota. Agora em pé contra o crepúsculo, durante o dia, ardendo, as mãos erguidas para a torre, mas não consigo chegar a ela a tempo.

Nicole passou para a página seguinte.

16 de julho, 1937

Agora, eu a vejo todas as noites, e isso não pode continuar a acontecer. Preciso pôr um fim nisso. Sim!

Nesta noite, pela última vez, vou subir os degraus da torre para nunca mais tornar a fazê­-lo.

Encontrei uma corda suficientemente longa. Dizem que o inferno espera pelos que tiram suas próprias vidas.

Assim, eu mereço a punição das chamas eternas. Estou pronto para ela, pelo que permiti que acontecesse a minha sobrinha e pelo que vou fazer nesta noite.

Ela fechou lentamente o diário.

– Essa foi a última anotação.

Todos permaneceram sentados em silêncio.

Kyle puxou os livros de registro e começou a examiná­-los; então, entregou o último para que os outros o vissem.

– Parece que quem escreveu esses registros, talvez uma espécie de supervisor, não consigo decifrar a assinatura, preencheu este último no dia 18 de julho de 1937.

– O que diz aí? – perguntou Daniel.

– Só que houve uma substituição, que havia um novo faroleiro escolhido para substituir Jarvis Delacroix.

– Delacroix? Esse era o nome de solteira de minha avó.

– Você acha que tem parentesco com esse cara?

– Não é um nome muito comum. Faria sentido.

Daniel pôs­-se a calcular, datas, épocas, idades.

– Se Betty era parente de Jarvis, então, se eu estiver certo, minha avó teria sido prima de Betty, ou talvez irmã dela. O livro diz alguma coisa sobre a garota?

– Não.

– Jarvis Delacroix escreveu que encontrou uma corda suficientemente longa – disse Nicole – e que os que tiram a própria vida merecem ir para o inferno.

Ninguém disse nada. Era quase como se tivessem medo de que suas palavras pudessem ter condenado Jarvis à sentença que ele esperava sofrer.

– Se ele se enforcou – perguntou ela por fim –, vocês não acham que haveria um registro em algum lugar, alguma coisa a respeito disso on­-line? Assim, nós poderíamos descobrir o que aconteceu.

– Eu não sei – disse Mia. – Alguma coisa pode ter aparecido num artigo de jornal da época, mas quem garante que alguém o postou na rede? Se era de um pequeno jornal regional de Bayfield ou algum lugar assim, eu diria que não é muito provável que alguém se desse ao trabalho de colocá­-lo na internet.

Nicole pegou seu celular.

– Não custa dar uma olhada.

Enquanto Daniel estava para começar sua pesquisa on­-line, viu que tinha algumas mensagens e checou para ver se alguma delas era de seu pai, mas eram só de alguns amigos.

Ocupado com tudo o que estava acontecendo, procurou teclar rapidamente as respostas e, então, colocou o celular na cama ao lado dele, voltando a atenção para o laptop, mas um pouco depois o telefone vibrou e Nicole disse:

– Você recebeu uma mensagem.

Antes que ele alcançasse o celular, ela o pegou para entregá­-lo e observou a tela.

Um estranho olhar cruzou o rosto de Nicole.

– O que foi?

– Quem é Madeline?

– O quê?

Ela virou a tela do celular para ele.

– Ela está pedindo que você apareça amanhã. Ela quer saber se você vai estar lá.


23

­- Honestamente, Nicole, não sei quem ela é.

Ela não deu nenhuma resposta.

– Estou falando sério.

– Então por que ela mandaria uma mensagem dizendo que quer vê­-lo e perguntando quando você vai encontrá­-la?

– Eu não vou, quero dizer, não vou me encontrar com ela.

– Bem, parece que ela acha que você vai.

– Tenho recebido mensagens dela, mas não sei quem as está mandando.

– Não é nenhum de nós – interrompeu Kyle, tentando ajudar.

Nicole olhou de Kyle para Daniel e novamente para Kyle.

– Então você também sabia a respeito dela?

– Nicole, calma – disse Daniel. – Deixe­-me...

– Eu estou calma. Estou calma. Só quero saber o que está acontecendo. Então você tem recebido mensagens dessa garota. Onde elas estão? Eu só vi esta.

– Estão arquivadas – respondeu ele, mostrando­-lhe como acessá­-las.

Por um lado, Daniel entendia por que Nicole ficou aborrecida, mas só queria que ela lhe desse uma chance de se explicar.

– Nos últimos dias recebi essas mensagens estranhas dela, ou dele, seja lá quem for. Nenhum número aparece no meu celular e, assim, eu não posso responder para saber quem está mandando as mensagens. Estou lhe dizendo a verdade; eu não sei quem...

– Vamos ver... – disse ela, lendo as mensagens em voz alta. – “Venha me visitar, pois tenho uma surpresa para você”. Muito bem, isso está ficando interessante. “Cuidado com as pessoas para as quais você conta os seus segredos”. Oh, e ainda esta: “Estou esperando você, Daniel. Verifique o porão... M”. É mesmo? Ela esteve na sua casa.

– Não.

– Mas ela deixou alguma coisa no porão?

– Não. Nada. Foi lá que eu encontrei os mapas. E mais nada.

Nicole estava em meio ao exame da tela inicial do telefone dele, quando, de repente, fez uma pausa.

– O que foi?

Ela não respondeu.

– Nicole?

– Seus downloads recentes. Eu estava vendo se havia alguma outra mensagem ou conversa no WhatsApp... e...

– E o quê?

– E você tem um aplicativo que lhe permite mandar mensagens anonimamente.

– Do que você está falando?

– Está nos seus downloads recentes. Você o baixou na quarta­-feira à tarde.

Foi exatamente antes de receber a primeira mensagem de Madeline.

– Você está dizendo que as mensagens foram mandadas do meu celular?

– Estou dizendo que podem ter sido – disse ela, entregando­-lhe o telefone.

Ele olhou com incredulidade para a tela, esforçando­-se por lembrar se tinha baixado aquele aplicativo ou mandado as mensagens, mas não se lembrava de nada.

É você mesmo que está enviando as mensagens.

Não.

Sim.

Então, por que não se lembra?

Você não tem se lembrado de muita coisa recentemente, Daniel.

– Você as enviou? – perguntou Nicole.

– Honestamente, não sei. Não sei quem é Madeline ou...

– Deem um tempo – disse Kyle, ocupado com a pesquisa em seu celular. – Estamos procurando faróis nas ilhas Apostle, certo? Pois bem, existem 21 ilhas no parque do lago Nacional, mas existe outra ilha que não faz parte do parque. Eu já a tinha visto quando estava pesquisando, mas não fiz...

Ele deu uma batidinha na tela e balançou a cabeça.

– Dou um doce se vocês descobrirem o nome da ilha.

– Oh – disse Daniel –, não me diga que é Madeline.

– Vejam só, na primeira tentativa: ilha Madeline.

– E ela tem um farol?

– Sem dúvida – disse Kyle, exibindo seu celular para que todos pudessem ver a página que ele havia acessado. – O Farol da Cova Perdida.

– Então é isso. Vamos ver se há alguma menção a um faroleiro que tenha se suicidado lá.

***

Deslocando o facho de sua lanterna para trás e para frente, o xerife Byers examinou a floresta escura.

Ele conseguira seguir as pegadas das botas o filho e de Nicole a maior parte do caminho, mas o vento as estava apagando rapidamente, e estava ficando cada vez mais difícil ver para onde iam as pegadas.

Não viu nenhum sinal do lobo de que Daniel lhe falara.

A floresta escura espreitava no limite da lâmina de luz de sua lanterna.

O xerife decidiu ficar mais alguns minutos e voltar para casa.


24

Agora que conseguiram concentrar sua busca em uma época e local específicos, não demorou para que os quatro amigos encontrassem o que estavam procurando.

Kyle deu um pequeno suspiro.

– O que foi? – perguntou Daniel.

– Havia um jornal dessa época chamado Northwoods Review. Nele há uma história sobre um naufrágio no dia 17 de julho daquele ano. Doze pessoas morreram.

– Doze pessoas? – disse Nicole, engolindo em seco assim que ouviu essas palavras.

– Sim. A luz fora apagada. Eles bateram em um banco de areia durante uma tempestade – disse Kyle, consultando o artigo que havia acessado em seu celular. – Quando os sobreviventes foram para o farol mais tarde, encontraram o faroleiro morto na torre. Ele tinha se enforcado. Era Jarvis Delacroix. Eles registraram seu nome.

– Me passa o link – disse Daniel.

Ele clicou no site enquanto seu amigo prosseguia:

– Parece que eles não conseguiram confirmar se Jarvis tinha se matado antes ou depois do naufrágio. Mas os sobreviventes afirmaram que não havia nenhuma luz durante aquela tempestade.

– Então – murmurou Nicole, pensando alto –, ou ele cedeu à tentação e apagou a luz e então se matou, ou cometeu suicídio primeiro devido à sua culpa pela morte de Betty e então já não estava lá para manter a luz acesa durante aquela tempestade.

– O artigo faz alguma menção a ela? – perguntou Mia.

Kyle verificou e balançou a cabeça.

– Não, nada sobre alguém chamado Betty.

– Mas você não acha isso estranho? Quero dizer, o dia seguinte, o dia 18 de julho, foi o dia em que a mãe dela devia voltar para apanhá­-la. Será possível que ninguém mais ligasse o desaparecimento de Betty ao suicídio ou ao naufrágio?

– Não sei. Acho possível. Quero dizer, se houve uma enorme tragédia como aquela, doze pessoas mortas num naufrágio, uma garota desaparecida realmente não chamaria a atenção da imprensa.

– Ou – sugeriu Daniel – pode haver alguma outra explicação.

– De que tipo?

– Que ela nunca tenha existido.

– O quê?!

– Talvez Jarvis também tivesse distorções. Como as minhas.

– Mas ele a mencionou em seu diário. E a foto dela?

– Só porque ele a mencionou, não quer dizer que ela fosse real. E não sabemos de quem é essa fotografia, só que é a mesma garota que vi em minha distorção. Se eu vi essas coisas na caixa quando era criança, talvez, de alguma forma, eu me lembrasse delas. Jarvis também pode ter visto essa foto. Sabemos que ele se sentia solitário naquela ilha. E se ele tivesse inventado alguém indo visitá­-lo para lhe fazer companhia?

Ele se voltou para Mia e prosseguiu:

– Como você já mencionou, os faroleiros às vezes enlouquecem. Talvez tenha sido o que aconteceu com ele.

Ninguém parecia saber o que dizer.

– Mas por que agora? – perguntou Kyle. – Por que você estaria se lembrando de tudo isso agora?

– É o que precisamos descobrir. Alguém guardou esses diários e os escondeu naquele celeiro. O lugar é velho, mas não tenho certeza se já existia na década de 1930, então isso significa que alguém escondeu essa caixa no celeiro algum tempo depois. Mas, no momento, estou pensando em outra coisa.

– O quê?

– Em minha distorção, a garota estava chorando lágrimas de sangue. Por quê? Não há nada do diário que indique que Betty, tenha ela existido ou não, estava chorando lágrimas de sangue quando morreu.

– Não sei até que ponto você pode interpretar literalmente tudo que vê em suas distorções – disse Mia. – Quero dizer, quando Emily apareceu para você há alguns meses, nem tudo o que estava em sua distorção era idêntico ao que aconteceu na vida real.

– Então o que você está querendo dizer?

– Não sei. Talvez Betty tenha visto alguma coisa horrível? O sangue é metafórico?

Ou talvez você tenha.

Talvez você tenha visto alguma coisa horrível.

Lá no celeiro. Alguma coisa a ver com o lugar, com o...

– Se Jarvis fosse realmente parente de sua mãe – disse Kyle, interrompendo­-lhe os pensamentos –, ela não teria lhe contado isso tudo?

– Não é exatamente o tipo de coisa que se queira compartilhar com os membros de sua família.

– Talvez ela nem soubesse da existência dele – sugeriu Nicole.

– Existe uma maneira de descobrir isso.

– Qual?

Daniel já estava com seu celular na mão.

– Perguntar a ela.


25

Sua mãe ainda estava em Anchorage, no Alasca, e ele não tinha certeza quanto ao fuso horário de lá, mas fez a ligação assim mesmo.

Enquanto esperava que ela atendesse, ficou imaginando o quanto deveria contar a ela sobre tudo o que estava acontecendo. No último outono, quando as distorções começaram, seu pai não achou que fosse certo esconder isso dela e, honestamente, Daniel acabou por concordar. Assim, embora ele não estivesse muito entusiasmado com relação a isso, eles entraram em contato com ela para informá­-la sobre as distorções.

Naturalmente, ela ficou preocupada e insistiu que ele fosse a um psiquiatra para contar tudo o que estava acontecendo.

Contudo, depois que a coisa ficou resolvida, nem ela nem Daniel fizeram qualquer referência às distorções. Em vez disso, falaram principalmente de coisas superficiais, o que tinham feito, as notas de Daniel, se seu time havia vencido e outras coisas do tipo.

De certo modo, ele gostaria que conversassem mais sobre o assunto que realmente importava, mas, por outro lado, ficou feliz por não o terem feito.

Afinal, depois que se embarca nessa com as pessoas, ou seja, depois que se chega ao nível emocional, termina­-se numa situação de vulnerabilidade em que se pode ser magoado.

Na verdade, não existe meio termo: ou a gente se mantém próximo a uma pessoa e vulnerável, ou fica longe e seguro.

Uma espécie de beco sem saída.

O telefone tocou.

Nenhuma resposta.

Quando ele já estava pensando em deixar um recado na caixa postal, ela atendeu e deve tê­-lo reconhecido em seu identificador de chamada, pois a primeira coisa que disse foi: “Daniel?”. Pelo seu tom de voz, ficou claro que ela estava surpresa por ele ter ligado.

– Está tudo bem?

A pergunta, por si só, dizia muito sobre o relacionamento entre eles: quando ele ligava, ela imediatamente pressupunha que algo estava errado.

– Eu estou bem.

– Oh, que bom. Muito bom.

Ele se sentiu um pouco inibido. Como se aborda o fato de um parente ter sido responsável pela morte de doze pessoas – quatorze, contando ele mesmo e a garota?

Mas Betty sequer era real.

Você devia ter pensado um pouco mais nisso tudo.

Seus amigos saíram do quarto para que ele tivesse privacidade para falar com a mãe.

– O papai diz que você vem para o Natal, é verdade? – perguntou ele.

– Eu estava planejando isso, mas um grande sistema de tempestades está avançando para cá. Se tivermos muita neve e gelo como estão prevendo, talvez eu só possa ir depois do Natal. Mas vamos comemorar assim mesmo.

– Claro, faz sentido – disse ele, mas estava pensando: E quando você vai nos dizer se virá?

– Como foi ontem à noite? – perguntou ela.

– Ontem à noite?

– O jogo.

– Oh, nós ganhamos.

– E como você jogou?

– Bem. Quero dizer, acho que joguei bem.

– Bem, isso é ótimo.

O silêncio estendeu­-se pela linha.

– Tem certeza de que você está bem? – perguntou ela.

Pergunte a ela.

– Mãe, você teve irmãs?

– O quê?

– Você teve alguma irmã que nunca mencionou?

– Não.

– Então, ninguém chamada Betty?

– Não – disse ela, e sua resposta soou como uma pergunta, e Daniel percebeu que ela tinha ficado curiosa.

– Mamãe, você conhece algum Jarvis Delacroix?

– Jarvis Delacroix?

– Ele era faroleiro na década de 1930. Como Delacroix era o nome de solteira da sua mãe, imaginei que eles tivessem algum parentesco.

– Sim, tinham. – Era impossível interpretar seu tom de voz. – O que isso tem a ver?

– O que você sabe sobre ele?

– Havia um Jarvis que era irmão de minha avó, mas ninguém falava muito sobre ele.

Tem que ser ele.

Então, se Jarvis era tio de vovó, isso significa que Betty teria sido prima dela.

– E Betty? – perguntou ele.

– Não me lembro de nenhuma Betty. Por que você está perguntando? O que está acontecendo?

– Meus amigos e eu encontramos o diário de Jarvis.

– Onde?

– Em um celeiro perto de onde a vovó morava.

– A fazenda do distrito N?

– Isso mesmo. Eu costumava ir lá às vezes.

– É verdade.

– Você sabia?

– Eu segui você um dia, mas sua avó me garantiu que o vizinho não se importava. Então, eu deixei você brincar lá. Eu sabia que, às vezes, era difícil ficar com ela em casa.

– Aconteceu alguma coisa naquele celeiro?

– O que você quer dizer?

– Não sei, apenas... alguma coisa estranha?

– Não que eu saiba. Um dia você parou de ir lá quando íamos visitar mamãe. Você hesitava até em ir à casa dela. Mas não sei por que o diário de Jarvis estaria lá. Você acabou de perguntar sobre uma Betty. Quem é Betty?

– Alguém que é mencionada no diário – disse ele, de um modo um tanto vago.

– Mas por que você está interessado nisso tudo?

– Alguma coisa está acontecendo. Minhas distorções. Elas começaram de novo.

– Oh, Daniel – disse ela, e a emoção que colocou nessas duas palavras foi surpreendente. – Você já contou para o seu pai?

– Ainda não.

– Sobre o que são as distorções?

– Isso não importa.

– Você deve se sentir solitário.

Isso pareceu uma coisa curiosa, especialmente porque, antes de mais nada, tinha sido ela a abandoná­-lo e ao pai.

Ele mudou a conversa de rumo, prosseguindo com o tema da solidão.

– Mamãe, por que você foi embora?

Ele já lhe havia perguntado isso antes e, honestamente, esperava receber a resposta de sempre: que não era hora de falar nisso, que depois eles discutiriam o assunto.

Sempre depois.

Mas, naquela noite, para sua surpresa, ela lhe deu uma resposta de verdade:

– Eu quis proteger você e seu pai.

– Proteger­-nos? Do quê?

– Eu nunca lhe contei como sua avó morreu.

– Claro que sim. Ela teve uma reação ao remédio que estava tomando.

– Foi a melhor maneira de explicar quando você era mais novo. Só que eu nunca corrigi as coisas. Acho que foi mais fácil deixar essa explicação no ar.

– Você mentiu para mim.

– Não, eu só não quis entrar em detalhes.

– Então, o que aconteceu? Como foi que ela morreu?

Uma pausa.

– Ela tirou a própria vida, Daniel.

– O quê?

– Os comprimidos. Uma overdose deles.

– Como você sabe que não foi um acidente?

– Ela deixou um bilhete.

Daniel tentou compreender o que estava ouvindo.

– O que dizia nele?

– Daniel, não sei se devemos...

– Mãe, o que dizia o bilhete?

– Ela diz que não suportava mais vê­-los.

– Ver quem?

– Nunca soubemos com certeza. Ela nunca nos contou.

– Então ela estava vendo coisas, certo?

– Não sabemos se foi isso.

– Mas ela pode ter visto, quero dizer...

– Como eu disse, não sabemos de nada.

– Então, por que você não... Espere um pouco. Não era só a vovó, não é mesmo?

– O que você quer dizer com isso?

– Você disse que foi embora para proteger a mim e ao papai, mas não disse do que queria nos proteger. Era de você, não é mesmo? Você estava vendo coisas? Ou talvez ouvindo vozes? O que foi?

– Não é a melhor hora para falar disso. É melhor discutirmos tudo quando eu for para...

– Mamãe, eu preciso saber.

Ela tornou a objetar, mas acabou respondendo.

– Sim, Daniel. Eu às vezes vejo coisas que não consigo explicar.

– Você anda durante o sono?

– Ocasionalmente. Sim, eu faço isso.

– Você alguma vez tentou machucar alguém enquanto estava sonâmbula?

– Não.

– Mas tinha medo de que pudesse fazer isso.

Ela não respondeu, e ele entendeu o silêncio como uma confirmação.

– Então, você não foi embora porque queria ficar com outro homem?

– Não, claro que não. Eu só tinha medo das coisas que via. Tentei consultar um psiquiatra algumas vezes, mas não adiantou muito.

– O Dr. Fromke?

– Sim.

Daniel tentava processar tudo o que ela dizia. Não havia muitos psiquiatras na área, então, se ela foi consultar um, fazia sentido que fosse ele.

– Eu quero que você volte, mamãe.

– Vou voltar assim que puder.

– Não quero dizer apenas do Alasca. Quero dizer voltar para valer. Para casa.

– Vamos conversar sobre isso quando eu estiver aí, certo? E quero que você converse com seu pai sobre essas novas distorções.

– Vou contar assim que chegar em casa. Você não precisa proteger ninguém, mamãe. Seria melhor se você estivesse aqui.

– Eu te amo, Daniel.

Eu também te amo, pensou ele, mas não se sentiu preparado para dizer essas palavras. E concluiu:

– Logo converso com você.

E, com isso, o telefonema teve um fim.

Depois que ele desligou, juntou­-se aos amigos e resumiu parte do que sua mãe havia dito, mas omitiu a parte de ela também ter alucinações.

– Betty teria sido prima de vovó, mas minha mãe não sabe nada sobre ela. Precisamos descobrir o que está acontecendo, por que as minhas distorções recomeçaram.

– Como vamos fazer isso? – perguntou Kyle.

– O farol ainda existe?

Kyle digitou na tela de seu celular.

– Existe. Mas está abandonado. Esta página diz que o estado está tentando comprá­-lo, para preservá­-lo como marco histórico, mas, aparentemente, ainda está em negociação.

– Perfeito. Amanhã vamos até lá e damos uma olhada.

– Você está falando sério?

– Completamente. Minha primeira distorção levou­-me àquele celeiro. Agora o diário que encontramos lá está nos levando ao farol. A garota de minha distorção me disse que Madeline estava esperando – disse ele, levantando o telefone. – E não vamos esquecer a mensagem que eu recebi esta noite. Madeline quer que eu vá amanhã.

– Ela não é real, Daniel – disse Nicole, pouco à vontade. – Você mesmo enviou a mensagem.

– Ainda não sabemos se isso é verdade, mas mesmo que eu tenha feito isso, não a enviei sem motivo. Lembram o que eu escrevi na aula de inglês? “Cova Perdida é a chave”? Precisamos visitar a ilha Madeline para ver o que existe lá no farol.

***

O xerife Byers voltou para seu carro e colocou sua Maglite* no assento ao lado dele.

Enquanto voltava para casa, pensou na teoria do filho de que alguém com acesso ao programa de monitoramento de lobos por GPS do Departamento de Recursos Naturais pudesse ser o atirador.

Ele tentara contatar Lancaster Bell mais cedo, mas não conseguiu encontrá­-lo. Tornou a tentar e o encontrou em casa.

Omitindo o nome de Daniel, contou a Lancaster a teoria sobre os lobos monitorados e perguntou­-se se ele podia lhe fazer uma lista das pessoas que poderiam ter acesso aos arquivos.

Final da chamada.

Enquanto repensava as coisas, lembrou­-se da arma desaparecida, o rifle automático Browning 30­-06, do qual o diretor do Instituto Traybor registrara o furto seis semanas antes. Era o calibre certo. Podia ser apenas um detalhe, mas, certamente, podia estar relacionado com o que estava acontecendo.

Não levava a nada.

Mas era alguma coisa para se ter em mente.

Assim...

Para casa.

Então soube, por Daniel, tudo o que acontecera quando ele e Nicole descobriram aquele lobo.

***

Enquanto pensavam em um plano para o dia seguinte, Nicole explicou que ela tinha de ir à igreja e cumprir com outras obrigações com a família; assim, não poderia ir ao farol.

Mia ia servir de babá para o filho da vizinha a tarde toda; então, também estava fora, mas Kyle e Daniel decidiram que os dois iram até Bayfield.

– Como é que você vai chegar à ilha Madeline? – perguntou Nicole.

Às vezes, nos invernos muito rigorosos, o lago Superior congelava completamente, mas aquele inverno ainda não se mostrara tão severo e, além disso, talvez provavelmente ainda fosse o começo da estação para que isso acontecesse.

Daniel olhou para Kyle.

– O seu tio Larry? Você acha que ele pode nos ajudar?

– Bem, ele sempre me disse que eu podia usar seus barcos, mas nunca realmente imaginei que fosse lhe pedir para usar um deles no mês de dezembro.

Mia parecia cética.

– Você acha realmente que será capaz de chegar até a ilha?

– Não tenho certeza. Provavelmente, vai haver gelo no lago, mas pelo menos vale a pena dar uma olhada. Podemos não conseguir chegar até o farol, mas talvez vê­-lo pessoalmente possa despertar alguma coisa na memória do Sr. Caça­-Fantasma.

– O que você acha que sua mãe vai dizer?

– Acho que consigo convencê­-la – disse Kyle, olhando para Daniel. – E o seu pai?

– Talvez seja um pouco difícil, mas acho que vamos chegar a um acordo.

– Então tudo bem. Amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer é ligar para o Larry.

Passava um pouco das 20 horas, e Kyle disse que precisava ir para casa contar uma história para sua irmãzinha dormir, uma coisa que ele procurava fazer sempre que podia. Todos concordaram em se comunicar assim que ele falasse com o Larry no dia seguinte.

Depois de dizer boa­-noite a todos, Daniel levou o conteúdo da caixa com ele para que pudesse ler mais um pouco dos diários ainda naquela noite.

Enquanto ia para casa, tentou pensar em como convencer o pai a deixá­-lo investigar o farol onde seu tio­-bisavô havia enlouquecido e se suicidado, depois de uma garota – que talvez existisse apenas em sua imaginação – ter queimado até a morte.

***

Quando o xerife Byers estava entrando na garagem, viu que o carro de Daniel já estava lá, mas as luzes da casa estavam apagadas. Nem no porão, onde Daniel poderia ter ido para seu habitual levantamento de pesos, havia luz.

Tudo bem, mas era um pouco estranho. De jeito nenhum Daniel teria ido para a cama tão cedo, não em uma noite de sábado.

É claro que havia a possibilidade de ele ter saído no carro de um dos amigos, mas ele não gostava de depender de ninguém para se locomover e, assim, normalmente era ele que dava carona para os amigos.

O xerife acionou o controle remoto e fechou a porta da garagem atrás de si.

Entrando na cozinha, tentou acender as luzes, mas elas não funcionaram.

Tentou o interruptor algumas vezes.

Nada.

Nem o micro­-ondas nem o relógio do forno mostravam as horas.

Tudo escuro.

Um fusível?

Talvez.

Mas o controle da garagem tinha funcionado.

Talvez se tratasse de um circuito separado.

A luz refletia­-se na neve lá fora e penetrava pela janela acima da pia. Embora não permitisse a entrada de muita luz, foi suficiente para que ele visse a silhueta de alguém em pé na extremidade da cozinha.

– Daniel?

Nenhuma resposta.

– Você está bem?

A figura veio em direção a ele e acendeu uma lanterna, dirigindo o foco de luz à sua frente, o que o impedia de dizer de quem se tratava.

O xerife levou a mão aos olhos e estava para acender sua lanterna, mas lembrou que ela tinha ficado no carro.

– O que está havendo, Daniel?

A pessoa se aproximou, mas não disse nada.

O instinto do exercício da lei disse­-lhe para pegar a arma, mas o instinto paterno deteve­-lhe a mão.

Quando a figura estava apenas a alguns centímetros de distância, ergueu a lanterna e, assim que o xerife viu seu rosto, também viu a faca em sua mão.

Mas já era tarde demais.

A pessoa avançou a lâmina, que atingiu o flanco do xerife; respirando com dificuldade, ele tombou no chão da cozinha.

* Lanterna operacional tática, à prova d’água, resistente a choque, com ajuste do foco de luz e certificado militar de resistência. (N.T.)

 

 

26

7h55

Daniel só se lembrava de fragmentos e lampejos do que havia acontecido na noite anterior e das horas que se seguiram.

Mais cedo, quando estava meio adormecido, perguntara à enfermeira por que estava ali. A princípio, ela ficou em silêncio, mas, por fim, contou­-lhe que ele havia machucado alguém e que estava ali para sua própria proteção.

– Minha proteção? Quem foi que eu machuquei?

Mas, então, a resposta dela perdeu­-se na neblina de seus sonhos, enquanto ele tornava a perder a consciência.

Acordou com um médico e um detetive no quarto do hospital, e eles lhe perguntavam se sabia por que estava ali, se sabia o que havia acontecido a seu pai. Eles o pressionaram, mas ele não conseguiu lhes dar as respostas que buscavam.

Quando tentou se erguer, descobriu que seus braços e pernas estavam amarrados na cama.

Um dos homens disse alguma coisa sobre Madeline, as mensagens e o sangue. Daniel tentou dar mais explicações, mas antes que o fizesse, o médico estava introduzindo uma agulha em seu braço e lhe dando algum medicamento; ele tornou a sentir um cansaço tomar­-lhe todo o corpo.

Então, todas as pessoas foram engolidas pela explosão avassaladora de cores que o invadiu.

Em seguida, foram embora.

***

Daniel sonhou.

De algum modo, você acorda, mas ainda está dormindo. O mundo é, ao mesmo tempo, real e irreal. Você está em casa, levanta­-se da cama e dá um suspiro profundo.

Desperto.

Dormindo.

Para você dá na mesma.

Seus pensamentos giram dentro de você. Eles flutuam e se contorcem diante de você. Você tenta agarrar um deles, mas ele foge e fica olhando com um enorme sorriso, com os dentes aguçados e amarelados; você sabe que ele está faminto.

Você dá um passo para frente. Vai pegá­-lo.

Seus pés movem­-se por conta própria, levando­-o pelo corredor até a cozinha.

Até a pia, onde seus pensamentos flutuam.

Eles se enrodilham dentro de você, criando um pequeno redemoinho escuro que bloqueia o luar. Juntos, eles descem e desaparecem num ponto bem em cima do cano que leva ao triturador de lixo.

Você estica o braço para agarrar o ponto de escuridão que engoliu seus pensamentos, que os puxou para dentro dele como um minúsculo buraco negro.

Ele mergulha no triturador de lixo; então, você desliza a mão pelo cano. Você pode sentir as lâminas, curvas e afiadas, pacientemente esperando que alguém as acione.

Você avança com a mão para dentro da garganta da pia, em busca de seus pensamentos, suas percepções, suas esperanças e sonhos.

As lâminas são frias e lisas ao toque.

Frias.

E tão, tão lisas.

Acima da bancada, ao lado da pia, há dois interruptores, um ao lado do outro: um para a lâmpada acima da pia, o outro para o triturador de lixo.

Em seu sonho, você estende a mão para acender a luz.

E aciona o interruptor.

Mas não é a luz que você acaba ligando.

Você acionou o interruptor errado.

Com um zumbido de lâminas que giram, o triturador de lixo está vivo e devorando sua mão, puxando­-lhe o pulso. Você ouve o áspero triturar de ossos sendo esmagados, sente a dor profunda da carne se dilacerando, sente o gosto das borrifadas de sangue que sobem da pia.

Você grita no meio da noite, puxa o braço para fora e tomba para trás.

Seu braço termina no pulso, num coto dilacerado e grosseiro – a carne rasgada pendendo em tenebrosas tiras, pingando sangue escuro no chão.

Mas, então, diante de seus olhos, sua mão ressurge. Quatro dedos e um polegar emergem do final descarnado de seu braço. Eles se distendem, cobertos de sangue; a parte posterior de sua mão então se forma e, quando você a vira, vê a palma da mão aparecer.

O sangue sai dela como se estivesse sendo lavado por um fluxo de água.

Sua mão voltou, reformada, renascida.

Você sabe que é um sonho, você diz a si mesmo que é um sonho. Sabe que não é real, mas, afinal, o que é a realidade? Você está vendo, ouvindo e sentindo coisas que não poderiam existir. Mas existem, elas existem. O mundo real está se inclinando para deixá­-las entrar.

O sangue de sua mão está empoçando no chão, formando um círculo quente e viscoso.

Seus olhos são atraídos para esse círculo, para o modo como ele desliza para os sulcos das lajotas e, por fim, forma uma trilha escarlate que avança pelo linóleo.

Você segue essa linha de sangue com o olhar e vê seu pai estendido no chão.

Uma faca está cravada em seu flanco.

Uma faca de cozinha.

O sangue está esguichando do ferimento. Você corre e se ajoelha ao lado dele para ajudá­-lo, mas não sabe dizer se isso está realmente acontecendo – talvez esteja – ou se ainda vai acontecer.

Um sonho? Uma lembrança? Uma espécie de premonição?

Você não sabe se deve remover a faca, se isso vai ajudar a parar o sangue ou se vai piorar as coisas.

O que você fez com seu pai?

As vozes em sua cabeça dizem para você puxar a faca, para ligar para a emergência, mas você não se lembra de ter feito isso.

As imagens se desvanecem numa região nebulosa e incerta entre o inconsciente e a consciência enquanto você procura o cabo da faca.

***

Daniel abriu os olhos.

Não sabia quanto tempo tinha dormido, mas os amarrilhos tinham sido removidos e ele se sentou, ainda um pouco grogue; em seguida, pôs os pés fora da cama.

Sentindo­-se um pouco nauseado, foi rapidamente para o pequeno banheiro conjugado ao quarto do hospital, ajoelhou­-se diante do vaso e esvaziou o estômago.

Talvez vomitar seja uma coisa boa, pois você pode se livrar das drogas que lhe deram. Tire­-as de seu sistema; você não vai ficar tão sonolento.

Enxaguou a boca para tirar o gosto do vômito. Enquanto fazia isso, ficou imaginando o que poderiam ter lhe dado e quanto tempo ficara inconsciente desde quando o haviam drogado.

A lateral de sua cabeça doía. Parecia que alguém o tinha atingido com um porrete. Quando passou a mão no local, sentiu um vergão grande e macio.

Voltou ao quarto para se recompor.

Em primeiro lugar, abriu as cortinas.

Lá fora, um parque cheio de árvores que devia margear um lago. A margem distante estava fora de vista e ele presumiu que fosse o lago Superior, pois era o mais próximo com aquelas dimensões.

Como o sol estava baixo no horizonte, devia ser o nascente ou o poente. Por sua posição com relação ao lago, imaginou que estava mais para o anoitecer que o amanhecer.

Mas que dia era?

Domingo?

A última coisa de que ele se lembrava com clareza era ter saído da casa de Nicole no sábado à noite e ido para casa.

Você combinou de ir ao farol no domingo.

Será que você foi e não se lembra?

Será que se passaram mais dias?

Não havia puxador na janela; era impossível abri­-la.

Quatro barras de aço tornavam impossível sair por ela, mesmo que não houvesse vidro.

Examinando o quarto, não encontrou nem sinal de seu celular, chaves ou quaisquer outros pertences além das roupas que estava usando.

Foi até a porta que dava para o corredor. Uma pequena abertura em sua base permitia que coisas fossem passadas para o quarto: talvez uma bandeja com refeição, ou um livro, mas nada maior que isso.

Uma janelinha com pesada tela de arame localizava­-se no meio da porta, para permitir que os médicos verificassem seus pacientes do corredor.

Não, aquilo não era um hospital normal.

Daniel nunca havia estado em um hospital psiquiátrico, mas não precisava ser um gênio para imaginar que estava em algo semelhante agora.

Um guarda acima do peso estava sentado numa cadeira do outro lado do corredor, lendo algo em seu celular.

Você precisa descobrir o que aconteceu com seu pai.

Daniel tentou abrir a porta.

Trancada.

O que não era nenhuma surpresa.

– Com licença, meu senhor – disse ele através da porta. – O senhor pode me dizer o que está acontecendo?

O homem apenas olhou para ele através do vidro, ergueu­-se pesadamente, verificou se a porta do quarto de Daniel estava trancada e afastou­-se pelo corredor sem lhe dar resposta.

Daniel lembrou que um detetive já estivera em seu quarto, pedindo­-lhe que contasse o que tinha feito com o pai.

O cara foi chamar o detetive.

Daniel forçou a memória, tentando se lembrar do que o tinha trazido àquele lugar, mas só conseguiu trazer à mente imagens fragmentadas dos últimos dois dias. Era como se ele estivesse se arrastando por um tabuleiro cheio de peças de um quebra­-cabeça, tentando juntá­-las, tentando resolvê­-lo, sem que tivesse nenhuma chave para a aparência do quadro final.

Por quê? Foram as drogas que lhe deram? Por que você não consegue se lembrar do que aconteceu?

De repente, uma lembrança de ter tomado café com o pai.

Outra, de sua volta ao celeiro com os amigos.

Mais uma, do jogo de basquete.

Outra, de encontrar o DVD preso em seu armário.

Nada parecia estar em ordem.

Pense, Daniel! O que aconteceu?

Uma festa.

O telefonema para a mãe.

A visita a Ty Bell.

A distorção com a garota.

Depois, ele debruçado sobre o pai.

Uma faca enterrada em seu flanco.

Isso não está certo. Você nunca o machucaria. Nunca!

Mas na outra noite você acordou em pé ao lado da cama dele, segurando uma faca de caça. O que ia fazer com ela se não estava planejando usá­-la?

Foi até a janela e tentou relembrar as coisas, mas foi interrompido pelo som de alguém abrindo a porta.

Voltando­-se, viu um atendente grandalhão em pé, bloqueando a passagem.

Ok, esse cara passa um bom tempo na sala de musculação.

– Alguém veio vê­-lo, Daniel – disse ele, mal­-humorado.

– Quem?

Em vez de responder, ele apenas disse a Daniel para segui­-lo.

– O que aconteceu com o meu pai?

O homem ficou em silêncio.

– Você sabe?

– Ninguém sabe – respondeu ele por fim. – Com exceção de você.

Não. Eu não sei. Não sei de nada.

Enquanto andavam pelo corredor, Daniel tentou entender o que estava acontecendo.

Sim, ele estava num hospital para doentes mentais.

Ficou feliz, contudo, por não estar na cadeia.

O que isso significava: estar naquele lugar em vez de na cadeia? Que achavam que ele era inocente? Que eles apenas não tinham provas suficientes para prendê­-lo?

Também pode ser que achem que você está louco e que, portanto, seu lugar é aqui, e não na prisão.

Será que você não tem o direito de dar um telefonema ou falar com um advogado se for suspeito de um crime?

Só se você for preso. Aqui você não está preso, Daniel. Está internado.

Mas quem o pôs aqui? Como você veio parar aqui?

Mais cedo, provavelmente esta manhã – se é que realmente estamos no domingo de tarde –, seus punhos e tornozelos estavam amarrados.

O pessoal do hospital tinha lhe dado algum tipo de droga para fazê­-lo dormir.

Mas por que eles fariam isso se queriam que você respondesse às perguntas sobre seu pai?

Nada fazia sentido, e quanto mais ele tentava juntar as peças do quebra­-cabeça, mais confuso e indecifrável ele ficava.

Agora, enquanto andavam pelo corredor, Daniel pôde ver que, como a de seu quarto, as portas dos quartos dos outros pacientes também tinham janelas de vidro reforçado e, como resultado, ele pôde dar uma olhada em alguns deles.

E não foi nada encorajador.

Um homem estava em pé num dos cantos de seu quarto batendo com a cabeça contra a parede sem parar. Nesse caso, a parede era almofadada e ele não parecia estar se ferindo, mas o som de sua cabeça contra a parede soava irritante, chegando até o corredor.

Quarto seguinte: uma garota que parecia um pouco mais velha que Daniel estava sentada na cama, com um longo fio de baba escorrendo da boca. Ela estava murmurando alguma coisa para si mesma, embora não fosse possível ouvir o que dizia.

Ela deve ter notado a movimentação lá fora, pois olhou para ele e sorriu, de um modo que o perturbou, de um modo que lhe lembrou do sorriso que a garota de seu sonho havia lhe oferecido depois de começar a ser consumida pelo fogo que começara na barra de sua camisola e a fez arder até a morte.

Ou o sorriso daquele demônio um pouco antes de voar em sua direção.

Enquanto avançavam pelo corredor, um velho conduzido por uma senhora de idade aproximou­-se de Daniel, olhou diretamente para ele, lançou­-se para frente e agarrou seu braço.

– É você o tal! – gritou o homem.

A mão do homem o agarrava com a força de uma garra. Os dois atendentes tiveram trabalho para afastá­-lo, mas por fim conseguiram separá­-lo de Daniel. O velho, porém, não desistiu de tentar agarrá­-lo.

– Você não devia ter feito aquilo com seu pai.

– O que você sabe do meu pai?

A mulher, então, começou a levá­-lo para longe, mas ele continuou a chamar Daniel, acusando­-o de machucar seu pai, enquanto Daniel gritava para ele:

– Diga­-me o que sabe do meu pai!

Mas não houve resposta e eles desapareceram, saindo do corredor. O acompanhante de Daniel, então, passou com ele por um armário do serviço de manutenção no final do corredor.

Daniel não tinha ideia de quem era aquele velho ou como ele poderia saber alguma coisa sobre seu pai.

Isso não faz nenhum sentido.

O atendente levou­-o para uma área de visita perto da entrada principal.

Dois pacientes homens estavam sentados no canto da sala, com um tabuleiro de xadrez entre eles, embora só um estivesse movimentando as peças, como se estivesse jogando contra si mesmo. O outro homem fazia sinais indecifráveis com as mãos, conversando em sua própria linguagem de sinais com alguém invisível em pé ao lado deles.

Perto da janela, uma velha televisão presa seguramente na parede exibia desenhos animados com o som desligado. Uma mulher que parecia ter seus 50 anos, com um casaco de uso diário, esfarrapado e felpudo, olhava atentamente para a tela. A todo momento, ria para si mesma, mas sua risada não parecia ter nada a ver com o que estava acontecendo na televisão.

Por que trariam você para um lugar como este?

Então, viu quem viera vê­-lo.

Não, não era o detetive de quem suspeitara.

Era Nicole.


27

Ela passou por um controle de segurança e foi trazida à sala.

Daniel sentou­-se diante dela, do outro lado de uma pesada mesa de metal que tinha sido fixada no chão.

O atendente que o havia trazido afastou­-se um pouco, mas Daniel imaginou que, mesmo assim, ele seria capaz de ouvir sua conversa com Nicole.

Ela levou a mão por sobre a mesa para tomar a dele, mas o homem limpou a garganta e balançou a cabeça para detê­-la.

Depois de hesitar um instante, ela recolheu a mão.

– Como você está? – ela perguntou baixinho a Daniel.

– Eu estou bem. Onde nós estamos?

– Em Duluth.

– Duluth? – repetiu ele. Isso ficava a uma hora de carro de Beldon. Mas Daniel não insistiu no assunto. – Hoje é domingo?

– É. Domingo de tarde.

– Estão dizendo que alguma coisa aconteceu ao...

– Sim, alguma coisa aconteceu ao papai.

– Ao meu pai?

– Isso mesmo – disse ela, balançando a cabeça ligeiramente para que o atendente não visse seus olhos e, então, piscou para Daniel, que entendeu.

Talvez eles admitissem pessoas da família nas visitas.

Mas eles não verificariam o documento dela para saber quem ela era?

Talvez, mas pelo menos agora finja que ela é sua irmã.

– Você não se lembra de nada, não é mesmo? – ela perguntou.

– Não me lembro de nada com relação a ele.

Nicole ficou quieta.

– Conte por que eu estou aqui.

Ela olhou para além dele e, então, disse:

– Encontraram você na cozinha com muito sangue espalhado por toda parte. E ele tinha desaparecido.

– Como é que ele pôde desaparecer?

– Não sei. Ninguém sabe. O carro dele ainda está lá. O sangue encontrado em suas mãos foi analisado. Era dele. Havia uma faca no chão. Estão dizendo que suas impressões digitais estão nela.

– Quem disse isso?

– Não sei. Foi o que eu ouvi falar.

– Que tipo de faca era?

– Uma faca de cozinha.

– Não era uma faca de caça?

– Não... Você não se lembra de nada disso?

Ele balançou a cabeça.

– Hoje, mais cedo, eu adormeci e sonhei com isso, mas acho que não era real, você sabe como são os sonhos. Parte do sonho era... bem, parte dele não pode ter acontecido.

– O que não pode ter acontecido?

– Eu sonhei que enfiei a mão no triturador de lixo e ela foi triturada, que meus dedos foram arrancados.

– Uau! – disse ela, contraindo o rosto.

– Foi... – disse ele, e embora não fosse necessário, colocou as duas mãos sobre a mesa para provar que tinha sido só um sonho.

Mas se essa parte foi apenas um sonho, e quanto à parte em que você encontrou seu pai?

Ele pensou em perguntar­-lhe como ela soubera onde ele estava, mas percebeu que, se fizesse isso, poderia revelar que ela não era sua irmã.

– Soube alguma coisa da mamãe? – perguntou ele. – Eles tiraram o meu celular. E não tem telefone no meu quarto. Não tenho como entrar em contato com ela.

– Ela está tentando conseguir um voo de Anchorage, mas com a tempestade de neve que está caindo por lá, a coisa não está boa, pelo menos por mais um ou dois dias. Mas ela sabe o que está acontecendo.

Ele não teve certeza se Nicole tinha realmente conversado com ela, mas fazia sentido que sua mãe tivesse entrado em contato.

– Isso é uma confusão – disse ele.

– É mesmo.

Daniel baixou a voz, na esperança de que o funcionário do hospital, que ainda estava por perto, não o ouvisse.

– Você sabe mais alguma coisa sobre o farol?

Ela balançou a cabeça.

– O Kyle não foi lá.

Ele se inclinou para a frente e sussurrou:

– Eu preciso sair daqui.

– Precisa, claro, mas não sei como...

O homem fixou os olhos em Nicole e, então, avançou para eles.

– Lamento, mas acabou o horário de visita.

– Mas eu acabei de chegar – objetou ela.

– E agora vai sair.

Daniel cogitou em enfrentar o cara, mas não viu como, a longo prazo, isso funcionaria em seu favor.

Ele se levantou e disse a Nicole:

– Diga à mamãe que eu estou bem. Que logo vou vê­-la.

– Digo, sim.

Ele quis abraçá­-la para tranquilizá­-la, mas, quando deu um passo em sua direção, o atendente se colocou entre eles.

Daniel sentiu os lobos lutando dentro dele, mas decidiu que a melhor maneira de logo tornar a ver Nicole era deixar as coisas como estavam.

– Vai ficar tudo bem – disse ele.

– Vai.

***

Quando voltaram para o quarto, Daniel observou cuidadosamente a localização das portas, onde ficavam as câmeras de segurança, o número de quartos do corredor e a distância aproximada entre eles, calculando, deixando que a parte matemática de seu cérebro trabalhasse, tentando criar uma imagem mental do edifício.

Ele tinha que descobrir onde seu pai estava, e isso não ia acontecer enquanto ele estivesse em um hospital psiquiátrico.

Sim, ele precisava sair dali e voltar a Beldon o mais rápido possível.

Mas não tinha ideia de como faria isso sem um carro, mesmo se conseguisse achar um meio de sair do hospital.

O atendente levou­-o a seu quarto e, sem dizer uma palavra, trancou­-o lá dentro.

Lá fora, os últimos vestígios da luz do dia estavam se apagando, deixando apenas um quadrado negro no meio da parede, pontilhado por luzes da iluminação da rua perto do parque.

Vão procurar você em Beldon. As mensagens de Madeline referiam­-se a um encontro com você. De alguma maneira, aquele farol estava no centro de tudo.

Você precisa descobrir o que existe naquela ilha.

Enquanto Daniel estava pensando nisso, ouviu alguém abrir a porta do quarto.

Virando­-se para ver quem era, imediatamente reconheceu o homem que entrara e fechara a porta atrás dele. O Dr. Fromke.

Seu psiquiatra.

Bem, ótimo. Por fim, alguém que podia lhe dar algumas respostas.


28

­- Alguma notícia de meu pai? – perguntou Daniel com ansiedade.

– Não, ainda não.

– Dr. Fromke, o senhor precisa me tirar daqui.

– Estou trabalhando nisso, Daniel. Mas primeiro precisamos conversar. Você saiu da casa de sua amiga pouco depois das oito da noite. O que você estava fazendo lá?

– Estávamos descobrindo o que podíamos sobre o farol.

– O farol?

– Sim, onde meu tio­-bisavô trabalhou. O farol da Cova Perdida. Ele... bem, ele se matou, e nós estávamos tentando entender... olhe, isso não importa. Preciso encontrar meu pai agora mesmo.

– Sim – disse o médico, que ainda estava em pé junto à porta, como se estivesse impedindo que outra pessoa entrasse. – Então, você se lembra do que aconteceu em sua casa?

Daniel tinha acabado de falar sobre aquilo com Nicole e realmente não desejava recapitular tudo. Porém, rapidamente contou ao médico o que acontecera, pelo menos o que conseguia lembrar. Terminou lhe contando sobre a faca enterrada no flanco do pai, mas explicou que apenas sonhara essa parte.

– Então ele foi esfaqueado. Onde? No tórax?

– Bem, pelo menos no meu sonho.

– Sim, claro. De que lado?

– Do lado direito... mas isso não tem importância. Precisamos encontrá­-lo, sem se preocupar com o lugar com que sonhei que ele foi esfaqueado.

– Realmente. E de que mais você se lembra?

– De acordar aqui.

– E antes de estar ao lado do seu pai... você se lembra do que fez?

Daniel estava ficando irritado.

– Só que eu voltei da casa de Nicole. Antes disso, nós fomos ao celeiro do distrito N, onde eu costumava brincar quando criança. Uma distorção me levou até lá – disse ele, quase mencionando a garota morta, mas evitando fazê­-lo. – Quando o senhor acha que eu vou sair daqui?

– Estou trabalhando nisso.

– Isso o senhor já disse.

– Isso mesmo – respondeu ele. – Já disse.

– Por que eu não consigo lembrar o que ocorreu na noite passada?

– Você teve um ferimento grande na cabeça. Uma pequena perda de memória não é incomum para alguém que recebeu uma pancada. O que você sabe sobre o lobo morto?

– O quê?

– O lobo que foi morto no sábado. Foi a última coisa que seu pai investigou antes de ir para casa. Havia uma foto dele no seu telefone, além de algumas mensagens sobre o assunto.

– Minha namorada e eu estávamos na floresta quando alguém atirou nele. O que isso tem a ver com o desaparecimento de meu pai? E como foi que o senhor ficou sabendo disso?

– Nós estamos investigando tudo que podemos.

– Nós? O senhor está trabalhando com a polícia.

– Quero dizer, “nós” em geral... todos nós. Só queremos encontrar seu pai e ajudá­-lo. Você não tem nenhuma informação de onde ele possa estar?

– Não. Como vocês estão trabalhando nisso?

– Trabalhando nisso?

– Em me tirar daqui.

– Estou tomando as devidas providências. Não se preocupe. Vou me ocupar de tudo.

Baseado nos rumos dessa pequena conversa, isso não conseguiu exatamente tranquilizá­-lo.

– Um dos pacientes daqui – disse Daniel – agarrou o meu braço quando eu estava indo ver Nicole na sala dos visitantes hoje, mais cedo. Ele disse alguma coisa... que eu não devia ter feito aquilo com meu pai. Como é que ele soube do que aconteceu?

– Pode ser que ele tenha ouvido alguma coisa por aí.

Eles conversaram mais alguns minutos e, então, Dr. Fromke disse que precisava ir embora.

– Só mais uma pergunta – disse Daniel.

– Sim?

– Nós estamos em Duluth. O senhor veio até aqui só para me ver?

– Você é meu paciente, não é mesmo?

– Sou, mas não entendo por que o senhor se daria ao trabalho de vir aqui numa tarde de domingo.

– Achei que seria do seu interesse. Estou aqui para fazer o que puder.

– Eu não fiz nada contra meu pai.

– Tudo bem.

– Tire­-me daqui, Dr. Fromke.

– Estou me esforçando para isso.

***

Depois que ele saiu, Daniel recapitulou mentalmente a conversa entre eles.

Estranho.

E nada animador.

Como é que você veio parar num hospital psiquiátrico a mais de 90 quilômetros de casa?

Se eles suspeitavam de que ele era responsável pelo desaparecimento do pai, por que não estava na cadeia?

Por que ele acordou trancafiado num hospital psiquiátrico em vez de algemado numa cela?

Então, um pensamento ocorreu­-lhe, e quando isso aconteceu, pareceu­-lhe óbvio, como algo que ele deveria ter percebido de imediato: como seu psiquiatra, o Dr. Fromke podia interná­-lo. Além de seu pai e de sua mãe, ele provavelmente era o único que podia fazê­-lo.

Talvez o Dr. Fromke não estivesse tentando tirá­-lo daquele lugar.

Talvez ele estivesse tentando mantê­-lo ali.

***

No jantar, em vez de levar Daniel à cantina, o atendente que o levara à sala de visitas passou­-lhe uma bandeja de comida pela abertura na parte de baixo da porta: sopa fria, um sanduíche de peru, uma pequena embalagem de leite e um biscoito seco de aveia e passas – e nada que pudesse ser usado como garfo ou faca para comer.

Sequer lhe deram uma colher para a sopa. Ele teve que tomá­-la diretamente da tigela.

Não, provavelmente não era muito prudente dar a pacientes psiquiátricos garfos e facas enquanto estivessem trancados em seus quartos. Mas nenhuma colher? Fala sério!

Sem relógio, Daniel não conseguia precisar as horas muito bem, porém, mais tarde, quando estava se preparando para dormir, olhou pela abertura da janela e viu um guarda sentado lá fora.

Não era o mesmo cara que estivera em seu quarto de tarde, quando Daniel saiu da cama pela primeira vez; era o homem que tinha esperado por ele depois do jogo, o que conduzira o prisioneiro até o instituto que supostamente pesquisava sobre peixes, o homem que atolara na neve.

Ele olhou para Daniel como se o reconhecesse; então, levou um dedo aos lábios como para lhe pedir que não dissesse nada.


29

­-Acorde, Daniel.

A voz soava apressada, próxima a seu ouvido.

A princípio, ele achou que estivesse ouvindo coisas ou que fosse apenas parte de um sonho.

Virou para o lado, mas tornou a ouvi­-la, dessa vez ainda mais insistente:

– Daniel, acorde.

Agora de olhos abertos, ele se virou, mas com a única luz fraca que provinha da distante iluminação pública e entrava pela janela, o quarto estava escuro demais para que visse alguém.

– Quem está aí?

Alguém o pegou pelo braço, e Daniel, instintivamente, se desvencilhou, tentando focalizar a pessoa. O quarto estava envolto em sombras, e ele, ainda atordoado.

Contudo, quanto mais mantinha os olhos abertos, mais eles se acostumavam com a escuridão, e agora, à luz fraca, ele finalmente viu um homem ao lado de sua cama.

– Faça as perguntas depois – disse ele, e finalmente Daniel reconheceu aquela voz: o guarda, ou pelo menos o cara vestido de guarda, que estava lá fora do quarto. – Precisamos sair daqui imediatamente.

– Eu não vou a lugar nenhum antes de você me dizer quem é.

– Meu nome é Malcolm Zacharias – respondeu ele, tornando a pôr a mão no braço de Daniel. – Vamos. Mexa­-se. Eu vim tirar você daqui. E, acredite, é o que você deseja nesse instante.

– Por que você está me ajudando?

– Porque eu preciso que você me ajude.

– Como?

– Mais tarde eu explico.

Daniel tornou a desvencilhar o braço.

– Explique agora.

– Temos que ir embora – disse o Sr. Zacharias enfaticamente. – Ou você vem comigo e encontra as respostas que está procurando ou fica aqui, e, se ficar, não vai sair tão cedo.

– Por que você diz isso?

– Por causa do que aconteceu ontem à noite.

– Com o meu pai?

– Isso mesmo, agora...

– Você sabe onde ele está?

– Não, mas acho que sei onde o encontrar. Ouça, o segurança deste andar está fazendo a ronda no outro extremo da ala, mas vai voltar para cá a qualquer momento. Depois disso, vai ser tarde demais.

Saia daqui, Daniel. Esta é a sua chance.

O Sr. Zacharias foi até a porta. Ele tinha colocado alguma coisa entre o batente e a porta para evitar que ela fechasse. Então, removeu o calço, abriu­-a, olhou para o corredor e sussurrou:

– Agora.

Daniel beliscou o braço para se certificar de que não estava mais dormindo.

Não estava.

Nenhuma das lâmpadas fluorescentes do corredor estava acesa. A única iluminação vinha das indicações de saída brilhando no fim do corredor e de algumas fracas luzes de emergência colocadas em intervalos regulares ao longo do corredor.

A escuridão em torno de Daniel parecia fundir­-se, reagrupar­-se, combinar­-se e ficar duas vezes mais pesada e espessa que antes, como se estivesse viva.

Ele ficou imaginando se as sombras podiam assumir a forma do demônio que vira surgir do caderno de esboços de Nicole ou atravessar o celeiro, mas elas não fizeram isso e ele não estava a fim de esperar que o fizessem. Desviou sua atenção para o Sr. Zacharias, que fazia sinal para que ele saísse.

Daniel saiu para o corredor, fechou a porta silenciosamente e o seguiu.

Mas, logo depois, o movimento da luz de uma lanterna cortando a escuridão na extremidade oposta do corredor chamou sua atenção.

À medida que a pessoa surgia, mesmo com a fraca iluminação, Daniel percebeu que se tratava, pelo uniforme do homem, de um guarda, de modo que correu para a direção oposta com o Sr. Zacharias.

Ao fazê­-lo, lembrou­-se do problema de lógica que Kyle havia lhe proposto outro dia na escola: guardas diante de quatro portas. Dois dos homens sempre mentiam; dois sempre falavam a verdade. Então, agora, Malcolm Zacharias dizia a verdade ou mentia?

O que ele ganharia em mentir para você? O que ele ganharia dizendo a verdade?

Na dúvida, a lógica levou à solução correta. Daniel, então, deixou que ele o guiasse.

Em quem você confia, Daniel?

Ele repassou mentalmente o que sabia: no sábado, o Sr. Zacharias tinha se vestido como guarda da prisão e levou um prisioneiro para o Instituto Traybor. Parecia um pouco incrível que ele aparecesse agora em outro local vestido como policial, mas Daniel não tinha motivo para achar que ele estivesse mentindo quanto à tentativa de ajudá­-lo a escapar do hospital.

E tampouco há motivo para achar que ele está lhe dizendo a verdade.

Exceto que o está ajudando a escapar.

Ou, pelo menos, é o que parece.

Daniel reproduziu a excursão pelo hospital que fizera antes como se um mapa se desdobrasse em sua mente. A disposição, as distâncias, as localizações das câmeras de segurança estavam voltando à sua memória.

Ele calculou que não havia tempo suficiente para voltar ao quarto e se esconder do guarda, tampouco para chegar ao outro extremo do corredor.

– Você vem? – perguntou o Sr. Zacharias, com a voz abafada e urgente. Ele estava um pouco à frente no corredor. Daniel lembrou que a porta à sua esquerda era um armário da manutenção.

Vai estar trancada.

Pelo menos, tente abri­-la.

Ele tentou.

A porta estava aberta.

Ele correu para dentro.

Por que está aberta? Numa ala de psiquiatria, por que eles deixariam o armário da manutenção aberto, com todos aqueles produtos químicos dentro dele?

Perguntas sem resposta, mas naquele momento isso não importava. Aquela noite parecia governada por razões próprias e ele poderia se ocupar dela mais tarde. Primeira prioridade: sair daquele lugar.

O Sr. Zacharias ficou no corredor.

A porta não tinha uma abertura, de modo que Daniel não conseguia enxergar o corredor, mas conseguiu ouvir os passos do segurança se aproximando.

Seu coração bateu tão forte que ele imaginou que qualquer pessoa que se aproximasse poderia ouvi­-lo, e isso o fez pensar na história de Edgar Allan Poe que a Prô analisara no início do semestre: “O coração revelador”.

Era outra daquelas histórias em que o protagonista também era antagonista. O homem que cometera o assassinato ouvia o coração de sua vítima continuando a bater, continuando a atormentar sua consciência, deixando­-o louco.

E o que a Prô disse na sexta­-feira? Que o narrador podia não ser confiável. Que ele podia ainda não conhecer toda a verdade do que estava acontecendo.

Porque podia estar louco ou delirante, ou as duas coisas.

Os passos se detiveram bem diante do armário da manutenção.

Qual dos dois cabe no seu caso?

Louco?

Delirante?

Os dois?

– Esticando as pernas? – perguntou uma voz desconhecida.

– Isso aí – respondeu o Sr. Zacharias. – Fico muito tempo sentado do lado de fora daquela porta.

– Então, eles vão transferi­-lo amanhã?

– Foi o que ouvi dizer. Não querem correr nenhum risco. Por mim, tudo bem. Este não foi o meu trabalho mais emocionante.

O guarda consegue ouvir seu coração batendo. Tem que ouvir. Ele sabe que você está aqui.

Não. Isso é impossível.

Daniel planejou o que faria se o segurança abrisse a porta. Ele não podia ser trancafiado naquele quarto outra vez.

Você não pode deixar que ele o pegue.

Mas e depois? Fazer o quê?

Mesmo que conseguisse chegar à sala de visitas onde falara com Nicole naquele dia, a entrada principal com certeza estaria trancada.

Daniel sentiu as mãos se crisparem, enquanto esperava no armário. Lutar ou fugir?

Bem, as duas coisas, se necessário.

– Pelo que estão dizendo, ele esfaqueou o pai – disse o segurança.

– É o que estão dizendo.

– O rapaz é doente.

– Bem, alguma coisa está acontecendo com ele, isso é certeza.

– Eles sempre trazem os piores para cá. Eu gostaria de ser como você, uma coisa apenas temporária. Você não tem que ficar guardando esses malucos noite após noite.

– Você nem imagina como sou feliz por isso.

Uma pausa.

– Tudo bem – disse o segurança finalmente. – Bom, acho que vou verificar a outra ala.

– Vejo você na volta.

O som dos passos do segurança foi diminuindo e, por fim, a porta do armário da manutenção foi aberta e o Sr. Zacharias fez sinal para que Daniel o seguisse.

O corredor estava livre.

– Como é que vamos sair daqui? – perguntou Daniel. – Há câmeras demais perto da entrada. Elas vão nos denunciar antes mesmo de chegarmos ao estacionamento.

– Como você sabe dessas câmeras?

– Eu as vi quando fui à sala de visitas esta tarde.

Dependendo da precisão das câmaras, eles já podiam ter registrado sua presença.

Daniel avaliou a situação. A maioria das pessoas que vão a um hospital entra e sai pelas portas principais, mas não todo mundo. Devia haver uma entrada de funcionários, mas, mesmo que não houvesse, com certeza haveria pelo menos outra saída.

Afinal, o que aconteceria em caso de incêndio? Com os programas de combate a incêndios e outras coisas do tipo, teria que haver outra saída do prédio.

Com base no que percebeu com relação ao tamanho do hospital quando caminhou por ele mais cedo, havia um motivo ainda mais óbvio para haver outra porta.

– Existe uma área de entrega, certo? Uma porta dos fundos por onde fazem a entrega de alimentos?

– Então, o que eles dizem sobre você é correto.

– O que é?

– Que você é intuitivo. Que é bom em juntar as coisas.

– Quem diz isso?

O Sr. Zacharias não respondeu, apenas disse:

– Vamos lá. – E começou a conduzi­-lo pelo corredor na direção oposta à sala onde Nicole estivera.

O corredor logo terminou numa intersecção. O Sr. Zacharias assegurou­-se de que nenhum outro guarda estivesse por ali e, então, sussurrou a Daniel para que o seguisse.

Foram para a direita, mas só tinham dado alguns passos quando chegaram a um quarto com um paciente em pé atrás da janelinha da porta coberta por arame e olhando para o corredor.

A pouca luz foi suficiente para que Daniel reconhecesse nele o velho que havia agarrado seu braço e lhe dito: “Você não devia ter feito aquilo com seu pai”.

O homem pressionou a palma da mão contra o vidro como se quisesse atravessá­-lo e tocar Daniel.

– O que você sabe sobre o meu pai? – perguntou Daniel.

– Vamos embora – disse o Sr. Zacharias apressadamente. – Temos que ir embora.

Daniel se concentrou no velho.

– O que você sabe?

– Tempo – disse ele. – Vocês não têm tempo.

– Tempo para quê?

– Ele vai fazer de novo.

– Quem vai fazer o que de novo? Do que você está falando?

O Sr. Zacharias agarrou­-lhe o braço.

– Vamos. Não temos tempo para isso.

Daniel olhou para ele e, então, tornou a se virar para a janelinha da porta. Não havia ninguém lá.

O quarto parecia vazio.

Ele deve ter se posto ao lado da porta. Está em pé ao lado dela.

Ou talvez nunca tenha estado ali. Você deve tê­-lo imaginado.

Ele tentou a maçaneta da porta, mas ela se recusou a girar.

– Você consegue abrir esta porta? – perguntou ao Sr. Zacharias.

– A única chave de quarto que eu tenho é a sua.

– Você viu o homem lá dentro?

– Eu não estava olhando. Agora, vamos embora.

Daniel não conseguiu pensar numa forma de confirmar se o velho era real ou não sem abrir a porta.

Você precisa ir embora. Tem que sair daqui.

Colocando­-se bem atrás do Sr. Zacharias, Daniel entrou na cantina.

Descontado o fato de ela ter metade do tamanho, lembrava a de Beldon High.

Estavam a caminho da cozinha para encontrar a porta dos fundos de entrega quando o alarme soou.


30

Luzes de emergência começaram a piscar por todo o hospital enquanto o alarme troava.

O Sr. Zacharias correu para a porta de saída com Daniel bem atrás dele.

– Este alarme significa que temos vinte segundos antes que as portas externas sejam bloqueadas – exclamou ele sem fôlego.

– Mas você tem uma chave, certo?

– Não para furar o bloqueio.

Oh, perfeito!

Com o tempo que havia passado, Daniel calculou que talvez ainda tivessem quinze segundos.

Enquanto corriam em meio aos fornos e pias, um relógio ficou batendo em sua cabeça exatamente como quando ele estava na linha de arremesso livre de um jogo de basquete.

Dez.

Alcançaram a extremidade da cozinha, e Daniel ouviu a porta de correr ser aberta e pesados passos entraram no cômodo atrás dele.

Sete.

O Sr. Zacharias atrapalhou­-se com suas chaves para as portas externas.

Cinco.

Vozes gritaram de dentro da cantina:

– Aqui! Na cozinha!

O Sr. Zacharias abriu a porta e os dois saíram.

Dois.

Daniel bateu a porta atrás dele.

Um.

– Eles conseguem sair por aquela porta? – perguntou ele, ansioso.

– Primeiro eles vão ter que desligar o bloqueio, mas isso não leva muito tempo. Venha. Tenho um carro esperando no final do quarteirão.

Enquanto escapavam em meio às sombras, Daniel ouviu pessoas batendo na porta como se estivessem tentando arrombá­-la.

Ele e o Sr. Zacharias se esgueiraram pela noite até um sedã preto de marca indefinível que aguardava perto de um poste de luz junto ao parque. Era um carro diferente daquele com placas da Geórgia, o que havia encalhado na neve na noite de sexta­-feira.

As águas do lago Superior ondulavam ali perto, sob o luar.

Se eles o apanharem, provavelmente não vão se limitar a mandá­-lo de volta ao quarto. Desta vez, vão prendê­-lo para se certificar de que você não fuja.

Não, isso não estava nos planos de Daniel para descobrir o que acontecera com seu pai.

O Sr. Zacharias apertou o botão do controle de sua chave para abrir a porta e pulou para o assento do motorista.

Os guardas não viram para onde você foi. Você está bem por um ou dois minutos. Pense nisso.

Daniel seguia ao lado dele, e assim que o Sr. Zacharias pôs a mão no volante para colocar a chave na ignição, Daniel agarrou­-lhe o pulso com uma das mãos, torceu­-o e tomou­-lhe as chaves com a outra.

O rapaz foi rápido e, obviamente, pegou o Sr. Zacharias de surpresa, que agora o olhava à luz do poste de iluminação.

– Eu quero algumas respostas – disse Daniel –, e quero agora. Nós não vamos a lugar nenhum até você me contar o que está acontecendo.

Honestamente, ele não sabia como o Sr. Zacharias reagiria.

Se ele era realmente um policial, guarda de prisão ou o que fosse, poderia ameaçá­-lo para recuperar as chaves, mas Daniel estava com uma das mãos na maçaneta e pronto para pular do carro se fosse necessário.

Kyle, com certeza, correria mais que esse cara.

E você?

Embora não fosse tão rápido quanto seu amigo, baseado em seu desempenho no futebol e nos lances suicidas do basquete, estava convencido de que seria capaz de fugir.

O Sr. Zacharias pode ter se dado conta da mesma coisa, pois não tentou tomar­-lhe as chaves, mas apenas disse:

– A despeito do que a maioria das pessoas desse hospital pensa, você não é perigoso. A pessoa que levou seu pai é.

– E quem é?

– Não tenho certeza, mas com base na quantidade de sangue que acharam no local, seu pai foi seriamente ferido e...

– Quem é? Quem o atacou?

– Acho que foi um homem transferido da Penitenciária Estadual de Derthick ontem.

– O que você levou para o Instituto Traybor?

O Sr. Zacharias o olhou com curiosidade.

– Como você soube disso?

– Eu estava lá.

– Você esteve... Ah, os cachorros. Era você que eles estavam procurando.

Daniel não mencionou que Nicole também tinha estado lá.

– Eu vi você. O cara estava algemado quando você o levou para dentro. Você está dizendo que... o quê? Ele fugiu?

– Daniel, não vai demorar para eles encontrarem este carro e, quando encontrarem, vão levá­-lo de volta para o hospital e, dessa vez, você não será vigiado por alguém que está do seu lado... posso lhe garantir isso. Mas eu estou do seu lado. Acredite. Dê­-me as chaves. Vou lhe contar o que sei durante o caminho.

– Caminho para onde?

– De volta a Beldon.

Fosse quem fosse o Sr. Zacharias, ele ajudara Daniel a fugir do hospital psiquiátrico e estava se oferecendo para levá­-lo embora dali. Era bem verdade.

Embora não tivesse certeza de quanto deveria confiar nele, Daniel se convenceu de que os seguranças do hospital estariam ali a qualquer momento e, se conseguissem levá­-lo de volta, com certeza o vigiariam muito mais que antes.

Pelo retrovisor, viu uma lanterna brilhar no final do edifício, apontar para o carro e então alguém correndo na direção deles.

Tudo bem.

Hora de ir embora.

Entregou as chaves.

– Vamos dar o fora daqui.

O Sr. Zacharias ligou o carro e se afastou, mantendo as luzes desligadas até que estivessem três quarteirões adiante.

– Muito bem – disse Daniel. – Agora me conte o que está acontecendo.


31

­-Você disse que esteve no Instituto Traybor – começou o Sr. Zacharias, avançando pelas ruas da periferia da cidade. – O que você sabe sobre ele?

– Em primeiro lugar, eles não estão estudando peixes lá.

– Por que você diz isso?

– Boa pergunta. Tem alguma coisa a ver com cronobiologia, não é mesmo?

– Você está começando a me impressionar de verdade. O que mais você sabe?

– O Dr. Waxford não é especialista em peixes. Ele estuda como os seres humanos se relacionam com a passagem do tempo e como a processam. Mas não entendo o que isso tem a ver com o prisioneiro que você estava levando para o instituto.

O Sr. Zacharias levou um momento para reorganizar seus pensamentos e disse:

– Bem, como você deve saber, a pena de morte está ficando cada vez mais rara hoje em dia. Como resultado, alguém pode ser sentenciado à prisão perpétua ou mesmo a quatrocentos ou quinhentos anos por ser um serial killer. Mas eles, obviamente, não cumprem todo esse tempo pois morrerão antes disso. Podem cumprir trinta, talvez quarenta ou mesmo sessenta ou setenta anos... mas isso é apenas uma fração de sua verdadeira sentença.

Daniel não conseguia ver aonde ele queria chegar.

– Então, entra a cronobiologia. Vocês estão procurando uma maneira de fazer com que centenas de anos pareçam ter passado para alguém. Para que essa pessoa sinta, em sua mente, essa passagem de tempo.

– Eu não estou procurando a maneira de fazer isso. Estou à procura de um modo de detê­-lo... mas, sim, a pesquisa é a respeito disso.

– Você está procurando detê­-lo?

– O grupo para quem trabalho é que está.

– Que grupo é esse?

– Isso é uma coisa que eu não posso lhe contar.

Por que isso não o surpreendeu?

– Você tem um dom, Daniel. Sabemos o que tinha acontecido com a Emily. De como conseguiu juntar as peças depois que ela foi morta.

– Como é que vocês sabem dessas coisas? Nem eu mesmo sei como fiz aquilo.

– Acho que eu devia ter dito que sabemos o que você fez, mas não como fez, pois essa é uma das coisas que estamos interessados em discutir com você. Achamos que você pode nos ajudar a localizar pessoas, pessoas desaparecidas, talvez resolver casos antigos.

– Como é que souberam de mim?

– Uma fonte.

– Uma fonte?

– Sim, e estivemos monitorando você.

– Me monitorando? Como? Pelas minhas pesquisas na internet?

– E e­-mails, atualizações, mensagens, fotos compartilhadas. Com a tecnologia como está hoje, você acha mesmo que a privacidade ainda existe?

– Então vocês andaram me espionando?

– Estivemos recolhendo dados.

Maneira elegante de disfarçar a coisa.

Daniel, mais uma vez, tentou fazê­-lo se abrir e dizer para quem trabalhava, mas o Sr. Zacharias continuou evasivo; então, desistiu.

– Você disse que sou intuitivo, mas não sou. Não sou especial. Sou apenas um cara normal que está começando a enlouquecer, a perder o controle da realidade.

– Ah, você é mesmo especial de uma maneira que nem percebe.

– Ainda não entendo por que você diz isso.

– Eu sou real? Estou aqui? Estou aqui agora?

– Claro.

– Como é que você sabe?

– Porque você está ao volante e eu, não. Não estaríamos indo a lugar nenhum se você realmente não estivesse aqui, se não estivesse dirigindo o carro de verdade.

– Mas não é possível que você ainda esteja no hospital e imaginando isto tudo, ou sonhando, ou tendo outra distorção?

Daniel franziu o cenho para o Sr. Zacharias.

– Eu nunca lhe mencionei o que sinto com esse nome.

– O quê?

– As minhas visões, alucinações, ou seja lá o que for. Como você sabe que as chamo de distorções?

– Pesquisa.

– Pesquisa?

– Isso mesmo. E, por enquanto, vamos chamá­-las assim.

– E quanto à Nicole? Como ela descobriu que eu estava no hospital?

– Eu lhe mandei uma mensagem.

– Então, ela sabe quem você é?

– Foi enviada anonimamente.

Isso tinha acontecido muito naquela semana.

– Você também me mandou mensagens? Assinadas “Madeline”?

– Não – disse ele, abanando a cabeça. – Isso não fui eu. Você vai precisar de um lugar para passar a noite.

– E você?

– Eu me arrumo, mas preciso cuidar de algumas coisas. Temos que encontrar um lugar onde você esteja a salvo.

A princípio, Daniel pensou que talvez pudesse ficar em sua própria casa, mas então percebeu que esse provavelmente seria o primeiro lugar em que os guardas o procurariam quando descobrissem que tinha fugido do hospital psiquiátrico.

Suas duas melhores opções eram a casa de Nicole ou a de Kyle. Nicole morava com os pais, mas Kyle tinha só a mãe com quem se preocupar.

– Deixe­-me usar seu telefone – disse Daniel. – Preciso fazer uma chamada.

 

 

32

12h02

Kyle atendeu prontamente e, depois de Daniel contar o que havia acontecido, disse:

– Então, alguém de uma nebulosa organização secreta foi mandado para ajudá­-lo a fugir de um hospital psiquiátrico e agora quer proteger você porque está interessado em suas habilidades psíquicas para resolver crimes?

– Bem, quando você diz as coisas desse jeito...

– Amigão, você percebe o quanto isso parece maluco?

– Vamos evitar esse termo por enquanto...

– Qual?

– Maluco.

– Eu só estou dizendo...

– Eu sei, mas confie em mim. Precisamos encontrar meu pai, e os guardas acham que eu tenho alguma coisa a ver com o desaparecimento dele. Se eles me pegarem, vão me prender... especialmente agora que eu me mandei do hospital psiquiátrico. Preciso de um lugar para passar a noite. Posso ficar na sua casa?

– Claro, sem problema – disse Kyle, parecendo se afastar um pouco do telefone, mas logo voltou e disse: – Esse espião, guarda, ou seja lá quem for, também precisa de um lugar para passar a noite?

– Ele é real, Kyle.

– Eu não disse que não era – respondeu ele, mas Daniel sentiu uma pontinha de dúvida na voz do amigo.

– Ele vai falar com você.

Daniel passou o telefone.

– Meu nome é Malcolm Zacharias, e Daniel está dizendo a verdade. Estou aqui e sou bastante real, posso lhe garantir – disse ele e passou o telefone para Daniel.

– Convencido? – perguntou Daniel a Kyle.

Ele demorou a responder.

– Então, vai ser só você?

– Só eu.

– Como você vai chegar aqui?

– O Sr. Zacharias vai me levar.

– Bem... diga­-lhe para estacionar no fim da rua, para que mamãe e Michelle não acordem. Encontro você na porta da frente.

Instituto Traybor
9 quilômetros de Beldon, Wisconsin

Para manter a impressão de que o Instituto estava engajado no estudo de peixes, havia quatro grandes tanques para a criação de trutas e dourados na parte central do edifício.

Entretanto, a verdadeira pesquisa ficava no subsolo, em salas que não apareciam nas plantas.

Apesar de seus sessenta e poucos anos, o Dr. Waxford nem pensava em aposentadoria. Ele entrou rapidamente na sala de descanso e, sem colocar dinheiro na máquina de salgadinhos e doces, apertou a combinação D134 e deu um passo para trás.

Em vez de lhe oferecer algo para comer, a máquina girou para o lado automaticamente, revelando um conjunto de portas de elevadores de aço inoxidável.

Ele se inclinou para um leitor de retina ao lado delas e, depois de ser identificado positivamente, as portas se abriram e ele entrou no elevador.

Enquanto a máquina de salgadinhos e doces voltava para o lugar, ele apertou N3 no elevador, as portas se fecharam e ele começou a descer.

Enquanto passava pelos níveis inferiores N1 e N2, pensou na importância do trabalho que estava sendo desenvolvido ali.

Justiça.

Era tudo em nome da justiça.

Vinte e quatro anos atrás, seu irmão mais novo tinha sido assassinado por um psicótico que já era responsável pela morte de oito outras pessoas. Ele foi sentenciado a 450 anos de prisão.

Quando deu seu depoimento ao juiz durante o julgamento, zombou da dor das vítimas e das famílias, clamando que ele nunca sofreria tanto quanto elas.

O homem estava com 52 anos de idade e era um fumante inveterado quando foi preso. Ele morreu de um câncer de pulmão na cadeia menos de cinco anos depois.

Ele cumpriu apenas um nonagésimo de sua sentença.

Foi isso que levou o Dr. Waxford a se envolver naquela pesquisa.

Se os Estados Unidos da América quisessem ser um país governado por leis, se quisessem ser um lugar em que a justiça fosse verdadeiramente aplicada, então era preciso que se fizesse de tudo para garantir que o condenado cumprisse toda a sentença imposta a ele.

Ou, pelo menos, que eles vivenciassem os muitos anos de punição.

Era só a isso que ele agora se dedicava.

A verdade e a justiça duradoura.

O elevador parou.

Não, é claro que não havia uma forma de alguém ficar centenas de anos na prisão. Ninguém vivia tanto tempo, pelo menos ainda não. Algum dia, graças à nanotecnologia e à bioengenharia, isso poderia ser possível, mas isso estava algumas décadas à frente.

Nesse ínterim, por meio dos avanços da cronobiologia, tivemos a capacidade de fazer com que pareça a alguém estar cumprindo centenas de anos de prisão, ou mesmo de confinamento na solitária, em muito menos tempo.

As portas se abriram.

Não era uma punição cruel e incomum; era simplesmente a punição que os tribunais haviam legalmente determinado como justa e correta. Se a sentença não fosse justa, antes de mais nada, por que ela teria sido promulgada?

Mas nem todos pensavam de maneira avançada como o Dr. Waxford. Por esse motivo, sua pesquisa não estava, de momento, aberta à consulta pública.

Ele saiu do elevador e passou pela sala de operações.

Ela possuía uma maca removível, equipamento médico, monitoramento por computador e prateleiras contendo os vários instrumentos utilizados por ele em sua pesquisa.

E, é claro, muitos eletrodos para estimular as diferentes partes do cérebro de seus sujeitos de pesquisa que processavam a memória.

Ele estava acostumado a ouvir os gritos que vinham daquela sala.

Eles não o incomodavam.

Na verdade, ele vinha na expectativa de ouvi­-los.

Tudo em nome da justiça.

Agora, contudo, como não havia nenhum sujeito na sala, ela estava em total silêncio.

O prisioneiro em que ele vinha administrando seu tratamento havia fugido no sábado.

O Dr. Waxford foi até a câmara de segurança no final do corredor.

Os outros quatro sujeitos que tinham sido trazidos para o Instituto Traybor desde sua inauguração foram transferidos para outras prisões depois que o médico terminara suas pesquisas com eles, alguns ainda mentalmente intactos.

Outros, nem tanto.

Ele havia trabalho em dois outros locais nos últimos anos e tinha sido responsável por alguns dos maiores avanços no campo da cronobiologia.

Foi isso que chamou a atenção do Departamento de Defesa para sua obra.

Com relação às aplicações da cronobiologia, os militares tinham seus próprios objetivos, ligados à ampliação dos interrogatórios, mas ele não os consultou sobre isso. Eles tinham seu programa, e ele, o seu.

O Departamento de Defesa tinha uma agência secreta que há anos fazia experiências sigilosas para descobrir formas de alterar, implantar ou apagar as lembranças das pessoas, e como o Departamento estava ajudando a financiar seu projeto, ele pôde utilizar suas descobertas para ampliar sua pesquisa.

As coisas tinham avançado muito na última década.

Ele entrou no centro de segurança do instituto para rever os vídeos ali armazenados e tentar entender como o prisioneiro de número 176235 havia escapado.

Eis o que ele já sabia: entre 16h20 e 18h25 do sábado, o homem conseguira sair de sua cela no N2 antes de dominar dois guardas e fugir da prisão.

Ainda não estava claro como ele conseguira sair daquela cela e como tinha dominado os dois guardas com tanta facilidade – e como conseguira passar pelos cães lá fora –, mas, de alguma maneira, isso havia acontecido e agora ele precisava ser encontrado antes que fizesse algo que comprometesse sua pesquisa.

Era possível que ele tivesse recebido ajuda de fora. Um dos rifles de caça do Dr. Waxford – um Browning Automático 30­-06 – havia sido roubado de seu carro um mês e meio antes, e ele ficava imaginando se a brecha na segurança e aquela fuga estavam relacionadas. Ele não queria que nada passasse sem registo.

Seus funcionários não tinham sido capazes de descobrir o que havia acontecido no sábado, e agora, nessa noite, ele não conseguira dormir e decidira vir pessoalmente tentar resolver o mistério.

Sentou­-se diante da bancada de monitores dos computadores e acionou os vídeos da segurança para descobrir como o prisioneiro havia fugido.

Talvez isso o ajudasse a determinar onde ele estava agora.

O homem estava à solta e precisava ser monitorado, quaisquer que fossem as medidas necessárias.


33

Chegaram à casa de Kyle, e o Sr. Zacharias estacionou no final do quarteirão.

– Entro em contato com você amanhã – disse ele a Daniel.

– Estou sem telefone.

– O Kyle tem celular. Entro em contato com você pelo número dele.

– E você vai me ajudar a encontrar meu pai?

– Vou fazer tudo o que puder.

A frase era quase a mesma que o Dr. Fromke tinha usado quando prometeu a Daniel que faria o que pudesse para tirá­-lo do hospital, de modo que Daniel não achou as palavras do Sr. Zacharias tão tranquilizadoras quanto ele provavelmente tivera a intenção de que elas soassem.

– Quando você vai me mandar uma mensagem de texto, me ligar ou seja lá o que for?

– Isso vai depender. Tenho algumas coisas com que me ocupar pela manhã.

– Poderemos estar no farol.

– No farol?

– Na ilha Madeline. É uma longa história. Se você descobrir alguma coisa sobre meu pai, me passe uma mensagem imediatamente.

– Mando, sim.

Daniel saiu do carro e ficou observando Malcolm Zacharias se afastar em seu carro para onde passaria a noite.

***

Como Kyle havia dito, ele estava na porta da frente e Daniel o seguiu em silêncio até seu quarto no sótão.

– Vamos ser diretos – disse Kyle quando chegaram lá. – O cara que nós ajudamos a desatolar da neve é o que ajudou você a fugir do hospital psiquiátrico.

– É isso aí.

– Ele está do seu lado?

– Ele diz que está, mas, honestamente, não sei bem o que pensar. Só sei que ele me ajudou a escapar do hospital e, então, me trouxe para cá. No caminho, ele me contou o que estão fazendo no Instituto Traybor.

– Pesquisa de cronobiologia? Como nós pensamos?

– Isso mesmo. E para encontrar maneiras de fazer os prisioneiros cumprirem pena total, pelo menos mentalmente.

– Certo... ok... e... eu não sei o que isso significa.

Daniel recapitulou o que o Sr. Zacharias tinha lhe dito sobre o Dr. Waxford e sua pesquisa no sentido de fazer com que as pessoas sentissem que estavam passando centenas de anos na prisão.

– Mas como chamar isso de justiça? – perguntou Kyle. – Não parece mais... bem... tortura?

– Acho que eles argumentariam que não é certo que as pessoas não cumpram parte de suas sentenças – disse Daniel, que, durante o caminho, tivera tempo para pensar no assunto. – Que tipo de justiça existe em sentenciar as pessoas a cumprir um período de prisão que a gente sabe que elas não cumprirão? Só para dar uma sentença? Mas para quem? E você não acha que seria uma grande advertência para pessoas que estivessem para cometer crimes e soubessem que efetivamente passariam esse tempo confinadas na solitária se fossem presas?

– Está parecendo que você acredita nessa coisa toda.

– Não acredito, não... Só acho que... Bem, pelo menos agora sei de onde tudo está vindo.

– E eles estão fazendo isso com prisioneiros da Penitenciária Estadual de Derthick?

– Estão.

– E isso é legal?

– Não tenho ideia, mas, de qualquer modo, o Sr. Zacharias acha que o homem que eles transferiram de lá para o Instituto Traybor pode ter fugido e atacado meu pai.

– Mas, antes de mais nada, que tipo de crime o levou à prisão?

– Humm... eu não perguntei. Acho que devia ter perguntado.

Kyle pegou um saco de dormir para Daniel e o desenrolou no chão de seu quarto; em seguida, foi buscar um travesseiro extra.

Você devia ter tirado mais do Sr. Zacharias sobre o prisioneiro – por que fora preso, seu grau de periculosidade.

De antigas discussões com o pai, Daniel sabia que nas investigações de pessoas desaparecidas, as primeiras 24 horas são as mais importantes. Depois disso, as probabilidades definitivamente não ficam a nosso favor, pelo menos as de encontrar a pessoa ilesa.

Mas o papai já não está ileso, lembra? Nicole lhe contou que os exames provaram que o sangue era dele, e que havia muito sangue lá.

Daniel foi forçado a admitir: as probabilidades de encontrar seu pai vivo não eram boas.

Kyle voltou com um travesseiro e deu a ele uma camiseta e um calção de pijama. Daniel perguntou­-lhe:

– Você vai sair hoje?

– Minha mãe vai passar o dia com o Glenn, fazendo compras ou algo assim. Eu não sei. Eu tenho que tomar conta da Michelle enquanto ela estiver fora.

– A Mia não podia tomar conta dela por você?

– Não, ela vai para Eau Claire com a família.

– Oh, tudo bem... E a Nicole? Ela já tomou conta da Michelle uma vez.

– Tenho que conversar com minha mãe, mas, claro, isso seria legal. Por quê? O que está rolando?

– O farol. Precisamos ir até lá como tínhamos planejado para ontem. Agora é para lá que tudo aponta. Está ligado ao desaparecimento do meu pai... Eu não sei como, mas está. Precisamos encontrá­-lo, e a nossa melhor chance é começar por lá.

– E o Instituto Traybor? Você não acha que devíamos dar uma olhada lá primeiro?

Daniel balançou a cabeça.

– Se a pessoa que atacou meu pai efetivamente fugiu de lá, então por que voltaria para lá? Além disso, não parece que o Sr. Zacharias está trabalhando para eles, então nem tenho ideia de como entraríamos lá.

Mas, então, decidiu que Kyle podia ter razão.

– Acho que podíamos ligar anonimamente para a polícia, talvez lhes dar uma dica para procurarem no instituto. Quero dizer, isso não vai comprometer ninguém. Onde está o seu telefone?

Embora estivessem no meio da noite, se houvesse uma chance de seu pai estar lá, quanto mais cedo a polícia desse uma busca no lugar, melhor seria.

Kyle remexeu as coisas em sua escrivaninha e de lá tirou seu celular.

– Mas e se eles rastrearem a chamada? Vão encontrar você, levá­-lo de volta, talvez até prendê­-lo.

– Baixe o aplicativo que esconde o número de quem liga.

Daniel não tinha certeza se isso impediria que alguém da polícia interceptasse uma chamada, mas valia a pena tentar.

Kyle tocou na tela de seu celular, encontrou o aplicativo e o instalou.

– Seu pai é o xerife. Há uma boa chance de que reconheçam sua voz. Deixe que eu faço a chamada.

Ele discou o número da emergência e logo o operador atendeu. Kyle, com voz baixa e disfarçada, disse:

– O Instituto Traybor. Acho que foi para lá que levaram o xerife Byers. Procurem por ele.

E desligou antes que a pessoa do outro lado da linha pudesse responder. Aguardaram alguns momentos para se certificarem de que o atendente não ligaria de volta. Depois que o telefone permaneceu em silêncio, Kyle perguntou:

– O que fazemos agora?

– Vamos dormir.

– Ok. Pela manhã, a primeira coisa a fazer é contatar Nicole. Sei que ela tinha alguma coisa para fazer, mas se ela puder mudar seus planos e cuidar da minha irmã, vou conversar com minha mãe para poder ir com você para a ilha Madeline.

– Eles acham que machuquei meu pai ou talvez até o tenha matado. Você não pode contar a ela que está me ajudando.

– Estou pensando numa coisa.

– Eu não o esfaqueei, Kyle.

– Eu sei.

– É sério.

Uma ligeira pausa.

– Eu sei.

***

Enquanto revia as fitas da segurança, o Dr. Waxford recebeu um chamado da polícia, avisando que os guardas estavam do lado de fora do instituto e que tinham recebido uma chamada anônima dizendo que o xerife desaparecido poderia estar dentro do edifício.

– Posso lhe garantir que não há ninguém aqui – disse ele ao guarda.

– O senhor está no prédio agora?

– Estou.

– Bem, precisamos que o senhor abra o portão para darmos uma olhada.

Ele não se entusiasmou muito com a ideia, mas estava confiante que não descobririam as salas de pesquisa e não queria levantar suspeitas argumentando com eles.

– Tudo bem. Estou indo.

Quem teria lhes dito para procurar ali? Alguém de sua equipe? Não, isso não fazia nenhum sentido. Só um punhado de pessoas sabia do objetivo daquele lugar, e nenhuma delas teria um bom motivo para chamar as autoridades.

Então, quem?

O sujeito que fugiu? Será que ele está fazendo isso para que agentes da lei examinem o lugar?

Possivelmente.

Isso explicaria as coisas.

Ainda pensando no que os teria trazido até ali, o Dr. Waxford mostrou o local aos assistentes do xerife e os levou ao andar principal do edifício. Eles examinaram tudo cuidadosamente, mas não conseguiram descobrir o elevador. Por fim, quando se convenceram de que nada de suspeito estava ocorrendo ali e que o local estava vazio, agradeceram­-lhe pela atenção e foram embora.

Mas ele não foi.

Ele havia prometido a si mesmo que descobriria o que havia acontecido com o prisioneiro fugitivo e ia ficar ali o quanto fosse necessário para chegar à verdade.

Depois de voltar para o nível inferior 3, pegou um bule de café, tornou a instalar­-se diante dos monitores de computador e voltou a analisar os vídeos.


34

9h30

Daniel ficou em frente ao espelho do banheiro de cima da casa de seu amigo.

Na noite de sexta­-feira, durante o trajeto de ônibus para Coulee High, ele olhara pela janela e notara um débil reflexo causado pelas luzes fracas do interior do ônibus. A imagem tinha se sobreposto à que ele conseguia ver da paisagem banhada pelo luar lá fora, e as duas se fundiram, tornando­-se apenas uma no vidro do ônibus.

Duas realidades filtrando­-se, uma através da outra.

Tornando­-se uma.

Quando isso aconteceu, ele tinha assegurado a si mesmo que sabia a diferença entre o que era ou não real, mas desde então foi ficando cada vez menos seguro disso.

À sua revelia, os lobos do coração de Daniel atacaram­-se mutuamente.

O protagonista também pode ser o antagonista.

Todos desempenhamos papéis em nossas vidas.

Uma pessoa pode ser seu pior inimigo.

O médico e o monstro.

Ele olhou para seu reflexo.

Era apenas um espelho. Não dava para ver através dele. Não havia modo de ver outro mundo.

Mas, enquanto se olhava no espelho, pensando em Betty, nas mensagens, no farol e naquelas palavras, “Cova Perdida é a chave”, viu um machucado aberto no pescoço, um corte feio com cerca de 10 centímetros. Dele começou a verter sangue e deveria estar doendo muito, embora ele não sentisse nada.

Contudo, quando passou a mão por ele, olhou para os dedos, que tinham ficado manchados de sangue.

Então, a dor começou.

E não apenas no corte, mas também em seu interior.

