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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JORNADA DE ESPERANÇA / Brian Aldiss
JORNADA DE ESPERANÇA / Brian Aldiss

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

A criatura caminhava por entre juncos partidos. E não ia só, logo atrás vinha a sua companheira e mais atrás os cinco filhotes, participando com avidez da caçada.

Os arminhos tinham atravessado a nado um rio. Agora rastejantes, os pescoços retesados, as crias imitando os pais, eles abandonavam as águas frias, galgavam a margem e metiam-se por entre os caniços. O pai, com indefinido apetite, namorava uns coelhos que retouçavam a poucos passos de distância.

O local tinha sido um dia um trigal. Aproveitando-se de um período de incúria, as ervas daninhas ali haviam crescido e fixado domínio, sufocando o cereal. Mais tarde um incêndio devastara a terra, torrando os cardos e a vegetação mais alta. Os coelhos, que preferem as plantas rasteiras, tinham então surgido para tosar os brotos que despontam das cinzas. Os talos que sobreviveram encontraram bastante espaço para desenvolver-se e se transformaram em pequenas árvores. Em conseqüência, reduzira-se o número dos coelhos, porque coelho gosta de campo aberto, de modo que o capim voltara a medrar. Agora esse capim entrava, por sua vez, a rarear, em face da contínua disseminação das faias. Os poucos coelhos que por ali pastavam eram algo magruços.

E cautelosos também. Um deles apercebeu-se dos olhos pequenos e redondos que o espreitavam por entre os juncos. Deu um salto para esconder-se e os demais o imitaram. De pronto o par de arminhos adultos se pôs em ação, qual duas tiras marrons serpenteando através do espaço aberto. Os coelhos enfiaram para as suas lapas. Sem hesitar, os arminhos os seguiram. Podiam ir para onde quisessem. O mundo — aquela diminuta porção do mundo — era propriedade sua.

A poucos quilômetros dali, sob o mesmo céu hibernal e junto das margens do mesmo rio, uma clareira tomara o lugar da floresta. Da floresta só restava uma amostra, pálida amostra, que ano a ano mais se desvanecia. Grandes árvores, algumas delas ostentando ainda um resto de folhas, assinalavam a posição de antigas sebes. Encerrados entre elas, havia entrelaçados de vegetação recobrindo o que em outros tempos tinham sido campos, espinheiros rasgando caminho como cercas de arame farpado, sarças vetustas e pontiagudas, entremeando contingentes de plantas novas. Por toda a orla da clareira essa inusitada sebe servia de barreira ao estabelecimento de vegetação ao longo de um amplo arco, resguardando destarte uma área de algumas centenas de hectares encostada à barranca do rio.

Aquela agreste paliçada era guardada por um velhote trajando uma camisa de áspero pano listrado de verde, vermelho e amarelo. Tal camisa constituía praticamente o único aspecto colorido em toda a poeirenta paisagem, fora confeccionada com a lona de uma cadeira espreguiçadeira.

Intervaladamente, a barreira de vegetação era rompida por atalhos abertos por pés humanos. Esses atalhos eram curtos e terminavam em toscas latrinas, nas quais havia fossas recobertas por encerados armados sobre estacas de madeira. Ali ficavam as instalações sanitárias do vilarejo de Sparcot.

O vilarejo propriamente dito situava-se no centro da clareira. Fora erigido, ou melhor, acumulara-se, com o correr dos séculos, em forma de H, com a barra transversal constituindo uma ponte de pedra atravessando o rio. Essa ponte segue sempre cruzando o rio em toda a sua largura, mas hoje só conduz a um pequeno bosque onde a população se abastece de lenha. Das duas ruas mais extensas, a mais próxima do rio fora inicialmente reservada ao uso dos habitantes locais. E continua com a mesma função, uma de suas extremidades leva a um velho moinho de água, onde mora o dono de Sparcot, Big Jim Mole. A outra foi em outros tempos a rua principal. Terminadas as construções, por ambas as pontas ela penetra na mata, ali, tal qual uma serpente nas fauces de um crocodilo, é devorada pela vegetação rasteira.

 

 

 

 

Todas as casas de Sparcot mostram sinais de falta de trato. Algumas já são ruínas, outras, ruínas habitadas. A população do vilarejo é de cento e doze pessoas. Nenhuma delas nasceu em Sparcot.

Na junção das duas ruas há uma construção de pedra que um dia foi o edifício dos correios. Das suas janelas superiores descortina-se o panorama duplo da ponte, numa direção, e da terra cultivada ao lado da mata, na direção oposta. Presentemente, funciona ali o xadrez da cidade e, já que Jim Mole faz questão da permanente presença de um guarda, pode-se dizer que o prédio é habitado.

Havia três pessoas no velho e estéril compartimento. Uma anciã de bem mais de oitenta anos de idade, sentada junto de um fogão a lenha, cantarolava de si para si e meneava a cabeça. Tinha as mãos sobre o fogão, no qual aquecia uma panela de ensopado feita de estanho. Assim como os demais, estava bastante agasalhada contra o rigor do frio que o fogo mal dissimulava.

Dos dois homens que lá estavam, um era de aparência extremamente senil, embora seus olhos brilhassem. Estirado num enxergão, olhava inquieto em torno, fixando de contínuo o teto, como tentando decifrar o significado das rachaduras ali existentes, ou então as paredes, como para encontrar a explicação das suas manchas de umidade. Sua expressão, astuta como a do arminho, denotava irritação, porque a cantilena da velha punha-lhe os nervos à flor da pele.

Apenas o terceiro ocupante do xilindró tinha aspecto vivaz. Tratava-se de um homem de seus cinqüenta anos, bem construído, enxuto, mas menos grotescamente esquelético que os companheiros. Estava sentado perto da janela numa cadeira que rangia, tendo um rifle ao lado. Embora estivesse lendo um livro, erguia constantemente os olhos para espiar pela janela. Numa dessas ocasiões viu o patrulheiro de camisa de cores berrantes que se aproximava.

— Vem aí o Sam — disse.

Ao falar, pôs de lado o livro. Seu nome era Algy Timberlane. Uma barba cinzenta e espessa caía-lhe quase ao umbigo. Em virtude daquela barba chamavam-no de Barbagris, embora aquela fosse uma região de barbas grisalhas. Mas a calva daquele homem servia para realçar-lhe a barba, franjada à altura do queixo por fios negros e tornando-se mais rala na sua porção inferior, naquele mundo de tão grande pobreza que desconhecia outra forma de ornamento físico.

À fala de Barbagris, a mulher cessou a cantoria, sem dar qualquer demonstração de tê-lo ouvido. O homem no enxergão sentou-se, acariciando a bengala que tinha ao lado. A seguir retesou os músculos da face, aguçando o olhar para o relógio da prateleira que tiquetaqueava com estrépito, depois consultou o relógio de pulso. Aquele maltratado remanescente de outras eras era a propriedade mais cara ao coração de Towin Thomas, embora já fizesse uma década que não funcionava.

— Sam está vinte minutos adiantado — observou ele. — O safado foi apenas fazer um passeio para abrir o apetite. Fique de olho nesse picadinho, Betty. Se alguém aqui vai apanhar uma indigestão, quero ser eu, minha filha.

Betty sacudiu a cabeça. Seria tanto um tique nervoso como a negativa de qualquer coisa que o homem da bengala pudesse ter dito. Ela conservava as mãos diante do fogo e nem se deu ao trabalho de virar o corpo.

Towin Thomas apanhou a bengala e ergueu-se trabalhosamente, apoiando-se na mesa. Caminhou até junto de Barbagris e foi também espiar pela janela, esfregando a imunda vidraça com a manga do paletó.

— É Sam Bulstow, sim senhor. Essa camisa não tem igual.


Sam Bulstow vinha descendo a atravancada rua. Eram cacos de telha e entulho por toda parte, das grades, crestados pelo frio, despontavam talos de funcho. Sam Bulstow caminhava pela parte central do pavimento. Fazia muito que por ali só transitavam pedestres. Ao chegar ao prédio do correio ele entrou, suas passadas sobre o assoalho ecoando nos ouvidos da dupla que o observava.

Sem nenhum entusiasmo, os homens ficaram-se a ouvi-lo subir os degraus que levavam ao andar de cima. Os calçados de Sam rangiam, sua mão calosa fazia estralejar na passagem o corrimão, e seus pulmões ofegavam com o esforço exigido por cada passo.

Por fim, Sam assomou na sala de presos. As listras policrômicas da sua camisa punham um pouco de cor no tufo branco da sua barba. Por instantes, apoiado à porta, ele contemplou o grupo enquanto retomava fôlego.

— Se veio jantar, chegou cedo demais — disse Betty sem virar sequer a cabeça. Ninguém lhe deu atenção e ela sacudiu desalentada as trancas mal cuidadas.

Sam, ofegante, exibia os dentes amarelos e enegrecidos.

— Os escoceses vêm vindo — anunciou ele.

Betty virou como pôde o pescoço endurecido para olhar para Barbagris. Towin Thomas descansou o rosto envelhecido no castão da bengala e olhou para Sam apertando os olhos.

— Quem sabe estão querendo o seu lugar, velhinho.

— Quem foi que lhe disse? — perguntou Barbagris. Sam voltou lentamente para o meio da sala, lançando uma olhadela furtiva para o relógio, e serviu-se de água numa amassada caneca de alumínio. Tomou a água de um trago e se abateu sobre uma banqueta de madeira, estirando diante do fogo as mãos nodosas, sem nenhuma pressa em responder.

— Ainda há pouco conversei com um mascate lá pelas bandas do norte. Ele me disse que está a caminho de Faringdon. Disse que os escoceses já chegaram a Banbury.

— E onde está esse mascate? — indagou Barbagris quase sem erguer a voz, aparentemente absorto na contemplação do panorama.

— Já foi embora, Barbagris. Disse que estava a caminho de Faringdon.

— Passou por Sparcot sem vir contar nada para a gente? Não creio muito nisso.

— Estou apenas repetindo o que ele disse. Não tenho nada com o peixe. Mas acho que o velho Mole deve ficar sabendo que os escoceses estão para chegar. — A voz de Sam retornou àquele tom choramingas que todos os locais empregavam com freqüência.

Betty voltou ao fogão. E comentou:

— Todo mundo aparece aqui com novidades para contar. Quando não são os escoceses, são manadas selvagens. Tudo boato... só boatos... É como na guerra: toda hora vinham falar em invasão. Acho que era só para assustar a gente, mas eu me assustava de verdade.

Sam atalhou-lhe a arenga.

— Boato ou não, estou apenas repetindo o que o homem disse. Achei que era melhor vir até cá e contar. Fiz bem ou não?

— De onde vem esse sujeito? — perguntou Barbagris.

— Não vem de parte alguma,   vai para Faringdon.

— Não disse por onde andou? — indagou Barbagris pacientemente.

— Disse que desceu o rio. E disse que vem por aí um montão de arminhos.

— É... esse é mais um boato que andam espalhando — disse Betty de si para consigo, meneando a cabeça.

— Cale essa boca, vaca velha — interpôs Sam, sem rancor.

Barbagris apanhou o rifle pelo cano e veio postar-se diante de Sam, no meio da sala.

— Não tem mais nada a dizer, Sam?

— Escoceses, arminhos... que mais poderia descobrir numa só ronda? Posso garantir que não vi nenhum elefante. — E tornou a romper num sorriso, buscando com o olhar o aplauso de Towin Thomas.

— Você não tem inteligência suficiente para reconhecer um elefante, seu piolhento — disse Towin.

Não tomando conhecimento da observação, Barbagris prosseguiu:

— Está bem, Sam, volte à sua ronda. Faltam ainda vinte minutos para terminar.

— Quê! Voltar lá por causa de vinte minutos? De jeito nenhum, Barbagris! Por hoje chega para mim, desta cadeira não me arredo mais. Nestes vinte minutos ninguém vai carregar Sparcot nas costas...

— Você conhece muito bem os perigos.

— Olhe, enquanto eu sofrer desta dor nas costas é inútil insistir comigo. Este negócio de ronda a todo instante já me encheu.

Betty e Towin não abriram a boca. Este último lançou um olhar para o seu imprestável relógio de pulso. Tanto um como outro, a exemplo de todos os demais habitantes do vilarejo, já se fartaram de ouvir encarecer a necessidade de uma contínua vigilância, mas não despregavam o olhar das tábuas do assoalho, sabendo o sacrifício que o movimentar as cansadas pernas para cima e para baixo exigia.

Sam tinha em seu favor uma vantagem, sabia-o bem. Encarando francamente Barbagris, ele disse:

— Por que você não termina essa ronda, já que faz tanta questão de defender esta pocilga? Você é moço... uma caminhada lhe fará bem.

Barbagris passou para o ombro esquerdo a alça de couro do rifle e voltou-se para Towin, que parou de mascar o castão da bengala ao erguer os olhos.

— Toque o alarme, se precisar de mim com urgência. Mas somente nesse caso. E que a velha Betty não pense que é o sinal para o jantar.

A mulher cacarejou qualquer coisa e ele caminhou para a porta, abotoando o casaco ensebado.

— Sua bóia está pronta, Algy. Por que não fica para comer? — indagou ela.

Barbagris bateu a porta sem responder. Ouviram-se suas pesadas passadas descendo os degraus.

— Será que ele se ofendeu? Será que vai me entregar ao velho Mole? — indagou Sam ansioso. Os outros limitaram-se a murmurar neutramente qualquer coisa e alçar   as   magras   espáduas,   não   desejavam   em   absoluto comprometer-se.

Barbagris seguiu lentamente pelo meio da rua, cuidando de desviar-se das poças d'água deixadas pela chuva da antevéspera. A maior parte dos esgotos de Sparcot vivia entupida, mas a relutância da água em desaparecer devia-se, antes de mais nada, ao fato de ser a terra muito pantanosa. Em algum ponto da correnteza o excesso de detritos bloqueara o curso das águas, fazendo o rio transbordar. Era preciso dar ciência do sucedido a Mole, era preciso organizar uma equipe para averiguar as causas do problema. Mas Mole tornava-se cada vez mais rabugento, e a sua política de isolacionismo iria, decerto, opor-se a qualquer sorrida do vilarejo.

Barbagris preferiu, de início, caminhar junto à margem do rio, para depois contornar a periferia da paliçada. Atravessou um insuspeitado campo de sabugueiros, e, ao fazê-lo, sentiu nas narinas o odor adocicado do rio e das coisas que por ali apodreciam.

Numerosas casas construídas perto do rio tinham sido devoradas pelo fogo antes que ele e seus companheiros para ali se mudassem. Das carcaças dessas casas despontavam tufos de vegetação. Sobre uma cerca derribada entre o capim lia-se num letreiro o nome da propriedade mais próxima: Thameside.

Mais além, as casas não tinham sido atingidas pelo fogo e eram habitadas. Lá se encontrava a moradia de Barbagris. Ele olhou para as janelas mas não divisou sua mulher, Marta, ela deveria estar tranqüilamente sentada diante do fogo, um cobertor em volta dos joelhos, fitando a grelha e contemplando... o quê? Súbito, uma enorme impaciência apossou-se de Barbagris. Aquelas casas formavam um miserável conglomerado de construções, acotovelando-se como um bando de corvos com as asas quebradas. À maior parte delas faltavam as chaminés e as calhas. A cada ano que passava, mais altos se tornavam os seus ombros, em virtude de envergarem os troncos que lhes constituíam os tetos. E, de modo geral, as pessoas qu


as habitavam combinavam lindamente com aquela atmosfera de decadência. Mas Barbagris não combinava, e não queria que a sua esposa Marta combinasse.

Deliberadamente, ele deixou esfriar os pensamentos. Inútil irritar-se. Barbagris primava por não irritar-se. Mas ansiava por uma liberdade ulterior à corrompida segurança de Sparcot.

Depois das casas vinha o entreposto comercial de Toby, de construção mais recente e em melhores condições de conservação que o resto, e os celeiros, desgraciosas estruturas traindo a bisonhice e falta de técnica dos seus construtores. Além dos celeiros ficavam os campos, embranquecidos pelas geadas de inverno, nos regos, filetes d'água rebrilhavam. Mais além dos campos cresciam as moitas que assinalavam o extremo oriental de Sparcot. Mais além de Sparcot era o imenso e misterioso território do vale do Tâmisa.

Pouco adiante dos limites do vilarejo, uma velha ponte de tijolos com o arco ruído ameaçava o rio, os seus restos lembrando os chifres de um velho carneiro, quase unidos pelo correr dos anos. Barbagris contemplou-a, bem como a altiva represa logo adiante... pois naquele rumo ficava nos dias que corriam tudo aquilo que se entendia por liberdade... e voltou depois à ronda da paliçada.

O rifle acomodado sob um dos braços, encetou ele a caminhada. O outro lado da clareira estava deserto, percebia-o de onde se encontrava, apenas dois homens apareciam entre o gado e mais um vulto agachado numa plantação de repolhos. Barbagris era como o dono do mundo: e, ano após ano, aquela sensação de propriedade só faria aumentar.

Varreu da mente o pensamento e cuidou de concentrar-se nas informações fornecidas por Sam Bulstow. Seria, decerto, uma invencionice do homem, para poupar-se os últimos vinte minutos de ronda. O boato acerca dos escoceses parecia pouco viável (embora não menos viável que a notícia trazida por alguns viajantes de que um exército chinês marchava sobre Londres, ou do que o relato de duendes, gnomos e homens com caras de texugos dançando nas florestas). O domínio do erro e da crassa ignorância parecia expandir-se de ano para ano. De qualquer forma, seria bom saber o que realmente estava acontecendo.

Menos inviável que a história dos escoceses era a versão de Sam sobre o estranho mascate. Conquanto bastante densas, as moitas sempre abrigavam picadas em seu seio e havia homens que por ali transitavam, embora a isolada localidade de Sparcot se limitasse a assistir ao escasso movimento dos poucos viandantes que subiam e desciam o Tâmisa. Bem, era preciso manter-se alerta. Mesmo naqueles dias de relativa tranqüilidade — “a apatia que traz consigo a paz perfeita”, pensou Barbagris, perguntando-se onde teria lido a frase —, os vilarejos que não mantinham uma guarda corriam o risco de ser saqueados por invasores famintos ou simplesmente por loucos. Tal era a crença corrente.

Barbagris caminhava agora entre vacas acorrentadas que pastavam tanto quanto as puídas guias lhes permitiam. Eram animais novos, pequenos, rijos, gordos e cheios de paz. E, acima de tudo, novos! Doces criaturas que voltavam para Barbagris o olhar úmido, criaturas do homem mas nem por isso partícipes da sua decrepitude, criaturas que, tosando-o, mantinham o capim no nível rasteiro dos carrascais.

Barbagris notou que um daqueles animais repuxava a guia. Sacudia a cabeça, rolava os olhos e mugia. Barbagris estugou o passo.

Não parecia haver nada por ali capaz de assustar a vaca, a não ser um coelho morto, próximo do espinheiro. Ao aproximar-se, Barbagris examinou o coelho. Fora morto recentemente. E embora estivesse inteiramente morto, quis parecer ao homem que se mexera ligeiramente. Barbagris postou-se quase ao lado do animal abatido, alerta a qualquer novidade que surgisse, sentindo como que uma ponta de mal-estar.

Sem nenhuma dúvida o coelho estava morto, tinha sido visivelmente golpeado na nuca. Seu pescoço e ânus estavam ensangüentados, o olhar esgazeado.

No entanto ele se mexia: seu flanço arfava. Uma sensação de choque (um involuntário temor supersticioso) percorreu a espinha de Barbagris. Ele recuou um passo, deixando o rifle deslizar até as mãos. Ao mesmo tempo o coelho tornou a arfar e o seu matador se mostrou.

Um arminho abandonou rápido a carcaça do coelho, dobrando-se todo na sua pressa de desembaraçar-se dele. Sua pelagem castanha estava manchada pelo sangue da vítima, bem como o selvagem focinho que apontou para Barbagris. Este matou-o incontinenti com um tiro.

As vacas mugiram e escoicearam. Como brinquedos mecânicos, os vultos entre as touceiras endireitaram as costas. Dos telhados a passarada debandou. O gongo soou na sala de guarda, tal como Barbagris tinha ordenado. Um magote de gente reuniu-se no lado de fora dos celeiros, espichando o olhar na tentativa de ver melhor o que acontecia.

— Que diabo, não há razão para pânico — rugiu Barbagris. Mas ele sabia que aquele tiro involuntariamente disparado tinha sido um erro, deveria ter matado o arminho a coronhadas de rifle. O estampido de um tiro sempre provocava alarme.

Formara-se um grupo de sessentões ainda ativos, e estes encaminhavam-se na sua direção brandindo os mais variados tipos de bengalas. Malgrado a sua irritação, Barbagris foi obrigado a reconhecer que se tratava de uma reação muito pronta. Havia ainda bastante vida naquele lugar.

— Tudo certo! — gritou-lhes ele, agitando os braços sobre a cabeça. — Tudo certo! Um arminho me atacou... só isso. Podem voltar.

Lá estava Charley Samuels, enorme e pálido, segurando pela guia a sua raposa amestrada, Isaac. Charley era vizinho dos Timberlanes e, desde que lhe morrera a esposa, na última primavera, tornava-se progressivamente mais dependente do casal.

Charley veio postar-se ao lado de Barbagris.

— Na primavera que vem vamos apanhar alguns filhotes para amestrar — disse ele. — Eles darão cabo dos arminhos que se arriscarem por aqui. Os ratos estão aumentando, também, nas casas mais antigas. Acho que estão fugindo dos arminhos. As raposas acabarão com os ratos também, hein, Isaac?

Sempre zangado consigo próprio, Barbagris voltou à ronda. Charley acompanhou-o, evitando falar. Entre ambos, a raposa seguia em seu trote elegante, a cauda baixa.

O restante do grupo quedou-se indeciso. Alguns trataram de acalmar as vacas, outros contemplavam os frangalhos esparsos do arminho, outros ainda voltaram para suas casas, das quais aparecia mais gente para discutir o acontecido. Vultos escuros destacavam-se contra um fundo de tijolos fragmentados.

— Estão meio desapontados por não ter acontecido nada extraordinário — comentou Charley. Uma ponta de cabelos muito flexíveis caía-lhe na testa. Tinham sido louros como o trigo aqueles cabelos um dia, mas a alvura chegara fazia já tanto tempo que o seu proprietário tinha o branco como o seu matiz natural, e a tonalidade branquicenta apossara-se também da sua pele.

Os cabelos de Charley nunca lhe caíam nos olhos, embora parecesse que tal coisa aconteceria à primeira sacudidela enérgica de cabeça. Sacudidelas enérgicas não faziam parte dos hábitos de Charley. Ele era antes pedra que fogo, e seu porte dava provas de sua resistência. Era exatamente aquele ar de quem já passara maus bocados na vida, o que aqueles dois velhotes, tão dessemelhantes a um exame superficial, tinham em comum.

— Apesar de ninguém gostar de encrencas, todos gostam de distrações — disse Charley. — Engraçado é que esse tiro que você deu me fez doer a gengiva.

— Quase me deixou surdo — confessou Barbagris. — Será que chamou a atenção dos velhos do moinho?

Ele se deu conta de que Charley relanceou o olhar para os lados do moinho a ver se Mole ou seu braço direito, o Major Trouter, vinha vindo para investigar.

Ao aperceber-se do olhar de Barbagris, Charley sorriu alvarmente e disse, apenas por dizer:

— Aí vem o velho Jeff Pitt ver o que anda acontecendo.

Eles tinham chegado a uma pequena correnteza que serpenteava através da terra limpa. Nas margens viam-se talos de faias derrubadas pelo povo do vilarejo. Dentre esses talos emergiu o vulto envelhecido de Pitt. Sobre um dos ombros ele trazia uma bengala com o corpo de um animal dependurado. Embora vários aldeões se aventurassem nos campos de quando em vez, Pitt era o único que perambulava por ali por conta própria. Sparcot, para ele, não era prisão. Pitt era homem ranzinza e solitário, não tinha amigos, e mesmo numa sociedade constituída por pessoas levemente adoidadas gozava da reputação de louco. Sem dúvida, seu rosto, todo encaroçado, não era penhor de sanidade, e seus olhinhos não se cansavam de esquadrinhar por toda parte, mais parecendo um par de peixinhos apresados no crânio.

— Alguém levou um tiro? — indagou ele. Quando Barbagris lhe relatou o sucedido, Pitt soltou um grunhido, como que convencido de que lhe estavam ocultando a verdade.

— Esse negócio de atirar vai despertar a atenção dos gnomos.

— Deixe que eu cuido deles quando aparecerem — retrucou Barbagris.

— Os gnomos vêm mesmo, não é? — murmurou Pitt, nem sequer chegara a registrar as palavras de Barbagris. A seguir fixou o olhar vazio nas matas sem folhas. — Logo, logo estarão aqui para tomar o lugar das crianças. Ouça o que estou lhe dizendo.

— Não há gnomos por aqui, Jeff, senão já o teriam pegado há muito tempo — disse Charley. — Trouxe a bengala?

Procurando medir com o olhar a reação de Charley, Pitt baixou do ombro a bengala e exibiu um belo espécime de lontra, de mais de meio metro.

— Uma jóia, hein? Tenho visto um monte delas nestes últimos tempos. É mais fácil aparecerem no inverno. Ou quem sabe estão se tornando mais numerosas nestas bandas.

— Tudo aquilo que ainda é capaz de se multiplicar anda crescendo em número por aqui — interveio Barbagris em tom incisivo.

— Eu lhe vendo a primeira que apanhar, Barbagris. Não me esqueci do que aconteceu antes de virmos para Sparcot. A próxima será sua. Tenho uma porção de armadilhas armadas por aí.

— Você é um grande ladrão de caça, Jeff — disse Charley. — Só que, ao contrário de todos nós, não teve que mudar de profissão.

— Como? Eu nunca tive que trocar de profissão? Você está doido, Charley Samuels! Passei a maior parte da vida numa fedorenta fábrica de ferramentas... antes da revolução e tudo mais. Não que eu tenha sempre gostado da natureza... mas nunca esperei chegar a viver tão dentro dela...

— De qualquer forma, você agora é um verdadeiro homem da floresta.

— Pensa que não sei que está caçoando de mim? Não sou nenhum tolo, Charley, apesar do que você acha. Mas acho horrível como nós, homens da cidade, fomos transformados de repente em matutos... não concorda comigo? Que mais nos resta na vida? Estamos todos esfarrapados, cheios de vermes e dores de dente! Qual será o fim disso, hein? Gostaria de saber. Qual será o fim disso? — Jeff Pitt voltou novamente o olhar na direção da mata.

— Vamos indo bem — disse Barbagris. Era a sua indefectível resposta à indefectível pergunta. Charley possuía também sua indefectível resposta.

— São os desígnios do Senhor, Jeff. Inútil preocupar-se. Não podemos saber o que Ele reserva para nós.

— Depois de tudo o que Ele nos fez nestes últimos cinqüenta anos, estranho que vocês ainda se falem.

— O fim de tudo será de acordo com a Sua vontade — disse Charley.

Pitt franziu-se, exibindo todas as rugas da face, e seguiu em frente com a presa.

Qual seria o fim disso tudo, perguntava-se Barbagris, senão a humilhação e o desespero? Mas não formulava a pergunta em voz alta. Embora lhe agradasse o otimismo de Charley, ele não tolerava mais que o velho Pitt essas respostas fáceis que alimentavam tal otimismo. Eles prosseguiram a caminhada. Charley passou a falar nos relatos correntes acerca das pessoas que pretendiam ter visto gnomos e homúnculos pelas florestas, em cima de telhados ou sugando tetas de vacas. Barbagris respondia-lhe de forma automática, a infrutífera pergunta do velho Pitt não o abandonava. Qual seria o fim de tudo aquilo?

Uma pergunta viscosa como poucas, era-lhe difícil livrar-se dela, cada vez mais, ele a sentia consigo.

Terminado o contorno do perímetro, lá se encontravam de novo os dois à margem do Tâmisa, na fronteira ocidental, em que o rio penetrava nos seus domínios. Os dois homens se detiveram a contemplar a água.

Lutando, debatendo-se, vencendo mil obstáculos, a água demandava, como acontecia desde o começo dos tempos, o mar. Nem mesmo o seu poder mitigante foi capaz de silenciar os pensamentos de Barbagris.

— Que idade tem você? — perguntou ele a Charley.

— Parei de contar há muito tempo. Não fique triste assim! Que preocupação é essa? Você é um sujeito alegre, Barbagris, pare de pensar no futuro. Olhe para a água: ela acaba chegando onde pretende... e não se preocupa com nada.

— Sua comparação não me refresca em nada.

— Será que não?! Pois devia!

Ocorreu a Barbagris o quanto Charley era insípido, mas ele respondeu pacientemente.

— Você é um camarada sensato, Charley. Então não devemos pensar no futuro? Este mundo está se tornando um asilo de velhos. Os sinais de perigo você vê tão bem quanto eu. Já não existem homens e mulheres jovens. O número daqueles que são capazes de manter esse baixíssimo padrão de vida que já temos diminui de ano para ano. Nós...

— Nós não podemos fazer nada. Convença-se disso e se sentirá muito melhor. Esse negócio de o homem modificar o seu destino é coisa do passado... é... um simples fóssil... alguma coisa que sobrou de uma outra era. Nós nada podemos fazer. Apenas somos carregados... como as águas deste rio.

— Você enterra um monte de coisas no rio — retrucou Barbagris, quase rindo. E chutou uma pedra para dentro da correnteza. Seguiu-se uma corrida e um mergulho de um pequeno ser procurando pôr-se a salvo — talvez um rato d'água.

Os homens mantiveram-se calados, Charley, encolhendo ligeiramente os ombros, começou a declamar uma poesia:

 

Morrem as florestas, definham e tombam.

Destilam os ares os seus pesares

O homem lavra a terra e nela se enterra.

 

Havia uma incongruência entre aquele tosco homem a recitar Tennyson e as matas debruçadas sobre o rio. Barbagris comentou judicioso:

— Nunca ouvi poesia mais deprimente na boca de um homem alegre...

— Fui criado com essas coisas. Já lhe contei sobre a lojinha bolorenta que meu pai tinha?

Uma das características da idade avançada é que todas as conversas levam de volta a épocas pretéritas.

— Bem... continue sua ronda — disse Charley, mas Barbagris travou-lhe o braço. Tinha dado fé de um ruído diferente em algum ponto mais acima na correnteza.

Ele adiantou-se até a beira da água e espiou. Alguma coisa vinha descendo o rio, embora a folhagem pendente sobre o leito impedisse de precisar o que fosse. Estugando o passo, Barbagris encaminhou-se para a ponte de pedra, com Charley trotando com todas as suas forças atrás dele.

Do topo da ponte puderam ver bem o que se passava rio acima. Começava a despontar, a cerca de oitenta metros, uma pesada embarcação. A proa recurva estava a indicar que aquilo tinha sido um dia uma embarcação a motor. Agora, estava sendo impelida a remos por alguns homens de barbas brancas, uma vela branca pendendo tristemente de um mastro. Barbagris sacou do bolso interno o velho apito e emitiu dois prolongados silvos. Ele acenou para Charley e correu para o moinho de água onde morava Big Jim Mole.

Quando Barbagris chegou, Mole já ia abrindo a porta. O tempo não tinha apagado ainda a ferocidade natural de Mole. Ele era homem encorpado, com uma feroz cara de porco e um tufo de cabelos grisalhos a projetar-se de dentro das orelhas e outro do alto do crânio. Parecia que as suas narinas, tanto quanto os olhos, examinavam Barbagris.

— Por que esse barulho todo, Barbagris? — indagou Mole.

Barbagris contou-lhe. Mole veio para fora, abotoando o velho casaco militar. Atrás dele surgiu o Major Trouter, homenzinho que mancava feio ao caminhar e se escorava numa bengala. Ao emergir à luz cinzenta do dia, ele principiou a gritar ordens com voz esganiçada. Havia ainda gente por ali, em virtude do falso alarme. Começaram todos a entrar em formação, homens e mulheres, organizando-se segundo um esquema de defesa previamente traçado.

A população de Sparcot era fera de pelagem vária. Os indivíduos que a constituíam haviam costurado para seu uso uma grande variedade de roupas e trapos que passavam por roupas. Viam-se capotes feitos de tapetes e saias de cortinas. Alguns dos homens envergavam coletes de pele de raposa muito mal curtida, algumas das mulheres trajavam capotes militares esburacados. Apesar da diversidade, o efeito geral era descolorido e ninguém se destacava de forma especial naquela paisagem acrômica. A impressão de melancólica uniformidade era ainda ressaltada pela distribuição generalizada de bochechas murchas e cabelos brancos.

Numerosas bocas velhas tossiam ao frio do inverno. Muitas costas corcovavam, muitas pernas se arrastavam. Sparcot era um reduto de doenças: artrite, lumbago, reumatismo, catarata, pneumonia, influenza, ciática... Peitos, fígados, costas, cabeças, tudo era motivo para queixas, e os serões noturnos versavam sempre sobre o tempo e as dores de dentes. Apesar de tudo, os aldeões reagiram vivamente ao som do apito.

Barbagris fez a constatação com alegria, embora não estivesse certo da necessidade daquela mobilização, ele ajudara Trouter a organizar o esquema de defesa antes que um distanciamento progressivo começasse a apartá-lo d


Mole e Trouter, fazendo-o desempenhar papel de menor relevância no rol das coisas.

Os dois silvos prolongados significavam ameaça por água. Conquanto, nos dias atuais, a maioria dos viajantes fosse pacífica (e pagasse pedágio junto à ponte de Sparcot), poucos eram os aldeões que tinham esquecido o episódio de cinco ou seis anos antes, quando um pirata solitário os ameaçara a todos com um lança-chamas. Os lança-chamas, aparentemente, rareavam cada vez mais. Assim como a gasolina, as metralhadoras e a munição, eram o produto de outro século, relíquias de um mundo desaparecido. Mas qualquer coisa que lhes chegasse pela água era motivo para a prontidão geral.

Por isso, um grupo de aldeões fortemente armados (numerosos deles munidos de arcos e setas de fabricação caseira) encontrava-se já à beira do rio quando a embarcação forasteira chegou. Agacharam-se todos atrás de um muro baixo e semiderrubado, prontos para atacar ou defender, uma sensação de ansiedade percorrendo-lhes as veias.

A embarcação vinha cortando a correnteza de viés. Dirigia-a o mais desgrenhado bando de antimarinheiros que jamais se tinha visto. Os remadores pareciam igualmente preocupados com impedir a nau de capotar e fazê-la ir em frente. Cumpre dizer que fracassavam por igual em ambos os intentos.

A falta de habilidade não se devia apenas à dificuldade natural de tocar a remos uma embarcação de cinqüenta anos e trinta pés de comprimento, com casco apodrecido, nem tampouco apenas à presença a bordo de uma dúzia de passageiros com todos os seus trastes. Na cabina da nave, debatendo-se sob o aperto de quatro homens, vinha uma enorme e indócil rena.

Embora o animal tivesse tido os chifres aparados — conforme um costume corrente desde há uns vinte anos, quando um dos derradeiros governos fortes o havia introduzido no país —, ele tinha força suficiente para provocar grandes estragos, e renas eram mais valiosas que homens. Serviam para a produção de leite e carne quando o gado escasseava,   ademais, eram excelentes animais de carga enquanto a única coisa que restava aos homens era envelhecer.

A despeito daquele fator de distração, um dos navegadores, fazendo de vigia, divisou as forças reunidas de Sparcot e deu o alarme. Tratava-se de uma mulher, alta e morena, magra e ossuda, os cabelos tintos de preto atados sob um lenço. Quando ela apelou para os remadores, estes depuseram os remos com uma presteza que bem revelava o alívio que sentiam. Alguém agachado atrás de uma pilha de roupas no convés entregou uma bandeira branca à mulher trigueira. Ela acenou a bandeira e gritou para os que se encontravam nas margens.

— Que está gritando? — indagou John Meller, antigo soldado que já fora uma espécie de batedor de Mole, antes que este, exasperado, o dispensasse por inútil. Com quase noventa anos de idade, Meller era magro como uma vareta e surdo como uma porta, mas o olho que lhe restava funcionava a contento.

De novo a voz da mulher se fez ouvir, confiante, embora estivesse fazendo um pedido.

— Deixem-nos passar em paz. Não desejamos fazer mal a ninguém. Deixem-nos passar!

Barbagris repetiu a mensagem ao ouvido de Meller. A cabeça branca sacudiu-se, dando a entender que o ancião não tinha ouvido.

— Matem os homens e estuprem as mulheres! Eu fico com essa morena aí da frente.

Mole e Trouter adiantaram-se, berrando ordens. Obviamente, tinham decidido que a embarcação não representava grande perigo.

— Vamos detê-los e verificar o que carregam. — disse Mole. — Peguem o poste. Mexam-se, homens! Vamos ter uma conversa com essa gente para ver quem são e o que querem. Eles devem ter alguma coisa que nos interessa.

Em meio àquela azáfama, Towin Thomas tinha-se acercado de Barbagris e Charley Samuels. Em seu esforço para ver com clareza a embarcação, ele contraíra todo o rosto numa horrenda careta. Com o cotovelo, cutucou as costelas de Barbagris.


— Ei, Barbagris, essa rena viria a calhar para trabalhos pesados, não é? — disse Towin, mascando reflexivamente o castão da bengala. — Iria muito bem puxando um arado, hein?

— Não temos o direito de tomá-la deles.

— Não está com escrúpulos por causa dessa rena... ? Será que a conversa do velho Charley lhe pôs alguma idéia na cabeça?

— Nunca escuto o que Charley ou você dizem — retrucou Barbagris.

Um enorme poste, que já tivera os seus dias de utilidade nos tempos em que ainda existia telefone, foi deitado de comprido através da água, a sua extremidade alcançando o espaço entre duas pedras na margem oposta do rio. Naquele ponto o rio se estreitava na direção da derruída ponte. O local, por muitos anos, fora boa fonte de renda para os habitantes do vilarejo: as taxas cobradas às embarcações em trânsito pelo rio complementavam certos esforços menos entusiastas no setor da agricultura. A idéia do pedágio tinha sido uma das poucas iniciativas inspiradas do estéril e opressivo reinado de Jim Mole. Para reforçar a ameaça do poste, os homens de Sparcot assomaram em bloco na margem do rio. Mole, empunhando uma espada, adiantou-se ao grupo, exigindo o desembarque dos forasteiros.

A mulher alta e morena brandiu os punhos.

— Respeitem a bandeira branca, seus porcos! — gritou. — Deixem-nos passar em paz. Não temos lar, nem coisa alguma que lhes possa servir.

A tripulação tinha menos ânimo que ela. Os remos foram recolhidos e a embarcação derivou até encostar-se a um dos pilares da ponte de pedra. Encantada com aquela presa fácil, a população vilareja puxou a nave estranha até a margem com o auxílio de ganchos. A rena, desafiadora, ergueu a altiva cabeça, a mulher morena externou todo o seu desencanto.

— Ei, seu cara de porco — gritou, apontando para Mole —, escute uma coisa. Nós somos vizinhos. Viemos de Grafton Lock. É assim que se trata um vizinho, seu pirata?

Ergueu-se um murmúrio entre o pessoal da margem. Jeff Pitt foi o primeiro a reconhecer a mulher. Chamavam-na Joana Cigana, e esse nome era quase uma lenda entre aqueles aldeões que já se haviam aventurado em seus domínios.

Jim Mole e Trouter adiantaram-se aos demais a fim de exigir silêncio à mulher, mas ela tornou a gritar.

— Tirem as patas de cima de nós! Temos feridos a bordo.

— Cale essa boca, mulher, e desça! Ninguém vai machucá-la. — disse Mole baixando a espada. Ladeado pelo major, ele caminhou para a embarcação.

Embora sem autorização, alguns dos locais já tinham tentado a abordagem. Encorajados pela ausência de resistência e ávidos de assegurar-se o seu quinhão na pilhagem, liderados por duas mulheres eles haviam tomado a iniciativa. Um dos remadores, um encanecido velhote de barbas amareladas, entrou em pânico e assentou o remo na cabeça da primeira que lhe surgiu pela frente. A mulher se estatelou. Imediatamente, apesar dos brados de desaprovação de ambas as partes, irrompeu um conflito.

A embarcação tremeu. Os homens que seguravam a rena procuraram abrigo. Aproveitando-se do descuido, o animal escapuliu aos seus algozes. Atravessou a galope o teto da cabina, deteve-se por um instante, e a seguir saltou para dentro do Tâmisa. Nadando com vigor, dirigiu-se rio abaixo. Da embarcação ergueu-se um grito de desalento.

Dois dos homens que estavam à procura do animal mergulharam também nas águas. Pouco depois, porém, começaram a ter problemas, e um deles voltou com dificuldade até a margem, onde foi içado pelos que estavam em terra firme. Perto dos arcos da ponte derruída a rena galgou a margem, os flancos reverberando pela água. Por um momento o animal deteve-se a sacudir a cabeça, como se tivesse os ouvidos-cheios de água. A seguir desapareceu numa touceira.

O segundo homem a jogar-se nas águas foi menos bem sucedido. Não conseguiu atingir a margem oposta. A correnteza o apanhou, fê-lo rolar sob a ponte e ir ter na parte represada. Ouviu-se o seu grito agudo. Um braço se mostrou entre a espuma e a seguir restou apenas o rugido das águas verde-esbranquiçadas.

O incidente abafou o tumulto a bordo, de modo que Mole e Trouter puderam interrogar a tripulação. Ambos constataram que a Cigana não mentira ao dizer que havia feridos a bordo. Na antiga câmara principal amontoavam-se nove pessoas, homens e mulheres, nonagenários, a julgar pelas rugas e pelos olhos encovados. Tinham as roupas rasgadas, os rostos e as mãos ensangüentados. Uma mulher a quem faltava metade do rosto parecia a pique de morrer, e todo o grupo observava um abismado silêncio, mais terrível que qualquer gritaria.

— Que lhes aconteceu? — indagou Mole, contrafeito.

— Foram os arminhos — esclareceu a Cigana.

Ela e os demais companheiros se apressaram a relatar o sucedido. Os fatos eram simples, deveras. O seu grupo era pouco numeroso, mas vivia relativamente bem à custa da pesca, numa região inundada próxima de Grafton Lock. Não mantinham guarda e viviam praticamente indefesos. Ao cair da tarde do dia anterior tinham sido atacados por uma matilha (por diversas matilhas, segundo alguns) de arminhos. Aterrorizada, a comunidade tomara as suas embarcações e se afastara o mais rápido possível. Julgavam que, a menos que o acaso interferisse, logo os arminhos se lançariam sobre Sparcot.

— Por que haveriam de fazer isso? — quis saber Trouter.

— Porque estão com fome, homem — retrucou a Cigana. — Eles estão se reproduzindo como coelhos e andam devastando tudo à cata de comida. Devoram tudo, esses diabos: peixe, carne, vegetais... Acho que vocês deveriam dar o fora daqui.

Mole lançou um olhar apreensivo em torno e disse:

— Não comece a espalhar boatos, mulher. Nós temos como nos defender. Não somos um bando qualquer, temos organização. Vocês podem ir em frente. Já que estão em apuros, não iremos incomodá-los. Saiam das nossas terras o mais rápido que puderem. A Cigana parecia preparada para polemizar, mas dois dos seus homens, temerosos, travaram-lhe o braço, recomendando-lhe que a sugestão fosse prontamente acatada.

— Daqui a pouco deve chegar outro barco nosso — esclareceu um daqueles homens. — Vem cheio de velhos que não estão feridos. Ficaríamos agradecidos se os deixassem passar em paz.

Mole e Trouter recuaram um passo, acenando os braços. A simples menção da palavra arminhos pusera-os em polvorosa.

— Vão embora! — gritaram ambos, fazendo sinais com os braços. E, para os seus próprios homens: — Retirem o poste para eles passarem.

O poste foi retirado, e a Cigana e os seus se puseram em movimento, o antigo cruzador balouçando perigosamente. Mas as novidades já se tinham espalhado. A palavra arminhos correra de boca em boca, e as pessoas começavam a correr de volta para suas casas ou em direção do estaleiro local.

Ao contrário dos seus inimigos os ratos, os arminhos não tinham diminuído de número. Durante a última década tinham-se multiplicado acentuadamente, tornando-se muito mais numerosos e perigosos. No começo do ano, o velho Reggy Foster fora vítima de um ataque no qual lhe tinham arrancado um pedaço do pescoço. Os arminhos, desenvolvendo um antigo costume seu, haviam entrado a atacar em matilhas, tal como acontecera em Grafton. Em tais ocasiões não denotavam nenhum receio da criatura humana.

Sabedores dessa situação, os aldeões começaram a caminhar para cá e para lá junto às margens do rio, empurrando-se uns aos outros e proferindo exclamações sem nexo.

Jim Mole sacou um revólver e apontou para as costas de um deles.

— Não pode fazer isso! — disse Barbagris com firmeza.

— Será que não? — perguntou Mole. Seus olhos soltavam chispas. Trouter disse alguma coisa e ele, virando o revólver para cima, disparou para o ar. Os aldeões voltaram-se, perplexos. Depois, em sua maioria, saíram a correr. Mole riu-se.

— Que se vão — disse ele. — Acabarão se matando.

— Chame-os à razão — disse Barbagris, aproximando-se. — Estão aterrorizados. Inútil disparar contra eles. Fale com eles.

— Razão! Saia da minha frente! Eles estão é loucos. Morrerão todos. Todos nós vamos morrer.

— Vai permitir que vão embora, Jim? — indagou Trouter.

— Você conhece o problema dos arminhos tão bem como eu — respondeu Mole. — Se atacarem em massa, nós não temos munição suficiente para enfrentá-los. Não temos gente com habilidade bastante para abatê-los com arco e flexa. De maneira que a única saída é tomarmos o barco e ficarmos na outra margem até que a peste desapareça.

— Os arminhos sabem nadar — objetou Trouter.

— Sei que sabem. Mas por que haveriam de fazer isso? Estão à procura de comida e não de guerra. Estaremos seguros na outra margem... É capaz de imaginar como seria um ataque de arminhos? Viu o estado daquela gente? Quer que lhe aconteça o mesmo?

Mole empalidecera e não parava de correr os olhos em torno de si, como temeroso de que os arminhos já estivessem chegando.

— Poderemos correr para os celeiros e para as casas se eles vierem — disse Barbagris. — Podemos nos defender sem abandonar a aldeia. O melhor é ficar aqui mesmo.

Mole voltou-se para ele arreganhando os dentes com ferocidade.

— Quantas construções à prova de arminhos nós temos? Sabe que eles atacarão o gado se estiverem famintos de verdade, e depois virão para cima de nós. E, afinal de contas, quem é que manda aqui? Não é você, Barbagris! Vamos, Trouter, que está esperando? Vamos cuidar do barco!

Por um instante, Trouter pareceu disposto a discutir. Em vez disso, começou a expedir ordens com voz estridente. Ele e Mole correram em direção do estaleiro, gritando:

— Calma, seus patetas, vamos levar vocês todos para a outra margem.

O local começou a parecer um ativo formigueiro. Barbagris notou que Charley desaparecera. A embarcação com os fugitivos de Grafton já ia bem longe àquela altura e tinha transposto a represa sem maiores problemas. Barbagris estava a contemplar o caos do alto da ponte quando Marta surgiu.

Sua esposa era mulher de porte médio, de nobre aspecto, conquanto manquitolasse um pouco. Trazia um cobertor enrolado nos ombros. Seu rosto era levemente pálido e enrugado, mas, em razão da boa estrutura óssea, conservava ainda alguns restos de beleza, e as suas negras pestanas ainda lhe davam algum encanto aos olhos.

Ela percebeu o ar alheado do marido.

— Pode vir sonhar em casa.

Barbagris travou-lhe o braço.

— Gostaria de saber o que existe no outro lado do rio. Daria tudo para saber como é a vida ali. Nós aqui não passamos de uma turba.

— Não tem medo dos arminhos, Algy?

— Claro que tenho — respondeu Barbagris, corri um sorriso cansado. — Já estou cansado de ter medo. Faz onze anos que vivemos fechados nesta aldeia, todos nós apanhamos a moléstia de Mole.

E o casal enveredou rumo de casa. Finalmente, Sparcot tinha um ar de vida. No campo, os homens tangiam ansiosos o gado para dentro dos abrigos. Os celeiros e estábulos tinham sido construídos sobre estacas para enchentes ou emergências como aquela. Uma vez o gado alojado no seu interior, as rampas podiam ser retiradas, e os animais ficavam a salvo.

Quando Barbagris e Marta passaram diante da casa de Annie Hunter, a figura desengonçada de Willy Tallridge assomou à porta. Vinha ele se abotoando, e não lhes deu nenhuma atenção, limitando-se apenas a correr, tanto quanto lhe permitiam as pernas octogenárias, na direção do rio. O rosto risonho de Annie, carregado de pintura, mostrou-se na janela do andar superior. Ela acenou para eles.


— Há um alarme contra arminhos, Annie — gritou Barbagris. — Vão transportar todo o mundo para o outro lado do rio.

— Obrigado pelo aviso, querido, mas eu fico por aqui mesmo.

— É preciso reconhecer que Annie é corajosa — disse Barbagris.

— E divertida também — atalhou Marta com rispidez. — Sabe, Algy, ela tem vinte anos mais do que eu... Pobre Annie, que destino o seu... ser a mais antiga profissional!

Barbagris perscrutava os campos, procurando distinguir vultos castanhos movendo-se por entre o capim, mas riu do gracejo de Marta. De quando em quando, uma observação casual da mulher trazia-lhe de volta todo um mundo, o velho mundo das observações espirituosas no qual, nas festas, consumiam-se enormes quantidades de álcool e nicotina. Ele amava a esposa sobretudo pela sua autenticidade.

— Engraçado — comentou. — Você é a única pessoa em Sparcot que ainda gosta de conversar pelo simples prazer de conversar. Agora vá para casa e ponha algumas coisas na mala. Feche-se por dentro, logo mais irei ter com você. Preciso ajudar os homens com o gado.

— Algy, estou nervosa. É preciso arrumar as malas apenas para atravessar o rio? O que anda acontecendo?

De repente a expressão de Barbagris endureceu.

— Faça o que lhe digo, Marta. Não vamos atravessar o rio, vamos embora de Sparcot.

Antes que ela pudesse dizer alguma coisa ele se afastou. Marta pôs-se a caminho, descendo a rua esburacada, parando à porta, e entrando em sua sombria moradia. A excitação provocada pelas palavras do marido não durou muito. Agora, diante daquelas paredes cujo papel descolara quase todo e daquele teto imundo, ela rezou para que Barbagris tencionasse realmente fazer o que dissera.

Mas sair de Sparcot? O mundo reduzira-se a tal ponto que, para ela, limitava-se exclusivamente a Sparcot...

Quando Barbagris se encaminhava para os estábulos, estourou uma briga na rua. Dois grupos de pessoas que transportavam seus pertences para a barranca do rio tinham entrado em choque, e tinham resvalado para uma dessas explosões de ódio que caracterizavam a vida do vilarejo. A conseqüência seriam alguns ossos partidos, algumas comoções, alguns ataques de pneumonia, e alguns buracos no insaciável cemitério sob as árvores, em que o terreno arenoso se submetia com docilidade à escavação pelas pás.

Amiúde Barbagris tinha funcionado como pomba da paz em tais discussões. Desta vez ele se afastou e se encaminhou para onde se encontrava o gado. Os animais valiam tanto (forçoso era reconhecer) como as pessoas. De má vontade, o gado deixou-se conduzir para o interior dos estábulos. George Swinton, velho maneta que em 2008, em Westminster, tinha matado dois homens, entremeteu-se como um furacão pelo meio deles, ferindo-os o mais que podia com a voz e com o cajado.

Um ruído semelhante ao de árvores sendo abatidas numa floresta os deteve. Duas das pernas de madeira do estábulo haviam-se rachado ao nível do chão. Um dos magotes de homens presentes soltou um grito de advertência. Em pouco, o estábulo começou a ceder. Lascas de madeira voaram por toda parte. O estábulo veio abaixo, com um dilúvio de pranchas estouradas. De sob os escombros uma parte do gado se pôs em fuga.

— Para o diabo tudo isto! Vamos para os barcos — disse George Swinton, passando diante de Barbagris. E nenhum outro se mostrava mais interessado que ele. Atirando longe os seus cajados, puseram-se em marcha atrás dele. Barbagris não se moveu de onde estava.

Agachando-se, ajudou uma novilha a livrar-se de uma trave. O animal se afastou rumo das pastagens. Teria que correr o risco de enfrentar os arminhos, caso estes de fato se apresentassem.

Quando Barbagris se dispôs a voltar para casa ouviu-se um tiro (parecia um tiro do revólver de Mole) vindo da ponte de pedra. E logo a seguir mais um. Um bando de pardais levantou dos telhados e foi procurar abrigo nas árvores da outra margem do rio. Barbagris apressou passo, atravessou o oásis que era o jardim da sua casa e estudou com atenção o que acontecia em torno.

Um grupo de aldeões pelejava junto da ponte. A bruma vespertina embaçava a cena, e as altas árvores ao fundo a apequenavam, mas através de um buraco num muro caído Barbagris pôde ver claramente o que estava se passando.

A segunda embarcação de Grafton surgira no exato memento em que a de Sparcot se lançava na correnteza. Trazia ela um carregamento de cabeças brancas, a maioria das quais acenava, dando à distância a impressão de um grupo de bonecos. O barco de Sparcot levava uma grande sobrecarga dos membros mais agressivos da comunidade, os quais tinham feito questão de serem os primeiros a transladar-se para a margem oposta. Em virtude de estupidez e inabilidade de ambas as partes as embarcações colidiram.

Jim Mole, no alto da ponta, fazia mira sobre todos. A Barbagris não era possível saber se ele havia ou não atingido alguém com os seus dois primeiros disparos. Enquanto se esforçava por definir alguma coisa, Marta se aproximou.

— Esse Mole nunca deixará de ser mau chefe! — exclamou Barbagris. — Não lhe falta brutalidade, mas, em compensação, não tem noção de disciplina. Atirar nesse pessoal dos barcos só irá piorar as coisas.

Alguém gritava com voz rouca que se fizesse o barco voltar à margem. Ninguém deu ouvidos, e, esquecendo por completo a hierarquia, ambas as tripulações entraram a combater-se. Uma vez mais o ódio senil se apossara de todos. A embarcação de Grafton, potente ex-barco a motor, oscilou perigosamente quando os aldeões se atiraram sobre os seus infelizes ocupantes. Para aumentar ainda mais o clamor, havia os que percorriam as margens de um lado para outro, gritando conselhos ou ameaças.

— Estamos todos doidos — disse Marta — e a nossa mala está feita.

Barbagris lançou-lhe um rápido olhar amoroso. Com estardalhaço, três velhos habitantes de Grafton caíram ou foram atirados sobre a amurada. Evidentemente


a sua embarcação tinha sido adaptada para funcionar como transporte, mas quando ambos os barcos derivavam rio abaixo, a lancha a motor capotou.

Cabeças brancas misturaram-se com as brancas águas. Um enorme alarido ergueu-se junto à margem. Mole disparou a arma.

— Que vão todos para o inferno! — disse Barbagris. — Estes momentos de loucura... perturbam todo mundo. O tal mascate que esteve aqui a semana passada disse que o pessoal de Stanford, sem nenhuma razão, ateou fogo em suas casas. E toda a população de Burford abandonou a cidade de um momento para o outro dizendo que os gnomos tinham chegado! O velho Jeff Pitt anda com gnomos na cabeça! Além do mais, correm muitas notícias de suicídio em massa. Talvez seja o fim... a loucura generalizada. Talvez estejamos vivendo o fim!

Escurecia cada vez mais o palco do mundo. A idade média da população passava já da casa dos setenta anos. A cada ano que se ia aumentava tal cifra. Alguns anos mais e... Uma emoção próxima do júbilo tomou conta de Barbagris: uma espécie de deslumbramento ante a idéia de que talvez testemunhasse o fim do mundo. Não, o fim da humanidade. O mundo continuaria, talvez o homem morresse, mas a terra seguiria produzindo seus frutos.

O casal voltou para casa. Uma valise (curioso objeto feito de couro de porco que no correr dos anos havia feito uma incursão num mundo em ruínas) fora colocada na sala de estar.

Barbagris olhou em torno, examinou a mobília que ele e a mulher tinham recolhido de outras casas, e o calendário de Marta, assinalando o ano de 2029, pregado à parede, e depois a samambaia plantada num velho vaso. Fazia onze anos que eles tinham chegado de Cowley em companhia de Pitt, onze anos que ele não se cansava de desobrigar-se da sua ronda no afã de evitar intrusões no vilarejo.

— Vamos — disse Barbagris para Marta. — Não se importa de ir, Marta, não é mesmo?

— Não sei onde estou me metendo. É melhor que me leve com você.

— Pelo menos aqui há alguma segurança. Não sei onde estou metendo você, Marta.

— Nada de fraquejar agora, Sr. Barbagris — e, num repente: — Posso falar com Charley Samuels? Ele sentiria muito a nossa falta. Deveria vir conosco.

Barbagris meneou a cabeça, relutando em permitir que alguém participasse do seu plano, mas relutando talvez mais em dizer não a Marta. Ela se afastou. Ele quedou-se, cheio de pesar, a rememorar o passado. Sim, Charley deveria vir com eles, e não só porque já fazia trinta anos que ambos tinham lutado lado a lado. O velho combate não revivia nenhuma emoção, porque pertencia a uma era diferente, servia era para cauterizar sentimentos. O soldado mais jovem que se envolvera no conflito era completamente diferente do homem ali presente naquela mal cuidada sala, até de nome trocara.

Uma acha de lenha continuava a queimar na lareira, mas no saguão e na escada, que rangia à noite como se os gnomos fossem mais realidade do que lenda, o cheiro de umidade era tão espesso como o crepúsculo. Ele e Marta deixariam aquela habitação, a qual dentro em breve se decomporia como um cadáver humano, transformando-se em cola e poeira.

Barbagris compreendia agora por que certas pessoas ateavam fogo às suas moradas. O fogo era limpo, a limpeza era um princípio de certa forma perdido para o homem. Um amargo prazer o acometeu, face à idéia de ir-se dali, malgrado, como sempre, ele desse pouca demonstração do que lhe ia no íntimo.

Com passo rápido, ele se dirigiu para a porta de entrada. Marta transpunha os tijolos que separavam a sua casa da vizinha. Com ela vinha Charley Samuels, o cachenê de lã cinzenta enrolado no pescoço, o capote bem fechado, um embrulho às costas, a raposa amestrada Isaac, puxando com força a guia. Charley tinha o rosto pálido, mas sua expressão era de total determinação. Dirigiu-se até onde estava Barbagris e, lágrimas nos olhos, apertou-lhe a mão. Ansioso por evitar uma cena emocional, Barbagris lhe disse:

— Precisamos de você, Charley, para nos fazer alguns sermões.

Mas Charley apertou-lhe a mão com mais força ainda.

— Eu estava arrumando as minhas coisas, Barbagris, quando vi esse bandido Mole abater a pobre Betty na ponte. O dia dele chegará. O dia dele chegará. Jurei que a partir daquele instante deixaria a companhia dos ímpios.

Barbagris pensou na velha Betty cabeceando de sono sobre seus guisados. Àquela altura sua comida já estaria estragada.

A raposa, impaciente, uivava e saltitava.

— Ao que parece, Isaac concorda com você — disse Barbagris, tentando uma tirada humorística. — Vamos, pois, enquanto ninguém está reparando.

— Não será a primeira vez que trabalhamos juntos — disse Charley,

Meneando aprobativamente a cabeça, Barbagris voltou à sala de estar, ele desejava impedir quaisquer manifestações sentimentalóides por parte do velho Charley.

Barbagris apanhou a valise preparada pela esposa. De caso pensado, deixou aberta a porta da frente. Marta fechou-a. Ela pôs-se a seguir as passadas do marido, em companhia de Charley e a raposa amestrada. Eles tomaram a má estrada do leste e saíram aos campos. Seguiram em paralelo com a margem do rio, encaminhando-se na direção da derruída ponte de pedra.

Barbagris tratou de marchar rapidamente, sem diminuir o ritmo em atenção ao velho Charley. Desde o princípio, seria bom que Charley distinguisse em tudo aquilo apenas um aspecto de fuga, como qualquer fuga, era também uma nova experiência. Barbagris colocou-se rapidamente em guarda ao divisar dois vultos que se dirigiam para a mesma touceira em que se encontravam.

Ambas as partes se deram conta da presença da outra. Os outros eram um homem e uma mulher, o homem forçou os olhos com uma careta a fim de ver quem ia lá. Prontamente, o reconhecimento.

— Aonde vai você, Towin? — indagou Barbagris quando se encontraram. Barbagris examinou por um instante a figura daquele velho, apoiado à bengala e envolto numa indumentária monstruosa composta de cobertores, peles de animais e retalhos de uma dúzia de capotes. Depois voltou os olhos para a mulher de Towin, Becky. Becky Thomas, com seus setenta e tantos anos, era talvez uma década mais jovem que o marido. A roliça velhota trazia consigo duas pequenas sacolas e os seus trajes eram a mesma mixórdia que os do marido. Poucos duvidavam da sua ascendência sobre o esposo, e foi ela a primeira a falar, com voz esganiçada.

— Nós é que perguntamos: aonde vai você?

— Ao que parece estamos no mesmo barco — disse Towin. — Vamos dar o fora deste campo de concentração enquanto temos pernas para caminhar.

— Por isso vestimos estas roupas — esclareceu Becky. — Faz algum tempo que estamos preparados para ir embora. Agora que o velho Mole e o major estão ocupados, a oportunidade chegou. Mas nunca pensei que você fosse fazer o mesmo, Barbagris. Você e o major se dão bem.

Não tomando conhecimento da observação, Barbagris pôs-se a estudá-los cuidadosamente.

