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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LEVADA AO ENTARDECER / C. C. Hunter
LEVADA AO ENTARDECER / C. C. Hunter

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Neste terceiro livro da saga Acampamento Shadow Falls, Kylie quer saber a verdade por pior que ela seja! A verdade sobre quem é a sua verdadeira família, a verdade sobre os seus poderes sobrenaturais e a verdade sobre o que ela sente com relação a Lucas e Derek. E pra completar, um fantasma vive atrás dela com um aviso terrível: “Alguém vive e alguém morre”. Enquanto Kylie tenta desvendar o mistério e proteger aqueles a quem ama, finalmente descobre o segredo da sua identidade sobrenatural. E a verdade é bem diferente e muito mais inesperada do que ela jamais imaginou!

 .
.


.

.

Eles estavam ali. Bem ali no acampamento.
Kylie Galen saiu do refeitório lotado, rumo à claridade da luz do Sol,
e olhou para o escritório do acampamento Shadow Falls, mais à frente. Não
ouvia mais as vozes dos outros campistas. Passarinhos cantavam a distância,
uma rajada de vento agitou as árvores, mas ela só ouvia o som do próprio
coração martelando no peito.
Tum. Tum. Tum.
Os avós estavam ali para vê-la.
Seu pulso acelerou ao pensar que encontraria os Brightens, o casal
que tinha adotado e criado seu pai biológico. Um pai que ela nunca
conhecera em vida, mas tinha aprendido a amar com as breves visitas que
ele lhe fizera da vida após a morte.
Ela andou em direção ao escritório, insegura com o torvelinho
emocional que se agitava dentro dela.
Empolgação.
Curiosidade.
Medo. Sim, muito medo.
Mas do quê?
Uma gota de suor, mais de nervosismo do que do clima quente de
final de verão no Texas, rolou pela sua testa.
Vá e descubra o seu passado, para que possa descobrir o seu destino. As
palavras misteriosas dos anjos da morte se repetiam na sua cabeça. Ela deu um passo à frente e depois parou. Embora não visse a hora de solucionar o
mistério sobre quem era o seu pai, quem ela era e, com sorte, a que espécie
pertencia, seus instintos gritavam para que desse meia-volta e fugisse dali.
Era disso que ela sentia tanto medo? De saber a verdade?
Antes de vir para Shadow Falls, alguns meses antes, Kylie tinha
certeza de que era só uma adolescente confusa, cuja sensação de ser
diferente era uma coisa normal. Agora entendia por quê.
Ela não era normal.
Não era nem humana! Pelo menos não totalmente.
E descobrir seu lado não humano era como tentar solucionar um
enigma.
Um enigma que os Brightens podiam ajudar a resolver.
Kylie deu outro passo. O vento, como se estivesse ansioso para fugir
assim como ela, soprou e levou com ele algumas mechas rebeldes dos seus
cabelos loiros, cobrindo seu rosto.
Ela piscou e, quando abriu os olhos, o brilho do Sol tinha
desaparecido. Ao olhar para cima, viu uma imensa nuvem carregada bem
acima dela, provocando uma grande sombra ao seu redor e sobre o
arvoredo. Incerta se aquilo era um mau presságio ou uma simples
tempestade de verão, ela congelou, o coração acelerando ainda mais.
Inspirando o ar com aroma de chuva, Kylie ia dar mais um passo, quando
sentiu uma mão segurando seu braço. A lembrança de outra mão agarrando
a fez o pânico disparar em suas veias.
Ela se virou, sobressaltada.
— Calma! Está tudo bem? — Lucas afrouxou os dedos em torno do
braço dela.
Kylie prendeu a respiração e fitou os olhos azuis do lobisomem.
— Tudo bem. Você só... me assustou. Você sempre me assusta!
Precisa assobiar quando estiver se aproximando de mim. — Ela expulsou as
lembranças de Mario e do neto vampiro, Ruivo.
— Desculpe. — Ele sorriu, enquanto desenhava pequenos círculos
com o polegar no braço dela. De algum modo aquela leve carícia com o dedo
pareceu... íntima. Como ele conseguia fazer um toque tão simples parecer
um doce pecado?
Outra rajada de vento, está prenunciando tempestade, agitou o
cabelo preto de Lucas e jogou-o sobre a testa. Ele continuou olhando para
ela, os olhos azuis aquecendo-a e afastando seus piores medos.
— Você não parece bem. Alguma coisa errada? — Ele estendeu o
braço e tirou do rosto dela um fio de cabelo, recolocando-o atrás da orelha.
Ela desviou os olhos e fitou a cabana onde ficava o escritório do
acampamento.
— Meus avós... Os pais adotivos do meu pai biológico estão aqui.
Ele devia ter percebido a relutância dela em estar ali.
— Achei que você queria vê-los. Por isso pediu que viessem, não foi?
— É... Eu só...
— Está com medo. — ele terminou a frase por ela.
Kylie não queria admitir, mas, como os lobisomens podiam farejar o
medo, mentiras eram inúteis.
— É. — Ela olhou novamente para ele e viu um toque de
divertimento em seus olhos.
— O que é tão engraçado?
— Você. Ainda estou tentando entendê-la. Quando foi raptada por
um vampiro delinquente não parecia tão assustada. Na verdade, você foi...
incrível!
Kylie sorriu. Não, Lucas é que tinha sido incrível. Ele tinha arriscado
a própria vida para salvá-la das garras de Mario e de Ruivo, e ela nunca se
esqueceria disso.
— Sério, Kylie, se esse é o mesmo casal que eu vi entrando há alguns
minutos, então são só dois idosos simplesmente humanos. Acho que você
pode dar conta deles com as duas mãos amarradas nas costas.
— Não estou assustada desse jeito. Só estou... — Ela fechou os olhos,
sem saber ao certo como explicar algo que nem ela entendia direito, mas
então as palavras brotaram da sua boca. — O que vou dizer a eles? “Eu sei
que vocês nunca disseram ao meu pai que ele era adotado, mas ele
descobriu depois de morto. E veio me ver. Ah, sim, e ele não era humano.
Então, podem, por favor, me dizer quem são os pais verdadeiros dele? Para
que assim eu possa descobrir também o que sou?”
Lucas certamente percebeu a angústia na voz dela porque seu sorriso
se desvaneceu.
— Você vai encontrar um jeito.
— É. — Mas Kylie não estava tão confiante. Ela recomeçou a andar,
sentindo a presença dele, o calor do seu corpo, enquanto subia com ela os
degraus da cabana. O trajeto tinha sido mais fácil com ele ao seu lado.
Lucas parou ao lado da porta e acariciou o braço dela.
— Quer que eu entre com você?
Ela quase disse sim, mas isso era algo que precisava fazer sozinha.
Ela pensou ter ouvido vozes e olhou para trás, em direção à porta.
Bem, no final das contas não estaria completamente sozinha. Sem dúvida
Holiday, a líder do acampamento, esperava por ela lá dentro, preparada
para oferecer apoio moral e também para acalmá-la com seu toque
tranquilizador. Normalmente Kylie não gostava que suas emoções fossem
manipuladas, mas esse momento poderia ser uma exceção.
— Obrigada, mas tenho certeza de que Holiday está aí dentro.
Ele assentiu. Seu olhar desceu para sua boca e seus lábios chegaram
perigosamente perto. Mas, antes que sua boca exigisse a dela, aquele calafrio
que sempre acompanhava os mortos envolveu o corpo de Kylie. Ela
pressionou dois dedos sobre os lábios dele. Beijar era algo que ela preferia
fazer sem uma plateia, mesmo que fosse do outro mundo.
Ou talvez não fosse simplesmente a plateia. Ela estaria realmente
pronta para se entregar aos beijos dele? Era uma boa pergunta, e ela
precisava de uma resposta, mas tinha que pensar num problema de cada
vez. No momento ela tinha os Brightens com que se preocupar.
— Tenho que ir — ela disse, apontando para a porta. O frio se fez
sentir novamente. Corrigindo: ela tinha os Brightens e um fantasma com que se preocupar.
A decepção brilhou nos olhos de Lucas. Então ele mudou de posição,
parecendo desconfortável, e olhou em volta como se percebesse que não
estavam sozinhos.
— Boa sorte. — Ele hesitou um pouco e depois começou a se afastar.
Kylie o observou indo embora e, então, olhou ao redor, procurando
pelo espírito. Arrepios percorreram sua espinha. Sua capacidade de ver
fantasmas tinha sido a primeira pista de que ela não era normal.
— Isso não pode esperar até mais tarde? — ela sussurrou.
Uma nuvem de fumaça apareceu ao lado das cadeiras de balanço
brancas, na varanda da cabana. O espírito obviamente não tinha poder ou
conhecimento suficientes para completar a manifestação. Mas o que tinha
bastou para fazer as cadeiras balançarem. O rangido da madeira no assoalho
parecia fantasmagórico... o que de fato era.
Ela esperou, supondo se tratar do espírito da mulher que tinha
aparecido naquele mesmo dia dentro do carro da mãe dela, quando
passavam na frente do Cemitério de Fallen, a caminho do acampamento.
Quem era ela? O que queria de Kylie? Nunca havia respostas fáceis quando se tratava de fantasmas.
— Agora não é uma boa hora — ela insistiu, mesmo sabendo que
seria inútil. Os espíritos acreditavam na política de portas abertas.
A nuvem de fumaça começou a tomar forma e o peito de Kylie inflou
de emoção.
Não era a mulher que ela vira antes.
— Daniel? — Kylie estendeu a mão e as pontas dos seus dedos
penetraram na névoa gelada enquanto ela tomava uma forma mais familiar.
Um sentimento cálido — uma mistura de amor e remorso — subiu pelo
braço dela. Ela puxou a mão para trás, mas lágrimas inundaram seus olhos.
— Daniel? — Ela quase o chamou de pai. Mas aquilo ainda parecia esquisito.
Ela assistiu enquanto ele se esforçava para se manifestar. Daniel
explicara uma vez que o seu tempo de permanência na Terra era limitado.
Mais lágrimas encheram seus olhos quando ela percebeu o quanto era
limitado. Seu sentimento de perda triplicou quando pensou em como isso
devia ser difícil para ele. Seu pai queria estar ali quando ela conhecesse os
avós. E ela também precisava dele ali — queria muito que ele tivesse lhe
contado um pouco mais sobre os Brightens — e desejou mais do que tudo
que ele não tivesse morrido.
— Não! — A única palavra de Daniel, pronunciada rapidamente,
soou urgente.
— Não, o quê? — Ele não queria (ou não podia) responder. — Eu
não devo perguntar a eles sobre os seus pais verdadeiros? Mas eu tenho que
fazer isso, Daniel, esse é o único jeito de eu descobrir a verdade.
— Não é... — Sua voz falhou.
— Não é o quê? Não é importante? — Ela esperou pela resposta, mas
a fraca aparição empalideceu e o frio espiritual que a rodeava começou a se dissipar. As cadeiras brancas diminuíram seu balanço e um silêncio caiu sobre ela. — É importante para mim — disse Kylie. — Eu preciso...
O calor do Texas afugentou o frio persistente. Ele tinha ido embora.
De repente ocorreu a Kylie que ele poderia nunca mais voltar.
— Não é justo!
Ela secou com um gesto brusco as lágrimas que escorriam pelo seu
rosto. A necessidade de correr e se esconder se tornou quase irreprimível.
Mas ela resistiu até que passasse. Segurou a maçaneta da porta, ainda
sentindo frio por causa do espírito de Daniel, e se preparou para enfrentar os Brightens.
No interior da cabana, Kylie ouviu leves murmúrios vindos de uma
das salas de reuniões, nos fundos. Ela tentou discernir as palavras. Nada.
Nas últimas semanas, tinha se surpreendido ao perceber que sua
audição estava ultrassensível. Mas esse novo dom se revelou passageiro.
Que bem poderia fazer um talento como esse se ela não sabia como usá-lo?
Só contribuía para aumentar a sensação de que tudo em sua vida estava fora de controle.
Mordendo o lábio, ela cruzou silenciosamente o corredor e tentou se
concentrar no seu objetivo principal: obter respostas. Quem eram os
verdadeiros pais de Daniel? De que espécie ela era? Kylie ouviu Holiday
dizer:
— Tenho certeza, vocês vão amar Kylie!
Os passos dela ficaram mais lentos. Amar?
Não era um pouco demais? Eles poderiam simplesmente gostar dela.
Isso já estava de bom tamanho. Amar alguém era... complicado. Mesmo
gostar muito de alguém tinha suas desvantagens, como ela comprovou
quando um certo meio FAE supergato decidiu que ficar perto dela era difícil
demais... e deu no pé.
É isso aí, Derek era definitivamente um exemplo da desvantagem de
se gostar muito de alguém. E ele provavelmente era a razão de ela hesitar
em aceitar os beijos de Lucas.
Um problema de cada vez. Ela afastou o pensamento ao entrar pela
porta aberta da sala de reunião.
O homem idoso sentado à mesa estava com as mãos cruzadas sobre
a grande escrivaninha de carvalho.
— Em que tipo de problema ela se meteu?
— Como assim? — Holiday voltou os olhos verdes para a porta e
jogou os longos cabelos ruivos por sobre os ombros.
O velho continuou:
— Nós pesquisamos sobre Shadow Falls na Internet e descobrimos
que é um acampamento para adolescentes problemáticos.
Que maravilha! Os pais de Daniel achavam que ela era uma
delinquente juvenil.
— Vocês não devem acreditar em tudo o que leem na Internet. —
Uma ponta de contrariedade transpareceu na voz da líder do acampamento.
— Na verdade, somos uma escola para adolescentes muito talentosos que
estão tentando conhecer a si mesmos.
— Por favor, não me diga que são drogas! — exclamou a senhora de
cabelos grisalhos, sentada ao lado do homem. — Não sei se eu conseguiria
lidar com isso.
— Não sou uma drogada! — disse Kylie em voz alta, sentindo na
pele o que Della, sua colega de quarto vampira, tinha de suportar com essa
suspeita dos pais.
Todas as cabeças se voltaram para Kylie que, sentindo-se o centro
das atenções, prendeu a respiração.
— Ah, querida! — lamentou a mulher. — Eu não quis ofendê-la.
Kylie entrou na sala.
— Não estou ofendida. Só queria deixar isso bem claro. — Ela fitou
os olhos de um cinza desbotado da mulher e depois se voltou para o velho,
em busca... do quê? De uma semelhança, talvez. Por quê? Ela sabia que eles
não eram os pais verdadeiros de Daniel. Mas eles o haviam criado,
provavelmente tinham transmitido a ele seu jeito de ser e suas qualidades.
Kylie pensou em Tom Galen, seu padrasto, o homem que a criara e
que até pouco tempo antes ela acreditava ser seu verdadeiro pai. Embora
Kylie ainda não tivesse aceitado bem o fato de ele ter abandonado sua mãe,
depois de dezessete anos de casamento, ela não podia negar que tinha
alguns trejeitos dele. Não que não visse mais de Daniel em si mesma; ela
herdara do pai desde o DNA sobrenatural até suas características físicas.
— Nós lemos num site que este era um abrigo para adolescentes
problemáticos. — Kylie percebeu um pedido de desculpas na voz do velho.
Ela se lembrou de Daniel dizendo a ela que seus pais adotivos o
amavam e que a amariam também se a conhecessem.
Amor. A emoção se acumulava em seu peito. Tentando decifrar a
sensação, Kylie se lembrou de Nana, a mãe de sua mãe, e do quanto a
adorava, o quanto tinha sofrido quando ela morrera. Será que era a
constatação de que os Brightens já tinham bastante idade — e que seu tempo
na Terra era breve — que a fizera se lembrar da avó falecida?
Como se o pensamento na morte de algum modo o tivesse evocado,
um frio fantasmagórico se instalou na sala. Daniel? Ela o chamou
mentalmente, mas o frio que pinicava sua pele era diferente.
Quando o ar frio entrou nos pulmões de Kylie, o espírito se
materializou atrás da senhora Britghten. Embora a aparição parecesse
feminina, sua cabeça raspada refletia a luz acima. Pontos cirúrgicos de
aparência recente eram visíveis no couro cabeludo raspado, fazendo Kylie se encolher de aflição.
— Só estamos preocupados — explicou o senhor Brighten. — Não
sabíamos que você existia.
— Eu... entendo — Kylie respondeu, incapaz de desviar o olhar do
espírito que olhava para o casal idoso com perplexidade.
Ao ver o rosto do espírito novamente, Kylie percebeu que era a
mesma mulher daquela manhã. Obviamente, a cabeça raspada e os pontos
cirúrgicos eram uma pista. Mas uma pista do quê?
O espírito olhou para Kylie. — Estou tão confusa! Eu também, Kylie pensou, sem ter certeza se o espírito podia ler seus
pensamentos como os outros podiam. — Tantos querem que eu diga uma coisa a você!
— Quem? — Percebendo que ela tinha sussurrado a palavra em voz
alta, Kylie mordeu o lábio. Daniel? Nana? O que eles querem que você me diga?
O espírito encontrou os olhos de Kylie como se entendesse. — Alguém vive. Alguém morre.
Mais enigmas, Kylie pensou, e desviou os olhos do fantasma.
Ela viu Holiday olhar ao redor, sentindo o espírito. A senhora
Brighten olhou para o teto como se procurasse um ar-condicionado para
culpar pelo ar gelado da sala. Felizmente o espírito desapareceu, levando
com ele o frio.
Tentando afastar o fantasma de sua mente, Kylie voltou a olhar para
os Brightens. Seu olhar foi atraído para o tufo de cabelos grisalhos e grossos do ancião. Sua tez pálida indicava que ele tinha sido ruivo quando mais novo.
Por alguma razão, Kylie se sentiu compelida a arquear as
sobrancelhas e verificar os padrões cerebrais do casal. Esse era um pequeno
truque sobrenatural que ela tinha aprendido só bem recentemente e que na
maioria das vezes os seres sobrenaturais usavam para reconhecer uns aos
outros e os seres humanos. O senhor e a senhora Brighten eram humanos.
Pessoas normais e provavelmente decentes. Então, por que Kylie estava tão nervosa?
Ela observou o casal enquanto eles também a observavam. Esperava
que fizessem algum comentário sobre o quanto ela se parecia com Daniel.
Mas não fizeram. Em vez disso, a senhora Brighten disse:
— Estamos de fato muito felizes em conhecê-la.
— Eu também — disse Kylie. Mas também apavorada! Ela se sentou na
cadeira ao lado de Holiday, em frente aos avós. Estendendo o braço sobre a mesa, buscou a mão de Holiday e a apertou. Uma calma muito bem-vinda fluiu do toque da amiga.
— Vocês podem me contar alguma coisa sobre o meu pai? — Kylie
perguntou.
— Claro! — A expressão do senhor Brighten se suavizou. — Ele era
um garoto muito carismático. Popular. Esperto. Extrovertido.
Kylie pousou a mão livre sobre a mesa.
— Não era como eu, então. — Ela mordeu o lábio, arrependendo-se
de dizer aquilo em voz alta.
A senhora Brighten franziu a testa.
— Eu não diria isso. A sua líder do acampamento estava nos dizendo
o quanto você é encantadora. — A senhora estendeu o braço sobre a mesa e descansou a mão quente sobre a de Kylie. — Mal posso acreditar que temos uma neta!
Algo no toque da mulher mexeu com os sentimentos de Kylie. Não
apenas o calor da sua pele, mas o ligeiro tremor, os dedos finos e nodosos
que o tempo e a artrite haviam deformado. Kylie lembrou-se de Nana, de
como o toque suave da avó tinha se tornado frágil um pouco antes de ela
morrer. Sem aviso, a dor aumentou no peito de Kylie. Tristeza por Nana e
talvez até mesmo um prenúncio do que ela sentiria pelos pais de Daniel,
quando a hora deles chegasse. Considerando-se a idade do casal, essa hora não tardaria.
— Quando você soube que Daniel era seu pai? — A mão da senhora
Brighten ainda repousava sobre o pulso de Kylie. E o toque era
estranhamente reconfortante.
— Só recentemente — disse ela, com a emoção provocando um bolo
em sua garganta. — Meus pais estão se divorciando e a verdade de repente
veio à tona. — Aquilo não era uma completa mentira.
— Divorciando-se? Pobrezinha...
O velho balançou a cabeça em concordância, e Kylie notou que seus
olhos eram azuis — como os do pai e os dela.
— Estamos felizes que você tenha resolvido nos procurar.
— Muito felizes. — A voz da senhora Brighten tremeu. — Nós nunca
deixamos de sentir falta do nosso filho. Ele morreu tão jovem... — Uma
sensação silenciosa de perda, de dor compartilhada, envolveu a sala.
Kylie mordeu a língua para não dizer que ela também passara a
amar Daniel. Para não assegurar a eles que o pai os amava. Tantas coisas ela
desejava perguntar, lhes dizer, mas não poderia.
— Trouxemos fotos! — anunciou a senhora Brighten.
— Do meu pai? — Kylie se inclinou para a frente, entusiasmada.
A senhora Brighten assentiu e mudou de posição na cadeira. Com a
lentidão típica da idade, ela puxou um envelope pardo da sua grande bolsa
branca de senhora. O coração de Kylie acelerou com a expectativa de ver as fotos de Daniel. Será que ele se parecia com ela quando jovem?
A mulher passou o envelope para Kylie e ela o abriu o mais rápido
que pôde.
Sua garganta apertou quando viu a primeira imagem: Daniel na
infância, talvez com uns 6 anos de idade, sem os dentes da frente. Ela se
lembrou das suas próprias fotos de escola, banguela, e podia jurar que a
semelhança era incrível.
As fotos a levaram ao longo da vida de Daniel — desde que ele era
um adolescente com cabelos longos e jeans rasgados até a idade adulta.
Na foto na idade adulta, ele estava com um grupo de pessoas. A
garganta de Kylie apertou ainda mais quando ela percebeu quem estava de pé ao lado dele.
A mãe dela.
Seu olhar se desviou da foto.
— Esta é a minha mãe.
A senhora Brighten assentiu.
— Sim, nós sabemos.
— Sabem? — perguntou Kylie, confusa. — Eu achei que vocês não a
conheciam.
— Nós suspeitávamos — o senhor Brighten explicou. — Depois que
soubemos de você, suspeitamos que ela poderia ser a garota da foto.
— Ah... — Kylie olhou para as imagens e se perguntou como eles
poderiam ter feito aquela dedução a partir de uma foto. Não que isso
importasse.
— Posso ficar com elas?
— Claro! — concordou a senhora Brighten. — Eu fiz cópias. Daniel
ia gostar que você ficasse com elas.
Sim, ele ia. Kylie se lembrou dele tentando se materializar como se
tivesse algo importante a dizer.
— Minha mãe o amava — Kylie acrescentou, lembrando-se da
preocupação da mãe de que os Brightens ficassem ressentidos com ela por
não tentar encontrá-los antes. Mas eles não pareciam cultivar nenhum
sentimento negativo.
— Tenho certeza disso. — A senhora Brighten se inclinou e tocou a
mão de Kylie novamente. Calor e emoção genuínos irradiaram do toque. Era
quase... mágico!
Um bipe súbito do telefone de Kylie quebrou o frágil silêncio. Ela ignorou a mensagem de texto, sentindo-se quase hipnotizada pelos olhos da
senhora Brighten. Então, por razões que Kylie não entendia, seu coração se abriu.
Talvez ela de fato quisesse que eles a amassem. Talvez quisesse amá
los também. Não importava o pouco tempo que lhes restasse. Ou o fato de
não serem seus avós biológicos. Eles tinham amado seu pai e depois o
perdido. Assim como ela. Simplesmente parecia certo que eles se amassem.
Seria isso que Daniel queria dizer a ela? Kylie olhou para as
fotografias mais uma vez e então as recolocou no envelope, sabendo que iria passar horas contemplando-as mais tarde.
O telefone de Kylie tocou. Ela ia desligar, mas viu o nome de Derek
na tela. Seu coração deu um salto. Ele estaria ligando para se desculpar por ir embora? Ela queria que ele se desculpasse?
Outro telefone tocou. Dessa vez era o celular de Holiday.
— Com licença. — Holiday se levantou e começou a sair da sala
enquanto atendia à chamada. Ela deu uma parada abrupta na porta.
— Fale mais devagar — disse ao telefone. A tensão na voz da líder
do acampamento mudou o clima da sala. Holiday deu meia-volta e se
aproximou de Kylie.
— O que foi? — Kylie murmurou.
Holiday apertou o ombro de Kylie, em seguida fechou o celular e
olhou para os Brightens.
— É uma emergência. Vamos ter que remarcar esta reunião.
— Algo errado? — Kylie perguntou.
Holiday não respondeu. Kylie viu os rostos decepcionados dos
Brightens e sentiu a mesma emoção se infiltrando em seu peito.
—Não podemos...?
— Não! — disse Holiday com firmeza. — Vou ter que lhes pedir
para partirem. Agora.
O tom de voz da líder foi pontuado pelo barulho alto da porta da
frente da cabana se abrindo violentamente e batendo contra a parede. Tanto a líder quanto os Brightens se sobressaltaram e olharam para a porta ao ouvir os passos ruidosos de alguém entrando apressadamente na sala de reunião.
 
Três minutos depois, Kylie estava no estacionamento observando o
Cadillac prata dos Brightens sumir a distância. Ela se virou para encarar
Della e Lucas, que tinham invadido o escritório de Holiday e interrompido
seu encontro com os avós. Perry havia entrado com eles, mas agora tinha
desaparecido. Holiday, que os seguira para fora da cabana, estava ao
telefone novamente.
— Alguém pode me dizer, por favor, o que está acontecendo? —
Kylie perguntou, sentindo como se a sua chance de descobrir mais sobre o
pai estivesse indo embora junto com o Cadillac. De repente, percebeu que
ainda segurava o envelope pardo com as fotos de Daniel e o comprimia
contra o peito.
— Não esquenta. É só por precaução.
As pontas dos caninos de Della apareciam nos cantos dos seus
lábios. Seus olhos castanhos-escuros, ligeiramente amendoados, e seu cabelo preto e liso denunciavam sua ascendência asiática.
— Precaução por quê?
— Derek ligou. — Holiday fechou o telefone e se juntou a eles. —
Estava preocupado. — Seu telefone tocou novamente e, depois de olhar para o número na tela, ela levantou um dedo. — Desculpe. Só um minuto.
Com a paciência se esgotando, Kylie olhou para Della e Lucas.
— O que está acontecendo?
Lucas se aproximou.
— Burnett ligou para nós e pediu que a gente não tirasse os olhos
dos visitantes. — Seu olhar se encontrou com o dela e, como antes, a
preocupação cintilou nas pupilas azuis.
Burnett, um vampiro em torno dos 30 anos, trabalhava para a UPF
— Unidade de Pesquisa de Fallen —, um departamento do FBI cujo trabalho
era supervisionar os sobrenaturais. Burnett também era um dos sócios de
Shadow Falls. Quando dava uma ordem, ele esperava que as pessoas a
cumprissem. E elas normalmente não o decepcionavam.
— Por que Burnett disse isso? — Kylie perguntou. — Eu preciso
fazer umas perguntas a ele.
Inesperadamente, a lembrança da mão da senhora Brighten sobre a
dela surgiu em sua mente — suave, frágil. Emoções convergiram para Kylie de todas as direções.
— Burnett nunca dá explicações — disse Della. — Ele dá ordens.
Kylie olhou para Holiday, que ainda estava ao telefone. Ela parecia
preocupada, e Kylie sentiu as emoções da líder se somando a outras que já lhe provocavam um frio na barriga.
— Eu não entendo. — Ela lutou contra o aperto na garganta.
Lucas chegou mais perto. Tão perto que ela podia sentir seu cheiro,
semelhante a um bosque coberto de orvalho, nas primeiras horas da manhã.
Ele levantou o braço e ela pensou que fosse para pegar a mão dela,
mas ele o baixou novamente. Kylie lutou contra a decepção.
Holiday desligou o telefone.
— Era Burnett. — Ela deu um passo à frente e apoiou a mão no
ombro de Kylie.
Ela não queria ser tranquilizada, queria respostas. Então afastou a
mão da amiga.
— Apenas me diga o que aconteceu. Por favor.
— Derek ligou — explicou Holiday. — Ele foi ver o investigador
particular que ajudou você a encontrar os seus avós e o encontrou
inconsciente em seu escritório. Então Derek achou o telefone do homem
caído no chão, do lado de fora da sala, todo ensanguentado. Resumindo,
Derek não acha que foi o investigador que lhe enviou a mensagem de texto
falando sobre os seus avós. Ele ligou para Burnett, que está lá agora.
Kylie tentou entender o que Holiday estava dizendo.
— Mas, se não foi o investigador que mandou a mensagem, quem foi?
Holiday encolheu os ombros.
— Não sabemos.
— Derek pode estar errado — disse Lucas, sua falta de afeição
pelo fae aprofundava o tom da sua voz.
Kylie ignorou Lucas e seu tom de voz e tentou digerir o que Holiday
estava querendo dizer.
— Então... Derek e Burnett acham que o senhor e a senhora Brighten
são impostores?
Holiday assentiu.
— Se Derek estiver certo e a mensagem foi enviada pela pessoa que
feriu o investigador, então faz sentido pensar que esses dois foram enviados aqui por outras razões.
— Mas eles são humanos — disse Kylie. — Eu verifiquei.
— Definitivamente humanos — concordou Della.
— Eu sei — Holiday explicou. — Foi por isso que não os segurei aqui
nem os interroguei. A última coisa que preciso é atrair mais suspeitas sobre
Shadow Falls. As pessoas da região já nos olham com desconfiança. Mas só porque são humanos isso não significa que não estejam trabalhando para outra pessoa. Alguém sobrenatural.
Kylie sabia que Holiday estava se referindo a Mario Esparza, avô do
vampiro assassino que a raptara.
Por uma fração de segundo, Kylie reviu mentalmente as duas
adolescentes que encontraram na cidade e que tinham morrido nas mãos de Ruivo, o neto de Mario Esparza. Mais frustração e raiva se acumularam dentro dela.
— Mas eles me trouxeram fotos — disse ela, erguendo o envelope.
Holiday pegou o envelope e deu uma olhada rápida na pilha de
fotos. Por alguma estranha razão, Kylie queria pegá-las de volta, como se a
atitude de Holiday demonstrasse certa irreverência.
— Não tem nenhuma foto de família aqui. Devia haver uma ou duas
deles com o filho.
Kylie tirou as fotos da mão de Holiday e colocou-as de volta no
envelope, tentando refletir sobre o que estavam insinuando. Então seus
pensamentos divagaram.
— Mas e se eles realmente forem meus avós e a pessoa que agrediu o
investigador tentar pegá-los?
Lembrou-se da fragilidade da mão da mulher idosa sobre a dela. O
pouco de vida que a idosa tinha pela frente poderia lhe ser facilmente
arrancado.
O peito de Kylie doeu. Será que ela tinha colocado os pais de Daniel
em perigo ao encontrá-los? Teria sido isso que Daniel queria dizer a ela? Ela sentiu o olhar de Lucas sobre ela, como se lhe oferecendo uma pequena dose de conforto.
Holiday falou novamente.
— Eu não vejo nenhuma razão para alguém querer envolvê-los. Mas
Perry está seguindo o casal. Se alguém tentar fazer algum mal a eles, ele vai cuidar disso.
— Perry é mesmo capaz de chutar um traseiro se tiver que fazer isso
— disse Della.
— E eu tenho certeza de que o investigador está trabalhando numa
centena de casos diferentes — disse Lucas. — Se ele foi atacado, isso não
significa que o ataque tenha alguma ligação com a Kylie. Poderia ser algo
relacionado a um dos outros casos. Os detetives particulares vivem irritando
as pessoas.
— É verdade — concordou Holiday. — Mas Burnett está preocupado
o bastante para querer os Brightens longe do acampamento. Precisamos ter cautela.
A mente de Kylie deu um giro de 180 graus e se fixou no fato de que
era Perry, um dos campistas metamorfos, que estava seguindo os Brightens.
— Que forma Perry assumiu quando foi atrás deles?
Da última vez que ela viu Perry numa forma alternativa, ele era um
tipo de pterodátilo que parecia saído diretamente do período jurássico.
Claro que para Kylie isso era melhor do que o leão do tamanho de uma van
ou do unicórnio em que ele tinha se transformado antes disso. Ai, droga! Se
não fosse cuidadoso, o metamorfo podia acabar provocando um ataque
cardíaco no casal de velhos.
— Não se preocupe — Holiday disse. — Perry não vai fazer nada ridículo.
Miranda escolheu aquele momento para se juntar ao grupo.
— Ah, fala sério! Perry e todas as coisas ridículas andam juntos como
sapos e verrugas — disse a ela, afastando os cabelos tricolores do ombro
como que para pontuar suas palavras.
Miranda era uma das sete bruxas de Shadow Falls e a outra colega
de dormitório de Kylie. Pelo tom da garota, estava claro que ela não estava
pronta para perdoar Perry por ter sido cruel com ela ao encontrá-la beijando
outro metamorfo... especialmente depois que ela se desculpara. O olhar da
bruxa percorreu o grupo.
— O que foi? — Miranda perguntou. — Algo errado? — perguntou,
apertando os olhos e provando que, embora ainda estivesse furiosa, não era indiferente ao metamorfo. — Está tudo bem com Perry? É com ele que estão preocupados?
Ela estendeu a mão e pegou um fio de cabelo rosa, enrolando-o no dedo.
— Perry está bem — Holiday e Kylie disseram ao mesmo tempo.
Então a mente de Kylie voltou a se concentrar na sua preocupação com os
Brightens... se é que eles realmente eram os Brightens.
Ela olhou para Holiday.
— O que iriam ganhar fingindo ser meus avós?
— Acesso a você — Holiday respondeu.
— Mas eles pareciam tão sinceros! — E então, Kylie se lembrou. —
Não. Não poderiam ser impostores. Eu... vi os anjos da morte. Eles me
enviaram uma mensagem.
— Ah, merda... — murmurou Della, e ela e Miranda recuaram um passo.
Embora Lucas não tivesse saído do lugar, seus olhos se arregalaram.
Segundo a lenda, os anjos da morte eram aqueles que definiam as punições para manter as espécies não humanas na linha. Quase todo sobrenatural conhecia um amigo de um amigo que tinha se comportado mal e depois
virado uma tocha humana pelas mãos de um anjo da morte vingativo.
Embora Kylie sentisse o poder desses anjos, ela não estava
convencida de que a péssima reputação deles não era um exagero. Não que estivesse ansiosa para comprovar sua teoria. No entanto, considerando que
já tinha cometido o seu quinhão de erros e não tinha sido queimada ou
transformada numa pilha de cinzas, questionava os boatos sobre aqueles
que tinham.
— Qual foi a mensagem? — Holiday perguntou, o tom de voz
despreocupado.
A líder do acampamento, que também via fantasmas, era uma das
poucas pessoas ali que não temiam os anjos da morte.
— Sombras... na parede do refeitório, e então...
— Quando estávamos lá dentro? — Della perguntou. — E você não
nos disse nada?
Kylie ignorou Della.
— Ouvi uma voz na minha cabeça dizendo para ir encontrar o meu
destino. Por que eu teria recebido essa mensagem se eles não fossem os
meus avós?
— Boa pergunta — disse Holiday. — Mas talvez os anjos só
quisessem dizer que essa situação é o que levará você à verdade.
— Ela devia ter nos contado... — murmurou Della para Miranda.
Kylie lembrou-se de Daniel aparecendo, a urgência que sentiu em
sua voz nas poucas palavras que tinha dito. Será que ela tinha entendido
totalmente errado o que ele queria lhe dizer? Será que tinha vindo para
avisá-la que o casal não era seus pais adotivos? Cheia de dúvidas, ela já não sabia mais em que acreditar.
Kylie respirou fundo e outra preocupação dominou os seus pensamentos.
— O investigador vai ficar bem?
— Eu não sei. — Holiday franziu a testa. — Burnett disse que Derek
está no hospital com ele agora. Burnett ainda está investigando a cena do
crime.
Preocupada com Derek, Kylie sentiu o peito oprimido. Ela tirou o
telefone do bolso e discou o número dele.
Ao ver que ele não atendia, não soube se era porque ele não podia ou
se ainda não queria falar com ela. Será que ainda estava disposto a mantê-la longe da vida dele?
Homens!
Por que os garotos reclamavam que as garotas eram tão difíceis de
entender, se ela não havia conhecido um que não a deixasse confusa a ponto de ter vontade de gritar?
Quando todo mundo começou a falar ao mesmo tempo, Kylie
aproveitou a chance para escapulir dali e ir dar uma volta, acabando por se
sentar sob a sua árvore favorita. Ela abriu o envelope e analisou
demoradamente cada uma das fotos, observando todos os pequenos
detalhes sobre Daniel.
O jeito como seus olhos azuis brilhavam quando ele sorria, a forma
como seu cabelo enrolava um pouco nas pontas quando ele o usava mais
comprido. Ela viu tanto de si mesma no pai que seu coração se apertou com a dor de não poder tê-lo ao seu lado.
Quando se deparou com o retrato da mãe ao lado dele, Kylie se
pegou sorrindo ao ver o jeito como o casal se entreolhava. Amor. Uma parte
de Kylie queria ligar para a mãe no mesmo instante e lhe contar sobre a foto,
mas, considerando o que Holiday e os outros pensavam, ela achou melhor
não falar nada. Só esperava que não por muito tempo.
— Oi.
A voz de Lucas atraiu a sua atenção e ela sorriu.
— Oi.
— Se importa de ter companhia? — perguntou ele.
— Não, divido a minha árvore com você. — Ela lhe deu espaço para
se sentar.
Ele se sentou ao lado dela e estudou seu rosto. Seu ombro, quente,
encostou-se no de Kylie e ela saboreou a proximidade.
— Você parece feliz e triste, e confusa. — Ele tirou alguns fios de
cabelo do rosto dela.
— Estou confusa — disse ela. — Eles eram tão agradáveis e... Eu não
sei em que acreditar agora. Como podiam ter essas fotos se não eram
realmente os Brightens?
— Podem ter roubado — arriscou ele.
As palavras dele doeram, mas ela sabia que ele podia estar certo.
Mas por que alguém iria tão longe para convencê-la de que eram os pais de
Daniel? O que poderiam ganhar fazendo isso?
Ele olhou para as fotos que ela tinha na mão.
— Posso ver?
Ela assentiu e lhe passou as fotos. Lucas analisou lentamente cada
uma delas.
— Deve ser estranho olhar o rosto de alguém que se parece tanto
com você, e não conhecer essa pessoa.
Ela levantou os olhos para Lucas.
— Mas eu o conheço.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Eu quis dizer... em pessoa.
Ela assentiu, entendendo a incapacidade dele para compreender
aquela coisa toda de ver fantasmas, mas desejando que não fosse tão difícil para ele.
— Burnett vai investigar isso a fundo. — Seu olhar baixou até os
lábios dela. Por um segundo, Kylie pensou que Lucas ia beijá-la, mas ele
ficou tenso de repente e olhou na direção do bosque.
Fredericka, fazendo cara feia para os dois, saiu de trás dos arbustos.
— A alcateia está procurando você.
Lucas franziu o cenho.
— Eu já vou.
Ela não se mexeu. Simplesmente continuou encarando o casal.
— Eles não deveriam ter que esperar pelo seu líder.
— Eu disse que já vou — rosnou Lucas.
Fredericka se afastou e Lucas olhou para Kylie.
— Desculpe. Tenho que ir.
— Algum problema? — Kylie perguntou, notando a preocupação
nos olhos dele.
— Nada que eu não possa resolver. — Ele deu um rápido beijo nos
lábios dela e colocou as fotos de volta em suas mãos.
— Você vai ficar bem? — Holiday perguntou, quando Kylie voltou
para a varanda do escritório.
Kylie sentou-se numa das grandes cadeiras de balanço brancas. O
calor pegajoso parecia agarrar-se à sua pele.
— Vou sobreviver. — Ela colocou o envelope sobre a mesinha entre
as cadeiras e puxou o cabelo para trás, segurando-o longe do pescoço. —
Você acha mesmo que eles eram impostores?
Holiday se sentou na outra cadeira de balanço. O cabelo ruivo solto
em volta dos ombros.
— Eu não sei. Mas Burnett não vai descansar enquanto não
investigar isso a fundo. Ele se sente culpado por não ter descoberto tudo
antes e impedido Mario de raptá-la. Imagino que, depois disso, não vai
querer tirar os olhos de você.
— Ele não tinha como saber do que aquele maluco era capaz — disse
Kylie.
— Eu sei disso. Você sabe disso. Mas Burnett tem o hábito de ser
meio duro consigo mesmo.
— E não são assim todos os vampiros? — Kylie pensou em Della e
na bagagem emocional que ela carregava.
— Na verdade, não — Holiday disse. — Você ficaria surpresa se
soubesse quantos vampiros se recusam a assumir responsabilidade pelas
suas ações. Para eles, a culpa é sempre dos outros.
Kylie quase perguntou se Holiday estava se referindo a um certo
vampiro que tinha ferido seu coração no passado. Mas seus pensamentos se voltaram para os Brightens.
— Você estava lá. Não leu as emoções deles? Não foram sinceros? Eu
me senti de algum modo... ligada a eles.
Holiday inclinou a cabeça como se pensasse.
— Eles foram muito cautelosos, quase até demais, mas... sim,
pareciam sinceros. Especialmente a senhora Brighten.
— Então, como poderiam...?
— A leitura das emoções nunca é cem por cento exata — Holiday
explicou. — As emoções podem ser disfarçadas, escondidas, até mesmo
falsificadas.
— Por seres humanos?— Kylie perguntou.
— Os seres humanos são mestres nisso. Muito mais do que os
sobrenaturais. Eu imagino que, como a espécie carece de superpoderes para
controlar o seu mundo, eles se esforçam para conseguir controlar suas
emoções.
Kylie ouvia, enquanto seu coração se contraía de preocupação pelos
Brightens.
— Narcisismo, desapego, personalidade esquizoide, sociopatia, essas
coisas são muito frequentes na raça humana em graus variados. E ainda existem os atores, que podem criar uma emoção dentro de si simplesmente
evocando uma experiência do passado. Eu já assisti a peças e espetáculos em
que as emoções dos atores eram tão reais quanto as que eu mesma sinto.
Kylie se recostou na cadeira.
— Eu sou metade humana e não consigo controlar coisa nenhuma.
Holiday olhou para ela com ar de compreensão.
— Eu lamento ter sido obrigada a mandá-los embora. Sei que você
estava esperando descobrir alguma coisa. Mas não podia correr o risco de
que Derek estivesse certo.
— Eu entendo. — E ela de fato entendia. Só não tinha gostado. — A
senhora Brighten, se de fato era a senhora Brighten, me lembrou a minha
avó.
— Nana — Holiday disse, e Kylie se lembrou de que o espírito da
avó tinha feito uma visita à líder do acampamento.
— É.
Holiday suspirou.
— Eu sei que isso é difícil pra você.
O telefone da líder do acampamento tocou e Kylie prendeu a
respiração, esperando que fossem notícias dos Brightens, de Derek ou do
investigador.
Holiday olhou para o identificador de chamadas.
— É só a minha mãe. Vou ligar para ela mais tarde.
Kylie encostou um joelho no peito e envolveu a perna com a mão. O
silêncio que se seguiu gritava pela verdade.
— Eu me sinto como se nada na minha vida fizesse mais sentido.
Tudo está mudando.
Holiday torceu com as duas mãos os longos cabelos.
— A mudança não é a pior coisa, Kylie. É quando as coisas não estão
mudando que você tem que se preocupar.
— Eu discordo. — Kylie descansou o queixo sobre o joelho. — Quer
dizer, sei que a mudança é necessária para o crescimento e tudo o mais. Mas
eu gostaria de ter uma coisa na minha vida que fizesse eu me sentir... com os
pés no chão. Eu preciso de uma base onde possa me apoiar. Algo que pareça
real.
Holiday ergueu as sobrancelhas.
— Shadow Falls é real, Kylie. Ele é a sua base.
— Eu sei. Sei que pertenço a este lugar, é só que eu ainda não sei a
que espécie eu pertenço. E, por favor, não me diga que eu deveria fazer disso
a minha busca. Porque essa tem sido a minha busca desde que cheguei aqui
e não me sinto mais perto de descobrir agora do que estava antes.
— Isso não é verdade. — Holiday levantou os joelhos e, na enorme
cadeira de balanço, sua figura pequena parecia ainda menor. — Veja como já
progrediu. Como acabou de dizer, você sabe que pertence a este lugar. Já é
um grande passo. E seus dons estão se revelando a todo instante.
— Dons que eu não sei como controlar ou quando vão aparecer
novamente. Não que eu esteja reclamando... — Kylie encostou a testa no
joelho e deu um suspiro exagerado.
Holiday riu.
Kylie olhou para cima.
— Eu pareço patética, não é?
Holiday franziu a testa.
— Não. Você parece frustrada. E para ser sincera, depois do que
aconteceu com você neste fim de semana, tem o direito de ficar frustrada.
Tem o direito até de ser um pouco patética.
— Ninguém tem o direito de ser patético — retrucou Kylie.
— Eu não sei por que não. Acho que tive esse direito em alguns
momentos da minha vida. — Holiday balançava a sua cadeira num ritmo
lento.
Kylie olhou para a líder do acampamento, e teve a nítida impressão
de que havia muita coisa sobre ela que Holiday ainda não tinha contado.
— Impressão minha ou eu senti a presença de um outro espírito hoje
mais cedo? — Holiday perguntou.
— Sentiu. — Kylie se recostou na cadeira. — Ela ainda não está
falando coisa com coisa. Disse que está confusa. — Recordou os pontos
cirúrgicos recentes que tinha visto na cabeça da mulher. — Acho que ela
morreu de um tumor no cérebro ou coisa assim. Tinha a cabeça raspada e
cicatrizes.
— Hum... — murmurou Holiday, pensativa.
— Acho que está enterrada no Cemitério de Fallen.
— Sério? Ela disse isso?
— Não, mas foi lá que eu senti a presença dela pela primeira vez.
Quando vinha para cá esta manhã, minha mãe passava pelo cemitério
quando o espírito apareceu no banco de trás.
— Pode ser que seja isso mesmo.
— Mas você não pensa assim? — Kylie perguntou, sem entender a
lógica de Holiday.
— Não estou dizendo que não poderia ser tão simples, mas eu
descobri que a maioria dos espíritos que nos procura tem... mais ligações
conosco do que apenas a nossa passagem por um cemitério. Mas isso não
significa que não possamos topar por acaso com alguns espíritos por aí de
vez em quando, porque isso acontece. Outro dia, me deparei com um velho
todo molhado, nu como no dia em que nasceu. Ele morreu no chuveiro da
casa de repouso onde morava. Queria que eu dissesse à enfermeira para tirá
lo de lá. — Holiday balançou a cabeça.
— O que você fez? — Kylie perguntou.
— Liguei para a casa de repouso e disse que era uma amiga da
família. Tentaram chamar o senhor Banes em seu quarto, mas ele não
atendeu à porta.
— E ele foi embora?
— Fez sua passagem.
— Espero que este espírito seja fácil assim. Eu bem que estou
precisando de uma pausa. — Então Kylie se lembrou do que o espírito tinha
dito. — Sabe... a mulher disse que havia pessoas que queriam que ela me
dissesse uma coisa.
— Dissesse o quê?
— Eu perguntei, mas... ela disse algo do tipo, algumas pessoas vivem
e algumas pessoas morrem. Não fazia sentido.
— No início, o que eles falam raramente faz.
Kylie mordeu o lábio.
— Poderia ser meu pai tentando me dizer alguma coisa? Ele tentou
se manifestar um pouco antes de eu ver os Brightens, ou seja lá quem forem.
Holiday parou de balançar a cadeira.
— O que ele disse?
— Ele não conseguiu se manifestar completamente. Só disse algumas
palavras. — Kylie franziu a testa. — Por que ele tem que parar de vir me
ver?
Holiday olhou para Kylie como se a compreendesse.
— A morte é um novo começo, Kylie. Não se pode começar o novo
enquanto não se deixa o velho para trás. Durante muito tempo ele ficou no
passado. Agora precisa avançar. Você entende o que estou dizendo?
Kylie também parou de balançar a cadeira.
— Se entendi? Talvez. Se gostei da ideia? Não. — Suspirando, ela se
levantou. — Eu disse a Miranda e a Della que iria encontrá-las na cabana.
— Claro. — Holiday hesitou por um instante. — Mas achei que
agora poderia ser uma boa hora para conversarmos sobre os seus novos
dons.
— Conversar sobre o quê? Só porque atravessei uma parede de
concreto? — perguntou Kylie com sarcasmo para encobrir seus sentimentos
não resolvidos com relação aos próprios dons.
Holiday sorriu.
— E você curou Sara. E Lucas.
Kylie reclinou-se na cadeira.
— Esperamos que eu tenha curado Sara.
— Pelo que você disse, eu ficaria surpresa se não tivesse. — Holiday
continuou a olhar para ela. — Se um de seus dons é ser uma protetora, Kylie,
esse pode ser só o início de seus dons. Estou surpresa por não estar me
bombardeando com perguntas.
— Talvez eu precise de algumas respostas antes de começar a fazer
mais perguntas. E eu nem estou me referindo a quem eu sou, mas a quem os
Brightens são. E o que meu pai queria me dizer.
Os olhos de Holiday se encheram de compaixão.
— Está tudo acontecendo muito rápido, não é?
— Está, e falar a respeito não vai mudar nada. — O peito de Kylie se
encheu de emoção.
— Poderia mudar. Às vezes as coisas não parecem reais até falarmos
a respeito delas.
Kylie deu um suspiro.
— Eu não tenho certeza se quero que se tornem mais reais neste
momento.
— Quem sabe se fizéssemos uma caminhada até a cachoeira...?
— Não — respondeu Kylie, sem saber se conseguiria ir até lá e não
ficar aborrecida se tudo o que conseguisse daquelas águas mágicas fosse
uma voz lhe dizendo para ter paciência. Ela já não tinha sido paciente até
demais? — Podemos simplesmente conversar mais tarde?
— Tudo bem. — Holiday estendeu a mão para tocá-la e depois
puxou o braço para trás. — Mas é apenas um adiamento temporário. Nós
realmente precisamos conversar.
— É, eu sei. — Kylie se levantou e pegou o envelope.
— Posso ficar com elas por um tempo? — perguntou Holiday.
O coração de Kylie se apertou.
— Eu...
— Só por alguns dias. Tenho certeza de que Burnett vai querer
verificar se são originais.
Kylie acenou com a cabeça.
— Elas são importantes para mim.
Holiday sorriu, compreensiva.
— Eu sei.
Kylie deu um passo para fora da varanda e depois voltou.
— Você vai me avisar no instante em que receber alguma notícia de
Burnett ou Derek, certo?
— No mesmo instante — Holiday lhe assegurou.
Kylie começou a sair e depois se virou novamente, aproximou-se de
Holiday para lhe dar um abraço. Um abraço bem apertado.
— Obrigada — disse Kylie.
— Pelo quê? — Holiday parecia confusa, mas isso não a impediu de
retribuir o abraço.
— Por estar aqui. Por ser você. Por me aturar.
Holiday riu.
— Você está começando a ficar melodramática, e isso a deixa um
pouquinho patética.
Kylie interrompeu o abraço, sorriu de volta para Holiday e pegou a
trilha para a sua cabana.
Ela não tinha chegado nem na metade do caminho quando os pelos
da sua nuca se eriçaram e ela teve a sensação inconfundível de estar sendo
observada. Olhou para o bosque à sua esquerda, mas não viu nada, a não ser
árvores e vegetação rasteira. Olhou para a direita e também não viu nada.
Mas ainda tinha a mesma sensação, cada vez mais forte.
Olhando para o céu azul sem nuvens, ela piscou. Um pássaro voava
lá no alto. A ampla envergadura, o bico adunco e a mancha branca no peito
revelavam que era uma águia. Ela observou a criatura deslizando
lentamente como se não tivesse nenhuma pressa, como se estivesse
hipnotizada pela... cena?
Que cena?
A águia a observava? Era essa a sensação que o pássaro lhe
transmitia? Não era só uma águia comum? Ou era alguém como Perry, que
poderia mudar de forma e se transformar em qualquer coisa que desejasse?
Ela continuou a observar o pássaro, sentindo-se inquieta.
Sem aviso, a águia mudou seu curso. Seus movimentos tornaram
mais rápidos quando ela arremeteu. Chegou mais perto. Cada vez mais
perto. Kylie encontrou seus olhos. A ferocidade neles a fez estremecer. Ou
seriam suas garras grossas, estendidas como se preparadas para o ataque?
A lufada de ar provocada pelas suas asas atingiu o rosto de Kylie, e
ela fechou os olhos.
 
Kylie ergueu o braço para proteger o rosto, mas não sentiu nada,
nenhuma garra cortando sua pele. Nem no rosto nem no braço. Então ouviu
um farfalhar aos seus pés, acompanhado de um barulho de chocalho.
Descobriu o rosto e olhou para baixo. Sua respiração ficou presa na
garganta. Ela cambaleou para trás quando a águia usou o bico afiado e as
garras para atacar uma cobra que estava a poucos centímetros dos seus pés.
O ruído de chocalho se fez ouvir novamente. Ela notou as manchas em
formato de losango na parte de trás da cobra em vários tons de marrom,
então seu olhar acompanhou o corpo do réptil enrodilhado até chegar num
apêndice seco e castanho na cauda.
Uma cascavel.
Kylie pulou para trás. O pássaro enterrou as garras no corpo roliço e
grosso da serpente. As asas da águia se esforçavam mais do que o normal
com o peso, enquanto carregava a cobra se contorcendo a poucos metros do
chão. O adejar das asas, a agitação do ar e o chocalho característico do réptil
encheram seus ouvidos. A águia subiu alguns metros acima do solo, as asas
se agitando no ar.
Kylie ficou ali, no meio da trilha, enquanto o grande pássaro voava
para longe com a sua presa entre as garras. Olhando para os próprios pés,
ela viu no chão de terra as marcas onde a cobra tinha lutado pela vida e
perdido a batalha. Ao lado das marcas, um par de pegadas no chão. Seus
sapatos. Se a águia não tivesse arremetido, ela teria visto a cobra? Ou agora
teria veneno de cascavel injetado na perna?
Ela tinha tido muita sorte ou isso significava alguma coisa? Pensou
na hipótese de voltar à cabana de Holiday, mas a lógica interveio. Ela estava nos bosques do Texas. Seu pai, quer dizer padrasto, nunca cansava de avisá
la para tomar cuidado com as cobras.
Convencida de que tinha sido apenas um momento sinistro, vivido
só porque ela passara por uma experiência extrema em meio à natureza, deu
mais um passo para a frente. No entanto, olhou para cima mais uma vez. A
águia, com a cobra ainda entre as garras, voava em círculos acima dela. Ela a
fitou com a respiração presa na garganta. E por mais surreal que aquilo
parecesse, podia jurar que a águia olhava para ela.
Kylie ficou ali de pé, protegendo os olhos do sol com a mão, até que
o pássaro se tornou uma mancha escura se desvanecendo no céu azul.
Ocorreu-lhe que ela devia ser grata à águia, mas o olhar frio do pássaro
surgiu em sua mente e causou-lhe um arrepio na espinha.
Tirando a mão do rosto, recomeçou a andar em direção à sua cabana
quando seu olhar cruzou com outro par de olhos frios. Fredericka. Kylie se
lembrou de como a garota tinha ficado irritada ao encontrar ela e Lucas atrás do escritório, embora não estivessem fazendo nada além de olhar as fotos de Daniel e conversar.
— Como é a sensação de ser um brinquedinho? — A voz de
Fredericka soou cheia de raiva, o tipo de raiva que poderia fazê-la expor as
garras. E o tom alaranjado dos olhos escuros da garota indicava que as
garras não estavam fora de questão.
Kylie respirou fundo e lembrou a si mesma para não demonstrar
nenhum receio.
— O ciúme não lhe cai muito bem.
— Eu não estou com ciúme. — Fredericka abriu um leve sorriso de
satisfação. — Especialmente agora.
Agora o quê? Kylie queria perguntar, mas para isso teria que dar
ouvidos à encrenqueira, e recusava-se a dar a ela esse gostinho. Em vez
disso, começou a se afastar, dizendo a si mesma para esquecer Fredericka,
pois tinha outros problemas em que pensar no momento. Kylie tirou o
telefone do bolso para ver se Derek tinha retornado a ligação sobre o
detetive. Ele não tinha.
— A linhagem de Lucas é pura, ele valoriza isso — Fredericka disse,
atrás de Kylie. — Os antepassados dele valorizam, também. E deixam isso
bem claro. Então, quando chegar a hora de procurar uma companheira de
verdade, ele não vai contaminar sua linhagem com alguém como você.
Besteira, Kylie disse a si mesma, e continuou andando. Fredericka
estava apenas falando bobagem. Já tinha os avós ou supostos avós com que se preocupar, por isso não deixaria essa loba incomodá-la. Então a
lembrança da águia encheu sua mente. Talvez ela devesse se preocupar com isso também.
Menos de uma hora depois, ainda sem notícias de Derek, Perry ou
Burnett, Kylie se sentou à mesa da cozinha de sua cabana com Miranda e
Della. Contou sobre a cobra e a águia e suas suposições de que o episódio
significava, de algum modo, mais do que parecia.
— Eu teria percebido pelo cheiro se tivéssemos intrusos — garantiu
Della.
— E eu teria sentido se tivessem usado magia para encobrir as
pegadas de alguém — disse Miranda.
— Estão vendo? É por isso que eu preciso de vocês — disse Kylie. —
Vocês não deixam que eu me perca. — Ela se recostou na cadeira, desejando
que a confirmação das amigas tivesse afugentado todas as suas dúvidas.
Então, mais uma vez, talvez não fossem as dúvidas que a incomodavam,
mas todo o resto que acontecia em sua vida.
O animal de estimação de Kylie, Socks Jr., o gatinho que Miranda
tinha acidentalmente transformado em gambá, pulou em seu colo. Embora
Kylie continuasse presa ao seu tumulto emocional, algo tão corriqueiro
quanto as conversas com as amigas à mesa da cozinha, regadas a
refrigerante diet, traziam-lhe algum consolo.
Miranda, a primeira a se lamentar dos seus problemas de fim de
semana com os pais, voltou a descrever com pormenores a competição entre
bruxos, em que ficara em segundo lugar.
— Eu fiquei superanimada, por conseguir uma posição tão boa —
disse ela. — Achei que minha mãe ficaria feliz. Mas não... — Miranda
hesitou. — “Segundo lugar significa apenas que você é a primeira
perdedora”, a minha mãe me disse. — O tom de voz de Miranda deixou
transparecer o quanto ainda estava magoada. — Eu queria impressioná-la, e por um minuto, pensei que de fato, finalmente, tinha conseguido. Mas vi
que nunca vou deixar aquela mulher feliz.
Della revirou os olhos.
— Por que quer deixá-la feliz?
— Porque ela é minha mãe! — Miranda respondeu com tanta
sinceridade que Kylie sentiu uma ponta de tristeza. Lembrou-se de que se
sentia assim também com relação à mãe antes que as duas começassem a se entender.
— Vou te contar uma coisa... — disse Della, fazendo um gesto com a
mão. — Sua mãe é mesmo uma bruxa, mas no pior sentido da palavra. Pelo
menos os meus pais só têm medo que eu esteja me prejudicando,
consumindo drogas; não é que não estejam satisfeitos comigo.
Lágrimas brilharam nos olhos de Miranda e a raiva endureceu sua
expressão enquanto fitava Della.
Kylie sentiu a tensão aumentando no ar.
— Acho que o que Della quer dizer é que...
— Sinto muito — Della interrompeu Kylie. O olhar sarcástico no
rosto de Della logo se desvaneceu e se transformou numa expressão séria. — Isso pode parecer cruel, e eu... O fato é que, se meus pais soubessem a
verdade, eles provavelmente iam preferir que eu fosse uma viciada em
drogas em vez de vampira. — Della estudou o rosto de Miranda e suspirou.
— É que eu fico furiosa com a sua mãe. Eu sei o quanto se esforçou para
impressioná-la. E você conseguiu o maldito segundo lugar, o que é incrível!
— Obrigada — disse Miranda, a raiva se dissolvendo, mas os olhos
se enchendo de lágrimas.
— Pelo quê? — Della se reclinou na cadeira, como se tomasse
consciência de que tinha mostrado um lado mais suave de sua
personalidade. Della raramente deixava esse lado à mostra. Não que Kylie e
Miranda já não o tivessem visto. Bem, Kylie pelo menos tinha. Miranda
tivera que se esforçar muito antes de conseguir ver Della baixar a guarda.
Miranda passou a mão no rosto para limpar as lágrimas e sentou-se
com a coluna ereta.
— Chega dessa conversa. Eu tenho outras notícias. Todd Freeman,
um bruxo que eu conheci, me procurou para perguntar se eu daria a ele o
número do meu celular. Ele é tipo o cara mais gato da minha antiga escola.
Então, pelo menos alguém percebeu que eu me dei bem na competição. —
Ela sorriu. — Não que eu ache que ele esteja interessado no meu troféu... Eu
o peguei pelo menos umas três vezes de olho nos meus peitos.
— Que babaca... — murmurou Della. — Espero que só tenha dado a
ele o dedo do meio.
— Dã, não está me ouvindo? O cara mais gato da escola! Além disso,
peitos grandes são ímãs naturais para os garotos ...não tem jeito. Por que eu não daria o número do meu celular pra ele?
— Ah, sei lá. Talvez porque você ainda queira dar uns amassos num
certo metamorfo...
— Ah, pelo amor de Deus, já superei Perry há muito tempo! — falou
Miranda com rispidez.
Della bateu na ponta do nariz.
— Os feromônios não mentem.
— Não comecem a discutir outra vez como no primeiro dia! — pediu
Kylie. — Amanhã vocês duas podem arrancar a pele uma da outra, mas
hoje... só me deem um pouco de paz! — Ela tirou Socks do colo e colocou-o sobre a mesa. — Além disso... vocês estão aborrecendo Socks e desse jeito vamos acabar fedendo a gambá.
Della e Miranda olharam para Socks. O gato/gambá, pouco à
vontade ao ver que era o centro das atenções, correu para mais perto de
Kylie.
— Que tal uma trégua? — perguntou Kylie, acariciando o corpo
trêmulo do animal assustado. Graças a Deus, Miranda e Della concordaram.
Miranda se aproximou um pouco mais.
— Eu acho que descobri como transformar nosso pequeno gambá
num gatinho outra vez. Mas preciso dos primeiros raios de sol da manhã
para fazer isso. — Ela estendeu a mão para acariciar Socks, mas o animal se afastou do seu toque e, em seguida, pulou novamente no colo de Kylie.
— Gambazinho esperto... — comentou Della, sorrindo. — Em que
será que você vai transformá-lo acidentalmente da próxima vez?
Miranda fez uma careta.
— Talvez eu transforme você num gambá!
— E talvez eu arranque o seu coração para alimentar o animal de
estimação da casa!
— O que aconteceu com a trégua? — choramingou Kylie. O focinho
de Socks se enfiou mais embaixo da axila de Kylie.
— Tudo bem! — bufou Miranda e depois olhou para Della. — Sua
vez. Conte tudo sobre o seu fim de semana.
— Você quer dizer além de ter que fazer xixi na droga da
vareta antidoping? Eles me obrigaram a fazer quatro testes. Acho que um
deles era de gravidez. Como se eu estivesse dormindo com alguém. — Della
pegou sua taça de sangue e lhe lançou um olhar duro. — A única coisa que
fizemos em todo o fim de semana foi ver um filme, um clássico que a minha
mãe adora. Chatíssimo. Pelo menos pude dormir sem ter que explicar por
que eu parecia tão cansada no meio do dia. — Ela suspirou alto. — Então,
esse foi o meu fim de semana. Nada emocionante pra contar. Nada mesmo.
— Ela voltou a olhar para a taça.
Não foi tanto o fato de evitar o contato visual direto, mas a ênfase no
segundo “nada” que deu |s amigas um indício da verdade.
Miranda lançou para Kylie uma rápida olhada que deixou claro que
ela também tinha percebido. A vampira estava escondendo alguma coisa...
como de costume.
Enquanto Kylie se perguntava se convinha pressionar Della para que
falasse um pouco mais, Miranda, que sempre falava primeiro e pensava
depois, não se preocupou em saber se convinha ou não e foi direta.
— Mentirosa — acusou Miranda. — Se eu pudesse ouvir as batidas
do seu coração agora, aposto que iria comprovar isso também. O que
aconteceu? O que não está querendo contar?
Della olhou feio para Miranda. Kylie podia sentir que a frágil trégua
estava indo para o brejo.
— Chan não apareceu? — Miranda perguntou.
Kylie não tinha pensado nisso.
— Ele apareceu? — ela perguntou, repetindo a pergunta de Miranda
não por curiosidade, mas por preocupação.
Chan, primo de Della, também era vampiro e tinha ajudado a prima
em sua transformação. No entanto, ele também era considerado suspeito de
homicídio pela UPF. Depois de conhecê-lo, várias semanas antes, ele tinha
violado a política da escola aparecendo para uma visitinha, e Kylie não
estava completamente certa de que não era culpado pelos crimes. Mas Kylie
nunca diria isso a Della.
— Não, ele não apareceu — disse Della. — Mas me mandou um e
mail.
Miranda fez um barulho engraçado com a boca. Kylie olhou para ela.
— É só catarrinho na garganta — disse Miranda, e voltou a encarar
Della.
Ao ver que ninguém dizia nada, Della olhou para Kylie.
— Sua vez. Seu fim de semana foi muito mais emocionante do que o
que aconteceu comigo.
— O que quer dizer com “o que aconteceu com você”? — Kylie
perguntou.
— Eu sabia! — Miranda se inclinou para a frente. — Alguma coisa
aconteceu. Confesse. Tem a ver com algum garoto? Conta! Desembucha,
vampira!
 
— Não, agora é a minha vez — insistiu Kylie, arrependendo-se de ter
perguntado e levantando a mão na esperança de impedir uma guerra entre
suas duas melhores amigas. Depois respirou fundo. — Eu já contei a maior
parte quando nos falamos por telefone. Mas o que eu ainda não consigo
encarar é que curei Lucas e Sara. Isso significa que há mais uma habilidade a
acrescentar à minha miscelânea de dons. Alguma ideia do que isso poderia
significar? Porque eu realmente gostaria de saber o que eu sou.
— Não dá pra saber — disse Miranda. — Você é simplesmente estranha.
Ela riu, e até mesmo Del9la abriu um rápido sorriso.
Kylie franziu a testa.
Miranda fez uma cara séria.
— Só estava brincando. Agora, falando sério, você é... diferente. Só o
fato de ninguém poder ver com clareza o seu padrão mental, que vive
mudando, bem, já não é normal. — Ela apertou os olhos e olhou para a testa
de Kylie. — Eu nunca vi um padrão cerebral mudar assim, a não ser um
metamorfo durante uma transformação.
Kylie mordeu o lábio e refletiu se seria sensato fazer a pergunta que
estava na ponta da língua. Mas se ela não pudesse perguntar às suas
melhores amigas, a quem poderia?
— O que vocês sabem sobre protetores?
Um silêncio caiu sobre a sala. Então Miranda trocou um rápido olhar
com Della.
— Por quê? — Miranda perguntou.
— Ah, não! — Della disse. — Pega leve! Não me diga que você é
uma protetora... Quer dizer, eu nunca conheci um protetor, mas pelo que eu
ouvi são tipo... super, super-raros.
Kylie ergueu a mão para que Della parasse de tirar conclusões
precipitadas.
— Eu não sei com certeza, mas Holiday parece achar que é possível.
Ela disse que isso poderia explicar como Daniel morreu, porque ele não
pôde proteger a si mesmo. E também explicaria por que eu não pude me
defender do vampiro.
— Você se defendeu. Quebrou uma parede de concreto! — disse Miranda.
— Só depois que ouvi o sacana batendo em Lucas.
Os olhos de Miranda se arregalaram.
— E você só foi capaz de enfrentar Selynn quando pensou que ela
tinha machucado sua mãe. Caramba! Estou na mesma cabana que uma
protetora! Quer dizer, ninguém vai mexer mais comigo, porque você vai
chutar a bunda de quem fizer isso! — Sua voz ficou mais aguda. — Eu sou
amiga de uma protetora! Você sabe o quanto isso faz de mim uma pessoa
legal?
Miranda e Della bateram as mãos no alto.
Kylie olhou para elas.
— Você sabe o quanto isso me faz parecer uma pessoa nem um
pouco legal?
— Isso não faz de você uma pessoa menos legal — disse Della. —
Isso faz de você uma pessoa incrível! Você não ia acreditar em tudo o que ouvi sobre protetores. Significa que, quando você tiver todos os seus poderes, será ainda mais forte do que eu. — Ela estreitou os olhos escuros e ligeiramente amendoados. — Eu não sei se gosto disso, mas ainda assim é incrível.
— Mas eu não quero ser incrível. Só quero descobrir o que eu sou e,
depois, viver a minha vidinha de híbrido sobrenatural com meus dons nada
surpreendentes. Ajudar um fantasma aqui e ali e, claro, seria legal curar
algumas pessoas. Eu viveria bem com isso. Porque... — Kylie hesitou, sem
saber direito se estava sendo completamente honesta, mas depois decidiu
abrir o jogo. — Talvez eu até queira ser incrível, só não tenho tanta certeza se vou mesmo ser... incrível. Eu não sou como você. — Ela apontou para Della.
— Não sou tão destemida e com certeza não sou uma heroína. Eu gosto de
coisas fáceis, de baixo risco ou sem nenhum risco.
Miranda limpou a garganta como se esperasse Kylie terminar para dar sua opinião.
— Eu não sou como você também — disse Kylie para ela. — Eu não sou...
— Não se preocupe — disse Miranda. — Eu sei que não sou o tipo
de garota que sai por aí chutando traseiros...
— Você ainda é mais corajosa do que eu. E nunca tem medo de falar
o que pensa. Você não se importa com o que as pessoas pensam. Eu nunca iria tingir meu cabelo por medo de que as pessoas não gostassem.
— Mas no dia em que você arrebentou com a Selynn, não teve medo
— disse Della, interrompendo-a. — Você simplesmente agiu. E vai acabar se acostumando a ser mais radical. Não é tão difícil.
Parecia bem difícil para Kylie.
— A maioria dos protetores é de uma determinada espécie?
Se fosse esse o caso, ela esperava que isso pudesse levá-la a descobrir
de que espécie ela era.
— Não — disse Miranda. — Eles podem ser qualquer coisa, mas são
conhecidos pela índole boa e pura. Uma espécie de Madre Teresa dos
sobrenaturais.
— Algo que eu absolutamente não sou — disse Kylie.
Della e Miranda se entreolharam e depois olharam de volta para Kylie.
— Você é, sim — disseram elas ao mesmo tempo.
— Não sou! Eu não sou nem um pouco melhor do que vocês duas.
Olhem o que eu fiz para Selynn e Fredericka.
— Porque você estava protegendo alguém. E é exatamente isso o que
os protetores fazem. — Miranda deu de ombros como se estivesse se
desculpando, quando viu a carranca de Kylie.
— Mas... eu não sou santa. Outro dia praticamente joguei Socks para
fora da cama por me acordar. E... atropelei um esquilo uma vez.
— De propósito?— Della perguntou.
— Não.
— Pois, então — disse Della. — Aposto que você chorou e se sentiu
culpada.
A cara feia de Kylie ficou ainda pior.
Della arqueou uma sobrancelha.
— Está vendo? É isso o que faz de você uma pessoa tão boa. Você
quase nunca fica furiosa.
— Eu fico furiosa. Fico furiosa com vocês o tempo todo. Lembre-se...
— Espere, uma coisa não faz sentido — disse Miranda. — Eu nunca
ouvi falar de um protetor que não fosse cem por cento sobrenatural.
— Estão vendo? Essa é a prova. — Kylie bateu as mãos na mesa,
querendo acreditar nisso. — Eu não sou uma pessoa tão boa assim, e sei que sou filha da minha mãe, que é humana. Então, não sou uma protetora.
— Ou talvez você seja simplesmente o primeiro protetor híbrido de
que já se ouvir falar — Miranda disse. — Quer dizer, normalmente só nasce
um protetor a cada cem ou duzentos anos. Mas chega desse assunto. — Ela agitou as mãos no ar, como se empurrasse o pensamento para longe. — Vamos chegar à melhor parte e falar sobre o que aconteceu naquela noite.
— Que melhor parte? — Kylie perguntou.
Miranda abriu um grande sorriso, um daqueles que poderia ser
usado para vender pasta para clarear os dentes.
— Pooorfavooor... Você ficou lá, no escuro, tarde da noite, por várias
horas, sozinha com Lucas. Que, por acaso, é o mais gato de todos os
lobisomens que eu já conheci. Quer dizer, eu não me ligo muito em
lobisomens, mas até eu tenho que reconhecer. Ele é demais! Então... — Ela estendeu as duas palmas. — O que rolou? E não se atreva a não me dizer nada. Porque vou perder totalmente, completamente, a fé nos romances se nada aconteceu.
Kylie abriu a boca para responder e então viu Della inclinada para a
frente, virando a cabeça ligeiramente, como se tentasse ouvir os batimentos
de Kylie e ver se ela tentava mentir.
— A bruxinha tem razão — disse Della. Essa pode ser mesmo a
melhor parte.
Kylie franziu a testa para Della. Sendo uma garota sempre tão cheia
de segredos, ela não devia pressioná-la daquele jeito. Então Kylie olhou para
Miranda, que prendeu a respiração em expectativa, esperando Kylie abrir o
coração.
— Desculpe — disse ela. — Não aconteceu nada.
Miranda bufou e pôs os braços sobre a mesa, afundando a cabeça
entre eles.
Della a encarava, e Kylie sabia que a vampira estava ouvindo seu
batimento cardíaco e verificando de novo se ela estava mentindo.
Francamente, Kylie não sabia muito bem o que Della ouviria. Aquilo não era realmente uma mentira. Nada aconteceu. Exceto que...
Ela tinha se sentido segura ao ser abraçada por Lucas, a não ser na
hora em que ela se transformou em Mulher Maravilha ao ouvir o bandido
batendo nele. O que aquilo queria dizer? Kylie não tinha certeza. Então,
como poderia explicar?
Miranda levantou a cabeça da mesa.
— Entende o que eu quero dizer? Você é a Madre Teresa. Pura. Sem
desejo.
— Não — Kylie rebateu, não querendo ser vista como uma freira. —
Eu... tenho desejo.
Della e Miranda trocaram um olhar pesaroso.
— Desculpe — disse Della. — Mas, se anda como uma freira e se
comporta como uma freira, é porque é uma freira.
— Ele me abraçou — disse Kylie. — Me abraçou forte. E eu adormeci
encostada no ombro dele. Foi bom. E meio que... Ele é quente. — Embora ela quisesse dizer que ele tinha uma temperatura quente, não se importava que as duas tirassem suas próprias conclusões.
— É isso aí! — Miranda deu um grande sorriso novamente. — Ele te
beijou? Foi como o beijo ardente que ele te deu no riacho quando você
chegou aqui?
— Não — disse Kylie.
As duas amigas trocaram olhares outra vez.
— Madre Teresa... — disseram ao mesmo tempo.
— Mas ele me beijou quando voltei pra cá — Kylie deixou escapar,
decidindo que preferia contar do beijo do que ser considerada uma freira. — E ele quase me beijou quando me seguiu até o escritório hoje cedo.
Miranda gritou e Della riu.
— Então, ele te tascou um beijo, hein?
Kylie olhou para o humor no rosto das suas companheiras e não viu
onde estava a graça.
— Eu estou tão confusa! — Ela encostou a testa na mesa. Socks,
agora de volta à mesa, enfiou o nariz no cabelo dela e cheirou seu couro
cabeludo como se estivesse preocupado.
— Confusa com o quê? — Miranda perguntou.
Kylie levantou a cabeça e apoiou o queixo na palma da mão.
— Confusa com o que eu sinto por Lucas. Confusa com o que eu
sinto por Derek... além de chateada. Estou furiosa com Derek neste
momento.
Socks golpeou com a cabeça a mão dela, pedindo carinho. Tentando
também confortar a si mesma, ela afagou a cabeça do gambazinho.
— E você tem todo o direito! — Della lançou a Miranda um olhar
estranho. — Ela precisa saber.
— Saber o quê? — Ao ver as duas trocando olhares, Kylie teve um
mau pressentimento.
Elas não tiveram a chance de responder, porque ouviram um
estalido e a porta da cabana se escancarou.
Burnett entrou e atrás dele estava Holiday. Atrás de Holiday estava
Perry. Será que eles tinham notícias dos Brightens? O coração de Kylie deu um salto.
— Eu disse pra você bater! — disse Holiday, repreendendo Burnett.
— Eu bati! — ele retrucou, olhando para ela, atrás dele.
— Bem, geralmente depois que se bate, espera-se até que alguém lhe
diga que pode entrar.
Burnett lançou a Holiday um sorriso forçado.
— Acho que você precisa ser mais específica da próxima vez. — Ele
olhou para Kylie, e ela pôde ver a preocupação em seus olhos.
— O que está acontecendo? — O olhar de Kylie se voltou para Perry,
que parecia quase culpado. Mas culpado pelo quê? Ah, droga! O que será
que tinha acontecido?
— Sinto muito. — Os olhos de Perry adquiriram um tom verde
profundo.
O peito de Kylie ficou apertado.
— Sente muito pelo quê?
Perry olhou para Burnett e, em seguida, para Holiday.
— O que aconteceu? — Kylie perguntou. — Os Brightens estão bem?
Responda!
Perry ficou ali olhando para ela com um olhar culpado.
— Eu responderia se fosse você — Della disse para Perry, num tom
sarcástico. — Do contrário, ela pode catar você pelas orelhas outra vez...
 