Alguma coisa estava se mexendo lá dentro.

Daniel se inclinou para frente e girou a cabeça para que pudesse olhar bem o corte.

Quando fez isso, um verme negro surgiu, espesso, contorcendo­-se, coberto de sangue fresco.

Era o mesmo tipo de criatura que havia se arrastado para fora da folha de papel na noite de sexta­-feira e penetrado em seu braço.

O verme começou a descer em direção à gola de sua camiseta, mas ele o agarrou e sentiu­-o morrer liquidamente entre seus dedos.

Imediatamente, outros seis surgiram.

Ele conseguiu varrê­-los ou esmagá­-los, mas uma fila de outros se seguiu, saindo do corte, contorcendo­-se por seu pescoço e descendo para baixo da camiseta. Ele arquejou, arrancou­-os e tentou afastá­-los, mas outros começaram a subir pelo lado de sua cabeça, passando pelo queixo e em direção à sua boca.

Havia um número grande demais deles.

– Não – gritou ele quando um entrou em seu ouvido.

Ele o agarrou, mas o bicho se partiu na metade, e a parte que ficou livre avançou, desaparecendo em seu ouvido.

– Não!

Uma batida na porta.

– Daniel? Você está bem?

As palavras de Kyle penetraram através da distorção.

Que foi estilhaçada, espalhando imagens pelo ar.

Os vermes desapareceram.

Daniel piscou os olhos.

E mais uma vez.

Não havia nada lá.

Ele se olhou no espelho. Nenhum corte sangrando. Nenhum verme escuro se contorcendo. Nada além do normal. A sensação de comichão no pescoço desaparecera. Ele não sentia nada no canal do ouvido.

– Daniel? – repetiu Kyle.

– Oi – disse ele, se esforçando para a voz parecer calma. – Estou bem.

– Tem certeza?

Ele estava se examinando no espelho enquanto corria os dedos pelo pescoço íntegro, sem ferimento.

– Tenho.

Desde que as distorções ocorreram pela primeira vez, elas pareciam ser formas de seu subconsciente dizer­-lhe alguma coisa.

Ok, mas o que isso quis lhe dizer? Uma fileira de vermes negros saindo de seu pescoço? Boa sorte para decifrar essa distorção, Daniel.

Bem, de uma coisa ele sabia: a escrita da aula de inglês que criara vida e que se transformara naqueles vermes dizia respeito ao farol.

Então isso significa que você deve se apressar e ir até lá, ou ficar longe daquele lugar para sempre?

Ele não sabia, mas quanto mais estranhas as coisas ficavam, mais ele começava a se sentir como se estivesse se equilibrando na beira de um rochedo, não tendo certeza de quanto tempo aguentaria isso.

E sem ter certeza do que significaria para sua sanidade se se deixasse cair.

***

Quando Daniel voltou ao quarto, Kyle informou que Nicole conseguira dar um jeito em suas tarefas e vinha cuidar de sua irmã.

– Eu disse a minha mãe que queria ver você hoje. Ela ouviu dizer que você estava naquele hospital e me disse que seria bom visitá­-lo enquanto Nicole estivesse servindo de babá.

– Pelo menos você contou a verdade a ela.

– Já chega disso. Ela saiu para encontrar o Glenn. Nicole vai estar aqui a qualquer momento. Ah, e eu entrei em contato com meu tio: podemos ir a Bayfield. Ele tem um barco a remo esperando por nós. Disse que há um pouco de gelo em torno da ilha, mas acha que vamos conseguir nos aproximar o suficiente para pelo menos dar uma olhada no farol, mesmo que não consigamos desembarcar.

– Isso pode não ser suficiente.

– Pode ser que seja a única coisa que vamos conseguir fazer. Duvido que o gelo esteja suficientemente espesso para podermos caminhar sobre ele.

Alguns minutos depois, a campainha da porta anunciou que Nicole tinha chegado.


35

Assim que subiu para o quarto de Kyle, Nicole abraçou Daniel.

Era tão bom abraçá­-la daquele jeito, como uma âncora que o trouxesse de volta ao real. Ele a abraçou com mais força e, pelo menos por um instante, parou de pensar em distorções, hospitais psiquiátricos e o pai desaparecido.

Ali estava alguma coisa de bom, de certo, e ele não queria que nada pudesse separá­-lo disso.

Por fim, ela se afastou e lhe perguntou, num só fôlego, como ele estava se sentindo, como tinha escapado do hospital, se sabia alguma coisa do pai e como tinha conseguido voltar para Beldon.

Kyle foi para a sala de visitas para olhar Michelle, enquanto Daniel punha Nicole a par de tudo.

Ela ouviu atentamente enquanto ele lhe contava sobre o Sr. Zacharias e sua teoria de que o homem trazido da prisão havia fugido e ido atrás de seu pai.

– Então – disse ela –, esse Zacharias transportou o prisioneiro para o instituto e agora está trabalhando contra eles? Isso faz sentido para você?

– Não estou certo de que isso tudo se encaixa, mas sinto que ele quer realmente me ajudar a encontrar meu pai.

– Ele vai ficar bem, certo? Quero dizer, o seu pai.

– Não se preocupe. Eu vou encontrá­-lo – respondeu Daniel, que quis dizer mais, quis prometer a ela que seu pai ia ficar bem, claro que ia, mas não teve forças para dizer tudo isso. Na verdade, ele sequer sabia se o encontrariam, mas sentiu que precisava dizer alguma coisa a ela, e tranquilizá­-la, ainda que minimamente, parecia a coisa certa a ser feita.

– Sim – disse ela, concordando com um movimento de cabeça. – Tudo bem.

– Acho melhor Kyle e eu irmos andando.

Ele esperou no topo da escada, atrás do corrimão, enquanto Nicole descia para cuidar de Michelle.

A menina de 4 anos conhecia Nicole das outras vezes que a jovem trabalhara como babá para a Sra. Goessel, e foi diretamente até ela, pegou­-a pela mão e perguntou se ela queria ver seu novo bicho de pelúcia chamado Pinguim.

– O seu bichinho se chama Pinguim?

– Isso mesmo – disse Michele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. – Eu mesma dei esse nome a ele.

Depois que as duas entraram no quarto de Michelle e a porta se fechou, Kyle fez sinal para que Daniel se juntasse a ele.

– Você precisa de alguma coisa antes de irmos?

As únicas roupas de Daniel eram as que estava usando desde que saíra do hospital.

– Se vamos para o lago Superior, vou precisar de umas roupas mais quentes.

Enquanto estavam se encaminhando para a porta, Daniel se deteve.

Ele não tinha conversado com a mãe desde que o pai desaparecera e achou que devia falar com ela, informá­-la, mas quando mencionou isso, Kyle replicou:

– E se ela contar para a minha mãe que você ligou para ela? Não entre em contato com ela ainda. Deixe as coisas como estão.

– Se ela ainda não soube, logo vai saber que eu fugi daquele hospital psiquiátrico. Ela já tem meu pai com que se preocupar. Não quero que ela entre em pânico quando souber que eu também estou desaparecido.

– Cara, ela foi embora. O problema é dela, e não seu.

– Ela só foi para a casa do irmão para passar o Natal.

– Você sabe o que eu quero dizer.

– Ela tem o direito de saber o que está acontecendo. É minha mãe.

– Bem, com certeza ela não tem agido como uma.

Palavras duras. Apenas alguns dias antes, o próprio Daniel podia pronunciá­-las, mas quando falou com a mãe no sábado, ela lhe contou que tinha ido embora para protegê­-lo e a seu pai.

Ela também vê coisas. Ela sabe como é.

Daniel não contara nada disso a Kyle ainda e não estava com vontade de explicar tudo agora.

– Entendo o que você está dizendo, mas há muitas coisas acontecendo. Eu preciso que ela saiba que estou bem.

Kyle, finalmente, concordou.

Para impedir que sua mãe descobrisse que estava com Kyle, quando Daniel a chamou, usou o aplicativo que escondia o número de quem ligava.

Ela não atendeu. Quando caiu na caixa postal, ele deixou uma rápida mensagem: “Mamãe, o que estão dizendo que fiz com papai... não é verdade. Eu não o machuquei. Estou bem e vou encontrá­-lo. Prometo”.

Quando desligou, deu­-se conta de que, nos últimos cinco minutos, tinha prometido a duas pessoas que ia encontrar o pai, mas não tinha a mínima ideia de como cumpriria essa promessa.

***

O xerife Byers abriu os olhos.

Não conseguiu ver muito, mas com a luz que vinha por baixo da porta, a cerca de 3 metros de distância, conseguiu perceber que, com exceção da cama com grade de metal em que estava deitado, encontrava­-se em um quarto vazio e sem janelas.

Tentou se levantar, mas uma dor lancinante no lado direito o impediu e ele se deixou tombar na cama.

Baixando os olhos, viu que sua camisa havia sido removida e parte de seu tronco havia sido enfaixada. O lugar em que tinha sido esfaqueado recebera um curativo recente.

Alguém tinha algemado seu pulso esquerdo na grade da cama.

Como você chegou aqui?

Lembrou que tinha sido atacado, sim, mas não sabia quanto tempo tinha se passado desde então. Contudo, teve a sensação de que estivera oscilando entre consciência e inconsciência por um bom tempo.

Talvez tivesse sido drogado.

Como seu peito estava enfaixado, isso significava que quem quer que o tivesse trazido até ali estava tentando mantê­-lo vivo, pelo menos por enquanto.

Interessante.

Um resgate?

Possivelmente.

Onde você está? O que está acontecendo? Mantenha o seu controle.

O quarto cheirava a pinho, com um toque de fumaça de madeira que vinha de uma lareira ou de uma fornalha, e, sob a luz fraca, conseguiu notar que as paredes eram feitas de toras.

Depois de ter trabalhado em defesa da lei naquele distrito por quase vinte anos, ele conhecia muitas das casas da área. Pelo que podia notar, nunca estivera naquele local.

Examinando a cama, viu que seus pés tinham sido presos ao chão para impedir que ela se movimentasse.

Ficou ouvindo.

Havia alguém no cômodo ao lado. Parecia que ele ou ela estava mexendo num armário de potes e panelas.

No sábado à noite, no momento antes de ter sido esfaqueado, reconhecera o homem que o estava atacando, e agora imaginava se era a mesma pessoa que estava no outro aposento.

Brandon Hollister: um assassino que ele prendera dois anos antes.

Tinha vinte e poucos anos e tinha sido uma das más influências sobre Ty, o filho de Lancaster Bell.

Mas ele era inteligente e entrara para a faculdade de Medicina.

Certa noite, quando voltava para passar o fim de semana em casa, esfaqueou um vizinho numa briga de bar depois de os dois terem bebido demais.

A vítima veio a falecer, e a alegação de Hollister de que havia sido autodefesa não convenceu o júri. Ele pegou prisão perpétua, mais cinquenta anos por lesão corporal grave, assassinato em primeiro grau e uma série de outras acusações relacionadas com fuga e resistência à prisão depois do incidente.

Como ele havia escapado da Penitenciária Estadual de Derthick era um mistério para o xerife, bem como o fato de que nenhuma notícia sobre a fuga havia sido divulgada na tarde ou na noite do sábado.

Por que a penitenciária não teria comunicado a fuga às autoridades policiais?

A menos que não soubesse que o cara tinha escapado.

Mas como isso teria acontecido?

E se Hollister está agindo por vingança por você tê­-lo preso, por que o teria enfaixado em vez de apenas deixá­-lo morrer?

O xerife Byers sentiu­-se tentado a chamar a pessoa que estava na casa com ele, mas se deu conta de que, se fosse Hollister, seria melhor não deixar que soubesse que ele estava consciente. Era melhor passar algum tempo avaliando a situação e tentar descobrir uma maneira de sair dali.

Seu revólver e seu rádio tinham sumido, bem como as chaves das algemas.

Tudo bem.

Prioridades: ficar quieto para impedir que o corte da faca se abrisse e tentar pensar numa maneira de se livrar das algemas.


36

Kyle e Daniel almoçaram rapidamente no caminho e chegaram a Bayfield faltando quinze minutos para o meio­-dia. Estacionaram diante da loja de aluguel de barcos às margens do lago Superior.

Bem atrás do prédio, o lago se espalhava escuro e agourento em direção às ilhas. Daniel conseguiu ver apenas uma delas a alguns quilômetros da margem, e embora não tivesse certeza de qual era, tendo estudado os mapas on­-line no dia anterior, imaginou que provavelmente era a que eles procuravam, a ilha Madeline.

Embora a maior parte do lago estivesse livre do gelo, havia alguns blocos espalhados, e parecia que uma estreita faixa congelada rodeava a ilha e ia até a costa, próxima à loja de Larry. Parte dela desaparecia perto de seu embarcadouro, onde ele aparentemente havia limpado o gelo para que seus barcos fossem para o lago.

Um pequeno barco com motor de popa os aguardava.

– Muito bem – disse Daniel ao se aproximarem da porta dos fundos –, não podemos contar a ele que está emprestando um barco para alguém que acabou de fugir de um hospital psiquiátrico.

– Ou alguém que foi encontrado coberto de sangue numa cena de crime da qual seu pai estava ausente – acrescentou Kyle.

– Também isso.

Larry tinha se alistado no Corpo da Paz* depois de se graduar em agronomia. Foi voluntário na África durante dois anos antes de voltar aos Estados Unidos e mudar­-se para lá, trabalhando para o homem que era dono daquela loja de aluguel de barcos. Um ano depois, esse homem morreu num acidente com um veículo de locomoção no gelo. Como não tinha família, o negócio ficou para Larry, que desde então passou a administrá­-lo.

Daniel não o conhecia, apenas ouvira falar dele, e agora, quando o tio de Kyle abriu a porta, teve a sensação de que ele estaria mais bem instalado numa praia da Jamaica, e não numa cidadezinha do norte de Wisconsin. Usando uma camiseta tingida, dreadlocks e óculos de armação escura, ele parecia uma mistura de hippie de praia e contador.

Depois de calorosos cumprimentos, convidou­-os a entrar.

Kyle limitou­-se a apresentar Daniel como amigo, não como alguém que tinha alucinações, ouvia os mortos falarem ou tinha crises de sonambulismo carregando facas de caça pela casa.

Melhor prevenir do que remediar.

– Vão em frente – disse Larry amigavelmente. – Bem, como hoje não temos vento, vocês não vão ter problemas. São pouco mais de 3 quilômetros até a ilha Madeline. Eu testei o motor e ele está funcionando perfeitamente, mas o barco tem remos caso vocês tenham algum problema. Vocês sabem como faz frio por lá, portanto, não vão fazer nenhuma bobagem. Ah, o barco também tem coletes salva­-vidas: quero ver os dois usando­-os agora mesmo.

Kyle concordou com um aceno de cabeça.

– Tudo bem.

– Digam outra vez por que vocês precisam ir até... não, esperem, não me contem. Eu provavelmente não quero saber... ou será que quero?

– Tem a ver com um dos meus parentes – replicou Daniel.

– Ele era faroleiro lá do farol da Cova Perdida.

– Sério?

– Sim.

– Aquele lugar está desativado há anos.

– Isso foi na década de 1930.

– Humm...

Daniel não conseguiu perceber o que Larry poderia estar pensando.

– Ninguém vai mais lá – observou Larry.

– Acabamos de saber da existência dele. Não queremos esperar até a primavera para ver onde ele trabalhava.

Isso soou convincente.

– Então, é curiosidade?

Daniel e Kyle trocaram um olhar.

– Isso mesmo – replicou Daniel.

Larry fez um gesto interrogativo para Kyle.

– E a sua mãe? Ela concordou com isso?

Ele abriu a boca como se fosse responder, mas tornou a fechá­-la.

– A­-ha – disse Larry, avaliando essa hesitação. – Bem, está na cara que há mais coisa por trás disso, mas vou optar por um silêncio plausível... desde que vocês me prometam que vão tomar cuidado por lá.

– Prometemos – assegurou­-lhe Daniel.

***

No ancoradouro, Larry entregou um colete salva­-vidas a cada um deles e, em seguida, mostrou os remos do barco.

– Ele foi projetado para ser mais estável que rápido. A maioria das pessoas vem aqui e querem ficar zanzando pelas ilhas durante um ou dois dias. Minha preocupação é a segurança delas.

– Certo – respondeu Kyle.

Larry pegou uma bússola e um mapa das ilhas no bolso do colete.

– Se vocês só vão à Madeline, não vão precisar do mapa, mas há uma grande possibilidade de nevar, e a visibilidade pode ficar limitada. Vocês vão estar bem, mas se começar mesmo a nevar, é só seguir reto para leste. O farol fica na ponta norte da ilha, do outro lado de uma baía.

– Ótimo – disse Daniel, aceitando a bússola e também o mapa. – Obrigado.

– Espero que vocês encontrem o que estão procurando.

– Eu também.

Ele e Kyle entraram no barco.

Embora Daniel estivesse familiarizado com o manejo de um motor de popa, deixou que Larry lhe mostrasse as etapas de funcionamento.

Então, partiram.

Bem na hora em que a neve começou a cair.

***

Nicole Marten estava preocupada com o namorado.

Era tudo tão estranho...

Ela gostava muito dele, mas também estava assustada com as coisas que aconteciam a ele: as alucinações, o sonambulismo, as bizarrices, as terríveis distorções.

Ela nunca teve medo dele, não era isso. Ela acreditava que havia um motivo maior por trás de tudo que estava acontecendo, embora não soubesse o que poderia ser.

Mas, naquele momento, mais do que preocupada com Daniel, estava apreensiva quanto ao pai dele.

Antes de sair da casa dos Goessel, Daniel tinha lhe garantido que encontrariam seu pai a tempo, mas ela percebeu que de nenhum modo ele podia garantir isso, que ninguém podia.

Mesmo assim, por algum motivo, ouvi­-lo dizer isso ajudava; pelo menos um pouco.

Agora, enquanto brincava de tomar chá com Michelle, rezava para que Daniel estivesse a salvo no lago, e também pelo pai dele; que ele ficasse bem até que alguém o encontrasse e o ajudasse.

No fundo de sua mente, ela também pensava nas distorções de seu namorado, no instituto de pesquisa e na matança dos lobos.

De alguma forma, parecia que tudo estava ligado.

Se Daniel ia se concentrar na descoberta do paradeiro do pai e a matança dos lobos estava ligada com todo o resto, talvez ela pudesse ajudar tentando resolver esse mistério.

Naquele momento, não sabia como poderia fazer isso, porém mais tarde, quando colocasse Michelle para dormir, talvez pudesse entrar na internet, rever as informações que eles tinham sobre a localização dos lobos mortos e ver se poderia descobrir alguma coisa que tivesse passado despercebida.

* Agência federal americana, criada em 1961 pelo presidente John F. Kennedy para ajudar países em desenvolvimento por meio de serviços essenciais. (N.T.)


37

A superfície escura e ameaçadora do lago absorvia avidamente os flocos de neve assim que eles caíam sobre ela.

Enquanto Daniel manejava o motor, Kyle controlava os blocos de gelo.

Por causa do barulho do motor, nenhum deles falava muito, mas Kyle apontava sempre que via um bloco de gelo, e Daniel o evitava.

Estar ali na água lembrou a Daniel as excursões de pescaria e canoagem que tinha feito com o pai, e começou a se preocupar com ele novamente.

Onde estará ele? O que realmente lhe aconteceu?

Dúvidas relacionadas ao desaparecimento do pai o atormentavam.

Quem ligou para a emergência quando ele foi atacado? Por que você não consegue se lembrar se estava lá? Se esse prisioneiro que fugiu realmente o esfaqueou, para onde o levou? Por quê?

A neve que caía acabou por tornar impossível ver a ilha, mas, com a ajuda da bússola, logo encontraram a linha da costa coberta de gelo e a seguiram em direção norte até a baía onde Larry lhes dissera que o farol se localizava.

Daniel diminuiu a rotação do motor para que ele e Kyle pudessem conversar.

– Ei, eu tenho uma pergunta para lhe fazer – disse ele. – É uma coisa que tem me deixado curioso há muito tempo.

– O que é?

– Por que você não pratica nenhum esporte? Quero dizer, já vi você correr. Provavelmente, você se classificaria para o cross country ou mesmo para o campeonato de trilhas, se quisesse.

– De onde saiu essa pergunta agora?

– Eu estava pensando na noite de ontem, no quanto eu gostaria de correr com rapidez. Por isso a coisa me veio à mente.

– Na noite de ontem?

– Eu peguei as chaves do Sr. Zacharias quando estávamos no carro. Pensei que talvez tivesse que correr mais rápido do que ele e vi que você não teria nenhum problema em fazer isso. De qualquer modo, fico imaginando o seu desempenho em trilhas e no cross country. Mas se você não quer falar sobre isso, tudo bem.

– Acho que tudo bem... se eu contar para você, quero dizer – disse Kyle, olhando para o lago em silêncio por um longo tempo antes de prosseguir. – Tem a ver com uma coisa que aconteceu quando eu era pequeno. Na época, eu jogava beisebol.

– Não sabia que você já jogou beisebol.

– Bem, não joguei durante muito tempo. Eu era ruinzinho, e todo mundo sabia disso, inclusive o meu pai. Num jogo, eu estava prestes a rebater e nós estávamos perdendo. Era a nona entrada. Meu desempenho seria decisivo para o nosso time. Pode parecer clichê, mas é verdade. Meu pai estava assistindo ao jogo quando recebeu uma mensagem do hospital. Ele deve ter pressentido que eu não conseguiria correr até a base, pois saiu para atender. Mas eu não percebi que ele tinha saído.

O pai de Kyle tinha sido médico da unidade de emergência, e Daniel ficou imaginado qual teria sido a seriedade do chamado. Talvez ele precisasse mesmo sair; talvez apenas preferisse sair por saber que o filho falharia.

Daniel manobrou o barco em torno de uma placa de gelo quase do tamanho de um carro.

– Então – prosseguiu Kyle –, como eu disse, achei que ele ainda estivesse lá. Eu consegui rebater a bola e corri o mais rápido que pude até a base, achando que meu pai ainda estivesse assistindo ao jogo. Foi o melhor desempenho que eu já tive em beisebol.

– Então, você conseguiu marcar para o time.

– Consegui.

– E seu pai não estava lá para ver.

– Isso mesmo. Quando eu estava voltando, olhei para onde ele devia estar sentado e não havia ninguém lá. Não consegui localizá­-lo em nenhum lugar e percebi que ele não tinha presenciado o meu sucesso. Fiquei tão desapontado que só olhava para o chão e perdi completamente o interesse pela partida.

Em silêncio, ele apontou para um bloco de gelo de quase dois metros e Daniel o contornou.

– Mais tarde, ele se desculpou quando soube que havia perdido o meu bom desempenho – concluiu Kyle. – Nunca contei a ele como me senti naquele dia. Não queria que ele se arrependesse de ter saído, mas também não queria que ele ficasse decepcionado comigo; meu sucesso tinha sido uma casualidade que não tornaria a se repetir. Eu não quis tornar a desapontá­-lo e, assim, desisti dos esportes, de todos eles. Depois que ele morreu, há dois anos, num acidente de carro, eu simplesmente... bem, simplesmente não consegui me dedicar a nenhum esporte.

– Acho que ele ficaria orgulhoso se você corresse.

– É difícil dizer. Mas é por isso que eu não ouso. E é isso. Agora você sabe.

A conversa terminou de um modo um tanto desajeitado e abrupto.

Enquanto passavam em silêncio pelo gelo que cercava a ilha, a neve começou a se acumular nos assentos do barco.

Então, ao chegarem perto da enseada, avistaram o farol pela primeira vez.


38

O farol se erguia numa ponta rochosa do outro lado da enseada.

A construção tinha sido pintada de branco havia muito tempo, mas, com o passar dos anos, a pintura descascara e se soltara, depois de ficar exposta ao sol e ao vento inclemente que vinha do outro lado do lago.

Com sua pesquisa, Daniel soubera que a torre se erguia cerca de 35 metros acima das rochas. A casa do faroleiro estava conectada à sua base e parecia estar abandonada há tanto tempo quanto o farol.

Um arrepio perpassou a espinha de Daniel.

Ela era real?

Ela realmente morreu aqui?

Ele não sabia, mas estava começando a considerar seriamente a possibilidade de que Jarvis Delacroix tivesse apenas imaginado a garota, que ela teria nascido da insuportável solidão que sentia por estar preso sozinho naquela ilha.

O terreno ao redor do farol estava coberto por vários centímetros de neve. A ilha era fustigada pela neve que caía sobre o lago, e Daniel ficou imaginando quanta neve ficaria acumulada ali no final do inverno.

Uma cerca de tela de metal circundava a propriedade para manter longe os invasores, mas o farol só era acessível da margem – pelo menos do que seria a margem se não estivesse coberta por um anel de gelo de 9 metros de largura, que isolava a ilha.

De onde estavam, era impossível dizer qual era a espessura dele.

Daniel desligou o motor do barco para que ele e Kyle pudessem conversar com mais facilidade, e seu amigo pegou os remos para avançarem até o anel de gelo.

– Tudo bem – disse Kyle –, parece que estamos presos aqui, mas, pelo menos, podemos dar uma olhada no farol. Ele o faz lembrar alguma coisa?

– Na verdade, não... exceto o que lemos no diário de Jarvis Delacroix sobre a Betty morrendo ali embaixo. Acho que preciso entrar no farol.

– Como é que você vai fazer isso?

– São só 9 metros.

– Nove metros são nove metros, cara.

– Vamos ter que atravessar o gelo.

– Quando você diz “nós”, quer dizer “nós” como “você”, ou “nós” como “você e seu amigo que hoje não está muito disposto a morrer afogado”?

– Tenho uma ideia, mas ela quer dizer “nós” como “eu”.

– Falando sério, acho que o gelo não está grosso o bastante para podermos caminhar sobre ele.

– Eu não vou caminhar sobre ele.

– E como vai fazer a travessia?

– Eu preciso distribuir o meu peso.

– Sim, seria ótimo se tivéssemos um par de esquis ou algo semelhante. Então, você poderia tentar, mas...

– Bem, nós temos algo bem aqui conosco.

– O quê?

– Passe­-me esses remos.


39

­-Os remos? – disse Kyle. – Você está de brincadeira.

– Se eu me ajoelhar nas pás e me apoiar nas hastes, posso deslizar com eles, um de cada vez.

– E então... se arrastar no gelo com as pás distribuindo seu peso?

– Isso aí.

– É loucura.

– Já combinamos de não usar essa palavra.

– Aqui ela se aplica.

Daniel se inclinou sobre a amurada do barco e tocou a ponta do gelo, mas sentiu que ele só tinha uns dois centímetros de espessura ali, o que significava que era fino demais para suportar seu peso, mesmo se ele usasse os remos.

De algum modo, a água parecia ainda mais fria que o gelo.

Mesmo sem querer, Daniel tremeu quando balançou a mão para se livrar das gotas.

– Eu não lhe disse? – comentou Kyle.

Daniel apontou para um ponto mais abaixo da enseada.

– Vamos olhar lá, ver se é mais espesso.

Embora não parecesse entusiasmado com a ideia, Kyle remou enquanto Daniel checava o gelo em intervalos regulares; por fim, cerca de 30 metros à frente, encontrou um local em que o gelo fino tinha se partido e fora levado pela água. O gelo que ficara tinha vários centímetros de espessura.

– Pare – disse ele a Kyle. – Aqui parece bom.

Daquele ponto, o gelo se estendia até quase 12 metros em direção à borda rochosa da ilha.

Daniel ouvira dizer que a profundidade média do lago era de mais de 120 metros, de modo que, mesmo tão perto da borda, duvidou que a corda da âncora fosse suficientemente longa. Contudo, precisavam fazer alguma coisa para manter o barco no lugar.

Tentou a âncora e, felizmente, depois de cerca de 15 metros de corda, ela atingiu o fundo do lago.

Ele deu um pouco mais de corda para que se mantivessem no lugar.

– Ok – disse Kyle –, vamos imaginar por um minuto que você não vai quebrar o gelo e se afogar.

– Eu sou bom nisso.

– E se você encontrar alguma coisa lá no farol? Como vai trazê­-la de volta se arrastando no gelo?

– Esse vai ser um bom problema. Vou pensar nele quando chegar a hora.

Depois de entregar o mapa e a bússola para o amigo, Daniel colocou um dos remos no gelo com a pá paralela ao barco.

Tentou segurar a haste e descobriu que, devido à maneira pela qual o remo tinha sido entalhado, só havia espaço para seus dedos se encaixarem entre a haste e o gelo.

Era bem apertado, mas ia funcionar.

Como todas as coisas são iguais, a água congela primeiro perto da costa, onde é mais raso e a corrente não é tão forte; ele imaginou que teria que ser muito cuidadoso ali, perto da beirada, onde o gelo não seria tão espesso.

Kyle balançou a cabeça.

– Essa não é uma boa ideia.

– Provavelmente você tem razão – disse Daniel, alinhando o segundo remo. – Vou ficar com meu colete salva­-vidas para evitar me afogar.

– Isso não consegue me deixar tranquilo.

– Me dê o seu celular.

– Para quê?

– Eu posso usá­-lo como lanterna se precisar examinar dentro do farol.

– Ele não é à prova d’água. Se você afundar com ele quando se afogar, vou ficar muito zangado.

– Não vou esquecer isso.

Depois de pôr o telefone no bolso, montou na borda do barco e se ajoelhou cuidadosamente sobre os remos.

Distribuir o peso do corpo foi difícil, e voltar para o barco seria ainda mais difícil, mas ele decidiu não pensar nisso naquele momento.

Só não caia através do gelo ou será uma longa e fria viagem de volta à loja do Larry.

À medida que ele avançava, o gelo começou a produzir um leve som de atrito, provocado pelos remos.

Imediatamente, parou de se arrastar. Parecia que seu coração tinha diminuído as batidas pela metade e, ao mesmo tempo, acelerado seu ritmo mais forte que antes.

– Não é tarde demais – disse Kyle baixinho, como se temesse que o peso de suas palavras pudesse rachar o gelo sobre o qual Daniel estava ajoelhado. – Você ainda pode voltar para o barco.

– Eu estou bem. Sei nadar e, além disso, você é salva­-vidas, não é mesmo?

– Lamento, amigão, mas não vou mergulhar nessa água para salvá­-lo.

– Nem mesmo pelo seu telefone?

– Bem... talvez pelo telefone.

– Você falou como um verdadeiro amigo.

– Não leve a coisa a sério, ok?

– Ok.

Daniel moveu um remo após o outro, usando­-os para se apoiar à medida que avançava para a ilha. Ocasionalmente, o gelo rangia com seu peso, mas ele teve o cuidado de não deixar que nenhum dos joelhos saísse das pás dos remos.

A princípio, avançou lentamente, mas, quando já estava quase na metade do caminho, pôde dar mais ritmo a seu deslocamento. Dali em diante foi mais depressa, e logo já havia coberto a distância entre ele e a margem.

Já na margem, gritou para Kyle:

– Está vendo? Nenhum problema. – E colocou os remos sobre um dos ombros. – Vou estar de volta em dois minutos.

– Tenha cuidado.

– Meu nome é Sr. Cuidadoso.

– Pare de brincadeira.

– Vejo você logo.

Escalar a rocha coberta de gelo na costa foi um pouco arriscado, mas ele conseguiu se sair bem. Depois que ficou em pé, tirou seu colete salva­-vidas e o colocou sobre as rochas; então, começou a andar pelo terreno coberto de neve que precisava atravessar para chegar ao farol.

Estava tudo quieto na ilha, com exceção do barulho das ondas batendo contra o gelo quando o vento começou a aumentar.

Dali talvez fossem uns 25 metros até o farol.

Rastros recentes de veados eram a única coisa que marcava o campo de neve uniforme diante dele. Com as árvores ao fundo e a neve que continuava a cair, o dia era tranquilo e bonito.

Então, ele lembrou que ali era o local em que, supostamente, uma garota de 11 anos havia morrido queimada.

Você a viu em seu sonho. Você a viu durante o jogo.

Será que vai tornar a vê­-la aqui?

Talvez ela aparecesse para ele caminhando na neve, o corpo enegrecido chiando à medida que os flocos de neve o tocassem, os braços estendidos em direção à torre em que seu tio estava quando sua camisola começou a pegar fogo.

Ou talvez ela surgisse no topo do farol e, lá de cima, olharia para a ilha de onde nunca sairia.

Daniel fixou o olhar através da neve que caía e pôde ver a silhueta de uma torre.

Nenhuma garota.

Nenhuma distorção.

E ela tampouco estava ali no terreno onde se erguia o farol.

Era apenas um dia quieto e nevado numa ilha do lago Superior. Não havia nada incomum nele.

Betty era real?

Uma garota realmente morrera naquele local?

Ele não sabia, mas talvez a resposta estivesse dentro do farol.

Parecia que o único acesso à torre era através da casa.

A neve chegou­-lhe ao joelho enquanto atravessava o campo e chegava à porta da frente da casa do faroleiro.

As janelas estavam fechadas, mas a porta estava entreaberta num ângulo estranho, apoiada em seus gonzos enferrujados.

A porta resistiu, mas Daniel conseguiu abri­-la.

E entrou.


40

A entrada estava coberta de lixo. Grafites grosseiros cobriam as paredes. Tocos de velas e latas vazias de cerveja espalhavam­-se pelos cantos.

Não lhe causava surpresa o fato de que o lugar acabasse por atrair pessoas para se divertirem, mas o fez pensar se teria sobrado alguma coisa que lhe fosse útil.

Com as janelas pregadas com tábuas, o interior da casa tinha sombras espessas, de modo que Daniel pegou o celular de Kyle e ligou a lanterna.

Usando­-o para guiá­-lo, entrou no primeiro cômodo.

O local devia servir como sala central, pois levava à cozinha e a um curto corredor com dois quartos lado a lado. Um deles tinha apenas uns 2,5 metros de comprimento. Com prateleiras em um dos lados, imaginou que devia ter sido usado como despensa. O outro provavelmente era o quarto do faroleiro.

Talvez Betty tenha dormido aqui na despensa.

Se, na verdade, ela esteve aqui.

Virando à esquerda, usou o celular para iluminar a cozinha, que ainda exibia, inexplicavelmente, uma grande pilha de toras de madeira para serem usadas na estufa móvel.

Quem sabe a madeira tenha sido trazida por pessoas que vieram fazer piquenique.

Nada parecia suspeito ou fora de lugar para um farol abandonado.

Depois de vasculhar a despensa e o quarto mais uma vez sem nada encontrar, decidiu investigar a torre.

A escada em espiral que levava ao topo parecia ter sido projetada para alguém de baixa estatura, o que fez com que Daniel se abaixasse para subi­-la.

Kyle teria sofrido se fosse faroleiro daquele lugar.

Não havia janelas, o que tornou a subida de Daniel ainda mais complicada, mas a porta do topo devia estar aberta, pois a luz se infiltrava para o interior e a neve varrida pelo vento o fustigava.

Essa é a escada que Jarvis Delacroix subia seis vezes por noite para ir ao topo a fim de se certificar de que a luz ainda ardia.

Seis vezes.

Toda noite.

Daniel ficou imaginando como seria fazer isso, saber que pessoas dependiam de sua capacidade de ficar acordado – que elas confiavam suas vidas ao fato de você ser capaz de manter a luz da torre brilhando.

Ele chegou ao topo.

O vidro que protegia a luz tinha sido quebrado e os cacos se espalhavam pelas tábuas do assoalho. Um balcão estreito cercava a torre. Com cuidado, entrou nele.

A cerca desaparecera, apodrecida pelo tempo, de modo que ele teve o cuidado de ficar bem junto à torre enquanto olhava ao redor.

Dali pôde ver a costa árida estendendo­-se em duas direções, mas, com a neve caindo no lago, não conseguiu vislumbrar nenhuma das outras ilhas ou a própria margem.

No entanto, conseguiu ver Kyle no barco. Naquele instante, ele olhava na direção da floresta próxima ao invés de para o farol.

Daniel tentou chamá­-lo, mas suas palavras lutavam contra o vento, e Kyle aparentemente não conseguia ouvi­-lo, pois não olhou para cima. Achando que, se gritasse mais alto, poderia dar a Kyle a impressão de que alguma coisa estava errada, Daniel voltou sua atenção para a ilha.

Além do terreno, uma ampla faixa de bosque seguia a costa rochosa e, embora as árvores tivessem perdido as folhas, o bosque era suficientemente denso para que, sob a neve, Daniel não conseguisse ver através dele.

Jarvis Delacroix escrevera que a tinha enterrado nesta ilha num lugar onde ninguém a encontraria.

Talvez seja por isso que você está aqui. Para encontrar o corpo dela.

Mas não, tinha havido alguma outra coisa, outro motivo para que ele fosse atraído até ali, pois não havia maneira de encontrar um túmulo escondido há quase oitenta anos, especialmente num chão congelado debaixo de 60 centímetros de neve.

Tornando a olhar para o barco, Daniel viu o amigo olhando em sua direção e acenando para ele.

Ele também acenou, enquanto Kyle gritava alguma coisa que ele não conseguiu ouvir. Ele colocou uma das mãos junto à orelha de modo a indicar a Kyle para gritar mais alto, mas só conseguiu distinguir a palavra “ir”.

Talvez ele só estivesse lhe dizendo que era hora de ir embora.

Não havia mais nada para ver no alto da torre.

Depois de olhar mais uma vez a nevasca soprando para além do lago, Daniel começou a descer a escada.

Tinha descido 29 degraus quando sentiu alguma coisa bater contra sua perna.


41

Olhou para os lados, apreensivo.

Não havia nada por ali.

Você não imaginou isso, Daniel. Alguma coisa tocou em você.

Contudo, sem dúvida alguma, ele estava sozinho na escada.

Agora, com pressa de deixar a torre, ele desceu os próximos degraus mais rapidamente, mas tornou a sentir algo. Dessa vez, batendo com mais força contra seu ombro. Quando ergueu o olhar, viu o que o havia tocado.

Botas.

Um corpo jazia pendurado ali, balançando ligeiramente, talvez devido à força com que Daniel se chocara contra seus pés.

De onde estava, pôde ver o rosto do morto, inerte, inchado e pálido. Havia um laço em torno de seu pescoço, no final de uma longa corda que pendia da torre.

Daniel fechou os olhos e disse a si mesmo que estava apenas vendo coisas, que não passava de uma distorção como as outras, que, na verdade, não havia um corpo pendurado acima dele.

Depois de um longo intervalo, tornou a abrir lentamente os olhos.

O corpo ainda estava lá, agora em repouso, quieto e sinistro no ar.

Uma distorção.

Mas parecia tão real, pendendo ali no centro de uma escada em espiral.

Certifique­-se.

Certifique­-se de que ele não está aqui.

Hesitando, Daniel estendeu a mão para tocar uma das botas e verificar se era apenas uma distorção, um produto de sua imaginação.

Sentiu o couro áspero e gasto, como deve ser o couro real.

Mas não, não pode ser real. Não há como isso estar realmente acontecendo.

Quando estava abaixando a mão, o morto girou a cabeça e olhou para ele lá de cima. Quando falou, seus lábios mal se moviam, mas sua voz era clara e, obviamente, não era um truque de acústica produzido pelo vento canalizado na escada.

– Daniel.

Não, isto não é real!

– Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias, Daniel. Lembre­-se do que aconteceu no dia 28 de agosto.

Então, a boca do homem parou de se movimentar e ele continuou a pender da corda e a encarar Daniel com seus olhos baços e mortos.

Sem olhar para trás, Daniel desceu os degraus que faltavam dois a dois.

O que aconteceu no dia 28 de agosto?

A que se referiam os “dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias”?

Saia já daqui. Volte para o barco. Descubra isso depois.

Mas quando chegou à cozinha, lembrou o que Jarvis tinha escrito em seu diário sobre o armazenamento de morangos e framboesas em seu porão.

Espere.

Que porão?

Para se chegar a um porão com um mau tempo, faria sentido que ele se localizasse debaixo da casa. Contudo, Daniel não tinha visto nenhuma porta de acesso ao se dirigir à torre, o que significava que, se realmente havia um porão, também deveria haver uma escada que descesse até ele em algum local da casa do faroleiro.

Mas ele não tinha visto nada parecido.

Vá embora, Daniel. Não há nada aqui.

Mas talvez haja, dê só uma olhada rápida, depois você vai embora.

Embora sua intenção fosse ir imediatamente, ele também estava ali para conseguir respostas e, àquela altura, tudo o que conseguira foram mais perguntas.

Evitando a escadaria que subia à torre para não tornar a ver a distorção real demais de Jarvis Delacroix, ele voltou através de cada cômodo da casa e não descobriu nenhuma porta que pudesse levar a um porão.

Curioso, voltou à cozinha e pousou o olhar na pilha de 90 centímetros de lenha encostada na parede oeste.


42

Daniel começou a afastar a lenha.

Enquanto abria caminho, notou que duas tábuas do chão, debaixo da pilha, tinham uma textura diferente da do restante do assoalho.

Continuou a remover a lenha.

E foi quando viu as dobradiças.

Sim.

Um alçapão.

Ele não tinha ideia de quanto tempo aquela pilha de lenha tinha estado ali e, francamente, não se importava com isso, mas se importava, sim, com o que ela estava cobrindo.

Mais motivado e também mais angustiado quanto ao que poderia encontrar, pôs­-se a remover o restante do que cobria o alçapão para o porão.

***

Alguns minutos antes, Kyle Goessel tinha visto Daniel desaparecer na torre.

Como o vento tinha começado a soprar mais neve sobre o lago, ele tentara chamar o amigo, pedindo­-lhe que se apressasse, mas, em virtude da distância, não tinha certeza de que Daniel o havia escutado.

Desde o início, Kyle não se entusiasmara com o fato de Daniel explorar o farol sozinho. Apesar de sua apreensão com relação ao gelo, ele também o teria cruzado de bom grado se houvesse um modo de os dois chegarem em segurança à ilha.

Mas só havia um par de remos e, depois de Daniel chegar à ilha, não havia como mandá­-los de volta a Kyle no barco, exceto, talvez, tentar jogá­-los, mas a distância era muito grande para garantir que chegassem a ele.

Agora, a tempestade estava aumentando, e as lufadas de vento que cruzavam o lago o atingiam em cheio.

Kyle adorava escrita criativa e uma frase lhe ocorreu: os dentes do vento roíam a costa.

E você foi apanhado em sua trajetória.

Ele estava esperando que Daniel saísse pela porta da frente da casa do faroleiro quando vislumbrou um movimento na borda da floresta.

Achou que já tivesse notado alguma coisa antes, um pouco antes de Daniel aparecer no topo da torre, mas agora tinha quase certeza de que havia alguma coisa lá.

Usando uma das mãos para proteger os olhos contra a neve, Kyle olhou para as árvores, examinando o bosque, mas não conseguiu descobrir nada de incomum.

Mas você viu alguma coisa agora mesmo.

Viu mesmo?

Examinou as margens do bosque: apenas árvores nuas sob uma nevasca que aumentava.

Provavelmente, seus olhos lhe pregaram uma peça.

Provavelmente apenas...

Não, espere.

Lá.

Sim.

Um veado?

Não.

Alguém estava em pé atrás dos carvalhos desfolhados.

Foi apenas pelo modo como a pessoa estava virada que Kyle foi capaz de percebê­-la.

Um casaco azul escuro. Foi o que Kyle conseguiu ver.

Então, o homem saiu e entrou no campo, encaminhando­-se para a casa do faroleiro.

Jeans escuros. Uma máscara negra de esqui cobria­-lhe o rosto.

Ele estava carregando alguma coisa.

Parecia...

Sim.

Um galão de gasolina.


43

Kyle gritou­-lhe que parasse, mas o vento encobriu­-lhe as palavras, e o homem continuou a cruzar o campo coberto de neve.

***

Concluída a remoção da lenha, Daniel ergueu o alçapão e começou a descer os degraus de madeira toscamente talhados que levavam ao porão.

***

Kyle gritou com mais força e, por fim, o homem olhou em sua direção, mas seu rosto estava oculto pela máscara de esqui.

Por um instante, ele ficou lá parado, uma forma escura e sem rosto destacando­-se contra a neve; então, voltou­-se mais uma vez para a casa do faroleiro e avançou para ela.

***

Daniel chegou ao último degrau da escada e começou a olhar em redor.

Usando o celular como lanterna em uma das mãos, com a outra afastou as teias de aranha que cruzavam o ar diante dele.

As paredes de terra batida eram sustentadas por sólidas vigas de madeira que haviam sido instaladas contra as tábuas do chão da cozinha. Embaixo, uma camada de pedregulhos cobria o chão de terra.

O ar era frio, mas não totalmente desagradável – talvez alguns graus abaixo de zero. O porão cheirava a poeira e bolor.

Havia duas dúzias de compotas empilhadas no chão e um monte de ervas secas perto da parede.

Fora isso, o local parecia vazio.

Mas alguma coisa não estava certa.

Ele girou o olhar lentamente pelo porão, observando tudo, e sua mente matemática notou que, embora houvesse seis vigas de suporte do lado esquerdo, havia apenas cinco do direito.

Não era um grande detalhe, mas todo o resto com relação à casa e à torre era simétrico. Por que o porão não havia sido escavado de forma quadrada para combinar com a planta da cozinha acima dele?

O conto de Edgar Allan Poe que a Prô havia mencionado em aula na sexta­-feira, “O barril de amontillado”, veio­-lhe à mente.

Na história, o protagonista, que também era o antagonista, havia emparedado um homem vivo, fechando­-o nas catacumbas.

Ele fez isso num lugar em que ninguém jamais encontraria o corpo.

Daniel dirigiu o facho do celular para a parede e começou a inspecionar a pilha de terra no canto em que a sexta viga deveria estar visível.

***

Kyle olhou para o gelo que se estendia entre ele e a ilha.

Você precisa deter esse cara. Ele vai queimar o farol. Você precisa avisar Daniel!

Embora o barco ainda estivesse ancorado, ele se deslocava ligeiramente. Assim, depois de guiá­-lo para a beira do gelo, Kyle desligou o motor e se sentou um tanto precariamente na borda do barco com os pés suspensos acima do gelo.

Tomando fôlego profundamente, abaixou o pé esquerdo.

O gelo aguentou.

Ótimo.

Então transferiu mais peso para o pé.

O gelo aguentou.

Ótimo. Isso vai funcionar.

Colocou a outra perna sobre o gelo e estava se levantando, pronto para deixar o barco, quando a superfície sob seus pés rachou e se separou. Perdendo o equilíbrio, ele quase caiu: suas botas mergulharam na água gelada, mas ele conseguiu, com dificuldade, se agarrar na borda do barco.

O barco balançou perigosamente quando ele pulou de volta para dentro, o coração batendo forte contra o peito.

Tinha sido por pouco.

Ok, atravessar o gelo não ia ser possível.

Mas você precisa fazer alguma coisa!

Na esperança de fazer barulho suficiente para alertar Daniel de que alguma coisa estava para acontecer, ele foi para a popa e acionou o motor com força.

***

O chão não estava congelado, e Daniel conseguiu tirar bastante terra solta e cheia de pedras com as mãos.

Já tinha cavado cerca de 45 centímetros quando sua mão deu com algo duro e arredondado, com o tamanho aproximado de um melão.

Provavelmente uma pedra.

Mas não. Era lisa demais para ser uma pedra.

Com cuidado, Daniel afastou a terra.


44

Era um crânio: enegrecido e queimado.

Ele deu um salto para trás.

Betty.

Foi aqui que Jarvis a enterrou depois que ela morreu.

Foi aqui que...

Daniel ouviu passos nas tábuas do assoalho acima dele.

A princípio, pensou que pudesse ser Kyle, mas então se deu conta de que isso era ridículo: não havia como ele ter chegado à ilha.

Mas se não era ele...

Você deixou o alçapão aberto. Seja quem for que está lá em cima, vai saber que você está aqui embaixo.

Daniel foi para os degraus, mas só tinha subido metade deles quando alguém fechou a porta do alçapão.

Correndo até o alto da escada, forçou a porta para abri­-la, mas a pessoa devia estar de pé em cima dela, pois ela não se mexeu.

– Ei – gritou ele –, saia daí!

Nenhuma resposta.

Um pouco depois, contudo, Daniel sentiu cheiro de gasolina e notou que ela estava escorrendo pelas frestas das tábuas do assoalho acima dele.

Virou a cabeça para o lado para que a gasolina não lhe caísse no rosto.

– Ei!

Ouviu a lenha sendo mexida e percebeu que quem estava lá em cima começava a empilhar a madeira sobre o alçapão novamente, ou pelo menos apoiava uma tora contra a parede para impedi­-lo de abrir o alçapão.

Então, o sujeito pôs fogo na gasolina e mais algumas gotas dela caíram pelas frestas, dessa vez em chamas, em cima e em torno de Daniel.

Empurrou a porta com o ombro, mas ela resistiu.

Você precisa abri­-la ou colocar alguma coisa como calço para quebrar o fecho.

Seria ótimo se ele tivesse uma faca ou mesmo um molho de chaves, mas tudo o que tinha era o celular de Kyle.

Olhando ao redor do porão, tentou ver se havia alguma coisa que tinha deixado passar, alguma coisa que pudesse usar. Mas não havia nada.

Não.

Espere.

Havia outra coisa lá que ele poderia usar.

Não as plantas secas ou os potes de conserva.

Das aulas de anatomia, ele sabia que o fêmur era o osso mais forte do corpo humano.

Não vai estar afiado na extremidade, mas se conseguir encontrar um modo de parti­-lo ao meio...

Não, Daniel, você já se deu conta do que está pensando?

Que escolha você tem? É preciso fazê­-lo.

Não!

Você vai morrer aqui embaixo a menos que consiga abrir esse alçapão.

Voltou a atenção para a parede que estivera cavando e desceu os degraus correndo a fim de localizar um dos fêmures do esqueleto.

***

Kyle viu rolos de fumaça negra saindo das frestas das tábuas que cobriam as janelas da casa do faroleiro.

Não!

A pessoa que levara a gasolina para a casa estava saindo pela porta da frente e atravessando o terreno nevado em direção aos remos que Daniel tinha usado para cruzar o gelo.

***

Escavar os ossos foi uma tarefa nauseante e constrangedora, e Daniel rezou para que não houvesse nenhuma maldição ou assombração por ter mexido neles, mas naquele momento ele sentia que não tinha escolha.

Encontrou a pélvis e cavou mais fundo, tirando mãos cheias de terra e vários ossos que achou que fossem da espinha de Betty.

Por fim, seus dedos tocaram um osso que pareceu grande e forte.

Ele o tirou do chão.

Sim.

O fêmur.

Mas como ele já esperava, as extremidades eram arredondadas; então, apoiou­-o contra uma das vigas de suporte, colocando­-o em ângulo para que não escorregasse para o lado quando o golpeasse no meio.

Honestamente, ele não sabia se funcionaria, se o osso se quebraria.

Mas, se quebrar, vai ajudá­-lo a sair daqui?

Tente.

Você tem que tentar.

É sua única chance.

Depois de alinhar o pé, ele deu um golpe contra o centro do osso como se estivesse quebrando um galho para fazer uma fogueira no acampamento.

Ele o quebrou em três pedaços. Apanhou o maior e tentou usá­-lo como alavanca para abrir o alçapão, mas ele não proporcionou alavancagem suficiente.

Voltando rapidamente ao esqueleto, cavou desesperadamente o chão cheio de pedras em busca do outro fêmur.

As chamas já desciam as tábuas acima dele.

Levou um minuto, mas ele achou o osso.

Puxou­-o para fora.

Depressa.

Apoiou o fêmur contra a viga e bateu forte com o pé.

Este segundo partiu­-se ao meio. Ele agarrou o pedaço mais longo, colocou o lado mais pontiagudo no espaço entre as tábuas ao longo da extremidade do alçapão e tentou arrancar o ferrolho da madeira.


45

Enquanto Kyle tentava freneticamente pensar num modo de ajudar seu amigo, chamas explodiram no topo do farol, brilhando contra o céu e devorando os flocos de neve que batiam contra ela.

Com aquele vento, não demoraria muito para que o farol de madeira – e a casa do faroleiro com ele – fosse totalmente consumido.

***

Chorando devido ao esforço, Daniel fez pressão sobre o fêmur, ouviu o ferrolho sair e abriu o alçapão.

Meia dúzia de toras caiu, enquanto uma onda asfixiante de calor o envolvia.

As tábuas acima do porão estavam ardendo e, mesmo que ele tentasse correr sobre elas, a essa altura não tinha certeza se elas suportariam seu peso. Naquele momento, a última coisa que ele precisava era cair de volta no porão.

A única maneira de chegar à porta da frente era ao longo da parede contígua, onde as chamas ainda não eram tão intensas. A espessa fumaça o sufocava e o calor abrasador ardia contra seu rosto e suas mãos nuas, que seu casaco não protegia. Puxando a parte de cima da camiseta por sobre a boca para que pudesse respirar através da fumaça, Daniel correu para a porta.

Devido ao calor, teve que proteger o rosto com um dos braços. As chamas espalhavam­-se pelo chão diante dele, mas ele conseguiu saltar por cima delas e passar por uma coluna de fogo que subia pela parede.

A porta da frente estava tomada pelas chamas, mas Daniel correu contra ela, abriu­-a e caiu fora da casa, rolando na neve.

O ar frio e a neve molhada aliviaram­-lhe o rosto e as mãos, resfriando imediatamente a pele exposta.

Sim, sim.

Puxou a camisa para baixo novamente e avançou com dificuldade pela neve, que lhe alcançava o joelho, para se afastar do prédio em chamas.

Depois de andar uns 12 metros, fez uma pausa e olhou para trás.

Mesmo com a neve fustigando­-lhe o rosto, conseguiu sentir o feroz calor do fogo.

Uma vista espetacular, mas insuportável.

Enquanto observava o farol arder, pensou sobre o que Mia tinha lhe dito no sábado: num passado remoto, fogueiras acesas nas colinas serviam para advertir navios.

Mas não incendiavam faróis.

A verdade sobre o que acabara de acontecer caiu sobre ele como um golpe: alguém tentou matar você.

E uma segunda revelação: Você precisa sair dessa ilha.

Correu em direção ao barco e, quando chegou às rochas que havia escalado ao chegar, descobriu que seu colete salva­-vidas tinha desaparecido.

E também os remos.

Kyle desligou o motor e gritou:

– Você está bem?

– Estou. Você viu quem fez isso?

Kyle confirmou com um movimento de cabeça.

– Ele estava usando uma máscara de esqui. E foi para o outro lado da ilha.

– E levou os remos e o colete salva­-vidas?

– Não sei por que, mas levou.

Daniel relaxou no gelo.

– Você não tem um colete salva­-vidas – disse Kyle desnecessariamente.

– Então é melhor eu não cair na água.

– Você não vai andar pelo gelo, vai?

– E eu tenho escolha?

– Não sei, eu...

– Alguém nesta ilha quer me ver morto. Ele sabia que eu estava lá quando provocou o incêndio. Se ele me vir aqui vivo, quem sabe o que poderá fazer?

Kyle concordou.

– Tudo bem, mas tome cuidado.

Ali, perto da margem, o gelo devia estar mais espesso, mas, mesmo assim, Daniel tomou muito cuidado ao dar os primeiros passos.

– Firme – dizia Kyle para encorajá­-lo.

Preocupado com a possibilidade de o gelo se quebrar se ele se movesse rápido demais, Daniel prosseguiu sem pressa enquanto posicionava o pé a cada passo para espalhar seu peso.

Quanto mais avançava, mais confiante ficava.

Chegue até o barco e dê o fora daqui.

Mas quando tinha coberto cerca de três quartos do trajeto até o barco, rachaduras começaram a se espalhar a partir de seus pés e ele ouviu o gelo rachando.

Congelou, com medo de fazer o mais leve movimento.

Mas não adiantou.

De repente, o gelo sob seus pés se abriu, rachando com um ruído que soou como um tiro de canhão ecoando pela água.

***

– Não! – gritou Kyle, impotente, enquanto Daniel mergulhava na água negra como tinta três metros distante dele.

E não voltou à tona.


46

Facas.

Centenas de facas penetrando nele, por toda parte.

Foi assim que ele se sentiu.

Daniel tentou permanecer calmo, tentou não entrar em pânico, mas não tinha tomado bastante ar antes de afundar, e agora, enquanto submergia no lago gelado, parecia que não tinha nenhum nos pulmões.

Embora uma luz fraca se filtrasse pelo gelo acima dele, a água abaixo dele era inacreditavelmente escura.

Ele subiu para a superfície, mas não conseguiu ver a abertura por onde tinha caído.

Você precisa nadar em direção à abertura.

Você consegue.

Relaxe.

Mas as pesadas roupas de inverno e as botas o puxavam para baixo. Ele desistiu da ideia de tentar se livrar das botas, mas conseguiu se desvencilhar da pesada jaqueta de inverno que tornava quase impossível que ele nadasse.

Deu braçadas para cima e mexeu as pernas com força para evitar a correnteza, que parecia decidida a levá­-lo para mais perto da margem, onde ele não conseguiria romper o gelo acima dele.

Procurou desesperadamente, mas não conseguiu localizar a fratura no gelo pela qual havia mergulhado no lago.

Lutando contra a correnteza, procurou subir até a borda da placa de gelo, mas o pouco ar que ainda tinha estava se esgotando rapidamente e, involuntariamente, deixou escapar várias bolhas de ar que subiram pela água ao redor de seu rosto.

Ainda faltavam três metros para subir, mas pareciam três quilômetros.

Ele não ia conseguir.

Você tem que conseguir!

Mais bolhas escaparam, e ele teve que lutar contra a terrível urgência de respirar, pois a ingestão do menor gole de água poria tudo a perder.

Nadando o mais que podia, Daniel procurava subir à superfície, mas sentiu alguma coisa presa em sua perna que o puxava para baixo.

Olhou rapidamente para baixo: viu o demônio que Nicole havia desenhado, seu riso branco brilhando na escuridão eterna, as mandíbulas enterradas em seu pé.

Uma distorção.

Realidade.

Tudo igual.

Ele o chutou com violência e, enquanto o demônio desaparecia nas profundezas furiosas e agitadas, concentrou­-se na busca da abertura acima dele.

Você consegue. Você é capaz. Por seu pai. Você precisa salvar seu pai!

A última bolha de ar saiu flutuando de sua boca.

Deu mais uma braçada e alcançou a borda do gelo.

Agarrou­-a.

Ali.

Sim.

Mas ele mal conseguia se segurar na borda.

Ele estava cansado demais.

Quando jogou o pé para a frente, com o pouco de força que ainda lhe restara, não foi capaz de se erguer ou colocar a outra mão na borda do gelo.

Não conseguiu erguer o rosto até a superfície.

Está acabado.

Sua mão estava perdendo força, e quando achou que ia escorregar para baixo para sempre, uma forma escura se moveu em sua direção...

O barco?

Mas...

Alguma coisa agarrou­-lhe o punho enquanto o lago insondável o puxava, tentando tragá­-lo para sempre.

Daniel sentiu­-se puxado para cima.

Mas, então, só sentiu uma escuridão fria e envolvente, e a sensação de facas que o penetravam havia desaparecido.


47

Kyle agarrou o punho de Daniel com toda a força e se inclinou para trás no barco para trazer a cabeça do amigo até a superfície.

As ondas batiam contra o outro lado do barco, ameaçando levá­-lo mais para perto do gelo e esmagar Daniel ou fazer com que Kyle o largasse.

Vamos lá, cara, puxe. Você tem que conseguir!

Ele reposicionou a mão e tornou a puxá­-la para cima, dessa vez conseguindo trazer a cabeça de Daniel para cima da superfície. Ele não parecia estar respirando. Sua pele estava sem cor.

Você precisa colocá­-lo dentro do barco.

Agora!

Puxou o amigo para cima, conseguindo trazer seus ombros para a borda do barco.

O barco oscilou perigosamente, mas não virou.

Colocando a perna sob um dos assentos para usá­-la como alavanca, Kyle se inclinou para a frente, agarrou a parte de trás do cinto de Daniel e o ergueu. Quando o barco tornou a se inclinar para um dos lados, quase deixando a água entrar, ele puxou Daniel e o deitou no barco.

Seu corpo caiu pesadamente no fundo da embarcação, a cabeça inclinada para o lado.

Por sua experiência como salva­-vidas, Kyle percebeu que ele precisava injetar ar nos pulmões de Daniel imediatamente.

Devido aos assentos do barco, posicionar o amigo de costas foi difícil, mas depois que conseguiu, girou a cabeça de Daniel e aplicou­-lhe respiração boca a boca.

Seu peito subiu.

Nada está bloqueando suas vias aéreas.

Sentiu a pulsação de Daniel.

Bom. Isso é bom.

Kyle sabia que, às vezes, quando uma pessoa cai na água gelada, um instinto entra em ação – ele não sabia qual era, mas sabia que estava presente –, fechando­-lhe a garganta de tal forma que, mesmo que se afogasse, os pulmões não necessariamente se enchem de água,

Foi o que aconteceu com Daniel, o que poderia agir em seu favor.

Tornou a injetar mais ar no amigo.

Vamos, cara. Você está legal. Você vai ficar bem.

Mas Daniel não reagia.

Kyle tentou outra vez, chacoalhou­-o e bateu­-lhe no rosto, na esperança de reavivá­-lo.

Nada.

Mais ar.

Outra vez.

Vamos!

Kyle estava se inclinando para fazer mais uma respiração boca a boca, quando o corpo do amigo se agitou e ele tossiu, expelindo água e em busca de ar.

Rapidamente, Kyle virou­-o para o lado para que ele não tornasse a engolir mais água e pudesse ficar com a boca livre.

Daniel tossiu duas vezes, expelindo mais água e, então, respirou profunda e asperamente, enquanto seu corpo começava a tremer.

O tremor é bom. É o modo como o corpo tenta se manter quente.

Kyle o abraçou.

– Você está bem, cara. Só procure respirar.

Daniel respondeu com um aceno de cabeça.

– Vou levar você para a margem – disse Kyle, ainda apoiando as costas de Daniel. – Será que você consegue ficar sentado sozinho?

***

– Consigo – disse Daniel, sem ter certeza disso, mas não queria que o amigo se preocupasse com ele. – Eu estou bem.

Foi preciso muito esforço, mas ele finalmente conseguiu se manter no lugar, com as costas contra o assento do meio do barco.

Kyle ofereceu­-lhe seu casaco, e ele o aceitou. Tirou a camiseta molhada e se abrigou na jaqueta quente e seca, enquanto o amigo erguia a âncora, ligava o motor e virava a proa do barco para a margem do lago.

***

Nicole ficou observando enquanto Michelle dormia.

A menina tinha se recusado a dormir, mas enquanto ela lia uma história, alguma coisa sobre um raio de luar que ficava amigo de um unicórnio, Michelle acabou por cair no sono ao lado dela.

Levantando­-se com muito cuidado para não acordar a menina, Nicole foi até seu celular, que havia deixado na cozinha.

Tinha começado a ler as notícias on­-line sobre a matança de lobos quando ouviu uma batida na porta da frente.

Foi até a sala de visitas e olhou pela janela ao lado da árvore de Natal. Dois policiais estavam na entrada. Pelos seus uniformes, pareciam pertencer à polícia estadual.

Outra batida.

Um pouco apreensiva, ela abriu a porta.

– Sim?

– Olá, senhora – disse o homem mais alto, apresentando­-lhe seu distintivo. – Esta é a residência dos Goessel?

– É.

– E você, quem é?

– Sou Nicole. A babá.

– Nicole – disse o homem, baixando o distintivo. – Estamos procurando Daniel Byers.

– Sim?

– Ele desapareceu de um hospital em Duluth hoje de manhã. Sabemos que Kyle Goessel é um de seus amigos e estamos procurando... Espere... – interrompeu ele, olhando para ela. – Você disse que seu nome é Nicole. Você é Nicole Marten?

– Sou.

– Seu nome é o que mais aparece no celular de Daniel.

– Ele é meu namorado. – Só diga o que eles esperam que você diga. Não aja com estranheza. – Por que o senhor está procurando por ele? Ele está bem?

– Bem, é o que estamos tentando descobrir. Não sabemos onde ele está nesse momento. Ele não está aqui?

– Não.

O outro policial interferiu.

– E você sabe onde ele está?

É claro que ela tinha uma ideia de onde ele estava, mas Daniel e Kyle podiam estar em qualquer lugar entre ali e Bayfield; assim, oficialmente, ela não sabia.

Ela prosseguiu e disse, balançando a cabeça:

– Não. Eu o vi no hospital ontem, mas não sei lhe dizer onde ele está agora.

– Você se importa se entrarmos e dermos uma olhada pela casa? – perguntou o primeiro policial.

– Não acho que seja uma boa ideia. A Sra. Goessel não está em casa.

– Não está?

– Não. Como eu disse, sou a babá.

– Vai ser rápido. Prometo que nós...

– Não. Daniel não está aqui. E vocês não podem entrar.

O policial olhou para ela com frieza. Por fim, seu parceiro entregou a ela um cartão de visita da polícia.

– Se souber alguma coisa, por favor, ligue para nós.

– Obrigada – respondeu ela, sem expressar boa vontade.

Observou os dois voltarem para a viatura e, quando estavam se afastando, tentou o número de Kyle.

Nenhuma resposta.

Passou­-lhe, então uma mensagem de texto. Se os guardas estavam procurando Daniel, ele precisava ficar alerta.

Então, distraída pelos pensamentos que a envolviam, ela voltou a pesquisar para descobrir o que pudesse sobre a matança de lobos.

Quem teria tido acesso àquelas etiquetas dos lobos?

Quem pensaria em matar aqueles animais?

De todas as pessoas que conhecia, Ty Bell foi o primeiro a lhe vir à mente; não apenas porque ele era o tipo de cara que poderia realmente fazer uma coisa daquelas, mas também porque poderia ter acessado a localização dos lobos etiquetados do escritório de seu pai.

Ele também tinha sido a pessoa que descobriu o segundo lobo.

Muito conveniente.

Ela pensou em várias maneiras de restringir sua busca e teve uma ideia.

Tocando na tela do celular, pesquisou para ver se havia alguma evidência de que os lobos tinham sido abatidos antes ou depois do horário das aulas e se havia mais algum detalhe sobre o fato de Ty ter descoberto o segundo lobo morto.


48

Daniel estava em pé embaixo do chuveiro de Larry, com uma das mãos apoiada na parede para manter o equilíbrio e continuar em pé. Ele estava só de cueca e agora sentia a água quente.

A princípio, o calor pareceu não ajudar em nada, mas à medida que o minúsculo banheiro se encheu de vapor, os calafrios começaram a diminuir e ele começou a recuperar as forças.

Larry e Kyle ocuparam todo o banheiro para garantir que ele não fosse ao chão. A cortina do chuveiro estava puxada para o lado e a água se acumulava no chão, mas Larry não parecia se importar e apenas jogou algumas toalhas para enxugá­-la.

– Então, está se sentindo melhor? – perguntou ele a Daniel com preocupação.

– Estou começando a me sentir melhor. Estou, sim.

Daniel tentou deixar que a água quente lavasse o escuro resíduo de medo que tinha se alojado em sua mente quando estava embaixo do gelo, mas isso não funcionou. Ele achou que esse medo ficaria com ele por um longo tempo, provavelmente para sempre, especialmente a imagem daquele demônio rindo para ele, tentando puxá­-lo para um nada sem fim.

No sábado, Nicole dissera que Jó tinha sido tão atormentado por seus pesadelos que desejou ser estrangulado e morto.

Do jeito que as coisas estavam indo, Daniel começava a entender como o cara tinha chegado a esse ponto.

Você está agarrado à beirada do rochedo.

Não.

Solte.

A mão.

Quando ele finalmente se sentiu aquecido, saiu do chuveiro e se enxugou.

Antes de ir à cozinha para preparar alguma coisa para Daniel comer, Larry emprestou­-lhe uma muda de roupa. Como ele tinha quase a altura de Kyle, as roupas não ficaram muito melhores – braços compridos, mas ombros estreitos –, mas Daniel não se importou. Ele estava feliz por se encontrar ali.

E por estar vivo.

Por estar livre das garras daquele lago.

Kyle juntou­-se a Larry na cozinha enquanto Daniel se trocava.

Pela janela, Daniel pôde ver que ainda estava nevando e que já estava quase escuro.

Puxa, ele conseguira se safar e nem percebeu o tempo passando. Larry e Kyle devem ter tido trabalho para aquecê­-lo por mais tempo do que ele imaginara.

Depois de vestido, seguiu o cheiro da sopa pelo corredor.

Quando Daniel se sentou à mesa, Larry tornou a lhe perguntar se ele estava bem, e ele reiterou que estava.

– Sua aparência não estava nada boa, amigo – disse Kyle. – Azul não é a sua cor.

– É bom saber. Ouça, obrigado por ter me tirado da água.

– Tudo bem, mas tenho que dizer que, quando está morto, você fica muito mais pesado do que parece.

– Vou tentar perder peso antes de eu me afogar outra vez.

– Algumas semanas de zumba vão resolver o problema.

– Só se você fizer também.

Larry foi até o fogão e serviu três tigelas de sopa.

– Você quer café, chá ou alguma outra coisa para beber?

– Não, obrigado. Não estou com sede.

– Não sei por quê.

Larry trouxe três colheres, mergulhou­-as nas tigelas e as colocou na mesa, carregando as três ao mesmo tempo pela cozinha, que, na verdade, não era tão grande.

Daniel aceitou a sopa.

– Obrigado.

– De nada.

Depois que Larry se sentou, o silêncio desceu sobre a mesa. Enquanto comiam, Daniel tentou relaxar, mas não conseguiu.

A distorção do cadáver de Jarvis Delacroix pendurado na torre do farol tinha sido por demais perturbadora, mas, depois, desenterrar o cadáver de Betty e usar um dos ossos de sua perna para forçar a abertura do alçapão fora ainda pior.

E em seguida veio a pequena excursão debaixo do gelo com o demônio o puxando para baixo.

Cara, que dia!

Ele não conseguia parar de pensar em Jarvis Delacroix falando com ele com aquela voz rouca e tumular: “Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias. Lembre­-se do que aconteceu no dia 28 de agosto”.

Quando ouviu essas palavras, ficou imaginando a que elas se referiam, mas agora que podia repensar as coisas, a resposta veio­-lhe quase imediatamente. Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias atrás era 28 de agosto.

E foi esse o último dia em que esteve no celeiro quando criança.

Apenas 64 dias antes de vovó morrer.

Mas não conseguia lembrar o que aconteceu naquele dia de agosto, ou por que nunca mais voltara ao celeiro.

– Então – disse Larry com seriedade –, Kyle me contou que alguém incendiou o farol enquanto você estava lá dentro.

– Foi isso mesmo.

– E nenhum dos dois tem ideia de quem foi?

Os dois balançaram a cabeça.

– Sinto muito pelos remos e por aquele colete salva­-vidas – disse­-lhe Daniel. – Acho que eles se foram para sempre.

Larry fez um sinal de que isso não tinha importância e colocou a colher em sua tigela quase vazia.

– Ouçam, rapazes, preciso que vocês sejam muito francos comigo. Por um lado, fico imaginando por que cargas d’água você teria se arriscado ao atravessar aquele gelo só para chegar a um farol abandonado, mas, por outro lado, estou muito curioso para saber por que alguém poria fogo nele enquanto você estava lá dentro. Preciso saber o que realmente está acontecendo.

Daniel e Kyle trocaram um olhar.

– E então?

Daniel pousou a colher.

– Vai parecer loucura se eu lhe contar.

– Tente.

Bem.

Ok.

Decidiu contar tudo, pois tendo Larry ajudado tanto os dois, ele agora tinha o direito de saber; assim, contou­-lhe sobre as distorções da garota de camisola branca, a estranha escrita na aula de inglês, os diários de Jarvis e o desaparecimento de seu pai.

Contou até sobre o hospital psiquiátrico e sua fuga de lá com a ajuda de alguém que aparentemente trabalhava para alguma agência clandestina do governo.

Larry ouviu em silêncio.

– Eu lhe disse que ia parecer loucura.

– Você não podia ter sido mais sincero.

– Minha mãe está presa no Alasca, e eu preciso encontrar meu pai. Foi por isso que atravessei o gelo. Achei que a resposta para o que aconteceu com ele poderia estar, de algum modo, dentro daquele farol.

– E estava?

– Não.

Não foi fácil admitir isso.

Daniel pensou em lhe contar sobre a visão do demônio no lago, o cadáver de Jarvis na torre ou a descoberta do esqueleto de Betty no chão do porão, mas decidiu que Larry provavelmente não precisaria saber de tudo. Mais tarde, poderia contar tudo isso a Kyle.

– Essa pessoa da ilha... – Larry tinha acabado de tomar a sopa e estava tirando uma cerveja da geladeira –, a que provocou o incêndio, você não sabe para onde ela foi ou como chegou lá?

– Não – respondeu Kyle. – Mas era um homem. Pude ver isso pelo tamanho dele, pelo seu jeito de andar.

– Bem, existe um ancoradouro do outro lado da ilha.

– Eu não o vi do alto da torre – disse Daniel.

– O que não me surpreende, com toda aquela neve caindo. Não é tão grande, mas os habitantes locais sabem onde fica. Posso dar alguns telefonemas, ver se alguém mais esteve com um barco no lago hoje. É uma cidade pequena e não existem tantas pessoas que alugam barcos. Na verdade, eu ficaria surpreso se alguém mais fizesse isso.

– Como a pessoa que provocou o incêndio saberia que nós íamos estar lá? – Daniel pensou alto. – Como foi possível?

– Parece mesmo muito suspeito. Quero dizer, não foi mera coincidência que ele fosse parar lá enquanto vocês estavam no local. Quem sabia que você viria para a ilha esta manhã?

– Apenas o Sr. Zacharias e Nicole.

– Nicole?

– Minha namorada.

– Ah – disse Larry, balançando a cabeça. – Ok. Eis o que quero dizer: se alguém tentou matá­-lo, você pode me dar um bom motivo para eu não chamar a patrulha estadual ou o escritório do nosso xerife local e lhes contar tudo?

– Porque as autoridades acham que eu tenho alguma coisa a ver com o desaparecimento de meu pai. Vão me prender e vamos ficar mais longe de encontrá­-lo.

– Mesmo depois de tudo o que aconteceu... quero dizer, um cara queimando aquele farol... você ainda acha que eles vão suspeitar de você?

– Eles vão me levar para um interrogatório. Não podemos deixar que isso aconteça. Já é mais tarde do que eu planejava que voltaríamos para casa, e estamos longe de encontrar meu pai.

– Então, você acha que o melhor a fazer agora é continuarmos a tentar localizá­-lo?

– Kyle e eu precisamos voltar a Beldon. Foi onde o Sr. Zacharias me deixou. Ele disse que entraria em contato comigo pelo telefone do Kyle, mas... – disse Daniel, deixando escapar o detalhe. – Oh!

– O quê? – perguntou Kyle.

– Eu o deixei no porão. Lamento muito.

– Porão?

– Embaixo da casa do faroleiro. Eu estava lá embaixo quando o cara começou o fogo. Acho que eu lhe devo um celular.

– Tudo bem – disse Kyle, fazendo um gesto para indicar que não se tratava de algo tão importante. – Já estava mesmo na hora de trocá­-lo.

Larry pareceu estar mergulhado em pensamentos.

– Honestamente, não sei o que fazer. Parece­-me que devíamos ligar para a sua mãe, Daniel, e contar­-lhe que você quase se afogou, mas isso só a deixaria ainda mais preocupada. E se eu ligar para a sua mãe, Kyle... não sei muito bem o que vou dizer a ela.

– Eu explico tudo a ela. Deixe­-me fazer isso pessoalmente.

– Quando voltar hoje à noite?

– Eu estava pensando mais no mês que vem...

Daniel não conseguiu perceber se o amigo estava ou não falando sério.

– Esta noite – enfatizou Larry.

– Ok.

– Você me dá a sua palavra?

– Dou.

– Ótimo. E esse Sr. Zacharias que você mencionou, Daniel, você vai entrar em contato com ele?

– Tenho certeza de que ele vai achar um jeito de entrar em contato conosco.

Larry tirou seu celular do bolso.

– Levem isto com vocês. Com a tempestade de neve, não me agrada muito a ideia de dirigirem sem telefone. Em um ou dois dias, eu o pego de volta. Eu vou dar um pulo em sua casa para cumprimentar minha irmã pelo Natal. De qualquer modo, tenho uma linha fixa para os negócios, de modo que vocês podem me ligar se for preciso.

– Ok – disse Kyle, aceitando o aparelho. – Obrigado.

– Tomem cuidado. Não estou gostando da condição das estradas e isso não vai melhorar.

Depois de Daniel e Kyle garantirem a Larry que estariam em segurança no retorno para casa, despediram­-se e partiram para Beldon no carro de Kyle.

 

 

49

17h21
Faltando 70 minutos

Nicole Marten estava de volta a sua casa.

Cerca de meia hora antes, a Sra. Goessel retornara. O homem que estava com ela estendeu­-lhe a mão.

– Sou Glenn Kramer. Acho que não nos conhecemos.

– Nicole. Prazer em conhecê­-lo.

– Prazer. Sou colecionador de armas.

– Humm... ouvi dizer.

Ora, isso é estranho.

Apertaram­-se as mãos, ele desejou feliz Natal a todos e foi embora; então, a Sra. Goessel perguntou a Nicole se ela sabia do Kyle.

– Não. Nada desde que ele saiu de manhã.

– Humm... Também não consegui entrar em contato com ele. É um pouco estranho, você não acha?

– Talvez. Não sei. Alguma notícia do pai de Daniel?

– Nenhuma – respondeu a Sra. Goessel, enquanto Michelle vinha para junto dela pedindo colo. – Então, nada de especial aconteceu enquanto eu estive fora?

Nicole não tinha certeza se deveria mencionar a visita dos policiais, mas decidiu que, se a mencionasse, a Sra. Goessel saberia que Daniel tinha escapado do hospital e ficaria indagando o que estava acontecendo.

– Tudo tranquilo – disse Nicole.

– E a Michelle se comportou bem?

– Eu acho que siiim... – disse Nicole à Sra. Goessel, com uma piscada.

– Quanto falta para o Papai Noel chegar? – perguntou Michelle com impaciência.

– Só amanhã de manhã, querida.

– Não é justo – disse a menina, descendo do colo da mãe e indo brincar resignadamente com Pinguim na outra sala.

Depois de pagar Nicole por seu trabalho – na verdade, dando­-lhe mais do que ela esperava –, a Sra. Goessel agradeceu­-lhe.

– Michelle adora ficar com você. Fico contente que você tenha vindo. Só gostaria de saber por que Kyle não está atendendo o telefone.

– Se ele me enviar uma mensagem, eu digo para ele entrar em contato com a senhora.

– Obrigada.

– Feliz Natal.

– Para você também.

***

Na mesa da cozinha em sua casa, Nicole encontrou um bilhete que seus pais haviam lhe deixado: eles tinham ido a uma festa de véspera de Natal na casa dos Newton e voltariam por volta das oito da noite.

Ela tinha se esquecido disso. Os Newton. Completamente ignorados.

Estava fritando um hambúrguer quando o telefone tocou.

Embora não reconhecesse o número da chamada, achou que poderia ser Kyle ou Daniel usando o telefone de outra pessoa a fim de dar notícias. Ela atendeu.

– Alô?

– Nicole, sou eu.

– Daniel? Onde vocês estão, caras?

– Estamos voltando. A viagem até aqui foi... bem... interessante.

– Defina “interessante”.

– Tem a ver com um pequeno passeio no lago Superior.

– Você disse no lago Superior?

– Disse, mas está tudo bem. Devemos chegar em pouco mais de uma hora, acho que por volta das seis e meia. Podemos nos encontrar na sua casa?

– Claro. Eu estou aqui agora. Por que você não atendeu antes? Eu mandei um monte de mensagens para o Kyle... e de quem é o telefone que você está usando agora?

– O do Kyle se perdeu no incêndio. Este é do Larry.

– Espere... incêndio?

– Isso mesmo, quando o cara tentou me matar no farol.

– Matar você?!

– Mas não conseguiu.

– Claro, bem, acho que entendi isso. Quem tentou matar você?

– Não sei. Ainda estamos tentando descobrir isso.

– Isso foi antes ou depois do passeio no lago?

– Antes.

Ela ficou ouvindo enquanto Daniel contou rapidamente sua ida ao farol e depois a queda no gelo na volta para o barco. Quando ele terminou, ela disse:

– Isso é loucura. Você descobriu alguma coisa sobre o seu pai?

– Eu tive uma distorção com Jarvis Delacroix. Ele me falou de “dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias”. Isso foi a última vez em que estive no celeiro, esse tanto de dias atrás, quando eu tinha 9 anos. Ainda estou tentando entender que ligação isso tem com todo o resto. Ah, e quanto à Betty... vou dizer apenas que estou bastante convencido de que ela foi enterrada na ilha Madeline. Explico quando chegar aí. Até já.

– Dois patrulheiros estiveram na casa do Kyle procurando você. Tenha cuidado.

– Obrigado.

– Ah, e diga ao Kyle que a mãe dele está preocupada. Ela quer que ele ligue para ela.

– Vou dizer a ele.

Ouvir a voz de Daniel foi tranquilizador para Nicole, mas também um pouco preocupante, especialmente quando ela soube o que ele tinha passado.

Puxa, tanta coisa tinha acontecido desde sexta­-feira, quando as distorções dele começaram a voltar...

Ela se lembrou de quando encontrou o lobo moribundo com Daniel.

Ela tinha se ajoelhado ao lado do animal, tinha prometido descobrir quem estava fazendo aquilo, tinha jurado deter aquela pessoa.

Quanto progresso você fez nesse sentido...

Olhou as horas.

17h26.

Ok, Daniel disse seis e meia, então isso lhe deixava mais de uma hora para investigar, talvez descobrir qualquer coisa que ajudasse a chegar ao matador dos lobos, ou a encontrar o pai de Daniel, o que era, sem dúvida, a maior prioridade.

As duas coisas estão ligadas.

Talvez.

Talvez não.

Como ela estava ocupada com apenas uma frente, isso já era alguma coisa.

Carregando a bolsa numa das mãos, levou, com a outra, um prato com o hambúrguer, algumas batatas chips e fatias de maçã para o seu quarto. Colocou a bolsa ao lado da cama e a comida na escrivaninha.

Durante a tarde, ela só conseguiu descobrir quando os lobos haviam sido encontrados, não quando haviam sido mortos.

Mas Ty tinha encontrado o segundo, e ela não conseguia ignorar isso. De todas as pessoas que podiam ter encontrado o lobo morto, parecia uma grande e horrível coincidência que isso acontecesse com ele.

Continuando a pesquisar on­-line, ela verificou se os Bell moravam perto do Instituto Traybor, onde a maioria dos lobos tinham sido mortos, mas descobriu que eles moravam do outro lado da cidade.

Ela reconsiderou as coisas.

Depois de matar o lobo no sábado, o atirador tinha fugido pela floresta sem ser visto, embora ela e Daniel estivessem tão próximos. Logicamente, ele caminhara pela floresta ou tinha uma moto de neve ou um automóvel esperando para deixar a área. Mas não havia tantas estradas por lá.

Você e Daniel teriam visto o carro – ou, pelo menos, ouvido o barulho do motor.

O mesmo valia para uma moto de neve.

Talvez ele tivesse um lugar próximo em que pudesse se esconder, guardar a arma ou qualquer outra coisa.

Ou podia ter usado esquis.

Humm... Isso era verdade.

Com uma arma?

Com certeza presa a uma correia cruzando o peito. A arma não seria problema.

Existe até um esporte olímpico em que eles fazem isso.

Quando ela e Daniel estavam perto do instituto, passaram pelos rastros de uma moto de neve que iam até um lago com cabanas a sua volta.

Então, talvez uma dessas cabanas?

Isso fazia sentido.

Ou algum lugar ao longo da rede de trilhas de esqui.

Você precisa descobrir quem mora por lá.

Enquanto comia, usou o laptop para localizar o registro de imóveis do distrito no site em que andara pesquisando no sábado e começou a percorrer a lista.

***

Depois que Daniel acabou de conversar com Nicole, ele passou o telefone para o amigo; Kyle ligou para sua mãe e contou­-lhe que estava bem e a caminho de casa.

Daniel conseguiu ouvir a Sra. Goessel do outro lado da linha:

– Achei que você ia estar em casa horas atrás para tomar conta de Michelle.

– É complicado.

– Meu telefone está indicando que este é o celular de meu irmão, mas Bayfield fica no lado oposto a Duluth. O que está acontecendo, Kyle?

– Eu explico quando chegar em casa. Prometo.

Daniel não conseguia imaginar o que o amigo ia dizer.

Ele ia precisar dar boas explicações.

Depois do telefonema, Daniel tentou entender o que tinha acontecido durante o dia, mas sempre acabava voltando para um fato simples e inegável: alguém tinha tentado matá­-lo. E ele não tinha a menor ideia de quem tinha sido e por que o queria morto.


50

17h31
Faltando 60 minutos

O xerife Byers ouviu uma chave ser colocada na fechadura de seu quarto.

Fechando os olhos, ficou imóvel e fingiu estar inconsciente, mas, mesmo com os olhos fechados, sentiu a luz que vinha do outro cômodo penetrar ali e envolvê­-lo quando a porta foi aberta.

Passos aproximaram­-se da cama e se detiveram a seu lado.

Ele não sabe que estou acordado. Você conta com o elemento surpresa.

Mas está algemado a esta cama. Como vai dominá­-lo?

O xerife ainda estava com a mão direita livre. Se o cara se aproximasse o suficiente, poderia agarrá­-lo pela garganta ou dar­-lhe um golpe com a mão estendida, pegá­-lo pelo pescoço até sufocá­-lo.

Ele podia ouvir a respiração áspera do homem.

O que ele está fazendo? O que está esperando?

Ele não queria tirar conclusões precipitadas, mas, se este era o mesmo homem que o atacara em sua casa, então era o Hollister, e não ia ser fácil dominá­-lo.

Ele estudava medicina. E enfaixou seu ferimento. Ele não quer que você morra.

Mas, então, por que o esfaqueou?

A respiração dele se aproximou.

Sim, o cara estava definitivamente se inclinando para ele.

Decidindo tirar vantagem do momento, o xerife abriu os olhos enquanto dobrava o braço dele para trás.

Um olhar de surpresa atravessou o rosto do homem.

Sim.

Era ele.

Brandon Hollister.

E estava suficientemente perto.

O xerife Byers levou a mão para a frente rapidamente, batendo com o lado dela na frente da garganta de Hollister.

Foi uma pancada forte, mas um pouco baixa demais, e só o tonteou por um momento. Enquanto agarrava o pescoço do adversário, o xerife agarrou sua camisa, trouxe­-o para mais perto e, enquanto Hollister ainda recuperava o fôlego, enroscou o braço em torno de seu pescoço, na esperança de asfixiá­-lo.

Interrompa o fluxo de oxigênio para o cérebro, espere por dez segundos, talvez quinze, e ele vai ficar inconsciente.

É do que você precisa.

Só mais alguns segundos.

Depois você procura a chave das algemas no bolso dele e...

Lutando contra a reação do xerife, Hollister deu­-lhe um soco no flanco ferido.

Uma onda paralisante de dor tomou conta dele e seu braço relaxou.

Hollister se livrou dele.

Com o rosto contorcido pela dor, o xerife tombou de volta na cama.

– Você não devia ter feito isso – disse Hollister, com uma voz forçada e desagradável. Ele se afastou para longe do alcance do xerife, esfregando a garganta. O xerife viu que ele tinha uma seringa na mão e ataduras novas.

Talvez ele tenha vindo para trocar o curativo – ou vai drogar você.

Ou as duas coisas.

– Você não entende o que está acontecendo – disse Hollister.

– Conte­-me o que está acontecendo.

Mas, em vez de responder, Hollister apenas olhou para o sangue fresco que saía pelo curativo no flanco do xerife.

– Faça pressão no lugar. Não posso deixar você morrer antes que ele volte.

– Antes que quem volte?

Ele tossiu e tornou a esfregar o pescoço, mas não respondeu.

– O carro de meu filho estava em casa quando você me atacou no sábado à noite? Ele está bem? Juro por Deus que, se você o machucou...

– Ele está bem. Talvez uma pequena pancada na cabeça, mas foi só isso.

– O que você quer?

– Eu quero que o mundo saiba o que está acontecendo no instituto, e quero que você me ajude a fazer isso.

O quê?

Ele foi até a porta e a fechou.

O xerife não o ouviu trancá­-la.

Quando ficou sozinho, soltou um longo e doloroso suspiro.

Instituto? Que instituto?

O único em que conseguia pensar, naquela área, era o Instituto Traybor, mas eles estudavam peixes lá e não dava para entender o que isso teria a ver com Hollister.

Mas ele sabia uma coisa nova: Hollister não estava agindo sozinho.

Não.

Ele mencionou alguém que estava para voltar.

E o xerife não gostou disso.

Apesar da dor quase debilitante, ele conseguiu pressionar a mão direita contra o ferimento para estancar o sangue. Se o parceiro de Hollister estava a caminho, ele precisava sair dali e ir para um hospital o mais rápido possível.

Enquanto se reposicionava, tentando ficar mais confortável, uma das molas do estrado da cama pressionou suas costas. Ele deslizou para o lado para evitar que ela o machucasse.

Mas, então, ocorreu­-lhe um pensamento e ele se virou para examinar a mola.

Sim. A ponta parecia suficientemente estreita. Se ele conseguisse desenrolá­-la, poderia usá­-la para abrir as algemas.

Ou, pelo menos, tentar.

Depois de olhar rapidamente para a porta a fim de se certificar de que Hollister não estava voltando, o xerife Byers começou a trabalhar na remoção da mola da armação da cama.


51

17h41
Faltando 50 minutos

Kyle passou por uma poça de gelo, e o carro derrapou um pouco antes que os pneus tornassem a se firmar na estrada.

– Você está legal? – perguntou Daniel.

– Estou bem.

– Ouça, nós realmente precisamos descobrir quem tentou me matar lá na ilha.

– Claro, mas ninguém sabia sobre o farol ou aonde nós íamos.

– Poderia ter sido o prisioneiro que o Sr. Zacharias disse que fugiu na prisão? Será que é ele que está matando os lobos? E se...

– Larry – interrompeu­-o Kyle.

– O quê?

– Larry sabia que a gente ia lá. Ele também tinha outros barcos disponíveis além do que nós usamos e sabia que havia um atracadouro no outro lado da ilha.

– Isso não faz nenhum sentido. Ele não teria queimado o farol. Além disso, por que o seu tio Larry tentaria me matar?

– Não sei, mas quem mais... Espere, e o Sr. Zacharias? Você disse que ele também sabia aonde nós íamos.

– Sim, eu mencionei isso a ele quando ele me deixou na sua casa, mas ele tampouco tentaria me matar. Ele está do nosso lado.

Kyle ficou em silêncio.

– Ou, pelo menos, acho que ele está – murmurou Daniel, sem ter, de repente, certeza de nada.

– De qualquer maneira – disse Kyle –, precisamos encontrar um modo de entrar em contato com ele. Talvez possamos finalmente entender o que está acontecendo.

– Vamos recapitular um pouco. No sábado, Nicole me perguntou como a caixa tinha ido parar lá no palheiro.

– Isso significa recapitular muito.

– Siga o meu raciocínio. Eu vi essa caixa quando era mais novo, pelo menos podemos presumir que eu a vi, baseado no que eu sabia: o estilo de escrita que eu usei na aula de Literatura, e tudo mais.

– Você está achando que foi você que a colocou lá?

– Isso faria muito sentido. Sabemos que a fazenda pertence aos Hollister, certo?

– Claro. Quero dizer... pelo menos agora pertence.

– Agora?

– Ela pode ter mudado de mãos ao longo dos anos.

– Humm... bem pensado.

O mais importante não é a quem a fazenda pertence agora, mas quem a possuía quando a caixa foi deixada lá.

– Eu acho – disse Daniel – que precisamos descobrir quem possuía aquelas terras na época, quando eu tinha 9 anos, dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias atrás.

– Por causa da distorção com Jarvis Delacroix?

– Isso mesmo.

– Minha mãe é agente imobiliária. Ela provavelmente pode descobrir, olhar nos registros, verificar quando foi a última vez que as terras mudaram de mãos.

Kyle estava ocupado com a estrada cheia de gelo; então, Daniel fez a ligação. Quando tocou, entregou o celular a Kyle, que passou um minuto tentando explicar o que precisava sem revelar tudo o que estava acontecendo, o que não foi fácil.

Quando desligou, balançou a cabeça.

– Ela disse que precisaria estar no escritório para verificar os arquivos. Beco sem saída.

Daniel fechou os olhos e revirou suas lembranças, tentando decifrar a mensagem que as distorções pareciam estar tentando lhe dizer: o que havia acontecido naquele celeiro quando ele tinha 9 anos, no dia 28 de agosto.

Por que você esteve no celeiro?

O que você viu?

E por que você bloqueou essas lembranças?

***

O Dr. Waxford tinha passado o dia inteiro no instituto.

Ainda não tinha obtido nenhuma resposta a respeito de como a notícia se espalhara e quem teria ligado para a polícia para dizer que o xerife estava no instituto.

Não, ele não tinha encontrado nada no vídeo da câmera de segurança referente à fuga do prisioneiro número 176235, mesmo depois de revê­-lo umas dez vezes – o que significava que, de algum modo, o sujeito tinha evitado todas as câmeras.

E isso era praticamente impossível.

A única explicação que ocorria ao Dr. Waxford era que alguém tinha invadido o sistema, alterado o vídeo ou descoberto uma maneira de substituí­-lo pelo que precedia a fuga, o que, com suas medidas militares de segurança e de proteção contra invasões via internet, parecia igualmente inconcebível.

Mas alguma coisa tinha acontecido ali, e ele precisava chegar ao fundo do mistério.

