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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME / Tahereh Mafi
IMAGINA-ME / Tahereh Mafi

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

 

Na calada da noite, eu ouço pássaros.
Ouço-os, vejo-os, fecho meus olhos e os sinto, as penas tremendo no ar, dobrando o vento, as asas roçando meus ombros quando eles sobem, quando pousam. Gritos discordantes tocam e ecoam, tocam e ecoam...
Quantos?
Centenas.
Pássaros brancos, brancos com faixas de ouro, como coroas no topo de suas cabeças. Eles voam. Eles voam pelo céu com asas fortes e firmes, donas de seus destinos. Eles costumavam me fazer ter esperança.
Nunca mais.

 

 

 


Viro meu rosto no travesseiro, enfiando os dedos em algodão enquanto as lembranças voltam a mim.

— Você gosta deles? — Ela diz.

Estamos em uma sala grande e larga que cheira a sujeira. Há árvores por toda parte, tão altas que quase tocam os canos e as vigas do teto aberto. Pássaros, dezenas deles, guincham enquanto esticam as asas. Seus chamados são altos. Um pouco assustador. Tento não vacilar quando um dos grandes pássaros brancos passa por mim. Usa uma pulseira verde-neon brilhante em torno de uma perna. Todos eles usam.

Isso não faz sentido

Lembro-me de que estamos dentro de casa – as paredes brancas, o piso de concreto sob meus pés – e olho para minha mãe, confusa.

Eu nunca vi mamãe sorrir tanto. Só quando papai está por perto, ou quando ela e papai estão no canto, sussurrando juntos, mas agora somos só eu e mamãe e um monte de pássaros e ela está tão feliz que eu decido ignorar a sensação engraçada no estômago. As coisas melhoram quando mamãe está de bom humor.

— Sim, — eu minto. — Eu gosto muito deles.

Os olhos dela brilham.

— Eu sabia que você gostaria. Emmaline não se importava com eles, mas você – você sempre gostou demais das coisas, não é, querida? Não é como sua irmã. — De alguma forma, suas palavras saem más. Elas não parecem más, mas soam más.

Eu franzo a testa.

Ainda estou tentando descobrir o que está acontecendo quando ela diz:

— Eu tinha um como animal de estimação quando tinha mais ou menos a sua idade. Naquela época, eles eram tão comuns que nunca poderia se livrar deles. — Ela ri e eu a olho enquanto ela observa um pássaro, no meio do vôo. — Um deles morava em uma árvore perto da minha casa e chamava meu nome sempre que eu passava. Você pode imaginar? — Seu sorriso desaparece quando ela faz a pergunta.

Finalmente, ela se vira para mim.

— Eles estão quase extintos agora. Você entende por que não pude deixar isso acontecer.

— Claro, — eu digo, mas estou mentindo de novo. Há pouco que eu entendo sobre mamãe.

Ela assente.

— Esse é um tipo especial de criatura. Inteligente. Eles podem falar, dançar. E cada um deles usa uma coroa. — Ela se vira novamente, olhando para os pássaros do jeito que ela olha para todas as coisas que ela faz para o trabalho: com alegria. — A cacatua com crista de enxofre tem apenas um parceiro por toda a vida, — diz ela. — Assim como eu e seu pai.

A cacatua com crista de enxofre.

Tremo de repente com a inesperada sensação de uma mão quente nas minhas costas, dedos passando levemente pela minha espinha.

— Amor, — diz ele, — você está bem?

Quando não digo nada, ele se mexe, os lençóis farfalham, e ele me aproxima de si, seu corpo se curvando ao redor do meu. Ele é quente e forte e quando sua mão desliza pelo meu torso, eu inclino minha cabeça em sua direção, encontrando paz em sua presença, na segurança de seus braços. Seus lábios tocam minha pele, um roçar contra meu pescoço, tão sutil que brilha, quente e frio, até os dedos dos pés.

— Está acontecendo de novo? — ele sussurra.

Minha mãe nasceu na Austrália.

Eu sei disso porque ela uma vez me disse isso, e porque agora, apesar do meu desespero de resistir a muitas das lembranças que agora me retornam, não consigo esquecer. Uma vez, ela me disse que a cacatua com crista de enxofre era originária da Austrália. Foi introduzida na Nova Zelândia no século XIX, mas Evie, minha mãe, não as descobriu por lá. Apaixonou-se pelos pássaros em casa, quando criança, quando um deles, ela afirma, salvou sua vida.

Estes foram os pássaros que uma vez assombraram meus sonhos.

Esses pássaros, mantidos e criados por uma mulher louca. Sinto-me envergonhada ao perceber que tinha me apegado ao absurdo, às impressões desbotadas e desfiguradas das memórias antigas mal descartadas. Eu esperava mais. Sonhava com mais. A decepção se instala na minha garganta, uma pedra fria que não consigo engolir.

E depois

novamente

Eu sinto

Eu sufoco contra a náusea que precede uma visão, o soco repentino no estômago que significa que há mais, há mais, sempre há mais.

Aaron me puxa para mais perto, me abraça mais contra seu peito.

— Respire, — ele sussurra. — Estou aqui, amor. Eu estarei bem aqui.

Eu me agarro a ele, apertando meus olhos com força enquanto minha cabeça nada. Essas lembranças foram um presente da minha irmã, Emmaline. A irmã que eu acabei de descobrir, acabei de recuperar.

E só porque ela lutou para me encontrar.

Apesar dos esforços incansáveis ??de meus pais para livrar nossas mentes da prova persistente de suas atrocidades, Emmaline prevaleceu. Ela usou seus poderes psicocinéticos para devolver para mim o que foi roubado das minhas memórias. Ela me deu esse presente – esse presente de lembranças – para me ajudar a me salvar. Para salvá-la. Para parar nossos pais.

Para consertar o mundo.

Mas agora, após uma fuga estreita, esse presente se tornou uma maldição. Toda hora minha mente renasce. Se altera. As memórias continuam chegando.

E minha mãe morta se recusa a ser silenciada.

— Passarinho, — ela sussurra, colocando um fio de cabelo atrás da minha orelha. — É hora de você voar para longe agora.

— Mas eu não quero ir, — eu digo, com medo de fazer minha voz tremer. — Eu quero ficar aqui, com você, papai e Emmaline. Ainda não entendo por que tenho que ir.

— Você não precisa entender, — ela diz gentilmente.

Eu fico desconfortavelmente imóvel.

Mamãe não grita. Ela nunca gritou. Minha vida inteira, ela nunca levantou a mão para mim, nunca gritou ou me chamou de nomes. Não é como o pai de Aaron. Mas mamãe não precisa gritar. Às vezes, ela apenas diz coisas, coisas que você não precisa entender e há um aviso ali, uma finalidade em suas palavras que sempre me assusta.

Sinto lágrimas se formando, queimando o branco dos meus olhos e...

— Não chore, — diz ela. — Você está velha demais para isso agora.

Eu fungo, lutando contra as lágrimas. Mas minhas mãos não param de tremer.

Mamãe olha para cima e acena para alguém atrás de mim. Eu me viro bem a tempo de avistar Paris, Sr. Anderson, esperando com minha mala. Não há gentileza em seus olhos. Sem calor. Ele se afasta de mim e olha para mamãe. Ele não diz olá.

Ele diz:

— Max já se instalou?

— Oh, ele está pronto há dias. — Mamãe olha para o relógio, distraída. — Você conhece Max, — diz ela, sorrindo levemente. — Sempre um perfeccionista.

