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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ILUSÕES PERDIDAS / Honoré de Balzac
ILUSÕES PERDIDAS / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na época em que começa esta história, a prensa de stan hope e os rolos de tintagem ainda não funcionavam nas pequenas tipografias de província. apesar da especialidade que a leva ser comparada com a tipografia parisiense, a cidade de angoulême* ainda usava as prensas de madeira, às quais o idioma deve a expressão “fazer a prensa gemer”, agora sem aplicação. a tipografia atrasada ainda empregava as almofadas de couro esfregadas na tinta, que um dos impressores batia nos caracteres tipográficos. a plataforma móvel em que se dispõe a fôrma cheia de letras, sobre a qual se aplica a folha de papel, ainda era de pedra e justificava seu nome de mármore. as devoradoras prensas mecânicas de hoje de tal modo jogaram no esquecimento esse mecanismo, ao qual devemos, apesar de suas imperfeições, os belos livros dos elzevier, dos plantin, dos alde e dos didot, que convém mencionar os velhos instrumentos a que Jérôme-Nicolas séchard dedicava supersticiosa afeição; pois eles desempenham um papel nesta grande pequena história. este séchard era um antigo oficial prensador, que no jargão tipográfico os operários encarregados de juntar as letras chamam de urso. O movimento em vaivém, que
* Historicamente, angoulême foi conhecida por suas gráficas e indústria do papel. (esta e todas as notas que se seguem são da tradutora, a partir da edição apresentada por patrick Berthier, Illusions perdues, de H. de Balzac, paris, le livre de poche, 2006.)
muito se assemelha ao de um urso na jaula, e que leva os impressores do tinteiro à prensa e da prensa ao tinteiro, lhes valera talvez esse apelido.


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Como vingança, os ursos chamavam os tipógrafos de Macacos, por causa do exercício contínuo que fazem para apanhar as letras nos cento e cinquenta e dois caixotins nos quais elas ficam. No desastroso período de 1793, séchard, que andava perto dos cinquenta anos, se casou. sua idade e seu casamento o fizeram escapar da grande convocação que levou quase todos os operários às Forças armadas. O velho impressor ficou sozinho na tipografia, cujo dono, ou seja, o patrão, acabava de morrer deixando uma viúva sem filhos. O estabelecimento parecia ameaçado de destruição imediata: o urso solitário era incapaz de se transformar em Macaco, pois, apesar de sua condição de impressor, nunca aprendera a ler nem a escrever. sem levar em conta sua incapacidade, um representante do povo, empenhado em difundir os belos decretos da Convenção, investiu o prensador na patente de mestre-impressor e requisitou sua tipografia. depois de aceitar essa perigosa licença, o cidadão séchard indenizou a viúva do patrão, entregando-lhe as economias de sua esposa, com as quais pagou pela metade do valor o material da gráfica. Isso era o de menos, mas os decretos republicanos deviam ser impressos sem erro e sem atraso. Nessa conjuntura difícil, Jérôme-Nicolas séchard teve a felicidade de encontrar um nobre marselhês que não queria emigrar, para não perder suas terras, nem se mostrar, para não perder a cabeça, e que só poderia conseguir sustento graças a um trabalho qualquer. portanto, o sr. conde de Maucombe envergou a veste humilde de um contramestre de província: compôs, leu e corrigiu pessoalmente os decretos que se referiam à pena de morte contra os cidadãos que escondiam nobres; o urso, que agora se tornara patrão, os imprimiu e mandou afixar; e ambos ficaram sãos e salvos. em 1795, tendo passado a borrasca do Terror, Nicolas séchard foi obrigado a procurar outro chefe de oficina que pudesse ser compositor, revisor e contramestre. um padre, depois bispo, durante a restauração, e que por essa época se recusava a prestar juramento,* substituiu o conde de Maucombe até o dia