Embora fosse véspera de Natal, ele tinha o número particular de celular de que precisava. Ligou, então, para o seu contato no Departamento de Defesa para verificar se ele podia lhe dizer algo sobre indivíduos ou agências que tivessem o poder de tirar alguém dali.


52

17h51
Faltando 40 minutos

Nicole encontrou o que estava procurando.

Não respondia a todas as suas perguntas, mas era, definitivamente, alguma coisa que valia a pena investigar.

Parte das terras do lago Waunakee, perto do instituto, pertencia aos Bell. Ela ligou para o telefone de orientação do serviço florestal a respeito da matança dos lobos, mas ninguém atendeu.

Nenhuma surpresa. É véspera de Natal.

Ela estava para desligar quando uma gravação sugeriu que deixasse uma mensagem, e ela decidiu fazer isso. Quem sabe? Alguém poderia estar verificando essas mensagens ainda naquela noite ou no dia seguinte.

– Humm... meu nome é Nicole Marten. Acho que tenho informações sobre quem está matando os lobos – disse ela, deixando seu número e endereço antes de desligar.

Você está assumindo um grande risco, Nicole.

Verdade.

Mas três coisas eram verdadeiras: 1) Ty tinha descoberto um dos lobos; 2) a terra de sua família ficava bem no meio da área em que os lobos tinham sido mortos; e 3) ele podia ter acesso à localização dos lobos pelo escritório do pai.

Não, é claro que o envolvimento de Ty não era uma certeza, mas havia dados suficientes para fazê­-la pensar que alguma coisa estava acontecendo.

Tentou mandar uma mensagem a Daniel no número do qual ele havia ligado mais cedo, mas a mensagem não seguiu.

Havia muitos pontos fora de serviço perto da floresta nacional, de modo que ela não ficou surpresa.

Torne a enviá­-la daqui a alguns minutos.

Mas, por algum motivo, ela de repente não gostou da ideia de ficar sozinha em casa e esperou que Daniel e Kyle chegassem por volta das seis e meia.

***

Tirar a mola da cama revelou­-se tarefa mais difícil do que o xerife Byers esperava.

Do jeito que a cama fora feita, enquanto seu peso estava todo sobre ela, havia pressão demais sobre a mola, tornando impossível desenrolá­-la.

Para tirá­-la, ele teria que se erguer e colocar as pernas fora da cama.

E isso não faria nada bem para o seu lado ferido.

Enrijecendo os músculos, respirou fundo, ergueu as pernas e se levantou lentamente.

A dor se espalhou pelo corpo, mas ele fez o que pôde para controlá­-la enquanto colocava as pernas para fora da cama para aliviar o peso sobre a mola e, então, começou a desenrolá­-la, puxando­-a do colchão.


53

A vibração do telefone interrompeu os pensamentos de Daniel sobre o celeiro.

Uma mensagem de Nicole. Ela incluía um endereço, West Creek Drive, 1594, e uma nota de que era propriedade dos Bell. Será que Ty é o matador? Tome cuidado, até logo, escreveu ela.

Ele contou a Kyle sobre a mensagem e, enquanto a discutiam, o telefone tocou.

Daniel atendeu.

– Alô. Aqui é o Malcolm.

– Como você conseguiu este número?

– Andei monitorando as chamadas de Nicole e ela falou com alguém nessa linha antes de ligar para o serviço florestal.

– O serviço florestal?

– Sim. Ela também acabou de lhe enviar uma mensagem.

– Sim, eu a recebi, mas ela pode ter conversado com qualquer pessoa nesse número. Como você sabia que era eu?

– Eu sou bom no que faço, Daniel. Eu liguei os pontos. Tenho tentado entrar em contato com você.

– Pelo telefone de Kyle?

– Foi.

– Está desativado. Estávamos examinando o farol da Cova Perdida. Alguém tentou me matar.

– O quê?

– Ele incendiou o farol enquanto eu estava dentro dele.

– Você sabe quem foi?

– Não.

Vá em frente. Pergunte a ele.

– Foi você?

– Não, claro que não – respondeu ele, fazendo uma pausa, como se esperasse que Daniel respondesse, mas como isso não aconteceu, ele prosseguiu: – Se eu quisesse você morto, nunca o teria ajudado a escapar do hospital. Eu estou do seu lado.

– Sim, é o que você sempre diz.

– Confie em mim.

– O que você fez o dia inteiro?

– Fiquei procurando seu pai.

– E?

– Tenho um palpite sobre o local para onde Brandon deve tê­-lo levado.

– Brandon?

– Brandon Hollister. O prisioneiro que fugiu.

– Esse é o nome da família dona do celeiro – murmurou Daniel.

– Que celeiro? – perguntou o Sr. Zacharias.

– O celeiro onde achei o diário, mas isso não importa. Você disse que tem um palpite sobre o local onde meu pai deve estar. Diga­-me.

– Em pessoa. Encontre­-me na entrada do instituto.

– Por quê?

– Não confio em telefones, é fácil demais ouvir as chamadas de alguém. Um encontro pessoal é sempre melhor.

– Mas por que lá?

– O Dr. Waxford está no local. Ele está lá dentro. Nós temos que falar com ele.

Daniel pesou suas opções. Encontrar o Sr. Zacharias poderia ajudar, falar com o Dr. Waxford também poderia, mas isso significaria cancelar seus planos com Nicole, o que poderia não ser tão importante, mas...

– É isso que eu não entendo – disse Daniel. – Vocês dois têm objetivos opostos? Você está tentando deter a pesquisa dele? O Dr. Waxford também trabalha para o governo?

– Eu nunca disse que trabalhava para o governo.

Isso desarmou Daniel.

– Mas você estava com um uniforme de guarda da prisão estadual de Wisconsin e, mais tarde, com outro da polícia de Minnesota.

– É isso mesmo.

– Mas você não trabalha para o governo, e o Dr. Waxford trabalha?

– Isso mesmo.

– Para quem você trabalha então?

– Isso é uma coisa que eu não posso...

– Para quem você trabalha, Sr. Zacharias?

– Explico tudo quando nos encontrarmos.

– Não. Chega disso. Eu quero que você me diga o que está acontecendo. Por que você estava me esperando depois do jogo na noite de sexta­-feira? E como calhou de você sair da estrada e atolar num banco de neve bem diante do nosso carro depois que saímos da festa?

– Eu queria conhecê­-lo pessoalmente. Ver se era real.

– Se o que era real?

– O que ouvi a seu respeito.

– O fato de eu ser intuitivo e bom em juntar as coisas – disse Daniel, repetindo o que o Sr. Zacharias tinha lhe dito no hospital em Duluth.

– Isso mesmo.

– Quem lhe contou isso?

– Uma fonte.

Daniel estava ficando exasperado.

– E suponho que também não pode me dizer esse nome.

– Não pelo telefone.

Claro que não.

– Tudo bem – disse Daniel –, mais uma coisa: você me disse que estava tentando deter a pesquisa sobre cronobiologia. Como?

– Como?

– Como você vai detê­-la? Quer dizer, vi você transportando aquele prisioneiro para o Instituto Traybor. Se você está tentando deter o que eles fazem, por que estava fazendo parte disso?

– Eu precisava entrar lá, dar uma olhada, ver se as informações que minha agência tinha sobre o local estavam corretas. Agora, ouça, eu...

– Mas... – Então, uma ideia o atingiu. Uma das peças do quebra­-cabeça se encaixava. – Oh...

– O quê?

Daniel esperava que não fosse verdade, mas quanto mais pensava nisso, mais a coisa fazia sentido, embora não quisesse acreditar que fosse possível.

– Você o ajudou.

– Quem?

– O cara que escapou, Hollister. Você o ajudou a fugir do instituto.

– Por que faria...?

– Mas fez, não é mesmo? E quando ele se viu livre, foi atrás de meu pai.

– Não é hora de...

– Você não respondeu a minha pergunta. Você é responsável pela fuga de Brandon Hollister do centro de pesquisa?

Daniel ficou esperando e, finalmente, o Sr. Zacharias respondeu:

– Eu não sabia que ele iria atrás de seu pai.

Ele sentiu a mão apertando o telefone.

– Não posso acreditar nisso. O que aconteceu ao meu pai... é culpa sua.

– Quando eu descobri o que estavam fazendo lá, quando vi com os meus próprios olhos, não podia deixar o Hollister lá. Ouça, podemos conversar mais pessoalmente.

– Onde está o meu pai?

– Eu não sei. É tudo o que eu posso lhe dizer neste momento. Encontre­-me no instituto. Precisamos saber quem são os comparsas de Hollister e quem pode tê­-lo levado até sua casa na noite em que ele atacou seu pai.

O telefone ficou mudo.

– Sr. Zacharias?

Nada.

– O senhor está aí?

Nenhuma resposta.

Daniel deu um tapa na porta do carro.

– Então – disse Kyle, que tivera uma ideia do conteúdo do telefonema –, foi o Sr. Zacharias que ajudou o cara a escapar do instituto? Sério?

– Foi. Brandon Hollister. Mas parece que outra pessoa o levou de carro até nossa casa no sábado à noite. Você ouviu a conversa?

– Só o que você disse.

– O Sr. Zacharias quer que eu o encontre no instituto, para conversarmos com o Dr. Waxford... – disse Daniel, observando em que ponto estavam da estrada. – Ouça, minha casa não está tão longe. Passe por lá para que eu possa pegar o meu carro.

– Você não acha que haverá policiais vigiando a sua casa? Quero dizer, considerando que você escapou do hospital e eles estão atrás de você?

– Não existem muitos xerifes nesse distrito, por isso eu duvido... Tenho certeza de que eles estão procurando meu pai. E com as estradas nesse estado, acho que os patrulheiros estaduais estão muito ocupados ajudando as pessoas que encalharam. Mas passe pela minha casa e vamos ver. Se houver algum carro da polícia por lá, nós passamos direto.

– Então vamos nos separar: você encontra o Sr. Zacharias e eu vou para a casa da Nicole?

– Isso mesmo. Assim, se descobrirmos onde meu pai está, pelo menos um de nós será capaz de ir até lá. Além disso, preciso esclarecer o que aconteceu no sábado à noite e estou achando que, se examinarmos a cozinha, minha memória vai se reativar, como aconteceu no celeiro.

– Faz sentido.

– Vire à esquerda ali adiante – disse ele. – Vamos pegar um atalho.


54

18h01
Faltando 30 minutos

O Dr. Waxford soube que, além de alguns grupos terroristas internacionais, havia diversas agências governamentais dos Estados Unidos e algumas empresas privadas com capacidade tecnológica para burlar o sistema de segurança do Instituto Traybor.

Isso, na verdade, não tornava as coisas mais simples como ele esperava.

Contudo, a Agência Nacional de Segurança tinha divulgado que um operador freelance chamado Malcolm Zacharias, especializado no resgate de ativos, tinha sido visto nas Cidades Gêmeas* recentemente.

Isso ficava a apenas duas horas de Beldon.

De acordo com o contato do Dr. Waxford, Zacharias era o mais provável responsável pela fuga.

Ele pode ter ajudado Hollister a escapar, pode ter adulterado o vídeo de segurança.

E pode levá­-lo até Hollister.

Não estava claro para o Dr. Waxford como ele poderia localizar Zacharias, mas tinha todos os recursos à sua disposição para isso.

Tornou a ligar para o contato no Departamento de Defesa.

– E alerte as autoridades locais – disse ele. – Faça com que o procurem.

– Sob que pretexto?

– Diga­-lhes que você suspeita que ele raptou o xerife Byers. Isso vai chamar a atenção.

Nesse ínterim, ele precisava tomar medidas que garantissem a integridade de sua pesquisa. Ele não quis fazer isso antes, mas, se Zacharias estava envolvido, ele poderia ter sido a pessoa que ligou para a polícia mais cedo, dizendo­-lhes que procurassem o xerife ali no instituto.

Se é ele, se ele realmente ajudou Hollister a escapar, ele sabe mais do que devia. Pode saber o suficiente para deter a pesquisa.

Com isso em mente, o Dr. Waxford percebeu que, se não conseguisse encontrar Hollister ou Zacharias, poderia ter que tomar outras medidas, mais extremas, para garantir que ninguém descobrisse qualquer sinal de que sua pesquisa tinha sido desenvolvida ali.

Havia meios disponíveis para essa eventualidade.

Os explosivos já estavam instalados dentro das paredes. Seria como uma explosão ocasionada por um vazamento de gás e, quando terminasse, teria selado e coberto as salas de pesquisa subterrâneas.

Seu pessoal seria realocado.

Um novo começo.

Pegou o laptop e começou a baixar os arquivos que teria que levar com ele para que pudesse prosseguir com sua pesquisa em outro local se realmente precisasse destruir aquelas instalações.

***

Não havia ninguém fora da casa, mas Daniel disse a Kyle que ficasse no carro e alerta enquanto ele ia até a cozinha.

Não é função da polícia limpar os locais em que crimes ocorreram, de modo que ainda havia sangue seco no chão.

Era o local exato em que Daniel tivera a visão do pai sendo atacado, quando estava no consultório do psiquiatra. Então, aparentemente, aquela parte do sonho tinha sido real, mesmo se a parte em que sua mão era sugada pelo triturador de lixo fosse irreal.

Agora, ver as manchas de sangue ali, tão reais, foi uma experiência dura.

Ele não conseguia acreditar que o Sr. Zacharias tinha sido a pessoa que ajudara Hollister a escapar.

Mas em que isso pode lhe ajudar?

O que aconteceu com seu pai?

Ele se ajoelhou ao lado do sangue, colocou a mão no linóleo frio e, então, deixou que seus pensamentos o levassem de volta à noite de sábado.

E descobriu que tinha razão.

Voltar ali havia reavivado sua memória.

Fechou os olhos enquanto uma imagem atrás da outra lhe passava pela mente, cada uma delas ficando mais clara, cada uma delas levando­-o para mais perto da verdade.

Você vai para o seu quarto, planejando ler os diários, mas decide pegar um refrigerante na cozinha; põe a caixa contendo os diários em sua escrivaninha ao lado de seu telefone e vai para o corredor.

A meio caminho da sala, as luzes se apagam.

Seu pai não está em casa e não está caindo nenhuma tempestade, então você imagina que se trata de um fusível.

Você sabe onde fica a caixa dos fusíveis, acima da máquina de lavar, no porão. Encontra uma lanterna na gaveta da cozinha e desce as escadas.

Você está se aproximando da caixa quando a porta da garagem se abre.

Um instante depois, seu pai o chama e você acha isso estranho, pois, com a escuridão que está, ele não teria ideia de que você estava aqui embaixo. Além disso, não parece que ele esteja tentando ouvir seus passos aqui, mas parece estar falando com alguém na cozinha: “Daniel? Você está bem?”.

E então: “O que está havendo, Dan?”.

De repente, um grito de dor e um baque surdo.

Silêncio.

Você o chama, pergunta se ele está bem, mas não ouve nenhuma resposta.

Subindo depressa as escadas para entrar na cozinha, você passa a lanterna por ela e o vê caído no chão, perto da geladeira.

“Papai!”

E corre para ele.

Uma faca está enterrada em seu flanco e ela se move ligeiramente cada vez que ele respira com dificuldade.

Você tenta decidir se vai pegar o telefone para pedir ajuda ou se fica aqui e tenta estancar o sangramento, mas, então, percebe que, se não conseguir uma ambulância logo, seu pai vai morrer.

Mas quem fez isso provavelmente ainda...

Você examina a cozinha, mas não vê ninguém.

Voltando rapidamente a seu quarto, encontra o celular e liga para a emergência, correndo de volta para ajudar seu pai.

Você coloca a lanterna no chão e tenta controlar o sangramento, mas há sangue demais.

Tanto sangue.

Em suas mãos.

Por toda parte.

Enquanto aguarda a chegada do socorro, ouve um movimento atrás de você – o leve ranger do assoalho lhe diz que alguém está ali.

Virando­-se, você vê surgir uma figura. Ele balança algo contra sua cabeça.

Ocorre uma explosão de estrelas e você não vê mais nada, não sente mais nada, exceto o peso de uma escuridão ampla e avassaladora que rapidamente toma conta de você.

Mas, pouco antes de desmaiar, você ouve alguém chamando da escada do porão. “Este é o Daniel”, diz a pessoa. “Isso muda tudo.”

***

Daniel piscou e olhou para a porta do porão.

Seu coração estava disparado.

Havia duas pessoas ali, e não apenas uma.

De quem era a voz que você ouviu?

Ele tornou a fechar os olhos e se concentrou, mas não conseguiu lembrar nenhum outro detalhe sobre quem o teria atingido ou quem estava na escada. Contudo, embora não pudesse identificar a voz, sabia que já a tinha ouvido.

Então...

Seria um dos antigos comparsas de Hollister?

O Sr. Zacharias ajudou Hollister a escapar. Poderia ser ele?

Agora havia uma suspeita.

Vá até lá. Mexa­-se. Vá encontrá­-lo. Ver o que ele tem a dizer.

Kyle foi para a casa de Nicole e Daniel ficou com o telefone de Larry; depois de localizar um molho de chaves, ele saiu em seu carro para se encontrar com o homem que podia muito bem estar na casa quando seu pai foi esfaqueado.

* Cidades Gêmeas são um caso especial em que duas cidades ou centros urbanos são fundidos em uma área geográfica próxima e passam a crescer juntos. Nos Estados Unidos, o termo se refere especificamente à região metropolitana de Minneapolis­-Saint Paul. (N.T.)


55

18h11
Faltando 20 minutos

O xerife Byers conseguiu soltar a mola, mas quando ela saiu da cama, pulou pelo quarto e ricocheteou na parede.

E rolou.

Rolou.

E finalmente parou, longe do alcance dele.

Mas talvez você consiga trazê­-la para perto com o calcanhar.

Com os pés da cama presos no chão, ele não conseguia deslocá­-la para mais perto; em vez disso, jogou a perna para fora e esticou até o ponto que as algemas lhe permitiam.

Depois de duas tentativas, conseguiu trazer a mola em sua direção com o pé.

Um pouco mais de esforço e ele conseguiu rolá­-la até ficar quase ao seu alcance.

Então, com a mola na mão, introduziu a ponta dela na fechadura das algemas, tentando se libertar.

***

Daniel não estava longe do instituto. Enquanto dirigia o carro até lá, deixou que sua mente voasse pelos fatos, pelas distorções.

O que ele sabia.

O que não sabia.

Malcolm Zacharias queria conversar com ele sobre os antigos companheiros de Hollister que poderiam tê­-lo ajudado, e um deles, com certeza, era Ty Bell, que era amigo dele antes de sua prisão.

Seria ele?

Ty poderia estar trabalhando com Hollister?

Será que foi ele que atacou seu pai? Ou teria sido ele a pessoa que você ouviu subindo do porão pouco antes de desmaiar?

Nicole tinha lhe mandado o endereço da propriedade dos Bell: West Creek Drive, 1594.

Era no lago Wanakee, perto do instituto, e bem no centro dos locais onde os lobos mortos tinham sido encontrados.

Poderia ser Ty quem tentou matar você na ilha?

Ele já puxou uma faca para você. Ele é capaz de...

O telefone de Larry tocou, arrancando Daniel de seus pensamentos.

O indicador de chamadas dizia apenas “comercial”, e Daniel imaginou que provavelmente fosse Larry ligando de seu número fixo.

Falar ao telefone e dirigir sob a sob a nevasca não era fácil nem prudente, mas Daniel não tinha tempo de parar no acostamento para atender.

– Larry?

– Eu mesmo. Descobri alguma coisa. Lembra como eu estava pensando se alguém teria alugado um barco de outro estabelecimento? Bem, um cara, um amigo meu do outro lado da cidade, alugou um barco para alguém.

– Para quem ele alugou?

– Grady Planisek.

– Planisek?

– Isso mesmo. Ele chegou depois de você, deve ter dado a volta pelo lado sul da ilha, e é por isso que você não viu o barco. Ou pode ter sido por causa da neve e da visibilidade limitada. De qualquer modo, esse nome lhe diz alguma coisa?

– Diz, sim. Havia um rapaz dessa área que desapareceu quando eu era criança. Esse era o nome dele: Grady Planisek.

E foi através disso que o demônio voou no palheiro: as palavras gravadas, a frase “Grady Planisek esteve aqui”.

Daniel agradeceu a Larry e desligou.

Quem teria usado aquele nome para alugar o barco?

Grady havia desaparecido dezessete anos antes.

Pelo que Daniel lembrava, o garoto tinha 10 anos quando desapareceu.

Uma ideia lhe surgiu, vinda não se sabe de onde, e ele repassou todas as peças do quebra­-cabeça que ele supunha já estarem em seus lugares.

Grady Planisek poderia estar vivo?

Seria possível? Poderia...

Uma faixa de gelo e uma súbita derrapagem em direção ao banco de neve do acostamento arrancaram Daniel de seus pensamentos e ele tornou a se concentrar na direção pela estrada que só piorava, mas depois que reassumiu o controle do carro, pensou em Grady.

Você tem o endereço da propriedade dos Bell.

Fica no caminho do instituto.

É perto.

Quem atacou seu pai poderia estar lá?

Malcolm Zacharias estaria na área próxima ao instituto por causa disso?

Ele está por trás de tudo isso?

Ou será Grady?

Ou Ty?

Você podia checar tudo isso.

O Sr. Zacharias quer se encontrar com você para conversar sobre as pessoas que Hollister conheceu antes de ir para a prisão. Ty Bell é uma delas.

E então? Encontrar o Sr. Zacharias ou investigar a propriedade junto ao lago?

A intersecção estava bem à frente.

Você nunca disse ao Sr. Zacharias que ia encontrá­-lo. Você pode chegar a West Creek Drive se pegar a próxima saída. Vá verificar. Se não houver nada lá, você pode se encontrar com ele depois.

Daniel pegou a saída e foi para West Creek Drive, 1594.

***

Nicole estava verificando suas mensagens para ver se Daniel havia lhe respondido, quando viu o reflexo de faróis passar rapidamente pela janela à medida que um carro entrava no pátio em frente de sua casa.

Humm, Daniel e Kyle vieram muito mais cedo do que pensavam.

Pouco depois, a campainha da porta tocou.

Depois de colocar o celular na mesinha de centro perto do sofá, ela foi até a porta da frente, acendeu a luz da entrada e olhou pela janela.

Não havia ninguém lá.

Isso era estranho.

Quem tocou a campainha?

Depois de certo debate interior, ela foi em frente e abriu a porta.

– Olá? Daniel? Kyle? Onde vocês estão, rapazes?

Olhou para a noite enevoada e não viu nenhum movimento, nada.

Contudo, quando estava para fechar a porta e trancá­-la, alguém saltou das sombras em torno da casa e correu para ela. Dando um passo atrás, ela tentou fechar a porta, mas ele colocou o pé nela.

Ela se afastou, com o coração batendo apertado no peito.

Ty Bell entrou na sala.

– Olá, Nicole.

E fechou a porta atrás dele.


56

No último mês de setembro, Nicole estava no carro com Daniel voltando para casa, depois que as pessoas com quem haviam marcado de se encontrar não apareceram no baile do colégio.

Ty e seus três comparsas estavam esperando por eles na estrada. Daniel os enfrentou quando eles tentaram entrar à força no carro e agarrá­-la – ela nem queria pensar no que eles poderiam ter feito com ela se isso tivesse acontecido – e fugiram. Foi o que a levou a carregar um spray de pimenta na bolsa desde então.

E agora ela estava sozinha com ele, e seus pais não voltariam antes das oito horas.

Ok, mas Daniel e Kyle estão a caminho. Daniel disse seis e meia. Você só tem que se aguentar, ficar conversando com ele até esse horário.

– Como foi que você... – começou ela, mas se deu conta do que acontecera. – Ah, você estava no escritório de seu pai, não é isso? Você ouviu a mensagem que eu deixei no disque denúncia.

– Eu estava pesquisando.

– A localização dos lobos.

Ele sorriu e jogou a cabeça ligeiramente para o lado.

– Olhe só você... juntando as coisas.

A raiva aumentou dentro dela.

– Quantos já foram, Ty?

– Quantos?

– Lobos. Quantos você matou e não foram encontrados?

– Encontraram todos, exceto um. Foi um bom número.

Ela se adiantou e deu­-lhe um tapa.

Com força.

Ele é maior que você. É mais forte. Você não devia ter...

Dane­-se.

Ela estava feliz por ter batido nele.

Nicole retrocedeu.

– O que você está fazendo aqui?

Ele limpou com a mão um pouco do sangue que saía de seu lábio machucado.

– Achei que você e eu podíamos ter uma conversinha.

– Daniel e Kyle vão estar aqui a qualquer momento.

– Então é melhor não perdermos tempo.

Procure ganhar tempo.

Não, você precisa chamar alguém. Conseguir ajuda.

Ela havia deixado o celular perto do sofá e, enquanto lentamente avançava de costas para pegá­-lo, Ty deve ter adivinhado o que ela tencionava, pois pulou na frente dela, empurrou­-a de lado e agarrou o telefone.

– Eu fico com isso – disse ele, colocando o celular no bolso. – Assim podemos ter um pouco de privacidade.

Ah, isso não é nada bom.

Nada bom.

Você precisa sair daqui.

Mas ele deu um passo de modo a se colocar entre ela e a porta da frente.

– Eu sei onde está o pai do seu namorado.

– O quê? – exclamou ela.

– Se você ficar on­-line agora mesmo e confessar que matou aqueles lobos, eu lhe digo onde ele está.

– Você atacou o pai de Daniel? Foi você?

– Não – respondeu ele, balançando a cabeça. – Não fui eu, mas eu sei onde ele está. E vou lhe contar – acrescentou, balançando o telefone diante dela, pronto para gravar um vídeo. – Você só precisa admitir para o mundo que é a responsável.

– Isso é loucura. Quem vai acreditar que eu sou a responsável pela matança daqueles lobos?

– Vão acreditar por causa da arma que vão encontrar em sua garagem.

– Não é o suficiente. Daniel estava comigo quando encontramos o lobo em que você atirou no sábado. Ele sabe que não fui eu. Ele vai me defender.

– O maluquinho? – zombou ele. – Ele é o cara mais instável por aqui. Além disso, todo mundo espera que ele defenda você – acrescentou ele, batendo no bolso em que havia colocado o telefone dela. – Também vão encontrar as localizações dos lobos etiquetados em seu celular.

– Ah, entendo. Você fez o download delas.

Outro riso de zombaria.

– Você não está achando que eu vou concordar com isso...

– Bem – disse ele, guardando o celular. – Pelo menos, eu tentei.

Ela não gostou do olhar no rosto dele.

Vá em frente e faça o que ele está pedindo, Nicole. Ninguém vai acreditar e talvez ele lhe diga onde está o pai de Daniel.

– Ok – disse ela. – Vou dizer que os matei. Dê aqui o seu telefone.

– O simples fato de acreditar em mim mostra como você é realmente ingênua.

O brilho maldoso dos olhos dele a assustou, e ela tornou a pensar na vez em que ele puxou a faca para Daniel tentando tirá­-la do carro trancado.

Ele carrega uma faca automática.

Provavelmente a está carregando agora.

Ele...

Sem esperar mais, ela pulou e correu escada acima até seu quarto. Bateu a porta. Trancou­-a.

E empurrou a cômoda contra ela.

Mas, então, ouviu Ty subindo os degraus.

– Nós temos umas questões pendentes, Nicole. Mas podemos cuidar disso no seu quarto, se é isso que você está querendo.


57

18h21
Faltando 10 minutos

O xerife Byers ouviu o mecanismo da algema fazer um “clique”.

A algema se abriu.

Ele a tirou do pulso e levantou­-se com dificuldade, atravessando o quarto.

Não tinha ouvido Hollister trancar a porta, mas estava disposto a pô­-la abaixo se necessário.

Tentou abri­-la.

Destrancada.

Ótimo.

Com a adrenalina a toda e pronto para uma luta, entrou na sala da cabana e a examinou: móveis rústicos de madeira. Um sofá. Duas cadeiras. Uma lareira. Três cabeças empalhadas de veados de cauda branca sobre a parede, perto de um relógio de pêndulo.

Uma porta aberta levava à cozinha. Havia portas francesas de vidro na parede ao fundo.

Linha para sutura, agulhas, curativos ensanguentados, algumas seringas vazias e vidros de remédio estavam em um dos balcões.

Ele não reconheceu o lugar. Nunca estivera ali.

Nenhum sinal de Hollister.

Onde está ele?

Olhou ao redor, tentando achar um telefone, mas não encontrou nenhum.

Saia daqui. Você não está em condição de lutar. Vá embora.

Já estava se dirigindo à porta da frente quando uma foto sobre a lareira chamou­-lhe a atenção.

Era uma fotografia de Ty Bell sentado ao lado de um veado de cauda branca, com um rifle pousado em seus chifres.

O xerife se deteve.

Quem teria colocado aquela fotografia na cabana?

Provavelmente alguém da família. Provavelmente...

Será esta a cabana de caça de Lancaster Bell?

Ele estará envolvido no mistério?

Hollister mencionara outra pessoa, dizendo que alguém estava para chegar. Será Lancaster que...

– Pare onde está, xerife – disse Brandon Hollister vindo da cozinha, segurando uma faca de serra. – Sente­-se. No sofá.

O xerife deixou que suas mãos se cerrassem.

– Acho que vou ficar em pé.

***

Nicole tentou se acalmar respirando fundo e imaginando o que fazer, enquanto Ty forçava a maçaneta da porta trancada.

– Não faça assim, Nicole. Podemos chegar a outro acordo.

Pense, Nicole, pense!

Ele está com o seu celular.

Desesperadamente, ela procurou pelo quarto em busca de...

Sim.

Ele estava com o celular dela.

Mas ela tinha o laptop.

***

Daniel cruzou a ponte sobre o rio Pine e, então, entrou na West Creek Drive.

Ele só tinha passado por aquela via um par de vezes, mas, com base em sua proximidade com o lago, ele imaginou que estivesse a menos de um quilômetro da propriedade.

***

O xerife Byers observou Hollister cuidadosamente, esperando que ele baixasse a guarda o suficiente para avançar e desarmá­-lo.

– Abaixe essa faca, Brandon.

– Não.

– Abaixe...

– Não! Sente­-se – disse ele, observando o relógio da parede e mexendo num pequeno estojo em seu cinto, quase do tamanho de um porta­-celular. – Agora.

– Você disse que queria minha ajuda, mas não vou ajudar você enquanto estiver me ameaçando com essa faca.

Hollister não se mexeu.

Os dois estavam em guarda.

O xerife tentou uma tática diferente.

– Por que você me esfaqueou se queria que eu o ajudasse?

– A princípio eu queria matar você, mas ele me disse para não fazer isso.

– Quem lhe disse?

– Ele está chegando... você não sabe de nada. O tempo se torna... – Sua voz foi interrompida pelo que parecia um tremor de medo. – Eu quero que o mundo conheça a verdade sobre o que eles estão fazendo lá.

– Onde? Na prisão? Você foi maltratado?

– Não na prisão. No instituto! – disse Hollister, batendo a lâmina da faca na lateral da própria cabeça. – No seu cérebro. Eles fazem coisas nele. Fazem com que pareça...

– Brandon, você precisa baixar essa faca.

Brandon ameaçou­-o com a arma.

– Foi você que me prendeu! É culpa sua eu ter ido parar lá!

– Ok. De que instituto você está falando? O Traybor?

– Eles estavam pedindo voluntários, disseram que iam diminuir o tempo de nossas sentenças, mas... na sala... – disse ele, com a mão trêmula. – Eles pegam a gente. Você pode imaginar o confinamento na solitária? Mas sem interrupção, sem nenhum alívio. É assim que é... semanas... embora eu estivesse... – prosseguiu Hollister, balançando violentamente a cabeça. – Eles não vão acreditar em mim – completou, agitando a faca como se quisesse deixar as coisas bem claras. – Mas vão acreditar em você.

Cuidado. Este cara está perdendo o controle. Mantenha­-o falando, mas não apresse as coisas.

– Muito bem, estou ouvindo. Conte­-me o que está acontecendo.


58

Daniel estacionou.

Saiu do carro.

Não havia outros carros na entrada, mas as luzes da cabana estavam acesas, o que parecia indicar a presença de alguém.

Dê uma olhada e vá se encontrar com o Sr. Zacharias.

Aproximou­-se da janela para ver se conseguia ver lá dentro, mas as cortinas estavam fechadas.

Rodeando a cabana, encontrou portas de vidro.

Pelo vidro, pôde ver dois homens em pé do outro lado da sala de estar.

Um deles era seu pai.

Ele está vivo!

Graças a Deus, ele está vivo!

O outro homem estava a cerca de três metros dele, segurando uma faca.

Daniel reconheceu­-o. Era o prisioneiro que tinha visto no Instituto Traybor.

É Brandon Hollister. Ele foi preso por homicídio.

E vai atacar seu pai!

Daniel tentou abrir as portas de vidro, mas estavam trancadas. Com o vento fazendo com que elas trepidassem, nenhum dos dois homens o viu.

Você precisa entrar lá. Precisa ajudar seu pai.

Mas como?

Ele voltou à frente da cabana, mas aquela porta também estava trancada.

Tudo bem.

Ache outra maneira de entrar.

***

Nicole colocou o laptop na cômoda junto à porta para que o microfone captasse a voz de Ty do corredor.

Fazer com que alguém admitisse ser o autor da matança dos lobos era uma boa ideia, mas não ia ser ela a fazer essa confissão pública.

– Então, seu pai sabe o que você tem feito? – perguntou ela.

Existem milhares de maneira de pedir socorro on­-line e, enquanto trabalhava nisso, ela mandou mensagens e e­-mails a pelo menos seis de seus amigos, pedindo­-lhes que mandassem a polícia à sua casa imediatamente.

Como Ty não respondesse, ela insistiu:

– Ou quem sabe são aqueles três caras com quem você sempre anda?

– Ninguém mais sabe. É o nosso segredinho.

Ela checou o nível de gravação, para garantir que a voz dele estivesse sendo registrada.

Estava, sim.

Ótimo.

Ele tornou a tentar a maçaneta.

– Abra esta porta, Nicole.

– Então você matou os lobos sozinho?

Ela aguardou. Ele não disse nada.

– Por que você matou os lobos, Ty?

– Para treinar pontaria.

Ela sentiu outra onda de ódio dentro dela pelo que ele tinha feito.

– Mesmo que você coloque o rifle na minha garagem, vão acabar sabendo que ele era originalmente seu. Até você sabe disso.

– Você acha que eu usaria meu próprio rifle?

– O quê? De quem era o rifle que você usou?

– Sabe o centro de pesquisa? Lá trabalha um cara. Eu emprestei o Browning automático dele. Agora...

– Você quer dizer que roubou o rifle dele.

Ele tornou a tentar a maçaneta.

– Não quero machucar você, Nicole. Só quero que cheguemos a um entendimento.

– Que tipo de entendimento?

Vamos, Daniel. Seja rápido!

– Um entendimento que...

Enquanto estava aumentando o volume da gravação, ela acidentalmente tocou no “play”, e o que fora gravado tocou alto.

– O que é isso? – gritou Ty. – Você me gravou?

Oh, não!

Ela correu para postar o áudio, mas Ty esmurrou a porta e ela retrocedeu.

Ele tornou a esmurrar a porta, tentando pô­-la abaixo.

Nicole jogou o laptop na cama.

E correu para pegar a bolsa.

***

Momentos antes, ainda no carro, Daniel usara o telefone de Larry para ligar para a polícia e conseguir uma ambulância para o pai. A prudência lhe disse que, com as estradas ruins como estavam e com ele tão longe da cidade, poderia demorar de oito a dez minutos antes que o socorro chegasse.

Não.

Era tempo demais.

Ele precisava fazer alguma coisa para ajudar o pai.

Abrindo o porta­-malas, Daniel tirou a pá que tinha para o caso de ter que tirar bancos de neve e foi para a entrada da cabana.

***

O xerife ouvia enquanto Brandon Hollister explicava pelo que tinha passado no Instituto Traybor.

E ficava consultando o relógio.

– Quando ele chegar aqui, vamos cuidar de tudo.

– Quem vai chegar aqui?

– Você vai ver.

– Depois de eu ajudá­-lo, o que vai fazer comigo? Vai me deixar ir embora?

– Você vai ter seu nome na parede.

– O quê?

***

Daniel não sabia se aquilo ia funcionar, mas sabia que, se ficasse sentado sem fazer nada, esperando que a ajuda chegasse e Hollister matasse seu pai, nunca iria se perdoar.

Posicionando­-se junto à porta de vidro, agarrou o cabo da pá como se fosse um taco de beisebol, levou­-o acima do ombro e o baixou com toda a força, arrebentando a porta, que se espatifou, espalhando vidro por todo o interior da cabana.

Evitando os pontiagudos dentes de vidro que ainda estavam no caixilho inferior da porta, Daniel entrou por ela, ergueu a pá e avançou em direção a Hollister.

– Largue a faca.

Eles lutaram por um momento, Daniel largou a pá e foi socorrer o pai, mas, enquanto cruzava a sala, o xerife já havia torcido o braço de Hollister para trás, forçando­-o a largar a faca.

– Não – gritou Hollister, lutando com fúria, mas não conseguindo se soltar. – Você não entende!

– Quieto, Brandon – disse o pai de Daniel, chutando a faca para longe, em direção à porta da frente. – Dan, você está bem?

– Estou. E você?

– Estou bem – disse ele, mas era óbvio que a dor o estava atormentando enquanto conduzia Hollister, que fazia de tudo para se soltar, para um cômodo vizinho. – Venha cá, Dan, preciso de sua ajuda.

Seu pai levou Hollister até uma cama e pediu que Daniel colocasse uma algema em torno do pulso do homem, prendendo­-o à cabeceira.

Depois de Hollister estar dominado, seu pai procurou nos bolsos dele e achou a chave das algemas. Contudo, enquanto estava se afastando, Hollister de repente tirou uma seringa de um estojo no cinto e, com a mão livre, enterrou­-a na perna do pai de Daniel, apertando o êmbolo.

– Aí está. Vamos ver como ficamos.

***

O xerife Byers arrancou a seringa vazia da perna e atirou para longe.

– O que foi isso? – perguntou ele. – O que você me aplicou?

Hollister limitou­-se a sorrir com afetação.

– Você vai ficar com muito sono, xerife.


59

Kyle entrou na rua de Nicole. Com a luz dos faróis, percebeu que os carros do pai e da mãe dela não estavam lá.

Mas o de Ty Bell estava.

***

O pai de Daniel não conseguiu obter nenhuma resposta de Hollister e, então, foi até o outro quarto e começou a remexer seringas e frascos de remédio vazios que estavam na bancada, tentando identificar o que ele poderia ter lhe injetado.

– Eu chamei a emergência alguns minutos atrás – disse­-lhe Daniel. – Eles estão a caminho.

***

Assustada, Nicole ficou olhando quando a fechadura voou do lugar e a porta se escancarou.

Empurrando a cômoda, Ty avançou contra ela.

Quando estava prestes a alcançá­-la e agarrá­-la, ela levou a mão para a frente e esvaziou o spray de pimenta no rosto dele.

Ele gritou e levou as mãos ao rosto, esfregando os olhos freneticamente.

***

– Pai, sente­-se – disse Daniel. – A ambulância está chegando.

O pai, que parecia mais fraco a cada segundo, tombou no sofá.

– Hollister disse que você tomou uma pancada na cabeça.

– Eu estou bem – disse ele, mas não mencionou nem o incêndio nem o quase afogamento. – Procure descansar até os paramédicos chegarem.

***

A porta da frente da casa de Nicole estava destrancada, e Kyle voou para dentro.

– Nicole? Você está bem?

Ela gritou em resposta de lá de seu quarto.

Galgando rapidamente os degraus, encontrou Ty Bell estendendo o punho para socá­-la.

Kyle agarrou­-o pelos ombros e o derrubou no chão.

Seus olhos estavam inchados.

Ele chorava de dor e de raiva.

Nicole ainda estava segurando o spray de pimenta.

– Ele está com o meu telefone – disse ela a Kyle.

Apesar do esforço obstinado de Ty para se livrar, Kyle não perdeu tempo em recuperar o telefone de seu bolso.

Enquanto Nicole chamava a polícia, Kyle disse:

– Precisamos garantir que ele não saia daqui.

– Temos fita adesiva grossa na cozinha, na gaveta ao lado da geladeira.

– Isso deve funcionar.


60

18h28
Faltando 3 minutos

Enquanto o pai de Daniel se acomodava no sofá, soltou um gemido de dor.

Mantenha­-o conversando.

– Pai, você se lembra de Grady Planisek?

– De quem?

– Grady Planisek. Um garoto que desapareceu quando eu tinha 9 anos.

– Ok – respondeu ele, já meio inconsciente.

– Ouça. Ele tem alguma coisa a ver com tudo o que está acontecendo aqui. Alguém hoje usou o nome de Grady para...

Quem você ouviu falar lá da escada no sábado à noite um pouco antes de desmaiar?

O Sr. Bell.

Ty?

Grady Planisek?

– Alguma coisa não está certa, pai. Alguma coisa não se encaixa.

Os pensamentos de Daniel avançavam e voltavam num círculo.

Procuravam um local para aterrissar.

Naquela distorção, Betty o avisou para tomar cuidado com a pessoa para a qual você contava seus segredos. “Você precisa detê­-lo antes que aconteça de novo”, disse ela. “Você não pode deixar que ele prossiga.”

E ainda havia aquele homem no hospital. Ele advertira Daniel: “Você não tem muito tempo. Ele vai tornar a fazê­-lo”.

De quem ele estava falando?

Quem vai tornar a fazê­-lo?

Mas você deve tê­-lo imaginado. Você nem sabe se ele era real.

– Você viu mais alguém no sábado à noite? – perguntou Daniel ao pai.

– O quê? – respondeu ele, e, por sua maneira de falar, Daniel percebeu que estava perdendo os sentidos.

A emergência disse de oito a dez minutos.

É muito tempo.

Indo até o outro quarto, Daniel tentou fazer com que Hollister lhe contasse que droga era, mas o homem apenas agitou a algema.

– Me solte e eu lhe digo.

Daniel aguçou o ouvido para ver se detectava alguma sirene, mas só ouviu o som do vento no meio da noite. A neve estava soprando através da porta de vidro quebrada, e mesmo naquele lado da cabana, ele conseguia sentir as lufadas de ar frio.

– Está de acordo? – perguntou Hollister. – Você quer salvar seu pai? Só precisa me soltar e eu o ajudo. Prometo.

– Isso não vai acontecer.

Daniel voltou até o pai.

– Precisamos levar você para o hospital – disse ele, estendendo a mão para ajudá­-lo a se levantar. – Vamos, eu o ajudo.

– Não podemos largar Hollister aqui.

– Ele está algemado. Não irá a lugar nenhum. E os policiais estão a caminho.

– Me dê só um momento – disse o pai, fechando os olhos, sem segurar a mão de Daniel. – Preciso recuperar o fôlego.

Mas, à medida que os segundos passaram, seu pai não se mexeu mais.

– Pai?

Não o deixe dormir.

– Pai!

Daniel sacudiu­-o pelos ombros para mantê­-lo acordado.

Ele se mexeu.

– Sim, eu estou bem.

– Nós vamos embora. Agora. Vamos. Precisamos ir.

Dessa vez o pai não objetou e deixou que Daniel o ajudasse a ficar em pé; contudo, Daniel constatou que precisava suportar a maior parte de seu peso. Enquanto passava o braço pela cintura do pai, evitando cuidadosamente fazer pressão sobre o curativo, o sangue que saía dele o fez pensar no sonho que tivera, em que o vira na cozinha, e também em sua própria mão sendo engolida pela pia, com as lâminas do triturador de lixo dilacerando­-lhe a pele, os ossos, os...

Por que você bloqueou o que aconteceu no celeiro quando era criança?

Porque era muito traumático.

Porque sua mente estava tentando protegê­-lo.

Enquanto Daniel ajudava o pai a chegar à porta, o sangue o fez lembrar.

Nem tudo em suas distorções corresponde integralmente às coisas da vida real.

A enfardadeira estava correndo.

O triturador de lixo moeu sua...

Então, num relance, tudo lhe voltou à mente: imagens sobrepondo­-se umas às outras numa questão de segundos, e a lembrança daquele dia surgiu diante dele.

Sua avó está triste a maior parte do tempo; assim, quando você vai lá com seus pais, tem que brincar sozinho por muito tempo, às vezes lá no sótão, às vezes nos campos e bosques perto da casa dela.

Às vezes, no celeiro da propriedade do vizinho.

Um dia você encontra uma caixa de madeira no sótão dela. Seus pais estão conversando com sua avó na sala e você pode sair pela porta dos fundos sem ser visto com a caixa.

Você atravessa o campo até o celeiro para sentar no palheiro e examinar o que está na caixa.

Ela tem um cadeado com a chave.

Isso o deixa intrigado.

Você se senta no banco lá em cima e lê os diários, examina as fotos.

A tarde está no fim e começou a chover.

Então, você ouve um homem e um menino entrando no celeiro. Eles estão conversando, mas não parece que o menino esteja ali por vontade própria.

Você não quer que eles vejam o que você está fazendo lá em cima no palheiro e, então, você coloca tudo de volta na caixa e a tranca, escondendo­-a atrás do banco. Você não quer ser apanhado e se esconde atrás de um fardo de palha.

O menino começa a chorar.

A princípio o choro é baixo, mas depois fica mais alto.

Você ouve o homem tentando fazê­-lo parar, silenciar e, por fim, forçando­-o a calar a boca!

O choro do menino se transforma num grito aterrorizado e, então, você ouve o som da enfardadeira funcionando. E quando ela para, tudo fica quieto no celeiro.

Nada de choro.

Nada de gritos.

Você está apavorado.

Você quer ir embora, voltar correndo para a casa de sua avó, mas ouve alguém subindo as escadas.

Passos pesados.

É o homem.

Ele sabe que você está aqui. Está vindo pegá­-lo!

Você se encolhe ainda mais atrás do fardo de palha, mas não consegue se esconder completamente e o vê chegar ao topo da escada.

Ele pega um canivete e faz saltar a lâmina.

Você congela, apavorado demais para se mexer.

Não, não, não.

Ele vai até a parede do celeiro e grava alguma coisa na madeira.

Depois de certo tempo, quando ele se afasta, você consegue ler as palavras: Grady Planisek esteve aqui.

Então, ele desce as escadas e você espera um longo tempo para se assegurar de que ele foi embora.

Por fim, você desce do palheiro e corre embaixo da chuva até a casa de sua avó. Você deixa a caixa no palheiro para não ter de carregá­-la, para não ter que explicar nada quando voltar para a casa dela.

Você não conta a ninguém o que aconteceu. Guarda tudo para si mesmo.

O som da enfardadeira.

Os gritos do menino.

O silêncio que se seguiu.

Não, você não conta a ninguém o que aconteceu no celeiro.

Você joga a chave no campo e nunca mais voltará àquele celeiro.

18h31
Tudo se junta

Aquele homem no celeiro, aquele homem, aquele homem...

Na época, você não o conhecia, mas agora conhece.

Sim, você mencionou a propriedade a ele. Ele sabe que você junta as coisas.

É por isso que ele tentou matar você.

Sim, havia uma segunda pessoa lá no sábado à noite.

Era ele.

O homem que levou Hollister para casa.

O homem com o canivete que...

Daniel não conseguia acreditar em quem realmente estava por trás de tudo, mas agora ele finalmente sabia quem era.

O som de um carro se aproximando da cabana chamou­-lhe a atenção.

Hollister também deve ter ouvido, pois gritou para Daniel:

– É tarde demais.

– Sua família comprou a propriedade, não é mesmo? – berrou Daniel de volta. – E foi nos últimos oito anos, não foi?

– O quê?

– Lá na Rodovia Municipal N. Até então, ela não pertencia a vocês.

Uma pequena pausa.

– Ele não vai deixar você sair daqui.

Não, não era Ty Bell.

Ele só está deixando Hollister usar este lugar.

Malcolm Zacharias chamou­-as de distorções, quando você as mencionou a ele pela primeira vez.

Como ele sabia que você as chamava assim? Só umas poucas pessoas sabiam que você as chamava de distorções.

Ele disse que tinha uma fonte...

Tudo se encaixava.

Foi o que você disse no domingo, é por isso que ele queria você morto.

Não o Sr. Zacharias.

Não.

A fonte dele.

E é por isso que ele fica perguntando o que você viu quando seu pai foi atacado.

Sim.

O motor do carro foi desligado lá fora. Daniel e o pai estavam quase na porta quando o xerife desmaiou.

– Pai, acorde!

Mas o corpo dele estava inerte.

Você não vai conseguir sair a tempo.

Daniel o desceu até o chão, perto da faca que Hollister estivera segurando, empurrando­-a para debaixo de sua perna.

E esperou que seu psiquiatra, o Dr. Fromke, entrasse pela porta.


61

A maçaneta girou, a porta se abriu e ele apareceu, segurando uma arma que parecia a Daniel a Glock de seu pai.

O Dr. Fromke ficou parado lá um instante, com a neve soprando e flutuando em torno dele, antes de entrar e fechar a porta.

Ele estava usando jeans negros, uma jaqueta de inverno azul­-marinho e sapatos de corrida.

– Fiquei imaginando se o carro lá fora era seu – disse ele, apontando sua arma para Daniel. – Deixe­-me ver suas mãos.

Ainda ajoelhado e tomando cuidado para manter a faca escondida embaixo da perna, Daniel ergueu as mãos, mostrando a seu psiquiatra que elas estavam vazias.

– Eu estou aqui – gritou Hollister do outro quarto. – O garoto chamou os tiras. Eles estão a caminho. Eu dei Tribaxil ao xerife. Ele não vai durar muito, não com aquela dose...

As palavras de Hollister atingiram Daniel como um disparo de revólver.

– O que você quer dizer com isso?

Por que eles querem matá­-lo? Por que, depois de mantê­-lo vivo desde sábado?

Eles estão desesperados, Daniel. Não vão deixar nem você nem seu pai saírem daqui vivos.

Você precisa sair. Precisa chegar ao hospital.

Ele baixou as mãos.

O Dr. Fromke avaliou as coisas, suspirou e balançou a cabeça.

– Daniel, por que você não se limitou a ficar naquele porão? Tudo seria mais fácil agora.

– Você temia que eu juntasse as coisas envolvendo o celeiro no distrito N. É por isso que tentou me matar.

O psiquiatra pediu para que Brandon viesse até eles.

– Eles me algemaram na cama.

O Dr. Fromke perguntou a Daniel:

– Você está com a chave?

– Eu só vou entregá­-la se você me deixar sair com o meu pai – respondeu ele, mas sem muita certeza se isso funcionaria. – Primeiro nós vamos até o carro. Eu lhe dou a chave quando...

– Não. Temo que não é assim que as coisas vão acontecer por aqui.

Hollister implorou ao Dr. Fromke:

– Não deixe que eles me levem de volta para aquele instituto. Lembre­-se de que eu sei tudo o que aconteceu aqui – acrescentou ele, fazendo com que soasse como uma ameaça.

– É verdade – disse o Dr. Fromke, e desapareceu no quarto onde estava Hollister.

Daniel ouviu um disparo, e o psiquiatra voltou à sala.

– Agora – disse ele –, podemos conversar sem sermos perturbados. Só nós dois.

Ele o matou.

Ele acabou de matar Brandon Hollister.

Você precisa tirar seu pai daqui antes que ele...

– Você tem um dom especial, Daniel. Eu...

– Eu sabia que era você. Você é a fonte.

– Fonte?

Ache um modo de fazer com que ele se aproxime.

Use a faca.

– Foi você que contou a Malcolm Zacharias que eu era intuitivo, que eu tenho distorções.

– Malcolm Zacharias?

– O cara que me ajudou a fugir do hospital.

O Sr. Zacharias está no instituto agora mesmo esperando você. Está perto. Ele pode ajudar você. Leve seu pai até lá e...

– Estava querendo lhe perguntar como você conseguiu isso – disse o Dr. Fromke, aproximando­-se de Daniel e sentando na beirada do sofá, a cerca de 2 metros de distância, mas apontando a Glock diretamente para ele.

Daniel não se levantou, limitando­-se a ficar agachado ao lado do pai, certificando­-se de que a faca não estava à vista, calculando quando e como poderia usá­-la.

– Então, você nos seguiu de Beldon até o farol?

– Baseado no que eu sabia sobre você de nossas consultas, achei que você pudesse ter ido para a casa de Nicole. Quando soube que você desapareceu do hospital, tentei a casa dela, despois a sua, mas então achei que a de Kyle seria a próxima opção. Como sempre acontece, a terceira é a melhor escolha. Agora vamos...

– Por quê?

– Por quê?

– Por que você contatou o grupo do Sr. Zacharias? Por que você fez tudo isso?

– Você tem um dom especial, Daniel – disse ele, apontando a arma para a cabeça do rapaz. – Existe alguma coisa aí dentro. Você vê coisas que ninguém mais vê, junta as coisas de uma forma que nenhuma outra pessoa consegue. Existem pessoas que estão muito interessadas em descobrir como você é capaz de fazer isso, e vamos apenas dizer que elas pagam muito bem por informações.

– Então é isso. Dinheiro.

– Uma das poucas coisas que motivam as pessoas, Daniel.

– Mas como você soube a respeito delas?

– É incrível o que se pode descobrir na internet.

– Mas, então, você lhes deu as costas para ajudar Hollister?

– Eu aceitei meu pagamento e fui em frente.

– No seu consultório, na sexta­-feira, eu vi aquele certificado da prisão: você serviu como conselheiro lá. Foi assim que conheceu Hollister? Ou só o conheceu quando vendeu a propriedade à família dele?

Ele pareceu impressionado.

– Você é realmente inteligente. É lamentável que as coisas acabem assim.

E baixou a arma.

– Eu sei sobre o Grady – disse Daniel rapidamente. – O que você fez. A enfardadeira. Eu estava lá no palheiro. Vi você gravar o nome dele na parede.

Um instante de silêncio.

O Dr. Fromke pareceu estar mergulhado em pensamentos.

– Daniel, dê­-me o seu telefone.

Faça­-o aproximar­-se mais.

Faça­-o aproximar­-se o suficiente e então vai poder usar a faca.

Ele pôs o telefone de Larry ao lado de sua perna.

– Venha pegá­-lo.

– Empurre­-o para mim.

– Não, eu...

O Dr. Fromke fez um disparo contra o chão perto do pai de Daniel, deixando­-o de acertá­-lo por poucos centímetros.

– Empurre­-o para mim, Daniel. Eu não tinha que errar o alvo quando atirei. E não vou errar se eu atirar outra vez.

Sem saber exatamente o que fazer, Daniel empurrou o celular pelo chão até o médico.

– Quantos daqueles nomes no celeiro são de suas vítimas?

– Você não se lembra mesmo, não é?

– Eu vi sete deles cravados do mesmo modo na madeira. Foram todos feitos com a mesma faca, certo? Qual? Aquele canivete que você usa para abrir cartas no seu consultório? Você matou toda aquela gente?

– Foi você que matou Grady Planisek, Daniel.

– O quê?

– Vocês dois estavam no palheiro. Você o empurrou para aquela enfardadeira. Eu vi tudo acontecer. Eu era dono da fazenda nessa época.

– Do que você está falando?

– Você matou o menino, reprimiu a lembrança e agora ela está ressurgindo e fazendo com que você tenha um ataque psíquico. Você perdeu a capacidade de determinar o que é real e o que não é. O que é certo e o que é errado.

– Não.

Sim.

– Você é um rapaz perturbado, Daniel.

Você está perturbado.

Sim.

Você matou Grady.

Não. Você não pode ter feito isso!

Mas...

– Relembre aquele dia, Daniel. O que você realmente viu?

– Você o matou.

– Você me viu fazer isso?

– Eu o ouvi gritando.

– E?

– A enfardadeira estava funcionando.

– Sim.

– Então, você subiu a escada e...

Realidade.

Fantasia.

– Você matou Grady – repetiu o Dr. Fromke. – E você atacou seu pai...

– Não. Foram você e Brandon. As pessoas daqui me conhecem. Elas sabem que eu nunca faria nada disso. Elas nunca acreditarão em você.

– Mas elas já acreditam. Você é suspeito do desaparecimento de seu pai e agora, esta noite, você matou Brandon Hollister com o revólver do seu pai...

– Não vai funcionar. Ninguém vai...

– ... e, então, você atirou em mim.

– O quê?

O Dr. Fromke pegou o telefone de Larry.

– Como você é meu paciente, eu sei do que você é capaz, e foi por isso que eu o internei em Duluth. Foi por isso que eu fiz com que mantivessem um guarda à sua porta – acrescentou ele, tocando a tela do celular e o levando ao ouvido.

Alguém deve ter respondido do outro lado, pois o Dr. Fromke disse, alarmado:

– Ele está com um revólver. Vocês têm que se apressar. Daniel Byers. Sim! Ele vai me matar. Ele disse que vai me matar. Estou em West Creek Drive, 1594. Por favor!

Daniel ficou pasmo.

– Afaste­-se de mim! – berrou o Dr. Fromke para que o atendente do outro lado o ouvisse. Então, atirou contra si mesmo na altura do ombro. – Não, Daniel! Por que você...

Ele jogou o telefone no chão e o esmagou com o calcanhar.

– O próximo passo – disse ele entredentes, obviamente tentando controlar a dor do ferimento – é com você.


62

­-O que você fez? – gaguejou Daniel.

O Dr. Fromke mantinha o revólver apontado para ele.

– Você é um rapaz mentalmente perturbado que tem alucinações e faz coisas de que depois não se lembra. Ninguém vai acreditar na sua palavra contra a minha. Que prova você tem de que eu já fiz mal a alguém? Mas não se preocupe, Daniel. Você não vai sofrer. Vou garantir que os medicamentos que vão lhe dar no hospital psiquiátrico não deixem que sinta muita coisa. Está acabado. Agora vamos aguardar.

Seu pai está morrendo. Você não pode esperar.

Você precisa conseguir ajuda. Precisa fazer alguma coisa.

– Eles vão saber que não fui eu. Minhas impressões digitais sequer estão nessa arma.

O Dr. Fromke surpreendeu Daniel ao girar a Glock na mão e caminhar em sua direção.

Faça isso. Pegue a arma.

Não! Sua impressão digital vai ficar nela.

Enquanto o médico se aproximava, Daniel lentamente procurou a faca que estava debaixo de sua perna.

– Aqui – disse o Dr. Fromke, estendendo o revólver. – É todo seu.

Dane­-se. Você precisa sair. Precisa ajudar seu pai.

Pegue a arma.

– Ah, espere – disse o Dr. Fromke. – Eles costumam checar o resíduo de pólvora, certo? Não vão achar nenhum em você... a menos que você estivesse muito próximo do revólver quando ele foi disparado.

Ele ficou a apenas alguns centímetros e apontou a Glock para a cabeça do pai de Daniel.

– É uma pena que você tenha atirado em seu próprio pai na cabeça.

– Não! – gritou Daniel, agarrou a faca e se colocou entre o cano do revólver e seu pai. Obviamente pego de surpresa, o Dr. Fromke afastou­-se um instante, e Daniel enfiou a faca no sapato do homem, atravessando­-lhe o pé e cravando­-a no chão.

O Dr. Fromke gritou com o choque e a dor, e Daniel arrancou­-lhe o revólver da mão. A arma caiu no chão.

Ele a agarrou.

E deu um passo para trás.

Ele ia culpá­-lo pelo crime dele. Ele ia atirar no seu pai.

Ódio.

Raiva.

Fúria.

Controlando­-se, Daniel pegou o cabo da faca, enfiando a lâmina mais fundo no assoalho.

O Dr. Fromke gritou e esticou o punho para Daniel, mas ele saltou para trás em tempo de evitar o golpe.

– Vou dizer a eles que comparem o seu canivete, o que está na sua escrivaninha com as gravações no celeiro – disse ele. – Tenho certeza de que alguém especializado em ciência forense vai identificar que lâmina fez aquelas gravações.

O rosto do Dr. Fromke escureceu.

– Você estava certo: acabou – disse Daniel, colocando o revólver em seu cinto. – E você vai passar o resto de sua vida na cadeia.

Ele se inclinou, jogou o braço do pai por cima de seu ombro, o ergueu – a técnica dos bombeiros – e se dirigiu para a saída.

Com o canto do olho, pôde ver o Dr. Fromke agarrar o cabo da faca e tentar arrancá­-la do chão.


63

A distância, sirenes gemiam na noite.

Enquanto Daniel levava o pai até o carro, teve a esperança de que a neve caindo sobre seu rosto pudesse reavivá­-lo, mas isso não aconteceu.

Como você vai pô­-lo no carro se ele está inconsciente? Você nunca vai conseguir... talvez no banco de trás?

Momentos depois, enquanto Daniel ajeitava o pai no banco do carro, ouviu a porta da cabana escancarar­-se.

O Dr. Fromke estava de costas para a luz, a uma distância de doze metros, segurando a pá. Ele começou a coxear pela entrada até os degraus.

Vá!

Daniel acabou de acomodar o pai, fechou a porta, saltou para o volante e ligou o motor.

Enquanto os limpadores varriam os flocos de neve, ele viu o Dr. Fromke cambaleando pelo caminho. Embora fosse forçado a arrastar o pé machucado, já estava quase a meio caminho do carro.

O carro do doutor estava atrás do de Daniel, bloqueando­-lhe a saída, mas ele achou que havia espaço suficiente para sair se avançasse sobre o banco de neve que se acumulara ao longo do caminho.

Travou as portas do veículo e deu ré, tentando manobrar ao lado do carro do médico, mas seu carro deslizou pelo caminho congelado e um dos pneus traseiros ficou preso no banco de neve.

O Dr. Fromke estava a apenas três metros de distância, e Daniel não podia avançar ou o atropelaria, mas também não podia dar ré por causa do banco de neve.

Você está com o revólver.

Você podia...

Não, não atire nele. Você se tornaria um assassino. Não...

O Dr. Fromke chegou ao carro de Daniel, tentou abrir a porta, viu que estava trancada e, apesar do tiro no ombro, ergueu a pá para trás e girou­-a contra o para­-brisa.

O vidro estilhaçou em pedaços com o impacto, mas, felizmente, permaneceu sem se quebrar, como projetado para o caso de um choque.

Com o Dr. Fromke perto do carro, Daniel tentou avançar, mas o pneu traseiro não desatolou do banco de neve.

Fromke tornou a bater com a pá no para­-brisa, que se curvou para dentro, em direção a Daniel. Outro golpe e o vidro não resistiria.

Você tem que ajudar seu pai.

Tem que tirá­-lo daqui.

Daniel engatou a ré do carro e, em seguida, a primeira; dessa vez os pneus derraparam um pouco, mas a tração fez o veículo ir para a frente, rente ao Dr. Fromke.

Daniel parou o carro antes que atingisse a entrada da cabana.

Ele podia tentar passar entre o carro do Dr. Fromke e o banco de neve outra vez ou esperar ali.

Ficar sentado esperando a chegada da polícia não é uma opção. Não com o Dr. Fromke lá fora.

Pelo retrovisor, Daniel viu o Dr. Fromke se aproximando.

As sirenes estavam mais próximas.

Daniel baixou o vidro de sua porta um centímetro:

– Para trás! – gritou ele, enquanto engatava a ré. – Saia do caminho!

Mas o Dr. Fromke, obviamente, estava mais interessado em atacar Daniel do que se pôr a salvo e avançou para o carro, empunhando a pá no ar.

Enquanto Daniel tentava passar, os pneus derraparam no gelo e o carro girou.

Tudo girava lá fora.

Girava.

Uma nesga de branco.

Então...

O solavanco do impacto do carro colidindo com o carro do Dr. Fromke, o médico imprensado entre os dois veículos.

As pernas do Dr. Fromke deviam ter ficado presas, mas quando ele gritou ameaças contra Daniel, parecia que ele sentia mais raiva que dor.

Daniel tentou ir para frente e para trás... qualquer coisa... mas os pneus derrapavam no gelo.

O piscar vermelho­-azul­-vermelho­-azul dos faróis da polícia atravessou a neve que caía, enquanto uma patrulha entrava na propriedade, patinando pelo caminho.

Dois patrulheiros estaduais saíram da viatura, empunhando revólveres.

Daniel deixou a Glock do pai no carro e saiu, erguendo as mãos para mostrar que estava desarmado.

– Eles drogaram meu pai, vocês precisam...

– Deite no chão! – gritou um dos patrulheiros.

– Ouça, eu estou...

– Agora! No chão! Os braços para os lados.

Os atendentes não podiam ter acreditado no chamado do Dr. Fromke.

Mas talvez tivessem.

Uma ambulância chegou bem atrás da patrulha.

Daniel se ajoelhou, depois se deitou com o rosto no chão. O patrulheiro veio e algemou seus pulsos atrás das costas, enquanto seu parceiro ia verificar o Dr. Fromke.

– Meu pai está inconsciente – disse Daniel, ansioso. – Ele está no assento de trás do meu carro. Vocês precisam levá­-lo a um hospital agora.

– Senhor – disse o outro patrulheiro ao Dr. Fromke –, nós vamos ajuda­-lo.

– Ele atirou em mim – disse o psiquiatra, atirando a pá no chão e fazendo cara de inocente. – Ele esfaqueou o meu pé e, então, tentou fugir. Vocês precisam deter esse rapaz. Ele está fora de controle.

– Não – disse Daniel ao patrulheiro ao lado dele –, isso não é... – Deixe isso para lá. – Ouça, diga aos paramédicos: Tribaxil. Foi o que eles deram ao meu pai. Uma seringa inteira. Ele é o xerife, o xerife Byers. Vocês precisam ajudá­-lo.

O policial pareceu incerto quanto ao que fazer.

– Depressa! – disse­-lhe Daniel.

Ele se afastou e foi falar com os paramédicos, que prontamente colocaram seu pai numa maca.

O policial ajudou Daniel a ficar em pé, levou­-o até sua viatura e o colocou no banco de trás.

– Me deixem ir com o meu pai.

– Até entendermos isso tudo, você vai ficar comigo.

A porta do carro ainda estava aberta, e Daniel pôde ver o outro policial ajudando o Dr. Fromke, que ainda estava preso entre os dois veículos.

– Vocês precisam algemá­-lo – disse Daniel. – Ele é perigoso. Ele...

– Nós vamos cuidar disso, filho – disse o policial enquanto fechava a porta.

Daniel gritou pela janela:

– Ele matou pelo menos oito pessoas!

Não teve certeza se o policial acreditou, mas ele tornou a abrir a porta:

– O que você disse?

– Ele matou pelo menos oito pessoas. Uma delas está na cabana.

Imediatamente, o homem foi examinar a casa. Quando voltou, falou com o outro patrulheiro e pareceu uma eternidade até que o policial que tinha algemado Daniel voltasse e manobrasse a viatura para seguir a ambulância. O outro policial cobriu o Dr. Fromke.

– Você tentou atropelar aquele homem? – perguntou ele a Daniel.

– Não.

– Você atirou nele?

– Não, ele atirou em si mesmo.

– É mesmo? – disse o policial, não parecendo muito convencido.

– É, e matou o homem da cabana.

O patrulheiro falou pelo rádio, passando informações sobre sua localização e códigos que Daniel não entendeu.

Daniel ficou rezando para que seu pai ficasse bem, que os paramédicos chegassem com ele ao hospital a tempo.

Eles entraram na estada municipal que passava pelo Instituto Traybor e Daniel olhou para os dois lados da estrada na esperança de avistar o Sr. Zacharias ou seu carro, mas não viu nada.

Tinham acabado de passar pelo edifício quando uma explosão abalou a noite, e Daniel virou­-se a tempo de ver o edifício explodir num cogumelo de fogo, com fumaça e chamas.

O patrulheiro levou o carro para o acostamento e murmurou:

– Que diabos está acontecendo esta noite?

Malcolm Zacharias queria eliminar a estação de pesquisa.

Talvez ele tivesse explodido o lugar.

Daniel não sabia e, nesse momento, estava mais preocupado com que o pai recebesse os cuidados de que precisava do que com o que tinha acontecido ao homem que havia ajudado Hollister a fugir.

O policial voltou ao rádio e solicitou mais unidades.

Depois que prosseguiram, ele levou Daniel ao hospital, e não à prisão municipal.

Talvez, afinal, acreditasse nele.

 

 

64

Daniel reposicionou seu laptop de modo que seu pai pudesse ver a tela com mais facilidade da cama do hospital.

– Assim está bom?

– Está – respondeu ele, ajustando o ângulo da cama um pouco mais para cima, ficando quase sentado.

Na noite anterior, os médicos ocuparam­-se dele durante várias horas, tornando a suturar seu flanco e neutralizando a droga que Hollister havia injetado nele. Foi bom ele ter mencionado o nome dela, pois, segundo os médicos, uma overdose de Tribaxil poderia ter sido fatal.

Foi constatado que Hollister havia feito um trabalho surpreendentemente bom ao tratar do ferimento a faca nos últimos dias.

Seu pai ainda estava fraco, mas os médicos disseram que ele estava “a caminho da recuperação”, e Daniel viu que, a essa altura, isso era muito mais do que ele podia esperar.

Daniel passara boa parte da última noite e a maior parte do dia seguinte contando aos investigadores e policiais tudo o que havia acontecido. Contudo, omitiu as partes referentes às distorções, para que eles levassem as outras coisas que ele tinha a dizer mais a sério.

Ele teve que repetir tudo várias vezes.

Havia muito a ser considerado.

A princípio, ficaram de olho em Daniel, evidentemente ainda suspeitando que ele estivesse mentindo, mas quando seu pai acordou e confirmou sua história, deixaram que ele passasse o resto do tempo no quarto dele.

O Dr. Fromke também foi levado ao hospital e estava sob vigilância no segundo andar. Pelo que Daniel soube, o psiquiatra não tinha conversado com a polícia desde a noite passada, ou pedido um advogado, e ele ficou imaginando o que se passava pela cabeça do homem, o que ele poderia estar pensando ou planejando.

Fosse o que fosse, Daniel não gostava do fato de o Dr. Fromke estar no mesmo hospital que seu pai, mesmo que houvesse guardas do lado de fora do quarto do homem.

***

Ele teclou e abriu o programa de conversa por vídeo que estavam usando para conversar com a mãe, que ainda estava presa no Alasca.

Nicole estava sentada em silêncio na cadeira perto da janela, terminando um desenho de uma cena de presépio na última página de seu caderno.

Kyle e Mia, que tinham voltado da casa dos avós dela um dia antes, estavam a caminho do hospital para encontrar Daniel e Nicole e ver como as coisas estavam.

Kyle também estava trazendo algumas coisas que Daniel havia pedido; pelo menos esperava que seu amigo pudesse recebê­-las. Daniel tinha o envelope, mas para os dois outros itens, dependia de Kyle. Pelo que soubera, Larry tinha vindo de Bayfield e estava na casa de Kyle com a Sra. Goessel, Glenn e Michelle.

Daniel já tinha falado com a mãe três vezes naquele dia. Embora ela tentasse conseguir um voo de Anchorage, isso não tinha sido possível, e seu pai só começara a se sentir melhor na última hora para conversar com ela por vídeo.

Daniel a chamou e agora estavam conectados.

Ela apareceu na tela, diante de seu computador.

O cabelo cor de champanhe. Uma constituição esbelta. Olhos preocupados.

– Oi, mãe.

– Daniel.

Ela se aproximou da câmera até seu rosto ficar visível.

Nicole acenou para ela.

– Feliz Natal, Sra. Byers.

– Feliz Natal, Nicole.

– Olá, LeAnne – disse o pai.

– Jerry. Como você está? – perguntou ela, com preocupação em cada uma de suas palavras. – Daniel me disse que você foi... oh, nem consigo acreditar que isso esteja acontecendo.

– Estou me sentindo muito melhor do que na noite passada. Graças ao seu filho.

– Mais provavelmente graças aos médicos – corrigiu­-o Daniel.

Seu pai dirigiu a atenção para a tela.

– Parece que o Daniel falou com você mais cedo para lhe contar tudo.

– Ele me contou do Dr. Fromke e desse maníaco, o Hollister, que esfaqueou você. É incompreensível. Já sabem quantas pessoas o Dr. Fromke matou naquele celeiro?

– Eles não têm certeza. Temos que tomar cuidado para não chegar a conclusões precipitadas, mas meus investigadores estão atrás dos nomes gravados nas tábuas da parede para ver quantos deles são de pessoas desaparecidas. Daniel notou sete nomes que, aparentemente, foram todos feitos com a mesma lâmina. Estamos verificando esses em primeiro lugar.

– Não posso acreditar que já confiei no Dr. Fromke – disse ela, tentando assimilar a informação. – Que qualquer um de nós... E Ty Bell matando aqueles lobos? E depois atacando Nicole? O que vai acontecer com ele agora?

– Matar lobos já é um crime sério, mas tentar atacá­-la torna as coisas completamente diferentes. Ele tem mais de 18 anos. E vai enfrentar sérios problemas.

– Lancaster estava envolvido nisso tudo?

– Não parece. Ty apenas deixou que Hollister usasse a cabana de caça do pai.

– O mesmo lugar que ele usava como base para atirar nos lobos.

– Exatamente.

– E ele confessou?

– Nicole gravou tudo.

A mãe de Daniel balançou a cabeça, incrédula.

– E esse tal de Malcolm?

– Eu ainda não o conheci. Você vai ter que perguntar a Daniel sobre ele.

Daniel não tinha notícias do Sr. Zacharias desde a noite anterior, mas nenhum corpo foi encontrado nos restos carbonizados do Instituto Traybor depois da explosão ocasionada por um vazamento de gás, de modo que não parecia haver ninguém lá quando o prédio explodiu.

Pelo menos estavam dizendo que fora um vazamento de gás.

Daniel não engoliu isso.

O momento em que aconteceu era suspeito demais.

– Vou apresentar vocês – Daniel prometeu à mãe. – Da próxima vez em que ele aparecer.

Se é que vai aparecer...

Não... ele também queria conversar com você sobre seus “dons”, lembra?

Ele vai voltar.

Sua mãe perguntou­-lhe sobre o farol e, enquanto Daniel respondia, seus pensamentos vagaram de volta a tudo o que tinha acontecido.

Pela manhã, depois que ele contou sua história à polícia, alguns policiais de Bayfield foram até o farol e recuperaram os ossos do porão.

Então, cerca de uma hora depois, um especialista forense relatou que suas descobertas preliminares indicavam tratar­-se do esqueleto de uma menina entre 10 e 14 anos. Eles iam fazer mais exames, mas parecia que a história que Jarvis Delacroix havia escrito em seu diário conferia.

Fariam alguns testes de DNA naquela semana para determinar se a garota era parente de Daniel, mas, de qualquer modo, parecia que, por fim, depois de todos aqueles anos, ela finalmente teria um enterro apropriado.

Depois que Daniel terminou de resumir as coisas para a mãe, ela tornou a voltar a atenção para o marido e a lhe perguntar novamente como ele estava se sentindo.

Ele lhe garantiu estar bem e disse:

– Daniel me contou sobre a sua conversa com ele no outro dia.

– Minha conversa?

– Você disse que foi embora para nos proteger, que tinha medo do que estava acontecendo com você.

– Não precisamos discutir nada disso agora, Jerry, nós...

– Ouça, eu quero proteger você, LeAnne. Foi esse o meu compromisso quando nos casamos.

– Eu devia ter feito mais para ajudar Daniel – disse ela, baixando o olhar.

– Nada disso importa agora. Vou fazer tudo o que for necessário para fazer você e Daniel se sentirem seguros. Confie em mim.

– Eu confio. Só não quero magoá­-lo.

– Ficar separado magoa mais do que quando estávamos juntos.

Um silêncio se fez entre eles.

– Quando você voltar – disse ele –, vamos dar um novo rumo às coisas, certo? Podemos fazer tudo funcionar. Sei que podemos.

Ela enxugou uma lágrima, mas não respondeu.

– Ah – disse Daniel –, acabei de lembrar que Nicole e eu temos que encontrar Kyle e Mia no saguão. Voltaremos em alguns minutos. Venha, Nicole.

Carregando seu caderno de desenho, ela se juntou a ele e os dois desceram para o saguão.

– Boa ideia – disse Nicole. – Dar a eles um pouco de privacidade.

– Isso mesmo.

– Ei, ouça, acho que entendo a maior parte do que aconteceu, ou, pelo menos, por que aconteceu, mas preciso lhe perguntar: você já entendeu por que andou no sono com aquela faca?

– Não, não exatamente, mas pode ter alguma coisa a ver com o meu subconsciente tentando lidar com os nomes gravados na parede.

– Faz sentido. E o Dr. Fromke? Você sabe por que ele ajudou o Hollister?

– Talvez por causa da história que tinham juntos, talvez pelo desafio de toda a situação ou talvez apenas porque ele é louco.

– Eu voto pela última opção.

– Sem brincadeira.

Passaram pelo elevador, e ele disse:

– De todo modo, deixar meu pai e minha mãe sozinhos dá a você uma chance de abrir alguns presentes de Natal.

– Presentes? No plural? Mais de um?

– São pequenos. Você vai ver.

– Onde estão eles?

– A caminho.

Quando já estavam quase no saguão, um homem robusto veio em direção a eles.

Daniel o reconheceu de imediato: era o detetive que lhe fizera perguntas quando ele acordou no hospital psiquiátrico na manhã de domingo.

– Com licença – disse ele a Daniel –, mas podemos trocar uma palavrinha?


65

­- Eu sou o detetive Poehlman. Você se lembra de mim lá em Duluth?

– Lembro.

O detetive olhou para Nicole.

– E você deve ser Nicole Marten. Você visitou Daniel no hospital fingindo ser irmã dele.

– O que você quer? – perguntou Daniel.

– Posso conversar em particular com você, Daniel?

– Sobre o quê?

– Tem a ver com... bem... como você fugiu do hospital em Duluth.

– Eu já contei a história toda aos outros investigadores. Malcolm Zacharias me ajudou. Agora nós vamos encontrar alguém e...

– Só vai levar um minuto.

Daniel olhou para Nicole, que fez um leve movimento de ombros.

– O que é? – perguntou ele.

– Em particular, se você não se importa.

– A Nicole fica comigo. O que você precisa saber?

– Bem... certo – disse ele, segurando um iPad. – Estivemos revendo o vídeo de segurança de você saindo do hospital. Não havia ninguém com você, Daniel.

– O que você quer dizer?

– Quero dizer que você estava sozinho quando saiu do prédio.

– O Sr. Zacharias estava lá.

– Não – disse o detetive, balançando a cabeça. – Estou com o vídeo aqui.

– Mostre­-me.

O detetive Poehlman ligou o vídeo.

A filmagem era granulada e só havia um movimento a distância, de modo que obviamente havia sido feita da outra extremidade do corredor, mas lá estava: o vídeo mostrava Daniel abrindo a porta de seu quarto na ala da psiquiatria e entrando no corredor.

Sozinho.

Isso não faz sentido.

A sessão seguinte mostrava­-o virando o corredor e correndo para a cantina, sozinho. Por fim, uma câmera externa o filmou deixando o hospital e se afastando pela rua que beira o parque junto ao lago Superior.

Sozinho.

Completamente sozinho.

Não. Isso não era possível.

Ou você está ficando completamente louco ou alguém editou esse vídeo, alterando­-o de alguma forma.

– Então, como eu cheguei a Beldon?

– Você roubou um carro – respondeu o detetive Poehlman.

– Eu não sei fazer ligação direta.

– Então talvez a chave estivesse no contato. Olhe o vídeo.

Daniel olhou o vídeo, que o mostrava correndo em direção ao sedã, sentando­-se ao volante e, então, momentos depois, partindo.

– Não pode ser. Eu fiquei no lado do passageiro. Lembro­-me perfeitamente disso. Eu sei que sim.

– Não havia ninguém com você no hospital, Daniel.

– E o outro segurança da noite? Eu o ouvi conversar com o Sr. Zacharias.

– O guarda de serviço naquela noite disse que não conversou com ninguém.

– Ele está mentindo.

– E por que ele mentiria?

– Não sei.

Na verdade, você não viu aquele guarda conversar com o Sr. Zacharias. Você só os ouviu do outro lado da porta do armário da manutenção. Você pode ter imaginado tudo. Mas então...

– Eu vi o Sr. Zacharias – disse Nicole ao detetive. – No Instituto Traybor. Eu estava lá com Daniel. Ele é real.

– O que você viu?

– Um dos guardas, os policiais, sei lá, era o homem que encalhou no banco de neve.

O detetive Poehlman consultou seu iPad, obviamente checando alguma coisa.

– O homem que Daniel e Kyle ajudaram a desencalhar na estrada na sexta­-feira à noite?

– Ele mesmo.

– E você tem certeza de que era a mesma pessoa?

– Bem, eu... quero dizer, eu não vi o cara naquela noite exatamente, ele não saiu do carro, mas Daniel me disse que foi ele que... – ela hesitou, talvez percebendo que estava confirmando a versão do detetive.

– No que você vai acreditar, Daniel? – perguntou o detetive Poehlman. – Na sua memória ou na evidência?

É uma boa pergunta. Sua memória ou...

Kyle e Mia passaram pela porta automática e entraram no saguão. Kyle estava tomando uma lata de refrigerante. Mia gastou mais tempo que o necessário para remover a neve das botas, murmurando alguma coisa sobre sua vontade de morar na Flórida.

– Kyle pode comprovar – disse Daniel ao detetive.

– Claro – disse Kyle, juntando­-se a ele. – Posso comprovar. Comprovar o quê?

– Você ouviu a voz do Sr. Zacharias, lembra? Eu estava conversando com você no telefone enquanto estava indo para Beldon e, então, passei o telefone para ele. Ele estava dirigindo. Ele lhe disse que estava comigo.

– Sim. Sem dúvida nenhuma. Eu lembro.

– É mesmo? – perguntou o detetive Poehlman.

– Sim, por quê?

– Eu só... bem... – disse o detetive, enquanto seu telefone tocava e ele examinava a tela. – Me deem licença um segundo.

Ele se afastou para atender à chamada, mas Daniel ouviu­-o dizer:

– Ele está acordado? Ok, já chego aí.

Desligou, então, e por fim parou de tentar convencer Daniel de que o Sr. Zacharias não estivera lá para ajudá­-lo.

– Obrigado pela atenção – disse a eles. – Mas eu quero esclarecer algumas coisas, Daniel. Ainda temos a questão do carro.

Depois que ele se foi, Mia perguntou:

– Quem era esse cara?

– Um detetive – disse Nicole.

– De onde?

– Sabe que eu não perguntei? – retrucou Daniel pensativamente.

– E o que ele queria?

– Ele tem um vídeo do hospital de Duluth. Ele mostra somente eu saindo, Malcolm Zacharias não aparece nele de jeito nenhum. Mas eu sei que ele era real – disse, olhando para Kyle. – E deixei que ele falasse com você pelo telefone, de qualquer modo. Isso prova que ele existe.

Kyle ficou quieto.

– O que foi?

– Bem, eu falei com alguém. Podia ser o cara atolado na neve. Não tenho realmente certeza.

– Quem mais poderia ter sido?

– Não sei – respondeu Kyle, dando de ombros. – Podia ser você.

– Eu?

– Não sei realmente dizer. Você pode ter mudado a voz, mas que importância tem isso? Você está aqui, está a salvo. Seu pai está bem. As coisas estão... – Ele pareceu vacilar. – Bem... exceto pelo carro?

– Que carro?

– Bem, eu ia lhe contar... Eles encontraram um sedã no final da minha rua. Alguém o deixou lá. Quero dizer, tenho certeza de que não é nada, mas minha mãe diz que ouviu dizer que ele tinha sido roubado em Duluth.

Mas o Sr. Zacharias não abandonou o carro lá. Ele foi embora dirigindo.

A menos que não tenha feito isso.

A menos que você tenha imaginado tudo e deixado o carro lá.

– Espere – disse Kyle a Daniel. – Você falou com o Sr. Zacharias pelo telefone do Larry quando estávamos voltando para Beldon.

– É isso aí – disse Mia, ocupada em tirar alguns flocos de neve obstinados de sua bota. – Deve haver um registro dessa chamada.

– O Dr. Fromke destruiu esse telefone na cabana – disse Daniel.

– Mas a operadora deve ter os arquivos da chamada, certo?

– Não se o Sr. Zacharias os apagou. Se ele é um bom hacker, capaz de mudar o vídeo de uma câmara de vigilância, acho que poderia alterar ou deletar alguns registros telefônicos sem nenhum problema.

Se é que ele realmente existe.

Em vez de deixar que as coisas seguissem nessa direção, Kyle preferiu mudar de assunto e perguntou a Daniel como estava o pai dele.

– Melhor. Agora mesmo ele está conversando com a minha mãe. Parece que as coisas estão começando a ir na direção certa. Estou dando um tempo a eles para acertarem as coisas.

– Você acha que ela vai voltar?

– Acho. Acho que é possível.

– Certo. Ah – disse Kyle, pegando as chaves do carro –, as coisas que você me pediu para trazer estão no porta­-malas. Você quer pegá­-las?

– Vou fazer isso. Você se importa?

– Não – disse Kyle, entregando­-lhe as chaves. – Vamos ficar friozando aqui e esperando por você.

– Você disse “friozando”? – perguntou Nicole.

– É mais uma palavra inventada – explicou Daniel.

– Puxa vida!

Como o celular de Daniel tinha sido encontrado coberto de sangue na cena do desaparecimento do pai, ele ainda estava no arquivo de provas da polícia, e hoje ele usara o de Nicole para falar com a mãe; agora, uma mensagem de texto apareceu. Ele a mostrou a Nicole.

– Nada de importante – disse ela. – É só a Gina. Eu mando uma mensagem para ela mais tarde.

Ele tornou a guardar o telefone.

Kyle lhe disse onde tinha estacionado, embora, devido ao tamanho do estacionamento, isso provavelmente tivesse sido desnecessário.

Daniel disse a Nicole que logo voltaria e foi até o carro.

A tarde findava, e mal se via o sol no horizonte.

Enquanto ia até o Mustang de Kyle, ficou pensando em tudo o que havia acontecido naquela semana, como as coisas estavam interligadas, bem abaixo da superfície, como todas as peças do quebra­-cabeça se juntaram de uma forma que ele nunca tinha imaginado, mas que agora faziam sentido quando as via em retrospectiva.

Pensou em Malcolm Zacharias, no detetive Poehlman e...

O telefone de Nicole vibrou.

Uma mensagem: Atenda esta chamada, Daniel.

Enquanto tentava adivinhar do que se tratava, o telefone tocou, exibindo um número desconhecido.

Daniel deslizou a tela.

– Alô?

– Alô, Daniel.

É ele.

– Sr. Zacharias! O que você fez? Encontraram o vídeo da segurança que mostra só eu saindo do hospital em Duluth.

– Você acha mesmo difícil mudar um vídeo de segurança em um hospital psiquiátrico?

– Você está dizendo que o hackeou e alterou? Isso é impossível.

– Não com a tecnologia a que tenho acesso.

Ele sabe que estou com o telefone de Nicole. Como ele sabe disso? Será que ele está por perto?

Daniel procurou pelo estacionamento, mas não vi o Sr. Zacharias em nenhum lugar.

– Mas o vídeo me mostra entrando no banco do passageiro.

– Maravilhas das imagens geradas por computador.

– E o segurança... o que você fez? Subornou­-o?

– A filha dele está muito doente. O dinheiro foi para uma boa causa.

– E imagino que os registros telefônicos tenham sido...

– Apagados. Sim.

Daniel não sabia se sentiu raiva ou alívio por estar conversando com o Sr. Zacharias naquele momento.

Olhou, então, para a tela do celular e viu que realmente estava recebendo uma chamada.

Ok, pelo menos isso está acontecendo agora mesmo.

Pelo menos isso é real.

Daniel perguntou:

– Como foi que o Hollister escapou de você? Quero dizer, ele era um assassino. Você não o teria tirado do instituto e, então, deixado que ele fosse embora, certo?

– Ele era mais esperto do que eu pensei – limitou­-se a responder o Sr. Zacharias.

– E você não sabia que ele procuraria o Dr. Fromke?

– Eu não tinha a menor ideia. Não sabia da ligação entre os dois.

– E por que o Dr. Fromke o ajudou?

– Isso eu não sei. E, infelizmente, pelo que sei, o psiquiatra não está colaborando muito.

Enquanto conversavam, Daniel andava lentamente num círculo, olhando em toda direção, mas não conseguia ver o Dr. Zacharias em lugar algum.

– Mas parece que você conseguiu o que queria. O instituto foi destruído.

– Sim, foi.

– Você quis isso? Foi você o causador da explosão?

– Gostaria de ter sido, mas não fui eu.

Nenhum sinal dele ainda.

– Eu preciso lhe perguntar uma coisa, Sr. Zacharias.

– Sim?

– Qual lobo é o senhor?

– Qual lobo?

– É uma história que meu pai me contou certa vez: existem dois lobos brigando no coração de todo mundo; um é bom e o outro é ruim. E o que vence é o que...

– Você mais alimenta.

– Você também conhece a história.

– Conheço.

– Então? Qual deles é você?

– O que for necessário para cumprir a tarefa.

– Que tarefa?

– O recrutamento.

– Recrutamento?

Isso mesmo, lembra? Ele veio até aqui para se encontrar com você e lhe pedir ajuda.

– Eles acham que eu estou imaginando você – disse Daniel.

Silêncio.

– Alô?

Nenhuma resposta.

– Sr. Zacharias?

Você é real?, pensou ele.

A linha estava muda.

É claro que é. Pois se não existe, ele está...

Enquanto Daniel olhava para a tela, o registro da chamada desapareceu diante de seus olhos.

Ele deslizou a tela para checar a lista de chamadas recentes. Nada apareceu.

Nicole estava se aproximando do carro, com o caderno de esboços na mão.

– Você está legal?

– Estou.

– Tem certeza?

– Não totalmente.

– Você estava no telefone – observou ela.

– Estava com ele, o Sr. Zacharias.

– Oh – Ele não conseguiu adivinhar o que dizia o tom da voz dela. – O que ele disse?

– Que é um recrutador – disse Daniel, respirando fundo. – Nicole, diga que eu não estou ficando louco.

– Você não está ficando louco.

– Ok, bem... humm...

– O quê?

– Isso não ajudou tanto quanto eu estava esperando.

Deixe que ela abra os presentes. Tire tudo o que está acontecendo de sua mente.

Ele tirou um envelope do bolso e o entregou a ela.

– Isto. Faça isto primeiro.

– O que é?

– O seu presente... bem, parte dele.

– Você quer que eu abra os presentes aqui? No estacionamento?

– Claro. Por que não? Por que esperar?

– Então... ok. Eu gosto de abrir presentes.

– Eu sei.

Ela pousou o caderno, abriu o envelope e desdobrou a folha de papel que ele colocara dentro.

– Um cupom para aulas grátis de “Como fazer sucuris de neve”. Bem, eu nem imaginei o que era.

– Vale por um ano – disse Daniel, solícito. – O número de alunos é reduzido para eu dar atenção individual.

– É mesmo?

– É. Eu gosto de aulas só para uma pessoa.

Ela olhou para ele com um olhar astuto.

– Eu também.

Ele abriu o porta­-malas e tirou os dois presentes que Kyle tinha posto lá.

– Abra o próximo.

Era uma caixa de comprimento quase igual ao de uma caixa de sapatos, mas apenas com a metade da largura, desajeitadamente envolta em papel de embrulho preso com fita adesiva.

– Kyle embrulhou para mim.

– Eu nunca teria adivinhado.

Ela tirou o papel cuidadosamente, como se estivesse tentando protegê­-lo para tornar a ser usado, embora, com toda aquela fita adesiva, Daniel duvidasse que fosse possível.

Quando chegou à caixa, ela a abriu e tirou o conteúdo.

– Você está me dando um boneco do Batman com um braço só.

– É um herói dos quadrinhos, na verdade.

– Ah, certo. É o que estava no seu quarto?

– Não, Kyle o encontrou para mim hoje. Acho que no Walmart.

– E você o fez arrancar um braço?

– Isso mesmo. Para a sua boneca, a Rebecca, não se sentir solitária.

– Muito gentil. É lindo. Lindo mesmo.

– E este é o número três – disse ele, entregando­-lhe o último presente. – Abra.

– Humm... parece que tem o tamanho certo de um caderno de esboços – disse ela, levando­-o até o ouvido e o balançando. – Faz o som de um caderno de esboços – acrescentou, cheirando­-o. – Tem cheiro de caderno de esboços.

– Abra.

Ela abriu.

– Um caderno de esboços novo.

– Você também não imaginou que fosse.

– Nem um pouco.

– Este era o seu presente original. Eu vi que o seu outro caderno estava chegando ao fim e achei que estava na hora de você tirar aquele desenho do demônio.

– Concordo. O que me traz ao presente que tenho para você – disse ela, entregando­-lhe o caderno de esboços usado.

– O que é isto?

– São os meus desenhos. São para você. Eu rasguei o que tinha o demônio.

– Você está me dando os seus... Não posso aceitar. É sério, não...

Ela pousou um dedo delicado sobre os lábios para fazê­-lo calar­-se.

– Você é o homem mais especial do mundo para mim. É justo que fique com meus desenhos mais especiais.

Ele colocou todos os presentes no teto do carro.

Ela olhou para ele com curiosidade.

– O que você está fazendo?

– O sol acabou de se pôr atrás das árvores.

– É...

– Lembra quando estávamos olhando a aurora boreal na outra noite?

– Lembro.

– E, então, quando ela terminou, ficamos sob as estrelas e fomos interrompidos?

– Sim.

– Você lembra o que estávamos prestes a fazer?

– Isto? – perguntou ela, inclinando­-se e beijando­-o de leve nos lábios.

– Parecia mais isto – disse ele, dando­-lhe um beijo que não foi tão rápido e muito mais merecedor de ser trocado sob um manto de estrelas.