— Somente quando se trata de seus desejos, — diz Anderson. — Eu nunca vi um homem crescido tão apaixonado por sua esposa.

Mamãe sorri mais. Ela parece dizer algo, mas eu a interrompo..

— Você está falando do papai? — Eu pergunto, meu coração disparado. — Papai estará lá?

Minha mãe se vira para mim, surpresa, como se tivesse esquecido que eu estava lá. Ela se volta para o Sr. Anderson.

— Como está Leila, a propósito?

— Tudo bem. — diz ele. Mas ele parece irritado.

— Mãe? — Lágrimas ameaçam novamente. — Eu vou ficar com o papai?

Mas mamãe parece não me ouvir. Ela está conversando com o Sr. Anderson quando diz:

— Max o orientará em tudo quando você chegar, e ele poderá responder a maioria das suas perguntas. Se há algo que ele não pode responder, provavelmente está além da sua autorização.

Sr. Anderson parece subitamente irritado, mas não diz nada. Mamãe não diz nada.

Eu não consigo aguentar.

Lágrimas estão escorrendo pelo meu rosto agora, meu corpo tremendo tanto que faz minha respiração estremecer.

— Mãe? — Eu sussurro. — Mãe, por favor me responda...

Mamãe prende uma mão fria e dura em volta do meu ombro e fico instantaneamente imóvel. Quieta. Ela não está olhando para mim. Ela não olha para mim.

— Você vai lidar com isso também, — diz ela. — Não vai, Paris?

Sr. Anderson encontra meus olhos então. Tão azul. Tão frio

— É claro.

Um flash de calor passa por mim. Uma raiva tão repentina que substitui brevemente meu terror.

Eu o odeio.

Eu o odeio tanto que acontece alguma coisa quando olho para ele – e a onda abrupta de emoção me faz sentir corajosa.

Eu volto para mamãe. Tento novamente.

— Por que Emmaline pode ficar? — Eu pergunto, limpando com raiva as minhas bochechas molhadas. — Se eu tenho que ir, não podemos pelo menos ir juntas...

Eu me interrompo quando a vejo.

Minha irmã, Emmaline, está me espreitando por trás de uma porta quase fechada. Ela não deveria estar aqui. Mamãe que me disse isso.

Emmaline deveria estar fazendo suas aulas de natação.

Mas ela está aqui, seu cabelo molhado pingando no chão, e ela está me encarando, olhos arregalados como pratos. Ela está tentando dizer alguma coisa, mas seus lábios se movem muito rápido para eu acompanhar. E então, do nada, um raio de eletricidade corre pela minha espinha e eu ouço a voz dela, aguda e estranha.

Mentirosos.

MENTIROSOS.

MATE TODOS ELES

Meus olhos se abrem e eu não consigo recuperar o fôlego, meu peito arfando, coração batendo forte. Warner me segura, fazendo sons suaves enquanto ele passa uma mão tranquilizadora para cima e para baixo no meu braço.

Lágrimas escorrem pelo meu rosto e eu as golpeio, mãos trêmulas.

— Eu odeio isso, — eu sussurro, horrorizada com o tremor na minha voz. — Eu odeio muito isso. Eu odeio que isso continue acontecendo. Eu odeio o que isso faz comigo, — eu digo. — Eu odeio isso.

Warner Aaron pressiona sua bochecha no meu ombro com um suspiro, sua respiração provocando minha pele.

— Eu também odeio, — diz ele suavemente.

Eu me viro, cuidadosamente, no berço de seus braços e pressiono minha testa em seu peito nu.

Faz menos de dois dias desde que escapamos da Oceania. Dois dias desde que matei minha própria mãe. Dois dias desde que conheci o resíduo de minha irmã Emmaline. Apenas dois dias desde que minha vida inteira foi revirada novamente, o que parece impossível.

Dois dias e as coisas já estão pegando fogo ao nosso redor.

Esta é a nossa segunda noite aqui, no Santuário, a sede do grupo rebelde dirigido por Nouria – filha de Castle – e sua esposa Sam. Deveríamos estar seguros aqui. Deveríamos ser capazes de respirar e nos reagrupar após o inferno das últimas semanas, mas meu corpo se recusa a se acalmar. Minha mente está invadida, sob ataque. Eu pensei que a descarga de novas memórias acabaria, mas essas últimas vinte e quatro horas foram um ataque extraordinariamente brutal, e eu pareço ser a única a lutar.

Emmaline presenteou todos nós – todos os filhos dos comandantes supremos – com lembranças roubadas por nossos pais. Um por um, fomos despertados para as verdades que nossos pais haviam enterrado, e um por um, voltamos à vida normal.

Todos menos eu.

Os outros, desde então, seguiram em frente, reconciliaram suas linhas do tempo, deram sentido à traição. Minha mente, por outro lado, continua a vacilar. Girar. Mas então, nenhum dos outros perdeu tanto quanto eu; eles não têm muito o que lembrar. Até Warner – Aaron – não está passando por uma reimaginação de sua vida.

Está começando a me assustar.

Sinto como se minha história estivesse sendo reescrita, parágrafos infinitos riscados e revisados ??às pressas. Antigas e novas imagens – memórias – se sobrepõem até que a tinta escorra, dividindo as cenas em algo novo, algo incompreensível. Ocasionalmente, meus pensamentos parecem alucinações perturbadoras, e o ataque é tão invasivo que temo que esteja causando danos irreparáveis.

Porque algo está mudando.

Toda nova memória é entregue com uma violência emocional que me atinge, reordena minha mente. Eu estava sentindo essa dor em centelhas – a doença, a náusea, a desorientação – mas não queria questioná-la profundamente. Eu não queria olhar muito de perto. A verdade é que eu não queria acreditar nos meus próprios medos. Mas a verdade é: eu sou um pneu furado. Cada injeção de ar me deixa mais cheia e mais plana.

Eu estou esquecendo.

— Ella?

O terror borbulha dentro de mim, sangra através dos meus olhos abertos. Demoro um momento para lembrar que sou Juliette Ella. Cada vez, me leva um momento a mais.

A histeria ameaça...

Eu a mantenho silenciosa.

— Sim, — eu digo, forçando o ar nos meus pulmões. — Sim.

Warner Aaron endurece.

— Amor, o que há de errado?

— Nada, — eu minto. Meu coração está batendo rápido, rápido demais. Não sei por que estou mentindo. Eu sou um esforço infrutífero; ele pode sentir tudo o que estou sentindo. Eu deveria apenas dizer a ele. Não sei por que não estou dizendo a ele. Eu sei por que não estou dizendo a ele.

Estou esperando

Estou esperando para ver se isso vai passar, se os lapsos na minha memória são apenas falhas esperando para serem reparadas. Dizer isso em voz alta torna muito real, e é muito cedo para dizer esses pensamentos em voz alta, para ceder ao medo. Afinal, faz apenas um dia desde que começou. Ontem me ocorreu que algo estava realmente errado.

Ocorreu-me porque eu cometi um erro.

Erros.

Estávamos sentados do lado de fora, olhando as estrelas. Não me lembrava de ter visto as estrelas assim – nítidas, claras. Era tarde, tão tarde que não era noite, mas início da manhã, e a vista era estonteante. Eu estava congelando. Um vento corajoso passou por um bosque próximo, enchendo o ar com um som constante. Eu estava cheia de bolo. Warner cheirava a açúcar, como decadência. Eu me senti bêbada de alegria.

Eu não quero esperar, ele disse, pegando minha mão. Apertando-a. Não vamos esperar.

Eu pisquei para ele. Para quê?

Para quê?

Para quê?