— Eu não sei o que aconteceu. — Perry se aproximou das amigas,
seus olhos adquirindo um matiz verde-esmeralda.
— Como não sabe? — Kylie olhou para Burnett e em seguida para
Holiday, esperando que um deles começasse a falar. Quando viu que
nenhum dos dois ia abrir a boca, ela olhou de volta para Perry. — Você
estava seguindo os dois. — De repente, a culpa que ela viu no rosto dele deu
uma espécie de salto mortal e caiu bem sobre os ombros de Kylie. Se algo
realmente ruim tinha acontecido a eles, a culpa era dela. Ela é que tinha feito
questão de conhecê-los. Mas que droga! Ela tinha tanta certeza de que era a
coisa certa a fazer!
— Eles desapareceram! — disse Perry. — Num minuto estavam
dirigindo pela estrada no Cadillac prata e, então, puf! — Ele agitou as mãos
na frente dele. — Viraram fumaça. Com Cadillac e tudo. Sumiram. Puf!
Kylie sentiu um peso no peito.
— As pessoas, pessoas humanas, não desaparecem simplesmente. —
Ela conseguiu manter a voz baixa, mas a frustração encheu sua voz de
sarcasmo.
Então a verdade lhe ocorreu. Ela só achava que as pessoas não
desapareciam simplesmente. Mas não muito tempo atrás não achava que as
pessoas pudessem se transformar em unicórnios, ou que vampiros e
lobisomens existissem. Nem lhe passava pela cabeça que poderia usar seus
sonhos para se comunicar com outras pessoas ou que conseguiria derrubar
uma parede de concreto. Portanto, quem poderia saber se as pessoas
desapareciam ou não? E, se desapareciam, isso queria dizer o quê...?
Kylie sentiu um nó no estômago.
— Eles estão mortos?
Holiday franziu a testa.
— Não vamos começar a fazer suposições...
— Não sabemos — interrompeu Burnett. — Mas eu tenho agentes
tentando descobrir. A UPF vai me enviar fotos dos Brightens a qualquer
momento. Pelo menos, vamos saber se eles eram impostores.
O telefone de Burnett tocou e ele o tirou do bolso.
— O que você conseguiu? — Sua expressão endureceu. — Não pode
ser. Eu verifiquei esta manhã. Ele fez uma pausa e olhou para Holiday, que
se aproximou um pouco mais.
Della se inclinou na direção de Kylie.
— As câmeras não estão funcionando. — Sua audição sensível,
obviamente, tinha captado os dois lados da conversa.
Passos soaram na varanda da cabana e Kylie viu Lucas passando
pela porta. Seu olhar encontrou o de Kylie, a preocupação estampada nos
olhos, e ele parou ao lado dela. O braço do lobisomem roçou no dela e ela
sentiu seu calor. A lembrança do beijo dominou seus pensamentos e ela se
sentiu um pouco culpada por tê-la compartilhado com Della e Miranda.
Kylie viu Lucas olhar para as suas duas colegas de dormitório e
acenar com a cabeça. Não foi um cumprimento muito amigável, porém.
Kylie já tinha ouvido falar que os lobisomens eram muito reservados e ela
supunha que fosse verdade. Com exceção de Lucas, Kylie de fato não tinha
feito amizade com nenhum lobisomem no acampamento.
— Burnett ainda não conseguiu as imagens dos seus avós? — Lucas
perguntou, olhando para ela.
— Não sei. — Ela fitou seus olhos azuis. Por apenas um segundo,
desejava não questionar o que sentia. Não queria que ele fosse outro enigma
na sua vida. Seria tão bom poder apenas se entregar... Então, por que ela não
fazia isso?
— Tudo bem? — ele perguntou, movendo os lábios sem emitir
nenhum som.
Ela confirmou com a cabeça, mas não sabia muito bem se era
verdade.
— Então alguém as sabotou! — Burnett andou pela sala de estar. —
Você já recebeu os dados das carteiras de motorista dos Brightens? Quero
ver uma cópia dessas carteiras para saber se são quem disseram que são. —
Ele apertou os músculos da mandíbula e olhou para Kylie. Uma expressão
de simpatia brilhou em seus olhos, mas desapareceu numa fração de
segundo. Demonstrar uma emoção, mesmo que não passasse de um
vislumbre em seus olhos, já parecia demais para ele.
Tudo no homem parecia rígido e sombrio. E ele parecia gostar disso.
Tinha cabelo preto, pele morena e um corpo musculoso que mantinha a
maioria dos homens a distância e a maioria das mulheres da sua idade
desejando que ele chegasse mais perto. Kylie viu Holiday estudando Burnett
e corrigiu seu último pensamento. Apesar da atração óbvia que havia entre
os dois, Holiday não deixava Burnett chegar perto.
— Eu não entendo por que leva tanto tempo! — exclamou Burnett,
dirigindo-se à pessoa ao telefone. — Basta puxar os dados de uma carteira
de motorista. Eu poderia ter feito isso eu mesmo. — Ele soltou um longo
suspiro de frustração. — Mande-os tão logo chegarem.
Ele desligou, enfiou o telefone no bolso da camisa e olhou para
Holiday. Seus olhos espelhavam a sua frustração.
— Alguém adulterou as nossas câmeras. Eu verifiquei esta manhã e
estava tudo em ordem. Por “coincidência”, deixaram de funcionar cerca de
uma hora antes dos Brightens chegarem. Acho que sabemos o que isso
significa.
Burnett olhou para Kylie. Ela sabia que aos olhos dele os Brightens
eram impostores. E talvez ela devesse torcer para que ele estivesse certo.
Porque isso significaria que não eram os pais adotivos de Daniel que haviam
desaparecido na rodovia. Mas Kylie queria uma prova. Uma prova de que
tinham realmente desaparecido.
Ela pressionou a mão contra a testa e lutou com uma dor de cabeça
que ameaçava começar.
— Quando você acha que eles vão ter as imagens dos Brightens?
— A qualquer momento. Se souberem o que é bom pra eles. — A voz
profunda de Burnett soou sincera.
Kylie se pegou rezando para que os pais de Daniel estivessem bem.
Para que não fossem o casal que a visitara. Mas, mesmo assim, ela não tinha
certeza se não se preocuparia com esse casal também. Impostores ou não, ela
não sabia se o casal de idosos merecia... Ela não se permitiu imaginá-los
mortos. Desaparecer não era necessariamente o mesmo que morrer.
As costas da mão de Lucas roçaram na mão dela. De alguma maneira
ela sabia que o toque era intencional e que ele queria confortá-la. E
conseguiu.
O telefone de Burnett tocou. Ele o arrancou do bolso, apertou um
botão e olhou para a tela. Erguendo os olhos, estendeu o celular para
Holiday.
— Este é o casal que esteve aqui?
Holiday olhou para a tela e depois para Kylie.
— Não. Não eram eles.
Embora Kylie acreditasse nela, teve que olhar por si mesma. Deu um
passo à frente, pegou o telefone da mão de Burnett e olhou para as duas
imagens lado a lado. A imagem de um homem idoso, parcialmente calvo, e uma mulher mais velha, de cabelos grisalhos, com olhos verdes brilhantes aparecia na tela.
— Esses são os Brightens? — perguntou ela.
Burnett assentiu.
— Enviado do banco de dados do governo.
— Não são nem parecidos com eles. — Kylie não podia negar o
alívio que sentiu, mas então se lembrou do toque da mão da mulher, a dor
que pareciam compartilhar e até o brilho das lágrimas nos olhos dela. Tinha sido tudo encenação? Kylie olhou para Holiday.
— Até você disse que a mulher parecia sincera. Como nós duas
podemos ter nos enganado?
Holiday franziu a testa.
— Como eu disse, a leitura de emoções nunca é cem por cento
precisa.
Kylie engoliu a decepção ao constatar que o casal de idosos tinha
brincado com seus sentimentos. Quando Derek ou Holiday manipulavam as emoções dela, ao menos era com a intenção de trazer alívio ou ajudá-la.
Agora era diferente; os impostores pretendiam enganá-la. E talvez fazer
muito mais do que isso.
Ela lutou contra a raiva que se sobrepunha às outras emoções em seu
peito. Ter raiva do casal de velhos ainda assim não lhe parecia certo.
— Mas eu ainda não entendo o que eles iam ganhar fingindo ser
meus avós.
— Obviamente, não estavam aqui só para apertar suas bochechas e
oferecer biscoitos — afirmou Burnett. — Felizmente, Derek desconfiou deles
e frustrou seus planos, fossem quais fossem.
Kylie encontrou o olhar de Burnett.
— Mario está por trás disso?
— Quem mais poderia estar?
Kylie ainda lutava para entender.
— Mas por que ele enviou um casal de idosos para fazer isso quando
poderia ter arranjado alguém mais poderoso?
— Porque pensou que iria nos enganar. E quase enganou. — Burnett
franziu a testa. — De agora em diante, vamos ter que ser mais cuidadosos.
Eu vou colocar uma sombra para protegê-la.
— Uma o quê? — Kylie estava certa de que ela não ia gostar da resposta.
— Uma sombra — Holiday repetiu. — Alguém que ficará ao seu lado em tempo integral.
Sim, ela estava certa. Não tinha gostado nem um pouco.
— Deixa comigo! — disse Lucas.
— Não! Eu me encarrego disso! — retrucou outra voz profunda, vinda da porta aberta.
A voz de Derek enviou fagulhas de dor ao peito de Kylie. Ela olhou
para ele e viu seus olhos esverdeados, quase cor de avelã. Seu coração
estremeceu enquanto ela absorvia sua imagem. Os cabelos castanhos
estavam em desalinho, como se ele tivesse passado as mãos neles muitas
vezes. A camiseta desbotada se moldava ao peito largo e os seus jeans
favoritos desgastados ajustavam-se às pernas e à cintura. O olhar dele atraiu a atenção de Kylie novamente, tamanha era a emoção refletida em seus
olhos. Ela ainda não tinha percebido o quanto sentia saudade do meio fae até
o momento.
Até aquele exato momento.
Ela queria correr até ele e abraçá-lo. Para se assegurar de que ele
estava bem.
O calor do ombro de Lucas se aproximou um pouco mais.
Ela viu Derek estreitar um pouco os olhos, como se reparasse na
proximidade de Lucas. Então franziu a testa.
Uma tempestade de emoções se agitava dentro de Kylie. Mas uma
emoção se destacava mais do que as outras. Raiva. Derek não tinha o direito
de ficar contrariado ao ver Lucas perto dela. Ele tinha decidido se afastar,
mesmo depois de ela implorar para que ele não partisse. Então, por que ela
se sentia tentada a aumentar um pouco mais a distância entre ela e Lucas?
— Eu acho que você já fez o bastante apresentando a Kylie o detetive
envolvido. — Os olhos azuis de Lucas fulminavam Derek.
Derek mudou instantaneamente sua postura, colocando-se na
defensiva.
— O senhor Smith não está por trás disso.
— Pode ser que não — Lucas retrucou, com a voz firme — mas foi
através dele que tudo aconteceu.
A tensão no ar deixou a atmosfera tão pesada que ficou até difícil
respirar.
Burnett olhou para Lucas.
— Não há razão para culpar ninguém.
— Burnett está certo — disse Kylie. — Além disso, fui eu quem
entrou em contato com o senhor Smith. — Ela sentiu Lucas ficar tenso ao
lado dela e suspeitou que ele não tinha gostado de vê-la defendendo Derek.
Ela também não tinha certeza se gostava de fazer isso, não quando a raiva de Derek ainda explodia em seu peito. No entanto, não iria deixar que o
acusassem por tentar ajudá-la. Ela continuou a olhar para o meio fae,
desejando poder ler os pensamentos dele, ou pelo menos suas emoções,
assim como ele podia ler as de todos ali. — O senhor Smith está bem?
Derek a fitou novamente. A raiva faiscou nas raias douradas dos
seus olhos. Ela não sabia se ele estava refletindo as emoções dela ou se
estava com raiva mesmo. Provavelmente as duas coisas.
— Vai sobreviver. — Seu olhar se desviou e ela sentiu um vazio no
peito. E algo lhe disse que essa era uma sensação a que ela teria que se
acostumar, porque nada havia mudado entre eles.
Nada.
— Eu posso ser a sombra de Kylie — oferece-se Della.
— Eu também — disse Miranda.
Burnett olhou para as duas.
— Como vocês estão na mesma cabana, terão de fazer turnos.
— Ela ficaria mais segura comigo — disse Lucas.
— Cai na real! — murmurou Della.
— É isso aí! — acrescentou Miranda, estendendo o dedo mindinho
como se apontasse uma arma para ele.
Kylie olhou de Miranda para Della e depois para Derek e Lucas.
Inacreditável. Eles estavam falando dela como se ela nem estivesse ali.
Ainda assim, ela sabia que estavam apenas tentando ajudar, e amava
todos eles por isso. Bem, amaria quando não estivesse mais tão chateada.
Burnett olhou para Lucas e depois para Derek.
— Eu receio que vocês estejam envolvidos demais para assumir essa
incumbência.
— É por isso que seríamos bons nisso — disse Derek.
— É por isso que eu seria bom nisso — respondeu Lucas.
Derek olhou feio para Lucas.
— Você é um completo idiota, Parker.
Os dois começaram a se insultar.
— Pelo amor de Deus, parem! — Kylie gritou. — Isso já está
virando...
— Chega! — Burnett ordenou.
No mesmo instante, Derek e Lucas ficaram em silêncio.
— É isso o que eu quero dizer. Nenhum de vocês dois é imparcial
quando o assunto é Kylie.
Kylie sentiu suas bochechas ficarem vermelhas, mais de raiva do que
de constrangimento.
— É só uma ideia. Talvez alguém devesse me perguntar o que eu
acho...
— Isso é ridículo! — rosnou Lucas.
Kylie o encarou por um momento até que percebeu que ele estava se
referindo ao comentário de Burnett, não ao dela.
Burnett ficou ainda mais tenso e seu olhar se alternou entre Lucas e
Derek.
— Acho que nenhum de vocês dois se concentraria em protegê-la
quando estivessem com ela. Eu não estou dizendo que não serão recrutados
para ajudar no futuro, mas por ora...
— Ainda assim é ridículo! — Lucas endureceu ao lado de Kylie, e ela
podia jurar que sentiu a temperatura do lobisomem subir um ou dois graus.
— Eu morreria antes de deixar...
— E eu também! — Derek rosnou.
— E meu trabalho é garantir que ninguém morra aqui! — rebateu
Brunett.
Pelo menos nesse ponto, Kylie tinha que concordar com Burnett.
Uma hora mais tarde, depois que Burnett e Holiday voltaram ao
escritório para decidir quem seriam as sombras de Kylie, ela estava
tremendo na cama, olhando para o teto e se perguntando quando e como
sua vida tinha ficado tão fora de controle.
Logo após Burnett sair, Lucas tinha sido convocado pela sua alcateia.
Com pesar nos olhos azuis e talvez até mesmo com um pouco de raiva por
ela ter defendido Derek, ele lhe disse que estaria de volta tão logo resolvesse
seus problemas com os companheiros de espécie. De boa vontade, Kylie
deixou-o ir; ela sentia que precisava ficar sozinha. Mas não conseguia deixar
de se lembrar do que Fredericka tinha lhe dito. A linhagem de Lucas é pura, ele
valoriza isso. Seus antepassados valorizam também. Eles deixaram isso bem claro.
Será que as palavras da loba só tinham a intenção de causar dúvidas em
Kylie? Ou havia alguma verdade por trás delas?
Kylie fechou os olhos e gemeu. Socks mergulhou embaixo das
cobertas, quando viu uma mulher morta e de cabeça raspada começar a
andar pelo quarto, murmurando para si mesma por que não conseguia se
lembrar de droga nenhuma. Kylie deu um profundo suspiro e vapor
escapou de seus lábios, serpenteando lentamente até o teto.
— Não me lembro — o fantasma murmurou. — Não há nada além de
um branco.
Mal sabia a mulher que Kylie quase a invejava agora. Ela queria
muito poder esquecer também! Esquecer aquele olhar de raiva que tinha
visto nos olhos de Derek, esquecer a súbita tensão que sentira no corpo de
Lucas quando ela defendeu Derek. Esquecer que ela podia muito bem ser
responsável pela morte de um casal de idosos e pelo fato de o detetive, o
senhor Smith, estar no hospital. — Como se fala quando você não consegue lembrar quem você é? Não há uma palavra para isso? — o espírito perguntou.
— Amnésia. — Kylie pensou em dizer a Jane Doe (o espírito
precisava ter um nome, e Jane Doe era tão bom quanto qualquer outro) que
sua perda de memória poderia ter mais a ver com a cicatriz de vinte
centímetros em sua cabeça do que com amnésia. Então mais uma vez, Kylie
concluiu que a razão por que Jane não conseguia se lembrar de nada não
tinha importância. O fato de ela não ter nenhuma memória é que era o
problema. Como, pelo amor de Deus, Kylie poderia ajudar um fantasma que
nem sabia quem era?
Ela suspeitava que, se fizesse a Holiday essa pergunta, a líder do
acampamento diria para começar a procurar pistas no que a mulher fazia e
nos trajes que usava. Os jeans e a camiseta que ela vestia não revelavam
muito. Quanto à cabeça raspada e a cicatriz, aquilo, sim, podia ser uma pista.
No entanto, no dia em Kylie conheceu a mulher, ela tinha cabelos e olhava o
abdome como se ele estivesse rasgado. Aquilo seria uma pista também?
Kylie nem mesmo tinha certeza se a mulher sabia que estava morta. E
simplesmente perguntar se ela sabia lhe parecia um pouco rude.
— Eu só não entendo por que não me lembro — lamentou Jane.
Kylie apertou a palma na têmpora latejante. Ela não estava com
humor para lidar com aquilo agora. Não que tivesse escolha. Até o
momento, os fantasmas não pareciam preocupados em atender aos seus
pedidos para que aparecessem em outra hora.
— Você está me ouvindo? — perguntou a mulher.
Abrindo os olhos, Kylie sentou-se na cama. A cauda peluda preta e
branca de Socks apareceu debaixo do lençol.
— Estou... eu só...
— A sua cabeça está doendo também?
Kylie olhou para a terrível cicatriz da mulher.
— Um pouco. — Ela puxou um pouco mais a colcha para se abrigar
do frio. — Mas eu só tenho problemas com garotos.
— Problemas com garotos? — Jane franziu o cenho. — Tenha
cuidado. Os garotos, e os homens, podem machucar você de verdade. — As
palavras dela pareciam sinceras. Seria essa outra pista?
— Alguém machucou você? — Kylie perguntou.
A mulher parou de andar e franziu a testa.
— Talvez. Não me lembro.
— Tente se lembrar. Quer dizer, você disse que parecia que se
lembrava de algo.
Quanto antes Kylie conseguisse fazer o espírito se lembrar de quem
era, mais cedo poderia descobrir do que ela precisava e como ajudá-la a ir
embora.
O espírito colocou o dedo indicador na testa.
— Não. Nada. Está vazio aqui. — Ela moveu a mão até o couro
cabeludo e acompanhou a cicatriz com o dedo. Kylie não tinha certeza se ela
tinha acabado de descobri-la ou não.
— Você se lembra do que aconteceu? Por que você tem um corte na
cabeça? — Como você morreu? Holiday tinha explicado que, muitas vezes,
quando a morte era repentina ou traumática, era difícil para o espírito
recordar. No entanto, para ajudá-lo a fazer sua passagem, os detalhes da
morte podiam ser importantes.
— Não. — Jane voltou a andar de um lado para o outro. — Eu detesto não saber!
Depois de mais algumas voltas ao redor do quarto, ela parou de falar
e Kylie voltou a pensar em Derek, sobre como o coração dela tinha acelerado
quando ele apareceu. Ela se perguntava se aquilo significava que seus
sentimentos por Lucas não eram tão fortes quanto ela desconfiava que
fossem.
De repente, o fantasma parou aos pés da cama e olhou para Kylie.
— Eu passei uma mensagem a você, não foi?
Kylie sentou-se mais ereta.
— Você mencionou isso, mas o que era mesmo? — Talvez a
mensagem não fosse realmente uma mensagem, mas uma pista.
— Alguém vive, alguém morre. — Sua voz se transformou num
sussurro e soou como algo saído de um filme de terror. — Foi isso o que eles disseram para eu dizer.
Socks, como que reagindo ao tom sombrio da voz do espírito,
aninhou-se um pouco mais a Kylie.
— Você por acaso sabe o que significa? — Estendendo o braço por
baixo da colcha, Kylie gentilmente empurrou o focinho do gambá para longe
de suas costelas. Considerando que o animalzinho tinha medo de fantasmas,
o destino tinha realmente lhe pregado uma peça ao torná-lo o animal de
estimação de Kylie.
— Eu... — O espírito olhou para cima como se tentasse pensar. —
 Eles não disseram.
— Quem são “eles”? — Kylie estava com receio de fazer menção à
morte, mas considerando que estava lidando com um fantasma com
amnésia, não tinha certeza se ela tinha condições de transmitir a mensagem
com exatidão.
Jane avançou um pouco mais, aproximando-se da lateral da cama,
seus olhos verdes-claros cheios de medo.
— Você sabe quem são.
— Não, eu não sei.
O espírito mordeu o lábio, como se dizer o nome lhe deixasse pouco
à vontade. Então ela se inclinou, deixando os lábios ligeiramente azulados a poucos centímetros do rosto de Kylie.
— Os anjos da morte. — Cristais de gelo flutuaram dos seus lábios e
caíram em cascata na colcha de Kylie.
Socks saiu correndo de debaixo das cobertas e fugiu para o chão,
escondendo-se sob a cama.
— Os anjos da morte? — Kylie refletiu sobre a resposta. — Como
você sabe sobre eles? — De repente, ocorreu-lhe que ela não tinha verificado
se a mulher era sobrenatural.
Olhando para a testa do espírito, Kylie franziu as sobrancelhas.
Nada. Aquilo tinha que significar alguma coisa. Todo mundo tinha um
padrão cerebral, não tinha? Até mesmo os seres humanos. Kylie tinha visto o
padrão cerebral de Daniel, e Holiday tinha dito que verificara o de Nana,
então Kylie sabia que os espíritos não deixam de tê-los após a morte. Então,
por que esse espírito não tinha um padrão?
Fechando os olhos, Kylie apertou-os com mais força e voltou a se
concentrar. Ainda assim, nada.
O frio proveniente do espírito pareceu se intensificar e causou um
calafrio na pele descoberta de Kylie. Puxando o lençol até o queixo, ela se
virou para o espírito e fez a pergunta que detestava que as pessoas fizessem a ela.
— O que você é?
 
Uma hora depois, Kylie andava em círculos pelo seu pequeno
quarto, fazendo quase o mesmo trajeto que a mulher fantasma — a mesma
que tinha desaparecido sem nem tentar responder à pergunta de Kylie. Mas
antes que o espírito assustadiço desaparecesse, Kylie pôde notar a expressão
de puro pânico em seu rosto.
Não que Kylie não compreendesse o fantasma.
Quantas vezes ela tinha ouvido a mesma maldita pergunta?
Quem é você? Ou melhor, o que é você, afinal? Francamente, ela não
gostava de nenhuma das duas versões.
Mas alguma das duas perguntas lhe incutia pânico ou medo?
Frustração talvez, mas medo? Ok, talvez no início ela tivesse medo,
mas só antes de aceitar a possibilidade de que não fosse de fato humana. Ela
deveria pressupor que o espírito suspeitava que não fosse humano? Kylie
recordou o olhar no rosto do espírito. Foi como se a pergunta indicasse um
sinal de perigo ou despertasse alguma lembrança esquecida. E uma
lembrança nada agradável, aliás.
Um frio fantasmagórico pairou no ar, anunciando o retorno do
fantasma, e Kylie se encolheu.
— Sinto muito — disse Kylie. — Sei que está confusa. Pode acreditar,
eu sei como se sente. Há muito tempo estou tentando descobrir quem sou
também. — O frio se esvaiu. Então, o fantasma não estava a fim de falar.
Kylie compreendia isso também.
Ela quase correu até Holiday para perguntar por que o espírito não
tinha um padrão cerebral. Então, como suspeitava que Holiday iria querer
abordar todas as outras “questões” que precisavam ser discutidas, decidiu
adiar as perguntas. E quando dizia “questões”, Kylie estava se referindo ao
seu recém-adquirido dom de cura, sua capacidade de derrubar paredes de
concreto e a possibilidade de ser uma protetora. Com a cura e as paredes, ela
podia lidar. Mas e quanto a ser uma protetora/Madre Teresa? Não. Por um
tempo ela podia evitar ter de lidar com aquilo.
E não é que ela estivesse adiando a solução dos seus problemas,
como Holiday a acusara tantas vezes. Ela estava estabelecendo prioridades.
Neste momento, sua prioridade era Derek e as suas atitudes contraditórias.
Como ele podia querer ser sua sombra se há duas semanas não queria nem
sequer olhar para ela? Será que os sentimentos dele por ela tinham mudado?
Será que ela queria que tivessem mudado?
Ela pensou a respeito. Lembrou-se da intimidade que sentiam
quando se esgueiravam furtivamente dos lugares e ele a beijava com paixão.
Ela sentia falta de como ele fazia tudo parecer um conto de fadas. O que ela
não daria agora para estar num conto de fadas e não ter de lidar com toda
aquela confusão!
Mas será que isso significava que, se ele dissesse que estava
arrependido, ela iria perdoá-lo? Depois de dar mais algumas voltas pelo
quarto, chegou à conclusão de que seu coração estava muito confuso para
saber o que queria.
Como que para analisar a questão mais profundamente ainda, ela
teve uma lembrança instantânea de como se sentiu quando Lucas a beijou.
Não houve visões de conto de fadas, mas ela não podia negar que tinha sido bem impressionante.
Droga!
Ela se jogou na cama. Estava totalmente confusa! Então deu um soco
bem dado no travesseiro e gritou com a boca enterrada nele.
Depois de respirar fundo, Kylie se afastou do travesseiro. Tinha que
fazer alguma coisa. Mesmo que fosse a coisa errada. Depois de calçar o tênis, pegou a escova de cabelo. Escovou algumas vezes as mechas loiras, vestiu
uma regata branca limpa e saiu do quarto.
Della se levantou do sofá.
— Olá!
— Olá! — Kylie continuou andando em direção à porta, sem querer
explicar aonde ia, porque, se ouvisse ela mesma dizendo aquilo em voz alta, poderia pensar duas vezes. E ela não queria pensar duas vezes; na verdade não tinha pensado naquilo nem uma vez ainda. Mas tinha que fazer alguma coisa. Estava cansada de ficar naquele limbo!
— Aonde a senhorita vai? — Della perguntou.
— Sair. — Kylie estendeu a mão para a maçaneta. Em vez disso, no
entanto, acabou pegando a cintura de Della, que tinha atravessado a sala
numa fração de segundo e agora estava postada na frente dela, bloqueando a passagem.
— Pode me dar licença? — Kylie tentou não deixar seu estado de
ânimo transparecer na voz.
Temperamental como era, Della não tinha paciência com o mau
humor de mais ninguém. E iniciar uma discussão com ela naquele momento
não estava nos planos de Kylie.
— Aonde nós vamos? — Della perguntou.
— Nós não vamos a lugar algum. Eu estou indo a um lugar.
— Eu vou também.
— Não vai, não.
— Ela vai, sim — insistiu Miranda, saindo do quarto. — Kylie Galen,
apresento-lhe a sua primeira sombra: Della Tsang.
— Ao seu dispor! — disse Della, fazendo uma pequena reverência.
Seu tom exalava sarcasmo.
— Ah, fala sério! — reclamou Kylie. — Não vou sair do
acampamento. Vai ficar tudo bem.
Della franziu a testa.
— Você só sai desta cabana se eu for junto. — Ela pôs uma mão nos
quadris, como que para enfatizar o que dizia.
Kylie suspirou e tentou se acalmar antes que seu sangue fervesse.
— Escute, eu preciso falar com Derek, ok? E vai me desculpar, mas
não quero que você vá comigo. É um assunto particular.
A expressão zangada de Della desapareceu e algo que parecia
cumplicidade a substituiu; então ela olhou para Miranda.
— Você ainda acha que é melhor não falar nada pra ela?
— Ah, que inferno! — Miranda se sentou no sofá. — Talvez você
tenha razão. Mas não vamos apenas dizer a ela, temos que mostrar.
Kylie olhou para Miranda e se lembrou das amigas fazendo ar de
mistério um pouco antes de Burnett entrar na cabana.
— Dizer o quê? O que vão me mostrar?
Della pegou o telefone do bolso do jeans e começou a teclar alguma
coisa.
— Chan me mandou isso. Eu queria te contar logo de cara, mas
Miranda disse que você tinha sido sequestrada e aquilo já era coisa demais para uma pessoa só.
— Chan te mandou o quê? — Kylie inclinou-se até quase encostar o
nariz no da amiga vampira. A sua paciência já estava se esgotando.
— Calma aí! — Della deu um passo para trás. — Mais paciência.
Você está agindo como se fosse Lua cheia de novo. — Ela estudou Kylie. — Mas não é, certo? — Então Della olhou para Miranda, que ainda estava estendida no sofá. — Já está na época de as lobas ficarem com TPM?
Kylie pensou na pergunta, quase com medo de que Della estivesse
certa. Será que era por causa do ciclo lunar que ela se sentia tão estranha ou seria tudo culpa do que tinha acontecido nos últimos dias?
— Não. — Miranda se levantou do sofá e se aproximou. — Temos
mais uma semana pela frente antes de ter que enfrentar a TPM lunar.
Kylie franziu a testa. Ela não tinha se transformado em loba na
última Lua cheia, mas parecia que estava enfrentando as flutuações de
humor típicas dos lobisomens antes da transformação. E, obviamente, as
suas duas companheiras de quarto ainda consideravam a possibilidade de
ela ser um deles. Mas Kylie não achava aquilo tão fora de propósito. Àquela
altura, ela poderia virar qualquer coisa.
— É melhor alguém começar a falar — exigiu Kylie. — E rápido!
— Meu Senhor! — exclamou Della. — Eu estou tentando encontrar.
Aqui está! — Ela olhou para Kylie. — Olha só, meu primo Chan me mandou
algumas fotos e perguntou se esse por acaso era um dos nossos campistas.
Você sabe que ele vive numa comunidade de vampiros na Pensilvânia, não é?
Ela estendeu o telefone e Kylie olhou para a imagem.
— É Derek. — Alguns segundos se passaram. — O que ele foi fazer
na Pensilvânia? — Ela não sabia onde a UPF o enviara ou onde o
meio fae tinha ido à procura do pai.
— Eu tenho uma pergunta melhor. — Della puxou o telefone,
apertou outro botão e depois segurou-o mais no alto para Kylie ver. — O
que Derek está fazendo se agarrando com uma vampira da Pensilvânia?
O coração de Kylie deu um salto quando viu Derek dando um beijo
na boca de uma garota de cabelos castanhos. E não era só um beijo. A garota
estava com as pernas entrelaçadas na cintura dele, enquanto as mãos dele
sustentavam o peso da garota, espalmadas sobre o seu traseiro bem
torneado.
Kylie sentiu uma dor no peito.
— Quem... Como... O que é...?
— Eu também perguntei quem ela era — Della disse. — Seu nome é
Ellie Mason e é novata na comunidade de vampiros. Chan disse que alguém
afirmou que Derek era de Shadow Falls e ele só queria ver se sua fonte
estava dizendo a verdade.
Ellie? Kylie se lembrou de Derek lhe dizendo que ele tinha
namorado uma vampira chamada Ellie. Ela também se lembrou de que ele
tinha doado sangue a ela. Estranho como Kylie nem sabia que se lembrava
disso, mas agora o episódio parecia aflorar na sua memória.
— Ellie. — A palavra ao deixar seus lábios causou uma dor forte e
profunda em seu coração. E o coração devia realmente ser o centro das
emoções, pois uma dezena delas começou a voejar ao redor do seu peito
como pássaros selvagens atrás de um enxame de mariposas. Raiva, ciúme,
deslealdade, suspeita... a lista era longa.
— Eu preciso disto. — Ela agarrou o celular de Della e tentou tirar a
amiga do caminho. Não que seu esforço tenha dado muito resultado. Della
não se moveu um centímetro.
— Desculpe. Mesmo assim não posso deixá-la ir sozinha — disse
Della. — Sério, eu sou sua sombra.
— Tudo bem, então venha. É só não ficar no meu caminho! Fique
longe. Bem longe. Eu preciso falar com ele sozinha. — Lágrimas ardiam nos olhos de Kylie.
Lágrimas de ciúme, frustração e decepção.
Lágrimas por saber que ela não tinha o direito de sentir nenhuma
dessas emoções.
Ela não ia se permitir chorar. Mas ainda sentia as lágrimas se
acumulando em seus olhos. Sentiu-as descerem pela sua garganta e
queimarem seu peito.
Com o telefone apertado na mão, Kylie disparou pela floresta em
direção à cabana de Derek, esperando que ele estivesse lá. Ela não tinha a
menor ideia do que diria quando o visse. Não queria pensar, apenas chegar
lá. Saltou sobre espinheiros, abaixou-se para não se chocar contra os galhos
mais baixos e correu feito louca. Os passos de Della soavam atrás dela, cada
vez mais perto — a amiga levava seu trabalho como sombra a sério.
A sério demais.
O baque dos pés de Kylie no chão de terra ecoava pela floresta e o
cheiro de chuva pairava no ar. Uma tempestade de verão caía em algum
lugar a distância, mas não tão longe, porque um trovão ribombou acima
dela.
Depois de uma outra grande trovoada, o silêncio reinou. Um
relâmpago enviou centelhas de luz prateada através das folhas até a terra
úmida. Kylie continuou correndo, continuou sofrendo. Ela podia sentir no ar
a tempestade, a energia, o poder que emanava dela. Mais um trovão
ribombou no céu.
De repente, um som alto soou à sua direita e um grande cervo — um
macho com chifres grandes o suficiente para decorar a parede de um
caçador — surgiu por entre as árvores e parou no meio da trilha. Chocada,
Kylie fez uma parada abrupta também. Poucos centímetros a mais e ela
poderia ter sido empalada pelos chifres do animal. Ela mal tinha recuperado
o fôlego quando um raio atingiu e derrubou uma velha árvore um pouco
além de onde estava o cervo. O tronco ainda chiava quando Kylie sentiu
Della colidir com ela.
— O que aconteceu? — exclamou Della.
O cervo jogou a cabeça para trás, arremetendo com os pesados
chifres quase como se fizesse uma ameaça, e então disparou. Mas não antes
de Kylie sentir o olhar frio e de alguma forma cruel do animal.
Os pelos de sua nuca se eriçaram. Aquele olhar calculista significava
alguma coisa. Era como o olhar da águia, naquele mesmo dia mais cedo.
Kylie encheu os pulmões de ar e esperou que o oxigênio clareasse sua mente e ela percebesse que estava errada.
Não queria acrescentar mais nada à sua lista de mistérios não
revelados. Mas o ar nos pulmões não ajudou.
O solo ainda chiava e estalava enquanto centelhas minúsculas
dançavam em volta do tronco atingido pelo raio. O cheiro de madeira
queimada e da chuva que se aproximava pairava no ar. Kylie não tinha
certeza se era sua imaginação ou não, mas sentia os calcanhares formigando com uma corrente de energia.
— Aquilo foi assustador! — murmurou Della.
— Tem razão.
— Nossa! O raio quase atingiu você!
— Mas não atingiu. — Kylie olhou para o telefone na mão e se
lembrou de Derek.
— Nossa! — Della repetiu. — Se o cervo não tivesse aparecido...
— Não importa. — E Kylie queria que realmente não fosse
importante. Ela ouviu o barulho da chuva caindo sobre as folhas acima dela
antes de sentir os pingos na sua pele. O dia tinha quase se transformado em
noite. A tempestade havia chegado e combinava com seu humor. Ela
apertou o telefone de Della na mão, protegendo-o da chuva, e disparou
novamente pelo bosque.
Em poucos minutos, quase sem fôlego e molhada da chuva, Kylie
irrompeu pela varanda da cabana de Derek, deixando Della para trás. O
segundo passo varanda adentro lhe trouxe à tona uma lembrança. Ela tinha
ido ali uma vez à procura dele e visto sangue no assoalho. Achou que ele
tinha sido atacado e invadiu a cabana apenas para encontrá-lo... tomando
banho.
Naquele dia, ela presenciara uma cena de encher os olhos e, depois
que ele se vestiu, eles tinham se sentado no chão da varanda, encostados na
parede da cabana, e conversado.
Trocaram experiências.
Riram.
Ela não se lembrava de um dia ter se sentido tão próxima de alguém.
Como as coisas podiam ter mudado tão rapidamente entre eles?
Ela foi até a porta e bateu. A porta se abriu e Chris — o vampiro
colega de dormitório de Derek — estava lá.
— Oi! — Ele arregalou os olhos e olhou para baixo. — Concurso da
camiseta molhada? — ele brincou.
Kylie olhou para baixo, fazendo cair sobre os ombros as pesadas
mechas de cabelo molhado. Sua blusa branca e o fino sutiã estavam
totalmente transparentes. Ela franziu a testa e puxou o cabelo para cobrir os
seios.
— Derek está aí?
— Está — disse ele. — Se ele vai atender à porta é outra coisa. Vive
enfiado no quarto desde que voltou. — Ele olhou por cima do ombro e
gritou: — Derek, visita!
Sem querer ficar ali sob os olhos cheios de malícia do rapaz, Kylie se
afastou da porta e esperou nos degraus da varanda. Ainda tentando
controlar o batimento cardíaco, ela descolou a blusa encharcada da pele e
agitou o tecido, esperando que ele secasse mais rápido.
Em poucos minutos, passos conhecidos se aproximaram da porta.
Ela se virou e olhou para Derek, reprimindo o impulso de correr e se jogar
em seus braços.
Deu um passo na direção dele, então se conteve. Se ele a rejeitasse,
iria doer demais.
 
Derek correu os dedos pelo cabelo, como se estivesse nervoso. Os
fios pareciam mais compridos do que na época em que ele se afastara do
acampamento. E mais macios. Kylie se lembrou de que os tinha escovado
uma vez e desejou fazer isso novamente. Como ela queria apertar o botão
“retroceder” e fazer as coisas voltarem a ser como antes! Quando tudo entre
eles era tão bom... Mas a vida não tinha um botão de retroceder.
— Oi. — Ele enfiou as mãos nos bolsos das calças jeans.
— Oi. — O coração dela bateu mais rápido e se apertou um pouco
mais ao vê-lo. Ela tentou não reparar em coisas como os músculos dos
braços dele ou a camiseta delineando o peito largo. Respirou fundo.
Embora tivesse parado de chover, o cheiro de chuva ainda
impregnava suas roupas e seu cabelo. E ainda perfumava o ar. Mas não
escondia o aroma que, ela reconheceu, vinha de Derek.
Ela sentiu o telefone na mão e olhou para ele.
— Desculpe não ter retornado a ligação hoje cedo — disse ele,
pensando que era por isso que ela estava ali. — Desliguei o celular quando
estava no hospital com Brit.
Ela assentiu com a cabeça, sem ter muita certeza se devia acreditar
nele, e sentiu a emoção subir à sua garganta. Suas narinas arderam. Mas ela não ia chorar. Pelo menos não agora. Pelo menos não ali.
— Aonde você foi quando deixou Shadow Falls? — perguntou ela.
— Só fui fazer um trabalho para Burnett. — Ele hesitou. — E eu nem
devia estar falando sobre isso.
Aquilo doeu. Ela sabia que ele provavelmente estava dizendo a
verdade, mas houvera um tempo em que eles não tinham segredos um para o outro.
Seu olhar encontrou o dela e Kylie pôde ver as raias douradas nas
íris verdes. Ela viu a emoção ali. Mágoa, ciúme, decepção, raiva. Percebeu,
de repente, que tudo o que ele sentia era o que ela também estava sentindo.
Por uma fração de segundo, disse a si mesma que ele não tinha o
direito de sentir essas coisas. Mas ela nunca fora uma grande mentirosa, nem
mesmo quando mentia para si mesma. Lucas a beijara. Ela tinha sentimentos
por ele; embora fossem sentimentos confusos, não deixava de sentir alguma
coisa. Como podia estar tão furiosa com Derek agora e não aceitar que ele
tinha direito de estar com raiva?
Ela piscou e o clima ficou ainda mais desconfortável à medida que o
silêncio se prolongava.
— Eu vim aqui para te perguntar uma coisa... — Ela levantou o
telefone e, em seguida, deixou o braço cair novamente ao lado do corpo. —
Mas de repente percebi que você não me deve nenhuma explicação. Sinto
muito, eu... — Incapaz de acabar de falar, ela se virou para ir embora.
Ele a segurou pelo braço. Assim que seu toque aqueceu a pele dela,
ele afastou a mão. E isso doeu também. Será que tocá-la era tão desagradável
que o fazia se retrair?
— Me perguntar o quê? — Ele franziu a testa. — O que te deixou tão
chateada?
— Não é nada. Está tudo bem. — Ela começou a avançar novamente.
— Que droga, Kylie! — Ele saltou na frente dela, bloqueando o
caminho. — Não minta pra mim. Eu sinto o que você sente, lembra? Sinto
tudo que você sente multiplicado por dez. Você está muito chateada com
alguma coisa. Veio aqui pra me dizer algo, então diga.
Ela hesitou e depois ligou o telefone de Della.
Ele a observou.
— O que você está...
— Você vai ver. — Ela encontrou a imagem e estendeu o celular para
que ele visse.
A expressão dele, diante da imagem, passou da raiva para... algo
diferente.
— Droga... — Ele correu a palma da mão pelo rosto.
— Está tudo bem — disse Kylie. — Eu sei que você não me deve
nenhuma explicação. Sério, eu surtei. — Ela tentou se afastar, mas ele
agarrou o braço dela novamente. Dessa vez sua mão permaneceu ali alguns segundos antes de soltá-la.
— Por favor, não vai embora — pediu ele. — Esta é Ellie. Eu contei a
você sobre ela quando nos conhecemos. A gente namorou por um tempo.
Nos encontramos por acaso quando eu estava fazendo esse trabalho para
Burnett. Ela estava... Ela só estava feliz por encontrar alguém que conhecia.
— É, ela parece mesmo bem feliz... — disse Kylie, sem conseguir
conter as palavras, e havia uma ponta de sarcasmo nelas.
— Não foi tudo isso — disse ele, mas não conseguiu esconder a
culpa que brilhava em seus olhos.
— Você não precisa me explicar — disse Kylie, de repente
percebendo como era injusto confrontá-lo por causa daquele beijo. A última
coisa que ela queria agora era que ele a confrontasse por causa de Lucas. Ela fechou o telefone e o colocou no bolso. — Você não tem que...
— Não, eu tenho que explicar — Derek insistiu, interrompendo-a.
Ele tomou fôlego e hesitou antes de começar novamente. — Olha, eu ia te
contar de qualquer maneira.
— Não, você não ia — disse ela, achando impossível acreditar. —
Não que eu te culpe por isso. A gente não estava realmente saindo. Você não
tem que me dizer nada.
— Eu ia te dizer. Não tenho escolha.
Ela o observou, sem ter certeza do que ele queria dizer, e ela viu
mais culpa em seus olhos.
— Escuta — disse ele. — Ellie está aqui. Eu a trouxe de volta ao
acampamento.
O relâmpago que caíra na frente de Kylie alguns minutos antes a
surpreendera menos do que a confissão de Derek. Ela ficou, porém, muito
orgulhosa de si mesma ao ver que conseguia não demonstrar. Mas, como
sempre, ela não precisava demonstrar... Ele podia muito bem captar as
emoções dela, embora isso não a impedisse de fingir. E se ela fingisse por
tempo suficiente, podia até mesmo começar a acreditar naquilo.
— Que ótimo! — Ela forçou um sorriso.
— Eu fui obrigado, Kylie. Ela tinha fugido de casa e ido morar numa
comunidade que era um verdadeiro inferno. Ela precisava de ajuda.
— Estou feliz por você tê-la ajudado! — ela disse.
— Meu Deus, Kylie! Chega de fingir desse jeito, como se eu não
soubesse o que você está sentindo! Sou eu, droga!
— Então pare de sentir o que eu sinto! — A garganta de Kylie se
fechou instantaneamente. Lágrimas ameaçaram cair, mas ela as reprimiu.
— Bem que eu queria. Isso iria resolver todos os nossos problemas.
Eu queria muito ser capaz de parar com isso! — Ele gesticulou com raiva.
— O que você quer dizer? — perguntou ela.
Ele balançou a cabeça.
— Você ainda não entendeu, não é? Estar perto de você é como
enfiar o dedo numa tomada. Eu não sei por quê. Não era assim no começo.
Quer dizer, eu podia sentir você mais do que as outras pessoas, mas, neste
último mês, isso aumentou mil vezes. Quando estou com você, é como ser
bombardeado... Sobrecarregado de emoções. Eu não consigo pensar direito, não consigo raciocinar. E se o nome de Lucas vem à tona, eu posso sentir
suas emoções com relação a ele e... — Ele inspirou outra golfada de ar. —
Talvez o que eu sinta seja até mais do que aquilo que você está sentindo,
mas... Eu simplesmente não consegui lidar com isso. E não é só Lucas. Se
você ficasse chateada com o seu pai, eu sentia a sua dor e queria matar o
desgraçado. Eu não aguentava mais!
Ela recuou, esperando que alguns centímetros de distância o
ajudassem.
— Por que você não me contou?
— Eu contei... ou tentei contar. Você simplesmente não me ouviu.
Ah, que inferno! Eu provavelmente não deixei claro porque eu mesmo não
entendia. Ainda não entendo... Só sei que estar perto de você me
enlouquece... — Ele passou os dedos pelo cabelo outra vez. — Eu esperava
que, quando voltasse, isso teria mudado.
— Mas não mudou?
Ele balançou a cabeça.
— Não.
— Você já perguntou a Holiday sobre isso? — A brisa agitava os
cabelos molhados de Kylie e trazia com ela o cheiro de sol, como se a
tempestade já tivesse passado. Seria bom se a tempestade dentro dela
também tivesse.
— Não. Eu não quero...
— Pedir ajuda a ela? — Kylie concluiu para ele.
Um facho de luz solar apareceu sorrateiramente por trás de uma
nuvem baixa e a levou a piscar.
— Não é só isso. Eu não quero que ela tente entrar na minha cabeça
para decifrar as minhas emoções. Eu vi coisas na mente de outras pessoas
que elas não queriam que eu visse. Prefiro manter o que tenho na cabeça em
segredo. É como ver alguém nu. — Ele deu um meio sorriso.
Ela tentou responder com um sorriso, mas não conseguiu. Primeiro,
porque isso significava que o orgulho era mais importante para ele do que
tentar resolver o problema. E, segundo, porque ela não conseguia deixar de
pensar em quantas dessas emoções a que ele se referia eram sobre ela e
quantas eram sobre Ellie.
— Ellie e eu somos praticamente amigos, agora — disse Derek,
obviamente captando o ciúme dela.
Praticamente? Ela se perguntou como definir “praticamente” amigos?
O beijo devia ter acontecido num dos momentos em que não foram
“praticamente” amigos. Então ela se lembrou do beijo de Lucas e se sentiu
culpada por julgar Derek.
Ela o fitou novamente.
— Você não tem que explicar.
Ele a estudou, e que Deus a ajudasse, porque ela sabia que ele estava
analisando as emoções dela. Captando seu ciúme, seguido pelo fio de culpa,
e então o sentimento de estar sendo injusta com ele. E ele provavelmente
também estava deduzindo o que tinha acontecido.
Ele franziu a testa e deu um passo para trás como se estar muito
perto dela lhe causasse dor.
— Então, você e Lucas...?
A culpa que ela tentou reprimir de repente provocou um grande nó
em seu peito. Ela procurou o jeito certo de responder, então decidiu imitá-lo.
— Praticamente amigos.
A mágoa cintilou nos olhos dele, e ela sabia que ele tinha entendido
exatamente o que ela queria dizer. Embora não tivesse dito aquilo para feri
lo, ela tentou se explicar.
— Eu ainda estou tentando entender o que sinto — ela disse,
esperando amenizar o golpe, porque ela sabia exatamente como ele se sentia.
Inconscientemente, eles haviam feito a mesma coisa um ao outro.
Ele balançou a cabeça e encontrou os olhos dela, com uma expressão
agoniada.
— Isso está me matando...
A dor nos olhos dele refletia suas palavras e o nó no peito de Kylie se
apertou ainda mais. As lágrimas que ela prometera não verter arderam em
seus olhos de novo.
— A mim também. — Suas amígdalas pareciam ter inchado na
garganta. — Tenho que ir. — Ela deu um passo para trás.
— Espere. Você não deveria ter uma sombra com você?
Por alguma razão, a pergunta dele a fez se lembrar do raio.
— Della está por perto.
— E ouvindo tudo... — Ele franziu a testa.
— Eu disse para ela não ouvir.
— Ah, claro. — O cinismo era evidente na voz dele.
Kylie deu outro passo para trás, mas a pergunta saiu antes que ela
pudesse se conter.
— Por que você se ofereceu para ser minha sombra se acha tão difícil
ficar perto de mim?
Ele esfregou o tênis na tábua de madeira da varanda.
— Porque a sua segurança é mais importante do que qualquer outra
coisa. — Ele suspirou. — Mas talvez Burnett esteja certo. Estou envolvido
demais. O fato de alguém querer ferir você me faz perder a cabeça... — Ele
olhou para baixo e para ela novamente. — Além disso, você tem... outras
pessoas que dizem sentir o mesmo. — O ciúme ecoou em sua voz.
Ela não sabia ao certo o que responder, então não disse nada.
— Você sabe que Brit, o investigador, não está por trás disso. Eu não
sei como é que alguém chegou até ele.
Kylie se lembrou de Lucas acusando o detetive de fazer parte do
complô.
— Eu não o culpo de nada. Sinto muito que tenha se ferido. Ele está
bem mesmo?
Derek balançou a cabeça.
— Está.
— Ele se lembra de alguma coisa? — perguntou ela, esperando que
tudo pudesse ser resolvido mais facilmente.
— Não. E isso é estranho. É quase como se ele tivesse a memória
apagada. E não há muitas pessoas que podem fazer isso.
— Talvez só tenha batido a cabeça.
— É isso que o médico acha e que Burnett acredita, mas...
Ele passou outra vez a mão nos cabelos.
— Tenha cuidado, Kylie. Ouvi sobre o que aconteceu, sobre aquele
cara, Mario e o neto. — Ele baixou o olhar. — Lamento não ter estado lá pra ajudar você...
— Você tinha que fazer o que Burnett mandou — disse ela, embora
ela se lembrasse claramente de ter implorado para ele não ir embora.
— Estou falando sério sobre você ser cuidadosa. Acho que pode
haver muito mais por trás disso do que parece.
— Como assim? — perguntou ela.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei explicar. Só me lembro de que, quando estava lutando
com aquele vampiro no parque selvagem, naquela noite, ele me pareceu
diferente. De um jeito muito estranho.
— Eu tive a mesma sensação — confessou.
— Tenha cuidado. — Ele estendeu a mão como fosse tocá-la, e em
seguida puxou-a de volta.
— Pode deixar.
Ela o viu enfiar as mãos nos bolsos. Seus olhares se encontraram
novamente, e Kylie precisou se segurar para não insistir que ele fosse falar
com Holiday e tentar resolver o problema com respeito à reação exagerada
às emoções dela. Em vez disso, ela se afastou. Algo lhe dizia que essa era a
coisa certa a fazer.
Mas alguém poderia, por favor, dizer a ela por que fazer a coisa certa
machucava tanto?
No momento em que Kylie chegou ao limiar da floresta, começou a
correr, como se quisesse fugir da dor intensa em seu peito. Em alguns
segundos, Della estava ao seu lado.
— Você está bem? — Seus pés batiam no chão no ritmo das passadas
de Kylie.
— Não. — Kylie respondeu, e abaixou-se para passar embaixo de um
galho de árvore.
— Aonde vamos? — Della perguntou alguns minutos depois,
quando Kylie começou a seguir na direção oposta à da cabana.
— Quero correr — disse Kylie.
— Ok. — Della continuou ao lado dela.
Elas correram muito. Quando Kylie avistou a cerca que delimitava a
propriedade de Shadow Falls, parou e desabou no chão.
Abraçando as pernas com os braços, descansou a testa nos joelhos.
Seus pulmões faziam um esforço extra para inspirar o ar de aroma
amadeirado, que ainda carregava o cheiro de chuva.
Della, nem um pouco ofegante, sentou-se ao lado dela. Os sons da
floresta as rodeavam — um pássaro agitado nas árvores, alguma criatura
não identificada fuçando os arbustos não muito longe dali. Mas Kylie ouvia,
sobretudo, seu próprio coração disparado, o som do sangue jorrando nos
ouvidos.
— Seu coração ainda está batendo rápido — comentou Della.
— Eu sei. — Kylie manteve o rosto abaixado.
— Ele estava dizendo a verdade.
Kylie sabia que Della estava falando de Derek.
— Eu sei.
— Tentei não ouvir, mas foi impossível. Pensei em me afastar um
pouco mais, mas não estaria cumprindo o meu papel de sombra.
Kylie levantou a cabeça. Seu olhar se voltou para a cerca e ela
percebeu onde estavam. Um pouco depois do arame farpado estavam as
pegadas de dinossauros. E o riacho, onde Lucas a tinha beijado. Ela ficou
pensando nisso por um segundo, porque pensar em Derek a deixava
deprimida.
Então ela olhou para Della.
— Você ouve minhas conversas particulares, mas não me conta nada
sobre você.
— Contar o quê? — Della perguntou, intrigada.
Kylie levantou uma sobrancelha.
— O que aconteceu enquanto você estava na casa dos seus pais? Eu
sei que estava mentindo. E Miranda também sabe.
— Ah, isso. — Ela puxou uma longa lâmina de grama do chão e
começou a enrolá-la no dedo.
Kylie achou que Della não ia responder, mas então...
— Eu fui ver Lee.
Kylie suspeitava que Della não tinha deixado de gostar do ex
namorado. Não que a vampira tivesse admitido.
— E então...?
— Ele está praticamente noivo de outra garota. Seus pais estão
pressionando para que ele oficialize o namoro. Eles gostam dela. — A mágoa
na voz de Della assemelhava-se à dor que Kylie sentia com relação a Derek.
Kylie abraçou os joelhos.
— Eu lamento muito.
— Não lamente — disse Della. — É melhor assim. Ele nunca poderia
aceitar que sou uma vampira.
— Isso não quer dizer que não te magoe. — E Kylie sabia disso por
experiência própria.
Della hesitou.
— Ela tem sangue cem por cento oriental. Não é nissei como eu.
— Ele disse isso? — Kylie realmente não gostava desse cara.
— Não exatamente, mas disse que os pais o pressionaram para que
saísse com ela. E eu sei que eles não gostam de mim porque sou mestiça.
— Você precisa seguir em frente — disse Kylie.
— Estou fazendo isso. — Della jogou a folha de grama de volta no
chão.
Era mentira, mas não adiantava dizer isso a Della. Kylie recostou-se
e olhou para as árvores. A chuva recente umedecia as suas roupas, mas ela
não se importava. O frescor caía muito bem no calor do Texas. Uma gralha
azul voou de um galho e pousou em outro. As emoções de Kylie pareciam
estar fazendo o mesmo.
Ela estudou o pássaro, tão feliz, tão inocente e livre de problemas.
Della lançou um suspiro alto, como se ainda estivesse pensando em Lee.
— Steve gosta de você — disse Kylie.
— Não gosta, não.
— Gosta, sim. — Kylie olhou para Della. — Eu o vi olhando para
você hoje, quando estávamos no refeitório. Você devia dar uma chance a ele.
— Se ele gosta de mim, vai me procurar.
— Não estou dizendo pra você se atirar em cima dele. Basta ser
simpática. Mais acessível.
— Eu sou acessível — disse Della.
Tão acessível quanto uma cascavel, pensou Kylie.
Della pegou outra folha de grama e depois se deitou no chão, ao lado
de Kylie. Seus ombros quase se tocavam.
— Não é fácil.
— Pode acreditar — disse Kylie. — Eu sei.
Elas ficaram deitadas no chão úmido durante longos minutos sem
falar. A luz do sol filtrada pelas árvores criava sombras douradas cintilantes
em toda a floresta. Através das folhas, Kylie via o céu salpicado com nuvens
carregadas de uma variedade de tons de cinza. Sua mente dava voltas e de
alguma forma acabou parando em Derek.
— Eu não posso acreditar que ele trouxe Ellie com ele. — A ideia de
ver Derek com Ellie deixava o peito de Kylie oprimido.
— É, isso vai ser difícil. Quero dizer, se eu tivesse que ver Lee com a
namorada, eu ia acabar matando alguém.
— Não, você não faria isso. — Kylie sentou-se, tirando o cabelo do
ombro, e removendo alguns galhos pendurados. — Você faria exatamente o que eu vou fazer.
— O quê? — Della se sentou.
— Fingir que não dói e esperar que um dia não doa mais.
— Nada disso. Prefiro matar alguém. — Della se levantou e limpou a
parte de trás da calça, onde a grama molhada havia se agarrado. Então
olhou para Kylie. — Isso significa que você vai dar uma chance real a Lucas?
Kylie se levantou e deu alguns tapinhas no próprio traseiro para tirar
a maior parte da grama.
— Quem sabe. Isso, se for o que ele quer também.
— Se for? Você não ouviu como ele ficou irritado com Burnett com a
história de servir de sombra pra você? Ele está super a fim. Quer dizer, eu
sei que você está sofrendo por causa do Derek, mas ele não merece que você
fique angustiada por causa dele. Você tem uma oportunidade com Lucas. Vá
em frente.
Ela hesitou em dizer qualquer coisa, mas acabou não se contendo.
— Fredericka disse algo que fez parecer que a alcateia não quer que a
gente fique junto.
— Não dê ouvidos a nada que aquela mocreia diz. Ela vai dizer
qualquer coisa para separar você de Lucas.
Kylie concordou, sabendo que Della estava certa. Ou pelo menos
esperava que estivesse.
O pássaro na árvore piou. Kylie olhou para cima e se perguntou se
aquele seria um chamado de acasalamento. Será que as aves viviam a
experiência do romance? Será que sofriam por causa de um coração partido?
Ela tinha que admitir que ele parecia terrivelmente solitário na árvore.
Quase tão solitário quanto ela.
— Vamos fazer um trato — disse Della. — Você dá uma chance a
Lucas e eu dou uma chance a Steve.
Kylie sorriu.
— Está falando isso porque está preocupada comigo ou você apenas
precisa de uma desculpa para ir atrás daquele metamorfo muito gato?
— Talvez sejam as duas coisas. — Della sorriu. — Temos um acordo?
Kylie refletiu e, mentalmente, parou de tentar se agarrar ao passado,
consertar algo que parecia não ter conserto, e se abriu para novas
possibilidades.
— Temos.
Della começou a andar, e Kylie deu um passo. Então o frio a
envolveu. Ela se virou e viu o espírito de Jane Doe se materializar sob um
raio de sol.
A mulher fixou os olhos em Kylie.
— Você sabe?
— Sabe o quê? — Kylie perguntou.
Della se virou.
— O quê? — Ela olhou para Kylie por um segundo e então
murmurou: — Ah, meu Deus! De novo não. — Ela recuou. — Eu não estou
com medo. Não estou. Sério, eu não estou.
Kylie ergueu a mão para silenciar Della e olhou para o espírito
quando ela se aproximou.
— Você sabe o que eu sou? — Jane falou num tom abafado que parecia
se esgueirar entre as árvores. A gralha azul na árvore piou muito alto.
— Não — disse Kylie. — Não sei.
Então o pássaro soltou um piado estranho e caiu, sem vida, aos pés
do espírito.
 
— O que foi isso? — Della perguntou.
Kylie olhou para o pássaro. Ele não se moveu. Não fez um barulho.
Será que...? Seu coração se apertou.
— Engula essa! Está chovendo passarinho morto. Agora eu estou
realmente apavorada. Podemos ir embora, por favor?
O espírito olhou da gralha azul para Kylie.
— Está morto? — ela se ajoelhou e olhou para o pássaro. Quando
olhou para cima, tinha lágrimas nos olhos. — Está morto. Assim como eu.
Assim como os anjos da morte avisaram. Alguém vive e alguém morre.
— Ninguém vai morrer.
Kylie pegou o corpinho flácido do pássaro. Seu pescoço pendeu para
um lado. Ela se lembrava de ter visto o pássaro tão cheio de vida apenas
alguns instantes antes. O que tinha acontecido? Ela olhou para o espírito.
— Você o matou?
— Não, eu não o matei! — disse Della. — Espere, você não está
falando comigo, não é? É um anjo da morte ou só um fantasma?
— Não. — Jane olhou em volta como se estivesse tão assustada
quanto Della. Ela se aproximou. — Os outros o mataram. Eles não são do bem.
Kylie tremia com o frio fantasmagórico.
— Quem são os outros?
— Psiu. — O espírito levantou um dedo e o pousou sobre os lábios.
— Eles estão vindo. — Então desapareceu no ar.
Della ficou para trás e continuou a olhar o pássaro fixamente. Kylie
colocou as mãos em torno da gralha azul. Ela tinha curado Sara. Seria
possível que fosse capaz de...?
Kylie fechou os olhos e tentou se concentrar em pensamentos de
cura.
O pássaro começou a estremecer. Kylie abriu as mãos e suas asas se
abriram. Suas penas, brancas e de um brilhante azul royal, ficaram sob um
facho de luz do sol e refulgiram, então a ave arremeteu aos seus pés e voou
para longe. Kylie o assistiu desaparecer sobre as copas das árvores, com
emoções ambivalentes. Por um lado, ela tinha dado vida a alguma coisa, e
isso era legal. Por outro lado... Bem, isso era muito estranho.
— Você fez o que eu acho que você fez? — Della perguntou. —
Acabou de trazer aquele pássaro morto de volta à vida?
Kylie olhou para a amiga.
— Eu não tenho certeza.
De repente, o silêncio reinou na floresta. As palavras do espírito
ecoaram na cabeça de Kylie. Eles estão vindo.
A ausência de barulho parecia ameaçadora.
Kylie olhou para Della.
— Por acaso você está sentindo alguém aqui?
Della farejou o ar.
— Não. Mas tudo está quieto demais.
— É melhor a gente ir — Kylie sussurrou.
— Não vai precisar pedir duas vezes.
Kylie correu atrás de Della, na esperança de fugir do silêncio, do
sentimento de perigo e de outra constatação surpreendente sobre seus
poderes.
— Tem certeza de que estava morto? — Holiday perguntou.
— Eu não ouvi a pulsação. — Kylie andava de um lado para o outro
no escritório. — Mas os pássaros costumam cair das árvores inconscientes?
Holiday reprimiu um sorriso.
— Acho que não.
Por alguma razão, para a líder do acampamento a notícia não parecia
nem de longe tão surpreendente quanto para Kylie.
Esta, ainda sem fôlego por causa da corrida, havia saído da floresta e
ido direto falar com Holiday. Della, que levava a sério a sua incumbência de
sombra, esperava do lado de fora.
— O fantasma estava lá. Você acha que a presença dele fez isso?
Talvez não tivesse nada a ver comigo. O pássaro voltou à vida quando ele se
foi. Então, talvez fosse só o espírito.
— Pode ser. Mas nunca ouvi falar que a presença de um espírito
pode matar animais selvagens, ainda que temporariamente. Talvez o
pássaro estivesse atordoado. Talvez tudo isso seja uma pista.
— De quê? — Kylie perguntou, frustrada.
— Da identidade do espírito, talvez.
Kylie parou em frente à mesa.
— Como um pássaro morrendo vai me revelar quem o fantasma é?
— Às vezes, os espíritos têm maneiras estranhas de se comunicar.
Kylie refletiu sobre algumas lembranças, em sua mente já confusa, e
então se lembrou.
— Jane Doe não tem padrão cerebral. Nada. É uma mente em
branco.
— Em branco? — Desta vez Holiday pareceu realmente intrigada.
— É. Eu ficava tentando me concentrar no padrão dela, achando que
eu não estava... vendo direito. Porque achava que todo mundo tinha padrão
cerebral, como impressões digitais.
Kylie se deixou cair na cadeira em frente à líder do acampamento.
— Eu nunca vi uma mente em branco, mas...
— Acho que ela é sobrenatural. — Kylie mordeu o lábio.
— Por que você acha isso?
— Porque ela sabia sobre os anjos da morte.
Holiday pareceu refletir sobre isso.
— Ela provavelmente ouviu você falando sobre eles.
— Talvez. Mas... ela está realmente com medo de alguma coisa.
— Morrer pode ser assustador se você não estiver preparado.
— Acho que é mais do que isso — disse Kylie.
— Como assim?
— Eu não sei ainda. Mas é... alguma coisa.
— Espere. — Holiday pousou a mão sobre a mesa. — Você não me
disse que ela tinha algum tipo de cicatriz na cabeça?
— Disse. — Kylie tocou a têmpora. — Ela tem pontos e sua cabeça
está raspada.
— É provavelmente um tumor. Eu nunca vi ninguém com um, mas
ouvi falar que tumores podem fazer coisas estranhas com o padrão cerebral.
— Mas um tumor pode fazê-lo desaparecer? — Kylie perguntou. —
E por que ela ficou assustada quando perguntei o que ela era? Eu realmente
acho que ela é sobrenatural.
— Eu não estou dizendo que ela não seja um de nós, mas...
raramente nós, seres sobrenaturais, ficamos por aqui por muito tempo
depois de morrer. Em todos esses anos em que lidei com fantasmas, só
cruzei com três sobrenaturais.
— Mas o meu pai ainda está por aqui.
— Ele tinha uma razão muito boa para ficar. Cuidar de você.
Kylie colocou a perna sobre a cadeira e abraçou-a. Seus pensamentos
desviaram-se do fantasma para o seu pai e depois para o fantasma
novamente.
— Eu não sei... Alguma coisa nela é... diferente. Lembra que ela me
disse que tinha mensagens dos outros?
— Isso não é incomum. Eu sempre vejo espíritos que me dizem
alguma coisa sobre alguém. — Holiday rolou um lápis entre as mãos.
— Mas uma mensagem dos anjos da morte? — Kylie perguntou.
— Não, mas como eu disse, ela pode ter ouvido você mencionar os
anjos da morte e simplesmente ficado confusa. Ela mencionou a mensagem
de novo?
— Sim. Todas as vezes, como se fosse importante. — Kylie fez uma
careta. — Ela vive dizendo que alguém vai viver e alguém vai morrer. E eu
não gosto da parte do “morrer” — disse, abraçando mais forte o joelho.
— Nem eu — Holiday concordou. — Mas como você já sabe, os
fantasmas não se comunicam muito bem. Portanto, não entre em pânico.
Basta continuar fazendo perguntas e procurando pistas.
— É possível que ela só esteja aqui para me transmitir essa
mensagem?
— Dificilmente. É mais provável que o motivo seja outro.
Kylie franziu a testa.
— Então como, pelo amor de Deus, eu vou ajudá-la se ela nem se
lembra de quem é?
Holiday apoiou o queixo na palma da mão.
— Eu acho que esse espírito pode ser um dos difíceis.
— Como se eu já tivesse visto algum fácil... — Kylie apertou os
braços ao redor da perna. — Tem uma coisa que eu queria checar.
— O quê?
— O Cemitério de Fallen. Eu sei que você disse que ela poderia ter
vindo de qualquer lugar, mas ainda acho estranho que tenha surgido no
carro da minha mãe bem na frente dele.
Holiday franziu as sobrancelhas.
— Eu não vou dizer a você para não ir, mas cemitérios não são o
melhor lugar para alguém que vê fantasmas. A esta altura você deve ser
capaz de ver mais de um de uma vez, e muitos deles ficam perto de
cemitérios por um longo tempo.
Kylie se lembrou.
— No enterro de Nana, eu tive uma dor de cabeça terrível.
— Provavelmente eram eles tentando se comunicar. E isso foi antes
de você poder vê-los. Às vezes, eles podem se aproximar todos de uma vez e
aí fica... difícil.
— Mas se essa é a única pista, eu tenho que tentar.
— Você não é obrigada — Holiday argumentou. — No começo, eu
nunca me recusava a ajudar um espírito. Mas aprendi que às vezes você tem
que dizer não para preservar a própria sanidade.
— Mas eles vão simplesmente continuar voltando.
Holiday inclinou a cabeça um pouco.
— Você não se lembra de que conversamos sobre como se fechar
para eles?
Kylie franziu a testa.
— Eu me lembro, mas não domino muito bem essa técnica.
— Podemos praticá-la novamente, mas... — Holiday consultou o
relógio. — Tenho um compromisso agora.
— Eu quero ajudar esse espírito. Ele tem alguma coisa especial. —
Kylie podia não sofrer de amnésia, mas havia muito na sua vida que ela
ainda não sabia..., coisas que queria saber.
Holiday assentiu com a cabeça.
— Eu entendo. E vou apoiar você independentemente do que decidir
fazer. Apenas me avise antes de ir. Como Burnett já disse, você não pode ir a
nenhum lugar sem uma sombra.
— Eu não estou gostando muito dessa coisa toda de sombra — disse
ela.
— É só até vermos que rumo as coisas vão tomar.
Kylie mordeu o lábio, lembrando-se das outras coisas que precisava
discutir com Holiday. Todas aquelas questões sobre ser capaz de curar e de
ser protetora.
Sem mencionar as perguntas que queria fazer sobre o efeito
avassalador que tinha sobre as emoções de Derek.
E havia também... Ela nunca iria se livrar das sombras se confessasse
suas outras preocupações! Mas não discuti-las era idiotice. E Kylie não era
idiota.
— As nossas câmeras de segurança são capazes de detectar...
metamorfos?
Holiday se inclinou para a frente.
— Tenho certeza de que são. Por quê?
— Provavelmente não é nada, mas aconteceram algumas coisas.
Pode ser que não seja nada demais, mas não é essa a impressão que eu
tenho.
Holiday parou de rolar o lápis nas mãos.
— Que tipo de coisas?
— Quando saí para voltar à cabana, topei com uma cascavel, mas eu
não a vi até que uma águia desceu do céu e a agarrou. Foi estranho.
— Ela foi atrás de você? — A preocupação obscureceu os olhos
verdes de Holiday.
— Não, não teve chance. Mas a coisa toda foi simplesmente estranha.
— Estranha como?
— A águia simplesmente desceu do céu. — Kylie de repente sentiu
como se estivesse exagerando.
Holiday acrescentou:
— Há muitas cascavéis nesta época do ano e concordo que ver uma
águia arremetendo pode ser...
Kylie não esperou que Holiday continuasse.
— E então, quando eu comecei a... correr pelo bosque, um cervo, um
macho imenso, surgiu no meu caminho. Eu parei e, uma fração de segundo
depois, um raio atingiu uma árvore um pouco adiante de onde ele estava. Se
o cervo não tivesse bloqueado o meu caminho, eu poderia ter sido atingida.
Holiday franziu a testa.
— Eu não estou gostando nem um pouco dessa história.
— E o cervo e a águia, eles... olharam bem pra mim como se
estivessem tentando me dizer algo.
Holiday franziu a testa.
— Você acha que pode se comunicar com os animais?
— Não. Eu acho que não. Eles pareciam malévolos.
Holiday inclinou a cabeça para o lado, intrigada.
— O cervo e a águia pareciam malévolos?
Quando Kylie confirmou com a cabeça, Holiday pareceu ficar mais
perplexa e preocupada.
— Com essas coisas estranhas acontecendo, eu não posso acreditar
que seja tudo pura coincidência. Mas, se estou entendendo, tanto a águia
quanto o cervo pouparam você de se machucar. Como poderiam ser
malévolos? Se fizeram alguma coisa, foi proteger você.
Kylie puxou um punhado de cabelo por sobre o ombro e o torceu.
— Eu sei que não faz sentido, mas foi o que pareceu.
Holiday colocou o lápis sobre a mesa e pegou o telefone.
— É melhor avisar Burnett... Não. — Ela largou o telefone. — Burnett
foi a uma reunião com a UPF. Eu não quero incomodá-lo agora, mas vou
falar sobre isso assim que ele voltar.
Kylie ouviu a porta da frente da cabana se abrir.
Holiday olhou para o relógio e franziu a testa.
— Eu tenho outra reunião, mas precisamos conversar mais sobre
isso. Você pode esperar até que eu termine para que possamos continuar
nossa conversa?
— Eu posso voltar mais tarde — disse Kylie, sem querer ficar mais
tempo ali no escritório. Ela ia se sentir como uma criança enviada para a
diretoria. — Ah, Burnett ainda precisa das fotos do meu pai? Se não, eu
gostaria de ficar com elas.
— Ele está fazendo testes para ver se são originais ou cópias. Só deve
precisar de mais alguns dias.
— Oi — soou uma voz feminina desconhecida por trás de Kylie. —
Me desculpe. Eu não sabia que você estava com alguém aqui. Eu posso
esperar no...
— Tudo bem — disse Holiday.
O coração de Kylie deu um salto quando ela reconheceu a morena
como a garota que estava beijando Derek na foto do celular de Della.
— Kylie — Holiday apresentou-a, — esta é Ellie Mason. Ela acabou
de se matricular em Shadow Falls.
Hora da encenação, pensou Kylie. Hora de tempo para fingir que
não doeu. Ela forçou um sorriso.
— Oi.
— Você é Kylie Galen?
Kylie concordou com a cabeça, sem saber o que esperar.
— Derek me contou de você. — Ela sorriu, e então apertou as
sobrancelhas para verificar o padrão cerebral de Kylie. — Uau! Você
realmente tem um padrão estranho.
Ellie fez uma cara engraçada como se estivesse constrangida.
— É — disse Kylie. — Todo mundo diz isso. — Seu sorriso forçado
se desvaneceu.
— Sinto muito — disse Ellie. — Eu não quis ser rude. Derek só tem
coisas boas pra dizer a seu respeito.
— Não acredite em tudo que ele diz. — Kylie tentou suavizar o tom
de voz, porque se sentia muito mal por não gostar da garota. Mas como ela
poderia gostar de Ellie quando tudo o que podia pensar era que ela
provavelmente era uma das quatro meninas com que Derek tinha transado?
Então ela se perguntou se aquele beijo era tudo o que tinha acontecido na
Pensilvânia.
— Eu sempre acredito em Derek. Especialmente quando se trata de
pessoas. — Ellie deu outro passo para dentro da sala.
Kylie odiava admitir, mas Ellie era bonita. Olhos azuis, cabelos
castanhos abundantes e covinhas no rosto. A garota abriu um sorriso
sincero.
— Derek não costuma exagerar. E por ser meio fae, ele sabe avaliar o
caráter das pessoas. Se gosta de alguém, é porque essa pessoa merece.
Kylie queria poder discordar. Não tanto porque não se considerasse
merecedora do afeto de Derek. Mas porque, obviamente, ele se importava
com Ellie a ponto de trazê-la de volta a Shadow Falls, o que significava que
Ellie era uma pessoa que valia a pena.
Kylie se sentiu envergonhada novamente por pensar mal de Ellie e
tentou reprimir o sentimento.
— Talvez quando me conheceu seu lado fae estivesse de folga. — Ela
tentou acrescentar um pouco de humor ao comentário e se levantou. — Eu
preciso ir.
— Kylie, que tal se eu for à sua cabana daqui a cerca de meia hora?
— Holiday perguntou, a preocupação aprofundando o seu tom de voz.
Kylie acenou com a cabeça, concordando.
— E tenha cuidado! — Holiday disse.
— Terei. — Kylie parou quando se aproximava de Ellie. — Bem
vinda a Shadow Falls — ela disse, tentando de fato desejar isso a ela.
— Obrigada — disse Ellie.
— Será que a minha audição de vampira está com defeito?! Você
disse mesmo, “Bem-vinda a Shadow Falls”? — Della perguntou, com
sarcasmo, quando Kylie saiu da cabana. — Eu teria dado um soco naquela
safada.
— Não, você não teria. — Kylie notou que a tempestade tinha
passado.
— Talvez não, mas gostaria de dar. — A preocupação deixou os
olhos de Della sombrios.
— E você acha que eu não gostaria? — As inseguranças cresciam no
peito de Kylie. — Ela é bonita, não é?
— Não — disse Della, mas Kylie sabia que era mentira. Ellie era
bonita e agradável e provavelmente tinha feito sexo com Derek.
O peito de Kylie ficou oprimido com um ciúme indesejado, e sua
mente criou uma imagem de Ellie e Derek juntos. Eles se beijando... Eles...
Ela começou a andar em direção à sua cabana. Andar rápido. Della
ficou ao lado dela o tempo todo, mas deve ter percebido o humor de Kylie,
porque não disse mais nada.
Kylie foi até a cabana sem falar, mas, assim que pisou na varanda,
olhou para Della.
— Você acha que eles fizeram sexo?
— Eu... — Della fez uma careta.
— Eu sei que eu não devia me importar. Mas acho que me importo.
Droga! Por que parece que tudo gira em torno de sexo? Estou começando a
odiar sexo e nem experimentei ainda. Essas imagens ficam girando na minha
cabeça. É como um filme pornô que eu não consigo parar de assistir...
Della apertou a mão sobre a boca de Kylie e desviou o olhar para um
ponto sobre o ombro dela.
Kylie estendeu a mão e tirou a mão da amiga dos lábios.
— Tem alguém atrás de mim? — Ela rezou para a resposta ser não.
O sorriso maroto de Della fez Kylie ter certeza de que sua oração não
tinha sido atendida.
Ela engoliu em seco de vergonha e tentou imaginar qual seria a pior
pessoa possível para estar atrás dela. Ellie? Derek? Não. Ela fitou os olhos de
Della e murmurou a palavra Lucas.
Por favor. Por favor. Por favor, que não seja Lucas.
Della fez que sim com a cabeça. Kylie reprimiu um gemido. Ainda
não estava pronta para enfrentá-lo, então olhou para o bosque. Em meio ao
labirinto de árvores, viu o Sol se deitar no horizonte. Quem dera pudesse
segui-lo e desaparecer também.
— Pode nos dar um minuto? — A voz de Lucas veio de algum ponto
atrás do ombro de Kylie.
Sabendo que era inevitável, ela se voltou. Seu rosto ardeu, quando se
lembrou do seu comentário sobre o filme pornô e toda aquela conversa
sobre odiar sexo. Que ótimo! Ele tinha ouvido tudo.
— Não vai dar — Della respondeu. — Eu sou a sombra dela.
— Bem, digamos que eu esteja assumindo o posto — disse ele, quase
rosnando.
— Está tudo bem — Kylie disse para Della.
Della franziu a testa.
— Se algo acontecer com ela no meu turno, juro que arranco esse seu
rabo lupino.
— Nada vai acontecer. — Os olhos azuis dele escureceram e, em
torno das bordas, Kylie viu um brilho laranja incandescente que indicava
raiva.
Kylie não podia deixar de se perguntar se ela era direcionada a Della
ou...
— Tudo bem. — Della entrou na cabana batendo o pé. E bateu a
porta com tanta força que toda a varanda estremeceu.
Kylie olhou para o lobisomem. Ele ainda parecia meio chateado.
— Vamos dar uma volta — disse ele.
Kylie lembrou como todo o corpo de Lucas tinha enrijecido quando
ela defendera Derek. Será que ele estava com raiva dela, também? A ideia de
magoá-lo depois de ele ter arriscado a vida para salvá-la embrulhou seu
estômago. Ele não merecia aquilo, e Kylie não tinha intenção de magoá-lo.
Mas Derek também não merecia ser acusado por tentar ajudá-la.
Ele deu um passo para fora da varanda e olhou para trás.
Os olhos dele tinham uma tonalidade laranja brilhante agora. Kylie
se lembrou de que um tempo atrás ela se assustava ao ver um lobisomem
furioso. Quer dizer, ela se lembrava de uma época em que nem mesmo
acreditava que lobisomens existiam, estivessem furiosos ou não.
— Você vem? — Lucas perguntou.
 
Ela poderia dizer não, mas não queria. Então o seguiu. O Sol tinha se
posto, embora sua luz ainda brilhasse no céu. Porém, quando entraram na
floresta, sob a copa das árvores, o que restava da luz do dia se desvaneceu
na penumbra. Eles caminharam em silêncio.
Ela se lembrou da ave morta e do anúncio do fantasma de que havia
alguém lá fora, à espreita. A sensação de medo roçou o pescoço de Kylie. Era
quase como se ela pudesse sentir o bafo quente de algo malévolo em sua
nuca, então passou a mão ali para tentar dissipar a sensação. Tudo parecia
cada vez mais escuro.
— Deveríamos estar nos embrenhando na floresta? — Ela ouviu um
barulho e olhou à sua esquerda. Então colidiu com as costas de Lucas, sem
perceber que ele tinha parado. Ele se virou e ela o viu levantar a cabeça,
como se estivesse farejando o ar.
— Você está com medo de mim? — perguntou ele.
Mesmo na penumbra ela podia ver uma expressão de raiva no rosto
dele.
— Não. Estou com medo de... outras coisas. — Ela não sabia como
definir essas coisas.
— Está com medo de que Derek saiba que está comigo? — Seu tom
era de acusação.
— Não.
Ele se virou e recomeçou a andar. Ela acompanhou seus passos.
Então ele parou abruptamente e olhou para ela.
— Eu disse que teria paciência e terei, mas você não vai me fazer de
otário.
— Eu não estou fazendo você de otário — ela protestou.
— Você defendeu Derek.
— Eu apenas declarei os fatos. Você estava errado em culpar Derek.
— Sua garganta se apertou novamente. Ela tinha lutado contra as lágrimas o dia todo, e dessa vez, quando elas formaram um bolo em sua garganta, não conseguiu reprimi-las.
Kylie se virou, na esperança de poder contê-las antes que Lucas as
visse. Mas quando ela passou a mão no rosto para secá-las, ele pegou a mão
dela. O modo imperceptível como conseguiu girar o corpo até ficar de frente
para ela, sem fazer nenhum som, era enervante.
Ele soltou um profundo suspiro.
— Eu não queria te deixar triste, é só que...
Ela tentou dizer que não era por causa dele que estava chorando,
mas a preocupação em sua voz fez o nó em sua garganta duplicar de
tamanho. No minuto seguinte ela estava com a cabeça em seu peito, as
lágrimas e soluços quase silenciosos abafados pela camisa azul-clara e seu peito irradiando calor.
Os braços de Lucas estavam em volta de Kylie e ela sentia seu queixo
sobre a cabeça dela. Ela se sentia segura. Segura e mais alguma coisa... Ela se sentia valorizada. O modo como os braços dele a aninhavam, como cada centímetro dele a envolvia... Tudo o que ela queria era ficar ali. Saborear o momento.
— Sinto muito — ela murmurou, com o rosto ainda enterrado contra
ele. — Eu não devia estar ensopando a sua camisa.
— Acabou? — Os lábios dele fizeram cócegas no topo de sua cabeça.
— O quê? O choro? — Ela ainda não estava pronta para se afastar
daquela muralha de músculos ou dos braços em volta dela. Nem estava
pronta para deixar que ele a visse com o rosto todo vermelho e com cara de choro.
— Não. Você e Derek. — Seu tom se aprofundou, e ela sentiu que era
difícil para ele até fazer a pergunta.
— Sim. — Ela assentiu com a cabeça, ainda encostada a ele.
Os braços dele a estreitaram um pouco mais. Ela quase suspirou,
com a sensação boa que isso lhe causava.
— Então você pode ensopar a minha camisa à vontade — disse ele,
enquanto a sobrecarga de raiva desaparecia da sua voz. — Eu não tenho
muitas regras, mas essa é uma delas. Só garotas não comprometidas podem
molhar a minha camisa.
Ela riu.
— É um sorriso isso que eu sinto contra o peito? — Os lábios dele
agitaram o cabelo de Kylie.
— É um sorriso lambuzado de ranho. — Ela enfiou a mão entre os
corpos colados e passou a mão no rosto antes de olhar para cima.
— Eu aposto que ainda assim é bonito.
Ela se afastou um centímetro, e à luz do bosque sombrio, sentiu os
olhos dele sobre ela.
— Você pode perder a aposta. — Ela queria cobrir o rosto, mas se
sentiria muito tola fazendo isso.
— Você está certa, eu teria perdido. — Ele riu. — Chorando você não
fica tão bonita.
Ela golpeou o peito sólido, com a palma da mão. Ele riu de novo.
— Vamos. — Ele entrelaçou os dedos nos dela e começou a andar
novamente, embrenhando-se na floresta. Com os sons da noite ao seu redor,
ela apurou os ouvidos e esperou que tudo ficasse em silêncio... que algo
ruim, de repente, aparecesse.
Ela deu um leve puxão na mão dele.
— Vamos voltar para o outro lado.
Ele se virou e analisou-a.
— Do que você tem medo?
— Quando sairmos do bosque, eu digo. — Ela tentou minimizar o
pavor que sentia em suas entranhas.
Ele franziu a testa.
— Eu não vou deixar nada te machucar.
— Eu sei, mas eu me sentiria melhor se fôssemos por aquele
caminho. — Ela acenou com a cabeça na direção da clareira.
— Tudo bem. — Ele começou a caminhar nessa direção. — Mas
comece a falar. Por que está com medo? Ainda é por causa do casal de
velhos?
— Não. — Ela desejava poder ver a clareira à sua frente, mas a noite
parecia se fechar sobre ela.
De repente, algo escuro passou sibilando por baixo de uma árvore.
Kylie cambaleou para trás e puxou Lucas com ela. Seu coração quase saiu
pela boca. Ela apertou a mão dele e, com todas as forças, começou a correr.
Ele correu com ela. Eram duas pessoas se deslocando juntas, num só
movimento sólido e fluido, a mão dele apertando a dela.
Assim que eles chegaram à clareira, Kylie parou, se inclinou para a
frente e buscou com toda força suprir de oxigênio os pulmões.
Por fim endireitou o corpo e olhou para ele. Sobre o emaranhado de
árvores, a noite ainda não havia caído por completo e ela pôde ver as feições de Lucas.
Ele ficou ali parado, olhando para ela. Não estava lutando para
respirar nem segurava o estômago como ela. Caramba! Ele nem sequer
parecia sem fôlego!
A curiosidade era evidente nos olhos dele.
— Foi só uma águia.
— Foi?
Ela olhou para o céu, matizado com as últimas cores do pôr do Sol, e
rezou para que o pássaro não os tivesse seguido. Felizmente, só umas
poucas estrelas brilhavam na noite. Nenhuma águia. Pelo menos não que ela
pudesse ver.
— Será que ela nos seguiu? — Kylie perguntou, lembrando que ele
podia enxergar melhor do que ela.
— Não. — Ele a observou. — Alguma coisa aconteceu, não foi?
— É. Talvez. Só umas coisas estranhas. — Ela percebeu que ainda
segurava a mão dele. Embora a temperatura ambiente fosse amena, o toque
quente era agradável. Ele aquecia a palma da mão dela de um jeito bom,
como uma xícara de chocolate quente, transmitindo-lhe uma sensação de
conforto. Embora seu toque não possuísse a magia de um fae para acalmar o
seu medo, ele produzia esse efeito nela.
— Vamos. — Ele voltou a correr. Rápido. Cada vez mais rápido.
Toda vez que ela se obrigava a aumentar o ritmo para alcançá-lo, ele
o aumentava também.
Então ele olhou para ela como que para ter certeza de que ela não
estava excedendo suas forças para acompanhá-lo. Ela tinha a sensação de
que ele a testava, querendo saber até que velocidade ela conseguia correr.
— Para onde estamos indo? — perguntou Kylie, que mal conseguia
falar.
— Para o riacho. — A voz dele soou inalterada.
O ritmo da corrida continuou aumentando. Querendo impressioná
lo, e esquecendo tudo sobre a águia, ela se obrigou a continuar. Finalmente,
ele parou. Despreparada para a parada abrupta, ela continuou avançando.
Sentiu então um puxão no braço, quando ele segurou a mão dela, e um
braço envolvendo sua cintura.
Sem forças e desequilibrada, ela caiu sobre ele e os dois desabaram
no chão. Não doeu, ou pelo menos não em Kylie, porque ela aterrissou em
cima dele.
— Tudo bem? — ela perguntou, com coração ainda aos pulos e o
peito subindo e descendo enquanto ela arfava. Quando seus pulmões
expandiram-se novamente, ela se deu conta da maneira íntima com que seu
corpo descansava sobre o dele.
Ele riu.
— Se eu estou bem? Você é que não consegue respirar. — Ele passou
os braços em torno dela e pousou as mãos em sua cintura.
— Eu consigo... respirar. — Ela riu. Um contentamento quente a
preencheu e ela percebeu que gostava da companhia dele. Gostava de estar
tão perto, talvez até demais.
Ela podia sentir cada centímetro do corpo dele sob o seu, e isso
deixava ainda mais difícil respirar. Ela rolou o corpo para longe do dele. A
terra e a grama sob as costas provocavam uma sensação de frescor,
especialmente depois de todo calor que Lucas irradiava.
Os sons da noite, os grilos e alguns pássaros cantavam em torno
deles. Ela olhou através da cortina de cabelos para o céu azul-escuro e fixou
o olhar numa estrela que cintilava no céu.
— Estou impressionado. Não sabia que você podia correr assim. —
Ele se deitou de lado, apoiando a cabeça na mão, e tirou os cabelos do rosto dela.
— É. — Uma palavra foi tudo o que ela conseguiu dizer.
Kylie piscou e olhou para o rosto do lobisomem. Mesmo à noite, ela
podia ver e apreciar os ângulos e linhas do rosto dele. Era um rosto
totalmente masculino. Sempre fora, mesmo quando ele tinha 7 anos de
idade. Mas agora, com uma leve sombra de barba, parecia bem atraente.
A vontade de tocar o rosto de Lucas, de correr as pontas dos dedos
pela barba por fazer, passou pela cabeça dela.
Ela inspirou, com os pulmões ainda implorando por oxigênio. De
repente, o som de água corrente nas proximidades preencheu seus sentidos.
— A gente está... ? — Ela levantou a cabeça e percebeu que tinham
chegado ao riacho, no ponto em que ela tinha levado a mãe no dia que
perguntou sobre Daniel.
A tristeza se esgueirou através dela quando se lembrou de que
poderia não ver mais o pai. Ela tentou não pensar nisso e não deixar que a
felicidade daquele momento se desvanecesse.
— Batemos algum recorde. — Ela percebeu o quanto eles tinham
corrido.
— Há quanto tempo você sabe que pode correr assim? — ele
perguntou.
— Só desde que cheguei aqui. Mas estou ficando mais rápida.
Ele pegou uma mecha do cabelo de Kylie e deixou-a deslizar pela
palma de sua mão. Seu rosto estava a poucos centímetros do dela. Ela o viu
franzir as sobrancelhas para verificar seu padrão.
— Ainda é um mistério — disse ela.
Ele encontrou os olhos dela.
— Você nem sequer suspeita o que é?
Ela franziu a testa.
— Bem que eu gostaria.
Ele puxou uma longa folha de grama do chão e girou-a nos dedos.
Então olhou por cima do ombro para a meia-lua.
— Quando eu era criança e morava na casa ao lado da sua,
costumava pular a cerca do seu quintal quando me transformava e observá
la através da janela do seu quarto. Vivia na expectativa, querendo saber em
que você ia se transformar.
— Você me espiava pela janela?
Ele sorriu.
— Não que eu quisesse vê-la nua ou coisa assim. Você quase sempre
usava aquele camisolão da Pequena Sereia. — Ele deixou escapar uma
risada. — Você parecia um anjo. Às vezes eu ficava lá metade da noite
pensando que você ainda podia se transformar.
Ela fitou os olhos dele.
— Você achava que eu era um lobisomem?
— Eu tinha esperança. — Ele tocou a ponta do nariz dela com a folha
de grama. Então deslizou-a sobre os seus lábios. Fazia cócegas e ainda assim
parecia um gesto sedutor. Ele continuou olhando para ela como se ainda
estivesse se lembrando. — Eu queria correr no bosque com você. Para
mostrar o quanto podia ser rápido. Levá-la ao meu lago favorito, para que
pudéssemos apostar corrida na primavera, sob a luz do luar.
— Você ainda espera que eu seja um lobisomem?
Ele hesitou.
— Espero. Provavelmente não devia dizer isso, mas, sim, espero.
Ficaria tudo mais fácil.
— O que ficaria mais fácil? — ela pensou no que Fredericka tinha
dito.
— Tudo. — Ele voltou a passar a folha de grama pelos lábios dela. —
Eu não teria que ficar longe de você quando me transformasse. Nós
poderíamos caçar juntos. Você estaria comigo quando eu liderasse a alcateia.
O pensamento de caçar e matar animais selvagens não lhe agradava
nem um pouco, nem estar no mesmo bando de lobos que Fredericka, mas ela
tentou não deixar transparecer.
— Seríamos uma bela equipe.
— E se eu não for um lobisomem?
Ele sorriu, mas só por um segundo, e ela pensou ter visto decepção
nos olhos dele.
— Ainda assim seríamos uma bela equipe — disse ele.
— Será que todo mundo pensa assim? — ela perguntou, sem querer
falar de Fredericka.
— O que está querendo dizer?
— Nas últimas vezes em que estivemos juntos, alguém da alcateia
sempre apareceu para vir buscá-lo como se não quisessem que você ficasse
comigo.
— Não é nada disso — disse ele.
— Tem certeza?
Ele fez cócegas nas bochechas dela com a grama.
— Confie em mim.
— Eu confio em você.
— Você não me disse do que tem medo.
Ela mordeu o lábio. Lucas passou a lâmina de grama nos lábios dela.
— Comece a falar.
Ela lhe contou sobre a águia e a cobra e, em seguida, sobre o cervo
enorme e o relâmpago.
Ele franziu a testa.
— Você acha que Derek pode estar fazendo isso? Ele se comunica
com os animais.
— Não. Derek não faria isso.
— Você diz isso como se confiasse nele. — O tom de Lucas ficou
mais ríspido.
— Eu confio. Por favor, não me entenda mal. Acabou tudo entre a
gente, mas eu sei que ele não tentaria me ferir e nem me assustar. Ele se
preocupa comigo.
— E você com ele? — Os olhos de Lucas passaram do azul até quase
laranja.
— Sim. Mas, mesmo assim, acabou. — Ela sabia que ele não gostava
de ouvi-la dizer aquilo, mas pareceu entender. Por uma fração de segundo,
ela se perguntou quanto tempo levaria até que ela conseguisse entender
aquilo também.
Ele olhou outra vez para a Lua.
— Se não é Derek, então quem é?
— Acho que Holiday e Burnett acreditam que Mario e Ruivo estejam
por trás disso. E que enviaram os impostores que se passaram pelos meus
avós. Mas Della disse que eles são vampiros, não metamorfos e então não
poderiam estar fazendo isso eles mesmos.
— Talvez Mario tenha um metamorfo trabalhando pra ele. Embora
seja incomum que duas espécies trabalhem em conjunto desse jeito. — Ele
colocou uma mecha de cabelo dela atrás da orelha. — Eu não vou mais
deixar aquele cretino encostar um dedo em você.
Kylie sabia que, na verdade, Lucas não tinha como manter essa
promessa, mas gostava de ouvi-lo falando assim. Então, por ter se sentido
tão à vontade conversando com ele, ela lhe contou sobre o fantasma e o
pássaro caindo da árvore.
Ele pareceu preocupado.
— Você acha que ela é um anjo da morte? — Lucas evidentemente
ficou mais perturbado com o fantasma do que pelo fato de Kylie ter trazido à
vida um pássaro morto.
— Não, mas acho que ela é sobrenatural.
— Você checou o padrão dela?
— Esse é outro problema. Ela não tem um padrão.
— Todo mundo tem um padrão — disse ele.
— Mas ela não tem. Antes de desaparecer, ela me disse que havia
outros ali.
— Que outros? Mais fantasmas? — Lucas olhou em volta.
— Eu não acho que ela quis dizer fantasmas. Deu a entender que
eram seres malévolos.
— E os fantasmas não são? — ele perguntou, incrédulo.
— Na verdade, não. Pelo menos nenhum que eu tenha conhecido.
Ele balançou a cabeça.
— Eu não consigo me imaginar falando com um deles.
Ela hesitou antes de responder.
— Foi difícil no começo. Ainda é estranho, mas não tão ruim. — Ela
encontrou os olhos dele. — Mas também não consigo me imaginar me
transformando em lobo.
Ele sorriu.
— É muito fácil. Espero que você descubra isso por si mesma,
também.
Ela refletiu sobre o fato de que ele realmente queria que ela fosse um
lobisomem. Embora não tivesse intenção de desrespeitar a espécie, não tinha
tanta certeza se queria o mesmo que ele.
— Eu ouvi dizer que você passou por algumas oscilações de humor
no mês passado. — Seu olhar baixou para os seios dela. — Também sofreu
mudanças hormonais como as fêmeas de lobisomem.
Sim, ela estava um centímetro mais alta e usando sutiã e sapatos um
número maior. Mas isso não seria tão estranho se não tivesse acontecido da
noite para o dia. E ela não gostava que a lembrassem disso. Sentiu o rosto
ficando vermelho.
Tentou disfarçar o embaraço.
— É verdade, mas também há muitas evidências de que eu não sou
um lobisomem. De acordo com Holiday, os lobisomens raramente veem
fantasmas. Eles começam a se transformar quando são muito jovens e não
têm sonhos lúcidos.
Um leve sorriso apareceu nos olhos dele e, droga!,ela sabia
exatamente no que ele estava pensando: no sonho. Aquele em que eles
nadavam praticamente nus e...
— Acho que vamos ter que esperar ainda algumas semanas, até que
a Lua esteja cheia.
Ele passou a folha de grama sobre os lábios dela novamente e depois
no queixo. Ela quase parou de respirar quando ele deslizou a folha pelo vale
entre os seios, acima do decote da blusa. Era só uma folha de grama, mas era
como se fosse o dedo de Lucas, pela doce sensação que se espalhou pelo seu peito.
Ele se inclinou, seus lábios a centímetros dos dela.
— Eu tenho um pedido.
— O quê...? — Ela mal conseguia pensar, muito menos falar.
Ele deslizou a folha de grama pelo rosto dela e depois pela testa.
— Quando você fechar os olhos e aquelas imagens aparecerem na
sua mente...
Suas palavras a lembraram do que ele a ouvira dizer a Della sobre o
filme pornô. Seu rosto ficou quente de novo.
— Eu quero que o filme que veja em sua mente seja de nós dois.
Apenas de nós dois. De mais ninguém.
Ela sentiu o calor do hálito de Lucas, então, por um segundo ele
encostou a boca nos lábios dela. Logo em seguida ficou de quatro, levantou
se lentamente, com um rosnado baixo no fundo da garganta, enquanto
observava a linha das árvores.
Ela ficou de pé.
— O que foi?
Ele olhou para ela, os olhos faiscando com um brilho laranja
incandescente.
— Vem vindo alguém.
O coração de Kylie acelerou.
— Não é melhor a gente correr?
— Não. — A postura defensiva de Lucas relaxou. — É só...
— Eu — soou uma outra profunda voz masculina.
Kylie reconheceu a voz antes de ver Burnett de pé atrás dela. Mesmo
na escuridão, ele estava perto o suficiente para ela reconhecer o olhar de
descontentamento em seu rosto. Os olhos dele não estavam brilhando, então
não havia nenhum perigo, mas tudo em sua expressão dizia que Burnett não estava satisfeito. E olhava diretamente para ela.
O que será que o deixara tão contrariado?
Ele chegou mais perto e sua figura pareceu ainda mais imponente.
— Holiday está...
Bastou as duas palavras para Kylie obter sua resposta.
— Merda! Esqueci! Holiday ia à minha cabana. Sinto muito.
— É isso aí — confirmou ele. — E ela realmente ficou preocupada
quando não conseguiu encontrar Della, que devia ser a sua sombra. — Ele
voltou o olhar para Lucas, e sua carranca piorou um pouco mais.
— Onde está Della? — Kylie perguntou. — Ela está bem?
— Está. Ela e Miranda tinham ido dar um mergulho. Mas nada disso
teria acontecido se alguém não tivesse insistido para que ela deixasse de
lado os seus deveres de sombra.
— É culpa minha — Kylie se adiantou.
— Não é culpa de ninguém. — Os ombros de Lucas enrijeceram. —
Eu não teria deixado nada acontecer a Kylie.
— A questão não é essa! — rosnou Burnett. — Tendo em vista a sua
afiliação com a UPF, você, mais do que ninguém, deveria entender a
importância de seguir o protocolo. Eu atribuí a Della a incumbência de ser a sombra de Kylie, e você não tinha nenhum direito de contrariar as minhas
ordens. E, fazendo justamente isso, você causou esta situação.
— Eu não teria que ter contrariado suas ordens se você tivesse
atribuído essa incumbência a mim, desde o início, como eu pedi. E,
considerando a minha afiliação, você devia confiar em mim para protegê-la.
Kylie olhou de Burnett para Lucas e depois de volta para o primeiro.
— Quem se esqueceu de Holiday fui eu. Se tem alguém culpado
aqui...
— Mas fui eu que procurei você — retrucou Lucas, recusando-se a
deixá-la assumir a culpa. Ele olhou de volta para Burnett, os olhos
começando a mudar de cor.
Uma coruja piou na floresta. A meia-lua pareceu ficar mais brilhante
enquanto os dois, vampiro e lobisomem, se enfrentavam com o olhar.
Burnett foi o primeiro a piscar, não por fraqueza, mas como se
estivesse se preparando para expor o seu argumento.
— Confiança é algo que se conquista. Seu excesso de confiança não é
nada útil à UPF.
— O meu excesso de confiança só é menor que o seu — disse Lucas.
— E eu acho que essa é parte da razão por que a UPF está interessada em
mim.
— Talvez. Mas a linha que separa o espírito indomável do arrogante
é muito fina. E arrogância não é algo que a UPF aceite.
Burnett puxou o celular do bolso e apertou um botão.
Kylie viu Lucas apertar a mandíbula, e ela sabia como era difícil para
ele ser repreendido por Burnett, especialmente na frente dela.
Lucas olhou para longe, mas não antes de Kylie ver seus olhos
brilhando de raiva. Mas então ele disse:
— Lamento se causei problema. — Ele podia estar irritado, mas
estava disposto a admitir o erro.
Burnett assentiu com a cabeça e falou ao telefone.
— Holiday, eu a encontrei. Ela está bem... Sim. Já vou. — Ele
desligou e voltou a fitar Lucas. — Eu encontro com você no escritório num
minuto. Preciso falar com Kylie.
Lucas fitou os olhos dela, como se perguntasse se ela ficaria bem
indo com Burnett. Kylie assentiu com a cabeça.
— Te vejo depois.
Ele disparou e em segundos era apenas uma pequena mancha
deslocando-se entre as árvores banhadas pela luz da Lua. Burnett o seguiu
com os olhos até vê-lo desaparecer e, em seguida, olhou para Kylie.
Ela falou antes do vampiro.
— Eu não deveria ter me esquecido que Holiday ia passar na minha
cabana.
— Tem razão. Mas Lucas não deveria ter pedido para você se afastar
da sua sombra sem me consultar.
— Ele não é arrogante como você disse. — Ela franziu a testa.
— Sim, ele é. — Burnett deu uma risadinha. — Mas eu também era
quando tinha a idade dele. Ele vai amadurecer. Como eu amadureci.
Kylie não gostou da resposta de Burnett, mas sentia-se melhor
sabendo que ele não guardava rancor de Lucas. Quando viu que Burnett não
ia diretamente ao assunto, ela fez sua própria pergunta.
— Alguma notícia das pessoas que fingiram ser meus avós?
— Não, mas o carro que estavam dirigindo foi encontrado. É
roubado. Estamos verificando as impressões digitais.
Kylie acenou com a cabeça e olhou para a Lua quando uma nuvem
diáfana passou sobre ela, deixando a noite mais escura. Quando olhou para
Burnett, viu que ele a fitava com a testa franzida, como se estivesse
verificando seu padrão. Kylie viu perplexidade em seus olhos. Já devia estar
acostumada com isso, mas às vezes tinha vontade de usar um escudo sobre a
testa.
— Holiday está com raiva de mim? — Kylie perguntou.
— Mais preocupada do que com raiva. Ela guarda todas as emoções
hostis para usar contra mim. — Ele abriu um pequeno sorriso.
— Mas você ainda está aqui em Shadow Falls. Isso tem que significar
alguma coisa.
— Significa que sou masoquista. — Ele hesitou, e embora suas
palavras tenham sido ditas com bom humor, seus olhos não expressavam a
mesma emoção.
— Não, eu quis dizer que o fato de ela aceitar você como acionista de
Shadow Falls tem que significar alguma coisa.
Ele franziu a testa.
— Ela precisava do meu dinheiro.
Kylie teve que morder a língua para não contar a ele sobre o outro
investidor.
— Você realmente gosta dela, não é? — Seu coração doeu por ele.
Não que ele desejasse a compaixão dela. Mas talvez tenha sido por isso
mesmo que ela a sentiu. Quando alguém tão forte e orgulhoso sofria por
amor, isso causava uma impressão.
— Isso não é importante.
É, sim. Kylie viu rejeição nos olhos de Burnett. De algum modo, ela
iria fazer Holiday parar de ser tão teimosa e dar ao homem uma chance.
Simplesmente não fazia sentido ser tão hesitante. Se ele fosse feio ou
desagradável, Kylie poderia entender. Mas Burnett não era nenhuma das
duas coisas. E ele se importava tanto com Holiday que Kylie quase podia
sentir.
— Eu não diria que não é importante — Kylie acrescentou.
Ele encolheu os ombros.
— Conte-me sobre a cobra e o incidente com o cervo.
Kylie contou as duas histórias pelo que parecia a centésima vez. Pelo
menos agora ela conseguiu contar sem se sentir aflita. Quando concluiu o
relato, Burnett só ficou ali pensando, com a testa franzida e os lábios
apertados.
— Você acha que estou exagerando, não acha?
A expressão do vampiro ficou mais carregada ainda.
— Não. Eu concordo com Holiday. Com isso acontecendo duas
vezes, não é possível que seja coincidência.
— Então o sistema de segurança não está funcionando? — ela
perguntou.
— Está funcionando, sim.
— Então como é possível...?
— É isso o que não sabemos. Um metamorfo se infiltrou no
acampamento só para espionar você. E eu não estou gostando nada disso!
Kylie sentiu um gelo no estômago. Ele não era o único que não
estava gostando.
Naquela noite, o sonho chegou bem de mansinho. Mas era um sonho
diferente dos outros. Kylie não estava se movendo, ela tinha acabado de
acordar ali. Então viu Lucas à beira do lago para onde eles tinham corrido
naquele dia e, no momento, não viu nenhuma diferença significativa. Antes
que ela fosse para a cama, ele tinha batido em sua janela. Quando Kylie
abriu, ele se apoiou no parapeito e deu um salto para beijá-la rapidamente
nos lábios.
— Boa-noite! — ele disse, voltando a pôr os pés no chão.
Ela sorriu e observou-o se afastar. E foi para a cama desejando que
ele não tivesse ido embora tão depressa.
De repente, o sonho se tornou sua realidade, fundamentada no
mundo da mente, onde tudo parecia real. Kylie estava em pé atrás de Lucas
e gostava da proximidade. Ela estendeu a mão, e quando tocou seu braço ele
se virou, nem um pouco surpreso por ela estar ali, mas feliz por vê-la. Por
um segundo, algo pareceu errado, mas quando ele a puxou de encontro a si,
ela afastou a sensação.
— Você sempre foi tão bonita, Kylie Galen?
As mãos de Lucas apertaram a cintura dela. Kylie sorriu.
— Por que você não me diz? Me espiava pelas janelas quando eu
tinha 5 anos...
— Que vergonha... — Ele se inclinou mais para perto. A incerteza
incomodava Kylie.
Alguma coisa parecia estranha, mas ela não conseguia descobrir o
quê. Sorriu para ele.
— Diga-me o que a deixa feliz — disse Lucas.
As palavras dele a deixaram intrigada.
— Como assim?
— Você quer uma mansão? Um carro novo? Quer ir para o México e
beber cerveja na praia? Posso te dar tudo isso e muito mais.
Ela balançou a cabeça.
— Eu não quero nada disso.
— Então o que quer?
Essas perguntas não tinham nada a ver com Lucas, mas ela se sentiu
compelida a responder.
— Eu queria que todo mundo se desse bem. Miranda e Della
brigaram outra vez a noite passada. Queria que meu pai pudesse me visitar
novamente. Que os Brightens estivessem bem. Queria saber o que eu sou.
Ajudar esse novo fantasma a resolver seu problema, seja ele qual for.
— Eu posso te dar mais do que isso. Basta dizer sim.
— Sim para quê? — E foi aí que lhe ocorreu. Ela percebeu o que
estava errado. Lucas não estava quente. — Você está frio. — Ela deu um
passo para trás rapidamente, afastando-se dos braços dele. — O que está
acontecendo?
— Eu queria ver você. Sabia que viria comigo se...
De repente, não era Lucas que estava ali. Era Ruivo, o neto de Mario,
o mesmo vampiro que tinha matado as meninas. O mesmo que a tinha
sequestrado e batido em Lucas. Ela começou a gritar, então percebeu que era
apenas um sonho e ela podia acordar.
— Meu avô e os amigos dele não acham que você concordaria em
trabalhar conosco. Eu só quero ajudar...
As últimas palavras do vampiro se desvaneceram quando Kylie
acordou na cama, ofegante. Ela se lembrou de que a sua intuição lhe dizia
desde o início do sonho que algo não estava certo. Se ela simplesmente a
ouvisse, aquilo não teria acontecido. Então se lembrou de Holiday lhe
dizendo que ela poderia desligar sua sensibilidade temporariamente.
Quando Kylie voltou a pensar direito, recostou-se no travesseiro e fez a
visualização.
A última coisa que ela queria era ver Ruivo em seus sonhos.
Ou na sua realidade.
Na manhã seguinte, Kylie sentiu patinhas de gambá andando sobre
o seu peito e, em seguida, um nariz molhado e pontudo cutucando seu
queixo como se quisesse fazê-la acordar.
Ela ficou deitada ali por alguns segundos, sem se mover ou abrir os
olhos, tentando descobrir por que algo parecia errado. Seu primeiro
pensamento foi o sonho que tinha tido com Ruivo, mas, não, não se tratava
disso. Então uma luz brilhante penetrou pelos cantos dos seus olhos
fechados, e ela os abriu.
Sentou-se com cautela, fazendo em Socks seu afago obrigatório de
todas as manhãs, e olhou ao redor. O sol atravessava as cortinas e lançava
sombras horizontais no chão.
Que horas seriam? Ela tirou o cabelo do rosto.
Seu olhar saltou para o relógio. Sete. Era aquilo que não parecia
certo... que ela não tivesse sido acordada por nenhum espírito impaciente?
Jane Doe não era um fantasma madrugador? Talvez a amnésia impedisse a
pessoa de julgar o tempo.
Não que Kylie estivesse reclamando. Seu último espírito raramente a
deixava dormir depois que amanhecia o dia.
Ao ver o celular, Kylie se lembrou de Holiday e o pegou, na
esperança de que ela tivesse ligado ou mandado uma mensagem. Antes de
Kylie e Burnett terem chegado ao escritório, no dia anterior, Holiday tinha
ligado para Burnett e perguntado se ele poderia assumir o acampamento por
um ou dois dias porque ela tivera uma emergência familiar e precisava se
afastar por alguns dias. A única coisa que ela tinha dito a Burnett é que
precisava resolver o problema.
Burnett tinha ficado preocupado. Kylie sentira a frustração na voz
dele quando falou com Holiday, ao ver que ela não lhe revelaria o tipo de
emergência.
Kylie havia telefonado e mandado uma mensagem para Holiday,
mas não tinha recebido nenhuma resposta antes de ir para a cama.
Verificando sua caixa de entrada, ela encontrou duas mensagens.
Uma de Sara, a antiga melhor amiga que ela provavelmente tinha curado de
um câncer — ou pelo menos era o que esperava —, e outra de Holiday.
Kylie deu um suspiro de alívio ao ler a mensagem de Sara, contando
que estava se sentindo ótima. Em seguida, leu rapidamente a mensagem de
Holiday. Era breve e simples: Tudo está ok. Volto logo.
Querendo se assegurar de que era verdade, Kylie ligou para a líder
do acampamento.
— Oi — Holiday respondeu. — Está tudo bem?
Kylie quase lhe contou sobre o sonho com o vampiro, mas sua
intuição lhe dizia que Holiday já tinha muita coisa com que se preocupar.
Além disso, a líder já explicara a ela como lidar com isso e, se Kylie tivesse
dado ouvidos aos seus instintos, nada disso teria acontecido.
— Está tudo bem, só estou preocupada com você. Já está voltando
para o acampamento?
— Ainda não. Mas devo estar aí esta tarde. — Ela ficou em silêncio.
— Desculpe, eu tive que sair antes de nos falarmos. Você está conseguindo
lidar com tudo aí? Nada mais aconteceu, não é?
— Não, estou bem. Nós só estamos preocupados com você.
— Nós?
— Burnett e eu — disse ela, lembrando-se da promessa que tinha
feito a si mesma de bancar o cupido. — O que aconteceu? — Kylie
perguntou hesitante, sem querer ultrapassar seus limites. Mas a sua relação
com Holiday era mais estreita do que apenas entre líder do acampamento e
campista. Ela realmente se importava com a amiga.
Holiday ficou em silêncio por um instante.
— Minha tia-avó faleceu.
— Ah, Holiday, sinto muito. Posso fazer alguma coisa? — Um frio
invadiu o quarto. Kylie o ignorou e continuou concentrada na conversa ao
telefone. Ela atenderia a Jane Doe em alguns minutos.
— Não. Estou bem — Holiday disse. — Chegou a hora dela. Mas ela
não deixou o testamento em ordem e agora...
Kylie sentiu o colchão afundar. Ergueu os olhos e viu que, sentada
aos pés da cama havia uma mulher idosa com um penhoar amarelo e um
lindo colar com um pingente de cristal azul-claro em formato de lágrima. — O testamento está colado com fita adesiva no fundo da gaveta inferior esquerda da minha cômoda. Mas eu quero que ela fique com todas as minhas peças de cristal. Não deixe Marty levá-las, ela vai tentar. Ela é uma besta quadrada.
Kylie estudou os cabelos grisalhos da mulher, espalhados sobre os
ombros, e depois observou seus olhos de um verde brilhante que pareciam
vagamente familiares. Apertou o telefone na mão e estremeceu. Holiday
dizia que ela acabaria conseguindo ver mais de um fantasma por vez. Pelo
visto isso já estava acontecendo. Mas ela saberia lidar com isso?
— Diga a ela! — insistiu o fantasma, e foi nesse momento que Kylie
percebeu por que os olhos eram tão familiares. Ela apertou as sobrancelhas e
verificou o padrão da mulher.
Holiday começou a falar.
— Não vai ser fácil dividir essa herança...
— Hã, Holiday...? — disse Kylie. — Como é a sua tia-avó?
— Por quê?
— Porque eu acho que ela está sentada aos pés da minha cama. Se
for ela, o testamento está colado na gaveta inferior esquerda da cômoda
dela.
O fantasma começou a flutuar até o teto como se algo a puxasse para
longe.
— Cabelos longos e grisalhos — Holiday respondeu. — E olhos
verdes.
— É ela — Kylie respondeu, agora olhando para o espírito, que
flutuava perto do teto. — Então é melhor você verificar a cômoda.
O fantasma sorriu.
— Obrigada.
— Obrigada, Kylie — agradeceu Holiday.
Kylie sentiu um arrepio e puxou as cobertas um pouco mais.
— Não tem de quê.
O fantasma começou a se desvanecer no teto, depois parou e
deslizou para baixo novamente.
— Quase me esqueci. Eles me pediram para dizer uma coisa. Alguém vive e
alguém... — Ela desapareceu, deixando a frase incompleta.
Mas Kylie sabia o que ela queria dizer.
— ...morre — Kylie completou, fechando os olhos. Alguém vive e
alguém morre. A mensagem não era apenas piração de um fantasma
abilolado e sem memória. Mas como Kylie podia fazer as coisas direito, se
ela não sabia o que fazer?
 