Dr. Fromke estava deitado na cama do hospital, os pulsos algemados à cabeceira.

Ele ficou pensando na ironia da situação: apenas alguns dias atrás, Daniel tinha sido internado num hospital psiquiátrico. Ele estava preso sob a guarda de um policial, e agora estava livre.

A situação se inverteu.

Mas haveria de voltar ao que era.

O Dr. Fromke já estava planejando uma fuga.

Ele sabia que seu quarto estava sendo vigiado. Até agora, ele tinha se recusado a responder a qualquer pergunta das autoridades. Havia muitas delas a fazer e, com a perna quebrada, o ferimento do tiro e o pé perfurado, eles estariam algum tempo ocupados cuidando dele antes de transferi­-lo para qualquer outro lugar.

E seria muito mais fácil escapar de um quarto de hospital do que da cela de uma prisão.

A porta se abriu e outro médico entrou. O terceiro naquele dia.

Não aguentava mais tantos médicos diferentes.

Este parecia ter um pouco mais de 60 anos e não ter dormido muito na noite passada.

Depois de olhar rapidamente os registros, ele disse:

– Então foi o senhor que matou Brandon Hollister?

Dr. Fromke não estava a fim de confessar nada, especialmente a um homem que podia ser um tira disfarçado. Ele permaneceu quieto.

– Eu devo lhe agradecer por isso – disse o médico, apoiando os registros. – Mas tenho que lhe perguntar se ele disse alguma coisa a meu respeito.

– O quê?

– Ele disse alguma coisa a meu respeito? Sobre o que acontecia no instituto?

Agora, dando uma olhada mais cuidadosa para o homem, o Dr. Fromke o reconheceu, com base na descrição de Hollister.

Era o cara encarregado da pesquisa no Instituto Traybor. O cara que torturou Brandon, fazendo­-o sentir­-se em sofrimento durante semanas na solitária.

– Não – mentiu o Dr. Fromke. – Não tenho ideia de quem você seja.

O homem agitou um dedo no ar.

– Ah, eu sou bom em dizer quando as pessoas estão mentindo. E acho que você está me faltando com a verdade – disse ele, desligando a bolsa de soro do Dr. Fromke.

– O que você está fazendo?

Em vez de responder, ele continuou a mexer na bolsa, mudando a droga que estava sendo administrada.

– Eu vou tomar conta de você de agora em diante.

– Pare – disse o Dr. Fromke, tentando erguer as mãos, mas seus pulsos estavam seguramente algemados.

– Eu deveria lhe agradecer por matar o prisioneiro 176235, mas não gosto de pontas soltas, e é o que você está me parecendo.

Isso não está acontecendo. Isso não está...

O Dr. Waxford tornou a ligar a bolsa de soro, injetando a nova droga no braço do Dr. Fromke.

Ele começou a se sentir sonolento imediatamente.

– Ei! – gritou ele para o guarda que ficava na porta. – Venha já aqui! Ele está tentando me drogar!

Fosse quem fosse que estivesse à porta, não respondeu.

– Vamos transferi­-lo para outro local, Dr. Fromke. Tenho uns testes que gostaria de executar. É tudo em nome da justiça pelo que você fez com aquelas pessoas no celeiro. Pelo que ouvi dizer, foram sete vítimas. Mesmo com minhas técnicas, os testes vão durar um bom tempo.

O Dr. Fromke gritou mais alto para o guarda que deveria estar na porta.

Por fim, um homem pôs a cabeça dentro do quarto.

Era o detetive que já o havia interrogado naquele dia.

– Graças a Deus, você está... – começou o Dr. Fromke.

– Os papéis estão todos prontos, Dr. Waxford – disse ele.

– Obrigado, detetive Poehlman – disse ele, tocando no braço do Dr. Fromke. – Não resista à sonolência agora. Quando acordar, você não vai sentir dor nenhuma. Só vai estar sozinho. Por um longo, longo tempo, você vai ficar sozinho.

***

De onde estava sentado, escondido no carro parado no outro lado do estacionamento, o Sr. Zacharias observou enquanto Daniel e Nicole juntavam seus presentes e voltavam para o hospital.

Ele precisava garantir que continuava a ser um fantasma, mesmo que isso significasse deixar Daniel no escuro quanto à sua verdadeira ou falsa existência.

Sim.

Daniel tinha o dom.

Suas distorções revelavam­-lhe coisas que ninguém mais conseguia entender.

Bem, talvez porque isso não fosse exatamente verdade.

Os três outros adolescentes que Malcolm já havia recrutado poderiam entender, depois que ele reunisse todos em suas instalações na Geórgia.

Ele fez uma chamada para seu contato pessoal.

Sim, as coisas iam ficar muito interessantes, agora que ele tinha quatro deles com quem trabalhar.

Existem quatro agências governamentais que não constam do orçamento nacional dos Estados Unidos. Oficialmente, elas não possuem funcionários. Não há registro de seus recursos financeiros.
O governo dos Estados Unidos continua a negar sua existência.
Uma dessas agências buscou, durante quase um ano, um local apropriado para desenvolver suas pesquisas.
E acabou por encontrá­-lo.
Perto de uma prisão estadual nas isoladas florestas do norte do estado de Wisconsin.
­-Você sabe por que está aqui, Daniel?
Daniel Byers sentiu que estava piscando e pendendo a cabeça para o lado. Uma forte luz fluorescente o iluminava. Ele estava numa cama, deitado de costas, desorientado.
– O quê?
– Eu lhe perguntei se você sabe por que está aqui.
Olhando ao redor, viu que estava num quarto de hospital. Uma janela na parede distante lançava pesadas sombras no ambiente, permitindo que apenas um silencioso raio de sol se infiltrasse por seus cantos.
Era impossível dizer a quantas andava o dia. Ele sentiu uma dor de cabeça aguda, os pensamentos se embaralharam como fios estranhos e incontroláveis. De uma coisa, porém, ele se lembrava com clareza.
– Dizem que eu machuquei alguém – murmurou ele.
Quem? Quem ele teria machucado?
– É só isso?
– É.
Um homem com distintivo de detetive surgiu ao lado do leito. O médico descarnado ao lado dele usava um avental branco de laboratório, mas permanecia em silêncio enquanto o detetive falava.
– Então você não se lembra do que aconteceu com o seu pai?
– Com o meu pai?
Daniel forçou a cabeça, tentando lembrar, mas só lhe vinham à mente imagens difusas de seu jogo de basquete no colégio na noite anterior, da visita a um galpão, de estar na neve ao lado de um lobo morto – mundos de sonho e vigília que giravam e emergiam, com pesadelos escuros girando em torno de si mesmos.
Não havia como afirmar quais dessas imagens eram lembranças e quais eram sonhos.
Você ainda está sonhando. Isto é um sonho.
Tem que ser um sonho.
Seu pai está bem.
Não aconteceu nada com ele.
Daniel tentou se erguer, mas descobriu que isso era impossível. Olhou para a cama. Seus pulsos e tornozelos estavam amarrados. O que está acontecendo aqui?
– O que aquela enfermeira quis dizer ao afirmar que eu machuquei alguém? Ela estava se referindo ao meu pai?
– Então você não se lembra de nada do que aconteceu ontem à noite?
– Diga que ele está bem. Você tem que...
– Sangue – interrompeu o detetive. – Isso o faz lembrar de alguma coisa?
– O quê?
– Sangue.
– Não sei nada de sangue nenhum.
– Quem é Madeline? – perguntou ele, inclinando­-se sobre Daniel.
– Madeline?
– Estamos com seu celular. Sabemos das suas mensagens de texto. O que você fez com ele, rapaz?
– Com quem?
– Com seu pai.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando.
Mas ele se lembrou das mensagens.
E também do nome Madeline.
– Ele precisa descansar – disse o médico. – Está na hora dos remédios.
– Contem­-me o que está havendo – pediu Daniel. – Meu pai está bem?
O detetive olhou para Daniel com o rosto sério.
– É o que você precisa nos dizer.
– Vou lhe dar alguma coisa para dormir – disse o médico, fazendo um gesto em direção à porta, e uma enfermeira entrou. Ela pegou uma seringa e entregou ao médico, que se inclinou para Daniel.
– Eu não quero dormir – disse ele, forçando as tiras que o prendiam. – Eu quero lembrar!
O detetive finalmente se afastou, enquanto a enfermeira segurava o braço do rapaz e o médico enfiava a agulha nele.
– Não!
Mas o mundo já começava a turvar­-se, esmaecendo como uma luz que alguém apagasse lentamente.
Daniel só conseguiu pensar numa palavra enquanto o vazio profundo se espalhava sobre ele: sangue.
Então, ele se lembrou.
Sim.
Lembrou­-se do sangue em suas mãos, do sangue que respingava por toda parte.
O que você fez com seu pai, Daniel?
O que você fez?
E, então, tudo ficou escuro.

 

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1

7h55

Daniel olhou para o seu armário.

Alguém havia prendido com fita adesiva um DVD do velho filme Psicose na porta dele.

Então, alguém sabia.

Ty Bell?

Talvez. Provavelmente. Ele era o tipo de cara que faria isso. Mas como ele podia ter descoberto o que estava acontecendo estava além da compreensão de Daniel.

Nos últimos dois meses, Daniel fizera o que podia para manter em segredo o que estava acontecendo com ele. Seus amigos mais próximos sabiam de tudo, mas ele confiava neles e sabia que nunca contariam.

Eles não poriam o DVD ali.

Ele o arrancou do armário e o colocou lá dentro; então, retirou seus livros e foi para a primeira aula, que era de Literatura.

***

Enquanto avançava pelo corredor, os outros alunos abriram caminho para ele passar, com os rapazes acenando com a cabeça, as garotas rindo timidamente e desviando o olhar dele.

Os esportes eram fortes naquela escola e, como atacante intrépido e eficiente, Daniel era alguém que os caras respeitavam e que atraía as garotas – embora isso não significasse que ele estivesse a fim de arrumar uma namorada. Ele estava com uma aluna do ensino médio, Nicole Martin, desde outubro.

Felizmente, as coisas estavam indo muito bem ultimamente, não apenas com ela, mas também em outras frentes. Muito melhor do que já haviam sido.

As distorções – visões, alucinações, ou qualquer outro nome que se quisesse dar a elas – haviam cessado, pelo menos por enquanto. Tudo parecia ter voltado ao normal depois do que acontecera em setembro, quando o corpo de uma garota foi encontrado e ele a viu sentar­-se no caixão, ouvindo­-a implorar­-lhe por socorro, sentindo­-a agarrá­-lo pelo braço.

Naquele dia do enterro ocorrera a primeira distorção, a primeira vez que a realidade mentira para ele.

Mas não foi a última.

Toda aquela semana foi estranha, surreal, mas depois que o cara que havia matado Emily e as duas garotas de escolas da área desapareceu da cena, as distorções não voltaram.

Tudo isso havia acabado.

Tudo pertencia ao passado.

As distorções morreram junto com o assassino.

Aquele era o último dia antes das férias de inverno, e Daniel tinha uma prova final de cálculo, mas o restante de suas provas havia terminado e, com exceção dessa, as outras eram fáceis, dando início às férias. O último jogo de basquete antes do Natal seria naquela noite contra a Coulee High.

Mentalmente, ele revisou a agenda do dia: ir às aulas de manhã, almoçar com Kyle em vez de com Nicole, pois ela estaria em aula, e ir à consulta médica antes de voltar para casa. Por fim, por volta das 16h45, voltar à escola para sair com o ônibus do time para o jogo das sete da noite.

Daniel olhou pela janela. Flocos de neve caíam suavemente sobre a neve que já se acumulara durante o mês anterior. Em algumas partes do país, isso pareceria demais, mas nesta longínqua parte norte de Wisconsin ainda se estava, na verdade, muito aquém do que caíra de neve no ano passado nessa época.

Aqui, as pessoas estavam acostumadas a dirigir na neve, e, assim, seria preciso uma tempestade daquelas para que um jogo fosse adiado ou cancelado. Mesmo assim, Daniel esperava que o tempo não piorasse.

Encontrou­-se com Nicole no final do corredor da sala de Literatura.

Embora normalmente tivesse cabelo cor de avelã, ela o tingira de vermelho algumas semanas atrás. Ela sempre fora moderada com a maquiagem; era uma dessas garotas que realmente não precisam desse artifício. Hoje, o suéter que escolhera combinava com seus olhos perspicazes e verdes. Vivaz e divertida, era uma pessoa que Daniel conhecia há muitos anos, muito antes de eles começarem a namorar alguns meses atrás.

– Oi – disse ele, dando­-lhe um beijo.

– Oi – respondeu ela, parecendo agitada.

– O que aconteceu?

– Você soube que encontraram mais um ontem à noite?

– Mais um?

– Mais um lobo. Na margem do lago.

– Ele foi...?

– Foi. Tomou um tiro e morreu... como os outros.

– Bem, já são quatro – disse Daniel, mais para ele mesmo.

– Quatro que encontraram. Quem sabe quantos outros foram mortos, mas, você sabe como é, isso a gente desconhece. Não consigo imaginar que alguém esteja fazendo isso.

Os lobos cinzentos eram protegidos por lei e começaram, há cerca de dez anos, a voltar às densas e vastas florestas que cercavam a cidade de Beldon. Mas agora alguém os estava caçando.

E não era pela pele dos animais.

Era apenas por diversão.

Se é que se podia chamar aquilo de diversão.

Uma linha para denúncias anônimas foi instalada no escritório do agente florestal, e o xerife, pai de Daniel, vasculhou a área com alguns guardas florestais locais para tentar descobrir quem estava matando os lobos, mas, pelo que Daniel soubera, eles não estavam obtendo muito sucesso.

Nicole preocupava­-se seriamente com as questões ambientais e, desde que soube da matança dos lobos, ficou profundamente perturbada. As notícias mais recentes só pioraram as coisas.

– Vai ficar tudo bem – disse­-lhe Daniel. – Meu pai vai descobrir quem está fazendo isso.

– Espero que essa gente fique presa por muito tempo.

Entraram na sala de aula e foram para seus lugares. Kyle Goessel, o amigo de Daniel, já estava lá. Ele empurrou para trás uma mecha do cabelo loiro que lhe descia até os ombros e perguntou a Daniel:

– Alguma novidade?

– Praticamente nada – respondeu Daniel distraidamente, ainda pensando nos lobos.

Ele estava acompanhando as notícias sobre a matança dos lobos pela internet, lendo tudo o que podia a respeito.

Então, já eram quatro lobos mortos.

Quantos mais haveria por lá?

Por que só os lobos daquela área? Será que o matador morava por ali?

Perguntas que precisavam ser respondidas.

Mas isso teria que ficar para mais tarde.

Foi dado o sinal, e a aula de Literatura começou.


2

A Srta. Flynn gostava que seus alunos a chamassem de “Prô”. Para alguns professores, isso poderia parecer uma maneira de serem “legais” com os alunos, ou de se relacionar melhor com eles, mas não era o que acontecia com ela.

Estava há uns dois anos na escola e era atraente o bastante para que alguns rapazes da classe de Daniel ficassem ligados nela; ela via como clássicos as histórias de terror de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe, e não os livros que outros professores de Literatura indicavam. Tudo isso junto acabou por torná­-la uma das professoras prediletas do ensino médio.

– Bem – disse ela –, sei que as férias de inverno estão para começar e, como vocês já entregaram o trabalho final, provavelmente querem um dia livre, mas baseada no que já li dos trabalhos, precisamos gastar um certo tempo discutindo um aspecto da literatura que aparentemente não discutimos como devíamos ter feito: as forças que contribuem para impedir que o protagonista atinja seu objetivo ou consiga o objeto de seu desejo. Vocês devem se lembrar do termo que se refere à pessoa que interfere na jornada da personagem principal ao longo da história... – E olhou ao redor da sala.

– Bradley?

– O vilão? – respondeu ele. Na verdade, para Brad Talbot aquela resposta parecia perspicaz.

– É isso. Mas e a outra designação...?

– Antagonista – disse Stephanie Mills, com a mão erguida e falando de modo entusiasmado, antes que Prô tivesse a oportunidade de chamá­-la.

– Isso mesmo. Uma história inesquecível precisa de um antagonista inesquecível. A força do protagonista é medida em relação às forças do antagonismo que ele precisa superar. Então, quando escreverem suas histórias, vocês precisam se assegurar de que o antagonista (o vilão) é suficientemente cruel, persistente ou frio para representar um perigo grande o suficiente de modo a revelar ou desenvolver as características básicas de seu protagonista. Faz sentido para vocês?

Alguns concordaram com um movimento de cabeça. Daniel anotou algumas coisas em seu caderno.

– Prô – perguntou Stephanie –, o protagonista também pode ser o antagonista? Quero dizer, existe alguma forma de a personagem principal ser o herói e o vilão ao mesmo tempo?

– É uma boa pergunta – respondeu a professora atentamente. – Pode acontecer quando o protagonista não se dá conta de que também é o antagonista. Assim, talvez numa história em que se tenha um narrador não confiável, ou seja, quando ele ou ela está contando a história, mas ainda desconhece a verdade total do que vai acontecer. Ele pode ser louco, alucinado ou as duas coisas.

Daniel não tinha certeza, mas pareceu que Prô olhou em sua direção um instante antes de desviar o olhar. Foi tudo muito rápido, não chegou a ser um olhar, mas ele percebeu.

Talvez ela soubesse mais do que devia.

Ele esperava que não.

– Mas isso não é tudo – prosseguiu ela. – Por exemplo, naquele conto de Poe que estudamos, intitulado O barril de amontillado, o personagem principal é também quem empareda o outro homem vivo na cripta. Acho que, neste caso, o protagonista está lutando contra si mesmo, contra o que é capaz de fazer. Então, num sentido real, ele é, ao mesmo tempo, o protagonista e o antagonista. O mesmo vale para a história do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (O médico e o monstro). Na verdade, podemos afirmar que todos nós somos o protagonista e o antagonista de nossas próprias vidas, nas histórias que vivenciamos todos os dias.

Quando ela voltou à discussão do que torna um antagonista memorável, Daniel já não estava mais ouvindo. Em vez disso, seus pensamentos vagavam em direção à lenda dos índios ojibwe que seu pai lhe contara depois dos eventos do último outono, quando Emily foi morta.

De acordo com essa lenda, um velho estava ensinando a seu neto a moral e os valores da tribo e disse que havia uma luta dentro dele entre dois lobos: um feroz e mau, cheio de escuridão na alma; o outro, bom e justo, estava cheio de esperança e encanto. “Qual dos dois vai vencer?”, perguntou o menino. “O que eu alimentar mais”, replicou o avô.

Então, o pai de Daniel disse: “O homem que matou Emily alimentou o lobo errado durante um longo tempo, até que o animal ficasse forte e, por fim, pudesse matar o outro”.

E, desde então, Daniel teve consciência de que também dentro dele havia dois lobos.

Qual dos dois você está alimentando, Daniel?

Qual dos lobos vencerá?

Isso o fez pensar nos filmes favoritos de Nicole, a série Star Wars, e a passagem de Anakin Skywalker para o lado sombrio da Força.

Ele atrai todos nós, ele...

Soou o sinal do fim da aula, e Daniel foi arrancado abruptamente de seus pensamentos.

Baixou o olhar e viu que seu caderno estava coberto de palavras rabiscadas numa escrita que não se parecia em nada com sua caligrafia. Repetidas vezes, ele escrevera as palavras “Cova Perdida é a chave”.

Mas não tinha ideia do que aquilo significava.

Em silêncio, fechou o caderno, recolheu suas coisas e saiu para o corredor. Nicole saíra para sua próxima aula, mas Kyle o estava esperando.

Seu amigo estava um tanto longe dele e começou a se aproximar com um andar desajeitado, meio de girafa, até que começou a correr e tudo nele se sincronizou. Kyle provavelmente seria capaz de correr mais rápido que a metade dos corredores das equipes da escola, mas ele não era chegado a nenhum esporte. Daniel sempre se perguntara o motivo, mas nunca abordara o assunto, pois era fácil perceber que o amigo nunca estava a fim de falar disso.

– Você já descobriu quem está mandando aquelas mensagens? – perguntou Kyle em voz baixa.

– Ainda não. O número está bloqueado.

– Já contou sobre elas para a Nicole?

– Não. Acho que não é uma boa ideia.

Daniel achava que sua namorada não ficaria muito entusiasmada ao descobrir que ele estava recebendo mensagens misteriosas de alguém chamada Madeline.

– É isso aí.

Começaram a caminhar pelo corredor.

Daniel não conhecia nenhuma Madeline e não havia nenhuma garota com esse nome na escola, pelo menos que ele soubesse. Havia uma garota do segundo ano chamada Maddie, o nome que mais lembrava o da autora das mensagens. É claro que sempre era possível que uma caloura ou aluna transferida se chamasse Madeline, mas, se esse fosse o caso, por que ela estaria lhe mandando mensagens de texto? E como teria conseguido seu número?

Existem aplicativos que podem ocultar o número de alguém que está enviando uma mensagem, o que não constitui nenhum mistério. Contudo, com sua ligeira tendência conspiratória, Kyle lembrou que sequer havia prova de que Madeline fosse uma garota; poderia ser um cara usando um nome de mulher – ou uma garota usando um nome diferente. Afinal, quando se está on­-line ou lendo mensagens de texto, não se pode ter certeza de que as pessoas são realmente o que dizem ser.

Quando passaram pelo ginásio, Kyle disse:

– Ei, no almoço tenho um quebra­-cabeça para você. Eu mesmo o inventei.

Ele estava sempre tentando bolar um problema de lógica ou matemática que Daniel não conseguisse resolver na hora.

Até então, não tinha conseguido ter sucesso em sua empreitada.

Matemática e lógica não eram coisas nas quais Daniel tivesse tentado se destacar; para ele, eram apenas coisas instintivas, como aprender uma língua estrangeira para certas pessoas. Durante um tempo, ele não tinha resolvido enigmas propostos pelo amigo, mas ultimamente Kyle estava ficando cada vez mais criativo, e ele teve que passar a resolvê­-los.

– Aposto um refrigerante que você não consegue solucioná­-lo em um minuto – disse Kyle, detendo­-se um instante.

– Não sei. Hoje estou me sentindo em plena forma.

– É bom que esteja.

– Aceito a aposta.

Depois que Kyle foi embora, Daniel respondeu a algumas mensagens e, quando estava terminando, recebeu uma nova: Estou aqui esperando por você, Daniel – Madeline.

Madeline outra vez.

Em vez de apagar a mensagem, ele a arquivou, na esperança de acabar descobrindo quem ela era.

Durante a prova de cálculo, fez o que pôde para não deixar que as questões referentes à identidade dela ou à Cova Perdida o distraíssem, mas não se saiu muito bem em sua tentativa; ainda bem que Cálculo era uma matéria fácil para ele, ou teria realmente tido problemas com a prova.

Acabou sendo o último a entregar a prova, e o professor, o Sr. Carrigan, olhou para ele preocupado.

– Você está se sentindo bem, Daniel?

– Sim – respondeu ele. Normalmente, Daniel entregava a prova pelo menos dez ou quinze minutos antes de qualquer outro aluno; assim, não ficou surpreso com a preocupação do Sr. Carrigan. – Eu estou bem.

***

Na hora do almoço, Kyle sentou­-se à frente de Daniel nos fundos da cantina.

– O meu enigma – disse ele – é um paradoxo do mentiroso.*

– Eu gosto de paradoxos do mentiroso – disse Daniel. Naquele dia, em vez de comer a carne misteriosa da cantina, Daniel trouxera seu próprio almoço de casa: um pouco de fajita de frango do dia anterior. Era muito melhor que qualquer coisa que a cantina pudesse servir. – Vamos ouvi­-lo.

– Vamos lá – disse Kyle, colocando uma lata fechada de refrigerante ao lado de seu prato. – Imagine o seguinte: existem quatro portas, duas de cada lado de um corredor, com um guarda postado ao lado de cada uma. Atrás de uma dessas portas está a princesa; atrás das outras está um bilhete só de ida para a masmorra. Antes de escolher a porta, o nosso cavaleiro Elvin...

– Cavaleiro Elvin?

– Isso mesmo. Por que não?

– Fala sério.

– Não lhe parece suficientemente medieval?

– Bem...

– Que tal Elvinore? – propôs Kyle.

Parece mais nome de princesa que de cavaleiro.

– Tudo bem. Tanto faz. Vá em frente.

– Que seja Elvinore; ele faz uma pergunta a cada guarda para tentar encontrar a princesa para que possa se casar com ela e viverem felizes para sempre. Mas aqui está o problema: o guarda diante da porta dela e o que está diante de uma outra sempre dizem a verdade, mas os outros dois guardas sempre mentem.

– Puxa!

– Muito bem. Ele vai até a primeira porta à esquerda e pergunta: “A princesa está atrás dessa porta?”. “Sim”, responde o guarda. Ele passa para a segunda porta daquele lado do corredor e pergunta: “A princesa está atrás dessa porta?”. “Sim”, responde o guarda.

– Duas portas, duas respostas afirmativas.

– Isso. Então, ele atravessa o corredor e pergunta ao guarda seguinte: “A princesa está atrás da porta diretamente à sua frente, do outro lado do corredor?”. Outra vez a resposta é sim. Por fim, Elvinore vai para a última porta. “A princesa está atrás dessa porta?”. “Não”, responde o guarda.

Kyle pegou o celular e procurou o cronômetro no menu.

– Bem, Elvinore pensa um segundo e, então, caminha para a porta correta e... – interrompendo­-se, toca a tela. – Vá em frente.

– A primeira porta.

– O quê? – exclama Kyle, encarando­-o.

– Ela estava atrás da primeira porta.

– Como você...?

– A princesa não podia estar atrás da última porta, pois seu guarda sempre deve dizer a verdade, e ele disse que ela não estava lá. Se estivesse, ele teria que dizer sim.

– Certo. Mas...

– Ela não podia estar atrás da terceira porta porque o guarda disse que ela estava atrás de uma porta diferente, e, mais uma vez, se ele a estivesse guardando, teria que dizer a verdade. Então, isso significa que ela só pode estar na primeira ou na segunda porta.

– Mas por que você achou que fosse a primeira porta?

– Se a princesa estivesse atrás da segunda porta, então três guardas teriam dito a verdade sobre onde ela estava: o segundo, o terceiro e o quarto. Mas sabemos que apenas dois dizem a verdade, então ela tem que estar atrás da primeira porta. O primeiro e o quarto guardas disseram a verdade; o segundo e o terceiro mentiram.

Daniel comeu outro pedaço de fajita.

Estava muito boa mesmo.

Kyle balançou a cabeça, parou o cronômetro e empurrou a lata de refrigerante para o lado de Daniel.

– Você vai me pegar qualquer dia desses – disse Daniel, olhando as horas e, em seguida, acabando rapidamente com o restante de sua comida, deixou que Kyle ficasse com o refrigerante e se levantou. – Preciso ir embora.

– Sua consulta com o médico.

– Isso mesmo.

Ele não precisava contar ao amigo com que tipo de médico ia se consultar.

Kyle já sabia.

E não era um clínico geral.

– Ei!– disse Kyle. – Mia e eu vamos ao jogo hoje à noite.

Mia Young, a garota de Kyle, dedicava­-se a escrever ficção quase tanto quanto ele e estava trabalhando num romance: uma história de terror sobre fantasmas que assombram um velho mosteiro. Os dois estavam juntos desde o último verão e, pelo que Daniel podia perceber, eram feitos um para o outro.

– Vamos nos encontrar depois do jogo. Traga a Nicole. Podemos ir curtir lá em casa.

– Boa sugestão.

– Jogue bem. Você comanda aqueles caras.

– Tomara que você tenha razão.

Depois de sair da cantina, Daniel foi até seu armário e arrancou o DVD de Psicose que tinham prendido na porta dele. Então foi até a diretoria e entregou o bilhete que seu pai havia mandado para que fosse dispensado das aulas da tarde e de Educação Física. Quando estava saindo da escola, ficou pensando no que escrevera em seu caderno na aula da Prô.

Não era bom sinal não se lembrar de ter rabiscado aquela frase, e era ainda mais bizarro que sua caligrafia parecesse a de outra pessoa. O que queria dizer aquilo tudo?

Está começando de novo.

As distorções estão voltando.

Tentou dizer a si mesmo que nada daquilo era verdade quando começou a dirigir o carro até o consultório de seu psiquiatra.

* Nome dado ao clássico sofisma “Eu minto”, referência ao lendário Epimênides (séc. IV a.C.), que diz: “Todos os cretenses mentem; ora, ele é cretense; logo, mente. Conclusão: os cretenses não mentem. No entanto, se Epimênides diz a verdade, os cretenses mentem” etc. Logo, se Epimênides diz a verdade, está mentindo, e se mente diz a verdade. Fora da verdadeira conclusão lógica que se impõe e impede essa falsa regressão ao infinito (“não é verdade que os cretenses mentem sempre”), esse tipo de paradoxo é útil para distinguir a linguagem da metalinguagem, o que se diz e o fato de dizê­-lo. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008) (N.T.)


3

Eles não dizem que você está “ficando louco”.

Daniel tinha aprendido isso em sua primeira visita ao psiquiatra.

O cara tivera o grande cuidado de evitar o uso dessa frase.

Mas quando você começa a ver coisas, a ouvir vozes, a ficar sonâmbulo e a desenterrar animais de estimação do túmulo, obviamente existe motivo para preocupação. Foi o que levou Daniel para o psiquiatra.

A tomografia e a ressonância deram negativo. Pelo que o médico podia observar, não havia nada de errado com ele fisicamente, o que era tranquilizador e preocupante ao mesmo tempo.

Porque alguma coisa, sem dúvida, estava errada.

E se não era física, então tinha que ser mental, psicológica.

O que não é exatamente algo que um garoto de 16 anos quer ouvir.

Essa era a quinta visita de Daniel ao Dr. Fromke. Enquanto estava na sala de espera, pegou o telefone e consultou o Google. “Cova Perdida é a chave”. Mais de um milhão de resultados apareceram na tela.

Tudo bem, era um pouco demais para ser consultado no momento.

Deu uma olhada rápida nos doze primeiros resultados, mas não viu nada que lhe pudesse ser particularmente útil.

Depois de colocar o telefone de lado, folheou distraidamente uma Sports Illustrated velha de quatro meses e que estava na mesinha ao lado de sua cadeira. Uma conversa que tivera com Nicole algumas semanas antes lhe veio à mente. Ela lhe perguntara que diferença havia entre alguém que é psicopata e alguém que é psicótico.

– Bem... Por motivos óbvios, ele havia lido muito sobre o tópico desde outubro. – Os psicopatas, ou sociopatas, seja lá o termo que se queira usar, sabem a diferença entre o certo e o errado. Mas alguém que é psicótico não sabe.

– Então... E alguém que sofre de esquizofrenia?

– Essa pessoa nem sempre sabe o que é real e o que não é.

– Mas o que é certo e o que é errado?

– Pelo que eu li, a pessoa sabe o que é certo, mas como a diferença entre a realidade e suas alucinações é tão imprecisa, nem sempre ela consegue fazer isso.

Agora, enquanto folheava a revista, lembrou­-se da lenda do lobo e ficou imaginando se uma pessoa podia estar alimentando o lobo errado sem sequer saber disso, bem como se era possível chegar ao ponto de não distinguir entre as duas atitudes.

– Daniel Byers? – chamou a recepcionista, informando­-o de que o médico ia recebê­-lo.

Entrou no consultório: numa mesa desarrumada via­-se o canivete que ele usava como abridor de cartas ao lado da caixa de entrada de correspondência, uma cadeira virada para o sofá, diplomas na parede, um certificado de conselheiro voluntário da Penitenciária Estadual de Derthick, uma prateleira com 28 livros, com um total de 471 letras nas lombadas. Daniel notou o número, pois não conseguiu evitar observá­-lo. Sempre acontecia isso com tudo que envolvesse matemática e números.

O Dr. Fromke parecia ter a mesma idade do pai de Daniel, mas estava quase careca e tinha uma barba um tanto desgrenhada. Ele se levantou da cadeira para apertar a mão de Daniel e fez um gesto indicando o sofá.

– Sente­-se, por favor.

Depois que Daniel se sentou, o médico instalou­-se em sua cadeira e perguntou:

– Como você está se sentindo hoje?

– Estou bem.

– Teve dor de cabeça recentemente?

– Não.

O Dr. Fromke escreveu alguma coisa em seu bloco de notas e, então, foi direto ao assunto:

– E as distorções? Você ainda as tem?

Na verdade, fora Kyle quem cunhara o termo “distorção” para designar quando a fantasia e a realidade – ou talvez a sanidade e a insanidade – se misturavam em Daniel. A palavra acabou pegando, e desde a primeira consulta em que Daniel contara ao Dr. Fromke o que estava acontecendo, ele se descobriu usando­-a de maneira natural. Desde então, o médico também optou por usá­-la, no lugar de “alucinações”.

– Não – respondeu Daniel. – Nada de distorções.

Mas e o que aconteceu na aula de Literatura? Escrever aquela frase tantas vezes? Será que isso conta?

Não. Foi apenas porque você estava distraído.

Mas e quanto a...

– Fico feliz em saber disso – disse o Dr. Fromke, afastando Daniel de seus pensamentos.

Ele esperava que o médico não lhe perguntasse se estava tomando os remédios. Não queria admitir, mas tinha se livrado deles, jogando dois comprimidos no vaso sanitário todos os dias, mas não sabia mentir. Provavelmente seria melhor que o assunto não viesse à tona.

Felizmente, o Dr. Fromke não tocou nele.

– Você tem dormido bem?

– Muito bem.

– Tem tido crises de sonambulismo?

– Nadinha.

– E o relacionamento com seus pais? Diga­-me como está indo.

– Tudo vai bem. Com meu pai, pelo menos.

Daniel não tinha certeza se saberia explicar como estavam as coisas com sua mãe. Isso era um pouco mais complicado. Ela tinha ido embora na última primavera, sem dizer por que a ninguém, e não falou muito com Daniel desde então. Porém, em outubro, pela primeira vez ela saiu de Minneapolis­-Saint Paul, onde estava morando, para assistir a um dos jogos de futebol de Daniel.

Isso era estranho.

Muito estranho.

No último fim de semana, ela voara até Anchorage, no Alasca, para visitar o irmão, mas planejava voltar ao Meio­-Oeste na próxima terça­-feira, em tempo de ver Daniel no Natal.

Ele nem conseguia imaginar como isso aconteceria.

– E a sua mãe? – perguntou o Dr. Fromke.

– Como sempre.

Ela ainda não contara a Daniel por que tinha ido embora. Ela não estava com nenhum outro homem, e o pai de Daniel não tivera nenhum caso ou coisa do tipo que a tivesse desagradado – o que, basicamente, significava que ela preferia ficar sozinha a conviver com o marido e o filho.

Era aquilo mesmo.

Tudo indicava que eles iam se divorciar, e Daniel estava surpreso que isso ainda não tivesse acontecido.

Ele estava dividido.

Por um lado, queria que eles ficassem juntos, mas, por outro, se sua mãe não quisesse isso, tudo bem. Ele conseguiria se acostumar com a ideia.

Ele a queria perto dele.

Ele não a queria perto dele.

Queria perdoá­-la por ter ido embora.

Queria apenas esquecê­-la e deixá­-la viver sua própria vida. Era atraído por essas duas direções e, às vezes, achava que ia pirar por causa disso, mas esse não era exatamente o tipo de coisa que queria compartilhar com seu psiquiatra naquele momento.

Ele a amava?

Já nem tinha mais certeza disso.

– Você tem conversado com ela? – perguntou o Dr. Fromke.

– Um pouco. Sim. As coisas não melhoraram, mas também não pioraram. Como eu disse, estão como sempre.

O Dr. Fromke escreveu alguma coisa e perguntou a Daniel sobre suas notas, como estavam a escola e o basquete, se ele estava se sentindo deprimido ou ansioso, se estava achando difícil se concentrar. Achando que o incidente na aula de Literatura provavelmente não fosse nada com que se preocupar, preferiu não mencioná­-lo.

– Então – concluiu o médico –, os remédios devem estar fazendo bem a você.

Isso não soou como uma pergunta.

Daniel não disse nada.

Continuaram a conversar por mais uns vinte minutos, com Daniel reiterando que tudo estava indo bem e o Dr. Fromke parecendo satisfeito.

– Da última vez que você esteve aqui, conversamos sobre a morte de sua avó.

– Isso mesmo – disse Daniel. Era verdade, esse assunto fora levantado, embora ela tivesse morrido quando ele tinha nove anos.

– Como você tem lidado com isso?

– Bem. Estou muito bem.

Ele explorou os sentimentos de Daniel com relação àquele assunto por uns dois minutos e, então, escreveu uma nova receita e a entregou a ele.

– Dê isto ao seu pai. Ele pode aviá­-la na farmácia.

– Claro.

– Não esqueça. Dois comprimidos pela manhã. Tome­-os junto com algum alimento.

– Não vou esquecer.

Ele não tinha exatamente certeza do motivo que o levara a não tomar os remédios. Talvez fosse porque as distorções tinham parado sozinhas. Talvez porque não quisesse correr o risco de ter algum resultado positivo se fosse testado com relação ao doping nos esportes, ou porque os remédios pudessem turvar seu raciocínio ou retardar suas respostas.

Ou talvez porque simplesmente não gostasse da ideia de admitir que precisava de ajuda.

Esquizofrenia?

Sim, era possível que fosse isso o que havia de errado com ele.

Ou, pelo menos, parte do que estava errado.

Para a pessoa que ouve vozes dentro de sua cabeça, estas podem ser tão reais que ela sequer as questiona. As alucinações podem ser tão convincentes que as pessoas simplesmente as aceitam como fato consumado.

Quando ele tinha as distorções, elas eram quase como a realidade ao seu redor, mas havia frestas nelas, rachaduras invisíveis que deixavam penetrar pensamentos que ele não devia ter de modo algum.

Daniel estava na idade certa para ser diagnosticado como esquizofrênico.

Ele apresentava sintomas suficientes para que o Dr. Fromke achasse que pudesse ser esquizofrenia, e é por isso que lhe prescrevera drogas antipsicóticas.

Mas Daniel não estava convencido.

Tinha que haver mais alguma coisa.

Afinal, quando a garota morta agarrou­-lhe o braço, deixou nele uma marca, vermelha e inchada, no formato de sua mão, como se seus dedos tivessem lhe queimado a carne.

Aquilo foi real.

A dor foi real.

A marca foi real.

Ele não tinha imaginado nada daquilo.

Mesmo quando se começa a ouvir vozes que não são reais ou a ver coisas que não são reais devido à esquizofrenia, marcas não aparecem na pele sem motivo. Particularmente tão fortes como aquela, marcas que, como por milagre, desaparecem em menos de 24 horas.

Não, a esquizofrenia não provoca isso.

Daniel não sabia em que acreditar no paranormal, no sobrenatural, mas não estava disposto a descartar nada. Alguma coisa lhe acontecera, algo que a lógica, o raciocínio e a ciência normais não conseguiam explicar.

***

Depois da consulta médica, Daniel foi para casa.

O consultório ficava a seis quilômetros da cidade, e ele teve que passar pela prisão para chegar em casa.

Torres de vigilância. Cerca de arame farpado. Tudo o que era necessário.

Ele sempre diminuía a marcha quando passava por ali.

Talvez apenas por curiosidade.

Algumas pessoas aceleravam.

Porque ficavam nervosas.

Depois que a Penitenciária Estadual de Derthick foi construída dois anos antes, ela se tornou um dos maiores empregadores do distrito, que sempre dependeu principalmente do turismo ao ar livre para a oferta de empregos: passeios guiados no verão, aluguel de motos de neve e esquis no inverno.

Mas as pessoas da região tinham sentimentos diferentes com relação à penitenciária. É claro que estavam satisfeitas com os empregos que ela oferecia, mas a ideia de ter uma prisão tão perto não as entusiasmava exatamente, embora o governo tivesse lhes garantido que ela era segura e que não havia nada com que se preocupar.

***

Enquanto Daniel estava no consultório do psiquiatra, as nuvens se foram e a neve cessou. Pelo que ele podia perceber, só uns 2,5 centímetros de neve haviam caído desde a noite anterior.

A menos que a Coulee High, que ficava a uma hora de distância, tivesse ficado bloqueada pela neve, o jogo daquela noite aconteceria – o que era bom, pois Beldon High estava invicta depois de seis partidas naquela temporada, já entrando no novo ano.

Além disso, ele já teria recebido uma mensagem de texto se o jogo tivesse sido adiado.

A neve que cobria o chão brilhava à luz do sol. Tudo parecia tão puro e limpo, como sempre acontecia depois de cada nevasca.

Como de costume, o limpa­-neve passava – principalmente quando a neve estava meio derretida – e juntava a neve manchada com a areia que o distrito por vezes colocava nas estradas para facilitar a tração dos veículos.

Montes de neve acumulavam­-se ao longo das estradas e, quando a neve fresca derretia, deixava uma camada de sujeira na crosta da que ficava por baixo. Mas uma nova nevasca sempre a cobria, de modo que tudo parecia imaculado novamente, embora houvesse algo feio sob a superfície.

Provavelmente havia ali um significado mais profundo; um simbolismo sobre as aparências de nossas vidas e como elas podem esconder o que realmente acontece debaixo delas.

Somos todos tanto protagonistas quanto antagonistas das histórias que vivemos todos os dias.

Dois lobos dentro de nós.

Travando um combate mortal onde ninguém pode vê­-los.

***

A viatura do pai estava na entrada na garagem.

Daniel pensara que ele estivesse fazendo uma patrulha, mas seu horário de trabalho não era nada regular e, muitas vezes, não era incomum que ele estivesse em casa – ou fora – nas horas mais inesperadas.

Ele estava na cozinha esvaziando a lavadora de pratos quando Daniel entrou.

– Oi, Dan.

– Oi.

– Como foi com o médico? – perguntou o pai, evitando usar a palavra “psiquiatra”. Ficava mais fácil para os dois.

– Ele quer que você providencie isto – disse Daniel, entregando­-lhe a receita.

– Certo. Obrigado.

Naquela casa, o dinheiro não sobrava, e Daniel não ficou muito entusiasmado com o fato de o pai ter que comprar um remédio que ele sequer ia tomar, mas não estava preparado para lhe dizer que não vinha tomando os medicamentos regularmente. Ele realmente não sabia como aquilo ia terminar.

Talvez começasse a tomá­-los pela manhã.

Sim, talvez seja preciso, pois você está outra vez fazendo coisas sem lembrar, como escrever aquelas frases misteriosas em seu caderno – com a letra de outra pessoa.

– Há mais alguma coisa que eu deva saber? – perguntou o pai.

– Que você precise saber?

– Do médico.

– Ah, sim. Não... Está tudo bem. Tudo vai bem. Você quer que eu ajude?

– Não. Já acabei – disse o pai, tirando os últimos pratos da máquina. – Então, você está pronto para o jogo?

– Estou. Ei, ouvi dizer que acharam outro lobo.

O pai confirmou com um soturno movimento de cabeça e fechou a máquina.

– Estamos investigando. Na verdade, isso me fez lembrar de uma coisa que preciso lhe dizer: não vou conseguir assistir ao seu jogo de hoje à noite. Tenho que seguir uma pista relacionada ao caso.

– Tudo bem.

Seu pai sempre soube equilibrar bem as coisas: estava presente na maioria de seus jogos, mas não em todos eles. Ele deixava claro o quanto Daniel era importante para ele, mas não queria fazer alarde disso.

– Bem – disse o pai, tirando as chaves do bolso. – Preciso ir. Tenha um bom jogo.

– Vou ter.

– Mande­-me uma mensagem contando como foram as coisas.

– Claro.

***

A dor de cabeça começou quando Daniel estava guardando os livros.

Começou na parte de trás da cabeça e, então, deslocou­-se com firmeza para a frente, como um enxame de abelhas avançando por seu cérebro, zumbindo, desviando sua atenção, penetrando­-lhe os pensamentos com seus ferrões.

No último outono, quando ele teve as distorções, as dores de cabeça intensas quase sempre as precediam, e não lhe parecia um bom sinal tornar a senti­-las.

Ele se dizia que a dor ia passar sozinha.

Você sabe que isso não vai acontecer até ver outra distorção.

Bem, se esse fosse o caso, seria melhor que a distorção acontecesse logo, para que a dor de cabeça já tivesse desaparecido durante o jogo, mas levando em consideração que da última vez que tivera esse tipo de sintoma tinha visto uma garota morta se levantar diante dele, não era exatamente o que gostaria que acontecesse.

Depois de responder a algumas mensagens, Daniel pegou o uniforme e o tênis do basquete, colocou­-os em sua mochila e foi para o estacionamento da escola, onde o ônibus do time estaria esperando.


4

Nesta época do ano, no norte de Wisconsin, os dias são curtos, e às cinco horas da tarde, quando o ônibus partiu para Coulee High, já estava escuro.

Durante a viagem, alguns caras do time conversavam ou brincavam uns com os outros, mas a maioria mandava mensagens de texto, jogava em seus celulares ou ouvia música com fones de ouvido.

Stephen Layhe, que dividia algumas aulas com Daniel e estava sentado ao lado dele, perguntou­-lhe onde ele estivera naquela tarde.

– No médico.

– Você está legal?

– Estou, está tudo bem. Foi só uma espécie de checkup, sabe, para ver como eu estou.

– Puxa – disse Stephen. – Então você está preparado para vencer esses caras hoje à noite.

– Estou.

– Como nas finais do ano passado.

– Isso mesmo.

Continuaram a conversar por alguns minutos. A dor de cabeça não dava trégua, dificultando­-lhe a concentração. Por fim, disse a Stephen que ia ouvir um pouco de música.

Nicole havia gravado um programa de música para Daniel, que agora o consultou. Em vez de bandas de garotos ou o top 20 de música pop, ela gravara música eletrônica para violino e música techno. Uma batida hipnotizante. Sem letra. Ela gostava de dançar ao som dessa música, e ele também gostava do estilo porque o ajudava a se preparar mentalmente para o ritmo do jogo.

Olhou pela janela para a escuridão lá de fora, observando o reflexo do interior do ônibus criado pela luz esverdeada dos fones de ouvido misturada ao luar que refletia a paisagem coberta de neve do exterior.

Os dois mundos passavam um pelo outro no vidro da janela: uma floresta coberta de neve e a linha dos rapazes em torno de Daniel. Ali, as duas imagens se encontravam, tornando­-se uma só. E era possível até se enganar, confundindo onde uma terminava e a outra começava.

Mas você sabe bem.

Você sabe distinguir o real do irreal.

A música pulsava em sua cabeça.

Ele diminuiu o volume, mas isso só fez com que sentisse ainda mais a dor de cabeça; então, tornou a aumentar o volume para se distrair dela.

Enquanto observava o negror da noite misturar­-se na janela com o fraco reflexo do interior do ônibus, Daniel descobriu­-se, de alguma maneira, puxado para fora, ficando em pé na neve. Não estava mais escuro. A luz do dia espalhava­-se sobre ele.

A neve estava desaparecendo, não derretendo, mas simplesmente indo para dentro da terra, e, então, era outono, com o ciclo das estações retrocedendo. Folhas cobriam o chão. As árvores sem folhas erguiam­-se para um vasto céu de um azul de aço.

É um sonho.

Você só está sonhando.

Mas essa convicção não impediu que as imagens se desdobrassem diante dele.

Ele estava caminhando paralelamente a uma cerca de arame farpado. Tinha percorrido metade do caminho até um celeiro no final do campo, quando surgiu uma garota de trás de uma das árvores próximas.

Não conseguia ver o rosto dela, mas baseado em sua altura e constituição, imaginou que talvez tivesse uns 10 ou 11 anos.

Estava usando uma camisola branca fora de moda, com franjas de renda.

Quando ela virou o rosto para ele, Daniel sentiu­-se enregelar.

Ela abria e fechava a boca lentamente, sem falar, sem emitir som, apenas deixando que a boca abrisse, como se quisesse que as palavras saíssem, porém sem conseguir fazer isso. Um sangue escuro escorria­-lhe dos olhos, descendo pelo rosto em duas listras macabras.

Lágrimas de sangue.

Daniel recuou, mas ela foi em sua direção como se estivesse tentando manter a mesma distância entre eles. Ela ergueu uma das mãos e apontou para ele; então tornou a abrir a boca em silêncio.

Ele queria perguntar­-lhe quem ela era, o que ela queria, mas, então, ela se virou e começou a caminhar em direção ao celeiro.

Perturbado com a aparência dela e curioso a seu respeito, Daniel a seguiu.

Não conseguiu evitar.

Ela parecia caminhar lentamente, mas também parecia se movimentar com rapidez, e ele sabia que era porque aquilo era um sonho, e os sonhos seguem seu próprio conjunto de regras.

Então, eles estavam junto do celeiro. Ela entrou nele.

Um tanto apreensivo, ele a seguiu.

E descobriu que ela estava a três metros dele, olhando­-o com aqueles terríveis olhos vertendo sangue.

Ela abriu a boca outra vez e ele conseguiu ouvir o que ela dizia. Sua voz era áspera e dura, mas também, de certo modo, era marcada pela suave inocência de uma criança:

– Madeline está esperando você, Daniel. Madeline está esperando.

– Quem é Madeline?

A garota não respondeu; em vez disso, ergueu os braços e olhou para o palheiro.

– Quem é você? – perguntou ele. – O que quer de mim?

As chamas surgiram na barra da camisola dela, mas se ergueram rapidamente, à medida que absorviam o tecido.

Em seu sonho.

Seu sonho...

Daniel correu para derrubar a garota no chão, para ajudá­-la a rolar e apagar o fogo, mas quando tentou tocá­-la, suas mãos passaram através dela.

Sentiu uma dor forte nos braços devido ao fogo e quase gritou ao se afastar.

Contudo, não acordou. Ele queria acordar, tentou acordar, mas não conseguiu.

O fogo era voraz e consumiu a garota rapidamente, até que nada sobrasse além de um corpo enegrecido em pé diante dele enquanto as chamas se extinguiam. Finas ondulações de fumaça negra subiam do corpo dela e se dissipavam no ar.

Ela baixou a cabeça, mas manteve os braços erguidos.

De alguma forma, conseguiu sorrir, revelando dentes alvos que contrastavam fortemente com sua pele horrível e carbonizada.

– Depressa, Daniel, você tem que detê­-lo – disse ela com aquela voz áspera, mas, ao mesmo tempo, terna e infantil. – Antes que aconteça outra vez.

E, então, começou a desintegrar­-se.

– Deter quem? – perguntou ele, afoito. – Antes que o que aconteça outra vez?

Pedacinhos de seu rosto se desprendiam e voavam como fagulhas negras de uma fogueira, brasas sopradas pelo vento.

E, então, não era só o seu rosto, mas ela inteira; camada por camada, as partículas negras que constituíam aquela garota viva voaram para longe e nada mais sobrou.

Naquele momento, embora ele quisesse ficar e ver se ela voltaria, sentiu que se afastava do celeiro e mergulhava na luz do dia, ouvindo o uivar distante e solitário de um lobo que ecoava pelas colinas no horizonte.

Uma tempestade se formara, e o campo, que alguns minutos antes se mostrava ensolarado, foi coberto pela sombra cinzenta de uma fria chuva outonal.

Vindo de algum lugar do ronco do trovão, ele ouviu seu nome: “Daniel”.

Outros trovões rolaram pela paisagem, que estava se transformando de um campo para o que parecia um mar encapelado ou as águas do vizinho lago Superior ou...

– Dan?

Um raio rasgou o céu, enquanto a chuva tombava sobre ele e...

– Você está legal?

Daniel não abriu os olhos conscientemente, mas, de repente, eles estavam abertos e ele reconheceu que estava no ônibus. Stephen estava em pé ao lado dele.

– Você está bem? – perguntou Stephen.

– Estou – respondeu Daniel, esfregando os olhos. Não estava mais usando os fones de ouvido. Ele os tinha tirado sem perceber ou haviam caído sozinhos. – Devo ter pegado no sono.

O ônibus tinha parado.

Estavam na Coulee High.

A dor de cabeça de Daniel não havia passado completamente, mas as abelhas continuavam a zumbir tão forte quanto antes.

Normalmente, sempre que acordava, seus sonhos se desfaziam quase imediatamente, até ficar apenas uma vaga lembrança do que havia sonhado. Desta vez, entretanto, o sonho parecia se tornar mais claro quanto mais ele ficava acordado e alerta.

A garota.

Os olhos vertendo sangue.

As chamas a envolvendo.

Seu corpo se desfazendo e sendo soprado para longe diante dos olhos dele.

***

Todos os rapazes à frente dele estavam saindo do ônibus.

Daniel pegou suas coisas.

No último outono, quando a garota morta agarrou seu braço, deixara­-lhe um ferimento no braço; ele olhou inquieto para as mãos para ver se, por ter tocado as chamas no sonho, apresentavam alguma marca, se tinham sido realmente queimadas, mas, felizmente, elas estavam intactas.

A dor passou.

A lembrança não passou.

Como ele era o capitão, seus colegas de equipe o esperavam fora do ônibus.

Daniel tentou agir como se tudo estivesse bem, mas notou que sua mão estava tremendo enquanto seguia o treinador e à frente dos rapazes que iam jogar na Coulee High.


5

As pessoas falam em estar na zona* e estão certas. Acontece. É uma coisa real.

Há um momento para brincar com seu arremesso, e há um momento para jogar o jogo. Durante o treino, você pode corrigir as coisas, ajustar a posição da mão na bola, trabalhar a forma, mas no jogo é preciso responder ao que está acontecendo na quadra.

Assim que você começa a se concentrar nos aspectos técnicos da partida e não apenas em estar presente e confiar em seu preparo, você acaba se distraindo.

Mas quando você está em sua zona, as coisas fluem naturalmente. Você encontra seu ritmo e responde sem pensar. O barulho da torcida fica lá no fundo, lá no limite de sua consciência, mas se transforma em alguma coisa que você, de certa maneira, efetivamente nota e não nota ao mesmo tempo.

O jogo se torna o centro de tudo.

Nessa noite, apesar do pesadelo com aquela garota, apesar de as coisas estarem se tornando novamente estranhas, Daniel estava na zona.

Mas os demais jogadores não estavam.

O treinador tentou diferentes combinações com os que estavam no banco, mas na metade do jogo, a Beldon estava perdendo por oito pontos.

No vestiário, não gritou com eles (não era o seu estilo), mas, em vez disso, disse­-lhes que estavam tensos demais.

– Eles têm que ser pressionados no fundo da quadra. Façam bons bloqueios. Não fiquem muito agitados. Caprichem nos arremessos, e vamos ganhar desses caras.

A segunda parte começou bem para a Beldon.

O time se recuperou e passou à frente, revertendo a diferença para seis pontos à frente.

Mas a equipe do Coulee jogava pesado e conseguiu assumir a liderança outra vez; até um minuto antes do final, ganhava da Beldon por quatro pontos.

Daniel conseguiu fazer uma cesta de três, baixando a diferença para apenas um ponto, mas o Coulee marcou numa devolução para seu jogador mais próximo do garrafão.

Diferença de três pontos para o Coulee.

Vinte segundos para o término do jogo.

Daniel levou a bola para a área do garrafão, fingiu atacar pela esquerda e, quando a defesa se confundiu, atirou a bola para Stephen, que a lançou mas errou, com a bola passando bem ao lado do garrafão.

Coulee ficou com o rebote e avançou pela quadra, mas Beldon pressionou. Raymond Keillor, o armador do Beldon, cometeu falta, propiciando dois lances livres para a equipe do Coulee.

O lado do ginásio com a torcida do Beldon ficou em silêncio, enquanto os torcedores do Coulee irromperam em gritos de incentivo.

Doze segundos para o término do jogo.

O jogador acertou o primeiro, mas errou o segundo.

Stephen lançou para Daniel, que ergueu a bola.

A diferença era de quatro pontos.

Oito segundos.

A menos que ele acertasse um lançamento de três pontos e sofresse uma falta que possibilitaria um lance livre, seriam necessárias duas cestas de dois pontos.

Agora.

Um jogador do Coulee que gostava de tentar bloquear os arremessos estava marcando Daniel um pouco em cima, então ele decidiu tentar a falta e deter o cronômetro. Faltando cinco segundos, ele preparou o arremesso, enquanto seus colegas faziam o bloqueio, e atirou a bola, conseguindo os três pontos e a falta.

A falta significava que ele teria um lance livre, dando­-lhe a oportunidade de empatar o jogo.

Dois segundos pelo cronômetro.

Ele só tinha que encestar seu lance livre, mandar o jogo para a prorrogação e liquidar a partida.

Daniel colocou o pé 2,5 centímetros atrás da marca, no meio da linha de tiro livre que havia em todos os ginásios para que os jogadores soubessem onde era o centro dela.

Olhou para a cesta.

O árbitro entregou­-lhe a bola e começou a contagem regressiva dos segundos; Daniel tinha dez segundos para arremessar.

Quando batia a bola e se preparava para arremessar, com o canto do olhou vislumbrou a garota que tinha sido queimada viva.

Ela estava em pé ao lado do final das arquibancadas, um corpo vivo e carbonizado. Estava com uma das mãos erguidas e apontava para Daniel como fizera no campo.

De alguma forma ele ouviu a voz dela atravessando o ruído dos torcedores do Coulee, que gritavam para tirar sua concentração: “Ele não pode marcar”.

O coração se contraiu dentro dele, que se virou na direção da garota para vê­-la melhor – não conseguiu evitá­-lo –, mas quando fez isso, ela já havia desaparecido. Ele olhou para aquele lado do ginásio, mas tudo parecia normal. Nada de garota morta.

Você está imaginando isso.

Ela não é real.

Concentre­-se!

Você precisa acertar este arremesso.

Ele perdera toda a concentração e não sabia quantos segundos haviam se passado, mas imaginou que tivesse menos de cinco.

Preparou o arremesso, mas se descobriu pensando no mecanismo do lance: manter o cotovelo junto ao corpo, o arco, a rotação, a palma da mão segurando a bola de leve, a mão esquerda guiando o arremesso...

E também pensando na garota.

Tomando fôlego, levou a bola acima do rosto e lançou do mesmo modo que lançara centenas de vezes durante os treinos.

Antes de a bola chegar à cesta, ele sabia que ela não entraria.

Enquanto observava o arco de sua trajetória, alguma coisa se manifestou naquela parte escondida de seu cérebro, a parte da matemática, a parte que calculava as coisas – tantas coisas – instantaneamente, subconscientemente. O instinto prevaleceu e ele previu a trajetória que a bola ia descrever ao bater no aro e cair.

A bola fez isso, e ele correu para ela. O jogador do Coulee na frente dele não usou o corpo para detê­-lo, e Daniel girou ao redor dele, achando o caminho à esquerda da quadra lotada, apanhou a bola fora do bloqueio, girou no ar e a lançou antes de aterrissar.

O alarme soou.

A bola ricocheteou na tabela com suavidade.

E entrou. Placar final: 61 a 60.

Beldon era o vencedor.

O lado do ginásio em que estava sua torcida foi à loucura, e os rapazes do time de Daniel correram para ele, dando­-lhe tapinhas no ombro ou golpes leves para cumprimentá­-lo.

Mas ele estava apenas meio consciente do que se passava à sua volta, pois também examinava o ginásio para ver se a garota tornaria a aparecer.

Ela não era real. Da mesma forma que Emily não era real naquele jogo de futebol.

Ela não está aqui.

Mas mesmo que isso fosse verdade, não significava que ele não tornaria a vê­-la. Quando teve aquelas distorções, a realidade tinha muito pouco a ver com o que ele estava vivenciando.

Ele não tinha certeza, mas, pelo menos, parecia que ele estava dormindo quando a viu durante a viagem de ônibus para o jogo.

Daniel podia descartar isso como um pesadelo, mas agora, ali no ginásio, as coisas eram diferentes porque ele a tinha visto enquanto estava acordado.

Bem acordado.

Sim. As coisas estavam piorando.

***

Daniel sempre se preocupou mais com reposições de bola para lançamentos finais que garantissem a vitória, e não com estatísticas, mas sua mente não conseguia evitar o controle dos números e ele sabia, mesmo sem olhar para a folha com os registros da partida, que havia terminado o jogo com 8 assistências, 32 pontos e 3 rebotes.

Definitivamente, ele tinha estado na zona, quer dizer, até que a garota que havia queimado viva aparecesse para ele.

Antes de ir para o vestiário, Daniel conversou com Kyle, Nicole e Mia, e todos concordaram em se encontrar na casa de Kyle às dez. Como Kyle não morava muito longe da escola, onde Daniel havia deixado o carro, parecia a coisa mais prática.

Chegar tarde em casa não era problema para o pai de Daniel quando não havia escola no dia seguinte, mas, ainda assim, ele gostava que o filho chegasse por volta da meia­-noite, e Daniel fazia o que podia para não o contrariar.

Assim, quando mandou uma mensagem ao pai contando sobre o resultado do jogo, também o avisou que estava planejando comemorar com os amigos, mas que estaria em casa por volta de meia­-noite.

Depois de tomar banho e se trocar, Daniel estava voltando do vestiário quando viu um homem encostado na parede perto da vitrine dos troféus da escola. Quando se aproximou dele, o homem o olhou, deu um passo em sua direção e estendeu­-lhe a mão.

– Belo jogo, Daniel.

– Obrigado – respondeu Daniel, apertando­-lhe a mão.

Não conseguia se lembrar de já ter visto aquele homem, e era um pouco estranho que ele o tivesse chamado pelo nome, mas, por outro lado, qualquer pessoa que tivesse assistindo ao jogo teria descoberto o nome dele ao ouvir o locutor.

Ele parecia ter trinta e poucos anos, tinha cabelo preto cuidadosamente penteado e um aperto de mão bastante forte.

Então o encontro terminou. Foi só aquilo. O homem estava se virando para ir embora e Daniel ia seguir seu caminho, mas, alguns segundos depois, ele se virou para dar mais uma olhada nele.

O homem havia desaparecido.

Daniel se deteve.

Talvez ele tivesse se esgueirado por alguma outra porta, mas isso parecia pouco provável, ou descido rápido o corredor e voltado ao ginásio, mas isso também parecia improvável. Ele tinha mesmo era que estar caminhando pelo corredor.

Um pensamento perturbador ocorreu a Daniel: e se o homem, na verdade, não o tivesse encontrado?

Não seria a primeira vez que você conversou com alguém que não existia.

Não... Você apertou a mão dele. Se você vê uma coisa apenas imaginária, não poderia tê­-lo tocado.

Fora da escola, Daniel e o resto do time acomodaram­-se no ônibus.

Ele se certificou de que não dormiria durante a viagem de volta a Beldon.

* No basquete, cada jogador “cuida” de uma parte da quadra (zona). Se você está marcando alguém e ele muda de zona, o outro jogador do seu time é que passa a marcá­-lo. Isso evita que o jogador tenha que ficar correndo por toda a quadra. Na zona, o jogador tem que estar atento o tempo todo. (N.T.)


6

Daniel pegou o carro no estacionamento e foi para a casa de Kyle.

Nicole ainda não tinha chegado, mas Mia já estava lá.

Ela estava usando uns jeans rasgados bem justos e uma camiseta desbotada com o rosto de Kurt Cobain. Magra e esbelta, ela sabia tirar proveito de suas formas. Com piercing na língua e no lábio, tinha um certo ar irascível, que era mais emo que gótico.

– Você esteve incrível esta noite – disse ela, apontando para ele.

– Obrigado.

– É isso aí – disse Kyle, que estava colocando molho tabasco numa tigela de salgadinhos de queijo em cima da mesa de centro. – Você tem uma habilidade incrível, meu amigo.

– Mas acho que eu devia ter acertado aquele lance livre. E também acho que já chega de molho tabasco.

Kyle deu mais uma chacoalhada no vidro de pimenta e o colocou na mesinha, então tornou a pegá­-lo e espalhou mais um pouco antes de guardá­-lo de uma vez.

– Foi o melhor que aconteceu... não foi preciso ir para a prorrogação.

– É verdade.

Kyle ofereceu­-lhe salgadinhos de queijo.

– Obrigado, não estou a fim.

Mia também recusou e Kyle deu de ombros, mergulhando a mão nos petiscos.

Daniel deduziu que Michelle, a irmã de 4 anos de Kyle, estivesse dormindo. A mãe dele estava com o som da televisão baixinho em seu quarto, mas veio até a sala para dizer a Daniel:

– Não pude ir ao jogo, mas Kyle disse que você jogou muito bem.

– Estou feliz por termos vencido.

– É claro.

O pai de Kyle morrera em um acidente de carro dois anos antes. Recentemente, sua mãe começara a namorar alguém da imobiliária em que trabalhava. Daniel não sabia até que ponto a coisa era séria, mas ela parecia realmente feliz pela primeira vez desde a morte do marido, e ele estava contente por ela ter encontrado alguém.

A Sra. Goessel voltou para o seu quarto e, enquanto Daniel e os amigos esperavam por Nicole, Kyle observou que os “salgazoides” ficavam muito melhores com o molho tabasco.

– “Salgazoides?” – perguntou Daniel.

– É uma coisa nova de linguística em que tenho trabalhado. Acrescente o sufixo “zoide” a qualquer substantivo e “idar” a qualquer verbo. Voilà. Uma palavra vanguardista instantânea.

– Então, você quer dizer que no basquete você pode “lancizar” um “tirozoide”?

– Exatamente.

– Fica esquisito.

– Quem sabe? Pode ser que a coisa pegue.

– Você também pode acrescer “natar” ou “zação”, como em “desqualificanatar” ou “desqualificazação”.

– E também – disse Daniel, pensando algo – “digenatar” ou “digeszação”.

– Mas não “digestazoide” – disse ela, com um aceno de cabeça.

– De jeito nenhum – concordou Kyle.

– Vocês foram feitos um para o outro – disse Daniel.

Logo a conversa desviou para a escola e em como eles estavam empolgados com as férias que finalmente estavam chegando. Mia mencionou o “Natalzoide”, que estava muito próximo, e Daniel perguntou o que eles iam fazer.

– Michelle, mamãe e eu vamos ficar por aqui mesmo. E acho que o Glenn também vem pra cá – respondeu Kyle.

– Esse é o cara com quem sua mãe está namorando?

– Isso aí. Glenn Kramer.

Pelo tom de voz do amigo, Daniel não conseguiu saber se ele estava ou não animado com a perspectiva de passar o Natal com Glenn.

– O que foi?

– Nada. É só que... Bem, estou cheio de ouvir ele falar de sua coleção de armas. Ele coleciona armas de fogo antigas. Para ele é uma coisa importante. É isso aí – disse Kyle, agitando a mão no ar como se estivesse apagando o que acabara de dizer. – Tanto faz.

– Vamos visitar meus avós em Eau Claire – disse Mia. – Acho que vamos sair na segunda de manhã e voltar na quarta por volta do meio­-dia. Está combinado, desde que não neve mais.

– Ainda não consigo acreditar que você não goste de neve – disse Kyle, com a mão na tigela de salgadinhos. Que já estava na metade.

– Pode acreditar.

– O que eu quero dizer é que, morando aqui tão ao norte dos Estados Unidos, você devia gostar de neve. Como é que você consegue não amar a neve? Os inuítes, ou esquimós, têm dezenas de palavras para designar a neve.

– Ouvi dizer que isso não passa de uma lenda ou coisa assim.

– Só temos um jeito de descobrir – disse Kyle, puxando seu celular para pesquisar no Google. – Muito bem. Um antropólogo descobriu que diferentes ramos da língua deles realmente têm dezenas de palavra para designar a neve. E o que é ainda melhor: os lapões, um povo da Rússia, têm mais de uma centena de palavras para a neve. Estão vendo?

– Bem, eu tenho uma palavra para isso – disse Mia.

– Qual?

– Chato. Se Deus desejasse que as pessoas vivessem ao ar livre no inverno, teria nos coberto de pelos.

Kyle lambeu os grânulos de queijo de seus dedos.

– Vocês já viram as costas do Jason Berring? Eu o vi no vestiário depois da Educação Física e acho que, sem dúvida, Deus o fez para brincar na neve.

– Ora. Isso está errado.

Um carro parou na entrada da garagem.

Enquanto Daniel ouvia Kyle e Mia, o pesadelo com a garota em chamas o havia deixado em paz.

No último outono, quando as distorções começaram, ele achou que seu subconsciente estivesse relembrando coisas, juntando o que o seu consciente sequer conhecia.

Era quase como se uma parte inexplorada de seu cérebro estivesse folheando a enorme quantidade de informações a que somos expostos todos os dias, observando coisas que ninguém mais consegue observar e, então, revelando­-as a ele por meio das distorções.

Tentou imaginar a que a garota do pesadelo estava se referindo quando disse: “Você tem que detê­-lo, antes que aconteça outra vez” e “Você não pode deixá­-lo continuar”.

Deter quem?

Continuar com quê?

– Você está legal? – perguntou Kyle.

Daniel ergueu o olhar e viu que os dois estavam olhando para ele.

– O quê?

– Você voou daqui por um minuto.

– Estou legal – disse ele, estendendo a mão para os salgadinhos que haviam sobrado e escolhendo cuidadosamente os que não tinham sido encharcados de pimenta.

A porta de um carro se fechou e, alguns segundos depois, Nicole apareceu na porta da sala e fez sinal para que Daniel saísse da casa.

– Quero lhe mostrar uma coisa.

– O que é?

– É surpresa, seu bobo. Venha.


7

O céu noturno não mostrava nenhuma nuvem e até havia luar; numa região interiorana como aquela, as estrelas brilhavam com força. De onde estavam, ele podia ver o céu nas três direções dos pontos cardeais, com exceção do norte, que estava escondido pela casa.

– O que você quer me mostrar?

À luz da varanda, seu hálito ficava visível.

– Venha cá – disse ela, tomando­-o pela mão e o levando para trás da casa, onde tiveram uma clara vista do céu do norte. – Olhe para cima.

Ele olhou.

Listras verdes bruxuleantes deslocavam­-se e tremeluziam bem no alto do céu silencioso, enquanto as luzes da aurora boreal dançavam pelo firmamento. Elegantes.

Misteriosas.

Belas.

Naquela parte do estado, especialmente sem a poluição luminosa que existe perto de uma cidade maior, podia se ver muito bem a aurora boreal, e a melhor época para apreciá­-la era o inverno.

Faixas de azul e amarelo esmaecidos tremulavam brevemente antes de desaparecer, mas as fitas de um verde reverberante continuavam lá, debatendo­-se e se enrolando pelo céu como se estivessem vivas.

– São maravilhosas – disse Nicole com suavidade. Ela ainda estava segurando a mão de Daniel.

O que não o incomodava.

– Você sabe o que as provoca? – perguntou ele.

– Não é alguma coisa referente aos polos magnéticos da Terra?

– Isso pode ser parte da causa, mas, pelo que meu pai me disse, são causadas pela colisão de partículas eletricamente carregadas. Elas vêm do sol e colidem com partículas da atmosfera terrestre.

Nicole se encostou mais nele. Mal deu para notar – mas ele conseguiu. Isso tampouco o incomodava.

– Então, quando duas delas se encontram – disse ela –, voam faíscas.

– Isso mesmo.

Tudo bem, nisso havia um pouco mais de simbolismo que ninguém precisaria lhe explicar.

A noite os abraçou, e o tempo não significava nada enquanto ficaram lá, debaixo da beleza etérea da aurora boreal.

Por fim, as faixas tremulantes de luz desapareceram, e as estrelas e a luz ficaram com o céu só para elas.

Por um longo momento, nem Daniel nem Nicole disseram nada; então, finalmente, ainda segurando a mão dele, ela o conduziu até o gramado e disse:

– Faça um anjo de neve comigo.

– Bem, sabe, eu não sou o tipo de cara que faz anjos de neve. Sou mais para serpentes de neve.

– Serpentes de neve? Como você as faz?

– Já lhe mostro num minuto. Primeiro, vá em frente com o seu anjo.

Nicole deitou de costas no lençol de neve que cobria o quintal, com os pés juntos e os braços abertos; então, separou as pernas e levou os braços acima da cabeça, abaixando­-os em seguida para afastar a neve.

Ela ficou em pé e os dois puseram­-se a olhar a marca que ela deixara na neve. Onde movera os braços parecia um par de asas; onde movera as pernas, um vestido ou túnica.

– Muito bem – disse ela. – Vamos ver sua serpente de neve.

– Não apenas uma serpente de neve. É uma sucuri de neve.

– Oh! – disse ela, parecendo impressionada. – Agora você me deixou curiosa.

Daniel foi em frente, empurrando um pé ostensivamente pela neve num movimento parecido com o rastejar de uma cobra por cerca de cinco metros. Então, jogou a neve para os lados no final para fazer a cabeça da cobra um pouco mais larga que o resto do corpo.

– É só isso?

– É mais difícil do que parece.

– Realmente.

– É isso aí. Isso é uma arte.

– A arte de arrastar o pé no chão?

– Exige anos de experiência.

– É mesmo?

– Talvez eu a ensine... Se quiser trabalhar comigo, reserve longas horas de treino.

– Humm – disse ela, pondo­-se ao lado dele perto da cabeça da cobra de neve. – E eu teria que passar o tempo todo sob a sua tutela?

– Parece uma palavra do Kyle.

– Presa a você.

– E então?

– Acho que posso fazer o sacrifício.

– Está combinado?

– Humm­-humm.

O silêncio se instalou entre eles.

Confortável.

Faíscas pelo ar.

Havia apenas a luz da varanda e o luar brilhando na neve para que ele conseguisse olhar nos olhos dela.

Cuidadosamente, tirou um pouco da neve que havia ficado presa no cabelo dela quando estava fazendo o anjo.

– Assim está melhor.

– O que você está fazendo?

– Só olhando a vista.

– Você nem está olhando para o céu.

– Não, não estou.

Ela não desviou o olhar. Em vez disso, fechou os olhos e se aninhou mais para receber um beijo, mas, quando estava fazendo isso, a porta da frente se abriu e Kyle e Mia disseram:

– Ei, vocês.

Nicole se afastou um pouco quando Kyle e Mia se aproximaram do fundo da casa.

– Espero que a gente não esteja interrompendo nada.

Na verdade...

– O que foi? – perguntou Daniel.

– A Gina está dando uma festa – disse Mia. – Ela nos convidou para ir lá. Sabe, uma espécie de festa pré­-natalina. Não precisamos ficar muito tempo. Vamos só dar uma passada, dizer um alô para todos e depois podemos vazar. Vamos?

Daniel e Nicole, que estavam mais interessados em ficar por ali sozinhos, sob as estrelas, pareceram pouco motivados, mas por fim concordaram. Os quatro entraram no Mustang antigo de Kyle e foram para a casa de Gina Schroeder.

 

 

8

Nove carros estavam estacionados ao longo da rua quando eles chegaram. Gina morava perto da floresta nacional, entre Beldon e a Penitenciária Estadual de Derthick, sem nenhum vizinho por perto.

Luzes multicoloridas de árvores de Natal espalhavam­-se pela sala. Perto da lareira, uma árvore carregada com enfeites demais, mas não com suficientes bengalinhas doces. Um amontoado de presentes espalhava­-se debaixo dela.

Alguns jovens dançavam ao som das faixas de música eletrônica que Gina havia posto para tocar, mas a maioria estava espalhada conversando. Alguns seguravam cervejas.

Houve uma época em que o pessoal da classe de Daniel ficava nervoso quando o filho do xerife aparecia em festas, com medo de que ele pudesse denunciá­-los por estarem bebendo, mas isso não era do feitio dele e, nessa noite, seus colegas de classe nem se deram ao trabalho de esconder suas cervejas quando o viram.

Brad Talbot e Sephanie Mills, que pareciam constituir o par mais disparatado da escola, estavam indo de mãos dadas pelo corredor até um dos quartos.

Pela atmosfera que reinava na casa, ficava claro que os pais de Gina não estavam lá.

Embora Daniel algumas vezes tivesse a tentação de beber, com a possibilidade de uma bolsa de estudos com base em seu desempenho esportivo, haveria muito a perder se fosse flagrado bebendo. Além disso, não pegaria muito bem com o xerife local.

Gina cumprimentou­-os perto da cozinha. Bonita, um pouco agitada demais e já um pouco “alta”, deu um abraço rápido em Mia e em Nicole.

– É ótimo ver você, menina – disse ela a Nicole.

– Idem.

– O que está rolando, Mia?

– A vida. O amor. O terror. A alegria. O enigma da existência. O de sempre.

– Hum... certo... Ótimo jogo, Daniel.

– Obrigado.

– Oi, Kyle.

– Oi, Gina. Obrigado pelo convite.

– Por nada.

Na mesa da cozinha, alguns rapazes estavam misturando nicotina líquida de cigarros eletrônicos com energéticos e engolindo tudo de uma só vez.

Quando perguntaram a Daniel e a Kyle se queriam um pouco, Kyle lembrou­-os de que uma garota havia morrido com aquela mistura em Milwaukee algumas semanas antes.

– Não que isso vá acontecer com algum de vocês – acrescentou ele.

Os rapazes que estavam entornando a mistura olharam para Kyle e, depois, para a nicotina líquida. No final, optaram por tomar os energéticos puros, seguidos de uma cerveja.

Enquanto suas garotas estavam ocupadas com Gina, Daniel e Kyle foram para o porão.

Ali, as luzes eram mais fracas, e a música não tão alta quanto lá em cima, mas parecia estar pulsando com uma batida mais profunda e mais escura.

Ali havia mais casais que na sala, aparentemente em busca dos cantos mais escuros da casa para maior privacidade.

Na extremidade do porão, Ty Bell e os três caras que normalmente andavam com ele haviam se reunido em torno do sofá.

– O que eles estão fazendo aqui? – sussurrou Kyle para Daniel.

– Não consigo imaginar por que Gina os teria convidado.

– Provavelmente entraram de penetras.

Daniel ficou pensando que, se Ty e os três rapazes tivessem aparecido à porta, teria sido um pouco intimidador fazê­-los ir embora, especialmente para alguém como Gina, que sempre tentava agradar todo mundo.

De todo modo, existem caras como Ty em toda escola. Mas no caso dele, não se tratava apenas de um arruaceiro. Ele tinha uma aparência fria e sádica que intimidava a maioria dos outros alunos, e pelo que Daniel sabia, até professores e funcionários.

Ty era aluno da última série e havia implicado com Daniel algumas vezes ao longo dos anos, mas parecia ter aprendido a lição depois que puxou uma faca e Daniel o desarmou com um golpe que o pai lhe ensinara.

Depois disso, em vez de enfrentá­-lo pessoalmente, Ty apelara para postar coisas on­-line tentando constranger Daniel.

Nada para levar muito a sério.

Daniel conseguia conviver com aquilo.

O pai de Ty era guarda florestal e, assim, ele e o pai de Daniel tinham trabalhado juntos na tentativa de desvendar o problema da matança de lobos e, depois que Ty descobriu uma das pessoas que encontrou um lobo morto, na criação de um serviço de disque denúncia.

Daniel e Kyle cruzaram o aposento e demorou só um instante para que ele percebesse o que estava acontecendo. Lisa Scalf, uma garota de sua turma, havia desmaiado e estava deitada no sofá. Ty tinha na mão um marcador de texto preto e estava inclinado sobre ela, pronto para escrever alguma coisa em sua testa. Os amigos de Ty estavam ao redor dando risadinhas abafadas, sem os fones de ouvido para poder tirar fotos dela.

Nenhum dos outros rapazes que estavam no porão parecia disposto a confrontar Ty ou detê­-lo.

Daniel podia imaginar que tipo de frase ele escreveria na testa de Lisa, mas escrever era apenas o começo do que Ty e seus amigos poderiam acabar fazendo se fossem deixados sozinhos com ela inconsciente daquele jeito.

– Deixe­-a em paz, Ty – disse Daniel, avançando.

– Oh, salve, Daniel – respondeu Ty olhando para ele.

– Abaixe esse marcador.

Ty deu um meio sorriso aos amigos e disse a Daniel:

– Você recebeu o presente que eu lhe deixei?

– O DVD?

– Então você o recebeu. Todos nós sabemos de suas visitinhas ao psiquiatra.

Numa cidade pequena era totalmente possível que um conhecido de Ty tivesse visto Daniel entrar ou sair do consultório do Dr. Fromke. De qualquer modo, isso agora não importava.

– Gostei do presente – disse Daniel. – É bom saber que você esteve pensando em mim, mas não vai me impressionar com presentes. Além disso, eu já tenho namorada.

Os olhos de Ty se transformaram em adagas. Seus punhos se fecharam.

Com exceção de Kyle e dos caras que estavam com Ty, todo mundo que estava no porão se afastou, abrindo­-lhes espaço. Mais jovens pegaram o celular.

– Não vou tornar a lhe pedir – disse­-lhe Daniel. – Afaste­-se dela e abaixe esse marcador.

– Se não o quê?

– Vou tirá­-lo de você – disse ele, fazendo um gesto para que o grupo ficasse com os celulares pontos. – E eles vão registrar tudo em vídeo.

Daniel não queria brigar com Ty, mas não ia retroceder e deixá­-lo humilhar Lisa.

Ty olhou para os jovens que seguravam os celulares. Por um instante, pareceu desafiador, como se estivesse para levar o confronto com Daniel adiante, mas deve ter pensado melhor, pois atirou o marcador no ar para Daniel, que o apanhou antes que o atingisse no peito.

Por fim, Ty fez sinal para que seus companheiros se juntassem a ele, atirou um beijo de escárnio para Lisa e levou seus amigos para cima.

Kyle, que tinha sido salva­-vidas no último verão e conhecia os primeiros socorros, foi até Lisa e certificou­-se de que ela não tivesse vomitado e engasgado enquanto estava desmaiada.

Depois que Ty saiu, algumas pessoas que estavam no porão agradeceram a Daniel. Outras pareceram nem se importar e se limitaram a voltar ao que estavam fazendo na obscuridade antes que o confronto com Ty as tivesse distraído.

Daniel e Kyle ficaram por ali um pouco, conversando com alguns rapazes de sua turma; então, Daniel olhou as horas.

– Eu disse a meu pai que estaria em casa antes da meia­-noite. Precisamos voar.

Enquanto subiam, Kyle perguntou a Daniel:

– De que DVD ele estava falando?

– Alguma coisa que ele deixou no meu armário. Uma cópia de um antigo filme. De algum modo, ele descobriu que estou indo ao psiquiatra.

– Que filme era esse?

– Psicose.

– Já ouvi falar, mas nunca vi.

– Nem eu, mas acho que o título fala por si só.

Encontraram Nicole conversando na sala e Mia fumando um cigarro lá fora. Depois de explicar a Gina por que precisavam ir embora, foram para a casa de Kyle.

Contudo, não muito longe da festa, viram que um carro tinha saído da estrada. Sua frente estava afundada no banco de neve que os limpadores haviam jogado no acostamento.

O cara no volante estava tentando voltar à estrada, mas os pneus da frente apenas giravam inutilmente na neve.

Depois de estacionar, Daniel e Kyle se aproximaram da porta do motorista. Daniel bateu no vidro para perguntar ao homem se ele estava bem e se precisava de ajuda.

Ele baixou o vidro.

Era o mesmo sujeito que lhe apertara a mão no corredor depois do jogo.


9

­- Olá, Daniel – disse ele.

Aquilo era mesmo estranho.

– Oi, você está legal?

– Estou bem, mas meu carro não quer sair do lugar. Talvez vocês pudessem dar uma empurrada.

– Me passe dois tapetes do carro.

– Tapetes?

– Vou colocá­-los junto aos pneus. Isso vai produzir a tração de que você precisa.

– Certo. Puxa! – disse ele, passando­-lhe os tapetes.

Daniel tinha uma pá de tamanho médio em seu porta­-malas para usar em caso de sair da estrada e encalhar na neve. Pensou em pegá­-la, mas achou que primeiro devia tentar os tapetes e ver se funcionavam.

Ele e Kyle posicionaram os tapetes bem embaixo dos pneus; então, subiram no banco de neve e empurraram a frente do veículo.

– Tudo bem – Daniel disse ao homem. – Acelere, mas não exagere.

Ele acelerou um pouco, engatando a ré; com os tapetes dando tração e Daniel e Kyle empurrando a frente, conseguiu voltar à estrada.

Depois que o carro foi liberado, devolveram­-lhe os tapetes e ele pegou a carteira.

– Quanto eu lhes devo?

– Não – disse Daniel –, você não nos deve nada. Ficamos felizes em ajudar.

– Vocês têm certeza?

– Temos.

– Bem, muito obrigado. Acho que fico lhes devendo uma.

Daniel não soube exatamente o que responder.

– Acho que devemos ir.

– Claro. Bem, mais uma vez, obrigado.

– Certo.

De volta ao Mustang, Kyle perguntou a Daniel:

– Quem era esse cara?

– Não faço a menor ideia.

– Ele sabia o seu nome.

– Sim, ele também me cumprimentou depois do jogo, mas eu nunca o tinha visto antes.

– Tudo bem, mas foi uma enorme coincidência, não foi? – exclamou Mia. – Quero dizer, que ele tivesse encalhado bem antes de nós passarmos, uma hora depois de ter visto você no jogo.

– É verdade.

Sob a luz dos faróis de Kyle, Daniel pôde ver que o carro tinha placa da Geórgia. Se o motorista era do sul, isso poderia explicar por que ele encalhara na neve numa noite em que as estradas nem estavam congeladas.

Mas não explica por que ele estava dirigindo bem à sua frente.

O homem desapareceu na noite.

Ele os deixou um pouco apreensivos, e acharam que fosse melhor evitá­-lo; assim, na encruzilhada seguinte, embora fosse um pouco mais longe, Kyle fez um trajeto alternativo para chegar em casa.

Durante o trajeto, Nicole perguntou o que todos fariam no dia seguinte, e Kyle lhes disse que tinha que trabalhar no restaurante do Rizzo umas duas horas durante o almoço, das onze à uma.

A pizzaria era o melhor lugar do norte de Wisconsin para comer uma pizza de pepperoni e pimenta­-jalapenho, e Rizzo estava ensinando Kyle a trabalhar com a massa e girá­-la no ar. Até então, o garoto não tinha se saído muito bem e deixara cair uma tonelada de massa no chão nos últimos dois meses.

Ainda bem que Rizzo era um homem paciente.

Kyle mencionou um filme que estava estreando naquela semana.

– É uma fantasia distópica a respeito de um mundo em que todos só se preocupam com o tempo que vão viver. O dinheiro não tem utilidade, mas é possível fazer negócio com o tempo de duração de sua vida, pois é essa a moeda que eles usam: o tempo. Pode­-se comprar o que quiser, mas isso custa alguns minutos, horas ou anos de seu tempo. Ouvi dizer que é muito bom.

– Boas novas: a vida é tempo, tempo é vida – disse Mia reflexivamente. – O que se gasta com um se gasta com o outro. Assim é e sempre será.

– Profundo – disse Kyle. – Então, estão interessados?

– Por que não? – respondeu ela, dando de ombros.

Beldon era tão pequena que só tinha um cinema que passava filmes antigos; assim, os quatro decidiram ir na noite seguinte até Superior ou Duluth, às margens do lago Superior, para verificar se o filme valia a pena. Essas cidades ficavam a uma hora de viagem, mas, morando ali no meio do nada, estavam acostumados a viajar.

***

Na casa de Kyle, Daniel perguntou a Nicole se ela queria se encontrar com ele antes do cinema.

– Claro.

– Eu lhe mando uma mensagem de manhã.

Um beijo rápido, um boa­-noite rápido, e cada um foi para o seu lado.

Com a ida à casa de Gina, o tempo extra gasto com a ajuda ao homem atolado na neve e o caminho mais longo até a casa de Kyle, era um pouco mais tarde do que Daniel previra. Ele não controlara o tempo e só depois que saiu da casa de Kyle é que percebeu que já era 0h15.

Mandou uma mensagem ao pai contando o que acontecera, imaginando que, por eles terem “ajudado um motorista em apuros”, o pai não criaria muito caso.


10

O pai estava sentando à mesa da sala de jantar lendo as notícias em seu iPad quando Daniel chegou em casas às 0h35.

– Oi, Dan.

– Oi, pai.

– Sua mensagem diz que vocês ajudaram alguém a sair de um atoleiro de neve.

– Bem, foi do banco de neve junto à estrada. Nós estávamos voltando para a casa do Kyle.

– Voltando?

– Nós paramos na casa da Gina.

– Da Gina?

– Sim, da Gina Schroeder.

Conto­-lhe ou não que havia uma festa?

Provavelmente, é melhor não contar.

– Nós fomos até lá um pouco – explicou ele de maneira um tanto ambígua.

– E esse homem que atolou na neve, ele saiu da estrada numa noite como esta? Nem estava nevando.

– Acho que ele perdeu o controle do carro.

– Ao fazer uma curva talvez?

– Não. Foi numa reta.

– Bem, então talvez ele tenha brecado para não atropelar um veado ou coisa semelhante.

Ele está questionando a sua história? Ele não acredita em você?

– A placa era da Geórgia. Talvez ele não esteja acostumado a dirigir na neve.

A conversa mergulhou no silêncio.

Mas não era um silêncio confortável.

– Mas vocês ganharam? – perguntou o pai.

– Ganhamos.

– E você jogou bem?

– Joguei. Acho que sim – respondeu Daniel, que não queria fazer um relato completo do que havia acontecido, especialmente com relação ao motivo de ele ter se distraído e perdido aquele lance livre.

Mas, pelo menos, você conseguiu pegar o rebote.

Embora o pai soubesse sobre as distorções do último outono, Daniel não se entusiasmava com a ideia de lhe contar como elas tinham voltado. Ele não queria preocupá­-lo.

– Estou contente – disse o pai, referindo­-se ao jogo.

Daniel pensou em lhe perguntar se ele havia descoberto alguma coisa com relação aos lobos, mas achou melhor encerrar a conversa.

– Bem, acho que vou pra cama.

– Você me mandou uma mensagem dizendo que ia chegar em casa à meia­-noite.

– Sim.

– Eu preciso que você cumpra com sua palavra, Daniel.

Como até agora ele não tinha dito nada a respeito de chegar em casa tarde, suas palavras contundentes e frias surpreenderam Daniel. Ele não tinha certeza de como deveria interpretá­-las.

– Eu lhe contei que estávamos ajudando aquele cara.

– Sim. Mas não quero ficar imaginando se você vai chegar em casa no horário prometido.

– Certo. Entendi.

Ele não se deu conta do quanto sua resposta provavelmente tinha soado desafiadora até ela ser dita e ele ficar esperando uma reprimenda, mas o pai simplesmente se levantou e, sem dizer palavra, foi para o seu quarto.

Tudo bem, tinha sido estranho. E um pouco intrigante.

Daniel quase desejou que o pai tivesse discutido com ele um pouco mais. O pai não era dado ao silêncio; então, ficava mais claro que alguma coisa estava acontecendo. Fosse o que fosse que estava lhe passando pela cabeça, Daniel adivinhou que era algo mais sério do que o filho ter chegado em casa mais tarde do que prometera.

A última coisa que ele soube é que o pai havia investigado a matança dos lobos naquela noite.

Talvez alguma coisa a ver com o caso o tivesse aborrecido.

***

Em seu quarto, Daniel encontrou um frasco plástico cheio de seu remédio na cômoda. Pelo visto, seu pai não tinha perdido tempo e foi buscá­-lo na farmácia antes que fechasse no fim da tarde.

As distorções estão de volta.

Talvez você devesse tomar os remédios.

Durante sua primeira consulta com o psiquiatra no último outubro, o homem lhe disse que levaria uma ou duas semanas para que o remédio começasse a operar em seu sistema nervoso e se mostrasse eficiente; então, mesmo que começasse a tomá­-lo naquela manhã, ele não resolveria as coisas de imediato.

Um passo na direção certa, mas não uma solução.

Recapitulando todas as coisas estranhas que haviam acontecido durante o dia, ele pegou seu caderno de Literatura e reviu a página em que havia escrito “Cova Perdida é a chave” várias vezes.

Como ele pôde escrever aquilo com a uma letra que não era a sua?

Tentou pensar se poderia ter visto essa letra antes, e achou que isso poderia ter acontecido, mas não conseguia pensar em nada específico.

Qualquer que fosse o motivo, na maior parte das vezes ele conseguia dizer, apenas olhando o que fora escrito, se a letra era de um rapaz ou de uma moça.

Esta parecia a de um rapaz, mas definitivamente não era a dele.

Então, de quem era?

Tornou a pesquisar no Google “Cova Perdida é a chave”, como tinha feito no consultório do psiquiatra enquanto esperava ser atendido.

Passando por alguns dos primeiros resultados que encontrou, descobriu que havia uma cidade chamada Lost Cove,* na Carolina do Norte, uma suposta cidade fantasma com o mesmo nome no Tennessee, e centenas de estabelecimentos comerciais, áreas de camping e coisas do tipo, mas não conseguia perceber como uma delas poderia ser a chave para o que estava acontecendo com ele naquela semana.

E, com certeza, nada explicava como ele fora capaz de escrever palavras com uma letra que em nada se parecia com a dele.

Fixou o olhar na folha do caderno.

Ao fazer isso, as letras começaram a mudar, a se mover livremente pelo papel, aproximando­-se umas das outras, tornando­-se vivas, deslizando pela página e se combinando, criando criaturas eriçadas e semelhantes a vermes que se deslocavam rapidamente do caderno para os seus dedos.

Deixou cair o caderno, mas os vermes ainda estavam nas costas de sua mão e começavam a se deslocar em direção ao pulso. Começou a bater neles com a outra mão e conseguiu esmagar dois, mas os três restantes entranharam­-se em sua carne imediatamente, provocando uma dor aguda e dilacerante no braço enquanto a pele era aberta para alojá­-los.

Mas isso não foi nada comparado com a dor que sentiu quanto eles começaram a subir por seu braço, bem abaixo da pele.

