Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JUDAS / Augusto de Lacerda
JUDAS / Augusto de Lacerda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Augusto de Lacerda

 

 

 

 

ROMANCE LÍRICO EM QUATRO JORNADAS
PRIMEIRA JORNADA EM 8 DE NISSAN A aldeia de Betânia fica a hora e meia de Jerusalém. Sobre a colina em que ela assenta ergue-se, modesta e afastada das outras habitações, a casa de Simão, o Leproso. Tem esta a forma típica de uma pirâmide retangular truncada, e na parte superior um terraço onde florescem nos canteiros roseiras de Jericó. Em frente da porta, ladeada de duas janelas a desiguais alturas, um pequeno largo coberto pela enorme abóbada de verdura de grossas árvores seculares, coevas talvez dos últimos grandes profetas. A água de uma fonte vizinha, jorrando natural da fenda de um rochedo, cai sobre uma pia ampla, de arquitetura romana, espalhando no ambiente notas cristalinas, e fazendo-nos pensar na Samaritana da lenda... Um tronco de árvore carcomido pelo tempo e tombado no solo convida ao descanso e à meditação. Uma longa estrada, aberta pelo rodar dos carriões, vai desde ali serpeando por entre o mato, ora subindo, ora descendo, em curvas graciosas, até que chega aos terrenos cultivados onde o trigo verdeja e as papoulas entreocultam as suas manchas rubras. Ergue-se então o Monte das Oliveiras, de um verde acinzentado; da sua maciça ramagem surgem, majestosos, dois altíssimos cedros antigos como Babilônia, e em volta dos quais esvoaça um bando de pombas brancas. Aquele monte, à esquerda, rude, penhascoso, de cor turva, é o Monte do Escândalo; e chama-se Cedron o riozinho que aparece na linha inferior da encosta, e que, muito calmo e prateado, vai sumir-se além no Vale de Josafá, onde dormem em seus sepulcros caiados as ossadas dos profetas e patriarcas. Lá ao longe, no fundo do quadro e sobre terreno irregular, alonga-se a cidade de Jerusalém com as suas casarias de configuração muito geométrica, amontoadas como um forte punhado de dados. Mal se distinguem as ruas estreitas, com aparência suja nas velhas cantarias. A cidade vai num plano ascendente, que se quebra para lá da encosta: — é ali a antiga Sião do tempo do grande rei David. Mais clara, vem descendo a cidade nova, terminando junto do Monte Moriá onde, segundo diz a lenda, Abrahão esteve prestes a imolar seu filho Isaac, em sacrifício ao Senhor. Por isso naquele monte se alevanta, mudo como um mistério, o grande Templo, a casa do Deus que “foi, é e há de ser”: Jeová. A Torre Antônia, a um dos ângulos do vastíssimo quadrado, que fecha o recinto vedado a profanos, é como uma sentinela de Tibério, na sua atenta quietação. Para além da cidade, a perder de vista, alonga-se o campo inculto, onde o carrasco e a urze predominam, e onde raras palmeiras deixam pender suas folhas esfarrapadas. Pequenos lugarejos clareiam aqui e ali; muito nos longes, divisa-se a colina de Mizpá e a cordilheira de Gabaão entestando no firmamento azul e alegre. Vai declinando o sol de uma formosa tarde do começo da primavera, que entorna regaços de seiva, de cânticos e de cores por sobre todo o harmonioso quadro. A brisa, ainda morna, traz-nos o aroma dos trigais, de mistura com o resinoso do mato, que morenisa a pele e põe nos lábios um sabor acre. Os rebanhos tilintam vagamente; vão cantando na estrada as cotovias.

 #
#
#

#
#

GAMALIEL (que chegou da cidade, arrimado ao seu bordão, as barbas brancas doiradas pelo sol, dirige-se à casa de Simão, e, clamando) Eleazar, meu caro, honrado ebionita, Recebe de um amigo a cordial visita.
 
ELEAZAR (assomou logo a uma das janelas. É um rapaz de vinte e tantos anos, franzino e melancólico) És tu, Gamaliel? Que ideia benfazeja Teus passos dirigiu assim, para que eu veja À porta do modesto e humilde lavrador Aquele que possui o nome de doutor
 
Notável e profundo?
 
GAMALIEL É pobre a moradia, Amigo? — Não encerra a vil hipocrisia, Ornamento dos maus e da nefanda casta, Que faz do sacerdócio uma arma. Isto me basta.
 
ELEAZAR É que a virtude leva às almas refrigério Tal, como à flor o pranto envolto no mistério; Pranto suave, meigo e virginal e ardente, Que uma estrela chorou silenciosamente... 
 
GAMALIEL É que a bondade espalha a sua luz divina E pura, como o Sol que a todos ilumina...  (E baixinho, encostando-se ao peitoril da janela onde Eleazar se conservou) O que tenho a dizer-te é coisa de segredo. Escuta-me portanto aqui.
 
ELEAZAR Por quê? Tens medo De que minhas irmãs?... 
 
GAMALIEL O assunto é muito grave, E receio que a dor ainda mais se crave Nas almas feminis do que na tua. (Bem o compreendeu Eleazar. Ei-lo que se retira da janela, e saindo de casa, acode logo ao secreto chamamento) Amigo, Uma nova cruel: — o Mestre... 
 
ELEAZAR (estremecendo) Algum perigo É iminente?
 
GAMALIEL Aquela estúpida gentalha Ridícula, mesquinha, hipócrita e canalha Prepara com mistério o plano vingador,  E está na posição terrível do condor, Pairando ao ver a presa incauta. A esta hora, Em casa de Caifás... É sábado hoje? Embora! ...O Conselho procura, extravasando o fel, Garantir-se o poder no povo de Israel.
 
ELEAZAR Prendendo o Mestre?
 
GAMALIEL Sim! Razões tem para tudo O seu pensar feroz, indómito e agudo! Amor divino? Qual! Apenas o receio De perder o lugar no execrável meio: De um lado, a ambição, por mais que abuse e coma, E de outro o servilismo às leis que vem de Roma! (Num brusco movimento deixou transparecer todo o rancor que o domina e que se expande, enfim, numa invocação) A Virgem de Sião suspira há muito já!...  — Ó terra de Jacó! Heróis de Josafá! Que é feito do vigor da tua fala, Isaías? E das lamentações sinceras, Jeremias? Profeta Ezequiel, a tua voz potente Jamais ribombará por todo o Oriente, Fazendo estremecer o déspota cesáreo, Como o gládio de Deus, terrível, incendiário, Que na vasta amplidão a olhar o mundo assoma, Que sepultou Gomorra e destruiu Sodoma?!
 
ELEAZAR (com o olhar vago) Vergonha! opróbrio!... 
 
GAMALIEL (que enxugara à manga da túnica uma santa lágrima de entusiasmo cívico) Ai! desde que um idumeu Conseguiu transviar o nobre povo, o hebreu, E nos ombros depôs o manto purpurino...  Maldito! que deixaste um rasto viperino, Um rasto de peçonha! Infame! Rei protervo, O teu nome recorda o luto e um acervo De horrores! — Certo dia, ousaste no portal Da casa do Senhor dar pouso à imortal Águia romana!... — Vil, nascido de idumeus, O César também morre: a águia eterna é Deus! ...Que tristeza, ao pensar numa tão negra história! — Do nome do tirano o filho honra a memória. Surge um brado, a Nação protesta, grita, luta...  Afinal, para quê? sem forças, dissoluta?...  — Eu vi por toda a parte erguerem-se madeiros; Vi morrerem na cruz milhões de prisioneiros, Gritando “Jeová!” nas ânsias da agonia! E ao passo que na morte o hebreu se contorcia, E filhas e mulheres davam à luz o pranto, O incêndio voraz lavrava o Lugar Santo! — Depois?... Depois mais nada. O César nos esmaga, Revolvendo o punhal na apodrecida chaga! Seja procurador Copônio, ou seja Marco, Ou Rufo, ou Grato, ou Pôncio, a nação é um charco Onde vivem, senis, as rãs do servilismo...  É província romana; e viva o cesarismo! E ri amargamente numa cascalhada irônica de velho rabino, apertando, convulso, o cajado na mão ossuda onde as veias ressaltam.
 
ELEAZAR (sugestionado pelas palavras do velho) Não! não! Ressurgirás, eleita do Senhor, Desta funda apatia e deste grande horror! Judéia, serás livre! Elias não morreu, Porque revive num que tem o verbo seu,
E ele há de trazer a guerra e o extermínio! Se é branco o seu vestido, ai! pode ser sanguíneo!...  Abaterás o orgulho, o despotismo, a infâmia! O povo quer vingança atroz: pois bem, derrame-a Sem mínimo temor da cólera dos céus!
 
GAMALIEL (num clarão de esperança) Já temos o preciso: um Homem!
 
MARIA (que tinha saído de casa e que ouviu as últimas palavras) Não! — Um Deus! (Alta, morena, olhos negros, de languidez oriental. Negras devem ser também as suas tranças ocultas a olhares mundanais. As roupagens escuras, que lhe descem até aos pés, caem suavemente em pregas regulares e castas como as de Suzana. O seu olhar é sempre vago e tranquilo; os seus gestos sempre em acordo com as serenas emoções da alma) É belo o teu falar, mas como de cegueira Pelo amor pátrio estás vencido! De maneira Que apenas bastaria um pulso valoroso Para despedaçar o monstro ambicioso De fausto e de poder que se revolve além, Naquela babilônia? Então, Jerusalém, Movida por um braço, embora resoluto, Poderia colher o ambicionado fruto Da plena liberdade em meio da revolta? — vai longe, muito longe, o tempo... que não volta! A Judéia prefere a honra em mil pedaços, Cheia de timidez, cruzando inerme os braços, Inábil para a luta e com horror à morte...  A tribo de Levi, aquela cujo porte, Sendo mais senhoril e nobre, inspiraria Coragem ao vencido e alguma simpatia Ao vencedor, que faz? Conspira contra o povo. — Onde encontraste, irmão, o excitante novo, Que possa dar alento a quem sucumbe exangue, Que os nervos fortaleça e retempere o sangue?
 
GAMALIEL Há sempre em casos tais... 
 
ELEAZAR A força de um atleta!
 
MARIA Tem muito mais poder o verbo de um profeta! Há de ser ele, sim! pregando a perfeição Das coisas divinais a toda a multidão, Que se contorce aflita em negro paroxismo, Descrente de Moisés, propensa ao paganismo. Nem ferro, nem madeiro: apenas a palavra, Que ao entranhar-se em nós suavemente lavra, Pesada, como o arado à terra benfazejo, Subtil, como o pousar castíssimo de um beijo!
 
GAMALIEL E quem te diz que não? Eu julgo indiferente Que tenhamos no Mestre aquele descendente Do nome de David ao mundo prometido Pelo Senhor. Amá-lo é todo o meu sentido. Porque bem vejo a força enorme, o poderio Que exerce na cidade. É mais que prestadio À Pátria um homem tal!
 
ELEAZAR A sua mão convulsa, Brandindo um azorrague, os vendilhões expulsa Para longe do sítio às preces consagrado... 
 
MARIA E o seu falar murmura às vezes tão magoado!...  — Regenera a mulher atreita às bacanais E que mercadejava as graças corporais; Ascende até o amor aos pobres, às crianças, Aos tristes e aos nus, e dá mil esperanças
 
Num reino que ele sabe e que ninguém conhece... 
 
ELEAZAR Quando, porém, troveja irado, mais parece Que vibra no seu peito a própria voz de Deus!
 
MARIA Oh! sim! que é de temer o divinal prestigio!... 
 
ELEAZAR Que deixa em seu caminho um profundo vestígio... 
 
GAMALIEL (ao ouvido de Eleazar, aproveitando o ensejo dado por Maria, que foi sentar-se junto da fonte) Mas o povo nem sempre aceita um bom aviso, E Deus pode morrer... quando for mais preciso. 
 
ELEAZAR (com o intuito de afastar o negro pensamento, que a todos três oprime no íntimo) O Mestre não virá. Alegra-me a certeza De que foge ao Conselho a ambicionada preza. Começa em breve a Páscoa, e entre os forasteiros Ainda não chegou nem um dos companheiros Do Mestre.
 
GAMALIEL Vai o Sol no termo da viagem: Torno para a cidade. (E novamente em segredo) Eleazar, coragem! No teu silêncio tens a minha vida e a tua.
 
ELEAZAR (abeirando-se muito a ele, suplicante) Se te constar, porém, que o plano continua E mais se desenvolve... 
 
GAMALIEL Hei de dizer-te, amigo.
 
ELEAZAR (saudando-o) Que não te fuja Deus!
 
GAMALIEL (saudando-o) Fique o Senhor contigo! Saúda também Maria, e, retomando o caminho da cidade, vai-se ao longo da estrada, um pouco alquebrado, cadenciando os passos pelo bater do bordão no solo poeirento.
 
ELEAZAR (sentou-se no tronco de árvore, pensando; e, como respondendo aos próprios pensamentos) Ninguém pode roubá-lo à próxima agonia. Morrerá na cidade. A horrível profecia Aponta-lhe, cruel, a inevitável a sorte...  Há muito que de longe anda a espreitá-lo a morte!   (Marta e Simão de Betânia saíram de casa. Ela é uma rapariguita de dezoito anos, irrequieta, buliçosa, muito infantil; ele, um velho cujo cabelo e barba há muito branquearam; nas mãos o trabalho da lavoura pôs-lhe grossos calos e deformou-lhe os dedos; e no rosto a lepra deixou-lhe vestígios indeléveis em manchas avermelhadas)
 
MARTA No que pensa o meu irmão?
 
ELEAZAR Em nada penso.
 
MARTA Duvido. Há nesse olhar definido Vislumbre de inquietação.
 
SIMÃO Se tu pensas na lavoura,
 
Fazes mal, que o dia de hoje, Enquanto o Sol não nos foge, Proíbe que, cismadora, A mente se ocupe assim De coisas que não respeitam A Deus.
 
MARIA (em longa abstração, junto da fonte, como se ninguém a ouvisse) Aqueles que enjeitam O pensar, mesmo o ruim, São como as ondas brutais, Que lançam à rocha dura A espuma de cuja alvura Elas são as mães e os pais... 
 
SIMÃO (chasqueando-a, mas com meiguice) Sempre hás de ser renitente Em respeitar a doutrina De Moisés!
 
MARIA (com amargo sorriso) O que ela ensina É por vezes incoerente. De ouvi-la já estou cansada, E nem assim me convence.
 
MARTA (encostada ao ombro do irmão, que se conserva sentado) Não falas?
 
SIMÃO Deixa-o! Que pense, Uma vez que isso lhe agrada!
 
ELEAZAR Mas como sois curiosos Do que se passa por fora De vossas almas!
 
MARTA Agora Vem discursos lamentosos, Recriminações, aposto! Grande mau!
 
ELEAZAR (sorrindo contrafeito) Grande criança!
 
MARTA (picada no seu amor próprio) Não te inspiro confiança?
 
ELEAZAR (condescendente) Inspiras, sim.
 
MARTA Pois não gosto De segredos — Que tristeza!...  Não percebo! Porque, em suma, Não vejo razão nenhuma Para tal! Não há riqueza? A nossa vida, porém, É feliz; a privação Nunca nos veio afligir, Nem ameaça o porvir, Não é verdade? Simão, Este bom velho leal, Que tanto e tanto nos ama, Dá-nos mesa, casa, cama, E conselho paternal; Tu retribuis a amizade, Auxiliando-o na vida. Achamos uma guarida Nas trevas da orfandade: Temos família! Por isso Para nós a vida é clara
Assim como a luz. A seara É verdadeiro maciço De pão; água na fonte; Lenha nas faldas do monte...  Nada vejo, de importância, Que não tenhamos. Então, Quero saber o motivo Por que estás tão pensativo...  (E rindo muito) E com cara de chorão!
 
ELEAZAR E tenho de que sorrir?
 
MARIA (em longa abstração, como se ninguém a ouvisse) Quem pensa é como quem sonha...  E como a vida é risonha, Quando se pode dormir!... 
 
ELEAZAR (perseguido pelo olhar inquiridor de Marta) A minha alma atribulada Profundo mistério aninha...  Sê caridosa, irmãzinha, Não me perguntes mais nada!
 
MARTA (afastando-se logo com muito despeito) Ai! não pergunto!
 
SIMÃO (que de parte estivera rindo dos dois) Uma ideia, Que talvez seja bem dita: Vou fazer uma visita Ao José de Arimateia. Vem comigo. Pode ser Que tenhas neste passeio O pronto e seguro meio Da tristeza espairecer.
 
ELEAZAR Dizes bem.
 
SIMÃO Aceitas?
 
ELEAZAR Sim.
 
SIMÃO Afinal é sempre o velho Quem dá o melhor conselho!
 
ELEAZAR (às irmãs) Adeus! (E beijando Marta, que o evita de arremesso) Tu foges de mim? Não vens beijar-me, teimosa! É então uma vingança?
 
MARTA (deixando explodir o seu despeito) São arrufos... de criança!
 
ELEAZAR (beijando-a à viva força) São os espinhos da rosa!
 
(Vão-se Eleazar e Simão. Sucede grande silêncio)   MARTA (foi à beira da estrada e segue-os com o olhar. Depois, apreensiva, com vago receio) Nunca o vi assim como hoje... 
 
MARIA (em longa abstração, como se ninguém a ouvisse) “Espairecer”... Puro engano! O pensamento não sai...  É como a sombra que vae
 
Correndo atrás de quem foge... 
 
MARTA (que lançou para longe a tristeza, despertada pelo cantar mais próximo de uma cotovia) Como o tempo está formoso E se prepara, amoroso, Para a Páscoa deste ano! (Numa corrida, ei-la junto da irmã que ficara sentada à beira da fonte. Um beijo ressoa na face de Maria e logo aos pés desta se senta Marta) Achamos isto um encanto! Como eles acham, porém, Que tudo é feio.
 
MARIA Eles, quem?
 
MARTA (com o cotovelo apoiado no joelho de Maria, o olhar límpido erguido para o olhar da irmã) Os Dose, que gostam tanto De dizer mal de Judá. A Galileia! Não ha Para eles outro mundo! Têm sincera afeição, Tributam amor profundo Ao país de Salomão!
 
MARIA (desculpando-os) A sua terra natal...  — Todos dizem que em verdade É um país ideal A Galileia.
 
MARTA Quem há de Duvidar, se ele inspirou Os galanteios doirados Daqueles apaixonados... 
 
— Como eles, ninguém amou! (Depois de alguma hesitação reconstituiu na memória o cântico, e recita-o, com um sorriso úmido nos lábios, em tom plangente, repassado de languidez. Maria quedou o olhar no fio de água, e vai brincando com ele, deixando-o deslizar por entre os dedos finos e alongados) “É formoso o meu amante, Formoso como nenhum, E como o cedro elegante...  É formoso o meu amante, Formoso como nenhum... 
 
“São de perfumes e odores Suas faces purpurinas, Dois ramalhetes de flores...  E suas mãos dois primores Das pedrarias mais finas.
 
“O seu corpo deslumbrante Do marfim o brilho tem...  — Eu aqui... Ele distante...  Onde está o meu amante, Filhas de Jerusalém?” (Olhando de fito para a irmã) Esta ideia é mesmo linda!
 