Já vestida e ainda lutando contra a sensação de que algo estava
errado, Kylie saiu do quarto uma hora depois. Ou Miranda e Della já haviam
saído ou ainda estavam dormindo. De qualquer maneira, Kylie ficou feliz
por não ter de enfrentá-las. Primeiro esperava encontrar Helen, a
meio fae que também tinha o dom de cura. Kylie não tinha certeza se a
mensagem de que “alguém ia viver e alguém ia morrer” significava que ela
poderia impedir uma morte, mas tinha que tentar. Depois queria conversar
com Burnett e dizer o que sabia sobre a ausência de Holiday, embora não
tivesse intenção de fazer nada pelas costas da amiga.
Antes de desligarem, ela tinha perguntado a Holiday se podia contar
a Burnett sobre a conversa entre elas. Quando a líder do acampamento
hesitou, Kylie perguntou como ela se sentiria se Burnett desaparecesse por
causa de uma “emergência” e não explicasse por quê.
— Tudo bem — concordou Holiday.
No entanto, ela não parecia feliz com a decisão.
Alguns minutos mais tarde, Kylie estava saindo da cabana quando
tropeçou e caiu em cima de um labrador preto enorme, enrodilhado no
capacho da frente da porta.
— Ai, meu Deus do Céu! — Atordoada, lutou para se levantar e, na
tentativa, pisou sem querer no rabo do cachorro. O cão ganiu de dor e a
culpa se estampou no rosto de Kylie. — Desculpe!
Será que o animal estava ferido? Uma vez um cão machucado tinha
aparecido na porta da casa de Kylie quando ela era uma criança. Sua mãe
obrigara seu pai a levá-lo ao veterinário e eles acabaram tendo que sacrificá-lo.
Kylie chorou e culpou a mãe por matar o cão. Com aquela memória
triste oprimindo o seu coração, Kylie se agachou.
— Desculpe — disse ao cão novamente, deixando-o cheirar sua mão
antes de lhe dar um leve tapinha na cabeça. — Você está machucado? Foi
atropelado por um carro ou algo assim?
— Você pisou no meu rabo, e é claro que isso machuca — disse o
cão.
Kylie, ainda agachada, caiu sentada para trás e fitou, atordoada, o
cão falante.
— O que foi? — perguntou o cão.
— Não faça isso!
— Fazer o quê?
— Falar!
As fagulhas agora se espalhavam no ar e a mudança na cor dos olhos
revelou que era Perry. Mesmo assim ver um cachorro falante era assustador.
Ela ficou de pé e continuou a olhar feio para o animal. Sentia uma
necessidade gritante de chutar alguma coisa para extravasar sua frustração,
e só tinha um cão na sua frente. Um labrador preto que neste momento
estava mudando de forma. Ela esperou até Perry se transformar.
— Por que, pelo amor de Deus, este seu traseiro canino está deitado
na minha porta?
— Eu fiquei com medo de Miranda sair e, se soubesse que era eu,
agitar seu dedo mindinho e fazer espinhas aparecerem na minha cara ou
coisa assim.
— Ok. — Ela apertou os olhos. — Mas isso não explica o que você
está fazendo na minha porta.
— Dãã, eu estava esperando você! — explicou ele com naturalidade.
— Sou sua sombra hoje.
— Ah, droga! Me esqueci... disso. — Ela respirou fundo e tentou se
conformar com o fato de ter alguém seguindo-a por todo lado como um...
cachorrinho sem dono.
Perry a estudou com seus olhos dourados.
— Você está furiosa comigo, não está?
— Não — disse ela, tentando conter a frustração. — Você tem razão.
Miranda teria enchido a sua cara de espinhas ou algo assim. Mas acabou de
quase me matar de susto falando comigo na forma de um cachorro. — Ela
colocou uma mão em cada lado da cabeça. — Isso me deixou zonza!
— Não, eu quis dizer furiosa por causa de toda a merda de ontem.
Kylie apenas olhou para ele.
— Você vai ter que ser mais específico. Porque um monte de merda
aconteceu ontem.
Ele sorriu, mas o sorriso desapareceu rapidamente.
— Quero dizer, quando perdi o rastro do casal de velhos que
estavam fingindo ser seus avós. — Um sincero pedido de desculpas se
estampou em seus olhos. — Eu falhei.
— Não foi culpa sua.
— Foi, sim. De quem mais seria? Eu era o único que devia segui-los.
— Que tal não culparmos ninguém? — Kylie começou a andar na
direção da trilha do escritório.
Ele começou a andar ao lado dela.
— Boa ideia.
Eles caminharam alguns minutos em silêncio. Kylie notou que o céu
estava salpicado de nuvens, bem brancas e fofas, e tentou não pensar no
casal de idosos que Perry seguira ou exatamente o que significava o fato de
terem evaporado no ar.
— Você acha que eles estão mortos? — perguntou ela.
— Quem?
— O casal de velhos.
As feições de Perry enrijeceram.
— Eu realmente não sei. Nunca vi seres humanos desaparecerem
daquele jeito.
Eles ficaram quietos novamente. A temperatura pela manhã ainda
não tinha subido a ponto de tornar o calor incômodo, mas ela podia senti-la
se elevando.
Perry lançou sua próxima pergunta.
— Você acha que Miranda vai algum dia aceitar o meu pedido de
desculpas?
Kylie olhou para ele.
— Você se desculpou?!
Ele pareceu sinceramente perplexo.
— Falei com ela. É a mesma coisa.
Kylie balançou a cabeça.
— Ah, não é, não. Falar com alguém não é um pedido de desculpas,
Perry. O que você fez, beijá-la daquele jeito e depois ignorá-la... Aquilo foi
cruel!
Ele franziu a testa e chutou uma pedra.
— Ela beijou Kevin! Eu fiquei furioso.
— Percebi — disse Kylie, lembrando-se do momento em que tinha
visto a imagem de Derek beijando Ellie. — E eu sei que dói, mas na verdade
foi Kevin quem a beijou. E, mesmo assim, dois erros não fazem um acerto.
Ela o flagrou verificando seu padrão cerebral e franziu a testa. Ele
não disse nada; continuou andando, mas desviou o olhar para o chão. Eles
não conversaram por algum tempo e então Kylie simplesmente deixou
escapar.
— Todo mundo diz que agora o meu padrão muda como o de um
metamorfo. É verdade?
— É — respondeu ele. — Mas o nosso só muda quando estamos nos
transformando.
Ela parou de andar e o encarou.
— Existe mais alguma coisa no meu padrão que faça com que ele se
pareça com o de um metamorfo? Quer dizer, você vê algum sinal de que eu
poderia ser um?
Ele sorriu.
— Você quer ser um metamorfo?
— Não. — Claro que não! — Quer dizer, não necessariamente. Eu só
quero descobrir o que eu sou. — Ela mordeu o lábio e decidiu ir direto ao
assunto. — Quantos anos você tinha quando começou a se transformar?
— Ah, eu era bem novo, novo demais. Cinco anos mais novo do que
a maioria dos metamorfos. Eu mal tinha feito dois anos de idade. Imagine o
que é ter de lidar com a birra de um metamorfo de 2 anos. Acabei com a
paciência dos meus pais. E com o casamento deles também.
Kylie sentiu um leve sentimento de mágoa na voz dele.
— Eles se separaram?
— Sim.
— Sinto muito.
— Ah... Não era problema meu.
Ah, era, sim. Os olhos dele tinham até adquirido um solitário tom de
castanho.
— Com quem você foi morar? Com a sua mãe ou com o seu pai?
Perry ficou calado por um minuto.
— Com nenhum dos dois.
Ela hesitou em perguntar, mas de algum modo pressentiu que ele
queria que ela perguntasse.
— Por quê?
— Acho que é porque eu era uma peste...
— Para onde você foi?
— A UPF tem um programa de adoção. Sabe, para crianças que não
têm para onde ir. Eu ficava um pouco em cada lugar...
Kylie sentiu que compreendia Perry melhor do que nunca. E ela
quase o perdoou por ser o engraçadinho que às vezes tentava ser.
— Era muito ruim? — ela perguntou, percebendo de repente que
tinha perdido todo o direito de se lamentar sobre o quanto a sua própria
vida tinha sido ruim.
— Não — disse ele. — Sou um metamorfo, aprendi a me adaptar... à
maioria dos lugares. Claro, eu não era convidado a voltar em alguns deles.
— Ele riu, mas, como Kylie já havia suspeitado, Perry escondia muita dor
por trás do seu senso de humor.
Ela também tinha a sensação de que havia muita coisa que ele
simplesmente não dizia. Não que ela o culpasse. E caramba! Nem conseguia
imaginar como ele devia ter se sentido passando de lar em lar.
— Sabe — disse ele, como se de repente quisesse mudar de assunto
—, alguns metamorfos só começam a se transformar quando estão na
adolescência. Talvez você seja um deles.
— Talvez. Mas eu seria meio-sangue. Os metamorfos meio-sangue
têm dons diferentes? Como fazer curas ou algo assim?
— Não que eu saiba. Tenho uns primos meio-sangue que têm
limitações; não é em tudo que podem se transformar. Um deles só pode se
transformar em pássaro. Eu costumava me transformar num gato e
persegui-lo por todo lado, e uma vez...
— Por favor, não me diga que você devorou o seu primo! —
espantou-se Kylie.
— Só torturei um pouco... — disse ele com um sorriso. — Quando
ele voltava a se transformar em gente, já estava bem outra vez. — Perry
suspirou e pareceu perdido em pensamentos. — Quer saber? Eu
provavelmente devia tentar encontrar os meus primos.
Kylie se perguntou se ele já teria pensado em encontrar os pais, mas,
sem querer forçar demais a barra, ficou quieta.
— Ah, claro! — exclamou ela, sorrindo e tentando manter a conversa
leve. — Aposto que eles iam adorar ver você de novo!
Poucos minutos depois eles chegaram ao final da trilha, onde
ficavam o refeitório e o escritório. Ela olhou em volta para ver se localizava
Helen, a tímida meio fae que tinha ajudado Kylie a verificar se tinha um
tumor no cérebro, mas não viu a garota em lugar nenhum.
Como Helen também tinha poder de cura, Kylie achava que ela seria
a pessoa mais indicada para esclarecer suas dúvidas sobre esse dom. Ela
queria fazer perguntas do tipo “Você j{ trouxe alguém de volta | vida?”.
Mas Helen não era uma das adolescentes que conversavam na frente do
refeitório.
Nesse momento, Kylie viu Burnett entrar no escritório e se lembrou
de que também tinha algumas coisas para falar com ele. Ela se virou para
Perry.
— Eu preciso conversar com Burnett um instante. Vejo você daqui a...
— Não, não vai me ver daqui a pouco, não — disse Perry. — Aonde
você for, eu vou. Não sei nem se você pode ir ao banheiro sozinha hoje. —
Ele sorriu. — E eu tenho carta branca de Burnett para me transformar num
tamanduá-bandeira gigante, chutar traseiros e perguntar depois, caso
alguém tente assumir o meu lugar.
Kylie revirou os olhos, sabendo que Burnett tinha falado sobre
Lucas. Pensando em Lucas, ela olhou em volta mais uma vez, mas ele
também não estava entre os outros campistas.
Olhando para trás, na direção de Perry, ela acrescentou:
— Tudo bem, mas eu vou falar com Burnett. E não acho que você
tenha que ficar lá dentro junto conosco.
Ele encolheu os ombros.
— Aonde você for, eu vou. Até Burnett me dispensar.
— Mas que inferno! Então, anda.
O café da manhã tinha começado meio estranho: ela entrando no
escritório de Holiday, Perry nos seus calcanhares e Burnett sentado à mesa
de Holiday pela segunda vez. Graças a Deus, Burnett dispensou Perry para
que conversassem. Kylie perguntou se havia alguma notícia sobre o casal de
velhinhos impostores e ele disse que nada tinha sido descoberto ainda.
Ela quase contou sobre o sonho com Ruivo, mas no último momento
decidiu que queria ser capaz de lidar sozinha com pelo menos uma coisa. E era isso. Se algo assim acontecesse de novo, ela ia falar com Holiday, mas por enquanto enfrentaria sozinha essa missão. Por mais louco que parecesse,
parecia o melhor a fazer. Queria acreditar que podia cuidar de si mesma.
Quando ela disse a Burnett que a tia de Holiday tinha falecido, ele
ficou aparentemente chocado e... algo mais. Levou um segundo, mas ela
reconheceu a emoção em seus olhos: mágoa.
— Por que ela não me contou? — perguntou ele.
— Tenho certeza de que ela só está lidando com a situação do seu
próprio modo. — Kylie tentou assegurar, mas percebeu que suas tentativas
foram inúteis. Quando se virou para sair, sem saber muito bem por que, ela
olhou para trás e disse: — Seja paciente com ela. Vai valer a pena.
No refeitório, ainda com Perry em seus calcanhares, Kylie olhou para
seu café da manhã composto de bacon, ovos e torrada. Para variar, os ovos
não estavam moles demais e o bacon não estava cru ou queimado. Mas ela
tinha dado apenas algumas garfadas, quando percebeu com pesar que todo
mundo estava olhando para a sua testa novamente. Perdeu o apetite
instantaneamente.
Uma sinfonia de ruídos — pessoas tagarelando, garfos retinindo e
bandejas sendo despejadas de qualquer jeito nas mesas — retumbava no
amplo salão. Tanto Miranda quanto Della estavam ausentes, e Kylie não
tinha localizado Helen nem Lucas.
Infelizmente, ela avistara Derek e Ellie.
Eles estavam sentados juntos à mesa, de costas para ela. E era natural
que Derek se sentasse com Ellie, considerando que era nova no
acampamento.
Na noite anterior, depois de fitar o teto por umas boas duas horas,
Kylie se resignara a não odiar Ellie ou Derek, mas aceitar as coisas e seguir
em frente — mesmo que isso significasse vê-los juntos como um casal.
Kylie também se propusera a cumprir a promessa que tinha feito a
Della e dar uma chance a Lucas. No entanto, mesmo depois de ter decidido
tudo isso, ver Derek e Ellie sussurrando um para o outro doía tanto quanto
ser picada entre os dedos por uma formiga saúva.
Tempo, Kylie disse a si mesma. Com o tempo, não doeria mais.
— Preciso apertar o botão “avançar” — ela murmurou.
— Apertar o quê? — Perry perguntou.
— Nada — disse Kylie. — Só estou falando sozinha. — Ela olhou
para cima e flagrou mais três ou quatro pessoas contraindo as sobrancelhas
para ela. Ela se virou e olhou para Perry. — Como está agora?
— Como está o quê?
— Meu padrão maldito... Todo mundo está olhando outra vez.
Perry se remexeu na cadeira.
— Ai, caramba! Está passando por aquela mudança de novo. Só que
mais rápido.
Kylie fechou os olhos.
— Estou tão cansada de ser a diversão de todo mundo, de ser a
aberração de Shadow Falls!
— Você não é uma aberração — discordou Perry, parecendo
preocupado. — Você só é diferente. — Ele deu uma cutucada de leve com o
cotovelo em Kylie. — Mas todo mundo gosta de você de qualquer maneira.
Ela abriu os olhos e murmurou:
— Obrigada.
— Vai comer esse pedaço de bacon? — Perry perguntou.
— Não. — Ela empurrou a bandeja para ele. Neste instante viu
Miranda aproximando-se com a bandeja de café nas mãos. Quando estava
prestes a se sentar ao lado de Kylie, estancou ao se deparar com Perry.
Ela ficou paralisada no lugar.
— O que ele está fazendo aqui? — perguntou para a amiga, como se
o metamorfo não pudesse ouvi-la.
— Tomando café da manhã — Kylie respondeu, esperando impedir
Perry de vir com alguma gracinha. Ao vê-lo abrir a boca, ela lhe deu um
bom pontapé por debaixo da mesa. Ele se encolheu, mas fechou a boca.
— Bem, então vou me juntar às minhas irmãs bruxas hoje e deixar
que aproveitem a companhia um do outro. — Miranda se virou para ir
embora.
Kylie pegou a amiga pelo braço, obrigando-a fazer uma parada
brusca que quase fez seus ovos voarem da bandeja.
— Sente-se. Por favor — Kylie implorou. Quando Miranda parecia
prestes a negar, ela acrescentou: — Eu estou precisando de apoio. — Ela
voltou os olhos para Derek e Ellie. E era verdade, ela precisava de apoio,
mas não poderia negar que também queria fazer Miranda superar sua
implicância com Perry. Ele realmente não era mau sujeito.
Miranda cedeu e desabou no assento do banco.
— Obrigada — murmurou Kylie e então perguntou: — Onde está
Della?
— Fora, bebendo sangue com outros vampiros — Miranda
respondeu ao mesmo tempo em que enfiava um pedaço de torrada na boca.
Kylie pegou seu leite e tomou um longo gole, enquanto procurava
mentalmente um tema de conversa que faria Miranda e Perry falarem.
— Então... — disse Kylie, largando a caixa de leite meio vazia sobre a
mesa. — Será que alguém sabe se Holiday já contratou professores para o
ano letivo?
Perry, como se percebesse a intenção de Kylie, aproveitou a deixa.
— Quando eu estava no escritório ontem à noite com Burnett, ele
recebeu o telefonema de um sujeito fae que Holiday supostamente
contratou. Acho que ele vai vir pra cá e se mudar pra uma cabana na
próxima semana.
Miranda, como se também percebesse o que a amiga estava
tramando, começou a encher a boca de ovos.
Kylie e Perry conversaram alguns minutos sobre o professor fae e
como seria estranho frequentar aulas de verdade no acampamento quando
chegasse o outono. Miranda continuou a enfiar comida na boca, como se
precisasse de uma desculpa para não falar.
Aceitando que o seu último assunto tinha se revelado um fracasso,
Kylie estendeu a mão para pegar seu leite novamente e voltou a pensar em
outro tema.
Finalmente, baixando a caixa de leite, olhou para Miranda e disse a
primeira coisa que lhe veio à mente.
— Você sabia que Perry quase devorou o primo quando tinha 2 anos
de idade?
 
Kylie viu quando Miranda deixou o garfo cair ruidosamente na
bandeja, inclinou-se para a frente e, pela primeira vez, fez contato visual
com Perry.
— O quê?
Perry sorriu. Só o fato de sentir o olhar de Miranda sobre ele fez o
rosto do garoto ficar vermelho e seus olhos adquirirem um belo tom
azulado. Por apenas um segundo, Kylie se perguntou qual seria a
verdadeira cor dos seus olhos.
— Não é verdade que eu quase devorei meu primo — defendeu-se
ele. — Só o mastiguei um pouco e depois cuspi. Eu era um gato e ele, um
pássaro. E ele era mais velho e sempre roubava meus biscoitos com formato
de bichinho.
Perry continuou falando e Miranda continuou ouvindo e, enquanto
se olhavam nos olhos, ambos pareciam quase hipnotizados. Kylie, dando-se
mentalmente os parabéns, recostou-se um pouco para não bloquear a visão
dos dois pombinhos. Então o telefone de Miranda tocou. Ela desviou os
olhos de Perry e pegou o celular, que estava ao lado da bandeja de comida.
Ao verificar o identificador de chamadas, soltou um gritinho de pura
euforia.
— É Todd Freeman! Ai, meu Deus! Ele está mesmo me ligando! — O
sorriso de Miranda brilhou em seus olhos, e ela sacudiu os quadris no banco, numa dancinha improvisada.
Demorou meio segundo para Kylie se lembrar de que Todd Freeman
era o bruxo também conhecido como “o garoto mais bonito da antiga escola
de Miranda”, que tinha pedido o telefone dela na competição entre os
bruxos. Kylie precisou da outra metade do segundo para perceber que isso
não podia ser boa coisa. Não para Perry, pelo menos.
O olhar de Miranda voltou a fitar o metamorfo loiro e, por uma
fração de um segundo, ela pareceu se sentir culpada. Nada muito evidente,
mas o bastante para dar a Kylie um pouco de esperança.
— Com licença — disse Miranda e, em seguida, levantou-se, com o
telefone no ouvido, e saiu do refeitório.
Perry acompanhou Miranda com os olhos enquanto ela se afastava e
então olhou para Kylie. Seus olhos estavam agora verdes brilhantes e
ligeiramente apertados, deixando-a entrever um indício de raiva. A cor em
suas faces, que demonstrava um contentamento evidente segundos antes,
tinha desaparecido. Por completo.
— Devo perguntar quem é Todd Freeman ou é melhor eu não saber?
A mente de Kylie começou a dar voltas, enquanto ela tentava
encontrar as palavras certas para responder.
— Ele é só... — Justamente quando achou que sabia o que dizer, que
tinha encontrado algo para acalmá-lo e, quem sabe, não fazê-lo ficar com
raiva, ela avistou Derek e Ellie saindo do refeitório. A mão de Derek,
pousada na parte inferior das costas de Ellie. Um toque inocente, mas não
tão inocente aos olhos de Kylie.
— Ele é só...? Continue! — pediu Perry.
Kylie voltou a olhar para Perry. Por que, ela se perguntou, estava tão
preocupada em consertar a vida amorosa de outras pessoas se não conseguia
nem mesmo consertar a própria?
— Eu não sei o que dizer, Perry. A vida é difícil. O amor é mais
ainda.
Trinta minutos depois do almoço — com Perry ainda seguindo seus
passos —, Kylie estava na frente do refeitório outra vez, procurando por
Helen. Ela suspeitava que a garota estivesse em meio à multidão de
campistas que aguardava, batendo papo, o sorteio de nomes da Hora do
Encontro.
Mas não estava.
Lucas se aproximou, seguido por Fredericka.
— Oi. — Ele chegou perto o suficiente para que seu ombro roçasse
no dela e seu calor fez Kylie se lembrar do sonho da noite anterior, quando
ele não tinha o mesmo calor. Ela o preferia quente. Com certeza preferia que
ele fosse ele mesmo e não o vampiro assassino psicótico.
— Oi — cumprimentou ela, tentando não olhar para Fredericka, que
se aproximava a passos lentos.
— Tudo bem? — Lucas perguntou, franzindo a testa ao ver Perry.
O metamorfo, que estava ao lado de Kylie, não pareceu nem um
pouco preocupado. Só acenou com a cabeça.
Fredericka continuou diminuindo o passo e, incapaz de se conter,
Kylie olhou para ela. A loba lançou um sorriso petulante para Kylie, sem
dúvida gabando-se por estar na companhia de Lucas.
Lucas baixou um pouco a cabeça na direção de Kylie.
— Desculpe por perder o café da manhã. Eu tinha um assunto da
alcateia pra tratar.
Um assunto da alcateia? Kylie não pôde deixar de imaginar se o
assunto da alcateia era sobre como manter Lucas longe dela. A frustração
cresceu em seu peito. Já era ruim o suficiente ter Fredericka tramando contra
ela, mas pensar que a alcateia inteira também antipatizava com ela era muito
para a sua cabeça. Ela olhou para Lucas.
— Eu... tenho que ir.
— Você está bem? — Ele se inclinou, com os olhos azuis cheios de
preocupação. Ela não tinha certeza se ele tinha percebido o medo em seus
olhos, devido ao sonho da noite anterior, ou seu ciúme pela loba que o
seguia como um cachorrinho perdido.
— Estou — ela mentiu, e começou a se afastar.
— Aonde vamos? — Perry perguntou, os passos em sincronia com
os dela.
— Encontrar Helen — Kylie respondeu, e olhou para a frente,
mesmo sentindo que Lucas ainda a fitava. Ela podia não ser capaz de
resolver seus problemas amorosos, mas talvez Helen pudesse lançar alguma
luz sobre todo o processo de cura e o fato de Kylie ter trazido um pássaro
morto de volta à vida. Com Holiday fora do acampamento, ela precisava de
toda a ajuda que pudesse conseguir.
Um pássaro azul deu um rasante e ficou bem na frente dela por um
milésimo de segundo antes de voar para longe. Será que as coisas podiam
ficam ainda mais bizarras?
Kylie balançou a cabeça. Ah, droga, o que ela estava pensando?
Estava em Shadow Falls; as coisas sempre podiam ficar mais bizarras.
Quando Kylie se aproximou da cabana da meio fae, virou-se e olhou
para Perry direto nos olhos.
— Eu quero falar com Helen sozinha.
— Não dá — disse ele.
Kylie franziu a testa.
— Perry, estou falando sério.
— Eu também — disse ele, sem um toque de sarcasmo ou humor na
voz, o que para Perry era uma raridade. — Olha, eu sei que você não me
quer no seu pé o dia todo, mas Burnett me contou o que aconteceu com a
águia e a cobra e, em seguida, com o cervo. E além de eu não querer que
você seja atacada por um ser maligno da minha própria espécie, não posso
falhar de novo. Eu já ferrei com tudo uma vez perdendo de vista o casal de
velhos, e não vou fazer isso outra vez... E você vai ter que me engolir.
Kylie franziu a testa, mas compreendeu. Quem ali iria querer ferrar
com tudo? E por mais que ela não quisesse aceitar que estava em perigo, não
podia negar a possibilidade de Burnett estar certo. Ela também não queria
ser atacada por um ser maligno da espécie de Perry.
Ela olhou o metamorfo nos olhos amarelos, e viu ali um toque de
insegurança. Se sentiu mal por isso.
— Só que eu preciso fazer algumas perguntas a Helen e não tenho
certeza se ela vai se sentir à vontade para responder com você ao lado.
— E se eu me transformar em outra coisa e não me aproximar muito?
Kylie de repente teve uma ideia. Não tinha certeza se ia dar certo,
porque não sabia como funcionava toda aquela coisa de metamorfo de se
transformar, mas valia a pena tentar.
— Que tal você se transformar num gato branco de olhos azuis
brilhantes?
— A última vez em que me transformei num gato, você ficou louca
da vida, torceu minhas orelhas e ameaçou me castrar.
— Bem, não espie mais pelas janelas da minha cabana e você não vai
estar em perigo. Apenas não se esqueça de que tem de ser um gato branco
de olhos azuis. Ah... e tem que ser macho.
— Como se algum dia eu fosse me transformar numa gata... — ironizou ele.
— Então se transforme já! — exigiu ela.
— Tudo bem. — Ele fez um aceno com a mão e as centelhas
começaram a aparecer.
Em apenas alguns segundos, Perry desapareceu e um gato branco de
pelos longos, focinho alongado e lindos olhos azuis apareceu em seu lugar,
balançando o rabo.
O felino era tão adorável que ela teve que se refrear para não pegá-lo
no colo e acariciar seu pelo macio.
— Que gracinha! — Kylie exclamou.
O gatinho, ou melhor, Perry, inclinou a cabeça para o lado como se
estivesse intrigado. Depois esticou a pata e coçou a orelha direita.
Funcionou!, pensou Kylie, sorrindo, ao se lembrar da razão que a
fizera insistir para que ele se transformasse num gato branco.
— Eu não estou ouvindo nada! — disse Perry. — Como você fez
isso?
Kylie teve que morder o lábio inferior para não soltar uma risada.
— Não é culpa minha. Muitos gatos machos brancos e de olhos azuis
são surdos. — ela explicou, pronunciando as palavras bem devagar para que
ele pudesse fazer leitura labial. — Você pode ver tudo. — Ela apontou para
seus olhos. — Mas não pode ouvir.
— Que sacanagem! — reclamou Perry, obviamente capaz de ler os
lábios dela.
Kylie sorriu.
— Não, foi genial! Agora fique para trás.
— Mas vou ficar onde eu possa ver você.
— Tudo bem. — Ela foi até a cabana de Helen e manteve-se atenta a
qualquer metamorfo indesejado.
Helen atendeu à porta quase imediatamente.
— Ei, você veio me ver! — Ela deu em Kylie um abraço tão apertado
e exibiu um sorriso tão grande no rosto que Kylie sentiu um pouco de culpa
por não tê-la visitado antes. Helen era..., bem, um pouco tímida e não tinha
muitos amigos.
No entanto, um pouco da culpa se desvaneceu quando ela se
lembrou de que tinha convidado Helen para ir à sua cabana várias vezes. A
meio fae sempre recusava o convite, porque estava passando todo o seu
tempo livre com Jonathon, seu novo amor.
— Vamos entrando — convidou Helen.
Kylie começou a entrar na cabana, mas se lembrou de Perry.
— Eu não posso.
— Por quê? — Helen perguntou, alisando o cabelo castanho-claro.
— Eu estou com a minha sombra.
— Ah, certo. — Os olhos castanhos de Helen se arregalaram um
pouco de preocupação. — Jonathon estava me contando sobre o que
aconteceu. Acham que alguns metamorfos burlaram o sistema de segurança.
Você está bem? Quer dizer, primeiro aquele fim de semana e agora isso... —
Helen saiu e fechou a porta da cabana. Foi até a borda da varanda e sentou
se no assoalho de madeira.
— Estou bem — Kylie respondeu, o que não era bem verdade, mas
ela não precisava despejar seus problemas sobre Helen.
— Você realmente viu o intruso? — Helen perguntou.
Kylie se sentou ao lado da garota, deixando os pés penderem para
fora da borda da varanda.
— Era uma águia e uma cobra e, em seguida, um cervo. E nós não
temos nem certeza de que era alguma coisa de fato. Podem nem ser
metamorfos. — Ou pelo menos era isso que Kylie dizia a si mesma. E visto
que nada mais tinha acontecido, estava ficando mais fácil acreditar (se ela
não se lembrasse do olhar cruel que tinha visto nos olhos da águia e do
cervo).
Kylie de repente percebeu dois pássaros planando sobre elas. Um
arrepio de medo percorreu sua espinha e ela olhou em direção ao bosque,
para ver se conseguia localizar Perry.
Ele não parecia muito preocupado. Tinha encontrado um local em
que batia sol, em meio às árvores, e estava estendido no chão, como se
apreciasse o calor.
— Quem é a sua sombra? — Helen perguntou, seguindo o olhar de
Kylie, mas obviamente sem notar o gato.
— É Perry. Eu o fiz se transformar num gato branco de olhos azuis.
Helen arqueou uma sobrancelha como se compreendesse.
— Assim, ele não pode nos ouvir. Boa ideia! — exclamou, tirando
uma formiga do seu joelho.
Elas ficaram sentadas ali por alguns segundos em silêncio, ambas
balançando as pernas para trás e para a frente.
Finalmente, Kylie falou.
— Você se importaria de me responder algumas perguntas sobre
cura?
— Tudo bem, ouvi dizer que você curou sua amiga — disse Helen.
— E depois Lucas, também. Que legal!
Kylie mordeu o lábio.
— É. É legal. Quer dizer, eu ainda estou tentando entender essa coisa
de cura, mas gosto da ideia de poder fazer isso. É por isso que eu queria
saber mais a respeito. Não sei como tudo funciona.
De repente, milhares de perguntas começaram a pipocar na sua
cabeça. Ela podia curar qualquer pessoa? Podia ir a um hospital e
simplesmente curar todo mundo?
— Holiday não falou com você sobre isso? — Helen puxou uma
perna para cima.
— Ela tentou. Eu simplesmente não estava pronta para ouvir. Então
ela teve que deixar o acampamento. A tia dela morreu, mas ela deve estar de
volta esta tarde.
— Poxa, que chato! — disse Helen com sinceridade, e em seguida
acrescentou: — Holiday disse que nós duas íamos começar a nos reunir com
ela de vez em quando para discutir a cura em grupo. Eu li muito a respeito,
mas ainda há muito mais para saber sobre esse dom.
— Existem livros sobre a cura sobrenatural? — Kylie perguntou,
surpresa.
— Sim, há uma biblioteca inteira sobre todos os assuntos
sobrenaturais.
— Sério? Eu nunca ouvi falar dela.
— Mas ela existe. São toneladas de livros sobre praticamente
qualquer assunto.
Qualquer assunto? Se fosse verdade, Kylie não conseguia deixar de
pensar se poderia haver alguma informação em algum lugar sobre
anomalias como ela mesma.
— Quem...? Quer dizer, como se consegue esses livros?
— Na biblioteca da UPF. Se é que você pode chamá-la de biblioteca.
É mais como um cofre cheio de livros. Demorou quase um mês para eu ser
aprovada e me deixassem verificar os livros que pedi. Burnett finalmente
intercedeu e conseguiu que me aprovassem.
— Por que eles não querem que você leia sobre cura ou... qualquer
outro assunto sobre seres sobrenaturais?
— Sei lá.
Kylie refletiu sobre aquilo por alguns minutos e então perguntou:
— O que você aprendeu sobre cura?
— Muitos livros são sobre homeopatia. Mas alguns falam sobre o
básico, como os diferentes tipos de curadores.
— Existem tipos diferentes?
Helen fez que sim com a cabeça.
— E níveis diferentes.
— E isso depende da espécie que você é?
— É, digamos que sim. Esse dom é mais comum em fadas e bruxas.
Mas é encontrado em todos os tipos de meio-sangue, também. Cheguei a ler
um livro que dizia que alguns meio-sangue podem ter mais poderes de cura
do que os puro-sangue.
Kylie tentou absorver tudo o que Helen estava dizendo.
— Quais são os diferentes tipos?
— Bem, alguns de nós podem apenas aliviar a dor, mas não
realmente curar. Algumas bruxas podem curar misturando poções e
realizando certos rituais. E existem aqueles que curam doenças internas,
como o câncer, por meio do toque. E também há alguns que são como você.
— Como eu? — Kylie perguntou, confusa.
— Que podem curar problemas internos, como o câncer, e também
ferimentos, como você fez com sua amiga Sara e Lucas.
— Você não pode curar ferimentos? — Kylie perguntou.
— Não. Mas bem que eu gostaria. Jonathon caiu um tempo atrás e
cortou a mão. Tentei várias vezes curá-lo, mas não deu em nada.
Kylie tentou absorver a nova informação. Mas principalmente o que
ela absorveu foi o fato de que, mais de uma vez, se comprovava que ela era
uma anomalia. Será que, pelo menos uma vez, ela não poderia se encaixar
numa categoria?
— Você parece preocupada — percebeu Helen, olhando para ela.
— Estou um pouco — Kylie admitiu. — E acho que tudo isso ainda é
demais pra mim.
— Ei, no seu lugar eu ficaria feliz de não ser do tipo realmente
estranho.
— De que tipo você está falando?
— O tipo que pode ressuscitar os mortos. Porque cada vez que fazem
isso, abrem mão de uma parte da sua alma. Isso, sim, é realmente estranho, não acha?
Um arrepio de medo envolveu o coração de Kylie.
— É. Superestranho.
Kylie recebeu uma mensagem de Holiday no celular quando voltava
para a sua cabana. Problemas. Só vou poder voltar amanhã. Você está bem?
Se eu estou bem? Kylie quase riu alto. Claro que não, ela não estava
bem! Ela tinha doado uma parte da sua alma para uma gralha azul e não
sabia o que isso significava.
Assim que os deveres de Perry como sombra chegaram ao fim e ele
foi substituído por Della, Kylie pegou o telefone e começou a sair da cabana,
sentindo-se totalmente em desespero. Holiday não estava ali, mas Burnett
estava. Ele poderia não ter nenhuma resposta, mas pelo menos ela poderia
dizer pessoalmente a ele que queria um cartão da biblioteca da UPF para
poder emprestar os livros. Se houvesse de fato a menor chance de a
biblioteca ter algo que a ajudasse a descobrir o que ela era, então, Kylie
passaria anos, se preciso, com o nariz enfiado nos livros.
— Aonde vamos? — Della perguntou, seguindo Kylie para fora.
— Falar com Burnett sobre o meu problema.
— Que problema?
— Você tem um problema? — Miranda perguntou ao se juntar a elas
na varanda da cabana.
— É só uma neura — respondeu Kylie, sem saber se queria explicar
do que se tratava e recomeçando a andar.
— Que tipo de neura? — Miranda perguntou. — Tem alguma coisa a
ver com Perry estar apaixonado por você?
— O quê? — Kylie perguntou, sem muita paciência.
— Eu vi o jeito como ele ficou colado em você o dia todo.
— Ah, pelo amor de Deus! Ele ficou colado em mim porque foi
incumbido de ser a minha sombra. — Ela encontrou o olhar de Miranda. —
Ok, olha aqui. Eu vou dizer só uma vez. Perry está apaixonado por você.
Mas, se você não parar de bancar a difícil, vai acabar de mãos vazias.
— Amém, irmã! — apoiou Della.
O rosto de Miranda ficou sério e ela olhou primeiro para Della e, em
seguida, para Kylie.
— Desde quando vocês duas passaram para o lado dele?
Kylie fechou os olhos de tanta frustração.
— Tudo bem, ele estava errado quando fez aquilo, mas você admitiu
que também estava errada em beijar Kevin. É hora de superar tudo isso ou
desistir de Perry.
— Você faz isso parecer fácil. — A mágoa era perceptível na voz de
Miranda.
— É fácil — disse Della. — É só se beijarem e fazerem as pazes.
Miranda ignorou Della e olhou para Kylie.
— Como se você não tivesse problemas com Derek. — Ela virou-se
para Della. — E você com Lee.
— É diferente! — Della protestou, com os olhos mais brilhantes, ao
ficar imediatamente na defensiva.
Não, não era diferente, Kylie percebeu.
— A verdade é que nos três estamos no mesmo barco. Na droga do
barco do amor. E Della e eu fizemos um pacto ontem. — Ela olhou para
Della, esperando que ela não ficasse chateada por ela estar contando a
Miranda. Mas elas eram uma equipe, não eram?
Felizmente, a vampira não pareceu chateada, então Kylie continuou.
— A gente está seguindo em frente. Eu vou superar o fato de Ellie e
Derek estarem juntos, e dar uma chance a Lucas. Della vai tentar ser
simpática com Steve e ver o que acontece. Você quer se juntar ao pacto?
Miranda fez uma careta.
— Mas Todd Freeman me ligou esta manhã. Ele disse que pode vir
aqui neste fim de semana para uma visita.
— Quem é Todd? — Della perguntou.
— O bruxo todo gato da antiga escola dela — Kylie esclareceu, e
olhou de volta para Miranda. — Olha, se você não quer ou não consegue
perdoar Perry, tudo bem. Só não pode ficar em cima do muro.
— Isso mesmo. Ou faz ou sai da moita — Della despejou.
— Não estou em cima do muro — insistiu Miranda. — Nem na
moita.
— Sim, você está — discordou Kylie. — Você ainda se importa ou
não estaria com ciúme.
Então o que dizer sobre ela mesma e Derek? Kylie tentou afastar a
pergunta da cabeça.
— Mas e se eu dispensar Todd e depois Perry voltar a ser um
babaca?
— Não há garantias — rebateu Kylie. — Nem no amor nem na vida.
Mas não podemos viver sem nunca assumir riscos. E é isso o que todas nós
estamos concordando em fazer. Nos arriscando. Dando uma chance para os
garotos. Podemos acabar nos magoando, mas talvez não.
Miranda ficou parada ali, a expressão reflexiva, como se
considerasse a oferta.
— Ok, que tal eu fazer um pacto para conversar com Perry e tentar
cumpri-lo?
— Conversar é um bom começo — disse Kylie.
— Beijar seria melhor. — Della sorriu.
Kylie voltou a andar. Miranda e Della a seguiram.
— Então, qual é a neura que você precisa discutir com Burnett? —
Miranda perguntou.
Kylie suspirou.
— Eu entreguei uma parte da minha alma e acho que a quero de
volta.
 
— Qual o problema? — Burnett gritou de dentro do escritório de
Holiday alguns minutos depois de Kylie entrar no escritório principal do
acampamento.
Holiday tinha providenciado um escritório para Burnett nos fundos
da cabana, mas aparentemente ele preferia usar a sala dela em sua ausência.
Não que Kylie o culpasse.
O escritório de Holiday era pequeno, mas agradável. Havia um sofá
encostado numa parede, o que só deixava espaço para uma mesa e alguns
armários. Mas Holiday tinha adicionado o seu toque pessoal ao espaço
minúsculo. Plantas, tipos diferentes de samambaias, e mesmo algumas ervas
medicinais enfeitavam todos os cantos. Mesmo o cheiro do lugar era o de
Holiday, um leve aroma floral. E em cima do grande arquivo de metal havia
vários cristais de cores diferentes. A luz que vinha da janela da frente
invadia o cômodo e incidia sobre os cristais, refletindo as cores do arco-íris
nas paredes.
Burnett fechou rapidamente algumas pastas que estavam sobre a
mesa e, em seguida, recostou-se na cadeira de Holiday. Kylie não conseguia
deixar de imaginar se Burnett não estaria usando o escritório simplesmente
porque a presença dela era quase palpável ali.
— O que há de errado? — ele perguntou de novo.
Ela simplesmente despejou:
— Você sabe alguma coisa sobre poder de cura? — Ela desabou na
cadeira em frente à escrivaninha.
— Não muito, mas alguma coisa.
— Se eu trouxer algo de volta à vida, posso perder uma parte da
minha alma?
Ele franziu um pouco mais a testa.
— O que aconteceu? Alguém se machucou? Você teve que...?
— Não uma pessoa — Kylie respondeu. — Um pássaro.
— Ah... Holiday me falou sobre isso — respondeu Burnett. Ele se
inclinou para a frente. — No entanto, ela disse que não tinha certeza se o
pássaro estava morto.
— Parecia morto — disse Kylie. — E eu só quero saber: eu perdi uma
parte da minha alma quando eu o trouxe de volta à vida? E o que isso quer
dizer?
Burnett cruzou os braços sobre a mesa.
— Eu não sei tanto sobre isso quanto tenho certeza de que Holiday
sabe, mas ela não estava preocupada. Então eu não acho que você tenha que
se preocupar.
Não satisfeita com a resposta, Kylie se lembrou da segunda questão
que queria discutir.
— Eu quero um cartão da biblioteca.
— Quer o quê? — perguntou ele.
— Quero poder ler os livros que a UPF tem em sua biblioteca.
Ele franziu a testa.
— Não é uma biblioteca, ou pelo menos não uma biblioteca comum.
Antes que você possa pegar um livro emprestado, ele tem que passar por
uma inspeção.
— Por quê?
— Porque muitos itens do acervo são documentos da UPF.
— E o que a UPF está escondendo?
Ele parecia quase irritado com a pergunta.
— Não estamos escondendo nada. Mas não podemos deixar que
pessoas normais ponham as mãos nos livros.
Ela apontou a própria testa.
— Eu pareço normal pra você?
— Ainda assim temos que ter cuidado.
— Então você está me dizendo que eu não posso consultar os livros.
O semblante de Burnett ficou ainda mais carregado.
— Eu vou ver se você pode consultar alguns livros sobre cura —
acrescentou, como que querendo consolá-la.
— Que outro tipo de livros vocês têm? — perguntou ela.
— Não é uma biblioteca, Kylie — disse ele com firmeza, e depois se
recostou na cadeira e não falou mais. Por fim, o silêncio constrangedor levou
Kylie a outra pergunta.
— Alguma notícia sobre os idosos que fingiram ser meus avós?
Sua expressão reservada desapareceu.
— Acabei de receber uma ligação. As digitais pertencem aos
proprietários do carro. Receio que isso não possa nos ajudar. Sinto muito.
Mas eu posso te devolver isso. — Ele lhe entregou o envelope pardo que
continha as fotos do pai dela. — Você realmente se parece com o seu pai.
A preocupação genuína em seus olhos e seu tom de voz deveriam tê
la feito se sentir melhor, mas apenas confirmaram as suspeitas de que ele
não tinha sido completamente sincero sobre a UPF e a biblioteca. O que a
UPF estava escondendo?
Kylie pegou o envelope.
— Obrigada — disse ela. Embora não fosse começar a desconfiar de
Burnett, iria proceder com cautela quando lidasse com ele.
Kylie começou a sair quando Burnett olhou para a porta e disse:
— Entre.
Lucas entrou. Ele olhou diretamente para Burnett.
— Eu gostaria de ter permissão para levar Kylie à clareira atrás da
cabana dela.
— Isso é com ela — disse Burnett.
— Sem a sombra — completou Lucas.
Kylie podia ver o quanto custava para Lucas pedir a permissão de
Burnett. Ela se lembrou de algo que Della tinha dito sobre lobisomens
odiarem ser submissos. E pedir permissão era um gesto de submissão.
No entanto, pelo olhar no rosto de Burnett, o pedido de Lucas tinha
lhe rendido algum respeito e, com um pouco de sorte, alguns minutos para
ficar com Kylie. Burnett olhou para Kylie como se para se certificar de que
ela concordava, e ela balançou a cabeça.
— Depois voltem para a cabana. E fiquem na trilha. — Burnett olhou
na direção da janela. — Della assume novamente quando chegarem à
cabana. Você ouviu, Della?
— Sim — veio a resposta, e Kylie revirou os olhos um pouco, se
perguntando se Della sempre estava com os ouvidos atentos.
Della e Miranda tinham ido embora quando Kylie e Lucas saíram do
escritório. O ar da tarde estava quente, mas tolerável. Os poucos campistas
por ali estavam na frente do refeitório. Kylie viu Will, outro lobisomem, um
pouco mais afastado, observando-os. Ela também viu Lucas franzir a testa
para ele.
— Vamos. — Lucas começou a caminhar em direção à trilha.
Só depois que fizeram a primeira curva e saíram do ângulo de visão
dos outros campistas, Lucas pegou a mão dela. Só então Kylie suspeitou que
Fredericka não estava inventando quando falou da desaprovação da alcateia
com relação a ela.
Kylie começou a perguntar, mas Lucas falou primeiro.
— Você está bem? — Ele parou e se virou para encará-la. Seus olhos
azuis analisaram-na com intensidade. — Por um segundo, ficou com medo
de mim esta manhã, e depois simplesmente fugiu como se estivesse furiosa,
com Perry em seu encalço.
Ela hesitou em lhe contar, mas queria que Lucas fosse sincero com
ela, então precisava ser sincera com ele.
— Não era de você que eu estava com medo. Ontem à noite fui
atraída para um sonho lúcido. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas
você estava lá.
— Não, não era eu — disse ele.
— Agora eu sei que não era você. Era Ruivo, o neto de Mario. Ele
apareceu como se fosse você a princípio.
Lucas ficou ali parado como se refletisse.
— Ele é um vampiro. Não tem sonhos lúcidos.
— Bem, ele teve. Não sei como, mas teve.
— Talvez tenha sido um sonho normal.
Ela balançou a cabeça.
— Eu sei a diferença agora.
— Você contou a Burnett?
— Não — ela admitiu. — Eu... vou resolver sozinha. Sei como
impedi-lo de fazer isso de novo. Se acontecer novamente, eu conto. Ou conto a Holiday.
Ele franziu a testa.
— O que aquele pirado fez no sonho? Ele não...
Ela entendeu o que ele estava insinuando.
— Só colocou as mãos na minha cintura. Então percebi que não era
quente como você. — Pela primeira vez ela se perguntou por que Ruivo não
tinha tentado ir além disso. Ela deveria estar feliz por ele não ter tentado. Só
de imaginar ter de beijá-lo já ficava enjoada.
Lucas puxou-a contra ele.
— Eu realmente quero pegar esse vampiro nojento. — Ele passou os
braços em torno dela. Ela ficou ali por alguns segundos, o rosto pressionado
contra o peito dele, absorvendo o seu abraço. Por fim, levantou o rosto e
olhou para ele.
Ele pressionou os lábios contra os dela. Não foi um beijo muito
ardente, mas foi bom. Bom o suficiente para que ela se esquecesse da
sensação de que ele era sempre seguido por Fredericka.
— Então você não está brava comigo? — perguntou ele.
— Só um pouco — admitiu ela.
Ele parecia perplexo.
— Por quê?
Ela não tinha ideia de como dizer, mas então resolveu simplesmente
extravasar sem pensar muito a respeito.
— Toda vez que vejo você, Fredericka está ao seu lado.
Ele pressionou a testa contra a dela.
— Eu já lhe disse que não está acontecendo nada.
— Eu sei, e acredito em você, mas ela é tão... presunçosa!
Ele deu um meio sorriso.
— Ela é um lobisomem. A presunção é uma coisa instintiva.
— Tanto faz. Eu não gosto.
Seu meio sorriso desapareceu.
— Ela faz parte da minha alcateia. Não posso expulsá-la sem uma
boa razão e sem que isso acarrete grandes consequências para ela.
O fato é que ele se preocupava com Fredericka e isso a incomodava,
mas depois percebeu que ela também não queria que nada de ruim
acontecesse a Derek. Mas não era só Fredericka que causava problemas.
— A alcateia não quer você comigo, não é?
Ele pareceu um pouco chocado. Ela quase repetiu o que Fredericka
tinha lhe dito, mas não quis bancar a namorada ciumenta.
— É pura estupidez — disse ele. — Não importa o que eles querem.
— Não mesmo?
— Não, não importa — disse ele, categórico. — Eu me recuso a
deixar alguém me dizer de quem eu tenho que gostar ou com quem posso
andar. Além disso, você pode acabar descobrindo que é uma de nós.
— E se eu não for?
— Ainda assim não importa — disse ele, mas a convicção em sua voz
tinha diminuído.
— O que vai acontecer? — perguntou ela.
— Nada. Porque eu não vou deixar nada acontecer. — Ele tocou o
rosto dela. — Isso é problema meu. Deixe que eu cuido dele.
Trinta minutos depois, Kylie entrou em seu quarto gelado — isso
mesmo, ela tinha um visitante fantasmagórico, mas estava determinada a
ignorá-lo. Precisava refletir sobre sua conversa e suspeitas com relação a
Burnett e sobre o que Lucas dissera. A atitude da alcateia era problema dele, mas a afetava. Ela também queria passar algum tempo contemplando o
rosto do pai. Podia parecer estranho, mas Kylie esperava que, olhando as
fotos, de algum modo o sentisse mais perto dela.
— Alguém vive e alguém morre.
Kylie franziu a testa. Ok, ignorar o espírito provavelmente seria mais
difícil do que ela pensava, especialmente porque a mensagem que o
fantasma lhe transmitia era supostamente dos anjos da morte.
O mesmo tinha dito a tia de Holiday, no dia anterior.
— Quem vive e quem morre? — Kylie se virou para ver o fantasma
da mulher flutuando atrás dela. Desta vez ela tinha cabelos, castanhos e
longos, até os ombros.
— Eles não dizem. Mas disseram que não é culpa sua.
— O que não é culpa minha? — Kylie perguntou.
O espírito encolheu os ombros.
— Eles nunca explicam nada. Apenas me dizem para transmitir a
mensagem. — Ela mordeu o lábio inferior. — Eles me assustam.
Kylie caiu sobre a cama, e foi então que percebeu outra coisa sobre o
fantasma. Ela estava grávida. A camisola rosa da maternidade moldava-se à
sua barriga arredondada.
Reprimindo a frustração, Kylie fez um gesto com a mão, apontando
para o ventre da mulher.
— Você está grávida.
A mulher olhou para baixo e pousou as mãos na barriga.
— Como isso aconteceu?
Kylie balançou a cabeça.
— Se eu estivesse em casa, poderia lhe dar um panfleto explicando
tudo passo a passo. O espermatozoide encontrando o óvulo e coisa e tal.
Minha mãe me dá um desses quase todo mês. Mas, basicamente, significa
que você fez sexo com alguém.
O espírito pareceu mais perplexo ainda.
— Sexo?
— Por favor, me diga que você sabe o que é, porque eu sou muito
jovem para ter com você toda aquela conversa sobre sexo que os pais
costumam ter com os filhos. Eu nem sequer a tive ainda. Simplesmente os panfletos.
— Eu sei o que é sexo. Estou apenas... Com quem eu fiz sexo? — Ela
perguntou. — Eu não me lembro.
— Eu não saberia dizer.
O espírito se aproximou e o frio aumentou. Ela se sentou na cama ao
lado de Kylie, as palmas das mãos ainda sobre a barriga. Fechando os olhos,
ficou sentada ali em silêncio. Kylie percebeu que ela estava buscando
lembranças em sua mente, tentando se lembrar.
Kylie cruzou os braços para espantar o frio. Depois de vários
minutos em silêncio, o fantasma abriu os olhos, mas continuou a olhar para
a barriga arredondada. Suas mãos começaram a se mover ternamente sobre
a criança que carregava dentro dela, como se quisesse demonstrar sua
afeição.
Kylie nunca tinha visto alguém expressar tanto amor com um
simples toque. Por um segundo, ela se perguntou qual seria a sensação de
carregar uma criança dentro da própria barriga.
Quando o espírito olhou para cima, tinha lágrimas nos olhos. — Eu acho que o meu bebê morreu.
A tristeza no rosto da mulher e em sua voz provocou um nó na
garganta de Kylie.
— Sinto muito.
Então o espírito tirou as mãos da barriga e viu que suas palmas
estavam sangrando. Kylie quase perdeu o fôlego quando viu que o ventre
arredondado tinha desaparecido e a frente da camisola dela estava
encharcada de sangue.
— Não! — A mulher soltou um soluço profundo e doloroso que
ressoou pelo pequeno cômodo e pareceu ecoar nas paredes.
Kylie abriu a boca para dizer alguma coisa, perguntar se o espírito
conseguia se lembrar do que tinha acontecido, dizer novamente que sentia
muito e oferecer mais palavras de compreensão. Mas antes que pudesse
dizer qualquer coisa, a mulher desapareceu.
O frio fantasmagórico também desapareceu, deixando no ambiente
uma onda gelada de tristeza e dor tão intensa que deixaram o peito de Kylie
apertado. E não era uma dor qualquer. Era a tristeza de uma mãe que
perdeu o filho.
Kylie estendeu o braço para pegar o travesseiro e o abraçou.
Depois de alguns minutos, Kylie tirou do envelope as fotografias e
analisou cada uma delas lentamente. Quando chegou à de sua mãe com
Daniel, em meio a um grupo de pessoas, pegou o telefone.
— Oi, querida. — A voz da mãe trouxe de volta o sentimento de
solidariedade que Kylie sentia pelo espírito.
— Oi, mãe.
Estranho como, pouco tempo antes, Kylie tinha certeza de que sua
mãe não a amava e nem mesmo a queria por perto. Agora, não tinha dúvida
da devoção que a mãe tinha por ela. No fundo, Kylie se perguntava se aquilo
faria parte do crescimento. A parte em que os adolescentes deixavam de ver
os pais como instrumentos para destruir sua vida e começavam a vê-los
como pessoas.
O relacionamento delas não era perfeito, é claro. Kylie sabia que a
mãe ainda tinha falhas — e muitas —, mas nenhuma delas envolvia o seu
amor pela filha. E nenhuma delas impedia Kylie de amá-la.
— Estou feliz por você ter ligado — disse a mãe. — Eu estava com
saudade da sua voz.
— Eu também — Kylie conseguiu dizer com a voz embargada,
desejando que a mãe estivesse ali para abraçá-la. Ela queria poder contar a
ela sobre as fotos, mas depois teria que explicar sobre os Brightens, e não
achava que toda aquela confusão fosse fácil de esclarecer. Pelo menos não
ainda.
— Eu ia ligar hoje à noite, se você não tivesse ligado — a mãe disse.
— Sinto muito, tenho corrido um pouco desde que voltei.
— Imaginei. Sara ligou e disse que tentou falar com você, mas você
não retornou a ligação. Ela parecia tão bem! Disse que foi como um milagre;
o câncer desapareceu.
— Tenho certeza de que foi um dos tratamentos que ela fez — Kylie
disse, mordendo o lábio inferior e querendo saber como ia lidar com toda a
questão da cura de Sara. Não havia retornado a ligação da amiga porque
queria falar com Holiday sobre isso primeiro. Pobre Holiday... Quando ela
voltasse, Kylie teria uma lista de coisas para tratar com ela.
— Eu também acho — disse a mãe. — Mas eu gostaria de acreditar
em milagres.
— Então você deve acreditar — disse Kylie, agora sem saber o que
dizer à mãe sobre o assunto. Porque mais do que nunca, Kylie sabia que
milagres existiam. O fato de ela ser capaz de realizá-los ainda a intrigava.
— Você está bem? — a mãe perguntou, como se adivinhasse o estado
de espírito de Kylie.
— Estou bem.
— Não, você não está — disse a mãe. — Eu sinto isso em sua voz.
Qual o problema, querida?
— Só problemas com... garotos — disse ela.
— Que tipo de problema? — a mãe perguntou, a tensão em sua voz
indicando que ela se preocupava que o problema de Kylie envolvesse sexo.
— Não é nada de importante. — Tentando mudar de assunto, Kylie
perguntou: — Como foi o trabalho hoje?
— Foi estranho — disse a mãe. — Tenho um cliente novo.
— Por que isso é estranho? — Kylie perguntou. Sua mãe trabalhava
no ramo da publicidade e vivia atendendo a novos clientes.
— Ele é estranho.
— Estranho em que sentido? — Kylie perguntou, satisfeita ao ver
que a conversa tinha tomado outro rumo.
— Ele parecia mais interessado em mim do que... na campanha. — A
mãe riu.
Kylie franziu a testa.
— Defina “interessado”.
— Ah, não sei. Foi apenas a maneira como agiu — disse a mãe, como
se estivesse tentando não dar muita importância ao caso. — Nós devemos
almoçar amanhã e discutir suas ideias para a promoção da sua nova linha de
vitaminas.
— É um almoço de trabalho ou um... encontro na hora do almoço?
— Não seja boba — disse a mãe. — É trabalho.
— Tem certeza? — Kylie perguntou. — Quer dizer, se ele parecia
interessado...
— Eu acho que é trabalho — disse ela, sem muita convicção. —
Mas... se fosse um encontro, como você se sentiria?
Kylie respirou fundo. Uma imagem de seu padrasto apareceu na sua
cabeça. Ela se lembrou dele, sentado na beira da cama apenas algumas
semanas atrás, chorando ao dizer a Kylie que ele tinha cometido um erro
terrível. Ela sabia que ele queria se reconciliar com a ex-mulher e, embora
Kylie não tivesse certeza se ele merecia uma segunda chance depois de
enganar a mãe, não podia negar que queria que pelo menos uma coisa em
seu mundo voltasse a ser como antes.
— Você não está respondendo — insistiu a mãe.
Kylie engoliu em seco, indecisa, e olhou para a foto em suas mãos.
Seria justo da parte dela querer que a mãe perdoasse o padrasto apenas para
trazer de volta à vida de Kylie uma sensação de normalidade?
Especialmente sabendo que o homem que a mãe realmente amara estava
morto? A questão deu voltas em sua cabeça e Kylie decidiu ser sincera.
— É porque eu não sei o que dizer. Acho que parte de mim estava
achando que você e papai iam resolver as coisas. Você não o ama mais? Ou o amou algum dia?
Agora foi a vez de a mãe ficar em silêncio.
— Eu o amava. E provavelmente ainda o amo — confessou ela,
finalmente. — Mas não tenho certeza se posso perdoá-lo. Ou confiar nele. E
cada vez que falamos de Daniel, eu simplesmente... Não tenho certeza se me
casar com Tom não foi um erro. E, se foi, então voltar a ficar com ele também
seria um erro. Mas eu não deveria estar falando com você sobre essas coisas,
Kylie.
— Por que não?
— Porque, minha querida, você não deve se preocupar com isso.
— Você é minha mãe. Eu tenho o direito de me preocupar. — Kylie
percebeu que se preocupava com o fato de a mãe viver sozinha e se sentir
solitária. Mas isso significava que ela queria que a mãe começasse a
namorar? E excluir totalmente a possibilidade de voltar com o homem que
Kylie tinha amado e considerado seu verdadeiro pai por toda a vida?
— Não — disse a mãe. — Você tem que esquecer essa conversa. As
mães têm direito de se preocupar com os filhos, não o contrário.
— Então vamos ter que concordar em discordar — concluiu Kylie.
— Você é bem teimosa, sabia disso?
— E eu me pergunto de quem puxei essa teimosia toda — Kylie
respondeu com uma risada. O telefone da mãe de Kylie começou a emitir
um bipe, avisando que havia outra ligação aguardando para ser atendida. —
Eu vou desligar para você poder atender — disse Kylie. — Mas mãe...
— Sim?
— Aproveite o almoço. Só tenha cuidado. E não vá se apaixonar ou
coisa assim. Ah, e nada de beijo no primeiro encontro. Essa regra é sua,
lembra?
A mãe deu uma risadinha.
— Eu tenho certeza de que é apenas um almoço de negócios. Falo
com você amanhã.
Quando Kylie desligou, ela ouviu uma batidinha na janela. Olhou,
esperando ver Lucas, mas se deparou com o pássaro azul empoleirado no
parapeito.
Ele bateu as asas, pairando bem em frente à vidraça de Kylie por um
segundo e, em seguida voou para longe.
Que ótimo! Agora ela estava sendo perseguida pelo pássaro azul que
trouxe de volta à vida. O que isso significava?
 
A melancolia do fantasma e os sentimentos conflitantes com relação
à mãe, bem como o receio pela possibilidade de ter dado uma parte da sua
alma para o pássaro azul, não tinham desaparecido completamente uma
hora mais tarde, quando Miranda e Della invadiram seu quarto.
— Já está pronta? — disse Della.
— Pronta pra quê? — Kylie perguntou, deitada na cama, ainda
abraçando o travesseiro e fitando buracos no teto.
— Burnett concordou em nos deixar dar uma festa hoje à noite —
disse Miranda. — É a nossa chance de cumprir o nosso pacto. Steve vai estar
lá, assim como Lucas e Perry. Vamos pedir pizza e ouvir música. Talvez até
dançar. Acho que vou vestir a calça jeans nova que comprei na semana
passada.
— Você não disse que tinha ido fazer compras... — protestou Della.
— Fui, e também comprei uma saia jeans. — Miranda olhou para
Della. — Ficaria fabulosa em você. Quer emprestada?
— Sério? — Della perguntou. — Você me empresta a sua saia nova?
— Claro! Eu gosto de você a maior parte do tempo — disse Miranda,
cutucando-a com o cotovelo.
Kylie estava pronta para dizer “Vocês duas vão sem mim”, mas viu
um toque de emoção nos olhos do Della. Kylie se lembrou de que a vampira
tinha sido incumbida de ser a sua sombra, então, se ela não fosse, Della não
poderia ir.
Então, Kylie se levantou e foi até o seu armário.
— Vamos nos arrumar e impressionar aqueles caras!
Meia hora depois, as três, produzidas da cabeça aos pés, puseram-se
a caminho do refeitório. Miranda tinha emprestado a Della sua saia jeans
nova e a peça tinha caído muito bem na amiga, especialmente com uma
blusa de alcinha com uma estampa art déco em preto e vermelho, com tiras de tecido penduradas na frente. Miranda vestia seu jeans novo com uma
regata decotada cor-de-rosa que valorizava seus seios. Quando Kylie tinha
feito a mala para voltar ao acampamento, tinha acrescentado algumas
roupas. Seu vestido de malha preto não era muito chique, mas lhe caía bem,
especialmente com o seu recente surto de crescimento. A bainha do vestido
agora tinha subido um pouco e o decote estava mais justo. Embora de início
tivesse de fingir estar feliz por ir à festa, de algum modo, depois de se vestir
começou a se entusiasmar de verdade com a noite que tinha pela frente.
A música já estava tocando e várias caixas de pizza estavam
empilhadas sobre uma das mesas que tinham sido empurradas contra as
paredes, abrindo espaço para uma pista de dança. A maioria dos campistas
já estava lá, confraternizando e conversando. O aroma de pepperoni e molho
de tomate picante pairava no ar. Então Chris saiu da cozinha carregando
uma jarra grande e uma pilha de copos.
— Cara, que cheiro bom! — Della levantou o rosto, como se farejasse
o ar, e Kylie sentiu o peculiar cheiro de sangue, semelhante a frutos
silvestres. Embora ela não quisesse admitir, aquele cheiro lhe dava mais
água na boca do que o aroma da pizza.
Mas isso não significava que ela se permitiria a tomar sangue ou já
tivesse feito isso depois do dia em que o provara pela primeira vez, na
cerimônia dos vampiros. Se Kylie descobrisse que era um vampiro, teria que
lidar com isso. Mas até então, a ideia de beber sangue, mesmo achando que
ele tinha gosto de ambrosia, não a atraía nem um pouco.
Miranda deve ter fechado as portas do refeitório com um pouco de
violência, porque ela bateu com força e todo mundo olhou para elas. Kylie
sentiu os olhos de todos sobre ela, ou sobre a sua testa, ávidos para ver como
estava o seu padrão cerebral mutante.
Mas então notou um par de olhos azuis, e eles não estavam olhando
para a sua testa. Estavam olhando para ela inteira.
Ela sabia que Lucas tinha gostado do vestido. Ou pelo menos
gostado do vestido nela. E não era isso o que ela queria?
A vontade de percorrer o salão com os olhos para ver se Derek
estava lá bateu forte. Ela lutou contra o impulso. Aquela noite seria de
Lucas. E da maneira como ele olhava para ela, Kylie tinha a impressão de
que ele aproveitaria.
 
Lucas não sorriu. Bem, não com os lábios, pelo menos. Os olhos, no
entanto, sorriram, e o calor que havia neles tomou conta de Kylie quando ele
começou a andar na direção dela. Ele avançava a passos lentos, como se
tivesse todo o tempo do mundo, mas o que importava era que estava vindo.
Ao entrar no refeitório, logo que ela viu todos os lobos agrupados em turma,
temeu que Lucas talvez não fosse deixá-los. De algum modo, Kylie sentiu
que ele agora se aproximava dela justamente para enviar uma mensagem a
ela e à alcateia. E de repente ficou feliz que Miranda e Della a tivessem
pressionado a ir à festa.
Lucas estava no meio do refeitório quando ela sentiu outro par de
olhos sobre ela. Desviando o olhar de Lucas, ela viu Fredericka. Recusando
se a deixar a loba intimidá-la ou acabar com seu bom humor, Kylie a ignorou
e voltou a olhar para Lucas. Ele estava bonito. Usava uma calça jeans que lhe
caía bem e uma camisa azul-clara. A cor deixava seus olhos ainda mais
azuis.
Quando ele parou ao lado dela, o seu perfume natural pairou no ar e
Kylie pôde sentir seu pulso acelerando com a proximidade. Ele não disse
que ela estava linda nem a tocou. Mas seus olhos fizeram as duas coisas.
— Oi — ele disse.
Ela sorriu.
— Oi.
O olhar dele desviou-se para Della.
— Burnett disse que eu poderia assumir o posto de sombra.
Della concordou com a cabeça.
— Quer algo pra beber? — Lucas perguntou a Kylie, fazendo um
sinal na direção dos fundos do refeitório, onde estavam os refrigerantes e
algumas pessoas se serviam. Lucas não era muito de multidões. Aquela
noite, ela sentia o mesmo.
Ela fez que sim com a cabeça e virou-se para suas duas
companheiras de dormitório.
— Vejo vocês depois.
Então ela se inclinou na direção delas.
— Lembrem-se do pacto.
Miranda sorriu e arqueou as sobrancelhas de animação. Della, que
Kylie sabia, lutava com aquela questão toda de romance, franziu a testa.
— Tá, tá — concordou Della, relutante. — Mas eu não vou fazer
papel de boba.
— Só precisa ser mais acessível — Kylie sussurrou, e então se virou
para Lucas. Eles cruzaram o salão juntos e Kylie pôde sentir as pessoas
olhando para eles. Ela se forçou a ignorá-las.
Lucas chegou mais perto dela.
— O que está acontecendo com aquelas duas? — perguntou ele,
obviamente tendo ouvido a conversa entre Kylie, Della e Miranda.
— Nada, na verdade — Kylie respondeu.
Ele pegou as bebidas, em seguida empurrou duas cadeiras dobráveis
de metal contra a parede. Quando ela se sentou, Lucas aproximou sua
cadeira da de Kylie e se sentou. Sua perna sob a calça jeans roçava a perna
dela. Ela podia sentir o seu calor através do vestido de algodão, o que lhe
causava um friozinho na barriga.
Ele se inclinou até que a sua voz pudesse ser ouvida por sobre a
música.
— Estou feliz que tenha vindo esta noite.
— Eu também — disse ela.
— Não está mais brava comigo? — As costas da mão dele
encostaram no braço dela e Kylie sentiu os dedos de Lucas deslizarem
suavemente pelo seu cotovelo.
— Acho que já superei isso. — Ela sorriu.
— Que bom! — Os olhos dele a percorreram. — Você faz meu
sangue correr mais rápido — ele disse, tão baixo que ela mal podia ouvi-lo.
Kylie sorriu.
— Sério?
— Veja por si mesma. — Ele pegou a mão dela e colocou-a sobre o
próprio pulso. O fluxo — mais uma vibração, na verdade — era tão rápido
que parecia quase elétrico. Seu primeiro impulso foi se retrair, mas o olhar
firme e terno de Lucas manteve os dedos dela contra a sua pele quente. E
depois de um segundo, não parecia mais tão assustador.
— Isso é coisa de lobisomem? — perguntou ela.
Ele se inclinou um pouco mais até que ela sentiu o calor da sua
respiração contra sua orelha.
— É.
Ela estremeceu um pouco.
— Então, na verdade, não sou eu que estou provocando isso? —
perguntou ela, um pouco decepcionada.
Um sorriso leve apareceu nos lábios dele.
— Ah, é tudo culpa sua, sim. Só acontece quando algo ou alguém...
cativa a minha atenção.
Ela devolveu o sorriso.
— Estou contente por ter cativado a sua atenção.
O sorriso em seus olhos de repente sumiu e ela pôde jurar que ouviu
um leve rosnado no fundo da garganta dele.
Mas não teve chance de perguntar o que havia de errado porque
Perry parou bem na frente deles.
Ele acenou para Lucas como se quisesse demonstrar que ele não o
assustava nem um pouco.
— Quer dançar? — Perry perguntou a Kylie.
Ela ficou tão surpresa que se perguntou se não havia entendido mal
a pergunta. Então sentiu Lucas enrijecer ao lado dela.
— Hã, agora não — respondeu ela, tentando manter o tom
descontraído. — Mas obrigada pelo convite.
Perry desapareceu em meio a um grupo de campistas. Quando ela
voltou a olhar para Lucas, ele fez uma careta para o aglomerado de pessoas.
— Será que vou ter que ensinar uma lição a esse metamorfo
atrevido?
— Não.
— Eu não posso acreditar que ele estava dando em cima de você
quando...
— Ele não estava dando em cima de mim. — Kylie olhou para a
multidão e viu Perry de pé, longe dos outros, observando Miranda, cercada
por um grupo de rapazes. Por um segundo, Kylie se sentiu mal.
Perry provavelmente queria perguntar algo sobre Miranda e ela
tinha recusado o seu convite.
— Não me convenceu — disse Lucas, num tom ríspido.
— Ele só tem olhos pra Miranda — disse ela. — Olha pra ele, está
verde de ciúme. — E, literalmente, seus olhos tinham mudado para um tom
verde brilhante.
— Cai na real...
— É verdade. Acredite, ele não está a fim de mim.
Lucas baixou a cabeça e chegou mais perto.
— E você não está afim dele?
Ela sorriu.
— Você está com ciúme?
— Não. — Ele se sentou ereto. — Eu sou apenas... possessivo —
disse ele, como se as duas características fossem de algum modo diferentes.
— E você não respondeu à minha pergunta.
— Eu não estou afim do Perry — ela assegurou. — Nós somos só
amigos.
— Ótimo. Então, de quem você está afim? — ele perguntou, com os
olhos azuis fixos nos dela.
— Eu estou meio caída por um lobisomem ciumento no momento.
Ele sorriu e rapidamente roçou o dorso da mão contra o antebraço
dela.
— Bem, não me diga o nome dele, porque provavelmente vou
arrancar o couro desse cara.
Os dois riram e depois ficaram olhando um para o outro até que o
clima ficou estranho. Não porque olhar para ele era estranho, mas porque
parecia que um deles tinha que tomar a iniciativa de se inclinar e finalizar o
momento com um beijo. Mas nenhum deles parecia querer fazer isso.
Kylie suspeitava que a razão dele era a mesma que a dela. Gente
demais. Ela só esperava que não fosse por causa da alcateia.
— Eu queria te perguntar, você conseguiu as respostas de Holiday
sobre a coisa toda do pássaro?
Lembrando-se da visitinha do pássaro naquela tarde, ela sentiu a
frustração invadir sua mente.
— Não.
Kylie tomou um gole de refrigerante, prestou atenção na música e
tentou afastar o pensamento de todas as coisas negativas. Infelizmente,
continuou pensando nelas.
— Sabia que a UPF tem uma biblioteca sobre tudo o que é
sobrenatural?
— É, eu ouvi falar. Por quê?
— Sabe por que eles não deixam que a gente leia esses livros?
— Eu acho que alguns deles contêm documentos do governo.
— Mas por que eles precisariam esconder alguma coisa? —
perguntou ela.
Ele encolheu os ombros.
— Pela mesma razão que leva o governo dos Estados Unidos a
esconder coisas. Algumas podem estar além da fronteira da ética, fora que
algumas informações nas mãos das pessoas erradas podem ser prejudiciais.
A música tinha ficado mais lenta. Kylie olhou para a frente e viu
vários casais indo para o centro do refeitório dançar. Helen e Jonathon, de
mãos dadas, estavam entre os primeiros a se dirigir ao espaço vazio.
Colocaram os braços ao redor um do outro e começaram a dançar ao ritmo
da música. Nem sequer pareciam estar se movendo; estavam apenas
abraçados e, ocasionalmente, davam um passinho para o lado. Mas isso não
parecia ridículo, parecia fofo.
Mais alguns casais foram para a pista e começaram a dançar. A
música falava de amor, de estar perto, de beijos. Alguém desligou as luzes, e como Kylie não viu ninguém se aproximar dos interruptores, ela suspeitou
que tinha sido uma das bruxas, usando um toque de magia.
Talvez elas tivessem até espalhado um pouco de poção do amor no
ar, porque Kylie a sentiu. De repente, queria muito estar na pista de dança.
Queria sentir as mãos de Lucas na sua cintura, enquanto ela descansava o
rosto em seu ombro.
Ela olhou para Lucas, inclinou-se e perguntou:
— Você quer dançar?
Ele fez uma cara engraçada como se ela lhe pedisse para plantar
bananeira ou algo assim.
— Eu... não. Sinto muito.
— Aposto que isso ia perturbar demais a plateia, hein? — Ela olhou
para a alcateia de lobos que os observava.
— Não é isso. — Lucas deu um profundo suspiro. — Vamos. — Ele
tirou da mão dela o copo de plástico cheio de refrigerante e colocou-o no
chão ao lado das cadeiras. Segurou os dedos dela e puxou-a para cima. Por
um segundo, ela pensou que Lucas ia levá-la para a pista de dança, mas em
vez disso andou na direção da porta de saída do refeitório.
— Aonde vamos?
— Lá pra fora.
Ele a puxou em meio à multidão tão rápido que Kylie não teve
tempo de perguntar por quê. Quando ele parou, estavam ao ar livre, do lado
de fora do refeitório.
Sozinhos.
A música, embora fosse apenas um zumbido distante, ainda podia
ser ouvida e parecia se misturar com os sons da noite. Grilos e pássaros
cantavam junto com a melodia.
— Não está melhor aqui? — Ele pegou as mãos dela e colocou-as em
torno do pescoço dele. Em seguida, pôs as mãos na cintura de Kylie como se
se preparasse para dançar.
— Assim a alcateia não pode nos ver? — perguntou ela, insegura.
— Não é isso — insistiu ele. — Você viu algum lobisomem na pista
de dança?
Ela teve que pensar, mas então balançou a cabeça.
— Não.
— A gente não gosta de chamar atenção em público.
O ar estava quente, mas não tão quente quanto a mão de Lucas
contra a cintura dela. Kylie olhou para cima e viu a meia-lua oferecendo à
noite um mínimo de luz. Não que a escuridão fosse total; as estrelas
pareciam fazer um servicinho extra. Nenhuma nuvem pairava no céu, de
modo que ele parecia pontilhado de estrelas. Kylie mal podia ver um retalho
de céu onde não houvesse um minúsculo diamante cintilando e
acrescentando um brilho prateado à noite. Lentamente, ele começou a se
mover ao ritmo da música distante.
— Mas, só nós dois, é outra história. — Ele não apenas balançava o
corpo, mas dançava. E sabia dançar, porque seus passos incentivavam os
dela a seguirem no mesmo compasso.
Como o aroma de pizza e de sangue já não perfumava o ar, o cheiro
do próprio Lucas se destacou e se misturou com o aroma amadeirado da
noite.
Kylie olhou para ele novamente.
— Quem te ensinou a dançar?
— A minha avó. Ela me dizia que era o caminho para o coração de
uma mulher — Lucas disse, sua voz um sussurro leve na orelha dela. Ele
baixou a cabeça e seus lábios roçaram na bochecha de Kylie. — Eu,
pessoalmente, acredito que quando duas pessoas estão tão perto assim,
devem estar num lugar mais reservado.
Suas palavras a fizeram perceber o quanto eles estavam próximos
um do outro. Ela olhou novamente nos olhos de Lucas e sua boca encontrou
a dele. Eles dançaram e se beijaram pelo que pareceu uma eternidade. Não
que ela estivesse reclamando. Sentiu como se estivesse flutuando, perdida
no tempo. O beijo dele não a pressionou a dar mais do que ela estava pronta
para dar. Era apenas um toque macio nos lábios, com um ocasional deslizar
da língua pelo seu lábio inferior.
E finalmente o beijo terminou. Kylie colocou a mão sobre seu peito
quente, bem sobre o local onde ela tinha descansado a cabeça, e ouviu o seu
batimento cardíaco acelerado.
— O seu sangue ainda está correndo rápido? — Ela levantou a
cabeça, apoiou o queixo em seu peito e sorriu para ele.
— Mais do que antes. — Seu tom soou mais profundo. Ele ajustou as
mãos na cintura dela e Kylie pôde sentir seu pulso acelerado onde suas
costelas tocavam o peito dele.
— Sentiu? — perguntou ele.
— Sim. — Inclinando a cabeça sobre o peito dele, ela reconheceu que
poderia ficar ali para sempre, com o hálito de Lucas agitando seu cabelo.
Fechou os olhos e aproveitou a proximidade dele, a sensação de ser
abraçada, acolhida.
Com seu ouvido mais uma vez pressionado contra o peito dele, ela
ouviu um zumbido suave, quase um ronronar. O som preencheu a sua
cabeça e ela sentiu como se pulsasse dentro dela. Percebeu que ele a puxava
mais para perto e sua proximidade aqueceu-a por dentro e por fora, fazendo
a sensação de flutuar voltar ainda mais forte. Inclinando-se para mais perto,
ela desejou se aconchegar um pouco mais.
Os dedos dele pressionaram a sua cintura, desenhando pequenos
círculos. O leve toque fazia cócegas e causava uma sensação esquisita em seu
estômago. Então as mãos dele deslizaram para os lados, quase até os seios.
Uma leve advertência sussurrou na cabeça de Kylie, mas ela a deixou de
lado. Aquilo era tão bom...
Lucas respirou fundo, bruscamente, e ela pensou tê-lo ouvido soltar
um palavrão, então ele recolheu as mãos e se afastou.
Sem seu apoio, Kylie quase sentiu uma vertigem. Olhou para ele
confusa.
— O que foi?
— É melhor... É melhor irmos lá pra dentro.
Quando ela fitou os olhos dele, viu que estavam brilhando.
— Algo errado? — perguntou ela.
— Não. É... É só mais seguro lá dentro.
— Seguro de quê? — Ela olhou ao redor, pensando que ele tinha
visto alguma coisa. Será que a águia ou o cervo tinham voltado? Poderia até
ser o pássaro azul.
— De mim — disse ele, enfiando as mãos nos bolsos. — Eu estou
com pouca força esta noite, Kylie. Cerca de uma semana e meia antes da
transformação, tendo a agir mais por instinto do que pela lógica. E agora,
meu instinto me diz para levá-la para a floresta, achar um pedaço de grama
e me deitar com você.
Ela se aproximou e colocou a mão em seu peito.
— Conheço você o suficiente para saber que nunca me forçaria a
fazer nada que eu não quisesse fazer.
Ele tirou a mão dela do peito e segurou-a suavemente nas suas.
— Eu nunca iria forçá-la, Kylie. Nunca. Mas isso não me impede de
tentar te persuadir. E... — Com a outra mão ele ergueu o queixo dela como
que para ter certeza de que ela sabia que Kylie estava falando sério. — Os
lobisomens têm um talento especial para persuadir as pessoas. E não é assim
que eu quero que isso aconteça.
Ela piscou e tentou entender o que ele estava dizendo. Ainda se
sentia flutuando por dentro e sentiu falta do calor dele contra ela. Tentou se
aproximar e recuperar o que tinha perdido, mas Lucas deu outro passo para
trás.
Ele levou a mão dela até seus lábios, e depois de dar um beijo rápido
nos nós dos dedos, apertou-a ainda mais e puxou-a na direção do refeitório.
Kylie deu alguns passos. Então, ainda tentando entender o que ele
tinha dito, ela parou.
— O que você quer dizer com “um talento especial para persuadir”?
 
Lucas não respondeu. Em vez disso, simplesmente puxou mais o
braço de Kylie, e ela deixou que ele a levasse de volta para o refeitório. Mas,
quanto mais pensava sobre o que ele tinha dito, mais queria respostas. Por
um minuto, enquanto o beijava, ela se sentiu quase embriagada de... paixão.
Será que os lobisomens, assim como os faes, tinham a capacidade de
manipular os sentimentos de uma garota para que ela concordasse em... lhes
oferecer qualquer coisa que quisessem?
Kylie olhou para Lucas, que estava segurando sua mão e levando-a
para o lugar onde haviam sentado antes. Mentalmente, analisou suas
emoções.
Não estava com raiva de Lucas, nem arrependida da dança lenta à
luz do luar. Pelo contrário, tinha apreciado cada segundo. Então, qual era o
problema?
Uma vozinha interior respondeu à pergunta. O problema era que ela
não queria pensar que alguém além dela poderia persuadi-la a fazer algo
que não teria feito por vontade própria.
E, no entanto, uma outra vozinha sussurrou: não era disso que se
tratava a paixão e a sedução? Todas as revistas falavam que as mulheres
queriam ser seduzidas. Então, será que seria uma coisa ruim?
Ok, ela estava confusa. Olhou para a mão entrelaçada com a de
Lucas e o seguiu passivamente na direção em que ele a puxava. Ele a
conduziu por entre um aglomerado de campistas até chegarem aos seus
lugares. Finalmente acomodados em suas cadeiras novamente, ela se
perguntou quando tudo aquilo ficaria mais fácil.
— Você quer mais alguma coisa pra beber? — perguntou ele, tendo
que levantar a voz para ela poder ouvi-lo sobre a música e o burburinho.
— Não, obrigada.
— Pizza? — ele perguntou.
— Agora não. — Ela quase pediu uma explicação para o que ele
tinha dito anteriormente. Então percebeu que o barulho da música e a
multidão tornariam impossível uma longa conversa em particular. Ela olhou
para Lucas e viu que ele a estudava, olhando profundamente em seus olhos,
quase como se estivesse tentando ler seus pensamentos.
Ele se inclinou e descansou a testa contra a dela.
— Você está chateada comigo?
— Não — ela disse com sinceridade. Não era raiva que sentia,
apenas incerteza, confusão. Porque, mesmo que Lucas tivesse a capacidade
de persuadi-la a fazer certas coisas, ele não tinha feito isso.
Piscando e oferecendo ao lobisomem um sorriso, ela decidiu que
aquela noite, pelo menos durante a festa, não era o melhor momento para
falarem sobre aquilo. No entanto, antes de concordar com outras danças ao
luar ou sessões de beijos às margens do riacho, ela precisava de respostas.
Ela se lembrou das palavras de Holiday, semanas antes, quando
estavam falando sobre garotos e sexo: “O que eu estou pedindo é que, quando tomar essa decisão, que seja algo sobre o qual você refletiu e decidiu fazer. Não uma decisão tomada por impulso, da qual possa se arrepender mais tarde”.
Será que as palavras de sabedoria de Holiday tinham um significado
mais profundo do que Kylie tinha imaginado?
Uma hora depois, eles estavam comendo tanta pizza e bebendo tanto
refrigerante que poderiam afogar um peixe italiano. A quantidade de casais
dançando tinha diminuído. Agora, quase todo mundo estava comendo e
conversando. Tinham até acendido as luzes. Quando as pessoas começaram
a procurá-la para conversar, Kylie achou que Lucas ia sair de fininho, mas
ele ficou ali e foi muito simpático, algo que não era característico de um
lobisomem. Ele estava fazendo isso por ela, e Kylie apreciava o seu esforço.
Tanto Della quanto Miranda tinham dado uma paradinha para
conversar, enquanto consumiam pizza e bebidas. Kylie queria perguntar a
elas se o “pacto” estava indo bem, mas não conseguiu encontrar uma
maneira de fazer isso sem que ninguém ouvisse, então decidiu esperar até
mais tarde para saber das novidades.
Logo que a pizza acabou, alguém diminuiu as luzes novamente e
vários casais voltaram para a pista de dança improvisada. Quando a visão
de Kylie se adaptou à penumbra, ela viu Della sendo levada para a pista de
dança por... Chris.
Kylie imediatamente procurou Steve com os olhos, e teve certeza de
que ele era o cara da camiseta preta, de pé num canto, conversando com
duas garotas, uma das quais era Fredericka. A outra parecia ser... Ellie.
O olhar de Kylie percorreu o salão por um segundo, procurando por
um certo fae. Ela não o encontrou em lugar nenhum e se perguntou se Derek
não viera porque sabia que ela estaria ali.
Eu não posso estar pensando em Derek. Kylie fechou os olhos e repetiu
essas palavras para si mesma, como se fossem seu novo mantra.
Quando ela procurou Della novamente com os olhos, viu Miranda
indo para a pista de dança com Clark. Kylie não sabia muito sobre Clark,
exceto que era um bruxo conhecido por ser um tanto encrenqueiro.
O que Miranda e Della estavam fazendo? O que tinha acontecido
com o pacto? Por que não tinham ido atrás dos caras certos?
— Algo errado? — Lucas perguntou.
Ao olhar para ele percebeu que ela estava franzindo a testa.
— Não. É só que... — Kylie olhou para a multidão, evitando
responder, tentando decidir o quanto podia dizer a ele. Antes que
conseguisse encontrar uma resposta adequada, viu Perry, que parecia
zangado o suficiente para soltar fogo pelas ventas. Seu olhar encontrou o
dela, e então ele começou a andar na direção da porta.
— Só me dê um minuto, por favor — ela disse para Lucas e disparou
atrás de Perry.
Quando Kylie saiu do refeitório, Perry parecia não estar em lugar
nenhum. Então ela o viu. Bem, tinha que ser ele! Um daqueles grandes
pássaros de aparência pré-histórica ciscava em frente ao escritório principal.
— Perry! — ela gritou, e correu para alcançá-lo.
Suas asas, de uma envergadura de quase dois metros, se abriram e
ele pareceu pronto para levantar voo.
— Não fuja! — Kylie gritou.
— Não estou fugindo! Estou voando. E por uma razão muito boa. Se
eu tiver que ficar lá e vê-la flertar com todos aqueles caras, vou acabar
machucando alguém.
Kylie observava o movimento do bico do pássaro para cima e para
baixo, enquanto ele falava.
— Primeiro, volte à forma humana antes de falar comigo. Segundo,
você não tem que simplesmente ficar ali parado. Convide-a para dançar.
As fagulhas em forma de diamante começaram a se espalhar em
torno do pássaro.
De onde Kylie estava, a apenas uns trinta centímetros dele, o ar
pareceu rarear. Não sabia exatamente o que acontecia quando Perry se
transformava, mas devia causar algumas coisas estranhas ao ozônio da
atmosfera.
Uma das fagulhas flutuou no ar; ao descer, roçou em seu braço e
estourou como as bolhas de sabão com que ela brincava na infância. Mas em
vez da sensação de cócegas, Kylie sentiu um pequeno choque elétrico no
braço.
De repente, Perry estava lá, no lugar do pterodátilo. Seus olhos
estavam vermelhos de raiva.
— Convidá-la para dançar pra que ela possa me rejeitar na frente de
todo mundo? Acha que eu tenho cara de idiota?
— Não, agora você mais parece um covarde com medo de se arriscar
para conseguir o que quer.
— Eu não sou covarde! — ele rosnou. — Tenho mais poder no meu
dedo mindinho do que dez sobrenaturais juntos.
— Então prove, indo atrás do que quer. — Ele não parecia
convencido, por isso Kylie acrescentou: — Tenho um palpite de que ela não
vai rejeitá-lo.
Ele apenas olhou para ela, a descrença brilhando em seus olhos
enquanto eles passavam do vermelho para o azul habitual.
— Confie em mim — Kylie acrescentou.
Ela podia ver que Perry queria ceder. Mas então ele acenou com a
mão em direção à porta.
— Ela já está dançando com outra pessoa.
— Então interrompa.
Kylie franziu a testa quando viu Lucas parado na penumbra. Então
se lembrou de que ele era a sua sombra. Ele tinha que segui-la.
— Interromper? — Perry perguntou, como se não conhecesse a
palavra.
— Bata no ombro do cara e diga simplesmente que quer dançar com
Miranda.
— E ele vai apenas dar um passo para o lado e me deixar dançar com
ela? De onde você tirou essa ideia?
— Não é uma ideia. É uma regra de etiqueta na dança. Quando
alguém quer dançar com outra pessoa que já está dançando, deve tocar o
ombro do parceiro e dizer que você está interrompendo a dança.
Perry fez uma careta.
— E o que acontece se ele disser não?
— Ele não deveria dizer não.
Perry revirou os olhos.
— No mundo humano, talvez, mas...
— Ah, pelo amor de Deus! — Ela ergueu as mãos de frustração. —
Será que não dá nem pra tentar?
— Tudo bem! — disse ele. — Mas se o cara me disser qualquer
merda, pode acabar machucado. — Seus olhos ficaram vermelhos
novamente. Vermelho-sangue.
— Não, você não vai machucar...
Antes que ela pudesse acabar a frase, Perry disparou para dentro.
Ela correu atrás dele. Ah, mas que droga! Talvez não tivesse sido uma boa
ideia.
Lucas a chamou, mas ela não diminuiu o passo.
Kylie mal tinha entrado no refeitório quando ouviu o tumulto. Ela
disparou na direção da pista de dança.
— Eu disse que estou interrompendo! — A voz de Perry levantou-se
acima da música e do falatório dos outros campistas.
Kylie tentou abrir caminho a cotoveladas, na esperança de chegar até
eles a tempo de impedir que as coisas piorassem, mas as pessoas já
começavam a se aglomerar em torno deles e seus cotovelos não deviam ser
fortes o suficiente, porque todo mundo só resmungava e a ignorava.
— E eu disse pra você ir pro inferno! — Uma voz, obviamente de
Clark, respondeu.
— E o que eu quero não importa? — disse Miranda.
Kylie ficou na ponta dos pés para ter uma visão melhor, mas ainda
assim não conseguiu ver nada.
O barulho de briga encheu o recinto. A maior parte das garotas
começou a gritar, enquanto os homens incitavam a briga.
— Parem com isso! — Kylie exclamou, e começou a dar pulinhos,
esperando ver o que estava acontecendo.
— Cuidado! — alguém gritou e, como uma onda, todos se abaixaram
quando uma bola de fogo do tamanho de uma bola de voleibol cruzou o ar.
— Merda! — Kylie gritou e aproveitou a posição de todos para se
aproximar. Enquanto passava por cima de duas ou três pessoas,
desculpando-se ao sentir mãos ou pés sob os seus sapatos, viu Miranda
gritando com Clark.
— Eu disse que queria dançar com ele! — Miranda gritou.
Perry ficou olhando, vendo a reação de Miranda com um grande
sorriso no rosto.
Miranda continuou sua bronca e Kylie não conseguiu ouvir muito
bem o que estavam dizendo por causa da conversa dos outros campistas,
mas ela podia ver o rosto de Clark ficando vermelho de raiva. Miranda
espetou o dedo em seu peito. Clark revidou empurrando-a para trás e a
xingando.
Miranda nem tinha recuperado o equilíbrio ainda quando fagulhas
brilhantes começaram a aparecer como fogos de artifício. Um enorme dragão
verde do tamanho de uma jamanta apareceu onde Perry estivera de pé.
Fumaça espiralava do focinho longo e esburacado do dragão. A maioria dos
campistas começou a correr como baratas num comercial de inseticida. Bem,
todo mundo, menos Kylie, Miranda e Clark. Kylie correu e agarrou o braço
da amiga, na esperança de afastá-la do perigo. Mas a pequena bruxa se
esgueirou da mão de Kylie e ficou ali, olhando para o dragão com ar de
admiração.
— Nossa, que lindo! — murmurou Miranda.
Kylie olhou para o gigantesco monstro verde e, embora não pudesse
concordar com Miranda, decidiu não expressar em voz alta o que pensava.
Especialmente quando Perry varreu o salão com o seu rabo de quase cinco
metros, derrubando vários espectadores mais ousados e fazendo outros
voarem pelos ares. O prédio todo estremeceu mais uma vez, e então todos
que restavam em pé voltaram a se aproximar.
Della avançou para dentro do refeitório e gritou para que as duas
recuassem. Miranda ignorou Della também. E, enquanto Kylie não tirasse
Miranda do perigo, não sairia também.
— Ele não vai me machucar — Miranda rebateu, e voltou os olhos
furiosos para Clark. Foi então que começou a agitar o dedo mindinho e
entoar um encantamento.
Infelizmente, logo em seguida Burnett se precipitou para dentro do
salão, estacando na frente de Clark. Ele parecia furioso o bastante para matar
filhotinhos inocentes.
Burnett abriu a boca, sem dúvida para dar uma enorme bronca, mas,
antes que pudesse falar qualquer coisa, um redemoinho das cores do arco
íris começou a girar em torno dele como se fossem fitas. Então o vampiro
durão desapareceu em meio ao ar cheio de fumaça e em seu lugar surgiu um
canguru furioso.
— Ai, merda! — gemeu Kylie.
— Ai, merda! — gritou Miranda.
Burnett, agora na pele de um canguru muito contrariado, começou a
saltar de um lado para o outro como um marsupial com muita pressa.
Miranda, tremendo e dando pulinhos ora num pé ora no outro, ergueu o
dedo mínimo no ar e murmurou um feitiço tão rapidamente que Kylie não
conseguiu entender uma palavra.
Perry, agora um dragão gigantesco e fora de controle, deu um passo
na direção de Clark. Este, que parecia prestes a sujar as calças, começou a
atirar mais bolas de fogo. Uma errou o alvo e bateu na parede do refeitório.
Outra bateu numa lata de lixo contendo caixas de pizza que imediatamente
estouraram em chamas. Outra cruzou os ares, avançando bem na direção
de... Miranda.
Kylie sentiu seu sangue ferver e correr para o cérebro. Sem pensar
nem perceber o que planejava fazer, ela saltou para interceptar a bola de
fogo, agarrou-a e arremessou-a para o outro lado do salão.
Perry soltou um som sinistro, metade rugido, metade grito,
enquanto fumaça espiralava das suas narinas. Clark atirou outra bola de
fogo. Antes que Kylie pudesse detê-la, ela bateu em Perry — na forma de
dragão — e chamuscou suas escamas verdes.
O cheiro de dragão queimado, juntamente com caixas de pizza em
chamas, pairava no ar. A fumaça subia até o teto.
Perry jogou a cabeça para trás e rugiu tão alto que sacudiu o
refeitório inteiro até os alicerces. Não era tanto um berro de dor, mas de
advertência e de fúria total e absoluta.
Lucas de repente apareceu ao lado de Kylie, pegou a mão dela e
examinou a sua palma. Então, com uma expressão perplexa, agarrou-a pelo
cotovelo e começou a levá-la para longe dali. Kylie puxou o braço para se
libertar e saltou sobre algumas cadeiras caídas para chegar até onde estava
Miranda.
Assim que Clark jogou outra bola de fogo, Della mergulhou para
trás e foi atingida no quadril por uma chama cilíndrica que a fez voar uns
bons dois metros para trás e aterrissar numa pilha de cadeiras fechadas.
Kylie gritou, Miranda entoou seu encantamento ainda mais alto e
Perry expeliu mais fogo pelas ventas. Kylie se levantou de trás das cadeiras
para chegar aonde estava Della.
Antes que Kylie conseguisse chegar até ela, Della se levantou,
aparentemente ilesa. Mas Kylie nunca a vira tão irritada. Seus olhos
flamejavam num tom verde brilhante, seus caninos estavam à mostra sobre o
lábio inferior e ela parecia pronta para matar. Clark era seu alvo. Rosnando
com uma raiva insana, ela disparou para o outro lado do salão, atrás de
Clark. Burnett, em toda a glória marsupial, saltou na frente de Della,
bloqueando sua passagem e impedindo o ataque.
Perry soltou uma rajada de fogo que atravessou o salão e deixou
marcas negras nas paredes de madeira e no teto.
Miranda, com o mindinho ainda no ar, entoou seu feitiço mais alto.
Então outro redemoinho das cores do arco-íris voou através do refeitório e
instantaneamente Burnett voltou à sua forma original de vampiro. Não um
vampiro feliz, porém.
Com os olhos de uma cor semelhante à luz néon vermelha, ele soltou
um grito que se equiparou aos rugidos do dragão Perry.
— Todo mundo pare agora! Agora!
O tumulto chegou ao fim. Até a pequena multidão na frente do
refeitório parou de tagarelar. O silêncio reinou.
Burnett olhou primeiro para Clark.
— Lance outra bola de fogo e você não pisa mais em Shadow Falls
até o dia em que eu morrer. E eu pretendo viver por muito tempo. — Ele se
virou e olhou para Lucas. — Você pode, por favor, colocar o lixo em chamas
para fora antes que todo este lugar pegue fogo? — Girando o corpo, encarou
Della, que ainda parecia furiosa. — Por mais que eu queira deixar você
arrancar a cabeça desse sujeitinho — Burnett indicou Clark —, acho que
Holiday não iria aprovar. Então, vá esfriar a cabeça em algum lugar. — Ele
apontou para a porta.
Antes que ele baixasse a mão, Della já tinha ido embora, deixando
apenas um rastro de cólera no ar.
Respirando fundo, Burnett dirigiu seu olhar zangado para o dragão.
— Transforme-se neste instante!
Perry soltou um rugido de protesto, mas então fagulhas brilhantes
começaram a flutuar do teto até o chão. Kylie observou que todos sabiam
que deviam evitar as pequenas bolhas de eletricidade. Era engraçado pensar
que ninguém se dera ao trabalho de avisá-la sobre essas coisas.
Um segundo depois de parar de chover bolhas diamantinas, o
dragão desapareceu e Perry surgiu diante de Burnett. Ele não parecia menos
irritado que o vampiro. Então, confirmando a suposição de Kylie, deu um
salto no ar, passou por Burnett e aterrissou em cima de Clark. Punhos
começaram a golpear o ar.
O vampiro, sem aparentar nenhuma dificuldade, se intrometeu na
briga e puxou Perry pelo colarinho da camisa, segurando-o a vários
centímetros do chão.
— Chega de briga! — Ele largou Perry no chão.
O metamorfo olhou para Clark e depois para Burnett.
— Ele empurrou Miranda! — protestou Perry, a fúria
transparecendo na voz. — Um homem nunca, nunca, deve machucar uma
mulher. Você me ensinou isso quando eu tinha 6 anos.
Seis anos? Kylie olhou de Burnett para Perry. Então Burnett conhecia
Perry desde essa época?
— Eu sei — disse Burnett. — E vou resolver isso com ele mais tarde.
Mas você tem que aprender a lidar com as situações da vida sem se
transformar, ou nunca será capaz de conviver com humanos.
— Ele estava atirando bolas de fogo! — reclamou Miranda,
intervindo. — É lógico que Perry tinha que se transformar para poder fazer
alguma coisa.
Kylie viu Perry desviar o olhar para Miranda. A raiva em seus olhos
desapareceu e ele olhou para ela com uma expressão de surpresa. Algo dizia
a Kylie que não estava acostumado a ver pessoas saindo em sua defesa.
Nesse momento, seu coração se compadeceu do metamorfo abandonado
pelos pais.
Burnett soltou um profundo suspiro e seu olhar furioso voltou-se
para Clark.
— Vá para a sua cabana. Eu estarei lá em breve para lhe dizer qual é
a sua punição.
Clark saiu pisando duro, mas não sem lançar um olhar sarcástico
para Miranda. Por um segundo, Kylie pensou que Perry ia atacar
novamente. O mesmo pensou Burnett, pois ele estendeu a mão e segurou
Perry.
— Não se atreva a se transformar.
Mais uma vez, Kylie observou a familiaridade com que Burnett
tratava Perry. Obviamente, a filiação de Perry ao programa de adoção da
UPF o pusera em contato com o vampiro. E ela suspeitava que Burnett tinha
colocado o órfão metamorfo sob sua proteção.
A apreensão de Kylie com relação a Burnett e à biblioteca da UPF
diminuiu um pouco. Não que ela estivesse completamente tranquila com
relação a ele, mas todos os seus instintos lhe diziam que Burnett não era o
inimigo.
Lucas voltou, trazendo com ele um cheiro de fumaça, e ficou ao lado
de Kylie. Ela olhou para a lata de lixo que minutos atrás continha chamas
que chegavam até o teto. Elas haviam sido extintas, e agora apenas alguns
fios de fumaça flutuavam da borda da lata.
Lucas pegou a mão de Kylie novamente, olhou sua palma e a
examinou. Então se inclinou e sussurrou em seu ouvido:
— Você está mesmo bem?
— Estou — ela disse, intrigada com a pergunta.
Ele olhou para a mão dela outra vez e carinhosamente passou o dedo
em toda a palma.
— Sua mão deveria estar queimada.
Ela se lembrou de que tinha desviado uma das bolas de fogo que
atingiriam Miranda.
— Bem, não queimou. — Então se lembrou de que sentiu como se
seu sangue tivesse se transformado em refrigerante e fervilhado em seu
cérebro.
O olhar de admiração de Lucas se transformou em uma expressão
séria.
— No entanto, da próxima vez que eu tentar tirar você de uma
situação de perigo, não lute comigo.
Ela franziu a testa para ele.
— Eu não lutei com você. Só não queria deixar Miranda ou Della
para trás.
Ele balançou a cabeça como se a reação dela o exasperasse.
— Você é mesmo uma protetora, hein?
— Talvez eu seja apenas uma boa amiga. — Por alguma razão que
ela não conseguia entender, sentiu que ele preferia que ela não fosse uma
protetora. Por quê? Será que isso queria dizer que ela tinha menos chance de
ser um lobisomem?
Burnett olhou para a multidão de campistas que os observava.
— Vocês, voltem para suas cabanas. A festa acabou.
Assim que saíram, ele fixou o olhar em Miranda.
— Mexa esse dedinho para mim novamente e eu vou...
— Della disse que você vai decepá-lo — disse Miranda com uma
risadinha, nem um pouco intimidada com Burnett. Burnett soltou um
grunhido, contrariado com a franqueza de Miranda.
— Ela não tinha intenção de transformá-lo — disseram Perry e Kylie
ao mesmo tempo.
— Era Clark que ela queria atingir — acrescentou Perry, franzindo a
testa para Burnett.
— Não importa — disse Burnett. — Isso nunca mais vai acontecer.
Você entendeu? — Ele olhou novamente para Miranda.
Ela assentiu.
— Entendi. Me desculpe.
Kylie teve certeza de que ela teve que se esforçar para parecer
arrependida, mas o pedido de desculpas soou sincero. E foi aí que Kylie
percebeu que todos os campistas aceitavam Burnett como um dos líderes.
Ele podia não ter o mesmo método afável e até carinhoso de Holiday ao
lidar com os campistas, mas conseguia o mesmo efeito de outras maneiras.
Burnett cruzou os braços sobre o peito.
— Agora, todos vocês, tratem de voltar para suas cabanas.
Todos eles se viraram para ir embora. Lucas pegou a mão de Kylie,
para que ela soubesse que ele iria acompanhá-la.
Mas então Burnett acrescentou:
— Todos, menos Kylie.
Ah, que ótimo... O que era desta vez? Kylie parou e se virou para
encarar Burnett.
 
Tão logo o barulho da pesada porta de madeira ecoou no refeitório
vazio e ainda cheio de fumaça ao se fechar, Kylie decidiu confessar e pôr um
ponto final na situação.
— Eu sei, a culpa é minha. Peço desculpas. Pensei que estava
ajudando.
Burnett, com os braços ainda cruzados sobre o peito, olhou para ela.
— O que é culpa sua?
— Isto — disse ela, apontando para o refeitório e desejando, de
repente, não ter assumido a culpa tão rápido. Mas depois voltou atrás,
sentindo que assumir a responsabilidade era a coisa certa a fazer.
Burnett olhou para ela enquanto os segundos se passavam, o que só
intensificou a sua necessidade crescente de acabar com o silêncio.
— Ok, olha — disse ela —, fui eu quem disse a Perry para
interromper a dança entre Miranda e Clark.
Ele balançou a cabeça.
— Sim, eu ouvi isso. Estava no escritório.
Kylie franziu a testa, se perguntando se ele também tinha ouvido a
sua conversa com Lucas.
Ele baixou os braços, o que o fez parecer menos intimidador.
— Mas isso não significa que seja culpa sua.
— Então você não me segurou aqui para me passar um sermão por
provocar essa bagunça?
— Não. — Ele se abaixou e colocou duas cadeiras na posição vertical
e fez um sinal para ela se sentar.
— Estou em apuros por causa de outra coisa? — ela perguntou
enquanto se acomodava na cadeira.
Ele virou a cadeira e se sentou ao contrário, com uma perna de cada
lado.
— Não. Eu só queria falar com você. — Ele cruzou os braços sobre o
encosto da cadeira. — Está tudo bem com a sua mão?
Ela estendeu a mão para ele ver.
— Está.
Ele olhou para a mão dela, depois para o seu rosto novamente.
— Holiday ligou. Estava preocupada com você.
— Por quê?
Ele parecia se esforçar para escolher as palavras certas.
— Eu contei a ela o que você tinha perguntado sobre o pássaro.
— O que ela disse? — Kylie se inclinou um pouco para a frente,
pronta para receber pelo menos uma resposta da sua longa lista de
perguntas.
— Ela disse que você não deve se preocupar. Se de fato trouxe o
pássaro de volta à vida, isso custou apenas uma fração muito pequena da
sua alma.
— Mas eu realmente dei uma parte da minha alma a ele?
— Possivelmente — disse Burnett.
Kylie hesitou por um segundo, mas precisava saber, então
simplesmente perguntou.
— Ela disse algo sobre o pássaro me perseguir?
— Perseguir você?
— É, ele ficou voando à minha volta hoje, mas eu não tinha certeza
se não era só por coincidência. Mas então veio até a minha janela hoje de
manhã e ficou bicando a vidraça.
Os olhos de Burnett se arregalaram um pouco de surpresa, e então
sua expressão inescrutável voltou.
— Você tem certeza de que era o mesmo pássaro?
— Não, mas é muita coincidência se não for, você não acha?
— Talvez — disse ele. — Você sentiu algum tipo de ameaça vinda do
pássaro? Como aconteceu com a águia e o cervo?
— Não, nada. Foi tudo tranquilo e sereno.
— Bom. — Ele olhou para as próprias mãos como se tivesse alguma
coisa para dizer e não fosse algo fácil. — Bem, sobre a biblioteca da UPF...
— O que tem? — perguntou, sentindo o nervosismo tomar conta
dela.
— Eu não quero que pense que eu estava mentindo hoje mais cedo.
Eu não estava. No entanto, considerando que trabalho para a UPF, só estava
autorizado a dizer o que disse.
— Então você de fato mentiu pra mim? — perguntou ela.
— Não. — Ele apertou os lábios como se estivesse frustrado. — Eu
disse a você tudo o que podia. A verdade é que existem alguns livros que eu
não tenho permissão para ver.
Ela de repente sentiu frio, o tipo de frio que vinha do medo de saber
aonde aquela conversa os levaria. Do medo de descobrir a verdade sobre si
mesma.
— Existem livros sobre... outros como eu, não existem? — perguntou
ela. — Outros que não sabem o que são.
Ele hesitou novamente e entrelaçou os dedos.
— Eu nem sei o que existe nessa biblioteca, mas, se houver esse tipo
de livro, duvido muito que conseguiria permissão para que você os lesse.
— Por quê?
— A UPF considera noventa por cento do que eles coletam como
informação confidencial.
A frustração cresceu em seu peito.
— Qual é o grande segredo? Quer dizer, a chave para entender o que
eu sou poderia estar nessa biblioteca. E vocês não estão me deixando
descobrir. É tão frustrante! É como se estivessem tentando de propósito me
impedir de saber sobre os meus poderes, a minha identidade.
— Não estamos te impedindo de saber, e quanto à chave para você
descobrir o que é, é muito mais provável que esteja em outro lugar, aqui no
mundo exterior, e não na biblioteca. Existe um monte de informações
confidenciais em jogo, mas não há nada que estejamos tentando esconder de você.
— Mas não é o que parece — disse ela. — Diga a verdade, por favor.
Você sabe o que eu sou?
— Não — ele disse novamente, e seus instintos lhe diziam que ele
não estava mentindo. — Olhe, a única razão que me levou a falar sobre isso
é que não quero que você deixe de confiar em mim. Estou tão perplexo com
o que você é quanto... bem, quanto você mesma.
Kylie afundou na cadeira, resignada com o fato de ele não querer, e
talvez nem poder, lhe dar mais respostas.
— Tudo bem.
Ele assentiu e, em seguida, olhou ao redor do refeitório.
— Você acha que podemos convencer todo mundo a não contar a
Holiday sobre esse desastre?
Kylie olhou para a madeira chamuscada, escurecida pelo sopro do
dragão e as bolas de fogo de Clark.
— Acho que não vai ser fácil.
Ele olhou ao redor e franziu a testa.
— Tem razão. Mas, que droga!,eu queria provar a ela que sou capaz
de cuidar sozinho do acampamento sem estragar tudo.
— Você não estragou nada — disse Kylie. — Tudo está bem quando
termina bem. Não há mortos nem feridos.
Ele soltou um grande suspiro.
— Até me transformaram num canguru.
Kylie não conseguiu reprimir uma risadinha. Então Burnett riu
também. Kylie não podia ter certeza, mas achava que era a primeira vez que
ela o via fazer isso.
— Holiday vai gostar disso, não vai?
Kylie continuou a rir.
— Com certeza! Posso contar a ela?
— Não. — Então ele lhe lançou o que ela podia jurar ser um sorriso.
— Se é para fazê-la rir, eu mesmo faço.
Kylie o analisou por alguns instantes, sentindo novamente a devoção
que ele tinha por Holiday. Pensando em devoção e em Burnett, ela decidiu
fazer outra pergunta que tinha lhe ocorrido.
— Você e Perry têm uma história em comum, não têm?
Ele parou por um segundo e então disse:
— Mais ou menos. Por quê?
— Por causa do jeito como vocês dois se tratam.
Ele assentiu, mas não entrou em detalhes.
— Foi através do programa de adoção, não foi? Você também foi
assistente social ou coisa assim?
A expressão de Burnett continuou impenetrável.
— Ele te contou sobre o programa?
— Contou.
Burnett balançou a cabeça.
— É. Foi por causa dele que nos conhecemos.
Ele não parecia ansioso para contar mais nada sobre seu passado,
por isso Kylie decidiu deixar isso de lado, ou pelo menos em parte.
— Perry não está muito encrencado por causa disso tudo, não é? —
Ela franziu a testa. — Quer dizer, isso tudo aconteceu um pouco por minha
causa. Ele estava indo embora e eu o convenci a voltar.
Burnett arqueou uma sobrancelha.
— Verdade seja dita, ele se comportou muito bem... Considerando...
— Ele olhou em volta novamente. — Você não acreditaria se visse quanta
bagunça já tive que limpar por causa desse garoto.
Kylie imaginou Burnett vindo em auxílio de um Perry mais jovem —
um Perry que não tinha ninguém, porque seus pais o abandonaram. Suas
dúvidas sobre Burnett ou sobre se devia confiar nele praticamente
desapareceram. Sem pensar, ela disse:
— Sabe, você não é nem de perto o cara durão que finge ser.
Burnett franziu a testa como se não gostasse de ser considerado um
cara bonzinho.
— Eu não apostaria nisso — disse ele. — Basta perguntar a Holiday.
— Ele ficou de pé. — Venha, vou levá-la até a sua cabana. Preciso falar com
Clark antes que fique muito tarde.
— Você não precisa me acompanhar. Posso ir sozinha.
— Nada disso. Você ainda está sob a proteção de uma sombra.
Quando saíram do refeitório, Kylie ficou satisfeita ao respirar o ar da
noite, livre do cheiro de fumaça. A lembrança da dança com Lucas voltava
de vez em quando à sua mente, mas ela a afastava, pois não queria pensar
naquilo enquanto estivesse na companhia de outra pessoa. Principalmente
por temer que Burnett tivesse ouvido toda a conversa.
Eles começaram a percorrer a trilha que levava à cabana de Kylie.
Algumas criaturas da noite agitavam os arbustos ao longo do caminho.
Burnett olhava de um lado para o outro, sempre atento, sempre vigilante.
— Você não sofreu mais nenhuma ameaça, não é? — ele perguntou.
— Não.
— Sempre me surpreendo ao ver o que uma sombra pode evitar.
Kylie olhou para ele através da escuridão.
— Você acha que é só por isso que nada voltou a me acontecer? Acha
que alguém, muito provavelmente Mario ou seu neto, ainda está à espreita
para me pegar quando eu estiver sozinha?
Ela pensou em contar sobre o sonho, mas não viu como isso ajudaria.
— Acho que não poderíamos ser mais cuidadosos.
Kylie sentiu um conhecido arrepio passar por ela lentamente e soube
que tinham companhia. Ela olhou em volta para ver se o espírito tinha se
materializado, mas não viu nada.
Um sentimento de tristeza, porém, que parecia penetrar em seus
ossos, revelou que se tratava de Jane Doe. A lembrança do espírito da
mulher e do filho que ela perdera aflorou na mente de Kylie. A necessidade
de ajudá-la oprimia seu peito. Se Holiday estivesse no acampamento, ela a
procuraria para conversarem sobre isso. Mas não achava que Burnett seria
útil no que dizia respeito a fantasmas. Especialmente quando se tratava de
um fantasma grávido.
— Quem será a minha sombra amanhã de manhã? — perguntou ela.
— Eu acho que será Della — disse Burnett, olhando em volta, quase
como se sentisse a presença fantasmagórica.
— Você se importaria se fôssemos ao cemitério de Fallen amanhã?
Burnett parou de andar.
— Por que você quer ir até lá?
Kylie esfregou os braços, tentando afugentar o frio.
— Tem a ver com o meu mais recente fantasma.
— O que é uma boa razão para não ir — disse ele.
Kylie franziu a testa ao pensar que ela e Holiday eram as únicas que
não eram contra os fantasmas.
— O espírito não consegue se lembrar de quem é e, como na
primeira vez em que apareceu para mim, minha mãe e eu estávamos
passando de carro pelo cemitério, acho que poderia estar enterrado lá. Eu
perguntei a Holiday se eu podia ir e ela me disse que sim, desde que alguém
me acompanhasse e vocês soubessem onde eu estava.
A expressão de Burnett não mudou, mas algo sobre a maneira como
ele afundou os ombros dizia que se dera por vencido.
— Deixe-me conversar com Holiday primeiro. Se ela disser que tudo
bem, eu... eu vou com você.
— Você não precisa ir. Tenho certeza de que Della e eu poderíamos...
— Não. — Pelo seu tom ela sabia que ele não cederia. — Até termos
certeza de que você não corre mais nenhum perigo, não vai deixar o
acampamento sem mim. — Seu olhar severo pontuava suas palavras, e então
ele continuou: — Estou falando sério sobre isso, Kylie. Eu não quero te
assustar, mas, se for mesmo Mario ou o Ruivo, eles não vão desistir. Estão
esperando uma oportunidade em que você esteja mais vulnerável para
atacar novamente. E da próxima vez você pode não ter tanta sorte.
Com uma nuvem de frio fantasmagórico seguindo-a, Kylie entrou na
cabana poucos minutos depois. Della e Miranda estavam sentadas à mesa da
cozinha, conversando.
Miranda disparou a falar.
— Você viu Perry? Ele não estava absolutamente impressionante?
Ainda lutou por mim quando estava na forma humana!
— É, eu vi — disse Kylie, relutante em se aproximar um pouco mais
e arruinar o momento de descontração das amigas, quando sentissem o
espírito. Kylie olhou para Della, cujos olhos ainda brilhavam de raiva.
— Burnett expulsou Clark? — Della perguntou. — Porque se não
expulsou, vou ter que dar uma lição naquele bruxo que ele nunca mais vai
esquecer.
Kylie se lembrou de que Della tinha sido atingida por uma bola de
fogo e sabia que, para uma vampira, aquilo provavelmente tinha sido muito
embaraçoso, especialmente depois que Kylie conseguira agarrar outra e tirá
la do caminho.
— Sei que Burnett está indo falar com ele agora, mas não sei o que
pretende fazer.
— Ele queimou a saia nova de Miranda! — Della levantou a saia, que
tinha uma parte chamuscada.
Miranda acenou com a mão.
— Eu já disse que não faz mal.
— Faz mal, sim — Della retrucou. — Se Kylie não estivesse lá, ele
poderia ter machucado você.
— E você? — Kylie perguntou, olhando para Della. — A bola de fogo
te queimou?
— Um pouco, mas já me curei. — O olhar de Della se voltou para a
mão de Kylie. — Você deve se curar rápido, também.
— É. — Kylie preferiu não dizer que não tinha sido queimada por
nenhuma bola de fogo atirada por Clark. Ou pelo menos não tinha sentido a
queimadura. Ela se lembrou da observação de Lucas de que ela realmente
era uma protetora. E novamente se perguntou por que ele parecia quase
infeliz com essa possibilidade.
O frio fantasmagórico se aproximou e Kylie passou a mão na pele
arrepiada dos antebraços. Então se sentou no sofá.
— Burnett está bravo comigo por transformá-lo num canguru? —
Miranda perguntou.
Kylie sorriu.
— Acho que a raiva já passou.
— Eu ainda o evitaria por alguns dias se fosse você — sugeriu Della.
— Quer dizer, você viu como ele estava furioso quando você transformou-o
de volta? — Ela sorriu. — Embora ele não esteja tão puto quanto eu estaria.
Juro, se tivesse sido eu, teria voado no seu pescoço, logo depois de dar um
daqueles socos de canguru no Clark. Mas foi engraçado ver Burnett
saltitando pra lá e pra cá feito um maluco.
— Eu não queria ter feito aquilo — lamentou-se Miranda. — Não
estava nem mesmo pensando num canguru.
— Em que você estava pensando? — Kylie perguntou.
— Numa cacatua. Acho que pronunciei errado. — Ela franziu os
lábios como se estivesse pensando. — Mas, bem, pelo menos descobri como
transformá-lo em ser humano novamente. Eu devia receber algum crédito
por isso.
— Crédito? — Della riu. — Se você não tivesse sido capaz de
transformá-lo de volta, suspeito que a essa hora já teria virado comida de
canguru.
Miranda suspirou.
Kylie decidiu mudar de assunto e olhou para Della.
— E o que aconteceu com o nosso pacto?
Della franziu a testa.
— Digamos que não tenha funcionado tão bem para nós. Mas
esqueça nós duas. Como vão as coisas com Lucas? Vi que vocês dois ficaram
lá fora por um tempo.
Kylie mordeu o lábio, sem saber o quanto queria contar às amigas.
— Foi bom.
— Bom quanto? — perguntou Miranda, que não era de respeitar a
privacidade de ninguém. A bruxinha chegou a esfregar as mãos de
expectativa.
— Muito bom — Kylie respondeu, lembrando-se de como se sentira
ao dançar com Lucas, beijá-lo como se tivessem a noite toda. Mas o frio
fantasmagórico arrepiando seus braços nus afugentou a lembrança. Kylie
olhou em volta novamente para se certificar de que Jane Doe não tinha se
manifestado.
— Até que ponto vocês foram? Só conversaram? Se beijaram? — Os
olhos castanhos de Miranda se arregalaram. — Ou vocês dois...?
— Só nos beijamos. — Lembrando-se da acusação das amigas de que
ela era uma espécie de freira, Kylie acrescentou: — E dançamos à luz do
luar. Foi muito romântico.
— Romântico ou sexy? — Della perguntou. — Existe uma diferença,
você sabe.
Kylie franziu a testa.
— Não, não existe, não.
— Ah, existe, sim — Della insistiu. — Romântico é pensar... “Oh, ele
é tão doce!” E sexy é... “Ai, Deus! Como ele é gostoso! Acho que vou derreter
por dentro...” Então, como foi? Rom}ntico ou sexy?
— Derreter por dentro? — Kylie revirou os olhos.
— É só modo de falar, mas você sabe o que eu quero dizer — Della
insistiu. — Então, como foi? Romântico? — Ela estendeu uma mão. — Ou
sexy? — Estendeu a outra.
Kylie analisou a questão e, em seguida, admitiu a verdade.
— As duas coisas.
Miranda deu um gritinho.
— Foi tão bom quanto o beijo do riacho?
Kylie se lembrou de que tinha estado no riacho com Lucas mais de
um mês antes. Ela tinha caído sobre ele e eles se beijaram. Trocaram um
beijo profundo enquanto a água fria do riacho passava por eles e o corpo
quente de Lucas pressionava o dela. E ela percebeu que Della tinha razão
sobre a diferença entre sexy e romântico. O beijo do riacho tinha sido sexy.
Aquela noite tinha sido... Bem, mais romântica, mas mesmo assim sexy.
— Sabe, vocês duas têm que começar a ter seus próprios encontros
românticos! Eu estou cansada de ser a única que tem coisas pra contar.
— A gente está se esforçando — disse Miranda, dando de ombros. —
E então? Dê mais detalhes. Hoje foi tão quente quando o dia do famoso beijo
no riacho?
Socks saiu do quarto gingando, se aproximou de Kylie e encostou o
nariz pontudo em seu tornozelo.
— Não foi tão quente — disse Kylie, abaixando-se para pegar o
gambá no colo. Ela abraçou o gambá e esfregou seu focinho contra o nariz.
— Mas quase.
Lembrando-se da noite “quase tão quente”, Kylie olhou para suas
duas melhores amigas e se perguntou se elas saberiam responder à pergunta
que ela planejava fazer a Lucas.
— O quanto vocês duas sabem sobre os lobisomens e seus poderes?
— Eu sei que não são tão poderosos quanto os vampiros — Della
disparou.
— Não estou falando da força física. Mas de outros tipos de poder.
— Que outros tipos de poder? — perguntou Della.
Kylie tentou descobrir uma maneira de dizer aquilo.
— O poder de persuadir uma garota a fazer coisas.
— Coisas? Que tipo de coisas? — Della olhou para Miranda, que
arregalou os olhos. — Você quer dizer... ? — As duas se voltaram para Kylie.
— Ok, desembucha! — exigiu Della. — O que aconteceu hoje à luz da Lua,
afinal?
— É isso aí, pode começar a falar — acrescentou Miranda. — E não
deixe de fora nenhum detalhe picante.
 
Kylie sentiu o rosto começando a pegar fogo.
— Não é o que vocês estão pensando...
Mesmo que ela dissesse as palavras, sabia que estava mentindo.
— Ok — disse ela. — É exatamente o que vocês estão pensando.
Miranda ficou de boca aberta.
— Você quer dizer... que vocês...
— Não! — Kylie levou a mão ao peito. — Meu Deus, não! Como eu
disse, a gente só dançou e se beijou. Mas...
— Mas o quê? — Della exigiu.
— Fale — disse Miranda. — Mas o quê?
Kylie respirou fundo.
— Mas... ele disse algo que me fez pensar que talvez tivesse a
capacidade de me convencer a... vocês sabem o quê. — Ela corou de novo.
— Fazer o canguru perneta? — Della arriscou. — Dançar o hula?
Fazer o treme-treme?
Kylie revirou os olhos.
— Onde você ouve essas coisas?
Della sorriu.
— Por aí...
Miranda deu uma risadinha.
— Bem... — Kylie sentiu as bochechas ficarem ainda mais quentes. —
De qualquer maneira, sim, é isso o que eu quero dizer — acrescentou ela
antes que a sua amiga vampira boca suja viesse com mais algumas
expressões meio vulgares meio hilariantes para sexo.
— Eu só quero saber se os lobisomens têm poderes especiais, ok?
Della se recostou na cadeira.
— Talvez ele só queira dizer que vai seduzi-la beijando você. Temos
que admitir, ele é muito gato e você disse que os beijos dele são muito bons.
Ei, ele faz até os meus joelhos tremerem, e eu sou uma vampira com uma
antipatia natural por lobisomens.
— Ele é bem fofo! — acrescentou Miranda.
Kylie tentou não pensar nas duas colegas de dormitório com os
joelhos trêmulos por causa de Lucas.
— Então vocês não acreditam que esse poder realmente exista? —
perguntou em vez disso.
— Não, ele existe — disse Miranda, franzindo a testa como se
estivesse pensando. — Eu já ouvi algo sobre isso. Nada muito específico,
apenas uns boatos.
— O que você ouviu? — Della e Kylie perguntaram, ao mesmo
tempo.
Kylie colocou Socks no chão, levantou-se do sofá e se sentou numa
cadeira da mesa da cozinha. Por alguma razão, o fantasma tinha decidido ir
embora, o que não a deixava nem um pouco aborrecida. Ela precisava
mesmo de uma folga.
Especialmente agora.
— Eu não me lembro dos detalhes — disse Miranda. — Só sei que é
meio perigoso namorar um lobisomem. Tem algo a ver com os feromônios
dos animais. Porque os lobisomens são basicamente animais, e todos os
animais têm uma forma natural de atrair o sexo oposto.
— Como eles fazem isso? — Kylie perguntou.
— Bem — disse Miranda —, os lagartos têm uma espécie de balão
colorido que eles inflam no pescoço e as fêmeas parecem achar muito sexy.
Kylie balançou a cabeça.
— Lucas não tem um balão no pescoço.
— Ei! — Della exclamou. — Vocês já viram aqueles passarinhos que
fazem a dança do acasalamento? Eles ficam pulando num pé só e arrepiam
as penas. Parece que as fêmeas ficam com o maior tesão quando veem os
machos fazendo isso. Quer dizer, o cara com as penas melhores sempre
vence. Ou serão as penas maiores...?
Miranda riu.
— E ouvi dizer que alguns machos de babuínos têm o traseiro muito
colorido e ficam se exibindo para as fêmeas, que supostamente ficam todas
ouriçadas.
Embora Kylie estivesse falando sério em sua ânsia de encontrar
respostas, ela não pôde deixar de rir.
— Eu não acho que Lucas tenha um traseiro colorido, também. Não
que eu saiba. — Ela riu mais ainda.
Antes que a conversa acabasse, Della ligou o computador e elas
pesquisaram estranhos rituais de acasalamento que incluíam desde
testículos explodindo até excrementos sendo atirados com o rabo, e tiveram
ataques de riso até bem depois da meia-noite. Quando finalmente Kylie se
deitou em sua cama, concluiu que aquela noite tinha sido justamente do que
ela precisava.
No entanto, ainda não tinha a resposta para sua pergunta: afinal, que
tipo de poder Lucas realmente tinha?
E ela podia confiar que ele não abusaria desse poder? Seu instinto
dizia que sim. Mas e se os seus instintos estivessem sob o efeito de
influências externas?
A sensação de estar flutuando tomou conta de Kylie várias horas
depois que ela foi para a cama. Seus alarmes mentais dispararam. Seria um
sonho lúcido criado por Ruivo outra vez? Então ela percebeu a diferença:
estava de fato flutuando, o que significava que era ela quem estava em
movimento.
Ela pensou em tentar parar, mas estava muito cansada, então
simplesmente deixou seu corpo deslizar. Flutuou pelo ar, por entre as
nuvens do sono.
A sensação de liberdade era eletrizante. Não tinha a menor ideia de
para onde estava indo e não se importava. Obviamente, o seu subconsciente
tinha um plano. Mas qual?
E então ela o viu. E ele estava tão lindo, deitado na cama, que a
respiração de Kylie ficou presa na garganta e ela refreou o impulso de voar.
Ele estava sem camisa, também. Os lençóis tinham deslizado para além da
linha da cintura e estavam vários centímetros abaixo do umbigo. O olhar
dela se moveu para cima e depois para baixo, em seguida, pelo seu peito nu.
Havia muita pele descoberta para apreciar...
Então ela examinou seu rosto, tão tranquilo em seu sono. Os longos
cílios. O cabelo em desalinho caído na testa, como se ele tivesse passado os
dedos pelos fios muitas vezes.
Seu coração acelerou e então ela se sentiu se aproximando do quarto
dele, da cama, do seu rosto...
Não! Deteve-se no último instante.
Ela tinha prometido esquecer Derek. Seguir em frente. Infelizmente,
seu subconsciente não tinha conseguido captar a mensagem. Então, quando
a gravidade, ou talvez sua própria vontade, começou a puxá-la para trás, ela
se deixou navegar através das nuvens, de volta ao universo de sono.
Acordou com um sobressalto, como se tivesse caído com um
solavanco de volta em seu corpo. Recuperando o fôlego, Kylie estendeu a
mão para pegar o travesseiro e abraçou-o firmemente contra o peito. A visão
de Derek dormindo tomou conta dela. Não! Não! Não pense em Derek! Pense em Lucas.
Lucas, que tinha dançado com ela ao luar. Lucas, que a beijara
docemente. Lucas, cujo sangue corria mais rápido toda vez que ela estava
com ele.
Fechando os olhos, Kylie se perdeu novamente no esquecimento do
sono. No doce torpor do sono. E no instante seguinte, lá estava ela num
espaço cheio de nuvens, de frente para Lucas. A imagem de Ruivo lhe
ocorreu, mas então Lucas disse:
— Sou eu. Sinta. Estou quente. — Ele estendeu a mão para pegar a
dela. O toque enviou calor através da palma de Kylie até seu coração.
Ela se lembrou de ter dito a si mesma para pensar em Lucas e se
perguntou se estava aprendendo a controlar seus sonhos lúcidos. Uma leve
emoção a percorreu, quando uma sensação de plenitude encheu seu peito.
Com tantas incógnitas e problemas fora de controle, ela se sentiu muito bem
ao pensar que conseguia controlar alguma coisa.
Lucas sorriu para ela com seus olhos azuis sonolentos.
— Eu estava começando a pensar que você nunca mais viria me
visitar em meus sonhos.
De repente, as nuvens se evaporaram como uma névoa indesejada e
eles estavam outra vez ao ar livre, no local onde tinham dançado na véspera.
A Lua e as estrelas lançavam sombras encantadoras em torno deles. Só que
desta vez, a noite entoava a música. Os grilos e de vez em quando um
pássaro que cruzavam os ares harmonizavam-se com o farfalhar de uma
brisa leve que agitava as folhas dos arbustos e dos carvalhos.
— Quer dançar? — Ele estendeu a mão.
Ela ia colocar a mão na mão dele quando percebeu que Lucas estava
sem camisa. Em vez de jeans, usava cuecas boxer longas e soltas. Aquelas do
tipo que os garotos usam para dormir — quando não dormem nus. O tipo
que as estrelas de cinema usam quando tiram fotos sensuais.
Kylie engoliu em seco de puro nervosismo. Ele estava realmente
bem. Estava quente e macio. E quase nu. Como se fosse preciso um só
movimento para deixá-lo completamente nu.
— Hã... — Ela apontou para ele, fazendo um gesto com a mão para
cima e para baixo. — Você não deveria estar vestido?
Ele sorriu e depois riu abertamente — algo que ele não fazia
frequentemente.
— O sonho é seu, Kylie. Você me vestiu para a ocasião. É você quem
decide o que eu visto. Então, a pergunta é: é assim que você quer que eu
esteja vestido?
Ela sentiu o rosto arder e desejou que pudesse negar, mas Holiday
tinha explicado isso durante as muitas conversas que tiveram sobre sonhos
lúcidos. Kylie controlava tudo, desde a pessoa que ela visitava até o que
acontecia durante a visita. Então, por que tinha visitado Derek primeiro?
E por que queria Lucas seminu?
Ok, aquela era uma pergunta idiota.
— Bem... — Ela deixou a voz sumir, sem saber o que mais dizer. Foi
então que percebeu o que ela mesma estava usando. O mesmo pijama curto
que tinha vestido para dormir e que consistia numa blusa azul-clara colada
ao corpo e um short apertado azul-marinho. Uma roupa de banho teria
deixado muito mais pele à mostra, mas ainda assim ela se sentia um pouco
indecente.
Não sabia muito bem como poderia trocar as roupas deles, mas
fechou os olhos e concentrou-se por alguns segundos. Quando os abriu
novamente, ela estava usando o vestido preto que usara na festa, muito mais
apropriado. Lucas usava jeans e uma camiseta branca, com a estampa de
uma grande carinha amarela sorridente estampada no peito.
Ele olhou para a camiseta que vestia e depois voltou a fitá-la com a
testa franzida e uma expressão divertida no rosto.
— Sério? Foi isso que você escolheu?
— Ainda não tenho muita experiência nisso — disse ela,
defendendo-se. — Mas não está tão mau assim.
— Uma carinha sorridente? — Ele riu de novo. — Só me lembre de
nunca deixar você comprar minhas roupas.
Ela riu, e então Lucas estendeu a mão novamente.
— Estamos aqui pra dançar?
Desta vez, ela pegou a mão de Lucas e deixou que ele a puxasse de
encontro a si.
Assim que seus braços quentes a enlaçaram e seu peito comprimiu o
dela, Kylie teve a mesma sensação que se tem ao deslizar para baixo de um
edredom numa noite de inverno. Suspirou ao perceber o quanto se sentia
confortável abraçando Lucas. Quando ela descansou a cabeça em seu peito, a
mão dele envolveu sua cintura e sua pulsação frenética se fez sentir contra a
parte inferior das costas dela. Aquela vibração parecia fluir para dentro de
Kylie e fazia o seu sangue correr mais rápido também.
Kylie então se lembrou da pergunta que precisava fazer e ergueu a
cabeça, apoiando o queixo no peito dele. Lucas olhou para baixo e fitou-a
nos olhos. Seus olhos azuis estavam escurecidos com um sentimento que
parecia paixão, e ela se perguntou se seus próprios olhos estariam
expressando a mesma emoção.
— Posso fazer uma pergunta?
— É o seu sonho — ele sussurrou. — Podemos fazer qualquer
coisa que você quiser.
Ela sentiu uma ênfase nas palavras “qualquer coisa” que lhe causou
uma onda de nervosismo. Qualquer coisa.
Respirando fundo, Kylie parou de dançar e deslizou a mão para
cima, pousando-a onde sentiu o coração dele batendo.
— Esta noite, você mencionou que os lobisomens são bons... na arte
de persuadir.
Os lábios dele se curvaram num sorriso.
— Sim, eu me lembro disso. — Sua voz tinha um toque de
provocação sensual que a fez estremecer e querer chegar mais perto.
— O que... O que você quis dizer com aquilo?
O sorriso dele ficou mais sexy.
— Prefiro te mostrar.
Ela mordeu o lábio inferior, refletindo sobre o convite. Estava
tentada — e como estava! E que mal faria se ela dissesse sim, só desta vez?
Afinal, era apenas um sonho. Nada que acontecesse ali teria efeito em sua
vida real. Certo?
— Relaxa, Kylie — disse ele. — É apenas um sonho. — As palavras
de Lucas ecoaram em seus próprios pensamentos. Então os lábios quentes
do lobisomem roçaram o rosto dela e a onda de desconforto que Kylie sentia
aumentou.
— Talvez seja apenas um sonho — disse ela. — Mas parece real e
eu... eu prefiro que você responda à minha pergunta da maneira mais
antiquada, só com palavras.
Ele concordou com a cabeça. Por um segundo, pareceu não querer
continuar, mas depois disse:
— Não é um truque ou qualquer coisa assim. É parte do que eu sou.
É instintivo.
— O que é instintivo?
— Quando um lobisomem está com uma parceira em potencial, seu
corpo reage de certas maneiras. — Ele fez uma pausa, como se soubesse que
essa explicação não seria suficiente. — Na noite passada, quando sua cabeça
estava pousada no meu peito, você ouviu um som... Um rosnado baixo.
— Como um ronronar ou um zumbido — disse ela, lembrando-se de
se sentir embalada por aquele som suave.
Ele balançou a cabeça.
— Bem, dizem que essa reverberação é meio hipnótica. Ela estimula
a parceira a se aproximar.
Aproximar-se e tirar a roupa, Kylie pensou, mas não disse nada.
— Causa uma vertigem também — disse ela, lembrando-se de como
se sentira na noite anterior.
Ele emoldurou o rosto de Kylie com as mãos.
— É, talvez um pouco. — Ele acariciou o rosto dela com o polegar. —
Mas não é um truque para levar garotas pra cama. É apenas uma coisa
natural que os lobisomens machos fazem... Se é com isso que está
preocupada.
— Eu não estou exatamente preocupada — disse ela. E não estava.
Porque, por mais perigoso que o ronronar de um lobisomem pudesse ser,
Kylie não achava que tinha de se preocupar com a possibilidade de Lucas
abusar do seu poder. Na noite anterior, ele tivera a chance de deixar as
coisas irem longe demais entre os dois, mas não fez isso. — Como eu disse,
confio em você. — E Kylie ainda confiava.
Lucas estudou o rosto dela.
— Mas?
Ok, havia de fato um “mas”. Ela demorou um pouco para encontrar
as palavras certas.
— Mas conhecimento é poder. Eu gosto de saber com que estou
lidando. E gosto de estar no comando, se entende o que eu quero dizer.
Ele franziu um pouco a testa como se não tivesse gostado da
resposta.
— Não é uma armadilha. A fêmea precisa estar perto, bem perto
mesmo, para perceber isso.
Kylie sorriu.
— Então eu acho que preciso ter cuidado para não chegar muito
perto de você.
— Ou não. — Ele se inclinou e beijou-a suavemente nos lábios. — Eu
gosto de você pra valer, Kylie Galen.
— E eu de você, Lucas Parker. — Ela ficou na ponta dos pés para dar
um rápido beijo nos lábios dele.
Seus olhos se encontraram e Lucas soltou um profundo suspiro.
— Ok.
— Ok, o quê? — ela perguntou, sentindo que aquilo significava algo.
— Ok, eu vou ser um pouco mais paciente. Ok, estou satisfeito com o
que já tenho. Você perto de mim assim. — Ele a levantou e a girou no ar.
Kylie sorriu quando Lucas a colocou de volta no chão.
— Obrigada — disse ela, tocando seus lábios com os dedos.
Ele pegou a mão dela.
— Nós só temos que ter um pouco de cuidado quando não estamos
sonhando.
— Cuidado com o quê?
— Como eu disse ontem à noite, quanto mais perto da Lua cheia,
mais fortes ficam meus instintos. E às vezes, eles me deixam um pouco
impaciente.
Ela não gostou de ouvir isso.
— Você quer dizer que não podemos nos ver na época da sua
transformação?
— Eu não disse isso. — Ele franziu a testa. — Nós podemos nos ver.
Mas não convém... dançar ao luar por muito tempo. Ou rolar na grama perto
do riacho. — Ele sorriu. — Ou nadar sem roupa... — Seu tom de voz pareceu
se aprofundar.
— Aquilo foi apenas um sonho. — Ela sentiu seu rosto arder.
— Um sonho e tanto! — Ele sorriu. Então inspirou o ar como se para
afugentar os pensamentos. — Mas, basicamente, vamos ficar bem, contanto
que a gente não brinque muito com fogo até depois da transformação. — Ele
passou a mão pelos cabelos e puxou um punhado deles para a frente. — A
menos que mude de ideia. Você sabe que o que acontece nos sonhos não
acontece de verdade, certo? Quer dizer, a gente podia...
De repente, ela sentiu algo puxando-a para trás e levando-a para
longe de Lucas. Atraindo-a para um lugar que ela não queria ir.
Lucas gritou seu nome. Mas uma nuvem apareceu entre eles. Ela
percebeu que dois homens vestidos com aventais brancos a prendiam.
Seguravam-na, um a cada braço, com tanta força que ela não conseguia se
libertar. O acampamento tinha desaparecido. Agora Kylie estava num
prédio desconhecido e os dois homens levavam-na por um corredor escuro e
sinistro. Ela gritou e tentou se afastar, mas foi inútil.
Seu coração batia na garganta e Kylie sentiu o medo crescer dentro
dela. Nada fazia sentido. Então se lembrou de que tudo era um sonho. Tudo
o que ela tinha de fazer era acordar.
Ela fechou os olhos com força. E então com mais força. E mais ainda. Acorde. Acorde. Acorde.
De repente, uma luz clara ofuscou os seus olhos. Tudo havia
mudado novamente. Os homens que a arrastaram para longe tinham ido
embora. Ela se sentia desorientada, perdida, sozinha. Vazia. Ela se sentia
vazia. O que estava acontecendo com ela?
A luz se deslocou de um olho para o outro, e Kylie viu um homem a
centímetros do seu nariz. Percebeu que estava deitada numa cama. Não na
sua cama, porém. Não na cama de solteiro do acampamento ou na grande
cama da sua casa. A cama era diferente. Ela tentou se mexer, mas sentia-se
entorpecida. Não, não estava entorpecida — estava paralisada!
— Ela está bem? — uma voz feminina perguntou. Kylie voltou os
olhos para o lado na tentativa de ver seu novo raptor, mas a pessoa estava
fora do seu campo de visão, e ela foi incapaz de virar o pescoço. O pânico
começou a apertar sua garganta novamente.
— Deveria estar — disse o homem, iluminando seus olhos com a luz.
Kylie piscou e, quando abriu os olhos, viu o padrão cerebral do
homem. Ele era um vampiro.
Então o homem virou o queixo dela com suas mãos grandes e correu
o dedo pela sua cabeça. Curiosamente, Kylie percebeu que ele tocou seu
couro cabeludo nu. Ela sentiu falta do cabelo. Estava sem cabelo?
Ela piscou novamente e se lembrou do fantasma, Jane Doe. Será que
isso tinha acontecido a ela? Seria uma visão enviada pelo fantasma com
amnésia, uma daquelas visões malucas em que Kylie se tornava o próprio
espírito? O medo cresceu em seu peito. Ela desviou o olhar para o lado e
olhou nos olhos do homem até ver neles seu próprio reflexo. E viu o reflexo
de Jane Doe.
Isso deveria tê-la acalmado, mas o pânico ficou ainda maior. Queria
sair dali. Nunca quisera estar lá, para começar. Kylie já tinha perdido tudo o
que importava. Pensamentos, sentimentos e emoções colidiam em seu peito
e ela não sabia ao certo quais eram dela e quais pertenciam ao espírito.
— Acorde. Kylie, acorde! — Ela podia ouvir vozes saídas de algum
lugar distante. Mas então as vozes desapareceram e ela sentiu as mãos do
vampiro sobre a sua cabeça novamente.
— Ela está se recuperando muito bem — disse ele. — Talvez só
demore um pouco mais para voltar. Vamos fazer outra ressonância
magnética. — O homem se levantou e contraiu as sobrancelhas para ela. —
Mesmo assim, podia ser melhor. Seu padrão ainda não surgiu. — Ele franziu
a testa. — Eu não entendo isso. Algo não está certo.
— O que eu digo ao marido? Ele acordou algumas horas atrás e está
perguntando por ela — disse a voz feminina. Kylie ainda não conseguia ver
a quem pertencia a voz.
Socorro!, gritava em sua cabeça, porque não conseguia pronunciar as
palavras em voz alta.
— Diga a ele que ela está indo bem. Mas que ainda está em
observação. Libere-o se ele estiver em condições.
— Você acha que ela vai sobreviver? — perguntou a mulher
novamente.
— Não sei. — Ele enfiou a lanterninha no bolso do avental. — Mas
acho que é inevitável perder algumas cobaias. Temos apenas que lembrar
que é por uma boa causa.
— Tem razão — disse a voz feminina.
— Traga os resultados do teste. No entanto, se ela não acordar até a
noite, vá em frente e extermine-a.
Exterminá-la?
O medo de Kylie aumentou ainda mais. Nãããããããããão!
 
— Droga! Ela não está respirando! — Uma voz masculina familiar
soou bem perto dos ouvidos de Kylie e ela queria muito poder responder.
Tentou se mexer, mas não conseguiu. Ainda se sentia paralisada. Me ajudem. Por favor...
— Ela já fez isso antes. — Agora era Della falando, e o pânico era
evidente em sua voz. Della nunca tinha mostrado pânico ou medo. Pelo
contrário, aquela vampira não sabia o que era medo.
— Kylie, acorde! — ordenou a grave voz masculina, e desta vez
Kylie percebeu que ela pertencia a Lucas.
De repente, os pulmões de Kylie se abriram e lutaram para respirar.
Ela abriu a boca, engasgou e começou a tossir, como se seus pulmões
rejeitassem o oxigênio. Virando o corpo de lado, ela continuou a tossir, com
a impressão de que seus pulmões iam explodir. Finalmente, abriu os olhos e
percebeu que estava no chão da cozinha de sua cabana.
Depois de alguns segundos, a tosse cessou e ela se concentrou na
respiração. Alguém a ergueu do chão, puxou-a para o seu colo e segurou-a
nos braços. Uma sensação de calor a cercou. Ele estava quente. Muito
quente. E ela estava fria. Muito fria.
Kylie focalizou o rosto da pessoa que a segurava com tanta ternura.
Tão próxima a ela. Tão quente. E seus olhos eram azuis. Lucas.
Então o rosto dele desapareceu num borrão e ela viu o rosto de uma
mulher estranha se aproximando. A sensação dos braços de Lucas ao seu
redor parecia uma lembrança cada vez mais longínqua no tempo.
— Ela parou de respirar de novo! — Lucas gritou, e começou a
sacudi-la. — O que eu faço? Alguém me diga o que fazer!
— Holiday disse que ela vai ficar bem. — Kylie reconheceu a voz de
Burnett, mas ela parecia estar vindo de outro lugar, de algum lugar distante,
muito distante. — Ela acha que Kylie está, provavelmente, tendo uma visão.
Que às vezes... — Então a voz diminuiu de volume e se desvaneceu.
A visão puxou-a de volta e agora ela observava com horror um
grupo de mulheres levando alguma coisa até o seu rosto. Só que agora não
era mais o rosto dela. Kylie estava vivenciando a vida de Jane Doe, mas era
tudo tão real que parecia estar acontecendo com ela mesma.
Ela sentiu uma toalha grossa sendo forçada contra sua boca. Ela
ofegou, tentou se mexer, mas não conseguiu. Ela, Jane Doe, estava
paralisada, e alguém tentava sufocá-la.
Um sentimento de indignação provocou um bolo em sua garganta,
enquanto seus pulmões imploravam por ar. Tudo ficou escuro e então ela
viu o espírito de pé diante dela. Jane Doe se inclinou, os lábios azuis gelados.
— Eles me mataram. Eles me mataram de verdade — disse ela. — Mas você precisa respirar. Você precisa viver.
Os pulmões de Kylie gritavam por oxigênio, mas ela se sentia
incapaz de sorver o ar de que precisava. Então se deu conta de que estava de
volta à sua cozinha.
Kylie ouviu Miranda entoando um feitiço a distância. Ouviu Della
murmurando que Lucas devia fazer uma respiração boca a boca. E Burnett
continuava fazendo perguntas a Holiday pelo telefone.
— Respira, droga! — Lucas gritou.
Ela pressionou a testa contra o peito nu de Lucas e sentiu uma
grande lufada de oxigênio em sua garganta. Lágrimas umedeceram seus
olhos, e ela chorou pela vida tomada de maneira tão brutal. Chorou pela
mulher cujo nome ela nem sabia. Chorou pela mulher que, além de perder a
vida, tinha perdido o filho. Como podia haver tamanha injustiça?
— Ela está respirando de novo! — disse Lucas, que a apertava e
embalava nos braços. — E está chorando. — Ele baixou a cabeça. — Psiu... —
ele sussurrou de modo que só ela ouvisse. E então disse para os outros: —
vou levá-la para a cama. Ela está gelada...
Kylie sentiu que estava sendo suspensa nos braços de Lucas.
Recordou vagamente que ele a carregara para a cama naquela noite,
semanas atrás, quando ela tivera a visão de Daniel, e por alguma razão,
sentiu que de fato era ele que devia estar ali naquele momento. Pareceu a
coisa certa quando ele a baixou na cama e, em seguida, deitou-se ao lado
dela e segurou-a contra o peito, com os braços em torno do seu corpo.
Cansada demais, emocionalmente exausta demais para falar qualquer coisa,
sentiu-se especialmente bem quando adormeceu com a cabeça em seu peito
quente.
Infelizmente, quando ela acordou um pouco mais tarde, ainda nos
braços de Lucas, ele, Burnett, Miranda e Della a encaravam em estado de
choque e com ar de profunda preocupação. E Kylie se sentiu um pouco
como se tivesse sido flagrada beijando um garoto na boca em público. Foi
um tanto incômodo.
Ela se afastou do peito dele, tirou o cabelo do rosto e olhou para
todos os seus espectadores, que a encaravam como se sua cabeça de repente
pudesse começar a girar 360 graus ou coisa assim. Será que eles não
percebiam que, aos olhos daqueles que não as têm, suas próprias
habilidades e poderes eram tão estranhos quanto essa possibilidade?
As palavras “Você est{ bem?” e algumas variações da mesma
pergunta partiram das quatro pessoas.
Kylie assentiu com a cabeça.
— Estou bem.
— Ela está acordada e diz que está bem — disse Burnett ao celular.
— Sim, peço pra ela te ligar assim que puder.
Kylie lembrou-se de que Burnett falava com Holiday.
— Sinto muito — ela disse. Não tinha certeza de por que sentia a
necessidade de se desculpar. O que aconteceu não tinha sido culpa dela. No
entanto, ainda não sabia exatamente o que tinha acontecido, além da visão da
morte de Jane Doe. Mesmo assim, supunha que fosse uma boa ideia se
desculpar por dar um susto em todos no meio da noite.
Kylie olhou para Burnett.
— Como você... Por que você...? — O constrangimento causou nela
um aperto na boca do estômago. — Eu estava gritando tão alto que acordei
todo o acampamento ou algo assim?
— Não. Você quase não gritou — explicou Della. — Acordei com
você vagando pela cozinha, resmungando e, bem, gritando um pouco.
Quando fui ver se estava bem, você estava, tipo, totalmente fora de si. Quer
dizer, as luzes estavam acesas, mas não havia ninguém em casa, se é que me
entende. Você não estava aqui.
— É — confirmou Miranda, entrando na conversa. — E eu acordei
com Lucas tentando derrubar a porta e dizendo que tinha de ver como você
estava. — Miranda olhou para Lucas. — Como você sabia que ela estava
tendo outro daqueles sonhos?
Lucas não respondeu e Kylie se lembrou de que ela estava em meio a
um sonho lúcido com ele quando a visão começou. Será que ele tinha visto
também? Se tinha corrido para a sua cabana, era possível que sim.
— Eu... Hã...
Kylie percebeu que Lucas não tinha contado nada sobre o sonho
lúcido porque sabia que ela provavelmente não ia gostar que todo mundo
soubesse.
— Não foi um sonho — Kylie respondeu, na esperança de desviar a
atenção que dedicavam a Lucas. — Foi uma visão.
— Foi o que Holiday disse — falou Burnett, sentado numa cadeira ao
lado da cama. Quando Kylie olhou para ele, o vampiro acrescentou: — eu
estava andando pelo acampamento quando ouvi o tumulto e vim correndo.
Kylie acenou com a cabeça e olhou para o relógio na mesinha de
cabeceira. Eram quase três da manhã.
— Vocês deviam estar todos na cama, dormindo. É melhor irem.
— Tem certeza de que está bem? — Burnett perguntou.
— Tenho — respondeu Kylie, e era verdade. Pelo menos ela achava
que era, mas precisava descobrir o significado da visão sem uma plateia
observando-a.
— Holiday quer que você ligue pra ela.
— Vou ligar — disse Kylie. As palavras arranharam sua garganta
seca.
Burnett balançou a cabeça e acenou para que Lucas o seguisse. Mas
este continuou sentado no canto da cama.
— Eu quero falar com ela só um instante — ele disse.
Burnett olhou para Kylie e, quando ela concordou com a cabeça,
avisou:
— Seja breve.
— Você precisa da gente? — Miranda perguntou, com um bocejo.
— Não, vocês duas podem ir pra cama. Eu estou bem. Obrigada. —
Kylie acompanhou Miranda e Della com os olhos enquanto saíam do quarto
e então olhou para Lucas. Ele estava com o semblante carregado, a testa
franzida e os olhos azuis cheios de todo tipo de preocupação.
Ele se inclinou um pouco e falou baixo.
— Você tem certeza de que está bem? Aquilo foi bem estranho.
— Você viu também? — perguntou ela.
— Eu vi você sendo puxada por dois sujeitos. Mas então, de repente,
não era você. Era outra mulher. E foi como se você tivesse desaparecido
numa nuvem. Eu acordei assustado e corri pra cá para ter certeza de que
estava bem. Quando cheguei à varanda, ouvi você andando aqui dentro e
acho que perdi a cabeça. — O medo se estampou em seu rosto. — Essas
visões de fantasmas acontecem o tempo todo?
Ela se perguntou se ele sabia que a ideia de ele se transformar num
lobo também a apavorava.
— Não. Não o tempo todo.
— Você sabe o que são essas visões? Por que acontecem?
Kylie hesitou.
— É a maneira que os espíritos têm de me mostrar o que aconteceu a
eles.
— Os espíritos que estão te assombrando? — Ele a fitou mortificado,
depois olhou em volta como se pensasse que os fantasmas estavam ali.
— É. Mas, relaxa. Ela não está aqui agora. — Kylie se ajeitou sobre os
travesseiros. E então acrescentou: — Não é tão ruim quanto parece. — Se
lembrou de como se sentiu impotente durante a visão. Lembrou-se da
terrível sensação de estar sendo sufocada até a morte e seu coração se
apertou pelo fantasma. Tudo bem, talvez fosse tão ruim quanto parecia, mas
se ela pudesse ajudar o espírito a ficar em paz, então teria valido a pena.
O telefone de Kylie tocou. Ela se surpreendeu até se lembrar de que
deveria ter ligado para Holiday.
— Eu devia... Provavelmente é Holiday — disse ela.
Lucas se inclinou e deu em Kylie um beijo rápido na bochecha.
— Me ligue se precisar.
Ela observou Lucas sair pela porta e pegou o telefone. Não verificou
o identificador de chamadas. Tinha certeza de que era Holiday. Quem mais
ligaria para ela às três da manhã? Mas estava enganada.
— Está tudo bem? — A voz de Derek chegou aos seus ouvidos e a
imagem dele sem camisa, deitado na cama, com as cobertas abaixo da
cintura, dominou sua mente.
Seu rosto enrubesceu.
— Está. Como você... soube?
— Você veio até mim — disse ele. — Num sonho.
— Fui...? — ela gaguejou, mordeu o lábio e olhou para baixo. Será
que tinha voltado ao quarto de Derek e não sabia disso?
Kylie viu Socks sair rastejando de debaixo da cama e pular no
colchão, para ficar ao lado dela. Sem dúvida, o gambazinho tinha medo de
Lucas.
— Você esteve aqui só por um instante e depois foi embora.
Ela se sentiu um pouco mais aliviada.
— Ah, é. Eu percebi o que estava acontecendo. Não tinha a intenção
de incomodar você.
— Não teria sido incômodo nenhum — disse ele, parecendo
desapontado. — Pensei que talvez você tivesse me procurado porque
precisasse de alguma coisa.
— Não. Eu ainda estou aprendendo como funciona essa coisa de
sonho lúcido. Eu acordei... aí.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Então você não precisa de nada?
— Não. Estou bem. — Ela fechou os olhos e tentou não deixar que a
preocupação na voz dele a levasse a querer coisas que não podia ter. Ele
estava com Ellie agora. Ou talvez não. Mas não importava. O que importava
era que Derek tinha terminado o relacionamento entre os dois. E não tinha
nem sequer tentado resolver o que tornava tão difícil para ele estar com ela.
E Kylie tinha seguido em frente. Estava com Lucas, não namorando
firme, mas praticamente. E ele estava ao lado dela. Queria estar ali.
— Ok, eu apenas... queria saber como você estava. Eu me importo
com você, Kylie. — Ele baixou a voz, e por um momento pareceu o mesmo
Derek de antes. O Derek que se preocupava com ela. O Derek que teria feito
qualquer coisa para vê-la bem. — Você sabe disso, não sabe?
Ela engoliu em seco antes de responder.
— Sim — disse com sinceridade. — Eu me importo com você
também. — E então se forçou a perguntar: — E como está Ellie?
Derek ficou em silêncio por um segundo, como se soubesse o que
Kylie queria dizer com a pergunta. Que agora eles eram apenas amigos.
— Está bem. Se adaptando.
— Bom — respondeu ela. — Eu a conheci há alguns dias. Ela parece
simpática. — E muito bonita. Kylie mordeu o lábio.
— Ela é legal — disse ele.
— É. Bem, estou feliz por vocês. — Kylie sabia que aquilo não era
bem verdade, mas queria que fosse, e por isso não se sentia tão mentirosa.
— Eu já disse que não estamos juntos — Derek insistiu, parecendo
frustrado.
— É — respondeu Kylie, e ao ver que ele não dizia mais nada,
decidiu fazer a coisa certa.
— Eu preciso desligar. Tenho que ligar pra Holiday.
— Tudo bem — disse ele.
Kylie desligou e tentou afastar a melancolia que o telefonema lhe
causou. Realmente precisava ligar para Holiday e depois descobrir o que o
fantasma quis dizer a ela com a visão.
Mesmo estando com o sono atrasado, Kylie ligou para a mãe logo
cedo na manhã seguinte. Tinha que saber como fora o encontro.
— E então? — Kylie deitou de costas na cama.
— Então, o quê? — A voz sonolenta da mãe denunciava que ela
ainda estava na cama.
— Foi um almoço de negócios ou um encontro na hora do almoço?
— Ah, foi... — A pausa revelou mais do que a mãe provavelmente
queria contar. — Foi divertido.
— Como assim, divertido? — Kylie procurou não demonstrar suas
emoções na voz enquanto apertava os lençóis entre os dedos.
— Só divertido. Eu me diverti, nada demais. Não estou querendo
dizer... Não é como se... Olha, querida, foram momentos agradáveis, mas eu
não sei muito bem se vai dar em alguma coisa...
— Ele não te convidou pra sair de novo? — Kylie acariciou Socks,
que tinha saltado sobre a cama para ganhar atenção.
— Disse que ia ligar. Mas você sabe que os homens sempre dizem
isso. E nunca ligam.
Kylie apertou o telefone.
— Se ele ligar, você vai sair com ele?
— Não sei — disse a mãe. — Ah, alguém está tocando a campainha.
É melhor eu correr. — A linha ficou muda.
Kylie suspirou. Ela tinha uma leve suspeita de que ninguém havia
tocado a campainha. Sua mãe não queria falar sobre o assunto. Mas Kylie
não a culpava.
Segundos se passaram e ela permaneceu no mesmo lugar. Apenas
ficou ali, estendida na cama, olhando para o teto. Sentimentos conflitantes
oprimiam seu peito. Será que isso queria dizer que a mãe e o padrasto nunca
mais voltariam a ficar juntos?
Depois de um banho rápido, Kylie saiu do banheiro enrolada numa
toalha e encontrou Miranda no corredor, como se esperando por ela.
— O que foi? — Kylie perguntou.
— Eu sou a sua sombra — a bruxinha anunciou, orgulhosa.
— Eu pensei que fosse Della...
— Você acha que não sou capaz de proteger você? — Ela estendeu o
dedo mindinho. — Eu tenho poderes, garotinha!
De fato, Kylie tinha suas dúvidas sobre a capacidade de Miranda
para protegê-la, mas não ousaria dizer isso.
— Não, só me lembrei de Burnett dizendo que seria Della esta
manhã.
— Ela foi à cerimônia do nascer do Sol e eu fui incumbida de levar
você até o escritório, onde Della vai nos encontrar em cerca de... cinco
minutos. Então vamos indo.
Kylie olhou para a toalha.
— Posso me vestir primeiro?
— Estou vendo que alguém aqui não gosta muito de acordar cedo...
— Miranda fez uma cara engraçada, e Kylie correu para o quarto para se
vestir.
Poucos minutos depois, elas saíram da cabana. Miranda virou-se
para a porta da frente, fez um gesto com os braços e entoou um
encantamento. Da última vez que tinha feito isso fora porque pressentira
visitantes indesejados que, descobriram mais tarde, eram Mario e o Ruivo
rondando o acampamento e espionando Kylie.
— O que está fazendo? — Kylie perguntou. — Está sentindo alguém
por aqui de novo?
Miranda fez uma careta.
— Um pouquinho — disse, aproximando o polegar e o indicador
para mostrar o quanto.
— Um pouquinho? — perguntou Kylie, com uma ponta de
contrariedade. — Como você pode sentir alguém presente “só um
pouquinho”? Quer dizer, ou eles estão aqui ou não estão, certo?
— Ei, não pega no meu pé — avisou Miranda. — Só tive uma
sensação e achei que não faria mal fazer um feitiço de proteção.
— Você contou a Burnett? — Kylie perguntou.
— Eu ia contar, mas estou com um pouco de medo de falar com ele
sozinha depois do que aconteceu... — Ela corou. — Você sabe.
A lembrança de Burnett na pele de um canguru, saltando de um lado
para o outro no refeitório e esquivando-se das bolas de fogo de Clark e das
baforadas do dragão Perry voltou à memória de Kylie. Essa era parte da
razão que levava Kylie a duvidar da capacidade de Miranda para protegê-la.
— Seja como for — Miranda continuou —, você disse que Holiday
voltaria hoje. Então, acho que vou esperar que ela chegue pra contar.
Kylie revirou os olhos e pensou em salientar que, se Miranda
estivesse certa e de fato houvesse intrusos no acampamento, Burnett
precisava saber o mais rápido possível, mas ficou calada. Poucas horas
provavelmente não fariam muita diferença. Além disso, Miranda tinha um
pouco de razão; Kylie estava de mau humor naquela manhã e não era justo
que descontasse na amiga.
Quanto ao motivo do mau humor, bem, ela achava que
provavelmente era apenas porque tinha dormido pouco. Ela e Holiday
tinham passado quase uma hora ao telefone na noite anterior. Tinham
conversado sobre tudo, desde a morte da tia de Holiday até a visão de Kylie
e o que ela podia ou não significar. Quando questionada sobre os poderes de
cura e aquela questão de “dar uma parte da sua alma”, Holiday sugeriu que
Kylie esperasse até quando pudessem conversar pessoalmente.
Ela quase contou a Holiday sobre suas dúvidas com relação a
Burnett por causa da questão da biblioteca da UPF, mas decidiu esperar para
conversarem pessoalmente também.
Miranda fez mais um arabesco com a mão sobre a porta, trazendo
Kylie de volta ao presente.
— Você se importa se eu contar a Burnett? — Kylie perguntou a
Miranda.
Miranda fez uma careta, mas depois disse:
— Tudo bem. Mas estou te dizendo, é só uma sensação. Não é tão
forte quanto da última vez que senti. Pode não ser nada.
— Ou pode ser alguma coisa — disse Kylie, e visto que aquilo
provavelmente tinha a ver com ela, ficou um pouquinho nervosa. E, tinha
que admitir, ela tinha motivo suficiente para ficar nervosa.
Kylie estava na frente dos pesados portões enferrujados e de
aparência rangente do cemitério de Fallen. Burnett estava à sua direita e
Della, à esquerda. Nenhum dos dois vampiros parecia muito feliz de estar
ali.
Kylie não podia culpá-los. Ela mesma não estava muito
entusiasmada com a aventura. Mas depois de ter a visão com Jane Doe,
estava mais ansiosa do que nunca para ajudar aquele espírito a seguir o seu
caminho.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — Della perguntou, a voz
crivada de medo.
Kylie fez que sim com a cabeça, mas na verdade não tinha certeza de
nada. Deu uma olhada ao redor. Se Hollywood precisasse de um cenário
para um filme de terror, ali estaria um muito bom. Como se para provar que
ela tinha razão, uma rajada de vento passou por eles e fez os portões
rangerem. Um som fantasmagórico ecoou pelo ar.
A rajada deveria ter trazido consigo uma atmosfera ensolarada para
combinar com a manhã. Acima deles, um céu azul sem nuvens prometia um
dia perfeito e cheio de alegria. Um sol vibrante brilhava e fazia cintilar o
orvalho da noite. Mesmo assim, nada parecia ensolarado, vibrante ou alegre.
Pelo contrário, tudo parecia frio, tão frio que a pele de Kylie estava
arrepiada. Della respirou fundo e vapor saiu de seus lábios.
— Eu costumava andar por cemitérios às vezes — disse Della —,
mas nunca me senti assim. — Ela esfregou os braços para se proteger do frio.
— Os mortos não perturbam tanto os seres humanos quanto
perturbam os sobrenaturais — explicou Burnett. Mesmo sua voz parecia
hesitante. Ele olhou para Kylie. — Se você está com receio de fazer isso,
apenas me diga e esperamos até Holiday voltar.
Kylie pensou na hipótese, mas se lembrou da dor, do sofrimento e da
confusão que o fantasma tinha sentido. Jane Doe precisava de respostas
tanto quanto Kylie.
— Não. Estou bem.
— Você está mentindo — disse Della.
— Eu sei. — Kylie olhou para ela e depois para Burnett. — Vocês
dois não precisam entrar comigo.
— Não precisamos? — Havia um fio de esperança na voz de Della.
— É óbvio que precisamos! — retrucou Burnett, dando um passo
adiante. — Se está determinada a ir em frente, vamos acabar logo com isso.
 
Tão logo cruzaram o limiar do cemitério de Fallen, uma violenta
rajada de vento fez os portões fecharem com força atrás deles.
Kylie estancou, sobressaltada. Della pulou de susto e rosnou,
expondo os caninos afiados. Burnett não se moveu, mas seus olhos
brilharam num tom amarelo brilhante.
— Não se preocupem — ele murmurou. — Posso derrubar os
portões se for preciso.
Della olhou para Kylie.
— Não entendo por que você se sente obrigada a fazer isso.
Kylie mirou os amigos.
— Posso me afastar um pouco? Preciso de espaço para me
comunicar com eles.
Ela odiava ter que mentir, mas esperava que assim Della e Burnett
não se sentissem forçados a acompanhá-la cemitério adentro. Sabia que não
queriam estar ali. Parecia loucura, mas sobrenaturais detestavam tudo que
se referia a fantasmas. Pelo menos, talvez dessa forma o ar gelado que ela
sempre sentia quando um fantasma estava presente não fosse tão perceptível
para eles.
— Ok, vá em frente, mas não tão longe que não possamos vê-la —
disse Burnett.
Considerando que Kylie ainda não tinha contado a Burnett sobre o
“leve pressentimento” de Miranda, ela não se importava que ele mantivesse
contato visual com ela. Mas, no momento, não estava preocupada com
Mario e o neto. No momento, eram as vozes sussurradas que Kylie ouvia
que lhe causavam preocupação.
Percorrendo as trilhas de cascalho entre as várias fileiras de túmulos,
ela deixou que seus olhos vagassem de lápide em lápide, esperando que
uma delas lhe chamasse a atenção. Algumas sepulturas tinham pequenos
marcadores de concreto ou mármore apenas com nomes e datas inscritas
neles. Outras estavam rodeadas de estátuas ornamentais. Algumas pareciam
novas; outras, deterioradas pelo tempo. Alguns anjos e santos católicos de
concreto tinham trepadeiras agarradas aos seus braços e pernas, como se
tentassem chamá-los das profundezas da terra, onde apenas os mortos
viviam.
Ela não via nenhum fantasma ainda, mas podia ouvi-los. Eles
falavam todos ao mesmo tempo. Tagarelavam. Como dois ou três rádios
ligados de uma só vez, mas com toneladas de estática. Se estavam falando
uns com os outros ou com ela, não sabia.
Algumas vozes pareciam vir da distância de um quarteirão, outras
pareciam vir de espíritos tão próximos a ela que tinha a impressão de que
poderia tocá-los se estendesse o braço. Não que quisesse tocá-los. O frio
fantasmagórico já a cercava, como mãos estendidas na direção dela,
tentando se aquecer no fogo.
Kylie sentia que, num certo sentido, era isso que ela representava
para eles. Ela era como o fogo, algo que os atraía. Ela era a vida.
Provavelmente a única vida que tinham sido capazes de sentir havia muito
tempo. Ou talvez a única vida que pudesse senti-los.
Passos ecoaram e Kylie olhou para trás. Um velho, de bengala na
mão, vinha arrastando os pés entre as fileiras de túmulos. Por um instante,
ela não soube dizer a que mundo ele pertencia.
Mas então percebeu que Burnett e Della franziram a testa ao olhar
para ele. Kylie fez o mesmo e não ficou surpresa ao constatar, pelo seu
padrão cerebral, que ele era humano. De repente, uma mulher idosa, mais
ou menos da mesma idade do velho, apareceu atrás dele. Seus cabelos
longos, finos e grisalhos caíam sem brilho pelos ombros. Ela usava um
daqueles vestidos de ficar em casa que a avó de Kylie costumava usar.
Aquele era de um tom bem claro de azul. Nos pés, a mulher usava um par
de chinelos azul-bebê.
Levou apenas um segundo para Kylie perceber que ela não era deste
mundo.
— Você não está tomando seus remédios como deveria, não é? — disse ela
ao velho. — Eu sei disso porque os seus tornozelos estão inchados. Você devia tomar os comprimidinhos vermelhos duas vezes ao dia, não os azuis. O que está tentando fazer? Se matar? Você me prometeu que iria se cuidar. Por que nunca me ouve?
Então a mulher desviou o olhar do velho e olhou direito para Kylie.
Seus olhos cinzentos e desbotados pela idade se arregalaram e, em seguida,
ela desapareceu. Kylie quase perdeu o fôlego quando a mulher se
materializou a centímetros dela. Sua pele era de uma tonalidade cinza
mortiça que combinava com os olhos. O cabelo, de um tom acinzentado
muito parecido com o dos olhos, flutuava ao vento, quase em câmara lenta
em volta da cabeça.
— Mãe de Deus! Você pode me ver! — a anciã exclamou.
A proximidade do espírito provocou calafrios em Kylie. Mas a queda
na temperatura não era tão perturbadora quanto foi o silêncio repentino.
O burburinho dos espíritos tinha cessado. O único ruído no
cemitério era o som dos passos do velho. Seus sapatos se arrastavam pelo
cascalho a cada vez que ele dava um passo trôpego, com a bengala batendo
de leve no chão de terra, em busca de um lugar estável onde apoiá-la.
Bate, bate. Arrasta. Bate, bate. Arrasta. Bate. Arrasta.
Kylie sentiu mais do que ouviu Burnett e Della recuarem. Ela tinha
pedido que se afastassem, mas no momento estava arrependida. Talvez não
quisesse ficar sozinha. Mas estava arrependida a ponto de admitir seu
medo? Ela sabia que alguém como Burnett admirava a coragem, e Kylie não
queria desapontá-lo.
— Responde, menina! Você pode me ver, não pode? — A velha acenava
com a mão em frente ao rosto de Kylie.
Ela prendeu a respiração. O silêncio agora parecia ainda maior. A
ausência de outras vozes falando significava alguma coisa. Significava que
os espíritos estavam ouvindo. Esperando pela resposta dela. Esperando para
ver se ela admitia que era capaz de ouvir um deles.
De repente o ar que invadiu seus pulmões pareceu tão frio que ela
sentiu a garganta doer. Eles, os espíritos silenciosos, estavam se
aproximando. Ela não podia vê-los, nem sequer ouvi-los, mas podia senti
los. O frio ficou dez vezes pior.
O medo provocou um nó em seu estômago. Kylie sentiu uma
camada fina de gelo se formar sobre os lábios. Por um segundo, se
perguntou se tinha sido uma boa ideia visitar o lugar. Ela conseguiria fingir
que não ouvia a mulher? Ou seria tarde demais para ignorar o desespero
daquele espírito?
— Diga que ele precisa tomar os dois comprimidinhos vermelhos.
Kylie continuou calada. Cristais de gelo cobriram os seus cílios,
atrapalhando sua visão.
— Ele vai conhecer o nosso primeiro bisneto. Durante anos ele só falou em viver o bastante para conhecer a terceira geração da nossa família. Mas, se não começar a tomar os comprimidos direito, não vai conseguir.
De repente, os outros espíritos começaram a se materializar em volta
de Kylie. Dez, depois vinte. Então mais. E quando começaram a se
aproximar lentamente, o coração de Kylie disparou de puro pânico. Ela
pensou em correr, mas e se eles conseguissem correr ainda mais rápido?
— Ela pode nos ouvir? — perguntou o espírito de um homem de
aparência decrépita.
— Ela pode nos ver? — acrescentou o espírito de uma mulher mais
jovem, que se aproximava.
— Vocês são todos uns tolos! — gritou a voz de outro espírito. — Os
vivos não podem nos ver.
— Mas ela pode! — argumentou a mulher mais jovem. — Olhe pra ela!
Os espíritos iam chegando mais perto.
— Acham que ela pode nos ajudar? — uma mulher perguntou.
— Talvez — disse outro espírito.
O homem mais velho fitou o rosto de Kylie. — O que ela é?
Os espíritos começaram a se aglomerar em torno de Kylie. As
palavras brotavam aos borbotões dos seus lábios, cada um deles falando
mais rápido do que os outros, tornando difícil para ela distinguir suas vozes.
O som era tão alto que Kylie teve que se esforçar para reprimir o impulso de
cobrir os ouvidos. Ela não conseguia se lembrar do que Holiday tinha dito
sobre como se fechar para essas vozes. Seria muito tarde para isso?
— Você está procurando um túmulo em particular? — As palavras
penetraram nos ouvidos de Kylie e deram voltas no seu cérebro em pânico.
Levou um minuto para que percebesse que aquela voz masculina era
diferente das outras. As palavras não vinham dos mortos, mas do mundo
dos vivos.
Kylie conseguiu olhar em volta. Viu o velho passando entre duas
grandes lápides e vindo na sua direção. Sua bengala fazia buracos na grama
verde, deixando visível a terra úmida por baixo dela. Cada vez que ele
puxava a ponta da bengala da terra provocava um barulho que parecia alto
demais.
Lembrando-se de que não estava totalmente sozinha, Kylie olhou ao
redor e viu Burnett de pé no final da fileira de túmulos, vigiando, pronto
para se aproximar caso o senhor idoso se revelasse uma ameaça.
Mal sabia Burnett que não era o velho que apavorava Kylie, mas
todos os outros seres que o vampiro não conseguia ver. O homem
continuava se aproximando dela. Sua presença emanava uma onda de
tranquilidade que diminuía o caos que fazia o sangue de Kylie correr mais
rápido. Quanto mais perto chegava, mais os espíritos se afastavam.
Kylie tocou o lábio inferior com a ponta da língua para o gelo
derreter e piscou para se livrar dos cristais de gelo brilhantes em seus cílios.
— Você parece perdida — disse o velho de novo, parando a alguns
metros dela.
Grata pelo fato de a presença do velho lhe trazer algum alívio, Kylie
tentou sorrir, mas o sorriso mais pareceu uma careta.
— O gato comeu sua língua, minha filha? — perguntou ele.
— Não — respondeu. Percebendo que não tinha respondido sua
pergunta inicial, Kylie buscou uma mentira em que o velho pudesse
acreditar. — Estou procurando pelo túmulo... da minha tia.
— Qual é o nome dela? Talvez eu saiba em que direção ele fica. Deus
sabe que já andei muito por este cemitério. Eu venho aqui todos os dias, para visitar a minha Ima.
— Eu sou Ima — disse a esposa morta do homem, aproximando-se
para fitar o rosto de Kylie.
Kylie hesitou e então olhou para sua direita e leu uma lápide.
— Lolita Cannon. Esse é o nome da minha tia. — Ela ainda não sabia
se devia admitir que percebia a presença da esposa falecida do homem ou
não. Seu coração batia acelerado com sua indecisão. Mas, se ela não dissesse
ao velho sobre o remédio, ele poderia...
— Ora, eu acho que o túmulo da sua tia está por aqui em algum
lugar. — Ele se virou e começou a procurar, apontando com a bengala para
os marcadores conforme os lia.
— Tem certeza de que ela pode nos ver e nos ouvir? — Outro espírito
apareceu.
Kylie olhou para o recém-chegado de relance, tentando não
demonstrar que podia ver qualquer um deles. Era o espírito de outra
mulher, mais jovem, de vinte e poucos anos, vestindo um vestido estilo dos
anos 70.
— Tenho certeza — respondeu Ima, e então se inclinou e chegou tão
perto que sua presença gelada queimou o braço de Kylie. — Diga a ele sobre
os remédios — ela implorou. — Se não, ele vai morrer sem nunca ter visto a terceira geração da nossa família.
— Aqui, está bem aqui. — O velho apontou com a bengala e acenou
para Kylie segui-lo.
— Obrigada — disse Kylie, parando ao seu lado ainda sem saber ao
certo o que fazer.
— É uma bela lápide — disse ele, usando a bengala para manter o
equilíbrio. — Bem, preciso ir. Aproveite o seu tempo com ela.
Ele começou a dar um passo e então parou.
— Sabe, eu de algum modo sinto que a minha Ima pode me ouvir,
então vá em frente e converse com a sua tia, se tem alguma coisa que queira dizer a ela.
A mulher do homem ergueu as mãos como se estivesse frustrada.
— Sim, eu posso te ouvir, velho. É você que não ouve uma palavra do que
eu digo. Não sei por que isso me surpreende. — A mulher olhou para Kylie
novamente. — Esse velho nunca me ouviu quando eu estava viva. E fala mais comigo agora, que estou morta, do que falava antes. Mas eu amo esse velhote. E você tem que me ajudar a ajudá-lo. Por favor, senhorita. Eu não sei o que você é, ou como pode me ver, mas eu imploro.
Kylie viu o velho dar mais alguns passos para longe dela. Se dissesse
a ele alguma coisa, sabia que os outros espíritos voltariam a assediá-la, mas
se não dissesse... Kylie não seria capaz de viver consigo mesma se algo
acontecesse a ele por culpa dela.
— Espere, senhor. Eu...
Ele se virou.
Merda! Como iria dizer a ele?
— Eu... Eu não pude deixar de notar que o senhor parece um pouco
trêmulo. Sabe, isso aconteceu com minha tia e era porque ela misturava os
remédios. Estava tomando os comprimidos errados duas vezes ao dia. Os
azuis em vez dos vermelhos.
A esposa morta do homem soltou um grito de vitória. A mulher
mais jovem ao seu lado olhou para Kylie com assombro.
— Ela pode nos ouvir! Mamma Mia!, ela pode mesmo. Meu nome é Catherine. Qual é o seu?
O mesmo olhar de assombro que estampava o rosto da mulher mais
jovem também se via no rosto do velho.
— Ora, minha filha, eu... poderia jurar que talvez você... Quer dizer,
Ima vivia me dizendo para ter cuidado. E eu não tenho me sentido muito
bem ultimamente. Acho que vou voltar para casa e verificar a minha receita.
— Então ele se virou e seguiu em direção ao portão.
Kylie forçou um sorriso, embora as vozes dos espíritos agora
estivessem mais altas do que nunca, visto que todos sabiam a verdade.
Sabiam que ela podia ouvi-los. Sabiam que poderia ajudá-los. Mas será que
podia mesmo? Até agora todos os espíritos tinham buscado sua ajuda, mas
poderia ajudar aqueles que entravam em contato com ela acidentalmente?
Assim que o velho se virou para sair do cemitério, outra onda de frio
atingiu-a lateralmente. O fantasma de Jane Doe se materializou. Ela olhou
para Kylie como se estivesse confusa. — O que você está fazendo aqui?
— Não é aqui que você está enterrada? — Kylie perguntou, lutando
para ignorar o frio e as vozes.
— Você disse alguma coisa? — O velho se virou outra vez. Suas
palavras eram quase inaudíveis em meio à tagarelice dos espíritos, que havia
recomeçado.
— Estava falando sozinha — Kylie respondeu, rezando para que ele
se virasse antes que ela... Uma onda de tontura quase a derrubou. Lutou
para permanecer de pé.
Os espíritos tinham se aproximado novamente, cercando-a, e todos
falavam ao mesmo tempo. Queriam que ela fizesse algo por eles. Faziam
perguntas.
O olhar de Kylie passava de rosto em rosto. Seu coração estava
pesado com a tristeza que sentiam. Isso a fez perceber o quanto ela era
insignificante — uma só pessoa e tantas almas precisando de auxílio.
A onda de tontura a assaltou novamente, só que mais forte desta
vez. Sua cabeça começou a latejar — a dor explodiu atrás dos olhos.
Esfregando as mãos nos braços para se proteger do frio, Kylie se abaixou até
a grama verde, abraçou as pernas e pousou a testa nos joelhos.
— Não posso fazer isso — ela murmurou.
— Para trás! — Jane Doe disse. — Vocês estão machucando a menina!
Kylie sentiu que o frio começava a ceder, a dor atrás das pálpebras
diminuiu, e ela só pôde presumir que Jane Doe tinha falado com os outros
espíritos. O nível de ruído baixou quase a ponto de não incomodá-la mais.
— Você está bem? — A voz grave e preocupada de Burnett chegou
aos seus ouvidos.
Ela levantou a cabeça e viu que os únicos espíritos que restavam era
Jane Doe, a esposa do velho e a mulher mais jovem.
Kylie olhou para Burnett.
— Sim. Estou bem. Ou melhorando — disse ela.
Burnett assentiu e depois se afastou. Kylie olhou para Jane Doe e
esperou mais alguns segundos antes de perguntar:
— Não é aqui que você está enterrada?
Jane franziu a testa do seu jeito confuso. — Eu... não sei. — Ah, mas como não sabe?! — Exclamou a jovem mulher que,
segundo ela mesma tinha dito, chamava-se Catherine. — Claro que você está enterrada aqui. O seu túmulo e sua lápide estão bem ali. Você foi enterrada pelo sistema penitenciário do Texas. Foi condenada à morte por matar seu próprio bebê.
 
O choque quase fez Kylie perder o fôlego. Jane tinha matado seu
bebê? Seria por isso que tinha amnésia? O horror diante do que fizera teria
sido demais para ela?
Jane se voltou para Catherine e ergueu os dois pulsos diante do rosto
dela, o corpo rígido de pura fúria. — Quantas vezes tenho que dizer que eu não sou Berta! Não matei meu filho. Nunca mataria o meu bebê. Eu o amava.
Catherine olhou para Kylie. — Ela está confusa. Acho que fizeram uma lobotomia nela. Provavelmente para tentar curá-la. — Eu não sou Berta! — Jane Doe gritou tão alto que Kylie se
encolheu. — E estou farta de ouvir você me chamando assim.
— Então qual é o seu nome? — Catherine replicou.
Jane tinha lágrimas nos olhos.
— Eu não sei. Não sei quem sou, não sei o que sou, mas sei o que não sou. E não sou Berta Littlemon. Acho que o meu bebê morreu, mas eu não o matei. Eu era casada com alguém. Agora estou perdida. E vazia. E morta. — Ela se virou e
olhou para Kylie como se se lembrasse da visão. — Alguém me matou. —
Lágrimas escorriam pelo seu rosto no momento em que ela desapareceu.
O peito de Kylie se encheu com um sentimento de solidariedade. Ela
voltou a ficar de pé e, embora se sentisse inclinada a acreditar em Jane Doe,
tinha ido até ali para encontrar respostas. E para encontrá-las, tinha de fazer
perguntas.
— Por que você acha que ela é Berta Littlemon?
— Eu não acho, eu sei — disse Catherine. Então ela sorriu. — E posso contar tudo o que sei se você me fizer um favor.
Kylie ainda estava junto ao túmulo de Berta Littlemon quando
Burnett se aproximou dela, cerca de trinta minutos depois. Desta vez, ele
não perguntou se ela estava bem. Porque não precisou. Kylie sentiu que ele
tinha deduzido que ela não estava bem pelo olhar de desânimo no seu rosto.
Colocando a mão de leve em seu ombro, Burnett perguntou:
— Vir até aqui... serviu pra alguma coisa?
— Não sei — disse Kylie, confusa e perturbada com o que tinha
descoberto por meio de Catherine O’Connell. Claro, ela tinha obtido
algumas informações, mas a ida ao cemitério tinha servido muito mais para
confirmar o quanto ela sabia pouco a respeito de Jane Doe e o quanto seria
impossível ajudá-la.
— Já podemos ir? — perguntou ele.
Kylie concordou com a cabeça e eles começaram a caminhar na
direção dos portões, onde Della os esperava, tão pouco à vontade quanto no
momento em que chegaram.
A multidão de espíritos os seguiu de perto, mas não se aglomerou
em torno dela.
— Você vai voltar? — sussurrou o espírito de um homem de
aparência mais velha.
— Por favor, diga que vai! — implorou o jovem espírito de uma
mulher.
— Não é justo! — lamentou-se outra mulher. — Por que ela tem que ir embora agora? Eu não tive nem oportunidade de falar com ela!
Então todos os espíritos começaram a falar ao mesmo tempo,
tornando difícil para Kylie compreendê-los e lhe provocando uma forte dor
de cabeça. Apesar da multidão de vozes, ela estava vagamente consciente de
Ima, a esposa do velho, que ia de um pequeno grupo de espíritos para outro
e sussurrava algo para eles.
Kylie parou e massageou as têmporas.
— Lamento muito — disse, e realmente lamentava.
Agora, tudo o que queria fazer era fugir deles, correr para a luz do
Sol, ignorar as sombras e fingir que elas não existiam. Mas mesmo que
quisesse fugir, sabia que não podia. Como poderia, depois de sentir sua dor,
sua mágoa, tão intensamente quanto a sua própria? Como poderia, quando
sabia que todos eles tinham algum tipo de assunto inacabado que queriam
resolver e ela era a sua única chance de fazer isso?
Ainda assim, Kylie tinha que estabelecer alguns limites ou então
provavelmente perderia o juízo como Jane Doe, obviamente, tinha perdido.
E, desse modo, ela não seria capaz de ajudar mais ninguém.
— Eu tenho que ir agora — disse ela. — Vocês não podem vir
comigo. Precisam ficar aqui. Mas... eu vou voltar. Prometo. — Era uma
promessa que ela tinha a intenção de cumprir, mas que não encarava com
muita expectativa.
— Eu não vou voltar — disse Della, caminhando até o carro.
Burnett lançou a Kylie um olhar preocupado e ela balançou a cabeça,
indicando que estava bem. Quando saíram do cemitério e ela viu que os
espíritos não a seguiam, suspirou de alívio. Ela nunca tinha apreciado tanto
a onda de calor do Texas quanto naquele momento.
Olhou para trás, na direção do cemitério. Os espíritos ainda estavam
lá, fitando-a sem palavras. Kylie se perguntou se a promessa tinha sido
suficiente para convencê-los a ficar ali, em vez de segui-la. Ou se o fato de
eles permanecerem no cemitério tinha mais a ver com a mensagem que Ima
tinha sussurrado para eles, fosse ela qual fosse.
Kylie sentiu um arrepio descer pela sua espinha. Ela o ignorou e
caminhou com Burnett e Della para o carro.
O trajeto de volta a Shadow Falls foi curto. Eles não falaram. Depois
de estacionar, os três se arrastaram para fora do Mustang preto. Kylie trocou
um olhar com Burnett e perguntou se ela podia faltar às atividades do
acampamento pelo resto do dia.
Ele hesitou e Kylie ficou com medo de receber um não, mas então ele
franziu a testa e perguntou:
— Será que Holiday iria aprovar?
Kylie acenou com a cabeça.
— Sim — ela respondeu com honestidade. Ajudar os fantasmas fazia
parte de seu trabalho como sobrenatural. Holiday iria entender isso e
também o esforço que essa missão exigia dela. A líder do acampamento era
provavelmente a única que entenderia.
Burnett ainda fez uma pausa.
— Você está bem? Precisa conversar ou alguma outra coisa?
— Não. Estou bem — disse Kylie.
O alívio estampado no rosto do vampiro era quase cômico.
Obviamente, a ideia de ter que oferecer conselhos ou mostrar compaixão
pelos espíritos não o agradava. Kylie poderia ter brincado com ele por causa
disso se não estivesse tão perturbada pelo que havia acontecido no
cemitério.
— Só quero ligar meu computador e verificar alguns fatos que
descobri.
— Tudo bem — disse ele, acenando para Della segui-la.
— Por favor, não me peça pra voltar lá de novo — implorou a
vampira enquanto se afastavam. — Foi superestranho.
— Sinto muito — disse Kylie.
— Você descobriu o que você precisava saber?
— Na verdade, não.
— Eles não responderam às suas perguntas? Eu ouvi você falando
com eles.
— Não é assim tão fácil.
Por um segundo, Della parecia disposta a fazer mais perguntas, mas
então mudou de ideia e resolveu ficar em silêncio.
Isso foi bom. Kylie não estava nem um pouco a fim de explicar como
funcionava a comunicação com os mortos. Agora, ela precisava se
concentrar no que havia descoberto em sua aventura. Não tinha nem
começado a recapitular tudo e concluir em que acreditar.
Jane era ou não era uma assassina de crianças e a crueldade em
pessoa? Ansiosa para provar que Catherine O’Connell estava errada, Kylie
apressou o passo.
Chegou à primeira curva da trilha, onde as árvores cortinavam o céu,
sombreando o caminho. Ela respirou os perfumes do verão, a vegetação
verdejante da floresta, o aroma inebriante de terra seca. Estava quase
conseguindo acalmar sua mente caótica quando um pássaro azul precipitou
se do céu e pousou bem em seu caminho. A gralha azul inclinou a cabeça e
piou alegremente como se se exibisse só para ela.
— Fora! — gritou Della. Mas o pássaro, com toda a atenção
concentrada em Kylie, ignorou Della. — Merda! — Ela tirou o cinto. — É
aquele metamorfo idiota? — Quando a vampira ameaçou arremeter para a
frente, para fazer só Deus sabe o que com o pássaro, Kylie pegou-a pelo
braço.
— Para! É só um pássaro.
Os olhos de Della se arregalaram.
— É o mesmo pássaro que você... trouxe de volta à vida?
— Não sei — disse Kylie, mas sabia que era mentira.
Della acenou com os braços, tentando assustar o pássaro.
— Isso é muito esquisito.
O pássaro continuou a cantar.
— Saia daqui antes que eu quebre o seu pescoço! — Della berrou.
— Deixe-o em paz. — A verdade era que o pássaro estava
assustando Kylie também, mas ele não merecia morrer. Ou morrer outra
vez.
Além disso, Kylie não estava disposta a dar outra parte da sua alma
para trazê-lo de volta à vida.
O pássaro finalmente parou de cantar, então bateu as asas e levantou
voo, pairando na frente do rosto de Kylie. Um raio de sol infiltrou-se através
das árvores e fez as penas da criatura azul-marinho cintilarem. Então,
soltando mais um piado, ele se afastou. Kylie disparou a correr e não
diminuiu o ritmo até chegar à sua cabana. Della seguiu-a na mesma
velocidade.
Talvez depois de pesquisar sobre Berta Littlemon, Kylie pesquisasse
sobre o pássaro azul que a perseguia. Embora ela duvidasse que fosse
possível encontrar alguma coisa a respeito disso no Google.
— Então você realmente falou com os espíritos? — Jonathon
perguntou. O vampiro tinha sido incumbido de ser sua sombra logo depois
que Kylie e Della chegaram à cabana. Claro que a primeira coisa que Della
fez foi contar tudo o que tinha acontecido no cemitério. Kylie olhou para
Jonathon, sentado em seu sofá.
— Posso fazer minha pesquisa agora, em vez de ficar aqui
conversando sobre fantasmas? — Kylie estava orgulhosa de si mesma. Em
vez de ceder à vontade de ir direto para a cama, puxar as cobertas sobre a
cabeça e dar um grito bem demorado, ela tinha ligado o computador.
Quando a palavra Google apareceu na tela, ela digitou o nome
“Berta Littlemon”. Enquanto o computador buscava a informação, olhou
para Jonathon novamente.
— Eu só preciso fazer isso aqui.
— Tanto faz... — O tom de voz do vampiro indicava que ele
considerara seu comportamento rude.
E talvez fosse, mas com um possível fantasma assassino de criança
em suas mãos e um pássaro azul perseguindo-a, Kylie não tinha tempo para
ser educada.
— Desculpe — ela ainda resmungou.
Kylie leu a lista de sites que o Google mostrou na tela: as mais
famosas assassinas do Texas, mães que matam, mulheres cruéis do passado. O
coração de Kylie se apertou. Ela clicou no primeiro site e preparou-se para
ficar perplexa.
E não foi desapontada. A única coisa que ela não encontrou foi uma
imagem decente de Berta Littlemon que fosse o suficiente para identificá-la.
— Que bela sombra você é, vampiro!
Kylie se voltou e viu Lucas parado na porta, olhando Jonathon
dormir no sofá.
Jonathon não se mexeu. Nem sequer abriu os olhos ao falar.
— Ouvi você chegar quando estava a um quilômetro daqui. Farejei
sua bunda lupina quando estava a dois.
Lucas rosnou.
Kylie revirou os olhos. Ah, o amor entre vampiros e lobisomens era
encantador! Por um momento, ela se lembrou da vontade de Lucas de que
ela se tornasse um lobisomem. E se perguntou o que aconteceria se ele
descobrisse que ela não era. O que aconteceria se ela fosse uma vampira?
Será que ele ainda ia gostar dela? Kylie queria muito acreditar que isso não
teria importância para ele, que Lucas estava acima de qualquer tipo de
preconceito.
Mas a verdade era que Kylie sabia que provavelmente teria
importância.
E isso a assustou mais do que pássaros azuis a perseguindo e
fantasmas esquecidos que possivelmente mataram seus próprios bebês.
Lucas mudou seu foco de Jonathon para ela.
— Tudo bem?
Kylie respirou fundo. Ela sentiu que ocultar sua fraqueza de Burnett
tinha sido uma necessidade. Nem tinha se sentido à vontade para contar
alguma coisa a Della ou Jonathon. Mas bastou que os olhos preocupados de
Lucas a fitassem para que ela sentisse a garganta apertar com a necessidade
de um pouco de conforto.
Ele devia ter sentido a tensão dela, ou talvez fossem as lágrimas que
faziam seus olhos arderem, porque foi até ela, pegou sua mão e levou-a até o
quarto.
— Eu tenho que ficar de olho nela — Jonathon falou ainda deitado
no sofá.
— Por que você não continua aí, observando a parte de trás das suas
pálpebras, como estava fazendo quando entrei? — rebateu Lucas, batendo a
porta do quarto. A cabana estremeceu com a força que ele fez.
Ao se verem sozinhos, o olhar de Lucas voltou-se para Kylie.
— O que aconteceu? — Ele se aproximou, colocou a mão no pescoço
dela e a puxou para si.
Kylie descansou a testa no seu peito e lutou contra as lágrimas. A
necessidade de conforto era grande, mas a de chorar era ainda maior.
— Foi horrível! — disse ela, engolindo em seco.
— O que foi horrível? — perguntou ele.
— Eles estavam por toda parte. E então...
— Quem estava por toda parte? — A mão dele se moveu pelas costas
dela, consolando-a e oferecendo o toque reconfortante de que ela precisava.
Seu coração doía com o desejo de ter alguém para ajudá-la a
compreender a experiência. Kylie levantou a cabeça e olhou para Lucas, mas
não se afastou.
— Os espíritos. Mas essa não foi a pior parte. Eu...
Ele soltou outro grunhido de frustração, interrompendo-a. Então
observou-a por um segundo como se pesasse as palavras com cuidado.
— Por acaso você não esperava que eles estivessem por toda parte
num cemitério, Kylie? Depois do que aconteceu com aquela visão, não
consigo entender o que deu na sua cabeça para ir até lá.
Ok, então Lucas era como os outros; não entendia o que ela fazia.
Kylie não podia culpá-lo, porém. Tal como Della tinha salientado naquela
manhã, falar com fantasmas era algo apavorante. Ainda assim, a reação dele
a magoou.
Ela queria que ele entendesse, que fosse capaz de perceber o quanto
isso era importante para ela. Mas Lucas não podia. Ele não era... fae. Ele não
era Derek.
Não querendo pensar em Derek, ela procurou afastar o pensamento.
— Eu tive que ir — disse ela, embora não achasse que isso fosse fazer
diferença para Lucas. — É o que eu devo fazer. É por isso que me procuram
para obter ajuda.
Lucas franziu a testa.
— Mas a que preço? Eu não gosto de vê-la chateada como está. E
com certeza não gosto de pensar que você está se colocando em perigo para
ajudar alguém que já está morto. Pelo que sabemos, eles estão mortos
porque fizeram alguma idiotice e agora tentam fazer você fazer alguma
idiotice também, e pode acabar se machucando por causa disso.
Seu tom de voz, sua expressão, e até mesmo sua postura corporal
diziam a Kylie que contar a Lucas que havia muita chance de o seu fantasma
ser uma assassina de criancinhas podia não ser uma boa ideia. Então ela se
resignou à sua realidade atual. O máximo que podia fazer era resumir o
resto da história até Holiday chegar. O que ela esperava que fosse em breve.
— Droga! Eu detesto ver você chateada — ele murmurou entre
dentes, e então puxou-a para mais perto.
Kylie mordeu o lábio, lembrando-se de como tinha se sentido
quando sua boca ficou coberta de gelo no cemitério.
— Foi um pouco assustador, mas não aconteceu nada.
Ele levantou seu queixo e olhou nos olhos dela.
— Tem certeza?
Não querendo mentir para ele, ficou na ponta dos pés e o beijou. Ele
tinha um gosto tão bom! Como uma mistura de pasta de dentes com um
pouquinho de chocolate.
Ela sempre gostou de chocolate com hortelã, então abriu um pouco
mais a boca. Ele aceitou o convite e, num piscar de olhos, o beijo deixou de
ser doce e passou a ser apaixonado. Quando a língua de Lucas deslizou
pelos seus lábios, ela se espremeu ainda mais contra ele e qualquer vestígio
de preocupação que poderia haver no seu coração se desvaneceu. Tudo em
que conseguia pensar era na maravilha daquele momento. A maravilha que
era a paixão.
Ela adorava tê-lo tão perto de si. A sensação sedosa de sua boca
contra a dela era perfeita. A barba mal feita fazia cócegas nas suas bochechas
e seu peito pressionava o dela, encaixando-se perfeitamente. Kylie saboreou
a sensação de suas mãos fortes apertando sua cintura. Uma voz no fundo do
seu ser lhe dizia que ela poderia lidar com qualquer coisa, pássaros
perseguidores, centenas de fantasmas, até um espírito assassino com
amnésia. Ela poderia enfrentar tudo isso se tivesse os braços e beijos de
Lucas à espera dela quando tudo acabasse. Ela poderia sobreviver enquanto
tivesse sua deliciosa proximidade para ajudá-la a lidar com aquilo. — Alguém vive e alguém morre.
A voz surgiu ao mesmo tempo que o calafrio percorreu de alto a
baixo a sua espinha. Kylie se afastou do beijo quente e enterrou o rosto no
peito cálido de Lucas, sem querer sentir o frio. Agora não. Não tão pouco
tempo depois da visita ao cemitério e a lembrança assustadora de todas
aquelas almas perdidas precisando de ajuda. Não quando tinha acabado de
saber das coisas terríveis que aquela mulher tinha feito.
— Eles continuam insistindo para que eu diga isso a você — disse Jane,
também conhecida como Berta.
Quem morre? Kylie fez a pergunta mentalmente.
— Talvez eles estejam se referindo a mim — o espírito disse, parecendo
confuso de novo.
De algum modo, Kylie sabia que não se tratava disso. Alguém vive e
alguém morre. As palavras flutuavam novamente pela sua cabeça. Talvez
houvesse uma coisa que os beijos de Lucas não pudessem consertar. A ideia
de perder alguém que amava era demais para ela.
Levantando o rosto do peito quente de Lucas, ela abriu os olhos e
tentou se concentrar em Jane Doe.
Ao olhar para o rosto do espírito, Kylie se lembrou dos trechos da
história que tinha lido sobre Berta Littlemon. Ela não tinha matado apenas o
próprio filho, mas o de um vizinho também.
Jane Doe olhou para Kylie sem reservas. Sem nenhuma preocupação.
Sem vergonha alguma. Será que a mulher tinha esquecido o que acontecera
no cemitério? Que Catherine a tinha delatado? Que Kylie já sabia de tudo?
Mas mesmo agora, quando Kylie olhava no fundo dos seus olhos, ela
não via a alma de uma assassina. Ela via a alma de uma mulher que estava
perdida, esquecida e precisava de sua ajuda.
Será que isso significa alguma coisa? Kylie perguntou. Mas o quê?
 
Uma hora depois, Lucas a deixou para ir a uma aula de trilha em
meio à natureza e Kylie continuou com a sua pesquisa na Internet. Ela tinha
lido a maioria dos artigos de sites que continham informações sobre Berta
Littlemon. Também fez uma busca rápida de sites com o nome Catherine
O’Connell, a mulher que havia delatado Jane. Não só porque Kylie tinha a
intenção de manter sua promessa — trato é trato —, mas porque queria
saber se a mulher era honesta.
A pesquisa rápida sobre as informações que Catherine lhe dera
comprovou que ela não mentira. Mas será que isso também significava que a
mulher estava certa sobre Jane Doe?
Até o momento, tinha encontrado um ou dois sites que tinham uma
foto de Berta Littlemon, mas elas eram tão embaçadas que Kylie não poderia
ter certeza de que se tratava da sua Jane Doe. Claro, ela tinha cabelos
castanhos e parecia tê-los usado compridos um dia, e as características
faciais eram semelhantes, mas... ainda assim havia uma esperança.
E a esperança ficou ainda maior quando Kylie se lembrou vagamente
de algo que Holiday tinha dito sobre os espíritos que em vida foram ruins.
Quase como se pensar no nome da líder do acampamento tivesse
operado alguma mágica, Kylie ouviu a voz de Holiday.
— Posso entrar?
Kylie viu Jonathon acordar com um sobressalto do seu sono
profundo. Então ela saltou da cadeira onde estava, atravessou a sala e
abraçou a amiga.
— Estou tão feliz que você esteja em casa! — disse Kylie, só
liberando a mulher depois de um abraço bem demorado. Ela tinha sentido
falta das conversas com Holiday, de tê-la sempre por perto. Mas Kylie
provavelmente tinha sentido falta de seus abraços mais do que de qualquer
outra coisa. — Eu tenho tantas coisas pra perguntar, pra contar.
Kylie estava prestes a despejar todo o seu trauma emocional sobre
Holiday, quando de repente se lembrou da razão que tinha levado a mesma
a se ausentar. Sua tia havia morrido. E essa morte tinha estremecido as bases
do seu mundo. Talvez, Kylie concluiu, Holiday já tivesse o suficiente em que
pensar e não precisasse que ela lhe desse um pouco mais.
Kylie fez uma pausa para recuperar o fôlego.
— Você está bem? Eu sinto muito pela sua tia. Você conseguiu dar
um jeito em tudo?
— Estou bem. — Holiday apertou os ombros de Kylie como se
entendesse os pensamentos dela. — E, sim, acho que consegui colocar tudo
em ordem. A pergunta importante é se você está bem. Está?
Jonathon se sentou no sofá, parecendo meio adormecido ainda.
Holiday não devia tê-lo visto antes, porque ela teve um sobressalto ao ouvi
lo se mexer.
— Ah, Jonathon! Você me assustou! — Holiday olhou para o
vampiro sonolento.
— Preciso ficar agora que você está aqui? — perguntou ele.
Holiday consultou o relógio.
— Eu devo ficar aqui durante uma hora, e Della estará de volta antes
disso, então, se você quiser ir, não tem problema.
Elas esperaram Jonathon sair, então Holiday passou um braço em
torno do ombro de Kylie.
— Agora, me diga o que está acontecendo com você.
Kylie encontrou seu olhar.
— Tem certeza de que vai aguentar?
— É tão ruim assim? — Holiday franziu a testa de preocupação.
— Não. Bem, sim, mas o que eu quero dizer é: você vai conseguir
lidar com os meus problemas agora que tem os seus? — Kylie olhou para
Holiday como se imaginasse o que a amiga estava passando. — Eu sei como
é a sensação de perder alguém. Quando a minha avó morreu, até respirar
era difícil.
Holiday deu um sorrisinho.
— Eu estou bem. Ainda sofrendo um pouco — acrescentou
honestamente —, mas digamos que eu esteja usando o método Kylie Galen
de lidar com os problemas.
— E qual é ele? — Kylie perguntou, intrigada.
Holiday sorriu abertamente.
— Estou me concentrando nos problemas dos outros, assim não
tenho tempo de pensar nos meus. — Ela olhou Kylie nos olhos. — Sério, eu
estou bem. Agora, me diga o que você descobriu no cemitério. E depois
temos um monte de coisas para conversar.
Kylie começou a andar até a mesa da cozinha e então se lembrou da
questão pendente que ela queria perguntar a Holiday. Voltou-se novamente para ela.
— Só uma coisa antes. Você não me disse uma vez que as almas
realmente ruins não ficam vagando por aí, que elas vão direto para o
inferno?
— Na maioria dos casos, é o que acontece. Mas existem algumas
que... — A preocupação fez com que Holiday se interrompesse. — Por quê?
Kylie franziu a testa, e foi então que toda a frustração que sentira
naquela manhã desabou sobre os seus ombros toda de uma vez.
— Por que tudo tem que ter exceções? Seria tão bom fazer uma
pergunta e obter simplesmente um sim ou não! Ou preto ou branco. — Ela
se deixou cair pesadamente na cadeira da cozinha. — A vida seria muito
mais fácil.
— Mais fácil, sim. Mas realista... não. Poucas coisas são preto no
branco. — Holiday inclinou a cabeça para o lado, estudou Kylie por um
momento, então franziu o cenho. — Por favor, me diga que você não se
envolveu com um espírito infernal...
Quinze minutos depois, Kylie estava sentada ao lado de Holiday,
enquanto essa lia os diferentes artigos sobre Berta Littlemon na tela do
computador.
— Chega! Não consigo ler mais uma linha! — Holiday estendeu a
mão e desligou o computador. — Você não devia nem ter lido isso. Não vai
falar com esse espírito novamente. — Algo em seu tom de voz, tão maternal,
tão categórico, era um aviso muito claro.
— Nós nem sabemos se é ela mesmo! — contestou Kylie. — Não
posso simplesmente presumir que...
— Sim, você pode. Você disse que o outro fantasma afirmou que a
sua Jane Doe levantou do túmulo de Berta Littlemon. Isso já é o suficiente
para mim.
Kylie fez uma expressão de desagrado.
— Sim, mas ela pode estar mentindo. E você viu as fotos de Berta.
Não são nítidas. Quer dizer, tudo bem, elas lembram Jane Doe, mas não são
claras o suficiente para que eu possa ter certeza.
— Ok, mas por que o fantasma mentiria?
Kylie encolheu os ombros.
— Talvez porque achasse que, se não me desse informações que
parecessem úteis, eu não concordaria em ajudá-la.
— Espera aí... Ajudar quem? A esposa do senhor idoso?
Kylie percebeu que ela obviamente tinha deixado de fora uma parte
da história quando relatou a Holiday tudo o que havia acontecido.
— Não, o outro fantasma. Catherine O’Connell. Concordei em ajudá
la se ela me dissesse o que sabia sobre Jane Doe.
— Ai, não... — disse a líder do acampamento, colocando as palmas
das mãos sobre o rosto.
— Não, o quê?
Holiday tirou as mãos do rosto.
— Nunca faça acordos com espíritos, Kylie. Nunca!
— Por quê? — ela perguntou.
— Porque pode acabar sendo tão ruim quanto fazer um pacto com o
demônio. O que eles querem às vezes é impossível de conseguir e podem
não deixá-la em paz enquanto você não fizer a sua parte do trato. Se
acharem que você não fez o que prometeu, a coisa pode ficar preta.
Kylie sentiu um aperto na garganta. Ela queria tanto que Holiday
voltasse logo e agora parecia que tudo o que iria receber eram broncas.
— Eu não sabia... — murmurou.
A amiga soltou um profundo suspiro.
— Desculpe — ela disse e colocou as mãos sobre as de Kylie. — Não
queria assustar você. Isso é culpa minha. É tudo culpa minha. Eu sabia que
sua ida ao cemitério não era uma boa ideia. Eu devia ter vetado logo de cara.
Kylie engoliu o bolo na garganta, que pareceu diminuir um pouco
com o toque de Holiday.
— Não foi uma má ideia. E talvez eu não devesse ter feito um acordo
com Catherine, mas nem mesmo isso me parece tão ruim. Quer dizer, o que
ela quer é possível e por uma boa causa.
Holiday balançou a cabeça, inflexível.
— Mesmo assim não é uma boa ideia fazer acordos com espíritos.
— Sim, mas tudo o que ela quer é que eu envie para os filhos seu
histórico familiar. Ela é judia e mentiu para eles e para o marido a vida toda,
porque naquela época, ser judeu não era legal. Seus pais morreram em
campos de concentração e seus avós conseguiram trazê-la para os Estados
Unidos. Ela mudou de nome. E agora, tudo parece uma mentira.
Holiday balançou a cabeça novamente.
— Kylie, me desculpe, mas eu não posso deixar você fazer isso.
— Não. — Kylie levantou-se e, embora mantivesse a voz baixa, até
ela mesma detectou a determinação em seu tom. — Desculpe, mas não vou
deixar de fazer isso só porque você tem medo de que seja demais para mim.
Porque você não acha que eu possa lidar com a situação. Eu vou ajudar Jane
Doe e, sinto muito, mas não acredito que ela seja uma assassina. E também
vou ajudar Catherine O’Connell. Essa é a coisa certa a fazer.
Holiday fechou os olhos de frustração.
— Kylie, você não entende o quanto isso pode ser perigoso para
você. Existem coisas sobre lidar com espíritos malignos que... vão colocá-la
em risco. Existem tantas coisas que você ainda não sabe!...
Kylie balançou a cabeça.
— Então me explique. Mas eu estou dizendo, Holiday, não acho que
ela seja má. Quantas vezes você já não me disse para seguir o meu coração,
pois, se eu fizer isso, vou descobrir qual a coisa certa a fazer? Bem, meu
coração está me dizendo para fazer isso, e eu vou fazer.
Quando Holiday abriu a boca, supostamente para contestar mais
uma vez, Kylie acrescentou:
— Além disso, eu não estava pedindo a sua permissão. Estava
pedindo um conselho.
 
Assim que as palavras saíram da sua boca, Kylie desejou não tê-las
dito. Não porque não fossem verdade. Eram. Só lamentava a forma como se expressou.
Holiday ficou ali por um longo tempo, olhando para Kylie como se
estivesse pensando no que dizer. Kylie retribuiu seu olhar com o mesmo
vigor. Lamentar seu tom de voz não significava que estivesse voltando atrás.
Ela não podia. Talvez fosse porque se identificava com Jane Doe e sua crise
de identidade, mas parecia mais do que isso. Kylie sabia que tinha que
ajudar o espírito da mulher com amnésia. E iria ajudá-la, com ou sem a
bênção de Holiday.
— Meu bom Deus, quando eu me tornei a minha mãe e você, uma
versão mais jovem de mim mesma? — Holiday perguntou e sorriu.
Kylie viu e ouviu a intransigência diminuir na voz e na postura da
líder do acampamento. Então a tensão em seus ombros se dissipou e uma
onda de alívio preencheu o seu peito. Lágrimas brotaram em seus olhos.
— Eu não sei.
— Ok — cedeu Holiday. — Sente-se e vamos descobrir uma maneira
de resolvermos essa situação de modo que eu possa viver com isso e você
também.
Kylie ofereceu a Holiday um rápido abraço de agradecimento e
então se preparou para começar a falar. Elas discutiram desde como Kylie
teria acesso à biblioteca até o e-mail que enviaria à família de Catherine
O’Connell. Então Holiday explicou detalhadamente como Kylie poderia se
fechar para um fantasma indesejado... ou um grupo de fantasmas
indesejados. E a fez prometer que, se descobrisse que Jane Doe era uma
assassina de crianças, ela imediatamente desistiria de ajudá-la.
Kylie hesitou em dar a sua palavra sobre a última condição, mas
depois de sondar seu coração, percebeu que não acreditava que Jane era
uma assassina e por isso prometeu.
Quando pediu a Holiday para explicar como os maus espíritos
poderiam machucá-la, a líder do acampamento hesitou. Kylie explicou
rapidamente:
— Não é por causa de Jane Doe que estou perguntando, mas para o
caso de encontrar um algum dia. — Quando viu que Holiday ainda não
começara a falar, Kylie acrescentou: — Me manter na ignorância não é uma
boa maneira de me proteger. Você não acha que eu preciso saber?
Holiday soltou um profundo suspiro e concordou.
— Não é bem com a sua proteção que me preocupo... Mas com o fato
de não saber se você é capaz de lidar com isso.
— Eu sou capaz — afirmou Kylie. — Não pode ser muito pior do
que... — Ela apontou para o computador, onde a história de Berta Littlemon
tinha sido publicada havia pouco tempo.
Holiday assentiu com a cabeça.
— Você está certa. Mas, antes de eu lhe dizer, deixe-me repetir que
os espíritos mais mal-intencionados não andam por aí. Eles são levados
rapidamente. Isso tem de acontecer e de fato acontece um dia.
— O que eles fazem? — Kylie perguntou.
— Você teve visões de outros fantasmas, então sabe o quanto eles
parecem reais. Bem, esses espíritos malignos podem fazer você reviver
algumas das vidas deles e, acredite, isso pode dilacerar seu coração. Ficar tão
perto do mal não é algo de que você se esquece facilmente.
Pela maneira como Holiday disse aquilo, Kylie percebeu que a líder
do acampamento tinha vivenciado aquela experiência na própria pele. A
ideia de que Kylie também podia ter de lidar com isso um dia fez com que
sentisse um forte arrepio na espinha.
— Eles confundem a sua cabeça, Kylie. Eles... — Ela inspirou
novamente. — Para ser sincera, eles violentam você mentalmente, tentam
despedaçar o seu espírito e, se você mostrar o mínimo de fraqueza, podem te
possuir. Acredita-se também, principalmente quando se trata de maus
espíritos sobrenaturais, que podem levar a pessoa consigo para o inferno.
Segundo a lenda, esses espíritos acham que se puderem levar algo de bom
com eles, têm uma chance de aliviar sua própria pena.
— Então como posso evitar encontrar um deles? — Kylie perguntou,
certa de que não queria ter de vivenciar nenhuma das coisas que Holiday
havia descrito.
— Essa é a questão. Eles são exatamente como os outros fantasmas.
Com alguns você pode simplesmente topar logo depois da morte deles.
Outros, se os seus poderes forem realmente fortes, vão procurá-la para um
determinado fim.
Holiday provavelmente sentiu o medo de Kylie, porque pousou a
mão sobre a dela outra vez.
— Se você um dia sentir que está na presença de algum desses
espíritos, tem que permanecer forte.
— Como? — Kylie perguntou, sentindo o medo diminuir com o
toque calmante da amiga.
— Do mesmo modo que se fecha para os fantasmas. Mentalmente,
você precisa se colocar num lugar diferente, um lugar onde sinta amor e
coisas boas, onde viva a vida no que ela tem de melhor. E mantenha a fé,
porque eles vão tentar convencê-la de que todas as coisas boas são frívolas e sem importância.
— Ai, meu Deus, você voltou! — Miranda gritou da porta, e entrou
correndo na cabana. No momento em que seu espírito vibrante adentrou a
sala, expulsou a nuvem sombria de emoção que pairava sobre Kylie.
Miranda abraçou Holiday, quase fazendo a cadeira onde esta estava
sentada capotar.
— Estou tão feliz que esteja de volta! Nós precisamos de você aqui.
Quero dizer... Burnett é legal, mas... ele não é você.
Holiday arqueou uma sobrancelha.
— Ouvi dizer que ele não foi nem ele mesmo por um tempo...
Miranda fez uma careta.
— Ele te contou sobre a coisa toda do canguru, não foi?
— Contou — confirmou Holiday, com a testa franzida. — E devo
dizer que estou muito decepcionada com você, Miranda. — Ela estendeu a
mão e apertou a da bruxinha. — Da próxima vez que transformá-lo em
alguma coisa, faça isso quando eu estiver aqui, para que eu possa rir
também.
As três começaram a gargalhar.
Só depois de trinta minutos Kylie e Holiday conseguiram se afastar
de Miranda e continuar sua conversa em particular. Especialmente depois
que contou a Holiday sobre o seu pressentimento de que havia alguém
perseguindo Kylie novamente. Kylie se perguntou se o perseguidor não
seria o seu amiguinho emplumado, de quem salvara a vida.
Agora, Kylie e Holiday estavam sentadas do lado de fora, na
varanda da cabana. O sol das cinco horas da tarde, com sua tonalidade um
pouco mais dourada, banhava o rosto das duas. Kylie pôs as pernas para
fora da borda da varanda. Holiday fez o mesmo.
Descalça, Kylie balançava as pernas para a frente e para trás,
enquanto as folhas de grama faziam cócegas na sola dos seus pés. Sua mente
estava concentrada nas coisas que precisava falar com a amiga.
— Burnett te falou sobre o meu pedido para emprestar os livros da
biblioteca da UPF?
Holiday franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Sim, ele mencionou.
— Por que não me deixam ver informações sobre outros seres
sobrenaturais como eu se eles têm tudo isso arquivado? — A frustração era
evidente em seu tom de voz. Mas esperava que Holiday soubesse que ela
não era o alvo dessa frustração.
— Eu não sei — Holiday disse, e Kylie acreditou nela. — Mas sei que
a UPF é como qualquer outra organização do governo: eles têm esqueletos
no armário. Por que, anos atrás, antes de eu nascer, a maioria dos seres
sobrenaturais considerava os lobisomens basicamente animais. Costumavam
persegui-los.
— Por quê? — Kylie perguntou, sentindo-se absolutamente
insultada ao pensar em Lucas e no restante de sua espécie.
— Ignorância. Estupidez. Pode escolher. É o mesmo que aconteceu
com muitos grupos minoritários. Sobrenaturais podem agir como os seres
humanos com muito mais frequência do que você imagina.
Holiday pegou a mão direita de Kylie e abriu sua palma.
— Ouvi dizer que você rebateu uma bola de fogo que ia atingir
Miranda.
Kylie assentiu e depois fez a pergunta que não saía da sua cabeça
desde a noite da festa.
— Você acha que isso prova que sou uma protetora?
Holiday encolheu os ombros como se achasse que a amiga não ia
gostar da resposta.
— Provavelmente.
Ela estava certa. Kylie não gostou da resposta. Especialmente porque
isso só levava a mais perguntas.
— O que realmente significa ser um protetor? Já ouvi algumas coisas
a respeito. Mas... Ok, vou direto ao ponto. Miranda disse que todo protetor
de que ela ouviu falar era um sobrenatural puro-sangue. E eu não sou.
— Eu sei. — Holiday parecia tão confusa quanto Kylie.
— O que isso significa?
— Não sei, mas posso apostar que significa algo que eu já sabia.
Kylie Galen é especial. — Ela ergueu a mão. — Eu sei que você não gosta de
ouvir isso, Kylie, mas acho melhor começar a se acostumar com a ideia.
Insegurança, medo e provavelmente uma dúzia de outras emoções
negativas passaram por ela.
— E se eu não fizer jus a esse título? — ela indagou num sussurro. —
E se eu estiver com medo de fazer o que eu tenho de fazer e me tornar uma
péssima protetora?
Holiday abraçou uma perna e apoiou o queixo no joelho; então
olhou para Kylie como se ela tivesse dito algo realmente idiota, como que a
Terra é quadrada.
— Ficou com medo quando pegou a bola de fogo?
— Não, mas não tive tempo pra ter medo. Se eu soubesse que ia
pegar uma bola de fogo e tivesse tempo para pensar nisso, provavelmente
teria que carregar comigo uma calcinha extra, porque eu ia mijar nas calças.
Holiday sorriu.
— Talvez, mas mesmo assim teria feito isso.
— Eu não teria tanta certeza — disse Kylie.
— Ah, por favor! Olhe para essa questão toda de Berta
Littlemon/Catherine O’Connell. Estou com medo de você continuar
investigando isso. Eu disse que é perigoso, mas você se recusa a desistir.
Você coloca o bem-estar dos outros antes do seu.
Kylie não tinha olhado para a situação por esse ângulo e achou que
Holiday tinha uma certa razão, mas...
— Eu não sou uma santa — ela insistiu. — Peco o tempo todo.
Holiday levantou uma sobrancelha.
— Você o quê?
Kylie olhou para os dedos dos pés por um segundo. O esmalte cor
de-rosa com que pintara as unhas tinha quase desaparecido, e o mesmo
acontecia com a sua coragem. Então ela olhou nos olhos de Holiday e
decidiu confessar.
— Miranda disse que os protetores são como santos. Não sou santa,
e nem quero ser. Eu quero viver uma vida normal. Quero me divertir. — Ela
pensou em como tinha se sentido ao beijar Lucas e corou. — Talvez até pecar
um pouco.
Holiday começou a sorrir.
Kylie franziu a testa.
— Você sabe o que eu quero dizer. Quero viver minha vida como
qualquer outra garota de 16 anos. Contar piadas sujas para os amigos, talvez
tomar algo com álcool de vez em quando, que não tenha gosto de xixi de
cachorro, e ficar bêbada. Não que eu pense em dirigir depois ou qualquer
coisa assim.
Holiday riu. Kylie esperava que a fada tivesse lido suas emoções e
soubesse o que mais ela queria fazer.
E com quem ela queria fazer.
— Ser uma protetora não faz de você uma santa — esclareceu
Holiday. — Faz de você uma pessoa que se importa com as outras. Não tem
que desistir dos garotos.
Kylie sentiu o rosto queimar um pouco mais. Ela colocou as palmas
no chão, atrás de si, e se inclinou para trás.
— Bem, essa é a melhor notícia que eu recebi hoje.
Holiday riu de novo.
— E como vão as coisas com os garotos?
— Melhores. Não perfeitas... — Kylie respondeu, e pensou na reação
de Lucas aos fantasmas e todo o problema com a sua alcateia.
— Melhor é bom — Holiday disse. — Derek já me ligou depois que
cheguei, para me perguntar como você estava. Ele disse que ouviu sobre o
que aconteceu no cemitério. Vocês têm se falado?
— Não muito — Kylie admitiu. Ela não queria falar sobre Derek,
pois ficara tentada a perguntar sobre sua reação exagerada às emoções dela.
Se alguém sabia a resposta, esse alguém era Holiday. Mas, francamente,
Kylie não achava que devia se preocupar. Não quando Derek não se
importava o suficiente para colocar o seu orgulho de lado e pedir orientação
ele mesmo.
Mais uma hora se passou e elas só ficaram ali sentadas na varanda,
apreciando a brisa que não era exatamente fresca, mas também não era tão
quente, e conversando sobre tudo, menos Lucas e Derek. Kylie perguntou se
Burnett lhe dissera alguma coisa sobre os Brightens que não tivesse contado a ela.
Holiday assegurou que ele não estava escondendo nada.
— Você já falou com o seu padrasto? — ela perguntou alguns
minutos mais tarde.
— Desde que voltei, não — confessou Kylie. — Mas recebi um e-mail
dele e aposto que está planejando vir no Dia dos Pais.
— Mas você não quer que ele venha?
— Não sei — Kylie admitiu. — Eu estava quase pronta para perdoá
lo. Mas quando ele tentou me usar para se aproximar da minha mãe,
dizendo “Kylie adoraria que fossemos todos juntos almoçar”, eu me lembrei
de que ainda estava furiosa com ele por ter nos deixado.
— Então você ainda não o perdoou?
— Talvez eu tenha perdoado, mas não esqueci.
— A questão é que essas duas coisas andam juntas. Não que você
um dia vá realmente esquecer, mas vai aceitar o que aconteceu e seguir em
frente. Aceitar que todas as pessoas cometem erros. Ninguém é perfeito.
— E se eu não conseguir? — Kylie ouviu o zumbido de uma abelha
que passava por ela. — E se eu não conseguir realmente perdoá-lo?
— Então deixe pra lá — disse Holiday.
Kylie se lembrou de como abraçou o pai quando ele veio vê-la e
confessou que estava arrependido. Embora tivesse sido difícil, até mesmo
doloroso, abraçá-lo pareceu a coisa certa a se fazer. Ela não estava pronta
para “deixar pra l{” o amor que sentiam um pelo outro. Doeria demais.
Até mais do que aceitar a verdade.
Ela se perguntou se era assim que se tomava a decisão de perdoar
alguém. Quando abrir mão do relacionamento feria mais do que aceitar os
erros da outra pessoa. Ela só podia esperar que, com o tempo, aceitar ficasse mais fácil.
— Você vai escrever um e-mail a ele e dizer para vir ao Dia dos Pais?
— perguntou Holiday.
— Provavelmente. Mas ele e minha mãe terão que alternar as visita
novamente. Eu não acho que consigam ficar juntos na mesma sala. Talvez
nem no mesmo quarteirão.
— Isso pode mudar — disse Holiday, enquanto espantava um inseto
com a mão.
Kylie decidiu contar a ela seu medo com relação à mãe.
— Eu acho que minha mãe está pronta pra começar a namorar.
— Caramba! Eu me lembro de quando isso aconteceu com os meus
pais. Foi muito estranho.
— Nem me diga. Ela está pronta, mas não tenho certeza se eu estou.
— Kylie mordeu o lábio. — Acho que no fundo eu estava esperando que
meus pais voltassem a ficar juntos. Eu gostaria que pelo menos uma coisa
fosse como antes. Um pouco mais de normalidade não seria nada mal, sabe?
— Eu compreendo. Mas as pessoas costumam superestimar a
normalidade. — Holiday sorriu. — Então, me fale sobre aquele pássaro azul.
Kylie abraçou as pernas e contou toda a história. Então decidiu fazer
a grande pergunta:
— Quanto da minha alma eu dei a ele?
— Se deu alguma coisa, foi muito pouco. Não vai perdê-la por causa
disso.
— Mas o que acontece quando eu dou parte dela? Morro mais cedo?
Fico mais propensa a ir para o inferno? Qual é o preço de um pedaço da
minha alma?
Holiday encolheu os ombros.
— Bem, se você realmente tem a capacidade de ressuscitar os
mortos, o preço varia. Se for ordenado pelos deuses, então não terá nenhum
custo para você. Esse gesto até enriquece a alma.
— Como a gente sabe se os deuses é que ordenaram? — Kylie
perguntou.
— Você simplesmente vai saber. Os poderes é que tornarão isso
muito claro.
Kylie tremeu um pouco quando Holiday mencionou os poderes.
Hesitou em fazer a próxima pergunta, mas, como tinha dito à amiga antes, a
ignorância era uma forma ruim de proteção.
— E se não foram os deuses que ordenaram?
— Então o preço se baseia na qualidade de vida que o ser
ressuscitado vai levar. Se ele viver uma vida de bondade, o preço é muito
baixo. Praticamente impercetível. Se abusa da vida ou da vida dos outros,
então isso pode custar alguma coisa à sua alma. Em poucas palavras, os
pecados dele vão se tornar os seus pecados. Eu não sei até que ponto você se
torna responsável pelos erros dele, mas ouvi dizer que emocionalmente isso
pode causar uma sensação de vazio. E, sim, normalmente, quanto mais
frações você der da sua alma, mais curta será a sua vida.
Kylie franziu a testa.
— Desse jeito não dá muita vontade de trazer ninguém de volta à
vida.
— Bem, tenho certeza de que isso foi concebido dessa maneira para
dar às pessoas uma pausa. Por mais difícil que seja, a morte é parte da vida.
Mas provavelmente estamos discutindo isso inutilmente, Kylie. Só porque
você acha que pode ter trazido um pássaro de volta à vida, não significa que tenha esse dom.
Kylie queria acreditar que Holiday estava dizendo a verdade, mas
não tinha certeza.
— Curar alguém tira uma parte da minha alma? Quero dizer, se isso
acontece quando eu trago alguém de volta à vida, faz sentido que a cura
provoque o mesmo efeito.
— Não é como quando se ressuscita os mortos — Holiday disse —,
Mas acaba exaurindo as suas forças.
Kylie se lembrava de como se sentira cansada após curar Sara e
depois Lucas.
— Eu gostaria que você e Helen trabalhassem nisso juntas — disse
Holiday. — Talvez até mesmo se reunindo regularmente como um grupo de
mesma espécie.
Kylie levantou uma sobrancelha e suspeitou que soubesse por que
Holiday estava dizendo aquilo.
— Porque eu não pertenço a nenhum grupo, não é? É por isso que
está sugerindo isso?
Holiday revirou os olhos.
— Você pertence a Shadow Falls. Não ser de um determinado grupo
não significa nada.
Kylie acenou com a cabeça.
— Eu gosto da Helen.
Depois de alguns minutos apenas ouvindo a natureza, ela contou a
Holiday sobre as breves aparições da gralha azul. A fada não tinha uma
explicação para as visitinhas do pássaro, exceto que talvez ele fosse apenas
um filhote e tivesse passado por uma espécie de imprint com ela, o que
significaria que achava que Kylie era sua mãe.
— Deus meu, espero que não! Porque não vou mastigar minhocas
para colocar na boca dele. Quer dizer, eu sei que é isso que as mamães
pássaro fazem.
Holiday riu.
Kylie olhou para a amiga e conselheira, e a pergunta mais
importante de todas escapou dos seus lábios.
— Será que nada disso dá a você uma pista do que eu sou?
A expressão de Holiday ficou séria.
— Eu gostaria que desse.
— E se eu nunca descobrir? E se eu passar a vida toda sem saber?
— Isso é bem pouco provável. Quase toda semana descobrimos algo
novo sobre você. Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa vai apontar a
direção certa.
Kylie olhou para baixo e viu uma fila de formigas no alpendre.
— Acho que Lucas quer que eu seja um lobisomem.
— Sim, mas o que Lucas quer não é importante.
Algo dizia a Kylie que Holiday tinha entendido a razão que levava
Lucas a querer aquilo. Ela quase perguntou, mas não tinha certeza se estava
pronta para tocar no assunto.
— Você vai ser o que é, e seja o que for, será bom. Todo mundo tem
que aceitar isso, e te amar pelo que você é, independentemente da sua
herança familiar.
Por alguma razão, Kylie lembrou-se de Derek dizendo quase a
mesma coisa.
O telefone de Holiday tocou. Ela checou o número e depois olhou
para a amiga.
— Quem é? — Kylie perguntou, sentindo que aquilo tinha a ver com
ela.
— Derek novamente.
Kylie suspirou. Por que só de ouvir o nome dele ela sentia um aperto
no coração?
 
Kylie mordiscava, sem apetite, o seu hambúrguer com batatas fritas
no jantar daquela noite, sentada entre Della e Miranda no refeitório. Quando
questionada, Miranda confessara que ainda não tinha falado com Perry
sobre a questão da dança e do dragão da noite anterior. Contou que tinha
recebido outro telefonema do bruxo bonitão e eles tinham combinado que
ele iria pegá-la na sexta-feira à noite para irem jantar fora.
— O que vou dizer a Perry? — ela perguntou. — “Ei, eu queria falar
com você pra ver se temos uma chance juntos, mas primeiro vou sair com
outro cara e ver se gosto mais dele.”
Kylie e Della concordaram que seria uma conversa bem difícil. Mas
sugeriram que Miranda pelo menos lhe agradecesse por defendê-la de Clark.
Na verdade, Kylie esperava que a colega de quarto conversasse com
Perry e também cancelasse seu encontro de sexta-feira. Não tinha nada
contra bruxos bonitões, mas o metamorfo era seu amigo.
Ela colocou uma batata frita gordurosa na boca e tentou fingir que
estava com fome. Quando olhou para cima, viu Lucas sentado com seu
grupo de amigos lobos. Seus olhos se encontraram em meio às fileiras de
adolescentes famintos mastigando hambúrgueres. Ele sorriu e Kylie
retribuiu o sorriso. Lucas perguntou, por meio de gestos, se ela queria se
sentar com ele à mesa dos lobisomens. E ela teria ido, mesmo sabendo que
seria bem desconfortável se sentar com um grupo que não queria vê-los
juntos. Teria feito isso porque, se Lucas podia enfrentá-los, ela também
podia. Mas Della era sua sombra e Kylie sabia que a vampirinha teria que
segui-la se ela resolvesse se sentar com o grupo de lobisomens. Então, Kylie
se conteve.
Lucas pegou uma batata frita e, quando a colocou na boca, piscou
para Kylie. O pequeno gesto poderia não significar nada se tivesse partido
de outro garoto, mas, para Lucas, qualquer demonstração de afeto em
público era um verdadeiro acontecimento. Ela deu um grande sorriso e
piscou de volta. Fez isso, mesmo quando percebeu que Fredericka, sentada a
duas pessoas de distância de Lucas, rosnou como se quisesse dilacerar a
garganta de Kylie.
E a loba devia ser bem capaz de fazer isso.
Alguém devia ter dito algo engraçado numa mesa ali perto, porque
risos encheram o salão. O cheiro de hambúrgueres misturava-se com o leve
aroma de madeira queimada. Graças a Burnett, os resquícios da grande
briga do dia anterior tinham desaparecido, mas a lembrança permanecia.
Todos no acampamento pareciam mais alegres aquela noite, sem dúvida
celebrando a volta de Holiday. Se a líder do acampamento tinha alguma
dúvida de que era querida, a quantidade de exclamações de alegria,
acompanhadas de “Você est{ de volta!” e abraços inesperados (mesmo de
alguns vampiros e lobos, o que não era comum) deviam ter feito muito bem
ao seu ego.
Por um momento, Kylie preocupou-se com a possibilidade de
Burnett se sentir desprezado. Mas mais de uma vez ela surpreendeu o
vampiro assistindo às saudações emocionadas dos campistas com tanto
orgulho nos olhos que era como assistir a uma história de amor no cinema.
Kylie quase podia ouvir a música romântica tocando ao fundo. Ela queria ter
uma câmera nas mãos para poder mostrar a Holiday como Burnett a
contemplava sem que ela percebesse.
A porta do refeitório se abriu e Derek e Ellie entraram lado a lado,
embora não estivessem de mãos dadas. Ele imediatamente começou a olhar
à sua volta, e Kylie soube que o fae estava procurando por ela quando os
seus olhos se encontraram. Não pôde deixar de se perguntar o que ele queria
falar a Holiday, pelo telefone. Seria sobre ela novamente? E por quê? Derek
não deveria estar concentrando sua atenção em Ellie?
Ele acenou com a cabeça ligeiramente. Ela acenou de volta e se
forçou a dar outra mordida no hambúrguer. Tinha gosto de carne morta, o
que de fato era, mas o pensamento o tornou ainda menos apetitoso.
Quando sentiu que a comida já não descia pela garganta, empurrou
o prato para o lado. Não aguentava comer mais.
Olhando para o copo de chá gelado, enxugou com o dedo o vidro
suado e procurou uma desculpa plausível para fugir do refeitório. Fugir
antes que tivesse que assistir a Derek e Ellie sussurrando entre si e
oferecendo batatas fritas na boca um do outro ou coisa assim... Não que ela
se importasse, claro. Pelo menos era isso o que dizia a si mesma. E
continuaria a dizer até que fosse verdade. Isso ia acontecer, um dia. Como
poderia não acontecer se ela gostava tanto da companhia de Lucas? Gostava
de seus beijos. Gostava de ser a garota para quem ele piscava mesmo com
dezenas de pessoas por perto para testemunhar.
O telefone de Kylie tocou, dando-lhe a desculpa de que precisava
para sair do refeitório. Nem mesmo verificando quem era, se inclinou e
sussurrou para Della que ia sair para atender à chamada. Essa, que só tinha
se interessado pela carne mal passada do hambúrguer e que já a havia
devorado, pegou sua verdadeira refeição, um copo de sangue B positivo, e
seguiu Kylie para fora.
Kylie não tinha aberto ainda a porta do refeitório quando ergueu o
celular para ver quem estava ligando. Ai, não! Era Sara, sua antiga amiga da
escola.
Sara, cujos telefonemas e mensagens Kylie não tinha respondido. E
por um bom motivo. Ela sabia que a amiga queria falar sobre sua suspeita de
que Kylie tinha contribuído para curar seu câncer.
O problema era que a suspeita de Sara tinha fundamento. E esse era
um assunto que Kylie não tinha discutido com Holiday ainda.
Então, o que levou Kylie a atender ao telefonema, antes de verificar o
identificador de chamadas?
Ah, sim, desse modo ela teve uma razão para sair do refeitório.
Colocou o telefone no ouvido e apertou um botão para atender a ligação.
— Oi, Sara! — Kylie decidiu improvisar. Não que fosse muito boa
ideia. Ela nunca tinha sido boa em improvisos.
— Oi — disse Sara.
— Quais as novidades? — Kylie perguntou.
— Vou te dizer quais são as novidades. Acabei de confundir todos os
oncologistas do Texas. Ainda tenho que acabar minha químio e fazer a
radioterapia, mas eles fizeram toneladas de tomografias computadorizadas e
não encontraram nenhum tumor neste corpo! Dá pra acreditar? Eu não vou
morrer, Kylie!
Havia tanta empolgação, otimismo e esperança pura na voz de Sara
que a respiração de Kylie ficou presa na garganta e as lágrimas inundaram
seus olhos. Kylie se lembrou da antiga Sara. Não a garota fissurada em sexo,
álcool e festas que a tinha substituído, mas aquela que fora a melhor amiga
de Kylie desde a escola primária.
E até o momento, Kylie não percebera o quanto ela tinha sentido
falta da antiga Sara.
— Que coisa maravilhosa, Sara!
— Como se você já não soubesse! — disse ela.
Pense. Pense. Pense.
— Eu não sei o que quer dizer — Kylie respondeu, decidindo se
fazer de desentendida. Como era o ditado? A ignorância faz a felicidade? Ela
realmente precisava de um pouco de felicidade agora.
Della olhou para Kylie e revirou os olhos. Kylie franziu a testa, não
tanto porque a amiga estava ouvindo a conversa — ela teria contado à amiga
de qualquer maneira —, mas por ter murmurado a palavra “mentirosa”.
— Certo — disse Sara. — Mas não importa. Podemos falar sobre isso
neste domingo. — Ela fez uma longa pausa no telefone, como se o
comentário significasse algo mais. — Vamos lá. Você não quer saber por que
podemos falar sobre isso no domingo? — Sara finalmente perguntou.
— Porque você não vai à igreja e sim me ligar? — Kylie respondeu,
dizendo a primeira coisa que lhe veio à mente, embora seu estômago tivesse
se contraído com uma estranha suspeita. Mas suspeita de quê? O que
conversar com Sara no domingo podia ter de ruim?
— Porque estou indo vê-la no domingo — contou Sara, parecendo
realmente feliz com isso.
Ok, uma visita de Sara a Shadow Falls poderia ser realmente muito
ruim. Mas talvez ela não estivesse se referindo a Shadow Falls.
— Ah, Sara, mas eu não estou em casa. Estou no acampamento —
explicou Kylie. — Lembra? — Por favor, meu Deus, faça com que seja simples
assim.
— Claro que me lembro, sua boba! Estou indo com a sua mãe.
Acabei de falar com ela pelo telefone.
O coração de Kylie foi parar na boca, e depois deu a impressão de
cair em queda livre na direção do estômago. O pensamento de que Sara iria
a Shadow Falls provocou uma onda de choque em seu cérebro.
Sara pertencia à antiga vida de Kylie.
Tudo em Shadow Falls fazia parte da sua nova vida.
A vida antiga e a vida nova não combinavam. Eram como manteiga
de amendoim num cachorro-quente. Ambos eram gostosos separadamente,
mas nunca juntos.
Nunca.
Jamais.
— Hã, Sara. Você... Você... — Ela engoliu em seco. — Você não pode
visitar Shadow Falls. Quero dizer, você tem que... Tem que ter uma
permissão dos líderes do acampamento, e eles são muito rigorosos sobre...
— Dã, sua mãe me disse isso. Então eu peguei o touro pelos chifres.
Liguei para o acampamento e falei com o senhor Burnett James, cerca de
vinte minutos atrás. Ele disse que tudo bem se eu fosse com a sua mãe. Eu
mal posso esperar para te ver, Kylie. E mal posso esperar para conhecer
todos aqueles gatinhos de que você me falou. A gente vai se divertir muito.
Ah, e qual era o nome daquela piranha de quem você me falou? DeAnn, não,
espera, Della! Podemos dar um belo chute na bunda dela.
Della arregalou os olhos. Piranha?,disse, apenas movendo os lábios.
A mão de Kylie que segurava o telefone começou a tremer.
— Hã... Eu nunca disse que ela era piranha, eu disse que era
estranha.
— Ah, tanto faz — disse Sara. — E a outra, de cabelo esquisito? Me
diga, foram elas que te ensinaram a curar as pessoas?
— Sinto muito. — O coração de Kylie começou a bater na boca. — Eu
tenho que ir. Alguém acabou de... alguém me chamou. — Ela socou Della de
leve no braço.
— Oi, Kylie! — Della gritou, e sorriu como se tivesse gostado da
ideia de enganar Sara. Ou não. — Ah, você está no telefone... Nós podemos
nos falar mais tarde. Não quero parecer uma piranha ou algo assim — disse
ela com cinismo.
— Eu te ligo mais tarde — Kylie disse a Sara. — É... mais tarde.
Desculpe. — Ela começou a afastar o telefone da orelha para desligar e
depois disse: — Mas estou feliz de você estar bem, Sara. Muito feliz.
Kylie fechou o celular e, em seguida, olhou para Della. Della, que
parecia estar imensamente satisfeita com o desconforto de Kylie. Della, que
parecia estar ao mesmo tempo furiosa e achando tudo muito divertido.
— Então — disse Della —, nós finalmente vamos conhecer a
senhorita Sara, hein? Sua melhor e mais antiga amiga, que para mim sempre
pareceu uma babaca egocêntrica, se você quer saber. Você está muito melhor
agora que veio pra cá. Pessoalmente, eu teria deixado que ela morresse. Mas
pensando bem... — Della exibiu suas presas. — Humm, qual o tipo
sanguíneo dela? Será que eu poderia pedir para ela me doar um litro ou
dois, talvez um pouco mais?... Para dar um belo chute na minha bunda!
— Pode me matar — disse Kylie, e jogou os cabelos para trás para
expor a veia do pescoço. — Só me mate agora e acabe logo com isso!
— Então a gente vai conhecer Sara. Legal — Miranda disse mais
tarde naquela noite, quando se sentou à mesa da cozinha.
— Não é legal — discordou Kylie, parecendo sinceramente infeliz e
afagando atrás da orelha de Socks, que não parava de pedir carinho.
— Por que não é legal? — Miranda perguntou.
— Ela não quer que a gente conheça Sara — explicou Della. — Nós
podemos descobrir como é a verdadeira Kylie Galen.
Kylie lançou um olhar zangado a Della, e sim, ela podia fazer muito
bem uma carranca maldosa, graças à convivência com Della.
— Não é nada disso. Vocês sabem muito bem como eu sou de
verdade. É só que... É muito estranho ela vir aqui.
— Por quê? — Miranda perguntou. — A gente conheceu a sua mãe.
— E o mulherengo do seu pai — Della acrescentou.
— É diferente — disse Kylie, e franziu a testa para o comentário
sobre o pai “mulherengo”. Embora ela não soubesse por que estava
ofendida, já que era verdade.
— Por que é diferente? — Miranda perguntou. Antes que Kylie
pudesse responder, ela acrescentou: — Ei, espero que vocês duas tenham
chance de conhecer Todd sexta-feira à noite. Será que podem esperar comigo
no estacionamento quando ele vier me pegar?
Tanto Della quanto Kylie mostraram desagrado, mas fizeram que
sim com a cabeça.
— É diferente pra você — Kylie disse a Miranda, ainda preocupada
com a visita de Sara no Dia dos Pais. — Você soube que era sobrenatural
durante toda a sua vida. Não teve uma vida pré-sobrenatural. — Socks,
ainda sobre o tampo da mesa, pulou para o chão com uma elegância felina.
— É como se eu fosse uma pessoa diferente naquela época. E, tudo bem,
vocês conheceram os meus pais, mas é quase como se eles não contassem,
não do mesmo modo que os amigos.
— Desculpe, mas eu não entendo — disse Miranda.
— Mas eu sim — disse Della. E ela disse aquilo como se detestasse
ter que admitir. — Kylie está certa. É diferente quando você teve
uma vida diferente. Tentei imaginar como seria se vocês conhecessem Lee ou uma das minhas antigas amigas. Seria bizarro. — Ela fitou Kylie nos olhos.
— Sinto muito se fui dura demais com você sobre isso.
— Uau! — exclamou Miranda. — É melhor ter cuidado, Della. Acho
que, nos últimos dias, você usou toda a sua cota vampirística de desculpas
para os próximos dez anos.
— Então não vai me levar a mal se eu te mandar pro inferno agora!
— Della despejou.
Mais tarde naquela noite, Kylie acordou com uma névoa se
formando em torno dela. Ela não sabia onde estava, mas por algum motivo
não estava com medo. Seu olhar fitou a névoa, macia e úmida. Ela olhou
para as árvores, para as folhas que, mesmo no escuro, formavam uma
sombra perfeita de um verde luxuriante. Belos raios de luar derramavam-se
pelos galhos que pareciam se estender, orgulhosos, em direção ao céu.
Perfeito. A perfeição de um conto de fadas. Até mesmo os sons da floresta
no cenário noturno eram como uma sinfonia. Ela ouviu água corrente, como
um riacho murmurante, um som belo e tranquilo ao fundo.
Imediatamente pensou em Derek e naquela coisa maluca que ele
fazia quando estava perto dela. Como se ele fizesse tudo parecer uma cena
de conto de fadas, feita para dar asas à imaginação e nos encher de assombro
e deslumbramento, como as páginas de um livro infantil.
— Oi... — A voz dele desviou sua atenção das poucas estrelas
cintilantes que ela via acima das árvores.
Ele estava sentado ao lado dela numa grande pedra. Não tão perto a
ponto de fazê-la se sentir pouco à vontade, mas perto o suficiente para que a
luz do luar lhe permitisse vê-lo. Então Kylie percebeu que aquela não era
uma pedra qualquer, era a pedra deles. O lugar para onde ele a levara logo
que haviam chegado a Shadow Falls.
Ela tinha feito de novo.
Ela o levara até ali num sonho lúcido e aquilo era muito errado.
— Sinto muito — ela deixou escapar. — Eu não queria fazer isso. —
Fechou os olhos e se concentrou na tentativa de voltar, afastando-se do
sonho. Ela se concentrou o máximo que pôde, esperando pela sensação de
flutuar, mas ela não veio. Pelo menos Kylie não a percebera.
Ela abriu os olhos só um pouquinho, o suficiente para descobrir se
estava se movendo. Não, ela ainda estava sentada na pedra. E Derek ainda
estava olhando para ela. Por que não conseguia flutuar para longe do sonho?
Ela abriu os olhos de uma vez.
— Sinto muito — disse novamente. — Eu não queria fazer isso. Só
um instante e você já vai poder voltar a dormir.
Ela fechou os olhos de novo e tentou muito se concentrar. Volte. Volte a dormir. Agora!
— Kylie? — A voz dele acariciou os seus ouvidos enquanto ela
tentava consertar o que tinha feito. — Kylie.
Ela tentou ignorá-lo e continuar concentrada.
— Kylie, não é você quem está fazendo isso. Sou eu. Eu estou tendo
um sonho lúcido.
Kylie abriu os olhos e o viu ainda sentado sobre a pedra, parecendo
absolutamente real! Ela se lembrou de como o sonho lúcido lhe parecera
diferente quando Ruivo tinha entrado em seus sonhos. Ela não tinha
conseguido flutuar para longe; precisou acordar. Então era disso que
precisava. Bastava acordar. Mas não fez isso.
— Você tem sonhos lúcidos?
Ele balançou a cabeça.
— Tenho.
A primeira coisa que ela fez foi se certificar de que estava vestida.
Ora... Ela conhecia suas próprias inclinações nos sonhos e, pelo que tinha
ouvido falar, os garotos eram ainda piores.
Kylie estava com o seu pijama cor-de-rosa. Nada muito sexy ou
chamativo. Isso era bom. Soltou um suspiro de alívio ao perceber que ele
não tinha intenção de ter “aquele” tipo de sonho. Mas não pôde deixar de se
perguntar se era porque ele não se sentia mais atraído por ela. Agora ele
tinha Ellie...
— Por que não me contou que podia ter sonhos lúcidos? —
perguntou ela, sem querer pensar muito sobre Derek e a vampira.
Ele hesitou.
— Descobri como evitá-los antes mesmo de vir para Shadow Falls.
Antes disso eu ficava tentando visitar meu pai a toda hora e me comunicar,
mesmo quando não queria mais nada com ele.
Kylie sabia tudo sobre sonhos lúcidos indesejados. Então se lembrou
da mágoa de Derek com relação ao pai, o homem que o abandonara quando
ele era pequeno.
— Você mantém contato com ele agora? — perguntou, lembrando-se
de que ele lhe dissera que ia procurá-lo, ao deixar Shadow Falls. Quando
Derek voltara com Ellie, ela não tinha pensado mais sobre os problemas
dele, apenas se sentido traída. Uma ponta de constrangimento encheu seu
peito por ter sido tão egoísta.
— Na verdade, não. Mas agora sei como funcionam os sonhos
lúcidos, então eu...
— ...então você...? — Kylie perguntou.
— Comecei a usá-los novamente. Mas isso não é importante. Olhe, a
outra noite, quando você veio até o meu quarto num sonho...
— Eu sinto muito por isso — disse ela. — Só estou começando a
aprender a controlá-los. Mas assim que percebi o que eu tinha feito, que eu
tinha ido ao seu quarto, eu fui embora.
Ele franziu a testa.
— Eu sei. Mas antes que você se fosse, no segundo em que a vi, me
dei conta de que não me sinto do mesmo jeito nos sonhos.
— Como assim? — perguntou ela, obviamente ainda meio sonolenta.
— Eu não sinto o mesmo fluxo intenso de emoções vindo de você. —
Ele sorriu. — Quando temos sonhos lúcidos, posso conversar com você, ficar
assim perto, sem que isso me deixe com a impressão de que vou
enlouquecer.
Kylie sentiu tantas emoções conflitantes enquanto estava sentada ali
naquela pedra, fitando o sorriso dele! Ela respirou fundo.
— Eu não tenho certeza se isso é uma coisa boa.
— Por que não? Só quero conversar. Saber como você está. Isso é
crime? Pensei que você tinha dito que também se importava comigo. Que
queria ser minha amiga.
— Ok, deixe-me colocar de outra maneira. Eu não acho que Ellie vá
achar uma boa ideia.
Ele franziu mais a testa.
— Eu já te disse que as coisas mudaram entre nós. Ellie e eu somos
apenas amigos.
— Sério? — Kylie deixou o sarcasmo transparecer na voz. — Porque
é difícil acreditar depois da foto que eu vi de vocês dois se agarrando.
Ele hesitou e depois disse:
— Ok, você está certa. Quando procurei Ellie, ela ficou superfeliz de
me ver e eu estava magoado. Lucas estava de volta e você não era
indiferente a ele. Eu estava tão confuso quanto Ellie. A gente se beijou e...
Olha, o que importa é que nós dois percebemos que não tinha mais nada a
ver.
Foi aquela pequena pausa que mais chamou a atenção dela.
— Você se beijaram e depois fizeram o quê? — Kylie perguntou.
Obviamente, no mundo dos sonhos, ela era mais corajosa e capaz de
fazer perguntas que não conseguia fazer na vida real.
— O que aconteceu, exatamente, entre você e Ellie na Pensilvânia?
 
— Isso importa? — Derek perguntou.
— Você transou com ela, não foi? — De algum modo, Kylie já sabia
desde o início. E achava péssimo estar certa.
Os olhos dele se encherem de culpa.
— Não significou nada.
Ela balançou a cabeça.
— Como pode não ter significado nada? Sexo é a maior forma de
intimidade que pode existir entre duas pessoas.
— Nem sempre — disse ele. — Às vezes são só duas pessoas em
busca de alguma coisa. E muitas vezes não é o melhor modo de encontrar.
Nós não encontramos, Kylie. Ellie percebeu isso. Eu percebi. E o romance
terminou. Foi um erro e nós dois sabemos disso.
— Mas você a trouxe de volta pra cá com você.
Ele encolheu os ombros.
— Ela não é má pessoa, eu não podia deixá-la naquela comunidade.
Era horrível! Ela estaria numa gangue em questão de semanas.
Kylie puxou as pernas para mais perto do peito e tentou identificar
as emoções que brotavam dentro dela. Ela sentia-se magoada. Sentia-se
justificada em seu ciúme. Sentia-se... aliviada. E isso não fazia sentido. Por
que ela se sentiria aliviada por Derek e Ellie terem feito sexo?
Então a verdade lhe ocorreu. Ela se sentia aliviada porque agora não
havia razão para sentir culpa por estar com Lucas. Não que a verdade ainda
não a machucasse. E se ela fosse totalmente sincera consigo mesma, veria
que ainda sentia um pouco de ciúme. Mas afastou o sentimento, porque
agora, mais do que nunca, podia aceitar os fatos. Ela agora era amiga de
Derek. Apenas isso.
— Nós somos apenas amigos — disse ela.
Ele a fitou nos olhos.
— É isso aí — concordou. No entanto, algo em sua voz a fez
suspeitar que ele não tinha sido tão sincero quanto antes. — Tudo o que eu
quero é conversar. Ter certeza de que você está bem. Mê dê dez minutos. —
Ele analisou o olhar de censura dela. — Cinco. Droga, me dê três minutos,
Kylie. É muito pedir isso a uma amiga?
Ela olhou para o riacho e fitou-o.
— Três minutos. E então isso acaba.
— Feito. Ele olhou para o relógio, e, em seguida, como que para
aproveitar o tempo, começou a falar. — Como você está? O que aconteceu
no cemitério? Eu ouvi a respeito.
Kylie contou uma versão abreviada dos acontecimentos. Isto é, que
ela achava que o seu fantasma estava enterrado lá. E que descobriu que o
espírito podia ser um assassino de criancinhas.
Derek não se encolheu de medo como os outros.
— O que você vai fazer? — perguntou, em vez disso. — Como vai
chegar à verdade?
— Estou esperando o fantasma voltar. Ele não me visitou desde
então.
— Mas vai — disse ele. — E não se preocupe demais. Tenho certeza
de que você vai descobrir tudo. Você sempre descobre.
Kylie olhou bem dentro dos seus olhos verdes com raias douradas.
— Como você sabe que estou preocupada?
— Dã, eu posso sentir.
— Pensei que você não podia sentir minhas emoções aqui.
— Eu posso, só que com menos intensidade. Digamos que agora elas
estão numa voltagem normal...
Normal. A palavra ficou pipocando na mente de Kylie por um longo
tempo.
Ela assentiu com a cabeça.
— Você já encontrou o seu pai? — Ele pareceu incomodado com a
pergunta, então ela acrescentou: — Você me disse, quando partiu, que ia
tentar encontrá-lo.
Ele balançou a cabeça e depois engoliu em seco.
— Encontrei.
Ela sentiu a confusão de emoções dentro dele como se fossem as suas
próprias.
— Não foi bom?
— Não sei. Achei que iria vê-lo e me sentir muito bem fazendo isso.
Mas não me senti. Ainda não sei se quero alguma coisa com ele. Tenho
quase certeza de que não.
— Por quê? O que aconteceu? — Kylie perguntou.
— Ele me ofereceu uma centena de razões diferentes pra ter deixado
minha mãe e eu. A vida dele era uma mentira enquanto tentava viver no
mundo humano com a minha mãe. Ele me disse que era difícil demais pra
ele manter contato. Disse que gostaria de conviver comigo outra vez. Disse
um monte de coisas. E nenhuma delas significou nada pra mim. Talvez isso
mude com o tempo. Não sei. Mas, agora, tudo parece muito estranho.
— Eu entendo o que quer dizer — disse ela, oferecendo-lhe um meio
sorriso. — Sara pretende vir aqui com a minha mãe no Dia dos Pais.
Ele estendeu a mão para ela e depois recuou.
— Tenho certeza de que tudo ficará bem.
Houve um momento de silêncio, e em seguida Derek recomeçou a
falar.
— E com o seu fantasma... Você já sabe o que fazer? Quer dizer,
como vai descobrir quem ela é?
— Não sei ao certo. Mas minha intuição me diz que, cada vez que a
vejo, ela se lembra cada vez de mais coisas.
Derek ponderou sobre as palavras dela e então disse:
— Sabe, eu me lembro de ter lido alguma coisa uns anos atrás sobre
um antigo cemitério público onde descobriram que, em cerca de cinco por
cento dos caixões, havia dois corpos sepultados em vez de um.
— Dois corpos?
— É. O governo estava enterrando indigentes, sem-teto, pessoas
miseráveis nos caixões de outras pessoas. Eles só largavam os corpos ali pra
não ter que gastar com o enterro.
Kylie pensou naquilo por um segundo, e fazia todo o sentido.
Catherine O’Connell tinha dito que vira Jane Doe saindo do túmulo de Berta
Littlemon. No entanto, se Berta Littlemon estava ali também, e as lendas
sobre essas coisas estavam corretas, ela já teria ido para o inferno. Então
aquilo significava que somente um espírito sairia da sepultura.
— Eu acho que você pode ter acabado de resolver o meu problema
— ela disse a Derek. — Obrigada! — Se as coisas agora fossem diferentes
entre eles, ela o teria abraçado.
Ele sorriu.
— De nada.
De repente, Kylie percebeu que eles provavelmente tinham falado
mais tempo do que seu acordo de três minutos. Ela deu uma olhada no
relógio dele.
— Ah, só mais uma coisa — disse Derek. — Depois de conversarmos
outro dia sobre como Ruivo era estranho, eu andei investigando. Sabe, só
para ver o que conseguia descobrir. Ao contrário do que a gente achava, ele
é vampiro, sim, ou pelo menos é o que todo mundo pensa. E a única outra
coisa que eu descobri foi... algo sobre os pais dele.
— O que têm eles? — Kylie perguntou.
— Supostamente, a mãe de Ruivo foi assassinada na frente dele
quando ele tinha uns 7 anos. O caso nunca foi solucionado. Parece que até a UPF investigou, mas nunca descobriram quem foi o responsável. Menos de
um ano depois o pai dele desapareceu. Foi quando ele foi morar com o avô.
Kylie franziu a testa.
— Droga, estou quase sentindo pena dele.
Derek deu de ombros.
— Infelizmente, a maioria das pessoas que comete crimes violentos
um dia também esteve no papel de vítima. Mas dois erros não fazem um
acerto. E sabemos que ele matou aquelas duas garotas.
— Eu sei. — Quando ela olhou outra vez para Derek e se pegou
contemplando os olhos dele demoradamente, resolveu: — Acho melhor eu...
— ...você ir. Eu sei... — disse ele, a expressão se entristecendo. —
Sinto sua falta, Kylie. Podemos... fazer isso de novo?
Ela quase disse sim, mas percebeu que provavelmente não seria uma
boa ideia para nenhum dos dois.
— Não sei — disse ela. — Tenho muita coisa para entender...
— Entre você e Lucas? — perguntou ele.
— É — ela disse, com sinceridade. Não se sentia mais culpada pelos
seus sentimentos. Ela não sabia o que poderia ter com Lucas. Mas, pela
primeira vez desde que tinha descoberto esses sentimentos, não se sentia
culpada por causa deles. E de fato havia algo entre os dois. Mas com a
alcateia tentando afastá-los e a aversão dele pelo seu envolvimento com os
espíritos, ela não sabia ao certo aonde aquilo poderia dar.
— Tudo bem — disse ele. — Mas se precisar de mim... Ou se quiser
conversar... Sabe onde me encontrar.
Kylie acenou com a cabeça, e então, no instante seguinte, já estava
acordada, olhando para o teto do quarto.
— Sinto sua falta, também... — ela sussurrou, e então se virou e
abraçou o travesseiro.
Perry encontrou Kylie na porta da frente na manhã seguinte, quando
ela estava saindo da cabana.
— Olá — disse ela, forçando um sorriso. Não estava exatamente
deprimida por saber a verdade sobre Derek e Ellie, mas, lá no fundo, sentia o
coração pesado de tristeza hoje.
Era uma sensação parecida com a que sentia no último dia de aula
antes das férias de verão. Ela queria que o verão chegasse, sabia que não
poderia fazer nada para mudar isso, mas uma parte dela queria que a vida
continuasse do jeito que estava. Supôs que simplesmente não era uma
grande fã da mudança.
Perry, com os olhos de um azul brilhante, sorriu.
— Olá! — Ele olhou para trás, em direção à porta, e Kylie sabia por
quê.
— Miranda já saiu — Kylie disse a ele.
— Por quê?
Porque ela não queria vê-lo, já que tem medo do que você vai dizer quando ela contar que tem um encontro na sexta-feira com um bruxo gostosão.
— Não faço a menor ideia. — E estou realmente feliz por você não ser um vampiro que pode ouvir as batidas do meu coração e saber que sou uma baita mentirosa.
Seus olhos foram do azul para um castanho triste.
— Eu pensei... Acho que tinha esperança de que...
— Eu sei — disse Kylie, dando um tapinha no ombro dele. — E tudo
o que eu posso dizer é que a esperança é a última que morre.
— Então ainda tenho uma chance? — perguntou ele.
— Pequena — disse ela, sem querer lhe dar falsas esperanças.
Eles pegaram a trilha.
— Quero ver se Holiday e Burnett estão no escritório. Preciso falar
com eles antes do café.
— É só mostrar o caminho — disse Perry, fazendo uma reverência.
— Sou sua sombra e seu servo pessoal.
Kylie sorriu. Enquanto caminhavam, ela se perguntava se algum dia
poderia sair com Derek da mesma maneira sem que parecesse errado. Sem
sentir que o relacionamento entre eles era completamente platônico, sem
nenhum indício de arrependimento sobre como poderia ter sido. Ela
realmente esperava que sim. Embora seu coração dissesse que ele teria sido
um namorado maravilhoso... também seria um amigo muito especial. E ela
esperava que eles pudessem chegar lá um dia.
Holiday e Burnett não estavam no escritório, então Kylie não poderia
lhes contar sobre a teoria de Derek, de que poderia haver dois corpos no
túmulo de Berta Littlemon.
Ou perguntar a Burnett o que ele tinha na cabeça quando dera
permissão a Sara para visitar Shadow Falls.
No café da manhã, Lucas se juntou a ela e Perry em sua mesa. Kylie
localizou Miranda na mesa das bruxas, e Della tinha um compromisso com
os vampiros naquela manhã. Então, Kylie se sentou entre os dois e, para a
sua surpresa, eles se comportaram. Bem, pelo menos Perry se comportou.
Lucas deslizou a mão por debaixo da mesa e tocou a lateral da perna
dela. Então se inclinou e sussurrou:
— Quer dançar ao luar de novo hoje à noite?
Ela não tinha certeza, mas poderia jurar que o leve roçar dos lábios
dele contra a sua têmpora tinha sido quase um beijo. Ela o cutucou com o
cotovelo e, enquanto garfava um punhado de ovos do prato, sussurrou em
resposta:
— Cuidado. As pessoas vão saber que você tem algo comigo.
— Isso é bom — disse ele. — Talvez seja a hora de tornar isso oficial.
O coração de Kylie parou. Os ovos caíram do garfo e se espatifaram
no prato.
Ela se virou e olhou seus olhos azuis.
— Você está me pedindo em namoro?
— Você está dizendo que sim? — Uma esperança brilhou nos olhos
dele.
— E a alcateia?
— Eu disse que não me importo com o que eles dizem.
Uma alegria brotou no coração de Kylie.
— Bem, acho que eu deveria ouvir o pedido primeiro.
— Ok... Será que você, Kylie Galen, quer namorar comigo?
Sim. Sim. Sim. A palavra estava na ponta da sua língua, esperando
para ser liberada. Ela sorriu, pronta para dizê-la, quando...
— Pode me dar um minuto com Lucas? — A voz profunda de
Burnett arruinou o momento. Ele estava de pé atrás deles, no alto de seus
1,80m de solidez vampiresca.
Lucas olhou para Burnett.
— Algo errado?
— Preciso ter uma palavrinha com você.
Lucas se levantou e saiu. Kylie observou-os se afastar, ainda em
tamanho choque por ele tê-la pedido em namoro que se
esqueceucompletamente de dar uma bela bronca em Burnett por ter
concordado em deixar Sara ir ao acampamento.
Um pouco mais tarde, Kylie estava ao lado de Perry, quando Chris
anunciou os nomes para a Hora do Encontro dos campistas. Lucas ainda não
tinha voltado da sua conversa com Burnett, o que a preocupava.
Olhando para Perry, Kylie perguntou:
— Como vamos fazer agora?
Ele olhou para Miranda, a distância.
— Eu tirei o meu nome da lista.
— Então não temos que ficar aqui? — Kylie perguntou.
— Eu tirei o meu nome. Não o seu. Achei que poderia acompanhar
você na sua hora.
— Não é contra as regras?
— Tenho certeza de que Burnett não vai se importar.
— Falando em Burnett, eu não sabia que vocês dois já se conheciam.
— Ele te contou? — Perry parecia surpreso.
— Não. Quer dizer, sim, quando lhe perguntei a respeito. Mas,
durante toda a coisa do dragão, você disse algo sobre ele ter te falado
alguma coisa quando você tinha seis anos de idade.
— Ah — lembrou-se Perry. — E o que Burnett disse?
— Apenas que já conhecia você. Ele era a pessoa responsável por
você ou algo assim?
— É, mais ou menos.
— E Kylie Galen... — A voz de Chris ficou mais alta, e Kylie prestou
atenção no que ele ia dizer.
Ela olhou para a frente, onde Chris estava sorteando os nomes de um
chapéu. Sim, um chapéu mágico de verdade.
Obviamente, Chris tinha decidido aproveitar ao máximo seus
minutos como centro das atenções.
— Você vai passar uma hora com... Ellie Mason.
— Ah, droga! — Todo o seu sentimento não resolvido com relação a
Derek e Ellie veio à tona novamente.
— Ai, cara... — Perry respondeu. — Isso vai ser muito divertido!
O comentário dele só mostrava que ela e Perry tinham definições
muito diferentes do que era diversão.
Um minuto mais tarde, Kylie, Ellie e Perry pegaram uma das trilhas.
Durante um bom tempo, nenhum deles falou.
— Aonde vamos? — Ellie quebrou o código velado de silêncio.
— Até o riacho — disse Kylie.
— Tudo bem — disse Ellie.
Eles continuaram por mais dez minutos, andando rápido, num ritmo
sobrenatural. Ninguém reclamou. Pelo menos não do ritmo da caminhada.
Ellie arriscou novamente.
— Eu sou nova aqui, mas pensei que o objetivo da Hora do Encontro
fosse conversarmos para nos conhecer melhor.
— Então, fale — respondeu Kylie com rispidez, enquanto se
esquivava de alguns galhos que pareciam querer agarrá-la. Ela também se
esquivou da lógica que lhe dizia que devia inventar uma enorme enxaqueca
e enviar a linda “vampirinha sexy” de volta ao acampamento.
— Ok... Meu nome é Ellie Mason e eu tenho um palpite de que não
gosta muito de mim.
Kylie parou e deu meia volta — ela já tinha todo o roteiro na cabeça:
iria fingir uma terrível dor de cabeça. Mas não teria sequer que fingir porque
agora sua cabeça de fato latejava. Mas quando abriu a boca, suas palavras
não tinham nada a ver com enxaquecas.
— Ok, vamos falar abertamente. Eu sei que você fez sexo com Derek.
— A voz de Kylie parecia ecoar por toda a floresta.
— Caramba! — Perry disse, e sorriu. — Isso vai ser melhor do que eu
pensava.
 
Kylie desviou os olhos para o metamorfo. O sorriso de Perry
desapareceu. Kylie arqueou uma sobrancelha.
— Transforme-se.
Ele franziu a testa.
— Não o gato surdo de novo... — ele implorou. — Eu não consigo
ouvir nada. Fico sem equilíbrio assim. É como se estivesse no vácuo.
Ela não desviou o olhar até que as fagulhas começaram a aparecer
como fogos de artifício. Então ela se virou e encarou Ellie, que olhava com os
olhos arregalados as fagulhas em cascata ao redor de Perry.
— Nossa! Eu nunca tinha visto um metamorfo se transformar antes.
Quer dizer, ouvi falar sobre o que acontecia, mas é muito mais legal ao vivo!
— Você ouviu o que eu disse? — Kylie cruzou os braços sobre o
peito com a fúria se acumulando na boca do estômago.
— Você viu ele se transformando? — Ellie perguntou.
Kylie bateu o tênis no solo úmido e rochoso.
— Eu disse que sei que você fez sexo com Derek.
Ellie continuou a olhar para Perry, que agora era um gato branco de
olhos azuis. Houve um silêncio repentino na floresta. Kylie ignorou-o e
continuou encarando Ellie.
— É, eu ouvi o que você disse — disse Ellie, ainda sem olhar para
ela. — E estava mudando de assunto de propósito, para ter tempo de pensar
o que responder. — A vampira de cabelos castanhos lançou um profundo
suspiro e olhou para Kylie. — Derek te contou?
Ela assentiu.
Ellie balançou a cabeça.
— Isso é a cara dele. Derek é uma dessas pessoas super do bem que
acham que a verdade é a melhor política.
— Você teria mentido pra mim? — Kylie perguntou, procurando
uma razão para realmente não gostar da garota. Como se ter transado com
Derek não fosse razão suficiente. Mas ela se lembrou de que eles não tinham
nenhum compromisso; não tinham nem chegado a namorar oficialmente. E
Derek e Ellie tinham uma história juntos.
— É. Eu teria mentido — disse Ellie. — Não por maldade nem nada.
Só porque..., bem, o que aconteceu entre mim e Derek não significou nada,
então por que deixar que causasse tanto estrago?
Kylie franziu a testa.
— Se não significou nada, então por que dormiram juntos?
Ela encolheu os ombros.
— Porque eu queria que significasse algo.
— Isso não faz sentido — Kylie acusou.
Ellie franziu a testa.
— Ok, escuta. Eu gosto do Derek. Gosto pra caramba! Quer dizer, ele
é um gato! E é um doce... Um cara totalmente incrível. Mas... simplesmente
não saíram... faíscas. Como acontecia antes, quando estávamos namorando.
Nós fizemos muito sexo sem sentir esse algo mais. Tenho certeza de que
você já passou por isso, não passou?
Kylie não a corrigiu. Não se sentia à vontade admitindo a uma
estranha que era virgem.
— Então, quando ele apareceu naquela festa, eu estava meio com
medo, meio vulnerável, e ele foi como o meu salvador. E estava tão gato, tão
lindo..., achei que daquela vez a gente fosse sentir aquele algo mais.
Ela balançou a cabeça.
— Mas não aconteceu.
Kylie sentiu o ar ficando mais frio em torno deles. Gelado. Por favor,
não agora, ela pediu mentalmente.
— Se ele contou sobre a transa — continuou Ellie —, então contou
também que, assim que terminamos, nós dois ficamos tipo... “Cara, isso foi
um erro”. E cinco minutos depois, ele estava me contando sobre uma garota
que conhecia chamada Kylie.
Kylie olhou para o chão, ela poderia jurar que algo tinha acabado de
passar sob seus pés. Olhou para Perry, que estava sentado no galho de uma
árvore, esmagando uma borboleta.
— Você sabe que ele realmente gosta de você, não sabe? — Ellie
perguntou.
O fantasma se materializou bem na frente de Kylie, e parecia em
pânico, apavorado. Por favor... Agora não!
Kylie ignorou o espírito e estudou Ellie. De repente, toda a conversa
parecia sem sentido e totalmente desnecessária. Ela não tinha o direito de
ficar chateada com Derek e Ellie. Nenhum direito. Nenhum mesmo. Zero.
— Sinto muito — disse Kylie. — Eu não devia ter...
— Não, você devia. Se alguma garota tivesse transado com o cara
que eu gostasse, eu ficaria chateada também. Foi legal você ter falado o que
pensava. Eu respeito isso.
— Não — disse Kylie. — Quer dizer, não é que... Entre mim e
Derek... Sim, Derek e eu estávamos quase tendo alguma coisa, mas depois...
— Ele simplesmente colocou um ponto final em tudo. Ela se conteve. Não queria
entrar em detalhes. — Acabou.
— Certo. Acabou. — Ellie revirou os olhos. — Sério? Toda vez que
estamos em meio a um monte de gente, sabe o que ele faz? Procura você. —
Ela riu. — É uma idiotice. Então eu perguntei a ele sobre isso. Eu disse:
“Você diz que pode senti-la a quilômetros de distância, então sabe que ela
não est{ aqui. Por que procura por ela se j{ sabe?” — Ellie sorriu. — Você
sabe o que ele me disse? “A esperança é a última que morre”.
Kylie reconheceu as palavras que ela mesma dissera a Perry um
pouco antes.
— Ele gosta de você pra caramba — disse Ellie.
Kylie balançou a cabeça novamente.
— Não, agora acabou. Ele terminou tudo. Estou com outra pessoa
agora.
— Está? — O choque fez Ellie arregalar os olhos azuis. — Derek
sabe?
— Não. Quer dizer, eu ainda vou começar a namorar com essa
pessoa. — Sentindo-se como uma idiota, ela acrescentou: — Lucas me pediu
em namoro no café da manhã. Mas eu não tive chance de dizer sim.
Ellie ergueu as sobrancelhas em suspeita.
— Então você não disse sim.
Kylie franziu a testa e o frio pareceu colar em sua pele.
— Fomos interrompidos.
— Quanto tempo você precisa para dizer sim? — Ellie esfregou os
braços como se quisesse se proteger do frio e olhou em volta como se
estranhasse a súbita mudança de temperatura.
— O que quer dizer? — Kylie perguntou, sentindo-se frustrada, mas
sem saber direito se era por causa do fantasma ou de Ellie. Então Kylie viu o
fantasma andando de um lado para o outro, olhando para ela como se
precisasse dizer alguma coisa. Algo urgente.
Ellie encolheu os ombros novamente.
— Eu só estou dizendo que parece que você hesitou. E talvez haja
uma razão para isso. Talvez a razão seja que...
— Não há razão nenhuma. Eu não hesitei.
Jane Doe parou de andar e olhou dentro dos olhos de Kylie. — Você precisa correr!
— Tem certeza? — perguntou Ellie.
— Tenho — disse Kylie, e ela tinha. Não tinha? Ela ia dizer sim antes
de Burnett chegar. Mas diria sim a Lucas da próxima vez que o visse.
— Corra! — o fantasma gritou.
— Por quê? — Kylie perguntou ao espírito, e olhou para Perry ainda
na árvore, perseguindo sorrateiramente outra borboleta.
— Por que o quê? — perguntou Ellie.
— Corra! — O espírito gritou tão alto que Kylie pensou que tinha
rompido seus tímpanos. Ela olhou para cima e viu a águia arremetendo a
toda velocidade, com as garras expostas.
Ela se abaixou, evitando por pouco as garras afiadas do pássaro.
Justo nesse instante, o solo sob os seus pés começou a tremer. Tremer muito.
Um estrondo parecido com uma explosão soou abaixo dela.
— Corre! — Kylie gritou para Ellie.
A vampira, com os olhos brilhando num tom amarelo cintilante,
olhou para o chão.
— O que está acontecendo?!
— Corre! — gritou Kylie outra vez, agarrando Ellie pelo braço e
arrastando-a com ela. Elas tinham dado apenas um passo quando o chão sob
os seus pés se abriu, e surgiu no lugar um imenso buraco negro. Um buraco
que ficava cada vez maior e se aproximava cada vez mais das duas. Kylie
tinha avançado pelo menos dez passos quando se lembrou.
Perry. Ele estava na árvore e não era capaz de ouvir nada do que
estava acontecendo abaixo dele.
Kylie deu meia-volta. Assim como suspeitava, ele ainda estava na
árvore.
Ainda caçava a borboleta.
— A gente precisa sair daqui! — gritou Ellie.
O buraco no chão continuava a aumentar, como se alguém sugasse a
terra embaixo delas. Kylie estava quase chegando na árvore. Quase onde
Perry estava. E ele ainda não tinha visto nada.
E a culpa era dela. Era tudo culpa dela.
— Perry, corra! — ela gritou com toda a força.
Mas Perry não podia ouvir.
Eu fico sem equilíbrio. É como se estivesse num vácuo. As palavras dele
ecoaram na sua mente como vidro estilhaçando.
Ela viu o buraco começando a chegar às raízes da árvore.
Viu o felino Perry perdendo o equilíbrio.
Ele lutava para permanecer na árvore. Kylie assistiu com horror
quando ele se agarrou à árvore com as suas patas felinas, as garras cravadas
no tronco enquanto lutava para não despencar. Mas o buraco negro, como
um monstro que não desistia, sugou a árvore para baixo, levando com ela,
através da sua garganta negra, o pequeno gatinho de olhos azuis. Alguém vive e alguém morre.
— Não! — Kylie gritou, e saiu correndo, dando um salto para dentro
do buraco escuro.
 
A escuridão cercou Kylie no segundo em que seus pés deixaram a
terra sólida e ela mergulhou no poço profundo. Ela ouviu gritos, gritos
torturados, vindos de baixo. Ou será que eles estavam apenas dentro de sua
cabeça? Era difícil dizer. Então ela foi envolvida por um frio tão intenso que
quase perdeu o fôlego. E soube imediatamente que os sons vinham do
inferno. Será que Holiday estava certa? Será que ela tinha passado tempo
demais com o mal puro e agora estava pagando caro por isso?
E por causa dela, Perry também?
De repente, fagulhas dolorosas agulharam seu corpo como pequenos
choques, vindas de algum lugar abaixo dela. Kylie levou duas ou três
agulhadas antes de perceber o que aquilo significava.
Perry. Perry estava se transformando.
Então ela bateu contra algo... meio macio, meio espinhento.
Como um monte de penas.
Ela se moveu para o lado, fez um movimento brusco e gritou,
enquanto continuava sua descida, caindo mais rápido agora no vazio e de
cabeça para baixo.
Uma enorme algema com textura de couro prendeu o seu braço
direito e puxou-a para cima. Ela sentiu um tranco no braço. Soltou um
palavrão ao sentir a dor aguda.
— Peguei você! — A voz de Perry reverberou através do buraco.
Ele disse aquilo para tranquilizá-la, mas isso não aconteceu. E se ele
não conseguisse segurá-la? E se o que esperava por eles lá embaixo de
repente decidisse vir para cima e fazer uma visitinha?
— Kylie!
Ela virou a cabeça na direção da entrada do grande sumidouro. Uma
luz brilhante derramava-se da abertura, tornando difícil ver qualquer coisa.
Então viu um corpo caindo.
Não, não era apenas um corpo. Era Ellie.
— Merda! — Perry gritou, abrindo suas asas enormes tão rápido
quanto podia. — Eu não posso pegá-la! Não posso!
Uma estranha sensação de calma se derramou sobre Kylie. Ela
estendeu o braço livre assim que a gravidade trouxe o corpo de Ellie até eles
e agarrou o antebraço da vampira. Kylie não tinha força suficiente, no
entanto, e a palma da mão começou a escorregar. Ela tentou segurar mais
firme, não conseguiu, e finalmente agarrou a garota pelo pulso.
Ellie gritou e começou a se debater. Seus olhos brilhavam num tom
vermelho brilhante na escuridão.
— Sou eu! — gritou Kylie.
— Todo mundo se segura! — A voz de Perry ricocheteou nas
paredes de terra do poço.
Ellie se debateu novamente, e Kylie puxou-a mais para perto.
— Peguei você.
E de fato pegara. Kylie colocou toda sua força e atenção no seu
objetivo de não soltar o pulso de Ellie. O barulho de uma rajada de ar e
enormes asas de pássaro batendo preencheram a escuridão e, em poucos
segundos, Perry levou todos os três para fora do buraco. Quando estavam
de volta à luz, ele sobrevoou uns cem metros até a trilha antes de descer e
pousá-las cuidadosamente sobre a terra sólida.
Ele pousou ao lado delas, as garras tocando a terra com um baque.
Como Kylie suspeitava, ele tinha se transformado no pássaro de aparência
pré-histórica com penas de tom cinza-escuro. Era do tamanho de um avião
pequeno. Então o rugido sob o solo começou novamente.
— Corram! — ele ordenou.
Perry não teve que falar duas vezes. Kylie e Ellie dispararam,
correndo a toda pela floresta, evitando árvores, esquivando-se de galhos e
saltando os espinheiros espessos.
Kylie olhava continuamente para cima, para se certificar de que
Perry estava bem. Ele ainda as seguia, deslizando facilmente sobre as copas
das árvores, certificando-se de que estavam seguras.
Assim que saíram do bosque, Kylie desabou no chão, ofegante e com
o coração aos saltos. Ela podia ouvir o sangue jorrando nas veias. Ellie caiu
ao lado dela, a respiração não tão ofegante, mas ainda um pouco trêmula.
Perry pousou no chão ao lado delas e se transformou novamente em
ser humano.
— Que diabos você estava fazendo? — Ele gritou para Kylie, os
olhos furiosos vermelho-sangue.
Ela sorveu novamente o ar.
— Tentando te salvar.
— Eu não preciso que me salvem! — ele agitou os braços para cima e
para baixo quase como se tivesse esquecido de que já não era um pássaro.
Então voltou a sua ira para Ellie. — E você? Qual é a sua droga de desculpa?
Ela tossiu e então disse:
— Eu... achei que, se eu voltasse viva e vocês não, o resto do grupo
provavelmente ia me matar. Eu não tive escolha a não ser ir atrás de vocês.
De repente, Burnett, com os olhos no modo “proteção total” e
caninos expostos, entrou em cena.
— O que aconteceu? — perguntou, a voz pouco mais que um
rosnado profundo. — Pareceu uma explosão.
— Terremoto, talvez — disse Perry. — O chão simplesmente abriu
embaixo da gente.
— Mas isso é... — Burnett balançou a cabeça. — Estão todos bem?
Todos assentiram com a cabeça. O olhar de Burnett fixou-se em
Kylie.
— Você está sangrando. Vá para o escritório e deixe Holiday dar
uma olhada em você.
Kylie olhou para seu braço. As unhas de Ellie deviam tê-la
arranhado quando a agarrou pelo braço.
Burnett continuou:
— Eu vou dar uma olhada para ver a extensão do... terremoto.
Ele se virou na direção da floresta.
— Espere! — Kylie chamou, e Burnett se voltou num movimento tão
rápido que mais pareceu um borrão.
— O que foi? — perguntou, a impaciência evidente na voz.
— Não era um terremoto. — Ela se lembrava nitidamente da águia
arremetendo diretamente na direção dela numa atitude de ataque. Agora
entendia que a intenção da ave era fazê-la correr, mas isso não mudava o
fato de que parecia malévola. Ela tinha visto a escuridão em seus olhos. — A águia estava lá.
E Jane Doe também, embora Kylie não visse nenhuma razão para
mencionar isso.
Pelo menos por enquanto.
Burnett soltou outro grunhido.
— Vá para o escritório. Vou ver se consigo descobrir o que causou
tudo isso.
Quando os três estavam indo para o escritório, Kylie olhou para
Ellie.
— Obrigado por tentar nos salvar.
Ellie deu de ombros.
— Não foi nada demais. Eu realmente não sabia o que aconteceria
comigo se eu fosse a única a sobreviver. — Ela riu. — Agora que acabou, até
pareceu divertido.
— Não, não acho — disse Kylie, lembrando-se de como se sentiu
quando viu Perry caindo no buraco.
Eles deram mais alguns passos e Ellie, com os olhos brilhantes
provavelmente por causa do sangue, olhou para o braço arranhado de Kylie
e acrescentou:
— Eu sinto muito. Aposto que fui eu que fiz isso quando estava me
debatendo. Obrigada por me salvar. Não sei o que teria acontecido se você
não tivesse me agarrado. Eu não acho que teria saído voando. Fico te
devendo uma. É só falar e eu faço, sem perguntas.
— Não precisa. Você não me deve nada — disse Kylie.
— E quanto a mim? — Perry perguntou.
Kylie e Ellie olharam para Perry e falaram ao mesmo tempo.
— Obrigada.
— É só eu dizer e vocês fazem o que eu quero? — Perry ergueu as
sobrancelhas, com humor na voz outra vez.
— Não! — Ellie e Kylie disseram ao mesmo tempo.
— Desconfiava... Que tal, em vez disso, vocês duas dizerem à
Miranda que sou o herói de vocês?
— Eu posso fazer isso — disse Ellie. — Quem é Miranda?
— Minha namorada — disse Perry, olhando para Kylie. — Bem, ela
será assim que eu convencê-la.
Elas avançaram alguns passos e Ellie disse a Kylie:
— Sinto muito por ter transado com Derek.
— Esqueça — disse Kylie, porque ela mesma tentaria esquecer.
As horas seguintes foram totalmente prenchidas com as perguntas
de Burnett, que interrogou todos os três, separadamente, diversas vezes.
Kylie percebeu que ele não estava fazendo isso por suspeitar que algum
deles mentiria sobre o ocorrido. Ele só não queria que as respostas de uma
pessoa influenciassem as lembranças das outras. Kylie não se importava. O que ela queria era descobrir o que tinha acontecido. Será que tinham
realmente sido sugados para um buraco que levava direto ao inferno? Se
fosse assim, por quê? Era por causa de Jane Doe? Ou teria sido algo
planejado por Mario e seus amigos para atormentá-la?
E o mais importante, e se acontecesse de novo?
Infelizmente, Burnett só tinha perguntas e nenhuma resposta.
Holiday não tinha nenhuma ideia do que poderia ter ocorrido. Mas o
olhar de medo no rosto dos líderes do acampamento assustou mais Kylie do que qualquer outra coisa.
No momento em que a entrevista terminou e Kylie saiu do escritório
de Burnett, Lucas foi ao encontro dela na porta e levou-a pela mão até outra
sala. Ele não disse nada, só a puxou contra o seu peito quente... tão quente!... e a abraçou.
— Eu estava fazendo alguns serviços para o Burnett. — Sua
bochecha estava pressionado contra o topo da cabeça dela. — Acabei de
voltar.
Depois de um longo abraço, ele se afastou e perguntou:
— O que foi desta vez?
Foram as duas últimas palavras que revelavam os verdadeiros
sentimentos de Lucas.
Kylie franziu a testa.
— Você fala como se achasse que foi tudo culpa minha.
Ele balançou a cabeça.
— Eu não acho que foi culpa sua. Mas, que droga!, eu gostaria de
passar pelo menos alguns dias sem achar que quase perdi você.
Ela sorriu.
— Não é verdade que quase me perdeu. — E então ela fez um relato
rápido da abertura do buraco e do insano desmoronamento.
Ele a fitou nos olhos.
— Algum espírito está envolvido nisso?
— Não. Bem, havia um lá, mas...
— Mas o quê? — ele insistiu. E então balançou a cabeça e
resmungou: — Você tem que parar de deixá-los colocá-la em perigo, Kylie.
— Eles não me colocam em perigo.
— Ah, fala sério! — Seus olhos azuis ficaram laranja de raiva. — Eu
vi parte da sua visão, lembra? Tive que ficar ali e me sentir de mãos
amarradas, enquanto aquelas pessoas arrastavam você para longe. Você tem
alguma ideia do que eu senti?
Kylie sabia que a emoção de Lucas se devia em parte aos seus
instintos de lobisomem. Os lobos eram conhecidos por ter uma intensa
necessidade de proteger aqueles com quem se preocupavam. Ela gostava de
saber que Lucas se preocupava com ela. Mas tinha que fazê-lo compreender
que lidar com fantasmas era tão importante para ela quanto a transformação
em lobo era para ele. Era o destino dela, sua vida.
Kylie colocou a mão sobre o peito de Lucas.
— Não foi o espírito que fez isso — ela disse. — Foi provavelmente
Mario e o neto de novo, junto com o metamorfo amigo deles. Se o espírito
fez alguma coisa, provavelmente foi salvar a minha vida.
Tudo bem, ela estava apenas supondo o que tinha acontecido. Mas
fazia mais sentido para ela do que pensar que Jane queria lhe fazer mal.
Ele bufou.
— Merda... O que há com aquele cara? Ele não sabe a hora de parar?
— Obviamente não.
Lucas puxou-a contra ele novamente.
— Isso tudo não podia estar acontecendo em pior momento...
— Como assim? — Kylie perguntou.
— Eu tenho que ficar fora alguns dias. — Ele tocou o rosto dela. —
Se não fosse uma emergência, eu não iria.
— O que aconteceu? — Mesmo ao fazer a pergunta, Kylie ficou
preocupada com a possibilidade de Lucas não contar a ela. Lobisomens
também eram conhecidos por manter tudo em segredo.
— Eu contei a você sobre minha meia-irmã. Ela deveria vir para cá
estudar quando o acampamento de verão terminasse.
— E então? — Kylie perguntou, animada por ver que ele confiava
nela o suficiente para lhe contar.
— Bem, agora meu pai a obrigou a se juntar à sua alcateia e se recusa
a deixá-la vir. Vou ter que ir lá e fazê-lo mudar de ideia.
— Eu pensei que você não se desse bem com seu pai.
— E não me dou. Mas não tenho escolha. Não devo ficar fora por
mais do que alguns dias. Vou ter que pedir para Will ficar de olho em você.
Kylie lembrou-se de que, algum tempo antes, Lucas a apresentara a
Will, outro lobisomem. Mas, como acontecia com a maioria dos lobos, ela
mal o conhecia e não gostava da ideia de ter um estranho “de olho nela”.
— Eu vou ficar bem — disse a ele. — Burnett não me deixa ir a lugar
algum sem uma sombra. Não preciso de...
— Vai me deixar mais tranquilo. Saber que alguém da minha espécie
está protegendo você.
Kylie não gostava de lembrar que Lucas confiava mais na sua
própria espécie do que nas outras. Mas ela tinha coisas demais com que se
preocupar e não iria arranjar outro problema para deixá-la pirada.
— Quando você vai? — perguntou ela.
— Agora. Devo estar de volta no sábado, domingo no máximo. —
Ele a beijou novamente. O beijo durou mais do que um típico beijo de boa
noite e foi muito apaixonado.
Quando ele se afastou, Kylie ouviu o zumbido leve no peito dele.
Ela sorriu, deixando implícito um aviso.
— Estou ouvindo aquele zumbido novamente.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Você desperta o lobo em mim. — Inclinando-se para baixo, Lucas
lhe deu outro beijo rápido.
Segundos depois que ele saiu, Kylie percebeu que ele não tinha dito
nada sobre o pedido de namoro daquela manhã.
Será que tinha pensado melhor? Fechando os olhos, ela afastou o
pensamento para o fundo da sua mente, com todas as outras preocupações.
Holiday entrou no cômodo e a abraçou.
— Eu acho que precisamos de um passeio até a cachoeira, não acha?
Que tal se eu combinasse com Burnett e fôssemos amanhã?
— Seria bom — disse Kylie. — Muito bom.
No dia seguinte, Kylie e Holiday atravessaram a cortina de água da
cachoeira e chegaram à plataforma de pedra. Minúsculas gotas de água
espirravam da cascata e umideciam o rosto de Kylie. Seu cabelo, já
encharcado com a água da cachoeira, caía sobre os ombros e gotejava sobre as suas pernas.
Ela não se importava. A atmosfera serena penetrava em seus poros e,
pela primeira vez em mais de uma semana, ela se sentia em paz. Sabia que
isso não significava que seus problemas tinham sido resolvidos. Longe disso.
Mas, por ora, pelo menos naquele momento, sentia que tudo em seu mundo
ia ficar bem.
Burnett, inconformado com o fato de estarem ali, tinha ficado de
guarda do lado de fora. O incidente do dia anterior o deixara muito
preocupado com a excursão à cachoeira. Era assim que eles estavam se
referindo ao buraco gigantesco que tinha quase engolido Perry, Kylie e Ellie:
o “incidente”.
O geólogo que haviam contratado para examinar o poço o
considerara uma aberração da natureza, um sumidouro. Como a maioria
dos campistas de Shadow Falls, Kylie sabia que não se tratava disso.
Surpreendentemente, o tamanho do buraco diminuiu antes de o cientista
chegar. Havia magia ali, magia negra. Isso era tudo o que Kylie sabia e
Miranda tinha confirmado.
Por causa da neblina e da densidade do bosque, o alarme de
segurança não tinha detectado nenhum intruso. Burnett estava
aborrecidíssimo com isso também. Não com alguém em particular, mas com
a situação como um todo. Kylie o ouvira ao telefone com a UPF, dizendo
lhes que precisava de um sistema de segurança melhor o mais rápido
possível.
Mas a invasão viera aparentemente do subsolo, e Kylie não sabia se
existiria um sistema capaz de detectar intrusos subterrâneos. Aliás,
poderosos intrusos subterrâneos que, por razões que Kylie desconhecia,
queriam vê-la morta.
Kylie inspirou o ar de tranquilidade da cachoeira. Impressionante.
Nem a ideia de fazer parte da lista negra de alguém poderia arruinar seu
estado de espírito sereno.
Sentando-se e apoiando o peso do corpo nas mãos, ela observava
Holiday, que também usufruía da atmosfera de paz.
— Sabe, a gente devia trazer todos os campistas aqui.
Holiday abriu os olhos.
— Eu queria que fosse assim tão fácil.
— O que quer dizer?
— Não se traz ninguém à cachoeira, Kylie. As pessoas têm que ser
chamadas. Lembra?
Kylie de fato se lembrava, e de repente ficou curiosa.
— Então por que a cachoeira chama algumas pessoas e outras não?
— Não sei — Holiday respondeu. — Mas dizem que ela chama
menos de um por cento de todos os sobrenaturais.
— Todos os que são chamados se comunicam com fantasmas?
— Todos os que eu conheço, sim. Existem lendas milenares sobre a
cachoeira. Os nativos americanos consideravam este solo sagrado e
afirmavam que só os escolhidos podiam pisar nele.
— Burnett veio até aqui — disse Kylie.
— Eu sei, e isso me surpreende muito.
— Por quê? Você não acha que ele seja um escolhido? — Kylie
perguntou.
— Não, porque ele não consegue ver espíritos.
— Você devia tê-lo visto observando-a quando todos a
cumprimentavam no jantar outra noite — disse Kylie, falando por impulso.
— Acho que ele te ama, Holiday.
A fadinha arqueou uma sobrancelha.
— Ainda tentando bancar o cupido, hein?
— Talvez eu só esteja tentando ajudar dois amigos.
— Ou talvez esteja se concentrando nos problemas de outra pessoa
para não ter que pensar nos seus.
— Talvez — Kylie disse, encolhendo os ombros —, mas agora meus
problemas não parecem tão ruins. — Ela olhou para o teto rochoso,
maravilhada com a beleza dos padrões da rocha.
Holiday riu.
— É incrível o que acontece aqui, não é? — Ela suspirou. — Eu
queria poder engarrafar o ar deste lugar e levá-lo na bolsa para respirá-lo
um pouco quando precisasse.
— Pena que não podemos viver aqui — disse Kylie.
— Você viu o fantasma depois do dia do incidente? — Holiday
esticou os pés.
Kylie assentiu com a cabeça.
— Ela me acordou ontem à noite. Eu fiz o que você disse e perguntei
se havia um outro corpo no caixão com ela.
— O que ela disse?
— Nada. Mas ficou me olhando daquele jeito de novo.
— De que jeito? — Holiday perguntou.
— Como se eu tivesse despertado uma lembrança ou algo assim.
Sempre que isso acontece, ela desaparece.
— Talvez ela não queira se lembrar.
Kylie ouviu a implicação na voz da líder do acampamento: a de que
Jane Doe não queria se lembrar porque era assassina de crianças inocentes.
— Acho que ela está com medo de se lembrar — disse Kylie. — Mas
não pelas razões que você pensa.
— Então por que está tão assustada?
Kylie hesitou.
— Talvez pela mesma razão que me faz ter medo.
Holiday olhou para ela.
— O que a faz ter medo?
— Descobrir a verdade. Descobrir o que eu sou.
— Por quê? — Holiday perguntou como se estivesse confusa.
— Porque é algo desconhecido. Porque é segredo pra mim há muito
tempo. Porque provavelmente vai mudar a minha vida para sempre.
Kylie sentou-se ereta.
— Não que eu não queira saber a verdade. Eu quero. Quero tanto
saber que posso quase sentir isso. Às vezes não consigo pensar em outra
coisa. Mas ainda assim tenho medo. No dia em que os Brightens, ou as
pessoas que se passaram por eles, vieram aqui, eu estava tão assustada que
tremia por dentro. Quase fugi. Se Lucas não tivesse aparecido,
provavelmente teria feito isso.
Kylie engoliu em seco. E foi aí que ela decidiu fazer a pergunta que
há muito tempo pretendia fazer a Holiday e não tinha tido a chance.
— Você viu algum espírito diferente? Sabe se o casal de idosos que
veio aqui naquele dia morreu?
— Os espíritos deles não vieram me procurar, se é isso que está
perguntando — Holiday respondeu.
Kylie mordeu o lábio.
— Ainda me lembro da mão daquela senhora na minha. Por alguma
razão, não acho que eles estivessem aqui para me prejudicar de alguma
forma.
— Por que outro motivo estariam, então?
— Não sei. — Kylie fechou os olhos. — Do mesmo jeito que sei que
Jane Doe não é uma assassina, tenho um pressentimento de que eles não
eram ruins.
Holiday sentou-se e puxou os joelhos contra o peito.
— Talvez essa seja apenas a sua maneira de se recusar a ver o mal
nas pessoas.
Kylie considerou a teoria por um segundo. Então se lembrou das
duas vezes em que tinha visto a águia e, depois, o cervo. Ela não era cega
para o mal. Podia reconhecê-lo quando o via, e não via mal nenhum nos
falsos Brightens.
— Não — ela afirmou. — Não é isso.
A mente de Kylie voltou a Jane Doe.
— Ontem à noite recapitulei uma parte da visão e me lembrei do que
a enfermeira disse ao médico. Ela disse que o marido dela, de Jane Doe,
tinha acabado de acordar e estava perguntando pela esposa.
— E você acha que isso significa alguma coisa? — Holiday
perguntou.
— Berta Littlemon nunca foi casada. E a visão me leva a crer que o
marido de Jane Doe passou pelo mesmo tipo de operação que ela.
Holiday hesitou e então disse:
— Às vezes as visões são difíceis de decifrar.
— Mas todas as vezes em que tive esse tipo de visão, em que estou
na pele da própria pessoa, elas não eram um quebra-cabeça que eu tinha que montar a fim de descobrir o que significavam. Eram cenas que realmente
aconteceram.
— Mas as visões são a partir da perspectiva da pessoa. E se Jane Doe
é pirada, então...
Kylie balançou a cabeça.
— Eu não acho que ela seja pirada. Ou má.
— Espero que você esteja certa — Holiday disse.
— Eu também.
Elas ficaram em silêncio por um minuto ou dois, apenas ouvindo a
água corrente e sentindo a atmosfera de calma. Kylie olhou para Holiday
novamente e sentiu uma pequena ponta de preocupação em sua mente.
— O que vou dizer a Sara quando ela vier aqui no domingo?
— Não diga nada, exceto que está feliz que ela esteja bem.
— Vai ser tão estranho vê-la aqui! Ela faz parte do meu antigo
mundo, e meu antigo mundo não deveria se misturar com o meu novo
mundo. É como dar de cara com seu professor de catecismo numa balada.
Holiday riu.
— Ou o seu ginecologista no supermercado. Aconteceu comigo uma
vez. Foi tão estranho! — Ela estendeu o braço e pousou a mão sobre a de
Kylie.
Normalmente, o toque de Holiday não provocava nada além de
calma, mas não desta vez. Desta vez, tudo ficou escuro.
 
Por um segundo, Kylie sentiu como se alguém tivesse apagado as
luzes. Ela podia sentir a mão de Holiday sobre a dela, mas a caverna estava mergulhada na escuridão.
Então as luzes se acenderam. Kylie olhou ao redor, confusa. Elas não
estavam mais na cachoeira. Em vez disso, estavam sentadas em cadeiras de
metal dobráveis e muito desconfortáveis, numa clareira, sob algum tipo de
tenda de cor escura. O vento tinha cheiro de chuva. Era um dia nublado e ela
se sentiu triste. Muito triste.
Para onde tinha ido a serenidade da cachoeira? O que estava
acontecendo, afinal?
Levou um segundo para ela perceber que era uma visão. Não sabia
bem o que deveria ver desta vez, mas não se importava com o que seria. Ela
não queria ver.
Kylie tentou sair daquele cenário. Queria voltar, voltar para onde
tudo parecia certo, onde a calma reinava à sua volta, onde o som da água
tranquilizava a sua mente.
Quando isso não funcionou, ela tentou descobrir onde estava.
Perdeu o fôlego ao ver um caixão na sua frente. Lágrimas silenciosas
inundaram seus olhos e ela soube que ali dentro havia alguém de quem ela gostava.
— Não — ela sussurrou. — Por favor, não.
Alguém tocou sua mão. Kylie reconheceu o toque de Holiday antes
de olhar em volta e ver a líder do acampamento sentada ao lado dela. Ela
usava roupas pretas sóbrias, nenhuma maquiagem e lágrimas não
derramadas faziam seus olhos verdes parecerem mais brilhantes do que de costume.
Então alguém começou a falar em algum lugar próximo ao caixão.
Kylie olhou para a frente e viu Chris, o líder dos vampiros, responsável
pelos sorteios da Hora do Encontro, de pé ao lado do caixão.
— Perdemos um dos nossos hoje. É nosso costume quando um
vampiro morre...
— Não — Kylie sussurou novamente, e de repente percebeu que
estava em pé, de volta à cachoeira. A tristeza que encheu seu peito nesse
instante era uma emoção um pouco menos dolorosa, o que tornava a
respiração mais fácil, embora ainda machucasse.
Ela olhou para Holiday, que estava sentada na rocha, com os braços
em volta das pernas. As lágrimas em seus olhos lhe diziam que Holiday não
fora apenas parte da visão de Kylie. Ela também a vivenciara.
Alguém vive e alguém morre. As palavras pareceram fluir da própria
rocha e ricochetear nas paredes de pedra.
Kylie olhou para Holiday.
— O que isso significa?
Holiday piscou e Kylie viu que ela tentava parecer corajosa.
— Seja o que for, vamos ficar bem.
— Nós vamos — disse Kylie, lutando contra o sentimento de calma e
deixando que sua dor assumisse o controle. — Mas alguém aqui não vai
ficar bem. Temos que fazer alguma coisa para salvá-la. Ou salvá-lo.
É nosso costume quando um vampiro morre...
As palavras de Chris aguilhoaram o seu coração. Quando um
vampiro morre... Ai, Deus! Por favor, que não seja Della, ou Burnett!
Holiday balançou a cabeça.
— Não há nada a fazer, Kylie. — Ela respirou fundo. — Não
consegue sentir? Aceitação. — As lágrimas inundaram os seus olhos outra
vez. — Deixa o meu coração em pedaços, mas é isso que eles estão dizendo.
Alguém que amamos vai morrer e temos que aceitar isso.
— Mas eu não quero aceitar! — Kylie se virou e atravessou a cortina
de água em direção à luz do sol.
No instante em que seu olhar pousou em Burnett, toda a calma da
cachoeira se estilhaçou à sua volta. A aceitação que ela tinha sentido antes
não passava agora de uma vaga lembrança. Por favor, que não seja Burnett! Por favor, que não seja Della! Por favor, que não seja Burnett!...
Ela repetiu o mesmo mantra várias e várias vezes mentalmente,
como se apenas a sua vontade bastasse para evitar a tragédia. Ela queria
correr até ele, pegar suas mãos e fazê-lo jurar que tomaria cuidado, que não
correria riscos desnecessários.
Mas no mesmo instante em que esse pensamento lhe ocorreu, ela
soube com certeza que nada nem ninguém impediria Burnett de ser quem
ele era. E isso significava correr riscos.
Kylie sentiu Holiday parando ao lado dela. Olhou para ela, que
fitava Burnett, e soube que a amiga estava pensando a mesma coisa com
relação à segurança dele.
Alguém vive e alguém morre. As palavras se repetiram na sua cabeça.
— Estão prontas? — Miranda gritou da sala, na sexta-feira à noite.
Kylie suspirou. A amiga estava nervosa. Aquela noite era o grande
encontro com Todd, o bruxo gatíssimo, e Kylie e Della iriam com ela até o
portão principal, esperá-lo.
— Quase! — Kylie pegou a escova de cabelo e deu algumas
escovadas nos fios loiros, sem se preocupar, na verdade, se o cabelo
parecesse mais um ninho de passarinho.
Os últimos dias tinham se passado como se envoltos numa névoa.
Aceitar que alguém estava tentando matá-la era ruim, mas tentar aceitar que
alguém de quem gostava, um vampiro, estava prestes a morrer era
impossível.
Ela e Holiday tinham discutido sobre a possibilidade de tentar
impedir que a visão se concretizasse e haviam se desentendido. E se fosse
Della? Holiday não se importava que fosse Burnett? Kylie fizera
mentalmente uma lista de todos os vampiros do acampamento. Alguns deles
ela não conhecia muito bem, mas nenhum merecia morrer. Kylie quase
chegou a contar a Della sobre a visão, mas, quando estava prestes a fazer
isso, teve o pressentimento de que deveria continuar calada. Ela não podia
contar.
Por razões que Kylie não entendia, ela simplesmente sabia que não
seria uma boa ideia.
Holiday continuava insistindo em dizer que Kylie se esquecia de que
a mensagem era composta por duas partes. Alguém iria viver. Mas o que
dizer da pessoa que morreria?
— Você não pode mudar o destino — Holiday tinha avisado.
Mas Kylie não dava a mínima para o destino. A aceitação que tinha
sentido na cachoeira voltava de vez em quando e tentava amenizar a dor
que ela sentia. Amenizar, não acabar com ela.
— Estou esperando! — gritou Miranda novamente.
Eu também. Kylie olhou para o fantasma sentado na beira da sua
cama.
— Mais um minuto! — Kylie respondeu a Miranda. A mulher em
espírito parecia grávida novamente e estava simplesmente sentada ali,
segurando a barriga arredondada, como se quisesse protegê-la.
— Temos que conversar, sabe? — Kylie sussurrou.
O espírito não respondeu.
— Se você quiser ajuda, temos que conversar.
Ela continuou calada.
— Eu sei que os outros espíritos acham que você fez coisas horríveis,
mas eu realmente não acredito. Estou tentando provar isso, mas não sei se
vou conseguir sozinha. Preciso da sua ajuda.
A única resposta para o apelo de Kylie foi o silêncio. Então ela ouviu
Miranda chamando novamente.
Kylie olhou para o fantasma.
— Eu tenho que ir agora.
Ela estendeu a mão para girar a maçaneta da porta e suspirou,
sabendo que precisava fingir alegria pela amiga, que estava animada com o
encontro, apesar de ter pedido a Kylie, pelo menos umas dez vezes, para
contar a história sobre como Perry a tinha salvo do sumidouro, junto com
Ellie.
Miranda precisava escolher entre os dois. Mas quem mora em casa
com teto de vidro não deve atirar pedras... E Kylie já tinha passado um bom
tempo morando numa dessas, enquanto tentava decidir entre Derek e Lucas.
Mas isso era passado...
E ela estava falando sério! Estava mesmo!
Ela sentia falta de Lucas. E, quando ele voltasse, Kylie ia lhe dizer
sem titubear que queria ser namorada dele.
Na noite anterior, tinha até tentado em vão encontrá-lo em seus
sonhos. Será que Lucas estava acordado àquela hora ou a alcateia a tinha
impedido de chegar até ele? Ela não sabia. Então, naquela manhã, ela se
lembrou de outra maneira de entrar em contato com ele. Por meio daquele
artefato todo-poderoso chamado “celular”.
No momento ele não podia falar sobre o que estava acontecendo.
Kylie não podia lhe contar sobre os problemas dela com o destino. E aceitar
seu pedido de namoro era algo que ela queria fazer pessoalmente. Mas eles
conversaram por cerca de vinte minutos sobre outras coisas, como as férias
que tiravam quando eram crianças.
Ele tinha visitado quase todos os países estrangeiros que Kylie
conhecia e alguns que ela não sabia que existiam. Mas Lucas nunca tinha ido
a Disney World ou a um parque de diversões de verdade, e por isso ela lhe
contou tudo sobre eles. Eles resolveram que o passeio a Disney seria o
primeiro encontro de verdade que eles teriam.
E aconteceria logo que o nome de Kylie fosse retirado da lista negra
de alguém e ela estivesse livre para andar por aí sem uma sombra.
Ao sair do seu quarto, Kylie encontrou Miranda andando de um
lado para o outro em frente à porta. Ela estava bonita; usava o cabelo preso
no alto da cabeça, com apenas alguns fios loiros e macios caindo em torno
do pescoço. As diferentes cores do seu cabelo tingido mal apareciam quando
ela o usava preso.
Usava um vestido de alcinhas amarelo, um pouco franzido na saia, e
sandálias amarelas combinando. O traje estava muito feminino, sem parecer
chamativo demais; era sexy sem parecer vulgar, e elegante sem parecer
excessivamente glamoroso. Por apenas um segundo, Kylie invejou Miranda
e seu encontro. Desejou que Lucas estivesse ali e eles pudessem ir a algum
lugar fora do acampamento.
Algum lugar em que ela pudesse esquecer que o destino iria lhe
roubar um dos seus amigos.
Della se levantou da mesa do computador. O coração de Kylie se
apertou só de pensar na mera possibilidade de que fosse a amiga naquele
caixão. Mas ela logo se lembrou de trechos da conversa que tivera com
Holiday aquela manhã.
— Todo mundo vai morrer um dia, Kylie.
Kylie podia apostar que Holiday só estava tentando parecer valente
para tranquilizá-la. Mas pelos olhos inchados da líder do acampamento,
sabia que Holiday tinha chorado tanto quanto ela e também não tinha
dormido muito bem.
— Tudo bem — Kylie tinha respondido. — Mas por que nos fizeram
essa revelação? Por que, se não podemos impedir? Só para nos torturar
contando-nos antecipadamente?
— Por alguma razão, eles acham que precisávamos ser avisadas.
— Bem, eles pensaram errado!
— Os Anjos da Morte raramente erram, Kylie.
— Há sempre uma primeira vez, não é verdade?
— Terra chamando Kylie! — Della gritou, trazendo a amiga de volta
ao presente. — O que há com você? A sua pequena viagem ao inferno te
deixou fora de órbita? — disse Della com um sorriso.
— Do que você está falando? — Kylie perguntou.
— Você fica olhando pra mim como se não me visse! Está fazendo
isso há quase dois dias e isso está me deixando meio assustada.
— Sinto muito.
— Deve ser porque ela sente falta do lobisomem bonitão — disse
Miranda, colocando uma mão no peito e suspirando. — Está com saudade.
Sua aura está toda cinzenta. Está sem os beijos dele há quase dois dias. —
Então Miranda abriu a porta da frente e acenou para elas.
— Pobrezinha... — provocou Della.
Kylie revirou os olhos e seguiu-as para fora. Ainda bem que gostava
de suas colegas de dormitório, do contrário as gozações poderiam deixá-la
de fato irritada.
Elas ainda não tinham saído da varanda quando Ellie, com dois
outros vampiros, passou na frente da cabana.
— Como vão os arranhões? — Ellie perguntou para Kylie.
— Já sararam — ela respondeu, estendendo o braço.
— Ainda bem! — De repente o clima ficou meio estranho e Ellie
pareceu notar. — A gente se vê por aí.
— Tá legal — respondeu Kylie, e Ellie virou-se para ir embora.
Ocorreu então a Kylie que, na visão, a pessoa no caixão poderia ser a garota.
— Ellie?
A vampirinha se virou e Kylie não soube o que dizer; só não queria
deixar Ellie pensar que ela estava sendo rude.
— Obrigada — Kylie deixou escapar.
Ellie pareceu intrigada.
— Pelo quê?
— Por... Pela gentileza de perguntar sobre meu braço. — Ok, aquilo
soou bem ridículo.
— Ah. Não há de quê. — Ellie deu alguns passos de costas, acenou,
então se virou e correu para alcançar seu grupo.
— O que deu em você? — Della perguntou, quando Ellie já não
podia ouvi-las e elas desciam os degraus da varanda.
— É — concordou Miranda. — Quer dizer, se eu descobrisse que
alguém tinha caído em cima do meu namorado, não seria tão simpática.
— Derek não era meu namorado... — disse Kylie.
— Claro! E os ursos não mijam na floresta — disse Della com
sarcasmo.
Kylie levantou as mãos.
— Parem com isso, ok? Eu não estou nem aí com o que aconteceu
entre Ellie e Derek!
Della pronunciou a palavra “mentirosa” só mexendo os l{bios.
— A verdade é que eu não gosto dessa garota. Detesto o jeito como
ela é simpática e agradável o tempo todo. Me dá vontade de dizer uns
desaforos.
Kylie franziu a testa para Della.
— Não tem nada a ver tratá-la mal por causa disso. Estou falando
sério, Della. Ela não sabia sobre mim e Derek quando tudo aconteceu.
— Tudo bem — disse Della. — Isso significa que ela não é sacana.
Mas não que não seja uma piranha...
Miranda riu e Kylie gemeu.
— Eu não acho que ela seja uma piranha. — Kylie hesitou e depois
acrescentou: — Ela pulou no buraco, disposta a arriscar a vida para salvar
Perry e eu.
— Tudo bem, ela fez isso — disse Miranda. — O que não muda o
fato de ela ter transado com...
— Que droga! Podemos apenas não falar mais sobre esse assunto? —
disse Kylie.
— Caraca! — exclamou Miranda. — Você deve estar na TPM lunar,
porque Della tem razão. Você anda muito esquisita ultimamente. Parece que
está sempre de mau humor.
Kylie queria muito que Miranda estivesse certa. Que o seu mau
humor fosse só resultado do fato de ela ser um lobisomem, e não por causa
da sua longa lista de problemas.
E se ela fosse um lobisomem, pelo menos Lucas ficaria feliz.
Realmente feliz.
— Merda! — Miranda murmurou, trinta minutos depois.
Elas ainda estavam esperando Todd, que tinha se perdido e ligado
para Miranda, dizendo que estaria ali em três minutos.
— Merda por quê? — Della perguntou, mas então acrescentou: —
Ah, merda...
— O que foi? — Kylie perguntou, obviamente a única alheia ao que
estava acontecendo.
Então ela também viu o que era — ou melhor, quem era — e
concordou plenamente com as amigas.
— Ah, merda.
— Oi! — Perry cumprimentou, enquanto se aproximava. Kylie não
pôde deixar de notar que ele tinha cortado o cabelo e usava uma camisa que
lhe caía bem e calça jeans.
O corte de cabelo fazia com que parecesse mais velho; mais um
homem do que um adolescente. A forma como a camisa se moldava ao peito
acentuava os ombros largos. Seus olhos estavam azuis, e o modo como eles
brilharam quando olhou para Miranda derreteu o coração de Kylie. O
sorriso do metamorfo parecia exalar autoconfiança. Até mesmo sua postura
corporal demonstrava uma segurança que Kylie nunca tinha visto nele. Pela
primeira vez, ela percebeu por que Miranda o achava tão atraente.
— Você está um arraso! — elogiou Della, obviamente percebendo a
mesma coisa.
— Ora, muito obrigado. — Seus olhos azuis cintilaram quando ele
desviou o olhar para Miranda. — Mas eu não sou o único que está bem esta
noite. Muito bem.
— Obrigada. — Miranda olhou para Kylie, como que implorando
para que a amiga fizesse alguma coisa.
Kylie olhou para Della, que apenas sorriu.
— Hã, Perry... — Kylie começou a falar, sem saber como resolveria a
situação. — A gente só estava conversando, em particular, sobre...
— ...sobre o encontro de Miranda — completou Perry.
— Ah, merda... — murmurou Della novamente.
Disse tudo, pensou Kylie.
Perry fitou Miranda.
— Eu sei sobre o seu encontro.
Miranda fulminou Kylie com o olhar, como se a acusando de ter
contado a Perry.
Kylie negou com a cabeça e voltou a encarar Perry. Seus olhos
tinham mudado de cor, indo do azul para um verde brilhante, mas, se ele
estava prestes a surtar e se transformar em algum tipo de monstro
devorador de bruxos, não demonstrou.
— Eu só queria dizer, embora não goste disso, que só espero que
você me dê a mesma chance que está dando a esse filho da... Quero dizer, a esse cara.
Della deu uma risadinha.
— Saia comigo amanhã à noite — continuou Perry. — Me deixe
provar que eu sou o cara que você quer.
Miranda abriu a boca para dizer alguma coisa, mas nenhum som
saiu. Kylie não conseguiu falar também, porque sentiu um nó na garganta,
um nó de emoção e orgulho de Perry.
— Eu... Eu acho que poderia sair amanhã à noite. — Miranda parecia
chocada e totalmente surpreendida com a atitude de Perry.
Então, com o canto do olho, Kylie viu algo se mover na janela do
escritório. Quando virou a cabeça, viu Burnett e Holiday comemorando.
Sem dúvida, Burnett estava ouvindo a conversa e contara os detalhes a
Holiday.
Kylie deveria ter adivinhado que alguém estava ajudando Perry. E
ficou um pouco envergonhada por não ter tentado fazer o mesmo. Ele
merecia uma chance com Miranda.
Perry acenou com a cabeça, aproximou-se, em seguida deu um beijo
rápido na bochecha de Miranda. Foi a coisa mais romântica que Kylie já
tinha visto.
Ela só não esperava ver uma picape marrom, com uma placa
personalizada onde se lia TODD, estacionando ali no mesmo instante.
— Ah, merda — lamentou Della novamente.
Falou e disse.
 
Todd, um cara supergato com cabelos cor de areia, saltou da picape e
franziu a testa. Ele obviamente não tinha deixado de reparar no quanto
Perry estava próximo de Miranda, a ponto de quase tocá-la. Pelo jeito como
olhou para eles, também tinha visto o beijo.
— Alguém está tentando roubar a minha garota? — As palavras de
Todd podiam parecer bem-humoradas, mas seu tom de voz deixava
transparecer algo bem diferente. Ele se aproximou de Miranda e colocou um
braço ao redor dos ombros dela, de um jeito possessivo.
Kylie viu todo o corpo de Perry enrijecer. Seus olhos adquiriram um
tom vermelho brilhante.
Todd, ainda de olho em Perry, franziu as sobrancelhas para verificar
o padrão cerebral do metamorfo. Engoliu em seco quando percebeu de que
espécie Perry era. Kylie quase esperou ver o bruxo molhando as calças.
A porta do escritório se abriu e se fechou atrás deles.
— Ei, Perry? Posso falar com você um minuto? — Burnett chamou.
Kylie deu um passo para ficar mais perto de Perry.
— Não estrague tudo agora — ela sussurrou.
Perry, com a raiva emanando de todos os poros, continuou
encarando Todd. Kylie começou a sentir o zumbido de eletricidade em torno
do metamorfo.
— Não faça isso — Kylie repetiu num sussurro.
Perry olhou para Burnett, em seguida para Kylie, e depois de volta
para Miranda.
— Vejo você amanhã à noite — disse ele, mas seu tom de voz estava
tão tenso que Kylie percebeu na hora o quanto lhe custava manter a
compostura.
Então ele se virou, transformou-se em seu pássaro favorito e alçou
voo, fazendo pequenos círculos em torno deles.
Della se inclinou para Kylie.
— Ele vai emporcalhar toda a picape do Todd com titica, fica
olhando!...
Kylie de fato ficou olhando e torcendo para que Della estivesse
errada. Ok, teria sido muito engraçado, porque um pássaro tão grande
quanto Perry poderia fazer um belo estrago na picape de Todd, mas Kylie
não achava que isso iria impressionar Miranda.
E esse, ela percebeu, era o motivo pelo qual Perry havia se
transformado.
Ainda assim, Kylie não relaxou até Perry mudar de direção e voar
para a floresta.
— Ei, já sei! Por que não vamos nadar no riacho hoje à noite? —
sugeriu Della quinze minutos depois, quando voltavam para a cabana. —
Um grupo de campistas pendurou um balanço num dos galhos de árvore
mais altos, pra que a gente possa saltar na água. Estou morrendo de vontade
de experimentar.
Foi a palavra “morrendo” que deixou Kylie sem fôlego. Ela tinha
quase bloqueado o aviso de Jane Doe da sua mente e não fazia ideia da razão
por que de repente se sentia tão apavorada.
— Não! — Ela deixou a resposta escapar tão rápido que Della fez
uma careta.
— Por quê?
Porque você pode morrer.
— Porque... — Kylie lutou para encontrar uma explicação até que se
lembrou de que tinha um motivo bem real. — Porque Holiday está trazendo
o computador de Burnett para eu usar.
— Por que você precisa do computador dele se temos um?
— Para enviar um e-mail para... É um pedido de um espírito. Vou
enviar um e-mail para a família da mulher morta e tentar esclarecer a
ascendência dela, e Burnett tem um endereço eletrônico que não dá pra
rastrear — explicou Kylie.
— Ah... — Della calou-se. Engraçado como mencionar a palavra
fantasma era o suficiente para acabar com qualquer conversa.
— Então, que horas ela vai aparecer? — Della perguntou, finalmente.
— Eu poderia dar uma corrida até o riacho enquanto você estiver com ela.
E você poderia morrer. Nada disso. Não vai a lugar nenhum.
— Mas você é a minha sombra.
— Holiday deixou Jonathon sair mais cedo, quando ela estava lá.
— Mas isso foi antes do sumidouro. — A explicação soou
convincente e o nó no estômago de Kylie relaxou. Ela podia não conseguir
contar a Della sobre a premonição, ou fosse qual fosse o nome que Holiday
dava àquilo, mas nada poderia impedi-la de tomar conta da amiga.
— Tudo bem — disse Della, embora não parecesse nada feliz. O que
para Kylie tanto fazia. Infeliz mas viva era melhor do que o contrário.
Um grupo de campistas apareceu na curva da trilha e passou por
elas. Kylie sentiu o olhar frio que lhe lançaram com tamanha intensidade
que pareceu levar um tapa, e quando percebeu que uma das garotas era um
lobisomem, deduziu de quem poderia ser o olhar gelado que lhe dava
arrepios.
Outra olhada para o grupo confirmou suas suspeitas.
Fredericka.
Kylie continuou andando, na esperança de que a ignorassem.
— Ei, loira! — Fredericka chamou.
Fechando os olhos por um segundo, Kylie tentou reunir toda a sua
paciência. Quando se virou, olhou Fredericka nos olhos. A loba tinha se
aproximado silenciosamente e parado tão perto que Kylie podia até contar
os cílios dela. A garota sorriu de forma desagradável. E foi nesse momento
que Kylie teve uma epifania.
Ela não estava com medo.
Fredericka, com aquela atitude “Vou te fazer em pedacinhos” não a
assustava mais. Deixava Kylie extremamente irritada, fazia com que sentisse
algo semelhante ao ciúme, embora confiasse em Lucas, mas não tinha um
pingo de medo.
— Precisa de alguma coisa? — Kylie levantou a mão para impedir
Della de ficar entre elas. A vampira, provavelmente furiosa por ter sido
impedida, rosnou e expôs os caninos pontiagudos. Os olhos de Fredericka
adquiriram o tom laranja brilhante que indicava irritação.
— Achei que você gostaria de saber que Lucas me telefonou e disse
que só vai voltar amanhã à noite bem tarde — disse a garota num tom de
voz enjoativamente doce. — Ele está com problemas com o pai. Estava muito
triste. Pobrezinho. Precisava de alguém para conversar.
Kylie sabia que Fredericka só estava falando aquilo para irritá-la.
E funcionou.
Mas o orgulho de Kylie obrigou-a a sorrir e fingir que tudo estava às
mil maravilhas. Uma parte dela, porém, queria dar um belo chute em
Fredericka e só se preocupar com as consequências depois.
— Obrigada por me avisar, mas combinamos de ele me ligar daqui a
pouco. — Ela retribuiu o sorriso de Fredericka com outro ainda mais doce e
se afastou.
Fredericka segurou-a pelo braço. Seus dedos se cravaram no
cotovelo de Kylie, que quase tentou se afastar. Então se lembrou de que, se
todo mundo tinha tanta certeza de que ela era uma protetora, não teria força
para vencer Fredericka. Sua força só seria maior do que a da loba se
Fredericka tentasse machucar alguém com quem Kylie se importasse.
E considerando que essa outra pessoa era Della e a morte rondava a
amiga e todos os outros vampiros de Shadow Falls, Kylie não deixaria Della
se envolver.
Kylie teria que usar a inteligência para sair dessa. Será que ela tinha
o suficiente?
— Você quer largar meu braço? — Kylie fingiu não sentir seus ossos
prestes a serem esmagados sob os dedos de Fredericka.
— Na verdade, não — rosnou Fredericka.
— Ok, mas não diga que eu não avisei. Porque o espírito de uma
mulher anda rondando por aí e ela já está de mau humor faz uns trinta anos.
— Era mentira. Pura mentira. Mas Kylie não ia deixar de utilizar todos os
meios que podia. — Desde que foi morta por um lobisomem sacana, tem
sofrido horrores...
A mão de Fredericka largou seu braço.
— Vá pro inferno!
Kylie sorriu.
— Obrigada pelo convite, mas quase fui até lá ontem mesmo e não
gostei tanto assim. — Kylie então franziu o nariz. — Isso que eu estou
sentindo é fedor de gambá?
Os olhos de Fredericka ficaram laranja incandescente e Kylie soube
que ela tinha ido longe demais. A mão da loba agarrou outra vez o braço de
Kylie e apertou. Alguém correu para fora da floresta. E, com o canto dos
olhos, Kylie viu que era Will, o amigo de Lucas.
Will limpou a garganta e Fredericka nem sequer olhou para ele.
Apenas relaxou os dedos que apertavam o braço de Kylie e se afastou com
um olhar submisso.
Kylie não tinha reparado que Will seguia seus passos sem deixar que
o vissem. O fato de nem Kylie nem Della terem percebido que ele as seguia
era uma prova de que ele era muito bom no que fazia.
Della encarou o lobisomem com um ar petulante, mas Kylie fez a
coisa certa.
— Obrigada.
— De nada. — Ele voltou a desaparecer na floresta.
— O que deu em você pra dizer “obrigada”? A gente não precisava
que ele se intrometesse. Eu poderia ter acabado com aquela cadela e ela teria
saído daqui com o rabo entre as pernas.
E poderia ter matado você.
Elas tinham se distanciado apenas alguns metros quando Kylie se
lembrou do que Fredericka dissera sobre Lucas ter telefonado. Ela parou e
puxou o celular do bolso para ver se havia alguma chamada perdida.
Nada.
A loba podia estar mentindo. Como Kylie poderia saber?
Então lhe ocorreu... Dã, era óbvio! Della, como o resto de sua espécie,
era um detector de mentiras ambulante. Ela podia ouvir os batimentos
cardíacos e a pulsação da pessoa e sabia quando alguém estava de conversa
fiada. Kylie olhou para Della.
— Fredericka estava dizendo a verdade sobre Lucas ter ligado pra
ela?
Della fez uma careta.
— É errado mentir quando você sabe o que a pessoa quer ouvir?
— Só diga a verdade!
Della pronunciou a palavra “desculpa” sem emitir nenhum som.
— Ela estava dizendo a verdade.
Depois que Kylie chegou à cabana, Holiday trouxe o laptop de
Burnett e elas enviaram um e-mail para a família de Catherine O’Connell.
Inventaram uma história de que era uma velha amiga de Catherine e
achasse que a família dela deveria saber que ela sempre quisera lhes contar a
verdade antes de falecer. A ideia parecia boa. Convincente, até. E então
refizeram toda a árvore genealógica da família, “recortando e colando”
informações e fotos da Internet.
Com sorte, a família engoliria o truque. Não que Kylie achasse que
um dia saberia. Mas ela se sentiu bem em cumprir sua parte do trato. Não
importava que as informações que Catherine havia dado a Kylie sobre Berta
Littlemon ainda não tivessem lhe dado nenhuma resposta. E Kylie esperava
que de fato não dessem. A última coisa que ela queria descobrir era que
estava errada sobre Jane Doe.
Enquanto Holiday e Della conversavam à mesa da cozinha, Kylie
mandou um e-mail para o padrasto, contando sobre a mudança no
cronograma caso ele quisesse visitá-la no domingo do Dia dos Pais. Ela
esperava que ele respondesse ao e-mail dizendo que não poderia ir, e ela não
teria que enfrentar Sara e o padrasto no mesmo dia. A resposta foi quase
instantânea. Ele disse que não via a hora de vê-la no domingo.
— Droga... — Kylie murmurou.
Holiday olhou para ela.
— Más notícias?
— Não, está tudo ótimo! — disse Kylie com ironia, deixando a
cabeça pender sobre a mesa. Ela não sabia se iria sobreviver.
— Você está bem? — Holiday perguntou quando Kylie
acompanhou-a até a varanda, alguns minutos depois.
— Tão bem quanto possível, acho — mentiu Kylie. Holiday assentiu
e elas se despediram.
Quando Kylie voltou para dentro da cabana, Della estava
respondendo e-mails. Ela se sentou à mesa da cozinha. Ela queria ir para a
cama, mas também queria estar acordada quando Miranda voltasse do
encontro com Todd.
Kylie consultou o relógio de parede. A amiga ainda poderia demorar
várias horas. Horas que Kylie tinha para se preocupar com seus próprios
problemas.
Della se virou para ela.
— Isso não é nada bom. Ou talvez seja...
— O quê? — Kylie perguntou.
Della apontou para a porta e no mesmo instante Miranda entrou. Seu
rosto estava insondável. Foi até a mesa e desabou numa cadeira do modo
mais dramático possível.
— E então? — Kylie perguntou, e viu esperança nos olhos de Della.
Kylie sabia que ela e a amiga esperavam a mesma coisa. Que o encontro
tivesse sido um retumbante fracasso e Perry ainda tivesse uma chance.
Miranda apenas encolheu os ombros.
— Pode parar com isso! — Della rosnou. — Desembucha ou eu vou
te pegar pelo pescoço e te obrigar a contar.
Miranda falou.
— Ele foi... legal. O jantar foi legal. Segurar a mão dele foi legal.
— Ele te beijou? — Kylie perguntou, sem saber como Miranda
definia “legal”. Se Kylie se esforçasse o suficiente, poderia acreditar que
“legal” significava nada de especial.
Miranda assentiu.
— O beijo foi...
— Deixe-me adivinhar... — disse Della. — Legal.
— Certo — concordou Miranda.
Della bateu a mão sobre a mesa.
— Legal é só outra maneira de dizer terrivelmente chato!
Miranda franziu a testa.
— Foi exatamente o que eu pensei.
Kylie e Della gritaram de emoção.
— O que foi? — Miranda perguntou. — Vocês estão felizes porque o
meu encontro não foi nada de mais?
— Não — disse Kylie. — Digamos apenas que estamos mais
empolgadas com o encontro de amanhã à noite.
Um sorriso brilhante iluminou o rosto de Miranda.
— Eu também. Acreditam que Perry fez aquilo? Quer dizer, ele foi
tão...
— ...romântico — completou Kylie.
— ...sexy — acrescentou Della.
— ...doce — sussurrou Miranda. — Eu não consegui parar de pensar
nele a noite toda.
E essa foi a melhor notícia que Kylie recebera o dia todo.
Naquela noite, Kylie fitou o teto durante várias horas, enquanto o
sono que tanto desejava não vinha. Uma hora se passou. Duas.
Sua mente começou a enumerar os problemas. Ela ainda não sabia
de que espécie era. Não conseguia impedir o destino de levar embora
alguém de quem ela gostava. Tinha alguém querendo vê-la morta,
provavelmente a gangue paranormal dos subterrâneos chefiada por Mario,
que ainda não a perdoara por não querer se casar com seu neto assassino.
Lucas estava ligando e conversando com Fredericka. Sara estava chegando
para visitá-la no domingo com sua mãe. E seu padrasto ia aparecer também.
Kylie ainda não tinha resolvido os problemas do espírito com amnésia, e não
tinha certeza absoluta de que a mulher não era uma assassina.
Seu cérebro privado de sono remoeu cada um desses problemas e
não encontrou solução para nenhum deles. Ela tinha acabado de cair no sono
quando ouviu uma leve batidinha na janela do quarto.
A princípio pensou que tinha imaginado. Então achou que fosse a
gralha azul novamente.
— Eu não sou sua mãe — Kylie murmurou para o pássaro.
As batidinhas pararam.
Kylie ficou ali, escutando. O silêncio de repente ficou sinistro. Ela
deu um suspiro e o som voltou anormalmente alto.
A janela estava trancada, certo?
Ela se lembrou de que a abrira no dia anterior, na esperança de que
entrasse uma brisa.
E, não, ela não conseguia se lembrar se havia fechado a tranca
depois.
Mas..., considerando o tipo de intruso que Kylie mais temia, o tipo
que poderia abrir sumidouros e se materializar do nada, qual era a chance
de uma janela fechada detê-lo?
Então, por que razão, Kylie se perguntou, o som nítido de alguém
abrindo a janela encheu de medo seu coração?
 