Ele chegou a pensar em pegar uma faca e abrir o braço para tirá­-los, mas então percebeu que isso era irracional, pois os vermes estreitos e negros que se movimentavam sob sua pele não podiam ser reais.

Não, não podiam ser.

Mas são.

Estão deslizando por seu bíceps.

Não podem ser reais!

Mas são!

Por fim, os sulcos se achataram e as criaturas avançaram para os músculos de seu ombro.

Esperou para ver se eles voltariam, para sentir se alguma dor começaria a se manifestar, mas nada aconteceu.

A princípio.

Mas, então, sentiu­-os na base do pescoço, contorcendo­-se, entrando por trás de sua garganta.

Sufocando, Daniel correu para o banheiro, mas não chegou a tempo; estava no corredor quando os sentiu contorcendo­-se e rastejando por sua língua. Cuspiu­-os no chão.

Três vermes escuros e cintilantes caíram de sua boca.

Pisou neles enquanto eles se esgueiravam pelo carpete, tentando fugir, mas quando ergueu o pé já tinham desaparecido.

No último outono, quando as distorções começaram, ele conseguia perceber quando ia ter uma delas, por causa da dor de cabeça penetrante que as precedia – como no início daquela noite, com a distorção da garota de camisola. Agora, contudo, ele estava perdendo o contato com a realidade sem qualquer espécie de advertência.

Não era bom sinal.

Novamente no quarto, pegou o caderno.

Todas as palavras ainda estavam na página.

Chega disso.

Remexendo o material de acampar que estava no armário, achou uma caixa de fósforos.

Arrancou a página com a letra estranha e a segurou acima do cesto de lixo; então, acendeu um fósforo e aproximou a chama do canto inferior da página.

Enquanto o papel pegava fogo, tornou a pensar na garota, a que estava usando uma camisola branca, a que se queimou diante de seus olhos e então se desintegrou em pequenas brasas negras que se dispersaram no ar.

Daniel descartou o papel no cesto de lixo e ficou observando­-o arder e se transformar em cinza negra.

Tirou o DVD de Psicose da mochila da escola e o jogou no cesto, em cima das cinzas da folha do caderno, que flutuaram em torno da caixinha do DVD e tornaram a se aquietar, como se ela fosse um caixão depositado numa cova e elas, a terra jogada para cobri­-lo.

Abriu um pouco a janela para que o ar entrasse no quarto e ele não tivesse que aspirar a fumaça. Então, examinando o celular, levou alguns minutos para responder a umas duas mensagens, incluindo uma de Nicole tornando a lhe desejar boa noite e uma de Kyle perguntando se seu pai ficara zangado por ele ter chegado tarde.

Quando estava acabando de responder, recebeu outra mensagem: Verifique o porão – M.

M.

Madeline.

Um pensamento inquietante o assaltou: Haveria alguém esperando por ele lá embaixo? Será que ela está lá?

Daniel sentiu um aperto desconfortável no peito.

Por um instante, pensou em contar ao pai o que estava acontecendo, mas então decidiu não fazer isso, pois ele perguntaria quem era Madeline e por que cargas d’água ela estaria convidando Daniel a verificar o portão àquela hora da noite.

Além disso, ele pareceu não estar muito bem e Daniel não queria complicar as coisas agora e ter que explicar tudo o que estava acontecendo.

Então, preparando­-se para descer sozinho, pegou um taco de beisebol, foi para a cozinha, abriu a porta que dava para o porão e acendeu a luz.

Começou a descer os degraus.

* Cova perdida, em inglês. (N.E.)


11

No final da escada, na sala de ginástica onde seus halteres estavam dispostos, ficou atento para ouvir algum som, alguma indicação de que alguém poderia estar ali, mas nada ouviu.

Verificou o banheiro, o quarto de hóspedes, a área ao redor da caixa de fusíveis, a lavadora e a secadora, mas não encontrou sinal de nada extraordinário. Nada fora do lugar.

Não havia ninguém lá.

Ninguém o estava esperando.

Só havia mais um lugar para verificar: a despensa embaixo da escada.

Ali, provavelmente, haveria espaço suficiente para alguém ficar entre as prateleiras e a porta.

Apertou o taco com mais força.

E abriu a porta.

Com a luz que entrou por trás dele, pôde ver que o espaço estava vazio, exceto por quatro caixas de papelão empilhadas no chão.

Um pensamento: Está aqui.

O que é?

O que você está procurando.

Puxou o cordão para acender a luz que havia dentro do armário.

Daniel não tinha certeza quanto a qual das caixas devia examinar, ou mesmo quanto ao que estava procurando, mas apoiou o taco contra a parede e abriu a caixa de cima.

Roupas que não lhe serviam mais.

A segunda caixa continha luvas velhas e gastas de beisebol em que ele e o pai tinham investido antes de ele começar a se concentrar no futebol e no basquete alguns anos atrás.

Na terceira havia decorações para o Dia das Bruxas e de Ação de Graças que sua mãe pendurava pela casa nesses dias de festa quando morava com eles.

A última caixa continha uma pilha de mapas que ele e o pai haviam colecionado ao longo dos anos em suas excursões de caça, acampamento e pescaria.

Por algum motivo que ele não conseguia apreender, sentiu como se precisasse dar uma olhada mais de perto e começou a examinar os mapas.

Havia cartas topográficas da cordilheira Wind River,* onde eles haviam feito trilhas no último verão; mapas de pesca dos cursos d’água que têm origem no lago Algonquin, o maior lago local; e até um mapa náutico mostrando a localização de naufrágios ao longo do lago Superior, a cerca de uma hora de distância.

Nenhum deles chamou­-lhe a atenção, mas um mapa topográfico da floresta nacional das proximidades atiçou sua curiosidade.

Estudou o mapa, avaliando a área e os locais em torno dela, e comparou­-os com aqueles em que os lobos mortos haviam sido encontrados.

Havia um centro de pesquisa – o Instituto Traybor – que havia sido construído perto da margem da floresta que cercava o lago Waunakee. Ele não tinha certeza quanto ao que era feito nele. Tinha ouvido alguma coisa sobre controle da população de peixes.

O local era novo, construído no outono, e não constava no mapa, mas a localização coincidia. Ficava bem no meio dos locais onde os lobos mortos tinham sido encontrados.

Amanhã você vai encontrar Nicole. Vai poder verificar isso com ela.

***

De volta a seu quarto, Daniel pensou na garota vertendo lágrimas de sangue, a que lhe dissera que Madeline estava esperando.

Ficou pensando nos lobos, no mapa e nas mensagens, bem como no homem que não conhecia e que acabara por encalhar na neve à frente deles.

O que isso significava?

Teria algo a ver com o centro de pesquisa?

Não era como a matemática, em que a lógica e o raciocínio claro levam às respostas. Era mais como a interpretação de um sonho, com apenas sugestões e imagens, vagas indicações que não levavam a nada de concreto.

Não era exatamente o tipo de coisa com que ele se identificava.

As distorções que ele tinha tido no último outono eram sobre uma garota que havia morrido.

Não, não havia morrido apenas – havia sido assassinada.

Será que mais alguém morreu? Mais alguém terá sido assassinado?

Dessa vez, ele não apenas teria que adivinhar o que significavam as distorções, mas que crime elas poderiam estar ajudando­-o a desvendar.

Por fim, depois de se certificar de que não conseguia chegar a nenhuma conclusão, Daniel resolver ir para a cama, deitou­-se e, embora suspeitasse que não conseguiria dormir bem com tanta coisa na cabeça, de fato adormeceu.

Quando acordou, contudo, ainda não havia amanhecido. Ainda era o meio da noite.

E ele estava no quarto do pai, segurando uma faca de caça e olhando para ele, que dormia.

* Localiza­-se no oeste do estado de Wyoming, sendo uma subcordilheira das Montanhas Rochosas. Ao longo de cerca de 160 quilômetros, apresenta mais de 50 picos com altitudes próximas a 4 mil metros. (N.T.)


12

Sábado, 22 de dezembro | 3h22

O pálido luar filtrava­-se pela janela e pousava no pé da cama, mas iluminava suficientemente o quarto do pai para que Daniel pudesse vê­-lo deitado de lado, virado para a parede.

A lâmina da faca brilhou ao luar, lustrosa e ávida no meio da noite.

Ávida de sangue.

Sangue.

Não!

Sim, Daniel. Sim.

Ele recuou e chocou­-se contra a cômoda, fazendo oscilar uma foto que estava em cima dela.

Quando caiu no chão, o vidro espatifou­-se.

O pai acordou assustado e se levantou, instantaneamente alerta, examinando o quarto para descobrir o que o acordara.

Daniel escondeu a faca atrás da perna.

– Dan? – perguntou o pai, arfante. – O que você está fazendo aqui?

– Sonambulismo – murmurou ele. – Devo ter caminhado no sono.

Não era a primeira vez que ele caminhava no sonho. Além de ter feito isso certa vez, quando era criança, tornou a acontecer no último outono, quando estavam ocorrendo os encontros com Emily e as distorções. Certa noite, ele saiu na chuva e desenterrou o corpo de seu cachorro de estimação que havia sido atropelado por um carro três meses antes. Mais tarde, quando acordou na cama, encharcado e enlameado, não se lembrava de ter desenterrado Akira.

Na verdade, só descobriu o que tinha feito na manhã seguinte, quando seu pai descobriu o corpo do cachorro no capô de seu carro.

Daniel sabia que seu pai tinha um revólver ao lado da cama, na gaveta de um pequeno criado­-mudo, e estava contente que ele não o tivesse pegado. Isso não teria terminado bem para nenhum dos dois.

O pai acendeu o abajur do criado­-mudo. Cacos de vidro brilharam no chão em torno dos pés descalços de Daniel.

Mantendo a faca escondida, ele olhou para o vidro quebrado.

Uma faca. Por que você está com uma faca?

Seu coração batia forte e ele se sentiu tomado por um tipo cáustico de medo.

Como sempre, os chinelos de dedo que seu pai usava em casa estavam ao lado da cama; ele os colocou e se levantou.

– Não se mexa. Não quero que você pise nesse vidro. Vou pegar uma vassoura e uma pá de lixo.

Ele desapareceu no corredor, e Daniel jogou a faca atrás da cômoda, onde seu pai não a veria e de onde a poderia recuperar pela manhã.

O que está acontecendo?

Você está começando a perdê­-lo.

Você está...

O pai voltou, varreu o vidro quebrado e o despejou no cesto de lixo do banheiro.

– Você está bem? – perguntou ele.

– Estou bem.

– Vá dormir – disse o pai, mas não pareceu uma ordem. Soou mais como preocupação e nada mais.

– Tudo bem.

***

Depois de voltar para a cama, Daniel fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Sua mente ficava repetindo o que havia acontecido.

Está ficando pior.

Você precisa começar a tomar os remédios antes que seja tarde. Antes que faça alguma coisa de que se arrependa. Alguma coisa que não pode ser desfeita.

Embora não tivesse certeza se faria muita diferença, trancou a porta do quarto, pegou a barraca de acampamento no armário, soltou uma das cordas de fixação, enrolou­-a no tornozelo e amarrou a outra ponta na cabeceira da cama.

Certificou­-se de que o nó estava suficientemente seguro para que não se soltasse enquanto ele dormia. Assim, se tornasse a andar no sono, a corda o impediria de ir ao quarto do pai.

Mas nada disso acabou tendo importância, pois ele mal conseguiu dormir.

Ficou só deitado, pensando em como acordara no quarto do pai segurando aquela faca e ouvindo aquela voz em sua cabeça dizendo­-lhe que a faca estava ávida de sangue.


13

8h01

Depois de soltar a corda do tornozelo, Daniel tornou a guardá­-la em seu equipamento de camping.

Ele não conseguia tirar a faca do pensamento.

Por que cargas d’água você teria feito aquilo? O que o teria levado a pegar aquela faca e entrar no quarto de seu pai daquele jeito? O que você ia fazer com ela?

Esperou até ouvir o ruído do chuveiro no banheiro, antes de entrar no quarto do pai; então, com muito cuidado, afastou a cômoda e localizou a faca de caça.

A lâmina tinha sido projetada especificamente para cortar músculos e carne. Era a que ele usava para abrir os veados caçados.

Nicole nunca se entusiasmou muito com suas caçadas, mas sem um número adequado de predadores naturais no estado, a população de veados precisava ser abatida ou problemas de superpopulação – doença, especificamente – poderiam dizimar a manada.

É claro que ela sabia disso, e a última coisa que desejava era que o animal sofresse, mas, mesmo assim, não aprovava a ideia de alguém abater os veados, quanto mais seu namorado.

A água parou de correr no chuveiro do banheiro.

Daniel empurrou a cômoda para o lugar, voltou para o seu quarto, recolocou a faca na bainha e a pôs no armário.

***

Estava na metade do café da manhã quando o pai juntou­-se a ele na cozinha.

– Você se levantou cedo para um sábado.

– Eu não dormi muito bem.

O pai foi buscar pães e uma maçã.

– Você se lembra de ter andado durante o sono esta noite?

– Lembro­-me de ter acordado em seu quarto – disse ele, sem maiores comentários.

– Você derrubou uma fotografia. Fiquei preocupado que você pudesse se cortar nos cacos de vidro.

– Não, eu estou bem.

– Devo confessar que você me assustou. Está se sentindo bem?

– Estou. Desculpe pela foto.

– Não precisa se desculpar. Estou feliz por você estar bem.

– Estou um pouco cansado, mas estou bem – disse ele. Depois de algumas colheradas de cereal, acrescentou: – Uma vez você me disse que eu tive um ataque de sonambulismo quando o vovô morreu.

– É verdade.

– Você disse que, quando me perguntou o que eu estava fazendo, respondi que ia encontrá­-lo.

– Isso mesmo.

– O que aconteceu depois?

– Nós levamos você para o seu quarto e o pusemos na cama.

– Eu disse mais alguma coisa?

– Você disse que ia salvá­-lo antes que eles chegassem.

– Salvá­-lo? Mas era tarde demais para isso.

– Era, sim.

– E antes que quem chegasse?

– Não sei. Você estava dormindo, falando no sono. Não sei se isso queria dizer alguma coisa.

Daniel não conseguia saber se aquilo tinha ou não algo a ver com o que estava acontecendo agora.

– Você descobriu alguma coisa a respeito da morte dos lobos?

– A avaliação de balística voltou. A mesma arma foi usada para disparar todos os tiros que mataram os lobos até agora. Uma arma de calibre .30; com balas de ponta oca – respondeu o pai, sentando­-se à mesa. – Então, quais são seus planos para hoje?

– Vou encontrar Nicole e depois, à tarde, estávamos pensando em ir ver um filme em Superior com o Kyle e a Mia.

– Ouça, eu fui severo com você ontem à noite. Sinto muito. É que está acontecendo muita coisa. Eu devia ter pegado leve.

– Sim, não. Está certo. Tudo bem. Eles acharam outro lobo?

– Não. Mas eu diria que quatro são suficientes.

– Você vai trabalhar hoje?

O pai confirmou com um movimento de cabeça.

– Devo voltar às seis.

***

Depois do café da manhã, Daniel pegou o vidro de remédio que o pai tinha lhe comprado no dia anterior e foi para o banheiro.

Colocou dois comprimidos na palma da mão.

Eles vão lhe fazer bem, Daniel. Vão melhorar as coisas, fazê­-las voltar ao normal.

Mas outra voz dizia: As coisas não vão voltar ao normal. Não depois do último outono. Tudo mudou e não há como voltar.

Ele aninhou os comprimidos na palma da mão.

Não vão voltar.

Tome­-os, Daniel.

Não. Livre­-se deles.

Daniel sabia que todo mundo ouvia vozes dentro da cabeça. Todos nós temos conversas imaginárias, reformulando o que aconteceu e pensando em reações mais inteligentes depois do fato. E não é só isso: nossas consciências nos enganam e nos afligem, e palavras fantasmas de insultos e golpes baixos que há muito já se foram podem nos assombrar. Às vezes pela vida inteira.

Mas isso era diferente. Não eram apenas palavras sussurradas em sua mente. Era quase como se uma das vozes viesse de fora de sua cabeça, como se ele a estivesse ouvindo enunciada completamente por outra pessoa.

Eu sou real, Daniel. Eu sou. Você pode me ouvir e eu vou lhe dizer o que você precisa fazer.

Então, a voz dentro de sua cabeça replicou: Não, você não é real. É apenas uma ilusão, uma ilusão que eu ouço.

Eu sou tão real quanto sua consciência, quanto seus sonhos, quanto suas memórias. Todo mundo ouve vozes, Daniel.

Mas você não é real. Eu sei que não é.

Você consegue me ouvir. Pode conversar comigo. O que me torna menos real que alguém que você pode ver?

O fato de essas pessoas estarem realmente lá.

Se eu não fosse real, você não seria capaz de me ouvir. Se eu não fosse real, por que você estaria discutindo comigo?

Em conflito, Daniel olhou para os comprimidos.

Seus pensamentos continuavam a ir e vir, dispersando­-se, hesitando, transformando­-se numa discussão com ele mesmo.

Se o remédio ia demorar uma ou duas semanas para fazer efeito, mesmo se começasse a tomá­-lo agora, as coisas continuariam a acontecer por certo tempo.

Foi até o banheiro, como tinha feito tantas vezes nos últimos dois meses, para jogar os comprimidos no vaso e dar descarga – sempre dois de uma vez, nunca o vidro inteiro, caso o pai resolvesse verificar seus remédios.

Contudo, tomá­-los seria, pelo menos, o começo de uma ajuda. O problema era esse. Tudo tinha ficado cada vez mais estranho desde a manhã anterior, e ele precisava reverter essa tendência o mais cedo possível, antes que alguma coisa séria acontecesse.

Você precisa deles. Você precisa de qualquer ajuda que possa conseguir.

Pôs água num copo e tomou um golpe; então, engoliu os comprimidos.

Daniel disse a si mesmo que agora as coisas seriam diferentes, que o incidente da última noite não era algo com que se preocupar. Mas, por mais que tentasse, não conseguia se convencer de que havia levado aquela faca para o quarto do pai sem a intenção de usá­-la.

Ele precisava de respostas e precisava delas antes do anoitecer, quando tornaria a dormir e talvez tivesse outro pesadelo – ou, o que seria pior, outro ataque de sonambulismo.

E talvez não se limitasse a ficar perambulando com uma faca.

Talvez a usasse.

***

Mandou uma mensagem a Nicole, pedindo­-lhe que telefonasse assim que pudesse; apenas alguns minutos depois, o telefone tocou.

– Oi – disse ela. – O que está havendo?

– Você já está em pé?

– Tive uns sonhos estranhos. E você?

– Tive problemas para dormir. Ouça, tenho que verificar uma coisa com você. Você pode me encontrar no estacionamento, no começo da trilha para o rio Pine?

– Quando?

– Ainda esta manhã. Lá pelas dez?

– Combinado.

– Use roupa apropriada para esse tempo.

– Você vai me contar o que vamos fazer?

– É surpresa, sua boba.

– Você pegou essa fala emprestada de mim – disse ela, e ele quase a ouviu sorrindo.

– É possível.

***

Tudo bem, até lá, ele teria mais de uma hora para verificar as coisas antes de sair.

Tinha planejado procurar informações sobre os lobos para seguir com algumas ideias que tinha com relação à matança, mas, naquele momento, ler sobre sonambulismo parecia ser prioridade maior.

No último verão, ele ouvira dizer que algumas pessoas chegavam a dirigir pela cidade enquanto dormiam, tendo mesmo assassinado pessoas em seus ataques de sonambulismo, e, embora parecesse incrível, não demorou a encontrar informações on­-line para confirmar isso tudo.

Descobriu­-se lendo relato após relato de pessoas que tinham feito coisas estranhas enquanto dormiam: preparar uma refeição, enviar mensagens coerentes, atravessar um lago a nado e, sim, até matar pessoas.

Só de pensar que era possível matar alguém enquanto se dorme, teve vontade de nunca mais voltar a dormir.

Como é que se pode lutar contra uma coisa dessas? Como controlar o que se faz durante o sonambulismo?

Quando olhou as horas, viu que já eram mais de 9h40, e ele precisava ir andando se ainda queria chegar à trilha do rio Pine às dez horas.

Mandou uma mensagem a Nicole dizendo que estava a caminho, calçou as botas de inverno, pegou o casaco, chapéu e luvas e saiu.


14

Embora ainda coberta de neve, a trilha estava plana e cheia de gente deslizando por ela de esquis.

Enquanto caminhavam, Daniel ficou indeciso se contava ou não a Nicole o que havia escrito naquele caderno, sobre a garota com lágrimas de sangue ou, especialmente, sobre acordar no quarto do pai segurando uma faca de descarnar veados.

Ela já sabia sobre as distorções do último verão, de modo que nada disso seria um choque para ela. Mas, ainda assim, as coisas que tinham acontecido a ele nas últimas 24 horas estavam ficando cada vez mais perturbadoras e ele não queria assustá­-la ou deixá­-la preocupada.

No final, decidiu que talvez ela fosse capaz de ajudá­-lo a resolver as coisas.

– Nicole, eu caminhei durante o sono na noite passada.

– Você... quero dizer...

– Não, não tentei desenterrar nenhum animal morto. Acabei no quarto de meu pai. Ele acordou comigo em pé no meio do quarto. O que o assustou muito.

– Não é para menos...

Ela ouviu em silêncio enquanto ele resumia as visões da garota de camisola branca, a que se consumira em chamas. Por ora, não mencionou a faca ou as mensagens de Madeline.

– Acho que as distorções estão tentando me dizer alguma coisa – disse ele. – Como se parte da minha mente estivesse trabalhando as coisas e tentando... Bem...

– Revelar­-lhe respostas.

– Isso.

– Como com a Emily no último outono.

– Exatamente.

– Mas respostas para o quê?

– Esse é o ponto: não sei.

Ele ainda não tinha certeza se devia mencionar a faca.

Vá devagar ao abordar esse assunto.

– Hoje de manhã pesquisei sobre sonâmbulos homicidas: quando alguém mata outra pessoa enquanto caminha no sono.

– Por quê?

– Por que elas matam alguém?

– Não, por que você pesquisou isso?

– Porque... Bem, porque eu queria descobrir se eu seria capaz de machucar alguém em meu sonambulismo.

– Mas sonambulismo homicida? Isso é loucura.

– Eu sei, mas a coisa acontece mesmo, normalmente entre membros de uma família. Certa vez, na Inglaterra, um cara estrangulou a esposa enquanto dormia e, quando acordou, não se lembrava disso. E foi julgado inocente pela justiça. Outro cara jogou a filha pela janela. Uma mulher...

– Tudo bem. Já entendi. Não quero ouvir mais nada. É muito perturbador.

– Certo.

– E, então, tudo isso o assustou? Foi isso? Quero dizer, considerando que você voltou a ser sonâmbulo?

– Isso mesmo.

Os dois caminharam em silêncio durante algum tempo; então, Daniel finalmente disse:

– A coisa mais assustadora é: como é possível impedir­-se de fazer alguma coisa terrível quando se está dormindo? Quero dizer, se você nem tem consciência das coisas, pode sair da cama, matar alguém, voltar a deitar e acordar sem se lembrar de nada.

– Acho que você não tem que se preocupar com isso.

Conte­-lhe sobre a faca.

Não.

Sim. Você pode confiar nela.

Não, ela vai ficar com medo de você. Você vai assustá­-la.

Como ele não respondia, ela reiterou:

– Realmente, Daniel. Você nunca faria nada de terrível durante o sono.

Você precisa lhe contar. Vá em frente.

– Nicole, na noite passada, quando acordei no quarto de meu pai, eu estava segurando uma faca.

– O quê?

– Eu estava segurando uma faca. Uma faca de caça.

– Então foi por isso que você pesquisou esse negócio de sonambulismo homicida.

– Foi.

– Você nunca o machucaria, Daniel. Você nunca machucaria alguém, quanto mais matar, a menos que isso fizesse parte de você, a menos que houvesse alguma coisa dentro de você... Não sei, quero dizer ódio, raiva ou alguma outra coisa do tipo que o motivasse. E você não é assim. De jeito nenhum.

Dois lobos lá dentro.

Lutando.

Sempre lutando.

– Não tenho tanta certeza – disse ele. – Mas sei de uma coisa.

– O quê?

– Precisamos descobrir por que as distorções recomeçaram. E precisamos descobrir antes desta noite.

– Quando você tornar a dormir.

– Isso.

Precisaram sair da trilha para chegar aonde Daniel planejava levá­-la. Depois que saíram, ele a levou através dos bosques na direção sul, para o Instituto Traybor.

Havia algumas lagoas por ali. Os lagos e os rios dessa parte do estado congelavam, nem sempre tão cedo quanto neste inverno, mas tudo dependia do tempo. Naquele momento, o gelo estava naquele estágio em que provavelmente se possa caminhar por ele com segurança, mas pegar um carro de andar na neve ou um automóvel normal não seria boa ideia.

– Não é muito longe – disse ele enquanto passavam pela lagoa mais próxima.

Cruzaram uma trilha para carros de andar na neve que terminava numa estrada isolada que levava a uma série de cabanas ao redor do lago Waunakee.

– Então, você vai me dizer aonde estamos indo ou ainda é surpresa? – perguntou ela.

Nesse ponto, ele não conseguia pensar em um bom motivo para não contar a ela o que havia.

– É o lugar que eles construíram no último outono, à beira da floresta, aquele instituto de pesquisa.

– Por que estamos indo lá?

– Andei olhando alguns mapas na noite passada que me deram o que pensar.

– Vá em frente.

Ele ainda não contara a ela sobre as misteriosas mensagens que vinha recebendo. Tudo, até aquele ponto, envolvia o que ele fizera ou pensara, mas as mensagens envolviam outra pessoa, pois, obviamente, alguém as estava enviando.

A mensagem da noite anterior o levara até o porão.

Ela vai ficar magoada se souber das mensagens. Vai ficar imaginando quem é Madeline. Vai achar que está havendo alguma coisa entre você e outra garota.

– É uma longa história – disse ele. – Mas um determinado mapa me fez pensar no instituto. Fiquei imaginando se ele tem alguma coisa a ver com a matança dos lobos.

– O que o fez pensar isso?

– Depois que o instituto foi construído, talvez há um mês e pouco, os lobos começaram a ser mortos. Além disso, ele está localizado bem no meio da área onde os lobos estão morrendo.

Caminharam pesadamente pela neve até verem o contorno do instituto a uma centena de metros, através das árvores nuas, destituídas de folhagem.

Aproximando­-se, encontraram uma cerca de metal que isolava toda a propriedade. O topo era inclinado, guarnecido com arame farpado.

– Você sabe o que eles fazem aqui? – perguntou Nicole.

– Estudos ictiológicos. Foi o que eu ouvi.

– Um lugar que estuda peixes ladeado por uma cerca de arame como essa?

– Não faz muito sentido, não é mesmo?

– Estou achando que não.

Enquanto estavam ali, uma van do Departamento de Correção de Wisconsin surgiu na curva de uma estrada municipal das vizinhanças e avançou para o edifício. O portão se abriu e o veículo entrou na propriedade.

– Tudo bem – disse Nicole –, e por que uma van de transporte da penitenciária estaria visitando um local de pesquisas sobre peixes?

– Não faço a mínima ideia.

Os dois se colocaram atrás de uma tora de árvore derrubada, mas se inclinaram o suficiente para observar o que estava acontecendo. Dois agentes de polícia – que poderiam ser guardas de prisão, era difícil dizer – tiraram outro homem da traseira da van.

– Aquele cara está algemado? – perguntou Nicole num sussurro.

– Acho que sim.

– Ora, isso também é estranho. A gente devia dar o fora.

– Se fizermos isso, eles podem nos ver. Temos que esperar até que eles entrem.

Daniel reconheceu num dos guardas o homem que havia encalhado na neve na noite passada, o que o cumprimentara depois do jogo.

Quando ele e Kyle foram socorrê­-lo, Nicole não desceu do carro, de modo que Daniel não achou que ela pudesse reconhecê­-lo.

– Aquele guarda da esquerda – disse ele – é o homem da noite passada, o que saiu da estrada.

– Você está brincando...

– Não, é ele mesmo.

A conversa foi interrompida por uma série de grunhidos guturais vindos do outro lado da propriedade cercada.

Vultos escuros movimentaram­-se entre as árvores, enquanto quatro cães de guarda avançaram na direção deles.

Os guardas que estavam conduzindo o prisioneiro pararam e olharam na direção de Daniel e Nicole, mas os dois escorregaram rapidamente para trás da tora.

Daniel não tinha certeza se fizeram isso com rapidez suficiente para evitar serem vistos. Imaginou os homens se aproximando, descobrindo ele e Nicole e os interrogando. Tentou imaginar um bom motivo para eles estarem escondidos atrás de uma tora, algo que pudesse satisfazê­-los, mas não conseguiu pensar em nada que parecesse muito razoável.

Ele esperou, esperou e esperou, até achar que talvez os guardas tivessem desistido de procurar na direção deles. Quando olhou para Nicole, viu que ela o fitava com os olhos muito abertos e nervosos.

Pelo som, os cães estavam perto.

Lentamente, Daniel ergueu a cabeça o suficiente para dar uma olhada.

Os guardas e os prisioneiros haviam desaparecido pela porta da frente do edifício, mas os cães haviam chegado até a cerca, saltando contra ela e a arranhando com as patas.

– Ok. Hora de ir embora – disse ele a Nicole. – Antes que alguém descubra por que aqueles cães estão agindo daquela forma.

Retornaram pelo mesmo caminho pela neve e já estavam quase perto da trilha do rio Pine quando um tiro de espingarda soou no ar.

Não vinha do instituto, mas do outro lado da colina, bem à esquerda deles.


15

Daniel examinou a floresta atentamente para ver se conseguia localizar a pessoa que fizera o disparo. Embora não conseguisse ver ninguém, para realmente dar uma boa olhada teria que subir a colina e procurar nos bosques vizinhos.

– Já é a estação de caça? – perguntou Nicole, pouco à vontade.

– Talvez para perus e caça miúda, mas isso soou como um tiro de rifle, e não de espingarda.

Se alguém estava caçando com rifle, o tiro podia ter sido disparado de uma distância de mais de mil metros, dependendo da habilidade do atirador.

– E não existe nenhum campo de tiro por aqui – disse ela.

– Nem perto.

– Então é um caçador ilegal.

– Sim. Talvez. Provavelmente.

– O que acha que devemos fazer?

– Acho que devemos verificar, pelo menos dar uma olhada rápida e ver se conseguimos localizar o atirador.

– Você acha isso seguro? Dar uma olhada, quero dizer...

– Desde que a gente tenha cuidado.

– Mas se a pessoa que atirou estiver realmente caçando lobos de maneira ilegal, ela não vai querer ser descoberta.

– Você acha que vão querer atirar em nós?

Ela ficou quieta.

Se Daniel estivesse sozinho, poderia estar mais apto a dar uma olhada pelo lugar, mas, com Nicole, percebeu que não queria correr riscos.

– Bem pensado.

Contornaram a base da colina. Ninguém apareceu; nenhum outro tiro foi disparado.

Não tinham andado muito quando descobriram um rastro de sangue espumoso na neve.

Ainda estava fresco e seguia paralelo a um conjunto de pegadas de lobos.

– Oh, não – disse Nicole, a voz cheia de tristeza. – Por favor, não.

De suas caçadas com o pai, Daniel sabia que o sangue espumoso significava que o animal tinha sido atingido nos pulmões. Muito possivelmente um tiro fatal.

Ele observou o bosque diante deles, em busca de algum sinal do lobo.

Então, olhou para trás a fim de ver se o atirador estaria seguindo o rastro de sangue. Não viu o animal, e a floresta atrás deles estava vazia.

– Nós devíamos seguir o rastro para ver se ele está bem – disse Nicole, olhando para Daniel.

– Não acho que ele esteja bem, Nicole.

O rastro desaparecia num espesso grupo de pinheiros do qual ele mal podia ver o interior.

– Esse lobo provavelmente está morrendo. Não devemos realmente nos aproximar dele agora. Não se sabe como ele pode reagir.

– Então vamos nos manter a distância. Eu preciso vê­-lo, Daniel.

Como ela insistisse, ele acabou cedendo.

– Tudo bem, acho que podemos contornar esses pinheiros, ver se ele saiu pelo outro lado. Mas não vamos entrar nos pinheiros. Não me importo em nos mantermos a distância, como você disse, mas não quero assustar um lobo agonizante.

– Ok – disse ela, já se pondo a caminho. – Vamos.

Em silêncio, contornaram o bosque de pinheiros, passando ao largo daquele trecho sombreado de floresta.

Chegaram ao outro lado bem a tempo de ver o lobo morrer.


16

O lobo estava deitado na borda do bosque de pinheiros e, com base na localização do laivo de sangue em seu pelo, Daniel viu que tinha razão: o animal havia sido baleado no peito.

Ele respirava superficialmente e ficou claro que não estava em condições de atacá­-los, de modo que ele e Nicole se aproximaram mais, até ficarem a cerca de seis metros do animal.

O lobo ergueu a cabeça ligeiramente e olhou na direção deles, mas não grunhiu.

Foi perturbador o modo silencioso com que o animal morreu.

Por um instante, seus olhos pareceram argutos e alertas. No momento seguinte, quando a cabeça tombou no chão, pareciam simplesmente olhar, de maneira inexpressiva e fixa, para a floresta ao redor.

Vivo em um momento.

Morto no momento seguinte.

Apenas isso.

Daniel e Nicole esperaram alguns minutos em meio ao silêncio do dia, quase que de modo a prestar homenagem à morte do lobo, antes de se aproximarem dele.

Nicole tirou as luvas e tocou no lobo com suavidade, mergulhando os dedos no pelo, mas tendo o cuidado de manter a mão longe do sangue.

– Nós vamos descobrir quem fez isso – prometeu ela num tom comedido, mas firme. – Eles não vão continuar a fazer isso.

Daniel tornou a olhar ao redor em busca de algum sinal de que alguém pudesse estar se aproximando, talvez seguindo as pegadas do lobo para se certificar de que o animal estava morto. Não viu ninguém, mas sempre era possível que o atirador estivesse avançando pelo bosque de pinheiros, como fizera o lobo.

Ajoelhou­-se ao lado de Nicole.

– É melhor voltarmos para o carro.

Ao ajudá­-la a se levantar, notou que a orelha do lobo tinha uma etiqueta eletrônica, provavelmente colocada pelos guardas florestais para que pudessem monitorá­-lo e estudar seus padrões de movimento.

Ele não sabia quantos lobos naquela área haviam recebido uma etiqueta como aquela, mas, pelo que ouvira, o serviço florestal estava tentando marcar o maior número possível de lobos para ver se a população desses animais estava se recuperando.

– Fico imaginando se os outros também estavam etiquetados – disse ele, sem se dar conta de que tinha dito isso em voz alta, em vez de apenas mentalmente.

– Os outros também estavam o quê? – perguntou Nicole.

– Etiquetados – respondeu ele, apontando para a orelha do lobo. – Como ele.

– Você quis dizer os outros que foram mortos?

– Isso mesmo.

– Em que você está pensando?

– É apenas uma ideia – disse ele, enquanto usava o celular para tirar uma foto da etiqueta eletrônica na orelha do lobo. – Quero dizer que sei que existem mais lobos por aqui atualmente, mas quantos chegamos efetivamente a ver?

– Eu não sei. Acho que nunca tinha visto um lobo na floresta, mas não passo tanto tempo nela quanto você.

– E eu só os vi umas duas vezes. Os lobos são arredios. Então, como é que essa pessoa, seja quem for que está atirando neles, conseguiu descobrir tantos para matar em um período tão curto?

– Você está achando que esse cara está atirando nos que foram marcados? – perguntou ela, enquanto iam para o carro. – Que ele os localiza usando o rastreador, ou o GPS da etiqueta?

– É um ponto de partida. Acho que devemos contar ao meu pai sobre essa etiqueta eletrônica.

Seu pai não verificava mensagens com frequência, então Daniel resolveu ligar. Como não atendesse, deixou uma breve mensagem dizendo que tinham encontrado um lobo morto e pedindo que lhe telefonasse de volta. Mandou­-lhe também a foto da etiqueta do lobo.

Daniel e Nicole voltaram ao começo da trilha. Quando chegaram lá, ele disse:

– Precisamos descobrir o que pudermos sobre o programa de monitoramento dos lobos.

Sugeriu que Nicole fosse com ele para sua casa, mas ela explicou que havia se esquecido de dar comida para o gato naquela manhã e seus pais estavam fora.

– Eu preciso tomar conta do Harley – disse ela. – Passe pela sua casa e pegue seu laptop. Vamos nos encontrar na minha casa.

– Por mim, tudo bem. Vejo você em meia hora.


17

As paredes do quarto de Nicole eram decoradas com quadros de pássaros e bailarinas. Como fã da série Star Wars, ela também tinha pôsteres de Darth Vader e Han Solo, todos dos filmes originais das décadas de 1970 e 1980 – ela não era muito fã dos acréscimos mais recentes à série.

Na parede, Darth Vader convidava Daniel a se juntar ao lado sombrio da Força.

Como estava fazendo aquele lobo dentro deles.

Lobos em luta.

Matando...

... Morrendo, como o de hoje na floresta.

Nicole se acomodou na cama com as costas contra a parede e abriu o laptop sobre as pernas. Harley, seu gato cor de canela, agora bem alimentado e satisfeito, acomodou­-se numa almofada no chão. Daniel sentou­-se na beira da cama com o notebook no colo.

– A propósito – disse Nicole –, tenho um presente de Natal para você.

– Também tenho um para você.

– É mesmo? O que é? Não, espere, não me conte. Eu não quero saber... sim, eu quero saber. Detesto surpresas... bem, nem sempre; às vezes sim, mas...

– Não vou contar o que é, e você só vai ganhá­-lo no Natal. Mas vai gostar.

– Tenho certeza de que vou. Não me conte.

– Não vou contar.

– Mas estou curiosa.

– Que pena.

– Bom, eu não quero saber nada sobre ele... mas faço uma ideia.

– Eu sei.

Enquanto Nicole se aconchegava em meio a seus bichos de pelúcia e bonecas, que ela conservava sem nenhum constrangimento junto ao travesseiro, Daniel teve sua atenção voltada para um deles.

– Eu nunca disse isso para você e não quero bancar o Capitão Óbvio, mas sua boneca só tem um braço.

– Isso mesmo – disse ela, pegando a boneca com ternura. – Ela foi, por assim dizer, sendo amada com o passar dos anos. A princípio, minha mãe tentou consertá­-la, costurando o braço no lugar, entende? Mas eu ficava carregando­-a por aquele braço e ele acabou por se rasgar novamente. Por fim, minha mãe me disse que existem pessoas que só têm um braço, e que Rebecca não era diferente delas. Ela disse que a boneca era única, especial, da mesma forma que essas pessoas.

– Isso foi legal.

– Foi mesmo.

– Você fala dela quase como se falasse de uma menina de verdade.

– É claro que sim. Rebecca é uma menina. Todas as bonecas são meninos ou meninas. Você provavelmente teve bonecos.

– Sinto desapontá­-la, mas eu nunca brinquei nem com bonecas nem com bonecos.

– É mesmo?

– É. Nada de bonecas na casa dos Byers.

– Nem o boneco do Batman?

– Não, mas aquilo não é boneco.

– Ah, então o que é?

– É a figura de brinquedo de um herói antigo.

– Isso... um boneco antigo.

– Uma reprodução de brinquedo de um herói de ação. O que faz uma grande diferença.

– Ceeeeeerto...

Sem dúvida, era hora de mudar de assunto. Ele apontou para um caderno de desenho que estava na escrivaninha de Nicole.

– Você fez algum desenho novo?

– Alguns.

– Posso vê­-los?

– Humm...

Pelo que ele descobrira no passado, Nicole não achava que fosse boa desenhista e não se mostrava muito disposta a mostrá­-los a ele – na verdade, ele estava com ela há quase seis semanas quando ela finalmente deixou­-o ver alguns de seus desenhos.

Mas ela estava equivocada quanto a eles.

Eram surpreendentes.

Ela desenhava principalmente paisagens e, por vezes, animais silvestres. Tendo visitado um lugar uma vez, visto um cervo na floresta ou um mergulhão num lago, ao voltar para casa ela os desenhava com detalhes tão intrincados e precisos que Daniel duvidava que fosse capaz de percebê­-los mesmo se estivesse olhando diretamente para eles na natureza.

– Prometo que vou adorá­-los – disse ele. – Você sabe que vou.

– Você diz que vai adorá­-los, mesmo não gostando, porque não quer ferir meus sentimentos.

– Quanto a isso... prometo que vou ferir seus sentimentos se for preciso.

– Oh... bem, isso é muito melhor.

– Tudo o que eu puder fazer para incentivá­-la.

– A­-ha!

Ele estendeu a mão e ela, depois de dar um pequeno suspiro, se inclinou, pegou o caderno de desenho e o entregou a ele.

Ele passou pelos desenhos que já tinha visto.

– Você quase encheu o caderno.

– Só sobraram algumas páginas.

Chegou aos desenhos novos.

O primeiro era um desenho do Arco de Gateway e da linha do horizonte de Saint Louis. Ele sabia que Nicole tinha ido lá com os pais no último mês de junho, mas o fato de ela só ter feito aquele desenho recentemente deixou­-o surpreso.

– Não, ainda não posso ferir seus sentimentos.

Ele virou a página e viu um bando de gansos voando acima de um charco.

– Ainda não dá para feri­-los.

– Bem, só espere. Você acha que suas distorções são perturbadoras. Espere até ver o último desenho.

Ele virou a página.

E ficou mudo.

Ela havia desenhado um homem que, aparentemente, estava dormindo, deitado numa espécie de esteira ou catre. Pelo que parecia, um demônio esvoaçava acima dele. Não era uma daquelas caricaturas de quadrinhos de um demônio com chifres, pés com cascos, uma cauda pontuda e um tridente. Não, esse demônio parecia uma coisa saída diretamente de um pesadelo.

Ela captara a perversidade, o mal e o horror numa linha simples que parecia perturbadoramente real. A carne do demônio, semelhante a couro, esticava­-se firmemente pelo contorno de seu esqueleto, e havia algo na maneira como ela desenhara a criatura que fazia com que parecesse estar pronta a erguer­-se da página com suas escuras asas de morcego e voar diretamente para dentro do pensamento de alguém ou infestar sua alma.

– Está vendo? Eu avisei.

– Isso veio só da sua imaginação?

– Claro, quero dizer, eu estava num lugar estranho quando desenhei isso. Estive lendo a Bíblia, deparei com a história de Jó e, bem, parece que a coisa tomou conta de mim.

Nicole não tinha medo de falar de sua fé, então Daniel não ficou surpreso por ela agora mencionar sua leitura da Bíblia. Algumas pessoas não gostam de falar do sobrenatural, mas Nicole sempre havia sido honesta e direta quanto às suas crenças, o que era verdadeiramente tranquilizador e uma das coisas que o atraíam nela.

Ele não estava muito familiarizado com a Bíblia, mas conhecia o suficiente de suas idas à igreja com a mãe quando ela ainda morava com eles para saber que Jó fora um homem rico e, então, perdera tudo.

– O demônio o está tentando?

– É mais provável que o esteja aterrorizando – disse Nicole, digitando em seu laptop e puxando uma Bíblia on­-line. – Jó, 7:13­-15.

– O que diz aí?

– Jó está tendo uma de suas visões aterrorizantes e escreve: “Quando eu digo: Minha cama me confortará, meu leito aliviará a minha queixa, então me espantas com sonhos, e com visões me atemorizas, de modo que eu escolheria antes a estrangulação e a morte do que a vida”.

– Então Deus enviou­-lhe pesadelos tão aterrorizantes que ele preferiria ser estrangulado e morto? Por que Deus enviaria pesadelos como esses a uma pessoa?

– Jó achou que eles provinham de Deus, mas, bem, é meio complicado. Deus permitiu a Satã que basicamente o torturasse para ver se ele abandonaria sua fé. Mas Jó não sabia disso e, então, presumiu que fosse Deus quem estava lhe mandando essas aflições.

– Bem, em último caso, qual é a diferença? Quero dizer... – Daniel não estava tentando argumentar, mas deixou isso escapar. – Deus mandou esses pesadelos ou os autorizou; de qualquer modo, ele podia impedi­-los de acontecer.

– Sim – disse ela, um pouco incerta. – Acho que sim.

Ele fechou o caderno e tornou a colocá­-lo na escrivaninha.

– Uma vez nós conversamos sobre demônios e você me disse que acreditava neles.

– Eu me lembro disso.

– Como você sabe... bem...

– O quê?

– Se eles estão à nossa volta. Nos tentando, nos torturando... o que mais eles fazem?

Ela olhou para ele, preocupada.

– É o que você acha? Que os demônios o estão torturando?

– Baseado em algumas das coisas que vi, não sei bem o que pensar... apesar de que, devo confessar, nunca quis ser estrangulado ou morto para não ver outra distorção. Pelo menos tem sido assim.

– Bem, não sou especialista em demônios, mas acho que as pessoas cometem um erro quando os superestimam ou os subestimam.

– Você quer dizer que elas acham que os demônios são mais poderosos do que realmente são, ou acham que eles talvez não existam de jeito nenhum.

– Algo assim. Quero dizer, se você fosse um demônio, a última coisa que desejaria é que as pessoas conhecessem a verdade, certo? Você desejaria que elas ficassem mortas de medo de você ou sequer acreditassem que você existe.

– Você está dizendo que a verdade está no meio.

– Sim, mas eu acredito que Deus seja mais poderoso que os demônios, que existe um propósito maior em ação do que aquilo que podemos ver. Como com Jó, e agora com suas distorções... há mais coisas por trás disso. Só precisamos descobrir o que é.

Nenhum dos dois sabia aonde aquela conversa os levaria.

– Acho que devemos começar a trabalhar – disse ele por fim. – Com os lobos, quero dizer.

– Boa ideia.

Os dois lobos.

Qual dos dois você está alimentando?

Quando olhou para a escrivaninha da namorada, viu o demônio sentado em cima dela, olhando para ele, as asas abertas.

Piscou os olhos para que a imagem desaparecesse, mas isso não funcionou e o demônio alçou­-se no ar até ficar acima da escrivaninha. Então, voou através da parede e desapareceu.

Respirando devagar para acalmar­-se, Daniel desviou o olhar daquele canto do quarto e olhou para Nicole, que o observava com certo cuidado.

– Você está bem? – perguntou ela.

– Estou.

– O que foi?

– Nada.

– Você viu alguma coisa. Eu percebi. O que você viu?

– Não faz diferença.

– Daniel...

– Vamos dizer que você desenhou um dragão muito realista.

– E você o viu.

– Vi, mas ele voou para longe. Foi uma coisa boa, não foi?

– Eu diria que sim, mas... o fato de tê­-lo visto é um tipo de distúrbio.

– Se você está dizendo...

Cara, você não precisa ser atormentado por demônios neste exato momento.

Voltando a se ocupar do motivo de estarem ali, ele disse:

– Acho que devemos investigar mais que apenas o fato de os lobos estarem recebendo etiquetas.

– O que você quer dizer com isso?

– Aquele centro de pesquisas, o Instituto Traybor. Precisamos ver como aquele lugar e a matança podem estar relacionados.

– Eu me ocupo dos lobos – propôs Nicole. – Você com o lugar de pesquisa dos peixes e que tem uma cerca de arame farpado.

– Para onde levam prisioneiros algemados.

– Exatamente.


18

Ficaram pesquisando por cerca de meia hora, depois foram para a cozinha almoçar e trocar informações sobre o que tinham conseguido até então.

Enquanto preparavam sanduíches de queijo quente, Nicole disse:

– Não havia nada na internet a respeito dos outros lobos que foram mortos estarem também etiquetados, mas eu descobri que duas dúzias deles eram parte de um projeto conjunto de pesquisa do Departamento de Recursos Naturais com o serviço florestal e com um programa de monitoramento da vida selvagem da Universidade de Wisconsin­-Superior.

– Então, pelo menos, existe uma possibilidade de que os outros lobos também estivessem etiquetados.

– Sim, é possível.

– Vou contar ao meu pai o que estamos achando. Talvez ele saiba alguma coisa.

Ele ainda não tinha recebido nenhum contato do pai desde que deixara a mensagem de voz naquela manhã, então tornou a lhe mandar uma mensagem de texto para que ligasse assim que pudesse.

Nicole virou os sanduíches para tostar do outro lado.

– O que você levantou sobre o Instituto Traybor?

– Honestamente, não muito, o que é estranho. Mas como aquela van veio do Departamento de Correção, decidi procurar se havia alguma ligação entre o Instituto Traybor e a Penitenciária Estadual de Derthick. Como é a prisão mais próxima, decidi começar por aí.

– Achou alguma coisa?

– Uma coisa interessante. No site do instituto há uma lista dos funcionários. Procurei os nomes no Google e não apareceu nada com relação à maioria deles, mas um tal Dr. Waxford participou de um programa particular de pesquisa a respeito de como os seres humanos processam o tempo. Achei meio estranho que ele tenha acabado contando trutas e dourados para viver.

– Um estudo sobre como processamos o tempo?

– Sim, um cronobiólogo. Acho que houve um famoso pesquisador na década de 1960 que passou dois meses vivendo numa caverna sem nenhuma maneira de verificar há quanto tempo estava lá, quanto tempo dormia, nada desse tipo. Então, o Dr. Waxford fez a mesma coisa, por quatro meses. Ele escreveu um diário e, por fim, perdeu a noção do tempo de tal modo que, quando foram procurá­-lo, ele achava que só haviam se passado algumas semanas. Ele quase ficou louco. Algumas pessoas afirmam que ficou.

– Louco?

– É o que dizem em alguns sites.

– Mas você não acha que o tempo passa dessa maneira para todo mundo? Às vezes ele se arrasta; às vezes voa.

– É aí que a pesquisa dele estava chegando. De qualquer modo, o Dr. Waxford acabou por testar a maneira como a escuridão, a privação do sono e diferentes medicamentos afetam a experiência que as pessoas têm com a passagem do tempo.

– E o que isso tem a ver com o estudo dos peixes?

– Esse é que é o problema.

***

Depois do almoço, voltaram para a internet, mas não conseguiram descobrir nada importante. Pouco depois das 13 horas, Daniel recebeu uma mensagem de Kyle dizendo que ele já tinha saído do trabalho. E também queria saber se a ida ao cinema ainda estava de pé.

Daniel achou que, se mandasse uma mensagem a Kyle sobre tudo o que ele e Nicole tinham descoberto, o texto ficaria realmente longo. Em vez disso, pensou que seria melhor apenas explicar tudo pessoalmente quando se encontrassem.

Respondeu que não tinha certeza quanto ao cinema, mas será que poderiam se encontrar assim mesmo? Talvez na casa de Nicole?

Kyle respondeu que ele e Mia estariam lá assim que pudessem.

Depois que Daniel largou o celular, Nicole disse:

– Acho que você devia contar a eles sobre as distorções, o sonambulismo da noite passada e o sonho da garota chorando lágrimas de sangue.

Quando ela lembrou Daniel da garota, ele pensou novamente em como as distorções que tivera no outono haviam ajudado a resolver o mistério da morte de Emily Jackson.

Então, o que a garota de camisola estava tentando lhe comunicar? Ela lhe disse que Madeline estava esperando por ele e que ele precisava se apressar antes que acontecesse de novo.

Antes de quê?

Quanto mais pensava no assunto, mais vagamente se lembrava daquele celeiro, não como pertencente a um sonho, mas como uma lembrança da vida real, como se fosse parte de seu passado e não apenas a imagem fugidia de um pesadelo.

Talvez tenha alguma coisa a ver com o instituto ou com os lobos.

Ele não conseguia afastar o pensamento de que o celeiro era real.

– Estou achando que seria melhor desistir do cinema – disse ele. – Lembra que eu lhe contei que a garota de camisola branca me levou para um celeiro?

– Lembro.

– Estou curioso para saber se já estive lá antes. Se é um lugar real, quero saber se tem alguma coisa a ver com tudo o que está acontecendo.

– Como você vai saber se já esteve lá antes?

– Se conseguirmos encontrá­-lo, talvez isso ative a minha memória.

***

Quando Kyle e Mia apareceram, Daniel contou­-lhes sobre seu sonho envolvendo a garota e como também teve uma distorção com ela durante o jogo.

Então, contou­-lhes sobre o que ele e Nicole tinham testemunhado no Instituto Traybor.

– Um dos agentes, ou guarda da prisão, era o homem de ontem à noite, o que encalhou no banco de neve.

– Você está brincando – disse Kyle, inclinando­-se para a frente.

– Não. Não sei como é que tudo isso se encaixa, mas um dos caras que trabalha no instituto estudava um modo de fazer com que o tempo parecesse passar mais rápido ou mais lento para as pessoas, usando drogas, privação do sono e coisas assim. – E explicou tudo sobre os estudos de cronobiologia.

– Ouvi dizer que Einstein certa vez disse algo como “Se você puser a mão num forno quente por um minuto, vai parecer uma hora, mas sente­-se com uma garota bonita durante uma hora, e vai parecer um minuto” – disse Mia. – Isso é relatividade.

– Isso é verdade, Daniel? – perguntou Nicole inocentemente.

– A parte da garota bonita?

– Exatamente.

– Essa é a resposta correta.

– E a minha também – disse Kyle, colocando a mão no joelho de Mia.

– Ainda bem, caubói.

– Mas essa tal de cronobiologia – disse Kyle a Daniel – não tem nada a ver com o estudo dos peixes, não é mesmo?

– Não. Não consigo imaginar como as duas coisas poderiam se relacionar.

Depois de um instante de deliberação, prosseguiu e compartilhou com eles o que havia acontecido na noite anterior, quando andou durante o sono.

Seus amigos ouviram em silêncio quando ele mencionou a faca de caça.

Por fim, resumiu como ele e Nicole estavam por perto quando o caçador furtivo atirou no lobo.

– Nós estávamos lá quando ele morreu.

– Bem – disse Mia –, você dois tiveram um dia memorável.

– Sem brincadeira. Ah, eu deixei duas mensagens para o meu pai, mas ele até agora não me deu retorno. Normalmente ele me liga logo, não sei o que está acontecendo. De qualquer modo, espero que a gente descubra se os outros lobos que foram mortos também tinham etiquetas. Se tinham, pode ajudar a descobrir quem os está matando. Enquanto isso, quero descobrir o que aquela garota de camisola branca quer de mim.

– Como? – perguntou Kyle.

– No sonho, eu a segui até um celeiro que ficava no final de uma cerca de arame farpado. Havia um campo de milho já cultivado ao lado dela.

– Detesto lhe dizer isto, mas você acabou de descrever metade do estado de Wisconsin no outono.

– Mas a julgar pelo que aconteceu com Emily, acho que minha mente não está tirando essas coisas do nada. Fico imaginando se, em algum momento do meu passado, eu poderia ter estado nesse lugar. Tenho essa vaga lembrança de visitar o celeiro, mas não posso garantir se a minha mente só a está criando com base no sonho ou se estou me lembrando realmente do que aconteceu.

– Então o que você sugere?

– Quero procurar esse lugar. Se eu já estive lá, deve ser o lugar mais provável para buscar as respostas sobre o que realmente está acontecendo aqui. Vamos dar uma volta de carro por aí, visitar algumas fazendas das vizinhanças que eu conheço e, quem sabe, uma delas seja a do meu sonho. Podemos ver o filme depois se não encontrarmos nada.

– Estou dentro – disse Kyle, concordando.

As garotas também concordaram.

Daniel pegou as chaves.

– Então, vamos. Só temos algumas horas antes que escureça.

 

 

19

Enquanto Daniel dirigia, Kyle ajudava com a navegação e o planejamento do melhor caminho a ser tomado para que realizassem sua busca antes do escurecer.

Embora passassem por algumas fazendas que a princípio se mostravam promissoras, quando Daniel se concentrava na de seu sonho, percebia que nenhuma delas era a certa.

Nicole teve a ideia de que, se encontrassem a propriedade, seriam capazes de descobrir quem era o proprietário, pesquisando no cartório de registro de imóveis. Assim, embora a cobertura da telefonia móvel fosse instável no campo, ela e Mia ficaram on­-line com seus celulares e procuraram uma maneira de obter informações.

À medida que a tarde declinava, Daniel foi ficando cada vez menos convencido de conseguir um resultado positivo naquela busca.

– Tudo bem – disse ele, com os olhos no sol, que estava baixo no céu. – Existe outra propriedade na Rodovia Municipal N, perto de onde minha avó morava. Vamos checá­-la e, se não der em nada, vamos direto para Superior. É caminho.

***

Quando chegaram, viram uma faixa de terra cultivável que se estendia ao lado de um extenso pântano congelado que a separava da floresta nacional.

Um celeiro desolado e parcialmente em ruínas erguia­-se no final de um campo coberto de neve. Caules mortos de milho dispersos despontavam na neve, mas, fora isso, o campo parecia intocado.

A madeira do celeiro estava esmaecida pelo sol e pela exposição a anos de intempéries. Uma parte do telhado havia ruído. Um silo deteriorado erguia­-se por perto.

Tudo o que restara da casa da fazenda ao lado era o esqueleto carbonizado de uma residência que, tendo em vista o emaranhado de galhos nodosos de espinheiros que pareciam brotar do que dela restara, parecia ter sido incendiada há muitos anos.

– Você disse que sua avó morava aqui? – perguntou Kyle.

– A casa dela – respondeu Daniel – ficava talvez a uns 200, 250 metros daqui, do outro lado daquele bosque. Meus pais a venderam depois que ela morreu, quando eu tinha 9 anos.

– Eu lembro quando essa casa de fazenda pegou fogo – disse Mia. – Ou pelo menos ouvi falar. Foi há uns cinco ou seis anos. Mas acho que nunca estive aqui.

Daniel ficou imaginando se a garota em chamas de suas distorções e a casa meio queimada tinham alguma coisa em comum.

Você já esteve aqui? Pense, Daniel.

Ele forçou a memória, seguindo suas lembranças em meio a imagens fugidias do passado, e descobriu que algumas delas efetivamente levavam a esse lugar. Fazia anos, e ele não pensava no celeiro há muito tempo, mas se lembrou dele.

Sim.

Ele já tinha estado ali.

Na época em que ele e os pais vinham visitar a avó.

– É esta – disse Daniel, parando o carro.

– Você tem certeza? – perguntou Mia?

– Tenho. É a que apareceu no meu sonho.

– Mas não sabemos de quem é a propriedade – disse Kyle.

Nicole checou os dados sobre o município.

– De alguém chamado Hollister.

Daniel estava com a mão na maçaneta, mas se deteve.

– Hollister?

– Isso. Você já ouviu falar nele?

– Havia um Hollister que costumava andar com o Ty Bell; acho que ele matou alguém. E foi para a cadeia.

– Para a cadeia? Ele não seria muito jovem para isso, quero dizer, se era amigo do Ty?

– Ele era mais velho. Vinte e poucos anos, acho. Talvez sua família seja dona desta terra – disse Daniel, abrindo a porta e saindo do carro. – Vamos. Quero saber por que sonhei com este lugar.

Enquanto o sol descia em direção ao topo das árvores, os quatro começaram a atravessar o campo.


20

Seguiram a cerca até o celeiro.

O fim da tarde estava claro, friorento e cheio da quietude do inverno.

Ao caminharem, a neve chegou­-lhes a meio caminho dos joelhos, mas era mais profunda perto das árvores e dos mourões da cerca, onde o vento a acumulava.

Por mais que a neve a incomodasse, Mia comportou­-se admiravelmente durante a travessia, sem se queixar.

O único som que se ouvia era o de seus passos em atrito contra a neve à medida que avançavam até o celeiro.

Por passar tanto tempo ao ar livre durante o inverno, Daniel já tinha notado isso – uma quietude realmente notável acaba virando uma verdadeira companhia. Então, como se estivesse lendo sua mente, Kyle disse:

– “Você conhece O Grande Silêncio Branco, sem o farfalhar de um único ramo coberto de neve...”

– De onde é isso? – perguntou Nicole.

– De um poema de Robert Service,* “O chamado da floresta”. Ele foi um poeta que escreveu muito sobre o Yukon. Seu poema mais famoso provavelmente é “A cremação de Sam McGee”. O cara é muito bom.

– O Yukon tem neve – disse Mia. – Não gosto da neve. Nunca permitam que eu me mude para Yukon.

Quando já estavam perto do celeiro, Nicole perguntou a Daniel:

– Você tem alguma ideia do que estamos efetivamente procurando aqui?

– Alguma coisa a ver com o meu passado. É tudo o que posso lhe dizer.

Os gonzos da porta do celeiro guincharam em protesto quando Daniel e Kyle fizeram força para abri­-la.

Havia feno espalhado pelo local, com estreitas faixas de neve sopradas pelo vento que conseguira passar pelas frestas entre as tábuas das paredes.

Onde o teto ruíra, a fraca luz do dia abria caminho pelo espaço bem acima deles. Um pouco de luz entra pelas frestas entre as tábuas e, é claro, pela porta aberta, mas a maior parte do celeiro estava tomada por uma rede de sombras profundas e frias.

Daniel foi até um ponto não muito distante da entrada do celeiro.

– Foi aqui que a garota de camisola ardeu em chamas, onde ela... bem... vocês sabem.

Achando que a localização poderia ter algum significado, vasculharam a área, mas não encontraram nada.

Um trator enferrujado, que devia ter 30 ou 40 anos, jazia abandonado no meio do celeiro. Perto da parte do teto que ruíra, havia um quadro de avisos e uma bancada com ferramentas com décadas de uso.

Um palheiro com uma escada de madeira de aspecto frágil havia sido construído no outro extremo do celeiro. De onde estava, Daniel pôde ver as pilhas de fardos de feno nele armazenadas.

A garota olhou para aquele lugar antes de arder em chamas. Ela ergueu os braços em direção ao palheiro.

Uma velha enfardadeira aguardava perto do palheiro. Ela parecia ameaçar, com suas lâminas giratórias, cortar e puxar o feno antes de arrumá­-lo em um fardo.

– Parece que ninguém vem aqui há anos – disse Nicole. – Fico imaginando por que está abandonado.

Mia olhou ao redor do celeiro.

– É melhor verificar se vamos ter tempo de terminar nossa busca e voltar para o carro antes de escurecer.

Kyle e Mia se ofereceram para inspecionar a maior parte do celeiro, enquanto Daniel e Nicole subiam até o palheiro.

Ele subiu as escadas primeiro para verificar se os degraus eram confiáveis.

Enquanto subia, ele finalmente se lembrou da última vez que estivera naquele celeiro, ou pelo menos o que achava ter sido a última vez.

Ele tinha 9 anos de idade, e a lembrança estava à beira do esquecimento, como acontece com tantas memórias da infância.

Tinha caminhado até ali vindo da casa da avó. Isso foi apenas 64 dias antes de ela morrer.

Matemática.

Era difícil desligá­-la.

Mesmo quando queria.

Daniel chegou ao topo e entrou no palheiro.

Satisfeito por tudo estar em segurança, pediu a Nicole que subisse e a tomou pela mão para ajudá­-la.

O doce odor do feno pairava no ar, e Daniel percebeu que conhecia aquele cheiro, bem como o gosto seco e áspero do pó do feno, dos dias em que era criança e pulava do palheiro para os fardos que estavam preparados abaixo dele.

Sim, ele tinha certeza de que estivera naquele local mais de uma vez, mas só agora, de volta, é que a lembrança retornara.

As lembranças se juntaram imediatamente.

Lembranças das aterrissagens.

Dos resvalos.

De rolar no feno.

Ali, ali naquele lugar.

Sim. Até aquele último dia. E, desde então, ele ficou com medo de ir até lá, ou mesmo à casa da avó. Com medo de que...

Mas se você passou tanto tempo aqui quando criança, por que só se lembrou desse lugar agora? Por que bloqueou isso em sua memória?

Sim, talvez as lembranças de ter estado ali tenham sido bloqueadas, ou talvez, como acontece com tantas coisas, ele só precisava de uma centelha para trazer de volta o passado.

Realmente, as lembranças são estranhas. Às vezes, quanto mais você tenta esquecer alguma coisa, mais acaba por lembrá­-las. E, então, havia aquelas coisas de que você queria se lembrar, mas quanto mais tentava, menos conseguia. Era tudo impreciso.

– Alguma coisa? – perguntou Nicole.

– Eu costumava vir brincar aqui no palheiro.

– Com seus amigos?

– Sozinho. Era o meu lugar secreto. Às vezes eu vinha para cá escondido quando nós visitávamos minha avó. Ela era muito depressiva, e era meio difícil ficar perto dela. Mas não tenho certeza quanto ao significado disso tudo. É como se eu soubesse que existem mais coisas, mas não consigo lembrar o quê.

Olhando ao redor, Daniel observou os ninhos de passarinho bem lá em cima, nos caibros. A corda grossa e trançada que às vezes ele usava para se balançar pendia de uma das vigas do teto.

A corda.

A enfardadeira.

Memórias confusas. Nada era claro.

Mas algo acontecia.

E não era uma coisa boa.

Ao longo dos anos, as pessoas gravaram palavras e frases ao lado do celeiro. Havia nomes e iniciais de casais com muitos símbolos entre eles, corações e datas, tudo gravado na madeira. Algumas pessoas tinham escrito seu nome seguido de “esteve aqui” e, às vezes, o ano.

Algumas datas eram anteriores ao nascimento de Daniel. Ele examinou as inscrições para ver se alguma delas podia lhe trazer alguma coisa específica e se pôs a calcular quantos dias atrás aquelas pessoas tinham estado ali no celeiro.

Sete nomes, embora diferentes, pareciam ter sido gravados pela mesma pessoa, como se alguém tivesse se entusiasmado e escrito sozinho vários deles.

Enquanto Daniel os observava, Nicole começou a vasculhar o palheiro, afastando o feno com a bota, procurando alguma coisa que pudesse estar enterrada embaixo dele.

Quanto mais Daniel ficava por ali, mais lembranças vinham­-lhe à superfície da mente.

Verões.

Balançando­-se na corda.

Mas por que você parou de vir aqui, Daniel?

Por que você...?

– Aqui, Daniel.

Nicole estava batendo com o pé numa tábua solta acima de um banco encaixado na extremidade do palheiro.

Quando estava indo até ela, tornou a ver aquele demônio, o que ela havia desenhado no caderno de esboços.

Sentiu seu corpo paralisado.

O demônio o espreitava à esquerda dela, e, embora a luz do sol que entrava pela parte aberta do telhado estivesse incidindo sobre ele, a luz parecia engolida pelo espesso anel de escuridão que o cercava.

A criatura olhava para ele com ódio, a boca aberta como a de uma serpente enfurecida e incrivelmente escancarada.

Ela avançou, voando diretamente para Daniel.

O rapaz se abaixou instintivamente, mas sentiu o deslocamento de ar enquanto ela passava. Uma de suas asas arranhou­-lhe a nuca, enquanto o demônio voava pelo palheiro.

Virou­-se a fim de ver para onde o demônio voaria, mas ele desapareceu através da parede do celeiro, através de uma das frases gravada na madeira: Grady Planisek esteve aqui.

Espere... Ele conhecia aquele nome.

– Você está vendo coisas outra vez, não é mesmo? – perguntou Nicole, com a voz carregada de preocupação. – O que foi que você viu?

Não foi Grady aquele garoto que desapareceu quando você era menino?

– Nada com que se preocupar.

– Outra distorção?

– Tomara que sim.

Ele quase acrescentou: “Pelo menos assim eu saberia que não era um demônio de verdade”. Mas preferiu não dizer nada.

Ainda pensando em Grady, juntou­-se a Nicole e forçou a tábua até soltá­-la.

Dentro, encontrou uma caixa de madeira quase do tamanho de uma caixa de sapato.

Pegou­-a e removeu uma camada espessa e persistente de poeira.

A caixa tinha sido fechada com um cadeado. Ele tentou abri­-la, mas o fecho resistiu. Quando balançou a caixa, não ouviu o som de nada que pudesse se quebrar lá dentro. Talvez alguns livros. Difícil dizer.

– Encontramos alguma coisa – gritou para Kyle e Mia lá embaixo.

– O que foi? – perguntou Mia.

Daniel foi até a beira do palheiro e mostrou­-lhes a caixa.

– Está fechada. Temos que usar uma alavanca para abri­-la.

Kyle procurou entre as ferramentas da bancada e encontrou um martelo.

Daniel estava prestes a atirar a caixa no chão do celeiro, mas, percebendo que ela poderia, afinal, conter alguma coisa frágil, optou por abri­-la com Kyle enquanto descia a escada.

Nicole seguiu­-o de perto e, quando chegaram ao chão, Daniel aceitou o martelo de Kyle e posicionou­-o entre o fecho e o cadeado para ver se conseguia soltá­-lo.

Foram necessárias algumas tentativas, mas, por fim, o fecho se soltou da madeira e saiu.

Os três outros o rodearam enquanto ele abria a caixa.

Dentro havia dois velhos diários encapados em couro, uma pilha de papéis amarelados e uma de fotografias em preto e branco.

Ele pegou o diário de cima e o abriu. Nicole pegou o outro, enquanto Mia examinava as fotografias e Kyle desdobrava os papéis cuidadosamente para não danificá­-los.

Foi preciso apenas um momento para Daniel perceber que tinha nas mãos os registros de um diário pessoal. A escrita era um pouco rabiscada e difícil de ler, mas ele reconheceu a letra imediatamente.

Tinha o mesmo estilo com que ele escrevera aquela frase sobre a Cova Perdida várias vezes em seu caderno na aula de Literatura.

* Robert William Service (1874­-1958), poeta e escritor britânico­-canadense, muitas vezes chamado de “o Bardo do Yukon”. Suas vívidas descrições do Yukon, um dos três territórios federais do Canada, situado no noroeste do país, e de seu povo ficaram famosas e são populares até hoje em sua terra e nos Estados Unidos. (N.T.)


21

Ele se deu conta de que não havia contado aos amigos sobre o que escrevera na aula. Contou­-lhes, então, a história e concluiu:

– E essa é a mesma letra.

– Puxa, isso é assustador – disse Nicole, parecendo agitada.

– Como isso é possível? – perguntou Mia.

– Não faço a menor ideia.

– Que tal um distúrbio de personalidade múltipla? – sugeriu Kyle. – É o que acontece com pessoas que têm personalidades completamente diferentes: nomes, hábitos, letras diferentes, tudo isso.

– Já ouvi dizer que isso não existe – disse Mia, balançando a cabeça. – Que se trata apenas de outros problemas ou mesmo fingimento das pessoas.

Daniel pensou em suas consultas com o Dr. Fromke e imaginou que, se personalidade múltipla era o que estava acontecendo com ele, isso teria surgido em uma das sessões.

– Bem, seja ou não verdadeiro, vamos presumir, por ora, que não é isso que está acontecendo comigo.

– Você já tinha visto esse diário? – perguntou Kyle.

– Talvez, mas não tenho certeza – respondeu Daniel, forçando a memória. – Posso tê­-lo visto quando estive nesse celeiro antes. Só não tenho certeza.

– Mas você sabe que esteve aqui?

– Eu me lembro do lugar, mas não está totalmente claro na minha cabeça, e é como se eu estivesse observando a mim mesmo enquanto algo acontece, em vez de vê­-lo com meus próprios olhos.

– Memórias observáveis – disse Nicole balançando a cabeça de maneira compreensiva.

– O que é isso?

– Eu soube delas quando estive pesquisando para um trabalho no ano passado. É quando você se lembra de uma coisa de outra perspectiva, como se estivesse observando a si mesmo num filme. A maioria das pessoas tem esse tipo de lembrança em algum momento.

– Mas como é que isso pode ser chamado de lembrança? – perguntou Mia. – Quero dizer, se você está observando a si mesmo, não está se lembrando de nada, certo? Se você está vendo alguma coisa como se a estivesse vendo pelos olhos de outra pessoa, sua mente, é claro, está inventando coisas. Isso é imaginação, não memória.

– Eu sei. É realmente estranho, mas não é tão incomum. Às vezes é o modo que nossa mente encontra para nos proteger ou nos distanciar de alguma coisa aterradora ou traumática. Às vezes esquecemos totalmente coisas que são assustadoras. Quero dizer, pense nas crianças que são abusadas: elas podem bloquear essas lembranças completamente. Ou quando uma mulher é violentada; às vezes ela não se lembra dos detalhes, mesmo logo depois de tudo ter acontecido. É uma espécie de mecanismo de defesa, pois o evento é terrível demais para ser processado.

Daniel ficou pensativo.

– Não tenho certeza se alguma coisa desse tipo tem a ver comigo.

– A menos que alguma coisa traumática tenha acontecido com você aqui, enquanto estava nesse celeiro.

Todos ficaram em silêncio.

Daniel balançou a cabeça.

– É uma coisa que parece um tanto estranha de acreditar, que eu não consiga lembrar o que realmente aconteceu aqui.

– Mas se você reprimiu alguma coisa – observou Nicole. – Quero dizer, a coisa está começando a voltar para você, mas é só porque estamos aqui.

Enquanto tentava voltar no tempo por meio de suas lembranças, ele sentiu como se houvesse uma porta ali, uma porta sobre a qual ele apoiava a mão, mas não conseguia abri­-la.

Ou talvez você não queira e esteja se reprimindo.

– Eu não disse? – disse ele aos amigos. – Não me vem nada.

Quando Nicole perguntou se ele sabia quem teria deixado aquela caixa ali, ele respondeu:

– Não tenho certeza, mas neste momento estou mais preocupado com o que tem nela e a relação disso com o que está acontecendo nesta semana do que com a maneira como ela veio parar aqui.

Mia deu uma olhada nas fotos.

– Bem, são fotos de pessoas perto da água, uma praia, um oceano, alguma coisa assim... esta parece ser um piquenique e as pessoas estão jogando críquete. No fundo se pode ver um farol.

Kyle estava folheando os papéis.

– Tenho aqui alguns registros de compra, registros antigos. Não reconheço todas as cidades listadas, mas conheço Bayfiel. É onde o Larry mora.

Larry Richter era tio de Kyle e tinha uma agência de passeios e aluguel de barco perto das ilhas Apostle, a cerca de uma hora e meia de Beldon. Ele já havia convidado o sobrinho e os amigos para um passeio de caiaque ou esquife quando quisessem, mas Daniel nunca fora até lá.

– Este outro livro – disse Nicole, folheando o outro volume encapado em couro – também é um diário. É de um faroleiro da década de 1930.

– O meu também – disse Daniel, olhando para os amigos. – Ouçam, já está quase escuro. Vamos para o carro. Podemos verificar esse negócio do farol quando voltarmos para a casa de Nicole.

As estrelas já começavam a perfurar o céu escuro quando entraram no carro de Daniel.

Não havia aurora boreal, apenas uma luz pálida que começava a se elevar na borda do horizonte.

Os quatro concordaram que podiam ver aquele filme outro dia, pois, naquela noite, o conteúdo da caixa era definitivamente uma prioridade.

***

De volta à casa de Nicole, o celular de Daniel tocou enquanto ele a seguia até a sala de estar.

Era o toque do pai.

– Oi, desculpe não ter retornado mais cedo – disse ele, quando Daniel atendeu. – Esqueci onde havia colocado meu telefone. Você disse, em sua mensagem, que viu outro lobo ser morto.

Daniel foi para o corredor para ter mais privacidade.

– Foi isso mesmo, nesta manhã, na floresta nacional. Ouvimos um disparo e achamos o rastro do lobo. Ele foi atingido no peito. E morreu bem diante de nós.

Uma pequena pausa.

– E você viu quem era o atirador?

– Não, mas o lobo tinha uma etiqueta na orelha do serviço florestal para o estudo de alcateias. Eu lhe mandei uma foto. E estive pensando em como essa pessoa que está matando os lobos os descobriu. Fico imaginando se conseguia localizá­-los pela etiqueta. Os outros lobos também a tinham?

– Acho que sim, mas muitos lobos estão sendo monitorados nesta parte do estado.

– Mas não parece estranho que só os lobos etiquetados estejam sendo mortos? Só alguém com acesso ao banco de dados do serviço florestal poderia ter descoberto a exata localização deles.

– Então, você está sugerindo que se alguém pudesse entrar no banco de dados, como hacker ou algo assim, conseguiria dados em tempo real de GPS da localização dos lobos?

O pai sabia como as distorções de Daniel o tinham levado a descobrir o assassino de Emily no outono passado. Embora não o agradasse muito saber que seu filho estivesse vendo e ouvindo coisas, ele aprendera a confiar nos instintos do rapaz.

– Certo – disse Daniel. – Talvez você pudesse checar quem acessou esses arquivos ou quando eles foram abertos. Se alguém os estava visualizando quando os lobos foram mortos, isso seria, no mínimo, algo a ser investigado, não é verdade?

– Quem mais sabe sobre isso? – perguntou o pai, em vez de lhe responder diretamente.

– Só Nicole, Kyle e Mia.

– Vamos manter a coisa assim. Vou ver o que consigo descobrir, mas não quero que você conte a mais ninguém. Isso poderia lançar suspeitas contra alguém que não tem culpa de nada, e isso é a última coisa que eu desejo. Deixe que eu cuido disso. Vocês fiquem longe.

– Claro.

Daniel descreveu onde tinham visto o lobo e contou ao pai que, se ele seguisse as pegadas de botas do início da trilha em direção ao Instituto Trybor, encontraria o local.

Ele esperava que o pai fosse até lá pela manhã, pois já estava quase escuro; assim, ficou surpreso quando ele disse:

– Eu preciso registrar esse lugar o mais rápido possível. Você está em Superior?

– Não, nós decidimos não ir ao cinema. Na verdade, estamos na casa da Nicole.

Conto­-lhe sobre a caixa?

Não. Primeiro, descubra o que puder sobre ela. Examine o que houver dentro dela, então você saberá que perguntas deverá fazer a ele.

– Vejo você em casa, Dan.

– Até lá.

Depois que tornou a se juntar aos amigos, os pais de Nicole sugeriram que comessem pizza no jantar.

Ninguém fez objeção.

Foram para o quarto de Nicole esperar as pizzas assarem, e Daniel contou a eles o que seu pai lhe dissera pelo telefone:

– Estou imaginando que tudo está ligado de alguma maneira: minhas distorções, o celeiro, a matança de lobos, o Instituto Traybor.

– E os diários também – acrescentou Mia –, pois a frase que você escreveu em seu caderno foi naquele mesmo tipo de letra.

Nicole sentou­-se na cama junto aos bichos de pelúcia.

– Então, qual é o seu próximo passo?

Daniel pegou os diários.

– Vamos descobrir quem escreveu essas belezinhas, quem era o faroleiro.


22

Depois de dividirem o conteúdo da caixa como haviam feito no celeiro, os quatro puseram­-se a trabalhar.

Enquanto Daniel e Nicole ficaram com o trabalho mais adequado para eles, a pesquisa página por página nos diários, Kyle e Mia não demoraram muito tempo para examinar os papéis e as fotos. Quando terminaram, passaram à tentativa de descobrir o que podiam a respeito de faróis, usando os celulares para pesquisar on­-line.

Para ganhar tempo, Daniel e Nicole decidiram ler os diários em profundidade mais tarde. De momento, passaram rapidamente pelas anotações, procurando a identidade do autor ou qualquer coisa incomum, especialmente algo que tivesse a ver com as distorções de Daniel ou os eventos dos últimos dias.

Em um diário, a pessoa não menciona necessariamente seu próprio nome, e foi o que aconteceu nesse caso, de modo que eles ainda não sabiam quem era o autor.

A mãe de Nicole avisou­-os que as pizzas estavam prontas, e os quatro amigos dirigiram­-se à cozinha. Nicole distribuiu refrigerantes e, depois de trazer alguns pratos de papelão com os pedaços de pizza para o quarto dela, Mia e Kyle passaram alguns minutos compartilhando o que tinham descoberto sobre faróis.

– Isso realmente – disse Mia – não tem nada a ver com nada, mas quando se começa a falar de faróis, a ideia de advertir navios a partir da costa remonta aos antigos gregos. Eles acendiam fogueiras nas colinas perto do mar em áreas nas quais havia rochedos.

– E todo farol tem um sinal diferente – acrescentou Kyle, entre enormes bocados de sua fatia cheia de pimentão vermelho. – Tem a ver com a duração da luz e da obscuridade. A luz de um farol pode ficar acesa por dois segundos e se desligar por três, enquanto outro acende e apaga a luz a cada quatro segundos. Isso acontece quando a lente gira. Alguns dos faróis das ilhas Apostle também têm luzes de cores diferentes: verde, branca, vermelha. Assim, quem está nos barcos sabe a diferença, sabe onde está enquanto passa pelas ilhas.

Mia tomou um gole de seu refrigerante.

– Quanto mais eu penso, mais acho que deveria escrever um romance sobre um farol mal­-assombrado, em vez de um mosteiro. Quero dizer, algumas histórias de faróis são incríveis. Com todos aqueles naufrágios e tragédias, as horas solitárias, os faroleiros ficando loucos e...

Ela se deteve, olhou para Daniel e deve ter percebido que a expressão “ficando loucos” não era a mais indicada para ser usada perto dele.

– Quero dizer, eles provavelmente começaram a ter problemas mentais.

– Claro.

– Isso não ajudou muito, não é mesmo?

– Não necessariamente, mas você é boa nessas coisas.

– Agora vou ficar calada.

– Vamos dar uma olhada em algumas das anotações desse diário – sugeriu Nicole.

Daniel abriu o que estava com ele.

– A verdade é que a maioria das anotações que li são bastante triviais.

Ele leu algumas:

12 de maio, 1936

Café da manhã: mingau de aveia, geleia com o pão que eu fiz ontem, estou planejando fazer panquecas e muffins para esta semana.

15 de maio, 1936

Plantei cebolas, cenouras, rabanetes e um pouco de alface e repolho.

– Então, em junho, os morangos e as framboesas amadurecem e ele guarda as geleias no porão. E assim vai. Mas nem todas são assim monótonas:

1º de julho, 1936

Nesta noite, trazido pelo vento, ouvi o que pareceu o grito de uma mulher.

Acendi uma lanterna e procurei pela ilha, chamando por alguém que, por um estranho acaso, estivesse por ali. Tudo inútil. Pois esta é a verdade: estou sozinho nesta ilha e sei que foi tudo produto de minha mente, procurando uma companhia ou um consolo aqui neste lugar de rochas, gaivotas e recifes que mergulham nas profundidades.

– Ok, isso é um pouco tétrico – disse Nicole. – Você consegue se imaginar sozinho numa ilha como essa, começando a ouvir coisas?

– E é um tom completamente diferente com relação às primeiras anotações – observou Mia. – Mais poético.

– E então, o que acontece? – Kyle perguntou a Daniel.

– Só posso dizer que a mulher gritando não volta a ser mencionada, pelo menos nas anotações que li. Mas ouçam isto:

30 de agosto, 1936

Chegaram as tempestades, a estação mais ventosa do ano.

Às vezes fico na torre e olho através do lago no meio da noite.

Em meio à tormenta, ouço as ondas quebrando contra as rochas abaixo de mim e só consigo pensar nas almas dos que estão no mar e à procura de um lampejo de minha luz.

Talvez isso seja válido para todos os faroleiros, talvez só seja válido para mim, mas um pensamento arrasta­-se por minha mente, espontâneo, indesejado: uma tentação de apagar a luz.

Não sei de onde vem esta ideia execrável, de um demônio ou de um local escuro de minha própria alma, mas é real e sobe­-me à cabeça quando sopram os ventos mais fortes e rugem as tormentas mais terríveis. Ó, meu Deus, eu preciso resistir!

– E ele acabou fazendo isso? – perguntou Kyle, terminando seu pedaço de pizza e colocando o prato vazio na escrivaninha de Nicole. – Ele apagou a luz?

– Se apagou, não escreveu nada a respeito disso. A última anotação é do final de outubro. Aparentemente, como os navios não passavam por ali quando havia gelo no lago, os faróis não funcionavam durante os meses de inverno. A última página só fala dele se preparando para voltar para o continente.

– Então, ok – disse Nicole, abrindo o diário que estava com ela. Ela havia dobrado a ponta de algumas páginas e agora se voltou para a primeira delas. – O meu se refere ao ano seguinte de sua ida para trabalhar no farol. As anotações do início do verão são como as que Daniel leu: sobre plantar uma horta e coisas assim, mas depois fica interessante.

12 de junho, 1937

E assim é.

A luz.

Tenho que mantê­-la acesa. Tenho!

Trinta minutos antes do poente, eu subo na torre.

Usando um pano de algodão, limpo a lente e os espelhos, corto o pavio, acendo­-o e o posiciono no meio da lente. Ajusto a chama e a coloco em posição, então solto os freios para que os contrapesos mantenham a lente girando. Seis vezes por noite, subo a escada em espiral e a examino.

Não se pode deixar a luz apagar: é o que a voz ininterrupta dentro de minha cabeça está me dizendo.

Mia, que estava segurando as fotos, as coloca no chão.

– Esse cara é obcecado por manter a luz acesa.

– Ou por não a manter acesa – acrescentou Nicole.

– Será que se pode culpá­-lo? – perguntou Daniel. – O que eu quero dizer é que ele passa meses sozinho e só tem uma tarefa, uma coisa que tem que fazer todos os dias. Faz sentido que isso tenha se tornado um tipo de obsessão para ele.

– Ele não estava sempre sozinho – disse Nicole, balançando a cabeça.

– O que você quer dizer?

Ela consultou as páginas cuja orelhas havia dobrado.

22 de junho, 1937

Aqui reina uma profunda solidão.

Os dias se alongam e ficam ocos, correndo juntos em minha mente. Subo as escadas, acendo a luz e a verifico a noite toda para que permaneça acesa.

Talvez tudo isso mude depois de 4 de julho. Talvez com companhia o tédio tenha um fim.

– Companhia? – exclamou Mia. – Quem é que vai lhe fazer companhia?

Mia avançou as páginas do diário.

4 de julho, 1937

Minha irmã trouxe sua filha para passar duas semanas comigo. A menina fez 11 anos ontem. Prometi tomar conta dela como se fosse minha própria filha.

– Uma garota de 11 anos? – disse Mia, olhando para ela de modo inquisitivo.

– Sim. Por quê?

– Espere um pouco – respondeu, examinando rapidamente as fotos e, em seguida, estendendo uma para Daniel. – É esta a garota de sua distorção?

Ao tornar a vê­-la, Daniel sentiu um arrepio percorrer­-lhe a espinha.

– É – disse ele, pegando a foto de Mia. – É ela.

A garota estava em pé contra as rochas de um litoral. Em vez da camisola que estava usando na distorção, na foto ela usava uma saia lisa que, embora antiga, Daniel imaginou estar na moda naquela época. Ela estava sorrindo e segurando um regador de metal.

Quem é você? O que quer de mim?

Nicole fizera uma pausa enquanto Daniel olhava a fotografia, mas agora, enquanto ele se sentava, ela disse:

– Eu fui até esse ponto.

– Bem, vamos ouvir a anotação seguinte – disse ele.

Ela virou a página.

9 de julho, 1937

Betty tem me ajudado a controlar a luz. Ela gosta de subir as escadas e olhar pela janela da torre para o lago, ou ficar no estreito balcão que a cerca.

Ela gosta de carregar a lanterna para mim, de abrir o caminho pela escuridão.

– Na sua distorção, a camisola dela pegou fogo, não foi? – perguntou Kyle a Daniel em voz baixa.

– Foi.

Ele fez um sinal para Nicole prosseguir, ela passou para a página seguinte e balançou a cabeça:

– É só uma descrição de um pôr do sol.

Ela pulou a descrição e prosseguiu.

12 de julho, 1937

Ela pousou a lanterna ao lado dela. Ó, meu Deus, ela fez isso mesmo.

Não foi minha culpa, não, não, não foi mesmo... é o que eu fico dizendo a mim mesmo, mas foi!

Eu estava na torre e a vi saindo da casa lá embaixo. Ela me chamou e acenou, mas, então, alguma coisa, algum movimento no meio da noite, perto da clareira, deve ter chamado a atenção dela, pois ela olhou para aquela direção e, então, inclinou­-se para o lado.

O lampião.

Ó, meu Deus!

A barra de sua camisola.

Não, por favor!

Eu não pude descer da torre a tempo.

Ninguém disse nada por um longo tempo.

Por fim, Nicole leu a anotação seguinte.

13 de julho, 1937

Nesta manhã enterrei minha sobrinha aqui na ilha.

Ninguém vai encontrá­-la. Mas agora... oh! O que virá a seguir?

A mãe dela vai voltar em cinco dias. E eu não sei o que vou dizer a ela. O que existe para dizer?

Talvez que ela tenha ido nadar e nunca mais voltou?

Mas não... a verdade.

Meu Deus, não a verdade! Foi uma maneira terrível demais de morrer.

– Aqui há algumas palavras ao acaso, como se ele tivesse começado a escrever algo e mudasse de ideia. Nada que faça sentido. Mas, então, ele prossegue:

Gaivotas pairavam no mar e mergulhavam nas ondas que se chocavam contra a praia.

Eu vi um espectro.

A garota. Agora em pé contra o crepúsculo, durante o dia, ardendo, as mãos erguidas para a torre, mas não consigo chegar a ela a tempo.

Nicole passou para a página seguinte.

16 de julho, 1937

Agora, eu a vejo todas as noites, e isso não pode continuar a acontecer. Preciso pôr um fim nisso. Sim!

Nesta noite, pela última vez, vou subir os degraus da torre para nunca mais tornar a fazê­-lo.

Encontrei uma corda suficientemente longa. Dizem que o inferno espera pelos que tiram suas próprias vidas.

Assim, eu mereço a punição das chamas eternas. Estou pronto para ela, pelo que permiti que acontecesse a minha sobrinha e pelo que vou fazer nesta noite.

Ela fechou lentamente o diário.

– Essa foi a última anotação.

Todos permaneceram sentados em silêncio.

Kyle puxou os livros de registro e começou a examiná­-los; então, entregou o último para que os outros o vissem.

– Parece que quem escreveu esses registros, talvez uma espécie de supervisor, não consigo decifrar a assinatura, preencheu este último no dia 18 de julho de 1937.

– O que diz aí? – perguntou Daniel.

– Só que houve uma substituição, que havia um novo faroleiro escolhido para substituir Jarvis Delacroix.

– Delacroix? Esse era o nome de solteira de minha avó.

– Você acha que tem parentesco com esse cara?

– Não é um nome muito comum. Faria sentido.

Daniel pôs­-se a calcular, datas, épocas, idades.

– Se Betty era parente de Jarvis, então, se eu estiver certo, minha avó teria sido prima de Betty, ou talvez irmã dela. O livro diz alguma coisa sobre a garota?

– Não.

– Jarvis Delacroix escreveu que encontrou uma corda suficientemente longa – disse Nicole – e que os que tiram a própria vida merecem ir para o inferno.

Ninguém disse nada. Era quase como se tivessem medo de que suas palavras pudessem ter condenado Jarvis à sentença que ele esperava sofrer.

– Se ele se enforcou – perguntou ela por fim –, vocês não acham que haveria um registro em algum lugar, alguma coisa a respeito disso on­-line? Assim, nós poderíamos descobrir o que aconteceu.

– Eu não sei – disse Mia. – Alguma coisa pode ter aparecido num artigo de jornal da época, mas quem garante que alguém o postou na rede? Se era de um pequeno jornal regional de Bayfield ou algum lugar assim, eu diria que não é muito provável que alguém se desse ao trabalho de colocá­-lo na internet.

Nicole pegou seu celular.

– Não custa dar uma olhada.

Enquanto Daniel estava para começar sua pesquisa on­-line, viu que tinha algumas mensagens e checou para ver se alguma delas era de seu pai, mas eram só de alguns amigos.

Ocupado com tudo o que estava acontecendo, procurou teclar rapidamente as respostas e, então, colocou o celular na cama ao lado dele, voltando a atenção para o laptop, mas um pouco depois o telefone vibrou e Nicole disse:

– Você recebeu uma mensagem.

Antes que ele alcançasse o celular, ela o pegou para entregá­-lo e observou a tela.

Um estranho olhar cruzou o rosto de Nicole.

– O que foi?

– Quem é Madeline?

– O quê?

Ela virou a tela do celular para ele.

– Ela está pedindo que você apareça amanhã. Ela quer saber se você vai estar lá.


23

­- Honestamente, Nicole, não sei quem ela é.

Ela não deu nenhuma resposta.

– Estou falando sério.

– Então por que ela mandaria uma mensagem dizendo que quer vê­-lo e perguntando quando você vai encontrá­-la?

– Eu não vou, quero dizer, não vou me encontrar com ela.

– Bem, parece que ela acha que você vai.

– Tenho recebido mensagens dela, mas não sei quem as está mandando.

– Não é nenhum de nós – interrompeu Kyle, tentando ajudar.

Nicole olhou de Kyle para Daniel e novamente para Kyle.

– Então você também sabia a respeito dela?

– Nicole, calma – disse Daniel. – Deixe­-me...

– Eu estou calma. Estou calma. Só quero saber o que está acontecendo. Então você tem recebido mensagens dessa garota. Onde elas estão? Eu só vi esta.

– Estão arquivadas – respondeu ele, mostrando­-lhe como acessá­-las.

Por um lado, Daniel entendia por que Nicole ficou aborrecida, mas só queria que ela lhe desse uma chance de se explicar.

– Nos últimos dias recebi essas mensagens estranhas dela, ou dele, seja lá quem for. Nenhum número aparece no meu celular e, assim, eu não posso responder para saber quem está mandando as mensagens. Estou lhe dizendo a verdade; eu não sei quem...

– Vamos ver... – disse ela, lendo as mensagens em voz alta. – “Venha me visitar, pois tenho uma surpresa para você”. Muito bem, isso está ficando interessante. “Cuidado com as pessoas para as quais você conta os seus segredos”. Oh, e ainda esta: “Estou esperando você, Daniel. Verifique o porão... M”. É mesmo? Ela esteve na sua casa.