MARIA (com frieza, como a da corrente de água que entre os seus dedos vai deslizando) Amores... 
 
MARTA Muito falados! Olha que outros bem-amados Como estes não houve ainda! E quando ele se transporta, Descrevendo a sua amante? Não pode ser mais galante! Queres ouvir?
 
MARIA Que me importa!... 
 
MARTA “És formosa entre as formosas! Como tu não há nenhuma! Tens no rosto duas rosas...  És formosa entre as formosas! Como tu não há nenhuma!
 
“Duas pombas tens no olhar Onde transluz a bondade. Os teus cabelos sem par Fazem-me sempre lembrar As cabrinhas de Galaad... 
 
“Tua boca é tão fagueira! Quando sorris com ternura, Julgo ver numa ribeira, Unidinhas em fileira, Ovelhas de casta alvura!
 
“Oh! que suaves martírios Em tuas carícias francas! São teus seios — que delírios! — Como duas corças brancas A pastarem entre os lírios!”
 
(Indiscretos ouviram Marta desde o meio da recitação. Cláudia e o seu séquito passavam pela estrada, e a curiosidade fez que a mulher de Pôncio Pilado detivesse os lecticérios com um gesto. Apeou-se da liteira; sem ser pressentida, avançou, cautelosa, e com ela a sua escrava e confidente Geda. Os soldados que escoltam a liteira ficaram imóveis; e o sol poente, avermelhando-lhes as couraças e os capacetes, parece tê-los transformado em estátuas de sangue. Na mão de um deles, que à frente caminhava, brilha o pilo de ouro, emblema heráldico da casa de Pôncio.
 
Cláudia é uma mulher alta e formosa, cujo rosto a idade ainda não enrugou, mas do qual fugiram as rosadas cores da mocidade, que a pintura e o artificio em vão tentam simular. Tipo de matrona donairosa, fanática do deus Falus, tomando por modelo no amor a divina Julia, consorte de Tibério, ilustre messalina — lassata, sed non satiata. A túnica azul celeste apertada pelo largo cinto de ouro contorna-lhe a base do tronco escultural. Um diadema, igual aos braceletes, que se lhe enroscam na carne, refulge no ébano de seus cabelos, e dá-lhe a majestade olímpica do perfil das medalhas de Agripina)   CLÁUDIA (em tom faceto de cortesã afeita ao jogo de gracejos nos triclínios de má nota da velha Roma) Muito bem!  (Ergueu-se Maria em sobressalto, e, reconhecendo a mulher de Pôncio, dirige-se apressada para casa, levando consigo a irmã; mas à porta detémse) Que formosa poesia Cheia de amor e de melancolia! Há quem diga no Lácio Que é impossível encontrar primores Que não sejam de Ovídio nos “Amores” Nos “Epodos” de Horácio...  — É que ninguém conhece quanto vale A doce poesia oriental! — Isso é de Salomão?
 
MARTA (muito a medo) Senhora... 
 
CLÁUDIA Pois eu sou tão lisonjeira, Para ouvir-te apeei-me da liteira...  E foges? — A razão? (E como não colhesse resposta, prossegue sardonicamente) Também me odeias, tu, gentil criança? — Quando há de fazer-se uma aliança Entre Roma e Judéia?
 
Ganharíamos todos, com certeza: Nós, simpatia; vós, delicadeza. Darei a Pôncio a ideia. (Olhando de fito para Maria, que permaneceu imóvel com lábios contraídos e os punhos cerrados) Conheces-me também?
 
MARIA (por entre dentes) Perfeitamente.
 
CLÁUDIA Se não me engano, a tua alma sente Por mim o mesmo afeto...  Mas que mal vos fiz eu? Por ser casada Com Pôncio, devo estar acorrentada A um ódio tão direto?
 
MARIA (fitando-a resoluta, mas serena) É que tu desconheces o rancor Que tem toda a Judéia ao vencedor! Fossem mil as nações Caídas sobre nós! Ódio profundo Teríamos então a todo o mundo E às suas gerações! — Ninguém pediu que ouvisses o falar Da minha irmã. De mais, vindo escutar Fizeste muito mal...  És Cláudia; quer dizer: alguma coisa Que nos merece tédio, e que repousa Sobre um vil pedestal Todo feito de lama e impudicícia! Justamente porque és uma patrícia Deves ter o critério De não brincar com as cinzas ainda quentes, Porque nós detestamos intendentes E amantes de Tibério!  
 
(Dois soldados olham rápidos para Cláudia e logo num movimento impulsivo de mercenários servis apoderam-se de Maria, que não resiste. Marta soltou um grito; sucedeu-lhe longo silêncio interrompido apenas pelo murmúrio da água e pelo choro sufocado de Marta, que não desamparou a irmã)
 
CLÁUDIA (deixando cair as palavras uma a uma, como gotas de chumbo derretido) Terrível quando odeio, e meiga quando estimo. A todo o sentimento o da maldade encimo, Se acaso à minha face o insulto e o desdém Me forem arrojados por alguém! Uma frase, um olhar — tanto me basta; Pois como sou nervosa, em mim logo se engasta, Qual sanguíneo brilhante, a febre da matança, Dos deuses o prazer dulcíssimo: a Vingança! (Mas em rápido movimento, como obedecendo a pensamento oculto, faz sinal aos soldados, que logo abandonam Maria. Depois, com acerado sorriso de maldade) Agradece, mulher, a mim e ao teu Deus Esta disposição de espírito, e os meus Bons nervos hoje; e grava, em suma, na memória Que o insulto nem sempre é uma glória!
 
MARIA (muito vexada pela insultante benevolência de Cláudia) Eu não pedi perdão... 
 
CLÁUDIA (vitoriosa pelo efeito que o perdão causou no ânimo independente da patriótica filha de Israel) E quem diz tal, judia? Fui eu que perdoei... — Ofendes-te?
 
MARTA (suplicante ao ouvido da irmã, que ia responder) Maria... 
 
CLÁUDIA (rindo, satisfeita, feliz) Maria... Nome formoso,
 
Que tem um ritmo eólio! Merece lugar honroso, Por Jove, no Capitólio! E volta para a liteira.
 
A ESCRAVA GEDA (ajudando-a a acomodar-se nas almofadas da liteira) Nunca te vi assim... 
 
CLÁUDIA Diverte me a bondade, Ás vezes... 
 
O CENTURIÃO AMPIO (ao séquito) A caminho! Os lecticários põem a liteira aos ombros.
 
CLÁUDIA À porta da cidade Haveremos de estar antes da noite. Anseio Por que termine em breve este infeliz passeio, Sem novo encontro mau. — Ó pálida judia, Pode ser que eu te veja ainda... Até um dia Tem saúde até lá, que o ferro vingador Detesta a gente magra, e tem maior furor Ao trespassar um colo arredondado e terno... 
 
MARIA Descansa: não hei de ir incomodar-te ao inferno!
 
(Cláudia solta uma gargalhada, correspondida num murmúrio pela soldadesca; e Maria, afagando Marta, que não cessou de chorar, leva-a consigo para casa. Aparecem então os fariseus Benjamim e Josué, cautelosos, o olhar oblíquo circundando o terreno, como bons espiões: concretização grotesca da hipocrisia sacerdotal da época. Mantos negros, andar pausado, mitras de feitio semelhante à dos outros judeus, mas de maior dimensão. Debaixo dos braços, os rolos de Escritura. Compostura beatifica. Benjamim, um pouco alquebrado, por cálculo, parece não querer levantar do chão o olhar para as coisas superiores ao pó da terra; Josué, pelo contrário, conserva-os erguidos ao céu como para não os baixar às coisas mundanais. Claro é que de quando em quando a compostura perde-se, e os velhacos manifestam-se)
 
BENJAMIM Não há que duvidar: chegaram todos.
 
JOSUÉ Viste bem, Benjamim? seria engano... 
 
BENJAMIM Engano o quê? Se afirmo, se até juro Ter visto o Mestre e os dose companheiros. Tomaram pela horta do Simão, E em breve hão de estar naquela casa.  (E aproxima-se da casa do “Leproso”. Detém-se; prestando atenção, ouve a distância o murmúrio festivo do povo que, saúda com “Hosanas!” a chegada do Rabi da Galileia)  Eu não te digo?... O povo já começa A correr ao encontro. Dentro em pouco, Vai por esta Betânia uma celeuma, Que nem no Templo em dia de festejo! Eis portanto o momento ambicionado De cumprirmos as ordens recebidas... 
 
JOSUÉ (tímido, covarde, circunvagando o olhar) Mas Benjamim... 
 
BENJAMIM O que é?
 
JOSUÉ Sinceramente, Vou achando pesada esta incumbência. É que nós somos dois: eles são tantos!... 
 
BENJAMIM Em verdade te digo; principio A estar arrependido de indicar-te Para meu ajudante nesta empresa! Hanan mandou que fôssemos prudentes: Devemos ter prudência. Hanan mandou Que tomássemos nota do que víssemos: Tudo o que virmos lhe será contado. Hanan mandou que fosse descoberto O melhor paradeiro onde, em segredo, Se pudesse prender o Nazareno, Muito em segredo, sim, para evitar Protestos e tumultos: pois, meu caro, Havemos de encontrá-lo!
 
JOSUÉ Estás bem certo?... 
 
BENJAMIM (velhacamente, animando-o) E não vejo que mal nos ameace. O ex-Grande Sacerdote é simplesmente Quem se entrega aos revezes deste jogo. Se perde ou ganha, o caso é lá com ele; E nós de qualquer forma ganharemos Não só a consciência de homens probos, Leais respeitadores de Moisés... 
 
JOSUÉ (untuosamente) O que à minha alma traz doce conforto... 
 
BENJAMIM ...Mas também o dinheiro prometido, Que não menos conforta as nossas bolsas.
 
JOSUÉ (com desinteresse hipócrita) Tens um sistema de encarar a vida!... 
 
BENJAMIM É forçoso que nós nos convençamos De que, se os bons princípios se defendem, Também se deve garantir ao corpo A delícia das boas digestões...  À custa do dinheiro do Conselho! — Ouve portanto o que é mister cumprir: Tu vais para a cidade; a breve trecho Procurarás o ex-Sacerdote... E então Dir-lhe-ás que o profeta e os companheiros Chegaram a Betânia era sol-posto; Que decerto aqui ficam toda a noite, E que eu não deixarei de estar alerta.
 
JOSUÉ Perfeitamente.
 
BENJAMIM Espera! De manhã, Logo que vejas os clarões do dia, Hás de esperar por mim... 
 
JOSUÉ Que sítio indicas?
 
BENJAMIM Não distante da entrada principal Do Templo. Dado o caso que eu não chegue, Comigo hás de encontrar-te... 
 
JOSUÉ E onde?
 
BENJAMIM Aqui.
 
JOSUÉ Muito bem!
 
BENJAMIM Percebeste?
 
JOSUÉ Que pergunta! Como quem desenrola o “Pentateuco” E passa a vista pelo que ele diz. — A propósito: guarda-me estes rolos.
 
BENJAMIM (aceitando-os e juntando-os aos seus) Tens razão. As Sagradas Escrituras Iriam pesar muito no caminho. Mas deves ir com um, pois é preciso Para te dar o aspeto de homem sério.
 
JOSUÉ Ao romper da manhã... 
 
BENJAMIM Vai-te! Vem gente!
 
(E tomam para lados opostos, revestidos de sua compostura habitual. Quatro homens assomaram à porta do Leproso; são Eleazar acompanhado de João, Simão Pedra e Mateus. João é um belo tipo da raça judaica do Norte. Alto, robusto, espadaúdo e ainda imberbe. Os louros cabelos de genuíno galileu caem-lhe sobre os ombros em fartos anéis. Olhar azul, meigo; gesto largo e suave, na quietação d'alma; mas desordenado e brusco, se a cólera o determina. Voz intensa, possante, cadenciada, de homem habituado a falar ao ar livre, na grande extensão da superfície das águas. Mais velho do que ele, Simão Pedra deixa transparecer em toda a sua figura suavidade estranha em criatura humana. De Cafarnaum, galileu também e também robusto homem do mar, o seu rosto é circundado pelos anelados cabelos e pela barba comprida, bipartida, e tão loura, que mais parece branca. Olhar penetrante, mas bondoso e ligeiramente acentuado por um vinco entre os supercílios, o que torna a sua fisionomia um pouco severa. Gesto sempre sereno; voz protetora, paternal. Mateus é mais velho do que João e mais novo do que Simão Pedra. Baixo, de forte musculatura, barba ruiva bipartida; olhos miúdos e muito vivos de antigo publicano. Todavia o conjunto da fisionomia é atraente por uma expressão de rude franqueza que nele predomina. Voz quase homófona, de homem metódico, que raras vezes se entusiasma ou sensibiliza, e que tem da vida uma noção segura. Os três trazem na cabeça turbante à moda egípcia, com as pontas caídas ao longo das costas. Os mantos e as túnicas empoeirados mostram que foi grande o percurso que fizeram os romeiros)
 
JOÃO (resfolegando) Amigos, neste sítio há fresco e liberdade!
 
MATEUS E ficam bem à vista os muros da cidade...  Não sei o que adivinho!... 
 
JOÃO Ao largo esse receio! Muito mais me entristece a nuvem má que veio Escurecer ao Mestre o doce olhar... 
 
SIMÃO PEDRA (com o braço direito sobre o ombro de Eleazar, numa intimidade muito amiga) Meu caro, Que justíssimo orgulho eu tenho, se comparo O tempo que passou a este em que hoje estamos: O verbo iluminando a treva e os recamos Do manto a que se abriga uma ambição enorme; As contorções finais do animal disforme Que viu a luz no Horebe ao sopro de Moisés, Rojando-se afinal vencido a nossos pés!
 
ELEAZAR (descrente, mas muito tímido, querendo ocultar o que lhe vai na alma) E julgas que não tarda em despontar o dia
 
Tão desejado?
 
SIMÃO PEDRA Eu?! Pois quem duvidaria? — A doutrina do Mestre é como o grão de trigo, Que o lavrador dispõe no seu terreno amigo. Que mais cuidados tem o bom do lavrador? Não tem nem um cuidado. A terra, em seu labor, Se encarrega de dar ao germe, ao simples grão, A força e o poder da multiplicação. Se o lavrador depois no campo seu repara E vê brilhar ao sol a refulgente seara, Exclama, comovido: Abençoada terra, Que assim tanta bondade e tanto amor encerra!
 
ELEAZAR (quase a medo) Mas se acaso acontece o lavrador morrer?... 
 
SIMÃO PEDRA Quem passa pela estrada e atenta no crescer Do risonho trigal, diz logo, reverente: Bendito quem dispôs na terra esta semente!
 
ELEAZAR (depois de grande hesitação) Escuta, Simão Pedra: às fúrias do Conselho Não curvareis, talvez, humildes, o joelho?... 
 
SIMÃO PEDRA Nunca!
 
ELEAZAR Nem fugireis?
 
JOÃO (que se erguera, rápido e violento) Nenhum de nós!
 
(Judas sai de casa de Simão e vai sentar-se, pensativo, junto da fonte. Bem o viu João: mas, dissimulando, continua ainda mais violento, e, dando às palavras uma intenção reservada) Nenhum...  Dos que têm do Mestre a pátria por comum! Posso dizer bem alto, amigo: os seus patrícios Nunca hão de vacilar perante os sacrifícios. Se acaso o Mestre for levado de vencida, Qualquer de nós dará por ele a própria vida! Quem há de recusar-se a tal? Filipe, André, Tadeu, Natanael, Simão, Mateus, Tomé, Iago, o publicano, ou Simão Pedra? — Não! Julga-me alguém covarde, a mim, ou a meu irmão? — Vês pois, Eleazar, qual seja o nosso intento.
 
JUDAS Não falaste de mim... 
 
JOÃO (muito seco e terminante) Por mero esquecimento. (E vai para junto de Mateus, como para evitar maior explicação)
 
ELEAZAR (ao ouvido de Simão Pedra) Pareceu-me o contrário... 
 
SIMÃO PEDRA (triste e confidencial) É sempre assim com o Judas... 
 
(Judas tem quando muito trinta e dois anos. É um homem em toda a força da vida, conformação máscula, de virilidade quase selvagem. Estatura regular. Ele próprio vai dizer-nos de onde é, e qual a cor dos seus cabelos naturalmente revoltos, curtos e encaracolados. Barba cerrada; pele morena. Olhar profundo e de infinita melancolia, que de forma notável contrasta da rudeza do resto da figura. Os dentes alvos brilham entre os lábios vermelhos; e quando irado, o lábio inferior que é grosso, sensual, estremecelhe como o de um touro em circo romano. É uma dessas criaturas que não sabemos se devam inspirar-nos simpatia, se conservar no nosso espírito a ideia de repulsão que a princípio nos despertaram. Gestos angulosos e rígidos; mãos, braços e peito cabeludos; andar pesado. Voz de tonalidades irregulares; extremamente meiga e cariciosa na dor, extremamente vibrante, hercúlea na cólera)
 
JUDAS (amarga, mas serenamente, depois de ter meditado por algum tempo) Que mal te fiz, João? Chego a pensar que estudas As tuas agressões àquele que te presa! Eu tenho uma alma branca, e a consciência ilesa. De injúrias contra mim tu sempre estás faminto! Que mal te fiz, João? Tu pensas que não sinto...  (E crê que muita vez isto me vem à ideia) ...Ter nascido em Judá e não na Galileia? Sou culpado de quê? De ter a pele escura? De ter cabelo negro? Isto é para censura?
 
MATEUS (conciliador) Mas se ele já te disse... 
 
JUDAS E eu digo que, em verdade, Prefiro lealmente o ódio a esta amizade! E volta aos seus pensamentos dominantes.
 
MARTA (assomando a uma das janelas, numa risadinha infantil) Vinde cear, que são horas. Não quereis?
 
SIMÃO PEDRA (aproveitando a inconsciente intervenção de Marta) Nem se duvida!
 
MARTA Pois deixai-vos de demoras, Aliás vai-se a comida! — Uma ceia improvisada Mas nem por isso mesquinha,
 
Podeis crer.
 
SIMÃO PEDRA A caminhada Que fizemos foi daninha...  Por aguçar o apetite.
 
MARTA (intimativamente, retirando-se da janela) Dize que venham depressa, Porque, faltando ao convite, Sem vós a ceia começa!
 
JOÃO (a Mateus e a Eleazar, continuando a conversa interrompida e num tom de voz inaudível para Judas) Dizeis que ele é honesto e probo e crente, em suma Que para ser dos bons não falta a coisa alguma...  Talvez que seja assim como dizeis. No entanto, Se para o seu olhar o meu olhar levanto...  — É tétrico e sombrio aquele olhar revesso! Pensando sempre! Em quê? — Amigos, bem conheço Que pode ser fatal este mistério vivo! Qualquer de nós é meigo, alegre e expansivo...  — Quiseram confiar-lhe a bolsa do dinheiro: Não procederam bem.
 
SIMÃO PEDRA (que se reunira aos três, carregando o semblante) Por quê?
 
JOÃO (em tom leviano) O embusteiro Apenas retribui a prova de amizade Gastando em seu proveito o que é da sociedade.
 
SIMÃO PEDRA (que não pôde reprimir um sobressalto, tornando-se ainda mais severo) Já não te quero ouvir nem mais uma palavra! No teu peito leal um sentimento lavra
Impróprio de quem és! Lá dentro direi tudo. Depois do que te ouvi, não posso ficar mudo!
 