— Towin tem razão em falar em campo de concentração. Mas aonde pretendem ir?

— Pretendemos ir para o sul e tomar a velha estrada das planícies — respondeu Becky.

— É melhor virem conosco — disse Barbagris sucintamente. — Não sabemos o que vamos encontrar. Tenho um barco com provisões escondido na represa. Vamos indo.

Oculto numa touceira à margem do rio, abrigado entre os escombros de um velho estábulo, estava um esquife de costado trincado de dezesseis pés de comprimento. Sob as ordens de Barbagris, a embarcação foi içada e colocada na água. Charley e Towin providenciaram para que suas parcas provisões ali fossem colocadas. O proprietário anterior tinha equipado a embarcação com um toldo, que foi devidamente erguido. No entabuamento do barco havia três pares de remos, ademais de uma roda de leme, que Barbagris colocou depois no lugar apropriado.


Não se perdeu tempo. A proximidade da povoação se patenteava pelos gritos que constantemente lhes chegavam aos ouvidos.

Marta e Becky tomaram seus lugares. Os homens saltaram para dentro do barco. Barbagris ajustou a quilha corrediça. Sob sua orientação, Becky tomou a roda do leme e os demais puseram-se a remar (desajeitadamente e sob uma chuva de impropérios de Towin, o qual sacou do bolso o seu famigerado relógio antes de entrar em ação). O grupo manobrou para a faixa central da correnteza e começou a deslocar-se.

Junto da margem oposta apontou um volume colorido. Era um cadáver retido entre duas traves de madeira caídas da velha ponte. A cabeça encontrava-se submersa na água, mas as listras verdes, vermelhas e amarelas da camisa não deixavam dúvida que se tratava de Sam Bulstow.

Uma hora mais tarde, longe já de Sparcot, Marta começou a cantar. A princípio em voz baixa, depois com todas as suas forças.

“Lá não terei rival. Enfrentarei apenas O frio hibernal.”

E interrompeu-se para dizer:

— Towin, você tem razão em falar em campo de concentração. Em Sparcot tudo estava ficando apodrecido. Aqui não pode ser assim. — Ela mostrou a vegetação à margem do rio.

— Aonde pretende ir? — perguntou Charley a Barbagris.

Aquilo era algo que não tinha chegado a ser objeto de total cogitação. O esquife representava somente uma certa reserva de esperança. Mas, sem sombra de hesitação, Barbagris afirmou:

— Desceremos até o estuário do Tâmisa. Depois poderemos improvisar um mastro e uma vela e entrar no oceano. Veremos então como é á costa.

— Seria bom rever o mar — disse Charley comedidamente.


— Certa vez passei as férias de verão em... como é mesmo?... Havia lá um cais... Southend — disse Towin ajeitando o colarinho enquanto remava. — Acho que nesta época do ano lá deve fazer um frio danado... Será que o cais ainda existe? Lindo aquele cais...

— Ora essa, aquilo tudo deve ter ido por água abaixo há muito tempo — atalhou Becky.

A raposa mantinha as patas sobre o costado do barco, o focinho buscando novos aromas na margem. Parecia pronta para o que desse e viesse.

Ninguém fez menção de escoceses, nem de arminhos ou gnomos. A breve canção de Marta ainda estava na memória de todos, e o grupo era só otimismo.

Depois de meia hora foram obrigados a fazer uma pausa para descansar. Towin estava exausto e todos acharam fatigante aquele inusitado exercício. Becky tentou tomar o lugar de Marta aos remos, mas era demasiado canhestra e impaciente para fazer algo de útil. Depois de algum tempo Charley e Barbagris dividiram entre si o trabalho. O ruído das pás dos remos cortando as águas ficava como que entranhado entre as moitas de beira-rio. A bruma começara a escurecer o caminho. As duas mulheres quedaram-se agarradinhas junto à roda do leme.

— No íntimo, continuo sendo uma mulher de cidade — disse Marta. — Os encantos do campo são mais atraentes para mim quando estou longe deles. Onde vamos passar a noite, Algy?

— Vamos encostar assim que encontrarmos um bom local — respondeu Barbagris. — Devemos estar bem longe de Sparcot, mas não é negócio passar adiante do pessoal da Cigana. Não perca a fé. Tenho algumas provisões no barco, além daquilo que trouxemos conosco.

— Você sabe onde tem o nariz — disse Towin. — Devia ter dado um tiro em Jim Mole e tomado Sparcot. O povo teria ficado com você.

Barbagris não respondeu.

O rio desdobrava-se ali em mil curvas, rumo da liberdade do Leste. Quando surgiu uma ponte no horizonte, eles pararam de remar e derivaram até ela. Era uma bela estrutura, com um arco bastante alto e um parapeito seguro. O barco foi encostando na margem, Barbagris de rifle em punho.

— Deve haver alguma habitação perto da ponte — disse ele.— Fiquem aqui enquanto dou uma olhada.

— Vou com você — disse Charley. — Isaac fica no barco.

Ele passou a guia do ansioso animal para Marta, e esta acariciou a raposa a fim de acalmá-la. Os dois homens desceram à terra. Galgaram a margem e se acocoraram sobre umas plantas apodrecidas por detrás, um sol medroso de inverno entremostrava-se entre as árvores. Exceção feita ao sol, distorcido pelos galhos nus através dos quais fulgia, tudo mais era cinzento. Uma espécie de bruma sobrepairava a terra. Diante deles, além do caminho atravancado que atravessava a ponte, erguia-se um enorme edifício. Parecia alçado na bruma, sem uma base assentada no chão. No meio de um conglomerado de chaminés, levantava-se aquela estrutura, vetusta, maligna, sem vida, uma vidraça na parte de cima fazia reverberar o sol. Como nada se mexesse, a não ser um bando de corvos sobrevoando o lugar, os homens seguiram em frente.

— Parece uma velha estalagem — disse Charley. — Nem sinal de vida por aqui. Deve estar desabitada.

Naquele instante ouviu-se uma tosse além da sebe.

Os dois companheiros se agacharam e perscrutaram atentamente o campo, examinando as cercas ali existentes. O campo descia até o rio. Embora mergulhado em brumas, a ausência de capim indicava a presença de ruminantes de alguma espécie. Uma vez mais a tosse se fez ouvir.

Barbagris apontou, sem dizer palavra, o canto esquerdo do campo. Ali havia um barraco. E, nas proximidades, alguns carneiros: quatro ou cinco, ao todo.

— Pensei que não houvesse carneiro há muito tempo — resmungou Charley. — Deve haver alguém na casa.

— Não queremos discussões. Vamos subir mais um pouco o rio.   Ainda resta uma hora de sol.

— Não, vejamos o que existe aqui. O local fica totalmente isolado. Talvez gostem de companhia, se conseguirmos convencê-los que somos amigos.

Era impossível vencer a sensação de que do interior do edifício houvesse armas de fogo assestadas sobre os forasteiros. O olhar fixo nas janelas vazias, eles seguiram em frente. Diante da casa havia um carro de aspecto deteriorado. Desde há muito o veículo, assentado em pneus murchos, assumira uma postura de derrota. Os dois homens correram até o carro e se agacharam atrás dele a fim de observar a casa. Nenhum sinal de movimentação. A maioria das janelas encontrava-se fechada.

— Ó de casa! — gritou Barbagris. Não obteve resposta.

Conforme Charley adivinhara, tratava-se de uma estalagem. Um velho letreiro apodrecia ali perto, sobre a escada, com um nome que tinha sido arrancado do alto da porta principal. Na janela inferior lia-se a palavra Cervejas em relevo. Barbagris anotou todos os detalhes antes de gritar novamente. Mais uma vez, não lhe deram resposta.

— Vamos experimentar os fundos — disse ele, erguendo-se.

— Não acha que por uma noite poderíamos ficar no barco?

— Mais tarde vai fazer muito frio. Vamos dar um pulo até os fundos.

Nos fundos do prédio havia um caminho levando até o pasto dos carneiros. Com Barbagris pronto para disparar o rifle, recostados no úmido muro de tijolos, eles tornaram a gritar. Ninguém respondeu. Barbagris inclinou o corpo e espiou rapidamente pela janela. Dentro havia um homem sentado, o qual olhou para ele sem responder.

Barbagris teve um sobressalto. E recuou, batendo em Charley, um frio a percorrer-lhe a espinha. Quando conseguiu controlar-se, roçou a vidraça com a ponta da arma.

— Somos amigos — disse. Ninguém respondeu.

— Somos amigos, diabo! — Desta vez ele quebrou a vidraça. O vidro partido caiu, depois novamente o silêncio. Os dois companheiros se entreolharam, as expressões muito tensas.

— Ele deve estar doente, morto ou coisa que o valha — disse Charley. Depois, agachando-se, passou por Barbagris e caminhou até a porta dos fundos. Levou a mão à maçaneta, fez uma carga de ombro contra a porta e invadiu o prédio. Barbagris seguiu-o.

O rosto do homem sentado no interior era tão cinzento como a luz do dia que ele não cansava de fixar. Tinha os lábios como devastados por algum poderoso veneno. Estava sentado numa velha cadeira diante da pia. Em seu colo, não inteiramente vazia, estava uma lata de veneno para ratos.

Charley persignou-se.

— Repouse em paz. Hoje em dia não é de admirar que alguém se mate.

Barbagris apanhou a lata de veneno e atirou-a no mato.

— Por que terá se suicidado? Não terá sido falta de comida, com esses carneiros aí fora. Temos que revistar a casa, Charley. Talvez haja mais alguém.

No andar de cima, num quarto ainda batido pelo sol, eles a encontraram. Sob os cobertores, o seu corpo estava reduzido praticamente a nada. Ao lado, num recipiente, um resto de alguma coisa que poderia ser sopa. Ela morrera de alguma doença, não havia dúvida. Fazia mais tempo que falecera do que o homem no térreo, pois o seu quarto recendia a morte.

— Talvez câncer — disse Barbagris. — O marido já não tinha razão para continuar vivendo depois que ela morreu. — Era preciso romper o silêncio, embora fosse muito difícil respirar naquele quarto. Fazendo um esforço para controlar-se, Barbagris prosseguiu: — Vamos esconder os dois entre as plantas lá fora. Depois viremos passar a noite aqui.

— É preciso enterrá-los, Algy.

— Para isso será preciso muito esforço. Demos graças a Deus por haver encontrado este lugar e tratemos de descansar um pouco.

— Talvez tenhamos sido guiados até aqui para dar um enterro decente a estas pobres almas. Barbagris lançou um olhar de viés para a carcaça que apodrecia sobre o colchão.

— Por que o Todo-Poderoso há de querer isto de volta, Charley?

— Pela mesma razão pela qual nos quer aqui.

— Por Deus, Charley, muitas vezes fico em dúvida. Mas, por favor, não discuta. Vamos esconder esses cadáveres para que as mulheres não os vejam, quem sabe pela manhã a gente cuida do enterro.

Com a melhor boa vontade de que foi capaz, Charley ajudou na lúgubre tarefa. Veio a saber-se que o melhor esconderijo era o barraco no campo. Sob os olhares dos carneiros (que afinal de contas eram em número de seis), os corpos foram lá depositados. Barbagris e Charley providenciaram água para os carneiros, abriram algumas janelas para arejar o local e saíram em busca dos demais companheiros. O barco devidamente amarrado, puseram-se todos a caminho da casa.

Na adega, no lugar onde um dia tinham estado muitos barris de cerveja, encontraram um pedaço de carne defumada pendente de um gancho fora do alcance dos ratos — que por ali abundavam. Encontraram uma lâmpada com gordura de carneiro e muito malcheirosa, embora alumiasse a contento. E Towin descobriu, num caixote, cinco garrafas de gim.

— É do que eu preciso para o reumatismo! — disse ele, abrindo uma garrafa. Colocando o nariz afilado no gargalo, inspirou com delícia e depois sorveu um trago.

As mulheres empilharam um pouco de lenha e prepararam uma refeição, disfarçando o sabor forte do carneiro com algumas ervas que havia nos jarros. O calor voltou a todos. Entre os comensais renasceu o espírito de solidariedade e, ao terminar o repasto, todos desfrutavam de excelente estado de espírito.

Marta e Barbagris deitaram, numa ante-sala do andar de baixo. Uma vez que os indícios eram de que o falecido casal não vivia em estado de sítio, Barbagris não viu razão para organizar uma guarda, sob o regime de Mole coisas desse tipo haviam-se convertido em obsessão. Afinal de contas, com o passar dos anos, o homem teria sempre menos a temer de seu semelhante, e aquela casa parecia bastante afastada de todo e qualquer povoamento...

Ainda assim Barbagris não facilitou. Ele nada dissera aos outros, mas antes de deixar o barco havia procurado nos armários um par de baionetas que ali tinha guardado: desejava armar Towin e Charley, mas as baionetas tinham desaparecido, juntamente com outras coisas. Aquela perda encerrava um significado: alguém mais sabia do paradeiro do seu barco.

Quando Marta adormeceu ele se levantou. A lâmpada continuava acesa, mas Barbagris providenciara para que sua luz não atravessasse a janela. Ele procurou fazer com que a sua mente se transformasse numa paisagem na qual pensamentos estranhos podiam penetrar livremente. Começou a gear no lado de fora da casa. A lâmpada estava colocada sobre uma velha cômoda. Barbagris abriu ao acaso uma gaveta e espiou-lhe o interior. Havia ali algumas bugigangas de uso caseiro, um relógio quebrado, alguns tocos de lápis e um tinteiro vazio. Com uma sensação de culpa ele meteu no bolso os dois maiores tocos de lápis e abriu a gaveta vizinha. Viu ali álbuns fotográficos bastante antiquados. Sobre eles, uma fotografia emoldurada de uma criança.

Era um menino de cerca de seis anos, muito alegre, com um sorriso aberto que punha à mostra uma falha na dentição. Nas mãos do menino, uma miniatura de locomotiva. As cores estavam ligeiramente desbotadas. Tratava-se provavelmente de uma fotografia de infância do homem agora displicentemente atirado à companhia dos carneiros.

De repente, brotaram lágrimas dos olhos de Barbagris. A própria infância apodrecia em esquecidas gavetas, incapaz de vencer o tempo como uma recordação permanente. Desde o lamentável (acidente, crime, desastre) do século anterior não tinha nascido nenhum bebê. Não havia mais crianças nem meninos como aquele. Como também não havia mais adolescentes, jovens ou sequer pessoas de meia-idade. Das sete idades do homem só restava uma pequena porção da derradeira


— O grupo dos cinqüentões está bastante bem conservado — disse Barbagris de si para si, apertando os braços. E apesar de todas as dificuldades passadas, havia ainda um bom número de sexagenários em boa forma. Sim, seriam precisos ainda mais alguns anos para que... Mas a verdade é que ele, Barbagris, era um dos mais jovens homens do mundo.

Talvez não fosse essa a verdade. Corriam constantes rumores de que um ou outro casal continuava a produzir filhos, e no passado tinha havido casos... Tinha havido mesmo o patético exemplo de Eve, nos primeiros dias de Sparcot, a qual tinha dado à luz um filho do major Trouter e desaparecido a seguir. Um mês mais tarde, tanto ela como o filho foram encontrados mortos por um grupo que procurava lenha... Mas, tirante isso, jamais se viu uma pessoa jovem. O desastre tinha sido total. Os velhos tinham herdado o mundo.

A carne mortal agora só se revestia de formas góticas de idade. A morte, impaciente, aguardava seus últimos peregrinos... E de tudo isto, colho uma enorme satisfação, concedeu Barbagris, baixando os olhos sobre o sorridente menino da fotografia. Nem sob tortura eu confessaria, mas, de alguma forma, essa é uma coisa de pouca monta que transforma um desastre global em triunfo pessoal. Talvez seja a tola atitude por mim abraçada de que qualquer experiência pode ter o seu valor. Talvez seja o consolo de saber que, mesmo que vivamos até os cem anos, jamais seremos um velho traste: seremos sempre a jovem geração.

Barbagris procurou afastar aquele pensamento idiota que tão amiudadamente lhe ocorria. Porém, não o conseguiu de todo. Ele era um privilegiado da sorte, naquele mundo sem sorte.

Não que a humanidade fosse a única a sofrer. Todos os mamíferos padeciam por igual. Os cães já não procriavam. As raposas tinham praticamente desaparecido, se não de todo, isso se deveu ao hábito de criarem os rebentos em tocas e à abundância de alimentos que sobreveio com a perda pelo homem do controle do solo. O porco doméstico sumira antes do próprio cachorro, e


parte por ter sido impiedosamente exterminado em todos os lugares, e em parte por ter cessado de procriar. O gato doméstico e o cavalo mostraram-se tão estéreis como o homem, o gato apenas sobrevivera em razão do número relativamente elevado de indivíduos que produz por ninhada. Dizia-se que em algumas zonas voltara a multiplicar-se, ambulantes em trânsito por Sparcot falavam de gatos ferozes infestando de quando em quando determinadas regiões.

Os componentes mais avantajados da família dos felinos também tinham sofrido. Em todo o mundo, a história da década de oitenta tinha sido a mesma: as criaturas haviam-se tornado incapazes para a reprodução. A terra — a natureza apocalíptica do acontecimento era tal que até mesmo ao agnóstico era fácil raciocinar em termos bíblicos — a terra cessara de produzir seus frutos. Só as criaturas menores que se abrigavam no seio da terra propriamente dita tinham saído ilesas daquele período em que o homem sucumbira aos seus próprios inventos!

Mas aquela já era uma velha história, e quase meio século separava a cândida criança de dentes de leite da fotografia do velho apodrecido que jazia no barraco.

Barbagris fechou violentamente a gaveta.

Algo havia perturbado os carneiros, que baliam desenfreadamente.

Barbagris visualizou defuntos a caminhar, mas prontamente apagou da imaginação aquele quadro supersticioso. Algum animal rapace seria uma explicação muito mais aceitável para a agitação. Dirigiu-se à cozinha e espiou pela janela. O céu estava mais limpo do que supunha. Uma réstea de luar modelava levemente as árvores do local. Colando o ouvido à vidraça partida, Barbagris ouviu o trotar dos carneiros no pasto. A geada já começava a branquear a vegetação, contemplando os seus pálidos reflexos, Barbagris ouviu passos percorrendo o relvado. Era impossível sair sem fazer ruído ao abrir a porta dos fundos.

Os passos se aproximaram: um homem, todo em sombras, passou diante da janela.

— Pare, senão atiro! — gritou Barbagris. Embora o homem tivesse desaparecido da sua linha de visão, o impacto da descoberta ainda não tinha diminuído.

— É você, Barbagris? — perguntou uma voz cava. — É você, Barbagris? Cuidado com essa arma.

No momento em que ele reconheceu aquela voz, Marta, envolta no capote, veio juntar-se a ele. Barbagris entregou-lhe o rifle.

— Proteja-me — sussurrou. E, em voz alta: — Erga os braços e apareça diante da janela.

Surgiu a silhueta de um homem, os braços distendidos como que a procurar o céu. Ouviu-se uma risada casquinante. Marta apontou para ele o rifle. Barbagris abriu a porta e fez sinal ao homem que entrasse, recuando um passo para dar-lhe passagem. O velho Jeff Pitt, arriando os braços, entrou na cozinha.

— Ainda quer comprar aquela lontra, Barbagris? — indagou ele com seu sorriso canino.

Barbagris retomou a arma e enlaçou Marta pelos ombros frágeis. Fechou a porta com um pontapé e correu Pitt com o olhar, sem esboçar sequer um sorriso.

— Então foi você quem roubou as coisas do meu barco. Por que nos seguiu? Tem barco próprio?

— “Não vim a nado, sabe! — O olhar de Pitt percorria inquieto o local. — Fui mais esperto do que você ao esconder a minha pequena canoa! Durante muitas semanas eu o observei, vi quando equipou seu barco. Pouca coisa acontece em Sparcot que eu não saiba. De modo que hoje, quando vocês fugiram, resolvi arriscar um encontro com os gnomos para vir ver como estavam se saindo.

— Como vê, sobrevivemos, e você quase foi morto a tiros. Agora que está aqui, que pretende fazer, Jeff?

O velhote soprou os dedos e caminhou até o fogão, onde queimava ainda um resto de lenha. Como era seu hábito, não encarou ninguém.

— Pensei em ir com vocês até Reading, se é que vão até lá. Se a sua esposa aceitar a minha companhia...

— Se quiser vir conosco tem que entregar todas as suas armas ao meu marido — disse Marta em tom incisivo. Erguendo o sobrolho, Pitt sacou do bolso do paletó um velho revólver de serviço. Destramente, esvaziou o tambor e entregou a arma a Barbagris.

— Desde que fazem tanta questão da minha companhia — disse, — eu lhes darei não apenas um pouco dos meus conhecimentos mas também a minha arma. Antes de dormirmos, vamos reunir aqui esses carneiros para que não aconteça alguma coisa. Será que sabem quanto arriscaram? Esses carneiros valem uma fortuna cada um. Lá pelas bandas de Reading, seremos reis por causa deles... claro, se não nos apanharem antes...

Barbagris guardou o revólver no bolso. Por muito tempo quedou-se a contemplar o rosto curtido à sua frente. Pitt deu-lhe um sorriso de encorajamento.

— Volte para a cama, querida — disse Barbagris para Marta. — Nós vamos recolher os carneiros. Tenho certeza que a idéia de Jeff é boa.

Ela percebeu o quanto era penoso para o marido reconhecer que uma boa idéia não lhe tinha ocorrido primeiro. Marta olhou-o demoradamente e passou-se para o outro quarto quando, os homens deixaram a casa. A gordura de carneiro pipoqueava na candeia. Ao acomodar-se no improvisado leito (seria meia-noite, talvez, embora num mundo hipotético de relógios não passasse, quem sabe, das nove horas) ela viu diante de si o rosto de Jeff Pitt.

O rosto daquele homem modelara-se de forma a expressar a um só tempo idade e personalidade, os anos o haviam minado até que o conjunto das bochechas enrugadas e molares apodrecidos passou, a constituir um rosto comum, semelhante, digamos, ao de Towin-Thomas, e a numerosos outros que tinham sobrevivido às mesmas tempestades. Aqueles velhos, privados de cuidados médicos e odontológicos, haviam desenvolvido uma parecença fisionômica com outras formas de vida: lobos, macacos, cascas de árvores. Pareciam, pensou Marta, fundir-se progressivamente com a paisagem que habitavam.

Era difícil de recordar, o Jeff Pitt dos primeiros anos em que o grupo se estabelecera em Sparcot. Talvez então ele fosse menos petulante que agora. Tinha melhore


dentes e envergava sempre o seu uniforme militar. Na época era um capanga armado, embora intelectualizado, e não um caçador clandestino. Desde então, quanta coisa tinha mudado!

Mas quem sabe todos tinham mudado bastante naquele intervalo. Eram onze anos, e o mundo se alterara profundamente.


 

Para eles, tinha sido um lance de sorte chegarem até Sparcot. Durante os últimos dias em Cowley, subúrbio fabril de Oxford, ela chegara a pensar que jamais escapariam. Era o outono do empoeirado ano de 2018, quando a cólera veio juntar-se aos muitos outros flagelos que castigavam a humanidade.

Marta era na prática simples prisioneira no apartamento de Cowley em que ela e Barbagris (na ocasião apenas o cidadão Algernon Timberlane, de quarenta e três anos de idade) tinham sido obrigados a instalar-se.

Eles tinham vindo de Londres para Oxford após o falecimento da mãe de Algy. O seu caminhão fora detido nas cercanias de Oxfordshire, imperava o estado de sítio e a região estava sob o comando de um oficial de nome Croucher, sendo Cowley a sede do quartel-general. A polícia militar escoltara o casal até o alojamento. Embora não lhes tivessem dado escolha, as acomodações eram bastante sofríveis.

Apesar da onda de agitações que varria o país e o mundo, o maior inimigo de Marta no momento era o tédio. Não se cansava de montar intermináveis quebra-cabeças de fazendas na época da florada, caçadores de peles do Canadá, praias de Acapulco, e ouvir música ligeira no seu aparelho de rádio portátil. Naqueles dias de calor sufocante, ela não fazia senão esperar pela volta de Algy.

Poucos veículos trafegavam pela Rua Iffley lá fora. De quando em quando ela julgava ouvir um ronco do motor conhecido. Tinha então um sobressalto e amiúde passava longo tempo a espiar pela janela antes de dar fé do seu engano.

Marta contemplava a cidade desconhecida. Ela sorria à lembrança de que o espírito de aventura os acompanhara na vinda de Londres, quando eles tinham rido bastante, jactando-se da sua juventude e da sua capacidade de fazer o que quer que fosse, no entanto, ela se encontrava já abarbada com quebra-cabeças e preocupada com as libações cada vez mais freqüentes de Algy.

Quando viveram nos Estados Unidos, ele costumava beber um bocado, em companhia do vivaz Jack Pilbeam, mas havia então muita alegria, e essa alegria tinha desaparecido. Alegria! Os derradeiros meses em Londres podiam ter sido tudo, menos alegres. O governo estabelecera um rigoroso toque de recolher. O pai de Marta sumira na calada da noite, possivelmente preso sem julgamento, e, com o advento da cólera, Patrícia, a velha mãe de Algy que o terceiro marido abandonara, tinha morrido em meio a sofrimentos atrozes.

Marta correu os dedos pelo peitoril da janela. Ficaram sujos de poeira.

Ela riu um riso curto, recordando-se de alguma piada íntima, e voltou à mesa. Fazendo um esforço, retornou à montagem da ensolarada praia de Acapulco.

As lojas de Cowley abriam apenas à tarde. Marta sentia-se grata pela distração que representavam. Para sair à rua, ela se enfeava de propósito: usava uma velha boina e, para esconder as belas pernas, cobria-as com meias grosseiras. Naqueles dias os soldados faziam as mulheres passar maus bocados.

Aquela tarde, Marta percebeu que os uniformes nas ruas eram menos numerosos. Havia boatos de que diversos pelotões tinham sido deslocados para a área de Londres a fim de prevenir possíveis ataques à capital. De acordo com outros boatos, as tropas tinham sido confinadas aos quartéis e andavam morrendo qual moscas.

Aguardando na fila da peixaria azulejada da Rua Cowley, Marta verificou que seus temores a propendia a aceitar mais facilmente esta última versão. O ar super-aquecido carregava um odor de morte. Assim como a grande maioria das mulheres, ela usava um lenço tapando o nariz e a boca. Os boatos de epidemias ganham mais força quando veiculados através de pedaços sujos de pano.

— Eu disse ao meu marido que preferia que ele não se alistasse — confidenciou a mulher ao lado de Marta. — Mas Bill é teimoso. Ele trabalha numa oficina, mas acha que, mais cedo ou mais tarde, será despedido, de modo que prefere o exército. Eu lhe disse na cara que estava farta de guerra, mas ele respondeu: — Agora não é como uma guerra, é cada um por si. Como é difícil acomodar as coisas, hein?

Ao voltar para o apartamento com a sua ração de peixe defumado e anônimo, Marta recordava as palavras daquela mulher.

Ela foi sentar-se à mesa, braços cruzados, sempre a parafusar naquilo. Permitiu que os seus pensamentos divagassem enquanto não vinha o ruído do caminhão que traria de volta o seu querido Timberlane.

Quando, afinal, o caminhão se fez ouvir no lado de fora, Marta correu ao encontro de Timberlane. Atirou-se ao pescoço quando ele abriu a porta, mas ele a repeliu.

— Estou sujo e fedido, Marta. Não encoste em mim enquanto eu não tomar banho e trocar de roupa.

— Que é que há? Que anda acontecendo?

Ele percebeu o tom excitado da mulher.

— Tem gente morrendo por aí, sabe? Por toda parte.

— Sei que tem gente morrendo.

— Pois bem, a coisa está piorando. Começou em Londres. Agora, andam morrendo nas ruas. O exército faz o que pode, mas as tropas não são menos imunes à doença do que qualquer pessoa.

— Exército! Quer dizer os homens de Croucher!

— O governo da região poderia estar nas mãos de um sujeito pior que Croucher. Ele está mantendo a ordem. Entende a necessidade da existência de um Serviço de Saúde e organizou uma equipe de higienistas. Ninguém poderia fazer mais.


— Você sabe que ele é um criminoso, Algy, como pode falar bem dele?

O casal subiu para o apartamento. Timberlane atirou o casaco a um canto.

Apanhou uma garrafa de gim e um copo e sentou-se. Adicionou um pouco de água e começou a sorver lentos goles. Sua expressão era grave: o conjunto da boca e dos olhos conferia-lhe um ar tristonho. Gotas de suor lhe orvalhavam o crânio semicalvo.

— Não quero falar nisso — disse ele com voz cansada. Marta começou a sentir-se da mesma forma. O quarto enxovalhado acentuava ainda mais o mal-estar do par. Uma mosca principiou a zumbir, dando cabeçadas na vidraça.

— De que quer falar?

— Por Deus, Marta, não quero falar de coisa alguma. Estou farto do cheiro de morte. O dia todo andei por aí coletando dados para o meu serviço. Quero beber até ficar tonto.

Embora Marta sentisse dó dele, tudo fazia para que esse sentimento não transparecesse.

— Algy, o seu dia não pode ter sido pior que o meu. Passei o tempo a fazer quebra-cabeças. A única pessoa com quem falei foi uma mulher, na fila da peixaria. O resto do tempo a porta permaneceu trancada, conforme você recomendou. E agora, tenho que ficar de boca fechada enquanto você enche a cara?

— Por mim não. Mesmo porque você é incapaz de segurar a língua.

Ela encaminhou-se para a janela, dando as costas para ele, pensando consigo mesma: não estou doente. Posso ainda dar a um homem tudo o que ele desejar. Sou Marta Timberlane, nascida Marta Broughton, de quarenta e três anos de idade. Súbito, o copo de Timberlane espatifou-se num canto.

— Marta, sinto muito. Matar, beber, morrer, viver, tudo está reduzido a uma só coisa mecânica...

Marta não deu resposta. Com uma revista velha, esmagou a mosca que zumbia na vidraça. Ela cerrou os olho para verificar até que ponto estavam quentes   as suas sobrancelhas. À mesa, Timberlane prosseguia falando.

— Ainda supero isto, mas recordar minha pobre mãezinha a dizer quanto eu gostava dela em pequeno... ah, mais um copo, querida... dois. Vamos acabar com este gim. Afogar esta maldita máquina. Quanto tempo ainda teremos que agüentar isto?

— Isto o quê? — perguntou Marta, sem se voltar.

— Esta falta de crianças. Esta esterilidade. Esta paralisia asfixiante. Que mais poderia ser?

— Perdão, estou com dor de cabeça. — Marta queria do marido compreensão, não discursos, mas estava claro que algo o tinha perturbado, que ele iria deitar falação, e que o gim lá estava para ajudá-lo. Marta providenciou-lhe outro copo.

— O que estou tentando dizer, Marta, é que, finalmente, os homens começam a perceber que a raça humana não vai mais reproduzir-se. Aqueles bolinhos de carne que costumávamos ver atados em cueiros são coisas do passado. Aquelas menininhas que costumavam brincar com bonecas e sacos de farinha vazios não existem mais. Os adolescentes motorizados que ficavam nas esquinas tocando as buzinas das suas máquinas se foram para sempre. Não voltarão mais. Jamais tornaremos a ver uma garota de seus vinte anos desfilando as tetas e a bundinha redonda pelas ruas. E os jovens esportistas onde estão? Lembra-se dos times de críquete, Marta? E de futebol, hein? E dos filmes românticos na televisão e no cinema? Foi-se tudo! E os cantores pop de ontem, para onde foram? Claro que ainda há jogos de futebol. Os cinqüentões fazem o que podem...

— Chega, Algy. Sabemos muito bem que estamos todos estéreis. Já sabíamos há dezessete anos, quando nos casamos. Chega desta conversa.

Quando Algy tornou a falar, tal tinha sido a transformação operada em sua voz que Marta voltou-se para ele.

— Não pense que gosto de falar nisso. Mas veja como o dia-a-dia não se cansa de revelar a verdade. A miséria anda sempre rondando. Estamos com mais d


quarenta anos e existe pouca gente mais jovem que nós. Basta fazer um passeio por Oxford para ver como o mundo está ficando empoeirado e velho. E agora que a juventude está se acabando é que a falta de continuidade se faz sentir na carne.

Marta serviu-lhe mais uma dose de gim e apanhou um copo para si. Algy ergueu os olhos, com um sorriso descorado, e serviu a ela.

— Talvez a morte de mamãe me faça falar assim. Sinto muito, Marta, especialmente agora que não sabemos o que é feito do seu pai. Desde que me conheço por gente, mamãe não teve um segundo de descanso. Você sabe o que foi a vida dela! Apaixonou-se por três sujeitos imprestáveis: meu pai, Keith Barratt e esse irlandês, pobre mulher! Acho que deveríamos ter feito mais por ela.

— Mas, de certa forma, ela se divertiu. Já falamos nisso antes.

Timberlane limpou a testa com um lenço e sorriu mais descontraído.

— Talvez seja isso o que acontece quando a mola-mestra do mundo arrebenta: ficam todos condenados a pensar e dizer exatamente o que pensavam e diziam na véspera.

— Não precisamos desesperar, Algy. Já atravessamos uma guerra, vencemos ondas de puritanismo e promiscuidade. Fugimos de Londres, onde as coisas estão feias de verdade agora que o último governo forte caiu. Claro que Cowley não é nenhum mar de rosas, mas Croucher não passa de um fenômeno local, se passarmos por cima dele, as coisas irão melhorar. Depois poderemos arranjar uma moradia permanente.

— Eu sei, amor. Parece que estamos atravessando um período provisório. O problema é que já houve muitos períodos como este e haverá muitos mais ainda. Não vejo como poderemos recuperar a estabilidade. O único caminho que existe é ladeira abaixo.

— Não precisamos nos envolver com política. Você não é obrigado a tomar partido para elaborar seus relatórios. Podemos perfeitamente viver tranqüilos e seguros, não é mesmo?

Ele riu e se ergueu com ar genuinamente divertido. Depois esfregou as mechas grisalhas e aproximou mais a cadeira.

— Marta, continuo louco por você! É um erro supor que política é alguma coisa que acontece no recinto do Parlamento. Não é nada disso, acontece dentro da gente. Escute, amor, o Governo Nacional Unido cindiu-se, e demos graças a Deus por isso. Mas, pelo menos, a lei marcial estava servindo para manter a ordem. Agora que entrou em colapso, milhões de pessoas andam dizendo: “não tenho por que economizar, não tenho filhos nem filhas. Por que haveria de trabalhar?” e deixam de trabalhar. Talvez outros tenham tido vontade de trabalhar, mas a indústria não pode se manter dessa forma. Basta que um setor se desorganize para que tudo pare. As fábricas inglesas estão vazias. Não estamos exportando nada. Acha que os Estados Unidos e os países da Comunidade continuarão nos mandando alimentos grátis? Claro que não, ainda mais quando alguns deles estão sofrendo mais que nós! Sei que a comida anda escassa, mas no ano que vem, acredite-me, vai haver fome de verdade. Não existirá então o lugar seguro de que você fala, Marta. Na verdade, haverá apenas um lugar seguro.

— No estrangeiro?

— Trabalhando para Croucher.

Com uma carranca, ela desviou o olhar, indisposta a reafirmar ainda uma vez a sua desconfiança relativamente ao governante local.

— Estou com dor de cabeça, Algy. Não devia ter tomado esse gim. Acho que vou me deitar um pouco.

Ele apanhou-lhe o pulso.

— Escute, Marta. Sei que hoje em dia não é fácil viver comigo e que você não tem vontade de ir para a cama comigo, mas não deixe de me escutar, senão a última linha de comunicação ficará cortada. Nós talvez sejamos a última geração, mas a vida continua sendo uma coisa preciosa. Não quero que a gente morra de fome. Tenho uma entrevista marcada com o comandante Croucher amanhã. Vou lhe oferecer os meus serviços.

— Quê? — E por que não?

— Por que não? Quantas pessoas ele massacrou aqui em Oxford na semana passada? Mais de sessenta, não foi? ...e os cadáveres expostos ao público durante vinte e quatro horas para que todos pudessem ver. E você ainda....

— Croucher representa a lei e a ordem, Marta.

— A loucura e a desordem!

— Não... o Comandante é um legítimo representante da lei, levando em conta os desatinos que temos cometido. Os Condados todos têm um governo militar centralizado em Londres e um nobre local organizou uma espécie de comunidade paternalista abrangendo a maior parte de Devon. Excetuando-se esses e Croucher, que domina presentemente as zonas centro-sul e sudeste, o resto do país mergulha rapidamente na anarquia. Já pensou como estão as coisas no Centro-Norte e no Norte, áreas industrializadas? O que imagina que irá acontecer ali?

— Logo, logo irão encontrar o seu Croucher.

— Certo! E que fará esse Croucher? Fará com que corram para o Sul o mais rápido possível.

— Arriscando-se a contrair a cólera?

— Desejo apenas que a cólera os detenha! Sinceramente, Marta, desejo que a epidemia liquide a maior parte da população. Se ela não detiver o Norte, então Croucher que ponha as barbas de molho, porque caberá a ele fazê-lo. Tome mais um gim. A saúde do Príncipe Croucher! Temos que estabelecer uma linha de defesa desde Cheltenham até Buckingham. Amanhã trataremos das nossas defesas. As tropas de Croucher teriam com que se ocupar e não entrariam na zona de maior população onde a infecção poderia propagar-se. Ele tem soldados demais, os homens preferem alistar-se no seu exército a trabalhar nas fábricas. É preciso organizar a defesa. Falarei com Croucher assim que puder...

Marta afastou-se da mesa e foi refrescar o rosto na torneira fria. Sem enxugar-se, postou-se diante da janela aberta, e quedou-se a contemplar o sol vespertino cujos últimos raios banhavam ainda aquela sórdida viela de subúrbio.


— Croucher não terá tempo para defender o Norte, ocupado como anda com os arruaceiros de Londres. — Marta porém, não entendia o que estavam conversando. O mundo já não era aquele que a tinha visto nascer, tampouco era aquele em que eles (ah, como eram jovens e inocentes então) tinham casado. Pois a cerimônia perdia-se já no tempo e no espaço, numa cidade de Washington por eles idealizada, idealistas que eram, e na qual muito se havia dito acerca de fidelidade e fortaleza... Não, estavam todos loucos. Algy tinha razão quando falava nos desatinos cometidos. Marta, os olhos fixos na rua, procurava dissecar aquela expressão do marido, deixando-o, sem lhe fazer caso, entregue a uma daquelas longas perorações que ele ultimamente adquirira o hábito de fazer.

Não era a primeira vez que ela pensava no gosto pelos monólogos que se generalizara entre as pessoas, seu pai contraíra o hábito nos últimos tempos. De uma forma vaga, ela se dava conta dos motivos: dúvida universal, culpa universal. Dentro da sua própria mente o mesmo monólogo raro se interrompia, embora ela se abstivesse de falar. Todos se dedicavam a falar interminavelmente diante de platéias hipotéticas.

Na verdade, a culpa cabia de fato à geração anterior à sua, àquela gente que já era adulta quando ela nasceu, por volta dos anos sessenta. Naquela época conheciam-se todos os segredos da energia nuclear, das irradiações e da morte (era como que uma segunda natureza das pessoas). Mas ninguém concordara em abrir mão de certos procedimentos. Os homens eram como selvagens na obrigação de cumprir um macabro ritual de iniciação. Sim, um ritual de iniciação. Era isso. E se a humanidade tivesse passado incólume por ele, talvez então amadurecesse com honra e valor. Mas a cerimônia não tinha corrido bem. Tinha havido excesso de arrebatamento! Ao invés de uma simples circuncisão, o que acontecera fora a extirpação total do órgão. Malgrado o choro e o arrependimento, perpetrara-se um descalabro, restava apenas viver com o aleijão, ora jactando-se dele, ora lamentando-o.

Contrafeita, a cabeça a doer, Marta conseguiu divisar um Windrush, com o X amarelo de Croucher, apontar na esquina e rumar na direção do final da rua. Os Windrushes eram um certo tipo de aeronave de fabricação local muito empregado pelos militares naqueles dias. Um homem uniformizado esticou o pescoço através da escotilha a fim de conferir os números das casas. Ao atingir a altura do apartamento dos Timberlane o aparelho aterrou com um ruído de motores sendo desligados.

Assustada, Marta chamou Timberlane à janela. O veículo trazia dois homens, ambos com um X amarelo nas túnicas. Um dos homens apeou e atravessou a rua.

— Não temos nada a temer — disse Timberlane. Ele tateou o bolso à procura da pequena automática de 7 mm com que a DOHUC o tinha armado. — Tranque-se na cozinha, meu amor, caso surja algum problema. Não faça barulho.

— O que acha que eles querem? Bateram pesadamente à porta.

— Leve a garrafa de gim — recomendou Timberlane à mulher, com um sorriso tenso e deu-lhe um tapinha nas costas quando ela se encaminhou para a cozinha. Antes que lhe fosse possível descer, repetiram-se as batidas à porta.

Um cabo lá estava, o seu companheiro se debruçava na escotilha do Windrush, assobiando entre dentes e esfregando o beiço no cano do rifle.

— Timberlane? Algernon Timberlane? O senhor está sendo chamado aos quartéis.

O cabo era homem de pequeno porte, prognata e com duas bolsas escuras sob os olhos. Não teria muito mais de cinqüenta anos: pouca idade para a época. Seu uniforme estava limpo e bem passado e ele não afastava a mão da coronha do revólver.

— Quem me chama? Ia jantar agora mesmo.

— O Comandante Croucher, se é que você é Timberlane. É melhor vir conosco. — O cabo tinha um nariz imenso, que ele cutucou disfarçadamente ao falar com Timberlane.

— Tenho hora marcada com o Comandante amanhã.

— Tem hora marcada com ele esta noite, camarada. Não discuta.


Parecia perfeitamente inútil discutir. Quando Timberlane voltou-se para fechar a porta atrás de si, Marta apareceu. E dirigiu-se diretamente ao guarda.

— Sou a Sra. Timberlane. Leva-me junto também?

Ela era uma mulher atraente, bem conformada de corpo e com uma franqueza no olhar que a fazia parecer mais jovem do que realmente era. O cabo olhou-a aprobatoriamente.

— Mulheres assim são coisa rara hoje em dia. Suba com seu marido.

Marta atalhou os protestos incipientes de Timberlane, apressando-se a subir para o aparelho. Com impaciência, ela livrou-se da mão do cabo, alçando-se a bordo sem ajuda e não tomando conhecimento do olhar instintivo que o homem atirou para as suas coxas momentaneamente expostas.

Encompridando desnecessariamente o caminho, a comitiva dirigiu-se para o castelo pseudovitoriano que servia de quartel-general para Croucher. Durante o primeiro trecho do percurso, Marta refletiu angustiada consigo mesma: “Não será esta uma típica situação do último século? E o século vinte era deveras o Último Século, as batidas, inesperadas e enérgicas, à porta e a aparição de alguém uniformizado pronto para partir para alguma parte, por motivos desconhecidos? Quem terá criado essa situação tão amiudadamente reproduzida? Talvez seja isto o que acontece depois de um desatino... ante a impossibilidade de regenerar, só resta repetir-se.” — Marta sentia vontade de alardear em alta voz algumas daquelas considerações, à mesma maneira pretensiosa do pai, ela generalizava, e generalizar é uma forma de desafogo mais eficaz quando feita em voz alta. Mas um simples olhar para Timberlane fê-la calar-se. Marta notou claramente que o marido estava nervoso.

No rosto dele mesclavam-se o menino e o velho.

Homens! pensou ela. Ali estava a sede de todo o mal. Eram eles que criavam tais situações. Precisavam delas — algozes ou vítimas, precisavam delas. Amigos ou inimigos, eles compartilhavam de um mesmo sadismo que a mulher alguma era dado corrigir ou entender. No instante em que soaram as batidas à porta, o odioso apartamentozinho do casal havia-se transformado num paradisíaco refugio: a torneira gotejante da pia da cozinha transformara-se num símbolo do lar, as peças do quebra-cabeças, num lídimo retrato de uma imensa liberdade intelectual. Ao descer para reunir-se ao marido, Marta tinha feito com os seus botões uma prece pela sua volta à praia ensolarada de Acapulco.

Eles agora se deslocavam um metro acima do nível do chão e ela percebia claramente as reações operadas em seu sangue pelos produtos químicos da tensão de que estava possuída.

A cidade modorrava na quentura daquela tarde de setembro. Mas era um sono desconfortável. Pedaços de papelão e fragmentos de jornais atulhavam as sarjetas. Um conversível movido a bateria tinha o nariz enterrado na fachada semi-destruída de uma loja. As janelas abertas mostravam gente dormitando, as bocas ofegantes castigadas por um duro sol. O paciente desprendia um odor que indicava já a presença de uma infecção sangüínea.

Eles não precisaram ir muito longe para ter satisfeita a sua vontade de topar com um cadáver. Sobre o relvado crestado do Parque S. Clemente um homem e uma mulher jaziam numa postura inconfundível. Um bando de pardais voejavam em torno dos seus ombros.

Timberlane enlaçou Marta com o braço e segredou-lhe algo, como fazia quando ela era mais moça.

— As coisas ainda vão piorar muito antes de entrarem nos eixos — comentou o narigudo cabo, sem dirigir-se especificamente a nenhum dos presentes. — Não sei o que vai acontecer com o mundo. — À passagem do grupo uma onda de poeira levantou-se, envolvendo os telhados das casas.

Chegados aos quartéis, eles desembarcaram. O cabo encaminhou-os na direção de uma arcada distante. Era grande o calor na praça central, a pequena comitiva passou por ali, entrou por uma porta, atravessou um corredor e foi ter numa dependência em que a temperatura era mais amena. O cabo cochichou com um outro homem que chamou o casal para o interior de uma outra sala, na qua


uma porção de gente suada aguardava sentada em bancos, sendo que muitos usavam máscaras anticólera.

Marta e Timberlane esperaram meia hora para ser atendidos. Afinal foram conduzidos para uma espaçosa sala maciçamente mobiliada, dando a impressão de ter sido um dia o cassino dos oficiais. Metade da dependência era ocupada por uma mesa de mogno e três mesinhas desmontáveis. Em torno das mesas havia vários homens, alguns dos quais tendo mapas diante de si. O indivíduo colocado à mesa de mogno tinha à frente uma caderneta, era o único do grupo que não dava a impressão de indolência. O homem assentado à mesa de mogno era o Comandante Peter Croucher.

Um tipo sólido, carnudo e duro. Seu rosto era grande e desgracioso, mas nada tinha de tolo ou primitivo.

Os raros cabelos castanhos puxados para trás, a roupa muito limpa, tudo indicando um homem de negócios. Croucher teria apenas dez anos mais que Timberlane: cerca de cinqüenta e três. Ele lançou sobre os Timberlane um olhar avaliador.

Marta conhecia-lhe a fama. Mesmo antes que as ondas de violência o tinham forçado a deixar Londres, o nome Croucher já corria mundo. A principal indústria de Oxford era a produção de carros e outros veículos, de modo especial os Windrushes. Croucher tinha sido gerente de pessoal da maior fábrica. O Governo Nacional Unido fizera-o Governador Distrital Auxiliar de Oxfordshire. Ao cair o governo, o Governador Distrital tinha sido misteriosamente assassinado, e Croucher assumira as rédeas do poder.

Sem se mexer, ele falou:

— A Sra. Timberlane não recebeu nenhuma intimação para comparecer aqui.

— Acompanho sempre o meu marido, Comandante.

— Não se eu assim não quiser. Guarda!

— Comandante! — O cabo adiantou-se com passo militar.

— Foi uma infração trazer aqui a Sra. Timberlane, Cabo Pitt. Providencie a sua imediata retirada. Ela pode esperar lá fora. Marta ensaiou um protesto. Timberlane fê-la calar-se, apertando-lhe a mão, e ela deixou-se levar dali. Croucher ergueu-se e deu a volta à mesa.

— Timberlane, você é o único homem da DOHUC (I) em território sob a minha jurisdição. Convença-se de que não tenho motivos escusos para atraí-lo. Quero-o do meu lado, essa é a exata verdade.

— Estarei do seu lado, se tratar bem minha mulher.

Croucher teve um gesto de desprezo.

— Que vantagens me pode oferecer? — indagou. Quis parecer a Barbagris que havia ali uma ameaça.

— Sou um homem bem informado, Comandante. Creio que o senhor precisa defender Oxfordshire e Gloucestershire dos centristas e nortistas. Se me emprestar um mapa...

Croucher ergueu a mão.

— É melhor que eu o coloque no seu lugar, amigo. Para começo de conversa, não preciso de ajuda de nenhum estrategista autoproclamado como você. Está vendo estes homens aqui sentados? Eles me fazem o favor de pensar por mim, utilizando-se assim com proveito dos títulos universitários que possuem. A velha luta Túnica vs. Beca já é coisa superada, Sr. Timberlane, e o senhor não ignoraria o fato se não se tivesse deixado ficar tanto tempo em Londres. Fui eu quem decidiu tudo. Estes que está vendo aqui constituem a nata das universidades: todos eles grandes inteligências. Vê aquele sujeito lá na ponta, todo trêmulo e com os óculos quebrados? É Harold Biggs, Professor de Guerra da Universidade de Chiclele. Aquele outro é Sir Maurice Rigg, segundo me consta um dos maiores historiadores de todos os tempos. De maneira que me faça o favor de compreender que quero interrogá-lo sobre a DOHUC(I) e não sobre o que faria se estivesse no meu lugar.

— Sem dúvida os seus intelectuais podem lhe fornecer informações sobre a DOHUC(I).

— Não, não podem. Por isso foi preciso trazê-lo aqui. A única informação que tenho sobre a DOHUC(I) é que se trata de uma espécie de Serviço de Inteligência sediado em Londres. Por motivos óbvios, tudo aquilo qu


vem de Londres é suspeito para mim no momento. A menos que queira correr o risco de passar por espião ou coisa parecida, tranqüilize-me com relação à sua atuação nestas bandas.

— Creio que está me interpretando mal, senhor. Desejo dar-lhe todas as informações acerca da DOHUC(I), não sou nenhum espião. Embora me trouxessem para cá como prisioneiro, eu tinha marcado uma entrevista com o Comandante para amanhã, e tencionava oferecer-lhe todo o meu apoio.

— Não sou dentista. Comigo ninguém marca entrevista. — Croucher esfregou os nós dos dedos no tampo da mesa. — Estranho a sua atitude! Trate de enxergar a realidade... posso mandar fuzilá-lo a qualquer instante, se achar contraproducente a sua conduta.

Timberlane não respondeu. Em tom mais razoável, Croucher acrescentou:

— Bem, vejamos o que é a DOHUC (I) e como opera.

— É apenas uma unidade acadêmica, senhor, embora mais poderosa que qualquer outra associação de acadêmicos. Poderíamos conversar em particular? A natureza do trabalho ali desenvolvido é confidencial.

Croucher ergueu o sobrolho, virou-se e contemplou os homens esverdeados sentados às suas mesas. Depois piscou para dois guardas.

— Não me faria mal uma mudança de cenário. Trabalho demais.

Croucher e Timberlane passaram-se para outra sala. Os guardas os acompanharam. Embora fosse um compartimento pequeno e abafado, era um alívio livrar-se daqueles rostos pasmados. Croucher fez sinal a um dos homens, que abriu uma janela.

— Bem, em que consiste precisamente esse trabalho confidencial?

— É um trabalho de documentação — respondeu Timberlane. — Como sabe, foi em 1981 que ocorreu o acidente que esterilizou o homem e a maioria dos mamíferos superiores. Os americanos foram os primeiros a perceber todas as implicações do que se estava passando. Na década de noventa, diversas fundações colaboraram para o estabelecimento da DOHUC em Washington. Decidiu-se ali que, em virtude das condições especiais prevalentes em todo o mundo, seria criado um grupo de estudo. Tal grupo deveria ser equipado para funcionar durante setenta e cinco anos, quer o homem viesse a recuperar a sua capacidade de procriação quer não. Engajaram-se homens de todas as partes do mundo e deu-se a eles adestramento para interpretar de forma objetiva os dramas nacionais dos seus países e catalogá-los permanentemente. Deu-se ao grupo o nome de Documentação da História Universal Contemporânea. O I entre parênteses significa que pertenço à ala inglesa da organização. Entrei logo para o grupo e recebi treinamento em Washington, em 2001. Naquela época a organização primava por ser permissiva. Graças à sua forma realista de pensar, pudemos continuar operando como indivíduos mesmo quando os contatos nacionais e internacionais deixaram de existir.

— É o que sucede agora. O Presidente foi eliminado por um bando de criminosos. Os Estados Unidos estão mergulhados na anarquia. Sabia disso?

— A Inglaterra também.

— Não é bem assim. Aqui não temos anarquia. Nem sabemos o que isso quer dizer. Sei como manter a ordem, pode estar certo. Mesmo com essa epidemia não há desordem na Inglaterra e a justiça impera.

— A cólera apenas está começando, Comandante Croucher, e as execuções em massa não representam uma manifestação de ordem.

Raivoso, Croucher retrucou:

— Manifestação uma ova! Todos aqueles que estiverem no Hospital Churchill serão fuzilados amanhã. Mas você não compreende. E preciso acabar com as interpretações errôneas. Não tenho nenhum desejo de matar. Quero apenas manter a ordem.

— O senhor deve ter conhecimentos suficientes de história para saber como isto soa mal.

— Verdade! O caos e a guerra civil são absolutamente calamitosos para mim! Escute: isso que me falou a respeito da DOHUC(I) confirma as informações prévias que tive. Você não está mentindo... de modo que...


— E por que haveria de mentir? Se o senhor é o benfeitor que pretende, nada tenho a temer.

— Porque se eu fosse o maníaco que você supõe, meu principal alvo seria liquidar todo e qualquer observador objetivo do meu regime. O oposto é verdadeiro... encaro como meu dever a preservação da ordem... apenas isso. Em conseqüência, posso me valer dessa sua DOHUC(I). Quero-o aqui, fazendo registros. O seu testemunho irá confirmar as atitudes que sou obrigado a tomar.

— Confirmar perante quem? A posteridade? Não há posteridade. Morreram todos em esperma desperdiçado, conforme deve estar lembrado.

Ambos os homens suavam bastante. O guarda postado atrás deles mexeu, cansado, os pés. Croucher sacou do bolso um pacote de balas de hortelã e serviu-se de uma. Depois disse:

— Quanto tempo ainda pretende trabalhar para essa DOHUC(I), Sr. Timberlane?

— Até que eu morra ou seja morto.

— Organizando arquivos?

— Sim, e filmando também.

— Para a posteridade?

Depois de um momento de silêncio, Timberlane respondeu:

— Está bem, nós ambos julgamos saber qual é o nosso dever. Mas eu não sou obrigado a fuzilar aqueles pobres infelizes do Hospital Churchill.

Croucher triturou a sua bala de hortelã. Seus feios olhos fixaram o chão.

— Eis aqui uma informação para os seus arquivos. Durante os últimos dez anos o Churchill tem-se dedicado apenas a um tipo de pesquisa. Os médicos e o pessoal daquele instituto formam uma equipe de bioquímicos. A sua finalidade é prolongar a vida humana. Não se limitam a estudar a ger... Como é mesmo?... Geriatria, estão à procura de uma droga, um hormônio. Não sou médico e não sei a diferença entre uma coisa e outra, mas o que eles pretendem é descobrir uma forma de permitir que gente como eu e você possa viver até os duzentos ou até os dois mil anos. Tremenda asneira!   Desperdiçar toda uma organização à procura de fantasmas! Não posso permitir tal coisa. Quero que o hospital seja utilizado para fins mais práticos.

— O Governo financia o hospital?

— Financiou. Os políticos corruptos de Westminster aspiravam encontrar o elixir da vida eterna e perpetuarem-se em suas regalias. Essa é uma tolice que não nos irá preocupar mais. A vida é curta demais.

Os dois homens se entreolharam.

— Aceito sua oferta — disse Timberlane, — embora não veja que vantagem poderá tirar dela. Registrarei tudo aquilo que fizer no Hospital Churchill. Gostaria de ter provas documentais de que tudo o que diz sobre esse Projeto-Longevidade é verdadeiro.

— Documentos! Você fala como esses idiotas da sala vizinha. Respeito a erudição mas não o pedantismo, entenda bem. Escute. Vou evacuar do hospital todos os canalhas que lá existem. E com eles as suas idéias malucas. Não acredito no passado, acredito no futuro.

Pára Timberlane aquilo pareceu uma confissão de demência.

— O futuro não existe, lembra-se? Nós o liquidamos no passado.

Croucher desembrulhou mais uma bala e colheu-a entre os lábios polpudos.

— Venha me ver amanhã, que eu lhe mostrarei o futuro. A esterilização não foi total, sabe? Ainda ocorrem alguns poucos nascimentos em alguns cantos do mundo... até mesmo na Inglaterra. Na maioria são pequenos monstrengos. Acho que o sensato seria matar quase todos ao nascer.

— Sei o que quer dizer. Lembra-se do Infantop britânico dos anos da guerra? Era o equivalente inglês da Operação-Criança americana. Fiz parte dele. Conheço bem a teratologia. Sou de opinião que o mais prudente é eliminar no nascedouro a maior parte dos recém-nascidos defeituosos.

— Uma certa percentagem dos locais não é morta ao nascer, sendo o amor materno como é. — Croucher voltou-se para os guardas que cochichavam às suas costas e ordenou-lhes nervosamente que se calassem. Depois prosseguiu: — Estou recolhendo todas essas criaturas, qualquer que seja o seu aspecto. A algumas delas falta algum membro. Por vezes são destituídas de inteligência. Por vezes nascem com as entranhas de fora e vão morrendo aos poucos, embora tenhamos um menino sobrevivendo com todo o sistema digestivo... estômago, intestinos, ânus, dependurado no exterior do corpo como um saco. É um quadro extremamente grotesco. Sim, temos a maior coleção de criaturas semi-humanas. Serão todas encarceradas no Churchill para observação. Elas constituem o futuro. — Como Timberlane nada dissesse, Croucher prosseguiu: — Sem dúvida, um futuro aterrador, mas é o único que existe. Somos obrigados a admitir que, chegadas à maturidade, essas criaturas irão gerar filhos normais. Iremos conservá-las e fazer com que procriem. Esteja certo de que é melhor um mundo povoado por monstros do que um mundo morto.

Croucher lançou como que um olhar de desafio para Timberlane, aguardando que este o contradissesse. Em vez disso, Timberlane disse:

— Virei vê-lo pela manhã. Não vai me colocar sob censura?

— Terá uma guarda para lhe garantir a integridade física. O Cabo Pitt, que já conhece, foi escolhido para a função. Não quero que os seus relatórios caiam em mãos de quem não devem.

— É só isso?

— Não. Sou obrigado a considerar as suas próprias mãos como indesejáveis. Áté prova em contrário, sua esposa permanecerá aqui nos quartéis como penhor da sua boa vontade. Você também ficará hospedado aqui. Terá muito mais conforto do que em seu apartamento. Os seus pertences já estão a caminho.

— Então o senhor não passa de um ditador, como todos os demais!

— Cuidado... coisa que não suporto é teimosia! É melhor que fique sabendo desde já como eu sou! Você não pode ter nenhuma dúvida a meu respeito. Conforme pôde ver, tomei a precaução de me rodear de cérebros pensantes, infelizmente, pelo menos ao que parece, eles age conforme as minhas instruções. É uma atitude que me faz virar o estômago! Não quero que você seja assim. Quero que faça aquilo para que foi preparado. Que diabo, por que estarei me preocupando com você quando há tantas outras coisas para cuidar? É preciso que me obedeça.

— Mas quero ser independente. Faço questão de conservar a minha independência.

— Não me venha com orgulho. É preciso que me obedeça. Pedi-lhe que dormisse aqui esta noite, é uma ordem. Pense a respeito desta nossa conversa, fale com sua mulher. Vi desde logo que ela tem cabelinho nas ventas. Lembre-se, eu lhe ofereço segurança, Timberlane.

— Neste local insalubre?

— Irão buscá-lo pela manhã. Guardas, levem daqui este homem. Entreguem-no aos cuidados do Cabo Pitt.

Os guardas caminharam com ar decidido em direção de Timberlane, ao tempo em que Croucher sacou do bolso um lenço, tossiu e limpou a testa dizendo:

— Uma coisinha mais, Timberlane. Espero que se estabeleça entre nós uma amizade, na medida do possível. Mas se estiver pensando em fugir, é bom que saiba que a partir de amanhã entrarão em vigor na área sob minha jurisdição novas restrições. Deterei a qualquer preço o surto de cólera. No futuro, todo aquele que for apanhado tentando fugir de Oxford será fuzilado sumariamente. De madrugada serão erguidas barreiras em torno da cidade. Está bem, guardas, levem-no. Mandem cá uma secretária e uma chávena de chá, imediatamente.

 

Os alojamentos dos Timberlanes no quartel consistiam em um amplo quarto. Havia ali uma banheira, um fogão a gás e dois catres militares com cobertores. Os seus pertences chegaram em lotes e foram sendo desembarcados de um caminhão. Tantas foram as viagens feitas pelos soldados transportadores que Algy e Marta chegaram a se cansar do ruído espasmódico dos tacões.

Um guarda senil, sentado no lado de fora, manuseava uma metralhadora portátil e olhava para eles com entediada curiosidade. Marta, uma toalha estendida sobre a testa, descansava numa das camas. Timberlane tinha feito para ela um relato completo da sua entrevista com Croucher. O par manteve-se em silêncio. O homem sentado em seu leito, a cabeça pesadamente apoiada na mão, entrou em silenciosa letargia.

— Bem, temos mais ou menos aquilo que queríamos — disse Marta. — Estamos a serviço de Croucher. Será que podemos confiar nele?