– Não.

– Mas ela deixou alguma coisa no porão?

– Não. Nada. Foi lá que eu encontrei os mapas. E mais nada.

Nicole estava em meio ao exame da tela inicial do telefone dele, quando, de repente, fez uma pausa.

– O que foi?

Ela não respondeu.

– Nicole?

– Seus downloads recentes. Eu estava vendo se havia alguma outra mensagem ou conversa no WhatsApp... e...

– E o quê?

– E você tem um aplicativo que lhe permite mandar mensagens anonimamente.

– Do que você está falando?

– Está nos seus downloads recentes. Você o baixou na quarta­-feira à tarde.

Foi exatamente antes de receber a primeira mensagem de Madeline.

– Você está dizendo que as mensagens foram mandadas do meu celular?

– Estou dizendo que podem ter sido – disse ela, entregando­-lhe o telefone.

Ele olhou com incredulidade para a tela, esforçando­-se por lembrar se tinha baixado aquele aplicativo ou mandado as mensagens, mas não se lembrava de nada.

É você mesmo que está enviando as mensagens.

Não.

Sim.

Então, por que não se lembra?

Você não tem se lembrado de muita coisa recentemente, Daniel.

– Você as enviou? – perguntou Nicole.

– Honestamente, não sei. Não sei quem é Madeline ou...

– Deem um tempo – disse Kyle, ocupado com a pesquisa em seu celular. – Estamos procurando faróis nas ilhas Apostle, certo? Pois bem, existem 21 ilhas no parque do lago Nacional, mas existe outra ilha que não faz parte do parque. Eu já a tinha visto quando estava pesquisando, mas não fiz...

Ele deu uma batidinha na tela e balançou a cabeça.

– Dou um doce se vocês descobrirem o nome da ilha.

– Oh – disse Daniel –, não me diga que é Madeline.

– Vejam só, na primeira tentativa: ilha Madeline.

– E ela tem um farol?

– Sem dúvida – disse Kyle, exibindo seu celular para que todos pudessem ver a página que ele havia acessado. – O Farol da Cova Perdida.

– Então é isso. Vamos ver se há alguma menção a um faroleiro que tenha se suicidado lá.

***

Deslocando o facho de sua lanterna para trás e para frente, o xerife Byers examinou a floresta escura.

Ele conseguira seguir as pegadas das botas o filho e de Nicole a maior parte do caminho, mas o vento as estava apagando rapidamente, e estava ficando cada vez mais difícil ver para onde iam as pegadas.

Não viu nenhum sinal do lobo de que Daniel lhe falara.

A floresta escura espreitava no limite da lâmina de luz de sua lanterna.

O xerife decidiu ficar mais alguns minutos e voltar para casa.


24

Agora que conseguiram concentrar sua busca em uma época e local específicos, não demorou para que os quatro amigos encontrassem o que estavam procurando.

Kyle deu um pequeno suspiro.

– O que foi? – perguntou Daniel.

– Havia um jornal dessa época chamado Northwoods Review. Nele há uma história sobre um naufrágio no dia 17 de julho daquele ano. Doze pessoas morreram.

– Doze pessoas? – disse Nicole, engolindo em seco assim que ouviu essas palavras.

– Sim. A luz fora apagada. Eles bateram em um banco de areia durante uma tempestade – disse Kyle, consultando o artigo que havia acessado em seu celular. – Quando os sobreviventes foram para o farol mais tarde, encontraram o faroleiro morto na torre. Ele tinha se enforcado. Era Jarvis Delacroix. Eles registraram seu nome.

– Me passa o link – disse Daniel.

Ele clicou no site enquanto seu amigo prosseguia:

– Parece que eles não conseguiram confirmar se Jarvis tinha se matado antes ou depois do naufrágio. Mas os sobreviventes afirmaram que não havia nenhuma luz durante aquela tempestade.

– Então – murmurou Nicole, pensando alto –, ou ele cedeu à tentação e apagou a luz e então se matou, ou cometeu suicídio primeiro devido à sua culpa pela morte de Betty e então já não estava lá para manter a luz acesa durante aquela tempestade.

– O artigo faz alguma menção a ela? – perguntou Mia.

Kyle verificou e balançou a cabeça.

– Não, nada sobre alguém chamado Betty.

– Mas você não acha isso estranho? Quero dizer, o dia seguinte, o dia 18 de julho, foi o dia em que a mãe dela devia voltar para apanhá­-la. Será possível que ninguém mais ligasse o desaparecimento de Betty ao suicídio ou ao naufrágio?

– Não sei. Acho possível. Quero dizer, se houve uma enorme tragédia como aquela, doze pessoas mortas num naufrágio, uma garota desaparecida realmente não chamaria a atenção da imprensa.

– Ou – sugeriu Daniel – pode haver alguma outra explicação.

– De que tipo?

– Que ela nunca tenha existido.

– O quê?!

– Talvez Jarvis também tivesse distorções. Como as minhas.

– Mas ele a mencionou em seu diário. E a foto dela?

– Só porque ele a mencionou, não quer dizer que ela fosse real. E não sabemos de quem é essa fotografia, só que é a mesma garota que vi em minha distorção. Se eu vi essas coisas na caixa quando era criança, talvez, de alguma forma, eu me lembrasse delas. Jarvis também pode ter visto essa foto. Sabemos que ele se sentia solitário naquela ilha. E se ele tivesse inventado alguém indo visitá­-lo para lhe fazer companhia?

Ele se voltou para Mia e prosseguiu:

– Como você já mencionou, os faroleiros às vezes enlouquecem. Talvez tenha sido o que aconteceu com ele.

Ninguém parecia saber o que dizer.

– Mas por que agora? – perguntou Kyle. – Por que você estaria se lembrando de tudo isso agora?

– É o que precisamos descobrir. Alguém guardou esses diários e os escondeu naquele celeiro. O lugar é velho, mas não tenho certeza se já existia na década de 1930, então isso significa que alguém escondeu essa caixa no celeiro algum tempo depois. Mas, no momento, estou pensando em outra coisa.

– O quê?

– Em minha distorção, a garota estava chorando lágrimas de sangue. Por quê? Não há nada do diário que indique que Betty, tenha ela existido ou não, estava chorando lágrimas de sangue quando morreu.

– Não sei até que ponto você pode interpretar literalmente tudo que vê em suas distorções – disse Mia. – Quero dizer, quando Emily apareceu para você há alguns meses, nem tudo o que estava em sua distorção era idêntico ao que aconteceu na vida real.

– Então o que você está querendo dizer?

– Não sei. Talvez Betty tenha visto alguma coisa horrível? O sangue é metafórico?

Ou talvez você tenha.

Talvez você tenha visto alguma coisa horrível.

Lá no celeiro. Alguma coisa a ver com o lugar, com o...

– Se Jarvis fosse realmente parente de sua mãe – disse Kyle, interrompendo­-lhe os pensamentos –, ela não teria lhe contado isso tudo?

– Não é exatamente o tipo de coisa que se queira compartilhar com os membros de sua família.

– Talvez ela nem soubesse da existência dele – sugeriu Nicole.

– Existe uma maneira de descobrir isso.

– Qual?

Daniel já estava com seu celular na mão.

– Perguntar a ela.


25

Sua mãe ainda estava em Anchorage, no Alasca, e ele não tinha certeza quanto ao fuso horário de lá, mas fez a ligação assim mesmo.

Enquanto esperava que ela atendesse, ficou imaginando o quanto deveria contar a ela sobre tudo o que estava acontecendo. No último outono, quando as distorções começaram, seu pai não achou que fosse certo esconder isso dela e, honestamente, Daniel acabou por concordar. Assim, embora ele não estivesse muito entusiasmado com relação a isso, eles entraram em contato com ela para informá­-la sobre as distorções.

Naturalmente, ela ficou preocupada e insistiu que ele fosse a um psiquiatra para contar tudo o que estava acontecendo.

Contudo, depois que a coisa ficou resolvida, nem ela nem Daniel fizeram qualquer referência às distorções. Em vez disso, falaram principalmente de coisas superficiais, o que tinham feito, as notas de Daniel, se seu time havia vencido e outras coisas do tipo.

De certo modo, ele gostaria que conversassem mais sobre o assunto que realmente importava, mas, por outro lado, ficou feliz por não o terem feito.

Afinal, depois que se embarca nessa com as pessoas, ou seja, depois que se chega ao nível emocional, termina­-se numa situação de vulnerabilidade em que se pode ser magoado.

Na verdade, não existe meio termo: ou a gente se mantém próximo a uma pessoa e vulnerável, ou fica longe e seguro.

Uma espécie de beco sem saída.

O telefone tocou.

Nenhuma resposta.

Quando ele já estava pensando em deixar um recado na caixa postal, ela atendeu e deve tê­-lo reconhecido em seu identificador de chamada, pois a primeira coisa que disse foi: “Daniel?”. Pelo seu tom de voz, ficou claro que ela estava surpresa por ele ter ligado.

– Está tudo bem?

A pergunta, por si só, dizia muito sobre o relacionamento entre eles: quando ele ligava, ela imediatamente pressupunha que algo estava errado.

– Eu estou bem.

– Oh, que bom. Muito bom.

Ele se sentiu um pouco inibido. Como se aborda o fato de um parente ter sido responsável pela morte de doze pessoas – quatorze, contando ele mesmo e a garota?

Mas Betty sequer era real.

Você devia ter pensado um pouco mais nisso tudo.

Seus amigos saíram do quarto para que ele tivesse privacidade para falar com a mãe.

– O papai diz que você vem para o Natal, é verdade? – perguntou ele.

– Eu estava planejando isso, mas um grande sistema de tempestades está avançando para cá. Se tivermos muita neve e gelo como estão prevendo, talvez eu só possa ir depois do Natal. Mas vamos comemorar assim mesmo.

– Claro, faz sentido – disse ele, mas estava pensando: E quando você vai nos dizer se virá?

– Como foi ontem à noite? – perguntou ela.

– Ontem à noite?

– O jogo.

– Oh, nós ganhamos.

– E como você jogou?

– Bem. Quero dizer, acho que joguei bem.

– Bem, isso é ótimo.

O silêncio estendeu­-se pela linha.

– Tem certeza de que você está bem? – perguntou ela.

Pergunte a ela.

– Mãe, você teve irmãs?

– O quê?

– Você teve alguma irmã que nunca mencionou?

– Não.

– Então, ninguém chamada Betty?

– Não – disse ela, e sua resposta soou como uma pergunta, e Daniel percebeu que ela tinha ficado curiosa.

– Mamãe, você conhece algum Jarvis Delacroix?

– Jarvis Delacroix?

– Ele era faroleiro na década de 1930. Como Delacroix era o nome de solteira da sua mãe, imaginei que eles tivessem algum parentesco.

– Sim, tinham. – Era impossível interpretar seu tom de voz. – O que isso tem a ver?

– O que você sabe sobre ele?

– Havia um Jarvis que era irmão de minha avó, mas ninguém falava muito sobre ele.

Tem que ser ele.

Então, se Jarvis era tio de vovó, isso significa que Betty teria sido prima dela.

– E Betty? – perguntou ele.

– Não me lembro de nenhuma Betty. Por que você está perguntando? O que está acontecendo?

– Meus amigos e eu encontramos o diário de Jarvis.

– Onde?

– Em um celeiro perto de onde a vovó morava.

– A fazenda do distrito N?

– Isso mesmo. Eu costumava ir lá às vezes.

– É verdade.

– Você sabia?

– Eu segui você um dia, mas sua avó me garantiu que o vizinho não se importava. Então, eu deixei você brincar lá. Eu sabia que, às vezes, era difícil ficar com ela em casa.

– Aconteceu alguma coisa naquele celeiro?

– O que você quer dizer?

– Não sei, apenas... alguma coisa estranha?

– Não que eu saiba. Um dia você parou de ir lá quando íamos visitar mamãe. Você hesitava até em ir à casa dela. Mas não sei por que o diário de Jarvis estaria lá. Você acabou de perguntar sobre uma Betty. Quem é Betty?

– Alguém que é mencionada no diário – disse ele, de um modo um tanto vago.

– Mas por que você está interessado nisso tudo?

– Alguma coisa está acontecendo. Minhas distorções. Elas começaram de novo.

– Oh, Daniel – disse ela, e a emoção que colocou nessas duas palavras foi surpreendente. – Você já contou para o seu pai?

– Ainda não.

– Sobre o que são as distorções?

– Isso não importa.

– Você deve se sentir solitário.

Isso pareceu uma coisa curiosa, especialmente porque, antes de mais nada, tinha sido ela a abandoná­-lo e ao pai.

Ele mudou a conversa de rumo, prosseguindo com o tema da solidão.

– Mamãe, por que você foi embora?

Ele já lhe havia perguntado isso antes e, honestamente, esperava receber a resposta de sempre: que não era hora de falar nisso, que depois eles discutiriam o assunto.

Sempre depois.

Mas, naquela noite, para sua surpresa, ela lhe deu uma resposta de verdade:

– Eu quis proteger você e seu pai.

– Proteger­-nos? Do quê?

– Eu nunca lhe contei como sua avó morreu.

– Claro que sim. Ela teve uma reação ao remédio que estava tomando.

– Foi a melhor maneira de explicar quando você era mais novo. Só que eu nunca corrigi as coisas. Acho que foi mais fácil deixar essa explicação no ar.

– Você mentiu para mim.

– Não, eu só não quis entrar em detalhes.

– Então, o que aconteceu? Como foi que ela morreu?

Uma pausa.

– Ela tirou a própria vida, Daniel.

– O quê?

– Os comprimidos. Uma overdose deles.

– Como você sabe que não foi um acidente?

– Ela deixou um bilhete.

Daniel tentou compreender o que estava ouvindo.

– O que dizia nele?

– Daniel, não sei se devemos...

– Mãe, o que dizia o bilhete?

– Ela diz que não suportava mais vê­-los.

– Ver quem?

– Nunca soubemos com certeza. Ela nunca nos contou.

– Então ela estava vendo coisas, certo?

– Não sabemos se foi isso.

– Mas ela pode ter visto, quero dizer...

– Como eu disse, não sabemos de nada.

– Então, por que você não... Espere um pouco. Não era só a vovó, não é mesmo?

– O que você quer dizer com isso?

– Você disse que foi embora para proteger a mim e ao papai, mas não disse do que queria nos proteger. Era de você, não é mesmo? Você estava vendo coisas? Ou talvez ouvindo vozes? O que foi?

– Não é a melhor hora para falar disso. É melhor discutirmos tudo quando eu for para...

– Mamãe, eu preciso saber.

Ela tornou a objetar, mas acabou respondendo.

– Sim, Daniel. Eu às vezes vejo coisas que não consigo explicar.

– Você anda durante o sono?

– Ocasionalmente. Sim, eu faço isso.

– Você alguma vez tentou machucar alguém enquanto estava sonâmbula?

– Não.

– Mas tinha medo de que pudesse fazer isso.

Ela não respondeu, e ele entendeu o silêncio como uma confirmação.

– Então, você não foi embora porque queria ficar com outro homem?

– Não, claro que não. Eu só tinha medo das coisas que via. Tentei consultar um psiquiatra algumas vezes, mas não adiantou muito.

– O Dr. Fromke?

– Sim.

Daniel tentava processar tudo o que ela dizia. Não havia muitos psiquiatras na área, então, se ela foi consultar um, fazia sentido que fosse ele.

– Eu quero que você volte, mamãe.

– Vou voltar assim que puder.

– Não quero dizer apenas do Alasca. Quero dizer voltar para valer. Para casa.

– Vamos conversar sobre isso quando eu estiver aí, certo? E quero que você converse com seu pai sobre essas novas distorções.

– Vou contar assim que chegar em casa. Você não precisa proteger ninguém, mamãe. Seria melhor se você estivesse aqui.

– Eu te amo, Daniel.

Eu também te amo, pensou ele, mas não se sentiu preparado para dizer essas palavras. E concluiu:

– Logo converso com você.

E, com isso, o telefonema teve um fim.

Depois que ele desligou, juntou­-se aos amigos e resumiu parte do que sua mãe havia dito, mas omitiu a parte de ela também ter alucinações.

– Betty teria sido prima de vovó, mas minha mãe não sabe nada sobre ela. Precisamos descobrir o que está acontecendo, por que as minhas distorções recomeçaram.

– Como vamos fazer isso? – perguntou Kyle.

– O farol ainda existe?

Kyle digitou na tela de seu celular.

– Existe. Mas está abandonado. Esta página diz que o estado está tentando comprá­-lo, para preservá­-lo como marco histórico, mas, aparentemente, ainda está em negociação.

– Perfeito. Amanhã vamos até lá e damos uma olhada.

– Você está falando sério?

– Completamente. Minha primeira distorção levou­-me àquele celeiro. Agora o diário que encontramos lá está nos levando ao farol. A garota de minha distorção me disse que Madeline estava esperando – disse ele, levantando o telefone. – E não vamos esquecer a mensagem que eu recebi esta noite. Madeline quer que eu vá amanhã.

– Ela não é real, Daniel – disse Nicole, pouco à vontade. – Você mesmo enviou a mensagem.

– Ainda não sabemos se isso é verdade, mas mesmo que eu tenha feito isso, não a enviei sem motivo. Lembram o que eu escrevi na aula de inglês? “Cova Perdida é a chave”? Precisamos visitar a ilha Madeline para ver o que existe lá no farol.

***

O xerife Byers voltou para seu carro e colocou sua Maglite* no assento ao lado dele.

Enquanto voltava para casa, pensou na teoria do filho de que alguém com acesso ao programa de monitoramento de lobos por GPS do Departamento de Recursos Naturais pudesse ser o atirador.

Ele tentara contatar Lancaster Bell mais cedo, mas não conseguiu encontrá­-lo. Tornou a tentar e o encontrou em casa.

Omitindo o nome de Daniel, contou a Lancaster a teoria sobre os lobos monitorados e perguntou­-se se ele podia lhe fazer uma lista das pessoas que poderiam ter acesso aos arquivos.

Final da chamada.

Enquanto repensava as coisas, lembrou­-se da arma desaparecida, o rifle automático Browning 30­-06, do qual o diretor do Instituto Traybor registrara o furto seis semanas antes. Era o calibre certo. Podia ser apenas um detalhe, mas, certamente, podia estar relacionado com o que estava acontecendo.

Não levava a nada.

Mas era alguma coisa para se ter em mente.

Assim...

Para casa.

Então soube, por Daniel, tudo o que acontecera quando ele e Nicole descobriram aquele lobo.

***

Enquanto pensavam em um plano para o dia seguinte, Nicole explicou que ela tinha de ir à igreja e cumprir com outras obrigações com a família; assim, não poderia ir ao farol.

Mia ia servir de babá para o filho da vizinha a tarde toda; então, também estava fora, mas Kyle e Daniel decidiram que os dois iram até Bayfield.

– Como é que você vai chegar à ilha Madeline? – perguntou Nicole.

Às vezes, nos invernos muito rigorosos, o lago Superior congelava completamente, mas aquele inverno ainda não se mostrara tão severo e, além disso, talvez provavelmente ainda fosse o começo da estação para que isso acontecesse.

Daniel olhou para Kyle.

– O seu tio Larry? Você acha que ele pode nos ajudar?

– Bem, ele sempre me disse que eu podia usar seus barcos, mas nunca realmente imaginei que fosse lhe pedir para usar um deles no mês de dezembro.

Mia parecia cética.

– Você acha realmente que será capaz de chegar até a ilha?

– Não tenho certeza. Provavelmente, vai haver gelo no lago, mas pelo menos vale a pena dar uma olhada. Podemos não conseguir chegar até o farol, mas talvez vê­-lo pessoalmente possa despertar alguma coisa na memória do Sr. Caça­-Fantasma.

– O que você acha que sua mãe vai dizer?

– Acho que consigo convencê­-la – disse Kyle, olhando para Daniel. – E o seu pai?

– Talvez seja um pouco difícil, mas acho que vamos chegar a um acordo.

– Então tudo bem. Amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer é ligar para o Larry.

Passava um pouco das 20 horas, e Kyle disse que precisava ir para casa contar uma história para sua irmãzinha dormir, uma coisa que ele procurava fazer sempre que podia. Todos concordaram em se comunicar assim que ele falasse com o Larry no dia seguinte.

Depois de dizer boa­-noite a todos, Daniel levou o conteúdo da caixa com ele para que pudesse ler mais um pouco dos diários ainda naquela noite.

Enquanto ia para casa, tentou pensar em como convencer o pai a deixá­-lo investigar o farol onde seu tio­-bisavô havia enlouquecido e se suicidado, depois de uma garota – que talvez existisse apenas em sua imaginação – ter queimado até a morte.

***

Quando o xerife Byers estava entrando na garagem, viu que o carro de Daniel já estava lá, mas as luzes da casa estavam apagadas. Nem no porão, onde Daniel poderia ter ido para seu habitual levantamento de pesos, havia luz.

Tudo bem, mas era um pouco estranho. De jeito nenhum Daniel teria ido para a cama tão cedo, não em uma noite de sábado.

É claro que havia a possibilidade de ele ter saído no carro de um dos amigos, mas ele não gostava de depender de ninguém para se locomover e, assim, normalmente era ele que dava carona para os amigos.

O xerife acionou o controle remoto e fechou a porta da garagem atrás de si.

Entrando na cozinha, tentou acender as luzes, mas elas não funcionaram.

Tentou o interruptor algumas vezes.

Nada.

Nem o micro­-ondas nem o relógio do forno mostravam as horas.

Tudo escuro.

Um fusível?

Talvez.

Mas o controle da garagem tinha funcionado.

Talvez se tratasse de um circuito separado.

A luz refletia­-se na neve lá fora e penetrava pela janela acima da pia. Embora não permitisse a entrada de muita luz, foi suficiente para que ele visse a silhueta de alguém em pé na extremidade da cozinha.

– Daniel?

Nenhuma resposta.

– Você está bem?

A figura veio em direção a ele e acendeu uma lanterna, dirigindo o foco de luz à sua frente, o que o impedia de dizer de quem se tratava.

O xerife levou a mão aos olhos e estava para acender sua lanterna, mas lembrou que ela tinha ficado no carro.

– O que está havendo, Daniel?

A pessoa se aproximou, mas não disse nada.

O instinto do exercício da lei disse­-lhe para pegar a arma, mas o instinto paterno deteve­-lhe a mão.

Quando a figura estava apenas a alguns centímetros de distância, ergueu a lanterna e, assim que o xerife viu seu rosto, também viu a faca em sua mão.

Mas já era tarde demais.

A pessoa avançou a lâmina, que atingiu o flanco do xerife; respirando com dificuldade, ele tombou no chão da cozinha.

* Lanterna operacional tática, à prova d’água, resistente a choque, com ajuste do foco de luz e certificado militar de resistência. (N.T.)

 

 

26

7h55

Daniel só se lembrava de fragmentos e lampejos do que havia acontecido na noite anterior e das horas que se seguiram.

Mais cedo, quando estava meio adormecido, perguntara à enfermeira por que estava ali. A princípio, ela ficou em silêncio, mas, por fim, contou­-lhe que ele havia machucado alguém e que estava ali para sua própria proteção.

– Minha proteção? Quem foi que eu machuquei?

Mas, então, a resposta dela perdeu­-se na neblina de seus sonhos, enquanto ele tornava a perder a consciência.

Acordou com um médico e um detetive no quarto do hospital, e eles lhe perguntavam se sabia por que estava ali, se sabia o que havia acontecido a seu pai. Eles o pressionaram, mas ele não conseguiu lhes dar as respostas que buscavam.

Quando tentou se erguer, descobriu que seus braços e pernas estavam amarrados na cama.

Um dos homens disse alguma coisa sobre Madeline, as mensagens e o sangue. Daniel tentou dar mais explicações, mas antes que o fizesse, o médico estava introduzindo uma agulha em seu braço e lhe dando algum medicamento; ele tornou a sentir um cansaço tomar­-lhe todo o corpo.

Então, todas as pessoas foram engolidas pela explosão avassaladora de cores que o invadiu.

Em seguida, foram embora.

***

Daniel sonhou.

De algum modo, você acorda, mas ainda está dormindo. O mundo é, ao mesmo tempo, real e irreal. Você está em casa, levanta­-se da cama e dá um suspiro profundo.

Desperto.

Dormindo.

Para você dá na mesma.

Seus pensamentos giram dentro de você. Eles flutuam e se contorcem diante de você. Você tenta agarrar um deles, mas ele foge e fica olhando com um enorme sorriso, com os dentes aguçados e amarelados; você sabe que ele está faminto.

Você dá um passo para frente. Vai pegá­-lo.

Seus pés movem­-se por conta própria, levando­-o pelo corredor até a cozinha.

Até a pia, onde seus pensamentos flutuam.

Eles se enrodilham dentro de você, criando um pequeno redemoinho escuro que bloqueia o luar. Juntos, eles descem e desaparecem num ponto bem em cima do cano que leva ao triturador de lixo.

Você estica o braço para agarrar o ponto de escuridão que engoliu seus pensamentos, que os puxou para dentro dele como um minúsculo buraco negro.

Ele mergulha no triturador de lixo; então, você desliza a mão pelo cano. Você pode sentir as lâminas, curvas e afiadas, pacientemente esperando que alguém as acione.

Você avança com a mão para dentro da garganta da pia, em busca de seus pensamentos, suas percepções, suas esperanças e sonhos.

As lâminas são frias e lisas ao toque.

Frias.

E tão, tão lisas.

Acima da bancada, ao lado da pia, há dois interruptores, um ao lado do outro: um para a lâmpada acima da pia, o outro para o triturador de lixo.

Em seu sonho, você estende a mão para acender a luz.

E aciona o interruptor.

Mas não é a luz que você acaba ligando.

Você acionou o interruptor errado.

Com um zumbido de lâminas que giram, o triturador de lixo está vivo e devorando sua mão, puxando­-lhe o pulso. Você ouve o áspero triturar de ossos sendo esmagados, sente a dor profunda da carne se dilacerando, sente o gosto das borrifadas de sangue que sobem da pia.

Você grita no meio da noite, puxa o braço para fora e tomba para trás.

Seu braço termina no pulso, num coto dilacerado e grosseiro – a carne rasgada pendendo em tenebrosas tiras, pingando sangue escuro no chão.

Mas, então, diante de seus olhos, sua mão ressurge. Quatro dedos e um polegar emergem do final descarnado de seu braço. Eles se distendem, cobertos de sangue; a parte posterior de sua mão então se forma e, quando você a vira, vê a palma da mão aparecer.

O sangue sai dela como se estivesse sendo lavado por um fluxo de água.

Sua mão voltou, reformada, renascida.

Você sabe que é um sonho, você diz a si mesmo que é um sonho. Sabe que não é real, mas, afinal, o que é a realidade? Você está vendo, ouvindo e sentindo coisas que não poderiam existir. Mas existem, elas existem. O mundo real está se inclinando para deixá­-las entrar.

O sangue de sua mão está empoçando no chão, formando um círculo quente e viscoso.

Seus olhos são atraídos para esse círculo, para o modo como ele desliza para os sulcos das lajotas e, por fim, forma uma trilha escarlate que avança pelo linóleo.

Você segue essa linha de sangue com o olhar e vê seu pai estendido no chão.

Uma faca está cravada em seu flanco.

Uma faca de cozinha.

O sangue está esguichando do ferimento. Você corre e se ajoelha ao lado dele para ajudá­-lo, mas não sabe dizer se isso está realmente acontecendo – talvez esteja – ou se ainda vai acontecer.

Um sonho? Uma lembrança? Uma espécie de premonição?

Você não sabe se deve remover a faca, se isso vai ajudar a parar o sangue ou se vai piorar as coisas.

O que você fez com seu pai?

As vozes em sua cabeça dizem para você puxar a faca, para ligar para a emergência, mas você não se lembra de ter feito isso.

As imagens se desvanecem numa região nebulosa e incerta entre o inconsciente e a consciência enquanto você procura o cabo da faca.

***

Daniel abriu os olhos.

Não sabia quanto tempo tinha dormido, mas os amarrilhos tinham sido removidos e ele se sentou, ainda um pouco grogue; em seguida, pôs os pés fora da cama.

Sentindo­-se um pouco nauseado, foi rapidamente para o pequeno banheiro conjugado ao quarto do hospital, ajoelhou­-se diante do vaso e esvaziou o estômago.

Talvez vomitar seja uma coisa boa, pois você pode se livrar das drogas que lhe deram. Tire­-as de seu sistema; você não vai ficar tão sonolento.

Enxaguou a boca para tirar o gosto do vômito. Enquanto fazia isso, ficou imaginando o que poderiam ter lhe dado e quanto tempo ficara inconsciente desde quando o haviam drogado.

A lateral de sua cabeça doía. Parecia que alguém o tinha atingido com um porrete. Quando passou a mão no local, sentiu um vergão grande e macio.

Voltou ao quarto para se recompor.

Em primeiro lugar, abriu as cortinas.

Lá fora, um parque cheio de árvores que devia margear um lago. A margem distante estava fora de vista e ele presumiu que fosse o lago Superior, pois era o mais próximo com aquelas dimensões.

Como o sol estava baixo no horizonte, devia ser o nascente ou o poente. Por sua posição com relação ao lago, imaginou que estava mais para o anoitecer que o amanhecer.

Mas que dia era?

Domingo?

A última coisa de que ele se lembrava com clareza era ter saído da casa de Nicole no sábado à noite e ido para casa.

Você combinou de ir ao farol no domingo.

Será que você foi e não se lembra?

Será que se passaram mais dias?

Não havia puxador na janela; era impossível abri­-la.

Quatro barras de aço tornavam impossível sair por ela, mesmo que não houvesse vidro.

Examinando o quarto, não encontrou nem sinal de seu celular, chaves ou quaisquer outros pertences além das roupas que estava usando.

Foi até a porta que dava para o corredor. Uma pequena abertura em sua base permitia que coisas fossem passadas para o quarto: talvez uma bandeja com refeição, ou um livro, mas nada maior que isso.

Uma janelinha com pesada tela de arame localizava­-se no meio da porta, para permitir que os médicos verificassem seus pacientes do corredor.

Não, aquilo não era um hospital normal.

Daniel nunca havia estado em um hospital psiquiátrico, mas não precisava ser um gênio para imaginar que estava em algo semelhante agora.

Um guarda acima do peso estava sentado numa cadeira do outro lado do corredor, lendo algo em seu celular.

Você precisa descobrir o que aconteceu com seu pai.

Daniel tentou abrir a porta.

Trancada.

O que não era nenhuma surpresa.

– Com licença, meu senhor – disse ele através da porta. – O senhor pode me dizer o que está acontecendo?

O homem apenas olhou para ele através do vidro, ergueu­-se pesadamente, verificou se a porta do quarto de Daniel estava trancada e afastou­-se pelo corredor sem lhe dar resposta.

Daniel lembrou que um detetive já estivera em seu quarto, pedindo­-lhe que contasse o que tinha feito com o pai.

O cara foi chamar o detetive.

Daniel forçou a memória, tentando se lembrar do que o tinha trazido àquele lugar, mas só conseguiu trazer à mente imagens fragmentadas dos últimos dois dias. Era como se ele estivesse se arrastando por um tabuleiro cheio de peças de um quebra­-cabeça, tentando juntá­-las, tentando resolvê­-lo, sem que tivesse nenhuma chave para a aparência do quadro final.

Por quê? Foram as drogas que lhe deram? Por que você não consegue se lembrar do que aconteceu?

De repente, uma lembrança de ter tomado café com o pai.

Outra, de sua volta ao celeiro com os amigos.

Mais uma, do jogo de basquete.

Outra, de encontrar o DVD preso em seu armário.

Nada parecia estar em ordem.

Pense, Daniel! O que aconteceu?

Uma festa.

O telefonema para a mãe.

A visita a Ty Bell.

A distorção com a garota.

Depois, ele debruçado sobre o pai.

Uma faca enterrada em seu flanco.

Isso não está certo. Você nunca o machucaria. Nunca!

Mas na outra noite você acordou em pé ao lado da cama dele, segurando uma faca de caça. O que ia fazer com ela se não estava planejando usá­-la?

Foi até a janela e tentou relembrar as coisas, mas foi interrompido pelo som de alguém abrindo a porta.

Voltando­-se, viu um atendente grandalhão em pé, bloqueando a passagem.

Ok, esse cara passa um bom tempo na sala de musculação.

– Alguém veio vê­-lo, Daniel – disse ele, mal­-humorado.

– Quem?

Em vez de responder, ele apenas disse a Daniel para segui­-lo.

– O que aconteceu com o meu pai?

O homem ficou em silêncio.

– Você sabe?

– Ninguém sabe – respondeu ele por fim. – Com exceção de você.

Não. Eu não sei. Não sei de nada.

Enquanto andavam pelo corredor, Daniel tentou entender o que estava acontecendo.

Sim, ele estava num hospital para doentes mentais.

Ficou feliz, contudo, por não estar na cadeia.

O que isso significava: estar naquele lugar em vez de na cadeia? Que achavam que ele era inocente? Que eles apenas não tinham provas suficientes para prendê­-lo?

Também pode ser que achem que você está louco e que, portanto, seu lugar é aqui, e não na prisão.

Será que você não tem o direito de dar um telefonema ou falar com um advogado se for suspeito de um crime?

Só se você for preso. Aqui você não está preso, Daniel. Está internado.

Mas quem o pôs aqui? Como você veio parar aqui?

Mais cedo, provavelmente esta manhã – se é que realmente estamos no domingo de tarde –, seus punhos e tornozelos estavam amarrados.

O pessoal do hospital tinha lhe dado algum tipo de droga para fazê­-lo dormir.

Mas por que eles fariam isso se queriam que você respondesse às perguntas sobre seu pai?

Nada fazia sentido, e quanto mais ele tentava juntar as peças do quebra­-cabeça, mais confuso e indecifrável ele ficava.

Agora, enquanto andavam pelo corredor, Daniel pôde ver que, como a de seu quarto, as portas dos quartos dos outros pacientes também tinham janelas de vidro reforçado e, como resultado, ele pôde dar uma olhada em alguns deles.

E não foi nada encorajador.

Um homem estava em pé num dos cantos de seu quarto batendo com a cabeça contra a parede sem parar. Nesse caso, a parede era almofadada e ele não parecia estar se ferindo, mas o som de sua cabeça contra a parede soava irritante, chegando até o corredor.

Quarto seguinte: uma garota que parecia um pouco mais velha que Daniel estava sentada na cama, com um longo fio de baba escorrendo da boca. Ela estava murmurando alguma coisa para si mesma, embora não fosse possível ouvir o que dizia.

Ela deve ter notado a movimentação lá fora, pois olhou para ele e sorriu, de um modo que o perturbou, de um modo que lhe lembrou do sorriso que a garota de seu sonho havia lhe oferecido depois de começar a ser consumida pelo fogo que começara na barra de sua camisola e a fez arder até a morte.

Ou o sorriso daquele demônio um pouco antes de voar em sua direção.

Enquanto avançavam pelo corredor, um velho conduzido por uma senhora de idade aproximou­-se de Daniel, olhou diretamente para ele, lançou­-se para frente e agarrou seu braço.

– É você o tal! – gritou o homem.

A mão do homem o agarrava com a força de uma garra. Os dois atendentes tiveram trabalho para afastá­-lo, mas por fim conseguiram separá­-lo de Daniel. O velho, porém, não desistiu de tentar agarrá­-lo.

– Você não devia ter feito aquilo com seu pai.

– O que você sabe do meu pai?

A mulher, então, começou a levá­-lo para longe, mas ele continuou a chamar Daniel, acusando­-o de machucar seu pai, enquanto Daniel gritava para ele:

– Diga­-me o que sabe do meu pai!

Mas não houve resposta e eles desapareceram, saindo do corredor. O acompanhante de Daniel, então, passou com ele por um armário do serviço de manutenção no final do corredor.

Daniel não tinha ideia de quem era aquele velho ou como ele poderia saber alguma coisa sobre seu pai.

Isso não faz nenhum sentido.

O atendente levou­-o para uma área de visita perto da entrada principal.

Dois pacientes homens estavam sentados no canto da sala, com um tabuleiro de xadrez entre eles, embora só um estivesse movimentando as peças, como se estivesse jogando contra si mesmo. O outro homem fazia sinais indecifráveis com as mãos, conversando em sua própria linguagem de sinais com alguém invisível em pé ao lado deles.

Perto da janela, uma velha televisão presa seguramente na parede exibia desenhos animados com o som desligado. Uma mulher que parecia ter seus 50 anos, com um casaco de uso diário, esfarrapado e felpudo, olhava atentamente para a tela. A todo momento, ria para si mesma, mas sua risada não parecia ter nada a ver com o que estava acontecendo na televisão.

Por que trariam você para um lugar como este?

Então, viu quem viera vê­-lo.

Não, não era o detetive de quem suspeitara.

Era Nicole.


27

Ela passou por um controle de segurança e foi trazida à sala.

Daniel sentou­-se diante dela, do outro lado de uma pesada mesa de metal que tinha sido fixada no chão.

O atendente que o havia trazido afastou­-se um pouco, mas Daniel imaginou que, mesmo assim, ele seria capaz de ouvir sua conversa com Nicole.

Ela levou a mão por sobre a mesa para tomar a dele, mas o homem limpou a garganta e balançou a cabeça para detê­-la.

Depois de hesitar um instante, ela recolheu a mão.

– Como você está? – ela perguntou baixinho a Daniel.

– Eu estou bem. Onde nós estamos?

– Em Duluth.

– Duluth? – repetiu ele. Isso ficava a uma hora de carro de Beldon. Mas Daniel não insistiu no assunto. – Hoje é domingo?

– É. Domingo de tarde.

– Estão dizendo que alguma coisa aconteceu ao...

– Sim, alguma coisa aconteceu ao papai.

– Ao meu pai?

– Isso mesmo – disse ela, balançando a cabeça ligeiramente para que o atendente não visse seus olhos e, então, piscou para Daniel, que entendeu.

Talvez eles admitissem pessoas da família nas visitas.

Mas eles não verificariam o documento dela para saber quem ela era?

Talvez, mas pelo menos agora finja que ela é sua irmã.

– Você não se lembra de nada, não é mesmo? – ela perguntou.

– Não me lembro de nada com relação a ele.

Nicole ficou quieta.

– Conte por que eu estou aqui.

Ela olhou para além dele e, então, disse:

– Encontraram você na cozinha com muito sangue espalhado por toda parte. E ele tinha desaparecido.

– Como é que ele pôde desaparecer?

– Não sei. Ninguém sabe. O carro dele ainda está lá. O sangue encontrado em suas mãos foi analisado. Era dele. Havia uma faca no chão. Estão dizendo que suas impressões digitais estão nela.

– Quem disse isso?

– Não sei. Foi o que eu ouvi falar.

– Que tipo de faca era?

– Uma faca de cozinha.

– Não era uma faca de caça?

– Não... Você não se lembra de nada disso?

Ele balançou a cabeça.

– Hoje, mais cedo, eu adormeci e sonhei com isso, mas acho que não era real, você sabe como são os sonhos. Parte do sonho era... bem, parte dele não pode ter acontecido.

– O que não pode ter acontecido?

– Eu sonhei que enfiei a mão no triturador de lixo e ela foi triturada, que meus dedos foram arrancados.

– Uau! – disse ela, contraindo o rosto.

– Foi... – disse ele, e embora não fosse necessário, colocou as duas mãos sobre a mesa para provar que tinha sido só um sonho.

Mas se essa parte foi apenas um sonho, e quanto à parte em que você encontrou seu pai?

Ele pensou em perguntar­-lhe como ela soubera onde ele estava, mas percebeu que, se fizesse isso, poderia revelar que ela não era sua irmã.

– Soube alguma coisa da mamãe? – perguntou ele. – Eles tiraram o meu celular. E não tem telefone no meu quarto. Não tenho como entrar em contato com ela.

– Ela está tentando conseguir um voo de Anchorage, mas com a tempestade de neve que está caindo por lá, a coisa não está boa, pelo menos por mais um ou dois dias. Mas ela sabe o que está acontecendo.

Ele não teve certeza se Nicole tinha realmente conversado com ela, mas fazia sentido que sua mãe tivesse entrado em contato.

– Isso é uma confusão – disse ele.

– É mesmo.

Daniel baixou a voz, na esperança de que o funcionário do hospital, que ainda estava por perto, não o ouvisse.

– Você sabe mais alguma coisa sobre o farol?

Ela balançou a cabeça.

– O Kyle não foi lá.

Ele se inclinou para a frente e sussurrou:

– Eu preciso sair daqui.

– Precisa, claro, mas não sei como...

O homem fixou os olhos em Nicole e, então, avançou para eles.

– Lamento, mas acabou o horário de visita.

– Mas eu acabei de chegar – objetou ela.

– E agora vai sair.

Daniel cogitou em enfrentar o cara, mas não viu como, a longo prazo, isso funcionaria em seu favor.

Ele se levantou e disse a Nicole:

– Diga à mamãe que eu estou bem. Que logo vou vê­-la.

– Digo, sim.

Ele quis abraçá­-la para tranquilizá­-la, mas, quando deu um passo em sua direção, o atendente se colocou entre eles.

Daniel sentiu os lobos lutando dentro dele, mas decidiu que a melhor maneira de logo tornar a ver Nicole era deixar as coisas como estavam.

– Vai ficar tudo bem – disse ele.

– Vai.

***

Quando voltaram para o quarto, Daniel observou cuidadosamente a localização das portas, onde ficavam as câmeras de segurança, o número de quartos do corredor e a distância aproximada entre eles, calculando, deixando que a parte matemática de seu cérebro trabalhasse, tentando criar uma imagem mental do edifício.

Ele tinha que descobrir onde seu pai estava, e isso não ia acontecer enquanto ele estivesse em um hospital psiquiátrico.

Sim, ele precisava sair dali e voltar a Beldon o mais rápido possível.

Mas não tinha ideia de como faria isso sem um carro, mesmo se conseguisse achar um meio de sair do hospital.

O atendente levou­-o a seu quarto e, sem dizer uma palavra, trancou­-o lá dentro.

Lá fora, os últimos vestígios da luz do dia estavam se apagando, deixando apenas um quadrado negro no meio da parede, pontilhado por luzes da iluminação da rua perto do parque.

Vão procurar você em Beldon. As mensagens de Madeline referiam­-se a um encontro com você. De alguma maneira, aquele farol estava no centro de tudo.

Você precisa descobrir o que existe naquela ilha.

Enquanto Daniel estava pensando nisso, ouviu alguém abrir a porta do quarto.

Virando­-se para ver quem era, imediatamente reconheceu o homem que entrara e fechara a porta atrás dele. O Dr. Fromke.

Seu psiquiatra.

Bem, ótimo. Por fim, alguém que podia lhe dar algumas respostas.


28

­- Alguma notícia de meu pai? – perguntou Daniel com ansiedade.

– Não, ainda não.

– Dr. Fromke, o senhor precisa me tirar daqui.

– Estou trabalhando nisso, Daniel. Mas primeiro precisamos conversar. Você saiu da casa de sua amiga pouco depois das oito da noite. O que você estava fazendo lá?

– Estávamos descobrindo o que podíamos sobre o farol.

– O farol?

– Sim, onde meu tio­-bisavô trabalhou. O farol da Cova Perdida. Ele... bem, ele se matou, e nós estávamos tentando entender... olhe, isso não importa. Preciso encontrar meu pai agora mesmo.

– Sim – disse o médico, que ainda estava em pé junto à porta, como se estivesse impedindo que outra pessoa entrasse. – Então, você se lembra do que aconteceu em sua casa?

Daniel tinha acabado de falar sobre aquilo com Nicole e realmente não desejava recapitular tudo. Porém, rapidamente contou ao médico o que acontecera, pelo menos o que conseguia lembrar. Terminou lhe contando sobre a faca enterrada no flanco do pai, mas explicou que apenas sonhara essa parte.

– Então ele foi esfaqueado. Onde? No tórax?

– Bem, pelo menos no meu sonho.

– Sim, claro. De que lado?

– Do lado direito... mas isso não tem importância. Precisamos encontrá­-lo, sem se preocupar com o lugar com que sonhei que ele foi esfaqueado.

– Realmente. E de que mais você se lembra?

– De acordar aqui.

– E antes de estar ao lado do seu pai... você se lembra do que fez?

Daniel estava ficando irritado.

– Só que eu voltei da casa de Nicole. Antes disso, nós fomos ao celeiro do distrito N, onde eu costumava brincar quando criança. Uma distorção me levou até lá – disse ele, quase mencionando a garota morta, mas evitando fazê­-lo. – Quando o senhor acha que eu vou sair daqui?

– Estou trabalhando nisso.

– Isso o senhor já disse.

– Isso mesmo – respondeu ele. – Já disse.

– Por que eu não consigo lembrar o que ocorreu na noite passada?

– Você teve um ferimento grande na cabeça. Uma pequena perda de memória não é incomum para alguém que recebeu uma pancada. O que você sabe sobre o lobo morto?

– O quê?

– O lobo que foi morto no sábado. Foi a última coisa que seu pai investigou antes de ir para casa. Havia uma foto dele no seu telefone, além de algumas mensagens sobre o assunto.

– Minha namorada e eu estávamos na floresta quando alguém atirou nele. O que isso tem a ver com o desaparecimento de meu pai? E como foi que o senhor ficou sabendo disso?

– Nós estamos investigando tudo que podemos.

– Nós? O senhor está trabalhando com a polícia.

– Quero dizer, “nós” em geral... todos nós. Só queremos encontrar seu pai e ajudá­-lo. Você não tem nenhuma informação de onde ele possa estar?

– Não. Como vocês estão trabalhando nisso?

– Trabalhando nisso?

– Em me tirar daqui.

– Estou tomando as devidas providências. Não se preocupe. Vou me ocupar de tudo.

Baseado nos rumos dessa pequena conversa, isso não conseguiu exatamente tranquilizá­-lo.

– Um dos pacientes daqui – disse Daniel – agarrou o meu braço quando eu estava indo ver Nicole na sala dos visitantes hoje, mais cedo. Ele disse alguma coisa... que eu não devia ter feito aquilo com meu pai. Como é que ele soube do que aconteceu?

– Pode ser que ele tenha ouvido alguma coisa por aí.

Eles conversaram mais alguns minutos e, então, Dr. Fromke disse que precisava ir embora.

– Só mais uma pergunta – disse Daniel.

– Sim?

– Nós estamos em Duluth. O senhor veio até aqui só para me ver?

– Você é meu paciente, não é mesmo?

– Sou, mas não entendo por que o senhor se daria ao trabalho de vir aqui numa tarde de domingo.

– Achei que seria do seu interesse. Estou aqui para fazer o que puder.

– Eu não fiz nada contra meu pai.

– Tudo bem.

– Tire­-me daqui, Dr. Fromke.

– Estou me esforçando para isso.

***

Depois que ele saiu, Daniel recapitulou mentalmente a conversa entre eles.

Estranho.

E nada animador.

Como é que você veio parar num hospital psiquiátrico a mais de 90 quilômetros de casa?

Se eles suspeitavam de que ele era responsável pelo desaparecimento do pai, por que não estava na cadeia?

Por que ele acordou trancafiado num hospital psiquiátrico em vez de algemado numa cela?

Então, um pensamento ocorreu­-lhe, e quando isso aconteceu, pareceu­-lhe óbvio, como algo que ele deveria ter percebido de imediato: como seu psiquiatra, o Dr. Fromke podia interná­-lo. Além de seu pai e de sua mãe, ele provavelmente era o único que podia fazê­-lo.

Talvez o Dr. Fromke não estivesse tentando tirá­-lo daquele lugar.

Talvez ele estivesse tentando mantê­-lo ali.

***

No jantar, em vez de levar Daniel à cantina, o atendente que o levara à sala de visitas passou­-lhe uma bandeja de comida pela abertura na parte de baixo da porta: sopa fria, um sanduíche de peru, uma pequena embalagem de leite e um biscoito seco de aveia e passas – e nada que pudesse ser usado como garfo ou faca para comer.

Sequer lhe deram uma colher para a sopa. Ele teve que tomá­-la diretamente da tigela.

Não, provavelmente não era muito prudente dar a pacientes psiquiátricos garfos e facas enquanto estivessem trancados em seus quartos. Mas nenhuma colher? Fala sério!

Sem relógio, Daniel não conseguia precisar as horas muito bem, porém, mais tarde, quando estava se preparando para dormir, olhou pela abertura da janela e viu um guarda sentado lá fora.

Não era o mesmo cara que estivera em seu quarto de tarde, quando Daniel saiu da cama pela primeira vez; era o homem que tinha esperado por ele depois do jogo, o que conduzira o prisioneiro até o instituto que supostamente pesquisava sobre peixes, o homem que atolara na neve.

Ele olhou para Daniel como se o reconhecesse; então, levou um dedo aos lábios como para lhe pedir que não dissesse nada.


29

­-Acorde, Daniel.

A voz soava apressada, próxima a seu ouvido.

A princípio, ele achou que estivesse ouvindo coisas ou que fosse apenas parte de um sonho.

Virou para o lado, mas tornou a ouvi­-la, dessa vez ainda mais insistente:

– Daniel, acorde.

Agora de olhos abertos, ele se virou, mas com a única luz fraca que provinha da distante iluminação pública e entrava pela janela, o quarto estava escuro demais para que visse alguém.

– Quem está aí?

Alguém o pegou pelo braço, e Daniel, instintivamente, se desvencilhou, tentando focalizar a pessoa. O quarto estava envolto em sombras, e ele, ainda atordoado.

Contudo, quanto mais mantinha os olhos abertos, mais eles se acostumavam com a escuridão, e agora, à luz fraca, ele finalmente viu um homem ao lado de sua cama.

– Faça as perguntas depois – disse ele, e finalmente Daniel reconheceu aquela voz: o guarda, ou pelo menos o cara vestido de guarda, que estava lá fora do quarto. – Precisamos sair daqui imediatamente.

– Eu não vou a lugar nenhum antes de você me dizer quem é.

– Meu nome é Malcolm Zacharias – respondeu ele, tornando a pôr a mão no braço de Daniel. – Vamos. Mexa­-se. Eu vim tirar você daqui. E, acredite, é o que você deseja nesse instante.

– Por que você está me ajudando?

– Porque eu preciso que você me ajude.

– Como?

– Mais tarde eu explico.

Daniel tornou a desvencilhar o braço.

– Explique agora.

– Temos que ir embora – disse o Sr. Zacharias enfaticamente. – Ou você vem comigo e encontra as respostas que está procurando ou fica aqui, e, se ficar, não vai sair tão cedo.

– Por que você diz isso?

– Por causa do que aconteceu ontem à noite.

– Com o meu pai?

– Isso mesmo, agora...

– Você sabe onde ele está?

– Não, mas acho que sei onde o encontrar. Ouça, o segurança deste andar está fazendo a ronda no outro extremo da ala, mas vai voltar para cá a qualquer momento. Depois disso, vai ser tarde demais.

Saia daqui, Daniel. Esta é a sua chance.

O Sr. Zacharias foi até a porta. Ele tinha colocado alguma coisa entre o batente e a porta para evitar que ela fechasse. Então, removeu o calço, abriu­-a, olhou para o corredor e sussurrou:

– Agora.

Daniel beliscou o braço para se certificar de que não estava mais dormindo.

Não estava.

Nenhuma das lâmpadas fluorescentes do corredor estava acesa. A única iluminação vinha das indicações de saída brilhando no fim do corredor e de algumas fracas luzes de emergência colocadas em intervalos regulares ao longo do corredor.

A escuridão em torno de Daniel parecia fundir­-se, reagrupar­-se, combinar­-se e ficar duas vezes mais pesada e espessa que antes, como se estivesse viva.

Ele ficou imaginando se as sombras podiam assumir a forma do demônio que vira surgir do caderno de esboços de Nicole ou atravessar o celeiro, mas elas não fizeram isso e ele não estava a fim de esperar que o fizessem. Desviou sua atenção para o Sr. Zacharias, que fazia sinal para que ele saísse.

Daniel saiu para o corredor, fechou a porta silenciosamente e o seguiu.

Mas, logo depois, o movimento da luz de uma lanterna cortando a escuridão na extremidade oposta do corredor chamou sua atenção.

À medida que a pessoa surgia, mesmo com a fraca iluminação, Daniel percebeu que se tratava, pelo uniforme do homem, de um guarda, de modo que correu para a direção oposta com o Sr. Zacharias.

Ao fazê­-lo, lembrou­-se do problema de lógica que Kyle havia lhe proposto outro dia na escola: guardas diante de quatro portas. Dois dos homens sempre mentiam; dois sempre falavam a verdade. Então, agora, Malcolm Zacharias dizia a verdade ou mentia?

O que ele ganharia em mentir para você? O que ele ganharia dizendo a verdade?

Na dúvida, a lógica levou à solução correta. Daniel, então, deixou que ele o guiasse.

Em quem você confia, Daniel?

Ele repassou mentalmente o que sabia: no sábado, o Sr. Zacharias tinha se vestido como guarda da prisão e levou um prisioneiro para o Instituto Traybor. Parecia um pouco incrível que ele aparecesse agora em outro local vestido como policial, mas Daniel não tinha motivo para achar que ele estivesse mentindo quanto à tentativa de ajudá­-lo a escapar do hospital.

E tampouco há motivo para achar que ele está lhe dizendo a verdade.

Exceto que o está ajudando a escapar.

Ou, pelo menos, é o que parece.

Daniel reproduziu a excursão pelo hospital que fizera antes como se um mapa se desdobrasse em sua mente. A disposição, as distâncias, as localizações das câmeras de segurança estavam voltando à sua memória.

Ele calculou que não havia tempo suficiente para voltar ao quarto e se esconder do guarda, tampouco para chegar ao outro extremo do corredor.

– Você vem? – perguntou o Sr. Zacharias, com a voz abafada e urgente. Ele estava um pouco à frente no corredor. Daniel lembrou que a porta à sua esquerda era um armário da manutenção.

Vai estar trancada.

Pelo menos, tente abri­-la.

Ele tentou.

A porta estava aberta.

Ele correu para dentro.

Por que está aberta? Numa ala de psiquiatria, por que eles deixariam o armário da manutenção aberto, com todos aqueles produtos químicos dentro dele?

Perguntas sem resposta, mas naquele momento isso não importava. Aquela noite parecia governada por razões próprias e ele poderia se ocupar dela mais tarde. Primeira prioridade: sair daquele lugar.

O Sr. Zacharias ficou no corredor.

A porta não tinha uma abertura, de modo que Daniel não conseguia enxergar o corredor, mas conseguiu ouvir os passos do segurança se aproximando.

Seu coração bateu tão forte que ele imaginou que qualquer pessoa que se aproximasse poderia ouvi­-lo, e isso o fez pensar na história de Edgar Allan Poe que a Prô analisara no início do semestre: “O coração revelador”.

Era outra daquelas histórias em que o protagonista também era antagonista. O homem que cometera o assassinato ouvia o coração de sua vítima continuando a bater, continuando a atormentar sua consciência, deixando­-o louco.

E o que a Prô disse na sexta­-feira? Que o narrador podia não ser confiável. Que ele podia ainda não conhecer toda a verdade do que estava acontecendo.

Porque podia estar louco ou delirante, ou as duas coisas.

Os passos se detiveram bem diante do armário da manutenção.

Qual dos dois cabe no seu caso?

Louco?

Delirante?

Os dois?

– Esticando as pernas? – perguntou uma voz desconhecida.

– Isso aí – respondeu o Sr. Zacharias. – Fico muito tempo sentado do lado de fora daquela porta.

– Então, eles vão transferi­-lo amanhã?

– Foi o que ouvi dizer. Não querem correr nenhum risco. Por mim, tudo bem. Este não foi o meu trabalho mais emocionante.

O guarda consegue ouvir seu coração batendo. Tem que ouvir. Ele sabe que você está aqui.

Não. Isso é impossível.

Daniel planejou o que faria se o segurança abrisse a porta. Ele não podia ser trancafiado naquele quarto outra vez.

Você não pode deixar que ele o pegue.

Mas e depois? Fazer o quê?

Mesmo que conseguisse chegar à sala de visitas onde falara com Nicole naquele dia, a entrada principal com certeza estaria trancada.

Daniel sentiu as mãos se crisparem, enquanto esperava no armário. Lutar ou fugir?

Bem, as duas coisas, se necessário.

– Pelo que estão dizendo, ele esfaqueou o pai – disse o segurança.

– É o que estão dizendo.

– O rapaz é doente.

– Bem, alguma coisa está acontecendo com ele, isso é certeza.

– Eles sempre trazem os piores para cá. Eu gostaria de ser como você, uma coisa apenas temporária. Você não tem que ficar guardando esses malucos noite após noite.

– Você nem imagina como sou feliz por isso.

Uma pausa.

– Tudo bem – disse o segurança finalmente. – Bom, acho que vou verificar a outra ala.

– Vejo você na volta.

O som dos passos do segurança foi diminuindo e, por fim, a porta do armário da manutenção foi aberta e o Sr. Zacharias fez sinal para que Daniel o seguisse.

O corredor estava livre.

– Como é que vamos sair daqui? – perguntou Daniel. – Há câmeras demais perto da entrada. Elas vão nos denunciar antes mesmo de chegarmos ao estacionamento.

– Como você sabe dessas câmeras?

– Eu as vi quando fui à sala de visitas esta tarde.

Dependendo da precisão das câmaras, eles já podiam ter registrado sua presença.

Daniel avaliou a situação. A maioria das pessoas que vão a um hospital entra e sai pelas portas principais, mas não todo mundo. Devia haver uma entrada de funcionários, mas, mesmo que não houvesse, com certeza haveria pelo menos outra saída.

Afinal, o que aconteceria em caso de incêndio? Com os programas de combate a incêndios e outras coisas do tipo, teria que haver outra saída do prédio.

Com base no que percebeu com relação ao tamanho do hospital quando caminhou por ele mais cedo, havia um motivo ainda mais óbvio para haver outra porta.

– Existe uma área de entrega, certo? Uma porta dos fundos por onde fazem a entrega de alimentos?

– Então, o que eles dizem sobre você é correto.

– O que é?

– Que você é intuitivo. Que é bom em juntar as coisas.

– Quem diz isso?

O Sr. Zacharias não respondeu, apenas disse:

– Vamos lá. – E começou a conduzi­-lo pelo corredor na direção oposta à sala onde Nicole estivera.

O corredor logo terminou numa intersecção. O Sr. Zacharias assegurou­-se de que nenhum outro guarda estivesse por ali e, então, sussurrou a Daniel para que o seguisse.

Foram para a direita, mas só tinham dado alguns passos quando chegaram a um quarto com um paciente em pé atrás da janelinha da porta coberta por arame e olhando para o corredor.

A pouca luz foi suficiente para que Daniel reconhecesse nele o velho que havia agarrado seu braço e lhe dito: “Você não devia ter feito aquilo com seu pai”.

O homem pressionou a palma da mão contra o vidro como se quisesse atravessá­-lo e tocar Daniel.

– O que você sabe sobre o meu pai? – perguntou Daniel.

– Vamos embora – disse o Sr. Zacharias apressadamente. – Temos que ir embora.

Daniel se concentrou no velho.

– O que você sabe?

– Tempo – disse ele. – Vocês não têm tempo.

– Tempo para quê?

– Ele vai fazer de novo.

– Quem vai fazer o que de novo? Do que você está falando?

O Sr. Zacharias agarrou­-lhe o braço.

– Vamos. Não temos tempo para isso.

Daniel olhou para ele e, então, tornou a se virar para a janelinha da porta. Não havia ninguém lá.

O quarto parecia vazio.

Ele deve ter se posto ao lado da porta. Está em pé ao lado dela.

Ou talvez nunca tenha estado ali. Você deve tê­-lo imaginado.

Ele tentou a maçaneta da porta, mas ela se recusou a girar.

– Você consegue abrir esta porta? – perguntou ao Sr. Zacharias.

– A única chave de quarto que eu tenho é a sua.

– Você viu o homem lá dentro?

– Eu não estava olhando. Agora, vamos embora.

Daniel não conseguiu pensar numa forma de confirmar se o velho era real ou não sem abrir a porta.

Você precisa ir embora. Tem que sair daqui.

Colocando­-se bem atrás do Sr. Zacharias, Daniel entrou na cantina.

Descontado o fato de ela ter metade do tamanho, lembrava a de Beldon High.

Estavam a caminho da cozinha para encontrar a porta dos fundos de entrega quando o alarme soou.


30

Luzes de emergência começaram a piscar por todo o hospital enquanto o alarme troava.

O Sr. Zacharias correu para a porta de saída com Daniel bem atrás dele.

– Este alarme significa que temos vinte segundos antes que as portas externas sejam bloqueadas – exclamou ele sem fôlego.

– Mas você tem uma chave, certo?

– Não para furar o bloqueio.

Oh, perfeito!

Com o tempo que havia passado, Daniel calculou que talvez ainda tivessem quinze segundos.

Enquanto corriam em meio aos fornos e pias, um relógio ficou batendo em sua cabeça exatamente como quando ele estava na linha de arremesso livre de um jogo de basquete.

Dez.

Alcançaram a extremidade da cozinha, e Daniel ouviu a porta de correr ser aberta e pesados passos entraram no cômodo atrás dele.

Sete.

O Sr. Zacharias atrapalhou­-se com suas chaves para as portas externas.

Cinco.

Vozes gritaram de dentro da cantina:

– Aqui! Na cozinha!

O Sr. Zacharias abriu a porta e os dois saíram.

Dois.

Daniel bateu a porta atrás dele.

Um.

– Eles conseguem sair por aquela porta? – perguntou ele, ansioso.

– Primeiro eles vão ter que desligar o bloqueio, mas isso não leva muito tempo. Venha. Tenho um carro esperando no final do quarteirão.

Enquanto escapavam em meio às sombras, Daniel ouviu pessoas batendo na porta como se estivessem tentando arrombá­-la.

Ele e o Sr. Zacharias se esgueiraram pela noite até um sedã preto de marca indefinível que aguardava perto de um poste de luz junto ao parque. Era um carro diferente daquele com placas da Geórgia, o que havia encalhado na neve na noite de sexta­-feira.

As águas do lago Superior ondulavam ali perto, sob o luar.

Se eles o apanharem, provavelmente não vão se limitar a mandá­-lo de volta ao quarto. Desta vez, vão prendê­-lo para se certificar de que você não fuja.

Não, isso não estava nos planos de Daniel para descobrir o que acontecera com seu pai.

O Sr. Zacharias apertou o botão do controle de sua chave para abrir a porta e pulou para o assento do motorista.

Os guardas não viram para onde você foi. Você está bem por um ou dois minutos. Pense nisso.

Daniel seguia ao lado dele, e assim que o Sr. Zacharias pôs a mão no volante para colocar a chave na ignição, Daniel agarrou­-lhe o pulso com uma das mãos, torceu­-o e tomou­-lhe as chaves com a outra.

O rapaz foi rápido e, obviamente, pegou o Sr. Zacharias de surpresa, que agora o olhava à luz do poste de iluminação.

– Eu quero algumas respostas – disse Daniel –, e quero agora. Nós não vamos a lugar nenhum até você me contar o que está acontecendo.

Honestamente, ele não sabia como o Sr. Zacharias reagiria.

Se ele era realmente um policial, guarda de prisão ou o que fosse, poderia ameaçá­-lo para recuperar as chaves, mas Daniel estava com uma das mãos na maçaneta e pronto para pular do carro se fosse necessário.

Kyle, com certeza, correria mais que esse cara.

E você?

Embora não fosse tão rápido quanto seu amigo, baseado em seu desempenho no futebol e nos lances suicidas do basquete, estava convencido de que seria capaz de fugir.

O Sr. Zacharias pode ter se dado conta da mesma coisa, pois não tentou tomar­-lhe as chaves, mas apenas disse:

– A despeito do que a maioria das pessoas desse hospital pensa, você não é perigoso. A pessoa que levou seu pai é.

– E quem é?

– Não tenho certeza, mas com base na quantidade de sangue que acharam no local, seu pai foi seriamente ferido e...

– Quem é? Quem o atacou?

– Acho que foi um homem transferido da Penitenciária Estadual de Derthick ontem.

– O que você levou para o Instituto Traybor?

O Sr. Zacharias o olhou com curiosidade.

– Como você soube disso?

– Eu estava lá.

– Você esteve... Ah, os cachorros. Era você que eles estavam procurando.

Daniel não mencionou que Nicole também tinha estado lá.

– Eu vi você. O cara estava algemado quando você o levou para dentro. Você está dizendo que... o quê? Ele fugiu?

– Daniel, não vai demorar para eles encontrarem este carro e, quando encontrarem, vão levá­-lo de volta para o hospital e, dessa vez, você não será vigiado por alguém que está do seu lado... posso lhe garantir isso. Mas eu estou do seu lado. Acredite. Dê­-me as chaves. Vou lhe contar o que sei durante o caminho.

– Caminho para onde?

– De volta a Beldon.

Fosse quem fosse o Sr. Zacharias, ele ajudara Daniel a fugir do hospital psiquiátrico e estava se oferecendo para levá­-lo embora dali. Era bem verdade.

Embora não tivesse certeza de quanto deveria confiar nele, Daniel se convenceu de que os seguranças do hospital estariam ali a qualquer momento e, se conseguissem levá­-lo de volta, com certeza o vigiariam muito mais que antes.

Pelo retrovisor, viu uma lanterna brilhar no final do edifício, apontar para o carro e então alguém correndo na direção deles.

Tudo bem.

Hora de ir embora.

Entregou as chaves.

– Vamos dar o fora daqui.

O Sr. Zacharias ligou o carro e se afastou, mantendo as luzes desligadas até que estivessem três quarteirões adiante.

– Muito bem – disse Daniel. – Agora me conte o que está acontecendo.


31

­-Você disse que esteve no Instituto Traybor – começou o Sr. Zacharias, avançando pelas ruas da periferia da cidade. – O que você sabe sobre ele?

– Em primeiro lugar, eles não estão estudando peixes lá.

– Por que você diz isso?

– Boa pergunta. Tem alguma coisa a ver com cronobiologia, não é mesmo?

– Você está começando a me impressionar de verdade. O que mais você sabe?

– O Dr. Waxford não é especialista em peixes. Ele estuda como os seres humanos se relacionam com a passagem do tempo e como a processam. Mas não entendo o que isso tem a ver com o prisioneiro que você estava levando para o instituto.

O Sr. Zacharias levou um momento para reorganizar seus pensamentos e disse:

– Bem, como você deve saber, a pena de morte está ficando cada vez mais rara hoje em dia. Como resultado, alguém pode ser sentenciado à prisão perpétua ou mesmo a quatrocentos ou quinhentos anos por ser um serial killer. Mas eles, obviamente, não cumprem todo esse tempo pois morrerão antes disso. Podem cumprir trinta, talvez quarenta ou mesmo sessenta ou setenta anos... mas isso é apenas uma fração de sua verdadeira sentença.

Daniel não conseguia ver aonde ele queria chegar.

– Então, entra a cronobiologia. Vocês estão procurando uma maneira de fazer com que centenas de anos pareçam ter passado para alguém. Para que essa pessoa sinta, em sua mente, essa passagem de tempo.

– Eu não estou procurando a maneira de fazer isso. Estou à procura de um modo de detê­-lo... mas, sim, a pesquisa é a respeito disso.

– Você está procurando detê­-lo?

– O grupo para quem trabalho é que está.

– Que grupo é esse?

– Isso é uma coisa que eu não posso lhe contar.

Por que isso não o surpreendeu?

– Você tem um dom, Daniel. Sabemos o que tinha acontecido com a Emily. De como conseguiu juntar as peças depois que ela foi morta.

– Como é que vocês sabem dessas coisas? Nem eu mesmo sei como fiz aquilo.

– Acho que eu devia ter dito que sabemos o que você fez, mas não como fez, pois essa é uma das coisas que estamos interessados em discutir com você. Achamos que você pode nos ajudar a localizar pessoas, pessoas desaparecidas, talvez resolver casos antigos.

– Como é que souberam de mim?

– Uma fonte.

– Uma fonte?

– Sim, e estivemos monitorando você.

– Me monitorando? Como? Pelas minhas pesquisas na internet?

– E e­-mails, atualizações, mensagens, fotos compartilhadas. Com a tecnologia como está hoje, você acha mesmo que a privacidade ainda existe?

– Então vocês andaram me espionando?

– Estivemos recolhendo dados.

Maneira elegante de disfarçar a coisa.

Daniel, mais uma vez, tentou fazê­-lo se abrir e dizer para quem trabalhava, mas o Sr. Zacharias continuou evasivo; então, desistiu.

– Você disse que sou intuitivo, mas não sou. Não sou especial. Sou apenas um cara normal que está começando a enlouquecer, a perder o controle da realidade.

– Ah, você é mesmo especial de uma maneira que nem percebe.

– Ainda não entendo por que você diz isso.

– Eu sou real? Estou aqui? Estou aqui agora?

– Claro.

– Como é que você sabe?

– Porque você está ao volante e eu, não. Não estaríamos indo a lugar nenhum se você realmente não estivesse aqui, se não estivesse dirigindo o carro de verdade.

– Mas não é possível que você ainda esteja no hospital e imaginando isto tudo, ou sonhando, ou tendo outra distorção?

Daniel franziu o cenho para o Sr. Zacharias.

– Eu nunca lhe mencionei o que sinto com esse nome.

– O quê?

– As minhas visões, alucinações, ou seja lá o que for. Como você sabe que as chamo de distorções?

– Pesquisa.

– Pesquisa?

– Isso mesmo. E, por enquanto, vamos chamá­-las assim.

– E quanto à Nicole? Como ela descobriu que eu estava no hospital?

– Eu lhe mandei uma mensagem.

– Então, ela sabe quem você é?

– Foi enviada anonimamente.

Isso tinha acontecido muito naquela semana.

– Você também me mandou mensagens? Assinadas “Madeline”?

– Não – disse ele, abanando a cabeça. – Isso não fui eu. Você vai precisar de um lugar para passar a noite.

– E você?

– Eu me arrumo, mas preciso cuidar de algumas coisas. Temos que encontrar um lugar onde você esteja a salvo.

A princípio, Daniel pensou que talvez pudesse ficar em sua própria casa, mas então percebeu que esse provavelmente seria o primeiro lugar em que os guardas o procurariam quando descobrissem que tinha fugido do hospital psiquiátrico.

Suas duas melhores opções eram a casa de Nicole ou a de Kyle. Nicole morava com os pais, mas Kyle tinha só a mãe com quem se preocupar.

– Deixe­-me usar seu telefone – disse Daniel. – Preciso fazer uma chamada.

 

 

32

12h02

Kyle atendeu prontamente e, depois de Daniel contar o que havia acontecido, disse:

– Então, alguém de uma nebulosa organização secreta foi mandado para ajudá­-lo a fugir de um hospital psiquiátrico e agora quer proteger você porque está interessado em suas habilidades psíquicas para resolver crimes?

– Bem, quando você diz as coisas desse jeito...

– Amigão, você percebe o quanto isso parece maluco?

– Vamos evitar esse termo por enquanto...

– Qual?

– Maluco.

– Eu só estou dizendo...

– Eu sei, mas confie em mim. Precisamos encontrar meu pai, e os guardas acham que eu tenho alguma coisa a ver com o desaparecimento dele. Se eles me pegarem, vão me prender... especialmente agora que eu me mandei do hospital psiquiátrico. Preciso de um lugar para passar a noite. Posso ficar na sua casa?

– Claro, sem problema – disse Kyle, parecendo se afastar um pouco do telefone, mas logo voltou e disse: – Esse espião, guarda, ou seja lá quem for, também precisa de um lugar para passar a noite?

– Ele é real, Kyle.

– Eu não disse que não era – respondeu ele, mas Daniel sentiu uma pontinha de dúvida na voz do amigo.

– Ele vai falar com você.

Daniel passou o telefone.

– Meu nome é Malcolm Zacharias, e Daniel está dizendo a verdade. Estou aqui e sou bastante real, posso lhe garantir – disse ele e passou o telefone para Daniel.

– Convencido? – perguntou Daniel a Kyle.

Ele demorou a responder.

– Então, vai ser só você?

– Só eu.

– Como você vai chegar aqui?

– O Sr. Zacharias vai me levar.

– Bem... diga­-lhe para estacionar no fim da rua, para que mamãe e Michelle não acordem. Encontro você na porta da frente.

Instituto Traybor
9 quilômetros de Beldon, Wisconsin

Para manter a impressão de que o Instituto estava engajado no estudo de peixes, havia quatro grandes tanques para a criação de trutas e dourados na parte central do edifício.

Entretanto, a verdadeira pesquisa ficava no subsolo, em salas que não apareciam nas plantas.

Apesar de seus sessenta e poucos anos, o Dr. Waxford nem pensava em aposentadoria. Ele entrou rapidamente na sala de descanso e, sem colocar dinheiro na máquina de salgadinhos e doces, apertou a combinação D134 e deu um passo para trás.

Em vez de lhe oferecer algo para comer, a máquina girou para o lado automaticamente, revelando um conjunto de portas de elevadores de aço inoxidável.

Ele se inclinou para um leitor de retina ao lado delas e, depois de ser identificado positivamente, as portas se abriram e ele entrou no elevador.

Enquanto a máquina de salgadinhos e doces voltava para o lugar, ele apertou N3 no elevador, as portas se fecharam e ele começou a descer.

Enquanto passava pelos níveis inferiores N1 e N2, pensou na importância do trabalho que estava sendo desenvolvido ali.

Justiça.

Era tudo em nome da justiça.

Vinte e quatro anos atrás, seu irmão mais novo tinha sido assassinado por um psicótico que já era responsável pela morte de oito outras pessoas. Ele foi sentenciado a 450 anos de prisão.

Quando deu seu depoimento ao juiz durante o julgamento, zombou da dor das vítimas e das famílias, clamando que ele nunca sofreria tanto quanto elas.

O homem estava com 52 anos de idade e era um fumante inveterado quando foi preso. Ele morreu de um câncer de pulmão na cadeia menos de cinco anos depois.

Ele cumpriu apenas um nonagésimo de sua sentença.

Foi isso que levou o Dr. Waxford a se envolver naquela pesquisa.

Se os Estados Unidos da América quisessem ser um país governado por leis, se quisessem ser um lugar em que a justiça fosse verdadeiramente aplicada, então era preciso que se fizesse de tudo para garantir que o condenado cumprisse toda a sentença imposta a ele.

Ou, pelo menos, que eles vivenciassem os muitos anos de punição.

Era só a isso que ele agora se dedicava.

A verdade e a justiça duradoura.

O elevador parou.

Não, é claro que não havia uma forma de alguém ficar centenas de anos na prisão. Ninguém vivia tanto tempo, pelo menos ainda não. Algum dia, graças à nanotecnologia e à bioengenharia, isso poderia ser possível, mas isso estava algumas décadas à frente.

Nesse ínterim, por meio dos avanços da cronobiologia, tivemos a capacidade de fazer com que pareça a alguém estar cumprindo centenas de anos de prisão, ou mesmo de confinamento na solitária, em muito menos tempo.

As portas se abriram.

Não era uma punição cruel e incomum; era simplesmente a punição que os tribunais haviam legalmente determinado como justa e correta. Se a sentença não fosse justa, antes de mais nada, por que ela teria sido promulgada?

Mas nem todos pensavam de maneira avançada como o Dr. Waxford. Por esse motivo, sua pesquisa não estava, de momento, aberta à consulta pública.

Ele saiu do elevador e passou pela sala de operações.

Ela possuía uma maca removível, equipamento médico, monitoramento por computador e prateleiras contendo os vários instrumentos utilizados por ele em sua pesquisa.

E, é claro, muitos eletrodos para estimular as diferentes partes do cérebro de seus sujeitos de pesquisa que processavam a memória.

Ele estava acostumado a ouvir os gritos que vinham daquela sala.

Eles não o incomodavam.

Na verdade, ele vinha na expectativa de ouvi­-los.

Tudo em nome da justiça.

Agora, contudo, como não havia nenhum sujeito na sala, ela estava em total silêncio.

O prisioneiro em que ele vinha administrando seu tratamento havia fugido no sábado.

O Dr. Waxford foi até a câmara de segurança no final do corredor.

Os outros quatro sujeitos que tinham sido trazidos para o Instituto Traybor desde sua inauguração foram transferidos para outras prisões depois que o médico terminara suas pesquisas com eles, alguns ainda mentalmente intactos.

Outros, nem tanto.

Ele havia trabalho em dois outros locais nos últimos anos e tinha sido responsável por alguns dos maiores avanços no campo da cronobiologia.

Foi isso que chamou a atenção do Departamento de Defesa para sua obra.

Com relação às aplicações da cronobiologia, os militares tinham seus próprios objetivos, ligados à ampliação dos interrogatórios, mas ele não os consultou sobre isso. Eles tinham seu programa, e ele, o seu.

O Departamento de Defesa tinha uma agência secreta que há anos fazia experiências sigilosas para descobrir formas de alterar, implantar ou apagar as lembranças das pessoas, e como o Departamento estava ajudando a financiar seu projeto, ele pôde utilizar suas descobertas para ampliar sua pesquisa.

As coisas tinham avançado muito na última década.

Ele entrou no centro de segurança do instituto para rever os vídeos ali armazenados e tentar entender como o prisioneiro de número 176235 havia escapado.

Eis o que ele já sabia: entre 16h20 e 18h25 do sábado, o homem conseguira sair de sua cela no N2 antes de dominar dois guardas e fugir da prisão.

Ainda não estava claro como ele conseguira sair daquela cela e como tinha dominado os dois guardas com tanta facilidade – e como conseguira passar pelos cães lá fora –, mas, de alguma maneira, isso havia acontecido e agora ele precisava ser encontrado antes que fizesse algo que comprometesse sua pesquisa.

Era possível que ele tivesse recebido ajuda de fora. Um dos rifles de caça do Dr. Waxford – um Browning Automático 30­-06 – havia sido roubado de seu carro um mês e meio antes, e ele ficava imaginando se a brecha na segurança e aquela fuga estavam relacionadas. Ele não queria que nada passasse sem registo.

Seus funcionários não tinham sido capazes de descobrir o que havia acontecido no sábado, e agora, nessa noite, ele não conseguira dormir e decidira vir pessoalmente tentar resolver o mistério.

Sentou­-se diante da bancada de monitores dos computadores e acionou os vídeos da segurança para descobrir como o prisioneiro havia fugido.

Talvez isso o ajudasse a determinar onde ele estava agora.

O homem estava à solta e precisava ser monitorado, quaisquer que fossem as medidas necessárias.


33

Chegaram à casa de Kyle, e o Sr. Zacharias estacionou no final do quarteirão.

– Entro em contato com você amanhã – disse ele a Daniel.

– Estou sem telefone.

– O Kyle tem celular. Entro em contato com você pelo número dele.

– E você vai me ajudar a encontrar meu pai?

– Vou fazer tudo o que puder.

A frase era quase a mesma que o Dr. Fromke tinha usado quando prometeu a Daniel que faria o que pudesse para tirá­-lo do hospital, de modo que Daniel não achou as palavras do Sr. Zacharias tão tranquilizadoras quanto ele provavelmente tivera a intenção de que elas soassem.

– Quando você vai me mandar uma mensagem de texto, me ligar ou seja lá o que for?

– Isso vai depender. Tenho algumas coisas com que me ocupar pela manhã.

– Poderemos estar no farol.

– No farol?

– Na ilha Madeline. É uma longa história. Se você descobrir alguma coisa sobre meu pai, me passe uma mensagem imediatamente.

– Mando, sim.

Daniel saiu do carro e ficou observando Malcolm Zacharias se afastar em seu carro para onde passaria a noite.

***

Como Kyle havia dito, ele estava na porta da frente e Daniel o seguiu em silêncio até seu quarto no sótão.

– Vamos ser diretos – disse Kyle quando chegaram lá. – O cara que nós ajudamos a desatolar da neve é o que ajudou você a fugir do hospital psiquiátrico.

– É isso aí.

– Ele está do seu lado?

– Ele diz que está, mas, honestamente, não sei bem o que pensar. Só sei que ele me ajudou a escapar do hospital e, então, me trouxe para cá. No caminho, ele me contou o que estão fazendo no Instituto Traybor.

– Pesquisa de cronobiologia? Como nós pensamos?

– Isso mesmo. E para encontrar maneiras de fazer os prisioneiros cumprirem pena total, pelo menos mentalmente.

– Certo... ok... e... eu não sei o que isso significa.

Daniel recapitulou o que o Sr. Zacharias tinha lhe dito sobre o Dr. Waxford e sua pesquisa no sentido de fazer com que as pessoas sentissem que estavam passando centenas de anos na prisão.

– Mas como chamar isso de justiça? – perguntou Kyle. – Não parece mais... bem... tortura?

– Acho que eles argumentariam que não é certo que as pessoas não cumpram parte de suas sentenças – disse Daniel, que, durante o caminho, tivera tempo para pensar no assunto. – Que tipo de justiça existe em sentenciar as pessoas a cumprir um período de prisão que a gente sabe que elas não cumprirão? Só para dar uma sentença? Mas para quem? E você não acha que seria uma grande advertência para pessoas que estivessem para cometer crimes e soubessem que efetivamente passariam esse tempo confinadas na solitária se fossem presas?

– Está parecendo que você acredita nessa coisa toda.

– Não acredito, não... Só acho que... Bem, pelo menos agora sei de onde tudo está vindo.

– E eles estão fazendo isso com prisioneiros da Penitenciária Estadual de Derthick?

– Estão.

– E isso é legal?

– Não tenho ideia, mas, de qualquer modo, o Sr. Zacharias acha que o homem que eles transferiram de lá para o Instituto Traybor pode ter fugido e atacado meu pai.

– Mas, antes de mais nada, que tipo de crime o levou à prisão?

– Humm... eu não perguntei. Acho que devia ter perguntado.

Kyle pegou um saco de dormir para Daniel e o desenrolou no chão de seu quarto; em seguida, foi buscar um travesseiro extra.

Você devia ter tirado mais do Sr. Zacharias sobre o prisioneiro – por que fora preso, seu grau de periculosidade.

De antigas discussões com o pai, Daniel sabia que nas investigações de pessoas desaparecidas, as primeiras 24 horas são as mais importantes. Depois disso, as probabilidades definitivamente não ficam a nosso favor, pelo menos as de encontrar a pessoa ilesa.

Mas o papai já não está ileso, lembra? Nicole lhe contou que os exames provaram que o sangue era dele, e que havia muito sangue lá.

Daniel foi forçado a admitir: as probabilidades de encontrar seu pai vivo não eram boas.

Kyle voltou com um travesseiro e deu a ele uma camiseta e um calção de pijama. Daniel perguntou­-lhe:

– Você vai sair hoje?

– Minha mãe vai passar o dia com o Glenn, fazendo compras ou algo assim. Eu não sei. Eu tenho que tomar conta da Michelle enquanto ela estiver fora.

– A Mia não podia tomar conta dela por você?

– Não, ela vai para Eau Claire com a família.

– Oh, tudo bem... E a Nicole? Ela já tomou conta da Michelle uma vez.

– Tenho que conversar com minha mãe, mas, claro, isso seria legal. Por quê? O que está rolando?

– O farol. Precisamos ir até lá como tínhamos planejado para ontem. Agora é para lá que tudo aponta. Está ligado ao desaparecimento do meu pai... Eu não sei como, mas está. Precisamos encontrá­-lo, e a nossa melhor chance é começar por lá.

– E o Instituto Traybor? Você não acha que devíamos dar uma olhada lá primeiro?

Daniel balançou a cabeça.

– Se a pessoa que atacou meu pai efetivamente fugiu de lá, então por que voltaria para lá? Além disso, não parece que o Sr. Zacharias está trabalhando para eles, então nem tenho ideia de como entraríamos lá.

Mas, então, decidiu que Kyle podia ter razão.

– Acho que podíamos ligar anonimamente para a polícia, talvez lhes dar uma dica para procurarem no instituto. Quero dizer, isso não vai comprometer ninguém. Onde está o seu telefone?

Embora estivessem no meio da noite, se houvesse uma chance de seu pai estar lá, quanto mais cedo a polícia desse uma busca no lugar, melhor seria.

Kyle remexeu as coisas em sua escrivaninha e de lá tirou seu celular.

– Mas e se eles rastrearem a chamada? Vão encontrar você, levá­-lo de volta, talvez até prendê­-lo.

– Baixe o aplicativo que esconde o número de quem liga.

Daniel não tinha certeza se isso impediria que alguém da polícia interceptasse uma chamada, mas valia a pena tentar.

Kyle tocou na tela de seu celular, encontrou o aplicativo e o instalou.

– Seu pai é o xerife. Há uma boa chance de que reconheçam sua voz. Deixe que eu faço a chamada.

Ele discou o número da emergência e logo o operador atendeu. Kyle, com voz baixa e disfarçada, disse:

– O Instituto Traybor. Acho que foi para lá que levaram o xerife Byers. Procurem por ele.

E desligou antes que a pessoa do outro lado da linha pudesse responder. Aguardaram alguns momentos para se certificarem de que o atendente não ligaria de volta. Depois que o telefone permaneceu em silêncio, Kyle perguntou:

– O que fazemos agora?

– Vamos dormir.

– Ok. Pela manhã, a primeira coisa a fazer é contatar Nicole. Sei que ela tinha alguma coisa para fazer, mas se ela puder mudar seus planos e cuidar da minha irmã, vou conversar com minha mãe para poder ir com você para a ilha Madeline.

– Eles acham que machuquei meu pai ou talvez até o tenha matado. Você não pode contar a ela que está me ajudando.

– Estou pensando numa coisa.

– Eu não o esfaqueei, Kyle.

– Eu sei.

– É sério.

Uma ligeira pausa.

– Eu sei.

***

Enquanto revia as fitas da segurança, o Dr. Waxford recebeu um chamado da polícia, avisando que os guardas estavam do lado de fora do instituto e que tinham recebido uma chamada anônima dizendo que o xerife desaparecido poderia estar dentro do edifício.

– Posso lhe garantir que não há ninguém aqui – disse ele ao guarda.

– O senhor está no prédio agora?

– Estou.

– Bem, precisamos que o senhor abra o portão para darmos uma olhada.

Ele não se entusiasmou muito com a ideia, mas estava confiante que não descobririam as salas de pesquisa e não queria levantar suspeitas argumentando com eles.

– Tudo bem. Estou indo.

Quem teria lhes dito para procurar ali? Alguém de sua equipe? Não, isso não fazia nenhum sentido. Só um punhado de pessoas sabia do objetivo daquele lugar, e nenhuma delas teria um bom motivo para chamar as autoridades.

Então, quem?

O sujeito que fugiu? Será que ele está fazendo isso para que agentes da lei examinem o lugar?

Possivelmente.

Isso explicaria as coisas.

Ainda pensando no que os teria trazido até ali, o Dr. Waxford mostrou o local aos assistentes do xerife e os levou ao andar principal do edifício. Eles examinaram tudo cuidadosamente, mas não conseguiram descobrir o elevador. Por fim, quando se convenceram de que nada de suspeito estava ocorrendo ali e que o local estava vazio, agradeceram­-lhe pela atenção e foram embora.

Mas ele não foi.

Ele havia prometido a si mesmo que descobriria o que havia acontecido com o prisioneiro fugitivo e ia ficar ali o quanto fosse necessário para chegar à verdade.

Depois de voltar para o nível inferior 3, pegou um bule de café, tornou a instalar­-se diante dos monitores de computador e voltou a analisar os vídeos.


34

9h30

Daniel ficou em frente ao espelho do banheiro de cima da casa de seu amigo.

Na noite de sexta­-feira, durante o trajeto de ônibus para Coulee High, ele olhara pela janela e notara um débil reflexo causado pelas luzes fracas do interior do ônibus. A imagem tinha se sobreposto à que ele conseguia ver da paisagem banhada pelo luar lá fora, e as duas se fundiram, tornando­-se apenas uma no vidro do ônibus.

Duas realidades filtrando­-se, uma através da outra.

Tornando­-se uma.

Quando isso aconteceu, ele tinha assegurado a si mesmo que sabia a diferença entre o que era ou não real, mas desde então foi ficando cada vez menos seguro disso.

À sua revelia, os lobos do coração de Daniel atacaram­-se mutuamente.

O protagonista também pode ser o antagonista.

Todos desempenhamos papéis em nossas vidas.

Uma pessoa pode ser seu pior inimigo.

O médico e o monstro.

Ele olhou para seu reflexo.

Era apenas um espelho. Não dava para ver através dele. Não havia modo de ver outro mundo.

Mas, enquanto se olhava no espelho, pensando em Betty, nas mensagens, no farol e naquelas palavras, “Cova Perdida é a chave”, viu um machucado aberto no pescoço, um corte feio com cerca de 10 centímetros. Dele começou a verter sangue e deveria estar doendo muito, embora ele não sentisse nada.

Contudo, quando passou a mão por ele, olhou para os dedos, que tinham ficado manchados de sangue.

Então, a dor começou.

E não apenas no corte, mas também em seu interior.

Alguma coisa estava se mexendo lá dentro.

Daniel se inclinou para frente e girou a cabeça para que pudesse olhar bem o corte.

Quando fez isso, um verme negro surgiu, espesso, contorcendo­-se, coberto de sangue fresco.

Era o mesmo tipo de criatura que havia se arrastado para fora da folha de papel na noite de sexta­-feira e penetrado em seu braço.

O verme começou a descer em direção à gola de sua camiseta, mas ele o agarrou e sentiu­-o morrer liquidamente entre seus dedos.

Imediatamente, outros seis surgiram.

Ele conseguiu varrê­-los ou esmagá­-los, mas uma fila de outros se seguiu, saindo do corte, contorcendo­-se por seu pescoço e descendo para baixo da camiseta. Ele arquejou, arrancou­-os e tentou afastá­-los, mas outros começaram a subir pelo lado de sua cabeça, passando pelo queixo e em direção à sua boca.

Havia um número grande demais deles.

– Não – gritou ele quando um entrou em seu ouvido.

Ele o agarrou, mas o bicho se partiu na metade, e a parte que ficou livre avançou, desaparecendo em seu ouvido.

– Não!

Uma batida na porta.

– Daniel? Você está bem?

As palavras de Kyle penetraram através da distorção.

Que foi estilhaçada, espalhando imagens pelo ar.

Os vermes desapareceram.

Daniel piscou os olhos.

E mais uma vez.

Não havia nada lá.

Ele se olhou no espelho. Nenhum corte sangrando. Nenhum verme escuro se contorcendo. Nada além do normal. A sensação de comichão no pescoço desaparecera. Ele não sentia nada no canal do ouvido.

– Daniel? – repetiu Kyle.

– Oi – disse ele, se esforçando para a voz parecer calma. – Estou bem.

– Tem certeza?

Ele estava se examinando no espelho enquanto corria os dedos pelo pescoço íntegro, sem ferimento.

– Tenho.

Desde que as distorções ocorreram pela primeira vez, elas pareciam ser formas de seu subconsciente dizer­-lhe alguma coisa.

Ok, mas o que isso quis lhe dizer? Uma fileira de vermes negros saindo de seu pescoço? Boa sorte para decifrar essa distorção, Daniel.

Bem, de uma coisa ele sabia: a escrita da aula de inglês que criara vida e que se transformara naqueles vermes dizia respeito ao farol.

Então isso significa que você deve se apressar e ir até lá, ou ficar longe daquele lugar para sempre?

Ele não sabia, mas quanto mais estranhas as coisas ficavam, mais ele começava a se sentir como se estivesse se equilibrando na beira de um rochedo, não tendo certeza de quanto tempo aguentaria isso.

E sem ter certeza do que significaria para sua sanidade se se deixasse cair.

***

Quando Daniel voltou ao quarto, Kyle informou que Nicole conseguira dar um jeito em suas tarefas e vinha cuidar de sua irmã.

– Eu disse a minha mãe que queria ver você hoje. Ela ouviu dizer que você estava naquele hospital e me disse que seria bom visitá­-lo enquanto Nicole estivesse servindo de babá.

– Pelo menos você contou a verdade a ela.

– Já chega disso. Ela saiu para encontrar o Glenn. Nicole vai estar aqui a qualquer momento. Ah, e eu entrei em contato com meu tio: podemos ir a Bayfield. Ele tem um barco a remo esperando por nós. Disse que há um pouco de gelo em torno da ilha, mas acha que vamos conseguir nos aproximar o suficiente para pelo menos dar uma olhada no farol, mesmo que não consigamos desembarcar.

– Isso pode não ser suficiente.

– Pode ser que seja a única coisa que vamos conseguir fazer. Duvido que o gelo esteja suficientemente espesso para podermos caminhar sobre ele.

Alguns minutos depois, a campainha da porta anunciou que Nicole tinha chegado.


35

Assim que subiu para o quarto de Kyle, Nicole abraçou Daniel.

Era tão bom abraçá­-la daquele jeito, como uma âncora que o trouxesse de volta ao real. Ele a abraçou com mais força e, pelo menos por um instante, parou de pensar em distorções, hospitais psiquiátricos e o pai desaparecido.

Ali estava alguma coisa de bom, de certo, e ele não queria que nada pudesse separá­-lo disso.

Por fim, ela se afastou e lhe perguntou, num só fôlego, como ele estava se sentindo, como tinha escapado do hospital, se sabia alguma coisa do pai e como tinha conseguido voltar para Beldon.

Kyle foi para a sala de visitas para olhar Michelle, enquanto Daniel punha Nicole a par de tudo.

Ela ouviu atentamente enquanto ele lhe contava sobre o Sr. Zacharias e sua teoria de que o homem trazido da prisão havia fugido e ido atrás de seu pai.

– Então – disse ela –, esse Zacharias transportou o prisioneiro para o instituto e agora está trabalhando contra eles? Isso faz sentido para você?

