Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JOGOS DO PRAZER / Madeline Hunter
JOGOS DO PRAZER / Madeline Hunter

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

A bela Roselyn Longworth já aceitou seu destino. Depois que o irmão fraudou o banco em que era sócio e fugiu do país levando o dinheiro dos clientes, suas finanças ficaram arruinadas, assim como suas chances de conseguir um bom casamento. Por isso foi fácil acreditar nas falsas promessas de amor de um visconde. Mas a desilusão não demorou a chegar: depois que Rose não se sujeitou a seus caprichos na cama, o nobre se vingou leiloando-a durante uma festa em sua mansão. Ela acredita que o destino lhe reserva um fim trágico. Ainda mais quando é arrematada por Kyle Bradwell, um homem que venceu na vida pelo próprio esforço, mas não é bem-vindo nos círculos mais exclusivos. Mas a jovem é surpreendida pelo comportamento dele, que a trata com um respeito e uma gentileza que ela não recebia desde antes do escândalo envolvendo o irmão. Quando Rose finalmente descobre o que está por trás do comportamento de Kyle, é tarde demais: já foi fisgada pelo homem que conhece seus segredos mais íntimos.

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1

Roselyn Longworth refletiu sobre sua desgraça.

O inferno não era feito de fogo e enxofre, concluiu. Era feito de um cruel autoconhecimento. No inferno, você aprende a verdade sobre si mesmo. Enfrenta as mentiras
que disse à própria alma para justificar um erro.

O inferno era também a humilhação infinita, exatamente o que ela sentia naquela festa numa casa de campo.

Ao redor, os outros convidados de lorde Norbury riam e brincavam enquanto aguardavam o chamado para o jantar. No dia anterior, ao chegar na carruagem de lorde Norbury,
descobrira que a lista de convidados não era o que ela esperava. Os homens faziam parte da sociedade culta, mas as mulheres...

Um grito interrompeu seus pensamentos. Uma mulher que usava um espalhafatoso vestido de noite azul-safira fingia afastar o homem que a agarrava. Os outros incentivavam
o companheiro. Até Norbury fazia isso. Após a falsa resistência, a cativa se rendeu a um abraço e um beijo que não deveriam ser dados em público.

Roselyn avaliou os rostos maquiados e as roupas exageradas das mulheres. Os homens não tinham trazido suas esposas. Não tinham sequer levado suas amantes refinadas.
Aquelas mulheres eram prostitutas dos bordéis de Londres. Ela desconfiava que algumas nem ao menos teriam esse status.

E ela estava no meio.

Não podia negar a dura conclusão a que isso levava. Os homens trouxeram suas prostitutas e lorde Norbury trouxera a dele.

Como ela podia ter interpretado tão mal os fatos ocorridos havia um mês? Tentou se lembrar do dia em que lorde Norbury lhe fizera os primeiros elogios e propostas,
mas a recordação se fora, virara cinzas diante da chama impiedosa da realidade das últimas 24 horas.

De repente ele passou por entre seus convidados, vindo na direção dela. A cada passo, aumentava um pouco o brilho nos olhos dele. Antes ela via neles chamas de amor
e paixão. Naquele momento, enxergava apenas reflexos gélidos.

Tinha sido uma idiota, patética.

- Está muito calada, Rose. Passou o dia todo assim.

Ele se aproximou, assomando ao lado da cadeira dela. No dia anterior, ela teria ficado feliz em receber a atenção dele e julgaria romântico seu gesto.

Burra, burra!

- Pedi que me deixasse ir embora. Só estou nesta sala porque o senhor exigiu que eu descesse para o jantar, portanto não reclame por não me envolver nas brincadeiras
da sua festa. Não me interesso pelas pessoas que estão aqui, nem pelo comportamento libertino que demonstram.

No canto da sala, o casal enlaçado já não notava o mundo ao redor, ainda que o mundo percebesse a apalpação deles.

- Nossa, como é orgulhosa. Muito mais do que deveria.

A observação tinha um toque cruel. Ela sentiu a nuca formigar.

Ele não se referia apenas à opinião dela sobre a festa. Rose havia recusado algumas coisas na noite anterior. A princípio nem entendera o que ele queria e não escondera
seu espanto quando ele lhe explicara.

Em questão de minutos, o amante afetuoso e generoso se transformara no comprador zangado e cheio de desprezo. Frio. Duro. Mesquinho. Transformara-se num homem que
pagara mais do que deveria por um bem e depois descobrira o engano.

Ela ficou com o rosto quente ao se lembrar da sórdida cena no quarto, antes que ele saísse. Pensava que era a amada, a amante. Ele deixara claro que a considerava
uma prostituta como outra qualquer. As palavras mordazes tinham sido como tapas que a despertaram de uma ilusão criada por sua solidão e falta de esperança.

- Se sou muito orgulhosa, chame a carruagem e me deixe partir. Seja gentil e permita que eu mantenha o pouco que me resta desse orgulho.

- Mas eu ficaria sem uma mulher. Vou parecer idiota em minha própria casa.

- Diremos que adoeci. Diremos que...

Ele colocou a mão no ombro dela, fazendo-a calar-se. Apertou com firmeza, para machucar. Ela tentou conter um tremor de repulsa por ter aquela mão em sua pele.

- Não vamos dizer nada. Você não vai a lugar nenhum. Espero que continue a demonstrar gratidão por minha generosidade. Se me agradar, podemos continuar com nosso
acerto. Você gosta de vestidos e enfeites, Rose. Quer ter o luxo e o conforto que perdeu após a ruína de sua família.

Ela sentiu a garganta apertar. Piscou, afastando as primeiras lágrimas do dia.

- O senhor entendeu errado.

- Você me concedeu seus favores e sua inocência. Aceitou meus presentes. Não entendi errado coisa nenhuma.

Ele se inclinou, pondo o rosto a centímetros do dela. Rose conteve a vontade de afastar aquela cara vermelha, os olhos claros e os cabelos louros que antes eram
de um homem a quem respeitava. Tinha até se convencido de que ele era bonito.

- Pelo menos agora nos entendemos, não é? - disse ele, fazendo a frase soar como uma exigência, e completou: - Esta noite não haverá mais melindres infantis.

Ela sentiu o estômago revirar.

- Já houve muitos mal-entendidos e acredito que continue havendo. Passei o dia inteiro pedindo para ir embora porque não acontecerá nada esta noite.

A boca de Norbury formou uma linha tão dura que ela se sentiu aliviada por haver outras pessoas ali. A mão no ombro forçou o aperto.

- Está pondo a paciência de um homem à prova, Rose.

De novo, ela sentiu um formigamento na nuca, que dessa vez se espalhou pela coluna. Examinou o rosto dele em busca do homem jovial que até pouco ela pensava que
a amasse. Não encontrou nada. Claro que não. Aquele homem nunca existira.

Um pequeno distúrbio quebrou a batalha silenciosa travada entre eles. O mordomo se aproximava. Norbury pegou o cartão que ele trazia numa salva de prata. Leu-o e
se afastou.

Abriu as portas que davam para a biblioteca. Antes que se fechassem, Rose viu de relance um homem alto, de cabelos negros, à espera.

Sentiu novamente o estômago revirar. Tentou conter o pânico que ameaçava invadi-la.

Mais uma vez, tinha sido burra. Ignorante e cega. O que acabara de enfrentar não era nada. A verdadeira descida ao inferno aconteceria à noite.

 

Ao entrar na biblioteca, Norbury parecia zangado. Kyle Bradwell, que o esperava, vislumbrou a sala de visitas antes que as portas se fechassem.

- Bradwell. Pensei que viesse mais cedo.

- Os inspetores demoraram mais do que o esperado - explicou Kyle e então fez um gesto em direção à sala e comentou: - Está dando uma festa. Posso voltar amanhã.

- Bobagem. Já está aqui. Vejamos o que trouxe.

O rosto de Norbury se abriu num sorriso supostamente encorajador.

Kyle desconfiou que a irritação não tivesse sido motivada pela hora da visita. Como quase todos os homens de sua posição social, o visconde de Norbury, filho e herdeiro
do conde de Cottington, não gostava de ser contrariado. Julgava que todos, menos os seus pares, tinham obrigação de concordar com tudo o que ele fizesse ou dissesse.
Pelo jeito, alguém ali não seguira essa norma.

Kyle abriu um grande rolo de papel em cima da escrivaninha. Norbury se debruçou sobre o mapa. Olhou-o com atenção e apontou para uma parte vazia próxima de um riacho.

- Por que não há nada aqui? Podemos construir mais uma casa e de bom tamanho.

- Seu pai não quer mais uma casa que possa ser vista dos fundos do solar principal. Por causa do riacho, não há como aproveitar o terreno sem que uma casa fique...

- Ele não está em condições físicas ou mentais de decidir essas questões. Você sabe. Por isso ele me passou a administração dos negócios.

- O terreno continua sendo dele, que me deu ordens diretas.

Sem dúvida, a irritação de Norbury agora era motivada por Kyle.

- É típico dele. Concorda em dividir uma de nossas propriedades em pequenos lotes para satisfazer seus amigos arrivistas e depois se preocupa com o futuro do velho
solar. Nunca o usamos, então por que se preocupar? Quero que construa mais uma casa aqui. Será a melhor e a mais cara do local.

Kyle não queria discutir, mas viu que seria obrigado. Norbury não entendia nada sobre loteamento de terras. Não sabia dizer qual a melhor área, muito menos os valores
que seriam acertados. A família dele forneceria apenas o terreno e lucraria bastante. Os únicos riscos seriam assumidos por Kyle e pelos outros investidores do grupo
que construiria aquelas casas e estradas.

- Talvez considere insensatas as vontades de seu pai, mas não perdemos nada em atendê-las. Os compradores não gostariam de ter vista para o solar, da mesma forma
que a sua família não gostaria de ver a casa dos compradores. Além disso, para construí-la, teremos que dar continuidade a esta estrada aqui, que atravessaria mais
dois lotes e reduziria o valor deles.

Norbury olhou o dedo de Kyle percorrer o mapa. Não gostava de estar errado. Nenhum homem gostava.

- Bom, Kyle, suponho que vá funcionar do jeito que está - disse, por fim.

Aquilo soou como se o visconde concordasse, mas Kyle sabia que cada palavra tivera um motivo para ser usada. "Do jeito que está" dava a entender que poderia ter
ficado melhor. "Suponho" era um lorde dando sua aprovação de má vontade. E chamá-lo de Kyle tinha sido a escolha de palavras mais condescendente de todas.

Os dois se conheciam muito bem. Tinham se encontrado muitas vezes na vida, desde meninos. Mas, mesmo se um gostasse do outro, o que não era o caso, as origens bem
diversas e uma antiga hostilidade mostravam que jamais seriam amigos. Norbury se esforçava para que não ocorressem suposições erradas quanto a isso. A forma de tratamento
era uma maneira de colocar o arrivista em seu lugar, que era bem abaixo do conde de Cottington ou do visconde de Norbury. Evidentemente, Kyle não podia retribuir
aquela informalidade.

- Vejamos o projeto das casas - sugeriu Norbury.

Usar o verbo no plural era mais uma forma de arrogância.

Kyle desenrolou vários projetos. Levando em conta o humor de Norbury, concluiu que sua suspeita estivesse certa. Alguém na sala de visitas tinha atingido o orgulho
do anfitrião.

Isso não era difícil. Norbury tinha um jeito jovial na maior parte do tempo, mas era temperamental às vezes. E também não era muito inteligente. De vez em quando
era preciso mostrar-lhe o óbvio, como os problemas em lotear aquela parte do terreno. Infelizmente, Norbury podia se tornar mesquinho quando percebia que tinha sido
idiota ou bancado o tolo.

O clima ficou mais amistoso quando discutiram a localização dos cômodos e quantos quartos de empregados as casas deveriam ter. Kyle fingiu concordar quando Norbury
disse que qualquer pessoa precisava de uma dúzia de criados para ter o mínimo de conforto.

- Invejo esse seu talento - admitiu Norbury com um suspiro, apontando para um dos projetos. - Eu deveria ter estudado isso. Se não fosse a minha origem, talvez o
mundo hoje tivesse outro arquiteto do porte de Christopher Wren. Mas tenho obrigações a cumprir, não é?

Mesmo sem achar graça, Kyle sorriu enquanto enrolava os projetos.

- Então nos vemos em Londres, como combinado. Levarei os projetos finais para nossa reunião.

- Imagino que teremos uma longa tarde. Até lá, receberemos notícias da França a respeito de Longworth e o grupo fará uma primeira reunião para decidir nosso posicionamento.

- Espero que terminemos logo com isso. É um obstáculo.

- Fique tranquilo, haverá justiça. Estamos todos empenhados.

Num momento de gentileza, que ocorria de vez em quando, Norbury o ajudou a amarrar os projetos com fitas.

Kyle fez menção de ir embora, porém notou que o dono da casa o observava.

- Sua sobrecasaca não está tão ruim, considerando-se que você esteve no campo hoje.

- Eu não estava fazendo cercas vivas.

- Aliás, bela sobrecasaca. Eu diria que é mais do que apropriada.

- Faço o possível.

- Eu quis dizer mais do que apropriado para sentar-se à mesa conosco - explicou o visconde e então fez sinal em direção à sala. - Mandei o mordomo chamar os convidados
e avisar que eu iria ao encontro deles assim que terminássemos. Você também pode vir.

Norbury se encaminhou para a porta como quem esperasse ser seguido.

- Vai se divertir na festa - falou.

Sendo um homem de negócios, Kyle nunca perdia uma oportunidade de manter contato com pessoas ricas e de alta posição social. Os cavalheiros também não se incomodavam
em recebê-lo. No final, o dinheiro fala mais alto que o sangue e ele tinha talento para fazer os ricos ficarem mais ricos.

Seguiu Norbury até a sala de jantar. Os sons abafados de uma festa animada se transformaram num rugido quando a porta foi aberta.

Kyle deu uma olhada no grupo e percebeu que não faria qualquer contato de negócios naquela noite. Os homens podiam ser da nata da sociedade, contudo as mulheres,
não. Eram prostitutas vulgares, extravagantes e muito maquiadas. As pessoas já estavam bêbadas o bastante para terem perdido qualquer pudor.

Menos uma das mulheres.

Uma loura de incrível beleza e elegância estava sentada perto da extremidade oposta da mesa. Parecia não tomar conhecimento dos outros convidados. Olhava para o
nada e tinha uma expressão de passividade.

Tudo nela, da pluma discreta na cabeça ao vestido de noite vermelho e o porte que a fazia tão séria e digna, destacava-a dos homens e mulheres que tinham perdido
toda a compostura.

Ele a reconheceu. Vira-a pela primeira vez no teatro, fazia dois anos. Depois de notar seu lindo rosto, mal conseguira acompanhar o que se passava no palco.

Kyle olhou para Norbury:

- O que a irmã de Timothy Longworth está fazendo aqui?

- Eu a seduzi. Nem precisei me esforçar muito, na verdade. Parece que o sangue ruim está em toda a família. Mas já desfrutei de um pouco de justiça enquanto aguardo
a queda daquele patife.

 

Roselyn desejou que o cavalheiro recém-chegado tivesse trazido alguma notícia que obrigasse lorde Norbury a se ausentar por dias.

Teve náuseas quando Norbury voltou para a festa. Sentiu um arrepio de repugnância ao vê-lo percorrer a mesa em direção à cadeira vazia ao lado dela.

Notou que duas pessoas perceberam sua reação. O homem alto e moreno que saíra da biblioteca junto com Norbury olhara para ela no momento em que se sentava à extremidade
oposta da mesa. Uma mínima mudança na expressão dele dera a entender que havia notado sua repulsa.

Em frente a ela na mesa, uma mulher chamada Katy também notara. Seus olhos brilhantes viram Norbury se aproximar, depois encontraram os de Rose, com empatia.

Rose se agarrou a uma satisfação presunçosa de que a moça também estivesse sendo mantida ali à força. Mas Katy sorriu, solidária. Os homens ao redor dela estavam
todos conversando e ela se inclinou para a frente de forma discreta.

- As coisas vão mal, não é?

Era uma avaliação tão sutil do que Rose vinha enfrentando que quase a fez rir.

- É, vão.

Katy balançou a cabeça, irritada.

- Ele devia saber e você também. Não combinaram as condições, não é? Precisa fazer isso no começo, não importa onde ele a tenha conhecido. Do contrário, as coisas
ficam ruins.

- Parece que sim.

Norbury tinha parado para falar com um amigo, mas dali a pouco estaria na cadeira ao lado dela.

- Olhe, os homens são como crianças. Se a mamãe disser que não vão ganhar doce se não obedecerem, eles obedecem. Claro que alguns, não. Há sempre os que fazem a
mamãe chorar, mas a maioria sabe como conseguir o que quer. Não é preciso magoar uma garota, se outra vai fazer com prazer o que ele deseja pelo mesmo preço, não
é?

Rose não podia competir com a experiência e a objetividade de Katy. Notou que Norbury se aproximava e se empertigou.

Katy examinou o vestido e o penteado dela.

- Se você quiser, podemos trocar. George, este aqui ao meu lado, é fácil e, se pagarem bem, tipos como o seu lorde não me incomodam.

- Obrigada, mas não quero ficar com George. Não quero nenhum. Eu quero...

- Vejo que finalmente se dignou a falar - comentou lorde Norbury ao se sentar ao lado dela. - Que bom. De nada adiantaria estragar a festa.

Os olhos de Katy mostravam que sua oferta estava de pé. Rose olhou para George. O corpulento irmão de um barão percebeu e sorriu, satisfeito.

Katy concluiu que isso bastava e se pôs a flertar com lorde Norbury. Rose começou a pensar desesperadamente numa estratégia, caso houvesse de fato uma troca de pares.

O homem que tinha entrado na sala com Norbury olhou para ela. Parecia maior e mais forte do que aqueles cavalheiros bêbados, mas talvez fosse só ilusão dela, pelo
fato de ele estar sóbrio. Sentou-se ao lado de uma das mulheres e, de vez em quando, falava com ela e com o homem à frente na mesa. Mas a maior parte do tempo ele
apenas observava os demais convidados enquanto jantava.

O rosto dele não tinha qualquer refinamento ou suavidade, mas era bonito. Não usava smoking, o que não fazia muita diferença na extrema informalidade do ambiente.
O traje que usava era irrepreensível. Devia ter pedido ao alfaiate uma roupa cara, de corte e tecido que agradassem a todo mundo.

Katy parecia estar tendo sucesso em seduzir lorde Norbury. Porém, ainda que fizesse insinuações chocantes para Katy, o lorde continuava atento a Rose. Em vão, ela
tentava adivinhar os pensamentos dele. Era óbvio que estava tramando algo.

O visconde se levantou para se dirigir aos convidados. Aos poucos, eles se calaram.

- Imagino que alguns aqui não conheçam uma das pessoas presentes - começou ele. - Gostaria de apresentá-la.

Rose imaginou que ele apresentaria o homem que estava na extremidade da mesa. Em vez disso, Norbury estendeu a mão para ela.

- Levante-se, minha cara.

Ela não podia fazer outra coisa senão se levantar. Todos os olhos se fixaram nela. Os únicos sóbrios pertenciam ao convidado que chegara por último.

- As lindas moças devem estar se perguntando por que esta dama orgulhosa está no meio de vocês - disse Norbury. - A Srta. Longworth tem um irmão que não é capaz
de honrar as próprias dívidas, que não são poucas. Ela tem berço, mas não o suficiente: o dinheiro acabou faz tempo e os parentes estão longe demais para fazerem
diferença. Por acaso, seu último tropeço a fez cair na minha cama e talvez tenha sido uma queda no precipício. Ela preferiu presentes a dinheiro, assim pôde fingir
que os fatos não eram o que eram. E imaginou coisas românticas quando propus apenas uma boa troca.

Rose trincou os dentes para não chorar nem gritar. Todos a olhavam, rindo. Até Katy. As prostitutas assentiam. Sim, a Srta. Longworth era o tipo de dama que gosta
de fingir. Aquelas mulheres que nunca fingiam também não tinham muita empatia.

Não, nem todos os presentes olhavam para ela. O último convidado parecia não ouvir o que se passava. Bebia de sua taça de vinho como se pouco se importasse.

- Bom, o fato é o seguinte: estou com essa mulher, mas me cansei dela - declarou Norbury. - Lastimo a indulgência com que a tratei e os presentes que a tornam tão
linda no meio de vocês. Na verdade, estou interessado em outra.

Ele olhou para Katy, que tentou parecer pudica e surpresa.

- George, este aqui ao meu lado, deve estar achando que vai haver uma simples troca. Não se acanhe, George, percebi o seu flerte. Mas talvez eu possa compensar minhas
perdas nesse vestido e no restante. Então, o que acham, senhores? Posso leiloar a Srta. Longworth?

Os presentes acharam que um leilão seria bem divertido. Risos e gritos ecoaram enquanto todos se preparavam para uma ótima atração.

Rose não conseguiu disfarçar o choque. Virou-se para Norbury, de forma que ele percebesse sua reação, o que só serviu para aumentar a satisfação dele.

- Não vou aturar essa afronta!

Ela afastou a cadeira e se virou para sair. Foi impedida por alguém que a segurou pelo braço.

- Ela é espirituosa e precisa ser domada, senhores. Só isso, para alguns de vocês, já valeria uns xelins a mais.

Norbury apertou o braço dela com força. Apesar do sorriso, o olhar continha uma ameaça.

Alguns homens se aprumaram para ver melhor. Ela ficou enojada por se sentirem atraídos por uma mulher que seria tomada à força.

- Vejamos. Acho que devo exibi-la um pouco, não?

Norbury fingiu refletir.

Ela queria bater nele. Não, queria matá-lo. Tentou puxar o braço, mas ele apertou ainda mais os dedos.

- Você não vai fazer isso.

O visconde a ignorou.

- Bom, como podem ver, ela é linda. Sempre a considerei uma das mulheres mais bonitas de Londres.

- Essa beleza não vai durar muito - avisou uma prostituta. - Ela deve ser alguns anos mais velha que eu.

- É verdade que é uma mulher madura, mas o homem que a dominar poderá desfrutar bastante até que sua beleza encantadora acabe.

Ele coçou a cabeça.

- Por uma questão de justiça, preciso falar nos defeitos também, não? Como fazer isso de maneira delicada? Não tem jeito. Sou obrigado a informar que ela não é muito
participativa, o que os senhores devem saber o que significa.

Ela tentou se agarrar à raiva para não desmaiar. Ainda assim, os rostos pareciam se multiplicar e se mover, até que ela se visse diante de uma centena de máscaras
cheias de malícia.

- Devo dizer também que, como ela começou tarde, ainda tem o que aprender.

Meu Deus!

- Posso dar umas aulas - ofereceu-se uma prostituta, segura.

Norbury fez uma reverência para ela.

- Minha cara, no livro da erudição carnal, você está redigindo o capítulo vinte e a Srta. Longworth ainda não chegou a ler o dois. Há homens que gostam de ensinar
e são esses que devem abrir suas carteiras.

Rose se recusou a reagir. Isso atiçou o interesse de mais alguns. Norbury apertou os dedos ainda mais, a ponto de quase entorpecer o braço dela.

- Mas devo admitir algumas qualidades - emendou ele. - Primeiro: ela não é gananciosa. Segundo: para aqueles que, como eu, foram prejudicados pela falência do irmão
dela, seus favores são uma compensação...

Pasma outra vez, não conseguiu continuar indiferente. Virou-se para encará-lo. Não imaginava que tivesse sido essa a motivação dele. Não mesmo. Tinha se enganado
quanto a tudo. Fora assediada e seduzida por vingança.

Canalha!

- E terceiro: para alguém de pele tão clara, ela tem os mamilos escuros mais eróticos do mundo.

Os homens ficaram loucos. Em meio a gritos, alguns exigiam ver o que Norbury acabara de alardear.

Ela falou de maneira que só ele pudesse ouvir:

- Nem pense em me aviltar ainda mais com isso. Se ousar, ficarei feliz em ir para a forca por agredi-lo violentamente.

O sorriso de lorde Norbury fraquejou. Ele iniciou o leilão.

- Dou 25 libras - ofereceu George.

- Trinta!

- Trinta e cinco - rebateu George, após uma demora deselegante.

- Cinquenta!

- Sessenta - falou um homem de olhar furtivo.