— Creio que essa pergunta não deveria ser feita. Podemos confiar nele tanto quanto permitirem as circunstâncias. Ele parecia não estar entendendo perfeitamente o que eu dizia... como se tivesse a atenção voltada para outra coisa. Talvez eu tenha uma idéia do que seja essa outra coisa: um mundo povoado por monstros. Talvez ele pense na necessidade de alguém que o governe, mesmo em se tratando de um simples conglomerado de aberrações.

Os pensamentos de Marta voltaram a focalizar um ponto anteriormente cogitado aquele dia.

— Todos têm a obsessão do Acidente, embora não o demonstrem de pronto. Vivemos todos atolados na culpa. Talvez seja esse o problema de Croucher e ele seja obrigado a viver com a imagem de si mesmo comandando um decadente mundo de aleijados.

— A sua autoridade no momento parece ser maior do que se poderia supor.

— Até que ponto pode alguém ter alguma autoridade hoje em dia?

— Bem, com a cólera se disseminando...

— A nossa sociedade, a nossa biosfera, faz quarenta anos que está doente. Como poderá o indivíduo manter-se são no seu seio? Talvez estejamos todos muito mais loucos do que imaginamos.

Desgostoso do tom de voz de Marta, Timberlane foi sentar-se na beirada do leito da esposa e disse com ênfase:

— Seja como for, a nossa preocupação imediata é Croucher. Será conveniente para a DOHUC que colaboremos com ele, de maneira que faremos isso. Mas ainda não percebo por que, numa época como esta, ele se envolva comigo.


— Posso sugerir uma razão: ele não o quer. O que ele deseja é o caminhão, talvez pense encontrar ali alguma prova que lhe seja útil.

Timberlane apertou a mão da mulher.

— Talvez seja isso. Quem sabe ele pensa que na vinda de Londres eu tenha colhido informações aproveitáveis. É possível que isso tenha acontecido. Londres é no momento o inimigo mais bem organizado. Durante quanto tempo mais irão deixar o caminhão onde está?

O caminhão da DOHUC(I) era de fato algo valioso. Quando os governos nacionais faliram, conforme as previsões de Washington, os caminhões se haviam transformado cada um deles num pequeno escritório da fundação. Cada qual continha material completo para gravações e suprimentos de todos os tipos, e eram todos blindados, uma hora de trabalho bastava para convertê-los em veículos de estrada, eles funcionavam num sistema de baterias recém-aperfeiçoado e tinham uma marcha de emergência movida a gasolina ou qualquer dos seus sucedâneos correntes. Aquela bela obra da tecnologia tinha sido deixada na sua garagem, no andar térreo do prédio de apartamentos da Rua Iffley.

— Tenho as chaves comigo — disse Timberlane — e eles ainda não as reclamaram.

Marta tinha os olhos fechados. Ela ouviu perfeitamente o marido, mas estava demasiado cansada para responder.

— Estamos em boa posição aqui para observar a história contemporânea — comentou ele. — O que não ocorreu à DOHUC é que os nossos veículos poderiam se transformar num atrativo para os fazedores de história. Aconteça o que acontecer, não poderemos permitir que o caminhão nos escape das mãos. — Depois de um minuto de silêncio, Timberlane acrescentou: — O veículo tem que ser a nossa principal preocupação.

Tomada de súbita fúria, Marta sentou-se no leito:

— Maldito veículo! E eu onde fico?

Marta dormiu mal aquela noite no quartel. O silêncio era amiúde cortado por botas de soldados desfilando pelo campo, por gritos, pelos mosquitos ou pela volta de algum Windrush. Toda vez que se virava na cama, Marta sentia o estômago dar voltas também.

Á noite, parecia-lhe, era uma almofada de alfinetes. Dava quase para apalpá-la, tão tangível era a sua quentura. E aquela infinidade de alfinetes juntava-se aos sons produzidos pela atividade humana. Cada alfinete individualmente a espetava. Pela madrugada os ruídos se tornaram menos freqüentes, embora o calor não diminuísse em nada. Aí, vindo de outra parte, surgiu o tilintar de um despertador, prolongado e contínuo. Ao longe um galo cantou. O sino da igreja bimbalhou às cinco horas. Os pássaros entraram a anunciar com estardalhaço o novo dia. A pouco e pouco os ruídos típicos das operações militares voltaram a prevalecer. Um fragor de baldes e utensílios de ferro vindo da cozinha anunciava os preparativos para a primeira refeição matutina. Acometida por uma espécie de desespero, Marta desfaleceu e dormiu.

Foi um sono altamente restaurador.

Quando despertou, lá estava Timberlane, barbudo e grisalho, aos pés da cama. Um guarda apareceu com uma bandeja de café, deixou-a ali e logo se retirou.

— Como se sente, querida?

— Estou melhor esta manhã, Algy. Mas que barulhão ontem à noite!

— Muito movimento de maças, infelizmente — disse ele, olhando pela janela. — Aqui é um dos centros da infecção. Estou pronto para dar a Croucher todas as garantias que ele deseja, se ele permitir que vamos daqui.

Marta dirigiu-se até o marido e lhe tomou o rosto entre as mãos.

— Então tomou uma decisão, hein?

— Já tinha tomado ontem à noite. Estamos a serviço da DOHUC(I). A nossa finalidade é observar a história, e aqui se está fazendo história. Creio que devemos confiar em Croucher e permanecer em Cowley a fim de colaborar com ele.


— Não discuto as suas decisões, Algy. Mas será que podemos confiar num homem como ele?

— Digamos apenas que um homem como ele não tem razões para nos fuzilar sem mais nem menos.

— Talvez as mulheres vejam a coisa sob outro prisma, mas não deixemos que a DOHUC interfira com a nossa segurança.

— Encare os fatos assim, Marta. Em Washington nós não apenas assumimos certas obrigações, mas também adotamos uma forma de pensar que tem pleno sentido numa época em que nada mais parece ter. Isso talvez explique termos sobrevivido unidos em Londres quando tudo contribuía para deteriorar o nosso relacionamento e nos separar. Temos uma missão e dela não podemos fugir.

— Colocado dessa forma, tudo parece ótimo. Mas não vamos cair na tolice de expor publicamente as nossas idéias, hein!

Ambos voltaram as suas atenções para a refeição. Parecia uma ração militar: o chá era pouco, havia uma cerveja bastante fraca, e a indefectível dose de vitaminas que se haviam convertido em alimento nacional desde que os animais tinham desaparecido, além de um pão granuloso de par com algumas postas de um peixe acinzentado e sem nome. Uma vez que as baleias e focas tinham quase sumido dos mares, e os efeitos radiativos pareciam haver propiciado o crescimento de planctos e minúsculos crustáceos, os peixes tinham-se multiplicado. Numerosos fazendeiros das mais variadas regiões litorâneas do mundo tinham sido obrigados a apelar para o mar quando os seus rebanhos foram dizimados, de maneira que havia ainda, em toda parte, um pedaço de peixe no prato de todos os povos.

Enquanto comiam, Marta disse:

— Esse Cabo Pitt, misto de carcereiro e guarda-costas, não deixa de ser bom sujeito. Já que precisamos ter alguém sempre nos calcanhares, seria bom que fosse ele. Fale com Croucher na primeira oportunidade.

Eles tratavam de engolir as pílulas vitamínicas com os restos da cerveja quando apareceu Pitt em companhia de um outro homem. Pitt trazia nos ombros as insígnias de capitão.

— Ao que me parece está de parabéns pela rápida promoção — comentou Marta.

— Não é preciso fazer graça — atalhou Pitt. — Acontece que há falta de bons homens por aqui.

— Não pretendi fazer graça, Sr. Pitt, e vejo perfeitamente, pelo número de padiolas que passam aí fora, que o número dos homens diminui a cada minuto que passa.

— Não convém fazer piadas a respeito da epidemia.

— Minha esposa estava tentando ser agradável — disse Timberlane. — Veja como fala com ela, caso contrário vou apresentar queixa contra você.

— Se tem alguma queixa, dirija-se a mim — disse Pitt.

Os Timberlanes se entreolharam. O despretensioso cabo da véspera tinha desaparecido, a voz daquele homem era áspera, toda a sua maneira, altaneira. Marta foi sentar-se diante do espelho. Como estavam cavadas as suas bochechas! Ela se sentia um tanto mais forte, mas as dificuldades e o calor que por certo viriam eram de molde a não animar ninguém. No imo da sua menstruação ela sentia uma dor surda, como se os seus ovários estéreis protestassem contra aquela imposta condição. Cuidadosamente, tentou extrair dos seus potes e tubos um pouco de vida para colocar no rosto, vida que ela sabia jamais voltaria à sua plenitude.

Enquanto trabalhava, Marta estudava Pitt pelo espelho. Aquele nervosismo seria simplesmente o produto da súbita promoção ou haveria outro motivo?

— Dentro de dez minutos você e a Sra. Timberlane virão comigo numa missão — disse o militar a Timberlane. — Prepare-se você também. Iremos ao seu antigo apartamento da Rua Iffey. Lá apanharemos o seu caminhão de gravações e rumaremos para o Hospital Churchill.

— Para quê? Tenho um compromisso com o Comandante Croucher. Ontem ele não me falou nada a esse respeito.

— Ele me disse que falou. Você disse que queria provas documentais do que se está passando no hospital. Vamos até lá para colher essas provas.

— Entendo. Mas o meu compromisso...

— Olhe, não discuta. Tenho minhas ordens e vou cumpri-las. Aliás ninguém aqui tem compromissos marcados. Apenas ordens a cumprir. O Comandante está ocupado.

— Mas ele me disse...

O Capitão Pitt correu significativamente os dedos pelo seu recém-adquirido revólver.

— Dentro de dez minutos iremos. Virei buscá-lo. Ambos virão comigo apanhar o veículo. — Pitt girou nos calcanhares e se afastou ruidosamente. O outro guarda, um camarada enorme e queixudo, foi postar-se ostensivamente diante da porta.

— O que quer dizer isto? — indagou Marta do marido. Ele enlaçou-a pela cintura com ar preocupado.

— Croucher deve ter tido alguma nova idéia. Mas talvez não haja nenhum problema. Eu de fato pedi para ver os arquivos do hospital, de modo que ele possivelmente estará dando uma demonstração de boa vontade.

— Mas Pitt também está muito diferente. Ainda ontem à noite me falou a respeito da mulher e me contou como foi obrigado a participar do massacre em pleno centro de Oxford...

— Talvez a promoção lhe tenha subido à cabeça...

— Oh, Algy, é esta incerteza, tudo tão... nada é certo... ninguém sabe o que vai acontecer no dia seguinte... quem sabe a única coisa que eles querem é o caminhão...

Marta apoiava a cabeça no peito do marido, este mantinha-a cingida entre os braços e ninguém disse mais nada até a volta de Pitt. A um sinal deste último o casal desceu à praça, precedido pelo novo capitão e seu queixudo auxiliar.

Eles subiram a bordo de um Windrush. Acionado por Pitt, o motor começou a funcionar e o grupo atravessou lentamente o pátio de desfiles, e, com um aceno para as sentinelas, franqueou os portões. O novo dia em nada melhorara a aparência de Oxford. Na Rua Hollow uma fieira de casas geminadas queimava molemente, dando a impressão de que uma simples brisa poderia pôr fim ao fogo. A fumaça do incêndio sobrepairava toda a área. Perto da antiga fábrica de motores havia atividade militar, boa parte da qual inteiramente desorganizada. Ouviu-se um tiro. Na Rua Cowley, comprida via pública atopetada de casas comerciais, as fachadas se apresentavam amiúde fechadas ou derruídas. As calçadas estavam juncadas de lixo. Diante de uma ou duas lojas viam-se filas de mulheres à espera de vez para comprar alimentos, todas elas caladas e mantendo boa distância entre si, o pescoço enrolado em echarpes apesar do calor sufocante. A poeira levantada pela passagem do Windrush foi cobrir-lhes os sapatos acalcanhados. Com aquele simulacro de orgulho que a miséria produz, elas fingiram não se dar conta.

Durante todo o percurso o rosto de Pitt manteve-se impassível. Seu nariz, tal qual um bico de falcão, apontava obstinadamente para a frente. Ninguém disse palavra. Chegando ao apartamento, ele pousou o aparelho no meio da rua. Marta sentiu-se feliz de poder descer, o Windrush cheirava a homem mal cuidado.

No espaço de vinte e quatro horas o apartamento se transformara num lugar estranho para eles. Marta já se havia esquecido do seu aspecto encardido. À janela da antiga sala de estar estava um soldado. Da sua posição mantinha em linha de tiro todo o espaço que levava à porta da garagem. Naquele instante, debruçado no para-peito, ele gritava para um velhote de short e capa impermeável. O velhote, na beirada da calçada, sobraçava um maço de jornais.

— Jornais de Oxford — anunciava ele com voz rouca. Timberlane adiantou-se para comprar um e Pitt fez menção de detê-lo, mas limitou-se a resmungar — “por que não?” — e desistiu. Marta foi a única a perceber aquele gesto.

O jornal era uma folha única, impressa em letras garrafais.   Um destacado líder felicitava-se por poder voltar público, agora que a lei e a ordem tinham sido restabelecidas, mais adiante havia a advertência de que qualquer pessoa não autorizada que tentasse ultrapassar os limites da cidade seria fuzilada. Depois o anúncio de que o Super-cinema passaria a dar espetáculos diários. Ainda uma ordem para que todos os cidadãos de menos de sessenta e cinco anos se apresentassem em quarenta e oito horas numa das quinze escolas convertidas em centros militares de emergência. Obviamente, o jornal caíra em poder do Comandante.

— Vamos indo, temos mais o que fazer — disse o Capitão Pitt. Timberlane meteu o jornal no bolso traseiro da calça e rumou para a garagem. Abriu a porta e entrou. Pitt manteve-se colado a ele enquanto ele se esgueirou ao longo da castigada parede lateral do caminhão da DOHUC(I) e enfiou a chave na fechadura da porta. Marta limitou-se a observar o rosto do capitão: este umedecia os lábios ressequidos.

Os dois homens subiram ao caminhão. Timberlane destravou a direção e fez uma vagarosa marcha-a-ré na direção do leito da rua. Pitt gritou ao soldado à janela que fechasse o apartamento e levasse o Windrush de volta ao quartel. Marta e o soldado queixudo receberam ordem para subir no caminhão. Eles se colocaram nos assentos por trás do motorista. Tanto Pitt como o seu subalterno estavam de arma em punho.

— Vamos para o Hospital Churchill — ordenou Pitt.

— Bem devagar, não temos pressa alguma. — E pigarreou nervosamente. O suor lhe corria da testa. Ele não cansava de correr o polegar esquerdo pelo cano do revólver.

Lançando um olhar perserutador, Timberlane disse:

— Homem, você está doente. É melhor voltar para o quartel e pedir a um médico que o examine.

O outro mexeu o revólver.

— Vamos andando. Nada de conversa. — A seguir tossiu e passou a mão pelo rosto. Uma de suas pálpebras sofreu um espasmo nervoso e ele olhou para Marta por sobre os ombros.

— Francamente, não acha melhor...

— Cale a boca, mulher! Com Timberlane colado à roda de direção, eles enveredaram por uma ruela morta. Dois frades trajando hábitos negros carregavam nos braços uma mulher, deslocando-se penosamente sob o peso do corpo. Quando o caminhão passou por eles, ficaram como que petrificados e só depois tornaram a movimentar-se. O rosto morto e inexpressivo da mulher pareceu querer falar a Marta de passagem. Pitt engoliu em seco de forma bastante audível.

Como tomando uma decisão, ergueu o revólver. Quando o cano se voltou para Timberlane, Marta soltou um grito. O marido pisou o freio. O caminhão sofreu uma série de solavancos e afinal o motor morreu.

Antes que Timberlane pudesse virar o corpo, Pitt deixou cair a arma e ocultou o rosto entre as mãos. Ele chorava e espumava, mas era impossível distinguir o que dizia.

O sujeito queixudo disse:

— Quieto! Quieto! Não fuja! Não queremos ser fuzilados!

Timberlane tinha nas mãos o revólver do cabo. Ele fez Pitt descobrir o rosto. Ao ver que a arma mudara de mãos este pareceu voltar a si.

— Mate-me se for preciso... pensa que me importo? Vamos, ande logo. De qualquer forma, Croucher me irá fuzilar quando souber que o deixei fugir. Mate-nos aos dois e pronto!

— Nunca fiz mal a ninguém... eu era carteiro. Deixe-me sair! Não me mate — implorou o homem de queixo grande. O revólver continuava inutilmente aninhado em seu colo. A visão do colapso do capitão pusera-o em polvorosa.

— Por que eu haveria de matar qualquer de vocês? — perguntou Timberlane. — Por outro lado, por que vocês haveriam de me fuzilar? Que ordens recebeu, Pitt?

— Poupei-lhe a vida. Pode me fazer o mesmo. Você é um cavalheiro! Guarde essa arma. — Pitt começava a reencontrar-se, embora um tanto confuso ainda e sem cessar de olhar desconfiadamente em torno de si. Timberlane conservava o revólver apontado para o peito do outro.

— Explique-se.

— Foram ordens de Croucher. Ele veio falar comigo, ou melhor, mandou-me chamar esta manhã. Disse que este veículo tinha que ir para as mãos dele. Disse que você era um agitador intelectualizado, um espião de Londres. Disse também que era para eu matar você e sua mulher logo que o caminhão se pusesse em marcha. Depois eu e Studley teríamos que levar de volta o caminhão. Mas, para dizer a verdade, não tive coragem. Não nasci para este tipo de coisa. Já tive mulher e família... estou farto de matanças... se a minha pobre Vi...

— Deixe de teatro, Sr. Pitt, e pensemos um pouco — atalhou Marta. Ela colocou um braço em torno dos ombros do marido. — Afinal de contas, não podíamos confiar em Croucher.

— Ele é que não pôde confiar em nós. Homens na posição dele talvez sejam visceralmente liberais, mas têm a obrigação de eliminar os elementos supérfluos.

— Essa frase é de papai. Muito bem, Algy, então voltamos a ser supérfluos, e agora, que fazer?

Para sua surpresa, ele virou-se e deu-lhe um beijo. Havia nele uma certa dose de orgulhosa alegria. Ele é quem estava mandando. Timberlane arrancou o revólver do impassível Studley e guardou-o no porta-luvas.

— Diante das circunstâncias não temos escolha. Vamos dar o fora de Oxford e rumar para Devon. Parece ser a melhor saída. Pitt, será que você e Studley querem vir conosco?

— Jamais conseguirão sair de Oxford e Cowley. Há barreiras por toda parte. Foram colocadas durante a noite em todas as estradas saindo da cidade.

— Se quiser arriscar a sorte conosco, você terá que me obedecer. Vem conosco ou não?

— Mas se estou-lhe dizendo que há barreiras por toda parte. Não é possível sair da cidade, nem Croucher seria capaz — objetou Pitt.

— Você deve ter alguma espécie de autorização para rodar pelas ruas. O que foi que mostrou ao guarda quando saímos do quartel?

Pitt sacou do bolso da túnica uma folha de papel e entregou-a a Timberlane.


— Fico com a sua túnica também. De agora em diante considere-se rebaixado a soldado raso. Lamento, Pitt, mas você não fez por merecer a promoção, não é verdade?

— Não sou assassino, se é isso o que quer dizer. — Toda a sua atitude começava a tornar-se mais decidida. — Escute, nós vamos todos morrer, se tentarmos furar alguma barreira. Há enormes blocos de concreto por todo canto.

— Dispa essa túnica.

Os frades surgiram diante do caminhão. Antes de penetrar num estabelecimento público com a sua carga, eles arriscaram um olho para o interior do veículo.

Ao entregar o casaco a Marta e enfiar a túnica de Pitt (cujas costuras apodrecidas ameaçavam estourar), Timberlane disse:

— A cidade decerto ainda recebe alimentos de fora. Alimentos, munição... Sabe Deus que mais. Não me diga que Croucher não tem inteligência suficiente para organizar tais coisas. Na verdade, ele deve andar saqueando todos os condados vizinhos.

Inesperadamente, Studley inclinou-se e deu um tapinha nas costas de Timberlane.

— O senhor está com a razão, e esta manhã deve chegar de Southampton um carregamento de peixe. Foi o que ouvi o Sargento Tucker dizer quando requisitou um Windrush ainda há pouco.

— Ótimo! Terão que levantar as barreiras para o comboio passar. Enquanto ele estiver entrando, nós estaremos saindo. De onde vem ele?

Em sua marcha para o sul sob um sol devorador, o grupo ouviu o ruído de uma explosão. Mais adiante, uma nuvem de fumaça à direita indicava que a Ponte de Don-nington tinha sido dinamitada. Uma das saídas da cidade fora cortada. Ninguém se manifestou. Tal como a cólera, a desolação das ruas era contagiosa.

Em Rose Hill os blocos de apartamentos recuados da rua estavam nus como rochedos. A única nota viva foi uma ambulância que despontou de uma transversal, seu luminoso azul girando com frenesi. Todas as janelas do veículo estavam tapadas por cortinas. A ambulância subiu a rampa relvada, cruzou a rua principal poucos metros adiante do veículo da DOHUC(I) e deteve-se na rampa oposta com um estremeção. Ao passarem por ela, Timberlane e seus companheiros puderam ver o motorista arriado sobre o volante...

Mais adiante, entre as residências particulares, o ambiente era menos funéreo. Em muitos jardins, homens e mulheres acendiam fogueiras. Que superstição seria aquela, perguntou-se Marta.

Ao chegarem a uma curva, um grupo de soldados de rifle em punho veio-lhes ao encontro. Timberlane debruçou-se à janela e mostrou-lhes o salvo-conduto, sem se deter. Os soldados fizeram-lhe sinal de que prosseguisse.

— Ainda estamos longe? — perguntou Timberlane.

— Estamos quase chegando. A barreira que procuramos fica na ponte da estrada de ferro de Littlemore. Mais adiante é só campo — disse Pitt. — Croucher tem uma extensa fronteira para defender.

— Por isso quer mais homens. Este negócio de colocar barreiras foi uma grande idéia dele. Serve para não deixar entrar nem sair ninguém. Ele não quer desertores fugindo daqui e aderindo à oposição. A rua faz aqui uma curva à direita na direção da ponte e depois se junta a outra. Ah, lá está o bar... lá na esquina... o Marlborough!

— Certo! Faça o que lhe digo. Mire-se no exemplo daquela ambulância que vimos. Tudo certo, Marta, meu amor? Lá vamos nós!

Ao contornarem a curva, Timberlane debruçou-se ao volante, deixando pender o braço da janela. Pitt abateu-se ao seu lado e os outros dois derrearam-se em seus assentos. Dirigindo com muito cuidado, Timberlane fez o seu veículo descrever uma ébria trajetória na direção do estabelecimento público. Permitiu que o caminhão subisse ao passeio, deu uma guinada na direção e soltou a embreagem, conservando a marcha engatada. O caminhão sofreu um violento solavanco antes de parar. A pouco menos de duzentos metros estava a Ponte Littlemore.


— Muito bem, fiquem onde estão — comandou Timberlane. — Tomara que o comboio de Southampton esteja no horário. Quantos veículos serão, Studley?

— Quatro, cinco, seis. Difícil dizer. Varia muito.

— Nesse caso precisamos atravessar depois do segundo.

Enquanto falava, Timberlane examinava a frente. A via férrea estava ao abrigo dos seus olhos. A rua se afunilava em duas vielas na altura da ponte. Depois da ponte não era possível vê-la, em virtude de uma elevação do terreno, mas, felizmente, a barreira tinha sido erguida do lado de cá e era fácil divisá-la do ponto em que se encontrava o caminhão. Era um conglomerado de blocos de concreto, dois caminhões de transporte e alguns postes de madeira. Uma pequena construção de madeira nas proximidades tinha sido tomada pelos militares, parecia haver ali um ninho de metralhadora. À vista, apenas um soldado, encostado à soleira da porta e procurando proteger os olhos com as mãos ao tempo em que apurava a vista na direção do caminhão.

Nas proximidades da barreira havia um caminhão de uma construtora. Dentro dele, um homem atirava tijolos a outro. Aparentemente, tratavam de reforçar a defesa, e, a julgar pelo seu desajeitamento, não eram pessoas afeitas àquele tipo de trabalho.

Passaram-se alguns minutos. O cenário era de difícil descrição, aquele pedaço de via pública não era cidade nem campo. A luz solar esvaziava-o de toda e qualquer pretensão. Talvez ninguém até então o tivesse analisado como fazia agora Timberlane. A movimentação cadenciada dos homens arremessando tijolos assumiu tonalidade de sonho. O interior do caminhão da DOHUC(I) começou a ser invadido por moscas. O zumbido desses insetos recordou a Marta os longos dias de verão da sua meninice, quando à sua felicidade veio juntar-se para sempre a sensação de que alguma maldição pesava sobre ela, bem como sobre seus pais e amigos, e sobre todos os seres vivos. Os efeitos da maldição ela os vira disseminar-se mais e mais, tal como a areia numa tempestade no deserto corrói o céu. Olhos arregalados, fixou ela as costas curvas do marido, permitindo-se por instantes a macabra fantasia de que ele estava morto deveras, morto pela cólera. Marta chegou mesmo a apavorar-se.

— Algy...

— Aí vêm eles! Cuidado agora! Espiche-se no chão, Marta, decerto irão disparar quando atravessarmos.

Um primeiro caminhão, uma enorme jamanta para transporte de móveis, inteiramente recoberta de pó, surgiu na estreita ponte vinda do lado oposto. Um soldado se apresentou. A seguir afastou parte da barreira para dar passagem ao veículo. O caminhão franqueou a estreita abertura. Ao tempo em que se aproximava do caminhão da DOHUC(I), uma segunda jamanta (esta militar e com um toldo rasgado) assomou na ponte.

Era preciso calcular com precisão o tempo. Era preciso que o caminhão da DOHUC(I) cruzasse com o outro o mais perto da ponte possível. Timberlane apertou o acelerador com mais força. As árvores à margem do caminho, avermelhadas de pó, deixavam entrever entre as folhagens alguns tons rubros do crepúsculo. Timberlane cruzou com a primeira jamanta. O motorista lhe disse algo. Timberlane fez um gesto, acelerou e fez seu veículo chegar mais perto da margem. Depois rumou ao encontro do caminhão militar. Este estava ultrapassando a barreira. A sentinela adiantou-se, brandindo o rifle. Sua boca articulou qualquer coisa, mas as palavras se perderam sob o ruído dos motores. Timberlane prosseguiu firme na direção.

O caminhão militar foi deixado para trás sem que se esbarrasse nele, todos os quatro companheiros arregalando os olhos e gritando instintivamente. O farolete lateral do veículo de Timberlane atingiu o soldado antes que este pudesse voltar-se. O rifle do militar voou pelos ares. Como um saco de batatas, o homem foi projetado contra um dos blocos de concreto. Quando eles atravessaram a barreira ouviu-se um grito. Timberlane achava-se já no final da ponte quando surgiu o terceiro caminhão do comboio à sua frente.

Uma metralhadora entrou em ação na construção de madeira pela qual eles tinham passado. Começaram a chover balas na traseira do caminhão da DOHUC(I), danificando a grade e fazendo retinir o interior do veículo como um cilindro de aço. O pára-brisa do caminhão militar despedaçou-se e os estilhaços foram atingir o velho toldo semi-rasgado. Com um assobiar de pneus a jamanta desviou-se lateralmente. O motorista abriu a porta, mas, a um solavanco, foi novamente projetado para dentro, e a pesada máquina, aos trancos e barrancos, acabou indo bater no leito da via férrea lá embaixo.

Timberlane tinha fugido de lado para não colidir com o caminhão. E foi o acidente que sobreveio a esse último que lhe permitiu romper o bloqueio. Uma vez mais eles se puseram a avançar e a estrada à frente estava desimpedida. A metralhadora continuava pipoqueando, mas o desnível do terreno servia de proteção contra ela.

Se àquela altura Studley não tivesse desfalecido, e não tivesse sido preciso levá-lo a repousar num vilarejo denominado Sparcot para o qual acorriam os refugiados, talvez Timberlane e os seus tivessem alcançado Devon. Mas Studley tinha contraído cólera, e um maluco, por nome Mole, tinha transformado o lugar em praça de guerra e uma semana mais tarde grossas chuvas tinham levado consigo um sem-número de boas oportunidades. A parada em Sparcot durara onze longos anos.

Recordando aqueles tempos, Marta ponderava o quanto o estado de constante nervosismo vivido em Cowley se tinha gravado na sua memória e como era fácil relembrar tudo. Os anos seguintes foram menos claros, pois tinham a toldá-los a miséria e a monotonia. A morte de Studley, a morte de diversos outros componentes do grupo original de refugiados, o aparecimento de Big Jim Mole e as altercações surgidas quando ele fez a distribuição das casas abandonadas, as intermináveis disputas em torno das mulheres, o abandono de toda e qualquer esperança e a supressão das convenções sociais. Tudo parecia agora simples figuras de um painel desbotado pelo tempo e ela sabia que para lá nunca mais voltaria.

Um acontecimento daqueles dias (ah, a ausência de filhos era então a sua maior mágoa) continuava-lhe nítida na lembrança, pois sabia que o marido se ressentia muito disso: a barganha feita com o veículo da DOHUC(I) durante o segundo inverno em Sparcot, quando todos andavam esfaimados e sem saber o que fazer. O caminhão foi trocado por um carregamento de peixe apodrecido, cenouras brancas e pílulas vitamínicas, pertencente a um caçador ambulante. Marta e Algy tinham passado toda uma tarde a regatear com ele, para afinal verem-no partir com seu caminhão à boca da noite. Na escuridão daquele inverno as suas dificuldades tinham atingido o ponto culminante.

Diversos homens, muitos dos quais inteiramente válidos, tinham-se suicidado. Foi aí que Eve, a jovem amante de Trouter, deu à luz uma criança sem deformidades. Ela enlouquecera e fugira. Um mês mais tarde seu cadáver e o da criança foram encontrados num bosque vizinho.

Naquele tenebroso inverno Marta e Barbagris tinham organizado conferências, sem o endosso incondicional de Mole. Falou-se em história, geografia, política, nas lições que se podiam extrair da vida... mas como toda a matéria versada era necessariamente colhida numa existência que morria à medida mesma em que falavam, as conferências redundaram em malogro. À fome e à depravação viera juntar-se algo bem mais sinistro: a sensação de que no mundo já não havia lugar para a inteligência.

Alguém criara uma breve frase expressando tal sentimento: A Cortina Cerebral. Sem nenhuma dúvida, a cortina cerebral baixara impiedosamente aquele inverno.

Em janeiro os tordos trouxeram da Noruega para Sparcot o seu canto metálico. Em fevereiro foram ventos frios e neve todos os dias. Em março os pardais se acasalaram nos sujos blocos do gelo remanescente. Apenas em abril a atmosfera amenizou.

No decorrer daquele mês Charley Samuels casou com íris Ryde. Charley e Timberlane tinham lutado lado a lado na guerra, ambos fazendo parte do Infantop. Tinha sido um dia maravilhoso o da chegada de Charley ao vilarejo. Casando, ele mudou-se com a mulher para a casa vizinha à de Marta e Algy. Seis anos depois, íris morreu de câncer que, tal como a esterilidade, era um dos efeitos   do Acidente.

Aquela fora má época. O tempo todo Marta e Algy tinham permanecido sob a desconfiada vigilância de Mole. Fugir era como uma convalescença, quando a pessoa arreda um olhar para trás e dá tento de quão doente estivera. Marta recordava o empenho com que eles tinham conspirado com a natureza, permitindo que as ruas se deteriorassem, isolando-se do mundo exterior, e lembrava o afã com que Sparcot se preparava para o dia em que as forças de Croucher a viessem tomar.

Croucher nunca marchou sobre Sparcot. Morreu da epidemia que dizimou tão numerosos dos seus seguidores e lhe converteu a praça forte em morgue. Quando o mal se extinguiu, as grandes organizações seguiram a trilha dos grandes animais, as sebes cresceram, as plantas alçaram os ombros e se transformaram em florestas, os rios espraiaram-se em pântanos e os mamíferos cerebrais entraram a viver a sua sina nas pequenas comunidades.


 

Tanto os seres humanos como os carneiros tossiram bastante quando os barcos desciam a correnteza. A expedição perdera já o sentido inicial da aventura. Eram todos demasiado velhos e endurecidos para alimentar durante muito tempo qualquer sentimento de otimismo. O frio e a paisagem também contribuíram para abatê-los. Franjada de branco pela geada como o rosto de um velho, a vegetação compunha uma cena que, visivelmente, surgira e continuava a existir totalmente alheia aos tresmalhados seres que por ali transitavam.

As respirações ofegavam no ar cortante do inverno. À frente ia o esquife, seguido por Jeff Pitt em sua pequena embarcação, com dois carneiros no interior e uma rede pendurada ao corroído costado. O progresso era lento. O orgulho que Pitt alardeava em razão da sua capacidade de remar muito ficava a dever à sua verdadeira habilidade.

Em seu esquife, Charley e Barbagris remavam a maior parte do tempo, e Marta mantinha-se ao timão diante deles. Becky e Towin Thomas conservavam-se embezerrados a um lado. Becky teria preferido ficar na estalagem com os carneiros até o fim da bebida e do inverno, mas Barbagris a isso se opusera. Os restantes carneiros estavam agora entre eles, no fundo do barco.

Certa feita, cansada de ter um homem ao lado, Becky tinha mandado Towin ir ajudar Jeff Pitt a remar o seu barco. A experiência fora frustrante. O barco quase tinha ido a pique. Pitt amaldiçoara a valer. Agora Pitt, entregue aos próprios pensamentos, remava solitário.

Estranho e pontiagudo era o seu rosto aos sessenta e cinco anos de idade. Embora o nariz ainda se destacasse, a perda gradual dos dentes e o encolhimento da carne davam-lhe também certa proeminência à linha do queixo.

Desde sua chegada a Sparcot, quando tivera ensejo de libertar-se de Barbagris, o ex-capitão de Croucher havia levado vida de eremita. Sem dúvida, ele se ressentia do tipo de vida que fora obrigado a adotar, conquanto jamais fizesse confidencias, o seu ar era o de um homem de há muito afeito à amargura, e o fato era que ele, mais que qualquer outro, adquirira os hábitos de caçador clandestino.

Embora estivesse agora arriscando a sorte juntamente com os outros, a sua anti-sociabilidade persistia, remava de costas para o esquife, contemplando reflexivamente a paisagem hibernal pela qual viajavam. Estava decerto em companhia do grupo, mas seu aspecto indicava que a ele não aderira de corpo e alma.

O rio, crestado e alvejado pelo gelo, fendia-se continuamente sob as proas da comitiva. Na segunda tarde após haverem deixado a estalagem onde estavam os carneiros, eles sentiram cheiro de fumaça na mata. Logo chegaram a um ponto em que o gelo estava quebrado e um fogo ardia na margem. Barbagris apanhou o rifle, Charley o canivete, Marta pôs-se atenta. Towin e Becky sumiram de vista sob a cobertura. Pitt ergueu-se de dedo em riste.

— Por Deus, os gnomos! — exclamou ele. — Lá está um!

Na margem, dançando perto do fogo, encontrava-se uma pequena figura branca, flexionando braços e pernas. Ela cantava de si para si com voz áspera e roufenha. Ao ver os barcos através duma fresta numa moita, a criatura se deteve. Adiantando-se até a beira da água, agarrou-se com firmeza à muleta e gritou para os que chegavam. Embora não fosse possível compreender o que dizia o pequeno vulto, a comitiva de Barbagris remou, como que hipnotizada, em sua direção.


Quando alcançaram a margem, o vulto tinha-se vestido, assumindo um aspecto mais humano. Ao fundo, meio velado por um conglomerado de abetos, havia um estábulo. O vulto movimentava-se e apontava para lá, falando com grande rapidez.

Tratava-se de um vivaz octogenário, a julgar pelo seu aspecto, levemente grotesco em virtude da rede de capilares violáceos que lhe corria sob o nariz, de uma a outra bochecha. A barba era um só emaranhado, presa sob o queixo e amarrada no alto do crânio, tinta de uma tonalidade alaranjada. O vulto dançava como um esqueleto e fez sinal ao grupo.

— Está só? Podemos apear? — gritou Barbagris.

— Não estou gostando nem um pouco dele... vamos embora — disse Jeff Pitt, manobrando o barco através das lâminas de gelo. — Não sabemos em que estamos nos metendo.

O esqueleto gritou algo ininteligível, dando um salto para trás quando Barbagris pisou terra firme. E agarrou uma fieira de contas coloridas que trazia ao pescoço.

— Pom tia prra nattar — disse ele.

— Ah, sim... excelente dia para nadar! Andou nadando? Não está frio demais? Não tem medo de cortar-se no gelo?

— Que disser? Disser no verrão?

— Ao que parece, é tão difícil para ele me entender como me é a mim entendê-lo — esclareceu Barbagris aos companheiros. Mas com paciência, ele conseguiu decifrar o carregado sotaque do esqueleto. Seu nome parecia ser Norsgrey, e ele era viajante. Em companhia de Lita, a esposa, estava morando no estábulo. Barbagris e comitiva seriam acolhidos de bom grado.

Tal como a raposa de Charley, os carneiros vinham todos presos a guias. Fizeram-nos saltar para a terra e eles entraram imediatamente a tosar o verde aánzentado das ervas. Os seres humanos colocaram seus barcos a salvo. A fim de desentorpecer os músculos e afugentar o frio, começaram a esticar os membros. A seguir dirigiram-se para o estábulo, deslocando-se com passo difícil. Quando se acostumaram com o sotaque do esqueleto, aquilo que este tinha a dizer passou a ser sempre bem mais inteligível, embora no que respeita a conteúdo seu falar fosse amalucado.

Sua grande preocupação eram os texugos.

Norsgrey acreditava nos poderes mágicos dos texugos. Tinha, ao que contava, uma filha com cerca de sessenta anos que fugira para a floresta (onde se faziam preparativos para marchar sobre as cidades humanas e estrangular-lhes até o último habitante) e tinha se acasalado com um texugo. Havia agora homens-texugos na floresta, filhos da sua filha, bem como mulheres-texugos, filhas da sua filha, todos com rostos pretos e brancos, lindos de se ver.

— Existem arminhos por aqui? — perguntou Marta, atalhando um monólogo que se pronunciava interminável.

O velho Norsgrey fez uma parada diante do estábulo e apontou para a rama baixa de uma árvore.

— Lá está um a nos olhar, senhora, sentado em seu ninho. Mas não vai mexer conosco porque sabe que sou aparentado com os texugos.

Tudo o que Marta e os demais puderam ver foram alguns galhos pálidos de um abeto espetados no ar.

No interior do estábulo, uma velha rena, na semi-obscuridade, estava deitada com os quatro amplos cascos bem juntos. Becky teve um grito de surpresa quando o animal voltou para o grupo a sua velha e taciturna carantonha. Galinhas ciscavam e cacarejavam no local.

— Não façam barulho — advertiu Norsgrey. — Lita está dormindo e não quero que desperte. Mando-os embora se a perturbarem, mas se ficarem quietos e me derem um pouco de sopa, deixo-os ficar aqui, com todo o conforto... e a salvo desses esfaimados arminhos aí fora.

— Qual a moléstia da sua mulher? — perguntou Towin. — Não fico aqui, se houver alguma doença.

— Não insulte minha mulher. Ela nunca ficou doente na vida. Cale a boca e comporte-se.

— Vou apanhar as coisas no barco — disse Barbagris. Charley e a raposa o acompanharam de volta ao rio. Enquanto carregavam, Charley disse com algum embaraço, não olhando para Barbagris, mas sim para a fria e cinzenta paisagem:


— Towin e Becky teriam ficado na casa em cuja cozinha encontramos aquele defunto. Não queriam prosseguir, mas nós os convencemos do contrário. Certo?

— Claro.

— Bem. O que quero lhe perguntar é isso: Até onde vamos? Quais são os nossos planos? Que tem você em mente?

Barbagris olhou para o rio.

— Você é um sujeito religioso, Charley. Não acha que talvez Deus tenha algum desígnio para nós?

Charley deu uma breve risada.

— Isso ficaria melhor se você acreditasse em Deus. Mas suponhamos que eu pense que Ele deseja que nos fixemos aqui, nesse caso que faria? Não percebo o que está pretendendo.

— Ainda não estamos suficientemente longe de Sparcot para pararmos. Poderiam mandar uma expedição para nos prender.

— Sabe tão bem como eu que isso é tolice. A verdade é que você não sabe direito para onde quer ir.

Barbagris fixou o rosto pálido do seu velho conhecido.

— Cada dia que passa sei melhor. Quero chegar à desembocadura do rio: ao mar.

Meneando a cabeça, Charley apanhou seu equipamento e dispôs-se a voltar para o estábulo. Isaac ia à frente. Barbagris deu a impressão de que ia dizer alguma coisa mais, porém mudou de idéia. Era avesso a explicações. Para Towin e Becky, aquela viagem era apenas uma agrura a mais, para ele, um fim em si mesma. As dificuldades envolvidas constituíam-se em prazer. Viver era um prazer, Barbagris recapitulava alguns dos momentos de sua vida, muitos dos quais tão envoltos em bruma como a margem oposta do rio. Objetivamente analisados, grande número daqueles momentos não passavam de miséria, medo, confusão, mas, superados, tinham dado lugar a uma alegria que em muito superava a miséria, o medo, a confusão. Um fragmento de crença de outras épocas lhe ocorreu: Cogito ergo sum. Para ele, aquilo não era verdadeiro, sua verdade era: Sentio ergo sum. Sinto, logo existo. Ele desfrutara amplamente a sua vida de miséria, medo e confusão, é não só porque ela fazia mais sentido do que a não-existência. Jamais conseguiria explicar aquilo a quem quer que fosse. Não precisava explicá-lo a Marta, esta sentia-se exatamente como ele.

À distância entreouviram-se sons de música.

Barbagris, apreensivo, olhou em torno, recordando as narrativas de Pitt e dos demais sobre gnomos e anões, pois aquela era uma música anã. Mas percebeu depois que os sons vinham de muito longe. O instrumento era... um acordeão... seria esse mesmo o nome?

Voltou cismarento para o estábulo e perguntou a Norsgrey de que coisa se tratava. O ancião, recostado no flanco da rena, ergueu interessado o olhar.

— Deve ser Swifford Fair. Acabo de dar um pulo até lá a negócios. Foi ali que comprei estas galinhas. — Como sempre, era difícil entender o que dizia.

— A que distância fica Swifford Fair?

— Por terra se chega mais depressa. Quilômetro e meio em linha reta. Três quilômetros pela estrada. Dez pelo rio. Compro o seu barco e lhe pago bom preço.

Não concordaram com a idéia, mas deram algumas provisões ao velhote. Os carneiros abatidos ficaram saborosos, cortados em postas e temperados com algumas ervas fornecidas por Norsgrey. Quando comiam carne, coziam-na em forma de ensopado, porque os ensopados castigavam menos suas velhas dentaduras e ressequidas gengivas.

— Por que sua mulher não vem comer conosco? — perguntou Towin. — Será que não gosta de estranhos?

— Como eu lhe disse, ela está dormindo atrás daquela cortina azul. Deixe-a em paz. Ela não lhe fez mal algum.

A cortina azul tapava um dos cantos do estábulo, indo desde a carroça até um prego na parede. O estábulo apresentava-se àquela altura desconfortavelmente atulhado, pois os carneiros tinham sido trazidos para dentro ao anoitecer. Eles não conseguiam acomodar-se com as galinhas e a velha rena. A claridade das lâmpadas mal chegava a alumiar os caibros dos telhados. Tais caibros fazia dois séculos e meio haviam deixado de ser lenho vivo. Outros tipos de vida refugiavam-se agora neles: escorpiões, besouros, aranhas, crisálidas penduradas em fios sedosos, pulgas que nos ninhos das andorinhas aguardavam que as suas proprietárias retornassem com a chegada da primavera. Para aquelas criaturas simples muitas gerações tinham passado desde que os homens tinham promovido a sua auto-extinção.

— Que idade pensa que tenho? — perguntou Norsgrey, colocando diante de Marta o seu policrômico semblante.

— Na verdade não sei — respondeu Marta com doçura.

— Cerca de setenta, não é assim?

— Na verdade não sei. Prefiro não pensar em idade, é um dos assuntos mais desagradáveis para mim.

— Mas procure calcular a minha. Cerca de setenta ou setenta e poucos, não diria?

— Possivelmente.

Norsgrey emitiu um grito de triunfo e a seguir lançou um olhar de apreensão em direção da cortina azul.

— Pois bem, a senhora se enganaria... ah, sim, se enganaria por muito. Quer que lhe diga quantos anos tenho? Quer? Será que vai acreditar em mim?

— Diga. Que idade tem? — indagou Towin, interessando-se. — Eu diria oitenta e cinco. Aposto que é mais velho do que eu... e eu nasci em 1945, ano em que explodiu a primeira bomba atômica. Aposto que você nasceu antes de 1945, companheiro.

— Hoje em dia não há mais anos com números que os rotulem — disse Norsgrey com imenso desprezo, voltando-se para Marta. — Não vai acreditar, senhora, mas tenho quase duzentos anos de idade. Na verdade, faço duzentos anos na próxima semana.

Marta ergueu ironicamente o sobrolho.

— O senhor não está mal para a idade que tem — disse ela.

— Não tem mais duzentos anos do que eu — disse Towin com desdém.

— Tenho sim. Duzentos anos, e mais, quando vocês estiverem debaixo da terra eu ainda estarei por aqui.

Towin avançou o corpo e chutou com raiva as botas do velhote. Norsgrey apanhou uma bengala e castigou com força a canela de Towin. Ofegante, Towin ergueu-se nos joelhos e desfechou com a bengala um golpe na direção do crânio do velho. Charley aparou o golpe.

— Deixe disso — comandou ele com firmeza. — Towin, deixe esse velhote entregue às suas fantasias.

— Fantasias coisa nenhuma — retrucou o ancião, irritado. — Pergunte a minha mulher quando ela acordar.

Durante todo o repasto e ao longo de toda aquela conversa Pitt mal chegara a articular palavra, quedando-se ensimesmado conforme costumava fazer em Sparcot. Súbito, ele disse com certa brandura:

— Teria sido melhor fazer o que eu disse, ao invés de vir passar a noite neste hospício. É o cúmulo vir parar aqui!

— Pode ir embora se não estiver gostando da companhia — disse Norsgrey. — O seu mal é que você é tão mal-educado como estúpido. Praza aos céus que você morra! Nenhum de vocês sabe coisa alguma a respeito deste mundo... vocês estiveram enfurnados nesse lugar de que falaram. Há uma porção de coisas novas no mundo que vocês desconhecem.

— Como, por exemplo? — perguntou Charley.

— Estão vendo este colar vermelho e verde em torno do meu pescoço? Consegui-o em Mockweagle. Paguei dois filhotes de rena por ele e foi uma bagatela. Apenas a gente tem que voltar lá de cem em cem anos para renovar, do contrário, uma bela manhã a gente abre os olhos e... fft! vira areia, menos os olhos.

— O que acontece com os olhos? — perguntou Becky, espreitando-o à luz baça da lâmpada.

Norsgrey riu.

— Os olhos não morrem nunca. Não sabia, Sra. Taffy? Os olhos não morrem nunca. Já vi olhos espiando através de moitas à noite. Eles piscam para a gente a fim de nos lembrar o que nos pode acontecer se esquecermos de voltar a Mockweagle.

— Onde fica Mockweagle? — indagou Barbagris.

— Eu não devia lhes contar nada disto. Não há nenhum olho por aqui, espiando, há? Bem, Mockweagle existe, mas é um lugar secreto e fica bem no centro uma moita. É um castelo... bem, mais parece arranha


céu do que castelo. Só que não há ninguém nos primeiros vinte andares, esses são desabitados. Quero dizer que é preciso subir ao último andar para encontrá-los.

— Encontrá-los? Encontrar quem?

— Homens, simples homens. Um deles tem uma espécie de segunda cabeça com uma boca fechada saindo do pescoço. Eles vivem para sempre, porque são imortais. Sou como eles, porque não hei de morrer nunca, apenas tenho que voltar lá de cem em cem anos. Acabo de passar por lá, quando da minha viagem ao Sul.

— Quer dizer que foi a sua segunda visita?

— Terceira. A primeira vez fui-me tratar e é preciso voltar para substituir as contas. — O ancião correu os dedos através da cortina alaranjada da sua barba e espreitou o grupo. Estavam todos silenciosos.

— Você não pode ser tão velho assim — contraveio Towin. — Não faz tanto tempo que as coisas degringolaram e as crianças deixaram de nascer...

— Você não sabe o que é o tempo. Será que não está fazendo alguma confusão? Veja bem, não estou dizendo nada. Digo apenas que acabo de vir de lá. Há demasiados vagabundos por aí, à toa como vocês. Daqui a cem anos, quando voltar lá, as coisas estarão melhores. Não haverá vagabundos então. Estarão todos debaixo da terra. O mundo será todo meu, meu e de Lita, e dessas criaturas que pipilam nas sebes. Como desejo que acabe esse pipilar interminável! Daqui a uns milhares de anos vão todos comer fogo. — Súbito, Norsgrey levou as mãos aos olhos, lágrimas imensas e senis começaram a brotar-lhe entre os dedos, seus ombros entraram a tremer. — A vida é uma tristeza, amigos — disse ele.

Barbagris colocou-lhe a mão no ombro e ofereceu-se para colocá-lo na cama. Norsgrey deu um salto e disse ser capaz de cuidar de si. Sempre fungando, ele voltou-se para a escuridão, espantando as galinhas, e meteu-se sob a cortina azul. Os outros entreolharam-se.

— Velho idiota — murmurou Becky contrafeita.

— Parece saber uma porção de coisas — comentou Towin. — Pela manhã é melhor lhe perguntarmos a respeito do seu bebê.

Becky encarou-o com raiva.

— Towin, seu porcalhão imprestável, por que revelar os nossos segredos? Não lhe disse para não abrir a boca enquanto não pudessem ver o meu estado? Que língua de trapo a sua! Parece uma velha comadre...

— É verdade, Becky? — indagou Barbagris. — Está mesmo grávida?

— Ah, está grávida como um coelho — concordou Towin, pendendo a cabeça — e pelo tato são gêmeos.

Marta olhou para a rechonchuda mulherzinha. A gravidez psíquica era fenômeno muito comum em Sparcot e ela não tinha dúvida de que aquele era mais uma vez o caso. Mas as pessoas acreditam naquilo que desejam acreditar. Charley enlaçou as mãos e disse com seriedade:

— Se for verdade, louvado seja o nome de Deus! É um milagre, um sinal dos céus!

— Deixe-se de bobagens — disse Towin raivosamente. — Eu sou o responsável e ninguém mais...

— O Todo-Poderoso opera através dos mais vis dos seus servos, Towin Thomas — respondeu Charley. — Se Becky está grávida, isso é um sinal para nós de que Ele descerá afinal na undécima hora e repovoará a terra. Oremos todos... Marta, Algy, Becky...

— Não quero saber disso — disse Towin. — Ninguém vai rezar pelo meu rebento. Nada devemos ao seu Deus, Charley. Se ele é tão poderoso como diz, então é ele o responsável por todos estes males. Acho que o velho Norsgrey está com a razão: não sabemos há quanto tempo aconteceu. Não me digam que passamos apenas onze anos em Sparcot! Para mim foram séculos. Quem sabe nós todos temos mais de mil anos de idade, e...

— Becky, posso colocar a mão no seu estômago? — perguntou Marta.

— Deixe-nos experimentar, Becky — atalhou Pitt, momentaneamente interessado.

— Conserve as mãos onde estão — disse-lhe Becky. Mas permitiu que Marta tateasse sob as suas volumosas roupas, fitando o vazio enquanto a outra mulher corria delicadamente os dedos pela carne do seu estômago.


— O seu estômago sem dúvida está inchado — disse Marta.

— Ah, ha! Eu lhe disse! — gritou Towin. — Está de quatro anos... quero dizer, quatro meses. Por isso nós não queríamos sair daquela casa onde encontramos os carneiros. Aquilo seria um bom lar para nós, mas o Sr. Sabichão fez questão de partir para o seu adorado rio!

Towin voltou o rosto lupino para Barbagris, com um sorriso.

— Amanhã iremos a Swifford Fair e veremos o que podemos arranjar para vocês dois — disse Barbagris. — Deve haver lá um médico que examine Becky e lhe dê orientação. Até lá, o melhor é seguir o exemplo cá do amigo Norsgrey e dormir um pouco.

— Veja que essa rena não liquide Isaac durante a noite — disse Becky a Charley. — Sei como são esses animais. Bichos sabidos essas renas.

— Mas não comem raposas — disse Charley.

— Tivemos uma que comeu o nosso gato. Verdade, Tow? Tow costumava comprar renas quando elas apareceram nesta região... Barbagris deve saber...

— Vejamos, a guerra terminou em 2005, quando o governo foi deposto — disse Barbagris. — A Coalizão surgiu um ano depois e foram eles que começaram a importar renas para a Inglaterra.

A recordação era como que uma folha desbotada de jornal. Os suecos tinham descoberto que, entre os ruminantes de grande porte, só a rena continuava capaz de reproduzir-se normalmente. Dizia-se que esse animal tinha adquirido certa imunidade contra as radiações porque o líquen de que se alimentava continha grande percentagem de anticontaminante. Na década de 1960, antes do nascimento de Barbagris, a contaminação nos seus ossos era da ordem de 100 a 200 unidades-estrôncio... entre seis e doze vezes acima do limite de segurança para a criatura humana.

Uma vez que as renas eram eficientes animais de tração bem como forneciam boa carne e bom leite, grande se tornou a procura em torno delas na Europa. No Canadá, o caribu adquiriu igual prestígio. Manadas suecas e lapônicas foram sucessivamente trazidas para a Inglaterra em diferentes ocasiões.

— Deve ter sido por volta de 2006 — confirmou Towin. — Foi quando morreu o mano Fred. Morreu como um passarinho, tomando a sua cerveja.

— Com relação à rena — retomou Becky —, fizemos algum dinheiro com ela. Precisamos tirar uma licença para o animal... Daffid era o seu nome. Costumávamos alugar os seus serviços por dia.

— Tínhamos um barracão nos fundos da nossa loja. Daffid ficava lá. Dava muita despesa. Tínhamos também um velho gato, Billy. Billy era velho de verdade e muito inteligente. Não havia gato melhor no mundo, mas, claro, não tínhamos autorização para ficar com ele. Havia muito rigor naquela época, conforme devem estar lembrados, e Billy tinha que virar comida. Era só o que faltava: desistirmos de Billy!

“As vezes a tal Coalizão mandava a polícia... que invadia a casa da gente sem sequer bater na porta. Revistavam tudo. Que época aquela, meus amigos!

“De qualquer forma, aquela noite Tow chegou correndo a casa... tinha enchido a cara... e disse que a polícia vinha dar uma batida.”

— E vinha mesmo! — disse Towin, traindo uma antiga frustração.

— Foi o que ele disse — prosseguiu Becky. — Era preciso esconder o velho Billy, senão iríamos todos para o xadrez. De maneira que corri com ele para o barracão onde Daffid estava deitado tal qual esse bicharoco aí... e escondi Billy no meio da palha. Depois voltei para a sala de visitas. Mas não veio nenhuma polícia e Tom caiu no sono... eu também cochilei um pouco, e, por volta de meia-noite, ficou claro que o velho idiota andara imaginando coisas.

— Eles passaram por nós sem entrar! — gritou Towin.

— De maneira que fui até o barracão e dei com Daffid mascando... e nem sinal de Billy. De repente vi o seu rabo pendendo da boca ensangüentada da maldita Daffid...

— Outra ocasião ela comeu uma das minhas luvas — disse Towin.

Quando Barbagris foi-se acomodar junto de uma lanterna solitária para dormir, a última coisa que viu foi o rosto sombrio da rena de Norsgrey. Tais animais já eram caçados pelo homem na era paleolítica, agora, bastava-lhes mais um pouco de espera para verem desaparecer por completo os homens da face da terra.

No sonho de Barbagris apresentou-se uma situação impossível. Ele se achava num restaurante todo cromado, jantando com alguns desconhecidos. Estes, os seus modos, as suas roupas, tudo era deveras elaborado, deveras artificial, comiam pratos ornamentados, com auxílio de complicados utensílios. Todos os presentes eram extremamente velhos... centenários... contudo não deixavam de ser joviais e até mesmo infantis. Uma das mulheres afirmava ter resolvido todo o problema: assim como as crianças se transformavam em adultos, assim também, no fim das contas, os adultos se transformariam em crianças, desde que   tivessem a necessária paciência para esperar.

E todos riram porque a solução não tinha sido encontrada antes. Barbagris explicava-lhes como era a coisa, como se fossem todos atores desempenhando seus papéis diante de um pano de boca que isolava cada segundo que se passava... contudo, ao falar ele ocultava, por questões humanitárias, que o pano eliminava por igual todos os segundos por vir. Havia crianças por toda a parte (estranhamente adultas em seu aspecto), dançando e atirando uma substância grudenta umas nas outras.

Barbagris tentava apanhar um pouco daquela substância no instante em que acordou. À claridade da aurora, Norsgrey estava ajaezando a sua rena. O animal, cabeça baixa, fungava ao frio. Enrodilhados em seus abrigos, os demais membros da comitiva de Barbagris pareciam seres humanos tanto quanto uma sepultura recém-aberta.

Embrulhando-se com um cobertor Barbagris ergueu-se, espreguiçou-se, e dirigiu-se até o velhote. A umidade tinha-lhe enrijecido os membros, fazendo-o mancar.


— Saindo cedo, hein, Norsgrey?

— Sempre saio cedo. Lita quer partir.

— Ela está bem esta manhã?

— Não se preocupe com ela. Está bem protegida debaixo do toldo da carroça. Ela não gosta de falar com estranhos pela manhã.

— Então não vamos vê-la?

— Não. — Por sobre a carroça estava estendido um velho pedaço de lona, preso por duas correias na frente e atrás, de maneira que era impossível ver o que estava no interior. Lá dentro o galo cantou. Norsgrey tinha já recolhido as galinhas. Barbagris perguntou-se se alguma coisa sua estaria faltando, vendo que o velhote agia com tanta discrição.

— Abrirei a porta para você — disse ele. Ouviu-se um ranger de velhos gonzos quando ele abriu a porta. Cofiando a barba, ele se pôs a contemplar o tranqüilo panorama diante dos seus olhos. Quando o ar frio penetrou no estábulo houve uma certa movimentação entre os seus companheiros. Isaac ergueu-se e lambeu o afilado focinho. Towin olhou de viés para o seu defunto relógio. A rena pôs-se em marcha e arrastou a carroça para campo aberto.

— Estou duro e frio. Caminharei um pouco com você — disse Barbagris, cingindo o cobertor ao corpo.

— Como queira. Terei prazer na sua companhia.desde que não fale demais. Gosto de sair cedo quando o ruído dos pássaros não é tão forte. Por volta de meio-dia parece que a mata vai pegar fogo...

— Será que vai encontrar estradas transitáveis?

— Ah, existem ainda muitas estradas nos locais necessários. Ultimamente se tem viajado muito, as pessoas andam inquietas. Por que não podem ficar onde estão e morrer em paz é coisa que não compreendo.

— Esse lugar de que falou ontem à noite...

— Não disse coisa alguma ontem à noite, estava bêbado.

— Mockweagle. Que espécie de tratamento recebeu ali?


Os olhinhos de Norsgrey quase desapareceram entre as dobras da sua pele avermelhada. Ele mostrou com o polegar as moitas diante das quais passavam.

— Estão aí à sua espera, meu barbudo amigo. Não está ouvindo o pipilar? Eles se levantam mais cedo do que nós e vão para a cama mais tarde, e acabarão apanhando você.

— E a você não?

— Cada cem anos eu tomo uma injeção e substituo as minhas contas...

— Então é isso o que lhe dão... uma injeção além dessas coisas no seu pescoço. Sabe o que são essas contas, não sabe? São pílulas vitamínicas.

— Não digo coisa alguma. Não sei de que está falando. Seja como for, o melhor é que vocês mortais não abram a boca. Eis a estrada. Eu me vou.

Eles tinham chegado a uma espécie de encruzilhada, onde o caminho cruzava com um outro que apresentava ainda alguns vestígios de macadame na sua desgastada superfície. Norsgrey bateu com o látego em sua rena, fazendo-a tomar uma andadura menos preguiçosa.

Ele olhou por sobre o ombro para Barbagris.

— Digo-lhe uma coisa... se chegar a Swifford Fair, procure Bunny Jingadangelow.

— Quem é esse? — indagou Barbagris.

— Digo-lhe que é a ele que deve procurar em Swifford Fair. Lembre-se do nome: Bunny Jingadangelow.

Envolto no cobertor, Barbagris viu a carroça perder-se na distância. Ele julgou ver a lona agitar-se e surgir... não, não era uma mão humana... talvez apenas a sua imaginação. Barbagris quedou-se estático até que a tortuosa estrada levou Norsgrey das suas vistas.

Ao voltar-se, deparou, numa touceira próxima, com um cadáver de pescoço quebrado pendurado a um poste. O sorriso do morto traía o atrevimento daqueles que há muito tempo se tornaram defuntos. Sobre o crânio havia salpicos de carne semelhantes a folhas mortas. Conquanto bastante fino, o casaco do infeliz tornara-se ainda mais adelgaçado, pondo à mostra a pele fendida.


— Abandonado morto na encruzilhada como advertência aos malfeitores... tal como na Idade Média... a velhíssima Idade Média... — murmurou Barbagris de si para consigo. Os olhos pareciam fitá-lo. Barbagris sentiu-se possuído mais de desgosto que de saudades pelo caminhão da DOHUC(I) do qual se separara anos antes. Como se subestimava então o valor das obras mecânicas! A necessidade de registrar fez-se sentir nele, alguém tinha que deixar atrás de si um relato da decadência do gênero humano, ainda que tão-somente para eventuais visitantes de outros planetas. Barbagris retornou com passo pesado na direção do estábulo, repetindo com seus botões, à medida que caminhava: “Bunny Jingadangelow, Bunny Jingadangelow...”