Como eu esqueci o que aconteceu poucas horas antes? Como eu esqueci o momento em que ele me pediu em casamento?

Foi uma falha. Parecia uma falha. Onde antes havia uma lembrança, de repente havia um buraco, uma cavidade mantida vazia apenas até ser empurrada para o realinhamento.

Eu me recuperei. Lembrei. Warner riu.

Eu não.

Esqueci o nome da filha de Castle. Esqueci como pousamos no Santuário. Eu esqueci, por dois minutos completos, como eu escapei da Oceania. Mas minhas falhas eram temporárias; elas pareciam atrasos naturais. Senti apenas confusão quando minha mente se acalmou, hesitação quando as lembranças ressurgiram, encharcadas e vagas. Eu pensei que talvez estivesse cansada. Sobrecarregada. Não levei nada a sério, até estar sentada debaixo das estrelas e não me lembrar de prometer passar o resto da minha vida com alguém.

Fico mortificada.

Uma mortificação tão aguda que pensei que iria expirar com pura força. Mesmo agora, o calor fresco inunda meu rosto e sinto que estou aliviada por Warner não poder ver no escuro.

Aaron, não Warner.

Aaron.

— Não posso dizer agora se você está com medo ou envergonhada, — diz ele, e exala suavemente. Parece quase uma risada. — Você está preocupada com Kenji? Com os outros?

Eu agarro essa meia verdade com todo o meu coração.

— Sim, — eu digo. — Kenji. James. Adam.

Kenji está doente na cama desde muito cedo nesta manhã. Olho de soslaio para a inclinação da lua através da nossa janela e lembro que já passou da meia-noite, o que significaria que, tecnicamente, Kenji ficou doente ontem de manhã.

Independentemente, foi assustador para todos nós.

As drogas que Nazeera forçou a Kenji em seu voo internacional do Setor 45 para a Oceania eram uma dose muito forte, e ele está se recuperando desde então. Ele finalmente entrou em colapso – as gêmeas Sonya e Sara o procuraram e disseram que ele vai ficar bem – mas não antes de sabermos que Anderson estava reunindo os filhos dos comandantes supremos.

Adam, James, Lena, Valentina e Nicolás estão todos sob custódia de Anderson.

James está sob sua custódia.

Foi um anúncio terrível, alguns dias terríveis. Foram duas semanas devastadoras e terríveis.

Meses, na verdade.

Anos.

Alguns dias, não importa o quanto eu procure, não consigo encontrar os bons tempos. Alguns dias, a felicidade ocasional que conheço parece um sonho bizarro. Um erro. Hiper-real e sem foco, as cores muito brilhantes e os sons muito fortes.

Ilusões da minha imaginação.

Foi há apenas alguns dias que a clareza veio a mim, trazendo presentes. Apenas alguns dias atrás, o pior parecia estar atrás de mim, que o mundo parecia cheio de potencial, que meu corpo estava mais forte do que nunca, minha mente mais cheia, mais afiada, mais capaz do que jamais esteve.

Mas agora

Mas agora

Mas agora sinto que estou me agarrando às bordas irregulares da sanidade, aquele amigo indescritível e de bom tempo sempre partindo meu coração.

Aaron me puxa para perto e eu me derreto nele, grata por seu calor, pela firmeza de seus braços em volta de mim. Eu respiro fundo, estremecendo e deixo tudo ir, exalando contra ele. Inspiro o aroma rico e inebriante de sua pele, o leve aroma de gardênias que ele sempre carrega consigo. Segundos passam em perfeito silêncio e ouvimos um ao outro respirar.

Lentamente, minha frequência cardíaca se estabiliza.

As lágrimas secam. Os medos dão um tempo. O terror é distraído por uma borboleta que passa e a tristeza tira uma soneca.

Por um tempo, sou apenas eu, ele e nós, e tudo fica imaculado, intocado pela escuridão.

Eu sabia que amava Warner Aaron antes de tudo isso – antes de sermos capturados pelo Restabelecimento, antes de sermos destruídos, antes de conhecermos nossa história comum – mas esse amor era novo, verde, suas profundezas desconhecidas, não testadas. Naquela janela breve e cintilante, durante a qual os buracos na minha memória pareciam totalmente explicados, as coisas entre nós mudaram. Tudo entre nós mudou. Mesmo agora, mesmo com o barulho na minha cabeça, eu sinto isso.

Aqui.

Isso.

Meus ossos contra os ossos dele. Esta é a minha casa.

Eu o sinto de repente endurecer e me afasto, preocupada. Não vejo muito dele nessa escuridão perfeita, mas sinto o delicado aumento de arrepios ao longo de seus braços quando ele diz:

— No que você está pensando?

Meus olhos se arregalam, compreensão destronando a preocupação.

— Eu estava pensando em você.

— Em mim?

Fecho a lacuna entre nós novamente. Concordo contra seu peito.

Ele não diz nada, mas eu posso ouvir seu coração, acelerando no silêncio, e eventualmente eu o ouço expirar. É um som pesado e desigual, como se ele estivesse prendendo a respiração por muito tempo. Eu gostaria de poder ver seu rosto. Não importa quanto tempo passemos juntos, ainda esqueço o quanto ele pode sentir minhas emoções, especialmente em momentos como este, quando nossos corpos são pressionados juntos.

Gentilmente, corro minha mão pelas costas dele.

— Eu estava pensando em quanto eu te amo. — eu digo.

Ele fica incomumente imóvel, mas apenas por um momento. E então ele toca meu cabelo, seus dedos lentamente penteando os fios.

— Você sentiu isso? — Eu pergunto.

Quando ele não responde, eu recuo novamente. Pisco contra o preto até conseguir distinguir o brilho de seus olhos, a sombra de sua boca.

— Aaron?

— Sim, — diz ele, mas ele parece um pouco sem fôlego.

— Sim, você sentiu?

— Sim, — ele diz novamente.

— Como é a sensação?

Ele suspira. Vira de costas. Ele fica quieto por tanto tempo que, por um tempo, não tenho certeza se ele vai responder. Então, suavemente, ele diz:

— É difícil de descrever. É um prazer tão próximo da dor que às vezes não consigo distinguir os dois.

— Isso parece horrível.

— Não, — ele diz. — É extraordinário.

— Eu amo você.

Uma inspiração aguda. Mesmo nessa escuridão, vejo a tensão em sua mandíbula – a tensão ali – enquanto ele olha para o teto.

Sento-me, surpresa.

A reação de Aaron é tão estudada que não sei como nunca havia notado isso antes. Mas então, talvez isso seja novo. Talvez algo realmente tenha mudado entre nós. Talvez eu nunca o amei tanto assim antes. Isso faria sentido, suponho. Porque quando penso sobre isso, quando realmente penso sobre o quanto eu o amo agora, depois de tudo o que nós...

Outra respiração repentina e aguda. E então ele ri nervosamente.

— Uau. — Eu digo.

Ele bate a mão sobre os olhos.

— Isso é vagamente humilhante.

Estou sorrindo agora, quase rindo.

— Ei. Está...

Meu corpo congela.

Um arrepio violento percorre minha pele e minha coluna fica rígida, meus ossos mantidos no lugar por alfinetes invisíveis, minha boca congelada e tentando respirar.

O calor preenche minha visão.

Não ouço nada além de estática, corredeiras, água branca, vento feroz. Não sinta nada. Não penso em nada. Não sou nada.

Eu estou, pelo momento mais infinitesimal...

Livre.

Minhas pálpebras tremulam abertas fechadas abertas fechadas abertas fechadas. Eu sou uma asa, duas asas, uma porta giratória, cinco pássaros.