– Não estou certo de que isso tudo se encaixa, mas sinto que ele quer realmente me ajudar a encontrar meu pai.

– Ele vai ficar bem, certo? Quero dizer, o seu pai.

– Não se preocupe. Eu vou encontrá­-lo – respondeu Daniel, que quis dizer mais, quis prometer a ela que seu pai ia ficar bem, claro que ia, mas não teve forças para dizer tudo isso. Na verdade, ele sequer sabia se o encontrariam, mas sentiu que precisava dizer alguma coisa a ela, e tranquilizá­-la, ainda que minimamente, parecia a coisa certa a ser feita.

– Sim – disse ela, concordando com um movimento de cabeça. – Tudo bem.

– Acho melhor Kyle e eu irmos andando.

Ele esperou no topo da escada, atrás do corrimão, enquanto Nicole descia para cuidar de Michelle.

A menina de 4 anos conhecia Nicole das outras vezes que a jovem trabalhara como babá para a Sra. Goessel, e foi diretamente até ela, pegou­-a pela mão e perguntou se ela queria ver seu novo bicho de pelúcia chamado Pinguim.

– O seu bichinho se chama Pinguim?

– Isso mesmo – disse Michele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. – Eu mesma dei esse nome a ele.

Depois que as duas entraram no quarto de Michelle e a porta se fechou, Kyle fez sinal para que Daniel se juntasse a ele.

– Você precisa de alguma coisa antes de irmos?

As únicas roupas de Daniel eram as que estava usando desde que saíra do hospital.

– Se vamos para o lago Superior, vou precisar de umas roupas mais quentes.

Enquanto estavam se encaminhando para a porta, Daniel se deteve.

Ele não tinha conversado com a mãe desde que o pai desaparecera e achou que devia falar com ela, informá­-la, mas quando mencionou isso, Kyle replicou:

– E se ela contar para a minha mãe que você ligou para ela? Não entre em contato com ela ainda. Deixe as coisas como estão.

– Se ela ainda não soube, logo vai saber que eu fugi daquele hospital psiquiátrico. Ela já tem meu pai com que se preocupar. Não quero que ela entre em pânico quando souber que eu também estou desaparecido.

– Cara, ela foi embora. O problema é dela, e não seu.

– Ela só foi para a casa do irmão para passar o Natal.

– Você sabe o que eu quero dizer.

– Ela tem o direito de saber o que está acontecendo. É minha mãe.

– Bem, com certeza ela não tem agido como uma.

Palavras duras. Apenas alguns dias antes, o próprio Daniel podia pronunciá­-las, mas quando falou com a mãe no sábado, ela lhe contou que tinha ido embora para protegê­-lo e a seu pai.

Ela também vê coisas. Ela sabe como é.

Daniel não contara nada disso a Kyle ainda e não estava com vontade de explicar tudo agora.

– Entendo o que você está dizendo, mas há muitas coisas acontecendo. Eu preciso que ela saiba que estou bem.

Kyle, finalmente, concordou.

Para impedir que sua mãe descobrisse que estava com Kyle, quando Daniel a chamou, usou o aplicativo que escondia o número de quem ligava.

Ela não atendeu. Quando caiu na caixa postal, ele deixou uma rápida mensagem: “Mamãe, o que estão dizendo que fiz com papai... não é verdade. Eu não o machuquei. Estou bem e vou encontrá­-lo. Prometo”.

Quando desligou, deu­-se conta de que, nos últimos cinco minutos, tinha prometido a duas pessoas que ia encontrar o pai, mas não tinha a mínima ideia de como cumpriria essa promessa.

***

O xerife Byers abriu os olhos.

Não conseguiu ver muito, mas com a luz que vinha por baixo da porta, a cerca de 3 metros de distância, conseguiu perceber que, com exceção da cama com grade de metal em que estava deitado, encontrava­-se em um quarto vazio e sem janelas.

Tentou se levantar, mas uma dor lancinante no lado direito o impediu e ele se deixou tombar na cama.

Baixando os olhos, viu que sua camisa havia sido removida e parte de seu tronco havia sido enfaixada. O lugar em que tinha sido esfaqueado recebera um curativo recente.

Alguém tinha algemado seu pulso esquerdo na grade da cama.

Como você chegou aqui?

Lembrou que tinha sido atacado, sim, mas não sabia quanto tempo tinha se passado desde então. Contudo, teve a sensação de que estivera oscilando entre consciência e inconsciência por um bom tempo.

Talvez tivesse sido drogado.

Como seu peito estava enfaixado, isso significava que quem quer que o tivesse trazido até ali estava tentando mantê­-lo vivo, pelo menos por enquanto.

Interessante.

Um resgate?

Possivelmente.

Onde você está? O que está acontecendo? Mantenha o seu controle.

O quarto cheirava a pinho, com um toque de fumaça de madeira que vinha de uma lareira ou de uma fornalha, e, sob a luz fraca, conseguiu notar que as paredes eram feitas de toras.

Depois de ter trabalhado em defesa da lei naquele distrito por quase vinte anos, ele conhecia muitas das casas da área. Pelo que podia notar, nunca estivera naquele local.

Examinando a cama, viu que seus pés tinham sido presos ao chão para impedir que ela se movimentasse.

Ficou ouvindo.

Havia alguém no cômodo ao lado. Parecia que ele ou ela estava mexendo num armário de potes e panelas.

No sábado à noite, no momento antes de ter sido esfaqueado, reconhecera o homem que o estava atacando, e agora imaginava se era a mesma pessoa que estava no outro aposento.

Brandon Hollister: um assassino que ele prendera dois anos antes.

Tinha vinte e poucos anos e tinha sido uma das más influências sobre Ty, o filho de Lancaster Bell.

Mas ele era inteligente e entrara para a faculdade de Medicina.

Certa noite, quando voltava para passar o fim de semana em casa, esfaqueou um vizinho numa briga de bar depois de os dois terem bebido demais.

A vítima veio a falecer, e a alegação de Hollister de que havia sido autodefesa não convenceu o júri. Ele pegou prisão perpétua, mais cinquenta anos por lesão corporal grave, assassinato em primeiro grau e uma série de outras acusações relacionadas com fuga e resistência à prisão depois do incidente.

Como ele havia escapado da Penitenciária Estadual de Derthick era um mistério para o xerife, bem como o fato de que nenhuma notícia sobre a fuga havia sido divulgada na tarde ou na noite do sábado.

Por que a penitenciária não teria comunicado a fuga às autoridades policiais?

A menos que não soubesse que o cara tinha escapado.

Mas como isso teria acontecido?

E se Hollister está agindo por vingança por você tê­-lo preso, por que o teria enfaixado em vez de apenas deixá­-lo morrer?

O xerife Byers sentiu­-se tentado a chamar a pessoa que estava na casa com ele, mas se deu conta de que, se fosse Hollister, seria melhor não deixar que soubesse que ele estava consciente. Era melhor passar algum tempo avaliando a situação e tentar descobrir uma maneira de sair dali.

Seu revólver e seu rádio tinham sumido, bem como as chaves das algemas.

Tudo bem.

Prioridades: ficar quieto para impedir que o corte da faca se abrisse e tentar pensar numa maneira de se livrar das algemas.


36

Kyle e Daniel almoçaram rapidamente no caminho e chegaram a Bayfield faltando quinze minutos para o meio­-dia. Estacionaram diante da loja de aluguel de barcos às margens do lago Superior.

Bem atrás do prédio, o lago se espalhava escuro e agourento em direção às ilhas. Daniel conseguiu ver apenas uma delas a alguns quilômetros da margem, e embora não tivesse certeza de qual era, tendo estudado os mapas on­-line no dia anterior, imaginou que provavelmente era a que eles procuravam, a ilha Madeline.

Embora a maior parte do lago estivesse livre do gelo, havia alguns blocos espalhados, e parecia que uma estreita faixa congelada rodeava a ilha e ia até a costa, próxima à loja de Larry. Parte dela desaparecia perto de seu embarcadouro, onde ele aparentemente havia limpado o gelo para que seus barcos fossem para o lago.

Um pequeno barco com motor de popa os aguardava.

– Muito bem – disse Daniel ao se aproximarem da porta dos fundos –, não podemos contar a ele que está emprestando um barco para alguém que acabou de fugir de um hospital psiquiátrico.

– Ou alguém que foi encontrado coberto de sangue numa cena de crime da qual seu pai estava ausente – acrescentou Kyle.

– Também isso.

Larry tinha se alistado no Corpo da Paz* depois de se graduar em agronomia. Foi voluntário na África durante dois anos antes de voltar aos Estados Unidos e mudar­-se para lá, trabalhando para o homem que era dono daquela loja de aluguel de barcos. Um ano depois, esse homem morreu num acidente com um veículo de locomoção no gelo. Como não tinha família, o negócio ficou para Larry, que desde então passou a administrá­-lo.

Daniel não o conhecia, apenas ouvira falar dele, e agora, quando o tio de Kyle abriu a porta, teve a sensação de que ele estaria mais bem instalado numa praia da Jamaica, e não numa cidadezinha do norte de Wisconsin. Usando uma camiseta tingida, dreadlocks e óculos de armação escura, ele parecia uma mistura de hippie de praia e contador.

Depois de calorosos cumprimentos, convidou­-os a entrar.

Kyle limitou­-se a apresentar Daniel como amigo, não como alguém que tinha alucinações, ouvia os mortos falarem ou tinha crises de sonambulismo carregando facas de caça pela casa.

Melhor prevenir do que remediar.

– Vão em frente – disse Larry amigavelmente. – Bem, como hoje não temos vento, vocês não vão ter problemas. São pouco mais de 3 quilômetros até a ilha Madeline. Eu testei o motor e ele está funcionando perfeitamente, mas o barco tem remos caso vocês tenham algum problema. Vocês sabem como faz frio por lá, portanto, não vão fazer nenhuma bobagem. Ah, o barco também tem coletes salva­-vidas: quero ver os dois usando­-os agora mesmo.

Kyle concordou com um aceno de cabeça.

– Tudo bem.

– Digam outra vez por que vocês precisam ir até... não, esperem, não me contem. Eu provavelmente não quero saber... ou será que quero?

– Tem a ver com um dos meus parentes – replicou Daniel.

– Ele era faroleiro lá do farol da Cova Perdida.

– Sério?

– Sim.

– Aquele lugar está desativado há anos.

– Isso foi na década de 1930.

– Humm...

Daniel não conseguiu perceber o que Larry poderia estar pensando.

– Ninguém vai mais lá – observou Larry.

– Acabamos de saber da existência dele. Não queremos esperar até a primavera para ver onde ele trabalhava.

Isso soou convincente.

– Então, é curiosidade?

Daniel e Kyle trocaram um olhar.

– Isso mesmo – replicou Daniel.

Larry fez um gesto interrogativo para Kyle.

– E a sua mãe? Ela concordou com isso?

Ele abriu a boca como se fosse responder, mas tornou a fechá­-la.

– A­-ha – disse Larry, avaliando essa hesitação. – Bem, está na cara que há mais coisa por trás disso, mas vou optar por um silêncio plausível... desde que vocês me prometam que vão tomar cuidado por lá.

– Prometemos – assegurou­-lhe Daniel.

***

No ancoradouro, Larry entregou um colete salva­-vidas a cada um deles e, em seguida, mostrou os remos do barco.

– Ele foi projetado para ser mais estável que rápido. A maioria das pessoas vem aqui e querem ficar zanzando pelas ilhas durante um ou dois dias. Minha preocupação é a segurança delas.

– Certo – respondeu Kyle.

Larry pegou uma bússola e um mapa das ilhas no bolso do colete.

– Se vocês só vão à Madeline, não vão precisar do mapa, mas há uma grande possibilidade de nevar, e a visibilidade pode ficar limitada. Vocês vão estar bem, mas se começar mesmo a nevar, é só seguir reto para leste. O farol fica na ponta norte da ilha, do outro lado de uma baía.

– Ótimo – disse Daniel, aceitando a bússola e também o mapa. – Obrigado.

– Espero que vocês encontrem o que estão procurando.

– Eu também.

Ele e Kyle entraram no barco.

Embora Daniel estivesse familiarizado com o manejo de um motor de popa, deixou que Larry lhe mostrasse as etapas de funcionamento.

Então, partiram.

Bem na hora em que a neve começou a cair.

***

Nicole Marten estava preocupada com o namorado.

Era tudo tão estranho...

Ela gostava muito dele, mas também estava assustada com as coisas que aconteciam a ele: as alucinações, o sonambulismo, as bizarrices, as terríveis distorções.

Ela nunca teve medo dele, não era isso. Ela acreditava que havia um motivo maior por trás de tudo que estava acontecendo, embora não soubesse o que poderia ser.

Mas, naquele momento, mais do que preocupada com Daniel, estava apreensiva quanto ao pai dele.

Antes de sair da casa dos Goessel, Daniel tinha lhe garantido que encontrariam seu pai a tempo, mas ela percebeu que de nenhum modo ele podia garantir isso, que ninguém podia.

Mesmo assim, por algum motivo, ouvi­-lo dizer isso ajudava; pelo menos um pouco.

Agora, enquanto brincava de tomar chá com Michelle, rezava para que Daniel estivesse a salvo no lago, e também pelo pai dele; que ele ficasse bem até que alguém o encontrasse e o ajudasse.

No fundo de sua mente, ela também pensava nas distorções de seu namorado, no instituto de pesquisa e na matança dos lobos.

De alguma forma, parecia que tudo estava ligado.

Se Daniel ia se concentrar na descoberta do paradeiro do pai e a matança dos lobos estava ligada com todo o resto, talvez ela pudesse ajudar tentando resolver esse mistério.

Naquele momento, não sabia como poderia fazer isso, porém mais tarde, quando colocasse Michelle para dormir, talvez pudesse entrar na internet, rever as informações que eles tinham sobre a localização dos lobos mortos e ver se poderia descobrir alguma coisa que tivesse passado despercebida.

* Agência federal americana, criada em 1961 pelo presidente John F. Kennedy para ajudar países em desenvolvimento por meio de serviços essenciais. (N.T.)


37

A superfície escura e ameaçadora do lago absorvia avidamente os flocos de neve assim que eles caíam sobre ela.

Enquanto Daniel manejava o motor, Kyle controlava os blocos de gelo.

Por causa do barulho do motor, nenhum deles falava muito, mas Kyle apontava sempre que via um bloco de gelo, e Daniel o evitava.

Estar ali na água lembrou a Daniel as excursões de pescaria e canoagem que tinha feito com o pai, e começou a se preocupar com ele novamente.

Onde estará ele? O que realmente lhe aconteceu?

Dúvidas relacionadas ao desaparecimento do pai o atormentavam.

Quem ligou para a emergência quando ele foi atacado? Por que você não consegue se lembrar se estava lá? Se esse prisioneiro que fugiu realmente o esfaqueou, para onde o levou? Por quê?

A neve que caía acabou por tornar impossível ver a ilha, mas, com a ajuda da bússola, logo encontraram a linha da costa coberta de gelo e a seguiram em direção norte até a baía onde Larry lhes dissera que o farol se localizava.

Daniel diminuiu a rotação do motor para que ele e Kyle pudessem conversar.

– Ei, eu tenho uma pergunta para lhe fazer – disse ele. – É uma coisa que tem me deixado curioso há muito tempo.

– O que é?

– Por que você não pratica nenhum esporte? Quero dizer, já vi você correr. Provavelmente, você se classificaria para o cross country ou mesmo para o campeonato de trilhas, se quisesse.

– De onde saiu essa pergunta agora?

– Eu estava pensando na noite de ontem, no quanto eu gostaria de correr com rapidez. Por isso a coisa me veio à mente.

– Na noite de ontem?

– Eu peguei as chaves do Sr. Zacharias quando estávamos no carro. Pensei que talvez tivesse que correr mais rápido do que ele e vi que você não teria nenhum problema em fazer isso. De qualquer modo, fico imaginando o seu desempenho em trilhas e no cross country. Mas se você não quer falar sobre isso, tudo bem.

– Acho que tudo bem... se eu contar para você, quero dizer – disse Kyle, olhando para o lago em silêncio por um longo tempo antes de prosseguir. – Tem a ver com uma coisa que aconteceu quando eu era pequeno. Na época, eu jogava beisebol.

– Não sabia que você já jogou beisebol.

– Bem, não joguei durante muito tempo. Eu era ruinzinho, e todo mundo sabia disso, inclusive o meu pai. Num jogo, eu estava prestes a rebater e nós estávamos perdendo. Era a nona entrada. Meu desempenho seria decisivo para o nosso time. Pode parecer clichê, mas é verdade. Meu pai estava assistindo ao jogo quando recebeu uma mensagem do hospital. Ele deve ter pressentido que eu não conseguiria correr até a base, pois saiu para atender. Mas eu não percebi que ele tinha saído.

O pai de Kyle tinha sido médico da unidade de emergência, e Daniel ficou imaginado qual teria sido a seriedade do chamado. Talvez ele precisasse mesmo sair; talvez apenas preferisse sair por saber que o filho falharia.

Daniel manobrou o barco em torno de uma placa de gelo quase do tamanho de um carro.

– Então – prosseguiu Kyle –, como eu disse, achei que ele ainda estivesse lá. Eu consegui rebater a bola e corri o mais rápido que pude até a base, achando que meu pai ainda estivesse assistindo ao jogo. Foi o melhor desempenho que eu já tive em beisebol.

– Então, você conseguiu marcar para o time.

– Consegui.

– E seu pai não estava lá para ver.

– Isso mesmo. Quando eu estava voltando, olhei para onde ele devia estar sentado e não havia ninguém lá. Não consegui localizá­-lo em nenhum lugar e percebi que ele não tinha presenciado o meu sucesso. Fiquei tão desapontado que só olhava para o chão e perdi completamente o interesse pela partida.

Em silêncio, ele apontou para um bloco de gelo de quase dois metros e Daniel o contornou.

– Mais tarde, ele se desculpou quando soube que havia perdido o meu bom desempenho – concluiu Kyle. – Nunca contei a ele como me senti naquele dia. Não queria que ele se arrependesse de ter saído, mas também não queria que ele ficasse decepcionado comigo; meu sucesso tinha sido uma casualidade que não tornaria a se repetir. Eu não quis tornar a desapontá­-lo e, assim, desisti dos esportes, de todos eles. Depois que ele morreu, há dois anos, num acidente de carro, eu simplesmente... bem, simplesmente não consegui me dedicar a nenhum esporte.

– Acho que ele ficaria orgulhoso se você corresse.

– É difícil dizer. Mas é por isso que eu não ouso. E é isso. Agora você sabe.

A conversa terminou de um modo um tanto desajeitado e abrupto.

Enquanto passavam em silêncio pelo gelo que cercava a ilha, a neve começou a se acumular nos assentos do barco.

Então, ao chegarem perto da enseada, avistaram o farol pela primeira vez.


38

O farol se erguia numa ponta rochosa do outro lado da enseada.

A construção tinha sido pintada de branco havia muito tempo, mas, com o passar dos anos, a pintura descascara e se soltara, depois de ficar exposta ao sol e ao vento inclemente que vinha do outro lado do lago.

Com sua pesquisa, Daniel soubera que a torre se erguia cerca de 35 metros acima das rochas. A casa do faroleiro estava conectada à sua base e parecia estar abandonada há tanto tempo quanto o farol.

Um arrepio perpassou a espinha de Daniel.

Ela era real?

Ela realmente morreu aqui?

Ele não sabia, mas estava começando a considerar seriamente a possibilidade de que Jarvis Delacroix tivesse apenas imaginado a garota, que ela teria nascido da insuportável solidão que sentia por estar preso sozinho naquela ilha.

O terreno ao redor do farol estava coberto por vários centímetros de neve. A ilha era fustigada pela neve que caía sobre o lago, e Daniel ficou imaginando quanta neve ficaria acumulada ali no final do inverno.

Uma cerca de tela de metal circundava a propriedade para manter longe os invasores, mas o farol só era acessível da margem – pelo menos do que seria a margem se não estivesse coberta por um anel de gelo de 9 metros de largura, que isolava a ilha.

De onde estavam, era impossível dizer qual era a espessura dele.

Daniel desligou o motor do barco para que ele e Kyle pudessem conversar com mais facilidade, e seu amigo pegou os remos para avançarem até o anel de gelo.

– Tudo bem – disse Kyle –, parece que estamos presos aqui, mas, pelo menos, podemos dar uma olhada no farol. Ele o faz lembrar alguma coisa?

– Na verdade, não... exceto o que lemos no diário de Jarvis Delacroix sobre a Betty morrendo ali embaixo. Acho que preciso entrar no farol.

– Como é que você vai fazer isso?

– São só 9 metros.

– Nove metros são nove metros, cara.

– Vamos ter que atravessar o gelo.

– Quando você diz “nós”, quer dizer “nós” como “você”, ou “nós” como “você e seu amigo que hoje não está muito disposto a morrer afogado”?

– Tenho uma ideia, mas ela quer dizer “nós” como “eu”.

– Falando sério, acho que o gelo não está grosso o bastante para podermos caminhar sobre ele.

– Eu não vou caminhar sobre ele.

– E como vai fazer a travessia?

– Eu preciso distribuir o meu peso.

– Sim, seria ótimo se tivéssemos um par de esquis ou algo semelhante. Então, você poderia tentar, mas...

– Bem, nós temos algo bem aqui conosco.

– O quê?

– Passe­-me esses remos.


39

­-Os remos? – disse Kyle. – Você está de brincadeira.

– Se eu me ajoelhar nas pás e me apoiar nas hastes, posso deslizar com eles, um de cada vez.

– E então... se arrastar no gelo com as pás distribuindo seu peso?

– Isso aí.

– É loucura.

– Já combinamos de não usar essa palavra.

– Aqui ela se aplica.

Daniel se inclinou sobre a amurada do barco e tocou a ponta do gelo, mas sentiu que ele só tinha uns dois centímetros de espessura ali, o que significava que era fino demais para suportar seu peso, mesmo se ele usasse os remos.

De algum modo, a água parecia ainda mais fria que o gelo.

Mesmo sem querer, Daniel tremeu quando balançou a mão para se livrar das gotas.

– Eu não lhe disse? – comentou Kyle.

Daniel apontou para um ponto mais abaixo da enseada.

– Vamos olhar lá, ver se é mais espesso.

Embora não parecesse entusiasmado com a ideia, Kyle remou enquanto Daniel checava o gelo em intervalos regulares; por fim, cerca de 30 metros à frente, encontrou um local em que o gelo fino tinha se partido e fora levado pela água. O gelo que ficara tinha vários centímetros de espessura.

– Pare – disse ele a Kyle. – Aqui parece bom.

Daquele ponto, o gelo se estendia até quase 12 metros em direção à borda rochosa da ilha.

Daniel ouvira dizer que a profundidade média do lago era de mais de 120 metros, de modo que, mesmo tão perto da borda, duvidou que a corda da âncora fosse suficientemente longa. Contudo, precisavam fazer alguma coisa para manter o barco no lugar.

Tentou a âncora e, felizmente, depois de cerca de 15 metros de corda, ela atingiu o fundo do lago.

Ele deu um pouco mais de corda para que se mantivessem no lugar.

– Ok – disse Kyle –, vamos imaginar por um minuto que você não vai quebrar o gelo e se afogar.

– Eu sou bom nisso.

– E se você encontrar alguma coisa lá no farol? Como vai trazê­-la de volta se arrastando no gelo?

– Esse vai ser um bom problema. Vou pensar nele quando chegar a hora.

Depois de entregar o mapa e a bússola para o amigo, Daniel colocou um dos remos no gelo com a pá paralela ao barco.

Tentou segurar a haste e descobriu que, devido à maneira pela qual o remo tinha sido entalhado, só havia espaço para seus dedos se encaixarem entre a haste e o gelo.

Era bem apertado, mas ia funcionar.

Como todas as coisas são iguais, a água congela primeiro perto da costa, onde é mais raso e a corrente não é tão forte; ele imaginou que teria que ser muito cuidadoso ali, perto da beirada, onde o gelo não seria tão espesso.

Kyle balançou a cabeça.

– Essa não é uma boa ideia.

– Provavelmente você tem razão – disse Daniel, alinhando o segundo remo. – Vou ficar com meu colete salva­-vidas para evitar me afogar.

– Isso não consegue me deixar tranquilo.

– Me dê o seu celular.

– Para quê?

– Eu posso usá­-lo como lanterna se precisar examinar dentro do farol.

– Ele não é à prova d’água. Se você afundar com ele quando se afogar, vou ficar muito zangado.

– Não vou esquecer isso.

Depois de pôr o telefone no bolso, montou na borda do barco e se ajoelhou cuidadosamente sobre os remos.

Distribuir o peso do corpo foi difícil, e voltar para o barco seria ainda mais difícil, mas ele decidiu não pensar nisso naquele momento.

Só não caia através do gelo ou será uma longa e fria viagem de volta à loja do Larry.

À medida que ele avançava, o gelo começou a produzir um leve som de atrito, provocado pelos remos.

Imediatamente, parou de se arrastar. Parecia que seu coração tinha diminuído as batidas pela metade e, ao mesmo tempo, acelerado seu ritmo mais forte que antes.

– Não é tarde demais – disse Kyle baixinho, como se temesse que o peso de suas palavras pudesse rachar o gelo sobre o qual Daniel estava ajoelhado. – Você ainda pode voltar para o barco.

– Eu estou bem. Sei nadar e, além disso, você é salva­-vidas, não é mesmo?

– Lamento, amigão, mas não vou mergulhar nessa água para salvá­-lo.

– Nem mesmo pelo seu telefone?

– Bem... talvez pelo telefone.

– Você falou como um verdadeiro amigo.

– Não leve a coisa a sério, ok?

– Ok.

Daniel moveu um remo após o outro, usando­-os para se apoiar à medida que avançava para a ilha. Ocasionalmente, o gelo rangia com seu peso, mas ele teve o cuidado de não deixar que nenhum dos joelhos saísse das pás dos remos.

A princípio, avançou lentamente, mas, quando já estava quase na metade do caminho, pôde dar mais ritmo a seu deslocamento. Dali em diante foi mais depressa, e logo já havia coberto a distância entre ele e a margem.

Já na margem, gritou para Kyle:

– Está vendo? Nenhum problema. – E colocou os remos sobre um dos ombros. – Vou estar de volta em dois minutos.

– Tenha cuidado.

– Meu nome é Sr. Cuidadoso.

– Pare de brincadeira.

– Vejo você logo.

Escalar a rocha coberta de gelo na costa foi um pouco arriscado, mas ele conseguiu se sair bem. Depois que ficou em pé, tirou seu colete salva­-vidas e o colocou sobre as rochas; então, começou a andar pelo terreno coberto de neve que precisava atravessar para chegar ao farol.

Estava tudo quieto na ilha, com exceção do barulho das ondas batendo contra o gelo quando o vento começou a aumentar.

Dali talvez fossem uns 25 metros até o farol.

Rastros recentes de veados eram a única coisa que marcava o campo de neve uniforme diante dele. Com as árvores ao fundo e a neve que continuava a cair, o dia era tranquilo e bonito.

Então, ele lembrou que ali era o local em que, supostamente, uma garota de 11 anos havia morrido queimada.

Você a viu em seu sonho. Você a viu durante o jogo.

Será que vai tornar a vê­-la aqui?

Talvez ela aparecesse para ele caminhando na neve, o corpo enegrecido chiando à medida que os flocos de neve o tocassem, os braços estendidos em direção à torre em que seu tio estava quando sua camisola começou a pegar fogo.

Ou talvez ela surgisse no topo do farol e, lá de cima, olharia para a ilha de onde nunca sairia.

Daniel fixou o olhar através da neve que caía e pôde ver a silhueta de uma torre.

Nenhuma garota.

Nenhuma distorção.

E ela tampouco estava ali no terreno onde se erguia o farol.

Era apenas um dia quieto e nevado numa ilha do lago Superior. Não havia nada incomum nele.

Betty era real?

Uma garota realmente morrera naquele local?

Ele não sabia, mas talvez a resposta estivesse dentro do farol.

Parecia que o único acesso à torre era através da casa.

A neve chegou­-lhe ao joelho enquanto atravessava o campo e chegava à porta da frente da casa do faroleiro.

As janelas estavam fechadas, mas a porta estava entreaberta num ângulo estranho, apoiada em seus gonzos enferrujados.

A porta resistiu, mas Daniel conseguiu abri­-la.

E entrou.


40

A entrada estava coberta de lixo. Grafites grosseiros cobriam as paredes. Tocos de velas e latas vazias de cerveja espalhavam­-se pelos cantos.

Não lhe causava surpresa o fato de que o lugar acabasse por atrair pessoas para se divertirem, mas o fez pensar se teria sobrado alguma coisa que lhe fosse útil.

Com as janelas pregadas com tábuas, o interior da casa tinha sombras espessas, de modo que Daniel pegou o celular de Kyle e ligou a lanterna.

Usando­-o para guiá­-lo, entrou no primeiro cômodo.

O local devia servir como sala central, pois levava à cozinha e a um curto corredor com dois quartos lado a lado. Um deles tinha apenas uns 2,5 metros de comprimento. Com prateleiras em um dos lados, imaginou que devia ter sido usado como despensa. O outro provavelmente era o quarto do faroleiro.

Talvez Betty tenha dormido aqui na despensa.

Se, na verdade, ela esteve aqui.

Virando à esquerda, usou o celular para iluminar a cozinha, que ainda exibia, inexplicavelmente, uma grande pilha de toras de madeira para serem usadas na estufa móvel.

Quem sabe a madeira tenha sido trazida por pessoas que vieram fazer piquenique.

Nada parecia suspeito ou fora de lugar para um farol abandonado.

Depois de vasculhar a despensa e o quarto mais uma vez sem nada encontrar, decidiu investigar a torre.

A escada em espiral que levava ao topo parecia ter sido projetada para alguém de baixa estatura, o que fez com que Daniel se abaixasse para subi­-la.

Kyle teria sofrido se fosse faroleiro daquele lugar.

Não havia janelas, o que tornou a subida de Daniel ainda mais complicada, mas a porta do topo devia estar aberta, pois a luz se infiltrava para o interior e a neve varrida pelo vento o fustigava.

Essa é a escada que Jarvis Delacroix subia seis vezes por noite para ir ao topo a fim de se certificar de que a luz ainda ardia.

Seis vezes.

Toda noite.

Daniel ficou imaginando como seria fazer isso, saber que pessoas dependiam de sua capacidade de ficar acordado – que elas confiavam suas vidas ao fato de você ser capaz de manter a luz da torre brilhando.

Ele chegou ao topo.

O vidro que protegia a luz tinha sido quebrado e os cacos se espalhavam pelas tábuas do assoalho. Um balcão estreito cercava a torre. Com cuidado, entrou nele.

A cerca desaparecera, apodrecida pelo tempo, de modo que ele teve o cuidado de ficar bem junto à torre enquanto olhava ao redor.

Dali pôde ver a costa árida estendendo­-se em duas direções, mas, com a neve caindo no lago, não conseguiu vislumbrar nenhuma das outras ilhas ou a própria margem.

No entanto, conseguiu ver Kyle no barco. Naquele instante, ele olhava na direção da floresta próxima ao invés de para o farol.

Daniel tentou chamá­-lo, mas suas palavras lutavam contra o vento, e Kyle aparentemente não conseguia ouvi­-lo, pois não olhou para cima. Achando que, se gritasse mais alto, poderia dar a Kyle a impressão de que alguma coisa estava errada, Daniel voltou sua atenção para a ilha.

Além do terreno, uma ampla faixa de bosque seguia a costa rochosa e, embora as árvores tivessem perdido as folhas, o bosque era suficientemente denso para que, sob a neve, Daniel não conseguisse ver através dele.

Jarvis Delacroix escrevera que a tinha enterrado nesta ilha num lugar onde ninguém a encontraria.

Talvez seja por isso que você está aqui. Para encontrar o corpo dela.

Mas não, tinha havido alguma outra coisa, outro motivo para que ele fosse atraído até ali, pois não havia maneira de encontrar um túmulo escondido há quase oitenta anos, especialmente num chão congelado debaixo de 60 centímetros de neve.

Tornando a olhar para o barco, Daniel viu o amigo olhando em sua direção e acenando para ele.

Ele também acenou, enquanto Kyle gritava alguma coisa que ele não conseguiu ouvir. Ele colocou uma das mãos junto à orelha de modo a indicar a Kyle para gritar mais alto, mas só conseguiu distinguir a palavra “ir”.

Talvez ele só estivesse lhe dizendo que era hora de ir embora.

Não havia mais nada para ver no alto da torre.

Depois de olhar mais uma vez a nevasca soprando para além do lago, Daniel começou a descer a escada.

Tinha descido 29 degraus quando sentiu alguma coisa bater contra sua perna.


41

Olhou para os lados, apreensivo.

Não havia nada por ali.

Você não imaginou isso, Daniel. Alguma coisa tocou em você.

Contudo, sem dúvida alguma, ele estava sozinho na escada.

Agora, com pressa de deixar a torre, ele desceu os próximos degraus mais rapidamente, mas tornou a sentir algo. Dessa vez, batendo com mais força contra seu ombro. Quando ergueu o olhar, viu o que o havia tocado.

Botas.

Um corpo jazia pendurado ali, balançando ligeiramente, talvez devido à força com que Daniel se chocara contra seus pés.

De onde estava, pôde ver o rosto do morto, inerte, inchado e pálido. Havia um laço em torno de seu pescoço, no final de uma longa corda que pendia da torre.

Daniel fechou os olhos e disse a si mesmo que estava apenas vendo coisas, que não passava de uma distorção como as outras, que, na verdade, não havia um corpo pendurado acima dele.

Depois de um longo intervalo, tornou a abrir lentamente os olhos.

O corpo ainda estava lá, agora em repouso, quieto e sinistro no ar.

Uma distorção.

Mas parecia tão real, pendendo ali no centro de uma escada em espiral.

Certifique­-se.

Certifique­-se de que ele não está aqui.

Hesitando, Daniel estendeu a mão para tocar uma das botas e verificar se era apenas uma distorção, um produto de sua imaginação.

Sentiu o couro áspero e gasto, como deve ser o couro real.

Mas não, não pode ser real. Não há como isso estar realmente acontecendo.

Quando estava abaixando a mão, o morto girou a cabeça e olhou para ele lá de cima. Quando falou, seus lábios mal se moviam, mas sua voz era clara e, obviamente, não era um truque de acústica produzido pelo vento canalizado na escada.

– Daniel.

Não, isto não é real!

– Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias, Daniel. Lembre­-se do que aconteceu no dia 28 de agosto.

Então, a boca do homem parou de se movimentar e ele continuou a pender da corda e a encarar Daniel com seus olhos baços e mortos.

Sem olhar para trás, Daniel desceu os degraus que faltavam dois a dois.

O que aconteceu no dia 28 de agosto?

A que se referiam os “dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias”?

Saia já daqui. Volte para o barco. Descubra isso depois.

Mas quando chegou à cozinha, lembrou o que Jarvis tinha escrito em seu diário sobre o armazenamento de morangos e framboesas em seu porão.

Espere.

Que porão?

Para se chegar a um porão com um mau tempo, faria sentido que ele se localizasse debaixo da casa. Contudo, Daniel não tinha visto nenhuma porta de acesso ao se dirigir à torre, o que significava que, se realmente havia um porão, também deveria haver uma escada que descesse até ele em algum local da casa do faroleiro.

Mas ele não tinha visto nada parecido.

Vá embora, Daniel. Não há nada aqui.

Mas talvez haja, dê só uma olhada rápida, depois você vai embora.

Embora sua intenção fosse ir imediatamente, ele também estava ali para conseguir respostas e, àquela altura, tudo o que conseguira foram mais perguntas.

Evitando a escadaria que subia à torre para não tornar a ver a distorção real demais de Jarvis Delacroix, ele voltou através de cada cômodo da casa e não descobriu nenhuma porta que pudesse levar a um porão.

Curioso, voltou à cozinha e pousou o olhar na pilha de 90 centímetros de lenha encostada na parede oeste.


42

Daniel começou a afastar a lenha.

Enquanto abria caminho, notou que duas tábuas do chão, debaixo da pilha, tinham uma textura diferente da do restante do assoalho.

Continuou a remover a lenha.

E foi quando viu as dobradiças.

Sim.

Um alçapão.

Ele não tinha ideia de quanto tempo aquela pilha de lenha tinha estado ali e, francamente, não se importava com isso, mas se importava, sim, com o que ela estava cobrindo.

Mais motivado e também mais angustiado quanto ao que poderia encontrar, pôs­-se a remover o restante do que cobria o alçapão para o porão.

***

Alguns minutos antes, Kyle Goessel tinha visto Daniel desaparecer na torre.

Como o vento tinha começado a soprar mais neve sobre o lago, ele tentara chamar o amigo, pedindo­-lhe que se apressasse, mas, em virtude da distância, não tinha certeza de que Daniel o havia escutado.

Desde o início, Kyle não se entusiasmara com o fato de Daniel explorar o farol sozinho. Apesar de sua apreensão com relação ao gelo, ele também o teria cruzado de bom grado se houvesse um modo de os dois chegarem em segurança à ilha.

Mas só havia um par de remos e, depois de Daniel chegar à ilha, não havia como mandá­-los de volta a Kyle no barco, exceto, talvez, tentar jogá­-los, mas a distância era muito grande para garantir que chegassem a ele.

Agora, a tempestade estava aumentando, e as lufadas de vento que cruzavam o lago o atingiam em cheio.

Kyle adorava escrita criativa e uma frase lhe ocorreu: os dentes do vento roíam a costa.

E você foi apanhado em sua trajetória.

Ele estava esperando que Daniel saísse pela porta da frente da casa do faroleiro quando vislumbrou um movimento na borda da floresta.

Achou que já tivesse notado alguma coisa antes, um pouco antes de Daniel aparecer no topo da torre, mas agora tinha quase certeza de que havia alguma coisa lá.

Usando uma das mãos para proteger os olhos contra a neve, Kyle olhou para as árvores, examinando o bosque, mas não conseguiu descobrir nada de incomum.

Mas você viu alguma coisa agora mesmo.

Viu mesmo?

Examinou as margens do bosque: apenas árvores nuas sob uma nevasca que aumentava.

Provavelmente, seus olhos lhe pregaram uma peça.

Provavelmente apenas...

Não, espere.

Lá.

Sim.

Um veado?

Não.

Alguém estava em pé atrás dos carvalhos desfolhados.

Foi apenas pelo modo como a pessoa estava virada que Kyle foi capaz de percebê­-la.

Um casaco azul escuro. Foi o que Kyle conseguiu ver.

Então, o homem saiu e entrou no campo, encaminhando­-se para a casa do faroleiro.

Jeans escuros. Uma máscara negra de esqui cobria­-lhe o rosto.

Ele estava carregando alguma coisa.

Parecia...

Sim.

Um galão de gasolina.


43

Kyle gritou­-lhe que parasse, mas o vento encobriu­-lhe as palavras, e o homem continuou a cruzar o campo coberto de neve.

***

Concluída a remoção da lenha, Daniel ergueu o alçapão e começou a descer os degraus de madeira toscamente talhados que levavam ao porão.

***

Kyle gritou com mais força e, por fim, o homem olhou em sua direção, mas seu rosto estava oculto pela máscara de esqui.

Por um instante, ele ficou lá parado, uma forma escura e sem rosto destacando­-se contra a neve; então, voltou­-se mais uma vez para a casa do faroleiro e avançou para ela.

***

Daniel chegou ao último degrau da escada e começou a olhar em redor.

Usando o celular como lanterna em uma das mãos, com a outra afastou as teias de aranha que cruzavam o ar diante dele.

As paredes de terra batida eram sustentadas por sólidas vigas de madeira que haviam sido instaladas contra as tábuas do chão da cozinha. Embaixo, uma camada de pedregulhos cobria o chão de terra.

O ar era frio, mas não totalmente desagradável – talvez alguns graus abaixo de zero. O porão cheirava a poeira e bolor.

Havia duas dúzias de compotas empilhadas no chão e um monte de ervas secas perto da parede.

Fora isso, o local parecia vazio.

Mas alguma coisa não estava certa.

Ele girou o olhar lentamente pelo porão, observando tudo, e sua mente matemática notou que, embora houvesse seis vigas de suporte do lado esquerdo, havia apenas cinco do direito.

Não era um grande detalhe, mas todo o resto com relação à casa e à torre era simétrico. Por que o porão não havia sido escavado de forma quadrada para combinar com a planta da cozinha acima dele?

O conto de Edgar Allan Poe que a Prô havia mencionado em aula na sexta­-feira, “O barril de amontillado”, veio­-lhe à mente.

Na história, o protagonista, que também era o antagonista, havia emparedado um homem vivo, fechando­-o nas catacumbas.

Ele fez isso num lugar em que ninguém jamais encontraria o corpo.

Daniel dirigiu o facho do celular para a parede e começou a inspecionar a pilha de terra no canto em que a sexta viga deveria estar visível.

***

Kyle olhou para o gelo que se estendia entre ele e a ilha.

Você precisa deter esse cara. Ele vai queimar o farol. Você precisa avisar Daniel!

Embora o barco ainda estivesse ancorado, ele se deslocava ligeiramente. Assim, depois de guiá­-lo para a beira do gelo, Kyle desligou o motor e se sentou um tanto precariamente na borda do barco com os pés suspensos acima do gelo.

Tomando fôlego profundamente, abaixou o pé esquerdo.

O gelo aguentou.

Ótimo.

Então transferiu mais peso para o pé.

O gelo aguentou.

Ótimo. Isso vai funcionar.

Colocou a outra perna sobre o gelo e estava se levantando, pronto para deixar o barco, quando a superfície sob seus pés rachou e se separou. Perdendo o equilíbrio, ele quase caiu: suas botas mergulharam na água gelada, mas ele conseguiu, com dificuldade, se agarrar na borda do barco.

O barco balançou perigosamente quando ele pulou de volta para dentro, o coração batendo forte contra o peito.

Tinha sido por pouco.

Ok, atravessar o gelo não ia ser possível.

Mas você precisa fazer alguma coisa!

Na esperança de fazer barulho suficiente para alertar Daniel de que alguma coisa estava para acontecer, ele foi para a popa e acionou o motor com força.

***

O chão não estava congelado, e Daniel conseguiu tirar bastante terra solta e cheia de pedras com as mãos.

Já tinha cavado cerca de 45 centímetros quando sua mão deu com algo duro e arredondado, com o tamanho aproximado de um melão.

Provavelmente uma pedra.

Mas não. Era lisa demais para ser uma pedra.

Com cuidado, Daniel afastou a terra.


44

Era um crânio: enegrecido e queimado.

Ele deu um salto para trás.

Betty.

Foi aqui que Jarvis a enterrou depois que ela morreu.

Foi aqui que...

Daniel ouviu passos nas tábuas do assoalho acima dele.

A princípio, pensou que pudesse ser Kyle, mas então se deu conta de que isso era ridículo: não havia como ele ter chegado à ilha.

Mas se não era ele...

Você deixou o alçapão aberto. Seja quem for que está lá em cima, vai saber que você está aqui embaixo.

Daniel foi para os degraus, mas só tinha subido metade deles quando alguém fechou a porta do alçapão.

Correndo até o alto da escada, forçou a porta para abri­-la, mas a pessoa devia estar de pé em cima dela, pois ela não se mexeu.

– Ei – gritou ele –, saia daí!

Nenhuma resposta.

Um pouco depois, contudo, Daniel sentiu cheiro de gasolina e notou que ela estava escorrendo pelas frestas das tábuas do assoalho acima dele.

Virou a cabeça para o lado para que a gasolina não lhe caísse no rosto.

– Ei!

Ouviu a lenha sendo mexida e percebeu que quem estava lá em cima começava a empilhar a madeira sobre o alçapão novamente, ou pelo menos apoiava uma tora contra a parede para impedi­-lo de abrir o alçapão.

Então, o sujeito pôs fogo na gasolina e mais algumas gotas dela caíram pelas frestas, dessa vez em chamas, em cima e em torno de Daniel.

Empurrou a porta com o ombro, mas ela resistiu.

Você precisa abri­-la ou colocar alguma coisa como calço para quebrar o fecho.

Seria ótimo se ele tivesse uma faca ou mesmo um molho de chaves, mas tudo o que tinha era o celular de Kyle.

Olhando ao redor do porão, tentou ver se havia alguma coisa que tinha deixado passar, alguma coisa que pudesse usar. Mas não havia nada.

Não.

Espere.

Havia outra coisa lá que ele poderia usar.

Não as plantas secas ou os potes de conserva.

Das aulas de anatomia, ele sabia que o fêmur era o osso mais forte do corpo humano.

Não vai estar afiado na extremidade, mas se conseguir encontrar um modo de parti­-lo ao meio...

Não, Daniel, você já se deu conta do que está pensando?

Que escolha você tem? É preciso fazê­-lo.

Não!

Você vai morrer aqui embaixo a menos que consiga abrir esse alçapão.

Voltou a atenção para a parede que estivera cavando e desceu os degraus correndo a fim de localizar um dos fêmures do esqueleto.

***

Kyle viu rolos de fumaça negra saindo das frestas das tábuas que cobriam as janelas da casa do faroleiro.

Não!

A pessoa que levara a gasolina para a casa estava saindo pela porta da frente e atravessando o terreno nevado em direção aos remos que Daniel tinha usado para cruzar o gelo.

***

Escavar os ossos foi uma tarefa nauseante e constrangedora, e Daniel rezou para que não houvesse nenhuma maldição ou assombração por ter mexido neles, mas naquele momento ele sentia que não tinha escolha.

Encontrou a pélvis e cavou mais fundo, tirando mãos cheias de terra e vários ossos que achou que fossem da espinha de Betty.

Por fim, seus dedos tocaram um osso que pareceu grande e forte.

Ele o tirou do chão.

Sim.

O fêmur.

Mas como ele já esperava, as extremidades eram arredondadas; então, apoiou­-o contra uma das vigas de suporte, colocando­-o em ângulo para que não escorregasse para o lado quando o golpeasse no meio.

Honestamente, ele não sabia se funcionaria, se o osso se quebraria.

Mas, se quebrar, vai ajudá­-lo a sair daqui?

Tente.

Você tem que tentar.

É sua única chance.

Depois de alinhar o pé, ele deu um golpe contra o centro do osso como se estivesse quebrando um galho para fazer uma fogueira no acampamento.

Ele o quebrou em três pedaços. Apanhou o maior e tentou usá­-lo como alavanca para abrir o alçapão, mas ele não proporcionou alavancagem suficiente.

Voltando rapidamente ao esqueleto, cavou desesperadamente o chão cheio de pedras em busca do outro fêmur.

As chamas já desciam as tábuas acima dele.

Levou um minuto, mas ele achou o osso.

Puxou­-o para fora.

Depressa.

Apoiou o fêmur contra a viga e bateu forte com o pé.

Este segundo partiu­-se ao meio. Ele agarrou o pedaço mais longo, colocou o lado mais pontiagudo no espaço entre as tábuas ao longo da extremidade do alçapão e tentou arrancar o ferrolho da madeira.


45

Enquanto Kyle tentava freneticamente pensar num modo de ajudar seu amigo, chamas explodiram no topo do farol, brilhando contra o céu e devorando os flocos de neve que batiam contra ela.

Com aquele vento, não demoraria muito para que o farol de madeira – e a casa do faroleiro com ele – fosse totalmente consumido.

***

Chorando devido ao esforço, Daniel fez pressão sobre o fêmur, ouviu o ferrolho sair e abriu o alçapão.

Meia dúzia de toras caiu, enquanto uma onda asfixiante de calor o envolvia.

As tábuas acima do porão estavam ardendo e, mesmo que ele tentasse correr sobre elas, a essa altura não tinha certeza se elas suportariam seu peso. Naquele momento, a última coisa que ele precisava era cair de volta no porão.

A única maneira de chegar à porta da frente era ao longo da parede contígua, onde as chamas ainda não eram tão intensas. A espessa fumaça o sufocava e o calor abrasador ardia contra seu rosto e suas mãos nuas, que seu casaco não protegia. Puxando a parte de cima da camiseta por sobre a boca para que pudesse respirar através da fumaça, Daniel correu para a porta.

Devido ao calor, teve que proteger o rosto com um dos braços. As chamas espalhavam­-se pelo chão diante dele, mas ele conseguiu saltar por cima delas e passar por uma coluna de fogo que subia pela parede.

A porta da frente estava tomada pelas chamas, mas Daniel correu contra ela, abriu­-a e caiu fora da casa, rolando na neve.

O ar frio e a neve molhada aliviaram­-lhe o rosto e as mãos, resfriando imediatamente a pele exposta.

Sim, sim.

Puxou a camisa para baixo novamente e avançou com dificuldade pela neve, que lhe alcançava o joelho, para se afastar do prédio em chamas.

Depois de andar uns 12 metros, fez uma pausa e olhou para trás.

Mesmo com a neve fustigando­-lhe o rosto, conseguiu sentir o feroz calor do fogo.

Uma vista espetacular, mas insuportável.

Enquanto observava o farol arder, pensou sobre o que Mia tinha lhe dito no sábado: num passado remoto, fogueiras acesas nas colinas serviam para advertir navios.

Mas não incendiavam faróis.

A verdade sobre o que acabara de acontecer caiu sobre ele como um golpe: alguém tentou matar você.

E uma segunda revelação: Você precisa sair dessa ilha.

Correu em direção ao barco e, quando chegou às rochas que havia escalado ao chegar, descobriu que seu colete salva­-vidas tinha desaparecido.

E também os remos.

Kyle desligou o motor e gritou:

– Você está bem?

– Estou. Você viu quem fez isso?

Kyle confirmou com um movimento de cabeça.

– Ele estava usando uma máscara de esqui. E foi para o outro lado da ilha.

– E levou os remos e o colete salva­-vidas?

– Não sei por que, mas levou.

Daniel relaxou no gelo.

– Você não tem um colete salva­-vidas – disse Kyle desnecessariamente.

– Então é melhor eu não cair na água.

– Você não vai andar pelo gelo, vai?

– E eu tenho escolha?

– Não sei, eu...

– Alguém nesta ilha quer me ver morto. Ele sabia que eu estava lá quando provocou o incêndio. Se ele me vir aqui vivo, quem sabe o que poderá fazer?

Kyle concordou.

– Tudo bem, mas tome cuidado.

Ali, perto da margem, o gelo devia estar mais espesso, mas, mesmo assim, Daniel tomou muito cuidado ao dar os primeiros passos.

– Firme – dizia Kyle para encorajá­-lo.

Preocupado com a possibilidade de o gelo se quebrar se ele se movesse rápido demais, Daniel prosseguiu sem pressa enquanto posicionava o pé a cada passo para espalhar seu peso.

Quanto mais avançava, mais confiante ficava.

Chegue até o barco e dê o fora daqui.

Mas quando tinha coberto cerca de três quartos do trajeto até o barco, rachaduras começaram a se espalhar a partir de seus pés e ele ouviu o gelo rachando.

Congelou, com medo de fazer o mais leve movimento.

Mas não adiantou.

De repente, o gelo sob seus pés se abriu, rachando com um ruído que soou como um tiro de canhão ecoando pela água.

***

– Não! – gritou Kyle, impotente, enquanto Daniel mergulhava na água negra como tinta três metros distante dele.

E não voltou à tona.


46

Facas.

Centenas de facas penetrando nele, por toda parte.

Foi assim que ele se sentiu.

Daniel tentou permanecer calmo, tentou não entrar em pânico, mas não tinha tomado bastante ar antes de afundar, e agora, enquanto submergia no lago gelado, parecia que não tinha nenhum nos pulmões.

Embora uma luz fraca se filtrasse pelo gelo acima dele, a água abaixo dele era inacreditavelmente escura.

Ele subiu para a superfície, mas não conseguiu ver a abertura por onde tinha caído.

Você precisa nadar em direção à abertura.

Você consegue.

Relaxe.

Mas as pesadas roupas de inverno e as botas o puxavam para baixo. Ele desistiu da ideia de tentar se livrar das botas, mas conseguiu se desvencilhar da pesada jaqueta de inverno que tornava quase impossível que ele nadasse.

Deu braçadas para cima e mexeu as pernas com força para evitar a correnteza, que parecia decidida a levá­-lo para mais perto da margem, onde ele não conseguiria romper o gelo acima dele.

Procurou desesperadamente, mas não conseguiu localizar a fratura no gelo pela qual havia mergulhado no lago.

Lutando contra a correnteza, procurou subir até a borda da placa de gelo, mas o pouco ar que ainda tinha estava se esgotando rapidamente e, involuntariamente, deixou escapar várias bolhas de ar que subiram pela água ao redor de seu rosto.

Ainda faltavam três metros para subir, mas pareciam três quilômetros.

Ele não ia conseguir.

Você tem que conseguir!

Mais bolhas escaparam, e ele teve que lutar contra a terrível urgência de respirar, pois a ingestão do menor gole de água poria tudo a perder.

Nadando o mais que podia, Daniel procurava subir à superfície, mas sentiu alguma coisa presa em sua perna que o puxava para baixo.

Olhou rapidamente para baixo: viu o demônio que Nicole havia desenhado, seu riso branco brilhando na escuridão eterna, as mandíbulas enterradas em seu pé.

Uma distorção.

Realidade.

Tudo igual.

Ele o chutou com violência e, enquanto o demônio desaparecia nas profundezas furiosas e agitadas, concentrou­-se na busca da abertura acima dele.

Você consegue. Você é capaz. Por seu pai. Você precisa salvar seu pai!

A última bolha de ar saiu flutuando de sua boca.

Deu mais uma braçada e alcançou a borda do gelo.

Agarrou­-a.

Ali.

Sim.

Mas ele mal conseguia se segurar na borda.

Ele estava cansado demais.

Quando jogou o pé para a frente, com o pouco de força que ainda lhe restara, não foi capaz de se erguer ou colocar a outra mão na borda do gelo.

Não conseguiu erguer o rosto até a superfície.

Está acabado.

Sua mão estava perdendo força, e quando achou que ia escorregar para baixo para sempre, uma forma escura se moveu em sua direção...

O barco?

Mas...

Alguma coisa agarrou­-lhe o punho enquanto o lago insondável o puxava, tentando tragá­-lo para sempre.

Daniel sentiu­-se puxado para cima.

Mas, então, só sentiu uma escuridão fria e envolvente, e a sensação de facas que o penetravam havia desaparecido.


47

Kyle agarrou o punho de Daniel com toda a força e se inclinou para trás no barco para trazer a cabeça do amigo até a superfície.

As ondas batiam contra o outro lado do barco, ameaçando levá­-lo mais para perto do gelo e esmagar Daniel ou fazer com que Kyle o largasse.

Vamos lá, cara, puxe. Você tem que conseguir!

Ele reposicionou a mão e tornou a puxá­-la para cima, dessa vez conseguindo trazer a cabeça de Daniel para cima da superfície. Ele não parecia estar respirando. Sua pele estava sem cor.

Você precisa colocá­-lo dentro do barco.

Agora!

Puxou o amigo para cima, conseguindo trazer seus ombros para a borda do barco.

O barco oscilou perigosamente, mas não virou.

Colocando a perna sob um dos assentos para usá­-la como alavanca, Kyle se inclinou para a frente, agarrou a parte de trás do cinto de Daniel e o ergueu. Quando o barco tornou a se inclinar para um dos lados, quase deixando a água entrar, ele puxou Daniel e o deitou no barco.

Seu corpo caiu pesadamente no fundo da embarcação, a cabeça inclinada para o lado.

Por sua experiência como salva­-vidas, Kyle percebeu que ele precisava injetar ar nos pulmões de Daniel imediatamente.

Devido aos assentos do barco, posicionar o amigo de costas foi difícil, mas depois que conseguiu, girou a cabeça de Daniel e aplicou­-lhe respiração boca a boca.

Seu peito subiu.

Nada está bloqueando suas vias aéreas.

Sentiu a pulsação de Daniel.

Bom. Isso é bom.

Kyle sabia que, às vezes, quando uma pessoa cai na água gelada, um instinto entra em ação – ele não sabia qual era, mas sabia que estava presente –, fechando­-lhe a garganta de tal forma que, mesmo que se afogasse, os pulmões não necessariamente se enchem de água,

Foi o que aconteceu com Daniel, o que poderia agir em seu favor.

Tornou a injetar mais ar no amigo.

Vamos, cara. Você está legal. Você vai ficar bem.

Mas Daniel não reagia.

Kyle tentou outra vez, chacoalhou­-o e bateu­-lhe no rosto, na esperança de reavivá­-lo.

Nada.

Mais ar.

Outra vez.

Vamos!

Kyle estava se inclinando para fazer mais uma respiração boca a boca, quando o corpo do amigo se agitou e ele tossiu, expelindo água e em busca de ar.

Rapidamente, Kyle virou­-o para o lado para que ele não tornasse a engolir mais água e pudesse ficar com a boca livre.

Daniel tossiu duas vezes, expelindo mais água e, então, respirou profunda e asperamente, enquanto seu corpo começava a tremer.

O tremor é bom. É o modo como o corpo tenta se manter quente.

Kyle o abraçou.

– Você está bem, cara. Só procure respirar.

Daniel respondeu com um aceno de cabeça.

– Vou levar você para a margem – disse Kyle, ainda apoiando as costas de Daniel. – Será que você consegue ficar sentado sozinho?

***

– Consigo – disse Daniel, sem ter certeza disso, mas não queria que o amigo se preocupasse com ele. – Eu estou bem.

Foi preciso muito esforço, mas ele finalmente conseguiu se manter no lugar, com as costas contra o assento do meio do barco.

Kyle ofereceu­-lhe seu casaco, e ele o aceitou. Tirou a camiseta molhada e se abrigou na jaqueta quente e seca, enquanto o amigo erguia a âncora, ligava o motor e virava a proa do barco para a margem do lago.

***

Nicole ficou observando enquanto Michelle dormia.

A menina tinha se recusado a dormir, mas enquanto ela lia uma história, alguma coisa sobre um raio de luar que ficava amigo de um unicórnio, Michelle acabou por cair no sono ao lado dela.

Levantando­-se com muito cuidado para não acordar a menina, Nicole foi até seu celular, que havia deixado na cozinha.

Tinha começado a ler as notícias on­-line sobre a matança de lobos quando ouviu uma batida na porta da frente.

Foi até a sala de visitas e olhou pela janela ao lado da árvore de Natal. Dois policiais estavam na entrada. Pelos seus uniformes, pareciam pertencer à polícia estadual.

Outra batida.

Um pouco apreensiva, ela abriu a porta.

– Sim?

– Olá, senhora – disse o homem mais alto, apresentando­-lhe seu distintivo. – Esta é a residência dos Goessel?

– É.

– E você, quem é?

– Sou Nicole. A babá.

– Nicole – disse o homem, baixando o distintivo. – Estamos procurando Daniel Byers.

– Sim?

– Ele desapareceu de um hospital em Duluth hoje de manhã. Sabemos que Kyle Goessel é um de seus amigos e estamos procurando... Espere... – interrompeu ele, olhando para ela. – Você disse que seu nome é Nicole. Você é Nicole Marten?

– Sou.

– Seu nome é o que mais aparece no celular de Daniel.

– Ele é meu namorado. – Só diga o que eles esperam que você diga. Não aja com estranheza. – Por que o senhor está procurando por ele? Ele está bem?

– Bem, é o que estamos tentando descobrir. Não sabemos onde ele está nesse momento. Ele não está aqui?

– Não.

O outro policial interferiu.

– E você sabe onde ele está?

É claro que ela tinha uma ideia de onde ele estava, mas Daniel e Kyle podiam estar em qualquer lugar entre ali e Bayfield; assim, oficialmente, ela não sabia.

Ela prosseguiu e disse, balançando a cabeça:

– Não. Eu o vi no hospital ontem, mas não sei lhe dizer onde ele está agora.

– Você se importa se entrarmos e dermos uma olhada pela casa? – perguntou o primeiro policial.

– Não acho que seja uma boa ideia. A Sra. Goessel não está em casa.

– Não está?

– Não. Como eu disse, sou a babá.

– Vai ser rápido. Prometo que nós...

– Não. Daniel não está aqui. E vocês não podem entrar.

O policial olhou para ela com frieza. Por fim, seu parceiro entregou a ela um cartão de visita da polícia.

– Se souber alguma coisa, por favor, ligue para nós.

– Obrigada – respondeu ela, sem expressar boa vontade.

Observou os dois voltarem para a viatura e, quando estavam se afastando, tentou o número de Kyle.

Nenhuma resposta.

Passou­-lhe, então uma mensagem de texto. Se os guardas estavam procurando Daniel, ele precisava ficar alerta.

Então, distraída pelos pensamentos que a envolviam, ela voltou a pesquisar para descobrir o que pudesse sobre a matança de lobos.

Quem teria tido acesso àquelas etiquetas dos lobos?

Quem pensaria em matar aqueles animais?

De todas as pessoas que conhecia, Ty Bell foi o primeiro a lhe vir à mente; não apenas porque ele era o tipo de cara que poderia realmente fazer uma coisa daquelas, mas também porque poderia ter acessado a localização dos lobos etiquetados do escritório de seu pai.

Ele também tinha sido a pessoa que descobriu o segundo lobo.

Muito conveniente.

Ela pensou em várias maneiras de restringir sua busca e teve uma ideia.

Tocando na tela do celular, pesquisou para ver se havia alguma evidência de que os lobos tinham sido abatidos antes ou depois do horário das aulas e se havia mais algum detalhe sobre o fato de Ty ter descoberto o segundo lobo morto.


48

Daniel estava em pé embaixo do chuveiro de Larry, com uma das mãos apoiada na parede para manter o equilíbrio e continuar em pé. Ele estava só de cueca e agora sentia a água quente.

A princípio, o calor pareceu não ajudar em nada, mas à medida que o minúsculo banheiro se encheu de vapor, os calafrios começaram a diminuir e ele começou a recuperar as forças.

Larry e Kyle ocuparam todo o banheiro para garantir que ele não fosse ao chão. A cortina do chuveiro estava puxada para o lado e a água se acumulava no chão, mas Larry não parecia se importar e apenas jogou algumas toalhas para enxugá­-la.

– Então, está se sentindo melhor? – perguntou ele a Daniel com preocupação.

– Estou começando a me sentir melhor. Estou, sim.

Daniel tentou deixar que a água quente lavasse o escuro resíduo de medo que tinha se alojado em sua mente quando estava embaixo do gelo, mas isso não funcionou. Ele achou que esse medo ficaria com ele por um longo tempo, provavelmente para sempre, especialmente a imagem daquele demônio rindo para ele, tentando puxá­-lo para um nada sem fim.

No sábado, Nicole dissera que Jó tinha sido tão atormentado por seus pesadelos que desejou ser estrangulado e morto.

Do jeito que as coisas estavam indo, Daniel começava a entender como o cara tinha chegado a esse ponto.

Você está agarrado à beirada do rochedo.

Não.

Solte.

A mão.

Quando ele finalmente se sentiu aquecido, saiu do chuveiro e se enxugou.

Antes de ir à cozinha para preparar alguma coisa para Daniel comer, Larry emprestou­-lhe uma muda de roupa. Como ele tinha quase a altura de Kyle, as roupas não ficaram muito melhores – braços compridos, mas ombros estreitos –, mas Daniel não se importou. Ele estava feliz por se encontrar ali.

E por estar vivo.

Por estar livre das garras daquele lago.

Kyle juntou­-se a Larry na cozinha enquanto Daniel se trocava.

Pela janela, Daniel pôde ver que ainda estava nevando e que já estava quase escuro.

Puxa, ele conseguira se safar e nem percebeu o tempo passando. Larry e Kyle devem ter tido trabalho para aquecê­-lo por mais tempo do que ele imaginara.

Depois de vestido, seguiu o cheiro da sopa pelo corredor.

Quando Daniel se sentou à mesa, Larry tornou a lhe perguntar se ele estava bem, e ele reiterou que estava.

– Sua aparência não estava nada boa, amigo – disse Kyle. – Azul não é a sua cor.

– É bom saber. Ouça, obrigado por ter me tirado da água.

– Tudo bem, mas tenho que dizer que, quando está morto, você fica muito mais pesado do que parece.

– Vou tentar perder peso antes de eu me afogar outra vez.

– Algumas semanas de zumba vão resolver o problema.

– Só se você fizer também.

Larry foi até o fogão e serviu três tigelas de sopa.

– Você quer café, chá ou alguma outra coisa para beber?

– Não, obrigado. Não estou com sede.

– Não sei por quê.

Larry trouxe três colheres, mergulhou­-as nas tigelas e as colocou na mesa, carregando as três ao mesmo tempo pela cozinha, que, na verdade, não era tão grande.

Daniel aceitou a sopa.

– Obrigado.

– De nada.

Depois que Larry se sentou, o silêncio desceu sobre a mesa. Enquanto comiam, Daniel tentou relaxar, mas não conseguiu.

A distorção do cadáver de Jarvis Delacroix pendurado na torre do farol tinha sido por demais perturbadora, mas, depois, desenterrar o cadáver de Betty e usar um dos ossos de sua perna para forçar a abertura do alçapão fora ainda pior.

E em seguida veio a pequena excursão debaixo do gelo com o demônio o puxando para baixo.

Cara, que dia!

Ele não conseguia parar de pensar em Jarvis Delacroix falando com ele com aquela voz rouca e tumular: “Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias. Lembre­-se do que aconteceu no dia 28 de agosto”.

Quando ouviu essas palavras, ficou imaginando a que elas se referiam, mas agora que podia repensar as coisas, a resposta veio­-lhe quase imediatamente. Dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias atrás era 28 de agosto.

E foi esse o último dia em que esteve no celeiro quando criança.

Apenas 64 dias antes de vovó morrer.

Mas não conseguia lembrar o que aconteceu naquele dia de agosto, ou por que nunca mais voltara ao celeiro.

– Então – disse Larry com seriedade –, Kyle me contou que alguém incendiou o farol enquanto você estava lá dentro.

– Foi isso mesmo.

– E nenhum dos dois tem ideia de quem foi?

Os dois balançaram a cabeça.

– Sinto muito pelos remos e por aquele colete salva­-vidas – disse­-lhe Daniel. – Acho que eles se foram para sempre.

Larry fez um sinal de que isso não tinha importância e colocou a colher em sua tigela quase vazia.

– Ouçam, rapazes, preciso que vocês sejam muito francos comigo. Por um lado, fico imaginando por que cargas d’água você teria se arriscado ao atravessar aquele gelo só para chegar a um farol abandonado, mas, por outro lado, estou muito curioso para saber por que alguém poria fogo nele enquanto você estava lá dentro. Preciso saber o que realmente está acontecendo.

Daniel e Kyle trocaram um olhar.

– E então?

Daniel pousou a colher.

– Vai parecer loucura se eu lhe contar.

– Tente.

Bem.

Ok.

Decidiu contar tudo, pois tendo Larry ajudado tanto os dois, ele agora tinha o direito de saber; assim, contou­-lhe sobre as distorções da garota de camisola branca, a estranha escrita na aula de inglês, os diários de Jarvis e o desaparecimento de seu pai.

Contou até sobre o hospital psiquiátrico e sua fuga de lá com a ajuda de alguém que aparentemente trabalhava para alguma agência clandestina do governo.

Larry ouviu em silêncio.

– Eu lhe disse que ia parecer loucura.

– Você não podia ter sido mais sincero.

– Minha mãe está presa no Alasca, e eu preciso encontrar meu pai. Foi por isso que atravessei o gelo. Achei que a resposta para o que aconteceu com ele poderia estar, de algum modo, dentro daquele farol.

– E estava?

– Não.

Não foi fácil admitir isso.

Daniel pensou em lhe contar sobre a visão do demônio no lago, o cadáver de Jarvis na torre ou a descoberta do esqueleto de Betty no chão do porão, mas decidiu que Larry provavelmente não precisaria saber de tudo. Mais tarde, poderia contar tudo isso a Kyle.

– Essa pessoa da ilha... – Larry tinha acabado de tomar a sopa e estava tirando uma cerveja da geladeira –, a que provocou o incêndio, você não sabe para onde ela foi ou como chegou lá?

– Não – respondeu Kyle. – Mas era um homem. Pude ver isso pelo tamanho dele, pelo seu jeito de andar.

– Bem, existe um ancoradouro do outro lado da ilha.

– Eu não o vi do alto da torre – disse Daniel.

– O que não me surpreende, com toda aquela neve caindo. Não é tão grande, mas os habitantes locais sabem onde fica. Posso dar alguns telefonemas, ver se alguém mais esteve com um barco no lago hoje. É uma cidade pequena e não existem tantas pessoas que alugam barcos. Na verdade, eu ficaria surpreso se alguém mais fizesse isso.

– Como a pessoa que provocou o incêndio saberia que nós íamos estar lá? – Daniel pensou alto. – Como foi possível?

– Parece mesmo muito suspeito. Quero dizer, não foi mera coincidência que ele fosse parar lá enquanto vocês estavam no local. Quem sabia que você viria para a ilha esta manhã?

– Apenas o Sr. Zacharias e Nicole.

– Nicole?

– Minha namorada.

– Ah – disse Larry, balançando a cabeça. – Ok. Eis o que quero dizer: se alguém tentou matá­-lo, você pode me dar um bom motivo para eu não chamar a patrulha estadual ou o escritório do nosso xerife local e lhes contar tudo?

– Porque as autoridades acham que eu tenho alguma coisa a ver com o desaparecimento de meu pai. Vão me prender e vamos ficar mais longe de encontrá­-lo.

– Mesmo depois de tudo o que aconteceu... quero dizer, um cara queimando aquele farol... você ainda acha que eles vão suspeitar de você?

– Eles vão me levar para um interrogatório. Não podemos deixar que isso aconteça. Já é mais tarde do que eu planejava que voltaríamos para casa, e estamos longe de encontrar meu pai.

– Então, você acha que o melhor a fazer agora é continuarmos a tentar localizá­-lo?

– Kyle e eu precisamos voltar a Beldon. Foi onde o Sr. Zacharias me deixou. Ele disse que entraria em contato comigo pelo telefone do Kyle, mas... – disse Daniel, deixando escapar o detalhe. – Oh!

– O quê? – perguntou Kyle.

– Eu o deixei no porão. Lamento muito.

– Porão?

– Embaixo da casa do faroleiro. Eu estava lá embaixo quando o cara começou o fogo. Acho que eu lhe devo um celular.

– Tudo bem – disse Kyle, fazendo um gesto para indicar que não se tratava de algo tão importante. – Já estava mesmo na hora de trocá­-lo.

Larry pareceu estar mergulhado em pensamentos.

– Honestamente, não sei o que fazer. Parece­-me que devíamos ligar para a sua mãe, Daniel, e contar­-lhe que você quase se afogou, mas isso só a deixaria ainda mais preocupada. E se eu ligar para a sua mãe, Kyle... não sei muito bem o que vou dizer a ela.

– Eu explico tudo a ela. Deixe­-me fazer isso pessoalmente.

– Quando voltar hoje à noite?

– Eu estava pensando mais no mês que vem...

Daniel não conseguiu perceber se o amigo estava ou não falando sério.

– Esta noite – enfatizou Larry.

– Ok.

– Você me dá a sua palavra?

– Dou.

– Ótimo. E esse Sr. Zacharias que você mencionou, Daniel, você vai entrar em contato com ele?

– Tenho certeza de que ele vai achar um jeito de entrar em contato conosco.

Larry tirou seu celular do bolso.

– Levem isto com vocês. Com a tempestade de neve, não me agrada muito a ideia de dirigirem sem telefone. Em um ou dois dias, eu o pego de volta. Eu vou dar um pulo em sua casa para cumprimentar minha irmã pelo Natal. De qualquer modo, tenho uma linha fixa para os negócios, de modo que vocês podem me ligar se for preciso.

– Ok – disse Kyle, aceitando o aparelho. – Obrigado.

– Tomem cuidado. Não estou gostando da condição das estradas e isso não vai melhorar.

Depois de Daniel e Kyle garantirem a Larry que estariam em segurança no retorno para casa, despediram­-se e partiram para Beldon no carro de Kyle.

 

 

49

17h21
Faltando 70 minutos

Nicole Marten estava de volta a sua casa.

Cerca de meia hora antes, a Sra. Goessel retornara. O homem que estava com ela estendeu­-lhe a mão.

– Sou Glenn Kramer. Acho que não nos conhecemos.

– Nicole. Prazer em conhecê­-lo.

– Prazer. Sou colecionador de armas.

– Humm... ouvi dizer.

Ora, isso é estranho.

Apertaram­-se as mãos, ele desejou feliz Natal a todos e foi embora; então, a Sra. Goessel perguntou a Nicole se ela sabia do Kyle.

– Não. Nada desde que ele saiu de manhã.

– Humm... Também não consegui entrar em contato com ele. É um pouco estranho, você não acha?

– Talvez. Não sei. Alguma notícia do pai de Daniel?

– Nenhuma – respondeu a Sra. Goessel, enquanto Michelle vinha para junto dela pedindo colo. – Então, nada de especial aconteceu enquanto eu estive fora?

Nicole não tinha certeza se deveria mencionar a visita dos policiais, mas decidiu que, se a mencionasse, a Sra. Goessel saberia que Daniel tinha escapado do hospital e ficaria indagando o que estava acontecendo.

– Tudo tranquilo – disse Nicole.

– E a Michelle se comportou bem?

– Eu acho que siiim... – disse Nicole à Sra. Goessel, com uma piscada.

– Quanto falta para o Papai Noel chegar? – perguntou Michelle com impaciência.

– Só amanhã de manhã, querida.

– Não é justo – disse a menina, descendo do colo da mãe e indo brincar resignadamente com Pinguim na outra sala.

Depois de pagar Nicole por seu trabalho – na verdade, dando­-lhe mais do que ela esperava –, a Sra. Goessel agradeceu­-lhe.

– Michelle adora ficar com você. Fico contente que você tenha vindo. Só gostaria de saber por que Kyle não está atendendo o telefone.

– Se ele me enviar uma mensagem, eu digo para ele entrar em contato com a senhora.

– Obrigada.

– Feliz Natal.

– Para você também.

***

Na mesa da cozinha em sua casa, Nicole encontrou um bilhete que seus pais haviam lhe deixado: eles tinham ido a uma festa de véspera de Natal na casa dos Newton e voltariam por volta das oito da noite.

Ela tinha se esquecido disso. Os Newton. Completamente ignorados.

Estava fritando um hambúrguer quando o telefone tocou.

Embora não reconhecesse o número da chamada, achou que poderia ser Kyle ou Daniel usando o telefone de outra pessoa a fim de dar notícias. Ela atendeu.

– Alô?

– Nicole, sou eu.

– Daniel? Onde vocês estão, caras?

– Estamos voltando. A viagem até aqui foi... bem... interessante.

– Defina “interessante”.

– Tem a ver com um pequeno passeio no lago Superior.

– Você disse no lago Superior?

– Disse, mas está tudo bem. Devemos chegar em pouco mais de uma hora, acho que por volta das seis e meia. Podemos nos encontrar na sua casa?

– Claro. Eu estou aqui agora. Por que você não atendeu antes? Eu mandei um monte de mensagens para o Kyle... e de quem é o telefone que você está usando agora?

– O do Kyle se perdeu no incêndio. Este é do Larry.

– Espere... incêndio?

– Isso mesmo, quando o cara tentou me matar no farol.

– Matar você?!

– Mas não conseguiu.

– Claro, bem, acho que entendi isso. Quem tentou matar você?

– Não sei. Ainda estamos tentando descobrir isso.

– Isso foi antes ou depois do passeio no lago?

– Antes.

Ela ficou ouvindo enquanto Daniel contou rapidamente sua ida ao farol e depois a queda no gelo na volta para o barco. Quando ele terminou, ela disse:

– Isso é loucura. Você descobriu alguma coisa sobre o seu pai?

– Eu tive uma distorção com Jarvis Delacroix. Ele me falou de “dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias”. Isso foi a última vez em que estive no celeiro, esse tanto de dias atrás, quando eu tinha 9 anos. Ainda estou tentando entender que ligação isso tem com todo o resto. Ah, e quanto à Betty... vou dizer apenas que estou bastante convencido de que ela foi enterrada na ilha Madeline. Explico quando chegar aí. Até já.

– Dois patrulheiros estiveram na casa do Kyle procurando você. Tenha cuidado.

– Obrigado.

– Ah, e diga ao Kyle que a mãe dele está preocupada. Ela quer que ele ligue para ela.

– Vou dizer a ele.

Ouvir a voz de Daniel foi tranquilizador para Nicole, mas também um pouco preocupante, especialmente quando ela soube o que ele tinha passado.

Puxa, tanta coisa tinha acontecido desde sexta­-feira, quando as distorções dele começaram a voltar...

Ela se lembrou de quando encontrou o lobo moribundo com Daniel.

Ela tinha se ajoelhado ao lado do animal, tinha prometido descobrir quem estava fazendo aquilo, tinha jurado deter aquela pessoa.

Quanto progresso você fez nesse sentido...

Olhou as horas.

17h26.

Ok, Daniel disse seis e meia, então isso lhe deixava mais de uma hora para investigar, talvez descobrir qualquer coisa que ajudasse a chegar ao matador dos lobos, ou a encontrar o pai de Daniel, o que era, sem dúvida, a maior prioridade.

As duas coisas estão ligadas.

Talvez.

Talvez não.

Como ela estava ocupada com apenas uma frente, isso já era alguma coisa.

Carregando a bolsa numa das mãos, levou, com a outra, um prato com o hambúrguer, algumas batatas chips e fatias de maçã para o seu quarto. Colocou a bolsa ao lado da cama e a comida na escrivaninha.

Durante a tarde, ela só conseguiu descobrir quando os lobos haviam sido encontrados, não quando haviam sido mortos.

Mas Ty tinha encontrado o segundo, e ela não conseguia ignorar isso. De todas as pessoas que podiam ter encontrado o lobo morto, parecia uma grande e horrível coincidência que isso acontecesse com ele.

Continuando a pesquisar on­-line, ela verificou se os Bell moravam perto do Instituto Traybor, onde a maioria dos lobos tinham sido mortos, mas descobriu que eles moravam do outro lado da cidade.

Ela reconsiderou as coisas.

Depois de matar o lobo no sábado, o atirador tinha fugido pela floresta sem ser visto, embora ela e Daniel estivessem tão próximos. Logicamente, ele caminhara pela floresta ou tinha uma moto de neve ou um automóvel esperando para deixar a área. Mas não havia tantas estradas por lá.

Você e Daniel teriam visto o carro – ou, pelo menos, ouvido o barulho do motor.

O mesmo valia para uma moto de neve.

Talvez ele tivesse um lugar próximo em que pudesse se esconder, guardar a arma ou qualquer outra coisa.

Ou podia ter usado esquis.

Humm... Isso era verdade.

Com uma arma?

Com certeza presa a uma correia cruzando o peito. A arma não seria problema.

Existe até um esporte olímpico em que eles fazem isso.

Quando ela e Daniel estavam perto do instituto, passaram pelos rastros de uma moto de neve que iam até um lago com cabanas a sua volta.

Então, talvez uma dessas cabanas?

Isso fazia sentido.

Ou algum lugar ao longo da rede de trilhas de esqui.

Você precisa descobrir quem mora por lá.

Enquanto comia, usou o laptop para localizar o registro de imóveis do distrito no site em que andara pesquisando no sábado e começou a percorrer a lista.

***

Depois que Daniel acabou de conversar com Nicole, ele passou o telefone para o amigo; Kyle ligou para sua mãe e contou­-lhe que estava bem e a caminho de casa.

Daniel conseguiu ouvir a Sra. Goessel do outro lado da linha:

– Achei que você ia estar em casa horas atrás para tomar conta de Michelle.

– É complicado.

– Meu telefone está indicando que este é o celular de meu irmão, mas Bayfield fica no lado oposto a Duluth. O que está acontecendo, Kyle?

– Eu explico quando chegar em casa. Prometo.

Daniel não conseguia imaginar o que o amigo ia dizer.

Ele ia precisar dar boas explicações.

Depois do telefonema, Daniel tentou entender o que tinha acontecido durante o dia, mas sempre acabava voltando para um fato simples e inegável: alguém tinha tentado matá­-lo. E ele não tinha a menor ideia de quem tinha sido e por que o queria morto.


50

17h31
Faltando 60 minutos

O xerife Byers ouviu uma chave ser colocada na fechadura de seu quarto.

Fechando os olhos, ficou imóvel e fingiu estar inconsciente, mas, mesmo com os olhos fechados, sentiu a luz que vinha do outro cômodo penetrar ali e envolvê­-lo quando a porta foi aberta.

Passos aproximaram­-se da cama e se detiveram a seu lado.

Ele não sabe que estou acordado. Você conta com o elemento surpresa.

Mas está algemado a esta cama. Como vai dominá­-lo?

O xerife ainda estava com a mão direita livre. Se o cara se aproximasse o suficiente, poderia agarrá­-lo pela garganta ou dar­-lhe um golpe com a mão estendida, pegá­-lo pelo pescoço até sufocá­-lo.

Ele podia ouvir a respiração áspera do homem.

O que ele está fazendo? O que está esperando?

Ele não queria tirar conclusões precipitadas, mas, se este era o mesmo homem que o atacara em sua casa, então era o Hollister, e não ia ser fácil dominá­-lo.

Ele estudava medicina. E enfaixou seu ferimento. Ele não quer que você morra.

Mas, então, por que o esfaqueou?

A respiração dele se aproximou.

Sim, o cara estava definitivamente se inclinando para ele.

Decidindo tirar vantagem do momento, o xerife abriu os olhos enquanto dobrava o braço dele para trás.

Um olhar de surpresa atravessou o rosto do homem.

Sim.

Era ele.

Brandon Hollister.

E estava suficientemente perto.

O xerife Byers levou a mão para a frente rapidamente, batendo com o lado dela na frente da garganta de Hollister.

Foi uma pancada forte, mas um pouco baixa demais, e só o tonteou por um momento. Enquanto agarrava o pescoço do adversário, o xerife agarrou sua camisa, trouxe­-o para mais perto e, enquanto Hollister ainda recuperava o fôlego, enroscou o braço em torno de seu pescoço, na esperança de asfixiá­-lo.

Interrompa o fluxo de oxigênio para o cérebro, espere por dez segundos, talvez quinze, e ele vai ficar inconsciente.

É do que você precisa.

Só mais alguns segundos.

Depois você procura a chave das algemas no bolso dele e...

Lutando contra a reação do xerife, Hollister deu­-lhe um soco no flanco ferido.

Uma onda paralisante de dor tomou conta dele e seu braço relaxou.

Hollister se livrou dele.

Com o rosto contorcido pela dor, o xerife tombou de volta na cama.

– Você não devia ter feito isso – disse Hollister, com uma voz forçada e desagradável. Ele se afastou para longe do alcance do xerife, esfregando a garganta. O xerife viu que ele tinha uma seringa na mão e ataduras novas.

Talvez ele tenha vindo para trocar o curativo – ou vai drogar você.

Ou as duas coisas.

– Você não entende o que está acontecendo – disse Hollister.

– Conte­-me o que está acontecendo.

Mas, em vez de responder, Hollister apenas olhou para o sangue fresco que saía pelo curativo no flanco do xerife.

– Faça pressão no lugar. Não posso deixar você morrer antes que ele volte.

– Antes que quem volte?

Ele tossiu e tornou a esfregar o pescoço, mas não respondeu.

– O carro de meu filho estava em casa quando você me atacou no sábado à noite? Ele está bem? Juro por Deus que, se você o machucou...

– Ele está bem. Talvez uma pequena pancada na cabeça, mas foi só isso.

– O que você quer?

– Eu quero que o mundo saiba o que está acontecendo no instituto, e quero que você me ajude a fazer isso.

O quê?

Ele foi até a porta e a fechou.

O xerife não o ouviu trancá­-la.

Quando ficou sozinho, soltou um longo e doloroso suspiro.

Instituto? Que instituto?

O único em que conseguia pensar, naquela área, era o Instituto Traybor, mas eles estudavam peixes lá e não dava para entender o que isso teria a ver com Hollister.

Mas ele sabia uma coisa nova: Hollister não estava agindo sozinho.

Não.

Ele mencionou alguém que estava para voltar.

E o xerife não gostou disso.

Apesar da dor quase debilitante, ele conseguiu pressionar a mão direita contra o ferimento para estancar o sangue. Se o parceiro de Hollister estava a caminho, ele precisava sair dali e ir para um hospital o mais rápido possível.

Enquanto se reposicionava, tentando ficar mais confortável, uma das molas do estrado da cama pressionou suas costas. Ele deslizou para o lado para evitar que ela o machucasse.

Mas, então, ocorreu­-lhe um pensamento e ele se virou para examinar a mola.

Sim. A ponta parecia suficientemente estreita. Se ele conseguisse desenrolá­-la, poderia usá­-la para abrir as algemas.

Ou, pelo menos, tentar.

Depois de olhar rapidamente para a porta a fim de se certificar de que Hollister não estava voltando, o xerife Byers começou a trabalhar na remoção da mola da armação da cama.


51

17h41
Faltando 50 minutos

Kyle passou por uma poça de gelo, e o carro derrapou um pouco antes que os pneus tornassem a se firmar na estrada.

– Você está legal? – perguntou Daniel.

– Estou bem.

– Ouça, nós realmente precisamos descobrir quem tentou me matar lá na ilha.

– Claro, mas ninguém sabia sobre o farol ou aonde nós íamos.

– Poderia ter sido o prisioneiro que o Sr. Zacharias disse que fugiu na prisão? Será que é ele que está matando os lobos? E se...

– Larry – interrompeu­-o Kyle.

– O quê?

– Larry sabia que a gente ia lá. Ele também tinha outros barcos disponíveis além do que nós usamos e sabia que havia um atracadouro no outro lado da ilha.

– Isso não faz nenhum sentido. Ele não teria queimado o farol. Além disso, por que o seu tio Larry tentaria me matar?

– Não sei, mas quem mais... Espere, e o Sr. Zacharias? Você disse que ele também sabia aonde nós íamos.

– Sim, eu mencionei isso a ele quando ele me deixou na sua casa, mas ele tampouco tentaria me matar. Ele está do nosso lado.

Kyle ficou em silêncio.

– Ou, pelo menos, acho que ele está – murmurou Daniel, sem ter, de repente, certeza de nada.

– De qualquer maneira – disse Kyle –, precisamos encontrar um modo de entrar em contato com ele. Talvez possamos finalmente entender o que está acontecendo.

– Vamos recapitular um pouco. No sábado, Nicole me perguntou como a caixa tinha ido parar lá no palheiro.

– Isso significa recapitular muito.

– Siga o meu raciocínio. Eu vi essa caixa quando era mais novo, pelo menos podemos presumir que eu a vi, baseado no que eu sabia: o estilo de escrita que eu usei na aula de Literatura, e tudo mais.

– Você está achando que foi você que a colocou lá?

– Isso faria muito sentido. Sabemos que a fazenda pertence aos Hollister, certo?

– Claro. Quero dizer... pelo menos agora pertence.

– Agora?

– Ela pode ter mudado de mãos ao longo dos anos.

– Humm... bem pensado.

O mais importante não é a quem a fazenda pertence agora, mas quem a possuía quando a caixa foi deixada lá.

– Eu acho – disse Daniel – que precisamos descobrir quem possuía aquelas terras na época, quando eu tinha 9 anos, dois mil, seiscentos e setenta e cinco dias atrás.

– Por causa da distorção com Jarvis Delacroix?

– Isso mesmo.

– Minha mãe é agente imobiliária. Ela provavelmente pode descobrir, olhar nos registros, verificar quando foi a última vez que as terras mudaram de mãos.

Kyle estava ocupado com a estrada cheia de gelo; então, Daniel fez a ligação. Quando tocou, entregou o celular a Kyle, que passou um minuto tentando explicar o que precisava sem revelar tudo o que estava acontecendo, o que não foi fácil.

Quando desligou, balançou a cabeça.

– Ela disse que precisaria estar no escritório para verificar os arquivos. Beco sem saída.

Daniel fechou os olhos e revirou suas lembranças, tentando decifrar a mensagem que as distorções pareciam estar tentando lhe dizer: o que havia acontecido naquele celeiro quando ele tinha 9 anos, no dia 28 de agosto.

Por que você esteve no celeiro?

O que você viu?

E por que você bloqueou essas lembranças?

***

O Dr. Waxford tinha passado o dia inteiro no instituto.

Ainda não tinha obtido nenhuma resposta a respeito de como a notícia se espalhara e quem teria ligado para a polícia para dizer que o xerife estava no instituto.

Não, ele não tinha encontrado nada no vídeo da câmera de segurança referente à fuga do prisioneiro número 176235, mesmo depois de revê­-lo umas dez vezes – o que significava que, de algum modo, o sujeito tinha evitado todas as câmeras.

E isso era praticamente impossível.

A única explicação que ocorria ao Dr. Waxford era que alguém tinha invadido o sistema, alterado o vídeo ou descoberto uma maneira de substituí­-lo pelo que precedia a fuga, o que, com suas medidas militares de segurança e de proteção contra invasões via internet, parecia igualmente inconcebível.

Mas alguma coisa tinha acontecido ali, e ele precisava chegar ao fundo do mistério.

Embora fosse véspera de Natal, ele tinha o número particular de celular de que precisava. Ligou, então, para o seu contato no Departamento de Defesa para verificar se ele podia lhe dizer algo sobre indivíduos ou agências que tivessem o poder de tirar alguém dali.


52

17h51
Faltando 40 minutos

Nicole encontrou o que estava procurando.

Não respondia a todas as suas perguntas, mas era, definitivamente, alguma coisa que valia a pena investigar.

Parte das terras do lago Waunakee, perto do instituto, pertencia aos Bell. Ela ligou para o telefone de orientação do serviço florestal a respeito da matança dos lobos, mas ninguém atendeu.

Nenhuma surpresa. É véspera de Natal.

Ela estava para desligar quando uma gravação sugeriu que deixasse uma mensagem, e ela decidiu fazer isso. Quem sabe? Alguém poderia estar verificando essas mensagens ainda naquela noite ou no dia seguinte.

– Humm... meu nome é Nicole Marten. Acho que tenho informações sobre quem está matando os lobos – disse ela, deixando seu número e endereço antes de desligar.

Você está assumindo um grande risco, Nicole.

Verdade.

Mas três coisas eram verdadeiras: 1) Ty tinha descoberto um dos lobos; 2) a terra de sua família ficava bem no meio da área em que os lobos tinham sido mortos; e 3) ele podia ter acesso à localização dos lobos pelo escritório do pai.

Não, é claro que o envolvimento de Ty não era uma certeza, mas havia dados suficientes para fazê­-la pensar que alguma coisa estava acontecendo.

Tentou mandar uma mensagem a Daniel no número do qual ele havia ligado mais cedo, mas a mensagem não seguiu.

Havia muitos pontos fora de serviço perto da floresta nacional, de modo que ela não ficou surpresa.

Torne a enviá­-la daqui a alguns minutos.

Mas, por algum motivo, ela de repente não gostou da ideia de ficar sozinha em casa e esperou que Daniel e Kyle chegassem por volta das seis e meia.

***

Tirar a mola da cama revelou­-se tarefa mais difícil do que o xerife Byers esperava.

Do jeito que a cama fora feita, enquanto seu peso estava todo sobre ela, havia pressão demais sobre a mola, tornando impossível desenrolá­-la.

Para tirá­-la, ele teria que se erguer e colocar as pernas fora da cama.

E isso não faria nada bem para o seu lado ferido.

Enrijecendo os músculos, respirou fundo, ergueu as pernas e se levantou lentamente.

A dor se espalhou pelo corpo, mas ele fez o que pôde para controlá­-la enquanto colocava as pernas para fora da cama para aliviar o peso sobre a mola e, então, começou a desenrolá­-la, puxando­-a do colchão.


53

A vibração do telefone interrompeu os pensamentos de Daniel sobre o celeiro.

Uma mensagem de Nicole. Ela incluía um endereço, West Creek Drive, 1594, e uma nota de que era propriedade dos Bell. Será que Ty é o matador? Tome cuidado, até logo, escreveu ela.

Ele contou a Kyle sobre a mensagem e, enquanto a discutiam, o telefone tocou.

Daniel atendeu.

– Alô. Aqui é o Malcolm.

– Como você conseguiu este número?

– Andei monitorando as chamadas de Nicole e ela falou com alguém nessa linha antes de ligar para o serviço florestal.

– O serviço florestal?

– Sim. Ela também acabou de lhe enviar uma mensagem.

– Sim, eu a recebi, mas ela pode ter conversado com qualquer pessoa nesse número. Como você sabia que era eu?

– Eu sou bom no que faço, Daniel. Eu liguei os pontos. Tenho tentado entrar em contato com você.

– Pelo telefone de Kyle?

– Foi.

– Está desativado. Estávamos examinando o farol da Cova Perdida. Alguém tentou me matar.

– O quê?

– Ele incendiou o farol enquanto eu estava dentro dele.

– Você sabe quem foi?

– Não.

Vá em frente. Pergunte a ele.

– Foi você?

– Não, claro que não – respondeu ele, fazendo uma pausa, como se esperasse que Daniel respondesse, mas como isso não aconteceu, ele prosseguiu: – Se eu quisesse você morto, nunca o teria ajudado a escapar do hospital. Eu estou do seu lado.

– Sim, é o que você sempre diz.

– Confie em mim.

– O que você fez o dia inteiro?

– Fiquei procurando seu pai.

– E?

– Tenho um palpite sobre o local para onde Brandon deve tê­-lo levado.

– Brandon?

– Brandon Hollister. O prisioneiro que fugiu.

– Esse é o nome da família dona do celeiro – murmurou Daniel.

– Que celeiro? – perguntou o Sr. Zacharias.

– O celeiro onde achei o diário, mas isso não importa. Você disse que tem um palpite sobre o local onde meu pai deve estar. Diga­-me.