O crepúsculo fez-se acompanhar aquele dia pelo som de música. Podiam-se ver as luzes de Swifford do outro lado. A comitiva rumou para uma seção do Tâmisa que transbordara o leito original, transformando as plantas das terras circunvizinhas em vegetais aquáticos. Logo surgiram outras embarcações e gente chamando por eles, era difícil compreender-lhes o sotaque, tal como sucedera no princípio com Norsgrey.

— Por que não falam inglês como antigamente? — perguntou Charley, raivoso. — Fica tudo tão complicado.

— Talvez seja coisa do tempo — sugeriu Towin. — Talvez as distâncias se tenham modificado. Talvez isto seja a França ou a China, hein, Charley? Eu acreditaria em qualquer coisa. E você?

— Grande tolo — disse Becky.

Eles chegaram a um ponto onde tinha sido construída uma barragem. Por detrás havia moradias de vários tipos, cabanas e estábulos quase todas de cunho provisório. Havia também uma imponente ponte de pedra, com uma suntuosa balaustrada de madeira, parte da qual se esboroara. Através do vão da ponte viram luzes ardendo e dois homens cuidando de um rebanho de renas, fornecendo-lhes água para a noite.

— Teremos que vigiar os barcos e os carneiros — disse Marta, quando amarraram na ponte a sua embarcação. — Não sabemos até que ponto podemos confiar nesta gente. Jeff Pitt, fique comigo enquanto os outros dão uma olhadela por aí.

— Acho melhor mesmo — respondeu Pitt. — Pelo menos aqui não nos meteremos em encrencas. Quem sabe podemos dividir uma costeleta de carneiro enquanto os outros não voltam.

Barbagris apanhou a mão de Marta.

— Verei quanto podem dar os carneiros — disse ele.

O casal trocou um sorriso e ele foi-se juntar à atividade da feira, com Charley, Towin e Becky nas suas pegadas. O chão cedia-lhes sob os pés, dos pequenos fogos que ardiam por toda parte desprendiam-se rolos de fumaça. Um apetitoso aroma de comida em preparo pairava no ar. Na maior parte das fogueiras havia magotes de gente e sempre um sujeito de fala macia oferecendo algo à venda: nozes, frutas ou alguma outra coisa. Um indivíduo anunciava uma fruta de outros tempos da qual Barbagris mal conseguia recordar-se: pêssego. E, de mistura, relógios, cadeias e elixires da longa vida. Os fregueses pagavam em moeda as suas aquisições. Em Sparcot a moeda corrente tinha praticamente desaparecido, a pequenez da comunidade era de molde a justificar a simples troca de serviços ou de bens entre os interessados.

— Oh, é como estar de volta à civilização — comentou Towin, com uma palmada nas nádegas da mulher. — O que me diz, dona? É melhor do que atravessar o rio, não acha? Olhe, existe até um bar aqui! Vamos todos tomar um trago e esquentar a tripa, que me diz?

Á seguir sacou uma baioneta, brandiu-a diante de dois comerciantes e acabou cedendo a lâmina em troca de um punhado de moedas de prata. Sorridente em razão do seu extraordinário tino comercial, Towin entregou parte do dinheiro apurado a Charley e Barbagris.

— Empresto-lhes isto. Amanhã tosquiaremos um dos carneiros e vocês poderão me pagar. Minha taxa de juros, rapazes, é cinco por cento.

O grupo encaminhou-se para o bar mais próximo. Era a Taverna Potsluck, conforme anunciava o letreiro encimando a porta. O lugar estava apinhado de velhos e velhas, e, atrás dos balcões, dois indivíduos encorpados cuidavam das garrafas. Enquanto sorvia um copo de hidromel, Barbagris tratou de escutar a conversação em torno, o seu estado de espírito passando insensivelmente a animar-se. Ele jamais sonhara que o retinir de moedas no bolso pudesse ter efeito tão estimulante.

Impressões e imagens várias começaram a ocorrer-lhe. Parecia que, ao deixar Sparcot, eles tinham fugido de um campo de concentração. Aqui o mundo dos seres humanos diferia em muito de Sparcot. Talvez padecesse de uma lesão fatal, dentro de meio século estaria liquidado, mas até então haveria negócios para fazer, vida para viver, calor humano para desfrutar. Quando o hidromel iniciou a combustão em seu sangue, Barbagris rejubilou-se de constatar que havia uma humanidade que, embora repreendida pelos deuses por sua insensatez, continuava inteiramente impenitente.

Um casal idoso encontrava-se sentado perto dele, ambos usando dentaduras postiças de péssima qualidade que pareciam ter sido colocadas por algum ferreiro da vizinhança. Barbagris bebia entre a conversa barulhenta dos circunstantes. O par comemorava seu recente casamento, a primeira mulher daquele homem tinha morrido de bronquite um mês antes. Seus alegres movimentos com relação à nova esposa, cheios de dedos sob a mesa, cheios de dentes postiços no alto, encerravam como que um Odor de Morte, mas o telúrico otimismo da cena não destoava do sabor do hidromel.

— Não são da cidade? — perguntou um dos troncudos barmen a Barbagris. Seu sotaque, como de resto o de todos os demais, era difícil de entender.

— Não sei de que cidade está falando — respondeu Barbagris.

— Ora, de Ensham ou Aisham, a quilômetro e meio daqui. Tomei-o por forasteiro. Costumávamos fazer lá a feira, por ser o lugar seco e confortável, mas no ano passado eles acharam que levamos conosco o germe da gripe e não quiseram nos receber este ano. Por isso acampamos aqui nos pântanos e estamos ficando reumáticos. E eles vêm até cá... a distância não chega a ser um qulômetr


e meio, mas muitos deles são tão velhos e preguiçosos que não querem se deslocar de onde estão. Por isso os negócios vão tão mal.

Embora parecesse um tronco rachado de carvalho, o homem era deveras delicado. Apresentou-se como Pete Potsluck, e, sempre que os fregueses lhe davam uma folga, puxava conversa com Barbagris.

Barbagris entrou a falar-lhe acerca de Sparcot, entediados pelo tema da conversa, Becky, Towin e Charley se afastaram e foram procurar assunto junto dos recém-casados. Potsluck afirmou acreditar na existência de numerosas comunidades, a exemplo de Sparcot, imersas na selva.

— Basta um inverno bravo, coisa que há cerca de dois anos não temos, e algumas delas ficarão completamente destruídas. Creio que seria o fim para todos nós...

— Há luta em algum lugar? Ouviu algum boato de invasão escocesa?

— Dizem que os escoceses vão muito bem. E são pouco numerosos, aliás. Aqui, a população era tão vasta que foram precisos anos de peste e fome para nos reduzir. Os escoceses decerto evitaram todos os problemas... mas por que haveriam de nos perturbar? Já estamos velhos demais para lutar.

— Nesta feira há muita gente mal-encarada.

Potsluck riu.

— Não digo o contrário. Delinqüentes senis, é assim que os chamo. Curioso, sem jovens para ditar as modas, os velhos começam a reinar... enquanto têm condições para isso.

— Que aconteceu às pessoas do tipo de Croucher?

— Croucher? Ah, sim, o camarada de Cowley de quem falou! Os ditadores estão todos mortos e enterrados, graças a Deus. É tarde demais para essa coisa de regime forte. Quero dizer. Existe lei nas cidades, mas fora delas não.

— Não falava de lei como força.

— Bem, não existe lei sem força, existe? Há um nível em que a força é má, mas quando se chega ao nível em que estamos, a força torna-se fortaleza e, positivamente, uma bênção dos céus.

— Provavelmente tem razão.

— Pensei que soubesse disso. Você parece carregar consigo um pouco da lei, com essas barbas imensas e esses punhos gigantes.

Barbagris sorriu.

— Não sei. É difícil conhecer o próprio temperamento numa época como a nossa.

— Ainda não sabe ao certo como é? Talvez por isso continue tão jovem de aspecto.

Mudando de assunto, Barbagris mudou também de bebida, e serviu-se de um vasto copo de vinho de cenoura branca, oferecendo também uma dose a Potsluck. Logo atrás dele, os nubentes começaram a cantar, entoando canções de um século antes, as quais tinham tido o estranho condão de se perpetuar:

“Se fosses a única pequena em todo o mundo E eu o único rapaz...”

— Ainda vamos chegar a isso — comentou Potsluck, quase rindo. — Tem visto alguma criança? Quero dizer, tem nascido alguma nestas bandas?

— Existe aqui um espetáculo de monstruosidades. Se quiser dar uma olhada — disse Potsluck. Seu bom humor pareceu eclipsar-se subitamente e ele voltou de supetão às suas garrafas. Logo após, como a dar-se conta de que tinha sido pouco cortês, tornou a olhar para Barbagris e atacou um outro assunto.

— Antes do Acidente eu fui barbeiro, até a maldita Coalizão fechar o meu negócio. Parece ter sido há muitos anos... e na verdade foi. Aprendi o ofício com meu pai, que foi dono do salão antes de mim, eu costumava dizer sempre, quando surgiram as primeiras notícias das radiações, que enquanto existisse gente no mundo, essa gente haveria de cortar os cabelos... enquanto não os perdesse, evidentemente. De vez em quando ainda faço os cabelos de algum forasteiro. Ainda existe quem se importe com a aparência, felizmente.

Barbagris não fez comentários. Tinha percebido um homem nas garras do passado. Potsluck tinha perdido parte do seu palavreado semi-rústico, com uma frase amena como “ainda existe quem se importe com a aparência”, revelara ter recuado meio século no tempo, até um mundo de loções capilares, artigos de toalete, loções após-barba e muitos artifícios para disfarçar odores e defeitos.

— Lembro-me que certa vez, quando era ainda muito jovem, tive que ir atender um cliente em sua própria casa... lembro-me ainda do lugar, embora seja quase certo que a casa já não exista. A escada estava muito escura e fui obrigado a dar o braço a uma moça. É... fui até lá depois de fechar o salão. O velho me mandou, eu teria quando muito dezessete anos...

“E, no andar de cima, lá estava o idoso cavalheiro, morto, dentro do caixão. Parecia muito calmo e próspero. E em vida tinha sido excelente freguês. Sua esposa fez questão que lhe cortassem o cabelo antes de enterrá-lo. Ele tinha sido sempre muito asseado, disse-me ela. Depois, conversei com ela no andar térreo... uma dama magra com brincos nas orelhas. Ela deu-me cinco xelins. Não, talvez fossem dez, não me recordo bem. De qualquer forma, uma bela quantia para a época... antes que toda essa desgraça acontecesse.”

“De maneira que cortei os cabelos do morto. Sabe como cabelos e unhas continuam a crescer depois da morte. Os dele precisavam apenas de uma aparada, mas cortei-os com todo o cuidado. Na ocasião eu freqüentava igrejas, acredite se quiser. E a moça que tinha me levado para o andar de cima teve que segurar-lhe a cabeça para eu poder apanhar os cabelos com a tesoura, e, a certa altura, ela desatou a rir e largou a cabeça do defunto. Disse-me que queria um beijo. Fiquei um tanto chocado, pois o cavalheiro era pai dela... não sei por que lhe conto tudo isto. Coisa curiosa a memória. Acho que se tivesse um mínimo de juízo na época eu teria executado a zinha ali mesmo... mas eu pouco conhecia a vida... Tome mais alguma coisa comigo...”

— Obrigado, talvez volte mais tarde — respondeu Barbagris. — Quero dar um giro pela feira. Conhece algum Bunny Jingadangelow?

— Jingadangelow? Sim, conheço. Que quer dele? Vá até a ponte e tome a estrada para Ensham. Irá dar na sua palhoça. Não há como errar. Encontrará a Lmrftição: Vida Eterna. Correndo os olhos pelo grupo que cantava, Barbagris deu de cara com Charley. Charley ergueu-se e os dois saíram juntos, deixando Towin e Becky a cantar “Novamente Só” em companhia dos nubentes.

— Esse sujeito que acabou de casar é criador de renas — disse Charley. — Trata-se, talvez, do único mamífero de porte que ainda não sofreu os efeitos das radiações. Lembra-se de que diziam no começo que elas nunca se adaptariam aqui, porque o clima era-lhes demasiado úmido para a pelagem?

— É demasiado úmido para a minha pelagem também, Charley... Está menos frio agora, mas, pelo jeito das nuvens, vamos ter chuvas. Onde iremos nos abrigar para passar a noite?

— Uma mulher lá no bar disse que poderíamos nos acomodar na cidade. Vamos procurar. É cedo ainda.

Os dois homens subiram a rua, observando a azáfama que ia nos diversos locais de venda.

Isaac fungou quando passaram por um engradado de raposas e, logo a seguir, por um punhado de fuinhas. Havia também galinhas à venda. Uma mulher envolta em peles tentou impingir-lhes chifres de rena em pó contra impotência e mau-olhado. Dois charlatães rivais vendiam purgantes e clisteres, amuletos contra o reumatismo e drogas contra as câimbras senis. Os poucos circunstantes denotavam ceticismo. Os negócios diminuíam àquela altura da noite, procurava-se mais diversão do que negócios, e um malabarista atraía considerável multidão. O mesmo fazia uma cartomante — embora a arte devesse andar muito por baixo — pensou consigo Barbagris.

Um velho masturbava-se numa vala e, alcoolizado, maldizia o próprio sêmen. Charley e Barbagris chegaram afinal à palhoça seguinte. No alto da porta tremulava uma flâmula com a inscrição: Vida Eterna.

— Deve ser aqui a morada de Jingadangelow — disse Barbagris.

Havia diversas pessoas ali. Algumas ouviam o homem que lhes falava do estrado, ao passo que outras agrupavam-se em torno de um vulto abatido junto de uma das quinas do estrado, com duas esmirradas velhas choramingando ao lado. Era difícil ver o que acontecia à luz bruxuleante das tochas, mas as palavras do homem sobre o estrado tornavam mais claras as coisas.

Era a voz de um homem culto, dotada de vigor insuspeitado face à sua franzina construção, acompanhada por um rítmico bater de palmas.

— Bem diante de nós está a prova daquilo que venho dizendo, amigos. Sob nossas vistas, um irmão acaba de desertar desta vida. Sua alma rompeu o invólucro e nos deixou. Olhai uns para os outros, caríssimos irmãos, todos envoltos em nossos invólucros nesta horrível e frígida noite. Algum dentre vós será capaz de dizer que o melhor não seria acompanhar o irmão que se foi?

— Vá para o diabo! — berrou um homem, apertando uma garrafa entre os dedos. O dedo do orador apontou acusadoramente para ele.

— Para você talvez não seja o melhor, reconheço-o, meu amigo... pois compareceria, tal qual o irmão aqui presente, cheio de álcool perante o Criador. O Senhor já está farto das nossas tolices, irmãos, essa é a pura verdade. Já suportou tudo o que podia. Está farto de nós, mas não de nossas almas. Ele nos apartou e, sem dúvida, não irá aprovar se insistirmos até o túmulo nos desatinos que vimos cometendo desde a juventude.

— De que outra maneira poderemos nos aquecer nestas noites de inverno? — indagou o fanfarrão, erguendo um sussurro aprobatório em torno de si. Charley bateu-lhe no ombro e disse: — Não se importaria de ficar calado enquanto o cavalheiro fala?

O fanfarrão voltou-se para Charley. Embora enrugado pelo tempo como uma ameixa, sua boca era um traço de vivo vermelho e parecia haver sido colada no rosto a força de punhos. Remexendo os lábios, ele acabou por constatar que Charley era mais forte e calou-se. Imperturbável, o orador deu seqüência à sua predica.

— Temos que nos curvar ante os Seus desejos, amigos, é isso o que temos que fazer. Logo iremos todos nos ajoelhar e rezar. Seria conveniente que comparecêssemos todos juntos à Sua presença, pois somos a última das suas gerações e está escrito que como tal nos devemos comportar. Que poderemos temer, se formos justos? Façamos a nós próprios a pergunta. Já certa feita Ele inundou a Terra em virtude dos nossos pecados. Agora suprimiu dos nossos órgãos geradores o divino poder de procriar. A considerar esse castigo como mais grave do que as enchentes, nesse caso os pecados do nosso século, o Vigésimo Primeiro Século, são pecados mais graves. Ele tem o poder de começar tudo de novo quantas vezes quiser.

“Por isso não choramos por esta Terra que vamos deixar. Nascemos para desaparecer, tal qual o gado que um dia apascentamos desapareceu, deixando a Terra limpa e fresca para as Suas novas obras. Permiti-me lembrar-vos, irmãos, antes de nos pormos de joelhos para orar, as palavras das Escrituras referentes à nossa época.”

O pregador juntou as mãos e, perscrutando a escuridão, recitou:

— Tudo aquilo que sobreviver ao filho do homem sobreviverá ao animal. Morrendo um, assim também morrerá o outro, pois uma só é a sua vida. Assim é que o homem não prepondera sobre o animal, malgrado a sua tola vaidade. Vão todos para o mesmo lugar, todos são pó e ao pó reverterão. Por isso afirmo que o homem deve rejubilar-se nas obras do Senhor, pois essa é a sua sina. E quem lhe irá mostrar aquilo que virá atrás dele?

— Minha patroa virá atrás de mim, se eu não voltar para casa — disse o fanfarrão. — Desejo-vos boa noite, Reverendo. — E pôs-se a subir a rua, apoiado a uma velha. Barbagris sacudiu o braço de Charley e disse:

— Este homem não é Bunny Jingadangelow, apesar de anunciar a vida eterna. Vamos indo.

— Não, ouçamos um pouco mais, Barbagris. Temos aí um homem que diz a verdade. Há quantos anos não ouvimos nada que valha a pena?

— Então fique. Eu vou.

— Fique e escute, Algy. Far-lhe-á bem.

Mas Barbagris encaminhou-se rua acima. O pregador uma vez mais lançava mão do morto junto do estrado para ilustrar suas palavras. Talvez aquele fosse um dos erros inerradicáveis do gênero humano (até mesmo os ateus tinham que reconhecer a falha): o não contentar-se e aceitar uma coisa simplesmente como tal. Sempre se converteram as coisas em símbolos ou em outras coisas. Um arco-íris não é apenas um arco-íris, uma tempestade é penhor da ira celestial, e até mesmo do seio da terra emergem obscuros deuses. Qual o significado disso tudo? Aquilo que um agnóstico acredita e aquilo que o lamurioso pregador acredita não são apenas sistemas irreconciliáveis de pensamento, são também sistemas igualmente válidos de pensamento, pois em algum ponto da trajetória evolutiva o homem, desenvolvendo o hábito de raciocinar por meio de símbolos, estabeleceu um número exagerado de alternativas, um número exagerado de sistemas de alternativas. Os animais não se entregam aos mesmos sistemas de imaginação: copulam e comem, apenas. Mas, para o santo, o pão é símbolo de vida, tal como o é o falus para o pagão. Os próprios animais são postos a serviço dos símbolos, e de todas as maneiras possíveis.

Tal prática representa uma distorção, embora o homem pareça incapaz de raciocinar sem ela. Constitui ela, desde que o tempo é tempo, a raiz de todos os problemas. Talvez tenha sido o próprio começo, entre os homens primitivos, o qual não sé pôde definir com clareza (pois os homens primitivos, sendo também símbolos, ou eram brutos ou tímidos e nobres selvagens). Talvez o primeiro fogo, a primeira ferramenta, a primeira roda, o primeiro entalhe, cada qual tivesse um significado antes simbólico do que prático e se destinasse a retratar uma distorção ao invés da realidade. Foi uma espécie de loucura que fez o homem passar-se da floresta para a cidade, que fez o homem entregar-se às artes, às cruzadas religiosas, aos martírios e à prostituição, aos jejuns, ao amor e ao ódio, e meter-se no moderno beco-sem-saída em que se encontra: tudo surgiu da busca incessante dos símbolos. No começo era o símbolo e a escuridão reinante na Terra.

Barbagris deixou de lado aquela linha de raciocínio ao chegar à palhoça seguinte. Deparou ele com outro letreiro anunciando: Vida Eterna.

O letreiro estava pendurado na fachada de uma garagem pegada a uma casa em ruínas. As portas tinham caído, mas foram colocadas à guisa de anteparo para isolar a parte detrás da garagem. Por detrás do anteparo brilhava um fogo, projetando as sombras de duas pessoas. Diante do anteparo, acarinhando uma lanterna entre as mãos regeladas, estava uma velhota de gengivas murchas, empoleirada num caixote. Ela fez um chamado rotineiro a Barbagris:

— Se desejas a Vida Eterna, aqui a terás. Não dês ouvidos ao pregador! Seu preço é alto demais. Aqui não tens que abrir mão de coisa alguma. O nosso tipo de vida eterna compra-se a baixo preço e sem nenhum inconveniente para a alma. Entra, se queres viver para sempre!

— Morto por ter cão, morto por não ter cão, não sei se confio mais em ti do que no pregador, velhota.

— Vem e renasce, feixe de ossos!

Como não se lembrasse daquele tipo de expressão, Barbagris retrucou vivamente:

— Quero falar com Bunny Jingadangelow. Ele está?

A velha bruxa tossiu e lançou no assoalho uma placa esverdeada de catarro.

— O Doutor Jingadangelow não está. Ele não fica à disposição de todos, sabe? Que desejas?

— Quero saber onde ele está, desejo falar com ele.

— Arranjo-te uma entrevista, se queres uma sessão de rejuvenescimento ou imortalidade, mas ele não está.

— Que há atrás desse anteparo?

— Meu marido, se desejas saber, e um cliente. Quem és, afinal de contas? Nunca te vi antes.

Uma das sombras aumentou de tamanho e uma voz aguda perguntou:

— Qual o problema aí fora?

Logo a seguir surgiu um jovem.

O efeito sobre Barbagris foi como uma ducha de água fria. Através dos anos ele tinha chegado à constatação de que infância não passava de uma idéia abstrata arraigada no cérebro dos velhos e de que carne jovem era no país uma peça de museu. Não se levando em conta os boatos, ele próprio era a coisa mais jovem que um mundo definhado tinha a oferecer. Mas aquilo... aquela criança trajando apenas uma espécie de túnica, usando um colar vermelho e verde semelhante ao de Norsgrey, expondo os frágeis braços e pernas, fixando em Barbagris uns olhos arregalados e inocentes...

— Por Deus — disse Barbagris. — Então continuam nascendo!

O jovem falou em voz aguda e impessoal:

— Tem diante de si, cavalheiro, uma amostra dos benéficos efeitos dos conhecidos tratamentos combinados de Rejuvenescimento e Imortalização do Dr. Jingadangelow, acatados e preconizados desde Gloucester até Oxford, desde Banbury até Berks. Inscreva-se aqui para um tratamento, cavalheiro, antes que seja tarde demais. O senhor poderá ser como eu, cavalheiro, depois de umas poucas doses experimentais.

— Não acredito em você, tal como não acreditei no pregador — disse Barbagris, ainda um tanto ofegante. — Que idade tem, menino? Dezesseis, dezessete, trinta? Já não me lembro da idade jovem.

Uma segunda sombra projetou-se no local e surgiu à vista uma grotesca figura com o queixo infestado de verrugas. Tão arcado era o homem que mal podia erguer os olhos na direção de Barbagris.

— Quer o tratamento, cavalheiro? Quer tornar-se novamente belo como esse jovem e simpático rapaz?

— O senhor próprio não é boa recomendação para o seu preparado, hein? — respondeu Barbagris, voltando-se de novo para o jovem. A seguir adiantou-se para observá-lo mais de perto. Passado o primeiro momento de estupefação, verificou que o jovem não era senão um flácido espécime, com um rosto bastante pastoso.

— O Dr. Jingadangelow desenvolveu o seu maravilhoso sistema demasiado tarde para ajudar-me, cavalheiro — disse a grotesca figura. — Encontrei-o tarde demais na vida, mas ele poderia auxiliá-lo, tal como ao nosso jovem amigo aqui ao lado. Este jovem tem na realidade cento e noventa e cinco anos, senhor, embora pareça incrível. Louvado seja, ele está em pleno viço da juventude.

— Nunca me senti melhor — disse o jovem com sua estranha voz. — Estou em pleno viço da juventude.

Súbito Barbagris agarrou-lhe o braço e fê-lo girar, de modo a que a luz da lanterna da velhota lhe iluminasse frontalmente o rosto. O rapaz deu um grito de dor. A inocência dos seus olhos deu lugar a uma expressão de vacuidade. A espessa camada de pó que lhe recobria o rosto fendeu-se em vincos de dor e ele abriu a boca, pondo à mostra alguns dentes enegrecidos protegidos por uma cobertura de tinta branca. Soltando-se, ele chutou Barbagris na canela, xingando-o ferozmente.

— Seu malandro, seu pilantra de noventa anos... Você foi castrado! — E Barbagris voltou-se irado para o velho. — Não tem direito de fazer uma coisa dessas!

— Por que não? Ele é meu filho. — As mandíbulas encarquilhadas do velho fremiam de ódio. O “menino” começou a gritar. E berrou para Barbagris: — Não toque em meu pai! Bunny e eu tivemos a idéia. Levo uma vida honesta. Pensa que quero passar os meus dias na miséria como você? Socorro! Socorro! Assassino! Ladrões, Fogo, Socorro! Socorro! Amigos!

— Cale a... — Barbagris ficou por aí. A velhota deu um salto atrás dele. Quando ele se voltou, o velho vibrou-lhe sobre o crânio um grosso porrete, fazendo-o rolar pelo chão de concreto.

De novo uma situação impossível. Havia duas jovens sentadas a duas mesas, lidando com dois anciãos cujas fisionomias mais pareciam velas enrugadas de navio. Tinham elas os lábios vermelhos, as bochechas coradas, os olhos negros e brilhantes. A garota mais próxima de Barbagris usava meias de malha larga que alcançavam a coxa, ali encontravam as calças de cetim, franjadas, como que para ocultar uma flor mais rara entre as suas pétalas, e combinando na cor com a breve túnica, guarnecida de convidativos botões de latão que até certo ponto escondiam um peito tão esplendoroso que fazia parecer pequeno o queixo da sua possuidora.

Entre aquele espetáculo e Barbagris havia certo número de pernas, duas das quais ele identificou como sendo de Marta. O ato do reconhecimento fê-lo compreender não ser aquilo um sonho. Ele gemeu e o rosto carinhoso de Marta aproximou-se do seu, ela colocou-lhe a mão no rosto e deu-lhe um beijo.


— Meu pobre querido, você logo ficará bom.

— Marta, onde estamos?

— Você estava sendo linchado por bater naquele eunuco lá na garagem. Charley ouviu o barulho e foi buscar-me, a mim e a Pitt. Viemos logo que pudemos. Vamos passar a noite aqui, amanhã você estará novo.

Alertado por aquela observação, Barbagris reconheceu agora dois dos pares de pernas que lá estavam: ambos enlameados e salpicados da grama dos pântanos, um era de Charley e outro de Jeff Pitt.

E perguntou com voz mais forte:

— Onde estamos?

— Foi sorte não ter morrido — grunhiu Pitt.

— Estamos próximos da garagem em que você foi atacado — esclareceu Marta. — É uma casa... a julgar pelas aparências... de duvidosa reputação.

Barbagris notou o sorriso fugidio da esposa. Seu coração amoleceu e ele tomou-lhe a mão na sua, comprimindo-a para mostrar que era capaz de apreciar uma mulher espirituosa, mesmo quando a tirada de espírito não fosse das mais oportunas. A vida renasceu dentro dele.

— Ajude-me, estou quebrado — disse.

Pitt e Charley seguraram-no pelas axilas. Apenas um par de pernas desconhecido manteve-se imóvel. Erguendo-se, ele passeou o olhar pelas sólidas canelas que tinha à frente, pela extravagância de um casaco feito de pele de coelho. Tais peles conservavam as cabeças dos animais, dentes, orelhas, barbas e o resto, em lugar dos olhos havia buracos. Algumas das orelhas, mal conservadas, apresentavam sinais de deterioração e desprendiam certos eflúvios (decerto acentuados pelo calor reinante na sala), mas o efeito global da coisa era, sem dúvida, portentoso. Quando Barbagris se alçou ao nível do portador do casaco, disse-lhe:

— Bunny Jingadangelow, suponho?

— Doutor Bunny Jingadangelow, às suas ordens, Sr. Timberlane — respondeu o homem do casaco, flexionando a região sacro-lombar o suficiente para sugerir uma mesura. — Alegra-me que minha medicação lhe tenha trazido pronto alívio aos ferimentos... mas a sua dívida para comigo poderemos discuti-la depois. Em primeiro lugar


acho que deve exercitar a circulação, dando uma volta pela sala. Permita-me ajudá-lo.

Jingadangelow travou o braço de Timberlane e começou de passeá-lo entre as mesas. No momento, Barbagris deixou-se levar passivamente, estudando o homem do casaco de pele de coelho. Jingadangelow parecia andar na casa dos cinqüenta e poucos anos, talvez tivesse uns cinco ou seis mais que Barbagris, era homem jovem para a época. Usava um frisado bigode e suíças, mas a redondez do seu queixo exibia uma maciez incomum naqueles dias. Em seu rosto morava uma tal expressão de brandura que, aparentemente, nenhum estudo metódico seria capaz de lhe estabelecer o verdadeiro caráter.

— Ao que sei — disse ele, — antes de atacar um dos meus clientes, o senhor disse estar à minha procura e desejar orientação da minha parte.

— Não ataquei seu cliente — disse Barbagris, livrando-se do abraço do homem. — Embora lamente ter, num momento de raiva, agarrado um dos seus cúmplices.

— Cuidado, homem, o jovem Trotty é um reclame, não um cúmplice. O nome do Dr. Jingadangelow é conhecido em toda esta região como o de um grande humanitarista... um humanitarista humano. Eu lhe daria agora um dos meus anúncios, se o tivesse comigo. Antes de tornar-se agressivo é preciso que compreenda que sou uma das grandes figuras do... ahn... onde estamos agora?... do Século Vinte e Um.

— Talvez seja muito conhecido, não discuto. Conheci um pobre lunático, Norsgrey, e sua mulher, que receberam seu tratamento...

— Espere, espere... Norsgrey, Norsgrey... que diabo de nome é esse? Não consta dos meus livros... — Jingadangelow plantou o dedo indicador no meio da testa. — Ah, sim, sim... é verdade. Essa história de mulher deixou-me confuso por um instante. Cá entre nós... — Jingadangelow fez Barbagris dirigir-se até um canto, inclinou-se para ele e confidenciou: — Claro que queixas de clientes são coisa a um tempo sagrada e confidencial, mas o pobre Norsgrey na verdade não tem mulher alguma. Na verdade, gosta muito de uma fêmea de texugo. — E tamborilou o dedo na testa. — Por que não? É bom um pouco de calor para aquecer o sangue ralo nestas noites de frio. Pobre sujeito, é varrido.

— Aprecio a sua condescendência.

— Perdôo todas as falhas e loucuras humanas, senhor. Faz parte do meu dever. Precisamos mitigar este vale de lágrimas na medida das nossas forças. Tal compreensão é, naturalmente, um componente dos meus maravilhosos poderes curativos...

— Vale dizer que o senhor vive à custa de malucos como Norsgrey. Ele alimenta a ilusão de que o senhor o tornou imortal.

Durante o colóquio Jingadangelow sentou-se e fez sinal a uma mulher, que lhe trouxe de beber. O médico meneou a cabeça e fez um gesto com os dedos gordos em sinal de agradecimento. E disse para Barbagris:

— Como é estranho tornar a ouvir objeções de ordem ética depois de tantos anos... faz-me voltar atrás... O senhor deve ser um eremita. Sabe, esse velho Norsgrey está morrendo. Ouve ruídos terríveis a todo instante, um edema fatal. De maneira que... confunde a esperança que lhe dou com a imortalidade que lhe prometi. Um erro agradável, sem dúvida? Eu, se me permitir uma confidencia, vivo sem essa esperança, por isso Norsgrey (e existem muitos como ele) tem muito mais sorte que eu. Consolo-me por ser mais rico do que ele em bens materiais.

Barbagris depôs o copo e olhou em torno. Embora lhe doesse ainda o pescoço, ele se sentiu invadido pelo bom humor.

— Incomoda-se se minha mulher e meus amigos vierem ter conosco?

— Absolutamente não, absolutamente, espero que a minha companhia ainda não o tenha aborrecido. Penso que um pouco de conversa seria bom antes de transacionarmos algo. Julguei reconhecer em sua pessoa uma alma irmã.

Barbagris respondeu:

— E por que pensa assim?

— Em boa parte em razão da intuição que possuo em alta dose. O senhor é descompromissado, não sofre como devia nesta época infeliz. Embora a vida seja uma desgraça, o senhor a goza. Não é assim?


— E como sabe? Sim, sim, tem razão. Mal acabamos de nos conhecer...

— A resposta não é inteiramente agradável ao ego. É que, embora cada homem seja único, todos os homens são também iguais entre si. A sua natureza é ambivalente, muitos homens são ambivalentes. Basta-me um minuto com eles para fazer o diagnóstico. Estou sendo claro?

— Como diagnostica a minha ambivalência?

— Não sou nenhum adivinho, mas tentarei um esforço. — Jingadangelow expandiu o peito, ergueu as sobrancelhas, fitou o copo e fez uma expressão das mais judiciosas. — Nós precisamos dos nossos desastres. O senhor e eu, de uma ou de outra forma arrostamos um colapso da civilização. Somos sobreviventes de um naufrágio. Mas sentimos algo mais profundo do que a sobrevivência... o triunfo! Antes que o Acidente viesse nós o desejamos, de maneira que para nós o desastre representa um triunfo da vontade indômita. Não se espante tanto! O senhor não é do tipo que considera os recessos da mente como local dos mais salubres. Já pensou no mundo em que nascemos e naquilo que seria esse mundo, se uma pequena experiência nuclear não tivesse dado em droga? Não seria um mundo demasiado complexo, demasiado impessoal, para gente como o senhor e eu?

— O senhor está pensando por mim — disse Barbagris.

— É o papel do homem sensato, mas igualmente sensato é ouvir. — Jingadangelow sorveu toda a bebida e lançou um olhar para o copo vazio. — Não será o nosso atual presente preferível àquele outro presente mecanizado, organizado e desodorizado com o qual poderíamos ter topado, simplesmente porque nesta época atual nos é dado viver em escala humana? Naquele outro presente, que não chegamos a conhecer por um fio, a megalomania não teria crescido a tal ponto que toda a riqueza simples da vida individual ordinária ficaria sufocada?

— Sem dúvida o sistema de vida do século vinte tinha muitos erros.

— Era feito só de erros.

— Não exagere. Algumas coisas...


— Não acha que do ponto de vista espiritual estava tudo errado, que, em suma, tudo estava errado? Não é bom sentir-se nostálgico. Não foram apenas as drogas e a educação. Não terá sido também a necessidade das drogas e a pobreza da educação? Não terá sido o clímax e o orgasmo da Era da Máquina? Não terá sido Mons e Belsen e Bataan e Stalingrado e Hiroshima e tudo mais? Não terá sido bom para nós havermos sido atirados do carrossel?

— O senhor se limita a fazer perguntas — disse Barbagris.

— As respostas estão contidas nas próprias perguntas.

— Isto é sofismar. O senhor está sofismando. Não, espere... escute, desejo continuar nossa conversa. É uma conversa importante... Espere que vou buscar minha mulher e meus amigos.

Barbagris ergueu-se. Doía-lhe a cabeça. A bebida era forte, a sala estava cheia de barulhos e muito quente, ele sentia-se excitado. Fazia tempo que não ouvia falar em outra coisa senão dor de dente e mau tempo. Barbagris procurou Marta com o olhar mas não a encontrou.

Atravessou a sala. Havia uma escada levando ao andar de cima. Barbagris deu-se conta de que as mulheres nem eram tão voluptuosas como imaginara nem andavam tão ocupadas como poderia parecer. Malgrado a pintura, elas exibiam na pele as manchas típicas da idade e tinham os olhos ramelentos. Sorrindo de forma estranha, elas lhe estenderam as mãos à sua passagem. Barbagris abriu caminho entre elas. E as mulheres, cheias de álcool, tossiam, riam e fremiam à sua aproximação. A sala estava cheia dos seus movimentos, tal qual uma gaiola de gralhas.

As mulheres acenavam (acaso já teria sonhado com elas certa vez?) — mas Barbagris não lhes fazia caso. Marta tinha desaparecido. Charley e o velho Pitt tinham desaparecido. Ao constatar que ele estava bem, ambos deveriam ter voltado para o barco. Quanto a Towin e Becky, não, eles não tinham estado ali... Barbagris lembrou os motivos pelos quais viera em procura de Bunny Jingadangelow, em vez de retirar-se, ele voltou ao canto, onde outro trago o aguardava, e o médico embalava a


colo uma prostituta octogenária. A mulher tinha uma das mãos em torno do seu pescoço e com a outra acarinhava as peles de coelho do casaco.

— Escute, Doutor, vim procurá-lo não por minha causa, mas para que atenda um casal da minha comitiva — disse Barbagris, debruçando-se sobre a mesa. — Essa mulher, Becky, alega estar grávida, embora tenha mais de setenta anos. Quero que a examine e veja se é verdade.

— Sente-se, amigo, e estudemos o caso dessa esperançosa senhora — disse Jingadangelow. — Tome a sua bebida, pois suponho que irá pagar essa rodada. As ilusões da velhice são um grande prato para as conversas de fim de noite, hein, Joan? Sem dúvida, vocês ambos se lembram daquele pequenino poema... como é mesmo?... — diante do espelho contemplo minhas mirradas carnes... ah, sim:

“O tempo para meu desconsolo À noite meu frágil arcabouço Já castiga, já vem embalar Ao doce lamento do luar.”

— Comovente, hein? Suponho que a nossa dama alimente ainda algum sonho, pelo menos isso. Mas, claro, irei vê-la, é meu dever de médico. E, naturalmente, dir-lhe-ei que está esperando, se for isso o que ela desejar ouvir. — O médico enlaçou os gordos dedos e franziu o cenho.

— Existe alguma possibilidade de que ela esteja de fato grávida?

— Meu caro Timberlane, se me permite não usar seu pitoresco apelido: a esperança parece fluir eternamente do ventre e do seio das mulheres, mas surpreende-me que comungue dessa esperança.

— Suponho que sim. Mas o senhor mesmo encareceu o valor da esperança.

— Não se trata propriamente de valor, trata-se de necessidade. Mas é preciso esperar em causa própria, quando se espera pelos outros, o resultado inevitável é a decepção. Os nossos sonhos “só têm jurisdição sobre nós mesmos. Conhecendo-o como conheço, sei que só me procurou em seu interesse próprio. Ainda bem que é assim. Meu amigo, você ama a vida, ama esta vida com todas as suas desgraças, com todos os seus prazeres e desprazeres... você também deseja o meu tratamento de imortalidade, certo?

Descansando a latejante cabeça entre as mãos, Barbagris sorveu mais um trago e disse:

— Faz muitos anos, em Oxford (em Cowley para ser mais preciso), quando ouvi falar em tratamento, era apenas um boato, um tratamento que prolongaria a vida, talvez centenas de anos. Alguma coisa que estavam estudando no hospital local. Seria possível fazê-lo? Exijo sempre provas para acreditar nas coisas.

— Claro que sim, inegavelmente. E não esperaria menos de um homem como você — respondeu Jingadangelow com tal intensidade que a mulher quase se viu desalojada do seu colo. — A melhor prova científica é a empírica. Você receberá o tratamento integral. Estou plenamente convencido de que tem os meios para pagá-lo, e verá por si mesmo que não irá envelhecer um dia sequer.

Olhando sub-repticiamente de viés para o médico, Barbagris indagou:

— E terei de ir a Mockweagle?

— Ah, ah, sujeito esperto, hein, Ruth? Preparou lindamente o caminho para si. Eis o tipo de homem com quem prefiro lidar.

— Onde fica Mockweagle? — perguntou Barbagris.

— É o que se pode chamar de quartel-general das minhas pesquisas. Resido lá quando não estou viajando.

— Sei, sei. Está me escondendo alguma coisa, Doutor. São vinte e nove andares e parece mais castelo do que arranha-céu...

— Possivelmente os seus informantes tenham exagerado algo, Sr. Timberlane, mas a sua descrição geral é extraordinariamente exata, conforme Joan poderá confirmar. Mas primeiro, é preciso esclarecer alguns detalhes: deseja que a sua encantadora esposa receba também o tratamento?

— Claro que sim, velho tolo. E conheço poesia também, sabe. Para pertencer à DOHUC é preciso ser instruído. “Não me aconteça interpor empecilhos à união de duas almas”... Como é mesmo? Shakespeare, Doutor, Shakespeare. Sabe quem é? Um erudito de primeira água... ah, eis minha mulher! Marta!

Barbagris pôs-se de pé, entornando o copo. Marta correu para ele, a ansiedade estampada no rosto. Logo atrás veio Charley Samuels, trazendo nos braços a raposa Isaac.

— Algy, Algy, venha depressa, fomos roubados!

— Como assim, roubados? — Ele fitou-a sem expressão, não conseguindo interromper o raciocínio a que estava entregue.

— Enquanto o trazíamos para cá, uns ladrões invadiram os nossos barcos e carregaram tudo o que puderam.

— Os carneiros!

— Foram-se todos, e todos os nossos víveres.

Barbagris virou-se para Jingadangelow e fez um vago gesto de saudação.

— Logo nos vemos, Doutor. Tenho que ir... cambada de ladrões... fomos roubados.

— Sempre me é doloroso ver um erudito sofrer, Sr. Timberlane — disse Jingadangelow, inclinando a pesada cabeça para Marta e sem fazer qualquer outro movimento.

Ao voltar para fora com Marta e Charley, Barbagris perguntou com voz entrecortada.

— Por que deixaram os barcos sós?

— Você sabe por quê! Tivemos que sair quando soubemos que estava em dificuldades. Ouvimos dizer que você estava sendo espancado. Foi-se tudo, menos os barcos.

— Meu rifle!

— Por sorte Jeff Pitt o tinha consigo.

Charley colocou a raposa no chão. Caminhando no escuro, eles desceram a rua esburacada. Havia umas poucas luzes acesas. Barbagris percebeu ser já bastante tarde, a noção de tempo ele a perdera por completo. A única janela da Taverna Potsluck estava fechada. As fogueiras estavam reduzidas a simples conglomerados de cinzas. Uma ou duas palhoças estavam sendo fechadas pelos proprietários, quanto ao mais, era tudo silêncio. Lá no alto, uma fatia de lua projetava seus raios sobre a água. Respirando o ar puro, Barbagris sentiu sua pulsação normalizar-se.


— Esse Jingadangelow está por trás disto — disse Charley ferozmente. — Pelo que percebi, ele domina toda esta gente. É um charlatão. Não se deve meter com ele, Barbagris.

— Os charlatães têm as suas ambivalências — respondeu Barbagris, dando-se conta do absurdo de suas palavras tão logo as pronunciou. E apressou-se a emendar: — Onde estão Becky e Towin?

— No rio, com Jeff. No começo não conseguimos encontrá-los. Depois eles apareceram. Tinham estado a comemorar.

Deixando a rua, o grupo entrou a pisar em solo enlameado e pouco adiante deparou com o trio enrodilhado na margem do rio, perto do esquife, de lanternas em punho. Nenhum deles falava muito. A comemoração terminara. Isaac chapinhava na lama e Charley, apiedado, tomou-o nos braços.

— Seria melhor irmos embora daqui — disse Barbagris, depois que um exame cuidadoso veio demonstrar que os dois barcos eram tudo o que lhes restava. — Este lugar não é para nós e me envergonho da minha participação nos acontecimentos desta noite.

— Se me tivesse ouvido, não teria sequer abandonado o barco — disse Pitt. — Isto está infestado de ladrões. O que me aborrece mais é a perda dos carneiros.

— Você poderia ter ficado tomando conta dos barcos — assinalou Barbagris com contundência. Voltando-se para os demais, acrescentou: — Na minha opinião estaremos melhor no rio. A noite está ótima e me sinto com forças de remar. Pela manhã estaremos chegando a Oxford e lá nos abrigaremos. Será muito diferente de quando Marta e eu lá estivemos faz já muitos anos. Concordam todos em ir embora deste antro imediatamente?

Towin tossiu, passando a lanterna de uma para outra mão.

— Na verdade, eu e a patroa estávamos pensando em ficar por aqui. Fizemos dois amigos, Liz e Bob, e estávamos pensando em juntar nossas forças... se não fizer objeção.   Não somos muito por essa idéia de desce o rio. — E sorriu o seu triste sorriso lupino ao tempo em que remexia os pés.

— No estado em que estou preciso de repouso — disse Becky. Ela parecia mais desabusada que o marido, encarando-os sem receio. — Já me fartei desse barquinho cheio de furos. Estaremos melhor com esses nossos amigos.

— Estou certa de que não é verdade — disse Marta.

— Ora, nesse barco acabarei morrendo de frio, no estado em que me encontro. Tow concorda comigo.

— Não há outro remédio — observou Pitt.

Fez-se silêncio entre o grupo reunido ali no escuro. Entre eles havia muita coisa inexprimível, correhtes de simpatia e de ressentimento, afinidades e aversões: tudo muito vago mas nem por isso menos forte.

— Bem, se estão resolvidos, prosseguiremos sem vocês — disse Barbagris. — Cuidem do que é seu, essa é a minha única advertência.

— Não é com prazer que nos separamos de vocês, Barbagris — disse Towin. — E você e Charley podem ficar com o dinheiro que me devem.

— Depende tudo de você.

— É o que eu disse — afirmou Becky. — Temos idade suficiente para cuidar de nós mesmos.

Quando todos se davam as mãos em despedida, Charley começou a movimentar-se e a queixar-se.

— Esta raposa apanhou todas as pulgas do mundo. Isaac, você está me deixando infestado, seu malandro!

Soltando a raposa no chão, ele mandou-a para a água. O animal compreendeu o que lhe ordenavam. Caminhou até a água e nela entrou lentamente, primeiro com a cauda, depois com o resto do corpo e, por fim, com a cabeça. Pitt ficou segurando uma lanterna para que todos pudessem ver melhor.

— Que está fazendo esse bicho? Será que quer se afogar? — indagou Marta ansiosamente.

— Não, Marta, apenas os seres humanos se privam da vida — explicou Charley. — Os animais têm mais fé. Isaac sabe que as pulgas não gostam da água fria. É a sua maneira de livrar-se delas. Elas lhe sobem pelo corpo


lhe sobem até o focinho a fim de evitar se molharem. Veja só.

Apenas uma parte da cabeça da raposa se mantinha fora da água. Depois o animal mergulhou por completo. Um círculo de pequenas pulgas ficou a debater-se na superfície. Isaac apareceu um metro mais além, saltou para a margem, sacudiu-se e fez algumas corridas em círculo antes de voltar para junto do dono.

— Nunca vi nada mais bem feito — disse Towin a Becky, meneando a cabeça, enquanto os demais se dirigiam para os barcos. — Deve ser isso o que o mundo anda fazendo conosco...   sacudindo-nos para longe.

— Quanta tolice está você dizendo, Towin Thomas — retrucou Becky.

O casal acenou para os barcos que vagarosamente se puseram em marcha.

— Bem, lá vão eles — disse Charley, puxando com vigor os remos. — Ela tem uma língua viperina, mas lamento deixá-los nesse covil de ladrões.

A pequena embarcação de Jeff Pitt estava sendo rebocada para que ele não ficasse muito para trás.

— Quem são os ladrões? — perguntou ele. — Talvez tenham sido os homens de Jingadangelow que se apossaram das nossas coisas. Por outro lado, pode muito bem ter sido o velho Towin. Nunca pus fé nesse malandro.

— Quem quer que tenha sido, o Senhor se encarregará de nós — disse Charley. E, vergando as costas, enfiou mais fundo o remo nas águas lodosas.


 

Nos primeiros e tristonhos dias de Sparcot, quando a turba lá reunida procurava organizar-se em comunidade e o pestilento verão deu lugar a um diluviano outono, Charley Samuels levou algum tempo para compenetrar-se de que conhecia o homenzarrão de crânio calvo e longas barbas. Na época, cuidava-se mais de localizar inimigos que amigos.

Charley tinha chegado a Sparcot alguns dias depois dos Timberlanes, e num estado de espírito lastimável.

Seu pai tinha sido proprietário de uma pequena livraria numa cidade do litoral meridional. Ambrose Samuels era homem de humor instável e temperamento forte. Quando se sentia disposto, costumava ler a alta voz para a esposa, o menino Charley e suas duas irmãs, Ruth e Rachel. Lia-lhes milhares de livros obsoletos sobre teologia que juncavam o segundo andar da loja, quando não lhes impingia as obras não menos obsoletas e enfadonhas de velhos poetas que não vendiam mais que os livros teológicos.

Inevitavelmente, boa parte desse defunto repositório penetrou no subconsciente de Charley. Mais tarde, em todas as ocasiões da sua vida, ele seria sempre capaz de citar tais obras, sem saber quem as tinha escrito.

 

“Todos pensam que todos menos eles são mortais,

Quando algum trágico impacto do destino

Subido lhes inflige rude golpe.

Mas os corações feridos, tal como o ar fendido

Logo cicatrizam, não deixa vestígio a lança.

Tal como as asas não deixam sulcos no céu,

Nem a cortadora quilha nas ondas que rompe,

Assim morre nos humanos corações a idéia da morte.

Mesmo derramando uma terna lágrima por aqueles

Que amamos, na sepultura a deixamos.”

 

Pura mentira. Quando Charley tinha onze anos de idade um trágico impacto do destino instalou-lhe para sempre no coração a idéia de morte. Foi no seu undécimo ano que surgiu a doença das irradiações — conseqüência do ato proposital a que os homens convencionaram chamar de Acidente. Seu pai morreu de câncer, um ano mais tarde.

A livraria foi vendida. A Sra. Samuels levou os filhos para sua cidade natal, onde conseguiu colocação como secretária. Aos quinze anos, Charley começou a trabalhar. Morreu-lhe a mãe três anos depois.

Tentando fazer as vezes de pai para as irmãs, experimentou ele uma série de serviços diferentes. Aquilo tinha sido em fins da década de oitenta e princípios da de noventa. Em comparação com o que estava por vir foi (moral e economicamente) um período estável. Mas tornava-se cada vez mais difícil arranjar trabalho. Estando desempregado, Charley viu as irmãs conseguirem boas colocações.

O advento da guerra serviu para moldar-lhe em definitivo o caráter. Tinha então vinte e nove anos. Aquele amontoado de loucuras, nações se exterminando por causa de uns poucos remanescentes, fê-lo decidir que deveria haver algo mais elevado do que o homem, se é que tudo não passava de uma simples farsa. Apenas na religião, quis-lhe parecer, haveria o antídoto para o desespero. Charley fez-se batizar na Igreja Metodista (providência que teria despertado a ira paterna).

A fim de não ser chamado a tomar parte na guerra, Charley alistou-se no Infantop, um corpo semi-internacional de exército antes voltado para a salvação de vidas do que para seu extermínio. Prontamente viu-se apartado de Ruth e Rachel e mergulhado no seio de uma guerra total. Foi aí que conheceu Algy Timberlane.

Com a revolução e a retirada da Inglaterra, em 2005, Charley voltou a cuidar das irmãs. Com horror, descobriu que Ruth e Rachel estavam entregues à prostituição e fazendo bom dinheiro. Tudo era feito com discrição e à tarde elas continuavam trabalhando numa loja da vizinhança. Charley silenciou uma parte dos seus pensamentos, juntou-se às manas e passou a defendê-las sempre que possível.

Converteu-se no garboso leão-de-chácara do seu próspero estabelecimento. Sob a Coalizão e posteriormente, durante os Governos Unidos, sobrevieram tempos difíceis. O mundo mergulhava na degenerescência e no caos. Mas a ocupação das manas continuava sendo uma necessidade. A família permaneceu próspera até a cólera invadir a Inglaterra.

Charley retirou as irmãs da combalida cidade e levou-as para o campo. Rachel e Ruth não protestaram, nada mais as assustava. Um cliente falecendo nas suas próprias escadas precipitou-as no pequeno carro que Charley comprara com suas economias de guerra.

Fora da cidade o carro morreu. Encontraram uma meia de nylon enroscada na bomba de óleo. O trio pôs-se a caminhar, suas trouxas às costas, enveredando por uma estrada que, embora não o soubessem, levava para Sparcot. Muitos outros refugiados seguiram o mesmo caminho.

Foi um grotesco êxodo. Entre os legítimos viajantes havia bandidos que se atiravam sobre os companheiros, cortavam-lhes a garganta e se apossavam dos seus bens. Outro ladrão se juntou ao séquito. Atacava o sangue, explodia no rosto e se interessava tão-só por vidas. Abateu-se sobre Ruth na primeira noite e sobre Rachel na terceira, deixando-as sem vida entre colinas de húmus, nas quais Charley plantou um par de cruzes feitas com galhos ressequidos de sebes.

Ao chegar manquitolando ao duvidoso abrigo de Sparcot (ajudando uma mulher de nome Iris que ano e meio depois encontrou forças para desposar), Charley era homem voltado sobre si mesmo. Não nutria nenhum desejo de interessar-se novamente pelo mundo. Em seu coração magoado, a tristeza tinha feito quartel.

Tanto ele como Timberlane estavam tão mudados que, sem surpresa, o mútuo reconhecimento foi obra de algum tempo. Naquele primeiro ano em Sparcot (2029) fazia um quarto de século que não se viam (desde 2001), quando a guerra ainda assolava o mundo e ambos pertenciam ao Infantop. Depois tinham ido para o exterior, percorrer os vales desolados de Assam...

Da sua patrulha apenas dois tinham sobrevivido. Esses dois, por força de velho hábito, caminhavam em fila indiana. O homem à retaguarda, Cabo Samuels, empunhava uma metralhadora nuclear, levava diversos pacotes com provisões e um cantil de água. Deslocava-se sonambulamente, tropeçando a todo instante.

Diante dele balouçava a cabeça de uma criança, pendurada com os pés para cima, fitando nele um olho que não via. O braço esquerdo da criança roçava a coxa do homem corpulento que a transportava. Tratava-se de um menino da tribo Naga, de frágil constituição, cabeça raspada e, possivelmente, nove anos de idade. A criança estava sem sentidos, de modo que o movimento incessante de moscas em torno de seus olhos e da ferida em sua coxa não a incomodava.

O homem que a transportava era o Sargento Timberlane, um bronzeado atleta de vinte e seis anos. Timberlane carregava um revólver, diversos equipamentos afivelados em torno do corpo e se apoiava numa bengala em sua caminhada rumo ao fundo do vale.

Era época de seca em Assam. As árvores, que não passavam de três metros de altura, pareciam mortas, desprovidas de folhas. O rio no fundo do vale tinha secado, dando lugar a uma arenosa chaung sobre a qual os veículos trafegavam. A poeira erguida pela passagem dos veículos tinha assentado nas árvores em ambas as margens da chaung, tornando-as branquicentas. A chaung propriamente dita reverberava ao sol causticante. Onde as árvores não mais se apresentavam, Timberlane deteve-se, firmando mais a criança enferma às costas. Charley deu-lhe um encontrão.

— Que é que há, Algy? — perguntou-lhe, num assomo de cansada lucidez. Ao falar olhou para a cabeça do menino. Por estar o crânio rapado, os cabelos não passavam de simples penugem. Os olhos do garoto não tinham a menor expressão. De cabeça para baixo a criatura humana perde boa parte do seu significado.

— Temos visitas. — O tom de voz de Timberlane fez Charley colocar-se prontamente alerta.

Antes de subir à montanha eles tinham deixado o helicóptero sob um pequeno rochedo, oculto debaixo de uma rede de camuflagem. Agora uma ambulância blindada americana estava estacionada perto do rochedo. Havia lá dois vultos e mais um terceiro que examinava o helicóptero.

A cena, inundada de sol, foi rompida pelo súbito matraquear de uma metralhadora. Em ato reflexo, Timberlane e Charley atiraram-se de bruços. O menino naga gemeu quando Timberlane o fez rolar no chão e levou os binóculos aos olhos. Ele procurou focalizar a encosta à esquerda, de onde pareciam provir os tiros. Surgiram-lhe no campo de visão alguns vultos acocorados, os uniformes caquis contrastando com o branco empoeirado dos arbustos, as silhuetas ganhando maior nitidez à medida que Timberlane ajustava as lentes.

— Lá estão eles! — exclamou Timberlane. — Provavelmente os mesmos miseráveis que encontramos no outro lado. Prepare a bazuca, Charley, vamos dar cabo deles.

Ao lado, Charley já tratava de preparar a arma. Na chaung um dos três americanos tinha sido atingido pelos disparos da metralhadora. Ele esparramou-se na areia. Arrastando-se com dificuldade, conseguiu atingir a sombra da ambulância. Seus dois camaradas estavam escondidos nas moitas. De repente um deles correu na direção da ambulância. A metralhadora inimiga disparou nova rajada. Começou a voar pó em torno do vulto em disparada. O homem cambaleou, caiu de ponta-cabeça e sumiu no meio da folhagem.

— Lá vamos nós — disse Charley entre dentes. O pó que lhe recobria o rosto transformara-se quase só em lama em virtude do suor. Ele colocou a bazuca em posição. Rilhou os dentes e acionou o detonador. Uma bomba sibilante rumou para a encosta da colina.

— Mais um, depressa — murmurou Timberlane, ajoelhando-se. Charley manteve a arma em posição e tornou a apertar o gatilho. As bombas saíam gemendo como ratos em direção do alvo. Na encosta da colina alguns vultos amorenados correram a abrigar-se. Timberlane sacou do revólver e fez pontaria neles, mas a distância era demasiado grande.

Os dois companheiros quedaram-se a observar os efeitos de seus disparos. Havia gente gritando no outro lado. Parecia que só um ou dois dos inimigos lograra escapar, batendo em retirada pela colina.

— Será que podemos descer? — perguntou Charley.

— Creio que não há mais perigo.

A bazuca foi desmontada, a criança içada ao ombro de Timberlane e a modorrenta caminhada encosta abaixo reencetada. Quando Charley e Timberlane se aproximaram do sobrevivente da emboscada, este veio-lhes ao encontro. Era um tipo longilíneo, de seus trinta anos, com escuras e espessas sobrancelhas que se uniam na raiz do nariz e cabelos cortados rente. Ofereceu um maço de cigarros aos recém-chegados.

— Chegaram bem a tempo. Sinto-me grato pela maneira com que trataram o meu comitê de recepção.

— Foi um prazer — disse Timberlane, apertando a mão do homem e servindo-se de um cigarro. — Em primeiro lugar fizemos o reconhecimento do setor no outro lado da colina, em Mokachanpur, onde os nossos companheiros foram abatidos.

— É inglês, creio. Sou americano. Meu nome é Jack Pilbeam, Batalhão Especial do Quinto Exército. Passava por aqui quando vi seu veículo e parei para verificar se estava tudo em ordem.

As apresentações foram completadas e Timberlane depositou o menino desmaiado na sombra. Pilbea sacudiu a poeira do uniforme e saiu com Charley à procura dos seus companheiros.

Por um instante Timberlane agachou-se junto do garoto, colocando-lhe uma folha sobre a chaga da perna, limpando-lhe o pó e as lágrimas do semblante e espantando as moscas. A seguir, com um olhar para a magra e trigueira criança, procurou-lhe o pulso. O rosto do soldado contraiu-se à medida que ele parecia transpassar com o olhar a caixa torácica do menino, penetrar no seio da terra e no coração da vida. Não encontrava ali nada de verdadeiro, apenas uma egoística mentira, nascida do seu próprio coração: “Somente eu tenho amor às crianças!”

Em voz alta, ele disse de si para si:

— Eram três na encosta. As outras duas eram meninas, lindas meninas, irmãs. Belas crianças, selvagens como cabritos monteses. As meninas foram mortas quando começou a chover balas, foram despedaçadas diante dos meus olhos.

— Muito mais gente está morrendo do que sendo salva — disse Pilbeam, ajoelhado sobre um vulto abatido à sombra da ambulância. — Meus dois companheiros estão liquidados. O motorista eu o conheci ontem, e Bill acabara de chegar dos Estados Unidos, não éramos propriamente amigos. Mas nem por isso é menos doloroso. Esta maldita guerra... por que lutamos quando o mundo está cada vez mais necessitado de gente? Ajude-me a colocá-los na ambulância, sim?

— Faremos mais que isso — prometeu Timberlane. — Se vai voltar para Wokha, como suponho, poderemos nos escoltar mutuamente, caso surja mais alguns desses sujeitos encarapitados por aí.

— Combinado. Arranjaram companhia e eu também estou precisando disso. Estou tremendo como vara verde. À noite iremos beber um trago juntos. Está bem assim, sargento?

Enquanto os dois corpos, ainda quentes, eram colocados na ambulância, Pilbeam acendeu mais um cigarro e fixou Timberlane nos olhos.

— Há sempre um consolo — disse. — Esta é uma guerra que porá fim a todas as guerras. Não vai sobrar ninguém para lutar mais tarde.


Charley foi o primeiro a chegar para o encontro daquela noite. Ao penetrar no edifício, trocando o zumbido dos insetos pelo zumbido do sistema de refrigeração, deparou com Pilbeam debruçado sobre um copo, numa mesa do canto. O americano levantou-se para recebê-lo. Trajava calças cujo vinco era irrepreensível agora, tinha o rosto brilhante, e seu aspecto compacto denotava uma ferocidade que não se fazia presente no campo de luta.

— Arranjo-lhe uma bebida... Charley, não é? Já bebi um bocado.

— Não bebo. — Fazia muito que Charley aprendera a pronunciar aquela frase sem pedir desculpas. Ele emendou, porém, com um sorriso: — Mato gente, mas não bebo.

Algo — talvez o simples fato de Jack Pilbeam ser americano, e Charley encontrar mais facilidade em comunicar-se com americanos do que com compatriotas seus — o havia feito acrescentar aquela explicação que funcionava também como desculpa.