Kylie saltou da cama e seu coração saltou com ela. Seus olhos se
fixaram na janela, quando ela viu duas mãos agarradas ao parapeito.
Um grito subiu pela sua garganta, mas logo em seguida a voz de
Della ecoou do lado de fora.
— Atreva-se a entrar por esta janela agora e eu vou chutar a sua
bunda! E a sua posição é perfeita para isso.
As mãos desapareceram. Alguém bateu no chão com um baque
surdo.
Kylie correu para a janela para ter certeza de que Della não tinha se
envolvido numa luta mortal. Della, vestindo seu folgado pijama de algodão
azul do Mickey Mouse, tinha as mãos nos quadris e o pé sobre alguém
deitado na grama. Os olhos da vampira estavam verde brilhante.
— Merda! — praguejou Ellie, com os próprios olhos brilhando
também. — Eu só queria falar com a Kylie. — Ela olhou para a janela, onde
Kylie estava debruçada, e pegou do chão o boné de beisebol com a inscrição
LITLLE VAMP.
— Está vendo aquilo ali? — Della apontou para a varanda da frente.
— Chama-se porta. E a maioria das pessoas a usa para entrar.
— Eu não queria acordar mais ninguém.
— Então esperasse uma hora decente para fazer uma visita! — Della
argumentou.
Kylie não sabia sobre o que Ellie queria conversar, mas, se tivesse
alguma coisa a ver com Derek, estava ansiosa para ouvir cada palavra da
vampira.
— Tudo bem — disse Kylie. — Venha aqui pra dentro.
— Ah, mas que ótimo! Recompensando um mau comportamento! —
resmungou Della, olhando com desgosto para Kylie, que não podia fazer
nada a respeito.
Ellie sorriu para Della, então se levantou e começou a escalar a janela
novamente.
Della a puxou de volta.
— Use a droga da porta!
Quando Kylie saiu do quarto, Della tinha ido embora e Ellie sentou
se no sofá.
— O que foi? — Ela se aproximou e se acomodou na cadeira ao lado
da garota.
Ellie olhou para cima.
— Eu não sei, só queria conversar.
— Sobre o quê? — Kylie perguntou.
Ellie dobrou uma perna sobre o sofá.
— Algumas coisas. Derek disse que você poderia ser uma boa pessoa
para se conversar sobre problemas.
O peito de Kylie apertou.
— Se quer falar sobre você e Derek...
— Não. — Ela revirou os olhos. — Eu não estava mentindo quando
disse que não existe mais nada entre nós... como casal. Eu gosto de Derek
como amigo. Um amigo incrível, mas isso é tudo. E é um pouco sobre isso
que eu queria falar.
— Não estou entendendo — disse Kylie.
— Estou preocupada com Derek. Ele está muito chateado com o que
aconteceu entre vocês dois, e eu sinto que a culpa é minha. E, quando
alguma coisa é culpa minha, eu me sinto no dever de consertar.
Kylie franziu a testa.
— Não é culpa sua. As coisas já não estavam indo bem quando ele
foi embora.
— Eu sei, ele me contou... Mas mesmo assim...
— Não é culpa sua. — Kylie apoiou as mãos nos joelhos. Será que
Derek estava realmente arrependido? A pergunta pairava em algum lugar
entre a cabeça e o coração de Kylie.
— Sobre que outra coisa você precisa conversar? — perguntou ela,
perdendo a vontade de falar sobre Derek. Não estava pronta para mergulhar
nessa caixa de Pandora de emoções. Passado era passado.
Ellie deu de ombros e ajeitou o boné novamente.
— Eu só acho que não pertenço a este lugar. Me sinto mal quando
penso em quanto Holiday se esforçou para conseguir que eu fosse aceita,
mas... acho que é melhor eu ir embora.
Kylie se inclinou para a frente.
— Você quer deixar Shadow Falls?
— Quero. — Ellie franziu a testa. — Tudo isso simplesmente parece
não ser pra mim.
As palavras dela não faziam sentido, então Kylie apenas sacudiu a
cabeça em negativa.
— Tudo o quê?
Ela olhou para a porta do quarto de Della e deslizou até o canto do
sofá, para mais perto de Kylie, baixando a voz.
— Todo esse mundo sobrenatural. Derek disse que provavelmente
você iria compreender, porque sentia o mesmo um tempo atrás. Quer dizer,
você não sente falta? Não sente falta de ser normal? De simplesmente andar
por aí com seus velhos amigos? Eu quero isso de volta. Eu sinto falta de...
Antes eu me preocupava com o que eu iria cursar na faculdade. Agora eu
me preocupo em saber onde vou conseguir o próximo litro de sangue.
— Você não pode ir embora, Ellie. Eu não estou com raiva de você,
se é por isso que quer ir. Quer dizer, a princípio fiquei magoada, mas...
— Não é isso. Mesmo — insistiu Ellie. — Nem mesmo aqui a minha
espécie é muito bem-vinda— ela sussurrou. — Mas não é nem por isso.
Nada com relação a isso, a ser vampira — ela acenou com a mão para cima e
para baixo, mostrando o próprio corpo —, parece certo. Eu sinto falta... de
ser humana. Sinto falta da minha mãe, que morreu alguns anos atrás. — Sua
voz tremeu de emoção. — Talvez se eu apenas vivesse entre os humanos, me
sentiria melhor.
Uma onda de simpatia por Ellie surgiu no peito de Kylie. Ela sabia
perfeitamente o que a garota estava sentindo.
— É difícil — disse Kylie. — Mas você não pode sair daqui. Holiday
diz que a maioria dos vampiros jovens acaba se juntando a gangues para
sobreviver.
Uma pergunta ocorreu a Kylie. Ellie seria o vampiro que ia morrer?
Ela estaria indo embora de Shadow Falls para acabar se envolvendo em algo
terrível e perigoso?
A pergunta fez Kylie perder o fôlego.
A porta do quarto de Della se abriu e a vampira, com os cabelos em
desalinho, atravessou o cômodo, parando bem na frente delas. Kylie viu
mentalmente uma imagem da amiga com a cabeça enterrada embaixo do
travesseiro, tentando não ouvir a conversa. Não que isso tivesse funcionado.
Ambas, Kylie e Ellie, olharam para Della.
Ellie fez uma careta.
— Você estava ouvindo, não é? Será que uma pessoa não pode ter...
— Pode, sua tonta. Eu tentei não ouvir, mas acabei ouvindo — disse
ela em seu tom mais antipático. — Mas Kylie está certa. Você não pode ir
embora. Não é fácil ser vampiro, muito menos se entrosar com uma nova
família de vampiros, mas com o tempo acaba ficando mais fácil.
— Como? — Ellie perguntou.
A porta de Miranda se abriu.
— Você faz amigos — disse ela, entrando no cômodo aos tropeços,
com cara de sono.
— Será que todo mundo ouve a conversa de todo mundo neste
lugar? — Ellie perguntou, parecendo irritada.
— Mais ou menos isso. — Miranda se aproximou e caiu no sofá ao
lado de Ellie. — Amigos não têm segredos uns com os outros.
— Mas vocês não são minhas amigas.
— Poderíamos ser — afirmou Kylie. E Della e Miranda balançaram a
cabeça, concordando.
Ellie arregalou os olhos e desviou o olhar, mas não antes de Kylie
perceber a emoção em seus olhos. Uma sensação quente preencheu o peito
de Kylie e lembrou-lhe do que sentira na cachoeira; ela sabia que tinha sido a
coisa certa a dizer. Então, por algum motivo irracional, teve um flash da
visão do funeral.
Seria um sinal? Isso significava que Ellie era de fato a pessoa no
caixão? E será que essa conversa tinha mudado alguma coisa?
Naquele sábado duas coisas aconteceriam. Bem, três, se Kylie
contasse as contínuas tentativas de Miranda para transformar Socks num
gato outra vez. As outras duas coisas eram: preparar-se emocionalmente
para o Dia dos Pais e aprontar Miranda para o encontro com Perry.
Holiday tinha aparecido na cabana com um plano para o dia
seguinte. Em vez de Socks ficar preso no armário de Kylie durante o Dia dos
Pais, ela pensou que seria uma boa ideia levar o gambazinho para passar o
dia na sua cabana. Desse modo, Kylie, Della e Miranda poderiam levar Sara
e a mãe de Kylie para a cabana delas e ficar por ali, impedindo Sara de fazer
muitas perguntas sobre todo o processo de cura.
Como Kylie tinha chegado à conclusão de que nada conseguiria
prepará-la emocionalmente para ver Sara no acampamento ou para encarar
de novo o padrasto, ela procurou afastar tudo isso da mente e focar sua
energia na tarefa de preparar Miranda para o encontro.
Quando a bruxinha, uma pilha de nervos, vetou todas as roupas do
seu próprio armário, Della e Kylie lhe deram carta branca para tentar
encontrar alguma coisa nos armários delas. Até Ellie apareceu na cabana das
amigas e ficou por ali durante uma hora para ajudar Miranda a se arrumar.
Era meio estranho, mas... Derek tinha razão. Ellie realmente era uma boa
pessoa. Além disso, Kylie não tinha conseguido esquecer o pressentimento
que tivera na noite anterior, a sensação de que Ellie era o vampiro no caixão.
E talvez, apenas talvez, fazer amizade com Ellie tivesse salvado a
vida dela.
Depois de experimentar cerca de seis modelitos, Miranda escolheu o
vestidinho preto de Kylie.
Às sete horas, Perry apareceu na porta da cabana, tão atraente
quanto na noite anterior. Burnett lhe emprestara seu Mustang e,
supostamente, Perry tinha planejado uma noite sob medida para
impressionar Miranda.
Quando a bruxinha chegou do passeio, um pouco depois da meia
noite, ela de fato parecia impressionada. Na verdade, impressionadíssima.
Seus pés pareciam flutuar ao entrar na cabana.
Quando Kylie e Della exigiram detalhes, ela disse apenas:
— Foi muito melhor do que só “legal”. — Então seguiu flutuando até
o seu quarto e foi direto para a cama.
Depois de fazer uma dancinha de comemoração com Della, Kylie foi
para a cama e esperou para ver se Lucas iria ligar. Quase ligou ela mesma,
mas decidiu se conter. Fora ela quem ligara da última vez. Era hora de ele
tomar a iniciativa. Como deveria ter imaginado, o telefone não tocou. Mas o
fantasma apareceu para outra silenciosa e gélida visita.
Kylie implorou para que ela falasse, e ela finalmente falou, mas nada
de útil.
— Não é culpa sua. É isso o que eles queriam que eu te dissesse.
— O que não é culpa minha? — ela perguntou.
O espírito se desvaneceu, e o sofrimento frio que invadiu a atmosfera
fez o peito de Kylie doer e lembrou-a de que não estava mais perto de
resolver os problemas de Jane do que de resolver os próprios.
Domingo de manhã, quando Kylie voltou para a cabana depois do
café da manhã, com Della em seus calcanhares, Lucas estava sentado na
varanda. No momento em que seus olhares se encontraram, o coração dela
disparou. Ele parecia muito bem. Era imaginação dela ou ele parecia mais
masculino e de certa forma mais encorpado? Seria por causa da Lua cheia
que se aproximava?
Ele sorriu para Kylie e ela sorriu de volta, sentindo-se derreter um
pouco por dentro. Queria correr para seus braços e beijá-lo. Mas ela sabia
que Lucas não ia gostar que ela fizesse isso na frente de Della.
Então todos aqueles sentimentos ardentes desvaneceram-se quando
ela se perguntou se ele já tinha visitado Fredericka. Mas, dane-se!,o ciúme
era uma emoção muito feia.
— Não precisa nem pedir — disse Della para Lucas ao pisar na
varanda. — Eu vou pra dentro para vocês poderem se agarrar aqui fora. —
Ela abriu a porta e olhou por sobre o ombro. — Mas, se você tirá-la desta
varanda, vou te caçar aonde estiver.
— Pode deixar. — Ele balançou a cabeça, agradecendo.
Um instante depois que a porta se fechou, Lucas puxou Kylie para os
seus braços.
— Senti sua falta — ele sussurrou, e seus lábios se fundiram com os
dela.
O beijo foi leve, mas ainda assim apaixonado. Lucas a abraçou e
Kylie sentiu nele as sutis diferenças que já tinha observado antes. Ele era
todo músculos e masculinidade. Rígido em todos os lugares em que ela era macia.
Quando o beijo terminou, ela correu as mãos pelos ombros dele.
— Você fica mais... encorpado quando a Lua cheia se aproxima?
Ele sorriu e pressionou a testa contra a dela.
— Fico. É assim que o meu corpo se prepara para a mudança. — Ele
se virou e encostou-se na parede da cabana. Então a puxou para ele e
deslizou a mão pela sua cintura.
— Sentiu minha falta? — perguntou.
— Claro. — Ela sorriu para ele, sentindo o seu cheiro e adorando a
proximidade.
— Nenhum novo desastre fantasmagórico desde que eu saí? — Ele
arqueou uma sobrancelha escura.
— Não. Sem desastres. Exceto que tinha esperança de você me ligar
de volta. Foram dois dias.
— Sinto muito. Meu pai agiu como um idiota e eu tive que ficar mais
tempo do que previ. Fredericka não te contou?
O aborrecimento de Kylie chegou ao auge.
— Contou, mas teria sido muito melhor se você mesmo me ligasse.
Os olhos dele se apertaram como se estivesse tentando decifrá-la.
— Não é como se... Só liguei porque Clara queria falar com ela.
— Clara? — Kylie perguntou.
— A minha meia-irmã. Ela e Fredericka se conheceram quando ela
foi embora comigo.
Que ótimo! A irmã de Lucas era amiga de Fredericka. O ciúme de
Kylie aumentou um pouco mais.
Ele olhou nos olhos dela.
— Eu soube que Will teve que acalmar Fredericka. Vou falar com ela
sobre isso.
Kylie imediatamente percebeu que não queria que ele falasse com
Fredericka. Ela mordeu o lábio. Será que podia dizer a Lucas que ele não
poderia ser amigo de Fredericka quando ela mesma não queria que ele
dissesse quem podia ou não ser amigo dela?
Não. Ela não podia. Então, apenas disse:
— Não se preocupe. Eu cuido disso.
Ela olhou para o peito dele por um segundo, tentando manter sob
controle o ciúme que se rebelava.
Ele levantou o queixo dela e seus olhos azuis a fitaram.
— Está tudo bem?
— Sim — ela mentiu. — É só que... estou um pouco preocupada com
o Dia dos Pais. Ver o meu padrasto e, depois, Sara...
— Posso fazer alguma coisa pra ajudar? É só pedir.
O coração de Kylie se apertou com seu tom de voz preocupado.
Lucas se preocupava com ela. Ela sabia disso. Ela acreditava. O que
significava que ela não podia deixar que Fredericka ficasse entre eles.
Simplesmente não podia.
— Você já ajuda estando aqui. — Ela lhe deu um longo abraço.
Foi só quando ele já tinha ido embora que ela percebeu que nenhum
deles tinha mencionado o pedido de namoro.
Kylie e Della foram para o refeitório um pouco mais cedo com a
intenção de ajudar Holiday. Miranda tinha ficado para trás se enfeitando,
para o caso de encontrar Perry.
Miranda e Della — a vampira no auge do mau humor,
provavelmente porque teria que ver os pais hoje —, tinham implicado uma
com a outra a manhã toda.
Kylie lembrou as duas de que precisavam se comportar muito bem
enquanto estivessem perto de sua mãe e Sara. Mas ela sinceramente não se
importava se discutissem na frente do seu padrasto.
Bem, talvez se importasse um pouquinho, mas Sara e a mãe eram
mais importantes.
Elas tinham acabado de chegar no final da trilha para o refeitório
quando alguém as chamou:
— Esperem! — Kylie se virou e Ellie, com um sorriso radiante, veio
correndo para se juntar a elas.
Ellie sorriu e estendeu os braços como se quisesse abraçar Della. O
rápido abraço fez com que o boné de Ellie caísse.
Della se retraiu.
— Eu não sou muito de abraçar, Ellie. Nada pessoal. Mas a maioria
dos vampiros também não é muito chegada em abraços.
— Eu vou me lembrar disso — Ellie sorriu e pegou o boné do chão.
— Della votou para me aceitarem em seu círculo. Sou oficialmente um
membro da família de vampiros de Shadow Falls.
— Legal! — Kylie estava feliz por Ellie, mas, em algum lugar lá no
fundo, esse foi outro lembrete de que ela mesma não pertencia a grupo
nenhum.
Estranho ela ter ajudado Ellie a fazer algo que não conseguia fazer
por si mesma.
Della franziu a testa.
— Não foi nada. Não pense que é grande coisa.
— Mas é uma grande coisa — disse Ellie. — Eu estava indo embora
hoje, mas vocês me fizeram mudar de ideia. Ei, vocês podem ter salvado a
minha vida! — Ela olhou para a frente e viu alguns outros vampiros. —
Preciso correr. Mas, sério, obrigada!
Della seguiu Ellie com o olhar.
— Eu ainda acho que ela é melosa demais.
Kylie viu Ellie correr para conversar com os outros. Ela não sabia ao
certo porque acreditava que Ellie era a vampira que os anjos da morte
avisaram que morreria, mas uma pontinha de esperança de que tivessem
salvado Ellie fez com que se esquecesse um pouco dos próprios problemas.
Pelo menos até cerca de trinta minutos depois, quando Kylie viu os
pais dos campistas começarem a chegar. Todo mundo, menos o pai dela.
Será que ele tinha se esquecido de novo?
 
Quando o refeitório ficou lotado de pais, Kylie começou a realmente
se preocupar com a possibilidade de o pai não aparecer. Sua garganta estava
apertada, o coração começou a ficar pesado. Querendo fugir da multidão, ela
correu para fora do refeitório e foi se sentar na varanda da cabana do
escritório... para esperar. Se ele não aparecesse, não teria problema, ela disse
a si mesma. Não era a primeira vez que ele a decepcionava.
Então, por que doía tanto?
Foi só quando ela se acomodou na cadeira que se lembrou de que
ainda precisava de uma sombra. Ela não deveria ter saído do refeitório sem
Holiday.
Começou a voltar quando ouviu alguém chamá-la:
— Olá, senhorita Galen.
A voz feminina a assustou e ela reagiu com um pequeno grito.
Virou-se na cadeira e viu-se diante da avó de Lucas, a senhora
Parker. O fato de ela saber quem Kylie era foi uma surpresa.
— Me desculpe, eu não vi a senhora. Levei um susto — justificou-se
Kylie, ainda com a mão no coração. — Deve ser coisa de família. — Ela
sorriu. — Lucas vive me dando sustos quando se aproxima sem fazer
barulho.
— Isso é coisa de lobisomem. — Ela apontou para uma cadeira. — Se
importa?
— Claro que não. — Kylie se recostou na cadeira e tentou parecer
relaxada. Mas ela teve a sensação de que a avó de Lucas não estava ali por
acaso. O que ela poderia querer com Kylie?
A mulher idosa deu uma volta pela varanda. Para alguém que
andava tão lentamente, era surpreendente que tivesse movimentos tão
silenciosos e de tamanha elegância. Ela se sentou na cadeira e a madeira nem
rangeu. Cruzou as mãos envelhecidas sobre o colo, demonstrando que era
uma mulher que valorizava as boas maneiras. Ficou ali calada por alguns
minutos, mas se fitava o céu ou o bosque, Kylie não sabia.
O silêncio começou a pesar, mas Kylie teve a sensação de que seria
rude apressá-la. Por um segundo, olhou para as mãos da mulher,
lembrando-se das mãos da anciã que havia entrado no acampamento
fingindo ser sua avó.
A senhora Parker olhou para Kylie.
— Meu neto está muito enamorado de você.
Enamorado? Kylie não sabia que as pessoas ainda usavam essa
palavra. Mas visto que a mulher podia muito bem ter mais de cem anos,
Kylie supôs que devia fazer parte do seu vocabulário.
— Hã... Eu... gosto de Lucas também.
Ela balançou a cabeça e se inclinou um pouco.
— Ele mencionou que vocês já se conheciam quando eram crianças.
— É verdade. — O olhar preocupado no rosto da mulher dava a
Kylie uma ideia da razão por que ela estava ali. A maioria dos seres
sobrenaturais acreditava que um sobrenatural criado por pais de má índole
era alguém irrecuperável — pau que nasce torto... Por essa razão, Lucas
tinha mentido e afirmado que fora criado pela avó a vida inteira. — Mas eu
nunca iria contar a ninguém que ele morava com os pais.
— Ótimo! — exclamou ela. — Lucas quer muito ser alguém na vida.
É considerado um possível grande líder da alcateia na linha de sucessão,
para fazer parte do conselho dos lobisomens, e essa informação poderia
arruinar sua reputação. — Ela apertou as sobrancelhas, estudou o padrão de
Kylie e franziu a testa.
— Sinto muito — disse Kylie, concluindo que a mulher franzira a
testa porque Kylie supostamente não estava deixando que ela identificasse o
seu padrão. — Não estou querendo ser indelicada. Só que ainda não sei
como me abrir. Supus que Lucas tivesse explicado a minha situação.
Esclarecido que eu não tenho certeza do que sou.
— Sim. Lucas me esclareceu sobre o assunto. — Ela continuou a
estudar Kylie. — Diga-me, senhorita Galen. Acha que é um lobisomem?
A pergunta ficou pairando no ar, lembrando a Kylie que Lucas tinha
feito a mesma pergunta. Kylie sentiu o estômago se contrair e
imediatamente suspeitou qual seria o verdadeiro tema da conversa.
Obviamente, os membros da alcateia não eram os únicos que a queriam bem
longe de Lucas.
— Eu não tenho certeza.
A senhora Parker sorriu.
— Pelo seu bem e pelo bem do meu neto, eu espero que seja.
— O que quer dizer? — Kylie perguntou, embora já suspeitasse.
A anciã se inclinou para a frente e tocou o ombro de Kylie. O toque
era tão quente quanto o de Lucas e, embora Kylie quisesse recuar, não sentiu
animosidade na mão da mulher mais velha, nem viu isso em seus olhos. Era só preocupação e amor pelo neto.
— O sangue que corre nas veias do meu neto é puro. Sua
companheira na vida terá de ser da sua própria espécie.
— E se não for? — Kylie perguntou.
— Se apenas um dos pais for um lobisomem, mas ela mostrar
lealdade à sua herança, o conselho pode não fazer caso da sua condição.
Mas, se ela não for do nosso sangue, então ele não só vai ser forçado a abrir
mão do seu lugar, mas a alcateia não irá mais aceitá-lo como um deles. Um
lobisomem nunca deve colocar outro ser que não seja do próprio sangue
antes da sua espécie.
— Isso me parece racismo — disse Kylie.
A mulher deu de ombros.
— Eu não digo que seja certo ou errado. Só estou dizendo como as
coisas são. Curiosamente, é para corrigir uma injustiça que Lucas acalenta há
muito tempo o sonho de fazer parte do conselho. Quando tinha 7 anos e veio
morar comigo, ele foi forçado a mentir, para seu próprio povo e para o
mundo, sobre sua criação. Seu objetivo era ser elegível para uma posição de
respeito e, depois, mudar os pontos de vista de nosso povo sobre os filhos de
lobisomens desonrados. Ele anseia mostrar que os erros dos pais nem
sempre são transmitidos a uma criança inocente.
Ela se levantou da cadeira tão silenciosamente quanto se sentou.
— Ei, Fofinha! Aí está você! — A voz de Tom Galen encheu os
ouvidos de Kylie, mas ela não conseguiu desviar o olhar da senhora Parker
para cumprimentar o padrasto. Aquela mulher estaria realmente dizendo
que, se ela não fosse lobisomem, ela e Lucas não poderiam se casar?
Deus, ela ainda nem tinha concordado oficialmente em namorar com
ele! Ainda havia um longo caminho antes de se falar em casamento.
Passos soaram nos degraus da varanda.
— Vou deixá-la com a sua visita — disse a senhora Parker. Depois
balançou a cabeça polidamente para o padrasto de Kylie e se afastou.
— Está tudo bem? — ele perguntou, olhando com estranheza para a
mulher idosa enquanto se sentava pesadamente na cadeira que ela acabara
de desocupar. — Algo errado?
— Não — respondeu Kylie, tentando afastar a preocupação com a
avó de Lucas para que pudesse lidar com a preocupação de ver o padrasto
novamente.
A visita do padrasto não foi tão estranha quanto Kylie tinha pensado
que seria. Talvez fosse apenas porque, após a visita extremamente estranha
da avó de Lucas, o termômetro de estranheza de Kylie estivesse funcionando mal.
Antes que Holiday percebesse a ausência dela, Kylie voltou com o
padrasto para o refeitório. A pobre Holiday continuava indo de grupo em
grupo, tentando manter a paz.
Como Kylie esperava, o padrasto perguntou sobre sua mãe. Kylie
não lhe contou sobre o almoço de negócios/encontro romântico. Ele
relembrou algumas das viagens que os dois tinham feito juntos. Então
perguntou se ela achava que talvez eles pudessem fazer outra em breve.
Kylie não disse sim, mas também não disse não.
— Eu vou ter que olhar na minha agenda. — Pela primeira vez, dizer
a verdade, ou seja, que um vampiro velhaco queria que ela se casasse com
seu neto ou que morresse, não era a melhor opção.
Quando estava quase na hora de ele ir embora, Kylie acenou para
Holiday e disse que estava indo com o pai até o carro; o olhar de Holiday
desviou-se para Perry, que os seguiu.
Quando chegaram ao carro, ela abraçou o pai. Não foi um abraço tão
estranho quanto o abraço que lhe dera da última vez em que ele viera para o
Dia dos Pais, mas ainda assim havia uma tristeza no ar.
— Eu te amo — ele sussurrou.
— Eu também — disse, e era verdade. Ela o amava.
Antes de soltar o padrasto, Kylie percebeu que ele estava mais
magro. Quando se afastou, ela perguntou:
— Você está comendo bem?
— Comida de restaurante não é tão boa quanto a da sua mãe — disse
ele.
— Sinto falta das panquecas dela — disse Kylie.
— Sinto falta dela. — Ele apertou a mão de Kylie. — Se ela perguntar
sobre mim, diga que eu disse isso.
A solidão que ela viu em seus olhos lhe provocou um aperto no
peito. Mas ele mesmo tinha causado essa dor. Nada disso teria acontecido se
ele não tivesse decidido pular a cerca com a estagiária.
Erros. As pessoas os cometem. E na maioria das vezes, têm que
pagar por eles. Será que seu padrasto estava destinado a viver sozinho pelo
resto da vida por causa da sua tola decisão de trair a mãe?
— Tudo bem? — Holiday perguntou quando Kylie voltou para o
refeitório, seguida por Perry. — Sobreviveu à visita?
— Sim. Foi triste, mas vê-lo está ficando mais fácil. — Kylie olhou ao
redor, procurando Miranda e Della. Ambas pareciam muito infelizes,
sentadas como pequenos soldados junto aos respectivos pais.
Então ela localizou Lucas. Ele estava sentado imóvel, prestando
atenção em cada palavra que a avó dizia. Evidentemente, a mulher tinha
uma grande influência sobre a vida dele. Mas seria grande o bastante para
que ele não se casasse com a mulher que amava só porque ela não era um lobisomem? Será que Lucas considerava isso uma preocupação? Ou será que
a avó estava apenas mentalmente presa ao passado e achava que Lucas
devia pensar nisso com seriedade?
Kylie olhou para Holiday. Não era lugar para perguntar, mas a
necessidade de saber foi mais forte.
— Você acha que os sobrenaturais se preocupam com quem vão se
casar por causa da sua linhagem de sangue?
Holiday arqueou as sobrancelhas diante da pergunta de Kylie.
— O que a leva a fazer essa pergunta?
— Curiosidade — mentiu.
Kylie viu suspeita nos olhos de Holiday. Ela olhou para Lucas e a
avó. A líder do acampamento hesitou antes de olhar para Kylie novamente.
Ela poderia apostar que Holiday estava procurando as palavras certas para
responder à sua pergunta.
— Eu acho que essa é uma preocupação maior para algumas
espécies do que para outras — Holiday finalmente disse.
— Como para os lobisomens?
Ela assentiu com a cabeça.
— Eles são a espécie que têm menos casamentos mistos. Mas isso
está mudando. Hoje, existem cinco vezes mais casamentos mistos do que
dez anos atrás.
Holiday pressionou os lábios mostrando sua desaprovação.
— Mas esse tipo de preocupação pode esperar mais uns dez anos,
mocinha.
Holiday estava certa. Era uma coisa boba para se pensar agora. Uma
coisa boba para a senhora Parker mencionar agora também. Kylie não
tinham nem 17 anos. Ela não ficava por aí fantasiando sobre se casar. Seu
sonho com Lucas era ter uma sessão de beijos ardentes, não procurar um
padre para subir ao altar. Mas sendo bobagem ou não, Kylie sabia que ela
não ia parar de pensar nisso.
— Ali está ela! — Uma voz feminina chamou, e Kylie sabia que era
Sara.
Trinta minutos depois, enquanto a mãe dela pegava um refrigerante,
Kylie se sentava com Sara no refeitório, sentindo como se todos ali as
observassem e ouvissem sua conversa.
Como todo mundo estava falando sobre o último dom
superpoderoso de Kylie, que lhe permitira curar a sua melhor amiga, ela
sabia que todos os campistas tinham adivinhado que a garota ao seu lado
era Sara. Não que ela estivesse envergonhada por curá-la; Kylie só não
gostava de ser o centro das atenções.
Sara ainda parecia um pouco magra, mas tudo, desde o brilho do seu
cabelo castanho até a coloração de sua pele, indicava que ela estava bem. Ela olhava em volta, para todo mundo, perguntando quem era quem.
— Aquela é sua colega de quarto? — Ela apontou para Miranda,
sentada com a família.
— É — disse Kylie. — Vou apresentá-la mais tarde.
— Onde está a outra? A mal-humorada?
Della, do outro lado do salão, lançou a Kylie um sorrisinho.
— Ela está ali — disse Kylie, apontando para a vampira.
Como Della ainda estava olhando para elas, Sara acenou.
— Ela parece mesmo uma piranha, além de estranha...
O queixo de Kylie caiu.
— Ela não é nada disso. É uma das minhas... — Kylie quase disse
“melhores amigas”, mas percebeu o quanto aquilo ia parecer estranho. Sara costumava ser a melhor amiga de Kylie. — Ela é das minhas melhores
amigas daqui.
— Eu me lembro de você dizer que...
— Isso foi há muito tempo... — Kylie interrompeu, e esperava que
Sara ficasse quieta antes que Della se magoasse. — Então, você está se
sentindo melhor agora? — Kylie falou a primeira coisa que lhe passou pela
cabeça para mudar de assunto. Mas, pelo brilho nos olhos de Sara, Kylie
percebeu que aquela era a pergunta errada a se fazer. Obviamente, Sara
estava ansiosa para trazer à tona o tópico “você me curou”.
— Acho que você sabe a resposta melhor do que eu — disse Sara.
— Sabe a resposta para quê? — A mãe dela se sentou ao lado de
Kylie.
— Nada — disse Kylie.
Sara moveu os olhos ao redor do salão novamente.
— Quem é o bonitinho de cabelos pretos que fica olhando pra você?
Kylie olhou na direção que Sara apontou com a cabeça. Sua mãe fez
o mesmo.
Lucas estava olhando para ela, e sorriu. A avó devia ter ido embora,
porque ele estava sentado sozinho. Então, como se visse o seu olhar como
um convite para se juntar a elas, ele se levantou.
Não! Não! O pânico se agitou dentro de Kylie. A princípio, não
entendeu por que não queria que Lucas conhecesse Sara. Depois se lembrou
de que Sara nunca perdia a chance de flertar com um garoto. Kylie não
queria que Sara desse em cima de Lucas. Não porque tivesse receio de que
Lucas correspondesse, mas porque Kylie não queria que Lucas achasse que
Sara era fácil.
Sua antiga vida se encontrava com a nova, e Kylie não queria que
nenhuma das duas parecesse desagradável.
Ela pegou o copo de água e bebeu, apenas para ter algo para fazer
com as mãos.
— Você deve ser Sara. — Lucas estendeu a mão.
Sara apertou a mão de Lucas.
— Sim, sou eu. E você é?
— Lucas Parker, o namorado de Kylie.
Namorado? A respiração de Kylie parou. A água desceu pelo lado
errado da garganta e ela começou a tossir tanto que o barulho da tosse
reverberou pelas paredes do refeitório. Como se isso não fosse ruim o
bastante, a mãe, que dava uma golada no refrigerante, também engasgou.
Droga! Se havia alguém no refeitório que não tinha olhado para eles
ainda, já não havia mais.
Holiday se aproximou e observou Kylie e a mãe, ambas lutando para
respirar.
— Tudo bem aqui?
— Tudo — Kylie conseguiu dizer, sentindo gotinhas de água
escorrerem do seu nariz. Ah, isso não era adorável?... Ela as secou.
— Que tal um pouco de ar fresco? — Holiday perguntou. — Por que
não levamos Sara e sua mãe para a sua cabana?
— Certo — disse Kylie, e todos eles se levantaram.
Lucas pareceu perceber que tinha falado algo errado, e olhou para
ela, confuso.
— Bem, eu já vou indo. Te vejo mais tarde.
Kylie acenou com a cabeça.
Lucas olhou para a mãe dela.
— Foi um prazer revê-la, senhora Galen.
— Igualmente — a mãe disse, e olhou para Kylie com todos os tipos
de preocupação que os pais têm com relação a namorados e a palavra não
pronunciada... sexo.
Elas não tinham saído do refeitório ainda quando a mãe de Kylie se
inclinou na direção da filha.
— Namorado? O que mais você não me contou?
Que ótimo, pensou Kylie. Agora sua mãe provavelmente começaria
a lhe enviar os panfletos sobre sexo.
Sara se inclinou e sussurrou em seu outro ouvido:
— Ele é tão quente!
— Eu sei — Kylie sussurrou de volta.
— Não quis dizer sexy. Quis dizer quente como naquele dia em que
você me tocou.
Kylie não sabia o que dizer. Quando chegaram à porta do refeitório,
Kylie pôs a mão na maçaneta, mas a porta se abriu de repente e quase a
derrubou, obrigando-a a dar um salto para trás.
Derek e a mãe estavam entrando. O olhar de Derek desviou-se para
Kylie e seus olhos se estreitaram um pouco, como se a proximidade o
incomodasse. Então Kylie viu seu ar de preocupação quando ele reparou em Sara.
— Veja, Derek! É Kylie! — A senhora Lakes quase gritou, e
novamente Kylie sentiu que todos na sala olhavam para ela.
Sem nenhum aviso, Kylie se viu nos braços da senhora Lake. Graças
a Deus, foi um abraço rápido.
Derek olhou para Sara.
— Você deve ser Sara.
— É, sou eu — Sara respondeu com seu sorriso mais sensual. — E
você é...?
— Derek — disse Kylie, e fez apresentações rápidas, que incluíram
sua mãe.
A senhora Lakes fez um gesto com a mão, apontando Kylie e Derek.
— Eu acho que eles estão caidinhos um pelo outro. Não é uma
graça?
Vários campistas ofegaram atrás deles, no refeitório, provavelmente
os vampiros que ouviam a conversa. Kylie sentia como se suas bochechas
fossem explodir de constrangimento.
— Mãe... — Derek revirou os olhos.
— Eu só estou dizendo a verdade, querido. Você não fala em outra
pessoa.
O rosto de Derek ficou vermelho brilhante.
A mãe de Kylie arqueou uma sobrancelha e olhou para Kylie como
se resolvesse que iria começar enviar os panfletos sobre sexo imediatamente.
Sara deu uma risada.
E Kylie queria morrer. Bem ali, naquele mesmo instante.
Especialmente quando olhou para trás e viu Lucas assistindo à cena e
franzindo a testa.
 
— Por que vocês não vão na frente, meninas? — sugeriu a mãe de
Kylie tão logo saíram do refeitório. — Eu sei que Sara está morrendo de
vontade de conversar com você.
Kylie não se deixou enganar. Sua mãe não via a hora, obviamente, de
conversar em particular com Holiday. Provavelmente sobre Kylie ter dois
namorados.
Quando Sara e Kylie começaram a andar, Sara apertou o braço dela.
— Dois caras? Você tem dois caras apaixonados por você? Comece a
falar, garota! — O pai de Kylie veio esta manhã? Estou muito preocupada com o relacionamento deles.
As palavras da mãe pareciam pronunciadas num tom extremamente
alto.
Kylie parou e olhou para trás. Elas estavam a uns trezentos metros
de distância e não havia como ela estar ouvindo a conversa. Mas ela estava.
A audição hipersensível estava de volta, e desta vez ela ficou agradecida.
— Sim — respondeu Holiday. — Ele veio. Parece que foi uma visita
agradável.
— Kylie? — Sara disse. — Vamos, me diga o que está acontecendo.
Kylie olhou para Sara e começou a andar novamente.
— Eu... É difícil de explicar.
— Ótimo — disse a mãe. — Estou um pouco preocupada com Kylie e, bem, os meninos. Eu li que, quando uma garota tem problemas com o pai, ela acaba... se envolvendo com garotos.
Bem, pelo menos agora Kylie sabia que não era só com ela. A mãe
não conseguia dizer a palavra “sexo” a ninguém. — Você os supervisiona e se certifica de que não está acontecendo nada que não deveria acontecer?
— Bem, tente — Sara insistiu. — Me conte. Estou morrendo de
curiosidade.
— Contar o quê? — Kylie perguntou, sem conseguir manter a
atenção nas duas conversas.
— Já perdeu? — Sara perguntou.
— Sua filha tem uma cabeça muito boa — Holiday respondeu. — Acho que a senhora não precisa se preocupar com ela.
— Perdi o quê? — Kylie perguntou a Sara, mas de repente soube o
que a amiga estava perguntando.
Aparentemente, as duas conversas simultâneas eram sobre a mesma
coisa. Sexo.
— Não. Eu não perdi. — Incomodada com a pergunta, Kylie se
lembrou do quanto ela e Sara tinham sido íntimas um dia. Contavam tudo
uma para a outra e não tinham segredos. Mais ou menos como ela era agora
com Della e Miranda.
O sentimento de estranheza ao ver sua antiga vida se cruzar com a
nova voltou. E em cerca de quinze minutos, Della e Miranda as
encontrariam na cabana. Será que ia ser muito estranho?
Provavelmente, sim.
— Mas os dois são tão gatos! — disse Sara.
— É, eles são.
— Então, de qual dos dois você realmente gosta?
Dos dois. A verdade ecoou em sua cabeça. Kylie suspirou.
— Lucas — ela disse.
— Hum... — Sara sorriu, depois deu de ombros. — Agora, você
pode, por favor, me dizer o que fez para me curar?
Kylie se lembrou dos conselhos que Holiday lhe dera. Apenas negar.
— Eu não sei do que você está... — Ela começou a ouvir a conversa
entre Holiday e a mãe novamente.
— Posso lhe fazer uma pergunta estranha? — Holiday perguntou à
mãe.
— Claro — ela disse.
— Vocês têm sangue indígena em sua árvore genealógica?
— Por que Holiday estaria perguntando isso? — Kylie murmurou.
— O que você disse? — Sara olhou para ela, intrigada.
Kylie balançou a cabeça.
— Não é nada.
— Então, comece a falar — disse Sara. — E nem tente negar. Eu me
lembro claramente que você esfregou as minhas têmporas e as suas mãos
ficaram quentes quando fez isso. E eu senti. Senti algo acontecendo dentro
de mim.
Sara fez uma parada brusca e pegou as mãos de Kylie nas dela.
— Elas não estão quentes agora. Então só ficam quentes quando você
cura as pessoas? Mas por que... Qual o nome dele? Lucas? Por que as mãos dele estavam tão quentes?
Kylie tirou as mãos das de Sara, tentando se lembrar de que mentira
tinha contado a Sara sobre por que tinha esfregado suas têmporas.
— Essa realmente é uma pergunta estranha — disse a mãe de Kylie. —
 Por que você quer saber?
Sara soltou um suspiro de frustração.
— E não me diga que é porque sua mãe costumava fazer isso.
Porque eu perguntei a ela no trajeto pra cá e ela negou. Disse que não
conseguia se lembrar de já ter massageado as suas têmporas para aliviar a sua dor de cabeça.
— Psiu — Kylie pediu a Sara, não querendo perder a resposta de
Holiday.
Mas Sara não ficou quieta. Em vez disso soltou um grito horripilante
capaz até mesmo de despertar os mortos.
E continuou a gritar. Um grito que quase perfurou os tímpanos de
Kylie. Ela entrou em estado de alerta instantâneo, mas não sabia por quê.
Seu olhar começou a varrer a trilha de lado a lado, tentando encontrar a
fonte do perigo.
Seria a águia outra vez? Ou o cervo de olhar cruel? Será que era
outro sumidouro, ou Perry tinha se transformado em unicórnio novamente?
Kylie estava preparada para qualquer coisa.
Rígida de tensão, ela não sabia se devia se preparar para lutar ou
correr. Então algo bateu na sua perna.
Ela olhou para baixo.
Ok, Kylie estava preparada para qualquer coisa, menos para Socks.
Seu gato/gambá deveria estar trancado na cabana de Holiday. E só para
piorar as coisas, sua mãe e Holiday vinham correndo para ver o que havia
de errado.
Em dois segundos, a mãe começou a gritar junto com Sara, enquanto
Kylie olhava para Holiday.
— Esse bicho deve ter raiva — a mãe gritou. — Afaste-se, Kylie.
Afaste-se!
— Está tudo bem — tranquilizou-a Holiday, mas obviamente a mãe
não ouviu.
Kylie seguiu as ordens da mãe e recuou. Mas Socks não entendeu a
deixa. Ele a seguiu e se deitou sobre o tênis de Kylie.
Sara gritou e correu pela trilha, escondendo-se atrás da mãe de Kylie.
Socks, de repente assustado com o tumulto, deu um pulo e escalou a perna
de Kylie. Sem saber o que fazer, ela segurou o animal assustado com cautela.
— Largue isso! Kylie! — A mãe gritou. — Largue esse bicho agora!
Então ela disparou na direção de Kylie como se fosse bater no animal
em seu colo.
— Mãe, está tudo bem — disse ela, embora nada estivesse bem.
Socks sibilou, em seguida se contorceu e enterrou o focinho
comprido na axila de Kylie, que não estava completamente em pânico até
ver Socks levantar a peluda cauda preta e branca no ar e apontá-la para a
sua mãe.
— Não! — Kylie se virou e começou a falar numa voz doce com
Socks. — Não faça isso. Não faça isso — ela sussurrou.
— Todo mundo, um passo pra trás — Holiday disse, falando com
mais firmeza desta vez. — O gambá não tem raiva. Ele é o meu animal de
estimação.
Kylie olhou para trás, por cima do ombro, para ver sua mãe encarar
Holiday, perplexa, com um olhar de puro horror.
— Você tem um gambá de estimação?
— Tenho — mentiu Holiday, quase parecendo sincera. — Eu sei,
parece meio estranho.
— Meio?! — A mãe perguntou, os olhos ainda arregalados com o
choque.
Kylie puxou Socks para mais perto e continuou a sussurrar o que ela
espera que fossem palavras tranquilizadoras, perto do ouvido do bichinho.
Mas quem, ela se perguntava, iria sussurrar palavras tranquilizadoras para
ela? Era exatamente por isso que unir sua antiga vida à sua nova vida tinha
sido uma ideia muito, mas muito ruim.
— No final, tudo acabou bem — Holiday disse uma hora mais tarde,
enquanto assistia a mãe de Kylie e Sara saírem de Shadow Falls pelos
portões do estacionamento.
Kylie, com o peito tão apertado que achava que algumas costelas
tinham se quebrado, olhou para Holiday em choque.
— Você deve estar brincando. A avó de Lucas praticamente me disse
que não sou boa o bastante para o neto dela. Meu pai está infeliz. Minha mãe
acha que eu estou transando com dois caras. E pensa que você é uma idiota
que tem um gambá como animal de estimação.
— Eu tive que inventar alguma coisa — justificou-se Holiday. — Ele
deve ter escapado quando eu saí e eu não vi.
— Não se esqueça de que as coisas não podiam ter sido mais
estranhas entre Sara, Miranda e Della. Elas mal se falaram. E... — Lágrimas
inundaram os olhos de Kylie. — E se eu um dia pensei que você não
escondia nada de mim, sei a verdade agora. Por que você está querendo
saber se eu tenho sangue indígena?
A culpa estampou-se no rosto de Holiday.
— Eu ia te contar. Juro. Apenas não tive tempo.
— Sim, você sempre vai me dizer alguma coisa depois de já ter
acontecido. — Kylie secou as lágrimas que molhavam seu rosto. — Eu estou farta de todos esses segredos por aqui, Holiday. Estou cansada de ser
deixada na ignorância. Estou cansada de não saber o que eu sou. Não é justo,
e não vou mais tolerar isso.
Era noite de quarta-feira. Os últimos dias tinham se passado num
borrão. Kylie tinha começado uma busca frenética para descobrir sua árvore
genealógica. Holiday tinha explicado que havia uma lenda indígena
segundo a qual alguns descendentes de uma tribo tinham sido tocados pelos
deuses. E que esses meros seres humanos carregavam esse dom com eles há
gerações.
Se Kylie tivesse esse sangue correndo em suas veias, isso explicaria
por que ela podia ser protetora e ainda metade humana. Kylie não sabia por
que era tão importante para ela descobrir sua herança familiar. Não era
como se isso fosse levá-la a descobrir o que era. Mas podia explicar por que
ela parecia ter certos dons. Talvez porque essa fosse a única pista que tinha
para investigar agora.
O fantasma aparecia três ou quatro vezes por dia, mas ainda não
estava falando. Lucas aparecia duas ou três vezes, também. Só que eles não
tinham chance de conversar muito. Mas o lado positivo é que eles estavam
se beijando muito mais.
Ela não tinha contado nada sobre o que a avó dele lhe dissera. Em
parte porque ele já parecia tenso — sem dúvida por causa da aproximação
da Lua cheia — e em parte porque ela tinha medo da resposta.
Ela tinha receio de que ele dissesse que a avó tinha razão. Que ele
nunca poderia considerar a possibilidade de se casar com ela se ela não fosse
um lobisomem.
Sim, ainda parecia uma idiotice se preocupar com casamento
naquela fase do relacionamento. Mas Kylie vivia pensando no fato de que o namoro nada mais era do que uma tentativa de encontrar uma pessoa com
quem você gostaria de passar toda a sua vida.
Ela deveria só viver o presente ou fazer planos para o futuro? E
deveria começar algo quando sabia que não iria nem poderia durar? Deveria
correr o risco de entregar seu coração a alguém que nunca seria realmente
dela?
Mais cedo naquela noite, quando Lucas veio vê-la, eles se sentaram
na varanda, se beijaram e contemplaram a Lua.
— Você não sente nada quando olha pra ela? — ele perguntou a
Kylie.
Lucas não tentou esconder o quanto queria que ela fosse um
lobisomem. E estava ficando cada vez mais difícil fingir que ela não se
incomodava com isso. Não que esse incômodo mudasse o que ela sentia por
ele. Tudo, desde o seu sorriso até seus olhos azuis e a maneira como ele a
beijava, tudo a agradava. Os momentos que ela passava perto dele eram os
únicos em que realmente se sentia em paz.
Kylie se lembrou de que dissera a Holiday que precisava de uma
base, algo que a fazia se sentir em equilíbrio. Lucas havia se tornado sua
base. Em alguns aspectos, ele era como a cachoeira. Quando estava com ele,
quando sentia seu toque quente, todos os problemas pareciam muito
menores.
Mas quando ele não estava perto os problemas voltavam a pesar
sobre os seus ombros e desafiar a sua sanidade. Por fim, Kylie percebeu que
eles precisavam conversar sobre o assunto da linhagem de sangue. E
também sobre o pedido de namoro. Embora ela tivesse a sensação de que ele
tinha concluído que ela aceitara. Olhando em retrospectiva, percebeu que,
considerando a conversa entre eles no dia em que ele pedira, Lucas podia ter até razão de pensar assim. Então, ela podia deixar essa questão para lá, mas
a linhagem não era algo tão fácil de esquecer.
Mas, por enquanto, ela decidiu simplesmente deixar as coisas como
estavam.
— Olá! — A voz de Della trouxe Kylie de volta ao presente quando
ela saiu do seu quarto. — Miranda já voltou da sua sessão de amassos com
Perry? — Ela se sentou à mesa da cozinha enquanto Kylie estava sentada na do computador.
— Ainda não. — Kylie olhou para trás. Della parecia entediada ou
deprimida. Ela andava muito quieta ultimamente. Desde o Dia dos Pais.
— O que você está fazendo? — Della perguntou. Me preocupando.
— Minha mãe finalmente me deu o nome de solteira da minha
bisavó. Eu pensei em colocá-lo no banco de dados do site de genealogia e ver se consigo alguma coisa.
— Por que você simplesmente não coloca uma pena no chapéu e diz
que tem sangue indígena?
Kylie franziu a testa.
— Isso não foi muito simpático.
— Desculpe — a amiga murmurou. — Estou meio irritada.
— Por quê? — Kylie se levantou e pegou dois refrigerantes na
geladeira e depois se sentou na cadeira da cozinha.
Della pegou a bebida que Kylie lhe oferecia e abriu-a. O conteúdo
escorreu da abertura e ela apertou os lábios na borda da lata para evitar que
transbordasse. Quando olhou para a frente, tinha lágrimas nos olhos.
— O que foi? — Kylie perguntou.
Della deu um pequeno soluço, e Kylie percebeu que a vampira
estava chorando. Kylie teve que reprimir a vontade de contornar a mesa e
abraçar Della, porque sabia que a amiga detestaria isso.
— Della? Me diga qual é o problema. — E Kylie logo ficou com
lágrimas nos olhos também.
Della passou a mão nas bochechas.
— Eu tenho saudade. É como Ellie disse. Eu sinto falta de ser normal.
Sinto falta de estar com a minha família. Eu sei que tenho sorte de estar aqui.
Sorte de ter você e Miranda como minhas melhores amigas. E estou feliz que
você tenha Lucas e Miranda tenha Perry, mas sinto falta de Lee, e isso dói
muito às vezes. E eu sei que devia tentar com Steve, mas eu não estou pronta
ainda. — Ela soluçou novamente e mais lágrimas surgiram em seus cílios
escuros e escorreram pelas suas bochechas. — Eu sinto falta de... tudo isso.
Sinto falta de ser humana.
Kylie começou a chorar de verdade. Não apenas por Della, mas por
si mesma.
— Eu sei — disse ela. — Sinto falta disso também.
Na manhã seguinte, Kylie abriu os olhos e viu a parte de trás da
cabeça de Della. Como Della era a única que tinha uma cama de casal, elas
acabaram indo para a cama dela na noite anterior e conversado até caírem
no sono. Algo se moveu às costas de Kylie e ela rapidamente se virou e viu
Miranda bocejando.
— O que você está fazendo aqui? — Kylie perguntou.
— Eu pensei que era uma festa do pijama e quis participar também
— ela disse. Então fez um biquinho. — Vocês duas nem esperaram por mim.
— Você chegou tarde — disse Kylie, bocejando.
— Eu sei. — Miranda sorriu. — Passamos um tempo maravilhoso.
Ficamos nadando no lago. Só nós dois. É quase Lua cheia e foi tão
romântico...
— Vocês nadaram nus? — Della perguntou se virando para as
amigas, com cara de quem ainda não tinha acordado direito.
— Não. Mas ele nadou. Só porque pensou que eu ia tirar a roupa
também. — Miranda riu. — Eu coloquei o maiô por baixo da roupa, porque
ele disse que íamos até o lago. E quando eu comecei a tirar a calça jeans, ele
pensou que eu estava tirando toda a roupa, tirou a dele e mergulhou rápido.
Kylie e Della começaram a rir.
— Mas eu não vi nada. Além disso, ele me fez virar de costas quando
saiu e colocou o calção de novo.
As três ficaram na cama, rindo, até quase se atrasarem para o café da
manhã.
Foi uma manhã agradável. Não tão descontraída quanto os dias que
ela passava com Lucas, mas Kylie teve que admitir que Della e Miranda
estavam se tornando bases também. Agora, ela se sentia capaz de enfrentar
mais um dia solucionando problemas.
Mas seu bom humor foi para o espaço quando ela entrou no
refeitório e todo mundo se virou e olhou para elas.
Não, não para todas elas. Apenas para Kylie. Ou melhor, olhavam
boquiabertos para a testa dela enquanto franziam a testa. Obviamente, seu
padrão cerebral tinha enlouquecido novamente.
— Que estranho! — alguém exclamou. Ouviram-se várias pessoas
ofegando, algumas sussurrando, e algumas até deixando cair seus garfos.
Então seguiu-se um silêncio sepulcral, do tipo que indicava a mais completa
descrença.
Della e Miranda se viraram para ela e franziram as sobrancelhas.
Os olhos de Miranda se arregalaram de choque.
— Ai, meu Deus!
— Merda! — disse Della.
— O que foi? — Kylie perguntou.
Della engoliu em seco e se inclinou na direção de Kylie.
— Você finalmente se abriu. Seu... Seu padrão está legível.
 
— O que eu sou? — perguntou Kylie, agarrando o braço do Della. —
Eu preciso saber. — Mas que inferno! Ela estava esperando a resposta há
meses. — Por favor, Della!
— Você... — Della balançou a cabeça. — Você é humana. Cem por
cento humana.
— Não tem graça — Kylie queria acreditar que Della estava
brincando, mas o olhar no rosto da amiga dizia o contrário. Mas como ela
poderia ser humana depois de tudo o que tinha acontecido? Lembrou-se de
ter chorado na noite anterior e dizer a Della que sentia falta de ser humana.
Sentia falta de ser normal. E se ela tivesse desejado que aquilo acontecesse?
Kylie atravessou a porta do refeitório e correu o mais rápido que
pôde para o escritório.
Nem mesmo a porta fechada da sala de Holiday a deteve. Ela entrou
sem pedir licença. Burnett e Holiday se afastaram de repente como se...
estivessem se beijando! Ai, meu Deus! A imagem do que tinha visto por um
segundo ficou gravada na mente de Kylie.
Burnett e Holiday estavam mesmo se beijando. Em outro momento,
Kylie teria gritado de alegria.
Mas não naquele.
— Nós estávamos... Só estávamos... — Holiday gaguejou.
Kylie não se importou. Seu coração batia forte. Sua mente tentava
encontrar um sentido para o fato de ela ser totalmente humana. Como era
possível?
O que isso significava?
Mesmo fazendo a si mesma essas perguntas, ela sabia a resposta
para a última. Ser humana significava deixar Shadow Falls. Holiday.
Burnett. Miranda. Della. Lucas. Derek. Perry. Jonathon e Helen. Todos eles.
Isso significava se afastar para sempre de sua nova vida.
Lágrimas inundaram seus olhos.
— O que aconteceu? — Holiday perguntou.
Significava nunca ajudar outra alma perdida. Significava voltar à sua
antiga vida, à qual ela nunca sentiu que pertencesse.
Ok, ela tinha sentido falta da sua antiga vida. Mas isso era passado.
Agora ela sabia com certeza absoluta que iria sentir muito mais falta da sua
vida nova.
Naqueles últimos meses, por piores que tivessem sido, ela estivera
mais perto de conhecer seu verdadeiro eu do que jamais estivera antes.
Talvez ela ainda não soubesse o que era, mas, de muitas maneiras, sabia,
mais do que antes, quem era.
— Kylie? O que foi? — Holiday insistiu.
— Que droga significa isso? — Ela apontou para a testa.
Holiday e Burnett olharam para ela e franziram as sobrancelhas. O
choque que ela viu nos olhos de ambos não ajudou a diminuir sua confusão.
E o nó na garganta cresceu até ficar do tamanho de um sapo.
Trinta minutos depois, Kylie ainda estava sentada no sofá de
Holiday, os joelhos contra o peito, a testa apoiada neles. E estava se sentindo
seca de tanto chorar.
A líder do acampamento estava sentada ao lado dela. Sua mão
pousada sobre as costas de Kylie enviava ondas de calma para ela, mas não
afugentava o medo que crescia em seu peito. Ela mesma tinha causado
aquilo. Tinha atraído aquilo para si mesma. Ela de algum modo tinha usado
um poder que não sabia que tinha e voltado a ser humana. Seria
irreversível?
Kylie levantou a cabeça.
— Eu não queria fazer isso.
— Fazer o quê? — Holiday perguntou.
Kylie sentiu a garganta raspando
— Della e eu estávamos conversando sobre como queríamos...
queríamos ser humanas novamente. Que sentíamos falta de sermos normais
e... — Sua respiração ficou presa. — E eu realmente sinto falta, mas agora
está claro que eu iria sentir muito mais falta desta vida nova. Eu não quero
ser humana, Holiday.
Os olhos de Holiday se encheram de solidariedade e ela sorriu.
— Eu não sei o que está acontecendo. Não entendo isso. Mas se há
uma coisa de que tenho certeza é que você não é humana, Kylie. Bem, pelo
menos não só humana.
— Mas e se os anjos da morte estiverem tentando me dar uma lição?
E se estiverem chateados comigo por eu ter sido ingrata e esse é o meu
castigo?
Holiday balançou a cabeça.
— Eu nunca ouvi falar que os anjos da morte transformam
sobrenaturais em seres humanos para castigá-los. E, acredite, não existe um
sobrenatural que não tenha momentos em que deseje ser humano. Isso é
perfeitamente normal.
— Sério?
— Claro! Vivemos num mundo humano. A grama sempre parece
mais verde do outro lado da cerca. A verdade é que às vezes é mais verde.
Mas nós não podemos mudar o que somos simplesmente desejando mudar.
Kylie concordou com a cabeça.
— Então você acha que isso é só uma coincidência?
— Eu não sei. Mas, se eu fosse dar um palpite, diria que isso vai
mudar assim como já mudou inúmeras outras vezes.
— Não vou ter nenhum poder até que o padrão volte a mudar?
A pergunta pareceu intrigar Holiday.
— Eu... Espere! Você ainda pode me sentir tentando influenciar suas
emoções? — Holiday pousou a mão no ombro de Kylie.
Ela sentiu o calor irradiando do toque de Holiday através de sua
blusa e fluindo para a sua pele. Então o calor pareceu formar uma bolha que
flutuou para o peito de Kylie, onde se transformou numa suave onda de
emoção.
— Sim — disse Kylie.
— Então eu diria que nada mudou.
— Então os humanos não podem sentir o seu toque?
— Não.
Kylie suspirou e encontrou um pouco de paz interior. Então olhou
para Holiday.
— Você acha que um dia eu vou descobrir o que sou?
— Claro que você vai! — Holiday fez uma pausa. — Eu não quero
afirmar porque não é uma coisa certa, mas Burnett me disse que os Brightens
verdadeiros, na Irlanda, confirmaram suas reservas de passagens de avião e
estarão de volta aos Estados Unidos em meados de setembro.
O coração de Kylie deu um salto.
— Será que eles sabem de mim?
— Não que saibamos. Burnett fez alguns testes no número do
telefone que os falsos Brightens usaram para falar com o detetive. Não era o
telefone deles. A chamada foi feita de um telefone celular que chamam de
descartável. Não é possível rastreá-lo.
— Mas Burnett sabe como chegar ao Brightens agora? Eu podia ligar
pra eles, não podia?
Holiday franziu a testa.
— Eu não acho que isso seja algo que você queira falar por telefone,
Kylie.
Holiday estava certa, mas Kylie estava cansada de esperar. Ela
massageou os próprios ombros e desejou que Burnett ainda estivesse ali. Ele
tinha saído logo depois que ela começara a chorar. Ela não tinha certeza se
ele estava assustado com as lágrimas ou com medo de ela lhe perguntar o
que tinha visto quando entrou na sala.
Kylie olhou para Holiday.
— Então... Você e Burnett?
Holiday revirou os olhos.
— Foi apenas um beijo, Kylie. Nada demais.
Kylie deixou um leve sorriso pairar nos lábios. Neste momento, ela
precisava muito de uma boa notícia.
— Foi bom?
— Apenas um beijo e... um erro. Nós estávamos falando sobre Perry
e Miranda, sobre como eles ficam fofos juntos... O clima de romantismo nos
contagiou e... Definitivamente foi um erro.
— Por que, Holiday? Por que você não pode dar uma chance ao
cara?
Holiday franziu a testa.
— A única razão que me levou a deixar isso acontecer foi... que eu
estava com a guarda baixa, porque... — Kylie viu sombras de dor nos olhos
da amiga.
— Você está com medo que Burnett seja o vampiro no caixão?
Ela confirmou com a cabeça.
— O que significa que você se preocupa com ele. Não consegue ver
isso?
— Eu me preocupo, mas se preocupar com alguém não é suficiente.
E nós trabalhamos juntos. Romance e trabalho nunca combinam muito bem.
— Poderia combinar se você quisesse muito.
— Então eu acho que não quero tanto assim — Holiday disse com
firmeza. Mas Kylie sabia que era mentira.
E suspeitava que Holiday sabia, também.
Elas ficaram sentadas em silêncio por alguns minutos.
— Sobre a visão do funeral... — Kylie disse.
— Sim?
— Eu acho... Quer dizer, há uma chance de eu ter dado um jeito
nisso.
Holiday a fitou.
— Dado um jeito em quê?
Kylie não achou certo dizer a Holiday que Ellie ia fugir.
— Eu posso ter feito algo que tirou essa pessoa do perigo. Então,
talvez um vampiro não vá morrer.
Holiday franziu a testa.
— Eu adoraria pensar que isso é verdade. Mas você não pode mudar
o destino.
Kylie lembrou-se que aquelas tinham sido as palavras que o
fantasma tinha sussurrado, mas ela se recusava a acreditar.
— Então talvez não fosse realmente o destino — ela disse.
— Eu gostaria de poder acreditar nisso — Holiday disse.
— Eu acredito. — Mas havia uma parte dela que duvidava.
E quando ela se permitiu pensar nisso, ficou deprimida.
O telefone de Holiday tocou. A líder do acampamento pegou o
aparelho, olhou para o identificador de chamadas com ar de interrogação e,
em seguida, atendeu.
— Alô? — Holiday perguntou, e então olhou para Kylie. — Ela está
bem — Holiday fez uma pausa. — Vou dizer a ela. — Desligou e fitou Kylie
nos olhos. — Era Derek. Ele queria dizer que, se você precisar conversar,
pode procurá-lo. Como amigo. Insistiu que eu acrescentasse essa última
parte.
Kylie acenou com a cabeça e seu peito se encheu de emoção.
Bateram na porta. Holiday olhou para Kylie.
— Está esperando alguém? Derek não é o único preocupado com
você.
Kylie negou com a cabeça.
— Entre — Holiday disse. Della e Miranda apareceram no escritório,
os olhos cheios de preocupação. Atrás delas vieram Lucas, Perry, Helen e
Jonathon.
— Eu estou bem — Kylie disse a eles, mas mais lágrimas inundaram
seus olhos. Lágrimas porque sabia que essas pessoas não eram apenas seus
amigos. Eram sua família.
— Nós amamos você — disse Miranda, com os olhos lacrimejando.
— E queremos que saiba que não importa o que você é.
Mais tarde naquela noite, Kylie recebeu outro sinal de que seu
padrão cerebral humano não tinha mudado as coisas. A princípio, ela pensou que era apenas um sonho. Estava olhando Jane Doe descansando na
cama, passando as mãos sobre a barriga redonda, e olhando para o homem
que dormia ao seu lado.
— Eu te amo — ela sussurrou. — Mas tenho que fazer isso.
Então as coisas mudaram e Kylie era Jane. Ela deslizou
silenciosamente para fora da cama. Sentia seu corpo desajeitado com o peso
da barriga. Seu coração estava dilacerado. Kylie não se lembrava de ter
sentido tanta tristeza, como se estivesse prestes a perder o que tinha de mais
precioso na vida.
Ela saiu do quarto escuro, olhou para trás mais uma vez, na direção
do homem adormecido. Quem quer que fosse, Jane o amava.
— Sinto muito. — As duas palavras saíram da sua boca num sussurro.
O homem se virou de lado e Kylie viu seu rosto de relance. Pele pálida,
cabelos grossos e castanhos — não, na verdade, castanhos avermelhados.
Alguma coisa no rosto dele fez com que Kylie quisesse continuar
contemplando-o, mas ela não tinha nenhum controle sobre o que acontecia
nessas visões. Revivendo o passado de Jane Doe, ela se voltou para a porta e
saiu do cômodo. Foi até um armário, pegou um longo casaco preto e o
vestiu. Depois pegou uma mala de aparência antiga, sem rodinhas. O peso
da mala, em acréscimo ao da barriga, tornou seu andar ainda mais
desajeitado.
Por que você está abandonando esse homem se o ama? A pergunta fluiu
da mente de Kylie, mas a visão continuou, deixando a dúvida no ar.
Agora com lágrimas escorrendo pelo rosto, Jane caminhou para fora
da humilde casa. Um carro com os faróis apagados encostou no meio-fio. Ela
entrou. Kylie queria ver quem estava dirigindo, mas Jane estava muito
ocupada chorando, sentindo a dor do seu coração partido, para se preocupar
com o motorista.
— Você está fazendo a coisa certa — disse uma voz feminina quando o
carro arrancou. — Ele não entenderia.
Tudo ficou escuro. Kylie tentou acordar, mas a visão a puxou de
volta.
E não foi para um lugar agradável.
Havia luz agora, mas ela não se importava. Estava sofrendo demais.
Alguma coisa estava rasgando suas entranhas. A sensação lembrou a Kylie a
pior das cólicas menstruais que já teve. Seu corpo contorcia-se de dor. Suas
costas arquearam e ela gritou.
— O bebê não está vindo! — disse alguém. A dor em seu abdome
diminuiu e ela se deu conta da dor emocional em seu peito novamente.
— Não deixem meu bebê morrer! — Ela levantou o tronco, apoiando-se
no cotovelo.
O homem de pé entre seus joelhos abertos olhou Jane Doe nos olhos. — Eu teria que fazer uma cesariana. — Então faça! — Jane gritou. — Não estou preparado para isso. Não tenho anestesia. — Eu não me importo — disse Jane. — Não deixe meu bebê morrer. Eu aguento. Não é como se eu fosse humana.
O homem olhou para a mulher ao lado dele. — Passe o bisturi.
 
Não! Kylie gritou em sua cabeça, assim que Jane Doe deitou-se
novamente na cama e se resignou a ver seu ventre ser cortado sem nada
para entorpecer a dor.
— Kylie?! Acorde!
Kylie sentiu que alguém a sacudia. Ainda gritando, ela abriu os
olhos e viu Della e Miranda debruçadas sobre ela. Conseguiu parar de gritar,
mas não de tremer.
— Será que é melhor chamar Holiday? — Miranda perguntou,
parecendo preocupada.
Kylie balançou a cabeça negativamente.
— Eu estou bem. — Ela se virou e secou as lágrimas no cobertor. —
Voltem a dormir — murmurou. Seu coração ainda estava em pânico por
causa da visão, e ela podia sentir o frio. Jane estava ali.
Della e Miranda se entreolharam como se não soubessem o que
fazer.
— Podem ir — ela repetiu.
Assim que elas saíram, Kylie se sentou. Jane se acomodou na beirada
da cama. Seu abdome tinha um corte escancarado de onde o sangue vertia
sobre as suas coxas nuas.
— Eu não matei o meu bebê. Eu o amava.
— Eu sei. Eu vi. — Kylie odiava ter que perguntar, mas era
justamente para encontrar respostas que Jane a tinha procurado. — O bebê
morreu? Foi isso que aconteceu? O bebê morreu durante o parto?
Jane olhou para Kylie novamente.
— Não. — Ela sorriu, e instantaneamente o sangue em suas mãos
desapareceu. Agora ela vestia um bonito vestido de verão, estampado com
grandes girassóis amarelos — Ele sobreviveu. Meu bebê sobreviveu. Eu me certifiquei de que ele estava bem. E então voltei para casa.
— Onde era a casa? — Kylie perguntou. — De quem era a casa?
Jane piscou e depois olhou para Kylie. — Eu não sei. Não me lembro.
— Eu estou um pouco confusa — disse Kylie. — Você morreu
durante o parto?
— Não, eu já te mostrei como morri. Eles me mataram. — E então ela se
desvaneceu.
Demorou uma eternidade para Kylie voltar a dormir e, quando isso
aconteceu, outro sonho a arrebatou. Imediatamente, ela percebeu o que
estava acontecendo. Não tinha começado a entrar dentro do sonho de
alguém, desta vez alguém havia entrado no sonho dela.
Ela esperou apenas uma fração de segundo para se certificar de que
não era Derek, e então o viu. Ruivo. Ele estava junto ao lago.
— Eu não estou tentando enganá-la desta vez — explicou ele.
— Me deixe em paz! — ela gritou.
— Eu preciso te dizer...
Kylie acordou em pânico em sua cama. Ruivo tinha desaparecido.
— E não volte! — ela gritou, esfregando os braços com as mãos,
orgulhosa ao ver que tinha conseguido acordar rapidamente.
Os quatro ou cinco dias seguintes, em Shadow Falls, foram
dedicados à tarefa de preparar o acampamento para se tornar uma escola em
tempo integral, e aquilo foi muito bom para Kylie. Holiday estava ocupada
entrevistando mais alguns candidatos a professores, enquanto um grupo de
operários, todos sobrenaturais, construía cabanas grandes para abrigar as
salas de aula. Outra equipe de sobrenaturais instalava aquecedores nas
cabanas dos campistas.
Kylie ainda estava sendo acompanhada pela sombra. Como mais
nada tinha acontecido, ela começava a se sentir culpada por sobrecarregar os
horários dos amigos, já tão sobrecarregados. Na manhã de sexta-feira, ela foi
ao escritório de Burnett para sugerir que dispensassem a sombra. Ele não
concordou.
— É agora que temos que ter mais cuidado — ele explicou.
— Por quê? — Kylie perguntou.
Ele franziu a testa.
— Para começar, que tal porque este lugar agora está num entra e sai
o dia todo? E eu não gosto de estranhos por aqui.
Kylie sentiu um arrepio percorrer a sua espinha.
— Você acha que alguém que está trabalhando aqui pode estar a
serviço de Mario?
Se isso fosse possível, explicaria o pressentimento crescente de
Miranda de que alguém estava à espreita em torno da sua cabana. A amiga
tinha começado a lançar feitiços de proteção na porta todos os dias e até
procurado Holiday e Burnett para contar suas preocupações. Os líderes do
acampamento ouviram as preocupações de Miranda, mas não acharam que
se tratasse de uma grande ameaça. Ou pelo menos era isso o que Kylie
presumira até agora.
Burnett, com todos os seus noventa quilos de puro músculo,
recostou-se na cadeira do seu escritório.
— Eu verifiquei as credenciais de todos, dezenas de vezes.
Ele pegou uma bola de borracha em forma de coração com as
palavras Doe Sangue e apertou-a.
— Talvez Holiday esteja certa e eu esteja sendo excessivamente
cauteloso, mas não vou correr riscos.
Burnett virou a cabeça para o lado, como se estivesse ouvindo algo
do lado de fora da cabana, e franziu a testa.
— Outro lobisomem arranjando encrenca. Vou ficar muito feliz
amanhã, quando a Lua cheia já tiver passado. Com licença.
Ele disparou para fora da sala.
Kylie foi atrás dele, com receio de que Lucas estivesse envolvido na
briga. Embora normalmente ela não se preocupasse com a possibilidade de
Lucas se meter em encrencas, nestes últimos dias ele estava muito mais
tenso. Na noite anterior, quando foi à cabana dela para dizer boa-noite, mal
a beijara.
Quando ela perguntou se havia algo errado, ele a lembrou de que,
quanto mais perto estava a Lua cheia, mais ele era dominado pelos instintos
em vez da lógica. Então Lucas tinha estendido a mão e passado um dedo
suavemente pelos lábios dela.
— Você é a tentação na forma mais pura, Kylie Galen.
Havia uma parte de Kylie que queria ceder a essa tentação, mas
outra parte que ainda resistia. E embora ela desejasse que não fosse verdade,
sabia que parte da razão dessa resistência tinha a ver com a avó de Lucas.
No momento em que Kylie chegou aos degraus da varanda, Della
apareceu.
— Ellie e Fredericka estão brigando.
— Por quê? — Kylie perguntou.
— Pelo que sei, Ellie ouviu Fredericka falando mal de você e quis dar
uma lição nela. Você sabe, eu odeio admitir, mas Ellie está subindo no meu
conceito.
— Ah, droga! Onde elas estão?
— Perto da cabana de Ellie.
Kylie disparou pela trilha. No momento em que chegou à cabana da
amiga, Burnett segurava Fredericka e Lucas tentava conter Ellie. A vampira
sangrava, e pelo brilho nos olhos dela, não desistira de lutar.
— Me larga! — ela rosnou para Lucas. — Eu vou ensinar uma lição a
essa cadela!
— Calma aí! — disse Lucas. Seus próprios olhos estavam da cor
laranja brilhante. — Ela vai rasgar a sua garganta. Você não pode vencer
uma briga com um lobisomem um dia antes da Lua cheia.
— Ah, é? Então fica olhando! — Ellie tentou novamente se soltar,
mostrando as presas.
— Pare! Ou eu vou ter que te dar uma lição eu mesmo — resmungou
Lucas, o corpo cada vez mais tenso e os olhos brilhantes. Obviamente, com o
seu próprio corpo sentindo os efeitos da Lua cheia, ele não devia estar
tentando apartar uma briga.
— Por quê? — Ellie contestou. — Por que você protege essa loba?
Você devia estar me ajudando a chutar a bunda dela. E eu pensei que Kylie
era sua namorada. A quem você é leal? A essa garota ou a Kylie?
Lucas ficou paralisado. A pergunta parecia tê-lo pego desprevenido.
— Eu estou tentando salvar a sua vida, mas não sei se vale muito a
pena.
— Porque não sou um lobisomem? — Ellie cuspiu de volta.
— Chega! — Burnett rugiu.
Lucas soltou Ellie. A vampira, contrariada, recuou, mas os seus olhos
continuaram brilhantes. Então seu olhar zangado encontrou o de Kylie.
— Você definitivamente escolheu o cara errado. Derek jamais
defenderia alguém que falou mal de você daquele jeito. Nunca!
O olhar de Kylie encontrou o de Lucas por um momento, e então ela
se virou e foi embora.
Aquela noite, Kylie acordou com o cheiro de rosas. Antes de abrir os
olhos, reparou na temperatura para se certificar de que não era Jane.
Ou pior, outra visão. Mas não. Nada de frio. Apenas o doce aroma
floral.
— Oi, linda! — disse uma voz familiar masculina. Ela abriu os olhos.
Lucas estava ajoelhado ao lado da cama, segurando um buquê de
rosas na mão. Ela se sentou e viu mais rosas por todo o quarto.
— O que você fez? Assaltou uma floricultura?
Ele lhe lançou um sorriso de bad boy, e Kylie sentiu o coração
derreter apenas um pouco.
— Não, mas garanto que minha avó vai ficar bem chateada quando
ver seu jardim amanhã.
Ela sorriu e, em seguida, lembrou-se de que estava ressentida com
ele. E, sim, talvez isso não fosse justo, visto que tudo o que ele tinha feito era
a coisa certa, apartando a briga, mas as palavras de Ellie tinham calado
fundo. E Kylie estava magoada.
Não ajudava muito saber que, depois que se transformasse em lobo,
ele iria fugir para a floresta com Fredericka em seu encalço. Por isso, quando
ele tinha aparecido mais cedo naquele dia para vê-la, ela tinha dito que
estava com dor de cabeça e ido para a cama.
Mas agora ele estava de volta. E desta vez, não tinha pedido
permissão para entrar em seu quarto.
— Chega pra lá! — disse ele.
Kylie arqueou uma sobrancelha, lembrando-se da cautela dele à
medida que a transformação se aproximava.
— É uma boa ideia?
— Eu vou me comportar. Pode ter certeza. Só quero abraçar você e
me desculpar.
— Pelo quê?
Ele pegou uma rosa e passou-a pelo nariz e pelos lábios dela. Sua
textura era macia contra a sua pele... um pouco como veludo.
— Lamento que Fredericka esteja sendo tão idiota. Desculpe pelo
jeito como tudo pareceu. Eu não estava defendendo Fredericka. Estava
tentando evitar que Ellie se machucasse.
Ele estava fazendo aquilo novamente. Fazendo a coisa certa. E ela
sabia que ele falava a verdade.
— No entanto... — Ele colocou a rosa ao lado do travesseiro dela. —
Comecei a pensar sobre como eu me sentiria se fosse você defendendo
Derek. Eu realmente não ia gostar. — Ele a envolveu em seus braços,
empurrou-a para o canto da cama e em seguida se deitou ao seu lado.
Ela sentiu o calor do corpo dele ao seu lado e os lábios dele roçando
na sua bochecha.
— Você é o que há de mais importante pra mim, Kylie. Não existe
nada em você que não me fascine. O jeito como os seus olhos se iluminam
quando você sorri. O som da sua risada. — Ele pegou a rosa e correu pela
sua boca novamente. — O formato dos seus lábios. O jeito como se encaixam
aos meus.
Ele moveu a rosa mais para cima.
— O seu nariz. Arrebitado na ponta.
— Não é tão arrebitado assim. — Ela sempre detestara seu nariz.
— Talvez só um pouquinho. — Ele sorriu. — Mas é uma graça. E
adoro o jeito como você espirra.
— Agora você está indo longe demais. — Ela riu.
— Sério, adoro o barulho que você faz quando espirra. Parece mais
com um filhotinho do que com um ser humano. Um filhotinho de cachorro
muito bonito e sexy.
Seu sorriso sumiu e seus olhos azuis fitaram os dela.
— Pela primeira vez em toda a minha vida, não estou ansioso pra me
transformar. Porque.... aí não vou poder beijar você assim. — Seus lábios
comprimiram os dela, mas ele terminou o beijo rápido demais. — Eu vou
estar lá fora. E você vai estar aqui. E, em vez de sentir a emoção de estar livre
deste corpo, vou estar sentindo a sua falta.
Ele a beijou de leve nos lábios novamente.
— Então, por favor, por favor, não fique com raiva de mim. Eu não
queria fazer você se sentir mal, ou pensar que existe alguém mais
importante pra mim do que você. Porque não existe. Eu mataria por você,
Kylie Galen. Mas, mais do que isso, eu morreria por você.
Ela sentiu uma lágrima rolar pelo seu rosto.
— É melhor você não morrer por mim, Lucas Parker.
Ele pôs o dedo sobre a lágrima e secou-a.
— Estou perdoado?
— Sim. Está perdoado. — Ela estendeu a mão e a colocou atrás do
pescoço dele, então puxou-o para um beijo. Sua boca devorou a dela, sua
língua varreu seus lábios. Depois de longos e deliciosos instantes, ele a
beijou no pescoço. Fez cócegas, depois fez sua pele formigar e, em pouco
tempo, ela ouviu o zumbido suave que emanava dele. Ela gostava de ouvir
aquele som. Gostava de saber que ela o provocava. Gostava de sentir suas
inibições se desvanecendo quando o ouvia.
A mão dele deslizou por baixo da blusa dela, tocando a pele nua.
Tocaram as laterais dos seios e depois começaram a subir. Elas estavam
quentes como o sol contra sua pele. Kylie fechou os olhos, adorando a
sensação. Ela queria aquilo.
Ele interrompeu o beijo e afastou as mãos.
— Ok, é hora de ir.
Ele saltou da cama e franziu a testa.
— Sinto muito.
Ela mordeu o lábio para não dizer que estava tudo bem. Para não
pedir que ele voltasse para a cama. Em vez disso, sussurrou:
— Eu não sinto.
Ele olhou para ela.
— Você é tão linda... E se eu não for agora... — Ele se virou para ir
embora.
— Lucas?
Ele se virou.
— Sim?
— Obrigada pelas rosas.
— De nada. — Ele olhou para a porta. — Preciso ir antes que meu
tempo acabe.
— Seu tempo? — ela perguntou.
Ele encolheu os ombros.
— Eu disse para Della chutar a minha bunda se eu ficasse mais de
vinte minutos. — Ele olhou para o relógio. — E conhecendo essa vampira...
— O tempo acabou! — Della bateu na porta com tanta força que
Kylie ficou surpresa de não vê-la se despedaçar.
Lucas sorriu.
— Eu sabia que podia contar com ela.
Kylie riu.
Depois que Lucas se foi, ela se recostou na cama, olhou para o teto e
apenas inspirou o perfume de rosas, tentando se lembrar de cada palavra
que ele dissera. Ela queria se lembrar dessa noite para sempre.
Vários dias depois, com o estômago roncando e Jonathon, a sombra
do dia, em seus calcanhares, Kylie foi para o refeitório tomar seu café da
manhã.
A vida tinha ficado mais tranquila. Pelo menos um pouco. Com o
fim da Lua cheia, Lucas estava de volta ao seu estado normal e mais
paciente. E estava incrivelmente atencioso, também. Mas, para ser franca,
Kylie sentia falta de ouvir o zumbido no peito dele.
Não que ela não gostasse do seu lado doce. Ele tinha até trazido mais
rosas na noite anterior. Se a senhora Parker ainda não tivesse motivo
suficiente para não gostar dela, Kylie achava que ver seu roseiral dizimado
logo garantiria que ela passasse a não gostar.
Até o fantasma de Kylie estava mais calmo. Jane Doe ainda fazia
visitas regulares, mas voltou a ficar em silêncio. O que não a desagradava
nem um pouco.
Kylie abaixou para se desviar de um galho baixo no meio da trilha e
acelerou o passo. — Não! Eu não posso acreditar que você sugeriu isso!
A voz de Holiday soou nos ouvidos de Kylie vinda de uma distância
de quase um quilômetro do escritório. Kylie parou e olhou em volta para se
certificar de que a líder do acampamento não estava por perto.
Não estava.
Devia ser a sua audição supersensível de novo. Ela tinha aparecido
de modo intermitente desde a conversa entre sua mãe e Holiday no Dia dos
Pais. Curiosa, Kylie fitou Jonathon para ver se ele tinha ouvido também.
— O que foi? — perguntou ele.
— Eu achei que tinha ouvido alguma coisa. Você ouviu?
— Ouvi o quê? — Ele começou a olhar ao redor. — A maldita da
gralha azul não está de volta, né? Estou te dizendo, esse pássaro não é
normal.
O pássaro tinha voltado mais três vezes. E Jonathon estivera presente
em dois desses encontros.
— Não, não é isso. Eu acho que ouvi Holiday.
Jonathon inclinou a cabeça para o lado como se para testar sua
própria audição supersensível.
— Não ouvi nada.
Então, será que sua audição era mais sensível do que a de um
vampiro? O que isso queria dizer? Especialmente quando ela ainda tinha o
padrão cerebral de um ser humano.
— Eu não tenho escolha — disse Burnett.
Que ótimo. Eles estavam brigando novamente. Sobre o que desta
vez? Kylie se perguntou, enquanto seguia para o refeitório. Se fosse para dar
sua opinião, ela diria que Holiday estava apenas dando outra desculpa para
tentar colocar alguma distância entre ela e Burnett. Desde que Kylie tinha
entrado na cabana e encontrado os dois se beijando, não os tinha visto a
menos de um metro um do outro.
— Você tem escolha, sim — contestou Holiday. — Você vai voltar e dizer que eu disse não. — São só alguns testes. Não iam demorar muito e poderiam esclarecer tudo.
— Eu disse, não!
— Agora eu estou ouvindo Holiday — disse Jonathan. — Ela não
parece muito feliz. — Você não acha que é Kylie quem devia decidir?
— O que eu devo decidir? — Kylie murmurou, e mudou de direção,
começando a caminhar na direção do escritório.
— Não! — Holiday insistiu.
— Ela quer respostas. E os testes poderiam dar isso a ela.
Kylie acelerou o passo. Que respostas? Não importava, ela percebeu.
Ela queria qualquer resposta que pudesse obter. — Eu não vou permitir!
— Não vai permitir o quê? — perguntou Kylie, entrando
impetuosamente no escritório e deixando Jonathon para trás.
Holiday e Burnett se viraram. Ela apontou para a porta.
— Saia! — disse a Burnett.
— Não! — Kylie entrou na frente dele. — Ele fica. Isso é sobre mim e
eu preciso saber.
Holiday olhou para Burnett com raiva, então fitou Kylie.
— Você não iria entender.
— Por que não experimenta me contar? — Ela se voltou para
Burnett. — Comece a falar.
O vampiro olhou para Holiday.
— A UPF quer fazer alguns testes em você — esclareceu Holiday. —
Para ver se descobrem o que você é.
A esperança cresceu no peito de Kylie.
— Pensei que não existisse nenhum teste que esclarecesse isso. — Ela
se lembrou de já ter perguntado sobre isso a Holiday.
— E não existe mesmo! — ela insistiu. — Eles só querem brincar com
o seu cérebro...
— Eu vou fazer — disse Kylie.
— Não! — Holiday olhou para ela horrorizada. — Eu me recuso a
deixar que usem você como um rato de laboratório. Não há garantias de que
esses testes sejam seguros, e eles podem nem funcionar.
Kylie olhou para Burnett.
— Eles são seguros?
Burnett encarou Holiday, com os olhos cor de âmbar indicando que
estava contrariado.
— Eu não iria deixá-los fazer nada que não fosse seguro — ele
rosnou. — Você não confia nem um pouco em mim?
— Eu não confio nem um pouco na UPF. Histórias se repetem.
— Que tipo de testes seria? — Kylie perguntou.
— Apenas algumas tomografias — disse Burnett.
— Não! — Holiday voltou-se para Kylie. — Eles vão usar você como
cobaia!
— Não vão machucá-la — insistiu Burnett.
— Eu sei. Porque ela não vai fazer os testes! — Holiday exclamou.
O ar gelado invadiu o quarto tão rápido que a respiração de Kylie fez
pequenos flocos de gelo se acumularem nos seus lábios. Jane materializou-se
e, ao mesmo tempo, três lâmpadas no teto estouraram. Fragmentos de vidro
se espalharam pelo cômodo.
— Que diabos é isso? — Burnett olhou para cima e deu um passo na
direção de Kylie.
Os móbiles de cristal de Holiday, pendurados por todo o escritório,
começaram a balançar, provocando espirais das cores do arco-íris em torno deles.
 
O laptop sobre a mesa de Holiday começou a apitar, fazendo ruídos
de mau funcionamento.
— Você fique longe dela! — Jane cruzou o cômodo e ficou entre Kylie e
Burnett. — Corra, Kylie! — Jane gritou no mesmo tom que usou para avisar
Kylie do sumidouro.
— Qual o problema? — Kylie perguntou.
— Ele está errado! — Jane gritou.
Holiday olhou ao redor da sala.
— O que está acontecendo, Kylie?
— Acho que ela pensa que Burnett está tentando me ferir.
— Diga a ela para sair — Holiday insistiu.
— Jane, você vai ter que ir.
Mas Jane não estava escutando.
Burnett deu mais um passo para perto de Kylie. Jane gritou e em
seguida estendeu o braço, fincando a mão dentro do peito de Burnett. Kylie
não só podia ver a mão de Jane, como também o interior do peito do
vampiro. E ela viu com horror quando a mão de Jane se fechou em torno do
coração de Burnett.
— Não! — Kylie gritou.
Burnett olhou para Holiday e colocou a mão no peito.
— Pare! — ela exigiu.
Burnett caiu no chão com um baque surdo.
 
Trinta minutos depois, Jonathon estava sentado sob uma árvore a
poucos metros de distância, enquanto Kylie estava na varanda de Holiday,
espantando insetos e ouvindo a líder do acampamento, o médico e Burnett
conversando dentro do escritório.
— Ele pediu para você tirar a camisa — Holiday disse.
— Eu não preciso tirar a camisa — Burnett contestou. — Estou bem.
Sua voz era alta e clara, e ele de fato parecia bem. Não que isso
fizesse Kylie se sentir melhor.
— Pode ser que sim. Pode ser que não — ponderou Holiday. — Nós vamos saber assim que você se despir e deixar que o médico o examine.
Em poucos minutos, Holiday saiu e se sentou na varanda ao lado de
Kylie. Tinha lágrimas nos olhos.
— Eu não sei por que estou tão preocupada. Ele é muito teimoso e
cabeçudo pra morrer.
Kylie entrelaçou as mãos.
— Eu sinto muito.
Holiday balançou a cabeça.
— Não foi culpa sua.
— Você disse pra eu me livrar dela logo que te contei que ela estava
aqui. Eu me recusei, e ela poderia ter matado Burnett.
— Ela não queria matá-lo. Só queria afastá-lo de você.
— Talvez eu estivesse errada o tempo todo. Talvez ela seja má.
Holiday colocou o braço em volta do ombro de Kylie.
— Ela não é má. Eu senti a presença e as emoções dela. Ela estava
preocupada com você. Fez isso para protegê-la, Kylie.
— Sim, mas me proteger do quê? Será que ela realmente achou que
Burnett ia me machucar?
Holiday suspirou.
— Ela provavelmente captou o que eu estava sentindo. Eu exagerei.
— Ela apertou o braço de Kylie. — Quero dizer, eu me recuso a deixar você
ser testada pela UPF. Mas eu não deveria ter surtado daquele jeito.
— Você não confia em Burnett? — Kylie perguntou.
Ela balançou a cabeça.
— Eu não confio na UPF.
— Por quê? E se não confia neles, então por que eles estão
envolvidos com o acampamento? Além disso, se podem realmente fazer
alguns testes simples e me dizer o que sou, eu quero fazê-los.
Holiday fechou os olhos por um segundo.
— Não me leve a mal, Kylie. Eu não sou contra a UPF. Deus sabe que
precisamos deles para manter as coisas nos trilhos. Mas eles não têm o
direito de ficar testando as pessoas.
— Mas e se eles realmente puderem...
— Eu não posso deixar você fazer isso. Se eles quiserem me dizer o
nome do teste que pretendem fazer, vou perguntar ao nosso médico se ele
pode prescrevê-lo. Mas você o fará sob a supervisão dele e apenas dele.
Kylie sentiu pela voz da líder do acampamento que havia muito
mais por trás daquilo. Coisas que ela não tinha dito.
— Ok, o que você não está me dizendo?
Levou um minuto até que Holiday finalmente suspirasse e
começasse a falar.
— Foi mais de quarenta anos atrás. Tratava-se apenas de um ramo
pequeno da UPF que foi fechado, e muitas acusações foram feitas contra
muita gente. Eles estavam fazendo testes científicos em seres sobrenaturais.
Algo sobre pesquisas genéticas. Os sujeitos eram obrigados a fazer os testes
e algumas pessoas nunca se recuperaram completamente. Não é que eu ache
que eles estejam fazendo isso novamente, mas eu me recuso a te deixar ir até
lá para que possam picar e examinar você para encontrar respostas.
Kylie olhou para Holiday. Fragmentos da visão de Jane começaram a
se repetir em sua mente como um filme antigo. E de repente tudo começou a
fazer sentido.
— A UPF matou Jane Doe. Eles a mataram e depois a enterraram
com Berta Littlemon no Cemitério de Fallen.
Os olhos de Holiday se arregalaram.
— Você não pode ter certeza.
— Eu posso! — disse Kylie. — Na visão, Jane foi chamada de sujeito.
O marido também. E o médico era vampiro. Eles mencionaram que ela não
tinha um padrão cerebral.
Kylie puxou os joelhos de encontro ao peito e abraçou-os, tentando
desvendar o quebra-cabeça. Não entendia como o bebê de Jane se encaixava
na história, mas alguns detalhes estavam claros para ela.
— Não é à toa que ela atacou Burnett — Kylie disse. — Ela pensou
que ele estava tentando fazer comigo o que a UPF fez com ela.
Kylie ficou desapontada por Jane Doe não ter aparecido na manhã
seguinte. Kylie tinha esperança, agora que sabia sobre a UPF, de que poderia ajudar Jane a se lembrar de outras coisas, como seu nome. Então, juntas elas
poderiam descobrir o que Jane precisava fazer para realizar sua passagem.
Mas os mortos, assim como os vivos, raramente faziam o que Kylie
queria.
Uma batida soou na porta.
— Entre.
A porta se abriu e Miranda e Della se espremeram através da
abertura e fecharam a porta rapidamente atrás delas.
— O que foi? — Kylie perguntou.
— Três carinhas estão na cabana instalando o aquecedor — disse
Della.
— E eles são uns gatos — disse Miranda. Os operários que
trabalhavam na reforma de Shadow Falls haviam se tornado um tema
popular entre todas as garotas do acampamento. Especialmente quando
tiravam a camisa à tarde.
— Gatos como Perry? — Kylie brincou. Ultimamente, Miranda
passava quase todos os momentos livres com o metamorfo.
— Não tão gatos — admitiu Miranda, e depois sorriu. — Mas quase.
— Bem, obrigado pelo aviso. Já vou dar uma olhadinha.
— Só não vá sair enrolada numa toalha — disse Della, também
sorrindo. — A menos que esteja a fim de que role alguma coisa.
Alguns minutos mais tarde, Kylie saiu completamente vestida,
cabelos penteados, e a única coisa que tinha acrescentado para incrementar o
visual fora um toque de gloss nos lábios.
Miranda estava sentada à mesa, tomando um copo de suco de
laranja. Della tinha um copo de sangue, e dois dos rapazes estavam
ajoelhados no chão, com serras de um lado e algum tipo de cano de
ventilação do outro.
Kylie detestava admitir, mas Miranda estava certa. Eles eram uns
gatos. Ambos estavam com seus vinte e poucos anos, tinham cabelos
castanhos e usavam camisetas justas que destacavam o bronzeado e os
músculos sólidos.
Eles olharam para cima e encontraram os olhos de Kylie. Kylie ficou
tensa quando franziram a testa para ela, mas ela fez a mesma coisa. Os dois
eram lobisomens. Ela viu seus olhares chocados quando viram seu padrão
cerebral.
— Eu sou uma aberração — explicou ela.
Della e Miranda riram. Os dois rapazes sorriram e voltaram ao
trabalho. Sem dúvida, tinham ordens de Burnett para não fazerem gracinhas
com as campistas.
Kylie foi até a geladeira para pegar um copo de suco. Ouviu a porta
do quarto de Miranda se abrir e o terceiro operário se juntou aos outros.
Kylie se virou e olhou para ele disfarçadamente. Era igualmente atraente.
Cabelo preto. Ombros largos. Cintura delgada.
Seu olhar encontrou o de Kylie, que, chocada, deixou o suco
escorregar por entre os dedos e o copo espatifar-se aos seus pés.
Seu cabelo tinha mudado. Seu nome, Ruivo, provavelmente um
apelido, não fazia mais sentido, mas seus olhos eram os mesmos. A imagem
dele aparecendo em seus sonhos, e olhando para ela no espelho com sangue
escorrendo do queixo surgiram na cabeça de Kylie. Então a imagem mudou
e ela o viu estampado em seu para-brisa, batendo a mão através da janela do
seu carro. Como se isso não bastasse, viu a imagem dele olhando para Kylie
enquanto ela estava presa à cadeira, quando ele e o avô a raptaram.
— Della? — Kylie disse numa voz calma, esperando poder avisá-la
antes que fosse tarde demais.
Mas Della não respondeu. Kylie se voltou. A vampira ainda estava
sentada à mesa, com o copo nos lábios. Algumas gotas de sangue pairavam
no ar entre os lábios e a borda do copo. Della não respirava. Não se movia.
Parecia congelada.
Era tarde demais.
O olhar de Kylie desviou-se para Miranda, que também estava
congelada, um dedo atrás da orelha, como se estivesse arrumando um fio de
cabelo.
O mesmo podia-se dizer dos dois rapazes ajoelhados no chão.
— É só você e eu, Kylie — disse o vampiro.
Ela voltou a olhar para Miranda e Della.
— Não sei o que fez com as minhas amigas, mas é melhor desfazer
agora! — ela rosnou, o sangue pulsando nos ouvidos, com fúria.
— Não se preocupe. Elas estão bem. Assim que eu libertá-las, vão
voltar ao normal e não vão se lembrar de nada. — Ele olhou de volta para a
mesa e depois para ela.
— Então faça isso! — Kylie disse.
Ele suspirou.
— Eu nunca vi ninguém se preocupar tanto com os outros.
Embora não soubesse bem por quê, Kylie verificou seu padrão
cerebral. Ele era um lobisomem! Mas como era possível? Antes ele era um
vampiro. Ela tentou não demonstrar sua surpresa, mas ele percebeu.
— O que você é? — Kylie perguntou.
— Sou a mesma coisa que você. Nasci poucos minutos depois da
meia-noite. — Ele deu um passo para a frente. — É por isso que devemos
ficar juntos. Nós somos almas gêmeas, Kylie. É isso o que somos.
Ela apertou as sobrancelhas novamente e desta vez viu que ele era
humano. Seu coração pulou no peito.
— Eu não sou sua alma gêmea. Prefiro morrer!
— É por isso que estou aqui. — Ele deu mais um passo na direção
dela.
Kylie recuou.
— Está aqui para me matar?
— Não. — Ele parou de se mover. Alguma coisa na sua resposta e no
seu tom de voz pareceu verdadeiro. — Estou aqui para protegê-la. Embora
você não facilite as coisas.
O som de um trovão retumbou lá fora. Ele olhou pela janela e,
quando o seu olhar se voltou para o dela, Kylie percebeu outra coisa.
— Você era a águia! — ela percebeu. — E o cervo! Você é um
metamorfo?
E se eles fossem iguais, como Ruivo disse, isso fazia dela um
metamorfo, também?
— Não. Quero dizer, sim. Eu era o cervo e a águia, mas eu não sou
um metamorfo.
Então outro pensamento ocorreu a Kylie.
— Você me protegeu, mas matou aquelas garotas inocentes em
Fallen. Por quê?
Ele olhou para o chão.
— Será que você ficaria muito aborrecida se eu dissesse que foi para
impressioná-la?
— Me impressionar? Você é doente.
— Mas elas foram antipáticas com você e suas amigas.
— Elas não mereciam morrer.
— Eu sei que você se sente assim agora. Eu não te conhecia bem na
época. Agora, eu sei. Eu não teria feito isso se...
— Você ainda não me conhece.
Ela encolheu os ombros.
— Às vezes eu não entendo você. Mas a tenho observado. Você é um
estudo interessante. Sempre me pergunto como teria sido... se eu tivesse
nascido à meia-noite. Engraçado como poucos minutos num relógio podem
fazer tanta diferença. Eu às vezes me pergunto se talvez... — O barulho de
um trovão abalou a cabana novamente.
Kylie poderia jurar que viu arrependimento em seus olhos. Mas
talvez não. A iluminação da cabana tinha sido expulsa por sombras escuras.
Kylie percebeu que as sombras estavam ali por ela.
Um relâmpago brilhou na janela.
— Eu não tenho muito tempo — ele disse. — Mas quero te dizer
que...
— Eu não vou com você! — Ela podia não vencer a batalha, mas
morreria lutando.
— Não, não desta vez. Eu vou voltar para te buscar mais tarde.
Como eu disse, estou aqui para te proteger.
— De quê?
Ele olhou para os dois operários congelados, sem respirar, assim
como Della e Miranda.
— Eles querem vê-la morta.
Ele estaria se referindo aos dois rapazes?
— Quem quer me ver morta?
— Os outros. Meu avô e seus amigos. Outros como nós.
— Como assim? Como nós? E por que eles me querem morta?
— São impacientes e estão com medo do que você possa ser capaz de
realizar se não se juntar a nós. Mas eu vou impedi-los até você decidir. Mas
você tem que mudar de opinião em breve.
Ele apontou para o operário mais alto ajoelhado no chão, ainda
congelado, como se estivesse trabalhando na instalação do aquecedor.
— Esse cara foi enviado aqui para te matar. Um amigo meu que é
feiticeiro viu o futuro e descobriu que seus outros amigos teriam chegado
aqui a tempo de salvá-la. Mas — ele apontou para a mesa — a bruxinha não
teria sobrevivido. E por alguma razão irracional, me senti compelido a
impedir que isso acontecesse. Eu sabia o quanto ia te machucar se ela
morresse. — Suas sobrancelhas se franziram como se ele estivesse confuso.
— Foi uma sensação estranha querer salvá-la, me importar com o
risco de a sua amiga morrer, porque não costumo me preocupar com
ninguém. Mas... por sua causa, eu fiz isso. Eu me preocupei.
As palavras Alguém vive e alguém morre surgiram na mente de Kylie
novamente.
— Não! — Isso não podia estar acontecendo. Simplesmente não
podia.
Então o som de passos nos degraus da varanda fez o chão vibrar sob
os seus pés.
— Até mais tarde. — Ele desapareceu.
A porta se abriu num estrondo e bateu na parede ruidosamente.
Burnett, Lucas, Perry e Derek entraram correndo.
— Que foi? — Della pulou da cadeira. Miranda deixou cair o suco,
que derramou no chão. Kylie suspirou de alívio quando viu que elas
estavam bem. E no entanto... em algum lugar lá no fundo, ela tinha
acreditado em Ruivo quando ele garantiu que estavam.
Mas será que isso queria dizer que ela também acreditava em todo o
resto?
Será que ela era como ele? Kylie olhou para Miranda e pensou que a
amiga podia ter morrido se Ruivo não tivesse interferido.
— Vocês dois! — Burnett disse, apontando para os dois homens
ajoelhados no chão. — Venham comigo.
Eles se levantaram devagar. Então o mais alto, aquele para quem
Ruivo tinha apontado, saltou pela janela fechada. A vidraça se estilhaçou,
lascas de madeira voaram para todos os lados e então ele se foi. Burnett e
Lucas foram atrás dele.
 
— Não faz sentido — Burnett rosnou uma hora mais tarde, enquanto
andava de um lado para o outro no escritório de Holiday. Kylie concordou.
Nada mais fazia sentido.
Eles tinham capturado o sujeito contratado para matá-la. Mas as
informações que dera não ajudaram em nada a descobrir a identidade de
quem o contratara.
Eles não estavam mais perto de descobrir o verdadeiro culpado
agora do que estavam antes.
Kylie, no entanto, sentia-se mais perto do que nunca de encontrar
respostas. Não, ela não sabia o que era, mas pelo menos sabia que havia
outros como ela. A pergunta era: eles eram todos do mal? Ela seria a única
que tinha nascido à meia-noite?
— Se ele queria levá-la, porque não fez isso? — Burnett parou na
frente de Holiday e Kylie, sentadas no sofá.
— Ele não disse... exatamente — explicou Kylie. — Disse que
acabaria por convencê-los de que eu não sou um perigo para eles. Como se
achasse que poderia me fazer mudar de ideia e ir com ele.
— Isso é estupidez! — disse Burnett.
Kylie decidiu fazer a pergunta que a incomodava há um tempo.
— Como ele congelou Miranda e Della e os outros dois?
Holiday respondeu:
— Existem alguns magos, bruxas e feiticeiros muito fortes que
podem parar o tempo.
— Você acha que é isso o que ele é? O que eu sou?
Holiday encolheu os ombros.
— Eu nunca ouvi falar de uma bruxa ou um bruxo capaz de mudar
os padrões cerebrais.
— Porque é impossível — Burnett afirmou.
— Na verdade, não. — Kylie apontou para si mesma.
Burnett fechou os olhos e respirou fundo.
— Essa coisa toda é inacreditável!
Holiday levantou-se.
— É por isso que você não pode comunicar esse fato à UPF.
Burnett olhou-a como se ela tivesse perdido o juízo.
— Eles têm que saber.
— Por quê? Eles sabem que alguém está tentando matá-la. Nós
contamos a eles sobre o que aconteceu, e não falamos nada sobre os padrões cerebrais.
— Por que esconder isso deles?
Holiday cruzou os braços.
— Porque isso vai lhes dar mais uma razão para levarem Kylie e a
usarem como cobaia.
Kylie olhou para Holiday e depois para Burnett.
— Eles disseram se permitiriam que o doutor Pearson fizesse os
testes?
A expressão de Burnett ficou mais séria.
— Disseram que os hospitais comuns não têm o equipamento
necessário.
— Foi exatamente o que eu pensei — Holiday criticou. — Não
sabemos se esses testes são seguros.
— Eles dizem que são. — Mas o tom de Burnett já não era tão
convicto, e Kylie se perguntou se ele continuava acreditando nisso.
— Eles mataram o espírito que eu estou ajudando — disse Kylie.
— Você não tem certeza.
— Sim, eu tenho. E se você precisa de provas, cave a sepultura. O
corpo dela está lá dentro.
Burnett soltou um palavrão.
— A UPF não é o inimigo, Kylie. Eu admito que tenham cometido
erros no passado, mas não cometem mais.
— Certo — Holiday disse com sarcasmo, demonstrando sua
descrença. — Mas eles não hesitariam em sacrificar alguém se achassem que
seria em benefício de todos. — Ela apontou para Kylie. — Um dos meus
adolescentes não vai ser sacrificado. E se você não pode aceitar isso, então
saia daqui agora. Porque nós não podemos trabalhar juntos.
O olhar de Burnett desviou-se para Kylie, em seguida, voltou para
Holiday.
— Você percebe o que está me pedindo para fazer? Para trair meu
juramento e esconder informações da UPF?
— A escolha é sua — Holiday disse.
Burnett fechou os olhos, balançou a cabeça e saiu do escritório. Kylie
não sabia se essa era a sua resposta, mas pela expressão de dor no rosto de
Holiday, ela certamente acreditava que sim.
Quando Kylie deixou o escritório de Holiday depois da reunião,
Lucas estava esperando do lado de fora. Ele tinha atribuído a si mesmo a
tarefa de ser sua sombra. Ele a levou até o riacho, onde eles se deitaram na grama quente e tentaram ver formas nas nuvens. Depois de encontrarem
quase tudo, desde George Washington até dinossauros no céu, Kylie contou
lhe sobre o desentendimento entre Burnett e Holiday.
— Burnett quer contar à UPF, e Holiday acha que isso vai lhes dar
mais um motivo para me levarem para fazer os testes.
Apoiando-se no cotovelo, ele olhou para ela.
— O que você acha de ser testada?
— Eu não sei. Parte de mim faria esses testes se eles realmente
achassem que fossem me trazer respostas, mas Holiday está inflexível e
insiste que pode ser perigoso. E eu sempre confiei nela. — E também há o
que aconteceu com o fantasma.
— Mais do que confia em Burnett? — Lucas perguntou.
— Talvez um pouco mais. — Kylie olhou em seus olhos azuis. —
Você acha que estou errada?
— Não. Eu provavelmente confio mais em Holiday também. — Ele
passou o dedo sobre os lábios dela.
— Eu simplesmente não consigo suportar ver os dois brigando —
disse ela, adorando a sensação do toque de Lucas, embora seu coração não
conseguisse se desligar dos problemas.
— Isso diz respeito a eles — disse Lucas.
— Mas é por minha causa que estão brigando. E eu sei que eles se
gostam. Eu não quero que desistam por minha causa.
— Você não sabe se eles estão desistindo. Ouvi dizer que Burnett
voltou para o escritório da UPF para interrogar novamente o cara capturado.
Mas ele vai voltar.
— Espero que sim. — Mas seu coração não tinha muita certeza.
Ele se inclinou e gentilmente apertou os lábios contra os dela. Foi um
beijo suave e quente. Quando se afastou, os olhos de Lucas tinham um toque de âmbar e ela sabia que o que quer que tivesse passado pela cabeça dele
havia despertado a sua raiva.
— Você sabe, eu não vou deixar aquele cretino ter você. Você é
minha.
— Eu sei — Kylie disse a ele. O que ela não disse é que estava
preocupada com a possibilidade de ninguém ser capaz de impedir Ruivo de
cumprir sua promessa. Até agora, nada o detivera. Claro, se ele estava
dizendo a verdade sobre eles serem do mesmo tipo de sobrenatural, e ela
acreditava nele... não entendia por que, mas acreditava..., então Kylie era
igualmente poderosa. Mas, se Holiday estivesse certa e ela fosse uma
protetora, então ela seria capaz de usar seus poderes apenas para proteger os
outros. Isso significava que estava completamente vulnerável aos caprichos
dele.
Esse não era um sentimento bom. Mas ela se recusou a reconhecer a
derrota. E tinha falado sério. Morreria antes de fazer parte de uma gangue
de marginais.
Mas ela não estava morta agora. E a prova era o modo como Lucas a
fazia se sentir viva.
— Me beije outra vez — ela pediu.
Ele sorriu.
— Isso é um pedido ou uma ordem?
— As duas coisas.
— Bem, nesse caso...
No dia seguinte, Burnett ainda não tinha retornado. Holiday estava
mal-humorada, e Kylie, com uma dor de cabeça fenomenal. Lucas tinha falado com ela mais cedo e contado que sua avó estava doente e ele estava
indo vê-la. Por volta das quatro da tarde, Kylie desistiu e pediu permissão
para ir se deitar um pouco. Della, no posto de sombra, seguiu-a de volta à
cabana.
Ela não sabia quanto tempo fazia que estava dormindo quando o frio
a atingiu. Abriu os olhos, sentindo a névoa gelada em sua respiração. Jane
estava ali.
— Graças a Deus, você está acordada — disse uma voz feminina.
Mas não era a voz de Jane.
Kylie abriu os olhos. Através da cortina de cabelos, ela viu Ellie de
pé ao lado de sua cama.
— Como você chegou aqui? — perguntou.
Ellie encolheu os ombros. Kylie olhou para a janela que tinha
deixado aberta.
Puxou o cobertor até o peito e olhou em volta à procura de Jane. Ela
não tinha se materializado ainda, mas estava ali. Calafrios arrepiavam os
pelos dos braços de Kylie. O fantasma não tinha aparecido nos últimos dias,
e Kylie esperava que ele estivesse finalmente pronto para falar.
— Sabe o que é,Ellie? Essa realmente não é uma boa hora. Eu tenho
alguns assuntos para tratar.
— Mas eu preciso de você para ajudar Derek — disse Ellie. — Ele
não está bem.
Kylie estudou-a mais de perto.
Ellie franziu a testa.
— Você tem que ajudá-lo. — Ela balançou a cabeça. — Ele pode estar
ferido.
Kylie empurrou as cobertas para o lado.
— Ferido? Onde ele está?
— No parque, há cerca de três quilômetros rio abaixo, onde estão as
pegadas de dinossauros.
— Por que ele está lá? — Kylie perguntou.
— Eu não sei, mas ele precisa de você.
— Por que ele precisa de mim? — Kylie calçou o tênis. — Aconteceu
alguma coisa?
— Eu não sei — disse Ellie. — Estou confusa.
— Ele se feriu? — O coração de Kylie se contraiu de medo por Derek.
— Não. Acho que não.
Ellie não estava dizendo coisa com coisa. Kylie ficou preocupada
porque poderia ser um truque para que ela e Derek ficassem juntos. Mas
alguma coisa de pânico na voz de Ellie dizia outra coisa.
— Vamos. — Ellie aproximou-se da janela.
— Eu tenho que avisar Della. Ela é minha sombra, lembra?
— Rápido.
Kylie andou em direção à porta e olhou para trás novamente à
procura de Jane. Ela não tinha se manifestado, mas seu frio mortal ainda
deixava o quarto gelado. Eu vou voltar logo, disse ao espírito
mentalmente. Por favor, não vá embora. Precisamos conversar.
Jane não respondeu. Nenhuma surpresa. Kylie saiu do quarto e Della
levantou os olhos do computador.
— Você está meio distraída — disse Kylie.
— Por que diz isso?— Della perguntou.
— Ellie está aqui.
— Merda! Estou mesmo distraída. — Ela entrou no quarto de Kylie,
como se pronta para mandar Ellie para o inferno. Não que Kylie estivesse
muito preocupada. Della e Ellie tinham ficado amigas desde que Della a
convidara para fazer parte do seu círculo de vampiros.
Della saiu novamente do quarto.
— Será que ela foi embora?
— De jeito nenhum!
Kylie voltou correndo para o quarto. Mas Della estava errada. Ellie
estava no mesmo lugar em que a deixara.
— Você tem que se apressar.
— Talvez você tenha sonhado — disse Della, entrando no quarto.
O frio no cômodo arrepiou a pele de Kylie novamente. Ela olhou
para Ellie. Seu coração se apertou e lágrimas formaram um bolo em sua
garganta. Não!
— O que aconteceu, Ellie? — Lágrimas escorriam pelo rosto de Kylie.
— Derek está bem?
— Eu não me lembro. — Ellie parecia confusa.
— Kylie? Isso é um sonho? — Della perguntou.
Mais do que qualquer outra coisa, Kylie desejava que fosse. Ela
olhou para Ellie outra vez.
— O que aconteceu? — perguntou de novo.
— Você tem que se apressar. Estou preocupada com Derek.
O medo de repente a dominou. Medo por Derek. Medo de que
pudesse ser tarde demais para salvar Ellie e Derek. Não importava o quanto
tivesse que dar da sua alma para salvá-los. Ela daria.
— O que está acontecendo? — Miranda entrou no quarto.
— Ela está pirando outra vez — explicou Della.
Kylie, com lágrimas nos olhos, olhou para Miranda.
— Eu preciso que você chame Holiday. Diga a ela que Della e eu
vamos até o parque, perto das pegadas de dinossauros. Derek está lá e ele
pode estar ferido. Vamos, Della — disse Kylie, e começou a correr.
Della pegou Kylie pelo braço.
— O que está acontecendo?
Kylie respirou ofegante.
— Ellie está morta em algum lugar do parque perto daqui. E Derek
estava com ela. Temos que ir antes que seja tarde demais!
Miranda deixou escapar um soluço.
— O quê? Como aconteceu? — Os olhos de Della se arregalaram de
emoção.
Kylie não tinha tempo para explicar. Ellie saiu porta afora e Kylie foi
atrás dela. Os passos de Della batiam contra a terra atrás dela.
Kylie não desacelerou o passo. Nem Ellie nem Della. Quando
chegaram às pegadas de dinossauros, atravessaram o riacho e pularam a
cerca que marcava a divisa com o parque. Do outro lado o terreno se tornava
íngreme, mas Kylie manteve o ritmo sem dificuldade. Seu sangue
borbulhava com o estranho tipo de energia que sentia quando estava
protegendo alguém que amava. Ela só rezava para não ser tarde demais.
— É logo depois da curva — disse Ellie. Ela não tinha falado nada
durante o trajeto. Então parou de repente. O pânico se refletiu em seus
olhos. — Ah, meu Deus. Agora eu lembro!
— O quê? — Kylie parou ao lado de Ellie.
— O quê? O quê? — Quando Della encontrou o olhar de Kylie, deve
ter percebido que a pergunta não era para ela, e simplesmente balançou a
cabeça.
— Eu segui alguém até aqui — disse Ellie. — Eu o vi correndo do acampamento. Estava quase chegando aqui quando ouvi alguém atrás de mim. Era Derek. Foi quando a pessoa que eu seguia atacou.
— Quem era? — Kylie logo pensou em Ruivo. — Era um cara jovem,
de cabelo vermelho ou castanho?
— Não, era um velho. Um vampiro.
Mario. Eles nunca teriam chance!
O peito de Kylie se encheu de dor. E de culpa. Era tudo culpa dela.
— Onde está Derek? Onde está o seu corpo? — Ela tinha que salvá
los.
Ellie apontou para a encosta da montanha. A impressão era a de que
uma explosão tinha acontecido ali. Havia pedras soltas por todo lugar.
— Derek fez a curva e um raio caiu. Ele bateu contra as rochas. Sua cabeça estava sangrando, mas ele estava respirando. Mas então, mais raios caíram. Eu o peguei do chão, coloquei-o numa pequena caverna e empilhei algumas pedras na frente dele. Estava fazendo isso quando... tudo ficou branco.
Kylie correu para a beirada do despenhadeiro e começou a revirar as
pedras.
Della se aproximou.
— O que nós vamos fazer? — Sua expressão mostrava preocupação.
— Ele está aqui atrás — disse Kylie.
Elas moveram as pedras para o lado. Pedras que bem poderiam
pesar cem ou duzentos quilos. A força de Kylie nem mesmo a surpreendia,
ela só pensava em Derek e Ellie.
— Ah, meu Deus! — Della deu um passo para trás.
Kylie viu o corpo mutilado de Ellie deitado entre as rochas. Kylie
prendeu a respiração e as lágrimas começaram a cair mais rápido. Ela pegou
Ellie no colo e depositou seu corpo sobre a trilha pedregosa.
— Ela está morta — disse Della.
— Continue tirando as pedras — Kylie ordenou a Della, e com todas
as suas forças rezou para que Derek ainda estivesse vivo. Rezou também
para que pudesse trazer Ellie de volta.
Kylie colocou as mãos sobre o corpo de Ellie e rezou para que aquilo
funcionasse. Fechou os olhos, concentrada, e moveu as palmas das mãos
sobre os ferimentos, assim como tinha feito com Lucas e Sara. Sangue, o
sangue de Ellie, cobriu as mãos de Kylie. Ela chorou mais e tentou com mais
afinco, mas, não importa o quanto se concentrasse, suas mãos não
esquentavam.
De repente, o espírito de Ellie estava sentado ao lado do seu corpo.
— É tarde demais. Olhe. — Ellie apontou para o céu. O sol era uma
grande bola laranja. — Estou vendo minha mãe lá em cima. Ela está esperando
por mim.
— Não — disse Kylie. — Não vá. Estou tentando trazer você de
volta.
— Mas eu quero ir com ela. Sinto saudade.
— Não! — Kylie gritou novamente.
O espírito de Ellie ficou de pé.
— Derek está vivo! — Ela apontou para Della enquanto tirava as
pedras. — Mas eu tenho que ir. Obrigada, Kylie Galen. Obrigada por ser minha amiga. Obrigada por me ensinar a pensar além de mim mesma. Obrigada por tudo.
— Por favor, não! — Kylie implorou. Mas era tarde demais. O
espírito de Ellie começou a flutuar em direção ao pôr do Sol e Kylie sabia
que não havia mais esperança.
— Achei! — gritou Della. — Achei Derek!
Kylie correu até ele. Estava inconsciente, mas respirando. Ela viu os
ferimentos em sua cabeça e apertou a mão contra eles. Mais sangue escorreu
por entre seus dedos, mas ela não se importou. Suas mãos ficaram cada vez mais quentes e ela sentiu o calor de suas palmas penetrar no couro cabeludo
de Derek.
— Você conseguiu salvar Ellie? — Della perguntou.
— Não, me desculpe — Kylie disse, e olhou para Derek.
— Holiday e os outros estão chegando — disse Della, e quando Kylie
olhou para cima, viu que Della chorava.
— Eu tentei salvá-la — disse Kylie. — Realmente tentei.
Derek de repente abriu os olhos.
— O que aconteceu?
Kylie ficou de pé. Derek olhou para ela e então a dor se estampou em
seus olhos.
— Ellie?
Kylie colocou a mão sobre a boca e mais lágrimas inundaram seus
olhos.
Derek se levantou e viu o corpo de Ellie. Ele se ajoelhou ao lado dela.
Kylie viu lágrimas de raiva em seus olhos.
— Quem fez isso?
A culpa cresceu dentro de Kylie.
— Foi o velho vampiro, o que veio atrás de mim.
Holiday e cerca de uma dúzia de outros campistas apareceram na
curva que levava à borda do despenhadeiro. Kylie procurou por Lucas,
desejando que ele estivesse ali para abraçá-la, mas depois se lembrou de que
ele tinha ido visitar a avó.
Ela se virou e fitou o despenhadeiro, as emoções à flor da pele. Então
ouviu vários campistas ofegando e alguns chorando. Sem dúvida, tinham
visto o corpo de Ellie.
Holiday se aproximou e pôs a mão no ombro de Kylie.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto, ela contemplou as mãos cheias
de sangue e olhou para a líder do acampamento.
— Para que serve esse dom, se não posso salvar quem eu quero?
Holiday não tentou responder, apenas acolheu Kylie em seus braços
e abraçou-a.
— Precisamos ir antes que escureça — Holiday disse, finalmente.
Derek pegou no colo o corpo de Ellie, como se ela fosse uma boneca
de pano. Em seguida, Kylie o viu estender a mão e pegar do chão o boné
com a inscrição LITLLE VAMP. Ele enfiou o boné debaixo do braço e
carregou o corpo de Ellie pelo caminho íngreme.
Caminharam por cerca de cinco minutos, calados. Então Derek
deixou cair o boné de Ellie, e o vento o soprou até Kylie. Ela ouviu Derek
pedir a alguém para buscá-lo. Por último na fila indiana que se formara e
sentindo-se entorpecida, Kylie se virou para pegar o boné. Então viu que ele
estava a apenas alguns metros de distância. Andou até ele e estava quase a
ponto de alcançá-lo, quando uma grande rajada de vento o levantou no ar e
o fez cair mais perto da borda do precipício.
Kylie deu mais alguns passos em direção ao boné. O vento tornou a
levantá-lo no ar, fazendo-o cair bem na borda. Ele ficou ali, suspenso, prestes
a cair no despenhadeiro.
Só então Kylie sentiu que a brisa parecia bem pouco natural.
Ela não estava sozinha.
O estalo de um galho seco se quebrando nunca pareceu mais
assustador. Alguém estava parado atrás dela. E a menos de dois metros à
frente estava... a morte. Kylie não tinha ideia da profundidade do
despenhadeiro, mas suspeitava que a queda fosse fatal.
Com a respiração presa, pensando que a qualquer momento iria
sentir alguém lhe dando um empurrão fatal, ela se virou. O velho vampiro
Mario e outros dois sobrenaturais mais velhos estavam ali olhando para ela
com um olhar frio e calculista. Todos os três estavam vestidos como monges,
as vestes escuras esvoaçando ao vento.
— Kylie Galen — cumprimentou-a Mario. A voz soou tão
envelhecida quanto a aparência dele, mas a sensação de poder era inegável.
Seria isso o que Kylie era? Ela estudou Mario; mais de perto, seus olhos
pareciam negros como carvão. Ela viu apenas o mal ali, e a ideia de que
tinha algo em comum com essas pessoas a enojou. — Então nos encontramos
novamente.
Ela deu um passo para trás e chegou mais perto da borda.
— Para o meu azar... — murmurou Kylie, sentindo a sola do tênis
sobre a borda do despenhadeiro.
— Isso é verdade, minha querida — disse ele. — Mas, se está tão
decidida a se salvar, pode se juntar a nós agora. Prometendo-nos lealdade
você vai viver. Meu neto vai ser um bom marido.
— O que você é? — Ela apertou as sobrancelhas e viu os padrões da
gangue.
Mario era vampiro, o barbudo era bruxo e o outro tinha o padrão de
um lobisomem. Mas todos os três padrões eram sombrios e sinistros.
— Junte-se a nós e você terá suas respostas.
Kylie engoliu em seco e fez uma pequena oração. Ela orou pedindo
ajuda. Então orou pedindo perdão por tudo e qualquer coisa que tivesse
feito errado. Então rezou para ter coragem. E em seguida deu outro passo
para trás, até não sentir mais o chão sob os pés.
 
A gravidade puxou Kylie para baixo. Sua respiração ficou presa na
garganta ao mesmo tempo em que sentiu a mão de alguém agarrar seu
braço. Seu coração saltou no peito ao ver o rosto do seu salvador. Ruivo.
Ele a puxou de volta para a terra firme.
Ela ficou de pé, ao lado dele, e teve um sobressalto ao se dar conta de
que ele salvara sua vida.
— Olá, Kylie — disse Ruivo.
Ela apenas olhou para ele, sem saber o que dizer.
— Ela já fez sua escolha — disse o homem de barba ao lado de
Mario. Seu manto marrom escuro flutuou ao vento quando ele levantou a
mão e apontou os dedos longos e envelhecidos na direção dela. Kylie viu
com horror quando chamas azuladas saíram das pontas dos seus dedos.
Ruivo pulou na frente dela, e as chamas desapareceram.
— Eu disse que ia fazê-la mudar de ideia. Dê um tempo a ela. Seria
um desperdício matá-la.
— Ela fez sua escolha — disse Mario. — Seu tempo acabou. Saia do
caminho. Deixe-a despencar para a morte.
— Não! — gritou Ruivo.
Kylie olhou para ele, confusa com a sua disposição para protegê-la.
Mas Ruivo não tinha feito isso o tempo todo?
— Ousa me desobedecer na frente dos meus colegas? — Mario
grunhiu.
— Ouso! — disse Ruivo, com atrevimento. — Vivi minha vida toda
de acordo com as suas regras. Você matou a minha mãe. Forçou meu pai a
fugir. Eu aceitei isso toda a minha vida e nunca pedi nada a você, além
disso. Poupe-a. Por mim.
— Ela não pode ser poupada — disse o outro homem de idade. —
Ela será nossa ruína.
— Não será. Eu cuidarei dela — disse Ruivo. — Vou fazê-la mudar
de opinião. Vou convencê-la. — Havia um tom de súplica em sua voz.
— A decisão já foi tomada — disse o barbudo.
Então o outro velho levantou a mão e uma lufada de vento levantou
Kylie do chão, fazendo-a bater as costas na borda do despenhadeiro.
Ela sentiu que estava caindo. Sentiu o vazio quando parte de seu
corpo deslizou pela pedra. O medo a deixou tensa, mas a tristeza por todos
que ela amava expulsou o medo. Ela viu rostos, em sua mente, de quem
sentiria muita falta. Coisas que nunca faria. Ela viu o rosto de Lucas e de
Derek. Viu seus amigos — novos e antigos. Então piscou, sentindo-se
incapaz de respirar. Viu o Sol se pôr e sentiu um estranho tipo de calma
brotar dentro dela. As cores do anoitecer preencheram sua mente com uma
onda de serenidade. Ela poderia rever Daniel e Nana.
Algo ou alguém a agarrou novamente, trazendo de volta a
lembrança de ser salva por Perry em pleno ar. O aperto em torno do seu
pulso não era humano. O solavanco trouxe ar aos seus pulmões. Perry teria
vindo salvá-la?
— Peguei você. Segure-se!
Mas a voz não era de Perry. Era de Ruivo.
Um raio passou por eles, tão perto que Kylie sentiu sua ferroada.
Em segundos, o enorme pássaro pousou na borda do desfiladeiro e
pousou-a suavemente em pé no chão. Nenhuma centelha surgiu no ar
quando ele voltou à forma humana. Ele era mais do que apenas um
metamorfo.
— Você está bem? — perguntou ele.
Kylie olhou para ele através das lágrimas e acenou com a cabeça.
Lembrou-se dele salvando-a da cobra. Salvando-a do relâmpago na floresta
e tentando salvá-la do sumidouro. Ela nunca tinha agradecido, nunca
considerou essa necessidade, porque tudo o que via nele era maldade. Mas
então ele salvou Miranda, também.
— Eu nem sei seu nome de verdade — ela conseguiu dizer.
— Roberto. — Ele sorriu. — Consegui pegar isso. — Ele lhe entregou
o boné de Ellie. Então Kylie percebeu. Ruivo... Roberto não era tão perverso
assim.
— Obrigada — agradeceu.
Ele olhou para ela como se não soubesse o que responder. Então
estendeu a mão e secou uma lágrima do rosto dela.
— Você é bonita mesmo quando chora.
— Não, não sou. Fico toda vermelha e...
Um raio, vindo de cima, cortou o ar. Roberto a empurrou, fazendo
suas costas se chocarem contra a parede de pedra atrás dela. Ele parecia
preparado para correr, mas antes disso, outro raio caiu, atingindo-o. O chão
debaixo dela tremeu com o impacto. O cheiro de carne queimada chegou ao
seu nariz.
Kylie caiu de joelhos, o pânico apertando sua garganta. Ela não
queria ver, mas não pôde desviar o olhar. Os olhos de Roberto estavam
vermelho-sangue e seu corpo se contorcia para trás, enquanto algo que
parecia fumaça subia da sua boca; Kylie sabia que era sua alma. E, em
seguida, ele caiu. O baque do seu corpo sem alma na terra dura foi de pura
tristeza.
Ela se levantou para tentar salvá-lo.
— Não! — O som da voz dele sobressaltou-a. Ela olhou para ele. Seu
espírito estava a vários metros do seu corpo, olhando em direção ao céu
crepuscular. — Eu não quero ficar. — Matizes de roxo, cor-de-rosa brilhante,
dourado e cinza agora coloriam o céu. — Você os vê? — perguntou ele.
Por um segundo, ela pensou que ele estava se referindo ao avô e aos
dois outros homens, mas então os viu e compreendeu. Os anjos estavam
dançando no céu multicolor; como pássaros, eles se moviam graciosamente
ao vento.
Kylie acenou com a cabeça.
— Sim.
Mas ela ainda tinha que tentar. Colocou as mãos sobre o corpo dele e
concentrou-se. Nada aconteceu. Suas mãos não se aqueceram. Desistindo,
ela finalmente olhou para o espírito de Roberto.
— Por que você quer me salvar? — ele perguntou.
— Porque você me salvou — disse ela, e olhou para ele.
Ele a fitou por um instante e todo o mal tinha se desvanecido dos
seus olhos. O que ela viu foi uma pessoa que nunca teve uma chance. Um
garoto criado no mal, educado no mal, e que nunca tinha amado.
— Eu entendo agora — disse ele. — Eu estava errado, Kylie Galen. Você
não é minha alma gêmea. Mas por causa de você, salvei a minha alma. — Então,
lentamente o seu espírito foi levado, alçado para o céu.
Ele tornou-se parte das cores do anoitecer. Parte da beleza, parte de
algo que era eterno. Os anjos da morte o levaram no último instante do
crepúsculo.
Kylie não sabia ao certo quanto tempo tinha se passado, mas as cores
do céu tinham adquirido um tom negro quando outra lufada de vento a
atingiu. O que parecia um clarão em meio à escuridão da noite de repente se
tornou um corpo, que se agachou a apenas alguns metros dela. Kylie deu
um passo para trás e em seguida reconheceu Burnett.
— Você está bem? — perguntou ele.
Kylie acenou com a cabeça.
— Eu preciso tirar você daqui agora. — Ele a fez se levantar.
Ela olhou para o corpo perto dos seus pés. E percebeu que seus
olhos, vazios, mortos, estavam abertos. Ela se abaixou e fechou suas
pálpebras.
Quando ela se levantou, disse a Burnett:
— Ele morreu para me salvar.
— Então agora talvez fique mais fácil enfrentar sua nova vida no
inferno. — Burnett a pegou nos braços.
— Ele não foi para o inferno — disse Kylie.
Ela não sabia se Burnett tinha ouvido. Mas não importava. Ela sabia.
Burnett carregou Kylie de volta ao escritório principal, onde Holiday
esperava impacientemente na varanda. Ao chegarem, colocou Kylie no chão.
— Graças a Deus! — Holiday correu para Kylie e a abraçou. —
Obrigada — Holiday disse a Burnett, mas ele mal pôs Kylie no chão e já
tinha partido.
O olhar de preocupação de Holiday se acentuou, mas sua expressão
mudou e ela olhou Kylie nos olhos.
— Você está bem?
Kylie acenou com a cabeça e tentou não chorar.
— Derek está bem?
— Está descansando.
Kylie assentiu.
— O que aconteceu, Kylie? Você estava lá e, um instante depois, não
estava mais.
Kylie tirou o boné de Ellie do bolso do jeans.
— Voltei pra pegar isso, e... — As lágrimas que ela não queria
derramar vieram assim mesmo, e ela contou a história toda a Holiday.
Kylie não estava dormindo quando alguém bateu na porta, várias
horas depois. Ela ouviu Della atender. Então ouviu a voz de Lucas.
Ele entrou no quarto dela e puxou-a contra ele, e Kylie abraçou-o
como quem se agarra a um salva-vidas. Ela precisava de sua força. Precisava
sentir os braços dele à sua volta. Eles ficaram assim por horas, sem beijos,
sem carícias, apenas abraçados.
Na manhã seguinte, o clima no acampamento era sombrio, para
dizer o mínimo. Todos sentiam falta de Ellie. Sentiam falta de Burnett.
Sentiam falta de Derek, que havia deixado o acampamento para passar o fim
de semana na casa da mãe. Kylie estava quase com receio de revê-lo. O
funeral de Ellie tinha sido marcado para a semana seguinte, porque a UPF
queria fazer uma autópsia. Kylie sabia que ninguém no acampamento a
culpava, mas ela não conseguia deixar de culpar a si mesma.
Holiday, captando os sentimentos de Kylie, ofereceu-se para ir com
ela até a cachoeira. Foi ali, por trás da parede de água, que Kylie sentiu a
maior parte da culpa se desvanecendo. Mas ela se perguntava por que
aquilo tinha que ter acontecido.
A resposta veio na forma de um sentimento. O destino havia
chamado Ellie para voltar para casa. Aquela história de destino ainda
irritava Kylie. Mas parte da culpa se foi.
Holiday trabalhou como louca para manter o acampamento
funcionando normalmente e entrevistar os professores. Era demais para uma
só pessoa, no entanto. Por isso Kylie se reuniu a alguns campistas para
assumirem algumas tarefas. Uma pessoa supervisionaria os contratados,
enquanto outra atenderia aos telefonemas, no escritório.
Holiday quase protestou, mas depois se deu por vencida e aceitou a
ajuda.
Na tarde de quinta-feira, quando Lucas assumiu o posto de sombra,
Kylie perguntou se ele tinha visto Burnett.
— Não, mas ele está por perto — disse Lucas. — Está montando
guarda ao redor do acampamento em caso de mais alguma coisa acontecer.
Kylie esperava que nada mais acontecesse. De acordo com Miranda,
quem quer que estivesse vigiando o acampamento tinha ido embora.
Aparentemente, o mesmo tinha acontecido com o fantasma de Kylie, porque
ele não apareceu mais.
Na tarde do dia seguinte, Kylie estava sentada na varanda quando
Derek apareceu. Ele devia ter voltado mais cedo.
A culpa insistente que ela sentia pela morte de Ellie voltou à
superfície. E quando viu a sombra de tristeza nos olhos dele, ela sentiu a
culpa aumentar a ponto de doer.
Ele se sentou ao lado dela.
— Foi por isso que vim vê-la.
Ela olhou para ele, sem saber a que ele estava se referindo.
— Eu sei que se sente responsável pelo que aconteceu. Só queria que
você soubesse que foi escolha de Ellie perseguir o intruso. E foi escolha
minha ir atrás dela. Não é culpa sua. Você teria feito o mesmo por qualquer
um neste acampamento.
Kylie sentiu um nó se formar na sua garganta.
— Mas Mario estava aqui por minha causa.
— Eu sei. Tenho certeza de que Ellie sabia também quando foi atrás
dele. Mas isso não a impediu. E ela ficaria muito infeliz se soubesse que você
se culpa pela morte dela. Seria uma desonra à memória dela se eu deixasse
você continuar se culpando. Ela gostava de você. Gostava muito.
Kylie sentiu as lágrimas transbordarem e Derek pôs o braço em
torno dos ombros dela. Não foi um abraço de namorado, apenas um abraço
de um amigo oferecendo um toque caloroso de conforto. E ela se sentiu
muito bem.
Quando, no dia seguinte, Jane continuou sem aparecer, Kylie
procurou Holiday para fazer um pedido.
— Não — disse Holiday, empurrando a cadeira para trás.
— Mas eu preciso vê-la, e eu sei que ela está lá.
— Não se lembra do que aconteceu da última vez que você foi?
— Eu lembro que sobrevivi — disse Kylie. — Lembro também que
acabei ajudando uma outra alma perdida, e aprendi alguma coisa quando
estava lá. Eu preciso ir, Holiday.
Holiday bateu a ponta da caneta na escrivaninha.
— Alguém está tentando te matar.
— Estava tentando — corrigiu Kylie. — Eu acho que Miranda está
certa. Já desistiram.
— Por que teriam desistido?
— Eu não sei. Mas eu me recuso a viver a minha vida numa prisão.
— Não é uma prisão — contestou Holiday.
— É sim, se você não puder sair nunca.
Holiday fez uma careta.
— Se eu disser não, mesmo assim você irá, não é?
Kylie pensou um pouco e respondeu com sinceridade.
— Provavelmente.
— Tudo bem. Vou estar livre por volta de uma hora depois do
almoço e então nós...
— Eu não acho que você deveria ir — disse Kylie.
— Por quê?
— Eu estive lá. Eles me conhecem e, se você aparecer, pode
confundir as coisas. Eu acho que você assusta Jane Doe. Ela pode não se
mostrar se você estiver lá.
Holiday expressou ainda mais preocupação.
— Não há nenhuma chance de eu deixá-la ir sozinha.
— Não digo sozinha — Kylie insistiu. — Você podia ligar para
Burnett.
Holiday franziu a testa, mas Kylie sabia que ela não discordaria. Não
quando isso envolvia a segurança de alguém. E, sim, ela admitia, isso podia
ser um truquezinho para vê-los juntos outra vez, pois Kylie não suportava
mais ver Holiday tão infeliz.
Além disso, Kylie realmente queria ajudar Jane Doe.
Burnett concordou com o plano. Mas, depois da morte de Ellie, ele
achou que não deveriam ir sozinhos, apenas os dois. Lucas não estava lá. Ele
havia ido a Houston para buscar material para os empreiteiros. E não
voltaria antes das três da tarde. Então Burnett recomendou Derek e Della.
Derek pareceu vibrar quando ela perguntou se ele podia
acompanhá-la. Concordou mesmo antes de saber aonde iriam.
— É no cemitério — disse ela. — E vai ter fantasmas lá.
— Ok, sem problema.
Della não tinha ficado tão feliz. Mas, claro, depois de resmungar um
pouco, também concordou em ir.
Quando chegaram aos portões do Cemitério de Fallen, Della
resmungou um pouco mais. Derek pôs a mão quente nas costas de Kylie e
sussurrou:
— Não se preocupe. Estou aqui.
Obviamente, ele tinha captado a apreensão de Kylie diante dos
portões imponentes. Claro, ela tinha bancado a corajosa diante de Holiday,
mas isso não significava que não estivesse com medo. Ainda se lembrava
muito bem de como tinha ficado apavorada quando os espíritos a
abordaram todos de uma vez.
— Obrigada. — Mentalmente tentou reunir toda a sua coragem e
atravessou os portões, com Della de um lado e Derek e Burnett do outro.
Luz e sombra dançavam sobre as sepulturas, enquanto um frio
pouco natural impregnava o corpo deles como uma neblina invisível.
Derek inclinou-se para mais perto dela novamente.
— Eu preciso falar com você... quando tivermos um minuto. É
importante.
Ela assentiu com a cabeça.
— É ela. Ela está de volta... — Kylie ouviu uma voz e, em seguida,
uma fusão de vozes, masculinas e femininas, jovens e envelhecidas. — Ela disse que ia voltar. — E eu pensei que ela estava tentando nos enrolar. — Eu disse que ela não estava mentindo.
A tensão causou uma pressão em seu crânio e ela pressentiu uma
dor de cabeça. Mas o espírito da mulher do velho manifestou-se e as vozes
se distanciaram. — Meu marido está tomando seus remédios direito, graças a você.
— Que bom! — Kylie disse em voz alta.
— O que é bom? — Derek perguntou.
— Ela não está falando com você — explicou Della. — Assustador,
não é?
— Não é tão ruim assim — disse ele, mas Kylie viu seus olhos verdes
esquadrinhando o cemitério, como se indagando onde estavam os tais
espíritos.
Burnett permaneceu em silêncio, muito calmo. Ele mal tinha falado
desde que tinham se encontrado na frente do acampamento.
Por que você não fez sua passagem? Kylie perguntou mentalmente
enquanto caminhava entre as lápides.
— Decidi esperar por ele — disse Ima. — Mas Catherine já fez sua transição. A mulher que você ajudou. Os filhos dela vieram aqui. Eu os ouvi dizer que estão planejando alterar sua lápide para inscrever o seu verdadeiro nome. Foi muito amável de sua parte ajudá-la.
Kylie acenou com a cabeça.
— Você já viu a outra mulher? A que vocês chamam de Berta Littlemon? — Ela estava aqui agora. Está arrasada desde que a levaram embora.
— Como assim? — Kylie perguntou em voz alta novamente.
O espírito apenas deu de ombros e disse: — Lá está ela. Sentada perto do túmulo.
— Eu só vou até ali. — Kylie apontou para o local onde Jane estava
sentada no chão.
— Fique onde possamos vê-la — disse Burnett.
Kylie se aproximou de Jane. A mulher olhou para cima e o sol bateu
em seu rosto. Ela tinha lágrimas sob os cílios escuros. Não usava nenhuma
maquiagem. Parecia jovem. E grávida.
— Você está bem?— Kylie sentou-se ao lado de Jane.
 
O espírito olhou para a sepultura. — Eu quero tanto me lembrar! Mas meu cérebro não funciona. Às vezes eu sinto como se as respostas estivessem bem aqui, mas não consigo alcançá-las. Então me lembro de alguma coisa e a lembrança se desvanece. Por que meu cérebro não funciona direito?
Kylie hesitou. Mas Jane merecia saber. Assim como Kylie merecia
conseguir suas próprias respostas.
— Eu não sei tudo, mas sei alguma coisa.
— O quê? — perguntou ela.
— Existe uma organização chamada UPF. Eles são como o governo
dos seres sobrenaturais. De acordo com a líder do nosso acampamento,
vários anos atrás, a UPF estava fazendo testes, algo sobre genética. Eu não
sei bem que tipo de teste era, mas, pela visão que tive, acho que você era
uma das pessoas que foram testadas, e eles fizeram uma cirurgia em você.
Rasparam a sua cabeça e deram pontos. Na visão, você parecia paralisada.
Acho que algo deu errado com o teste que eles fizeram, então eles... a
mataram.
Jane colocou a mão sobre os lábios trêmulos. — Eu me lembro de ter mostrado isso a você. Colocaram um travesseiro sobre o meu rosto.
— Isso mesmo — disse Kylie. — Eu não queria fazer os testes, mas... meu marido... Qual era o nome dele? — ela perguntou a Kylie.
— Eu não sei.
Jane sacudiu a cabeça. — Ele insistiu para que fizéssemos, para que nos deixassem em paz.
— Para quem os deixasse em paz? — Kylie perguntou, querendo ter
certeza de que elas ainda estavam falando da UPF.
— A organização que você disse. Se não concordássemos em ser testados, eles nos prenderiam.
— Por quê?
Jane fez uma pausa novamente.
— Eu não me lembro. Mas acho que era porque nós éramos diferentes. —
Ela olhou para a sepultura. A terra ao redor da lápide tinha sido revirada. — Ele me levou embora. Cavou a sepultura e me tirou daqui.
— Quem? — Kylie se inclinou mais para perto. — Aquele homem perverso.
— Que homem perverso? — Aquele que queria que você fosse testada.
— Burnett? — Kylie perguntou. — Ele levou seu corpo?
Ela assentiu.
— Eu não gosto dele.
Kylie olhou para o túmulo, tentando descobrir o que aquilo
significava.
— Ele não é ruim — disse, por fim. Mas por que ele desenterraria o
corpo de Jane? Seria para provar o que a UPF tinha feito? Ou, pelo contrário,
seria para proteger a UPF das suas acusações?
— Ele parece perverso. — Jane apontou para a trilha.
Kylie olhou para cima. Burnett estava parado na frente dela.
— Eu posso explicar.
Kylie se levantou.
— Espero que sim.
Ele franziu a testa, mas não explicou, por isso ela decidiu começar a
fazer perguntas.
— Por que você tirou o corpo de Jane Doe daqui?
Ele hesitou.
— Achei que você queria saber quem ela era.
Kylie sentiu que ele não estava falando toda a verdade.
— Você sabe quem ela é?
Ele balançou a cabeça.
— Eu ia dizer assim que tivesse mais informações. — Ele fez uma
pausa novamente. — Mas acho que posso dizer agora. O nome dela é Heidi
Summers.
Kylie olhou em volta, procurando o espírito. Ela não o viu, mas
ainda podia sentir o ar gelado. Se era Jane ou outro espírito, Kylie não sabia.
— Eu tenho um endereço, também. Ela morava a alguns quilômetros
daqui. Achei que você talvez quisesse ir até lá.
— Quero — disse Kylie. — A família dela ainda mora lá?
Burnett começou a andar e Kylie o seguiu. Ela viu Derek e Della
esperando por eles junto aos portões.
— A casa está no nome de Malcolm Summers — disse Burnett. —
Então, estou supondo que seja da família dela.
Kylie prendeu a respiração quando mais de uma centena de almas se
alinhou dos dois lados da trilha. Todas elas estenderam a mão para ela e
começaram a falar de uma só vez. Sua cabeça começou a latejar. A sensação
gelada de seus toques pinicava sua pele como milhares de agulhas.
Ela se sentiu sendo puxada em milhares de direções diferentes. — Ajude-me. — Não, me ajude. — Parem com isso! — O espírito da mulher do velho gritou. — Se vocês não se comportarem, ela não vai voltar.
O burburinho de vozes cessou. Eles baixaram as mãos, mas não se
afastaram. Ficaram completamente imóveis, observando-a com seus olhos
sem vida, todos carentes, precisando dela para fazer alguma coisa por eles,
para que pudessem fazer sua travessia.
Mas havia espíritos demais para ela ajudar. A culpa pesou em seu
peito. Ela respirou o ar gelado e se forçou a se concentrar na única que
poderia ajudar. Jane Doe.
— Família Summers. Eles são sobrenaturais, não são? — Kylie
perguntou, sem ter certeza do que diria a eles. Mas se fossem sobrenaturais,
talvez as coisas não fossem tão difíceis.
Burnett franziu a testa.
— Elas não são sobrenaturais registrados.
— Você acha que são de alguma gangue?
— Nem todo mundo que não é registrado é de uma gangue. Mas
poderiam ser.
Derek se aproximou de Kylie, parecendo preocupado, e sutilmente
roçou as costas da mão na dela. Kylie sentiu a calma que ele oferecia e
agradeceu mentalmente a ajuda.
Burnett virou-se para Derek e Della logo que saíram pelos portões.
— Eu liguei para Holiday e pedi que viesse pegar vocês dois. Eu levo
Kylie mais tarde.
Kylie e Burnett entraram no Mustang do vampiro. Enquanto ela
observava as silhuetas de Della e Derek ficando cada vez menores no
retrovisor, um pensamento maluco lhe ocorreu. E se Burnett a estivesse
levando para a UPF com a intenção de forçá-la a fazer os testes? Será que
Jane estava certa? E se ele não estivesse bem intencionado?
 
Nenhum dos dois falou durante o trajeto. O silêncio parecia pesado,
mas não tão incomum, ou foi o que Kylie disse a si mesma. Burnett nunca
fora de falar muito.
Mas, a cada giro dos pneus, a incerteza de Kylie aumentava. Ela
olhou mais uma vez para Burnett, sentado em silêncio no banco do
motorista.
— Você parece nervosa — disse ele.
— Eu deveria estar?
Ele parecia confuso.
— Pensei que você queria vê-los.
Ela assentiu, mas a lembrança de Jane e da sua cirurgia surgiu ainda
mais forte. Ah, claro, o coração de Kylie dizia que Burnett era um bom
sujeito, mas ela se lembrava de Holiday dizendo que a UPF não hesitaria em
sacrificar uma pessoa se achasse que era por uma boa causa.
Quando Burnett estacionou o Mustang em frente a uma pequena
casa de molduras brancas nas janelas, a mesma casa que Kylie tinha visto em
suas visões, uma onda de vergonha se abateu sobre ela por ter duvidado de
Burnett.
— Eu tentei ligar para eles, mas ninguém atendeu — explicou
Burnett. — Claro que vou entrar com você, mas vou deixar que explique as
coisas do seu jeito.
Dois minutos depois, após baterem na porta e perceberem que não
havia ninguém em casa, uma mulher, aparentando uns 90 anos, saiu da casa
vizinha.
— Posso ajudar? — Ela andou na direção deles, movendo-se
incrivelmente rápido para alguém da idade dela.
Kylie, pensando ter sentido uma lufada de ar frio, imediatamente
verificou o padrão da mulher. Burnett fez o mesmo. A mulher era humana.
— Estamos procurando o senhor Summers — disse Burnett.
— Bem, chegaram tarde. Ele e a cunhada pegaram o avião esta
manhã. Foram para a Irlanda.
Irlanda? Seria uma coincidência os Brightens estarem naquele mesmo
país?
Kylie olhou para Burnett e viu a mesma pergunta estampada em
seus olhos.
— Por que eles foram pra lá? — Burnett perguntou.
A vizinha sorriu.
— Ele disse que estava procurando algo que tinha perdido há muito
tempo. Disse que era algo mais valioso do que ouro e que ele tinha
descoberto que podia estar lá.
— A senhora sabe quando ele pretende voltar? — Kylie perguntou.
— Eu fiquei de regar as plantas e dar comida para o gato durante
uma semana.
Burnett começou a voltar para o carro.
— Obrigado, senhora.
— Vocês querem deixar um recado? — A vizinha perguntou.
— Nós vamos voltar. — Burnett sorriu e acenou.
Kylie entrou no carro e afundou-se no assento, com vontade de
chutar e gritar de frustração. Mais perguntas e nenhuma resposta. Ela já
estava cansada disso.
Burnett ligou o carro.
— Vamos até o próximo quarteirão e então podemos voltar a pé.
— Voltar pra quê? — Kylie perguntou.
— Achei que você ia gostar de entrar lá dentro — disse ele. — Ver se
conseguia descobrir alguma coisa.
— Não é contra a lei? — Kylie perguntou.
Os olhos dele se arregalaram.
— Só se formos pegos.
Kylie mordeu o lábio com tanta força que sentiu o gosto de sangue.
— Você tem algo como um “passe livre” para sairmos da cadeia se
formos pegos? Não acho que eu ficaria muito bem num uniforme de
presidiária.
Ele bateu no bolso.
— Acho que tenho dois comigo.
A casa cheirava a ervas. Alecrim. Talvez um pouco de tomilho. E os
móveis eram velhos. Muitas antiguidades, objetos que pareciam caros, mas
nada muito chamativo. Quando Kylie entrou na sala, viu o armário de onde
Jane tinha tirado a mala. Logo em seguida, sentiu o frio descendo sobre ela.
Ela parou abruptamente. Burnett parou atrás dela.
— Algo errado? — perguntou ele.
— Você quer dizer algo além do fato de estarmos invadindo a casa
de alguém? — Ela tinha certeza de que ele não iria querer saber que tinham
companhia espiritual.
— Não tem problema — disse ele.
— Certo.
Ela entrou no quarto. Jane Doe, também conhecida como Heidi
Summers, estava sentada na cama, e olhava para as fotos sobre a mesa de
cabeceira.
Kylie estudou o rosto da mulher na moldura.
— É você.
— O que disse?... Esquece, vou esperar lá fora.
Burnett devia ter percebido que ela não estava falando com ele e não
queria nada com o fantasma. Considerando o que lhe tinha acontecido da
última vez, Kylie não o culpava.
— Eu e Malcolm — disse Heidi, pronunciando o nome com imenso
carinho. — Eu me lembro.
Kylie pegou a foto. Lembrou-se de ter sentido algo estranho quando
viu o rosto do homem na visão. A mesma sensação a envolveu novamente.
Calafrios percorreram sua espinha. Não de frio desta vez, mas com o choque
da constatação.
— Burnett?
— O quê? — Ele invadiu o quarto como se estivesse pronto para
lutar com alguém.
Ela estendeu para ele a fotografia.
— É ele.
O vampiro pegou a foto.
— Quem?
— É o mesmo homem que foi ao acampamento. Aquele que se
passou pelo meu avô.
Burnett analisou a foto.
— Você tem certeza?
— Absoluta.
Heidi se levantou.
— Era ele, não era? Eu me lembro. E aquela era minha irmã.
A irmã dela? Kylie lembrou-se da mulher, lembrou-se de sentir uma
ligação com ela.
— Por que eles foram ao acampamento e fingiram ser meus avós
adotivos? — Kylie perguntou, e a pergunta era tanto para Burnett quanto
para Heidi.
— Eu não sei — respondeu Burnett.
Heidi ficou em silêncio como se tentasse pensar. — Espere. Eles eram da Irlanda. E a vizinha disse...
— Quem era da Irlanda? — Kylie perguntou, e viu Burnett sair de
novo.
— As pessoas que adotaram o meu menino. Eu permiti que o adotassem. Fui a um médico que arranjava bons pais para as crianças. O médico era humano, mas ele sabia sobre os sobrenaturais. Lembro-me de que houve complicações, eu tive que fazer uma cesariana, e o médico não queria fazer porque não tinha anestesia; eu o obriguei a fazer de qualquer maneira. Eu não podia deixar meu bebê morrer. Sabia que nenhuma dor seria pior do que roubar do meu filho a chance de viver. Então eu me certifiquei de que ele iria para uma boa família. — Ela se sentou mais ereta. — Malcolm está olhando pelo nosso filho.
Lágrimas umedeceram os olhos de Kylie quando a verdade atingiu
seu coração, provocando-lhe uma vertigem. Heidi Summers era a mãe
biológica de Daniel. Ela era avó de Kylie. E Malcolm Summers, seu avô de
verdade e a irmã de sua avó tinham se passado pelos pais adotivos de
Daniel. Por quê? Por que não disseram a ela? Mais perguntas. — Ele vai achar nosso menino. E eles serão uma família, do jeito que nós deveríamos ter sido.
A dor por tudo o que sua avó tinha sofrido de repente a inundou.
Saber que ela teria que contar a Heidi sobre a morte de Daniel dilacerava seu
coração.
Mas ela tinha que contar, não tinha?
— Ele não vai encontrá-lo — disse Kylie. — Como você sabe?
Kylie enxugou as lágrimas dos olhos.
— Ele não está na Irlanda. — Por que outro motivo Malcolm teria ido para a Irlanda?
— Ele foi para encontrar os Brightens.
Heidi afundou na cama, como se estivesse tentando compreender o
que Kylie dizia. — Sim, esse era o nome deles. Eles adotaram o meu menino.
Kylie balançou a cabeça.
— Mas seu filho não está com eles.
— Onde ele está? — Ela pulou da cama. — Leve-me até ele. Eu quero vê
lo.
Kylie prendeu a respiração.
— Ele morreu há muito tempo.
— Não! — ela gritou. — Ele está vivo! Eu fui vê-lo pouco antes de nos forçarem a ir para aquele lugar dos testes. Foram alguns meses depois de eu dar à luz. Meu filho estava bem. Tão saudável!
— Ele não morreu quando era bebê — disse Kylie. — Ele cresceu,
conheceu uma mulher por quem se apaixonou, e, em seguida, ingressou no
exército. Ele morreu aos 21 anos, durante uma missão, tentando salvar uma
mulher. Ele foi um herói. Você devia se orgulhar.
Heidi desabou na cama. — Você tem certeza?
— Sim. — Outra onda de lágrimas transbordou dos olhos de Kylie.
— Eu aposto que ele está esperando para conhecê-la do outro lado.
Heidi olhou para cima, como se pudesse ver o céu. — Você o conheceu?
Kylie confirmou com a cabeça.
— Só o seu espírito. — Ela sentiu as lágrimas começarem a rolar
pelas suas faces. — Ele é meu pai.
Os olhos de Heidi se arregalaram.
— Isso significa que você... — Ela estendeu a mão e tocou o rosto de
Kylie. — Eu devia ter adivinhado. Você se parece com Malcolm. Cabelos loiros, em
vez de ruivos, mas os olhos... — Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. — Eu
acho que... uma parte de mim já sabia.
Kylie piscou.
— Eu tenho tantas perguntas para fazer, tantas coisas que gostaria
de saber. Primeiro, o que somos? — O que você quer dizer?
— Somos sobrenaturais, certo?
Ela hesitou, como se tivesse que pensar. — Sim. Foi por isso que eles nos levaram para fazer aqueles testes horríveis.
— Então, o que somos? — Kylie prendeu a respiração, esperando
que ela respondesse.
Heidi franziu a testa como se tentasse pensar novamente.
— Eu... não consigo me lembrar. Sinto muito. Mas... — Ela apontou para
a foto. — Malcolm vai se lembrar. Ele nunca se esquece de nada. — Heidi se
levantou. — Eu tenho que ir ver meu filho agora. Preciso lhe dizer que eu o amo. É por isso que fiquei aqui. Para lhe dizer o quanto lamento que eu o tenha dado a outra família.
— Por que você fez isso? — Kylie perguntou, esperando que ela se
lembrasse de algo. — Por que você o deu a outra família?
Ela inclinou a cabeça como se estivesse pensando novamente.
— Porque eles queriam os pequeninos ainda mais do que a nós.
— Quem? — Kylie perguntou. — A UPF?
— Sim — disse ela. — Foi a única maneira de mantê-lo seguro. Se eu fugisse com ele, eles me encontrariam. Então eu o dei. E disse a Malcolm que perdi o bebê. Tive que fazer isso. Ele confiou neles. Disse que não iam ferir o nosso bebê; iam simplesmente estudá-lo por pouco tempo. Mas eu não acreditei neles. Então dei o bebê, menti para Malcolm e depois voltei porque o amava muito.
— Por que queriam estudar o bebê? — Kylie perguntou. — Eu não me lembro... Espere, era porque éramos diferentes e eles não gostavam nada disso.
— Em que éramos diferentes?
Ela balançou a cabeça. Sua testa se enrugou.
— Tudo ainda está muito confuso. Lembro-me de algumas coisas e
de outras, não. Malcolm saberá dizer.
Ela se inclinou e colocou a mão no rosto de Kylie.
— Eu vou ver o meu menino. Mas você, Kylie Galen, é tudo o que eu queria
numa neta. Eu preciso ir agora.
Kylie queria gritar e implorar para Heidi ficar, porque ela tinha mais
perguntas. Mas era tarde demais. Ela já havia desaparecido.
Quinze minutos mais tarde, Kylie estava sentada em silêncio no
Mustang enquanto Burnett o estacionava em frente ao acampamento. Ela
contara tudo a Burnett. Que Jane Doe era na verdade sua avó, e ela tinha
dado o pai de Kylie a outra família porque a UPF estava estudando crianças
como ele. Burnett colocou o carro na vaga e olhou para ela.
— Então você acha que ele foi procurar os Brightens?
Kylie confirmou com a cabeça.
— Vou ver se consigo encontrar Malcolm Summers na Irlanda. Mas é
bem provável que você tenha que esperar ele voltar.
Kylie assentiu, não gostando de estar tão perto das respostas e ainda
tão longe. Ela estendeu a mão para a maçaneta da porta e, em seguida, olhou
para Burnett.
— Você não vai entrar?
Ele franziu a testa.
— Não.
Kylie hesitou em perguntar, mas então foi em frente.
— Você não vai voltar mais?
Ele apertou o volante.
— Eu não sei.
— Por quê?
Ele olhava para a frente.
— É o que ela quer. Não confia mais em mim.
Kylie engoliu em seco.
— Nem eu confiava.
Ele arqueou uma sobrancelha para ela.
— Quando você estava me levando pra casa de Heidi, tive medo que
estivesse me levando para fazer os testes na UPF.
Ele franziu a testa. A mágoa era visível em seus olhos.
— Mas isso é porque eu vi o que a UPF fez com a minha avó. Revivi
fragmentos da vida dela através dos seus olhos e, quando alguém passa por
algo tão ruim, é difícil confiar. Eu não sei exatamente o que aconteceu entre
Holiday e o outro vampiro, ela não fala nem comigo a respeito disso, mas
deve ter sido muito ruim. Isso a magoou e agora ela está com medo de amar
novamente. Mas se você apenas insistir um pouco mais...
— Eu não tenho feito outra coisa. Agora chega.
Eles ficaram ali sentados, olhando um para o outro durante vários
segundos.
— Eu tenho que ir — disse ele finalmente.
Kylie saiu do carro. Enquanto observava Burnett se afastar, percebeu
que as emoções em seu peito eram as mesmas que sentiu no dia em que viu
Tom Galen sair de carro com suas malas.
Shadow Falls era sua família. Eles já tinham perdido Ellie. Não
precisavam perder Burnett, também. Mas, por mais que tentasse encontrar
uma solução, ela não sabia como poderia mudar isso.
Lucas encontrou Kylie no portão. Mais do que tudo, ela precisava de
um abraço. Queria lhe contar o que havia descoberto, mas tudo o que
recebeu dele foi sua raiva.
— Por que você não esperou por mim? — ele perguntou.
Talvez fosse porque suas emoções já estavam no limite, mas ela
simplesmente começou a andar para longe dele.
— Droga! — gritou Lucas, seguindo-a no mesmo passo. — Por que,
pelo amor de Deus, você voltou àquele cemitério, afinal? E por que deixaram
que Derek fosse com você?
— Porque eu precisava de respostas. E porque Derek é meu amigo.
Assim como Fredericka é sua amiga!
Ele a pegou pelo braço.
— Você sabe o quanto fiquei preocupado?
— Posso imaginar — Kylie respondeu rispidamente. — Você ficou
tão preocupado comigo quanto eu fico com você quando corre por aí na
forma de lobo a noite toda.
Ele pareceu atordoado.
— Eu não posso mudar o que sou, Kylie.
— Nem eu, Lucas. — Lágrimas brotaram dos seus olhos. — Eu não
sei o que sou, mas sei que o que eu faço é falar com fantasmas. E, se você não
pode aceitar isso, então talvez não possa me aceitar.
— Eu não disse isso — ele insistiu. — Eu só quero...
— Você quer que eu seja um lobisomem — disse ela. — Quer que eu
seja um lobisomem para sua família e sua alcateia me aceitarem. Mas no
momento, a probabilidade de conseguir o que deseja não parece muito boa.
Então talvez precise pensar nisso também.
Ela recomeçou a andar.
Ele a alcançou.
— Sinto muito — desculpou-se. — É que eu não suporto pensar que
algo pode te acontecer. E... nada vai mudar o que existe entre nós, não
importa o que você seja. — Ele levantou o queixo dela e fitou seus olhos. —
Você não sabe o que eu sinto?
Lucas a puxou contra o peito e Kylie não fez nada para impedi-lo.
Ela enterrou a cabeça no seu corpo quente e tentou acreditar que ele estava
falando a verdade, mas não podia mentir para si mesma. Sabia que Lucas
queria acreditar, mas não estava completamente convencida de que nada
mudaria entre eles no caso da avó dele realmente se envolver. E Kylie não
sabia se era justo que ela lhe pedisse para fazer essa escolha.
Kylie acordou muito cedo na manhã de terça-feira. Seu primeiro
pensamento foi o de que era o dia do funeral de Ellie. Ela se lembrou da
visão que tivera e se perguntou se era justo ter que reviver tudo aquilo.
Passou a mão no rosto. Seu despertador não tinha tocado. Então, por
que ela estava acordada?
O frio de repente a envolveu como um cobertor de gelo.
— Heidi? — ela se sentou tão rápido na cama que sua cabeça girou.
— É você? Tenho mais perguntas a fazer.
Nenhuma resposta. Kylie ficou ali, esperando. No quarto escuro, viu
uma figura aparecer em meio a uma névoa, nos pés da cama.
— Heidi? — perguntou novamente.
Kylie ligou o abajur. A luz clareou o quarto e iluminou o espírito,
que estava de costas para a cama. Não era Heidi. Kylie não conseguia nem
sequer dizer se o fantasma era um homem ou uma mulher.
De algum modo ele/ela parecia... mais morto do que os outros. Claro,
eles estavam todos mortos, mas, por algum motivo, até mesmo o cabelo
emaranhado parecia mais sem vida do que o cabelo dos outros espíritos.
— Olá — Kylie sussurrou.
O espírito se virou e Kylie perdeu o fôlego. Vermes, larvas e insetos
assustadores rastejavam para dentro e para fora das órbitas, corroendo o
pouco de carne que ainda se agarrava às faces.
Gritando, Kylie recuou até bater os ombros contra a cabeceira da
cama.
— Você pode me ajudar? — Uma enxurrada de vermes caiu em
cascata dos lábios do espírito quando ele falou, e eles se espalharam pelo
cobertor de Kylie.
— Eu... — Kylie chutou as cobertas para impedir que as criaturas de
aparência gosmenta rastejassem em sua direção. — Eu poderia, mas você se
importaria de fazer algo com o seu rosto? Agora!
Della irrompeu no quarto.
— Está tudo bem?
Kylie olhou para os pés da cama. O fantasma tinha ido embora. Ela
suspirou de alívio.
— Está — falou, com a voz fraca. Lembrando-se dos vermes... e sem
muita certeza de que o fantasma os tinha levado com ele..., Kylie ficou de pé,
arrancou as cobertas da cama e jogou-as no chão. Depois se afastou da pilha
de roupa de cama.
— É. Você parece muito bem, mesmo... — Della disse com sarcasmo.
Kylie deu alguns pulinhos, tentando afastar os vermes imaginários
que sentia rastejando sobre sua pele.
Della ficou ali de pijama do Mickey Mouse, olhando para ela como
se não soubesse se deveria rir ou correr.
Kylie parou de dar pulos e tentou respirar normalmente.
— Se eu morrer, prometa que vou ser cremada.
Della franziu a testa.
— Morrer?
— Não que eu esteja planejando morrer tão cedo. — Ela esfregou
mais uma vez o braço. — Mas, mesmo assim, prometa.
Della balançou a cabeça.
— Eu não sei por que você está fingindo que está tudo bem.
Kylie colocou os braços ao redor dos próprios ombros.
— Nem eu.
Kylie não voltou a dormir. Ela não tinha certeza se um dia
conseguiria dormir naquela cama novamente. Em vez disso, vestiu-se e
esperou Della e Miranda para irem ao funeral ao nascer do Sol.
A cerimônia aconteceu exatamente como na visão. Apenas a tristeza
parecia mais profunda, especialmente quando Kylie viu Derek, com
lágrimas nos olhos, segurando o boné de Ellie.
Holiday ficava olhando por cima do ombro. Kylie sabia que ela
estava esperando Burnett. Só quando Chris começou a falar que ele apareceu
e se sentou na cadeira ao lado de Holiday.
Kylie viu os dois se entreolharem. Não sabia ao certo que tipo de
olhar era aquele — não era apenas de tristeza compartilhada. Mas a tristeza
pareceu imperar na atmosfera do dia. Bem, para todos, exceto para a gralha
azul, que ficou pairando por ali, cantando como se quisesse impressioná-la.
Só que ela não estava impressionada.
Quando a cerimônia terminou, Lucas pegou a mão dela e levou-a
para o refeitório, onde eles planejavam fazer uma celebração da vida de
Ellie. Todo mundo ia contar histórias que sabia sobre ela.
Mas Burnett a deteve.
— Eu preciso falar com você e Holiday um minuto.
Lucas disse que iria encontrá-la no refeitório. Então Holiday, Burnett
e Kylie entraram no escritório.
— Algum problema? — Kylie perguntou quando Burnett fechou a
porta.
Ele puxou um envelope do paletó e entregou a Kylie.
— O que é isso? — Holiday perguntou. Pelo seu tom de voz, ela
parecia pensar que tivesse a ver com os testes que Burnett queria que Kylie
fizesse.
— É a localização do corpo da sua avó.
— Você a enterrou numa sepultura própria? — Kylie perguntou.
— Não exatamente. — Ele fez uma pausa. — Digamos apenas que, se
a UPF tentar forçá-la a fazer testes que não se sente à vontade para fazer,
você pode usar isso para... dizer que prefere não participar.
— Então você acha que eles vão pressionar Kylie para que ela seja
testada? — Holiday perguntou.
Burnett franziu a testa.
— Eu tenho a impressão de que sim.
— Você contou a eles o que aconteceu?
— Eu não disse nada porque você me pediu para não dizer.
— Então a UPF não sabe que você removeu o corpo? — Holiday
perguntou.
— Não. — Seu olhar encontrou o de Kylie. — O que eles fizeram
com a sua avó foi errado. E, embora a agência tenha admitido alguns erros
cometidos com certos testes realizados nos anos sessenta, este é um
esqueleto que eles não gostariam que tirassem do armário.
— Por que eles fizeram aqueles testes? — Kylie perguntou.
Burnett encolheu os ombros.
— As informações que consegui foram muito vagas. Supostamente,
havia um pequeno grupo de sobrenaturais que era geneticamente diferente
do restante.
— Então ainda não sabemos o que eu sou?
A expressão de Burnett ficou mais tensa.
— Receio que não.
— Exceto que eu sou uma aberração genética — ela murmurou.
Holiday se sentou ao lado de Kylie no sofá e pegou a mão dela.
— Não diga...
— Eu estou presumindo que seja exatamente o oposto — Burnett
interrompeu-a. — Eles não estariam interessados em algo que não
funcionasse direito. Só o fato de que você pode parecer humana seria
considerada uma vantagem. Talvez essa seja a razão, ou talvez exista muito
mais.
— Qual é a vantagem de parecer humana? — Kylie perguntou.
— Muitas. Atualmente, seres sobrenaturais não têm permissão para
concorrer a nenhum cargo político.
— Isso não parece justo — disse Kylie.
— E não é. Mas o que eles fizeram com a sua avó não era justo
também. No entanto, eu tenho algumas novidades. — Sua expressão
pareceu mudar, mas para quê, Kylie não tinha certeza.
— Eu conversei com Malcolm Summers. Seu avô de verdade —
Burnett disse. — E antes que você pergunte, nós não discutimos todos os
detalhes. Eu estava com receio de começar a fazer perguntas demais e
assustá-lo. Disse a ele que queria conhecê-lo.
— E o que ele disse? — Kylie pegou a mão de Holiday. E se ele disser que não quer me conhecer?
 
Burnett continuou:
— Ele disse que ia pegar o próximo avião para o Texas. Pode ser que
não chegue antes de quinta-feira.
Kylie tinha lágrimas nos olhos.
— Vai mesmo acontecer, não vai? Eu vou finalmente conseguir
minhas respostas. — Ela ainda sentia medo, mas menos do que antes.
Precisava das suas respostas. Ela as merecia.
— Parece que sim — disse Burnett.
Kylie pulou do sofá, parando um pouco antes de envolver Burnett
em seus braços.
— Posso te abraçar?
Ele sorriu e fez uma careta ao mesmo tempo.
— Só se for bem rápido.
E ela fez isso. Quando se afastou, Holiday assistia à cena com
lágrimas nos olhos. Burnett acenou para Holiday com a cabeça.
— E isto é para você. — Ele tirou outro envelope do paletó e
entregou a ela.
— O que é isso? — Holiday perguntou, parecendo insegura.
— É uma doação para ajudar a cobrir os custos futuros de Shadow
Falls... e meu afastamento.
Holiday ficou rija.
— Então é isso o que você quer? — Ela parecia tão magoada que o
coração de Kylie se apertou.
— É o que você quer — disse ele.
— Eu não pedi para você se afastar.
— É claro que pediu!
— Devo sair? — Kylie perguntou.
Mas ninguém a estava ouvindo, e Burnett estava bloqueando a
porta.
— Olá! — Kylie tentou chamar atenção, mas eles estavam muito
ocupados fulminando um ao outro para prestar atenção nela.
— Eu disse que, se você não podia compreender por que eu não
daria minha permissão para Kylie fazer os testes, então era melhor você ir
embora.
— Porque você não precisa mais de mim agora que tem outros
investidores em vista, certo? — disse Burnett com mágoa na voz.
— Que investidores? — Holiday perguntou.
— Não minta pra mim, Holiday! Eu vi a pasta de arquivos. Você tem
quatro possíveis investidores à espera nos bastidores.
— Você mexeu na minha escrivaninha?
— Eu não estava bisbilhotando! Tive que pagar as contas enquanto
você estava fora, lembra?
— Bem, da próxima vez que vasculhar a minha escrivaninha, precisa
ler as datas da papelada! — Ela foi até sua mesa, abriu a gaveta, e jogou a
pasta para ele.
— O que quer dizer com isso?
— Eu não encontrei essas pessoas agora. Eu as encontrei antes de
você concordar com a sociedade.
Ele olhou para ela parecendo cada vez mais confuso.
— Você disse que a única razão que a levou a me escolher foi porque
não tinha mais ninguém interessado.
— Eu não disse isso. Você é que supôs.
Burnett olhou para Holiday.
— Você está dizendo que me escolheu embora tivesse outras pessoas
interessadas na sociedade? — Ele se aproximou um pouco mais de Holiday,
deixando uma pequena fresta entre ele e a porta.
— Eu vou me mandar agora. — Kylie deu um passo em direção à
porta.
Eles a ignoraram. E ela hesitou por apenas um segundo.
— Então, você gosta de mim — resmungou Burnett. — Por que
diabos você não pode admitir, Holiday?
— Aceitar você como sócio foi uma decisão profissional, Burnett.
— Besteira! — acusou ele. — Todas essas pessoas têm mais dinheiro
do que eu.
— Uma decisão profissional, não financeira.
— É por isso que você me beijou? — ele ousou perguntar.
— Eu não fiz isso. Você me beijou.
— E você gostou!
— Eu vou dar o fora daqui. — Kylie espremeu-se para passar atrás
de Burnett e saiu, mas carregava com ela um sorriso e muita esperança. Ela
tinha certeza que Burnett não ia desistir agora. E em dois dias, ela teria as
respostas do seu avô Malcolm. Deus! Ela esperava que isso fosse verdade.
— Oi — Derek a encontrou na varanda.
— Oi — disse ela, ainda sorrindo.
Ele parou, obviamente ouvindo Burnett e Holiday brigando no
escritório.
— Está tudo bem lá dentro?
Kylie riu.
— Estão discutindo. Então tudo está voltando ao normal agora.
— Melhor do que quando não estavam se falando.
— Exatamente... — disse Kylie.
Derek a estudava.
— Podemos conversar? — Ele apontou para as cadeiras de balanço.
— Claro.
Ela se sentou na primeira cadeira e ele se sentou na outra. Por um
segundo, Kylie se lembrou dos dois ali antes. Dele se aproximando e
beijando-a enquanto ela se reclinava na cadeira.
Ela procurou afastar a lembrança. Eles não estavam se beijando
agora. Estavam apenas conversando. Dois amigos, conversando.
Derek começou a falar, mas então seus olhos se arregalaram.
— Você já tem alguma notícia boa?
Kylie sorriu, sabendo que ele tinha captado o seu bom humor. —
Meu avô de verdade vem me ver em poucos dias.
— Sério!? — Os olhos dele se encheram de contentamento por ela. —
Você vai finalmente conseguir suas respostas. Kylie Galen vai saber o que
ela é. Acabou o mistério.
— Eu espero que sim. — E um pensamento perturbador lhe ocorreu:
Como seria a vida dela quando sua busca mudasse? Uma lufada de ar frio
veio de trás dela. Ela olhou em volta e voltou a se virar rapidamente.
— Eu ouvi falar sobre a sua avó — disse Derek. — E aquele vampiro.
Ele realmente se sacrificou por você?
— Sim. — Ela sentiu suas emoções em queda livre. — Tudo o que eu
via nele era maldade, Derek. Mas estava enganada.
— Não foi só você — disse ele. — Foi o que eu vi, também. Então,
entendo o que deve ter sentido.
Ela suspirou. Era por isso que Derek era tão especial. Ele sempre
entendia o que ela estava sentindo.
— Obrigada. — Alguém passou, e por um segundo ela teve o
pensamento irracional de que era Ellie. Mas, claro, não era.
— Eu sinto falta dela também — disse Derek, lendo suas emoções
novamente.
Kylie olhou para cima.
— Às vezes, só queria que o céu não fosse tão longe.
O silêncio ficou mais profundo. Quando voltou a fitá-lo, Derek
estava olhando para ela. Olhando para ela do jeito que o antigo Derek
costumava olhar. As raias douradas dos olhos brilhando nas íris verdes. Ela
sentiu o mundo de conto de fadas em torno dela, e reviveu sensações. Como
a sensação de que os ombros dele eram um lugar macio onde descansar a
cabeça.
— Você estava certa, sabe.
— Certa sobre o quê? — perguntou ela.
— Sobre eu me afastar de você. Foi a coisa mais idiota que eu já fiz.
Além disso, o erro que cometi com Ellie, eu... acabei estragando tudo, Kylie,
e magoei você. Sinto muito. Sinto mesmo.
— Já passou — ela disse, e mais uma vez o silêncio caiu sobre eles.
— Eu conversei com Holiday — ele sussurrou.
As palavras dele, ditas num tom de voz baixo e suave, fizeram Kylie
perceber que Holiday e Burnett não estavam brigando mais. Será que
estavam ocupados fazendo outra coisa?
— Falou com Holiday sobre o quê? — perguntou ela.
— Sobre o que me faz sentir suas emoções de um jeito tão intenso.
Kylie mordeu o lábio. Ela não precisava saber disso agora, precisava?
Derek decifrou seus sentimentos.
— Eu não estou esperando que faça nada. Só quero que saiba — ele
explicou.
— Saiba o quê?
Derek hesitou.
— Holiday disse que, às vezes, quando um fae realmente gosta de
alguém, suas emoções podem ficar meio intensas demais. Na maioria das
vezes, o problema desaparece depois que ele aceita seus sentimentos. Então
é isso o que estou fazendo. Aceitando.
Ela abriu a boca para falar, mas não tinha a menor ideia do que
dizer.
Ele colocou as mãos sobre os joelhos cobertos pelos jeans. Jeans que
lhe caíam muito bem, a propósito...
— Eu estou apaixonado por você, Kylie. — Derek parecia quase
envergonhado ao dizer isso. Levantou num salto, se afastou um passo,
depois se virou outra vez e a fitou novamente. — Eu não espero que diga
que sente o mesmo, e não acho que isso vá mudar os seus sentimentos. Mas
você merece saber. E eu precisava te dizer porque... nunca me senti desse
jeito antes... por ninguém.
Kylie ficou sentada ali, as palavras dele dando voltas em sua cabeça,
e sentindo... Ok, o que ela estava sentindo, exatamente? Primeiro, confusão.
Depois medo. Derek a amava. Seu coração acelerou.
Ela olhou nos olhos dele e viu que o fae estava lendo suas emoções.
Cada uma delas.
— Eu preciso ir agora — disse ele, mas antes se inclinou e deu o mais
rápido dos beijos no rosto dela. Ela se lembrou de como Perry tinha beijado
Miranda aquela noite no estacionamento. Fora romântico, doce.
Kylie ficou ali, observando-o se afastar. Então recostou-se na cadeira
de balanço e tentou identificar as emoções que inundavam seu peito.
— Como tudo pode parecer tão certo e tão errado ao mesmo tempo?
— ela murmurou.
— A vida é bem estranha. — A cadeira de balanço ao lado dela, onde
Derek estava há um instante, rangeu ligeiramente.
Kylie olhou para o espírito reclinado e franziu a testa.
— As coisas não vão ficar mais fáceis, não é?
O espírito preferiu não responder.
— Olhe — disse Kylie, puxando os joelhos de encontro ao peito. —
Eu não tenho muitas regras. Mas já te disse, você vai ter que fazer alguma
coisa pra arrumar a sua cara.
O rosto do fantasma começou magicamente a se transformar,
voltando ao normal. Kylie engasgou. Não foi o fato de ver isso acontecer que
a chocou, foi o rosto dele. Ela o reconheceu.
— Deus, não.
O fantasma desapareceu. Kylie se levantou para ir falar com Holiday
quando uma outra voz disse algo atrás dela. — Kylie?
Reconhecendo a voz de Daniel, ela se virou.
— Papai! — ela exclamou, e o abraçou.
Seus braços frios a envolveram. Quando ela se afastou, viu que ele
tinha lágrimas nos olhos. — Essa é a primeira vez que você me chama assim.
— Eu acho que só precisava de um tempinho — disse Kylie.
Ele sorriu e tocou o rosto dela. — Eu encontrei a minha verdadeira mãe pela primeira vez. Ela com certeza estava orgulhosa da neta.
— Ela é um amor. E o amava muito.
— Eu sei — disse ele. De repente, ele se desvaneceu um pouco. — Eu não tenho muito tempo, Kylie. Mas encontrei a resposta que você queria.
— Que resposta? — perguntou ela, com medo de acreditar.
— O que nós somos. Minha mãe finalmente se lembrou.
— E? — Kylie prendeu a respiração. — Somos camaleões.
Kylie balançou a cabeça enquanto tentava entender o que ele queria
dizer.
— Somos lagartos? O que isso significa?
Ele se desvaneceu um pouco mais. — Eu não sei.
— Nós podemos mudar os nossos padrões. É isso o que isso
significa? — perguntou ela.
— Eu não tenho mais respostas — disse ele. — Mas em breve terei. Logo descobriremos isso juntos.
— Juntos? — perguntou ela.
Ele assentiu, e o frio e o vapor que ainda restavam da aparição do
espírito ficou ainda mais rarefeito.
— Eu vou morrer? — ela perguntou enquanto um calafrio arrepiou a
sua pele.
Ele não teve chance de responder, mas poderia jurar que o viu
balançar a cabeça. Ou talvez fosse apenas uma ilusão.
Ela ficou ali na varanda, tentando respirar, tentando compreender o
que tinha descoberto. Ela era um camaleão. Podia estar prestes a morrer. E...
então se lembrou do rosto do fantasma que aparecera antes do pai. Ela podia
não ser a única que ia morrer.
— Holiday? — Kylie chamou enquanto entrava correndo no
escritório.
A vida realmente não ia ser mais fácil.

 

 

                                                                                                    C. C. Hunter

 

 

 

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