ELEAZAR (conciliador) Então!
 
MATEUS (detendo Simão Pedra, que ia para entrar em casa do Leproso) Menos calor!
 
JOÃO (repeso, meigo, suplicante) Oh! cala-te, por Deus! Não vás exacerbar ao nosso Mestre os seus Desgostos; porque, enfim, sou muito leviano...  Proveio o que me ouviste apenas de um engano...  Simão Pedra, desculpa!   (À súplica de João sucede algum silêncio: todos têm o olhar em Simão Pedra, aguardando o desenlace)   SIMÃO PEDRA (sorrindo, afinal, benévolo) Eu sei que és razoável. Já tinha como certa a confissão louvável, Que logo surgiria à simples ameaça... 
 
JOÃO (abraçando-o efusivamente) Devemos colocar ao longe o que a desgraça Procura intrometer no nosso coração!
 
MATEUS O Mestre é que diz bem: nasceste de um trovão, Mas tens dentro do peito os risos da bonança!
 
SIMÃO PEDRA Não voltes a magoá-lo.
 
JOÃO Hei de mudar, descansa.
 
Encaminha-se para casa, mas
 
SIMÃO PEDRA (detendo-o e apontando para Judas, que nada ouviu do que se passara) E fala-lhe, João: não vês como ficou?
 
JOÃO (com bonomia) Judas, deixa-te disso! Anda daí!
 
JUDAS (olhando lealmente para ele e com um sorriso de reconciliado) Eu vou. 
 
(Mas fica, e só os quatro entram para casa. Judas está agora sozinho, sempre sentado junto da fonte, novamente imerso nas suas meditações. Anoiteceu. O luar vem rompendo, iluminando toda a paisagem e coando-se pelas folhas do arvoredo. Uma paz enorme reina em todo o quadro. Calaram-se as cotovias, calaram-se os rebanhos; apenas os ralos se fazem ouvir, estrídulos. Muito distante, porém, distinguem-se os sons mal definidos de uma melodia: são os últimos romeiros, que veem para a festa da Páscoa tangendo saltério, flauta e pandeiro. É um hino melancólico, dolente, ao pausado compasso da andadura. Pouco a pouco os sons definemse, aproximam-se. A aragem fresca e perfumada balouça docemente o arvoredo)   JUDAS (solta um suspiro, e erguendo o olhar, expandindo a sua alma) Por que motivo, ó Deus, esta injustiça? Desigualdade sem razão, medonha! Uma alma pura, virginal, submissa; Outra, vertendo em lágrimas peçonha! — Ah! fatal e profundo sentimento, Que tens do abismo a atração e o horror! És para mim dulcíssimo tormento, E sendo um grande amor... Não és amor! Um desejo voraz, ardente, fúria, Que a força da vontade não arranca! Tem sonhos de volúpia, de luxúria, Com as palpitações da carne branca!
Transforma o ideal em verdadeiro E a minha alma tímida conduz A sedutor e vago paradeiro, Onde eu estreito um colo e uns braços nus! Não morrerás? não hás de ter um fim, Ó tenebrosa e infernal tortura, Que pareces viver dentro de mim A construir a minha sepultura? — Quem te ordena que leves a maldade A fazer-me avançar para o impossível? Por que segredas tu que a castidade Nem sempre pode ser irresistível às seduções frenéticas do amor? E por que vens mostrar-me, sensual, Certa nudez, e em todo o seu fulgor Um monte de ouro junto de um punhal? — Como és infame! Sim! Com violência Levas minh'alma fraca aos empurrões. E, como a Daniel, a Consciência Queres deitar à cova dos leões! — Oh! nunca! Podes crer que te resisto! Hei de salvar minh'alma moribunda, Arrancar-te de mim, e, depois disto, Escarrar-te no corpo, besta imunda!   (E ergue-se de súbito; mas o seu olhar detém-se, vendo no limiar da porta o vulto de Maria destacando-se no fundo de luz amarelada que vem do interior da casa. Maria, ao reconhecer Judas, parou hesitante. Sobre o quadril esquerdo traz apoiada uma ânfora de grés. Tem uns momentos de indecisão. Alguma coisa extraordinária oculta-se naquelas duas almas... Depois, Maria, como animada de forte resolução, encaminha-se para a fonte, passando pela frente de Judas, natural e serena. Ele seguiu-a com o olhar e quedou-se a contemplá-la. Maria põe a ânfora sob a corrente d'água, e espera que encha. Os romeiros aproximam-se com o seu tanger plangente. Dir-se-ia que uma lágrima resvalou no rosto de Judas, cujo olhar está agora fito no chão. Mas, por fim, com expressão de resignado, ei-lo que se dirige para casa, onde entra a passos lentos. A ânfora transborda. Maria põe-na sobre o quadril e dá alguns passos. Parou: negro pensamento lhe atravessa o espírito; olha para as bandas da cidade com expressão de temor, como se dali pudesse vir desgraça para algum ente querido... Entra depois em casa, serenamente, fechando a porta. Os romeiros, cinco apenas, passam na estrada, tangendo os seus instrumentos, e vão-se afastando, afastando gradualmente, os sons sumindo-se pouco a pouco na distância. A lua sobe com lentidão; paira em todo o quadro a quietação muda da Natureza adormecida... Mas um vulto suspeito e cauteloso desliza na sombra, e dirse-ia que esse vulto é Benjamim)   
 
SEGUNDA JORNADA EM 9 DE NISSAN (Estamos em casa de Simão de Betânia. A casa de entrada é ampla. Numa das paredes abrem-se as duas janelas tendo ao centro a porta; por elas vemos o aprazível sítio já nosso conhecido e a fonte de onde a água dimana. Na parede, que nos fica à direita, outra janela olha para Jerusalém e para a estrada que à cidade conduz; na da esquerda, pequena porta com três degraus dá comunicação para o interior. Em volta da casa, a todo o comprimento das paredes, largo e baixo poial, onde existem em descuidosa promiscuidade vários utensílios da vida doméstica, pratos, ânforas, onde o estilo ainda egípcio se revela; pequenos copos de barro pintalgados, almofadas de velho tecido da Síria, pedaços de esteira de junco do Jordão. Não distante da janela fronteira à cidade, pequena mesa redonda cercada de camilhas denuncia também a influência do triclínio nos costumes da Judéia. A lâmpada de cobre, que do teto pende, tem ainda nos seus quatro bicos os morrões que a apagada luz na véspera deixara. É dia claro, festivamente belo; o sol dardeja e as cigarras vibram. No triclínio três homens estão deitados: Simão Pedra, Mateus e o Leproso. Comem vagarosamente restos de legumes e peixe seco temperados com óleo de oliveira doce, de que estivera cheio e amplo graal colocado no centro da mesa. Duas infusas junto de Simão; pedaços de pão levedo em frente de cada comensal. Não distante da porta, Judas está sentado no poial, as pernas cruzadas sob a túnica, e tendo nos joelhos um grande rolo aberto onde lê atento as Sagradas Escrituras. João, no limiar da porta, sem manto, a túnica à cintura aconchegada por uma velha corda de linho que foi branco, braços cruzados, — medita e lança de quando em quando olhares furtivos e penetrantes, que perscrutam Judas)
 
MATEUS De há muito que não como, e sem lisonja o digo, Um pão com tal sabor. Que saboroso trigo! Não achas?
 
SIMÃO PEDRA Fabricado em casa do Simão... 
 
SIMÃO Obrigado. Outro copo?
 
SIMÃO PEDRA O vinho é de Ascalão. Conhece-se a distância apenas pelo aroma.
 
SIMÃO Continuam a dar-lhe enorme apreço em Roma Para onde vão toneis sobre toneis!
 
MATEUS (que num movimento de cabeça concordara e que bebera depois de aspirar o bom perfume) Pudera! O amor entre os pagãos à embriaguez prospera.
 
SIMÃO (apresentando outra infusa) Temos agora aqui magnífica cerveja.
 
SIMÃO PEDRA De cevada?
 
SIMÃO Não é.
 
MATEUS De pêros?
 
SIMÃO De cereja Cultivada em Ramá.
 
(Com sorriso amigo, Simão Pedra e Mateus estendem os copos para Simão que neles verte o néctar rubro e espumante. Cheio o seu, bebem os três em silêncio e com recolhimento)
 
SIMÃO PEDRA (pousando o copo onde o olhar pensativo está fixando) Olhai como é profundo Este segredo!
 
MATEUS Qual?
 
SIMÃO PEDRA Por um processo imundo, Pela fermentação, consegue-se tirar Da matéria um licor tão grato ao paladar.
 
JOÃO (que parecia estranho a tudo, fala enfim, com o olhar cravado em Judas, que continua lendo) Não acontece o mesmo a tudo que fermenta. Há certas podridões que geram peçonhenta Bebida a que nem Deus o rude efeito acalma. Entrando pela vista, é digerida na alma! E sinto que nesta hora a dor que me aniquila Provem desse veneno horrível que distila Muito perto de mim com lúgubre mistério. Inútil procurar um doce refrigério, Por que ele é semelhante à nodoa, que onde cai Arredonda-se, alastra, afunda-se e não sai!
 
(Judas ergue para ele o olhar inquiridor; mas João já se retirou para além da porta e passeia em frente dela como para espairecer os negros pensamentos. Judas voltou à leitura sempre silencioso)
 
SIMÃO (quase em segredo aos seus dois comensais) Nunca ouvi tal falar da boca do João.
 
SIMÃO PEDRA (tristemente) E o caso é que também começo a achar razão A tudo que ele diz.
 
(Abandonam o triclínio reunindo-se junto da próxima janela, onde conversam em voz baixa sem que Judas possa ouvi-los)
 
MATEUS O Judas, francamente, No que ontem se passou, deu prova de demente, Ou de infiel ao Mestre e cínico impostor!
 
SIMÃO Ontem?
 
MATEUS À noite.
 
SIMÃO O quê? Dizei-me, por favor. Não sei do que falais.
 
MATEUS Passou-se tudo aqui. Durante a ceia. Não ouviste?
 
SIMÃO Não; saí, Mas foi por pouco tempo.
 
SIMÃO PEDRA (muito confidencial) Então eis o motivo...  — Durante toda a noite esteve pensativo E por mais de uma vez fugiu-nos à conversa Com palavras banais e frias. Tão submersa Tinha em meditações a alma, que ninguém Deixou de perceber... 
 
SIMÃO Percebi eu também Que, muito mais que outrora, havia no seu rosto A fiel expressão de um íntimo desgosto.
 
SIMÃO PEDRA Maria, aquela honesta e boa rapariga, Desejando seguir a usança muito antiga No povo do Senhor, a de render um preito De sincera amizade e natural respeito Ao viajante ilustre a quem se dá guarida, Abeirou-se da mesa, e, muito comovida, Derramou sobre o Mestre um perfumado unguento De nardo puro. Então, infame sentimento De Judas se apodera. Em vez de prazenteiro E alegre como nós, aquele companheiro Reputado fiel, só tem uma censura Para galardoar a prova de ternura: — “Melhor fora, ele diz, que esse custoso nardo Se tivesse vendido. Eu, que o dinheiro guardo, Saberia guardar também zelosamente A importância da venda a todos pertencente, Entregando-a depois em meu e vosso nome Àqueles que têm frio e àqueles que têm fome.”
 
SIMÃO (como assombrado) Mas isso foi um insulto! E o mestre?
 
SIMÃO PEDRA Respondeu Brandamente, como é velho costume seu.
 
SIMÃO Nem sequer suspeitais a causa?
 
MATEUS Tarde ou cedo, Alguém desvendará por certo este segredo.
 
(E vão-se os três para além da porta, onde ficam ainda conversando, encaminhando-se por fim para mais distante)   JOÃO (tinha voltado, e encostara-se a uma das camilhas, observando sempre Judas. Como não possa conter o que sente em si, aproveita o ensejo de estar a sós com ele para expandir-se. Começa, porém, em tom sereno, como procurando dominar-se) O que estás lendo? O assunto é grave, ao que suponho. Reparo em que lhe dás toda a atenção.
 
JUDAS Medonho! — A infâmia de Caim.
 
JOÃO É proveitoso, e muito! Feliz coincidência! E eu que tinha o intuito, No que inda há pouco ouviste em frase rude e chã, De falar desse crime o qual desde manhã Tanto me preocupa. (Muito irônico) À tua consciência Não pode causar dano esta coincidência...  És tão sincero, és tão leal e virtuoso!...  — Mas devo confessar-te... 
 
JUDAS (sereno e sempre sentado)
 
O quê?
 
JOÃO Que estou ansioso De há muito por que tu expliques o motivo, Que te obrigou a ser cruel e ofensivo Para quem te consagra uma afeição fraterna. (Exaltando-se pouco a pouco, mau grado seu) O que possuis em ti, Judas, que assim governa O teu entendimento? É sempre em vão que eu cismo No mistério que abriu na tua frente um abismo Cercado de fatais e nus despenhadeiros, Afastando-te assim dos nossos companheiros, Sem que nenhum pesar lá dentro te remorda. (E indicando a corda com que prende a túnica à cintura) Somos na união iguais a esta corda, Que as estrigas de linho unidas fortemente Fizeram tão subtil, mas que é tão resistente. Na sólida afeição, unificados, somos Assim como num fruto os solidários gomos. — Desfia-se, porém, a corda, ao que parece; E julgo ver no fruto um gomo que apodrece... 
 
JUDAS (com afetada bonomia) Quimeras, ilusões... 
 
JOÃO Talvez. — Mas quando penso Que o teu profundo mal pode tornar imenso O crime, e que será depois intempestivo O arrependimento... Em suma, não me esquivo A dizer-te o que tenho a corroer-me a entranha: Nunca simpatizei contigo; não se amanha Com a tua frieza a ardência do meu peito. É por isto que eu sou dos Dose o mais afeito A observar-te.
 
JUDAS A mim?!
 
JOÃO E sabes o que vejo? Que tens uma alma rude e instinto malfazejo!
 
JUDAS (erguendo-se, vagaroso, com o rolo nas mãos, fingindo indiferença) Quimeras, ilusões... 
 
JOÃO Talvez. — Mas quem nasceu, Tendo as ondas por berço, e a cúpula do céu Por vasto cortinado; aquele que na infância Aprendeu a olhar com suma repugnância Para tudo o que seja imundo, vil, terrestre, Muito melhor que tu há de entender o Mestre. Não podem compreendê-lo os rudes corações Selvagens como o teu!
 
JUDAS Quimeras, ilusões... 
 
JOÃO Não podes compreendê-lo, e apesar disto queres Viver junto de nós!... Às bolsas esmoleres Súplicas com aspeto humilde uma parcela Para o Mestre! — Na verdade, é preciosa e bela Tanta dedicação! Provoca o elogio! — Ah! julgas que não sinto às vezes, quando espio O teu olhar matreiro, o brilho da avareza A dar-lhe um tom sinistro? — Odeias a pobreza!  Ambicioso e fraco, andas conosco apenas Como atrás do rebanho os lobos e as hienas!
 
JUDAS (avançando para ele, irrompe finalmente com um rugido abafado, o olhar ameaçador)
 
João!
 
JOÃO (cruza os braços e sereno) Podes bater, amigo! Por que esperas? (Judas, arrependido do seu primeiro movimento, afastou-se rápido. E João, agora ainda mais excitado) E chamas ilusões! e vens chamar quimeras Ao que é verdade nua e positiva?! — Agora Que a todos cumpre ter mais força do que outrora; No atual momento em que até eu vacilo, Pressentindo que não poderá ser tranquilo O futuro do Mestre e de nós todos, mudas Em ódio declarado essa frieza, Judas?! Que mal te fez, que afronta, ele, que é tão bondoso? Confessa que proveito, ou que terrível gozo Encontras nessa infâmia abjeta! (Desesperado pela indiferença aparente de Judas) Que suplício! Não poder arrancar-te ao menos um indício! Não poder descobrir a causa que assim leva O teu cérebro audaz a trabalhar na treva! Ah! não poder, depois do que disseste aqui, Rachar-te o crânio ao meio, e entrar dentro de ti! E senta-se, febril, numa das camilhas.
 
JUDAS (que em silêncio estivera contorcendo as mãos nervosamente, dizlhe enfim com muita ironia) Está bem! muito bem! Ao menos, esperava Que soubesses deter a incandescente lava, Que todo me queimou, transformando em carvão A minha consciência... embora de ladrão. (Resoluto, firme, altivo) Vou deixar-vos! Não sei qual seja o meu destino; Mas isso que te importa? Um ser tão viperino, Como eu, só tem lugar no meio da ralé, E quando estorva o passo, afasta-se com o pé!
 
JOÃO (repeso, olha para ele bondosamente e com um sorriso amigo) Acalma a excitação, Judas. O principal Resume-se, ao presente, em confessares qual A origem do teu ódio. É isto o que eu te peço, É isto o que eu desejo.
 
JUDAS (num brusco impulso de independência) Isso é que não! Confesso À minha consciência o que me vai no peito! Arrancar-me um segredo? E julgas ter direito De desvendar em mim recônditos mistérios? Acalmo a excitação, mas guarda os vitupérios! — Pediste por acaso ao mar em que nasceste Que descobrisse o leito? Alguma vez desceste A espreitar-lhe a vida, a revolver-lhe o fundo? Pois o meu coração como ele é tão profundo, Que se alguém pretendesse abrir uma passagem, Teria de morrer submerso na voragem! (João avançou para ele com expressão conciliadora; Judas, porém, detém-no com um gesto. Depois, parecendo sincero, mas ocultando as suas verdadeiras intenções) Não me perguntes mais. Ao peso da injustiça Conseguirei vergar esta alma tão submissa. Quimeras, ilusões condenam-me implacáveis...  Judas, vai reunir-te àqueles miseráveis, Que vagueiam, sem rumo, e que andam foragidos, Erguendo para os céus o olhar e os gemidos...  Depois quando vier o derradeiro instante, Desamparado, nu, febril, agonizante, Revolvendo no pó as tuas mãos aflitas, Em vez de maldições, tem palavras benditas, Para quem desprezou teu pobre coração, Deixando-o sucumbir como se fosse um cão! — Adeus e para sempre. (Com ironia muito concentrada, já no limiar da porta) Aceita em pensamento O que daqui te envio: em tão cruel momento, Abraçar-te e beijar-te é todo o meu desejo Sincero. Para quê? pois de que serve um beijo Dado por mim? Demais, meu hálito enxovalha! — Adeus, amigo. Adeus... Adeus, João. (E por entre dentes, inaudível e rancoroso, saindo a porta) Canalha!
 
JOÃO (ficou meditando, e depois generosamente, como falando à sua própria consciência) Oh! fui desapiedado! A sua voz tornou-se Tão lacrimosa e humilde! É mui de crer que eu fosse Pedir ao exagero o auxílio necessário Para aumentar de vulto o crime involuntário, Ou a leviandade alheia à malvadez. Pobre Judas! E vai fugir de nós! Talvez Arrastar pelo mundo uma existência nua De afetos, desgraçada... E não por culpa sua... 
 
(À porta de casa apareceram Eleazar, Simão Pedra, Mateus e Simão de Betânia)
 
ELEAZAR (indicando João aos companheiros) Ei-lo aqui está! E nós à tua espera!
 
