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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LOBO SOLITÁRIO / Patrícia Ryan
LOBO SOLITÁRIO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nicole de St. Clair se casou unicamente para gerar o filho que lhe possibilitaria receber sua herança. Por isso ela partiu o próprio coração e o de Alex de Perigueux, o jovem cavaleiro por quem estava apaixonada. Agora, dez anos depois, Nicole ainda não engravidou, e o marido está gravemente enfermo.

Alex retorna à França como herói, porém sua alma ainda está destroçada. A honra deveria impedi-lo de aceitar a proposta do marido de Nicole para seduzi-la, conceber um filho e depois desaparecer para sempre. É uma proposta indecente, porém irresistível. No entanto, poderá desencadear uma tempestade de desejo que condenará Alex e Nicole à perdição, ou os arrebatará num amor tão puro e poderoso... que fará estremecer céus e terra...

 

 

 

 

Julho de 1073, Normandia. Palácio de Rouen, de William, o Conquistador, duque da Normandia e rei da Inglaterra

— Quem é aquela mulher, Alex? Não tira os olhos de você.

— Qual delas, Faithe? É bonita? — Alexandre de Périgeaux protegeu os olhos contra os fortes raios do sol da manhã e esquadrinhou a multidão que se aglo­merava no pátio da Torre de Rouen. Um pouco de di­versão bem que viria a calhar, depois da longa espera sob o sol abrasador, pensou.

Faithe de Hauekleah, cunhada de Alex, acomodou o bebê, a pequena Edlyn, passando-a de um ombro para outro.

— Ora, ora. Pensei que todas as mulheres fossem bo­nitas para Alexandre. Afinal, é o que vive apregoando.

— Está querendo me provocar, cunhada? Pois o que disse é a mais pura verdade: para mim, todas as mulheres, sem exceção, são belas. — Alex tornou a examinar a multidão.

Lordes e ladies, a fina flor da aristocracia normanda, estavam ali reunidos. Conversavam animadamente, vestidos com elegância e até mesmo com certa ostenta­ção. As mulheres abanavam-se com luxuosos leques de renda, adornados por pedras preciosas e ouro em pó, enquanto aguardavam o início da cerimônia. Outras pessoas entretinham-se com a bela canção interpreta­da por um grupo de menestréis, que falava de valen­tes cavaleiros que haviam partido em busca do Santo Graal, em tempos remotos. Aqui e ali, homens do clero conversavam em pequenos grupos, assemelhando-se a bandos de aves de cores variadas, dentre as quais se destacavam o vermelho e o negro.

— A mulher de quem lhe falei está trajando uma belíssima túnica de seda branca — Faithe informou.

— Não vejo mulher alguma vestida de branco, olhando para cá — Alex retrucou, enquanto admitia para si mesmo que um flerte não lhe faria nada mal, talvez até mais que um simples flerte, se a sorte aju­dasse. É disso que andava precisando para estabilizar os humores de seu corpo, alterados pela longa e exaus­tiva travessia do Canal Inglês. Era bom estar de volta à França, terra onde havia nascido e crescido, depois de tantos anos de ausência. A família de seu irmão e melhor amigo, Luke, também viera da Inglaterra, a fim de participar daquela ocasião festiva. Mas Alex não podia negar a saudade que sentia da Bretanha, desde o momento em que o navio se afastara da costa daquele país.

Quem sabe não teria sido melhor ter permanecido por lá? Pouco afeito à vida da corte e menos ainda a multidões e longas esperas, ele se perguntava onde encontraria forças para enfrentar a semana inteira de celebrações reais que tinha pela frente.

— A tal mulher deve ter dado meia-volta — comen­tou Faithe, enquanto estudava a multidão com olhos curiosos. — O traje agora é azul!

— Isso não ajuda muito. — Alex riu. — A multidão mais parece um mar de vestes azuis.

— Estou lhe dizendo, ela olhava para você como se o conhecesse.

— Ah, aí está você, irmãozinho — Luke saudou Alex com um tapa nas costas. — Nunca se cansa de flertar com minha mulher, não é?

— Jamais. Se fosse você, não ficaria tanto tempo longe dela. Vou acabar roubando-a de você.

Faithe revirou os olhos, fingindo-se envaidecida dian­te da pretensa disputa entre os dois irmãos, fazendo o marido dar boas risadas. Até mesmo o pequeno Robert, filho mais velho de Faithe e Luke, sentado sobre os om­bros do pai, divertiu-se com a brincadeira familiar. A pequena Hlynn, segunda filha do casal, agarrou-se ao pai, enquanto chupava o polegar da outra mão, deixan­do os olhos vagarem preguiçosamente pela multidão que se movimentava pelo grande pátio. Da mãe inglesa, as crianças haviam herdado a tez clara e os olhos cor de mel, enquanto que do pai francês, tinham puxado os cabelos negro-azulados. Aquela cor de cabelos era a marca característica da família de Périgeaux.

— Para roubar Faithe de mim, terá que passar an­tes sobre meu cadáver. — Luke trocou um olhar diver­tido e cheio de intimidade com a esposa. — E aviso que não vai ser nada fácil me matar.

— Bem, tenho certeza de que Luke de Périgeaux, o famoso Dragão Negro, nunca se deixou matar facil­mente. Quanto ao fazendeiro e chefe de família à mi­nha frente, o que sei é que há anos não usa uma arma para defender-se. Eu, por outro lado, depois de uma década inteira a serviço do rei William, só tenho feito aprimorar minhas habilidades — Alex comentou, le­vando a mão ao cabo da espada que trazia à cintura.

— Quase uma década — corrigiu Luke, enquanto bocejava sem qualquer constrangimento.

Era verdade. Os irmãos de Périgeaux, cavaleiros de Aquitaine, tinham sido recrutados havia nove anos por William, duque da Normandia e agora também rei da Inglaterra. Naquela época, Alex contava apenas com dezessete anos e Luke vinte e quatro. Ambos haviam servido ao chefe normando; Alex com a espada e Luke com o arco, ao longo da conquista da Inglaterra e da ascensão de William ao trono do reino britânico. No entanto, se por um lado Luke tinha decidido aposen­tar as armas em troca das terras em Hauekleah com que o rei o havia recompensado por ter se casado, Alex continuava a rejeitar a oferta de honrosa liberação dos serviços ao rei, além da posse de extensa propriedade na Inglaterra. Ninguém compreendia aquela recusa, exceto, Luke e Faithe.

— Muito bem. Quase uma década. — Alex rendeu-se aos fatos. — E antes disso não fiz outra coisa se­não estudar as artes da guerra. Já manejava a espa­da quando tinha a idade do pequeno Robert. — Ele acariciou os cabelos negros do sobrinho. — Portanto, acredito que estou pronto para enfrentá-lo em honrosa disputa, querido irmão, para finalmente ter sua espo­sa só para mim. — Alex inclinou-se diante de Faithe, como faria um cavalheiro que corteja uma dama.

— Pois vamos resolver isso agora mesmo — Luke pediu à esposa que segurasse a mão da pequena Hlynn, tirou Robert dos ombros e colocou-o no chão. — Vamos lá, moleque. Venha me enfrentar como homem, com seus próprios punhos.

— Muito bem. — Alex desferiu um soco contra o estômago do irmão, que revidou com outro contra o es­tômago de Alex, forte o bastante para deixá-lo sem fô­lego. Em seguida, os dois se puseram a rir e se abraça­ram, deixando confusos os que haviam se aproximado para assistir àquela encenação, acreditando tratar-se de uma briga de verdade.

— Parem com isso agora mesmo. — Alex levou um repentino puxão de cabelos. Era a irmã Berte, que lan­çava sobre os irmãos um olhar de censura, preocupada com o que os outros iriam dizer, diante daquela cena infantil e de mau gosto.

Berte era uma figura singular, de língua afiada, não raro inconveniente e cheia de maledicência. Alta como os demais Périgeaux, sua cabeça erguia-se bem acima da de seu gorducho marido, barão Landric de Bec, que caminhava agora atrás dela, apoiando-lhe a atitude de censura.

— Será que vocês não têm um pingo de decoro? — Berte indagou, tentando fazer com que os irmãos refletissem sobre o comportamento inadequado que acabavam de ter.

— Nenhum, minha irmã — respondeu Alex.

— O que quer dizer "decoro"? — Luke zombou.

— A culpa é minha, cunhada — Faithe intercedeu em favor do marido e do cunhado. — Devia tê-los feito parar com essa bobagem, antes mesmo que tivessem começado.

— Conheço bem os irmãos que tenho. — Berte deu de ombros. — Tentar controlá-los é como procurar con­ter uma tempestade. Sempre fazem como bem lhes dá na telha, sobretudo depois de terem vivido tanto tem­po na Inglaterra, aquela ilha de bárbaros.

Enquanto ajeitava a túnica cerimonial, Alex voltou a olhar para a multidão, que agora começava a dispersar-se. Em meio a toda aquela gente, a figura de uma mu­lher permanecia absolutamente imóvel. O ir-e-vir das sedas multicoloridas das vestes, dos tecidos esvoaçantes dos véus e o cintilar das jóias serviam-lhe de apro­priada moldura. De tez alva e corpo esguio, a aparência dela era tão irreal quanto a das estátuas de mármore perolado das igrejas. Seus olhos fitavam Alex.

Ao vê-la, ele experimentou uma estranha sensação. Era como se aquela mulher o olhasse através dos anos, pois nada havia mudado nela desde a primeira vez em que a vira, nove longos verões atrás. A beleza dela era de uma inacreditável harmonia, maçãs do rosto altas, queixo pequeno, pescoço longo e delicado. Ela trajava branco como da primeira vez em que ele a tinha visto. Os cabelos loiros como fios de ouro, que antes desciam livres pelas costas, estavam agora presos em duas tran­cas que se juntavam no alto da cabeça. O delicado véu transparente que usava emprestava-lhe uma aparên­cia diáfana. Os olhos de um verde muito claro permane­ciam os mesmos, grandes, atentos e silenciosos.

— Aquela é a mulher de quem eu estava falando. — Faithe apontou. — A mulher de branco que estava olhando para você, Alex.

As palavras da esposa chamaram a atenção de Luke, Ele olhou para a mulher que reconheceu de ime­diato e, em seguida, fitou Alex, com apreensão.

— Você já a conhecia. Eu estava certa. — Faithe podia dizer aquilo pela maneira como os irmãos se entreolhavam.

— Aquela é Nicole de St. Clair, esposa de nosso pri­mo. — Alex levou os dedos, instintivamente, até a mais profunda das cicatrizes que lhe haviam ficado como recordação do verão em que tudo acontecera. Não era agora mais do que uma pequena marca sinuosa que descia pela testa até tocar a sobrancelha direita.

Nicole sorria hesitante enquanto ele a observava, mas podia-se detectar de longe o brilho intenso que fazia os olhos dela faiscarem. A atitude mais civilizada seria responder àquele sorriso com naturalidade. No entanto, o turbilhão de emoções que se agitavam no coração de Alex, a surpresa pelo reencontro inespera­do, as dolorosas lembranças do passado e um profundo desejo que resistia ao tempo, deixavam-no confuso, in­capaz de agir como convinha.

Um toque de trombetas fez com que ele desviasse o olhar. Virando a cabeça, avistou uma verdadeira pro­cissão de rapazes que descia os degraus da capela par­ticular de William.

— Aí vem os jovens cavaleiros! — Berte exclamou.

— Não são os cavaleiros ainda — corrigiu Luke. Alex voltou a fitar Nicole, que naquele momento se afastava de olhos baixos e lábios comprimidos.

— Ali está meu Charles. — Berte apontou. — E o terceiro da fila. Estão vendo?

— Sim. — Luke franziu as sobrancelhas ao ver que o número de rapazes era maior que o habitual. — Por Deus, quantos garotos vão ser iniciados hoje?

— Vinte e quatro — respondeu Berte. — Mas agora venham, vamos segui-los até o campo de esportes. E lá que a cerimônia vai ter início.

Alex deixou-se levar pela multidão que se dirigia ao campo, à margem direita do rio Robec, perto do local onde o pequeno rio se encontrava com o Sena. Incapaz de tirar Nicole de seus pensamentos, Alex esforçava-se para avistá-la ao longo do caminho, mas sem sucesso.

— Nunca vi tantos jovens serem iniciados num mesmo dia — Faithe comentou, enquanto caminhava, levando os filhos mais velhos pela mão e o bebê ao colo.

— Não é uma cerimônia à inglesa.

— Nem tampouco típica dos moldes normandos — declarou Luke, enquanto tomava o bebê dos bra­ços da esposa, a fim de deixá-la livre para caminhar.

— Mas não podemos esquecer que esses rapazes serão iniciados pelo próprio William. Poucas famílias têm essa honra.

Os vinte e quatro jovens postaram-se junto à plata­forma sobre a qual havia uma longa mesa coberta de armaduras, espadas e arcos, presentes dos familiares e do rei William e da rainha Matilda. William e a es­posa, sentados em tronos majestosos, traziam a coroa real sobre a cabeça e usavam pesados mantos, apesar do calor. Homens da corte e autoridades do clero posi­cionavam-se ao redor deles. A um lado, um grupo de menestréis tocava uma alegre canção na flauta e har­pa, acompanhada pelo suave som de guizos.

Berte abriu caminho em meio à multidão, assim que os rapazes se postaram diante da plataforma.

— Onde estará nosso irmão Christien?— Ela mor­dia o lábio inferior, ansiosa. — Tinha certeza de que ele iria se atrasar.

— Deus do céu, será que esse rapaz não consegue ser pontual uma única vez na vida? — indagou Landric, contrariado, erguendo os braços em atitude teatral.

Primogênito entre os irmãos de Périgeaux, Christien havia herdado as terras da família após a morte do pai. Tinha, então, orientado os irmãos mais jovens, que pela lei não tinham direito às terras da família, a dei­xar o ducado de Aquitaine e pegar em armas a serviço de William, duque da Normandia e, agora, também rei da Inglaterra. Seria uma forma de virem a se tornar senhores de terras no futuro, que o próprio William lhes daria como recompensa e reconhecimento pelos serviços prestados à Coroa britânica. Christien costu­mava gabar-se de inúmeras virtudes. A pontualidade, contudo, não estava entre elas, o que vinha a causar problema naquele dia, uma vez que ele, Alex, Luke e Landric, pai do jovem Charles, estariam formalizando a candidatura do rapaz à posição de cavaleiro e parti­cipando dos rituais de iniciação que isso envolvia.

— Não se inquiete, querida. — Alex tentou tranqüi­lizar a irmã. — Christien veio de Aquitaine especial­mente para participar desta ocasião. Jamais perderia um acontecimento como este.

— Sei disso, mas viu o quanto ele bebeu na noite pas­sada? — Berte indagou. — Talvez ainda esteja na cama.

— Alyce jamais permitiria que ele dormisse du­rante a cerimônia de iniciação do sobrinho — Alex lembrou, sabendo que Alyce, esposa de Christien, faria com que ele acordasse.

A música cessou e a audiência ficou em silêncio, en­quanto o rei se levantava.

— Encontre Christien — Berte ordenou ao marido, num sussurro agitado.

Landric pôs-se a correr por entre a multidão como um esquilo gordo, enquanto o rei falava ao povo. Alex, que antecipava um discurso longo por parte do monarca, sentiu-se aliviado quando, após uma breve saudação, William fez sinal para que o primeiro iniciado e seus padrinhos subissem à plataforma.

Todos olhavam em silêncio, enquanto os parentes do sexo masculino do rapaz o vestiam com a armadura de argolas recém-forjada, para depois lhe entregarem a es­pada. A seguir o rei aplicou o colée, tapa de mão aberta que, de acordo com o ritual, iniciaria o jovem inexpe­riente como aspirante a cavaleiro. Infelizmente para o rapaz, o colée fez com que se desequilibrasse e caísse de costas, fazendo ressoar um barulho de metal, ao contato das argolas da armadura contra o chão. Embaraçado, o jovem permitiu que o rei o ajudasse a erguer-se.

— Charles será o próximo — Berte voltou a sussur­rar nervosamente, assim que o segundo aspirante a cavaleiro foi chamado. — Se o tio mais velho não esti­ver presente desde o início da cerimônia, o que é que os outros vão dizer?

Alex e Luke se entreolharam. A irmã não havia mu­dado ao longo de todos os anos em que eles tinham estado ausentes.

— Lá está Christien — ela anunciou, com eviden­te alívio, assim que avistou o irmão mais velho que se aproximava, acompanhado pela esposa e pelos dois filhos. — Há outra pessoa com eles, vejam. Céus, é Nicole de St. Clair!

Alex acompanhou o olhar da irmã. Ela tinha razão. Podia ver a cunhada, Alyce, que falava ao ouvido de Nicole. As duas tinham se conhecido nove anos antes e haviam se tornado boas amigas. Provavelmente, não se viam havia tempos, uma vez que Alyce morava em Aquitaine e Nicole na Normandia.

O que quer que a cunhada houvesse dito a Nicole fez com que ela sorrisse, aquele mesmo sorriso que sempre tinha deixado Alex curioso e fascinado. O ar de mistério que a envolvia o enfeitiçava, atraindo-o da mesma maneira que um botão fechado de flor atrai a abelha, cheio de promessas. No caso de Alex e Nicole, promessas que nunca haviam se cumprido.

— O que será que ela faz aqui? — Berte questionou.

— Será que Alyce a convidou? Eu certamente não o fiz.

— Por que não? — Alexandre quis saber. — Afinal, ela é esposa de nosso primo.

— Milo? Pois ele é a razão pela qual jamais convi­daria Nicole. Na verdade, jamais teria convidado nem um nem outro. Os dois raramente recebem convites hoje em dia, levando-se em conta o ser desprezível em que nosso primo se transformou.

— O que quer dizer? — interpelou Alex, confuso.

— Não tenho notícias de Milo desde que parti, nove anos atrás.

— Nunca escreveu para ele? Vocês eram tão ami­gos... — As palavras de Berte eram cheias de malicio­sa ironia.

— Fui treinado para usar a espada, não para es­crever.

— Poderia ter pedido a um dos funcionários do rei que escrevesse para você — a irmã insistiu.

— Raios, Berte, o que aconteceu com Milo?

Ela olhou em volta, a fim de certificar-se de que nin­guém os ouvia.

— Contarei a você mais tarde. É de bom-tom evi­tar certos assuntos na presença de estranhos. — Ela tornou a olhar ao redor. — Mas posso adiantar que Milo rejeita até mesmo os raros convites que recebe. Ouvi dizer que nosso primo não põe os pés para fora do Castelo Peverell há cerca de dois ou três anos. Nicole também nunca é vista, uma vez que não ficaria nada bem ela sair por aí desacompanhada. Dizem que ela passa o tempo todo escrevendo longos e entediantes poemas sobre antigas batalhas e trágicos amores, ocu­pação nada adequada a uma mulher.

— O que acha que ela faz por aqui hoje? — Alex indagou, curioso.

— Não faço a mínima idéia, sobretudo porque esta desacompanhada. Não é típico de Nicole ter uma ati­tude tão pouco adequada. — Deixando de lado aquele assunto, Berte empurrou Alex, para que se dirigisse ao palco. — É a vez de meu filho, Charles, ser iniciado. Vá, depressa. Você também, Luke. — Ela puxou o ou­tro irmão pelo braço. — Apresse-se, vamos.

Lutando para não pensar em Nicole, Alex subiu à plataforma que servia de palco, acompanhado de Luke, Christien, Landric e do jovem Charles.

Lorde Landric, como primeiro padrinho do filho, entregou-lhe a armadura de argolas, que Alex e os ir­mãos ajudaram o jovem a vestir sobre a túnica ver­melha, bordada de dourado. O rosto de Charles estava rubro e suado. Era um verdadeiro sacrifício trajar-se com todos aqueles apetrechos sob o sol abrasador. Por insistência de Berte, cada uma das pesadas argolas da armadura do filho tinha recebido uma camada de pra­ta, a fim de brilhar ao sol, fazendo-o distinguir-se dos demais. O brilho era de tal forma ofuscante, que Alex teve que virar-se para proteger os olhos.

Ao fazê-lo, avistou Nicole que o fitava do meio da multidão, tão imóvel e atenta quanto antes. Ao perce­ber que Alex a vira, ela desviou o olhar.

— Alex — Luke chamou. — A espada.

Ele dirigiu-se até a mesa e apanhou a espada que havia comprado para o sobrinho. Aquela honra lhe ti­nha sido reservada, devido a sua celebrada habilidade como espadachim. A lâmina reluziu ao sol. No cabo in­crustado de pérolas estava guardada a relíquia sagra­da, um pouco do sangue de St. Romaine, protegida por cristal transparente. Ele entregou a espada ao sobri­nho, que beijou a relíquia antes de colocá-la na bainha. Christien apresentou a Charles o capacete enfeitado de pedras preciosas, enquanto Luke entregava-lhe a lança e o escudo. Alex esforçava-se para ficar atento à cerimônia, embora pudesse sentir o olhar de Nicole sobre ele. A simples idéia de estar sendo observado por ela fazia com que sua pele arrepiasse e seu corpo pare­cesse estranhamente grande e desprotegido.

Nunca tinha imaginado rever Nicole e nem sequer havia desejado que aquilo acontecesse. Jamais pode­ria prever que ela estaria presente àquela ocasião. Segundo Berte, o fato surpreendera a todos.

Alex pensou em Milo. Não guardava qualquer res­sentimento do primo, apesar de tudo que acontecera em Périgeaux. Ambos haviam sido grandes compa­nheiros a despeito da diferença de idade, principal­mente depois que Alex chegara à adolescência e podia, portanto, juntar-se a Milo e seus companheiros para caçar e ir a diversos lugares. A vida era despreocu­pada e emocionante naquela época, e seu primo era o centro de todas as coisas. Educado para a vida reli­giosa, como era apropriado ao segundo filho das boas famílias, mas sem ter temperamento para a vida do claustro, Milo terminou por usar a inteligência na busca de prazeres. Carismático, o primo possuía a boa aparência dos Périgeaux. Era alto, tinha cabelos negro-azulados, mente rápida e personalidade divertida e amável, que acabava por atrair muitos amigos.

As trombetas soaram. Alex tentou afastar as lem­branças e, juntamente com os demais padrinhos, deu dois passos atrás, para dar passagem ao rei. Charles curvou a cabeça, assim que o monarca se aproximou dele. Em seu traje, o jovem parecia um cavaleiro pron­to a enfrentar batalhas.

O colée foi rápido, mas forte. Charles permaneceu de pé, embora tenha dado um passo para trás, a fim de manter o equilíbrio. Os espectadores vibraram e aplaudiram.

— Siga com força e coragem, sir Charles. — William abraçou o rapaz. — Que seu espírito seja generoso e seu coração forte. Honre a Deus e a seu rei com fiel serviço.

— Sinceros agradecimentos, meu rei — o jovem dis­se em resposta. — Possa o Senhor Deus ouvir este voto de lealdade e seja eu capaz de servir a Ele e a meu soberano, até que minha alma abrace a paz eterna.

— Muito bem. — Alex bateu nas costas do sobrinho, enquanto o povo exultava.

A cerimônia do colée prosseguiu por toda a manhã. Assim que chegou ao fim, houve uma série de demons­trações relacionadas à arte da guerra.

Alex estava faminto. Seu olhar dirigia-se com fre­qüência às margens do rio, onde um banquete disposto sobre enormes mesas, protegidas por amplo dossel, es­perava pelos convivas. O aroma dos pratos instigava-lhe o apetite, fazendo a boca encher-se d'água. As de­monstrações pareciam intermináveis. Somente depois que dois iniciados desmaiaram sob o sol escaldante é que foi anunciado que o banquete seria servido.

— Sugeri a lady Nicole que viesse sentar-se conosco — Alyce informou ao marido e a seus irmãos, enquan­to tomavam seus lugares à mesa.

A luz do sol, atravessando o dossel, conferia a Nicole uma aura rosada.

— Lady Nicole — Alyce começou as apresenta­ções. — Acho que já deve ter visto meus filhos Victor e Regnaud. — Os meninos fizeram uma reverência.

— Esta é minha cunhada, baronesa Berte de Bec e o marido lorde Landric de Bec. — Todos trocaram sau­dações cordiais. — Estes são os irmãos de meu mari­do, Luke e Alexandre. Creio que possa tê-los conhecido naquele verão...

— Lembro-me deles — Nicole apressou-se a dizer, com voz suave, quase inaudível. Apertaram-se as mãos e ela inclinou a cabeça. — Sir Luke, sir Alexandre.

— Senhora. — Luke curvou-se.

— Milady. — Alex sorriu, mas ela virou-se tão rapi­damente que nem sequer notou-lhe o sorriso.

— E esta é a esposa de Luke, Faithe de Hauekleah e os filhos.

— Este diabinho é Robert, a menina com o dedo na boca é Hlynn e o bebê é uma menina. Chama-se Edlyn. — Faithe apontou para o bebê que trazia ao seio, co­berto por um manto.

Berte virou o rosto, enojada.

Nicole, no entanto, não demonstrou qualquer repul­sa. Seu sorriso era de genuíno prazer ao olhar para as crianças, insistindo mesmo em sentar-se entre Robert e Hlynn, e acabando por ficar de frente para Alex.

— Está cansada? — ela perguntou a Hlynn.

A menina fez um movimento afirmativo com a ca­beça, os olhos pesados de sono.

— Eu também — Nicole confessou. — Foi uma ce­rimônia cansativa, ainda mais para uma menina pe­quena como você.

— Já sou mocinha — Hlynn retorquiu, sem tirar o polegar da boca.

— Mil perdões, senhorita. — Ela divertiu-se com as palavras da menina.

A alegria que ela demonstrava no contato com a so­brinha de Alex o surpreendeu. Nunca tinha imaginado que ela gostasse de crianças e, no entanto, a maneira como falava e sorria para Hlynn era espontânea e na­tural. Aquele comportamento fez com que ele se lem­brasse de que havia duas Nicoles: uma, fria e formal, bem treinada para o decoro; e outra, a jovem espirituosa que roubara seu coração no passado. Era uma pena que a Nicole cheia de pudores, incapaz de uma afeição humana verdadeira, prevalecesse.

— Vamos comer logo? — Robert estava inquieto.

— Esse menino está sempre com fome — Faithe comentou. — Não importa quando ou quanto tenha acabado de comer.

— Só mais um pouco de paciência, Robert — Nicole recomendou ao menino. — Só temos que esperar pelo final da cerimônia. — Indicou o rei e a rainha, que ain­da conversavam com os vinte e quatro iniciados.

Não resistindo mais ao sono, Hlynn tentou recostar-se à mãe.

— Espere até que Edlyn acabe de mamar — Faithe pediu à filha.

— Meu colo está disponível, para uma soneca, que­rida. — Nicole olhou para Faithe. — Se sua mãe não se incomodar, é claro.

Sem esperar pela resposta de sua mãe, a pequena acomodou-se no colo de Nicole. Robert também se recostou à nova amiga.

—As crianças sempre se apegam a você tão rapida­mente? — Faithe quis saber.

— Gosto de crianças e acho que elas sentem isso. — O sorriso de Nicole escondia tristeza, Alex podia jurar.

— Pena que não tenha filhos — comentou Berte.

— É verdade — ela admitiu, o rosto sério. — Não fomos abençoados nesse sentido.

— Quero dizer, é uma pena que você ainda não te­nha filhos — Berte continuou. — Mas ainda não é tão velha assim. Não deve desistir. Você deve ter uns...

— Vinte e oito anos. — Nicole parecia ignorar a fal­ta de tato da outra mulher. — E a senhora, quantos anos tem?

Berte ignorou a pergunta e o riso dos irmãos, mas seu rosto estava rubro. Alex não conseguiu deixar de admirar Nicole pela resposta que dera à sua irmã.

— Bem — Berta retomou seu discurso. —, então ainda está em tempo de tê-los.

Alex e Luke entreolharam-se. A irmã estava sendo um verdadeiro tormento, com todos aqueles comen­tários impertinentes e especulativos. Nicole limitou-se a baixar os olhos e admirar a menina adormecida em seu colo, enquanto acariciava-lhe os cabelos. Alex quase podia ler a mente dela: depois de nove anos de união estéril, uma criança seria um milagre.

— Permita-me dar-lhe um conselho. — Berte voltou à carga. — Procure passar menos tempo à escrivani­nha e concentre-se em passatempos femininos. Isso irá ajudar a realinhar seus potenciais de mulher, o que facilitará que um bebê seja plantado em seu ventre.

— Está insinuando que não tenho filhos porque es­crevo versos? — Nicole perguntou, incrédula.

Isso é coisa para homens, querida. São mais es­pertos e inteligentes do que nós, mulheres, mesmo em se tratando de alguém tão instruída quanto você. — Berte não se dava por vencida. — Entregar-se a esse tipo de ocupação masculina gera um desequilíbrio dos fluidos que regulam a reprodução.

— Teoria interessante — Nicole comentou, embo­ra achasse aquilo tudo absurdo. — Procurarei seguir suas recomendações.

— Faça isso. Seu marido ficará exultante ao vê-la colocar papel e tinta de lado.

— Falando em Milo — Berte continuou com suas indiscrições. —, acho estranho ele ter permitido que viajasse para tão longe de St. Clair. Não veio desacom­panhada, não é, meu bem?

— Não, senhora — Nicole retribuiu a pergunta mal­dosa com uma resposta lacônica.

A conversa foi interrompida pela chegada de um dos servos do rei, que ofereceu uma bacia com água aromatizada, para que Nicole lavasse as mãos. O ban­quete seria servido em minutos. Ela dobrou as mangas da túnica alva, mergulhou as mãos na água perfuma­da e, a seguir, voltou-se para observar dois homens que caminhavam em direção à mesa, vindos do palácio.

— Aquele é... — Berte começou a falar, mas calou-se, boquiaberta. — Santa Mãe, é ele mesmo!

Alex voltou-se e olhou para as duas figuras que ca­minhavam devagar na direção deles. Um dos homens tinha os cabelos negros, era alto e tinha o peito mus-culoso e pernas fortes como toras. Contra aquela for­taleza, apoiava-se o companheiro de cabelos brancos, quase tão alto quanto o outro, porém extremamente magro, que fazia uso de uma bengala, e caminhava com pernas trêmulas. Alex reconheceu o primeiro, mas só foi capaz de dizer quem era o segundo, ao ver-lhe o rosto.

— Meu bom Deus — murmurou, ao identificar o semblante familiar.

Alex e Luke entreolharam-se, chocados. Aos trinta e seis anos, o primo Milo tinha a aparência frágil de um ancião enfermo.

Nicole acompanhava com apreensão os passos incer­tos do marido, o que fazia pensar que ela teria ido até ele, não fosse pela criança adormecida sobre seu colo.

— Talvez eu possa... — Alex começou a dizer.

— Não faça nada. — Ela fez um gesto para que ele permanecesse sentado. — Meu marido não iria querer sua ajuda. Seria motivo de constrangimento para ele. Só permite que Gaspar e eu o toquemos. Imaginei que ficaria dentro do palácio, uma vez que lá é mais fresco.

— Desculpe, mas tenho a impressão de que seu ma­rido não tinha condições para empreender a viagem até aqui — Berte observou.

— É verdade. — Nicole olhou para Milo que acena­va para ela. — Mas ele insistiu em vir. Nem eu, nem Gaspar conseguimos dissuadi-lo.

— Queira me desculpar. — Alyce tocou a mão de Nicole. — Não teria insistido no convite se soubesse que Milo estava tão doente.

— Ele teria vindo mesmo sem o convite. Não sei o porquê, mas estava determinado a vir. Nunca teve interesse por eventos da corte.

Assim que os dois homens ficaram à sombra do dos­sel, Milo fez com que Gaspar se afastasse e caminhou até a mesa com auxílio da bengala. Quanto mais se aproximava, mais óbvio ficava que algo não estava bem com ele. Sua debilidade era evidente, não apenas pela maneira como a túnica pendia de seu corpo es­quelético, mas também pela aparência de seu rosto. Ele fora um homem bonito, de beleza singular e estra­nha, porém marcante. Seus olhos e boca grandes, além do nariz proeminente, faziam dele um tipo atraente. Agora, os traços antes chamativos eram grotescos em combinação com a pele enrugada e macilenta.

Ele sorriu ao avistar Alex, indo imediatamente na direção dele, o braço livre aberto para abraçá-lo. Gaspar caminhava atrás do patrão, atento a qualquer necessidade.

— Tinha ouvido dizer que você estaria aqui — Milo saudou com a habitual voz profunda, embora as pala­vras fossem mal articuladas e difíceis de compreender, como se ele estivesse sonolento ou embriagado. — Bem vindo à Normandia, primo.

Alex levantou-se e abraçou Milo com cuidado. A im­pressão que tinha era de que aquele homem poderia se transformar numa pilha de ossos à mais leve pressão. Podia sentir o cheiro de vinho azedo que emanava dele.

— É um prazer revê-lo — murmurou.

— Mentiroso. — Milo caminhou alguns passos para trás, com um sorriso triste. — Tomei-me uma figura hor­renda, as crianças fogem aterrorizadas quando me vêem.

— É bom revê-lo de qualquer forma, primo — Alex assegurou. — Só lamento que tenhamos deixado pas­sar tanto tempo para nos reencontrarmos.

— Eu também — Milo concordou, nostálgico. Alex apresentou o primo a Faithe e às crianças, assim que ele deu a volta na mesa para cumprimen­tar Luke.

— Vou me sentar aqui — ele disse a Gaspar, que o ajudou a acomodar-se sobre o banco. — Bem de fren­te para Alex. Precisamos colocar a conversa em dia. — Fez sinal para que Gaspar se juntasse a ele.

— Os criados estão sendo alimentados na cozinha do palácio — Berte disparou, sem o menor senso de conveniência.

As mãos rechonchudas de Gaspar se fecharam em punhos, como alguém que se prepara para a briga, mas logo voltaram a se descontrair.

— Prima Berte, imperiosa como sempre — Milo co­mentou, com sarcasmo.

— Gaspar está conosco há muito tempo, senhora. — Nicole interveio. — Ele já é parte da família. E o homem de armas mais importante do Castelo Peverell e meu marido confia inteiramente nele.

— Sei quem ele é. — Berte arqueou as sobrancelhas com arrogância. — Como já disse, tenho certeza de que ele encontrará o que comer na...

— Ele fica, prima Berte — Milo decretou. — Preciso dele. A menos que esteja disposta a me ajudar a usar o banheiro.

Berte ficou rubra de indignação, enquanto o mari­do, Landric, pigarreava, embaraçado.

Gaspar, não tinha mudado em nada, Alex pensou. Embora o homem tivesse a mesma idade que Milo, nin­guém a adivinharia. A pele bronzeada não tinha rugas e os cabelos negros, cortados rente ao couro cabeludo, não mostravam um único fio branco. Musculoso como um touro, era de uma prontidão militar. No entanto, Alex lembrava-se dele mais pelo caráter afável, que o fazia muito amado pelos companheiros.

Gaspar olhou com atenção para o rosto de cada uma das pessoas sentadas à mesa, para depois fixar-se em Alex.

Era um rapazinho magricela da última vez que o vi, sir Alex. Como ficou alto! E que ombros largos! — O homem sorriu. — O ofício de soldado parece mesmo capaz de transformar qualquer um em ho­mem de verdade.

Alex balançou a cabeça, encabulado.

— E você não mudou nem um pouco nesses anos todos, Gaspar.

— Mudei, sim.

Milo ergueu o cálice de prata à sua frente, zangando-se ao constatar que estava vazio. Pegou, então, o da esposa, mas este estava igualmente seco.

— Você ai, menina — ele gritou para a criada que passava por ali. — Traga-me vinho.

— Sinto muito, senhor, mas não posso fazê-lo — res­pondeu a jovem, educadamente. — A bebida ainda tem que ser testada. — Ela apontou para o provador do rei, em pé ao lado do grande tonel.

— O vinho será servido num instante — Nicole as­segurou com voz suave.

— Perguntei alguma coisa, mulher? Sei muito bem que vai ser servido logo, mas quero beber agora.

Houve um constrangimento geral e ninguém ousou dizer palavra.

— Tenha calma, senhor. — Gaspar tocou o ombro do patrão.

— Ficarei calmo assim que meu pedido for atendi­do. Fui convidado para este banquete, raios! — Milo esbravejou.

— Vou cuidar disso. — Gaspar pegou o cálice, apro­ximou-se do tonel e encheu-o de vinho.

— Esse rapaz parece ser muito amável — Alyce co­mentou ao ouvido de Nicole.

— É um homem de grande bondade. Tornou-se in­dispensável em Peverell.

— É o que ouço falar — Berte intrometeu-se. — Dizem que ele comanda aquele lugar com mão de fer­ro. Não se incomoda por ter um homem de origem tão humilde como castelão na casa de seu marido?

— Diga-me uma coisa, caro senhor — Milo dirigiu-se a Landric. — Não o incomoda ter uma mulher com mais besteira na cabeça do que...

— Somos muito gratos a Gaspar. — Nicole lançou um olhar de censura para o marido. — Ele tem nos ajudado muito.

— Compreendo — Berte respondeu, olhando para o primo. — Mas devo alertá-la para o fato de que as pessoas falam. Sabe como chamam o tal Gaspar?

— Sei, sim. — Nicole encarou Berte.

— O castelão boticário. — Berte olhou para os de­mais. — Esse homem morava em cima de uma botica em St. Clair.

— E verdade — Nicole confirmou. — Ele trabalhou como aprendiz de boticário para ajudar a mãe viúva, mas não era talhado para o ofício. Assim que a mãe morreu, ele vendeu a botica e foi trabalhar como ho­mem de armas para meu falecido tio.

— Ah, sim, Henri de St. Clair, o antigo castelão de Peverell. — Berte inclinou-se em direção à mesa e baixou a voz. — Não sei onde seu tio estava com a cabeça para contratar um homem sem qualquer trei­namento militar.

— Acredito que meu tio tenha ficado impressiona­do com a força física e a habilidade de Gaspar para lutas — Nicole justificou. — Ele sempre foi conhecido em St. Clair pela força do punho. Além disso, antes de morrer, a mãe ensinou-lhe a ler e escrever em latim. Convenhamos que é raro encontrar um soldado que sai­ba ler. Meu tio possuía excelentes instintos e Gaspar provou ser um verdadeiro líder entre os soldados.

— Aí vem ele — Alyce anunciou num sussurro.

O silêncio reinava quando Gaspar chegou e colocou o cálice com vinho diante do patrão.

— Aqui está, senhor. Disseram-me que este vinho é o melhor da região de Bordeaux.

Milo ergueu o cálice, levou-o até a boca e bebeu o conteúdo num só gole.

— Seja um bom amigo, Gaspar — disse, passando o cálice ao empregado. — Vá encher de novo.

O décimo quarto prato do banquete foi um gigan­tesco cavalo de guerra esculpido em marzipã e açú­car, que vários criados carregaram entre duas fileiras de mesas, acompanhados por menestréis que faziam malabarismos com tochas de fogo. Alex temia que eles acabassem por atear fogo ao dossel a qualquer mo­mento, e sentiu-se aliviado quando a demonstração terminou e o cavalo de marzipã foi finalmente fatiado e servido.

Milo recusou-se a comer um pedaço sequer do doce, limitando-se a beber um cálice após outro de vinho. Mal a bebida acabava, ele alcançava o cálice da espo­sa e bebia o conteúdo. Sua cabeça começava a tombar sobre o ombro e sua voz tornou-se arrastada. Quanto mais se embriagava, mais fixava o olhar sobre Alex e repetia, vez após outra, o quanto estava feliz por revê-lo, e que era importante que conversassem a sós o mais breve possível.

O rei William e a rainha Matilda aproveitaram a ocasião para cumprimentar alguns dos convidados, co­meçando pela mesa de Alex.

— Estou feliz por ter vindo, lady Nicole — a rai­nha disse. — Queria muito poder parabenizá-la pes­soalmente pelo maravilhoso poema que escreveu. — Matilda dirigiu-se aos demais. — Pedi a ela que escrevesse sobre a busca ao Santo Graal, algo que um menestrel pudesse transformar em música e tocar para nós hoje, como um tributo aos jovens cavaleiros iniciados. A música foi tocada no pátio do palácio, an­tes da cerimônia, mas não sei se tiveram a oportuni­dade de ouvi-la.

— Eu ouvi — Berte apressou-se a informar, numa reverência exagerada e desnecessária naquele momen­to. — Uma canção maravilhosa, Majestade. Tema inspiradíssimo. Mal os menestréis acabaram de executá-la, a multidão já se havia tomado de amores pela canção.

Alex e Luke se entreolharam, rindo das palavras de bajulação da irmã.

— Tenho certeza de que não foi a melodia, mas o poema que cativou as pessoas de pronto — comentou a rainha.

— Vossa Majestade acaba de tirar as palavras de mi­nha boca. — Berte voltou a adular. — Um verdadeiro triunfo! Minha prima Nicole é talentosíssima com as palavras, não é mesmo? — Ela se abanou com o leque.

— E muito gentil de sua parte, prima Berte — Nicole agradeceu. — Embora, ainda recentemente, me tenham dito que o fato de passar horas debruçada so­bre meus escritos estaria colocando em risco minha feminilidade e minha capacidade de reprodução.

— Quem poderia dizer tal tolice? — A rainha riu, diante do absurdo. — Seu talento é uma benção de Deus. Nicole querida, e agradeço a Ele por tê-la agra­ciado com tal dádiva. Pena você não ser homem. Se fosse, eu a levaria para a Inglaterra e faria de você poeta da corte.

Alex viu um brilho efêmero passar pelos olhos de Nicole. Não era de estranhar que a idéia fosse tentado­ra para ela, levando-se em conta que o casamento com Milo não devia ser nada fácil.

— Acho que não seria boa idéia, pensando em mim mesmo, é claro — rei William arriscou. — Os ingleses passariam a me ver ainda mais como um estrangeiro excêntrico, caso levasse uma poetisa para minha corte. Tenho me esforçado para ser aceito por eles e não tido por louco.

— A cada dia que passa mais se assemelha a um inglês de verdade, meu senhor — Alex comentou. — Seus cabelos estão quase tão longos quanto os meus.

— Alexandre acha que devo ficar mais parecido com os ingleses para ganhar-lhes o coração — o rei explicou.

— Acaso foi ele quem o convenceu a deixar crescer a barba? — indagou a rainha, arqueando uma das so­brancelhas.

— Isso foi decisão de seu marido, Majestade — Alex garantiu.

— Interessante, minha esposa sempre diz apreciar o contato de minha barba contra o rosto dela. — O rei olhou para a esposa com malícia.

— Meu senhor! — Matilda exclamou, embaraçada.

— Não foi isso que me disse ainda ontem, querida? — O rei piscou para a mulher.

Matilda encarou William com ar de reprovação. Ele pigarreou e fez um solene pedido de desculpas.

Era inacreditável como até um rei e grande con­quistador de terras se deixava levar por uma mulher, como um pobre a mendigar amor, Alex pensou. Aquilo fazia com que ele se tornasse ainda mais avesso ao casamento.

— Alexandre de Périgeaux é o mais inglês dentre meus cavaleiros — o rei observou. — Entretanto, nega-se a aceitar a imensa propriedade em Cambridge, pró­xima à do irmão, que ofereci a ele.

— Isso implicaria abandonar os serviços à Vossa Majestade — Alex lembrou.

— Já fez muito mais do que o suficiente para fi­car livre desse tipo de serviço e viver sua própria vida — a rainha contestou. — Meu marido disse que ele é um dos melhores espadachins do reino. Não é você que chamam Lobo Branco, pelo silêncio com que se aproxi­ma dos inimigos, sem se deixar notar?

— Alex é chamado Lobo Solitário agora, minha rai­nha, pela maneira como se recusa a aposentar a espa­da e constituir família — Luke informou.

Nicole parou de dar pedacinhos de bolo para Hlynn, que havia acabado de acordar e olhou para ele.

— O que tem contra o casamento, Alex? — a rainha quis saber.

— Nada em teoria, Majestade — ele respondeu, la­mentando que a conversa tivesse tomado aquele rumo, especialmente com Nicole ali presente. — É uma insti­tuição sagrada pela qual tenho grande respeito.

Luke se engasgou com o vinho e Faithe se ocupou do bebê, para não rir.

— Seu discurso me parece vazio, Alex. — A rainha decidira insistir no assunto. — Tem algo contra as mulheres?

— Alex jamais encontrou uma mulher que o rejei­tasse — Luke esclareceu, rindo.

Milo deixou escapar uma gargalhada e Alex pôde notar que Nicole mantinha os olhos baixos, sentindo-se desconfortável diante do comentário de Luke.

— Então não gosta de crianças? — A rainha retomou o embaraçoso assunto. — Não pensa em ter filhos?

— Seria falso dizer que tenha particular interesse em ter filhos.

Alex notou que Milo o encarava agora com mais in­teresse ainda, enquanto sorvia outra taça de vinho.

— Não é que não goste de crianças, mas também não posso dizer que aprecie a companhia delas. Elas me irritam.

— Então por que toda vez que vem à nossa casa chega carregado de presentes para seus sobrinhos? — perguntou Faithe, incrédula diante das palavras do cunhado.

— É só um truque para que eles me deixem em paz. — Alex tentou justificar.

— É mesmo? — Luke indagou, provocador. — E por isso, então, que passa o tempo todo brincando e ensi­nando jogos de guerra a meu Robert?

— É mesmo um lobo solitário, Alex? — A rainha retomou o interrogatório. — Nunca desejou ter um lar, com qualquer um de nós? Nunca sentiu falta de um par de braços femininos quente e familiar? Nunca so­nhou ter um filho seu para levar à caça?

No silêncio que se seguiu, Alex pôde ouvir o sangue pulsar nas têmporas. Todos olhavam para ele, inclusi­ve Nicole. Devia mesmo ter ficado na Inglaterra...

— Fiz um juramento de fidelidade, minha rainha — ele respondeu com calma. — Um juramento a Deus e ao rei sobre minha própria espada. — Levou a mão até o cabo de sua espada, que continha uma mecha de cabelo de Santo Agostinho de Canterbury, uma relíquia ade­quada a um homem com tanto amor pela Inglaterra.

— Jurei servir a meu rei até o dia de minha morte.

— Ou até o dia em que eu dispensar seus serviços — William corrigiu.

— Isso não fez parte de meu juramento.

— Essa maldita honra de soldado é tudo para você, não é mesmo? — O rei sorriu.

— Um juramento é um juramento. Se me dispen­sasse seria um grande desapontamento para mim, se­nhor. — Alex tinha orgulho de ser membro da guarda particular de William, de estar entre aqueles conside­rados não apenas como seus melhores cavaleiros, mas, seus amigos mais íntimos.

— Sei disso. — William apertou o ombro de Alex.

— Por isso mesmo não dispensaria seus serviços ou sua habilidade com a espada. Sempre haverá lugar para um espadachim de seu calibre entre meus ho­mens. Pode continuar a meu serviço.

— Fico feliz, Majestade. — Alex fez uma reverência.

— Mas somente após a temporada de Natal. — William finalizou.

— Depois do período de Natal?

— Você raramente tira uma licença, Alex, e quando o faz não é por mais de uma semana ou quinze dias, no máximo. Declaro, portanto, que deverá manter-se afastado dos serviços até o primeiro dia do ano de 1074 da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Mas isso são — Alex calculou rapidamente nos dedos — seis meses, senhor. Está me concedendo uma licença de seis longos meses?

Exatamente. — O rei parecia feliz consigo mes­mo pela decisão que acabava de tomar. — Espero que saiba usar esse tempo com sabedoria.

— Como é que vou me ocupar por meio ano?

— Você pode caçar falcões — William sugeriu. — Ou aprender a tocar gigue.

— Que raios é um gigue?

— É um tipo de... — O rei desenhou, com os dedos no ar, a forma de um corpo de mulher, semelhante a um violão.

— Um instrumento longo e esbelto, com curvas nos lugares certos — a rainha explicou.

— Do tipo que parece ronronar — concluiu Berte.

— Acho que deve seguir o conselho do rei.

— Já sei, já sei. Tenho que me empenhar em tocar...

— Gigue — Luke ajudou o irmão a lembrar.

— Agradeço muito a sugestão, Vossa Majestade. — Alex deu-se por vencido.

— Foi um prazer, cavaleiro. — O rei tomou a mão de sua rainha e juntos foram cumprimentar outros con­vidados.

— Por que está tão melancólico? — Milo indagou, assim que o casal real se afastou e os menestréis reto­maram suas canções.

— Não estou simplesmente melancólico, primo — Alex começou. — Não tenho a mínima idéia do que fazer nos próximos seis meses.

— Talvez eu possa ajudá-lo. — Milo sorriu.

— O que quer dizer?

Milo levou o cálice de vinho de Nicole aos lábios e sorveu o líquido vermelho, derramando boa parte da bebida no queixo e nas vestes.

— Maldição! — Limpou o queixo com a manga da túnica. — Precisamos conversar. — Ele olhou para Alex. — Só nós dois, sem bisbilhoteiros por perto.

—Você já tinha dito isso — Alex lembrou, com certa impaciência.

— E mesmo? — Milo franziu as sobrancelhas. — Havia me esquecido.

Nicole e Gaspar se entreolharam.

— Bem, você sabe. — Milo indicou a esposa e Gaspar com um movimento de cabeça. — Só nós dois. Para lembrar os velhos tempos.

— Quando quiser — Alex concordou. Gaspar se levantou.

— Seria melhor entrarmos agora, para o senhor descansar um pouco — sugeriu. — Esse calor e toda essa agitação...

Milo ignorou as palavras de Gaspar e voltou a diri­gir-se a Alex.

— Venha até meu quarto — pediu a Alex. — Podemos fazer uma caminhada à margem do Sena e admirar o pôr-do-sol. O que me diz?

Uma caminhada ao longo do Sena? Embora duvi­dasse da capacidade de Milo para suportar tal esforço, Alex concordou em se encontrar com ele.

— Deram-nos o pior quarto de todo o maldito caste­lo — Milo resmungou, enquanto a esposa e Gaspar se preparavam para levá-lo de volta ao castelo. — Uma cela minúscula no alto da torre norte. Aquelas esca­das todas, malditos sejam! — ele acrescentou, antes de afastar-se, apoiado em Gaspar e Nicole.

— Já tinham visto... — Berte preparou-se para lançar seu habitual veneno, assim que os três se dis­tanciaram.

— Preciso esticar as pernas. — Alex levantou-se abruptamente, farto dos mexericos da irmã.

— Eu também — anunciou Luke. — Importa-se de ficar sozinha por alguns minutos? — indagou, ao ou­vido de Faithe.

— Se for só por alguns minutos mesmo. — Ela lan­çou um olhar significativo na direção de Berte.

Alex e Luke caminharam pela margem do rio Robec, até que o som da música e das conversas desse lugar ao silêncio. Abaixando-se próximo à curva do rio, Alex apanhou um seixo e atirou-o contra a superfície da água. Luke imitou o que o irmão fizera e os dois troca­ram um sorriso.

— Que surpresa desagradável, hein? — Luke cutu­cou o irmão, com o cotovelo. — Quem diria que iríamos encontrar Nicole aqui?

— A vida é uma loucura, mas a gente tem que aprender a lidar com ela. — Alex deu de ombros, num gesto de impotência.

— Disse bem, meu irmão. A vida é mesmo louca. Mas como pôde ficar tão indiferente ao rever a mulher que um dia lhe trouxe tanta infelicidade?

— Só queria mesmo era um pouco de paz — Alex desconversou. — Será que as pessoas não podem pa­rar de tagarelar?

Luke sorriu para o irmão, com cumplicidade, e os dois retomaram a caminhada, em silêncio.

Um pouco acima, à margem do rio, encontraram um velho barco abandonado. A embarcação era de por­te médio e parecia ter sido deixada ali havia tempos. Animados com a descoberta, os dois pularam dentro do barco e puseram-se a inspecionar aqui e ali, em bus­ca de algo interessante que pudesse ter sido deixado por lá. Tudo que encontraram, porém, foram restos de corda e pedaços de madeira. Terminada a exploração, Alex deitou-se sobre um banco e ficou a contemplar as estrelas, que começavam a surgir no céu. Luke sentou-se perto dele, pernas cruzadas e um pedaço de madei­ra na mão, que pôs-se a esculpir, com a velha faca, que sempre trazia à cintura.

— Nunca vi ninguém tão destruído pela bebida quanto Milo.

— Nosso primo mal consegue andar.

— Por que acha que ele veio para cá? — Luke calou-se por um momento. — Para mim a razão ficou óbvia.

Alex olhou para o irmão, intrigado.

— Milo veio até aqui por sua causa. Ouviu dizer que você estaria aqui e queria vê-lo.

Em sua mente, Alex revia velhas imagens de so­nho e pesadelo, relacionadas àquele verão fatídico em Périgeaux.

— Por que diz isso? — Alex quis saber.

— Não sei, mas vale a pena descobrir o que ele quer com você.

Alex estava cheio de inquietação ao subir as estreitas escadas em caracol, que levavam ao quarto do primo, no topo da torre norte do castelo. Respirou fundo, antes de bater à grande porta de carvalho. Vozes abafadas, vin­das do interior do cômodo, fizeram-no hesitar. Colando o ouvido à porta, tentou usar a fabulosa audição de ca­valeiro, para distinguir o que diziam lá dentro.

— Coma um pouco, por favor. — A voz era de Nicole.

— Já disse que não quero. Meu estômago está em­brulhado — Milo dizia.

— Só um pouquinho. Você não come nada desde...

— Não como, porque não estou com vontade. Pare de me importunar, vadia maldita.

Alex decidiu ir embora, uma vez que o momento pa­recia pouco apropriado a visitas. Já havia descido até a metade da escada, quando o barulho de algo que se quebrava contra a porta fez com que parasse, imóvel. Ele tornou a subir alguns degraus e parou, por um momento, para ouvir.

Subitamente, a porta do quarto se abriu, e Alex pode ouvir o farfalhar das vestes de Nicole, que roça­vam a madeira da porta, enquanto ela se preparava para sair.

— Você mesmo vai limpar a sujeira desta vez, Milo. — A voz dela era suave, mas não escondia o nervosismo.

— Mande que uma criada venha limpar isto, mulher — ele vociferou. — E peça-lhe que traga mais vinho.

Nicole fechou a porta e recostou-se a ela, os olhos fechados, o peito arfante. A luz da tocha à entrada do quarto, emprestava um tom dourado ao rosto dela. Alex olhou para o líquido marrom respingado nas ves­tes, que antes eram de um branco imaculado.

Nicole abriu os olhos.

— Alex — ela sussurrou.

— Olá, Nicki — ele saudou com o coração aos saltos. Houve um momento de tenso silêncio, enquanto eles se entreolhavam.

— É uma hora ruim? — ele perguntou, apontando a porta. — Posso voltar mais tarde.

Nicole parecia não ouvir o que ele dizia, ocupada que estava em olhar para o rosto dele. Estudou-lhe o maxilar, o queixo anguloso, o nariz e, por fim, a testa.

Alex permaneceu imóvel, enquanto ela descia alguns degraus, aproximando-se dele. Nicole era bastante alta para uma mulher e, quando parou no degrau acima do que ele ocupava, ficaram face a face. Alex sentiu o per­fume marcante da pele dela, um aroma ainda familiar, depois de tantos anos.

Ao olhar para a testa de Alex, ela deslizou o dedo longo e delicado sobre a mais visível das cicatrizes. Ele retesou o corpo e ela afastou a mão.

Após outro momento de silêncio, Nicole o encarou.

— A vida de soldado é tudo que esperava que fosse? — perguntou, com voz suave.

— Ser cavaleiro do rei é tudo para mim. É minha razão de viver — ele respondeu, depois de respirar profundamente.

— O que quero saber é se essa vida o satisfaz.

— Gosta de estar casada com Milo?

Nicole baixou os olhos, evitando a pergunta.

— Não é tão ruim quanto parece. Milo jamais me bateu e estou certa de que jamais o faria. — Ela olhou em direção à porta do quarto. — Respondendo à sua primeira pergunta, o momento agora não é pior do que qualquer outro. Pode entrar no quarto. Meu marido aguarda ansioso sua visita.

Começou a descer as escadas, mas antes que ela se afastasse, porém, os ombros de ambos se roçaram, o que provocou em Alex uma gostosa sensação.

Ele tornou a subir os últimos degraus da escada. Chegou até a porta e parou por um instante. Ainda podia sentir o refrescante toque dos dedos de Nicole contra a pele da testa. Seria possível que ela acredi­tasse que ele tinha conseguido aquelas cicatrizes em batalha? Poderia ela desconhecer o que havia aconte­cido? Ou, quem sabe, estivesse apenas se divertindo à custa dele?

Deixando de lado os pensamentos, ele bateu à por­ta, que se abriu quase que de imediato.

— Primo! — Milo exclamou, enquanto se equilibra­va sobre a bengala, fazendo sinal para que ele entras­se nos aposentos.

Aquela não era a cela diminuta que Milo havia des­crito. Era um quarto aconchegante, de tamanho ra­zoável e tinha uma janela ampla. Bem diferente do leito improvisado e desconfortável em que ele dormia, no grande hall ocupado por dezenas de outros com­panheiros. Mas não se queixava. Estava habituado à falta de comodidade.

As cortinas da cama de casal estavam abertas, dei­xando entrever uma camisola branca de seda cuida­dosamente dobrada sobre uma almofada vermelha de brocado. Aquela visão deixou Alex perturbado.

Dando as costas para a cama, viu a porta manchada por um líquido marrom, semelhante a molho de carne. Havia fatias de carne e um pedaço de pão branco caí­dos sobre o chão, ao lado de uma bandeja de madeira.

— Estava sem apetite — Milo justificou, ao perce­ber o olhar de Alex. Ele articulava melhor as palavras agora. Era provável que tivesse dormido um pouco, de­vido à sonolência provocada pela bebida.

Carregando dois cantis de couro vazios sobre os om­bros, Milo fez sinal para que Alex o seguisse para fora do quarto.

— Tenho que garantir a provisão, antes da cami­nhada. — O primo indicou os cantis.

— Como pretende fazer o percurso embriagado?

— Bem melhor do que faria se estivesse sóbrio, pode acreditar.

Milo pôs-se a descer as escadas com seu andar hesitante, uma das mãos contra a parede, enquanto a outra segurava a bengala.

Alex pensou em ajudá-lo, mas lembrou-se de que o primo não permitia que o tocassem.

— Tudo bem. — Milo adivinhou. — Pode me ajudar, se quiser. Um tombo dessas escadas, na certa, seria fatal.

Depois de passarem pela adega, onde Milo encheu os cantis de couro com vinho, os dois colocaram-se a caminho do Sena. Alex mantinha-se próximo ao primo, para impedir que ele caísse. O pôr-do-sol pintava de ouro os telhados do castelo e as árvores que margea­vam o caminho deixavam a temperatura mais amena. O zumbido de insetos e o canto de pássaros enchia o ar, e uma leve brisa soprava do rio, ainda distante.

— Tem certeza de que quer ir em frente? — Alex per­guntou, após ter visto o primo tropeçar por duas vezes.

— Preciso falar com você a sós — Milo insistiu, quase sem fôlego, enquanto esguichava vinho na boca. — Aquele maldito castelo está cheio demais. E as pa­redes têm ouvidos, você sabe.

— Imaginei que estivesse acostumado a isso. Peverell também não é cheio de gente?

— Soldados não são bisbilhoteiros. Cuidam da pró­pria vida.

Alex sentia-se penalizado em ver o primo tão enfra­quecido e doente.

— Temos mais seis dias de banquetes e torneios pela frente. Está pronto para agüentar isso tudo?

— O que você acha? — Milo cambaleou, enquanto seguia em frente, rindo.

— Acho que você foi louco de ter enfrentado uma viagem tão cansativa.

O som do riso de Milo lembrava o agitar do guiso da cauda de uma cascavel, como se o som ecoasse, vindo dos ossos daquele corpo esquelético.

— Depois da conversa desta noite, vai me conside­rar ainda mais insano. — Milo antecipou. — E quanto a eu permanecer por aqui por mais seis dias, a respos­ta é "sim", se preciso for.

— Se preciso for?

— Diga-me a verdade, primo. Por que veio para cá? — Alex quis saber.

— Senti necessidade de afastar-me de casa. — Milo recusou-se a dar uma resposta direta. — Conhece Peverell?

— Sabe que nunca estive lá.

— É um verdadeiro gigante de pedras velhas. O do­bro do tamanho da Torre de Rouen e dez vezes mais austero. Um verdadeiro túmulo para vivos. — Ele pa­rou e olhou para Alex. — E para os meio-mortos tam­bém. — Apontou para si mesmo.

— Não acha que está sendo um pouco dramático?

— Espere até ir lá.

— Não tenho intenção alguma de ir a Peverell.

— Aquilo é um lugar horrível, mas pelo menos é meu, ou melhor, mais ou menos meu.

— Sua esposa herdou Peverell do tio dela, não é? — Alex perguntou, confuso com o que tinha acabado de ouvir.

— Por assim dizer. — Milo suspirou. — Junto com a obrigação de cuidar do lugar, que se tornou minha res­ponsabilidade depois que o velho Henry morreu, seis semanas após nosso casamento. — Ele encarou Alex. — Sei bem o que está pensando: o que deveria ser de minha responsabilidade, acabou ficando nas costas de Gaspar.