Rose o reconheceu. Era Sir Maurice Fenwick. Ficou horrorizada com o interesse dele. Era pouco provável que sua vontade fizesse diferença para aquele homem.

- Sessenta e cinco! - ofertou George num tom decidido.

- Setenta!

- Setenta e cinco - contrapôs, imediatamente, Sir Maurice.

- Novecentas e cinquenta libras.

O lance calmo, sem exasperação, pareceu vir do nada.

Um silêncio pasmo pairou por um longo instante no ambiente, depois um zunido baixo se espalhou pela sala. Todos tentavam descobrir qual dos bêbados tinha perdido
a cabeça.

Roselyn ficou tão perplexa quanto os demais. E muito preocupada. Uma coisa era recusar-se a um homem que pagara 75 libras. Mas um homem que gastara 950 libras certamente
exigiria mais dela.

A atenção da festa se fixou na mesa, onde o último convidado a chegar bebia seu vinho.

Lorde Norbury franziu o cenho para ele.

- Novecentas e cinquenta, Bradwell? Deve ter se enganado.

O convidado chamou um criado e falou algo que os demais não ouviram. Depois olhou bastante sóbrio para o dono da casa.

- De maneira alguma. Mas fiquem à vontade para continuar os lances.

Norbury percorreu a mesa com o olhar, mas a quantia tinha tirado o ânimo dos demais para o leilão. O Sr. Bradwell aguardava como quem não tem pressa. Parecia mais
interessado em admirar os castiçais da mesa do que em acompanhar a brincadeira em que tinha entrado.

Quando o silêncio ficou demasiado, ele se levantou e caminhou pela sala.

Rose reparou em seu porte e suas maneiras. Seu instinto a alertou de que estaria melhor com o corpulento e alegre George, ou até com o perigoso Sir Maurice. E melhor
ainda com lorde Norbury, que, como a jovem acabara de descobrir, havia levado a sério sua ameaça de se tornar violenta.

Não encontrou nada visivelmente ruim no Sr. Bradwell. Os trajes eram apresentáveis e elegantes, os cabelos negros e ondulados eram ainda mais eficientes que o lance
que ele dera em indicar que se tratava de um homem rico. O rosto parecia grosseiro à luz das velas. Se alguém dissesse que era bonito, como de fato era, acabaria
acrescentando "a seu modo".

A pele tinha mais cor que a dos outros homens presentes, como se ele passasse muito tempo ao ar livre; o desenho da roupa mostrava que ele gostava de esportes. Tanto
seu corpo alto como seus movimentos suaves e seguros demonstravam força.

Não havia nada especialmente ameaçador nele; mesmo assim, ela se assustou. Parecia que o ar se movimentava para abrir espaço para ele. As ondas formadas por esse
movimento a atingiram e ela teve vontade de se esgueirar por elas. Sua preocupação era similar à que se sente ao encontrar cães desconhecidos na estrada. O instinto
lhe dizia que seria sensato evitar aquele animal.

Ele ficou ao lado de Norbury e seu rosto foi iluminado pelos castiçais. Ela notou os olhos mais azuis que já vira. Aquelas duas piscinas profundas não olharam para
Rose. Fixaram-se no homem que continuava a segurar o braço dela como por vício.

- Terminamos? - perguntou em voz baixa o Sr. Bradwell. - Ou ainda quer buscar um martelo?

Ainda que Bradwell pudesse estar se referindo a encerrar o leilão batendo o martelo, lorde Norbury achou que o homem aludisse à forma agressiva como ele mantinha
Roselyn. Ruborizou.

- Você perdeu a cabeça ao oferecer tanto dinheiro.

- Sem dúvida, mas se um homem não pode perder a cabeça por uma linda mulher, para que serve o dinheiro?

- Você só fez isso para... - Norbury se conteve antes de terminar a acusação petulante e raios gélidos iluminaram seus olhos. - Veja aonde seu orgulho a levou, Rosie.
Passou de um visconde para um homem vindo das minas de Durham. Sua decadência pode ser a mais rápida da história da prostituição.

O Sr. Bradwell não reagiu à agressão.

- Pode soltá-la agora. Ela vem comigo. O dinheiro será entregue em sua residência de Londres em dois dias.

Lorde Norbury a soltou. Rose viu as marcas dos dedos dele no braço. O Sr. Bradwell também as percebeu. Uma leve irritação se fez notar em sua expressão calma, uma
energia animal até então contida deixando-se transparecer. Não era um homem que apreciasse danos à sua propriedade.

- Está ansioso, não? - perguntou Norbury, em tom alto, para que os demais apreciassem o desfecho.

- De maneira alguma - respondeu o Sr. Bradwell. - Venha comigo, Srta. Longworth.

Ela não queria ir. Achava que, uma vez que estivessem a sós, ele não continuaria a se comportar como um cavalheiro. Sentiu o estômago revirar quando imaginou o que
a aguardava.

Ele se inclinou sobre ela. Céus, ia beijá-la! Bem ali, na frente de todos.

O beijo não passou de um hálito quente, mas a sala de jantar explodiu em aplausos e assobios. Enquanto os rostos estavam próximos, ele lhe recomendou, falando em
seu ouvido:

- Não resista. Eles já se divertiram demais à sua custa. Tenho certeza de que não quer que continuem.

A moça não teve escolha senão aceitar a companhia do Sr. Bradwell. Do contrário, ele cumpriria a ameaça de divertir ainda mais os presentes. Juntou o pouco de dignidade
que ainda lhe restava e se preparou para enfrentar a batalha que viria a seguir. E acompanhou o homem que comprara seu bilhete de saída dali.

 

CAPÍTULO 2

A Srta. Longworth seguiu ao lado dele como uma rainha. Kyle ficou admirado por ela disfarçar tão bem a humilhação. Só ele percebeu seus olhos úmidos.

Ela quase desabou quando as portas se fecharam. Quase. Parou por um bom tempo, respirou fundo e prosseguiu.

Mas em nenhum instante o encarou. Claro. Agora se encontrava numa situação muito vulnerável. Os dois sabiam que estava à mercê dele. A quantia oferecida no leilão
dava bons motivos para ela se preocupar.

Novecentas e cinquenta libras. Tinha sido um idiota. Contudo a outra opção teria sido deixar aquele leilão sórdido prosseguir. E o gordo e dócil George não teria
ganhado.

Sir Maurice Fenwick estava disposto a possuí-la e a maneira como examinou o produto à venda não demonstrou boas intenções. Ele era famoso por seus excessos.

- Mandei vir minha carruagem - disse ele. - Vá até seus aposentos com este criado. Ele carregará sua bagagem. Seja rápida.

Ela se empertigou mais.

- Não vou levar nada - anunciou. - Tudo o que está lá em cima foi obtido da forma errada e não quero levar nada que faça lembrar quem deu.

- A senhorita mais que pagou as roupas e joias. É bobagem deixá-las para trás.

O rosto delicado continuou calmo e perfeito, mas o brilho nos olhos dela o fizeram imaginar que a noite, que já estava ruim, poderia piorar.

- Faça como quiser - disse ele.

Kyle retirou num gesto a sobrecasaca, que colocou sobre os ombros dela. Fez sinal com a cabeça para que o acompanhasse.

- Não vou com o senhor.

- Vai, sim. E agora, antes que Norbury desista de deixá-la sair.

Ela olhava para um ponto além de Kyle, como se ele fosse apenas um obstáculo para o que ela tentasse ver.

Kyle admirou o orgulho dela. Porém, naquele momento, ele seria inadequado e um estorvo. Pensou se Roselyn tinha consciência do perigo que correra na casa. Que ainda
corria.

- O senhor certamente sabe que não concordei com aquele espetáculo, Sr. Bradwell.

- Não? Ora, maldição, estou desapontado.

- O senhor parece se divertir. Tem um senso de humor peculiar.

- E a senhorita escolheu hora e local errados para essa conversa.

Ela não saiu do lugar.

- Se eu for com o senhor, aonde vai me levar?

- Talvez a um bordel, para recuperar o que vou pagar a lorde Norbury. Perder o dinheiro e o prêmio não é justo, concorda?

De repente ela o encarou. Tentou olhá-lo com desdém, mas o medo que demonstrou bastou para que Kyle se arrependesse da resposta cruel.

- Srta. Longworth, temos de ir. Prometo que vai ficar em um lugar seguro.

E reforçou isso passando o braço por trás dos ombros dela e a empurrando levemente para deixarem o hall de entrada.

Conseguiu levá-la até a porta da carruagem antes que ela reagisse. Então ela parou, congelada, e olhou para aquele transporte escuro e fechado. Ele se obrigou a
ter paciência.

De repente, a sobrecasaca o atingiu no rosto. Quando a afastou com as mãos, viu a Srta. Longworth correndo na estrada, noite adentro. Os cabelos louros e o vestido
faziam com que ela parecesse um sonho que se esvai.

Provavelmente, Kyle devia deixar que ela fosse embora. Só que não havia para onde, sobretudo com aqueles frágeis calçados que as mulheres usavam em jantares elegantes.
A cidade ou o solar mais próximos ficavam a quilômetros de distância. Se alguma coisa acontecesse a ela...

Jogou a sobrecasaca dentro da carruagem, mandou o cocheiro acompanhá-lo e foi atrás da moça.

- Srta. Longworth, não posso deixá-la sozinha. Está escuro, o caminho é perigoso e faz frio.

Ele não aumentou muito a voz, mas ela o ouviu bem. Virou a cabeça para saber a que distância estava.

- Prometo que estará segura comigo.

Ele apressou o passo, mas ela também, e virou em direção a um bosque que margeava a estrada.

- Perdoe a minha brincadeira cruel. Volte e entre na carruagem.

Ela disparou para o bosque. Se entrasse nele, Bradwell levaria horas para encontrá-la. As árvores de copas densas não deixavam entrar muito luar.

Pondo-se a correr, ele se aproximou rápido. Ela acelerou ao ouvir o som das botas dele se aproximando. O cheiro do medo chegou até ele em meio à brisa fria.

Ela gritou quando foi pega. Reagiu atacando-o furiosamente a unhadas, que atingiram seu rosto.

Agarrou as mãos dela, forçou-as para trás e as manteve assim com a mão esquerda. Com o braço direito, prendeu o corpo da jovem contra o dele.

Ela gritou de raiva e indignação. A noite engoliu os sons. Contorceu-se e se debateu como louca. Ele a segurou com mais firmeza.

- Pare com isso! - ordenou. - Não vou machucá-la. Disse que está segura comigo.

- Mentira! É um canalha igual a eles!

De repente, ela parou. Encarou-o. A luz da lua deixava ver a raiva e angústia dela, mas seu olhar permanecia firme.

Então ela colou mais o corpo ao dele. Ele sentiu os seios encostados em seu tronco. O contato o surpreendeu. Ele reagiu como qualquer homem, na hora. A ereção roçou
na barriga dela.

- Está vendo, é igual a eles - acusou Roselyn. - Eu seria uma tola de confiar no senhor.

Ele mal a ouviu. O rosto dela era lindo à luz do luar. Hipnotizava. Um instante se passou sem que ele pudesse se recordar do que o levara àquele abraço cruel. Tudo
o que percebia eram os pontos em que se tocavam e a suavidade do corpo que ele segurava. Foi como se um trovão reverberasse na cabeça dele.

A expressão dela se suavizou. Uma adorável surpresa fez os olhos dela se arregalarem. Os lábios se entreabriram levemente. Ela não reagiu mais, tornou-se uma mulher
totalmente dócil em seus braços.

Ela se esticou para o beijo que ele queria dar e a luz da lua destacou ainda mais a perfeição de seu rosto.

Mas, de súbito, destacou também os dentes prestes a mordê-lo.

Ele afastou a cabeça a tempo. Ela aproveitou para tentar fugir novamente.

Xingando-se por ter sido idiota outra vez, ele se abaixou e a jogou no ombro. Ela socou as costas dele. E foi mandando-o para o inferno até chegarem à carruagem.

 

Kyle Bradwell jogou Roselyn dentro da carruagem e se acomodou no assento de frente para ela.

- Ataque-me de novo e lhe dou umas palmadas. Não sou uma ameaça para a senhorita e de forma alguma permitirei que me arranhe ou me morda depois de ter pago uma fortuna
para livrá-la de homens perigosos.

Ele não teve como saber se foi sua ameaça que surtiu efeito ou se Roselyn simplesmente desistiu. A carruagem partiu. Ele achou a sobrecasaca no meio de rolos de
projetos e a entregou à jovem.

- Vista isso para não sentir frio.

Ela obedeceu. Por quilômetros de silêncio, o ambiente se encheu de medo e apreensão.

- Foi um preço alto: 950 libras em troca de nada - disse ela, por fim.

- A opção era deixar que outro pagasse bem menos em troca de alguma coisa, não?

Ela pareceu se encolher dentro da sobrecasaca.

- Obrigada. - O agradecimento saiu numa voz trêmula e fina.

Ela não estava chorando, embora tivesse motivos para isso. O orgulho que ele tanto admirara meia hora antes agora o irritava. Os arranhões ardendo no rosto deviam
ter algo a ver com isso.

Pensou se ela havia entendido as consequências daquela noite. Tinha escapado dos abusos de um homem, mas não escaparia dos danos ao seu nome quando todos soubessem
da festa e do leilão. E não tinha dúvida de que todos saberiam.

Talvez agora, na calmaria pós-tempestade, ela estivesse avaliando os próprios prejuízos, como Kyle avaliava os dele. Norbury ficara irritado com sua intromissão.
Não gostara de ter seu divertimento prejudicado e sua vingança, incompleta. O conde de Cottington podia ser o patrocinador, mas era o filho quem tinha a influência
e usava o dinheiro.

- Desculpe por ter me descontrolado.

- Depois do que passou, é compreensível.

Ele ainda ficava impressionado com sua habilidade em escolher as palavras para manter uma conversa educada. Virara algo natural para ele, mas às vezes sua verdadeira
natureza ainda lhe vinha à cabeça: É para se desculpar mesmo.

- Tive muita sorte de o senhor chegar. Fico feliz por haver na festa um homem sóbrio, que se horrorizasse com o que Norbury estava fazendo e que fosse imune às más
intenções dele.

Ah, ele se horrorizara, mas não fora tão imune. Afinal de contas, tinha pagado uma enorme quantia.

Imaginou o que teria comprado se não fosse tão desgraçadamente correto. Aquele abraço na trilha podia fazer a fantasia passageira ficar bem real.

Ficou contente por estar escuro, de forma que ela não pudesse enxergar suas feições e adivinhar seus pensamentos. Também não enxergava o rosto dela, e era melhor
assim. Roselyn tinha uma beleza que fazia qualquer homem ficar eternamente pasmo. Não gostava dessa desvantagem.

- Posso fazer algumas perguntas? - pediu ela.

Parecia recomposta. Alguém resgatara a dama, como era sua obrigação. Naquela noite, ela dormiria satisfeita.

- Pergunte o que quiser.

- Seu lance foi exagerado. Acho que 100 libras bastariam.

- Se meu lance fosse de 100, Sir Maurice daria 200 e acabaríamos numa quantia muito maior do que paguei. Milhares de libras, talvez. Dei um lance alto para calar
os demais.

- Se ele chegaria a milhares de libras, por que não ofereceu mil?

- Uma coisa é saltar de 100 libras para 200, depois 400 e assim por diante. Outra coisa é saltar de 75 para mil. E teria de ser mil, porque 975 pareceria pouco e
mesquinho.

- Entendi. Ir direto para mil faria qualquer um parar para pensar. É sem dúvida uma quantia absurda.

E 950 também era, sobretudo se a pessoa tivesse pouco mais que isso. Um ano antes, ele cobriria a oferta facilmente, ainda que na época poucos homens pudessem dispor
de tal soma. Talvez dali a um ano ele tivesse essas condições de novo. Mas, naquele exato momento, pagar Norbury faria com que suas finanças já abaladas ficassem
ainda mais periclitantes.

A Srta. Longworth escolhera uma hora ruim para precisar ser salva. Mas ele não tivera opção. Tentou se convencer de que faria o mesmo por qualquer mulher.

Claro, ela não era qualquer mulher. Era Roselyn Longworth. Ficara exposta à sedução de Norbury porque empobrecera com os atos criminosos do irmão. Era irônico, pensou
Kyle, mas, de certa maneira, Timothy Longworth conseguira tirar ainda mais dinheiro do bolso dele.

- O senhor deve saber que jamais conseguirei lhe devolver 950 libras. Tem expectativas de que eu lhe pague de outra forma? Talvez espere que me sinta em débito e
assim passe por cima do amor-próprio.

Era o que ela achava que tinha acabado de ocorrer na estrada? Ele não estava pensando em pagamento, nem em nada. Também não acreditava que ela tivesse qualquer obrigação
de agir daquela forma. Mas ela agira. Antes de tentar mordê-lo, claro.

- Não tenho expectativas nem ilusões de desfrutar de seus favores assim, ou por esses motivos, Srta. Longworth.

Céus, que sentimentos nobres você tem, meu caro Kyle. E que idiota elegante.

Mas esses pensamentos insistiam em lhe voltar à mente. A lembrança daquele abraço continuava fresca na memória. Ele decerto teria algumas fantasias. Já que pagara
caro por elas, não se sentiria culpado.

- Talvez o senhor tenha falado no bordel para ter certeza de que entendi que, depois desta noite, não devo esperar muito mais que isso da vida. Eu sei. Sei que o
que aconteceu trará grandes consequências.

Sim, ela provavelmente sabia. Mas a segurança que demonstrava o fez questionar a situação. E o rapaz que viera das minas de carvão do condado de Durham teve raiva
da pose dela, ao mesmo tempo que a admirou. Uma mulher completamente desonrada não devia ser tão fria. Devia chorar sua perda, como faziam as mulheres do vilarejo
de mineiros onde ele nascera.

- Srta. Longworth, sua avaliação não terá nada a ver comigo. Perdoe por destratá-la. A preocupação com os custos que esta noite me trará me fez sair do sério.

Ela se inclinou para a frente como se quisesse conferir se ele falava com sinceridade. O luar suave que entrava na carruagem iluminou suas feições: os olhos grandes,
os lábios carnudos, o rosto perfeito. Ele ficou sem fôlego só com aquela tênue visão da beleza dela.

- O senhor foi amável e galante, Sr. Bradwell. Se quiser me censurar e falar da minha parcela de culpa nessa derrocada final, acredito que eu deveria fazer a gentileza
de ouvir.

 

Ele não a censurou. Ficou calado, na verdade. Ela desejou que falasse. Aquele breve diálogo a deixara menos insegura. Durante os silêncios, ela só podia ficar ali,
com sua preocupação, cercada pela presença dele.

Não tinha como se afastar dele. Grandes rolos de papel enchiam quase toda a carruagem. Imaginou o que seriam.

Mas um instinto continuava alerta a qualquer movimento dele. Sabia que estava por conta da honra daquele homem. Ele também sabia, e aquela cena na estrada complicara
tudo. Por dois segundos, não mais que isso certamente, aquele abraço deixara de ser hostil.

Ela afastou a lembrança. Não queria pensar em como sua estupidez a levara novamente a interpretar mal um homem. Não queria lembrar que cedera mais do que uma mulher
decente deveria.

Ele havia comentado que pagaria um preço por tudo aquilo. Ela imaginou quanto. O nome dele seria ligado a fofocas sobre aquele jantar e a "compra" dela, mas, por
ser homem, sua reputação não seria destruída. Para certas pessoas, ele até se tornaria mais interessante.

Talvez ele estivesse se referindo ao lance propriamente. Era uma quantia alta para qualquer um. Talvez ele na verdade não tivesse dinheiro para quitar a dívida não
planejada.

Se não pagasse, estaria acabado na alta sociedade. Em quase todos os círculos sociais, achava ela. Até nas minas de Durham.

A referência ao lugar tinha sido um comentário interessante. Imaginou qual tinha sido a intenção de Norbury com isso. O comportamento e a forma de falar do Sr. Bradwell
não deixavam transparecer suas origens simples.

- Se não está me levando para um bordel em Londres, para onde vamos?

- Para a casa da sua prima. O jornal do condado informou que ela está na propriedade do marido aqui, em Kent.

Aquele homem continuava a surpreendê-la. Não só por saber de Alexia, mas por ter noção de onde encontrá-la.

- Não sabia que ela havia saído da cidade. Se soubesse, podia ter fugido hoje de manhã e ido até lá.

- A casa fica, no mínimo, a uma hora de carruagem. Não aguentaria andar. E acho que não conseguiria fugir.

- Sabe se ela está sozinha?

- O jornal se referiu à chegada da família.

O que podia significar que Irene estivesse com ela. Rose ao menos veria a irmã antes... Os olhos brilharam e ela mordeu o lábio com tanta força que sentiu o gosto
de sangue. Pensar em ver Alexia e Irene a desarmava mais que qualquer outra coisa.

- Creio que lorde Hayden esteja com ela - comentou Roselyn e sua voz falhou, no mesmo instante em que o Sr. Bradwell se tornou apenas um borrão para os olhos dela.
- Eu lhe rogo que não os incomodemos.

- Não posso ficar com a senhorita numa hospedaria.

- Não sei por quê. Minha reputação já está completamente arruinada.

- Mas a minha, não.

- Claro. Sei, entendo. Desculpe. Não quero causar mais escândalos na sua vida. É que, no passado, lorde Hayden foi muito gentil e eu respondi com ingratidão. Aparecer
agora na casa dele com essa terrível, desesperada...

Rose irrompeu num soluço que embargou as palavras. Depois, outro. Ela mordeu o lábio de novo, com força. Desta vez, não adiantou.

Ele pegou a mão dela e colocou um lenço em sua palma. O toque firme e seguro marcou a pele e a cabeça dela. Não machucou como o toque de Norbury. Também não foi
fraco nem aprisionador. Só cuidadoso, forte e um pouco bruto. Como aquele abraço na estrada.

Parecia o toque de um amigo. Foi então que ela pôs a preocupação de lado. Finalmente, teve certeza de que estava em segurança.

Perdeu também a compostura. Seu salvador não fez qualquer menção de consolá-la. Ele sabia que nada mudaria o que estava por vir.

 

A compostura dela não o agradara. E agora o choro o espantava.

Resistiu à vontade de envolvê-la nos braços e confortá-la. Ela podia se assustar. Kyle sabia que continuava imaginando coisas a seu respeito. Na estrada, ela havia
comprovado que ele a desejava, o que lhe dava bons motivos para desconfiar dele.

Ela continuou a chorar. Ele não aguentou. Afastou os rolos de projetos e sentou ao seu lado. Abraçou-a com cuidado, pronto para se afastar caso ela preferisse continuar
sozinha com sua tristeza.

Mas não. Roselyn chorou no ombro dele enquanto ele a abraçava, tentando não tomar conhecimento do corpo frágil em seus braços. Kyle refreou as falsas palavras de
encorajamento que teve vontade de dizer. Achou que ela as rejeitaria. Imaginou que nunca mais ela enganaria a si mesma.

A carruagem saiu da estrada principal. A jovem concluiu que a viagem estava terminando. Decidida, tentou engolir as lágrimas. Para lhe dar algum tempo, Kyle mandou
o cocheiro ir mais devagar.

Ela se recompôs antes que chegassem à casa. Porém isso não fez com que o abraço parecesse inapropriado, e ela não tentou se afastar. Ele continuou a envolvê-la até
a carruagem parar, depois saltou e lhe estendeu a mão para ajudá-la a descer.

Ela olhou a casa. Viu a linha vertical das colunas clássicas e blocos compridos nas duas laterais da fachada em forma de templo.

- Estamos no meio da noite. Todos devem estar dormindo - disse ela.

- Deve haver um criado junto à porta. Venha.

Ela apoiou a mão na dele. Ele sentiu uma leve aspereza que o surpreendeu, mas a pele era, na maior parte, macia e cálida. Ela desceu da carruagem. Fez uma pausa,
respirou fundo e caminhou junto a ele rumo à porta. Continuou com a mão na dele como uma criança assustada.

Um criado atendeu às suas batidas.

- Esta é a Srta. Longworth, prima de Lady Alexia - explicou Kyle. - Por favor, se lorde Hayden estiver em casa, peça que nos receba.

O criado os levou à biblioteca. Kyle notou as dimensões perfeitas do cômodo. Seu olhar experiente viu que até as colunas dóricas que enfeitavam as estantes de mogno
seguiam as normas de proporções antigas. Lorde Hayden preferia o classicismo grego puro ao modelo romano.

A Srta. Longworth não quis se sentar. Devolveu a sobrecasaca de Kyle e ficou andando pela sala, torcendo o lenço dele nas mãos.

- Pode ficar enquanto me explico, Sr. Bradwell? Por favor. Lorde Hayden é uma boa pessoa... Não tenho medo dele, porém, depois de tudo... Acho que ele não é tão
austero quanto parece, mas esta história pode pôr à prova até a paciência de um santo, e o fato de amar minha prima não evitará que ele reaja mal.

Kyle encontrara lorde Hayden só uma vez e admitia que o homem tinha aparência austera. Mas entendia o que ela queria dizer com "tudo" e como isso mostrava que o
homem não era tão duro quanto parecia. Ou, como ela dera a entender, lorde Hayden estava tão apaixonado que pusera a austeridade de lado em relação aos parentes
da esposa.

Pelo jeito, o "tudo" agora incluiria ajuda à parente em questão. A Srta. Longworth estava arruinada, mas Kyle achava que lorde Hayden não a deixaria morrer de fome
por se afastar da família e dos círculos sociais.

- Posso ficar até que a senhorita se explique, caso queira.

Lorde Hayden não chegou sozinho. Veio acompanhado da esposa. Ambos pareciam ter se vestido às pressas: ele usava um casaco bordado azul-escuro e ela, um penhoar
simples, amarelo-claro. Uma touca de renda escondia quase todo o seu cabelo negro. Kyle não conhecia Lady Alexia, parecia uma mulher simpática, mais ou menos da
mesma idade da Srta. Longworth, 20 e poucos anos, imaginou. Naquele momento, seus olhos violeta mostravam uma evidente preocupação com a prima.

Lorde Hayden parecia resignado, como se não esperasse nada de bom após ser tirado da cama por uma Longworth. Seu olhar aguçado notou a sujeira na barra da saia da
Srta. Longworth, resultado de sua tentativa de fuga. Prestando atenção no rosto de Kyle, claro que notou os arranhões que só poderiam ser feitos por uma mulher.

As primas se abraçaram e a Srta. Longworth fez as apresentações. Lorde Hayden fez com a cabeça um sinal de que a formalidade era desnecessária, uma vez que ele e
Kyle já se conheciam.

- O Sr. Bradwell me ajudou a escapar de uma festa na casa de lorde Norbury - informou a Srta. Longworth.

Lorde Hayden lançou um olhar expressivo para a esposa. Era o olhar de um homem que sabia daquele caso amoroso e que, desde o começo, previra o pior.

- Receio que - acrescentou a Srta. Longworth após uma pausa incômoda -... receio que em poucos dias todos saberão do escândalo que houve nessa festa. O Sr. Bradwell
me trouxe para cá porque não havia outro lugar onde eu pudesse ficar esta noite, mas, assim que amanhecer, voltarei para Oxfordshire.

- O que aconteceu exatamente? - perguntou lorde Hayden.

Ela contou. Sem omitir nenhum detalhe. Não se poupou de nada. Assumiu toda a culpa pela situação, o que Kyle achou um pouco duro. O fato de ela ser incluída numa
festa com prostitutas, ser leiloada, sua tolice ao interpretar de forma errada as intenções de Norbury: tudo foi relatado de modo claro, direto e honesto. Duramente.

- Portanto, volto amanhã para Oxfordshire - concluiu a Srta. Longworth. - Se eu sumir do mapa e rompermos os nossos contatos sociais, talvez vocês não sejam tão
atingidos pelas consequências do meu comportamento.

- Não seja precipitada - contemporizou Lady Alexia. - Por certo as coisas não são tão ruins assim. Hayden, diga que ela não precisa romper totalmente conosco. Se
nós...

- Não, Alexia - disse a Srta. Longworth. - Sei o que fazer e você também. Não obrigue o seu marido a nos dar um ultimato.

Lady Alexia parecia prestes a chorar. A Srta. Longworth manteve o equilíbrio. Kyle fez um cumprimento para as duas e se retirou, escapando daquela crise familiar
bastante privada.

A Srta. Longworth olhou bem para ele.

- Desculpe não ter confiado no senhor. Lamento muito pelos arranhões. Obrigada por sua gentileza.

Não havia o que dizer, então ele apenas saiu da biblioteca. Então notou que lorde Hayden o seguia.

- Escute, Bradwell, a situação foi tão sórdida quanto ela disse? Ou há alguma esperança de... - perguntou ele, e deu de ombros, sem conseguir completar o pensamento.

- Quer mesmo a verdade, lorde Hayden?

O outro ficou indeciso.

- Sim, acho que sim.

- Norbury disse a todos os presentes que ela é prostituta e a tratou como se fosse, na frente de uma dúzia de homens que você encontra todos os dias nos clubes masculinos.
Lastimo profundamente por ela, mas se trata de uma Longworth que o seu dinheiro e a sua proteção não podem salvar.

Os olhos negros de lorde Hayden tiveram um lampejo de raiva por causa da insinuação, mas a ira passou rápido. Foi substituída pelo cansaço e a aceitação.

- Agradeço por ter cuidado dela e a protegido, Bradwell. Num jantar cheio de homens, só você se comportou como um cavalheiro.

- O verdadeiro escândalo não deveria ser o fato de eu ser o único a não ser de fato um cavalheiro?

Kyle saiu da casa, afastando-se da lamúria que tomava o lugar. Uma lamúria que logo se tornaria um canto fúnebre.

Andou pela noite fria até a carruagem. O cheiro da Srta. Longworth tinha ficado na sobrecasaca e tomou conta dos pensamentos dele.

 

Após garantir que uma carruagem estaria pronta de manhã cedo, lorde Hayden se retirou e voltou para a cama. Alexia levou Rose para um sofá e a fez sentar-se.

- Graças a Deus, o Sr. Bradwell a protegeu.

- Teve um comportamento muito correto. E eu retribuí arranhando o rosto dele.

- Você estava perturbada. Mas tenho certeza de que ele compreendeu. Pareceu compreender.

Sim, ele compreendera. Tudo.

Lembrou-se do momento em que ele se aproximou ao fim do leilão. Nenhum homem ousou enfrentá-lo depois que ele deu o primeiro passo. Nem mesmo lorde Norbury. Aqueles
idiotas bêbados sabiam reconhecer um homem correto.

Lembrou-se também do abraço cauteloso na carruagem, enquanto ela chorava. A força dele a acalmara. Lamentava nunca mais poder receber aquele abraço. A lembrança
do cheiro dele, do tecido do colete e da camisa voltou com força, dando-lhe mais alguns instantes de paz.

Pensou, principalmente, no abraço que impedira sua fuga. Ela devia ter se assustado com o jeito rude, mas os braços dele pareceram uma proteção. Aconchegara-se a
ele para fazê-lo baixar a guarda, mas ela que acabara sem defesas.

Assustara-se com aquela proximidade. Por um instante, esquecera o medo que tinha dele, mesmo ao ver o desejo estampado em seu rosto e sentir o corpo contra o seu.
Na verdade, reagira como a prostituta que Norbury dissera que ela era. Uma inegável excitação correra por suas veias. Isso a chocara e causara uma última e desesperada
tentativa de se libertar.

- Você enfrentou uma situação horrível. Norbury se comportou da maneira mais desonrosa com você e...

As palavras de Alexia terminaram num soluço. Os olhos de Rose queimavam quando ela abraçou a prima.

- Por favor, acalme-se. Norbury é um canalha, mas sejamos sinceras: fui uma tola. Sempre soube que um futuro conde não poderia se casar comigo. Não depois do que
Tim fez. Tive a ilusão de que, para ele, eu era mais que uma mulher vendida, mas agora vejo que as palavras de amor faziam apenas parte do jogo.

Alexia conteve as lágrimas.

- Você falou em não nos ver mais. Que eu a perdi. Não pretende... não suporto a ideia de você passar de mão em mão, Rose. Por favor, prometa aceitar ao menos uma
pensão de nós, de forma que não cometa nenhum ato desesperado por falta de dinheiro.

- Fique tranquila. Descobri que sou uma amante muito ruim e seria uma cortesã pior ainda. Primeiro, não exijo joias e, segundo, não dou prazer suficiente ao amante.

- Então aceita o dinheiro? Finalmente?

Era uma antiga discussão. Antes, ela recusara a ajuda de lorde Hayden por orgulho, após a falência de Timothy. Orgulho e raiva, pois achava que Tim fracassara por
culpa de lorde Hayden. Depois, ao descobrir que lorde Hayden tinha, na verdade, ajudado Timothy, o orgulho fora substituído por decepção e constrangimento.

- Ele saldou todas as dívidas. Protegeu a nossa propriedade em Oxfordshire. Aceitar mais...

- Você precisa aceitar. Não me aflija, Rose. Já não basta perdê-la? Ainda tenho de imaginá-la com fome e doente naquela casa vazia?

- Não vou morrer de fome. Os aluguéis não rendem muito, mas pagam o pão e o carvão. Mas preciso da sua generosidade em outro assunto. Irene...

Ficou tão emocionada ao dizer o nome da irmã que não conseguiu continuar a frase.

- Claro que ela pode ficar conosco - tranquilizou-a Alexia. - Ela está feliz por passar este mês conosco.

Rose mandara Irene ficar com Alexia para evitar que soubesse do caso com Norbury. Agora a irmã seria a pessoa mais atingida pelo escândalo.

- Ela está gostando de ficar com vocês? - perguntou Rose.

- Muito. Prefere a cidade, mas já fez alguns amigos aqui também.

- Vão comentar e evitá-la. Ela vai saber de tudo. Vai ficar com raiva de mim.

- Ela está amadurecendo, Rose. Deixou de ser egoísta. Chegou a se desculpar com Hayden pelo que disse na primavera passada. Vai sobreviver às intrigas.

Rose imaginou Irene fazendo isso e ficou ainda mais aflita.

- Acha que há alguma esperança para o futuro dela, Alexia?

- Se Hayden e os irmãos a tratarem como se fosse um deles, ela será poupada do pior. Ela também tem aquelas 5 mil libras do seu irmão, embora eu preferisse que você
não tivesse pedido a Hayden que abrisse um fundo para ela com essa quantia. Acho que você poderia usar melhor o dinheiro.

- São as sobras de um crime, Alexia. Eu não posso tocar nesse dinheiro, mas Irene nunca vai saber a origem dele.

Alexia deu uma batidinha na mão de Rose como uma mãe que apoiasse um filho. Súbito, Rose se sentiu cansada, suja e triste. Estava mais ciente do mundo do que há
seis meses, mas, em comparação, a ignorância tinha sido uma bênção.

- Alexia, se não se importar, gostaria de dormir com Irene esta noite. Vou embora ao amanhecer, mas antes explicarei por que ela não vai para casa comigo.

Nem naquele momento nem nunca mais. Despedir-se de Irene iria despedaçar o coração de Rose.

Alexia colocou o braço nos ombros dela.

- Se é assim que quer, assim faremos.

Ela se encostou em Alexia e apoiou a cabeça no ombro dela.

- Abrace-me, querida amiga. Logo estarei morta para vocês duas, e não suporto pensar nisso.

 

CAPÍTULO 3

Jordan ritmou seus passos de acordo com o toque inaudível de trombetas enquanto levava uma carta pelo aposento. Seu nariz fino e pontudo estava mais empinado do
que nunca, fazendo seu rabo de cavalo grisalho e fora de moda bater nas costas.

- Sir, a carta foi entregue em mãos. Agora. Um mensageiro a trouxe. Um mensageiro de libré.

Ao ver a carta, Kyle entendeu a reação de seu criado. Aquele papel devia custar 5 libras a resma. E um brasão provava a alta posição social do remetente.

Reconheceu o desenho. A carta era do marquês de Easterbrook.

Ora, ora.

- Diga-me, Jordan, pode-se simplesmente romper o lacre ou é preciso cumprir algum ritual antes?

O criado de rosto fino franziu as sobrancelhas. Ele se orgulhava de ser um especialista ao qual o filho de mineiro podia pedir ajuda sobre os requintes da sociedade.

- Ritual? Creio que não... Ah, o senhor está brincando. Hehehe, não há ritual, que eu saiba.

- Bom, se souber que existe algum, não conte a ninguém que o desrespeitamos.

Kyle rompeu o lacre. Jordan esticou o pescoço, na esperança de espiar algumas palavras.

- É um convite do marquês de Easterbrook - disse Kyle. - Pelo menos, acho que é um convite. Mais parece uma intimação.

- Diz o quê?

- Que o marquês teria prazer de me receber esta noite.

- Claro que é um convite.

- Que bom. Significa que posso recusar. Vou mandar um cartão lamentando já ter outro compromisso.

- Ah, senhor, pelo amor de Deus, não faça isso - falou Jordan, contendo um suspiro de horror. - Se um marquês tem o prazer de recebê-lo, se o convida, o senhor tem
de ir.

Kyle sabia como essas coisas funcionavam. Tinha sido recebido por um conde várias vezes. Deixou Jordan se atormentar enquanto ele olhava o convite.

Dizia-se que Easterbrook não costumava receber muitas pessoas, menos ainda homens como Kyle Bradwell. Entretanto o marquês de Easterbrook era Christian Rothwell,
irmão mais velho de lorde Hayden Rothwell. Claro que ouvira falar da triste cena ocorrida com a Srta. Longworth quatro noites antes. Decerto queria garantir que
o salvador não iria se vangloriar, nem tirar vantagem da ruína da parente.

Kyle resolveu atender à intimação, mas por motivos pessoais. No encontro, podia saber como estava a Srta. Longworth. Tinha pensado nela nos últimos dias. Entregara-se
às fantasias que prometera a si mesmo, mas algumas preocupações também haviam se intrometido em sua cabeça.

- Se quiser, posso indicar os trajes adequados - ofertou Jordan.

- Ótimo, mas não exagere. O marquês não é o rei.

Deixou o "convite" de lado. O encontro com Easterbrook certamente seria breve. O marquês não precisaria de muito tempo para ameaçá-lo.

 

Kyle nunca tinha entrado numa casa na Grosvenor Square. Só isso já tornava o convite de Easterbrook interessante. Observou a arquitetura e os móveis enquanto o criado
o conduzia para a sala de visitas.

O imenso e imponente cômodo era extremamente luxuoso. A decoração era meio ultrapassada, mas impressionava pela sobriedade e opulência. Cada peça, dos tapetes aos
frisos do teto, dos castiçais ao debrum das cortinas, tudo era o melhor que o dinheiro podia comprar.

Esperou bastante para ser recebido pelo generoso anfitrião. Passou o tempo olhando os quadros que cobriam as paredes, vendo se sabia identificar os pintores.

- Aquele ali é atribuído tanto a Ghirlandaio quanto a Verrocchio. O que acha?

Kyle se virou ao ouvir a pergunta. Um homem de cabelos negros estava a poucos passos dele. Concluiu que era o marquês, não só pela semelhança com lorde Hayden: nenhum
criado ousaria apresentar-se daquele jeito, sem colete ou gravata e com os cabelos compridos batendo nos ombros.

- Eu não saberia responder - disse Kyle.

- Estava observando os quadros como se soubesse.

Kyle deu de ombros.

- É uma obra anterior a Rafael e não é um Botticelli. Não vou além disso.

- Já é mais longe do que a maioria das pessoas chega - assegurou o marquês, depois indicou um conjunto de cadeiras e um divã. - Vamos nos sentar ali. Trarão... alguma
coisa para bebermos. Café, imagino.

Kyle sentou numa cadeira e Easterbrook ficou no divã. O marquês examinou o convidado com atenção. Kyle fez o mesmo. O tempo passou em silêncio enquanto eles se avaliavam.

- Você me parece um homem interessante, Sr. Bradwell - começou Easterbrook, com um vago sorriso no rosto, apesar do olhar crítico. - Pelo menos, está à vontade.
Sem dúvida, ter apoio financeiro de Cottington fez com que convivesse com meus pares. E talvez também tenha feito com que os desprezasse.

Pelo jeito, Easterbrook tinha se dado ao trabalho de saber um pouco sobre o destinatário antes de fazer o convite.

- Não desprezo os seus pares. Do contrário, não estaria aqui. Estou apenas aguardando para saber por que quis me encontrar.

- Você me olha com muita ousadia. O que está pensando?

- Em quanto dinheiro precisarei ter para não precisar mais apertar meu pescoço com uma gravata.

- O suficiente para não dar um centavo pela opinião dos outros, creio eu.

Os dois sabiam que, na verdade, dinheiro não tinha nada a ver com aquilo.

- E quando você me olha, o que pensa?

Easterbrook fez mais um longo e cuidadoso exame.

- Penso que estou vendo o futuro.

Os criados chegaram trazendo várias bandejas com café, chá, licores e bolos. Parecia que, quando receberam a ordem na cozinha de servir "alguma coisa", concluíram
que era mais seguro servir quase tudo.

Quinze minutos se passaram com os criados oferecendo diversas bebidas. Por fim, o marquês fez um gesto para que saíssem da sala.

- Creio que foi apresentado ao meu irmão algumas noites atrás - disse ele.

Estavam finalmente chegando ao tema.

- Na verdade, eu já conhecia lorde Hayden. Mas de fato o encontrei em Kent há algumas noites.

- Ele voltou para a cidade e trouxe Alexia. Soube que ela está inconsolável por causa da prima. Gosto muito da minha cunhada. Está grávida e sua aflição me preocupa.

- Lamento saber que está aflita. Tem alguma notícia da prima dela? Ela está bem?

- Não soube da saúde da Srta. Longworth.

Mas o anfitrião ficou satisfeito com a pergunta. Kyle não conseguiu entender por quê.

- Meu irmão veio à cidade garantir a todos que você chegou com a Srta. Longworth na casa deles em Kent pouco mais de uma hora depois de tirá-la da festa de Norbury.

Kyle duvidava que isso ajudasse muito. O escândalo estava se espalhando rápido e chamando mais atenção para ele do que gostaria. Jordan fora abordado na rua por
um sujeito de um jornal sensacionalista que lhe perguntara se a Srta. Longworth estava morando na casa do Sr. Bradwell.

Easterbrook se levantou. Andou sem rumo, perdido em pensamentos.

Não, não foi sem rumo. Ele de certa forma rodeou a cadeira de Kyle.

- A sua reputação vai ser preservada graças a Hayden. Vai ficar com fama de tão sério que decerto nunca mais será convidado para qualquer diversão na vida - observou
Easterbrook. - Minha dúvida é se é possível fazer algo para poupar a Srta. Longworth também, de forma que Alexia não fique tão infeliz.

- Passei muito pouco tempo com a Srta. Longworth.

- Conte-me tudo. Os criados só me trazem partes da história e meu irmão diz apenas que ela se perdeu.

Kyle contou como tinha sido a noite, da maneira como ele vira. Easterbrook dava voltas enquanto ouvia. Perguntou algumas coisas para elucidar detalhes. Andou mais
um pouco.

- Parece que a Srta. Longworth se envolveu com um homem que ela pensou que a amasse, mas em troca ele deliberadamente destruiu sua reputação. Pergunto-me se houve
motivo para isso. Sou obrigado a concluir que sim.

Mais três passos para reflexões.

- Acho que tem a ver com aquele maldito irmão dela - falou o marquês.

Kyle deixou ficar por isso mesmo. E gostou que Easterbrook compreendesse as razões humanas mais do que a maioria das pessoas.

De repente, Easterbrook interrompeu suas divagações e sentou no divã outra vez, agora mais perto de Kyle. Seguiu-se outro longo exame.

- Você deu um lance muito alto. Foi uma tática perspicaz, mas muito cara.

Pela primeira vez desde que entrara naquela casa, Kyle sentiu-se desconfortável. Não gostou da forma agressiva com que o marquês olhava para ele. Seus instintos
lhe diziam que uma ameaça direta seria melhor do que qualquer coisa que aquele homem estivesse tramando.

- Deve ter lhe causado um rombo no bolso, pagar tudo de uma vez.

- Dei um jeito.

Um mau jeito. Dois dias antes, tinha assinado mais promissórias do que gostaria de imaginar.

Easterbrook se recostou no divã.

- A Srta. Longworth é uma mulher bastante adorável, não acha?

- Sim, adorável.

Por que ele teve a sensação de, ao concordar, haver perdido terreno numa batalha?

- Não acredito que minha cunhada tenha de se afastar definitivamente da prima. Acho que, com algum esforço, nós podemos abrandar o que houve de pior para que a moça
continue a ter um futuro. Talvez sempre haja intrigas, mas ela pode ser salva.

A quem, diabos, ele se referia com nós?

- Dizem que você raramente sai desta casa, então talvez tenha esquecido como essas coisas funcionam. Ela não vai ficar com um fio de reputação intacto. Seu irmão
sabe disso. A própria Srta. Longworth o admitiu.

- Isso porque meu irmão e ela estão vendo a peça da maneira como Norbury a encenou. Mas, nas mãos de outro diretor, as cenas atingirão a plateia de outra forma.
Basta mudar o final - afirmou o marquês e fez um gesto lento, como se isso fosse fácil de conseguir.

Kyle mal conteve um riso de escárnio. Easterbrook achava que podia mudar o passado e o futuro.

- Vou lhe dar outra visão do fato, Bradwell. Na minha peça, um libertino atrai uma mulher virtuosa para uma festa particular. Ao chegar lá, ela descobre que as intenções
dele são desonrosas. Resiste e ele se vinga humilhando-a em público, de forma a assegurar a ruína e a degradação dela. É uma história plausível, não?

Kyle deu de ombros. Era plausível e até bastante fiel. Porém a parte mais importante estava errada. Ao chegar à festa, a Srta. Longworth já tinha perdido sua honra.
Não resistira a Norbury, seja lá por que motivos fossem.

- Nenhum dos presentes tem certeza disso.

Easterbrook parecia ler os pensamentos de Kyle, o que era muito irritante.

- Eles só têm a palavra do vilão. Na minha versão, Norbury é subitamente desafiado por um gentil cavaleiro. O homem mais improvável naquele jantar arrisca todo o
seu dinheiro para salvar a pobre inocente de um destino pior que a morte.

- Agora está ficando melodramático.

- A plateia adora melodramas e adora mais ainda ter um romance em vez de um escândalo. O que nos leva ao meu novo final. O cavaleiro não se aproveita da gratidão
da adorável dama, como poderia. Em vez disso, protege-a e a devolve em segurança à família - diz, fazendo de novo aquele gesto lento. - Depois, casa-se com ela.

 

Casa-se com ela.

Kyle olhou bem para Easterbrook. Diabos, o sujeito estava falando sério.

- Você está maluco.

- É a solução perfeita.

- Então, case-se você com ela.

- O cavaleiro não era eu. Nem ela é esposa para mim. É tão bela que cheguei a pensar em tê-la como amante, mas, como é prima da minha cunhada, bem...

Maldição, ele não era melhor do que Norbury.

- Tem razão. Às vezes desprezo homens como você.

- Eu disse que a ideia passou pela minha cabeça. Não disse que a realizei.

O marquês não parecia nem um pouco ofendido.

- Mas entendo por que isso pode ofender a sua noção de honestidade. Coitada da Srta. Longworth, ficou tão vulnerável com a falência da família, o empobrecimento,
que agora atrai esses abutres aristocratas...

- Sim, me ofende, dane-se.

O xingamento permaneceu no ar. Kyle trincou os dentes e conteve o inesperado surto de raiva que causara a explosão.

- Assim sendo, o futuro dela talvez seja a cama desses abutres, mas, se ela se casar, terá a chance de uma vida decente - previu Easterbrook. - Esta manhã, pensei
quanto me custaria conseguir que você fizesse isso. Considerando-se como ficou irritado, poderia não custar tanto.

- Compre um homem da sua espécie. Um homem mais à altura da posição social dela. Certamente, há um filho desgarrado de algum barão à venda por aí.

- Não cabe no meu enredo. Se você se casar com ela, aquele leilão se transformará num começo romântico, não num final sórdido.

Easterbrook continuava olhando daquele maldito jeito arrogante. Kyle queria dar um soco naquela cara convencida. Em vez disso, levantou-se e foi em direção à porta.

A voz de Easterbrook o acompanhou.