O fogo sobe dentro de mim, explode.

Ella?

A voz aparece em minha mente com força rápida, afiada, como dardos no cérebro. Estupidamente, percebo que estou com dor – minha mandíbula dói, meu corpo ainda está suspenso em uma posição não natural – mas eu o ignoro. A voz tenta novamente:

Juliette?

Realização golpeia, uma faca nos joelhos. Imagens da minha irmã enchem minha mente: ossos e pele derretida, dedos palmados, boca encharcada, sem olhos. Seu corpo estava suspenso debaixo d'água, longos cabelos castanhos como um enxame de enguias. Sua voz estranha e sem corpo me atravessa. E assim eu digo, sem falar:

Emmaline?

A emoção penetra em mim, os dedos cravando na minha carne, a sensação raspando minha pele. O alívio dela é tangível. Eu posso provar. Ela está aliviada, aliviada por eu a reconhecer, aliviada por ela me encontrar, aliviada aliviada aliviada...

O que aconteceu? Eu pergunto.

Um dilúvio de imagens inunda meu cérebro até afundar, eu me afogo. Suas memórias afogam meus sentidos, obstruem os pulmões. Eu engasgo quando os sentimentos colidem comigo. Vejo Max, meu pai, inconsolável após o assassinato de sua esposa; Vejo o comandante supremo Ibrahim, frenético e furioso, exigindo que Anderson reúna a outra criança antes que seja tarde demais; Eu vejo Emmaline, brevemente abandonada, aproveitando uma oportunidade...

Eu suspiro.

Evie fez isso para que apenas ela ou Max pudessem controlar os poderes de Emmaline, e com Evie morta, os cofres implementados foram subitamente enfraquecidos. Emmaline percebeu que, na esteira da morte de nossa mãe, haveria uma breve janela de oportunidade – uma breve janela durante a qual ela poderia recuperar o controle de sua própria mente antes que Max refizesse os algoritmos.

Mas o trabalho de Evie foi bom demais e a reação de Max muito rápida. Emmaline teve apenas um sucesso parcial.

Morrendo, ela me diz.

Morrendo.

Cada lampejo de sua emoção é acompanhado por um ataque torturante. Minha carne está machucada. Minha coluna parece líquida, meus olhos cegos, ardentes. Sinto Emmaline – sua voz, seus sentimentos, suas visões – mais fortemente do que antes, porque ela é mais forte do que antes. O fato de ela ter conseguido recuperar o poder suficiente para me encontrar é apenas uma prova de que ela está pelo menos parcialmente livre, sem restrições. Max e Evie estavam fazendo experiências com Emmaline em um grau imprudente nos últimos meses, tentando torná-la mais forte, mesmo quando seu corpo murchava. Isso, isso é a consequência.

Estar tão perto dela é nada menos que torturante.

Eu acho que gritei.

Eu gritei?

Tudo sobre Emmaline é elevado a um tom de febre; sua presença é selvagem, de tirar o fôlego, e estremece a vida dentro dos meus nervos. Som e sensação percorrem minha visão, atravessando-me violentamente. Eu ouço uma aranha correndo pelo chão de madeira. Mariposas cansadas arrastam suas asas ao longo da parede. Um rato se sobressalta, em um sono profundo. Motores de poeira se quebram contra uma janela, estilhaços derrapando no vidro.

Meus olhos deslizam, desequilibrados no meu crânio.

Sinto o peso opressivo do meu cabelo, meus membros, minha carne enrolada em volta de mim como celofane, um caixão de outro tipo. Minha língua, minha língua é um lagarto morto empoleirado na minha boca, áspero e pesado. Os pêlos finos dos meus braços permanecem e oscilam, permanecem e oscilam. Meus punhos estão tão cerrados que minhas unhas perfuram a carne macia das minhas mãos.

Eu sinto uma mão em mim. Onde? Eu estou?

Solitária, ela diz.

Ela me mostra.

Uma visão de nós, de volta ao laboratório onde a vi pela primeira vez, onde matei nossa mãe. Eu me vejo do ponto de vista de Emmaline e é surpreendente. Ela não pode ver muito mais do que um borrão, mas pode sentir minha presença, pode distinguir a forma do meu corpo, o calor que emana do meu corpo. E então minhas palavras, minhas próprias palavras, voltaram ao meu cérebro...

tem que haver outra maneira
você não precisa morrer.
podemos enfrentar isso juntas.
por favor
quero minha irmã de volta
eu quero que você viva
Emmaline
eu não deixarei você morrer aqui
Emmaline Emmaline
podemos enfrentar isso juntas
podemos enfrentar isso juntas
podemos enfrentar isso
juntas

Uma sensação fria e metálica começa a florescer no meu peito. Ela se move através de mim, pelos meus braços, pela minha garganta, empurra meu intestino. Meus dentes latejam. A dor de Emmaline agarra e desliza, se apega com uma ferocidade que eu não posso suportar. Sua ternura também é desesperadora, aterrorizante em sua sinceridade. Ela é dominada pela emoção, quente e fria, alimentada pela raiva e pela evasão.

Ela estava me procurando, esse tempo todo.

Nestes últimos dias, Emmaline procurou minha mente no mundo consciente, tentando encontrar um porto seguro, um lugar para descansar.

Um lugar para morrer.

Emmaline, Eu digo. Por favor...

Irmã.

Algo segura minha mente, aperta. O medo impulsiona através de mim, perfura os órgãos. Estou chiando. Sinto cheiro de terra e folhas úmidas e em decomposição e sinto as estrelas encarando minha pele, o vento empurrando a escuridão como um pai ansioso. Minha boca está aberta, pegando mariposas. Eu estou no chão.

Onde?

Não estou mais na minha cama, percebo, não estou mais na minha tenda, percebo, não estou mais protegida.

Mas quando eu andei?

Quem mexeu nos meus pés? Quem empurrou meu corpo?

Quão longe?

Eu tento olhar em volta, mas estou cega, minha cabeça presa em um torno, meu pescoço reduzido a tendões desgastados. Minhas respirações enchem meus ouvidos

balançando

Meus punhos se abrem, unhas raspando enquanto meus dedos se abrem, palmas achatando, sinto cheiro de calor, gosto de vento, ouço sujeira.

Sujeira sob minhas mãos, minha boca, minhas unhas. Estou gritando, eu percebo. Alguém está me tocando e eu estou gritando.

Pare, Eu grito. Por favor, Emmaline... Por favor não faça isso...

sozinha, ela diz.

s o z i n h a

E com uma agonia repentina e feroz...

Eu estou deslocada.


2. KENJI

Parece estranho chamar isso de sorte.

Parece estranho, mas de alguma maneira perversa e distorcida, isso é sorte. Sorte que eu estou parado no meio de florestas úmidas e congelantes antes que o sol se preocupe em aparecer. Sorte que minha parte superior do corpo nua está meio entorpecida pelo frio.

Sorte que Nazeera está comigo.

Nós acionamos nossa invisibilidade quase instantaneamente, então ela e eu estamos pelo menos temporariamente seguros aqui, no trecho de 800 metros de natureza intocada entre territórios regulamentados e não regulamentados. O Santuário foi construído em um par de acres de terra não regulamentada, não muito longe de onde estou, e é magistralmente escondido à vista de todos, apenas por causa do talento antinatural de Nouria para dobrar e manipular a luz. Dentro da jurisdição de Nouria, o clima é mais temperado, o tempo mais previsível. Mas aqui na natureza, os ventos são implacáveis ??e combativos. As temperaturas são perigosas.