SIMÃO PEDRA São horas de partir para a cidade.
 
JOÃO (cercado pelos amigos e já esquecido do que se passou, todo o seu pensamento entregue ao Mestre) Não deve ser pequena a caravana!
 
MATEUS Junto do Mestre, o povo delibera Acompanhá-lo.
 
SIMÃO PEDRA O que é grande imprudência!
 
JOÃO Grande imprudência?!
 
SIMÃO PEDRA Os nossos companheiros Em vão procuram com docilidade Suster o passo à gente leviana... 
 
JOÃO E por quê? Não são eles verdadeiros Defensores do Mestre?
 
SIMÃO PEDRA Mas reflete... 
 
JOÃO O povo quer seguir-nos? Pois que venha!
 
SIMÃO PEDRA Mas pode provocar algum tumulto. É preciso que a dentro da muralha Evitemos qualquer indisciplina.
 
JOÃO Tu que dizes? Que pensamento oculto Encerram tais palavras? Será crível Que te arreceies da imbecil gentalha, Que anda a rosnar as suas ameaças Contra a força que temos, invencível, Justiceira e tremenda?!
 
SIMÃO PEDRA E por que não? Onde possuis algemas e mordaças Para conter as fúrias iminentes? Pode acaso fugir-se a uma traição?
 
Reflete bem: devemos ser prudentes, Evitando que Hanan tenha pretexto Para exercer enfim uma vingança, Roubando ao Mestre a preciosa vida.
 
JOÃO (animando-se, cheio de puro entusiasmo messiânico) Não tens portanto uma única esperança Em ver surgir a aurora prometida? — Enganas-te! Abrigai-vos sob o manto Do Profeta, que vamos afinal Assistir ao enorme vendaval, Que há de causar a todo o mundo espanto! Da Lei não ficará nem uma linha, E as pedras do Templo hão de cair! Eu antevejo, amigos, o porvir, Que de instante a instante se avizinha! Como cães a ulular, de toda a parte Hão de sair as abominações! Entre espadas de fogo e maldições, vai tremular um sólido estandarte! Hão de as nuvens rasgar-se! A voz de Deus Ribombará como um trovão gigante, E o vento há de levar para distante, Onde não haja terra, mar, ou céus, As últimas parcelas do monturo A que chamamos hoje humanidade! Alerta! vai rugir a tempestade! — Confia em Deus! Espera no futuro! (Voltando-se e vendo Gamaliel, não pode reprimir a sua surpresa) Gamaliel?!
 
GAMALIEL (que pouco antes chegara da cidade, ouviu todo o falar de João. Traz o rosto abatido, o olhar cavo; dir-se-ia portador de uma nova terrível) Eu próprio. E vejo que cheguei A tempo de lembrar que existe de uma Lei A ríspida crueza, a inquebrantável força,
 
E que por mais que a tua exaltação retorça O positivo, ele há de enfim prevalecer! Vós tendes a palavra. Hanan tem o poder. — O perigo é enorme. (Todos rodearam Gamaliel, atentos, em grande ansiedade) Ouvide: Nicodemos, Um homem de honradez e que respeita em estremo O vosso Mestre, não me oculta o que se passa A dentro do Conselho. Evite-se a desgraça, Fazendo-se abortar o plano vingador!
 
TODOS (em sobressalto) Um plano?!
 
JOÃO Como?!
 
SIMÃO PEDRA Dize!
 
MATEUS É de grande valor O que disseres.
 
JOÃO Sim! deves dizer-nos tudo!
 
(E acercam-se dele ainda mais)
 
GAMALIEL (pausada e custosamente) Hanan possui no genro o seu melhor escudo. Se transformou Caifás em Grande Sacerdote, Foi para ter alguém que cegamente vote Na sua opinião. Mais do que o genro, alcança Dos homens do Conselho estima e confiança. (E custando-lhe a despegar dos lábios as palavras) Eis por que ontem à noite, e em sessão secreta,
 
Por eles foi votada a morte do Profeta!
 
SIMÃO PEDRA (erguendo as mãos aos céus) O meu pressentimento!
 
MATEUS (convulsamente) Infâmia!
 
JOÃO (num grito) Cobardia!
 
ELEAZAR (agarrando Gamaliel por um pulso) É tempo de calcar aos pés a tirania! 
 
(Todos, exceto Gamaliel, estão nervosos, irrequietos, consultam-se, animam-se, invectivam Jerusalém. João foi à janela, e com os dentes cerrados, o braço erguido, ameaça-a de extermínio)
 
GAMALIEL Tende serenidade!
 
JOÃO Oh! não, Gamaliel!
 
ELEAZAR Liberte-se de vez o reino de Israel!
 
GAMALIEL Que poderá tornar-se em grande mar vermelho, Se Pôncio perfilhar o voto do Conselho!
 
JOÃO As espadas de Roma, as fúrias de Tibério, Inda hão de sucumbir a todo o nosso império! O povo há de gritar, raivoso, leonino, Rasgando a face impura ao déspota assassino!
 
GAMALIEL (procurando serenar os ânimos; as lágrimas borbulhando nos olhos e caindo-lhe pelas barbas brancas) Ouvide-me, por Deus! Eu tenho lido tanto No livro da experiência, amigos, que é de pranto A minha pobre oferta à causa alevantada! Vós não podeis brandir a rutilante espada; Nem ele, todo amor, consentiria nunca Na transfiguração do verbo em garra adunca. Parti, pois que é preciso aparecer ao povo, Mas fugide a que venha um incidente novo Aguçar ao tirano o sanguinário intento. Entrai com desassombro a porta do aposento Onde finge dormir, silencioso, o crime; Acalmai-vos, porém, ou ele não reprime O seu rancor feroz!
 
SIMÃO PEDRA (também resoluto) Seja o que Deus quiser!
 
JOÃO Nem lâmina de espada, ou pranto de mulher, Pode esfriar em mim a indignação!
 
GAMALIEL Piedade!
 
ELEAZAR Vamos!
 
MATEUS Jerusalém!
 
SIMÃO Coragem!
 
JOÃO Na cidade
 
Havemos de formar com os nossos companheiros Possante legião de impávidos guerreiros!
 
(E vão-se todos tumultuariamente, levando consigo de roldão o velho Gamaliel... Decorridos alguns momentos em que a moradia de Simão ficou abandonada, Maria e Marta veem de fora. Marta sempre alegre; a irmã sempre absorta em grande melancolia. Ao entrar em casa, Maria vai logo postar-se à janela, seguindo com o olhar cheio de angústia os que vão a caminho de Jerusalém)
 
MARTA E uma vez que partiram Para a cidade, afinal, Entreguemo-nos agora Ao que julgo essencial: Tratemos da nossa casa.
 
MARIA (indolente) Espera. Não tenhas pressa... 
 
MARTA É que está tudo em desordem, E o nosso irmão começa Dentro em breve a murmurar Que ninguém aqui trabalha!... 
 
MARIA Marta, vai tu repousar, Que eu tratarei do preciso.
 
MARTA Não teimes, que me aproveito Do teu conselho.
 
MARIA Careces De alguns momentos no leito;
 
Deves estar fatigada.
 
MARTA E não te enganas. Ergui-me Ao romper da madrugada... 
 
MARIA E foste uma das primeiras Que se juntaram com os Doze No Monte das Oliveiras, Onde passaram a noite, Como é costume.
 
MARTA (abeirando-se da irmã, muito meiga) E não ficas De mal comigo?
 
MARIA Por quê? Se em nada me prejudicas...  (E ansiosamente, vendo Judas que acabou de entrar) O que há de novo, Judas?
 
JUDAS Nada sei... 
 
MARTA (muito admirada) Não quiseste partir para a cidade?
 
JUDAS (indolente, recostando-se numa das camilhas do triclínio) Como vês, não parti... pois que fiquei.
 
MARIA E por quê?
 
JUDAS Porque o sono que me invade
 
Exige para o corpo algum repouso. Vai alto o Sol; de há muito manifesta Que brilha no seu ponto mais radioso, E que são horas de dormir a sesta.
 
MARIA (sem o fitar, serena) E vais dormir?
 
JUDAS (cerrando as pálpebras) O Livro dos Provérbios Alguma coisa diz... “Quem se julgar Com pequenos desgostos, exacerbe-os A dormir, a dormir... e a sonhar... ” — Se durmo, para onde é que foge a vida? Para fora de mim quem a conduz? Encontrará descanso na guarida Para onde, ao apagar-se, vai a luz? Ao despertar depois, quem reacende No cérebro o fulgor que relampeja? Quem é que nos dá vida ou que a suspende A seu prazer?
 
MARTA (com muita convicção) É Deus... 
 
JUDAS (abriu os olhos, fitou-a, e depois, fechando-os de novo) Talvez que seja.
 
MARTA (surpresa) Talvez?! (Muito baixinho ao ouvido da irmã) Estranho o Judas!
 
JUDAS Sim, talvez; Porque não julgo prova de critério, Antes se me afigura insensatez,
 
Explicar um segredo com um mistério.
 
MARTA (abeirando-se dele, e pondo-lhe a mão no ombro, diz com unção, melodiosamente) Anda a tua alma fugida Ao bom caminho da crença...  Quem foi que dele a afastou E que dentro em ti deixou Uma escuridão imensa? Ontem à noite... (Desculpa Se acaso te contrario Ao falar agora disto) Por todos nós foi mal visto, Judas, o teu desvario. De tão modesta homenagem Não era merecedor Aquele Mestre sublime Em cujo rosto se exprime A bondade e o amor? — Anda a tua alma fugida Ao bom caminho da crença. Que Deus de novo a conduza E o brilho reproduza Na tua alma, treva imensa! (Judas fica imóvel e silencioso. Marta, satisfeita, julgando havê-lo convencido, diz então baixinho à irmã) Não responde. Pode ser Que facilmente consigas Descobrir toda a verdade.
 
MARIA (querendo esquivar-se) Eu?
 
MARTA Com palavras amigas Interroga-o, porque, em suma, Custa ver num coração,
 
Que deveria ser meigo, Semelhante ingratidão.
 
(E vai-se para o interior da casa a reclinar-se no seu leito perfumado. Judas e Maria ficam a sós; Judas, com as pálpebras semicerradas, observa-a)
 
MARIA (conserva-se indecisa por algum tempo; mas depois, como respondendo a si própria) É mais prudente...  (E dirige-se para a porta por onde a irmã saiu)
 
JUDAS (erguendo o corpo sobre o cotovelo) Maria, Pareces que vais fugindo... 
 
MARIA (baixando o olhar) Para não te incomodar, Quando estiveres dormindo. (E retira-se também, fechando a porta castamente)   JUDAS (ergue-se de chofre e avança como para segui-la; mas detém-se, perplexo. Depois, desalentado, senta-se num dos degraus da porta por onde Maria saiu, a cabeça entre as mãos, os cotovelos fincados nos joelhos. Ao cabo de longo meditar, solta brandamente a sua voz) É isto mesmo, é isto: o efeito vem da causa...  Pois quando ao seu trabalho alguém ordena pausa, Logo termina o efeito. É isto mesmo, sim. Provem este rancor, que ela sente por mim, Da paixão que lhe inspira o rosto, o olhar, a fala, Do ente extraordinário a que nenhum se iguala, Conjunto singular de tudo o que há perfeito. Portanto é ele a causa, e o rancor o efeito! — Oh! que hei de suprimi-lo, esmagando-o de todo, Ainda que me sinta a resvalar no lodo! (E erguendo-se, impetuoso) E tu, Consciência, não me oponhas embaraços! Quando o trovão ribomba altivo nos espaços,
 
Acoita-se a tremer a águia no seu ninho! Vai-te! vai para longe! Eu quero estar sozinho! — ...Mas quem me diz não ser este sinistro plano Improfícuo, ou então sumamente leviano! Se ele fugir à morte, ao estertor final, Por um processo oculto e sobrenatural, Contra mim lançará todo o furor do céu, Ele há de ser juiz e eu hei de ser o réu! (Com a alma a contorcer-se num suplício) Se eu visse esta mulher entregue ao frio atroz, O crânio sem ter luz, a boca sem ter voz, Ó Deus, entoaria, agradecido a ti, Uma canção igual aos salmos de David, Transformando o meu peito em grande tabernáculo! — Mas vive: há de ser minha! Hei de vencer o obstáculo! (Pensa longamente, em grande abstração de tudo o que o cerca, com um sorriso malévolo, animando-se) E se, como se diz, ele não for divino? Se obedecer, como eu, à força do destino?...  — Sim! sim! Tudo consiste apenas no convulso E possante vigor dum corajoso pulso! (Alguém o está ouvindo sem ser visto: Benjamim e Josué. Cautelosamente, Benjamim entrou em casa pela porta aberta e vai aproximando-se de Judas, relanceando o olhar desconfiado; Josué empurrou o batente de uma das janelas, e pela parte de fora observa. Judas, porém, continua, agora acobardado) Assassiná-lo!... Não! Vago terror me oprime. E como poderei matar, sem ver o crime? Armando um braço vil? comprando uma consciência? É pouco, é muito pouco... e é tudo! — Que demência! Quem poderá saber onde reside a fera, Que tenha peito humano e garras de pantera? (Desvairado; os braços agitando-se, convulsos; os cantos da boca espumando) — Vomita, ó grande Terra, essa entidade estranha, Que vive silenciosa em tua negra entranha, Que é pura como o fogo, imunda qual farrapo,
 
Enorme como Deus, mesquinha como um sapo! Gênio amante do crime e à virtude adverso, Que mora num covil... e zomba do Universo! Eu quero conhecer o amigo dos devassos: Expele-o do teu ventre e arroja-o nos meus braços! (Com grande desânimo) Nem ele me protege! E eu preciso, enfim, Dum ser bastante infame!
 
BENJAMIM (com muita humildade) Aqui me tens, a mim... 
 
JUDAS (voltando-se, rápido, e agarrando-o brutalmente pela nuca) Quem és tu?
 
BENJAMIM (avergado, mas sempre humilde) Sou alguém que te escutava. O tempo, como vês, não desperdiço...  Não perguntes quem sou. Aqui me tens, Amigo, ao teu serviço.
 
JUDAS (sem o largar) Ignoro quem tu sejas, mas se acaso Divulgar o meu ódio tencionas, Juro que em curto prazo No fio de uma lâmina abandonas Com o meu segredo a vida!
 
BENJAMIM (amigavelmente, em censura carinhosa) Cala a boca! Não blasfemes de coisas respeitáveis. Venho fazer propostas aceitáveis, Dizer tudo o que sinto, E só respondes com uma fúria louca! Se me hás de receber com efusão, Achando em mim o teu melhor amigo, Alevantas a mão,
 
Ameaçador como um guerreiro antigo! É ser ingrato!
 
JUDAS (largando-lhe a nuca, mas agarrando-lhe logo um braço) Dize-me o que sabes!
 
BENJAMIM (sinceramente) Ora! sei que a tua alma se abalança, Depois do que houve aqui ontem à noite, A seguir o caminho da vingança. Naturalmente, sentes-te ofendido Com a resposta que teve o teu reparo Tão justo e merecido... 
 
JUDAS (como consigo, satisfeito) Portanto, ignora... 
 
BENJAMIM É isto amigo?
 
JUDAS (rápido) É isso!
 
BENJAMIM (explicando) Eu ontem ouvi tudo junto à porta...  — Manda, que eu te obedeço. Aqui me tens, Humilde, ao teu serviço.
 
JUDAS (ficou hesitante, tendo largado Benjamim, que foi trocar sinais com Josué) Mas se eu não sei... 
 
BENJAMIM (agora senhor de si) Não sabes? Pois sei eu. O Mestre será morto, em poucos dias; Depende só de ti, fica sabendo!
 
JUDAS (nervosamente) Que dizes, fariseu?
 
BENJAMIM (imperioso, rápido, monótono, quase ao ouvido de Judas, que parece devorar-lhe as palavras) Ouve: É tremendo O ódio que lhe tem todo o Conselho, O qual procura o instante mais propicio De pôr em exercício O plano da prisão, do julgamento... 
 
JUDAS E da morte?
 
BENJAMIM E da morte! O que, porém, No atual momento Ao sacerdote Hanan muito convém É prendê-lo em segredo, à noite, em sítio obscuro. Hanan tem medo De que o povo alevante alguns protestos...  à prudência conforme, Assim procederá.
 
JUDAS (animado, satisfeito) Dize-me então... 
 
BENJAMIM É urgente saber onde ele dorme. Tu sabes com certeza!
 
JUDAS (hesitando, vagamente acobardado) Mas... 
 
BENJAMIM O quê? Não queres a vingança, Judas?
 
JUDAS Quero... 
 
BENJAMIM Nesse caso, aproveita o belo ensejo, Que outro não tens melhor. Sendo sincero E grande, como julgo, o teu desejo, Não deves recusar o que proponho. — Ouviste? Muito bem! Reflete agora, Este sítio não é muito seguro...  Aguardo te lá fora! Vai-se; Josué segue-o, e os dois desaparecem.
 
JUDAS (ficou perplexo ainda, como medindo a gravidade da proposta. Mas depois) De que serve hesitar, se me apresentam Como satisfazer o meu anseio? Basta que eu seja um cúmplice de Hanan, Um traidor simplesmente... Nada mais...  (Com rude franqueza) — Na mão direita a Infâmia, A Consciência na esquerda. Eu de permeio! (Com funda ironia) A sentença fixei: “Não saiba a esquerda o que pratica a irmã.” — Não saberá, que eu nada lhe direi! (Vai sair, mas a porta que dá comunicação para o interior da casa abre-se, e Maria aparece no cimo dos degraus. Judas quedou-se)   MARIA (que no limiar da porta ficara também indecisa) Julguei ouvir falar... 
 
JUDAS Aqui? Foi puro engano. (E notando um movimento esquivo de Maria) Retiras-te de novo? Eu faço qualquer dano
Com a minha presença?
 
MARIA (condescendente) Oh! não... 
 
JUDAS (caricioso) Deixa-te pois Ficar junto de mim, que facilmente os dois Teremos na conversa um passatempo. Fica. (E mentalmente) Vejamos se o que diz me excita ou pacifica.
 
(Há um grande silêncio. Maria desceu mansamente e ficou de pé junto do primeiro degrau, o olhar sempre absorto, os braços inertes ao longo do corpo. Judas voltou para o triclínio, e de braços cruzados observa-a, aparentando a máxima serenidade. Lá fora, o Sol ilumina fortemente a paisagem; o calor primaveril irradia por toda a parte; ouve-se nitidamente o murmúrio da água; as vibrações das cigarras são cada vez mais intensas e estridulas; há segredos de amor nos ninhos próximos...)
 
JUDAS Em que pensas, Maria? O teu formoso olhar, Que era dantes tão meigo e calmo como o luar, Há tempos que derrama um brilho vago, incerto, E em nuvens de tristeza agora anda encoberto.
 
MARIA (com simplicidade, avançando um pouco) Por vezes, sem querer, entregue à dor imensa Que me aniquila, tenho a tudo indiferença. Ao passo que me oprime este cruel receio De ver barafustar o nosso Mestre em meio Dos inimigos seus, mais frio do que a neve Se torna o meu olhar.
 