em que o primeiro Cônsul restabeleceu a religião católica. O conde e o bispo se encontrariam mais tarde no mesmo banco da Câmara dos pares. se em 1802 Jérôme-Nicolas séchard não sabia nem ler nem escrever melhor que em 1793, conseguira umas belas margens para poder pagar um chefe de oficina. O oficial, outrora tão despreocupado com o próprio futuro, agora era temido por seus Macacos e ursos. a avareza começa onde a pobreza acaba. No dia em que o impressor entreviu a possibilidade de enriquecer, o interesse por sua própria situação lhe desenvolveu uma inteligência material ávida, desconfiada e penetrante. sua prática desafiava a teoria. ele acabara por calcular de relance o preço de uma página e de uma folha de acordo com a espécie dos caracteres. provava a seus fregueses ignaros que as letras grossas custavam mais para ser compostas do que as finas; quando se tratava das pequenas, dizia que eram mais difíceis de manejar. Como a composição era a parte da tipografia da qual ele não entendia nada, tinha tanto medo de se enganar que só fazia contratos leoninos. se seus tipógrafos trabalhavam por hora, jamais tirava o olho deles. se sabia que um fabricante estava passando necessidades, comprava seus papéis a preço vil e os estocava. assim, já nessa época era dono da casa na qual a tipografia estava instalada desde tempos imemoriais. Conheceu as alegrias mais diversas: ficou viúvo e só teve um filho; matriculou-o no liceu da cidade, menos para lhe dar educação que para preparar um sucessor; tratava-o severamente a fim de prolongar a duração de seu pátrio poder; e nos dias de folga o fazia trabalhar nas caixas lhe dizendo que aprendesse a ganhar vida para poder, um dia, recompensar seu pobre pai, que se sangrava para criá-lo.
* desde a revolução Francesa, os padres eram obrigados a prestar juramento ao estado laico, de certa forma abjurando da fé católica.
Quando o padre foi embora, séchard escolheu como chefe da oficina aquele de seus quatro tipógrafos que o futuro bispo lhe assinalara como tendo probidade e inteligência. portanto, o homenzinho se viu em condições de esperar o momento em que o filho pudesse dirigir o estabelecimento, que então prosperaria sob mãos jovens e hábeis. david séchard fez no liceu de angoulême os mais brilhantes estudos. embora o urso, bem-sucedido sem conhecimentos nem educação, desprezasse consideravelmente a ciência, o velho séchard mandou o filho a paris para estudar a alta tipografia; mas lhe fez a recomendação tão violenta de amealhar uma boa quantia numa terra a que chamava de paraíso dos operários, avisando-lhe que não contasse com a bolsa paterna, que certamente viu naquela temporada no país da Sapiência um meio de alcançar seus objetivos. enquanto ia aprendendo o ofício, david concluiu sua educação em paris. Contramestre dos didot, tornou-se um erudito. No final de 1819 david séchard saiu de paris sem ter custado um só tostão ao pai, que o chamava de volta para pôr em suas mãos o timão dos negócios. a tipografia de Nicolas séchard possuía na época o único jornal de editais judiciários que havia no departamento, e também tinha a exclusividade da prefeitura* e do Bispado, três clientelas que deviam proporcionar grande fortuna a um jovem ativo. Justamente nessa época, os irmãos Cointet, fabricantes de papel, compraram a segunda licença de impressor de angoulême, cidade que até então o velho séchard soubera reduzir à mais completa inatividade, graças às crises militares que, no Império, restringiram todo o movimento indus
* pouco depois da revolução Francesa, a França foi dividida territorialmente não mais em províncias, mas em departamentos. a prefeitura (préfecture) é que administra o departamento, sendo o prefeito (préfet) um alto funcionário nomeado pelo estado, como representante do poder central. O maire (também prefeito em português) é o chefe do poder municipal, sendo eleito para a mairie, nessa época, pelo Conselho Municipal.