Ainda assim – temos sorte de estar aqui.

Nazeera e eu estávamos fora da cama por um tempo, correndo pelo escuro na tentativa de matar um ao outro. No final, tudo acabou sendo um mal-entendido complicado, mas também era uma espécie de alívio: se Nazeera não tivesse entrado no meu quarto às três horas da manhã e quase me matado, eu não teria a perseguido através da floresta, além das proteções de som e visão do Santuário. Se não estivéssemos tão longe do Santuário, nunca teríamos ouvido os gritos distantes e ecoantes de cidadãos gritando de terror. Se não tivéssemos ouvido esses gritos, nunca teríamos corrido em direção à fonte. E se não tivéssemos feito nada disso, eu nunca teria visto minha melhor amiga gritando até o amanhecer.

Eu não teria visto isso. Isso:

J de joelhos na terra fria, Warner se agachou ao lado dela, os dois parecendo como a morte, enquanto as nuvens literalmente derreteram no céu acima deles. Os dois estão parados do lado de fora da entrada do Santuário, abrangendo o trecho intocado de floresta que serve como um amortecedor entre o acampamento e o coração do setor mais próximo, número 241.

Por quê?

Eu congelei quando os vi lá, duas figuras quebradas entrelaçadas, membros plantados no chão. Fiquei paralisado pela confusão, depois pelo medo, depois pela descrença, enquanto as árvores se curvavam para o lado e o vento batia no meu corpo, lembrando-me cruelmente de que nunca tive chance de vestir uma camisa.

Se minha noite tivesse sido diferente, eu poderia ter tido essa chance.

Se minha noite tivesse sido diferente, eu poderia ter desfrutado, pela primeira vez na minha vida, de um nascer do sol romântico e uma reconciliação atrasada com uma linda garota. Nazeera e eu iríamos rir sobre como ela me chutou nas costas e quase me matou, e como depois eu quase atirei nela por isso. Depois disso, eu tomaria um longo banho, dormiria até o meio dia e comeria meu peso em alimentos do café da manhã.

Eu tinha um plano para hoje: vá com calma.

Eu queria um pouco mais de tempo para curar após a minha mais recente experiência de quase morte, e não achava que estava pedindo muito. Eu pensei que, talvez, depois de tudo o que eu passara, o mundo pudesse finalmente me dar uma folga. Me deixar respirar entre tragédias.

Nah.

Em vez disso, estou aqui, morrendo de frio e horror, vendo o mundo se despedaçar ao meu redor. O céu, balançando descontroladamente entre horizontes horizontais e verticais. O ar, perfurando aleatoriamente. Árvores afundando no bosque. Folhas, voando ao meu redor. Estou vendo – estou testemunhando ativamente – e ainda não consigo acreditar.

Mas estou escolhendo chamar isso de sorte.

Sorte que estou vendo isso, sorte que sinto que poderia vomitar, sorte que corri por todo esse caminho em meu corpo ainda machucado e ferido bem a tempo de conseguir um lugar na primeira fila para o fim do mundo.

Sorte, destino, coincidência, acaso...

Vou chamar esse sentimento doentio e profundo no meu intestino de um truque de mágica, se me ajudar a manter meus olhos abertos por tempo suficiente para testemunhar. Para descobrir como ajudar.

Porque ninguém mais está aqui.

Ninguém além de mim e Nazeera, o que parece loucura em um nível improvável. O Santuário deveria ter guardas em patrulha o tempo todo, mas não vejo sentinelas nem sinal de ajuda recebida. Também não há soldados do setor próximo. Nem mesmo civis curiosos e histéricos. Nada.

É como se estivéssemos no vácuo, em um plano invisível da existência. Não sei como J e Warner chegaram tão longe sem serem vistos. Os dois parecem que foram literalmente arrastados pela terra; Não tenho ideia de como eles escaparam. E, embora seja possível que J tenha apenas começado a gritar, ainda tenho mil perguntas sem resposta.

Elas terão que esperar.

Olho para Nazeera por hábito, esquecendo por um momento que ela e eu somos invisíveis. Mas então eu a sinto aproximar-se e solto um suspiro de alívio quando sua mão desliza na minha. Ela aperta meus dedos. Aperto de volta.

Sorte, eu me lembro.

É uma sorte que estamos aqui agora, porque se eu estivesse na cama onde deveria estar, nem saberia que J estava com problemas. Eu teria perdido o tremor na voz da minha amiga quando ela gritou, implorando piedade. Eu teria perdido as cores arrebatadoras de um nascer do sol retorcido, um pavão no meio do inferno. Eu teria perdido o jeito que J apertou a cabeça entre as mãos e soluçou. Eu teria perdido os cheiros agudos de pinheiro e enxofre ao vento, perdido a dor seca na garganta, o tremor se movendo pelo meu corpo. Eu teria perdido o momento em que J chamou sua irmã pelo nome. Eu não teria ouvido J pedir especificamente à irmã para não fazer algo.

Sim, isso é definitivamente sorte.

Porque se eu não tivesse ouvido nada disso, não saberia quem culpar.

Emmaline.


3. ELLA

JULIETTE

Eu tenho olhos, dois, sinto eles, rolando para frente e para trás, girando e girando no meu crânio. Eu tenho lábios, dois, sinto-os, molhados e pesados, abro-os, tenho dentes, muitos, língua, uma e dedos, dez, os conto

umdoistrêsquatrocinco, mais uma vez, do outro lado estranho, eeestranho ter uma língua, eestranho é uma coisa eeeestranha, uma coisa eeeeeeeeeeestranha

solidãoo

isso se arrasta em você

quieto

e

ainda,

senta-se ao seu lado no escuro, acaricia seu cabelo enquanto você dorme, envolve-se em torno de seus ossos, apertando bastante, você quase não consegue respirar, quase não consegue ouvir o sangue batendo no seu pulso enquanto corre, corre em sua

pele

toca seus lábios, os cabelos macios na parte de trás do seu

pescoço

a solidão é uma coisa estranha, uma coisa estranha, um velho amigo parado ao seu lado no espelho gritando que você não é osuficientenuncaosuficiente nunca suficiente

àssssss vezes

ela

não

solta


4. KENJI

Eu evito uma erupção no chão e abaixo bem a tempo de evitar um grupo de videiras crescendo no ar. Uma rocha distante de um tamanho astronômico se aproxima e, no momento em que começa a correr em nossa direção, aperto minha mão na mão de Nazeera e mergulho em busca de proteção.

O céu está se despedaçando. O chão está se partindo sobre meus pés. O sol brilha, escuridão estroboscópica, luz estroboscópica, tudo empolgado. E as nuvens... Há algo de errado com as nuvens.

Elas estão se desintegrando.

As árvores não conseguem decidir se levantam ou se deitam, rajadas de vento brotam do chão com poder aterrador e, de repente, o céu está cheio de pássaros. Cheio de malditos pássaros.

Emmaline está fora de controle.

Sabíamos que seus poderes telecinéticos e psicocinéticos eram divinos – além de tudo que já conhecemos – e sabíamos que o Restabelecimento construiu Emmaline para controlar nossa experiência do mundo. Mas isso foi tudo, e isso foi apenas conversa. Teoria.

Nós nunca a vimos assim.

Selvagem.

Ela está claramente fazendo algo com J agora, devastando sua mente enquanto ataca o mundo ao nosso redor, porque a viagem ácida que eu estou encarando está apenas piorando.

— Volte, — eu grito sobre o barulho. — Consiga ajuda, traga as meninas!

Um único grito de concordância e a mão de Nazeera se solta da minha, suas botas pesadas no chão são minha única indicação de que ela está correndo em direção ao Santuário. Mas mesmo agora – especialmente agora – suas ações rápidas e certas me enchem de alívio.

É bom ter uma parceira capaz.

Eu caminho pela floresta escassa, grato por ter evitado o pior dos obstáculos, e quando finalmente estou perto o suficiente para discernir adequadamente o rosto de Warner, afasto minha invisibilidade.

Estou tremendo de exaustão.

Eu mal havia me recuperado de ser drogado quase até a morte, e ainda estou aqui, já prestes a morrer novamente. Mas, quando me debruço, meio dobrado, com as mãos nos joelhos e tentando respirar, percebo que não tenho o direito de reclamar.

Warner parece ainda pior do que eu esperava.

Cru, cerrado, uma veia esticando a têmpora. Ele está de joelhos, segurando J como se estivesse tentando segurar um rio, e eu não percebi até agora que ele poderia estar aqui por mais do que apenas apoio emocional.

A coisa toda é surreal: os dois estão praticamente nus, na terra, de joelhos – J com as mãos pressionadas contra os ouvidos – e eu não posso, mas ele imagina que tipo de inferno os trouxe a esse momento.

Eu pensei que era eu quem estava tendo uma noite estranha.

Algo bate de repente no meu intestino e eu me dobro, atingindo o chão com força.

Braços tremendo, eu me empurro de quatro e examino a área imediatamente pelo culpado.

Quando o vejo, engasgo.

Um pássaro morto, a alguns metros de distância.

Jesus.

J ainda está gritando.

Empurro meu caminho através de uma repentina e violenta rajada de vento – e justamente quando recuperei o equilíbrio, pronto para percorrer os últimos quinze metros em direção aos meus amigos – o mundo fica mudo.

Som, desligado.

Sem ventos uivantes, sem gritos torturados, sem tosses, sem espirros. Este não é um silêncio comum. Não é quietude, não é silêncio.

É mais do que isso.

Não é nada.

Eu pisco, pisco, minha cabeça girando em um movimento lento e torturante enquanto vasculho a distância em busca de respostas, desejando que as explicações apareçam.

Esperar que a força pura da minha mente seja suficiente para tirar a razão do chão.

Não é.

Eu fiquei surdo.

Nazeera não está mais aqui, J e Warner ainda estão a quinze metros de distância, e eu fiquei surdo. Surdo ao som do vento, às árvores trêmulas. Surdo para minha própria respiração difícil, para os gritos dos cidadãos nos complexos além. Tento cerrar os punhos e leva uma eternidade, como se o ar estivesse denso. Grosso.

Alguma coisa está errada comigo.

Estou lento, mais devagar do que nunca, como se estivesse correndo debaixo d'água.

Algo está propositadamente me afastando, me afastando fisicamente de Juliette – e de repente, tudo faz sentido. Minha confusão anterior se dissolve. Claro que ninguém mais está aqui. É claro que ninguém mais veio ajudar.

Emmaline nunca permitiria isso.

Talvez eu tenha chegado tão longe só porque ela estava ocupada demais para me notar imediatamente – para me sentir aqui, no meu estado invisível. Isso me faz pensar no que mais ela fez para manter essa área livre de invasores.

Isso me faz pensar se vou sobreviver.

Está ficando mais difícil de pensar. Leva uma eternidade para fundir pensamentos. Leva uma eternidade para mover meus braços. Para levantar minha cabeça. Olhar ao redor.

Quando consegui abrir a boca, esqueci que minha voz não emitia som.

Um lampejo de ouro ao longe.

Vejo Warner, se movendo tão lentamente que me pergunto se ambos estamos sofrendo da mesma aflição. Ele está lutando desesperadamente para se sentar ao lado de J – J, que ainda está de joelhos, curvada para a frente, boca aberta. Seus olhos estão bem fechados em concentração, mas se ela está gritando, eu não consigo ouvir.

Eu mentiria se dissesse que não estava aterrorizado.

Estou perto o suficiente de Warner e J para poder avaliar suas expressões, mas não é bom; Eu não tenho ideia se eles estão feridos, então não sei com o que estamos lidando.

Eu tenho que me aproximar, de alguma forma. Mas quando dou um passo doloroso para a frente, um lamento agudo explode nos meus ouvidos.

Eu grito sem som, batendo as mãos na minha cabeça enquanto o silêncio é subitamente – cruelmente – composto por pressão. A dor semelhante a uma faca penetra em mim, pressionando meus ouvidos com uma intensidade que ameaça me esmagar por dentro. É como se alguém tivesse sobrecarregado minha cabeça com hélio, como se a qualquer momento o balão que é meu cérebro explodirá. E quando penso que a pressão pode me matar, quando penso que não aguento mais a dor, o chão começa a chacoalhar. Tremer.

Há uma rachadura sísmica...

E o som volta a ficar online. Um som tão violento que rasga algo dentro de mim e, quando finalmente tiro minhas mãos dos ouvidos, elas estão vermelhas, pingando. Eu cambaleio quando minha cabeça lateja. Retumba. Retumba.

Eu limpo minhas mãos ensanguentadas no meu tronco nu e minha visão nada. Avanço em um estupor e caio de mal jeito, minhas mãos ainda úmidas atingindo a terra com tanta força que sua dureza estremece meus ossos. A sujeira sob meus pés ficou escorregadia.

Molhada. Olho para cima, olhando de soslaio para o céu e a chuva repentina e torrencial.

Minha cabeça continua balançando em uma dobradiça bem oleada. Uma única gota de sangue escorre pelo meu ouvido, cai no meu corpo. Uma segunda gota de sangue escorre pelo meu ouvido e cai no meu ombro. Uma terceira gota de sangue escorre pelo meu...

Nome.

Alguém chama meu nome.

O som é grande, agressivo. A palavra surge vertiginosamente na minha cabeça, expandindo e contraindo. Eu não consigo identificar.

Kenji

Eu me viro e minha cabeça retumba, retumba.

K e n j i

Eu pisco e leva dias, voltas ao redor do sol.

Amigo

confiável

Algo está me tocando, embaixo de mim, me carregando, mas não é bom. Eu não me mexo.

Muito

pesada

Eu tento falar, mas não posso. Não digo nada, não faço nada quando minha mente se abre, enquanto dedos frios alcançam meu crânio e desconectam o circuito interno. Eu fico parado. Atento. A voz ecoa para a vida na escuridão atrás dos meus olhos, falando palavras que parecem mais memória do que conversa, palavras que eu não sei, não entendo

a dor que eu carrego, os medos que eu deveria ter deixado para trás. Eu me afundo sob o peso da solidão, as correntes de decepção. Só meu coração pesa mil quilos. Estou tão pesada que não posso mais ser retirada da terra. Estou tão pesada que não tenho escolha agora, a não ser enterrar-me embaixo dela. Eu sou tão pesada, muito pesada

Eu suspiro enquanto desco.

Meus joelhos estalam quando atingem o chão. Meu corpo cai para frente. A sujeira beija meu rosto, me recebe em casa.

O mundo fica subitamente escuro.

Corajoso

Meus olhos piscam. O som zumbe em meus ouvidos, algo como uma eletricidade fraca e constante. Tudo está mergulhado na escuridão. Um apagão, um apagão no mundo natural. O medo se apega à minha pele. Me cobre.

mas

f r a c o

As facas perfuram meus ossos que se enchem rapidamente de tristeza, tristeza tão aguda que me deixa sem fôlego.

Nunca tive tanta esperança de deixar de existir.

Eu estou flutuando

Sem peso e, no entanto, com peso baixo, destinado a afundar para sempre. Luz fraca fratura a escuridão atrás dos meus olhos e na luz, vejo água. Meu sol e lua são o mar, minhas montanhas, o oceano. Vivo em líquido que nunca bebo, afogando-me constantemente em águas marmorizadas e leitosas. Minha respiração é pesada, automática, mecânica. Sou forçado a inspirar, forçado a expirar. O som estridente e estremecedor da minha respiração é meu lembrete constante da sepultura que é o meu lar.

Eu ouço algo.

Ele reverbera através do tanque, metal opaco contra metal opaco, chegando aos meus ouvidos como se fosse do espaço sideral. Eu olho de soslaio para o novo conjunto de formas e cores, formas borradas. Aperto os punhos, mas minha carne é macia, meus ossos como massa fresca, minha pele descascando em flocos úmidos. Estou cercado por água, mas minha sede é insaciável e minha raiva...

Minha raiva...

Algo se encaixa. Minha cabeça. Minha mente. Meu pescoço.

Meus olhos estão arregalados, minha respiração em pânico. Estou de joelhos, minha testa pressionada na terra, minhas mãos enterradas na terra molhada.

Sento-me direito e volto, minha cabeça girando.

— Que porra é essa? — Eu ainda estou tentando respirar. Eu olho em volta. Meu coração está acelerando. — O que, o que...

Eu estava cavando minha própria cova.

Um horror aterrorizante se move pelo meu corpo quando eu entendo: Emmaline estava na minha cabeça. Ela queria ver se poderia me fazer me matar.

E, no momento em que penso nisso – ao olhar para a tentativa miserável que fiz para me enterrar vivo – sinto uma simpatia maçante e esfaqueada por Emmaline. Porque senti sua dor, e não foi cruel.

Foi desesperador.

Como se ela estivesse esperando que, se eu me matasse enquanto ela estivesse na minha cabeça, de alguma forma eu seria capaz de matá-la também.

J está gritando de novo.

Eu cambaleio para os meus pés, coração na minha garganta quando os céus se abrem, liberando sua ira sobre mim. Não sei por que Emmaline deu um tiro no interior da minha cabeça – corajoso, mas fraco – mas sei o suficiente para entender que o que diabos está acontecendo aqui é mais do que consigo lidar sozinho. No momento, só espero que todos no Santuário estejam bem – e que Nazeera volte aqui em breve. Até lá, meu corpo partido terá que fazer o melhor possível.

Eu avanço.

Mesmo quando o sangue frio e velho seca nos meus ouvidos, no peito, empurro para a frente, fortalecendo-me contra as condições climáticas cada vez mais voláteis. A sucessão constante de terremotos. Os relâmpagos. A tempestade furiosa se tornando rapidamente em um furacão.

Quando finalmente chego perto o suficiente, Warner olha para cima.

Ele parece atordoado.

Me ocorre que ele só está me vendo – depois de tudo isso – ele acabou de perceber que estou aqui. Um lampejo de alívio brilha em seus olhos, muito rapidamente substituído por dor.

E então ele fala duas palavras – duas palavras que eu nunca pensei que eu o inspiraria a dizer:

— Me ajude.

A sentença é levada pelo vento, mas a agonia em seus olhos permanece. E deste ponto de vista, finalmente entendo a profundidade do que ele sofreu. A princípio, pensei que Warner a estivesse mantendo firme, tentando apoiá-la.

Eu estava errado.

J está vibrando com poder, e Warner mal a aguenta. Segurando-a ainda. Algo – alguém – está animando fisicamente o corpo de Juliette, articulando seus membros, tentando forçá-la de pé e possivelmente para longe daqui, e é apenas por causa de Warner que Emmaline não conseguiu.

Não tenho ideia de como ele está fazendo isso.

A pele de J ficou translúcida, com veias brilhantes e esquisitas em seu rosto pálido. Ela é quase azul, pronta para rachar. Um zumbido de baixo nível emana de seu corpo, o estalo da energia, o zumbido do poder. Eu agarro seu braço e, em meio segundo, Warner se move para distribuir seu peso entre nós, nós três somos arremessados para frente. Batemos no chão com tanta força que mal consigo respirar e, quando finalmente consigo levantar a cabeça, olho para Warner, meus próprios olhos arregalados de terror desmascarado.

— Emmaline está fazendo isso, — eu digo, gritando as palavras para ele.

Ele assente, o rosto sombrio.

— O que podemos fazer? — Eu choro. — Como ela pode continuar gritando assim?

Warner apenas olha para mim.

Ele apenas olha para mim, e a expressão torturada nos seus olhos me diz tudo que eu preciso saber. J não pode continuar gritando assim. Ela não pode ficar de joelhos gritando por um século. Essa merda vai matá-la. Jesus Cristo. Eu sabia que era ruim, mas por algum motivo não achei que fosse tão ruim.

J parece que vai morrer.

— Devemos tentar buscá-la? — Eu nem sei por que pergunto. Duvido que eu pudesse levantar o braço dela acima da minha cabeça, muito menos todo o seu corpo. Meu próprio corpo ainda está tremendo, tanto que mal posso fazer minha parte para impedir que essa garota se levante diretamente do chão. Não tenho ideia de que tipo de merda louca está bombeando em suas veias agora, mas J está em outro planeta. Ela parece meio viva, principalmente alienígena. Os olhos dela estão fechados, a mandíbula desequilibrada. Ela está irradiando energia. É terrivelmente aterrorizante.

E eu mal consigo acompanhar.

A dor nos meus braços começou a subir nos meus ombros e nas minhas costas e tremo violentamente quando um vento forte atinge minha pele nua e superaquecida.

— Vamos tentar, — diz Warner.

Eu concordo.

Respiro fundo.

Me imploro para ser mais forte do que sou.

Não sei como faço isso, mas, por nada menos que um milagre, levanto. Warner e eu conseguimos estabelecer Juliette entre nós, e quando olho para ele, fico pelo menos aliviado ao descobrir que ele parece que está lutando também. Eu nunca vi Warner lutar, não mesmo, e tenho certeza de que nunca o vi suar. Mas por mais que eu adorasse rir um pouco agora, a visão dele se esforçando tanto para segurá-la apenas envia uma nova onda de medo através de mim. Não tenho ideia de quanto tempo ele está tentando impedi-la sozinho. Não tenho ideia do que teria acontecido com ela se ele não estivesse lá para aguentar. E não tenho ideia do que aconteceria com ela agora, se a deixássemos ir.

Algo nessa realização me dá uma força renovada. Isso toma a decisão dessa situação. J precisa de nós agora, ponto final.

O que significa que tenho que ser mais forte.

Ficar de pé assim nos tornou um alvo fácil em toda essa loucura, e grito um aviso quando um pedaço de lixo voa em nossa direção. Eu giro bruscamente para proteger J, mas levo um golpe na espinha, a dor é tão impressionante que estou vendo estrelas.

Minhas costas já estavam feridas hoje à noite, e as contusões devem piorar agora. Mas quando Warner trava os olhos comigo em um pânico repentino e aterrorizado, eu aceno, deixando que ele saiba que estou bem. Eu a peguei.

Polegada por polegada agonizante, voltamos para o Santuário.

Estamos arrastando J como se ela fosse Jesus entre nós, a cabeça jogada para trás, os pés arrastando o chão. Ela finalmente parou de gritar, mas agora está em convulsão, seu corpo se agita incontrolavelmente, e Warner parece que está se apegando à sua sanidade mental por um único fio desgastado.