– Em pessoa. Encontre­-me na entrada do instituto.

– Por quê?

– Não confio em telefones, é fácil demais ouvir as chamadas de alguém. Um encontro pessoal é sempre melhor.

– Mas por que lá?

– O Dr. Waxford está no local. Ele está lá dentro. Nós temos que falar com ele.

Daniel pesou suas opções. Encontrar o Sr. Zacharias poderia ajudar, falar com o Dr. Waxford também poderia, mas isso significaria cancelar seus planos com Nicole, o que poderia não ser tão importante, mas...

– É isso que eu não entendo – disse Daniel. – Vocês dois têm objetivos opostos? Você está tentando deter a pesquisa dele? O Dr. Waxford também trabalha para o governo?

– Eu nunca disse que trabalhava para o governo.

Isso desarmou Daniel.

– Mas você estava com um uniforme de guarda da prisão estadual de Wisconsin e, mais tarde, com outro da polícia de Minnesota.

– É isso mesmo.

– Mas você não trabalha para o governo, e o Dr. Waxford trabalha?

– Isso mesmo.

– Para quem você trabalha então?

– Isso é uma coisa que eu não posso...

– Para quem você trabalha, Sr. Zacharias?

– Explico tudo quando nos encontrarmos.

– Não. Chega disso. Eu quero que você me diga o que está acontecendo. Por que você estava me esperando depois do jogo na noite de sexta­-feira? E como calhou de você sair da estrada e atolar num banco de neve bem diante do nosso carro depois que saímos da festa?

– Eu queria conhecê­-lo pessoalmente. Ver se era real.

– Se o que era real?

– O que ouvi a seu respeito.

– O fato de eu ser intuitivo e bom em juntar as coisas – disse Daniel, repetindo o que o Sr. Zacharias tinha lhe dito no hospital em Duluth.

– Isso mesmo.

– Quem lhe contou isso?

– Uma fonte.

Daniel estava ficando exasperado.

– E suponho que também não pode me dizer esse nome.

– Não pelo telefone.

Claro que não.

– Tudo bem – disse Daniel –, mais uma coisa: você me disse que estava tentando deter a pesquisa sobre cronobiologia. Como?

– Como?

– Como você vai detê­-la? Quer dizer, vi você transportando aquele prisioneiro para o Instituto Traybor. Se você está tentando deter o que eles fazem, por que estava fazendo parte disso?

– Eu precisava entrar lá, dar uma olhada, ver se as informações que minha agência tinha sobre o local estavam corretas. Agora, ouça, eu...

– Mas... – Então, uma ideia o atingiu. Uma das peças do quebra­-cabeça se encaixava. – Oh...

– O quê?

Daniel esperava que não fosse verdade, mas quanto mais pensava nisso, mais a coisa fazia sentido, embora não quisesse acreditar que fosse possível.

– Você o ajudou.

– Quem?

– O cara que escapou, Hollister. Você o ajudou a fugir do instituto.

– Por que faria...?

– Mas fez, não é mesmo? E quando ele se viu livre, foi atrás de meu pai.

– Não é hora de...

– Você não respondeu a minha pergunta. Você é responsável pela fuga de Brandon Hollister do centro de pesquisa?

Daniel ficou esperando e, finalmente, o Sr. Zacharias respondeu:

– Eu não sabia que ele iria atrás de seu pai.

Ele sentiu a mão apertando o telefone.

– Não posso acreditar nisso. O que aconteceu ao meu pai... é culpa sua.

– Quando eu descobri o que estavam fazendo lá, quando vi com os meus próprios olhos, não podia deixar o Hollister lá. Ouça, podemos conversar mais pessoalmente.

– Onde está o meu pai?

– Eu não sei. É tudo o que eu posso lhe dizer neste momento. Encontre­-me no instituto. Precisamos saber quem são os comparsas de Hollister e quem pode tê­-lo levado até sua casa na noite em que ele atacou seu pai.

O telefone ficou mudo.

– Sr. Zacharias?

Nada.

– O senhor está aí?

Nenhuma resposta.

Daniel deu um tapa na porta do carro.

– Então – disse Kyle, que tivera uma ideia do conteúdo do telefonema –, foi o Sr. Zacharias que ajudou o cara a escapar do instituto? Sério?

– Foi. Brandon Hollister. Mas parece que outra pessoa o levou de carro até nossa casa no sábado à noite. Você ouviu a conversa?

– Só o que você disse.

– O Sr. Zacharias quer que eu o encontre no instituto, para conversarmos com o Dr. Waxford... – disse Daniel, observando em que ponto estavam da estrada. – Ouça, minha casa não está tão longe. Passe por lá para que eu possa pegar o meu carro.

– Você não acha que haverá policiais vigiando a sua casa? Quero dizer, considerando que você escapou do hospital e eles estão atrás de você?

– Não existem muitos xerifes nesse distrito, por isso eu duvido... Tenho certeza de que eles estão procurando meu pai. E com as estradas nesse estado, acho que os patrulheiros estaduais estão muito ocupados ajudando as pessoas que encalharam. Mas passe pela minha casa e vamos ver. Se houver algum carro da polícia por lá, nós passamos direto.

– Então vamos nos separar: você encontra o Sr. Zacharias e eu vou para a casa da Nicole?

– Isso mesmo. Assim, se descobrirmos onde meu pai está, pelo menos um de nós será capaz de ir até lá. Além disso, preciso esclarecer o que aconteceu no sábado à noite e estou achando que, se examinarmos a cozinha, minha memória vai se reativar, como aconteceu no celeiro.

– Faz sentido.

– Vire à esquerda ali adiante – disse ele. – Vamos pegar um atalho.


54

18h01
Faltando 30 minutos

O Dr. Waxford soube que, além de alguns grupos terroristas internacionais, havia diversas agências governamentais dos Estados Unidos e algumas empresas privadas com capacidade tecnológica para burlar o sistema de segurança do Instituto Traybor.

Isso, na verdade, não tornava as coisas mais simples como ele esperava.

Contudo, a Agência Nacional de Segurança tinha divulgado que um operador freelance chamado Malcolm Zacharias, especializado no resgate de ativos, tinha sido visto nas Cidades Gêmeas* recentemente.

Isso ficava a apenas duas horas de Beldon.

De acordo com o contato do Dr. Waxford, Zacharias era o mais provável responsável pela fuga.

Ele pode ter ajudado Hollister a escapar, pode ter adulterado o vídeo de segurança.

E pode levá­-lo até Hollister.

Não estava claro para o Dr. Waxford como ele poderia localizar Zacharias, mas tinha todos os recursos à sua disposição para isso.

Tornou a ligar para o contato no Departamento de Defesa.

– E alerte as autoridades locais – disse ele. – Faça com que o procurem.

– Sob que pretexto?

– Diga­-lhes que você suspeita que ele raptou o xerife Byers. Isso vai chamar a atenção.

Nesse ínterim, ele precisava tomar medidas que garantissem a integridade de sua pesquisa. Ele não quis fazer isso antes, mas, se Zacharias estava envolvido, ele poderia ter sido a pessoa que ligou para a polícia mais cedo, dizendo­-lhes que procurassem o xerife ali no instituto.

Se é ele, se ele realmente ajudou Hollister a escapar, ele sabe mais do que devia. Pode saber o suficiente para deter a pesquisa.

Com isso em mente, o Dr. Waxford percebeu que, se não conseguisse encontrar Hollister ou Zacharias, poderia ter que tomar outras medidas, mais extremas, para garantir que ninguém descobrisse qualquer sinal de que sua pesquisa tinha sido desenvolvida ali.

Havia meios disponíveis para essa eventualidade.

Os explosivos já estavam instalados dentro das paredes. Seria como uma explosão ocasionada por um vazamento de gás e, quando terminasse, teria selado e coberto as salas de pesquisa subterrâneas.

Seu pessoal seria realocado.

Um novo começo.

Pegou o laptop e começou a baixar os arquivos que teria que levar com ele para que pudesse prosseguir com sua pesquisa em outro local se realmente precisasse destruir aquelas instalações.

***

Não havia ninguém fora da casa, mas Daniel disse a Kyle que ficasse no carro e alerta enquanto ele ia até a cozinha.

Não é função da polícia limpar os locais em que crimes ocorreram, de modo que ainda havia sangue seco no chão.

Era o local exato em que Daniel tivera a visão do pai sendo atacado, quando estava no consultório do psiquiatra. Então, aparentemente, aquela parte do sonho tinha sido real, mesmo se a parte em que sua mão era sugada pelo triturador de lixo fosse irreal.

Agora, ver as manchas de sangue ali, tão reais, foi uma experiência dura.

Ele não conseguia acreditar que o Sr. Zacharias tinha sido a pessoa que ajudara Hollister a escapar.

Mas em que isso pode lhe ajudar?

O que aconteceu com seu pai?

Ele se ajoelhou ao lado do sangue, colocou a mão no linóleo frio e, então, deixou que seus pensamentos o levassem de volta à noite de sábado.

E descobriu que tinha razão.

Voltar ali havia reavivado sua memória.

Fechou os olhos enquanto uma imagem atrás da outra lhe passava pela mente, cada uma delas ficando mais clara, cada uma delas levando­-o para mais perto da verdade.

Você vai para o seu quarto, planejando ler os diários, mas decide pegar um refrigerante na cozinha; põe a caixa contendo os diários em sua escrivaninha ao lado de seu telefone e vai para o corredor.

A meio caminho da sala, as luzes se apagam.

Seu pai não está em casa e não está caindo nenhuma tempestade, então você imagina que se trata de um fusível.

Você sabe onde fica a caixa dos fusíveis, acima da máquina de lavar, no porão. Encontra uma lanterna na gaveta da cozinha e desce as escadas.

Você está se aproximando da caixa quando a porta da garagem se abre.

Um instante depois, seu pai o chama e você acha isso estranho, pois, com a escuridão que está, ele não teria ideia de que você estava aqui embaixo. Além disso, não parece que ele esteja tentando ouvir seus passos aqui, mas parece estar falando com alguém na cozinha: “Daniel? Você está bem?”.

E então: “O que está havendo, Dan?”.

De repente, um grito de dor e um baque surdo.

Silêncio.

Você o chama, pergunta se ele está bem, mas não ouve nenhuma resposta.

Subindo depressa as escadas para entrar na cozinha, você passa a lanterna por ela e o vê caído no chão, perto da geladeira.

“Papai!”

E corre para ele.

Uma faca está enterrada em seu flanco e ela se move ligeiramente cada vez que ele respira com dificuldade.

Você tenta decidir se vai pegar o telefone para pedir ajuda ou se fica aqui e tenta estancar o sangramento, mas, então, percebe que, se não conseguir uma ambulância logo, seu pai vai morrer.

Mas quem fez isso provavelmente ainda...

Você examina a cozinha, mas não vê ninguém.

Voltando rapidamente a seu quarto, encontra o celular e liga para a emergência, correndo de volta para ajudar seu pai.

Você coloca a lanterna no chão e tenta controlar o sangramento, mas há sangue demais.

Tanto sangue.

Em suas mãos.

Por toda parte.

Enquanto aguarda a chegada do socorro, ouve um movimento atrás de você – o leve ranger do assoalho lhe diz que alguém está ali.

Virando­-se, você vê surgir uma figura. Ele balança algo contra sua cabeça.

Ocorre uma explosão de estrelas e você não vê mais nada, não sente mais nada, exceto o peso de uma escuridão ampla e avassaladora que rapidamente toma conta de você.

Mas, pouco antes de desmaiar, você ouve alguém chamando da escada do porão. “Este é o Daniel”, diz a pessoa. “Isso muda tudo.”

***

Daniel piscou e olhou para a porta do porão.

Seu coração estava disparado.

Havia duas pessoas ali, e não apenas uma.

De quem era a voz que você ouviu?

Ele tornou a fechar os olhos e se concentrou, mas não conseguiu lembrar nenhum outro detalhe sobre quem o teria atingido ou quem estava na escada. Contudo, embora não pudesse identificar a voz, sabia que já a tinha ouvido.

Então...

Seria um dos antigos comparsas de Hollister?

O Sr. Zacharias ajudou Hollister a escapar. Poderia ser ele?

Agora havia uma suspeita.

Vá até lá. Mexa­-se. Vá encontrá­-lo. Ver o que ele tem a dizer.

Kyle foi para a casa de Nicole e Daniel ficou com o telefone de Larry; depois de localizar um molho de chaves, ele saiu em seu carro para se encontrar com o homem que podia muito bem estar na casa quando seu pai foi esfaqueado.

* Cidades Gêmeas são um caso especial em que duas cidades ou centros urbanos são fundidos em uma área geográfica próxima e passam a crescer juntos. Nos Estados Unidos, o termo se refere especificamente à região metropolitana de Minneapolis­-Saint Paul. (N.T.)


55

18h11
Faltando 20 minutos

O xerife Byers conseguiu soltar a mola, mas quando ela saiu da cama, pulou pelo quarto e ricocheteou na parede.

E rolou.

Rolou.

E finalmente parou, longe do alcance dele.

Mas talvez você consiga trazê­-la para perto com o calcanhar.

Com os pés da cama presos no chão, ele não conseguia deslocá­-la para mais perto; em vez disso, jogou a perna para fora e esticou até o ponto que as algemas lhe permitiam.

Depois de duas tentativas, conseguiu trazer a mola em sua direção com o pé.

Um pouco mais de esforço e ele conseguiu rolá­-la até ficar quase ao seu alcance.

Então, com a mola na mão, introduziu a ponta dela na fechadura das algemas, tentando se libertar.

***

Daniel não estava longe do instituto. Enquanto dirigia o carro até lá, deixou que sua mente voasse pelos fatos, pelas distorções.

O que ele sabia.

O que não sabia.

Malcolm Zacharias queria conversar com ele sobre os antigos companheiros de Hollister que poderiam tê­-lo ajudado, e um deles, com certeza, era Ty Bell, que era amigo dele antes de sua prisão.

Seria ele?

Ty poderia estar trabalhando com Hollister?

Será que foi ele que atacou seu pai? Ou teria sido ele a pessoa que você ouviu subindo do porão pouco antes de desmaiar?

Nicole tinha lhe mandado o endereço da propriedade dos Bell: West Creek Drive, 1594.

Era no lago Wanakee, perto do instituto, e bem no centro dos locais onde os lobos mortos tinham sido encontrados.

Poderia ser Ty quem tentou matar você na ilha?

Ele já puxou uma faca para você. Ele é capaz de...

O telefone de Larry tocou, arrancando Daniel de seus pensamentos.

O indicador de chamadas dizia apenas “comercial”, e Daniel imaginou que provavelmente fosse Larry ligando de seu número fixo.

Falar ao telefone e dirigir sob a sob a nevasca não era fácil nem prudente, mas Daniel não tinha tempo de parar no acostamento para atender.

– Larry?

– Eu mesmo. Descobri alguma coisa. Lembra como eu estava pensando se alguém teria alugado um barco de outro estabelecimento? Bem, um cara, um amigo meu do outro lado da cidade, alugou um barco para alguém.

– Para quem ele alugou?

– Grady Planisek.

– Planisek?

– Isso mesmo. Ele chegou depois de você, deve ter dado a volta pelo lado sul da ilha, e é por isso que você não viu o barco. Ou pode ter sido por causa da neve e da visibilidade limitada. De qualquer modo, esse nome lhe diz alguma coisa?

– Diz, sim. Havia um rapaz dessa área que desapareceu quando eu era criança. Esse era o nome dele: Grady Planisek.

E foi através disso que o demônio voou no palheiro: as palavras gravadas, a frase “Grady Planisek esteve aqui”.

Daniel agradeceu a Larry e desligou.

Quem teria usado aquele nome para alugar o barco?

Grady havia desaparecido dezessete anos antes.

Pelo que Daniel lembrava, o garoto tinha 10 anos quando desapareceu.

Uma ideia lhe surgiu, vinda não se sabe de onde, e ele repassou todas as peças do quebra­-cabeça que ele supunha já estarem em seus lugares.

Grady Planisek poderia estar vivo?

Seria possível? Poderia...

Uma faixa de gelo e uma súbita derrapagem em direção ao banco de neve do acostamento arrancaram Daniel de seus pensamentos e ele tornou a se concentrar na direção pela estrada que só piorava, mas depois que reassumiu o controle do carro, pensou em Grady.

Você tem o endereço da propriedade dos Bell.

Fica no caminho do instituto.

É perto.

Quem atacou seu pai poderia estar lá?

Malcolm Zacharias estaria na área próxima ao instituto por causa disso?

Ele está por trás de tudo isso?

Ou será Grady?

Ou Ty?

Você podia checar tudo isso.

O Sr. Zacharias quer se encontrar com você para conversar sobre as pessoas que Hollister conheceu antes de ir para a prisão. Ty Bell é uma delas.

E então? Encontrar o Sr. Zacharias ou investigar a propriedade junto ao lago?

A intersecção estava bem à frente.

Você nunca disse ao Sr. Zacharias que ia encontrá­-lo. Você pode chegar a West Creek Drive se pegar a próxima saída. Vá verificar. Se não houver nada lá, você pode se encontrar com ele depois.

Daniel pegou a saída e foi para West Creek Drive, 1594.

***

Nicole estava verificando suas mensagens para ver se Daniel havia lhe respondido, quando viu o reflexo de faróis passar rapidamente pela janela à medida que um carro entrava no pátio em frente de sua casa.

Humm, Daniel e Kyle vieram muito mais cedo do que pensavam.

Pouco depois, a campainha da porta tocou.

Depois de colocar o celular na mesinha de centro perto do sofá, ela foi até a porta da frente, acendeu a luz da entrada e olhou pela janela.

Não havia ninguém lá.

Isso era estranho.

Quem tocou a campainha?

Depois de certo debate interior, ela foi em frente e abriu a porta.

– Olá? Daniel? Kyle? Onde vocês estão, rapazes?

Olhou para a noite enevoada e não viu nenhum movimento, nada.

Contudo, quando estava para fechar a porta e trancá­-la, alguém saltou das sombras em torno da casa e correu para ela. Dando um passo atrás, ela tentou fechar a porta, mas ele colocou o pé nela.

Ela se afastou, com o coração batendo apertado no peito.

Ty Bell entrou na sala.

– Olá, Nicole.

E fechou a porta atrás dele.


56

No último mês de setembro, Nicole estava no carro com Daniel voltando para casa, depois que as pessoas com quem haviam marcado de se encontrar não apareceram no baile do colégio.

Ty e seus três comparsas estavam esperando por eles na estrada. Daniel os enfrentou quando eles tentaram entrar à força no carro e agarrá­-la – ela nem queria pensar no que eles poderiam ter feito com ela se isso tivesse acontecido – e fugiram. Foi o que a levou a carregar um spray de pimenta na bolsa desde então.

E agora ela estava sozinha com ele, e seus pais não voltariam antes das oito horas.

Ok, mas Daniel e Kyle estão a caminho. Daniel disse seis e meia. Você só tem que se aguentar, ficar conversando com ele até esse horário.

– Como foi que você... – começou ela, mas se deu conta do que acontecera. – Ah, você estava no escritório de seu pai, não é isso? Você ouviu a mensagem que eu deixei no disque denúncia.

– Eu estava pesquisando.

– A localização dos lobos.

Ele sorriu e jogou a cabeça ligeiramente para o lado.

– Olhe só você... juntando as coisas.

A raiva aumentou dentro dela.

– Quantos já foram, Ty?

– Quantos?

– Lobos. Quantos você matou e não foram encontrados?

– Encontraram todos, exceto um. Foi um bom número.

Ela se adiantou e deu­-lhe um tapa.

Com força.

Ele é maior que você. É mais forte. Você não devia ter...

Dane­-se.

Ela estava feliz por ter batido nele.

Nicole retrocedeu.

– O que você está fazendo aqui?

Ele limpou com a mão um pouco do sangue que saía de seu lábio machucado.

– Achei que você e eu podíamos ter uma conversinha.

– Daniel e Kyle vão estar aqui a qualquer momento.

– Então é melhor não perdermos tempo.

Procure ganhar tempo.

Não, você precisa chamar alguém. Conseguir ajuda.

Ela havia deixado o celular perto do sofá e, enquanto lentamente avançava de costas para pegá­-lo, Ty deve ter adivinhado o que ela tencionava, pois pulou na frente dela, empurrou­-a de lado e agarrou o telefone.

– Eu fico com isso – disse ele, colocando o celular no bolso. – Assim podemos ter um pouco de privacidade.

Ah, isso não é nada bom.

Nada bom.

Você precisa sair daqui.

Mas ele deu um passo de modo a se colocar entre ela e a porta da frente.

– Eu sei onde está o pai do seu namorado.

– O quê? – exclamou ela.

– Se você ficar on­-line agora mesmo e confessar que matou aqueles lobos, eu lhe digo onde ele está.

– Você atacou o pai de Daniel? Foi você?

– Não – respondeu ele, balançando a cabeça. – Não fui eu, mas eu sei onde ele está. E vou lhe contar – acrescentou, balançando o telefone diante dela, pronto para gravar um vídeo. – Você só precisa admitir para o mundo que é a responsável.

– Isso é loucura. Quem vai acreditar que eu sou a responsável pela matança daqueles lobos?

– Vão acreditar por causa da arma que vão encontrar em sua garagem.

– Não é o suficiente. Daniel estava comigo quando encontramos o lobo em que você atirou no sábado. Ele sabe que não fui eu. Ele vai me defender.

– O maluquinho? – zombou ele. – Ele é o cara mais instável por aqui. Além disso, todo mundo espera que ele defenda você – acrescentou ele, batendo no bolso em que havia colocado o telefone dela. – Também vão encontrar as localizações dos lobos etiquetados em seu celular.

– Ah, entendo. Você fez o download delas.

Outro riso de zombaria.

– Você não está achando que eu vou concordar com isso...

– Bem – disse ele, guardando o celular. – Pelo menos, eu tentei.

Ela não gostou do olhar no rosto dele.

Vá em frente e faça o que ele está pedindo, Nicole. Ninguém vai acreditar e talvez ele lhe diga onde está o pai de Daniel.

– Ok – disse ela. – Vou dizer que os matei. Dê aqui o seu telefone.

– O simples fato de acreditar em mim mostra como você é realmente ingênua.

O brilho maldoso dos olhos dele a assustou, e ela tornou a pensar na vez em que ele puxou a faca para Daniel tentando tirá­-la do carro trancado.

Ele carrega uma faca automática.

Provavelmente a está carregando agora.

Ele...

Sem esperar mais, ela pulou e correu escada acima até seu quarto. Bateu a porta. Trancou­-a.

E empurrou a cômoda contra ela.

Mas, então, ouviu Ty subindo os degraus.

– Nós temos umas questões pendentes, Nicole. Mas podemos cuidar disso no seu quarto, se é isso que você está querendo.


57

18h21
Faltando 10 minutos

O xerife Byers ouviu o mecanismo da algema fazer um “clique”.

A algema se abriu.

Ele a tirou do pulso e levantou­-se com dificuldade, atravessando o quarto.

Não tinha ouvido Hollister trancar a porta, mas estava disposto a pô­-la abaixo se necessário.

Tentou abri­-la.

Destrancada.

Ótimo.

Com a adrenalina a toda e pronto para uma luta, entrou na sala da cabana e a examinou: móveis rústicos de madeira. Um sofá. Duas cadeiras. Uma lareira. Três cabeças empalhadas de veados de cauda branca sobre a parede, perto de um relógio de pêndulo.

Uma porta aberta levava à cozinha. Havia portas francesas de vidro na parede ao fundo.

Linha para sutura, agulhas, curativos ensanguentados, algumas seringas vazias e vidros de remédio estavam em um dos balcões.

Ele não reconheceu o lugar. Nunca estivera ali.

Nenhum sinal de Hollister.

Onde está ele?

Olhou ao redor, tentando achar um telefone, mas não encontrou nenhum.

Saia daqui. Você não está em condição de lutar. Vá embora.

Já estava se dirigindo à porta da frente quando uma foto sobre a lareira chamou­-lhe a atenção.

Era uma fotografia de Ty Bell sentado ao lado de um veado de cauda branca, com um rifle pousado em seus chifres.

O xerife se deteve.

Quem teria colocado aquela fotografia na cabana?

Provavelmente alguém da família. Provavelmente...

Será esta a cabana de caça de Lancaster Bell?

Ele estará envolvido no mistério?

Hollister mencionara outra pessoa, dizendo que alguém estava para chegar. Será Lancaster que...

– Pare onde está, xerife – disse Brandon Hollister vindo da cozinha, segurando uma faca de serra. – Sente­-se. No sofá.

O xerife deixou que suas mãos se cerrassem.

– Acho que vou ficar em pé.

***

Nicole tentou se acalmar respirando fundo e imaginando o que fazer, enquanto Ty forçava a maçaneta da porta trancada.

– Não faça assim, Nicole. Podemos chegar a outro acordo.

Pense, Nicole, pense!

Ele está com o seu celular.

Desesperadamente, ela procurou pelo quarto em busca de...

Sim.

Ele estava com o celular dela.

Mas ela tinha o laptop.

***

Daniel cruzou a ponte sobre o rio Pine e, então, entrou na West Creek Drive.

Ele só tinha passado por aquela via um par de vezes, mas, com base em sua proximidade com o lago, ele imaginou que estivesse a menos de um quilômetro da propriedade.

***

O xerife Byers observou Hollister cuidadosamente, esperando que ele baixasse a guarda o suficiente para avançar e desarmá­-lo.

– Abaixe essa faca, Brandon.

– Não.

– Abaixe...

– Não! Sente­-se – disse ele, observando o relógio da parede e mexendo num pequeno estojo em seu cinto, quase do tamanho de um porta­-celular. – Agora.

– Você disse que queria minha ajuda, mas não vou ajudar você enquanto estiver me ameaçando com essa faca.

Hollister não se mexeu.

Os dois estavam em guarda.

O xerife tentou uma tática diferente.

– Por que você me esfaqueou se queria que eu o ajudasse?

– A princípio eu queria matar você, mas ele me disse para não fazer isso.

– Quem lhe disse?

– Ele está chegando... você não sabe de nada. O tempo se torna... – Sua voz foi interrompida pelo que parecia um tremor de medo. – Eu quero que o mundo conheça a verdade sobre o que eles estão fazendo lá.

– Onde? Na prisão? Você foi maltratado?

– Não na prisão. No instituto! – disse Hollister, batendo a lâmina da faca na lateral da própria cabeça. – No seu cérebro. Eles fazem coisas nele. Fazem com que pareça...

– Brandon, você precisa baixar essa faca.

Brandon ameaçou­-o com a arma.

– Foi você que me prendeu! É culpa sua eu ter ido parar lá!

– Ok. De que instituto você está falando? O Traybor?

– Eles estavam pedindo voluntários, disseram que iam diminuir o tempo de nossas sentenças, mas... na sala... – disse ele, com a mão trêmula. – Eles pegam a gente. Você pode imaginar o confinamento na solitária? Mas sem interrupção, sem nenhum alívio. É assim que é... semanas... embora eu estivesse... – prosseguiu Hollister, balançando violentamente a cabeça. – Eles não vão acreditar em mim – completou, agitando a faca como se quisesse deixar as coisas bem claras. – Mas vão acreditar em você.

Cuidado. Este cara está perdendo o controle. Mantenha­-o falando, mas não apresse as coisas.

– Muito bem, estou ouvindo. Conte­-me o que está acontecendo.


58

Daniel estacionou.

Saiu do carro.

Não havia outros carros na entrada, mas as luzes da cabana estavam acesas, o que parecia indicar a presença de alguém.

Dê uma olhada e vá se encontrar com o Sr. Zacharias.

Aproximou­-se da janela para ver se conseguia ver lá dentro, mas as cortinas estavam fechadas.

Rodeando a cabana, encontrou portas de vidro.

Pelo vidro, pôde ver dois homens em pé do outro lado da sala de estar.

Um deles era seu pai.

Ele está vivo!

Graças a Deus, ele está vivo!

O outro homem estava a cerca de três metros dele, segurando uma faca.

Daniel reconheceu­-o. Era o prisioneiro que tinha visto no Instituto Traybor.

É Brandon Hollister. Ele foi preso por homicídio.

E vai atacar seu pai!

Daniel tentou abrir as portas de vidro, mas estavam trancadas. Com o vento fazendo com que elas trepidassem, nenhum dos dois homens o viu.

Você precisa entrar lá. Precisa ajudar seu pai.

Mas como?

Ele voltou à frente da cabana, mas aquela porta também estava trancada.

Tudo bem.

Ache outra maneira de entrar.

***

Nicole colocou o laptop na cômoda junto à porta para que o microfone captasse a voz de Ty do corredor.

Fazer com que alguém admitisse ser o autor da matança dos lobos era uma boa ideia, mas não ia ser ela a fazer essa confissão pública.

– Então, seu pai sabe o que você tem feito? – perguntou ela.

Existem milhares de maneira de pedir socorro on­-line e, enquanto trabalhava nisso, ela mandou mensagens e e­-mails a pelo menos seis de seus amigos, pedindo­-lhes que mandassem a polícia à sua casa imediatamente.

Como Ty não respondesse, ela insistiu:

– Ou quem sabe são aqueles três caras com quem você sempre anda?

– Ninguém mais sabe. É o nosso segredinho.

Ela checou o nível de gravação, para garantir que a voz dele estivesse sendo registrada.

Estava, sim.

Ótimo.

Ele tornou a tentar a maçaneta.

– Abra esta porta, Nicole.

– Então você matou os lobos sozinho?

Ela aguardou. Ele não disse nada.

– Por que você matou os lobos, Ty?

– Para treinar pontaria.

Ela sentiu outra onda de ódio dentro dela pelo que ele tinha feito.

– Mesmo que você coloque o rifle na minha garagem, vão acabar sabendo que ele era originalmente seu. Até você sabe disso.

– Você acha que eu usaria meu próprio rifle?

– O quê? De quem era o rifle que você usou?

– Sabe o centro de pesquisa? Lá trabalha um cara. Eu emprestei o Browning automático dele. Agora...

– Você quer dizer que roubou o rifle dele.

Ele tornou a tentar a maçaneta.

– Não quero machucar você, Nicole. Só quero que cheguemos a um entendimento.

– Que tipo de entendimento?

Vamos, Daniel. Seja rápido!

– Um entendimento que...

Enquanto estava aumentando o volume da gravação, ela acidentalmente tocou no “play”, e o que fora gravado tocou alto.

– O que é isso? – gritou Ty. – Você me gravou?

Oh, não!

Ela correu para postar o áudio, mas Ty esmurrou a porta e ela retrocedeu.

Ele tornou a esmurrar a porta, tentando pô­-la abaixo.

Nicole jogou o laptop na cama.

E correu para pegar a bolsa.

***

Momentos antes, ainda no carro, Daniel usara o telefone de Larry para ligar para a polícia e conseguir uma ambulância para o pai. A prudência lhe disse que, com as estradas ruins como estavam e com ele tão longe da cidade, poderia demorar de oito a dez minutos antes que o socorro chegasse.

Não.

Era tempo demais.

Ele precisava fazer alguma coisa para ajudar o pai.

Abrindo o porta­-malas, Daniel tirou a pá que tinha para o caso de ter que tirar bancos de neve e foi para a entrada da cabana.

***

O xerife ouvia enquanto Brandon Hollister explicava pelo que tinha passado no Instituto Traybor.

E ficava consultando o relógio.

– Quando ele chegar aqui, vamos cuidar de tudo.

– Quem vai chegar aqui?

– Você vai ver.

– Depois de eu ajudá­-lo, o que vai fazer comigo? Vai me deixar ir embora?

– Você vai ter seu nome na parede.

– O quê?

***

Daniel não sabia se aquilo ia funcionar, mas sabia que, se ficasse sentado sem fazer nada, esperando que a ajuda chegasse e Hollister matasse seu pai, nunca iria se perdoar.

Posicionando­-se junto à porta de vidro, agarrou o cabo da pá como se fosse um taco de beisebol, levou­-o acima do ombro e o baixou com toda a força, arrebentando a porta, que se espatifou, espalhando vidro por todo o interior da cabana.

Evitando os pontiagudos dentes de vidro que ainda estavam no caixilho inferior da porta, Daniel entrou por ela, ergueu a pá e avançou em direção a Hollister.

– Largue a faca.

Eles lutaram por um momento, Daniel largou a pá e foi socorrer o pai, mas, enquanto cruzava a sala, o xerife já havia torcido o braço de Hollister para trás, forçando­-o a largar a faca.

– Não – gritou Hollister, lutando com fúria, mas não conseguindo se soltar. – Você não entende!

– Quieto, Brandon – disse o pai de Daniel, chutando a faca para longe, em direção à porta da frente. – Dan, você está bem?

– Estou. E você?

– Estou bem – disse ele, mas era óbvio que a dor o estava atormentando enquanto conduzia Hollister, que fazia de tudo para se soltar, para um cômodo vizinho. – Venha cá, Dan, preciso de sua ajuda.

Seu pai levou Hollister até uma cama e pediu que Daniel colocasse uma algema em torno do pulso do homem, prendendo­-o à cabeceira.

Depois de Hollister estar dominado, seu pai procurou nos bolsos dele e achou a chave das algemas. Contudo, enquanto estava se afastando, Hollister de repente tirou uma seringa de um estojo no cinto e, com a mão livre, enterrou­-a na perna do pai de Daniel, apertando o êmbolo.

– Aí está. Vamos ver como ficamos.

***

O xerife Byers arrancou a seringa vazia da perna e atirou para longe.

– O que foi isso? – perguntou ele. – O que você me aplicou?

Hollister limitou­-se a sorrir com afetação.

– Você vai ficar com muito sono, xerife.


59

Kyle entrou na rua de Nicole. Com a luz dos faróis, percebeu que os carros do pai e da mãe dela não estavam lá.

Mas o de Ty Bell estava.

***

O pai de Daniel não conseguiu obter nenhuma resposta de Hollister e, então, foi até o outro quarto e começou a remexer seringas e frascos de remédio vazios que estavam na bancada, tentando identificar o que ele poderia ter lhe injetado.

– Eu chamei a emergência alguns minutos atrás – disse­-lhe Daniel. – Eles estão a caminho.

***

Assustada, Nicole ficou olhando quando a fechadura voou do lugar e a porta se escancarou.

Empurrando a cômoda, Ty avançou contra ela.

Quando estava prestes a alcançá­-la e agarrá­-la, ela levou a mão para a frente e esvaziou o spray de pimenta no rosto dele.

Ele gritou e levou as mãos ao rosto, esfregando os olhos freneticamente.

***

– Pai, sente­-se – disse Daniel. – A ambulância está chegando.

O pai, que parecia mais fraco a cada segundo, tombou no sofá.

– Hollister disse que você tomou uma pancada na cabeça.

– Eu estou bem – disse ele, mas não mencionou nem o incêndio nem o quase afogamento. – Procure descansar até os paramédicos chegarem.

***

A porta da frente da casa de Nicole estava destrancada, e Kyle voou para dentro.

– Nicole? Você está bem?

Ela gritou em resposta de lá de seu quarto.

Galgando rapidamente os degraus, encontrou Ty Bell estendendo o punho para socá­-la.

Kyle agarrou­-o pelos ombros e o derrubou no chão.

Seus olhos estavam inchados.

Ele chorava de dor e de raiva.

Nicole ainda estava segurando o spray de pimenta.

– Ele está com o meu telefone – disse ela a Kyle.

Apesar do esforço obstinado de Ty para se livrar, Kyle não perdeu tempo em recuperar o telefone de seu bolso.

Enquanto Nicole chamava a polícia, Kyle disse:

– Precisamos garantir que ele não saia daqui.

– Temos fita adesiva grossa na cozinha, na gaveta ao lado da geladeira.

– Isso deve funcionar.


60

18h28
Faltando 3 minutos

Enquanto o pai de Daniel se acomodava no sofá, soltou um gemido de dor.

Mantenha­-o conversando.

– Pai, você se lembra de Grady Planisek?

– De quem?

– Grady Planisek. Um garoto que desapareceu quando eu tinha 9 anos.

– Ok – respondeu ele, já meio inconsciente.

– Ouça. Ele tem alguma coisa a ver com tudo o que está acontecendo aqui. Alguém hoje usou o nome de Grady para...

Quem você ouviu falar lá da escada no sábado à noite um pouco antes de desmaiar?

O Sr. Bell.

Ty?

Grady Planisek?

– Alguma coisa não está certa, pai. Alguma coisa não se encaixa.

Os pensamentos de Daniel avançavam e voltavam num círculo.

Procuravam um local para aterrissar.

Naquela distorção, Betty o avisou para tomar cuidado com a pessoa para a qual você contava seus segredos. “Você precisa detê­-lo antes que aconteça de novo”, disse ela. “Você não pode deixar que ele prossiga.”

E ainda havia aquele homem no hospital. Ele advertira Daniel: “Você não tem muito tempo. Ele vai tornar a fazê­-lo”.

De quem ele estava falando?

Quem vai tornar a fazê­-lo?

Mas você deve tê­-lo imaginado. Você nem sabe se ele era real.

– Você viu mais alguém no sábado à noite? – perguntou Daniel ao pai.

– O quê? – respondeu ele, e, por sua maneira de falar, Daniel percebeu que estava perdendo os sentidos.

A emergência disse de oito a dez minutos.

É muito tempo.

Indo até o outro quarto, Daniel tentou fazer com que Hollister lhe contasse que droga era, mas o homem apenas agitou a algema.

– Me solte e eu lhe digo.

Daniel aguçou o ouvido para ver se detectava alguma sirene, mas só ouviu o som do vento no meio da noite. A neve estava soprando através da porta de vidro quebrada, e mesmo naquele lado da cabana, ele conseguia sentir as lufadas de ar frio.

– Está de acordo? – perguntou Hollister. – Você quer salvar seu pai? Só precisa me soltar e eu o ajudo. Prometo.

– Isso não vai acontecer.

Daniel voltou até o pai.

– Precisamos levar você para o hospital – disse ele, estendendo a mão para ajudá­-lo a se levantar. – Vamos, eu o ajudo.

– Não podemos largar Hollister aqui.

– Ele está algemado. Não irá a lugar nenhum. E os policiais estão a caminho.

– Me dê só um momento – disse o pai, fechando os olhos, sem segurar a mão de Daniel. – Preciso recuperar o fôlego.

Mas, à medida que os segundos passaram, seu pai não se mexeu mais.

– Pai?

Não o deixe dormir.

– Pai!

Daniel sacudiu­-o pelos ombros para mantê­-lo acordado.

Ele se mexeu.

– Sim, eu estou bem.

– Nós vamos embora. Agora. Vamos. Precisamos ir.

Dessa vez o pai não objetou e deixou que Daniel o ajudasse a ficar em pé; contudo, Daniel constatou que precisava suportar a maior parte de seu peso. Enquanto passava o braço pela cintura do pai, evitando cuidadosamente fazer pressão sobre o curativo, o sangue que saía dele o fez pensar no sonho que tivera, em que o vira na cozinha, e também em sua própria mão sendo engolida pela pia, com as lâminas do triturador de lixo dilacerando­-lhe a pele, os ossos, os...

Por que você bloqueou o que aconteceu no celeiro quando era criança?

Porque era muito traumático.

Porque sua mente estava tentando protegê­-lo.

Enquanto Daniel ajudava o pai a chegar à porta, o sangue o fez lembrar.

Nem tudo em suas distorções corresponde integralmente às coisas da vida real.

A enfardadeira estava correndo.

O triturador de lixo moeu sua...

Então, num relance, tudo lhe voltou à mente: imagens sobrepondo­-se umas às outras numa questão de segundos, e a lembrança daquele dia surgiu diante dele.

Sua avó está triste a maior parte do tempo; assim, quando você vai lá com seus pais, tem que brincar sozinho por muito tempo, às vezes lá no sótão, às vezes nos campos e bosques perto da casa dela.

Às vezes, no celeiro da propriedade do vizinho.

Um dia você encontra uma caixa de madeira no sótão dela. Seus pais estão conversando com sua avó na sala e você pode sair pela porta dos fundos sem ser visto com a caixa.

Você atravessa o campo até o celeiro para sentar no palheiro e examinar o que está na caixa.

Ela tem um cadeado com a chave.

Isso o deixa intrigado.

Você se senta no banco lá em cima e lê os diários, examina as fotos.

A tarde está no fim e começou a chover.

Então, você ouve um homem e um menino entrando no celeiro. Eles estão conversando, mas não parece que o menino esteja ali por vontade própria.

Você não quer que eles vejam o que você está fazendo lá em cima no palheiro e, então, você coloca tudo de volta na caixa e a tranca, escondendo­-a atrás do banco. Você não quer ser apanhado e se esconde atrás de um fardo de palha.

O menino começa a chorar.

A princípio o choro é baixo, mas depois fica mais alto.

Você ouve o homem tentando fazê­-lo parar, silenciar e, por fim, forçando­-o a calar a boca!

O choro do menino se transforma num grito aterrorizado e, então, você ouve o som da enfardadeira funcionando. E quando ela para, tudo fica quieto no celeiro.

Nada de choro.

Nada de gritos.

Você está apavorado.

Você quer ir embora, voltar correndo para a casa de sua avó, mas ouve alguém subindo as escadas.

Passos pesados.

É o homem.

Ele sabe que você está aqui. Está vindo pegá­-lo!

Você se encolhe ainda mais atrás do fardo de palha, mas não consegue se esconder completamente e o vê chegar ao topo da escada.

Ele pega um canivete e faz saltar a lâmina.

Você congela, apavorado demais para se mexer.

Não, não, não.

Ele vai até a parede do celeiro e grava alguma coisa na madeira.

Depois de certo tempo, quando ele se afasta, você consegue ler as palavras: Grady Planisek esteve aqui.

Então, ele desce as escadas e você espera um longo tempo para se assegurar de que ele foi embora.

Por fim, você desce do palheiro e corre embaixo da chuva até a casa de sua avó. Você deixa a caixa no palheiro para não ter de carregá­-la, para não ter que explicar nada quando voltar para a casa dela.

Você não conta a ninguém o que aconteceu. Guarda tudo para si mesmo.

O som da enfardadeira.

Os gritos do menino.

O silêncio que se seguiu.

Não, você não conta a ninguém o que aconteceu no celeiro.

Você joga a chave no campo e nunca mais voltará àquele celeiro.

18h31
Tudo se junta

Aquele homem no celeiro, aquele homem, aquele homem...

Na época, você não o conhecia, mas agora conhece.

Sim, você mencionou a propriedade a ele. Ele sabe que você junta as coisas.

É por isso que ele tentou matar você.

Sim, havia uma segunda pessoa lá no sábado à noite.

Era ele.

O homem que levou Hollister para casa.

O homem com o canivete que...

Daniel não conseguia acreditar em quem realmente estava por trás de tudo, mas agora ele finalmente sabia quem era.

O som de um carro se aproximando da cabana chamou­-lhe a atenção.

Hollister também deve ter ouvido, pois gritou para Daniel:

– É tarde demais.

– Sua família comprou a propriedade, não é mesmo? – berrou Daniel de volta. – E foi nos últimos oito anos, não foi?

– O quê?

– Lá na Rodovia Municipal N. Até então, ela não pertencia a vocês.

Uma pequena pausa.

– Ele não vai deixar você sair daqui.

Não, não era Ty Bell.

Ele só está deixando Hollister usar este lugar.

Malcolm Zacharias chamou­-as de distorções, quando você as mencionou a ele pela primeira vez.

Como ele sabia que você as chamava assim? Só umas poucas pessoas sabiam que você as chamava de distorções.

Ele disse que tinha uma fonte...

Tudo se encaixava.

Foi o que você disse no domingo, é por isso que ele queria você morto.

Não o Sr. Zacharias.

Não.

A fonte dele.

E é por isso que ele fica perguntando o que você viu quando seu pai foi atacado.

Sim.

O motor do carro foi desligado lá fora. Daniel e o pai estavam quase na porta quando o xerife desmaiou.

– Pai, acorde!

Mas o corpo dele estava inerte.

Você não vai conseguir sair a tempo.

Daniel o desceu até o chão, perto da faca que Hollister estivera segurando, empurrando­-a para debaixo de sua perna.

E esperou que seu psiquiatra, o Dr. Fromke, entrasse pela porta.


61

A maçaneta girou, a porta se abriu e ele apareceu, segurando uma arma que parecia a Daniel a Glock de seu pai.

O Dr. Fromke ficou parado lá um instante, com a neve soprando e flutuando em torno dele, antes de entrar e fechar a porta.

Ele estava usando jeans negros, uma jaqueta de inverno azul­-marinho e sapatos de corrida.

– Fiquei imaginando se o carro lá fora era seu – disse ele, apontando sua arma para Daniel. – Deixe­-me ver suas mãos.

Ainda ajoelhado e tomando cuidado para manter a faca escondida embaixo da perna, Daniel ergueu as mãos, mostrando a seu psiquiatra que elas estavam vazias.

– Eu estou aqui – gritou Hollister do outro quarto. – O garoto chamou os tiras. Eles estão a caminho. Eu dei Tribaxil ao xerife. Ele não vai durar muito, não com aquela dose...

As palavras de Hollister atingiram Daniel como um disparo de revólver.

– O que você quer dizer com isso?

Por que eles querem matá­-lo? Por que, depois de mantê­-lo vivo desde sábado?

Eles estão desesperados, Daniel. Não vão deixar nem você nem seu pai saírem daqui vivos.

Você precisa sair. Precisa chegar ao hospital.

Ele baixou as mãos.

O Dr. Fromke avaliou as coisas, suspirou e balançou a cabeça.

– Daniel, por que você não se limitou a ficar naquele porão? Tudo seria mais fácil agora.

– Você temia que eu juntasse as coisas envolvendo o celeiro no distrito N. É por isso que tentou me matar.

O psiquiatra pediu para que Brandon viesse até eles.

– Eles me algemaram na cama.

O Dr. Fromke perguntou a Daniel:

– Você está com a chave?

– Eu só vou entregá­-la se você me deixar sair com o meu pai – respondeu ele, mas sem muita certeza se isso funcionaria. – Primeiro nós vamos até o carro. Eu lhe dou a chave quando...

– Não. Temo que não é assim que as coisas vão acontecer por aqui.

Hollister implorou ao Dr. Fromke:

– Não deixe que eles me levem de volta para aquele instituto. Lembre­-se de que eu sei tudo o que aconteceu aqui – acrescentou ele, fazendo com que soasse como uma ameaça.

– É verdade – disse o Dr. Fromke, e desapareceu no quarto onde estava Hollister.

Daniel ouviu um disparo, e o psiquiatra voltou à sala.

– Agora – disse ele –, podemos conversar sem sermos perturbados. Só nós dois.

Ele o matou.

Ele acabou de matar Brandon Hollister.

Você precisa tirar seu pai daqui antes que ele...

– Você tem um dom especial, Daniel. Eu...

– Eu sabia que era você. Você é a fonte.

– Fonte?

Ache um modo de fazer com que ele se aproxime.

Use a faca.

– Foi você que contou a Malcolm Zacharias que eu era intuitivo, que eu tenho distorções.

– Malcolm Zacharias?

– O cara que me ajudou a fugir do hospital.

O Sr. Zacharias está no instituto agora mesmo esperando você. Está perto. Ele pode ajudar você. Leve seu pai até lá e...

– Estava querendo lhe perguntar como você conseguiu isso – disse o Dr. Fromke, aproximando­-se de Daniel e sentando na beirada do sofá, a cerca de 2 metros de distância, mas apontando a Glock diretamente para ele.

Daniel não se levantou, limitando­-se a ficar agachado ao lado do pai, certificando­-se de que a faca não estava à vista, calculando quando e como poderia usá­-la.

– Então, você nos seguiu de Beldon até o farol?

– Baseado no que eu sabia sobre você de nossas consultas, achei que você pudesse ter ido para a casa de Nicole. Quando soube que você desapareceu do hospital, tentei a casa dela, despois a sua, mas então achei que a de Kyle seria a próxima opção. Como sempre acontece, a terceira é a melhor escolha. Agora vamos...

– Por quê?

– Por quê?

– Por que você contatou o grupo do Sr. Zacharias? Por que você fez tudo isso?

– Você tem um dom especial, Daniel – disse ele, apontando a arma para a cabeça do rapaz. – Existe alguma coisa aí dentro. Você vê coisas que ninguém mais vê, junta as coisas de uma forma que nenhuma outra pessoa consegue. Existem pessoas que estão muito interessadas em descobrir como você é capaz de fazer isso, e vamos apenas dizer que elas pagam muito bem por informações.

– Então é isso. Dinheiro.

– Uma das poucas coisas que motivam as pessoas, Daniel.

– Mas como você soube a respeito delas?

– É incrível o que se pode descobrir na internet.

– Mas, então, você lhes deu as costas para ajudar Hollister?

– Eu aceitei meu pagamento e fui em frente.

– No seu consultório, na sexta­-feira, eu vi aquele certificado da prisão: você serviu como conselheiro lá. Foi assim que conheceu Hollister? Ou só o conheceu quando vendeu a propriedade à família dele?

Ele pareceu impressionado.

– Você é realmente inteligente. É lamentável que as coisas acabem assim.

E baixou a arma.

– Eu sei sobre o Grady – disse Daniel rapidamente. – O que você fez. A enfardadeira. Eu estava lá no palheiro. Vi você gravar o nome dele na parede.

Um instante de silêncio.

O Dr. Fromke pareceu estar mergulhado em pensamentos.

– Daniel, dê­-me o seu telefone.

Faça­-o aproximar­-se mais.

Faça­-o aproximar­-se o suficiente e então vai poder usar a faca.

Ele pôs o telefone de Larry ao lado de sua perna.

– Venha pegá­-lo.

– Empurre­-o para mim.

– Não, eu...

O Dr. Fromke fez um disparo contra o chão perto do pai de Daniel, deixando­-o de acertá­-lo por poucos centímetros.

– Empurre­-o para mim, Daniel. Eu não tinha que errar o alvo quando atirei. E não vou errar se eu atirar outra vez.

Sem saber exatamente o que fazer, Daniel empurrou o celular pelo chão até o médico.

– Quantos daqueles nomes no celeiro são de suas vítimas?

– Você não se lembra mesmo, não é?

– Eu vi sete deles cravados do mesmo modo na madeira. Foram todos feitos com a mesma faca, certo? Qual? Aquele canivete que você usa para abrir cartas no seu consultório? Você matou toda aquela gente?

– Foi você que matou Grady Planisek, Daniel.

– O quê?

– Vocês dois estavam no palheiro. Você o empurrou para aquela enfardadeira. Eu vi tudo acontecer. Eu era dono da fazenda nessa época.

– Do que você está falando?

– Você matou o menino, reprimiu a lembrança e agora ela está ressurgindo e fazendo com que você tenha um ataque psíquico. Você perdeu a capacidade de determinar o que é real e o que não é. O que é certo e o que é errado.

– Não.

Sim.

– Você é um rapaz perturbado, Daniel.

Você está perturbado.

Sim.

Você matou Grady.

Não. Você não pode ter feito isso!

Mas...

– Relembre aquele dia, Daniel. O que você realmente viu?

– Você o matou.

– Você me viu fazer isso?

– Eu o ouvi gritando.

– E?

– A enfardadeira estava funcionando.

– Sim.

– Então, você subiu a escada e...

Realidade.

Fantasia.

– Você matou Grady – repetiu o Dr. Fromke. – E você atacou seu pai...

– Não. Foram você e Brandon. As pessoas daqui me conhecem. Elas sabem que eu nunca faria nada disso. Elas nunca acreditarão em você.

– Mas elas já acreditam. Você é suspeito do desaparecimento de seu pai e agora, esta noite, você matou Brandon Hollister com o revólver do seu pai...

– Não vai funcionar. Ninguém vai...

– ... e, então, você atirou em mim.

– O quê?

O Dr. Fromke pegou o telefone de Larry.

– Como você é meu paciente, eu sei do que você é capaz, e foi por isso que eu o internei em Duluth. Foi por isso que eu fiz com que mantivessem um guarda à sua porta – acrescentou ele, tocando a tela do celular e o levando ao ouvido.

Alguém deve ter respondido do outro lado, pois o Dr. Fromke disse, alarmado:

– Ele está com um revólver. Vocês têm que se apressar. Daniel Byers. Sim! Ele vai me matar. Ele disse que vai me matar. Estou em West Creek Drive, 1594. Por favor!

Daniel ficou pasmo.

– Afaste­-se de mim! – berrou o Dr. Fromke para que o atendente do outro lado o ouvisse. Então, atirou contra si mesmo na altura do ombro. – Não, Daniel! Por que você...

Ele jogou o telefone no chão e o esmagou com o calcanhar.

– O próximo passo – disse ele entredentes, obviamente tentando controlar a dor do ferimento – é com você.


62

­-O que você fez? – gaguejou Daniel.

O Dr. Fromke mantinha o revólver apontado para ele.

– Você é um rapaz mentalmente perturbado que tem alucinações e faz coisas de que depois não se lembra. Ninguém vai acreditar na sua palavra contra a minha. Que prova você tem de que eu já fiz mal a alguém? Mas não se preocupe, Daniel. Você não vai sofrer. Vou garantir que os medicamentos que vão lhe dar no hospital psiquiátrico não deixem que sinta muita coisa. Está acabado. Agora vamos aguardar.

Seu pai está morrendo. Você não pode esperar.

Você precisa conseguir ajuda. Precisa fazer alguma coisa.

– Eles vão saber que não fui eu. Minhas impressões digitais sequer estão nessa arma.

O Dr. Fromke surpreendeu Daniel ao girar a Glock na mão e caminhar em sua direção.

Faça isso. Pegue a arma.

Não! Sua impressão digital vai ficar nela.

Enquanto o médico se aproximava, Daniel lentamente procurou a faca que estava debaixo de sua perna.

– Aqui – disse o Dr. Fromke, estendendo o revólver. – É todo seu.

Dane­-se. Você precisa sair. Precisa ajudar seu pai.

Pegue a arma.

– Ah, espere – disse o Dr. Fromke. – Eles costumam checar o resíduo de pólvora, certo? Não vão achar nenhum em você... a menos que você estivesse muito próximo do revólver quando ele foi disparado.

Ele ficou a apenas alguns centímetros e apontou a Glock para a cabeça do pai de Daniel.

– É uma pena que você tenha atirado em seu próprio pai na cabeça.

– Não! – gritou Daniel, agarrou a faca e se colocou entre o cano do revólver e seu pai. Obviamente pego de surpresa, o Dr. Fromke afastou­-se um instante, e Daniel enfiou a faca no sapato do homem, atravessando­-lhe o pé e cravando­-a no chão.

O Dr. Fromke gritou com o choque e a dor, e Daniel arrancou­-lhe o revólver da mão. A arma caiu no chão.

Ele a agarrou.

E deu um passo para trás.

Ele ia culpá­-lo pelo crime dele. Ele ia atirar no seu pai.

Ódio.

Raiva.

Fúria.

Controlando­-se, Daniel pegou o cabo da faca, enfiando a lâmina mais fundo no assoalho.

O Dr. Fromke gritou e esticou o punho para Daniel, mas ele saltou para trás em tempo de evitar o golpe.

– Vou dizer a eles que comparem o seu canivete, o que está na sua escrivaninha com as gravações no celeiro – disse ele. – Tenho certeza de que alguém especializado em ciência forense vai identificar que lâmina fez aquelas gravações.

O rosto do Dr. Fromke escureceu.

– Você estava certo: acabou – disse Daniel, colocando o revólver em seu cinto. – E você vai passar o resto de sua vida na cadeia.

Ele se inclinou, jogou o braço do pai por cima de seu ombro, o ergueu – a técnica dos bombeiros – e se dirigiu para a saída.

Com o canto do olho, pôde ver o Dr. Fromke agarrar o cabo da faca e tentar arrancá­-la do chão.


63

A distância, sirenes gemiam na noite.

Enquanto Daniel levava o pai até o carro, teve a esperança de que a neve caindo sobre seu rosto pudesse reavivá­-lo, mas isso não aconteceu.

Como você vai pô­-lo no carro se ele está inconsciente? Você nunca vai conseguir... talvez no banco de trás?

Momentos depois, enquanto Daniel ajeitava o pai no banco do carro, ouviu a porta da cabana escancarar­-se.

O Dr. Fromke estava de costas para a luz, a uma distância de doze metros, segurando a pá. Ele começou a coxear pela entrada até os degraus.

Vá!

Daniel acabou de acomodar o pai, fechou a porta, saltou para o volante e ligou o motor.

Enquanto os limpadores varriam os flocos de neve, ele viu o Dr. Fromke cambaleando pelo caminho. Embora fosse forçado a arrastar o pé machucado, já estava quase a meio caminho do carro.

O carro do doutor estava atrás do de Daniel, bloqueando­-lhe a saída, mas ele achou que havia espaço suficiente para sair se avançasse sobre o banco de neve que se acumulara ao longo do caminho.

Travou as portas do veículo e deu ré, tentando manobrar ao lado do carro do médico, mas seu carro deslizou pelo caminho congelado e um dos pneus traseiros ficou preso no banco de neve.

O Dr. Fromke estava a apenas três metros de distância, e Daniel não podia avançar ou o atropelaria, mas também não podia dar ré por causa do banco de neve.

Você está com o revólver.

Você podia...

Não, não atire nele. Você se tornaria um assassino. Não...

O Dr. Fromke chegou ao carro de Daniel, tentou abrir a porta, viu que estava trancada e, apesar do tiro no ombro, ergueu a pá para trás e girou­-a contra o para­-brisa.

O vidro estilhaçou em pedaços com o impacto, mas, felizmente, permaneceu sem se quebrar, como projetado para o caso de um choque.

Com o Dr. Fromke perto do carro, Daniel tentou avançar, mas o pneu traseiro não desatolou do banco de neve.

Fromke tornou a bater com a pá no para­-brisa, que se curvou para dentro, em direção a Daniel. Outro golpe e o vidro não resistiria.

Você tem que ajudar seu pai.

Tem que tirá­-lo daqui.

Daniel engatou a ré do carro e, em seguida, a primeira; dessa vez os pneus derraparam um pouco, mas a tração fez o veículo ir para a frente, rente ao Dr. Fromke.

Daniel parou o carro antes que atingisse a entrada da cabana.

Ele podia tentar passar entre o carro do Dr. Fromke e o banco de neve outra vez ou esperar ali.

Ficar sentado esperando a chegada da polícia não é uma opção. Não com o Dr. Fromke lá fora.

Pelo retrovisor, Daniel viu o Dr. Fromke se aproximando.

As sirenes estavam mais próximas.

Daniel baixou o vidro de sua porta um centímetro:

– Para trás! – gritou ele, enquanto engatava a ré. – Saia do caminho!

Mas o Dr. Fromke, obviamente, estava mais interessado em atacar Daniel do que se pôr a salvo e avançou para o carro, empunhando a pá no ar.

Enquanto Daniel tentava passar, os pneus derraparam no gelo e o carro girou.

Tudo girava lá fora.

Girava.

Uma nesga de branco.

Então...

O solavanco do impacto do carro colidindo com o carro do Dr. Fromke, o médico imprensado entre os dois veículos.

As pernas do Dr. Fromke deviam ter ficado presas, mas quando ele gritou ameaças contra Daniel, parecia que ele sentia mais raiva que dor.

Daniel tentou ir para frente e para trás... qualquer coisa... mas os pneus derrapavam no gelo.

O piscar vermelho­-azul­-vermelho­-azul dos faróis da polícia atravessou a neve que caía, enquanto uma patrulha entrava na propriedade, patinando pelo caminho.

Dois patrulheiros estaduais saíram da viatura, empunhando revólveres.

Daniel deixou a Glock do pai no carro e saiu, erguendo as mãos para mostrar que estava desarmado.

– Eles drogaram meu pai, vocês precisam...

– Deite no chão! – gritou um dos patrulheiros.

– Ouça, eu estou...

– Agora! No chão! Os braços para os lados.

Os atendentes não podiam ter acreditado no chamado do Dr. Fromke.

Mas talvez tivessem.

Uma ambulância chegou bem atrás da patrulha.

Daniel se ajoelhou, depois se deitou com o rosto no chão. O patrulheiro veio e algemou seus pulsos atrás das costas, enquanto seu parceiro ia verificar o Dr. Fromke.

– Meu pai está inconsciente – disse Daniel, ansioso. – Ele está no assento de trás do meu carro. Vocês precisam levá­-lo a um hospital agora.

– Senhor – disse o outro patrulheiro ao Dr. Fromke –, nós vamos ajuda­-lo.

– Ele atirou em mim – disse o psiquiatra, atirando a pá no chão e fazendo cara de inocente. – Ele esfaqueou o meu pé e, então, tentou fugir. Vocês precisam deter esse rapaz. Ele está fora de controle.

– Não – disse Daniel ao patrulheiro ao lado dele –, isso não é... – Deixe isso para lá. – Ouça, diga aos paramédicos: Tribaxil. Foi o que eles deram ao meu pai. Uma seringa inteira. Ele é o xerife, o xerife Byers. Vocês precisam ajudá­-lo.

O policial pareceu incerto quanto ao que fazer.

– Depressa! – disse­-lhe Daniel.

Ele se afastou e foi falar com os paramédicos, que prontamente colocaram seu pai numa maca.

O policial ajudou Daniel a ficar em pé, levou­-o até sua viatura e o colocou no banco de trás.

– Me deixem ir com o meu pai.

– Até entendermos isso tudo, você vai ficar comigo.

A porta do carro ainda estava aberta, e Daniel pôde ver o outro policial ajudando o Dr. Fromke, que ainda estava preso entre os dois veículos.

– Vocês precisam algemá­-lo – disse Daniel. – Ele é perigoso. Ele...

– Nós vamos cuidar disso, filho – disse o policial enquanto fechava a porta.

Daniel gritou pela janela:

– Ele matou pelo menos oito pessoas!

Não teve certeza se o policial acreditou, mas ele tornou a abrir a porta:

– O que você disse?

– Ele matou pelo menos oito pessoas. Uma delas está na cabana.

Imediatamente, o homem foi examinar a casa. Quando voltou, falou com o outro patrulheiro e pareceu uma eternidade até que o policial que tinha algemado Daniel voltasse e manobrasse a viatura para seguir a ambulância. O outro policial cobriu o Dr. Fromke.

– Você tentou atropelar aquele homem? – perguntou ele a Daniel.

– Não.

– Você atirou nele?

– Não, ele atirou em si mesmo.

– É mesmo? – disse o policial, não parecendo muito convencido.

– É, e matou o homem da cabana.

O patrulheiro falou pelo rádio, passando informações sobre sua localização e códigos que Daniel não entendeu.

Daniel ficou rezando para que seu pai ficasse bem, que os paramédicos chegassem com ele ao hospital a tempo.

Eles entraram na estada municipal que passava pelo Instituto Traybor e Daniel olhou para os dois lados da estrada na esperança de avistar o Sr. Zacharias ou seu carro, mas não viu nada.

Tinham acabado de passar pelo edifício quando uma explosão abalou a noite, e Daniel virou­-se a tempo de ver o edifício explodir num cogumelo de fogo, com fumaça e chamas.

O patrulheiro levou o carro para o acostamento e murmurou:

– Que diabos está acontecendo esta noite?

Malcolm Zacharias queria eliminar a estação de pesquisa.

Talvez ele tivesse explodido o lugar.

Daniel não sabia e, nesse momento, estava mais preocupado com que o pai recebesse os cuidados de que precisava do que com o que tinha acontecido ao homem que havia ajudado Hollister a fugir.

O policial voltou ao rádio e solicitou mais unidades.

Depois que prosseguiram, ele levou Daniel ao hospital, e não à prisão municipal.

Talvez, afinal, acreditasse nele.

 

 

64

Daniel reposicionou seu laptop de modo que seu pai pudesse ver a tela com mais facilidade da cama do hospital.

– Assim está bom?

– Está – respondeu ele, ajustando o ângulo da cama um pouco mais para cima, ficando quase sentado.

Na noite anterior, os médicos ocuparam­-se dele durante várias horas, tornando a suturar seu flanco e neutralizando a droga que Hollister havia injetado nele. Foi bom ele ter mencionado o nome dela, pois, segundo os médicos, uma overdose de Tribaxil poderia ter sido fatal.

Foi constatado que Hollister havia feito um trabalho surpreendentemente bom ao tratar do ferimento a faca nos últimos dias.

Seu pai ainda estava fraco, mas os médicos disseram que ele estava “a caminho da recuperação”, e Daniel viu que, a essa altura, isso era muito mais do que ele podia esperar.

Daniel passara boa parte da última noite e a maior parte do dia seguinte contando aos investigadores e policiais tudo o que havia acontecido. Contudo, omitiu as partes referentes às distorções, para que eles levassem as outras coisas que ele tinha a dizer mais a sério.

Ele teve que repetir tudo várias vezes.

Havia muito a ser considerado.

A princípio, ficaram de olho em Daniel, evidentemente ainda suspeitando que ele estivesse mentindo, mas quando seu pai acordou e confirmou sua história, deixaram que ele passasse o resto do tempo no quarto dele.

O Dr. Fromke também foi levado ao hospital e estava sob vigilância no segundo andar. Pelo que Daniel soube, o psiquiatra não tinha conversado com a polícia desde a noite passada, ou pedido um advogado, e ele ficou imaginando o que se passava pela cabeça do homem, o que ele poderia estar pensando ou planejando.

Fosse o que fosse, Daniel não gostava do fato de o Dr. Fromke estar no mesmo hospital que seu pai, mesmo que houvesse guardas do lado de fora do quarto do homem.

***

Ele teclou e abriu o programa de conversa por vídeo que estavam usando para conversar com a mãe, que ainda estava presa no Alasca.

Nicole estava sentada em silêncio na cadeira perto da janela, terminando um desenho de uma cena de presépio na última página de seu caderno.

Kyle e Mia, que tinham voltado da casa dos avós dela um dia antes, estavam a caminho do hospital para encontrar Daniel e Nicole e ver como as coisas estavam.

Kyle também estava trazendo algumas coisas que Daniel havia pedido; pelo menos esperava que seu amigo pudesse recebê­-las. Daniel tinha o envelope, mas para os dois outros itens, dependia de Kyle. Pelo que soubera, Larry tinha vindo de Bayfield e estava na casa de Kyle com a Sra. Goessel, Glenn e Michelle.

Daniel já tinha falado com a mãe três vezes naquele dia. Embora ela tentasse conseguir um voo de Anchorage, isso não tinha sido possível, e seu pai só começara a se sentir melhor na última hora para conversar com ela por vídeo.

Daniel a chamou e agora estavam conectados.

Ela apareceu na tela, diante de seu computador.

O cabelo cor de champanhe. Uma constituição esbelta. Olhos preocupados.

– Oi, mãe.

– Daniel.

Ela se aproximou da câmera até seu rosto ficar visível.

Nicole acenou para ela.

– Feliz Natal, Sra. Byers.

– Feliz Natal, Nicole.

– Olá, LeAnne – disse o pai.

– Jerry. Como você está? – perguntou ela, com preocupação em cada uma de suas palavras. – Daniel me disse que você foi... oh, nem consigo acreditar que isso esteja acontecendo.

– Estou me sentindo muito melhor do que na noite passada. Graças ao seu filho.

– Mais provavelmente graças aos médicos – corrigiu­-o Daniel.

Seu pai dirigiu a atenção para a tela.

– Parece que o Daniel falou com você mais cedo para lhe contar tudo.

– Ele me contou do Dr. Fromke e desse maníaco, o Hollister, que esfaqueou você. É incompreensível. Já sabem quantas pessoas o Dr. Fromke matou naquele celeiro?

– Eles não têm certeza. Temos que tomar cuidado para não chegar a conclusões precipitadas, mas meus investigadores estão atrás dos nomes gravados nas tábuas da parede para ver quantos deles são de pessoas desaparecidas. Daniel notou sete nomes que, aparentemente, foram todos feitos com a mesma lâmina. Estamos verificando esses em primeiro lugar.

– Não posso acreditar que já confiei no Dr. Fromke – disse ela, tentando assimilar a informação. – Que qualquer um de nós... E Ty Bell matando aqueles lobos? E depois atacando Nicole? O que vai acontecer com ele agora?

– Matar lobos já é um crime sério, mas tentar atacá­-la torna as coisas completamente diferentes. Ele tem mais de 18 anos. E vai enfrentar sérios problemas.

– Lancaster estava envolvido nisso tudo?

– Não parece. Ty apenas deixou que Hollister usasse a cabana de caça do pai.

– O mesmo lugar que ele usava como base para atirar nos lobos.

– Exatamente.

– E ele confessou?

– Nicole gravou tudo.

A mãe de Daniel balançou a cabeça, incrédula.

– E esse tal de Malcolm?

– Eu ainda não o conheci. Você vai ter que perguntar a Daniel sobre ele.

Daniel não tinha notícias do Sr. Zacharias desde a noite anterior, mas nenhum corpo foi encontrado nos restos carbonizados do Instituto Traybor depois da explosão ocasionada por um vazamento de gás, de modo que não parecia haver ninguém lá quando o prédio explodiu.

Pelo menos estavam dizendo que fora um vazamento de gás.

Daniel não engoliu isso.

O momento em que aconteceu era suspeito demais.

– Vou apresentar vocês – Daniel prometeu à mãe. – Da próxima vez em que ele aparecer.

Se é que vai aparecer...

Não... ele também queria conversar com você sobre seus “dons”, lembra?

Ele vai voltar.

Sua mãe perguntou­-lhe sobre o farol e, enquanto Daniel respondia, seus pensamentos vagaram de volta a tudo o que tinha acontecido.

Pela manhã, depois que ele contou sua história à polícia, alguns policiais de Bayfield foram até o farol e recuperaram os ossos do porão.

Então, cerca de uma hora depois, um especialista forense relatou que suas descobertas preliminares indicavam tratar­-se do esqueleto de uma menina entre 10 e 14 anos. Eles iam fazer mais exames, mas parecia que a história que Jarvis Delacroix havia escrito em seu diário conferia.

Fariam alguns testes de DNA naquela semana para determinar se a garota era parente de Daniel, mas, de qualquer modo, parecia que, por fim, depois de todos aqueles anos, ela finalmente teria um enterro apropriado.

Depois que Daniel terminou de resumir as coisas para a mãe, ela tornou a voltar a atenção para o marido e a lhe perguntar novamente como ele estava se sentindo.

Ele lhe garantiu estar bem e disse:

– Daniel me contou sobre a sua conversa com ele no outro dia.

– Minha conversa?

– Você disse que foi embora para nos proteger, que tinha medo do que estava acontecendo com você.

– Não precisamos discutir nada disso agora, Jerry, nós...

– Ouça, eu quero proteger você, LeAnne. Foi esse o meu compromisso quando nos casamos.

– Eu devia ter feito mais para ajudar Daniel – disse ela, baixando o olhar.

– Nada disso importa agora. Vou fazer tudo o que for necessário para fazer você e Daniel se sentirem seguros. Confie em mim.

– Eu confio. Só não quero magoá­-lo.

– Ficar separado magoa mais do que quando estávamos juntos.

Um silêncio se fez entre eles.

– Quando você voltar – disse ele –, vamos dar um novo rumo às coisas, certo? Podemos fazer tudo funcionar. Sei que podemos.

Ela enxugou uma lágrima, mas não respondeu.

– Ah – disse Daniel –, acabei de lembrar que Nicole e eu temos que encontrar Kyle e Mia no saguão. Voltaremos em alguns minutos. Venha, Nicole.

Carregando seu caderno de desenho, ela se juntou a ele e os dois desceram para o saguão.

– Boa ideia – disse Nicole. – Dar a eles um pouco de privacidade.

– Isso mesmo.

– Ei, ouça, acho que entendo a maior parte do que aconteceu, ou, pelo menos, por que aconteceu, mas preciso lhe perguntar: você já entendeu por que andou no sono com aquela faca?

– Não, não exatamente, mas pode ter alguma coisa a ver com o meu subconsciente tentando lidar com os nomes gravados na parede.

– Faz sentido. E o Dr. Fromke? Você sabe por que ele ajudou o Hollister?

– Talvez por causa da história que tinham juntos, talvez pelo desafio de toda a situação ou talvez apenas porque ele é louco.

– Eu voto pela última opção.

– Sem brincadeira.

Passaram pelo elevador, e ele disse:

– De todo modo, deixar meu pai e minha mãe sozinhos dá a você uma chance de abrir alguns presentes de Natal.

– Presentes? No plural? Mais de um?

– São pequenos. Você vai ver.

– Onde estão eles?

– A caminho.

Quando já estavam quase no saguão, um homem robusto veio em direção a eles.

Daniel o reconheceu de imediato: era o detetive que lhe fizera perguntas quando ele acordou no hospital psiquiátrico na manhã de domingo.

– Com licença – disse ele a Daniel –, mas podemos trocar uma palavrinha?


65

­- Eu sou o detetive Poehlman. Você se lembra de mim lá em Duluth?

– Lembro.

O detetive olhou para Nicole.

– E você deve ser Nicole Marten. Você visitou Daniel no hospital fingindo ser irmã dele.

– O que você quer? – perguntou Daniel.

– Posso conversar em particular com você, Daniel?

– Sobre o quê?

– Tem a ver com... bem... como você fugiu do hospital em Duluth.

– Eu já contei a história toda aos outros investigadores. Malcolm Zacharias me ajudou. Agora nós vamos encontrar alguém e...

– Só vai levar um minuto.

Daniel olhou para Nicole, que fez um leve movimento de ombros.

– O que é? – perguntou ele.

– Em particular, se você não se importa.

– A Nicole fica comigo. O que você precisa saber?

– Bem... certo – disse ele, segurando um iPad. – Estivemos revendo o vídeo de segurança de você saindo do hospital. Não havia ninguém com você, Daniel.

– O que você quer dizer?

– Quero dizer que você estava sozinho quando saiu do prédio.

– O Sr. Zacharias estava lá.

– Não – disse o detetive, balançando a cabeça. – Estou com o vídeo aqui.

– Mostre­-me.

O detetive Poehlman ligou o vídeo.

A filmagem era granulada e só havia um movimento a distância, de modo que obviamente havia sido feita da outra extremidade do corredor, mas lá estava: o vídeo mostrava Daniel abrindo a porta de seu quarto na ala da psiquiatria e entrando no corredor.

Sozinho.

Isso não faz sentido.

A sessão seguinte mostrava­-o virando o corredor e correndo para a cantina, sozinho. Por fim, uma câmera externa o filmou deixando o hospital e se afastando pela rua que beira o parque junto ao lago Superior.

Sozinho.

Completamente sozinho.

Não. Isso não era possível.

Ou você está ficando completamente louco ou alguém editou esse vídeo, alterando­-o de alguma forma.

– Então, como eu cheguei a Beldon?

– Você roubou um carro – respondeu o detetive Poehlman.

– Eu não sei fazer ligação direta.

– Então talvez a chave estivesse no contato. Olhe o vídeo.

Daniel olhou o vídeo, que o mostrava correndo em direção ao sedã, sentando­-se ao volante e, então, momentos depois, partindo.

– Não pode ser. Eu fiquei no lado do passageiro. Lembro­-me perfeitamente disso. Eu sei que sim.

– Não havia ninguém com você no hospital, Daniel.

– E o outro segurança da noite? Eu o ouvi conversar com o Sr. Zacharias.

– O guarda de serviço naquela noite disse que não conversou com ninguém.

– Ele está mentindo.

– E por que ele mentiria?

– Não sei.

Na verdade, você não viu aquele guarda conversar com o Sr. Zacharias. Você só os ouviu do outro lado da porta do armário da manutenção. Você pode ter imaginado tudo. Mas então...

– Eu vi o Sr. Zacharias – disse Nicole ao detetive. – No Instituto Traybor. Eu estava lá com Daniel. Ele é real.

– O que você viu?

– Um dos guardas, os policiais, sei lá, era o homem que encalhou no banco de neve.

O detetive Poehlman consultou seu iPad, obviamente checando alguma coisa.

– O homem que Daniel e Kyle ajudaram a desencalhar na estrada na sexta­-feira à noite?

– Ele mesmo.

– E você tem certeza de que era a mesma pessoa?

– Bem, eu... quero dizer, eu não vi o cara naquela noite exatamente, ele não saiu do carro, mas Daniel me disse que foi ele que... – ela hesitou, talvez percebendo que estava confirmando a versão do detetive.

– No que você vai acreditar, Daniel? – perguntou o detetive Poehlman. – Na sua memória ou na evidência?

É uma boa pergunta. Sua memória ou...

Kyle e Mia passaram pela porta automática e entraram no saguão. Kyle estava tomando uma lata de refrigerante. Mia gastou mais tempo que o necessário para remover a neve das botas, murmurando alguma coisa sobre sua vontade de morar na Flórida.

– Kyle pode comprovar – disse Daniel ao detetive.

– Claro – disse Kyle, juntando­-se a ele. – Posso comprovar. Comprovar o quê?

– Você ouviu a voz do Sr. Zacharias, lembra? Eu estava conversando com você no telefone enquanto estava indo para Beldon e, então, passei o telefone para ele. Ele estava dirigindo. Ele lhe disse que estava comigo.

– Sim. Sem dúvida nenhuma. Eu lembro.

– É mesmo? – perguntou o detetive Poehlman.

– Sim, por quê?

– Eu só... bem... – disse o detetive, enquanto seu telefone tocava e ele examinava a tela. – Me deem licença um segundo.

Ele se afastou para atender à chamada, mas Daniel ouviu­-o dizer:

– Ele está acordado? Ok, já chego aí.

Desligou, então, e por fim parou de tentar convencer Daniel de que o Sr. Zacharias não estivera lá para ajudá­-lo.

– Obrigado pela atenção – disse a eles. – Mas eu quero esclarecer algumas coisas, Daniel. Ainda temos a questão do carro.

Depois que ele se foi, Mia perguntou:

– Quem era esse cara?

– Um detetive – disse Nicole.

– De onde?

– Sabe que eu não perguntei? – retrucou Daniel pensativamente.

– E o que ele queria?

– Ele tem um vídeo do hospital de Duluth. Ele mostra somente eu saindo, Malcolm Zacharias não aparece nele de jeito nenhum. Mas eu sei que ele era real – disse, olhando para Kyle. – E deixei que ele falasse com você pelo telefone, de qualquer modo. Isso prova que ele existe.

Kyle ficou quieto.

– O que foi?

– Bem, eu falei com alguém. Podia ser o cara atolado na neve. Não tenho realmente certeza.

– Quem mais poderia ter sido?

– Não sei – respondeu Kyle, dando de ombros. – Podia ser você.

– Eu?

– Não sei realmente dizer. Você pode ter mudado a voz, mas que importância tem isso? Você está aqui, está a salvo. Seu pai está bem. As coisas estão... – Ele pareceu vacilar. – Bem... exceto pelo carro?

– Que carro?

– Bem, eu ia lhe contar... Eles encontraram um sedã no final da minha rua. Alguém o deixou lá. Quero dizer, tenho certeza de que não é nada, mas minha mãe diz que ouviu dizer que ele tinha sido roubado em Duluth.

Mas o Sr. Zacharias não abandonou o carro lá. Ele foi embora dirigindo.

A menos que não tenha feito isso.

A menos que você tenha imaginado tudo e deixado o carro lá.

– Espere – disse Kyle a Daniel. – Você falou com o Sr. Zacharias pelo telefone do Larry quando estávamos voltando para Beldon.

– É isso aí – disse Mia, ocupada em tirar alguns flocos de neve obstinados de sua bota. – Deve haver um registro dessa chamada.

– O Dr. Fromke destruiu esse telefone na cabana – disse Daniel.

– Mas a operadora deve ter os arquivos da chamada, certo?

– Não se o Sr. Zacharias os apagou. Se ele é um bom hacker, capaz de mudar o vídeo de uma câmara de vigilância, acho que poderia alterar ou deletar alguns registros telefônicos sem nenhum problema.

Se é que ele realmente existe.

Em vez de deixar que as coisas seguissem nessa direção, Kyle preferiu mudar de assunto e perguntou a Daniel como estava o pai dele.

– Melhor. Agora mesmo ele está conversando com a minha mãe. Parece que as coisas estão começando a ir na direção certa. Estou dando um tempo a eles para acertarem as coisas.

– Você acha que ela vai voltar?

– Acho. Acho que é possível.

– Certo. Ah – disse Kyle, pegando as chaves do carro –, as coisas que você me pediu para trazer estão no porta­-malas. Você quer pegá­-las?

– Vou fazer isso. Você se importa?

– Não – disse Kyle, entregando­-lhe as chaves. – Vamos ficar friozando aqui e esperando por você.

– Você disse “friozando”? – perguntou Nicole.

– É mais uma palavra inventada – explicou Daniel.

– Puxa vida!

Como o celular de Daniel tinha sido encontrado coberto de sangue na cena do desaparecimento do pai, ele ainda estava no arquivo de provas da polícia, e hoje ele usara o de Nicole para falar com a mãe; agora, uma mensagem de texto apareceu. Ele a mostrou a Nicole.

– Nada de importante – disse ela. – É só a Gina. Eu mando uma mensagem para ela mais tarde.

Ele tornou a guardar o telefone.

Kyle lhe disse onde tinha estacionado, embora, devido ao tamanho do estacionamento, isso provavelmente tivesse sido desnecessário.

Daniel disse a Nicole que logo voltaria e foi até o carro.

A tarde findava, e mal se via o sol no horizonte.

Enquanto ia até o Mustang de Kyle, ficou pensando em tudo o que havia acontecido naquela semana, como as coisas estavam interligadas, bem abaixo da superfície, como todas as peças do quebra­-cabeça se juntaram de uma forma que ele nunca tinha imaginado, mas que agora faziam sentido quando as via em retrospectiva.

Pensou em Malcolm Zacharias, no detetive Poehlman e...

O telefone de Nicole vibrou.

Uma mensagem: Atenda esta chamada, Daniel.

Enquanto tentava adivinhar do que se tratava, o telefone tocou, exibindo um número desconhecido.

Daniel deslizou a tela.

– Alô?

– Alô, Daniel.

É ele.

– Sr. Zacharias! O que você fez? Encontraram o vídeo da segurança que mostra só eu saindo do hospital em Duluth.

– Você acha mesmo difícil mudar um vídeo de segurança em um hospital psiquiátrico?

– Você está dizendo que o hackeou e alterou? Isso é impossível.

– Não com a tecnologia a que tenho acesso.

Ele sabe que estou com o telefone de Nicole. Como ele sabe disso? Será que ele está por perto?

Daniel procurou pelo estacionamento, mas não vi o Sr. Zacharias em nenhum lugar.

– Mas o vídeo me mostra entrando no banco do passageiro.

– Maravilhas das imagens geradas por computador.

– E o segurança... o que você fez? Subornou­-o?

– A filha dele está muito doente. O dinheiro foi para uma boa causa.

– E imagino que os registros telefônicos tenham sido...

– Apagados. Sim.

Daniel não sabia se sentiu raiva ou alívio por estar conversando com o Sr. Zacharias naquele momento.

Olhou, então, para a tela do celular e viu que realmente estava recebendo uma chamada.

Ok, pelo menos isso está acontecendo agora mesmo.

Pelo menos isso é real.

Daniel perguntou:

– Como foi que o Hollister escapou de você? Quero dizer, ele era um assassino. Você não o teria tirado do instituto e, então, deixado que ele fosse embora, certo?

– Ele era mais esperto do que eu pensei – limitou­-se a responder o Sr. Zacharias.

– E você não sabia que ele procuraria o Dr. Fromke?

– Eu não tinha a menor ideia. Não sabia da ligação entre os dois.

– E por que o Dr. Fromke o ajudou?

– Isso eu não sei. E, infelizmente, pelo que sei, o psiquiatra não está colaborando muito.

Enquanto conversavam, Daniel andava lentamente num círculo, olhando em toda direção, mas não conseguia ver o Dr. Zacharias em lugar algum.

– Mas parece que você conseguiu o que queria. O instituto foi destruído.

– Sim, foi.

– Você quis isso? Foi você o causador da explosão?

– Gostaria de ter sido, mas não fui eu.

Nenhum sinal dele ainda.

– Eu preciso lhe perguntar uma coisa, Sr. Zacharias.

– Sim?

– Qual lobo é o senhor?

– Qual lobo?

– É uma história que meu pai me contou certa vez: existem dois lobos brigando no coração de todo mundo; um é bom e o outro é ruim. E o que vence é o que...

– Você mais alimenta.

– Você também conhece a história.

– Conheço.

– Então? Qual deles é você?

– O que for necessário para cumprir a tarefa.

– Que tarefa?

– O recrutamento.

– Recrutamento?

Isso mesmo, lembra? Ele veio até aqui para se encontrar com você e lhe pedir ajuda.

– Eles acham que eu estou imaginando você – disse Daniel.

Silêncio.

– Alô?

Nenhuma resposta.

– Sr. Zacharias?

Você é real?, pensou ele.

A linha estava muda.

É claro que é. Pois se não existe, ele está...

Enquanto Daniel olhava para a tela, o registro da chamada desapareceu diante de seus olhos.

Ele deslizou a tela para checar a lista de chamadas recentes. Nada apareceu.

Nicole estava se aproximando do carro, com o caderno de esboços na mão.

– Você está legal?

– Estou.

– Tem certeza?

– Não totalmente.

– Você estava no telefone – observou ela.

– Estava com ele, o Sr. Zacharias.

– Oh – Ele não conseguiu adivinhar o que dizia o tom da voz dela. – O que ele disse?

– Que é um recrutador – disse Daniel, respirando fundo. – Nicole, diga que eu não estou ficando louco.

– Você não está ficando louco.

– Ok, bem... humm...

– O quê?

– Isso não ajudou tanto quanto eu estava esperando.

Deixe que ela abra os presentes. Tire tudo o que está acontecendo de sua mente.

Ele tirou um envelope do bolso e o entregou a ela.

– Isto. Faça isto primeiro.

– O que é?

– O seu presente... bem, parte dele.

– Você quer que eu abra os presentes aqui? No estacionamento?

– Claro. Por que não? Por que esperar?

– Então... ok. Eu gosto de abrir presentes.

– Eu sei.

Ela pousou o caderno, abriu o envelope e desdobrou a folha de papel que ele colocara dentro.

– Um cupom para aulas grátis de “Como fazer sucuris de neve”. Bem, eu nem imaginei o que era.

– Vale por um ano – disse Daniel, solícito. – O número de alunos é reduzido para eu dar atenção individual.

– É mesmo?

– É. Eu gosto de aulas só para uma pessoa.

Ela olhou para ele com um olhar astuto.

– Eu também.

Ele abriu o porta­-malas e tirou os dois presentes que Kyle tinha posto lá.

– Abra o próximo.

Era uma caixa de comprimento quase igual ao de uma caixa de sapatos, mas apenas com a metade da largura, desajeitadamente envolta em papel de embrulho preso com fita adesiva.

– Kyle embrulhou para mim.

– Eu nunca teria adivinhado.

Ela tirou o papel cuidadosamente, como se estivesse tentando protegê­-lo para tornar a ser usado, embora, com toda aquela fita adesiva, Daniel duvidasse que fosse possível.

Quando chegou à caixa, ela a abriu e tirou o conteúdo.

– Você está me dando um boneco do Batman com um braço só.

– É um herói dos quadrinhos, na verdade.

– Ah, certo. É o que estava no seu quarto?

– Não, Kyle o encontrou para mim hoje. Acho que no Walmart.

– E você o fez arrancar um braço?

– Isso mesmo. Para a sua boneca, a Rebecca, não se sentir solitária.

– Muito gentil. É lindo. Lindo mesmo.

– E este é o número três – disse ele, entregando­-lhe o último presente. – Abra.

– Humm... parece que tem o tamanho certo de um caderno de esboços – disse ela, levando­-o até o ouvido e o balançando. – Faz o som de um caderno de esboços – acrescentou, cheirando­-o. – Tem cheiro de caderno de esboços.

– Abra.

Ela abriu.

– Um caderno de esboços novo.

– Você também não imaginou que fosse.

– Nem um pouco.

– Este era o seu presente original. Eu vi que o seu outro caderno estava chegando ao fim e achei que estava na hora de você tirar aquele desenho do demônio.

– Concordo. O que me traz ao presente que tenho para você – disse ela, entregando­-lhe o caderno de esboços usado.

– O que é isto?

– São os meus desenhos. São para você. Eu rasguei o que tinha o demônio.

– Você está me dando os seus... Não posso aceitar. É sério, não...

Ela pousou um dedo delicado sobre os lábios para fazê­-lo calar­-se.

– Você é o homem mais especial do mundo para mim. É justo que fique com meus desenhos mais especiais.

Ele colocou todos os presentes no teto do carro.

Ela olhou para ele com curiosidade.

– O que você está fazendo?

– O sol acabou de se pôr atrás das árvores.

– É...

– Lembra quando estávamos olhando a aurora boreal na outra noite?

– Lembro.

– E, então, quando ela terminou, ficamos sob as estrelas e fomos interrompidos?

– Sim.

– Você lembra o que estávamos prestes a fazer?

– Isto? – perguntou ela, inclinando­-se e beijando­-o de leve nos lábios.

– Parecia mais isto – disse ele, dando­-lhe um beijo que não foi tão rápido e muito mais merecedor de ser trocado sob um manto de estrelas.


Dr. Fromke estava deitado na cama do hospital, os pulsos algemados à cabeceira.

Ele ficou pensando na ironia da situação: apenas alguns dias atrás, Daniel tinha sido internado num hospital psiquiátrico. Ele estava preso sob a guarda de um policial, e agora estava livre.

A situação se inverteu.

Mas haveria de voltar ao que era.

O Dr. Fromke já estava planejando uma fuga.

Ele sabia que seu quarto estava sendo vigiado. Até agora, ele tinha se recusado a responder a qualquer pergunta das autoridades. Havia muitas delas a fazer e, com a perna quebrada, o ferimento do tiro e o pé perfurado, eles estariam algum tempo ocupados cuidando dele antes de transferi­-lo para qualquer outro lugar.

E seria muito mais fácil escapar de um quarto de hospital do que da cela de uma prisão.

A porta se abriu e outro médico entrou. O terceiro naquele dia.

Não aguentava mais tantos médicos diferentes.

Este parecia ter um pouco mais de 60 anos e não ter dormido muito na noite passada.

Depois de olhar rapidamente os registros, ele disse:

– Então foi o senhor que matou Brandon Hollister?

Dr. Fromke não estava a fim de confessar nada, especialmente a um homem que podia ser um tira disfarçado. Ele permaneceu quieto.

– Eu devo lhe agradecer por isso – disse o médico, apoiando os registros. – Mas tenho que lhe perguntar se ele disse alguma coisa a meu respeito.

– O quê?

– Ele disse alguma coisa a meu respeito? Sobre o que acontecia no instituto?

Agora, dando uma olhada mais cuidadosa para o homem, o Dr. Fromke o reconheceu, com base na descrição de Hollister.

Era o cara encarregado da pesquisa no Instituto Traybor. O cara que torturou Brandon, fazendo­-o sentir­-se em sofrimento durante semanas na solitária.

– Não – mentiu o Dr. Fromke. – Não tenho ideia de quem você seja.

O homem agitou um dedo no ar.

– Ah, eu sou bom em dizer quando as pessoas estão mentindo. E acho que você está me faltando com a verdade – disse ele, desligando a bolsa de soro do Dr. Fromke.

– O que você está fazendo?

Em vez de responder, ele continuou a mexer na bolsa, mudando a droga que estava sendo administrada.

– Eu vou tomar conta de você de agora em diante.

– Pare – disse o Dr. Fromke, tentando erguer as mãos, mas seus pulsos estavam seguramente algemados.

– Eu deveria lhe agradecer por matar o prisioneiro 176235, mas não gosto de pontas soltas, e é o que você está me parecendo.

Isso não está acontecendo. Isso não está...

O Dr. Waxford tornou a ligar a bolsa de soro, injetando a nova droga no braço do Dr. Fromke.

Ele começou a se sentir sonolento imediatamente.

– Ei! – gritou ele para o guarda que ficava na porta. – Venha já aqui! Ele está tentando me drogar!

Fosse quem fosse que estivesse à porta, não respondeu.

– Vamos transferi­-lo para outro local, Dr. Fromke. Tenho uns testes que gostaria de executar. É tudo em nome da justiça pelo que você fez com aquelas pessoas no celeiro. Pelo que ouvi dizer, foram sete vítimas. Mesmo com minhas técnicas, os testes vão durar um bom tempo.

O Dr. Fromke gritou mais alto para o guarda que deveria estar na porta.

Por fim, um homem pôs a cabeça dentro do quarto.

Era o detetive que já o havia interrogado naquele dia.

– Graças a Deus, você está... – começou o Dr. Fromke.

– Os papéis estão todos prontos, Dr. Waxford – disse ele.

– Obrigado, detetive Poehlman – disse ele, tocando no braço do Dr. Fromke. – Não resista à sonolência agora. Quando acordar, você não vai sentir dor nenhuma. Só vai estar sozinho. Por um longo, longo tempo, você vai ficar sozinho.

***

De onde estava sentado, escondido no carro parado no outro lado do estacionamento, o Sr. Zacharias observou enquanto Daniel e Nicole juntavam seus presentes e voltavam para o hospital.

Ele precisava garantir que continuava a ser um fantasma, mesmo que isso significasse deixar Daniel no escuro quanto à sua verdadeira ou falsa existência.

Sim.

Daniel tinha o dom.

Suas distorções revelavam­-lhe coisas que ninguém mais conseguia entender.

Bem, talvez porque isso não fosse exatamente verdade.

Os três outros adolescentes que Malcolm já havia recrutado poderiam entender, depois que ele reunisse todos em suas instalações na Geórgia.

Ele fez uma chamada para seu contato pessoal.

Sim, as coisas iam ficar muito interessantes, agora que ele tinha quatro deles com quem trabalhar.

 

 

                                                                  Steven James

 

 

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