- Vai ascender socialmente, se casar com ela. Você tem dinheiro e educação. Aprendeu a se vestir e a conversar, mas sozinho jamais conseguirá entrar na sociedade.
Por outro lado, eu e toda a família o receberemos, se for casado com Roselyn Longworth. E se nós recebermos, outros farão o mesmo.

Já irado, Kyle seguiu seu caminho.

- Não faço questão de passar por essas malditas portas.

- Acredito, agora que o vi. Mas os seus filhos...

Kyle parou a poucos passos de uma das ditas portas. Easterbrook era um demônio inteligente. Perigosamente atento. Sabia que uma coisa era aceitar as cartas que o
destino lhe deu, outra era impedir que os filhos recebessem cartas melhores.

Um filho ou filha nascido na vida que ele conseguira construir estaria dolorosamente consciente do que a origem do pai lhes negara. Ter berço fazia diferença. Portas
mais importantes do que as de salas de visita ficariam fechadas para os filhos dele.

Ter uma mãe vinda de boa família não resolveria o problema por completo, mas faria uma grande diferença. Principalmente se tal mãe tivesse algum parentesco, ainda
que indireto, com um marquês, frequentasse a casa dele e fizesse parte do círculo social de Lady Alexia.

- Pode não se importar com as ligações sociais, mas acho que se interessaria pelas de negócio. Meu irmão Hayden cuida dos negócios da família e é famoso pelo sucesso
que tem em seus projetos. Tendo uma ligação familiar com ele, você seria incluído nesses negócios.

Easterbrook falava apenas com as costas de Kyle, mas num tom que supunha que tinham iniciado as negociações.

Kyle se virou.

- Não tem havido projetos nos últimos tempos.

Kyle sabia por que, mas o marquês talvez ignorasse o motivo.

- Ele está recém-casado, entretido com a esposa. Pode ter certeza: ficará mais rico do que jamais imaginou. Ouvi dizer que tem tido sucesso com parcerias, mas nisso
ninguém supera o meu irmão.

Kyle desconfiava que o marquês seria capaz de superar, se um dia quisesse. Quanto a lorde Hayden, no momento ele estava em dificuldades, mas tinha certeza que se
recuperaria.

- Uma bela esposa de boa família, uma enorme chance de enriquecer... Bem, qual era mesmo o outro suborno que preparei? Ah, sim: 5 mil libras para reabastecer seus
cofres.

- Não, 10 mil.

Easterbrook sorriu lentamente.

- Esperava que quisesse 20 mil.

- Se estivesse disposto a dar 20 mil, teria oferecido mais no começo.

Easterbrook pareceu satisfeito consigo mesmo.

- Posso concluir que chegamos a um acordo? Tenho certeza de que Alexia adoraria contar isso à Srta. Longworth.

- Ainda não tem minha assinatura na escritura de venda - contrapôs Kyle, e fez menção de caminhar para a porta novamente. - E, se eu resolver aceitar a proposta,
falarei pessoalmente com a Srta. Longworth.

 

CAPÍTULO 4

Roselyn dobrou o papel e colocou o lacre. Pegou a carta que recebera no dia anterior e copiou o endereço do remetente.

Olhou a assinatura do irmão no final da folha. A pena da caneta tinha falhado.

Pobre Tim. Tocou de leve as manchas de tinta que as lágrimas dela fizeram. Ele estava tão só. Escrevera coisas tão tristes. Muitos diriam que ele merecia, outros
achariam que devia ter ficado numa situação pior ainda, mas era irmão dela. Podia ser um homem fraco e cheio de defeitos, mas ela continuava a amá-lo.

A carta, mais do que qualquer outra coisa, fez com que ela chorasse suas perdas. Nem mesmo separar-se de Irene a deixara tão vazia e tão ciente do fim da família,
destruída pelos próprios erros. A notícia dada por Tim, da morte de seu companheiro de viagem, era apenas a mais recente, uma terrível curva de uma impiedosa espiral
descendente.

Ela se levantou e amarrou o gorro na cabeça, pegou o cesto e enfiou a carta dentro. Tim jamais conseguiria viver só. Ele agora devia estar desnorteado. Triste, sem
rumo e solitário num país estranho. Dissera que queria voltar para casa, mas, claro, não podia.

Pensou nele enquanto caminhava até o vilarejo. Teria de contar a Alexia o que Tim escrevera. A prima precisava saber.

Entrou na mercearia que ficava quase no final do vilarejo. Duas mulheres saíram da loja imediatamente. O dono, Sr. Preston, não gostou que a presença dela atrapalhasse
as vendas.

Ele entregou em silêncio os mantimentos que ela pedia, colocando no balcão a farinha de trigo, o sal e os outros itens. Um mês antes, os dois teriam conversado um
pouco enquanto ela fazia as compras. O Sr. Preston teria achado graça e rido com aquele seu jeito de titio. Agora, a boca formava uma linha dura que dizia que ele
lhe venderia, mas era o máximo que ela merecia.

Pegou algumas moedas na bolsinha para pagar. O Sr. Preston não disse que ela deixara de ter crédito ali. Três dias antes, a esposa dele fora atrás de Rose na estrada
e lhe avisara.

O escândalo tinha chegado a Watlington fazia uma semana. Como se tivesse vindo flutuando no vento. Pessoas que foram prestativas e solidárias quando Tim fugiu, amigos
que a conheciam fazia anos, davam um jeito de não vê-la novamente. Ela ia viver ainda mais isolada do que antes.

Entregou ao Sr. Preston outra moeda e a carta.

- O senhor pode enviar para mim? O dinheiro é para o porte pago.

Guardou as compras no cesto e saiu da loja. Mais uma vez, a Sra. Preston surgiu do nada e a seguiu na estrada.

- Um homem esteve à sua procura - disse ela.

Rose parou.

- Que homem?

- Não deu o nome. Dava a impressão de ser um cavalheiro. Chegou há mais ou menos meia hora e perguntou onde era sua casa.

A Sra. Preston se esforçou bastante para afastar da cara redonda qualquer censura e curiosidade, mas não conseguiu.

Rose ficou preocupada. Era só o que faltava: um estranho perguntando onde era a casa da Srta. Longworth. O último cavalheiro a perguntar por ela tinha sido lorde
Norbury, e todos sabiam no que isso dera.

Ela não aguentaria o insulto de um estranho na porta de sua casa, apresentando-se como se ela fosse a prostituta que o escândalo dizia.

- Não estou esperando ninguém, Sra. Preston. Nem quero receber ninguém. Peço que a senhora e seu marido não atendam à curiosidade de um estranho de passagem, querendo
saber onde moro.

- Ah, não dissemos nada a ele. Nós é que não vamos ajudar o demônio - assegurou a Sra. Preston e, ao levantar a cabeça e olhar para a estrada, completou: - Bom,
lá está ele, saindo da taverna.

Rose arriscou um olhar por cima do ombro. Viu de relance um homem montando num cavalo.

Decidiu que a ida ao açougue podia esperar até o dia seguinte. De todo jeito, não podia comprar muita carne. Voltou para a estrada, rumo ao campo e à casa.

Não ouviu nada, mas teve certeza de que o homem a vira. Sentiu que a seguia. Então começou a ouvir os leves toques das ferraduras do cavalo se aproximarem.

- Srta. Longworth? É você?

Conhecia aquela voz. Virou-se.

- Sr. Bradwell, que surpresa.

Olhou para ela, com seus olhos azuis marcantes sombreados pela aba do chapéu. Como na última vez em que o vira, os trajes não demonstravam nada distintivo ou em
excesso. O casaco de montaria preto, a calça marrom-escura, as botas de cano alto foram escolhidos por serem perfeitamente adequados.

- Estava no condado e pensei em ver como tem passado, Srta. Longworth - explicou-se ele, depois olhou para trás, para o vilarejo reduzido, e para a estrada adiante.
- Posso caminhar ao seu lado?

Seria grosseiro recusar e, na verdade, ela gostaria de ter companhia.

- Sim, pode.

Ele saltou do cavalo. Os dois andaram pela estrada, ele segurando as rédeas do animal. Pegou o cesto da mão dela.

- Achei que tinha entendido errado o seu endereço. Ninguém no vilarejo sabia quem era você.

- Acho que, à moda deles, estão me protegendo.

- Claro. Compreendo.

Ela gostava disso naquele homem. Ele compreendia. Também tinha compreendido naquela noite. Compreendera que ela havia se entregado a um homem quando não devia. Compreendera
que o leilão provavelmente levaria a um estupro. E que podia poupá-la daquele horror, mas não das demais consequências daquela noite.

Olhou para ele algumas vezes, enquanto andavam. Não o vira à luz do dia. A estrutura robusta e sem curvas acentuadas do rosto não parecia tão rústica agora, sem
lamparinas ou luar para cinzelá-la em ângulos duros. Era um rosto bem másculo e tanto sua expressão como suas maneiras refletiam a calma e a segurança que o haviam
feito representar o papel de salvador.

A luz forte do sol não alterou muito as outras impressões que ela tivera do homem naquela noite. Ainda sentia nele uma energia contida, apesar da fala educada, quase
calma. O tamanho e a presença dele ainda pareciam empurrar o ar para abrir espaço. Causava até a mesma cautela instintiva.

Não fazia sentido. Não havia razão para ter medo daquele homem. Ele se mostrara mais do que digno e merecedor de confiança. Na verdade, Rose sentia uma grande segurança
na companhia dele. Ao mesmo tempo, uma espécie de alerta físico. Não era de todo desagradável, mas ficava consciente demais do tamanho dele e da maneira como seu
sangue e seus instintos reagiam àquela presença.

- Tem sido ruim para o senhor na cidade? O escândalo, quero dizer - perguntou ela, apenas para puxar conversa, não que ele parecesse precisar disso.

Mas o simples fato de caminharem lado a lado lhe soava esquisito. Para ela, pelo menos. Sendo praticamente estranhos um ao outro, sem dizer nada, só o que tinham
em comum era a estrada.

Não, como estranhos, não. Havia uma intimidade silenciosa e palpável, vinda dos terríveis acontecimentos daquela noite. A estranheza era causada por sentir tal familiaridade
com alguém que ela mal conhecia.

- O escândalo já está se dissipando. Outro homem talvez tivesse até gostado de receber a atenção que tive - comentou ele, dando um meio sorriso solidário. - Tal
é a injustiça no mundo, Srta. Longworth.

- É um alívio saber que seja assim. O senhor foi muito cavalheiresco e eu não gostaria que pagasse com a reputação, além do bolso. Espero que seja apenas eu o alvo
de zombarias. Continuo sendo o assunto preferido na cidade, ou será que meus pecados agora circulam apenas nas salas de visita do condado?

A expressão dele ficou mais séria.

- Sua prima não a procurou? Acho que Lady Alexia seria uma pessoa mais indicada para dizer o que acontece na sociedade.

- Alexia me escreveu duas vezes, embora não devesse. Ou lorde Hayden não sabe que ela vem se expondo ao risco de manchar o próprio nome ou simplesmente não consegue
dizer não a ela. Devolvi as duas cartas sem abri-las.

- Ninguém descobriria se as lesse.

- É incrível o que as pessoas ficam sabendo. Não vou arriscar manchar o nome de Alexia com isso. Mas...

Pensou na carta de Tim e como a decisão dela também criava problemas.

- Vai voltar logo para Londres, Sr. Bradwell? Se voltar, talvez possa levar um recado para minha prima. Às vezes é preciso procurar os vivos mesmo quando se está
morto.

- Volto esta tarde. Levarei com prazer.

Ela observou o leve balançar do cesto acompanhando o andar lento dele.

- Talvez fosse melhor que o senhor não falasse com ela, mas com lorde Hayden. Ele então a avisaria. É, isso seria melhor.

- Farei como a senhorita quiser.

Ela enrijeceu o corpo para falar sem emoção.

- Por favor, diga ao lorde que tive notícias de Timothy. Tim escreveu que o amigo que viajava com ele morreu de uma febre contraída no final do verão.

- Só isso? Ele não disse se está bem, nem onde está?

Ela percebeu que ele a observava. Os olhos azuis dele pareciam escuros sob a aba do chapéu. Escuros, curiosos e... duros.

- Vai bem, para uma pessoa sozinha e triste.

- A senhorita também parece sozinha e triste. Acho que ele não está melhor do que a senhorita. Seria injusto.

Ela achou que era uma observação peculiar. Continha uma boa dose de verdade, mas aquele homem não saberia por quê.

- Não me importo de estar só. A tristeza que o senhor nota hoje é por causa da carta que recebi de meu irmão, que me deixou angustiada. Se o senhor viesse amanhã,
eu seria uma companhia melhor.

Chegaram ao caminho que levava à casa dela. O Sr. Bradwell o pegou junto com Roselyn.

- Não respondeu à minha pergunta - falou ela. - Imagino que seja porque as intrigas a meu respeito ainda circulam e são tão ruins quanto eu temia.

- Se lhe servir de consolo, informo que lorde Norbury não está saindo ileso.

- Para cada crítica, ele vai receber dois convites para jantar. Ser libertino nunca prejudicou muito os homens.

As árvores que margeavam a estrada foram ficando mais esparsas, até sumirem quando eles se aproximaram da casa. O Sr. Bradwell tirou o chapéu e deu uma olhada, devagar
e atenta, na construção. Pareceu aprovar o que viu.

Ela parou e observou a casa, vendo-a de um jeito novo pelos olhos daquele homem. Tinha mais charme que elegância, com o centro de pedra e duas alas que não combinavam
muito. Tinha apenas dois andares, de forma que chamava mais atenção a área ocupada que a altura do prédio. Era grande, mas sem exagero, e os jardins que invadiam
os muros exalavam deliciosos perfumes para todos os cômodos, na primavera e no verão.

- Minha família mora aqui há cinco gerações. Nossa propriedade era bem maior, mas ainda sobrou um pouco de terra e seis pequenas fazendas.

Ele estreitou os olhos em direção às dependências que podiam ser vislumbradas depois da ala oeste.

- Vocês têm contratos por tempo determinado?

- Não há contratos. Meu avô não os aprovava e meu pai não se preocupou em fazê-los antes de morrer.

- Negligente.

Ela abriu a porta. O incrível vazio do interior rangeu. A casa a aguardava para ecoar seus passos solitários.

Agradeceu ao Sr. Bradwell ao pegar o cesto que ele carregara.

Surpresa, viu-o amarrar as rédeas do cavalo num mourão.

- Tenho interesse em construções, Srta. Longworth. Talvez pudesse fazer a gentileza de me deixar ver o interior da casa.

Paciente, ele esperou pela resposta. Alto. Imponente. Marcante. O dia tinha pouca brisa, mas ela sentiu outra vez o ar agitado no espaço entre os dois. Aquela sensação
boba e quase empolgante de precaução pulsava nela com mais força.

Olhou o jardim vazio e notou como estavam isolados.

- Seria ridículo eu fazer cerimônia agora, não? Convidá-lo para entrar é um pequeno deslize, comparado ao mau passo que está ligado ao meu nome.

- Se preferir evitar este pequeno deslize, compreenderei.

Claro que sim. Mas continuaria sendo bem ridículo e ele entendia isso também. Provavelmente, aquele homem não pediria algo assim a uma mulher que ainda tivesse uma
nesga de reputação a proteger. O comportamento dele era tão irrepreensível quanto os trajes que usava.

Mas ela não se baseou nisso para decidir. A cruel verdade era que ansiava por ouvir outra voz que não fosse a dela mesma. Aquela visita inesperada tinha melhorado
sua disposição e ajudado a diminuir a tristeza deixada pela carta de Tim.

- Por favor, entre e fique à vontade para estudar a casa.

 

Ele não havia mentido. Estava no condado e quisera ver como ela estava. Mas para isso desviara muito de seu caminho e, quando sua mente não estava ocupada com outras
coisas, era na oferta de Easterbrook que ele pensava.

Ele a reconhecera na estrada, mesmo de longe. Por trás, vira apenas o gorro e o manto, mas sua atenção fora despertada imediatamente. A forma orgulhosa de andar
a identificava melhor do que qualquer retrato.

Ele passou pela soleira da porta e aceitou o convite que uma mulher direita não faria. Ficou contente por ela não fazer cerimônia. Os dois ainda podiam estar representando,
mas ela era sensata demais para alegar questões de virtude, caráter ou segurança a ele.

Estava curioso em relação à casa e a ela. Ao olhar a primeira, soube na hora como ela vivia. Mal. Os cômodos eram quase vazios. Se um dia aquela casa tivera mobília,
fora toda vendida.

Desnecessário dizer que não havia criados. O quintal estava vazio e não vinha qualquer som das cocheiras e jardins. A casa estremecia com um silêncio que a presença
deles só parecia aumentar.

Rose notou que ele reparava em tudo. Tirou o manto e começou a desamarrar o gorro.

- Meu irmão Timothy teve reveses financeiros. Graves. O senhor deve ter sabido, na primavera passada.

- Sim, tomei conhecimento.

Reveses financeiros, diabos. O patife nem sequer ousava voltar para a Inglaterra.

- Como esta casa não foi vendida?

- Lorde Hayden garantiu que minha irmã e eu não ficássemos na rua. Protegeu-nos e à propriedade. Foi a isso que me referi naquela noite, quando falei na generosidade
dele. Pagou todas as dívidas do meu irmão. Claro que eu jamais poderei reembolsá-lo.

Na verdade, lorde Hayden não saldara todas as dívidas, ainda que houvesse tentado. Pelo menos uma pessoa só aceitara receber se o dinheiro viesse do próprio Longworth.
E, entre os que aceitaram o pagamento, nem todos ficaram satisfeitos com isso.

Levou-o para a sala de visitas. Três cadeiras de madeira continuavam lá, uma pequena mesa e um tapete gasto. No lugar de cortinas de seda, as janelas tinham apenas
um tecido branco, fino e transparente.

- Por favor, sente-se, Sr. Bradwell. Deixe-me trazer um aperitivo.

Ela sumiu antes que ele pudesse recusar. Não se sentou; em vez disso, andou pela sala, estimando visualmente sua altura e calculando as dimensões de cada parede
em passadas. Observou as colunas e o teto, depois passou para a sala de jantar, onde fez o mesmo.

Examinou a biblioteca e foi para os fundos da casa. Um ruído o levou à cozinha.

A Srta. Longworth estava numa mesa perto da janela. O sol vespertino reluzia em seus cabelos louros e banhava seu perfil numa luz ofuscante que não deixaria qualquer
defeito às escondidas. Mesmo da porta, ele conseguia traçar a delicada linha do perfil e contar os longos e dourados cílios que pairavam na adorável curva do rosto
de porcelana.

Ela não é para gente da sua laia, rapaz. Tinha sido seu pensamento na noite em que admirara Roselyn no teatro. Repetira o mesmo aviso várias vezes nos últimos dias,
sempre que o plano maluco de Easterbrook se intrometia em sua cabeça.

Ela era linda, elegante e orgulhosa. Pertencia a uma família que estava entre as melhores do condado fazia cinco gerações. Decididamente, não era para ele.

Com cuidado, ela cortou uma torta, ou o que restava dela. Ele viu pela janela as árvores frutíferas no quintal. Ela mesma colhera as maçãs e ela mesma preparara
a torta. Kyle olhou os poucos mantimentos nas prateleiras da cozinha. Provavelmente, aquela torta era para durar uma semana.

Duas taças de sidra aguardavam à mesa. Ela colocou as fatias de torta em dois pratos.

- Deixe-me ajudá-la - ofereceu ele.

Roselyn deu meia-volta como uma bailarina ao ouvir a voz dele. Ele ignorou o rubor no rosto dela, pegou a taças e foi para as cadeiras na sala.

- Vejo que a senhorita cuida de tudo - disse ele, após comer uns pedaços da torta.

O gosto era quase intragável. Parecia que ela havia economizado tanto no açúcar quanto no sal.

- Meu pai deixou dívidas, por isso vivemos modestamente. Só quando meu irmão entrou como sócio num banco londrino, a situação melhorou. Por um tempo, quero dizer.

- Está falando em seu irmão mais velho, Benjamin? Aquele que morreu na Grécia?

A expressão dela se desfez com a recordação daquela antiga dor. Ele se arrependeu do comentário.

Os olhos baixaram para o próprio colo. Ela comeu um pedaço da torta.

- Devido a esses anos de privação, estou bem acostumada a fazer tudo. Não me importo. É bom ficar ocupada.

- Pensei que lorde Hayden não a fosse deixar viver sozinha numa casa vazia.

- Recusei a generosidade dele. Mas não pude fazer o mesmo em relação a minha irmã caçula. Ela agora mora com eles. Alexia diz que sou orgulhosa demais, mas não foi
por isso que recusei. O marido de minha prima está pagando caro por problemas que não são dele. Fico grata, mas já me sinto culpada o suficiente sem aceitar uma
mesada.

Ela ruborizou ao dizer a palavra "culpada". Ele não entendeu se ela se referia aos pecados recentes ou aos do irmão Timothy. Se fosse aos do irmão, a culpa era infundada.

Ela era apenas mais uma das muitas vítimas de Timothy Longworth. Sem dúvida, o canalha também contava com a pensão de lorde Hayden para, ao menos, sustentar as irmãs
modestamente. Se isso havia ocorrido, uma pessoa daquela família não tinha sabido julgar o que outra acharia justo.

- A torta está muito gostosa - disse ele, após comer o último pedaço.

- Está só sendo gentil.

Mas ela gostou do elogio.

- Nem um pouco. Como muitas tortas de frutas e sei quando está boa. Às vezes como torta até no café da manhã, pois gosto muito. Tem uma macieira no pomar?

- Tenho. Gostaria de ver? Podemos dar uma caminhada. Mostrarei o pomar e a propriedade, se quiser.

- Estou sempre interessado nessas coisas.

Ela só voltou a falar quando os dois chegaram ao pomar. Ele adentrou na plantação de modo a ter um bom ângulo para ver os fundos da casa.

- Notei que seu interesse em casas e terrenos não é mero passatempo, Sr. Bradwell.

- Não é mesmo. Trata-se de um interesse profissional.

- É corretor de imóveis?

- Às vezes. Construo casas e a sua está me dando ideias.

- É arquiteto, então?

- Às vezes.

Ele deixou de olhar a casa a tempo de vê-la ponderar sobre suas respostas. Comprimia os lábios e semicerrava os olhos.

- É um daqueles homens que pegam uma propriedade e a dividem em lotes, não? Como têm feito tanto em Middlesex.

Ele teve certeza de que ela não aprovava a ideia. Muitos não aprovavam.

- Quem tem terras às vezes quer aproveitá-la. O bairro de Mayfair não existiria sem homens como eu, décadas atrás. Londres não teria praças.

Ele conhecia todas as objeções. Respondeu de antemão às que achava que Roselyn levantaria.

- Garanto que, quando projeto casas para essas pequenas propriedades, ninguém consegue perceber que elas não estavam lá havia gerações. Como eu disse, estou tendo
ideias com a sua casa.

- Eles podem exigir? As pessoas que alugam ou vendem seus terrenos podem exigir que as novas casas não prejudiquem o campo?

- Como nunca há terrenos suficientes para atender à demanda, podem exigir o que quiserem.

Sem comentar mais nada, ela foi andando pela plantação. Ele foi atrás por uma trilha que tinha quadrados de terra cultivada, mostrando que ali cresciam legumes e
flores no verão.

- Conhece bem a terra, Sr. Bradwell? Sabe avaliar o preço apenas em relação a novas construções ou também tem noções de agricultura?

- Conheço um pouco de agricultura.

- Então vou pedir sua opinião sobre uma coisa.

Passaram por um portão nos fundos e ela o conduziu por um campo cheio de capim e ervas daninhas. Em tempos melhores, devia ter sido um pasto. Um lugar para os cavalos
da família se alimentarem.

Ela subiu uma elevação até chegarem ao alto de uma colina. De lá, tinha-se uma linda vista, dando um panorama do campo ondulado. Telhados das casas de fazenda salpicavam
o terreno mais próximo. Deviam ser os arrendatários dela. Ele foi rápido em calcular o valor da propriedade. Lá longe, dava para vislumbrar as construções de Oxford,
a uns 30 quilômetros, talvez.

- Nunca pensou em vender? - perguntou ele.

- Não posso, não é meu. Mas um homem como o senhor me escreveu perguntando isso. Talvez o conheça. Chama-se Sr. Harrison.

- Conheço. O fato de o lugar ser próximo de Oxford interessa a ele.

- Ele mencionou que faria uma boa oferta, mas não havia por que incentivá-lo. Essa propriedade é da família e pertence ao meu irmão, não a mim. De minha parte, jamais
será vendida.

Desceram a colina e entraram num terreno de uns 2 hectares. Os restos de uma colheita enchiam seus sulcos escuros.

- Aqui é parte de uma das fazendas - explicou ela. - O arrendatário está saindo. Avisou-me há dois meses.

Portanto, não fora por causa do escândalo. Se ela dependia dos aluguéis, perder um inquilino seria desanimador.

- Haverá outro.

- Talvez não - falou ela e chutou a lama com a bota de cano curto. - Ele disse que a colheita foi ruim e está piorando a cada ano. E que o solo está fraco. Se isso
for verdade, pode não haver outro arrendatário. E se houver, o aluguel não poderá ser o mesmo.

Ele se agachou e encheu a mão de terra.

- Lembra se a terra alguma vez deixou de ser cultivada para descansar?

- Não que eu me lembre.

Ela se inclinou sobre o ombro dele para ver o que estava fazendo. Como, na verdade, ele não estava fazendo nada, ficou ciente do rosto e do corpo que se aproximavam.
Ciente demais.

Ele afundou mais os dedos no solo. Pegou a terra e colocou uma boa quantidade dentro do chapéu. Jordan não ia gostar.

- Conheço um homem na cidade que faz testes para ver se o solo está exaurido. Vou levar essa amostra para ele avaliar qual é o problema. Se não foi da terra, talvez
simplesmente seu inquilino não tenha sido um bom lavrador.

Ele se levantou. Ela havia se aproximado para olhar e, na hora em que ele se ergueu, os dois ficaram a menos de um palmo de distância. Roselyn levou um susto, como
se ele houvesse surgido do nada.

A feminilidade dela chegou até ele e o envolveu, trazendo lembranças daquele abraço rude na noite do leilão. O chapéu cheio de terra e até a paisagem sumiram enquanto
ele olhava o adorável rosto de Roselyn. Detalhes daquelas fantasias furtivas voltaram à mente dele.

Ela o encarou com uma cautela que a fez parecer muito jovem. Não parecia temerosa nem ofendida, só curiosa. E na expectativa, como se achasse que ele recuaria até
uma distância mais adequada.

A vontade dele foi fazer exatamente o contrário. Os olhos dela eram incrivelmente expressivos. Ele imaginou se ela sabia quanto revelavam. A tristeza dela nesse
dia, a preocupação com a terra e a solidão que agora suportava. E mais uma coisa. Sinceridade. Um reconhecimento da ligação que se formou entre eles naquela noite
que não permitira disfarces.

Ruborizada, ela virou a cabeça para desviar o olhar. Ele estendeu a mão e passou dois dedos pelo rosto incrivelmente macio dela, para então segurar seu queixo. Virou
o rosto dela para si.

O orgulho de Roselyn se desfez enquanto os dois se olhavam. Foi como se voltassem à estrada enluarada da casa de Norbury, só que agora era dia e o sol mostrava melhor
as reações dela. Cautela. Surpresa. Confusão. Isso o hipnotizava tanto quanto a beleza dela, aumentando o latejar do sangue no corpo dele e o pulsar da pequena distância
que os separava.

Mal tocou nela, mas sentiu um tremor sutil.

Ela não é para gente da sua laia, rapaz.

Verdade, sem dúvida. Mesmo assim, beijou-a.

Foi um beijo rápido, embora ele quisesse bem mais. Tanto, que não confiou em si mesmo. A maciez dos lábios dela e o dócil calor consentido lembravam o primeiro beijo
que dera, anos atrás.

Ela enrubesceu. Recuou, desajeitada, dando certa distância dele.

Olhou direto para ele e dessa vez não havia confusão. Era quase triste, quão compreensivos eram os olhos dela.

- O senhor me disse que não tinha expectativas desse tipo.

- Eu disse que aquela noite não era algo que me levaria a ter expectativas. A senhorita é linda, eu não seria homem se não notasse.

Sua postura de segurança voltou.

- Nas atuais circunstâncias da minha vida, ser vista dessa maneira é um pouco ofensivo. Vou sempre me perguntar se meu admirador pensa que sou o que aquele escândalo
diz.

- Sou o único homem na Inglaterra que não vai pensar nada, porque sei de tudo. Mas para poupá-la de pensar o que devo estar pensando e de sentir qualquer ofensa,
tentarei ficar indiferente à sua beleza. Não creio que consiga.

Ela riu da brincadeira. Ou, talvez, de si mesma. Virou-se para a casa. Apontou para o chapéu dele enquanto andava:

- É muito gentil me ajudar de novo. Acho que vai estragar seu chapéu.

- O chapéu não interessa. Carregando a terra no chapéu, ele apertou o passo para alcançá-la. Ela se virou na direção da casa com objetividade. Ficou com a expressão
um pouco constrangida com o que pensou.

Quando chegaram ao pomar, ela parou sob os galhos da macieira. Ele imaginou que estivesse insegura sobre levá-lo para a casa agora. Não era boba, tinha visto e percebido
o que ele sentira quando estavam no campo.

- Qual é o seu nome de batismo, Sr. Bradwell? Se me rouba um beijo, acho que tenho o direito de saber seu nome.

Ele não tinha roubado nada e ela sabia.

- É Kyle.

- Kyle. Gosto desse nome. Lorde Norbury disse que o senhor vem das minas de carvão de Durham. O que ele quis dizer com isso?

- Que nasci numa família de mineiros num vilarejo ao norte.

- E agora às vezes é arquiteto, às vezes é corretor de imóveis e tem interesse profissional por casas e terras. É uma história incomum.

- Tive um benfeitor e, assim, pude estudar. Ele me enviou à França para aprender engenharia e arquitetura.

- França! Sua história é ainda mais incomum do que eu pensava. Imagino que o benfeitor tenha ficado satisfeito com o investimento. Pelo jeito, teve educação completa.

Ela olhou-o, assimilando os resultados daqueles anos de melhoria. O comentário tinha sido um elogio, e ele o aceitou.

- Gosto de pensar que ele está satisfeito. Essa aprovação é importante para mim.

O sorriso dela mudou. Pareceu querer reconfortá-lo, o que deixou paternalista. Contudo a calidez do olhar o encantava, então ele não se incomodou. Naquele dia, algo
lhe roubara a alegria. O sorriso lhe trouxe um pouco de vida novamente.

- Vou indo, Srta. Longworth. Obrigado pela torta e pelo passeio por sua propriedade - despediu-se ele e ergueu o chapéu. - Aviso quando souber sobre a sua terra.

Caminhou para o portão lateral do pomar. Uma das dobradiças estava quebrada, precisou erguer o portão para passar. Foi até o cavalo e calculou como transportar um
chapéu cheio de terra enquanto montava.

Não queria perder aquela amostra de solo. Era sua desculpa para ver a Srta. Longworth de novo.

 

CAPÍTULO 5

-Não precisa esperar. Não vou fazer nada agora. Talvez lá pelo fim da semana, se tiver tempo.

Jean Pierre falou distraído, dispensando Kyle com um gesto. Continuou atento ao conjunto de tubos e provetas que formavam uma cidade de vidro em uma comprida mesa
entre os dois.

Ele baixou a cabeça e supervisionou um aparelho que destilava um líquido. Kyle viu através do vidro grosso o rosto delicado e os olhos semicerrados de Jean Pierre,
que ficaram ampliados, distorcendo os traços franceses que enganavam tão facilmente as mulheres ajuizadas.

A terra da Srta. Longworth estava agora numa caixinha de madeira na mesa de trabalho de Jean Pierre, no atulhado laboratório instalado no sótão. Aguardava para ser
analisada quando o jovem químico se dispusesse a lhe dedicar seu tempo.

Kyle conhecia os diversos assuntos que podiam atrasar tal análise. Jean Pierre Lacroix havia estudado com alguns dos grandes cientistas franceses, cujos nomes citava
sempre. Isso o fizera receber ofertas de trabalho em Londres que sustentavam tanto suas pesquisas quanto seus pecados.

Kyle contornou a mesa e sentou numa cadeira que ficaria no caminho de Jean Pierre.

- Não quero esperar até o fim de semana. Até lá você vai se esquecer completamente disso. A flor que vem cultivando por certo será colhida amanhã ou depois, então
você passará duas semanas sem fazer testes.

Jean Pierre reprovou o comentário com um tsc, tsc, tsc. Levou a mão acima de Kyle para pegar um prato com alguns grãos metálicos verdes. Kyle se moveu o suficiente
para atrapalhá-lo.

- Mon Dieu, você é um estorvo. Vá embora.

Kyle mostrou a caixa de madeira.

- A terra. Faça já.

- A terra, a terra... por que quer saber? Você não cultiva nada nela, só a retira para construir algo no lugar.

- É para uma amiga. Uma lady.

- Uma lady. Vocês, ingleses, não usam essa palavra por nada. Esta é a terra daquela mulher que não foi nem um pouco discreta quando nos divertimos semana passada,
não? Toma bebidas fortes, mon ami, e isso é muito desagradável. E se ela o incomoda com preocupações a respeito de terra...

Ele deu de ombros.

Kyle sabia o que significava aquele dar de ombros. Desde que os dois se conheceram, quando estudavam em Paris, aquele gesto casual queria dizer que o francês tinha
muito mais a dizer, mas achava que seria perda de tempo.

- Não é a moça ousada, bebedora e afeita a jogos. É outra.

Um brilho de contentamento surgiu nos olhos de Jean Pierre. Ajustou a chama sob o vidro de destilação e olhou atentamente para Kyle.

- Outra?

- Outra.

- Fiquei com medo que tivesse se esquecido da sua sorte nessas últimas semanas, mas, ah, c' est bon, não é tão cego assim. Sou como um tio velho, pensando que você
seria burguês demais para aproveitar as oportunidades nesses escândalos que vocês, ingleses, fazem por coisas pequenas.

Riu com malícia e balançou o indicador:

- Eu devia saber que você é inteligente demais para perder uma bonne chance e...

- Do que, diabos, você está falando?

- Dessa "lady" da terra. Outras "ladies" também, e muitas outras que são bem menos que isso. Tantas procuram você agora. Querem saber do homem que pagou uma fortuna
para proteger uma prostituta. Todas as minhas amigas perguntam quem é você - contou ele, e suspirou. - Tantas perguntas são um tormento.

- Não me aproveitei desse escândalo, mas, pelo jeito, você sim.

- Elas descobrem que o conheço e grudam em mim como moscas. É verdade, algumas pensam que você é um idiota ou um camponês que se faz de virtuoso, mas muitas se apaixonaram,
você pode imaginar.

Jean Pierre assumira o papel de escudeiro. Não era de estranhar que estivesse tão ocupado nesse dia. Provavelmente, fazia dias que não aparecia naquela bancada de
trabalho.

Jean Pierre olhou para Kyle.

- Você parece tão ausente. Tão... inglês. Não me diga que não se aproveitou desse escândalo. Não diga que recusou os convites que recebeu. Expulso-o daqui e nunca
mais tomo vinho com você.

Os conselhos de Jean Pierre costumavam ser assim: mandavam Kyle atrair o máximo de mulheres disponíveis enquanto ainda era jovem, rico e solteiro.

Kyle não dava ouvidos. Administrava a seu jeito essa parte de sua vida. Não era um monge, mas, para decepção de Jean Pierre, também não era um libertino. Nos últimos
tempos, Kyle de fato recebera muitos convites para jantar. Mas simplesmente não estava interessado em banquetes que resultassem daquela noite, fossem eles servidos
numa mesa ou numa cama.

A menos que a oferta viesse da Srta. Longworth.

- A terra - disse ele, apontando. - Se você se aproveitou da minha fama, trate dessa terra já.

Jean Pierre revirou os olhos. Pegou a caixa e a colocou com estrondo sobre a mesa. Começou a separar pequenos frascos com líquidos.

- Não me diga que agora vai comprar terras e se tornar um bom e maçante fazendeiro inglês.

- Você tem uma longa lista de coisas que não posso dizer. Tão longa que me deixa sem palavras. Então vou só ficar sentado aqui observando.

- Está bem.

Jean Pierre colocou pequenas quantidades da terra em vários tubos compridos de vidro. E começou a despejar os líquidos dentro.

- É apenas uma tese, entende? Mas é uma boa tese e acredito que tenha fundamento. Sabemos de quais elementos químicos a terra precisa para fazer as plantas crescerem.
Vejamos se essa terra os tem.

O último líquido gotejou dentro do tubo. Jean Pierre tampou todos, sacudiu-os e os colocou numa prateleira.

- Agora, vamos aguardar.

Abriu um armário, pegou uma garrafa de vinho, duas taças e guiou o amigo para uma mesa ao lado da janela, de onde se avistava a rua Cheapside.

O céu de dezembro estava baixo e cinzento. Um fogo agradável crepitava na lareira. As cadeiras de ferro forjado pareciam as dos terraços e varandas da França. Jean
Pierre tinha recriado um pouco de sua terra natal naquela janela, que sempre lembrava Kyle dos anos que passara lá.

O ensino formal tinha sido rigoroso e esclarecedor, mas ele também aprendera outras coisas em Paris. Cursara disciplinas de cunho sexual, claro. Jean Pierre cuidara
disso. Mais interessante fora testemunhar a mudança de costumes. Napoleão tinha morrido, a Revolução acabara há bastante tempo e um rei estava de novo no poder,
mas os gritos de egalité tinham mudado o país para sempre.

Não totalmente, claro. Mesmo na França, quando se tratava de casamento, o status familiar era importante. A diferença era que o país não aceitava que esse status
regesse todas as áreas da vida.

Teria sido por isso que Cottington o mandara para lá? O lorde não era um radical. O mais provável era que tivesse escolhido a França por causa de Norbury, que já
havia começado a se irritar com o constante papel de benfeitor do pai.

- Tenho pensado em me casar - falou Kyle e esticou as pernas para tentar se pôr à vontade.

Era bem mais alto que Jean Pierre e as cadeiras de ferro, apesar da beleza, deixavam a desejar em termos de conforto.

- Ainda não me decidi, mas estou pensando.

- É a lady dona da terra?

- É.

- Ela é uma lady mesmo?

- Sim, mas como a sua mademoiselle Janette, de quando o conheci.

- Ah, oui. Bom berço, parentes corruptos, sem dinheiro - falou Jean Pierre, depois ergueu a taça de vinho e completou: - E, pelo jeito daqueles tubos ali, a terra
é fraca. Parabéns.

- Você não aprova a minha escolha.

- Essa mulher vai lembrá-lo todos os dias de que você não está à altura dela. Você vai esvaziar os bolsos na vã tentativa de fazê-la feliz. Seus próprios filhos
vão se considerar acima de você. Não, eu não aprovo.

Ele sempre esperava que Jean Pierre desse respostas curtas e diretas. Pela experiência com o francês, Kyle sabia que a sutileza era a última coisa que se aprendia
numa idioma e muitas vezes, não se chegava a atingi-la.

- Quem é essa moça? - quis saber Jean Pierre, apertando os olhos na direção dele.

- A Srta. Longworth.

- Achei que fosse. É bem típico de vocês, ingleses - falou ele, inclinando-se para a frente e apoiando os braços na mesa. - Graças ao seu cavalheirismo, você agora
se acha responsável por ela. Ela é linda e você fica lisonjeado com a gratidão dela. Por isso, se sente obrigado a salvá-la do resto.

Jean Pierre estava entendendo muito bem a história e tocando em mais verdades do que Kyle gostaria.

- Vou lhe contar o que realmente acontecia com as donzelas em perigo, mon ami. No meu país, ainda temos os antigas canções e romans, por isso sabemos a verdade.
O cavaleiro salvava a linda dama, que ficava muito agradecida. Ele então a levava para o campo ao lado da estrada, tirava a roupa dela, transava gostoso e, depois,
montava no cavalo e ia embora.

Kyle teve de rir.

- É quase o sonho que tive na noite passada.

- Seu sonho sabe que você não precisa casar só porque gosta dela e a deseja. Ela agora vai ficar contente com qualquer coisa. Por que casar-se com uma mulher dessas,
da qual o país inteiro fala?

É mesmo, por quê? Principalmente, porque a desejava e se considerava um homem melhor do que abutres como Norbury. Ou talvez porque o destino tivesse criado uma rara
situação em que ela poderia aceitá-lo como marido.

Isso não significa que ele não houvesse pensado na outra possibilidade. Ela já havia se entregado uma vez e sua visita o convencera de que provavelmente poderia
se entregar de novo. Sobretudo a seu cavaleiro.

- Recebi uma proposta para isso - contou ele.

- De quem? Dizem que o irmão dela fugiu por causa de dívidas. O que é outro obstáculo.

- A proposta não veio da família dela. Veio de outra pessoa.

- Então não vai ser boa o bastante. Almas bondosas nunca são generosas com relação a dinheiro. É mais provável que mandem rezar missas em sua intenção e prometam
uma recompensa no céu.

- Na verdade, foi uma ótima proposta.

- Vraiment? Ótima até para você?

- Até para mim.

Jean Pierre ficou impressionado. Serviu mais vinho.

- Por que não disse antes? Isso muda tudo.

 

Roselyn subiu a colina que ficava além do campo atrás de sua casa. Não se importou com o dia nublado e frio, nem com o vento que feria seu rosto. Não notou as folhas
mortas que rodopiavam em torno de suas pernas. Em sua imaginação, estava ao sol num dia quente, num mundo cheio de flores que jamais murchavam.

Puxou o manto em volta de si e sentou-se na colina. Ficou de costas para o vento, no lugar onde conseguia enxergar mais longe. Pegou duas cartas dentro do manto.
Cada uma delas prometia uma pausa na solidão implacável.

No dia anterior, encontrara as cartas à sua espera no vilarejo, quando foi comprar mantimentos. Ao lê-las, foi como se uma luz voltasse ao seu mundo sem graça.

Uma carta viera de Londres, de uma mulher que ela não conhecia. Era Phaedra Blair, recém-casada com Elliot, irmão de lorde Hayden. Era famosa por seu comportamento,
suas maneiras e suas ideias ousadas. Escrevera para se apresentar e dizer que o exílio a que Roselyn estava condenada era terrível e injusto.

Não se tratava de uma mulher que falasse sem agir, por isso Lady Phaedra escrevera também que possuía uma casinha perto de Aldgate, que Roselyn poderia usar quando
quisesse ir a Londres. Deixara bem claro que Roselyn seria recebida por ela e pelo marido, que se recusavam a compactuar com a hipocrisia do mundo.

Rose achou graça das palavras escritas com firmeza, quase estridência. Lorde Elliot teria uma vida muito interessante.

O riso a surpreendeu. Que coisa estranha. Quando fora a última vez que rira? Olhou para o horizonte e tentou se lembrar. Fazia semanas, sem dúvida. Meses, talvez.
Estava tão desacostumada a ser feliz que ficara meio tonta de alegria.

Olhou a outra carta que causara aquela sensação inesperada.

Tim escrevera de novo. Ela levara um susto ao reconhecer a letra no envelope. Não era possível que a carta dela tivesse chegado a tempo de ser respondida. Assim
que a abriu, viu que não era uma resposta, mas novidades.

Tim não chegaria a receber a carta, pois estava saindo da cidade francesa de onde escrevera. Mas ele tinha adivinhado os pensamentos da irmã e agora a convidava
a encontrá-lo na Itália, de onde ele mandaria notícias assim que se acomodasse.

Leu as justificativas dele. Tim não sabia que não era preciso insistir muito para que ela fosse. Ainda não tinha conhecimento de que a Inglaterra não teria mais
nada a oferecer a ela.

Falava em viagem e aventura. Prometia montanhas e mar, Florença, Roma e mais. Na noite anterior, ela não conseguira dormir, ficara animada demais com as perspectivas.
Tinha passado tanto tempo desanimada e agora parecia embriagada de esperança.

Deitou-se na grama e olhou para o céu. Diziam que o Continente era mais ensolarado que a Inglaterra. Ela já sentia o calor. Dava uma felicidade, que, por sua vez,
trazia uma imensa sensação de liberdade.

Ficou contente pelo fato de Tim ter escrito antes de receber a carta. Isso significava que realmente queria que ficasse com ele, não estava apenas sendo gentil.
Os dois irmãos agora estavam sós e desgraçados. Fora do país, teriam liberdade e formariam de novo uma família.

Ela se levantou e foi para casa. Naquela tarde, daria uma olhada nas roupas que tinha guardado, as que usava na época em que a família, arruinada, deixara Londres.
Ainda demoraria um pouco até encontrar Tim, mas podia preencher seus dias com sonhos e planos.

Entrou no jardim pelo portão dos fundos. Ao passar pela macieira, seus pensamentos foram perturbados por um barulho. Com mais curiosidade do que cautela, caminhou
na direção do som de marteladas no portão lateral.

Uma camisa branca, luminosa naquele dia cinza, não a deixou ver o portão. Cobria as costas largas e os ombros fortes, entrando pelo cós de uma calça masculina. Braços
e mãos bronzeados surgiam sob as mangas enroladas da camisa, segurando o portão pelas laterais. Uma cabeça de cabelos negros se virou, mostrando um perfil forte.

O Sr. Bradwell não a ouviu enquanto erguia o portão e o encaixava com cuidado nas dobradiças, uma delas reluzindo de nova.

O linho macio da camisa e o bonito tecido da calça revelavam as formas de seu corpo quando ele se movimentava. O vento agitou seus cachos negros, misturando-os de
um jeito sedutor. Apesar do colarinho e da gravata, ele parecia despreocupado, romântico e muito competente.

Um empurrão forte e um som de encaixe e o portão voltou a funcionar sem problemas. Bradwell o testou um pouco, depois começou a desenrolar as mangas da camisa.

Só então a notou. E não se incomodou nem um pouco que o visse consertando o portão. Cumprimentou-a enquanto se ajeitava.

Ela foi até o portão e examinou o conserto. Tinha estado quebrado por anos.

- Reparei que precisava de conserto, quando vim aqui outro dia - explicou ele, pegando seus casacos na grama.

- Obrigada.

Ela parecia sempre ter algo a lhe agradecer.

- Estava de passagem pelo condado outra vez, Sr. Bradwell?

Ele vestiu a sobrecasaca e se endireitou. Parecia muito correto agora. Ela o preferia trabalhando e com menos roupas.

- Vim de Londres só para vê-la, Srta. Longworth. Tenho notícias sobre sua terra e um recado de sua prima.

Isso ele podia ter mandado por escrito. Ela desconfiava de que, na verdade, ele viera por causa daquele beijo. Antes de terminar a visita, decerto tentaria beijá-la
outra vez.

Ficara óbvio que ele a desejava. Ah, não que ele a encarasse ou olhasse com malícia. O desejo apenas deixava o olhar dele mais direto e reduzia um pouco a vitalidade
que ele emanava. Aquele homem sabia esconder suas carências, mas não conseguia controlar o fato de que seu interesse criava tamanha tensão que afetava o ambiente
à sua volta. E a afetava. Naquele dia, estava feliz demais para mentir para si mesma a respeito disso.

Ela talvez devesse se ofender. Mas, nesse dia, isso não tinha importância. Nem o interesse dele, nem a reação dela.

Talvez ela o deixasse beijá-la. E nem sequer se magoaria quando ele lhe propusesse o arranjo que outro beijo poderia incentivar. Mancharia a lembrança daquela noite.
Ele se revelaria menos cavalheiresco no final, mas isso também não teria importância agora.

Logo ela partiria. Dentro de algumas semanas, Roselyn Longworth desapareceria por completo.

 

- Por favor, entre e conte as novidades.

Ela seguiu na frente, em direção à casa. Nesse dia, parecia bem mais feliz. E muito bonita. Sempre linda.

Kyle notou folhas de grama no manto dela, enquanto a seguia. Ela havia colocado o manto na grama, lá nas colinas. Como estava frio, desconfiou que ela não o tirara
para isso.

Imaginou-a sozinha, uma figura isolada estirada na grama sob o céu. Entendeu por que ela gostava de olhar para o imenso espaço infinito. Aquela casa era ótima, mas,
mesmo assim, era uma prisão.