JUDAS (turvamente) Deve ser isso, deve...  (E depois de algum silêncio, irônico)
 
Costumado a subir nos estos desse amor Aos mundos do Ideal, o cândido fulgor Transforma-se em desdém, e apenas se descerra Perante a mesquinhez que roja pela terra! (O olhar bem fito nela, animando-se) Assim como um punhal de rija têmpera e agudo, Esse olhar desdenhoso, austero, vago, mudo, Brilha sinistramente e vem cair direito Neste pequeno espaço, o espaço do meu peito! (Num arranco d'alma) Em verdade te digo, ó mulher altaneira, Quisesse Deus mandar-te aos olhos a cegueira, Já que d'alma és tão cega aos prantos de quem te ama, Que olhas para esse alguém, como se fosse lama! (Crescendo em fúria) Desde ontem que eu desejo estar contigo a sós Para que enfim termine este suplício atroz! Do meu peito o rugir não sabe em que se esconda, E vai sair de mim, como em torpel a onda, Tudo o que hei sufocado, e tudo o que hei sofrido! — Escuta-me, ó mulher, apura o teu sentido, E deixa de cuidar nessa paixão agora, Que é maior a paixão que todo me devora! (Maria vai responder; ele porém, detendo-a com um gesto) Eu sei! Conheço a frase; escusas de falar: É puro o teu amor, não é amor vulgar...  Mas vê que, se ele abriu em ti essa ferida, No centro da minha alma em sangue e dolorida Existe uma paixão também que me envenena, Podendo ser mortal, assim como a gangrena...  (Em frente dela, com a mão sobre o peito, contorcendo frenético a roupagem) Ah! no supremo arranco um peito esfacelado Como este, não receia o que haja mais sagrado, E julga-se capaz, com o seu valor enorme, De lutar e vencer o ente mais disforme, Terrível como Deus, gigante como Adão,
 
Possuindo na voz as frases do trovão! E porque sinto aqui as contorções finais, Expando francamente as máculas brutais, Que viveram sem luz num mundo subterrâneo: Os monstros do meu peito e os vermes do meu crânio! (Grande e soberbo, de braços abertos, espera)
 
MARIA (que não se moveu, serenamente) Sou fraca, sou mulher, e sei no que te escudas; Confesso-te, porém: causas-me tédio, Judas.
 
JUDAS (num rugido) Maria!
 
MARIA (sempre imóvel) Com franqueza, eu disse-te por vezes: Em castidade igual às inocentes rezes No Templo do Senhor dadas em sacrifício, Tenho por gozo infindo, ao amor viver propicio, Dedicar àquele ente em que a virtude brilha Acrisolado amor, amor... como de filha. (Na terra nada mais preciso que uma coisa) A Crença. (Enlevada, com o olhar erguido, as mãos sobre o peito virginal) O meu amor longe daqui repousa, Estrela que não teme as nuvens tempestuosas. Brando como o dormir das águas silenciosas, Vago como o mistério enorme do futuro, Meigo como um sorriso, e como o orvalho puro, Nos espaços do azul vive risonho e inerme. A estrela é sempre estrela...  (Descendo o olhar para Judas) e o verme é sempre verme.
 
JUDAS (com as mãos encrespadas, os lábios trementes) Ó vil mulher, que tens desprezo pelo amor, Fugindo à grande lei do grande criador,
 
Que ele nesse teu corpo as maldições concentre Para tornar assim fecundo o estéril ventre!
 
MARIA (sem se perturbar) Enlouqueceste!
 
JUDAS (caindo em si, fica por momentos silencioso. Depois, com o rosto dolorido, num queixume) Mas se eu nunca fui amado! Assim como o terreno a que não chega o arado, Semelhante em mudez às pedras do caminho, Era o meu coração. Via-me tão sozinho, Que, por vezes, cravando o meu olhar nos céus, Interrogava o Espaço, interrogava Deus, Procurava arrancar às trevas o motivo De haver dentro de mim um morto, estando eu vivo. (Com a voz muito quente, repassada de amor, sensual, o olhar úmido, como revestindo Maria com um manto de beijos, as mãos gesticulando em curvas graciosas, lânguidas) Mas desde que no teu o meu olhar depus, Enxerguei o brilhar de uma divina luz Na imensa escuridão deste viver amargo E senti-me surgir do fundo do letargo. Fosse para onde fosse, eu via a tua imagem, Adorada Maria, envolta na roupagem Tão alva como o arminho, imaculada e honesta: No prado sorridente, em meio da floresta, Sobre os rochedos nus às vagas sobranceiros, No horizonte sem fim, no dorso dos outeiros...  Por toda a parte, em suma! — Adoro-te, Maria! No caminho da vida o teu olhar me guia...  Vem dar uma esperança ao pobre coração Que vive para ti, que te pertence... 
 
MARIA (com ligeiro movimento de cabeça) Não.
 
JUDAS (prontamente transformado, num arranco furioso) Oh! que negra palavra, amarga como fel!
 
MARIA (com a voz tranquila) À doutrina do Mestre... 
 
JUDAS (interrompendo-a com uma risada feroz) O Mestre!... 
 
MARIA ...és infiel. Abrigas, por teu mal, um sentimento ignaro Do que seja o dever, e que se torna avaro, Cobiçoso, traidor, misérrimo, egoísta! Não podes resistir-lhe? É bem que eu te resista! Se não queres viver do amor pela virtude, Se à pureza é rebelde essa tua alma rude, Então que ao sacrifício eu seja quem te exorte: Foge para distante, ou foge para a Morte.
 
JUDAS (alucinado, avançando para ela) Escuso de ouvir mais. Não quero ouvir-te! Cala! Fica sabendo pois que isto que me avassala, O que por fim se expande e que há de ser funesto, Nunca foi do amor um sentimento honesto!
 
MARIA (levando instintivamente as mãos aos seios) Maldito sejas tu, se acaso me tocares!
 
JUDAS (com os olhos chamejantes, as mãos trémulas, os passos rígidos, agarrando-a) Que importam maldições inúteis e vulgares? Os castigos de Deus, Deus sobre mim desabe-os, Mas que eu sinta, mulher, o aroma dos teus lábios! (E tenta beijá-la, sôfrego)
 
MARIA (evitando-lhe os beijos)
 
Oh! deixa-me, brutal demônio da luxúria!
 
JUDAS (arrastando-a para o triclínio) Chamaste muito bem à minha ardente fúria, Como o fogo voraz, cruel e desumana, Que a Eva perverteu, e maculou Suzana.
 
MARIA (com a voz estrangulada, lutando) Socorro! Eleazar!
 
JUDAS (pondo-lhe a mão na boca) Oh! cala-te!
 
MARIA (já sem forças) Meu Deus!
 
JUDAS (achegando-a ao peito, lúbrico, antegozando a posse) Ah! como são gentis assim os olhos teus! Como é rosada e fina a tua débil mão! Vais ser minha, afinal! (Aperta-a mais contra si; mas de súbito, notando-lhe a imobilidade, abandona-a; e vendo o corpo de Maria cair inerte sobre uma das camilhas, diz num murmúrio de desespero) Desfalecida?!...  (Um pensamento hediondo atravessa o cérebro de Judas; os olhos inquirem em volta. Estão bem a sós, não há dúvida... Sob irresistível atração, com o olhar lascivo desnuda-a; ergue-lhe em peso o corpo, aperta-o contra si... Mas de súbito, como acordando, como se a voz da Natureza lhe desse um grito na alma)  Não!! (E tomado de horror por si próprio, foge, correndo como doido através dos campos, deixando o corpo de Maria inanimado, mas casto e puro como um lírio de Issacar...)  
 
TERCEIRA JORNADA EM 13 DE NISSAN Na quadra principal da Torre Antônia, moradia do procurador Pôncio Pilado, tudo é silencioso, embora a noite só agora acabe de tombar. Assenta o elevado teto em dez colunas não distantes das paredes; é de mosaico branco e preto o chão marmóreo. Duas portas fronteiras comunicam, uma para os aposentos de Cláudia e Pôncio, outra para as diversas dependências da Torre. Numa das paredes abre-se amplamente, achegado um pouco para o ângulo, um arco de elegante curvatura, que dá para um terraço resguardado de formosa balaustrada. Comprida escadaria dali conduz ao andar inferior e ao vestíbulo. No centro geométrico da quadra, ergue-se um busto de guerreiro: é de mármore branco o pedestal; de róseo o busto, em cuja base lemos, em caracteres romanos esculpida, a legenda: Tiberius Claudius Nero, Imperador. Das portas há pendentes reposteiros de azul e ouro. É da mesma fazenda o reposteiro que está ornando o arco e repuxado junto ao ângulo. Fitando nós o busto de Tibério, temos sobre a direita larga mesa de citrus, onde ardem num brônzeo candelabro três velas de cera e pez; e perto dela vemos uma cadeira de estofado, de braços longos, costas amplas e recurvas; à nossa esquerda, perto das colunas, coxim de bronze com embutidos de tartaruga e três almofadas de lavor riquíssimo; não distante, no chão, está estendida grande pele de leão do Atlas. Um armário de ébano maciço alonga-se na parede junto ao arco e sobre ele se ostenta graciosa clepsidra de bronze, onde um Eros aponta com a flecha a escala das horas que decorrem. Entre as colunas, pendem das paredes, panóplias de couraças, capacetes, escudos e adagas. Encostado ao pedestal do busto de Tibério, o pilo de ouro cinzelado. Há um misto de indecisa luz em toda a quadra: amarelada a que as velas espargem frouxamente, cor de prata a que o chão do terraço reenvia e que a Lua derrama das alturas. A cidade dormita lá em baixo; e o luar, banhando as casarias, dir-se-ia iluminar uma necrópole. No coxim do terraço está Cláudia reclinada. A túnica é de lã; escura e longa a estola. Tem os braços cobertos pelas mangas da segunda túnica, e é branca a facha que os cabelos lhe prende em elos brandos. Perto de Cláudia a sua escrava Geda. Ambas percorrem com o olhar cansado o por demais conhecido panorama.
 
CLÁUDIA (solta enfim um suspiro)
 
Dorme tudo na cidade. Que silêncio e que tristeza!... 
 
GEDA Tens então grande saudade De Roma?
 
CLÁUDIA Sim. Dizes bem: É saudade esta amargura, Pois outro nome não tem O que sinto na Judéia Onde Pôncio me exilou. — Que horas podem ser? Vê lá.
 
GEDA (vai ligeira ao candelabro; dele tira uma vela e dirige-se à clepsidra. Repõe depois no seu lugar a vela, e voltando para junto de Cláudia) Salvo engano, gotejou A segunda hora de prima... 
 
CLÁUDIA Por Saturno, é muito cedo, Pois não é?
 
GEDA Também eu cria Ser mais tarde.
 
CLÁUDIA (boceja largamente) Agora, em Roma, Ouve-se ainda a folia Da multidão buliçosa, Que de toda a parte assoma, Soltando ao vento a harmonia Da sua voz descuidosa... 
 
(Vem Pôncio, taciturno, e para a mesa se encaminha, trazendo na mão direita um escrito em papiro. É homem de estatura mais do que regular, e de idade viril. Rosto livre de pelos; o nariz aquilino; boca breve, olhos negros e vivos; curto cabelo em curvas de frisados, testa larga onde as rugas bem se ajeitam. Alva a túnica e alvo o manto farto; sandálias amarelas; mãos carnudas. Sentou-se junto da mesa, e o papiro consulta)
 
CLÁUDIA (indolente, para Geda) Ali tens quem me trouxe para o exilio! Se não dormem Plutão nem Proserpina, Hão de cedo chamá-lo ao domicílio Onde caem as vítimas da Morte! (Muito irônica) Que inspiração divina Eu tive ao escolher este consorte! (Com um gesto ordena a Geda que se retire. Ergue-se do coxim, e adiantando-se para Pôncio, que não a viu) Que novas trazes, Pôncio?
 
PÔNCIO (sem se voltar, continuando a ler) É de Tibério Foi-me enviado este papiro honroso.
 
CLÁUDIA (em sobressalto infantil) O quê?! Novas de Roma?
 
PÔNCIO O grande império Continua radiante e venturoso. Foi porém necessário reprimir, No princípio do ano, Certa conspiração que fora urdida Pelos amigos do traidor Sejano. A mensagem termina Aconselhando a que use da violência. (E lê pausadamente, acentuando muito as palavras) “Aprende em mim como o poder se eleva e como se elimina Todo aquele que tenha a impudência De atentar contra a posse deste manto. Faze como eu também: Reprime a todo o custo a rebeldia. Talvez no Templo se conspire. Enquanto Mostres sabedoria, Espírito sensato, forte e agudo, Podes contar comigo. Recomenda a Cláudia, Pôncio amigo. Por Jove, te saúdo”. Põe de parte o papiro e reclina a fronte na mão.
 
CLÁUDIA (que em silêncio ficara apreensiva) O que vais responder?
 
PÔNCIO (sem se mover) Já respondi.
 
CLÁUDIA (apoiando-se nas costas da cadeira por detrás dele) Permaneces?
 
PÔNCIO Decerto, pois me cumpre. (Na perna esquerda sobrepõe a direita, fazendo-a oscilar por longo tempo)
 
CLÁUDIA (não podendo conter a íntima revolta) Bela esperança! Hei de viver aqui, Segundo me parece, eternamente! — Casou Vênus com Marte e foi o Amor O que nasceu da conhecida união; Casei contigo, audaz procurador, A princípio amoroso, bom, cortês...  O que nasceu, por fim, deste consórcio? Nasceu a Insipidez!
 
PÔNCIO (enrugando a testa e sem olhar para Cláudia)
 
Pela divina Isis que estás louca, Ou requintas deveras em maldade!
 
CLÁUDIA Talvez seja melhor Não despertar do Nilo a divindade! — nestes últimos anos tenho sido Verdadeiro modelo de matrona...  Sabes que ambiciona A minha alma fugir a tal desterro, E não queres pedir a demissão! Imaginas talvez ser este o meio De garantir a minha honestidade? Pois olha, estás em erro! Não me curvo a pressões tão aviltantes. Se não for satisfeito o meu desejo, Perderei todo o pejo...  — Inda possuo algum, valha a verdade! —  E para me vingar bem cruelmente Serei mais leviana do que dantes!
 
PÔNCIO (que se voltara, encarando nela, e em tom suasório) Tu não vês que deixarmos a Judéia Não seria prudente? Tibério é para nós inexcedível Em atenções, e dá-me como prêmio A confiança. Bastaria a ideia Da minha demissão, para de vez Nos expulsar do resumido grémio Dos seus afeiçoados, e talvez Depois se transformasse em vingador...  — Pede outra coisa, Cláudia; nunca peças O que julgo insensato. Somos grandes aqui; nenhum valor Teríamos na corte. Não te esqueças Da sorte de Copônio, Rufo e Grato, Ao voltarem a Roma.
 
Pede outra coisa, Cláudia, que por certo Hás de ser atendida. Não me digas, porém, que vá trocar Aquilo que é seguro pelo incerto.
 
CLÁUDIA (numa expansão de franqueza em que o desdém transparece) Mas que me importa, a mim, o teu lugar, Se eu desejo viver onde se viva? Em Roma, na cidade portentosa, Onde qualquer escrava é mais altiva Que uma nobre judia virtuosa! Onde Gelânio, o deus das gargalhadas, Desinfeta as emanações palustres Da tristeza! onde as pedras das calçadas Falam até de tradições ilustres! Quero fugir deste mortal suplício Para onde o meu ser se expanda e vibre; Participar no sedutor bulício, E ver à tarde o Sol beijar o Tibre! Assistir como outrora aos festivais No grande circo onde o valor impera; Ver atletas sanguíneos, triunfais E ouvir os rugidos de uma fera! Beber o doce vinho de Falerno, Ser cortesã, de novo rir e amar...  Deem-me vida longe deste Averno, E que me importa, a mim, o teu lugar!
 
PÔNCIO (resoluto, imperioso, deixando cair na mesa a mão espalmada) O que uma vez escrevo, escrito fica! (Depois, mais brando) Não fugirei às ordens de Tibério. De mais, coisa nenhuma justifica Em solidas razões o que me pedes. E volta à primitiva posição.
 
CLÁUDIA (decorridos alguns instantes, refreando a cólera)
 
Disseste?
 
PÔNCIO (indiferente) Disse.
 
CLÁUDIA É caso firme e assente Permanecer?
 
PÔNCIO Que dúvida!
 
CLÁUDIA Não cedes Nem aos meus rogos?
 
PÔNCIO Não.
 
CLÁUDIA (muito a sério) És imprudente...  — Sabes que fui amante de Tibério?
 
PÔNCIO (bamboleando a perna e sem mudar de expressão) Tenho ouvido dizer.
 
CLÁUDIA Não desconheces Que se é meigo, também é vingativo O meu caráter. Pois talvez um dia Desapareça o teu falar altivo. Tibério, com certeza, Muito embora já tenha algumas cãs, Há de ainda lembrar-se da beleza Das suas cortesãs... 
 
PÔNCIO (franzindo levemente o sobrolho)
 
Não compreendo bem. Com isso tudo O que vens a dizer?
 
CLÁUDIA (sorrindo, palaciana e misteriosa)
 
Que te saúdo... 
 
(E recolhe em silêncio aos seus aposentos, deixando tombar atrás de si as pregas do reposteiro. Pôncio ficou sozinho, meditando. Logo aparece no terraço o Ostiário que veio do andar térreo pela escada exterior)
 
O OSTIÁRIO Pôncio, recebes agora?
 
PÔNCIO (erguendo-se) E quem é que me procura?
 
O OSTIÁRIO O sacerdote judeu Hanan.
 
PÔNCIO (surpreso, como consigo) Hanan procurar-me Na Torre Antônia, a esta hora? — Ostiário, sucedeu Alguma coisa?... 
 
O OSTIÁRIO Não sei. O povo está sossegado.
 
PÔNCIO (depois de refletir) Manda entrar o sacerdote Para aqui mesmo. (Retira-se para o terraço o Ostiário. Pôncio, que ficara preocupado, diz como consigo) Cuidado!... 
 
(Vai buscar uma adaga à panóplia mais próxima e mete-a no cinturão; põe em cima da mesa o pilo de ouro que estava encostado ao busto de Tibério. Senta-se novamente na cadeira. A um gesto do Ostiário, dois vultos subiram a escada, e a breve trecho apareceram no terraço; são dois homens, cujos semblantes o luar ilumina. Um é Judas; o outro um velho de setenta anos, mas válido e robusto — o ex-Grande Sacerdote Hanan, sogro do Grande Sacerdote Caifás. Meão de estatura, barba cerrada e não comprida onde abundam as brancas, assim como no bigode hirsuto e no longo cabelo descuidado; nariz adunco, olhos azuis e penetrantes. E seu trajar igual ao do mais humilde filho de Israel: túnica e manto, mitra redonda no alto da cabeça; chinelos muito usados. Dir-se-ia que tal modéstia de aspeto foi um cálculo, um disfarce... Há porém na sua fisionomia e na voz resoluta e áspera a expressão da velhacaria e do mando. O Ostiário retirou-se pela escada. Judas foi postar-se junto do busto de Tibério, com ar matreiro, e dali segue atento as fases do diálogo a que vamos assistir)
 
HANAN (que se adiantou até à presença de Pôncio, curvando-se perante ele) Tenho íntima alegria, ao ver que no teu rosto Amável transparece um juvenil composto De puro entendimento e de vigor e saúde. No falar respeitoso, humilde na atitude, O sacerdote Hanan ao grande Pôncio envia Protestos de leal e eterna simpatia.
 