trial; por isso mesmo ele não a adquirira, e sua parcimônia foi uma das causas da ruína da velha tipografia. ao saber da notícia, o velho séchard pensou alegremente que a luta a ser travada entre seu estabelecimento e o dos Cointet seria enfrentada por seu filho, e não por ele. “eu sucumbiria a isso”, pensou, “mas um jovem educado pelos senhores didot se sairá bem.” O septuagenário ansiava pelo momento em que pudesse viver como bem entendesse. se tinha poucos conhecimentos de alta tipografia, passava, em contrapartida, por ser extremamente competente numa arte que os operários jocosamente chamaram de bebadografia, arte muito estimada pelo divino autor de Pantagruel, mas cuja prática, perseguida pelas sociedades ditas de temperança, está cada dia mais abandonada. Jérôme-Nicolas séchard, fiel ao destino que o nome lhe atribuíra,* era dotado de uma sede inextinguível. durante muito tempo sua mulher contivera nos justos limites essa paixão pela uva esmagada, gosto tão natural nos ursos e que o sr. de Chateaubriand notou nos verdadeiros ursos da américa; mas os filósofos observaram que os hábitos da juventude voltam com força na velhice do homem. séchard confirmava essa observação: quanto mais envelhecia, mais gostava de beber. sua paixão lhe deixava na fisionomia ursina marcas que a tornavam original. O nariz tomara a forma de um a maiúsculo corpo de triple canon. suas bochechas venosas pareciam essas folhas de parreira cheias de gibosidades violáceas, purpurinas e volta e meia matizadas. Vocês pensariam numa trufa monstruosa enrolada em pâmpanos do outono. escondidos sob duas grandes sobrancelhas que pareciam dois arbustos carregados de neve, seus olhinhos cinza, em que borbulhava a astúcia de uma avareza que nele tudo matava, até mesmo a paternidade, se conservavam inteligentes até mesmo na embriaguez. sua cabeça calva e já sem coroa, mas cingida de cabelos grisalhos ainda crespos, trazia à imaginação
* séchard tem etimologia próxima de sécher, secar, enxugar. Sécher un verre é beber de um trago.
os franciscanos dos Contos de la Fontaine. era atarracado e barrigudo como muitos desses velhos lampiões que consomem mais óleo que pavio; pois em todas as coisas os excessos empurram o corpo para o caminho que lhe é próprio. a bebedeira, assim como o estudo, engorda mais o homem gordo e emagrece o homem magro. Fazia trinta anos que Jérôme-Nicolas séchard usava o famoso tricórnio municipal, que em certas províncias ainda se encontra na cabeça do tambor da cidade. seu colete e sua calça eram de veludo esverdeado. por fim, usava uma velha sobrecasaca marrom, meias de algodão mescla e sapatos com fivela de prata. esse traje, em que o operário se via como um burguês, convinha tão bem a seus vícios e a seus hábitos, expressava tão bem sua vida, que o velhinho parecia ter sido criado já todo vestido: ninguém o imaginaria sem suas roupas, assim como não imaginaria uma cebola sem a casca. se o velho gráfico não tivesse mostrado, desde sempre, a medida de sua cega avidez, seu plano de abdicar dos negócios bastaria para pintar seu caráter. apesar dos conhecimentos que o filho devia trazer da grande escola dos didot, propôs-se a fazer com ele a boa transação que ruminava havia tempo. se o pai fazia um bom negócio, o filho necessariamente faria um mau. Mas, para o velhote, nos negócios não havia pai nem filho. se a princípio ele viu em david seu filho único, mais tarde o enxergou como um comprador natural cujos interesses eram opostos aos seus: queria vender caro, david deveria comprar barato; por isso, o filho se tornava um inimigo a vencer. essa transformação do sentimento em interesse pessoal, via de regra lenta, tortuosa e hipócrita nas pessoas bem-educadas, foi rápida e direta no velho urso, que mostrou o quanto a bebadografia matreira levou a melhor diante da tipografia instruída. Quando seu filho chegou, o homem lhe demonstrou a ternura comercial que as pessoas espertas têm pelos trouxas: cuidou dele como um apaixonado teria cuidado da amante; deu-lhe o braço, disse-lhe onde devia pôr os pés para não se sujar, mandou-lhe aquecer a cama, acender a lareira, preparar uma ceia.

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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