- Acho que hoje não tenho torta para lhe oferecer - disse ela, tirando o manto e sacudindo a grama dele. - Na verdade, não tenho nada para oferecer.

- Sua prima mandou algumas coisas. O cesto está na porta de frente. Se me permite...

Estavam na sala de estar. Roselyn concordou mexendo a cabeça enquanto colocava um pouco de carvão na lareira. Ele trouxe o cesto. Ela se sentou numa das cadeiras
e deu uma olhada nos presentes, pegando em cada um e sorrindo, satisfeita.

Colocou as caixas de chá e os biscoitos na mesinha. Enfileirou o saco de café, a garrafa de vinho e o pote de mel.

- O que é isso no fundo do cesto? - perguntou, olhando para o grande embrulho.

- Acho que é alguma ave assada. Pato ou ganso, eu creio.

Ela riu. Ele nunca a vira rir. De maneira tão espontânea assim. Uma linda risada. Sonora. Angelical.

Cuidado, rapaz. Daqui a pouco, vai escrever poemas melosos.

- Tão típico de Alexia. Luxos, mas práticos. Coma comigo o assado e beba o vinho, Sr. Bradwell. Teremos um banquete.

- Era melhor guardar para você.

- Bobagem - falou ela, pondo o cesto no chão. - Então, qual foi a avaliação do solo?

Ele se sentou em outra cadeira, com a mesinha entre os dois e a lareira os aquecendo.

- Os testes são baseados numa teoria. Mas parecem provar que o solo está exaurido. Seus irmãos jamais pediram aos arrendatários que fizessem revezamento do que cultivavam?
Hoje se sabe que isso é muito útil. Ele deveria pelo menos ter exigido que, de três em três anos, deixassem o solo descansar.

- Meu pai recebia os aluguéis e mais nada. Os interesses dele estavam na cidade, não aqui. Depois que ele morreu, ninguém administrou a propriedade direito. Presumimos,
erroneamente ao que parece, que os camponeses saberiam cuidar da terra e não a deixariam perder produtividade.

- Eles ficam tentados a usar toda a área disponível sempre. Muita gente esgota um campo e muda para outro.

Ela deu de ombros.

- Parece que sim.

O dar de ombros foi a única reação. Ele tinha trazido notícias bem ruins, que afetariam as magras rendas dela, mas ela parecia não se importar.

Os olhos dela brilharam quando passou o dedo elegante e afilado pela borda da caixa de chá. Ele observou aquela carícia distraída e a imaginou nele, escorregando
corpo abaixo. Trincou os dentes para controlar o que aquele pequeno devaneio lhe causou.

Ficou contente por ela não estar triste nesse dia, só que ela parecia quase embriagada. Ele não se iludiu pensando que aqueles sorrisos largos e olhos brilhantes
fossem provocados por sua visita.

- É um mal mentiroso, Sr. Bradwell. Alexia não mandou esse cesto pelo senhor. Acho que o senhor o comprou.

- Por quê?

- Alexia teria enviado chá de outra marca e biscoito de outro tipo. Também incluiria sabonetes, grampos de cabelo e outros luxos que não enchem a barriga.

Ela sorriu de forma travessa. Realmente, estava animada nesse dia. Vivaz. Quase coquete.

- Desmascarou-me, Srta. Longworth. Quis evitar constrangimentos dizendo que tinha sido sua prima.

- O presente é por causa daquele beijo? O cesto deve ter no mínimo 10 xelins de mantimentos e aquele beijo mal valia 1 xelim. Pode ser, então, que espere receber
mais nove.

Ela agora estava ficando impulsiva.

- O cesto não tem nada a ver com o beijo, mas com a minha preocupação com sua saúde e seu bem-estar. E, talvez, com deixá-la menos triste por causa da notícia sobre
sua terra.

- Naturalmente. Perdoe-me por contestar seus motivos.

Os olhos dela zombavam das palavras sérias. Começou a colocar os mantimentos de volta na cesta.

- Vamos fazer uma boa refeição. Se o senhor participar, os motivos para trazer o presente não terão importância. Embora, de certa maneira, nada mais importe.

Ele tirou o cesto das mãos dela, quando ela se levantou. Acompanhou-a à cozinha. O jeito dela o deixava lisonjeado e, ao mesmo tempo, excitado. Seu desejo se inflamava
feito óleo tocado por uma tocha.

Mas o comportamento dela o incomodava também, não porque fosse muito franca e tivesse perdido aquela graça tranquila. Ela agia como quem houvesse decidido algo que
fazia tudo o mais ficar irrelevante.

Imaginou o que ela pensara enquanto se deitava na grama sob o céu cinzento.

 

Ele ficou perto da mesa da cozinha, observando-a desembrulhar os mantimentos. Era, de fato, um homem bonito. À medida que o "a seu modo" se tornava mais familiar,
ficava mais atraente ainda. Os olhos, principalmente, chamavam a atenção. Olhos inteligentes. Às vezes intensos, como agora, quando acompanhavam os movimentos dela.
Intensos demais, talvez, levando-se em conta que ela não fazia nada de especial para merecer tanta atenção.

Rose agora achava os trajes dele menos apropriados. A impressão que ele tentava causar, de ser um homem rico, discreto e reservado, só valia para quem nunca o tivesse
visto com outras roupas.

Mas ela o vira sem aqueles casacos e roupas. Vira-o com as mangas da camisa dobradas, o vigor aparecendo sob o linho branco, os braços retesados ao peso daquele
portão. As roupas domavam um espírito que vinha à tona quando elas eram retiradas. Era como se pusessem gravata e colete num cavalo selvagem.

A atenção dele causava aquela estranha animação que sempre a fazia cantarolar baixinho. Ela gostava desse estímulo. Naquele dia, achou inútil se conter. Estava feliz
demais para ter medo, ficar irritada ou preocupada.

Ela aqueceu água para o chá. O assado que ele trouxera era de ganso e ainda estava morno. Devia ter sido comprado num vilarejo ou cidade próximos.

- Tive a impressão de que não se incomodou muito com as notícias que dei sobre sua terra - comentou ele. - Sinto um alívio por não ter lhe causado preocupações.

Ela pôs sobre a mesa da cozinha uma tábua com um pouco de queijo e pão, além do ganso assado.

- Dentro de pouco tempo aquelas terras e aluguéis não terão importância. Não vou mais precisar deles. Agradeço ter feito o que pôde por mim.

Ele franziu de leve o cenho quando os dois se sentaram para a refeição.

- E não quis saber qual é o recado da sua prima.

- Céus, é verdade. Que descuido. Conte, o que disse Alexia?

- Disse que ficou muito triste com a carta do seu irmão e que sofre por não poder estar com você. E que você vai receber uma carta da esposa de lorde Elliot e espera
que aceite a oferta da casa de Lady Phaedra em Londres.

- Recebi a carta. Alexia vai querer escapulir e me visitar se eu usar a casa. Mas talvez para uma última ida à cidade... É, pode ser.

Ela o viu recolher-se aos próprios pensamentos enquanto jantavam. Ele era uma visita e ela não o ignorava. De todo jeito, seria impossível ignorar aquele homem.
Mas o silêncio dele lhe permitiu pensar nas ensolaradas aventuras que esperava desfrutar dentro de alguns meses.

- Está bem mais alegre hoje, Srta. Longworth.

- Imagino que seja bom constatar isso.

- Claro. Mas a sua indiferença quanto ao futuro e aos problemas com suas terras, o desinteresse pelo recado de sua prima... não tenho o direito de me preocupar,
mas a sua disposição hoje me preocupa mais do que a sua tristeza na última vez em que estive aqui.

- Não devia. Se estou um pouco agitada, ou indiferente aos detalhes da minha vida, é porque espero acabar logo com essa vida, com esse escândalo e essa solidão.
Tomei uma decisão, Sr. Bradwell. Partirei para nunca mais voltar.

A expressão dele se desfez. Primeiro olhou-a assustado, depois, com uma firme determinação. Recostou-se na cadeira, cruzou os braços e a encarou de forma direta.

- Não, não vai. Não permitirei.

- Não pode me impedir. A decisão é minha.

- É uma decisão maléfica.

Sua força contida se fez sentir. Passou por ela como um vento forte.

- Eu devia ter entendido o que era a sua tristeza. Vou falar com sua prima e com lorde Hayden e vamos encontrar um lugar para que possa descansar, longe deste vilarejo
e desta maldita intriga. Em poucas semanas a senhorita verá que...

- Sr. Bradwell, por favor.

Ela estendeu a mão, interrompendo-o. Ele tinha entendido mal, totalmente.

- Sr. Bradwell, suas conclusões são muito sombrias, além de erradas. Não estou triste. Não vou fazer mal a mim mesma, se foi o que pareceu. Só vou embora. Vou para
o Continente. Aguardo apenas a carta de uma pessoa.

Ele ficou paralisado. Olhou pela janela ao lado da mesa e ficou observando o que fosse.

- Disse que vai para o Continente.

- Sim, Itália.

- Quem é essa pessoa?

- Não é da sua conta, certamente.

Ele não se incomodou com a reação.

- Vai deixar sua irmã? Sua prima?

- Já não posso vê-las, nem elas a mim.

- Como vai se sustentar?

- Estarei ótima. Alegre-se por mim, por eu receber a oportunidade de ter outra vida. É muito melhor do que ficar enterrada viva nesta casa. É a decisão certa. A
única que propicia um futuro.

Ele a encarou. A intimidade que tinham aumentava a intensidade do olhar. Não era apenas a familiaridade de dois amigos. Ele era um homem e ela, uma mulher; ele sabia
demais sobre ela.

Súbito, brotou nela a excitação que ele era capaz de provocar. Seu sangue ferveu. Sentiu-se como naquele dia no campo, antes de ser beijada: esperançosa, vulnerável
e em desvantagem.

- Duas mulheres viajando sós? Na Itália? Não é seguro, nem sensato. Quem vai proteger as duas? Sua amiga tem criados, pelo menos?

Ela não quis responder. O fato de tê-la ajudado naquela noite não dava a ele o direito de interrogá-la daquele jeito.

- Não é uma amiga, é? - insistiu ele, escondendo um pouco de sua desaprovação e demonstrando mais preocupação que censura. - Seja lá quem for ele, vai acabar deixando-a.
E se isso ocorrer quando estiver no exterior? E se as intenções desse homem forem ainda piores do que as do anterior? No Continente, não poderá recorrer nem à sua
prima.

- Não é um amante. Não é esse tipo de pessoa.

- É o que ele diz, por enquanto.

- Conheço esse homem muito bem. Sei que estarei segura. Não é o que está pensando.

Tanta preocupação da parte dele a deixava sem jeito. Sua desaprovação fendia o ar.

- Não é a única escolha - disse ele. - Se não vai viajar para um lar seguro e um futuro seguro, não é nem a escolha certa.

- É melhor do que isto aqui.

A frase saiu quase sibilada. A insistente contrariedade dele a incomodava. Estava tão feliz, e ele acabara com tudo fazendo uma ladainha a respeito de questões práticas.

- Essa não é a sua única escolha.

- É mesmo? Quem sabe trouxe mais notícias? O perdão do arcebispo de Canterbury, da rainha da Inglaterra, das mais seletas damas da sociedade londrina? Quem sabe
Alexia tenha mandado me avisar da herança de um parente rico e desconhecido?

- Se eu fosse mágico, faria tudo isso acontecer. Mas você pode ter a metade, sem mágica. Pode ter segurança e conforto. Ter a sua irmã, a sua prima e dar um grande
passo para recuperar a sua reputação.

Ele não lhe dera falsas esperanças naquela noite do leilão. Era uma decepção que desse agora.

- O que está dizendo só acontece por mágica, senhor. Não pinte lindas paisagens sentimentais para me fazer desistir do meu plano. São promessas condescendentes e
cruéis.

- Nunca pinto lindas paisagens, Srta. Longworth. Eu projeto estradas onde as carruagens vão passar e casas onde as pessoas vão morar. Refiro-me apenas ao que pode
ser seu. Precisa apenas casar-se com um homem respeitável e estabelecido - explicou ele e deu um meio sorriso. - Um homem como eu, por exemplo.

 

CAPÍTULO 6

Roselyn olhou bem para ele. Sugerira um casamento com uma calma incrível e sem nenhuma cerimônia. Tinha sido quase um aparte, uma simples frase para mostrar que
seu argumento era válido.

Ela ficou pasma alguns minutos até concluir que ele falava sério. Tinha acabado de pedi-la em casamento.

- O senhor tem uma tendência incorrigível, Sr. Bradwell. Já se precipitou duas vezes ao se posicionar a meu respeito. Creio que na última vez isso lhe custou caro.

- Jamais faria essa proposta se não tivesse pensado nela com cuidado.

O susto se foi, trazendo uma agitação interna. Ficar sentada sob o olhar dele a deixava em desvantagem, por isso ela se levantou. Como, por educação, ele fez o mesmo,
não adiantou nada.

- Só está sendo gentil.

Ele balançou a cabeça de leve.

- Não sou tão generoso assim.

- Todos vão zombar de você. Sou o escândalo da estação.

- Se nos casarmos, todos vão reavaliar o escândalo. Vai demorar para que recupere o lugar que tinha na sociedade há um ano, mas sua prima e a família do seu cunhado
a receberão de volta imediatamente.

E o receberiam também. Ele tinha imaginado isso, enquanto avaliava possíveis perdas e ganhos.

A confusão dela sumiu. Imaginou as contas feitas. Sabia o que tinha acontecido.

- Sr. Bradwell, já passei bastante da idade de casar. Nunca pensou por que fiquei encalhada?

- Não encontrou um homem que lhe conviesse. Ou não se interessava pela condição de casada e podia escolher o futuro que bem entendesse.

O que não pode mais. Se ele pensava assim, enganava-se. Ela podia esperar notícias de Timothy. Podia ir embora.

- Não recebi propostas de casamento quando era moça. Morávamos aqui e não tínhamos dinheiro. Mais tarde, depois do investimento no banco, depois que meus irmãos
enriqueceram, tive várias propostas. Os pedidos vinham de homens de todas as faixas sociais, mas sempre, sempre, havia mais interesse pelo dinheiro do que por mim.
Preferi não me casar se fosse apenas para melhorar as finanças de um homem.

- Entendo. Precisou empobrecer para acreditar que um homem podia ser motivado pelo afeto em vez da avareza. Acho que é compreensível. Explica também por que se entregou
a Norbury, após recusar ofertas mais honradas.

Ela sentiu o rosto quente. Ele a via com uma suave firmeza que dava a entender que compreendia mais do que ela gostaria.

- Srta. Longworth, não é mais irmã de um banqueiro rico.

- É verdade. Agora não sou nada. Há tantos motivos contra esse pedido de casamento precipitado que fico imaginando por que o fez. Não foi por pena, espero.

Ela precisava se mexer, reduzir aquele agitado tamborilar do coração. Começou a embrulhar e guardar as sobras da refeição. Foi levar os pratos para a tina, do outro
lado da cozinha.

Ele continuou perto da mesa e da janela, mas se intrometia em cada centímetro da cozinha.

- Não foi por pena - disse ele, finalmente. - Admito que fiquei um pouco preocupado, mas não com pena.

Ela colocou os pratos na tina. Não estava lidando direito com aquela situação. Era melhor desanuviar o ambiente e falar com sinceridade. Ele merecia.

Virou-se para encará-lo. No mesmo instante, percebeu que tinha sido um erro.

A atenção dele funcionava como uma corda puxando-a pela cozinha. Os olhos eram cálidos e divertidos, o rosto tinha um vago sorriso. Tudo isso mostrava que ele estava
preparado para um desafio e não se furtaria a encará-lo.

- Lorde Hayden o mandou fazer isso, não foi? Alexia pediu que ele o procurasse, claro, e ele fez uma proposta. Quanto lhe ofereceu?

- Lorde Hayden não sabe disso. Ele não ofereceu nada.

O tom da voz dele quase a convenceu. Quase. Se estava sendo sincero, o que ela não acreditava, era um idiota.

- Então pede em casamento uma mulher desprezada porque tem certa preocupação com ela e porque frequentará a casa dos parentes da prima dela? Para um homem de negócios
bem-sucedido, não faz boas trocas.

O rosto dele endureceu o suficiente para mostrar desagrado pela crítica.

- Está bastante convicta de que desvendou minhas intenções. Mas esquece o mais importante. Eu ganho algo mais além das pequenas vantagens que citou.

- Não sei o que seria.

- Você, Srta. Longworth. Você para mãe dos meus filhos e esposa na minha cama.

Ele se aproximou. Os casacos não mais controlavam o homem. Ele podia estar sem eles, com o vento soprando nos cabelos negros e na camisa solta. A expressão dele
a surpreendeu. Ciente. Segura. Arrasadora.

Cada passo dele puxava mais um pouco aquela corda. Ela se segurou na beira da mesa. Foi jogando o corpo para trás à medida que ele se aproximava, até encostar na
tina.

Ela conseguiu falar. Teve menos sucesso em encontrar sua compostura.

- A maioria dos homens não me julgaria adequada para ser mãe de seus filhos.

- Eles não conhecem o seu caráter como eu.

- A maioria dos homens não ia querer uma esposa cuja honra foi perdida de maneira tão infame. Exigiriam uma noiva casta.

- Este homem aqui exige apenas que sua noiva só seja tocada por ele a partir de hoje.

Ele ficou tão perto que Rose não podia se mexer sem convidá-lo a tocá-la. Ele a influenciava mesmo que não usasse seu físico. A profundidade daqueles olhos azuis
a atraíam. Não conseguia pensar em nada.

Ganho você para ser a esposa na minha cama. Sentira o desejo nele. Tinha previsto que receberia uma proposta nesse dia. Mas não essa.

- Continua sendo uma troca desvantajosa - gaguejou ela. - Naquela noite, o senhor ouviu que não sou o tipo de mulher participativa que os homens desejam. Não quero
que pense que era mentira.

- Como é honesta! Não aceito a opinião de outro homem sobre tal assunto. Tirarei minhas próprias conclusões, principalmente porque já tenho motivo para achar que
ele errou redondamente.

Segurou-a pelo pescoço. O contato a fez dar um pulo. Ele acariciou a lateral do pescoço até, com um toque firme e gentil, segurar a nuca.

Ela não conseguiu falar. Não conseguiu impedir. Ele a puxou para si.

O beijo foi diferente daquele dado no campo. Esse foi doce, além de cuidadoso, mas capaz de romper qualquer resistência. Causou um calor profundo que fez sua alma
suspirar.

Isso é tão bom, tão estimulante. Deixe um pouquinho mais, um pouquinho, talvez.

Pequenas vibrações percorreram seu corpo, muitas delas aquecendo lugares bem distantes de onde era beijada.

Sim, só mais um pouquinho...

Foi como se ela derretesse, desacostumada que estava com a maestria daquela investida silenciosa. Não houve indecisão naquele longo beijo e ela sentiu o cuidado
e a intenção de lhe dar prazer.

Sim, isso pelo menos pode ser bom. Tão bom...

Ele controlava com a boca a surpresa dela. O toque suave na nuca a obrigava a aceitá-lo. Fez os lábios dela se abrirem.

Quando aquela pequena invasão ocorreu, pareceu inevitável. Ela pensou em recusar, mas, em vez disso, se rendeu. As sensações suplantaram as defesas, que tinham caído
fazia tempo. Em vez de surpresa, ela ficou encantada com a forma como aquele beijo ecoava uma intimidade erótica.

Você está perdida e ele sabe disso. Ele pode tomá-la agora se quiser e você sabe disso. Ao se entregar, você perdeu sua melhor arma e o melhor motivo para resistir,
e ele sabe disso.

Ela não deu atenção ao aviso da própria mente. Não queria que aquela doçura acabasse. O prazer a levava a um lugar distante do mundo triste em que agora vivia.

Mas o beijo chegou ao fim. Ao abrir os olhos, viu que ele a observava, sério, como se avaliasse o significado de sua não resistência. Depois, ele fechou os olhos
e inclinou a cabeça até encostar a testa na dela. A mão ainda segurava a nuca, mantendo o contato. Ela quase ouviu o motivo que o desejo dele criava.

- É participativa o bastante para mim - falou ele, acariciando os lábios dela com a ponta dos dedos enquanto um leve sorriso brincava nos dele. - Mas há certo fundamento
em dizer que ainda tem o que aprender.

Ela se surpreendeu com a alusão à frase de Norbury daquela noite. Mais que qualquer homem, Kyle jamais poderia esquecer a vergonha dela.

- Como pode falar tão tranquilamente sobre isso? Você sabe que eu... você sabe.

- Sei o que você significa para mim. Não estou dizendo que aquele escândalo não importe. Nem que não me incomode. Mas não é tão importante.

Mas a verdade era que incomodava e que ele se importava. Claro que sim. Agira com nobreza, mas não era santo. Nenhum homem era.

Não acreditava que ele tivesse ido lá para pedi-la em casamento. Ainda desconfiava de que ele houvesse apenas optado por outra forma de levá-la para a cama. Só escolhera
aquele caminho por ter acreditado que ela se entregaria a outro.

Essas suspeitas passaram pelo coração dela, mas, assim como todas as outras, não conseguiram se fincar. Ela simplesmente não conseguia raciocinar sendo tocada por
Kyle e estando ainda tão excitada por aquele beijo.

- Não precisa dar a resposta hoje. Só peço que considere o meu pedido como uma opção. Vejo que tem muito a avaliar. Sei que, quando jovem, nunca esperou se casar
com um homem como eu, mas muita coisa mudou desde então.

Ele passou os dedos de leve no rosto dela, com aquele toque cuidadoso que usara no campo.

- Diga que vai pensar sobre isso.

Não era um pedido. Nem ela estava muito disposta a discordar.

Ele pegou um papel dentro da sobrecasaca.

- Este é meu endereço em Londres. Quando se decidir, vá me visitar. Ou escreva, se preferir. Se eu não tiver notícias suas, volto dentro de dez dias.

Ele colocou o cartão ao lado da tina e se dirigiu à porta. Seus passos soaram alto pela casa vazia.

 

Enquanto ela lavava a louça, algumas gotas de água mancharam o endereço no papel. Inclinou-se, desajeitada, e empurrou o papel com o cotovelo para não perder o que
estava escrito.

O Sr. Bradwell tinha ido embora fazia muito tempo quando ela conseguira sair do lugar. Levou uma hora para se recuperar. Achou que levaria dias para conseguir pensar
direito no que tinha ocorrido.

Ela cedera com incrível rapidez, tanta que não o condenaria se ele reavaliasse seu caráter. Mas não esperava gostar daquele beijo longo. A perícia dele tinha sido
uma revelação que a deixara em desvantagem.

Desconfiava de que o fato de ter perdido a virtude também fora uma desvantagem. Claro que era muito fácil uma mulher se entregar quando já havia se entregado antes.
As mulheres mais velhas não avisavam isso?

Participativa o bastante para mim. Ele não sabia. As intimidades num casamento incluíam mais do que beijos na cozinha.

Quando fora amante de Norbury, ela não tinha apreciado essa parte. Os beijos eram meio divertidos, mas o resto... Fez uma careta ao se lembrar dos constrangimentos,
desconfortos e estranhezas. Sabia que algumas mulheres não sentiam muito prazer, mas ninguém tinha avisado quão desagradável era ficar imobilizada enquanto o amante
perdia qualquer reserva.

Terminada a tarefa, ela enxugou as mãos numa toalha. O sol baixo exibia a aspereza de suas mãos. Quando moça, ela passava muitos cremes e, quando podia comprá-los,
ainda os usava. Mas tinha lavado e esfregado tanto na vida que as mãos não eram mais as de uma lady.

Muita coisa mudou desde então. Céus, era verdade.

Estava propensa a recusar o pedido. Sua mente a alertava para tudo o que podia dar errado naquele casamento.

Ele certamente recebera uma oferta de dinheiro, mas logo essa quantia seria gasta ou esquecida e eles estariam presos um ao outro para sempre.

Na melhor das hipóteses, ele havia feito o pedido num impulso para salvá-la de novo. Acreditara que ela iria para o exterior com outro canalha e se sentira na obrigação
de fazer aquele sacrifício.

Mas o pedido tinha sido feito. Era outra opção. Seria uma boba se recusasse imediatamente. Contudo duvidava que pudesse enxergar além dos ressentimentos, preocupações
e preconceitos que já a desanimavam.

Gostaria que Alexia estivesse lá. Ela era tão inteligente e sensata. Poderia ajudá-la a pensar com clareza sobre aquele desenlace inesperado.

 

CAPÍTULO 7

A convocação para que Kyle fosse à casa de Norbury chegou quatro dias após a visita à Srta. Longworth. Como Norbury não mencionava o motivo da reunião, Kyle imaginou
se de alguma forma ele tivesse tomado conhecimento do pedido de casamento.

Kyle foi a cavalo de sua casa em Piccadilly até Mayfair. Não via Norbury desde a noite do leilão, e os fatos ocorridos lá eram suficientes para causar uma tensão
agora. Achava que seu ousado pedido de casamento fosse provocar palavras duras.

Só que a Srta. Longworth não tinha aceitado o pedido. Nem sequer escrevera. Talvez jamais o fizesse.

Roselyn fora pouco receptiva a esse novo desenrolar do seu drama. Kyle não acreditava que a predisposição dela melhorasse ao avaliar as escolhas que tinha. Ligar-se
a um homem de origem humilde e a quem mal conhecia talvez fosse pouco comparado às aventuras que aquele outro homem estava preparando.

Ter uma série de homens que as sustentasse era um destino comum para mulheres que ficavam mal faladas. A segurança de Easterbrook quanto a isso fora irritante, sobretudo
porque tinha fundamento. Depois de ver como vivia a Srta. Longworth, como era incerto seu futuro e triste seu isolamento, só um coração de pedra não compreenderia
como ficava exposta à tentação.

Itália. Diabos.

Ela havia considerado o pedido de casamento impulsivo e precipitado. Mas, na verdade, tudo indicava que ele tinha pensado demais. Tempo suficiente para a Srta. Longworth
ser descoberta, perseguida, seduzida e atraída por outro abutre.

Tanto tempo que um criado de libré fora levar outra carta do marquês na manhã seguinte à visita ao laboratório de Jean Pierre. Dessa vez, o papel caro não tinha
nada escrito, só um grande e elegante ponto de interrogação.

A frente da casa de Norbury estava cheia de criados. Um deles levava um cavalo. Parecia que a reunião não era uma discussão particular sobre assuntos ligados à Srta.
Longworth.

Assim que Kyle entrou na biblioteca, percebeu que os homens ali presentes tinham de fato uma ligação com ela. Todos foram lesados por seu irmão, Timothy.

O encontro servia para lembrá-lo de que, apesar de ter demorado tanto pensando na proposta de casamento, não resolvera sua maior dúvida. O irmão dela era ladrão
e criminoso, mas ela provavelmente se irritaria com aquele encontro de vítimas na casa de Norbury.

Por outro lado, o encontro também mostrava que, um dia, o atual escândalo vivido pela Srta. Longworth seria bobagem perto do que estava prestes a abarcá-la. Na situação
vulnerável em que se encontrava, ela perderia qualquer orgulho e dignidade que ainda lhe restassem.

Norbury mal reparou na chegada de Kyle. O visconde conversava com outro homem quando ele sentou numa cadeira e aceitou o café oferecido por um criado.

Norbury se afastou do convidado e se dirigiu aos demais.

- Senhores, precisamos tomar uma decisão e achei melhor reunir todos para resolvermos logo.

As conversas cessaram. Os olhares se voltaram para o dono da casa.

- Recebi ontem uma carta de Royds. Escreveu de Dijon, onde está.

- Ele pegou o bandido? - perguntou a voz grossa de Sir Robert Lillingston. - Não sei por que está demorando tanto.

Um coro baixo de concordância seguiu-se à observação.

- Infelizmente, não. Contudo...

Os murmúrios aumentaram.

- Senhores, deixem-me continuar. O Sr. Royds explicou por que foi tão difícil seguir Longworth. É que o bandido não viajava só, como nós dissemos. Estava acompanhado.
Mesmo assim, Royds o seguiu até Dijon, onde Longworth morava usando o sobrenome Goddard. A pessoa que o acompanhava era um homem chamado Pennilot, que teve uma febre
e morreu. Por causa dessa doença, Longworth teve de se demorar.

- E onde ele está agora? - exigiu saber Lillingston. - Pelo jeito, não é em Dijon.

- Não - disse Norbury. - Royds o perdeu de vista. Tem bons motivos para achar que Longworth foi para o sul, rumo à Itália.

Ninguém gostou de saber disso. A notícia de um sumiço próximo causou muita reclamação.

Kyle não disse nada. Sua atenção estava no último detalhe da carta.

Itália. Roselyn falara em viajar para lá com alguém. Analisando agora a conversa que tivera com ela, lembrou que Roselyn não dissera que iria para o Continente com
a tal pessoa. Portanto, poderia ser que a encontrasse lá.

Kyle amaldiçoou a própria burrice. Ela não estava querendo enganá-lo nem sendo ingênua ao insistir que a pessoa tinha segundas intenções. Ela não planejava a nova
vida sendo a amante sustentada, de maneira alguma. Porque o canalha que pretendia encontrar era o irmão.

Ele só pensou nas implicações disso para ambos, para a proposta que fizera e as escolhas de que ela dispunha. Prestou pouca atenção à discussão que prosseguia na
biblioteca.

- O Sr. Royds seguiu o fugitivo, mas avisa que vai ficar caro continuar a busca na Itália - explicava Norbury. - Como a península italiana tem vários pequenos estados
soberanos, será preciso dar muitas propinas. Tenho que escrever para ele, num endereço em Milão, para autorizar os gastos, com o compromisso de nós o reembolsarmos.

- Ele pode ficar anos andando pela Itália - ressaltou o Sr. Barston, um rico importador. - Sugiro que paremos com isso. Graças a lorde Hayden Rothwell, não ficamos
completamente esfolados. Tanto quanto vocês, eu quero ver esse patife pagar pelo que fez, mas parece que a caçada pode não ter fim. Não me interesso em fazer justiça,
se vai custar tão caro.

Norbury se inflamou.

- Ele passou a perna em você. Em todos nós. Insinuou-se no nosso meio e nos convenceu a usar o banco dele. Nos fez de idiotas, depois fugiu com o lucro. Tenha um
pouco de orgulho, pelo amor de Deus!

- Royds parece nem saber aonde vai - avaliou Barston.

- Vai descobrir onde o homem está. Vai usar o mesmo método que usou para chegar a Dijon.

- Levou meses para achar Longworth lá. Pode levar meses para ele ou qualquer pessoa saber onde o crápula está agora.

Kyle concluiu que não. Alguém na Inglaterra logo conheceria o novo esconderijo de Timothy Longworth. Roselyn aguardava uma carta antes de partir para a nova vida.

Olhou os homens em volta. Alguns eram cavalheiros, outros eram comerciantes como Barston. Um era um conhecido financista. Tudo o que os unia era o desejo de vingança.

Não que tivessem sofrido grandes perdas. Tinham ciência de que Longworth falsificara assinaturas e documentos para vender títulos deles no banco, mas todos foram
ressarcidos por lorde Hayden. O reembolso era para acabar com a raiva das vítimas e impedir que espalhassem a notícia, porém, ao que tudo indicava, já haviam se
esquecido do acordo.

O plano de lorde Hayden dera certo com quase todas as vítimas. Os homens que estavam ali eram os insatisfeitos. Para eles, não bastava a restituição do dinheiro.

Aos poucos, eles foram se descobrindo na mesma situação. Resolveram procurar Longworth e trazê-lo de volta à Inglaterra. Mas, desde então, tiveram poucas notícias
dele.

Norbury torceu o nariz para mais objeções.

- Garanto que ele vai ser logo encontrado. Ainda assim, mesmo que Royds tenha de percorrer todas as cidades italianas, será um dinheiro bem gasto. Claro que Longworth
vive em grande estilo e ainda ri dos bobos que foram roubados. Alguns de vocês podem aceitar isso, mas nenhum homem honrado aceita.

Essa frase pôs fim à discussão. Fizeram uma votação informal. Decidiram que Norbury escreveria para Royds e prometeria o pagamento das despesas.

Os homens se levantaram e se despediram. Kyle esperou os outros irem embora. Estava na hora de testar Norbury.

Por alguns minutos, o dono da casa fingiu não ver Kyle e ficou mexendo em papéis. Até que levantou a cabeça loura e os olhos claros reconheceram Kyle.

- Ficou calado hoje, Kyle. Muito sensato.

- Não tinha nada a dizer.

- Costumava ter. Lembro-me dos belos discursos a favor e contra. Das menções aos coitados enforcados toda semana por motivos bem menos importantes, por não terem
um amigo rico que pagasse pela vida deles. Pregava moral como um padre ou um maldito filósofo, só que não é nenhum dos dois e suas opiniões não têm qualquer valor.

Norbury olhou para baixo, com um brilho de raiva nos olhos.

- Acha que está repercutindo as grandes ideias que aprendeu nos livros e com professores, sem lembrar que é uma insolência alguém como você querer dar lições a quem
lhe é superior.

- Não quero dar lições a ninguém.

- Claro que quer. Seu comportamento na minha festa demonstrou isso - falou Norbury com uma expressão petulante. - Lorde Hayden se esforçou para mostrar que você
não desfrutou o prêmio que arrematou naquela noite, que só fez aquilo para...

- Qual o seu interesse pelos meus motivos? Ganhou dez vezes mais do que em qualquer outra transação e se livrou dela. Como você disse, a opinião de gente como eu
não interessa a alguém como você.

Norbury desviou o olhar. Pareceu se acalmar um pouco. Kyle fez menção de ir embora. Estava na porta quando Norbury voltou a falar.

- Estou cansado da sua arrogância, Kyle. Suas ideias são mais adequadas para os mineiros ignorantes do seu vilarejo - disse, e mais alto, num rosnar, acrescentou:
- Não apareça mais.

 

- Morei aqui durante quase dez anos. É uma casa bem simples, mas a rua é mais segura do que parece.

Lady Phaedra caminhou a passos largos até a porta da casa. O vento fez ondas em seu vestido preto volumoso e no manto negro, revelando um surpreendente forro dourado.
Os cabelos ruivos e cacheados caíram como uma cortina de fogo de um lado do rosto quando ela se inclinou para encaixar a chave na fechadura.

Rose aguardou, segurando a valise. A última frase de Lady Phaedra lhe dera algum conforto. Aquela rua, que não ficava longe de Aldgate, parecia pouco segura. O cocheiro
de lorde Elliot devia concordar, pois estava atento, de chicote em riste.

As casas eram velhas e a rua, estreita. Uma mendiga estava sentada no chão a alguns metros da porta da casa. Do outro lado da rua, uma mulher à janela se dirigia
com suspeita familiaridade aos homens que passavam.

Lady Phaedra percebeu e achou graça.

- Elliot avisou que você ia ficar chocada. Disse que devíamos alugar uma casa melhor e dizer que era minha, pois você não iria saber. Mas Alexia garantiu que você
é orgulhosa demais para aceitar tanta caridade e eu não sei mentir.

- Fico satisfeita por não ter feito isso. Se morou aqui por quase dez anos, acho que serei muito feliz nos dias que vou ficar.

Phaedra abriu a porta.

- Precisa arejar a casa. Está fechada há mais de um mês.

A casa era tão incomum quanto a dona. A sala de visitas era também biblioteca. Estantes cobriam uma parede até o alto e as outras tinham estranhos quadros e gravuras.
Um velho divã ficava de frente para as janelas, coberto com xales coloridos que não escondiam direito o estofamento gasto.

- Vou mandar uma criada ficar com você, assim se sentirá mais confortável - disse Lady Phaedra.

- Por favor, não. Já foi generosa demais e muito gentil em não se mostrar surpresa quando apareci na sua porta. E nem me conhece.

- Sei tudo a seu respeito e que Alexia gosta muito de você. Sei também o que é ser alvo de mexericos e zombaria. Tudo isso só é relevante se você deixar, Roselyn.
Há muita gente que não segue as regras ditadas pela sociedade e está pronta para receber você sem preconceitos.

Rose entendeu o que Lady Phaedra tentava dizer. Ela sabia que havia rodas sociais que seguiam normas diferentes. Phaedra Blair não tinha se sujeitado e, segundo
Alexia, teve uma vida interessante e agitada antes de aceitar casar-se com lorde Elliot. Pelo jeito, sua protetora era uma dama que jamais se enquadraria totalmente
na sociedade, pois era assim que preferia viver.

Mas Rose também tinha consciência de que não era uma Phaedra Blair. Não tinha sido educada em ambientes radicais e artísticos e se sentiria boba se tentasse participar
deles. Lady Phaedra queria mostrar que o futuro lhe oferecia esta opção a mais, porém Rose não se via nela.

- É fácil encontrar um coche de aluguel na rua seguinte - explicou Phaedra, enquanto mostrava a cozinha e a sala de jantar. - É lá também que fica o comércio.

No andar de cima, Rose deixou a valise num dos dois pequenos quartos. As janelas davam para um jardinzinho nos fundos que precisava de poda.

- Vou embora para deixá-la descansar - disse Lady Phaedra, quando as duas desceram para o térreo. - Passou muito tempo na carruagem e isso sempre cansa. Volto amanhã
para ver como está.

Rose viu o traje negro ondular ao vento na rua e sumir dentro da carruagem. Phaedra voltaria para a linda casa em Mayfair onde morava agora com lorde Elliot. Não
era longe daquela em Hill Street onde Alexia vivia.

Imaginou a prima andando por aquela casa. Não era difícil visualizá-la em cada cômodo. As duas tinham morado lá fazia apenas um ano. Na época, a casa era dos Longworths
e todos viviam como uma família.

Muita coisa tinha mudado desde então.

Tudo tinha mudado.

 

Na manhã seguinte, Rose ouviu a carruagem estacionar lá fora. Deu um pulo para olhar na janela da frente.

Reconheceu a carruagem. Como previra, Phaedra tinha avisado Alexia, que chegava para vê-la.

Ficou um pouco decepcionada quando a porta da carruagem se abriu. Um homem alto e sério saltou, virou-se e estendeu a mão para a prima de Rose. Lorde Hayden Rothwell
viera acompanhar a esposa.

Talvez fosse até bom. Queria algumas respostas dele e era melhor que lhe perguntasse diretamente.

Enquanto o casal se aproximava, ela abriu a porta da frente. Ao vê-la, Alexia sorriu satisfeita. Lorde Hayden não pôde sorrir porque estava preocupado demais olhando
sério para a mendiga e prostituta.

- Costumava visitar Phaedra aqui? - Rose o ouviu perguntar. - Sozinha, antes de nos casarmos? Até depois de nos casarmos?

- De vez em quando - respondeu Alexia, sem dar importância ao espanto do marido.

Ela parou na soleira da porta e abraçou Rose.

- Não fique zangada comigo, Rose. Quando devolveu minhas cartas sem abri-las, entendi que não queria me colocar em risco, mas até Hayden acha pouco provável que
algum alcoviteiro saiba desse encontro. Os moradores desse bairro não nos conhecem e, de todo jeito, não teriam como fazer intrigas em salas de visitas elegantes.

Rose os levou para a estranha sala de estar. Lorde Hayden se distraiu com as gravuras penduradas nas paredes.

- Estou contente em vê-la, Alexia. E a você também, lorde Hayden. Esperava que viessem. Não pretendo ficar muito tempo, por isso é ótimo que tenham vindo logo.

Alexia fez uma cara triste.

- Não precisa voltar correndo para Oxfordshire. Pode muito bem ficar na cidade até depois do Natal. Gostaria que ceássemos todos juntos então, ou mesmo antes.

- Não seria sensato. Se não for pelo seu bem, que seja pelo da minha irmã: precisamos aceitar o peso da minha ruína - ponderou ela e segurou firme a mão da prima.
- Por favor, sente-se, Alexia. Preciso do seu conselho.

Alexia sentou no divã. Lorde Hayden passou a examinar os livros de Phaedra na estante.

Rose se acomodou numa cadeira de onde pudesse vê-lo de perfil. Por mais atento que estivesse às lombadas, tinha certeza de que ele não perderia uma palavra da conversa
das duas.

- Alexia, quatro dias atrás, aconteceu algo totalmente inesperado. O Sr. Bradwell me pediu em casamento.

A surpresa de Alexia foi sincera. As pálpebras de lorde Hayden apenas abaixaram um pouquinho.

- Você aceitou? - perguntou Alexia.

- Levei um susto tão grande que pedi para não responder na hora. Minha vontade foi de recusar imediatamente. Acho que ele não vê as consequências de um compromisso
desses. Na verdade, não sei por que foi tão imprudente. A menos, é claro, que...

- Que o quê?

- Que alguém tenha proposto um acordo financeiro para incentivá-lo.

Olhou de relance para lorde Hayden, mas não notou qualquer reação. Alexia também prestou atenção nele.

- Hayden, você teve alguma participação nisso? - perguntou a esposa.

Ele olhou para as duas.

- Não ofereci propina ao Sr. Bradwell.

- Certamente - disse Rose. - Mas um acordo financeiro pode não ser visto como propina.

- Por que acha que participei disso? O Sr. Bradwell pode simplesmente ter compreendido a fundo todas as consequências desse pedido de casamento, talvez mais do que
você. Um casamento assim é vantajoso para ambas as partes. No seu caso, Srta. Longworth, o casamento transformará esse escândalo em algo menos prejudicial.

Rose reconhecia a inteligência de lorde Hayden, mas seu discurso não refletia toda a sua honestidade. Parecia que ele tinha planejado anteriormente o que dizer.
E também não negara ter feito uma proposta financeira.

Marido e mulher trocaram um olhar expressivo. Lorde Hayden cumprimentou Roselyn e se encaminhou para a porta.

- Se o motivo de sua visita à cidade é este, Srta. Longworth, imagino que as duas agora vão falar sobre assuntos de mulher, segredos que nenhum homem deveria ouvir.
Desejo-lhe um bom dia. Vou aguardar na carruagem.

Rose esperou a porta ser fechada.

- Não sei se acredito no que ele diz.

- Se ele respondeu tão prontamente, você devia acreditar. Ele é muito inteligente, mas não costuma mentir.

Alexia abriu seu manto e o deixou escorregar pelos ombros.

- Concluo que você não quer aceitar o pedido e está em busca de uma desculpa para recusá-lo.

- Por que acha isso?

- Sei que detestou todas as propostas que recebeu no passado por terem interesses financeiros. Isso era a melhor desculpa para convencer a si mesma a recusar o Sr.
Bradwell. Só que você estava enganada sobre o acordo, então que motivo vai alegar agora?

Alexia aguardou uma resposta, como se Rose a tivesse.

- Preciso listar as vantagens desse casamento? - perguntou Alexia. - Hayden tem razão, eu também percebi logo. Se você casar com o Sr. Bradwell, esse escândalo vai
mudar. Ele não vem de uma família tradicional, mas a forma honrada como a tratou fará com que Norbury pareça ainda mais idiota e canalha. As pessoas irão reconsiderar
o que supunham sobre você. Acredito até que muitos vão duvidar que você tivesse um caso com Norbury antes daquela noite escandalosa.

Essa mudança em relação a como a veriam ficou na cabeça de Rose. O Sr. Bradwell tinha comentado isso, mas foi preciso o olhar firme de Alexia para tornar a hipótese
plausível.

- Na verdade, é brilhante - disse Alexia, mostrando que todas as possibilidades se organizavam na cabeça dela também.

- E o que ele ganha com isso?

- Sua origem e suas ligações, Roselyn. Você é filha de um cavalheiro. Tem uma prima casada com o irmão de um marquês. Além disso, claro, o Sr. Bradwell teria uma
linda esposa.

- A beleza vai acabar logo e o nome da família está manchado. E acho que ele não se importa com ligações sociais. Vê por que desconfio da sinceridade do seu marido?
Na certa ele pensa que, se eu souber a verdade, vou me recusar no ato, porque será mais uma dívida que jamais poderei saldar.

- Se você está certa, então a dívida é minha e não há contas a acertar entre mim e Hayden. Não fazemos essas brincadeiras bobas.

Alexia se levantou e cruzou os braços. Ficou séria enquanto caminhava e punha os pensamentos em ordem.

- Esse homem a desagrada, Rose?

- Não. Mas, na verdade, não o conheço direito.

- Acho que conhece as coisas mais importantes. Sente repulsa por ele? - questionou, e um leve rubor manchou suas faces. - Sabe a que me refiro.

- Não.

Pelo menos até onde ela sabia. Não ia confessar a Alexia que gelava ao pensar no lado carnal do matrimônio. Alexia estava tão apaixonada que não iria entender.

- Espera conseguir coisa melhor? Outro salvador, mas desta vez mais de acordo com o seu berço?

- Nem um pouco.

- Então, não entendo. Talvez você me julgue prática demais, mas se a escolha é entre pobreza e falência ou segurança e salvação...

- Tenho outra proposta.

Alexia estacou. Arregalou os olhos, surpresa.

- Outra proposta? Mas não é outro salvador. Por favor, não diga que está sendo perseguida por outro Norbury, que tenta comprá-la.

- Não é uma proposta desse tipo. Recebi outra carta de Timothy. Pede que eu vá morar com ele.

O rosto de Alexia se transformou numa máscara de tristeza. Fechou os olhos para reprimir uma dor pessoal. Rose não disse nada, mas sentia o mesmo pesar que Alexia
quando o nome do irmão era mencionado.

- Você pretende ir? - perguntou Alexia.

- Sim. Decidi antes que o Sr. Bradwell me propusesse casamento.

Alexia sentou no divã outra vez. Seus olhos cor de violeta se entristeceram.

- Claro que está preocupada com ele, porque ficou sozinho. Sempre foi o mais fraco de vocês e agora... Saiba que eu compreendo, Rose. E como deve ser tentador, uma
viagem e uma nova vida pela frente. Mas...

- Sim, é tentador. Muito. Vou usar um nome novo. Ninguém saberá nada de mim, de Norbury, de Tim. Ninguém saberá nada.

Ela ouviu força e amargura na própria voz. Alexia inclinou a cabeça e se deixou ser mais firme.

- Mas você sempre vai saber, Rose - disse ela, taxativa. - Você não quer pegar aquelas 5 mil libras. Não aceita a ajuda de Hayden. Vai viver do fruto daquele crime?

- Não precisa ser assim. Posso arrumar um emprego. Ou Tim pode trabalhar como secretário e sustentar nós dois. Posso convencê-lo a devolver o dinheiro...

- Ele jamais devolverá. Já deve ter gasto quase tudo em bebidas e jogatina. Você está sempre triste desde a falência dele, deixou de ser você mesma. Entendo por
que quer fugir, mas você não está refletindo direito.

- Duvido que você entenda.

- Pode duvidar, só não duvide do meu amor por você, Rose, nem que compreendo que queira fugir. Você concordou que mentiu para si mesma sobre Norbury. Por favor,
não minta sobre isso.

Cada palavra de Alexia era mais uma pedra num muro que aos poucos ia se fechando e de onde não havia como sair. Rose queria gritar que Alexia era arrogante e que
estava errada. Uma sensação amarga dizia que a prima estava satisfeita demais com a própria felicidade para ter todo o conhecimento e a compreensão que supunha ter.

Ao ver o muro subindo, Rose teve vontade de ir para casa e correr para a colina. Queria deitar sob o céu outra vez e deixar a alegria e a esperança inundarem seu
coração como naquele dia.

Um som se intrometeu em sua enorme divagação. Uma voz soou baixo em meio a sua angústia e seu ressentimento.

- Está frio na carruagem e lorde Hayden disse que agora posso entrar. Era para eu esperar mais, Alexia?

Uma onda de emoção atingiu Roselyn. Virou-se para a porta com os olhos cheios de lágrimas. Irene estava ali. A irmã parecia elegante e saudável. Os longos cabelos
louros estavam soltos, saindo de um lindo gorro, e o verde de seu traje destacava sua juventude e beleza. As roupas eram todas novas, presentes de Alexia.

- Não se zangue, Rose - pediu Irene. - Fiquei tão triste quando você foi embora, com medo que nunca mais nos víssemos. Alexia disse que poderia vê-la hoje e até
Hayden garantiu que ninguém saberia.

- Não estou zangada, querida. Estou surpresa, grata e emocionada a ponto de não ter palavras.