— Não julgo ninguém.

— Mentiroso. Sei que me considera um beberrão ocioso. O dever é sua vida, a honra, a lealdade e toda aquela baboseira militar. Se tivesse se tornado chefe de Peverell, teria tomado a propriedade com as duas mãos e transformado aquilo tudo em algo que prestas­se. Estou errado?

A única maneira de se tornar senhor de Peverell te­ria sido casar-se com Nicole, Alex pensou. Perguntava-se se ela teria contado a Milo sobre aquele verão, que culminara no noivado dela com o primo.

— Tenho certeza de que é mais feliz em Peverell do que era em Périgeaux. Sei o quanto detestava viver sob o teto de Peter — Alex observou.

Ao contrário de Alex e Luke, que haviam devotado à vida de soldado, o erudito Milo nunca fora afeito à vida militar, nem tampouco à religiosa. Dizia que seu destino era ser o senhor de uma grande propriedade e ressentia-se pelo fato do novo sistema de herança ter colocado as terras de seu pai nas mãos do irmão mais velho.

— Viver sob as ordens de Peter era vergonhoso para mim. O peso de um casamento me parecia um preço baixo a ser pago pelo privilégio de me tornar senhor de Peverell.

— Como soube que Henry tinha designado Nicole como herdeira?

— A mãe dela havia me contado sobre os termos do testamento de Henri.

Milo tinha acabado de confessar, sem qualquer pudor, que se casara com Nicole apenas por Peverell. Mas a verdade é que ela era, a despeito de algumas excentricidades, dona de grande beleza e graça. Além disso, possuía alto grau de instrução, o que fazia com que ela e o marido tivessem muito em comum.

— Sua sogra ainda vive com vocês? — Alex inter­pelou.

— Lady Sybila? Morreu algum tempo atrás. Três ou quatro anos, acho eu. — Milo deu de ombros. — Talvez cinco. Minha memória não anda nada bem. Lembro-me da noite em que ela morreu. Estava ralhando com a filha por ter saído com a cabeça descoberta. Era tar­de e Nicole tinha descido para aquecer as camas com carvão. A mãe não se conformou com o que considerava "falta de decência" e foi atrás da filha, falando, cus­pindo... Não era nada econômica com as palavras. Foi então que ela... Puff, caiu morta, assim, de uma hora para outra. A coisa mais estranha de se ver. — Rindo e balançando a cabeça, Milo bebeu um pouco mais.

Alex fez o sinal-da-cruz, neste caso um gesto auto­mático, uma vez que jamais havia nutrido qualquer afeto pela mulher.

Ao alcançarem a margem do Sena, o sol não era mais que um pequeno ponto no horizonte de um céu cor de violeta. Milo tremia, exausto. Alex ajudou-o a sentar-se sobre uma rocha, para que repousasse, e recostou-se contra uma árvore, de onde via o primo esvaziar o pri­meiro cantil de vinho e começar a beber do segundo.

— Não acho que tenha vindo até aqui para ficar longe de Peverell, não importa quão grande ou austero seja o lugar.

— Não? — Milo limpou sua boca com a manga da túnica.

— Luke disse que você veio até aqui para me en­contrar.

— Seu irmão é muito perspicaz — Milo comentou, segurando o cantil a meio caminho dos lábios. — Sabe por que sempre gostei tanto de você, primo?

Alex cocou a borda do nariz. Milo desviava o assun­to, novamente.

— Para você, tudo é aquilo que parece ser — Milo observou. — Não preciso arrancar sua armadura para conhecer seus segredos, porque você não os tem.

— Todo mundo tem segredos.

— Você, não. — Milo repetiu um movimento ne­gativo de cabeça por diversas vezes. — A gente pode enxergar sua alma. É honesto e direto por natureza. Mesmo quando está se divertindo. — Balançou o dedo na direção de Alex. — Lembro-me de quando éramos companheiros de bebedeiras em Périgeaux. Quantas vezes tive vontade de dar um soco no seu nariz, para ver se arrancava aquele sorriso idiota da sua cara.

— Nunca pensei que minha alegria pudesse contra­riá-lo, primo — Alex disse, sem jeito.

Milo soltou uma retumbante gargalhada.

— Você sempre se sentiu tão confortável consigo mesmo, tão satisfeito com o que tinha. Ao contrário de mim. As coisas eram simples para você: se fosse certo fazer algo, você fazia. Se fosse pecaminoso, recusava-se a fazê-lo. Se tinha uma idéia na cabeça, falava aber­tamente sobre aquilo. Se fizesse uma promessa, era para cumpri-la cegamente. E não mudou uma vírgula ao longo de todos esses anos, posso dizer só de olhar para você.

— O que quer de mim, Milo?

— Amava você como a um irmão, Alex, e ainda o amo.

— Milo? — Era hora de ir direto ao assunto. Aquela espera o deixava exasperado.

— Quero pedir-lhe um favor. — Ele sorriu com ti­midez, trazendo à lembrança de Alex o antigo Milo, o companheiro charmoso e bem-humorado de sua ju­ventude. — Trata-se de algo um tanto incomum. Não ousaria pedi-lo a quem quer que fosse, exceto a você.

— Vamos, fale — pediu Alex, impaciente.

Milo tomou um generoso gole de vinho, como que para ganhar coragem.

— Quero que você engravide Nicole.

Alex mal podia crer no que o primo lhe pedira.

— Desculpe, mas acho que não entendi o que disse.

— Entendeu, sim. Quero que plante sua semente no ventre de Nicole.

— Não sabe o que está dizendo, Milo! — exclamou Alex, enquanto se aproximava do primo.

— Sei muito bem o que estou dizendo. Quero que leve Nicole para a cama, para que ela conceba um filho.

A lembrança da delicada camisola de seda branca sobre a almofada vermelha, somada ao perfume da pele acetinada assomaram à mente de Alex.

— É a bebida que faz você dizer essas tolices. Perdeu o juízo?

— Sabia que iria reagir dessa forma. Conheço bem você e sabia que ia me considerar completamente ensandecido, antes que a noite terminasse. — Milo encarou Alex. — Tomei essa decisão num momento de total luci­dez e sobriedade. Quanto a isso pode ficar sossegado.

— Sossegado? O simples fato dessa proposta vir de você deixa meu estômago embrulhado. Sua esposa sabe que está me pedindo isso?

— Claro que não. Ficaria horrorizada.

— A proposta é ultrajante.

— Imaginei que fosse ficar aborrecido.

— Aborrecido? Por Deus, Milo, que tipo de homem é você?

— Que tipo de homem eu sou? — Ele levantou-se com dificuldade e aproximou-se de Alex. — Sou um homem incapaz de sentar-se num cavalo sem levar um tombo. Vim para cá deitado numa liteira carrega­da por dois homens, enquanto minha esposa vinha a cavalo. Sou um homem que não tem sequer o respeito dos próprios subordinados. Os soldados sob meu co­mando, ou melhor, sob o comando de Gaspar, riem de mim pelas costas, quando não na minha própria cara. Sou um homem que acorda ensopado na própria uri­na, como se fosse um bebê.

— Por favor, Milo.

— Está com nojo de mim?

— É sua autopiedade que me deixa enojado.

— Também sentiria pena de si mesmo, meu caro, se não se lembrasse mais da última vez em que teve uma ereção para...

— Chega, chega. Já ouvi demais. — Alex pôs-se a caminhar de volta ao castelo.

— Espere, eu lhe imploro. — Milo cambaleou atrás do primo. — Nicole tem pela frente pouco mais de um ano para engravidar. Se isso não acontecer, perderá Peverell.

— Não compreendo. Peverell pertence a ela. Nicole herdou a propriedade, você mesmo disse isso.

— Não é assim tão simples. — Milo deu alguns passos hesitantes na direção de Alex. — O tio dela morreu sem deixar herdeiros, você sabe. Além disso, deixou um testamento complicado, que o duque aprovou, é óbvio. Não há como contestá-lo.

— Chega de rodeios. Vá direto ao assunto. Milo umedeceu os lábios rachados.

— Nicole não é a herdeira de Henri de St. Clair. O verdadeiro herdeiro é o primogênito dela. Pelos ter­mos do testamento, ela deverá conceber um filho até o décimo aniversário da morte do tio, ou seja, dentro dos próximos quinze meses. Caso isso não ocorra, Peverell será entregue à Igreja. Há uma abadia, em St. Clair, pronta para assumir o controle da propriedade. — Apoiou-se na bengala e respirou fundo. — Precisamos de um filho, Alex.

— E espera que eu o providencie. — A cabeça de Alex doía.

— Provei ser incapaz para essa tarefa. Não que não tenha tentado nos primeiros tempos de casado. Tentei engravidar Nicole, mas foi um esforço em vão. Além dis­so, nenhum de nós jamais teve um pingo de atração um pelo outro. Quer saber de uma coisa? — Voltou a sen­tar-se sobre a rocha, exausto. Seu corpo pendia para a frente como o de uma boneca de pano velha e rasgada.

— Não quero saber de mais nada — murmurou Alex, levando a mão à cabeça.

— Só conseguia ser homem com Nicole, se fechasse os olhos e imaginasse que não era com ela, mas com Violette que estava fazendo amor.

Alex apertou os olhos, tentando afastar a imagem constrangedora do corpo de Nicole sob o de Milo, en­quanto o primo pensava na mulher que tinha ama­do desde a juventude. Filha de um humilde ferreiro e inculta, Violette não estava à altura de Milo para o casamento, o que não impedia que amassem profun­damente um ao outro. Ainda se lembrava do riso es­pontâneo da jovem Violette, tão compatível com o de seu primo. Aquela alegria vibrante, porém, havia se apagado com a morte prematura da filha que tiveram. Seu riso, finalmente, transformara-se em pranto, ao saber do casamento do homem que amava com outra mulher e de sua partida para a Normandia.

Quando Milo voltou a falar, sua voz soou fraca e a expressão de seu rosto espelhava um misto de deses­pero e desesperança.

— Um ano depois de meu casamento, Peter me es­creveu, dizendo que Violette estava morta. — Lágrimas rolavam pelo rosto do pobre homem. Ele respirou fun­do e prosseguiu: — Dizem que morreu de tristeza a minha pobre querida, o que é verdade, em parte. Soube que ela vendeu todas as jóias que eu havia lhe dado, para comprar um poderoso veneno.

— Milo, por favor, pare de se atormentar com essas lembranças — Alex aconselhou, compadecido.

— Minhas recordações são tudo que me resta na vida, primo. — Ele enxugou as lágrimas com a manga da túnica e tomou mais um gole de vinho. — Ou tal­vez venham a ser, caso Nicole não tenha um filho até outubro do próximo ano. Ficaremos sem um teto sobre nossas cabeças e viveremos na miséria.

— Milo, por favor — protestou Alex.

— Depois que Violette morreu, não me interessei por mais nada — Milo continuou, alheio ao protesto do primo. — Sequer tive energia para ter um filho, nem que fosse apenas para manter Peverell. Desde então, tenho afogado minhas tristezas na bebida e tornei-me impotente.

— Por causa da bebida.

— Sim. Além disso, nunca deixei de sonhar com Violette. Não tive coragem de contar a verdade à mi­nha esposa. Ela poderia pensar que a culpa era dela, por eu não a considerar atraente.

Aquilo tudo era absurdo. Como Milo se permitira chegar ao estado em que se encontrava? Como era pos­sível que nunca tivesse se sentido atraído por Nicole?

— Já se vão seis ou sete anos desde a ultima vez que tentei cumprir meus deveres de marido mesmo que o ato em si não tivesse qualquer significado para mim — Estava ficando difícil entender o que Milo di­zia. Articulava as palavras com dificuldade. — O tem­po está se esgotando para minha esposa e eu, e es­tamos aterrorizados com o que poderá nos acontecer, caso venhamos a perder Peverell. Pode me imaginar sendo capaz de prover sustento para nos dois.

Ele, realmente, não tinha qualquer condição para trabalhar.

— Pensei na possibilidade de Nicole arranjar um amante e engravidar dele. Infelizmente, ela é a ima­gem viva da fidelidade conjugal. Por fim, cheguei a pe­dir-lhe abertamente que procurasse alguém.

— Não acredito nisso.

— Não menospreze meu desespero, Alex. Disse a ela que nossa única esperança era que ela tivesse um filho de outro homem. Ela ficou chocada e negou-se a que­brar os votos matrimoniais. — Milo balançou a cabeça, rindo — Implorou-me que tentasse fazer amor com ela mais uma vez, ao menos para que ela pudesse conceber o herdeiro. Tive que encarar o embaraço de dizer a ela que havia me tornado impotente. Foi um golpe para a pobrezinha. Ainda assim continuou a recusar a idéia de ter um filho com outro homem. Disse que seria uma de­sonra. Não é apenas o ato pecaminoso de entregar-se a outro homem que ela rejeita. Está preocupada com sua imaculada reputação. O que dirão as pessoas, se depois de tantos anos ela aparecer grávida?

— Esta é a primeira vez que vejo um homem recla­mar da honradez da esposa — Alex comentou.

Milo se engasgou com o vinho.

— Será que é incapaz de compreender a seriedade de uma situação que só tem uma saída? Que bem as qualidades de caráter dela nos farão quando formos jogados na rua?

— Isso é ridículo. Pode muito bem voltar a Périgeaux e morar na propriedade de seu irmão.

— Nunca! — Milo proclamou com veemência. — Nada me faria voltar àquela maldita casa.

— Se não quiser morar com seu irmão, outros pa­rentes o acolherão.

— Será que é tão difícil compreender? — Milo im­pacientou-se. — Não é apenas de Peter que estou fa­lando. Eu seria um fardo para quem quer que vivesse a meu lado. Na melhor das hipóteses, seria apenas to­lerado. Teria que seguir regras, da mesma forma que um bom menino obedece aos pais. Sei que não sou nem sequer a sombra do homem que fui um dia, mas tenho minha própria casa e estou determinado a mantê-la.

— Nem que seja à custa da honra de sua esposa?

— Está falando como Nicole. Declara estar tão an­siosa quanto eu para manter Peverell, mas não é ca­paz de deixar de lado a própria virtude, para salvar a propriedade. Outro dia me veio com uma conversa ma­luca, dizendo que poderíamos continuar vivendo em Peverell, como guardiões, depois que a Igreja assumir a propriedade.

— Isso é tão insano assim? Se a Igreja lhes conce­der esse direito, por que não?

— A decisão caberia ao abade de St. Clair, homem orgulhoso, que pensa que inúteis como eu não merecem viver num lugar como aquele.

— Talvez Nicole consiga convencer o abade.

— Aí é que se engana. Padre Otaviano considera todas as mulheres, em particular as bonitas, como instrumen­tos do Mal. Ele nunca nos permitiria ficar e, se o fizesse, eu me tornaria criado no lugar onde hoje sou senhor.

— Talvez um convento recebesse lady Nicole e você poderia viver num mosteiro, caso se acomodasse à vida monástica.

— Raios, Alex! — Milo bateu com a bengala contra a rocha. — Se eu tivesse um único osso de natureza espi­ritual no corpo, teria me tornado sacerdote vinte anos atrás e não estaria agora tendo que enfrentar essa situação complicada. Acho que não está me ouvindo bem: não vou abrir mão de Peverell, enquanto ainda restar um pingo de vida neste corpo depauperado.

Alex deu um profundo suspiro.

— Então, acho que o melhor que tem a fazer é co­meçar a procurar uma latinha para recolher doações, quando for jogado na rua.

— Como é que pode fazer piadinhas a respeito de meu dilema? Não apenas meu, mas também de Nicole. Ficaremos os dois arruinados.

— Venha. — Alex estendeu a mão para Milo. — Já é noite e você está embriagado. Melhor voltarmos para a casa agora. — Tentou segurar o braço do primo, mas este o afastou, contrafeito. — Acha que consegue vol­tar? — perguntou.

— Consegui vir até aqui, não foi? E lógico que con­seguirei voltar.

Alex apoiou o corpo de Milo contra o seu, e os dois to­maram o caminho de volta para o castelo de William.

— Ofereço-lhe cem libras para que se deite com mi­nha esposa — Milo propôs.

— Acha mesmo que estou precisando do seu dinheiro?

— Será que William, o bastardo, remunera tão bem assim o Lobo Solitário por seus serviços?

— Para ser honesto, sim. — Era verdade. Desde que ele se recusara a aceitar as terras que William lhe ha­via oferecido, o rei passara a recompensá-lo, generosa­mente, em ouro.

— Pensei muito bem em tudo — Milo retomou seu discurso de persuasão. — Estava certo de que você nos ajudaria. Sempre foi tão solidário, tão disposto a aju­dar, a fazer a coisa certa.

— É isso mesmo, primo. Não posso pensar em algo mais errado do que o que está me pedindo para fazer.

— Nem mesmo se for para salvar duas pobres cria­turas da penúria e da desgraça?

— Por falar em desgraça, Milo, o que acha que as pessoas vão dizer se sua esposa aparecer grávida de­pois de nove anos de infertilidade. Ainda mais, consi­derando-se as circunstâncias da herança?

— Ninguém tem conhecimento dessas circunstân­cias. — Ele franziu as sobrancelhas. — Muito poucos, para ser mais exato.

— De qualquer forma, não daria certo. As pessoas Vão suspeitar de que o filho não é seu.

— Olhe bem para mim, Alex. Já passei do tempo de me preocupar com o que os outros possam pensar a meu respeito.

— Nicole preocupa-se com a opinião alheia, não?

— Tolice! Algumas pessoas vão falar, e daí? A maioria nem vai tomar conhecimento. Há bastardos em todas as casas nobres, meu caro Alex. Veja o grande William, duque da Normandia e rei da Inglaterra. Pois sim, filho bastardo do conde Robert com uma mulher de cor bem morena. — Milo balançou a cabeça, desa-nimado. — Nicole é uma tola. Peverell é tudo que tem na vida, e ter um filho é a única maneira de manter a herança. Ela deveria ser mais realista.

— Aí é que está o ponto falho de seu plano. Mesmo que eu aceitasse cooperar com seus planos, sua esposa jamais permitiria que eu... — Alex meneou a cabeça ao pensar em como aquela conversa não fazia sentido.

— Não daria certo.

— Não daria certo, se Nicole soubesse do plano. Você teria que esconder dela o verdadeiro propósito por trás de tudo. Teria que seduzi-la.

— Seduzi-la, sem que ela soubesse que estaria em conluio com você para engravidá-la?

— Exatamente. Você poderia ficar conosco em Peverell até a temporada de Natal. Isso lhe daria tem­po suficiente para engravidá-la. De qualquer forma, é todo o tempo de que dispomos. Uma vez que minha esposa traga no ventre a criança, você poderá voltar à Inglaterra e tirar tudo isso da cabeça. Na verdade, eu exigiria mesmo que você partisse.

— Ir embora, deixando uma mulher grávida para trás?

— Pense que você terá feito um bem enorme, o maior que ela jamais poderia receber.

— Há ainda outro ponto falho em seu plano, Milo. — A imagem da camisola branca de seda sobre a almofada vermelha voltava à sua mente. — Para que á sedução aconteça, são necessários dois parceiros amo­rosos. Uma vez que sua esposa é tão virtuosa, não pen­sou ainda que ela pode não cooperar?

Os dentes de Milo reluziram no escuro.

— Se alguém pode derrubar as defesas de Nicole, é você. Ouvi falar muito sobre seu sucesso com as moças inglesas. Dizem que o Lobo Solitário gosta de espalhar sua semente. Alexandre, o Conquistador, é o que dizem.

— Esse apelido ainda não tinha ouvido.

— Uma virada e tanto para o adolescente puro que conheci em Périgeaux. Não me lembro de você apre­ciar muito o sexo frágil naquela época — Milo caçoou.

Então, meu primo não sabe o que houve entre Nicki e eu, Alex pensou.

— Foi por essa razão que me escolheu? Por que as mulheres levantam as saias com facilidade para mim?

— Ouvi dizer que não conseguem resistir a você. Mas esse não é o único motivo. Como disse, pensei em tudo com cuidado. — Milo aproximou-se mais de Alex.

— Não importa quais sejam suas razões, o fato é que não posso fazer o que me pede — Alex disse, exausto pela tensão que a conversa tinha lhe imposto. — Vamos voltar para que você possa...

— Ouça aqui, você e eu temos o mesmo sangue e isso é muito importante. Somos parecidos ou, pelo me­nos, costumávamos ser. Temos o mesmo tom de pele. O bebê será feito da mesma matéria de boa qualidade de que os de Périgeaux são feitos. Vai ser um de nós.

— Está perdendo tempo, Milo.

— Você não é casado e nem pretende casar. Não tem compromisso com mulher alguma. Jamais lhe faria tal pedido se fosse casado.

— Não estou interessado em ter filhos.

— Precisamente. — Milo segurou-o pelo braço. — O que me dá a certeza de que não viria a reclamar o que pertence à minha mulher, no futuro. Como já lhe disse, pensei em tudo. — Ele parecia satisfeito consigo mesmo. — Além disso, você vive na Inglaterra. É praticamente um inglês agora, o que significa que não estará sempre por estas bandas, inspirando as pessoas a se questionarem sobre quem realmente é o pai do filho de Milo de St. Clair.

— O que quer dizer que você se preocupa com o que os outros possam dizer.

— Pouparia a valiosa virtude de Nicole, se pudes­se. Mas se você nos ajudar, tudo será mais simples e as pessoas não terão muito a dizer. Do ponto de vista legal, pouco importa que pensem que a criança seja ou não meu filho legítimo. O testamento de Henri estipu­lava que Nicole deveria necessariamente ter um filho, mas não de quem.

— Já que se gaba tanto por ter pensado em tudo — Alex começou —, o que fará se o bebê for menina?

— Procurarei um menino recém-nascido saudável e negociarei a troca com os pais. A menina, somada à boa quantia em prata que oferecerei em troca pelo filho. Além da promessa de manter tudo em segredo, é claro. Caso Nicole não aceite se afastar da menina, comprarei o menino e direi que ela teve gêmeos.

— Você se tomou mesmo um homem sem princí­pios, Milo. — Aquilo tudo deixava Alex boquiaberto. — Os meus, ao contrário, permanecem intactos. O que significa que não tomarei parte desse esquema.

— Nem mesmo por Nicole?

— Especialmente por ela.

— O que quer dizer com "especialmente por ela"? — Milo indagou, em voz baixa.

— Por que não pergunta à própria Nicole? — Alex sugeriu.

Milo balançou a cabeça vagarosamente e permitiu que Alex o ajudasse a caminhar até o castelo. Chegando à torre norte, Alex olhou para as escadas e tentou ima­ginar qual seria a melhor maneira de levar Milo até o quarto. Ele, com certeza, não gostaria de ser carregado como uma criança.

Ouvindo o som de passos que se aproximavam, virou-se e viu Gaspar.

— Aí está o senhor. — Ele olhou para Milo. — Estava ficando preocupado. Deixe-me ajudá-lo, sir Alex.

Juntos, os dois homens levaram o quase inconscien­te Milo pela estreita escada em caracol. Ao chegarem diante da porta, Alex bateu.

—Milo?, — perguntou Nicole, de dentro do cômodo.

Gaspar abriu a porta.

— Queira me desculpar, senhora.

Vestida com a camisola de seda branca que Alex Vira sobre a almofada, ela penteava os longos cabelos. Ao vê-los, apressou-se em cobrir o corpo com um robe discreto.

— Oh, Milo... — murmurou, ao ver o estado em que o marido se encontrava. — Por favor, entrem.

Ela desfez a cama para que pudessem acomodar Milo sobre ela. Gaspar pegou-o no colo e colocou-o so­bre a cama.

— Pode ir, sir Alex — ele disse, enquanto tirava uma das botas de Milo. — Estou acostumado a isto.

Alex ficou observando atento, enquanto Nicole ti­rava o cinto do marido para, em seguida, livrá-lo da túnica. Os longos cabelos caíam lisos e sedosos sobre o peito do marido agora adormecido.

Assim que terminou de lidar com Milo, ela se ergueu e deparou-se com os olhos de Alex fixos nela.

— Quero agradecer-lhe pela ajuda — murmurou com voz suave. — Mas eu e Gaspar podemos dar conta do resto.

Alex despediu-se, saiu do quarto e desceu rapida­mente as escadas. Ao chegar ao último degrau, porém, parou hesitante. Não lhe agradava a idéia de deixar Nicole sozinha com Gaspar. Talvez fosse tolice. Ele era pessoa de confiança. Contudo, o olhar de fascinação com que fitara Nicole em sua camisola de seda, não lhe havia passado despercebido. Aquela atitude levantara suspei­tas nele. Cerca de um minuto mais tarde, ele ouviu os passos pesados de Gaspar, que descia as escadas. Tinha sido tolo, pensou, enquanto dirigia-se a seu desconfor­tável leito improvisado no grande hall do palácio.

Alex bateu de leve à porta do quarto de hóspedes, onde estavam hospedados o irmão Luke e a família. Era madrugada e ele não queria acordar os sobrinhos. A por­ta se abriu com um rangido e Faithe espiou para fora.

— Alex. — Ela abriu a porta para o cunhado. Hlynn e Robert dividiam a mesma cama de maneira desi­gual. Fazia calor no cômodo e os dois resmungavam enquanto dormiam. Na cama de casal, Luke dormia de bruços.

— O que faz acordado a esta hora? — a cunhada quis saber.

— Estava procurando algo para beber. Desculpe-me por incomodá-la.

— Ora, não há problema. Sei que tem uma garrafa de vinho por aqui. — Ela olhou a sua volta. — Pronto, aqui está. — Entregou a garrafa a Alex. — Não conse­guiu dormir?

— O grande hall estava um forno. E impossível ficar por lá, ainda mais com tantos soldados amontoados. — Ele olhou ao redor: não havia nenhuma janela no cômo­do. — Aqui também está quente demais. Acho que vou sair para caminhar. Lá fora deve estar bem melhor.

Despediu-se de Faithe e esperou que ela fechasse a porta.

Saindo dali, caminhou até onde estava o velho bar­co que ele e o irmão tinham encontrado à margem do rio naquela tarde.

Devia ter ficado na Inglaterra, disse a si mesmo. Lá, pelo menos, não fazia tanto calor. E lá não havia Nicole.

Ao chegar ao barco, tirou a túnica, a camisa e o cal­ção que usava. A bolsa de dinheiro caiu no deque do barco, enquanto ele se livrava das roupas. Apanhou a bolsa do chão e deitou-se sobre um banco, usando as roupas como travesseiro.

Abrindo a bolsa, tirou de dentro um objeto que guar­dava em segredo, havia anos. Era uma fita de cetim bran­co que tinha enfeitado os cabelos de Nicole, num tempo que parecia ter pertencido a outra vida. Luke costumava criticá-lo por ser descuidado com as coisas. Aquela fita, porém, ele guardava como um tesouro. Estava um pouco gasta e amassada, devido ao longo tempo de confinamento sob as moedas. Colocou a fita sobre o banco e alisou-a com a palma da mão. Aquela bolsa de moedas e a fita eram seus únicos bens neste mundo e ele sempre se es­forçava para mantê-los a salvo.

Enrolou a fita em torno da mão como uma bandagem, aproximou-a do nariz e imaginou detectar nela um leve olor de rosas.

Idiota!, disse a si mesmo. Abriu o cantil de couro com vinho e bebeu até a última gota. Então, voltou a olhar para a fita, colocou-a junto ao peito e ficou a olhar o céu estrelado. Ali, deitado sob as estrelas, pôs-se a recordar uma doce e quente tarde de verão, nove anos antes, em que ficará unido a Nicole St. Clair para sempre.

 

Agosto de 1064, Périgeaux

Um calor abrasador parecia ter tomado conta do mundo e o sol ardia como uma grande tocha no céu aberto de Aquitaine. O ar formava ondas de calor so­bre o rebanho de ovelhas. Alexandre de Périgeaux e Nicole de St. Clair atravessavam o pasto, a caminho do bosque, ao sul do campo.

Alex mal podia acreditar que tinha conseguido con­vencer Nicole a passear com ele. Por certo, a mãe dela, lady Sybila, iria sentir-se ultrajada se tomasse conhe­cimento da atitude da filha.

Ele a encontrara recostada a um carvalho, com um livro entre as mãos. O prazer que ela sentia em passar horas a fio decifrando escritos em tinta, página após página, era incompreensível para ele.

Tinha praticamente implorado que ela o acompa­nhasse num passeio até o bosque. De início, ela he­sitara, dizendo que não ficaria bem sair sozinha com ele. Só havia mudado de idéia, após ele jurar que não tentaria tirar proveito da situação.

Nicole estava encantadora, vestia uma túnica de um verde pálido em seda finíssima, com bordados em prata nas mangas e no decote. O vestido nada revela­va de suas formas se estivesse parada. Ao caminhar, porém, o delicado tecido permitia discernir as formas das coxas, o leve arredondado nos quadris, o discreto volume dos seios. Alex teve que fazer uso de todo o seu cavalheirismo, para evitar olhá-la abertamente.

O calor emprestava uma cor rosada à extraordinária tez do rosto de Nicole, enquanto os cabelos, presos no alto da cabeça, aliviavam o calor. Ela possuía um brilho que parecia vir de dentro, era uma criatura etérea, não deste mundo. Pelo menos, não daquela região, pois aque­le tipo de beleza normanda era uma raridade no sul da França. Ele ficara obcecado por ela, desde a chegada dela a Périgeaux, para visitar a prima Phelis. Anteriormente, o ponto central de sua vida era a espada. Agora, Nicole era a primeira coisa que lhe vinha à mente ao despertar. Sonhava com os poucos instantes em que trocaria algu­mas palavras com ela, sempre sob os olhos vigilantes das outras pessoas. Naquela tarde, pela primeira vez, ele ti­nha a oportunidade de tê-la só para si.

Ao chegarem ao final da extensa pastagem, Nicole chamou sua atenção para um fato curioso: um bando de ovelhas, que jamais havia deixado o campo, se reu­nia agora no bosque. Podiam vê-las, umas bem próxi­mas às outras.

— Venha — ela chamou. — Vamos ver o que as atraiu até aqui.

Ela esticou o braço, buscando a mão de Alex e ele Sentiu como se o coração tivesse parado de bater no peito, tal a emoção desencadeada por aquele toque. Ao dar-se conta do quão pouco reservada tinha sido, ela retirou depressa a mão. A sensação dos dedos de Nicole, deslizando pela palma da mão, bastou para fazer o coração de Alex disparar, então. Ele a seguiu pelo bosque adentro, tentando imaginar como ela rea­giria se, de repente, ele tomasse a mão dela na sua. Ela apreciaria aquele gesto ou consideraria a atitude como a quebra do juramento que ele tinha feito antes de saírem a passear?

— Venha — ela disse, olhando para ele por sobre o ombro.

O momento passou e Alex se recriminou por sua in­decisão infantil. De qualquer forma, correu atrás dela. Pela maneira como Nicole tinha lhe estendido a mão e por suas atitudes, em geral, ele concluiu que ela se sentia mais à vontade naquela tarde. Quanto mais se afastavam da casa de Peter e da mãe dela, mais des­contraída ela parecia ficar.

— Olhe isso, Alex — Ela o chamou, enquanto se esgueirava por entre as ovelhas.

Alex viu uma pesada rocha sob a qual crescia uma vegetação incomum, diversa do mato que se via por toda parte.

— Deixe-me dar uma olhada. — Ele abriu caminho por entre as ovelhas empoeiradas. — Não vá sujar sua túnica.

Ao afastar a vegetação espinhosa da rocha, ele sen­tiu uma corrente de ar fresco e úmido. Decerto, aquilo é que havia atraído os animais até ali. Tinham vindo em busca daquela frescura, na tentativa de fugir ao calor insuportável.

— Talvez haja uma nascente aqui ou, quem sabe, um curso d'água subterrâneo — Alex opinou, enquan­to continuava a arrancar a vegetação em torno da ro­cha. Trabalho árduo, a despeito da refrescante corren­te de ar.

— Agora você é que vai sujar a túnica ou mesmo rasgá-la — Nicole observou.

Ele se levantou, retirou o cinto com a espada e a tú­nica, para colocá-los sobre um galho de árvore. Em se­guida, dobrou as mangas da camisa que usava. Sentiu o olhar de Nicole sobre seu antebraço nu. Olhou para ela, que desviou o olhar, embaraçada.

Depois de arrancar o resto da vegetação espinhosa, Alex encontrou uma abertura na rocha, pequena, mas profunda.

— É uma caverna! — Nicole exclamou, juntando-se a ele na tarefa de afastar os galhos restantes.

Trêmulos de entusiasmo diante da inesperada des­coberta, os dois olharam para o interior escuro da ca­verna.

— Não podia prever que viveríamos uma aventura — ela disse, olhando cheia de excitação para Alex.

A boca de Nicole era bonita e grande e os lábios naturalmente rosados. Adorava vê-la sorrir, embora sempre tivesse considerado os sorrisos dela contidos, antes daquela tarde. Havia algo de tão vibrante na alegria dela que seu coração chegava a doer.

— Vou entrar aí. — Ele procurou mostrar sua bra­vura.

— Eu também — decidiu Nicole.

— Não, pode ser perigoso.

— Bobagem. — Ela olhou ao redor. — Esta caverna deve estar fechada há muito tempo, considerando-se a vegetação antiga que tivemos que remover. Não vai haver ursos aqui para nos comer e não tenho medo de aranhas.

— Isso é bom, mas cuidado com os morcegos.

— Onde?

— Foi só uma brincadeira. — Alex sentiu-se tolo e pouco inteligente por ter dito aquilo.

   —Ai!

— Está machucada?

— Bati a cabeça no teto. Vou ficar com um galo desse tamanho. — Ela riu. — Sinta com a própria mão, se achar que estou mentindo.

Vou beijar o ferimento e ele vai parar de doer no mesmo instante, Alex teve vontade de dizer, enquanto tocava de leve a cabeça dela.

— Sinto muito — limitou-se a dizer, no entanto. — Sou mesmo um bobo.

— Não participo de aventuras com bobos, posso ga­rantir. — Ela premiou Alex com um lindo sorriso.

Ele retribuiu o sorriso com imensa gratidão, assim que ela se virou para olhar ao redor.

— Deixe-me ir na frente — sugeriu, abaixando-se para passar à frente dela e continuar a exploração do local.

— Não, vamos lado a lado. Deste jeito é mais justo — ela protestou.

O chão da caverna descia e o teto tornava-se mais alto. Era uma caverna grande. Logo, os dois pude­ram ficar em pé, para observar o misterioso cenário. Permaneceram em silêncio por alguns instantes, en­quanto olhavam as paredes que circundavam o local. Estavam cobertas por estranhas figuras e desenhos, que pareciam pintados em sépia, ferrugem e negro. A maioria delas representava animais e pequenos ho­mens com lanças na mão, prontos para uma caçada.

— Veja, é uma criança. — Nicole apontou, fascina­da, para a figura.

— Quem será que desenhou tudo isso?

— Não posso imaginar. — Ela percebeu que Alex olhava para ela, não para as paredes. — De alguma forma, este lugar me faz lembrar uma igreja.

— Esses desenhos devem estar aqui há pelo menos um século — ele arriscou.

— Talvez até mais do que isso. Olhe, a caverna continua naquela direção. — Ela apontou com muita curiosidade.

Seguiram por um corredor estreito e sinuoso, até encontrarem um declive. De alguns metros abaixo, vi­nha o som relaxante de água sobre pedra. Então, ali estava a nascente, que com seu ar refrescante havia traído as ovelhas. O corpo suado de Alex se arrepia­va, em contato com o ar mais frio.

— Quanto mais acha que podemos seguir? — A voz dela ecoou na câmara vazia.

Alex mal conseguia vê-la agora, pois a luminosida­de que entrava pela abertura por onde tinham entra­do havia se extinguido quase por completo.

— Talvez seja melhor voltarmos agora — propôs, pensando que aquilo podia ser perigoso para Nicole.

— Sei que gostaria de seguir em frente — ela disse.

— Estou pensando no que é melhor para você, Nicki. Está escuro e não sabemos como é o piso da caverna. Estou usando botas, mas você só tem essa sapatilha fina nos pés.

— Pronto. — Ela tirou as sapatilhas e levantou a saia até os tornozelos. A visão daqueles pés alvos e de­licados, tocando o chão, o fez estremecer.

— Você está bem. — Ele tomou-lhe a mão. — Só por precaução.

Ela se voltou para fitá-lo e Alex temeu que ela fosse retirar a mão. Mas, para sua surpresa, ela limitou-se a sorrir e agradecer-lhe a gentileza.

Ele a guiava com passos cuidadosos, à medida que o declive se acentuava. Mal conseguia sentir a rocha sob os pés, tal o enlevo que o toque da mão dela exercia so-bre seus sentidos. Tinha a maciez da pele de um bebê, era quente e era dela. Nicole tinha permitido que ele a segurasse. Nada do que tinha experimentado em seus dezessete anos de vida lhe havia proporcionado tão intensa alegria.

Quanto mais desciam, mais escuro ficava, até es­tarem numa quase total escuridão. O chão tornava-se mais macio e reto, o barulho da água mais próximo.

— Deve ser mesmo um rio subterrâneo — ele mur­murou baixinho.

— Sim.

A ausência de luz tornara-se total, agora, mas Alex podia sentir o olhar de Nicole sobre ele, assim como estava certo de que ela sabia que ele a fitava.

— É melhor pararmos por aqui — decidiu, com pru­dência. — Podemos voltar amanhã com uma tocha e algumas velas.

— Está bem. — A voz dela era trêmula.

— Está com medo?

— Não sei.

— Estou bem aqui. — Tomou a outra mão de Nicole entre as suas.

Sentiam-se, subitamente, aquecidos na câmara fria. O som da respiração acelerada de ambos ecoava contra as paredes de rocha, tendo como fundo o rumor das águas.

— Quer ir embora? — ele indagou, baixinho.

— Ainda não.

Com as mãos entrelaçadas, eles se permitiram ficar ali, em total silêncio, indiferentes ao ritmo do mundo, lá fora. O tempo parecia passar lentamente naquele lugar só deles. Algo estava acontecendo, Alex podia jurar. Estavam, agora, unidos por um laço espiritual eterno e inquebrantável.

Tinham se tornado um só.

— Estou apaixonado por ela — Alex disse baixinho a Luke.

— Por qual delas? — O irmão estudava as três figu­ras femininas, que conversavam diante de uma ampla janela, no grande hall da propriedade do primo Peter.

— Nicole, é claro. — As outras duas eram casadas, Phelis com Peter e Alyce com o irmão mais velho deles, Christien.

— Fique quieto. — Luke lançou um olhar na direção do pai e a madrasta deles, que conversavam com Peter perto dali. — Quer que todo mundo fique sabendo?

— Quero. — Alex observava Nicole ao lado da pri­ma Phelis, alheia ao fato de que ele não tirava os olhos dela. Vestida com a túnica favorita, em seda alvíssima, com o sol entrando pela janela atrás dela, sua amada mais parecia um anjo descido do céu somente para ele. Os cabelos loiros e radiantes caíam em longas trancas, enfeitadas por fitas brancas de cetim, deixando entre­ver os brincos de pérola que tombavam das orelhas delicadas. — Quero gritar aos céus que a amo. Sei que afio posso, mas Deus sabe o quanto gostaria de fazê-lo. Estou perdidamente apaixonado. Antes costumava rir das canções de amor dos menestréis, mas agora com­preendo o que significa estar...

— Que inferno! — Luke estava entediado com a conversa adocicada do irmão.

— O que foi?

— Já disse a ela como se sente?

Três semanas haviam se passado desde que tinham fitado no interior da caverna. Alex, porém, não tivera coragem de se declarar a Nicole. — Vou falar com ela em breve sobre meus sentimentos.

— Falou sobre isso para alguém, além de mim? — Não, eu conversei com padre Gregoire, mas a mãe dela...

— Ótimo. Mantenha a boca fechada.

Alex ficou decepcionado com o tom ríspido do irmão. Tinha esperado três longas semanas para confidenciar seus sentimentos ao irmão que tanto amava. Agora, arrependia-se de tê-lo feito.

Alex reparou no grande número de criados que se apressava em arrumar as mesas. Haviam recebido o convite de Peter naquela manhã, para que participas­sem de um jantar, pois ele tinha um comunicado im­portante a fazer. Podia ver agora lady Sybila, mãe de Nicole que controlava cada gesto da filha e ate mesmo seus pensamentos. Sempre vestida de preto, de apa­rência reservada, jamais sorria e era impossível detec­tar nela um único traço de beleza, que pudesse ter tido quando jovem. Como era possível que aquela mulher tivesse gerado sua doce amada?

— Nicole sabe que você estará partindo em duas semanas, para colocar sua espada a serviço do duque? Ela sabe que você não possui uma casa e esta longe de possuir uma?

— Claro, eu conto tudo a Nicki.

— Nicki? É melhor que ninguém o ouça tratando-a com tanta familiaridade. — Luke riu. — Por Deus, Alex, onde está com a cabeça em se interessar por uma jovem da posição dela, quando não tem nada a ofere­cer. Perdeu o juízo?

— Completamente. Estou apaixonado. Já se apai­xonou alguma vez?

— Sou um soldado.

— Isso não é resposta.

Luke olhou para Alex com seriedade.

— É sim meu irmão. Somos dois cavaleiros sem teto. O melhor que temos a fazer é não formar laços por enquanto. Disse isso a você milhares de vezes. Algum dia, sua espada e meu arco irão possibilitar que tenhamos um lar. Até lá, estaremos fora do páreo para o casamento. É bom que se lembre disso.

— Sei que não posso me casar.

— Então trate de parar com essa brincadeirinha com lady Nicole de St. Clair — Luke sugeriu, fuzilan­do Alex com o olhar.

— Não estou brincando com ela, Luke. Eu a amo e a respeito. É uma jovem pura e tudo que fiz foi segurar-lhe a mão.

— Jovem? É mais velha que você.

— Apenas dois anos, embora ela aparente ter me­nos de dezenove anos. —Tornando a olhar para Nicole, ele notou que o sorriso espontâneo, que tanto o encan­tava quando estavam juntos e a sós, fora substituído por um sorriso melancólico e sem expressão. Talvez a presença dos demais, e da mãe, a impedissem de com­portar-se como a Nicki vibrante e cheia de curiosidade, que talvez só ele conhecesse. A sua Nicki.

— Nicole parece ter mais de dezenove anos para mim — observou Luke. — Não tem a ver com a apa­rência dela, mas com algo como uma sombra que pare­ce cercá-la. Como se ela mantivesse parte da própria vida trancada a sete chaves, como se tivesse algo a esconder.

— E ela tem — Alex retrucou. — O amor que sente por mim. A mãe dela não gosta de soldados.

— Muito sensato. Se eu tivesse uma filha, não iria querer uns tipos como nós dois perto dela. Nicole disse que o ama?

— Não com essas palavras. Se conhecesse a mãe dela, entenderia por que a filha é tão reservada. Seria um desastre se lady Sybila descobrisse sobre nós dois. Nos encontramos sempre em... um lugar secreto, para além dos campos da propriedade de Peter.

— Sabe que está colocando a reputação dela em ris­co, caso alguém venha a saber que ela vai encontrá-lo desacompanhada, não sabe? E se você não conseguir mais controlar seus instintos e....

— Nunca. Nicole é uma donzela pura e intocada. Meu interesse por ela é bem mais que luxúria. Jamais a comprometeria.

— Aposto que já sonhou em levá-la para a cama. — Luke riu maliciosamente.

Alex sentiu o rosto queimar diante das insinuações do irmão. Luke parecia ler sua mente. Havia passado noites e noites em claro, rijo de desejo, imaginando o corpo alvo e esbelto de Nicole sob o dele, o perfume da pele dela... Seu desejo era tão forte quanto sua ido­latria. Comprometer a pureza dela, porém, era algo que jamais faria. Tinha mesmo confessado tudo isso a padre Gregoire, que o fizera dizer longas preces como penitência. Aquilo, no entanto, só havia feito seu dese­jo aumentar.

O jantar teve início. Phelis pediu aos convidados que se sentassem diante das três longas mesas, dis­postas em forma de ferradura. Alex sentiu-se alivia­do por se ver livre das inesperadas censuras de seu irmão. Luke, porém, o seguiu e segurou-o pelo braço, antes que se sentassem à mesa.

— Está precisando é de uma mulher que não seja tão inocente — sussurrou-lhe ao ouvido. — Tempestade falou de você ontem à noite, sabia?

— Não estou interessado nessas mulheres que não tomam banho.

— Na minha opinião, banhos são supervalorizados.

— Pode ser, mas não estou interessado nela.

— Mas ela parece muito interessada em você. — Luke piscou para o irmão. — Mal tinha abaixado as saias, pôs-se a falar de você. Disse que tanta beleza num homem só faz o coração dela doer. — O irmão suspirou, com ironia. — Perguntou-me, pela milésima vez, para quem é que você está se guardando.

— Ela falou tudo isso enquanto estava na cama com você?

— Quando estava sobre a serragem no chão da taverna, para ser mais exato.

— Talvez eu não queira uma mulher que se entre­gue tão facilmente.

— O que está querendo, moleque? Por algumas do­ses de vinho, ela fará de você um homem. Um homem muito satisfeito, diga-se de passagem. Tempestade sabe o que faz. Pergunte aos outros rapazes, se não quiser acreditar em mim. — Luke pigarreou. — Já está velho demais para nunca ter estado com uma mu­lher. Com sua idade, eu já tinha perdido a virgindade. Vamos lá, dê a Tempestade o que ela está implorando. Garanto que vai ficar curado de sua Nicki.

— Meu amor por ela é uma benção, não uma aflição da qual eu tenha que me curar.

Luke observou Nicole, que tomava lugar à mesa. — E o que veremos — comentou, tomado de sincera incerteza.

 

Nicole evitou o olhar de Alex durante todo o jantar. Se ao menos seus olhos se encontrassem por uma única vez, ele se sentiria em paz.

Milo excepcionalmente alegre naquela tarde, fala­va sobre o fracasso do sobrinho de Carlos Magno, con­de Roland, que havia perdido quase todo o seu exercito para os mouros, em desastrosa batalha.

— Roland é um idiota — Milo comentou, lançando um olhar de provocação para Alex. — Devia ter pedi­do reforços mais cedo. Mas o maldito orgulho impediu que ele o fizesse. O resultado foi a morte de centenas de soldados.

— Roland sempre foi um estrategista brilhante — Alex contra-atacou. — Foi mal aconselhado, só isso

— Mas a decisão final cabia a ele. Devia ter pedido arada mais cedo, em vez de ficar adiando a decisão.

— Foi uma questão de honra — Alex argumentou.

— Duvido que os soldados que foram sacrificados o perdoassem por sua sagrada honra militar. O que chama de honra, Alex, chamo de arrogância estúpida, o que costuma ser uma maldição, não uma benção — Milo voltou-se para Nicole, sentada a seu lado. — Leu a nova interpretação do incidente, não?

— Sim — ela respondeu. — E um texto belamente

Alex estava feliz pelo primo ter convidado Nicole a participar da conversa. No entanto, ela e Milo puseram-se a discorrer sobre o aspecto literário do texto, e Alex acabou ficando de fora. Afinal, ao contrário do primo, mal sabia escrever o próprio nome, tendo dedicado anos de sua vida a assuntos militares. Poderia ficar enciu­mado por Milo por ser capaz de falar com ela sobre as­suntos que ele desconhecia. No entanto, sentia-se se­guro. Todos sabiam que Milo amava a jovem Violette e dedicava-se apaixonada e exclusivamente a ela.

Finalmente, o pai e os irmãos de Alex voltaram a falar sobre assuntos de natureza militar, especificamen­te sobre os boatos de que William, duque da Normandia, estaria planejando invadir a Inglaterra.

— Deve ser verdade — comentou Christien, irmão mais velho de Alex. — Levando-se em conta o fato de ele estar recrutando todos os arqueiros e engenheiros de Aquitaine.

— De Flanders e Auvergne também — acrescentou Luke.

— Se ele está particularmente interessado em arqueiros e engenheiros, por que então, recrutou vo­cê, Alex?

— Porque Luke insistiu para que ele o fizesse. O duque William estava ansioso para recrutar nosso ir­mão, o implacável Dragão Negro, que tão bravamente o serviu no ano que passou.

— Não foi o que ouvi dizer — o pai de Alex retrucou. Dizem que foi recrutado por sua excepcional habi­lidade com a espada e não apenas por influência de Luke. Afinal, foi o próprio duque que decidiu chamá-lo Lobo Branco, por sua capacidade de atacar sem que os inimigos possam prever sua aproximação.

As palavras do pai deixaram Alex envaidecido. Esperando que Nicole estivesse impressionada pelo que tinham dito sobre ele, voltou-se para ela. Olhando para o cálice que tinha diante de si, o rosto dela não demonstrava qualquer emoção.

— Quando é que você e Luke irão partir? — per­guntou Phelis.

— Dentro de quinze dias — Alex respondeu.

— Seu irmão Henri recruta e treina soldados na Normandia para duque William, não é mesmo? — Phelis dirigiu-se a lady Sybila. — Talvez tenha mais informações sobre os planos do duque.

Se é que meu irmão sabe de algo, não me disse. Quem está a par de tudo é Gaspar.

— Gaspar! — Peter chamou.

Gaspar, sentava-se junto a Vicq e Leone, dois brutamontes que estavam sempre com ele. Levantou a cabeça ao ouvir seu nome. Um dos soldados de maior confiança de Henri de St. Clair, Gaspar tinha acom­panhado lady Sybila e Nicki na viagem servindo-as como um grande e amável urso treinado, Pronto a cumprir ordens à risca. Além disso, tendo trabalhado como aprendiz de boticário, preparava tônicos para a patroa: poções para dormir, pós para dores de cabeça, infusões de camomila para acalmar os nervos e decocções de angélica, para afastar maus espíritos.

— Venha Gaspar e junte-se a nós — Peter convidou.

O homenzarrão olhou para lady Sybila. Ela fez um sinal afirmativo de cabeça e ele levantou-se, obediente.

— Sente-se. — Peter indicou um assento disponível a Gaspar, que novamente esperou pela permissão da patroa para sentar-se.

— Perguntávamos se você não teria informações sobre os planos do duque William. Veja bem, não es­tamos pedindo que traia a confiança de sir Henri — Peter esclareceu.

— Ele vai invadir a Bretanha, se é isso que querem saber — informou Gaspar.

A notícia provocou um alvoroço e Alex sorriu diante da perspectiva de poder usar a espada numa batalha de verdade.

— Ouvi dizer que a Inglaterra é uma terra verde e fértil — ele comentou.

— Não passa de uma ilha fria e chuvosa, habitada por bárbaros — resmungou lady Sybila. — Estive lá uma vez e jurei nunca mais voltar.

Alex fez uma ligeira reverência, em respeito aos sentimentos da mulher.

— Mas acho que será um bom lugar para meu ir­mão e eu — ele comentou. — Poderíamos permane­cer aqui, mas isso faria de nós homens sem terras. Se seguirmos o duque e lutarmos por ele na Inglaterra, poderemos receber terras inglesas em pagamento.

— Depois de alguns anos — lembrou o pai de Alex.

— Ainda assim, é nossa única esperança de um dia termos terras de nossa propriedade — Luke replicou.

Quando o patriarca da família, lorde Berengar, morrera, o velho sistema de partilha de herança or­denou que Périgeaux fosse dividido em duas proprie­dades contíguas, sob o controle de seus dois filhos, que um dia tinham tido seus próprios filhos. Enquanto Alex crescia, no entanto, o direito de sucessão pas­sou, gradativamente, a ser dado ao filho mais velho, ou primogênito, que acabara por dividir o território francês entre vários descendentes. Portanto, as gran­des duas propriedades adjacentes em Périgeaux não seriam mais divididas; seriam herdadas inteiramente por Christien e Peter, respectivamente. Os filhos mais novos, Luke e Alex ficariam um dia sem terras.

Por essa razão, Alex e Luke haviam treinado para serem soldados e, um dia, terem direito a terras, que lhes seriam designadas pelo rei. Milo, por sua vez, ti­nha-se recusado a entrar para o clero, como era costume acontecer com o segundo filho das boas famílias, tendo rejeitado, igualmente a vida militar. Em conse­qüência, passara a viver sob o teto de seu irmão Peter, situação que abominava. Alex estava feliz por ver Milo de excelente humor naquela tarde. Talvez o primo ti­vesse, finalmente, aprendido a ser mais tolerante.

— Bem, caros convidados — Peter começou a dizer, enquanto colocava-se em pé. — Quando os convidei esta manhã para que viessem jantar em minha casa, disse que tinha um importante comunicado a fazer.

Nicole desviou o olhar.

— É algo que muito alegra meu coração — Peter prosseguiu, com um largo sorriso. — Esta manhã, a prima de minha querida esposa, lady Nicole de St. Clair, concedeu a meu irmão, Milo, a honra de ter sua mão em casamento.

Alex empalideceu, incrédulo, enquanto ouvia vozes que soavam alegres pela notícia. Olhou para Milo, que recebia os cumprimentos com cordialidade pouco ha­bitual. Nicole, por outro lado, parecia devastada.

— Não é verdade — ele murmurou.

— Fique quieto. — Luke apertou o ombro de Alex, a fim de que mantivesse a calma.

— Convido todos vocês a nos encontrarem amanhã, pela manhã, à porta da capela — continuou Peter —, a fim de testemunharem a feliz união matrimonial de...

— Amanhã? — A explosão de Alex foi abafada por exclamações de surpresa, diante de um acontecimento tão inesperado.

— Foi preciso que o casamento fosse apressado — Peter explicou, paciente. — Recebemos a notícia de que o tio da noiva, Henri de St. Clair, foi acometido de grave enfermidade. Lady Nicole e lady Sybila deverão retornar o mais breve possível a St.Clair. Meu irmão, como marido de lady Nicole, irá com elas.

— Meu Deus! — Alex levantou-se e deixou o hall. Uma vez lá fora, pôs-se a correr, transtornado. Tão chocado estava que, ao dar-se conta, chegava quase ao meio do campo onde pastavam as ovelhas de Peter.

Não conseguia lembrar-se de como tinha chegado até ali. Ao olhar em direção ao bosque, onde ficava a caver­na secreta, foi tomado por tal fúria, que gritou todas as imprecações que conhecia, numa tentativa de extra­vasar a dor de sua terrível e inesperada perda. Então, caiu de joelhos, sem forças.

O toque de uma certa mão sobre seu ombro, fez com que se voltasse, assustado.

— Deus do céu, Luke. Você me assustou. — Ele sen­tia-se desorientado.

— Não percebeu que corria atrás de você?

Alex sentou-se no chão, apoiando os braços sobre os joelhos dobrados e balançou a cabeça.

— Venha. — Luke acariciou os cabelos do irmão. — Vamos para casa.

— Vá você. Vou esperar para falar com ela.

— Alex...

— Tenho que falar com ela. Não se preocupe comi­go. Não sou mais criança.

— Sei disso, mas você está fora de si.

— Como ela pôde fazer isso comigo? — Alex passou os dedos trêmulos pelos cabelos. — Eu a amo, ela sabe disso. Demonstrei isso a ela de mil maneiras. Tratei-a como a uma princesa, fui gentil, cavalheiro...

— Talvez um pouco cavalheiro demais.

— O que quer dizer?

— Talvez Nicki não quisesse um cavalheiro, mas um homem.

— Do que está falando? — Alex estava perplexo. — é uma donzela inocente. Não sabe nada das coisas mundanas. Preciso falar com ela. — Ele levantou-se. Luke o segurou pelo braço e forçou-o a encará-lo.

— Pense um pouco. Um casamento apressado e tudo o mais. Já considerou a possibilidade de eles es­tarem sendo forçados a se casarem?

Alex afastou-se e desferiu um soco contra o rosto de Luke. O irmão foi ao chão, piscando e cheio de admira­ção, enquanto gotas de sangue pingavam de seu nariz.

Aterrorizado com o que tinha acabado de fazer, Alex deixou-se cair de joelhos e fez o sinal-da-cruz.

—Vai ter que melhorar um bocado seu soco, até que cause um dano tal que seja, de fato, necessário dizer uma prece. — Luke levantou-se, rindo.

— Quebrei seu nariz.

— Sossegue, meu nariz não está quebrado.

— Sou um animal.

— Não se recrimine, eu bem que mereci. Falei coisas que não devia. O que eu quis dizer é que... Milo é mais velho que você e as mulheres, em geral, preferem ho­mens mais maduros. Além disso, eles têm muito em co­mum. Pensam da mesma forma, deve ter notado isso.

Alex baixou a cabeça, não podendo discordar de seu irmão.

— Não devia estar tão surpreso por ela ter escolhi­do Milo.

— Não estou surpreso, mas chocado. Não pode en­tender, Luke, não sabe o que se passou entre nós.

— Disse que só tinha segurado a mão dela.

— Não estou falando de nada físico. Nunca teria... Eu amo Nicki. Tudo isso não faz sentido. Ela também me ama. — Alex levantou-se. — Preciso falar com ela.

— Faça o que acha que deve fazer, mas não em públi­co. Tem que achar um jeito de conversar com ela a sós.

— O que preciso dizer a ela, jamais poderia ser dito em público.

 

Alex passou o resto da tarde, deitado no chão da caverna, olhando as figuras desenhadas nas paredes. Sentia-se infantil e incapaz por ter permitido que as coisas chegassem ao ponto que tinham chegado. Seu coração batia forte, como se quisesse sair do peito. Talvez fosse melhor que isso acontecesse, para acabar de vez com aquele tormento, pensou consigo mesmo.

Ao cair da noite, ele dirigiu-se à pequena casa, onde Nicole e a mãe estavam hospedadas, na propriedade de seu primo Peter. Tomou cuidado para que ninguém o visse. Ao chegar lá, aproximou-se da única janela da pequena construção e olhou pelo espaço entre as vene­zianas. O quarto estava vazio. Abriu cuidadosamente a janela e entrou.

O cômodo era pequeno e aconchegante. As paredes estavam recém-pintadas de branco e o chão de argi­la era recoberto por grama cuidadosamente aparada. Uma bacia com flores silvestres enfeitava o centro da mesa, sobre delicada toalha branca. Eram as flores que ele havia colhido para Nicole no dia anterior. Alex tomou uma das flores na mão, mas um espinho feriu seu dedo. Repôs a flor na bacia e chupou o sangue, num gesto automático.

Sobre uma mesinha, estavam uma bacia e uma jarra com água. Ao lado delas, artigos de toalete estavam cui­dadosamente arrumados sobre um pano bordado: uma barra de sabão, um pente de madeira e uma escova. Alex removeu a tampa de um frasco azul, que continha um líquido, e cheirou: era óleo de rosas. Um pequeno pote continha uma espécie de bálsamo, que cheirava a especiarias. Encontrou uma pequena caixa de marfim e, dentro dela, um espelho. Pensando que aquele objeto tinha refletido por vezes sem conta, em suas profunde­zas cor de prata, a imagem de Nicole, sentiu-se tentado a escondê-lo sob a túnica, para guardá-lo como recorda­ção, mas achou a idéia pouco adequada.

Penduradas em ganchos, contra a parede, encontrou diversas túnicas femininas. Quatro delas eram pretas e pertenciam, obviamente, a lady Sybila. As outras cinco, em cores pálidas e delicadas, eram de Nicole. Ele tocou a maciez quase líquida da seda fria, enquan­to aspirava o perfume familiar que emanava delas.

Contra a parede, do fundo do cômodo, havia uma cama espaçosa e, aos pés dela, um baú de madeira. Abrindo-o, encontrou uma camisola de delicada seda branca quase transparente, com um generoso decote e mangas destacáveis, apropriada para noites quen­tes de verão. Fechando os olhos, cheirou a roupa im­pregnada do mesmo perfume que tanto o enfeitiçara durante aquele verão. Então, imaginou Nicole vestida com a peça tão reveladora. A simples idéia deixou-o excitado. Imagens como aquela povoavam suas noites, o toque de peles úmidas, lugares secretos, desejos in­confessáveis.

Ao ouvir, de repente, o ruído da chave sendo intro­duzida no buraco da fechadura, largou a camisola e fechou rapidamente a tampa do baú.

Nicole entrou no quarto e arregalou os olhos ao vê-lo, deixando cair a chave, que desapareceu na grama.

— Alex!

— Nicki! Lady Sybila entrou no quarto, atrás da filha.

Indignada pôs-se a olhar de um para outro, com olhos cheios de fúria, compreendendo imediatamente que algo havia se passado entre os dois jovens.

— Mamãe... — Nicole tentou dizer algo.

— Deus tenha piedade! — lady Sybila exclamou. — Nicole, eu avisei. Será que não aprende?

— Mamãe, por favor...

— Ele tem que sair daqui agora mesmo. — A mulher voltou-se para Alex e mostrou a porta. — Fora, ra­pazinho insolente! O que estava pensando ao vir aqui? Minha filha vai se casar amanhã. Se alguém viu você entrando aqui, ela estará arruinada.

— Ninguém me viu, senhora. Fui muito cauteloso.

— Deus misericordioso...

— Não vou sair daqui — Alex declarou. — A senho­ra é que vai.

— E deixar você sozinho aqui com ela? Você está fora de si?

— Quero apenas conversar com sua filha, só isso. Se não sair imediatamente, vou fazer com que todos saibam que estou aqui — ameaçou.

— Não teria coragem.

— Posso garantir-lhe que o farei, caso a senhora não me deixe falar com sua filha.

— Faça o que ele disse, mamãe, por favor. Ele só quer conversar comigo.

Lady Sybila olhou para Alex com ódio tão profundo, que o fez tremer por dentro.

— Vai se arrepender amargamente pelo que fez — ela sussurrou, ameaçadora, olhando bem dentro dos olhos dele.

Lady Sybila retirou-se vagarosamente, fechando a porta sem fazer ruído.

Alex apanhou a chave do chão e trancou a porta, 'para então voltar-se para Nicole.

— Vai ter um filho de Milo? — ele indagou.

Claro que não — ela respondeu, levando a mão ao peito. — Ele nunca me tocou, juro.

Alex acreditou nela. Além do que ela dizia, sabia que Milo achava Nicole muito magra e pálida. O primo gostava de mulheres mais voluptuosas, como Violette.

— Então, Nicki, por quê?

— Seu primo me propôs casamento ontem à noite, depois que a carta que informava sobre o estado de saúde de meu tio chegou. Mamãe disse a ele que tería­mos que retornar a St. Clair. Ele me procurou e fez a proposta.

— Ele não ama você, Nicki. Milo ama uma mulher chamada Violette.

— Sei disso, ele me contou ontem à noite.

— Ele também disse que vai se casar com você, para escapar ao controle do irmão?

— Sei por que ele vai se casar comigo. Não sou tola.

— E vai aceitar esse tipo de casamento?

— Por favor, Alex. — Ela olhou apreensiva em dire­ção à porta.

— Tem esperanças de que ele transfira o amor que sente por Violette para você? Pois saiba que isso nunca acontecerá. Milo vai amar Violette até o dia de sua morte.

Ela caminhou alguns passos, os braços envolvendo o próprio corpo.

— Você é tão jovem, Alex — ela murmurou.

— Sou apenas dois anos mais novo que você.

— Mas há tantas coisas que não compreende...

— Compreendo mais do que imagina. — Alex apro­ximou-se dela. — Sei que estava interessada em Milo, mas enquanto isso passava tardes inteiras comigo.

— Não é verdade, Alex.

— Sei que Milo é culto, enquanto não passo de um menino sem instrução, não é mesmo?

— Não.

— Sou apenas um cachorrinho que vive atrás de você, como um escravo, tentando adivinhar mil e uma maneiras de agradá-la.

— Pare com isso.

—Um cachorrinho ávido por um pouco de atenção. Irritante, mas ligeiramente divertido, é isso que pensa de mim?

Nicole tentou afastar-se, mas Alex segurou-a pelos braços e colocou-a contra a parede.

— E isso que sou para você? — Ele soltou os bra­ços dela e segurou-lhe as trancas, correndo os dedos por elas, de alto a baixo, fazendo com que as fitas de cetim branco que as enfeitavam se soltassem nas pon­tas. — Um garotinho imberbe, é isso que sou? — Alex observou o subir e descer do peito arfante e o contorno dos seios delicados contra as costas de sua mão. — Um garotinho que sempre se contentou em segurar sua mão, que nunca ousou fazer nada mais...

Sem querer, esbarrou os nós dos dedos contra os seios dela. Nicole gemeu baixinho, fazendo crescer o desejo dentro dele. Com as palmas das mãos, fez mo­vimentos ascendentes e descendentes sobre os seios dela, sentindo-lhe os mamilos rijos.

Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás.

— Alex... — ela murmurou.

— Sempre tive vontade de fazer isso. — Ele to­mou-lhe os seios nas mãos. Era como se não fosse ele a tocá-la daquela forma. Parecia poder observar o que acontecia do alto, de fora de seu corpo, enquanto ouvia os gemidos dela, cada vez que tocava os mamilos sensíveis por sobre a seda.

Uma espécie de pânico se apoderou dele, um terrí­vel medo de perder aquilo que haviam partilhado du­rante aquelas semanas, a amarga consciência de que o que tinha sido amor e paixão para ele, não passara de mero divertimento para ela.

— Fico deitado em minha cama pensando em você, em nós dois — ele sussurrou ao ouvido de Nicole.

— Vá embora, por favor. — Ela tentou afastar-se. — Minha mãe está certa. Se alguém souber que esteve aqui estarei desonrada.

Alex calou-a com um beijo. Pouco importava que não soubesse como beijar ou que estivesse sendo de­sajeitado. Tinha urgência dos lábios dela. O tempo de cavalheirismo havia terminado.

Ela tentou afastá-lo, mas ele prendeu-lhe os pulsos contra a parede.

— Eu te amo — murmurou contra os lábios dela. — Te amo como um homem ama uma mulher. — Encostou seu corpo contra o dela, ardendo de desejo.

— Você me quer. Isso é diferente de amar. — Ela permanecia imóvel.

— "Quero" você e "amo" você.

— Alex, não sou a mulher que você imagina que eu seja. Há coisas sobre mim que desconhece. Vai ficar melhor sem mim... e ficarei melhor sem você.

— Como pode dizer isso? Como pode pensar assim? Fomos feitos um para o outro. — Ele se ajoelhou dian­te dela e soltou-lhe as trancas, jogando as fitas de ce­tim que as enfeitavam sobre a cama.

— Você foi feito para os campos de batalha, Alex.

— Andou dando ouvidos à sua mãe?

— Não, ouvi apenas o que você mesmo disse. Ser soldado está no seu sangue. Ama a espada mais do que tudo no mundo.

— Você está no meu sangue — ele declarou, tornan­do a beijá-la, desta vez, com calma, enquanto acaricia­va-lhe os seios. — Eu te amo.

— Não diga mais isso, Alex. Não posso me dar ao luxo de amar você.

— Você me ama — ele voltou a dizer, enquanto des­lizava uma das mãos para baixo das saias dela.

— Vou me casar com Milo — ela lembrou, enquanto tentava afastá-lo.

Alex foi mais rápido e fez com que ela se deitasse so­bre a cama. Os cabelos loiros de Nicole se espalharam em torno do rosto alvo, à semelhança de uma aura.

— Não pode se casar com Milo. — Alex tomou o ros­to dela nas mãos. — Ele ama outra mulher, e você me ama. — Deitou sobre ela, movendo-se instintivamente.

— O que está fazendo?

— O que deveria ter feito já há muito tempo. Você é minha.

— Sou de Milo agora. — Ela empurrou os ombros dele, em vão.

— Ele jamais a terá. Eu a quero e é a mim que você quer. — Alex levantou a túnica de Nicole e colocou um dos joelhos entre as coxas dela, tocando-a no ponto mais vulnerável. Então, beijou-a com paixão, enquan­to com uma das mãos tocava o sexo macio e úmido de sua amada. Sabia que era inexperiente, mas deixava-se guiar pelos instintos. Seu membro estava tão rijo quanto sua espada.

— Oh, Alex... — Ela passou as mãos pelas costas dele, trazendo-o para mais perto de si.

A respiração dela tornou-se mais e mais errática, enquanto as carícias prosseguiam. Ao senti-la inten­samente úmida, Alex lembrou-se de que esse era o si­nal de excitação na mulher.

— Diga que me quer — sussurrou, ao ouvido dela.

— Diga, por favor... — Livrou-se do cinto e da túnica.

— Vamos, admita. Você me ama e me quer. — Deixou que ela sentisse o quanto estava excitado, através das calças que usava.

— Não é justo — ela murmurou.

— Pouco importa. Vamos, diga que é a mim que você quer e não a ele. —Afastou-se ligeiramente para encontrar o caminho de entrada para o corpo dela. — Diga, Nicki...

— Eu... quero você. — Ela enlaçou-o com as pernas, enquanto Alex preparava-se para penetrá-la.

— E você me ama. Você é minha e não vai se casar com ele. Diga isso para mim, Nicki. — Alex apoiou-se sobre os cotovelos, abaixando-se para que ela separas­se mais as coxas.

— Por favor, Alex... — Ela o abraçou com mais força. Num esforço para controlar-se, Alex afastou-se e olhou dentro dos olhos dela.

— Diga que me ama, Nicki... — pediu, ainda uma vez, lutando para conter a excitação.

— Não posso... — ela murmurou, os olhos brilhan­tes. Com mãos trêmulas, acariciou o rosto de Alex. — Por favor, não vamos ter outra chance. Apenas...

Um som de passos apressados próximo à porta, se­guido pelo barulho da maçaneta fizeram com que se afastassem.

— É minha mãe. — Nicki levantou-se da cama, abaixando as saias. — Ela tem outra chave.

— Céus! — Alex exclamou, enquanto amarrava as calças, de costas para a porta.

— Nicole! — Lady Sybila entrou no quarto, com a chave na mão. Olhou para a filha, cabelos em desalinho, a túnica amassada, o rubor do rosto. Então voltou seu olhar glacial para Alex. — Santo Deus! — A mulher fez o sinal-da-cruz, ao ver que ele não trajava mais do que a calça de malha e a túnica.

— Mamãe...

Ao ouvir a voz suplicante da filha, lady Sybila deu-lhe uma bofetada tão forte, que a fez girar.

— Será que não aprendeu nada? — a mulher per­guntou, enquanto se preparava para desferir-lhe ou­tra bofetada.

Alex pulou da cama e segurou o braço de lady Sybila.

— Você está bem, Nicki? — ele quis saber.

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, enquanto passava a mão pelo rosto vermelho. Alex desprezava a mulher por tratar a filha daquela maneira.

— Não toque mais nela, senhora — pediu. — Se há alguém aqui que merece uma surra, sou eu.

— Tem toda a razão — ela concordou, passando a esbofeteá-lo.

Ele manteve-se imóvel. Jamais daria àquela mu­lher o prazer de ouvi-lo queixar-se.

— Pare com isso, mamãe, por favor — Nicole supli­cou, entre lágrimas.

Alex virou-se calmamente para a cama, a fim de ganhar o resto de suas roupas. Lady Sybila aprovei­tou para desferir socos contra as costas dele. — Não se pode confiar em gente do seu tipo — a mulher disparou. —Vocês, jovens cavaleiros, são todos iguais. Não respeitam mulher alguma. — Pelo amor de Deus, mamãe. — Nicole voltou a pedir que a mãe se acalmasse.

— Como é que pôde se entregar tão barato, Nicole? A mãe olhou-a com desprezo. — Esqueceu-se de que vai se casar com Milo amanhã?

— Nicki não vai se casar com ele — Alex apressou-se a dizer. — Farei o que estiver ao meu alcance, para que esse casamento não se realize.

— Nada pode impedir esse casamento — Nicole sentenciou. — Tenho que me casar com ele. Por favor.

— Minha filha estará arruinada se alguém souber que esteve aqui — lembrou lady Sybila. — Se, de fato, se importasse, não ficaria ameaçando estragar o casa­mento com seu primo. Casar-se com Milo é o melhor para ela.

—Venha comigo, Nicki. —Alex tomou o braço dela, em desespero.

— O quê?! — exclamou lady Sybila, indignada.

— Encontre-me de madrugada no nosso lugar se­creto. Podemos fugir juntos.

— Pretende fazer dela sua amante? — Sybila vol­tou-se para a filha. — Ele não pode se casar. É um homem sem terras. Só pode oferecer-lhe desonra.

— Nicole? — Alguém bateu à porta.

— Phelis? — Sybila empurrou Alex em direção à janela. — Vá embora, rapaz!

— Trouxe minha túnica de casamento para você usar amanhã, prima — Phelis anunciou do outro lado da porta. — Posso entrar?

— Vá embora, Alex — Nicole implorou.

— Não vou ser um homem sem terras para sempre — ele insistiu baixinho. — Eu te amo. Venha comigo.

— O que pretende fazer com ela, enquanto segue William até a Inglaterra e não sei mais onde? — Sybila perguntou, com ironia.

— Há conventos... — ele começou.

— Ora, pelo amor de Deus, já perdemos tempo de­mais com essa tolice!

Nicole olhou para Alex com tristeza, infeliz com a idéia de ter que enfrentar uma vida de claustro.

— Por favor, Nicki — ele lamentou-se, apavorado com a possibilidade de ficar sem ela. — Sei que estou fazendo tudo errado, mas vou dar um jeito para que tudo fique bem. Eu te amo. Venha me encontrar hoje de madrugada.

— Nicole? — Phelis voltou a chamar. — Tudo bem com você?

— Tudo bem — ela afirmou. — Por favor, Alex. Vá embora.

— Não, até você prometer que vai me encontrar de madrugada.

— Não posso.

— Está acontecendo alguma coisa, prima? — Phelis tornou a perguntar.

— Não. Só um segundinho. — Ela voltou-se para Alex. — Tem que ir agora. — Empurrou-o pela janela.

Ele a tocou no rosto, recusando-se a partir.

— Talvez você mude de idéia com o passar das ho­ras — arriscou.

— Talvez você é quem venha a mudar de idéia. — Ela recostou o rosto contra a palma da mão de Alex.

Puxando-a para si, ele beijou-lhe avidamente os lá­bios, enquanto lady Sybila tentava empurrá-lo, para que fosse embora.

Na madrugada do dia seguinte, Alex rezava, enquanto galopava em direção à caverna do bosque. Pedia a Deus que Nicole estivesse à sua espera. Afinal, ela tivera tempo suficiente para refletir sobre a insen­satez que seria casar-se com Milo.

Dizia a si mesmo que não entrasse em pânico, caso ela ainda não tivesse chegado. Era cedo ainda e os pri­meiros sinais da aurora nem sequer se anunciavam no céu.

Montado em seu melhor garanhão, trazia outros dois cavalos pelas rédeas; uma égua mansa, para Nicole, e outro animal de montaria, carregado de provisões para a viagem que teriam pela frente. Se partissem logo, teriam uma vantagem de muitas léguas sobre aque­les que pudessem vir atrás deles, ao dar pela falta de ambos. De qualquer forma, não tinha planos definidos. Nicole parecia avessa à idéia de viver num convento, enquanto esperava por ele, mas era possível que mu­dasse de idéia. Até lá, algo iria lhe ocorrer e tudo daria certo. Tinha que dar!

Ao fazer a curva, em direção ao campo de pastagem do primo Peter, o coração começou a bater mais rápido: na semiescuridão, à considerável distância, pôde divi­sar uma figura sentada sobre algo, talvez um pedaço de madeira. Será que Nicole tinha chegado mais cedo? Estaria ainda mais ansiosa que ele para o encontro?

Chegando mais perto, constatou que a figura na distância não era Nicole, mas um homem. Pela consti­tuição física, não poderia ser outro senão Gaspar.

Ao ver Alex, o homenzarrão limitou-se a acenar, an­tes de mandar um bocado de vinho goela abaixo.

— O que o traz aqui, a esta hora da madrugada, Gaspar? — Alex indagou, enquanto puxava as rédeas dos cavalos, para fazê-los parar.

— Tenho uma mensagem para o senhor, sir Alex — o homem informou, após enxugar a boca úmida de vinho na manga da túnica. — Duas, para ser mais exa­to: uma de lady Nicole e outra da mãe dela.

— Não estou interessado no que lady Sybila tenha a me dizer — retorquiu Alex, atordoado. — Que notí­cias traz de lady Nicole?

— Ela pediu-me que lhe dissesse que não mudou de idéia e que irá se casar com seu primo pela manhã, conforme planejado. Pede também que o senhor não tente atrapalhar a cerimônia.

— Sinto, muitíssimo, mas farei tudo que estiver ao meu alcance para impedir que esse casamento se rea­lize. Ela não tem idéia da bobagem que está fazendo. — Alex segurava as rédeas dos cavalos com força.

— Sendo assim, terei que transmitir-lhe, também, a mensagem de lady Sybila — Gaspar anunciou, pas­sando a mão pela nuca.

Cheio de desapontamento, Alex desceu do cavalo e aproximou-se de Gaspar.

— Beba, meu jovem cavaleiro. — O homem lhe pas­sou o cantil com vinho. — Beba bastante. Vai ficar mais fácil para você receber a mensagem de minha patroa.

— Qual é a mensagem? — Alex quis saber, depois de tomar um gole.

Gaspar ergueu-se lentamente do tronco e retirou um porrete com pontas de metal de sob a túnica.

Naquele momento, Vicq e Leone, os dois brutamontes subalternos de Gaspar, saíram de traz de um ar­busto e caminharam em sua direção. Os dois carregavam porretes iguais ao de Gaspar.

Se ao menos tivesse minha espada, Alex pensou.

— Lady Sybila pediu-me que lhe dissesse para não interferir com o casamento da filha, pois é muito im­portante para ela — Gaspar começou. — Depois pe­diu-me que garantisse que sir Alex não iria atrapalhar a cerimônia.

— Acho que não há como fazê-lo mudar de idéia. — Alex fez uma tentativa. — Prata, talvez?

Gaspar fez um sinal negativo com a cabeça.

— Uma ordem é uma ordem. Você é cavaleiro, com­preende o que quero dizer. — Tornou a passar o cantil com vinho para Alex. — Recomendo que beba até o final. Minha patroa pediu-me um serviço completo.

— Apenas um favor, Gaspar. Poupe minha mão di­reita. Preciso dela para manejar a espada.

— Pode deixar, senhor.

Dito isto, Gaspar balançou o porrete e começou a ba­ter. Atingiu Alex no estômago e pôde-se ouvir o barulho de ossos que se quebravam. Ele caiu. Dois outros golpes vieram por trás: um acertou os rins, outro as costelas.

Não grite, Alex disse a si mesmo.

Os brutamontes continuaram a golpeá-lo, acertan­do as duas pernas, costas e peito. Alex engoliu poeira e sangue.

Em sua mente, um rosto se materializava, cercado por um alo de luz: era o rosto de Nicole. Ele procurou concentrar toda a atenção naquela face querida, en­quanto os golpes de porrete o atingiam, um após outro.

Alex viajou da consciência à inconsciência por vezes sem conta. Dor, agonia, suores e solidão povoavam seus momentos de lucidez. Pouco a pouco, esses momentos passaram a ser também marcados pela presença de mãos amorosas que cuidavam de seus ferimentos. Por vezes, eram mãos calejadas como as de Luke. Na maio­ria das vezes, porém, eram mãos femininas que se ocu­pavam dele, um toque leve, refrescante e apaziguador. Havia também vozes: a de seu irmão e uma voz rouca de mulher. Ela cheirava a fritura, e suor misturado a algum tipo de essência. Havia ainda outro cheiro forte, como o de ervas.

Quando, finalmente, despertou, ele estava em sua própria cama, na casa de seu pai. Tentou sentar-se, mas uma forte dor o impediu de fazê-lo. Tinha braços e pernas imobilizados, enquanto o resto do corpo estava firmemente enfaixado com bandagens e emplastros. Só o que conseguia mover, livremente, eram mãos e pés. Flexionou cuidadosamente cada articulação da mão direita, a mão preciosa com a qual manejava a espada e sentiu profundo alívio ao constatar que tinha sido poupada. Gaspar, cumprira sua palavra.

— Não tem parado de mexer essa mão nos últimos três dias — comentou uma voz, que vinha de algum lugar atrás dele.

— Luke? — Os lábios ressecados de Alex pronun­ciaram o nome do irmão. — Seus olhos... — ele mur­murou, assim que Luke surgiu ao lado dele, com a área ao redor do olho levemente arroxeada.

— Pois saiba que seus dois olhos estão bem mais roxos que o meu, e seu nariz mais parece um nabo branco. Mas isso é o de menos. De todo o seu corpo, apenas a mão direita foi poupada. É a única parte que conseguia mover, desde que o encontrei.

— Que mau cheiro é esse?

— E você que está cheirando mal, bonitão. Luke trouxe uma caneca com água e ajudou o irmão a beber. Alex notou que havia algo enrolado à mão de Luke: era o crucifixo de madeira, que o próprio irmão tinha esculpido quando criança. Ele o trazia, de há-pito, em torno do pescoço, e o segurava entre as mãos todas as vezes que rezava.

— Andou muito preocupado comigo? — quis saber. Os olhos de Luke estavam visivelmente vermelhos e inchados. Era evidente que andara chorando. Alex não se lembrava de tê-lo visto chorar em toda a vida.

— Pensei que você... — Luke calou-se por um mo­mento. Pigarreou e respirou fundo. — Não tinha certe­za de que sobreviveria. Quando não consegui encontrá-lo na manhã do casamento, lembrei-me de que tinha mencionado um lugar secreto, próximo aos campos de pastagem da propriedade de Peter. Corri até lá e o encontrei, jogado no meio do caminho. Reconheci você pela túnica. O resto de seu corpo estava... Por Deus, Alex. Foram salteadores?

— Gaspar e aqueles dois brutamontes que andam com ele.

— Por quê? — Luke olhava para o irmão, incrédulo.

— Para impedir que eu perturbasse o casamento. Luke recolocou o crucifixo em torno do pescoço.

— Deu certo. Padre Gregoire celebrou o casamento de Milo e Nicole naquela manhã, conforme planejado.

Por alguns instantes, tudo pareceu girar em torno de Alex.

— Estão a caminho de St. Clair agora, com lady Sybila, Gaspar e seus soldados, é claro. Quando formos nos juntar aos exércitos de William, caso você ainda esteja interessado...

— É claro que estou interessado e estarei pronto quando o momento chegar — Alex garantiu, passando a língua pelos lábios secos.

— É assim que se fala, meu irmão. Quando chegar­mos à Normandia, vamos procurar Gaspar e os solda­dos dele e dar-lhes uma boa lição.

— Isso não vai mudar nada. Afinal, ele só estava cumprindo ordens da patroa.

— Olhe só para você, Alex. Aqueles homens usaram de selvageria. Estava quase morto quando o encontrei.

— Acho que mereci, por ter sido tão tolo. — Alex hesitou por um momento. — Acha que Nicki andava flertando com Milo pelas minhas costas?

A expressão do rosto de Luke disse muito mais que palavras.

— Então, por que ela continuou indo à caverna co­migo? Por que me fez acreditar que gostava de mim?

— Prometo responder às suas perguntas, contan­to que não me dê outro soco no olho. — Luke sorriu. — Bem, acho que não está em condições de me acertar de novo.

— Vamos, fale.

— As mulheres costumam usar um sujeito para deixar outro, aquele em que estão de fato interessa­das, enciumados.

Aquilo fazia sentido, Alex pensou, mas...

— Milo ama Violette. Não tinha por que ter ciúme de mim.

— Ela não sabe sobre Violette.

— Sabe, sim. Ele mesmo lhe revelou.

— E verdade? Milo não é tão esperto quanto eu imaginava. De qualquer forma, ele contou a Nicole, depois de ter feito a proposta. Ela deve ter achado que poderia reverter a situação.

— Você acha mesmo que ela... — A cabeça de Alex doía muito.

— Nicole queria Milo e achou que você poderia ser um caminho até ele.

Seria verdade, Alex perguntava a si mesmo. Se fosse assim, a paixão que Nicole tinha demonstrado sentir, na noite em que fora ao quarto dela, não havia passado de desejo físico.

— Tudo isso é tão complicado e sórdido — comen­tou, confuso.

— Bem-vindo ao reino do coração. — Luke cami­nhou até a janela, abriu as venezianas e debruçou-se sobre o parapeito. — A vida de soldado é dura. Não so­mos como os outros homens. Não temos direito às coi­sas que os outros têm, como um lar, uma esposa amo­rosa ou filhos. Nenhuma mulher, que valha a pena, há de querer unir-se a um soldado, que nunca sabe onde vai estar no dia seguinte. Apaixonar-se está fora de co­gitação para nós. Temos que nos contentar com nossas prostitutas e garotas de taverna.

A voz de Luke soava tão suave, que Alex acabou por ficar sonolento.

— Não podemos nos apaixonar — ele repetiu as instruções do irmão, com voz quase inaudível. — Fui um idiota. Nunca mais cometerei o mesmo erro.

Dando as costas para a janela, Luke cruzou os bra­ços e continuou:

— Até que nos tenhamos terras. A partir daí, nos vamos poder...

— Nunca mais. — Alex respirou profundamente, antes de cair num sono profundo.

Alex acordou mais tarde, com a sensação prazerosa de dedos ásperos sobre os lábios, sendo untados com algum tipo de substância aromática. Tentando prová-la, tocou o lábio superior com a língua, roçando-a, por acaso, contra a ponta de um dedo.

— Sinto muito. — Esforçou-se para enxergar me­lhor a pessoa à sua frente. Olhos escuros, lábios carnudos, cabelos ruivos presos por um pedaço de trapo. Era Tempestade. Estava sentada à beira da cama, tendo nas mãos um pequeno pote. Era a ponta do dedo dela que ele acabava de lamber.

Tempestade sorriu e inclinou-se até chegar bem perto dele, os seios fartos tocando seu peito.

— Pode lamber de novo, se quiser — ela ofereceu, introduzindo o dedo escorregadio entre os lábios dele.

— O gosto é bom? É água de violeta e óleo de amên­doas doces, misturados à gordura de pato.

— Acordado de novo, hein? — Luke se aproximou da cama. — Tempestade tem cuidado de você esse tempo todo. Assim que o trouxe para casa, pedi a ajuda dela. Ela veio o mais depressa que pôde.

— Sou muito grato.

— Não disse a você que ela entende tudo sobre emplastros e coisas do gênero? Três dias se passaram e nenhum dos ferimentos infeccionou.

— E a terebintina que não deixa os ferimentos apodrecerem. Um de meus muitos segredinhos. — Tempestade olhou com ar de cumplicidade para Luke e afastou-se por alguns minutos, para ir se ocupar dos óleos, pastas e bandagens.

—Essa mulher tem uma infinidade de talentos. — Luke sorriu maliciosamente, enquanto dava uma boa olhada em Tempestade. — Paguei a ela para se ocupar de todas as suas necessidades, Alex. Todas, ou­viu bem? Veja se cobra isso dela. Detesto gastar minha prata em vão.

— Não pode estar falando sério — Alex ponderou.

— Mal posso me mexer.

— Mas ela pode. — O irmão deu uma piscadela e afastou-se, deixando-o a sós com a mulher.

 

— Muito bem — Tempestade disse satisfeita, após ter removido todas as bandagens do corpo de Alex. A nudez dele não parecia embaraçá-la nem um pouco, o que fez com que ele se sentisse, também, à vontade. — Vou ter que enfaixar alguns dos ferimentos de novo, mas só os piores — ela avisou, enquanto mergulhava um pedaço de pano numa bacia com água morna, para depois torcê-lo. — Acho que está mais do que na hora de limpar você um pouco. Vai se sentir mais confortável.

Ela começou pelo rosto de Alex, deslizando o pano macio pela fronte, maçãs do rosto, nariz. Os seios far­tos, quadris arredondados e braços roliços tocavam a pele dele. O cheiro do corpo daquela mulher o envol­via, um aroma diferente dos perfumes das damas que circulavam pelas festas e jantares, aos quais ele tinha comparecido.

— Algumas cicatrizes não vão desaparecer por in­teiro — Tempestade observou. — O que, a meu ver, é bom. Você era perfeito demais antes. Acho que um homem não deve ser mais bonito do que a mulher com quem está.

Alex indicou a parede atrás dela.

— Há um espelho pendurado contra aquela janela. Sempre o uso, quando vou me barbear. Pode pegá-lo para mim?

— Para que vai querer barbear-se? — Tempestade indagou, enquanto corria os dedos pela barba dele. — Gosto de homens com o rosto áspero.

— Só quero ver meu rosto.

— Acho que não é uma boa idéia.

— Por favor, dê-me o espelho. — Era importante que as cicatrizes de seu rosto continuassem marcadas em sua memória, depois que estivesse curado. Não queria se esquecer do que uma estúpida paixão tinha-lhe causado.

Tempestade apanhou o espelho e o entregou a Alex. Ele olhou para o rosto marcado pela selvageria de Gaspar e seus soldados. Não sentiu qualquer emoção. Estava ciente de que nunca mais voltaria a ter a apa­rência dos tempos em que era um tolo ingênuo. O ga­roto, que entregara o coração, sem reservas, a Nicole de St. Clair, estava morto e enterrado.

Ele entregou o espelho à Tempestade, que o recolocou no lugar de onde o havia tirado. Em seguida, ela reto­mou a tarefa, lavando-o da cabeça aos pés, enquanto de­leitava-se com aquela beleza masculina, ombros largos, abdômen firme e musculoso, quadris estreitos e pernas longas. Deixou o atributo preferido, para o final.

— É tão bem dotado quanto seu irmão, nas partes íntimas, meu belo cavaleiro — ela comentou, enquanto lavava, sem qualquer constrangimento, as partes em questão. Os instintos de Alex começaram a despertar. Embora a modéstia não fosse uma qualidade típica dele, não era confortável ver seu membro crescendo sob a observação atenta de Tempestade, muito embora ela falasse das partes íntimas dos homens com a mes­ma naturalidade com que se fala do tempo.

— Não há dúvida de que você e Luke foram gerados pelo mesmo garanhão — ela observou, enquanto pas­sava o pano sobre o sexo dele, com mais firmeza.

— Você não precisa... —Alex tentou apoiar-se sobre os cotovelos.

— Trate de ficar deitadinho, antes que acabe se ma­chucando — ela ordenou. — Assim está muito melhor, não é? — perguntou, ao ver que ele tinha obedecido a sua "ordem". — Deixe Tempestade cuidar de você. — Ela recolocou o pano úmido na bacia e pôs-se a aca­riciar o sexo de Alex, para cima e para baixo, com o punho fechado, enquanto seus olhos observavam, ma­ravilhados, a reação dele. — Que desperdício não usar essa maravilha, não é mesmo, milorde?

— Acho que sim.

— Seu irmão me disse que atendesse todas as suas necessidades. Todas! — ela frisou, enquanto movimen­tava o punho com mais rapidez.

— Não sei se vou ser capaz de...

— Fique deitadinho aí. — Ela levantou-se e ergueu as saias. — Posso garantir que tenho capacidade por nós dois.

Alex fechou os olhos e permaneceu imóvel, enquan­to Tempestade subia sobre ele, pronta a tirar-lhe até o último vestígio de inocência.

— Está tudo bem, pode relaxar. Deixe todo o traba­lho comigo.

Ele gemeu, enquanto ela se abaixava sobre seu sexo rijo. Um gemido escapou dos lábios dela também.

Na mente de Alex, a imagem etérea de Nicole sur­giu, cercada por uma aura de luz: o mesmo sorriso se­reno, os grandes olhos verdes o encaravam, enquan­to ele liberava, finalmente, seu prazer. Prometeu a si mesmo, que aquela tinha sido a última vez, que se permitia o luxo de olhar para aquele rosto, ainda que só na imaginação.

 

— Alex, Alex, acorde. — Agachada ao lado do banco, sobre o qual ele dormia, dentro do velho barco, Nicole perguntava-se, intrigada, por que razão ele demorava tanto a despertar. — Alex!

Ele moveu-se, murmurando palavras desconexas e incompreensíveis, e espreguiçou-se. Afinal, abriu os olhos, sonolento.

Deus, como tinha desejado rever aquele homem a sós, ao longo dos últimos nove anos; mergulhar e per­der-se na escuridão daquele olhar, que a mantinha, para sempre, cativa. Aquilo parecia um sonho.

Alex olhou ao redor: o barco, o sol da manhã... Não conseguia lembrar-se de como ou quando tinha che­gado ali. Protegendo os olhos contra a claridade, viu Nicole, de pé, ao lado dele. Como que para certificar-se de que não estava sonhando, ele sentou-se e tocou o rosto dela com um dedo.

— Nicki — disse, então, num sussurro.

Ela permaneceu imóvel. Alex agia como se também fosse difícil para ele acreditar que aquilo era real. O simples toque do dedo contra seu rosto bastou para despertar nela um calor, um desejo, uma necessidade, que tinham apenas permanecido dormentes durante aqueles intermináveis nove anos.

Uma faixa branca, enrolada em torno da mão de Alex, chamou-lhe a atenção.

— Você se feriu?

Ele virou-se, bruscamente, ficando de costas para ela, como alguém que tenta esconder um segredo. O movimento rápido provocou-lhe uma leve vertigem. Levando a mão à cabeça, ele gemeu.

— Você está bem? — Nicole indagou, levantando-se, preocupada.

Ele resmungou algo, que tomou por "sim". Pelo mo­vimento do braço de Alex, podia-se perceber que ele desatava a faixa que trazia em torno da mão. A beleza daquelas costas musculosas atraiu sua atenção, admirando-as, sem pressa.

O que diria sua austera mãe, se pudesse vê-la acor­dando um homem adormecido em um barco, vestido apenas com roupas íntimas? Por certo, teria ficado es­candalizada, sendo o homem em questão, Alexandre de Périgeaux, a quem a filha nunca tinha deixado de amar.

Podia avaliar agora, melhor do que no dia anterior, o quanto ele havia mudado. Alex era a imagem viva do soldado experiente, o corpo como um escudo de madei­ra esculpido por duras batalhas. Tinha muitas cica­trizes, algumas delas assustadoras. Ficava arrepiada só de pensar por quantas vezes ele devia ter estado frente a frente com a morte.

— Como foi que me encontrou? —Alex quis saber. A voz também tinha mudado bastante. Agora era grave e profunda. Mas ainda guardava a rouquidão peculiar que tanto a agradava.

— Lady Faithe disse que acharia você aqui. Demorou a acordar. Achei que havia algo errado com você.

Alex levantou-se, hesitante, e tropeçou sobre algo no cantil vazio. Passou a mão pela testa, como se a cabeça doesse.

— Foi o vinho. Tenho sono pesado, quando bebo. — Ele riu. — Os companheiros de Exército costumavam recla­mar disso e me acordavam com uns bons pontapés.

Ela ouvia horrorizada.

— Doía, mas funcionava. — Deu de ombros. — Mulheres são mais delicadas, daí a dificuldade para me acordarem.

A referência indireta às mulheres com quem tinha se deitado não passou despercebida para Nicole. Era de esperar que Alex tivesse sucesso com as mulheres. Não era simplesmente belo. Trazia no rosto uma expressão de tristeza silenciosa, que o tornava irresistível. O mais atraente de seus traços era, sem dúvida, os olhos ne­gros. Não somente pela cor e formato, realçados por so­brancelhas escuras perfeitas, mas pela intensidade do olhar. Era como se ele tivesse a urgência silenciosa de perscrutar a alma do objeto de seu olhar. Aprisionavam, para nunca mais libertar. As outras mulheres deviam achá-lo tão irresistível quanto ela o achava.

Nicole sentiu-se, subitamente, tomada por profundo arrependimento. Ela seria a primeira mulher na vida de Alex, se as coisas tivessem sido diferentes no pas­sado. Absteve-se de tecer comentários sobre "outras" mulheres, a fim de manter uma distância prudente entre ela e aquele homem. Afinal, era casada com o primo dele e o passado estava morto e enterrado. Alex franziu as sobrancelhas, como se adivinhasse o des­conforto que ela sentia. Era uma expressão comum nele, como se fosse capaz de descobrir os mais secretos sentimentos. Ninguém jamais a tinha conhecido tão profundamente.

Ele coçou o queixo, e o roçar das unhas contra a barba por fazer trouxe Nicole de volta ao presente. Ao contemplá-lo, não encontrou a inocência intocada do adolescente, que a vida tinha se encarregado de apa­gar para sempre. Até mesmo a natureza da curiosida­de daquele olhar era diferente, agora. Alex estudava-lhe o rosto de maneira penetrante, como se fosse um lobo. Talvez fosse por isso que lhe haviam conferido o apelido de Lobo Solitário.

Aquele rosto tinha perdido a excessiva suavidade, e os anos tinham forjado naquele semblante uma for­ça, que as cicatrizes, agora quase imperceptíveis, só faziam realçar. Os cabelos, desalinhados, eram típicos de um inglês. No dia anterior, ele os tinha penteado. Agora, porém, caíam displicentes sobre a testa.

Um silêncio pesado caiu sobre eles. Nicole tinha ido até Alex com um propósito. No entanto, aquele não pa­recia ser o momento oportuno para o que tinha a dizer.

— Tem tantas cicatrizes — ela observou, quebran­do o silêncio.

— Não mais do que a maioria dos soldados.

— Duque William mencionou você como parte de seu contingente particular — ela comentou, enquan­to sentava-se no banco, onde Alex estivera deitado. — Sempre pensei que fosse um soldado, que servia ao duque por dinheiro.

— No início foi assim, para mim e Luke. William nos recrutou para a campanha pela conquista da Bretanha pouco antes de... você vir a Périgeaux, naquele verão. — Ele coçou a nuca. — Que imenso desastre aquela campanha acabou sendo.

— Seu pai era um homem sábio. Ele tinha previsto a derrota.

— E verdade, assim como Milo previu que o rei da Inglaterra passaria a coroa a Harold, não a William.

— E que o exército de William acabaria fugindo pelo Canal Inglês.

— Não fugimos — Alex retificou. — Foi uma inva­são bem planejada, e conquistamos a Inglaterra em uma única batalha. Um bom trabalho, embora eu não tenha escapado ileso.

— Foi quando conseguiu... — Ela olhou para uma das piores cicatrizes, algo como um rasgo denteado na lateral do corpo, e que prolongava-se para além da cin­tura da calça. — Acho que prefiro não saber.

— Sobre esta cicatriz aqui? — Ele desatou o nó que prendia a roupa íntima, e baixou-a até que todo o qua­dril estivesse exposto.

— Virgem Santa! — ela exclamou, horrorizada, imaginando que a carne dele tivesse sido arrancada dos ossos por animais selvagens. — É um milagre que ainda consiga andar.

— Deu um bocado de trabalho até eu conseguir me levantar depois disto aqui. — Alex admitiu, enquan­to subia a peça íntima e refazia o nó que a prendia.

— Ainda dói, quando o tempo está frio e úmido. Mas não foi na batalha de Hastings que a consegui. Foi numa emboscada na floresta, quando Luke e eu íamos a Hauekleah, para o casamento dele com Faithe. Um dos homens tinha um tipo de ferramenta, muito usada por fazendeiros, com um grande espinho de ferro e...

— Prefiro não ouvir. — Nicole estremeceu.

Alex interrompeu a narração e a fitou. Ela pôde captar uma fagulha do antigo brilho nos olhos dele. As tardes que ambos haviam passado juntos na caverna secreta, vieram-lhe à lembrança.

— E essa cicatriz? — Apontou a panturillha dele.

— Lobos.

— Lobos?

— Bem, um lobo só — Alex admitiu. — Uma matilha inteira veio correndo atrás de mim, mas...

— Sabe de uma coisa? Não acredito que tenha con­seguido essas cicatrizes em batalha alguma.

Alex riu e curvou-se para apanhar as roupas, que lhe tinham servido de travesseiro. Apertou os olhos, repentinamente, e os manteve fechados por alguns instantes. Era óbvio que sentia dor. Apanhou o resto das roupas e sentou-se de frente para ela. Vestiu uma perna do calção, depois, outra.

— Quanto ao que conversávamos antes, William continua me pagando para fazer parte de sua guarda pessoal, porque me recuso a aceitar as terras que me ofereceu, para que pudesse gozar uma aposentadoria bem remunerada.

Ele levantou-se para amarrar o cordão que prendia o calção. Mantinha, porém, os olhos fixos em Nicole.

— Sempre teve o dom de me fazer falar sobre mim. — Ele lembrou. — E quanto a você, como foi que pas­sou esses anos todos?

— Acho que sabe a resposta. — Ela desviou o olhar, pondo-se a contemplar o rio.

Desejava contar a Alex sobre o problema que a in­quietava, queria dizer a ele que perderia Peverell, caso não desse à luz um herdeiro nos próximos onze meses.

Mas como fazê-lo, se mal o conhecia, agora? Como falar sobre algo de natureza tão íntima e desastrosa? Além disso, aquilo despertaria a piedade dele. Não queria ser objeto daquele tipo de sentimento.

Quando voltou a olhar para ele, detectou no sem­blante dele uma expressão de solidariedade. Alisou a saia da túnica de um azul pálido que trajava.

— Houve duas campanhas militares no Norte, não é? — ela indagou.

— Não está interessada em saber sobre campanhas militares.

— Estou, sim. Sei que acabam destruindo a pro­priedade e os meios de subsistência de muita gente. Como é que as vítimas reagem?

— Choram e se desesperam. Certa vez, queimamos cinco condados ao norte da Inglaterra, em um só dia.

— Não se sentiu mal em fazer isso?

— Fiquei cheio de remorso. Mas devemos obediên­cia ao rei, e ele ordenou que o fizéssemos.

Nicole lembrou-se de que Alex tinha feito um jura­mento sagrado a Deus e ao rei, e jamais quebrava um juramento.

— Houve um tempo em que desejou as terras que agora recusa aceitar — ela lembrou. — Ser proprietá­rio de terras foi a motivação principal para que deci­disse servir a William.

— Mudei de idéia. — Alex fitou-a bem dentro dos olhos. Em seguida, desceu do barco e dirigiu-se à mar­gem do rio. — Posso visitar Luke toda vez que estou de licença. É mais do que suficiente para suprir minha ocasional necessidade de estar no barulhento seio de uma família. — Agachou-se, colocou as mãos em concha dentro d'água, encheu a boca, bochechou e cuspiu fora.

Levantando a túnica que usava, Nicole saiu do barco e preparou-se para seguir Alex até a margem do rio.

— E o que vai fazer durante os seis meses de li­cença que William lhe concedeu? Ficar na casa de seu irmão?

— Acho que sim. — Ele a olhou de esguelha e notou que ela se esforçava para não cair, enquanto descia até o rio. Não fez um movimento sequer para ajudá-la. No passado teria se apressado a oferecer-lhe a mão, como um perfeito cavalheiro. Porém, aquilo era pas­sado. — Vou passar esse período com Luke e Faithe. Aguardo a permissão do rei para que possa retornar mais cedo ao serviço.

— Ser soldado sempre foi sua grande paixão.

— Foi uma grande paixão, disse bem. Agora não passa de um ganha-pão como outro qualquer. — A ma­neira como ele a fitou, deixou-a trêmula. — É tudo que me resta na vida.

Havia hostilidade naquelas palavras, assim como no gesto de dar-lhe as costas, enquanto se agachava à beira do rio para lavar o rosto. Alex parecia culpá-la pelo curso solitário que sua vida tinha tomado. É ver­dade que ela devia tê-lo desencorajado naquele verão em Périgeaux, sabendo que não havia chance de futu­ro para eles. Mas era jovem demais e o adorava. Como poderia ter desistido daquele único verão ao lado dele? Alex também sabia que não poderia ficar com ela, uma vez que estava prestes a se tornar cavaleiro.

Talvez tivesse sido insensata ao ir procurá-lo, le­vando-se em conta a história que ambos haviam dei­xado para trás. Devia tê-lo evitado, em vez de ir atrás dele. Será que não tinha aprendido nada? Melhor se­ria dizer o que tinha a dizer e ir embora.

— Milo me acordou no meio da noite e perguntou se eu fazia idéia de por que você... me odeia tanto.

— O que disse? —Alex levantou-se e enxugou o ros­to na camisa.

Aquela pergunta deixava claro que ele não sentia mais nada por ela. E pensar que durante os últimos nove anos tinha sonhado com ele, desejado poder estar de novo ao lado dele. Alex morreria de rir, se soubesse o quão tola tinha sido.

— Disse que nove anos atrás, em Périgeaux, você tinha desejado que fosse sua amante e que eu tinha recusado a proposta.

— Não acredito que tenha imaginado que era isso que eu queria. — Alex encarou-a, cheio de revolta.

Nicole baixou os olhos.

— Sei que foi mais do que isso. Mas não achei sen­sato partilhar tudo com Milo. Apenas os fatos básicos do que...

— A que fatos se refere?

— Não pode negar que você tenha tentado... que nós quase...

— Você não pode negar que foi mais do que simples luxúria que me levou a fazer o que fiz.

— Será que não entende, Alex? Não importa qual tenha sido seu motivo na época. O fato é que sabia que em breve iria juntar-se ao exército de William.

— E isso implica que não possa ter me apaixonado? — Ele aproximou-se dela. — Eu te amava, Nicki. Disse isso com todas as letras. Pedi que fugisse comigo.

— Mas não que me casasse com você.

— Não tinha a mínima condição de me casar...

— Você desejou que eu ficasse à sua disposição. Queria que ficasse enclausurada num convento, até que tivesse tempo para vir ficar comigo, entre uma ba­talha e outra.

— Está distorcendo os fatos. — Eleja não tinha mais certeza de nada. — O convento seria um refúgio tempo­rário, até que pudesse ter minhas próprias terras.

— Admitiu que não tinha condições para se casar comigo, mas queria que eu fugisse com você. — Ela ba­lançou a cabeça. — Minha mãe estava certa. Só teria uma vida indigna a me oferecer.

— Raios, se ao menos minha cabeça parasse de doer, para poder raciocinar direito! — Alex exclamou, levando as mãos às têmporas.

— Queria que fosse sua amante. — Ela deu um passo na direção dele. — Milo me pediu para ser es­posa dele.

— Milo queria Peverell.

— Quem é você para julgá-lo? Estava disposto a ar­ruinar minha reputação, para satisfazer seus instintos.

— Pelo amor de Deus, Nicki. Você me conhecia me­lhor que ninguém. Acha que eu poderia ser tão de­sumano, tão friamente calculista? Era jovem demais para isso. Amava você. Queria você. Só isso.

— É possível. Mas queria a vida de soldado, tam­bém. Não sabia que seria impossível ter as duas coi­sas? Seu irmão sempre lhe deu conselhos. Não o aler­tou quanto a isto?

— Sim.

— A despeito de suas intenções, teria sido um pesadelo, se tivesse aceitado fugir com você. Minha vida teria sido uma desgraça: encontros clandestinos, quando fosse possível para você vir me encontrar, lon­gos meses de solidão entre um encontro e outro.Você teria se cansado de uma vida de clandestinidade, das complicações, da minha infelicidade. Quando tudo isso se tornasse insuportável, você me descartaria e seria o meu fim.

— Eu tive que suportar, quando você me descar­tou. — Alex trazia à tona todo o amargor, cultivado durante tantos anos de solidão. — Não se lembra de ter feito isso?

— Eu... — Nicole recordava-se da desolação e do desespero que sentira ao ouvir Peter anunciar seu ca­samento com Milo. Lembrava-se do quanto fora difícil controlar-se para não se atirar nos braços de Alex, e chorar, gritar, explicar...

— Fui jogado fora, Nicki. Durante semanas, dei­xou que me iludisse, que me perdesse de amor, acre­ditando que sentisse o mesmo por mim, quando, na verdade, estava interessada em Milo. Você me usou para fazer ciúmes a ele. Fui a isca que usou na arma­dilha para apanhar...

— Armadilha? Como pode...

— E tudo funcionou como você esperava. Parabéns — disse, desgostoso. — Espero que esteja feliz com os resultados de seu plano. — Caminhou, passando por ela. Subiu no barco e apanhou o cantil. Ao pisar na rampa improvisada do barco, escorregou, deixando o cantil escapar-lhe das mãos trêmulas. Ergueu-se e es­fregou os olhos. Tinha o rosto pálido.

A vontade de ajudá-lo e a dor de saber que ele tinha pensado tão mal dela debatiam-se dentro de Nicole.

— Se é nisso que você se transformou — ela disse, finalmente, enquanto entregava a ele o cantil, que apanhara do chão —, ouso dizer que não estou pior com Milo do que estaria com você.

— Não ouse me comparar a ele. Não iria querer que eu mostrasse a você o quanto está errada.

— Quanto a isso, não tenha dúvida. — Ela afastou-se dele.

Sem saber mais o que dizia, Alex recostou a cabeça contra a parede do barco.

— Nicki, eu... — Meneou a cabeça. — Foi... Vá em­bora. Não devia ter vindo até aqui.

— Como você mudou — ela murmurou baixinho, enquanto se lembrava de como ele tinha sido naquele verão encantado, do adolescente que se sentia satisfei­to em poder segurar sua mão, enquanto um profundo sentimento de união os ligava. — Você era um menino tão bom, tão direito, tão meigo.

— Não era apenas um menino, Nicki. Por favor, vá embora.

— Por que é que você e o Milo estavam falando sobre mim?

— Nós... — Ele deu de ombros, querendo aparentar displicência, mas havia ansiedade em seus olhos. — Não sei. Ele disse algo sobre você. Não me lembro...

— Ouça bem, Alex. Não quero que fiquem especu­lando sobre o que aconteceu no passado. Caso Milo, ou outra pessoa qualquer, falar de mim, novamente, não diga nada.

— Sempre cuidando de sua reputação, não é?

— E por que não o faria? É a única coisa que me resta na vida.

O banquete daquela tarde, servido na Torre de Rouen, começara havia algum tempo, quando Gaspar colocou diante de Alex uma caneca alta, contendo uma substância de aparência e cheiro desagradáveis.

— Que raios é isso? — Alex afastou a caneca, com uma careta. O vinho que bebera na noite anterior dei­xara sua cabeça e estômago péssimos. Não havia comi­do nada desde que acordara, nem estava participando do banquete.

— É um tônico, milorde — Gaspar explicou. — Morrião cozido em vinho. Vai acabar com a dor de ca­beça e com a febre estomacal. Lady Nicole me pediu que preparasse para o senhor.

Alex virou-se e olhou para Nicole, sentada à mesa. Ela o fitava. A lembrança daquela manhã voltou à sua mente. Ainda podia sentir o perfume de rosas com uma nota de especiarias, tão próprio dela. Lembrava-se da surpresa que a visita dela lhe causara. Embora vol­tada para a sombra, sua face tinha a mesma aparên­cia luminosa do alabastro e seus grandes olhos verdes brilhavam, translúcidos. O diáfano véu branco que ela trazia, então, preso à cabeça por um semicírculo de prata, balançava ao sabor da brisa vinda do rio, confe­rindo-lhe um ar angelical. Como conseguira resistir à aproximação dela?

E a despeito de tudo, pouco tempo mais tarde, am­bos tiveram uma briga estúpida. Por Deus, nada tinha feito senão feri-la, e o fato de ter bebido na noite ante­rior não justificava o lamentável comportamento. Era de surpreender que ela ainda se preocupasse com ele. Decerto, havia pedido a Gaspar que preparasse mui­tos daqueles elixires para o próprio marido durante aqueles anos todos. Por falar em Milo, onde estaria ele? Não o tinha visto ainda aquele dia.

— Vamos lá, sir Alex — encorajou Gaspar, em pé atrás dele. — Beba. Vai-lhe fazer bem.

— Detesto elixires — ele resmungou, como um ga­roto mimado. — Têm um gosto horrível.

— Aposto que não é pior do que o gosto que já está sentindo na boca — Gaspar comentou, rindo.

Todos olhavam para ele. Fazendo cara feia, apanhou o copo e bebeu tudo de uma só vez. Em seguida, pediu desculpas, levantou-se e deixou o grande hall.

Embora o sol estivesse a pino, ele sentia-se melhor por estar ao ar livre. Atravessou o pátio, protegendo os olhos contra o sol, e colocou-se à sombra fresca, sob a arcada.

Viu quando Milo, sempre com seu cantil de vinho, aproximou-se com passos cambaleantes e, com esforço, fez uma breve reverência.

— Você queria Nicki antes. Pois pode tê-la agora sem qualquer comprome-timento — ele disse, depois de servir-se de um gole.

Alex evitou o olhar do primo. Não gostava da manei­ra como ele falava da esposa. Olhou ao redor. Não havia ninguém. Ele e Milo estavam completamente a sós.

— Sua esposa não quer que falemos dela quando não estiver presente.

— Andou falando com ela?

— Sim.

— Não contou sobre o que pedi a você, não é?

— Claro que não. É uma proposta descabida e me deixa enojado.

— Desde quando levar uma bela mulher para a cama deixa você enojado?

— A partir do momento que a idéia parte do marido dela.

— Não o teria afetado nove anos atrás, não é, pri­mo? Você queria Nicole. Ela mesma me contou. — Os olhos de Milo brilhavam, enquanto ele se divertia por ver Alex tão embaraçado. — Casto como era, não hesitou em querer que ela fosse sua amante. Nunca o havia imaginado capaz de tal ousadia.

— Essa é a versão dela sobre o que aconteceu.

— Ah! Quer dizer que não a queria?

— Não disse isso, mas...

— É sempre assim, a gente sempre fica sabendo somente parte da história. — Milo sorriu malicioso. — Pode tê-la, agora, Alex, sem qualquer comprometi­mento ou vínculo — o primo falava baixinho. — Será que o Lobo Solitário ainda não se cansou de se deitar com prostitutas e mulheres de taverna? Pense bem. Pode ter Nicole de St. Clair, com sua pele de seda e cabelos cor de ouro, sem ter que renunciar ao que quer que seja. O que estou lhe oferecendo é a oportunidade de uma ligação com uma mulher de excepcional beleza, esperta, instruída, nascida em berço de ouro. Quando tudo acabar, você simplesmente retomará sua vida de cavaleiro, como se nada houvesse acontecido.

Alex olhava em direção ao pátio, enquanto sua mente trazia de volta a lembrança da camisola bran­ca de finíssima seda, dobrada cuidadosamente sobre a almofada vermelha de brocado.

— Não é um plano tão bem pensado quanto apre­goa, primo — ele lembrou. — E se sua esposa for esté­ril? Afinal, tentou engravidá-la, sem sucesso. Você teve uma filha com Violette, o que significa que o problema não é seu.

— Nicole é fértil — Milo afirmou.

— Como pode ter tanta certeza?

— Em nossa noite de núpcias, quando nos deitamos juntos pela primeira vez... — Milo começou, após um suspiro de resignação.

— Por Deus, não quero ouvir...

— Não houve resistência, compreende. Não houve sangue. Ela nem sequer tentou fingir que sentia dor.

Alex preparou-se para sair dali. O que Milo dizia era ultrajante.

— Perguntei a Nicole e ela admitiu a verdade. Não apenas tinha perdido a virgindade havia anos, como também engravidara.

 

— Quem se habilita? — Vicq, o maior dos dois bru­tamontes que serviam a Gaspar, e que jamais desgru­dava dele, urrava, incitando o grupo de homens, reu­nidos ao redor do ringue improvisado. Sentado sobre a grama de uma colina nas proximidades, Alex tinha excelente vista do que se passava naquele lugar.

— Quem aqui é homem o bastante para lutar con­tra Gaspar, nesta linda tarde de verão? — berrou o segundo brutamontes, cuja barriga era redonda como um barril.

Gaspar permanecia imóvel no centro do ringue, os punhos ensangüentados sobre os quadris, enquanto os dois subalternos movimentavam-se, incitando o povo. O calção ensopado de suor caía da cintura até as panturrilhas e ele calçava pesadas botas de couro, o que lhe emprestava uma aparência assustadora. Não era de admirar que poucos ali estivessem dispostos a en­frentá-lo numa luta.

— Ele está disposto a encarar qualquer um — voci­ferou Vicq. — Vamos lá, onde estão seus culhões?

— Tenho um bom par deles — garantiu uma voz, vinda do agitado grupo.

Do alto da colina, Alex limitou-se a balançar a cabe­ça, lamentando a estupidez do pobre voluntário.

O sujeito entrou no ringue, arrancou a túnica e a ca­misa, e atirou-as para um de seus companheiros, com ares de valentão. Ao erguer os punhos, Gaspar o man­dou ao chão com um único golpe contra a cabeça. A mul­tidão exultou. Gargalhando, Gaspar chutou a lateral do corpo do rapaz, que protegia a face com as mãos.

— Vamos lá, frangote. Levante-se. Estamos queren­do uma briga de verdade. Afinal, foi você quem disse que tinha um bom par de culhões. Prove.

O jovem lutador descobriu o rosto, hesitante. O na­riz estava deformado e havia sangue em seus lábios. Ele enfiou a mão trêmula na boca e retirou um bom número de dentes.

— Você venceu — o pobre-coitado admitiu, com voz anasalada.

— Já desistiu? — Gaspar perguntou, com preten­so desapontamento. — Não teve graça nenhuma. Tem certeza de que tem alguma coisa dentro das calças? — indagou, enquanto desatava o cordão que prendia o calção do rapaz.

Alguns dos espectadores riram nervosamente, en­quanto outros limitavam-se a olhar, enquanto Gaspar abaixava o calção do rapaz. Quando ele segurou o cor­dão que prendia a peça íntima do jovem, este tentou impedi-lo. Gaspar ordenou, então, a Vicq e Leone que o segurassem contra o chão, a fim de imobilizá-lo.

Aquilo foi demais para Alex. Levantando-se, ele co­locou as mãos em concha em torno da boca.

— Nobre demonstração, Gaspar! — gritou. Cabeças se voltaram para olhar quem tinha dito aquilo. Debruçado sobre sua vítima, o homenzarrão ergueu o olhar, curioso.

— Três contra um? — A voz de Alex era cheia de desprezo. — É assim que você gosta, não é, valentão?

Os olhos da audiência se voltaram para Gaspar. Com uma careta, ele afastou-se do jovem e ordenou a Vicq e Leone que fizessem o mesmo. Os amigos do rapaz aproximaram-se e ajudaram-no a erguer-se do chão e a se recompor. Gaspar fez sinal para que Vicq e Leone tentassem atrair mais possíveis oponentes à luta. Para desgosto de Alex, outro jovem candidatou-se. Ele afastou-se, indignado, pensando que talvez fos­se uma boa idéia caminhar até o rio e buscar a paz da velha embarcação abandonada. No entanto, um brilho amarelado, no campo próximo, atraiu sua atenção.

Ainda que à distância, era possível dizer que se tra­tava de uma mulher. Estava sentada de costas para ele e vestia uma túnica de um amarelo pálido. Era Nicole. Ele a tinha visto usando um traje daquela cor, mais cedo. Faithe estava sentada de frente para ela. A cunhada trazia o bebê no colo e o amamentava. Robert e Hlynn brincavam por perto.

Enquanto observava a figura de Nicole, ele pensava no segredo que Milo havia lhe revelado no dia ante­rior. Recordando o verão em Périgeaux, ele pensava no quanto tinha se esforçado para ser cavalheiro, evitan­do qualquer liberdade que pudesse vir a chocá-la. Ela certamente devia tê-lo julgado um grande tolo e talvez até tivesse rido dele. Dos dois, apenas ele era virgem. Ela havia perdido a inocência três anos antes.

Tinha engravidado e perdido o bebê aos dezesseis anos, ela própria dissera isso a Milo.

E ele que tinha pensado conhecê-la tão profunda­mente... Não passara de um grande idiota, isso sim! Luke bem que notara algo de estranho nela, como se ela fosse mulher que carregasse um segredo. No entan­to, ela própria lhe dissera: Não sou a mulher que pensa que sou. Há coisas a meu respeito que desconhece.

De longe, Faithe reconheceu o cunhado e acenou para ele. Nicole voltou-se, porém, não o saudou. Robert e Hlynn levantaram-se e correram em sua direção.

— Veja, tio Alex! — Robert exclamou, agitando o quadro de cera que trazia na mão. Hlynn carregava um igual ao do irmão. — Tia Nicole estava nos ensi­nando a escrever.

— A pequena Hlynn também? — Alex estava per­plexo. A sobrinha não tinha sequer três anos...

Ao alcançarem o tio, Hlynn entregou-lhe o quadrinho de cera, toda orgulhosa.

— Ela ainda está aprendendo o alfabeto — Robert esclareceu, apontando para as letras que a irmã tinha escrito. — Tia Nicole disse que minha irmã está indo muito bem para a idade dela.

O rosto da pequena se iluminou, diante do comen­tário do irmão. Alex brincou nos cabelos da sobrinha e devolveu o quadrinho a ela.

— Belo trabalho, ratinha.

Hlynn riu, como sempre fazia, quando ele a chama­va carinhosamente por aquele apelido.

— Ela é uma menina muito inteligente e aprende depressa — Nicole afirmou ao alcançá-los, um pouco sem fôlego e com o rosto corado. Ela e Alex entreolharam-se. Aquele olhar despertou neles um universo de sentimentos.

Nicole trazia o cabelo preso, sob um véu transpa­rente. Ela brilhava como o sol.

— Robert é muito inteligente também. Escreveu um poema hoje.

— Mamãe já tinha me ensinado o alfabeto — o so­brinho confessou, passando o quadro de cera ao tio.

Alex olhou para as fileiras de palavras, que nada significavam para ele.

— Tia Nicole disse que está excelente — o pequeno se gabou. — Você gosta, tio?

Alex sentiu o rosto queimar. Ao perceber que Nicole o fitava, pensou que daria tudo, naquele momento, para ser capaz de ler o que estava escrito.

— Desculpe, Robert — ele murmurou passando o quadro para o sobrinho. — Mas eu não...

— Deixe-me ver — disse uma voz, quase sem fôlego.

— Quero dar uma boa olhada nisso.

Olhando para trás, Alex viu Milo esforçando-se para subir a pequena colina com o auxílio da bengala. Era surpreendente que o primo tivesse conseguido ca­minhar do castelo até aquele lugar.

Robert entregou o quadro de cera a Milo, que olhou para o que estava escrito, enquanto seu corpo balan­çava levemente de um lado para outro. Era óbvio que estava embriagado.

— Mas isto é esplêndido! — ele exclamou e então leu: — "Damos viva pelos dias preciosos, bolos gosto­sos e pais carinhosos."

Alex não pôde deixar de sorrir, ao pensar nas coisas que podiam inspirar um menino de cinco anos a escre­ver um poema.

— Está excelente — elogiou o talento do sobrinho.

— Agora, venham — Nicole chamou os pequenos.

— Robert, vá ficar com sua mãe. Hlynn, prometi que levaria você de volta ao quarto. Está na hora da sua soneca.

A menina ergueu os bracinhos gorduchos para Nicole, que sorriu e levou-a ao colo. A pequena imedia­tamente aconchegou-se contra o ombro dela, e levou o polegar à boca.

— Não devia ter vindo até tão longe. Vai acabar fi­cando exausto — ela disse a Milo.

— Estou farto de ficar encarcerado naquele maldito castelo, sabe muito bem disso — ele resmungou, como de costume.

Ela deu a impressão de que iria dizer algo, mas após um breve olhar na direção de Alex, afastou-se.

Os dois homens ficaram observando, enquanto ela atravessava o, gramado a caminho do castelo, com Hlynn ao colo.

— Ela leva jeito com crianças, não acha? — A voz de Milo soava arrastada, embora ele se esforçasse para ar­ticular bem as palavras. — É paciente, compreensiva...

— Tem mesmo que ser paciente e compreensiva para lidar com você.

— Nicole daria a vida para ter um filho — Milo con­tinuou, alheio ao comentário de Alex.

— Pois não haverei de ser eu a lhe dar esse filho. — Alex suspirou, cansado daquele assunto.

— Um filho seria tudo para ela. Além disso, você a estaria livrando de ficar sem um teto sobre a cabeça.

— O que pensa de mim, primo?

— Amo você como a um irmão, sabe disso. — Milo esforçava-se para manter o foco.

— Um irmão de pouca inteligência, bom para ser­vir de companhia, vez por outra, e a quem recorrer na eventualidade de algum "favor" especial. É isso que pensa de mim?

— Onde está querendo chegar?

— Não sou mais que um reprodutor para você. Um touro de raça. Sem inteligência, não resta a menor dú­vida, capaz de cobrir qualquer mulher que tenha pela frente. Carrega em si boa semente, mas...

— Você não é inteligente mesmo, Alex — Milo con­cordou, engasgando-se ao rir. — Se é que quer saber como vejo você.

— O que mais?

Milo segurou o ombro dele com a mão esquelética.

— Recorda-se de como era em Périgeaux, naqueles últimos anos? Você era mais do que um simples primo. Era meu confidente, o amigo de meu coração. Precisava de você. Tinha uma maneira de encarar as coisas de forma direta, enquanto eu estava sempre perdido em elocubrações, tornando as coisas infinitamente mais complicadas do que realmente eram. Eu questionava tudo. Precisava de você, de sua clareza de visão, de sua maneira corre­ta de agir, de sua honra. Fazia com que eu abandonasse minhas pequenas desonestidades e autoindulgências. — Milo sorriu com amargura. — Se você estivesse por perto durante os últimos nove anos, duvido que tives­se me transformado no farrapo humano que sou hoje. — Sua voz se tornava cada vez mais ininteligível.

— Mas as coisas são como são, primo. Eu não esta­va por perto. Por quase uma década, não fez qualquer esforço para me contatar. Quando finalmente se apro­ximou de mim, foi para fazer um pedido sem qualquer cabimento.

— Precisei de você no passado, e preciso de você agora, mais do que nunca.

— Sinto muito, Milo, não sou capaz de fazer o que me pede. Procure outra pessoa.

— Para ser sincero, já procurei — Milo confessou.

— Se não fizer o que estou lhe pedindo, Gaspar vai fazê-lo.

Alex sentiu o ar fugir dos pulmões. Segurou o primo pela manga e olhou-o bem dentro dos olhos.

— Gaspar?

O som, semelhante ao de um rugido, chegou até eles. Vinha dos homens reunidos em torno do ringue, onde Gaspar lutava. Alex e Milo voltaram-se para ver o que tinha provocado aquele delírio coletivo. Era a chegada de um novo oponente, um homem de aparên­cia brutal, um tipo não-cristão, a julgar pela pele es­cura e pela argola que trazia na orelha. O homem era tão grande e largo quanto Gaspar, cada músculo das costas bem definido. Os espectadores vibravam como selvagens, após o monstrengo ter desferido dois socos, que acabaram por lançar Gaspar ao chão, acertando o soldado no estômago, a ponto de fazê-lo dobrar-se. O recém-chegado voltou-se para o público, a fim de re­ceber cumprimentos, que vieram em forma de gritos. Gaspar aproveitou a oportunidade para pular sobre as costas do gigante e jogá-lo ao chão.

Gaspar e Nicole. Aquilo era impensável.

— Ele não faria isso — Alex arriscou.

— Pois saiba que já se ofereceu para fazê-lo. — Milo garantiu. — Não se engane, caro Alex. Se precisar, or­denarei que ele faça o que tiver que ser feito.

— Por Deus, Milo... Isso foi idéia dele?

— Não. A idéia foi minha. Estávamos bebendo uma noite após o jantar. Eu estava... com a língua mais sol­ta que de hábito.

Fácil de imaginar, Alex pensou com seus botões.

— Contei a ele sobre o problema da herança, so­bre a necessidade de um herdeiro. E ele se ofereceu.... — Milo parecia incerto quanto ao que dizia. — A idéia partiu de mim. Ele se ofereceu para gerar a criança, pelo bem de todos nós. Se formos forçados a deixar Peverell, ele corre o risco de ter a mesma sorte. Na melhor das hipóteses, perderia a autoridade que exer­ce sobre os soldados agora. Ninguém poderia culpá-lo por tentar segurar o que tem agora, especialmente em se tratando de um homem de origem tão humilde.

— Sua esposa jamais permitiria que ele a tocas­se — Alex murmurou, tentando imaginar quanto do tal esquema teria vindo do próprio Gaspar. — Jamais permitiria que ele tentasse seduzi-la.

Mais uma vez, a conversa foi interrompida por gri­tos e aplausos delirantes da multidão que assistia à luta. O gigante negro conseguira imobilizar Gaspar de costas contra o chão. Este, no entanto, safou-se, grunhindo. Passou a perna em torno do corpo do outro homem, fazendo-o girar e indo de encontro ao chão.

— Renda-se, animal fedorento! — ele ordenou ao outro gigante. — Entregue os pontos. Vamos, estou es­perando.

Os primos voltaram a conversar.

— Tem razão, Alex. Nicole jamais permitiria que Gaspar encostasse um dedo nela — Milo ponderou, o ros­to contorcido pela bebida, enquanto olhava de esguelha para os dois corpos grotescos e suados que se debatiam no ringue. — Disse isso a ele. O homem ficou ofendido, pude ver pela cara dele. Raramente o vi zangado, mas havia ressentimento naqueles olhos. Talvez tenha sido inábil ao me expressar. Tinha bebido um pouco demais, compreende? Bem, mas o importante é que Gaspar não precisaria seduzir Nicole. Tem outros meios para se dei­tar com ela, sem depender de consentimento.

— Pelo amor de Deus, Milo. Não está pensando em deixar aquele homem pegar sua esposa à força? — Alex queria saber até que ponto ia a loucura do primo.

— Violentá-la? Não sou depravado a tal ponto, meu bom Alex. Não. Ele tem como fazê-lo, sem precisar da cooperação, nem do conhecimento dela.

— Do que está falando?

— Gaspar sabe como preparar uma poção, que in­duzirá Nicole a um sono profundo.

— Céus...

— Ela nem mesmo saberia do acontecido.

— Meu Deus, como pode ser capaz de coisas... Como pôde descer tão baixo?

— O desespero leva os homens a atos ignóbeis. Sou capaz de permitir que minha adorável esposa seja usa­da de forma tão vil. Não tenha dúvidas quanto a isso. Nicole e eu estamos numa situação sem saída e estou disposto a tudo para sairmos desse impasse.

Àquela altura, os gritos da multidão que cercava o ringue tinham se transformado em pedidos de miseri­córdia. Imploravam que Gaspar tivesse clemência do pagão, enquanto insensível às súplicas, ele continuava a bater com a cabeça do homem, agora inconsciente e deformado, contra o chão. Por fim, abandonando a pre­sa, Gaspar levantou-se e ergueu os punhos em triunfo. O rosto dele brilhava de satisfação.

— E óbvio que eu preferiria evitar coisas tão de­sagradáveis — Milo declarou. — Meus sentimentos por Nicole podem não ser os de um marido amoroso. Nunca tivemos esse tipo de casamento, você sabe. Mas sempre tive profundo afeto por ela.

— Pois não parece.

— Escute, Alex. Preocupo-me com Nicole como se fosse minha própria irmã. Ela tem a alma pura e bon­dosa e é extremamente inteligente e habilidosa. Seria um desgosto ter que permitir que ele a drogasse e...

Alex voltou-se e viu Gaspar, rugindo e pisoteando sobre o homem agora indefeso.

— Não se engane — Milo prosseguiu. — Se as coi­sas chegarem ao extremo, não hesitarei em ordenar a Gaspar que faça conforme o combinado. Não duvide disso, nem por um segundo.

Não duvido de nada — Alex sussurrou, enquanto esfregava os olhos com as mãos.

— Compreende agora por que pedi a você que geras­se esse filho? — Milo levou o cantil à boca, contrafeito ao constatar que estava vazio. — Tudo seria muito mais civilizado e melhor para Nicole. Sem considerar as outras razões que já mencionei: o bebê traria nas veias o sangue forte e nobre dos Périgeaux e ele teria a bela aparência de um de nós.

Alex viu Gaspar enxugar o rosto e o peito com um trapo, que atirou para Leone. Em seguida, o subalter­no apressou-se a entregar a camisa ao chefe.

— Gaspar sabe da proposta que você me fez? — ele quis saber.

— Não. — Milo garantiu, franzindo o cenho. — Ele ficaria irado se soubesse que fiz a proposta a alguém mais nobre de nascimento, como você.

Acerca de cem metros dali, Gaspar vestia a túni­ca, recolocava o cinto e passava os dedos pelos cabelos cortados rente ao couro cabeludo. Ao avistar Milo, o homenzarrão acenou. Num estalar de dedos, voltou a ser o antigo Gaspar, de comportamento manso e civili­zado. A drástica mudança deixou Alex perplexo.

— O que quer que aconteça, Alex — Milo advertiu, autoritário. — Jamais permita que Gaspar saiba que preferi você a ele. Só espero que cumpra a tarefa, e que Nicole e Gaspar jamais suspeitem que eu estava por trás de tudo. Que pensem que foi algo que... aconteceu.

— Algo que... aconteceu — Alex repetiu, irônico. Milo agarrou-se ao ombro do primo. O hálito dele cheirava a vinho azedo.

— Primo, sei que ainda não conseguiu digerir bem esse assunto. Compreendo suas dúvidas e inquietações. Mas pense no que acontecerá a mim e a Nicole se for­mos expulsos de Peverell. Olhe para mim: não tenho habilidades e nunca exerci um ofício. Jamais aprendi a lutar e, de qualquer forma, minhas mãos tremem demais para que possa segurar a espada, ainda que ti­vesse sido treinado a manejá-la. Aos trinta e seis anos, sou um velho, e os velhos precisam de um cantinho onde possam ser deixados em paz. Tenha piedade de mim e de minha esposa.

Alex e Milo desceram a colina, para saudar Faithe. Gaspar veio juntar-se a eles. Milo cumprimentou-o pela vitória sobre o gigante negro.

Alex avistou Nicole atravessando o gramado e vin­do na direção deles.

— Hlynn já dormia profundamente, quando a colo­quei na cama — ela disse a Faithe, assim que se jun­tou ao grupo. — A criada ficou cuidando dela.

Alex notou que os olhos de Gaspar passeavam dis­cretamente pelo corpo de Nicolete, acreditando que ninguém o observava. Cerrou os punhos, num gesto automático.

Milo comentou sobre a longa licença de seis meses de Alex.

— As crianças vão ficar entusiasmadas, ao saberem que o tio ficará conosco por tanto tempo. Eu e Luke estamos muito felizes em poder tê-lo conosco.

— É muito gentil, minha cara Faithe — Milo co­meçou. — Mas andei pensando que, talvez, uma mu­dança de cenário fizesse bem a meu primo. — Ele vol­tou-se para Alex, dirigindo-lhe um olhar significativo. — Imaginei que gostaria de passar esse período em Peverell, comigo e minha esposa. Adoraríamos ter sua companhia, não é mesmo querida?

— Eu... é claro que sim — Nicole respondeu, educa­damente. — Mas estou certa de que Alex preferiria...

— Viu só, primo? — Milo apressou-se a dizer. — Será um grande prazer tê-los conosco. Pode se juntar a nós, na viagem de volta a St. Clair, e passar a tem­porada de Natal conosco. Temos um confortável quar­to de hóspedes para acomodá-lo por lá. — Havia um sentido secreto nas palavras de Milo, que apenas ele e Alex compreendiam. — É um cantinho silencioso e acolhedor. O que me diz, então, primo?

— Não se sinta constrangido, cunhado. — Faithe sorriu. — Luke e eu compreendemos perfeitamente que queira passar o período de licença em Peverell. Afinal, você e Milo sempre foram grandes amigos e fi­caram muito tempo distantes.

Gaspar olhou para Alex com frieza.

— Mais vinho, milorde?

Sentado à mesa, Milo ergueu a cabeça e olhou para Gaspar, de pé atrás de sua cadeira, jarra de vinho em punho. O patrão tinha a boca entreaberta e o queixo caído, trazendo no rosto esquelético a expressão incer­ta de quem não tem consciência de onde está, nem do que está fazendo. Gaspar sabia que, em breve, o pobre homem estaria frio e enterrado, mas nem por isso re­jeitaria um pouco mais de bebida. Milo de St. Clair sempre queria mais.

— Meu marido já bebeu o suficiente. — Nicole, sen­tada ao lado do marido, fez um sinal para que Gaspar se afastasse.

A julgar pela expressão das outras pessoas senta­das à mesa do jantar, todos, sem exceção, concordavam que aquela era uma atitude sensata.

Gaspar estava ansioso pela hora de voltar para casa, e ver-se, finalmente, livre dos olhares curiosos, que pa­reciam avaliar cada um de seus movimentos. Gostava da maneira como as coisas aconteciam em Peverell. Detestava ter que bancar o cachorrinho obediente, ex­ceto com a pobre lady Nicole, que ainda tinha ilusões de exercer autoridade sobre seus subordinados e, até mesmo, sobre ele.

Claro que as coisas não seriam as mesmas, com o maldito Alex de Périgeaux passando os próximos seis meses com eles. Provavelmente, o patrão não trata­ria o primo com tanta hospitalidade, se soubesse que o paspalho quase lhe tinha roubado a noiva na noite anterior ao casamento. Adoraria contar sobre aquela interessante passagem ao patrão. Mas Milo poderia questionar o fato de seu fiel servidor ter esperado tan­to tempo para contar-lhe o que sabia. Difamar Alex não lhe traria benefício algum. Aguardaria para con­tar a Milo sobre lady Nicole e o primo, quando e se lhe fosse útil.

— Gaspar — Nicole chamou, com a habitual voz suave. — Meu marido está cansado. Talvez pudesse ajudá-lo a...

— Vadia insuportável! — Milo bateu com a palma da mão sobre a mesa, a face contorcida pela dificuldade de falar, própria dos ébrios. — Só quero beber um pouquinho mais — acrescentou, com voz empastada. Tentou empurrar o cálice, mas acabou por fazê-lo tombar, derramando vinho sobre a mesa de carvalho. — Maldição! Encha isso aqui, Gaspar. — Agarrou o cálice de Nicole e bebeu o conteúdo.

— Vou levar seu marido para a cama, senhora — Alex prontificou-se.

— Obrigada, mas não será preciso. Gaspar não se incomoda em fazê-lo, não é?

Por Deus, Alex pensou, desejaria que aquela mu­lher não fosse tão desconcertantemente linda. Quando o fitava com aqueles olhos de desdém, aqueles lábios rosados e macios, sentia como se algo dentro dele esti­vesse prestes a explodir. Desejava beijá-la com loucu­ra, até apagar o ar de fria complacência do rosto dela. Mas, o que fazer? Precisava ter paciência.

— Vou cuidar de seu marido agora mesmo, milady. — Erguendo Milo do banco, Gaspar carregou-o quase inconsciente de volta ao quarto de hóspedes, no alto da torre. Lá chegando, jogou o patrão na cama sem qualquer cerimônia.

A camisola de Nicole continuava dobrada sobre a almofada. Ele passou a mão sobre a peça, as calosidades de sua pele prendendo-se à seda delicada. A simples lembrança dos instantes em que tinha visto a patroa vestida com a peça encheu-o de excitação. Pensava nos seios arredondados como os de uma jovem, nas longas pernas bem-feitas contra a seda, capazes de enlaçar com força as costas de um homem.

Poderia roubar a peça, escondendo-a com facilidade dentro da túnica, para mais tarde retirá-la, quando ninguém estivesse olhando. Poderia levá-la consigo a Peverell e juntá-la a tantas outras lembranças da pa­troa que vinha guardando ao longo dos anos.

Naquele momento, Milo balbuciou o nome de Violette.

— Ela está morta, bêbado imprestável.

Gaspar desprezava o patrão, por idolatrar uma garota do passado, quando podia ter Nicole de St. Clair em sua cama.

Enquanto ocupava-se da tarefa habitual de pre­parar Milo para dormir, ele refletia sobre sua própria participação no casamento de seus patrões.

Era óbvio que a jovem Nicole tinha sentido algo por Alex de Périgeaux, ele não tinha dúvida quanto a isso. Nada que dissesse respeito à patroa lhe passava des­percebido. Tinha custado a crer quando lady Sybila o havia procurado, em um de seus acessos de fúria, di­zendo que Alex ameaçava roubar sua filha antes que ela pudesse se casar com Milo.

Gaspar tinha partilhado a preocupação da patroa, então. Era imperativo que o casamento entre Nicole e Milo acontecesse conforme o combinado. Não que esti­vesse feliz com o casamento. Afinal, ele queria Nicole para si próprio, o que era impossível, devido à sua ori­gem humilde. E uma vez que era inevitável que ela se casasse, que fosse então com Milo e não com Alex de Périgeaux.

Quando lady Sybila se tomara de furor contra a pretensão de Alex em fugir com a filha, Gaspar lhe havia preparado um tônico sedativo extraforte. Aquilo não somente o havia livrado dos gritos histéricos da mulher, mas também a tornara mais receptiva à solu­ção que ele tinha proposto para o dilema. Ela própria ordenara a surra, era verdade, mesmo antes que ele plantasse outra idéia em sua mente: se ele nunca mais acordar depois de ter sido espancado, tanto melhor. Por fim, ele próprio havia decidido poupar a vida de Alex, pouco antes que estivesse morto. E o rapaz deixara de ser um problema por praticamente uma década inteira. Até agora...

Após ter despido Milo, Gaspar cobriu-o até o queixo com um lençol. O patrão tinha apenas trinta e seis anos e, no entanto, era seco como um velho. De olhos fechados, sob o lençol, o traste poderia ser tomado por um cadáver. Seria bem fácil transformar aparências em realidade, ele ponderou. Bastava aumentar, gradativa-mente, a quantidade de veneno no vinho do patrão. Porém se a morte de Milo fosse solução para alguma coisa, ele já a teria providenciado há muito tempo. Nicole de St. Clair como viúva era uma perspectiva pe­rigosa. William, duque da Normandia, se casaria com ela no mesmo instante, a fim de preservar o domínio sobre Peverell, e seu novo marido não seria o cãozinho submisso e maleável que Milo tinha sido até agora.

Gaspar olhava com desprezo para Milo, enquanto ele balbuciava palavras ininteligíveis, em seu torpor ébrio. Patético saco de ossos, isso é o que ele era agora. Não era nem de longe o homem que fora nove anos antes.

Milo resmungou e virou-se de lado, fazendo com que a almofada, sobre a qual estava a camisola, se deslocasse e a leve peça de seda fosse ao chão. Gaspar tratou de recolocar a almofada no lugar onde estivera antes, mas ao tomar a camisola nas mãos, acariciou a seda, que antes havia tocado o corpo de Nicole.

Ele se tornava cada vez mais ganancioso em rela­ção ao poder que tinha em Peverell, da mesma forma que o desejo de possuir a patroa mais e mais o consu­mia Um desejo que adquirira um sabor amargo, ao longo dos anos. Nem uma única vez, a cadela tinha olhado para ele como homem. Não passava de um su­bordinado comum para ela. Apertou a camisola em seus punhos, pensando em como seria atirar a patroa sobre uma cama e levantar aquela roupa, ou, melhor ainda, rasgá-la, até fazê-la em pedaços. Ele a penetra­ria como um bode enfurecido, até que ela pedisse por clemência. Aí sim, ela seria obrigada a notá-lo.

Baixando os olhos, ele constatou que havia rasgado a camisola ao longo da costura. Agora seria obrigado a levar a peça com ele. Do contrário, como explicar o estrago?

Perguntava-se se a patroa alguma vez se dera con­ta do quanto ele a desejava. O que diria, se soubesse das inúmeras vezes em que tinha imaginado encon­trá-la sozinha na floresta, forçando-a a despir-se para ele? Ela choraria e suplicaria, enquanto ele a forçasse a ficar de joelhos, com as mãos sobre o chão.

Haveria de tê-la em breve. A única frustração, a maior de todas, é que ela estaria sob o efeito de drogas, enquanto a possuísse, e não saberia das coisas que ele faria com ela.

Bem, mas pelo menos a possuiria, com ou sem o consentimento do marido.

 

St. Clair, Normandia, Castelo de Peverell

— Há uma relíquia na espada? — indagou Milo, en­quanto procurava acomodar-se contra a montanha de travesseiros à cabeceira da estreita cama de dossel, protegida por uma cortina. Falava baixinho, para não ser ouvido por duas serviçais, ocupadas em retirar o que havia restado do jantar. Alex mal podia ouvir o que o primo dizia, tal era o barulho da chuva forte, batendo contra as janelas.

— Sim. — Em pé, ao lado da cama, ele desembainhou a espada, colocando a mão sobre a peça que con­tinha uma mecha de cabelo de Santo Agostinho.

— Jure sobre a relíquia — Milo ordenou.

Alex mudou a posição do corpo, a fim de poupar o quadril, que o tempo úmido fazia latejar.

— Por favor, primo. Não preciso.

— Jure sobre a relíquia, já disse! — Milo bradou, in­clinando o corpo para a frente, o cálice seguro pela mão trêmula. — Quero ter certeza de que cumprirá a tarefa.

— É claro que o farei — Alex garantiu, sentindo-se pouco à vontade, ao ver que o tom exaltado da voz do primo havia instigado a curiosidade de uma das cria­das. — Por que acha que estou aqui?

O que estou fazendo aqui?, era a pergunta que ele fazia a si mesmo, desde a chegada a Peverell, naquela tarde. Após uma semana de sol escaldante em Rouen, a chuva forte, que caíra sem trégua durante a viagem a St. Clair, parecia trazer maus presságios. Não havia como negar que Peverell era um lugar enorme e som­brio, como Milo havia descrito.

O piso térreo era protegido por grandes portões, para segurança dos senhores do castelo, e dava acesso à tor­re onde habitavam. Aquele lugar tinha abrigado, outrora, uma grande cozinha, quando outra fora construída mais perto da torre. Ali foram construídos quartos de hóspedes, e Milo destinou um deles para o primo.

Uma escada em caracol, na única torre do castelo, permitia acesso ao hall, um espaço onde havia uma grande lareira em uma das extremidades e um gru­po de cômodos menores, uma despensa, um laticínio e uma cozinha, em outra.

No andar superior ficava um solar, que servia de aposento ao senhor e à senhora do castelo. Entretanto, assim que haviam chegado, Milo ordenara que sua cama fosse desmontada e levada para baixo, para ser remontada em frente à lareira, no grande hall. Nicole continuaria a ocupar o solar. A visita ao Castelo de Rouen e a viagem de volta a St. Clair drenara suas forças. A simples idéia de ter que subir e descer as escadas que levavam à torre, era um verdadeiro suplí­cio para ele. Milo estava particularmente pálido e trê­mulo nos últimos tempos, mas Alex suspeitava de que o novo arranjo tinha menos a ver com seu estado de saúde do que com o objetivo de proporcionar a Nicole maior privacidade, enquanto ele estivesse por lá.

— Nós dois sabemos por que está aqui — Milo ob­servou, baixinho. — Sei que tem a melhor das inten­ções, que é um homem de honra, mas mesmo assim.

— Era um homem de honra, agora não sei mais o que sou — Alex retorquiu, desgostoso.

— Jure sobre a relíquia, para que eu possa ficar em paz. — Milo apontou a espada que Alex guardava.

— Juro a Deus Todo-Poderoso e a todos os santos que... — Alex não se sentia capaz de dizer as palavras, nem mesmo para Milo.

— Que fará todo o possível para gerar um filho para mim. Vamos, diga.

— Eu juro.

— E que seu verdadeiro propósito será mantido em segredo, que nada dirá a Nicole. Que uma vez cum­prida a tarefa para a qual foi designado, irá embora e nunca mais buscará ter contato com Nicole, nem com o bebê.

— Não se preocupe. Não desejo ter tais ligações — Alex assegurou. — Mas tenho uma condição. Não po­derá negociar a criança ou desfazer-se dela, caso seja uma menina. Não tenho nada contra você procurar um menino e dizer que sua esposa teve gêmeos.

— Está bem. — Milo fez um gesto de pouco-caso, com a mão. — Vamos, jure sobre a relíquia.

Alex ponderou sobre as implicações de tal juramen­to: ir embora e nunca mais ver Nicole ou a criança.

— Vamos lá, primo. — Milo procurou apressá-lo.

— Juro — ele disse, antes que acabasse voltando atrás. — Farei tudo o que Milo pediu.

— E o que é "tudo que Milo pediu"? — Alex voltou-se e deparou com Nicole, em pé, à porta de entrada da torre.

— Minha querida — Milo saudou-a com um sorriso cheio de ternura. — Pensei que tivesse se recolhido.

— Imaginei que você poderia precisar de algumas coisas durante a noite. — Ela depositou uma vela so­bre a mesinha, ao lado do marido, e colocou um urinol sob a cama.

— Os criados que dormem no hall podem ajudar com minhas necessidades — Milo assegurou. — Vá se deitar, querida. Estou bem.

— Estava fazendo um juramento quando desci — ela comentou, enquanto fitava a mão de Alex sobre a espada. Os olhos dela brilhavam, como grandes cris­tais verdes e translúcidos, à luz do fogo.

— Eu... — Alex nunca soubera mentir. — Eu só estava...

— Estava jurando dar aulas de esgrima aos solda­dos, enquanto estiver por aqui — Milo o interrompeu.

— Fez seu primo jurar que faria isso? — As ele­gantes sobrancelhas de Nicole arquearam-se numa expressão de incredulidade.

— Pareceu-me a coisa certa a fazer. — Milo deu de ombros. — Talvez não estivesse pensando com clareza.

— Bem, quero que coma algo antes de dormir.

— Não tente me empurrar comida outra vez.

— Você não comeu nada desde que chegamos em casa — ela ponderou. — Vou até a cozinha. Deve ter sobrado alguma coisa do jantar. Sentarei aqui com você e só irei embora, depois que tiver comido.

— Maldita! Pode trazer a comida, mas não pode me obrigar a comer.

— Está chovendo — Alex observou. — Eu pego a comida para você.

— Não há necessidade — ela acrescentou antes de seguir em direção à escada.

Embriagado, Milo nem percebeu que Alex se despe­diu para recolher-se ao quarto que lhe fora destinado.

Sozinho, na pequena cela, iluminada por uma única vela, sentou-se à beira da cama e friccionou o quadril, até que a dor amainasse. Livrou-se das botas e da tú­nica. Tinha começado a tirar a camisa quando notou uma pequena porta de carvalho a um canto do quar­to. Surpreso por não tê-la notado antes, lembrou-se de que havia uma tapeçaria sobre ela e que fora removi­da. A primeira idéia que lhe ocorreu foi de que aquela porta devia levar a um cômodo adjacente. Concluiu, no entanto, que aquilo não seria possível, uma vez que es­tava posicionada na junção de duas paredes externas. Quem sabe era um guarda-roupa?

Tornando a vestir a camisa, abriu a porta para ver o que havia do outro lado. Encontrou um espaço es­curo, com uma escada estreita de pedras que subia a considerável altura. Decerto, tratava-se de uma esca­da secundária, para o uso dos criados, escondida ali dentro da parede da casa. Curioso por descobrir aonde a escada levava, pegou a vela e subiu pela passagem espiralada. A meio caminho, encontrou outra porta pequena. Teve que forçar para abri-la, pois havia sacos pesados, empilhados contra ela. Lá dentro, encontrou uma sala muito limpa, onde estavam guardados pães e outros tipos de alimento. Frutas secas e carnes pen­diam do teto. Estava claro que havia acesso entre a despensa e o hall de entrada.

Deixando o lugar, Alex olhou para as escadas que seguiam até o solar, onde ficavam os aposentos pessoais de Nicole. Perguntou a si mesmo, se os aposentos dela seriam tão sombrios quanto o resto do castelo. Após breve hesitação, subiu os degraus restantes, sem fazer barulho. Parando à porta, tentou escutar ruídos que viessem de dentro do quarto. Nicole estava fora, provi­denciando comida para o marido, mas era possível que a camareira estivesse por ali. Certificando-se de que tudo estava silencioso, segurou a maçaneta. A porta se abriu, sem resistência.

Ele entrou no aposento espaçoso, iluminado à luz de velas. Sentia-se culpado por entrar ali daquela for­ma. O apelo, porém, era irresistível.

Aquele quarto era diferente do resto do castelo. As janelas eram amplas, as paredes alvas, enfeita­das com tapeçarias coloridas e exóticas. Uma outra ta­peçaria, mais fina, cobria um banco longo, sobre o qual uma dúzia de almofadas bordadas estava disposta, as­sim como havia, também, um livro com uma fita bran­ca de cetim, marcando uma das páginas. Mais adiante, havia um espaço vazio, onde a cama de Milo parecia ter estado. Ao lado, junto à parede, uma cama estreita era protegida por um cortinado de um amarelo muito claro. A parte interior das venezianas, assim como da porta dos aposentos, fora pintada na mesma tonalida­de. Girassóis de cabos longos brotavam de um vaso de argila, sobre uma escrivaninha.

A chuva que caía lá fora, compunha melancólica melodia ao bater contra o teto e agitar as venezianas. Dentro do solar, porém, a atmosfera era aconchegante e prenhe de vida, trazendo a marca inconfundível da mulher que poucos conheciam.

Aquela certamente era a razão pela qual Milo desig­nara o quarto no canto do hall para ele: o aposento tinha ligação direta com o santuário da esposa. Sendo assim, tudo poderia acontecer com total discrição. Não restava dúvida de que o primo tinha pedido que removessem a tapeçaria, porque sabia que, muito em breve, a curio­sidade acabaria por levá-lo a descobrir a mais agradá­vel vantagem de ocupar a modesta cela. Balançando a cabeça, pôs-se a observar o quarto de Nicole com mais atenção. Caminhou de um lado a outro, abriu a tampa de um baú e olhou o que havia dentro. Apanhou um frasco delicado, abriu-o e aspirou o perfume.

Uma atraente escrivaninha chamou sua atenção. Nicole tinha mais de duas dúzias de penas de escrever, de formatos e cores diferentes, dispostas de maneira ordenada. Ele apanhou uma delas, de tom negro-azulado e deslizou-a sobre os lábios. A seguir, apanhou um pequeno canivete com cabo de osso, abriu-o e passou a lâmina de leve pela face; era tão afiada, que seria possível barbear-se com ela. Uma folha de papel, em branco, com linhas cuidadosamente traçadas estava sobre a escrivaninha ao lado de um quadro de cera. Sobre uma pequena mesa, ele viu uma caixinha de madeira aberta, onde vários papéis escritos estavam guardados: poemas de Nicole. Os papéis estavam em desordem, como se ela tivesse estado procurando por algo em especial, e parecia ter sido bem-sucedida, uma vez que uma folha fora retirada, e posta de lado.

Ele aproximou o papel dos olhos, sem compreender o que estava escrito. Um pequeno e delicado desenho so­bre o título, deixou-o intrigado: via-se duas mãos entre­laçadas ao centro de um caule de roseira em forma de círculo, cheio de espinhos, trazendo apenas uma rosa.

A porta do quarto abriu-se, de repente, com um leve rangido.

— Alex! — Nicole olhava para ele do limiar da porta.

— Nicki, eu...

— Dê-me esse papel agora mesmo! — Ela atraves­sou o quarto, com passos apressados, e arrancou o pa­pel das mãos dele. — Não tinha o direito de ler isto!

— Eu não li nada. Não sei ler.

— Ah, havia me esquecido. — Parecendo ao mesmo tempo magoada e cheia de alívio, ela recolocou o papel na caixinha de madeira e trancou-a com uma peque­na chave dourada. Sem olhar para Alex, livrou-se do manto azul, molhado pela chuva, e o pendurou num cabideiro. A seguir, tirou os chinelinhos ensopados e vestiu um par seco. Os cabelos dela adquiriam um bri­lho extraordinário à luz das velas.

— Milo comeu alguma coisa? — Alex achou conve­niente dizer algo, em vez de apenas sair dali com o rabo entre as pernas, após ter sido pego bisbilhotando.

— Jogou o prato no chão. Não sei mais o que fazer para que ele coma alguma coisa.

— Nicki — ele murmurou baixinho, aproximando-se dela. Sentia o coração apertado, tais os sentimentos que aquela mulher provocava nele.

Um ruído de passos chegou aos ouvidos deles. Era a velha camareira de Nicole.

— Edith — ela chamou, aproximando-se da porta. — Não vou precisar de você esta noite. Posso me des­pir sozinha.

— Como preferir, milady — respondeu a mulher idosa. Em seguida, ouviu-se o ruído de passos afas­tando-se.

— Como entrou aqui?

Alex fez um movimento com a cabeça, em direção à pequena porta.

— Aquela escadaria leva até meu quarto. Eu fiquei curioso para saber aonde ela ia dar e acabei chegan­do aqui.

— Milo colocou você naquele quarto do canto?

— Não me importo. — Era fácil perceber que ele não dizia a verdade. De início, tinha se decepcionado ao ver o quarto que o primo lhe destinara. Agora, po­rém, após ter descoberto a passagem secreta, passara a gostar dele.

— Não faz sentido. Há um quarto muito maior, lá embaixo, com lareira.

— É julho. Por que precisaria de uma lareira?

— O outro quarto tem o dobro do tamanho do que está ocupando. — Ela virou-se, em direção à porta. — Vou providenciar para que suas coisas sejam levadas para lá, imediatamente.

— Não. — Alex segurou-a pelo braço. — Realmente, não me importo. —Acariciou-lhe de leve o braço. — De verdade, não se preocupe.

— Não estou preocupada.

Ela era uma mulher inteligente, Alex lembrou-se. Precisava ser cauteloso, para evitar que o propósito daquela visita se tornasse óbvio demais.

— Tem trabalho mais do que suficiente, cuidando de Milo.

À menção do nome do marido, ela se afastou.

— Detesto pensar que tem pena de mim.

— Não tenho pena de você. Pelo contrário, admiro sua determinação.

— Está tão diferente daquela manhã no barco.

— Não estou de ressaca, agora. — Ele sorriu com timidez. — Algumas das coisas que disse e fiz naquela manhã...

— Também me arrependo das coisas que disse e fiz. Mas, talvez seja melhor não falarmos mais sobre aquele verão.

Ela estava certa. Se continuassem a falar sobre o passado, acabariam por se desentender.

— Está bem. — Ele aproximou-se. — Vamos fazer de conta que aquilo tudo não aconteceu.

— Ótimo. — Afastando-se, ela caminhou até a es­crivaninha, e pôs-se a organizar as coisas que Alex ha­via tirado do lugar.

— Escreveu todos aqueles poemas? — Alex tentou puxar assunto. Não queria sair dali, ainda.

— Sim, ao longo dos anos. Alguns foram escritos, quando ainda era criança. — Ela colocou a mão sobre a cama, para apoiar-se e levantar.

Alex ofereceu-lhe a mão, que ela aceitou, hesitante. Ele continuou a segurá-la, acariciando a palma com o polegar.

— Tem a pele mais macia que já toquei — ele mur­murou.

Nicole retirou, depressa, a mão e passou os braços em torno do próprio corpo, num gesto de autodefesa.

— Deve ir embora. Não devia ter entrado aqui. Do lado de fora, um ruído de passos fez-se ouvir.

— Milady, vim ajudá-la a se preparar para dormir. — Era Edith.

— Fique tranqüila — Nicole tornou a dizer, após um fechar de olhos impaciente. — Posso fazer isso sozinha.

— Está bem — respondeu a mulher, antes de afas­tar-se, escada abaixo.

— Ela está ficando velha e esquece as coisas — ela explicou. — Poderia substituí-la por outra criada, mas morreria de pena e remorso. Edith é como uma avó para mim.

— Isso quer dizer que, se tivesse me visto aqui, tal­vez não se lembrasse depois.

— Se ela não o visse, outra pessoa o faria. Não de­via ter vindo até aqui. Por favor, não torne a fazê-lo.

— O que dizia o poema, aquele com duas mãos en­trelaçadas, desenhadas no alto da página.

— E algo que escrevi há muitos anos. — As faces de Nicole tornaram-se rubras. — A Rosa e os Espinhos é o nome do poema. Não quer dizer mais nada para mim, agora.

— Por que o mantém guardado, então?

— De nada adiantaria me desfazer dele agora. Milo o viu, enquanto terminava de escrevê-lo. Tínhamos acabado de nos casar e eu estava... Ele achou que eu me animaria se... — Ela suspirou. — Acabou entregan­do o poema a um menestrel para que ele criasse uma melodia. O nome do homem é Marlon. Tem uma bela voz e interpreta a canção, de vez em quando. Sinto-me incomodada.

— Por quê?

— Chega de perguntas. Deve ir embora, agora.

— Nicki, queria muito saber...

— Por favor, vá embora. — Ela se virou para enca­rá-lo com evidente melancolia nos olhos.

Contra a vontade, Alex caminhou até a pequena porta. As coisas não estavam sendo nada fáceis.

—Venha cavalgar comigo amanhã, se tiver parado de chover — sugeriu, enquanto levava a mão à maçaneta.

— Eu não...

— Pode me levar para conhecer Peverell.

— Pedirei a Gaspar que lhe mostre a propriedade.

— Quero que você faça isso.

— Ele pode lhe mostrar o acampamento e apresen­tá-lo aos soldados.

— Nicki...

— Não, Alex. Por favor, vá embora.

— Pensei que tivéssemos combinado deixar aquele verão para trás.

— Isso nada tem a ver com aquele verão. Simples­mente acho que não fica bem sairmos sozinhos para cavalgar.

Alex cerrou os dentes. Maldita determinação em fazer o que pareceria correto aos olhos dos outros! Malditas memórias que se negavam a ir embora! O desafio seria bem maior do que havia previsto.

— Se Milo concordasse, iria cavalgar comigo?

— A maneira como Milo vê as coisas não é corre­ta como deveria ser. Eu não irei cavalgar com você. Está decidido.

— Nicki...

— Boa noite, Alex.

— Será que não poderíamos...

— Vá embora, Alex! — Ela parecia triste, mas de­terminada. — Saia, por favor!

Ele abriu a porta.

— Boa noite, Nicki.

— Boa noite.

Alex disse uma porção de imprecações, enquanto descia a pequena escada. Não fora sequer capaz de convencê-la a acompanhá-lo numa cavalgada. Como, então, conseguiria seduzi-la? Alex, o Conquistador. Pois sim!

 

— Por que convidou Alex para vir a Peverell — Nicole perguntou a Milo na manhã seguinte, enquanto sentava-se ao lado da cama do marido, a fim de dar-lhe algumas colheradas de mingau na boca.

— O que quer dizer?

Ela olhou em torno do grande hall, onde serviçais desmontavam as mesas do café da manhã e alguns soldados riam a um canto, todos, porém a uma distân­cia que não lhes permitia ouvirem a conversa.

— Sabe muito bem o que quero dizer.

— Sinceramente não sei, querida. — Milo encarou-a, sem qualquer alteração no semblante.

Ela conhecia a extraordinária habilidade do marido para afetar sinceridade quando a mesma não existia. Mentir não o perturbava, contanto que pudesse justifi­car para si mesmo a razão que o levava a mentir.

Nicole suspirou irritada e tentou enfiar mais algu­mas colheradas de mingau na boca de Milo. Estava tão ansiosa para arrancar-lhe informações, quanto para aproveitar a relativa sobriedade e bom humor dele. O marido pensava com mais clareza ao despertar.

Milo a observava enquanto engolia o alimento e Nicole podia jurar que ele escondia alguma coisa.

— Sinto que não aprecie a presença de Alex aqui em casa, querida. Sei que não se apreciam mutuamen­te. Talvez eu devesse ter levado esse fato em conside­ração, antes de convidá-lo para vir a Peverell. Mas ele é meu primo e sempre fomos próximos.

— É ele que não gosta de mim. Meus sentimen­tos por ele são... — Cuidado, Nicki disse a si mesma. — Pelo casamento ele se tornou meu primo também. Farei o possível para ser uma boa anfitriã. Mas o que quero saber é por que você o convidou?

— Precisa haver outro motivo além de desejar a companhia dele?

— Deve ter um outro motivo — ela ponderou, en­quanto mexia o mingau, pensativa.

— Como por exemplo?

Nicole tentou dar outra colherada de alimento para Milo, mas ele empurrou a mão dela com força, fazendo com que o prato virasse, entornando o mingau sobre o avental que ela sempre usava, enquanto tentava ali­mentá-lo. Todas as suas roupas tinham se transforma­do num transtorno para Edith, que era encarregada de lavá-las.

— Preciso de vinho para tirar o gosto de lavagem de porcos que tenho na boca depois que você me empur­rou esse mingau horrível — Milo esbravejou.

Ela limpou o avental com um guardanapo.

— Ainda não, Milo. Não pode esperar mais um tempinho até...

— Não posso esperar mais um tempinho, mulher. É tão difícil assim compreender que não dá para es­perar? Por que acha que me transformei no traste que sou hoje? — Milo estendeu os braços esqueléticos e frágeis, magros demais para a roupa que parecia se tornar mais larga para ele a cada dia. Algumas das pessoas que estavam no hall viraram-se para olhar, mas somente por um instante. Todos em Peverell esta­vam acostumados às ocasionais explosões de Milo.

Nicole fitou-o, desolada com o que via. Ele tinha se tornado ainda mais débil e a pele estava mais ama­relada desde a viagem até Rouen. Nunca deveria ter permitido que ele fosse para lá.

— Milo. — Ela tocou-o de leve no ombro, penalizada ao sentir o osso pontudo contra o tecido da túnica que ele usava. — Por favor, sei que odeia quando falo sobre a bebida, mas...

— Pois não fale. Trate de trazer a jarra com vinho e um cálice.

— Disse há muito tempo que não lhe daria mais vinho. Posso trazer suco, água, leite fresco...

— Leite fresco? Prefiro mijo fresco.

— Pois não me peça para ajudá-lo a se matar com a bebida, porque não o farei.

— Felizmente, Gaspar é mais compreensivo e maleável que você. Ele logo estará aqui e me trará vinho.

Nicole tinha tentado proibir que Gaspar ou qual­quer outro dos empregados desse vinho a Milo. Ele, no entanto, invalidou a proibição, sob a alegação de que ele era o castelão de Peverell, não ela.

— Não respondeu à pergunta que lhe fiz minutos atrás, querida. — O humor de Milo parecia ter melho­rado, como num passe de mágica, tão repentinamente quanto tinha desaparecido. — Por que você acha que convidei Alex para ficar conosco?

— Não sei. — Ela evitou o olhar do marido, em­baraçada demais para falar honestamente sobre suas suspeitas. — Estava pensando sobre... o que você havia proposto.

Milo a encarou como se não entendesse ao que ela se referia.

Nicole respirou, profundamente, e olhou ao redor, a fim de certificar-se de que ninguém poderia ouvi-los.

Sobre eu ter um filho com outro homem.

— Acredita que foi por isso que trouxe Alex para cá? — Milo franziu as sobrancelhas.

— Não sei. Imaginei que talvez...

— Você mostrou-se frontalmente avessa à idéia.

— Sim, mas...

— Aceitei sua negativa. Por quê? Mudou de idéia?

— Sabe muito bem que não. A simples noção de me deitar com um homem, qualquer homem, com o propó­sito friamente calculado de engravidar é inconcebível.

— Muito bem. Aceitei sua decisão e ponto final. — Milo sacudiu os ombros magérrimos.

— Pensei que talvez nutrisse esperanças de que... Não sei. Poderia ter tramado outro plano.

— E de que adiantaria? Você precisaria dar seu con­sentimento para que uma coisa como essa acontecesse, não é mesmo? Disse claramente que não o daria.

— É certo que não!

— Nicole, querida. — Milo riu. — Espero que não tire esse tipo de conclusão, cada vez que um parente vier nos visitar.

— Voltou a considerar minha sugestão?

— A que sugestão se refere?

— A de continuarmos a viver aqui, como guardiões de Peverell.

À menção daquela possibilidade, ele disparou, furioso, todo tipo de palavras ofensivas contra Nicole.

— Padre Otaviano jamais permitiria isso. Não confia em mulheres e me despreza. Como abade de St. Clair, ele próprio teria que designar-nos para essa função.

— Mas pensei em uma maneira...

— Já ordenei que abandonasse essa idéia, não foi? Implorar favores ao abade será causa de mais vergo­nha para nós.

— Será menos vergonhoso se formos expulsos daqui?

— Não precisaremos chegar a isso. — Ele sorriu, enigmático.

— Acabaremos chegando a isso se não pensarmos numa maneira de impedir que aconteça.

— Pensei numa solução.

— É mesmo? E qual é? Eu me prostituir para sal­var Peverell? Acredita mesmo que isso seja menos ver­gonhoso do que permanecermos aqui, como guardiões da propriedade?

— Acho que sua indignação é um tanto exagerada. Afinal, não seria a primeira vez que estaria concedendo favores sexuais a um homem que não fosse seu marido.

Nicole encarou-o, chocada. Aquela era a primei­ra vez, em nove anos de casamento, que ele atirava aquela indiscrição da juventude em seu rosto. O co­mentário maldoso deixou-a sem chão por um instante, mas tratou de reagir. Apanhou o prato com mingau da mesa-de-cabeceira e colocou-o nas mãos de Milo.

— Segure isso. — Fechou os protetores da cama em torno dele. — De agora em diante, trate de comer so­zinho. Estou indo jogar todo o vinho que temos fora. — Caminhando a passos largos e decididos, ela deixou o hall.

Deixando-se guiar pelas instruções de Milo, Alex encontrou a montaria de Nicole. Ela a havia amarrado a uma árvore, à margem do riacho que serpenteava pela floresta, ao norte do castelo, no alto de um declive irregular, de onde descia, formando uma bonita cachoeira. Ela tinha o hábito de procurar o tranqüilo re­fugio, toda vez que se desentendia com o marido. Milo garantira que ninguém perturbaria a privacidade deles.

O dia estava claro e ensolarado depois da chuva torrencial do dia anterior. Apenas alguns raios de sol conseguiam penetrar a densa folhagem, que formava como que um dossel ao longo do caminho, dando a im­pressão de que a hora do crepúsculo havia chegado, quando ainda nem era meio-dia. O ar estava agradável-mente fresco ali e recendia a terra molhada. A maior parte do solo era densamente acarpetado por avencas, enquanto o resto tinha sido transformado em lama pela chuva. As pernas de Atlantes, cavalo de Milo, que Alex estava usando, estavam enlameadas, ao alcançarem o riacho.

Desmontou, amarrou o cavalo ao lado da montaria de Nicole e saiu a procurá-la. Vislumbrou-a, quando estava ainda a cerca de cem metros de distância.

De costas para ele, inclinada sobre a terra molhada, ela segurava nas mãos um pedaço de madeira, com o qual escrevia sobre a terra. Trajava uma humilde túnica cinza, que em nada lembrava as belas túnicas de seda que tinha usado no castelo do duque William. Trazia os cabelos presos em torno da cabeça, com uma echarpe amarrada à moda dos turbantes mouriscos. As saias presas por uma das mãos, deixavam os pés e tornozelos à mostra.

Chegando mais perto, Alex notou que ela riscava o chão com força, como se quisesse liberar um senti­mento que a perturbava. Tão absorta estava naquela atividade, que sequer se deu conta de que alguém se aproximava.

— O que está escrevendo? — Alex indagou. Sobressaltada, Nicole voltou-se para ele, deixando o pedaço de madeira cair da mão.

— Nada. — Passou o pé sobre as palavras, de manei­ra a tornar impossível a leitura do que havia escrito.

— Não sei ler, lembra-se?

— Sempre me esqueço disso.

— O que estava escrevendo? — Ele aproximou-se um pouco mais.

— Um poema. O comecinho de um. As palavras vie­ram à minha mente e eu não tinha meu quadro de cera, então...

— Sobre o que era o poema?

— Nada em especial — ela murmurou, hesitante. — Apenas um poema. — Tornou a pegar o pedaço de madeira e, novamente, pôs-se a escrever sobre a terra molhada. — Droga! Não consigo me lembrar. — Atirou a madeira no riacho. — O que está fazendo aqui, afinal?

— Estava entediado e....

— Como foi que me encontrou?

— Milo disse que estaria aqui. Comentou que sem­pre vem para cá toda vez que... quero dizer...

— Ele disse qual foi a razão da briga?

Raios, se soubesse mentir como Milo, ao menos quando fosse importante fazê-lo...

O primo tinha lhe falado das suspeitas dela e pe­dido a ele que negasse tudo, caso ela viesse a tocar no assunto.

Tão perturbada estava, que ela sequer notou sua hesitação.

— Não — ela concluiu. — Milo não teria lhe conta­do. Até mesmo ele sabe que certos assuntos não podem ser mencionados abertamente.

— Está parecendo uma garotinha surpreendida fa­zendo o que não devia. — Alex apontou para os pés dela, sujos de lama, ansioso para mudar o rumo da conversa.

— Felizmente dá para lavar.

— Tem um pouco de lama na parte de trás da túni­ca, também.

— Humm... Edith vai me dar um daqueles olhares. — Ela ergueu a túnica até os joelhos e entrou no riacho.

— Por que você... — Alex balançou a cabeça. — Não, vai achar que é uma pergunta boba?

Abaixando-se, ela passou as mãos pelos pés e tor­nozelos, a fim de retirar um restinho.de lama mais persistente.

— Por que eu, o quê?

— Não sei nada sobre escrever e coisas do gênero. — Alex passou a mão pela nuca. — Estava pensando... Por que continua a escrever poemas e coisas do gêne­ro? O que leva você a fazer isso?

— O que leva você a lutar por seu rei?

— O que faço, não é mais por amor, se é isso que estava querendo dizer. É apenas a única coisa que sei fazer.

Endireitando o corpo, Nicole fitou Alex com olhos atentos, tão característicos dela.

— Já pensou em... — Ela mordeu o lábio inferior.

— Se já pensei, em quê?

Ela saiu do riacho, com a túnica ainda segura por uma das mãos, e olhou ao redor.

— Pegaria meus sapatos, por favor? Não gostaria de sujar os pés novamente. Estão perto daquela árvore.

Alex trouxe os sapatinhos macios, levemente manchados de lama. Em vez de entregá-los de pron­to nas mãos de Nicole, ele os manteve fora do alcance das mãos dela.

— Só lhe entrego se me disser o que ia me pergun­tar. Se eu já pensei alguma vez em...

Ela inspirou, profundamente.

— Já pensou em aprender a ler e escrever?

— Não acha que estou um pouquinho velho para isso? — Riu e ajoelhou-se diante dela. — Dê, aqui, seu pé direito.

— Posso fazer isso sozinha, se me der os chinelos.

— Está com medo de mim?

— Claro que não. — Os olhos dela brilhavam cheios de orgulho, na meia-luz da floresta.

— Então, por que está tão arredia? — Ele acariciou de leve o pé direito dela.

— Acho que não fica bem você tocar meus pés.

— Já toquei partes mais íntimas do que seus pés.

— Pensei que tivéssemos decidido esquecer aquele verão.

— Para ser sincero, jamais esquecerei — ele mur­murou baixinho, enquanto fitava-a nos olhos, acariciando-lhe de leve a panturilha. — Combinamos sim­plesmente não falar mais sobre aquele verão.

— Então cumpra o acordo e não fale mais daquele tempo.

— Como queira. — Alex tomou a mão dela e colo­cou-a sobre o próprio ombro. — Só para ajudar a man­ter o equilíbrio — explicou, enquanto erguia-lhe o pé direito, para calçar o sapatinho. Até mesmo os pés dela eram macios e estranhamente belos; pequenos e deli­cados como os de uma criança, pensou.

— Quer dizer que se considera velho demais para aprender coisas novas — ela desafiou.

— Talvez.

— E mesmo? Devo concluir, portanto, que se lhe colocassem nas mãos um novo tipo de arma, digamos, algo muito avançado como uma máquina que lança pequenas bolas de aço, iria recusar-se a usá-la.

Alex sorriu.

— Esse tipo de arma já existe. Chama-se besta e sei como usá-la, embora não com a habilidade de Luke.

— Não, estou falando de algo diferente, uma má­quina que possa segurar com as mãos, e que lance bo­linhas de aço com extraordinária rapidez.

— Bolinhas de aço? — Alex riu, cheio de incredu­lidade. — O propósito de uma arma é, matar o inimi­go ou, pelo menos, causar um ferimento considerável. Uma bolinha de aço poderia atingir um olho, se o ati­rador tivesse boa mira, mas...

— Não sei exatamente como deveria funcionar — ela disse. — A idéia é de um amigo meu. Inventa coisas. Ou melhor, projeta novos inventos no papel. Desenha ferramentas, armas, instrumentos científicos.

— Um amigo seu?— Alex sentiu o couro cabeludo arrepiar. Será que Nicole tinha um amigo sem que Milo tivesse conhecimento? Talvez um amante com quem se divertisse em segredo, enquanto jurava fide­lidade ao marido? Considerando-se o longo período de impotência de Milo e a história de Nicole, acostumada a manipular os sentimentos dos homens, a possibilida­de não deveria ser descartada.

— Às vezes, se o projeto é promissor — ela conti­nuou — ele chega mesmo a construir as invenções ou modelos delas.

— Milo sabe desse seu amigo?

O semblante de Nicole se transformou. Alex podia ver surpresa e ultraje no rosto dela, assim que se deu conta de onde ele estava querendo chegar.

— Meu amigo é um monge — Ela disparou, in­dignada. — Os olhos verdes, ainda mais claros que de costume, pareciam fuzilá-lo. — Um monge idoso. Frei Martin é o prior da abadia de St. Clair. É cla­ro que Milo sabe de nossa amizade. Visito frei Martin desde que era criança.

— Desculpe-me, se dei a impressão de...      

— Acaba de me acusar de adultério.

— Nicki, eu...

— Não passa de um insolente, dando ares de modelo de virtude, levando-se em conta o que dizem de você.

— E o que dizem de mim?

O rosto de Nicki adquiriu um tom rosado.

— Falam sobre todas as mulheres com quem esteve.

— E verdade que conheci muitas mulheres. No en­tanto, amei apenas uma, em toda a minha vida.

Uma brisa agitou as folhas das árvores acima deles, provocando um leve farfalhar. Algumas se desprende­ram das árvores, flutuando em torno deles, enquanto se entreolhavam.

— Preciso ir. — Nicole afastou-se a passos rápidos.

— Você me ensinaria a ler? — Alex alcançou-a e segurou-a pelos ombros.

Os olhos dela, imensos quando tornou a encará-lo, eram de um verde-claro como as profundezas do mar.

— Quer mesmo aprender a ler?

— E escrever — ele confirmou, surpreso ao dar-se conta de que o interesse era genuíno. — Quero de ver­dade. Você me ensinaria?

Os olhos de Nicki perscrutavam os dele, tentando descobrir se havia sinceridade neles.

— O que o fez mudar de idéia?

— Você — ele declarou.

— Alex... — Ela franziu as sobrancelhas.

— O que quero dizer é que escreve poemas extraor­dinários, que não consigo ler. Milo consegue. Luke sabe ler e escrever. Todas as mulheres que conheço também sabem, uma vez que a maior parte delas estudou em conventos. Por Deus, até o pequeno Robert escreveu aquele poema sobre bons pais.

— Pais amorosos — ela o corrigiu, rindo ao lem­brar-se do poema que o sobrinho de Alex escrevera.

Ao ouvir-lhe o riso tão raro, ele sentiu o coração apertar no peito. Havia muito tempo que não ouvia aquele riso.

— Certo. Pais amorosos. — Ainda tinha as mãos em torno dos braços dela e ela não o havia afastado. — E, então, vai me ensinar? Por favor... — Tomou-lhe ambas as mãos.

Ela retirou as mãos, mas devagar, sem a agitação que havia demonstrado antes.

— Acho que posso conseguir outra escrivaninha com frei Martin. Podemos colocá-la diante de uma das janelas do grande hall e ter as aulas lá.

— Aquele salão é horrível. É um lugar muito aus­tero e triste. — E cheio de gente, Alex pensou. Sem contar que perderia a oportunidade de ficar a sós com ela se tivessem as aulas no hall. — Não poderíamos ter as aulas aqui?

— Aqui na floresta? — ela indagou, hesitante.

— Ou num campo próximo daqui. — Ele sorriu. — Quem sabe encontramos uma caverna secreta?

Ela não retribuiu aquele sorriso.

— Sinto muito — ele desculpou-se, ao perceber que fora inconveniente. — Preferia ter as aulas ao ar livre. Você escolhe o lugar. Não consigo passar muito tempo naquele castelo velho e sombrio. Como tolera viver lá?

A expressão resignada do rosto de Nicole dizia mais que palavras. Tinha de viver lá. Não lhe restava outra escolha.

— Está bem — ela concordou, afinal. — Acho que ao ar livre é mesmo mais agradável. Podemos trazer quadros de cera para escrever.

— E um cobertor.

Ela hesitou, mas, em seguida, deu de ombros.

— Está certo. Acho que vamos precisar de um co­bertor para nos sentarmos.

Graças a Deus, algum progresso.

— Agora fale-me daquele juramento que fez para Milo — ela pediu, de repente.

— Que... juramento... — Alex gaguejou.

— Não jurou que ensinaria os soldados a manejar melhor a espada? Acha que vai ter tempo para isso?

Alex respirou aliviado.

— Trabalharei com os homens pela manhã. Pode­ríamos ter as aulas à tarde?

— Está bem para mim. — Ela mordeu o lábio infe­rior. — Só um detalhe. Pode não ficar bem passarmos tanto tempo juntos, a sós. Milo não se importaria, mas as pessoas podem comentar.

— Serei discreto — ele assegurou, irritado com a preocupação constante de Nicole com o que os outros poderiam pensar. Por outro lado, a perspectiva de pas­sar longas horas com ela enchia seu coração de alegre expectativa. — Podemos sair de casa separados e nos encontrarmos no lugar combinado — sugeriu. — Este seria um local adequado?

— Acredito que sim.

— Ótimo. — Aquele era um lugar afastado, no co-ração da floresta. A probabilidade de companhia indesejável era mínima. Alex imaginava-se sentado sobre uma coberta, ao lado de Nicole, cabeças inclinadas sobre o quadro de cera, o perfume dela a envolvê-lo. A idéia fazia seu coração bater acelerado.

Desejava, de verdade, aprender a ler e escrever. Porém, almejava estar com Nicole, tocá-la, para final­mente, reaver o que tinha deixado escapar por entre os dedos, nove anos antes.

— Podemos nos encontrar esta tarde, após o almo­ço? — Esforçou-se para não demonstrar ansiedade.

— Esta tarde não será possível para mim. Tenho que supervisionar a troca da guarda no grande hall.

— Amanhã, então?

— Combinado. — Nicole o fitou com tal seriedade, que ele teve vontade de rir. — Promete ser um aluno aplicado?

— Prometo. Vou dedicar-me aos estudos com afinco e entusiasmo.

 

Sozinho, em suas acomodações, Gaspar retirou a ro­lha de um pequenino frasco. Batendo de leve contra o fundo derrubou alguns grãos de um pó branco, de odor penetrante, dentro do pilão, sendo muito cauteloso quanto à quantidade a ser usada. A cicuta estava entre os mais terríveis de seus muitos medicamentos à base de ervas, sendo, de longe, o mais perigoso de todos. Uma pitada de cicuta adicionada a um sonífero era capaz de induzir um ser humano ao sono profundo e dava à pes­soa características de morte. Se colocado em quantidade demasiada, levava a pessoa a um frenesi enlouquecido, durante o qual sobrevinha ataque cardíaco, seguido de parada do funcionamento do órgão.

Satisfeito com a dose que havia separado, ele abriu um pequeno pacote de papel, no qual estava escrito Valeriana. Derramou um fiozinho marrom da raiz em pó dentro do pilão, ao lado da cicuta. Permaneceu imóvel por um instante, enquanto decidia se deveria ou não acrescentar um pouco mais daquela substância. Lady Nicole era uma mulher alta, mas bastante esbelta.

Governada pelo planeta Mercúrio, a valeriana ti­nha a propriedade de aquecer, o que a tornava útil em problemas nervosos, ataques e dores de cabeça. Porém, como acontecia, com outras ervas potentes, se usada em quantidade demasiada, era capaz de produzir sin­tomas semelhantes àqueles para os quais seu uso era aconselhado: dores de cabeça lancinantes, espasmos súbitos e violentos, e até mesmo alucinações.

Para conseguir seu objetivo, Gaspar procurou usar uma quantidade suficiente para acalmar os nervos, mas não o bastante para causar efeitos colaterais alarmantes. Pretendia simplesmente complementar o efeito da cicuta. Não haveria grande problema, se lady Nicole acordasse com dor de cabeça; alucinações, no entanto, poderiam levantar suspeitas.

Era uma pena que tivesse que sedá-la com a cicuta. Adoraria olhar bem dentro dos olhos dela, arregalados de terror e humilhação, enquanto ele fizesse todas as coisas que tanto desejava fazer. Quanto prazer lhe da­ria vê-la chorar, implorar e debater-se em pânico sob o corpo dele, enquanto a penetrasse, com força, repe­tidas vezes...

A cicuta o privaria de tais prazeres, uma vez que na quantidade usada, induziria ao sono profundo.

Será que precisava mesmo usar a cicuta? A excitação aumentava dentro dele, ao refletir sobre o que aconte­ceria se ele dispensasse a substância, dando à patroa apenas valeriana, numa quantidade bem maior do que prescreveria pelas propriedades curativas da raiz. Destituída de razão, ela seria mais fácil de controlar.

Perturbada ou não, contanto que permanecesse cons­ciente, ela teria conhecimento de tudo a que seria for­çada a submeter-se. A idéia era tentadora.

Era bem possível que a valeriana afetasse a memó­ria de lady Nicole è, portanto, não se lembraria nem mesmo de ter sido violentada. Caso se lembrasse, a mente dela estaria tão confusa e seu relato dos aconte­cimentos tão desconexo, que todos a julgariam doente e alucinada. O único risco real seria que acreditassem no relato dela e que pudesse identificá-lo como sendo o homem que a violentou. A solução seria usar uma máscara, que a impediria de reconhecê-lo. O mais provável era que um vagabundo qualquer fosse apontado como culpado do crime, e enforcado.

Mas isso não chegaria a acontecer. Mesmo que a pa­troa conseguisse lembrar-se do que tinha acontecido, pensariam que estava imaginando coisas ou enlouque­cendo. Poderia possuí-la noite após noite, e ninguém ficaria sabendo.

Gaspar jogou fora o conteúdo do pilão, para subs­tituí-lo por uma generosa quantidade de valeria­na. Hesitou, mas, por fim, acrescentou ainda mais. Alucinações poderiam ser fascinantes e, quanto aos espasmos, não se importava. Afinal, era forte o su­ficiente para segurá-la. Poderia amarrá-la à cama e amordaçá-la para que os gritos dela não acordassem os moradores da casa. Quanto às dores de cabeça, pou­co importava. Que a vadia sofresse tanto quanto ele tinha sofrido. Que se contorcesse em agonia, com a mente povoada por lembranças de pesadelo, lutando para distinguir o real do imaginário.

Por fim, ele juntou à valeriana, uma boa quantidade de outras ervas, conhecidas pela capacidade de alterar a sanidade mental, esmagando todas elas com um socador de mármore, até que se transformassem num pó homogêneo. Afastou-se ao sentir o odor forte das ervas, cujo gosto podia sentir no fundo da garganta. Teria que transformar a raiz e as ervas em algo quase invisível, e misturá-las a alguma bebida de sabor bem forte, ou a patroa jamais beberia aquilo. Ela gostava de tomar vinho com especiarias durante a sobremesa. Ele lhe serviria o vinho com as ervas depois do jantar. O resto seria fácil. Milo estava dormindo fora do so­lar. Nicole estaria sozinha lá em cima. Depois que todos tivessem se retirado para dormir, poderia passar pela despensa e subir a pequena escada de serviço, que leva­va ao solar. A patroa estaria se sentindo confusa então, talvez mesmo tendo visões e ouvindo coisas. Ou era pos­sível que estivesse fora de si. Se fosse necessário, ele a esbofetearia até que recobrasse a consciência.

Então, ele a faria penar. Lady Nicole pagaria por tê-lo ignorado durante todos aqueles anos. Provaria que ela não era a mulher virtuosa, nobre e poderosa que imaginava ser.

Providenciaria para que aquela imagem se quebrasse, para sempre.

— Vinho com especiarias, milady. — Gaspar ofere­ceu, com sorriso amável.

Nicole ergueu os olhos da torta de pêssegos que co­mia e viu Gaspar em pé, atrás dela, pronto para ser­vir-lhe a bebida que trazia numa pequena jarra. Tendo bebido mais vinho que de costume, ela sentiu-se tentada a recusar. Sabia, no entanto, que o homem se sentiria desapontado. Dada sua habilidade para lidar com ervas, Gaspar gostava de preparar o vinho com espe­ciarias para servi-lo à família ao final da refeição.

— Obrigada, Gaspar — ela agradeceu, aceitando. Sorrindo, ele colocou uma taça limpa diante da pa­troa e serviu a bebida que trazia na pequena jarra.

— E eu? — Milo indagou, com voz arrastada. — Também quero um pouco.

— A jarra está vazia, milorde — Gaspar explicou, en­quanto dirigia-se à despensa. Estou indo buscar outra.

Visivelmente contrafeito, Milo apanhou sua taça de vinho e esvaziou-a de um só gole. Essa era a primeira taça que tomava fora da cama, desde que havia chega­do de viagem. Estava, enfim, de volta aos velhos hábi­tos. Nicole sabia que ele nada tinha comido, exceto as poucas colheradas de mingau que ela tinha conseguido empurrar para dentro da boca do marido pela manhã. Sabia, também, que ele tinha bebido o dia inteiro.

— Ouvi dizer que vai aprender a ler e escrever, Alex. — Milo dirigiu-se ao primo, sentado a sua frente.

Alex olhou para Nicole, enquanto tomava um gole de vinho. Como de costume, ela evitou-lhe o olhar. A verdade é que temia que seus olhos dissessem a ele, o que não podia dizer em palavras. Temia que seus olhos traíssem aquela paixão teimosa que não havia morri­do e que, no entanto, jamais poderia ser vivida. Uma paixão que ele não partilhava. Embora os sentimentos de Alex em relação a ela parecessem ter-se tornado mais amenos, desde o encontro no barco, qualquer in­teresse que nutrisse por ela não seria, senão, de na­tureza carnal. O amor dele havia morrido quando ela escolhera casar-se com Milo. Agora, tudo que lhe res­tava, era conviver com aquela escolha.

— É verdade — ele confirmou. — Nicole é muito gentil. Só espero que seja também paciente.

— Acho que ninguém melhor do que eu pode ates­tar a paciência inesgotável de minha esposa. — Milo sorriu. — Devo dizer que fiquei muito satisfeito, quan­do ela me disse que você tinha pedido que lhe desse as aulas. Eu mesmo deveria ter pensado nisso.

Quando Alex baixou os olhos para a fatia de torta intocada em seu prato, tinha o cenho franzido. Nicole perguntava-se o que poderia perturbá-lo.

— Vocês estão se dando muito bem, e isso me agra­da. — Milo ergueu a taça e, irritado ao constatar que estava vazia, apossou-se do cálice de Nicole, sorvendo metade do conteúdo, de uma só vez.

— Milorde! — Ela voltou-se e viu Gaspar, que cami­nhava apressado em direção a eles, trazendo outra jarra de vinho na mão. — Aquele era o cálice de sua esposa.

— Pois sirva outra taça a ela. — Milo tornou a levar o cálice aos lábios, mas Gaspar arrancou-a das mãos do patrão antes que ele pudesse beber mais.

— O que pensa que está fazendo?

— Aquele vinho era do barril antigo. — Gaspar ten­tou acalmá-lo. — É possível que estivesse começando a passar do ponto. — O grandalhão encheu o cálice do patrão com o vinho que tinha acabado de trazer da despensa. — Pronto, senhor. O gosto desse é bem melhor, posso apostar.

— É melhor mesmo — Milo comentou, após provar um gole da bebida. — Muito melhor.

Passado algum tempo, enquanto as criadas tiravam a mesa, uma delas tentou apanhar o cálice de Milo que ainda continha um pouco de vinho. Ele arrancou-o das mãos da mulher e, em seguida, com o corpo balançando, recolocou o cálice sobre a mesa desastradamente, fazendo com que parte do conteúdo se esparramasse.

— Milo — Nicole disse em voz baixa. — Acho que já bebeu demais.

Balançando a cabeça, ele tentou agarrar o cálice no­vamente.

— Que inferno... — balbuciou, agitando as mãos diante dos olhos. — Minha visão está alterada.

Nicole olhou para Gaspar. Ele observava o que acontecia, com inexplicável aflição, o rosto pálido. Era estranho, o homem já devia estar acostumado àquele tipo de situação.

— Gaspar — ela chamou. — Acho que está na hora de colocar meu marido na cama. Você, por favor, o aju­daria a...

— Maldição! — Milo ergueu-se. — O que está...

— Milo? — Alex levantou-se. — O que está sentindo?

— Já vai ficar bem. — Nicole levantou-se e passou o braço em torno do marido. Ele estava tremendo. — Gaspar vai colocá-lo...

— Alguma coisa está errada! — Milo gritou, en­quanto suas mãos começavam a tremer muito. — Não vê que algo muito estranho está acontecendo comigo? Estou doente, droga! Acho que estou morrendo.

— Venha, senhor. — Gaspar tentou adular o patrão e levá-lo de volta ao banco.

— Deixe-me cuidar de meu primo. — Alex afastou Gaspar e passou o braço em torno de Milo. Atravessou o hall, sustentando o corpo do primo, seguido de perto por Nicole. Os soldados que estavam por ali ignora­ram o incidente, acostumados a ver o patrão ser leva­do para cama.

— Estou morrendo — Milo lamentou-se, contorcendo-se contra os braços de Alex, que o segurava com firmeza. — Você está tentando me matar!

— Alex não quer matar você — Nicole murmurou, afagando as costas do marido.

Milo fixou o olhar sobre o primo, tentando manter o rosto dele em foco.

— Pensei que você fosse Gaspar. Aquele maldito está tentando me matar.

Nicole sentia p coração apertado. Jamais tinha vis­to o marido tão mal.

— Ninguém está querendo... Milo?

Espasmos agitavam o corpo esquelético do homem, dos pés à cabeça. Alex chamou-o por diversas vezes ao acomodá-lo em uma poltrona. O corpo de Milo convulsionou-se por alguns instantes até amolecer por completo.

— Milo? — Nicole tomou o rosto do marido entre as mãos. — Fale comigo!

— Deixe-me colocá-lo na cama. — Alex carregou o corpo inconsciente e colocou-o sobre o leito, próximo à lareira.

Os soldados e a criadagem observavam a cena, aterrorizados, dando graças a Deus por terem Gaspar com eles.

— O jantar acabou — anunciou o grandalhão, olhando para eles. — Todos de volta ao acampamento.

Enquanto os homens se retiravam, em meio a sus­surros, Alex tirou as botas e a túnica que o primo usa­ra. A cabeça de Milo agitava-se para a frente e para trás, enquanto um estranho som gutural escapava-lhe da garganta. Ele agarrava-se às cobertas da cama em movimentos frenéticos.

— Milo. — Nicole acariciava os cabelos dele com dedos trêmulos. — Olhe para mim. Alex falava com ela, mas ela só se deu conta disso quando ele a segurou pelos ombros para que o encarasse.

— Ouviu o que eu disse? — Alex indagou. — Ele precisa de um médico. Diga-me onde encontrá-lo.

— Há um barbeiro-cirurgião em St. Clair. Explicou a ele como chegar à casa do velho Guyot.

Quando ele se preparava para sair, ela segurou-o pelo braço.

— O que acha que está acontecendo com ele.

— Não sei. — Alex olhou em direção à mesa, ago­ra vazia, exceto pela presença de Gaspar. — Não sei mesmo. Pode ser qualquer coisa. Algum tipo de febre, provavelmente. — Apertou a mão dela. — Voltarei logo com o cirurgião. Fique com Milo.

 

— Pronto — disse mestre Guyot, ao colocar a faca dentro do balde com sangue. Em seguida, fez um curati­vo com bandagens sobre a veia que havia aberto no braço de Milo. Guyot fez um gesto de cabeça à guisa de agrade­cimento para Alex, pela tarefa desagradável de manter imóvel o corpo do primo, durante o procedimento.

— Pode soltá-lo. Agora tudo que nos resta fazer é esperar.

Ajoelhada ao lado da cama do marido, Nicole fazia prece após prece, enquanto Milo se agitava e gemia. As preces tinham duplo propósito: pedir a Deus que o livrasse da terrível enfermidade e tentar ignorar o que o cirurgião estava fazendo para tratá-lo

Ao abrir os olhos, ela viu Alex ajoelhado do outro lado da cama, fazendo o sinal-da-cruz. Ele a fitou com olhos muito negros.

— Você está bem, Nicki? Está tão pálida.

— Estou bem, só que...

Alex ergueu uma sobrancelha e ela lembrou-se de que era inútil mentir para o homem que tinha a capa­cidade de ver dentro de sua alma.

— Para ser sincera, não estou bem, não — admi­tiu.— Detesto sangrias. Só de pensar nelas, sinto-me como se estivesse prestes a desmaiar. Imagine, então, assistir a uma delas numa pessoa querida e tão frágil. — Sacudiu a cabeça, penalizada.

— E verdade — observou o velho Guyot, desatando o nó que prendia o avental, cheio de manchas de san­gue, e tirava a touca verde. — Lady Nicole reage de maneira irracional a sangrias e diz que jamais se sub­meteria a uma. Certa vez, ela teve febre alta e tive que sangrá-la. Tive que amarrá-la, mas debateu-se tanto, que as cordas cortaram-lhe a pele dos pulsos. Por fim, lorde Milo me pediu para remover as cordas.

— Eu teria feito o mesmo — Alex disse baixinho, olhando para Nicole.

— Pois digo-lhe que foi um erro. — Guyot desdo­brou as mangas da túnica que trajava. — Poderia ter-lhe custado a vida. Sangrias, às vezes, são essenciais. Veja o caso de lorde Milo. Com certeza, teria morrido Se não tivéssemos drenado o sangue contaminado do corpo dele.

— O que acha que causou o problema? — Alex per­guntou ao médico.

Sei exatamente qual é o problema. Lorde Milo está sofrendo de uma enfermidade da cabeça.

Nicole e Alex entreolharam-se, confusos.

— O cérebro dele foi afetado por vapores quentes — Guyot esclareceu.

— Ah, isso significa que... — Nicole começou.

— Estando situado na parte mais alta do corpo, o cérebro é por natureza, de temperatura amena. É um órgão altamente vulnerável a superaquecimento. — Guyot tirou a faca ensangüentada do balde e limpou-a, com um pedaço de pano. — Sendo a sede da razão e da sensatez, quando tomado pelo calor pode levar o indivíduo a experimentar o tipo de demência que lorde Milo apresenta.

— Mas o que causou o superaquecimento? — Alex quis saber. — Meu primo está doente ou... é outra coisa?

— Claro que está doente — Guyot respondeu, irri­tado. — É uma doença contagiosa trazida por um flu­xo na atmosfera. E vai afetar outras pessoas. Prestem muita atenção às minhas palavras. Evitem ficar perto de lorde Milo. É perigoso aspirarem os vapores malig­nos que estão sendo expelidos do corpo dele.

Nicole e Alex afastaram-se, instintivamente, da cama.

— Meu marido vai ficar curado? — Nicole interpelou.

— Isso só Deus pode responder. — Guyot colocou o manto sobre os ombros.

— Não há nada mais que possamos fazer? — ela quis saber, inquieta diante da perspectiva de sentar-se e deixar que o destino seguisse seu curso.

— Ferva uma cebola vermelha numa mistura de suco de uva verde, mel e mostarda. Coloque a mistura quente sob o nariz de seu marido, para que inale o va­por. Quer que eu escreva para milady?

— Não há necessidade. Suco de uva verde, mel e mostarda — ela repetiu. — Vou me lembrar.

— Muito bem, então. — Mestre Guyot estendeu a mão, com a palma voltada para cima, e pigarreou. — Só falta...

— Ah, claro. — Nicole tirou da bolsinha que trazia à cintura, e entregou a ele o dinheiro como pagamento pelos serviços.

— Faça seu marido inalar a mistura duas vezes no dia — Guyot lembrou, antes de retirar-se. — Não serei responsável pelas conseqüências, caso esqueça de fa­zer o que estou recomendando, lady Nicole.

Alex e ela observavam Milo, enquanto o pobre ho­mem se contorcia e dizia coisas desconexas.

— Passarei a noite com meu primo — Alex propôs, com o costumeiro instinto cavalheiresco.

— Não será preciso. Já pedi que armassem um leito para mim aqui ao lado da cama de Milo. Ficarei com ele.

— Não deve ficar perto dele. Pode pegar a doença.

— Você também pode.

— Sou homem — Alex protestou. — Tenho mais resistência. É meu dever olhar por Milo. Afinal, ele é meu primo.

— Ele é meu marido — ela disse num tom suave, mas firme.

— Não vai deixar que eu faça nada por você?

— É meu dever. Devo ficar com Milo.

— Prometa que irá me chamar se tiver dificuldade para lidar com ele.

— Prometo. Boa noite, Alex.

— Boa noite.

— Onde está você? Por Deus, mulher, onde está você?

Nicole sentou-se no leito improvisado. Seu coração batia forte.

— Milo? — Estava escuro, e a vela que ela tinha dei­tado acesa se apagara. Nicole estava disposta a passar a noite em claro, mas tinha acabado por adormecer.

— Você está aí? — A voz de Milo soava arrastada e quase sem fôlego.

Ela levantou-se e viu a sombra do marido, sentado na cama.

— Estou aqui, Milo. Deite-se.

— Graças a Deus. — Ele deixou-se cair sobre os tra­vesseiros. — Você está aqui.

Nicole acariciou os cabelos úmidos, que caíam sobre a testa do marido. Ele estivera suando, o que deveria ser bom, pois refrescaria os vapores quentes que per­turbavam seu cérebro.

— Durma, Milo — ela aconselhou. — Esteve doente e precisa descansar.

Milo segurou-a pelo braço e puxou-a para a cama.

— Deite-se comigo, por favor. Faz tanto tempo.

De fato, não dividiam a mesma cama havia anos e nenhum dos dois tinha sentido falta da intimidade fí­sica. Mas, agora, ele estava doente e tinha necessidade do calor de um corpo junto ao dele.

— Tire isto — ele disse, referindo-se à peça de rou­pa que ela usava sobre a camisola. Ela fez o que ele pedia e, em seguida, deitou-se ao lado do marido e ajei­tou as cobertas. Milo tremia, apesar de ter tido uma noite calma. Nicole fechou as cortinas que protegiam a cama, para manter a privacidade, caso acabasse co­chilando. Criadas e soldados estariam circulando pelo hall em algumas horas, e não ficaria bem ela ser vista com uma camisola sem mangas.

Milo tomou-a nos braços, trazendo-a para junto de si. Ela retribuiu o abraço. Mestre Guyot não aprova­ria aquele contato tão próximo. Mas não importava. Se Deus quisesse que ela fosse contaminada por aquela estranha enfermidade, ela o seria. A despeito do rumo que o casamento entre ela e Milo havia tomado, ele ainda era seu marido e precisava de carinho e conforto naquele momento.

— Seu corpo sempre foi tão quente — Milo murmurou, tremendo bem menos agora. — Tão macio. Como me faz bem abraçar você.

Ela o abraçou com cuidado. Podia sentir os ossos das costelas sob a camisa. Ele cheirava a vinho e doen­ça, e a pele estava pegajosa.

Fechando os olhos, tentou lembrar-se de como o ma­rido era quando o conhecera em Périgeaux: o encan­tador, engraçado e erudito primo mais velho do meni­no que ela amava. Alex gostava muito de Milo e, por essa razão, ela também gostava. Milo era encantador, impossível não gostar dele. Quando ele a pedira em casamento, ela acreditara que não seria ruim se casar com ele.

E claro que não poderia prever o quanto o marido se deixaria deteriorar. Doía-lhe ver no que ele havia se transformado. Milo perdera o que tinha de melhor, e ela havia perdido Alex.

— Senti tanta falta disto. — Milo acariciou os cabe­los de Nicole. — Senti tanta saudade de você. Lembra-se da última vez que fizemos amor?

Ela fez um sinal negativo com a cabeça. As vezes em que tinham feito amor, nada tiveram de memorável. Era bem verdade que tinha pedido a ele que fizessem amor, na esperança de terem um herdeiro. Lembrava-se da noite em que o marido admitira a verdade, di­zendo que o problema não era dela, mas dele. Estava impotente e não poderiam ter filhos.

— Foi na loja de seu pai — Milo sussurrou. — Depois que todos estavam adormecidos. Fui até lá e acordei você no meio da noite. Lembra-se disso? Todos dormiam no mesmo quarto. Tivemos que ir para os fundos, onde seu pai fazia selas. Céus! Ela fechou os olhos.

— Milo...

— Lembro-me do cheiro de couro. — Ele beijou a têmpora de Nicole com tal ternura, que fez os olhos dela se encherem de lágrimas. — Lembro-me de seu cheiro e de seus leves gemidos. Da sensação de tocar seus seios através da camisola rústica. Você fazia brincadeirinhas tolas e ria. Eu tocava você bem fundo. Você perguntava por que eu não ria também.

Milo beijou os cabelos e a testa dela. Nem mesmo nos primeiros tempos de casamento, quando lutavam para que o relacionamento deles funcionasse, ele ha­via sido tão meigo e amoroso. Ela sequer imaginava que ele tivesse essa capacidade. Descobrir isso agora a consumia de tristeza.

— Não tive coragem de contar a você — ele mur­murou com voz rouca. — Tinha ido contar, naquela noite, que iria me casar na manhã seguinte. Perdoe-me, Violette. Foi covarde e cruel deixar que você desco­brisse tudo sozinha, mais tarde. Sei que você nunca... — A voz de Milo ficou embargada. — Você nunca me perdoou — ele acrescentou, num murmúrio trêmulo.

— Por Deus, Milo. — Nicole sentia a garganta apertar.

— Não diga nada. — Ele beijou-lhe as pálpebras úmidas pelas lágrimas. — Deixe-me dizer agora, o que não disse naquela noite. Tive que fazer o que fiz, ou assim imaginava. Achei que aquela fosse minha chance de ser feliz. — Ele riu, com tristeza. — Deus do céu, que grande tolo eu fui. E você pagou o preço.

Nicole acariciou o rosto do marido, a pele esticada sobre ossos.

— Está tudo bem, Milo — disse baixinho, enquanto lágrimas rolavam por seu rosto. — Fez o que pensou que deveria fazer e eu o perdôo.

— Como pode me perdoar? — indagou, num sussurro. Nicole pensou em Violette, que preferira tirar a própria vida a viver sem Milo.

— Porque eu te amo. Sempre te amei e sempre vou te amar.

— Deus, Violette. — Milo abraçou Nicole, com mui­to mais força do que ela o julgava capaz, dado seu es­tado de debilidade. — Eu te amo tanto, tanto. Sempre te amei e sempre vou te amar.

— Sei disso. — Nicole chorava, soluçava e abraçava Milo tão fortemente quanto ele a abraçava.

— Sinto muito, Violette. Você jamais terá idéia do quanto.

— Sei, sim. Tudo está bem agora. Quero que você durma. Vou ficar aqui.

— Vai estar aqui pela manhã?

Nicole tomou o rosto do marido entre as mãos.

— Vou estar sempre aqui. Estamos juntos agora. Ela olhou para ele e, apesar da escuridão, viu que ele sorria. Por um breve momento, ele voltou a se pare­cer com o antigo Milo, homem bem-humorado, espon­tâneo e agradável, amigo de todos.

— Boa noite, meu querido. — Beijou-o no rosto, e aconchegou-se a ele.

— Boa noite, meu amor. — A respiração de Milo tornava-se mais e mais regular. — Obrigado, minha querida. — Foram as últimas palavras que ouviu ele dizer, antes que os dois mergulhassem num sono pro­fundo e sereno.

— Droga! — Os primeiros raios de sol penetravam por entre as venezianas da janela do quarto de Alex. Tinha dormido demais.

Maldisse a si mesmo, enquanto recolhia as roupas do chão, para vestir-se. Tinha prometido ficar atento a qualquer necessidade de Nicole e Milo.

Mal acabara de se vestir, subiu as escadas que le­vavam ao grande hall. Criadas arrumavam as mesas, enquanto soldados circulavam, à espera do desjejum.

O salão era enorme e escuro, iluminado apenas pelos raios do sol que penetravam através das venezianas.

O leito de Nicole estava vazio e as cortinas da cama de Milo, fechadas. Ela devia ter acordado cedo.

Esperando que Milo tivesse conseguido dormir, Alex afastou as cortinas da cama do primo. Na escuridão, viu que Milo estava de fato dormindo... com Nicole, profundamente adormecida nos braços dele.

Olhou a cena, chocado, de certa forma. Nicole e Milo dormindo juntos, um nos braços do outro. Como aman­tes. Como marido e mulher. Nicole tinha as costas voltadas para Alex, mas seu rosto estava virado para cima, os lábios ligeiramente entreabertos. Uma mecha de cabelos estava colada ao rosto dela, pelas lágrimas que havia chorado.

Os belíssimos cabelos de Nicole desciam pela late­ral da cama em cascata, até tocarem o chão. O ombro nu e os braços pareciam alvos, na semiescuridão.

Alex tentou imaginar como seria despertar pela manhã, com os braços de Nicole ao redor do corpo. Daria qualquer coisa, naquele momento, para trocar de lugar com o primo.

Sem compromisso ou laços de qualquer espécie, ele tentou lembrar-se. Estava lá para plantar um filho no ventre de Nicole, nada mais que isso. Tinha jurado fazê-lo e o faria, o mais breve possível. Quanto mais rápido acontecesse, mais rápido sairia dali, o que ago­ra começava a desejar. Começava a fechar as cortinas da cama, quando Nicole fez o movimento típico de al­guém, prestes a acordar.

Ela abriu os olhos e o fitou.

 

Nicole ficou surpresa, ao deparar com Alex olhando para ela, enquanto acordava. Estava ali, em pé ao lado da cama, com as cortinas semicerradas. Os olhos negros e grandes a fitavam, e ele parecia desconcertado.

— Vejo que Milo está melhor — Alex murmurou, procurando dar naturalidade às próprias palavras.

— Sim. — Sentia-se mais aliviada. Afinal, a situa­ção não o havia afetado, como imaginara.

— Ficarei fora a maior parte da manhã. Vou selar Atlantes e dar uma volta pela propriedade.

— Peça a Gaspar que vá com você.

— Pretendo manter distância daquele patife e sugi­ro a você que faça o mesmo.

— Patife? Admito que ele é um tipo grosseiro, mas sempre foi confiável.

— Pois acho que mudou. — Alex deu a impressão de ter algo mais a dizer, porém limitou-se a balançar a cabeça. — Só peço que fique longe dele.

— Alex...

— Bom dia, Nicole.

Ele cerrou as cortinas da cama e afastou-se.

— Aqui está, milady. — Gaspar passou a Nicole o cálice de vinho, que continha seu remédio mais po­tente para dores de cabeça. — Vai fazer muito bem a milorde. — Como odiava bancar o empregadinho prestativo! Mas era necessário, ainda mais depois do que tinha acontecido na noite anterior. Devia ter previsto que o patrão acabaria bebendo o vinho servido à espo­sa, como era seu hábito fazer.

Nicole colocou de lado a panela com cebola cozida, que trouxera para Milo inalar. Tentava seguir à risca as recomendações de mestre Guyot.

— Obrigada, Gaspar — ela disse, enquanto tomava o cálice nas mãos.

— Minha esposa disse certo. Mil vezes obrigado, por fazê-la levar essa coisa fedorenta para longe de mim — Milo resmungou, em agradecimento.

— Tinha que preparar o remédio em vinho? — Nicole indagou, contrafeita, olhando para o interior do cálice.

— Vinho? — Milo reagiu pela primeira vez, desde que acordara. Tinha estado apático, deixando-se ficar imóvel na cama, enquanto a esposa o banhava e troca­va-lhe as roupas. Ela não o deixara por um só momen­to desde a manhã.

— Onde está o vinho?

— Pedi a você que colocasse o remédio em suco — Nicole lembrou a Gaspar, aborrecida.

— Milorde pediu-me que misturasse o remédio ao vinho. — Gaspar tentou justificar-se.

Era mentira, ela pensou. Milo passara a manhã consumido por dores de cabeça terríveis, numa total letargia. Além disso, ela não havia deixado o marido sozinho.

— É verdade, Milo? — Ela questionou a honestidade de Gaspar.

— Creio que sim. Não me lembro. — Milo tentou pegar o cálice, mas suas mãos tremiam de tal forma, que foi preciso que Nicole o segurasse, para que ele bebesse.

— Ele está com dificuldade para lembrar-se das coi­sas — ela informou a Gaspar. — Não se lembra de ab­solutamente nada do que aconteceu na noite passada.

Gaspar sorriu, satisfeito com a notícia. De certa for­ma, o patrão ter tomado o vinho que havia preparado para Nicole fora providencial. Agora, podia ter certe­za de que a poção afetava a memória. À noite, quan­do preparasse o vinho da patroa, e desta vez cuidaria para que ela tomasse a droga, poderia ter certeza de que ela não teria qualquer lembrança do que estava para acontecer.

Nicole o fitava de forma estranha

— Algum problema, milady? — ele perguntou.

— Estou tentando entender o que há no estado de meu marido que possa fazer você sorrir.

— Milorde passou por uma experiência terrível na noite passada. Quem gostaria de lembrar-se daquilo? O esquecimento por vezes pode ser uma verdadeira benção, não concorda, milady?

Nicole ficou em silêncio por um bom tempo, o que deixou o grandalhão nervoso.

— Pode ser. — Ela voltou a atenção para Milo, colo­cando de lado o cálice com o medicamento que Gaspar havia trazido. Apanhou uma tigela de sopa de enguia, e aproximou-a dos lábios do marido. — Sua predileta, Milo. Pedi à cozinheira que preparasse especialmente para você.

A aparente incredulidade de Nicole colocou Gaspar na defensiva. Embora distante, a patroa sempre havia confiado nele. O que poderia tê-la feito mudar? Quem sabe a presença de Alex de Périgeaux? Tinha quase cer­teza de que aquele maldito era encrenca. Era possível que o miserável continuasse enfeitiçado por sua patroa, e ela por ele. O melhor a fazer seria ficar de olho na­queles dois, antes que uma história romântica acabasse nascendo entre eles, e arruinando seus planos.

Aquele desgraçado não merecia Nicole. Ela era sua por direito. Esperava por ela havia anos. Agora que seus planos estavam para dar frutos, não permitiria que o insuportável cavaleiro do rei roubasse o objeto de sua obsessão.

Milo engolia a sopa que a esposa lhe dava. A alegria dela era evidente.

— E disso que precisa para ficar forte de novo — Nicole o incentivou. Ficarei a seu lado, até que se recu­pere totalmente — ela prometeu, enquanto levava-lhe a colher à boca com delicadeza.

— Não quero. — Milo afastou a cabeça, fazendo com que a sopa escorresse pelo queixo.

— Mas é preciso.

— Pode cuidar de mim, não é mesmo, Gaspar?

— Com prazer, milorde.

Nicole olhou para o empregado por um momento.

— E se ele estiver ocupado? — ela insistiu.

— Qualquer outro empregado pode me ajudar.

As palavras de Milo fizeram o sangue subir à cabe­ça de Gaspar. Como é que podiam equipará-lo a qual­quer outro criado?

— Sei que quer se sentir indispensável, minha que­rida — Milo falou com ternura. — Mas tem outros afa­zeres à espera.

— Nada que seja importante.

— Combinou dar aulas a Alex no período da tarde, não foi? Pois é o que deveria estar fazendo, em vez de me empurrar essa sopa. Isso qualquer um pode fazer.

— Ele não veio para o almoço. Acredito que esteja fazendo algo por Peverell.

— Talvez esteja esperando por você, ansioso para começar as aulas — Milo insistiu.

Nicole comprimiu os lábios.

— Vá querida. — Milo tocou-a no rosto com mão trêmula. — Estou bem melhor, juro. Para ser franco, gostaria de ficar um pouco sozinho.

— Está bem. — Os olhos de Nicole tinham ganhado um novo brilho. — Mas só se você tomar a sopa toda.

— Meu estômago está...

— Já sei — ela o interrompeu. — Seu estômago está embrulhado. É bem possível que seu estômago este­ja sempre embrulhado, porque não come o suficiente. — Tornou a aproximar a tigela dos lábios dele, feliz ao vê-lo comer mais um pouco.

Ele tomou toda a sopa bem depressa e, então, orde­nou que ela o deixasse sozinho.

— Fique um pouco com ele, por favor, Gaspar. — Nicole ajeitou a roupa.

— Como queira, milady.

— Venceu desta vez, Milo. — Ela desafiou. — Mas não poderá me impedir de dormir aqui embaixo, ao lado de sua cama, até que eu ache que esteja realmen­te bem.

— Não será necessário, milady — Gaspar apressou-se em dizer.

Milo e Nicole o fitaram, com estranheza. Raios! A realização de seus planos dependia de que a patroa voltasse a dormir no solar.

— Beal pode fazer companhia a milorde — ele deci­diu. — É muito sacrifício para milady.

— Ele está certo — Milo concordou. — Vai ficar mais confortável lá em cima.

— Ninguém está discutindo conforto — Nicole dis­parou, contrafeita. — Você é meu marido. Será que ninguém entende isso?

Milo e Gaspar permaneceram calados.

— Vou dormir aqui embaixo e ponto final. — Ela virou-se para sair dali. — Não só esta noite, mas quan­tas noites for preciso.

Gaspar trincou os dentes, enquanto a patroa se afastava. Maldição! Teria que adiar, mais uma vez, a realização de seus planos. Poderia por droga no vinho dela, mas não possuí-la naquele leito improvisado, no grande hall. Poria seus planos em execução, na pri­meira noite que a patroa passasse no solar.

Que inferno! Estava cansado de esperar, sempre. Estava ficando irritado com aquilo. Além disso, sua obsessão pela patroa tinha se tornado uma coisa viva, como uma besta selvagem, ávida para ser alimentada. O desejo que sentia parecia querer atravessar o limite das calças e se exibir.

— Maldição! — resmungou, enquanto via Nicole deixar a residência.

— Algum problema? — Milo indagou.

Gaspar agarrou o cálice de sobre a mesa-de-cabeceira e o atirou para Milo.

— Aqui está. Beba!

 

Nicole desmontou sua égua Marjolaine, e amarrou-a ao lado de Atlantes, ao chegar onde haviam planejado ter as aulas. Se Atlantes estava lá, Alex estava tam­bém. Apanhou as sacolas que continham o cobertor, um quadro de cera, uma pena, uma cartilha e algu­mas sobras do almoço, e carregou-as até o local onde tinham combinado se encontrar. Espiou por entre as árvores, mas não o encontrou. Franzindo as sobrance­lhas, deu meia-volta e olhou ao redor.

Foi, então, que o avistou. As sacolas que trazia nas mãos foram por terra. Lá estava Alex, de pé, sob a ca­choeira, de costas para ela, penteando os cabelos com as mãos.

Estava nu.

Ela apreciava a cena, imóvel, enquanto Alex ficava de frente para ela, com olhos fechados e cabeça incli­nada para trás, sob a água da cachoeira. O rio cobria-lhe até a altura dos joelhos, de forma que era possível ver todo o corpo dele. Deus a perdoasse, não conseguia deixar de admirá-lo.

Nicole jamais havia visto um homem inteiramente nu. Milo costumava apagar a vela toda vez que faziam amor, e nunca tirava a camisa. Viajando na memó­ria, para tempos ainda mais remotos, lembrou-se de Philippe. O que acontecera entre eles, tinha se dado de maneira frenética, na clandestinidade. Ele limitava-se a desamarrar o calção, jogar as saias dela para cima e, então, tudo terminava nem bem tinha começado.

A água caía sobre os ombros largos e contra o peito de Alex, para depois deslizar-lhe pelo abdômen firme, um verdadeiro feixe de músculos. Ele mantinha o peso do corpo sobre o quadril são, e era possível ver a gran­de cicatriz do outro quadril, em sua totalidade. Era como se Deus, por julgá-lo excessivamente perfeito, ti­vesse decidido arrancar-lhe um pedaço, a fim de que se tornasse imperfeito como o resto dos mortais.

Nicole imaginava, fascinada, como seria fazer amor com aquele homem. Quase tinha acontecido entre eles, nove anos antes. Teria sido uma união de prazer ou dor? Provavelmente de dor, embora já houvesse perdido a virgindade, pois ele era jovem e inexperiente, então.

Saindo de sob a cachoeira, Alex passou as mãos sobre os olhos e abrindo-os, avistou Nicole. Ela deu meia-volta, tropeçando sobre as sacolas que estavam no chão.

— Nicole! — ele exclamou.

Recobrando o equilíbrio, ela apanhou as sacolas com uma das mãos, enquanto segurava a saia com a outra, e caminhava apressada até o local onde havia deixado a égua. Ao passar por uma pedra, viu as rou­pas de Alex.

— Espere — ele chamou.

Nicole ouviu o barulho dos passos dele e então, apertou o passo.

— Não vá embora. — Estava mais perto, agora. Ela jogou as sacolas sobre a sela e colocou o pé no estribo. Alex, porém, segurou-a pelos ombros, ficando de pé atrás dela.

— Por favor, fique — sussurrou-lhe ao ouvido. Nicole sentiu o calor de Alex contra as costas.

— Achei que não viria mais. Então, decidi tomar um banho para me livrar do suor da caminhada e me refres­car um pouco — explicou, sem tirar as mãos dos ombros de Nicole. — Fiquei tão feliz ao vê-la. Por favor, fique.

Ele estava a milímetros de distância, e totalmente nu, implorando-lhe que ficasse ali com ele. O coração de Nicole batia acelerado, quando ele alcançou o pé dela, a fim de retirá-lo do estribo e colocá-lo sobre o chão.

— Você não quer ir. — Ela podia sentir o hálito quente, o que a fez estremecer.

Nicole fechou os olhos. Uma porção de imagens as­somaram-lhe à mente. Imagens de coisas que não de­veria desejar e, no entanto, desejava.

Ele deslizou as mãos dos ombros dela para envolver-lhe a cintura. Achegou-se ainda mais, por trás, deixan­do-a sentir o corpo masculino firme, úmido e quente.

— Vista-se — forçou-se a pedir.

— Por que não se despe, também? — Foi a proposta tentadora de Alex.

Ela recolocou o pé no estribo, preparando-se para montar. Segurando-a firme pela cintura, ele impediu que ela se fosse.

— Por favor, não vá. — Afastou-se dela. — Prometo que não encostarei um dedo em você. Juro por todos os santos. Sabe que nunca quebro um juramento.

Nicole retirou o pé do estribo e repousou a fronte contra o couro macio da sela.

— As coisas entre nós não podem ser assim — ela murmurou, buscando resignar-se. Céus, quem dera pudessem ser. Desejava Alex de corpo e alma, e com tal intensidade, que ficar longe era quase insuportá­vel. Se ele a quisesse da mesma maneira, se desejasse o coração dela, não apenas seus favores de natureza física, talvez pudesse ceder, apesar dos riscos e do pe­cado em que estaria incorrendo. Porém, Alex não par­tilhava seu amor, o que dava-lhe forças para resistir.

— Só queria... — ele começou.

— Sei o que queria. O mesmo que quis no passado, já que não tinha mais nada a me oferecer. Agora que sou casada, portanto não há nada que possa me ofe­recer. Naquele tempo, você me amava. Agora, só quer meu corpo.

— Nicole...

— Diga-me que estou errada, vamos — ela desafiou, voltando-se para encará-lo, embora ainda estivesse nu. — Diga-me que quer mais do que meu corpo. Diga que o Lobo Solitário mudou a maneira de agir; que quer o tipo de relacionamento que já o ouvi desdenhar. Diga-me que o Lobo Solitário responde agora aos apelos do coração e não somente do sexo.

Para sua surpresa, Alex permaneceu calado. Não protestou, não negou nada, também nada prometeu.

— Pois é. Estava certa.

— Ainda está disposta a me ensinar? — ele inda­gou, após um momento de silêncio.

— Não é apenas uma desculpa para ficar a sós co­migo?

— Juro que não. Acabei de prometer que não iria tocá-la. Por favor, não vá embora.

— Está bem. Então, vista-se.

— Num instante. — Ele caminhou até a pedra, so­bre a qual havia deixado as roupas. — É melhor virar para o outro lado — sugeriu, em tom de brincadeira.

— Assim está bem? — ele indagou, mal acabara de vestir as calças.

— Ponha toda a roupa.

— Espere aí, já me viu com minha roupa íntima, aquele dia, no barco. Além disso, não há mais ninguém por aqui, e estou molhado.

— Estou indo embora.

— Está bem, está bem... Não se importa se eu ficar sem a túnica? Está quente.

— Que seja. — Nicole apanhou as sacolas que tinha trazido e caminhou na direção de Alex. Sorriu consigo mesma ao constatar a maneira como a camisa e as calças colavam-lhe ao corpo. Onde encontraria forças para não admirar a bela paisagem?

— Deixe-me carregar as sacolas. — Alex caminhou até o local, sob carvalhos, onde o chão mais parecia um tapete de avencas. — Gosta daqui? — Sacudiu o cober­tor, que estendeu sobre o chão, alisando cuidadosamen­te com as mãos. — Ao erguer os olhos, viu que ela o fitava. — Macio como um colchão de penas. — Sorriu.

Nicole sentiu o coração apertar. Talvez ter concorda­do com as aulas não tivesse sido uma idéia sensata.

Idiota! De bruços, sobre o cobertor, Alex tentava re­produzir o alfabeto latino no quadro de cera. Tinha que ter pedido a ela que tirasse a roupa? Que grande imbecil! O que havia dito fora tão impróprio quanto pedir a ela que se deitasse e abrisse as pernas. Milo tinha elogiado tanto sua refinada habilidade com as mulheres, e ali estava ele tentando seduzir a sofisti­cada Nicole St. Clair, com atitudes e propostas ina­dequadas. Para completar, nu em pelo. Raios! O que estava acontecendo com ele?

Sua ansiedade estava fazendo com que metesse os pés pelas mãos. Estava impaciente para fazer o que tinha a fazer e partir, cumprindo o que prometera a Milo, e livrando Nicole da ruína.

A impaciência estava fazendo com que agisse de forma desastrada, como um adolescente, sem qual­quer experiência ou tato.

Teria que mudar de atitude, agir sem pressa, ser gentil, fazer com que ela confiasse e gostasse dele.

Olhou-a de esguelha. Deitada de costas, ela con­templava a copa das árvores, acima deles. Deus, era tão linda. Nunca se cansaria de admirá-la.

Lembrava-se do quanto ficara enciumado, ao vê-la adormecida nos braços de Milo.

— Quer um pêssego? — A voz de Nicole, afastou os pensamentos que o afligiam.

— Não consigo comer mais nada. — Ele tinha co­mido torta de carne e outras coisas que Nicole havia trazido, preocupada por ele não ter almoçado.

Ela apanhou um pêssego, e deitou-se de bruços so­bre o cobertor. A fruta era tão suculenta, que ao mor­dê-la, o suco escorreu-lhe pelo queixo, indo pingar na coberta. Ela riu, aquele riso era tão raro e espontâneo, que a fazia ainda mais atraente. Era, outra vez, a me­nina de cabelos dourados por quem ele tinha se apai­xonado. Não conseguia parar de admirá-la.

Ela passou a língua sobre os lábios umedecidos pela fruta. Aquele gesto fez com que a excitação dele aumentasse.

Tinha jurado manter as mãos longe dela até o fim da tarde. Mas, somente até o final daquela tarde, de­pois disso...

— Você não vai copiar aquelas palavras? — Nicole indagou.

— Palavras?

Ela apontou para a cartilha e, então, olhou para Alex.

— Tem certeza de que quer mesmo fazer isso?

— Claro que sim. — Alex tomou o quadro de cera nas mãos e procurou acomodar-se melhor sobre o co­bertor. — Nunca desejei tanto outra coisa na vida.

Ao passar perto do campo de práticas de guerra, a caminho de St. Clair, Nicole avistou Alex, que dava aulas de esgrima a um grupo de soldados, como fazia todas as manhãs, desde que havia chegado a Peverell.

Era bom poder admirá-lo, enquanto tantos outros também o observavam. Podia fitá-lo sem constrangi­mento e sem levantar suspeitas. De costas para ela, Alex movimentava-se, alheio à sua presença.

Sem camisa, como a maioria dos soldados, ele mane­java a espada com ambas as mãos, demonstrando aos homens uma série de possíveis movimentos. Os mús­culos das costas, cobertos de suor, brilhavam ao sol da manhã. Ela também viu Gaspar em uma das laterais do campo. Ele observava Alex, de braços cruzados. Os inseparáveis bajuladores Vicq e Leone cochichavam com ele e faziam piadinhas. Um deles apontou para Alex e disse algo, fazendo Gaspar sorrir com malícia.

O sorriso se apagou do rosto do grandalhão, assim que notou a presença da patroa. Passou os olhos rapi­damente pelo corpo dela, e voltou a olhar para o cam­po, fingindo não tê-la visto.

Ela sentia-se cada vez mais desconfortável na presen­ça de Gaspar. Alex estava certo ao dizer que o homem tinha mudado. De início, ela havia ignorado e mesmo rejeitado o que Alex dissera. Todavia, a desconfiança dele, tinha feito com que se colocasse na defensiva.

Naquele momento, Alex convocou um voluntário para uma demonstração. Prontamente, Gaspar se apresentou. Um jovem soldado entregou-lhe uma es­pada, mas ele rejeitou, pedindo que o rapaz lhe trou­xesse uma marreta com a cabeça cheia de pontas de chumbo. O homenzarrão tomou nas mãos gordas a ter­rível arma, passando-a da esquerda para a direita, en­quanto ria, zombando da expressão surpresa de Alex.

— Pedi um voluntário para uma demonstração de esgrima. — ele avisou ao ver Gaspar postar-se diante dele com a marreta sobre o ombro descomunal. — Não para mostrar como é que se briga numa taverna.

Todos riram com o comentário de Alex, exceto Gaspar.

— Será que o inimigo não pode atacar com outra arma, que não a espada? — O grandalhão desafiou. — Vamos lá. Mostre o que sabe fazer. Use a espada para defender-se disto, se for capaz.

Voltando sua atenção ao campo, Nicole viu Gaspar desferir um golpe de marreta na direção de Alex, que escapou, recuando. Os soldados que assistiam atentos protestaram. Nicole sabia o que diziam ente si: seria um milagre, para um único espadachim, vencer um gigante com aquela arma violenta.

Gaspar desferia golpes fortes e rápidos contra Alex, enquanto este se evadia, procurando um ponto fraco no oponente. O bramir de aço contra chumbo se fazia ouvir com freqüência, toda vez que espada e marreta colidiam. Alex movimentava-se de um lado para outro, saltava, abaixava-se. Gaspar não esmorecia.

Alex bloqueou um golpe, batendo com a espada contra a haste da marreta. Gaspar olhou para a patroa, monta­da em sua égua, fingindo tê-la visto naquele momento.

— Bom dia, milady. — Sorriu para ela, de maneira maldosa. Alex voltou-se para fitá-la e, em meio a gritos dos soldados e da própria Nicole, Gaspar desfechou-lhe um golpe impiedoso contra o quadril.

A espada caiu por terra, assim como o espadachim, que se contorcia de dor, levando a mão ao quadril ensangüentado. Gaspar tinha atingido, propositada­mente, a parte já vulnerável do corpo de Alex. Nicole desmontou e correu para o campo.

— Deixem-me passar — ordenou, enquanto espre­mia-se por entre os soldados.

Enquanto se aproximava, Alex soltou uma imprecação que ela jamais ouvira.

— Droga, desculpe-me, Nicole... milady — ele disse ao vê-la, enquanto se esforçava para se sentar.

— Fique onde está — ela pediu, ajoelhando-se.

— Onde está aquele miserável? — Alex perguntou. — Gaspar, Filho-de-uma-égua! — gritou, enquanto se levantava, cambaleante.

— Estou aqui — Gaspar anunciou, aproximando-se com a marreta sobre o ombro.

— O que é que você estava pensando? — Nicole per­guntou-lhe, enojada. — Como é que pôde...

— Isto é assunto meu — Alex replicou.

— Mas ele...

— Já disse que é assunto meu. — Alex a encarou e ela entendeu que melhor seria não dizer nada. Em seguida, Alex olhou para os soldados. Era imperioso que ele enfrentasse a situação sozinho, ou perderia o respeito dos homens.

Consciente de que todos a olhavam, Nicole retirou-se, voltando a montar Marjolaine. Tentou, no entanto, ficar próxima ao grupo de soldados, para ouvir o que diziam.

— Devia saber que não se desvia o olhar duran­te uma disputa, sir Alex — Gaspar disparou. — Especialmente, quando se está perdendo — continuou, com um brilho que evidenciava seu prazer em derrotar o cavaleiro do rei. — Posso reservar um tempo para lhe ensinar como se luta de verdade, para que possa se sair melhor no futuro.

Então é isso, Nicole pensou. Ele estava tentando hu­milhar Alex, diante dela. Mas por que os sentimentos dela pelo primo do marido poderiam interessar a ele?

Alex apanhou a espada do chão e recolocou-a na bainha.

— Curioso — ele murmurou. — Não me lembro de ter tido qualquer problema para me defender antes. Mas, é claro, que meus oponentes eram homens de hon­ra. Aqueles que sabem o que significa ter honra, não re­correm a táticas bárbaras, como a que acabou de usar.

Gaspar lançou um olhar cheio de ódio aos poucos soldados que tinham se permitido a temeridade de ri­rem à custa dele.

— Não vejo desonra em tirar vantagem das fra­quezas de um oponente — o homenzarrão protestou.

— Minha única dificuldade ao lutar com você, foi saber de qual de seus muitos pontos fracos tiraria provei­to. Usei o cabo da marreta, mas minha única intenção foi demonstrar os perigos da falta de concentração. Se fosse, de fato, o desgraçado que me acusa de ser, teria usado a cabeça de pontas.

— Pois aconselho que a use da próxima vez — Alex desafiou, olhando bem dentro dos olhos de Gaspar.

— Mas mire na cabeça para ter certeza de que irá me matar. — Levou a mão à relíquia que o cabo de sua espada guardava e todos ao redor olharam, atentos. Então, fez um gesto de cabeça, indicando a marreta. — Se usar essa coisa para me atingir, outra vez, juro por Deus Todo-Poderoso, que vai pagar com a vida.

Seguiu-se um silêncio sepulcral. Todos os olhos es­tavam sobre Gaspar, a fim de ver como ele reagiria.

— Sinto muito, que a diferença entre nossa maneira de lutar possa tê-lo afetado tanto, cavaleiro — Gaspar limitou-se a dizer. — Acho que no futuro seria melhor que praticássemos com outros parceiros.

— É mesmo melhor. — Alex voltou-se para os solda­dos, e anunciou que descansaria por alguns minutos, para em seguida retomar a aula.

Os homens dispersaram, enquanto Gaspar jogava a marreta sobre a pilha de armas.

— Você está bem? — Nicole quis saber, assim que Alex aproximou-se dela.

—Vou mancar por alguns dias. — Acariciou a cabe­ça de Marjolaine. — Não será a primeira vez.

— Talvez fosse melhor pedir a mestre Guyot que desse uma olhada em seu quadril. Acho também que deveria deitar-se e repousar um pouco.

— Não será preciso. — Alex lançou um olhar para Gaspar, que caminhava na direção deles. — Não que­brei nada. Além disso, prefiro ficar aqui fora.

Nicole sabia que ele estava tentando minimizar a gra­vidade das coisas, a fim de salvaguardar seu orgulho.

— O que planeja fazer nesta bela manhã, milady? — Gaspar juntou-se a eles.

— Estou a caminho de St. Clair — ela disse, en­quanto segurava as rédeas da égua. Jamais poderia falar àquele homem sobre o propósito de sua saída, levando-se em conta que ele tornava-se cada vez mais-curioso e especulador. Mantinha os olhos sobre Gaspar, uma vez que se fitasse Alex, ele saberia que estava mentindo. — Vou fazer umas compras.

—Vai a St. Clair desacompanhada? — Alex indagou.

— Sim. — Na verdade, iria para bem mais longe que St. Clair. Faria o possível para estar de volta até a hora do almoço, a fim de não levantar suspeitas.

— Irei com você — ele propôs.

— Não será necessário.

— Não me importo — ele começou. — Posso cance­lar as aulas e...

— Não é preciso, já disse. — A voz de Nicole era calma, mas firme. — Ficarei bem. Além disso, fazer compras deixaria você entediado.

— Não me aborrece, fazer compras. — Gaspar intrometeu-se. — Milady não deve andar desacompanhada, e não tenho nada de importante a fazer agora.

— Quero ficar sozinha — ela declarou, por fim. — Gosto de estar só, de vez em quando. Se continuarem a insistir em me acompanhar, não irei mais.

— Como queira, milady. — Alex suspirou, dando-se por vencido.

— Milorde deve estar melhor para que milady te­nha decidido ir para longe do castelo. — Gaspar diri­giu-lhe um olhar indiscreto, que a fez estremecer.

— Ele ainda está fraco. Não sei quando conseguirá levantar-se, mas já está passando períodos mais lon­gos sentado, e isso me deixa feliz. Ontem, consegui fa­zer com que comesse uns pedaços de carne. — Nicole levou a mão à boca, para disfarçar um bocejo.

— Parece cansada — Alex observou.

— E verdade. O leito é desconfortável e tenho acor­dado várias vezes por noite, para ver se Milo precisa de mim. A verdade é que ele não tem tido necessidade de ajuda. Teve a primeira noite de sono profundo, desde a enfermidade, graças aos céus! Mas acabo acordando, de qualquer maneira, e tenho dificuldade para ador­mecer depois. — Bocejou outra vez. — Queiram me desculpar.

— Eu poderia ter ficado com ele, em seu lugar — Alex protestou.

Ele é...

— Já sei. Ele é seu marido.

— Não há mais necessidade de se sacrificar des­sa forma — Gaspar opinou, inconveniente. — Milorde está dormindo bem, milady mesma disse. Se quer meu conselho, deveria voltar a dormir em seu solar.

— Detesto ter de concordar, mas ele tem razão — Alex disse.

— Milo tem a mesma opinião. — Nicole sorriu. — Acho que não há mais razão para que eu continue dormindo mal. Voltarei ao solar esta noite.

— Ótimo! — Alex e Gaspar exclamaram.

— Que raridade, vocês concordarem em alguma coi­sa. — Nicole arqueou as sobrancelhas.

Os dois homens afastaram-se, caminhando em di­reções opostas.

— Bom dia, cavalheiros — Nicole murmurou, rindo.

— Bom dia, milady — Alex e Gaspar responderam.

Gaspar montou em seu cavalo e seguiu com ele à margem da floresta, enquanto observava a patroa su­bir a estrada empoeirada, em direção à abadia de St. Clair. Viu quando ela acenou para alguém, ao chegar à entrada de pedra que cercava o conjunto de edifícios que compunham a abadia.

Fazer compras? Pois sim...

Ele havia seguido Nicole a uma distância discreta, desde que ela deixara Peverell, e tudo que ela fez foi seguir a cavalo para St. Clair. Então, de repente, to­mou a estrada, em torno da cidade, sem nem mesmo diminuir a marcha.

O curioso é que ela ia com freqüência à abadia para encontrar o prior, frei Martin, um velho maluco na opi­nião de Gaspar. Ninguém jamais a tinha impedido de visitar o lugar. Que razão haveria para mentir agora? Outra coisa que levantava suspeitas é que ela sem­pre tinha ido acompanhada, e nunca havia reclamado. Bem, quer o propósito de Nicole fosse inocente ou não, valia a pena investigar.

Se fosse esperto, Gaspar pensou, enquanto fazia meia-volta, para retornar a Peverell pela floresta, ar­rancaria a resposta dela à noite, enquanto ela estives­se sob o efeito da valeriana.

Ele fez o resto do percurso de volta a Peverell em excelente humor, pensando em tudo que aquela noite reservava.

 

— Eu... tenho... um... livro — Alex leu, deitado de bruços sobre o cobertor, à sombra dos enormes carva­lhos seculares. — Meu... livro... é... vermelho.

Continuou a leitura, chegando até quase o final da página. As últimas linhas falavam de instrumentos musicais.

— Eu... tenho.... um... — Que palavra seria aquela? — Desculpe, mas não consigo ler. Nicole?

Só agora tinha percebido que ela adormecera, de bru­ços, com a cabeça apoiada sobre os braços. Ela dormia profunda e serenamente. Alguns fios dos longos cabelos, presos em uma única trança, caíam-lhe sobre a face.

Alex tocou de leve o brinco, em ouro e pérolas, que Nicole havia comprado na cidade. Um quase gemido es­capou dos lábios dela, quando ele deslizou o dedo pelo pescoço delicado. Imóvel, torceu para que ela não acordasse. Para sua satisfação, ela continuou dormindo.

Poderia beijá-la agora, pois de outra forma, levaria um bom tempo até que tivesse outra chance.

Deveria estar ansioso pelo fato de Nicole voltar a dormir no solar, naquela noite. Aquilo, sem dúvida, aumentava as chances de ter acesso privado a ela. Todavia, a idéia de fazer amor, com Milo dormindo no andar inferior, era tão inaceitável, que estava certo de que não o faria.

Poderia, por outro lado, fazer amor com Nicole ali mesmo, na floresta, sobre o cobertor macio e uma lin­da paisagem ao redor. O problema não estava em en­contrar o lugar adequado para se deitar com ela, mas em vencer a barreira inviolável que ela construíra em torno de si mesma.

Alex deitou-se ao lado dela de modo a ficar confor­tável, sem, contudo, perturbar os sono de Nicole.

Uma semana antes, havia chegado à conclusão de que o melhor a fazer era ser paciente e reconquistar aos poucos, a confiança dela, e evitar ser direto, mas sutil. A tática, porém, não parecia estar funcionando. Embora demonstrasse sentir-se à vontade com ele, ela mostrava-se arredia à menor aproximação que lhe pa­recesse íntima demais.

Talvez estivesse fazendo tudo errado. Não esta­va acostumado a cortejar as mulheres. Aquelas com quem havia se deitado, tinham-se deixado vencer por não mais que um simples sorriso. Muitas eram mais velhas que ele. Gostava de mulheres mais velhas, pois pareciam mais à vontade consigo mesmas.

A teoria de Luke era de que as mulheres gostavam dele, porque ele gostava delas. Era verdade. Gostava demais de todas as mulheres, gordas ou magras, ma­duras ou jovens. Tinha se afeiçoado, em especial, às não particularmente belas. Tais mulheres, em geral, procuravam desenvolver outras qualidades, como um agudo senso de humor, uma bela voz, capaz de entoar lindas canções e, às vezes, até mesmo com conhecimen­to de todo um repertório de preciosidades eróticas, que compensavam a ausência de beleza física. Gostava de­las de todo o coração e elas retribuíam aquele afeto, entregando-lhe o que tinham de mais precioso: seus corpos. Ele, porém, sempre procurava proporcionar-lhes prazer igual ao que elas lhe proporcionavam.

Durante anos, ele não havia enfrentado qualquer dificuldade para satisfazer suas necessidades sexuais. No entanto, jamais tinha conhecido uma mulher por quem sentisse mais do que simples atração física.

Frustração sexual era algo que desconhecia, o que tornava mais difícil a interminável espera em relação a Nicole. Aquilo tinha se tornado uma verdadeira ago­nia lenta.

Na noite anterior, todo o desejo reprimido fora de­mais para ele. Tinha acordado ensopado de suor, como acontecia todas as noites, desde que passara a dormir sob o mesmo teto que Nicole. Tivera a maior ereção de que conseguia se lembrar. Evitava a masturbação, pe­cado que seu pai sempre o aconselhara a rejeitar. Num esforço para diminuir a gravidade do pecado, procurou realizar o ato solitário, rapidamente, imaginando que sua mão era, na verdade, a entrada aconchegante para o corpo de Nicole.

Nunca, em toda vida, tinha existido outra mulher em quem pensasse dia e noite, com quem sonhasse, ficasse cheio de ansiedade para tê-la por perto. Só Nicole. Seus sentimentos estavam se tornando mais fortes que a razão e, no entanto, sabia que não poderia criar laços duradouros com ela. Tinha que reassumir o controle da situação.

Olhou para ela, adormecida placidamente, a seu lado. Poderia beijá-la agora, pensou. Na posição em que estava, ficava impossível beijar-lhe os lábios. Poderia beijá-la no rosto, sentir a pele macia e per­fumada. Inclinou-se e aproximou seus lábios do rosto amado. Uma mecha dos cabelos dele, porém, tocou o rosto dela, antes que os lábios o fizessem.

Afastou-se, enquanto ela abria os olhos e esticava os braços, preguiçosamente.

— Acabei adormecendo, não é? — ela indagou, com voz rouca.

— Eu disse que isto aqui é tão macio quanto um colchão de penas — ele brincou, indicando o cobertor, sobre a vegetação macia.

Nicole sorriu e sentou-se, alisando a túnica que tra­java. Os lábios dela estavam ainda mais vermelhos que de costume.

—Vai chover — ela comentou, apontando para o céu, cheio de nuvens escuras. — É melhor irmos embora.

—Vamos ficar mais um pouco — Alex propôs, na in­tenção de permanecer mais tempo ao lado dela, a sós. — A chuva vai demorar para cair, e nossa aula ainda não acabou.

— Leu todas as páginas que pedi que lesse?

— Li, sim. Quer dizer, não exatamente. Emperrei numa palavra. Olhe. — Aproximou o livro dos olhos de Nicole. — Eu tenho um...

— Guigue.

— É isso que está escrito?

— O som desse instrumento lembra o ronronar de uma mulher — Nicole repetiu o que Berte havia dito durante o banquete do rei, em Rouen.

— Não tenho dúvida. — Alex riu. — Peço desculpas por todas as inconveniên-cias de minha irmã naquele dia. Em especial àquela menção aos "humores vitais femininos".

— Agradeço o pedido de desculpas, mas aprendi a ignorar esse tipo de comentário.

— Gostaria de ter filhos?

— Muito mais do que possa imaginar. Infelizmente, acredito que não era para acontecer.

— Mas poderia...

— Não. Para mim, não é possível ter filhos. Milo... não gosta de mim como mulher.

Alex ficou surpreso ao ouvi-la dizer aquilo, em vez de culpar a impotência do marido, que lhe impossibi­litava ter filhos.

— No lugar dele, ficaria ansioso para ver minha se­mente crescer em seu ventre.

— Achei que não gostasse de crianças — Nicole co­mentou, irônica. — Tem muitos filhos?

— Eu? Não tenho filhos. Nunca me casei, sabe disso.

— Mas teve tantas mulheres.

— Sempre tomei certos cuidados para não gerar bastardos, que só dificultariam a vida daquelas mu­lheres. — Alex tentou fugir do assunto. — Você estava com a razão. Vai chover logo. — Apontou para o céu carregado. — Melhor irmos embora.

Enquanto recolhia as coisas e carregava as saco­las para a montaria de Nicole, ele pensou com prazer no quanto a conversa era fácil entre eles dois. Tinham sido amigos, e eram amigos de novo. Pensou no quan­to era importante a amizade dentro do casamento. Poderiam ter partilhado amor e amizade, ao longo de todos aqueles anos, além de fazer uma porção de bebês gorduchos.

Lá estava ele fantasiando de novo. Melhor esquecer os sonhos e lembrar que o esperado dele era que sedu­zisse Nicole e a engravidasse.

De volta a Peverell, deu-se conta de que, uma vez que não a tinha beijado ainda, teria que encontrar uma maneira de fazê-lo no castelo. Havia prometido a si mesmo beijá-la antes que o dia terminasse, e estava determinado a fazê-lo.

— Tudo bem, Alex? — Nicole tomou-lhe a mão, ao notar o ar de preocupação em seu semblante.

Era a primeira vez que ela tomava a iniciativa de tocá-lo, desde que tinham chegado a Peverell.

— Estou bem. — Apertou a mão dela. — Afinal, aca­bei de passar a tarde com você.

— De volta tão cedo? — A voz de Gaspar chegou-lhes aos ouvidos, cheia de suspeita, ao vê-los de mãos dadas.

Nicole afastou a mão.

— Pensamos que iria chover — murmurou, confusa.

— E vai, com certeza. — Gaspar fitou o céu escuro. — Uma tempestade e tanto está para chegar. Esperem e verão.

Gaspar colocou o cálice com cuidado nas mãos de Edith, velha camareira da patroa.

— Pronto. Agora deve se assegurar de que lady Nicole beba o conteúdo até o final.

— O que há no cálice? — Edith perguntou, cismada.

— Um vinho de alta qualidade. — Gaspar fingiu paciência, enquanto olhava ao redor, a fim de certificar-se de que não havia mais ninguém na escadaria iluminada pela luz de uma tocha, que pudesse ouvi-los.

— Há algo no vinho que vai ajudar lady Nicole a dor­mir tranqüila. Ela tem tido dificuldade para dormir, ultimamente.

— Pobrezinha. Mas esta noite ela dormirá naquela cama confortável. Aposto que adormecerá como uma pedra. — Edith tentou devolver o cálice a Gaspar, por considerar a bebida desnecessária.

— A insônia pode perdurar por algum tempo, mesmo quando aquilo que a causou tenha se resolvido. — Gaspar empurrou o cálice de volta para as mãos da mulher.

— Isto vai fazer muito bem à patroa.

Edith lançou um olhar perscrutador para Gaspar.

— Minha menina não sabe o que é bom para ela — disse a camareira. — Nunca soube.

— Está vendo? Por isso mesmo é que precisa de você. — Gaspar tocou de leve as mãos da mulher, que voltava a segurar o cálice. — Deve cuidar para que ela beba até a última gota. O gosto não é dos melhores, por causa das ervas para dormir, contidas no vinho. Não saia do quarto da patroa, até que ela tenha bebido tudo, entendeu?

— Está pensando que sou alguma idiota? É claro que entendi.

— De maneira alguma, senhora. Mas lady Nicole, às vezes, é teimosa, e como não sabe o que é melhor para ela, deve ajudá-la a beber tudo. Não deixe os apo­sentos, até que o cálice esteja vazio. Não saia até...

— Já sei, já sei — Edith resmungou, irritada. — Ela vai beber. Agora me deixe em paz. — Apoiando uma das mãos contra a parede, a camareira começou a su­bir, vagarosamente, os degraus da escada em caracol.

— Preciso ver minha menina. Ela precisa de mim. Gaspar ficou esperando ao pé da escada, enquanto Edith subia e cuidava da patroa. Se alguém era capaz de fazer Nicole beber aquilo, essa pessoa era Edith. A camareira cuidava dela desde criança, e a patroa tinha profunda estima por ela. Havia anos que a velha criada tinha perdido a capacidade de servir tendo se tornado lenta e esquecida. O fato era que Nicole ja­mais dispensaria os préstimos da velhota e costuma­va tratá-la como a uma verdadeira avó. Com certeza, beberia o vinho, só para agradá-la.

— E então? — Gaspar quis saber, ansioso, assim que Edith acabou de descer as escadas. — Lady Nicole

— Disse que a faria beber e foi o que fiz. Sei o que e bom para minha menina. - Edith tentou passar, mas Gaspar voltou a impedir que ela o fizesse.

— Tem certeza de que ela bebeu tudo, mesmo. —Teria que lembrar de recolher o cálice, quando fosse ao solar à noite. O objeto poderia ser uma evidencia dos atos.

— Até a última gota. As pernas da pobrezinha já estavam ficando moles, quando a vesti com a camisola. Está satisfeito?

— Muito satisfeito — ele murmurou, enquanto abria caminho para que Edith passasse

— Eu não gosto de você - a mulher disse, antes de se afastar.

— Nem eu de você, velha maluca.

Gaspar parou à entrada do grande hall iluminado apenas pela débil luz que penetrava pelas ripas da janela Tentou acostumar os olhos à pouca luz e os ouvidos ao tamborilar da chuva forte contra o telhado e janelas.

Aqui e ali, era possível ver a silhueta de criadas adormecidas em leitos improvisados sobre o chão. Ele caminhou pé ante pé entre elas. Parou ao lado da cama de Milo e constatou que ele dormia profundamente. O camareiro, Bailey, como um cão servil e fiel, roncava, deitado no leito ao lado da cama do patrão.

Gaspar dirigiu-se à despensa. Abriu a porta com cuidado, para evitar que rangesse e, entrando, fechou-a atrás de si. Uma vez dentro do cômodo, suspirou ali­viado, sentindo-se mais protegido.

O lugar estava escuro como o breu. Ele acendeu uma vela e afastou os sacos de mantimentos, que blo­queavam a pequena porta que dava acesso à escada­ria. Antes de sair, apagou a vela.

Subiu as escadas em silêncio, parando diante da porta dos aposentos da patroa. Livrou-se da túnica, ficando apenas de camisa e calção. Nicole jamais o re­conheceria naquelas roupas.

A seguir, abriu o saco que carregava, tirando de dentro a máscara que ele próprio havia confeccionado, usando um capuz negro, no qual tinha cortado dois ori­fícios para os olhos e um terceiro para a boca. Encheu os pulmões de ar, e entreabriu a porta do solar.

Raios, pensou. A luz da vela ainda não tinha sido apagada. Não era possível, no entanto, que Nicole esti­vesse acordada, depois de ter tomado a poção extraforte, que tinha preparado, especialmente, para ela.

Respirou fundo, mais uma vez e, cheio de ansieda­de, abriu a porta.

Qual não foi seu prazer ao encontrar Nicole sobre a cama, delirante. Ela não tinha chegado a fechar as cortinas ou puxar as cobertas para aquecer o corpo. Trajava apenas uma camisola de seda que permitia que ele se deliciasse em entrever o corpo dela inteiro.

O cálice, com apenas um restinho de pó ao fundo, estava caído ao lado da cama.

Perfeito! Definitivamente perfeito! Fechando a porta, ele jogou o saco onde tinha tra­zido a máscara, e colocou-a sobre a cabeça. Naquele momento, Nicole gemeu e contorceu-se, enquanto as mãos dela seguravam-se ao colchão.

Ele passou alguns momentos, deliciando-se com a visão. A camisola era quase idêntica à que ele ti­nha roubado do quarto da Torre de Rouen, e deixava os braços e a parte inferior das pernas expostos. Ela abriu os olhos, mas parecia ter dificuldade para man­ter o foco.

Quem está aí? Oh, Deus. Alex, e você? Não seria mesmo uma delícia se, na confusão em que estava sua mente, ela o tomasse pelo primo do ma­rido? Aí, talvez, ela se lembrasse do que estava para acontecer, e o detestável Alex seria acusado de tê-la violentado. Seria mutilado, é claro, ou até mesmo en­forcado, dado o status da patroa.

Ele inclinou-se sobre ela e divertiu-se ao ver o horror estampado nos olhos dela, ao ver sua máscara. Pegou o rosto dela em uma das mãos, enquanto introduzia o polegar da outra entre os lábios dela. A umidade e o calor que sentiu deixaram-no excitado.

— Você... não é Alex — Nicole murmurou, tentando se sentar. Um violento espasmo, porém, sacudiu-lhe o corpo, fazendo-a cair, trêmula, sobre a cama.

Os seios da patroa contra a seda eram irresistíveis. Gaspar os tomou nas mãos e apertou-os. Ela gritou, e ele cobriu-lhe a boca, com a mão.

Os espasmos cessaram por um momento e ela tor­nou a arregalar os olhos, aterrorizada. Vê-la assim, tão indefesa, só fazia sua excitação crescer. Agora ela iria saber quem é que mandava, gostasse ou não. Ele faria o possível para que tudo fosse detestável para a vir­tuosa Nicole.

Com a mão livre, começou a erguer a camisola. Num acesso de fúria, ela impediu-o de fazê-lo, pondo-se a es­murrá-lo com força.

— Cadela. — Ele desferiu uma violenta bofetada contra o rosto dela.

— Mamãe?

— Não é a mamãe, não. — Gaspar procurou as cor­das e a mordaça, que trouxera no saco.

Nicole tentou sair da cama, enquanto ele olhava para o outro lado.

— Calminha, moça. — Agarrou-a pelos ombros e subiu em cima dela, imobilizando-a.

Ela voltou a esmurrá-lo, mas ele amarrou os pulsos dela à cabeceira da cama.

Teria de amordaçá-la também, mas deixaria isso para depois. Tinha outras idéias para ocupar aquela boca linda e macia.

— Não! — ela gritou, ao vê-lo ajoelhar-se diante do rosto dela, enquanto desamarrava o nó do calção. — Deus, por favor! Alguém me ajude.

Cobrindo-lhe a boca, a fim de impedi-la de gritar, Gaspar apanhou, com a outra mão, a faca que trazia dentro da bota.

— Já viu uma mulher sem nariz? — ele ameaçou, colocando a lâmina da faca próxima ao nariz dela. — Eu já vi. Não é nada bonito. Mas se for boazinha e fizer tudo que eu mandar, não machucarei você. — Não iria feri-la, é claro. Não tinha a mínima intenção de cha­mar a atenção dos outros.

— Gaspar?

Maldição, tão envolvido estava, que tinha esqueci­do de manter-se calado. Que falta de cuidado droga! Agora teria que matá-la. Iria se divertir ate fartar-se com ela e, depois, a mataria.

— Sou Alex — ele murmurou, tentando engana-la.

— Alex? — Nicole franziu as sobrancelhas.

— Eu mesmo. — Gaspar voltou a soltar o no que prendia o calção. — Você me ensinou a ler e, em retri­buição, vou ensinar-lhe umas coisinhas, também.

— Nicole? — Alguém bateu de leve na pequena por­ta que levava ao solar.

E o maldito de Périgeuax! Praguejando, em voz bai­xa, Gaspar soltou as cordas que prendiam os pulsos da patroa. Em seguida, retirou a máscara e enfiou-a no saco, juntamente com a faca e as cordas.

Alex tornou a bater, e Gaspar deu-se conta de que o som não vinha da porta do quarto, mas da escada de serviço. Filho-de-uma-égua. Tem-se divertido com ela desde que chegou aqui.

A maçaneta da porta moveu-se e, sem ter tempo para fugir pela porta do quarto, ele se escondeu atrás das cortinas, que cobriam a janela.

— Nicole? — A porta se abriu, e Alex entrou.

Alex, não faça isso, por favor — ela implorou de­sesperada.

— Nicole, o que...

— Não me toque.

— Sou eu, Alex. Jamais lhe faria mal.

O corpo dela foi tomado por fortes convulsões.

— Nicole, meu Deus, não — Alex murmurou pa­lavras de conforto até que ela ficasse mais calma. —Voltarei num instante. — Ele atravessou o solar e desceu as escadas que levavam ao grande hall.

Gaspar aproveitou o momento e escapou pela esca­da de serviço, a tempo de ouvir Alex chamar por Beal, camareiro de Milo, pedindo-lhe que fosse até a cidade e trouxesse mestre Guyot. Ainda aproveitando a ausên­cia de Alex, ele lançou um olhar frustrado para Nicole. Foi então que viu o cálice tombado, ao lado da cama. Apressadamente, recolheu do chão a evidência de seu crime. Ouviu os passos de Alex que tornava a subir as escadas. Entrou pela pequena porta e desapareceu.

— Que maravilha! — Gaspar vociferou, ao chegar ao pé da escada de serviço. Estava certo ao dizer que o maldito de Périgeaux iria estragar tudo.

— O doutor está aqui — Beal anunciou, enquanto acompanhava o cirurgião até o solar. Ao ver a patroa agitando-se e contorcendo-se, o camareiro fez o sinal-da-cruz e retirou-se, assustado.

— Vejo que ela pegou a doença do marido — ob­servou Guyot, enquanto se aproximava da cama de Nicole.

— Ela insistiu em cuidar de meu primo — Alex de­clarou. Tentei impedi-la, mas vejo agora que deveria ter insistido mais.

— Ninguém me dá ouvidos — Guyot lamentou, en­quanto tirava o manto e vestia o avental.

— Meu Deus... Como pôde fazer isso? — Nicole murmurou, delirante.

— Fique tranqüila. — Alex tomou-lhe a mão, en­quanto acariciava a testa úmida. — Ninguém vai lhe fazer mal. Está doente. — Olhando, de esguelha, para o velho cirurgião, viu que o homem observava a cena, intrigado.

Nicole contorcia-se, olhos arregalados, sob as co­bertas com que Alex lhe havia protegido o corpo. Em seus delírios, ela imaginava que ele a tivesse ataca­do, mas, então, havia dito que Gaspar fora mal com ela. Balbuciara o nome de Milo, padre Otaviano, frei Martin, e chamara pela mãe. Tinha chegado mesmo a dirigir-se a Alex, como se ele fosse o falecido Henn de St.Clair.

—Você me feriu, Philippe! — ela exclamou. — Como pôde fazer aquilo comigo? Confiei em você.

— Philippe? Não sou Philippe. Sou Alex. Olhe para mim, Nicole.

— Alex? — A voz dela era suave.

— Sou eu. — E a tomou em seus braços. Não se importava mais com o que o cirurgião pudesse pensar. Ela parecia tão vulnerável. — Por favor mestre Guyot, precisa ajudá-la.

O velho cirurgião misturava algo numa tigela. Alex podia sentir o cheiro forte da mostarda.

— Ajude-a a sentar-se para que eu possa purgar-lhe o estômago — Guyot pediu a Alex.

Ele apoiou o corpo de Nicole contra o seu, enquanto o médico a fazia engolir a repugnante mistura. Pouco de­pois, ela começou a gemer, levando a mão ao estômago.

— Está tudo bem, amor. — Alex procurou acalma-la Segurou-a, com firmeza, e colocou os cabelos dela para trás, enquanto Nicole esvaziava o estômago no recipiente que Guyot havia colocado diante dela. — Logo estará se sentindo melhor.

Aquilo não era verdade e, logo em seguida, o corpo de Nicole foi tomado por violentos espasmos. Alex abra­çava-a com força para evitar que ela se machucasse. Quando os espasmos cessaram, ela fechou os olhos e seu corpo parecia ter perdido as forças, Não fosse pelos leves movimentos do peito dela, a atestar que ainda es­tava viva, Nicole dava a aparência de um cadáver.

— Faça alguma coisa para ajudá-la — ele ordenou ao médico. — Se deixá-la morrer, eu mesmo me encar­regarei de acabar com sua vida, também.

— Fui ameaçado dezenas de vezes — retrucou mestre Guyot. — E como pode ver, estou aqui, bem vivo. Se de­seja que sua prima continue a viver, recomendo que con­centre as energias em me ajudar a cuidar dela. Se pensa que pode me assustar está redondamente enganado.

— Por favor, faça com que ela viva.

— Isso só Deus pode fazer. — Guyot apanhou sua faquinha e testou a lâmina contra o polegar.

— Acha que isso é...

— É essencial. Não o faria se não fosse necessário.

— Sei disso, mas ela tem tanto medo de sangrias.

— Mais que da morte? Não se iluda, meu caro, se não a sangrar, ela morrerá antes que o sol se levante. — Guyot afirmou.

— Então, faça o que tem que fazer — Alex concor­dou, lamentando o sofrimento que aquilo causaria a Nicole.

— Alex — ela murmurou. Seus olhos tinham um brilho febril, a despeito do corpo gelado.

— Estou aqui — confortou-a.

— O que está acontecendo? Está tudo girando.

— Está doente, Nicole. Pegou a enfermidade de Milo. Mestre Guyot vai ajudá-la a ficar bem de novo.

Nicole olhou para o médico. Sua expressão deliran­te transformou-se em pânico, ao ver a faca na mão do cirurgião.

— Não! — ela gritou, o corpo tornando-se rígido.

— É a única maneira de você ficar boa.

Nicole agitava-se, tentando se desvencilhar dos braços de Alex.

— Não, por favor. Não deixe...

— Nicole, ouça...

Ela gritou, enfiando as unhas nos braços dele. Foi quando ele viu que Guyot tirava um rolo de corda da bolsa.

— Não! — Ela debatia-se. — Não, por favor.

— Não use a corda — ele disse ao cirurgião. — Sou forte o suficiente para segurá-la. Nicole, ouça. — Inclinou-se sobre ela, imobilizando-lhe os braços, a fim de que não se machucasse, durante o procedimento. — Ninguém vai amarrar você, está ouvindo? Nem eu, nem mestre Guyot.

— Não vai permitir que ele me corte, não é?

— Não posso mentir para você. Não gostaria que o doutor fizesse isso, mas não há outra forma. Fique olhando para mim.

A cabeça dela agitava-se, para frente e para trás, sobre o travesseiro.

— Olhe para mim — Alex repetiu.

— Ele tentou me amarrar e me forçar a... — Nicole murmurou, com evidente terror nos olhos.

— Ninguém vai amarrar você, juro.

— Ele tinha uma faca.

— Mestre Guyot? — Alex indagou.

— Gaspar — Nicole disse. — Ele ia arrancar meu nariz fora.

— Gaspar não está aqui e ninguém vai cortar seu nariz.

— Não está entendendo.

— Olhe para mim — Alex pediu, baixinho. — Bem dentro dos meus olhos. — Ela ainda tremia, mas estava menos agitada. — Isso, agora feche os olhos. — Soltou os pulsos de Nicole, para acariciar-lhe os cabelos. — Pense em alguma coisa boa. Pense em nossa caverna. Lembra-se de como era silencioso, lá dentro? Nicole fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Acho que, no final, havia mais de cem velas ace­sas lá dentro. A luz das velas fazia seus cabelos pa­recerem fios de ouro. Lembra-se de como as águas do riacho refletiam nas paredes?

— Eu me lembro — ela disse, baixinho.

Alex tomou-lhe a mão direita na sua, enquanto co­locava amorosamente o braço esquerdo de Nicole ao alcance de Guyot.

— Costumávamos inventar histórias sobre os de­senhos nas paredes. Bem, você é que fazia isso. E eu ficava lá, ouvindo. Dizia a mim mesmo, que você era a pessoa mais inteligente que eu tinha conhecido na vida. Costumava ler para mim, lembra-se disso?

— Sim. — Ela sorriu.

Alex colocou a mão sobre o ombro esquerdo de Nicole e fez um gesto para o cirurgião.

— Agora mestre Guyot vai fazer o que tem que ser feito. Mas tudo vai ficar bem, porque estou aqui.

— Mantenha-a imóvel — instruiu o médico, en­quanto posicionava a faca contra o braço de Nicole. Alex segurou, com firmeza, o ombro esquerdo dela.

— Alex... — Ela apertou os olhos e estremeceu, enquanto Guyot sangrava-lhe o braço. — Deus meu. — Faça-o parar. — Ela apertou a mão de Alex.

— Calma, estou aqui. Olhe para mim, Nicole. Já está quase acabando.

— Odeio isso.

— Eu sei, querida. Mas já está acabando. É muito corajosa.

— Mentiroso. — Ela não pôde conter o riso, diante daquele comentário. — Mais pareço um bebê chorão.

— Todo mundo tem medo de alguma coisa.

— Do que o grande Lobo Solitário tem medo?

— De marretas. — Ele sorriu.

— É compreensível.

— Pronto, acabou — mestre Guyot anunciou. — Não foi tão ruim assim, não é mesmo?

Alex e Nicole se entreolharam, perplexos, diante das palavras do cirurgião.

Mesmo antes de acordar, com os olhos ainda fe­chados, Alex percebeu que algo estava estranho. Para começar, não estava deitado, mas sentado, inclinado para a frente, com a cabeça apoiada sobre os braços. Foi então que ouviu o som de um riso suave e femini­no. Erguendo a cabeça, viu Nicole sorrindo para ele, sentada na cama, vestida com a camisola, os cabelos jogados para o lado.

— Bom dia — ela saudou.

Alex olhou ao redor, cerrando os olhos, ao sentir no rosto os raios do sol que entravam pela janela acima da escrivaninha.

— Bom dia — respondeu, alongando o corpo e fa­zendo careta, ao sentir dor no quadril machucado.

Abraçada ao travesseiro, Nicole sorria.

— Não consegui acordá-lo — ela explicou.

— Que bom, vejo que melhorou bastante desde on­tem à noite. Consegue lembrar-se de alguma coisa?

— Pouco. Não tenho certeza do que aconteceu, de fato. — Estendeu o braço enfaixado. — Mas disto eu me lembro. — Apontou o local, que tinha sido cortado.

— Sinto muito. — Alex passou a mão pelos cabelos em desalinho. — Mestre Guyot disse que não havia outra alternativa, que era essencial. Não poderia dei­xar que você... Não queria que...

— Não me lembro da dor, mas de você me abraçan­do, e falando sobre nossa caverna. Foi muito bondoso comigo, Alex.

— Não queria que você sofresse.

— Foi a mesma coisa que Milo teve?

— Isso mesmo. Devia ter insistido com você para que não...

— Shhh. — Ela tocou-lhe os lábios com as pontas dos dedos. — Sou esposa dele, lembra-se?

Alex tomou a mão delicada nas suas.

— Queria tanto que não fosse.

— Por que veio até aqui na noite passada? Sabia que estava doente?

— Acho que vai rir de mim.

— Vamos, diga.

— Queria beijar você. Tinha prometido a mim mes­mo, que a beijaria antes da meia-noite e...

Nicole acariciou-o de leve no rosto, sentindo a barba por fazer.

— Mas não fez o que pretendia.

— Fiz sim — ele declarou.

— Você me beijou?

— Beijei seu rosto, mas não por causa da promessa que tinha feito a mim mesmo. Fiz isso porque fiz. E foi cantes da meia-noite, portanto cumpri minha promessa.

Alex só não disse a Nicole, que tinha pago a mestre Guyot muito mais do que o preço cobrado, a fim de que to cirurgião não saísse falando sobre o que tinha visto.

—Você faz promessas e juramentos estranhos. Como dá conta de cumprir todos eles?

— Não é fácil. — Alex cocou o pescoço.

— Já quebrou algum juramento?

— Nunca. O juramento de um soldado é uma promes­sa ao próprio Deus. Preferiria morrer a quebrar um.

— Mas se tivesse que...

— Jamais poderia existir uma boa razão, que justi­ficasse tal negligência.

— Não acredita que Deus compreenderia a razão? Ele nos criou. Conhece nossas fraquezas e as dificuldades que enfrentamos. Se alguém pudesse perdoar a quebra de um juramento, esse alguém seria o próprio Deus.

— Você não compreende. Soldados são julgados por um padrão de honra mais elevado. Não podemos nos dar ao luxo de justificar nossas fraquezas, ou lamentar dificuldades. Quando prometemos a Deus que faremos algo, temos que fazê-lo.

O som de passos lentos chegou aos ouvidos de Alex. Ele levantou-se e caminhou até a porta.

— Edith veio trazer seu desjejum — anunciou, abrindo a porta para que a velha camareira entrasse.

— Tem mesmo uma audição excepcional — Nicole elogiou.

— Minha pobre menina... — Edith lamentou-se, ao ver Nicole. Alex tomou a bandeja das mãos da mulher, antes que fosse ao chão. — Mas isso é para que apren­da a seguir os conselhos de mestre Guyot. Deveria ter ficado longe de seu marido.

Nicole suspirou, enquanto Alex colocava a bande­ja sobre o colo dela. O mingau encaroçado e o vinho aguado pareciam pouco atraentes. No entanto, Nicole comeu tudo e pediu a Edith que lhe trouxesse um pou­co mais.

— Também deve ir embora, Alex — Nicole obser­vou. — Preciso me lavar e vestir.

— Não acha que está indo depressa demais? Milo adoeceu há uma semana, e ainda não saiu da cama.

— Já estava adoentado antes, eu não. Estou bem de verdade, só um pouco tonta. O melhor que tenho a fazer é retomar a rotina normal. Além disso, Edith disse que Milo está preocupado. Quero que veja que estou bem.

— Está certo. — Alex caminhou até a porta que le­vava à escada de serviço. — Mas tente não se cansar.

— Alex — Nicole chamou, assim que ele se prepa­rava para sair. — Sou muito grata por tudo que fez por mim na noite passada. Por ter ficado e... por tudo, enfim. Mas não deve vir mais até o solar e não deve me beijar de novo. Nem um beijinho inocente.

— Nicole...

— Sou casada. Está errado. Se insistir nessas intimidades, não vou poder mais ficar a sós com você e eu... não quero isso. Nossas tardes juntos têm sido... — Baixou a cabeça, as faces levemente rubras. — Por favor, não me prive delas.

Dividido entre o desejo de manter a confiança de Nicole e a obrigação de seduzi-la, Alex ficou sem pa­lavras.

— Diga a Milo que descerei para o almoço — pediu. Alex fez um sinal afirmativo com a cabeça e desceu as escadas.

Milo podia sentir o cheiro do vinho que Gaspar trouxera numa taça. Podia sentir o perfume da bebida que o envolvia, estimulando-lhe o olfato e incitando seus sentidos. O maldito grandalhão sabia quão ávido ele era por aquele primeiro gole da manhã.

— Ele está tendo relações com sua esposa — Gaspar afirmou.

— Do que está falando? — Milo indagou, olhos postos no cálice.

— De sua esposa e Alex de Périgeaux.

Milo engoliu em seco ao imaginar o gosto do vinho na boca, descendo quente pela garganta, até aquecer suas entranhas. A última sensação, no entanto, só che­gava após ter bebido muito mais do que seria sensato.

— Não acha que está sendo atrevido? — Milo con­seguiu dizer, preocupado com a reação de Gaspar, ao saber que ele tinha escolhido Alex para gerar-lhe o herdeiro.

O grandalhão inclinou-se na direção de Milo, embora ainda mantivesse o cálice fora do alcance do patrão.

— Penso que seu primo tem se deitado com lady Nicole, desde a chegada a Peverell. Claro que os dois têm feito isso na floresta, enquanto dizem que ela o en­sina a ler e escrever. Só agora poderão fazer a coisa toda numa cama de verdade, com total privacidade, enquan­to o senhor dorme aqui embaixo. Ontem à noite, seu primo foi até o solar e só saiu de lá pela manhã.

— Pedi para que ele subisse — Milo murmurou, en­quanto segurava a colcha com mãos mais trêmulas que de costume. — Edith tinha dito que minha esposa não se sentia bem. Sabe que é difícil para mim subir aque­las escadas. Então, pedi a Alex que fosse vê-la e...

— Nunca, ouviu bem, nunca mesmo pense que pode mentir para mim — Gaspar rosnou.

Raramente Milo tinha ouvido o homenzarrão ex­pressar fúria e, com certeza, jamais em relação a ele. Mas precisava tanto de um drinque...

— Eu... é que...

— Só pode haver apenas uma razão para me vir com essas desculpas esfarrapadas: escolheu seu priminho para a tarefa que eu fui julgado indigno de realizar.

Milo sentia-se cada vez mais ávido pela bebida.

— Ouça, Gaspar — ele começou.

— Lady Nicole sabe que sir Alex está envolvido com ela, a seu pedido?

Milo lambeu os lábios secos.

— Dê-me o maldito cálice, homem.

— Responda à minha pergunta. Ela sabe? — Gaspar vociferou.

Soldados e criadas espalhados pelo hall voltaram-se ao ouvirem o tom de voz de Gaspar.

— Pelo amor de Deus, fale mais baixo.

— Ela sabe? — Gaspar repetiu a pergunta.

— Claro que não. Minha esposa jamais aceitaria tal arranjo, sabe disso.

— Não aceitaria se fosse com o mal-nascido castelão boticário, mas com o nobre sir Alexandre de Périgeaux...

— Nicole não aceitaria o arranjo fosse com quem fosse — Milo declarou. — Ela não faz idéia do motivo por que ele...

— Por que ele a seduziu?

— Pelo amor de Deus, Gaspar — Milo implorou, sentindo pena de si mesmo por agir daquela forma, diante de um criado. — Entregue-me o cálice.

O brutamontes encarou o patrão por um momento e, então, passou-lhe o cálice. Milo bebeu avidamente de um só gole.

— Isso complica tudo — Gaspar murmurou, lançando um olhar vazio em direção ao hall. — Isso muda tudo.

— Muda o quê? — Milo quis saber.

— Nada que tenha a ver com milorde. — Apanhando a jarra, Gaspar tornou a encher o cálice do patrão.

— Beba à vontade. Há muito mais vinho na despensa.

Nicole sorria satisfeita, enquanto Alex, de pernas cruzadas, lia o livro com as cartas de São Jerônimo.

— Do espinho tiro a rosa, da terra tiro o ouro. — Alex olhava para Nicole, como se a perguntar se esta­va correto. — Da ostra tiro a pérola. — Uma brisa sua­ve brincava com os cabelos muito negros e lisos dele.

— Terá o empregado que arar o dia todo? Não terá ele também o direito a saborear o fruto de seu trabalho? — Alex voltou-se para Nicole. — Este texto não fala sobre sexo.

— Continue. — Ela riu, sem que ele notasse.

— Você me enganou, só para me fazer ler isto aqui. O texto fala de ouro, ostras, pérolas, rosas e...

— Continue, vamos.

— O vínculo do casamento é o mais... — Olhou para Nicole. — Sagrado. — Ele adivinhou. — Por que, mãe, reclamais da vocação de vossa filha para a virginda­de? — Alex balançou a cabeça, confuso. — Que raios significa isso?

Nicole tomou o livro das mãos dele e leu.

— Por que vos aborreceis, mãe, por vossa filha preferir casar-se, não com o soldado, mas com o rei? — Encarou-o, esperando pela reação dele àquelas palavras.

— Ah, isso é fácil de entender. E claro, que a filha iria preferir o rei a um simples soldado.

— Sempre toma tudo ao pé da letra. É direto, nisso tenho que concordar com Milo. Você é tão...

— Ignorante?

— Não, literal. Para você, as coisas são exatamente o que parecem ser. É tão direto e honesto, que espera que os outros também o sejam.

— Fui assim, não sou mais. Bem, voltando ao texto, por que é que uma mãe ficaria aborrecida pelo fato de a filha preferir um rei a um soldado?

— A filha não quer se casar com qualquer rei, mas com "o" rei. O "rei dos reis".

— Ah, ela quer ser freira. Casar com Jesus Cristo! — Alex exclamou.

— E a filha irá permanecer virgem. São Jerônimo achava melhor não se casar, pela mesma razão.

— Espere aí, ele era louco? — Alex não conseguia en­tender a idéia. — O casamento é uma união sagrada.

— Não, para São Jerônimo, a menos que marido e mulher não tenham intimidades.

— Quem iria tolerar um casamento desses?

— As vezes, as pessoas não têm escolha.

— Perdoe-me. Digo, quem escolheria ter esse tipo de casamento? Pode parecer heresia, mas se São Jerônimo tinha esse tipo de visão, devia ser maluco.

— Tinha idéias radicais, mas acho que consigo compreendê-lo. O ser humano deve aprender a con­trolar seus instintos básicos, e não ser escravo deles.

— Quisera fosse capaz de colocar a teoria em práti­ca, Nicole pensou. Sua mãe estava certa: era fraca no tocante aos desejos da carne, como o infeliz episódio entre ela e Philippe tinha deixado claro. Além disso, havia seu amor adúltero por Alex, uma paixão tão avassaladora, que era doloroso sublimá-la. Todos os dias, enchia-se de júbilo ao vê-lo e poder ficar perto dele. A noite, queimava de desejo, imaginando o corpo de Alex sobre ela, dentro dela, de forma a se torna­rem um só.

— O sexo existe para nos fazer felizes. — Alex ba­lançava a cabeça. — Ou deveria ser assim entre mari­do e mulher, com a benção de Deus. Se não, não have­ria gente no mundo.

Nicole baixou o olhar, com evidente tristeza.

— Milo lhe contou, que estamos na iminência de perder Peverell?

— Sim.

— Ele disse o porquê?

— Disse, sim. — Era embaraçoso tocar no assunto.

— Posso confiar em você? — Ela tocou a mão dele.

— Claro que sim.

— Se lhe contar algo estritamente confidencial, pro­mete não contar a ninguém, nem mesmo a Milo?

— Se quiser assim.

— O que vou lhe contar, deixaria Milo zangado.

— Tem a ver com tentar manter Peverell?

— Sim. — Ela apertou a mão dele com mais força. — Corremos o risco de sermos expulsos da proprieda­de, a menos que eu tenha um filho, o que é impossí­vel acontecer. — Suspirou. — Mas não posso desistir de Peverell. Não passa de um castelo grande e escuro para você, mas é meu lar e de Milo. Não temos para onde ir.

— Pensou numa saída?

— Queria muito que a Igreja nos apontasse guardiões de Peverell. Padre Otaviano, o abade de St. Clair, teria que assinar um documento. É um homem difícil. Frei Martin é a única pessoa a quem ele ouve. Visitei frei Martin há duas semanas, contrariando a vontade de Milo.

— No dia em que foi fazer compras em St. Clair?

— Isso mesmo. Meu objetivo era conversar com frei Martin, pedir-lhe que conseguisse uma entrevista en­tre padre Otayiano e eu. — Ela riu, melancólica. — O abade nem sequer aceitou me ver. Pedi, então, a frei Martin que intercedesse por mim e, é claro, ele prome­teu se empenhar em fazê-lo. Disse-me que voltasse lá em duas semanas.

— Então irá à abadia um dia desses.

— Amanhã pela manhã. Gostaria muito que me acompanhasse. Sabe que não é sensato eu andar por aí desacompanhada, com tantos malfeitores escondi­dos na floresta. — Ela baixou os olhos. — Não é só isso. Gosto muito de sua companhia.

— E eu da sua. —Alex sorria, quando Nicole voltou a fitá-lo.

Naquela noite, dois menestréis vieram a Peverell. Estavam a caminho da Torre de Rouen e buscavam abrigo.

Milo os acolheu, sob a condição de que garantissem alguma diversão. Gratos, os homens aceitaram a pro­posta.

Um palco foi improvisado para os artistas, no hall. Bancos foram arranjados em posição, que permitisse a todos assistirem à apresentação.

Alex ocupou o lugar ao lado de Nicole que, por sua vez, sentou-se ao lado do marido.

Alex pensou consigo mesmo, que a única coisa que valia a pena ali era estar ao lado de Nicole, sentir o perfume dela e ouvir seu riso ocasional. Ela trajava uma linda túnica de seda branca, bordada em ouro. O véu, de aparência diáfana e transparente, mal escon­dia-lhe os cabelos loiros. Das orelhas, pendiam brincos de safira, e um lindo colar, igualmente de safiras, en­feitava seu pescoço alvo e delicado. Nicole resplande­cia. Era a imagem viva da alegria e da graça.

Na semana anterior, Milo tinha perguntado a ele, sem qualquer rodeio, se já havia se deitado com ela. Alex dissera ao primo de seu insucesso e da reticência de Nicole a qualquer aproximação ou toque. Milo o ha­via informado de que Gaspar já estava ciente de seu esquema, e que tinha ficado bastante contrariado por ter sido rejeitado em favor dele.

Todos aplaudiam os menestréis, inclusive Nicole e Alex. Para constrangi-mento dos artistas, a dona do castelo bocejou, discretamente.

— Milady tem razão por se entediar com canções que falam sobre batalhas — observou um dos menes­tréis. — Talvez uma canção de amor possa compensar as outras.

— Que não seja Tristão e Isolda — gritou Milo.

— É um amor que vence o tempo, milorde — argu­mentou o homem. — A história desse amor tem sido cantada milhares de vezes.

— E todas as vezes, eu estava presente — Milo res­mungou. — Se querem cantar uma trágica história de amor, minha esposa, aqui presente, escreveu a mais encantadora de todas.

— Milo, não! — Nicole protestou, segurando o braço do marido.

— E um lindo poema chamado "A Rosa e os Espinhos". — Milo empurrou a mão da esposa.

— É mesmo um belíssimo poema, milorde — o menestrel concordou. — Infelizmente, não sabemos como cantá-lo.

— Pois tenho certeza de que sir Marlon, nosso ca­valeiro trovador, não se negará a nos proporcionar o prazer de interpretá-lo, com sua voz maviosa. — Milo fez um sinal, para que Marlon subisse ao palco. — Enquanto isso, os amáveis menestréis poderão des­cansar, e beber um gostoso clarete.

— Como queira, milorde. — Eles fizeram uma reverência e retiraram-se do palco.

— Peça a sir Marlon que cante outra coisa, por fa­vor, Milo — Nicole implorou, desconcertada. — Não quero ouvir essa música.

— É minha canção preferida. — Milo deu de om­bros. — Fique quieta. Sir Marlon vai começar.

O silêncio foi completo, assim que Marlon fechou os olhos e pôs-se a interpretar a canção. O único som que Alex podia ouvir era o estalar do carvão em brasa, na lareira, atrás dele.

— "No interior do útero da terra, uma donzela e um soldado se conheceram, enquanto rosas desabrochavam acima deles, sob o calor do verão."

Alex voltou-se para Nicole, que matinha os olhos fixos no palco, as mãos agarradas à saia da túnica.

— "De mãos dadas, duas almas ligadas em união repleta de júbilo, abrigados na câmara sagrada, uma caverna antiga e profunda."

Nicole fechou os olhos, enquanto, cheio de surpresa, Alex mal conseguia respirar.

— "O amor da donzela é absoluto, rosa perfeita de agradável perfume. Em seu enlevo, não percebe os es­pinhos, que muito em breve irão feri-la."

Nicole levantou-se, murmurou algo ao ouvido do marido e dirigiu-se, a passos rápidos, à torre que le­vava ao solar.

— Que é que deu nela? — Milo indagou, voltando-se para Alex.

De pé, entre seus soldados, Gaspar acompanhou a patroa com o olhar e, em seguida, voltou a atenção a Marlon.

Lutando contra o desejo de correr atrás de Nicole, Alex continuou a ouvir a canção.

— "Os pensamentos da donzela estavam com o sol­dado, do nascer ao pôr-do-sol. Seu sono é povoado de sonhos e desejo pêlo amado, embora nunca tenham feito mais do que dar-se as mãos. Quando separados, ela é um ser incompleto, fingindo estar bem. Talvez, tenha sido insensata em se deixar consumir de amor por um homem que não podia desposá-la, dar-lhe um lar e um futuro. Uma doce loucura, à qual ela não con­seguia resistir."

— Deus do céu — Alex disse, num sussurro. Por nove anos, tinha acreditado que Luke estivesse certo. Que Nicole o havia somente usado, com a intenção de enciumar Milo, a fim de atraí-lo e casar-se com ele. Não poderia estar mais equivocado.

— Alex? — Milo franziu a testa, antes de olhar em direção à torre e, então, de volta para ele.

Alex ouviu o resto da canção, atordoado. O segredo vergonhoso que a donzela carregava, o casamento com outro homem, a angústia do jovem casal, o desespero do soldado e sua tola proposta de fuga, as coisas que desejava poder dizer a ele...

No último verso da canção, noivo e noiva diziam os votos matrimoniais, diante da capela, cada um deles apaixonado por uma terceira pessoa. Haviam sido le­vados a se casarem por razões que excluíam o amor.

Alex não aplaudiu, ao final da canção. Nicole tinha saído dali envergonhada por ter seus sentimentos ex­postos daquela maneira.

— Milo... —Alex sentiu-se incapaz de continuar.

— Devia ter imaginado que reagiria dessa forma. — Milo apanhou o cálice de vinho em suas mãos trê­mulas. — Vá encontrar-se com ela — disse por fim, to­cando o braço do primo.

Sem se importar com a opinião dos demais, Alex correu para ver Nicole. Não usou, porém, a entrada principal que levava ao solar. Voltou a seus próprios aposentos e, abrindo a pequena porta, subiu a peque­na escada em caracol.

Estava quase sem fôlego ao chegar à porta do so­lar, tal a intensidade dos sentimentos que se agitavam dentro dele. Entreabrindo a porta, viu que os aposen­tos estavam em total escuridão. Acostumando-se à au­sência de luz, vislumbrou a silhueta esguia de Nicole junto à janela.

O coração dele batia acelerado ao cruzar o quarto em direção à janela.

Os olhos dela pareciam enormes à luz do luar e esta­va chorando. Alex chamou-a, mas ela tentou esquivar-se. Segurou-a pelos ombros, forçando-a a encará-lo.

— Eu te amo, Nicole — ele murmurou, com voz rou­ca. — Eu te amava nove anos atrás, te amo agora e vou te amar para sempre.

— Deus do céu. — Ela fechou os olhos.

— Por favor, não chore mais. — Ele a beijou na tes­ta. — Eu te amo de todo o coração. Não chore. — Beijou as pálpebras úmidas dela.

— É verdade? Você me ama mesmo?

— Sempre te amei e vou te amar até o último dia de minha vida.

— Jamais deixei de amar você, Alex. Mas é um erro.

— Um amor tão puro e verdadeiro quanto o nosso não pode ser errado.

— Sou casada.

— Já era minha antes. Pertencemos um ao outro e isso nunca irá mudar.

— Mas...

— Não diga nada. — Alex beijou-lhe os lábios com ternura, sem pressa, tomando o rosto da amada entre as mãos, a fim de saborearem cada segundo. Deslizava os lábios sobre os dela, sentido o calor úmido e acetinado. Deus, estava beijando sua Nicole e ela correspon­dia a seus beijos.

As mãos de Nicole sobre a nuca de Alex eram ma­cias, o hálito quente contra os lábios dele. Ele gemeu de prazer. Enlaçando o corpo de Nicole, fez com que ela se recostasse contra a janela e beijou-a, demoradamente.

Ela o abraçava com força, os seios sobre o peito musculoso, as coxas firmes contra as dele. Alex aca­riciou-lhe o delicado contorno dos quadris. Seu desejo crescia, no entanto, afastou-se, embora a quisesse com loucura. Mas não era a hora nem o lugar certos.

Nicole acariciou-o no rosto e ele tomou-lhe a mão, beijando a palma. Ela sorriu e fechou os olhos. Aquela expressão de doçura fez com que a urgência de possuí-la se acalmasse.

Voltou a tomá-la nos braços e entregaram-se a bei­jos e afagos, esquecidos de tudo e todos.

— Isto é loucura, Alex — ela sussurrou, quando vol­taram a se entreolharem.

— A vida é louca e teremos que aprender a lidar com ela. Mas não esta noite.

 

— Tem certeza de que podemos entrar aqui? — Alex indagou, assim que chegaram à praça pública, diante da abadia. Logo chegavam a um pátio mais silencioso.

— Os monastérios têm regras estritas em relação à presença de mulheres — Nicole comentou. — Mas o local onde estamos é considerado área pública. — Ela guiava Alex em direção a uma construção baixa de pedras, com uma grande porta de carvalho. — Padre Otaviano me proibiria permanentemente de vir aqui, se me aventurasse a rondar pelo claustro.

Nicole trajava uma túnica escura e austera e trazia na cabeça um véu também escuro, que ocultava os ca­belos loiros. Era outra Nicole, muito diferente daquela que o havia beijado com ardor na noite anterior.

Ela bateu à porta de carvalho.

— Vá embora! — gritou uma voz, vinda do interior da casa.

— Sou eu, frei Martin — Nicole anunciou.

A porta se abriu, quase que de imediato. Um ancião, vestido num traje negro da Ordem dos Beneditinos, saudou-os.

— Nicole, minha querida. — O homem a abraçou com ternura, olhando em seguida para Alex. — É o homem de quem me falou?

— Sim, frei. — O rosto de Nicole ficou rubro. — Este é Alexandre de Périgeaux, meu primo por casamento. Alex, este é meu amigo, frei Martin.

O frei sorriu, fez sinal para que entrassem e fechou a porta.

Alex nunca estivera numa sala tão abarrotada de coi­sas. Por toda parte, viam-se papéis, desenhos, tabelas, grá­ficos e modelos, em madeira, de estranhos objetos.

Duas das paredes da sala eram repletas de estantes, ocupadas por centenas de livros, de todos os tamanhos, e rolos de papel. A terceira parede tinha sido destinada a tabelas e desenhos relacionados à astrologia.

— Vejo que se interessa por astros e planetas — observou frei Martin, aproximando-se de Alex. Antes disso, porém, o homem havia apanhado, de sobre uma escrivaninha, dois vidros grossos, ligados por aros de ouro. O frei colocou o estranho aparato sobre o nariz e falou a Alex sobre os movimentos dos planetas e sua relação com a Terra e o Sol.

Alex olhava para o homem, cujos olhos tinham se tornado imensos sob os círculos de vidro, fazendo-o parecer um tipo de estranho inseto.

— Vinho de pera — O frei ofereceu, afastando-se. — Eu mesmo o fiz. Tem excelente sabor, posso garan­tir. Aceitam?

Alex e Nicole aceitaram a oferta, e o homem entregou a cada um deles um cálice com a bebida.

— Frei Martin — Nicole começou.— Por favor, diga-me o que o padre Otaviano falou a respeito de meu pedido.

— Disse-me que iria pensar. Após uma longa con­versa, a impressão que tive é de que ele esta propenso a acatar seu pedido.

— É mesmo? — O coração dela se encheu de espe­rança.

— Argumentei com fervor em defesa de sua causa, filha — o frei garantiu. Falei sobre sua habilidade para administrar o castelo, enfatizei seus conhecimentos de contabilidade e capacidade para lidar com criados e homens de armas.

— Pelo que percebo, o senhor preferiu não mencio­nar Milo.

— Achei melhor não fazê-lo. Conheço bem o abade.

— Caso você tenha a oportunidade de falar com ele de novo...

— Fique tranqüila, menina. Continuarei a interce­der em seu favor. — Frei Martin segurou Nicole pelos ombros e beijou-lhe a testa.

No caminho até a abadia de St. Clair, Nicole tinha explicado a Alex por que frei Martin era sua única es­perança de conseguir a posição de guardiã de Peverell. Embora de temperamento muito diferente de padre Otaviano, e do fato de o frei não se submeter às vonta­des do abade, ele era a única pessoa que podia exercer alguma influência sobre o padre.

— Vou rezar por você, minha querida. — Frei Martin procurou apaziguá-la. — Padre Otaviano pretende re­solver logo esse assunto. Volte aqui dentro de uma se­mana e terei a resposta. Pelo jeito, diria que há uma boa chance de ser apontada guardiã e administradora de Peverell. Por enquanto, aconselho que não se in­quiete com o assunto. O que quer que padre Otaviano decida será, no fundo, a vontade de Deus.

— Obrigada, frei. — Nicole beijou-lhe as mãos. — Não tenho palavras para agradecer o suficiente.

— Vá em paz, filha.

— Obrigada, mais uma vez.

Por detrás das árvores da floresta, Gaspar observa­ra Nicole e Alex, que se despediam do frei.

Tinha decidido segui-los, ao saber que sairiam jun­tos pela manhã. Afinal, as tais aulas, se é que eram au­las e não uma desculpa para algo bem diferente, eram sempre à tarde. Queria saber onde é que aqueles dois estavam indo. Outra visita misteriosa à abadia. Certamente, o motivo dessa visita era o mesmo da primeira e, muito provavelmente, deduziu, tinham a ver com Peverell. Nicole devia ter pensado em um modo de impedir a Igreja de tirar a propriedade dela e do marido. Para a realização de seus planos, a patroa tinha pedido ajuda a Alex.

Filho-de-uma-égua! Se não fosse pelo desgraçado, sua própria semente já estaria desabrochando no ven­tre de Nicole. Por causa do miserável, fora forçado a adiar seus planos. Afinal, todas as noites o priminho o patrão ia até o solar para se divertir com Nicole.

Pensando melhor, ele tinha decidido não interferir com as tentativas de Alex, para engravidar a patroa, embora não gostasse da idéia de ela submeter-se aquele arrogante. Era provável que os dois estivessem se encontrando às escondidas desde Rouen.

Tomara uma decisão: não continuaria a servir aque­la cadela bem-nascida, nem o marido beberrão. Afinal, era muito melhor castelão do que Milo jamais pode­ria sequer sonhar ser. O fato de ter origem humilde não era empecilho para coisa alguma. Era inteligente, ambicioso e líder por natureza. Por direito, ele é que deveria ser o castelão de Peverell. Afinal, o próprio avô de Henri St. Clair, não havia nascido nobre e, no en­tanto, fora escolhido para o posto de castelão, posição que mais tarde passara a ser transmitida por hereditariedade, de acordo com a lei.

Aquilo era prova suficiente de que não era preciso nascer nobre para se tornar nobre. O importante era ser esperto o bastante para enxergar as oportunidades e ter a coragem de agir. Preenchia os dois requisitos.

Ao ver que Nicole e Alex se aproximavam do lugar onde estava, ele fez o cavalo dar meia-volta e prepa­rou-se para voltar a Peverell. Sorria, enquanto novos planos iam-se formando na mente. Tudo que tinha a fazer era encaixar as peças com cuidado.

Sim, se agisse certo, poderia ter tudo para si: Peverell, Nicole e uma doce vingança. Antes de mais nada, precisaria saber exatamente que tipo de arran­jo a patroa estava tentando conseguir com o abade. Talvez Milo soubesse. Se esse fosse o caso, tudo que tinha a fazer era enchê-lo de vinho, para que lhe des­se o serviço completo. Então, na manhã seguinte, se necessário, ele próprio sabotaria o esquema de Nicole, fazendo uma visita ao abade, que certa vez tinha dito que seria bem-vindo a seus aposentos particulares a qualquer hora.

Aquela idéia, porém, não o agradava. Pela maneira como padre Otaviano olhava para ele, Gaspar suspei­tava que o interesse do homem por ele era de natureza carnal, não espiritual. Olhar para o sujeito dava-lhe arrepios. Por outro lado, era essencial que os planos de Nicole não chegassem a produzir frutos. Estava dis­posto a fazer qualquer coisa para convencer o abade a ignorar as intenções dela. Custasse o que custasse.

Naquela tarde, Alex e Nicole tinham se acomodado, como de costume, sob os velhos carvalhos, desfrutando da gostosa sombra que projetavam.

Com o tronco de uma das árvores servindo-lhe de apoio para as costas, Nicole sentava-se sobre o cober­tor, com a cabeça de Alex sobre seu colo. Acariciava-lhe os cabelos negros e sedosos, enquanto conversavam.

— Ele era um cavaleiro a serviço de tio Henri — ela contou. — Eu tinha quinze anos, quando veio para Peverell.

— Quantos anos tinha Philippe? — Alex virou a ca­beça, para fitá-la.

— Como sabe o nome dele?

— Disse o nome dele, quando estava doente.

— O que eu disse?

— Que ele a tinha ferido. O que fez a você?

— Fez com que eu me apaixonasse. Eu achava que era amor, mas tudo não passou de uma paixonite de menina. Agora, sei o que é amor.

Alex levou a mão dela aos lábios e beijou-lhe a pon­ta dos dedos.

— Philippe era muito bonito — ela continuou. — O cavaleiro mais alto de Peverell e tinha os cabelos mui­to loiros.

— Como os seus — Alex murmurou, enquanto segurava a trança dela, tirando a fita que a enfeitava.

— Tinha olhos azuis e jeito de nobre. Além disso, o sorriso dele fazia meus joelhos amolecerem.

— Já entendi. — Ele enrolou a fita em torno da mão, enciumado.

— Lembra-se daquela manhã em Rouen, quando acordou no barco e eu estava lá? — ela indagou.

— Claro que me lembro. Portei-me como um perfei­to imbecil.

— Lembro-me de que você trazia alguma coisa em torno da mão.

— Ah! — Alex abriu a bolsinha de couro, onde guar­dava moedas, e retirou do fundo uma fita branca. — Tenho isto desde aquele verão. É sua.

— Mesmo?

— Acha que sou bobo, não é?

Nicole inclinou-se e beijou-o nos lábios.

— É romântico.

— Você me beijou! — Alex fez ar de surpresa. En­laçou-lhe a nuca e a trouxe mais perto, para que se beijassem de novo. — Acho que se começarmos a nos beijar, não ouvirei sua história.

— Concordo. — Afinal, tinham passado horas se beijando e se abraçando na noite anterior.

— Então diga, quantos anos o tal Philippe tinha?

— Trinta — ela respondeu. — Era um soldado ex­periente e dedicado.

— Quero saber como ele a feriu.

— A culpa foi minha, na verdade.

— Tinha quinze anos e ele trinta. A culpa foi dele — Alex observou.

— Não sabe o que aconteceu.

— Acho que posso tentar adivinhar. — Ele cruzou os braços. — Começou a persegui-la, e você era jovem e ingênua. Estava decidido a tê-la. Jovem, ingênua e incrivelmente bela. Além disso, não era do tipo que se entrega com facilidade. Tinha que ganhar sua confian­ça, declarar amor imortal, cortejá-la. De início, ele se contentava em roubar um beijo, enquanto ninguém es­tava olhando. Quando a paixão se tornou mais exigen­te, quis possuí-la. Precisava tê-la. Estava sofrendo e se não aliviasse a dor dele, seria forçado a procurar outra mulher. Isso não queria dizer que ele não a amava, mas era homem e tinha necessidades...

— Como sabe de tudo isso? Todos os homens usam as mulheres do mesmo modo?

— Muitos fazem isso, eu não. Não tenho qualquer talento para a mentira.

— E isso. Ele mentiu para mim. Disse que me amava e que se casaria comigo, assim que se tornas­se proprietário de terras. Tio Henri já tinha me dito que deixaria Peverell para mim, ou melhor, para meu primeiro filho. Contei isso a Philippe. Disse que que­ria ter terras que ele próprio conquistasse, e não que pertencessem à esposa. Pensei que era uma atitude nobre. Fui uma tola.

— Era uma menina protegida, sendo manipulada por um crápula — ele retificou.

— Minha mãe tentou me alertar. Sempre me dizia para ficar longe de soldados, que tudo que lhes interes­sava era sexo, não amor.

— Sei, sei...

— Ela estava certa, Alex. Devia ter escutado o que dizia, sobretudo porque... Sabe alguma coisa sobre meu pai? Milo lhe contou algo?

— Não. Para mim, sua mãe sempre tinha sido viú­va — ele brincou.

— Se eu lhe contar sobre meu pai, talvez entenda melhor minha mãe e o que dizia a respeito de soldados. — Nicole acariciava os cabelos de Alex, enquanto con­tinuava o relato sobre dores do passado. — O nome de meu pai era Conon. Como Philippe, tinha sido um dos cavaleiros de meu tio. Perseguiu minha mãe, da mes­ma forma que Philippe fez comigo e, então... Quando constatou que estava grávida, minha mãe contou a Conon. Ele tentou negar que a criança fosse dele, mas era o único homem com quem ela tinha estado. Ele disse que não possuía terras e, portanto, não tinha como manter uma família.

— Sua mãe não possuía terras?

— Não, nem viria a ser herdeira de terras. Se fos­se, acho que Conon teria se portado de outra maneira. Bem, chegou um momento em que o ventre de minha mãe começou a ficar volumoso, e não havia como escon­der a gravidez. Ao saber disso, tio Henri sentiu-se ultra­jado. Por fim, forçou Conon a se casar com minha mãe.

— Então, ele se casou com sua mãe?

— Sim. Tio Henri dispensou os serviços dele e dis­se a ele que pegasse minha mãe e saíssem, ambos, de Peverell. Meu tio tinha vergonha da irmã. Conon a levou a Clairvaux, cidade de origem dele. Colocou mi­nha mãe num casebre decadente, e partiu para vender seus serviços, a quem fizesse a melhor oferta. Foi lá que nasci.

— Nunca poderia ter imaginado isso.

— Pensou que tinha sido uma criança privilegiada, nascida em Peverell, que nunca tivesse conhecido se­não uma vida de luxo?

— Para ser sincero, foi isso que sempre pensei.

— Minha mãe e eu vivemos na miséria durante sete anos. Conon nunca viveu conosco. Mandava um dinheirinho, vez por outra, muito menos do que pre­cisávamos. Minha mãe vendia ovos e lavava roupas para pessoas de posses.

— Deus do céu!

— Aqueles anos de penúria e solidão transformaram minha mãe na pessoa que conheceu em Périgeaux.

— Não podia imaginar. Como foi que voltaram a Peverell?

— Conon morreu, não em batalha, mas numa briga de rua. Em conseqüência, até o pouco dinheiro que re­cebíamos... Mamãe pediu misericórdia a tio Henri e ele acabou cedendo. Foi a primeira vez que vi Peverell. Mal podia crer no que via. Pode parecer um lugar escuro e triste para você, mas para mim era o próprio paraíso.

— Faço idéia.

— Mas meu tio estipulou condições para que minha mãe permanecesse em Peverell: deveria vestir-se para o resto da vida como uma viúva recatada. Jamais pode­ria voltar a se interessar por homem algum, nem olhar para qualquer dos homens sob o comando do irmão.

— Por isso ela nunca voltou a se casar.

— Não havia esperança de casamento para mamãe. Nenhuma família nobre iria permitir que um filho se casasse com ela, depois das vergonhosas circunstân­cias em que ela tinha se casado com Conon. Estava com uma barriga enorme no dia do casamento.

— Essas circunstâncias muitas vezes são deixadas de lado.

— Por pessoas ricas. Minha mãe não possuía nada.

— Não foi por menos, que alertou você com relação a Philippe.

— Fiquei enamorada dele. De início, não permitia que as coisas fossem além de um beijo. Ele disse que estava precisando procurar... um certo tipo de mulher. Continuei firme. Disse-lhe que tinha medo de ficar grávida, nas circunstâncias em que minha mãe havia ficado. Ele me garantiu que, se isso acontecesse, ca­saria prontamente comigo, tivesse ou não adquirido terras. Depois disso... fui fraca, eu...

— Fico surpreso por sua mãe não ter ficado atenta para que você não... — Alex pigarreou. — Onde vocês...

— Num estábulo. — Nicole lembrava-se daquele primeiro contato sexual apressado, dos grunhidos de esforço de Philippe, enquanto tentava romper o hímen. Lembrava-se da dor que tinha sentido. Ele lhe havia tapado a boca, para que não gritasse. Então, o rosto dele tinha se tornado vermelho, o sexo cada vez mais rijo e, finalmente, despejara a semente para den­tro dela. Lembrava-se de que ele tinha suspirado, lar­gando o peso do corpo sobre ela. De repente, ouviram a voz de alguém, que se aproximava. Philippe tinha saí­do, apressadamente, de dentro dela, fazendo-a gritar de dor. Era Gaspar que estava chegando, confidente de Philippe que, sem que ela soubesse, havia montado guarda, do lado de fora do estábulo. A mãe procurava por ela. Lembrava-se do modo como Gaspar a fitara, enquanto ela tirava fiapos de palha da túnica, tentan­do disfarçar as coxas manchadas de sangue e sêmen. Podia lembrar-se de como ficara envergonhada. Ele sabe, Philippe dissera, referindo-se a Gaspar.

— Depois daquela primeira vez, não queria mais aquilo — Nicole prosseguiu. — Mas Philippe era tão meigo. Pediu desculpas por ter me machucado. Prometeu que da próxima vez seria melhor. Mas ele sempre me machucava. Quinze dias mais tarde, fiquei assustada quando... — Sentia o rosto queimar.

Alex tirou os sapatos dela e acariciou os dedos.

— Suas regras falharam. — Ele tentou facilitar as coisas para ela. — Contou a Philippe?

— Não, de imediato. — Ela suspirou. — Rezava para que estivesse enganada. Esperei outro mês pas­sar e mais outro. Por fim, resolvi encarar os fatos, e contei a ele. Naquela mesma noite, ele deixou Peverell e nunca mais ouvi falar dele.

Alex sentou-se e olhou para Nicole. Envergonhada, ela fitava as próprias mãos, cruzadas sobre o colo.

— Mais tarde, Gaspar me contou que Philippe ti­nha uma família, em Paris.

— Miserável!

— Fiquei chocada, triste e apavorada. Não tinha dado ouvidos aos conselhos de minha mãe e havia aca­bado arruinada como ela, pensei. Senti-me uma mu­lher desclassificada.

— Nicole. — Alex tomou-a nos braços e beijou-a no rosto. — Meu doce amor.

— Contei para minha mãe. Tinha que contar. Ela me bateu, me chamou de prostituta... e bem que me­reci. Ela entrou em pânico. Nós duas ficamos apavora­das. Além do pecado e do escândalo, havia tio Henri. Era possível que ele nos expulsasse de Peverell e que voltássemos a viver em piores condições do que antes.

— Se eu estivesse lá, teria proposto casamento a você.

— Foi o que Gaspar fez. Alex a fitou, chocado.

— Disse que se sentia culpado por minha infelici­dade, porque havia encoberto as atitudes indignas de Philippe, e por ter escondido de mim o fato de que o companheiro de armas era casado. Precisa entender, Alex. Gaspar era diferente naquele tempo. Ele foi se transformando ao longo dos anos.

— Isso é evidente.

— Ele disse que reconhecia ser um homem de ori­gem humilde, indigno de mim. Disse-me que assumi­ria a criança e que nos sustentaria da melhor maneira possível.

— Mas você o rejeitou, não foi?

— Sim. Estava no terceiro ou quarto mês de gravi­dez. Um casamento apressado àquela altura não enga­naria ninguém, e estaria me casando com um homem a quem não amava. Imagino que ele tenha pensado que sua origem é que me levou a rejeitar a proposta. Não nego que este tenha sido um dos fatores que in­fluenciaram minha decisão. Mas não o principal.

— O que aconteceu ao bebê?

— Perdi o bebê... — Ela sentiu um aperto na gar­ganta. — Era uma menina tão pequena.

— Minha querida.

— Quase morri, ao perdê-la. Depois tive uma fe­bre alta. Bem, pelo menos meu tio não ficou sabendo. — Nicole balançou a cabeça, tentando afastar as tris­tes recordações.

Alex tomou-a nos braços e confortou-a, com pala­vras de carinho.

— Minha mãe disse que eu era fraca, em relação a assuntos de natureza carnal. Fez com que jurasse que nunca mais me deixaria encantar por nenhum cava­leiro charmoso. Que deveria procurar um marido que preferisse a paz do lar à guerra.

— Posso entender.

— Pouco depois, meu tio anunciou, publicamente, a intenção de deixar Peverell para meu primeiro filho. — Nicole sorriu. — Da noite para o dia, deixei de ser uma menina pobre, vivendo de favor na propriedade do tio, para me tornar um bom partido para o casamento. Tio Henri e minha mãe tentaram arranjar casamento para mim com homens absolutamente desinteressan­tes e pouco atraentes. Só pensavam em dinheiro. Nem um deles dava a menor importância à pessoa que eu era. Rejeitei um a um.

— Naquele verão em Peverell, perguntava-me como é que você ainda não tinha se casado aos dezenove anos — Alex confessou.

—Tio Henri ameaçou entregar Peverell à Igreja após sua morte, caso eu não me casasse.

— Pensei que a condição para que herdasse a pro­priedade fosse ter um filho.

— Essa foi uma cláusula adicional. A principal preo­cupação de meu tio era que Peverell continuasse nas mãos da família. Minha mãe pedia-me que tivesse pie­dade dela, pois ela não conseguiria voltar àquela vida de penúria. Insistiu para que me casasse o mais breve possível, antes que tio Henri perdesse a paciência. Foi, então, que minha prima Phelis me convidou para ir a Périgeaux.

— Lembro-me da primeira vez que a vi com sua prima. —Alex pegou uma mecha do cabelo de Nicole e passou contra o próprio rosto. — Achei que era a cria­tura mais maravilhosa que Deus havia criado.

— Pensei o mesmo quando vi você. Alex apertou-a nos braços.

— Acho que foram seus olhos — Nicole murmurou. — Ao menos, de início. Quando olhava para mim, sen­tia-me como se fosse a única menina no mundo e, você, o único menino.

— Menino — ele murmurou. — Depois que tudo aconteceu, imaginei que você tivesse me usado para fazer ciúme a Milo. Afinal, ele era um homem culto e eu não passava de um menino ignorante.

— Como pôde imaginar isso? Foi muito tolo.

— Obrigado pela honestidade, milady.

— Eu admirava Milo, gostava dele da mesma ma­neira que você gostava. Além disso, pensávamos de maneira semelhante. Mas, com você, Alex, a ligação era muito mais profunda. Era uma coisa espiritual. Senti isso em nossa primeira tarde na caverna, quan­do nos demos as mãos, na escuridão.

— Senti o mesmo. — Alex beijou-lhe os cabelos.

— Sabia que não devia me sentir daquela forma. Você estava para partir e juntar-se ao exército de William. Nada o teria impedido de ir, nem mesmo eu.

— Era mesmo um tolo que achava que poderia ter tudo.

— Tive medo, depois do que tinha acontecido com Philippe — Nicole admitiu. — Minha mãe me dizia que soldados se divertem com suas conquistas, e que eu era o tipo de menina susceptível ao charme deles.

— O que isso quer dizer?

— Ela dizia que eu tinha uma natureza muito... sensual.

— Ah, sim, a tal fraqueza da carne.

— Sou fraca. Sinto... coisas. — O rosto de Nicole queimava e ela se afastou de Alex. — Não posso falar sobre isso.

— Nem mesmo comigo? — Alex engatinhou até onde ela estava.

— Muito menos com você.

— Não sabe como fico feliz em ouvir sobre essa sua... fraqueza — ele disse, com sorriso provocador.

— Não brinque. — Ela deu um leve soco no ombro de Alex. — Sei como sou e não me agrada. Não quero falar sobre isso.

— Que pena sua mãe ter-lhe ensinado a ter vergonha de ser exatamente do jeito que uma mulher deve ser.

— Não entendi. Mulheres não devem... — Nicole evitou olhar para ele. — Mulheres de bem não sentem as coisas que sinto.

— Bobinha. Mulheres sentem desejo como os ho­mens.

— Não é o que os padres dizem.

— O que eles sabem sobre homens e mulheres?

— São a voz de Deus na Terra.

— O que sei é que Deus espera que cresçamos e nos multipliquemos, não é mesmo?

— Claro que sim.

— Então, o que os padres dizem não faz sentido. Ao nos criar, Deus sabia o que estava fazendo ao tornar o sexo prazeroso. Quer que tenhamos desejo.

— Quer que os homens se sintam assim.

— E que as mulheres se submetam? — Alex ba­lançou a cabeça. — Para uma mulher inteligente, não está raciocinando com lógica. — Aproximou-se, ficando cara a cara com ela. — Gostaria que tivesse me conta­do sobre Philippe nove anos atrás.

— E como poderia?

— Sei que sua mãe fez com que jurasse manter o assunto em segredo.

— Poderia arruinar minha vida, se as pessoas sou­bessem que tinha estado grávida.

— Tudo faz sentido agora. Quando a notícia de que seu tio Henri estava doente chegou, você teve que se casar.

— E logo. Minha mãe contou a Milo a respeito dos termos do testamento de meu tio. Disse que meu ma­rido teria controle de fato sobre Peverell. Ele me pro­pôs casamento no mesmo dia. Fiquei desolada, porque não o amava. Amava você, e você já estava casado com sua espada.

— E verdade. Peço que me perdoe pelo tolo que fui.

— Fui empurrada para o casamento com Milo. De início, ser esposa dele não era tão ruim. Sempre nos demos bem e ele nunca foi exigente. Mas, então, o pro­blema com a bebida começou a ficar mais sério.

— Ainda gosta de Milo?

— Como uma irmã gosta de um irmão.

Nicole correu o dedo sobre as cicatrizes do rosto de Alex.

— Detesto pensar que arriscou sua vida em bata­lhas todos aqueles anos. Mas sei que essas cicatrizes não foram ganhas em batalha. — Lançou um olhar inquisitivo para Alex.

— É verdade.

— O que as causou?

— Um porrete.

— E esta?

—Também. Todas foram causadas pela mesma arma.

— Pelo mesmo porrete?

— Foram três homens contra mim.

— Bandidos?

— Prefiro que a gente continue com a aula. Passamos o tempo todo conversando.

— Quem bateu em você? Diga-me.

— Aconteceu há muito tempo. Não importa mais.

— Três homens bateram em você com porretes e isso não tem mais importância? Poderia ter morrido. Quando aconteceu?

Alex abraçou-a e ela repousou a cabeça contra seu ombro.

— Vou lhe contar. Aconteceu na manhã de seu ca­samento com Milo.

— O quê?

— Gaspar e seus homens estavam esperando por mim, quando...

— Quem?

— Isso é passado, Nicole. Não importa mais.

— Não entendo. Por que ele fez isso?

— Para evitar que eu atrapalhasse seu casamento.

— Deus do céu. Nunca poderia ter imaginado uma coisa dessas.

— Eu sei. Ele agiu a pedido de sua mãe.

— De minha mãe?

— Pelo que sei agora sobre Gaspar, acredito que ele tenha dado a idéia a ela, ou pelo menos que a tenha estimulado a tomar a decisão.

— Teria ido procurar você, se tivesse sabido desse horror. — Nicole imaginava o corpo do jovem Alex que­brado, ensangüentado e pensava no quanto ele teria sofrido. — Pouco teriam me importado as conseqüên­cias. — Estava trêmula.

— Isso já passou. Vamos esquecer.

— Odeio Gaspar e o desprezo por ter feito o que fez a você. Não há desculpa. Vou odiá-lo para sempre. E a minha mãe também.

— Esqueça, Nicole. A vida às vezes não faz sentido. A gente aprende a lidar com ela. Prefiro rir de minhas recordações dolorosas do que chorar sobre elas.

Nicole tomou o rosto de Alex entre as mãos e, olhan­do bem no fundo daqueles olhos negros, perguntou a si mesma, como tinha conseguido viver sem ele durante todo aquele tempo.

— Eu te amo, Alex — murmurou, beijando-o nos lábios.

— Eu também te amo. — Ele sorriu. Deitaram-se sobre o cobertor, à sombra das árvores e entregaram-se a uma longa troca de beijos e carícias.

Os corpos de ambos encaixavam-se com perfeição. Alex deslizou as mãos sobre os quadris de Nicole, para depois acariciar-lhe os seios, enquanto continuava a beijá-la, sem pressa. Sentia a excitação dela evidente nos mamilos rijos contra o tecido da túnica.

Nicole ardia de desejo e o sangue percorria sua veias como um vinho cálido.

Alex deslizou a mão mais para baixo, sobre o ven­tre dela, até tocar o ponto mais sensível. Ela gemia, enquanto ele a acariciava através do tecido da túnica. Sentia a área entre as coxas, cada vez mais úmida.

— Não, Alex. — Ela afastou a mão dele, repentina­mente.

— Não quer que eu pare. Seja sincera. — O olhar dele a desarmou.

— O que eu quero e o que é certo são duas coisas diferentes. Se continuarmos com isso, estaremos co­metendo adultério.

— Seria, se seu casamento não fosse apenas de fa­chada.

— Aos olhos de Deus, meu casamento é tão válido quanto qualquer outro. O que queremos não é certo.

— Como pode ser errado duas pessoas que se amam, partilharem os prazeres de seus corpos? Você se toca às vezes?

— Seria um pecado!

— Talvez, mas há pecados piores. Mas não respon­deu a minha pergunta, mocinha.

— Nem vou responder.

— Então já sei a resposta. — Alex sorriu e voltou a tocá-la. — Tudo que quero é proporcionar a você o mesmo prazer e mostrar que não é errado, mas lindo. Quero que esqueça suas decepções e entregue-se em êxtase. Quero ouvi-la gemer.

— Alex... — As carícias dele se tornavam mais in­tensas e ritmadas. — Não, Alex, por favor. — Nicole afastou a mão dele, quando o momento do clímax esta­va próximo. Alex a abraçou, com carinho.

— Tudo bem, tudo bem... Já parei. — Beijou-lhe a testa. — Não quero deixar você nervosa. Fui muito apressado. É que a desejo tanto...

— Não posso dar-lhe o que quer.

— Talvez ainda não.

— Jamais poderei, Alex. Não posso mais permitir que me toque. Sei que deixa você...

— Nicole, meu desejo não vai passar, se não tocá-la.

— Disse que pararia de me tocar se pedisse.

— Mas não quer que eu pare. — Pôs a mão em um dos seios e acariciou o mamilo.

— Estou pedindo para parar.

— Não vou deixar de querer você, Nicole. Penso em você noite e dia. Está no meu sangue e em tudo que sou, mas tudo bem. Vamos nos contentar com nossos beijos, até que esteja pronta para mais do que isso.

— Jamais estarei pronta.

— Vou fazer você mudar de idéia — ele provocou.

— Duvido.

Alex fez com que ela se deitasse e colocou o corpo sobre o dela, sorrindo com malícia.

— Adoro um desafio.

— Encontrou um — ela murmurou, antes que os lábios de ambos se encontrassem num longo beijo.

 

— Meu filho! — Padre Otaviano levou Gaspar até o escritório, uma sala ampla no andar superior de seus aposentos privados. — Que surpresa agradável. — O abade dispensou o gentil monge, que havia acompa­nhado Gaspar até lá.

O homenzarrão nunca tinha gostado de ser chama­do de filho por homens do clero, ainda mais por alguém jovem como o abade, que não era mais velho do que ele próprio. Padre Otaviano não tinha um único fio de ca­belo branco e nenhuma ruga no rosto. Não haveria se tornado superior da abadia de St. Clair, não fosse pelo dinheiro que o pai doara à Igreja. A riqueza de sua família estava evidente nas elegantes tapeçarias que cobriam as paredes dos aposentos. Na mesa de traba­lho de madeira nobre, finamente entalhada, e no tape­te espanhol que cobria o chão. Nada daquilo refletia a austeridade beneditina do resto do monastério.

Um homem observador como Gaspar era capaz de ver através da batina negra que padre Otaviano tra­java, e encontrar a criatura mimada, que havia sob a vestimenta. O abade gesticulava à maneira dos ho­mens da corte e tinha olhar evasivo. As unhas das mãos brilhavam e Gaspar não ficaria surpreso em saber que ele as polia, cuidadosamente, todas as manhãs, como uma dama.

— Vinho? — Otaviano levantou a garrafa de argila de sobre a mesa de trabalho. — Foi enviado direta­mente da Gasconha. Um pouco doce, mas vale a pena provar.

— Obrigado, padre.

O abade o fitava, enquanto enchia a taça com vinho.

— Por favor, diga-me, que bons ventos o trazem aqui?

— Gostaria de falar-lhe sobre Peverell. — Gaspar provou o vinho, não encontrando nada de especial na bebida. — Ouvi dizer que a abadia assumirá o controle da propriedade, caso lady Nicole não conceba um her­deiro nos próximos meses.

— Acho que a possibilidade de um herdeiro, a esta altura, é um tanto improvável, não concorda? — Otaviano serviu-se da bebida, para a seguir olhar pelas janelas, por onde penetrava o sol da tarde. — Importa-se se eu fechar as venezianas? Esta sala fica um forno em dias como este.

— Como queira, padre. — Gaspar ficou ensaiando seu discurso, enquanto observava Otaviano fechar as venezianas das três janelas da sala. Para Gaspar, o calor da tarde não estava excessivo, mas... Com as ve­nezianas fechadas, o ambiente ficou a meia-luz.

— Fico feliz que tenha vindo. Tenho pensado mes­mo em você, ultimamente. — O abade fitava Gaspar, enquanto saboreava o vinho. — Talvez pudesse me ajudar com um problema.

— Pois não.

— Essa túnica deve estar muito quente. — Otaviano apontou o dedo alvo para Gaspar. — Não seja cerimonioso. Tire isso, rapaz.

Gaspar levantou-se e caminhou até uma mesa, irritado por ter que aturar as esquisitices do abade. Pensando melhor, não custava nada, e pretendia mes­mo cair nas graças do padre, no que dizia respeito a. Peverell.

Otaviano observava, com óbvio interesse, enquanto Gaspar soltava o cinto e tirava a túnica, para atirá-los, em seguida, sobre uma cadeira.

— Muito melhor assim, não é mesmo? — Deu uma boa olhada em Gaspar, agora de camisa e calção.

Deixando o cálice sobre a mesa, levantou-se e se aproximou do grandalhão.

Tomando o cinto de Gaspar nas mãos, o abade ma­nuseou-o, sorrindo ao ver o tamanho da fivela.

— Estava me dizendo que está interessado na ques­tão da entrega de Peverell à Igreja?

— Sim, padre. — Gaspar pigarreou e falou com cuida­do. — Conversei com lorde Milo, ontem, sobre o assunto.

— Como vai seu patrão?

— Na mesma, embora a enfermidade dele pareça piorar a cada dia. — Era sensato não revelar o despre­zo que sentia por Milo.

— Como eu temia. — Otaviano sabia de que tipo de enfermidade o patrão de Gaspar sofria. — E sua patroa?

— Na verdade, é por causa dela que decidi vir até aqui. Milorde me confidenciou algo na noite passada. Está perturbado, porque suspeita que milady esteja tentando persuadir a Igreja a deixá-los permanecer em Peverell.

— Continue. — O padre ouvia com interesse.

— Parece que ela pretende que o senhor a indique, e ao marido, para serem guardiões da propriedade de­pois que a abadia assumir o controle do lugar. — Era evidente que ela havia feito o pedido, através de frei Martin. — Não que eu acredite que o senhor indicas­se meu patrão para o posto, devido à enfermidade. Quanto à minha patroa... Bem, ela supervisiona o cas­telo de forma admirável, mas não consigo imaginá-lo passando uma responsabilidade tão pesada a ela.

Pela expressão do rosto do abade, Gaspar percebeu que ele já havia decidido em favor de Nicole e Milo de St.Clair.

— Acho que você tem razão — Otaviano disse, o que deixou Gaspar mais confiante. — Seria arriscado atri­buir tanta responsabilidade a uma mulher.

— Poderia ser desastroso. Deve estar ciente de que lorde Milo não quer assumir qualquer responsabilida­de, dado seu delicado estado de saúde.

— Muito sensato da parte dele.

— Já lady Nicole...

— Se as mulheres fossem imbuídas de sensatez — o abade comentou, com desprezo —, teria Eva aceito a maçã, que a serpente lhe ofertou?

— Sabia que pensaria dessa forma. — Gaspar sor­riu. — Disse a lorde Milo que não se alarmasse, por­que o senhor não os indicaria para...

— Posso indicar quem eu bem entender para o pos­to. — Otaviano tinha prazer em demonstrar autori­dade. — Não pense que pode me coagir a fazer isso ou aquilo. Todos conhecem minha opinião. As mulhe­res são criaturas superficiais, indutoras ao pecado e de alma corrompida. — Passou o cinto de Gaspar pela face. — Não concorda?

— Inteiramente — ele concordou, irritado em ter que aceitar o que o sodomita dizia sobre as mulheres. Além disso, tinha sido inábil ao dar ao abade a impressão de que acreditava na possibilidade de manipulá-lo.

— Entretanto, embora mulher, é possível que lady Nicole seja a melhor candidata ao cargo. Frei Martin me falou da habilidade dela como administradora, exal­tou os conhecimentos dela, além da autoridade sobre os criados e servidores de Peverell, em geral. Conhece a propriedade como ninguém, uma vez que foi criada lá. E, é claro, que não se pode esquecer os contatos dela. Frei Martin ressaltou que a rainha Matilda tem lady Nicole em alta estima. Tal ligação não pode ser ig­norada. Se houvesse alguém melhor qualificado para o posto, não me veria forçado a indicá-la. — O abade deslizou a mão pelo cinto de Gaspar. — Infelizmente, nenhum outro candidato se apresentou.

— Sua menção da possibilidade de outro candidato — Gaspar começou, aproveitando a deixa —, me leva à outra questão que venho pensando em discutir com o senhor, há algum tempo, padre. Como deve saber, tenho servido numa posição de considerável responsabilidade há quinze anos. Comando os homens e supervisiono a administração da propriedade. Se é um bom admi­nistrador que procura, gostaria de oferecer:lhe meus serviços. Duvido que haja alguém melhor qualificado que eu, nem mesmo, se me permite, lady Nicole.

— Que ambição a sua, e que ousadia... — Otaviano murmurou, em voz baixa, num quase ronronar, en­quanto se aproximava. — Vir aqui, na intenção de ten­tar roubar o cargo da patroa.

— Posso garantir, padre, que...

— Gosto de militares ousados. — O abade sorriu, divertindo-se por ter manipulado Gaspar. — Parece mesmo ser bastante qualificado.

— Caso me escolha, prometo servi-lo da melhor maneira que puder — Gaspar afirmou, procurando co­locar na voz um misto perfeito entre subserviência e agressividade. Otaviano parecia gostar de ambas. O importante era fazer o cretino acreditar que desejava muito o posto, e que lhe seria fiel, caso o obtivesse. Como se o posto de guardião de Peverell o satisfizesse! Tinha planos bem mais ambiciosos. O primeiro passo, porém, era garantir que o abade não escolhesse Nicole para guardiã da propriedade. — Suas ordens serão cumpridas à risca.

— Que proposta tentadora! — o abade exclamou. — Pode tirar a camisa, se quiser. Estamos apenas os dois aqui, e você parece estar com muito calor.

Gaspar controlou-se para não arrancar o cinto da mão daquele efeminado e passá-lo em torno do pescoço dele, para depois apertar até que não houvesse mais vida na criatura. Não era o fato de Otaviano gostar de homens que o enojava. Muitos dos melhores soldados em Peverell partilhavam o mesmo tipo de apetite. Não se importava, contanto que não se metessem com ele. Mas algo no abade fazia com que parecesse mais de­pravado do que a maioria dos tipos como ele.

— Não estou com calor. Vou ficar com a camisa — decidiu, por fim.

— Faça como quiser. — A expressão do rosto de Otaviano tornara-se, de repente, impenetrável. Ele se afastou e voltou a ocupar a cadeira do outro lado da mesa. — Bem, quanto à questão de Peverell... — O abade colocou o cinto de Gaspar de lado, e apanhou um papel que parecia ser um documento. — Trata-se da escolha de um guardião, um administrador para a propriedade. Posso indicar quem quiser, até mesmo esta tarde. Acho que, talvez, você não seja a pessoa certa. Exijo um certo nível de devoção e obediência de meus subordinados e, francamente, você me parece vo­luntarioso demais para preencher esse requisito.

Então é assim que as coisas vão ser? Gaspar pen­sou na possibilidade de ter Peverell e a patroa para si mesmo, assim que seus planos entrassem em ação. Então, pensou na degradação que seria submeter-se aos caprichos daquele verme pervertido. Bem, seria apenas por uma tarde, até arrancar o documento assi­nado com o nome dele.

Gaspar tirou a camisa. O abade sorriu e seus olhos brilharam na semiescuridão.

— Mas, é claro — Otaviano colocou de lado o pa­pel e voltou a tomar o cinto nas mãos —, se pudermos chegar a um acordo mutuamente satisfatório, poderei repensar a questão.

— O que tem em mente?

— Tem a ver com o problema que havia menciona­do no início de nossa conversa. — O abade contornou a mesa, indo ficar bem pertinho de Gaspar. — Aquele problema que acho que você seria capaz de me ajudar a resolver.

— Que problema seria?

— Um problema bastante delicado. Pode surpreen­der-se ao saber que tenho... pensamentos impuros, como qualquer mortal.

Aquilo não surpreendia Gaspar, é claro.

— O Inimigo sussurra coisas em meu ouvido, fazendo-me ter desejos em desacordo com a natureza. — Otaviano admirava as costas nuas de Gaspar. — Quando meus monges cometem falhas humanas, meu dever é corrigi-los, o que nunca me furto a fazer. Mas não tenho quem me ajude a purgar meus pensamen­tos pecaminosos.

— Compreendo.

— Quem melhor para me punir do que um homem como você? — ele indagou com suavidade. — Um co­mandante de soldados. Entende de disciplina e não tem medo de exercê-la sempre que necessário, não é?

— Não, não tenho — Gaspar forçou-se a dizer.

— Minha carne é fraca. — O abade chegou ainda mais perto de Gaspar, que podia sentir o tecido áspero da batina, roçando seu braço nu. — Preciso me hu­milhar, submeter-me à sua vontade. — Otaviano apa­nhou a mão de Gaspar, e fechou-a em torno do cinto. — É forte o bastante para fazer com que me afaste de meus desejos pecaminosos?

Gaspar imaginou o homenzinho choramingando de dor, como uma mulher. Talvez chegasse, mesmo, a cho­rar de verdade.

— Acho que sim. Otaviano sorriu, enigmático.

— Cerca de um ano atrás, o empregado que cuida de nossa adega começou a consumir álcool em excesso. Da mesma forma que lorde Milo. A fim de livrá-lo dessa dependência, obriguei-o a beber meio barril de vinho de uma só vez. Nunca vi ninguém tão doente quanto ele ficou. A experiência, no entanto, deu certo. Nunca mais ingeriu uma única gota de álcool. Acha que tal método possa funcionar com pecados da carne?

Céus! Gaspar perguntava-se se teria estômago para aquilo. Então, pensou em Peverell e em sua patroa. Talvez não fosse só capaz de agüentar aquilo, mas até mesmo de sentir prazer. Bastava que imaginasse que não era o abade que estava com ele, mas Nicole. Sentiu o sexo tornar-se rijo ao pensar em infligir à patroa as indignidades que Otaviano tanto desejava.

— Bem, nos chegamos a um acordo? — o abade quis saber.

Gaspar caminhou até a porta. Quando se voltou, Otaviano sorria.

— Acordo fechado.

 

— Virgem Santíssima! — Nicole exclamou pálida, ao ler o documento que frei Martin tinha lhe entregue em mãos. Teve uma súbita vertigem e Alex ajudou-a a sentar-se, temendo que pudesse perder os sentidos.

— O que diz o documento? — Ele ajoelhou-se, ao lado dela.

Frei Martin aproximou-se, com um cálice de vinho de pera para ela. A bebida iria ajudá-la a se acalmar.

— O documento diz que Gaspar, será o guardião de Peverell — o frei disse a Alex, desolado.

— Gaspar? — Alex levantou-se.

— Como isso pôde acontecer — Nicole perguntava-se, incrédula.

— Tudo que sei é que Gaspar esteve visitando pa­dre Otaviano dias atrás — o frei revelou. — Sinto muito por tudo isso. Parece que não fui tão persuasivo quanto havia imaginado. É estranho, estava certo de que... Procure se acalmar, Nicole e me perdoe, filha. Fiz o que pude.

Pálida e imóvel, ela olhava para o cálice que trazia nas mãos trêmulas.

— Beba o vinho. — Alex aconselhou. — Vai lhe fa­zer bem.

— Como isso pode acontecer? — ela repetiu.

— Faça o que seu primo pediu, filha. O vinho vai aquecê-la e ajudá-la a relaxar — insistiu o frei, penalisado. — Depois, seria bom vocês voltarem depressa a Peverell. Meu relógio metereológico mostra que uma violenta tempestade se aproxima.

Alex olhou pela janela, concluindo que a previsão do frei tinha pouca chance de sucesso. Afinal, a tarde estava ensolarada e uma gostosa brisa amenizava o calor. No entanto, pensou que o melhor a fazer seria ir logo embora.

— Frei Martin tem razão — ele disse. — É melhor irmos andando.

— Sinto não poder convidá-los a pernoitar em mi­nha casa. Padre Otaviano não permite a presença de mulheres na abadia depois do pôr-do-sol — o frei explicou.

Nicole não pronunciou uma única palavra durante o primeiro quilômetro do percurso.

Um vento forte começava a soprar, agitando as fo­lhas das árvores e produzindo um ruído assustador, que fez Alex arrepiar. O céu tornara-se, de repente, escuro, e a força do vento, que batia forte contra eles, deixava os cavalos inquietos.

— Está com frio, Nicole? — indagou, perguntando-se se não seria boa idéia que eles parassem para tirar os mantos das sacolas. A temperatura caía bruscamente.

Ela balançou a cabeça em silêncio, indicando que não sentia frio.

O vento forte arrancou o véu que lhe cobria a cabe­ça. O véu flutuou, indo ravena abaixo, até desaparecer nas águas do rio, lá embaixo.

As primeiras gotas de chuva começaram a cair, ba­tendo forte contra o rosto deles.

— Vá devagar, Nicole — Alex gritou, em meio à ter­rível tempestade em que a chuva havia se transforma­do. A égua Marjolame estava inquieta.

Nicole gritou algo, mas o barulho do vento e da chu­va impediram que o som chegasse até Alex.

Trovões fortes soaram e raios cortaram o céu. A luz produzida iluminou a cena apavorante. Assustada com o ruído dos trovões e pelo brilho dos raios, Marjolaine trotou para fora da estrada, em direção à ravina.

Alex desmontou, e correu atrás de Nicole, descendo sobre pedras e terra, que o faziam cair e escorregar.

— Nicole! — ele chamava, sem conseguir vê-la.

O tronco de uma árvore partiu-se, fechando o ca­minho por onde ele seguia. De repente, vislumbrou dois vultos, mais abaixo, e seguiu na direção deles. Chegando mais perto, viu Nicole inclinada sobre Marjolaine. A égua estava caída, de lado, sobre o solo.

— Você se machucou? — Tomou Nicole nos braços.

— Não, mas Marjolaine... — Ela agarrou-se aos braços de Alex. — Meu Deus, pobrezinha.

Alex aproximou-se da égua para examiná-la sob a chuva torrencial. O animal olhava para ele, com olhos assustados e resfolegava. Ele percebeu que uma das pernas dianteiras estava quebrada.

Tirou do cinto a faquinha que sempre carrega­va consigo. Seria necessário sacrificar o animal. Não havia outra saída. O melhor era fazê-lo, enquanto Marjolaine estava ainda em choque.

— Olhe para o outro lado, Nicole — pediu, tirando os cabelos molhados dos olhos.

— Meu Deus, minha boa companheira.

— Não há o que fazer, você sabe. Nicole chorava.

— Quero me despedir dela. — Ajoelhou-se ao lado de Marjolaine, acariciou o pescoço, beijou o focinho e disse algo ao ouvido do animal. Em seguida levantou-se e se afastou.

Após sacrificar o animal de um só golpe, a fim de minimizar-lhe o sofrimento, Alex caminhou até o rio e lavou a faca, guardando-a na cintura. Em seguida, tirou as sacolas da cela de Marjolaine. Cuidaria depois do corpo da pobre égua.

A tempestade tornava-se mais forte a cada minuto e o vento frio soprava. Alex ajudou Nicole a subir até o alto da ravina e, uma vez de volta à estrada, ajudou-a a montar Atlantes.

— Sabe se há algum lugar por aqui, onde possamos nos abrigar? — indagou.

— Tio Henri tinha uma cabana de caça aqui perto. Sei como chegar até lá.

Minutos mais tarde, chegavam à cabana de pedra de Henri. As árvores que cercavam a cabana se incli­navam, castigadas pelo vento forte.

Alex ajudou-a a desmontar e segurou Atlantes pe­las rédeas, enquanto Nicole abria a porta da cabana.

Boa parte do lugar, reservada a abrigos para montarias e cães que seriam usados durante as caçadas, estava deserta. Alex colocou Atlantes num lugar bem protegido.

A cabana era pequena, visto que o propósito dela era abrigar animais e armas de caça. De resto, ele descre­veria o lugar como aconchegante. Havia ali uma sala de tamanho médio e um aposento que servia de quarto.

Mesmo com a porta fechada, o lugar estava frio e as roupas deles encharcadas. Alex cuidou de tirar das sacolas tudo que lhes poderia ser útil, inclusive roupas secas. Enquanto isso, Nicole ocupava-se em acender a lareira, usando a madeira seca que, felizmente, encon­trara empilhada ao lado.

Alex constatou que o manto de Nicole havia se en­charcado na queda. O dele, por outro lado, estava seco e, além disso, era forrado de um tipo de pele bem quente.

Nicole poderia usar o manto para se aquecer.

A túnica dele estava ensopada, mas a camisa e o cal­ção estavam apenas levemente úmidos.

— Pode enrolar-se em meu manto. É forrado de pele de carneiro. Vai ficar bem quentinha.

— E você? — Nicole batia os dentes e tinha os lá­bios arroxeados de frio.

— Não se preocupe comigo. Minhas roupas não es­tão molhadas e me aqueço depressa.

Enquanto ela tremia, agachada ao lado da lareira, onde as madeiras começavam a estalar, Alex apanhou um banco, limpou-o como pôde, e levou-o para perto da lareira. A seguir, tirou a túnica e o calção e os colocou a um canto do banco, a fim de que secassem. Tirou as botas e aproximou-as da lareira.

— Por que não vai até o outro cômodo e se livra das roupas molhadas, Nicole? — ele sugeriu. — Depois se enrole com meu manto e venha se sentar junto ao fogo. O frio vai passar depressa, vai ver só.

Durante aquela última semana, ambos haviam se contentado com a troca de beijos e abraços. Alex es­tava no limite de seu controle. Agora, porém, não era hora de pensar em si mesmo. Afinal, Nicole acabara de sofrer dois golpes, a perda de Marjolaine e a notícia de que Gaspar fora escolhido pelo abade de St. Clair para ser o guardião de Peverell.

Ele voltou-se e viu Nicole se aproximando do fogo. Ela colocou as peças de roupa molhadas para secarem, sobre o banco.

Alex notou que ela havia se livrado de todas as pe­ças de roupas, mesmo as íntimas. Um arrepio percor­reu-lhe a espinha, ao pensar no corpo nu de Nicole sob o manto.

Ela sentou-se diante da lareira, trêmula. Alex lem­brou-se do vinho de pera que frei Martin tinha pedido a ele que levasse como presente e concluiu que seria bom para Nicole tomar um pouco da bebida.

A um canto da sala, avistou uma pilha de leitos de palha. Pegou um deles, limpou a poeira que o cobria, e levou-o para perto da lareira. Olhando ao redor, viu uma estante rústica, onde havia canecas de lata. Apanhou duas delas, limpou-as e pegou a garrafa de vinho.

— Sente-se aqui comigo, Nicole. — Ele indicou o lei­to de palha. Ela fez como ele pedia.

— Frei Martin me deu esta garrafa de vinho de pera. — Ele encheu uma das canecas com a bebida e entregou-a a Nicole. Em seguida, serviu-se também do vinho.

— Você está bem? — ela perguntou.

— Só meu quadril é que está um pouco dolorido. Já vai passar.

Nicole olhava para o fogo, e Alex podia detectar tristeza nos olhos dela.

— Acha que a chuva vai passar logo? — ela indagou.

— Essa chuva vai se prolongar por horas.

— Não posso passar a noite aqui com você. Seria um escândalo.

— Milo não se importaria e a opinião dele é a única que conta.

— É verdade — ela concordou. — Milo é um mari­do diferente. Nosso casamento também não é como os outros.

— Tente não se preocupar e relaxe. — Alex se po­sicionou atrás dela, colocando cada uma das pernas a um lado do corpo de Nicole. Então, fez com que ela se recostasse em seu peito. — Teve uma tarde difícil.

— Estou tão triste por Marjolaine — ela murmu­rou. — Não deveria me abalar tanto. Afinal, ela não era mais jovem.

— Tem todo o direito de se sentir assim. Você a amava.

— Além disso, a decisão do abade sobre Peverell... Não consigo acreditar que Gaspar tenha agido pelas nossas costas.

— Isso não me surpreende.

— Poderia dispensar os serviços dele — Nicole mur­murou. — Mas isso só iria aborrecer padre Otaviano. E um homem autoritário. Mas deve haver outra ma­neira de...

— Deixe para pensar nisso amanhã. Juntos, tenta­remos achar uma saída. Agora procure relaxar. Tudo vai ficar bem.

— Diga isso de novo.

— Tudo vai ficar bem, tenho certeza — ele sussur­rou, beijando-a de leve na orelha.

Os ombros dela tremeram.

— Nicki? — Tocou-a no rosto e percebeu que ela chorava. — Nicki... — Pegou a caneca das mãos dela, colocando-a no chão, e então a embalou, acariciando-a no pescoço, na face, nos cabelos. — Não chore. Não vou deixar que nada de mau aconteça com você.

— Não pode evitar — ela disse.

— Posso ajudar. — Poderia dar-lhe o filho que ela desejava e salvá-la da ruína. Ela e Milo permanece­riam em Peverell. Gostaria de dizer isso a ela. Não gostava de ter de manter segredo, mas sabia que era necessário. Apesar do desespero que a acometia, sabia que ela não colaboraria com seus reais propósitos.

— Você ajuda estando aqui, pois me conforta tê-lo perto de mim, sentir seu calor, seu toque. — Ainda chorando, ela beijou-lhe a palma. — Eu preciso disso, como nunca precisei antes.

Ela tomou sua mão, movendo o manto para o lado a fim de pressioná-la junto ao peito. Ele sentiu o coração dela acelerado e a respiração ofegante, antes que ela conduzisse sua mão mais para baixo.

— Nicki?

Arfando, ela moldou sua mão ao seio quente, ar­redondado, perfeito... e afagou levemente seus dedos. Sabendo o que ela desejava, acariciou-a com ternura. O mamilo enrijeceu sob sua palma quando ele desli­zou os dedos sobre a pele irresistivelmente macia.

Alegrou-se ao tocá-la daquela maneira, ao saber que ela também o desejava. Me conforta tê-lo perto de mim, sentir seu calor, seu toque.

Era apenas conforto, porém do tipo mais puro e per­feito. Era o conforto de sentir o calor do corpo do outro, o toque suave e apaziguador da mão, os carinhos, e de extrair prazer da dor

De repente, percebeu que ela não estava mais tre­mendo.

Com a mão livre, afastou o manto dos ombros de­licados, deixando-o deslizar até a cintura. Ela era tão linda e feminina... Prendeu o fôlego, esperando que ela se cobrisse, mas ela simplesmente fechou os olhos e colocou as mãos em seus joelhos.

— Você é linda — ele murmurou, acariciando-a nos seios. — E eu amo muito você.

Quando ela apoiou a cabeça em seu ombro, beijou-a na face e nos cabelos, sem parar de tocá-la, deliciando-se com os gemidos suaves e espontâneos que ela emitia.

Lentamente, deslizou uma das mãos até o ventre firme, inserindo-a sob o manto que a cobria da cintura para baixo. Ela agarrou seus joelhos com um pouco mais de força, mas não tentou detê-lo ao sentir-se to­cada nos pelos sedosos.

Aprofundou a carícia aos poucos, encantado ao en­contrá-la úmida e pronta para ele. Ela o desejava.

Continuou tocando-a nos seios conforme as carícias íntimas se tornavam mais rítmicas e intensas. Sentiu que a respiração dela se acelerava, os dedos ao redor de seus joelhos se fechavam com mais força; por fim, ela arqueou-se contra ele, tremendo.

Aquele abandono sensual era tão doce e inespera­do... Com um gemido, pressionou-se contra ela, bus­cando instintivamente uma união.

De repente, um ruído no telhado da cabana fez com que Nicole estremecesse, sobressaltada.

— Calma, querida — ele sussurrou, abraçando-a.

— Foi apenas um galho que caiu sobre o telhado.

— Deus! — Com as mãos trêmulas, ela voltou a cobrir-se.

— Nicki, não foi nada, foi só um...

— O que estou fazendo? — Ela afastou-se, apertan­do o manto com força ao redor do corpo. — Isto é... Deus, eu sou fraca. Eu sou...

— Você não é fraca, Nicole. É maravilhosa. — Ele a puxou de volta para o leito de palha quando ela ten­tou se levantar. — Não há nada de errado em desejar isso... em precisar disso.

— É pecado, Alex — ela afirmou. Lágrimas corriam por suas faces.

Ele tomou o rosto úmido entre as mãos.

— Nenhum ato de amor verdadeiro é pecami­noso. Acho que, no fundo do seu coração, sabe disso.

— Beijou-a com ternura. Nunca insistira com uma mulher que estivesse chorando, mas aquilo era dife­rente. Ele poderia acabar com aquelas lágrimas para sempre, se ela permitisse. Nicole perdera demais e, em meio à dor, havia esquecido as apreensões e o procura­ra, sabendo, instintivamente, que seu toque amoroso tinha o poder de curá-la. — Deixe-me amar você — ele implorou. — Isso vai fazer com que tudo melhore, você verá. — Principalmente se você engravidar.

— É... errado, Alex.

— É perfeito. — Ele secou o rosto dela com uma ponta do manto. — Olhe bem dentro do seu coração e me diga, Nicki, se não parece perfeito?

— Perfeito demais. — ela sussurrou, fechando os olhos.

— Nascemos para amar um ao outro — ele mur­murou. — Sabe disso. Sente isso... aqui. — Pôs a mão sobre o coração dela.

— Sim. — Ela fitou-o nos olhos. — Sim...

Alex beijou-a enquanto a tempestade caía do lado de fora, e ela correspondeu, livrando os braços do man­to para enlaçá-lo pelo pescoço.

— Preciso sentir você — ele disse, soltando ainda mais o manto para desfrutar da sensação dos mamilos intumescidos contra seu peito.

Beijaram-se outra vez. Com uma das mãos ele mantinha-lhe o rosto próximo enquanto com a outra afa­gava os seios. Ela entregou-se às carícias até que cada respiração fosse um suspiro de prazer e, quando ele re­moveu totalmente o tecido que a cobria, não protestou.

Afastando-se um pouco, ele livrou-se das roupas e colocou-se sobre ela com cuidado. Encantava-o estar deitado com ela daquela forma, senti-la nua e quente sob seu corpo. A sensação era sublime.

Encaixavam-se à perfeição: os quadris alinhados, as pernas entrelaçadas, seu membro rígido pressionado contra a suave junção das coxas macias. Beijou-a com muito carinho, ansioso para demonstrar que aquilo era bom, que era certo e que eles deveriam, sim, estar juntos daquela forma.

Durante algum tempo, ficou apenas deitado, mas, por fim, tomado pelo desejo, precisou se mover. Com cuidado, mexeu os quadris de encontro ao corpo dela.

— Alex — ela sussurrou.

— Não tenha medo do que sente, Nicki. — Ele se mo­vimentava com firmeza e lentidão, fazendo-a se abrir para ele aos poucos, deslizando no calor úmido da inti­midade dela. Com as mãos, incitou-a a afastar as coxas e acomodou-se entre elas. — Entregue-se — murmurou, desesperado de desejo, dolorido com a espera.

Sentiu que a respiração dela tornava-se difícil e o olhar perdia o foco. Ela sussurrava seu nome e outras coisas que ele não conseguia escutar acima do barulho provocado pela tempestade. As unhas cravaram-se em seus ombros, e percebeu que ela erguia os quadris.

Era demais; ele estava muito perto e não havia re­torno possível. Seu corpo enrijeceu involuntariamente.

— Nicki, deixe-me penetrar você — sussurrou com desespero, inserindo as mãos sob ela para erguer-lhe os quadris. — Nicki, abra-se para mim.

Ela inclinou a cabeça para trás, corada, revelando estar tão próxima do clímax quanto ele...

— Agora, Nicki. — Ele ofegou, pressionando o membro na abertura úmida. — Meu Deus, Nick, por favor...

— Sim, Alex.

Ele gemeu ao penetrá-la e sentir-se envolvido pelo calor e pela pressão do corpo feminino. Era tão perfei­to... e ele não podia mais esperar...

Quando ela gritou, arqueando-se e estremecendo, ele aumentou o ritmo das investidas e também gritou ao derramar sua semente no ventre dela. Assustado com a violência do próprio êxtase, conseguia apenas gemer diante de cada espasmo.

Agarraram-se um ao outro, recuperando o fôlego, sentindo os corações baterem no mesmo ritmo, seus corpos enfim unidos, harmonizando-se com a comu­nhão de suas almas.

 

— Acorde — Gaspar chamou, enquanto abria as cortinas que protegiam a cama de Milo e chacoalhava o débil corpo do patrão, até que os dentes do pobre ho­mem batessem. — Acorde, milorde.

— O quê? — Milo piscava, a fim de proteger os olhos contra a luz que entrava pela janela. — O que aconteceu?

— Acho que sua esposa fugiu com seu primo — ele anunciou. — A camareira de milady acaba de vir do quarto dela, e encontrou a cama intacta. Fui ao quarto de seu primo e ele também não dormiu lá.

— Não compreendo — Milo murmurou. — Nicole não jantou aqui?

— Nem ela, nem sir Alex — Gaspar lembrou, irritado. Céus, a memória do patrão não servia para mais nada. — Eles não voltaram da lição da tarde, lembra-se?

— Onde está meu vinho? Trouxe meu vinho? — Milo passou a mão pelos lábios secos.

— Droga, não pensa em nada que não seja o maldito vinho? — Gaspar falou mais perto do patrão. — Deixe-me refrescar sua memória. Sua esposa e seu primo fo­ram para a farra da tarde. Despencou uma tempesta­de e eles não voltaram. Lembra-se da tempestade de ontem? Quando eles não vieram para o jantar, dedu­zimos que tivessem parado em algum lugar entre a floresta e Peverell, a fim de se protegerem da chuva. Então, todos foram se deitar.

— Edith ajudou Nicole a se vestir ontem à noite?

— Desisto — Gaspar bradou, exasperado. — Está igualzinho à velha Edith.

— Preciso do meu vinho para pensar melhor, você sabe. — Milo procurou justificar-se. — Tem muito vi­nho na despensa.

— Não se dá conta de que posso cansar de bancar a ama-seca de um traste inútil, que não faz nada na vida senão ficar deitado, sugando esse cantil de couro, como um bebê na teta da mãe? Uma criatura que en­tregou a propriedade a um homem e a esposa a outro? Você me enoja.

O olhar de Milo se transformou, e ele fitou Gaspar de um modo, que fez o grandalhão lembrar-se do ho­mem elegante, de mente rápida, que o patrão costu­mava ser.

— Como ousa falar assim comigo? — Milo indagou. — Você me despreza, e só agora percebo isso.

— Que absurdo! — Gaspar exclamou, com as mãos cerradas em punho. — É claro que não o desprezo, milorde. Acho que tenho estado um pouco nervoso.

Aquilo não deixava de ser verdade. Havia recebido uma carta selada de Otaviano no dia anterior. O abade dizia que estava precisando da ajuda dele para resol­ver aquele probleminha. Pedia que ele comparecesse à abadia o mais breve possível, a fim de manter o acordo feito. Do contrário, o abade havia frisado, seria forçado a invalidar o documento, que o apontava como guar­dião de Peverell, substituindo o nome do soldado pelo de Nicole de St. Clair. Claro que isso só aconteceria se ele se mostrasse pouco cooperativo.

O que ele julgara não passar de uma tarde de depravação, tornara-se uma ligação duradoura. Ciente de que teria que tolerar a situação até que tudo se resolvesse, de forma definitiva, Gaspar oscilava entre a fúria e o pânico.

Para transtornar ainda mais sua vida, a patroa e Périgeaux tinham resolvido fugir juntos. Bem que ha­via dito ao patrão que o primo era uma ameaça. O que fariam, se eles estivessem rumando para algum lugar desconhecido?

A semente de um plano para dar um jeito em Alex, começava a brotar. Seria melhor, no entanto, manter suas idéias em segredo, sem revelá-las ao patrão, en­quanto sóbrio. Além disso, tinha que descobrir onde estava o casalzinho romântico.

— Não posso acreditar no que disse — Milo retru­cou. — Alex jamais levaria Nicole daqui. Seria um ato de desonra.

— Ora, ele não teve pudores para tentar fazer o mesmo nove anos atrás. Afinal, tentou roubar lady Nicole na noite anterior ao casamento.

— Não... eu... — Milo esfregou os olhos e Gaspar quase sentiu pena do patrão. — Sabia que estavam apaixonados. Quer dizer, sei disso agora. Nunca havia imaginado que ele amasse Nicole tanto assim. — Um súbito acesso de fúria apoderou-se de Milo. — Trate de trazer o maldito vinho para mim, filho-de-uma-égua.

— Se seu primo resolveu mesmo levá-la, talvez jamais voltemos a ter notícias deles — Gaspar conti­nuou. — Sir Alex é esperto, maldito seja!

— Eles não fugiram — Milo insistiu. — Fiz Alex jurar sobre a espada que engravidaria Nicole e depois partiria daqui. Aposto que estavam fora de Peverell na hora da tempestade. Talvez perto da abadia, onde Nicole costuma visitar aquele frei lunático.

— A abadia — Gaspar murmurou, encontrando sentido nas palavras do patrão.

— Ei, Gaspar. Onde é que você vai? — Milo quis saber.

— Vou encontrar aqueles dois e trazê-los de volta para casa. Não quer que os encontre?

— Sim, mas eu aviso, não quero que mal algum aconteça a Alex.

Outro homem mandaria capar o sujeito e o patrão mandava que fosse bonzinho com o miserável.

— Ouviu o que eu disse, Gaspar?

Ignorando a ordem do patrão, ele caminhou em di­reção à porta.

— Sirva vinho a milorde, criadinha. — Ele ordenou a uma das serviçais, antes de deixar o castelo.

— Queria tanto que pudéssemos dar meia-volta e fugir daqui — Nicole murmurou ao ouvido de Alex, sen­tada atrás dele sobre o cavalo, enquanto seguiam pela trilha da floresta que os levaria de volta a Peverell. O dia havia amanhecido ensolarado, mas o solo perma­necia encharcado.

— E o que também gostaria de fazer—Alex confes­sou. — Pelo menos, tivemos a noite de ontem.

Que noite maravilhosa tinham passado juntos! Nicole fechou os olhos, revivendo cada momento da primeira vez em que Alex e ela haviam se amado, completando-se perfeitamente e com ardor incomum.

Depois de vários momentos de êxtase, os dois haviam dormido com mãos e corpos entrelaçados sob o manto quente ao lado da lareira.

— Há algo em que estou pensando — ela comentou, hesitante, a certa altura do caminho.

— O quê?

— Você não... saiu do meu corpo antes de... Esqueça, é bobagem minha.

— Não é bobagem. É compreensível que se preocupe com o que possa acontecer.

— Acredite ou não, Milo ficaria exultante se eu en­gravidasse. Assim manteríamos Peverell, sabe? Mas, tudo bem. Pedirei a Agatha, parteira de St. Clair, que nos ensine outras maneiras de...

— Não!

— Por que não?

— Esse tipo de pessoa gosta de falar. Não pretende que saiam espalhando por aí, que você pediu informa­ções sobre como evitar filhos, não é?

— Claro que não. Já sei, perguntarei a Edith. Ela entende dessas coisas.

— Edith pode ser indiscreta.

— Ora, ela se esquece das coisas quase que de ime­diato. Ela é que me disse que é bom carregar o útero de uma cabra estéril para não engravidar.

— Deus do céu.

— E sobre o colar de ervas.

— Ervas?

— É, a mulher deve usar um colar de ervas em tor­no do pescoço.

— Ah, sim, eu me lembro. Acho que deveria usar o tal colar.

Cavalgaram em silêncio por algum tempo. Nicole enlaçava a cintura de Alex e repousava o rosto nas costas dele.

— Quero contar uma coisa. A noite passada foi des­lumbrante, diferente de qualquer coisa que já tenha vivido. No passado, tudo foi como um jogo, um pas­satempo agradável. A noite passada, no entanto, foi mágica, como se nós dois fossemos um único ser, um só corpo, uma só alma.

— Foi assim também para mim. Pude sentir, no fundo do coração, que nosso amor é bom e puro.

— Não que tenha sido uma experiência de natureza apenas espiritual. Lembrar o que sentir ao estar den­tro de você — Alex sussurrou ao ouvido dela —, me dá vontade de deitá-la sobre o chão e começar tudo de novo. — Pegou a mão de Nicole e fez com que ela sen­tisse como estava excitado. Ela o acariciou como fizera na noite anterior.

Ele puxou as rédeas do cavalo, para que parasse. Em seguida, desmontou, e ajudou Nicole a descer, tomando-a nos braços.

Puxando-a pela mão, levou-a até um lugar discreto, atrás de uma grande árvore, fazendo com que Nicole recostasse contra o tronco. Então segurou o rosto dela entre as mãos e beijou-a com paixão, enquanto acari­ciava-lhe os seios com as mãos e a boca, contra o tecido da túnica que ela usava. Ergueu as saias de Nicole, fazendo-a suspirar, excitada, agarrando-se aos ombros dele. Interrompendo as carícias por um momento, ele ergueu-a pelas nádegas firmes, fazendo seu corpo subir. Ela gemia, sentindo o corpo novamente pronto para o amor. Alex penetrou-a com cuidado, movimentando-se em ritmo lento, movido pelo desejo que sentia.

Nicole apertou os ombros dele com força, ao atingir o ápice do prazer e, logo depois, Alex voltava a lançar sua semente para dentro dela.

— Eu te amo — ele murmurou, ofegante, encostan­do a cabeça no peito dela.

Os dois ficaram abraçados até que a excitação se aplacasse.

Subitamente, a expressão do rosto de Alex alterou-se.

— O que foi — Nicole quis saber.

— Shhh! Alguém se aproxima.

— Tem certeza? Acha que podem ser bandidos?

— Não. Bandidos andam a pé, e posso ouvir o ruído de cascos contra o solo. Não é um grupo de homens, mas um cavaleiro só.

— Tem certeza?

— Vamos ficar aqui, atrás da árvore. Não se mexa. Pouco depois, era possível avistar o cavaleiro que se aproximava.

— É Gaspar — Nicole murmurou, fazendo um mo­vimento para sair detrás da árvore.

— Espere. — Alex segurou-a pelo braço. — Não saia daqui.

Nicole assentiu, e ambos ficaram escondidos, en­quanto Gaspar desmontava e aproximava-se de Atlantes. Em seguida, pôs-se a espiar por entre as ár­vores, à direita e esquerda da estrada.

— Por que estamos nos escondendo? — Nicole in­dagou. — Gaspar sabe que é você que tem cavalgado Atlantes. Deve estar procurando por você — comen­tou, ingênua.

— É o que parece. — Alex desembainhou a espada.

— Por favor. — Nicole segurou o braço de Alex, as­sustada.

— Não saia daqui.

Alex encaminhou-se para a estrada de terra, movi­mentando-se tão silenciosamente quanto um lobo, en­quanto aproximava-se por trás de Gaspar. Chegando perto do homem, ele estendeu o braço, encostando a ponta da espada contra a nuca gorda dele.

— Procurando por mim? — indagou, irônico. Pego de surpresa, Gaspar permaneceu imóvel.

— Meu patrão pediu-me que viesse procurá-lo e à esposa.

Aflita, Nicole espiava a cena por trás da árvore.

— Lembro-me de ter jurado sobre a relíquia que trago em minha espada que acabaria com você da próxima vez que usasse essa coisa para me atingir. — Alex apontou para a marreta que Gaspar segurava entre as mãos.

— Não tentei usar a marreta contra você.

— Não tentou nem vai usar outra vez. Jogue-a para bem longe.

— Não confia em mim?

— Acha que sou algum imbecil?

Gaspar olhou para a marreta em suas mãos com olhos inexpressivos. Os lábios dele, porém, sorriam com malícia.

Ao notar-lhe o sorriso, Nicole pensou em alertar Alex. Antes que Gaspar pudesse completar o movimen­to para o qual se preparava, o deslizar frio e ameaçador da ponta da espada de Alex contra sua nuca fez com que ele desistisse de qualquer tentativa. Vociferando, atirou a marreta para longe.

— Onde está lady Nicole?

— Não é da sua conta — Alex respondeu, lacônico. — Vá embora.

Irritado, Gaspar caminhou até seu cavalo e montou. Sentindo-se mais protegido e confiante em cima do animal, encarou Alex.

— Vim aconselhá-lo a ser mais discreto. Acha que está certo passar a noite inteira com a esposa de seu primo? As pessoas vão...

— Não ouse dizer o que devo ou não fazer.

— Não se preocupa com a reputação dela?

— E como, abrigar-se contra uma tempestade, pre­judicaria a reputação de alguém?

— Acha que pode me convencer que foi só isso que aconteceu na noite passada, depois da maneira como vocês dois têm...

Numa fração de segundo, a lâmina da espada de Alex estava contra o pescoço de Gaspar, fazendo-o in­clinar-se para trás, amedrontado. Nicole observava a cena com fascinação. Afinal, nunca tinha visto o Lobo Solitário em ação.

— Quem você pensa que é? Se voltar a tecer insi­nuações a respeito de lady Nicole, ou a encher o ou­vido dos outros com historinhas sórdidas, vai ter que enfrentar minha espada. E, acredite, não hesitarei em cortá-lo ao meio. — Alex escorregou a lâmina pelo pes­coço de Gaspar. — Agora, suma daqui!

— Preciso pegar minha marreta antes.

— Venha pegar mais tarde.

— Não tinha planos de voltar aqui mais tarde. Seja bonzinho e vá pegá-la para mim. Não poderei fazer mal algum a você aqui de cima.

— Ponha-se no seu lugar, homem. Não ouse pedir que eu faça o que quer que seja para você.

Aquelas palavras tocaram o ponto vulnerável de Gaspar. Alex acabava de fazer menção a sua posição inferior. Aquilo o encheu de ódio.

— Você vai voltar aqui esta tarde — Alex informou. — Traga uma carroça para carregar a carcaça da égua Marjolaine até Peverell. Ela está morta à beira do rio, cerca de um quilômetro da abadia de St. Clair.

— Não recebo ordens suas de Périgeaux. — Gaspar empinou o queixo.

— Mas tem que obedecer as minhas. — Nicole apro­ximou-se, embora Alex preferisse que ela não tivesse aparecido.

— Milady. — Gaspar fez uma reverência. — Jamais teria dito o que disse, se soubesse que milady estava...

— Você jamais teria dirigido insultos a mim na mi­nha presença. Isso você faz pelas minhas costas, não é?

Gaspar tinha o pescoço e o rosto rubros, mas não deixou de observar que os cabelos da patroa estavam soltos e a túnica amassada.

— Não se engane — Nicole continuou. — A única razão pela qual não dispenso seus serviços imedia­tamente, é o fato de você ter sido apontado para ser o guardião de Peverell, assim que eu e meu marido tivermos entregado a propriedade à Igreja. Mas não tente abusar de minha paciência mais do que já fez até agora, ou o coloco para fora de Peverell pela orelha, ou melhor, peço a Alex que faça isso por mim.

Gaspar encarava a patroa, atônito e imóvel.

— Quando vier buscar Marjolaine mais tarde — Nicole ordenou —, traga bastante corda e alguns ho­mens fortes, que não tenham medo de trabalhar. Mas aviso, não quero que aqueles seus dois capangas baju­ladores ajudem a resgatar o corpo de Marjolaine. Quero homens confiáveis e de bom coração para essa tarefa.

— Como queira, milady — ele respondeu, baixando a cabeça.

— Bom dia, Gaspar. — Nicole indicou-lhe que se retirasse.

— Bom dia, milady. — Ele voltou-se para Alex. — Meu jovem.

Incitando os flancos do cavalo, afastou-se a galope.

 

— Por onde andou? — Milo interrogou Gaspar à noite, ao vê-lo adentrar o grande hall.

— Estava na abadia.

— Até agora?

— Padre Otaviano pediu que eu fizesse uns serviços para ele. Só não pensei que fosse tomar tanto tempo.

— Perdeu o jantar.

— Estou com o estômago embrulhado. Não conse­guiria comer. — Não depois daquela tarde. Gaspar estava à beira de um acesso de fúria. Tinha vontade de estrangular todo mundo: Otaviano, Milo, Nicole e, principalmente, Alex de Périgeaux, cujo ressurgimen­to arruinara seus planos. Se não fosse pelo maldito, teria possuído Nicole e plantado um filho no ventre dela, sem que ela soubesse. Agora, tudo que tinha pela frente era bancar a babá de um bêbado e quanto a Otaviano, ele tinha bancado o... Que nome poderia atribuir ao que ele fizera atrás das portas trancadas dos aposentos do abade? Quanto mais seria forçado a esperar até que a semente de Alex frutificasse no ventre da patroa, para que pudesse passar à próxima fase de seu plano?

— Estava esperando você para me servir vinho — Milo disse. — Aqueles dois se negaram a me dar uma única gota. — Indicou Alex e Nicole, que jogavam xadrez na mesa principal.

Gaspar trouxe o cálice e uma jarra de vinho para Milo. A bebida tornava o patrão mais maleável e re­ceptivo a suas idéias. Era hora de conversar com ele sobre os planos que tinha para Périgeaux.

— Pelo jeito, eles estão apaixonados — murmurou baixinho, a fim de não ser ouvido pelo casal.

Milo olhou para eles e seu semblante mostrava me­lancolia e preocupação.

— Já lhe ocorreu que sua esposa pode não querer mais ficar aqui, assim que a semente de sir Alex co­meçar a crescer no ventre dela? — Voltou a encher o cálice com vinho. — Desta vez, pode ser que seu primo consiga convencer lady Nicole a fugir com ele. Já pen­sou nas conseqüências que isso traria? Antes que pos­sa se dar conta, milorde estará esmolando pelas ruas.

— Isso não vai acontecer. Nicole jamais deixaria que a preciosa reputação dela fosse manchada. Além disso, estaria abrindo mão de Peverell.

— Como pode ter tanta certeza?

— Por que tenho. — Milo bebeu mais um bom gole de vinho. — Conheço os dois muito bem. Prefeririam morrer a cometer uma indignidade.

— E se milorde estiver enganado? — Gaspar olhou para Nicole e Alex. — As pessoas podem nos surpreen­der, quando estão apaixonadas. E se ele convencer sua esposa a acompanhá-lo à Inglaterra?

— O que é que você tem com isso? — O olhar de Milo era cheio de sagacidade para alguém no estado dele. — Vai permanecer em Peverell, não importa o que aconteça. Nicole me disse que você persuadiu pa­dre Otaviano a indicá-lo para guardião de Peverell.

— Fico preocupado, uma vez que preferiria servir milorde a servir padre Otaviano.

— Por causa das... inclinações dele? Gaspar permaneceu calado.

— Dizem que o abade é um sodomita — Milo conti­nuou, enquanto tomava mais um gole, sem desgrudar os olhos de Gaspar. — Como foi que conseguiu persua­dir o abade a indicá-lo para guardião de Peverell?

— Não foi difícil. Ele queria um militar para o pos­to, e eu era o melhor candidato — Gaspar mentiu.

— Sei, sei... — Milo dirigiu, ao soldado, um olhar cheio de ironia e suspeita.

— Mas como já disse, preferiria servir a milorde. — Gaspar mudou o rumo da conversa. — Mas seu pri­mo poderá estragar tudo se levar lady Nicole daqui. Temos que impedir que isso aconteça.

— E você tem planos para isso? — Milo levou o cá­lice à boca. — Você sempre tem um plano.

— Ele podia adoecer e morrer — Gaspar falou bai­xinho, depois de certificar-se de que ninguém os ou­via. — Não seria a primeira vez que fatos como esse acontecem.

— Que absurdo! — Milo olhava, incrédulo.

— Veneno. Cicuta e heléboro branco. Muito difícil de ser detectado no vinho com especiarias.

— Não!

— Ninguém ficaria sabendo. É claro que não faria nada, até que sua esposa engravidasse.

— Não, já disse. Ele é meu primo. Deus de miseri­córdia.

— Não é hora para sentimentalismos — Gaspar murmurou por entre os dentes. — Ele é uma ameaça.

Milo sentou-se contra os travesseiros, sem nenhum auxílio, pela primeira vez desde que estivera doente.

— Você está me dizendo que pretende matar um inocente?

— Inocente? Sir Alex persuadiu sua esposa a traí-lo, milorde.

— Eu pedi a ele que o fizesse.

— Pediu que ele seduzisse o corpo, não o coração dela. Nem pediu que ele a cortejasse como um jovenzinho apaixonado. E nunca desejou que ele roubasse lady Nicole do senhor.

— Ele não vai roubá-la de mim.

— Sua confiança nele chega a ser tocante e poten­cialmente desastrosa — Gaspar ironizou. — Deixe-o viver, e saberá o que é arrependimento.

— Já estou arrependido. — Milo deixou-se cair so­bre os travesseiros, olhos tristes como os de um morto-vivo. — Mais arrependido do que posso expressar em palavras. Arrependido de ter confiado em você um dia, por ter permitido que se envolvesse dessa maneira em nossas vidas.

— Suas palavras me magoam, milorde. — Gaspar fingiu tristeza. Não podia perder a confiança de Milo, ainda... — Minha preocupação pelo senhor e por sua esposa é que me levou a pensar em algo tão drástico. — Baixou a cabeça.

— Não vai fazer nenhum mal a meu primo, não é? — Milo indagou. — Não está planejando fazer isso pe­las minhas costas?

— É claro que não — Gaspar assegurou. — Foi uma idéia tola, nada mais que isso. Jamais ousaria ir con­tra as ordens de milorde. — Não até que Nicole engra­vidasse. Até lá, teria que portar-se como um empregadinho servil. Por enquanto, sua preocupação era ficar atento aos movimentos da patroa, para que ela não se saísse com outro esquema mirabolante para manter Peverell.

Teria que segui-la sempre, como vinha fazendo ha­via algum tempo. Essa prática tinha provado ser bas­tante esclarecedora.

— Ótimo — Milo disse.

Gaspar, porém, podia ver descrença e apreensão no rosto do patrão, temeroso de que ele fizesse como bem lhe aprouvesse, ignorando-lhe as ordens.

Ele concluiu que teria razão para se preocupar, se houvesse qualquer possibilidade de Milo se lembrar, na manhã seguinte, do que haviam conversado.

— Está se preocupando sem razão, milorde. — Ele tentou acalmar Milo, enquanto voltava a encher-lhe o cálice com mais vinho. — Beba e tenha uma tranqüi­la noite de sono. Vai estar ótimo pela manhã, posso garantir.

 

Ao erguer os olhos do quadro de cera, Alex viu Nicole trazendo do riacho a garrafa de sidra que ele havia deixado lá para resfriar a bebida. Gostava de apreciar o andar elegante dela, os movimentos cheios de feminilidade, o corpo esguio, o ritmo sereno.

Dezenas de folhas, às quais o outono emprestava um tom alaranjado, desprendiam-se das árvores, vin­do acomodar-se sobre o solo ao redor deles, e a brisa soprava bem mais fria naquelas últimas semanas.

Alex lembrou-se de que, na Inglaterra, as pessoas deviam estar se preparando para a celebração do Dia da Colheita. Pensou em Luke, Faithe e nos sobrinhos. Sentia saudade deles. Porém, era do país onde vivera durante nove anos que mais sentia falta. Amava o ver­de daquelas terras, o solo produtivo, o povo e a música. Fechando os olhos, podia ver as pessoas dançando ale­gremente, em roda, ao som de flautas e guisos.

— No que está pensando? — Nicole perguntou.

— Na Inglaterra.

Ela sabia o que ele sentia. Retirou a rolha da gar­rafa e entregou-a a Alex, para que enchesse as duas canecas, que costumavam trazer na sacola.

— Estará de volta à Inglaterra no Natal — ela co­mentou, reticente.

Raramente tocavam naquele assunto. Mantinham o acordo tácito de não falarem sobre o futuro. Tinham o presente e deviam vivê-lo com intensidade e da me­lhor maneira possível.

— Quando tivermos que nos separar — Alex come­çou —, sentirei muito mais saudade de você do que sinto da Inglaterra agora.

— Acho que não. Vai ter muito com que se preocu­par por lá.

— Pensarei em você todas as horas de todos os dias, até o fim de minha vida, sabe disso.

— O que escreveu no quadro? — Ela procurou mudar de assunto. — Deixe-me ver: Alexandre de Périgeaux ama Nicole de St. Clair. — Nicole leu em voz alta, antes de sentar-se sobre as pernas de Alex, de frente para ele. — Nicole de St. Clair ama Alexandre de Périgeaux. — ela sussurrou para ele, abraçando-o e beijando-o nos lábios.

— Sabe o que estou percebendo? Deixei que minha melancolia contagiasse você, embora esteja se esfor­çando para disfarçar.

— E, concordo que nosso humor está um pouco al­terado.

— Mas sei como acabar com esse problema. — Alex recostou sua testa contra a de Nicole, e sorriu com malícia.

— Esqueci de trazer o colar de ervas.

— Que pena — ele murmurou, pousando seus lá­bios nos dela.

— Não faz mal. Quero ficar bem juntinho de você.

Alex tinha a impressão de que Nicole, na verdade, gostaria de engravidar. Não aparentava mais a antiga preocupação.

Tocou-lhe de leve os seios e percebeu que os mamilos já estavam rijos. Para sua surpresa, ela desatou os laços que prendiam sua túnica e livrou-se dela, para, em seguida, remover cada peça de roupa, até mesmo as íntimas.

A satisfação de Alex era evidente. Aquela era a pri­meira vez que ela se despia para ele. Um leve rubor coloria as faces dela, revelando certo pudor. Adorou aquilo e seu corpo reagiu de imediato, levando-o a de­satar o laço do calção.

Nicole deitou-se sobre o sexo rijo e pôs-se a movi­mentar os quadris para cima e para baixo, muito len­tamente. Alex jamais havia se submetido àquele tipo de doce suplício. Era difícil conter o ímpeto de acelerar os movimentos, mas Nicole fez com que ele esperasse. Ao sentir que o clímax estava próximo, ela balançou a cabeça, pedindo que acelerasse os movimentos.

O prazer de ambos explodiu num grito rouco, que ecoou por entre as árvores.

— Minha doce Nicole. —Alex abraçou-a, desejando poder retê-la ali, para sempre, entre seus braços, como se fosse sua esposa; como se a história deles nunca fosse acabar.

Os dois permaneceram abraçados, em silêncio, por um longo momento, como se quisessem prolongar o presente e enganar o tempo.

— Agatha — Nicole chamou, ao chegar à porta do casebre situado a uma boa distância de Peverell.

Agatha era a parteira de St. Clair, uma mulher corpulenta, de rosto muito redondo e braços grossos. A mãe da parteira, Ila, era quem tinha cuidado de Nicole muitos anos antes, quando ela perdera o bebê de Philippe e, depois, durante a febre que se seguira ao aborto. Ila era uma mulher bondosa e hábil, além de discreta e confiável, e Nicole era muito grata a ela. O mesmo não se podia dizer da filha, parteira de habi­lidade duvidosa, dada a mexericos.

Tinha decidido procurar Agatha porque suas regras estavam com quinze dias de atraso. Havia razão para suspeitar de gravidez, dado que seu organismo costu­mava funcionar como um relógio. Mas, precisava ter certeza, e por isso se arriscara a procurar a mulher.

— Mas que prazer! — exclamou a parteira, ao avis­tá-la. — Entre, milady.

Nicole percebeu que a mesa estava posta para o jantar.

— Desculpe-me. Vejo que se preparava para a refei­ção. Posso voltar outra hora.

— Por favor, milady. Entre e sente-se — insistiu a mulher. — Se não se importa, vou jantar enquanto conversarmos. Tive um dia duro, sabe. — A parteira acomodou-se à mesa e pôs-se a comer com vontade e sem constrangimentos. — O que a traz aqui, milady? — a mulher perguntou, de boca cheia.

— Acho que estou grávida.

A parteira arregalou os olhos, enquanto segurava na mão um generoso pedaço de pão, a meio caminho da boca.

— Compreendo. Quer se livrar de um embaraço. Bem, tenho um tônico...

—Não. — Nicole interrompeu, levantando-se. — Há nove anos que esperamos um filho. Como poderia querer me livrar dele? — Levou a mão ao ventre, como que tentando proteger o bebê.

— Milady e lorde Milo... — A mulher não conseguiu disfarçar a desconfiança. — Bem, neste caso, o que posso fazer por milady?

— Estou ansiosa para saber se espero ou não um filho.

— Tem regras irregulares?

— Meu organismo funciona como um relógio.

— Quanto tempo as regras estão atrasadas?

— Uma quinzena.

— Tem vomitado? Humor instável?

— Tenho sentido tontura, às vezes.

— Sente como que agulhadas no baixo-ventre?

— Sinto, sim.

— Bem, tudo indica que espera um bebê.

— Há algo que eu possa fazer para segurar o bebê?

— Você já sofreu abortos? — a mulher indagou, in­discreta.

— Claro que não, mas esperamos este filho há tanto tempo... Não quero correr o risco de perdê-lo.

— Neste caso, vou lhe dar um pó para cozinhar com mel e colocar em seu vinho. É excelente para evitar abortos.

— Obrigada — Nicole agradeceu, enquanto entre­gava o dinheiro à parteira. — Isso paga o tempo que gastou comigo?

— Sim, sim. — A mulher sorriu ao ver que o pa­gamento era generoso. — Ah, mais uma coisinha. — Agatha lembrou, enquanto Nicole montava Zurie, sua nova égua. — Caso sinta desejo de comer terra ou giz, sugiro que coma feijões cozidos com açúcar.

Terra? Giz? Nicole achou aquilo um tanto estranho, mas mesmo assim agradeceu mais uma vez, antes de afastar-se.

No caminho de volta a Peverell, decidiu que não fa­laria sobre o bebê a ninguém, até que a gravidez se tor­nasse aparente. Era importante que mantivesse segredo em relação a Alex. Afinal, ele nunca desejara ter filhos, muito menos bastardos. A certeza de que carregava no ventre um filho do homem amado, no entanto, enchia-lhe a alma de alegria. Quando ele partisse, um pedaço dele ficaria, no filho que iria ter. Finalmente, os laços que a uniam a Alex tinham-se tornado completos.

Cerca de uma hora mais tarde, Gaspar adentrava o casebre de Agatha. Era óbvio que a mulher pediria dinheiro pela informação, mas valia a pena.

— Já sabe — ele disse à parteira. — Caso pergun­tem, nunca estive aqui, compreendeu?

— Ah, se ainda vou ter que manter segredo... — A mulher estendeu a mão.

— Cadela gananciosa — ele resmungou, enquanto tirava mais duas moedas da bolsa.

No caminho de volta, ele experimentou profunda satisfação. Enfim, a patroa trazia no ventre o futu­ro herdeiro de Peverell. Isso significava que Alex de Périgeaux estaria em breve fora do castelo, e a caminho da Inglaterra. Afinal, havia jurado que partiria assim que a semente dele começasse a desabrochar no ventre de lady Nicole. E partiria para nunca mais voltar.

Gaspar riu consigo mesmo, ao pensar nas precau­ções que tomaria para assegurar que aquele maldito não voltaria mais a importuná-lo. Em algumas horas, Périgeaux estaria tomando vinho com especiarias, enri­quecido com cicuta e heléboro branco. Tinha preparado uma jarra inteira da bebida especialmente para ele.

Então, estaria livre para colocar o resto de seu pla­no em ação. Teria para si não apenas Peverell, mas também a patroa. Gostasse ou não, a poderosa e nobre Nicole de St. Clair teria que deitar-se e abrir as pernas para ele.

Como sua esposa, ela não teria outra escolha.

Nicole comia uma fatia de torta de maçã, enquanto conversava despreocu-padamente com Alex, sentado a sua frente.

Conversavam sobre coisas sem importância. Nicole, porém, não esquecia por um segundo que a semente dele começava a crescer dentro dela. Quisera pudesse contar-lhe e ver naqueles olhos negros a mesma ale­gria que sentia. Mas precisava ser realista. O mais provável era que Alex voltasse à Inglaterra, sem ja­mais saber do bebê.

Determinada a desfrutar os meses que ele per­maneceria em Peverell, recomendou a si mesma que deixasse de lado qualquer tristeza, agradecida pelo milagre de amor escondido em suas entranhas.

— Vinho com especiarias, sir Alex? — Gaspar dissi­mulou cortesia, enquanto enchia o cálice de Alex com a bebida envenenada.

Nicole observava o soldado que portava-se de ma­neira servil e amável nos últimos dias. Havia duas possibilidades, ela pensou: ou Gaspar decidira levar as palavras que ela lhe dissera a sério, ou aquela mu­dança de comportamento não passava de uma farsa.

Afastando-se da mesa, após ter servido vinho de outra jarra para os demais, Gaspar caminhou em di­reção aos soldados, que jantavam naquele momento. Em seguida, subiu a um banco e pediu que todos fizes­sem silêncio. Alex e Nicole entreolharam-se perplexos, enquanto viam o grandalhão erguer o cálice que trazia na mão e propor um brinde. Erguendo o corpo sobre os travesseiros, Milo observava a cena, confuso.

— À lady Nicole de St. Clair. — Gaspar fez uma re­verência na direção dela. — E a lorde Milo de St. Clair. Vamos agradecer a Deus pela benção que milady e mi-lorde têm o prazer de anunciar. Depois de longa espe­ra, finalmente, nossos patrões serão agraciados com o tão sonhado herdeiro. Deus atendeu a nossas preces. Brindemos. — Ergueu ainda mais o cálice.

— Viva! — exclamaram os soldados e os membros da criadagem.

Deus do céu, não. Não daquela maneira, Nicole pen­sou, em pânico.

Alex dirigiu-lhe um olhar de surpresa, por sobre a beirada do cálice.

Da cama, Milo a fitava, colocando de lado o cálice com vinho.

Alex colocou seu cálice intocado sobre a mesa.

— Deus abençoe milady e o bebê com muita saúde — Gaspar disse, aproximando-se da patroa.

Alex levantou-se e, sem trocar uma palavra com quem quer que fosse, dirigiu-se às escadas que levavam ao andar térreo, onde ficava o quarto que ocupava.

Nicole estava perplexa. Como é que Gaspar des­cobrira sobre a gravidez? Agora as coisas entre ela e Alex nunca mais seriam as mesmas.

— Por que fez isso? — perguntou a Gaspar.

— Para parabenizar milady e milorde. — Ele abai­xou a cabeça, fingindo inocência.

—Vai ter que se entender comigo mais tarde. Estou farta de suas mentiras e intrigas. — Ela levantou-se e correu, apressada, em direção às escadas.

No meio do caminho, parou ao lado da cama de Milo. Pela expressão do rosto do marido, não saberia dizer sé estava triste ou satisfeito.

Enquanto ela buscava palavras que pudessem ex­plicar o que tinha acontecido, Milo estendeu-lhe a mão, esperando que ela fizesse o mesmo.

— Vá em frente — ele murmurou, sorrindo com ter­nura para ela, enquanto fazia um gesto de cabeça, in­dicando as escadas. — Vá procurar Alex.

Lágrimas brotavam dos olhos de Nicole, enquanto descia as escadas, até o quarto de Alex.

O cômodo estava vazio. Subiu, então até o solar, não havia ninguém lá. Correu até a janela próxima à es­crivaninha, e avistou Alex montando Atlantes. Saindo a galope, ele desapareceu, em questão de segundos, por entre as árvores.

Tentando manter a serenidade, Nicole sentou-se à beira da cama e concluiu, que o que realmente im­portava era o ser que crescia dentro dela, gerado pelo amor que eles partilhavam.

Milo foi acordado pela voz de Nicole, que chamava por ele.

— Que horas são? — ele indagou.

— E madrugada. Estava em meu quarto, pensando.

— Encontrou Alex?

— Não, ele saiu para galopar. Há algo que quero dizer a você.

Antes que ela proferisse a primeira palavra, Milo era capaz de adivinhar qual seria o assunto. Bastava ver a expressão de tristeza e culpa naquele semblante.

— Você não me deve nada, Nicole. Não culpo você, querida, acredite. — Ele pegou uma mecha dos cabelos dela entre os dedos. — Está preocupada com o que as pessoas irão dizer?

— Só me interessa sua opinião, não a dos outros.

— E sua reputação?

— Sei que falarão pelas minhas costas, mas não em minha presença. Com o tempo o assunto vai se tornar desinteressante e cairá no esquecimento. — Respirou fundo. — Caso eu fique por aqui...

— Era isso que queria me dizer, não era? Nicole tomou as mãos do marido nas suas.

— Perdoe-me, Milo. Amo Alex desde aquele verão, em Périgeaux. Se ele me aceitar, irei com ele.

— Sua reputação ficará arruinada para sempre, sabe disso.

— Sei. Uma mulher que abandona o marido para ir viver com outro homem, com quem não pode se casar, mas cujo filho carrega no ventre. O pior tipo de mu­lher. O curioso é que acho que posso suportar isso mais do que continuar nosso casamento.

— Nunca tivemos um casamento. — Quem poderia culpar Nicole? Se Violette estivesse viva, ele não hesi­taria em fazer o mesmo.

— Mas estou preocupada com você. Uma vez que Peverell for entregue à Igreja, não poderá mais per­manecer aqui. Quero que volte a Périgeaux.

— O quê? De modo algum.

— Milo, Peter e Phelis amam você. Será muito bem cuidado lá.

— Não tornarei a ficar sob o controle de meu irmão.

— Mal consegue se alimentar, Milo. O que vai ser de você?

— Sua preocupação me comove, mas não deve se preocupar. Já disse que não me deve nada. Nunca fui bom marido para você.

— Nem eu boa esposa, especialmente desde que Alex chegou.

— Ouça. A última coisa com que deve se preocu­par é sua consciência — Milo argumentou. — O amor não entende de coisas como votos de casamento. Nasce onde menos se espera. — Pegou a mão de Nicole e bei­jou-a. — Agora desça, querida. Esteja esperando por Alex, quando ele chegar.

Milo observou-a, enquanto ela se afastava. Dor de consciência, que absurdo... Que diria ela se tomasse conhecimento de seu esquema ridículo para manter Peverell? Esperava de todo o coração que ela jamais soubesse daquilo. Perderia a confiança nele e em Alex.

Curioso, quando acreditava não haver mais qual­quer resquício de honra em si mesmo, ela aflorava.

 

Alex estava exausto e trêmulo ao chegar ao caste­lo no meio da noite. Cavalgara por horas, deixando-se conduzir pela luz da lua e pelo pesar profundo e into­lerável que lhe enchia a alma.

Subiu até o solar. Precisava de Nicole mais do que nunca, agora que o fim havia chegado para o amor deles. Ao constatar que a cama dela não fora desfei­ta, teve medo de encontrá-la nos braços de Milo. Não toleraria vê-la com o marido naquela noite. Foi até a cama do primo e entreabriu as cortinas. Milo dormia e roncava.

— Deus esteja com você, meu amigo — sussurou, antes de fechar as cortinas.

Onde estaria Nicole? Ele foi até seu quarto. Acostumando os olhos à escuridão, encontrou-a ador­mecida em sua cama. Ela dormia profundamente. Curioso, ela nunca tinha vindo ao quarto dele antes.

Aproximando-se da cama, fitou-a e observou-lhe a respiração suave. O ventre de Nicole continuava reto como sempre fora e, no entanto, o fruto do amor deles crescia ali dentro.

Nunca mais iria vê-la, nem ao filho que teriam. Seria um menino ou uma menina? Seria parecido com ele ou com ela? Esperava apenas que fosse saudável. Era o que pedia a Deus.

Agora que cumprira seu juramento e que Nicole car­regava sua semente, a hora de partir havia chegado. Fizera um juramento e teria que cumpri-lo até o final.

Aquela era a hora de partir. Pela manhã, era pro­vável que não tivesse forças para levar adiante o ju­ramento. A dor da separação seria maior se permanecesse ali por mais tempo. Como poderia despedir-se de Nicole? Como olhar nos olhos dela de novo, abra­çá-la, beijá-la, fazer amor com ela, sabendo que seria a última vez? O que diria se ela lhe perguntasse por que tinha que partir? O segredo deveria ser mantido, pelo bem dela.

Tudo tinha que ser pelo bem de Nicole, ele pensou, enquanto tocava-lhe de leve os cabelos.

Os laços indestrutíveis que os uniam haviam sido construídos nove anos antes, e estavam ainda mais for­talecidos agora. Eram uma só carne, o mesmo sangue.

É o melhor para Nicole, repetia mentalmente, en­quanto colocava seus pertences dentro do saco de via­gem. Se ficasse com a esposa do primo, traria infelici­dade a todos.

Era chegada a hora de voltar para a Inglaterra.

Enquanto olhava novamente para Nicole, uma idéia lhe ocorreu. Colocou a bagagem no chão e subiu rapidamente até o solar.

Acendendo uma vela sobre a escrivaninha, pegou papel e uma pena e escreveu:

Minha amada Nicole,

Quando acordar, eu terei partido. Desculpe-me. Devo partir agora. Não posso mais ficar.

Minha alma chora, por me separar de você. Porém, alegra-me saber que meu filho cresce em seu ventre.

Obrigado por ter-me ensinado a ler e escrever. Obrigado por me amar. Perdoe-me por não encontrar palavras melhores para falar de meus sentimentos. Não sou inteligente como você.

Pegarei um navio para a Inglaterra. É para seu bem que estou indo embora. Perdão, mas não posso explicar melhor a razão de minha partida. Por favor, acredite que eu te amo. Tenho certeza de que vai ser uma boa mãe para nosso filho ou filha.

Que a criança seja forte e saudável e que Deus a proteja e abençoe sempre.

É bom você demitir Gaspar. Faça isso hoje mesmo, para que eu não precise temer por você. Ele é perigoso.

 

Ele apanhou a carta e voltou a seu quarto. Nicole agora dormia de lado. Como desejaria deitar-se com ela, acordá-la e fazer amor mais uma vez.

Dobrou a carta e colocou-a entre os dedos de Nicole. Ela se moveu e ele rezou para que não acordasse. Ela suspirou, mas não abriu os olhos.

Alex esperou até que a respiração dela se tornas­se novamente profunda. Então, ajoelhou-se e tocou de leve o rosto dela.

— Adeus, meu amor — sussurrou.

Apanhou o saco de viagem e afastou-se, fitando-a sempre. O coração pedia que ficasse, mas a consciência lhe dizia para que partisse antes que o sol nascesse e as pessoas despertassem.

Sobreviveria, disse a si mesmo, ao cruzar o limiar do quarto. Era o Lobo Solitário e teria que voltar a conviver com a solidão.

A porta, voltou-se e olhou para Nicole mais uma vez, a fim de que a imagem dela ficasse gravada em sua memória. Então, virou-se e partiu.

 

— Milo!

Ele desviou os olhos do cálice e viu Nicole que atra­vessava o grande hall a passos rápidos. Tinha os cabe­los em desalinho e os olhos vermelhos de chorar.

Trazia nas mãos um pedaço de papel que entregou a ele.

— Alex foi embora — ela anunciou.

— O quê? — Milo estava confuso.

— Deixou esta carta para mim. — Nicole percebeu que Gaspar mantinha os ouvidos atentos à conversa.

— Alex partiu? — Maldita honra, Milo pensou. O primo não podia ter esperado ao menos mais um dia, para deixar Peverell?

Afastando os cabelos que caíam sobre os olhos, Nicole leu:

É para seu próprio bem que estou indo embora. Não poderemos voltar a nos ver. Sinto muito não poder di­zer mais do que isso.

Ela encarou o marido.

— No final da carta Alex pede que eu o perdoe. Perdoar o quê, Milo? Você tem que me dizer.

Milo cocou o queixo, tentando imaginar uma des­culpa plausível.

— Talvez eu possa esclarecer... — Gaspar começou.

— Cale-se! — Nicole encarou Gaspar. — Cale essa maldita boca, estou avisando.

Milo e Gaspar mal podiam reconhecê-la. Os solda­dos que faziam o desjejum voltaram-se para ver o que estava acontecendo.

— Mande toda essa gente para fora do hall — Nicole ordenou a Gaspar, apontando para os soldados.

O grandalhão fez um gesto de mão para que eles saíssem.

— Esse foi o último serviço que prestou em Peverell — Nicole anunciou.

— Milady...

— Não precisamos mais de você. Arrume suas coi­sas e ponha-se fora daqui antes do anoitecer.

Com evidente surpresa, Gaspar olhou para Milo, esperando por uma contraordem.

Milo concluiu que Nicole estava indo longe demais. É claro que também considerava Gaspar um homem mau e perigoso. Por isso mesmo, deveriam tomar cui­dado com ele.

— Minha querida, está fora de si — começou ele. — Quando estiver mais calma...

— Quero este homem fora daqui — ela reafirmou, como se Gaspar não estivesse presente. — Estou farta da intromissão, da brutalidade e da insolência dele.

Gaspar cerrou as mãos. Ela estava fazendo menção indireta à inferioridade dele.

— Nicole, acalme-se.

— E como vou me acalmar, Milo? — Ela agitou a carta de Alex no ar. — Alex foi embora. Diz que não po­deremos nos ver mais e que não pode explicar o motivo e que devo perdoá-lo. Perdoar o quê, Milo?

— Eu... não sei...

— Por favor, conte para ela — Gaspar intrometeu-se.

— Já mandei você calar a...

— Seu marido trouxe sir Alex aqui para engravidar a senhora — Gaspar contou com toda a calma.

— Mentiroso! — Lágrimas enchiam os olhos de Nicole.

— Por Deus, Gaspar — Milo implorou.

— Pelo que sei — o homenzarrão prosseguiu —, ele veio aqui para seduzi-la, sem contar à senhora sobre o propósito da visita dele.

— Mentiroso sem alma — Nicole revidou, pálida.

— Depois de cumprir o dever — Gaspar continuou inabalável —, ou seja, plantar a semente dele no ven­tre de milady, ele teria que ir embora para nunca mais vê-la. Seu marido fez com que ele jurasse sobre a relí­quia da espada que cumpriria o acordo à risca.

— Diga que não é verdade, Milo. — Nicole aproxi­mou-se da cama do marido.

— Perdoe-me, Nicole — Milo disse num fio de voz.

— Que tipo de homem é você?

— Sou um traste desprezível.

— Alex veio a Peverell apenas para... — Ela sen­tou-se na beira da cama.

— Sir Alex prestou um favor ao primo e tenho a certeza de que não foi um favor... mas um prazer.

— Basta, Gaspar — Milo conseguiu dizer, enquanto colocava o cálice de lado. Ele sentia um profundo ódio ferver em suas veias. Era a primeira vez em anos, que Milo sentia uma emoção forte. Aquilo fez com que ele se sentisse bem. Aproximando-se de Nicole, pousou a mão sobre o ombro dela.

— Alex não fez isso por mim. Foi por você. Precisa acreditar em mim.

— Que história comovente — Gaspar murmurou com escárnio. — Mas não acredito que milady possa ser tão ingênua. A sedução é um jogo para alguns ho­mens, um passatempo, como xadrez ou dama. Sabe como é, há pessoas que ficam viciadas nesse jogo de faz-de-conta...

— Cale-se! — Nicole gritou, exasperada pela intromissão daquele homem.

— Os oponentes, em geral, nem percebem que o jogo está em andamento. Alex, o conquistador. É esse o apelido dele, não é? Dizem que metade das mulheres da Inglaterra já ergueu as saias para ele.

— Cale-se de uma vez por todas! — Nicole bateu o pé.

— Não ouça o que ele diz — Milo alertou. — Alex não fingiu os sentimentos que demonstrou. Meu primo é um homem honrado.

— Pelo que me recordo, esta é a segunda vez que esse tal homem de honra coloca a reputação de milady em risco. Se quer minha opinião...

— Eu não me lembro de tê-la pedido — Nicole o lembrou.

— A senhora vai esquecê-lo. Qualquer um pode ver que Alex não passa de um canalha.

— Andou consultando sua bola de cristal, Gaspar? — Nicole voltou-se para Milo. — Preciso falar com Alex. Vou selar Zurie e cavalgar para o Norte, em dire­ção a Fécamp. Ele não pode ter partido há muito tem­po. Se eu for rápida, talvez consiga...

— Nem pensar. — Gaspar segurou o braço de Nicole. — Não pode sair cavalgando sozinha atrás desse ho­mem. O que vão pensar?

Nicole conseguiu soltar o braço da mão do grandalhão.

— Acha que estou ligando para o que vão pensar? Quero saber de Alex qual é a verdade.

— Acredita que aquele debochado vá dizer a verda­de. Não vou permitir que...

— Você não vai permitir? — Os olhos de Nicole pareciam lançar flechas de fogo quando cerrou os pu­nhos ao lado do corpo e encarou Gaspar. Milo sentiu-se orgulhoso dela. — Pode pensar que é o senhor de Peverell, Gaspar, mas não é.

— Bravo! — Milo exclamou. — Minha querida, não perca mais tempo. Apresse-se, vamos.

— Não! — Gaspar insistiu. — Ela não deve ir atrás daquele verme.

— Vá, Nicole — Milo encorajou-a.

Nicole deixou o hall com a rapidez de um raio.

— Ela está certa — Milo falou, recostando-se aos travesseiros. — Pensa que é o senhor de Peverell, Gaspar. E quem pode culpá-lo? Entreguei a proprieda­de em suas mãos.

— Se eu me considerasse senhor de Peverell, acha que estaria aturando tudo isso?

Aquelas palavras de Gaspar fizeram com que Milo, enfim, despertasse.

— Deus do céu! — ele exclamou. Agora podia ver tudo claramente. Aquele miserável não estava satis­feito com a posição de chefe da guarda em Peverell, tampouco desejava o posto de guardião que, sabe-se lá como, havia conseguido junto ao abade de St. Clair. Gaspar queria tudo, Peverell e, provavelmente, Nicole, a senhora da propriedade.

Finalmente, ele reconhecia que tinha passado os úl­timos meses numa espécie de cegueira mental provo­cada pelo excesso de bebida. Com isso, havia facilitado as coisas para Gaspar, deixando-o livre para colocar seus esquemas sórdidos em execução. Reconhecia ago­ra que havia até mesmo colaborado com o patife.

— Está com sede, milorde? — Gaspar voltou-se para o patrão, afetando cortesia.

— Filho-de-uma-cadela! — Milo bradou, enquanto tentava erguer o corpo. — Mentiroso, conspirador...

— Fique aí. Já volto. — Gaspar correu até a despensa e trouxe uma jarra de vinho. Erguendo o cálice de Milo, ele jogou no chão o resto de bebida que tinha ficado no fundo e tornou a encher o cálice com o vinho que acabava de trazer na jarra. Milo sentiu o odor de cicuta e heléboro branco.

— Não quero que me sirva — retrucou. — Nicole dispensou seus serviços. Quero você fora daqui!

— O senhor está nervoso. — O rosto de Gaspar es­tava rubro e as mãos trêmulas. Milo jamais vira o ho­mem tão sobressaltado. — O vinho contém um tônico sedativo. Tome até a última gota, e se sentirá melhor.

Milo olhou pensativo para a bebida em seu cálice, antes de flagrar Gaspar que olhava pela janela, para em seguida atravessar o hall apressado e descer as escadas que levavam ao andar térreo.

A mente de Milo não era mais o que havia sido no passado. No entanto, ainda não tinha parado de fun­cionar. Sabia o que Gaspar acabava de colocar em suas mãos. Por nove longos anos havia confiado em Gaspar e era assim que as coisas terminavam. Poderia ir em frente e beber. Afinal tinha se tornado um farrapo hu­mano sem valor ou serventia. Decepcionara as duas mulheres que mais tiveram em sua vida: sua amada Violette e agora Nicole.

Cheirou a bebia e detectou um odor desagradável que o aroma do vinho não tinha conseguido disfarçar. Consciente de que Gaspar havia preparado a mistura com o objetivo de tirá-lo do caminho de forma definiti­va, Milo pensou em como seria bom livrar-se daquele corpo destituído de vigor e daquela vida inútil, para ir juntar-se para sempre a sua adorada Violette. Pensou na última vez que a vira, acenando para ele da por­ta da loja do pai, numa camisola simples e rústica, a altas horas da noite. A perspectiva lhe pareceu boa e fácil de ser atingida.

Levou o cálice aos lábios e provou um gole da bebi­da. O gosto era doce e amargo ao mesmo tempo. Era o gosto da liberdade.

 

Gaspar adentrou o estábulo, mal o menino que cui­dava do estábulo tinha acabado de selar Zurie, a nova égua que Nicole usava.

— Não vai a lugar nenhum! — ele gritou para Nicole. — Fora daqui vamos! — Fez com que o empre­gado deixasse o estábulo.

— Está indo longe demais — Nicole retrucou, en­quanto colocava o pé no estribo.

Gaspar agarrou-a pela cintura, puxando-a para trás, até que as costas dela estivessem contra a parede do estábulo. O rosto dele estava rubro e havia algo de diabólico em seu olhar.

— Estava na hora de eu tomar as rédeas das coi­sas de uma vez por todas — ele anunciou, ameaçador. — Há anos que sou senhor de Peverell de fato, só não de nome.

— Solte-me! — Nicole tentou afastá-lo, mas ele prendeu os pulsos dela contra a parede, aproximando o corpo, de modo a impedir que ela o chutasse. O ta­manho de Gaspar, a proximidade e o cheiro dele eram sufocantes.

— Antes que tome qualquer atitude drástica, pense em tudo que estará perdendo. Seu marido está com um pé na cova. Assim que ele morrer, você pode se ca­sar comigo.

Gaspar estava tão próximo de Nicole que ela podia sentir o peito dele contra seus seios. O coração dela batia acelerado.

— Deve estar louco!

— Propus casamento a você antes, Nicole — ele lembrou. — Você me rejeitou daquela vez, mas meu destino é ser senhor de Peverell e seu marido.

— Tudo o que quer é apoderar-se da proprieda­de. Foi por isso que me propôs casamento depois que Philippe...

— De início, talvez, mas depois me apaixonei por você. Cheguei a pensar que com o tempo você apren­deria a me amar, mas nunca estive a sua altura, não é mesmo?

— Você me interpretou mal...

— Não minta para mim! — Gaspar urrou, olhando nos olhos dela. — Prefere a vergonha de ser mãe sol­teira do filho daquele cavaleiro miserável a se casar comigo e manter a dignidade. Seu tio a teria deserda­do, se tivesse tomado conhecimento de sua gravidez aos quinze anos. Preferiria arruinar-se para sempre a casar-se com um homem de origem humilde como eu.

— Não, Gaspar, eu...

— Cadela mentirosa! — Ele bateu as mãos dela contra a parede com tal força, que ela sentiu os ossos chacoalharem. — Pode estar querendo deixar tudo por Périgeaux, mas eu não vou deixar. Imagino que tenha agradecido aos céus por ter poupado sua reputação ao perder a bastardinha que Philippe havia plantado em seu ventre. Mas devia ter agradecido a mim. Eu é que coloquei em seu vinho o tônico que expulsou a infeliz de seu útero.

— Deus do céu. — Nicole pensou nas eólicas lanci­nantes, no sangramento e no medo que tinha sentido, enquanto o pobre e minúsculo bebê era expelido de seu corpo. Quase perdera a vida, ela também. Parte dela tinha, de fato, morrido, ao ver a menininha, os dedinhos dela. — Seu monstro horroroso, seu demônio! — Nicole acusou trêmula.

— Sou um homem como outro qualquer. — Gaspar aproximou-se ainda mais dela. — Mas sou um homem que sabe conseguir tudo que deseja. Desejei você e ain­da desejo, apesar de seu desprezo por mim.

— Eu não...

Gaspar esbofeteou o rosto dela com as costas da mão, deixando Nicole tonta.

— Já falei para não mentir para mim. Nunca olhou para mim da maneira que olha para o arrogante Périgeaux. Basta ele estalar os dedos, e você ergue as saias para ele. Logo, logo, vai fazer isso para mim.

— Nunca!

— Case-se comigo ou contarei ao mundo que o bebê que você carrega no ventre foi gerado pelo primo de seu marido.

— Pouco me importa o que diga aos outros. Vão sus­peitar mesmo que o bebê não é de Milo.

— Eu confirmarei as suspeitas deles e fornecerei detalhes escandalosos sobre sua ligação com aquele maldito. Contarei a todos que você corria para a flores­ta todas as tardes, para se divertir com ele, enquanto seu marido jazia doente no leito. Vai ser rotulada adúl­tera. Sua reputação será reduzida a nada.

— Prefiro que o mundo me considere a mais depra­vada das mulheres a me casar com você — Nicole dis­parou por entre os dentes.

— Sinto desapontá-lo, Gaspar. — Uma voz trêmula soou, vinda da porta do estábulo. — Nicole não poderá casar-se com você enquanto eu estiver vivo.

Gaspar olhou para trás.

— Milo! — Nicole exclamou, incrédula. Ele se equi­librava sobre a bengala, esquelético e frágil, a pele amarelada pela doença à luz fraca do estábulo. Ele ter conseguido chegar até ali, depois de dois meses acamado, era um verdadeiro milagre.

— Não, Gaspar, eu não bebi isto. — Milo ergueu no ar o cálice com vinho. — Se não me engano, a bebida foi adulterada. Veneno. Cicuta e heléboro branco.

— Está imaginando coisas, milorde. — Gaspar ten­tou defender-se.

Milo estendeu a mão que segurava o cálice.

— Então beba, Gaspar. Até a última gota — ele iro­nizou, usando as palavras do homenzarrão.

— Vá para o inferno! — Gaspar esbravejou.

— Venho vivendo no inferno já há algum tempo

— Milo lembrou. — Por um triz, não bebi isto de uma só vez. Então, dei-me conta de que estaria sendo ma­nipulado por você. Não tive estômago para deixar que meu último ato nesta terra facilitasse seu esquema sórdido.

— Muito nobre de sua parte — Gaspar escarneceu.

— Nobre? — Milo riu. — Acho que nunca usaram tal palavra para definir meu caráter. Acho que meu único talento é para decepcionar pessoas queridas como minha esposa. Pode ser um tanto tarde para me desfazer de tal talento, mas não estou totalmente mor­to ainda.

— E o que acha que pode fazer por lady Nicole? — Gaspar olhava para Milo, de braços cruzados.

— Recusar-me a beber essa porcaria que você pre­parou para mim. Enquanto eu estiver vivo, não poderá se casar com ela.

Gaspar tirou uma adaga de dentro da bota.

— Posso cuidar desse detalhe agora mesmo. — Aproximou-se de Milo.

— Como pretende explicar minha morte?

De costas para Nicole, Gaspar fingiu que desferia golpes de adaga contra Milo, um cruel divertimento.

— Encontrarei uma explicação — ele garantiu. Milo erguia a bengala, como se pudesse defender-se com ela. Seu corpo tremia.

Nicole olhou ao redor, procurando encontrar algo que pudesse usar como arma contra Gaspar. Foi então que vislumbrou uma pedra de considerável tamanho. Pegou-a, enquanto caminhava silenciosamente na dire­ção de Gaspar que, de costas para ela, chutava as per­nas de Milo, fazendo-o cair sobre um monte de feno.

Erguendo a pedra, a fim de ganhar impulso, Nicole desferiu um forte golpe contra a cabeça de Gaspar. O homem resmungou, enquanto ela desferia o segundo golpe, ainda mais forte. Ela devia tê-lo atingido num ponto vulnerável, pois ele perdeu os sentidos.

— Minha querida, tem mais talentos do que eu po­deria jamais imaginar — Milo elogiou Nicole, enquan­to ela recolocava a pedra no chão e o ajudava a erguer-se, apoiado contra o ombro dela.

—Vamos sair depressa daqui, antes que esse monstrengo acorde. — Carregou Milo para fora do estábulo, fechou as portas e colocou a barra de ferro que servia de tranca, deixando Gaspar do lado de dentro.

Milo abraçou-a.

— Acho que vou ficar aqui fora — ele decidiu. — Quero respirar um pouco de ar fresco.

Nicole levou-o até uma grande árvore e ajudou-o a acomodar-se à sombra.

— E melhor você se apressar — ele recomendou —, do contrário, não conseguirá alcançar Alex.

— Você está bem?

— Estou sim, não se preocupe. Procure Alex e case-se com ele.

— Já sou casada, lembra-se?

— Olhe para mim, querida — Milo murmurou com serenidade. — Quanto tempo acha que ainda vou viver?

— Milo...

— Tentei não encarar a realidade de que logo es­tarei deixando este mundo. Você fez o mesmo. Estou morrendo e nós dois sabemos disso. — Ele acariciou o rosto de Nicole. — Vá procurar Alex, se quiser me dar alguma alegria. Apresse-se.

Ela o beijou na testa com ternura.

— Estarei de volta o mais breve possível. — Assim dizendo, montou Zurie e saiu a galope.

Nicole galopava em direção ao Norte o mais rápido que podia. Rápido demais, talvez, pois a certa altura do caminho, Zurie tropeçou, lançando-a ao chão.

Erguendo-se, ela aproximou-se da égua e acariciou-lhe o pescoço, a fim de acalmá-la. Em seguida, agachou-se para examinar as pernas da égua. Sentiu-se exasperada ao constatar que havia uma ferida na par­te traseira de uma das pernas. Era provável que um dos tendões tivesse se estirado durante o trajeto.

Sem poder contar com a ajuda da égua, amarrou-a ao tronco de uma árvore e seguiu seu caminho a pé. Sabia que levaria mais tempo para chegar a seu des­tino agora, mas sem deixar-se esmorecer, apertou o passo. Era possível que em algum dos casebres mais à frente alguém tivesse um cavalo para vender.

Tinha caminhado alguns quilômetros, quando ouviu barulho de cascos contra o chão da estrada. Alguém se­guia a cavalo por aquele caminho atrás dela. Ouvindo com mais atenção, percebeu que mais de um cavalo se aproximava, talvez três ou quatro.

O barulho de cascos foi se tornando cada vez mais próximo. Nicole voltou-se e, para seu desespero cons­tatou que era Gaspar, acompanhado de Vicq e Leone, que buscavam alcançá-la com certeza.

Mais que depressa, ela embrenhou-se por entre as árvores da floresta que ladeava a estrada. Logo detec­tou um som de passos atrás dela.

Era impossível andar sem fazer barulho por causa do chão coberto pelas folhas secas de outono. Ela corria com o coração aos saltos, sabendo que se fosse alcança­da por aqueles homens, estaria em grande perigo.

Um som de risos debochados chegou aos seus ouvi­dos. Gaspar e seus capangas estavam próximos. Ten­tou correr, mas logo alguém agarrou-a pelo braço, jogando-a ao chão, com a face por terra.

Gaspar colou seu corpo sobre o dela, até que ela fi­casse quase sem ar.

O homenzarrão levantou-se, então, e com a marreta na mão ordenou que ela se levantasse.

— De pé, vamos! — Ele chutou um dos pés dela. — Eu mandei você ficar de pé! — Agarrou os cabelos dela e enrolou-os em torno da mão, para então fazê-la levantar-se à força, puxando-a pelos cabelos entre­meados de folhas e gravetos.

Gaspar arrastou-a por vários metros, até colocá-la com as costas contra uma árvore.

— Ela até que não parece ser a mulher nobre e orgu­lhosa, que foi nossa patroa, não acham? — Ele ainda se­gurava os cabelos de Nicole. Vicq e Leone gargalhavam.

Gaspar afastou os cabelos de seu rosto.

— Olhem só essa imunda. Suja por fora e mais suja ainda por dentro.

Baixando os olhos, Nicole viu que sua túnica estava suja de poeira e sangue, além de rasgada.

Gaspar soltou-a e afastou-se para fitá-la.

— Braços abaixados, um a cada lado do corpo, va­mos! — ele ordenou. — E não se mexa até que eu lhe diga o que deve fazer. E vai obedecer direitinho, goste ou não.

— Espero que queime no fogo do inferno — Nicole retrucou.

No instante seguinte, a cabeça de pontas de chumbo da marreta de Gaspar estava contra o pescoço dela. Ele pressionava a arma, a ponto de deixá-la quase sem ar.

— Abaixe os braços — Gaspar voltou a ordenar e, sem alternativa, Nicole obedeceu. — Assim está bem melhor, não acha? — Ele diminuiu a pressão da arma contra o pescoço de Nicole e ela pôde respirar. — Devo dizer que fiquei muito zangado ao acordar naquele estábulo e descobrir que você tinha me trancado lá den­tro. Tive que gritar a plenos pulmões até que aquele garoto idiota viesse abrir a porta para mim. Seu mari­do provavelmente teria impedido o empregadinho de abrir a porta, se ainda estivesse vivo.

Nicole fitou os olhos de predador de Gaspar.

— É, sim, milady. Aquele farrapo humano está mortinho. Encontrei o traste caído sob a árvore com o cálice vazio ao lado do corpo. Embora não fosse mais gente, acredito que ele pretendesse fazer um favor a milady e ao nobre primo, Alex de Périgeaux.

Nicole fechou os olhos que as lágrimas faziam, ar­der. Em favor... Milo sacrificara a própria vida para que ela pudesse se casar com Alex, sem qualquer impedi­mento. Prometeu a si mesma que rezaria pela alma de Milo todos os dias de sua vida, caso sobrevivesse àquele momento de violência.

—A parte divertida disso tudo é que aquele cavaleiro miserável não vai se beneficiar do nobre sacrifício do pri­mo. No fim das contas, foi a mim que ele favoreceu.

— Se acha que pode me persuadir a me casar com você...

— Cale-se! — Gaspar voltou a pressionar a cabeça da marreta contra o pescoço dela, até fazê-la engasgar. — Quando eu quiser que você use essa boquinha ado­rável — introduziu o polegar entre os lábios dela —, avisarei. Até lá, recomendo que fique calada.

Nicole fechou os olhos, trêmula.

— Olhe para mim!

Ela abriu os olhos e viu que Vicq e Leone contem­plavam seu corpo com olhares cheios de lascívia, exci­tados pela maneira como Gaspar a maltratava.

— Pode voltar a se casar agora. — Gaspar a fez lem­brar. — E vai se casar comigo. Périgeaux fez o serviço e foi embora. Está a milhas de distância agora, feliz por ter se livrado de você.

Gaspar afastou a cabeça da marreta do pescoço de Nicole e começou a passar o cabo da arma pelos seios dela e pelo ventre. Ela retesou o corpo, quando ele pressionou o cabo entre suas pernas.

— Por quinze anos espero para ter esse seu corpinho à minha disposição e, acredite, tenho uma imagi­nação que não conhece limites. Pensei em milhares de maneiras de humilhar você, de fazê-la implorar para que seja poupada. Aqui, longe de tudo, quem iria ou­vir seus gritos e súplicas? Depois que tiver me fartado com você de todas as formas possíveis, será a vez de Vicq e Leone se divertirem um pouco. Se ao final de tudo isso ainda estiver viva, mataremos você e enter­raremos seu corpo na floresta. Nunca mais ouvirão fa­lar de Nicole de St. Clair.

Nicole sentia-se cada vez mais aterrorizada, en­quanto tentava pensar em uma maneira de livrar-se daquela situação.

— Quase consegui ter você uma vez. — Gaspar re­tomou o sádico discurso. —A velha Edith fez tudo que mandei e você tomou seu vinho enriquecido com uma dose de valeriana. Pobre Nicole, o doutor teve que san­grar o braço dela.

Nicole lembrou-se da noite em que tinha sido to­mada por alucinações e espasmos. Lembrou-se do mascarado que ameaçara cortar fora o nariz dela. Era Gaspar.

— Infelizmente, Périgeaux escolheu aquele exato momento para subir até o solar e se divertir com você. Não pude concluir o que havia começado. — Gaspar diminuiu a pressão do cabo da marreta entre as coxas de Nicole. — Mas podemos conversar como gente civi­lizada. Sei de uma maneira de não ter que submeter-se a maus-tratos e ainda continuar viva depois desta noite. Case-se comigo.

— Não!

— Não aceitaria jamais se casar com alguém que não seja nobre, não é cadelinha mimada? Mas tudo bem, tire a roupa.

— O quê?

— Tire a roupa ou Vicq e Leone é que farão isso.

Nicole percebeu um movimento, uma forma por en­tre as árvores da floresta densa. Era um homem. Deus do céu, era Alex!

— Vamos, tire! — Gaspar ameaçou, enquanto desferia uma violenta bofetada contra o rosto dela.

Mesmo atordoada pela violência do golpe, Nicole pensou que o melhor que tinha a fazer era ganhar tem­po, a fim de que Alex pudesse posicionar-se melhor.

— Está certo. — Fingiu resignação. — Eu mesma vou tirar a roupa. — Ela desatou um dos cordões que prendiam a túnica. Com mãos trêmulas, fazia tudo bem devagar.

— Mais depressa, ou eu mesmo me encarrego de reduzir sua roupa a farrapos!

O que aconteceria quando Alex os surpreendesse, Nicole perguntava-se. Afinal seria um contra três. Ela pôs-se a rezar para que tudo acabasse bem, enquanto abaixava a túnica até a cintura. Felizmente, a roupa íntima cobria seu corpo.

Os homens olhavam para ela extasiados.

Naquele momento, Alex surgiu, saltando para a frente, espada em punho. Os três homens ouviram o ruído que ele fizera propositadamente.

Nicole foi rápida e passou o cinto em torno do pes­coço de Gaspar, apertando tanto quanto era capaz de fazer. Para aumentar a pressão, jogou o peso do corpo sobre as costas do homenzarrão. O espanto de Gaspar foi o suficiente para imobilizá-lo por alguns segundos.

Leone pegou a adaga, enquanto Vicq balançava o porrete. Alex passou sob a arma de Vicq que voltou-se para encará-lo. Enquanto se movimentava, tentando desviar-se da espada de Alex, Leone correu para trás dele e enfiou a adaga na parte superior de seu braço direito. Vicq balançou o porrete. Lançando a espada contra a arma, Alex conteve seu movimento, para em seguida, num único golpe certeiro, cortar fora a cabeça de Vicq. O corpo acéfalo movimentou-se ainda por al­guns instantes e, então ficou imóvel para sempre.

Diante daquela cena, Leone lançou a adaga ao chão e fugiu dali apavorado, embrenhando-se pela mata, deixando Gaspar sozinho para lidar com Alex.

Os dois homens se encararam naquele duelo final.

— Você está bem, Nicole — Alex indagou.

— Estou. Fique atento e cuide-se.

— Achei que estivesse a caminho da Inglaterra — Gaspar comentou, tentando distrair Alex. Sabia que deveria levar a melhor, uma vez que o braço do opo­nente estava bastante ferido.

— Mudei de idéia.

— E o tal juramento que fez a seu primo?

— Tive que quebrá-lo, mas tenho certeza de que Deus já me perdoou.

Os dois homens se encaravam enquanto se movi­mentavam em círculos. Quem sabe, num momento de desatenção, um deles levasse a pior.

— Volte para Peverell, Nicole e fique com Milo — Alex pediu.

— Milo está morto, Alex. Eu não vou sair daqui. Por favor, não insista. — Ela abaixou e pegou a adaga que estava no chão.

Naquele instante, Gaspar bateu com a marreta con­tra o braço ferido de Alex, fazendo com que a espada caísse de sua mão.

— Vá embora, Nicole! — Alex gritou, enquanto esti­cava o braço para reaver a espada.

Gaspar, porém, a chutou para bem longe.

Sem demora, Nicole jogou a adaga para Alex. A arma caiu perto dele. Alex agarrou-a e, erguendo-a, enfiou-a no abdômen de Gaspar num golpe certeiro.

A marreta caiu das mãos de Gaspar.

— Você me matou, miserável — ele ainda conse­guiu dizer antes de suspirar e cair pesadamente sobre o chão.

 

Julho de 1074, Cambridgeshire, Inglaterra

— Aqui está você! — Alex exclamou à porta do quarto, ao ver Nicole sentada à escrivani­nha, trabalhando à luz do crepúsculo. — Eu devia ter adivinhado. Ele acariciou as costas do bebê que se agi­tava em seus braços, com a mão dentro de sua camisa, como que a procurar por algo. — Este bebê está que­rendo alguma coisa que eu não posso dar.

Nicole voltou-se e brindou-os com um de seus sorri­sos radiantes. Vestida de branco, os cabelos brilhando à luz do sol que ainda resistia, ela mais parecia ser um anjo. Alex nunca havia se sentido tão abençoado.

— Tenho prazer em servir essa coisinha linda — ela brincou, enquanto atravessava o cômodo espaçoso para ir sentar-se à beira da ampla e confortável cama de casal. Uma vez sentada, desatou o laço que prendia a túnica que trajava.

Alex balançava de leve o bebê, enquanto Nicole se preparava para receber o pequeno nos braços. E pen­sar que nunca havia desejado ter filhos, até que sua semente começara a desabrochar no segredo do ven­tre de Nicole. Então, para oferecer a ela e ao filho de ambos um lar, tinha acabado por aceitar a extensa propriedade de Cambridgeshire, que o rei William lhe oferecera pelos serviços prestados à Coroa britânica.

A casa principal da propriedade era grande a ponto de ser imponente. As janelas amplas tomavam o interior arejado e bem iluminado e, portanto, radioso. O quarto do casal, porém, era o lugar preferido de Alex, onde ele se sentia mais à vontade. O cômodo ocupava todo o an­dar superior e, em tudo, havia a marca do bom gosto de Nicole. Tapetes coloridos adornavam as paredes alvas. A cama era protegida por um cortinado de cor clara e havia um vaso de girassóis sobre a escrivaninha.

— O que estava escrevendo — perguntou.

— Leia você mesmo — Nicole sugeriu.

E pensar que um ano antes ela é que precisava ler para ele. Levantando a folha de papel sobre a qual Nicole havia escrito, Alex constatou que tratava-se de uma carta, ou melhor, do início de uma.

Querido frei Martin, amado companheiro. Quero que saiba o quanto sinto sua falta. Penso muito no se­nhor, esperando que esteja bem e tentando imaginar que coisas novas andou descobrindo e fazendo. Embora sinta falta de sua amizade, encontrei na Inglaterra a felicidade que jamais havia conhecido antes.

Obrigada por ter supervisionado a administra­ção de Peverell durante minha ausência. O guardião apontado pelo senhor tem me mantido bem informada quanto às novas melhorias da propriedade, inclusive com respeito aos moinhos de vento que o senhor proje­tou e ergueu, além da máquina de olhar as estrelas que está construindo no campo de esportes. Gostaria muito de ver tudo isso.

Meu marido e eu estamos orgulhosos e cheios de jú­bilo, querido frei, pelo Senhor Deus ter-nos abençoado com uma criança forte e saudável. Não há como des­crever nossa alegria em palavras. Ficaria, no entanto, muito agradecida se o senhor informasse ao abade que a escritura de Peverell deverá ser transferida imedia­tamente à Igreja, pois Alex e eu temos uma filha.

— Estou pronta — ela avisou, estendendo os braços para receber o bebê.

Alex recolocou a carta inacabada sobre a escri­vaninha e entregou o bebê à mãe, que logo se pôs a amamentar o filho. Alex observava com enlevo a cena repleta de doce intimidade. Ele sorria ao constatar a avidez com que o pequeno sugava, enquanto manti­nha a mão pequenina sobre o seio da mãe, como se fosse o novo proprietário dela.

O semblante de Nicole sempre resplandecia de con­tentamento ao amamentar o filho. Desta vez, porém, Alex percebeu um certo ar de preocupação no rosto dela.

— Acha que é pecado mortal mentir para um ho­mem do clero? — Ela quis saber a opinião do marido.

— Frei Martin é um homem sábio e quer o melhor para você. Ele compreenderia.

— Desfazer-me de Peverell é o melhor para mim — ela admitiu. — Mas será que é o melhor para nosso filho? Peverell é uma das propriedades mais impor­tantes da Normandia. Estaremos enganando nosso filho ao privá-lo de Peverell?

Alex acomodou-se sobre a cama atrás de Nicole, para que ela pudesse apoiar o corpo contra o peito dele. Aquilo era o que Alex mais gostava: de estarem juntos os três, Nicole, o bebê e ele.

— Nosso filho vai herdar esta propriedade e até mesmo poderá vir a ter outra melhor que esta.

— Sei disso, mas Peverell é...

— Um lugar velho e sombrio — Alex concluiu, bei­jando os cabelos de Nicole.

— Tem razão.

— Além disso, muitas memórias tristes estão enter­radas lá. — Ele beijou de leve o rosto da esposa e sentiu com prazer aquele perfume de rosas com especiarias tão próprio de sua Nicole, misturado a um cheirinho de bebê e leite. Guardaria a lembrança daqueles aromas em seu coração e em sua memória para sempre, pois era um tesouro de valor incalculável. — O que vamos fazer de agora em diante é colecionar recordações no­vas e felizes aqui mesmo na Inglaterra.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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