PÔNCIO (que nem para ele olhou, desdenhoso) O álamo gigante, ao estender os braços Como para cingir Apolo, que os espaços Domina, mostra quanto é grande na afeição, Mas frutos não produz: É como a adulação. — Hanan, ouvir-te-ei atentamente.
 
HANAN (fingindo não ter percebido) Vim Para que tu me dês auxílio.
 
PÔNCIO (irônico)
 
Como assim? De noite? acompanhado?
 
HANAN Este homem ouve, e cala Tudo o que ouvir. Demais, é-nos preciso.
 
PÔNCIO (voltou-se um pouco, lançou um rápido olhar a Judas, e depois, encostando o braço à mesa e com a cabeça reclinada na mão) Fala.
 
HANAN (muito submisso de começo) Embora nos vencesse a fúria dos romanos Em tempos que lá vão; embora muitos danos Haja sofrido o povo heroico de Israel, Às suas tradições conserva-se fiel, Na crença do seu Deus respeito manifesta. Religião somente é hoje o que lhe resta, Porque tudo entregou às mãos do vencedor; Por isso há de manter, altivo e com fervor, O que ele considera um virginal troféu! — Dize-me então se é justo ou não é justo que eu Procure lealmente ao povo garantir A crença de Moisés, agora e no porvir.
 
PÔNCIO (serenamente, mas deixando acentuado o seu desdém, aquele desdém dos romanos pelos povos vencidos) Não sei do que se trata, Hanan; mas sempre digo Uma coisa que eu penso há muito a sós comigo: Do leito hás de sair com mais celeridade Para zelar melhor a tua propriedade, E com menos se alguém te for dizer, de rastros, Que descobriu no céu ladrões roubando os astros.
 
HANAN (ofendido, elevando a voz) Duvidas de que seja o meu falar sincero? Julgas que estou mentindo, e em nada considero a minha crença?
 
PÔNCIO (olhando para ele de fito, severamente) Olá!... 
 
HANAN (matreiro) Desculpa-me. Prometo Não me exaltar de novo, ó Pôncio.
 
PÔNCIO (sem desviar dele o olhar) O mel do Himeto Agrada a toda a gente... e fica bem na fala.
 
HANAN (muito submisso) Dou-te razão; mas vê que dor nenhuma iguala A dor que sinto. E não terei motivo? Escuta: Aquela sã doutrina, a doutrina impoluta Que nos deixou Moisés, o grande fundador Da nação, que livrou das garras do opressor O povo escravizado, e que à ditosa grei Legou, depois da Fuga, um Deus e Pátria e Lei! A doutrina sublime, erário de virtudes, Que tem ficado ilesa ainda nas mais rudes Provações... 
 
PÔNCIO (cortando a arenga, novamente em tom sarcástico) Vais falar de alguém profeta novo, Que anda por aí talvez a amotinar o povo Contra os amigos teus? — Pois hei de protegê-lo. Apraz-me não tocar nem sequer num cabelo Desse homem.
 
HANAN (refreando a cólera) Mas por quê? Terás razões secretas?
 
PÔNCIO Quem as tem não sou eu: são eles, os profetas,
 
Ao falarem de ti.
 
HANAN (com ironia e falsa humildade) Então! sê razoável E mostra coerência, ó tirano implacável! Um cadáver de mais, um cadáver de menos, É coisa que não leva aos teus dias serenos Nenhuma inquietação, nenhum remorso. (Animando-se pouco a pouco) E quando Um sacerdote probo e honesto e venerando Em nome da Judéia a morte solicita Para um vil criminoso, o teu rancor hesita?! (Explodindo, francamente) De cumprir o dever percebo o que te afasta: Quem te fala sou eu, que tu odeias!
 
PÔNCIO (fitando-o enfurecido, dá um murro na mesa; e erguendo-se) Basta! Sabes que essas razões não ouço, nem tolero, E que digo uma vez que não, quando não quero! — Como o poder de Roma aos homens do Conselho Tirou todo o poder de tingir de vermelho Num banho sanguinário os corpos fraternais, Privados de lavrar sentenças capitães Sem que eu lhes dê meu voto, imaginaste, Hanan, Que eu poderia, qual infame barregã, Despejar a vergonha à rua, como o lixo, Para satisfazer depois o teu capricho? Porque uma voz protesta e clama contra o vil Conselho que assoberba o povo e que, febril, Anda a espiar na sombra, a procurar o instante Em que há de ser traidor ao César triunfante; Porque um homem possui a cívica ousadia De guerrear talvez a tua hipocrisia, Venerando ancião, tiveste uma lembrança: Transformar o meu voto em arma de vingança
 
Cobarde! Sim! Bem vejo a ideia que te inflama! (Agarrando no pilo) Pois digo-te que nunca hás de cair na lama Com o pilo de ouro! Não! D'Oriente a Ocidente, A águia de Roma é grande, e nunca foi serpente! (E pousando o pilo na mesa, com ruído, senta-se)
 
HANAN (depois de algum silêncio, tentando convencê-lo à boa paz) Eu não falo por mim; eu falo por Moisés, Cuja doutrina tem sido calcada aos pés De um homem, que apresenta uma doutrina estranha Ao direito e à lei; que os pobres arrebanha Só para dizer mal dos grandes e dos ricos; Que dirige a palavra aos seres impudicos, Ás mulheres venais, aos ínfimos ladrões; Que anda em nome de Deus a conceder perdões A toda a gente; enfim, que o povo, em desatino, Se atreve a inculcar como um ente divino!
 
PÔNCIO (tranquilo, sorrindo) Quem sabe?... Pode ser... 
 
HANAN (recuando, como se ouvisse uma heresia) O quê?!
 
PÔNCIO (com bonomia, exagerando muito o valor das palavras) Se te referes Ao Nazareno em vão me falas. Nunca esperes Que eu ponha ao teu serviço a minha autoridade Para o matar. Não mato uma celebridade. Conheço-o muito bem. Inda há três dias teve Uma grande ovação. De resto, não se atreve A suscitar no povo o ódio contra o Império: Deseja que se entregue a Deus e a Tibério O que pertence a Deus e o que pertence a Roma. Agrada-me o desejo. É o melhor diploma Que lhe há de garantir a minha proteção.
 
HANAN (ao ouvido de Judas) Ficou tudo perdido, ó Judas.
 
JUDAS (reservadamente) Ainda não. Pede para eu falar.
 
HANAN Duvido... 
 
JUDAS Experimenta.
 
HANAN (muito suplicante a Pôncio) Senhor, ouve as razões que este homem apresenta: Conhece o Nazareno, e sabe tudo... 
 
PÔNCIO (olhou novamente para Judas, e com enfadada condescendência) Vá. Pode falar, mas breve.
 
JUDAS (avança até à presença de Pôncio. Saudou-o, e muito senhor de si, firme, resoluto, assim começa) Eu nasci em Judá. Odeio a Galileia, e, sempre respeitoso, Me curvei de Tibério ao vulto majestoso. — Engana-te, senhor, aquele que disser Que o profeta de quem falou Hanan requer, Como acabei de ouvir, as atenções do povo Para o império de Roma.
 
PÔNCIO (estremeceu, carregou o semblante) O quê?
 
JUDAS (com sinceridade hipócrita) Não me demovo
 
De dizer a verdade, inda que sofra o peso Do remorso, indicando um amigo indefeso À justiça de Roma e do Conselho! Brado Em voz altissonante: Ó Pôncio, és enganado! O Profeta conspira, em íntimo rancor, Contra a lei de Moisés e contra o vencedor! — De tal conspiração confio-te o segredo...  (Aproximou-se mais de Pôncio, que continua assentado, e fala-lhe agora, insinuante, incisivo, um pouco por detrás dele, encostando-se até à curva da cadeira. Pôncio escuta-o em silêncio, com o olhar brilhante e fixo em um ponto, todo o seu sentido concentrado nas palavras que saem dos lábios de Judas como subtil veneno) Por que abate no mar, às vezes, um rochedo Austero, alcantilado, enorme? — Toda a gente Julgava-o rijo, forte, invencível, potente, Que do seu dormitar ninguém o acordaria, Que o Tempo, esse feroz destruidor, seria Incapaz de roer-lhe o corpo gignteu...  Mas certa noite o monstro hercúleo estremeceu, Barafustou no espaço, e com fragor medonho Afundou-se no abismo, ao despertar de um sonho! — Que forças colossais, que forças imprevistas O venceram? O sol ia dourar-lhe as cristas Majestosas, assim que despontava ao largo; A Lua namorada, em lânguido letargo, Cobria-lhe de prata o dorso negro e frio, Que as lágrimas do céu tornavam tão macio Como um peito de cisne ou face de mulher...  O próprio criador do Mundo nem sequer Lhe causava receio. Em doidas convulsões, Um raio desabou das vastas amplidões Sobre ele, e a sua voz, longe de ser magoada, Soltou-se em desdenhosa e grande gargalhada! — Que forças colossais, que forças imprevistas, Lhe fizeram baixar as invencíveis cristas? Que forças? — Perguntai-o àquela massa informe, Que por vezes murmura e que por outras dorme
Em profundo silêncio; interrogai o Mar, Que outrora vinha, meigo e humilde, a caminhar Do horizonte sem fim, da solidão distante, Para oscular os pés do impávido gigante! Interrogai o vil hipócrita, que ao passo Que era meigo e humilde, em fraternal abraço, Tratava de roer, silenciosamente, As bases do colosso atlético e indiferente, Que afinal, certa noite, ao despertar de um sonho, No abismo tombou com fragor tão medonho, Que as Estrelas, ouvindo aquele enorme grito, Sentiram-se tremer de horror no Infinito!
 
PÔNCIO (ergue-se de chofre, com o olhar incendido, trêmulo, os braços alevantados. E o seu vulto branco, destacando-se no fundo escuro da vasta quadra, dir-se-ia o de um espectro de destruição) Há colossos que têm gigantes nas entranhas, Feros como leões, grandes como as montanhas! Possuem dos clarins as frases inspiradas, E fuzilam do olhar relâmpagos de espadas! Ó mares da perfídia, andais a carcomer As bases do colosso hercúleo do poder? Tende cuidado, anões, com os rígidos ciclopes! Ondas que assim correis, que vindes em galopes, Apressadas, servis, infames... Para traz! Que para reprimir a vossa fúria audaz, Para que o vosso dente ao monstro não carcoma, Basta um simples olhar dos hércules de Roma! (E passeando agitado, raciocinando e resolvendo de pronto) Prefiro debelar de pronto a crise. Ignoro Se falaste verdade, ou se acaso laboro Em uma vil intriga! A dúvida me envolve...  Mas nesta situação o meu poder resolve O que julga eficaz. Esse traidor profeta Há de atingir ainda hoje a tenebrosa meta Da existência. Vou dar a ordem da prisão Do Zéfiro subtil com fúrias de aquilão!
 
HANAN (detendo-o, suplicante, receoso) Sê prudente, senhor. O sangue de inocentes Não deverá correr. Escuta os meus prudentes Conselhos, bom amigo. Ai! poupa-me a Judéia!...  Escuta-me, por Deus! e a indignação refreia! Tenho medo do povo... ele é tão leviano!...  Será muito melhor seguir o nosso plano.
 
PÔNCIO (sem querer ouvi-lo) Que poderá falhar!
 
HANAN (num protesto) Que é firme!
 
JUDAS Que é seguro!
 
HANAN (matreiramente) Uma escolta romana ao meu dispor, e juro Por Moisés que amanhã de noite será preso O Nazareno. (E em tom de muita confiança, como velha autoridade que bem conhece os seus governados) O povo há de ficar surpreso, Ao saber no outro dia a grande nova. Embora! Não deve protestar, porque ele não ignora Que é depois de amanhã o dia consagrado Ao festejo da Páscoa. Assim, manietado E mudo, há de assistir ao julgamento e morte Do Profeta. — Senhor, bem vês que desta sorte Moisés perde um rival, Tibério um inimigo. — Este homem prometeu que há de ensinar o abrigo Onde fica de noite o Nazareno oculto E os discípulos... 
 
JUDAS Que hão de fugir ao tumulto... 
 
PÔNCIO (que os ouviu taciturno, balbucia, como falando a si próprio) “Um cadáver de mais, um cadáver de menos É coisa que não traz aos meus dias serenos Nenhuma inquietação, nenhum remorso... ” — Hanan, Dás-me a tua palavra?... 
 
HANAN O Profeta, amanhã Por esta hora, se Deus não se mostrar contrário, Há de estar preso.
 
PÔNCIO Bem! Pois nesse caso...  (Dirige-se ao terraço e batendo as palmas, chamando) Ostiário!
 
HANAN (radiante de alegria, ao ouvido de Judas) Ganhamos, afinal! Serás recompensado Pelo teu grande zelo, ó Judas.
 
JUDAS (soturno) Obrigado... 
 
HANAN Um prêmio te darei. Trinta moedas; queres? De prata!
 
JUDAS (indiferente) Sim, Hanan... Aceito o que me deres.
 
O OSTIÁRIO (que apareceu no terraço) Chamaste-me?
 
PÔNCIO É de crer que no Pretório esteja
 
Algum centurião. É Pôncio quem deseja Que se dê cumprimento a tudo que estes dois Homens disserem.
 
O OSTIÁRIO Bem.
 
PÔNCIO Fique entendido pois. Ao Pretório tu mesmo agora os encaminha. (E passando pela frente de Judas e de Hanan, sem para eles olhar, retira-se para os seus aposentos)
 
HANAN (que se curvara muito à passagem de Pôncio, murmura) Moisés há de vencer!... 
 
JUDAS (também num murmúrio, quase inaudível) Maria há de ser minha!...  Vão-se com o Ostiário pela outra porta. 
 
(Aparece então a escrava Geda, que se encaminha para o terraço)
 
GEDA (afasta o coxim, trazendo-o para o interior da quadra e faz correr parte do reposteiro que pende do arco) Vai repousar a minha ama...  Como a noite é calma e linda! Mas ninguém há que prescinda Das indolências da cama! Muito ingrata a Humanidade, Que acha as trevas de Morfeu Preferíveis a este céu De risonha castidade! Talvez seja por vingança Que a mostrar-nos a outra face A Lua não se abalança! Seja lá pelo que for, Que sem protesto não passe, Diana, o teu desamor! (Acaba de fazer correr brandamente o reposteiro. Depois vai buscar o candelabro e dispõe-se a levá-lo consigo. Mas o reposteiro agita-se, é corrido pela parte exterior por mão nervosa e resoluta, e uma mulher de Israel aparece ofegante, com o rosto oculto por espesso véu de lã negra)
 
A MULHER (adiantando-se como procurando alguém) Cláudia?
 
GEDA (admirada e insolente) Quem te deu a livre entrada? Que vens fazer aqui, judia?
 
A MULHER Venho Para falar a Cláudia, unicamente É este o meu empenho.
 
GEDA E que importa o motivo, se é costume Não entrar sem licença do Ostiário?
 
A MULHER Em pouco a minha falta se resume: Vi tudo solitário... 
 
GEDA Esperasses.
 
A MULHER Desculpa-me... 
 
GEDA Duvido De que a minha ama te receba. É tarde. A menos que a tivesses prevenido De vir, e que te aguarde.
 
A MULHER (assumindo atitude imperiosa) Urge que eu fale a Cláudia. É muito sério O que me traz!
 
GEDA (dominada pelo tom de voz da desconhecida, coloca o candelabro na mesa) Eu vou... — Temos mistério! E entra nos aposentos de Cláudia.   (A mulher, vendo-se sozinha, ergue então o véu. É Maria de Betânia. À fadiga reúne-se no seu rosto transtornado profundo abatimento moral)
 
MARIA (com os olhos erguidos ao céu, os lábios balbuciantes, como numa prece) Ó essência do Bem! ó divinal encanto, Que fazes do Amor a tua crença única! Pressinto que a Desgraça estende o negro manto E deixa a descoberto a sanguinária túnica, Pairando sobre ti mais próxima que outrora Pressinto que o teu rosto, onde sorri ventura, Em breve deixará de ser como é a aurora, Tornando-se, meu Deus! em grande noite escura! Mostra-te para mim bondoso e esmoler: Escuta-me, Senhor! E que seja bastante, Para fazer da noite aurora triunfante, Uma lágrima ardente e pura de mulher. (E fica absorta, com a cabeça encostada ao pedestal do busto de Tibério)
 
CLÁUDIA (aparece muito descuidosa, e, ao vê-la, não reprime o seu assombro) Maria de Betânia?! O quê? Pois tu Ousaste vir aqui? Pois desafias Com a tua presença o meu rancor? Tens a loucura, a falta de critério, De brincar com as cinzas inda quentes?
 
MARIA (baixou a fronte; e a meia voz) Perdoa-me, Senhora... 
 
CLÁUDIA O que fizeste Da altivez soberana e do teu ódio?
 
MARIA Perdoa-me, senhora. Quem se humilha, É porque tudo esquece, e quem suplica O perdão de uma ofensa, tem direito A ser ouvida... 
 
CLÁUDIA (encostando-se à mesa, e esmagando Maria com a imponência da sua figura) Apraz-me isso que dizes. Tu própria te encarregas de vingar-me. Otimamente! — O que é que tu me queres?
 
MARIA (com meiguice) Nunca viste, depois da tempestade, Quando vem a bonança, Resplandecer de luz na imensidade O Arco da Aliança? Pois que venha, senhora, em tal momento, Um meigo olhar bondoso Alegrar do teu rosto o firmamento Como o divino traço luminoso.
 
CLÁUDIA (com uma risada) Não faças poesia, que Virgílio Mandou lançar a sua Eneida ao fogo! Começas muito mal. Por um idílio!...  Do teu poema a sorte pões em jogo... 
 
MARIA (docemente) Na ironia cruel quanta amargura!
 
Esta hora é suprema. Vou falar-te de um ser todo candura... 
 
CLÁUDIA (zombeteira, petulante) O herói do teu poema?
 
MARIA (animando-se pouco a pouco) Herói, disseste bem, mas que rejeita O gladio vingador, E que tem na palavra uma arma afeita à bondade, ao amor...  Ouvindo-lhe o falar tão meigo e doce Que de manso desliza, Perfumado, subtil, como se fosse O perpassar da brisa, As almas estremecem, de sentidas, E ficam-se amorosas, Desabrochando trémulas, floridas, Como botões de rosas! Há já três dias, Cláudia, que o terror É para mim veneno! Querem matá-lo! Ai! salva o meu amor! Ai! salva o Nazareno! Não deixes que lhe roubem a existência, E termina o martírio Desta paixão que tem do Sol a ardência, E a pureza de um lírio! Ordena que o não matem, Cláudia! acalma Os monstros malfazejos, Que eu a teus pés arrojarei minh'alma Num eflúvio de beijos! (E cai de joelhos em frente dela, com a fronte erguida, o olhar febril, os braços estendidos, suplicante)
 
CLÁUDIA (depois de nova risada) Isto é completamente um caso novo, E agrada-me deveras que sejas tu, mulher, em vez do povo, Quem venha interceder pelo Profeta Com lágrimas sinceras! É belo!
 
MARIA Tem piedade!
 