— Eu tinha onze anos quando a sua nação e a minha detonaram as bombas fatais. Aos dezenove, logo após morrer minha mãe (a título de compensação, creio) fiquei noivo de uma moça chamada Peggy Lynn. Ela estava mal de saúde e tinha perdido todo o cabelo, mas me apaixonei por ela... íamos casar. Claro que passamos por um exame médico e nos disseram que estávamos estéreis para o resto da vida, como todos os demais... A notícia acabou matando o nosso romance... é difícil explicar...

— Sei o que quer dizer.

— Talvez tenha sido bom, de qualquer forma eu tinha duas irmãs para cuidar. Mas desde então passei a não desejar mais nada...

— É religioso?

— Sim, embora seja uma espécie de autonegação.

Os olhos de Pilbeam eram límpidos e brilhantes, muito mais atraentes do que a sua apertada boca.

— Nesse caso irá atravessar ileso as próximas décadas. Vai ser preciso um bocado de autonegação. O que aconteceu a Peggy?

Charley olhou para as mãos.

— Perdemos contato um com o outro. Certo dia de primavera ela morreu de leucemia. Fiquei sabendo mais tarde. — Depois de um comprido gole, Pilbeam disse: — É a vida, como costumam dizer quando se trata de morte. — O tom da sua voz excluía qualquer conotação jocosa que aquela observação pudesse ter.

— Embora eu não passasse de uma criança, acho que o... Acidente me pôs louco — disse Charley baixando o olhar. — Milhares... milhões de pessoas endoideceram secretamente. Algumas, claro está, não tão secretamente. E jamais se recuperaram, embora já passem vinte anos. Quero dizer que embora a coisa tenha ocorrido faz vinte anos continua sempre presente. Por isso está acontecendo a atual guerra, porque as pessoas endoideceram... Jamais compreenderei: precisamos do maior número possível de vidas jovens e, no entanto, uma guerra total está em andamento... Rematada loucura!

Com expressão sombria, Pilbeam viu Charley sacar um cigarro e acendê-lo, era um desses cigarros isentos de tabaco e Charley tragou com tal intensidade que produziu um estalido.

— Não encaro a guerra dessa maneira — disse Pilbeam, pedindo mais Bourbon. — Encaro-a como assunto econômico. Talvez em virtude da minha criação. Meu pai (que já faleceu) era Diretor Executivo da Jaguar Records Inc. e aprendi a dizer taxa de consumação tão depressa como aprendi a dizer mamãe. A economia de todas as nações importantes está em processo de fluxo, e num processo irreversível. Existe uma moléstia fatal generalizada chamada morte, e, embora se esteja lutando contra ela, até aqui nada tem sido possível fazer. Uma a uma, as indústrias têm ido à glória, mesmo havendo a firme disposição de mantê-las em funcionamento. Logo não restará mais nada.

— Lamento — disse Charley. — Não estou entendendo bem o que quer dizer. Economia não é o meu forte. Sou apenas...

— Já lhe explico o que quero dizer. Credo! É bom que lhe diga que o meu velho morreu há apenas um mês. Não morreu propriamente... matou-se. Saltou de uma janela do qüínquagésimo segundo andar da Jaguar Records Inc. em Los Angeles. — Os olhos de Pilbeam tornaram-se mais brilhantes. Ele apertou as sobrancelhas e, com força, baixou o punho cerrado sobre o tampo da mesa. — Meu pai... era como que uma parte da Jaguar. Era ele quem a mantinha funcionando. De certa forma, creio, era o que se pode chamar de americano típico... vivia para a família e para o trabalho, tinha grande quantidade de relações comerciais... Ao diabo com tudo isso. O que estou tentando dizer... Credo, não tinha nem cinqüenta anos! Quarenta e nove era a idade dele.

“A Jaguar se arruinou. Pior que isso, tornou-se obsoleta. De repente, feneceu e morreu. Por quê? Porque seu mercado era a juventude... vendia Elvis, Donnie e Vince e outros cantores pop. Eram os jovens, os adolescentes que compravam os discos Jaguar. Súbito, acabaram-se os jovens. A companhia viu o que estava por vir. Era a descida ladeira abaixo. Ano após ano, as vendas caíam, os lucros diminuíam, os custos subiam... Que fazer? Que diabo se pode fazer senão agüentar o baque?”

“Há uma porção de industriais por aí na mesma situação. Um dos meus tios é diretor da Park Lane Confectionery. Talvez se mantenham durante mais alguns anos, mas a coisa se torna cada dia mais instável. Por quê? Porque eram os moços de menos de vinte que consumiam quase todos os seus doces. O mercado para eles está morto. Uma nação de tecnologia avançada é um entretecido de forças sutilmente equilibradas. Não é possível romper-se uma delas sem que todo o sistema entre em pane. Que se deve fazer nesses casos? Faz-se o que fez meu pai... agüenta-se enquanto for possível, depois embarca-se na primeira corrente descendente que passe pelo qüínquagésimo segundo andar.

Delicadamente, percebendo a ligeira embriaguez de Pilbeam, Charley atalhou:

— Você falou em firme disposição de...

— Ah, sim. Papai e seus colegas, bem, continuaram lutando enquanto havia possibilidades. Tentaram salvar o que era possível para os filhos. Mas nós... nós não temo filhos. Que acontecerá se essa praga da infertilidade não for nunca aliviada? Não teremos vontade para trabalhar, não tendo para quem...

— “Legar os frutos do nosso labor?” Já pensei nisso. Talvez todos já tenham pensado nisso. Mas os genes deverão logo recuperar-se... faz vinte anos que aconteceu o Acidente...

— Creio que sim. Dizem, nos Estados Unidos, que essa esterilidade estará sanada num prazo de cinco ou dez anos.

— Já diziam isso quando Peggy vivia... Ê uma frase feita muito ao gosto dos políticos britânicos... serve para acalmar o eleitorado...

— Os fabricantes americanos tratavam de fazer que os eleitores não parassem de comprar. Mas acontece que o sistema industrial faz tempo que foi à guerra... quero dizer, garra, perdão... um lapso freudiano. Bebi demais, Charley, perdoe-me. De maneira que é preciso uma guerra para fazer face à baixa de produção, para explicar certas deficiências, mascarar a inflação, endurecer os regimes... Que porcaria de mundo, Charley! Veja os camaradas que aqui estão: todos comprando a morte a crédito e plenamente conscientes do que estão fazendo!...

Charley correu o olhar pela sala policrômica, com seu bar e seus grupos de soldados sorridentes e encanecidos. A cena não lhe pareceu tão lúgubre como a pintara Pilbeam, não obstante, era quase certo que cada um daqueles homens trazia no coração a consciência de uma devastação tão impiedosa que já se adiantara e tragara no seu seio a geração seguinte. A ironia é que nenhuma ameaça nuclear pairava sobre as cabeças daqueles soldados estéreis. As bombas mais poderosas tinham-se tornado obsoletas com apenas meio século de existência, a biosfera estava demasiado poluída pelas radiações para que alguém se atrevesse a elevar ainda mais o seu nível. Sim, havia as armas nucleares estratégicas dos exércitos, e as nações neutras não se cansavam de protestar contra elas de tempos em tempos, mas era preciso que as guerras se travassem (e tinham que ser travadas com auxílio de alguma coisa), e, uma vez que as pequenas armas nucleares estavam e


franca produção, essas eram empregadas. Que eram algumas pobres espécies de animais em comparação com um avanço de cem quilômetros ou uma medalha a mais no peito de um general?

Charley interrompeu seus pensamentos, envergonhado do cinismo fácil para que resvalara. Ó Deus, ainda que eu morra, permiti-me viver!

Charley tinha perdido o fio do discurso de Pilbeam. Foi com alívio que viu Algy Timberlane entrar na cantina.

— Desculpem-me o atraso — disse Timberlane, aceitando de bom grado um Bourbon com gelo. — Dei um pulo até o hospital para ver o garoto que trouxemos de Mokachandpur. Está em estado de coma. O Cel. Hodson encheu-o de micetina e pela manhã ficaremos sabendo se escapa. Está muito ferido o pobrezinho... talvez tenham que lhe amputar a perna.

— Quanto ao mais, tudo bem? Quero dizer... não sofrerá mutação? — indagou Pilbeam.

— Fisicamente, ficará normal. O que tornará as coisas piores caso ele morra. E pensar que perdemos Frank, Alan e Froggie para salvá-lo. Pena que as duas meninas tenham morrido estraçalhadas.

— Provavelmente teriam ficado mutiladas se escapassem — disse Pilbeam. Ele ofereceu charutos aos dois ingleses, que recusaram, e depois acendeu o seu. Seus olhos pareciam mais vivos agora que Timberlane se juntara a eles. Pilbeam mantinha-se àquela altura ereto na sua cadeira e falava com mais controle. — Noventa e seis vírgula quatro por cento das crianças que recolhemos durante a Operação-Criança apresentam deformidades externas ou internas. Antes da sua chegada, Charley e eu discutíamos a velha tese do enlouquecimento do mundo. O melhor exemplo nos é dado pelos últimos vinte anos: o mundo ocidental passa os primeiros quinze anos matando com o amparo da lei todas as pequeninas monstruosidades nascidas das poucas mulheres que não se tinham tornado inteiramente estéreis. Depois, os nossos pensadores decidem que, afinal de contas, as monstruosidades talvez procriassem   (e bem), restabelecendo assim o equilíbri


na geração seguinte. De maneira que entramos na fase do seqüestro em escala internacional.

— Não, não, não pode dizer isso — exclamou Charley. — Concordo em que o assassinato oficializado das... digamos assim, monstruosidades...

— Digamos assim?! Sem braços nem pernas, sem cavidades oculares no crânio, com membros como os borrões da pintura de Salvador Dali!

— Ainda assim pertenciam à raça humana e tinham uma alma imortal. O seu extermínio legal foi pior que a loucura. Mas posteriormente caímos em nós mesmos e passamos a fundar clínicas gratuitas para as crianças dos povos mais atrasados, com o fito de dispensar às pobres criaturas todos os cuidados...

Pilbeam deu uma breve risada.

— Perdão, Charley, mas está me contando uma coisa na qual tive certa participação. Sem dúvida, você está motivado pela propaganda. Mas os assim chamados povos atrasados... foram aqueles que não cometeram os assassínios! Eles amavam os seus rebentos e lhes permitiam viver. De modo que acabamos constatando que precisávamos dos seus horríveis rebentos para garantir o nosso futuro. Já lhes disse que estamos diante de uma guerra econômica. As democracias (e os nossos amigos dos países socialistas) precisam de uma nova geração, venha de onde vier, para trabalhar nas suas linhas de montagem e consumir os seus produtos... Daí esta maldita guerra! É, amigos, é um mundo louco! Beba, sargento! Façamos um brinde... À futura geração de consumidores... qualquer que seja o número das suas cabeças!

Enquanto Timberlane e Pilbeam riam, Charley ergueu-se.

— Tenho que ir agora — disse ele. — Vou dar guarda amanhã às oito da manhã e preciso limpar o meu material. Boa noite, cavalheiros.

Os outros dois reabasteceram copiosamente os seus copos à saída de Charley e, instintivamente, aproximaram-se mais um do outro.

— Meio santarrão, não é? — perguntou Pilbeam.


— É um sujeito calado — respondeu Timberlane. — Ütil de se ter por perto quando surge algum problema, conforme tive ocasião de constatar ainda hoje. Uma coisa que caracteriza esses carolas é que, julgando-se do lado de Deus, automaticamente, consideram o inimigo como aliado do demônio, de maneira que não hesitam em largar brasa em cima dele.

Pilbeam esboçou um sorriso, em meio a uma nuvem de fumaça.

— Você é diferente.

— Sob alguns aspectos. Eu tento esquecer que amanhã haverá uma cerimônia fúnebre em honra dos nossos rapazes... Charley tenta não se esquecer disso.

— Haverá um enterro entre os nossos, para o meu companheiro e o motorista. Por causa disso minha partida será retardada.

— Está de partida?

— Sim, volto para os Estados Unidos. Amanhã parto para Kohima e lá apanho um jato para Washington. Meu trabalho aqui está terminado.

— Qual é o seu trabalho, Jack, ou seria melhor não perguntar?

— No momento, pertenço a um destacamento da Operação-Criança e estou recrutando pessoas para um novo projeto de âmbito mundial. — Ele parou de falar e fixou mais intensamente seu interlocutor. — Escute, Algy, gostaria de dar uma volta aí fora para poder respirar um pouco de ar puro?

— Claro.

A temperatura caíra abruptamente, lembrando-os de que se achavam cerca de três mil metros acima do nível do mar. Instintivamente, eles se puseram a caminhar com passo rápido. Pilbeam atirou fora o toco do charuto e esmagou-o com o pé. A lua parecia um testículo recolhido no ventre do céu. Uma ave noturna cantou, enfatizando com a sua manifestação a quietude do restante da criação.

— Pena que o Acidente tenha mergulhado o globo em radiações e tornado praticamente impossível as viagens espaciais — disse Pilbeam. — Nas estrelas talvez se encontrasse uma forma de escapar da loucura terrena. Me


pai acreditava muito nas viagens espaciais, lia tudo o que se publicava a respeito. Um otimista nato...   por essa razão o fracasso o magoou tanto. Ainda há pouco contei tudo ao seu amigo Charley. Papai se matou no mês passado. Ainda não me habituei com a idéia.

— Sempre é difícil conformar-se com a morte do pai. É como que um insulto a perda de um ente querido e cheio de vida.

— Parece que você entende do assunto.

— Um pouco. Tal como milhares de outras pessoas, meu pai também se suicidou. Eu era uma criança então. Não sei se isso torna á coisa melhor ou pior... você era muito apegado a seu pai?

— Não. Talvez por isso esteja tão revoltado. Eu poderia ter sido muito chegado a ele. Desperdicei a oportunidade. Enfim...

Do alto das colinas começava a soprar um forte vento sobre o acampamento. Os dois homens meteram as mãos nos bolsos.

Em silêncio, Pilbeam relembrou como seu pai sempre lhe incentivara o sentimento de idealismo.

— Não entre no mercado fonográfico, filho — tinha ele dito. — Eu me arranjarei sem você. Aliste-se na Operação-Criança, se quiser.

Pilbeam alistou-se na Operação-Criança aos dezesseis anos, começando por baixo na organização. A maior realização da Operação-Criança foi o estabelecimento de três Centros Infantis perto de Washington, Karachi e Singapura. Para lá eram levadas as crianças nascidas depois do Acidente, sempre que era possível obter o consentimento paterno, a fim de receberem adestramento e adaptarem-se aos seus aleijões e à conturbada sociedade em que se encontravam.

A experiência não constituiu um completo fracasso. A escassez de crianças era aguda... certa ocasião chegou a haver três psiquiatras para cada criança. Mas foi sempre uma tentativa de melhoria. Pilbeam, trabalhando em Karachi, sentia-se quase feliz. Depois as crianças tornaram-se objeto de contendas internacionais. Por fim estourou a guerra. Quando as hostilidades atingiram uma fase d


desespero, tanto o Centro de Singapura como o de Kara-chi foram bombardeados de um satélite orbital automático e destruídos. Pilbeam escapou com vida e voltou para Washington, com um ferimento sem importância na perna. Ao chegar inteirou-se do suicídio do pai.

Depois de um minuto de silêncio Pilbeam disse:

— Não o trouxe aqui fora para curtir nenhuma fossa, mas para lhe fazer uma proposta. Tenho um emprego para você. Um emprego de verdade, para toda a vida. Ajeitarei as coisas com o seu Comandante se você concordar...

— Mais devagar! — gritou Timberlane, espalmando as mãos. — Não quero emprego algum. Já tenho emprego... salvar todas as crianças que encontrar por aqui...

— Trata-se de um emprego de verdade, não de um divertimento para enfermeiras fardadas. O emprego de maior responsabilidade do mundo. Costumo ter boas intuições e estou certo de que você serve para a função. Posso providenciar para que viaje comigo amanhã para os Estados Unidos.

— Não, tenho uma pequena na Inglaterra, e, no fim da próxima semana, entrarei de licença. Não me ofereço para o tal lugar. De qualquer forma, muito obrigado.

Pilbeam deteve-se e encarou Timberlane.

— Levaremos a sua pequena para Washington, dinheiro não é problema, pode crer. Pelo menos, deixe-me dizer-lhe de que se trata. Sabe, do ponto de vista sociológico e econômico estamos vivendo uma época das mais interessantes, desde que se tenha isenção suficiente para percebê-lo. De maneira que foi constituído um grupo de estudo, com colaboração de governo e de entidades privadas, para avaliar e registrar os acontecimentos. Decerto não ouviu falar nesse grupo... é novo e tem-se mantido à sombra. Chama-se Documentação da História Universal Contemporânea e a sua sigla é DOHUC. Precisamos de elementos para trabalhar em todas as partes do mundo. Venha comigo conhecer Bill Dyson, encarregado do projeto no Sudoeste da Ásia e lhe daremos todas as informações.

— É loucura, não posso entrar nisso. Conseguiria a saída de Marta da Inglaterra a fim de encontrar-se comigo?

— Por que não? Sabe a Inglaterra como vai indo... voltando para a escuridão sob o novo regime. Vocês dois estariam melhor na América por algum tempo. Nós iremos treiná-los. É muita consideração, não acha? Não precisa decidir-se já...

— Dentro de quanto tempo tenho que responder?

Pilbeam consultou o relógio e cocou a cabeça com a unha.

— Digamos... o tempo de tomar quatro doses... está bem?

Dois homens apertaram-se as mãos na poeirenta pista de pouso de Kohima.

— Lamento ir embora desta maneira, Charley.

— O comandante deve lamentar ainda mais.

— Ele não tugiu nem mugiu. Que diabo de chantagem terá usado Pilbeam?

Seguiu-se um contrafeito momento de silêncio, ao cabo do qual Charley disse:

— Gostaria de seguir com você. Você tem sido muito amigo.

— Sua pátria precisa de você, Charley, não se iluda. — Mas Charley retrucou apenas:

— Se tivesse maior capacidade, talvez fosse chamado a acompanhá-lo.

Encabulado, Timberlane subiu a escada do avião e virou-se para fazer um aceno. E os dois se entreolharam pela última vez antes que Timberlane desaparecesse no interior da aeronave.

O jato orbital decolou na pálida noite, tomando uma rota transpolar rumo ao outro lado do mundo. O lábio ocidental do mundo estava mergulhado em sol, enquanto lá embaixo era uma confusa mescla de escuridão e luz.

  1. Jack Pilbeam, Algy Timberlane e Bill Dyson estavam sentados um ao lado do outro. A princípio pouco falaram. Dyson era corpulento, tão maciço de aspecto quanto Pilbeam era intelectualizado, com o crânio calvo e o sorriso simpático. O que tinha de descontraído tinha Pilbeam de tenso. Embora tivesse apenas dez anos mais do que Timberlane, dava a impressão de ser muito mais velho.


— A nossa função na DOHUC, Sr. Timberlane, é sermos pessimistas profissionais — disse ele. — Com relação ao futuro, tudo o que podemos nos permitir é ser teimosos e céticos. É preciso ter presente o fato de que, os genes vitais tendo sido extirpados do aparelho reprodutor humano, o restante desse aparelho não será capaz de reconstruí-los. E, nesse caso, os jovens como você e Pilbeam representam a derradeira geração do gênero humano. Por isso precisamos de você. Você irá registrar os últimos extertores do homem.

— Ao que me parece, precisam é de jornalistas — observou Timberlane.

— Não senhor, precisamos de homens estáveis e íntegros. Não se trata de dar um furo, trata-se de um sistema de vida.

— Sistema de morte, Bill — corrigiu Pilbeam.

— Um pouco de cada coisa. Como diz a Bíblia, em plena vida estamos morrendo.

— Não vejo o objetivo do projeto, já que a raça humana vai se tornar extinta — disse Timberlane. — Quem serão os beneficiários?

— Boa pergunta. Espero que a minha resposta seja igualmente boa. Os beneficiários serão duas espécies de pessoas. Ambos os grupos, puramente hipotéticos. Primeiro um pequeno agrupamento, se pudermos imaginar, digamos a América dentro de trinta ou quarenta anos, quando todo o país estiver mergulhado no caos, suponha que se estabeleça um pequeno núcleo e que se verifique ser possível gerar crianças. Tais crianças serão praticamente selvagens... crianças animalizadas, apartadas da civilização a que de direito pertencem. Os arquivos da DOHUC serão para elas um elo entre o passado e o futuro, e lhes darão oportunidade de raciocinar com correção e construir uma comunidade socialmente viável.

— E o segundo grupo?

— Ao que parece, o senhor não é muito especulador, Sr. Timberlane. Acaso já lhe terá ocorrido que não estamos sós no universo? Não me refiro apenas ao Criador, é difícil imaginar que tenha feito apenas Adão. Refiro-me a outras raças que habitam outros planetas, de outras galáxias. Talvez um dia visitem a Terra, tal como nós visitamos a Lua e Marte. Procurarão uma explicação para a nossa civilização perdida, assim como nós especulamos sobre a perdida civilização marciana, da qual a expedição Leatherby encontrou vestígios. A DOHUC deixará uma explicação para eles. Se a explicação encerrar algum moral que lhes convenha, tanto melhor.

— Existe um terceiro grupo hipotético — disse Pilbeam, inclinando o corpo. — É esse que me dá calafrios. Talvez eu tenha lido demais sobre ficção científica, e, ainda por cima, antes da hora. Mas se o homem está prestes a ser apeado do seu ninho ecológico, alguma criatura próxima irá decerto tomar-lhe o lugar no espaço de uns cem anos... logo que a atmosfera terrestre esteja em condições.

Pilbeam riu. Com tranqüila hilaridade, Dyson disse:

— Talvez, Jack. São raras as estatísticas acerca dos efeitos do Acidente sobre os principais primatas. Quem sabe os ursos e os gorilas estejam já experimentando uma progressão mutacional favorável.

Timberlane mantinha-se calado. Ele não sabia como participar de uma conversação daquele jaez. Tudo para ele era ainda inteiramente irreal. Ao despedir-se de Charley Samuels, o olhar de assombro no semblante do amigo abalara-o quase tanto como a pronta disposição de colaborar com a Operação-Criança demonstrada pelo Comandante. Timberlane espiou pela janela. Bem abaixo, os cúmulus tinham transformado a terra num leito revolto. Ele estava no reino das nuvens.

Lá longe, naquele mundo tenebroso, uma duvidosa dinastia de um milhão de anos chegava. ao fim, com a auto-imolação da casa reinante. Difícil prever se haveria algum prazer em registrar aquela derradeira agonia.

Em Boiling Field os aguardavam um sol brando de outono e uma escolta militar. Meia hora (para grande irritação de Pilbeam) demorou o exame de saúde por que passaram no Edifício de Inspeção. Liberados afinal, foram eles num caminhão elétrico até uma jardineira particular que os aguardava no lado de fora. Na parede lateral deste último veículo lia-se DOHUC.

— Ainda bem — exclamou Timberlane. — Pela primeira vez quer-me parecer que não estou sendo vítima de um bem elaborado embuste.

— Pensava que acabaria aterrissando em Pequim ou coisa parecida? — perguntou Dyson, sorrindo o seu cômodo sorriso.

— E trate de não embarcar nunca num ônibus com o rótulo IOHC ou DAUI — advertiu o escoltante militar, ajudando Timberlane com a sua bagagem. — São as siglas de Integração Oriental e Habitação Cultural ou coisa que o valha, e DAUI vem a ser uma flamante organização que constitui o Departamento de Assistência Unificada à Infância. São entidades superativas, embora não tenham nenhuma criança para cuidar. Washington é uma floresta de siglas e organizações (e, nos dias que correm, desorganizações). É como viver enterrado até o pescoço em sopa de letria. Entrem, camaradas, e logo após estaremos metidos em algum congestionamento de tráfego.

Mas, para desaponto de Timberlane, eles se conservaram na margem oriental do pardacento rio que entrevira ao aterrissar, e foram ter a uma zona que Pilbeam informou chamar-se Anacostia. Detiveram-se numa bem cuidada rua com construções novas e brancas, local esse que vinha a ser o seu destino final. Havia gente em penca, executando trabalhos de decoração e carpintaria.

— Novas instalações — esclareceu Pilbeam. — Até coisa de um mês isto era um instituto para delinqüentes juvenis alienados. Eis aí um problema que o chamado Acidente solucionou por completo. Não há mais delinqüentes! Isto será para nós um excelente quartel-general, quando vir a piscina, você chegará à conclusão de que delinqüência juvenil neste país era quase uma profissão.

Pilbeam abriu uma porta dando para uma espaçosa sala.

— O banheiro fica logo ali. Você irá partilhar o chuveiro com seu vizinho, que por sinal sou eu. No fim do corredor é o bar, e, juro que se não estiver já tudo em ordem e com uma bela garota para nos servir, vai haver o diabo. Encontramo-nos daqui a dez minutos para um Martini, certo?

O curso da DOHUC tinha sido planejado para seis semanas. Embora fosse altamente organizado, o sistema continuava caótico, em virtude dos tempos confusos que se estavam atravessando.

Internamente, todas as grandes cidades enfrentavam problemas trabalhistas. O alistamento compulsório dos grevistas nas forças armadas só tinha servido para criar problemas entre aquelas corporações. A guerra era impopular, e não porque faltasse entusiasmo à juventude.

Externamente, as cidades estavam sob bombardeio inimigo. Os denominados raides “Fat Choy” eram a especialidade do inimigo, mísseis não interceptados que provinham de órbitas espaciais desintegrando-se no solo e espalhando “valises” de explosivos. Era a primeira vez que a população americana passava pela experiência de ser atacada em seu próprio território. Enquanto numerosos moradores da cidade transferiram-se para cidades menores ou para a zona rural (para logo após retornarem, preferindo enfrentar os bombardeios a permanecer numa ambiência que não lhes era simpática), numerosas pessoas do campo acorreram às cidades em busca de salários mais elevados. A Indústria queixou-se em altos brados, no entanto foi a Agricultura quem mais sofreu e o Congresso tratava de votar leis que possibilitassem devolver ao campo a sua gente.

O único aspecto auspicioso da guerra era que a economia do inimigo enfrentava condição de insegurança muito maior, o número dos ataques “Fat Choy” diminuíra a olhos vistos nos últimos seis meses. Em conseqüência, acelerara-se o ritmo da trepidante vida noturna da capital.

Timberlane teve oportunidade de conhecer boa parte dessa vida. Os funcionários da DOHUC tinham excelentes contatos. No espaço de vinte e quatro horas forneceram-lhe todos os documentos necessários à sua subsistência em meio à azáfama local: passaporte carimbado, visto de permanência, cartão de identificação da polícia, autorização para comprar roupas, salvo-conduto para todo o Distrito de Colúmbia, e cartões para a aquisição de vitaminas, carne, verduras, pão, peixe e doces. Em todos os casos, exceção feita ao salvo-conduto, as restrições pareciam bastante liberais, menos para os habitantes locais.

Timberlane era homem que raro se entregava à autocrítica. De modo que jamais se perguntava até que ponto sua decisão de aderir à DOHUC tinha sido influenciada pela promessa de reuni-lo com a namorada. Quanto àquilo, não lhe tinha sido preciso pressionar Dyson.

Em quatro dias Marta Broughton foi.retirada da pequena e sitiada ilha inglesa, kvadá para o continente europeu e dali transferida para Washington.

Marta Broughton tinha vinte e seis anos de idade. Tantos quanto Timberlane. Não só por ser uma das mulheres mais jovens do mundo, mas também em razão do seu garbo natural, ela atraía as atenções gerais onde quer que estivesse. Na ocasião, exibia ela os longos cabelos louros caídos até os ombros. Era preciso conhecê-la bem para perceber que tinha as sobrancelhas pintadas, Marta não tinha sobrancelhas próprias.

Por ocasião do acontecimento, que os círculos de Washington eufemisticamente costumavam designar como o Grande Acidente, Marta tinha seis anos. Ela adoecera com o mal das radiações, contrariamente a numerosos coetâneos seus, sobrevivera. Q mesmo, porém, não lhe acontecera aos cabelos, e a calvície que a- acompanhara através de todos os anos escolares, sujeitando-a a chalaças contra as quais tinha que preparar-se previamente, aguçara-lhe o espírito. Aos vinte e um anos já uma penugem lhe recobria o crânio, agora sua beleza não era coisa de desprezar em nenhuma idade. Timberlane era dos poucos estranhos à família que lhe conhecia as cicatrizes íntimas.

Pilbeam e Timberlane acompanharam-na a um hotel para mulheres, a alguns quarteirões de distância da sede da DOHUC.

— Você já está influenciando Algy — disse Marta a Pilbeam. — Ele está perdendo o seu forte sotaque inglês. Ainda há pouco o notei, no táxi. Que mais irá acontecer?


— Mas permanece a minha velha inibição de beijar em público — atalhou Timberlane.

— Por Deus, se chama a mim de público, vou dar o fora — disse Pilbeam, bem-humorado. — Já entendi a indireta. Vou tomar um trago. Estarei no bar, caso precisem de mim.

— Não vamos demorar, Jack.

— Não vamos demorar muito — corrigiu Marta.

Fechando-se a porta, eles se enlaçaram e colaram os lábios, sentindo o calor um do outro através do contato bucal e dos seus corpos. Durante algum tempo permaneceram beijando-se e conversando. Por fim, ele, na outra ponta do quarto, o queixo entre as mãos, fitou-a em atitude judiciosa e admirou-lhe as pernas.

— Linda a curva das suas pernas! — exclamou.

— Cumprimento encantador — respondeu Marta. — Algy, isto é maravilhoso! Que coisa maravilhosa nos aconteceu! Não é formidável? Papai ficou furioso só porque admiti a idéia de vir para cá... pregou-me um longo sermão sobre a volubilidade da juventude...

— Mas, sem dúvida, tem grande admiração por você por causa da sua coragem de vir! E, se ele pensa que aqui será assediada pelos homens, está muito certo.

Ela abriu a valise e colocou os frascos e escovas ali contidas sobre o toucador, sem jamais desviar dele o olhar. Ao sentar-se para retocar a pintura, disse:

— Qualquer sorte é melhor que a morte! O que anda acontecendo aqui? O que vem a ser DOHUC, e por que se alistou nessa coisa, e que posso fazer para ajudar?

— Receberei aqui um treinamento de seis semanas. Cursos de todos os tipos... puxa, essa gente sabe mesmo o que faz! História contemporânea, economia, geopolítica, um troço novo a que chamam de existenciática, psicologia fundamental... oh, e muitas coisas mais, além de matérias práticas como manutenção de motores. E duas vezes por semana vamos a Rock Creek Park, receber lições de defesa pessoal de um especialista em judô. É duro mas divertido. Em tudo aqui existe um sentimento de dedicação que confere significado a todas as coisas. Ademais estou fora da guerra, o que também imprime certo sentido à vida.

— Você está muito bem, querido. Vai usar essa defesa pessoal contra mim?

— Talvez alguma outra forma de luta, essa não. Não. Creio que você está aqui por uma razão muito boa. Mas perguntaremos a Jack Pilbeam. Vamos vê-lo... é ótimo sujeito, você vai gostar dele.

— Já gosto.

Pilbeam encontrava-se num canto do bar do hotel, ao lado de uma atenta ruiva. Com relutância, afastou-se dela e encaminhou-se para eles, saudando-os.

— Só diversão e nenhum trabalho — gracejou ele — por isso sou um chato. Onde levamos agora a senhora, e será que dá para levar junto uma ruiva bem intencionada?

— Tendo reparado as devastações da viagem, estou em suas mãos — disse Marta.

— Não fala literalmente — acrescentou Timberlane.

Pilbeam fez uma reverência.

— Tenho autoridade e disposição para levá-la a qualquer lugar em Washington, para beber, comer ou o que for.

— Previno-a, querida, esta gente brinca tanto quanto trabalha. A DOHUC fará tudo por nós antes de nos atirar no fim do mundo.

— Pelo que vejo, está precisando de um trago, seu ranzinza — disse Pilbeam, esforçando-se por sorrir. — Apresento-lhes primeiro a ruiva, depois vamos a um shotv. Podemos ir ao Espetáculo de Dusty Dyke, é o grande cômico do momento.

A ruiva juntou-se ao grupo sem muita relutância, e eles puseram-se a caminho. A escuridão que tanto afetava outras cidades em tempo de guerra não acontecia em Washington. O inimigo mantinha facilmente a capital na mira dos seus mísseis, de modo que seria uma precaução inútil escurecer o ambiente. As ruas fulguravam, num banho de luz neon anunciando as diversas atrações noturnas. Os clarões dos luminosos punham reflexos coloridos nos rostos doentios dos homens e mulheres que perambu-lavam pelos cafés     cabarés. Comida e bebida no câmbi


negro eram artigos dos mais corriqueiros. A única coisa que parecia estar em falta eram lugares para estacionar.

Aquelas noites febris eram parte integrante do viver do pessoal da DOHUC. Apenas na terceira noite foi que Marta, estando todos no espetáculo de Dusty Dyke (o cômico que da primeira vez não tinha sido possível ir ver), achou jeito de perguntar a Pilbeam:

— Jack, você está nos proporcionando coisas maravilhosas. Gostaria de poder retribuir de alguma forma. Haverá algo que eu possa fazer? Na verdade, não sei por que me convidaram para vir.

Sem parar de acariciar o pulso da beldade de olhos verde-escuros, que era sua companheira aquela noite, Pilbeam disse:

— Você foi convidada a fim de fazer companhia a um certo Algy Timberlane... Não que ele mereça tanto. E compareceu a diversas conferências, isso não basta? Acalme-se, divirta-se. Tome mais alguma coisa. É patriotismo consumir em excesso...

— Estou me divertindo. Apenas quero saber se há alguma coisa que eu possa fazer.

Pilbeam piscou para a sua bem-dotada amiga.

— É melhor fazer essa pergunta a Algy, querida.

— Sou tremendamente persistente, Jack. Quero uma resposta.

— Pergunte a Bill Dyson... o assunto é com ele. Eu não passo do playboy da DOHUC... Chamam-me O Quente. E talvez na próxima quarta-feira esteja partindo de viagem outra vez.

— Mas, meu bem, você disse que... — protestou a moça de olhos verdes. Pilbeam colocou prudentemente um dedo sobre os lábios da mulher.

— Psiu, querida... primeiro o Tio Sam, depois o Tio Jack. Mas por hoje, pode crer, o Tio Jack vem primeiro... em sentido metafórico, entenda...

As luzes escureceram, ouviu-se um rufar de tambores e um soluço aumentado por um amplificador. Quando se fez silêncio, Dusty Dyke surgiu cavalgando uma enorme nota de um dólar. Àpeou-se, e o seu aspecto era o de um homenzinho quase ameaçador, envergando um traje mal passado. Sua voz era bastante rouca.


— Como vêem acabei com o meu costume de não apelar. E esta não foi a primeira vez que a economia deste país me botou para correr. Boa noite, senhoras e senhores. Falo com sinceridade, porque pode muito bem ser a última para vocês. Em Nova Iorque, de onde venho (e os impostos andam tão altos que é preciso um avião a jato para passar por cima), gostam muito de brincar de Fim de Mundo. Quando se chocam duas morais o resultado é um fracasso, chocam-se dois fracassos, e o resultado é uma gargalhada. Quando morreu o Senador Mulgravy foi uma gargalhada. — Àquela altura houve uma explosão de aplausos. — Ah, sim, vocês já ouviram falar em senadores? Alguns amigos me disseram... amigos são esses caras que nos aturam durante um drinque e uma tarde... que Washington é politicamente deseducada. Não se expressaram exatamente assim, mas disseram que ninguém mais se dá ao trabalho de fotografar os bustos em bronze na Casa Branca. Respondi que o que importa não são os homens de estado mas o estado dos homens. Pelo menos não estão mais pobres do que qualquer acionista de indústrias de anticoncepcionais.

— Não percebo o que ele diz, ou melhor, não entendo — sussurrou Marta.

— Também não estou achando muita graça — disse Timberlane em voz baixa.

Com o braço em torno da namorada, Pilbeam disse:

— Não é para ser engraçado. É para ser fossento, como dizem. — Não obstante, ele sorria largamente, tal como numerosos outros fregueses. Dando-se conta disso, Dusty Dike colocou um dedo em riste.

— Sei que todos vocês estão nus por debaixo das roupas, mas ninguém vai me deixar encabulado. Vou à igreja aos domingos e ouço sempre os sermões. Somos uma nação má e promíscua, e me dá tanto prazer a mim como ao pároco afirmar isso. Não faço objeção à moralidade, a não ser que está fora de moda. A vida piora a cada dia que passa. Na Corte Suprema da Califórnia deixaram de condenar à morte os criminosos... agora os condenam à vida. Como já se disse, não há mais inocência, só crimes não esclarecidos. No Estado de Illinois aconteceram tantos crimes sexuais no mês passado que bastam para que percebam como é precária a posição de vocês todos. As perspectivas para o futuro da raça são negras e não se trata de um pigmento da minha imaginação. Outro dia, dois criminosos sexuais conversavam em Chicago. Dizia Butch: — Escute, Sammy, o que você prefere: matar uma mulher ou pensar que está matando uma mulher? — Olhe, não sei... Butch, o que é que você prefere? — Pensar que estou matando uma mulher, sem a menor dúvida. — Como assim? — É que desse jeito a gente arranja sempre uma mulher mais romântica.

Durante alguns minutos mais o homenzinho de rosto infantil prosseguiu com suas piadas pré-fabricadas. Depois as luzes foram cortadas, o homenzinho desapareceu e a casa prorrompeu em aplausos.

— Mais bebidas — disse Pilbeam.

— Mas que coisa horrível — disse Marta. — Fossento!

— Ah, é preciso ouvi-lo meia dúzia de vezes para começar a gostar dele... Esse é o segredo do seu sucesso — explicou Pilbeam. — Ele é a voz dos tempos.

— E você gostou? — perguntou Marta à moça de olhos verdes.

— Bem, acho que sim. Quero dizer, bem, ele me fez sentir à vontade.

Duas vezes por semana eles iam a uma pequena dependência do Pentágono onde um loiro major lhes ensinava a programar e operar um computador POLYAC. Esses computadores de bolso seriam usados como parte do equipamento dos caminhões da DOHUC.

Timberlane estava de saída para uma dessas aulas sobre o funcionamento dos POLYAC, quando chegou a correspondência, trazendo-lhe uma carta da mãe. Patrícia Timberlane escrevia-lhe esporadicamente. A presente carta, como todas as demais, estava cheia de dolorosos queixumes domésticos, e Timberlane por ela correu os olhos sem muita paciência enquanto descia de táxi o Potomac. Próximo do final, deparou alguma coisa mais interessante. “Que bom Marta estar aí em Washington com você, creio que irá casar com ela... o que é muito romântico, pois é raro ver alguém casar com a namorada de infância. Mas não se precipite. Quero dizer, você sabe a tolice que fiz casando com o seu padrasto. Keith tem suas qualidades, mas é terrivelmente cético, por vezes chego a desejar que morra. Não entrarei em detalhes.”

“Ele culpa os tempos que vivemos, mas essa é uma saída das mais cômodas. Diz que teremos cá uma revolução. Nem quero pensar nisso. Será que já não sofremos o bastante com o Acidente e com esta maldita guerra? Nunca houve revolução neste país. Parece que estamos vivendo na cratera de um vulcão.”

Frase expressiva, pensou Timberlane. Em Washington o vulcão fumegava dia e noite e tudo acabaria em cinzas, a confirmarem-se as sombrias previsões da DOHUC. A tensão revelava-se não só nos constantes transtornos econômicos, nas intermináveis filas da sopa que se formavam no centro da cidade, e nas malucas vendas de detritos dos impérios financeiros transacionadas no mercado, mas também nas ondas de crimes e assassínios que a própria lei era impotente para conter.

Na manhã seguinte à da chegada da carta de Patrícia Timberlane, Marta surgiu logo cedo no quarto de Timberlane. Havia roupas espalhadas sobre o tapete... na véspera eles tinham comparecido a uma animada festa oferecida por um camarada de Bill Dyson.

De calças de pijama, Timberlane barbeava-se na semi-obscuridade. Marta encaminhou-se até a janela, puxou a cortina e dirigiu-se a ele. Contou-lhe que lhe haviam mandado muitas flores para o hotel.

Timberlane franziu o cenho e perguntou:

— E também ontem haviam mandado flores?

— Isso mesmo: caixas e mais caixas de orquídeas, iguaizinhas às de hoje. Devem ter custado milhares de dólares.

Timberlane desligou o aparelho de barbear e olhou para ela. Tinha os olhos embaçados e o rosto pálido.

— Estranho, hein? Não fui eu que mandei.

— Sei disso, Algy. Não estariam ao seu alcance. Andei pesquisando o preço das flores nas floriculturas... são caríssimas e ainda por cima há uma porção de impostos que incidem sobre elas: imposto estadual, imposto de circulação, imposto de vendas e consignações, e ainda aquilo que os gerentes de hotel chamam de I.D. (imposto de desincentivo). Por isso botei fora as flores que recebi ontem... sabia que não eram suas... por isso as queimei e resolvi esquecer o assunto.

— Queimou-as? Como? A maior fogueira que eu vi desde que cheguei foi uma ponta de charuto acesa.

— Não seja tolo, querido. Atirei as flores na rampa do lixo, e tudo quanto vai parar ali é queimado no porão do hotel. E esta manhã veio mais um carregamento, sem nenhum cartão acompanhando.

— Talvez o mesmo carregamento, com o amor do funcionário do porão.

— Por Deus, Algy, não me venha com o tal humor fossento!

Os dois riram. Mas na manhã seguinte novo carregamento de flores destinado à Srta. Marta Broughton chegou ao hotel. Timberlane, Pilbeam e a camareira foram espiar.

— Orquídeas, rosas, violetas, amores-perfeitos, sejam de quem for, o sujeito pode dar-se ao luxo de ser sentimental — comentou Pilbeam. — Algy, meu velho, esteja certo de que não fui eu que mandei estas flores para a sua namorada. Se existe uma coisa que não dá para encaixar nas notas de despesa da DOHUC, são orquídeas.

— Sinceramente, estou preocupada, Srta. Broughton — disse a camareira. — É preciso que se cuide, principalmente sendo estrangeira. Lembre-se de que já não existem moças de menos de vinte anos. Antigamente os homens idosos costumavam gostar de jovens dessa idade. Agora as meninas entre os vinte e os trinta que se cuidem. Esses velhotes ricos sempre gostaram de capim novo. E agora que o capim está acabando... estão loucos para aproveitar o restinho... está me entendendo?


— Nem Dusty Dyke seria capaz de expressar melhor a coisa. Obrigada pela advertência, minha senhora. Vou me cuidar, esteja certa.

— Enquanto isto vou telefonar para uma floricultura — disse Pilbeam. — Não há razão para não fazer alguns milhares de dólares às custas desse maluco. Sempre é bom ter algum dinheiro extra.

Pilbeam deveria deixar Washington no dia seguinte. Através de Dyson chegara-lhe a ordem para apresentar-se num outro teatro de operações... Sarawak. Conforme ele próprio esclareceu, o repouso lhe faria bem. À tarde, achava-se ele na cidade para ser vacinado, quando soou o alarme antiaéreo. Pilbeam telefonou a Timberlane, que estava a caminho de uma conferência sobre propaganda e ilusões de massa.

— Talvez eu me atrase por causa do ataque, Algy. É melhor você e Marta irem na frente e tratarem de encomendar as bebidas. Encontro-me com vocês no Tesouro assim que puder. Podemos também comer lá, mas o Babe Lincoln, no quarteirão vizinho, serve menos coisas sintéticas.

— O principal é estarmos atentos às calorias — disse Timberlane, dando um tapinha na barriga.

— Vamos ver como está a sua sensualidade esta noite... Arrumei uma tremenda dona boa, Algy. Chama-se Corianda e tem uma plástica de fechar o comércio...

— Estou morrendo de curiosidade. É casada ou solteira?

— Com a energia e talento que possui, pode ser ambas as coisas.

Eles piscaram um para o outro através do visor e desligaram.

Timberlane e Marta embarcaram num táxi que passava vazio pela rua e dirigiram-se, já noite fechada, para o centro. O ataque inimigo tinha consistido em dois mísseis, um dos quais explodira na zona quase abandonada do matadouro, e o outro, produzindo danos maiores, atingira o populoso subúrbio de Cleveland Park. Nos passeios, os uniformes da polícia pareciam ser em maior número que os do exército, o Choy tinha servido para segurar em suas casas numerosas pessoas e, em conseqüência, as ruas apresentavam-se mais desimpedidas que de hábito.

Chegando ao Tesouro, Timberlane apeou e inspecionou a fachada do prédio. A parede estava cheia de expressões sinônimas em baixo-relevo — Privilegiados, Eleitos, Nata da Nata, Elite, Top-Set, Gente Escolhida, Bons dos Bons... Sorridente, ele veio pagar ao motorista.

— Ei, você aí! — gritou ele.

O táxi, com Marta no interior, arrancou em meio ao tráfego, passou assobiando por um carro particular e disparou rua abaixo. Timberlane correu para o meio da rua. Atrás dele, um ruído de freios e pneus. Uma enorme limusine parou a poucos centímetros das suas pernas e um rosto rubicundo despontou na janela, xingando-o a valer. Atrás do veículo ouviu-se um ruído e o rosto avermelhado voltou-se para xingar com redobrada ferocidade. Um guarda apareceu correndo, e Timberlane agarrou-o pelo braço.

— Raptaram minha garota. Um sujeito se mandou com ela.

— Acontece sempre. É preciso ter cuidado.

— Mas sumiram com ela!

— Vá reclamar com o sargento, amigo. Pensa que não tenho mais que fazer? Tenho que botar essa lata pra rodar de novo. — E apontou para uma rádio-patrulha que se aproximava. Mordendo o lábio, Timberlane encaminhou-se para a viatura.

Às onze horas da noite Dyson disse:

— Vamos, Algy, não adianta nada ficar aqui. A polícia nos telefonará se surgir alguma novidade. Precisamos comer alguma coisa, sinto o estômago nas costas.

— Deve ter sido aquele diabo quem lhe mandou as flores — disse Timberlane, e não pela primeira vez. — À floricultura poderia fornecer alguma pista à polícia.

— Se ao menos você lembrasse o número do táxi.

— Lembro-me apenas que era amarelo e tinha a inscrição Antilope Taxis. Homem, acho que você está com a razão. Vamos comer alguma coisa.


Quando eles se preparavam para deixar a delegacia, o superintendente disse-lhes. com cordialidade:

— Não se preocupem. Pela manhã saberemos o paradeiro da moça.

— Por que estaria tão confiante? — indagou Timberlane, quando ele e Dyson chegaram ao carro deste último. Embora tanto Dyson como Jack Pilbeam tivessem feito tudo o que lhes estava ao alcance, Timberlane sentia desejos de incomodá-los ainda mais. Ele se sentia bastante vulnerável naquele país estranho, malgrado toda a simpatia que lhe votava. Esforçando-se por conter as emoções, manteve-se em silêncio enquanto, juntamente com Dyson, engolia alguns hamburgers com feijões numa lanchonete. Hamburgers sintéticos, porém bons.

— Ainda bem que existem feijões — disse Dyson. — Muitas vezes me pergunto se não são os feijões aquilo que os cientistas andam gastando fortunas para descobrir: um eficiente restaurador para os genes.

— Quem sabe — concordou Timberlane. — Mas aposto que antes vão inventar os feijões sintéticos.

Timberlane foi deitar-se depois de um derradeiro trago e adormeceu prontamente. Ao despertar na manhã seguinte, telefonou para a delegacia de polícia, mas não recebeu notícia alguma. Apreensivo, ele se banhou e vestiu para o desjejum, descendo depois ao saguão a fim de recolher sua correspondência.

Aguardava-o uma carta escrita a mão. Rasgando o envelope, achou uma folha com os seguintes dizeres:

 

Se quer de volta sua pequena, dê um pulo à Impressora Divina Piedade. Vá só. Nada de polícia.

 

Súbito, seu apetite desapareceu. Quase correndo, ele dirigiu-se à cabina telefônica do saguão e pôs-se a folhear o catálogo. Lá estavam número e endereço, na seção dos telefones antigos, desprovidos de visor. Seria melhor telefonar antes, ou ir diretamente para a Impressora Divina Piedade? O sentimento de indecisão deixou-o furioso. Timberlane discou o número e ouviu o sinal indicativo de que o telefone estava fora do gancho.

Voltando às pressas para o quarto, rabiscou um bilhete para Pilbeam, dando o endereço para o qual estava-se dirigindo. A seguir meteu no bolso um revólver. Caminhou até o fim da rua, apanhou um táxi e recomendou ao motorista que tocasse o mais rápido possível. Passada a ponte de Anacostia, o tráfego engrossou bastante, pois a capital despertava para mais um dia de trabalho. Mesmo em meio à congestão provocada pela época de guerra, Washington conservava sua beleza. As pedras brancas refletiam o azul do céu. A permanência e o sentido de proporção dos edifícios eram reconfortantes para Timberlane.

Posteriormente, ao chegar à zona norte, a sensação de dignidade e justiça foi interrompida. Ali o desregra-mento da época encontrava plena expressão. As mudanças nos anúncios e letreiros aconteciam a cada passo. Os imóveis mudavam continuamente de mãos, caminhões de empresas transportadoras não cessavam de carregar e descarregar móveis em todos os cantos. E havia muitos edifícios possuídos de indizível silêncio. Por vezes, toda uma rua parecia deserta, como se os moradores estivessem fugindo de alguma epidemia. Numa dessas ruas, Timberlane notou, ficavam as agências de numerosas companhias estrangeiras de aviação, além dos escritórios de turismo da Dinamarca, Finlândia e Turquia, as persianas estavam fechadas: as viagens particulares tinham sido suspensas e as grandes companhias, sob supervisão das Nações Unidas, ocupavam-se de transportar socorros médicos para as vítimas do conflito.

Alguns distritos exibiam vestígios dos ataques “Fat Choy”, não obstante o esforço para disfarçá-los à custa de gigantescos tapumes publicitários. Tal como todas as demais metrópoles do mundo, Washington, por trás do seu sorriso, revelava cáries putrefatas que a ninguém era dado obturar,

— É aqui, amigo — disse o motorista, — mas parece que não há ninguém. Quer que espere um pouco?

— Não, obrigado. — Timberlane pagou o homem, que fez continência e partiu.

A sede da Impressora Divina Piedade era um encardido e pretensioso edifício da virada do século anterior. Nas janelas havia muitos anúncios de VENDE-SE. A portas de aço ondulado que davam acesso à porta giratória principal estavam presas por correntes e cadeados. Pelas placas afixadas na varanda, Timberlane ficou sabendo das ocupações habituais da Impressora Divina Piedade. Tratava-se de uma editora essencialmente religiosa, dedicada às crianças e lançando periodicamente publicações como Revista Dominical da Criança, O Clarim Infantil, Guia da Menina, e outras mais populares como: Histórias Bíblicas, Histórias Evangélicas, Aventuras Sagradas, e ainda uma série educativa, Leituras Piedosas. Um pedaço de papel rasgado, impelido pelo vento, veio enroscar-se nas canelas de Timberlane. Ele voltou-se na direção oposta. No outro lado da rua erguia-se um compacto bloco de apartamentos. Timberlane examinou as janelas, buscando alguém que o estivesse espreitando. Diversas pessoas passaram apressadas por ele, sem tomar conhecimento da sua presença.

Havia uma viela lateral flanqueada por um alto muro. Timberlane desceu-a, pisando em lixo. Levou a mão ao cabo do revólver, pronto para usá-lo se necessário. Com prazer, percebeu que um primitivo sentimento de ferocidade voltava a crescer-lhe no peito, tinha ganas de arrebentar os dentes de alguém. A viela levava a um terreno baldio. A certa distância, emoldurado por duas paredes, um velho negro empinava um papagaio, debruçando-se imprudentemente nos telhados para acompanhar o curso do brinquedo.

Antes de chegar ao terreno baldio, Timberlane deu com uma porta lateral de acesso à Impressora. Tinha sido arrombada, dois dos quadrados de vidro na sua metade superior estavam quebrados e a porta achava-se semi-aberta. Timberlane deteve-se junto ao muro, recordando as táticas empregadas no exército em semelhantes situações, deu um pontapé na porta e atravessou-a correndo.

No escuro, tratou de apurar cautelosamente a vista. Nem um só movimento, nem um sussurro sequer. Silêncio. O Acidente tinha dizimado os ratos. Praticamente o mesmo sucedera aos gatos, e o desejo de carne da população humana era responsável de certa forma pela idêntica sina dos demais felinos. De modo que, se os ratos reaparecessem, tomar-se-ia mais difícil que nunca dominá-los. No entanto, estava mais do que patente, até ali, que aquele sombrio edifício tinha condições para dispensar os gatos. Timberlane encontrava-se numa loja abandonada. Um velho impermeável num cabide falava mudamente numa deserção. Pilhas de leituras religiosas infantis acumulavam poeira, seus potenciais compradores mortos ou não-nascidos. Apenas as pegadas levando a uma passagem interna eram novas.

Timberlane acompanhou as pegadas, penetrou na passagem,, e„ foi ter ao saguão principal, tendo nos ouvidos tão-somente o ruído dos próprios passos. Encimando uma porta dé vaivém, através da qual se podiam ver os transeuntes na rua, havia um busto com uma inscrição no mármore: Sofreram as Criancinhas, Deixai-as vir a Mim.

— Claro que sofreram — disse Timberlane de si para si.

Iniciou uma busca no. andar de baixo, pondo de lado todas as precauções à medida que avançava. Por toda parte respirava-se a estagnação. Erguendo os olhos para a escada, ele gritou:

— Cá estou, bandidos. Onde estão vocês? Que fizeram com Marta? — O som da própria voz o espantou. Gelando, ele quedou-se a escutar os próprios ecos subindo pelo poço do elevador e reboando no alto. De dois em dois, pôs-se a subir os degraus, na mão o revólver pronto para disparar.

No alto, deteve-se. Sempre o silêncio. Desceu então o corredor e abriu com violência uma porta. A folha desta, voltando com a força do impacto, fez estremecer os gonzos, provocando a queda de um antigo cavalete com um qua-dro-negro. Era manifestamente alguma sala de redação. Timberlane espiou pela janela à procura do negro e seu papagaio, quase como quem procura um velho amigo. O velho já lá não estava, ou então encontrava-se fora do seu campo de visão. Não havia coisa alguma à vista.

— Meu Deus, então esta é a sensação de ficar só no mundo — disse Timberlane de forma quase inaudível. E sobreveio-lhe outro pensamento: é bom tratar de ir-se acostumando, jovem, um dia ficará só no mundo.


Timberlane não era dotado de imaginação particularmente brilhante. Embora toda a vida tivesse a certeza de que a humanidade provocara a própria extinção, o otimismo da juventude fazia-o crer que ou as condições por si só se modificariam (a natureza já superara tantas calamidades anteriormente), ou a pesquisa acabaria por revelar em algum país a droga restauradora (decerto um programa de muitos bilhões de dólares anuais não poderia redundar em total fracasso). O judicioso pessimismo do projeto DOHUC tivera o condão de sustar seus desejos racionalizados.

Com fria objetividade, ele já percebia que sua espécie estava chegando ao fim. Ano após ano, à medida que os vivos fossem falecendo, os quartos vazios se multiplicariam por toda parte, à maneira dos alvéolos de uma gigantesca colmeia abandonada pelas abelhas, terminando por encher o mundo. Chegaria a época em que ele, Timberlane, se transformaria num monstro, perambulando solitário pelos quartos, perdido no labirinto das próprias passadas.

Escrito estava o seu destino. Inescapável, pois ele o encontrara por si. Timberlane abriu a boca, para gritar ou tomar fôlego, sentia-se como submerso numa cachoeira. Apenas uma coisa, uma pessoa, poderia tornar-lhe tolerável o futuro.

Timberlane precipitou-se para o corredor.

— Sou eu, Timberlane! Há alguém aqui? Pelo amor de Deus!...

E uma voz bem próxima choramingou:

— Algy, oh, Algy!

Marta estava estirada no assoalho de uma sala de composição, rodeada de entulho e restos de mobília quebrada. Tal como o restante do prédio, a sala apresentava todos os sinais de haver sido há muito abandonada. Os captores haviam-na atado às pernas de um pesado banco de metal, sobre o qual viam-se tipos de chumbo esparsos, e Marta não tinha conseguido soltar-se. Pelos seus cálculos estava ali desde a meia-noite.

— Você está bem? Você está bem? — repetia Timberlane, esfregando-lhe os braços e pernas feridos, depois de desembaraçá-la da sua prisão.

— Estou muito bem — disse ela, começando a chorar. — Ele se portou como cavalheiro... não me violentou ... creio que foi muita sorte minha... Ele não me violentou.

Timberlane tomou-a nos braços. Durante alguns minutos eles se mantiveram agarrados, aquecendo um ao outro com o calor dos corpos.

Afinal, Marta conseguiu contar o que lhe sucedera. O motorista de praça que tinha arrancado com ela bem diante do Clube Tesouro levara-a a uma garagem particular, a poucos quarteirões de distância. Ela acreditava poder identificar o local. Recordava que havia na garagem um barco a motor, alojado nos altos. Marta ficara amedrontada e brigara com o motorista quando este pretendeu retirá-la de dentro do carro. Foi então que surgiu um segundo homem, com o rosto oculto por um lenço branco. Trazia um tampão de clorofórmio. Fez Marta perder os sentidos, comprimindo-lhe a boca com o algodão cloroformizado.

Despertando, achou-se ela num outro carro, maior que o primeiro. Pareceu-lhe estarem atravessando um subúrbio, havia árvores e casas térreas, e, a seu lado, jazia inerte outra moça. Aí um homem colocado no assento dianteiro, notando que ela voltava a si, deu-lhe a cheirar nova dose de clorofórmio.

Ao despertar novamente, Marta achava-se num dormitório. Esparramada na cama, ela tinha ao lado a mesma moça com que viajara. Ambas se espreguiçaram e procuraram recompor-se. O quarto em que se encontravam não tinha janelas, pareceu-lhes uma ampla sala dividida em duas. Surgiu uma mulher trigueira que conduziu Marta a um quarto pegado. Puseram-na diante de um homem de máscara, que lhe permitiu sentar-se numa cadeira. O homem disse-lhe que tinha sido uma felicidade para ela o haver sido escolhida e que não havia razão para temores. Seu patrão tinha-se apaixonado dela e a trataria bem, caso consentisse em viver com ele. As flores lhe tinha sido enviadas como penhor das boas intenções que o patrão alimentava a seu respeito. Enraivecida e amedrontada, Marta não abriu a boca.

Em seguida, foi ela levada diante do patrão, numa terceira sala. Era um homem magro, desqueixolado. Em contraste com a luz, seu rosto parecia cinzento. Ele ergueu-se à chegada de Marta e falou-lhe em tom afável. Contou que era rico e solitário e precisava tanto de sua companhia como de seu corpo. Marta perguntou quantas mulheres seriam necessárias para pôr fim àquela solidão, e ele respondeu com voz abafada que a outra era apenas a amiga de um amigo. Tanto ele como o tal amigo eram tímidos e, por isso, recorriam àqueles métodos de apresentação, não era criminoso e não nutria nenhuma intenção de fazer-lhe mal.

— Pois bem — disse Marta —, deixe-me ir, então. — E contou-lhe que era noiva.

O homem estava sentado numa cadeira giratória, atrás de uma escrivaninha. Ambas as peças colocadas em cima de um estrado. O homem pouco se mexia. Limitava-se a olhar para ela em silêncio, e, afinal, começou a dar sinais de mal-estar. O que mais preocupou Marta é que aquele homem, de certa forma, parecia arrecear-se dela, e que sem dúvida chegaria a extremos para modificar tal situação.

— Você não deveria casar — disse ele afinal. — Não pode ter filhos. As mulheres já não têm filhos, agora que o mal da radiação está em voga. Os homens costumam odiar esses pequeninos monstros e agora os seus sonhos mais caros foram satisfeitos, as mulheres já podem ser usadas para melhores fins. Você e eu poderíamos fazer coisas muito gostosas.

“Você é um encanto... tem lindas pernas, seios e olhos. Mas é apenas carne e osso, como eu. Um pequeno bisturi poderia inutilizá-la para as coisas gostosas. Sempre digo aos meus amigos: Até mesmo a garota mais linda não resiste a um bisturi. Tenho certeza que prefere fazer coisas gostosas, hein?”

Marta repetiu, soluçante, que ia casar-se. Uma vez mais ele recaiu em silêncio. Quando tornou a falar, fê-lo já sem interesse, e em outros termos.

Disse que gostava do agradável sotaque estrangeiro de Marta. Possuía um grande abrigo antiaéreo à prova de bombas, com um estoque de comida e bebida para dois anos. Possuía avião particular. Poderiam ir passar o inverno na Flórida, se ela fizesse um pacto com ele. Poderiam fazer coisas gostosas.

Ela lhe disse que ele tinha mãos muito feias. E não faria acordo algum com uma pessoa de mãos tão feias.

O homem tocou uma campainha. Dois homens acorreram e agarraram Marta. Ficaram segurando-a enquanto o seu magruço patrão descia do estrado e vinha tateá-la sob as roupas, beijando-a ao mesmo tempo. Marta reagiu e deu-lhe um pontapé no tornozelo. Chamou-o de covarde. O homem mandou que a levassem dali. Os dois homens arrastaram-na de volta ao quarto, onde a outra moça chorava encolhida a um canto. Indignada, Marta berrou com todas as forças. Os homens colocaram-na fora de combate com nova dose de clorofórmio.

Ao recuperar os sentidos, foi o ar frio da noite que a reanimou. Marta estava sendo levada no edifício da Impressora Divina Piedade, onde seria amarrada ao banco.

Passou ali a noite sentindo-se mal e aterrorizada. Quando percebeu que havia alguém no andar de baixo, não se atreveu a responder, até que Timberlane se identificou. Marta temia ainda que os seus raptores estivessem de volta.

— Desgraçado! Eu lhe cortaria o pescoço, se pudesse... Querida... está certa de que não lhe fez mais nada?

— Sim... de certa forma, percebi que ele conseguira a satisfação que procurava... precisava do meu medo, creio... não estou segura...

— Um maníaco, esse sujeito — disse Timberlane, apertando-a contra si, correndo os dedos pelos seus cabelos. — Graças a Deus a sua loucura é apenas essa e ele não lhe fez muito mal. Oh, querida... é um milagre tê-la de volta. Nunca mais nos separaremos.

— Apesar de tudo — retorquiu ela risonha —, não se agarre muito em mim enquanto não tomar um bom banho. — Contada a sua história, Marta recuperara boa parte da habitual compostura. — Meu querido, imagino como você ficou quando viu o táxi disparar comigo...

— Dyson e Jack foram de muita valia. Deixei um bilhete para Jack, caso me metesse em dificuldades. A polícia há de agarrar esse tarado. Creio que há indícios suficientes para identificá-lo.

— Pensa assim? Acho que se pudesse examinar-lhe os dedos eu o reconheceria sem muita dificuldade. Estou intrigada... a noite toda me perguntei o que teria acontecido à outra moça. Quando a gente cede diante de um homem desses, que coisa pode acontecer?

Súbito, Marta explodiu em lágrimas e enlaçou os braços em torno da cintura de Timberlane. Este ajudou-a a levantar-se e ambos sentaram-se lado a lado, em cima de moldes nos quais havia frases de trás para diante e de cabeça para baixo. Timberlane abraçou Marta e limpou-lhe o rosto com o lenço. As sobrancelhas pintadas da moça tinham-se desfeito, lambendo o lenço, ela apagou os derradeiros vestígios do seu sobrolho falso.

Tendo-a tão perto, vendo-a, ajudando-a a recompor-se, Timberlane prorrompeu numa torrente de palavras.

— Escute, Marta, ainda ontem à noite perguntei a Dyson sobre você... perguntei por que razão a tinham trazido da Inglaterra, sabem? No começo ele brincou, dizendo que era apenas porque eu e Jack somos sentimentalóides. Como eu não engolisse aquilo, ele deu afinal as verdadeiras razões da sua vinda. Disse que se tratava de um regulamento da DOHUC. Ao final do curso serei recambiado para a Inglaterra, e se as coisas estiverem ruins como eles supõem, ficarei abandonado à minha própria sorte, inteiramente desligado deles.

“Eles estão prevendo o surgimento de governos fortes, tanto na Inglaterra como aqui, tão logo termine a guerra. Acham que dentro de pouco tempo as comunicações internacionais serão coisa do passado. A sobrevivência será difícil, e se tornará progressivamente mais difícil, conforme salientou Bill. De maneira que a DOHUC exige que e (bem como os funcionários japoneses, alemães, israelenses etc.) seja casado com uma mulher do lugar... uma nativa que tenha sido criada segundo os padrões do país e conheça em conseqüência as condições locais. Como diz Dyson: — O conhecimento ambiental é fator de sobrevivência.

“Há muitas coisas mais, mas em essência eles queriam a sua presença para que eu não me interessasse demais por nenhuma outra pequena e deitasse a perder minha participação no projeto. Caso eu casasse com uma americana, seria sumariamente eliminado.”

— Gente radical, sem dúvida...

— Claro. Enquanto Bill falava percebi como seria o futuro. Alguma vez já tentou de fato ver o que vem por aí, Marta? Eu não. Talvez seja por falta de coragem, mamãe sempre dizia que a sua geração jamais contemplava o futuro, sabedora de que mais bombas nucleares estavam sendo projetadas e fabricadas. Mas estes americanos olharam para o futuro. Viram o quanto será difícil a sobrevivência. Expressaram a sobrevivência em termos aritméticos e os números relativos à Grã-Bretanha mostram que, mantendo-se a atual tendência, dentro de vinte ou trinta anos só a metade da sua população estará viva. A Inglaterra é um país particularmente vulnerável porque somos muito menos auto-suficientes do que os Estados Unidos. Acontece que... todo o treinamento que aqui estou recebendo visa a colocar-me com o meu caminhão da DOHUC entre esses pretensamente privilegiados 50 por cento de ingleses. E, à sua maneira materialista, os americanos perceberam algo que tenho certeza o meu religioso amigo Charley Samuels endossaria incondicionalmente: a única coisa que amenizará sensivelmente o futuro será a presença do parceiro certo. — Timberlane interrompeu-se. Marta ria entre um e outro soluço.

— Algernon Timberlane, pobre alma transviada, que lugar mais estranho para fazer uma declaração de amor!

Espicaçado, ele respondeu:

— Será que sou tão engraçado assim?

— Os homens têm sempre que justificar-se perante si próprios. Não se preocupe, gosto disso. Você me lembra meu pai, querido, com a diferença de que você é sexy. Mas não estou rindo das suas conclusões. No meu íntimo, faz tempo que cheguei às mesmas conclusões.

— Marta, eu a amo com desespero, preciso desesperadamente de você. Quero casar com você logo que possível. Nunca mais nos separaremos, aconteça o que acontecer.

— Meu querido, eu o amo também, e preciso igualmente de você. Por que pensa que vim para a América? Nunca me separarei de você. Não tenha receio.

— Mas tenho. E muito! Quando julguei estar só nesta morgue, ainda há pouco, tive uma visão do que seria envelhecer num mundo envelhecido. Não podemos parar de envelhecer, mas pelo menos podemos envelhecer juntos e tornar as coisas toleráveis.

— É o que faremos, querido! Você está perturbado. Saiamos daqui. Acho que já estou em condições de caminhar, se me der o braço.

Ele se afastou dela, sorridente, as mãos às costas.

— Tem certeza que não quer primeiro dar uma espiada nos meus dedos... para depois comprometer-se?

— Isso fica para mais tarde, como diria Jack. Ajude-me até a janela, para ver como me porto. Oh, minhas pernas... pensei que ia morrer, Algy...

Enquanto Marta se arrastava através da sala, amparada por Timberlane, as sirenas começaram a anunciar mais um “Fat Choy” por toda a cidade. O seu som cavo chegava-lhes perfeitamente aos ouvidos. O mundo uma vez mais dizia presente. De permeio surgiram as sirenas menos estridentes das viaturas da polícia. Marta e Timberlane chegaram-se à janela. Timberlane abriu-a e espiou fora, o rosto comprimido entre duas barras de ferro.

Um carro da polícia deteve-se junto da calçada em baixo. As portas se abriram, despejando no passeio alguns homens uniformizados. Entre esses homens, emergindo do último carro, surgiu Jack Pilbeam. Timberlane gritou e fez um aceno. Os homens ergueram o olhar.

— Jack! — urrou Timberlane. — Pode adiar a viagem por vinte e quatro horas? Eu e Marta precisamos de um padrinho!


O polegar direito erguido sobre a cabeça, Pilbeam desapareceu. Quase imediatamente o ruído dos seus passos se fez ouvir subindo a escadaria arruinada.

 

Charley Samuels ergueu-se no seu barco e apontou para o sudeste.

— Lá estão elas! As torres de Oxford!

Marta, Timberlane e o velho Jeff Pitt também se ergueram e acompanharam o gesto de Charley com o olhar, enquanto Isaac, a raposa, passeava de um lado para outro.

Eles tinham levantado um mastro e uma vela, e eram impelidos por uma brisa ligeira. Vinham progredindo lentamente desde a sua fuga noturna de Swifford Fair. Tinham perdido bastante tempo numa velha eclusa, uma embarcação estava lá fundeada, obstruindo a passagem navegável, e decerto ali permaneceria até que as enchentes da primavera a destroçassem. Naquele local tinham eles descarregado seus barcos e os tinham transportado, juntamente com seus pertences, até um ponto seguro onde lançá-los novamente à água.

A região em que se encontravam era imensamente selvagem e inóspita. Pitt imaginou ter visto gnomos espreitando-os das moitas. Todos os quatro componentes do grupo julgaram ter visto arminhos subindo nas árvores, e acabaram resolvendo que não se tratava afinal de arminhos mas sim de martas silvestres, animais raramente encontrados na região desde a Idade Média. Com arco e flecha mataram aquela tarde duas daquelas criaturas, comeram-lhes a carne e lhes guardaram a esplêndida pele. Fora obrigados a acampar ao ar livre, sob umas árvores. Lenha havia por ali em abundância e os quatro companheiros se ajeitaram entre dois fogos, mas foi uma noite ruim para todos.

No dia seguinte, estando novamente a caminho, tiveram a boa sorte de encontrar um mascate pescando na barranca do rio. O mascate comprou a canoa de Pitt, pagando por ela em dinheiro e em espécie, entregando-lhe duas velas, que aquela noite foram usadas pelo grupo como tendas. O mascate ofereceu-lhes abricós enlatados e peras, mas como os frutos tivessem pelo menos doze anos, e custassem muito caro, não houve negócio. O mirrado velhote, a quem a solidão tornara loquaz, contou-lhe que estava a caminho de Swifford Fair e que levava alguns medicamentos para o Dr. Bunny Jingadangelow.

Deixando para trás o mascate, eles entraram num vasto lençol d'água, crivado de ilhotas e juncais. Pareceu-lhes que aquele lençol se estendia até o infinito, pois sob o céu pardacento não conseguiam distinguir a sua rota através dele. O lago era um refúgio de animais silvestres: mergulhões, frangos d'água e gansos em quantidade. E no fundo das límpidas águas que singravam viam-se cardumes inteiros de peixes.

Mas não havia disposição para apreciar tais atrações dá natureza. Começara a ventar demais e eles não sabiam em que direção rumar. A chuva que principiou a cair fê-los correr a abrigarem-se sob a vela sobressalente. Aumentando as chuvas e diminuindo o vento, Barbagris e Charley tocaram para uma das ilhotas, onde acamparam.

Debaixo da vela estava seco, e a tempestade amainara, mas surgiu um sentimento generalizado de depressão em todos, ante o espetáculo de cortinas de água e vapor engolfando a paisagem. Barbagris acendeu uma pequena fogueira e todos começaram a tossir, pois a fumaça custou a dispersar-se. A animação só reapareceu entre o grupo quando Pitt ressurgiu, todo encolhido, ensopado, porém triunfante, trazendo às costas um esplêndido par de castores. Um dos castores era um gigante de um metro e trinta de comprimento. Pitt informou que a pouco mais de cem metros dali havia uma colônia daqueles animais, e nenhum deles se mostrara receoso da presença humana.

— Amanhã de manhã apanho mais alguns para a primeira refeição — disse o caçador. — Já que vamos viver como selvagens, o melhor é viver bem como selvagens.

Conquanto não fosse homem de muitas lamúrias, Pitt encontrava poucos motivos de consolo na vida que levava. Malgrado seu êxito como caçador (causava-lhe satisfação iludir e abater os animais), dava-se por fracassado. Desde que se mostrara incapaz de matar Barbagris, cerca de doze anos antes, tinha adotado um sistema de vida cada vez mais solitário, até mesmo o seu sentimento de reconhecimento a Barbagris por lhe haver poupado a vida mesclava-se com a idéia de que se não fosse por seu rival ele poderia estar agora à testa do seu próprio regimento, formado de remanescentes das tropas de Croucher. Tal o ressentimento que Pitt carregava no íntimo, embora o soubesse destituído de base. Experiências anteriores já deveriam tê-lo convencido de que ele jamais poderia atuar como verdadeiro soldado. Em criança, Jeff Pitt costumava atravessar a cidade grande em que vivia e ir a um descampado onde não havia mais construções. A região era de chameca e constituía um excelente local para os passeios de um rapaz. Do alto, onde vez por outra um falcão cavalgava os ventos, via-se o dédalo da cidade, com suas chaminés, os telhados de ardósia das suas fábricas, e os milhares de casas. Jeff costumava levar consigo em suas andanças o seu amigo Dicky. Quando o tempo estava bom, não havia feriado escolar que não passassem lá.

Jeff possuía uma enorme e rústica bicicleta, herança de um de seus irmãos mais velhos,Dicky possuía um vira-lata de nome Snowy. Snowy gostava dos passeios tanto quanto os meninos. Tudo isso aconteceu no começo da década de 1970, ainda em época de calças curtas e paz mundial.

Às vezes Jeff e Dicky brincavam de soldado, usando pedaços de pau à guisa de espingardas. Às vezes tentavam caçar lagartos, apanhando-os só com as mãos, os pequeninos répteis castanhos acabavam sempre por escapar-lhes


deixando-lhes nas palmas das mãos as caudas sangrentas e agitadiças.   Às vezes os garotos entregavam-se à luta.

Um dia, de tal forma se absorveram no combate, que foram cair embolados sobre uma colméia. Ambos foram duramente picados. Malgrado a intensa dor, Jeff não se dispôs a chorar na presença do outro. Dicky choramingou todo o percurso de volta à casa. Nem mesmo montar na bicicleta de Jeff serviu para fazê-lo calar um pouco.

Os meninos cresceram. As fábricas açambarcaram Jeff Pitt, tal como haviam feito a seus manos. Dicky conseguiu colocação numa repartição pública. Eles descobriram que não tinham nenhum interesse em comum e deixaram de procurar a companhia um do outro.

Veio a guerra. Pitt alistou-se na Força Aérea. Depois de algumas desventuras no Oriente Médio, desertou, juntamente com um magote de camaradas. Aquilo foi como que um sinal para as demais unidades em operação naquela área, onde a insatisfação com o correr da guerra já era patente. Prorromperam motins. Alguns dos amotinados apoderaram-se de um avião no aeroporto de Teerã e voltaram para a Inglaterra. Pitt encontrava-se entre esses amotinados.

Na Inglaterra a revolução ganhava força. Em poucos meses o governo iria entrar em colapso e um governo popular organizado às pressas iria chocar-se com as forças contrárias. Pitt voltou à sua região e aderiu aos rebeldes locais. Certa noite de luar um grupo pró-governo atacou o quartel-general dos revoltosos que se localizava num imenso prédio vitoriano dos subúrbios.

Pitt viu-se postado atrás de uma trincheira de concreto, o coração aos pulos, disparando sobre o inimigo.

Um de seus camaradas surgiu com uma lanterna de mão. O clarão da lanterna iluminou Dicky, com o uniforme do governo, correndo no rumo em que se encontrava Pitt. Pitt atirou nele.

Antes mesmo que se abrisse uma ferida, Pitt já se arrependia do disparo que tinha feito. A camisa de Dicky avermelhou e ele desabou sobre o cascalho. Pitt saiu engatinhando em sua direção, mas o tiro tinha sido para valer, o amigo estava quase morto. Desde então Pitt jamais teve coragem de atirar em quem quer que fosse.

Acocorados na tenda, os companheiros de jornada comeram bem e dormiram bem aquela noite, e, durante todo o dia que se seguiu, velejaram. Não viram viva alma. O homem tinha desaparecido e o grande entretecido das espécies vivas passara a ocupar o seu lugar no mundo. Deslocando-se sem saber ao certo para onde, eles se viram obrigados a gastar mais dois dias perambulando pelas ilhotas do lago, mas, como o tempo continuasse ameno e houvesse alimentação em abundância, poucas queixas foram levantadas, além daquela, não enunciada, de que sob os farrapos que trajavam continuava a existir o homem de hoje, e o homem de hoje merecia mais do que simplesmente errar pelas florestas.

A solidão era interrompida aqui e acolá por algum monumento de eras passadas, a maioria das vezes destoando grotescamente do contexto. O esquife os levou até uma pequena estação ferroviária, que um letreiro proclamava ser Yarnton Junction. As duas plataformas achavam-se acima do nível da água, e a sinaleira, empoleirada em sua torre de tijolos, servia de mirante sobre os campos.

Na derruída sala de espera havia uma rena com a cria. Na sala de guarda vivia um velhote hediondamente deformado, que os manteve sob a ameaça de uma bomba de fabricação caseira, brandindo-a ameaçadoramente à altura da cabeça enquanto falavam. Informou-lhes o velhote que o lago era formado pela confluência de diversas torrentes, entre as quais o Canal de Oxford e o Evenlode. Ansioso por livrar-se dos intrusos, o ancião fez questão de ensinar-lhes prontamente o caminho. E uma vez mais a comitiva se pôs em marcha, auxiliada por uma luz e pela regularidade do vento. Foi depois de mais ou menos duas horas que Charley se ergueu, nervoso, e apontou para a frente, gritando:

— Lá estão elas!

Os demais também se levantaram e fixaram as esperançosas torres de Oxford por entre a mata. Tais torres, como vinha acontecendo há séculos, eram penhor de uma tradição de cultura e humanitarismo, e agora tinham o


pés quebrados. O sol varou as nuvens de chuva, iluminando-as. Nenhum dos ocupantes do barco deixou de respirar mais depressa, face àquela visão.

— Podemos ficar aqui, Algy... Pelo menos até acabar o inverno — disse Marta.

Barbagris olhou-a nos olhos e ficou comovido de vê-los banhados em lágrimas.

— Receio que isto seja, antes de mais nada, uma ilusão. Oxford deve estar muito mudada também. Talvez só encontremos ruínas desertas.

Marta sacudiu a cabeça sem dizer palavra.

— Será que o velho Croucher ainda mantém a ordem de prisão contra nós? — perguntou Pitt. — Eu não gostaria de ser fuzilado logo ao desembarcar.

— Croucher morreu de cólera, e não duvido que Cowley primeiro se tenha transformado em campo de batalha e depois em cemitério, sobrando apenas a velha cidade — disse Barbagris. — Tomara que os habitantes remanescentes nos recebam bem. Um teto para passar a noite seria uma grata novidade, hein?

O cenário, para quem se aproximava da cidade pelo sul, tornava-se progressivamente menos imponente. Havia fileiras de casas abandonadas, e a impressão de desolação só era reforçada pela luz do sol. Os telhados tinham desabado, as casas pareciam carcaças de gigantescos crustáceos atirados sobre praias pré-históricas. Apequenada pelo pano de fundo, uma criatura fortemente agasalhada dava de beber a um casal de renas. Mais adiante, as ondulações provocadas na água pelas embarcações dos recém-chegados puseram tremeluzentes reflexos nos telhados e nos quintais abandonados. Pouco depois o silêncio pesado foi rompido pelo rechinar de um veículo. Duas velhas, com idênticas dimensões verticais e horizontais, arrastavam a custo uma carroça cujas rodas coruscavam ao sol. Rumavam para o embarcadouro ao fim de uma ponte baixa.

— Estou reconhecendo isto — anunciou Barbagris com voz abafada. — Podemos atracar aqui. Isto é Folly Bridge.

Quando a caravana desembarcou, as duas velhas se adiantaram para oferecer-lhes a carroça em aluguel. Com sempre, ao encontrar-se com forasteiros, o grupo de Barbagris teve dificuldade em compreender-lhes o sotaque. Pitt informou às velhas que não havia nada que valesse a pena transportar de carroça e essas lhe disseram em troca que o grupo poderia passar a noite no Sagrado Coração, no alto da rua. Deixando Charley com Isaac, a fim de tomar conta do barco, Marta, Barbagris e Pitt puseram-se a percorrer a mal cuidada trilha que levava além da ponte.

Os muros do antigo colégio do Sagrado Coração despontavam na extremidade sul da cidade. Do alto dos muros um punhado de homens barbados observou a chegada de Barbagris e de seus companheiros. Estes se aproximaram cautelosamente, como que esperando alguma reação, mas nada aconteceu. Chegando aos grandes portões de madeira do colégio, eles se detiveram. Por falta de cuidados, os muros estavam aos pedaços. Diversas janelas tinham caído ou então achavam-se fechadas e o lajedo ao pé dos muros denotava a ação do calor, da geada e dos elementos. Barbagris deu de ombros e atravessou a alta arcada.

Contrastando com as ruínas que tinham deixado para trás, havia gente, vozerio, cheiro de animais e alimentos. O estado de ânimo dos três recém-chegados melhorou de pronto. Estavam eles num grande pátio que já abrigara numerosas gerações de estudantes. Tinham sido erguidos barracos de madeira, grande parte dos quais formava pequenos prédios comerciais internos onde se vendiam artigos os mais variados. A outra seção do pátio era cercada por um alambrado e nela numerosas renas tratavam de observar o que ia em torno, com seu característico olhar escarninho.

Um pedaço calvo de homem, com um nariz de agulha, veio ter à porta, perguntando-lhes, como estrangeiros, que desejavam. Foi um tanto difícil fazê-lo entender, mas ele os acabou conduzindo a um indivíduo majestoso e fossilizado, dono de um imponente queixo tríplice, o qual informou que por módica quantia poderiam alugar dois pequenos cômodos no porão, em Killcanon. O grupo registrou os nomes de seus membros num livro e deu a conhecer a cor do seu dinheiro.

Killcanon era na verdade uma pequena praça no interior do Sagrado Coração, e os quartos que lhes foram designados constituíam subdivisões de uma peça maior. Mas o mensageiro de nariz de agulha disse-lhes que poderiam acender fogo no quarto e ofereceu-lhes combustível barato. Mais para não alongar a conversa do que por outra coisa qualquer, a sugestão foi prontamente aceita. O mensageiro acendeu o fogo para eles enquanto Jeff Pitt voltava para buscar Charley e a raposa, além de providenciar armazenagem para o barco.

Estando o fogo a arder alegremente, o mensageiro começou a dar mostras de pretender deixar-se ficar por ali, acocorando-se junto às chamas, esfregando o nariz e procurando ouvir o que Marta e Barbagris se diziam. Barbagris tocou-o com o pé.

— Antes de ir embora, gordinho, diga-me se isto aqui continua sendo instituição de ensino.

— Ensino?! — disse o homem. — Não há mais o que aprender. Mas os estudantes são donos do lugar e parece que ainda se ensinam coisas reciprocamente. Verá alguns por aí carregando livros. Se me der uma gorjeta posso apresentá-lo a algum deles.

— Veremos. Amanhã haverá tempo para isso.

— Não se demore muito, senhor. Corre aqui a lenda de que Oxford está afundando no rio, e quando estiver submersa, uma porção de gente nua que habita o fundo das águas virá tomar nosso lugar.

Barbagris fixou aquela ruína em forma de homem.

— Compreendo. E você dá crédito a essa história?

— E o senhor que me diz?

— Acredita nessa história?

O velho riu, lançando um olhar de viés para Marta.

— Não digo que sim nem que não, mas ouvi dizer que para cada mulher que morre, nasce mais uma dessas criaturas submarinas. E uma coisa eu vi com os próprios olhos... no Natal passado... não, no antepenúltimo Natal... uma velha de noventa e nove anos morreu em Grandpont e, logo no dia seguinte, uma criaturinha de duas cabeças apareceu nas proximidades da ponte.


— Que foi que você viu? — indagou Marta. — À velha a morrer ou aparecer essa coisa com duas cabeças?

— Bem, às vezes eu me perco um pouco — disse atabalhoadamente o mensageiro. — O que vi melhor foi o enterro, mas me contaram tudo o que aconteceu e não tenho por que duvidar. Todo mundo fala nisso.

Quando o homem se retirou Marta disse:

— É estranho como cada um acredita numa coisa diferente.

— São todos meio loucos.

— Não, não creio que sejam. Apenas as crenças alheias sempre nos parecem loucas, assim como as paixões. Antigamente, antes do Acidente, as pessoas tinham a tendência de fazer segredo das suas crenças ou então contá-las apenas a médicos e psiquiatras. Ou ainda, a crença era largamente difundida e perdia a sua aura de absurdo. Veja quantas pessoas continuavam acreditando em astrologia, mesmo depois que se provou tratar-se isso de um amontoado de asneiras.

— Ilógico e, conseqüentemente, um tanto insano — disse Barbagris.

— Não, ao que me parece. Talvez uma forma de consolo. Esse velhote de nariz em forma de agulha de tricô acalenta algum sonho de pequeninas criaturas nuas tomando conta de Oxford, de certa forma, isso constitui para ele uma compensação pela falta de bebês. A religião de Charley representa o mesmo tipo de compensação. O seu recente amigo de bebedeira, Bunny Jingadangelow, refugiou-se num mundo de fantasias.

Marta afundou indolentemente nos cobertores e se espreguiçou. Sem pressa, descalçou os sapatos acalcanhados, massageou os pés, e depois estirou-se no leito, as mãos sob a cabeça. Contemplou Barbagris, cuja calva reluzia ao fogo.

— Em que está pensando, meu grande amor? — perguntou.

— Estava me perguntando se o mundo não irá resvalar (se é que já não o fez) para uma espécie de loucura, agora que os últimos seres vivos estão com mais de cinqüenta anos. Será que um toque de juventude não é absolutamente essencial à sanidade?


— Não creio. Nossa capacidade de adaptação é algo surpreendente, muito maior do que supomos.

— Sim, mas imagine que um homem perca a memória com relação a tudo quanto lhe aconteceu até os cinqüenta anos, de maneira que fique inteiramente desvinculado das suas raízes, das suas primeiras conquistas... não seria o caso de considerá-lo demente?

— Simples analogia.

Barbagris sorriu para a esposa.

— Você é um caso sério para discutir, Marta Timberlane.

— Depois de tantos anos, ainda temos paciência para nos tolerar reciprocamente. É um milagre!

Barbagris foi sentar-se na beirada da cama e começou a acariciar as coxas de Marta.

— Talvez seja esse o nosso quinhão de loucura, consolo... ou seja o que for. Marta, já pensou... — Barbagris fez uma ligeira pausa, contraiu o rosto em atitude pensativa, e prosseguiu: — Já pensou que a tremenda catástrofe de meio século atrás foi para nós... bem... foi para nós um achado? Sei que parece absurdo... mas talvez estejamos vivendo uma vida mais interessante do que aquela que nos estava reservada. Vemos agora que os valores do século vinte eram falsos, caso contrário não teriam dado cabo do mundo. Não acha que o Acidente nos fez apreciar melhor as coisas vitais, como a própria vida, e nos fez querer um ao outro?

— Não — retorquiu Marta com firmeza. — Não acho. Não fosse o Acidente, agora teríamos filhos e netos, e não há substituto para isso.

 

Na manhã seguinte eles foram despertados por ruídos de animais, cantos de galos, tropel de cascos de renas e até mesmo o zurro de um jumento. Deixando Marta no leito morno, Barbagris levantou-se e se vestiu. Fazia frio. Durante a noite as correntes de ar tinham revolvido os tapetes do assoalho e espalhado cinzas por toda parte.

Lá fora mal raiava a luz do dia e o céu cinzento colocava tonalidades frias na praça. Mas havia fogos ardendo, gente em atividade e vozes falando... alegremente, conquanto proviessem de indivíduos desdentados e dobrados em dois pela velhice. O portão principal tinha sido aberto e numerosos animais saíam por ele, puxando carroças. No último quarto de século era a primeira vez que Barbagris via semelhante coisa. Uma parte do país encontrava-se de tal forma isolada da outra que em cada uma delas prevaleciam condições amplamente distintas.

De modo geral, as pessoas estavam bem vestidas, muitas deles envergando casacos de peles. No alto das ameias um par de sentinelas esfregando as costelas para aquecer-se um pouco observava a atividade no pátio.

Dirigindo-se para o saguão, onde ardiam numerosos fachos, Barbagris verificou que o homem de queixo triplo estava de folga. Em seu lugar ficara um sujeito gordalhufo que vinha a ser filho do primeiro. Tinha tanto de amável quanto o pai de fossilizado, e quando Barbagris perguntou se seria possível conseguir um emprego durante os meses de inverno, ele se tornou loquaz.

Sentaram-se junto a uma fogueira, procurando defender-se das rajadas frias que sopravam através do portão. A voz quase encoberta pelo ruído do tráfego, o gorducho discorria sobre Oxford.

Durante alguns anos a cidade deixou de ter um organismo central de governo. Os colégios a tinham dividido e governavam por sua conta. O crime era duramente castigado. Mas durante todo um ano não houve execuções em Carfax.

O Sagrado Coração e diversos outros colégios funcionavam agora como um misto de castelo, hotel e casa senhorial. Ofereciam abrigo e proteção, quando necessária se tornava a proteção, tal como acontecera em épocas passadas. Os maiores colégios possuíam quase toda a porção de cidade que os rodeava. Estavam em próspera situação e conviviam harmonicamente, cuidando da agricultura e pecuária. Faziam o que lhes era possível para combater as enchentes, que a cada primavera que passava subiam ainda mais alto. E num dos colégios localizados na outra extremidade da cidade, de nome Ballíol, o Reitor cuidava de três crianças que, duas vezes ao ano, eram mostradas ao público com grande cerimonial.

— Que idade têm essas crianças? Você as conhece? — perguntou Barbagris.

— Oh, sim, conheço-as. Todos conhecem as crianças de Balliol. Claro. A menina é uma belezinha. Tem cerca de dez anos e é filha de uma mulher imbecil que vive em Kindlington, vilarejo situado nas florestas do Norte. Os dois meninos não sei de onde vêm, mas um deles passou por maus pedaços antes de vir ter aqui, e, ao que consta, era exibido por um empresário em Reading.

— São crianças normais?

— Um dos meninos tem um braço atrofiado, um bracinho que termina por três pequenos dedos na altura do cotovelo, mas não se pode considerar isso um aleijão, e a menininha não tem cabelos e apresenta algum problema de audição, nada de extraordinário... e sabe acenar com muita graça para a multidão.

— E você os viu realmente?

— Sim. Vi. No desfile. Os meninos não fazem muitos gestos, por serem mais velhos, mas são garotos viçosos e simpáticos. Dá prazer ver gente nova assim.

— Tem certeza de que são reais? Não serão velhos disfarçados ou coisa parecida?

— Oh, não, não, não. Nada disso. São pequenos, tal como as crianças das fotografias antigas, e pele jovem é coisa inconfundível, não acha?

— Bem... como há cavalos por aqui... talvez haja também crianças...

Os dois homens então mudaram de assunto e, depois de algum debate, o filho do porteiro aconselhou Barbagris a ir ter com um dos estudantes, o Sr. Norman Morton, encarregado de conseguir colocações junto ao colégio.

Marta e Barbagris fizeram uma refeição frugal com um duro pedaço de carne de castor fria e algum pão que ela, na véspera, adquirira num dos barracos. Em seguida, ela e Barbagris informaram a Charley e Pitt que iriam sair e se dirigiram para as acomodações de Norman Morton.

Em Peck, derradeiro quadrilátero do colégio, fora construído um esplêndido estábulo com espaço para abrigar animais e veículos. Morton tinha a sua suíte de frente para esse estábulo. Ele próprio se utilizava de alguns dos quartos, e os demais eram reservados a seus animais. Norman era homem alto, de ombros largos e encurvados, com um tique nervoso e um rosto tão enrugado que mais parecia um entretecido de barbantes laboriosamente confeccionado. Barbagris deu-lhe uns bons oitenta anos, mas o homem não dava demonstrações de estar disposto a abrir mão tão cedo da boa vida. Quando um empregado fez entrar Marta e Barbagris, o Sr. Norman Morton estava entretido com dois anciãos, degustando um vinho forte e roendo o que parecia ser uma perna de carneiro.

— Se a sua conversa for interessante, podem tomar um pouco de vinho — disse o velho, ajeitando-se na cadeira e apontando com o garfo para os recém-chegados. — Eu e meus amigos sempre gostamos de ouvir relatos de viagens, embora geralmente não passem de mentiras. Se vão mentir, tenham a bondade de mentir com classe.

— Na minha infância — disse Marta, acenando com gravidade para os outros cavalheiros, cujas bocas ruminavam sem cessar — os anfitriões é que tinham de entreter os hóspedes. Mas, naquela época, os locais de ensino abrigavam boas maneiras e não gado.

Morton ergueu duas peludas sobrancelhas e depôs o copo.

— Madame — disse ele, — perdoe-me. Já que se veste como uma camponesa, deve estar acostumada a ser tomada como tal. Cada qual com as suas excentricidades. Permita-me servir-lhe um pouco deste néctar e depois conversaremos de igual para igual... até prova em contrário, pelo menos...

O vinho era suficientemente bom para suavizar o efeito das palavras de Morton. Foi o que Barbagris observou.

— É bastante potável — confirmou um dos confrades, sem grande entusiasmo. Era homem espigado, Gavin por nome, dono de um rosto amarelado e testa sebosa que constantemente limpava. — Infelizmente, é apenas vinho caseiro. Liquidamos com a adega do colégio no dia em que o reitor foi deposto.

Os três homens curvaram sardonicamente a cabeça numa pretensa reverência ao reitor.

— Qual é afinal a sua história, forasteiros? — perguntou Morton em tom menos desagradável.

Barbagris fez um breve relato dos anos que passara em Londres, do episódio com Croucher em Cowley, e da longa estada em Sparcot. Por mais que os três confrades lamentassem a ausência de mentiras palpáveis, não deixaram de prestar bastante atenção ao que lhes estava sendo contado.

— Lembro-me desse Comandante Croucher — disse Morton. — Não era mau como os demais ditadores. Por sorte, era desses ignorantes que pofessam um imerecido respeito pela erudição. Talvez porque seu pai, segundo os boatos correntes, tivesse sido bedel de colégio, sua atitude relativamente à Universidade foi de surpreendente respeito em todas as ocasiões. Éramos obrigados a estar no colégio às sete da noite, mas isso nunca foi sacrifício para ninguém. Lembro-me que, já na época, o regime de Croucher era por muitos considerado como necessidade histórica. Foi depois de sua morte que as coisas se tornaram de fato intoleráveis. A soldadesca de Croucher transformou-se em bando de salteadores. Foi o pior período desta nossa época de medonha decadência.

— Que aconteceu aos soldados?

— De modo geral, o que já era de esperar. Liquidaram-se entre si, e a cólera encarregou-se de matar os remanescentes, graças a Deus. Durante um ano esta cidade pertenceu aos mortos. Os colégios permaneceram fechados. Não havia ninguém nas ruas. Fui morar numa cabana nas cercanias da cidade. Depois de algum tempo começou o retorno à cidade. Depois, no primeiro inverno, fomos atacados pela gripe.

— Nunca tivemos em Sparcot uma epidemia de gripe — disse Barbagris.

— Uma felicidade. Foi muita sorte também a gripe ter poupado diversos centros populacionais, evitando-se assim o espetáculo de bandos armados devastando e saqueando indiscriminadamente.

O Confrade de nome Vivian disse:

— Quando muito, o país seria capaz de alimentar metade da sua população com os recursos da própria agricultura. Em condições menos favoráveis atenderia a um sexto dessa cifra. Em tempos normais o índice de mortalidade seria de seiscentas mil pessoas por ano. Claro que não há dados rigorosos a respeito, mas me arriscaria a dizer que, na época em questão, o ano 2022 mais ou menos, a população diminuiu de vinte e sete para doze milhões de almas. É fácil estimar que na década seguinte a população deve ter diminuído para apenas seis milhões, levando-se em conta o mesmo índice de mortalidade. Mais uma década e...

— Obrigado. Chega de estatísticas, Vivian — disse Morton. E, para os visitantes: — Oxford tem vivido em paz desde a epidemia de gripe. Claro que houve o problema com Balliol.

— Que aconteceu ali? — perguntou Marta, aceitando mais um copo do vinho caseiro.

— Balliol pensou que poderia governar Oxford, sabe? Houve uma escabrosa cobrança de impostos municipais atrasados. Os cidadãos pediram a ajuda do Sagrado Coração.   Felizmente   tivemos condições   para atendê-los.

— Na ocasião um certo Coronel Appleyard da artilharia refugiou-se entre nós. Era um ex-aluno da Casa... embotado, pobre coitado, bom apenas para a vida de caserna. Mas tinha consigo alguns morteiros. Montou-os no pátio e começou a bombardear Balliol.

Gavin fez um muxoxo e acrescentou:

— Os objetivos de Appleyard não ficaram muito claros e ele conseguiu destruir a maior parte dos prédios de Balliol até aqui, inclusive o Sagrado Coração, mas o Reitor de Balliol tratou de hastear a bandeira branca e daí em diante temos todos vivido em santa paz.

Os três estudantes tinham-se posto de bom-humor à recordação do incidente, e entraram a analisar entre os detalhes da campanha, esquecendo-se por completo das visitas. Esfregando a testa, Gavin disse:

— Alguns dos colégios são construídos como pequenas fortalezas. Ainda bem que esse aspecto tem sua funcionalidade.

— O lago que atravessamos para chegar até Folly Bridge tem alguma história especial? — indagou Barbagris.

— Especial?... Bem, sim e não, embora não haja nada tão empolgante, tão prenhe de interesse humano digamos assim, como a campanha de Balliol — esclareceu Morton. — O Lago dos Prados, tal como é chamado entre nós, cobre uma área que mesmo em outras épocas já era muito sujeita a inundações. A inundação agora se fez permanente, graças ao trabalho de sapa realizado nas margens por uma legião de coypus.

— Algum animal, suponho? — disse Marta.

— Um roedor, minha senhora, da família dos eqüinípedes, proveniente da América do Sul e hoje em dia tão nativo de Oxford como eu ou Gavin. Talvez não tenha tido ocasião de ver o animal em suas viagens, pois ele é muito arisco. Mas a senhora deveria conhecer o nosso zoológico e ser apresentada ao nosso coypus domesticado.

Marta e Barbagris foram levados através de vários compartimentos em que havia um cheiro acre e em que o anfitrião mantinha diversos animais enjaulados. A maioria dos bichos correu até ele, parecendo feliz por vê-lo.

O coypus dispunha de uma pequena piscina, incrustada no assoalho de uma sala. Parecia produto de uma cruza entre castor e rato. Morton explicou que aqueles animais tinham sido importados para a Inglaterra, ainda no século vinte, com vistas ao aproveitamento da sua excelente pele. Alguns exemplares tinham fugido das suas fazendas de criação e se esparramado na forma de praga por toda a região oriental da Inglaterra. Em diversos ataques concentrados contra eles, os coypus foram depois praticamente dizimados. Depois do Acidente tinham tornado a proliferar, de forma lenta a princípio e depois com muita rapidez, como só acontecera a todos os animais de gestação breve. Disseminaram-se na região dos rios que correm para o ocidente e, hoje em dia, parecem ocupar metade do território nacional.

— Darão cabo do Tâmisa — disse Morton. — Não há rio que lhes resista. Por sorte, justificam a sua existência constituindo um excelente pitéu e possuindo uma pele maravilhosa para se usar. Picadinho de coypus é ainda o grande consolo da nossa velhice, hein Vivian? Talvez vocês tenham observado que muita gente aqui pode se dar ao luxo de cobrir os velhos esqueletos com casacos de peles.


Marta fez referência às martas silvestres que tinham visto.

— Muito interessante! Essas devem estar vindo de Gales, único lugar da Inglaterra em que sobreviviam faz um século. Por toda parte deve estar havendo grandes modificações nos hábitos dos animais... se ao menos tivéssemos outra vida para poder anotar tudo... bem, o pensamento não é dos mais edificantes... certo?

Morton terminou oferecendo a Marta um lugar de assistente e aconselhando Barbagris a falar com certo fazendeiro Flitch, que procurava alguém para fazer biscates.

Joseph Flitch era um octogenário extremamente ativo. E tinha que ser. Ele sustentava uma casa cheia de mulheres rabugentas: a esposa, duas vetustas cunhadas, sogra e duas filhas, uma das quais prematuramente caduca e a outra padecendo de uma artrite implacável. Entre todo esse infeliz povo, a Sra. Flitch, talvez porque a lei em sua casa fosse a da sobrevivência do mais forte, era indubitavelmente a mais forte. Desde logo, antipatizou com Barbagris.

Flitch levou-o até uma construção anexa, apertou-lhe a mão e contratou-o por um salário que Norman Morton teria tachado de justo.

— Percebi que você é bom, pelo jeito com que a patroa se voltou contra você — declarou o fazendeiro com um sotaque de Oxfordshire quase indecifrável.

Flitch era (e, dadas as circunstâncias, sem nenhuma surpresa) indivíduo irritadiço. Mas era também ladino e inteligente, conforme Barbagris observou, e dirigia um próspero negócio. A fazenda ficava à beira do Lago dos Prados e lá trabalhavam numerosos empregados. Flitch tinha sido um dos primeiros a beneficiar-se das alterações das condições naturais, e usava os juncos como material de cobertura nas construções. Na localidade não se fabricavam tijolos nem ladrilhos, mas algumas das melhores casas da região eram recobertas por uma camada de material proveniente da Fazenda Flitch.

O serviço de Barbagris consistia em colher no lago braçadas e mais braçadas de juncos. Uma vez que ele utilizava para isso a própria embarcação, Flitch, homem de elevado senso de justiça, fornecia-lhe um enorme casaco impermeável de pele de nutria que recebera certo dia em pagamento de uma dívida. Confortavelmente metido em seu casaco, Barbagris passava a maior parte do dia singrando vagarosamente o lago, absorvido entre a mistura de água e lodo e a massa do céu. Eram períodos de calma, interrompidos pelo debandar ocasional dos assustadiços pássaros aquáticos. Vez por outra, Barbagris abarrotava de junco o esquife e podia então dedicar meia hora à pesca de algum peixe para as suas refeições com Marta. Em tais ocasiões via amiúde diversos tipos de roedores perambulando pelos alagadiços: não apenas ratos d'água, mas também animais maiores como castores, lontras e coypus, de cuja pele se vestia. Certa feita viu uma fêmea aleitando os filhotes em plena travessia do lago.

Barbagris aceitou o duro trabalho nos juncais, mas não esqueceu nunca a lição aprendida em Sparcot: a serenidade não provinha do mundo exterior, mas de dentro. Sempre que era preciso reavivar a memória, bastava-lhe correr a cortar juncos na sua baía predileta. Dali se descortinava o panorama de um grande cemitério, para o qual acorriam diariamente magotes de gente enlutada carregando um caixão. Sobre o assunto, Flitch saíra-se com este comentário:

— Plantar, plantam bastante... mas colher que é bom...

Depois Barbagris voltava para Marta, o mais das vezes com a barba esbranquiçada pela geada, voltava para o ventoso aposento de Killcanon que ela conseguira transformar em lar. Tanto Charley como Pitt moravam fora do Sagrado Coração, onde tinham conseguido acomodações mais baratas. Charley, a quem viam diariamente, conseguira um emprego num curtume. Pitt tinha voltado à caça e não fazia nenhuma questão de lhes procurar a companhia. Certa feita Barbagris viu o seu pequeno e solitário vulto na margem sul do lago.

Mesmo nas manhãs mais escuras Barbagris apresentava-se já às seis no portão do colégio, esperando que este fosse aberto para ir trabalhar. Fazia um mês que estava a serviço de Flitch quando certa manhã o sino da arruinada torre começou a bimbalhar.

Era o dia de Ano-Bom, que para os habitantes de Oxford era de festa.

— Não precisa trabalhar hoje — disse Flitch a Barbagris, quando este surgiu na pequena granja. — A vida é curta... você é jovem... divirta-se...

— Em que ano estamos? Perdi o calendário e já não sei a quantas andamos.

— Que importa? Não sei quantos anos tenho e menos ainda quantos tem o mundo. Volte para a sua Marta.

— Estava pensando. Por que o Natal não foi festejado?

Flitch parou de ordenhar a ovelha e lançou um olhar divertido para Barbagris.

— Pergunta por que se haveria de festejá-lo? Já sei que não é religioso... caso contrário não faria tal pergunta. O Natal foi inventado para celebrar o nascimento do filho de Deus, não é assim? E os Estudantes do Sagrado Coração consideram de mau gosto comemorar nascimentos nos dias que correm. — Ele arrastou o banquinho e o balde até junto de uma cabrita e acrescentou: — Claro que se estivéssemos sob a tutela de Balliol ou Madalena... ali ainda se celebra o Natal.

— Você é religioso, Joe?

Flitch fez uma careta.

— Deixo isso para as mulheres.

Barbagris voltou para casa através das ruas lamacentas. Pela expressão no rosto da mulher percebeu que acontecia alguma coisa de inusitado. Ela explicou que naquele dia as crianças de Balliol eram exibidas ao público e que desejava ir vê-las.

— Nada de ir ver crianças, Marta. Só servirá para deixá-la perturbada. Fique aqui comigo. Vamos dar um pulo até a casa de Tubby e tomar um trago com ele. Venha conhecer o velho Joe Flitch... não precisa ser apresentada às mulheres. Ou então...

— Algy, quero ir ver as crianças. Sou capaz de suportar o choque. É uma espécie de acontecimento social... coisa rara nestas bandas. — Marta ajeitou os cabelos no capuz, deitando um olhar carinhoso, embor


distante, para Barbagris. Este sacudiu a cabeça e apanhou-a pelo braço.

— Você sempre foi muito teimosa, Marta.

— Com você, sempre fui uma manteiga derretida, Algy. Está farto de sabê-lo.

Numerosas pessoas trilhavam a senda conhecida como “Caminho do Milho”, provavelmente em razão de uma das ruas laterais apresentar uma faixa cultivada daquele cereal. O aspecto dessas pessoas era tão acinzentado e sombrio como o das velhas edificações diante das quais desfilavam. Todos mordiam as gengivas por causa do frio e pouco falavam entre si. Medrosamente, caminharam para uma carroça puxada por uma parelha de renas. Quando a carroça alcançou Marta e Barbagris, alguém chamou-a pelo nome.

Norman Morton, com uma capa universitária sobre a espessa proteção de peles, ocupava a carroça, fazendo-se acompanhar de outros estudantes, inclusive os dois que Barbagris tinha conhecido e mais Gavin e Vivian. O veículo parou e os dois pedestres foram convidados á embarcar. O casal foi guindado a bordo.

— Surpreendem-se de que eu esteja a participar deste divertimento popular? — indagou Morton. — Interesso-me tanto pelas crianças de Balliol como pelos meus animais. São grandes atrações e refletem o prestígio dos seus amos. O que lhes acontecerá dentro de alguns anos, quando estiverem crescidas, escapa à alçada desses amos.

A carroça colocou-se em posição favorável diante da desgraciosa fachada vitoriana da mal cuidada fortaleza de Balliol. A eficácia da artilharia do Cel. Appleyard achava-se ali patenteada. A torre tinha ficado reduzida a um toco e duas seções da fachada tinham sido canhestramente remendadas com pedras novas. Uma espécie de cadafalso fora. erigido diante do portão principal e a bandeira do colégio ali tremulava.

Estava lá reunida a maior multidão que Marta e Barbagris tinham visto nos últimos anos. Embora a atmosfera fosse mais solene que alegre, numerosos camelôs movimentavam-se entre o povo, vendendo lenços e bijuterias baratas e chapéus de plumas, além de cachorros-quentes e panfletos. Morton apontou para um homem carregando uma bandeja de livros e impressos.

— Como vêem, Oxford continua sendo a pátria dos direitos autorais. Tradição é tradição. Vejamos o que o sujeito tem a oferecer, hein?

O sujeito era um indivíduo mudo com um cartão colado na lapela anunciando: “Vendedor da Editora Universitária”, mas a maior parte da sua mercadoria, conforme verificação de Gavin, consistia em uma mal impressa edição de um romance de aventuras.

Marta comprou um panfleto de quatro folhas produzido para a ocasião, e que ostentava o título: Feliz Ano-Novo, Salve 2030! Eh entregou o papel a Barbagris.

— A poesia parece ter ressuscitado, embora isto seja em sua maior parte pornográfico. Acaso lhe lembra alguma coisa?

Barbagris leu a primeira quadra. A mescla de infantilidade è pornografia pareceu-lhe familiar.

“Olá, bonitão, Cadê teu tesão? Andam todos gritando E a ninguém gerando...”

— América — disse ele. Os nomes das coisas fazia mais de vinte anos que lhe tinham fugido. Depois sorriu para Marta. — O nosso padrinho... vejo-o claramente... como é que ele chamava esse tipo de coisas? Fosseira! Por Deus, como faz a gente recordar!

Barbagris enlaçou Marta pela cintura.

— Jack Pilbeam — disse ela. Ambos riram, agradavelmente surpreendidos, e exclamaram em uníssono: — Minha memória está fraquejando...

Por um instante ambos fugiram ao presente, bem como às estruturas apodrecidas e mal cheirosas dos circunstantes. Voltaram a um mundo mais limpo, àquela Washington vertiginosa que tinham conhecido.

Um dos presentes de casamento que tinham recebido de Bill Dyson fora uma licença para viajar pelo país. Parte de sua lua-de-mel haviam-na passado em Niágara, fingindo-se americanos, a ouvir o estrondo das poderosas quedas d'água.

Enquanto lá estavam, tomaram conhecimento da novidade. O seqüestrador de Marta tinha sido identificado e preso. Era Dusty Dykes, o cômico que Jack Pilbeam os levara a ver. A notícia tinha sido manchete em toda parte, mas no dia seguinte aconteceu um grande incêndio em Detroit, que veio ocupar todas as primeiras páginas.

O mundo das notícias e dos acontecimentos estava morto e enterrado. Até mesmo na sua recordação tornara-se vago e impreciso, porque eles próprios constituíam parte da sua desintegração. Barbagris cerrou os olhos, sem coragem de olhar para Marta.

O desfile começou. Diversos dignitários, escoltados por guardas, assomaram aos portões de Balliol. Alguns subiram ao cadafalso, outros postaram-se na passagem. O Reitor surgiu, velho e frágil, o rosto branco contrastando com a negrura da capa e do cabelo. Ajudaram-no a subir os degraus. Ele fez um discurso tão breve como inaudível, terminado por um acesso de tosse e pela aparição das crianças.

A menina foi a primeira a aparecer, caminhando com garbo e olhando em torno de si. O aplauso da multidão fez que seu rosto se iluminasse. Ela subiu à plataforma e acenou. Era completamente calva, tendo o crânio bastante nodoso. Uma de suas orelhas, conforme tinham dito a Barbagris, era hipertrofiada e se transformara numa massa desordenada de carne. Dependendo da posição em que se colocava relativamente aos espectadores, ela ficava parecendo um duende.

A multidão se extasiou ante aquela visão de juventude. Muitos bateram palmas.

A seguir vieram os meninos. O portador do defeito no braço não parecia de boa saúde: tinha o rosto pisado e manchado de azul. Limitava-se a acenar, mas não sorria. Teria seus treze anos de idade. O outro rapaz era mais velho e mais saudável. Tinha olhar calculista. Barbagris encheu-se de simpatia por ele, sabedor de como são as multidões. Talvez o rapaz pensasse que aqueles mesmos, cujo aplauso era tão fácil agora, no ano seguinte lhe reclamariam o sangue. De maneira que ele acenava cordialmente, mas seus olhos não chegavam a sorrir.

E a coisa terminou logo. As crianças retiraram-se entre gritos do público, onde se viam muitos rostos molhados de lágrimas. Muitas mulheres idosas choravam abertamente, e os camelôs conseguiam vender lenços em profusão.

— Espetáculo edificante — murmurou Morton mordazmente.

A seguir dirigiu-se ao condutor da carroça e eles se puseram a caminho, rompendo com dificuldade a multidão. Estava claro que muita gente ainda se demoraria por ali, aproveitando o ensejo para desfrutar de companhia.

— Aí está — disse Gavin sacando do bolso um lenço para limpar a sebosa fronte. — Chega de milagres. Já sabemos que, sob determinadas condições, a raça humana talvez se regenere. Mas é menos fácil para os seres humanos recomeçar tudo do que para alguns outros mamíferos. Basta um casal dos arminhos de Morton, ou um par de coelhos ou de coypus, para que, com um pouco de sorte, ao cabo de cinco anos se tenha toda uma coorte deles, hein Morton? Os seres humanos requereriam pelo menos um século para atingir tais números. E muita sorte também. Os roedores e os animais de pequeno porte não se exterminam mutuamente como o homo sapiens.

— Suponho que o objetivo desta exibição anual é fazer que as pessoas se familiarizem com as crianças, diminuindo assim o risco de que estas sejam maltratadas? — perguntou Marta.

— O efeito psicológico de providências desse tipo é de hábito o oposto do desejado — observou Gavin com seriedade.

Depois disso, a viagem processou-se em silêncio até os portões do Sagrado Coração. Quando apearam, Barbagris perguntou:

— O senhor eliminaria essa demonstração de Balliol, se tivesse poder para tanto, Estudante Morton?

O velho lançou-lhe um olhar de soslaio.


— Eliminaria a natureza humana, se tivesse poder para tanto. Somos um bando de malvados, nós os homens.

— Tal como eliminou a celebração do Natal? — atalhou Marta.

O velho rosto enrugado pareceu sorrir. E piscou para Marta.

— Elimino tudo aquilo que acho justo... Eu, Gavin e Vivian. É que exercemos a nossa sabedoria com vistas ao bem comum. Eliminamos numerosas coisas mais importantes que o Natal, esteja certa.

— Por exemplo?

— O Reitor, por exemplo — disse o Estudante Vivian, exibindo a dentadura postiça num dos seus raros sorrisos.

— Dê uma olhada na Catedral — sugeriu Morton.

— Nós a transformamos em museu, onde guardamos um monte de coisas banidas. Que me dizem, cavalheiros: aproveitamos o bom tempo e damos uma espiada no nosso museu?

Os outros dois Estudantes, Gavin e Vivian, tendo concordado, a comitiva rumou para a seção leste, onde a catedral se inseria no edifício do colégio.

— O sem-fio... o rádio, quero dizer... é uma das coisas que não apreciamos na nossa pequena gerontocracia — disse Morton. — É uma coisa sem proveito para nós, e as notícias do mundo exterior poderiam perturbar-nos. Quem se interessa pelo índice de mortalidade em Paris ou pelas dimensões da fome em Nova Iorque? Ou mesmo pelo tempo que faz na Irlanda?

— Então têm aqui uma estação de rádio, hein? — perguntou Barbagris.-

— Bem, temos um caminhão-transmissor — balbuciou Morton, experimentando uma enorme chave na porta da catedral. Empurrando conjuntamente, ele e Vivian conseguiram abrir a porta.

Juntos, penetraram na escuridão do templo.

Ali, próximo da porta, encontrava-se o caminhão da DOHUC(I).


— Este caminhão me pertence! — exclamou Barbagris, correndo a colocar as mãos sobre o capo. Ele e Marta ficaram como que extáticos diante do veículo.

— Perdão, mas não lhe pertence — disse Morton. — É propriedade dos Estudantes desta Casa.

— Não estragaram nada — observou Marta, iluminando-se quando Barbagris abriu a porta e entrou na cabina. — Oh, Algy, isto não lhe recorda muita coisa? Jamais pensei que iria vê-lo de novo! Como terá vindo parar aqui?

— Parece que algumas das gravações que fizemos estão faltando. Mas os filmes estão exatamente como os deixamos! Lembra-se como atravessamos a Ponte de Littlemore nesta coisa? Éramos uns loucos naquela época. Faz tanto tempo! Jeff Pitt há de se interessar por isto. — Barbagris voltou-se para Norman Morton e os demais Estudantes. — Cavalheiros, este caminhão me foi entregue em confiança por um grupo cujos motivos, estou certo, conquistarão de pronto a sua simpatia... um grupo de estudo. Fui obrigado a trocá-lo por comida, numa época em que eu e o resto estávamos morrendo de fome em Sparcot. Tenho que pedir-lhes que o devolvam.

Os Estudantes ergueram o sobrolho e se entreolharam.

— Vamos até meus aposentos — disse Morton. — Lá talvez possamos discutir o assunto e chegar a acordo, se for o caso. Não existe a possibilidade de que recebam o caminhão de presente, sabem?

— Mas claro. Estou pedindo o que é meu de direito, Sr. Morton.

Marta apertou o braço de Barbagris ao saírem da catedral e fecharem a porta.

— Vá com jeito, querido — sussurrou ela.

A caminho Gavin disse:

— É novo nestas paragens, mas já deverá ter observado que mantemos guardas em todos os muros. Tal guarda talvez seja desnecessária, decerto é pouco eficiente. Mas esses velhos são pensionistas, vêm para cá quando não têm mais para onde ir, e somos obrigados, por uma questão de humanidade, a acolhê-los. Eles pagam sua manutenção trabalhando como guardas. Não somos uma instituição de caridade, sabe? Os nossos cofres não nos permitem esse luxo. Todos, Sr. Barbagris, todos sem exceção viriam viver aqui, se deixássemos. Ninguém deseja trabalhar depois dos cinqüenta anos, particularmente quando não há gerações futuras a quem legar os frutos desse trabalho.

— Exatamente, Gavin — concordou Vivian, batendo com a bengala nas rotas bandeiras. — Somos forçados a assumir atitudes bastante estranhas ao modo de agir dos nossos predecessores e fundadores. O Cardeal Wolsey morreria se... Por isso fazemos do lugar uma mescla de taverna, casa de penhores, mercado de gado e bordel. Não se pode fugir à lógica do dinheiro.

— Entendi — disse Barbagris, ao chegarem aos aposentos de Morton, onde o mesmo indivíduo de nariz aquilino que os recebera no primeiro dia apressou-se em arrolhar uma das garrafas do amo e desaparecer na sala pegada. — Pretendem que eu pague pelo que é meu.

— Não necessariamente — disse Morton, inclinando-se diante do fogo e espalmando as mãos. — Poderíamos, se ficasse provado que se trata mesmo de um veículo de sua propriedade, cobrar-lhe uma taxa de estacionamento... uma taxa de armazenagem, sabe?... Vejamos... O tesoureiro terá feito alguma anotação, mas o veículo deve estar em nossa luxuosa garagem episcopal há uns bons oito anos... Digamos uma modesta soma de três xelins por dia... hmm... Vivian, você que é matemático...

— Minha cabeça já não é mais a mesma.

-— O que não é novidade para ninguém...

— Seriam mais ou menos quatrocentas libras.

— É absurdo! — protestou Barbagris. — Jamais conseguiria levantar soma parecida. Como adquiriram o veículo, gostaria de saber.

— Suas intenções começam a ficar transparentes, Sr. Barbagris — disse Morton. — Nesta sala erguemos brindes, mas nunca nossas vozes. Quer beber conosco?

Marta adiantou-se.

— Com prazer, Sr. Morton. — E colocou uma moeda sobre a mesa. — Pagaremos o que nos servir.


O rosto vincado de Morton endireitou-se e seu queixo encompridou tanto que pareceu perder-se no interior do paletó.

— Madame, a presença de uma mulher não transforma automaticamente este lugar em taverna. Por favor, guarde esse dinheiro do qual irá precisar.

Ele meteu a língua na gengiva superior, sorriu amargamente, ergueu o copo e disse, com voz mais cordata do que anteriormente:

— Sr. Barbagris, foi por esta maneira que esse veículo que tanto lhe interessa veio ter às nossas mãos. Chegou aqui pilotado por um velho mascate. Conforme o amigo Gavin deve estar lembrado, esse mascate ostentava um único olho e miríades de piolhos. Pensava que estava morrendo. E nós fomos da mesma opinião. Nós o recolhemos e cuidamos dele. Ele sobreviveu ao inverno... coisa que muito homem mais forte não conseguiu fazer... e recuperou-se na primavera. Tinha uma espécie de paralisia e não servia nem para montar guarda. Em pagamento da sua estada, entregou-nos o caminhão. Uma vez que se tratava de coisa inteiramente inútil para nós, foi muito favorecido na transação. Depois de uma bebedeira, faz alguns meses, morreu... segundo me consta, amaldiçoando seus benfeitores!

Cismarento, Barbagris entrou a sorver o vinho.

— Já que o caminhão não tem valor para vocês, por que não o entregam a mim de graça?

— Porque se trata de um bem patrimonial nosso. Suponha que a taxa de armazenagem chegue a umas quatrocentas libras, como calculou Vivian, nesse caso lhe entregaríamos o caminhão por duzentas libras. Que nos diz?

— Mas estou falido! Seriam precisos... sabem como ganho pouco com Joe Flitch... seriam precisos quatro anos para juntar tanto dinheiro.

— Poderíamos reduzir o preço da armazenagem durante esse período, não é, Gavin?

— Se o tesoureiro concordar...

— Precisamente. Digamos um xelim por dia durante os quatro anos... Vivian?


— Minha cabeça já não é a mesma. Setenta e cinco libras mais, creio.

Barbagris começou a fazer um relato das atividades da DOHUC(I). Explicou quantas vezes se exprobara por permitir que o caminhão caísse em mãos de um mascate, embora a transação tivesse evitado que metade da população de Sparcot perecesse à fome. Os Estudantes não se abalaram. Na verdade, Vivian salientou que o veículo sendo tão valioso e a propriedade não tendo ficado claramente demonstrada, o melhor seria vendê-lo por mil libras. E assim encerrou-se a discussão, com os homens do colégio firmes no seu propósito de conseguir dinheiro.

No dia seguinte Barbagris foi falar com o venerável tesoureiro e assinou um documento pelo qual se comprometia a pagar semanalmente determinada importância, enquanto não saldasse a conta de armazenagem.

Aquela noite, tristonho, ele deixou-se ficar sentado em seu quarto. Nem Marta nem Charley, que aparecera trazendo consigo Isaac, conseguiriam animá-lo um pouco.

— Se tudo correr bem, levaremos cinco anos para liquidar a dívida — esclareceu ele. — Ainda assim, acho-me na obrigação de pagá-la. Você me entende, não é, Marta? Assumi um compromisso com a DOHUC para toda a vida e honrarei as minhas obrigações... quando um homem nada tem, que mais pode fazer? Ademais, quando tivermos de novo o caminhão, poderemos pôr o rádio a funcionar e captar outros caminhões. Ficaremos sabendo o que anda pelo mundo. Gosto de saber o que acontece, ao contrário desses velhos tolos. Não seria ótimo entrarmos em contato com Jack Pilbeam em Washington?

— Se é isso mesmo o que deseja, Algy — disse Marta, — estou certa de que cinco anos passarão voando.

Barbagris fitou-a nos olhos.

— Exatamente — concordou.

Os dias se sucederam. Passaram-se meses. Ao inverno seguiu-se a primavera, e à primavera o verão. Depois do verão veio um novo inverno, depois mais um verão. A Terra se renovou. Só os homens envelheceram e não foram substituídos. As árvores cresceram, os viveiros tornaram-se mais barulhentos, os cemitérios se encheram, as ruas silenciaram. Barbagris, com qualquer tempo, atirava-se ao Lago dos Prados, recolhia suas braçadas de juncos, aceitando as coisas como elas vinham, sem preocupar-se com a iminência de uma época em que os homens já não teriam energia nem vontade para cobrir as próprias moradias.

Marta continuou trabalhando entre os animais, ajudando o assistente direto de Morton, o artrítico e nodoso Thorne. O trabalho era interessante. A maioria dos mamíferos estava procriando normalmente, embora as vacas, cujo rebanho era diminuto, continuassem abortando com alguma freqüência. Os animais de desenvolvimento sadio eram leiloados em vida na praça, ou então abatidos e vendidos sob a forma de carne verde.

À Marta pareceu que uma espécie de eclipse espiritual sobreviera a Barbagris. Quando, à noite, ele voltava da fazenda de Flitch, dificilmente achava o que dizer, embora ouvisse sempre com interesse as novas acerca do colégio, recebidas através de Thorne. O casal pouco via Charley Samuels e praticamente nunca se avistava com Jeff Pitt. Ao mesmo tempo, Marta e Barbagris demoravam a fazer novas amizades. O seu precário relacionamento com Morton e os Confrades desfez-se tão logo o acordo comercial foi selado.

Marta não permitiu que as mudanças de condições interferissem no seu trato com o marido. Eles se conheciam havia tempo e tinham enfrentado juntos muitas dificuldades. Marta costumava comparar seu amor com o lago em que, dia após dia, Barbagris mourejava: a superfície refletia cada alteração do tempo, mas sob ela prevalecia uma paz indestrutível. Por causa disso, foi-lhe possível deixar que os dias passassem sem maiores complicações.

Retornando a seus aposentos (tinham-se transferido para melhores acomodações em Peck) certa tarde de verão, Marta veio encontrar o marido já de volta à casa. Ele estava lavado e acabara de pentear as barbas.

Beijaram-se.


— Joe Flitch está de briga com a mulher. Mandou-me de volta mais cedo para poderem discutir em paz... foi o que ele disse. Além disso, há outra razão para eu estar aqui... hoje é meu aniversário.

— Oh, querido, tinha-me esquecido! Nunca me lembro das datas... apenas dos dias de semana.

— Hoje é sete de junho... faço cinqüenta e seis anos e você está mais linda do que nunca.

— E é o homem mais jovem do mundo!

— Serei? E sempre o mais bonito?

— Hmmm... sim, embora se trate de coisa muito subjetiva. Como iremos comemorar? Quer ir para a cama comigo?

— Para variar, não. Pensei que gostasse de dar uma volta de barco. A tarde está linda.

— Querido, não está farto desse esquife? Sim, adoraria dar uma volta se estiver com vontade.

Barbagris afagou-lhe os cabelos e fitou-lhe o enrugado semblante. A seguir abriu a mão esquerda e mostrou-lhe um saco de dinheiro. Marta olhou interrogativamente para o esposo.

— Onde arranjou isso, Algy?

— Marta, o meu trabalho no lago chegou ao fim. Fui um louco nestes dois últimos anos, trabalhei como escravo. E para quê? Para juntar dinheiro suficiente para comprar esse maldito e obsoleto caminhão. Eu esperava tanto de você... Sinto muito, Marta, não sei por que fiz isto... Saquei o dinheiro com o tesoureiro... a maior parte das minhas economias de dois anos. Podemos partir agora... sair para sempre deste buraco!

— Oh, Algy... Tenho sido feliz aqui. Você sabe que tenho sido feliz... Nós temos sido felizes. Isto é o nosso lar.

—- Bem... agora seguiremos em frente. Ainda somos jovens. Verdade, Marta? Diga-me que ainda somos jovens! Não vamos apodrecer aqui. Levemos a cabo o nosso velho plano de descer o rio até chegar à sua desembocadura no oceano. Você gostaria, não é assim? É capaz de vir, não é?


Marta ergueu os olhos para os telhados dos estábulos da vizinhança e para o céu azul em cima. Por fim, com voz grave, perguntou:

— É o seu grande sonho, Algy, não?

— Oh, querida, você sabe que é. Isto aqui é uma espécie de... uma espécie de ratoeira. Haverá outras comunidades à beira-mar onde poderemos viver. Lá tudo será diferente... Não chore, Marta... não chore, criatura!

O crepúsculo já se instalara quando os pertences do casal se acharam arrumados e eles, pela última vez, transpuseram os altos portões do colégio, dirigindo-se encosta abaixo em procura do barco, do rio e do desconhecido.

 

Para sua surpresa, Marta sentiu um frêmito de alegria por achar-se uma vez mais no rio. Sentada no esquife, os joelhos apertados, ela sorria de ver Barbagris sorrir. A decisão de seguir em frente não tinha sido tão espontânea como ele queria fazer crer. A embarcação estava bem provida, e a vela de que dispunham era melhor que a que anteriormente usavam. Com enorme prazer, Marta constatou que Charley Samuels também vinha com eles, durante a estada em Oxford ele envelhecera sensivelmente: seu rosto tornara-se murcho e lívido como um círio. Isaac a raposa tinha morrido alguns meses antes, mas Charley continuava tão merecedor de confiança quanto antes. Eles não se encontraram com Jeff Pitt para as despedidas. O caçador embrenhara-se no mato uma semana antes e ninguém mais o tinha visto. Se morreu ali ou partiu em busca de outros locais, isso ficou sendo mistério.

Para Barbagris a sensação de água correndo sob o fundo da embarcação era como que uma libertação. Assobiando, ele passou diante do lugar onde um dia, na época de Croucher, morara com Marta num apartamento, antes de ser convocado aos quartéis do ditador. Seu estado de espírito era agora inteiramente diverso, a ponto de lhe ser difícil recordar a pessoa que tinha sido outrora. Mais próximo do seu coração (e muito mais nítido na memória) encontrava-se o menino que fora um dia, aquele menino que se encantava de excursionar pelo Tâmisa, nos idos de 1982, quando convalescia do mal das radiações.


À medida que demandavam o Sul, a renovada sensação de liberdade fazia-o voltar à liberdade da infância.

Mas só nas recordações aquela época se desenhava como de liberdade. A criança que ele tinha sido jamais fora mais livre que o calvo e tostado homem maduro que Barbagris era agora. A criança tinha sido prisioneira, prisioneira da fraqueza e da ignorância, dos caprichos paternos, da monstruosa sina recém-imposta ao mundo. A criança tinha sido simples joguete.

Ademais, a criança teria diante de si uma longa caminhada de tristezas, perplexidades e lutas. Como, então, podia um homem retroceder no tempo quarenta e nove anos e contemplar o menino presa dos acontecimentos com uma emoção que não fosse de compaixão mas de inveja?

Com a freada do carro, Jock, o ursinho de pijama, rolou sobre o banco do carro. Algy apanhou-o e recolocou-o na janela traseira.

— O Jock também deve estar doente, mamãe. Está caindo à toa.

— Talvez ele se sinta melhor depois de darmos uma olhada na casa — disse Patrícia Timberlane. Ela ergueu o que lhe restava de sobrancelhas para a sua amiga Venice, sentada a seu lado. — Tenho certeza que sim.

Patrícia apeou e abriu a porta traseira, ajudando o filho a descer. Era um menino bem alto para os seus sete anos, mas a doença tornara-o magruço e sem vida. Tinha o rosto cavado e pele grossa. Á mãe, cuidando do filho doente e estando ela própria mal de saúde, não parecia melhor que ele. Mas sorriu para o garoto, animando-o:

— Creio que Jock não está com vontade de ver a casa nova agora.

— Já lhe disse, mamãe: ele está doente. Puxa, quando a gente está doente a única coisa que quer é morrer, como Frank. Acho melhor a gente ficar aqui no carro.

— Está bem. — Era ainda motivo de dor a recordação da morte de Frank, o filho mais velho, depois de tantos meses de doença.

Venice veio em socorro de Patrícia.

— Não gostaria de brincar aí fora, Algy, enquanto eu e mamãe damos uma espiada na casa? O jardim é uma beleza. Mas não vá cair no Tâmisa senão você fica ensopado.

Mayburn era uma casa tranqüila, localizada em Londres e a pouca distância do subúrbio onde residiam os Timberlanes. O lugar permanecera desocupado durante seis semanas e o corretor que entregara as chaves a Patrícia garantira que a ocasião era propícia para comprar, uma vez que os imóveis estavam em baixa no mercado. Na primeira oportunidade, ela e o marido tinham vindo ver a casa, mas agora ela queria fazer-se acompanhar de alguém mais receptivo à idéia da mudança. Artur era um excelente sujeito, mas tinha sempre problemas de dinheiro.

O encanto da casa é que, mesmo sendo pequena, tinha nos fundos um bom terreno que dava para o rio, bem como um pequeno cais flutuante. O lugar lhes serviria muito bem a ambos. Artur era um apaixonado da jardinagem, ela adorava o rio. No começo do verão, quando ela e Algy sentiam-se melhor, tinha sido uma delícia meter-se em roupas frescas e viajar de barco pelo rio, vendo a cidade passar. No rio, a fraqueza da convalescença assumia características quase espirituais.

Patrícia abriu a porta da frente e entrou, com Venice nos calcanhares. Algy dirigiu-se para os fundos da casa.

— Claro que está um pouco feia — comentou Patrícia enquanto percorriam os compartimentos vazios, mas cheios de ecos. — Os últimos proprietários eram loucos por branco... que falia de vida! Mas, com pintura diferente, as coisas vão mudar de aspecto. Acho que podemos derrubar esta parede... hoje em dia não se usa mais copa... e teríamos uma belíssima vista do rio. Não sabe como estou ansiosa por fugir de Twickenham. É o lugar de Londres que mais decai de ano para ano.

— Artur parece gostar muito de lá — disse Venice, observando cuidadosamente as reações da amiga que espiava pela janela.

— Artur... bem, sei que lá ficamos mais perto da fábrica do que aqui. Claro que estamos vivendo tempos difíceis, Venice, e este maldito mal das radiações só tem servido para deixar todo mundo deprimido, mas por que Artur não se anima um pouco? Pode parecer horrível, mas, ultimamente, ele só faz me aborrecer. E agora tem esse novo sócio, o jovem Keith Barrat, que poderia incentivá-lo um pouco...

— Ah, sei que você gosta de Keith — disse Venice, sorrindo.

Patrícia voltou-se para a amiga. Antes da doença e da morte de Frank, tinha sido uma linda mulher. Agora que sua vivacidade tinha desaparecido, tornava-se patente que a maior parte de seus encantos repousava sobre aquela qualidade.

— Está dando na vista? Nunca disse nada a ninguém. Venny, você está casada há mais tempo que eu. Continua amando Edgar?

— Não sou tão transparente como você. Sim, amo Edgar. Amo-o por muitas razões. É um bom sujeito... inteligente, não ronca. Amo-o também porque ele se ausenta muito e isso torna mais fácil o nosso relacionamento. A propósito, ele estará de volta do Congresso de Medicina da Austrália esta noite. Não podemos demorar aqui. Preciso preparar o jantar.

— Mudou de assunto, hein?

Através da janela da cozinha, elas viram Algy correndo pelo relvado, com finalidades que ninguém seria capaz de dizer. Ele correu até uma touceira de lilases e pôs-se a estudar a sebe que separava o jardim do jardim vizinho. O lugar parecia excitá-lo. Fazia bem tempo que ele vivia encerrado entre as quatro paredes de seu quarto de dormir. A sebe estava quebrada num ponto, mas o menino não tentou passar-se para o jardim pegado, embora pensasse com seus botões que seria ótimo se todas as cercas do mundo fossem abaixo, permitindo que cada qual pisasse onde bem entendesse. Apanhou uma vareta, tocou com ela ao longo da sebe, pareceu gostar da experiência, e repetiu-a. Uma menininha aproximadamente da sua idade surgiu no outro lado.

— É mais fácil derrubar a cerca empurrando com o corpo — disse ela.

— Não quero derrubar a cerca.

— Que está fazendo então?

— É que papai vai comprar esta casa.

— Que pena! Não vou poder brincar mais aí no jardim. Aposto que o seu pai vai consertar a cerca.

Saltando em defesa do pai, Algy disse:

— Não vai não. Ele não sabe fazer essas coisas. Aliás não sabe fazer nada. — Examinando-a melhor através da cerca, Algy perguntou: — Puxa, você é careca! Como se chama?

— Meu nome é Marta Jennifer Broughton e o meu cabelo vai tornar a crescer quando eu for grande.

Algy aproximou-se mais da cerca, a fim de vê-la melhor. A menina usava uma saia pregueada vermelha e tinha no rosto uma expressão franca e aberta, mas o alto do seu crânio era inteiramente pelado.

— Papagaio, você é careca mesmo!

— O Dr. Mac Michael diz que o meu cabelo vai tornar a crescer, e é o melhor médico do mundo, conforme disse papai.

Menininhas com pretensões a autoridades em assuntos médicos serviam para pôr Algy em brios.

— Eu sei. Nós também consultamos com o Dr. Mac Michael. Ele vinha me ver todos os dias porque estive às portas da morte.

A menina aproximou-se mais da sebe.

— Chegou mesmo a ficar perto?

— Pertíssimo. É uma coisa muito chata. A gente fica sem forças.

— Foi o Dr. Mac Michael que disse?

— Sim, muitas vezes. Foi o que aconteceu com o meu irmão Frank. Ficou completamente esgotado. E acabou atravessando o portão.

Ambos riram. Disposta a trocar confidencias, Marta perguntou:

— O Dr. Mac Michael tem as mãos um bocado frias, não tem?

— Nunca fiz caso. Afinal de contas tenho sete anos de idade.

— Engraçado, eu também tenho.

— Muita gente tem sete anos. Devo lhe dizer que o meu nome é Algernon Timberlane, mas pode me chamar de Algy. Meu pai tem uma fábrica de brinquedos.


Será que vamos brincar juntos quando eu vier morar aqui? Meu irmão Frank, que morreu, dizia que as meninas são molóides.

— Acha que eu sou molóide? Corro tão depressa que ninguém é capaz de me apanhar.

— Humm, aposto que seria capaz de pegá-la!

— Vamos fazer uma coisa... eu vou ao seu jardim, que é bom... porque não tem flores para atrapalhar. E a gente brinca de pegador.

Ela ergueu graciosamente a saia e atravessou o buraco na cerca. Algy gostou imediatamente dela. O cheiro agradável da tarde, o claro-escuro do rosto da menina, aquilo tudo tocou-lhe o coração.

— Não devo correr muito — disse ele — porque estive doente.

— Achei você com uma cara horrível. Devia passar algum creme no rosto, como eu. Vamos brincar de esconde-esconde, então. Esse seu pavilhão de verão é genial para a gente se esconder.

— Está bem, vamos brincar de esconde-esconde — concordou Algy. — Mostre-me o pavilhão.

Patrícia acabara de medir as janelas para a colocação de cortinas, e Venice, fumando um cigarro, aguardava o momento de voltar.

— Aí vem seu maridinho — anunciou ela ao perceber a aproximação de um carro.

— Ele prometeu estar aqui há meia hora. Ultimamente, Artur tem-se atrasado sempre. Quero que dê uma olhada nesta caldeira. Keith vem com ele?

— Você está com sorte, querida. Vem, sim. Vá recebê-los enquanto apanho Álgernon lá fora. Já é hora de irmos.

Venice saiu pela porta dos fundos e chamou Algy pelo nome. Seus filhos eram mais velhos que ele e tinham escapado à maior parte dos maléficos efeitos das radiações. Gerald, na verdade, sofrerá apenas um resfriado, que era o sintoma mais palpável da moléstia nos adultos.

Algy não respondeu ao chamado. No mal cuidado relvado, Venice viu uma menininha de vermelho desaparecer atrás de uma touceira de lilases. Por brincadeira, Venice correu atrás dela, a menininha meteu-se num buraco da sebe e quedou-se a olhar desafiadoramente para ela.

— Não vou lhe fazer mal — disse Venice. Diante do crânio calvo da criança, ela reprimiu uma exclamação de espanto. Não era a primeira que via. — Estava brincando com Algy? Onde se enfiou ele?

— Afogou-se no rio — disse a menina, enlaçando as mãos às costas. — Se não se zangar, eu lhe mostro onde foi.

A menina tremia violentamente. Venice ofereceu-lhe a mão.

— Mostre-me logo. Não entendo o que está dizendo.

A menina transpôs a sebe num instante. Timidamente, deu a mão a Venice, procurando verificar-lhe a reação.

— Minhas unhas nada sofreram, só os cabelos — esclareceu a criança, puxando Venice até o cais flutuante. Faltaram-lhe então as forças e ela desatou a chorar. Durante algum tempo foi incapaz de articular qualquer coisa, afinal, conseguiu apontar para um ponto da escura correnteza.

— Foi ali que Algy se afogou. Olhe bem que o rosto dele aparece de vez em quando à tona d'água.

Alarmada, Venice agarrou-se à criança e procurou com os olhos o local indicado na correnteza. Enroscada a uma raiz, meio submersa e mexendo-se discretamente na água, havia alguma coisa levemente parecida com um rosto humano. Era uma folha de jornal.

Pacientemente, Venice conseguiu que Marta olhasse e notasse seu engano. Mas a menininha continuou chorando, tão sinistro era o aspecto do jornal.

— Agora volte para casa para tomar chá — recomendou Venice. — Algy não pode estar longe. Hei de encontrá-lo... talvez tenha dado volta à casa e entrado. Talvez daqui a pouco vocês tornem a brincar juntos. Gostaria disso, não?

A menina encarou-a com enormes olhos molhados, meneou a cabeça, e disparou para o buraco na sebe. No momento em que Venice se endireitou e se pôs a caminha na direção da casa, Patrícia Timberlane assomou à porta dos fundos em companhia de dois homens. Um deles era seu marido, Artur, homem que aos quarenta anos dava a impressão de ter esquecido os dias da juventude. Venice, que simpatizava com ele (mas era muito menos exigente em seu gosto do que Patrícia), e tinha a tendência de tratar bem a todos que assim a tratavam, era obrigada a reconhecer em Artur uma figura deveras lúgubre. Ele era um homem sobrecarregado de problemas, e nunca se dispunha a enfrentá-los com coragem.

Patrícia travava o marido pelo braço, mas era para o outro homem que os seus olhares se voltavam com maior freqüência. Keith Barratt, diretor da firma de Artur Timberlane, era homem de boa aparência, de rosto demasiado pálido e cabelos claros descuidosamente jogados para trás. Keith só era cinco anos mais moço que Artur, mas seus modos (e principalmente em relação a Pat, pensava Venice com malícia) eram mais joviais, e vestia-se com mais propriedade.

Ao acercar-se do grupo, Venice percebeu um olhar pressago trocado entre Patrícia e Keith. Percebeu nesse olhar (e com pesar) que se aproximava uma crise.

— Venice gostou da casa, Artur — disse Patrícia.

— Tenho medo da umidade, com o rio tão perto — disse Artur para Venice. Ele colocou as mãos nos, bolsos traseiros da calça e olhou para o rio com ar de quem temia fossem as águas levantar-se e engolfá-los a todos. Foi com aparente relutância que ele se voltou para ela a fim de perguntar-lhe: — Edgar chega cedo esta noite? Bom. Por que não vêm tomar um trago conosco? Gostaria de saber como estão as coisas na Austrália. Parecem-me pretas, pretas de verdade.

— Art, que pessimista é você! — disse Keith. Seu tom era de branda censura e ele falava com voz arrastada. — Deixe disso! Uma tarde linda como esta e você com essas conversas. Espere o relatório da MR para ver como estão as coisas por aí. Com a vinda do Natal as vendas irão aumentar. — À guisa de esclarecimento, disse para Venice: — Fizemos uma pesquisa de mercado para saber a exata situação do nosso ramo: o relatório nos será entregue amanhã. — Ele fez uma estranha careta e fingiu cortar o pescoço com o magro indicador.

— O relatório deveria ter vindo hoje — disse Artur, sempre com as mãos nos bolsos, as costas arcadas, examinando tudo em torno enquanto falava. — A tarde já tem um toque de outono. Onde está Algy, Pat? Voltemos para casa.

— Quero que dê uma espiada na caldeira antes de irmos, querido — disse Patrícia.

— Falaremos na caldeira mais tarde. Onde está Algy? Nunca está por perto quando precisamos dele.

— Anda se escondendo por aí — disse Venice. — Esteve brincando com a menininha do vizinho. Por que vocês dois não vão procurá-lo? Preciso ir embora, senão o jantar não ficará pronto a tempo. Keith, seja bonzinho e me dê uma carona. Não precisará desviar-se muito do seu caminho.

— Com prazer — disse Keith, sem fazer nenhum esforço por parecer sincero. Fizeram-se as despedidas, e os dois rumaram para a entrada. Keith e Artur tinham vindo da fábrica no carro do primeiro, já que Patrícia estava ocupando o carro dos Timberlanes. Keith afastou-se em silêncio, sabedor de que Venice a seu lado não o encarava com bons olhos.

Entre Artur e Patrícia também caiu uma cortina de silêncio, que ele procurou disfarçar dizendo:

— Bem, procuremos o menino, já que é preciso. Talvez esteja na estufa. Por que não o traz de olho?

Sem tomar conhecimento daquela abertura para uma briga (de todos os recursos que empregava era o que mais o aborrecia), Patrícia comentou, quando chegaram ao fundo do jardim:

— Os últimos proprietários deixaram que isto se transformasse numa floresta. Sozinho você não dará conta do trabalho que tem de ser feito. Precisaremos de um jardineiro. Este mato tem que cair fora.

— Ainda não compramos a casa — disse Artur de mau humor. Sua relutância em desapontá-la fê-lo falar de forma mais ressentida do que pretendia. Ela não parecia compenetrar-se de que, dia a dia, seus negócios mais se abeiravam do abismo. E o que mais pesava a Artur era que esse problema, em que a sua firma se afundava a cada minuto que passava, transformava-se numa barreira entre ele e a esposa. Já percebera que não formava com ela um casal unido, a princípio acolhera quase com júbilo a crise financeira, na esperança de que servisse para aproximá-los um do outro, pois Patrícia, antes do casamento, sempre se mostrara receptiva às suas lamentações. Agora, em vez disso, parecia haver algo de intencional na falta de compreensão da mulher.

Claro que a tragédia dos meninos a havia perturbado. Mas, afinal de contas, ela conhecia Sofftoys e sua engrenagem. Fora secretária da firma antes de casar com Artur, jovem de caráter leviano e aparência agradável. Ainda hoje ele relembrava com surpresa o sim de Patrícia. Artur dizia de si para si que era diferente da maioria dos homens: jamais esquecia as coisas boas e más do passado.

Eram as coisas boas que aguçavam as suas atuais dificuldades.

Caminhando pelo relvado, ele sacudiu a cabeça e repetiu:

— Ainda não compramos a casa.

Chegados ao pavilhão de verão, ele abriu a porta. Tratava-se de uma pequenina construção semi-rústica com uma tábua de empena suficientemente baixa para bater na cabeça de um homem alto e uma janela na parede em frente ao rio. A um canto estavam duas cadeiras dobráveis, um pedaço de toldo apodrecido e um tambor de óleo vazio. Artur correu os olhos pelo lugar com desprazer, tornou a fechar a porta, e debruçou-se sobre ela, os olhos fitos em Patrícia.

Sim, para ele a esposa ainda era uma mulher atraente, mesmo depois da moléstia que a acometera e da morte de Frank e dos onze anos que estavam casados. Uma sensação estranha nasceu-lhe no peito e sentiu ímpetos de dizer-lhe que ela era boa demais para ele, que ele estava se esforçando ao máximo, que ela deveria compreender que desde os famigerados bombardeios o mundo entrara em colapso, e que sabia estar ela inclinada por Keith, e que tal coisa o tornava feliz, desde que ela não o abandonasse de supetão.

— Espero que Algy não se tenha afogado no rio — disse Patrícia desviando o olhar do marido. — Talvez ele tenha voltado para casa. Vamos verificar.

— Pat, não se preocupe com o menino. Escute. Lamento muito tudo isto... refiro-me às atuais dificuldades. Amo-a muito, querida. Sei que sou um tanto apagado, mas a época que estamos vivendo...

Ela já lhe ouvira antes a frase: “Sei que sou um tanto apagado” a título de desculpa, como se desculpas fossem o mesmo que regeneração. E acabou perdendo o fio do que ele dizia à recordação do penúltimo Natal, quando o convencera a oferecer uma festa a alguns amigos e relações comerciais. Não tinham tido bom êxito. Artur, percebendo que as coisas não corriam como deviam, surgiu, para surpresa sua, com um par de baralhos e dirigiu-se nestes termos a um bando de funcionários seus e respectivas esposas:

— Escutem... pelo que vejo ninguém está se divertindo... talvez queiram ver algumas mágicas.

Patrícia, uma vez mais, sentiu o rosto afogueado àquela lembrança desconfortável. Não havia gafes iguais às sociais, onde as pessoas procuravam disfarçar o mal-estar com sorrisos. Tinha sido ingênuo da parte dele imaginar que dizendo a verdade iria alterar as coisas.

— Está me ouvindo, Pat? — perguntou Artur. Ele continuava debruçado à porta, como que tentando impedir que alguém a abrisse. — Parece que não anda ouvindo o que digo ultimamente. Você sabe que eu a amo. O que estou tentando dizer é que... que não podemos comprar Mayburn no momento. Os negócios vão muito mal. Seria insensatez. Falei hoje com o gerente do meu banco e ele disse que não seria aconselhável. Como já sabe, estamos com débito no banco. Ele diz que as coisas vão piorar ainda mais. Muito mais.

— Mas estava tudo arranjado! Você prometeu!

— O gerente do banco disse que...

— Ao diabo o gerente... e você também! Que fez com ele?... Algum truque com o baralho? Quando Frank morreu você me prometeu...


— Patty, querida, eu sei que prometi, mas simplesmente não é possível. Não somos mais crianças. Não entende que não temos dinheiro?

— E os seus seguros de vida... — começou ela, para depois conter-se. Ele se tinha acercado dela, mas, de repente, estacara temeroso de ser repelido. Seu traje estava amarfanhado e necessitando de boa passada. Patrícia sentiu a raiva desatar-se.

— Está me dizendo que estamos falidos?

Ele umedeceu os lábios.

— Não é tanto assim, claro. Como sabe, estamos fazendo um levantamento. Mas os resultados do mês passado foram bastante desanimadores.

Patrícia pareceu ainda mais irada.

— Bem, afinal de contas as coisas estão mal ou não, Artur? Por que não desembucha de uma vez? Não pense que sou criança.

Ele teve um olhar difícil para o rosto indeciso, sem saber dentre uma dúzia de coisas qual seria a mais adequada a dizer: que a amava por causa da sua infantilidade? Que embora desejasse, vê-la partilhando dos seus problemas, não a queria magoada? Que precisava da sua compreensão? Que discutir naquele feio jardim fazia-o sentir-se muito mal?

Como sempre, ele percebia que na sua fala não ficava expressa toda a complexidade de seus sentimentos.

— Digo apenas, Pat, que o balanço do mês passado foi muito ruim... muito ruim mesmo.

— Então ninguém mais consome os nossos produtos?

— Mais ou menos isso.

— Nem mesmo o ursinho Jock?

— Não, querida, nem mesmo o ursinho Jock.

Patrícia travou do braço do marido e ambos caminharam abraçados até a casa vazia.

Verificando que Algy lá não estava, os demais problemas passaram para segundo plano, e eles começaram a preocupar-se com o menino. Passaram a chamá-lo pelos quartos vazios. Nenhuma resposta.

Patrícia saiu correndo da casa, sempre gritando, percorreu as moitas do jardim, desceu até o rio, cheia de um receio que não tinha coragem de exprimir. Estava ela próxima do pavilhão de verão quando uma voz chamou:

— Mamãe! — Patrícia voltou-se e deparou com Algy na soleira da porta entreaberta. Com a velocidade do raio, ele correu para ela, chorando.

Abraçando-o com força, ela perguntou-lhe por que não se tinha mostrado quando o chamaram.

O menino não conseguiu explicar-se, mas balbuciou qualquer coisa acerca de uma menina e de uma brincadeira de esconde-esconde.

Era apenas uma brincadeira. Quando o pai veio procurá-lo, não deixou de ser uma brincadeira. Ele queria que o pai o encontrasse e abraçasse. Não sabia por que se mantivera agachado atrás das cadeiras dobráveis, temendo até certo ponto ser descoberto.

Teso, ele conservara-se como estava até que a porta fosse de novo fechada. Tinha ouvido a conversa mantida pelos pais, uma conversa secreta e terrível pelo que tinha de hermético. Ficara sabendo da existência de um mundo aterrador, o qual nem mesmo o pai era capaz de enfrentar. Ficara sabendo também que a vida não se processava num mundo de coisas sólidas e estáveis, mas num completo caos. Amedrontado e vexado, ele se escondera atrás das cadeiras, a um só tempo ansioso por ser achado e temeroso das conseqüências.

— Foi muito cruel da sua parte, Algy, está ouvindo? Você sabia que eu iria ficar preocupada por causa do rio. E não deve brincar com estranhos... já o avisei antes... Às vezes são portadores de moléstias desconhecidas. Você nos ouviu chamar... por que não veio logo?

A resposta de Algy limitou-se a uns soluços.

— Você assustou muito a mamãe e é um menino levado. Por que não diz alguma coisa? Nunca mais virá brincar aqui, entendeu? Nunca mais!

— Verei Marta Broughton de novo, não é?

— Não. Não viremos morar aqui, Algy. Papai não vai comprar a casa. Vamos voltar agora e você vai direto para a cama. Entendeu?

— Foi brincadeira, mamãe!

— Brincadeira de muito mau gosto. Somente no carro, a caminho de Twickenham, Algy se recompôs e debruçou-se no banco para acariciar a mão do pai.

— Papai, quando chegarmos em casa você faz mágicas pra mim?

— Quando chegarmos você vai direto para a cama — respondeu Artur Timberlane, inamovível.

Enquanto Patrícia tratava de acomodar Algy na cama o mais rápido possível, Artur passeava diante do aparelho de televisão. A recepção a cores era má aquela noite, dando aos três cavalheiros assentados em torno de uma mesa nos estúdios da B.B.C. tonalidades apopléticas. Todos eles, um deles fumando desbragadamente, mostravam-se eufóricos com a situação mundial.

Suas vozes macias serviram apenas para enfurecer Artur. Ele não punha fé no atual governo, embora este houvesse, há coisa de apenas um ano, tomado o lugar do antigo governo pró-bomba. Não punha fé nas pessoas que apoiavam o governo. A mudança só traduzia uma frívola crença do público numa cura política para a condição humana, pensava Artur.

Durante as décadas de sessenta e setenta, período correspondente à maior parte da sua vida adulta, Artur jactara-se de não temer a ameaça nuclear.

— Se chegarmos à guerra... tem... será o pior, mas é inútil preocuparmo-nos com o que poderá acontecer. — Aquele era seu ponto de vista de homem comum. Afinal de contas, cabia aos políticos preocupar-se com esse tipo de coisas. A ele competia lutar pela sua ascensão em Sofftoys Ltda., firma em que ingressara na qualidade de viajante no começo dos anos sessenta.

As experiências nucleares sucediam-se, e os países comunistas, bem como seus amigos ocidentais, faziam o seu incompreensível jogo ideológico. Ninguém tomava conhecimento das detonações e as preocupações com o aumento da radiatividade no hemisfério norte eram motivo de aborrecimento geral, para não falar nas notícias de superdosagens de estrondo nas renas da Lapônia ou nos dentes dos escolares de St. Louis. Com o desenvolvimento, nas décadas de sessenta e setenta e quatro, de um incipiente tráfego interespacial, e com Marte, Vênus, Mercúrio e Júpiter em exame, nada parecia mais natural que anunciarem as duas grandes potências a efetivação de uma série de experiências “controladas” com a energia nuclear. A bomba “arco-íris” dos americanos tinha sido a primeira de uma longa seqüência. Muita gente, cientistas inclusive, protestou, mas os protestos não encontraram eco. E muitos eram de parecer que deveria ser mais seguro ativar tais engenhos fora da atmosfera terrestre.

Pois bem, não era mais seguro. Já antes haviam os homens agido na ignorância, desta feita, porém, custaria muito caro a ignorância. Os cinturões de Van Allen, faixas de radiação circundando a Terra, e em muitos pontos bastante superiores em diâmetro ao nosso planeta, foram colocados em estado de violenta atividade pelas explosões nucleares, todas elas no âmbito dos milhares de megatons. Os cinturões tinham entrado a pulsar, contraindo-se e distendendo-se, para depois contrair-se em menor escala uma vez mais. Do ponto de vista visual os efeitos da anomalia foram pequenos, tirante algumas espetaculares ocorrências de auroras boreais e austrais até mesmo em latitudes equatoriais. Do ponto de vista vital, muito maior foi a anomalia. A biosfera sofreu duas severas precipitações radiativas.

Os resultados, a longo prazo, de tais precipitações continuavam, apenas um ano após o fenômeno, imprevisíveis. Mas os resultados imediatos eram evidentes. Embora a maior parte da população do globo caísse vitimada por uma espécie de gripe, grande foi o número daqueles que se recuperaram. As crianças foram as maiores vítimas, muitas delas perdendo cabelos e unhas, quando não morriam, conforme sucedeu a Frank Timberlane. A maioria das mulheres grávidas por ocasião das perturbações abortou. Os animais, e de modo especial aqueles que viviam expostos, tiveram igual sorte. Os relatórios sobre as dizimadas reservas africanas mostraram que os animais selvagens foram grandemente atingidos. Apenas o boi almiscarado da Groenlândia e a rena da Escandinávia setentrional (onde gerações anteriores da espécie tinham presumivelmente se tornado imunes às partículas cósmicas) pareceram não ser afetados pelo mal. Alta percentagem (estimada por alguns peritos em 85 por cento) de cães e gatos domésticos foi atingida. Esses animais desenvolveram uma espécie de tumor canceroso e tiveram que ser sacrificados.

Tudo isso estava a ensinar uma lição que desde muito devia ter sido aprendida, pensava Artur: jamais permita que um bando de nefastos políticos pense por você. Sem nenhuma dúvida, eles deveriam ter tido suficiente bom senso para mandar explodir na lua os seus engenhos.

Quando desligou o aparelho de televisão, fazendo que os três indivíduos sumissem no nada, Patrícia surgiu. Trazia consigo uma camisa e um par de calças para colocar na máquina de lavar.

— Algy está muito infeliz. Coloquei-o na cama, mas ele quer que você suba e vá falar com ele — declarou a mulher.

— Não vou falar com ele. Estou farto dele por hoje.

— Ele precisa de você, Artur. Ele o ama.

— Continuo zangado com ele, onde já se viu... esconder-se daquela maneira. Você não andou lhe dizendo que não devemos mudar para Mayburn ou coisa parecida?

— Alguém tinha que lhe dizer, Artur. Achei que você não teria coragem.

— Querida, não briguemos assim. Você sabe que a morte do pobre Frank me perturbou demais.

— Primeiro é a firma, depois, Frank! Francamente, Artur, você decerto não acha que eu tenho as mesmas preocupações? Mas nem por isso deixo de ter uma série de obrigações.

— Não vamos discutir. As coisas já estão ruins demais.

— Não estou discutindo. Estou apenas lhe dizendo.

Artur volveu um olhar perdido para ela, retorcendo o rosto, e sacudindo a cabeça, sem saber se devia apelar para o drama ou para o desafio, e só conseguindo produzir uma pálida mescla de ambos.

— Eu queria apenas um pouco de consolo, caso contrário não teria aberto a boca.

— Foi uma pena ter aberto — retorquiu ela incisivamente. — Não tolero essa cara idiota que você faz Artur. Não tolero mesmo. — Ela caminhou até a parede e tornou a ligar a televisão. — Por que não sobe e vai dizer boa-noite a Algy? Ele também quer um pouco de consolo.

— Vou sair. Estou farto de tudo.

Ele caminhou para o saguão e vestiu com dificuldade o sobretudo de sarja azul. Patrícia desviou o olhar daquele espetáculo patético, pensando que qualquer coisa que dissesse desencadearia uma discussão. Quando ele abria a porta da frente ela gritou-lhe:

— Não esqueça que Edgar e Venice estarão aqui dentro de meia hora.

— Ver-nos-emos mais tarde — disse Artur. Patrícia não tinha por que descrer daquelas palavras.

Em cima da escrivaninha, esparramado sobre uma pilha de papéis, brochuras e envelopes, jazia um ursinho de brinquedo. Tratava-se de um ursinho especial. Tinha uma sombra negra em lugar de um dos olhos e usava um saiote escocês com a respectiva bolsa de pele. Debaixo de um braço, uma gaita de fole. Aquele era um Ursinho Jock, campeão de vendas da linha Sofftoys (na época em que Sofftoys tinha mercado).

Sem fazer caso do olhar maligno do bicho, Artur Timberlane derrubou ao solo o ursinho e recolheu da escrivaninha um punhado de cartas que ali se achavam. Sozinho na fábrica vazia, enconchado no pequenino escritório do andar térreo, pôs-se a ler, enquanto, no lado de fora, os caminhões roncavam pela Rua Staines em demanda do centro de Londres.

Todas as cartas tinham o mesmo teor. Aquela que mais lhe impressionou vinha de um dos seus mais destacados representantes, Percy Pargetter, que desde fins da década de quarenta vinha viajando para a firma. Percy era um excelente representante. Pela manhã viria entrevistar-se com Artur. Na carta, ele cuidava já de colocar em pratos limpos a situação. Ninguém mais comprava brinquedos. Qs varejistas e atacadistas tinham reduzido a zero as compras porque o mercado se encontrava em recesso total. O freguês já não queria saber dos brinquedos Sofftoys. Até mesmo os mais antigos clientes careteavam agora, quando Percy lhes apontava na porta do escritório. Achava Percy que algum temível concorrente dominara o mercado.

— Mas quem, quem? — perguntava-se Artur, desesperado. Ele sabia, pelos relatórios da Gazeta Mercantil, que as condições do mercado de brinquedos eram precárias. Era tudo quanto sabia. As finanças e a Indústria oscilavam entre a prosperidade e o abismo, mas isso nada tinha de novo, a não ser que as oscilações se haviam tornado mais violentas nos derradeiros seis meses. Artur espalhou as cartas sobre a escrivaninha, sacudindo desconsolado a cabeça.

Tinha feito o possível, pelo menos enquanto Moxan não produzia o seu famigerado relatório. De parceria com Keith, tinha reduzido ao mínimo a produção, adiara até as proximidades do Natal o lançamento da série de filmes com bonecos animados fazendo a propaganda do ursinho Jock, cancelara as entregas, apertara os credores, abolira as horas extras, rescindira o contrato com Straboplastics, arquivara os planos para a produção da Sereia Alegre, e, por fim, desistira de mudar-se...

Artur dirigiu-se a um arquivo de ferro e procurou a última carta de Moxan, verificando o nome de Galord K. Cottage (não que se tratasse — pensou com amargura — de um nome fácil de esquecer). Cottage era um brilhante jovem a quem Moxan incumbira de investigar os motivos da débacle de Sofftoys. Artur consultou o relógio. Não, não era tarde. Talvez ainda apanhasse Cottage no serviço.

O telefone de Moxan tocou durante algum tempo. Por fim, uma voz roufenha indagou-lhe o que desejava. A imagem do visor clareou e mostrou a Artur um rosto redondo. Era o porteiro da noite. Em virtude da insistência de Artur, concordou em chamar a extensão de Cottage.

Cottage atendeu quase instantaneamente. Ele se encontrava, sem paletó, numa sala vazia. Artur de pronto notou que seu aspecto era menos garboso do que quando fazia suas visitas a Sofftoys. Quando começou a falar notou ele, com alívio, que desaparecera o jovem empertigado e distante com quem se habituara a tratar.

— Seu relatório está no Processamento, Sr. Timberlane — disse ele. — Não pudemos evitar uma ligeira demora. Lamento não ter podido atendê-lo antes... mas... acontece que a coisa é um desastre completo! Escute, Sr. Timberlane, tenho que falar com alguém sobre o assunto. Ouça bem, enquanto a censura não corta a ligação...

O jovem olhou vivamente para Artur. Parecia muito pálido.

Dentro do seu traje em sarja azul, Artur sentia-se pequenino e desconfortável.

— Estou ouvindo, mas não sei que negócio de censura é esse, Sr. Cottage. Claro que respeito os problemas de ordem pessoal, mas...

— Oh, não é coisa exclusivamente pessoal, amigo. De forma alguma. Espere... vou acender um cigarro... — Apanhou um maço de cima da mesa, acendeu um cigarro, deu uma tragada, e prosseguiu: — Escute, a sua firma está quebrada, falida, liquidada! Não é possível falar com maior clareza. Esse seu Diretor... Keith Barratt, enganou-se redondamente quando afirmou que uma outra firma do ramo devia ter açambarcado o mercado. Fizemos uma pesquisa e estão todos na mesma canoa furada, todas as firmas do ramo, desde a maior até a mais modesta. Os números provam. A verdade é que ninguém mais compra brinquedos infantis.

— Mas vem agora a temporada de verão e...

— Ouça o que estou dizendo, não haverá temporada alguma, Sr. Timberlane. Trata-se de alguma coisa muito séria. Conversei com alguns companheiros. Não é só a indústria de brinquedos. Conhece a firma Johnchem, especializada em produtos infantis, desde comidas enlatadas até talco e antissépticos? É cliente nossa. A situação deles é pior que a sua. A Radiant, fabricante de carrinhos, encontra-se no mesmo buraco.

Artur abanou a cabeça, como que duvidando da veracidade daquelas palavras. Cottage inclinou o corpo até seu nariz sair de foco.


— O senhor sabe exatamente o que significa — disse ele, esmagando o cigarro num cinzeiro e soprando fumaça na tela do aparelho. — Significa apenas uma coisa... desde o tal Acidente com o cinturão de Van Allen no ano passado não têm nascido crianças no mundo. Não há vendas, por falta de consumidores.

— Não creio! Não posso crer!

Cottage remexia desajeitadamente no bolso da calça e brincava com um isqueiro.

— Ninguém irá acreditar enquanto não vier a notícia oficial. Mas nós consultamos o Registro Geral em Londres e Edimburgo. Nada nos informaram, mas, pelas informações que não nos deram, concluímos uma porção de coisas. Os nossos contatos no exterior relatam idênticos fatos. Em toda parte é a mesma coisa: nada de nascimentos!

A figura de Cottage era quase espectral, seus olhos semicerrados à luz do aparelho de fonevisão.

Artur desligou a imagem. Não queria ver Cottage e não queria que Cottage o visse. Segurou a cabeça entre as mãos, mal se dando conta de que sentia um frio tremendo e de que tiritava dos pés à cabeça.

— É ó desastre total. O fim do mundo.

— Nem tanto — respondeu Cottage do outro lado. — Mas aposto cinco mangos que antes de 1987 o comércio não voltará à normalidade.

— Cinco anos! É tão ruim como o fim do mundo. Como poderei sobreviver cinco anos? Tenho família. Oh, que posso fazer? Meu Deus... — Ele desligou no instante em que Cottage começava a despejar nova carga de más notícias e pôs-se a olhar, sem enxergar, para o entulho que lhe cobria a mesa. — É o fim do mundo... Meu Deus... que desgraça...

Artur procurou cigarros nos bolsos, só encontrou um baralho, e se pôs a fitar as cartas descoroçoado. Uma espécie de travo físico lhe tomou a garganta. Deixando cair as cartas ao chão, ele saiu da fábrica e dirigiu-se para o carro, sem se dar ao trabalho de trancar a porta ao sair.

Chorava.


Um comboio de veículos militares desfilava pela Rua Staines.

Artur embreou o carro e partiu.

Patrícia acabava de servir o primeiro trago a Venice e Edgar quando a campainha da rua tocou. Ela foi dar com Keith Barratt, sorridente, à porta. Este curvou-se todo galante.

— Passei pela fábrica e vi o carro de Artur estacionado no pátio, de modo que achei que estava precisando de companhia, Pat. Da minha companhia, para ser exato.

— Venny e Edgar Harley estão aqui, Keith — disse ela em voz alta, para que a ouvissem na sala de estar. — Entre, sim?

Keith fez uma careta, espalmou as mãos com um gesto resignado e retrucou com afetada polidez:

— Mas será um prazer, Sra. Timberlane.

Quando lhe deram um copo, ele ergueu-o e brindou à companhia.

— Alegria, minha gente! Vocês três me parecem um tanto tristes. Fez má viagem, Edgar?

— Há razões para tristeza, creio — disse Edgar Harley. Era homem de gestos lentos. Um tipo em quem a lentidão assentava bem. — Eu estava contando a Venny e Pat o que descobri na Austrália. Ainda anteontem, jantando em Sidney, ao lado do Bispo Aitken, queixava-se ele da violenta onda anti-religiosa que varre o país. Afirmava que sua Igreja, nos últimos dezoito meses, só tinha batizado sete, estou dizendo sete crianças.

— Não creio que seja coisa de desesperar — disse Keith, sorrindo e ajeitando-se ao lado de Patrícia no sofá.

— O Bispo estava enganado — disse Venice. — Edgar assistiu a uma conferência onde expuseram a real razão da ausência de batizados. É melhor que conte a Keith, Ed, pois o assunto lhe toca de perto e, de qualquer maneira, aparecerá no fim da semana uma declaração oficial sobre o fato.

Com ar solene, Edgar disse:

— O Bispo não tinha bebês para batizar pela simples razão de que já não h


bebês. A contração do cinturão de Van Allen expôs quase todos os seres humanos a violentas radiações.

— Já sabemos disso, mas a maioria sobreviveu — atalhou Keith. — De que maneira a coisa me afeta a mim pessoalmente?

— Os governos têm mantido grande discrição, Keith, enquanto não apuram a extensão dos danos causados pelo... ahn... Acidente. É assunto perigoso sob vários aspectos, sendo o principal que os efeitos da exposição a diferentes tipos de emissões radiativas ainda não estão claramente explicados, e, no presente caso, essa exposição prossegue.

— Não compreendo, Ed — disse Venice. — Quer dizer que os cinturões de Van Allen continuam se contraindo e expandindo?

— Não, aparentemente tornaram a se estabilizar. Mas tornaram o mundo inteiro radiativo até certo ponto. Há diferentes espécies de radiações, algumas das quais penetraram nos nossos organismos na ocasião. Outras espécies, radioisótopos de estrôncio e césio, por exemplo, continuam na atmosfera, e drenam para dentro do nosso corpo, através da pele ou sempre que bebemos, comemos ou respiramos. Não nos é dado evitá-las e, infelizmente, o corpo assimila tais partículas e as transforma em partes vitais, com grande prejuízo para as células. Parte desses prejuízos talvez não se tenha patenteado ainda.

— Nesse caso, deveríamos estar todos vivendo em abrigos — retorquiu Keith, raivosamente. — Se isto é verdade, Edgar, por que então o governo não toma alguma providência, em vez de só ficar calado?

— Isto é, por que as Nações Unidas não fazem alguma coisa? — indagou Patrícia. — Trata-se de assunto internacional.

— É tarde demais para fazer-se alguma coisa — esclareceu Edgar. — Desde que as bombas foram lançadas é tarde demais. O mundo inteiro não pode ir para um subterrâneo, levando consigo água e alimentos.

— Então está nos dizendo que durante algum tempo não haverá partos humanos no mundo, mas, em compensação, surgirão muitos casos de câncer e leucemia, é isso?

— Sim e, possivelmente, uma abreviação do período de vida do indivíduo. É cedo ainda para se saber. Infelizmente, sabemos muito menos a esse respeito do que pensávamos. A coisa é muitíssimo complexa.

Keith alisou os cabelos rebeldes e olhou desconsolado para as mulheres.

— Seu marido voltou com uma porção de notícias maravilhosas. Ainda bem que Artur não está aqui para ouvir... Ele anda já muito deprimido. Pelo que vejo, precisaremos liquidar com o ursinho Jock e começar a fabricar crucifixos e caixões, hein, Pat?

Edgar tinha colocado de lado a bebida e sentado no braço da poltrona, de olhos e estômago algo protuberantes, como a preparar-se para falar mais. Lançou um olhar em torno da confortável sala, com almofadas italianas e abajures dinamarqueses, e disse:

— Os efeitos das radiações sempre serão para nós uma anormalidade, especialmente no caso presente, em que estamos sendo submetidos a amplo espectro de radiações relativamente brandas. Por infelicidade, os mamíferos se têm mostrado demasiado suscetíveis a tais radiações, e, com eles, os homens.

“Seria inútil aprofundar-me muito na coisa, mas limitar-me-ei a dizer que, assim como a força destrutiva de certas substâncias pode concentrar-se num determinado veio de vida, assim também poderá toda a sua fúria enfocar-se num único órgão... pois, como disse, os corpos possuem eficientes mecanismos de captação de tais radiações. O corpo humano capta o iodo radiativo e o usa como iodo natural na glândula tireóide. Portanto, determinada dosagem poderá provocar a destruição da tireóide. No nosso caso, acontece que são as gônadas as afetadas.”

— É o sexo erguendo a feia cabeça — exclamou Keith.

— Talvez pela última vez, Keith — retrucou Edgar placidamente. — A gônada, como parece saber, é um órgão que gera células sexuais. Os natimortos, abortos e monstruosidades verificados a partir de maio do ano passado demonstram que as gônadas humanas sofreram grandemente com as radiações a que estivemos e continuamos sujeitos.

Venice ergueu-se e começou a caminhar pela sala.

— Sinto-me como se fosse enlouquecer, Edgar. Tem certeza de tudo isso? Essa conferência... quer dizer que não haverá mais nascimentos em parte alguma?

— Impossível dizê-lo por enquanto. A situação pode evoluir para um desfecho imprevisível dentro de um ano. As cifras não alcançam sequer a casa do um por cento. Infelizmente, das sete crianças mencionadas pelo Bispo Aitken, seis já morreram.

— Que coisa horrível! — Venice, no centro da sala, segurava a cabeça entre as mãos. — O que me parece mais horrível é que uma meia dúzia de bombas possa ter ocasionado uma coisa tão... tão medonha. Até parece que não foram detonadas na Terra! O tal cinturão de Van Allen como pode ser tão instável assim?

— O Professor Zilinkoff da Rússia declarou na conferência que o cinturão pode de fato ser muito instável e facilmente ativável por meio de radiações solares ou terrestres. Aventou a hipótese de que as mesmas contrações ora verificadas aconteceram também no final da Era Cretácea. Um tanto fantasioso, mas explicaria a desaparição das antigas espécies de dinossauros, terrestres, marinhos e aéreos. Elas morreram porque as suas gônadas, assim como as nossas, tornaram-se ineficazes.

— Dentro de quanto tempo nos recuperaremos? Quero dizer... será que nos recuperaremos? — disse Venice.

— Odeio pensar que sou como um dinossauro — disse Patrícia, sentindo sobre si o olhar de Keith.

— Mas há um certo consolo — comentou Keith alegremente, com um dedo esperançoso em riste. — Se essa onda de esterilidade está atacando o mundo inteiro, será um alívio para países como a China e a Índia. Há anos se queixam do seu aumento populacional! Agora é chegada a oportunidade de rarear um pouco as fileiras. Cinco anos... sejamos generosos... sete anos sem nascer crianças seriam suficientes para corrigir uma série de mazelas... antes que outras sobrevenham!

Patrícia esparramou-se no sofá ao seu lado, agarrando-lhe a lapela.


— Oh, Keith, querido — disse entre soluços —, você é sempre um conforto!

Tão absorvidos estavam eles na palestra que não ouviram o Dr. Mac Michael bater à porta. O médico hesitou um pouco, ouvindo as vozes provenientes do interior da casa. Keith Barratt tinha deixado a porta entreaberta. Mac Michael abriu-a afinal e entrou sem convicção no saguão.

Na escada, semi-escondido pela escuridão, um pequenino vulto de pijamas surgiu em seu caminho.

— Alô, broto, que faz aqui? — perguntou o médico carinhosamente. O garoto colocou um dedo diante da boca, impondo-lhe silêncio.

— Oh, não faça ruído, doutor! Estão conversando sério aí dentro. Não sei de que se trata, mas deve ser sobre mim. Fiz uma coisa terrível hoje.

— É melhor que suba para a cama, Algernon. Vamos, suba! Irei com você. — O médico apanhou a criança pela mão e juntos eles subiram as escadas. — Onde está o ursinho Jock? Será que anda aí pela casa sem roupão também?

— Já está dormindo. Pensei que o senhor era o papai. Por isso desci até aqui. Queria lhe dizer que estava arrependido do que fiz hoje.

Mac Michael olhou para a ponta dos sapatos.

— Estou certo de que irá perdoá-lo, broto. Seja lá o que for. Não creio que tenha feito coisa tão grave assim.

— Papai e eu achamos que foi uma coisa terrível. Por isso é que preciso falar com ele. Sabe onde ele está?

O velho médico não respondeu de pronto, limitando-se a observar o menino meter-se debaixo das cobertas juntamente com o urso escocês. Depois disse:

— Algernon, você já está bastante crescido. De modo que não deve se importar se não vir o seu pai por... por algum tempo. Haverá outros homens por perto... e o ajudarão no que for possível.

— Está bem, mas preciso falar logo com ele, porque ele vai me ensinar o truque dos Quatro Ases. Depois eu lhe ensino, se o senhor quiser.


Algy afundou-se sob os lençóis, só deixando de fora um tufo de cabelos, o nariz e um par de olhos brilhantes. Depois fixou firmemente o velho médico.

— Você sabe que sou seu amigo, Algernon, não sabe?

— Creio que sim, pois ouvi mamãe dizer à tia Venice que o senhor salvou minha vida. Quase morri, não foi mesmo? Mas o senhor faria uma coisa muito importante por mim?

— Diga-me o que é... farei o que puder.

— Acha que posso falar em voz bem baixa?

O Dr. Mac Michael aproximou-se da cama e inclinou a cabeça sobre o travesseiro.

— Fale, amigo — disse.

— O senhor conhece aquela menina careca, Marta Broughton? Nós íamos mudar para o lado dela... aí eu estraguei tudo. Acha que poderia fazer que a mandassem aqui para brincar comigo? Ela corre mais do que ninguém!

— Prometo-lhe fazer isso, Algy. Prometo-lhe.

— Ela é muito careca... quero dizer, careca de verdade, mas gosto dela. Acho que as meninas ficam melhor sem cabelos.

Com doçura, o médico disse:

— Arranjarei para que ela venha antes do fim da semana, porque também gosto muito dela.

— Puxa, o senhor é um médico e tanto. Nunca mais quebrarei os seus termômetros...

O Dr. Mac Michael alisou os cabelos do menino e deixou o quarto. No topo das escadas fez uma parada para controlar as emoções e endireitar o nó da gravata. Depois desceu para dar aos demais a notícia do desastre automobilístico.


 

A vida voltou à Terra mais abundantemente que nunca. Faltavam umas poucas raças no seu grande congresso, mas em número os seres alcançavam cifras das mais significativas.

A Terra tinha grande poder de recuperação, e assim continuaria a ser enquanto o Sol mantivesse intacto o seu atual fornecimento de energia. Numerosas espécies de vida tinham atravessado numerosas eras no tempo. No que tangia àquela excrescência do continente europeu que leva o nome de Ilhas Britânicas, sua flora e fauna jamais recuperaram a pujança dos dias anteriores ao Pliocênico. Naquele período as geleiras desceram sobre boa parte do hemisfério norte, empurrando a vida rumo ao sul com a sua chegada. Mas o gelo tornou a retroceder, a vida seguiu-o na jornada de retorno ao seu reduto setentrional. Nos fins do Plistoceno, qual gigantesca mão a abrir-se, um fluxo de vida invadiu regiões ainda há pouco inteiramente áridas. A ascendência do homem só por um instante influíra sobre a riqueza desse fluxo.

Agora tal fluxo era uma torrente de pétalas, folhas, peles, escamas e penas. Nada era capaz de detê-lo, embora ele encerrasse padrões próprios. A cada verão aumentava de peso e eram adotados caminhos estabelecidos em época muito anterior ao breve aparecimento do homo sapiens.

As noites estivais eram curtas. Conservavam algo da transparência do dia, apenas perdendo sua quentura quando a luz surgia no horizonte e o frio ar do alvorecer vinha arrepiar o pêlo dos animais e crispar as penas das aves que despertavam para mais um dia de vida.

O despertar destas criaturas trazia consigo os primeiros sons que se ouviam cada manhã numa barraca tão próxima à beira d'água que seus reflexos brilhavam na superfície líquida.

Quando Barbagris, sua mulher Marta e Charley Samuels acordaram aquele dia, encontravam-se às margens de um Tâmisa envolto em brumas. O novo dia despontava com uma revoada de miríades de patos. Com o correr das horas a bruma assumiu colorações alaranjadas, para depois rarefazer-se e revelar em sua plenitude os patos em debandada.

Antes do levantar da bruma o rufar de asas lá no alto fazia pensar num congraçamento de legiões invisíveis. Cisnes, demandando seus locais de pasto, deslocavam-se com um ruído surdo que contrastava com o estrondo dos gansos em revoada. Pássaros menores voavam em nível mais baixo. Havia também aves de rapina, águias e falcões, as quais, até certo ponto, podiam ser consideradas estranhas à região.

Algumas dessas aves tinham migrado milhares de quilômetros para vir alimentar-se ali, desde o pequenino marreco até o merganso, este passeando pela lama a sua imponente plumagem. Muitos daqueles exilados tinham sido compelidos por uma imperiosa necessidade. Em outras paragens, muitos filhotes de aves, com alto índice metabólico para manter, morreriam de fome se ficassem privados de alimentação por espaço de oito horas, de maneira que seus pais os haviam trazido para latitudes mais setentrionais em que as horas do dia naquela quadra do ano tinham maior duração.

Os seres humanos, dentre todas as criaturas vivas naquela região de bruma e água, eram os menos dependentes de necessidades naturais desse tipo. Mas, contrariamente às aves que proliferavam em torno deles, careciam de instinto de direção, e, três dias depois de partirem de Oxford, já se perdiam nos dédalos de água, a caminho da desembocadura do rio.

Talvez fosse difícil de achar o seu caminho, mas todos sentiam uma agradável sensação de paz, e ninguém tinha vontade de abandonar uma região tão rica em alimentos. Marta superou-se no preparo de uma série de pitéus à base de garças, gansos e patos. Os peixes pareciam pedir que alguém os arrancasse do seio do rio.

Nas citadas atividades, tinham eles poucos rivais humanos. Alguns poucos vinham da zona norte, do povoado que ainda existia nas cercanias de Oxford. Eles viram arminhos caçando (embora não em matilhas) e ainda um animal que tomaram por gato do mato varando os juncais com um pato selvagem entre os dentes. Viram também lontras e coypus e, no local em que acamparam para passar a terceira noite, o rastro de algum veado que se chegara à margem para beber.

Ali, na manhã seguinte, Barbagris e Marta ocupavam-se de degustar o seu peixe com molho de hortelã e salada de agriões quando uma voz às suas costas se fez ouvir:

— Quero comer com vocês!

Os remos erguidos e gotejantes, deslizando suavemente sobre a superfície da água, vinha Jeff Pitt na pilotagem de uma decadente embarcação.

— Grandes amigos são vocês — foi dizendo o caçador. — Saio para uma caçada com alguns amigos e, quando volto a Oxford, vejo que o velho Charley se foi, deixando inconsolável a sua senhoria. Dou um pulo ao Sagrado Coração e vocês dois sumiram. Isso é que é tratamento!

Vexados pelo sentimento de mágoa contido naquelas palavras, Marta e Barbagris adiantaram-se até a margem para acolher Jeff Pitt. Ao descobrir que o casal tinha realmente deixado Oxford, o caçador não teve dificuldade em adivinhar a direção que tinham tomado. Empertigado, Pitt saltou para terra firme e apertou as mãos a marido e mulher, sem encará-los frontalmente.

— Não podem me deixar para trás, sabem? Temos que estar sempre juntos. Talvez faça já muito tempo, Barbagris, mas lembro ainda que você poderia ter-me matado na ocasião em que eu recebi a incumbência de liquidá-lo.


Barbagris riu.

— É uma idéia que nunca me passou pela cabeça.

— Ah, bem, por isso lhe aperto a mão agora. Que estão cozinhando aí? Agora estou com vocês. E comigo não morrerão de fome.

— Estávamos com vontade de matar a fome esta manhã com salmões, Jeff — disse Marta, puxando a saia para agachar-se diante do fogo. — Estes devem ser os primeiros salmões apanhados no Tâmisa nos últimos duzentos anos.

Pitt cruzou os braços e olhou de soslaio para os peixes.

— Apanharei alguns maiores para você, Marta. Sou uma pessoa necessária aqui, não resta a menor dúvida. Quanto mais velho a gente fica, mais precisa de amigos. E o carola do Charley Samuels onde anda?

— Foi fazer um passeio. Voltará logo e, com certeza, ficará horrorizado em vê-lo aí.

Tendo Charley voltado e, terminados os tapinhas de boas-vindas nas costas de Pitt, o grupo sentou-se para comer. Lentamente a bruma entrou a dissipar-se, pondo a nu uma porção progressivamente maior das redondezas. O mundo ampliou-se, mostrando-se cheio de céu e de reflexos de céu.

— Olhem, perder-se a gente aqui é coisa das mais fáceis — observou Jeff Pitt. Passado o primeiro momento de contentamento, ele recaiu no seu habitual mau humor. — Alguns dos camaradas que conheci em Oxford eram uma espécie de franco-atiradores nesta região, depois, envelhecendo, mudaram de ofício e começaram a pescar. Eles ainda falam no passado e contam que já houve por aqui muita luta. Chamam a isto de Mar de Barks.

— Ouvi falar sobre este lugar em Oxford — disse Charley.

Pitt envergava dois velhos coletes e um par de calças. Ele tateou nos bolsos do colete de baixo e sacou um pedaço quadrado de papel, que desdobrou e entregou a Barbagris. Este reconheceu o papel: era um dos anúncios distribuídos durante a exibição das crianças de Balliol. No verso havia um mapa feito a tinta.


— Aqui se vê como é a região hoje em dia, segundo esses meus camaradas — disse Pitt. — Consegue entender isto?

— É um bom mapa, Jeff. Embora faltem alguns nomes, é fácil reconhecer os pontos principais. Barks deve ser uma corruptela de Berkshire.

Marta e Charley também examinaram o mapa. Assinalado na ponta meridional do Mar de Barks achava-se Goring. Ali, em ambas as margens do velho rio, duas cordilheiras, Chilterns e Berkshire Downs, se encontravam. Naquele trecho o rio tinha sido bloqueado em seu curso, e com a conseqüente subida do seu nível, inundara as terras ao norte, onde uma espécie de entresseio triangular se formara entre as duas cadeias de montanhas e Cotswolds.

Charley abanou a cabeça.

— Embora esteja longe de ser um mar, tem tranqüilamente trinta quilômetros de leste a oeste, e talvez uns vinte no outro sentido. Lugar de sobra para a gente se perder.

Marta apontou com o dedo o trajeto do assim chamado mar e disse:

— Muitas cidades devem ter sido engolfadas por ele, Abington e Wallingford entre outras. Perto disto o Lago do Prado não passa de brejo! Se o nível das águas ainda estiver em ascensão, creio que com o correr do tempo as duas extensões de água acabarão por encontrar-se, e a própria Oxford acabará submersa.

— Sob as vistas de Deus as coisas custam mais a mudar que sob o controle do homem — observou Charley. — Tenho feito cálculos. Deve fazer catorze anos que cheguei a Sparcot, e antes disso a região já estava em decadência... mas hoje em dia é um lugar totalmente diferente.

— Somos apenas nós que estamos decaindo — disse Pitt. — A terra nunca esteve melhor. Pena que eu já não seja moço, não é mesmo, Charley? Nós dois com dezoito anos... e um par de bonitas pequenas para nos fazer companhia, hein, Charley? Minha vida teria sido muito melhor do que foi.

Conforme a expectativa de Pitt, Charley não concordou com a idéia das pequenas.

— Gostaria que as manas estivessem aqui, Jeff. As coitadas se sentiriam mais felizes. Nós vivemos maus pedaços! Já não se pode chamar isto de Inglaterra... Retornamos a Deus. Este é o país do Senhor... Ainda bem.

— Muita bondade Dele receber-nos de volta — comentou Jeff Pitt com escárnio. — Embora não vá ser por muito tempo, não é mesmo?

— É tremendamente antropomórfico da minha parte, mas creio que Ele se aborrecerá um pouco quando desaparecermos de vez — disse Marta.

Terminada a refeição, levantaram acampamento. Tal como alguns anos antes, embarcaram todos no esquife, rebocando o barco de Jeff. O vento mal dava para pô-los em movimento sobre as águas tranqüilas.

Depois de pouco tempo, eles lobrigaram a distância as torres e telhados de uma cidade semi-submersa. A torre da igreja se destacava nitidamente, mas a maioria dos telhados achava-se encoberta por plantas que tinham crescido nos esgotos entupidos. Aquela vegetação tinha sido decerto um fator de importância no afundamento das construções. Durante algum tempo a parte superior dos prédios teria resistido, mas, com o correr dos dias, o lento desgaste dos alicerces concorreria o seu quinhão para o desaparecimento dos edifícios, fazendo que o dedo do homem deixasse de dar sinal de si.

Pitt, debruçado à borda do esquife, contemplava o mar.

— Que terá acontecido com as pessoas que moravam ali? — disse ele contrafeito. — Será que continuam vivendo debaixo d'água? Não vejo ninguém nos espiando...

— É verdade, Jeff, isto me lembra uma coisa — disse Charley. — Com a sua chegada, o assunto tinha-me fugido por completo: lembra-se de que me falou em duendes na floresta?

— Duendes e gnomos — respondeu Pitt, fitando-o sem pestanejar. — E daí? Você também os viu, Charley?

— Vi alguma coisa. — Charley voltou-se para Barbagris. — Foi logo pela manhã, quando fui espiar se havia algo nas nossas armadilhas. Ajoelhei-me perto de uma delas e, quando ergui os olhos, havia uma porção de rostos espreitando-me através das moitas.

— Ah, já lhe disse... gnomos, sem a menor dúvida! Eu os vejo sempre. Que lhe fizeram? — perguntou Pitt.

— Por sorte estavam na outra margem de um fio d'água e não puderam apanhar-me. Fiz então o sinal-da-cruz e todos desapareceram.

— Deveria ter disparado uma flecha sobre eles... teriam desaparecido mais depressa — disse Pitt. — Ou quem sabe... pensaram que você lhes fosse pregar algum sermão.

— Charley, você não acredita que eram mesmo gnomos? — disse Barbagris. — Gnomos são coisa de histórias infantis. Não existem de verdade.

— Quem sabe reapareceram... assim como o gato do mato — atalhou Jeff. — Os livros infantis contavam apenas o que existia antes de os homens se tornarem supercivilizados.

— Tem certeza que não eram crianças? — indagou Barbagris.

— Claro... não eram crianças, embora fossem pequenos como elas. Mas, tinham... sabe, estava difícil de ver... tinham focinhos parecidos com o do velho Isaac... e orelhas de gato... e pêlos na cabeça. Mas tinham mãos iguais às nossas.

Fez-se silêncio no barco.

Marta foi a primeira a rompê-lo:

— O velho Thorne, meu antigo patrão no Sagrado Coração, era homem erudito, embora meio gira. Costumava dizer que, estando o homem em vias de desaparecer, outra criatura viria tomar-lhe o lugar.

— Os escoceses, quem sabe — disse Barbagris com uma gargalhada, recordando o pavor que Towin e Becky Thomas tinham de uma invasão proveniente do norte.

— Thorne nunca foi explícito com relação a essa nova criatura, e disse que poderia ser um tubarão com patas de tigre. Afirmou que poderiam surgir centenas delas e que todas se mostrariam muito gratas a seu criador ao descobrir tudo quanto este lhes tinha reservado.

— Já temos problemas demais com o nosso próprio criador para nos preocuparmos com criadores alheios — disse Pitt.

— Que blasfêmia — repreendeu-o Charley. — Você está velho demais para falar assim, Jeff Pitt. Ê, de qualquer maneira, se as tais criaturas vierem de fato, creio que irão preferir carne de pato à nossa. Olhe bem para nós!

Aquela noite tomou-se a precaução de escolher para acampar um local ao abrigo de qualquer surpresa.

O dia seguinte surpreendeu-os rumando para o sul, remando quando faltava vento. As montanhas revestidas de árvores, que durante todo o dia anterior eram uma constante no cenário, desapareceram então de vista, e o único sinal de terra era uma ilha com duas corcovas que lhes aparecia à frente. À tarde lá chegaram, quase à hora do crepúsculo, e atracaram ao lado de outra embarcação, numa tosca enseada.

Boa parte da terra apresentava sinais de cultivo, e, no alto das colinas, viam-se galinhas e patos em galinheiros. Algumas velhotas que se encontravam entre a criação desceram até a beira do rio para inspecionar os recém-chegados e dizer-lhes que aquela localidade se chamava Wittenham. A seguir, sem grandes demonstrações de apreço, afirmaram que os visitantes poderiam pernoitar ali, desde que não criassem problemas. A maioria das mulheres trazia consigo lontras domesticadas, as quais, segundo esclareceram, tinham sido por elas treinadas para apanhar peixes e aves.

Quando ficou patenteado que a comitiva de Barbagris não alimentava nenhuma má intenção, as mulheres tornaram-se mais amistosas e mostraram-se ansiosas por conversar. Logo ficou-se sabendo que pertenciam a uma comunidade religiosa, adepta de um Mestre que um dia se apresentara em seu seio e pregava a vinda de uma Segunda Geração. E, sem dúvida, entrariam logo a catequizar, se Marta, com muito tato, não desconversasse, perguntando-lhes há quanto tempo estavam vivendo na ilha.

Uma das mulheres contou a Marta que provinham de uma cidade chamada Dorchester, tendo-se refugiado ali com os seus homens quando as águas tinham invadido seus lares e terras cerca de sete anos antes. Atualmente, sua cidade natal encontrava-se por inteiro submersa no Mar de Barks.

Muito do que disse a velha foi bastante difícil de compreender. Era como se a bruma que toldava as águas naquela época toldasse também o entendimento humano. Mas, de qualquer forma, não era difícil entender que pequenos agrupamentos isolados de todo e qualquer vizinho desenvolvessem sotaque e vocabulário caracteristicamente seus. Surpreendente era apenas a rapidez com que se processava o fenômeno.

Marta e Barbagris discutiram o assunto à noite, sob os cobertores.

— Lembra-se daquele velhote que encontramos a caminho de Oxford, o tal que dizia ter casado com um texugo? — perguntou Marta.

— Faz muito tempo, creio que não.

— Lembro-me de que dormimos num estábulo, com ele e uma rena. O sujeito estava se tratando com um tipo estranho... ah, minha memória!...

— Bunny Jingadangelow?

— Isso mesmo... o seu amigo! O velhote disse algumas tolices a respeito do passar do tempo. Calculava ter duzentos anos de idade ou coisa que o valha. Tenho pensado nele ultimamente e, afinal, começo a compreendê-lo. Tanta coisa tem mudado, Algy. Tenho me perguntado seriamente se já não estamos vivendo há alguns séculos.

— É uma mudança de ritmo. Nascemos numa civilização ética, hoje em dia já não existe civilização alguma, e o ritmo se modificou.

— A longevidade é uma ilusão?

— Foi o homem quem parou, não a morte. Tudo o mais... todas as coisas que existem... segue inalterado. Agora é melhor dormirmos um pouco. Estou cansado de remar.

Depois de uma pausa Marta retomou a conversa:

— Creio que é a falta de filhos. Não porque eu não os tenha, mas porque não os vejo em parte alguma. A vida torna-se terrivelmente estéril... é só.


Barbagris sentou-se, enraivecido.

— Pelo amor de Deus, mulher, pare com essa história de filhos. Sei que não podemos ter filhos... de qualquer forma, estamos velhos demais. Trata-se de um fato primordial da vida, mas é inútil martelar no assunto!

— Não costumo martelar, Algy! Não toco no assunto mais do que uma vez por ano.

— Isso mesmo... e sempre nesta época de verão, quando o trigo amadurece. Fico sempre à espera de que diga alguma coisa.

Foi obra de um instante a vinda do arrependimento, e Barbagris tomou Marta nos braços.

— Não quis ralhar com você, querida. Por vezes sinto medo dos meus próprios pensamentos. Quem sabe o desaparecimento das crianças originou um tipo de loucura que não identificamos, por não estar ainda catalogado. Será possível conservar a sanidade mental num mundo em que se vê apenas velhice por toda parte?

— Querido, você é jovem ainda, jovem e forte. Temos muitos anos pela frente.

— Você sabe ao que me refiro: é preciso renovarmos nossa juventude na geração seguinte. Na casa dos trinta, os filhos constituem a nossa alegria. Na dos quarenta, a nossa preocupação e as nossas amarras ao mundo. Na dos cinqüenta, talvez surjam os netos para a gente brincar. Vivemos enquanto os nossos netos lá estão para contemplar o nosso sorriso senil e as nossas mágicas... Eles são os nossos substitutos. Mas, se tudo isso desaparece ... não é de admirar que as coisas desandem ou que o pobre Charley comece a ver gnomos...

— Talvez uma mulher tenha uma visão diferente da coisa. O que mais lamento é a consciência de alguma reserva que possuo... amor... a qual não encontrou o seu objetivo.

Barbagris acariciou com ternura os cabelos da mulher e respondeu:

— Você é a pessoa mais amorosa que já nasceu. Importa-se que eu durma um pouco agora?

Mas foi Marta quem dormiu. Durante algum tempo Barbagris ficou a escutar os ruídos dos pássaros noturnos. A apreensão o assaltou. Com jeito, ele livrou a ponta da barba de sob os ombros de Marta, calçou os sapatos, destravou a portinhola da tenda e passou para o lado de fora. Suas costas careciam já de um pouco de flexibilidade.

Em virtude da impenetrabilidade, a noite parecia ainda mais sufocante do que realmente era. Barbagris não sabia como explicar seu desassossego. Pareceu-lhe ouvir um ruído de motor... ele conseguiu visualizar apenas o vapor em que sua mãe o levara a passear no Tâmisa, ainda em pequeno, pouco antes de lhe morrer o pai. Barbagris entregou-se a pensar na mãe e no passado. Era maravilhoso como muitas daquelas recordações permaneciam nítidas. Ele perguntou-se se a vida da mãe (ela tinha nascido fazia tanto tempo, lá pelos idos de mil novecentos e quarenta) não teria sido tão comprometida pelo Acidente como a sua própria. Mal se recordava dos dias anteriores ao Acidente, salvo um ou outro episódio, como aquele do vapor sobre o Tâmisa. De modo que sua existência se passava no contexto do Acidente e suas seqüelas, e a eles estava adaptada. Mas como poderia uma mulher adaptar-se? Ocorreu-lhe então quão diferentes eram as mulheres.

Uma vez mais o motor do navio se fez ouvir, como que a transportá-lo através do tempo e da probabilidade.

O ruído cresceu de intensidade. Barbagris foi acordar Charley, e ambos se postaram à beira d'água, ouvidos atentos.

— Algum navio, sem dúvida — disse Charley. — E por que não haveria de ser? Ainda deve haver muita reserva de carvão por aqui.

O ruído esmoreceu. Os dois homens mantiveram-se pensativos, ansiosos, perscrutando a escuridão. Nada mais aconteceu. Charley deu de ombros e voltou para a cama. Pouco depois Barbagris fez o mesmo.

— Que é que há, Algy? — perguntou Marta, acordando.

— Um navio nas proximidades. Charley também ouviu.

— Poderemos vê-lo pela manhã.

— Parecia um desses barcos em que minha mãe me levava a passear. Enquanto permaneci junto à margem Marta, fitando o vazio, ocorreu-me que desperdicei toda a vida. Nunca tive fé...

— Querido, creio que não é hora de investigar sua própria vida. Quem sabe daqui a uns vinte anos, em plena luz do sol...

— Não, Marta, escute. Sei que sou um tipo imaginoso e introspectivo, mas...

O riso curto da esposa o deteve. Ela sentou-se no leito, bocejou e disse:

— Você é dos tipos menos introspectivos que conheço, e sempre folguei que a sua imaginação era muito mais prosaica do que a minha. Oxalá conserve para sempre essas ilusões a seu próprio respeito... É sinal de juventude.

Barbagris procurou a mão da esposa.

— Você é uma criatura engraçada, Marta. Por vezes me deixa curioso por saber até que ponto duas pessoas podem se conhecer, já que me conhece tão pouco. E incrível como pode ser tão cega, sendo a companheira maravilhosa que sempre foi nestes trinta, trezentos... sei lá quantos anos. É admirável sob muitos aspectos, ao passo que eu sou apenas um fracassado.

Marta acendeu a pequena lâmpada ao lado da cama e disse com gravidade:

— Embora com risco de ser devorada pelos pernilongos, tenho que acender a luz para ver essa sua cara. Não tolero lamúrias. Querido, que é isso que está dizendo a seu respeito? Coloquemos os pingos nos ii.

— É exatamente como estou dizendo. Acontece que não casei com uma tola, como fazem os homens muitas vezes. Tenho sido um fracassado a vida toda.

— Em quê, por exemplo?

— Bem, veja como consegui fazer com que ficássemos mais ou menos perdidos neste fim-de-mundo. E coisas muito piores ainda. Àquela época infeliz que se seguiu à morte de papai, quando mamãe casou com o imbecil do Barratt. Não basta dizer que então eu não passava de uma criança. A verdade é que nunca percebi o que estava acontecendo. Sentia que estava sendo punido por alguma coisa, mas não sabia que espécie de pecado era e nem mesmo que castigo estava sofrendo. Odiava profundamente Barratt, embora me sentisse muito mal quando ele namoricava outras mulheres. Certa vez ele partiu com uma dessas mulheres. Minha mãe conheceu então um agente funerário e nós vivemos com ele algumas semanas.

— Lembro-me de Carter, o agente funerário. Sua mãe conhecia a arte de atrair homens prósperos.

— Conhecia também a arte de atrair homens impossíveis. Pobre mulher. Creio que foi sempre meio boba. O tio Keith... Barratt apareceu de volta certo dia e tomou-a de Carter. Depois disso, durante várias semanas teve sérias brigas com mamãe. Uma coisa horrível... Talvez por isso eu, rapazola ainda, tenha-me esmerado em minha conduta.

“Depois veio a guerra. Deveria ter-me recusado a ir... moralmente, tinha convicção de que era uma coisa errada. Mas transigi e alistei-me no Infantop. Depois veio o episódio da DOHUC. Creio que foi o trabalho mais malfeito que já executei. O pessoal da DOHUC, Jack e os demais, eram todos gente dedicada. Eu nunca cheguei a crer de fato no projeto.”

— Está dizendo tolices, Algy. Recordo-me perfeitamente de como se esforçou em Washington e Londres.

Barbagris riu.

— Sabe por que me alistei? Porque se propuseram a trazê-la para Washington a fim de vir ter comigo! Foi essa a razão! O meu interesse pela DOHUC era muito menor que o meu interesse por você.

“É verdade que nos primeiros anos do após-guerra fiz um bom trabalho, quando o governo caiu e os Estados Unidos celebraram a paz com o inimigo. Mas veja a oportunidade que desperdicei quando estivemos em Cowley. Se não tivesse me preocupado tanto conosco, poderíamos ter participado de um importante fragmento da história.”

“Em vez disso, fugimos, e passamos vários anos a vegetar em Sparcot. E que fiz eu ali? Bem, vendi o caminhão da DOHUC apenas porque estávamos de barriga vazia. E, no Sagrado Coração, quando poderia ter-me redimido, resgatando o caminhão, apavorei-me ante a idéia de mais alguns anos de trabalho duro. Hoje, quando ouvi o apito desse maldito navio, lembrei-me do caminhão e de tudo aquilo que representa em termos do que fui e do que deveria ter sido.”


Marta matou uma traça que lhe voejava em torno do rosto e voltou-se radiante para ele.

— Muitos que foram traídos acreditam-se traidores. Não caia nessa, Algy. Está com muitas coisas tolas na cabeça esta noite. Você é grande demais para entreter-se com uma boba idéia de frustração. Não percebe que o que acaba de me dizer atesta sem contestação a sua integridade?

— A minha falta de integridade, quer dizer.

— Não, não. Em criança, a sua vida não estava em suas mãos. Tanto sua mãe como Keith eram dois idiotas... Desde pequena percebi isso... e a época de crise os descontrolou bastante. Também por isso não lhe cabe culpa alguma.

“Durante a guerra, primeiro você procurou salvar crianças e fazer algo construtivo para o futuro. Casou comigo quando poderia estar entregue aos deboches que a maioria dos homens jovens aprecia. E desconfio que desde então me tem sido fiel. Não creio que tudo isso demonstre falta de caráter.”

“Quanto à sua fraqueza em Cowley, pergunte ao velho Jeff o que ele pensa a respeito! Você vendeu o caminhão da DOHUC depois de uma tremenda luta íntima e evitou que toda Sparcot morresse de fome. Quanto a resgatá-lo, por que razão haveria de fazê-lo? Se é que a humanidade tem futuro, deve procurá-lo adiante de si e não atrás. A DOHUC foi uma grande idéia em 2000, quando foi concebida. Agora sabemos que não tinha nenhuma importância.”

“Mas o que nunca deixou de ter importância para você foram as pessoas. Sempre me dei conta disso, conforme você próprio afirma, não sou nenhuma tola. Você colocou-me em primeiro lugar relativamente aos empregos em Washington e Cowley. Pensa que me ressenti? Se mais pessoas, no século passado, tivessem pensado antes em seus semelhantes do que em simples abstrações, não estaríamos agora onde estamos. — Marta interrompeu-se abruptamente: — É tudo quanto tenho a dizer. Fim de sermão. Sente-se melhor, Barbagris?”

Ele aplicou os lábios na fronte da esposa.

— Querida, digo-lhe que estamos todos sofrendo de uma espécie de loucura. Depois de tanto tempo... acabei descobrindo a sua!

Quando Barbagris tornou a acordar já era dia, e Pitt o estava sacudindo. Antes mesmo que o velho caçador falasse, ouviu uma vez mais o ruído do navio.

Ajeitando as calças, Barbagris saiu descalço à grama umedecida pelo orvalho. Marta e Charley estavam a espiar através da neblina. Aproximando-se por detrás, Barbagris descansou a mão no ombro da mulher.

— Talvez sejam piratas — comentou Pitt. — O melhor é estar armado.

A neblina era mais densa que nunca aquela manhã. Nada se podia ver adiante das colinas. Atraídas pelo pipoquear do motor, as mulheres da comunidade religiosa começavam a apontar por toda a orla da praia.

— O Mestre vem chegando! O Mestre vem chegando! — gritavam.

O ruído do motor cessou. Morreu sobre as águas. O grupo apurou a vista na tentativa de ver alguma coisa.

Um navio fluvial apareceu, cortando silenciosamente as águas. Parecia não ter substância, não passar de mero contorno. No tombadilho havia pessoas que contemplavam a água. As mulheres em terra, pelo menos aquelas cujo reumatismo permitiu, caíram de joelhos, exclamando:

— O Mestre vem salvar-nos!

— Acredito que ainda haja por aqui depósitos de carvão — disse Barbagris a Marta. — Admite-se que não reste nenhuma mina de carvão em atividade. Ou talvez o combustível que usam seja a madeira. Cautela nunca é demais, mas não creio que tenham propósitos hostis.

— Sei como se sentem os selvagens quando lhes surge um bando de missionários de Bíblia em punho — comentou Marta. Ela olhava para uma ampla faixa presa à amurada do navio com os dizeres: — ARREPENDEI-VOS — O MESTRE VEM CHEGANDO! E, em caracteres menores: — A Segunda Geração Precisa das Vossas Dádivas e Orações. Contribuí para o Fortalecimento da Nossa Causa. — Ao que parece a Bíblia vem agora com uma etiqueta de preço — disse Barbagris. — Um grupo das pessoas de bordo retirou uma seção da grade. Um pequeno escaler foi baixado ao rio, evidentemente para trazer até a margem algumas pessoas. Ao mesmo tempo uma voz se fez ouvir num alto-falante, advertindo as mulheres da comunidade.

— Senhoras de Wittenham, o Mestre vos chama! Cumprimenta-vos e se dignará receber-vos. Mas desta vez não deixará a sua sacra embarcação. Se desejais falar a Ele, subi a bordo. Colocaremos a vossa disposição um barco para transportar-vos e às vossas oferendas. Lembrai-vos, por uma simples dúzia de ovos podereis comparecer diante Dele, e por uma galinha podereis dirigir-Lhe a palavra.

Um barco a remos foi enviado para terra. Duas mulheres impeliam os remos, dobradas, tossindo e ofegando como se estivessem a pique de sofrer um ataque de trombose. Ao aproximarem-se da margem, emergindo da bruma, elas se tornaram menos insubstanciais.

Marta agarrou a mão de Barbagris.

— Reconhece uma dessas mulheres? A que acaba de cuspir na água? Nós a deixamos para trás... Becky! Sim, é Becky Thomas!

Marta adiantou-se. As mulheres da ilha disputavam lugar no barco. Nos braços levavam cestos com provisões, presumivelmente oferendas para depositar aos pés do Mestre. Indiferente, Becky contemplava aquela atividade. Parecia ainda mais encardida que em Sparcot, muito mais velha, conquanto não tivesse perdido a redondez. Tinha o rosto ressequido e o nariz afilado.

Olhando para ela, Marta pensou: “Ela pertence à geração dos meus pais e dos de Algy. Espantoso que alguns deles ainda sobrevivam, a despeito das previsões sombrias de que todos morreriam jovens. Becky deve ter no mínimo uns oitenta e cinco anos. Que acontecerá ao mundo se Algy e eu atingirmos tal idade?”

À aproximação de Marta, Becky mudou de posição e colocou os braços na cintura. Num dos pulsos, Mart notou, ela trazia o velho e inútil relógio de que tanto se orgulhava Towin. Onde estaria ele?

— Olá, Becky — disse Marta. — Este mundo é mesmo pequeno, hein? Está veraneando?

Becky dava poucos sinais de entusiasmo por rever Marta, Barbagris ou Charley, ou ainda Pitt, que logo se acercou.

— Agora pertenço ao Mestre — anunciou ela. — Por isso gozo do privilégio de estar gerando uma das poucas crianças da Segunda Geração. Darei à luz no próximo outono.

Pitt cacarejou:

— Você estava esperando quando a deixamos na feira, muitos anos atrás. O que aconteceu àquela criança? Acho que não passou de uma fantasia, não é mesmo? Já na ocasião foi o que me pareceu.

— Na ocasião eu era casada, seu bruto — respondeu Becky, — e o Mestre ainda não tinha iniciado o seu Mestrado. Claro que não pude frutificar. Apenas agora que vi a Luz posso conceber. Se deseja ter filhos, Marta, é melhor que traga um presente para o Mestre e veja o que Ele pode fazer por você. Ele realiza prodígios.

— Que aconteceu ao velho Towin, Becky? — perguntou Charley. — Não veio com você?

A mulher fez uma careta.

— O velho Towin Thomas era um pecador, Charley Samuels, e já não penso nele. Ele não quis acreditar no Mestre, nem tratar-se com Ele, e, em conseqüência, morreu de um câncer que o consumiu por completo. Francamente, foi uma felicidade o seu passamento. Desde então venho seguindo o Mestre. Estou prestes a comemorar os duzentos e trinta anos de idade. Não pareço ter mais do que cem, verdade?

Barbagris observou:

— Essa arenga me parece conhecida. Será que conhecemos esse seu Mestre, Becky? Acaso não é Bunny Jingadangelow?

— Você nunca tomou cuidado com a língua, Barbagris. Veja como Lhe fala agora, porque Ele já não usa o velho nome.

— Mas, pelo visto, não perdeu as velhas manhas — disse Barbagris para Marta. — Subamos a bordo para falar com o velho malandro.

— Não quero falar com ele — disse Marta.

— Bem... escute... não vamos ficar parados aqui nesta neblina. Talvez permaneçamos aqui até a chegada do outono, ocasião em que deveríamos estar já bem longe. Vamos pedir a Jingadangelow que nos reboque. Decerto o capitão do navio conhece bem estas paragens.

A sugestão de Barbagris foi levada a cabo e eles baldearam-se no barco de Pitt para o navio. Subiram a bordo, embora o convés estivesse apinhado de gente e de oferendas.

Barbagris teve que esperar enquanto as mulheres da ilha entravam na cabina do Mestre, uma a uma, a fim de receber a bênção, A seguir, com certo aparato, foi convidado a entrar.

Bunny Jingadangelow, derreado numa espreguiçadeira, envolto em seboso simulacro de antiga toga romana, traje que, evidentemente, considerava mais condizente com sua nova situação que o antigo casaco de peles de coelho, encontrava-se rodeado pelos tributos materiais ofertados às suas divinas qualidades. Um velho de calças curtas cuidava agora de remover num carrinho de mão aquelas dádivas: verduras, alfaces, patos, peixes, ovos, uma galinha com o pescoço recém-torcido.

Jingadangelow continuava a usar bigodes e suíças. A enxúndia que outrora lhe tomava apenas o queixo derramava-se agora por outras regiões. Era homem corpulento, seu rosto tinha a gorda pastosidade de uma lua cheia e apresentava uma palidez sem precedentes. Quando Barbagris entrou, boa parte dessa área pareceu contrair-se. Becky, sem nenhuma dúvida, tinha anunciado a nova da sua presença.

— Queria lhe falar porque sempre achei que você possuía o raro dom da percepção — foi dizendo Barbagris.

— Nada mais verdadeiro. Por isso cheguei à divindade. Mas, asseguro-lhe, Sr. Barbagris, se é que continua usando esse deplorável apelido, que não tenho nenhuma intenção de conversar sobre o passado. Superei o passado, tal como superarei o futuro.

— Então continua negociando no ramo da Eternidade, embora com maior pompa que antes...

— Está vendo esta sineta? Basta que eu a toque para que o senhor seja retirado da minha presença. Não deve insultar-me. Cheguei à santidade. — Jingadangelow descansou a mão polpuda sobre a mesa e fez um muxoxo de descontentamento. — Se não veio juntar-se aos meus adeptos, que deseja?

— Bem... vim lhe falar a respeito de Becky Thomas e essa pretensa gravidez. Não tem dir...

— Foi o que me disse quando nos conhecemos, séculos atrás. Desde que lhe morreu o marido ela se tornou crente. O senhor se imagina uma espécie de condutor de homens, hein, mesmo que na realidade não dirija ninguém?

— Não dirijo ninguém porque...

— Porque é um andarilho! Qual é o seu objetivo na vida? Nenhum! Junte-se a mim, homem, e viva o resto dos seus dias com conforto. Não passo a vida toda viajando neste horrível navio. Tenho no Sul uma base, Hagbourne. Vá para lá comigo.

— Para tornar-me um... um dos seus seguidores... e inutilizar por completo a minha vida? De forma alguma! Nós...

Jingadangelow apanhou a sineta e tocou-a.

Duas velhas apareceram, ambas trajando um arremedo de toga, uma delas bastante corpulenta e dona de um par de olhos salientes que só se voltavam para o Mestre.

— Sacerdotisas da Segunda Geração — disse Jingadangelow —, dizei-me os propósitos da minha vida.

Como que entoando uma ladainha, a mulher mais magra adiantando-se sempre à outra, elas responderam:

— Viestes substituir o Deus que nos abandonou, viestes substituir os homens que nos abandonaram, viestes substituir as crianças que nos foram negadas.

— Não vai nisto nada de físico — explicou Jingadangelow num parêntese.

— Mestre, vós trazeis a esperança onde só havia cinzas, vida, onde só havia tristeza, ventres cheios, onde só havia estômagos vazios.


— Deve concordar que a prosa, em seu estilo pseudo-bíblico, é bastante significativa.

— Mestre, fazeis que desapareçam os ateus, que sobrevivam os crentes, e fazeis que nasçam os filhos da Segunda Geração que irão repovoar o mundo.

— Muito bem, sacerdotisas. Vosso Mestre está satisfeito e, de modo especial com a Irmã Madge, que fala como se acreditasse realmente no que está dizendo. Agora, meninas, recitem o que têm de fazer para que tudo isto se realize.

Uma vez mais, as duas mulheres entraram a declamar.

— Temos que varrer de nós o pecado, temos que varrer dos. outros o pecado, temos que honrar e amar o Mestre.

— É o que poderíamos chamar de cláusula qualificante — disse Jingadangelow a Barbagris. — Muito bem, sacerdotisas, podeis ir agora.

As mulheres prostaram-se, acariciando-lhe as mãos e a cabeça, implorando-lhe num jargão peculiar que ele as deixasse ficar.

— Que diabo, meninas, não vêem que estou em conferência?   Deixem-me só!

As mulheres fugiram diante daquela explosão de santa indignação, e Jingadangelow, irritado, procurando ajeitar-se de novo na cadeira, disse para Barbagris.

— Este é o preço de ter discípulos... costumam exagerar. A recitação dessa cantilena parece subir à cabeça das mulheres. Não foi à toa que Jesus cercou-se apenas de homens... mas, quanto a mim, confesso que ainda prefiro as mulheres.

Retrucou Barbagris:

— Você não me parece inteiramente compenetrado do seu papel, Jingadangelow.

— O papel de profeta é sempre um tanto exaustivo. Faz anos que venho nesta luta! E terei ainda séculos e mais séculos pela frente! Mas... distribuo esperança... é o que importa. Curioso, hein, dar aos outros alguma coisa que a gente não tem.

Bateram à porta e um homenzinho esfarrapado, sumido dentro de uma malha de lã cinza, anunciou que todas as mulheres de Wittenham tinham sido recambiadas a terra e que o navio estava pronto para zarpar.


— É melhor que o senhor e seus companheiros se retirem — disse Jingadangelow para Barbagris.

Foi aí que Barbagris pediu-lhe que os rebocasse. Irritado, Jingadangelow acedeu. A condição era que partissem imediatamente. Ele os rebocaria até Hagbourne, em troca de alguns pequenos serviços de Pitt, Charley e Barbagris. Depois de confabularem um pouco os companheiros aceitaram a proposta, e trataram de reunir os seus pertences. A maior parte destes foi acomodada no esquife e no barco de Pitt, e o que restou foi alojado num espaço vazio do convés do navio.

À hora da partida a neblina tinha praticamente levantado. O dia continuava carrancudo.

Pitt e Charley meteram-se num jogo de cartas com dois membros da tripulação. Marta e Barbagris fizeram um passeio pelo convés, que conservava as marcas dos bancos em que um dia os veranistas tinham sentado para apreciar a paisagem. Havia poucas pessoas a bordo: cerca de uma dezena de “sacerdotisas” para atender às necessidades de Jingadangelow e uns raros tripulantes. Havia também um par de idosos cavalheiros que se encontravam alojados na sombra da proa e não falavam nunca. Portavam revólveres, evidentemente para repelir qualquer ataque desfechado sobre o navio, mas Barbagris, que não gostou do seu aspecto, sentiu certo alívio ao lembrar-se que estava armado.

Quando o casal passava pela câmara principal, local reservado para uso de Jingadangelow, a porta se abriu e o Mestre em pessoa espiou para fora. Com espalhafato, ele saudou Marta.

— Até mesmo os deuses precisam de ar puro. Minha cabina parece um forno. Está mais linda do que nunca, minha senhora: a passagem dos séculos não deixou vestígios em seu rosto. E... por falar em beleza, talvez gostassem de ver uma coisa.

Jingadangelow fez sinal a Marta e Barbagris que entrassem na cabina e encaminhou-os para uma porta dos fundos.

— Vocês ambos são infiéis, infiéis natos, claro está. Minha teoria é que os ateus nascem ateus e que os santo se forjam. Mas, na esperança de convertê-los, quero mostrar-lhes algo.

— Ainda pratica a castração? — perguntou Marta.

— Claro que não! Duvida da transformação por que passei, Sra. Barbagris? A mistificação não tem mais lugar nas minhas atividades. Quero que vejam uma amostra genuína da minha Segunda Geração. Ergueu a cortina de um postigo na porta e convidou-os a espiar.

Barbagris prendeu a respiração. Sentiu como que uma música invadir-lhe o espírito.

Sobre um catre dormia uma jovem. Estava nua e um lençol tinha caído dos seus ombros, expondo seu corpo de forma quase total. Um corpo macio, moreno, delicadamente construído. Os braços, dobrados sob o corpo, aninhavam os seios, um dos joelhos estava erguido, tocando quase o cotovelo e revelando o chumaço de pêlos pubianos entre as pernas. A jovem dormia com o rosto enterrado no travesseiro, a boca entreaberta, os bastos cabelos castanhos em desalinho, fazendo trejeitos. Teria seus dezesseis anos.

Marta cerrou sem ruído a cortina e voltou-se para Jingadangelow.

— Então ainda existem mulheres férteis... mas esta menina não pode ser de ninguém a bordo deste navio?!

— Não, não! Tem toda razão! Trata-se do consolo de um pobre profeta, poderíamos dizer assim. Seu marido parece impressionado. Espero que depois desta demonstração das minhas potencialidades possa contá-los entre os adeptos da Segunda Geração.

— Seu espertalhão, que anda fazendo com a menina? Ela é perfeita, ao contrário daquelas tristes criaturas que vi em Oxford. Como conseguiu apanhá-la? De onde vem ela?

— Não percebe que não tem o direito de interrogar-me desta forma? Mas posso dizer que acredito na existência de numerosas outras criaturas tão lindas como Chammoy (é assim que se chama essa) por aí. Percebe, tenho algo tangível para oferecer aos meus seguidores. Porque os dois não se juntam aos meus?


— Estamos de viagem para a desembocadura do rio — disse Marta.

Jingadangelow sacudiu a cabeça até que os queixos lhe tremeram.

— A senhora está se tornando porta-voz do seu marido na velhice, Sra. Barbagris. Quando nos conhecemos, muitos séculos atrás, julguei que possuía inteligência própria.

Barbagris apanhou-lhe a barra da toga.

— Quem é essa jovem? Se existem outras crianças, nesse caso precisam ser salvas, ajudadas e devidamente cuidadas... e não utilizadas como prostitutas por você! Por Deus, Jingadangelow...

O Mestre fez um passo atrás, apanhou a sineta e sacudiu-a com violência, depois golpeou com ela o rosto de Barbagris.

— Está com ciúmes, cachorro, tal como os demais homens!

Duas sacerdotisas acorreram prontamente, gritaram diante daquela cena e, rapidamente, abriram caminho até os homens da vigia. Estes apanharam Barbagris pelos braços e o imobilizaram.

— Amarrem-no e atirem-no às águas! — berrou Jingadangelow, retornando vacilante para a cadeira. Ofegava bastante. — Primeiro dêem-lhe umas chibatadas. Amarrem a mulher e deixem-na no convés. Falarei com ela quando chegarmos a Hagbourne. Mexam-se!

— Fiquem onde estão — comandou Pitt da porta. Ele tinha o arco entesado e fazia mira na cabeça de Jingadangelow. Seus dois únicos dentes rebrilharam por entre as penas coloridas da flecha. Ao seu lado encontrava-se Charley, faca em punho, vigiando o corredor. — Se alguém se mexer, matarei o Mestre sem nenhuma contemplação.

— Tome-lhes as armas, Marta — aconselhou Pitt. — Você está bem, Barbagris? Que fazemos agora?

Os capangas de Jingadangelow não demonstravam muita disposição de lutar. Barbagris fez Marta entregar-lhe os dois revólveres dos guardas e meteu-os no bolso. Depois esfregou o rosto na manga do paletó.

— Nada temos contra esta gente — disse — desde que concordem em nos deixar em paz. Rumaremos para Hagbourne e os deixaremos lá. Com toda certeza não mais os veremos.

— Mas não pode deixá-los escapar tão fácil! — exclamou Pitt. — Veja que oportunidade está desperdiçando. Este é o momento de conseguirmos um barco de primeira ordem. Podemos despejar esta tripulação bolorenta na margem mais próxima.

— Não podemos fazer isso, Jeff. Estamos velhos demais para a pirataria — disse Marta.

— Senti as forças me voltarem — disse Pitt, sem dirigir-se a ninguém especificamente. — De arco em punho ali na porta, percebi que era novamente capaz de matar alguém. É um milagre!...

Olharam para ele sem compreender o que se passava.

Barbagris disse:

— Sejamos práticos. Não somos capazes de dirigir este navio. Jamais conseguiríamos sair do Mar de Barks.

— Marta tem razão — disse Charley. — Não temos o direito moral de tomar-lhes o navio, por mais patifes que eles sejam.

Jingadangelow endireitou-se na cadeira e ajeitou a toga.

— Se terminaram a discussão, tenham a bondade de sair da minha cabina. Sou forçado a recordar-lhes que este lugar é privativo e sagrado. Não haverá mais problemas, garanto-lhes.

Quando saíam, Marta notou um par de selvagens olhos escuros espreitando-os por uma fresta da cortina.

Hagbourne surgiu aquela tarde, não emergindo da bruma, mas de uma pesada cortina de chuva, pois a neblina matutina desaparecera pela ação de um vendaval que trouxera consigo o aguaceiro. Quando o navio atracou junto de um cais de pedra e a silhueta de Berkshire Downs começou a desenhar-se, a chuva pareceu amainar. A cidade que Jingadangelow dizia ser a sua base parecia deserta. Apenas três anciãos aguardavam a chegada do navio e ajudaram a amarrá-lo.

O desembarque serviu para dar um pouco de vida ao cenário.


O pessoal de Barbagris baixou preguiçosamente seus barcos do navio. Jingadangelow não parecia um lutador. Aquilo com que não contavam foi o aparecimento de Becky, que surgiu no instante em que as bagagens estavam sendo acomodadas no esquife.

Ela deitou de lado a cabeça e apontou o nariz afilado para Barbagris.

— O Mestre mandou-me falar com você. Diz que você lhe deve algum trabalho em troca do privilégio que lhe concedeu.

— Teríamos feito qualquer trabalho, se ele não tivesse atacado Barbagris — disse Charley. — Foi uma verdadeira tentativa de assassinato. Todo aquele que adora falsos deuses será condenado, portanto, cuide-se, Becky.

— Trate de segurar a língua, Charley Samuels, quando se dirigir a uma sacerdotisa da Segunda Geração. E, de qualquer forma, não estava falando com você. — Ela voltou deliberadamente as costas para Charley e disse para Barbagris: — O Mestre tem sempre o perdão no coração. Ele não lhe quer mal e gostaria de acomodá-lo por esta noite. Existe um local vazio que você poderá usar. O oferecimento é Dele, não meu, caso contrário eu não o estaria fazendo. Pensar que você deitou as mãos na Sua pessoa!

— Não queremos a hospitalidade dele — disse Marta com firmeza. Barbagris tomou as mãos da esposa e, por sobre o seu ombro, disse para Becky: — Diga a seu Mestre que aceitaremos com prazer o oferecimento que nos faz. E trate de arranjar uma pessoa educada para nos acompanhar.

Enquanto Becky se arrastava de volta pela prancha de desembarque, Barbagris disse aflito para Marta:

— Não podemos partir simplesmente, sem descobrir mais alguma coisa a respeito da menina de Jingadangelow: de onde vem e que sorte lhe está reservada. E, seja como for, a noite está horrível. Sei que não correremos nenhum perigo. O melhor é ficarmos no seco.

Marta arqueou as sobrancelhas falsas:

— Não sei que interesse tem para você esse velho malandro, claro que os encantos da mocinha são muito mais palpáveis.

— Não seja tola — retrucou Barbagris com doçura.

— Faremos o que deseja.

Uma vermelhidão tomou todo o rosto e o alto do crânio de Barbagris:

— Chammoy nada me diz — rugiu ele, voltando-se para dar algumas ordens a Pitt.

Os alojamentos para eles destinados por Jingadangelow eram bons. Hagbourne era um conglomerado de ruínas de construções do século vinte, muitas delas com escoras. Mas, no bairro que Jingadangelow tinha reservado para uso seu e dos seus discípulos as casas eram menos anêmicas. Naquela área a vegetação era densa. For toda parte havia plantas: sabugueiros, salgueiros, azedas, urtigas e as indefectíveis sarças. Nos arredores da cidade a vegetação era de outro tipo. Os carneiros que outrora tosavam a relva de há muito tinham desaparecido. Sem rebanhos que devorassem os talos, começavam a reaparecer as faias e os carvalhos, deslocando os alicerces das velhas moradias dos consumidores de carneiros.

A jovem e vigorosa floresta, gotejante ainda de chuva, roçava as paredes do estábulo destinado a Barbagris e sua comitiva. A parede anterior e a posterior estavam danificadas, de modo que havia muita lama no interior. Mas uma escada de madeira levava a uma pequena sacada, para a qual abriam dois quartos, abrigados por um teto ainda intacto. Fazia pouco, tinham sido habitados e prometiam-lhes uma noite relativamente confortável. Pitt e Charley ocuparam um dos quartos, Marta e Barbagris o outro.

Eles fizeram uma boa refeição com dois marrecos e um pouco de ervilhas que Marta comprara de uma das mulheres do navio, pois as sacerdotisas, nas horas vagas, não se mostravam avessas ao comércio. Procedeu-se a uma caçada aos percevejos e ficou mais ou menos esclarecido que a noite transcorreria sem visitas desse tipo. Incentivados pela constatação, todos se recolheram cedo às suas camas. Barbagris acendeu uma lanterna e, juntamente com Marta, descalçou os sapatos. Ela começou a escovar e pentear os cabelos. Ele cuidava de limpar o cano do rifle quando se ouviram passos na escada.

Silenciosamente, Barbagris meteu um cartucho na culatra da arma e apontou para a porta. Sem nenhuma dúvida, o intruso ouviu o estalido do gatilho, e uma voz gritou:

— Não atire!

Barbagris ouviu a voz de Pitt no quarto contíguo lançar um desafio:

— Quem está aí? Meto-lhe um tiro na cabeça!

— Barbagris, sou eu... Jingadangelow. Quero lhe falar.

Marta comentou baixinho:

— Jingadangelow e não o Mestre!

Barbagris apagou a lanterna e abriu a porta. Jingadangelow surgiu à luz pálida do crepúsculo, no meio das escadas, uma pequena lâmpada erguida à altura da cabeça. A luz apanhava-lhe de viés o rosto e a testa rebrilhantes. Pitt e Charley saíram à sacada para vê-lo.

— Não atirem. Estou só e não lhes quero fazer mal. Só desejo falar com Barbagris. Podem ir dormir tranqüilamente.

— Nós é que vamos decidir isso — respondeu Pitt, mas em tom de quem cedia. — Já percebeu que não estamos dispostos a tolerar nenhuma tolice da sua parte.

— Eu cuido dele, Jeff — disse Barbagris. — Suba, Jingadangelow.

O apóstolo da vida eterna tinha engordado bastante nos últimos tempos e os degraus de madeira da escada gemeram à sua passagem. Barbagris colocou-se de lado para deixar entrar Jingadangelow. Ao ver Marta, ele sacudiu as cadeiras num arremedo de cumprimento. Depois colocou a lanterna numa prateleira de pedra embutida na parede e quedou-se estático, beliscando os lábios, respirando pesadamente e observando com atenção os presentes.

— Trata-se de uma visita social? — indagou Marta.

— Vim a negócios — respondeu Jingadangelow.

— Não queremos negociar, isto é com você, não conosco — disse Barbagris. — Se os seus dois capangas querem de volta os revólveres, estou pronto a restituí-los pela manhã quando sairmos daqui. Desde que me garanta que irão comportar-se bem.

— Não vim para falar nisso. Não precisa ser irônico, apenas porque está em posição vantajosa com relação a mim. Quero lhe apresentar uma proposta honesta.


Marta disse friamente:

— Dr. Jingadangelow, esperamos partir de manhã cedinho. Por favor, entre diretamente no assunto.

— Algo relacionado com a menina Chammoy? — perguntou Barbagris.

Balbuciando que depois alguém teria que erguê-lo dali, Jingadangelow desabou no assoalho e sentou-se.

— Vejo que não tenho outra alternativa senão colocar as cartas na mesa. Quero que ambos me ouçam com boa vontade, pois aqui estou para confessar-me. Lamento que não me recebam de forma mais amistosa. Apesar do pequeno incidente ocorrido no navio, o meu apreço por vocês continua inalterado.

— Desejamos saber algo a respeito da menina — disse Marta.

— Sim, sim. Já lhes direi alguma coisa. Conforme sabem, durante muitos séculos de trabalho viajei exaustivamente pela zona central do país. Sob muitos aspectos, sou um tipo byroniano, obrigado a errar e sofrer... No transcurso das minhas peregrinações dificilmente tive ocasião de ver alguma criança. Claro que, teoricamente, não deve haver crianças. Contudo, meu raciocínio leva-me a pensar que a situação real difere bastante da aparente. Tal conclusão me vem após a consideração de inúmeros fatores, os quais passo a expor.

“Se ainda recordam os tempos longínquos que antecederam o desmoronar da antiga civilização tecnológica, os idos do século vinte, decerto têm presente que os peritos divergiam muito quanto ao diagnóstico do que aconteceria quando todos os efeitos da bomba atômica estivessem atuando em sua plenitude sobre nós. Alguns acreditavam que em poucos anos tudo voltaria ao normal, outros que o acúmulo de radiatividade varreria a vida da face da terra. Como nós, que desfrutamos do privilégio de ter sobrevivido à catástrofe, bem sabemos, ambas as facções estavam enganadas. Certo?”

— Certo. Prossiga.

— Obrigado. Outros peritos eram de parecer que a radiatividade proveniente do Grande Acidente talvez fosse absorvida pelo solo com o correr do tempo. Acredito que esta derradeira previsão se concretizou. Mais ainda, acredito que algumas mulheres jovens readquiriram a capacidade de procriar.

“Sou obrigado a confessar que não encontrei pessoalmente nenhuma mulher fértil, embora nas minhas novas investiduras tenha estado sempre a procurá-la. De modo que fui obrigado a fazer-me a mim mesmo a pergunta: Que faria eu, se fosse uma mulher de cerca de sessenta anos e descobrisse que poderia gerar aquilo a que damos o nome de Segunda Geração? Trata-se de uma pergunta eminentemente teórica. Qual seria sua resposta, minha senhora?”

Marta disse lentamente:

— Caso eu ficasse grávida? Ficaria encantada com isso. Pelo menos, gastei boa parte da minha vida pensando que ficaria encantada. Mas não gostaria que vissem meu filho. E decerto não me apresentaria a alguém como o senhor, receando que fosse obrigada... bem, obrigada a reproduzir compulsoriamente.

Jingadangelow meneou pomposamente a cabeça. À medida que falava, voltava-lhe a velha gabolice.

— Obrigado, minha senhora. Está me dizendo que se esconderia juntamente com o rebento. Ou então se exporia e correria o risco de ser morta, tal como aconteceu com uma tola mulher que deu à luz perto de Oxford. Se admitirmos que um reduzido número de mulheres deu à luz, devemos lembrar que o terão feito em localidades isoladas, inteiramente afastadas das vias de comunicação movimentadas. A notícia do nascimento não terá nunca entrado em circulação.

“A seguir, considere-se a situação das crianças. Talvez se possa considerar invejável a sua sorte, com tantos adultos em volta para mimá-las e protegê-las. Um conhecimento mais aprofundado da natureza humana leva, porém, a conclusão bem diferente. A inveja rancorosa das pessoas sem filhos seria insuportável, e pais idosos não teriam condições de combater esse sentimento nefasto. Crianças seriam raptadas por mulheres com mania de maternidade, por velhotes malucos e estéreis. Os jovens seriam constantemente vitimados por indivíduos de certo tipo, com os quais há coisa de oitenta anos fui obrigado a envolver-me. Quando os jovens, meninos ou meninas, atingissem a puberdade, fácil é imaginar os vexames de caráter sexual pelos quais já teriam passado...”

— A experiência de Chammoy deve ser uma prova do que está dizendo — atalhou Barbagris. — Deixe-se de hipocrisias, Jingadangelow, e vamos ao que interessa.

— Chammoy carecia de proteção e influência moral, e, ademais, sou um homem solitário. No entanto, quero frisar isto: a maior ameaça que se poderia antepor a uma criança é... a sociedade humana! Se não sabem por que não existem crianças, a verdade é que, se elas existem, escondem-se de nós nas florestas.

Marta e Barbagris se entreolharam. E no semblante um do outro perceberam a admissão da plausibilidade da hipótese. E em abono dela havia os constantes boatos da existência de gnomos com forma humana nas florestas, os quais, ao primeiro sinal de aproximação do homem, desapareciam. Contudo... era duro acreditar, pois os cérebros já estavam desabituados a admitir a existência de crianças.

— O que diz é apenas um sinal da sua insanidade, Jingadangelow — disse Barbagris asperamente. — Está obcecado por essas jovens criaturas. Vá embora, por favor. Não queremos mais saber das suas loucuras...

— Espere! Você é que é louco, Barbagris! Será que o meu raciocínio não faz sentido? Sou mais são do que você, com esse desejo maluco de chegar à desembocadura do rio. — Ele inclinou o corpo, como que agoniado, e enlaçou as mãos. — Escute-me! Tenho uma razão para lhe dizer tudo isto.

— Espero que seja uma boa razão.

— E é. É uma idéia. A melhor idéia que já tive e sei que vocês irão gostar. São ambos pessoas razoáveis e, depois de todos estes séculos, foi um grande prazer reencontrá-los, a despeito do infausto incidente desta manhã, cuja culpa cabe mais a vocês do que a mim próprio. Mas... esqueçamos o fato. A verdade é que vendo-os senti necessidade de uma companhia inteligente, em lugar da companhia dos tolos que me rodeiam. — Jingadangelow inclinou o corpo e dirigiu-se especificamente a Barbagris. — Estou disposto a abandonar tudo e seguir com você, seja para onde for. Claro, permanecerei sempre sob suas ordens. É uma grande e nobre renúncia. Faço-a apenas em benefício da minha alma e ainda porque estou farto dos imbecis que me cercam.

No breve silêncio que se seguiu o homem gordo manteve os olhos fixos em seus ouvintes, tentou sorrir para Marta, mas, pensando melhor, desistiu da idéia.

— Você reuniu esses idiotas que o seguem, agora tem que aturá-los — disse Barbagris com voz pausada. — Trata-se de uma coisa que aprendi com Marta não faz tanto tempo assim. Qualquer que seja o papel por nós pretendido na vida, o importante é desempenhá-lo da melhor forma possível.

— Mas esse papel de Mestre, pelo amor de Deus, não é o meu único papel. Quero esquecer-me dele.

— Não duvido que haja uma dezena de papéis que pode desempenhar, Jingadangelow, mas não duvido também que a sua essência reside nos papéis que desempenha. Não o queremos conosco... Sou obrigado a usar de absoluta franqueza. Somos felizes! Apesar de tudo aquilo que se perdeu no terrível acidente de 1981, nós, ao menos, ganhamos uma coisa: não mais existe lugar para a hipocrisia da civilização, gozamos do direito de ser autênticos. Mas você traria a discórdia entre nós, pois continua de máscara afivelada ao rosto mesmo nos dias que correm. Já está velho demais para deixá-la cair... quantos milhares de anos tem?... De modo que nunca encontrará paz entre nós.

— Eu e você somos filósofos, Barbagris! A nata da terra! Quero partilhar da sua vida simples.

— Não. Não concordo. Você só serviria para estragá-la. Nada feito. Sinto muito.

Barbagris apanhou a lanterna na prateleira de pedra e colocou-a nas mãos de Jingadangelow. O Mestre olhou para ele e depois virou lentamente o rosto para Marta. Esticando o braço apanhou-lhe a barra do vestido.

— Sra. Barbagris, o seu marido endureceu desde que nos conhecemos em Swifford Fair. Convença-o. Digo-lhes que existem crianças nas matas das redondezas... Chammoy era uma delas. Nós três poderíamos apanhá-las e servir-lhes de professores. Elas tomariam conta de nós enquanto lhes ensinaríamos tudo quanto sabemos. Por favor, convença esse seu empedernido marido.

Marta respondeu:

— Já ouviu o que ele disse. Ele é quem manda.

Quase que para si mesmo disse:

— É o fim. Estamos todos sós. Grande trambolho... a consciência.

Vagarosamente, pôs-se de pé. Marta levantou-se também. Uma lágrima forçada surgiu no canto do olho direito do profeta e rolou-lhe pelo rosto e pelo queixo, onde uma ruga desviou-a para a região do pescoço.

— Ofereço-lhes minha humildade, minha humanidade, e vocês não aceitam!

— Poderá pelo menos voltar à sua divindade.

Jingadangelow deu um suspiro e ensaiou uma reverência, não fazendo mais, porém, que dobrar levemente os joelhos.

— Espero que partam bem cedo — disse ele. Voltando-se, encaminhou-se para a porta, fechou-a atrás de si e deixou-os no escuro.

Marta procurou com a mão a do marido.

— Que magnífico discurso lhe fez, querido! No final de contas, você é um tipo imaginoso. Ouvi-lo dizer: Somos felizes! Você é verdadeiramente um bravo, Algy, meu amor. Deveríamos ter conosco o velho patife, se ele lhe arrancasse sempre as mesmas explosões de eloqüência.

Pela primeira vez, Barbagris quis pôr termo às doces provocações da mulher. Ele pôs-se atento aos ruídos que Jingadangelow produzia, ou melhor, tinha deixado de produzir. Pois, feitos alguns passos na escada, Jingadangelow tinha parado, seguira-se um ruído abafado impossível de decifrar, para logo após estabelecer-se um silêncio integral. Afastando Marta de junto de si, Barbagris tateou à procura do rifle, apanhou-o e abriu a porta.

A lanterna de Jingadangelow continuava acesa. Mas o Mestre já não a tinha entre as mãos. Ele jazia no assoalho do estábulo, as mãos trêmulas sobre a cabeça. Em torno dele havia três espantosas criaturas, uma delas balançando a lanterna de cá para lá, fazendo as sombras rodopiarem pela construção, pelo teto de madeira, pelo assoalho e pelas paredes.

As figuras eram grotescas, mas tornava-se difícil identificá-las na semi-obscuridade. Aparentemente, tinham quatro pernas e dois braços cada uma, mantendo-se quase acocoradas. Suas orelhas eram grandes e pontudas, e tinham compridos focinhos. Não seria demais que um espectador incauto as tomasse por alguma representação medieval do demônio.

Os pêlos da barba de Barbagris eriçaram-se todos, num arroubo de supersticioso receio. Em ação puramente reflexa, disparou o rifle.

Produziu-se um ruído aterrador. Uma seção distante da parede do estábulo aluiu na lama. Ao mesmo tempo, a figura que dançava de lanterna em punho soltou um grito e caiu ao chão. A lanterna espatifou-se.

— Meu Deus, Marta, traga uma lanterna! — gritou Barbagris, alarmado. Nesse instante apareceram Pitt e Charley na escada com a sua lanterna.

Com um grito de nervosismo Pitt disparou uma flecha sobre os vultos em fuga, mas a seta não atingiu o alvo, limitando-se a espetar o barro. Os três homens, com Marta nos calcanhares carregando uma outra lanterna, desceram até o chão. Jingadangelow, derreado sobre uma parede, chorava a sua desdita. Fisicamente, nada sofrerá.

No chão, metido num par de peles de texugo, estava um menino. Uma das peles encontrava-se presa à porção inferior do seu corpo, dando-lhe um par extra de pernas, a outra fora colocada de molde a mascarar o rosto da criança. Ademais, o corpo franzino estava recoberto de graxa. Na cintura ele trazia uma faca. O projétil tinha-lhe varado a coxa. O menino estava sem sentidos e sangrava abundantemente.

Charley e Pitt ajoelharam-se ao lado de Barbagris enquanto este retirava a pele de texugo. A ferida roia a pele macia da coxa do menino.

Os homens quase nem ouviram Jingadangelow balbuciando sobre as suas cabeças.

— Não fosse você, Barbagris, eles me teriam matado. Selvagens! Salvou-me a vida! Esses bandidinhos estavam à minha espera! Apanhei Chammoy aqui por perto, creio que estão à procura dela. Selvagens! Não posso permitir que os meus fiéis me vejam aqui! Tenho que continuar sendo o Mestre! É o meu maldito destino.

Pitt encaminhou-se até junto dele.

— Não queremos vê-lo nunca mais. Cale a boca e suma daqui.

Jingadangelow ergueu-se:

— Imagina que quero ficar?

A seguir saiu cambaleante do estábulo, ao tempo em que Marta tratava de aplicar um torniquete na perna do menino. Quando ela apertou, os olhos da criança se abriram. Marta debruçou-se sobre ela, sorridente:

— Seja quem for, querido, você vai ficar bom!

Logo cedo o esquife partiu, com o barco de Pitt no rastro. Solitário no interior da embarcação, Pitt meneava a cabeça, sorrindo de quando em quando ou esfregando o nariz. Ao deixarem Hagbourne, o dia estava encoberto, mas logo na etapa seguinte da viagem que prometia levá-los um dia à desembocadura do rio, o sol rompeu as nuvens e apresentou-se uma suave brisa.

A estreita faixa do porto, com o navio da Segunda Geração lá atracado, estava deserta. Para alívio geral, não viera ninguém de Jingadangelow para o bota-fora, amistoso ou não. Depois de alguns instantes apareceu na praia uma figura solitária, acenando para eles. Mas, a distância, não era possível distingui-la com clareza.

Barbagris e Charley recolheram os remos quando a brisa enfunou a vela, e o primeiro foi sentar-se ao timão junto de Marta. Os esposos se entreolharam sem dizer palavra.

Barbagris tinha negros pensamentos na cabeça. O malfadado Mestre tinha razão em pelo menos uma coisa: mãos humanas estavam, se não intencionalmente pelo menos na prática, maltratando as crianças. Ele próprio disparara contra a primeira criança que lhe tinha surgido por perto! Talvez o homem estivesse padecendo de alguma violenta necessidade filicida que o levava à destruição.

Ficara afinal patenteado que o instinto de conservação era forte entre a nova geração... o que era bom, tão escassa sobre a Terra era essa geração. Os novos estavam cansados dos homens. Pelas suas vestimentas estava claro que se identificavam melhor com os animais. Bem, dentro de uns poucos anos, as coisas se tornariam mais fáceis para eles.

— Poderiam aprender a não nos temer — balbuciou Barbagris, distraído. — Recebida essa lição vital, poderíamos ensinar-lhes uma porção de coisas.

— Claro que tem de ser como você diz. Mas eles constituem quase uma nova raça... talvez o ideal fosse não ensinar-lhes a não nos temer — disse Marta, apoiando-se nas costas do marido para levantar-se.

Barbagris ficou ruminando nas implicações contidas naquelas palavras enquanto ela se afastava. Marta debruçou-se sobre a improvisada maça, sorridente, e começou a trocar com todo o cuidado as ataduras do jovem Artur. Por um instante o marido quedou-se a contemplá-la: as mãos, o rosto, e a criança que a fitava nos olhos com solenidade.

Depois ele virou a cabeça, descansando uma das mãos na coronha do rifle e protegendo com a outra os olhos, fingindo perscrutar o horizonte ao longe.

 

                                                                               Brian Aldiss 

 

 

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