Parece que passam séculos antes de vermos Nazeera novamente, mas a parte racional do meu cérebro suspeita que deve ter sido apenas vinte ou trinta minutos. Quem sabe.

Tenho certeza de que ela estava tentando o seu melhor para voltar aqui com pessoas que poderiam ajudar, mas parece que estamos atrasados. Tudo parece tarde demais.

Não tenho mais ideia do que diabos está acontecendo.

Ontem, essa manhã – uma hora atrás – eu estava preocupado com James e Adam.

Achei que nossos problemas eram simples e diretos: recuperar as crianças, matar os comandantes supremos, ter um bom almoço.

Mas agora...

Nazeera e Castle e Brendan e Nouria correm para uma parada repentina diante de nós.

Eles olham entre nós.

Eles olham além de nós.

Seus olhos se arregalam, seus lábios se abrem enquanto ofegam. Giro meu pescoço para ver o que eles estão vendo e percebo que há uma onda de fogo vindo diretamente em nossa direção.

Eu acho que vou entrar em colapso.

Meu corpo é pior do que instável. A essa altura, minhas pernas são feitas de borracha.

Eu mal posso suportar meu próprio peso, e é um milagre que eu estou segurando J. De fato, basta uma rápida olhada no corpo apertado e insanamente tenso de Warner para perceber que ele está provavelmente fazendo a maior parte do trabalho no momento.

Não sei como algum de nós sobreviverá a isso. Eu não posso me mexer. Eu com certeza não posso lidar com uma onda de fogo.

E eu realmente não entendo tudo o que acontece a seguir.

Eu ouço um grito desumano e Stephan está subitamente correndo em nossa direção.

Stephan. Ele está de repente na nossa frente, de repente entre nós. Ele pega J nos braços como se ela fosse uma boneca de pano e começa a gritar para todos nós corrermos. Castle volta a pegar água de um poço próximo e, embora seus esforços para apagar as chamas não sejam inteiramente bem-sucedidos, é suficiente para nos dar a vantagem de que precisamos para escapar. Warner e eu nos arrastamos de volta ao acampamento com os outros, e no minuto em que cruzamos o limiar para o Santuário, nos deparamos com um mar frenético de rostos. Incontáveis figuras avançam, seus gritos e choros e comoção histérica se fundindo em uma única tempestade sonora ininterrupta. Logicamente, eu entendo por que as pessoas estão aqui fora, preocupadas, chorando, gritando perguntas

sem resposta uma para as outras – mas agora eu só quero que todas saiam do meu caminho.

Nouria e Sam parecem ler minha mente.

Elas emitem ordens para a multidão e os corpos sem nome começam a desaparecer.

Stephan não está mais correndo, mas caminhando velozmente, afastando as pessoas do caminho, conforme necessário, e sou grato. Mas quando Sonya e Sara vêm correndo em nossa direção, gritando para segui-las até a tenda médica, eu quase me lanço para frente e beijo as duas.

Mas não.

Em vez disso, tomo um momento para procurar por Castle, me perguntando se ele conseguiu sair bem. Mas quando olho para trás, examinando nosso trecho de terra protegida, experimento um momento repentino e sóbrio de realização. A disparidade entre aqui e lá fora é irreal.

Aqui, o céu está limpo.

O clima se acalmou. O chão parece ter se suturado novamente. O muro de fogo que tentou nos perseguir de volta ao Santuário agora não passa de fumaça. As árvores estão na posição vertical; o furacão é pouco mais que uma névoa fina. A manhã parece quase bonita. Por um segundo eu poderia jurar que ouvi um pássaro cantando.

Provavelmente estou maluco.

Eu desmaio no meio de um caminho bem gasto que leva de volta às nossas tendas, meu rosto batendo contra a grama molhada. O cheiro de terra fresca e úmida enche minha cabeça e eu respiro, tudo isso. É um bálsamo. Um milagre. Talvez, eu penso. Talvez nós fiquemos bem. Talvez eu possa fechar meus olhos. Ter um momento.

Warner passa por meu corpo caído, seus movimentos tão intensos que me assusto, me endireito e sento corretamente.

Não tenho ideia de como ele ainda está se movendo.

Ele nem está usando sapatos. Sem camisa, sem meias, sem sapatos. Apenas um par de calças de moletom. Percebo pela primeira vez que ele tem um enorme corte no peito.

Vários cortes nos braços. Um corte desagradável no pescoço. O sangue está pingando lentamente em seu tronco, e Warner nem parece notar. Cicatrizes por todas as costas, sangue manchando sua frente. Ele parece louco. Mas ele ainda está se movendo, seus olhos quentes de raiva e algo mais... Algo que me assusta como o inferno.

Ele alcança Stephan, que ainda está segurando J – que ainda está tendo convulsões – e eu rastejo em direção a uma árvore, usando o tronco para me içar do chão. Eu me arrasto atrás deles, vacilando involuntariamente com uma brisa repentina. Eu me viro muito rápido, procurando na floresta aberta por detritos ou uma pedra voadora, e encontro apenas Nazeera, que descansa a mão no meu braço.

— Não se preocupe, — diz ela. — Estamos seguros dentro das fronteiras do Santuário.

Eu pisco para ela. E depois, nas familiares tendas brancas que cobrem toda a estrutura sólida e independente do acampamento glorificado que é esse lugar de refúgio.

Nazeera assente.

— Sim, é para isso que servem as tendas. Nouria aprimorou todas as suas proteções com a luz em algum tipo de antídoto que nos torna imunes às ilusões que a Emmaline cria. Ambos os hectares de terra são protegidos, e o material refletivo que cobre as tendas fornece proteção mais garantida em ambientes fechados.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu perguntei.

Eu pisco para ela novamente. Eu me sinto estúpido. Entorpecido. Como se eu tivesse quebrado algo profundo dentro do meu cérebro. No fundo do meu corpo.

— Juliette, — eu digo.

É a única palavra que tenho agora, e Nazeera nem se incomoda em me corrigir, em dizer que seu nome verdadeiro é Ella. Ela apenas pega minha mão e aperta.


5. ELLA

JULIETTE

Quando sonho, sonho com sons.

A chuva, demorando, estalando suavemente contra o concreto. Chuva, acumulando batidas, até o som se tornar estático. Chuva, tão repentina, tão forte, que se assusta. Sonho com a água rasgando os lábios e a ponta do nariz, a chuva caindo dos galhos em piscinas rasas e escuras. Eu ouço a morte quando as poças se quebram, agredidas por pés pesados.

Eu ouço folhas...

As folhas, tremendo sob o peso da resignação, unem-se aos galhos com muita facilidade, dobram-se. Eu sonho com o vento, comprimentos dele. Jardas de vento, acres de vento, sussurros infinitos se fundindo para criar uma única brisa. Ouço o vento pentear a grama selvagem de montanhas distantes, ouço o vento uivar confissões em planícies vazias e solitárias. Eu ouço o sh sh sh de rios depredados tentando silenciar o mundo em um esforço infrutífero de se silenciar.

Mas

enterrado

no barulho

um grito tão constante que é todo dia não-ouvido. Vemos, mas não entendemos como isso gagueja corações, aperta mandíbulas, enrola os dedos em punhos. É uma surpresa, sempre uma surpresa, quando finalmente para de gritar o tempo suficiente para falar.

Os dedos tremem.

Flores morrem.

O sol recua, as estrelas expiram.

Você está em um quarto, um armário, um cofre, sem chave...

Apenas uma voz que diz

Me mate

 


                                             CONTINUA