CLÁUDIA (revolvendo na ferida o punhal da ironia) Honra o teu sexo O platônico amor que te inquieta; E nele vejo mais do que um reflexo Do feminil civismo de outras eras. Tu excedes Cornélia, E de Coriolano a mãe Vetúria! — Tenho notado haver nesta Judéia Mais valor nas mulheres que nos homens, O que toma o aspeto de uma injúria às patrícias de Rhéa! Judite a Holofernes rouba a vida, Para salvar o povo seu amante, Ao ver que ele agoniza; Ester, em pátrio amor toda incendida, De Assuero afronta a crueldade e insânia; Débora, a profetisa, Entra na luta e sai-se triunfante...  Agora vem Maria de Betânia! — Palavra, que a Judéia é divertida! (Rindo sempre, passou pela frente de Maria e sentou-se no coxim, depois de ajeitar-lhe as almofadas)
 
MARIA (erguendo-se, num movimento de indignação) Mas põe fim ao desdém, que chega a ser um crime! Quando uma alma se dobra e tanto se deprime, Quando um peito soluça, a compaixão ordena Que a ironia que esmaga e o riso que envenena...  (A um olhar severo de Cláudia, humildemente)
 
Oh! peço-te perdão! Esqueço-me de tudo Que não seja o tormento indómito e agudo, Que me ofusca a razão e o peito me lacera! Perdoa. Tem piedade. Apenas eu quisera Que soubesses também como é risonha a vida, Que toda se consagra a uma entidade querida: Sorrir quando sorri, chorar quando ela chora; Respirar o subtil perfume que evapora; Enchermo-nos da luz que o seu olhar derrama; Silenciosamente, amar tudo o que ela ama; Ouvir-lhe da palavra a doce melodia Tão límpida, tão casta e pura, que inebria, Vibrando dentro em nós alguma coisa ideal, Semelhante, no brilho, ao riso divinal Da estrela que, tremente, em candidez cintila, Quando ao longe a manhã vem a romper tranquila. (Cláudia tem-se reclinado no coxim e, cerrando as pálpebras, conserva-se impassível. Maria cai de joelhos junto dela) Ó Cláudia, sê bondosa e presta-me sentido: Tu poderás talvez, pedindo a teu marido...  Tu és boa, afinal; e eu fui leviana Quando te respondi com altivez soberana. Esqueces tudo, sim? Já não me tens rancor E vais poupar minh'alma, ó Cláudia, à enorme dor...  — Mas fala, mas responde a isto que eu te peço! Ai! que ela não me escuta! Ó Deus, eu enlouqueço! (E chora convulsamente, com a cabeça entre as mãos, os cotovelos fincados no coxim. Cláudia, sempre imóvel, impassível, parece dormitar. Ao cabo de copioso pranto, Maria afasta do rosto as mãos, e continuando de joelhos, com o olhar vago, como em êxtase, as mãos com os dedos enclavinhados sobre o regaço, diz em voz muito dolente) Não me resta uma esperança, Pois não me escuta ninguém! Dorme a eterna Divindade No azul da Imensidade, Nos horizontes d'além, Onde não chega um suspiro,
Onde o silêncio é profundo. Há de ser bom tal dormir, Descuidoso do porvir, Descuidoso deste mundo, Naquele reino divino Tecido por andorinhas, Feito só para os honrados, Para os bons e desprezados, Para as meigas criancinhas...  Tão sereno como o lago Da Galileia florida, Que se formou por encanto Do arrependido pranto Da mãe Eva arrependida...  — Parece mesmo que o vejo No seu manto azul. Dir-se-ia Que o firmamento amoroso Teve a alegre fantasia De enviar à terra um beijo Puro, suave, bondoso...  Parece mesmo que o vejo. — É seu olhar calmo e doce; A tudo o mais fica estranho, Quando distingue o fulgor Dos astros, como se fosse O cuidadoso pastor Do cintilante rebanho... 
 
CLÁUDIA (adormecida, vagamente) É seu olhar calmo e doce... 
 
MARIA (continuando alheada a tudo) Tem o brilho das searas O cabelo perfumado, Que nos ombros lhe descansa E lhe cerca as faces claras. É tão formoso e doirado
 
Como um sorrir de criança... 
 
CLÁUDIA (adormecida, vagamente) Tem o brilho das searas Seu cabelo perfumado... 
 
MARIA (ergue-se vagarosamente; e, resignada) Mais uma vez perdão te peço. Eu vou sair E não perturbarei, ó Cláudia, o teu dormir. Reconheço por fim que era a esperança fátua. É inútil chorar em frente de uma estátua...  — Retiro-me vencida, assim como o pagão, Que dedicou à Esfinge, ardentemente e em vão, Os gritos da sua alma e os cânticos do amor. Podes dormir risonha: eu levo a minha dor! (E com a cabeça descaída sobre o peito, dirige-se para o terraço em passos vagarosos, como se fora a caminho da morte, com o negro véu pendente ao longo das costas. Sem ter olhado para traz, desce a comprida escadaria. O sono de Cláudia é agora profundo. Tudo ficou silencioso. Estinguem-se uma a uma, com lentidão, as velas no candelabro; e o luar, a que o arco sem peias dá passagem, faz projetar o busto de Tibério na parede fronteira, como um enorme fantasma negro...)
 
QUARTA JORNADA EM 15 DE NISSAN Estamos num dos sítios mais tristes e isolados junto da muralha de Jerusalém. A denegrida alvenaria sobreposta é como gigântea mole, à indecisa luz da madrugada. Céu torvo, onde as nuvens carregadas desfilam mansamente. Das junturas das pedras da muralha pendem aqui e além longas ervas parasitas balouçadas pela aragem fria, e que parecem, à frouxa luz, corpos sem vida de supliciados. Abre-se na muralha pequena porta, à qual se chega por tortuoso e natural caminho, que, não distante dela, passa por sobre um pequenino outeiro. Paralelamente à muralha, alonga-se uma continuidade de penhascos onde os cardos vegetam, e algumas figueiras bravas se contorcem raquíticas. Junto ao solo, uma caverna abre a sua negra fauce misteriosa. Para além do pequeno outeiro compreendido entre a muralha e os penhascos, mal distinguimos ainda o horizonte vasto, árido, seco, argiloso e triste. Choveu. Pairam no ambiente exalações úmidas. Relâmpagos fuzilam de quando em quando; os distantes trovões ribombam roucamente. A custo o dia vem rompendo; os galos cantam ao longe, ao desafio. O último relâmpago deixou nos ver junto da porta um soldado romano que é Ampio, fazendo sentinela. Sob a arcada dois vultos estão deitados: são Lauso e Fábio, também soldados de Tibério, porque as sentinelas foram reforçadas na véspera por ordem de Pôncio.
 
AMPIO (tocando com o pé no corpo de um dos que dormem) Erguei-vos, camaradas, pois não deve O negro deus do sono tal império Exercer sobre vós, quando do Olimpo caem com fúria as cóleras de Jove.
 
LAUSO (acordando) Novamente começa a tempestade?
 
FÁBIO (erguendo-se logo; voz de homem dado ao álcool e praguento) Foi aquele patife do Vulcano, Que lhe enviou fornecimento novo.
 
LAUSO (erguendo-se) Pois ainda troveja?
 
AMPIO Muito ao longe.
 
FÁBIO O pior é que Febo, com certeza, Não vem tão cedo.
 
AMPIO Os galos já cantaram Das bandas do Levante, amigo Fábio.
 
LAUSO Olha! alguém se dirige para aqui.
 
FÁBIO (rindo) Talvez seja Noctifer, deus das trevas.
 
(E os três esperam, encostados às lanças. São seis míseros mercadores avergados ao peso de seus fardos. Quando chegaram em frente dos soldados)
 
UM MERCADOR (em tom submisso) É permitida a entrada aos mercadores?
 
AMPIO A dúvida, meu velho, está somente Em pagarem tributo ao publicano.
 
O MERCADOR Decerto que pagamos, como é de uso; Mas quando vi três guardas junto à porta. Fiquei supondo alguma novidade... 
 
AMPIO Pois quê! não morreu ontem o profeta? Nada mais fácil do que haver rebeldes...  Conhecemos a vossa grande astúcia E o vosso rancor, judeus malditos!
 
O MERCADOR (por entre dentes) Maldita Roma!... 
 
FÁBIO (com uma risada alvar) Eh! lá! Vê como falas, Que o teu rei já não vive!
 
O MERCADOR (muito secamente) Da Judéia
 
Há muito que fugiu a realeza!
 
(E os mercadores entram na cidade, seguidos pelos três soldados que deles chasqueiam. A tempestade vai acalmando; as últimas nuvens passam mais serenas. Um vulto de homem arrasta-se, vagaroso, para fora da caverna, como se fora um animal silvestre. A custo saiu e a custo distendeu, para se erguer, os membros entorpecidos. É Judas. Traz sobre si a túnica somente, esfarrapada e suja; cabeça a descoberto, o corpo enlameado, os pés descalços)
 
JUDAS (que permaneceu por longo tempo com o olhar erguido para o céu, a voz muito enfraquecida) Vem o dia a nascer das regiões eternas. Depois de ter lançado as iras justiceiras, O grande firmamento agora é mudo e quedo. Na penumbra, os chacais regressam às cavernas, E vão pedir a noite às fendas do rochedo As aves agoureiras. (E olhando para a caverna de onde saiu) Nunca tornes a ouvir o mínimo sussurro, Ó treva de amargura e negras maldições! Ó antro, que animei com o hálito do crime, Cai de novo em mudez! As águas do enxurro Hão de lavar-te ainda, ó meu algoz sublime, Das tétricas visões! (Com a cabeça apoiada numa das mãos e o cotovelo na outra, move-se com passos incertos, indecisos. Senta-se num montículo de pedras; e depois, como reconstruindo mentalmente o que se passou na antevéspera) Estavam a dormir ao pé das oliveiras, E a Lua derramava em cheio nas clareiras O argentino olhar, o seu formoso pranto. Fui na frente da escolta, e ao avistar-lhe o manto, Caminhei para ele. Ergueu-se, olhou, sorriu...  Mas ficou-se indeciso apenas descobriu Dos archotes a luz na solidão campestre. — Adiantei-me. “Deus seja contigo, Mestre.” Fitou-me silencioso. Aproveitando o ensejo, Dei-lhe a mão desleal, e um repelente beijo
 
Depus naquela face imperturbável... Ai! Com um latido feroz toda a matilha sai Da sombra do arvoredo e cerca-o num momento! Aos amigos leais ocorre o pensamento Heroico de empregar a força. A gritaria Desperta o olival da funda letargia. Cresce o tumulto. Um ferro ergue-se ameaçador...  Contra mim? Não sei bem, porque me invade o horror. Por entre a ramalhada, aos pios, uma coruja Espavorida vai dizendo-me que fuja. (E erguendo-se de chofre, animando-se) Percorro velozmente os grandes olivais; Quando abandono a sombra, entro nos matagais; O manto esfarrapado o rasto meu indica, Depois a própria carne! A alma, porém, não fica, Pois se olho para traz, sobre a verdura espessa Persegue-me, a rolar em sangue, uma cabeça. Termina de repente o extenso matagal, Foge-me a terra, e vou cair num tremedal Onde tenho uma luta encarniçada e louca: A lama em borbotões entra-me pela boca, Os limos que eu encontro agitam-se irrequietos, Voam por sobre mim, zumbindo, mil insetos, Fogem nuvens de rãs para lugares ocultos, E o seu coaxar parece arremeter insultos! Mas saio vencedor e a terra firme alcanço; Então quero parar... mas corro sem descanso. As forças vão fugindo, e julgo que do peito O coração rebenta exânime e desfeito! Não se demora o rio: é tempo enfim! De um alto Vejo a Lua a brilhar no espelho da água; salto, Alheio à dor do corpo, e enquanto vou nadando Sinistramente ao longe um lobo fica uivando. Chego à margem; depois entro por um atalho Escuro e pedregoso onde caiu o orvalho...  Afinal, afinal, ó grande Deus, consigo Descobrir de repente o mais seguro abrigo!
 
(Abeirando-se da caverna) Sem saber onde estou, a estremecer de horror, Esfarrapado, ardendo em febre, sem vigor, Ouvindo sempre ao longe uns gritos de tortura, Venho enterrar-me aqui, na treva da amargura, Onde encontro por fim, nuas e desgrenhadas, A Consciência a chorar, a Infâmia às gargalhadas! (Ri convulso, com a cabeça entre as mãos. E o eco da caverna responde-lhe longamente... Depois de grande silêncio, solta um suspiro de alívio, e, com os braços pendentes, a cabeça descaída sobre o peito) Eliminei a causa, e agora nem procura A minh'alma saber se existe ou já não dura O efeito. Um assassino é o que vejo em ti, Judas! (Apertando na mão um pequeno saco de couro que em si guardava) O coração refugiou-se aqui Transformado em dinheiro. É prata reluzente, Mas se queres ver sangue, enterra nele o dente! E falas de ambição, tu que possuis a marca Das filhas sem pudor do velho patriarca!...  Relembras o incesto horrendo de Hamar, E o crime de Ruben, que ousou enxovalhar A honra de seu pai no leito da madrasta!...  E falas de ambição, tu, cuja voz arrasta Em de redor de mim o grande amontoado Das velhas podridões da carne e do pecado! (Ferido por um rápido pensamento) — Vou arrojar ao Templo este dinheiro infame, E talvez que o Senhor o seu perdão derrame...  (Mas detendo-se, hesitante) Tenho medo... Não sei...  (E supersticioso) Era de madrugada E eu ia caminhando em terras de Efraim Quando um sapo surgiu dentre risonha messe Para vir espreitar meus passos junto à estrada. Esmaguei o! — Se alguém agora me fizesse a mesma cousa, a mim? (Compadecido) Meus olhos, vede a luz que o firmamento inunda, Que a luz também se fez para os olhos da serpente! Rasteja para longe, ó animal mesquinho, Deixando atrás de ti a escuridão profunda...  Rasteja para longe... e segue o teu caminho Silenciosamente...  (A passos lentos, vai-se, costeando a muralha até dobrar o ângulo que ela forma. Duas mulheres, com os rostos ocultos por densos véus, saem da cidade. Alguns passos dados, param como avergadas pelo cansaço ou pela dor. São Maria de Betânia e sua irmã Marta)
 
MARIA (com o braço pela cintura de Marta, e a voz muito suave e muito resignada) Fica perto da cidade O sepulcro: é no jardim Do José de Arimateia. Ao aroma do jasmim Casa-me o aroma da rosa...  É tudo meigo e silente Naquele triste remanso Onde ele dorme. A corrente, Que vai regar os pomares, Tem uns murmúrios tão doces E tão cheios de mistério... 
 
MARTA Maria, irmã, se tu fosses Contaminar o teu corpo? É proibido na Lei Ir a um sepulcro... 
 
MARIA Decerto... 
 
MARTA É um crime.
 
MARIA Sim; bem sei. Mas devo eu conjecturar Que os negros vermes da terra Contaminem moradia Que tanto perfume encerra? As borboletas somente, Aéreos beijos de amor, Hão de pousar junto dele Como pousam numa flor, Indo contar em seguida Aos espinhos do balseiro Quanta fragrância divina Exala aquele canteiro. ...Ao passo que eu viverei Na grande dor do meu pranto, Como a aranha silenciosa Que fez a teia num canto. — No céu da minha existência Pairavam tranquilamente Dois flocos de nuvem, que era Como o fumo transparente...  Andavam pairando assim Despreocupados os dois, Para ao sopro de uma aragem Se desfazerem depois...  Fumo ilusório que sobe Mansamente pelo ar E que se esvai num instante Pra nunca mais se juntar... 
 
MARTA Ó minha irmã!... 
 
(E abraçadas, com as frontes reclinadas no ombro uma da outra, soluçam longamente. Vem então da cidade outra mulher, que pelo trajar romano logo se reconhece ser Cláudia)
 
CLÁUDIA (chegando junto de Maria e Marta, cujos rostos se conservam ocultos, para; e depois, pousando a mão no ombro de Maria, diz com voz muito meiga) Por que choras?
 
MARIA (que se voltou, reconhecendo-a e baixinho à irmã) Ela?!
 
MARTA (receosa) Cláudia!... 
 
CLÁUDIA Que motivo Gerou no teu seio a Dor, A negra mãe do gemido? Conta-me tudo, mulher. — Morreu-te um filho, o esposo, Ou um irmão... 
 
MARTA (ao ouvido de Maria) Oh! meu Deus! Como o seu falar é outro!
 
CLÁUDIA Também eu sofro há três dias De um enorme sofrimento, E quero que na cidade Fiquem todos conhecendo Quanto Cláudia é bondosa, Cláudia, que o povo despreza, E quanto chora também Pela morte do Profeta.
 
MARIA (absorta)
 
O que ouço!
 
CLÁUDIA De uma mulher Tais lamentos recebi, Que um novo ser despertou De chofre dentro de mim. Sonhei depois, e que sonho! Nem mesmo o posso contar...  Tão cheio de quietação, De suavidade e de paz, Que fiquei por muito tempo Absorta, de madrugada, Ao construir na memória Todo o sonho que sonhara. — Eu fugira para longe, Para um país tão distante, Que este mundo em que vivemos Não me ficava ao alcance; E alguém cercado de luz E de meigas criancinhas Veio alegre ao meu encontro Nas paragens infinitas... 
 
MARIA O que te disse?
 
CLÁUDIA Não sei...  Apenas sei que, acordando, Não conheci a minh'alma Transformada por encanto; E por que um plano de morte Estava urdido em segredo Contra o bondoso Profeta, Logo intentei desfazê-lo, Suplicando a meu marido
Que em seu favor empregasse Todo o auxílio. Impossível! A suprema divindade Caíra em sono profundo No seu grande leito azul, Deixando que o Nazareno Expirasse numa cruz!... 
 
MARIA (baixinho à irmã) E eu que ainda a acusava!... 
 
CLÁUDIA A minha dor reparti Contigo; deves portanto Confiar tudo de mim... 
 
MARIA (expansiva) Para quê, se tudo sabes?
 
CLÁUDIA Tudo sei?... 
 
MARIA Pois que em Judá Nenhum rosto de mulher Por mais ninguém chorará neste momento.
 
CLÁUDIA Por Ele?
 
MARIA (animando-se) Sim, por Ele, Homem-Mistério, Que voou, como o aroma Da pobre rosa pendida Sobre a haste, dolorida Pela mágoa da saudade... 
 
— Vinde comigo, mulheres, Orvalhar com o vosso pranto A boceta em que dormita Aquele celeste encanto. Ide colher à campina Braçados de malmequeres, De alfazema e rosmaninho, E vinde, vinde comigo Dispô-los naquele ninho...  E vós, ó mães, que trazeis No ventre o fruto do amor, Purificai-o aspirando O perfume e o calor, Que se evolam brandamente Do sepulcro sorridente, Como as nuvens que perpassam...  ...Fumo ilusório, que sobe Com lentidão pelo ar, E que se esvai num instante, Para nunca mais se juntar...  (E cala-se, a voz estrangulada pelas lágrimas)
 
CLÁUDIA (suspeitosa) Estas palavras?... Judia, Impossível existirem Dois corações como o teu!
 
MARIA Já não o tenho: morreu.
 