Ela se levantou e abriu os braços. Irene correu para ela e as duas se abraçaram. Por cima do ombro da irmã, Rose olhou para a prima. Era evidente que Alexia considerava
a discussão terminada.

 

CAPÍTULO 8

Ele a viu logo, à margem do canal, em seu manto azul. A carta tinha dado instruções detalhadas sobre onde encontrá-la em Regent's Park. A essa hora, não havia mais
que cinco pessoas por ali.

Até que ela finalmente entrasse em contato, ele não sabia o que esperar. Mas não previra a carta sucinta, pedindo um encontro ali, em Londres. Não havia nada de
animador naquelas poucas frases.

Andou na direção dela, ponderando se deveria insistir mais. Talvez não fizesse diferença. Se ela estava decidida a não aceitar o pedido, ele não teria como rebater
os motivos.

Ela o viu se aproximar. O sol bateu no dourado dos cabelos que podiam ser vistos dentro do gorro azul. E, mesmo que o sorriso que ela lhe dirigia pudesse, no máximo,
ser considerado educado, ainda atrapalhava os pensamentos dele.

Certamente, seria melhor para ele se Rose acabasse logo com aquela ideia maluca.

- Obrigada por vir, Sr. Bradwell. Principalmente num encontro tão cedo.

- Sempre vou a parques às nove da manhã, Srta. Longworth, portanto temos algo em comum.

Ele não acreditava que ela tivesse ido a qualquer um dos parques da cidade tão cedo antes. Contudo ela precisava de um encontro particular num local público e não
havia muitos lugares e horas que conviessem.

Kyle olhou as ruas desertas e só viu a carruagem que o trouxera.

- Como chegou até aqui?

- A pé. Uma amiga de Alexia me emprestou a casa e vim passar alguns dias.

- Já andou bastante ou podemos dar uma volta pelo canal?

Ela aceitou o convite. Kyle fez alguns elogios enquanto esperava que ela revelasse o motivo do encontro.

- Sr. Bradwell, queria conversar mais sobre a sua proposta generosa. Acho que, se duas pessoas pensam em dar um passo tão irreversível, é melhor serem totalmente
sinceras.

- A sinceridade absoluta nunca é uma boa ideia, na minha opinião. Acho que o mundo não sobreviveria a ela.

Rose olhou para ele com surpresa.

Ele riu.

- Deixei-a escandalizada. Aceitaria uma sinceridade prudente? Afinal, algumas verdades mudam, outras nem sequer são conhecidas.

- Peço apenas sinceridade suficiente para, se fizermos isso, estarmos bem entendidos.

Ela acabara de revelar mais do que a sinceridade total poderia. O que quer que ela tivesse ponderado nos últimos dias, de alguma forma a balança agora pendia a favor
dele.

Agora só depende de você, Kyle.

- Seja franca, Srta. Longworth, e tentarei fazer o mesmo.

- Entendo o que oferece. Quero que saiba que sei o valor disso. Segurança e proteção são importantes, mas a oportunidade de redenção... agora percebo a abrangência
disso. Se pareço cética, por favor, perdoe-me. Saiba que sou sinceramente grata. Mas acho melhor sabermos o que vamos ganhar com esse casamento, em termos reais
e práticos.

- Que sensata.

Ela corou.

- Pareço uma comerciante fria e insensível, não é? Não tenho essa intenção. É que hoje sou incapaz de alimentar ilusões românticas. Deixei de lado essas ideias pueris.

Apesar do pedido de sinceridade absoluta, também ela preferia certa prudência. De todo jeito, ele ouviu a dura verdade por trás das palavras dela: Se fizermos isso,
não posso esperar amor. Nem você deveria.

- Sr. Bradwell, preciso saber se o senhor entende que, por mais que eu consiga uma redenção, ela nunca será total. Jamais poderei fazer com que todos esqueçam aquele
episódio desastroso com lorde Norbury. Se nos casarmos, mesmo quando estivermos velhos e grisalhos, haverá quem cochiche ao passarmos. Como o senhor não é um homem
de origem nobre, haverá quem nem sequer se incomode em falar disso na sua frente.

- Sou filho de mineiro. Estou acostumado com intrigas e agressões diretas.

- Um dia, algum maldoso pode inventar que tenho outro caso. Gostaria de saber se o senhor acreditaria.

- Pensou em todas as possibilidades, não é? Não sei se eu acreditaria. Mas prometo perguntar se é verdade antes de matar o homem.

Ela parou perto de uma árvore. A luz do sol formava uma faixa de luz no canal.

- Talvez me ache mesquinha por avaliar sua proposta tão detalhadamente.

- Acho que toda mulher inteligente avalia as propostas de casamento. Só não é comum ouvir todos os itens.

Olhou para ele de uma forma desconcertantemente direta. Franziu a testa como se quisesse ver a alma dele e lastimasse não poder.

- Naquela noite, o senhor estava na casa de Norbury por algum motivo. É amigo dele?

- Conheço-o há anos. Nossa ligação é antiga. No momento, tratamos de negócios.

- Portanto, vai encontrá-lo novamente. O senhor vai saber, ele vai saber e...

- Não são só as mulheres que avaliam as propostas de casamento, Srta. Longworth. Pensei em como isso deve ser estranho. Prometo que ele não vai falar nisso comigo.
Pelo menos, não mais de uma vez. Não permitirei que homem algum ofenda a minha esposa.

Ele pegou a mão dela entre as suas. Como ela permitiu, ele lastimou que ambos estivessem de luvas.

- E jamais retomarei esse assunto com você. Cometeu um erro com um homem desonrado, mas isso passou.

Ela procurou os olhos dele como se tentasse descobrir se falava a verdade. Kyle a deixou olhar pelo tempo que quis.

- É pouco provável que vá fazer alguma objeção que eu já não tenha considerado, Srta. Longworth.

- Na verdade, há uma, e seria errado não comentá-la.

Ela empertigou o corpo, assumindo a postura daquela noite.

- Sr. Bradwell, estou quase envolvida num escândalo que fará o atual parecer brincadeira de criança.

Ela parecia tão adoravelmente séria e corajosa. Os mártires de tempos remotos deviam ser assim, antes de entrarem na arena dos leões.

- Que escândalo é esse?

- O senhor disse que conhece meu irmão. Mas não sabe de tudo. Ele roubou dinheiro de pessoas que tinham fundos, além de investimentos no banco. E elas sabem disso.
Meu irmão prometeu reembolsá-las para que ninguém contasse, mas depois fugiu e lorde Hayden saldou as dívidas dele - disparou ela numa confissão claramente dolorosa.
- Há dezenas de vítimas e basta que uma delas fale, entende? Apenas uma, para que todos saibam o que ele fez e essa desgraça me atinja também. E ao meu marido, caso
eu esteja casada.

Kyle levantou a mão dela e inclinou a cabeça para beijá-la.

- Já sei de tudo sobre seu irmão.

- Sabe? Como... Ah, meu Deus, o senhor também foi...

- Não, foi uma pessoa que conheço.

- Mesmo assim, me pediu em casamento?

- O crime foi dele. Erro dele. Você é inocente. Além de uma das vítimas. Você e sua irmã sofreram muito por causa dele, não foi?

A menção à irmã fez os olhos dela cintilarem. Ele não era tão bom, a ponto de não mencionar o assunto.

- Isso é outro motivo para se casar comigo. Ficará evidente que você não tem ligação com ele e vice-versa. Você não acrescentaria um problema ao outro, como aconteceria
se ficasse exilada em Oxfordshire.

- Não creio que me considerem à parte dele. Sou irmã.

- Para todos, será sobretudo minha esposa. Nesse escândalo, mais ainda que no outro, o casamento lhe servirá de proteção.

A resistência dela era palpável. E também a vulnerabilidade.

- O senhor disse que lorde Hayden não lhe ofereceu dinheiro para fazer isso. Suponho que o pagamento virá de outra forma.

- Jamais neguei que teria vantagens.

- Devem ser maiores do que as que imagino, já que aceita ligar-se a tanta desgraça.

- Calcule seus ganhos e perdas, Srta. Longworth, e deixe que eu calcule os meus. Se eu não a quisesse, não me casaria por nada, independentemente de sua fortuna,
família ou pureza.

Ela parou e o encarou. Olhou criticamente, como se avaliasse se o desejo dele seria tolerável. Não havia palavras que a convencessem disso. Mas, para aquela mulher,
o que quer que decidisse pesaria bastante, não importava para qual lado a balança pendesse.

- Talvez seja melhor não me responder agora, Srta. Longworth. Não estamos com pressa, e uma mulher precisa refletir muito para tomar uma decisão assim.

O rosto dela mostrou alívio.

- Obrigada, Sr. Bradwell. Confesso que o fato de essa decisão demorar também não me agrada. Como sempre, o senhor é muito gentil e cheio de consideração.

Longe disso.

A carruagem dele acompanhava os dois pela rua. Ele fez sinal para o cocheiro parar.

- Permita que a leve para casa. Acho que já andou demais hoje.

Aliviada por ganhar mais um dia para sua decisão, ela aceitou com prazer. Inocentemente. Até sorriu quando se encaminharam para a carruagem.

Ele estendeu a mão para ela. Era hora de apressar as negociações.

 

Ela deveria saber que o simpático Sr. Bradwell não a pressionaria por uma resposta. Não era esse tipo de homem. Tinha compreendido, como sempre. Sabia que esse passo
não devia ser dado de forma impensada.

Ela se instalou na carruagem e ele sentou no banco em frente. Seguiram na direção da entrada do parque.

Ele era alto e imponente e aparentava dominá-la, como tinha parecido naquela noite horrível. Mais uma vez, ela sentiu a estranha combinação de perigo e segurança.

- Não precisa resolver hoje, mas espero que seja logo - disse ele.

- Claro. Amanhã, prometo. Eu não seria tão impiedosa a ponto de deixar um pedido sem resposta. Fico constrangida por demorar tanto.

- Não tem problema. Eu entendo o motivo.

Será que entendia? Pela primeira vez, ela se perguntou se ele entendia mesmo. Não acreditava que algum homem soubesse realmente o pavor que uma mulher podia sentir
ao ser pedida em casamento, pois pensava em tudo de bom e de ruim que isso traria.

- Seria melhor eu explicar algumas coisas para que entenda melhor a situação.

Ele a olhava com um pouco mais de atenção, o suficiente para lhe causar uma pequena e quase emocionante cautela.

- Por favor, pode falar, Sr. Bradwell.

- Ainda tenho família no norte. Jamais vou negar a existência deles, nem escondê-los, ou fingir que sou outra coisa. A ninguém. Nem mesmo a você.

- Acha que sou rude a ponto de querer isso?

- Não sei o que vai querer, então deixo bem claro. E, quando voltar a frequentar a sociedade, haverá quem queira recebê-la, mas que ficará indeciso por minha causa.
Quero que deixe claro a todos que vai aceitar os convites e que vou recusá-los quando preciso. Deixarei a decisão por sua conta, quando tais situações ocorrerem.

Ela gostaria de dizer que jamais ocorreriam. Achou nobre da parte dele não querer prendê-la. Já que ele oferecia redenção, queria que fosse a mais completa.

- Perguntou quais vantagens eu teria - prosseguiu ele. - Mas esqueceu de perguntar as suas. Se aceitar o meu pedido, discutirei com lorde Hayden que bens você teria
em caso de viuvez, se não se opuser.

- Sim, seria bom.

Ela fora negligente. Mais que tudo, isso mostrava sua insegurança em relação ao pedido. Será que ele tinha percebido? Provavelmente.

- Há também a questão do seu irmão.

- No parque, o senhor disse que isso não tinha importância.

- Eu disse que os crimes praticados por ele não mancham a sua reputação. Mas é muito importante que, por você e pela família que terá, ele seja considerado morto.

Considerado morto. De repente, o simpático Sr. Bradwell tinha ficado rígido, mau e um pouco presunçoso nas exigências em relação a um casamento que talvez nem conseguisse.

A ordem a irritou e incentivou sua resistência ao "juntos para sempre" que avaliava.

- Ele é meu irmão. Não é justo que me peça isso.

- Não peço, eu exijo.

Uma exigência, agora.

- O senhor quer me devolver a metade da minha família, desde que eu abra mão da outra metade.

- Se vê assim, que seja. Para mim, é mais fácil exigir isso de você do que da maioria das mulheres. Na noite do leilão, ouvi-a dizer a Lady Alexia que ela e sua
irmã deveriam considerá-la morta. Quando ela lhe escreveu cartas, você as devolveu fechadas para garantir que não manchariam a reputação dela. Disse que era assim
que deveria ser. Se enxergou essa verdade, deve enxergar essa outra.

Ela sentiu o rosto quente. Não gostou da maneira como ele a encurralara com as próprias palavras e atos.

- Não vou considerá-lo morto. Não posso. Na verdade, se eu tiver uma chance de vê-lo, exijo a sua promessa de que vai permitir.

O ultimato ficou no ar. O homem que podia virar marido dela deixou assim enquanto pensava. Ela imaginou que ele retiraria o pedido de casamento na hora.

Ao invés de sentir alívio com a ideia, ficou apavorada.

A retirada do pedido seria a saída que ela buscava, por motivos que não conseguia explicar para Alexia, nem para si mesma. Ainda assim, pensando melhor agora, achava
que, se isso ocorresse, não lhe restariam opções para uma vida digna.

Ela quase retirou o que disse. Uma vozinha confusa em sua cabeça pedia que ela concordasse. Sim, farei o que você quiser. Farei qualquer coisa se me alimentar, me
elogiar e fingir se importar comigo. Esquecerei quem sou, desistirei de todos os meus sonhos, serei obediente, se você comprar carvão para minha lareira, de forma
que eu não passe frio.

Ela trincou os dentes para a voz não sair. A última vez que prestara atenção naquela lastimável parte de sua alma, acabara na companhia de um canalha.

Mesmo assim, o desespero foi aumentando enquanto esperava que ele falasse. Ficou com ódio. Ódio, pois notara que não tinha escolha senão aquele casamento. Chegou
até a detestar Tim por ele mais uma vez tê-la deixado entre a ruína e a odiosa dependência de alguém.

- Se o seu irmão voltar para a Inglaterra, você pode vê-lo - disse Kyle, por fim. - Mas não irá aonde ele está escondido. Quer se case comigo ou não, você não vai,
portanto pode deixar de contar isso como uma opção. E não pense que não posso impedi-la. Posso e vou.

O rosto dela queimava. Ele tinha adivinhado o plano e quem era o homem.

O compromisso que ele propunha não era generoso. Tim jamais voltaria para a Inglaterra. Não ousaria. O Sr. Bradwell vencia mesmo quando recuava.

A carruagem parecia percorrer a cidade bem devagar. Ela gostaria que corresse. Aquela conversa a irritava. Temia que ele tivesse percebido seu terrível desespero
enquanto aguardava que falasse. Se ele notara, podia continuar aquelas "explicações" até que Rose se tornasse pouco mais que uma criança obediente no casamento que
ele propunha.

Ela acabou sendo vencida pela própria irritação.

- Acho que vou precisar de mais um dia para decidir, já que você colocou tantas condições agora. Por favor, diga: há mais alguma coisa?

- Só um detalhe.

- Diga-me.

- Não aprovo a moral livre dos refinados. Posso aceitar dividir o que é meu, mas jamais aceitarei dividir você.

- Mas ainda vai perguntar a verdade antes de matar um homem por causa de um boato? Espero que tenha sido sincero quando afirmou isso.

Ele sorriu.

- Fui.

- Mais alguma coisa? Espero que não. Senão posso esquecer algum item dessa lista de condições cada vez mais desconcertantes. Eu deveria ter trazido papel e lápis
para anotar tudo.

Ele se inclinou para a frente e segurou a mão dela. O gesto dava a entender que tinha o direito tanto de confortá-la quanto de reivindicá-la.

Passou o polegar na palma da mão dela. Ela sentiu o toque através da luva. Isso fez o braço formigar até o ombro.

- Não creio que realmente se incomode com alguma dessas condições - disse ele. - Se precisa de mais tempo para resolver, não é pelos motivos que tratamos hoje. Se
quer sinceridade, como disse, precisamos falar francamente sobre o verdadeiro motivo.

Eles haviam discutido tudo o que interessava e muito do que ela não esperava.

- Hoje o senhor está ciente de tudo, além de exigente.

- Ciente de tudo, não. Você mencionou uma última preocupação quando fiz o pedido de casamento - argumentou Kyle e olhou bem para ela. - Ainda quer decidir se suporta
os deveres de uma esposa. E se não vai detestar a parte sexual do casamento.

Ela sentiu o rosto queimar.

- Eu já disse que não alimento ilusões românticas. Na verdade, não tenho preocupações que justifiquem uma pergunta. Eu estava apenas tentando avisá-lo de como sei
que as coisas serão.

- Se eu acreditasse nisso, daria um jeito de fazê-la recusar a proposta. Não é preciso ter sentimentos românticos e ilusões para que esses deveres sejam toleráveis,
Srta. Longworth. Acreditar nessa possibilidade pode até piorar as coisas. Em vez de uma prova de amor romântico e eterno, seria melhor pensar no ato sexual como
uma boa refeição que sacia uma fome.

Rose não acreditou que ele falasse de maneira tão grosseira. Um cavalheiro não faria isso. Mas ele não era um cavalheiro. Pior, ele esperava dela alguma resposta
além da consternação e vergonha que aquela indelicada mudança na conversa causara.

Uma refeição para satisfazer uma fome. Era uma maneira nova, embora indecente, de pensar no assunto. Sem dúvida, acabava com a ideia de romance, mas pelo menos dava
a entender algo mais agradável do que ela conhecia.

- Essa refeição... seria um mingau ou um faisão? - perguntou ela, sem pensar.

Ele riu baixo e pareceu um pouco envergonhado também.

- Olhe, não gosto muito de mingau. Já comi o suficiente - disse ela.

- Há muitos pratos, um cardápio inteiro a escolher. Tenho certeza de que podemos encontrar algo que seja adequado ao seu paladar. Mas só descobriremos se aceitar
sentar-se à mesa.

Tinham chegado a outros termos por uma via indireta. Ele estava dizendo que esperava que ela o aceitasse assim, sem dramas nem desculpas.

Ela pensou. Imaginou-se deitada na cama e aquele homem chegando. Preparou-se mentalmente para a desagradável resignação que tinha sentido em seu breve caso amoroso.

Em vez disso, ficou animada. A espera tinha uma expectativa sedutora que a afetava fisicamente. Todo o medo continha uma deliciosa nuance.

Ele a observou com uma expressão sedutora e perigosa, como se também a visse naquela cama e soubesse como a espera mais excitava do que impunha uma obrigação.

Continuava segurando a mão dela. Apertava o suficiente para controlar e prender. Puxou-a de leve. A paisagem passava rápido pela janela da carruagem quando o corpo
dela se moveu suavemente na direção dele. Com elegante doçura, ele a colocou no colo.

A surpresa deu lugar ao susto. O interior da carruagem ficou mais escuro. Ela se virou e o viu fechar as cortinas.

- O que está fazendo?

Ela sentiu as pernas dele por baixo, apesar de estar vestida. Tentou sair do colo.

O braço que estava nas costas dela a colocou no lugar para que não caísse no chão. Ou para que não escapasse. Ela endireitou as costas para ter um pouco de liberdade.

- O que está fazendo? - repetiu.

Ele acompanhou os dedos com o olhar ao percorrerem o rosto dela daquele jeito familiar. Só que desta vez o toque não terminou, mas segurou com carinho o queixo enquanto
a beijava. Um beijo leve como aquele primeiro no campo, mas o lábio dela tremia e um sobressalto atingiu seu peito.

- Estou garantindo que avalie minha oferta de forma justa e sem preconceitos.

Beijou-a de novo.

- Estou defendendo minha causa em relação à sua preocupação final com o único argumento que importa.

- Preocupação final...?

Ela ficou chocada. Tocou nos ombros dele e recuou.

Ele sorriu devagar enquanto a puxava de novo para si. Deu-se então uma educada, lenta e cuidadosa luta. Ela não estava brigando de verdade, nem ele a puxava para
valer. Ela apenas tentava sair de um abraço íntimo e ele tentava envolvê-la.

De alguma maneira, ele por fim a derrotou. Mas se pensava em seduzi-la, estava muito enganado. Ela empurrou os ombros dele de novo.

- Meu Deus. Você não vai pensar em... Não aqui, numa carruagem.

- Não vou. A menos que você implore, claro.

Implorar? Ela engoliu o riso como pôde. Mas ele percebeu.

- Tem razão. Melhor deixar isso para outro dia.

Ia rir da segurança dele, só que foi beijada. De repente, sua insinuação deixava de ser brincadeira.

Ela se surpreendera com o beijo no campo. Aquele na cozinha a vencera. Já este a assustou.

Desta vez, a excitação não chegou como um leve formigamento. Foi como ser inundada de repente. O beijo firme derrubou qualquer barreira que a reprimisse. O corpo
reagiu logo, como se soubesse o prazer que o aguardava e ansiasse por senti-lo outra vez.

Beijos cálidos a deixaram aérea e ofegante. Beijos na boca e na nuca a encantaram e excitaram. Mordidinhas na orelha pareceram fazer seu sangue ferver. Se casamento
fosse aquilo e nada mais, tinha certeza absoluta de que aceitaria o pedido.

Só que não era, e o entusiasmo dele arrefecia, enquanto o dela aumentava. Roselyn percebeu que ele controlava o próprio desejo, mas ainda era claro o que aquele
desejo implicava. Ela não ignorou o pequeno prazer de notar isso, mas não tinha experiência. Sabia que o prazer podia terminar de repente.

Dessa vez, ele não precisou forçá-la a abrir a boca. Ela aceitou a invasão porque já sabia que seria agradável. Ele invadiu a boca com cuidado e firmeza, como se
soubesse provocar cada reação emocionante que passava e pulsava pelo corpo dela. Dali a pouco, só sabia de suas vívidas sensações e que queria senti-las mais ainda.

Ele a acariciou e a brisa primaveril do prazer se transformou num vento cálido de verão. Ela sentiu a mão dele por dentro do manto, através do tecido e do espartilho,
quente, firme e segura. O corpo dela se mexia ainda que o toque possessivo a chocasse. Ela logo lastimou que o tecido impedisse o calor do contato em sua pele. Uma
tempestade de loucura ameaçava invadir sua cabeça.

Ele a beijou com intensidade e, quando acariciou seus seios, foi como se um raio caísse sobre ela. O corpo reagiu como se esperasse por aquele toque.

Os dedos dele a mergulhavam num prazer delicioso, quase insuportável. Ele achou o mamilo rígido e o tocou até que o corpo dela se entregasse. Imagens de outros toques
e intimidades passaram pela mente dela.

Ele a estava enlouquecendo. Fazendo perder a cabeça. Ela então entendeu o que ele quisera dizer por fome. Entendeu o que significava implorar, pois sua mente ansiava
por mais.

Ela se segurou nos braços dele para tentar manter a consciência. Mas a mão dele continuava a dominá-la. Ela trincou os dentes para não gritar ou gemer. Queria um
alívio. Queria mais.

O prazer atingiu uma intensidade ao mesmo tempo dolorosamente necessária e maravilhosamente delirante. Foi então, enquanto seu corpo gritava e qualquer autocontrole
se estilhaçava e ela queria rasgar as roupas e deixar que ele tocasse o corpo todo e preenchesse os vazios dolorosos que estremeciam nela, foi então que ele parou.

Ela não conseguia respirar. Não conseguia pensar. O beijo doce com o qual ele terminou aquela paixão pareceu uma brincadeira cruel. Ela piscou, voltou à consciência,
viu o teto e a lateral da carruagem, viu-o.

Ele a encarava, tão insaciado quanto ela. Talvez esperasse que ela implorasse, como dissera que ela teria de fazer.

E, céus, ela quase implorou. Ele colocou os dedos sobre os lábios dela, impedindo qualquer iniciativa assim.

- Case-se comigo, Roselyn.

O desejo ainda a dominava. A doce tortura permanecia. Mas uma sensação calma de beleza e liberdade caiu sobre ela enquanto a tempestade foi amainando aos poucos.
Ela flutuava em estupor, coberta pela intimidade dos beijos e toques.

A sensação fez com que se lembrasse do que sentiu deitada na grama aquele dia, olhando para o céu infinito.

- Sim, eu me caso.

 

 


CONTINUA