CLÁUDIA Como te chamas? (E vendo o rosto de Maria que se desvelara) Maria!
 
MARIA (caindo de joelhos e beijando-lhe as mãos) Sim! que se roja a teus pés
 
Humildemente contrita, Para dizer-te: mulher, Sê bendita, sê bendita!
 
CLÁUDIA (com a voz cheia de bondade, obrigando Maria a erguer-se e abraçando-a) Ergue-te, ó alma sublime, Que encheste de luz a treva E que tiveste o condão De abafar a voz do crime Com o soluço do perdão. — Também eu ia levar-lhe O meu pranto dolorido Como nunca tive igual. És a mulher que fugiu Para o reino do Ideal...  A terra é muito mesquinha, E o voo da andorinha Convida a voar também...  (Cingindo com os braços Maria e Marta) Partamos, sim, pela estrada Que nos conduz ao mistério. Sorri ao longe a alvorada...  Vamos tranquilas, serenas, Bater a cada pousada, E sejam nossas palavras: (Levando-as consigo docemente) Vinde conosco, mulheres, Orvalhar com o vosso pranto A boceta em que dormita Aquele celeste encanto. Ide colher à campina Braçados de malmequeres, De alfazema e rosmaninho... 
 
(E vão-se as três pela estrada a caminho do sepulcro. O firmamento agora é limpo. Raras estrelas brilham ainda. A luz da madrugada define-se, e a brisa traz os perfumes dos vergéis e trigais de Getsêmani. Por um pequeno atalho cinco homens avançam para a cidade: João, Gamaliel, Simão Pedra, Eleazar e Simão de Betânia. Todos denunciam no andar e no rosto o abatimento moral em que se encontram, a irresolução, o receio. Chegados em frente da muralha)
 
SIMÃO PEDRA (que viera junto de João) Não entres na cidade... 
 
ELEAZAR És muito conhecido. O Conselho não tem desviado o sentido Dos amigos do Mestre.
 
SIMÃO Olha que talvez pense Em prender-te, e depois nada há que recompense O inútil sacrifício.
 
SIMÃO PEDRA Ao teu valor oponho Todo o meu raciocínio.
 
JOÃO (que ficara imóvel olhando para a muralha da cidade) Ainda julgo um sonho!... 
 
GAMALIEL (encostado ao bordão, a meia voz, rancoroso) Sobre a cruz aviltante, assim como o homicida, Como o escravo traidor, como o ladrão!... 
 
JOÃO (irrompendo) Ó Vida, E continuas tu dando vigor a quem, Depois de infâmia tal, dorme em Jerusalém! Profetas de Sião, da campa alevantai-vos Para escrever ali com sanguinários laivos Esta nefanda história, este inarrável crime!
105
 
Dobrai Jerusalém, como se dobra um vime, E que a mão do Senhor, terrível, iracundo, Em látegos cruéis com ela açoite o Mundo!
 
SIMÃO PEDRA Com a doutrina do Mestre o ódio não se casa... 
 
GAMALIEL (por entre dentes) Mas também cicatriza a ferida o ferro em brasa!
 
JOÃO (desalentado) E assim tudo acabou!... — Saudosa Galileia, Onde sorris tranquila, ó minha pobre aldeia!...  Quantas recordações do teu céu, do teu ar, Dos dias que passei no teu sereno mar, Das noites que dormi na relva da campina, Tão descuidoso! Mãe da excepcional doutrina, Que encheu de entusiasmo e risos sedutores As almas infantis de ingênuos pescadores, Fazendo-os caminhar atrás de uma visão, Confiados, como vai por entre a cerração A barquinha veleira ao descobrir farol! Prados, que sois jardins, e onde o rouxinol Canta serenamente em noites estivais; Macieiras em flor; regatos que passais, Ondeando, como ondeia à brisa, levemente, Da aldeã virginal a trança refulgente...  Montanhas de Naim; e tu, ó grande monte, Que te elevas no fundo azul do horizonte, Redondo como um seio a amamentar os astros...  Meigo Genezaré, campos, cabanas, mastros, Rochedos, alcantis, searas e pastagens, Que bordam a primor tuas alegres margens...  — Eis aqui finalmente a horrível derrocada! A solida afeição dos Doze feita em nada; A cegueira vencendo; a Luz amortecida; A tripudiar em nós um ladrão homicida; E eu, no meio de tudo, extático e absorto, Buscando o olhar de Deus na palidez de um morto!...  — E assim tudo acabou!
 
GAMALIEL (avançando para ele nervosamente) Quem fala de acabar? O fogo ainda não se extinguiu no altar Da nossa consciência, e os rubros holocaustos Onde fomos depor as almas ainda exaustos Não deixaram de todo os nossos corações!
 
JOÃO (desanimado) Que havemos de fazer?... 
 
GAMALIEL (animando-se e animando-o) Povos, religiões, Autoridades, leis, é tudo movediço E débil como ao sopro um tímido aranhiço!
 
SIMÃO PEDRA Queres dizer então... 
 
ELEAZAR A luta?!
 
GAMALIEL Braço a braço, Não se deve lutar. Seria um erro crasso Instituir o Bem com o ferro. Não! Deixai Esse errôneo princípio aos filhos de Shamai!
 
JOÃO (erguendo-se) O que pensas?
 
GAMALIEL Que chega a ser um atentado À memória do Mestre abandonar o arado
Com que ele andou lavrando a consciência humana! Eu quero a luta, sim, mas nunca a luta insana, Que esfria os corações e purpuriza as ruas! Não quero ver brilhar ao sol espadas nuas! Impiedades brutais, odeio-as e renego-as!
 
SIMÃO PEDRA Mas falaste de luta.
 
GAMALIEL Humilde, mas sem tréguas; Branda, mas incisiva; humana... mas divina! Como arma, aquele dom secreto que extermina, Ferindo os corações sem que haja sofrimento. Ruge, como o trovão e geme como o vento, Murmura como a fonte e estala como o raio, Tem a ardência do fogo e a alvura do desmaio; Dolente, acaricia; em fúrias, escalavra! Esta arma triunfante, esta arma... 
 
JOÃO (com o olhar brilhante) É a palavra! (Mas logo receoso) Falar às multidões?... 
 
SIMÃO PEDRA (também receoso) Continuar?... 
 
GAMALIEL Decerto! Entrando no porvir que Ele deixou aberto. Pois que o Mestre morreu, a alguém cumpre seguir O caminho traçado entrando no porvir, E esse alguém és tu!
 
JOÃO (num sobressalto) Eu?
 
ELEAZAR (abraçando-se nele, expansivo) Sim, João!
 
SIMÃO (incitando-o) Ninguém Melhor que tu!
 
SIMÃO PEDRA (secundando já agora Gamaliel) Qual é de nós o que mais tem O verbo inspirador, altivo e fulgurante?
 
JOÃO (indeciso) Simão, Gamaliel, amigos... Ai!
 
GAMALIEL Avante!
 
ELEAZAR Para glória do Mestre!
 
SIMÃO E glória tua!
 
SIMÃO PEDRA E nossa!
 
GAMALIEL É bela a ocasião... 
 
JOÃO E quem vos diz que eu possa?... 
 
SIMÃO PEDRA Serás novo profeta, aproveitando o exemplo... 
 
GAMALIEL (agarrando João por um braço)
 
Vão começar agora os cânticos no Templo. Anda conosco!
 
ELEAZAR Vem!
 
SIMÃO PEDRA Sê forte!
 
GAMALIEL (querendo arrastá-lo consigo) Num instante, De povo te verás cercado... 
 
JOÃO (numa grande expansão) Avante! Avante! É preciso arrancar ao mórbido letargo. A doutrina do Mestre!
 
GAMALIEL (em doida alegria) Enfim!
 
JOÃO (cheio de ardente entusiasmo messiânico) É meu o encargo! O caminho do Bem eu vejo, como outrora A escada de Jacó à luz da meiga aurora. Por ela vai subindo um coro triunfal Proclamando no Espaço o amor universal E a guerra sem clemência às abjeções e ao vício. Avante! Não desabe o sólido edifício De que o Mestre assentou as bases! O tesouro Da palavra, caindo em grande chuva de ouro, Enriqueça de novo a consciência humana! Inspira-me, Senhor! a minha estrada aplana! Tu, que fizeste a luz, tu que fizeste o dia, Uma centelha só do gênio teu envia Ao meu cérebro! Dá-me a força necessária Que torne a minha voz da tua a emissária!
 
— Vamos, Gamaliel!
 
GAMALIEL (como num grito de rebelião, avançando para a cidade) Glória ao profeta novo!
 
JOÃO (vibrantemente) Dou a minha alma a Deus, e a minha vida ao Povo!
 
(Entram todos na cidade ouvindo-se logo a voz de Gamaliel bradando)
 
GAMALIEL Negra Jerusalém, escuta, ó assassina, Daquele que morreu a divinal doutrina! (E depois, mais distante) Ouve, Jerusalém, que matas os profetas, As palavras que são do teu Senhor diletas!
 
(E os brados do velho doutor da Lei prosseguem por longo tempo cada vez menos distintos, à medida que o grupo se interna pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade. No entanto, Judas voltou do Templo em cuja caixa fora lançar o dinheiro da traição, e quedou-se encostado à muralha junto ao ângulo. Dali ouvira as últimas palavras de João e os brados de Gamaliel)
 
JUDAS (com desdém) “Gloria ao profeta novo!” — Insensatos! João, Vais procurar a Morte! E eu... a expiação! (Toma pela estrada e nela caminha, afastando-se da cidade, mas, vendo alguém que se aproxima, recua e estaca) Maria?!
 
MARIA (parando também) Judas!
 
JUDAS (desvairado) Ah! cobarde salteador De estrada! Vens talvez trazer o teu amor? O olhar, que seduzia, infunde repugnância!
 
O hálito de outrora, a virginal fragrância, Que me embriagava, enoja! Hálito, corpo, olhar, Ao largo! vai, mulher! Não poderei amar A carne do meu crime! Odeio-te!
 
MARIA (reposta da primeira impressão, serenamente) Não vim Trazer o meu amor.
 
JUDAS Que queres tu de mim? Trazes-me o teu perdão? Solta uma risada nervosa.
 
MARIA O riso da demência Nunca há de sufocar a tua consciência, Que geme e se revolve em negro torvelinho. Podes rir... mas eu vou seguindo o meu caminho.
 
JUDAS (impedindo-lhe a passagem) E a maldição há de ir seguindo-te as pisadas!
 
MARIA A tua maldição... as tuas gargalhadas!...  — Como o teu ódio é bom!
 
JUDAS Inda não é bastante Odiar-te! Se de ti fizesse minha amante, Como eu satisfaria este voraz desejo: Ferindo em cada olhar, mordendo em cada beijo! Que ventura, meu Deus! sermos no crime os dois, Fruir o teu amor, e arrojar depois O teu corpo e a paixão de que hoje ainda te nutres Aos ventres bestiais dos ávidos abutres! — Mulher, posso matar-te! Ao largo! tenho medo!... 
 
MARIA (muito calma) Para sempre guardarei, Judas, o teu segredo: O mundo é tão cruel que aleives não reprime, Se junto da virtude ele descobre o crime. Mas entretanto... foge!
 
JUDAS (rindo febril) Acaso me supões Tão cobarde que vá fugir sem ter razões Mais fortes que o teu ódio e a tua hipocrisia?
 
MARIA E se o Mestre voltar?
 
JUDAS (rindo) Que doida fantasia!
 
MARIA Se o visses novamente?
 
JUDAS (de súbito receoso) Eu? vê-lo?
 
MARIA Sim!
 
JUDAS Não creio! A morte é vasto abismo... 
 
MARIA (dogmática) Abismo, cujo seio Não poderá conter o que era ilimitado!
 
JUDAS (acobardado) Que dizes tu, mulher?!
 
MARIA (em tom profético) Que dorme inanimado O inseto no casulo; ao sepulcro sombrio Ele próprio deu forma, urdindo-o, fio a fio, Vagaroso, em silêncio, estranho ao mundo vário, Como o trabalhador que não requer salário E que só tem por fim realizar o plano De há muito concebido. Em vão o olhar humano Procura descobrir o que existe no centro Do casulo: o mistério é silencioso dentro. Mas depois, certo dia, o homem vê, absorto, Que o sepulcro é aberto e não encerra o morto!
 
JUDAS (tomado de vago terror) Justos céus!
 
MARIA (animando-se) Hás de ver, com a tua alma inquieta, Sair do seu casulo a enorme borboleta, Que nesta hora talvez as pálpebras descerra, Encher de luz o espaço e de pavor a terra, Da grandeza de Deus ser vivo testemunho... 
 
JUDAS (trêmulo) E cair sobre mim com o azorrague em punho!
 
MARIA (terrivelmente) Enquanto não voltar, os olhos do covarde Hão de vê-lo assim como ontem o vi à tarde: Com o respirar opresso, o corpo no madeiro, Nas angústias da morte, a olhar-te, justiceiro!
 
JUDAS (caminhando de um para outro lado, desvairado) Não pode ser, não creio... 
 
MARIA (perseguindo-o)
 
Há de falar-te, Judas, À tua consciência abjeta!
 
JUDAS (tentando ocultar o rosto) Não me iludas, Que eu nada vejo!
 
MARIA (erguendo o braço) Vês pairando sobre ti O Remorso, o fantasma eterno!... 
 
JUDAS (que seguira com o olhar o movimento de Maria, fixa-o na muralha, e apontando também, trêmulo, alucinado) Ali! ali! Com aquele olhar azul que a morte mais esfria! Ergue a fronte... descerra os lábios... Ah! dir-se-ia Que vai falar-me! — Oh! cala-te! Fui eu Que te entreguei, ó Mestre, ao inimigo teu! Não me acuses, que sinto em mim a acusação; Tem os dentes da cobra e as garras do leão! Anda aqui dentro — ouviste? — a esfarrapar-me todo! Fica-me podre o crânio, e o peito fica em lodo, Para ser tão nojenta a aparência que eu tome, Que nem os próprios cães matem comigo a fome! (E apontando de novo, como um vidente) O respirar opresso... o corpo no madeiro...  Nas angústias da morte a olhar-me justiceiro...  Exatamente! — Eleva os olhos para os céus; A agonia final chegou: fala com Deus...  A cabeça descai no peito: vai morrer...  (E num grito dilacerante, fugindo para junto da caverna) Ai! não! deixa-me em paz! Não! não! Não quero ver! (E resvalando o corpo ao longo dos penhascos, cai de bruços no chão, o rosto oculto nas mãos, gemendo, ofegante)
 
MARIA (mais compadecida agora, mas com a voz repassada de austeridade)
 
Insultaste-me há pouco ainda. Eu tudo esqueço. Tenho a razão bem clara, e tu és um possesso. Quanto ao Mestre, lá tens em ti a acusação...  A tua alma está sendo, ó torpe vendilhão, Passiva e sem vigor neste fatal momento Assim como o enforcado a baloiçar ao vento...  — Adeus. (E entra na cidade vagarosamente, sem olhar para traz. Há um grande silêncio entrecortado apenas pelos gemidos mal sufocados de Judas. Pouco a pouco, vão-lhe voltando as forças, e então Judas erguendo a cabeça e como acordado pela impressão que no seu espírito deixaram as últimas palavras de Maria)
 
JUDAS “O enforcado?... ” (E ergue-se com custo. Interrogando a sua consciência☺ Enfim para que existo? (Pensa. Tendo apoiado a mão direita na cintura, o contato da corda com que cinge a túnica desperta-lhe a atenção e aviva-lhe na memória aquelas palavras de João que ele repete maquinalmente) “As estrigas de linho... ” (E prevendo o efeito) Um laço... um nó...  (Resoluto) — É isto! (Então, desatando a corda, dobrando-a em duas, formando um nó corredio, vai monologando, febril, nervosa, secamente) Para que hei de fugir, ouvindo a cada instante Correr atrás de mim um grito retumbante E vingador? Fugir?... Sob o azul dos céus Quem pode combater a cólera de Deus? Inda que fuja sempre, eu sempre retrocedo, Porque é fugir do Eterno o mesmo que estar quedo! Não fugirei! — Se fico, atrocidades cruas...  Hei de ser arrastado aí por essas ruas, Padecerei do povo horríficos flagelos: Vir alguém arrancar-me os olhos, os cabelos, e transformar em lama o corpo do homicida! — Não! Prefiro morrer... por ter amor à vida! (De súbito, num grito de independência, muito egoísta) Eu prefiro morrer! Que se escancare o espaço Da treva! Sim, ó Morte, eu quero o teu abraço! A maldição eterna o Eterno em mim derrame-a! Que importa! Serei grande até na própria infâmia! (Alucinado novamente) Odeio-te, Virtude! odeio-te, Verdade! Renego do respeito e amor à Divindade! Eu creio só na Morte... e basta-me esta corda! (E ri, ri convulso. Batendo com a mão no peito) Alerta, monstro! Olá! monstro hediondo, acorda, Para insultar a Vida, essa madrasta bruta, Que faz de uma alma honesta uma alma dissoluta! E tu, ó Mundo, pai deste animal disforme, Vem lançar-lhe no corpo o teu escarro enorme! E desaparece por entre os penhascos, correndo doidamente.   (É já manhã clara: o horizonte purpuriza-se e doira-se. Chilreiam passarinhos não distante. No Templo começam os cânticos matutinos, e as vozes das mulheres e das crianças chegam até nós em plangente e lânguida melodia. Calam-se de súbito os gorjeios e paira em todo o ambiente grande serenidade, como se toda a Natureza estivesse escutando. João aparece à porta da cidade seguido por Gamaliel, Simão Pedra, Eleazar, Simão de Betânia e por mulheres, homens e crianças. Caminham todos silenciosamente, respeitosos, para ouvirem o novo profeta. Vem João apenas com a túnica, descalço, a cabeça e o peito a descoberto, os braços cruzados, o olhar em êxtase. Chegados à parte superior do pequeno outeiro, João parou. Os companheiros ficam junto dele. As mulheres com os filhinhos às cavaleiras nos ombros, ao uso oriental, tomam para a direita, e os homens para a esquerda do terreno inferior; sentam-se no chão, já seco pelo vento, formando um semicírculo em frente do profeta novo. Sentaram-se também os companheiros. O vulto de João, destaca-se fortemente do horizonte rubro, onde o sol vem rompendo, triunfal. E é então que João solta a sua voz inspirada de orador apocalíptico, de gesto amplo e vigoroso, enquanto muito ao longe os cânticos prosseguem)
 
JOÃO Quem tem ouvidos, ouça o que Ele manifesta! Ele é o Omnipotente; Ele o princípio e o fim; Ele quem libertou da escravidão funesta O povo de Israel... Ele descansa em mim. Ele é o Omnipotente! Ele o princípio e o fim!
 
Seja bendito quem ouvir e conservar As palavras que encerra a minha profecia! Quem tem ouvidos, ouça! e purifique o olhar, Porque já não vem longe o tenebroso dia Em que todos vereis a minha profecia!
 
— Despenham se na terra os astros refulgentes; O Sol veste de negro, a Lua é cor de sangue; Variam de lugar ilhas e continentes; A Grandeza estremece e vem cair exangue...  O Sol veste de negro, a Lua é cor de sangue... 

 

 

                                                                  Augusto de Lacerda

 

 

              Voltar a "Biblio TEATRO"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades