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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUA CARMESIM / Eddie Van Feu
LUA CARMESIM / Eddie Van Feu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em 15 de abril de 1620, um homem chamado Grégoire de Javert foi condenado à fogueira por bruxaria. Era uma época implacável para aqueles que se levantavam contra a Igreja e ousavam alardear suas próprias crenças. Era também uma época implacável para as vizinhas encrenqueiras, os homens antipáticos e as mulheres muito feias. Cedo ou tarde, todos teriam um dedo ou mais apontando para si com a nefasta acusação de “Bruxa!” ou “Feiticeiro!”. Muitos foram arrastados para os salões de justiça e torturados até confessarem. Muitos não eram culpados de nada, mas seus destinos estavam selados. Muitos inocentes morreram sem conseguir ser ouvidos...

Não era o caso de Gregoire de Javert. Ele não era inocente e praticamente a cidade inteira ouviu seus gritos, xingamentos e blasfêmias enquanto era arrastado pelas ruas de Paris. Javert não era um homem bom. Nunca foi. Torturou gatos, chutou cachorros e tinha prazer em bater em crianças e roubar mulheres. Quando descobriu velhos livros de magia de sua avó, já completamente senil, passou a usar as receitas de poções e feitiços a seu bel prazer.
Descuidado e tolo, era óbvio que um dia iria parar ali, onde encontrou seu fim. Morreu numa noite quente, proferindo maldições sinistras a todos os presentes e suas futuras gerações. Ao mesmo tempo, muito perto dali, morria também Jean-François de Fronsac, bispo de Luçon. Em sua cama, deitou para esperar o chá, sentindo-se muito cansado.
Foi rápido. Num momento, estava deitado pensando em assuntos de Deus. No momento seguinte, estava de pé, ao lado de sua própria cama, vendo seu próprio corpo inerte. Mais jovem e nem um pouco surpreso, o espírito do bispo pensava na batata quente que estava deixando para seu sucessor. Em suas gavetas secretas, documentos que revelavam a existência de cidades inteiras habitadas por criaturas ferozes aguardavam em silêncio. A Inquisição andava sedenta e seria difícil manter o segredo por muito tempo. Rezaria para que alguém, acima dele, pudesse controlar a situação e que seu sucessor fosse alguém de espírito suave e temperamento tolerante. O bispo nunca gostara de execuções e todo aquele sangue derramado sempre lhe dava dor de cabeça (curável com um bom vinho tinto).
O bispo suspirou. Pensou nos irmãos belicosos que assumiam cargos cada vez mais elevados dentro do Clero. Se algum desses soubesse das Cidades Secretas, uma busca insana começaria. Já foram atrás das cidades secretas antes. E foi uma página tão infeliz da história da Igreja que se tornou proibida. Tocar no assunto gerava sinais da cruz e pelos eriçados.
Um noviço entrou no quarto do bispo carregando uma bandeja com chá. Estancou surpreso, pressentindo a presença da morte. O relógio havia parado e uma última pétala de uma rosa morta a descansar num vaso caiu lentamente. O noviço constatou o que já sabia e saiu correndo, deixando a bandeja cair no chão e gritando a morte do bispo.
– Diabos... – murmurou o bispo. – Vai começar toda a confusão...
Deu de ombros e seguiu a estrada de luz que surgiu pela janela aberta. Uma golfada de vento apagou a vela em sua cabeceira e, enquanto um fio de fumaça desenhava caminhos tortuosos no ar, o bispo seguiu pelo caminho reto de luz azulada que cortava a cidade na noite. Vivera muitos anos e fizera o que pôde. Cometeu lá seus pecados e seguia de cabeça erguida para dar conta de todos eles. Quanto aos problemas da Igreja, deixava-os todos para trás com alegria.
– A partir de agora, estou dormindo... – disse o bispo, enquanto caminhava. – Eles que deem seu jeito!
Lá embaixo, um espírito chamuscado ainda xingava na praça vazia, onde um corpo transformado em cinzas jazia em meio a um punhado de lenha ainda quente, de onde se erguia uma débil fumaça enegrecida. A alma olhou para cima, atraída pela luz azul, e viu o bispo em suas vestes de missas domingueiras passar em passos rápidos e saltitantes.
Grégoire de Javert apertou os olhos e rangeu os dentes.
– Isso não é justo! – gritou, os punhos cerrados balançando no ar. – Ele só vai para o Céu porque é um bispo e é rico!
– Não, meu amigo – respondeu uma voz atrás dele. – Ele vai para o Céu porque é um homem bom.
Grégoire se virou e viu um homem, um outro espírito tão coitado quanto ele, sujo e maltrapilho, sorrindo-lhe um sorriso sem dentes.
– E quem é você pra saber disso? – perguntou o bruxo, olhando com desdém para o homem que parecia um indigente.
– Eu? – sorriu o homem. – Eu sou o Papa!...
Confuso, Grégoire olhou novamente para a estrada de luz que desaparecia acima de sua cabeça, devolvendo a praça à escuridão da noite que escondia suas mazelas. Suspirou longamente. Então era isso... Não havia mais desculpas, nem a quem culpar. Sua ira deu lugar a uma súbita conformidade.
– Então... Eu terei que ser bom da próxima vez... – concluiu o bruxo, conformado.
O Papa se aproximou, tocando-lhe o ombro.
– É... – concordou. – Mas vai ter que se esforçar muito!
Deu uma risadinha e terminou.
– É mais difícil do que ser Papa!

 


 


Sob aquele mesmo céu estrelado, a muitos quilômetros dali, num castelo entre as montanhas, a floresta abrigava uma pequena cidade secreta, uma das que dividia a alta hierarquia do clero, assustava os humanos e aumentava o brilho nos olhos dos mais gananciosos que esperavam encontrar tesouros jamais vistos protegidos por bestas, feras de longas e fatais presas. Nessa noite, a cidade estava desperta e mais de duzentos archotes iluminavam os belos jardins que cercavam o castelo, parecendo muito menos secreta e sinistra do que imaginavam os humanos que dela ouviram falar. Entre música e dança, a noite estava vestida de beleza e alegria. As mulheres usavam suas mais belas joias com vestidos de cetim e brocado e os homens sorriam em seus casacos elegantes de veludo.

Mesmo as noites mais iluminadas possuem recantos escuros. Entre os risos e os olhares cintilantes, havia também inveja e ódio. No segundo andar, o senhor do castelo, Jean Lamayer, o Duque das Vertentes, observava com expressão dura os cinco convidados inesperados. Fazia muito tempo, mas algo que sempre tivera foi boa memória.

Um dos indesejados visitantes lá embaixo ergueu uma taça em um brinde cínico. Sabendo o que são e do que são capazes, o Duque ainda assim deve permitir que comam e bebam da sua mesa, sorrindo-lhe com suas presas carniceiras. Lamayer crispou os dedos no mármore. Além da boa memória, também tinha o senso de dever. Devia respeitar o acordo. E respeitaria. Mas isso não significava que seria agradável. Lembrar do acordo não implicava em esquecer quem eram.

Os cinco convidados começaram a circular, interessados nos comentários que todos teciam. Estavam acostumados a chamar a atenção, pelo charme natural que exalavam como flores da noite e pelas suas belas vestes. Era uma surpresa que não fossem o alvo do burburinho que se instalara no baile.

– Ela é linda! – disse uma senhora de vestido verde musgo. – E porta-se como uma dama! Quem diria que há pouco era um animal?

– Antes eu tinha minhas dúvidas... – respondia um senhor de bigodes escuros. – Mas vendo o que vejo, acredito que ela sem dúvida será nossa nova rainha!

Michel Decartier riu, surpreso, saindo de perto do casal antes que notassem que ouvia sua conversa.

– Ora, ora, Michel... – disse a si mesmo, sorrindo enquanto bebericava a taça de vinho que há pouco elevara num brinde sarcástico ao Duque. – Você tinha que colocar o olho logo numa rainha e seu consorte!...

Conforme andava pelo salão, aguçando os ouvidos e esticando o comprido pescoço, Michel percebeu que todos os comentários recaíam sempre sobre o belo casal que bailava em passos perfeitos, o mesmo casal que lhe chamara tanto a atenção assim que entrou. A moça tinha os traços suaves emoldurados por um cabelo cor de prata que nunca vira antes e vestia branco com detalhes em vermelho e ouro. Seus olhos brilhavam como o lago sob a Lua cheia e ela sorria o tempo todo.

– Está apaixonada... – comentou Louis Volaire, aproximando-se do amigo.

Michel não disfarçou a surpresa. Voltou sua atenção então para o rapaz que dançava com ela, um jovem de tez morena e olhos cintilantes. Os cabelos negros como as asas de um corvo refletiam tons de azul e caíam-lhe pelas costas presos num elegante rabo de cavalo. O rapaz também lhe sorria e não tirava os olhos dela.

– Ora, vejam só... – sorriu Michel. – Estão ambos apaixonados!...

– É, uma bela história de amor com final feliz... – concordou Louis sem muito entusiasmo. Na verdade, a felicidade do jovem casal de repente o irritara, pois era uma lembrança do que jamais teria.

– Será mesmo? – Michel apontou para um jovem que parecia à beira de uma explosão, do outro lado do salão. – Pois me parece que nem todos estão felizes com essa história de amor...

O jovem do outro lado da sala era Ravin Denvier e ele estava furioso. Aquele que chamava de mestiço e que não deveria jamais se misturar aos de sangue puro, ainda mais os nobres, ousava estar ali. Mais do que isso, ousara enfrentá-lo minutos antes, sujeitando-o a uma humilhação que poderia lhe custar a vida e, não sendo isso o suficiente, agora afrontava o Clã dos Lobos Brancos dançando com a futura rainha. Sua própria acompanhante e futura noiva, Celine Lamayer, o deixara para ir falar com um mestiço! Sentia-se aviltado e estava a ponto de causar uma confusão sem precedentes.

– Fique calmo, Ravin! – pedia-lhe o amigo Jacques. – O Duque lhe disse que não fizesse nada!

– O Duque deve ter ficado louco! – dizia Ravin, sem conseguir se conter. – Isso é uma provocação! Ele é só um mestiço, não poderia sequer estar aqui entre nós!

– Mas foi Prateada quem o convidou! – retrucou Albert, um amigo que também compartilhava de suas ideias, mas sabia quando lutar por elas. – Não arrume confusão, Ravin!

A música chegou ao fim e todos aplaudiram os músicos. Lamayer descera e se aproximou do jovem casal. Pegou na mão de Prateada e lançou um olhar para Philippe, que, entendendo o recado, afastou-se elegantemente com um cumprimento de cabeça.

– Senhores! – disse o Duque, a voz ecoando poderosa pelas paredes do castelo. – Hoje é uma noite para ser lembrada. Hoje é a noite em que apresentamos a vocês a primeira Loba Branca totalmente pura de que se tem notícias: Prateada!

Prateada fez uma leve e cortês reverência enquanto os aplausos enchiam o aposento como asas de pássaros numa gaiola.

– Ela está em treinamento, e em breve conhecerá outros Châteaus – continuou o duque. – Na competição pelo trono, ela será nossa melhor chance de levar os Lobos Brancos novamente ao seu lugar de merecimento.

Alguns presentes tinham seus próprios candidatos, filhos ou enteados preparados desde a infância para a competição. Mas todos sabiam que ter uma Loba Branca pura na disputa colocava o trono no poder dos Lobos Brancos quase imediatamente. A grande maioria retiraria seus candidatos e apoiaria a Loba. A única coisa que poderia fazer com que mudassem de ideia era, por algum motivo, acreditarem que ela não se adaptaria às regras sociais impostas a qualquer um que faça parte da realeza. Até o momento, para as pessoas naquela festa, Prateada se mostrara uma verdadeira dama.

– Será uma rainha, sim! Uma rainha que tem por amigo um mestiço!

O comentário foi feito mais alto do que esperava, mas Ravin não conseguira ficar calado. Apenas um pequeno grupo de moças o ouviu. Olharam-no com espanto, deixando de ouvir o duque por um momento.

– Um mestiço?! – espantaram-se elas.

– Foi o que eu disse! – confirmou Ravin.

As moças se olharam entre si, incrédulas. A seguir, olharam para Phillipe, de pé, a alguns passos delas.

– Nossa!!! – riu uma delas, empolgada com a contravenção. – Mas ele é tão lindo!!!

Ravin percebeu, horrorizado, que sua aversão por mestiços não era compartilhada por todos. As jovenzinhas foram serelepes ter com Phillipe, cercando-o de sorrisos e esperando avidamente um convite para uma dança.

– Assanhadas! – reclamou uma voz feminina vinda de trás dele.

Celine estava de braços cruzados, visivelmente irritada com o assédio das moças em cima de Philippe.

– Me admira que você não esteja lá também! – retrucou Ravin.

A moça lançou-lhe um olhar dardejante com olhos apertados e lábios entreabertos de surpresa pela ofensa.

– Por quem me toma, Ravin?!

– Pois lamento se a ofendi, mas não pensou duas vezes em ir atrás dele assim que ele entrou!

Uma bofetada explodiu no rosto do rapaz, que virou-se perplexo para sua dama apenas para encarar seus olhos furiosos e vê-la ir embora, enquanto os aplausos abafavam o tapa dado.

– Um mestiço? – riu Michel, ao ouvir a novidade. – Não brinca?!

– Pois foi o que eu ouvi – contava Beatrice, saboreando o doce sabor da fofoca. – Disseram que é filho de um nobre do Clã com uma humana, mas nunca se transformou. A mãe morreu quando era criança e, ao que parece, ele caiu nas graças da futura rainha deles.

– Como isso foi acontecer? – surpreendeu-se Louis. – Os Lobos não suportam humanos, muito menos os filhos de amores ilícitos deles!

– Ora, meu caro! – riu Nicole. – Olhe para o rapaz! É a criatura mais bela que eu já vi na minha não-vida! Qualquer um se encantaria por ele e aposto que a futura rainha não é exceção!

– Mas vocês ainda não ouviram o mais interessante! – continuou Beatrice, depois de um longo gole de vinho. – A moça de cabelos prateados, a futura rainha, até há pouco tempo era uma loba, o filhote mais fraco de uma ninhada de lobos comuns. Quem a criou foi o rapaz que dançou com ela, o mestiço Philippe. Numa noite, há alguns meses apenas, quando o Duque ia separá-los para punir o rapaz por alguma besteira que ele fez, a loba se transformou em mulher.

– Jura?! Tem certeza disso? – Michel estava atônito. – Porque nunca ouvi falar de uma fêmea que tenha se transformado! São sempre os filhotes machos e mesmo estes são raríssimos!

– Bom, foi o que ouvi – concluiu Beatrice, terminando com seu vinho cor de sangue.

Michel olhou longamente para Philippe, agora cercado de moças sorridentes que o arrastavam para o salão numa dança circular.

– Que interessante...

Tomou um gole do vinho e fez uma careta. O gosto estava partindo e começando a se tornar parecido com uma mistura de água, terra e fumo.

A noite prosseguiu, o ar repleto do aroma das flores e de óleo perfumado. As estrelas se sustentaram no céu e nenhuma nuvem o maculou, até que os convidados começaram a ir embora. Prateada e Philippe se despediram docemente e o rapaz, montado num belo cavalo branco, partiu.

 


A noite estava clara e logo chegou em sua casa. O casebre caindo aos pedaços não tinha nada a ver com as roupas finas e o cavalo de príncipe e quem o visse ali o acharia totalmente fora de contexto. Entrou e acendeu um velho lampião já escurecido pelo tempo, o mesmo lampião que sua mãe acendeu diversas noites muitos anos antes. Não conseguiu se conter e dançou sozinho, imaginando Prateada em seus braços. Então jogou-se na cama de colchão de palha, brilhando de felicidade.

Desde que chegara ao Château das Vertentes, quando era apenas uma criança escondendo-se atrás do vestido de Elle, sua mãe, Philippe não vira o lado bom daquelas pessoas com frequência. Nunca o deixaram esquecer sua condição de mestiço e as palavras ásperas o machucavam tanto quanto os golpes que lhe infringiam. Depois da morte da mãe, as coisas pioraram. Pioraram muito! Sua única esperança residia na Transformação, momento em que os jovens manifestavam sua herança, provando fazerem parte da grande Alcateia.

A Transformação chegava para os jovens entre 14 e 17 anos e a esperança – quase uma certeza – de que ele seria aceito naquela sociedade que sempre o excluíra era o que regia seus dias. Sempre que caísse a noite, poderia se transformar num lobo e participar das caçadas e rituais que o grupo fazia. Nas Luas cheias, como todos os outros, poderia se transformar em uma besta fera com mais de dois metros e presas afiadas.

O sorriso do jovem na cama esmaeceu, lembrando-se quando abandonara aquela esperança. Philippe já contava com 19 anos e todos da idade dele no Château das Vertentes já haviam se transformado. Pensou em partir dali, ver o mundo, buscar seu lugar, mas isso era proibido. Lembrou com amargor do desespero que o invadiu, impulsionando-o a cometer uma loucura. Achou que não tinha mais nada a perder. Mas tinha.

O Duque das Vertentes, um homem de olhos duros que nunca escondeu o quando o detestava, mesmo quando era apenas uma criança, como punição, lhe tirou seu único tesouro. A loba branca que sempre o acompanhava seria enviada para longe.

E foi nessa noite, quando a chuva caía fria e ele se despedia do animal que parecia compreender tudo o que ele falava e fazia, que a Transformação chegou.

Em seu abraço de adeus, a loba se transformou em humana, mudando tudo, não só em sua vida, mas em todo o Château e, como descobriria mais tarde, em todos os clãs de lobos.

Seu rosto relaxou e voltou a sorrir. Aquela noite, a primeira em que participara de um grande evento como um igual, parecia maior do que todos os dias negros que vivera. Ela o fazia acreditar em milagres. Seus olhos brilhantes atravessavam o teto furado e iam longe, até as estrelas, onde as pessoas não o viam como um mestiço, mas como a pessoa que sempre tentou ser. Imaginou-se de braços dados com Prateada, dançando com ela e passeando em grandes cidades. Naquela noite, finalmente, fizera parte de algo maior. No final, era só o que queria. Contra todas as sombras da realidade, agarrou-se ao fio de luz que lhe surgiu. E, envolto pelo brilho dos olhos e sorrisos, coberto pelo cintilar das estrelas e pelo sorriso da lua, adormeceu pensando numa vida nova.

E que vida seria!...

 


Capítulo 1


Os Visitantes

 

O dia chegou com um incrível céu azul acetinado sem uma única nuvem. A brisa da manhã trazia aquele agradável cheiro da floresta e o canto dos pássaros se misturava ao tilintar das xícaras no castelo. A maioria dos convidados ainda dormia, mas o Duque, bem cedo, já estava de pé. Tomava o café com Fernand, seu administrador há vários anos e que herdara essa função do pai. Homem pouco criativo, Fernand era um tanto quanto viciado em controle, mas talvez fosse essa característica que o tornasse muito bom em deixar os assuntos do château em dia.

Os dois homens acertavam os detalhes da programação daquele dia. Os convidados de três châteaus próximos só partiriam no dia seguinte. Era preciso fazer boa figura e deixar uma boa impressão para eles, espécie de embaixadores e fofoqueiros de plantão que levariam tudo o que vissem e ouvissem a outras festas e outros châteaus.

– Serviremos porco e batatas com arroz no almoço e estamos preparando um grande banquete para o jantar – dizia Fernand. – Para a tarde, haverá um passeio pela floresta para os que desejarem, enquanto os outros podem ficar na cidade para um campeonato de tiro ao alvo. À noite...

– Com licença...

O Capitão Diderot entrou, interrompendo o relatório de Fernand da complicada agenda do dia. Se o château teria problemas em funcionar sem Fernand para organizar as coisas, ele entraria em colapso sem o Capitão Diderot, braço direito do Duque e responsável pela guarda. Diferente de Fernand, cuja personalidade aborrecia um pouco o Duque, o Capitão conquistara não só sua admiração, mas também sua amizade. O problema era a estima que Diderot tinha por Philippe, o jovem mestiço que lhe causava constantes dores de cabeça. Lamayer sabia que a presença inesperada do mestiço na festa de apresentação de Prateada à sociedade do Clã dos Lobos Brancos não tinha sido um acidente (embora ele acreditasse que a presença de Philippe em qualquer lugar sempre fosse um acidente prestes a acontecer). Lamayer sabia que Diderot tinha algo a ver com o rumo dos eventos da noite anterior.

– Capitão... – disse Lamayer, com um olhar acusador.

Diderot sentiu que não escaparia impune. O problema é que já não sabia exatamente de quê, uma vez que fizera tantas coisas contra a vontade do Duque que estava difícil identificar o motivo daquele olhar.

– Calma, Capitão... – disse Lamayer, pegando um pedaço de bolo com as mãos. – Não precisa perder a cor... Não vou discutir com você.

O militar sentiu-se mais tranquilo. Era bom saber que podia contar com a tolerância do Duque, algo que vinha no pacote de qualquer amizade.

– Sente-se! – convidou o Duque. – Acompanhe-nos no café da manhã.

Constance serviu leite e chá enquanto Diderot desculpava-se.

– Lamento se fiz algo que o desagradou, senhor.

– Devo admitir que fez um ótimo trabalho, Diderot... – disse o Duque, observando-o com certa admiração.

O outro não entendeu. Franziu o cenho e meneou rapidamente a cabeça. Diante da nítida ignorância de Diderot, Lamayer explicou-se.

– A maneira como treinou o garoto a se portar. Admito que enganaria até a mim, se não soubesse que era apenas um mestiço.

– Agradeço o cumprimento, senhor – disse Diderot, sorrindo. – Mas o mérito não é meu.

Fernand riu, incrédulo.

– Então vai me dizer que não o ensinou a dançar e a cumprimentar as pessoas?!

– Não, não ensinei – respondeu o Capitão, de certa forma aliviado de não ser culpado daquela acusação, por mais que estivesse disfarçada de elogio.

– Alguém o ensinou – disse Lamayer. – Ele não aprendeu a dançar sozinho. Se não foi você, foi Emily.

– Emily não o ensinou a dançar – tornou o Capitão, sorrindo calmamente.

– Diabo! Quer me dizer que ele já nasceu sabendo? Saiu do ventre da mãe saltando e dançando ao som de uma orquestra, de mãos dadas com a parteira?

– Elle o ensinou, senhor. Assim como o ensinou a ler e escrever.

Fernand e Lamayer ficaram em silêncio, um tanto surpresos.

– Elle... – murmurou o Duque, como se precisasse dizer o nome dela para sua imagem voltar-lhe à mente. – Eu me lembro dela...

Seus olhos vagaram para longe. Lembrou-se da mulher de cabelos negros e olhos escuros como um abismo que o enfrentava de cabeça erguida e nunca se intimidou com sua posição.

– Era uma brava mulher... – murmurou, distante.

Subitamente, colocou a xícara sobre a mesa como se acordasse de um sono leve.

– Bom, isso não importa agora – disse, secamente. – Precisamos nos concentrar no dia de hoje. Fernand ajeitou as coisas para que nossos convidados fiquem confortáveis durante o dia e a noite, até sua partida amanhã. Capitão, você sempre fez boa figura e gostaria que os acompanhasse hoje.

– Sim, senhor.

– Mas tem outra coisa – o Duque fez um pausa, fechando o rosto. – É sobre nossos convidados inesperados...

– Quer que eu fique de olho neles... – deduziu o Capitão.

– Exatamente. Não sei quando partirão e provavelmente nem aparecerão durante o dia, mas, quando o Sol baixar... quero que peça aos seus homens para ficarem atentos.

– Não se preocupe, senhor – respondeu Diderot, tranquilamente. – Ficaremos de olho neles. Mas não creio que aprontarão alguma coisa. Afinal, temos o acordo.

Lamayer pareceu olhar para o nada, o rosto duro como pedra, meio encoberto pela sombra formada pela luz dourada que vinha da janela atrás dele.

– É... Temos o acordo...

 


No meio da tarde, a taberna já recebia muitos convidados. Vassalos, serviçais e soldados que acompanhavam as comitivas dos outros châteaus experimentavam o vinho e o famoso pernil com pão preto servido no Presas de Prata. Numa mesa perto da janela, Jacques, Ravin, Albert e Carlo conversavam sobre as indiscrições da noite anterior, enquanto, lá fora, nos jardins do castelo, moças corriam aos gritinhos nos jogos organizados para divertir os convidados.

– Ninguém acreditou quando o mestiço dançou com Prateada! – contava Albert. – Soube que alguns dos convidados ainda não sabem que ele é um mestiço!

– Não entendi como o Duque não o colocou pra fora! – disse Carlo.

– Ele não ia se indispor com Prateada na frente de todo mundo... – deduziu Jacques. – Além do mais, ele parecia preocupado com outra coisa!

– É verdade! – lembrou Albert. – O Duque não tirava os olhos daqueles dois casais com roupas extravagantes! Nunca os vi. Alguém sabe quem eram?

– Não importa quem eram! – retrucou Ravin, que até então não entrara na conversa. – O Duque não podia ter deixado que um mestiço imundo se misturasse conosco num baile!

Os rapazes se entreolharam, percebendo mutuamente o mau humor do amigo. Jacques tentou desconversar.

– Viram as moças de fora da cidade? Tinha algumas bem bonitas!

– É! – reclamou Albert. – E todas encantadas com o mestiço!

– Pois eu me diverti muito! – retrucou Carlo, orgulhoso de si mesmo. – Dancei a noite inteira com Bernadete! Eu até toquei na cintura dela!

– Acorda, seu idiota! Ela não tem cintura! – disse rispidamente Ravin.

Carlo olhou com desdém para Ravin e não pensou muito para responder.

– Está com inveja porque Celine, como as outras moças, passou a noite inteira olhando para o mestiço!

Num golpe brusco, Ravin bateu na mesa, derrubando alguns copos, e agarrou Carlo pela gola, puxando-o violentamente.

– Calma, Ravin! – apaziguou Jacques, segurando o outro. – Carlo só estava brincando!

Ravin ainda agarrando um assustado Carlo pela gola por alguns segundos, como se pensasse se quebrava seu nariz ou não. Então o jogou de volta na cadeira, os olhos fulminantes de ódio.

– Não me conformo em ver aquele mestiço no meio de nós! Quem ele pensa que é? Ah, mas ele não perde por esperar! Vamos lhe dar uma lição que ele não vai esquecer!

Os rapazes se entreolharam por um instante.

– Sei como você se sente, Ravin – disse Albert, seriamente. – Também não gosto de mestiços, e acho que eles jamais deveriam estar na presença de puros, ainda mais nobres como nós. Mas não acho que devamos nos meter com ele agora.

– Não me digam que estão com medo dele?! – exclamou Ravin, incrédulo.

– Dele, não! – tornou Albert, recostando-se na cadeira com um riso. – Temos medo de Prateada! Se aprontarmos alguma com ele agora, ela arranca nossas cabeças antes que consigamos dizer “ai”!

– Prateada não oferece perigo, seus frouxos! – insistiu Ravin.

– Isso é porque você não a viu avançando sobre Fernand quando ferimos Philippe! – interferiu Jacques. – Ela se transformou em plena luz do dia e jogou o coitado escada abaixo! Teria matado o infeliz se não fosse o Capitão! E eu nunca vi uma fera tão enorme e feroz como ela!

– Jacques tem razão, Ravin! – concordou Albert. – Não pode mais agir como agia antes! Se quiser pegar o mestiço de jeito, não pode ser à luz do dia...

Ravin olhou pela janela. Viu Prateada brincando com as outras moças.

– Que tipo de rainha ela será se não coloca a plebe em seu devido lugar? Pois então, que seja... Façamos isso por ela.

 


Na floresta, homens a cavalo perseguiam um porco vestido de cetim e usando um chifre de unicórnio. Os Lobos, em geral, não gostavam da caça por esportes, então se ocupavam com jogos por vezes ridículos, mas muito divertidos. Algumas moças participavam, assim como alguns rapazes. Vez por outra, alguns sumiam entre os arbustos e voltavam momentos mais tarde, com o cabelo fora do lugar... Outros preferiam participar dos jogos nos jardins do castelo, onde Prateada saltava e corria, com uma energia invejável.

Dormira nas nuvens, sonhando que estava nos braços de Philippe. Acordara envolvida pelas muitas atividades do castelo, onde se esperava que ela fosse agradável e bem comportada. Não estava sendo difícil. Quando tudo é novidade, é fácil se divertir. Vez por outra, olhava em volta, procurando por ele. Sentia sua falta e mal podia esperar para se encontrarem novamente.

Não precisou esperar muito. Logo, o rapaz surgiu nos jardins e, contra todas as recomendações do Duque, de Celine e de Constance, Prateada largou tudo e todos e correu para ele, saltando em seus braços. Ele a ergueu e a girou no ar, deixando as moças com o brilho da inveja nos olhos e os rapazes ligeiramente aborrecidos, embora não soubessem quem exatamente era aquele rapaz que tanto se destacara na noite anterior. As respostas às perguntas sobre sua identidade eram sempre evasivas e inconclusivas.

– Ainda bem que o Duque não está aqui... – sussurrou Constance, que já desistira de tentar fazer de Prateada algo que ela não era.

– O que fazemos? – perguntou Eponine, a outra criada, aflita. – Se o Duque o vir aqui, vai ralhar conosco!

– Deixe estar, menina! – riu Constance, cujo tempo lhe dera uma certa tranquilidade para as situações que pareciam fugir do controle. – Deixe estar que tudo se ajeita! Sou uma mulher velha, minha filha, e se há uma coisa que eu aprendi é que quando uma coisa não tem jeito, ela se ajeita sozinha!


Philippe recebeu a moça nos braços com alegria genuína, mas logo que percebeu os olhares dos outros, conteve-se. Prateada o puxou pela mão para que ele participasse dos jogos, mas o rapaz a puxou gentilmente de volta. Sussurrou-lhe algo e, fazendo uma mesura educada, despediu-se de todos. Apesar do inicial desapontamento, Prateada voltou ao grupo feliz, enquanto o rapaz tomava o caminho que levava à lateral do castelo.

Entrou discretamente na cozinha, onde costumava passar muito tempo no breve período em que viveu no castelo. Naquele dia, havia uma incomum movimentação de pratos, panelas e várias serviçais cortavam legumes e preparavam temperos. Quando o notaram, as moças que estavam cortando hortaliças sobre a grande mesa de madeira cutucaram-se umas as outras e deram risadinhas. Ligeiramente constrangido, Philippe entrou e se aproximou de Chalise, a robusta cozinheira, que lhe abriu um grande sorriso.

– Philippe!!! – exclamou ela, largando a colher de pau dentro da enorme panela fumegante. – Que bom vê-lo!

Abraçou o rapaz, amarrotando-o levemente, e voltou à sua panela, sem parar de mexer, nem de falar.

– Achei que tinha nos abandonado depois que saiu sem se despedir! E vocês aí! – gritou para as moças que trabalhavam à mesa e que agora estavam paradas olhando para o rapaz. – Continuem trabalhando!

– O que está havendo? – perguntou Philippe, estranhando tamanha movimentação.

– Ah... – suspirou Chalise. – Alguns dos convidados só partirão amanhã e o Duque vai lhes oferecer um banquete hoje à noite.

– Nossa... – Philippe olhava a quantidade de comida sendo trazida, temperada, cortada e preparada. – Nunca vi tanta comida...

– Acaso você irá hoje também? – perguntou Chalise, curiosa.

– Eu?! – espantou-se Philippe. – Não, não acho que seja possível...

– Por que não? – insistiu a velha senhora de olhos miúdos e brilhantes. – Você foi ao baile ontem, não foi?

Mais risadinhas foram ouvidas. Philippe sentiu-se mal por achar que estavam rindo dele.

– Chalise, eu não sou burro, embora às vezes pareça... – respondeu ele rindo. – Tive sorte de não acordar pendurado no tronco hoje pela minha ousadia de ontem! Não vou me arriscar a aparecer na frente do Duque e lembrá-lo de me dar uma surra para me colocar em meu lugar.

Chalise riu, concordando com a cabeça enquanto olhava para a imensa panela de cozido.

– Entendo... – disse ela. – Vejo que não perdeu por completo o juízo... Mas, me diga uma coisa...

Ela se esticou para ele com um sorriso maroto.

– Mesmo com todos os riscos, valeu à pena ter ido ao baile?

Philippe lhe devolveu o sorriso, sem malícia, sem astúcia, apenas com a sinceridade que as lembranças não lhe deixavam disfarçar.

– Valeu... Valeu muito à pena, Chalise... – respondeu ele.

– Ora, quem é que está aqui!...

François, que surgia na cozinha carregando alguns patos mortos, não parecia especialmente feliz em ver Philippe.

– O príncipe dos enjeitados! – exclamou, jogando os patos sobre a mesa.

François fez uma reverência sarcástica a Philippe, que não entendeu a animosidade. Costumava ter um bom relacionamento com ele. Não chegaram a ser grandes amigos, mas sempre conversavam, especialmente sobre o amor secreto de François, Brigite, uma criada do castelo.

– Olá, François... – cumprimentou Philippe, fazendo vistas grossas ao tratamento pouco polido que o outro lhe dispensou.

– A que devemos a honra de sua visita, nobre cavaleiro? – continuou o outro. – Veio nos dar ordens ou coisa assim?

– François! – disse Chalise, olhando-o diretamente. – Se quer ser desagradável, procure outro lugar! Minha cozinha é lugar de risos! Se está de mau humor, vá chutar pedras lá fora!

François olhou Philippe longamente. A cozinha, antes barulhenta e musical, estava agora mergulhada num súbito silêncio tenso. Saiu, deixando Philippe aturdido a olhar para Chalise.

– O que ele tem? – perguntou o rapaz, confuso.

– Inveja, meu querido! – respondeu Chalise, voltando a mexer sua panela que enchia o ar com cheiro de temperos quentes.

Philippe riu.

– Inveja? De mim?! – perguntou, incrédulo. – Considerando minha vida miserável, ter inveja de mim é ter expectativas muito baixas!...

– Você não tem ideia, não é? – disse Chalise, parando de mexer e olhando para ele. – Filho, você foi a um importante baile da nobreza ontem! Foi e dançou com a mulher que pode vir a se tornar a pessoa mais importante entre os lobos de todos os clãs. Você dançou, vestido como um príncipe, com a futura rainha, que, por acaso, é linda!

Ela colocou uma das mãos nas cadeiras e com a outra voltou a mexer a panela.

– Meu rapaz, você conseguiu o que ninguém aqui conseguiu. E você nem mesmo pode se transformar! Para François, você é um mestiço que conseguiu chegar aonde ele nunca chegará...

Philippe baixou a cabeça, refletindo sobre o que acabara de ouvir, quando Chalise se aproximou dele e falou em tom de confidência.

– É bom ter cuidado, filho... François pode ser um tolo invejoso... Mas não é o único que pensa assim...


Não demorou muito para que Chalise o enxotasse gentilmente dali. Tentou ajudar, mas ela disse que não havia nada que ele pudesse fazer ali. Assim, saiu da cozinha que pulsava em aromas, cores e metamorfoses no fogo. Andou até o jardim onde costumava treinar a arte das espadas com o Capitão. Debruçou-se na fonte de pedra onde folhinhas dançavam na água e olhou para si mesmo. De repente, depois de um baile, parecia ter se perdido. Lutando por ter um lugar, agora não pertencia mais a lugar nenhum.

Esfregou os olhos, sentindo-os pesar. Dormira pouco e toda a ansiedade da noite e o trabalho pesado da manhã cobravam agora seu preço. Sentou-se no banco de pedra ao lado da fonte e encostou a cabeça na mão, ouvindo os sussurros das folhas com a brisa leve. Pássaros cantavam ao longe e ouviu risos distantes de moças. Sorriu, não conseguindo mais abrir os olhos e nem percebeu quando o sono o roubou de vez.

Um canto de pássaro de repente se tornou mais longo, como um assobio. Esse assobio afinado, pareceu tomar uma outra forma e ganhar companhia. Era como se a natureza tivesse, oculta em sim, músicos mágicos a tocar instrumentos impossíveis. Ouvia uma música tão bela, tão pura, tão perfeita, que se sentiu flutuando, embalado num descanso suave, longe da memória das perdas, longe das preocupações com o amanhã, longe do medo das perdas futuras.

Abriu os olhos e assustou-se com um rosto de olhos arregalados a observá-lo a apenas alguns centímetros.

– Prateada! – disse, quase num salto. – Você me assustou!

– Você estava sorrindo! – disse ela, sentada ao seu lado. – Estava sonhando?

Ele sorriu, esfregando os olhos, tentando se recompor.

– Sim... – respondeu, sorrindo, ainda com a impressão de ouvir a música se diluir ao longe. – Sonhava com uma música.

– Com o baile? – perguntou ela, curiosa.

– Não... Só com a música!... Foi estranho! Mas, me diga! Você não deveria estar com as visitas?

Prateada se largou displicentemente, longe de como faz uma rainha, no banco de pedra onde estavam.

– Ahn... Estava chato!

– É mesmo? – perguntou ele. – Você parecia estar se divertindo!

– No começo, quando corríamos e pulávamos, sim! – disse a moça, olhando para o horizonte. – Mas quando todos se cansaram e começaram a falar, tive que dizer muitos “pois és”...

– “Pois és?”...

– É o que Constance me ensinou a dizer quando o assunto não é interessante pra mim e eu não quero ofender as pessoas dizendo o quanto elas são chatas...

Philippe riu, percebendo que Prateada ainda continuava a mesma. Prender sua atenção podia parecer uma tarefa simples, mas não era. Olhou para o horizonte, seguindo o olhar perdido da moça e só então se deu conta de que o Sol se punha, deixando rastros alaranjados por todo o céu.

– Minha nossa! – disse, levantando-se. – Já entardeceu! Dormi a tarde inteira!

– Pelo menos estava ouvindo música!

Philippe riu da observação sincera de Prateada.

– Não está na hora da ceia? – perguntou ele.

– Está.

– E você não vai? Você gosta da hora da ceia!

– Gosto de qualquer hora que tenha comida – admitiu ela. – Mas gosto mais de estar com você.

O rapaz fitou-a longamente. Pelo comportamento das pessoas na cozinha, sabia que sua noite como príncipe não passaria impune. As coisas seriam diferentes, ainda mais com Prateada se tornando rainha. Mas não havia porque pensar nisso agora. Aproveitaria a companhia da bela amiga enquanto pudesse, sem chance de remorso pelo tempo perdido. Estendeu-lhe a mão e um sorriso gentil

– Quer passear comigo?

Ela abriu seu largo sorriso nacarado e agarrou a mão estendida, saltando feliz num passeio ao pôr do Sol.

Circularam pela cidade, sendo alvos de olhares curiosos. Ao contrário de Philippe, que parecia um tanto desconfortável em ser o alvo das atenções – logo ele, que era praticamente invisível – Prateada parecia não se importar, ou sequer notar.

– E então ele me perguntou qual a minha posição quanto ao trono – dizia ela, relatando a conversa que havia tido com os convidados nobres de outros châteaus. – E eu respondi: “Sentada, é claro!” Não sei por que me fazem essas perguntas idiotas! Acho que estão me testando!

– Acho que ele queria saber qual sua postura política... – explicou Philippe, rindo.

– Ah, é? – Prateada pareceu confusa. – Então, porque ele não perguntou diretamente isso? Pelo menos eu teria dito que não tinha a menor ideia do que ele estava falando.

– Entre esses convidados, você conversou também com aqueles dois casais que se vestiam diferente? – perguntou Philippe, que teve uma estranha impressão daquelas pessoas.

– Quais? – Prateada puxava pela memória. Tinha muita gente no baile e ela não fazia muita distinção de vestimentas.

– Eram dois homens e duas mulheres, muito charmosos, mas de uma maneira estranha...

– Ah, sim! Eu os vi na festa! – lembrou Prateada. – Pareciam estar em todo lugar! Mas não estão hospedados no castelo e não os vi hoje em nenhum momento.

– Que bom que causamos alguma impressão!... – disse uma voz vinda de trás.

Os dois jovens pegos em flagrante viraram-se e se depararam com Michel, elegantemente vestido com uma casaca azul da cor do fundo do mar e bordada com pérolas delicadas. As botas negras brilhavam como se nunca tivessem tocado o chão e reluziam como os cabelos negros penteados para trás. Na testa aquilina, os olhos azuis sombreados pelas firmes sobrancelhas davam um ar vasculhador um tanto perturbador.

– Er... – disse Philippe. – Desculpe-nos, não é educado falar de outras pessoas na ausência delas...

O homem deu uma gostosa risada que ecoou pela rua como o tilintar de taças que se encontram em brindes festivos.

– Minha criança, você não conhece artistas? Quanto mais falarem de nós, melhor!

– Artistas? – perguntou Prateada, curiosa.

– Sim, minha pequena, artistas... – ele puxou um lenço de seda da manga e balançou-o diante dos olhos dos jovens, fazendo-o desaparecer como que por encanto. – ...Daqueles que brincam com fogo sem se queimar, e cuja paga é um bater de palmas ou um belo sorriso... Como o seu!

E, num movimento sutil e delicado, retirou dos cabelos de Prateada uma flor. A menina arregalou os olhos, surpresa com aquela mágica e recebeu a flor que o belo cavalheiro lhe entregava. Porém, ao tocar a flor de pétalas alaranjadas, esta se transformou numa bela borboleta e voou, deixando-os boquiabertos.

– Nossa!!! – exclamou Prateada.

Nesse momento, uma voz vinda do castelo chamou por Prateada, que num pequeno salto denunciou-se, deixando claro que tinha feito algo errado.

– É Constance! Eu lhe disse que voltava logo e já anoiteceu! Eu tenho que ir!

Ela saiu correndo, mas se esqueceu de se despedir. Voltou meio estabanada e fez uma reverência meio desengonçada, voltando a correr em direção ao castelo, enquanto gritava um “JÁ VOU!” a plenos pulmões.

Vendo-se sozinho com o desconhecido, Philippe aproveitou para sanar sua curiosidade.

– Como fez isso?!

– Ah, se você souber como a mágica funciona, ela perde seu encanto e você perde sua inocência!

O homem de sorriso enigmático começou a caminhar, convidando o rapaz a acompanhá-lo com um movimento. Estranhando tamanha cortesia com um simples mestiço, Philippe imaginou que, por ser alguém de fora, talvez ele desconhecesse sua condição de pária. Acompanhou-o pelo caminho já um tanto deserto.

– É um belo lugar o Château das Vertentes!... – disse Michel. – Esse ar de interior acalma qualquer espírito, até mesmo os mais rebeldes como o meu.

– De que château você é? – perguntou o rapaz, curioso.

O homem riu, erguendo sua face branca para a Lua cheia que brilhava no céu recém-tingido de negro.

– De nenhum! – respondeu. – Sou um homem da cidade!

– É mesmo?! – espantou-se Philippe, vendo ali sua chance de conhecer um pouco mais sobre a cidade dos homens. – E como é lá?

Michel lançou seus profundos olhos azuis para seu distante lar enquanto escolhia as palavras.

– Colorida de dia, cinza de noite, repleta de aromas e sabores, mal cheirosa e faminta, salpicada por beijos e gritos, roubos e arroubos, morte e vida... Enfim, é uma cidade como outra qualquer!

Michel se virou para Philippe e se deparou com olhos curiosos a tentar decifrar sua charada poética. Percebeu que estava lidando com a completa inocência de alguém que provavelmente nunca tinha posto os pés numa cidade e que deve ter ouvido todo tipo de história escabrosa sobre a crueldade dos humanos.

– Você nunca esteve numa cidade? – perguntou.

Philippe meneou a cabeça enquanto continuava a acompanhar o estranho naquele passeio inesperado.

– Quando era pequeno, passamos por uma cidade, minha mãe e eu... Mas não me lembro de nada.

Um som de homens falando e tilintares de copos fez o estranho erguer a cabeça na direção da taverna Presas de Prata.

– Pois terei prazer em lhe contar tudo! Que tal me acompanhar numa bebida? Meus amigos logo devem aparecer e poderei apresentá-lo a eles!

Apesar de estar empolgado em ouvir sobre um assunto que povoou sua imaginação por tanto tempo, Philippe hesitou. Em todos aqueles anos em que vivera no château, nunca colocara os pés na taverna. Era o único lugar em que todos podiam se encontrar e que, de certa forma, todos eram iguais. Ricos, pobres, artesãos, ferreiros, jovens, velhos, soldados, todos terminavam seu dia no Presas de Prata. Era um local que igualava as pessoas, mas Philippe nunca teve coragem de descobrir até onde ia essa tolerância regada à cerveja e vinho e jamais se atrevera a por os pés lá. Ser expulso de um lugar que aceita qualquer um seria o cúmulo das humilhações.

– Acho que é melhor eu ir pra casa... – disse, desculpando-se.

– De jeito nenhum! – insistiu Michel, achando na verdade que o rapaz hesitara por conhecer sua verdadeira natureza. – Faço questão de lhe pagar uma bebida! Quem sabe, até lhe ensino um truque ou dois para mostrar à sua bela amiga...

Os olhos do rapaz brilharam. Adoraria fazer um truque para alegrar Prateada. Olhou novamente para a taberna barulhenta. Respirou fundo e concordou com a cabeça. Depois do baile, muita coisa mudara. Quem sabe as pessoas também não houvessem mudado?

A porta se abriu e o silêncio se fez. Todos olharam para os dois homens que entraram. Michel impôs-se, causando uma impressão que fez com que alguns olhares se desviassem para o chão. Sentaram-se numa mesa vazia, ao canto, perto da janela e Michel fez um sinal para as pessoas no balcão. Virou-se para Philippe, tímido com tantos olhares cravados sobre ele.

– Pensei que estivesse acostumado a chamar a atenção! – brincou Michel.

– Não... – disse Philippe, baixo. – Na verdade, estou acostumado a tentar chamar a menor atenção possível.

– Então ontem você fracassou! – retrucou Michel, em tom de segredo.

Os dois riram e a taverna começou aos poucos a sair do manto de silêncio que a cobrira. Margause veio com uma jarra de vinho e dois copos.

– O que você tem pra comer, minha cara? – perguntou o elegante cavalheiro.

– Carne de javali e sopa de galinha – respondeu a moça, sem ser especialmente simpática.

– Uma carne de javali pra mim, mal passada, por favor – pediu Michel. – E pra você, rapaz?

– Uma sopa pra mim está bom, obrigado.

A moça de formas arredondadas saiu e os dois se puseram novamente a conversar. Numa mesa não muito distante, Ravin tinha os olhos cintilando de indignação e ódio.

– Viram isso?! – disse. – A escória está invadindo nosso espaço! Alguém tem que lembrar a este sujo seu verdadeiro lugar!

– Não faça besteira, Ravin! – pediu Jacques. – O Duque nos alertou sobre confusões enquanto houvessem convidados no château!

– Que se danem os convidados! – retrucou Ravin de punhos cerrados sobre a mesa.

– Ele tem razão, Ravin! – disse Carlo. – Deixa pra lá!

Ravin bufou. Philippe nem mesmo o percebera ali. Tinha que admitir que Jacques e Carlo tinham razão. O Duque tinha sido bem claro e ninguém, em sã consciência, ousaria desobedecê-lo. Aquietou-se. Havia muitos caminhos que levavam à Roma. Pensaria em algo.

Michel contava sobre a cidade em que morava e as cidades pelas quais passara em viagem com os amigos, divertindo o rapaz com seu bom humor e suas observações sarcásticas. A comida chegou e antes que Philippe desse sua primeira colherada, Michel o olhou como se tomasse a decisão de fazer uma travessura.

– E sua amiga de cabelos prateados? – disse, tocando amigavelmente na mão do rapaz sobre a mesa.

Sentindo um súbito gelar dos ossos, Philippe retirou rapidamente a mão como se uma cobra tivesse passado por cima dela. Olhou para Michel, que sorria satisfeito a sua frente. A taverna a sua volta perdeu a consistência e tudo pareceu se desmanchar como cera de uma vela acesa. Sacudiu a cabeça levemente, a visão turva, um mal estar crescente, o corpo estremecendo de um frio súbito e inexplicável naquela noite de verão. Passou a mão na testa e acreditou que era a fome que lhe pregava peças. Tomou duas colheradas da sopa, sem sequer sentir o gosto.

– Você está bem, rapaz?

Ouviu a pergunta, mas não soube de onde. Michel sorria como se tivesse comido uma iguaria dos deuses, então não sabia se ele tinha falado alguma coisa ou não. Os babados em seu pescoço pareciam excepcionalmente brancos e sua cabeça parecia flutuar diante dele. Nesse momento, teve a impressão de ter visto os olhos do homem se acenderem como se houvesse chamas avermelhadas por trás deles. A visão continuou a escurecer e os ouvidos taparam, afastando o mundo dele. Meteu mais algumas colheradas de sopa na boca, até que sentiu alguém agarrá-lo fortemente pelo braço. Um homem sentou-se ao seu lado e, segurando-o, disse:

– Acalme-se. Isso já vai passar...

O desconhecido colocou a mão em seu peito e sentiu-se subitamente aquecer, como se tivesse entrado numa sala com lareira depois de estar soterrado por neve.

– Respire...

Os sons se tornaram claros de novo. Claros até demais. Ouvia detalhes de conversas como nunca ouvira antes, os pratos batendo nas mesas, a respiração das pessoas, os grilos lá fora. Abriu os olhos, vendo Michel diante dele ainda sorrindo e a taberna de volta ao que era antes. Ao seu lado, um jovem cavaleiro tão aprumado quanto Michel retirava lentamente a mão de seu tórax.

– Sente-se melhor? – perguntou o desconhecido.

– S-sim... – gaguejou o rapaz, sentindo-se subitamente revigorado e um tanto envergonhado de ter estado às portas de um desmaio inexplicável.

– Este é Louis Volaire, meu amigo de viagens e confusões! Eu entro, ele me tira! – disse Michel, com a caneca de vinho na mão. – Louis, este é Philippe!

Os dois se cumprimentaram com um movimento de cabeça.

– Desculpe – disse Philippe, ainda constrangido. – Não sei o que me deu...

– Não se preocupe! – disse Michel. – Deve ter sido uma corrente de ar frio!

– É... – concordou Louis, com um olhar acusador para Michel. – Deve ter sido isso mesmo...

Duas belas mulheres, uma loira e uma morena, se aproximaram deles e sentaram-se, tagarelantes.

– Ah, que conveniente! – alegrou-se Michel. – Vai conhecer a trupe toda! Estas são Nicole Lancenoir e Beatrice Chaborneau, nossas musas e embelezadoras de cenário.

Enquanto a conversa prosseguia, numa outra mesa, Ravin sorria. Encontrara seu meio. Levantou-se e sentou-se junto a um soldado que bebia com os amigos. Depois de algumas palavras, o soldado pegou uma moeda que Ravin lhe entregou e deixou a taberna.

 

 

A mesa estava coberta por uma belíssima toalha vermelha, enfeitada por cestas de frutas com maçãs lustrosas e uvas cor de âmbar, velas e flores. Os pratos eram servidos e a conversa, regada ao melhor vinho do château.

Cerca de trinta pessoas pareciam se divertir enquanto homens tocavam flautas, violões e um cravo, enchendo o ambiente de música doce. Em dado momento, quando o vinho já tinha subido às cabeças, perguntas começaram a ser lançadas displicentemente sobre a mesa.

– E quando Prateada irá a outros châteaus? – perguntou Vadim Moreau, do Château dos Pinheiros, um dos mais distantes.

– Em breve! – respondeu animado o Duque. – Ela tem aprendido muito rápido!

Pouco interessada na conversa, Prateada estava mais concentrada na comida. Não percebeu que, enquanto roía um osso com uma determinação invejável, todos na mesa olhavam pra ela. Celine, discretamente, chutou-a por baixo da mesa. Ao se deparar com os olhos arregalados de Celine, olhou em volta e viu que as pessoas também a observavam. Largou o osso no prato e consertou a postura.

– Ela é uma graça! – riu a Condessa Clavier, que sempre se divertia com quem tinha coragem de ser apenas si mesmo.

As pessoas riram, descontraindo o ambiente. Prateada ia pegar novamente o osso, mas um criado retirou seu prato antes que tivesse a chance. A sobremesa seria servida em seguida. Isso a deixou animada de novo. Tinha um especial apreço por coisas doces, coloridas e bonitas.

– E faz um belo par com o rapaz que dançou com ela ontem! – comentou o jovem Henry de Vanderlee.

Lamayer desmanchou imediatamente o sorriso cordial, percebendo uma provocação.

– É verdade que ele é um mestiço? – prosseguiu Henry.

– Não seja tolo, Henry! – repreendeu-o sua tia. – Um mestiço não se comportaria como ele! Era um perfeito cavalheiro!

Metade da mesa concordou. A outra metade duvidou. A mesa inteira olhou para o Duque esperando uma confirmação. Lamayer sabia que deveria esperar algo assim. Henry e Noisette, sobrinhos mimados de Madame Mariete de Vanderlee, do Château das Flores, eram candidatos fortes para disputar o trono em nome do Clã dos Lobos Brancos. Até Prateada entrar no jogo, claro. E é claro que não estavam recebendo muito bem a notícia.

Antes que respondesse, porém, Fernand se aproximou do Duque e disse-lhe algo ao pé do ouvido. Se antes Lamayer não estava sorrindo, agora seu rosto se tornara nitidamente zangado. Fernand se retirou e o Duque voltou-se para seus convidados.

– O que posso dizer, meus amigos... – disse ele, colocando o guardanapo sobre a mesa num sorriso cortês. – ...é que, como seu pai, ele é um de nós. Agora, peço que me desculpem, mas um assunto urgente pede a minha presença. Minha filha, Celine, partilhará a sobremesa com vocês.

O Duque se levantou e com um breve movimento de cabeça, retirou-se.

 


A mulher de cabelos escuros e selvagens dava giros rápidos enquanto Louis tocava uma música animada no violino. O encanto da jovem era irresistível até mesmo para os Lobos, que acompanhavam a dança de salamandra batendo os pés e marcando o ritmo nas mesas. Havia algo de selvagem nela, talvez algum sangue cigano. E se os ciganos não estavam em seu sangue, certamente estavam em sua alma, o que ficava claro com seus giros e seu largo sorriso. De vez em quando, ela se insinuava para um soldado ou camponês que se perdia em seus lábios carnudos e vermelhos, nem no entanto, tocá-los. Girando, ela se atirava em braços estranhos, girando, ela escapava rapidamente, girando, ela desaparecia num canto para aparecer em outro, deixando apenas seu perfume de flores da noite.

Philippe batia palmas, já meio alto com o vinho a que não estava acostumado e repleto de uma energia contagiante. Não sabia o que acontecera, mas sentia-se animado e empolgado, tinha a sensação de que podia correr até a montanha mais alta e saltar distâncias tão grandes que pensariam estar voando.

Quando a bela dama, no entanto, se atirou em seus braços, toda a empolgação pareceu dar lugar à petrificação. Sorrindo, ela o puxou e se enroscou nele. Beatrice sorriu, sentindo o coração dele bater desabalado contra seu peito de decote dadivoso. As faces do rapaz ficaram vermelhas e ele se sentiu atraído pelos lábios vermelhos da bela mulher de quadris redondos e pele alva.

E num movimento súbito, ela também o deixa, como deixou todos os outros, saindo a dançar em rodopios que faziam sua saia parecer uma flor na ventania. Recuperando a vivacidade e o controle do próprio coração, mesmo que este continuasse a pular mais do que a moça, Philippe acompanhou animado a dança, batendo palmas e pés como os outros.

Poucos notaram quando Lamayer entrou no Presas de Prata. A dança de giros e cores atraía os olhares e não permitia concorrência. O Duque caminhou calmamente, os olhos duros fixos em Philippe, que distraidamente batia palmas e acompanhava o ritmo da moça. A música não parou quando Lamayer se pôs ao lado do jovem.

– Philippe, vá pra casa.

Era uma noite diferente. Philippe estava se sentindo como nunca se sentira, vivo e envolvido pela música, pela dança e por uma dose de sensualidade. Talvez por isso não obedeceu de pronto.

– Irei em um minuto, senhor! – foi o que respondeu, os olhos presos à moça e sua dança.

Uma bofetada explodiu no rosto do rapaz, que apoiou-se na mesa mais próxima aturdido com a mão na face. O violino calou-se.

Philippe se ergueu ainda surpreso, encontrando o olhar do Duque.

– Agora!

Envergonhado, o rapaz olhou em volta, para a taberna que mergulhara num súbito silêncio, e precipitou-se para a porta sem encarar os olhares curiosos. Em sua mesa, Ravin sorriu, sentindo o gosto da cerveja e da vitória.

Lamayer então voltou sua atenção para o homem de cabelos negros que lhe sorria.

– Isso não era necessário, senhor... Nós não íamos arrancar nenhum pedaço... – disse Michel.

– Achei que o fato de lhes dar guarida deveria despertar algum respeito, mas acho que me enganei – retrucou Lamayer com voz rouca.

Michel desfez seu sorriso e olhou longamente o Duque nos olhos.

– Tem visão longa, Monsieur... Ou o passado o deixou paranoico.

O Duque deu um passo a frente e todos sentiram que a confrontação terminaria em sangue. Os soldados se levantaram e puxaram suas espadas enquanto os outros Lobos deixavam suas bebidas e disposição para festas definitivamente no passado, colocando-se imediatamente em posição de combate.

Louis se interpôs entre Lamayer e o amigo Michel.

– Honestamente, peço-lhe desculpas, Duque das Vertentes! Meu amigo tem a boca grande e o cérebro bem pequeno, do tamanho de uma noz. Por favor, perdoe-nos. Não queríamos provocar nenhum constrangimento.

Alguns segundos se seguiram em que Lamayer os encarou. Então, virou-se e deixou a taberna. Naturalmente, o ambiente não era mais simpático aos visitantes e estes deixaram a taverna, logo depois do Duque.

 


Capítulo 2


Girassol

 

Abrigou-se na noite, nas sombras mais escuras, fugindo dos olhares de escárnio que sempre o perseguiram. Apoiou-se numa parede fria, segurando o rosto quente, o coração estourando numa raiva que fervia seu sangue. Continuava a ouvir as vozes em comentários maldosos, mesmo estando bem longe da taverna. Uma fúria tomou conta de seu peito, fazendo-o enxergar tudo em vermelho. Se o Duque estivesse diante dele ali, rasgaria sua garganta e deixaria o sangue correr. Socou a parede, machucando a própria mão.

– Philippe?

Virou-se rapidamente, os olhos brilhando, o rosto transtornado, pronto para uma briga com quem quer que fosse. Mas a figura do Capitão o desarmou. Diderot aproximou-se observando o ar consternado do rapaz.

– O que aconteceu?

Philippe olhou em volta, procurando ao mesmo tempo saber de onde vinham as vozes que ouvia e se desvencilhar dos olhos do amigo. A fúria ainda girava dentro dele como um furacão de uma maneira que ele nunca sentira.

– Ele... Ele me bateu! Sem motivo, na frente de todos!! – respondeu com voz rouca.

– Ele quem?

– O Duque! Eu sabia que ele não ia me perdoar por ter aparecido na festa ontem, mas não pensei que ele iria à forra me humilhando na frente de todos! – disse, elevando a voz.

Diderot viu a face vermelha com a marca da bofetada e os olhos brilhantes do rapaz que revelavam a grande mágoa que tinha do Duque. Mas algo não batia. Philippe tinha razão em estranhar a atitude de Lamayer. Não era um homem dado a humilhações gratuitas. Era um homem de ações imediatas. Diderot olhou um pouco para o chão, pensando no que teria levado o Duque a agir daquela forma.

– Diga-me, filho... – disse o Capitão com um olhar sério. – Você estava com os visitantes? Aqueles de ontem, com roupas diferentes?

– Estava. Estávamos nos divertindo e ele chegou... E simplesmente me mandou ir pra casa, como se eu fosse uma criança ou algo assim!

O Capitão se aproximou ainda mais, chamando a atenção do rapaz como se fosse lhe falar algo grave e secreto.

– Philippe, Lamayer não bateu em você para humilhá-lo. Ele queria que você se afastasse daquela gente!

O jovem o encarou sem entender. O Capitão percebeu então que aquele rapaz ainda estava envolto em ignorância.

– Você não sabe o que eles são? – disse. – São vampiros, Philippe!

– O quê? – o rapaz se espantou. Ouvira pouco sobre os vampiros, mas nunca havia encontrado um. Michel, Louis, Nicole e Beatrice pareciam pessoas comuns. Vestiam-se com mais estilo e tinham um brilho estranho no olhar, mas fora isso, não se pareciam em nada com os monstros dos quais lhe falaram em conversas entrecortadas.

– Eles parecem vivos, mas estão mortos – prosseguiu o Capitão, – vivem esta imitação da vida à custa do sangue de outros seres! São parasitas perversos e sem limites! Lamayer fez o que fez porque não queria você perto deles. Eles corrompem tudo que tocam.

 


Não muito longe dali, os temas daquela conversa caminhavam sob a noite estrelada. Michel sorria para a Lua como se flutuasse, marcando o ritmo de alguma música própria com a rica bengala decorada com detalhes prateados. As moças estavam em silêncio, mantendo um ar curioso e brejeiro para o comparsa. Louis, no entanto, não parecia feliz com o ocorrido.

– Por favor, Louis! – reclamou Michel, sem olhar pra ele. – Está estragando meu momento! Desfaça essa cara amarrada. Não foi a primeira vez que fomos expulsos de algum lugar.

– E o lugar nem era tão bom assim! – concordou Nicole.

– Não podemos dizer que o Duque não teve motivos para fazer o que fez, não é mesmo, Michel?

– Estávamos apenas nos divertindo com um de seus filhotes! Que mal há nisso? – riu o outro.

Louis se colocou a sua frente e empurrou-o, tirando-o momentaneamente de seu deleite pessoal.

– Você sequer pensou no que estava fazendo, Michel?! Se o Duque descobre que você roubou energia daquele menino, nenhum de nós sairia vivo daqui! Olhe a Lua! – disse, apontando para o grande círculo nacarado alto no céu. – É a Lua dos Lobos, a Lua Cheia! Eles podem se transformar em feras enormes! Eles arrancariam os ossos de nossas peles!

Michel parou e encarou o amigo. Seus olhos, azuis e profundos, tinham agora um ar sinistro naquele brilho frio.

– Tem razão, Louis – respondeu calmamente. – Imagine então se ele soubesse que, além de eu ter tirado energia do menino, você deu sua energia a ele? Penso com meus botões, que são muitos, o que ele faria se soubesse agora que a energia de um vampiro está agora no corpo de um dos seus filhotes...

As moças se calaram, percebendo o claro confronto. Louis se afastou levemente, na dúvida se Michel era muito inteligente, ou extremamente estúpido.

– E o que você faria, Michel – perguntou ele, – se eu não aparecesse e aquele rapaz perdesse os sentidos diante de todos?

Michel recuperou seu ar brincalhão.

– Eu o levaria pra casa! Ora essa, que tipo de companheiro de bebedeiras eu seria se não ajudasse meu jovem amigo bêbado? Sabe qual o seu problema, Louis? Você se preocupa demais...

Eles voltaram a caminhar.

– Me preocupo com nossas cabeças, Michel, que você acaba de pôr em risco... Mas deixe estar, amanhã partiremos de qualquer jeito... E o Duque não quebraria o acordo, de qualquer forma.

– Claro que não! – concordou Michel. – Um mestiço, mesmo belíssimo como Philippe, não vale uma guerra. E o Duque sabe disso.

– Pois conte-nos, Michel! – perguntou Beatrice curiosa e empolgada. – Como se parece o gosto de um Lobo Branco?

Michel riu, fechando os olhos por alguns segundos, sem interromper o passo.

– Ah, minha doce Beatrice! Você nunca experimentou nada igual! A energia dessa gente é boa por natureza, como uma iguaria rara. Mas a energia desse rapaz é ainda mais deliciosa. Doce, selvagem, um sabor de inocência e desejo, algo inigualável! É claro que é só um gosto fugidio, não é como senti-lo de verdade...

Michel pegou do bolso interno do elegante casaco uma latinha de ouro finamente decorada com pedras preciosas. Abriu-a com um clique e pegou algumas das deliciosas balinhas de açúcar nas quais era praticamente viciado. Quando ele passava muito tempo sem tomar a energia vital de alguém, sem beber sangue, as balinhas começavam a perder o sabor até se parecerem com bolinhas de papel muito amassadinhas.

Ele jogou algumas delas na boca e parou de andar, concentrando-se na sensação de tê-las derretendo na boca, explodindo com um sabor doce que lhe lembrava outros tempos, outras pessoas.

– Eu nem o mordi! – disse, animado. – Nem uma gota de sangue! Bastou um pouco daquela energia de Lobo e todo o sabor e cor voltaram! Imaginem como não deve ser ter essa energia por inteiro...

– Tire essas ideias da cabeça, meu querido Michel! – tornou Nicole, a vampira loira de olhos amendoados cuja beleza entorpecia qualquer homem que estivesse perto dela. – Por mais que eu ache Louis um chato e um estraga-prazeres, ele tem razão! Não podemos sequer pensar em tocar num Lobo Branco, ainda mais no território deles. Fique com sua lembrança doce do aroma, mas mantenha suas mãos bem longe da torta. Como vimos, há muitos olhos em cima dela...

 


O movimento de malas, o trote dos cavalos, os acenos e sorrisos, os desejos de reencontro e votos para novas visitas em breve encheram o pátio durante a manhã do dia seguinte, cujo céu azul e limpo trazia bons presságios para os viajantes que se despediam do Château das Vertentes. As cinco carruagens e seus ocupantes, assim como suas comitivas, tomavam finalmente o caminho de casa, com muitas novidades. E, finalmente, quando a última carruagem partiu, Prateada correu, jogando os sapatos apertados longe, arrancando a tiara que lhe apertava a cabeça e prendia os longos cachos. Correu como se tivessem lhe tirado grilhões que lhe pesavam os pés e, embora ninguém soubesse exatamente para onde ela corria, todos sabiam exatamente para quem.

Cansado, porém satisfeito com o resultado da festa e com a impressão que Prateada causara, Lamayer não fez objeção quando ela saiu correndo. Constance ainda tentou chamá-la, mas ele fez um movimento com a mão dizendo que a deixasse. Ela merecia ser livre das convenções que lhe impuseram desde que se transformara. A criadagem retomou seu trabalho e o Duque entrou com a filha em seu castelo.

Nos jardins ao redor do Castelo, Prateada corria ao encontro de Philippe que trazia Alvorada, sua bela égua branca pelo cabresto num passeio a pé.

– Eles foram embora!!! – gritou ela, antes de se atirar no pescoço dele.

– Que bom que eles não estão vendo sua alegria com a partida deles! – brincou o rapaz.

– Agora podemos nos divertir de novo! – comemorou ela, com os olhos brilhantes. –

–Mas você não se divertiu?

– Sim... – ela parou para pensar um pouco, com aquele ar ingênuo que ele adorava. – Mas eu tinha que me comportar o tempo todo! Era muito difícil!

– É... – disse ele, sorrindo. – É difícil ser outra pessoa...

– Mas eu gostei do baile! Foi a noite mais feliz que já tive! Vamos fazer de novo?

– Quando for uma rainha, você terá muitas festas.

– Sim!! Vamos fazer um monte de festas! Vamos fazer uma amanhã! Com música, comida e muita dança!!

Ela começou a dançar de olhos fechados, transportando-se para seu mundo de fantasia, onde todos usavam roupas bonitas e a alegria era a única regra a ser seguida. Philippe olhou para a moça que dançava com o vento e deixou-se encantar. Amou-a com um olhar, aquecendo seu coração com aquele sentimento, esquecendo-se pela primeira vez no dia do que ocorrera na noite anterior.

Dormira pesadamente, mas tivera muitos sonhos estranhos e perturbadores. Acordara com as lembranças de tudo o que sentira e ficou surpreso. Claro que já tivera seus desejos de vingança, mas nunca foram tão intensos, e tão sangrentos, como o que sentiu contra o Duque na noite passada. Não se reconhecia na pessoa que vociferara com o Capitão. Agora, vendo Prateada, essas lembranças finalmente perdiam o peso e ele por fim decidia deixar o ontem na conta do passado.

– E então? – disse ela, saltando na frente dele. – Vamos fazer uma festa de novo?

– Bem, Prateada, não podemos fazer festas todos os dias...

A moça subitamente murchou. Seu mundo de fantasia era muito frágil. De repente, todos os convidados em roupas coloridas e os pratos viçosos e cheirosos desapareceram. O rapaz, então, pegou delicadamente sua mão.

– Mas podemos dançar! Podemos dançar todos os dias, se você quiser!

A moça abriu seu grande sorriso e os dois começaram a saltar sozinhos, dançando sua própria canção, num salão imaginário, onde o mármore era a relva, borboletas eram enfeites e o perfume das flores os embalava.


De uma janela do castelo, Lamayer observava a cena. A porta se abriu e Constance entrou, os olhos miúdos brilhando de curiosidade.

– Mandou chamar, senhor?

– Sim, Constance... – respondeu o Duque, olhando-a brevemente e voltando a observar da janela. – Você esteve com Prateada mais tempo do que eu nos últimos dias. Queria saber como ela está se saindo.

Constance se aproximou.

– Ela se esforçou muito... Acho que agiu da melhor forma que podia, afinal, ainda há pouco ela era apenas um lobo criado como um cão...

A ama fez uma pausa, na dúvida se deveria falar o que estava pensando. Temia irritar o Duque.

– Senhor, se me permite uma opinião...

– Diga – disse secamente Lamayer.

– Ela poderia ser muito melhor – disse Constance, se aproximando da janela, onde o Duque permanecia. – O senhor já viu como o girassol parece perder o viço quando passa muito tempo sem o Sol? Ele murcha e morre.

Nos jardins, sob os olhos do Duque, os dois jovens se divertiam em sua dança com a música que acabaram de inventar. Os risos de Prateada interrompiam vez ou outra a canção, sempre que ela errava um passo e confundia a dança. O Sol os iluminava, derramando sobre eles seu brilho amarelado da manhã.

– No entanto, quando o Sol surge, o girassol se ergue e o segue atentamente...

Constance se virou para o Duque, falando com a sinceridade que fez dela a mulher que era. Sua honestidade deu-lhe algumas decepções e uma vida solitária (nenhum relacionamento jamais sobreviveu à sua sinceridade), mas sempre lhe permitiu uma cabeça leve para recostar no travesseiro.

– Senhor, é só a opinião de uma mulher velha, mas há alguém que faz Prateada brilhar. Ela tem sorte. A maioria de nós passa a vida sem conhecer alguém que nos faça brilhar...

O Duque não respondeu. Permaneceu olhando os dois jovens se divertindo entre as flores, enquanto uma leve brisa fazia bailar pétalas desgarradas. Então, sem se mover, Lamayer deu uma ordem.

– Constance... Chame os dois aqui.

E assim que a serviçal deixou o aposento, Lamayer deu as costas para a janela.


Lá embaixo, num giro sem equilíbrio, Philippe e Prateada caíram na relva macia, gargalhando da própria falta de jeito. Foi quando ela, sobre o corpo dele, olhou em seus olhos, bem de perto. E ele, pela primeira vez, temeu que ela sentisse seu coração batendo seu nome. Os sorrisos se dissiparam suavemente e os olhares pareciam ver além do outro. Ele sentiu o corpo quente e quis segurá-la para sempre, para que ela jamais partisse. E ela sentiu que ao olhar nos olhos dele era a pessoa mais feliz do mundo. Prateada se inclinou levemente, atraída pelos lábios dele, e enquanto sentiam seus corpos se aquecerem como se estivessem perto demais de uma fogueira, um grito distante os tirou do breve momento em que pareceram suspensos do tempo e do mundo. Constance chamava por Prateada.

Levantaram-se rapidamente, segundos antes dela aparecer em seus passos rápidos.

– Rápido, vocês dois! Monsieur Lamayer quer lhes falar!

Philippe e Prateada se olharam na cumplicidade dos ladrões que ainda não cometeram crime nenhum, mas já têm o que temer. Seguiram Constance para o castelo e, logo no grande salão de entrada, encontraram o Duque a esperar por eles.

– Philippe – disse Lamayer em tom severo. – Vá para casa e arrume suas coisas.

O rapaz não disse nada. Seu rosto perdeu a cor e sua boca secou. Passou todo o tempo depois do baile esperando uma reprimenda por seu atrevimento. Agora, ali estava. Lamayer faria com ele o que ameaçara fazer com Prateada, quando ela não era humana. Mandaria-o para outro château, para longe dela, um lugar onde sua desobediência não o provocasse mais.

Prateada saltou na frente do Duque, os olhos assustados e a voz estremecida pelo medo da perda.

– Não o mande embora! Ele não fez nada! Eu o convidei para o baile! Ele não te...

– Ele não vai embora – respondeu o Duque, interrompendo a defesa histérica da moça. – Vai se mudar. A partir de hoje, você morará aqui e acompanhará Prateada em seus estudos.

Constance sorriu. Por um momento, achou que sua observação, sábia de seu ponto de vista, teria sido mal interpretada e colocado tudo a perder. Philippe e Prateada se calaram com a surpresa.

– O quê? – perguntou o rapaz, na certeza de não ter compreendido o que ouviu.

Sem se importar com os motivos dessa ação, Prateada comemorou. Em saltinhos alegres e batendo palmas, abraçou Philippe, abraçou Lamayer e abraçou Constance.

O Duque tentou, mas não conseguiu disfarçar o sorriso ao ver a felicidade da menina.

– Obrigado, senhor! – agradeceu o rapaz, ainda surpreso.

– Ai, que bom! Ai, que bom! Ai, que bom! – comemorou Prateada, que não podia se conter de tanta alegria.

– Mas preste atenção, menina! – o tom rigoroso do Duque fez com que ela interrompesse sua comemoração para ouvi-lo. – Se você não aprender o que lhe ensinarem, se não se esforçar para se tornar uma boa rainha, mandarei Philippe para o Château das Flores, entendeu?

Prateada voltou a sorrir, vendo que o que lhe pediam não era tão difícil.

– Sim, senhor!!! Vou aprender tudo!

– Agora vão – disse o Duque, tranquilizando-os com uma expressão mais amena. – Constance, prepare um dos quartos lá de cima.

– Imediatamente, Senhor! – Constance saiu quicando em seus passinhos ligeiros, sorrindo em ver sua atitude dando um resultado melhor que a encomenda. Afinal, se antes Philippe ficara num pequeno quarto na ala dos criados, agora ficaria num dos quartos do andar de cima, junto com a família. Talvez o Duque houvesse percebido, afinal, que o rapaz tinha muito mais valor do que lhe davam.


Prateada superara muito rapidamente a perplexidade que ainda estava estampada no rosto de Philippe. Ela o arrastava na direção do casebre, empolgada, falando rapidamente sobre todas as coisas que poderiam fazer, sobre as aulas de Constance, os livros, a música, a comida do castelo, o mau humor de Celine pela manhã, as roupas... Contagiado pela empolgação dela, ele terminou afastando da mente seus temores.

Philippe fora maltratado a vida inteira. Aprendera, a duras penas, que as boas intenções para com ele dificilmente vinham acompanhadas de sinceridade. Procurou então lembrar-se da mão amiga do Capitão, da preocupação genuína de Emily e, claro, do amor incondicional de Prateada. Havia quem se importasse com ele, havia boas ações sem segundas intenções. Por que não dar ao Duque o benefício da dúvida? Naturalmente, seu primeiro pensamento foi que o motivo da boa ação do Duque era manter o controle sobre Prateada. Porém, naquele dia, preferia se ater à possibilidade mais luminosa. Queria acreditar em boas ações e em mudanças para melhor.

Naquela tarde, esvaziou seu antigo casebre. Foi tudo muito rápido, movido pela velocidade natural de Prateada que parecia estar sempre correndo atrás de um galho que alguém atirou para longe.

Seu novo quarto era grande, bem ao lado do de Prateada. Boquiaberto, olhou as cortinas e móveis de madeira polida com detalhes em marfim nacarado. Aproximou-se e tocou na cama, macia como uma nuvem. Prateada continuava falando sem parar, mas ele não a ouvia mais. Estava longe, pensando no conforto que sua mãe não pudera ter. Quisera tanto ter dado o melhor a ela... Se ela estivesse viva, com certeza iria se encantar com toda aquela beleza e conforto, que tinha muito mais a ver com ela do que a casinha pobre em que viveram por tantos anos.

– Philippe!

Acordou do devaneio ao ouvir seu nome, chamado pela segunda vez por Constance.

– Saia do mundo da lua, menino! Venha! O Duque insiste que comecemos as aulas hoje mesmo!

Em poucos minutos, estavam na sala de estudos, a mesma onde havia um cravo tocado por Celine vez ou outra (cada vez mais raramente, era fato. O velho instrumento por vezes parecia desolado com o abandono). Numa mesa bem perto da janela, a luz cobria diversos livros de páginas amareladas. Constance retomou de onde parara com Prateada, deixando Philippe um tanto perdido. Mesmo assim, ele se esforçava para acompanhá-la.

– ...E depois do Rei Lucas, tivemos a Rainha Arena, e depois dela, o Rei Pares, que violou a Lei Máxima dos Lobos, e foi destituído antes do fim de seu tempo.

– Que lei? – perguntou Philippe, perdido em meio a tantos nomes de uma realeza que ele nunca conhecera.

– A Lei do Sangue, meu jovem! A única lei que nenhum Lobo, plebeu ou realeza, pode quebrar impunemente. Segundo a Lei Máxima, nenhum Lobo pode tirar a vida de alguém em cujas veias corre o sangue dos Lobos, seja de que espécie for. Você, um mestiço, ou um Lobo Negro, nossos rivais há longa data, ou qualquer outro de qualquer clã, são todos nossos irmãos. A vida de um Lobo é sagrada e quem a tira é severamente punido. O Rei Pares, por exemplo, assassinou não um, mas três Lobos! Ele foi banido, caindo em desgraça. Ninguém lhe daria guarida e o povo lhe daria as costas. Ser banido é a pior coisa que pode acontecer com um Lobo... Não é só humilhante, mas também doloroso e solitário...

Aproveitando que Constance estava disposta a falar, Philippe aproveitou para lhe fazer outra pergunta que lhe ia à mente.

– Constance – disse, inclinando-se na mesa com olhar atento, – o que você sabe sobre os vampiros?

A expressão da mulher mudou. Seu olhar grave denunciou a densidade do assunto.

– São seres perversos que agridem a natureza pela sua simples existência – respondeu. – Os que caem em sua teia de palavras bonitas e falsas promessas arrependem-se amargamente. Alguns terminam com a própria vida, pois esta não-vida é cheia de perversidades e humilhações! Fiquem longe deles, crianças! Nada de bom vem de seu toque!

– Se são tão perigosos, porque dar guarida a eles? – Philippe tentava entender o mundo que finalmente lhe abria as portas.

– Por causa da Trágua! – respondeu Prateada, animada em saber uma resposta e percebendo que começava a entender como os fatos se encaixavam.

– Trégua, Prateada! – corrigiu Constance. – Mas pensou bem, está aprendendo!

Constance abriu um livro com algumas pinturas e prosseguiu, mostrando as imagens para os dois jovens.

– A Guerra das Sombras quase exterminou os seres encantados. De ambos os lados, eram muitos os corpos. Antes, nosso povo cobria essas regiões. A Guerra eliminou mais da metade de nossa gente, e muitos ainda morriam por doenças e a fome que se espalhavam com a guerra. Foi então o Rei Edward assinou o Acordo.

Nos livros, ilustrações mostravam seres bizarros se amontoando em pilhas de mortos, enquanto homens ateavam fogo. Entre os corpos, via-se lobos, humanos, ciganos... Numa outra página, um ser com cara de pássaro monstruoso batia a uma porta com um símbolo pintado.

Assim nasceu a Trégua dos Encantados – prosseguiu Constance, – com uma série de regras para ambas as partes seguirem. Enquanto esse acordo for seguido, haverá paz. Uma das regras é dar guarida a quem pedir.

Constance fez uma pausa, percebendo que tanto Philippe quanto Prateada pareciam chocados com as imagens que viam. Ela fechou o livro, não querendo assustá-los demais.

– Mas não precisam se preocupar... – disse ela. – Faz parte do acordo o respeito a membros de qualquer uma das partes. Lobos não tocam vampiros, vampiros não tocam lobos, a regra é clara. Os visitantes não podem tocar nenhum de nós sem que haja uma concordância formal.

Uma sineta foi tocada e Constance quase saltou.

– O almoço está servido!! Vamos, crianças! Vamos!

Philippe fora encaminhado para a cozinha, onde já estava acostumado a comer com a criadagem. Prateada acompanhou o Duque e Celine no salão principal. Em ambas as mesas, os comentários eram muitos e ininterruptos.

Ao final daquele dia, o Sol se despedia pincelando cores nas nuvens e a brisa se tornava mais fria, anunciando a chegada da noite. Longe do castelo, Philippe estava diante do seu casebre. Entrou e olhou tudo pela última vez. Tudo acontecera tão rápido que não tivera oportunidade de perceber que estava se mudando do único lar que conhecera. Olhou a cama torta, tocou nas paredes de madeira cheia de frestas por onde o vento frio passava no inverno. Tocou na mesa onde comera tantas vezes com sua mãe e, após um longo suspiro, saiu. As coisas estavam mudando, como sempre desejou, afinal. Do lado de fora, olhou o casebre longamente e o deixou para trás. Que viessem as mudanças...

 


Quando chegou à cidade, a noite já enegrecera tudo. A taberna iluminada já tinha seus fregueses a se aquecer na bebida e os lampiões nas ruas e jardins já estavam acesos. Estava às portas do castelo quando sentiu um calafrio gelar-lhe os ossos.

– Ora, não vai se despedir?

Philippe virou-se para a voz que parecia estranhamente próxima e não pôde disfarçar a surpresa de ver quase ao seu lado Michel e Beatrice. Viu a carruagem se aproximando. O cocheiro, um homem careca, estranho e assustador, que tinha uma corcunda e um olhar de terceiras intenções, fez-lhe um cumprimento com a cabeça e exibiu um sorriso com alguns dentes negros e tortos. Beatrice se aproximou do jovem e ele sentiu seu perfume de flores.

– Tê-lo em nossa companhia ontem foi muito divertido! – disse a bela morena de sorriso perfeito. – Espero que possamos repetir uma noite dessas.

Philippe deu um passo para trás, deixando claro para os visitantes que não estava mais tão à vontade em sua companhia.

– Calma, criança! Nós não mordemos! – disse Michel.

– Não foi o que eu ouvi – respondeu o rapaz.

– Ora, vejo que palavras venenosas já fizeram ninho em seus ouvidos... – comentou Michel, com um ar transtornado. – Criança, não acredite em tudo o que ouve. As pessoas acham mais fácil julgar o que não conhecem como se já conhecessem. Não somos monstros.

Philippe os fitou longamente, desconfiado, mas hesitante. Se as pessoas houvessem lhe dado alguma chance antes de apedrejá-lo por ser um mestiço, teriam tido boas surpresas. Não gostava da ideia de estar agindo como as pessoas que o julgaram antes.

– Desculpem-me – disse, enfim, o rapaz, menos tenso. – Desejo-lhes uma boa viagem.

– Philippe!

O rapaz reconheceu imediatamente a voz dura do Duque. Olhou para trás e deparou-se com o olhar severo cravado nele.

– Entre! – ordenou Lamayer.

O rapaz baixou a cabeça e obedeceu.

O Senhor do Castelo das Vertentes então encarou seus indesejados visitantes com seus olhos cinzentos de dias nublados.

– Monsieur Lamayer! – adiantou-se Michel, com seu sorriso cínico. – Nós agradecemos a estadia, apesar de um tanto fria de sua parte.

– O fato de ter que cumprir o acordo não me faz gostar dele, senhores – retrucou o Duque.

Louis chegou com olhos atentos, esperando um confronto entre seu amigo de língua enorme e um Lobo Branco enfurecido. Olhou para o céu e lá estava a Lua cheia a selar sua sentença.

– Espero que não o tenhamos ofendido, Monsieur! – disse Louis, antecipando-se ao amigo.

Lamayer não disse nada. Então Michel fez uma mesura elaborada e despediu-se em nome dos seus.

– De qualquer forma, agradecemos do fundo de nosso coração silencioso!

O Duque virou-se sem dizer palavra e entrou em seu castelo.

– Michel, este seu cinismo ainda vai lhe trazer muitos problemas... – disse Louis, vendo que Lamayer já desaparecera da vista.

– O que achou, amigo? – riu, Michel, que sempre achou Louis um tanto dramático demais. – Que eu provocaria uma guerra?

Entraram na carruagem negra e os cavalos igualmente negros iniciaram a viagem.

Da carruagem, Michel ainda pôde ver Lamayer em uma das janelas do castelo. Fez-lhe um cumprimento com a cabeça, sorrindo.

Da janela, o Duque os viu partindo e desaparecendo na escuridão.

– Vão pela sombra... – murmurou. – E não voltem.

 


Capítulo 3


O enlace

 

A moça estava rubra, seus olhos cheios de lágrimas e Lamayer se lembrou, confuso, de como ela reagia a um “não” quando era criança.


– Pensei que gostasse dele!! Por que está tão brava, Celine? – perguntou, sem entender a irritação da filha pela notícia de que Philippe, a partir de agora, moraria no castelo.

– Eu ia ser a rainha! Então surge Prateada! E eu tenho que ficar à sombra dela, mas ainda poderia ser uma conselheira, alguém importante! – Celine tinha as faces vermelhas de raiva, os olhos cheios de lágrimas. – Mas que chances terei com Philippe? Quando ele está por perto, Prateada tem olhos e ouvidos apenas para ele! Para que me preparei por todos esses anos?

Seu pai tentou acalmá-la, não compreendendo muito bem a preocupação da moça, uma vez que a considerava mais do que capaz de ser conselheira de Prateada e não considerasse, de fato, Philippe um problema (embora esse rapaz sempre fosse, para ele, um detalhe inconveniente).

– Filha, não seja tola! – disse, respirando fundo e tentando conter a própria irritação. – Prateada nutre afeição por Philippe, mas ele jamais poderia ser um conselheiro!! Ele é um mestiço!

– Era para EU ser a rainha!!! – gritou Celine, extravasando a frustração que a corroía por dentro.

O rosto de Lamayer entristeceu-se um pouco. Achou que a filha havia compreendido que seu novo papel era ainda mais importante que o de Prateada, mas tinha que levar em conta os sonhos de uma moça criada como princesa para ser rainha.

– Eu lamento, Celine... – disse o pai. – As coisas nem sempre saem como planejamos...


O Capitão estava entrando quando quase foi atropelado por Celine que sequer parou para dizer bom dia. Dentro da sala principal, encontrou Lamayer, o rosto denunciando que o dia não começara bem.

– São loucas!!! – disse o Duque para o amigo que acabava de entrar e o interrogava com olhos curiosos. – As mulheres! São loucas! Todas elas, sem exceção!

Diderot sorriu.

– Sou casado há quinze anos! – comentou o Capitão – Não precisa dizer isso pra mim!

– Quando trouxe o mestiço para dentro do castelo não achei que aborreceria tanto Celine! Se soubesse, talvez...

– Fez a coisa certa, Jean – interrompeu Diderot. – Prateada nunca esteve tão feliz e você sabe.

Lamayer o olhou. Sabia que o Capitão, pela afeição que nutria por Philippe, era suspeito para falar sobre sua decisão, mas tinha que admitir que ele tinha razão. Prateada estava feliz e era muito mais fácil lidar com ela quando ela estava feliz.

– Eu sei... – concordou o Duque, enfim. – Bom, o pai de Ravin veio falar comigo e creio que logo teremos uma boa notícia para alegrar os dias de Celine!

 


Ravin ouviu pacientemente as queixas dela. Irritada, Celine ora se lamentava, ora acusava o pai de armar uma conspiração contra ela. Sentado num banco de pedra, Ravin tentou falar, mas ela não parava de andar de um lado para o outro, apontando dedos e movendo os braços contra inimigos imaginários. Então ele se levantou calmamente e a tomou nos braços. Os lábios selados, o silêncio reinou. O calor subiu às faces dela e quando se separaram, as faces estavam quentes e vermelhas e os lábios molhados entreabertos na surpresa.

– Em primeiro lugar, você é Celine Lamayer, a mulher mais incrível que já caminhou por este vale – disse ele, sem deixar de olhar nos olhos dela. – Você pode ser tudo o que quiser ser e ninguém poderia impedi-la, mesmo que quisesse, porque você é mais teimosa que uma mula. O mestiço é só um brinquedo para Prateada, algo que ela logo esquecerá, assim que conhecer o mundo lá fora. Agora, se preferir, pode continuar se lamentando num papel de coitada que não lhe cai bem... OU assumir o controle da situação.

Celine, ainda nos braços dele, sentiu que estava segura. Ele tinha razão. Podia fazer o que quisesse. Não era uma coitada. Sorriu, ainda sentindo o calor de seu corpo e, sem timidez, entregou-se a mais um beijo. Era bom ter alguém.

 


Tentava se comportar bem. Ainda se sentia inseguro, caminhando pelos corredores do castelo, temendo que, a qualquer momento, alguém o colocaria para fora como um cachorro molhado que entrou para se abrigar da chuva. O ligeiro desconforto era rapidamente substituído pela companhia radiante de Prateada e ele sabia que, para ficar ao lado dela, era capaz de qualquer coisa.

Era ainda a tarde do segundo dia de sua nova vida, passeando pelos jardins mais distantes do castelo, quando encontrou Celine. Acostumara-se a vê-la de uma certa distância. A amizade não continuada lhe deixara uma mágoa difícil de esquecer e disfarçada com áspera indiferença. Espantou-se, quando, ao se virar para deixar o local assim que a avistou, ela o chamou. Virou-se, esperando algum comentário ácido, mas surpreendeu-se ao vê-la mais perto com um rosto, pela primeira vez em muito tempo, amigável.

– Posso falar com você?

Anuiu com a cabeça e a acompanhou, curioso, até o bosque. Naquela área, as plantas eram naturalmente belas, já sem os cuidados dos jardineiros, e pequenas flores coloridas cresciam sem a supervisão das tesouras. Caminharam em silêncio, olhando os próprios pés afundarem no mato baixo.

– Você está surpreso... – murmurou ela, rindo discretamente.

O rapaz a olhou sério e então sorriu, aliviando a tensão.

– Um pouco...

– É sobre isso que quero lhe falar...

Ela parou e olhou pra ele.

– Não tenho sido uma boa pessoa com você – disse ela. – Fomos amigos na infância e eu não valorizei isso.

Philippe endureceu os olhos. Era uma surpresa que ela ainda se lembrasse de que um dia foram amigos.

– Você sempre teve uma memória ruim... – disse ele, sem sorrir.

Ela sorriu e baixou a cabeça.

– Eu já tenho a culpa do tempo que passou e você não está facilitando – disse ela.

Philippe suspirou, um tanto impaciente, não compreendendo onde ela queria chegar.

– O que você quer, Celine?

Ela ergueu os olhos pra ele.

– Quero começar de novo.

Ficaram em silêncio. Ele sacudiu levemente a cabeça, numa clara reação de confusão.

– Por quê? – perguntou.

– Porque você foi um bom amigo e ainda é. E eu me arrependo de ter perdido isso. Então, pelos velhos tempos, estou pedindo uma segunda chance.

Ela deu um passo na direção dele.

– Podemos ser amigos de novo?

Havia muito da ausência dela em sua vida, tanto que a lembrança dos bons momentos se tornou opaca e esmaecida, quase um fragmento de sonho. Mas vê-la ali, diante dele, pedindo que voltassem no tempo, aqueceu seu coração novamente. Todas as lembranças boas, nesse momento, adquiriram nova cor e nova vida.

– Podemos... – disse ele, aliviando o rosto com um sorriso.

Ela riu e segurou suas mãos.

– Obrigada! Será bom podermos conversar de novo! Tenho tanto a contar!

Ela deu um passo adiante de onde estavam e ele a segurou bruscamente, puxando-a de volta.

– Cuidado! – disse ele.

– O que foi?!

Ele pegou uma pedra e jogou aonde ela iria pisar. A pedra afundou numa turfeira oculta pela vegetação.

– Está aí há muito tempo, mas o caminho era fechado pela mata, quase ninguém passava por aqui – explicou Philippe.

– Nossa! Talvez seja melhor colocar um aviso.

E quando ela o olhou, ele viu a menina que alegrou seus dias e não a moça que partiu seu coração. Ficaram em silêncio, enquanto se olhavam.

– Melhor voltarmos – disse ele. – Está escurecendo.

E voltaram ao castelo enquanto o Sol se despedia por trás das montanhas.

 


Quando entraram, encontraram o Duque, Ravin e seu pai, Thibault Denvier, sentados tomando uma bebida na sala principal. Os homens se levantaram para cumprimentar a moça e os olhos para Philippe não foram amigáveis.

– Celine! – disse Lamayer – Temos companhia para jantar hoje. Não acredito que tenha esquecido.

A moça riu sem graça. Ravin frequentemente jantava com eles e Celine não achou que aquele jantar em especial fosse uma ocasião mais formal. Porém, vendo como o rapaz estava elegantemente vestido, envergonhou-se por estar atrasada.

– Peço que me desculpem! – disse ela. – Perdi a noção do tempo! Estarei pronta para o jantar!

Ao deixar a sala, Philippe ficou perdido. Ia fazer uma mesura e se retirar, quando o Duque falou antes.

– Philippe, pode ir jantar na cozinha com a criadagem depois. Por hora, vá ver Prateada, ela está inquieta atrás de você.

– Sim, senhor.

Philippe se retirou, ainda ouvindo comentários atrás de si. O pai de Ravin perguntava ao Duque como podia tolerar um mestiço sob seu teto, ainda mais sendo filho de quem era. Diminuiu o passo, tentando ouvir a resposta.

– Felizmente, o rapaz puxou à mãe... – foi o que Lamayer respondeu.


*****


No dia seguinte, logo pela manhã, Celine desceu as escadas cantarolando. Estava gentil, sorridente e saltitante. No café da manhã com Prateada e seu pai, ela não se continha.

– O que aconteceu pra você estar abanando o rabo? – perguntou Prateada.

– Prateada, isso não foi gentil! – reclamou Celine, sorridente. – Mas hoje, nem você vai me fazer perder meu humor!

– Mas você está abanando o rabo! – insistiu Prateada.

– Prateada não disse por mal, Celine – riu o pai. – Ela só quer saber por que você está tão feliz. Por que não conta a ela?

– Pois conto! Eu vou me casar com o rapaz mais galante do Château!

Prateada largou o talher sobre a mesa. Seus olhos se encheram d’água.

– O quê?... – balbuciou a menina. – Não pode ser!...

Lamayer e Celine ficaram olhando para a moça consternada que parecia a ponto de desabar com a notícia.

– Não pode se casar com Philippe!!! – disse ela, em tom de súplica!

Celine então desandou a rir.

– Não seja boba, Prateada! Por que eu me casaria com Philippe?! Vou me casar com Ravin!

– Ravin? – surpreendeu-se Prateada, desmanchando a cara de choro, mas mantendo a de espanto.

– Isso mesmo! O homem mais gentil e charmoso de todo o château! Depois de você, papai! Ele me pediu em casamento ontem no jantar!

Prateada ficou alguns segundos em silêncio, enquanto Celine, com um largo sorriso, esperava algum comentário.

– Cruzes!... – exclamou Prateada, voltando a comer seu pão com queijo.

– O quê? – Celine apagou o sorriso e jogou o guardanapo sobre a mesa, indignada. – É isso o que você tem a dizer?! Sua... Sua... Invejosa!!! Sem consideração! Vai morrer solteirona, rainha ou não! Despeitada!

E deixou a mesa, irritada em não encontrar eco para sua empolgação. Prateada continuou a comer tranquilamente seu café da manhã. O Duque olhou para ela com divertida curiosidade.

– Diga-me, Prateada... – disse ele. – Não gosta de Ravin, isso nós já percebemos. Você não é muito boa em disfarçar sentimentos. Mas por que não gosta dele?

– Porque ele é mau – respondeu a menina.

– Mau? Mau com quem? Com Philippe?

– Não faz diferença – respondeu Prateada, calmamente. – Não importa com quem ele tenha sido mau. Basta ser mau para uma única criatura para que um dia, cedo ou tarde, machuque alguém que ama. É da natureza dele, como é da natureza da cobra picar.

O Duque se surpreendeu pela sabedoria da menina. Inclinou-se levemente para ela.

– Ele vai fazer parte da família, Prateada... Talvez deva lhe dar uma chance. Talvez ele só tenha sido mau com Philippe, mas esta não seja sua verdadeira natureza.

Prateada riu.

– Desculpe – disse a moça, terminando o pão e olhando diretamente para o Duque como poucas pessoas tinham coragem de fazer, – mas o senhor está enganado! Muito enganado! Quando está com Philippe, Ravin é Ravin, porque não precisa fingir! Quando está com os outros é que ele finge ser outra pessoa! Posso sair?

Lamayer demorou para responder, tentando decifrar Prateada. Seria sabedoria ou simples sorte no jogo de palavras? Será que aquela menina horrivelmente sincera com farelos de pão no cabelo podia ver a alma de alguém, como os cavalos e cães, como os gatos das bruxas?

– Pode... Pode ir...

Prateada se levantou estabanadamente como sempre fazia. Então voltou e deu um inesperado beijo no rosto de Lamayer, que a olhou surpreso. Prateada não disse nada. Não tinha que dar nenhuma explicação para suas explosões de afeto. Ela apenas sorriu, exibindo toda a sua felicidade e correu para fora, onde o Sol a cobriu como cobria as flores do jardim.


Não muito longe dali, Philippe carregava um pedaço de madeira e procurava uma árvore estratégica quando ouviu passos e vozes. Distraído, só se virou quando os rapazes já estavam perto demais.

– Parece que estou azarado! – reclamou Ravin, que caminhava com Albert. – Onde quer que eu vá, vejo sua cara, mestiço!

Philippe o encarou sem responder. Ravin nunca perdera uma oportunidade de lhe dirigir uma palavra rude. Ou de lhe dar uma boa surra... Era evidente que estava procurando um pretexto para uma briga (embora raramente precisasse de um).

– O gato comeu sua língua, mestiço? – perguntou Ravin, aproximando-se.

Philippe não desviou os olhos que o afrontavam, mas não respondeu. Se Ravin queria briga, era o que ia ter. Mas não lhe daria um motivo.

Uma voz feminina e aguda se fez ouvir. Prateada chamava por Philippe e em poucos segundos apontou na pequena colina verdejante.

Ravin encarava Philippe a poucos centímetros, esperando que o rapaz baixasse os olhos, o que não aconteceu. Ravin riu.

– Não preciso de motivos para colocá-lo em seu lugar... – disse Ravin, tentando impor um respeito que Philippe não lhe tinha.

– Os covardes nunca precisam – foi a seca resposta de Philippe.

Os olhos de Ravin brilharam e Philippe apertou as mãos, esperando o primeiro golpe, pronto para reagir. A voz de Prateada foi ouvida novamente, dessa vez bem mais perto. Ravin sorriu.

– Você tem muita sorte, mestiço... Acabou de escapar de uma surra memorável...

Quando Prateada chegou, Ravin já dera as costas para eles e seguia seu caminho com Albert.

– O que eles queriam? – perguntou a moça, ligeiramente sem fôlego e com cabelo caindo sobre o rosto.

– O de sempre... – respondeu Philippe.

– Vim chamá-lo para a aula de História de Constance! Sei que você gosta!

– Sim, já iremos... – disse o rapaz, sem tirar os olhos de Ravin e Albert. – Sabe, Prateada?... Às vezes, o destino lhe dá uma oportunidade única de presenciar um momento especial, daqueles que a gente sempre vai lembrar quando precisar rir um pouco...

E em três passadas, Ravin caiu no terreno pantanoso, afundando na turfa negra. Quando se ergueu, estava negro, coberto por uma gosma pastosa e nojenta que se grudava em seu cabelo, pele e roupas. Prateada explodiu numa gargalhada, enquanto Ravin praguejava, tentando sair do lodo, mas com dificuldades, poia escorregava e caía de novo a cada tentativa. Estendeu a mão para Albert, pedindo-lhe ajuda, mas este recuou.

– Você está imundo, Ravin!

Ainda rindo, Philippe pregou a madeira que trazia consigo na árvore em cuja sombra estava. Na placa pintada, um aviso de terreno lodoso que Ravin não tivera a oportunidade de ler.

– Eis uma coisa que não se vê todo dia... – murmurou para si mesmo, sem parar de rir.

Ravin conseguira finalmente sair e, enfurecido, partiu para cima de Philippe, que correu com Prateada, deixando suas risadas ecoarem como despedida.

Eles correram pela relva coberta de flores coloridas, sob o céu de um azul brilhante com pinceladas de nuvens brancas, sentindo o vento no rosto, saltando em curtos voos e atravessando o perfume que atraía as borboletas. No alto de uma colina, Prateada não soube quando parar e empurrou Philippe. Ambos rolaram morro abaixo, até chegarem lá embaixo com mato no cabelo, rindo como riem os jovens.

Ficaram caídos por alguns minutos, recuperando o fôlego.

– Celine deveria ver Ravin agora! – disse Prateada. – Não o acharia tão galante...

– Celine nunca o viu como ele realmente é... – comentou Philippe. – Essa seria uma boa oportunidade.

– Quando casarem, ela poderá vê-lo mais de perto...

Philippe virou-se bruscamente, atingido pela notícia inesperada.

– Casarem?!

Prateada ergueu-se parcialmente também, ficando sentada na relva.

– Ela me contou hoje – disse a moça. – Ele a pediu ontem em casamento. E ela achou que era uma grande coisa...

Philippe olhou para o nada, nitidamente consternado. Prateada percebeu e entristeceu.

– O que houve? – perguntou a moça.

– Nada... – respondeu Philippe, levantando-se.

Deu a mão para a companheira e a ajudou a se levantar.

– Vamos. Constance nos espera.

E seguiram pelo resto do caminho em silêncio.

 

Capítulo 4


Um povo de todas as cores

 

Poucas semanas se passaram e não era preciso ser um observador atento para saber que, mais uma vez, o Château das Vertentes se preparava para mais uma festa. A movimentação de alfaiates e cozinheiros deixava o velho castelo num frisson peculiar. Dessa vez, a festa não era para Prateada e Celine fazia questão de deixar isso bastante claro.

– Como assim um bolo desse tamanho?! – escandalizou-se a duquesa.

– Para o número de convidados, é o tamanho ideal, duquesa... – explicou-se o confeiteiro.

– Não me importa se os convidados vão comer! – respondeu a moça – Eu quero que eles olhem! E sabe o que quero que vejam? Que vejam o bolo mais lindo que já viram! E que seja enorme!

Celine saiu, sendo chamada por Constance para experimentar os vestidos. Foi mais uma decepção! Nenhum estava à altura de suas expectativas.

– Não! – reclamou – Não estão bons! Estão horríveis! Parecerei uma trouxa de roupa suja!

Constance riu, achando a menina um tanto exigente demais.

– Menina, é uma festa de noivado! – disse a ama. – Não é um casamento! Ainda. Guarde a exuberância com que está sonhando para seu grande dia, ou não terá mais nada a mostrar quando chegar seu casamento!

Celine pareceu amuada e infeliz. Isso era indício de uma onda de nervosismos e birras que todos naquela sala fariam o possível para evitar. Constance, em sua sabedoria incontestável, ajudou Celine a tirar o vestido não terminado que ela tanto detestou.

– Vamos fazer o seguinte! Vá lá fora e tome um ar! Olhe os passarinhos, as borboletas, dê umas cambalhotas e, quando voltar, as coisas parecerão bem melhores!

E assim, Celine foi gentilmente expulsa do castelo. Pôs-se a caminhar pelos jardins, estranhando a solidão. Celine era do tipo de pessoa que nunca ficava sozinha. Seus pensamentos sobre a festa vagaram até uma saudade de Ravin e já se encaminhava para sua casa quando ouviu uma voz familiar.

– Vai mesmo fazer isso?

Ela se virou e encontrou Philippe recostado numa árvore próxima. Achou estranho que ele estivesse tão perto sem tê-lo ouvido se aproximar.

– Philippe? Não o ouvi chegar!

– Sei ser bastante silencioso... – disse o rapaz, sorrindo, aproximando-se ainda mais. – Seu amigo Ravin foi um grande incentivo pra isso.

– Você ainda tem implicância com ele, não é?

Philippe riu novamente.

– Diria que é mais do que uma implicância... Mas me diga, vai mesmo se casar com ele?

Celine jogou os braços graciosamente para o ar.

– Philippe, Ravin não é tão mau!

– É verdade, ele é uma pessoa tão boa... Deve ser por isso que estou preocupado com você.

– Ele me contou de travessuras que fez e lamento que você tenha se machucado nas brincadeiras dos garotos. Mas eram coisas de criança!

Philippe parou de sorrir.

– Celine, eu conheço Ravin. Não sei o que ele contou a você, mas dizer que o que ele fazia era brincadeira é uma ofensa à inteligência, se não à minha, à sua!

A moça ergueu o rosto, irritada.

– Está sendo grosseiro!

– Pois saiba que Ravin será muito mais grosseiro quando seu humor mudar, Celine! – Philippe a segurou pelos braços, olhando em seus olhos com certo desespero. – Eu temo por você! Ravin é cruel e covarde e eu não quero vê-la sofrer!

Celine o olhava de perto com espanto. O rapaz que a segurava tinha real preocupação nos olhos e ela percebeu o quanto ele se importava com ela.

– Você merece coisa tão melhor, Celine...

Celine se desvencilhou, nitidamente irritada.

– A única razão de não ficar zangada com todas essas mentiras sobre Ravin é porque sei que você só está fazendo isso porque se importa comigo. Eu entendi o recado. Mas não faça isso de novo. Lembre-se de que não sou uma donzela em apuros! Sou uma Loba Branca! Estou longe de ser indefesa!

– Na Lua cheia! E somente à noite! De dia, Celine, você é uma donzela, sim!

– Uma donzela que não precisa da proteção de um mestiço!

Philippe se calou, engolindo com amargor as palavras duras. Celine percebeu o quão rude estava sendo, mas não podia imaginar que Philippe tivesse coragem de acusar Ravin daquela forma.

– Desculpe, Philippe... – disse a moça, lamentando sua própria reação.

Ela se virou e retomou o caminho para a casa de Ravin. O jovem suspirou infeliz, pois sentia o peito apertado com um mau pressentimento.


Prateada correu na direção da fonte. Ela corria para onde quer que fosse. Para o almoço, para o quarto, para cima, para baixo, para fora, para dentro. Dificilmente ela era vista caminhando graciosamente, como Celine. Correr era sua natureza, mesmo que não houvesse pressa nenhuma. Era uma energia invejável, que cobrava seu preço. Comia como um leão e dormia muito. Felizmente, era um preço que podia pagar. Encontrou Philippe pensativo olhando a fonte e resolveu lhe fazer uma surpresa. Chegou de mansinho e jogou-lhe água no rosto. O rapaz tomou um susto e levantou-se, pronto para brigar com ela, mas deparou-se com o sorriso aberto que ela sempre tinha quando o via. Esse sorriso o desarmou.

– Quando acordei, você não estava! – cobrou ela, sentando-se no banco.

– Eu não durmo tanto quanto você... – respondeu, secando-se com um lenço.

– O que fez enquanto eu dormia?

O rapaz voltou a sentar-se no banco de pedra, ao lado dela.

– Uma burrice...

– Então era melhor ter ficado dormindo também!

Ele riu, mas não conseguia esconder o desapontamento.

– O que foi? – insistiu Prateada.

– Fui falar com Celine sobre o casamento... Contei a ela como Ravin é cruel, mas ela não acreditou em mim.

Prateada pensou um pouco e, por um momento, pareceu confusa. Então se virou animada com uma ideia.

– Podemos atrapalhar a festa!

– Não quero atrapalhar a festa... Isso a deixaria infeliz. E eu não quero vê-la infeliz. Acho que só podemos esperar a verdade aparecer. E torcer para não ser tarde demais.

 


Celine entrou na mansão com um sorriso forçado. A mãe de Ravin, Madame Denvier, a recebeu com esperança de uma boa conversa que alegrasse seu dia tedioso, mas Celine foi direto ao assunto.

– Ravin está?

– Sim, ele está com Albert na sala de jogos... Você quer que...

– Não precisa, eu sei onde fica, obrigada!

E antes que Madame Denvier pudesse terminar a frase, Celine já havia desaparecido casa adentro.

 

Ravin esperava Albert fazer o próximo movimento. Respirou fundo, irritado com a demora.

– Anda logo! – reclamou.

– Não me apresse! – retrucou Albert, sem tirar os olhos do tabuleiro.

– Estou envelhecendo aqui! Jogue logo, homem!

– Por acaso tem coisa melhor pra fazer, Ravin?

Celine entrou e cumprimentou os dois rapazes.

– Agora tenho! – sorriu Ravin. – Celine! Que bom ver você!

– Não sabia que estava ocupado – disse a moça. – Se quiser, posso voltar depois!

– De jeito nenhum! Vamos dar uma volta. Albert só vai fazer a próxima jogada no próximo outono.

Sem o menor constrangimento em deixar o amigo só com seus bispos e cavalos, Ravin deixou o aposento de braços dados com a noiva. Caminhavam pelos corredores ricamente decorados, indo em direção à sala principal, onde certamente lhes serviriam algo para beber.

– Você parece aborrecida... – disse o jovem.

– Pensei que ia me divertir com os preparativos para o noivado, mas todos insistem em me dizer que estou errada!

– Como assim?

– Digo que quero um bolo grande, e me dizem que tem que ser pequeno! Quero um vestido bonito e só me mostram farrapos! Parece que nada do que escolho está certo!

– Bom, se é um bolo grande que você quer, podemos providenciar um – disse Ravin, tentando resolver o problema.

– Até a escolha de meu noivo parece estar sendo questionada...

Ravin parou, desfazendo imediatamente o sorriso e o bom humor.

– Como é? Quem disse isso?

– Ninguém... Deixe pra lá.

– Não deixo nada! Quem foi o imbecil que disse que não sou bom pra você?!

– Ninguém! Já disse!

E Celine adiantou-se para a sala principal. Ravin tinha um nome em mente e logo a seguiu.

– Foi o mestiço, não foi?

Celine sentou-se e o encarou. Ravin compreendeu o “sim” velado.

– Aquele afeminado de uma figa... Por que ainda fala com ele, Celine?

– Porque ele é a chave para Prateada! A ponte! Sem ele, não consigo nem me comunicar com ela!

– Pois é bom ir se acostumando a pular essa ponte, porque eu vou arrebentar esse mestiço desgraçado!

Celine levantou-se, colocando-se diante dele.

– Não, não vai, não!

Ravin a olhou surpreso e incrédulo.

– Vai defendê-lo também?! Não basta seu pai tê-lo colocado debaixo do seu teto?!

– Ele o acusou de ser covarde e cruel, Ravin – respondeu Celine, muito séria. – E eu não acreditei. Espero que não me dê motivos pra acreditar.

Ravin parou um minuto, vendo nos olhos da moça que ela não estava brincando. Desarmou-se, largando os braços no ar.

– Está bem... – se é o que quer, eu o deixarei em paz. Embora ele mereça uma lição por ter tentado jogar a mulher que eu amo contra mim.

Celine sorriu, vendo que Ravin era mesmo o homem que ela acreditava ser.

– Ele só quer me proteger. Está preocupado, só isso.

– Preocupado... Ou com ciúmes? – perguntou Ravin.

– Não seja tolo!

– E por que não? – insistiu Ravin. – Lembra-se de quando ele foi atrás de você no baile, com aquelas flores do mato e roupas remendadas? Você nem sabia que ele era um mestiço. Você é linda e ele não é cego. É burro, mas não é cego.

– Você é um bobo!

Ela sorriu e o abraçou. Ravin, pelas suas costas, desmanchou o sorriso. Não sentia os cabelos macios acariciando seu rosto. Seu rosto se endurecia pensando que aquele mestiço merecia mesmo uma lição e ninguém melhor do que ele para dá-la.

Quando voltou à sala de jogos, Albert estava na mesma posição. Ravin andou pela sala irritado.

– Celine já foi? – perguntou Albert, imaginando um desentendimento entre eles.

– Já... – respondeu Ravin, parecendo pensar em outra coisa. – Ela tinha coisas a fazer para a festa de noivado...

Então Ravin se virou bruscamente para o amigo.

– Venha! Precisamos falar com Carlo e Jacques!

– Calma! Ainda não terminamos essa partida! – e Albert fez finalmente seu movimento. – Pronto! Xeque!

Ravin foi até a mesa e moveu uma peça sem muita atenção.

– Xeque-mate. Vamos!

E arrastou um atônito Albert sala afora.

 


Naquela tarde, o château ficou inesperadamente mais colorido. Carroças de cores vivas puxadas por cavalos enfeitados tilintavam ao passar pela cidade. Prateada e Philippe correram para ver os visitantes, perseguidos por cães e crianças, tocando música e espalhando suas cores alegres em seus sorrisos, lanternas luminosas em seus rostos morenos.

Em seu cavalo, o Capitão Diderot observava o movimento nas ruas.

– Isso não vai irritar o Duque? – perguntou Philippe. – Parecem humanos!...

– São mais que isso... – respondeu o Capitão sorrindo. – São ciganos!

Então ele se adiantou em seu cavalo e garbosamente se colocou diante da primeira carroça. As outras pararam e um homem idoso de pele morena e barba desenhada desceu.

– Boa tarde, senhor! – disse ele. – Eu me chamo Wladimir e eu e minha família estamos vindo de Marselha. Pedimos guarida por alguns dias em suas terras!

O cavalo do Capitão agitou-se um pouco, rodopiando, quando este respondeu.

– O Duque das Vertentes pede desculpas por não vir pessoalmente lhes dar as boas-vindas. Como povo encantado, vocês têm guarida e proteção dessas terras por quanto tempo desejarem!

O velho homem sorriu, exibindo alguns dentes de ouro, e voltou à carroça. O Capitão saiu do caminho, deixando a passagem livre e cumprimentou-os com um sorriso cordial, enquanto as três carroças passavam, prosseguindo a cantoria interrompida.

Philippe e Prateada se aproximaram de Diderot enquanto as crianças e curiosos ainda seguiam as carroças enfeitadas com fitas e tecidos.

– Não entendi! – disse Philippe. – Eles são bem-vindos então?

– Na Guerra das Sombras entre vampiros e lobisomens, todos os seres encantados foram envolvidos e tiveram que escolher um lado. As fadas, os ciganos, assim como algumas linhagens de bruxas e feiticeiros, ficaram do nosso lado. Por isso são sempre bem-vindos. Nós, Lobos, temos boa memória e uma grande lealdade àqueles que nos ajudaram no passado.

– Então podemos ir lá conversar com eles? – perguntou Prateada, curiosa com aquela gente cor de cobre.

– Pode, criança! O Duque não se importará.

E assim eles correram na direção da música cantada em idioma estranho, seguindo o tilintar nos guizos amarrados nos cavalos.

 


E depois que o Sol se escondeu e a Lua surgiu no céu, luzes brilharam na campina próxima à cidade onde os ciganos fizeram seu acampamento. Eram archotes e lampiões que reluziam nas roupas e joias douradas de velhas senhoras de lenços coloridos na cabeça, de jovens de longos cabelos negros e de homens com gibões bordados em ouro. Os curiosos da cidade já haviam voltado às suas casas, mas Philippe e Prateada continuavam a observar a movimentação. Era estranho ver seus hábitos, tão livres e espontâneos, diferente dos hábitos das pessoas da cidade e do castelo.

– Parece muito divertido ser eles! – comentou Prateada.

– Parece, sim – concordou Philippe. – Imagine o quanto eles não devem ter viajado, já que moram em suas carroças. É como ter uma casa com rodas! Podem ir a qualquer lugar!

A ideia de conhecer o mundo sempre povoou os sonhos de Philippe e imaginar pessoas que simplesmente podiam ir aonde quisessem era algo quase mágico.

Os ciganos, que preparavam seu jantar depois da longa viagem, já haviam notado os dois jovens a observá-los. O chefe do clã então se levantou e os chamou com um movimento de braços e um largo sorriso. Os jovens hesitaram.

– É com a gente? – perguntou Philippe.

– Não! – respondeu o homem numa risada divertida. – Estou chamando as árvores aí atrás!

Prateada olhou pra trás. Então olhou para eles de novo.

– Ah! Entendi! Foi uma piada!

Encabulados em serem flagrados, os jovens saíram de seu mal camuflado esconderijo e se aproximaram dos forasteiros.

– Boa noite, gadjos! – disse Wladimir. – Se vão nos observar a noite inteira, deveriam fazer isso mais de perto! Venham! Comam conosco!

Coelhos estavam sendo assados numa fogueira e pão era distribuído para todos.

– Não queremos incomodar.

O homem fechou o rosto.

– Pois então não incomodem! – e então começou a rir. – Apenas comam conosco e se divirtam um pouco!

Philippe se apresentou e apresentou Prateada. Nessa noite, conheceram temperos mais picantes do que estavam acostumados e bebidas mais fortes do que seus espíritos estavam preparados. Conheceram Nalita, Esmeralda, Sara, Wolsijsk e outros com nomes mais complicados e um tanto difíceis de lembrar numa só noite. Aprenderam o primeiro dos doze mandamentos dos ciganos: Amar a Deus e todos os santos. Ouviram com atenção suas histórias e prometeram voltar no dia seguinte para aprender o segundo mandamento.


Era tarde quando voltaram para o castelo. O Duque os esperava e lhes deu uma bronca por terem se atrasado para o jantar. Os dois baixaram a cabeça e pediram desculpas. Philippe então se dirigiu para a cozinha, enquanto Prateada foi para a mesa na sala principal. Em pouco tempo, começou a contar o que aprendera com os ciganos, desfazendo a tensão das primeiras colheradas e alegrando a mesa de jantar com novidades.

Philippe não tinha mais fome, pois já havia jantado com os ciganos, e resolveu apenas dar uma volta para respirar o ar da noite, antes de se deitar. A noite, quente e de céu límpido, tinha uma brisa leve como as cortinas finas do quarto. Respirou profundamente, sentindo o aroma dos jasmins, ouvindo grilos e uma coruja piando ao longe. Pensava no que poderia haver além dos limites do Château das Vertentes e se um dia poderia ver o mundo lá fora, quando ouviu passos e virou-se rapidamente.

– Estava procurando por você.

Philippe estranhou ver Jacques. Não se falavam desde que este o perseguira numa noite e caíra numa armadilha. Philippe desistiu da fuga para trazê-lo de volta e, desde então, não se falaram mais. Porém, Diderot lhe disse que, quando recebeu a flecha que quase o matou, ali mesmo nos jardins do castelo, foi Jacques quem ajudou a levá-lo e não deixou o castelo até que o médico desse notícias. Mesmo assim, Philippe acostumou-se a ter péssimas experiências com Ravin e a ver, por anos, Jacques e Carlo a acompanhá-lo. Por isso, ainda olhou em volta, procurando pelos outros dois.

– Não se preocupe – disse Jacques. – Eu estou sozinho.

– O que você quer?

– Avisá-lo – respondeu Jacques. – Ravin sabe que você falou sobre ele com Celine e está muito chateado.

Philippe cruzou os braços.

– Devo ter ferido seus sentimentos... – respondeu Philippe. – É muito sensível esse rapaz!...

Jacque riu, incrédulo.

– Sabe? É por causa desse seu deboche que você acaba apanhando!

– Bem, então você veio me avisar que Ravin está chateado...

Jacques deu um passo a frente, com expressão mais séria.

– Não. Eu vim avisar que Ravin e os outros estão planejando pegar você na primeira oportunidade.

Philippe tentou, mas não conseguiu disfarçar a preocupação. Sabia o quanto Ravin podia ser cruel e sabia também que era quase impossível se defender das emboscadas covardes que ele lhe armava.

– Estão esperando que você saia sozinho e se afaste do castelo – continuou Jacques. – Por isso, não se afaste. Fique por perto e não ande sozinho! Ao menos, por enquanto. Logo, a festa de noivado virá e ele esquecerá essa bobagem.

Philippe ficou em silêncio.

– Bom, era isso que eu vim dizer – disse Jacques, despedindo-se. – Tenha uma boa noite.

– Jacques?

O rapaz virou-se. Philippe descruzou os braços e inclinou a cabeça em dúvida.

– Por que veio me avisar?

Jacques não respondeu de imediato. Olhou para Philippe longamente, como se procurasse uma resposta.

– Porque tenho memória.

E saiu, desaparecendo na escuridão. Philippe respirou longamente, o cenho cerrado, percebendo que não estava livre de Ravin. Temia por sua própria segurança, mas temia principalmente por Prateada. Sabia o quanto ela era impulsiva e se ela fizesse uma bobagem, poria a coroa a perder. Olhou em volta e voltou para o castelo, tendo cuidado por onde andava.

 


Capítulo 5


As cartas de Bibi Sarita

 

Nos dias que se seguiram, Prateada e Philippe se dividiram entre as aulas com Constance e os encontros com os ciganos. Quando o Sol tingia o céu com as cores de sua partida, os dois jovens já se encontravam perto dos carroções coloridos. Quando a Lua se erguia, bebiam sifrit e ouviam histórias, cantavam canções e acompanhavam com palmas o rodopio das saias coloridas das mulheres e da majestosa dança dos homens. Aprenderam os outros três mandamentos desse povo: respeitar a Semana Santa, respeitar todas as religiões e credos que elevam o nome da Divindade Criadora e ajudar-se mutuamente. E conheceram Bibi Sarita.

Bibi era como chamavam as tias conselheiras, um tratamento carinhoso para as ciganas mais idosas que tinham o dom da vidência e o talento para ver o futuro nas cartas. Isso intrigou e atraiu os jovens. Wladimir, vendo o brilho em seus olhos, se inclinou, a fogueira iluminando seu rosto acobreado pelos longos anos sob o Sol.

– Eu acho que vocês dois deveriam ver a Bibi Sarita!

– Mas nós já a estamos vendo! – disse Prateada, apontando com o rosto a velha senhora de pé ao lado deles.

– Não, minha menina! Vê-la lá na tenda, com suas cartas! Acho que dois jovens como vocês devem ter um futuro muito interessante. Se derem uma moeda cada um, Sarita verá seu futuro. O que me dizem?

– Sim! – animou-se Prateada. – Eu quero!

– Eu também! – respondeu Philippe. – Mas nós não temos dinheiro conosco!

– Não faz mal! Podem trazer depois! Vão! Vão ver Sarita!

Os dois jovens entraram na tenda colorida, seguindo Sarita, uma mulher com o brilho opaco do tempo, mas ainda com os cabelos negros como os de Philippe. Suas saias tinham moedas douradas em cordões e enfeites que tilintavam quando ela andava. Sua idade parecia ter aumentado sua graça ao andar e se mover e ela o fazia docemente, sem pressa, como a água de um córrego sob a luz da madrugada.

– Sentem-se, meus jovens! Sarita verá seu futuro e vocês saberão o que os aguarda!

Uma pequena mesa coberta por tecidos finos e brilhantes estava entre eles. Sarita retirou um dos tecidos, descobrindo uma bola de cristal e cartas com figuras. Algumas velas espalhadas pelo recinto iluminavam tudo, mas ela acendeu uma vela vermelha que estava, já começada, sobre a mesa.

– Por quem vamos começar? – perguntou ela, embaralhando as cartas nas mãos de dedos longos e ágeis.

Prateada inquietou-se na cadeira, ansiosa.

– Pode começar com ela... – disse Philippe, sorrindo com a transparência da jovem amiga.

– Muito bem... Vejamos...

E cartas foram lançadas, enquanto a esfera cristalina refletia a dança da chama na vela escarlate.

– Oh! Que linda sina, minha bela menina! – espantou-se Sarita. – Você é única, muito especial... E vejo que seu coração já tem dono...

Prateada, pela primeira vez, ruborizou. Philippe a olhou com surpresa.

– Você quer ser livre – prosseguiu Sarita, – mas a missão que veio cumprir a prende e a afasta do que ordena seu coração. Hum... Vejo aqui desafios para você! Desafios que vão definir não só o seu futuro, mas o de muitas outras pessoas... Você terá que ser valente, menina! Não desista. De nada! Nem dos deveres que o destino lhe impuser, nem do que manda seu coração. Precisará dos dois para ser completa...

– Mas... – balbuciou a moça. – Como vou saber quando um é mais importante que o outro?

– Você saberá! Seu instinto é bom. Confie nele!

Sarita embaralhou novamente as cartas e fitou Philippe longamente.

– Não precisa ter medo, menino – disse a cigana, percebendo que o jovem não parecia muito à vontade.

– E se eu não puder mudar o que você vir? – perguntou o rapaz.

A velha cigana riu e a chama tremeu, fazendo as sombras dançarem sobre os baús e almofadas.

– Meu querido, tudo pode ser mudado! – Deus nos deu a liberdade de escolher, nosso bem mais precioso! E, embora não possamos escolher como os outros devem agir, podemos sempre escolher como nós vamos agir. Concentre-se nisso!

Ela começou a lançar as cartas. Seu rosto escureceu após as primeiras.

– Oh, menino!... Eu sinto muito sobre sua mãe!... Era uma grande mulher e amava muito você.

– Pode vê-la? – perguntou Philippe, arregalando os olhos.

– Não... – disse a cigana, com tom de pesar. – Ela está com seu pai agora...

Philippe sentiu um aperto no coração. A saudade é algo que nunca passa de fato.

– Mas não fique triste! Vejo em sua vida pessoas muito especiais que lhe querem muito bem! Vejo um homem de armas, muito justo, um militar, seu protetor. Ele ama muito você e não deixaria que nada lhe acontecesse. Ele e a mulher têm você como um filho. Vejo também uma amiga... Alguém que ama você mais do que qualquer coisa no mundo. Pode contar com essas pessoas, meu filho. Elas cuidarão bem de você e você cuidará bem delas. E, juntos, ficarão bem...

Subitamente, uma carta retirou a cor do rosto moreno de Sarita. O sorriso se apagou e ela colocou mais três cartas seguidas. As figuras não eram bonitas como as outras.

– Criança, você tem muitos inimigos... Um em especial fará você sofrer muito. Vejo lágrimas e sangue e vejo escuridão em seu caminho...

Sarita colocou uma última carta. Uma rajada de vento apagou a vela sobre a mesa. Sarita, calmamente, virou-se para o jovem que a encarava assustado.

– Seu futuro lhe reserva honras e glórias maiores do que qualquer um nessas terras poderia sequer sonhar – disse ela. – Você terá tudo o que desejar e sonhar e será um exemplo e inspiração para todos...

Então, ela pegou uma outra vela próxima e com a chama desta acendeu a vela vermelha apagada.

– ...Se, e somente se, conseguir encontrar o caminho para fora da escuridão...

Ela se inclinou para o jovem com um sorriso amigo.

– O problema da escuridão é que ela nos engana... Nos faz pensar que estamos sozinhos... Lembre-se disso, meu lindo menino... Quando as coisas estiverem muito ruins, você receberá ajuda de onde menos espera. Não desista. Nunca.

 


Quando voltaram para casa, Philippe estava calado. Prateada o olhava longamente, daquela forma às vezes incômoda, como se tentasse ver o que ele tentava esconder. Ela esperou que ele falasse algo, mas o silêncio os acompanhou. Na entrada do castelo, ele se despediu.

– Estão esperando você para o jantar – disse ele.

Prateada o olhou longamente. Então sorriu e pegou suas mãos.

– Quando ficar escuro demais, estenda a mão... – disse ela. – Eu estarei lá.

Uma brisa os acariciou e ele viu nos olhos dela o que Sarita viu nas cartas. E temeu não esconder o que também estava nos olhos dele.

– Boa noite! – disse a voz amigável que se aproximava.

Prateada sorriu para Diderot e entrou correndo. O Capitão percebeu que Philippe parecia preocupado.

– O que houve?

O rapaz caminhou até uma pequena murada e apoiou-se.

– A cigana Sarita viu nosso futuro nas cartas hoje!

Diderot se aproximou.

– E é tão ruim assim?

Philippe riu, percebendo que, de fato, não recebera notícias tão ruins.

– Não – disse ainda rindo. – Na verdade, ela viu que Prateada será muito importante! E viu que ela gosta muito de mim!

O Capitão se apoiou também na murada de pedras.

– Não!... Jura?! – perguntou com sarcasmo. – Puxa! De onde será que ela tirou essa conclusão?

– Ela também viu que terei tudo o que desejar, se superar uma... fase ruim...

– Me parecem ótimas previsões!

– Sim, parecem...

O rosto do rapaz voltou a pesar enquanto observava a dança iluminada dos vaga-lumes nos arbustos.

– Então, porque está aborrecido?

Philippe baixou a cabeça um momento, procurando ver o que afinal fazia seu coração tremular de frio e medo.

– Ela falou que minha mãe não está mais aqui... – disse, virando-se para o amigo. – Disse que ela está com meu pai.

Diderot esperou, vendo os olhos do menino brilharem num leve desespero.

– Isso me lembrou de quem eu sou, Diderot! Sou um mestiço, filho de uma humana que parece ser mais prezada por aqui que meu pai. Sei que ele não era bem quisto aqui, embora não saiba por que. E com essa herança, o que posso esperar, além de uma vida... solitária?

– Prateada gosta de você e é muito evidente que você gosta dela... Não será uma vida solitária, vocês sempre serão melhores amigos.

– Prateada será rainha! – retrucou Philippe, encarando o Capitão. – Nós não poderemos ficar juntos! Jamais permitiriam que... Já é um milagre que permitam nossa amizade e isso só aconteceu a muito custo, você sabe. Não tenho ilusões sobre ela, Diderot. Sei que ela está totalmente fora do meu alcance, que ela pertence à realeza. E quando chegar o momento, ela partirá. E o que me restará?

Diderot compreendeu o medo do rapaz. Pra quem viveu tanto tempo sozinho, a perspectiva de novamente ser abandonado à própria sorte e perder a razão do seu afeto era assustadora.

– Philippe, onde você está agora?

O garoto o olhou confuso.

– Eu vou lhe dizer onde você está – prosseguiu o Capitão. – Está morando no castelo, aprendendo História e Línguas, acompanhado da dama mais bela que esse povo já viu. Agora, onde você estava há um ano? Num casebre frio, se recuperando das dores de mais uma surra que Ravin e seus amigos lhe deram, temendo o dia raiar e lhe trazer mais longas horas sob a crueldade de Gerard.

Philippe olhou para o castelo, compreendendo onde Diderot queria chegar. O amigo lhe tocou o ombro.

– As coisas mudam, filho. Você, melhor do que ninguém, deveria saber disso.

 

Dentro do castelo, Prateada contava sobre as previsões na sala de jogos. Celine estava interessada, enquanto Constance se mantinha de pé a uma certa distância. Lamayer tomava um licor enquanto ouvia o que considerou delírios coloridos de uma mente infantil que se deixou levar por palavras pagas com moedas. Sabia que os ciganos tinham um grande talento para a magia e para retirar o véu do tempo, mas sabia também de seu grande talento para iludir.

– ...E Bibi Sarita disse que eu serei muito importante para muitos! – prosseguia Prateada, ainda empolgada.

– E sobre Philippe? – provocou Celine. – Ela não contou nada?

Prateada pensou um segundo antes de responder.

– Ela disse que ele terá honras e glórias, mais do que qualquer um aqui já sonhou!

A sala mergulhou em silêncio súbito.

– Ora! – exclamou Celine. – Logo se vê que essa gente enganou vocês! Como Philippe chegaria a isso, sendo só um pobre mestiço?

Sentindo-se desafiada e, de certa forma, ofendida (pois Prateada sempre se sentia ofendida quando se referiam a Philippe como “só um mestiço”), ela se empinou na cadeira e metralhou as provas da verdade das palavras de Sarita.

– Então, como ela sabia que a mãe dele tinha morrido, assim como o pai? E como sabia o que ia no meu coração e sobre o trabalho que tenho que fazer? Como sabia que Philippe tem um inimigo poderoso que o fez sofrer?

Celine hesitou. Lamayer olhou com cenho cerrado, dando mais atenção ao que achou apenas uma brincadeira com dados regada a rum em volta da fogueira.

– O que mais ela disse? – perguntou o Duque.

– Disse que devo fazer meu trabalho e seguir meu coração... – respondeu Prateada. – Pois um depende do outro.

Uma criada magricela entrou e anunciou Ravin, que entrou a seguir. Celine se levantou com um sorriso.

– Bom, podemos jantar agora – disse o Duque, também se levantando para cumprimentar o futuro genro.

Prateada se levantou lentamente. Não estendeu mais do que um olhar pouco amistoso para o jovem em roupas finas.

– Não estou com fome. Peço licença para me retirar.

– Prateada! A quem quer enganar? – riu Celine. – Você está sempre com fome!

– Acho que nossa futura rainha tem um problema comigo... – sorriu Ravin, encarando Prateada.

– É verdade, Prateada? – perguntou o Duque, já sabendo a resposta.

– É.

As pessoas ficaram em silêncio, esperando uma explicação. Como ela não veio, Ravin se adiantou.

– Bom... Tenho certeza de que podemos resolver esse mal entendido... Vejamos, Prateada. Qual o seu problema comigo? Talvez eu possa consertar.

Ravin tinha os traços quadrados e clássicos e sabia se portar com muita elegância. Era de fato difícil compreender porque Prateada era sempre tão hostil com ele, um dos nobres mais admirados em toda a cidade.

– Meu problema é que você não presta, Ravin!

– Prateada!!!! – escandalizou-se Celine.

– Não acredito que possa consertar isso – continuou a moça. – Você é ruim! Teria que se esforçar muito pra ser outra coisa além de você!

– Prateada! – ralhou o Duque. – Está sendo grosseira! Peça desculpas!

A moça olhou para Lamayer e baixou os olhos.

– Eu peço desculpas pela honestidade... Como eu disse, é muito difícil ser outra pessoa...

 

Depois do jantar, Celine e Ravin deram um passeio pelos jardins iluminados. Estavam na mesma discussão desde que deixaram o castelo.

– Não entendo por que não pode ir comigo! – reclamava Celine.

– Porque é uma coisa idiota! Não vou sentar na frente de ciganos e esperar que me revelem o que eles não sabem!

– Eles acertaram com Prateada e Philippe!

Ravin deu uma sonora gargalhada.

– Como!? Disseram que ela será útil e ele, importante. Só disseram o que aqueles dois trouxas queriam ouvir!

– Ao menos eles tiveram coragem para ir!

Ravin a olhou de cima, compreendendo o jogo de provocação.

– Você quer mesmo que eu vá, não é? – perguntou ele. – Pois então, eu lhe faço uma proposta.

– Diga! – disse a moça.

– Eu vou, em troca de uma coisa...

Ravin fez uma pausa, lendo a ansiedade nos olhos dela.

– Não quero ver o mestiço na nossa festa de noivado.

Celine desarmou. Esperava que ele pedisse outra coisa qualquer.

– Mas...

– Sem mas! Sei que você é amiga de Prateada e que, a Deusa sabe que nunca entendi porque, você também gosta dele. Mas eu não o quero na nossa festa.

– Mas, se ele não for, Prateada não vai!

– Isso é um problema seu! É isso. É pegar ou largar!

Celine hesitou, irritada em ter que abrir mão de algo.

– Está bem! – decidiu ela. – Ele não irá, se é isso o que você quer.

Ravin sorriu, vitorioso.

– Bem, quando quer ir ver o futuro?

 


Na tenda de luzes dançantes, Sarita lia as histórias que se descortinavam diante dos olhos negros.

– Vejo que seu coração está dividido... Duas jovens disputam um lugar... A primeira é selvagem demais para você, meu jovem... Mas a segunda, justamente a que lhe parece impossível, pode vir a você... Se você jogar as peças certas!

Jacques nem piscava. Carlo o provocou.

– Por que não me contou que estava apaixonado? Você é um mau amigo!

– Oh! Era segredo? – riu Sarita. – Me desculpe... Mas vamos adiante! Vejo um período de muitas decisões para você! Não é só seu coração que está dividido! Sua mente também está confusa entre o que os outros querem e o que você quer. Vejo você num trono, tomando decisões importantes! Mas ainda está tudo nebuloso!

– Puxa! – espantou-se Carlo. – Jacques, você vai ser rei?! E eu? O que eu serei? Casarei com Bernadete?

Sarita embaralhou as cartas sorridente. Desde que Prateada e Philippe fizeram sua propaganda, não ficava sem clientes.

– Vamos ver!... Vejo uma donzela de cabelos escuros e sardas! Ela gosta muito de você, meu jovem!

Carlo se ajeitou na cadeira, sorrindo orgulhoso.

– Vejo que a fartura sempre foi sua companheira. Não precisa se preocupar, nada faltará para você...

A cigana parou de falar e colocou algumas cartas seguidas sem nada dizer.

– Pode ver nossa festa de casamento? – perguntou Carlo, ansioso.

– Vejo um rio... – murmurou Sarita. – Um rio de sangue...

Então Sarita recolheu as cartas apressadamente.

– E é só isso! Não consigo ver mais nada, meus jovens.

Um tanto confusos, os rapazes se levantaram para sair da tenda. Sarita segurou o braço de Carlo, antes que ele fosse.

– Se quer um conselho, meu rapaz... Fique longe dos rios... E não cultive inimigos por diversão.

Poucos passos depois, Carlo ainda estava tentando entender.

– O que ela quis dizer com isso?

Jacques estava pálido e não parava de olhar para o amigo.

– O que foi? – perguntou Carlo. – Parece que viu um fantasma?

– Eu vi o rio de sangue que ela falou... – murmurou Jacque.

– Onde? – perguntou incrédulo o outro.

– Na bola de cristal sobre a mesa. Eu a vi mudar de cor, como se enchesse de água vermelha... E vi você, Carlo. Morto, em pedaços!...

– Decerto, algum truque... – disse a voz de alguém que chegava.

Eles se viraram e viram Ravin e Celine.

– Vocês sabem o quanto os ciganos são bons em truques! – insistiu Ravin.

– Se acha que é truque, o que está fazendo aqui? – perguntou Carlo.

Ravin fez um movimento de cabeça apontando para Celine.

– E você, Jacques? – perguntou a moça, tentando fugir do assunto mórbido. – O que ela viu?

– Ela viu que Jacques está dividido entre duas donzelas! – adiantou-se em responder Carlo. – Uma é selvagem e a outra, impossível. E ela viu que Jacques se sentará num trono e dará muitas ordens!

– Outro que terá glórias e honrarias... – desdenhou Ravin. – Se até o mestiço terá honra e glória, não vai sobrar plebe pra você mandar, Jacques.

– Pois eu preferia que ela tivesse visto algo assim para mim... – lamentou-se Carlo, um pouco preocupado.

– Não pense muito nisso, Carlo – disse Ravin. – Ela só quis assustá-lo pra dar um ar dramático ao espetáculo!


Os dois rapazes se foram e Ravin e Celine, finalmente, entraram na tenda.

Sarita os recebeu sorridente, sua roupa tilintando em moedinhas brilhantes. O jovem casal se sentou diante dela e a cigana de longos cabelos que tinha a beleza do tempo embaralhou as cartas.

– Como vejo que a mocinha está ansiosa, vou começar por ela, está bem? – e como Ravin respondeu com um olhar entediado e um sacudir de ombros, Sarita continuou. – Muito bem, vejamos!... Vejo que você foi criada para ser alguém muito importante! Passou muitos anos longe da família, aprendendo... E teve um amor de infância que persiste até hoje...

Ravin deu uma olhada de lado para Celine, que se remexeu no banquinho.

– Você anda preocupada em não ser o que sempre sonhou... Mas aqui diz que você será exatamente o que sonhou ser!

– Impossível! – riu Celine, sabendo do que Sarita falava.

– Nada é impossível, minha querida! Não para o Destino, que mexe e muda os caminhos de todos nós! – a cigana voltou a olhar as cartas. – Vejo que você terá um companheiro leal que a fará feliz, embora seu coração jamais vá esquecer um antigo amor.

Mais uma vez, Ravin a olhou, dessa vez em tom de acusação.

– Agora, vamos ao jovem... – Sarita embaralhou novamente as velhas cartas meio cansadas nas pontas. – Hum... Vejo poder em suas mãos... Você é um líder, as pessoas o ouvem e o respeitam. Alguns o temem... Inteligente, esperto, você pode chegar aonde quiser! Agora vamos ao futuro...

– ...com glórias e honrarias... – sussurrou Ravin.

Sarita, no entanto, não pareceu ouvir a provocação. Estava atenta e, de cenho cerrado, via as cartas que se abriam sobre o pano colorido da mesa.

– Veja como será nosso casamento! – pediu Celine. – Quero que seja a maior festa que o château já viu!

Sarita continuava concentrada, olhando ora as cartas, ora sua bola de cristal.

– Não vejo nenhum casamento...

– O quê? – perguntou Celine, balançando a cabeça confusa.

– Não vejo nenhum casamento para o rapaz.

– Impossível! – retrucou Ravin. – Estamos noivos, só falta marcar a data!

– Lamento... Não haverá casamento. Haverá uma longa viagem para vocês dois... E, depois dessa viagem, vejo uma partida e uma chegada. Uma mulher partirá e, logo depois, um homem vindo de longe chegará. Isso mudará tudo.

– Não entendo! – disse Celine.

– Vejo um inimigo que você criou há muito tempo lhe dando problemas... – prosseguiu a cigana, olhando para Ravin. – Esse inimigo lhe tomará tudo o que lhe é mais caro. O sangue derramado desse inimigo lhe trará dor, perdas, derrota e solidão! No final, você perderá tudo por causa do sangue deste inimigo em suas mãos.

Ravin, agora interessado e sério, inclinou-se sobre a mesa.

– Como ele é? – perguntou Ravin.

Sarita olhou melhor, meneando a cabeça.

– Ele tem cabelos negros... E é seu inimigo porque você quis assim. E é só o que vejo.

 


Capítulo 6


O Destino

 

O Sol iluminava a relva verde onde uma figura feminina pintava de vermelho, rosa e amarelo o campo de flores. Distraída, a velha cigana catava pedras, flores e ervas cujos segredos somente ela sabia. E eram esses segredos que ouvia quando alguém inesperadamente tocou-lhe o ombro, fazendo-a saltar mais alto do que acreditava que sua idade permitiria.

– Por Deus, menina!!! – exclamou a mulher, levando as mãos cheias de anéis dourados ao peito em saltos. – Quase me mata de susto!

– Desculpe!... – disse Celine, sem muita convicção.

Sarita observou a jovem, percebendo-a preocupada com algo.

– Vim lhe pedir um feitiço – disse Celine, dando uma explicação ao olhar curioso da cigana.

A mulher de longas saias e vestido decotado colocou uma das mãos na cintura, enquanto que com a outra segurava contra o corpo um cesto de suas ervas e flores. Olhou longamente Celine.

– Sei... Imagino que seja um amuleto de amor, ou uma poção para tornar seu amado mais carinhoso...

– Não, não é isso – interrompeu a moça. – Eu preciso de algo diferente...

A cigana continuou a olhá-la, esperando uma conclusão que não veio.

– Se eu tiver que adivinhar isso também, vou cobrar o dobro!

Celine baixou a cabeça e apertou as mãos suadas. Hesitava em fazer o pedido porque temia que suas palavras no ar tornassem a previsão mais verdadeira, mais fatalista.

– Eu quero um amuleto ou um feitiço que possa mudar o destino!

Sarita continuou a fitar a moça. O fato é que Sarita raramente se lembrava das previsões que fazia. Não tinha a menor ideia do que Celine estava falando.

– E o que há de errado com seu destino? – perguntou novamente a cigana, tentando se localizar.

– Com o meu, nada. Mas gostaria de mudar o destino do meu noivo.

– Oh, menina, eu lamento! – respondeu a cigana, pondo-se a andar com seu cesto pela relva. – Não podemos mudar o destino dos outros! Já é muito difícil mudar o nosso!...

Celine começou a segui-la, inconformada.

– Mas deve haver algo que possamos fazer! Não podemos ser escravos do nosso destino! Senão o que seria a vida? Uma história já escrita em que só interpretamos os papéis? Um jogo no qual não podemos vencer, mas do qual não podemos sair?

Sarita virou-se subitamente, fazendo Celine estancar também e parar de falar.

– Você tem razão, menina! – disse a Cigana, os olhos apertados contra o Sol e as joias brilhando e refletindo como pontos de luz a emoldurar o rosto cor de bronze. – Seria tolice se não pudéssemos mudar nossos destinos!

O rosto de Celine se iluminou na esperança de ouvir uma fórmula secreta que mudasse o futuro que tanto temia.

– Então há uma magia!

– Há – respondeu a cigana. – Uma magia chamada escolha.

Celine não compreendeu de imediato, sacudindo a cabeça levemente.

– Não somos escravos do nosso destino. Somos escravos de nossas escolhas. O destino do seu amado só mudará se ele mudar seus caminhos, se fizer outras escolhas.

Celine olhou para o chão, imaginando como seria difícil fazer com que Ravin se comportasse diferente, ou pensasse diferente.

A cigana sorriu.

– Entendeu porque não posso ajudá-la? Não podemos decidir pelos outros. O máximo que podemos fazer é não deixar que os outros decidam por nós e assim, quem sabe, fazer alguma diferença... Suas decisões afetarão um monte de gente. Quem sabe não afetem as escolhas do seu amado, mudando assim o caminho dele?

 


A moça voltou com olhos baixos e o rosto tenso de quem pensa demais. Sentia-se tentada a decretar esse assunto uma grande bobagem e descartar todas as previsões da cigana de sua mente. E se fosse tudo um golpe de fato? Lá estava ela fazendo papel de tola, preocupada com as mensagens de cartas coloridas! Porém, por mais que tentasse imaginar as cartas como um golpe ou uma bobagem, mais seu coração se apertava no medo de estar deixando passar uma oportunidade de evitar uma tragédia. As previsões foram vagas. Uma mulher que parte, um homem que chega, um inimigo cujo sangue decreta sua destruição... Poderia ela mudar Ravin? Poderia ela mudar a si mesma?

– Não vá cair!

Ergueu os olhos, tirada de suas divagações por uma voz familiar. O Capitão estava a pé, segurando as rédeas de Rayure, olhando atentamente para o alto de uma árvore. Celine se aproximou e viu Philippe num galho alto, esticando-se para alcançar uma forquilha com algo na mão.

– O que ele está fazendo?

– Oh! Olá, Celine! – respondeu o Capitão com um sorriso. – Está tentando devolver um ninho que caiu.

Celine olhou novamente para cima, espantada.

– Mas pra quê? – perguntou a moça. – Os pais já devem ter ido embora e, se não foram, não vão encontrar o ninho num novo lugar, nem devem reconhecer mais os filhotes!

– Bom... – suspirou o Capitão. – Philippe não sabe disso. Podemos esperar que talvez os pássaros também não saibam!

No alto da árvore, o ninho de biquinhos famintos e muito confusos encontrara um lugar seguro. Philippe desceu rapidamente com agilidade, terminando com um salto diante de Celine.

– Olá, Celine! – disse, surpreso com a visão inesperada.

– Não acredito que se arriscou tanto pra nada! – ralhou a moça.

Philippe não entendeu porque ela estava brava. Antes que tentasse perguntar, ela continuou.

– Poderia ter caído e quebrado o pescoço! Pra quê? Pra salvar alguns pássaros ordinários? Milhares iguais a esses morrem todos os dias! Que diferença faz?

– Olhem! – disse o Capitão, apontando para o alto.

Dois pássaros que observavam num galho próximo voaram para o ninho e rapidamente se ajeitaram no meio dos filhotes, iniciando uma cantoria. Celine, boquiaberta, não disse nada. Philippe sorriu, virando-se pra ela com certo orgulho.

– Para mim, esses não são mais pássaros ordinários. E para eles, eu fiz toda a diferença.

Celine então se desarmou. Percebeu como estava sendo horrível.

– Por favor, me perdoe! Estou aborrecida... Acabei descontando em você...

– Philippe, porque você não acompanha Celine de volta ao castelo? – disse o Capitão, montando em seu cavalo. – Eu tenho mesmo uns assuntos a resolver.

Despediram-se brevemente e o Capitão partiu, deixando os dois jovens em seu caminho de volta para casa.

Eles se puseram a caminhar e Philippe observava a moça que ainda trazia um semblante envergonhado.

– E já que fui eu que levei os tiros, posso saber o que ousa aborrecer você? – perguntou o rapaz com um sorriso gentil.

Celine sorriu, percebendo que não saberia contar o que a incomodava.

– O Destino! – respondeu ela.

– Uau! – espantou-se Philippe. – Você sabe escolher seus adversários!...

– A cigana leu cartas para mim e para Ravin e viu coisas que eu gostaria de mudar.

– Então mude! – respondeu Philippe.

– Não é tão simples assim...

– Claro que é! É só mudar suas escolhas.

– E como vou saber quais são as certas? – perguntou a moça, sorrindo em estar filosofando com um pobre camponês.

Philippe pensou um pouco.

– Fique com as mais belas. São sempre as melhores pra guardar na lembrança. Ou fique com as mais inesperadas. Pelo menos você terá boas histórias para contar!

Celine riu, achando o jovem encantador em sua filosofia. De onde Philippe tirava essa visão do mundo? Estavam já próximos ao castelo e pássaros voavam baixo derrubando algumas folhas.

– Você faz tudo parecer simples! – disse Celine, já se sentindo melhor com a tranquilidade do jovem amigo.

– Vantagem de ser pobre... Não há muito na nossa vida para complicar e, decididamente, não há muitas escolhas... – respondeu Philippe, sorrindo.

Ela sorriu novamente, deixando que seus olhos pousassem no rosto do rapaz por um longo tempo. Ela retirou uma folhinha dos cabelos negros dele e então se flagrou presa naqueles olhos azuis escuros com traços violetas. Desde que fora morar no castelo, seu pai suspendera os trabalhos de Philippe para que ele pudesse ficar mais tempo com Prateada nos estudos. Agora, ele estava sempre limpo, bem vestido e penteado. O frescor das noites bem dormidas e de uma alimentação melhor lhe davam mais cor e porte e ela percebeu como ele estava belo e porque afinal todas as donzelas suspiraram por ele no baile. Naturalmente, elas não sabiam que ele era um mestiço, pensou...

Um pássaro voou, tirando-os do transe. Ela continuou a falar sobre amenidades, tentando disfarçar seu encanto por ele. Saíram do bosque e chegaram ao jardim, onde o Sol brilhava sobre as flores coloridas e as alvas estátuas de mármore. No bosque, um pequeno grupo observava sem prosseguir.

– O desgraçado está com sorte... – murmurou Ravin, observando por entre as folhas.

– Faz dias que ele não se afasta do castelo sozinho – disse Carlo, já meio entediado com aquela vigília sem frutos.

– É como você disse, Ravin... – concluiu Jacques. – Ele está com sorte...

– Ou alguém o avisou! – disse Albert.

Ravin olhou para os amigos, desconfiado. Antes que dissesse algo, porém, Jacques interveio.

– Ninguém o avisou! É apenas sorte! E, Ravin, você noivará dentro de alguns dias! Esqueça isso, não fez diferença o que ele falou para Celine.

– Me espanta que ela ainda converse com ele, mesmo depois do que ele disse sobre o noivo dela! – Albert parecia determinado a colocar lenha naquela fogueira. – Pois se fosse a minha namorada...

– Mas não é! – interrompeu Jacques bruscamente. – Vamos, Ravin! Vamos pra casa! Não vale à pena arrumar confusão com Prateada por causa de uma bobagem!

Ravin ainda observou Philippe e Celine mais uma vez. Então se levantou.

– Jacques tem razão – disse, enfim. – É melhor deixar essa história pra lá. Vamos pra casa.


No jardim, uma brisa levantou o perfume das flores. Celine segurou o braço de Philippe levemente e ele parou. Ela o olhou com pesar e culpa.

– Philippe, preciso lhe pedir algo, mas não sei como fazer isso sem partir seu coração...

O rapaz pressentiu o que ela ia dizer, mas apenas esperou.

– É sobre a festa deste fim de semana... – disse ela, sem conseguir olhá-lo nos olhos. – Eu gostaria que você fosse, mas...

– Mas Ravin não me quer lá... – concluiu ele.

– Me perdoe... Eu tentei dissuadi-lo, mas...

– Tudo bem – respondeu o rapaz, disfarçando a mágoa. Não pretendia mesmo ir à festa, mas ouvir esse pedido de Celine o fez ver a ordem de importância das pessoas na vida dela. E isso sempre o deixava um pouco infeliz, por mais previsível que fosse.

– Você entende? – perguntou ela.

Ele anuiu com a cabeça.

– Ia ser estranho mesmo ir a esta festa... – ele olhou para ela com o rosto mais sério. – Sabe que eu não acho que Ravin seja uma boa escolha para você...

– Ele não é uma escolha bonita? – sorriu Celine.

– Talvez para outra – respondeu ele. – Você merecia uma escolha infinitamente mais bela do que ele jamais será.

 


Apenas alguns dias depois, o castelo mais uma vez se encheu de cores e aromas. Lamayer não costumava dar tantas festas, mas estava começando a se acostumar. Nesses dias, sentia-se voltar no tempo e ver Monique, exuberante como uma rainha, feliz como uma criança, conferindo os detalhes de seus grandes e famosos jantares. Já faziam mais de 20 anos que a esposa morrera e ainda sentia seu coração com um espaço vazio. Acostumara-se a esse quarto vago e decorou-o com lembranças. E eram nas festas e bailes no castelo, onde julgava que mais sentiria sua falta, que mais sentia a sua presença. Por vezes, chegava a sentir, misturado ao cheiro de pão e bolos, carnes e vinhos, um leve perfume de jasmim e, ao olhar para trás, sentindo-a tão perto, via seu sorriso em Celine.

Não era uma festa do porte do Baile das Fadas que realizaram para apresentar Prateada à sociedade. Poucos visitantes de outros châteaus vieram – parentes mais chegados – mas, ainda assim, era uma grande festa, onde todos os membros da nobreza do Château das Vertentes fizeram questão de comparecer com presentes caros e roupas finas.

Celine terminava de prender o cabelo com a ajuda de Constance e Eponine quando Prateada entrou no quarto. Estava com um belo vestido azul profundo bordado com pérolas, que também enfeitavam o pescoço. Os cabelos estavam soltos em cascata pelos ombros e costas. Celine a olhou com recriminação.

– Será que algum dia você vai pentear esse cabelo?

– Não sei. Talvez... – respondeu Prateada, que não entendeu que era um comentário irônico e não uma pergunta real. – Você viu Philippe?

Celine se remexeu na cadeira, incomodada com a pergunta.

– Não – respondeu. – Ele não está no quarto dele?

– Acabei de vir de lá – respondeu Prateada. – Eu gostaria que ele descesse as escadas comigo.

– Não se preocupe – disse Celine, colocando mais rouge nas faces. – Ele vai aparecer. E você descerá as escadas comigo e meu pai.

Prateada ficou um tempo a olhar a bela dama sendo preparada, como se pensasse em algo distante ou ouvisse um sussurro que ninguém mais ouvia. Então saiu do quarto, não correndo estabanada, como sempre fazia, mas lentamente, como se tentasse diminuir os passos para que os pensamentos a alcançassem.

 


Philippe estava na taberna. No final, apesar de ter se divertido da última vez, a taberna acabou por deixar-lhe um gosto amargo na boca pela forma como Lamayer o tratou. Dessa vez, não tinha companhia para comprar uma possível briga, mas arriscou-se assim mesmo. Se o deixaram entrar da primeira vez, porque não da segunda? E se alguém quisesse brigar, que viesse! As pessoas fazem coisas estúpidas quando estão de mau humor. Os frequentadores o olharam com desprezo, sabendo quem ele era. Philippe não notara, mas nesse desprezo havia também um bocado de inveja. Afinal, ele caíra nas graças da futura rainha e certamente teria uma vida de príncipe que nenhum deles ali, puros em raça, mas pobres em prata, poderia sequer sonhar.

Sentado em uma mesa sozinho, Philippe pediu vinho. Começou a beber, esperando que alguém se aproximasse. Ao menor sinal de hostilidade, estava disposto – e ansioso – a quebrar aquela jarra em uma cabeça.

– Ele a fará infeliz... – murmurou para si mesmo.

Sentiu uma presença de pé ao seu lado. Achou que demorou até que alguém se apresentasse para uma boa briga. Virou-se, segurando firmemente a caneca, mas congelou ao ver quem era. Somente então percebeu que a taberna mergulhara no silêncio e todos olhavam emudecidos a bela dama vestida de azul.

– Procurei por você em toda parte – disse a moça.

Philippe não respondeu, vendo nos olhos dela a mágoa de ter sido enganada.

– Você nunca pretendeu ir... Ela é importante demais para você assistir a isso. Mas o que mais me magoa é eu não ser importante o bastante pra você sequer me contar.

Prateada tentou se retirar, os olhos cheios de lágrimas sentidas, mas Philippe a segurou pela mão, puxando-a gentilmente.

– Me perdoe! – disse ele, surpreso em tê-la magoado sem sentir. – Por favor, me perdoe... Você é a pessoa mais importante da minha vida, Prateada, não ouse pensar o contrário.

Ela se sentou diante dele na mesa. As pessoas voltaram a falar e, mesmo sendo observados, suas palavras mergulharam no burburinho.

– Então por que não me avisou que não iria?

Philippe segurou as pequenas mãos aveludadas e sem anéis.

– Porque sei que você adora festas! E não queria que perdesse essa. Você falou dessa festa todos os dias, Prateada, planejou sua roupa, sonhou com o bolo e a dança! Eu não queria tirar isso de você.

Prateada sorriu, aliviada de não ter sido abandonada. Piscou várias vezes, tirando qualquer resquício de lágrima e então virou-se para a janela.

– Está ouvindo isso?

Philippe ouviu a música vinda do castelo com certo pesar.

– Sim... A festa já deve ter começado.

– Não, não é isso! Ouça! Não está ouvindo?

Philippe aguçou os ouvidos, mas não ouviu nada senão o vento e a música do castelo. Então Prateada o puxou pela mão, obrigando-o a se levantar e a ir com ela.

– Venha! – disse ela. – Ouço música! E onde há música, há festa!

E juntos correram para fora da taberna.


Philippe achou que ela estava louca, mas assim que se afastaram da taberna e do castelo, ele também pôde ouvir a música de banjos e pandeiros. Era incrível o quanto Prateada conseguia ouvir e ele imaginava que outros talentos ela ainda guardava de sua natureza lupina.

Naquela noite, enquanto Ravin e Celine dançavam juntos a promessa de um futuro feliz, Prateada e Philippe dançaram a certeza de um presente de alegrias. Recebidos pelos ciganos, eles beberam e dançaram, comeram e cantaram, saltaram e riram alto em volta da fogueira que erguia aos céus pequenas faíscas de sonhos e desejos.

 


Capítulo 7


Confinados

 

As estrelas ainda estavam suspensas no céu quando eles voltaram para o castelo, mas a cantoria de pássaros alcoviteiros denunciava que o céu não tardaria a se pintar com as cores da alvorada. Isso queria dizer uma coisa: era tarde! Bem tarde!

Chegaram rindo de bobagens, um tanto idiotas pelo efeito da bebida. Tentando ser discretos, entraram pela porta dos fundos, onde a cozinha estava mergulhada em silêncio. Não ouviam música nem o burburinho de pessoas e imaginaram que a festa acabara. De fato, acabara há horas.

– Nossa! – exclamou Prateada, confusa pelo fato de seus pés alcançarem o chão antes do esperado e espantada em terem construído outra escada para o segundo andar, ao lado da primeira, em tão pouco tempo. – Essa festa acabou muito cedo!

– Talvez Ravin tenha se engasgado com um naco de carne e tenha morrido assim que tocaram a primeira música!

– Mas aí sim haveria festa até agora! – respondeu Prateada, um pouco mais alto do que imaginara.

Riram juntos e tentaram, juntos, calar o outro com gestos com as mãos. Foi quando uma voz vinda da escada fez com que eles se calassem imediatamente.

– Onde vocês estavam?

O jovem casal não respondeu de pronto, pego de surpresa por Lamayer, que os encarava com olhos duros.

– Eu fiz uma pergunta – disse o Duque, descendo lentamente as escadas.

– Com os ciganos – respondeu Philippe, hesitante.

O Duque se aproximou deles e os jovens perderam a cor. Então a moça soluçou. Lamayer percebeu o aroma de bebida que os dois exalavam.

– Você a deixou ficar bêbada? – exclamou ele, entre a surpresa e a recriminação.

– Não, senhor – interrompeu Prateada, – eu bebi sozinha, não cheguei a perguntar a ele se podia.

Houve uma pausa. O galo cantou, como se as coisas já não estivessem ruins o bastante sem ele lembrar que já amanhecia.

– Prateada, vá para o seu quarto.

A moça hesitou e olhou para Philippe, mas um simples olhar do Duque a fez se precipitar para as escadas e seguir para o seu quarto. Errou alguns degraus, mas apoiada no corrimão, conseguiu não despencar escada abaixo.

O Duque ficou de pé a poucos centímetros de Philippe em silêncio. Quando teve certeza de que Prateada estava longe, apertou os olhos e inquiriu o rapaz.

– Você tem ideia do quanto a procuramos? E do quanto ela era importante nessa festa?

– Sinceramente, senhor, nem passou pela minha cabeça... – respondeu o jovem com sinceridade ingênua.

Uma bofetada explodiu em seu rosto jogando-o longe.

– Insolente de uma figa! – praguejou o Duque, partindo em sua direção com olhos cheios de ódio – Acaso acha que está aqui porque gosto de sua presença? Você está aqui por causa dela e nenhum outro motivo!

Ainda tonto e perplexo com a reação do Duque que continuava a avançar, Philippe se arrastou, tentando se afastar do homem que parecia a cada passo mais furioso, temendo que ele se transformasse na fera gigantesca e assustadora que já vira antes.

– Seu moleque pretencioso e egoísta! Você em algum momento pensou nela? Pensou no que seria melhor pra ela? Não, você fez o que era melhor pra você, como sempre, sem pensar em mais ninguém!!! Ela tinha que estar aqui e não está por sua causa!

E nesse momento, com a voz elevada e o rosto contorcido, Lamayer retirou o cinto e ergueu-o contra o rapaz.

– Vou fazer o que já deviam ter feito há muito tempo! Vou ensiná-lo a obedecer!!!

O jovem tentou se proteger, em vão. O cinto atingiu seu corpo com violência, uma, duas, três vezes, e a cada vez, Lamayer exibia mais ódio.

– Ela tinha que estar aqui e não está por sua causa! – repetia o Duque. – Ela tinha que estar aqui e não está por sua causa!

 


O castelo amanheceu em silêncio. O Capitão entrou no gabinete onde Lamayer o aguardava com olheiras pesadas.

– Bom dia, senhor – disse Diderot enquanto lançava um olhar para a garrafa de bebida já no final e o copo ainda nas mãos do Duque. – Mandou me chamar?

O Duque colocou o resto da bebida no copo, esvaziando de vez a garrafa. Então jogou uma chave sobre a mesa.

– Vá ver o rapaz... – disse.

O Capitão pegou a chave com expressão preocupada.

– Aconteceu alguma coisa?

O Duque esfregou os olhos cansados e insones.

– Ele chegou com Prateada hoje ao amanhecer. Estavam bêbados, os dois... Enfim, perdi a cabeça e bati no menino. Vá ver como ele está.

O Capitão anuiu com a cabeça sem nada dizer e deixou a sala. Pouco depois, abriu a porta trancada por fora do quarto de Philippe. O local estava iluminado pela luz difusa da manhã e o jovem estava deitado de bruços em sua cama. Diderot se aproximou, sem despertá-lo. Deu a volta e tirou-lhe o cabelo do rosto. A face vermelha e inchada denunciava a bofetada recebida. Tirou o lençol com cuidado, revelando as costas nuas marcadas pela surra com o cinto, ainda exibindo as marcas do passado, quando ele fora severamente punido com o chicote pelas mãos do próprio Capitão. Diderot voltou a cobri-lo. Lamayer tinha a mão pesada, mas não tanto. Algo acontecera para que Philippe acabasse sofrendo um castigo maior do que seu crime pedia.

Pouco depois, o Capitão voltava ao gabinete. Ficou de pé na entrada, como se aguardasse alguma ordem. Mas Lamayer sabia que aquele era o jeito polido de Diderot de condenar uma atitude. Não era nada que se pudesse apontar e dizer, talvez um olhar sutilmente diferente, mas não mais do que isso. De qualquer maneira, Lamayer podia perceber claramente aquele olhar.

– Como ele está? – perguntou o Duque com voz rouca.

– Ainda dormindo. Ele vai ficar bem.

Eram amigos há muito tempo e, como amigos, eram capazes de ler os pequenos gestos, mesmo que quase imperceptíveis. Diderot percebeu que houve um certo alívio na expressão do Duque. Deu alguns passos e aproximou-se dele.

– Todos sabemos que tem a mão pesada, senhor... – disse o Capitão tranquilamente. – Mas algo deve ter contribuído para aumentar o peso dela nessa madrugada.

O Duque olhou para o Capitão, como se hesitasse entre aceitar o ouvido amigo ou mandá-lo embora. Então, com um gesto de mão, convidou-o a se sentar.

– Faz vinte anos que ela se foi... – disse o Duque, numa voz embargada e olhar distante. – Monique... No começo, achei que não ia conseguir viver sem ela, mas Celine me deu forças. O tempo passou e me acostumei com sua ausência... Até ontem.

O Duque se agitou. Os olhos brilharam, a voz assumiu uma irritabilidade de animal enjaulado. Estava novamente preso numa velha e cruel armadilha. O Capitão permaneceu em silêncio.

– Celine vai se casar!... – disse, como se tivesse se dado conta disso de repente. – Nossa menina noivou ontem, e como ela estava linda!... E Monique não está conosco... Ela vai se casar e a mãe não estará presente, como não esteve em sua vida inteira.

Houve uma pausa sentida. Então o lamento do Duque transformou-se em uma ira crescente e seus olhos se tornaram assustadores.

– Quando Prateada chegou com Philippe, os dois completamente embriagados, eu vi tudo se repetindo. Eu vi, nos olhos daquele moleque insolente, a inconstância do pai. Minha mulher estaria aqui e Celine teria uma mãe para se orgulhar dela se não fosse por Pelouse!

Diderot se inclinou um pouco para frente, olhando serenamente nos olhos cheios de mágoa de Lamayer.

– Jean, Philippe não é Pelouse...

– Mas tem seu sangue correndo em suas veias!!! – gritou o Duque. – Eu vi a mesma insolência, a mesma irresponsabilidade, a mesma ousadia e me lembrei porque nunca tolerei esse menino!

Então, subitamente, seu ódio pareceu arrefecer.

– Mas quando bati nele... Não vi mais Pelouse...

– E quem você viu? – perguntou Diderot.

– Só um menino assustado... – e Lamayer derramou em seu copo as últimas gotas de uma garrafa de rum.

– Não estou certo de ter sido uma boa ideia trazê-lo para tão perto de Prateada... – disse o Duque. – Como o pai, ele pode pôr tudo a perder.

– Consegue imaginar Prateada sem ele por perto?

O Duque riu cansado, olhando para o copo.

– Não... Até eu me acostumei a isso...

– Sua dor é justificável, Jean. Mas não deixe que ela atrapalhe seu bom senso. Prateada não está pronta para viver sem Philippe. Tampouco ele está preparado para viver sem ela. Estamos todos ligados a estes dois.

Lamayer deu um longo suspiro.

– Estranhas essas teias que nos prendem... Que desenho tentarão formar brincando com nossos destinos desse jeito?...

 


Acordou caindo quando lhe puxaram as cobertas em que estava enrolada. Ainda sem entender, levou uma travesseirada na cara.

– Sua egoísta miserável!!!

Ainda grogue, tentou se defender dos travesseiros com que Celine continuava a golpeá-la, até que o segurou firmemente e o puxou, trazendo junto a enfurecida duquesa.

– O que você tem??? – perguntou Prateada. – Está tentando me matar???

Celine, caída no chão junto com uma Prateada descabelada e com o rosto ligeiramente inchado, tinha os olhos brilhantes de raiva.

– Você não apareceu na minha festa de noivado ontem!

– E daí? Eu não era o noivo!

Celine lhe deu outra travesseirada bem dada.

– Pare com isso!!! – gritou Prateada.

– Todos ficaram perguntando de você! O tempo todo! Era a minha festa, minha noite, e você a roubou!!! Sua egoísta! Você nem pensou em mim!

– Se era tão importante que eu fosse, deveria ter insistido para Philippe ir também! – defendeu-se Prateada. Você também não pensou em mim! Sabia que eu ia querer ir com Philippe! Se sabia que ele não ia querer ir, podia ter insistido! Ele faz tudo o que você quer!

Celine perdeu a cor. Parou de gritar e de atacar e pareceu ficar sem palavras. Prateada apertou os olhos, percebendo algo.

– Você o convidou, não convidou?

Celine tremeu os lábios, como sempre fazia quando era flagrada numa mentira.

– Chamei, claro!

Prateada não pareceu convencida, continuando a encará-la com seus olhos apertados.

– Não acredito em você! – disse enfim.

– E por que eu mentiria?

– Não sei! Eu não sei por que vocês mentem! Vamos fazer o seguinte... Por que não perguntamos diretamente para Philippe?

Prateada saltou e precipitou-se para a porta. Celine tentou saltar em cima dela para impedi-la, mas só agarrou o vento. Correu então em perseguição à Prateada que avançou pelos corredores com sua camisola esvoaçante a se misturar com os cabelos claros. Prateada se esquivou mais uma vez de Celine, escorregando de suas mãos como um peixe no riacho e deixando a outra no chão enquanto corria para a porta do quarto de Philippe.

Com a mão na maçaneta, Prateada exibiu seu sorriso de vitória para Celine, que ficara no chão alguns passos atrás. Seu sorriso sumiu quando a porta não se abriu ao girar da maçaneta. Tentou de novo, mas era inútil. A porta estava trancada.

Curiosa, Celine aproximou-se, enquanto Prateada batia na porta e chamava por Philippe.


Depois de algumas poucas horas de sono e um café da manhã com ares de almoço, Lamayer estava novo em folha. Estava em seu gabinete conferindo cartas e papéis importantes quando as duas moças em roupas de dormir entraram correndo. Ergueu os olhos levemente, já imaginando do que se tratava.

– Philippe está trancado em seu quarto! – disse Prateada.

– Você está ficando boa em perceber o óbvio... – respondeu calmamente o Duque, sem parar o que estava fazendo. – Eu sei, fui eu quem o trancou.

– Mas ele não fez nada! Não pode...

– Ele fez e eu posso. Ele foi irresponsável em permitir que você ficasse a noite fora, bebendo como uma qualquer. E ficará em seus aposentos por três dias como punição!

Celine observava com olhos atentos sem nada dizer. Prateada pareceu perdida, mas continuava inconformada.

– Isso não é justo! Fui eu quem saiu da festa sozinha e foi atrás dele na taberna!

– Você foi na taberna??? – escandalizou-se o Duque, largando a pena na mesa.

– Fui! – respondeu Prateada, vencendo o medo de ouvir a voz do Duque trovejando na sala como uma tempestade em noite de verão. – E fui eu quem o levou para a festa dos ciganos! Não é justo que ele pague por minhas ações!

O Duque não pensou muito.

– Tem toda razão. Você ficará confinada em seus aposentos por três dias também. Continuará tendo suas aulas, mas no seu quarto.

Prateada fez menção de protestar, mas o Duque continuou.

– E a cada malcriação e desobediência que você cometer, aumentam os dias em que Philippe e você ficarão presos em seus aposentos! Constance!

A ama, que ouvia a confusão atrás da porta, entrou correndo, já esperando que sobrasse pra ela.

– Chamou, senhor?

– Leve Prateada até seus aposentos, tranque e me traga as chaves.

Sem argumentos e temerosa de piorar ainda mais a situação, Prateada saiu marchando do gabinete, sendo seguida por Constance. Celine continuava parada no meio da sala. O pai a olhou duramente.

– E você? Tem alguma coisa a ver com isso tudo também ou posso deixá-la fora do seu quarto? Se quiser, posso confiná-la também!

Celine sacudiu a cabeça e saiu, antes que a tempestade se voltasse contra ela.

 

 

– E então foi isso que aconteceu!

Celine contara, em detalhes, tudo o que acontecera no castelo. Esperava algum tipo de solidariedade de Ravin, mas o que recebeu foram muitas risadas. O moço estava se divertindo com as trapalhadas da futura rainha e seu vassalo mestiço.

– Como pode rir? – irritou-se a moça.

– Como não rir? Isso está hilário!

– Pois eu não acho nada engraçado! Estou me sentindo culpada! Nada disso teria acontecido se não tivesse dito a Philippe para não ir! Agora, os dois estão presos e meu pai ainda bateu nele!...

Ravin se interessou.

– Bateu? Mas isso é ótimo! Significa que seu pai está voltando a ver o mestiço como um mestiço! Estava ridículo o Duque mantê-lo no castelo aprendendo boas maneiras como se fosse gente!

– Ravin, como pode ser tão cruel?

Celine levantou-se da relva onde estavam sentados à sombra de uma árvore e marchou para longe. Ravin se levantou e foi atrás dela.

– Celine! Não fique brava!

A moça continuou andando e ele acelerou o passo para acompanhá-la, sem se furtar de rir um pouco de toda a situação.

 

 

O primeiro dia se passou sem que ninguém notasse. No segundo, Brigite, que servia Prateada, trocou com Constance e levou a bandeja com comida, água e frutas para Philippe. Quando entrou, o rapaz estava sentado a ler calmamente na cama.

– Trouxe sua comida! – disse a moça.

O rapaz se levantou e apanhou a bandeja, dando-lhe um sorriso gentil.

– Obrigado, Brigite! Como estão as coisas lá fora?

– Bem, eu acho... – respondeu a moça, enquanto via Philippe colocar a bandeja sobre uma mesa.

– Parece bom!... – disse ele, sentindo o cheiro da carne. – Diga a Chalise que ela está cada dia melhor!

Ao perceber que a jovem serviçal continuava parada a observá-lo, Philippe a olhou, achando que ela esperava alguma coisa.

– Quer me acompanhar? – perguntou ele, apontando para a bandeja de comida.

– Como pode estar tão calmo depois do que aconteceu?

Philippe então olhou mais atentamente para ela. Brigite era uma jovem magricela de olhos grandes e negros por quem François, outro criado do castelo, era apaixonado. Nunca conversara muito longamente com ela e espantou-se em ver um tom de rebeldia na pergunta.

– O Duque o espancou e você finge que nada aconteceu! Como pode agir assim?

Chocado com o que se tornou uma acusação, Philippe não respondeu de imediato. Sentou-se na cadeira que estava à mesa, olhando diretamente para a serviçal que sempre lhe pareceu tranquila e conformada.

– O Duque é o senhor deste castelo... – respondeu Philippe com voz serena. – E eu o desrespeitei. Uma vez que não posso voltar no tempo e desfazer o que fiz, não há mais nada que eu possa fazer a respeito.

– Pois eu digo que há! – disse a moça, aproximando-se dele. – Fuja! Fuja com Prateada pra bem longe daqui! Vocês nunca vão poder viver em paz juntos, a não ser que fujam!

Philippe a olhava com espanto, pego de surpresa por essa explosão inconformista.

– Não consigo nem sair do meu quarto... Como posso pensar em fugir? – riu ele, achando a ideia totalmente descabida, apesar de possuir seu charme.

– Eu posso ajudá-los! Tome! – ela colocou nas mãos dele uma chave. – É uma cópia da chave do quarto de Prateada. Hoje à noite eu deixarei a porta do seu quarto destrancada! Você deve sair, ir até o quarto de Prateada, libertá-la e sair pelos fundos. Deixarei as portas abertas e dois cavalos à espera! Sigam para o leste. Só darão pela falta de vocês pela manhã, quando já estarão longe!

Confuso, Philippe a ouvia. Um som no corredor lhes chamou a atenção.

– Eu tenho que ir... Boa sorte!

E então ela saiu, deixando no quarto uma bandeja de carne e pão, algumas frutas vermelhas, um jovem confuso e uma ideia muito perigosa.

Trancou a porta, olhando para os dois lados, para ter certeza de que ninguém a vira. Seguiu pelo corredor amplo e silencioso onde os tapetes abafavam seus passos ligeiros, quando alguém a puxou fortemente para si, imprensando-a contra a parede de um corredor menos iluminado.

– E então? Ele vai fazer?

– Duvido que não faça!

Ravin sorriu, saboreando a vitória de seu plano. A moça lhe sorria, feliz em ter ajudado.

 


Capítulo 8


A Promessa

 

O tempo é incrível quando se decide a nos pregar peças. A tarde, que teria passado rapidamente na companhia de Prateada, se alongava como uma sombra ao pôr do sol entre quatro paredes. A cabeça ainda lhe doía no que entenderia mais tarde como sua primeira ressaca, mas mal prestava atenção a isso. A dor era um incômodo, como mosquitos zumbindo em seus ouvidos à noite, mas não era nada diante de tudo o que se passava em sua cabeça. Sentado, estava estático olhando a parede. Seus olhos, no entanto, iam muito além das pedras que o cercavam.

A proposta de Brigite martelava seus pensamentos como a chance que sempre sonhou. As lembranças do château se tornavam a cada ano mais amargas. A crueldade de Ravin, a intolerância dos moradores, o rancor de Lamayer, as humilhações, os medos... Deixaria, finalmente, tudo para trás! Fugiria, enfim, como já sonhou algumas vezes. Fazia mentalmente o caminho pela floresta, na noite, segurando a mão pequena e morna de Prateada. Atravessariam o riacho das fadas e seguiriam rumo ao leste. Cedo ou tarde, encontrariam uma cidade e se estabeleceriam. Procuraria um trabalho – afinal, sabia fazer tantas coisas! – e compraria uma casa para morarem. Viveriam bem, longe de quem tanto o despreza, de quem tanto o odeia...

Inquietou-se e, depois de um bom tempo sentado na cama como uma estátua de mármore, levantou-se com uma certa urgência. Andou de um lado ao outro, tentando fugir das outras possibilidades que o cercavam como lanças pontiagudas. “E se... E se... E se...!” Tudo começava com “E se...” e terminava em uma tragédia anunciada. Da janela, olhou para a floresta, que se estendia pelas colinas a perder de vista e deu um longo suspiro.

A proposta de Brigite martelava seus pensamentos como a chance que sempre sonhou. Era também a possibilidade de perder tudo o que tinha.

Mas o que ele tinha, afinal? Se o capturassem, o que fariam com ele que já não tivessem feito? O que poderia perder?... Não tinha nada! Por mais que estivesse tendo um tratamento melhor nos últimos meses, Lamayer sempre lhe deixou claro que ele era apenas um pobre coitado sem posses, sem nome, sem nada. O que ele tinha, afinal?


Tinha Prateada.


Seu coração apertou-se, tocado pela ponta da lança que finalmente acertara o alvo. Virou-se e caminhou lentamente para o meio do quarto, que lhe parecia repleto de pessoas respirando ao mesmo tempo, de tantos pensamentos que o cercavam naquele momento. Era como se cenas acontecessem a sua volta, mas totalmente fora de controle. Ao mesmo tempo em que via Prateada sorrir feliz na porta de uma casa modesta ao vê-lo chegar de algum trabalho pesado, via-os sangrando nas mãos de caçadores, torturados nas mãos dos seus, queimados nas mãos da Igreja.

A surra que Lamayer lhe dera doera muito mais no orgulho do que na pele. Estava zangado, sabia disso. Queria mesmo partir, ou era só uma vingança contra o Duque? Afinal, de todos os anos em que vivera no château, era fato que nunca estivera tão bem. Estava tendo a vida de um príncipe e Prateada, a vida de uma princesa, coisa que não teriam na cidade dos homens. “Prateada não se importará”, murmurou consigo mesmo. Foi quando a voz de Lamayer voltou a sua mente, tão real, tão grave, como se ele estivesse ali ao seu lado.

“– Você não pensou nela!”

Philippe ergueu a cabeça, pálido, como se finalmente visse a verdade. Sentou-se lentamente na poltrona próxima. O Duque tinha razão. Não pensara nela quando fugiram para a festa dos ciganos. E não estava pensando nela naquele momento...

Em seus planos, pensou em seus motivos, suas dores, e mesmo pesando os riscos para Prateada, não pensou no que seria melhor para ela. Seu coração morreu um pouco ao ter tamanha decepção consigo mesmo. Que egoísta, que triste figura aquela que não pensa em ninguém além de si mesmo, pois não há maior forma de solidão!... Crispou os dedos nos braços aveludados da poltrona, frustrado e decepcionado consigo mesmo.

Ficou algumas horas assim. Culpando-se, remoendo-se e apavorando-se com todas as possibilidades que podiam simplesmente dar errado. E se ela caísse numa armadilha como a que Jacques caiu? E se encontrassem caçadores? E se a cidade dos homens fosse hostil? E se... E se ela não pudesse ser feliz?... É possível ser feliz sendo menos do que se poderia ser? Prateada seria uma rainha! Com ele, o que ela seria?

Foi quando tomou uma decisão. O Sol já se despedia, escondendo-se por trás das colinas e a noite já se anunciava com uma brisa mais fria. Ergueu os olhos para o nada, ciente de que aquele era um momento muito importante, pois o que estava decidindo mudaria certamente muito do seu próprio comportamento de agora em diante. Todos os caminhos percorridos naquele dia levaram ao mesmo lugar. Todas as considerações levaram à mesma conclusão. Se ele podia dizer que tinha algo de valioso, algo de precioso, algo tão importante pelo que daria sua vida, era Prateada. Evitou pensar na possibilidade de estar apaixonado, afastando rapidamente este pensamento cada vez que ele se aproximava. Nem podia cogitar um sentimento assim. Mas ele a amava. Não esperava nada dela – e nem poderia. Amava-a por simples amor, por dedicação, e estava disposto a, de agora em diante, fazer somente o que era melhor para ela. Não a colocaria em risco, não permitiria que a machucassem jamais. Viveria como um cavaleiro que protege sua dama e ficaria feliz em simplesmente estar em sua companhia, em ouvir sua risada, em ver sua felicidade. Decidiu assim que faria qualquer coisa para ajudá-la a ser quem ela quisesse ser.

E quando a Lua já estava alta, ligeiramente empalidecida por uma névoa de sonho, sentado na mesma poltrona de frente para a porta, Philippe, de olhos atentos na escuridão, viu uma fraca luz de vela tremular amarelada pela fresta da porta. Ouviu um girar de chave. O som pareceu saltar no castelo silencioso. Passos se afastaram e a escuridão voltou. Lembrou-se de sua promessa.

Levantou-se lentamente e caminhou devagar até a porta. Olhou-a longamente, vendo-a se abrir para sua liberdade ou sua morte. Então, virou-se e caminhou para a cama. Deitou-se, coberto pela luz da Lua e olhou para o teto. Sorriu, sentindo-se finalmente tranquilo, certo de que fizera a escolha certa, pelos motivos certos. E assim, seus olhos pesaram e se fecharam e pôde dormir.

 


Acordou com a luz do sol no rosto. Seus olhos arderam, mas a dor de cabeça finalmente ficara em algum dos estranhos sonhos que tivera à noite. Naquele dia, Brigite não foi lhe levar o café ou o almoço. Ao invés dela, Constance apareceu com sua bandeja, perguntando como ele estava e levando recados de Prateada. Nada relevante, de fato, mas palavras doces que o fizeram sorrir. Constance estranhou a porta destrancada, mas não falou nada. “Provavelmente”, pensou, “Brigite esqueceu-se de trancar”.

Lá pelo meio da tarde, quando já faltava pouco para o entardecer, a porta de Philippe se abriu. O rapaz saltou da cama quando viu o Duque entrar. O olhar grave do homem o encarou. O jovem baixou a cabeça e esperou.

– Você não está aqui por desejo meu – disse o Duque, com voz fria, mas calma. – O único motivo de você estar aqui é Prateada. Permiti que você vivesse no castelo, ao lado dela, para que ajudasse em seu preparo para o trono. Se, em algum momento, você atrapalhar ao invés de ajudar, eu o mando para o château mais distante que conseguir imaginar. Você entendeu?

– Sim, senhor – murmurou o rapaz.

O Duque deu um passo a frente, aproximando-se com olhar ameaçador.

– E é bom que fique claro que você não é importante aqui, garoto! Você é e sempre será um mestiço, alguém sem a menor relevância, um mato comum, um pássaro ordinário e, se algum dia, colocar Prateada em perigo ou em situação que comprometa suas chances de se tornar rainha, eu mesmo o arrasto para aquele tronco e arranco sua pele com a chibata!!!

Philippe estremeceu, mas não desviou dos olhos ainda furiosos do Duque.

– Estamos entendidos?

– Sim, senhor.

O Duque então saiu e deixou a porta aberta. O castigo terminara.


O jovem saiu e percebeu que Lamayer entrara no quarto de Prateada, bem próximo ao seu. Imaginou que ele faria o mesmo discurso, mas com menos ameaças, para ela. Desceu as escadas, sem muita vontade de um novo encontro com o homem que parecia odiá-lo desde a primeira vez em que o vira, e ele se lembrava bem. Era apenas uma criança, abraçado na perna da mãe, escondido atrás da saia com cheiro de capim cortado, cercado por um mundo novo de rostos que não sorriam e seu único alento era a voz de sua mãe dizendo que tudo ficaria bem, que estariam seguros ali. Ah, se ela soubesse...

A primeira pessoa que encontrou foi Brigite. No caminho para o salão principal, ela estava de braços cruzados em suas vestes de criada e com um olhar acusador.

– Seu covarde!... – disse ela, entredentes.

Philippe não respondeu. Não sabia bem o que responder. Como diria a ela tudo o que se passou pela sua cabeça depois que ela colocara a chave em suas mãos? A moça se aproximou, desafiadora.

– Não é a toa que é só um mestiço! É um covarde, como um humano qualquer, e não merece estar aqui!

A moça se retirou e Philippe ainda a olhou, surpreso não só com o ataque, mas com a hostilidade. Brigite não estava somente decepcionada, estava realmente zangada, como se ela tivesse perdido mais do que ele na fuga que não aconteceu.

Respirou fundo. Mal saíra do quarto e já estava com vontade de voltar. Olhou para o topo da escada, mas Prateada ainda não aparecera. Foi para o jardim, fugir das paredes opressoras do castelo, dos olhares humilhantes – pois todos sabiam que levara uma surra feia – e em busca de um finzinho de Sol que ainda banhava as flores e a relva lá fora.

Sentado num dos bancos do jardim lateral, fechou os olhos, sentindo um pouco de frio e tentando se aquecer no Sol de fim de tarde. Não queria admitir, mas estava um pouco assustado. As ameaças do Duque não podiam ir de encontro a sua decisão. Apoiaria Prateada no que ela decidisse fazer. E se ela não quisesse ser uma rainha, ele não a forçaria. Ouviu seu próprio nome numa voz que lhe parecia um sino. Virou-se e viu Prateada correndo em sua direção. Ele correu de encontro a ela e ambos se abraçaram de saudade. Três dias inteiros para eles parecia uma vida inteira.

Quando se soltaram, a moça logo percebeu o rosto ferido do rapaz. A face ainda estava avermelhada e o anel de Lamayer lhe deixara um pequeno corte. Ela tentou tocá-lo.

– O que foi isso? O que o Duque fez com você?!

Philippe segurou sua mão e lhe brindou com seu sorriso mais divertido.

– Nada! Ele não fez nada! Nós é que enfurecemos o coitado com nossa fuga da festa!

O princípio de ira de Prateada transformou-se em culpa.

– Philippe, me perdoe! Eu não devia ter feito o que fiz! Deveria saber que Duque culparia você pelas minhas ações.

– Não se preocupe com isso! Não é importante! Vamos! Vamos aproveitar um pouco do Sol antes que a Lua chegue!


Os dois jovens se puseram a passear pelos jardins. No bosque, ocultos pelas sombras, Ravin e Albert observavam em seus cavalos.

– Que frustrante... – lamentou Albert. – Achei que teríamos uma caçada interessante!

Ravin suspirou irritado, mas conformado.

– Eu também...

– Deveria imaginar que ele não iria... – continuou Albert. – É um covarde.

Ravin os observou mais atentamente, apertando os olhos castanhos cor de madeira molhada.

– Não... – disse enfim. – Ele não é covarde... Ele apenas já tem muito a perder...


Nos jardins, Philippe não podia conter a curiosidade do que se passava na cabecinha da jovem amiga que não costumava ficar tanto tempo em silêncio.

– Prateada, você quer ser rainha?

– Às vezes! – respondeu a moça, displicentemente.

– Como assim, “às vezes”? Não se pode ser rainha só às vezes!

Prateada fez um muxoxo de tédio.

– Eu sei!! É que às vezes parece uma coisa legal! Então eu me empolgo! Mas então eu tenho que estudar, aprender um monte de coisas, me comportar assim, sentar assado, não dizer isso, dizer aquilo... Isso é muito chato!!!

– Entendo... – respondeu o rapaz, após alguns segundos. – Pois vamos fazer uma coisa! Eu a ajudarei no que puder. E se você quiser mesmo ser rainha, estarei ao seu lado. Se não quiser, estarei ao seu lado também!

– Eu gostei desse trato! – disse a moça, rindo. – Então está combinado! Eu não te deixo e você não me abandona! E juntos decidimos se eu sento naquele trono ou não!

Eles riram e prosseguiram em seu passeio, enquanto o Sol partia, deixando para trás umas pinceladas de laranja e dourado nas montanhas no horizonte.

 

Capítulo 9


Um jantar inusitado

 

Os dias se passaram lentamente, como costumavam passar em tempos mais simples. Philippe e Prateada voltaram à rotina de aulas, Celine passava a maior parte do tempo preparando seu enxoval e o Duque era pouco visto. Em seu gabinete, colocava assuntos em ordem, posto que sabia que em breve teria que deixar o château. Ainda não pensara no que fazer com o jovem mestiço. Tinha dúvidas sobre sua influência no comportamento de Prateada e ainda não conseguia pesar os riscos de levá-lo aos outros châteaus. Essas dúvidas, mantinha para si. Não comentara com ninguém que logo Prateada e uma pequena e nobre comitiva teriam que deixar o Château das Vertentes.

Passaram-se apenas duas semanas desde a festa de noivado de Celine e Ravin e as coisas tinham voltado ao cotidiano. Até que uma notícia inusitada com cara de boato acendeu o burburinho entre nobres e serviçais que sussurravam interjeições pelos corredores e fora deles.

– Não acredito que o Duque faria isso! – Ravin estava um tanto alterado.

– Mas é o que dizem! Ele entrou na cozinha onde o mestiço descascava umas batatas e o mandou se preparar para o jantar de hoje! – Brigite passava o serviço completo em primeira mão.

– E por que ele faria isso?! Acaso terá enlouquecido? Ele odeia o mestiço tanto quanto eu, talvez ainda mais, sendo ele filho de quem é!

– Não sei, talvez Prateada tenha pedido... – sugeriu a moça.

– Mesmo assim! É uma afronta! Acaso se Prateada pedir para parar de usar roupas, todos nós vamos ter que andar nus por aí? Se ele pensa que me sentarei na mesma mesa que aquele imundo e ficarei de boca fechada, está muito enganado!

– Mas ele é o Senhor deste Castelo! – advertiu Brigite.

– Nem por isso pode nos fazer comer com os porcos!

E dizendo isso, levantou-se e partiu, deixando a criada para trás.


De fato, ninguém entendeu porque Lamayer convidara (parecera mais uma ordem, mas tudo bem) Philippe para o jantar. Nem mesmo Diderot e Emily, também convidados para a ceia. Não era nenhuma ocasião especial, apenas um jantar com os amigos. Diderot já estava acostumado a jantar na casa de Lamayer, mas estava curioso sobre os motivos reais daquela estranha reunião ao redor de pratos. Diderot e Emily chegaram a cogitar que talvez o Duque estivesse tentando compensar a surra dada semanas atrás.

Philippe entrou na sala de jantar por último, com uma roupa nova e bem penteado. Ainda assim, parecia inseguro e constrangido. No fundo, acreditava que o Duque iria mudar de ideia e de humor a qualquer momento e enxotá-lo como se enxota um cachorro da cozinha.

– Philippe! – disse o Duque. – Estou feliz que tenha vindo. Tome seu lugar, por favor.

O jovem olhou para os presentes congelados num silêncio opressor. Prateada sorria. Lamayer lhe apontara seu lugar e ele seguiu para ele, no lado oposto da mesa onde estavam Prateada, Ravin e Celine. Somente quando se sentou no acento indicado para ele é que percebeu que estava de frente para Ravin, que estava sentado entre as duas moças e o fuzilou com os olhos. À sua direita, Fernand fazia-lhe um leve cumprimento, não parecendo muito feliz de vê-lo ali. À sua esquerda, a companhia sempre confortante do Capitão e sua esposa, que lhe sorriram com sinceridade, passando-lhe um pouco de confiança e aquecendo um pouco a sala gelada.

Prateada estava feliz em vê-lo. Ela sempre parecia acender-se na presença dele. O jovem lhe sorriu, tentando passar uma segurança que ele não tinha. Ela não pareceu perceber e sorriu de volta. O Duque mandou que servissem o jantar e os primeiros pratos começaram a rodear a mesa, sendo servidos com elegância. Foi o Duque quem quebrou o silêncio.

– Ravin, já preparou suas coisas para a viagem?

– Na verdade, sim, senhor – respondeu Ravin. – Poderíamos partir amanhã, se quisesse!

– É longe? – perguntou Prateada.

– Alguns dias de viagem – respondeu Diderot.

Prateada ia falar alguma coisa, mas desistiu. Ficou evidente para um bom observador que ela realmente desistira de comentar algo, mas não ficou claro se ela pensou melhor ou se só se distraiu com a comida que acabara de chegar ao seu prato. Na verdade, ela estava feliz de ver Ravin ir para bem longe.

– Sinceramente, estou doida pra ver a cara de Noisette quando souber do nosso noivado! – disse Celine, orgulhosa. – Aposto que ela vai morrer de inveja!

Prateada enfiou algo na boca e olhou para Celine, esticando a cabeça. Philippe permanecia em silêncio. Quando foi servido, a conversa se encaminhou para o Capitão que falava com o Duque sobre o melhor caminho para essa bateria de visitas que fariam, que incluía o Château dos Damascos, o Château das Flores e o Château das Pérolas.

O Duque ouvia, mas, no entanto, parecia prestar atenção sempre que podia no comportamento do jovem à mesa. O prato principal estava sendo servido quando a conversa entrou nos possíveis candidatos para o trono dos Lobos. Enquanto se falava das fraquezas dos oponentes, as chances de Prateada pareciam melhorar entre uma garfada e outra a cada novo comentário.

– Mas tudo isso pode mudar – disse Ravin. – Coisas inesperadas mudam o rumo de tudo, mesmo quando o resultado parece óbvio. Temos um exemplo claro aqui na mesa!

Foi quando Ravin se dirigiu a Philippe que levantou os olhos esperando a primeira farpa na noite.

– Nosso amigo mestiço aqui, por exemplo... Há pouco comia com os porcos e agora está na mesa do senhor do castelo. Quem imaginaria que há pouco mais de um ano, ele estava sangrando no tronco lá fora.

Houve uma pausa. Prateada parou de comer por alguns segundos, mas retomou sua refeição sem olhar para Ravin ao seu lado. Este percebeu que a menina continuava uma selvagem e poderia dizer o que quisesse sem se preocupar com ela. Sabia que costumava ser muito difícil ganhar a atenção dela quando a disputa era com um prato.

– Ravin, agradável como sempre... – disse Diderot. – Mas até que ele tem um ponto. A própria Prateada foi algo imprevisível desde o começo. Temos que admitir que é difícil prever o que ainda pode acontecer.

– Sim, Ravin, por exemplo – disse Philippe com um sorriso, pousando o garfo no prato, – há poucos dias chafurdava no charco gritando imprecações e hoje está aqui, na mesa, parecendo um verdadeiro nobre.

– No charco? – interrompeu Celine.

– Foi um acidente! – explicou-se Ravin, irritado ouvindo uma risada de Prateada ao seu lado.

– Foi engraçado! – completou Prateada. – Ele caiu e ficou todo preto, e ficou escorregando e caindo sempre que tentava levantar!

O Duque, recostado em sua cadeira decorada, apenas observava as pessoas da mesa, sem nada dizer, mas sem conseguir evitar um riso em ver Ravin ser pego de calças curtas.

– Celine, você e Ravin já marcaram a data? – perguntou Emily, tentando acalmar os ânimos entre Philippe e Ravin que cruzaram olhares de ódio.

– A primavera seria ótima! – sugeriu Fernand. – Teremos a decoração perfeita com as flores e, quem sabe, as bênçãos das fadas!

Philippe baixou novamente os olhos, concentrando-se no próprio prato.

– Mas no outono teremos fartura de frutas e um bom clima – disse Ravin.

– Já sabe que se não convidar Philippe, eu nem apareço – comentou Prateada, sem tirar a atenção do que fazia.

– Prateada, precisa aprender a separar as coisas – retrucou Ravin. – Não é porque tem um bichinho de estimação que vai querer levá-lo para todo lugar! O mestiço provavelmente nem se sentiria à vontade numa festa deste porte.

Alguns olharam para o Duque esperando alguma reação, mas não houve nenhuma. Ele continuava apenas observando. Philippe olhou para Ravin com expressão dura, percebendo a clara provocação. Prateada largou o talher e se virou para Ravin, mas se deparou com o olhar de Philippe. Com um simples olhar, o rapaz enviou-lhe uma clara mensagem para que não se envolvesse. Então ela se calou e continuou a comer. O Duque percebeu claramente o discreto movimento e quase ações entre os três.

– Diga-me, Philippe – disse o Duque, tomando um pouco do vinho. – Quem lhe ensinou a se comportar à mesa?

– Minha mãe, senhor – respondeu o jovem com voz suave. – Ela me ensinou a me portar como um cavalheiro... – e lançando um olhar para Ravin a sua frente, completou. – O que é mais do que algumas mães fazem por seus filhos...

– É uma pena que sua mãe tenha morrido tão cedo, já que era sua única companhia – disse Ravin. – Mas veja pelo lado bom, ao menos ela se poupou de ver a decepção de não ver você se transformar.

Os talheres pararam subitamente e o clima ficou ainda mais tenso.

– Imagine, ela largou a vida dela para vir para cá, só para trazer você, achando que você seria um Lobo, como seu pai. A pobre coitada morre e nem chega a saber que você, pobre infeliz, nunca foi um Lobo Branco, nunca passou de um reles mestiço com mais sangue humano do que de Lobo. Se pensarmos bem, você acabou matando sua pobre mãe... Se não fosse por você, ela provavelmente estaria bem e feliz na cidade dos homens.

O silêncio se estendeu em tensão, entre a possibilidade do jovem voar em cima de Ravin ou do Duque interromper o festival de ofensas. Mas nenhuma das duas coisas aconteceu. Philippe encarou Ravin com olhos brilhantes por alguns momentos. Então, apenas pousou os talheres sobre o prato e dirigiu-se à Lamayer.

– Senhor, eu perdi o apetite. Tenho sua permissão para me retirar?

O Duque levou alguns segundos para responder, mas anuiu com a cabeça. Philippe pediu licença e deixou o recinto com o prato mal tocado.

– Posso me retirar também? – perguntou Prateada.

– Não, Prateada – respondeu prontamente o Duque. – Você fica.

A moça, que se preparava para levantar, voltou a sentar, decepcionada.

– Por que fez isso? – sussurrou Celine em tom de reprovação para seu noivo.

– Não disse nada que não seja verdade, qual o problema? Não espere que eu lamba as botas de um mestiço só porque nossa futura rainha não sabe escolher suas amizades.

Certamente, todos os presentes tinham algo a dizer, mas ninguém disse nada, mantendo a atmosfera densa. Prateada, para quem os olhares se dirigiram durante as duras palavras de Ravin, ainda terminava seu prato. Ravin, percebendo que ninguém o enfrentaria, continuou seu discurso.

– Se Prateada quer mesmo ser rainha, precisa aprender que somos o espelho de nossas companhias! Imagine se ela chegar a um château na companhia de um mestiço! Que chances ela vai ter, mesmo sendo uma pura? Além do mais...

Prateada limpou as mãos num guardanapo e levantou-se calmamente. Todos já haviam voltado a comer e somente o Capitão viu quando a moça se levantou e pegou sua própria cadeira. Em um movimento rápido, porém absolutamente natural, ela a girou no ar bateu com ela nas costas de Ravin, ao seu lado, interrompendo de uma vez sua conversa.

Ravin bateu fortemente com a cabeça no prato da mesa, caindo a seguir no chão completamente desorientado sobre o que o atingira com tamanha violência. O som de coisas quebrando e de Celine gritando fez todos se levantarem.

Prateada continuou de pé, olhando o estrago. Ravin, caído no chão junto com pratos e copos partidos, passou a mão na cabeça, ainda atônito com a reação totalmente imprevisível. Sua mão voltou com uma mancha de sangue. Celine, ao seu lado tentava lhe prestar assistência, mas sua fúria fez com que ele a empurrasse e se levantasse rapidamente, encarando Prateada.

– Você ficou louca?! – gritou o rapaz.

– Prateada, o que foi isso?! – disse o Duque, atônito.

A moça se virou para o Duque com serenidade.

– Posso me retirar agora? – disse ela – Ou prefere que eu fique para a sobremesa?

– Vá para o seu quarto! Agora!

E, diante das ordens claras e irritadas do Duque, ela se retirou.


Nesse momento, Diderot finalmente percebeu o que fora tudo aquilo. Estava intrigado por ver Philippe sendo convidado pelo Duque, ainda mais com Ravin à mesa. Mas agora entendia seus motivos. Ele estava testando Prateada. Queria ver como ela se portava com o jovem mestiço por perto. Talvez, e isso era uma possibilidade bastante razoável, Lamayer estivesse pensando em levar Philippe aos châteaus, junto com Prateada. O jantar fora um teste para ver como o jovem se portava entre nobres, como reagiria a provocações e, mais do que tudo, como Prateada reagiria com a presença dele. O jantar pode ter sido um fracasso, mas ao menos uma coisa era certa. Lamayer já tinha sua resposta.

 


Capítulo 10


Mentiras

 

A notícia da cadeirada que Prateada dera em Ravin em pleno jantar correu rápido entre a criadagem do castelo e, logo de manhã, Philippe soube que sua fiel defensora não deixara barata a ofensa da noite anterior. Apesar de não ter podido evitar um sorriso de satisfação quando imaginou Ravin estatelado no chão coberto de arroz de seu prato, logo se preocupou. Prateada estava em constante teste. Certamente, sua atitude não lhe renderia elogios por parte do Duque... Perguntou onde estava a moça e correu para seu quarto, onde esperava encontrá-la dormindo, mas ela estava sentada na cama olhando para o nada.

– Prateada?

Ela se virou pra ele, como que saindo de um mundo de sonhos e sorriu. Ainda estava com a longa camisola branca.

– Philippe! Tudo bem?

O jovem entrou e beijou-lhe a testa carinhosamente.

– Como você está? – perguntou ele, sentando-se ao lado dela.

– Pensando na sobremesa que perdi ontem.

– Eu soube o que você fez.

Ela se virou pra ele com ar preocupado.

– Está zangado?

Ele riu.

– Não, claro que não. Eu jamais ficaria zangado com você. Mas estou preocupado. Prateada, minha querida amiga, você não pode agir assim sempre que alguém me ofende.

– Por que não? – perguntou ela, franzindo a sobrancelhas.

– Porque você, para ser rainha, precisa mostrar para as pessoas que pode se comportar como uma nobre e nobres não jogam cadeiras nos convidados só porque eles foram desagradáveis. Até porque, se você for jogar uma cadeira em Ravin sempre que ele fizer uma grosseria, vamos acabar ficando sem cadeiras e tendo que sentar no chão!

Prateada e ele riram. Ela pegou na mão dele e o olhou longamente.

– Tentarei me comportar melhor, então... – disse ela.

– Ótimo! Você será uma grande rainha...

Ela se aninhou no ombro dele e em seu cheiro de hortelã. Ele buscou sua mão e segurou-a, dando-lhe confiança. Ficaram assim por algum tempo, até que Prateada se inquietou e o puxou para dar um passeio ao Sol.

 


O dia se passou tranquilamente. Ravin não foi visto e Celine não falou com Prateada. Estava emburrada e resolveu que não ia falar com a moça até que ela aprendesse a se comportar como gente. Prateada deu de ombros e a ignorou, o que era uma ofensa ainda maior para a filha do Duque.

Estavam na beira do lago, onde tantas vezes se banharam quando Prateada era apenas uma loba criada como um cachorro e ele era apenas o mestiço invisível de quem ninguém gostava de lembrar. Prateada o convidara algumas vezes para pularem nus no lago, e Philippe teve um certo trabalho em lhe explicar que não podiam mais fazer isso. Ele não teve certeza se ela compreendeu. Ele tinha dificuldades em saber até onde ia a compreensão de certas coisas para Prateada.

Naquele momento, ouviam o silêncio que permitia a cada um seus próprios pensamentos.

– Você gosta dela?

Philippe olhou surpreso para a moça que o observava atentamente. Claro que sabia que ela estava falando de Celine, mas se surpreendeu com a compreensão crescente que Prateada estava tendo de tudo a sua volta a cada dia. Talvez fosse a compreensão dele que estivesse comprometida pela forma que via Prateada. Ele ainda a via como uma irmã mais nova, alguém de quem ele tinha que cuidar, mas não alguém que pudesse ver o que ia em seu coração.

– Me preocupo com ela – respondeu ele.

– Só nos preocupamos com o que amamos – respondeu Prateada, insistindo em uma resposta direta. – Então você gosta dela.

Ele não respondeu. Seus sentimentos eram conflitantes com Celine. Quando crianças, eram os melhores amigos e quando ela cresceu, se tornou uma duquesa criada como princesa. Amava a ideia dela, a imagem de sua lembrança. Quando Celine se tornava real, no entanto, ouvia suas palavras duras a lembrá-lo de que havia um abismo entre eles.

– Você gosta de mim? – Prateada mudou a pergunta, chamando a atenção do rapaz.

– Claro que gosto! – respondeu ele. – Que pergunta é essa? Você sabe que eu faria qualquer coisa por você, não sabe? Você é minha melhor amiga. É como uma irmã pra mim.

Prateada voltou a olhar para o lago, ficando em silêncio por alguns segundos.

– Não sou sua irmã – disse finalmente.

Então se levantou e saiu a andar, parecendo decepcionada. Ele a chamou duas vezes, mas ela não voltou. Seguiu-a e acompanhou-a de volta ao castelo, em silêncio.

É claro que ele gostava dela. Prateada era tudo em sua vida, era o que valia a pena. Estava disposto a sacrificar tudo, até mesmo sua vida, por ela. Mesmo assim, parecia não ser o bastante. Ela queria mais. E ele se surpreendeu ao perceber que ele também queria mais.

Quando chegaram nos jardins do castelo, ele a pegou pelo braço e a virou para si.

– O que quer que eu diga? – perguntou ele, os olhos azuis brilhando e a voz em um tom irritado.

– A verdade.

– Está bem. Eu gosto de você, e não preciso dizer isso. Gosto tanto que cada minuto longe de você dói! Gosto a ponto de fazer qualquer coisa por você, qualquer coisa mesmo!

– Mas não gosta de mim como gosta de Celine! – retrucou ela, sem desviar os olhos. – Eu vejo como você olha pra ela! Seus olhos brilham e eu sei que seu coração bate mais forte. Eu queria que gostasse de mim assim! Eu queria que me amasse!

Uma brisa levantou flores e brincou com os cabelos deles. Philippe paralisou.

– Não posso – respondeu por fim.

Os olhos de Prateada se encheram de água e ela sentiu o coração partir. Ele não desviou os olhos dela.

– Não posso, porque isso seria a sua ruína... – continuou ele, com a voz falha. – Não posso deixar meu coração bater mais forte por você, não posso perder o fôlego cada vez que a vejo, não posso sequer imaginar como seria ter você ao meu lado de verdade, porque isso seria cruel demais. Prateada, você será uma rainha... E eu, o que sou? Sou um mestiço que não se transformou até agora e provavelmente não vai se transformar nunca. Sou um nada, um enjeitado... Há um limite para o que podemos sentir um pelo outro. Se passarmos desse limite, nos separarão para sempre. E isso, minha amada, eu não poderia suportar. Então, prefiro ter você como minha grande amiga do que não ter você de jeito nenhum. Você entende?

As lágrimas cobriam o rosto dela, enquanto subiam aos olhos dele.

– Nós podemos mudar isso! – disse ela. – Se você gostar de mim... Se você me amar, nós podemos mudar o mundo!

Philippe fez uma expressão de desalento.

– O mundo não muda, minha Prateada...

Eles se abraçaram e ela soluçou, ouvindo o coração dele bater rápido. Um som próximo os fez se separarem rapidamente e secarem as lágrimas.

– Aí estão vocês dois! – Constance não pareceu perceber ter interrompido algo. – Estava a sua procura para as aulas! Vamos, antes que o Duque venha atrás de mim!

Eles seguiram a ama, sabendo que naquele dia, dificilmente conseguiriam prestar atenção em alguma coisa.

 


A noite foi longa e repleta de pensamentos. Philippe fora pego de surpresa por Prateada. Não acreditou que ela gostasse dele daquele jeito. Tentara ao máximo controlar o coração, controlar o que sentia por ela. Tornou seu amor fraterno, tornou-o um amor puro e incondicional, um amor que não precisa de futuro. Sabia que apaixonar-se por ela seria uma tragédia. Porém, ninguém manda no coração. Ele a amava. E como a amava!...

Arrependeu-se de ter cruzado a linha do conhecimento. Quando ignorava seus sentimentos, quando apenas os sentia sem analisar, era mais feliz. Sabia que queria estar com ela e pronto. Agora, sabia que não a amava como uma irmã. O que sentia era amor, o mais profundo e verdadeiro amor que já sentira. O que fazia agora com esse conhecimento? Não podia nutrir esperanças sobre ela, isso era evidente. Jamais a teria. Jamais permitiriam. E provavelmente, teria que suportar vê-la nos braços de outro algum dia. Poderia suportar esse amor correspondido, mas impossível? Poderia suportar esse sacrifício eterno?

Virou-se e revirou-se na cama até adormecer entre sonhos confusos. Nas primeiras horas do dia, levantou-se. Precisava de um conselho, precisava clarear a mente. Trocou de roupa e saiu.

O Sol derramava seus primeiros raios amarelados sobre as paredes frias do castelo quando Philippe caminhava pelos jardins. Ao contrário de Prateada, que sempre dormira muito, ele não sentia tanta necessidade assim de dormir. Na verdade, ele amava o dia. Gostava de viver e aproveitar cada raio de sol, cada brisa fresca, cada bela visão que a aurora pudesse lhe conceder. Além do mais, acostumara-se cedo a levantar-se antes do Sol. Mesmo sem Gerard a ameaçá-lo com a chibata e sua mão pesada, mantivera o gosto e o hábito de acordar cedo e, agora que não precisava mais trabalhar como um burro, podia aproveitar esses momentos solitários para apreciar a própria companhia.

Neste dia, porém, fazia algo mais. Colhia flores com o cuidado de um anjo, admirando a beleza das gotas de orvalho que brilhavam com a luz da manhã. Fez um belo buquê e seguiu pelo velho caminho conhecido. Vez por outra, olhava para trás, tendo o cuidado de não estar sendo seguido, embora pudesse sentir que estava sozinho. Atravessou o bosque e seguiu para o caminho do velho carvalho, onde um túmulo florido e bem cuidado o aguardava para a visita costumeira.

– Olá, mãe...

Ajoelhou-se tranquilamente e colocou o buquê sobre a lápide de pedra. Começou a arrancar as ervas daninhas que nasciam entre as flores violetas que cobriam a terra. Fachos de sol encontravam seu caminho até as flores através da copa do carvalho.

– Há tempos que não venho... – sussurrou o rapaz, distraído em tirar os matinhos inconvenientes. – Me desculpe... Tanta coisa mudou... Eu preciso de um conselho. Você que amou tanto meu pai a ponto de mudar sua vida inteira, talvez possa me responder sobre essas questões de amor e sacrifício, sobre quando insistir e quando deixar partir.

Ouviu um graveto se partir muito próximo e o coração disparou num alarme de perigo tardio. Virou-se rapidamente, mas alguém o agarrou por trás e o puxou. Deu uma cotovelada no seu agressor e caiu para frente. Antes de se levantar, levou um chute no estômago e perdeu o ar. Foi novamente puxado para trás e imobilizado. Foi quando pôde ver Ravin e Carlo. Imaginou que quem o segurava era Albert. Esperou que não fosse Jacques, o que tornaria aquela emboscada ainda mais covarde.

– Seu problema, mestiço, é que você é estúpido! – disse Ravin, se aproximando dele. – Não sabe aproveitar a sorte que tem. Alguém em sua posição deveria agradecer por viver no castelo e ficar livre da miséria e do trabalho pesado. Mas você, não. O que você faz? O que faz sempre! Abusa! Fala com a filha do Duque como se ela fosse uma igual e ainda se atreve a fazer comentários sobre mim!

Philippe ouvia Ravin, que se aproximava ameaçador. Quando chegou perto o bastante, apoiou-se em Albert que o segurava e chutou o estômago de Ravin com toda a força que tinha. Ravin foi jogado para trás com o impacto. Assim que recuperou o fôlego, o que não levou mais de alguns poucos segundos, gritou uma imprecação. Philippe aproveitou e jogou a cabeça pra trás, acertando Albert em cheio. Atordoado, este o soltou e Philippe se preparou para socar Carlo, mas quem apareceu na sua frente foi Ravin. Tentou acertá-lo, mas Ravin se desvencilhou e investiu contra ele. Ravin era forte e bastou um murro certeiro para que Philippe perdesse o equilíbrio. Carlo tentou segurá-lo, mas Philippe sabia que estava numa perigosa desvantagem e investiu na fuga.

Escapou facilmente de Carlo, mas um golpe rápido de Albert o impediu de continuar. Foi agarrado por trás e Ravin começou a lhe dar socos nas costelas e no estômago, e ele sentiu as pernas se dobrarem com a dor e a falta de ar. Ao fraquejar e cair, tentou novamente fugir, mas só conseguiu rastejar. Não tinha mais chance. Recebeu vários chutes que o fizeram sentir gosto de sangue na boca. Os três rapazes se juntaram para chutá-lo, impedindo-o de se levantar.

– Prateada está vindo!

Jacques chegava correndo com a notícia que fez os rapazes pararem.

– Rápido! Ela está a poucos metros daqui! – disse o rapaz.

Albert e Carlo imediatamente começaram a correr. Mas Ravin continuou a chutar o jovem caído sem defesa no chão. Seus chutes eram tão fortes que faziam Philippe se contorcer e cuspir sangue. Jacques foi até Ravin e o puxou, encontrando forte resistência.

– Vamos, Ravin! Se ela o pegar, vai matá-lo! Deixe pra lá! Já deu o seu recado!

Com dificuldade, Jacques conseguiu tirar Ravin de cima de Philippe, mas não antes que este desse mais alguns chutes fortes no rapaz caído.

 


Na casa do Capitão, Emily servia leite com pão e queijo para o marido, que aguardava calmamente, enquanto ouvia as novidades da esposa.

– Pois se todos ainda comentam sobre o belo casal que Celine e Ravin formavam na festa, logo emendam sobre a ausência de Prateada! Estão todos curiosos para saber o que aconteceu realmente e o boato recai sobre ela não estar totalmente civilizada.

– Essa gente fala demais... – comentou Diderot, tomando sua caneca de leite. – Prateada está mais civilizada que todos eles juntos.

– Gostaria de saber se...

Emily não terminou. Alguém batia à porta, batidas descompassadas, fracas. O casal se entreolhou, imaginando quem seria tão cedo. O Capitão se levantou e abriu a porta a tempo de amparar o rapaz que caía em seus braços.

– Philippe! O que aconteceu?

O jovem tentava se manter de pé, mas a dor era muito grande e as pernas não lhe obedeciam. Emily correu para ajudá-lo.

– Ravin aconteceu... – respondeu o jovem.

Levaram-no até uma cadeira para que se sentasse. O rapaz tentava retomar o fôlego, mas sentia que havia uma pesada pedra em seu peito que lhe dificultava a respiração.

– Foi uma emboscada... – disse. – Não os vi chegar até que já fosse tarde demais.

– Meu Deus! – disse Emily. – Prateada vai ficar louca quando souber!

– Não! – gritou o rapaz. – Ela não pode saber!

Diderot e Emily se entreolharam confusos.

– Philippe, ela vai saber! Olhe pra você, mal consegue ficar de pé.

– Eu darei um jeito! Direi que estou doente. Ela não pode saber! Só preciso que me ajude a chegar ao castelo. Só isso... Ficarei bem logo.

 


Por mais que Emily e Diderot insistissem para que Philippe se deixasse ser cuidado, o rapaz não se aquietou até que o amigo finalmente concordasse em levá-lo de volta discretamente para o castelo. Estava pálido, os lábios quase sem cor, mas apenas um inchaço na face que abrira novamente o corte do anel de Lamayer denunciava que ele estivera envolvido em uma briga.

Emily entregou a Diderot um pequeno vidro com um pó esverdeado e escuro. O marido guardou no bolso do gibão e ajudou o rapaz a subir no cavalo. Em poucos minutos, estavam no Château.

Era ainda muito cedo e era muito pequeno o movimento nos corredores e no salão principal. De fato, quem despertava o castelo de seu marasmo eram Prateada e Celine com seu falatório constante. Ora brigavam, ora riam, mas eram as vozes delas que enchiam os corredores e salões. Os três dias em que Prateada e Philippe ficaram presos em seus quartos inibiram também Celine, e o castelo mergulhou num estranho silêncio. Era como se as paredes e janelas, as portas e as pinturas sentissem falta do que lhes dava vida, como a igreja sente falta dos sinos que tocam.

Mas Celine e Prateada apreciavam acordar bem depois do Sol. Logo, as manhãs ganhavam um delicioso prolongar de calmaria. Não foi difícil para Diderot guiar Philippe para seu quarto sem que ninguém os visse. O rapaz passara o caminho em silêncio. O Capitão não ouvira queixa, nem um gemido sequer. Imaginou que a surra não fora, afinal, grave, e que o orgulho do rapaz é quem sofrera os piores danos. Estranhou quando, no entanto, o jovem teve dificuldades em subir as escadas, perdendo o fôlego e precisando de sua ajuda para continuar.

Chegaram ao quarto e Philippe sentou-se na cama, respirando com uma careta de dor enquanto segurava as costelas doloridas. O Capitão encostou a porta e virou-se, retirando o vidro que Emily lhe dera e caminhando para o outro lado do quarto, onde uma ânfora de porcelana cheia de água fresca descansava sobre um pequeno armário colado à parede.

– Tire a camisa. Vamos dar uma olhada nisso.

Diderot derramou a água da ânfora numa bacia de cobre onde se lavava as mãos e o rosto. Retirou a rolha do vidro e espalhou seu conteúdo, um pó brilhante e esverdeado, sobre a água cristalina que imediatamente assumiu uma cor escura e esverdeada. Em alguns segundos, sua consistência mudara para algo mais cremoso e um aroma de seiva invadiu o aposento.

– Este é o pó de Caledônia, um presente do Povo Pequeno... – explicou Diderot, sem se virar, concentrado na água e esperando que ela atingisse a consistência desejada. – Vai aliviar sua dor e acelerar sua recuperação...

Virou-se com a bacia nas mãos e estancou surpreso ao ver o real estrago no corpo do rapaz. As costas, o peito e o estômago estavam cobertos por grandes manchas arroxeadas e negras. Em alguns pontos, a carne não aguentou e partiu-se na pele em cortes grosseiros. O espanto do Capitão não era à toa. Naquelas condições, era um milagre que Philippe tivesse conseguido andar. O jovem ergueu os olhos envergonhados para o amigo.

– Eles me emboscaram no túmulo de minha mãe... – disse o rapaz. – Nem isso eles respeitaram...

O Capitão não respondeu. Começou a passar o estranho creme com um pedaço de pano nas costas do rapaz. O garoto retraiu os músculos quando sentiu o toque gelado.

– Não vai conseguir esconder isso, menino... Muito menos de Prateada.

– Ela não pode saber, Diderot... – murmurou o rapaz.

– Quem fez isso?!

Eles se viraram para a voz feminina que invadiu o aposento. Prateada abrira a porta sem barulho, surpreendendo os dois. Ela caminhou lentamente, os olhos arregalados contemplando com horror o corpo ferido dele.

– O que aconteceu? – perguntou ela novamente.

– Nada! – respondeu Philippe, tentando fingir que estava tudo bem, que não estava morrendo de dor. – Não foi nada, Prateada... Eu caí. Um tombo feio daqueles penhascos onde fomos pegar aquelas flores roxas, lembra? Eu deveria ter tido mais cuidado. Mas não é tão ruim quanto parece. Não é, Capitão?

O Capitão o olhou em silêncio e continuou tratando de seus ferimentos, negando a cumplicidade na mentira. Prateada continuou olhando para ele, mas agora ela tinha os olhos cheios de ressentimento.

– Por que está mentindo pra mim?

Philippe engoliu em seco. Sentiu os próprios olhos marejarem.

– Porque se eu lhe disser a verdade, você vai perder a cabeça. E vai por tudo a perder. Vai fazer o que eles querem, que é perder a chance de reinar.

A menina o olhou como se tivesse sido traída e isso partiu seu coração. Ele suspirou, e tentou sorrir de novo, mas ela podia ver que cada vez mais ele tinha dificuldade para falar.

– Eu vou ficar bem, Prateada...

Então ela olhou para Diderot, como se esperasse uma confirmação. O Capitão preferiu não se meter nessa confusão e continuou cuidando dos ferimentos. Prateada olhou para Philippe com aquele olhar que faz você se arrepender de qualquer coisa e então, sem dizer mais nada, saiu, fechando vagarosamente a porta atrás de si.

– Prateada!

O rapaz se levantou para ir atrás dela, percebendo que a magoara de uma maneira que nunca magoara antes. Prateada era, acima de tudo, sincera, e ver aqueles olhos nela depois de lhe contar uma mentira lhe doeu mais do que a surra. As costelas doeram e o Capitão o segurou pelo braço, puxando-o gentilmente de volta para a cama.

– Deixe estar, Philippe – disse Diderot, fazendo o rapaz se sentar. – Ela vai ficar bem.

– Ela vai é fazer uma besteira! – retrucou o rapaz. – Precisa impedi-la, Diderot! Precisa dizer a ela para não fazer nada de estúpido!

– Um problema de cada vez, Philippe – respondeu calmamente o Capitão. – E, com você, menino, eles parecem fazer fila...

 

Capítulo 11


O Recado

 

A notícia do que acontecera a Philippe não tardou a chegar ao Duque. Foi Diderot quem lhe contou. Achou necessário, já que o fato interferiria diretamente no humor de Prateada. O Duque achou que a moça sairia quebrando tudo que encontrasse por aí e que invadiria seu gabinete a qualquer momento com juras de vingança e pedidos de justiça. No entanto, nada disso aconteceu. Na verdade, Prateada estava especialmente calada e sumida naquele dia. Não apareceu para almoçar e não pôde ser encontrada por grande parte da manhã.

Na mesa do almoço, Lamayer e Celine se mantinham em silêncio, comendo sem a presença de Prateada. Obviamente, a notícia também alcançara Celine.

– Eles estão exagerando... – disse Celine. – Não foi uma surra! Foi uma briga! Ravin me contou tudo!

Lamayer ergueu os olhos para a filha, as sobrancelhas ligeiramente cerradas.

– Ele o provocou e Ravin revidou! Foi só isso! – continuou Celine. – O problema é Prateada sempre tomar as dores dele... Philippe é homem, os homens resolvem suas questões assim...

Lamayer terminou de mastigar um pedaço de cordeiro. Então olhou diretamente para a filha.

– Celine, não sei o que aconteceu, eu não estava lá. Mas se foram três contra um, então não é assim que homens resolvem uma questão. É assim que covardes resolvem uma questão.

– Bem, eu acredito em Ravin.

Lamayer voltou a comer sua carne.

– Como sua futura esposa, deve apoiá-lo. Só peço para que não fique cega para a verdade, seja ela qual for.

Celine tomou um pouco de água, parecendo pensar em algo sério e distante. O Duque lavou as pontas dos dedos na tigela de água com limão ao seu lado e se preparou para levantar.

– Só temos que ficar atentos à Prateada. Não a quero jogando cadeiras em Ravin. Ou coisa pior.

Celine pensou longamente sobre essa questão. Todos sabiam que Prateada, uma loba pura transformada de lobo em humana num episódio raríssimo, era diferente deles. Eles dependiam da Lua cheia para se transformarem em bestas feras. Nas outras luas, podiam se transformar apenas em lobos comuns. Prateada podia se transformar em uma besta fera ou em um lobo quando bem entendesse, inclusive à luz do dia, coisa que eles não podiam fazer. E ela também era bem maior que a maioria deles quando se transformava. Em outras palavras, Prateada, sozinha, podia dizimar uma centena de homens comuns. E Celine tinha que admitir que, por mais que o orgulho os fizesse lembrar o tempo inteiro que eram Lobos Brancos, durante o dia eram apenas homens comuns.

Celine se levantou, preocupada, e subiu as escadas apressadamente. Precisava falar com Prateada. Soubera que ela andara sumida antes do almoço, mas achou que um bom lugar para começar a procurar seria no quarto de Philippe. Encontrou Emily, a esposa do Capitão, saindo.

– Olá, Emily.

– Olá, querida. Se veio ver Philippe, ele está dormindo. O pó da Caledônia age durante o sono, quanto mais ele dormir, mais rápido o remédio agirá. Demos algo a ele que o apagará por bastante tempo.

– Na verdade, estou procurando por Prateada. Ela está aí?

– Não. Na verdade, não a vi a manhã inteira em que estive com ele.

Celine agradeceu e foi para o quarto de Prateada. Para sua surpresa, a encontrou.

– Prateada! – exclamou, entrando no quarto. – Estávamos procurando por você!

– É mesmo? – respondeu ela, olhando-a por uns dois segundos e voltando para o que estava fazendo.

Celine entrou e a viu observando atentamente vários vestidos espalhados sobre a cama e sobre o chão.

– O que está fazendo?

– Escolhendo um vestido.

Celine ficou claramente confusa. Definitivamente, escolher vestidos não era um passatempo típico de Prateada.

– Prateada, eu quero lhe falar sobre o que aconteceu com Philippe.

– Diderot disse que ele vai ficar bem – respondeu a outra sem tirar os olhos dos vestidos.

– Sim, ele vai. Estamos preocupados com você. Você vai ficar bem?

Prateada olhou pra Celine como se ela tivesse acabado de entrar no quarto.

– Claro! Por que não ficaria? Vou ficar ótima. Que tal esse aqui? – colocou um vestido sobre si e virou-se para a outra. – O que você acha?

– É bonito! – respondeu Celine. – O azul lhe cai bem, assim como o vermelho.

Prateada o colocou de lado imediatamente.

– Então não serve. De qual você gosta menos?

– Você está bem mesmo? – insistiu Celine.

Prateada se virou para ela com um quase sorriso.

– Sim, eu estou bem.

Celine saiu. Aquele tinha sido o comportamento mais estranho que vira em Prateada, mas não sabia o que fazer a respeito. Desceu as escadas e foi procurar Ravin. Se ficasse bastante tempo com ele, se sentiria mais tranquila quanto a alguma reação de Prateada.


Naquela noite, Prateada apareceu para jantar. Não visitara Philippe nem uma única vez e parecia ter recuperado seu apetite habitual. Devorou um pedaço enorme de carne com cenouras e comeu muitas frutas.

– O que fez durante o dia, Prateada? – perguntou o Duque. – Constance falou que não a encontrou para as aulas.

– Sim, eu estava... arrumando meu quarto... E acho melhor esperar Philippe se recuperar para retomarmos as aulas.

Lamayer poderia discutir com ela, argumentar ou mesmo lhe dar uma ordem direta. Mas preferiu deixar como estava. Ao menos, ela estava calma e encarando o ocorrido com certa naturalidade. Bem ou mal, não fora a primeira vez que o mestiço apanhara. Talvez ela estivesse finalmente se desapegando dele, ou talvez estivesse compreendendo a hierarquia vigente, o que seria, de fato, muito bom.

Depois do jantar, Diderot encontrou Prateada no jardim. Ela olhava atentamente a Lua no céu, redonda e perfeita.

– Como você está, Prateada?

A moça se virou para ele com um estranho rosto de estátua.

– Bem. Eu estou bem.

– Que bom. Não visitou Philippe hoje. Ele chamou por você.

Ela voltou a olhar para a Lua no céu.

– Eu irei depois. Boa noite, Capitão.

E voltou para o castelo, caminhando de forma altiva. Como uma rainha.

O Capitão a olhou entrando no castelo e cerrou as sobrancelhas. Philippe tinha motivos para se preocupar, mas algo lhe dizia que Prateada não ia explodir, como todos estavam esperando. Voltou para sua casa pensando no quanto a menina estava se adaptando. Não parecia que havia apenas oito meses que Prateada tinha se transformado, mudando completamente os planos do Duque, as aspirações de Celine, a rotina do château e, indubitavelmente, a vida de Philippe.

Mais tarde, naquela mesma noite, Diderot se sentava diante da lareira e ouvia o cantarolar crepitante do fogo com olhos distantes. Sim, Prateada estava se adaptando. Mas até quando ela conseguiria mudar seu próprio comportamento para se encaixar na vida da corte sem que isso a mudasse completamente? Lembrou-se de Celine, que, quando criança, estava além das imposições sociais, dos títulos e da hierarquia, a ponto de ser a melhor amiga do garoto que ninguém queria por perto. Poucos anos depois, ela se tornara arrogante e egoísta, exatamente como os outros. Será que isso aconteceria com Prateada também? E, se acontecesse, será que Philippe suportaria mais esse abandono?

– Um penny por seus pensamentos!

Diderot se virou para a bela esposa que estava sentada em uma cadeira de balanço com um livro nas mãos.

– Ah, nada importante... – respondeu ele, com um suspiro.

– Não se preocupe... – disse ela, com um olhar confortante. – Philippe vai ficar bem. Você sabe o quanto ele é forte!

Ele olhou para ela com um ar surpreso. Como ela sempre sabia no que ele estava pensando, o que ele estava sentindo? Ela apenas lhe sorriu, e ele se lembrou do quanto amava aquela mulher, desde a primeira vez que se viram quando eram pouco mais que duas crianças.

– Ravin sempre o feriu – continuou ela, voltando a olhar para o livro. – Desde que ele era uma criança... E ele sempre deu a volta por cima.

– Eu sei... – respondeu Diderot.

Embora não fosse exatamente sobre Ravin que estivesse pensando, não podia deixar de lembrar que ele era a raiz de todos os problemas de Philippe. Ao menos desde que ele mesmo conseguira dar um jeito em Gerard, o capataz cruel que fora exilado no Château da Flores graças a uma armação do Capitão.

– Meu medo – continuou ele – é que Ravin um dia faça algo do qual Philippe não consiga se recuperar. É como se Ravin o odiasse tanto que precisasse vê-lo se quebrar, e não vai sossegar até que consiga isso.

– A menos que algo aconteça... – murmurou Emily, erguendo os olhos para o marido.

Diderot concordou lentamente com a cabeça. De fato, o simples fato de Lamayer tolerar o rapaz em sua própria casa e estar lhe dando uma educação já mostra que coisas inesperadas – quase impossíveis até – acontecem. Quem sabe algo não estivesse prestes a mudar o rumo das coisas entre Ravin e Philippe?

 


No dia seguinte, Philippe continuava lutando contra uma febre insistente, resultado o uso do pó da Caledônia do povo pequeno. O doutor Marceau assumiu os cuidados iniciados pelo Capitão e avisou que ele ainda lutaria contra a dor e as costelas fissuradas por mais alguns dias. E por mais um dia inteiro, Prateada não o visitou nem uma vez. Celine a encontrou, mais uma vez, em seu próprio quarto. Dessa vez, ao invés de vestidos espalhados sobre a cama, havia mantos. Assim que viu Celine entrando, fez uma pergunta ligeiramente diferente.

– Olá, Celine! De qual desses você gosta mais?

 


– Ela está aprontando alguma coisa!

Lamayer olhou a filha andando de um lado para o outro em seu gabinete.

– Por que acha isso?

– Porque ela está escolhendo roupas! Prateada não escolhe roupas! Se estiver calor, ela nem usa! Ela nem penteia o cabelo! A senhorita “Eu Estou Bem” nem visita Philippe! Nem fala dele, é como se ele nem existisse!

– Celine! – chamou seu pai, fazendo a moça parar e prestar atenção. – Prateada ainda está aprendendo e descobrindo muitas coisas. Essa é a maneira que ela encontrou de lidar com a situação. E você a conhece! Se ela tivesse que fazer alguma coisa, já teria feito. Prateada não esperaria dias para ir atrás de Ravin. Esqueça isso. Daqui a pouco, todos terão esquecido.

Celine pensou a respeito. Seu pai tinha razão. Em breve, ninguém se lembraria daquilo mesmo.

 


Por três dias, Prateada se comportou como se nada tivesse acontecido. Não falava do assunto, não demonstrava nenhuma revolta ou desejo de vingança, e também não visitava Philippe.

Na noite do terceiro dia, Ravin, Albert, Carlo e Jacques estavam na Taberna Presas de Prata. Ravin estava de ótimo humor, ainda contando vantagens sobre como mandou o mestiço para uma cama de onde ele ainda não saíra.

– Você mostrou a ele seu lugar, Ravin! – ria Albert. – O chão!

– Se o Duque não impõe respeito, alguém tem que fazê-lo! – disse Ravin.

– Casando-se com Celine, é você quem vai governar o château quando o Duque for ao encontro da Grande Loba Cinzenta – disse Carlo. – Então, é bom que o mestiço aprenda agora como as coisas funcionam.

Ravin deu uma gargalhada.

– Pois eu duvido que o mestiço sobreviva quando eu assumir o lugar do Duque, meu caro... Sabe como é. Acidentes acontecem o tempo todo.

Nesse momento, a porta da taberna se abriu violentamente e uma rajada de vento entrou, fazendo a chama das velas tremularem. Todos olharam para a presença imponente que surgia. Envolta em um manto vermelho que a cobria totalmente, Prateada entrou, a cabeça altiva, os cabelos penteados elegantemente jogados para trás. Ela caminhou no silêncio que se fez até a mesa onde estavam os rapazes. Chegando lá, ela olhou diretamente para Ravin, passando os olhos pelos outros. Então, ela se virou para sua curiosa plateia, um grupo espalhado de uns trinta homens em suas mesas, elevou sua voz para que todos na taberna lotada ouvissem.

– Eu vim trazer um recado! É um recado para Ravin e seus amigos, mas serve para todos, então sugiro que prestem atenção.

Ravin riu, recostado na cadeira.

– Pois fale, futura rainha! – disse alto. – Estamos todos ouvindo!

Prateada retirou o manto e o entregou para Jacques, que pegou sem entender. Ela estava vestindo um belíssimo vestido carmesim num tom vinho sangue que contrastavam com a pele branca. As pessoas na taberna tiveram apenas alguns segundos para apreciar a beleza do vestido, porque enquanto olhavam, ele se transformou em farrapos.

Prateada se transformou em uma fera gigantesca, presas afiadas saindo de suas patas enormes, orelhas pontudas e dentes brancos como a lua ferozmente à mostra. Ravin e os outros se jogaram para trás assim que isso aconteceu, enquanto algumas pessoas simplesmente saíram correndo da taberna, apavoradas. Prateada deu patadas em Albert, jogando-o contra a parede. Carlo tentou fugir, mas ela jogou uma mesa inteira em cima dele. E então se voltou para Ravin...

Ele tentou puxar um punhal que sempre trazia consigo, mas não teve tempo. A fera o abocanhou e o sacudiu no ar como se ele fosse um espantalho. Seus gritos foram ouvidos pelos guardas lá fora, que já tinham percebido uma movimentação estranha na Presas de Prata.

Prateada jogou Ravin contra o balcão e então, enquanto ele se escorava contra a parede, ela rosnou para ele a apenas alguns centímetros de seu rosto, a baba viscosa escorrendo em cima de sua camisa ensanguentada.

Então ela se virou para as pessoas na taberna e pisou fortemente, fazendo o chão tremer. Ergueu a cabeça para o alto e uivou, tão alto e tão poderosamente, que todos os lobos da região responderam com um uivo que ecoou pelas montanhas.

Ela se aproximou de Jacques, espremido no mesmo lugar onde estava, o único que não tentara fugir. A fera estendeu a pata com garras tingidas de vermelho pedindo o manto, que Jacques entregou trêmulo dos pés à cabeça. Coberta pelo manto, em alguns segundos, a fera se transformou novamente em mulher.

Prateada então se voltou para as pessoas que a olhavam atônitas.

– Este foi o recado. Philippe é meu amigo. E eu protejo meus amigos. Se eu for rainha, protegerei todos vocês! Mas, se não são capazes de respeitar meu amigo, não são capazes de me respeitar. Nesse caso, não merecem uma rainha que os proteja!

Ela se virou para Ravin, ainda caído no chão, sem conseguir se mover.

– Não serei rainha de quem não tem respeito por mim. Ou pelos meus!

E então ela cobriu a cabeça com o capuz do manto e caminhou calmamente para a saída da taberna, onde os guardas acabavam de chegar. Passou por eles calmamente e seguiu para o castelo sob a Lua minguante.

 

Capítulo 12


O Comunicado

 

– Prateada fez o quê?!


O Duque não tinha acreditado no guarda que lhe trouxe a notícia da primeira vez. Precisou ouvir uma segunda vez. Virou-se, passando as mãos nos cabelos cor de marfim, sentindo gotas de suor começarem a brotar em sua testa.

– Alguém mais se feriu? – perguntou ele.

Os dois guardas disseram que não. Apenas Carlo fora levado desacordado com um ferimento na cabeça, Albert, que sofrera alguns hematomas, e Ravin, levado para casa onde o médico já estava prestando atendimento. Esse terceiro certamente foi o caso mais grave.

– Amanhã vai ser um dia muito difícil... – murmurou o Duque para si mesmo.

Dispensou os guardas e avisou aos que tomavam conta da porta do castelo que não deixassem ninguém entrar, caso os pais dos rapazes não quisessem esperar até o Sol nascer para desfiar seu rosário de lamentações e reclamações. Lamayer subiu as escadas, pronto para perguntar à Prateada o que ela tinha na cabeça ao atacar de tal forma três das pessoas mais poderosas do château. Foi direto ao quarto dela, onde a cama permanecia intocada. Foi até o quarto de Philippe. Encontrou-a aninhada, já com sua camisola, ao lado do rapaz adormecido. O Duque respirou profundamente. Fechou a porta em silêncio e dirigiu-se ao seu próprio quarto. Não iria lidar com aquilo antes de uma boa noite de sono.

O Sol nasceu pálido e Philippe abriu os olhos, já menos febris. Deu de cara com o rosto de Prateada a encará-lo a poucos centímetros do dele. Os olhos dela estavam bem abertos, castanhos avermelhados, quase rubros.

– Prateada!... – sussurrou ele, ainda um pouco rouco pela falta de uso da própria voz nos últimos dias. – Senti sua falta...

– Me desculpe... – respondeu ela. – Eu quis vir, mas tive medo.

O rapaz franziu os olhos.

– Medo de quê?

– Medo de que você me convencesse a não fazer nada.

E então ele ficou preocupado.

– O que você fez?

Prateada não respondeu. Também não desviou o olhar.

– Apenas dei um recado. Alguém precisava avisá-los que eles se comportaram muito mal – respondeu ela. – E que não devem se comportar assim de novo.

Philippe tentou se levantar, mas teve um pouco de dificuldade. Sentia menos dor e acreditou que o tal pó da Caledônia até que não era assim tão mau, mas bem que poderia ser mais rápido. Ficou sentado na cama, tentando imaginar o que a moça fizera.

– Prateada, você não devia... Era isso o que eles queriam, que você perdesse a cabeça, que mostrasse que é instável!

– Mas eu não perdi a cabeça – defendeu-se ela, erguendo-se também e ficando de frente pra ele, sentada na cama. – Minha cabeça ficou no lugar o tempo inteiro! Eu estava muito calma, pode perguntar por aí!

 


O Duque já estava de pé bem cedo naquele dia. Felizmente, a boa noite de sono lhe mostrara a situação sob uma nova perspectiva. Assim que encontrou Constance, deu as primeiras ordens do dia.

– Chame Prateada, preciso falar com ela. E aproveite para lhe falar das implicações de dormir na cama de um rapaz...

Constance coraria, mas apenas sorriu. Sabia, assim como o Duque, que não havia nada sexual entre Philippe e Prateada, eram como irmãos. Mesmo assim, certas coisas não eram bem vistas por uma sociedade conservadora.

Em poucos minutos, Prateada estava diante do Duque em seu gabinete. Cerca de quarenta minutos depois, o Duque receberia outras pessoas em sua sala. Pessoas muito zangadas.

O conde Thibault Denvier, pai de Ravin e proprietário de uma boa extensão de terra onde criavam ovelhas e gado, não era um homem paciente. Chegou cedo às portas do castelo ávido por uma providência. Eustache Montaigne, pai de Carlo e da pequena Jeanne, era um homem rico e sempre acreditou que isso valesse alguma coisa. Ambos possuíam muitos contatos importantes na corte e em outros châteaus, o que poderia prejudicar – e muito – Prateada em sua trajetória para o trono. Ambos estavam certos de que não sairiam dali sem uma atitude do Duque. Ambos estavam enganados.

O Duque ouviu suas reclamações acaloradas calmamente. Deixou que falassem, que praguejassem, que exigissem e que se inflamassem. Não disse nada. Quando os homens finalmente se calaram, ele se pronunciou.

– Senhores, seus filhos fizeram uma escolha – começou. – Uma escolha estúpida. Eles sabiam do apreço que Prateada sente por Philippe e, mesmo assim, o emboscaram.

– Foi uma briga entre rapazes! – retrucou Eustache.

– Não foi, não! – interrompeu bruscamente o Duque, mantendo o tom de voz firme que fez o outro se calar imediatamente. – Seus filhos fizeram questão de não acertar o rosto do rapaz, porque sabiam que se ele aparecesse machucado, Prateada não ficaria parada. Seus filhos então o derrubaram e o chutaram, até quebrarem suas costelas. Como eu estava dizendo – continuou o Duque – seus filhos escolheram afrontar sua futura rainha. E a futura rainha se comportou como alguém que foi afrontada.

– O que está dizendo?! – Thibault se inclinou para frente.

– Estou dizendo que seus filhos precisam entender até onde podem ir. Prateada não é muito exigente. Tenho certeza de que se eles ficarem longe de Philippe, ela não vai ser nenhuma ameaça para eles.

– Meu filho está numa cama!

– Philippe também! – Lamayer levantou o tom de voz.

– Está dizendo que um mestiço tem mais valor que nossos filhos?

– Estou dizendo que seus filhos precisam respeitar a futura rainha! Ou, pelo menos, alguém mais forte do que eles! Se insistirem num comportamento estúpido, acredito que ficarão na cama tantas vezes e por tanto tempo quanto Philippe!

Os homens se retiraram, mas não sem deixar para trás uma ameaça.

– Conheço pessoas importantes, Lamayer... – disse Thibault, entredentes. – Certamente, mais importantes que esse mestiço que você trouxe para dentro de sua casa! Lembre-se disso em seu caminho até a corte...

O Duque respirou fundo quando eles saíram. Esse evento infeliz tornava ainda mais difícil o pronunciamento que faria em poucas semanas. Chegou a desejar que Philippe e Elle nunca tivessem chegado ao château e que esse menino fosse problema de outra pessoa agora. Mas então se lembrou de que, se isso tivesse acontecido, Prateada também jamais teria acontecido...

 

Algumas semanas depois, as carroças coloridas pontuavam a colina verdejante. Os ciganos se preparavam para ir embora. Já tinham ficado tempo demais e seus espíritos livres almejavam novos voos. Philippe, Diderot e Prateada se aproximaram e o desapontamento era claro nos rostos dos dois mais jovens.

– Vocês vão embora? – perguntou Prateada, descendo de seu cavalo.

Wladimir sorriu, o dente de outro faiscando contra o sol. Philippe e Diderot desceram de suas montarias.

– Já estamos aqui há meses, minha menina! Tempo demais para nós!

Prateada fez beicinho, não um forçado que crianças mimadas fazem, mas o natural que precedia um choro. Wladimir se adiantou para consolá-la antes que a primeira lágrima caísse.

– Não fique assim, Prateada! Não estamos partindo, estamos passeando! E vocês poderão nos encontrar em cada brisa, em cada curva, em cada rosa e em cada pôr do sol dourado.

Ele tirou um dos muitos cordões de ouro que brilhavam sobre a camisa verde viva e colocou no pulso de Prateada, dando algumas voltas para que se tornasse uma pulseira.

– Tome, um presente para que estejamos sempre junto de você!

Prateada sorriu, encantada com a joia, três voltas de uma corrente de ouro com vários símbolos pendurados, incluindo guizos, o que a deixou especialmente feliz.

Então ele se voltou para Diderot e lhe pediu que transmitisse seus agradecimentos ao Duque pela hospitalidade. Ainda conversavam amigavelmente quando Bibi Sarita apareceu, sorrindo e tilintando as moedas em sua cintura.

– Antes de irmos, vou roubar Philippe de vocês por uns minutos – disse ela, enlaçando o rapaz pelo braço.

Eles caminharam um pouco sob o Sol dourado. Havia três semanas que deixara o leito e ainda andava devagar, disfarçando uma pontada leve de dor aqui e ali.

– Eu lamento sobre o que lhe aconteceu – disse ela. – Todos nós lamentamos, você já deve saber.

– Obrigado... – disse ele, honestamente agradecido pela gentileza e solidariedade.

– Soube que os rapazes também ficaram de cama... – continuou ela, com um sorriso.

– É, foi uma dessas coisas boas da vida!... – sorriu ele.

Bibi Sarita parou e olhou para ele, os olhos verdes cheios de histórias contadas nas cartas, nos dias e nas noites.

– Nosso povo foi perseguido e maltratado por muitos anos. Até hoje, alguns nos perseguem e nos ferem por acreditarem que estão fazendo um favor ao seu Deus, ou porque nosso tom de pele é mais escuro, ou porque nossas roupas são diferentes das deles. Pessoas que trazem a escuridão dentro de si sempre arrumam desculpas para ferir. Mas nós nunca deixamos de seguir nosso caminho, de sorrir, de cantar, de dançar e de saudar o Sol e a Lua, porque ninguém pode nos tirar de nós mesmos.

Ela retirou um cordão dourado e entregou para ele.

– É para você, meu menino.

– É belíssimo!... – espantou-se Philippe, que sabia que a joia era de ouro.

A cigana adiantou-se em colocar o cordão nele, deixando que o pingente, uma estrela de cinco pontas entrelaçada delicadamente, tocasse seu peito, por dentro da camisa.

– Uma alma gentil como você não merece a rudeza com que lhe tratam – disse a velha cigana. – Esse é um dos símbolos de proteção do povo cigano. As estrelas não só iluminam nossos caminhos, mas também nos protegem com sua luz. Esta estrela vai lhe trazer proteção. E vai fazer com que a maldade dos outros se volte contra eles mesmos. Nunca tire isso, está bem?

Philippe concordou com um movimento silencioso de cabeça, olhando-a nos olhos. Ele sabia que ela vira nas cartas muita dor e lágrimas para ele. Philippe já tinha tido sua cota de covardias e perdas. Às vezes, se perguntava quantas vezes ainda poderia cair e se levantar.

– Obrigado...

Bibi Sarita abriu os braços e o abraçou longamente, e Philippe sentiu uma estranha familiaridade naquele abraço, como se Bibi Sarita fosse a avó que ele nunca conheceu.

Algumas horas depois, as carroças coloridas passaram pelas ruas do Château das Vertentes, com crianças correndo acenando e cães latindo para os cavalos com fitas trançadas nas crinas.

– Vamos! – disse o Capitão, quando a caravana se distanciou. – O Duque quer ver todos nós.

Voltaram para o castelo e assim que entraram, tiveram uma surpresa. A princípio, não muito agradável.

Na grande sala de jantar, encontraram o Duque, Constance, Celine e Ravin. E pelo olhar no rosto dos três últimos, a surpresa era recíproca.

Ravin não tinha mais marcas no rosto, mas seu orgulho ainda se recuperava dos duros golpes que sofrera na taberna. Prateada lhe rendera quatro costelas quebradas, ferimentos de dentadas que lhe deixaram cicatrizes nas costas e abdômen e algum tempo numa cama. Mas nada disso o perturbara tanto quanto os olhares e comentários quando ele passava. Ele jamais a perdoaria por esta humilhação.

Assim que viu a pequena reunião, Prateada se empertigou e não desviou o olhar que Ravin cravou nela. Foi o Duque quem mandou que eles se aproximassem.

– Tenho uma coisa importante a dizer – disse Lamayer. – Uma coisa que envolve todos vocês.

A tensão no ar era palpável. Desde o ocorrido, nenhum deles se encontrara. Ravin olhou com ódio para Philippe, provavelmente culpando-o por ser o estopim de seus maus momentos. Philippe, por sua vez, ainda sentia o peito pulsar com um coração acelerado e um misto de terror e raiva tomá-lo.

– É hora de Prateada visitar os châteaus e conquistar a confiança dos Lobos mais velhos. Precisamos mostrar que ela tem condições de participar da próxima escolha de rei ou rainha para que os outros châteaus retirem seus candidatos e a apoiem. Por isso, partiremos em uma semana.

O Duque fez uma pausa e olhou diretamente para Philippe.

– Todos nós – concluiu.

A pausa dessa vez veio repleta de trocas de olhares confusos.

– Philippe também vai? – perguntou Prateada.

O Duque concordou com um movimento de cabeça. Prateada ficou imediatamente exultante, segurando nas mãos de Philippe e dando pequenos saltos de alegria.

– Não está falando sério, senhor! – disse Ravin, sem se preocupar em parecer desrespeitoso. – Está dizendo que vai levar um mestiço aos outros châteaus? Como espera conseguir apoio assim? Levá-lo será o cúmulo do ridículo, é mostrar que nos rebaixamos só para agradar uma menina mimada!

O Duque tinha, é claro, autoridade para mandar Ravin calar a boca ou simplesmente mandar seus guardas darem uma surra nele. Mas Lamayer sabia que Ravin era filho de um homem poderoso que estava muito ressabiado com ele desde o evento na taberna. Ele também sabia que Ravin era noivo de sua filha e viria, muito em breve, a ser seu genro. Por isso, se deu ao trabalho de explicar.

– Eu tenho observado Philippe e Prateada nas últimas semanas... O fato é que Prateada se comporta melhor quando ele está por perto. Mas Ravin tem razão. Não cairá bem que um mestiço nos acompanhe.

Philippe e Prateada deixaram os ombros caírem. Ravin sorriu vitorioso.

– Por isso, Philippe nos acompanhará como um Lobo puro. E ninguém – e eu repito: NINGUÉM mencionará sua condição.

O Duque caminhou para Ravin, olhando-o nos olhos.

– Ravin, se acha que não é capaz de manter essa boca fechada, então é melhor que fique. Porque se der com a língua nos dentes, terá que se entender comigo. Então, o que decide?

Ravin tinha a indignação no rosto, mas na hora de falar, simplesmente disse secamente:

– Sim, senhor.

Enquanto via Philippe e Prateada comemorarem, enquanto Celine tentava acalmar o noivo com um toque gentil no braço rudemente tirado, pouco antes dele sair do recinto, Diderot finalmente compreendera algumas coisas.

Primeiro, entendeu o propósito do bizarro jantar ao qual Philippe fora convidado, o mesmo jantar que terminou com Prateada jogando uma cadeira em Ravin. Lamayer estava simulando uma situação entre nobres para ver como Philippe se sairia, mas isso ele já descobrira naquela mesma noite. Segundo, entendera porque o Duque não punira Prateada por ter atacado os rapazes na taberna. Ela não se comportara como uma louca, ou no calor das emoções. Ela calculara quando a Lua cheia terminaria, para que ninguém além dela pudesse se transformar na forma bestial e perigosa dos Lobos. Ela também não ferira gravemente nenhum deles, mas fora clara em dar seu recado. Enfim, Prateada se comportara como uma rainha, sendo muito mais respeitada agora no Château das Vertentes do que quando se vestira de princesa na festa de sua apresentação à sociedade lupina. E tudo isso por causa de Philippe. Levá-lo junto podia até ser um risco, e com certeza era um incômodo para o Duque que nunca gostara do rapaz por ser filho de quem é. Mas, certamente, era o melhor para Prateada.

– Emily tinha razão... – murmurou o Capitão, vendo os dois jovens comemorarem.

– Como, senhor? – perguntou Constance.

Diderot olhou para ela com um sorriso.

– Quando menos esperamos, alguma coisa acontece!...

 

Capítulo 13


O Presente das Fadas

 

Não fosse a euforia natural de uma viagem, eles teriam achado aquela semana incrivelmente sem graça, agora que os ciganos haviam partido e levado sua cor e sua música com eles. Porém, a ideia de saírem em comitiva envolvia todas as ações e pensamentos de Philippe e Prateada.

Prateada estava empolgada, mas você já conhece Prateada e sabe que ela se empolga com qualquer coisa. Philippe por sua vez sempre tentou ser discreto quanto a sua empolgação, por mais difícil que isso fosse. Aprendeu isso em anos de decepção. Porém, era com certo receio que percebia que não estava conseguindo disfarçar a alegria. Ele sempre desejara saber o que havia além do Château das Vertentes. Pedira pra ir, não lhe permitiram. Tentara fugir, não deu certo. Agora, poderia finalmente alçar voo para outras terras e isso fazia seu coração bater mais forte.

Ganhara roupas feitas especialmente para ele, pois agora viajaria como um membro da nobreza. O Duque o apresentaria como um órfão que ele recebera em sua casa, sem maiores delongas. De certa forma, não era mentira. No entanto, isso aumentava ainda mais a curiosidade do rapaz em saber por que o nome de seu pai, Pelouse, era proibido. E por que seu pai não tinha nem mesmo um sobrenome. O que ele teria feito para que sua comunidade esquecesse seu nome? Que fardo ele carregava tão pesado que conseguira passar para a próxima geração? Em tantos anos ali, perguntara algumas vezes para o Capitão. Ele desconversou. Depois da terceira vez sem resposta, desistira. Não lhe contariam. Não naquele momento.

Philippe não era o único que não tirava a viagem da cabeça. Ravin também não parara de pensar nisso. Cogitou não ir. Não bastasse ter que tolerar Prateada, alguém que antes ele desprezava, mas agora não suportava, ainda teria que andar lado a lado com o mestiço, algo inconcebível. Contou a Celine e ficou surpreso em ver que a moça, apesar de tentar consolá-lo e apoiá-lo em tudo, simplesmente disse que iria sentir sua falta. Ravin esperava que sua futura esposa ficasse com ele no que ele considerou um boicote perfeitamente compreensível. Mas Celine deixou claro que não abriria mão de participar da apresentação de Prateada nem por ele, nem por ninguém. Assim, Ravin desistiu de desistir. Não podia conceber que Celine passasse tanto tempo ao lado de Philippe. Não contara para ninguém, mas apesar de desprezar o mestiço com todas as suas forças, via os olhos das moças para ele. Os cabelos negros, os olhos púrpuras e aquele rosto que ele considerava delicado demais para um homem pareciam causar um efeito totalmente diferente nas moças e ele mesmo já flagrara Celine admirando-o às escondidas. Não, não poderia suportar tamanha humilhação! Iria, toleraria o mestiço, participaria do circo que o Duque, que certamente estava ficando louco, estava armando, mas não deixaria Celine ir sem ele.


Faltavam três dias para partirem. Naquela noite, haveria uma ocasião especial. O Château das Vertentes possuía uma ligação profunda com o Povo Pequeno e os habitantes do Mundo das Fadas, e pediriam naquela noite sua proteção durante aquela viagem que era tão importante. Fariam um banquete para os elementais, com músicas e flores, e com sorte, elas apareceriam para dar sua bênção e proteção.

As fadas gostavam muito de crianças e jovens, mas havia aqueles que tinham sua simpatia por toda a vida, e eram pessoas muito raras essas, geralmente artistas ou espíritos que nunca pareciam perder o frescor. Quando encontravam alguém assim, as fadas costumavam dar presentes, chamados dons, e por isso reuniram naquela noite os jovens do château. Com sorte, alguma fada se encantaria por um deles e lhe daria um presente especial. Poucos ganhavam esses presentes, mas o Duque tinha uma intuição de que elas se encantariam por Prateada.

A noite estava estrelada e a Lua estava cheia e poderosa. A música de flauta enchia o ar, enquanto tambores marcavam o ritmo de uma animada dança entre os membros do clã dos lobos brancos. Celine amava essas festas e ela sempre parecia mais brilhante quando dançava, exibindo aquele enorme sorriso que encantava os rapazes do château.

Prateada a olhava com uma pontada de inveja. Celine era tão encantadora, tão elegante, que não importava o que fizesse, ela sempre parecia linda. Já ela era estabanada e começava a se sentir insegura sobre como dançar ou se portar. Uma taça de cerâmica surgiu diante dela com um líquido brilhante refletindo a lua.

– É hidromel de maçã, aquele que você gosta! – dizia o rapaz com um sorriso para ela.

Prateada sorriu e aceitou a bebida, feliz por ele saber do que ela gostava. Porém, não disse mais nada e simplesmente começou a bebericar enquanto observava a dança.

Philippe se colocou ao lado dela, percebendo-a mais calada do que o normal. De fato, desde que tiveram a desconfortável conversa sobre o que ia em seus corações, suas conversas estavam... diferentes. Superficiais, talvez. Era como se nunca tivessem falado daquilo e vez por outra ele mesmo se perguntava se não tinha sonhado.

– Prateada?... – chamou Philippe, na dúvida se falava alguma coisa ou se deixava tudo como estava.

Ela olhou para ele com aqueles enormes olhos castanhos afogueados, esperando a pergunta, mas então Celine a puxou para fazer parte do círculo. Philippe tomou um pouco da própria bebida, sem sentir direito o sabor, enquanto via Celine, Prateada, Jacques e outros jovens que só conhecia de vista dançarem e saltarem animados ao ritmo da música.

– Está tudo bem, querido?

Philippe não percebera a presença de Emily, a esposa do Capitão Diderot, bem ao seu lado.

– Sim, claro!... – respondeu ele. – Há alguns meses, eu daria tudo para participar de algo assim. Eu me escondia bem ali e fingia que fazia parte disso...

Emily seguiu os olhos do rapaz para as árvores que eram seu esconderijo.

– Então porque não parece feliz?

Philippe pareceu se perder um pouco. Olhou para o copo vazio, confuso, e então voltou-se para Emily.

– Porque ainda me sinto totalmente fora disso tudo. Posso não estar nas árvores, mas não me sinto... parte disso.

Emily sorriu e colocou o próprio copo em cima de uma pedra próxima.

– Querido, vou lhe contar uma coisa... Algumas pessoas parecem nascer para fazer parte de tudo. O mundo é seu palco, seu lar, elas se sentem bem onde estiverem e o mundo sente isso. Por isso as recebe de braços abertos. Como Prateada! Outras, no entanto, precisam lutar pelo seu espaço. Não podem esperar receber um convite! Se lhe serve de consolo, acontece com muita gente. Por exemplo, olhe ali nosso amigo Anderlan.

Emily apontou com a cabeça para um jovenzinho sardento que timidamente batia os pés no chão, seguindo o ritmo, parado no mesmo lugar. Ele era um puro, mas parecia mais deslocado ali do que Philippe. A música mudou e as pessoas da roda se uniram em casais. Philippe viu Celine ser tomada pela mão por Ravin, e Prateada ser tomada por Jaques. Então, ele viu a mão delicada da bela esposa do Capitão estendida para ele.

Com um sorriso, ele aceitou. E ambos entraram na dança, sorrindo, brincando, felizes. Alguns olhares pousaram sobre eles com crítica, mas eles não se importaram. Outras pessoas entraram na dança e logo a roda se formou novamente, e dessa vez, ele estava nela. Com mais uma troca de casais, Philippe ficou com Celine. Não percebeu o olhar de Prateada, dançando com um desconhecido, pois Celine o recebeu com um largo sorriso.

Era uma música rápida e em mais uma troca de casais, Prateada e Philippe ficaram juntos pela primeira vez naquela dança. A felicidade da menina era palpável e ele não queria mais soltá-la. Felizmente, não foi preciso. A música parara de repente.

Ao olharem em volta para saber o motivo do súbito silêncio, viram que as pessoas olhavam para a Lua, que estava se tornando maior e mais brilhante, com um arco-íris a envolvê-la. Um facho de luz se formou vindo da Lua, formando uma espécie de caminho furta-cor. E nesse caminho, fadas de todos os tamanhos e cores começaram a aparecer.

Uma salva de palmas, assobios e gritos de alegria emergiram da multidão. Nem sempre um banquete para as fadas podia contar com a presença delas daquela maneira. As fadas surgiam diáfanas e então se tornavam concretas e começavam a dançar com as pessoas da festa. Por onde elas passavam, deixavam um rastro de brilho da cor de suas asas.

O lugar se encheu de fadas, algumas tão pequenas que eram apenas bolas de luz coloridas a flutuar em torno das pessoas. Doces, bolos e frutas eram servidos e elas riam, num som que parecia um tilintar de pequenos sinos.

E então, algo ainda mais incrível aconteceu. Todas as fadas pararam de dançar e fizeram uma reverência a uma forma luminosa que surgia pelo caminho da lua. A música parou novamente e havia apenas um som de sinos agudos e distantes que ninguém sabia de onde vinha.

A forma se tornou concreta e quando pôde ser finalmente vista, todos os presentes se ajoelharam, incluindo o Duque.

Era uma fada, sem dúvida. Mas não uma fada qualquer, disso também não havia dúvida. Era alta, tão alta que poderia estar flutuando, pois não se podia ver seus pés abaixo do longo vestido de cores prateadas. Os cabelos eram longos e finos, num loiro platinado que parecia ser feito do mesmo material dos raios de luar. Suas orelhas eram ligeiramente pontudas e tinham adornos prateados. O rosto era fino e os olhos eram grandes. O pescoço fino lhe dava uma realeza e um porte digno da realeza. Ela se aproximou do Duque.

– Jean!... – disse ela com uma voz suave como uma brisa em dia quente. – Você cresceu, meu menino...

O Duque ergueu os olhos para ela e Philippe o encarou curioso.

– Majestade, não esperávamos vê-la... – disse ele. – Se soubéssemos que viria, teríamos preparado algo mais especial!

A bela fada sorriu.

– Levante-se, meu querido menino.

E foi quando todos se surpreenderam. Quando se levantara, o Duque, homem de feições duras com seus 45 anos, não passava de um rapazola de não mais de 20 anos. Os cabelos longos e loiros eram brilhantes e cobriam duas costas, o rosto era fino e sem linhas.

Com um gesto de mãos, a fada mandou que todos se levantassem e a música continuasse.

– Os Lobos Brancos saúdam a Rainha Paralda! – disse o jovem Duque.

Uma taça de prata cheia de hidromel foi servida à rainha, que tomou e sorriu ao sentir o sabor. Então, ela olhou em volta, vendo os jovens rostos admirados com sua presença e sua beleza.

– Ora, temos muitos lobos novos! O tempo passa tão rápido no mundo dos humanos!...

Ela passou por vários jovens, sorrindo-lhes. Por vezes, era um sorriso de simpatia. Outras vezes, era um sorriso divertido. Até que parou em Ravin. Ele lhe fez uma reverência. Quando terminou, voltou a olhá-la e viu que ela não estava mais sorrindo.

O rosto nublado da fada passou rapidamente para Celine e então se voltou rapidamente para Prateada, a alguns passos de distância. O Duque a pegou pela mão e a levou para perto de Paralda.

– Ora, que joia rara você encontrou, Jean!... – disse a rainha.

– Como você é linda! – deixou escapar Prateada, que estava tão atônita com a beleza de Paralda que nem se lembrara de fazer uma reverência.

A rainha riu, divertindo-se com a inocência da menina.

– Obrigada, minha princesa... O mundo precisa de joias como você, dessas forjadas no amor absoluto...

Então, a rainha se inclinou e sussurrou algo no ouvido da menina. As árvores farfalharam, como se estivem encobrindo a conversa secreta. Nem mesmo o jovem Duque, que estava tão perto, pôde ouvir o que a Rainha segredou à menina. Mas foi algo que iluminou o rosto de Prateada com surpresa.

A rainha sorriu e voltou-se para o outro lado, onde uma criança de cabelos cor de terra a observava. Outras pessoas começaram a se aproximar, desejando estar dentro do halo de luz que se formava em volta dela.

Celine se aproximou do próprio pai, agora tão jovem quanto ela. Olhou-o com espanto, imaginando quem era aquela pessoa e como aquilo tinha acontecido. Antes que pudesse falar com ele, no entanto, a rainha das fadas se voltou para as mais de duzentas pessoas reunidas ali.

– Vocês pediram pela bênção das fadas para sua viagem em busca de apoio para a nova rainha – disse ela. – Pois saibam que não precisam, pois a Grande Mãe já enviou para vocês sua melhor semente.

Ela apontou para Prateada.

– Agora, depende de como vão cuidar dessa semente para verem que tipo de frutos ela poderá lhes trazer. Mesmo assim, deixo com vocês minhas bênçãos durante a missão. Que os caminhos se abram para vocês, onde quer que vão! E que não se percam nos emaranhados de caminhos tortuosos, de mentiras ou dissimulações!

Com um gesto de mão, um pó brilhante caiu sobre aqueles que partiriam na Caravana. Aplausos e gritos se ergueram de novo, enquanto todos agradeciam à bondade de Paralda. Porém, ela franziu o cenho e olhou novamente em volta.

– Faz tempo que não dou um de meus presentes! – disse ela. – Acho que hoje é um bom dia para isso!

E então ela caminhou novamente, os olhos vasculhando almas e corações, onde passado, presente e futuro se misturavam em uma pintura única. Ela caminhou na direção de Ravin. Ele estufou o peito, imaginando que era óbvio que ela reconheceria seu valor assim que o visse. Todos os olhos os acompanhavam. Já era raro se receber um presente de uma fada, quanto mais da própria rainha das fadas.

Quando ficaram cara a cara, ela empurrou gentilmente o rapaz para que ele saísse se seu caminho. Então, seus olhos encontraram o que ela estava procurando. Seu rosto se iluminou com a certeza de que seu presente iria para mãos merecedoras. Deu mais alguns passos e parou diante de um jovem de olhos arregalados com a atenção inesperada.

– Você é Philippe, não é? – perguntou ela.

Um burburinho de surpresa se misturou ao farfalhar das árvores, mas nada disso pareceu perturbar a rainha.

– Sou... – respondeu o rapaz, confuso. – Como sabe quem eu sou?

– Uma família de pássaros me falou de você! – disse a rainha com um sorriso bondoso. – E uma aranha que estava no caminho. E um esquilo que estava ferido. E dois lobos que foram libertados. Na verdade, tenho ouvido muito de você ultimamente! O que é bom, porque torna mais fácil minha escolha do presente a dar para você.

– Um presente?! – exclamou Philippe. – Pra mim???

Paralda apenas sorriu e estendeu as mãos para a Lua. Um facho nacarado desceu em suas mãos, trazendo um objeto longo e curvo. Conforme foi perdendo a luz, puderam ver o que era. A rainha estendeu o arco de madeira clara ricamente decorado com entalhes de folhas e espirais. Junto com ele, uma aljava repleta de flechas cor de areia com penas brancas nas pontas.

Philippe recebeu o presente, boquiaberto, mas sem conseguir conter o sorriso de alegria.

– Obrigado!

– Esta é uma arma feita no mundo das fadas – explicou a rainha. – Ela tem alguns segredos que certamente lhe serão úteis. Suas flechas são mais rápidas, pois o vento é seu aliado e as sílfides o ajudarão a acertar o alvo. As fadas das nuvens e as dríades das árvores também o reconhecerão como um amigo quando precisar delas. O resto, deixarei para que você mesmo descubra...

– Eu... Eu nem sei como agradecer...

A rainha sorriu novamente, dessa vez de uma forma muito terna, e tocou-lhe o rosto com delicadeza.

– Que rosto lindo tens, criança... Um eco do teu coração. Certamente, tua mãe foi tocada pelas fadas...

E então, a rainha se voltou para o Duque.

– Você tem mais do que o suficiente para conseguir o que quer, Jean. A menos, é claro, que alguém ou alguma coisa escolha entrar no seu caminho. Que sua estrada seja bela e, suas escolhas, justas!

A rainha então inclinou levemente a cabeça numa reverência e desapareceu numa nuvem de pontos luminosos, deixando atrás de si apenas um aroma doce de flores da noite. As outras fadas bateram suas asas e fizeram o mesmo. Algumas simplesmente voaram na direção da Lua, fazendo um caminho de asas coloridas e brilhantes.

E quando Celine se virou para o pai, encontrou-o lá, com um sorriso de contentamento como se tivesse encontrado uma velha amiga, mas com as linhas que o tempo emprestou ao seu rosto e o peso que os anos imprimiram em seu corpo.

 

 

Capítulo 14


Entre os Vagalumes

 

Nos poucos dias que se seguiram ao banquete das fadas, o Château das Vertentes mergulhou no falatório sobre o presente que a rainha escolhera dar ao mestiço. Havia surpresa, suposição e, claro, muita inveja. Muitos acreditavam que a rainha fora motivada apenas pela beleza do rapaz, pois todos sabiam que fadas se encantam por coisas belas. Não que não houvesse outras pessoas muito bonitas no château. Os Lobos eram conhecidos pelo seu encanto natural, fosse de uma maneira selvagem, fosse de uma forma mais galante. Então, por que Philippe? Por que ele chamara a atenção da rainha das fadas?

Ninguém entendeu o que Paralda dissera sobre os pássaros, a aranha, o esquilo e os dois lobos. Acharam que tinha sido uma dessas charadas das fadas que ninguém entende. Mas Celine compreendeu que os pássaros tinham sido aqueles cujos filhotes Philippe salvara recentemente, recolocando-os com o ninho de volta à árvore depois que caíram. E que os dois lobos foram os que ele libertara do cativeiro, o que quase lhe custou a separação definitiva de Prateada. Ela não tinha ideia do que a aranha e o esquilo queriam dizer, mas suspeitava que estivessem na lista de animaizinhos salvos por ele.

Ao perceber isso, Celine também percebera o quanto os Lobos Brancos, e isso a incluía, haviam se afastado de sua verdadeira essência. O quanto estavam se parecendo com os humanos que tanto desprezavam. Ela pensou longamente sobre isso, imaginando que talvez fosse hora de rever suas ações.

Infelizmente, não conseguiu falar sobre isso com ninguém. Ravin estava cuspindo marimbondos com o ocorrido. Seu pai e o Capitão estavam ocupados demais com os preparativos para ouvir suas filosofias. Prateada... Bem, ela não tinha certeza do grau de entendimento da moça. Só lhe restava Philippe, mas ele passou o pouco tempo que tinha livre – ele também havia sido engolfado pelos preparativos – treinando sozinho com o arco e flecha, tentando descobrir os segredos sobre os quais Paralda lhe falara.

Assim, quando menos esperou, era dia de partir.

 

 

Prateada passou o último dia se despedindo. Despediu-se de Chalise, a cozinheira. Despediu-se de Eponine. Despediu-se de Emily. Despediu-se de mais alguns criados. Ignorou os membros da nobreza que o Duque gostaria tanto que ela lembrasse. Mas não se esqueceu de se despedir dos pássaros, do bosque, dos pequenos cervos que lá viviam e de tudo que lhe era tão familiar. Correu entre as árvores sentindo-se livre e feliz. Arrancou os sapatos no caminho. Retirou o vestido e continuou a correr até, num salto, transformar-se num enorme lobo branco. Correu e saltou com velocidade. Sentia-se mais forte e mais ágil e achou que poderia saltar tão alto que voaria se quisesse.

Quando terminou, chegando no alto da colina, uivou bem alto, ouvindo outros lobos responderem ao seu uivo. Sentiu-se conectada a todos eles, e ao chão que eles pisavam, e à relva que os acariciava, e ao vento que beijava seus belos focinhos. Sentiu essa conexão misteriosa e bela por alguns minutos e então voltou pelo mesmo caminho.

Quando chegou ao local onde deixara suas roupas, no entanto, encontrou alguém. Prateada parou e rosnou, mostrando os dentes, vendo um rapaz de costas, agachado perto de suas roupas. Assim que a pressentiu, o rapaz se levantou. Ela parou de rosnar ao reconhecer Jacques. Ele tinha seu vestido nos braços e um ar de surpresa ao vê-la.

– Prateada?...

A imensa loba se aproximou dele e então voltou a ser a moça que ele conhecera. Ele enrubesceu imediatamente ao ver o corpo nu e perfeito, mas ela não pareceu notar ou se importar. Ele estendeu o vestido e ela o pegou.

– Vi suas roupas... Fiquei preocupado.

– Comigo?! – perguntou ela, enquanto se vestia.

– Sei lá, há caçadores por aí – respondeu ele, arriscando dar uma espiada.

Ela estava de lado e ele viu quando o vestido deslizou sobre o corpo macio, cobrindo o seio, o ventre, as pernas e as nádegas. Ela se virou para ele, dando laços na parte da frente do vestido.

– É mesmo? – ela perguntou.

Ele voltou a olhar para o rosto dela, aparentemente perdido.

– É mesmo o quê?

– Que há caçadores! – explicou ela. – Você acabou de falar!

– Ah, é... Sim, há caçadores. Por isso me preocupei...

Ela ficou olhando para ele por um momento, os olhos brilhantes cravados nos olhos castanhos dele que, subitamente, não sabiam mais pra onde olhar.

– Desculpe, eu não queria ser... ver... Bem, eu só queria saber se você estava bem!

Ele se virou para ir embora, pensando se alguma vez na vida sentiu-se tão constrangido.

– Obrigada!

Ele se voltou para olhá-la. Ela continuava lá, parada, como uma boneca que saiu de uma ventania, olhando-o. Jacques sentiu a coragem voltar. Deu alguns passos na direção dela.

– Por que não me atacou naquele dia na taberna? – perguntou.

Prateada inclinou a cabeça de lado e apertou um pouco os olhos como se tentasse ver algo além ou como se pensasse seriamente na resposta.

– Porque você não merecia – respondeu.

– Eu estava com eles, você sabe. Ravin e Carlo são meus melhores amigos.

– Então eu acho que você precisa de amigos melhores... – respondeu ela.

Ele esboçou várias respostas, mas nenhuma saiu.

– Você não entende! – disse por fim.

– Ravin e Carlo não estavam lá quando você caiu naquela armadilha – continuou ela. – Não lutaram com caçadores para defendê-lo. Não o carregaram de volta e mantiveram uma mentira para encobri-lo. Sinceramente, eu entendo muito bem. Você é que parece não entender nada...

Ela se abaixou para pegar os sapatos e começou a caminhar com eles nas mãos. Jacques levou alguns instantes para superar a surpresa de saber que Prateada se lembrava muito bem do que acontecia quando era apenas um lobo, muito antes da transformação mudar sua vida e a de todo mundo.

– Sou igual a eles, Prateada... – disse Jacques e havia um quê de vergonha e confissão em sua voz.

A moça se virou para ele e então sorriu. Ele sentiu que algo se aqueceu dentro dele e isso foi estranho.

– Não, não é não...

Ela voltou a andar, deixando-o só na floresta. Então parou e se virou para ele de novo.

– Você não vai voltar?

Ele entendeu o convite e se apressou, começando a andar ao lado dela.

– Uma pena que você vá partir em alguns dias... – disse ele.

– Você acha? Estou animada! Quero tanto ver como são as coisas lá fora!

– Sim, eu acho que você vai se divertir! – disse ele. – Mas este lugar vai ficar bem menos divertido sem você por aqui...

Ela riu e eles seguiram conversando sobre as coisas que ela encontraria, as pessoas que conheceria e as histórias que contaria quando voltasse. Quando se despediram, Jacques pensou no grande – enorme – erro que cometera ao se deixar levar pela opinião dos amigos quando ele quis convidá-la para o baile. Lembrou que eles riram de sua escolha, pois Prateada era um bicho, não sabia se portar como uma dama, não penteava o cabelo e provavelmente ia ser motivo de chacota e envergonhar seu acompanhante. Jacques então desistiu e não a convidou. Justamente naquela noite, Prateada se mostrara a moça mais bonita que ele já vira, encantando a todos e reinando como a lua. Ele percebera naquela noite que precisava ouvir mais seu coração e menos os seus amigos. Agora, percebia que talvez Prateada tivesse razão. Ele precisava de amigos melhores...

 


Uma semana depois, eles estavam prontos para deixar o Château das Vertentes. Diderot se despediu de Emily com um beijo longo e apaixonado. Prateada os observou curiosa, sem perceber que podia não ser uma atitude polida. Só parou de olhar quando Philippe abriu galantemente a porta da carruagem de madeira trabalhada para que ela entrasse. Ele lhe abriu um sorriso e ela retribuiu, fazendo um movimento afetado de dama e entrando na carruagem.

A comitiva era de fato seleta. Diderot levava três de seus melhores homens, dois que seguiam a cavalo e um que conduzia a carruagem, juntamente com Philippe e Ravin, enquanto a carruagem levava o Duque das Vertentes, sua filha Celine de Lamayer, a ama Constance e uma animada Prateada. A moça queria ir a cavalo, mas o Duque não permitiu. Ela reclamou, mas concordou em – ao menos tentar – se comportar como uma donzela.

Enquanto esperavam Celine e o pai se ajeitarem na carruagem, os homens já estavam em seus cavalos e o cocheiro aguardava. Ravin olhou com desdém para Philippe, elegante em roupas novas e botas pretas e brilhantes, o arco atravessado no peito e a aljava pendurada nas costas.

– É engraçado como um porco vestido pode até enganar os idiotas – provocou Ravin. – Mas por baixo daquele garbo todo, ainda será um porco.

– Não se preocupe, Ravin! – retrucou Philippe com um sorriso. – Faremos o possível para não deixar que tirem suas roupas e revelem sua verdadeira identidade!

Os soldados que estavam próximos não conseguiram evitar um riso discreto. Ravin não soube o que responder, então engoliu o desaforo enquanto os primeiros passos da jornada eram dados.

 


A carruagem seguia no meio dos cavaleiros, movida por dois cavalos bem alimentados, como eram todos os animais do Château das Vertentes, lugar conhecido por sua abundância de alimentos. Estavam a caminho do Château dos Damascos, o mais próximo. Era pequeno e sua maior importância estava em Madame Margaux, uma das anciãs do clã e cuja opinião era levada muito em conta no Conselho de Anciãos, que por sua vez, decidiria o representante de cada clã para a competição final que definiria o próximo rei ou rainha. Philippe já sabia disso, graças às aulas de Constante que se centraram nos três châteaus que visitariam, seus pontos fracos, seus pontos fortes, sua importância política, seus ancestrais e suas tendências. Por isso, suas primeiras perguntas durante a longa viagem de um dia e uma noite até o Château dos Damascos eram sobre outras questões que não deixavam sua mente.

– O que foi aquilo que aconteceu no banquete com as fadas? – perguntou o rapaz para o Capitão ao seu lado.

– Pode ser mais específico? – perguntou o militar.

– O Duque se transformou em um jovem ao toque de Paralda! E eles pareciam se conhecer!

– Ah, isso... Bem, digamos que o Duque e a Rainha têm uma história...

– Uma história de amor? – perguntou Philippe.

Diderot riu. Era impressionante como para os jovens tudo era uma história de amor. Então ele ficou sério, lembrando as circunstâncias que uniram seu velho amigo e senhor do castelo e a rainha do reino das fadas.

– Não, não foi uma história de amor... O Duque estava... doente. Paralda o ajudou. Salvou a vida dele.

O Capitão se sentiu flutuar até aqueles tempos mais cinzentos e achou que estava na hora de mudar de assunto.

– Não tive tempo de acompanhar seu treinamento com o arco que Paralda lhe deu – disse ele. – Como se saiu com ele?

– Muito bem! Ele tem o peso e a envergadura perfeitos! E as flechas voam como o vento, acertam em cheio o alvo! Mas ainda não descobri os segredos dos quais Paralda falou. Achei que ele fosse fazer alguma magia...

– E certamente faz! – concordou o Capitão. – Só que você não descobriu ainda. Lembre-se do que Paralda falou. A chave para o que ele é capaz de fazer está nas palavras dela.


Na frente da carruagem, Ravin seguia com os dois guardas, Eddard e Bergére, em silêncio. Por volta do meio do dia, eles pararam na beira de um riacho, onde podiam molhar os rostos e reabastecer seus odres, para comer alguma coisa e esticar-se um pouco. Prateada saiu mastigada de dentro da carruagem, espreguiçando-se com uma careta. Entre um pouco de conversa e um cochilo e outro, já estava cansada da viagem.

Os cavalos receberam água e uma cesta de mantimentos foi repartida. Havia duas, uma para o meio do dia e outra para a noite. Chegariam ao Château dos Damascos no meio da tarde do dia seguinte, se tudo corresse bem. Durante a tarde, caçariam no caminho alguns animais de pequeno porte, coelhos e faisões, que fortaleceriam a ceia da noite.

A uma certa distância, Ravin observava em silêncio as conversas pontuais aqui e ali, quando Celine se aproximou dele.

– Você está calado! – disse ela, fingindo não saber o que aborrecia o noivo.

– Estou bem. É uma viagem entediante, só isso.

Ravin estava remexendo distraidamente em frutinhas vermelhas que cresciam num matinho rasteiro, quando Celine lhe chamou a atenção.

– Cuidado com isso! São amoras do diabo! São venenosas!

Ele largou as frutinhas e a moça pediu-lhe o cantil. Ela o levaria para encher junto com os outros. Ravin deu seu odre já vazio e Celine o levou para Eddard, um dos guardas que seguiram o caminho ao lado dele. Ravin notou que Philippe entregara seu cantil à Prateada, que o juntou à pilha ao lado do guarda, que enchia cuidadosamente com a água cristalina um a um. Ravin olhou para a frutinha no chão e foi então que teve uma ideia.

Prateada e Philippe correram pela mata que os rodeava, observando novas flores e pássaros de novas cores. Em dado momento, Philippe subiu em uma árvore rapidamente, indo até o galho mais alto. De lá, conseguiu avistar o castelo, construção mais alta do Château das Vertentes. Diante dele, uma extensão de mata verdejante em colinas e riachos desenhava um quadro de detalhes desconhecidos. Ouviu um gritinho de choramingo e olhou para baixo, onde viu Prateada reclamando. Riu, lembrando que a moça não sabia subir em árvores. Tentou ensiná-la, mas um tombo dolorido esfriou a vontade dela de aprender.

Reuniram-se com os outros para a refeição. O Capitão lhe explicara que, apesar de ser sempre bom manter a cautela com caçadores, não era muito comum que chegassem tão perto daquela região, uma extensão de mata entre dois châteaus, duas cidades secretas repletas de feras e encantados prontos para defender seu território. Também não encontraram nenhum rastro ou sinal de humanos no caminho e acreditavam que podiam ficar tranquilos. Philippe também acreditava que a bênção de Paralda e das fadas certamente tinha algo a ver com a tranquilidade esperada.

Eddard começou a distribuir os odres já cheios, enquanto Ravin observava atentamente. Quando ia entregar o odre de Philippe, Celine deu um grito e um salto, assustando também Prateada, que também deu um pulo. Celine, sem querer, esbarrara em Eddard que derrubou quatro odres no chão. Um deles se abriu, derramando seu conteúdo na terra.

– Uma aranha!!! – gritava Celine, sem se incomodar em causar o acidente com o guarda. – Uma aranha verde, com aquelas perninhas finas! Ela me picou!!!

Lamayer e Capitão se adiantaram em ver a picada, um ponto vermelho no dorso da delicada mão da moça.

– Calma, Celine, é só uma aranha do campo! – disse seu pai. – Eu tenho um unguento para picadas de insetos, vamos passar um pouco.

Enquanto o problema com a aranha era administrado, Philippe ajudou Eddard a recolher os odres.

– Sinto muito, amigo, seu odre abriu, é melhor encher de novo.

– Não se preocupe, eu faço isso! – disse Philippe, se encaminhando para o riacho.

Ravin não acreditou na sorte do mestiço. Nem percebeu quando Eddard lhe estendeu seu odre já cheio e, quando o pegou, também não agradeceu.

 


Se Ravin não estivesse tão concentrado nas ações de Philippe, talvez tivesse percebido o quanto os odres se parecem. O odre que caiu não tinha sido o de Philippe, mas o dele. A água onde espremera algumas frutinhas venenosas foi a que bebera há pouco mais de uma hora. Só se deu conta do erro quando as dores abdominais começaram.

Ravin não tinha a intenção de matar Philippe. Além de ser contra a Lei Máxima, não via ponto em matá-lo com veneno. Sabia que a quantidade de frutinhas que colocou dariam um total mal estar, com dores de estômago, disenteria e vômito. Queria que ele perdesse aquela pose toda, e que Celine o visse colocando os bofes para fora ou borrando as calças. Queria constrangê-lo, humilhá-lo e fazer com que todos o vissem daquela forma. E que o Duque se arrependesse de tê-lo levado naquela viagem.

E era nisso que pensava quando precisou saltar do cavalo e correr para o primeiro mato que encontrou. A comitiva parou, sem entender o que acontecera. O Capitão se aproximou sem desmontar e ouviu sons desagradáveis de alguém vomitando.

– Tudo bem aí, Ravin?

Novos sons como resposta. Dessa vez, parecendo outra coisa. Uma tosse, e então uma voz estrangulada avisando que estava tudo bem e que já estaria de volta.

A partir daí, a comitiva seguiu com várias paradas. Ravin parecia se deteriorar a cada quilômetro percorrido. Algumas vezes, não teve tempo de tirar as calças, ou de descer do cavalo. Sua pele ficou verde e bolsões abaixo dos olhos lhe davam a aparência de um morto vivo. Por conta de sua condição, acamparam para o pernoite antes mesmo do Sol se pôr.

– Que estranho! – disse Celine, colocando um pano molhado na testa de Ravin. – Você comeu o mesmo que nós. Não imagino o que possa ter causado isso!...

– Vai ver que ele mordeu a própria língua e engoliu um pouco do veneno...

O comentário de Philippe que passava por perto com um pouco de lenha para a noite provocou risos em Prateada, mas Celine não achou graça nenhuma. Ravin virou-se de lado, mordendo os lábios e crispando as mãos.


Acenderam a fogueira e assaram algumas perdizes selvagens caçadas pelos guardas, Eddard, Bergére e Buffon, que acumulava função de cocheiro. Ravin, obviamente, não comeu nada, mas pelo menos parou de colocar tudo pra fora, lidando agora com calafrios e cólicas doloridas. Philippe se ofereceu para participar da guarda, mas Diderot o dispensou. Não havia necessidade, pois com quatro homens para se dividirem em turnos de uma hora e meia, todos poderiam dormir bem.

A viagem cansativa cobrou logo seu preço e não demorou muito para que Prateada se aninhasse para dormir, assim como Celine. Não era tão tarde quando Prateada acordou. Pela posição da Lua no céu, calculou que ainda teria boas horas de sono pela frente, o que a fez feliz. Porém, quando não encontrou Philippe ao seu lado, levantou-se imediatamente.

Não foi difícil achá-lo. A apenas alguns metros do acampamento, onde a fogueira ainda crepitava, havia um lago. E foi lá que ela o encontrou. Uma brisa com aroma doce de flores da noite brincava com os cabelos dele, jogando mexas para um lado e para o outro. Ela se aproximou dele em silêncio e ele abriu um sorriso assim que a viu.

– Prateada! Achei que estava dormindo!

– Estava. Me levantei quando não encontrei você.

– Eu vim ver a vista. Já viu que coisa mais linda?

Prateada olhou para o lago de superfície negra e espelhada. Sobre ele, voavam centenas de vagalumes, acendendo e apagando suas luzes mágicas. Lá no alto, a Lua estava minguante e formava no céu um sorriso que também se refletia no lago. E no céu incrivelmente negro, milhares de estrelas desenhavam uma estrada de luz.

– Que lindo!... – balbuciou ela.

– Já lhe contei a história do vagalume que se apaixonou por uma estrela?

Prateada arregalou os olhos para ele, esperando mais, pois adorava histórias.

– Bem, havia um vagalume como todos os outros vagalumes, exceto por seu amor. Um dia, ele se apaixonou por uma estrela que brilhava bem alto no céu. Ele tentou voar várias vezes até ela, mas nunca conseguia alcançá-la. Todos os outros vagalumes riam dele, mas ele não se importava. Então, ele fez serenatas, e declamou poesias, e declarou para ela todo o seu amor, na esperança dela vir até ele, ao menos metade do caminho, pois ele trilharia a outra metade. Mas ela não veio... Um dia, quando estava muito triste, o vagalume estava voando sobre um lago e viu sua amada, bem ali, ao seu alcance. Sem pensar duas vezes, ele mergulhou na direção dela. Era apenas um reflexo na água, mas ele não desistiu e tentou encontrá-la ali no lago. Então, ele se afogou e morreu. Todos os vagalumes se reuniram para fazer uma última homenagem ao amigo apaixonado e, enquanto todos acendiam suas luzes em volta do lago, uma estrela desceu do céu, com um brilho muito bonito. E nesse momento, um ponto iluminado surgiu de dentro do lago. Era o vagalume, que agora brilhava muito mais do que antes. Ele subiu e foi recebido pela luz da estrela que o esperava no meio do caminho. E então, os dois se elevaram até o céu e no lugar onde havia apenas uma estrela, agora havia duas.

Philippe continuou olhando os vagalumes em sua dança sobre o lago, esperando que Prateada comentasse a história.

– Eu amo você.

Ele se virou para ela. Sua surpresa não vinha do sentimento, mas do silêncio que permeara aquele assunto durante as últimas três semanas.

– Eu amo você – repetiu ela, olhando fixamente nos olhos dele. - Amo tanto que cada minuto longe de você dói! Amo a ponto de fazer qualquer coisa por você, qualquer coisa mesmo! Talvez você possa controlar o bater de seu coração, mas eu não posso. Meu coração bate mais forte por você, e eu perco o fôlego cada vez que o vejo. Não posso sequer imaginar como seria não ter você ao meu lado, porque isso, sim, seria cruel demais. Você diz que eu sou uma rainha, mas eu digo que só sou uma rainha quando estou ao seu lado. Longe de você, não sou rainha de nada... Eu amo tanto você que aceito qualquer amor que você puder me dar! Pode ser um amor de amigo, de irmão, de primo distante. Qualquer coisa, qualquer farelo de amor que você tiver pra mim, eu aceito!

Prateada esperou a resposta dele. E a resposta não demorou muito. Com as mãos no rosto dela, ele a puxou para um beijo. Um beijo longo, doce e que brilhava mais do que todos os vagalumes do mundo. Quando seus lábios se separaram, ela olhou nos olhos dele, num misto de surpresa e encanto.

– Você merece mais do que farelos. E eu lhe darei todo o meu amor. E não é um amor de amigo, embora você seja minha melhor amiga. E não é um amor de primo distante. E, definitivamente, não é um amor de irmão...

Prateada riu, uma risada de criança, os olhos brilhando como nunca brilharam antes.

– Esse foi o meu primeiro beijo! – disse ela.

Então ele riu também.

– O meu também!...

 


Capítulo 15


O Château dos Damascos

 

O céu ainda começava a se iluminar quando todos foram chamados. Era hora de levantar acampamento. Ravin ainda se sentia muito mal e seguir o caminho a cavalo parecia fora de cogitação. Celine, Diderot e o Duque falavam sobre isso quando Prateada subitamente se ofereceu para ceder seu lugar na carruagem.

– Não precisa fazer isso, Prateada – disse o Duque, quase feliz por vez uma atitude gentil de Prateada voltada para seu futuro genro. – Pode ir na carruagem, eu irei a cavalo com os homens. Mas Ravin ficará feliz em saber que você se importa com ele.

Prateada piscou várias vezes, confusa com a declaração.

– Não, não me importo! Eu só não quero ir sacolejando dentro de uma carruagem ao lado dele! Ainda mais cheirando mal como ele está!

Ravin estava sentado a poucos metros de distância, tentando em vão tomar um pouco do chá que Celine e Constance lhe empurraram, ouvindo as palavras rudes de Prateada. Olhou de soslaio para o pequeno grupo, como se tentasse lembrá-los de que ele estava bem ali.

– Fale baixo, Prateada! – ralhou Celine em um sussurro. – Ravin pode ouvi-la!

Prateada esticou o pescoço e viu a triste figura de Ravin a encará-la mal humorado, com a pele esverdeada e olheiras tão profundas que pareciam ter sido pintadas debaixo de seus olhos.

– VOCÊ FEDE! – gritou ela, pra ter certeza de que ele estava ouvindo.

Lamayer lhe dirigiu um olhar de reprovação que a fez abaixar a cabeça, enquanto o Capitão tentava segurar o riso.

– Você é tão rude, Prateada! – reclamou Celine. – Não tem um pingo de compaixão!

– Você também não vai ter quando ele vomitar em seu vestido – respondeu Prateada, cruzando os braços.

– Está bem, já chega! – determinou o Duque. – Prateada irá a cavalo. Ravin irá conosco.

Prateada comemorou e correu até o cavalo de Ravin, acariciando-lhe a testa.

– Papai, o senhor está a mimá-la! – reclamou Celine. – Desse jeito, ela vai achar que pode conseguir tudo o que quer!

– E qual a opção, Celine? Você quer ir com ela e Ravin a viagem inteira, bem no meio dos dois?

Celine cruzou os braços, imaginando a situação.

– Não, eu preferiria ir a pé...

O Duque levantou as sobrancelhas e lhe deu aquele olhar de que ele sabia o que estava fazendo.


O caminho seguiu tranquilo, mais animado fora do que dentro da carruagem. Prateada era falante e ia tagarelando boa parte do caminho. Mesmo assim, o Capitão e seus homens estavam sempre atentos aos arredores.

– O que vocês tanto procuram nos arbustos a nossa volta? – perguntou Prateada.

– Qualquer coisa estranha – respondeu o Capitão. – Caçadores, ladrões ou mesmo criaturas que não são desse mundo podem fazer um estrago se não estivermos prontos para nos defendermos.

– Mas a rainha Paralda nos deu sua bênção! – lembrou Philippe.

– E nós somos gratos. Mas sempre seguimos um velho ditado árabe...

Bergére completou o ditado:

– Confie em Deus, mas amarre seu cavalo...

Prateada então silenciou, pensando sobre aquele ditado. Por cerca de uma hora, houve apenas o som do trotar dos cavalos e o vento chacoalhando as folhas nas árvores altas.

 

Passaram-se algumas horas e já era quase hora do almoço quando o Capitão fez uma pergunta. Philippe levou alguns momentos para perceber e certamente as palavras ficaram em algum lugar no caminho, pois ele não tinha a menor ideia do que Diderot falara.

– O quê?

– Você está bem? – perguntou o Capitão. – Está calado e parece distraído.

– Estou! Estou, sim!

Philippe tentou disfarçar. O fato era que sua cabeça estava em outro lugar, lá no lago dos vagalumes, sentindo a doçura de seu primeiro beijo. Antes de voltarem para o acampamento, ele e Prateada combinaram que não diriam nada a ninguém, e que ninguém poderia saber em hipótese alguma que estavam apaixonados. Prateada não precisou de explicações para esse segredo. Apesar de ainda parecer uma menina avoada, ela estava ficando cada vez mais ciente de tudo o que acontecia ao seu redor. Ela sabia que seus sentimentos por Philippe poderiam ser um perigo para ele e ela sabia que ainda não podia brigar com todo mundo para ter o que queria.

Um grito foi ouvido dentro da carruagem, interrompendo a conversa de Prateada com Bergére e os pensamentos de Philippe. O veículo parou e Celine saltou de lá de dentro em pânico. Não precisaram perguntar o que tinha acontecido. Uma grande mancha verde e malcheirosa em seu vestido denunciava que a profecia de Prateada se cumprira.

 


O Sol ainda estava alto, mas não demoraria a partir quando chegaram ao Château dos Damascos. Passaram pela pequena cidade que cercava o castelo principal, onde foram recebidos por Madame Margaux, uma senhora altiva de cabelos brancos e brilhantes elegantemente arrumados em um coque repleto de enfeites. Ao lado dela, homens, mulheres e crianças com olhares curiosos para aquela que gerara tanta surpresa em sua transformação. Mais tarde, eles viriam a saber que quase todas aquelas pessoas constituíam a família da matriarca que se reunia sempre em volta dela.

As pessoas olharam para a carruagem, ansiosas. Uma garotinha de cabelos negros e lisos correu até a porta com um buquê de lindas flores. A porta se abriu de supetão e Ravin saiu lá de dentro, já caindo de joelhos no chão e vomitando um fluido verde. A menininha ficou paralisada sem saber o que fazer abraçada com o buquê. O silêncio constrangedor foi quebrado pela voz do Duque, que saía pelo outro lado junto com Celine.

– Isso não são maneiras de se chegar na casa dos outros, mas algumas coisas parecem insistir em ficar fora de nossas mãos!...

Madame Margaux abriu um enorme sorriso e com os braços abertos o recebeu.

– Jean de Lamayer, é preciso que a Deusa mande um milagre para que você venha me visitar!

Eles se abraçaram carinhosamente, enquanto Celine ajudava Ravin a se levantar.

– O rapazinho parece muito mal... – observou a senhora.

– Este é Ravin, noivo de Celine, minha filha. Ele passou muito mal a viagem inteira...

– Que pena... Virgile, acompanhe o rapaz e a moça aos seus aposentos para que eles possam se refazer.

Celine deu um sorriso amarelo, sem ousar cumprimentar de perto Madame Margaux, ciente de seu estado lamentável. Ainda havia vômito em seu vestido, e também em seu cabelo, e em sua tentativa de limpar, sujou ainda mais. Um rapaz de uns 16 anos acompanhou o casal para dentro do castelo.

Philippe ajudou Prateada a descer do cavalo. A moça saltou graciosamente em seus braços, como sempre fazia, jamais sequer tentando disfarçar um grande e feliz sorriso. Ele a guiou elegantemente pela mão até Madame Margaux, onde a moça fez sua reverência, não desengonçada, não torta, mas de uma maneira tão bela que parecia até natural.

– Minha nossa, Jean! – exclamou a senhora. – Ela é um primor! Uma joia muito rara!...

Prateada pensou em perguntar o que era primor, mas estava com preguiça e apenas sorriu. O Duque estava orgulhoso, podia-se ver claramente. A pequena menina de cabelos pretos lhe entregou o buquê com os olhos brilhando. Prateada se abaixou para receber e agradeceu com felicidade genuína.

Haviam preparado nos jardins do castelo uma ceia com muitas guloseimas, pães frescos e frutas para os visitantes cansados. Numa grande mesa de madeira coberta com um tecido claro, havia uma diversidade indecente de pães, croissants, peras, queijos, carne, chá, leite, pudim de ovos e outras delícias. Prateada precisou se conter para não avançar. As louças decoradas eram finas e detalhes em ouro refletiam a luz do sol poente. Flores enfeitavam a mesa e os convidados se sentaram, enquanto criados começavam a servi-los.

Madame Margaux estava sorridente e toda a sua imensa família parecia receptiva e calorosa. Todos da comitiva foram praticamente convocados a participar da ceia. Para Prateada, não era uma surpresa, mas o Capitão e seus soldados sabiam que esse tipo de recepção não era comum em famílias nobres e ricas, quando, na grande maioria das vezes, eles comiam na cozinha, ou na taberna mais próxima.

A conversa seguiu agradável, com muitas perguntas sobre a transformação de Prateada, sobre como estavam as coisas no Château das Vertentes e sobre novidades que incluíam casórios e nascimentos. Havia risos e alegria, enquanto uma brisa fresca anunciava a noite. Lampiões eram acesos enquanto o Sol se despedia. Prateada se fartou, sem se preocupar com o amanhã, atacando principalmente os doces, seu ponto fraco. Vez por outra, procurava por Philippe, sentado a apenas alguns metros de distância, o que já era longe demais para ela. Quando encontrava seus olhos, eles sorriam, e ela sabia que estava tudo bem.


A noite nas novas acomodações foi maravilhosa. O conforto de uma cama e um teto é uma coisa que não se deve subestimar. Ficariam uma semana e Madame Margaux não deixaria que se sentissem entediados. Haveria uma animada programação no Château dos Damascos, conhecido por esse nome pela cor de seus bosques, mesmo quando não era outono.

Durante a manhã, Philippe, Prateada, o Capitão e dois casais jovens saíram em um passeio para conhecer a cidade. Os jovens estavam espantados com a beleza do lugar. Diferente do Château das Vertentes, que alternava seu charme rústico com jardins e casas refinadas, o Château dos Damascos era sempre refinado. Mesmo seus bosques pareciam incrivelmente delicados, com muitos ipês coloridos e uma vegetação que assumia um tom dourado a qualquer estação do ano.

Retornaram para o almoço, quando a mesa já estava posta e Ravin e Celine já estavam de volta. Uma noite e um banho pareciam ter sido o suficiente para Celine, mas Ravin ainda parecia saído de uma tumba.

A conversa durante o almoço dessa vez tomou um rumo inesperado. Foi Antoine, um dos rapazes que os acompanhou no passeio, neto de Madame Margaux, que levantou o assunto.

– Vocês sabiam que a rainha Paralda em pessoa deu um presente para Philippe?

Exclamações e ares de espanto tomaram a mesa como uma onda, enquanto todas as cabeças se voltavam para o rapaz. A partir daí, muitas perguntas choveram sobre ele, que não esperava tamanha comoção. Achou que era algo razoavelmente comum. Aparentemente, não era.

– Precisamos ver esse arco em ação! – determinou Madame Margaux.

Ordens rápidas foram dadas a criados e todos aguardaram ansiosos o fim do almoço. Assim que a sobremesa foi servida, um delicioso manjar branco com calda de frutas vermelhas, trouxinhas de ovos e filhós, alguém teve a ideia de apostar, e logo a mesa se transformou numa grande jogatina. O melhor arqueiro do Château dos Damascos foi chamado a competir com Philippe e seu arco do mundo das fadas. O rapaz continuou tranquilo, comendo seu manjar, enquanto os valores cresciam nas apostas.

 


Alvos foram colocados em árvores a certas distâncias. Uma a dez metros, outra a 20 e outra a mais de 30. Eram círculos coloridos em madeira que perdiam visibilidade vez ou outra por conta de um galho de árvore. O oponente de Philippe era Jean-Luc Bernasse, um homem alto de rosto fino e barba bem feita. Tinha os olhos negros sempre semicerrados e um sorriso estranho no rosto, o sorriso de quem tem certeza o tempo todo. Os dois arqueiros se cumprimentaram com um aperto de mãos e se posicionaram. Mais de cem pessoas observavam ansiosas ao redor. Philippe não sabia quantos tinham apostado nele, ou quem. Não parecia se importar com isso.

O primeiro alvo foi ridículo para os dois concorrentes. Ambos acertaram em cheio. No segundo, Bernasse acertou o primeiro círculo depois do alvo central. Philippe acertara mais uma vez na mosca. O terceiro alvo, o mais distante, o mais encoberto, o mais difícil, decidiria a questão. Philippe deu a vez para Bernasse. Com o arco escuro retesado e o suor a escorrer-lhe pela têmpora, Bernasse se concentrou longamente até que sua flecha voou pelo ar.

Longe demais para que as pessoas pudessem ver, ninguém pôde comemorar. Philippe retesou seu arco e concentrou-se por alguns segundos, até soltar a flecha com rosto sério. Um garotinho de cabelos ruivos arrepiados correu até o alvo e o trouxe para a plateia ansiosa.

A flecha de Bernasse se fincou a três círculos de distância do alvo, mas a de Philippe estava bem no centro.

Aplausos e exclamações se seguiram, e Bernasse se mostrou surpreso, cumprimentando seu jovem oponente com um gesto de cabeça. A prova seguinte era com alvos móveis. Lobos como eles, independente do clã, jamais caçavam por diversão. Suas caças eram sempre para alimento. Logo, não haveria pássaros sendo soltos para virarem alvos, esporte típico dos humanos que o povo encantado em geral considerava idiota.

Então, flechas foram arremessadas para o céu azul sem nuvens, cada uma levando consigo uma bandeirola colorida que tremulava ao vento. Philippe tinha que acertar as bandeirolas vermelhas, enquanto Bernasse precisava acertar as azuis. Lançadas ao mesmo tempo, a competição foi acirrada, mas assim que o ritmo foi acelerado, o jovem visitante levou vantagem, ganhando a competição.

Bernasse não era mau perdedor e cumprimentou Philippe pela vitória. No meio do burburinho e dos aplausos, a voz de Ravin foi ouvida.

– Não é uma competição justa quando um dos competidores possui um arco mágico!

As pessoas fizeram silêncio e Philippe encarou Ravin que já parecia bem o bastante para voltar a ser desagradável.

– Ninguém disse que o arco era mágico! – disse Virgile.

– Bom, ele foi dado pela rainha das fadas – continuou Ravin. – Certamente, há algo de especial nele.

– Bem que eu notei que suas flechas eram rápidas demais! – exclamou alguém, logo seguido por outros.

Philippe entregou o arco à Prateada que estava ao seu lado e pegou emprestado um arco de um dos rapazes que lançava as flechas com bandeirinhas. Achou que o arco de Bernasse seria de melhor qualidade, mas também achou que seria uma tremenda grosseria fazer o que ia fazer com o arco de seu oponente, ainda mais quando este se mostrou um cavalheiro com ele.

Deu um sinal com a cabeça para os rapazes das flechas com bandeiras. Agora que pegara o arco de um deles, eram cinco, e eles pareceram entender que o sinal era para todos eles. Em segundos, o céu foi pintado de bandeirolas vermelhas e azuis, e cada uma delas foi sendo alvejada por uma série de flechas de Philippe, que as lançava como se não fizesse o mínimo esforço para sequer saber onde elas deveriam parar, acertando uma a uma.

Assim que terminou, entregou o arco para o jovenzinho boquiaberto e Prateada lhe entregou seu arco. Olhou brevemente para Ravin pouco antes de ser novamente alvo de cumprimentos, aplausos e tapinhas amigáveis nas costas.

 


O dia passou rápido com tantas atividades e atenção. Diderot liberou Bergére, Buffon e Eddard para se divertirem na taberna, o que eles fizeram com prazer depois de ganharem algum dinheiro apostando em Philippe. Diderot sabia que Philippe era bom com arco e flecha, pois já tinha notado esse talento quando o ensinara a lutar com espadas. O rapaz lhe explicara que, por vezes, frutas e legumes não eram o bastante para matar sua fome, então ele usava um velho arco que ganhara de Bianchon, o velho senhor que o abrigara em uma época e lhe ensinara a pastorear e a usar o arco e flecha para caçar pequenos animais. A caça não era algo que agradava Philippe, pois gostava dos animais em geral. Porém, a fome também não lhe agradava muito e quando ela apertava, usava o velho arco para caçar peixes, perdizes ou patos selvagens. Diderot apostou que ele se sairia bem. Seus homens fizeram o mesmo. E todos agora tinham razões para comemorar.

Depois da ceia, Philippe e Prateada se refugiaram no jardim, fugindo um pouco da enorme família de Madame Margaux que nunca parava de fazer perguntas. O jardim era um pedaço de um sonho. Suas flores e vegetação eram bem cuidados e tinha alguns bancos de madeira espalhados, pontuando de branco o verde e o dourado aquele cenário surreal. Em um ponto cercado por flores da noite, um carrossel sem cavalos feito em madeira branca era apenas um brinquedo bobo que girava para crianças ficarem tontas e caírem rindo.

Sem ligar se era para crianças ou não, Prateada se divertia girando nele, os cabelos ao vento, as risadas subindo ao céu estrelado. Philippe girava com ela, divertindo-se também, até que parou o brinquedo com os pés, devagar para não derrubar a moça.

– Por que parou?

– Porque não quero que você vomite em cima de mim.

– Que bobagem! Eu estou ótima!

Ela saiu do brinquedo para provar seu ponto, mas não foi uma boa ideia. O mundo girou e ela deu vários passos desencontrados para ambos os lados. Philippe tentou segurá-la e sentiu-se bastante estúpido quando percebeu que estava tão tonto quanto ela. Rindo, conseguiram se tocar levemente antes de caírem ambos no chão, onde continuaram rindo até que suas barrigas doessem. Quando o mundo começou a parar de girar, alguém apareceu em seu campo de visão.

– Vocês estão bêbados? – perguntou o Capitão.

– Não – respondeu Prateada. – Só tontos!

Levantaram-se com certa dificuldade e se sentaram novamente no brinquedo, mantendo-o parado dessa vez.

– Diderot, eu queria perguntar uma coisa! – disse Prateada.

O Capitão sentou-se num velho tronco caído e aguardou.

– Todo mundo pareceu bastante surpreso com o presente de Paralda para Philippe. Por quê?

– É verdade! – comentou Philippe. – Achei que as pessoas no Château das Vertentes ficaram surpresas por que eu não sou um puro como eles. Mas as pessoas daqui não sabem disso!

O Capitão riu. Era surpreendente o quanto aqueles dois não sabiam de nada.

– As fadas e o povo pequeno têm uma relação especial conosco. Por vezes, eles nos dão presentes. Mas, a maioria são dons, talentos especiais, pequenos favores, coisas assim. Mesmo isso já é muito raro. Agora, é muito mais raro quando eles dão algo físico, como seu arco.

– Você já viu acontecer? – perguntou Philippe, tentando mensurar o quão especial tinha sido seu presente, embora isso fosse um bocado difícil.

– Bom... – o Capitão olhou para as estrelas, procurando nelas as lembranças. – Dons foram dados ao Duque, a mim, a Bergére e a algumas pessoas do château das quais não me recordo agora. Presente físico, só me lembro de uma pessoa antes de você que foi digna de receber.

– Quem? – perguntou curiosa Prateada.

– O presente foi o pó da Caledônia, um pó que misturado com água vira um creme que acelera a cura de todo tipo de ferimento.

– Você usa isso o tempo todo em mim! – lembrou Philippe. – Foi você que ganhou o presente!

– Sim, você está acabando com meu estoque, e não, não fui eu quem ganhou o presente. Foi Emily!

– Uau! – foi o que conseguiu dizer Prateada.

– Os gnomos têm um especial apreço por ela – continuou Diderot, com olhos nitidamente cheios de saudade daquela que é seu lar. – Ela está sempre conversando com eles e eles sempre a visitam. Não se preocupe com o pó. Eles sempre trazem mais para ela.

Diderot voltou a olhar para as estrelas, sentindo uma súbita vontade de estar nos braços de Emily de novo.

– Sente falta dela, não é? – perguntou Prateada.

– Sinto, sim... Você sabe, lobos ficam com um único parceiro para toda vida. Alguns nunca encontram seu par e vivem uma vida solitária. Mas quando um lobo encontra o amor de sua vida, fará tudo para ficarem juntos, porque quando estão separados, a tristeza é uma dor profunda e eles morrem um pouco a cada dia.

Prateada e Philippe se olharam. Um sorriso os uniu, enquanto Diderot ainda via o sorriso da esposa nas estrelas no céu escuro.

 


Capítulo 16


A História do Rei Pares

 

Em um lugar novo, com tantas pessoas requerendo sua atenção, a semana passou muito rápido. No dia seguinte partiriam para o Château das Pérolas, e Prateada e Philippe passeavam calmamente no jardim, num raro momento a sós. Em algumas horas, teriam a ceia, e então, depois de conversas animadas e uma apresentação de música, iriam para suas camas com o sentimento de que não veriam uma cama por mais uma semana.

– Não tenho visto Ravin por aí... – comentou Prateada.

– Graças a Deus! – exclamou Philippe.

– Sabe... Às vezes eu fico pensando que talvez Ravin poderia ser mandado para bem longe! Como rainha, poderei fazer isso, não poderei? Mandá-lo para a China! Me disseram que a China é bem longe.

Philippe riu, divertindo-se com a ideia.

– Qualquer lugar em que ele esteja já é perto demais pra mim... – comentou.

De repente, Prateada se inclinou para ele com olhos marotos e um sorriso arteiro.

– Sinto falta do seu beijo!

Philippe olhou imediatamente em volta, quase em pânico.

– Prateada! O que nós conversamos?! Aqui não é seguro!

Prateada fez o bico que sempre fazia quando era contrariada, mas obedeceu.

– Por quanto tempo vamos ter que esconder isso? – perguntou ela.

– Faz menos de uma semana! – surpreendeu-se Philippe.

E enquanto ele explicava para ela novamente as implicações de serem pegos em um flagrante difícil – quase impossível – de explicar, outra conversa se dava na varanda do segundo andar do castelo, onde Madame Margaux e o Duque Jean Lamayer os observavam.

– Esse rapaz é uma graça, Jean!... – disse a senhora de cabelos prateados pelo tempo. – Onde o encontrou?

– Já lhe disse, é um órfão do château.

– Quem eram seus pais?

– Ninguém que madame conheça. Vi sua neta Blanche, ela está muito bonita!

Madame olhou de rabo de olho para o Duque, percebendo o quanto ele queria fugir daquela conversa.

– Sim, Blanche está crescendo. Faz 14 anos na próxima estação. O rapaz está disponível?

– Como?

– O órfão! Como disse, ele é encantador, esbanja vida, é educado e muito bonito. Todas as moças do castelo estão em polvorosa com ele e Blanche acha que está apaixonada. Talvez pudesse deixá-lo aqui conosco por um tempo...

Prateada riu, uma daquelas gargalhadas altas em que ela joga a cabeleira para trás sem nem tentar esconder os dentes brancos, como se lançasse seu riso ao céu. Certamente, foi algo que Philippe falara, mas ele apenas ria discretamente, olhando em volta para se certificar se ninguém o tinha ouvido.

– Nem imagina como sua proposta é tentadora, Madame Margaux... – suspirou o Duque, que bem que gostaria de se livrar daquele menino. – Mas Prateada é muito afeiçoada a ele.

– Andam muito juntos esses dois, não?

– São muito unidos, quase como irmãos.

Madame Margaux apertou os olhos que ainda viam longe e observou os dois jovens por alguns segundos. Então, virou-se novamente para o Duque com um sorriso.

– Como irmãos, Jean?...

O Duque balançou a cabeça rapidamente quando percebeu o que Madame queria dizer.

– De jeito nenhum algo assim aconteceria, Madame Margaux! Prateada não pensa nessas coisas e eu mandaria esse garoto para o outro lado do mundo antes que isso acontecesse!

– Calma, rapaz! – acalmou-o a senhora. – Foi só uma brincadeira!

O Duque respirou fundo, refazendo-se. Recostaram-se na murada de pedras do castelo enquanto os dois jovens se afastavam lentamente como aquela tarde preguiçosa.

– Fico feliz que tenha perdoado Pelouse...

O Duque olhou perplexo para Madame Margaux. Ela sorriu para ele.

– Cuidar do filho dele é uma forma bonita de perdão.

– Como... Quem... Como sabe que é o filho de Pelouse? – acabou perguntando Lamayer, desistindo de tentar enganar aquela mulher que parecia ver através de tudo e de todos. Talvez ela tivesse recebido algum dom das fadas, mas o fato é que ela era apenas muito observadora, como são todas as velhas senhoras que viram muito da vida.

– Demorei para perceber o que me era tão familiar nele! – explicou Margaux. – Até que notei duas coisas: o andar e o riso. Ele ri e anda igualzinho ao pai! Não me diga que nunca percebeu isso!

Lamayer não respondeu. Philippe não ria com frequência em sua presença. E de fato procurava não prestar muita atenção nele. Mas naquela noite em que chegara bêbado da festa dos ciganos, aí sim reconheceu Pelouse e toda sua inconsequência.

– Pois saiba que vou apoiar Prateada no Conselho!

A voz de Madame Margaux interrompeu suas memórias daquela noite e de outras noites muitos anos antes, pontuadas por inconsequências de Pelouse.

– Como?

– Vou apoiar a mocinha! Ela me parece muito genuína, e acredito que será uma ótima rainha.

Madame Margaux achou que o Duque ficaria feliz, mas ele continuou olhando para ela como se não fosse merecedor da boa notícia.

– Não perdoei Pelouse... – disse por fim. – Eu adoraria que apoiasse Prateada. Também acredito que ela será uma boa rainha. Mas não quero que faça isso baseada numa falsa ideia sobre mim. Não, eu não perdoei Pelouse. Não acredito que um dia irei perdoá-lo. Philippe é... um problema com o qual eu convivo, só isso. E eu só o faço por Prateada.

Madame Margaux tinha os olhos cinzentos e brilhantes e as turquesas em seu colar pareciam acentuar esse brilho e dar um tom de azul ao cinza. Ela pareceu decepcionada. Colocou a mão no rosto do homem, como fazia quando ele era apenas uma criança.

– Que pena, Jean... Espero que esteja errado, e que um dia possa perdoar Pelouse...

– Ele não merece!

Ela sorriu.

– Não é por ele, meu querido. É por você!...

 


A ceia estava animada como sempre, com os convidados sendo presenteados por boa música com flautas, um cravo e violinos. Ravin, que fora pouco visto durante essa semana, havia finalmente se recuperado e parecia saudável de novo. Quando a carne estava sendo servida, a conversa de alguma maneira que ninguém soube explicar se direcionou para os vários mestiços que continuavam aparecendo nos châteaus ou sendo perseguidos pela Igreja e pelo povo nas cidades dos homens.

O tema trouxe uma ligeira tensão no ar, mas ninguém pareceu perceber. Alguns dos homens na mesa elucubraram sobre a falsa moral que assolava os Lobos de todos os clãs, pois era fato que o amor não seguia essas tolas regras que eles tentavam impor.

– Lobos e Lobas vão continuar se apaixonando por humanos e gerando filhos! – disse Alerdein, um homem de meia idade bem conservado e de voz macia. – Talvez seja hora de revermos essas leis que excluem essas crianças logo!

– Mas como poderíamos confiar em criaturas que não estão nem lá nem cá? – perguntou uma senhora de cabelos exageradamente vermelhos. – Tendo sangue humano, podem facilmente nos trair ou vender a localização de uma de nossas cidades para sua raça!

– Sem falar do quanto são fracos e do quanto enfraquecem toda a nossa raça! – acrescentou Ravin, olhando de soslaio para Philippe.

– Pares!

A voz de Madame Margaux soou alta e súbita, como um bater de palmas, fazendo com que todos olhassem para ela e parassem de falar.

– Pares! – repetiu ela. – Todos se lembram da história do Rei Pares? Ele foi um dos nossos melhores reis! Conseguiu evitar confrontos entre clãs diferentes, evitando assim milhares de mortes. E sempre foi sábio ao decidir as contendas. Todos devem se lembrar de como foi difícil para ele e como foi um choque para toda a sociedade dos Lobos de todos os clãs quando ele assumiu publicamente amar uma mestiça.

Prateada arregalou os olhos, interessando-se pela história.

– Sim, pouca gente fala disso hoje em dia, mas ele amou profundamente uma mestiça e enfrentou todos, mantendo sua decisão de se casar com ela.

– E eles se casaram? – perguntou Prateada, os lábios entreabertos esperando a resposta.

– Sim, minha querida! Eles se casaram! E foi uma belíssima festa! Como eu disse, o rei Pares era muito sábio e foi muito amado. No final das contas, todos perceberam como esse preconceito era idiota. Lara, a mestiça, se tornou rainha, e fez muitas coisas boas pelos clãs.

A sobremesa foi servida e a conversa logo mudou de rumo novamente. Prateada e Philippe pouco falaram depois, quando um grupo de dançarinas encerrou a noite com uma bela apresentação com uma dança com fogo e espadas inspirada nas distantes terras do Oriente.

 


Quando a dança acabou, as pessoas voltaram a conversar. Philippe foi requisitado por uma adolescente de sardas chamada Blanche, que queria muito, muito, muito uma dança com ele. Prateada tentou se afastar um pouco, procurando um pouco de silêncio. Queria pensar no que Madame Margaux falara, mas não conseguia pensar com tanta agitação. Na varanda, a brisa refrescou seu rosto e ela olhou para o horizonte, uma massa negra onde não se sabia mais o que era terra e o que era céu. Então era possível viver abertamente seu amor com Philippe? Talvez estivessem se escondendo à toa! Talvez, pudessem afinal contar a verdade!

– Está pensando na história do rei Pares?

Prateada se virou rapidamente, reconhecendo a voz e sentindo os pelos do corpo se eriçarem. Ravin se aproximou em passos lentos e num sorriso que o fazia parecer inofensivo, coisa que ela sabia que não era verdade.

– O que você quer? – perguntou rispidamente Prateada.

– Nada! Só imaginei que você gostaria de saber como a história termina.

Prateada tinha um fraco por histórias. Ainda mais essa! Arregalou os olhos como um cão que vê um naco de carne sendo oferecido para ele. Ravin sorriu, vendo que a isca tinha sido mordida. Encostou-se na murada e contou a história.


Depois da dança com Blanche e mais alguma conversa com algumas senhoras do castelo, Philippe deu por falta de Prateada e começou a procurá-la. A festa estava no fim e ele aproveitou para se despedir. Alguém disse ter visto Prateada correr apressada em direção das acomodações e ele seguiu direto para o quarto da moça.

Encontrou-a sentada na cama, o rosto inchado de tanto chorar, os olhos vermelhos e as lágrimas descendo abundantemente por suas faces e caindo sobre seu pescoço e seu vestido.

– Prateada! O que aconteceu! – ele correu e sentou-se ao lado dela, tocando seu rosto.

– Ele disse que nunca poderemos ficar juntos! Que se eu insistir, farão muito mal a você, como fizeram com Lara! – ela soluçava e algumas coisas não estavam fazendo nenhum sentido para ele. – O rei Pares matou a esposa! Não aguentou a culpa, e se matou também!

– O quê?! Prateada, pare! Quem disse tudo isso pra você?

– Ravin! Ele contou o resto da história do rei Pares... E disse que você só está aqui porque é um refém, que caso eu não me comporte, o Duque vai machucar você! E que...

– Pare, Prateada, não fale mais nada! – disse ele, pegando o rosto dela e obrigando-a a olhar diretamente para ele. – Não acredite em Ravin! Ele é uma cobra venenosa e, como toda cobra, tem um veneno poderoso! Não engula esse veneno, Prateada! Não ouça as palavras dele.

– Mas...

– Não tem mas! Você confia mais nele ou em mim?

– Em você, claro!

– Então... – Philippe pegou um lenço de seda e começou a secar o rosto da moça com carinho. – Não precisa se preocupar. Ninguém vai me machucar, não sou refém, e tenho certeza de que a história do rei Pares tem mais informação do que as que Ravin lhe passou. Procurarei saber e contarei para você depois, está bem?

A moça anuiu com a cabeça, o choro já controlado, os soluços mais esporádicos. Philippe a fez se deitar e a cobriu, falando palavras confortadoras. Afagou-lhe os cabelos até que ela dormisse. Quando isso aconteceu, beijou-lhe a testa suavemente e cobriu-a com o cobertor.


Ravin estava em seu quarto. Pegou uma taça de vinho, achando que merecia uma comemoração. Não conseguiu tirar o sorriso do rosto, sorriso que virava um riso de vitória quando se lembrava da cara de Prateada ao ouvir o que ele lhe dizia. Vê-la correndo como um cãozinho assustado foi com certeza seu ponto alto da viagem e, considerando sua semana terrível, bem que estava precisando de uma diversão.

A porta do seu quarto não estava trancada e ela se abriu de repente, com violência. Philippe entrou como uma ventania, surpreendendo Ravin que não teve tempo de perguntar o que aquele mestiço sujo fazia ali.

Na primeira palavra que emitiu, Philippe já estava em cima dele, o antebraço empurrando seu pescoço contra a parede mais próxima. A caneca de vinho estatelou-se no chão e algumas coisas caíram quando Ravin foi empurrado numa única direção. Totalmente imobilizado e cara a cara com seu pior inimigo, o ar faltando com o outro a apertar-lhe o pescoço com o antebraço, Ravin não teve reação.

– Você ficou louco?! – foi o que conseguiu dizer.

Philippe estava furioso, os olhos violetas brilhando, o rosto duro como pedra.

– Nunca mais fale com Prateada!

– O-O quê?

Philippe apertou ainda mais o pescoço do outro.

– Você acha que pode me ferir, mas a verdade é que não pode! Então, como um bom covarde, tentou ferir Prateada com suas palavras venenosas! Você não vai mais falar com ela, não vai mais aterrorizá-la nem colocar medo na cabeça dela! Se falar com ela de novo, eu juro que te arrebento, Ravin!

Num golpe violento, Philippe puxou Ravin pela gola e o empurrou sobre uma mesa que não o sustentou e virou, fazendo um grande estardalhaço.

– Você vai pagar por isso!... – rosnou Ravin no chão, ainda atônito com o ataque inesperado.

– Fique longe dela! – avisou Philippe, apontando-lhe o dedo. – Não vou permitir que você estrague a vida de Prateada. Já basta saber que você vai estragar a vida de Celine...

E então ele saiu do quarto. Ravin se levantou, sentindo a perplexidade dar lugar a uma fúria incontida. Deveria ir atrás do mestiço e fazê-lo lembrar quem era ele. Porém, não ganharia nada arrumando uma confusão àquela hora da noite, correndo o risco de enfurecer o Duque por expor a verdadeira origem do mestiço. Socou a parede e fechou a porta com um supetão.

 


No dia seguinte, nas primeiras horas de claridade, o Duque se despediu de Madame Margaux que o abraçou como um filho, desejando-lhe sorte em sua empreitada. Prateada ganhou muitos presentes, o que a deixou muito feliz. Celine ficou um pouco ressentida de tanta atenção ser dada para a outra, mas estava com sono demais para se chatear naquele momento. Ravin estava com a cara amarrada e vez por outra, seus olhos se cruzavam com os de Philippe, que se mantinha desafiador. Em poucos minutos, todos estavam acomodados. O tempo estava esfriando e Prateada se enroscou em uma manta dentro da carruagem, continuando seu sono numa cama que se movia, recostada em Constance. Celine fez o mesmo e a viagem prosseguiu em silêncio para o Château das Pérolas.

 


Capítulo 17


A estranha criatura da noite

 

Por volta das onze horas, pararam para o almoço e Prateada retomara seu gosto por falar. Falava de tudo e de todos que tinha conhecido no Château dos Damascos, enquanto também ouvia as fofocas de Celine, que sabia tudo de todo mundo, e as explicações do Capitão de do Duque.

– O que você tem?

Philippe se virou para a moça com a boca cheia de pão.

– Está calado hoje!

– Só estou com preguiça de falar, Prateada...

Celine fez a mesma pergunta para Ravin, que deu um olhar raivoso para Philippe e se afastou da pequena roda que se formara. Dessa vez, não encontraram um córrego ou lago para parar, mas sabiam, pelo mapa que encontrariam um riacho antes do Sol se pôr.

– Ótimo... – murmurou o Duque. – Um riacho é melhor que um lago.

– Por quê? – perguntou curiosa Prateada.

– Porque mortos não atravessam água corrente – respondeu Lamayer, sem pensar muito.

Prateada engoliu em seco e arregalou os olhos.

– Mortos?...

– Sim, qualquer criatura que já esteja morta, mas ainda vague por aí, como fantasmas, espíritos, banshees e vampiros – explicou o Duque, concentrado em um mapa que tinha nas mãos, enquanto comia um pedaço de carne seca e salgada.

– Tem essas coisas por aí? – Prateada se virou para Constance e para o Capitão. – Ninguém me disse que tem essas coisas por aí! Eu não quero encontrar essas coisas!

– Calma, menina! – acalmou-a Constance. – É apenas precaução. Não quer dizer que vamos encontrar qualquer um desses... seres por aí!

– É verdade? – perguntou Prateada para o Duque, que finalmente olhava para ela e percebia que a menina estava um pouco apavorada com a iminência de encontrar mortos no caminho.

– Sim, Prateada, é verdade... Não acredito que encontremos qualquer uma dessas criaturas, mas, em todo caso, é bom termos um riacho por perto. É só ficarmos numa parte rasa, pois criaturas mortas não atravessam água corrente. Se atacarem, podemos simplesmente atravessar para o outro lado.

Prateada ficou parada pensando, até que Philippe lhe deu um pedaço de bolo.

– Fique tranquila, Prateada! – disse ele, com um sorriso confiante. – Não deixaremos que nenhuma criatura pegue você!

A menina sorriu e aceitou o bolo, comendo e espalhando alguns farelos no vestido.


Antes de retornarem à carruagem, Celine foi ter com Ravin. Estava começando a ficar chateada com o constante mau humor do noivo.

– Qual é o seu problema?! – perguntou ela num sussurro, longe dos outros.

Ravin pensou em dizer como o mestiço o afrontara na noite anterior, invadira seu quarto e ainda o agredira. Mas aí teria que explicar porque ele fizera isso e ainda admitir que simplesmente ficara sem ação, ou temera começar uma briga sem seus reforços habituais. Terminou por dizer que não dormira direito.

Celine não engoliu bem a desculpa, mas foi a única que ele deu. Retomaram o caminho e Prateada pediu para ir a cavalo. Com ordens do Duque, Ravin mais uma vez cedeu seu lugar no cavalo e assumiu um lugar na carruagem, junto com o Duque, Celine e Constance.

– Sabe? – disse Prateada em certo momento. – Eu não acredito que seu arco seja um simples arco! A rainha do mundo das fadas não ia se dar ao trabalho de colocar meia e sapato, pentear o cabelo, colocar os brincos e vir lá da dimensão dela só para lhe dar um arco igualzinho a qualquer um que você mesmo poderia fazer!

– Ela tem um ponto, Philippe – concordou o Capitão.

– Bom, pode ser... – disse Philippe. – Mas até agora não consegui fazer com que ele se revele para mim...

– É só se lembrar do que a rainha falou – disse o Capitão. – O que ela disse mesmo? Algo sobre nuvens e árvores?

– Sim, que elas seriam minhas aliadas!

– Pode ser que ele lhe dê uma maior proteção, como um talismã – chutou o Capitão.

Antes que Philippe respondesse, Prateada já tinha mudado de assunto e perguntava sobre o próximo château, o Château das Pérolas. Tal nome instigava a imaginação. Na cabeça de Prateada, se o Château dos Damascos, que teve seu nome inspirado em uma simples fruta, já era lindo e acolhedor, o que diria um château que tinha seu nome inspirado em delicadas pedras preciosas.

Eddard ia na retaguarda e Philippe não pôde ver a expressão dele, ou mesmo se ouvira a conversa. Mas viu perfeitamente a expressão de Bergére, homem corpulento e alto que os acompanhava indo a frente da carruagem. Ele olhou para o Capitão como se esperasse também o que ele iria responder. Diderot repuxou o lábio.

– O Château das Pérolas pode não ser bem o que vocês estão esperando...

– Como assim? – perguntou Philippe.

Diderot só estivera no Château das Pérolas uma única vez, e o foi o bastante para nunca mais querer colocar os pés lá, meta que conseguira alcançar... até agora. Não sabia bem como preparar os dois jovens para o que iam encontrar.

– Lá não é como o Château de Madame Margaux... – disse. – As pessoas são rudes e podem até ser meio cruéis. Não se afastem de nós enquanto estiverem lá. Só ficaremos alguns dias de qualquer forma...

– Se é um lugar ruim, por que vamos para lá? – perguntou Prateada.

– Porque às vezes nos mandam para lugares ruins, Prateada... – respondeu sorrindo Diderot. – E às vezes nós temos que obedecer...

A tarde passou morosamente com rápidas paradas para esticar as pernas ou alívios nos arbustos próximos. Era um daqueles dias em que todos parecem naturalmente dispersos, como se estivessem num dia especialmente quente de verão, o que não era verdade. O clima estava fresco, mas as conversas seguiam o ritmo de um dia muito quente. Lentas e sem continuidade, muitas vezes morriam por falta de alimento e por excessos de concordâncias vazias.

Quando finalmente alcançaram o riacho, aproveitaram os últimos raios de sol para montar o acampamento, e recolher lenha e gravetos para a fogueira, enquanto Eddard e Buffon caçavam alguns animais para o jantar. Quando o sol se despediu, já estavam comendo pedaços de coelho assado na brasa e peixes que Philippe caçara com seu arco.

O Duque, sempre muito discreto, deixou escapar que detestava o Château das Pérolas, o que suscitou algumas conversas sobre o Duque de Sarrazin, o senhor daquelas terras. Homem bruto, pouco dado a cortesias e muito grosseiro, já se envolvera em um sem-número de brigas e confusões. As histórias sobre seu comportamento bélico deram o tom daquela conversa, que acabou se animando enquanto o fogo crepitava e levantava faíscas quando Philippe o remexeu com um pedaço de pau.

– Que cheiro é esse? – perguntou Prateada, levantando a cabeça.

Antes que alguém pudesse responder, um animal enorme saltou bem no meio deles, ignorando o fogo e derrubando a carne que ainda estava nos espetos. Por instinto, todos saltaram para o mais longe que podiam, enquanto tentavam entender o que era aquilo.

– Um lobisomem! – gritou o Duque, puxando a espada. – Ataquem para matar!

Ravin, Diderot e os soldados imediatamente pegaram suas armas, cercando a criatura, enquanto Philippe tirava Celine, Prateada e Constance da área da luta. A surpresa que paralisara todos por alguns segundos era perfeitamente justificável. A fera que estava diante deles mostrava as presas afiadas e ameaçadoras, os olhos brilhando como se fossem lanternas acesas no inferno. O Duque dera o aviso de que era um lobisomem, um humano transformado ao ser mordido por um Lobo puro ou outro lobisomem. Criaturas assim raramente possuíam raciocínio quando se transformavam na Lua cheia, tornando-se feras violentas que matavam qualquer coisa, até mesmo parentes e amigos, sem se lembrar de nada depois. O problema é que aquele lobisomem era muito maior que um deles quando transformado, com pelos ásperos que pareciam espinhos e o corpo ligeiramente deformado.

A criatura pisou com todo o seu peso, estremecendo o chão, e rosnou, abrindo a bocarra e exibindo mais fileiras de dentes do que era possível. E então, a coisa saltou e atacou Diderot. Não pareceu nada pessoal, mas simplesmente a escolha mais fácil, pois este era o que estava bem na sua frente. O Capitão girou sua espada e cortou o focinho da criatura, que ficou ainda mais furiosa. Nesse momento, Bergére e Buffon atacaram pelos flancos, ferindo a criatura nas patas traseiras, visando desequilibrá-la. Ravin e Eddard atacaram o corpo, tentando feri-la mortalmente. O Duque se preparou, mas não atacou. Ao invés disso, observou. E o que ele viu não foi nada bom.

Todos os homens que atacaram usaram sua máxima força nos golpes. Mesmo assim, o resultado foram meros arranhões na couraça dura do animal. O Duque olhou rapidamente para o céu e confirmou o que temia. Estavam na Lua Negra, onde ela não era vista no céu. Eles não poderiam se transformar em feras, e suas formas lupinas não ajudariam muito. Se eles não podiam se transformar, aquela coisa diante deles também não poderia. Então, fosse o que fosse aquilo, não era um lobisomem comum. Era alguma outra coisa. Uma coisa bem ruim.

– Ataquem! – ordenou o Capitão.

A criatura virou-se para a sua direita e abocanhou Eddard, sacudindo-o no ar como um boneco de pano. O Duque se juntou aos homens que davam golpes no animal, enquanto os gritos de Eddard se misturava aos rosnados furiosos. Irritada, a criatura o jogou a metros de distância, voltando sua atenção aos seus oponentes. Com duas patadas, derrubou o Capitão, que bateu numa árvore com a mão no peito sangrando, e Ravin, que rolou para longe. Quando se virou para o Duque, não esperava receber um golpe de espada no pescoço. O sangue dessa vez foi mais abundante, e a ira da criatura se voltou contra aquele que a feriu.

Buffon e Bergére continuavam tentando ferir a criatura, mas suas espadas pareciam ferrões de mosquito naquela couraça incrivelmente resistente. O lobisomem avançou contra o Duque, derrubando-o no chão. Então, ergueu-se nas duas patas traseiras e preparou seu golpe fatal.

Flechas amareladas com penas brancas acertaram o peito da criatura. Pela resistência que a couraça demonstrou, não deveriam surtir grande efeito, mas surtiram. A criatura deu dois passos para trás, confusa, e tirou com as patas as três flechas que se cravaram no peito. Quando conseguiu, jogou-as longe, já quebradas, urrando de dor, o peito coberto de sangue.

Enquanto ela fazia isso, Lamayer se surpreendeu ao ver Philippe ao seu lado, ajudando-o a se levantar e a se afastar do perigo. Numa nova onda de fúria, a criatura correu pelo acampamento, derrubando Buffon e Bergére. Ravin ainda se levantava quando viu a coisa correndo através da fogueira, levantando fagulhas para o céu e saltando em sua direção. Foi quando percebeu que ela não o queria, pois estava dando a volta e retornando para seu alvo principal.

O Duque pegou a espada e se preparou, desistindo de fugir. Philippe lançou mais três flechas tão rápido que achou que era algum tipo de magia, mas dessa vez a criatura estava preparada e usou as patas para desviar as flechas. Quando ela já estava saltando em cima dos dois, um vulto branco a acertou em cheio, retirando-a do percurso e derrubando-a no chão.

– Prateada!!! – os dois homens gritaram ao mesmo tempo, preocupados em ser uma briga que ela talvez não pudesse ganhar.

As duas criaturas rolaram vários metros numa luta feroz, com mordidas e arranhões. Vendo os dois juntos, eles se apavoraram ao ver que a criatura ainda era maior e mais forte que Prateada, que já era maior que a grande maioria deles. Suas garras pareciam de metal e se enfiavam na pele de Prateada, manchando a pelagem branca de vermelho.

Philippe armou o arco, mas não conseguia atirar, pois as duas criaturas lutavam se embolando no chão, e ele corria o sério risco de atingi-la. Os outros não podiam se aproximar, dada a violência da briga.

Prateada ganiu e finalmente foi imprensada no chão, enquanto a criatura mordia seu pescoço. Foi a chance que Philippe precisava. Aproximando-se, atirou uma sequência de flechas, acertando novamente a criatura e impingindo-lhe uma terrível dor. O lobisomem ergueu a cabeça urrando, momento em que o Duque aproveitou para fincar sua espada em seu pescoço. Pela primeira vez, o animal pareceu sentir seriamente os golpes, e começou a babar sangue.

Prateada arriscou seu último golpe, invertendo as posições. Agora, ela estava por cima e antes que seu oponente pudesse reagir, fincou os dentes em seu pescoço e apertou. A criatura se debateu, arranhando suas costas com as garras afiadas, até que finalmente seus movimentos foram diminuindo até cederem à inércia da morte.


Prateada só o soltou quando teve certeza de que estava morto. Então caiu para trás, voltando a sua forma humana, arrastando-se nua e sangrando pelo chão de terra. Philippe correu até ela e a cobriu com seu manto, abraçando-a, o coração saltando em ver tanto sangue.

– Prateada! Você está bem?

A moça abriu os olhos e piscou várias vezes, o sangue do inimigo escorrendo pela boca e pelo pescoço. Ela entreabriu os lábios e respondeu:

– Não.

Então riu. Philippe respirou aliviado. Se ela podia fazer piadas, mesmo que ruins, é porque não estava tão mal. Abraçou-a com cuidado, enquanto os outros se reuniam em volta da criatura que, finalmente alcançada pela morte, assumia sua forma original.

Um homem nu e magro jazia na terra, o pescoço dilacerado, os olhos esbugalhados mirando o céu negro pontilhado de estrelas.

– Isso não é um lobisomem comum... – disse o Duque. – Que tipo de lobisomem ignora o fogo, se transforma fora da Lua cheia e consegue alcançar esse tamanho?

– Ele parece mais deformado... E muito mais resistente... – disse o Capitão, sentindo as dores no peito.

– O que é isso? – perguntou Ravin.

Ele apontou para uma marca na testa do homem, feita com um ferro de marcar. Ela fazia uma cruz, símbolo da Igreja que agora comandava o mundo dos homens. Viviam em trégua há muito tempo com o clero e, sinceramente, não tinham a menor ideia do que aquilo tudo queria dizer.

 


Capítulo 18


O Château das Pérolas

 

Seria improvável que alguém conseguisse dormir naquela noite. Mas algumas horas depois, quando seus ferimentos já tinham sido tratados, Prateada não resistiu e se entregou a um sono cansado, sob a atenta supervisão de Philippe. Dos feridos, Eddard e Prateada foram os piores. O Capitão estancou o sangramento da garra que lhe cortou o peito com relativa facilidade. Ravin teve alguns arranhões e nada mais. Eddard tinha ferimentos sérios no abdômen e deslocara o ombro quando fora jogado pela fera. O ombro foi para o lugar a custa de um movimento brusco e muita dor. Quanto ao resto, fizeram o que podiam e agora aguardavam.

O estado de Prateada foi assustador no começo. Sangue escorria abundantemente de suas costas, ombro e pescoço. Felizmente, assim que limparam os ferimentos com a água do riacho, conseguiram identificar as marcas dos dentes e garras que a atingiram. O famoso pó da Caledônia estava mais uma vez lá para salvar a situação.

Apesar do estrago que o desconhecido fizera, o Duque achou de bom tom enterrá-lo.

– Pra quê? – perguntou Ravin. – Não lhe devemos nada. Que apodreça!

– Humanos não se transformam em lobisomens porque querem, Ravin, e você sabe disso. Esse homem não foi responsável e puni-lo seria como punir a arma, ao invés de punir quem atirou. Buffon, Bergére, façam uma cova. Ravin, fique de olho!

Celine e Constance estavam claramente assustadas, ainda trêmulas com o terror que acabaram de presenciar. O Duque conversou com elas por alguns momentos, tranquilizando-as. Então, se dirigiu a Philippe, que vinha do riacho com mais água para Eddard e o Capitão. Assim que se deparou com Lamayer, o jovem parou.

O Duque não falou de pronto. Parecia procurar as palavras que não vinham.

– Você foi bem, menino... – foi o que acabou por dizer.

– Obrigado, senhor.

Então Philippe fez um cumprimento com a cabeça e seguiu para levar a água aos homens feridos. Assim que chegou, precisou perguntar.

– Alguém pode me dizer o que diabos foi aquilo que nos atacou?

– Não fazemos ideia, Philippe – respondeu Diderot. – Uma aberração, sem dúvida.

Diderot deu mais um pouco de água para o soldado ferido e mandou-o descansar. Agora, era deixar o pó da Caledônia fazer efeito e rezar para que ele desse conta, pois ainda estavam a dois dias do Château das Pérolas.

– Eu sei que humanos só se transformam nessas feras quando mordidos por puros, como vocês, ou outros lobisomens – disse Philippe. – Mas, o que acontece quando um de vocês é mordido por um lobisomem?

– Nada. Ao menos, nunca aconteceu nada – respondeu o Capitão. – Mas essa criatura não era um lobisomem comum...

Philippe olhou para Prateada dormindo pesadamente a pouca distância e Diderot se arrependeu de ter compartilhado seus receios.

– Não se preocupe, Philippe – disse ele, tocando no ombro do rapaz. – Nada vai acontecer. Como eu disse, deve ter sido uma dessas aberrações da natureza que ninguém explica.

Philippe voltou os olhos para a direção onde Bergére e Buffon que enterravam o desconhecido.

– Bem... – disse, com voz cansada. – Ainda bem que a aberração está morta e enterrada!...


Os homens se revezaram na vigilância do resto daquela noite e assim que o céu começou a clarear, se prepararam para partir. Os feridos mudaram a configuração da comitiva. O Duque e Ravin cederam seus lugares para Prateada e Eddard. O Capitão recusou a oferta de Celine e ignorou as ordens do Duque, alegando se sentir muito bem, pois seus ferimentos haviam sido superficiais.

A viagem seguiu, dessa vez com olhos muito mais atentos e com bem menos conversa.


Apesar da tensão, nada aconteceu naquele dia e a noite chegou sem maiores novidades. Eddard se sentia bem melhor e o Capitão estava otimista. Prateada estava bem, apesar de estar um tanto descabelada e muito pálida. Comeu bem e bebeu muita água. Dormiu aconchegada a Philippe, que estava com dificuldades para dormir depois de tudo o que vira. Prateada estava exausta e meio dolorida, gemendo baixinho de vez em quando.

– Que pena que isso aconteceu na primeira noite... – murmurou ela, os olhos semicerrados.

– Tem razão... – disse Philippe. – Se fosse no último dia da viagem, estaríamos mais perto do Château das Pérolas.

– Não é por isso. Se fosse no último dia, teríamos os outros para ver as estrelas...

Ela sorriu. Ver as estrelas era o código que eles davam aos beijos proibidos. Não deixava de fazer sentido. Philippe beijou sua a testa e lhe disse para dormir, pois ainda teriam mais um dia e uma noite de viagem e ela precisava estar descansada quando o Sol raiasse.

 


Mais um dia e uma noite se passaram, sem maiores novidades. Por terem que ir devagar, por conta dos feridos, não conseguiram chegar de manhã, mas ao fim da tarde seguinte, chegaram finalmente ao Château das Pérolas.

O Duque de Lamayer desceu do cavalo para cumprimentar o Duque de Sarrazin, um homem forte de seus sessenta anos, barba aparada e roupa pouco alinhada.

– É um prazer recebê-lo, Duque Lamayer! De fato, creio que na última vez que recebi sua visita, você ainda era um moleque remelento que parecia uma menina!

O Duque de Sarrazin deu uma grande gargalhada, e foi seguido por seus criados e pessoas que Lamayer acreditou serem do círculo mais íntimo de Sarrazin. Ignorando o comentário pouco polido, Lamayer lhe informou sobre o incidente na estrada e que tinham alguns feridos. O Duque de Sarrazin logo deu ordens para que ajudassem com as malas e com os feridos.

Philippe pegou carinhosamente Prateada de dentro da carruagem e a levou nos braços para dentro do castelo. A moça olhou em volta, vendo a construção antiga de pedras cobertas por musgo e já sendo vitimadas pelo tempo. A vegetação não tinha muito cuidado – na verdade, não tinha nenhum – e crescia aleatoriamente, com todo tipo de mato e arbusto lutando pelo seu lugar, mais ou menos como aquelas pessoas que cercavam o Duque de Sarrazin.

– Nossa! – murmurou Prateada. – Que lugar mais feio!

Philippe ficou feliz de ninguém tê-la ouvido. Ela recostou a cabeça no ombro dele e deixou-se levar para uma cama que não sacolejava.

Havia uma bela ceia preparada para os visitantes no interior do castelo, à qual Prateada não pôde comparecer por razões óbvias. Celine preferiu comer em seus aposentos, pois não se sentia muito bem. Philippe faria o mesmo, se pudesse. Sarrazin insistiu para que os homens que lutaram contra a fera estivessem presentes, pois eram claramente grandes heróis e todos queriam ouvir suas histórias. Assim, apenas Prateada, Celine e Eddard não puderam estar presentes na grande mesa de madeira.

De fato, Diderot falava sério quando disse que não deveriam esperar algo parecido com o Château dos Damascos. Ao invés da finesse e delicadeza da recepção de Madame Margaux, eles tiveram uma barulhenta refeição com muitos tipos de carne e muito vinho. Os comentários de Sarrazin eram, quase sempre, desagradáveis e constrangedores e Lamayer quase agradecia aos céus por Prateada não estar presente. Ela não seria gentil, falaria o que pensava, como sempre, e provavelmente causaria um incidente entre o Château das Vertentes e o Château das Pérolas, o que era um péssimo negócio.

Apesar do nome poético, o Château das Pérolas era essencialmente bélico. Não valorizava muito suas mulheres, relegadas ao segundo plano. Bastava olhar a mesa. Só havia homens. O Duque de Sarrazin não tinha esposa, mas tinha amantes que lhe davam muitos filhos, coisa muito mal vista por todo o Clã dos Lobos Brancos, mas que Sarrazin alardeava aos quatro ventos com muito orgulho.

– E quem é o garoto, Lamayer? – perguntou Sarrazin, com a boca cheia de carne e um pernil na mão. – Por acaso é um filho bastardo seu?

– Não, Sarrazin. Philippe Du Noige é um órfão. Foi ele quem criou Prateada quando ela era um filhote de lobo branco.

– Parece muito delicado para um homem! Tem cílios de mulher!

E então deu uma grande gargalhada, batendo na mesa, gesto seguido por todos. Havia um homem que parecia bem íntimo de Sarrazin. Pelas roupas, Philippe deduziu que devia ser o capitão da guarda deles. Descobriu logo que seu nome era Barbaroux, e de fato era o capitão e braço direito de Sarrazin. Era um homem grande, pouco alinhado e nada elegante, com um tapa-olho e uma cicatriz na face que ele exibia com orgulho. Outros homens da mesa eram guerreiros, entre filhos e netos de Sarrazin.

A noite prosseguiu com muito barulho, archotes e velas tremulando nas paredes de pedra, um bêbado que caiu da cadeira e dormiu ali mesmo e uma briga que ninguém sabe por que começou.

Philippe dormira muito pouco nas últimas noites, sua cabeça doía e, definitivamente, ele não compartilhava do senso de humor do senhor do castelo ou de seus homens. Tudo o que queria era ir dormir. Demorou um pouco até que conseguisse se desvencilhar do evento, que parecia criar tentáculos cada vez mais fortes sempre que tentava sair.

Quando achou que a ceia tinha finalmente terminado, Sarrazin deu um grito.

– Vamos correr para a Lua!

Os homens bateram na mesa, gritando sua aprovação com um ânimo cada vez mais difícil de entender para Philippe.

– Desculpe... – interveio Lamayer. – O quê?!

– Vamos lá fora, nos transformamos em lobos e corremos para a Lua, pela floresta, numa corrida até o topo da colina! O primeiro que chegar ganha o respeito dos outros! O último que chegar, ganha uma surra!

E lá veio de novo aquela gargalhada estrondosa. Nesse momento, Philippe percebeu que sua dor de cabeça era o menor de seus problemas. Ele não podia se transformar e o Duque tinha sido bem claro sobre a discrição de sua condição de mestiço. Percebeu que Ravin estava rindo, olhando diretamente para ele do outro lado da mesa enquanto comia um pedaço de carne, provavelmente divertindo-se em ver como é que ele ia se sair dessa.

Felizmente, não foi preciso. O Capitão se levantou, agradecendo o convite, mas avisando que ainda estava ferido de sua luta contra a fera, e que precisava se retirar. Sarrazin ergueu o copo, sempre cheio para ele.

– Homens valentes merecem seu descanso! – disse ele, e Philippe notou que essa foi a primeira frase não ofensiva que aquele homem dissera desde que chegara.

– Lamento, mas precisarei de Philippe comigo – disse Diderot, puxando gentilmente Philippe pelo braço. – Preciso de ajuda para trocar os curativos.

– Que pena! Queria ver como o garoto se saía... Embora eu tenha certeza de que ele seria o último!

Diderot foi se retirando e Philippe o seguiu, aliviado. Já estavam quase fora do salão, quando ouviram a voz de Sarrazin.

– Não se preocupe, garoto! Amanhã faremos de novo e você poderá participar!

Philippe olhou um tanto apavorado para o Capitão, que não conseguiu esconder a perplexidade com a notícia de que fariam aquele rito bizarro e pouco produtivo de novo.

 


Apesar do cansaço e da persistente dor de cabeça, Philippe só dormiu quando teve certeza de que Prateada estava bem, e que ela, Celine e o Duque estavam em quartos próximos. Ravin também, mas sabia que com esse não podia contar. Constance, Diderot e os soldados estavam no fim do corredor, em aposentos mais modestos, mas ainda próximos o bastante para socorrê-los, caso algo acontecesse. Philippe não tivera uma boa impressão do lugar, que lhe pareceu atrasado e selvagem. Esperava que o Duque soubesse o que estava fazendo levando-os para lá.

No dia seguinte, Philippe visitou Prateada, que ainda precisaria de descanso, embora já quisesse sair da cama para ver o novo lugar. Ele prometeu ver tudo e voltar para lhe contar. E se ela se comportasse, e se estivesse bem nos dias seguintes, ela poderia sair do quarto. Eddard felizmente se recuperara, assim como o Capitão. Nenhum deles sentia qualquer tipo de efeito colateral que os fizesse desconfiar de que a mordida do lobisomem bizarro lhes tivesse transmitido alguma coisa, fosse uma doença, fosse uma maldição.

Philippe achou que o lugar, à luz do dia, pudesse parecer melhor. Não parecia. O Château das Pérolas não tinha nenhum glamour. Porém, era bem grande. Caminhou calmamente pela cidade que cercava o castelo, vendo uma versão mais atrasada e mais caótica do Château das Vertentes. Havia um ferreiro, um padeiro, um boticário e um alfaiate. Passou por algo que fez seu sangue gelar. Um patíbulo com um tronco e um pelourinho, manchas vermelhas na madeira, mostrando que certamente ainda era usado. Não deveria ficar surpreso, considerando o que vira na noite anterior. Mas estava.

No meio da cidade, viu algo que raramente via no Château das Vertentes: uma feira com venda de víveres, verduras, frutas e tudo o que pudesse imaginar, com vendedores gritando suas mercadorias e seus preços, enquanto pessoas escolhiam suas compras.

Andou pela feira, sentindo o pulsar das pessoas comprando de tudo um pouco. Uma lembrança muito antiga o atingiu, quando, segurando na mão de sua mãe, a acompanhara em uma tarde ensolarada para comprar frutas. Tudo parecia bem maior e bem mais colorido que ali, e sorriu ao capturar uma lembrança perdida no tempo.

No Château das Vertentes, não era comum ter feiras como aquela. Havia pessoas responsáveis pelo cultivo e pela venda de porta em porta de cada tipo de produto. Os ricos sempre ficavam com a melhor parte, claro, porque pagavam mais. Os pobres ficavam com o que sobrava. Mas uma coisa Philippe precisava admitir. Nunca vira um indigente no Château das Vertentes. Por pior que fosse a vida lá, sempre havia trabalho e, consequentemente, sempre havia comida.

Não chegara a ver pedintes ou miseráveis no château dirigido por Madame Margaux. Havia pessoas mais humildes, mas não eram indigentes. Não, não havia miseráveis no Château das Vertentes. Só ele.

Esse pensamento lhe veio porque ali, no Château das Pérolas, ele estava vendo pobres. Pobres mesmo! Pessoas vestidas com farrapos, rostos sujos, magros, olhos compridos nas frutas mais belas e nas coisas que elas não podiam comprar. Não sabia se essas pessoas tinham casa, mas certamente eram pobres.

Enquanto andava, viu uma menina de uns 14 anos com umas moedas na mão e diante de uma barraca de frutas. Ela tinha os cabelos ruivos encaracolados que refletiam a luz do sol em vermelho cobre, o nariz pequeno e arrebitado e umas sardas pintadas em seu rosto. Ela estendeu as moedas para dono da banca, um homem de bigode e barriga grande que não estava sorrindo. Ela apontou duas grandes maçãs vermelhas. O homem disse que não com a cabeça, e lhe entregou uma maçã pequena e quase murcha. A menina reclamou, embora Philippe não a ouvisse por conta do burburinho das pessoas em volta.

Então o homem tomou a maçã das mãos dela e jogou as moedas longe, fazendo a seguir um gesto grosseiro com os braços. A menina correu para procurar suas moedas, e Philippe foi até ela o mais rápido que pôde. Infelizmente, não foi rápido o bastante. Quando a alcançou, ela estava chorando com uma única moeda nas mãos. Provavelmente, as outras já estavam em outros bolsos.

O rapaz se abaixou ao lado dela, segurando sua mão para que ela olhasse para ele. A princípio, ela se assustou, mas assim que se deparou com os olhos dele e seu sorriso, parou de soluçar, confusa.

Momentos depois, ele estava diante da banca e o homem de bigode e barriga protuberante se abriu em sorrisos para aquele cavalheiro tão bem vestido.

– Bom dia, senhor! Em que posso ajudá-lo? Tenho ótimas frutas aqui, doces e suculentas!

– Dê o que ela escolher – ordenou secamente Philippe.

O homem não entendeu no começo, até que viu sair de trás do cavalheiro a menina pobretona que ele espantara há pouco.

– Não estou entendendo...

– Dê o que ela pedir – repetiu Philippe, inclinando-se um pouco para a frente, e olhando nos olhos do homem.

A menina escolheu então algumas poucas frutas, temendo talvez abusar da boa vontade de seu benfeitor. Philippe então acrescentou por conta própria as melhoras frutas, enchendo o cesto dela. Perguntou quanto era. O homem respondeu. Philippe contou as moedas em sua algibeira, dinheiro dos afazeres que fazia sempre que podia. Entregou algumas moedas ao homem. Quando já se virava para sair com a menina, o homem reclamou que estava faltando.

– Não está, não – disse Philippe, em voz firme. – Eu descontei o dinheiro da menina que o senhor jogou longe e foi perdido. Da próxima vez, talvez se lembre de ser menos grosseiro!

E se virou, deixando para trás o homem a reclamar sozinho. A menina, que estava naquela idade entre criança e mulher, em que o corpo ainda precisa se achar, ergueu para ele aqueles olhos verdes inundados de gratidão e de admiração.

– Obrigada! – disse ela.

– Não tem de quê – respondeu ele com um sorriso.

– Meu irmão e os outros vão ficar felizes! Estamos todos com muita fome desde ontem...

– Outros? Que outros?

E então ela lhe contou que vivia numa casa com o irmão e outras oito crianças. Viviam de pequenos serviços, mas às vezes eram roubados, ou não eram pagos, ou não havia serviço nenhum, e então também não havia comida. Como percebesse que ela parecia apreensiva, abraçada a sua cesta de frutas, Philippe se ofereceu para acompanhá-la. Comprou algum pão no caminho e seguiu com a menina, enquanto ela lhe contava sobre as coisas do Château das Pérolas.

Em algum tempo, chegaram num casebre na periferia da cidade. Philippe tentou disfarçar a surpresa. Quando ela disse que eram crianças, ele esperava jovens como ela. Mas eram realmente crianças. Havia dois meninos de cerca de três ou quatro anos, três meninas de uns seis anos, uma de dois, e uma menina e um menino de uns oito ou nove anos. Assim que Coraline, esse era o nome da menina que ele acompanhava, disse que estava tudo bem, que podiam sair, as crianças surgiram magicamente de esconderijos na casa, fazendo festa como cachorrinhos.

As crianças estavam encantadas tanto com a comida quanto com a presença de Philippe, que parecia para eles algum tipo de príncipe encantado. Philippe se abaixou para falar melhor com elas e deixar que o tocassem, pois estavam curiosas com as rendas que lhe saíam dos pulsos em babados, com a textura do casaco comprido que usava, com os cabelos longos da cor das asas do corvo.

Coraline ia retirando as coisas de dentro da cesta, colocando sobre uma mesa com um sorriso de satisfação e ia entregando às crianças. Philippe sentiu o coração apertar ao ver a pequenina de dois aninhos pegar avidamente um pedaço de pão e levá-lo à boca, movida pela fome cega, pois aquele pão era duro e grande demais para uma boquinha tão pequena.

– Você cuida delas sozinha?! – perguntou ele.

– Não, meu irmão me ajuda! – disse ela.

– E quantos anos tem o seu irmão? – perguntou Philippe, na esperança de ser realmente alguém bem mais velho.

– Ele tem 16.

Era pouco mais novo que Philippe, o que o fez gelar a espinha. Ele próprio amargara a fome e não podia imaginar como seria amargar a fome com outras pequenas bocas famintas ao seu redor.

– Onde estão seus pais?

Coraline parou de mexer na cesta. Então entregou uma ameixa para um garotinho de cabelos enrolados.

– Minha mãe morreu no ano passado. Meu pai saiu em missão há seis meses e não voltou mais. Então, eles tomaram nossa casa e nós viemos para cá, para onde mandam os enjeitados.

– Enjeitados?

Ela olhou para ele como se hesitasse por alguns momentos. Então disse de uma vez.

– Mestiços. É para onde mandam os mestiços. Quando chegamos, os maiores cuidavam dos menores. Mas a maioria morre, especialmente no inverno.

A sala mergulhou em silêncio. Philippe e Coraline se olhavam naquele mar de olhares de crianças famintas. Ela esperava que ele se levantasse e fosse embora, e nunca mais olhasse novamente para ela. Ele... Ele só estava atônito demais para dizer alguma coisa...

Um jovenzinho entrou na casa e as crianças correram para ele. Tinha os cabelos castanhos e os traços finos da menina e não foi difícil adivinhar que era o irmão que ela mencionara. Philippe se levantou e o rapazinho logo entrou na defensiva.

– Quem é ele? O que quer aqui?

– É um cavalheiro que comprou comida para nós, Rhénan!

– A troco de quê? – o rapaz se aproximou com olhar desafiador. – O que ele quer em troca?

– Nada! – respondeu Philippe, tentando acalmá-lo com um gesto de mãos. – Não quero nada, Rhénan. Fique tranquilo, só quis ajudar sua irmã. Se soubesse que eram tantas as bocas na casa, teria comprado mais frutas.

– Você já fez muito! – disse Coraline, com um grande sorriso. – Acredite, vamos dormir felizes hoje.

O garoto pareceu baixar a guarda e então agradeceu também. Era evidente que também estava faminto, mas os dois só comeram alguma coisa quando os pequenos já tinham se servido. Philippe ficou ainda algum tempo, conversando com eles e sabendo um pouco mais sobre a difícil vida de mestiços ali.

Quando voltou para o castelo, tinha a cabeça baixa. Não imaginava que a vida poderia ser pior do que a que conhecera em outros tempos no Château das Vertentes. Quem joga crianças de dois e três anos para viverem por conta própria? Não que ele mesmo não tivesse sido abandonado à própria sorte quando sua mãe morreu, quando ele tinha seus dez anos. Mas não parecia a mesma coisa. Quando passou pela cidade, olhou novamente as pessoas imersas em seus próprios mundos, cuidando cada qual de seus próprios interesses. Queria fazer alguma coisa, qualquer coisa que pudesse mudar a situação daquelas crianças. Só não sabia o quê. Suspirou e seguiu seu caminho para o castelo. Subitamente, sentiu uma profunda saudade de Prateada e da luz que ela sempre jogava sobre qualquer coisa, por mais sombria que fosse.

 


Capítulo 19


A Decisão de Prateada

 

Ao entrar nos aposentos destinados à Prateada, Philippe encontrou Constance. A boa senhora parecia abatida. Decerto não estava acostumada a viagens tão longas, ainda mais com tantas emoções.

– Ela voltou a dormir, menino – disse ela, com um sorriso. – É melhor assim, o pó da Caledônia faz efeito assim.

O rapaz se aproximou em silêncio e retirou uma mecha de cabelo do rosto da moça adormecida.

– Constance, posso lhe falar um minuto?

– Claro, meu jovem! Venha comigo, não quero acordá-la.

Eles foram para a varanda que o quarto possuía, onde o vento trazia um frescor com cheiro de terra, fazendo Constance puxar um xale para se aquecer. Apesar do sol, estavam se despedindo do verão ao mesmo tempo em que subiam cada vez mais as montanhas, onde o clima ia ficando mais frio.

– Diga, rapaz, o que o perturba? Ravin fez das suas de novo?

– Não, não tem nada a ver com Ravin...

Philippe se recostou na murada, tentando achar as palavras. Achou melhor contar o que acontecera. Falou para a ama sobre os pobres, os miseráveis, sobre a fome, sobre oito crianças abandonadas à própria sorte, sobre Coraline e Rhénan. No final, conseguiu finalmente formular sua pergunta.

– É assim em todo lugar?

Constance olhou para o horizonte, belíssimo com suas nuvens coroando picos de montanhas distantes. E então lhe explicou algumas coisas que o Capitão não tivera coragem de lhe dizer. O relacionamento com humanos não chegava a ser proibido, mas ter filhos com eles era. Quando isso acontecia, era aconselhável que o membro do clã, seja pai ou mãe, trouxesse a criança para seu château. Se não o fizesse, um grupo especializado nisso era encarregado de sequestrar a criança depois que tivesse desmamado.

– E largá-las sozinhas para morrer de fome?! – exclamou Philippe. – Que diabo de lei é essa?!

– Temos leis gerais, menino... Uma carta de regras claras, como não matar nossa própria espécie e não revelar nossos segredos, mas cada senhor de château age como quiser, dentro dessas leis.

– Então, deixar uma criança morrer de fome não é matar... – deduziu Philippe, tentando entender a forma cruel daquela sociedade operar.

Constance fez um gesto com os ombros, concordando como se não houvesse o que fazer. Então explicou que alguns châteaus eram mais cruéis que outros.

– O Duque de Lamayer, por exemplo, assim como seu pai e se avô antes deste, nunca permitiram negócios com mestiços.

– Negócios com mestiços?

Constance olhou para ele com a expressão de que se deu conta de que falou demais. Mas como não havia volta e não ia escapar do interrogatório daquele menino, terminou o que começara.

– Em muitos châteaus, mestiços são negociados. Vendidos como servos para serviços de todo tipo. São comprados por famílias ricas num tipo de contrato de servidão e permanecem servindo a essa família até o fim de suas vidas, ou até que sejam passados adiante num novo contrato.

– Foi isso que fizeram comigo quando me passaram para Gerard?

– Não, menino! Gerard era só o responsável por ensinar você seu serviço e ajudá-lo no que fosse preciso, já que você era muito jovem para dar conta sozinho. Ele não tinha reais poderes sobre você e, quando seu trabalho estivesse pronto, você era livre para fazer o que quisesse. Um servo não tem nenhuma liberdade, ele vive para servir seu amo e até morrer por ele.

– Como um escravo?!

– É. Como um escravo. Algumas famílias tratam um servo como se fosse um dos seus. Já outras... Ah, é terrível o que certas pessoas podem fazer com outras quando têm poder...

Ficaram em silêncio por algum tempo, pensando nas vidas aprisionadas, roubadas, perdidas, simplesmente porque nasceram de um amor proibido.

– Não há nada que possamos fazer quanto a isso? – perguntou Philippe, que não tirava da cabeça os rostos famintos que vira no casebre. – Alguém com quem possamos falar, ao menos sobre essas crianças? Talvez o Duque de Sarrazin possa fazer algo?

– Nem tente, criança! O Duque de Sarrazin é um... – Constance olhou em volta para saber se ninguém a ouvia e baixou o tom de voz – ...um porco! A fama dele chega a todos os cantos! Ele tem relações vulgares com meninas que poderiam ser suas filhas! Ou netas! Ele acha que encher o castelo de filhos seus é seu legado... E ele odeia mestiços, os considera fracos. Ouvi dizer que o capitão dele, o tal de Barbaroux, é um homem cruel e faz coisas terríveis, mas o Duque de Sarrazin faz vista grossa para as leis que ele quebra...

– Então... – Philippe pareceu desanimado. – Não há ninguém que possa mudar isso...

– Só um rei... – concluiu Constance, virando-se para ele com olhar sagaz. – Ou uma rainha...

 


O primeiro assunto que Lamayer quis tratar com Sarrazin foi sobre a criatura que os atacou na estrada. Como todo mundo, Lamayer sabia que Sarrazin não era lá muito dado a seguir as leis, e que se um Lobo, membro do clã, tivesse mordido um humano e o deixado vivo, por prazer ou por descuido, seria de se esperar que esse Lobo viesse do Château das Pérolas. Sarrazin, no entanto, não parecia saber nada sobre isso. Não ouviu nada parecido de seus homens e humanos que passam por ali não costumam ser deixados vivos, se tornando diversão para seus soldados. Lamayer ia perguntar como, mas preferiu não pensar nisso. Segundo Sarrazin, por ser uma região mais inóspita e pela fama de perigosa que eles mesmos criaram, há muito tempo um humano não aparecia por ali.

Porém, quando Lamayer citou as bizarras características do lobisomem e o símbolo que ele trazia na testa, marcado com ferro em brasa, Sarrazin arqueou as sobrancelhas e pareceu perder um pouco a cor.

– Você sabe algo a respeito disso... – concluiu Lamayer.

O outro se levantou e caminhou pela sala repleta de cabeças de alces e outros animais que ele e seus ancestrais haviam caçado em sua forma lupina. Como a maioria dos Lobos de todos os clãs, Sarrazin também desprezava as armas de fogo, considerando-as covardes, e orgulhava-se de sua natureza selvagem, o que provavelmente explicava o fato do Château das Pérolas parecer estar atrasado uns três séculos. O próprio castelo principal era uma construção do século XII, o que lhe dava aquele ar austero.

– Nossos Lobos da cidade nos trouxeram uma informação estranha há alguns meses.

Lamayer prestou mais atenção. Lobos da cidade era como chamavam Lobos que moravam entre os homens. Não era para quem queria, mas para quem podia. Eles tinham que passar por um sério processo de seleção para que lhes fosse permitido viver entre os homens, e, uma vez lá, se infiltravam em todos os lugares possíveis, buscando informações sobre qualquer coisa que lhes parecesse útil. Lamayer não tinha muitos desses, preferia manter uma distância saudável dos humanos. Mas Sarrazin... Sarrazin tinha muitos e sua rede de informação era invejável.

– Temos um Lobo infiltrado no clero – continuou Sarrazin. – Ele nos disse que depois da morte do Bispo de Luçon, o novo bispo que assumiu não se sente confortável com as Cidades Secretas. Ele acha que são perigosas e devem ser exterminadas. Felizmente, a maioria da Igreja foi contra seu plano de tentar encontrá-las e destruí-las.

– Então ainda temos um acordo com a Igreja? – Lamayer precisava saber disso claramente, pois era a influência da Igreja Católica que mantinha reis e nobres humanos, ambiciosos por natureza e incompetentes por tradição, totalmente ignorantes sobre os châteaus. Em troca dessa boa convivência, algumas sacolas de ouro passavam para lá e para cá.

– Sim, o clero continua do nosso lado, graças aos deuses! Por isso não me preocupei com as outras notícias que meu Lobo me trouxe... – Sarrazin se aproximou de Lamayer e sentou-se numa poltrona próxima, como se fosse lhe falar um segredo. – Ele me disse que François de Montrachet, o novo Bispo de Luçon, estava montando um grupo de pessoas que pensavam como ele para investir contra nós, em segredo. Ele não soube me dizer quem eram essas pessoas, mas eu não me surpreenderia se houvesse algum mago ou bruxo envolvido...

 


No dia seguinte, Prateada já se sentia melhor e ganhou o privilégio de passear de tarde nos jardins, que na verdade era uma área de vegetação natural que cercava o castelo. Mesmo assim, já foi o bastante para ela sorrir o tempo todo, feliz em sentir o sol e o vento no rosto novamente.

– O que você tem?

Philippe saiu de seu mundo quando a moça chamou sua atenção.

– Tem andado calado desde ontem. Aconteceu alguma coisa?

O rapaz sabia que não podia esconder nada de Prateada. E não queria. Então, ele a puxou gentilmente pela mão e sentaram-se numa pedra de onde podiam ver carneiros pastarem calmamente.

– Prateada, lembra que eu lhe perguntei se você queria mesmo ser rainha?

– Claro!

– Você já sabe o que quer?

Prateada mordeu o lábio inferior, preocupada em comunicar-lhe sua decisão.

– Já... Mas não quero que minha decisão deixe você decepcionado comigo!

Philippe não esperava que ela já tivesse decidido e planejava lhe dizer o quanto seria importante se ela escolhesse assumir a coroa. Agora, no entanto, ela já tinha sua decisão. E ele teria que aceitá-la e apoiá-la, como prometeu que faria.

– Não se preocupe – disse ele, ainda segurando as mãos dela. – Estarei do seu lado, não importa o que decida fazer.

Prateada olhou para os carneiros, pedaços de nuvens com perninhas, como ela mesma descrevera uma vez. Então voltou a olhar para o rapaz que aguardava suas palavras.

– Eu decidi que quero ser rainha.

Philippe ficou sem ação num primeiro momento. Pareceu uma decisão muito pensada, e ele não sabia exatamente como isso aconteceu. Então, suspirou e sorriu. Nem precisaria convencê-la, no final das contas.

– Você ficou feliz? – perguntou ela, também surpresa.

– Fiquei! Na verdade, fiquei feliz, sim. Porque eu gostaria que você fosse rainha.

Então ele lhe contou tudo o que vira no casebre e conversara com Constance. Prateada ouviu com atenção e quando ele terminou, ela mesma disse:

– Como rainha, mudarei isso! Ninguém merece passar fome só porque nasceu. É absurdo. E ninguém pode ser escravo de ninguém, porque ninguém nasce com coleira!

Philippe riu da colocação da menina, mas nem imaginava que ela estava se remoendo em ódio tardio por dentro, pois ela se lembrava de quando Gerard mandava prendê-la para, a seguir, machucar Philippe, que nunca pensou que a dor que ela sentia era ainda maior que a dele. Amarrada, impotente, vendo quem você ama sofrer, era, para Prateada, a pior sensação do mundo. Pior que a fome.

– Obrigado, minha Prateada... – disse ele puxando o rosto dela delicadamente e encostando sua testa na dela. – E saiba que estarei ao seu lado, o tempo todo!

– Claro que estará! – concordou ela.

E então, longe de tudo e de todos, eles se beijaram longamente, deixando que as estrelas brilhassem em pleno dia. Quando se separaram, ele a olhou nos olhos, sentindo o quanto a amava e o quando estava sendo egoísta ao prometer estar ao lado dela o tempo todo, pois isto era mais uma necessidade dele do que dela. Ao menos, era o que ele pensava.

– Por que decidiu ser rainha? – perguntou ele.

Ela sorriu, aquele sorriso em que apertava os olhos amendoados, que brilhavam ainda mais.

– Por causa do Rei Pares... Ele me ensinou que quando se está no poder e se faz as coisas certas para o povo, você pode fazer a coisa certa para si mesmo também. Acho que as pessoas só implicam com a felicidade dos outros quando estão muito infelizes... Farei com que todos fiquem felizes e, assim, ganharei o direito de ser feliz também. E ser feliz para mim é estar ao seu lado.

– Mas e o que Ravin disse? – perguntou ele, sabendo o quanto aquilo a afetara.

– Ah! Ravin mente que nem sente!

Ele riu e eles voltaram a sentir os lábios um do outro, em beijos quentes naquela tarde tranquila, em longos momentos em que o tempo ficou suspenso no ar, esperando que eles sentissem aquele amor tão profundo que, mesmo fora do tempo e do espaço, ainda existe e ainda pulsa.

 

Capítulo 20


A Acusação

 

Era o último dia no Château das Pérolas, o que era um alívio para todos da comitiva do Château das Vertentes. Toda noite, Lamayer, Celine, Prateada ou Diderot precisavam arrumar desculpas para tirar Philippe do estranho esporte do Duque de Sarrazin e seus homens. Mesmo Lamayer se recusou a participar, alegando cansaço e uma gripe – que só se manifestava quando tocavam no assunto.

Philippe contara à Diderot sobre a inesperada família de crianças que encontrara e este o ajudou a comprar e levar mantimentos para o velho casebre. Também conseguiram alguns cobertores e até alguns brinquedos de madeira. Prateada, Diderot e Philippe ficavam horas com as crianças, desaparecidos das atividades que aconteciam no château.

Durante as noites, era hora de confraternizar – e disso não dava para fugir – durante a ceia e as atividades que se seguiam. Dentre tantas pessoas rústicas e com tão pouco em comum, Philippe se surpreendeu em encontrar um rapaz cuja conversa o entretinha. Seu nome era André Cazevielle.

Alto e de porte nobre, Cazevielle orgulhava-se de seu nome, vindo de uma tradicional família de Lobos Brancos. Letrado e estudado, falava quatro idiomas, incluindo o russo, e conseguia debater com clareza vários livros que lera. Philippe tivera poucos professores até o momento. O Capitão Diderot que lhe ensinara a lutar, Constance, que lhe ensinara sobre a história dos Lobos e seus diversos clãs, e sua mãe, que lhe ensinara todo o resto.

Tinha poucos livros e, justamente por isso, lera-os repetidas vezes. De vez em quando, algum nobre do château se desfazia de algum exemplar que ele logo tratava de adicionar à sua humilde coleção. Porém, nunca conseguira discutir com alguém os livros que lera. Até agora.

Cazevielle discorria com entusiasmo sobre as incongruências dos relatos de Jean de Léry em seu livro Histoire d’un voyage faict en la terre du Brési [1] , e era apaixonado por Margarida de Valois, a Rainha Margot, que ganhava vida nas palavras de Pierre de Brantôme. Philippe havia lido poesias de Étienne Jodelle, mas era um apaixonado pela Tempestade de Shakespeare.

Essa inesperada amizade ajudou o tempo a passar mais rápido. Enquanto isso, Prateada foi finalmente apresentada ao Duque de Sarrazin, que a olhou como quem olha para alguma cabrita sendo vendida na feira.

– É... Você é bonita!... – disse Sarrazin acariciando a própria barba castanha com um olhar que desagradou tanto Lamayer quanto Philippe e Diderot.

Prateada o olhou de cima a baixo e respondeu sem reservas.

– O senhor, não.

– Você sabe com quem está falando, mocinha?

– Com o senhor, ué!

– E você sabe quem eu sou?

Prateada arregalou os olhos de espanto. Então se virou para Lamayer e para o Capitão.

– Senhores, acudam aqui! Esse moço esqueceu quem ele é?

E então, virando-se para Sarrazin de novo, moveu as mãos para acalmá-lo.

– Fique calmo, senhor! Nós vamos descobrir quem o senhor é! Até lá, talvez seja melhor sair dessa cadeira bonita! O dono pode chegar a qualquer momento e pode não gostar!

– É com essa atitude que pretende se sentar no trono, menina? – tornou o homem com voz mais alta, levantando-se e apoiando as mãos na mesa.

– Não, senhor, eu pretendo me sentar com o meu traseiro! Só vou usar minha atitude para governar e lidar com pessoas difíceis!

– E acha que isso vai funcionar?

Prateada subiu um pouco os ombros.

– Se não funcionar, sentarei nelas com meu traseiro! E acredite, quando eu quero, posso ter um traseiro beeem grande!

O salão mergulhou em silêncio depois desse debate bisonho. Lamayer estava estático, parecia uma estátua. O Capitão tentou não ficar boquiaberto, mas não conseguiu. Acharam que Sarrazin ia colocar todos dali pra fora. E essa era a melhor hipótese!

E então, a sonora gargalhada de Sarrazin explodiu e ecoou pelo salão. Depois de rir muito, Sarrazin se virou para Lamayer.

– É difícil ver uma mulher com tanta personalidade! Na verdade, é difícil até ver um homem com tanta opinião! Vou lhe dizer uma coisa, Lamayer! Eu gostei da moça! E uma vez que você estará por trás dela, pode contar com meu apoio!

Isso era tudo o que Lamayer gostaria de ouvir. A missão fora cumprida e o apoio de Prateada crescia, colocando-a mais perto do trono.


Em sua última noite no Château das Pérolas, a ceia era farta e as canções se elevavam. Alguns homens tocavam tambores, dando ritmo para as letras que envolviam geralmente bêbados, homens que queriam ficar bêbados e mulheres de vida fácil. Canecas se batiam em brindes espontâneos, derramando vinho no chão e na mesa. Ravin estava se divertindo, por mais que detestasse admitir. Adorara o Château das Pérolas. E ele não sabia que estava prestes a gostar ainda mais daquele lugar, que poderia lhe dar a vingança que ele tanto desejava.

Uma criada que estava servindo Barbaroux, o capitão caolho, puxou uma faca da saia e investiu contra ele. Somente então Philippe percebeu quem era, levantando-se imediatamente e voando até ela, que estava a poucos passos de distância.

A faca cortou o rosto de Barbaroux, que imediatamente reagiu segurando a mão da menina, evitando assim um segundo golpe. Ele se levantou, revelando como era enorme, ainda mais em comparação a ela. Apertou sua mão até que a faca caísse e a jogou com violência no chão.

– Vadia traiçoeira! Você será um bom exemplo!

Ele puxou um chicote que trazia na cintura e investiu contra a moça, mas acabou acertando Philippe, que tinha se colocado entre eles. A ponta do chicote cortou seu pescoço, fazendo-o ver estrelas enquanto um rastro que parecia pegar fogo sangrava. Por instinto, Philippe levou a mão ao ferimento, e estendeu a mão manchada de sangue pedindo para que o outro parasse.

– Espere, senhor! Eu lhe peço! – gritou ele.

Mas Barbaroux já estava com o braço erguido e descendo com um novo golpe. Dessa vez, Philippe se desviou e agarrou a arma no ar, puxando-a com força e arrancando-a da mão de Barbaroux.

– Eu disse para esperar! – gritou Philippe.

– Seu filhote imbecil, você pensa que...

Barbaroux não terminou a frase porque Sarrazin assumiu a palavra. Tudo isso aconteceu muito rápido, tão rápido que algumas pessoas não chegaram a ver a menina atacar o Capitão com a faca.

– O que diabos está acontecendo aqui? – gritou Sarrazin, se aproximando do núcleo da confusão.

– Essa meretriz me atacou com uma faca! – gritou Barbaroux, mostrando o corte que sangrava em seu rosto.

– Eu fiz isso porque você quase matou meu irmão!!! – gritou a menina, que agora se levantava e tentava passar por Philippe, que a segurava.

– Guardas! Levem a prisioneira, ela será chicoteada amanhã no patíbulo! – ordenou Sarrazin.

– Deixe que ela se defenda! – gritou Philippe.

– E qual o ponto? Não importa a razão! Importa que essa mestiça atacou um puro, um capitão!

– Se não importa a razão, não vai importar se ela falar! – interveio Diderot. – A menos, é claro, que o Duque tenha medo de ouvir uma menina.

Claro que o Duque de Sarrazin percebeu a provocação, mas agora todos estavam olhando para ele. Ele precisava manter o respeito entre seus homens, mas também precisava mostrar que cumpria as leis dos lobos para Lamayer e sua comitiva. Com um movimento de cabeça, ordenou que a menina falasse. Philippe a soltou e ela andou até o capitão Barbaroux, sem medo de seu enorme tamanho e seu jeito ameaçador.

– Meu irmão foi trabalhar na taberna ontem no meu lugar! – disse ela, a voz sumindo com as lágrimas que começavam a descer. – Ele voltou de madrugada, mal andando, com tantos ferimentos que não conseguia nem falar! Vocês o espancaram! Ele só estava trabalhando, e você começou, você deu a ordem, você se divertia enquanto ele gritava! Posso não ter sangue puro, mas ao menos tenho honra! Que tipo de honra tem quem ataca em bando alguém indefeso?!

Barbaroux lhe deu uma bofetada que a jogou longe. Sem pensar nas consequências, Philippe avançou, mas foi seguro por Diderot, ao mesmo tempo em que Barbaroux era seguro pelos seus homens.

Philippe parou de se debater e pediu que Diderot o soltasse. Livre, não avançou mais no Capitão Barbaroux, mas não podia ficar calado diante de tanta injustiça.

– Você é um covarde, Barbaroux! Um covarde que bate em crianças! O rapaz que você espancou cuida das crianças que vocês não querem! – disse, voltando-se para todos os que assistiam. – Crianças que vocês deixam morrer de fome e de frio! Se colocarem essa menina no tronco e moê-la de pancadas, quem vai cuidar deles?!

– Isso não é problema nosso, guri! – rosnou Sarrazin. – E, na verdade, também não é problema seu. É assim que lidamos com mestiços no Château das Pérolas!

Barbaroux avançou para a menina que tentava se levantar, pronto para levá-la para o tronco naquele mesmo minuto, mas Philippe ficou entre eles de novo.

E então Prateada surgiu bem diante de Barbaroux.


Mas ela não era uma fera gigantesca de presas brancas e assassinas. Era uma moça de longos cabelos prateados, olhos amendoados e traços finos, vestida elegantemente num longo vestido carmesim com detalhes em dourado. Sua aparição quase mágica desnorteou Barbaroux.

A moça então se esticou para alcançar seu ouvido. Enlaçou sua cabeça com as duas mãos, delicadamente, de forma que ninguém pudesse ouvir o que ela estava sussurrando.

– Querido Capitão Barbaroux, eu sei que seu orgulho está em jogo aqui, mas confie em mim, se eu me transformar e lutar com você, eu vencerei, mesmo que seus homens ajudem. Estamos na Lua crescente e ninguém aqui pode assumir a forma bestial, exceto eu. Mesmo que o senhor pudesse se transformar, eu ainda assim o venceria, porque eu fico grande, muito grande mesmo. Nesse caso, seu orgulho seria quebrado de uma maneira irreversível e a situação do meu Duque com o seu ficaria muito delicada. Por isso, eu proponho que deixe essa vitória conosco, como uma cortesia, uma gentileza, que garanto que vou lembrar quando for rainha.

Então, ela se afastou com um sorriso gentil. Beijou suavemente a face de Barbaroux, e então se afastou. O homem ficou parado, digerindo tudo o que ouvira. Olhou em volta, todos esperando sua ação, prontos para uma luta. Então ele se virou para o Duque de Sarrazin.

– Eu e meus homens bebemos demais ontem, senhor – disse ele. – Nós exageramos com o irmão dela. Ela veio aqui vingá-lo, algo que qualquer um de nós faria por um irmão. Peço que deixe que ela volte para os seus!

O Duque estranhou e olhou estupefato para todos a sua volta.

– Mas ela cometeu um crime!

– Ela provou que pode defender os seus – disse Lamayer, dando um passo a frente. – Não é desse tipo de Lobo de que todos precisamos, especialmente agora, Sarrazin?

Sarrazin sabia que Lamayer se referia à conversa sobre um possível grupo de extermínio liderado pelo novo bispo de Luçon. Ele olhou novamente a menina.

– Está bem – disse ele, finalmente. – Volte para casa, sua tonta! E use sua coragem de uma maneira mais inteligente da próxima vez!


Philippe pegou a menina pelo braço e a guiou para fora, acompanhado do Capitão e de Prateada. O Capitão não conseguia esconder a curiosidade.

– O que disse pra ele?

Prateada apenas sorriu.

 


O estado de Rhénan era ruim. Bem ruim. O Capitão passou a noite no casebre, junto com Philippe e Prateada, cuidando de seus ferimentos. Naquela mesma noite, uma chuva torrencial se abateu sobre o Château das Pérolas, o que fez o Lamayer adiar a partida em um dia. Prateada havia lhe pedido que ficassem mais um dia, para ajudar Rhénan. Ele poderia ter lhe negado, mas estava muito espantado com ela. Conhecendo o temperamento de Prateada, acreditou que ela pularia no pescoço de Barbaroux ou mesmo no pescoço do próprio Duque de Sarrazin, se achasse que Philippe estivesse em perigo. Ao invés disso, ela escolheu as palavras e as depositou com maestria nos ouvidos de Barbaroux. Lamayer não sabia o que ela dissera a ele, mas notara que seus gestos, e até o beijo em seu rosto, foram calculados para parecer que ela estava implorando, não deixando outra saída a Barbaroux, senão atender ao pedido de uma donzela. Mas Lamayer conhecida Prateada bem o bastante para saber que ela não imploraria por nada, ainda mais a alguém que estava disposto a espancar uma menina.

A noite chuvosa passou com trovoadas e raios desenhando riscos violetas no céu. Havia diversas goteiras na casa onde as crianças estavam, e se viraram como podiam. Coraline estava com a bochecha inchada da bofetada que levara e Philippe estava com a camisa manchada do sangue do ferimento do chicote que se espalhara com água. Sentaram-se ambos na sala, enquanto todos dormiam. Ele pegou um pano com água e entregou para ela, pegando outro e colocando no próprio ferimento no pescoço.

– Obrigada... – disse ela.

– Não tem de quê... – respondeu ele, sem grande entusiasmo. – Na verdade, quem salvou você foi Prateada.

– Obrigada a você também! – disse a menina para Prateada, que estava encostada na parede oposta, com a pequena Diana dormindo em seu colo.

Prateada apenas sorriu, e continuou a acariciar os cabelos castanhos da menininha que buscara segurança em seus braços.

– Sonhei com meu pai ontem... – disse Coraline, parecendo distante. – Ele dizia que ia ficar tudo bem...

– Ninguém sabe o que aconteceu com ele? – perguntou Diderot, sentado em uma cadeira próxima à cama de Rhénan, onde podia observá-lo melhor.

– Ele caçava desertores – respondeu a menina. – Um dia, um grupo de três desertores deixou o château. Eram jovens, seria muito fácil pegá-los. Meu pai saiu sozinho. Encontraram marcas de luta e um pouco de sangue no bosque próximo daqui. Acham que ele caiu numa armadilha e foi levado por caçadores humanos. Dizem que os humanos vendem tudo o que puderem tirar de nós: garras, pelos, pele, olhos, língua, coração... Fazem poções mágicas...

Lágrimas desceram no rosto machucado dela. Philippe abraçou-a e deixou que ela chorasse baixinho.


No dia seguinte, a chuva continuou castigando a região com gotas tão grossas que machucavam a pele, e ventos que levantavam os telhados das casas mais pobres. Porém, havia muita alegria no velho casebre das crianças. Depois do meio-dia, quando Diderot já estava ficando pessimista, Rhénan abriu os olhos cansados, e disse que estava com fome.

Depois de tomar uma sopa bem encorpada, o rapaz começou a falar e já conseguia se mexer. Quando lhe perguntaram o que aconteceu, seus olhos se fecharam e ele fez uma careta de dor, como se a simples lembrança o ferisse. Ele meneou a cabeça e tentou sorrir.

– Entornei sopa no capitão... – respondeu.

Houve um silêncio breve enquanto se pensava como se pode machucar alguém de tal forma por causa de uma sopa derramada.

– Estava quente pelo menos? – perguntou Philippe.

Rhénan abriu um sorriso de satisfação.

– Pelando!...

 


Durante a noite, a chuva arrefeceu e no dia seguinte estavam prontos para partir sob um sol cinzento. As despedidas foram breves e simples. Eddard estava recuperado o bastante para assumir novamente seu cavalo e Prateada não apresentava nenhuma sequela da briga com o lobisomem.

– Château das Pérolas... – comentou Celine, dentro da carruagem. – Não sei por que tem esse nome!

Prateada olhou pela janela e viu que Philippe, cavalgando logo ao lado, olhava para um ponto mais alto, logo a frente. Ela inclinou um pouco a cabeça e viu Coraline de pé num monte adiante. A moça acenou para eles, e fez um gesto que eles nunca viram. Com a mão direita fechada, ela simulou três batidas em seu peito, como se seu coração estivesse batendo e tentando sair, e então, graciosamente, ela abriu a mão e a estendeu na direção deles. E nesse momento, uma borboleta voou de sua mão, colorindo aquele dia cinza com sua cor azul real.

– Vocês sabem de onde vêm as pérolas? – perguntou Lamayer.

– Do mar? – respondeu Prateada.

– Quase. Das ostras, que vivem no mar, então você está certa. A ostra leva muito tempo trabalhando um grão de areia que a incomoda e fere, até que esse grão finalmente vire uma pérola. Quanto mais tempo a ostra tiver, mais perfeita será a pérola. Porém, para retirar a pérola, precisamos matar a ostra. Alguns chamam as pérolas de lágrimas do mar, ou lágrimas da deusa.

Prateada e Celine olharam longamente para fora, pensando sobre as pérolas que nascem do sofrimento, as lágrimas que ganham valor e as ostras que transformam sua dor em coisas bonitas.

 

Capítulo 21


O Château das Flores

 

A viagem foi tranquila com o tempo cinzento e uma chuva fina e indecisa que cobria tudo com uma película de pontos brilhantes. Quando pararam para o almoço, acolhidos por uma grande árvore no meio da floresta, Lamayer encontrou a oportunidade que não tivera nos últimos dias no Château das Pérolas. Assim que Philippe ficou sozinho, o Duque o puxou pelo braço e o colocou contra a imensa árvore.

– O que achou que estava fazendo?

Philippe ficou confuso, embora tivesse uma boa ideia do que o Duque estava falando.

– Se Prateada se transformasse e atacasse todo mundo ali, teríamos uma tragédia por você ter se metido em assuntos que não lhe dizem respeito! – disse o Duque.

– Desculpe, senhor, mas eu não podia permitir que eles...

– Cale a boca! E não faça mais isso!

O Duque o soltou e saiu. Philippe sentiu uma indignação crescer dentro dele. Achou que o Duque lhe teria um mínimo de consideração depois de ter salvo sua vida, e que compreenderia que ele não poderia deixar uma menina ser punida com a mesma crueldade com que ele foi, quando tinha 17. Seu humor mudou e ficou mais parecido com o clima que enfrentavam na viagem.

Enquanto comiam, o Duque e o Capitão se afastaram um pouco. A uma certa distância, observavam o pequeno grupo em conversas fortuitas e mastigações ritmadas.

– Prateada me surpreendeu – disse Diderot.

– Sim, a mim também... – concordou o Duque, cuja voz calma nem parecia a mesma que usara com Philippe alguns minutos antes. – Achei que ela ia estraçalhar Barbaroux no momento em que ele ergueu aquele chicote para Philippe.

– O que acha que aconteceu?

Lamayer olhou longamente Prateada, conversando com certa animação com Celine, enquanto Constance entregava um pedaço de pão para Philippe, que parecia alheio aos outros. As duas moças não conversavam muito no começo, mas, ao seu ver, começavam a se dar um pouco melhor.

– Acho que ela está crescendo... – disse Lamayer, sem se decidir entre pesar e admiração.

Ver Prateada amadurecer era como ver Celine crescer. Você se despede daquela coisinha que se agarra às suas pernas, que ri de qualquer coisa, que você pega no colo e joga para cima em brincadeiras intermináveis. Sim, Prateada estava amadurecendo e, por melhor que isso fosse, seu coração lamentou um pouco.

 


Ao final do quarto dia de viagem, eles avistaram a pequena estrada que levava ao Château das Flores. A experiência com o Château das Pérolas tinha sido um tanto dramática para quase todos. A expectativa com o Château das Flores não estava muito boa, não só pela experiência ruim anterior, mas também pela possível resistência que encontrariam lá.

Nem o Château dos Damascos, nem o Château das Pérolas possuíam até aquele momento um candidato. Prateada era um caso raro e único. A maioria dos reis e rainhas que ocupavam o trono eram lobos treinados a vida inteira para governar. Como Celine, que teve que abrir mão de sua chance de ser rainha por causa de Prateada, todos os outros candidatos devem estar ressentidos, e isso incluía os dois filhos de Madame Vanderlee, Henry e Noisette.

Lamayer passou a viagem inteira dando instruções para Prateada e Celine, que sabia ser malcriada quando queria. Não sabiam que tipo de humor iam encontrar no Château das Flores.

Na estrada, o Capitão também se preocupava com o que encontrariam no Château das Flores. Fora lá que largara o antigo capataz de Philippe, Gerard, deixado como paga por um prejuízo que ele dera, induzido por uma artimanha do Capitão.

O Château das Flores era enorme, maior ainda que o das Vertentes, e o Capitão nutria a esperança de que não esbarrariam com Gerard. Porém, sabia que era uma possibilidade. Não importasse o que o capataz dissesse, com sua fama de beberrão, o Duque não acreditaria nele. Isso não preocupava Diderot. Mas Gerard era uma cobra vingativa, e isso o preocupava. Antes de chegarem, alertou os homens para ficarem especialmente atentos. E ordenou a Philippe que não se afastasse do castelo, lembrando-lhe que ele tinha um inimigo rancoroso lá.

Diferente do esperado, a recepção no Château das Flores foi calorosa, com uma bela ceia que os esperava no grande salão do castelo. Luxo era algo que sempre teve de sobra no Château das Flores, conhecido não só pelas suas belas flores e jardins, mas também por seus finíssimos vinhos.

Madame Mariette de Vanderlee era uma bela dama de cabelos castanhos que cascateavam pelas costas quando não estavam presos num elegante penteado repleto de pequenos e delicados enfeites. Assim que viu Prateada, ela teceu elogios à beleza pueril da moça. Também elogiou Celine e a parabenizou pelo noivado, cumprimentando Ravin a seguir.

Foram levados às suas acomodações e, de lá, acompanhados à mesa especialmente preparada para eles, exceto os soltados e Constance, que foram comer na cozinha. Prateada achou isso estranho e deselegante, mas o Duque a advertira tanto durante os últimos dias sobre seu comportamento que ela preferiu não dizer nada.

Na grande mesa coberta com uma toalha de linho, porcelanas finas com fios de ouro e lindos pratos faziam uma bela vista para os convidados. Madame Vanderlee tratou logo de puxar um assunto, pois falar era sua especialidade. Logo, uma conversa animada quebrou o gelo e permaneceu agradável. Em nenhum momento, o motivo da visita veio à tona. Noisette e Henry estavam sorridentes e falantes e tudo aquilo soava estranho.

– Estão levando tudo isso bem demais... – sussurrou o Duque para Diderot ao seu lado.

– E quem é o rapazinho, Jean? – perguntou Madame Vanderlee.

– Este é Philippe du Noige, Mariette – respondeu o Duque. – É um órfão que vivia no campo e cuidou de Prateada antes da transformação.

– Ela era o bichinho de estimação dele? – riu Noisette.

– Era, mas aparentemente, ele agora é o humano de estimação dela! – provocou Henry.

– Henry e Noisette!!! – ralhou Madame Vanderlee. – Que modos monstruosos são esses?!

Os dois baixaram a cabeça, ainda rindo. Diderot olhou para Lamayer ao seu lado com uma expressão que dizia “Aí está...”.

– Desculpe meus modos, Philippe!... – disse Noisette com um sorriso cheio de dentes e olhos brilhantes e pequenos. – Mas me diga, você chegou a conhecer seus pais?

– Só minha mãe – respondeu Philippe, sentindo que estava pisando em terreno perigoso ali.

– Oh... É um bastardo, então? – perguntou novamente a moça com um tom de falsa piedade.

– Eu não me lembro dos meus pais! – interferiu Prateada. – Isso é realmente importante? Porque se for, então eu tenho um problema...

Prateada tinha falado pouco naquela noite e quando disse isso, o silêncio se instalou.

– Calma, Prateada... – disse Henry. – Só estamos curiosos, só isso!...


Madame Vanderlee guiou a conversa para outro rumo e os convidados se esforçaram para ignorar as alfinetadas de Henry e Noisette. No final da ceia, Lamayer percebia que conseguir o apoio de Madame Vanderlee para Prateada poderia ser um pouco mais difícil do que supusera, mas esperava que com uma boa conversa, pudessem chegar a um acordo. A ceia terminou e a noite também. O encontro com uma cama e uma coberta foi o ponto alto daquele dia.

 


Ficariam pouco tempo, a menos que a situação exigisse. Estavam fora há várias semanas e ainda havia mais châteaus para visitar. Como ficavam na direção contrária, pousariam antes no Château das Vertentes. A ideia de voltar para casa estava animando Prateada, que já começava a parecer mal humorada e cansada.

No dia seguinte, como os visitantes acordaram muito tarde, se encontraram para o almoço às onze da manhã. Talvez fosse a noite de sono, mas Henry e Noisette pareciam incrivelmente gentis e solícitos, especialmente com Philippe e Prateada. Madame Vanderlee e Lamayer começaram a falar de tempos antigos que nenhum deles vivera. Ravin e Celine pareceram ligeiramente entediados e voltaram suas atenções para a comida, talvez ressentidos da atenção exagerada que Philippe e Prateada estavam recebendo.

Quando terminaram, Henry convidou Ravin para um duelo amistoso, convite que foi prontamente aceito. Noisette não estava interessada em ver o irmão batendo espadas com quem quer que fosse e convidou Prateada para um passeio pelas vinhas, onde ela poderia ver as uvas responsáveis pelos melhores vinhos dentre todos os clãs. Noisette citou então uma lista de vinhos considerados maravilhosos e que não chegavam aos pés do vinho do Château das Flores.

– Você vai experimentar e vai ver a diferença, Prateada! Nossas uvas são as melhores do mundo, graças a uma técnica secreta que utilizamos na terra e no plantio! Nenhum vinho da França se compara ao nosso, nem mesmo os vinhos de Alsace, Bordeaux, Bourgogne, Champagne, Corse, Côtes du Rhône, L’Est, Languedoc-Roussillon, Provence, Savoie, Sud-Ouest e Val de Loire!

Prateada a olhou por algum tempo sem expressão nenhuma, até finalmente dizer.

– Eu gosto de uvas!

Noisette ficou um tanto chateada por ter gasto seu francês à toa, mas era uma moça muito insistente. Pegou Prateada pelo braço e a levou até os cavalos, falando o tempo todo, sem se importar muito se a outra estava acompanhando ou não.

Philippe pensou em ir até Diderot e os outros, que estariam provavelmente na taberna experimentando os famosos vinhos que eram os melhores do cosmo e de todos os tempos, mas foi surpreendido por Celine.

– Gostaria de dar um passeio?

Philippe estranhou o convite. Durante todo aquele tempo, tivera pouca ou nenhuma interação com Celine.

– Tem certeza? – perguntou ele.

– Claro! Que mal há?

A moça enganchou o braço no braço do rapaz e o puxou para fora do castelo.

 


– Jean, a notícia nos pegou de surpresa!... – disse Madame Vanderlee, ou Mariette, como Lamayer a conhecia.

– A nós também! – eles degustavam uma excelente taça de vinho produzida no château.

– Tive longas conversas com Henry e Noisette. Eles já sabiam que apenas um poderia ser representante do Château das Flores para a escolha de um representante dos Lobos Brancos. E sabiam que havia outros candidatos bem mais fortes. Mesmo assim, foi um golpe duro para eles...

– Celine também ficou muito desapontada... – disse Lamayer. – Ela foi educada a vida inteira para isso e agora vê outra tomar seu lugar. Mas ela já superou.

Mariette parou um pouco e olhou para o horizonte longamente.

– Você acha que a moça é uma boa escolha, Jean?... Tem mesmo certeza de que ela não será uma daquelas criaturas selvagens que acabam se tornando violentas e tomando decisões estúpidas que custam a vida de centenas de nós?

Mariette sabia do que estava falando. Se uma escolha ruim colocasse no trono um déspota, ou um louco, ou um tolo, as perdas poderiam ser irreparáveis. Já aconteceu na história recente dos Lobos.

Lamayer pensou antes de responder. Então olhou-a nos olhos e respondeu com honestidade.

– Ela é perfeita, Mariette... É inteligente, aprende rápido e sabe lidar com situações adversas sem ficar louca. Acredito que ela não só é nossa melhor chance de colocar um Lobo Branco no trono de novo, mas também que ela será uma excelente rainha para todos.

A dama anuiu lentamente com a cabeça, como se ponderasse seriamente sobre a questão.

– Então está bem... Se você diz que ela é sensata e não age como um animal, e que ela será uma boa rainha, eu a apoiarei...

Lamayer sorriu, mas ela não tinha terminado.

– Com uma condição...

Ele aguardou.

– Quero meus filhos na corte. Quero que ela os receba lá com algum título.

– E você? Ficará sozinha aqui?

A mulher riu.

– Eu irei visitá-los!

Por um momento, Lamayer pensou se ela queria realizar o sonho dos filhos ou o seu, livrando-se deles e mantendo-os longe.

 


O clima estava frio e úmido, embora não estivesse mais chovendo. Estavam no início do outono e, mesmo nessa época, o Château das Flores permanecia colorido e florido. Celine e Philippe caminharam lentamente pela cidade, onde havia barracas vendendo tecidos, frutas e coisas diversas.

– Esse lugar é lindo! – disse Celine. – Muito melhor que o Château das Pérolas!

– Qualquer lugar é melhor que o Château das Pérolas... – respondeu Philippe.

– Você ficou muito tempo sumido lá! Eu quase não o vi.

Philippe olhou de lado para Celine, tentando ler em sua expressão algum traço de humor. Teria Celine ficado tão alheia a tudo no Château das Pérolas que não sabia que ele passara a maior parte do tempo com crianças mestiças que estavam a morrer de fome? Ou seria só uma piada?

– Eu estava... em outros lugares... – respondeu ele.

– Puxa! Que específico!

Andaram em silêncio por mais alguns minutos, até que ele confessou.

– Eu estava ajudando umas crianças mestiças.

Celine o olhou com certo espanto.

– Por quê?

Philippe parou de andar. O braço dela se soltou e ficaram frente a frente.

– Porque elas estavam com fome! E não é só fome de comida. Tinham fome de afeto, fome de atenção, fome do pior tipo possível, porque é uma fome que consome a alma, e não só o corpo. Eu sei porque já tive esse tipo de fome. E por isso, fiquei feliz em saciar um pouco dessa fome para elas...

– Oh!...

– “Oh?” – repetiu ele. – É tudo o que você tem a dizer?! “OH!”

– Não sei o que dizer... – disse a moça, voltando a caminhar. – Eu compreendo que você queira ajudar, mas não acho que seja o melhor para você. Esse tipo de atenção a mestiços pode chamar a atenção para você de uma forma ruim...

– Eu sei... – respondeu ele. – Mas nem sempre podemos fazer somente o que é bom para nós.

– Eu me preocupo com você, Philippe... Gosto de você, você sabe... Não quero que nada lhe aconteça, só isso.

Eles sorriram, quebrando a tensão. Compraram umas frutas vermelhas numa barraca e comentaram sobre as pessoas que tinham conhecido, num tom de fofoca saudável. Algo chamou a atenção de Celine e ela correu para lá. Numa barraca de tecidos, ela pegou um que tinha um belo tom de verde musgo.

– Estava querendo comprar um tecido para fazer uma capa para Ravin, mas não sei qual cor escolher! – disse ela. – Você sabe o que cairia bem em Ravin?

– Sei – respondeu prontamente Philippe. – Um raio!

– Ah, Philippe! Não seja cruel!

– Eu?! – riu ele – Não ser cruel com Ravin?!

Celine colocou o tecido de volta ao lugar e se virou para ele, sorrindo.

– Eu sei que vocês tiveram maus momentos. Mas ele tem se comportado! Não houve nenhum incidente entre vocês desde que saímos do Château das Vertentes! Não digo que sejam amigos, mas acredito que poderiam conviver como pessoas civilizadas.

– Bom, o fato dele não ter me espancado durante esse período não quer dizer que ele tenha feito algo bom. Ele só não fez algo ruim! E nós tivemos um incidente, sim...

Celine arregalou os olhos e o puxou para longe das pessoas que passavam. Insistiu para que ele dissesse, mas Philippe achou que aquilo só ia piorar as coisas.

– Ouça, você vai se casar com ele. Ainda acho que é o maior erro que você pode cometer, mas não posso fazer nada sobre isso. Mas, se quer mesmo se casar com ele, é melhor parar de me perguntar coisas sobre ele. Mas não se iluda, Celine. Ravin não é um homem bom. Nunca foi. E nunca será.

Ele retirou uma mecha de cabelos loiros do rosto dela, delicadamente.

– Que pena... – disse ele com verdadeiro pesar. – Você merecia um amor mais belo...

Celine se perdeu por um momento nos olhos dele e foi como se o mundo tivesse parado por alguns instantes. Havia apenas silêncio e aquele azul profundo com traços violetas daqueles olhos impossivelmente bem desenhados a olhar para ela com ternura e preocupação. Então, de repente, ele sorriu e a puxou pela mão.

– Vamos, talvez você encontre o tecido que está procurando! Ou um tecido para você mesma!

Ele a levou até a barraca dos tecidos e começou a dar sugestões. Celine demorou a voltar ao momento. Sentia o toque da seda e o veludo, ouvia a voz dele, suas sugestões estapafúrdias, e então ouvia-se rindo. Pensamentos perigosos começavam a aflorar em sua mente – ou pior, em seu coração. Ela sacudiu a cabeça e os espantou para longe, voltando a se concentrar nos tecidos que lhe eram mostrados por um vendedor ávido por vender.

 

Capítulo 22


Onde há flores, há espinhos.

 

No fim daquele dia, depois da ceia, depois de darem atenção às pessoas mais importantes do château e depois de responder perguntas entediantes, Prateada finalmente foi deixada a sós em seus aposentos. Era um quarto de bom tamanho com grandes cortinas de duas camadas, janelas que iam até o teto, tapetes fofos e coloridos e uma cama alta e macia, com um dossel em um tecido fino que balançava levemente com o vento.

A moça suspirou profundamente, sentada na cama olhando em volta. Vasos ricamente decorados e quadros coloridos se espalhavam harmoniosamente pelo aposento e o clima estava ligeiramente frio, como ela gostava. Porém, sentia falta do Château das Vertentes. Sentia falta da sua cama, de seus lençóis e da sua rotina.

Um barulho na janela lhe chamou a atenção e ela correu para lá, já sabendo quem iria encontrar. Lá embaixo, nos arbustos, Philippe lhe sorria, depois de jogar uma pedrinha no vidro da janela, o código que usavam ao fim de todas as noites desde que saíram do Château das Vertentes.

Prateada acenou e estudou como desceria. Felizmente, tinha uma árvore bem próxima. Ela saltou e desceu pelos galhos, com muito medo de cair, mas confiando que Philippe a seguraria se acontecesse.

– Espero que nunca me coloquem numa torre! – disse ela, assim que pousou nos braços dele.

– Eu também!

Os dois se abraçaram e logo fugiram para recantos mais discretos, onde podiam ficar a sós. Em suas andanças durante o dia, Prateada já havia escolhido o lugar ideal! Pegou a mão dele e o guiou pela noite sob a Lua cheia que cobria tudo com sua luz perolada e difusa. Chegaram a um lugar alto.

– Olhe! – mostrou Prateada, assim que chegou.

Philippe deixou o queixo cair. Além deles, havia um lago brilhante, seguido de grandes áreas verdejantes, seguidas de montanhas delineadas contra o céu em camadas de degradê. E tudo isso era iluminado pela poderosa Lua cheia, bem acima deles, ofuscando as estrelas a sua volta.

– É lindo!...

– Eu sabia que ia gostar!

Um aroma de princesas-da-noite e antúrios cristalinos se acentuava sempre que o vento soprava mais forte. Prateada estremeceu e Philippe a envolveu com seu manto. Sentaram-se juntos, já se beijando, mortos de saudade por passarem o dia inteiro com outras pessoas, ou cercados por pessoas que não poderiam nem imaginar o que sentiam um pelo outro.

– Como foi seu dia com Henry? – perguntou Philippe, depois que se acomodaram num abraço quentinho a observar a paisagem.

– Foi bom... – disse Prateada sem entusiasmo. – Ele gosta tanto de ouvir a própria voz que eu não precisei falar nada.

Philippe riu, sua risada se misturando aos sons da noite, de sapos, grilos e corujas, como se fosse um sino no meio de uma orquestra de cordas. Prateada lhe perguntou o que ele fizera o dia inteiro.

– Celine me convidou para dar um passeio... Conhecemos o centro comercial do château, ela comprou um monte de tecidos e coisas que ela achou bonitas.

– E você? Não comprou nada?

– Bem... Já que você perguntou...

Ele tirou um embrulhinho que trazia escondido no bolso. Prateada arregalou os olhos ao receber o presente.

– Pra mim????

Ele entregou o presente e ela observou o pequeno embrulho finalizado com uma fita de cetim. Abriu avidamente, e se deparou com a joia mais linda que já tinha visto.

– Que coisa... linda!... O que é isso?

– É um camafeu! A imagem dentro dele é entalhada em pedra de outra cor, está vendo?

Em volta do perfil de uma delicada dama grega, arabescos dourados com pedrinhas muito pequenas davam um toque final na joia, pendurada por uma delicada corrente de ouro. Prateada a olhava sob a luz da lua, encantada, os lábios róseos entreabertos em uma surpresa quase infantil. Seus olhos se ergueram para ele, que sorria feliz em ver o presente fazer sucesso.

– Como você conseguiu comprar? Deve ter sido uma fortuna!

– Lembra da aposta que Diderot, Buffon, Eddard e Bergére fizeram no Château dos Damascos, quando eu ganhei aquela competição de arco e flecha?

Prateada anuiu com a cabeça.

– Eles ficaram muito agradecidos e me deram uma parte! Sinceramente, eu nunca vi tanto dinheiro na minha mão!

– Mas você não me contou nada!

– Eu queria lhe fazer uma surpresa! E parece que consegui!

Prateada sorriu como uma criança que ganhou o presente mais lindo do mundo e pediu a ajuda dele para colocar o colar, virando-se de costas. Ele afastou o cabelo delicado e fechou. Por um momento, ele apreciou a nuca clara, onde fios muito finos faziam pequenos redemoinhos. Ela se virou para ele de novo.

– Eu nunca ganhei nada tão lindo!... Obrigada!

Eles se beijaram mais uma vez e ficaram mais algum tempo, antes de finalmente voltarem para o castelo em segredo.

 


Nos dois dias seguintes, Prateada passou muito tempo com Madame Vanderlee, ou Mariette, como ela disse para a menina chamá-la. O Duque avisara à Prateada que não se iludisse com Mariette. Ela queria conhecer Prateada melhor para saber se ela era realmente uma boa aposta, boa o bastante para ela mesma abdicar da ideia de colocar um dos próprios filhos na competição.

Mas Prateada estava indo bem e Lamayer não via maiores problemas para receber o apoio de Mariette. Felizmente, era uma mulher inteligente e muito sensata. Desde que perdera o marido, Madame Vanderlee liderava o Château das Flores com extrema competência.

– Por que ela não se casou de novo? – perguntou Prateada ao Duque, quando este estava lhe dando as instruções. – Ela é uma mulher muito bonita!

– É... Mas nós Lobos temos apenas um par para a vida inteira – respondeu ele.

– Por quê?

O Duque deu um suspiro impaciente.

– Achei que você já tinha saído dessa fase irritante do “por quê”...

– Saí! – respondeu Prateada com um sorriso. – Mas voltei!

Como a moça continuasse esperando uma explicação, Lamayer acabou tendo que procurar pela resposta.

– Porque nós não nos contentamos com menos. Sempre esperamos e procuramos pela pessoa perfeita, aquela que foi feita para nós, e que nós fomos feitos para ela. E quando a encontramos, não a deixamos partir. E quando elas partem, não nos contentamos com ninguém menos...

Quando terminou, o Duque estava olhando para algum ponto distante e seus olhos pousaram num vaso de rosas brancas.

– Nossa... Isso foi muito bonito!...

Lamayer pareceu voltar ao mundo de repente.

– É, mas não se preocupe com isso, não é importante agora! O importante agora é se comportar como uma rainha e ganhar a confiança de Mariette! O que é isso?

Ele tocou no camafeu que brilhava no delicado colo da moça.

– Um presente! De Philippe! – respondeu ela com um sorriso orgulhoso.

– Como ele comprou isso?! – preocupou-se o Duque.

Prateada explicou a aposta e o Duque não falou mais sobre o assunto.

 


Era o último dia no Château das Flores e também o último dia da Lua cheia. O Duque não mais protelou o assunto que o preocupara quase a viagem inteira, e conversou com Mariette sobre o incidente com o estranho lobisomem que encontraram na estrada. Contou sobre o que os informantes de Sarrazin disseram.

– Essa criatura... – perguntou ela, preocupada. – Acha que pode haver mais de uma?

O Duque arqueou as sobrancelhas e moveu os ombros.

– Não faço ideia. Sinceramente, espero que não! Aquela coisa quase nos matou! Se não fosse Prateada, estaríamos todos mortos.

Mariette olhou pela janela com o cenho franzido.

– Uma criatura que se transforma fora da Lua cheia e não pode ser controlada pode ser um grande problema para nós...


Lá fora, Prateada aceitara o convite de Henry para dar uma volta a cavalo, depois que já tinha tomado chá com Mariette e respondido a uma série de perguntas que, aparentemente, não tinham relação com tronos, coroas ou competições. Eram perguntas de cotidiano e Prateada se sentiu a vontade com ela, e respondeu com naturalidade.

Prateada adorava cavalos e adorava correr. Ter um bom relacionamento com Henry de Vanderlee era, certamente, uma coisa aconselhável, segundo o Duque.

Philippe estava no jardim quando viu Celine. Ravin lhe disse algo no ouvido e ela sorriu, embora não parecesse muito natural. Então, ela olhou para Philippe e o sorriso ficou triste e desapareceu lentamente. Ravin a tomou pela mão e ela caminhou com ele, até sumirem atrás de alguns gerânios.

Philippe balançou a cabeça. Gostaria de fazer alguma coisa para salvar Celine. Mas algumas pessoas não podem ser salvas por ninguém, a não ser por si mesmas.

– Celine o trocou hoje?

Ele se virou e encontrou o sorriso de Noisette, os cabelos castanhos presos para trás e a franja emoldurando seus olhos de ratinho.

– É, parece que nós dois fomos deixados de lado hoje... – continuou ela. – Que tal um passeio a cavalo? Estou certa de que há locais aqui que você ainda não conheceu.

Philippe tentou recusar, mas Noisette sabia ser bem insistente e ele acabou concordando. Buscaram os cavalos e seguiram pelo outro lado do castelo, passando por uma parte da cidade que de fato ele não vira. Casas com chaminés, cachorros nas ruas, cheiro de pão, crianças correndo... E Noisette falando...

Ela falava sobre as maravilhas do Château das Flores, sobre suas qualidades, suas riquezas e suas belezas. Philippe ouvia com atenção enquanto cavalgavam calmamente pelas ruas.

– Vocês têm mestiços aqui? – perguntou ele de repente, interrompendo-a.

– O quê? Mestiços? Aqui? – Noisette pareceu se perder.

– É. Vocês têm?

– Bom, quem não tem, não é mesmo? Eles estão por toda parte...

– E como eles vivem? – perguntou Philippe.

– Enquanto não se transformam, vivem por aí, como podem. Quando são jovens e bonitos, conseguem quem lhes pague por sexo. Mas quando se transformam, então são aceitos junto com os outros, embora, você sabe, nunca é a mesma coisa...

Philippe ficou boquiaberto e não sabia o que o chocava mais: se era o fato de crianças se prostituírem ou a naturalidade com que Noisette falava disso.

– Por que quer saber de mestiços? – perguntou ela.

– Não estamos nos afastando demais? – Philippe mudou rapidamente de assunto, embora não conseguisse disfarçar a aspereza na voz.

– Não, estamos bem... Mas, me diga... – disse a moça, de repente. – Você e Prateada são amantes?

A pergunta o pegou de surpresa.

– O... O quê?

– Qual o problema? – riu Noisette. – Ela é bonitinha! E você é bem bonito também! Se estão sempre juntos, qual o problema? E então? São ou não são amantes?

Ele perdeu a fala por alguns segundos.

– Não! Claro que não! Que tipo de pergunta é essa?

– Pois eu não acredito! O jeito que vocês se olham, é coisa de quem se ama... Vocês podem até não ser amantes agora... Mas aposto que vão ser algum dia...

– Podemos mudar de assunto?

– Claro! E Celine? Vocês já tiveram alguma coisa?

Philippe bufou sem perceber, irritado com a sabatina de perguntas constrangedoras.

– Estamos longe demais, é melhor voltarmos – disse ele.

– Você quer mesmo fugir dessas perguntas, não?

E Noisette continuou falando, e foi quando Philippe percebeu que estavam numa parte diferente. As casas eram bem pobres, valas atravessavam a rua e havia pessoas, cada vez mais numerosas, vendo-os passarem. Elas não sorriam, e Philippe sentiu uma sensação muito ruim quando aquelas pessoas que pareciam muito zangadas olhavam para ele. Até que ele ouviu uma voz na multidão, e ele reconheceria essa voz em qualquer lugar e sempre com um calafrio a lhe percorrer a espinha.

 


A colina estava ainda mais verde por causa da chuva e pequenas flores brancas salpicavam o lugar, dançando graciosamente ao vento. Prateada estava feliz com a cavalgada, o vento no rosto e a sensação de liberdade. Estava tão feliz que não prestou muita atenção à conversa particularmente enfadonha de Henry, que falava sobre as vantagens de se disputar o trono com representantes dos outros clãs. Até que algo que ele disse a fez atentar para a conversa.

– Mesmo que você perca, ainda será um membro do Conselho dos Guerreiros, o que ainda será uma honra!

– Conselho do quê?

– Conselho dos Guerreiros! É como o Conselho dos Sábios, só que formado por pessoas com menos de um século de idade.

Prateada já tinha ouvido falar do Conselho dos Sábios, ou Conselho dos Anciãos. Madame Margaux era um membro, e eram eles os responsáveis por decisões relacionadas à posse. O Conselho era formado por um membro de cada clã, escolhido pela sua sabedoria, algo que só se consegue com experiência, algo que por sua vez só se consegue com o tempo. Por isso, era formado exclusivamente por pessoas de idade avançada, chamadas sábias ou elders.

Já o Conselho dos Guerreiros era novidade para ela.

– E o que eles fazem?

– No Conselho dos Guerreiros? Bem, nessa época de paz, não muito... – respondeu Henry. – Eles são responsáveis por questões bélicas, disputas de sangue entre membros de clãs diferentes, ou mesmo entre châteaus. Eles também são responsáveis pela estratégia, em caso de guerra com humanos, bruxas, magos, ou vampiros. Geralmente, os candidatos ao trono que não vencem, terminam como membros do Conselho dos Guerreiros, substituindo seu predecessor. Algumas vezes, há uma disputa, pois o predecessor não quer sair.

– Nossa! – disse Prateada, que não se via particularmente interessada em estar nem em um, nem no outro Conselho.

– Olha! Não é seu amigo, Philippe?

Prateada olhou e os assuntos políticos deixaram imediatamente sua mente. Seu coração disparou, as mãos apertaram o cabresto e sentiu a tensão que precede a luta percorrer todo o seu corpo. Com um grito, esporou o cavalo e disparou na direção do tumulto.

 


– É esse o mestiço! Por causa dele não temos comida para nossas crianças!

Assim que a voz conhecida o acusou, xingamentos cresceram, assim como a ira daquelas pessoas. Philippe se virou para Noisette, mas para sua surpresa, não encontrou ninguém. Um burburinho de acusações que ele não entendia crescia e uma pedra voou certeira, acertando-lhe a testa. Desequilibrado e atordoado, tentou se segurar no cavalo e sair dali, mas outra pedra o derrubou de vez.

Philippe tentou se proteger, mas os ataques se tornaram mais violentos e ele previu o pior. As pessoas o xingavam e o acusavam de ser o culpado da fome que passavam, e jogavam pedras e elas atingiam seu corpo sem piedade. Quando achou que não teria a menor chance de sair dali com vida, ouviu um cavalo se aproximando com velocidade e alguém descendo e chamando seu nome. Reconheceu de imediato a voz de Prateada.

As pessoas pararam imediatamente o apedrejamento e os xingamentos, atônitas com a chegada dela. A seguir, um novo burburinho começou a se espalhar.

– Essa é a futura rainha! Essa é a pura que a Deusa nos enviou!

Prateada se abaixou, abraçando Philippe para protegê-lo, mas ninguém mais o estava atacando. Então ela viu o sangue abundante escorrendo pelo rosto dele e pingando no chão de terra.

Seu coração batia como um tambor. Seus olhos adquiriram a cor dourada, brilhando como se estivessem acesos. Sentiu seus dentes começarem a crescer e se tornarem pontiagudos. Em suas mãos delicadas, as unhas começavam a crescer transformando-se em garras pontiagudas. Olhou para as pessoas em volta com um rosnado que precedia o ataque final. O povo maltrapilho passou lentamente da admiração para a consciência do que ia acontecer. Ela era aquela que podia se transformar a qualquer hora, do dia ou da noite, não importava a lua. Ela era aquela que se transformava numa fera duas vezes o tamanho de uma fera normal. Ela era a pura. E ela ia matá-los.

Prateada sentiu alguém segurar firmemente seu pulso. Virou-se surpresa e Philippe a olhava entre os cabelos caídos sobre o rosto ensanguentado.

– Não faça isso! – sussurrou ele, apertando o pulso dela.

– Mas...

– Sem mas! – insistiu ele. – Não faça isso!

Prateada hesitou. Virou-se novamente para as pessoas emitindo um rosnado raivoso. Philippe apertou mais seu pulso, obrigando-a a olhar para ele.

– Confie em mim!

Então, o brilho dourado dos olhos dela se apagou, deixando-os novamente da cor do tronco da cerejeira. As garras voltaram a serem unhas e ela voltou a ser a moça que ele conhecia.

– Vamos, me ajude a voltar para meu cavalo... – murmurou ele, vendo tudo dobrado e embaçado.

Ela o ajudou a se levantar e o apoiou até o cavalo que estava a poucos metros de distância, sob o olhar surpreso e o silêncio da pequena multidão de pessoas zangadas que, no final das contas, não passavam de pessoas famintas.

 

Capítulo 23


De volta para casa

 

O Duque e Madame Vanderlee estavam tomando chá, falando sobre possíveis casamentos para seus filhos. Depois de discutirem sobre a questão do lobisomem que os atacara, preferiram falar de coisas mais leves.

– E o que achou de Prateada?

Madame Vanderlee terminou de degustar o gole de chá de rosas que estava tomando e então respondeu, olhando nos olhos do Duque.

– Você a treinou muito bem...

Lamayer sorriu e tomou ele mesmo o chá.

– Treinei – admitiu ele. – Mas o fato é que há coisas nela que não nasceram do treinamento, nem das aulas de Constance.

– Se ela chegar ao trono, e não se iluda Jean, ainda é um longo caminho, mesmo ela sendo uma pura, acredita que poderá controlá-la? Porque tivemos casos no passado de puros que surtaram ao chegar ao poder, tomando decisões bem equivocadas.

– Compreendo sua preocupação, Mariette, mas Prateada não é assim. Ela saberá agir de acordo, quando chegar a hora.


Celine chegou quase aos tropeços na varanda, onde Lamayer e Madame Vanderlee tomavam seu chá perto da janela. Estava um pouco pálida e parecia surpreendida pela presença de Madame Vanderlee.

– Algum problema, Celine? – perguntou o Duque.

Celine olhou para Mariette e hesitou um pouco, antes de falar.

– Papai... É melhor o senhor vir comigo. Temos um... uma... um... uma situação!

O Duque pediu licença à Madame Vanderlee e seguiu a filha a passos apressados, imaginando o que Prateada, ou Philippe, ou os dois, tinham feito agora.


Quando entrou nos aposentos de Philippe, encontrou-o sentado na cama com sangue na roupa e no rosto, segurando uma compressa na testa. O Capitão estava com ele, assim como Prateada. Ravin estava recostado perto da porta de braços cruzados e com um sorriso de satisfação. Sabia que alguém, em algum momento, ia colocar o mestiço em seu lugar.

– O que aconteceu? – perguntou o Duque, virando-se diretamente para Ravin.

– Não olhe para mim, eu não fiz nada! – defendeu-se o moço.

Prateada resumiu o que acontecera, mas ela acompanhara apenas o final da história, deixando lacunas preciosas a serem preenchidas.

– Eles estavam chamando você de mestiço? – estranhou o Duque. – Como poderiam saber?

Ele se virou para Ravin, que novamente se defendeu.

– Não abri a boca!

– É verdade, papai – defendeu-o Celine. – Ele ficou comigo quase o tempo inteiro.

– Mas passou muito tempo com Henry – suspeitou o Duque.

– Não – respondeu Philippe. – Não foi Ravin. Foi Gerard.

– Gerard? – o Duque precisou fazer um esforço de memória.

– O beberrão que eu trouxe em minha última visita para aprender algumas técnicas de vinicultura – relembrou o Capitão. – Era o antigo capataz de Philippe. Deixei-o aqui depois que ele bebeu as garrafas mais caras da coleção de Henry. Ele trabalharia até pagar sua dívida.

Lamayer fez uma expressão de ter compreendido parte da história, mas ainda havia alguns inimigos que precisavam ser revelados.

– Mas ele não fez isso sozinho – tornou Philippe, que mesmo com a cabeça doendo como se tambores tocassem dentro dela, não conseguira parar de pensar em como tudo aquilo aconteceu.

As pessoas da sala esperaram que ele falasse. O rapaz fechou os olhos, tentando se concentrar para colocar em palavras o que estava pensando.

– Aquelas pessoas... Estavam famintas. Estavam zangadas porque estavam famintas. E alguém lhes disse, antes de chegarmos lá, que a culpa, sei lá por que, era minha. Então, Noisette me leva para o meio de pessoas muito zangadas comigo e desaparece, enquanto Henry leva Prateada para assistir de camarote meu apedrejamento.

– Eles armaram... – disse o Capitão, virando-se para o Duque em seguida. – Quando viu o que estava acontecendo, Prateada ficou furiosa! Se ela tivesse se transformado como eles esperavam, ia ser um massacre!

O Duque caminhou lentamente pela sala, completando o raciocínio.

– Isso mostraria que ela é instável, e ela perderia a confiança de Madame Vanderlee, e provavelmente de outros châteaus aonde a história chegasse. Sem falar que estamos na Lua cheia e se houvesse feridos sérios, ou mesmo mortes, haveria retaliação hoje a noite...

Lamayer se aproximou do casal. Ele se virou para Prateada, sentada na cama, ao lado de Philippe.

– O que a impediu? – perguntou ele.

– Philippe – respondeu ela, olhando nos olhos do Duque. – Philippe me impediu.

Philippe entregou a toalha molhada e já vermelha de sangue para Constance que acabava de chegar com uma bacia de água limpa e mais toalhas.

– Isso é verdade?

A voz feminina e firme foi inesperada no quarto. Eles se viraram e se depararam com Madame Vanderlee na porta. Ela parecia mais decepcionada do que surpresa. O Duque respirou fundo, vendo que não havia mais como esconder os fatos.

– Sim, é verdade – respondeu ele. – Philippe é um mestiço.

Madame Vanderlee deu alguns passos na direção deles.

– Não, não sobre isso. Sobre meus filhos. É verdade que eles emboscaram esses dois?

O pequeno grupo se entreolhou rapidamente. E então, Lamayer confirmou com um movimento de cabeça.

Os olhos de Mariette brilharam. Dava para ver que algo dentro dela se estilhaçara.

– Eu esperava o melhor deles... – murmurou ela, com desapontamento.

– Nós sempre esperamos – concordou o Duque.

Então ela se voltou para eles, dessa vez com uma nova postura, altiva e determinada, como costumavam sempre vê-la.

– Espero que perdoem meus filhos. A ambição deles aparentemente é mais forte que seu caráter. Se precisarem de algo para o rapaz, é só avisarem. Eu falarei com eles sobre esse... incidente.

Ela se virou para ir, mas parou na porta.

– Prateada tem meu apoio, Jean – disse ela. – E o segredo do garoto estará seguro, não se preocupe.

 

As despedidas foram breves. Henry e Noisette pediram desculpas, o que não queria dizer muita coisa, uma vez que era claro que estavam sendo obrigados e desculpas insinceras são como um prato vazio e talheres de prata para um faminto. Madame Vanderlee se despediu carinhosamente de Lamayer e em poucos momentos, eles deixavam todo o viço e beleza do Château das Flores para finalmente voltarem para casa.

Partiram no primeiro dia da Lua minguante e passaram cinco dias na estrada. O outono começava a pintar as árvores de amarelo e os ventos eram constantes. Philippe recusou veementemente um lugar na carruagem, insistindo em seguir a cavalo. A cabeça doía, o corpo também, mas ele não se importava. Pela primeira vez, alguém ficara do seu lado. E alguém lhe pediu desculpas. Mesmo sem a menor sinceridade, aquelas desculpas ainda eram um bálsamo para o ego.

As noites ainda eram apreensivas, pois o ataque definitivamente deixara certas marcas. Mas nada aconteceu. E, ao final de cinco dias, estavam de volta ao Château das Vertentes.


Prateada entrou correndo pelo castelo e foi abraçar Chalise. Encontrou também Eponine e a abraçou também, pois estava morta de saudades. Encontrou Fernand no caminho, mas passou direto por ele, pois nunca gostara do administrador do Duque. Subiu as escadas correndo e pulou em sua cama, sentindo o cheiro e a textura da colcha. Então respirou profundamente e dormiu quase que imediatamente.

Diderot e os soldados foram dispensados e desapareceram em questão de segundos. Assim que ouviu o trote do cavalo, Emily saiu correndo de casa com um belo sorriso. Ele saltou e correu ao seu encontro e se abraçaram felizes. Beijos deram vazão à saudade das semanas em que ficaram separados e ao alívio de estarem juntos de novo.

E assim, o grupo logo se dispersou, indo descansar da longa viagem.

 


Os dias se passaram e foi bom voltar à velha rotina. Prateada dormia muito, e ninguém estranhou que ela acordasse todo dia tão tarde, sem nem suspeitar que, na verdade, Prateada estava saindo com Philippe todas as noites, onde conversavam e se beijavam longamente em recantos só deles.

Falavam sobre todas as coisas que ela poderia fazer quando fosse rainha, sobre como poderiam ajudar tantas pessoas, não só mestiços, mas também Lobos Brancos que, em certos châteaus, não tinham nome nem posses e eram obrigados a viver na pobreza.

– Eu nunca vi tal coisa aqui... – disse Prateada, em uma dessas noites em que ficavam abraçados olhando as nuvens se moverem pelo céu.

– Hum?

– Pessoas tão pobres, tanta fome, ou crianças que precisam se vender para comer. Nunca vi nada disso no Château das Vertentes. Bom, talvez o Duque não seja tão mau assim!

Philippe deu um suspiro pesado e, sem perceber, seu rosto ficou pesado. Prateada percebeu que o companheiro ficou subitamente tenso, mas Prateada nem sempre – na verdade, quase nunca – sabia quando parar ou quando deixar um assunto para lá.

– Eu sei que não gosta dele, Philippe, mas até você vai concordar que, pelo que vimos, não é tão ruim morar aqui no Château das Vertentes!

– Não, não é – respondeu ele. – Pelo menos, não agora! Não há outros mestiços no Château das Vertentes, então não tenho muito como comparar, mas posso lhe dizer uma coisa: vivi a vida inteira aqui e experimentei todo tipo de preconceito e humilhação. Quando finalmente consegui me defender de Ravin e sua matilha, seu amado Duque me mandou para o tronco! Gerard fazia o que queria comigo e ele nunca impediu! Se não fosse a interferência do Capitão, nem sei se estaria vivo a essa altura e só Deus sabe o que já teriam me feito! Então, me desculpe se não tenho qualquer tipo de gratidão pelo Duque! Pra mim, ele é tão ruim quanto todos os outros!

Irritado, Philippe se levantou e se afastou alguns passos. Sabia que Prateada não merecia sua explosão, mas ouvi-la acreditando que o Château das Vertentes era um paraíso lhe doeu. Talvez, fosse um paraíso para ela, que ia ser rainha, como era para Ravin, para Celine, para Jacques e todos de sangue nobre e puro.

Um toque suave em seu ombro o fez se virar e se deparar com os olhos brilhantes da moça.

– Desculpe, eu não quis chatear você...

Ele relaxou os ombros, anuindo com a cabeça.

– Eu sei... Me desculpe também. Eu só tenho medo de...

Ele olhou para ela e pareceu perdido. As palavras não saíam.

– Medo de quê?

– Medo que você esqueça... Esqueça como a vida é ruim para aqueles que são como eu. Tenho medo que se distraia com todo o luxo, e que toda a riqueza e conforto a façam se esquecer de que só você, Prateada, pode mudar algumas coisas! Tenho medo de que se esqueça do que combinamos. Tenho medo que se esqueça de Félicien, de Pierre, de Maurice, de Yvone, de Valérie, de Mariane, de Louise, de Diana, de Coraline e de Rhenán! Tenho medo... que se esqueça de mim...

Prateada acariciou delicadamente o rosto dele, cujos olhos estavam brilhando com um leve desespero. Ela sorriu serenamente e, para ele, foi como tomar um copo de água fresca num dia muito quente.

– Eloise... – disse ela.

– O quê?

– Eloise! O nome da menina da casa de Cora e Rhénan. Não era Louise. Era Eloise. E eu não vou me esquecer. Serei rainha, Philipe, e você estará ao meu lado. E, juntos. Vamos mudar muita coisa...

Ele tocou o belo rosto dela.

– Promete?

Ela se esticou e o beijou. Quando seus lábios se separaram, ela o olhou profundamente nos olhos.

– Tem minha palavra... – respondeu ela. – E meu coração. E meus pensamentos.

Ele a puxou para mais perto, abraçando-a sentindo o coração doer de tanto amá-la.

– E você tem os meus...

 


Capítulo 24


Uma vida letrada

 

Conforme os dias se passavam, a rotina começou a ser restabelecida. Com o sono em dia e finalmente se sentindo descansada, Prateada acordava tarde, e almoçava com o Duque e sua filha, agradecendo por não ter mais que tolerar em seu dia a dia a presença de Ravin.

– Que lindo seu colar! – admirou-se Celine, que ainda não tinha notado o camafeu no pescoço de Prateada.

– Philippe me deu! – disse a moça orgulhosa, deixando que a outra visse os detalhes das pedrarias.

– Como ele conseguiu pagar por isso?!

– Viu o que ele está fazendo no jardim? – Prateada ignorou a pergunta de Celine, mas não foi por mal. Muitas vezes, a atenção dela era bem dispersa.

– Eu o vi lá, mas não sei o que está fazendo – respondeu Lamayer, pegando um pedaço de carne.

– Ele está plantando as sementes que trouxe dos outros châteaus!

Lamayer e Celine a olharam por alguns instantes, sem saber como reagir diante de tamanha empolgação.

– Ele pegou sementes das flores mais bonitas e das plantas com folhagens mais vistosas, e está plantando aqui, no nosso jardim! Ele disse que é uma forma de sempre nos lembrarmos dos lugares que conhecemos!

– É uma teoria interessante... – murmurou o Duque.

– E quando é que vamos viajar de novo? – perguntou Prateada, enchendo a boca com um pedaço de pão fresco.

– Você acabou de chegar, menina! – riu o Duque.

– Sim, mas já descansei! Quando quiser, já podemos ir de novo!

– É bom saber, mas havia uma carta me esperando quando cheguei e ela carece de atenção.

– Algo ruim, papai? – perguntou Celine.

– Não, meu anjo, não. Mas pode mudar um pouco nossos planos de levar Prateada aos outros châteaus.

– Tudo bem! Eu gosto de ficar aqui também! – respondeu Prateada, pegando um pedaço de carne e comendo junto com o pão.

 


Enquanto eles comiam, Philippe terminou o que estava fazendo no jardim e seguiu para a casa de Diderot e Emily. Foi com sua égua branca, Alvorada, já refeita da viagem e muito bem alimentada, limpa e escovada, como ele gostava de mantê-la. Queria chegar logo, pois não gostava de deixar Madame Emily esperando.

Assim que chegou, a bela mulher abriu os braços e o recebeu com alegria, as bochechas coradas pelo sol acentuando suas sardas.

– Meu querido menino, achei que não viria mais!

Philippe a abraçou sorrindo, sentindo o cheiro de alecrim em seus cabelos protegidos por um lenço.

– Como foi a viagem?

– Cheia de emoções! Imagino que Diderot já tenha lhe contato alguma coisa!

– Com certeza, mas tenho certeza de que há muita coisa ainda para contar! Venha, o almoço está pronto e Diderot já deve estar chegando!

O rapaz entrou e Emily o estava servindo quando o Capitão chegou. Cumprimentaram-se animados e contaram piadas sobre as pessoas que conheceram, numa refeição feliz e farta, com o bom e velho tempero de Emily. Diderot por vezes implicava com ela dizendo que tudo em sua comida levava alecrim ou sálvia, ou ambos. Mas não era verdade. Emily era uma grande amiga dos temperos e sabia utilizá-los muito bem.

Quando terminaram, Diderot voltou para seu trabalho na cidade, onde algumas disputas de terras, de animais e até uma panela roubada estavam na pauta do dia. Philippe lavou os pratos e então saiu com Emily para colher algumas leguminosas na horta e colher as ervas de que ela precisava.

O serviço na horta foi rápido. Colheram alguns nabos, algumas cenouras e algumas alfaces. Para as ervas medicinais, no entanto, foram um pouco mais longe, mas não muito, pois Emily sempre plantava por perto as plantas e ervas de que precisava com mais constância. Ela pegou uma folhinha com cheiro forte e mostrou-a para Philippe.

– Vê como é aveludada? – explicava ela. – Ela é boa para todo tipo de problema de estômago. Basta fazer um chá bem forte. O gosto é horrível, mas funciona!

Philippe lhe contou sobre o chá de ervas que sua mãe lhe ensinou para doenças do frio e Emily reconheceu prontamente a receita, embora não costumasse utilizar uma erva a mais que Elle usava. Foram trocando informações e ela ensinava com prazer ao rapaz que tinha prazer em aprender.

Em dado momento, quando ela colhia com cuidado uma erva com folhas muito miúdas, ficaram em silêncio.

– Emily... – Philippe já se acostumara a chamar tanto ela quanto Diderot por nomes sem títulos, assim como se acostumara a passar parte do tempo em companhia dessa família adotada. – O que sabe da história do Rei Pares?

Emily parou um pouco e tirou o suor da testa, dando graças pelo clima fresco, pois ela detestava o calor excessivo.

– Bem, é uma história muito conhecida... – disse ela. – Dizem que é uma história de amor.

Emily contou o que Philippe já sabia. Rei Pares era um bom rei, que apaixonou-se por uma mestiça e, enfrentando o preconceito e quebrando todas as regras convencionais, casou-se com ela e transformou-a em rainha. Por conta de uma traição, a rainha foi brutalmente ferida e rei Pares se vingou, quebrando a Lei Máxima dos Lobos.

Até aí, a história era a mesma que Philippe já ouvira.

– Foi um ataque de inimigos? – perguntou ele. – O que motivou o rei Pares a matar? O que aconteceu realmente?

Emily recostou-se numa árvore.

– Não, foi pior... Foi uma traição de amigos... Uma traição de amigos é mil vezes pior que o ataque de inimigos.

Então ela lhe contou que o rei Pares era muito popular entre os pobres, mas suas decisões estavam afetando nobres, pessoas que sempre foram ricas e não estavam gostando da ideia de ganhar menos, ou de dividir suas posses quando a fome se fazia presente. Títulos de nobreza foram outorgados a plebeus e camponeses que agiam com heroísmo, injustiças cometidas por nobres estavam sendo corrigidas, enfim... Nem todos estavam satisfeitos.

Dentre essas pessoas insatisfeitas, havia algumas que eram bem próximas de Pares e que ele considerava amigos. Seus nomes eram Chrétien de Villehardouin, Geoffroi de Troyes e Béroul de Béthune, amigos pessoais do rei. Essas pessoas armaram uma cilada da qual ele não poderia sair. Pagaram a dois soldados para violentarem a rainha na ausência do rei. Quando ele voltasse, sabiam que ele mataria os dois soldados, quebrando a Lei Máxima e sendo assim deposto e condenado. Porém, esses homens não permitiram que os soldados fugissem e os traíram também. Quando rei Pares voltou, já encontrou o circo armado. A esposa violada e os homens que cometeram o crime sofrendo torturas na masmorra, com suas línguas cortadas.

Philippe estava de olhos arregalados ouvindo a história de tragédia e horror.

– Mas... Ela era a rainha! – espantou-se.

– Sim, e um crime como esse nunca tinha sido visto antes na corte. Ou, ao menos, nunca chegou ao nosso conhecimento. Foi um grande escândalo, uma coisa horrível!

– O que aconteceu então?

– Rei Pares voltou e foi ter com os soldados. Um deles sabia escrever e assim conseguiu contar tudo. Rei Pares os mutilou...

Philippe, atento a história, nem se mexia, o que levou Emily a deduzir que ele não entendera o que ela quisera dizer. Com a faca que estava cortando as ervas, ela pegou uma pequena cenoura que tinha colhido e a cortou.

O rapaz arregalou ainda mais os olhos, exclamando um “AI” dolorido.

– Pois é, ele não matou os soldados. Ele teria se saído bem se não tivesse ido atrás de cada um dos homens que tramaram a coisa toda. Eram três homens muito importantes, muito influentes e muito poderosos. E, mesmo assim, ele os matou.

– Minha nossa!...

– É, dizem que é uma história de amor, mas na verdade é está mais para uma história de terror!

– E o que aconteceu com eles, Pares e a rainha?

– Ninguém sabe! Eles desapareceram logo depois. Dizem que fugiram e foram acobertados por gente do povo, por quem eram muito queridos. Outros dizem que ela morreu de melancolia e ele se matou em seguida. Há quem diga até que foram para o Reino das Fadas, que sempre recebe bem os apaixonados.

Philippe remexeu um pouco a terra, distraidamente.

– E você? – perguntou ele. – Em que acredita?

Emily sorriu, imaginando porque ele ia querer saber o que ela pensava e no que isso ia mudar o fato de que ninguém realmente sabia o que aconteceu.

– Bem... Eu acho que eles fugiram, e se recuperaram de todo esse horror, porque estavam juntos e se amavam. E eu acredito que o amor cura tudo.

Eles continuaram conversando, falando das coisas do mundo, enquanto Emily lhe passava um pouco de sua sabedoria das ervas. E assim, mal viram a tarde ir embora.

 


Alguns dias se passaram, até que Lamayer mandou chamar Prateada. Ele analisara com cuidado a carta, e todas as suas opções. Achou que o melhor era falar logo com a moça e, a partir da reação dela, tomar a decisão.

Ela entrou animada em seu escritório e sentou-se, esperando ele falar com olhos atentos e curiosos.

– É sobre nossa viagem?

– De certa forma.

De pé, Lamayer se recostou na mesa, ficando de frente para a moça que não tirava os olhos dele.

– Recebemos uma carta do Château das Letras.

– Devia ter um monte de letras nela! – brincou Prateada.

O Duque riu, tornando a sala mais amena.

– O Château das Letras é um lugar especial porque possui os melhores professores, pensadores e filósofos de todos os clãs. Raras são as pessoas que eles escolhem para passar algum tempo lá. Eles ouviram sobre você, o que é bom! E eles mandaram um convite para você passar algum tempo lá, onde vão lhe ensinar filosofia, ocultismo e línguas. Se for governar, você terá que lidar com clãs que estão espalhados pela Espanha, Inglaterra e Rússia. Terá que lidar também com líderes humanos, especialmente representantes do clero. O conhecimento que eles podem lhe passar seria muito útil. Assim, seria muito bom se você pudesse ir.

– Está bem... Nós vamos para o Château das Letras então!

Lamayer se sentou lentamente numa cadeira ao lado de Prateada, posicionando-a com cuidado para que ficassem mais próximos.

– Esse é o problema, Prateada. Não há nós. É uma viagem de seis meses, no mínimo. Não posso me afastar do Château das Vertentes por tanto tempo, assim como não posso abrir mão do Capitão. Celine certamente vai querer planejar o casamento e vai precisar de Constance.

Prateada olhou para o chão, um tanto desapontada.

– Mas Philippe pode ir, não?

O Duque demorou para responder.

– Pode – respondeu ele. – Ele pode ir.

Prateada sorriu, mais aliviada.

– Mas se você gosta mesmo dele, não deveria deixar que ele fosse.

A menina sacudiu rapidamente a cabeça, confusa.

– Você já viu como tratam mestiços no Château das Pérolas. O mesmo ocorre em outros châteaus, e acontecem coisas até piores. Se ele for com você, em seis meses será muito fácil perceberem que a transformação não chegou para ele. Isso o deixaria muito vulnerável. Seria bem ruim para você se descobrissem quem ele é, talvez colocasse por terra suas chances de assumir o trono. Mas, acredite, seria bem pior para ele.

Prateada olhou longamente para o Duque, procurando verdade em suas palavras. E a encontrou. Então ela curvou um pouco os ombros.

– Posso pensar sobre isso?

Lamayer anuiu com a cabeça e a moça se levantou e deixou sua sala, não correndo como sempre fazia, mas devagar e pensativa.

 

 

Quando Diderot chegou em casa naquele fim de tarde, Emily estava fazendo um cachecol para ele. Conversaram sobre as pequenas coisas do dia – justamente aquelas que o fazem grande ao fim de tudo.

– E você já sabe quando partirão de novo? – perguntou ela, servindo-lhe uma caneca de vinho.

– Sinceramente, nem sei mais se vamos! O Duque recebeu um convite do Château das Letras convidando Prateada para uma temporada de seis meses. Mas ele acredita que Prateada possa ir sozinha, acompanhada de alguns criados de confiança, como Eponine e alguns soldados. Ele não quer que ela leve Philippe... Só não sabe se ela vai aceitar ir sem ele.

Emily olhou em silêncio para seu cachecol em evolução em suas mãos.

– Talvez seja melhor que ele não vá... – disse ela.

Diderot a olhou curioso.

– Ele tem perguntado muito sobre a história do rei Pares – explicou ela.

– E daí?

– Como e daí? Não percebe? Ele e Prateada andam muito juntos, são inseparáveis...

– Como irmãos!...

Emily o olhou, arqueando as sobrancelhas, sem acreditar na ingenuidade dos homens.

– Ou como um casal de apaixonados... – completou ela.

Diderot olhou para o nada, revendo tudo o que sabia sobre os dois jovens sob uma nova perspectiva. Levou apenas alguns segundos para a ideia o atingir por inteiro.

– Pela Deusa... Você acha que eles estão apaixonados?

Emily anuiu lentamente com a cabeça.

– Acho, sim... E acho que é um amor puro e lindo e verdadeiro. Como o nosso... Mas fadado à tragédia. Eles não são mais crianças, Diderot. Talvez seja melhor que se separem um pouco. Eu detestaria ver qualquer um dos dois magoado...

Diderot respirou profundamente, e então tomou um gole grande do vinho que lhe desceu um pouco rascante demais.

– Eu também...

 

Capítulo 25


O caminho de cada um

 

Passeavam pela cidade naquela tarde de outono. O friozinho os fazia se aquecer em seus mantos e desejar tomar alguma coisa quente, algo que a taberna Presas de Prata poderia oferecer, mas Philippe tinha dúvidas sobre levar Prateada lá. Não queria se indispor com o Duque. De novo.

– A padaria do senhor Lacroix! – disse ele.

– Hummm... Lá sempre tem pão quentinho! – concordou Prateada.

Correram até chegar lá e o senhor Lacroix os recebeu com um sorriso. Compraram dois pães recém-saídos do forno e saíram para comer, quando o padeiro os chamou de volta.

– Está um pouco frio lá fora! Comam aqui mesmo!

Ele apontou uma mesinha com duas cadeiras. Eles aceitaram, pois estava mesmo mais quentinho lá dentro por causa do grande forno à lenha.

– As pessoas parecem estar tratando você melhor por aqui... – disse Prateada.

– Viver no castelo tem suas vantagens – respondeu o rapaz. – E andar com você também!

Prateada sorriu deu uma grande mordida no seu pão quentinho.

– E então? Já sabe quando vamos viajar de novo? – perguntou ele.

– Não... – Prateada estava mentindo e não gostava muito de fazer isso. O pão se embolou um pouco na sua boca e ela fez um esforço para engoli-lo.

– Ah! Lembra de Bergére? – tornou Philippe, animado. – Pois ele está me ensinando a brigar!

– Achei que você já sabia!

– Não, eu sabia apanhar! E, modéstia à parte, eu fazia isso muito bem!

Eles riram e ele voltou a explicar.

– Bianchon me ensinou a usar um arco e flecha, Diderot me ensinou a lutar com espadas, mas nada disso me é muito útil em certas ocasiões. Bergére está me ensinando a luta corpo a corpo. Assim, se precisar, poderei defender você!

Prateada parou de mastigar para olhar para ele.

– Tá, você não precisa de defesa, pode se transformar a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer lua – concluiu ele. – Mas é bom saber me defender também!

– Por quê? Ravin anda perturbando você?

– Ravin? Não, ele é um covarde, não se preocupe com ele.

– Então pra que aprender a brigar?

– Para o caso de precisar... – respondeu ele, encerrando o assunto. – Só isso.

 


Já haviam se passado quase cinco semanas desde que haviam voltado. A cada dia, Philippe notara que Prateada andava diferente. Quando ele lhe perguntava o que houve, ela logo tentava disfarçar e encontrava algum assunto para tagarelar. Ele remexia na terra dos jardins do castelo, pensando no que poderia estar acontecendo.

Considerando que há menos de um ano, Prateada era um simples lobo que ele criara desde filhote, qualquer coisa poderia estar acontecendo. Ela estava sempre mudando, sempre surpreendendo. Se antes se entediava facilmente, agora se esforçava ao máximo para melhorar na arte da escrita, tendo aulas com Constance e com ele todos os dias. Ela também fazia questão de estar sempre com ele, e disso ele não podia reclamar. Mas por vezes parecia distante e preocupada.

Philippe parou de mexer na terra e se concentrou em alguns arbustos em volta. Estavam com galhos demais. Pegou a tesoura e começou a apará-los, para que crescessem novos ramos, e fizessem um desenho mais bonito no jardim.

Três andares acima, Celine enrolava o cabelo no dedo enquanto observava o rapaz de uma janela. Era a sala de música, de onde ela podia vê-lo sempre a essa hora. Se ele olhasse em sua direção, ela se escondia rapidamente atrás da cortina de rendas. Celine deu um longo suspiro, imaginando o que estava acontecendo com ela. Desde que voltaram, flagrava-se pensando cada vez mais em Philippe. As lembranças de quando eram crianças e eram inseparáveis pareciam fragmentos de um sonho que ela queria sonhar de novo. Mesmo quando estava com Ravin, ouvia o que ele dizia e pensava no que Philippe diria sobre o assunto. E, para seu desgosto, sabia em seu íntimo que Philippe diria coisas melhores sobre qualquer coisa.

Celine suspirou, sentindo uma angústia percorrer o peito como um cavalgar de valquírias ensandecidas. Queria estar com ele, falar com ele, mas sabia que não devia! Estava noiva, comprometida com Ravin Denvier, o rapaz mais cobiçado do Château das Vertentes! O que mais ela queria?

Prateada apareceu correndo e saltou nas costas de Philippe, dando-lhe um susto. Então eles rodopiaram e riram e correram um atrás do outro até sumirem de seu campo de visão.

A cavalgada deu lugar ao silêncio. Seu coração ficou mudo ao se deparar com a verdade. Ela queria aquilo. Queria aquela cumplicidade quase criminosa que Prateada e Philippe tinham um com o outro. Queria rir e correr e se sentir a pessoa mais importante do mundo. Dava para ver que Prateada era o mundo de Philippe, e ele era o mundo de Prateada. Ela não podia dizer isso de Ravin, que a trocava facilmente por um bom jogo de xadrez e andava mal humorado e rude desde que partiram para a viagem. Era como se ela não fosse importante, pois já tinha sido conquistada e não havia mais nenhum risco de perdê-la.

Talvez, se Ravin a tratasse daquela forma, da forma que Philippe tratava Prateada, talvez ela voltasse a se apaixonar por ele e parasse de pensar no mestiço.

Ou talvez não...

O pensamento ainda flutuava em volta de sua cabeça quando ouviu a voz de seu pai. Virou-se num salto, como se ele pudesse ver o que pensava. O susto foi tão grande que percebeu que não ouvira o que seu pai falara.

– O quê?

– Prateada decidiu que vai para o Château das Letras! – repetiu ele. – Quero saber se você vai querer ir também?

Celine olhou para o lado, levando uma unha à boca, e perguntou sem pensar.

– Philippe também vai?

Lamayer inclinou um pouco a cabeça com o cenho franzido.

– Achei que faria algumas perguntas, mas não achei que essa seria uma delas. Por que o interesse em Philippe?

– Nada! É que... Prateada é tão apegada a ele, e o senhor mesmo disse que seria perigoso, e, além do mais, acho que não seria uma boa ideia, e...

– Ele não vai – disse o Duque, tentando encerrar aquela verborragia que parecia consumir seu tempo de vida. – Prateada está ciente. Ela falará com ele no momento oportuno.

Celine sentiu o coração bater mais rápido e percebeu que estava feliz.

– Você vai querer ir? – perguntou seu pai.

– Não, acho melhor ficar... Daqui a pouco teremos o inverno e lá é muito mais frio do que aqui.

– Achei que era porque precisasse planejar seu casamento...

– Isso também!

Lamayer ia perguntar se estava tudo bem, mas já tinha se conformado que as mulheres eram loucas, todas elas, algumas mais, outras menos, mas não havia exceção. Então meneou a cabeça rapidamente e se retirou da sala de música, deixando Celine novamente sozinha. Assim que ele saiu, Celine se pegou enrolando uma mecha de cabelo nos dedos de novo. Mas dessa vez, ela estava sorrindo.

 


Quando se despediu de Prateada na hora da ceia, Philippe deu a volta para entrar pela cozinha, onde teria sua refeição com a criadagem. Sabia que depois da ceia, Prateada ainda ficaria presa em alguma atividade qualquer dentro do castelo, mas, depois que ela fosse se deitar, se encontrariam novamente.

Ele apenas não esperava encontrar Ravin no caminho. Estancou abruptamente ao ver Ravin recostado na parede do castelo, como se estivesse apenas esperando por ele. E ele sabia que isso não podia ser coisa boa. Instintivamente, procurou pelos outros, pois sabia que Ravin só atacava em bando.

– Estou sozinho, mestiço, não se preocupe... – disse Ravin com um sorriso torto de deboche.

Ele caminhou lentamente na direção de Philippe que não se moveu, mantendo os olhos fixos em seu inimigo.

– Eu só passei para dizer que você não vai poder se esconder atrás de uma saia para sempre – disse Ravin. – Eu não esqueci do incidente no Castelo dos Damascos. E quero que você saiba que depois que Prateada partir, nós vamos nos entender e você vai aprender a me respeitar!

– Prateada vai partir?

Ravin parou em um segundo de surpresa e então se deliciou com o fato.

– Ela não contou para você?

Philippe não soube o que responder. Ravin explodiu em uma gargalhada.

– Então o bichinho de estimação da futura rainha vai ficar para trás? Que pena, mestiço! É o começo do fim! Você sabe que era só uma questão de tempo até Prateada crescer e perceber que você é um constrangimento para ela. Assim que ela estiver longe de você, o esquecerá de vez!

Então Ravin se retirou, ainda rindo. Philippe ainda ficou parado no mesmo lugar por alguns momentos, tentando entender o que tinha acontecido. Prateada não partiria sem ele. Ela não disse nada sobre isso, certamente Ravin estava mentindo. Ele queria falar com ela naquele mesmo instante, mas sabia que não poderia interromper o jantar. Desistiu de ir até a cozinha e perambulou pelos jardins até que pudesse ir ter com Prateada, o que saberia quando a janela do quarto dela fosse iluminada pelas velas nos castiçais.


O jantar foi estranho. Prateada partiria no dia seguinte e ela se sentia cada vez mais infeliz, mas não podia falar com ninguém. O segredo a estava corroendo por dentro e ninguém parecia notar, o que só aumentava a solidão que estava sentindo. Talvez fosse por isso que ouvir Celine falar sobre as coisas maravilhosas que ela veria no Château das Letras a estivesse enlouquecendo. Celine estava mais animada do que ela.

– Se é um lugar tão maravilhoso, você deveria vir comigo – disse Prateada, sem grande entusiasmo.

Celine engasgou. Tomou um copo de água e riu.

– Prateada, eu vou me casar! Preciso preparar... um monte de coisas!

– Por que não adia o casamento? Serão apenas alguns meses e você poderia aprender comigo!

A ideia de ter alguém familiar, mesmo que fosse Celine, ao seu lado nessa viagem animou Prateada.

– Não se adia assim um casamento, Prateada – explicou Lamayer. – Seria uma ofensa para o noivo, da mesma forma que ele também não poderia adiar, a menos que fosse um caso de vida ou morte, o que nós sabemos que não é.

Prateada sentiu sua esperança se desmanchar como as folhas secas que encontrava pelo chão e viravam pó ao vento quando ela as amassava. Voltou a remexer no prato, até finalmente pedir para se retirar. O Duque permitiu.

– O que ela tem?

– Está um pouco triste, só isso – respondeu Lamayer. – Espero sinceramente que essa viagem a acostume mais com a ausência de Philippe. Ele não poderá estar sempre do lado dela.

Prateada subiu as escadas e foi para o seu quarto, onde acendeu as velas e sentou-se na cama com os ombros caídos. Não tinha fechado a porta porque esperava alguém, que logo apareceu.

– Mandou me chamar, Prateada?

– Diderot!

A menina se levantou e o abraçou, puxando-o a seguir para dentro e deixando a porta aberta. Ela o fez se sentar na cama ao lado dela e segurou suas mãos com um pouco de aflição. Diderot percebia que havia tristeza e desespero em seu olhar.

– O que aconteceu?

– Eu vou para o Château das Letras! – respondeu ela, segurando as lágrimas.

– Eu sei. Mas por que está assim? Não é uma prisão!

– Sem Philippe, vai ser uma prisão pra mim. Por isso, eu quero lhe perguntar uma coisa, Diderot. E quero que prometa ser sincero comigo. Não minta, não tente me enganar, apenas me diga a verdade.

O Capitão concordou com a cabeça e esperou ela falar.

– O Duque disse que fazem coisas horríveis com os mestiços em outros châteaus. E que seria perigoso para Philippe passar seis meses comigo no Château das Letras. Eu quero saber se você concorda com ele.

Diderot baixou os olhos por um momento. Então, com um sorriso triste ele olhou para ela e disse a verdade.

– Ele tem razão, Prateada... Não seria seguro para Philippe. Se ao menos a transformação tivesse chegado para ele, seria mais fácil, mas...

– Mas a transformação nunca chegou...

Prateada abaixou a cabeça, soltando as mãos do Capitão. Sentiu que lágrimas estavam afogando seu coração e, para ele respirar, teria que deixá-las saírem pelos seus olhos logo, logo, ao invés de tentar engoli-las. Então ela se virou novamente para Diderot, apertando suas mãos e olhando em seus olhos.

– Eu não estarei aqui para protegê-lo, Diderot! E não confio em ninguém além de você para fazer isso! Então, eu lhe peço que me prometa por tudo que você mais ama que vai protegê-lo enquanto eu estiver fora, que não vai deixar ninguém feri-lo, e que ele estará aqui quando eu voltar!

– Tem a minha palavra, Prateada – respondeu seriamente o Capitão.

Foi quando uma voz sentida foi ouvida da porta aberta. Os olhos surpresos não negavam a mágoa de ter sido enganado esse tempo todo, e de ser deixado para trás como um peso morto.

– Então é verdade!... – disse Philippe, com uma das mãos no batente de madeira escura. – Você vai mesmo partir... E vai me deixar...

Prateada se levantou e tentou correr na direção dele, mas ele desapareceu antes dela chegar à porta. Sem saber o que fazer, Prateada voltou para o quarto e não segurou mais as lágrimas.

– Eu não queria magoá-lo, Diderot! Eu juro! Eu não queria!

O Capitão a puxou para si e deixou que ela chorasse abraçada a ele, enquanto lhe sussurrava palavras serenas que lhe diziam que tudo ia ficar bem e que ela estava agindo bem.


Prateada tentou encontrar Philippe, mas ele não queria ser encontrado e ele sabia como ser invisível. Mesmo o Capitão desistiu de encontrá-lo, sabendo que se ele não quisesse, não o seria. Prateada esperou em vão a pedrinha na janela, e dormiu chorando no travesseiro, sabendo que perdera a última chance de estar sozinha com ele antes de partir.

Na manhã seguinte, sua cabeça doía e ela não tinha nenhum ânimo para sair da cama. Mesmo assim, saiu. E se arrumou. E debaixo do céu cinzento, embrulhando-se no manto grosso, entrou na carruagem. Eponine sentou-se diante dela, esfregando as mãos na manhã fria. Buffon e Eddard já estavam em seus cavalos e o cocheiro, Alain de Lille, também um soldado, já estava em seu lugar. Era para ser Bergére, pois o Duque considerou que ela se sentiria mais segura com pessoas que ela já conhecia e, bem ou mal, ela conversara muito com os três homens durante a viagem anterior. Porém, Prateada pediu para que Bergére ficasse. Ele estava ensinando Philippe, e ele estava feliz com isso.

Prateada se despediu do Duque e do Capitão, de Chalise e de Constance, de Celine e de Jacques. Então, entrou na carruagem, arrumada como uma dama. Infelizmente, nada que ela estivesse usando conseguiria esconder a tristeza que a acompanhava. Até o último minuto, procurou por ele, até que os cavalos puxaram a carruagem e a levaram embora.

 


Já haviam saído da cidade e estavam no começo da estrada do bosque, quando suas lágrimas começaram a cair sem parar. Eponine passou para o lado dela e lhe entregou um lenço de seda, abraçando-a e tentando consolá-la, mas os soluços de criança revelavam que essa era uma tarefa inglória.

– Mademoiselle! Veja!

A surpresa na voz de Eponine fez com que Prateada olhasse pela janela. Limpou as lágrimas dos olhos para desembaçá-los e ter certeza de que estava vendo mesmo o que achava que estava vendo.

No alto de uma colina, com o céu cinzento de nuvens baixas atrás dele, Philippe aguardava montado em Alvorada. Prateada colocou o rosto na janela, o coração disparado imaginando se ele a perdoaria, se ele deixaria de amá-la. Então, ele desceu a colina, cavalgando com velocidade, até que emparelhou com a carruagem e entregou um buquê de flores para ela. Alain parou e Buffon e Eddard foram na frente, deixando que os dois se despedissem.

Prateada saiu estabanadamente da carruagem, enquanto Philippe saltava rapidamente do cavalo. Eles se abraçaram e ela chorou convulsivamente, sem querer soltá-lo nunca mais.

– Me perdoe! – disse ele.

Ela então se afastou para olhar seu rosto.

– Você sabe por que eu estou fazendo isso, não sabe? – perguntou ela, com a voz embargada.

– Vai ajudá-la a ser rainha – respondeu ele.

– Não! Não é por isso! – retrucou ela. – Estou fazendo isso por Félicien, por Pierre, por Maurice, por Yvone, por Valérie, por Mariane, por Eloise, por Diana, por Coraline e por Rhenán. Estou fazendo isso por você!

Philippe não segurou mais as lágrimas contra as quais estava lutando até agora. Puxou-a para si e lhe pediu perdão mais uma vez, entre um soluço e outro.

Quando finalmente se separaram, estavam a um passo de um beijo, um beijo que poderia ser o último em muito tempo. Mas havia olhos, e ouvidos, e não podiam se arriscar. Ele a beijou na testa e tocou no camafeu.

– Volte para mim – murmurou ele.

– Eu voltarei! Por você! – respondeu ela.

Ela voltou para a carruagem, segurando o buquê de flores junto ao peito, e ele voltou para seu cavalo, de onde viu seu amor seguir seu destino numa estrada de olmos que desapareceu depois da primeira curva.

E assim que a carruagem sumiu, começou a chover.

 


Capítulo 26


Castelos de cartas

 

Quando chegou no castelo, Philippe estava ensopado. A chuva apertara em seu caminho de volta, mas ele não ligou. Ao menos servira para disfarçar suas próprias lágrimas. Ficava dizendo a si mesmo que era só por seis meses, que nada mudaria entre eles, que nem veria o tempo passar e que logo sua Prateada estaria de volta. Mas ele temia, lá no fundo, que essa viagem fosse o início do fim. Temia que surgissem outras viagens, e que Prateada fosse mandada para lugares cada vez mais distantes.

– Ah, que bom que o encontrei, mestiço!

Philippe ergueu a cabeça para olhar para Fernand, o administrador do castelo que nunca gostara muito dele. Era um sujeito magro e de nariz empinado que se achava mais importante que a maioria das pessoas.

– Arrume suas coisas, você deve desocupar o quarto.

– Como?

– Sem Prateada aqui não há motivos para ter você perambulando pelo castelo. Volte para o lugar de onde veio.

Philippe anuiu lentamente com a cabeça. Não deveria estar surpreso, já deveria ter previsto isso. Fernand já se ia se retirando, quando voltou para um lembrete.

– E eu vou conferir o quarto depois, para ver se não tem nada faltando!

Philippe apertou os punhos, sentindo uma fúria crescer dentro dele. Se havia algo que ele simplesmente odiava era a insinuação de que roubara algo. Nunca roubara nada, sempre trabalhara como um burro, sempre fora inacreditavelmente honesto, a ponto de devolver a moeda que alguém deixara cair. Naquele momento, se Fernand estivesse um pouco mais perto, levaria um soco no nariz.

Mas Fernand já tinha ido embora e já estava há muito tempo fora do alcance do seu punho. E ele sabia que atacar um puro reverteria em punições para ele. Subiu as escadas pesadamente, pensando no estado em que sua casa estaria, pois há muitos meses não ia lá. Provavelmente, tinha virado um ninho de esquilos e morcegos.


Lamayer escrevia cuidadosamente uma carta. Era uma carta especialmente difícil, pois precisava usar códigos e metáforas, de forma que a verdade não transparecesse para os olhos errados. Era como pintar um vidro com cores bem vivas e transformá-lo em um vitral, de forma que quem o visse não prestasse atenção na paisagem por trás dele. A carta era para François Maynard, um velho amigo do mundo dos humanos com quem trocava constantes cartas e com quem gostava de se encontrar de quando em vez. Era um homem inteligente e de mente aberta, conhecedor das artes ocultas, embora não fosse um praticante. Não se dizia um mago, mas sabia discorrer sobre diversos assuntos místicos.

François Maynard sabia sobre as cidades encantadas, como sabiam todos os que estudavam verdadeiramente a magia e sabiam ler a verdade nos livros de histórias e contos de fadas. A ocasião em que Maynard e Lamayer se encontraram e como um veio a saber da verdade sobre o outro não vem ao caso no momento. Nessa carta, Lamayer não falava do passado ou combinava encontros amigáveis em museus e teatros. A missiva era um pedido para que Maynard usasse de sua influência para investigar as ações do bispo de Luçon, François de Montrachet. O bizarro encontro com a criatura não saía da cabeça do Duque e ele não acreditava que tivesse sido um mero acidente da natureza. Se algo estava acontecendo, era melhor saber logo.

Assim que terminou, releu cuidadosamente a carta e a colocou num envelope. Selou-a com seu anel e guardou-a na gaveta, até que chamasse o mensageiro para levá-la. Levantou-se e deixou o escritório. Atravessou o salão principal do castelo, percebendo como o lugar estava silencioso e como já estava sentindo falta da balbúrdia que Prateada costumava fazer.

Foi quando viu Philippe descendo as escadas com uma sacola com poucas roupas.

– O que está fazendo? – perguntou o Duque, parecendo especialmente surpreso.

Philippe, que já terminara de descer as escadas, parou diante do Duque um tanto confuso.

– Indo embora... – respondeu.

As feições do Duque se enfureceram.

– Eu deveria saber que assim que Prateada desse as costas, você faria uma malcriação! Você deveria saber que ela só o deixou para trás para sua própria segurança e deveria parar de agir como uma criança mimada!

Philippe balançou a cabeça rapidamente, sem entender absolutamente nada.

– Mas, senhor! – interrompeu ele. – Eu só estou seguindo ordens!

– Ordens? De quem?!

– Suas! Acho.

Assim que Philippe mencionou o nome de Fernand e explicou o que este lhe disse, Lamayer chamou Brigite, a criada mais próxima, e mandou-a chamar Fernand. O homem magro de cavanhaque preto e nariz pontiagudo apareceu todo sorrisos para o Duque. Se por um lado Fernand se achava melhor que a maioria das pessoas, por outro, ele dominava a arte da bajulação com os mais poderosos.

– Mandou chamar, senhor?

– Você mandou Philippe embora?! – questionou o Duque, pouco paciente.

Fernand olhou para Philippe, olhou para o Duque, tentou explicar algo e se engasgou.

– É que, agora que Prateada se foi, eu achei...

– Prateada não se foi! – o Duque elevou sua voz. – Ela vai passar seis meses fora, ela não morreu!

– É que eu pensei...

– Pensou?! Duvido!

Então, o Duque se voltou para Philippe, ainda parado ali sem saber o que fazer.

– Garoto, volte para seus aposentos! Você não vai embora!

E então se voltou para Fernand.

– E você, Fernand, deixe a arte de pensar comigo e atenha-se aos assuntos domésticos!

 


A primeira semana sem Prateada foi sentida para todos. Mesmo Celine sentia falta de conversar – ou brigar – com a mocinha rebelde cheia de vontades. Era incrível como uma única pessoa podia mudar a rotina de tanta gente. Sem aulas para dar, Constance se sentia entediada e inútil, mesmo ainda sendo requisitada para cuidar de Celine. Philippe, cujo dia e noite giravam em torno de Prateada, se concentrou no trabalho nos jardins, nas aulas de luta com Bergére e nos encontros com Emily e o Capitão.

Lamayer estava na janela de seu escritório quando Fernand surgiu na porta com uma bandeja com chá e alguns pedaços de maçã.

– As cartas já foram entregues ao mensageiro, senhor. Mais alguma coisa? – perguntou o homem, colocando a bandeja sobre a mesa.

O Duque via as mudas de flores crescendo no jardim, a poda de Philippe dando forma e ensaiando desenhos, os caminhos livres de folhas secas.

– Sim. Comece a pagar Philippe. Ele tem feito um bom trabalho nos jardins.

– Pagá-lo?! – espantou-se Fernand. – Com dinheiro?

– Não, Fernand, com penas de frango! Pague-o como se fosse um criado da casa.

– Sim, senhor...

Fernand deixou a sala e o Duque voltou sua atenção para o chá deixado em cima de sua mesa.

 


Philippe não podia se conter, muito menos esperar para dar a notícia para alguém. Foi correndo até a casa do Capitão, onde sabia que encontraria Emily. Correu gritando o nome dela como se houvesse algum incêndio. Apesar da porta aberta, ninguém veio recebê-lo. Colocou a cabeça para dentro da casa e chamou por ela de novo. Sem resposta, deu a volta pelos fundos, onde ouviu alguma coisa, mas não de dentro da casa. Aguçou os ouvidos e seguiu sons de risadas femininas vindo do bosque que cercava a casa. Devagar, continuou seguindo os sons que pareciam uma conversa, embora não conseguisse entender o que diziam exatamente.

– Madame Emily? – chamou Philippe, enquanto se embrenhava pelo bosque.

A conversa continuava, intercalada por risadas femininas. A chuva tinha finalmente dado um espaço para o Sol que brilhava opaco em fachos que atravessavam as copas das árvores e pousavam nas folhas vermelhas-douradas espalhadas pelo chão.

Philippe avistou Emily ajoelhada no chão. E ela estava de fato conversando, mas ele jamais poderia imaginar quem era seu interlocutor. Diante de Emily, um homem muito pequeno para ser homem, usando um gorro e barba branca, conversava com ela. Quando ele ria, suas bochechas ficavam tão rosadas que pareciam estar pegando fogo.

Surpreso, o rapaz parou onde estava diante da cena. Assim que o percebeu, o pequeno homem, que não media mais do que seu antebraço, saltou da pedra onde estava e correu para trás de um arbusto. Emily se virou e viu Philippe.

– O que... O que era aquilo??!

Emily se levantou e recebeu o rapaz com seu costumeiro sorriso.

– Olá, Philippe! Não o esperava!

– Desculpe, eu não queria interromper... O que era aquilo mesmo?

Emily sorriu de novo e se aproximou dele, erguendo um pouco a longa saia para não pisar na barra.

– Aquele é Rudolf! Um gnomo amigo meu!

– Um gnomo??!

– Você nunca viu um?! – espantou-se Emily.

– Não, nunca!

– Gnomos são bem reservados e não aparecem para todo mundo. Rudolf e eu somos velhos amigos!

– Foi ele quem lhe deu o pó da Caledônia? – perguntou Philippe.

– Sim, e ele ficou de me trazer mais da próxima vez. Meu estoque diminuiu muito desde que conheci você!

– Coloque na conta de Ravin – respondeu Philippe.

– Mas o que o traz aqui tão cedo? Algum problema?

E subitamente ele se lembrou do motivo de ter ido até lá.

– Sim, quer dizer, não! Aconteceu uma coisa incrível! Eu recebi um pagamento do Duque!

– Pagamento?

– Sim, pelos meus serviços no jardim! – ele retirou um saquinho de moedas do bolso. – Olhe!

– Isso é ótimo, Philippe! Parabéns!

O rapaz estava esfuziante, pois só vira tanto dinheiro assim quando Bergére, Buffon, Eddard e o Capitão lhe deram uma parte do que ganharam na aposta no Château dos Damascos.

– O que pretende fazer? – perguntou Emily, enquanto caminhavam de volta para casa.

– Guardar, eu acho! Talvez um dia eu possa pagar para ir até o Château das Letras, se o Duque me der permissão!

Emily disfarçou a preocupação com um sorriso e um balançar de cabeça.

– Ou talvez você deva gastar um pouco com você! – sugeriu ela.

– Comigo?

– Sim, você deu uma linda joia à Prateada com o último dinheiro que ganhou. Que tal agora gastar um pouco consigo mesmo? Podemos ir até a cidade, comprar umas roupas novas.

– Mas essas ainda estão boas!

E Emily prosseguiu falando sobre as opções dele com o dinheiro, tentando, de uma maneira muito sutil, dissuadi-lo a pensar em Prateada ou na possibilidade de ir até ela.


Mulheres dominam a arte da sutileza e Philippe não entendeu nem por um minuto o que Emily estava tentando fazer. Adotou a ideia de economizar e pensar melhor depois. Quando voltou ao castelo, encontrou com Celine que o recebeu com um grande sorriso.

– Eu estava procurando por você!

– Estava? – Philippe estranhou.

– Sim, pensei que poderíamos dar um passeio agora à tarde. Há tempos não fazemos isso e o Sol finalmente apareceu hoje. O que acha?

– E Ravin? Certamente ele não vai gostar muito da ideia de vê-la passeando comigo...

– Ravin está ocupado, nem vai dar pela minha falta!


Dar uma volta pelo bosque com Celine não era exatamente uma martelada no dedo e Philippe não pensou muito antes de aceitar o convite. Foram a cavalo e era bom sentir o cheiro de terra molhada, vendo as folhas douradas caindo das árvores mais altas numa chuva sem cadência.

A conversa começou com as pequenas coisas do dia, mas depois de meia-hora, já estavam em terreno escorregadio. Celine não conseguia deixar de reclamar de Ravin, de como ele estava se tornando frio e distante, de como as conversas entre eles estavam morrendo e como estava ansiosa pelo casamento, acreditando que isso o mudaria. Philippe ficou calado e deixou a moça falar. Sabia que às vezes só precisamos de alguém para ouvir e imaginava que ela não gostaria de nenhum conselho que ele tivesse para dar sobre aquele assunto. Até que a moça o interpelou diretamente, deixando-o sem saída.

– Você não está falando!

– Você já sabe o que eu vou falar! – reclamou ele. – Ravin não mudou, ele sempre foi assim! Você só está vendo isso agora! E o casamento não vai melhorar em nada, só vai, na melhor das hipóteses, distrair você dos verdadeiros problemas.

– Você poderia ser mais tolerante com Ravin!

Philippe olhou para o alto com um suspiro impaciente. Então olhou novamente para a moça com um olhar que já dizia tudo. Celine parou de falar, sentindo-se um tanto ofendida, embora não soubesse bem por quê.

– Sabe o que eu acho? Acho que, no fundo, você o inveja.

Philippe olhou para ela com uma expressão quase divertida, imaginando onde é que aquilo ia dar. Ela continuou:

– Está com inveja porque ele pode se casar com a mulher que escolheu, enquanto você não tem essa escolha. Não importa por quem você se apaixone, nunca vai poder se casar com quem desejar!

Celine percebeu o erro que cometeu assim que viu a expressão dele mudar. Philippe parou o cavalo, e ela parou também.

– Não se trata assim quem lhe quer bem, Celine... – disse ele.

Então virou-se e cavalgou de volta para o castelo, deixando a moça sozinha.


Quando Celine voltou para o Castelo, não entrou pisando com raiva e batendo as portas como era de se esperar depois de ser deixada sozinha no bosque por alguém que, pela Lei dos Lobos, devia-lhe respeito e obediência. Subiu lentamente as escadas e bateu de leve na porta de Philippe. Ao ouvir que a porta estava aberta, entrou. Ele estava recostado na cama com um livro nas mãos. Ao ver que era ela, endureceu o rosto novamente.

– O que você quer?

Celine fechou a porta atrás de si e foi até ele, sentando-se na cama.

– Me desculpe.

Philippe continuou olhando para ela, impassível. Ela baixou a cabeça.

– Eu não devia ter falado daquele jeito com você.

– Você não devia falar daquele jeito com ninguém! – corrigiu Philippe, fechando o livro.

Ela concordou com um movimento de cabeça, os olhos brilhando e as palavras engasgadas lutando para sair.

– Eu ando com muitas coisas na cabeça, Philippe...

E nesse momento, Celine deixou, talvez pela primeira vez, transparecer o que estava sentindo, mesmo que ela mesma não tivesse consciência disso. Seus olhos esverdeados brilharam com a ameaça de uma lágrima que ela segurou e seu corpo inteiro estremeceu de uma maneira muito, muito sutil, como uma chama de vela que treme sem vento. Philippe capturou cada pedacinho daquele raro momento em que Celine deixou a guarda baixar.

Ele pousou o livro ao seu lado, na cama, e se sentou, de forma a ficar de frente para ela, e bem mais perto.

– O que há de errado, Celine?

A moça baixou a cabeça, olhando para as próprias mãos que brincavam com uma renda em seu vestido cor de primavera. Celine sempre ficara bem de verde, embora Prateada insistisse em dizer que ela parecia uma alface gigante, provavelmente para implicar com ela.

– Eu não sei... – respondeu ela, tentando achar as palavras. – Sinto que eu falo, mas ninguém me ouve. Que estou aqui, mas ninguém me vê. Sinto que as pessoas vivem suas vidas com uma alegria que eu invejo e quando elas não veem como eu me sinto, fico furiosa!

A mão dele acariciou os cabelos dela, fazendo-a olhá-lo com espanto. Ela sentiu o coração se aquecer, acelerar, e o sol brilhar dentro dela em imagens que já havia há muito tempo esquecido. Ele pensou em retirar a carícia dada ao se deparar com os olhos assustados dela, mas ele não podia. Percebeu o quanto gostava de Celine, e o quanto lamentava por vê-la infeliz.

– Celine, minha querida amiga... O que você está sentindo se chama solidão. Eu sei, passei a maior parte da minha vida na companhia dessa dama de longos dedos de gelo...

A ideia de que era solitária atingiu Celine com tamanha intensidade que ela quase saltou da cama. Levantou-se num movimento súbito e virou-se para ele, movendo as mãos em desespero.

– Não pode ser solidão! Eu tenho amigos! E tenho um noivo! Vou me casar, ter filhos e...

Philippe continuava sentado na cama, olhando-a desolado. E foi o olhar dele que refletiu a verdade para ela. As lágrimas começaram a descer pelo rosto de porcelana e ela voltou a se sentar na cama ao lado dele.

Ele pegou na mão dela e apertou um pouco, enquanto as lágrimas caíam. Philippe odiava Ravin, e ninguém podia dizer que ele não tinha motivos para isso. Mas ver Celine sofrendo era doloroso demais e ele tentou se afastar de sua terrível história pessoal com Ravin para tentar ajudar a amiga.

– Fale com Ravin... – disse ele, finalmente, obrigando as palavras a saírem, ainda sem ter certeza de que estava dando o conselho certo.

Celine olhou para ele, surpresa.

– Diga como se sente – continuou Philippe. – Se ele amar você, perceberá que não está sendo tudo o que você precisa que ele seja. E então vai se corrigir.

– E se não amar? – perguntou Celine, num soluço que saiu do fundo de seu peito.

Philippe sorriu.

– Se não amar, então é melhor você descobrir agora.

Ela se inclinou e apoiou a cabeça no ombro dele, chorando sua solidão e seu castelo de cartas que começava a ser levado pelo vento. E nem era uma ventania daquelas! Era apenas uma brisa que ela mal sentira...

 


Capítulo 27


Sombras do passado

 

Uma semana se seguiu à outra e, no final da terceira semana, desde que Prateada partira, Philippe teve mais um motivo para correr até a casa do Capitão para contar uma boa notícia. Era domingo e encontrou Diderot e Emily em casa, preparando-se para o almoço, quando chegou esbaforido com um envelope nas mãos.

– Ela me escreveu!!! – disse ele assim que o Capitão lhe abriu a porta.

A animação era tanta que suas mãos tremiam para abrir o envelope. Sentou-se na mesa e leu as palavras escritas em letras arredondadas e inseguras de Prateada. Ela contava sobre os cães que lá encontrou e que amava, sobre a imponência do lugar e, principalmente, sobre a comida. Não escrevera muito, mas tinha sido o bastante. Dizia que sentia a falta dele, de Diderot e de Emily. E que a comida de Chalise era muito melhor.

Quando terminou, ele acariciou a folha de papel como se fosse o rosto dela.

– Ela me escreveu... – disse novamente.

Ficou para almoçar e guardou a carta dentro da camisa, perto do coração. Havia um motivo para seu espanto em dizer que Prateada tinha lhe escrito. A menina não parecia muito aplicada na arte da caligrafia, ou mesmo na leitura. Começou a se dedicar mais nas últimas semanas, deixando inclusive de fazer coisas que ela adorava. Agora ele finalmente entendia por quê. Ela queria escrever para ele. Pela data, ela escrevera assim que chegara e a carta partira de lá no dia seguinte.

O mensageiro ainda estava no Château, onde permaneceria por mais dois ou três dias, antes de voltar levando cartas de quem desejasse mandar mensagens para amigos ou parentes no Château das Letras. Este era um lugar muito grande, uma cidade opulenta e surreal onde muitos iam estudar ou trabalhar. Assim, era comum a troca de correspondência entre o Château das Letras e outros châteaus. Depois do almoço, Philippe deixou o Capitão e sua esposa e correu para escrever sua resposta.

Ficou alguns minutos com a pena na mão, a tinta formando uma pequena bola de cristal negra na ponta, pensando em como iria começar. Lembrou-se da simplicidade com que ela lhe escrevera e partiu daí. Seria simples, como sempre foram as coisas com Prateada. E então lhe escreveu, contando sobre os avanços no jardim, sobre como agora estava sendo pago, sobre como Fernand tentara enxotá-lo dali e como o Duque o impedira.

Pensou em falar de Celine, mas não achou certo. Os segredos de outras pessoas são das outras pessoas. Não cabia a ele levar os sentimentos de Celine para uma viagem até outro château.

No final, escrevera três páginas inteiras e terminou dizendo o quanto sentia sua falta e o quanto pensava nela o tempo inteiro.


Vinte dias depois, o mensageiro voltou. Dessa vez, a correspondência com a letra arredondada de Prateada era maior. Havia cinco cartas para Philippe, uma para Celine, uma para o Duque, uma para o Capitão e uma para Jacques. Philippe se espantou ao saber disso. Estranhou em especial que ela escrevesse para Jacques. Ele não sabia que a carta dela era apenas uma resposta a uma carta anterior, que Jacques lhe mandara da primeira vez em que o mensageiro por lá estivera.

Ligeiramente enciumado, pois gostava de ser o único a ter a atenção de Prateada, Philippe se conformou com a quantidade de envelopes gordos que recebia, sempre superior aos outros. Não sabia o que ela contava nas outras cartas, mas sabia que ela lhe contava tudo nas cartas que lhe escrevia.

Escrever cartas passou a ser o passatempo favorito de Philippe, que o fazia sempre ao cair da noite, acumulando-as até a visita do mensageiro. Sempre lia as cartas para o Capitão e Emily, que se divertiam com a forma com que Prateada descrevia o que via e vivia. Às vezes, lia algumas para Celine, que continuava um tanto triste.

Ele não sabia por que estava passando tanto tempo com Celine. Se era porque gostava de sua companhia ou se por que estava preocupado em vê-la um tanto tristonha. A conversa com Ravin aconteceu, mas não deu em nada. O comportamento do jovem não mudara. Philippe esbarrara poucas vezes com Ravin desde que voltaram da longa viagem aos châteaus. Em parte porque Philippe sabia que Ravin só estava esperando uma oportunidade para ir à forra e Philippe faria qualquer coisa para ficar fora de seu caminho.

Ele cuidava dos jardins, passava tempo com Celine, ajudava o Emily e escrevia suas cartas. Com o tempo, isso foi aplacando um pouco a dor da partida de sua Prateada. Quando a saudade começava a impor sua presença, e ele sentia que a tristeza começava a penetrar em seu coração, voltava sua atenção para o jardim, ou para as cartas. Procurava se manter ocupado e dizia a si mesmo que seis meses passariam muito rápido.

 

 

Pouco mais de dois meses depois, o Duque chamou o Capitão para uma viagem até a cidade. Conseguira finalmente marcar um encontro com François Maynard, e o humano lhe dissera que tinha informações importantes que não poderiam ser passadas por carta. O Duque ficaria três dias fora, mas preferiu não levar soldados. O Capitão lhe bastaria.

Assim que soube da partida do Duque, Ravin finalmente melhorou seu humor. Deu uma desculpa à Celine e saiu rapidamente, indo falar com Carlo e Albert.

A movimentação foi rápida. Rápida e eficiente. A poeira levantada pelos cavalos não tinha pousado no chão quando Madame Montaigne já estava no castelo, conversando com Fernand.

O assunto não poderia ser mais trivial e insignificante. Ela queria dar um banquete para os amigos mais chegados e seus criados não dariam conta do serviço.

– O Duque sempre me cedia criados nessas ocasiões! – comentou ela, comendo uma torradinha que tinha sido servida.

– Claro, eu me lembro! – disse Fernand, sempre solícito com quem tinha títulos ou posses. – Não será problema! Posso sugerir Pierre, Marcian e...

– Eu já tenho em mente quem eu quero! – interrompeu a senhora de rosto redondo e rechonchudo, traços que passara para o filho, Carlo de Montaigne.

Fernand esperou que ela dissesse os nomes e não escondeu sua surpresa. Ela pedira especificamente por Brigite e por Philippe.

– Bom... – hesitou o homem. – Quanto a Brigite, não haverá problema, mas Philippe não é exatamente um criado...

– Ah, não? Então o que ele é?

– Eu não sei o que ele é! Só sei que não deveria estar aqui, vivendo no castelo, comendo do bom e do melhor, mesmo que na cozinha! – desabafou Fernand.

E era só do que Madame Montaigne precisava. Foram quinze minutos de conversa sobre o absurdo de se tratar um mestiço com mais qualidade do que se tratava centenas de puros que trabalhavam na cidade e nunca saberiam o que é uma refeição no castelo. No fim da conversa, Fernand lhe garantiu que mandaria Philippe e Brigite no dia seguinte bem cedo para sua casa, onde ela teria a ajuda extra de que precisava. Mandou chamá-los naquele mesmo instante para comunicar a decisão.

Brigite assentiu com um movimento de cabeça. Philippe não entendeu de primeira. A presença de Madame Montaigne na sala já lhe causou um súbito mal estar. Fora aquela mulher que, fiando-se cegamente nas palavras do filho, um mentiroso covarde, o fizera passar por um dos momentos mais humilhantes de sua vida, acusando-o de um roubo que ele jamais cometera.

Naturalmente, recusar não era uma opção. Ele era um criado do castelo, assim dissera Fernand, e emprestar criados era uma coisa natural entre os ricos. Receberia pelo serviço, era um trabalho como outro qualquer. O olhar de Madame Montaigne para ele, no entanto, lhe dizia que não seria um serviço como outro qualquer.


Não teve uma boa noite. Virou-se de um lado para outro, perseguido por uma preocupação constante. Havia algo errado e não precisava ir muito longe para deduzir isso. Madame Montaigne nunca fora boa para ele, graças principalmente às diversas falsas acusações feitas por seu filho Carlo, amigo de Ravin. Eram muitas ligações perigosas para ignorar. Ficou imaginando todos os tipos de emboscada que poderiam advir de tal ocasião. Era óbvio que ser um criado na casa de seus inimigos no dia em que tanto o Duque quanto o Capitão estavam fora da cidade não era uma simples coincidência. Algo ruim iria acontecer no dia seguinte e ele simplesmente não sabia o que fazer.

A lembrança do que acontecera quando Carlo o acusou de ter roubado uma moeda de ouro ainda o assombrava. Philippe tinha muitas lembranças ruins, algumas especialmente dolorosas. Aquela era uma particularmente doída. Madame Montaigne exigiu que ele assumisse o que não fizera. Como se recusara, Gerard usara a palmatória, uma coisa horrível de madeira que o capataz usava quando se sentia desrespeitado ou simplesmente quando perdia no jogo. Mesmo assim, teria morrido sem fazer o que queriam, se não fosse a aparição inesperada de Celine. A ideia de que ela o visse daquele jeito, com as calças abaixadas apanhando como um ladrão comum, era insuportável. Assumiu que roubara a moeda. E dera a sua própria, que Madame Emily havia lhe dado, em troca. Celine mal olhara para ele, seguindo seu passeio normalmente. Felizmente, ela não vira nada.

Depois de uma noite intranquila, seguiu-se a manhã cinzenta. Era cedo quando chegou à casa de Madame Montaigne, cuja chaminé limpara uma centena de vezes. Ela vivia com o marido, o Senhor Eustache Montaigne, o filho, Carlo, e uma filha mais nova, Jeanne Montaigne, numa mansão suntuosa cercada por belíssimas rosas. Nesse período do ano, a mansão dos Montaigne adquiria um ar menos colorido, mas ainda impunha respeito.

Philippe se apresentou na porta dos fundos, mantendo uma ordem em sua cabeça. Não desafiaria ou desrespeitaria ninguém, por mais que o provocassem. Entraria mudo e sairia calado. Tudo o que precisava era sobreviver àquele dia. Esperava todo tipo de serviço indesejável, como limpar latrinas, pinicos e fossas, e todo tipo de serviço impossível, como mover a casa para que a luz do sol da tarde entrasse pela janela do salão principal, forçar as roseiras a florescerem em pleno outono ou matar formigas a grito. Esperava um dia de cão, mas manteria a cabeça fria e não deixaria que nada o atingisse.

Na cozinha, ele foi recebido por Mademoiselle Blondelle, uma senhora grande e de rosto quadrado que nunca parecia feliz. Os cabelos escuros eram rigidamente presos num coque e suas roupas eram sempre sóbrias. Ela era a governanta da casa, uma versão feminina e bem menos afetada de Fernand. Ela olhou o rapaz de cima a baixo e virou-lhe as costas enquanto dava as ordens.

– Comece limpando os lustres e as estátuas do grande salão, estão cobertos de poeira. Quando terminar, Claudete vai ajudá-lo a fazer uma faxina nos aposentos do andar superior.

A mulher lhe entregou roupas dobradas.

– Esse é seu uniforme para a noite. É bom mantê-lo limpo, você vai ajudar a servir os convidados.

Ele chegou no grande salão iluminado por grandes janelas que iam até o teto. Estátuas de mármore cercavam o ambiente, e Philippe olhou para o teto, vendo o enorme lustre dependurado com suas gotas de fino cristal. Retirou o casaco, enquanto imaginava como ia fazer para chegar lá em cima.


Aquela tarefa lhe custou a manhã inteira e um enorme exercício de flexibilidade e equilíbrio, mas foi feito. Brigite, a serviçal do castelo de Lamayer, surgiu na sala por volta de meio-dia.

– Não vá cair daí, hein! – disse ela, retirando-se a seguir.

Observando-a lá do alto, no último degrau da escada de madeira, Philippe pensava se Brigite tinha sido sincera ou estava sendo debochada. Achava aquela moça especialmente estranha. Desde que ele recusara seu conselho aparentemente bem intencionado de fugir dali com Prateada, ela nunca mais falara com ele. Talvez ela o achasse um covarde. Sem se deter muito no assunto, continuou seu trabalho.

Parou para almoçar e conversou brevemente com Claudete, serviçal da casa que ele já conhecia de outros tempos. Assim que terminou, retomou seu trabalho. Philippe era atencioso no que fazia e seu trabalho nunca era feio, mal feito ou deixado pela metade. Não era medo da punição, mas algo que já nascera com ele. Gostava de perfeição, mesmo que as pessoas que o contratassem não merecessem. A maioria nem prestava atenção.

Ocupado com o trabalho, não pensou mais nas coisas que poderiam acontecer. Concentrou-se e fez o melhor que podia, fazendo de tudo para não quebrar nada. Era comum que serviçais que dessem prejuízo fossem cedidos a uma casa para trabalhar até que pagassem o que quebraram. Foi o que acontecera com Gerard, seu antigo capataz bêbado, no Château das Flores.

– Mas isso não vai acontecer... – murmurou para si mesmo, enquanto limpava com cuidado os vincos das vestes gregas de uma deusa seminua num pedestal em forma de coluna.

Já era meio da tarde quando foi guiado por Claudete até o andar superior. Ela deixou o rapaz e Brigite responsáveis por um grande quarto que Philippe deduziu ser dos donos da casa. Grandes cortinas esverdeadas caíam do teto e esvoaçaram levemente enquanto Brigite abria as janelas.

– Não é estranho? – perguntou ele.

Brigite o olhou sem entender.

– Colocarem dois estranhos para cuidar do quarto principal da casa?

Então ele saiu e chamou por Claudete. Encontrou-a no corredor.

– Poderia trocar um de nós nesse serviço? – perguntou ele.

– Qual o problema?

– Somos dois serviçais de outra casa num quarto com itens preciosos. Se algo aparecer quebrado ou desaparecer, vão colocar a culpa em nós.

– Eu não duvido! – respondeu Claudete. – Venha, colocarei você com Adele na biblioteca.

E nesse exato momento, ouviram algo cair seguido de um grito no quarto do casal Montaigne.

Quando chegaram na porta, Brigite estava ajoelhada diante de uma caixa de música em pedaços. Ela balançava para frente e para trás, segurando o grito com as mãos, as lágrimas já descendo pelo rosto.

– O que aconteceu? – perguntou Claudete, ajoelhando-se ao lado dela.

– Escorregou! – respondeu Brigite, a voz quase não saindo.

– Calma! Talvez Madame Montaigne não se importe... – disse Claudete, sem um pingo de segurança na voz.

– Não posso pagar isso, não tenho esse dinheiro! – Brigite voltou a chorar, agora convulsivamente.

– Não está quebrado! – disse Philippe.

As duas mulheres o olharam com esperança e surpresa. Ele mostrou para elas as peças que pegara no chão.

– Veem? Não quebrou, só desmontou! Dá pra montar de novo!

– Você acha que consegue?

– Me dê alguns minutos... – disse ele, já fazendo o serviço.

Claudete correu e fechou a porta, olhando no corredor se alguém tinha ouvido alguma coisa. Voltou correndo e consolou Brigite, que observava ansiosa as mãos do rapaz se movendo com destreza.

Alguns poucos minutos depois, ele deu corda e abriu a caixa dourada. Os acordes da canção foram ouvidos, fazendo as duas darem um grande sorriso de alívio. Ele entregou sorridente a caixa consertada para Brigite que murmurou um obrigado.

– Melhor voltar ao trabalho! – disse ele, saindo em seguida.

Claudete pegou a caixa e colocou-a sobre a penteadeira, virando-se para Brigite com um sorriso.

– Esse rapaz acabou de salvar sua vida, menina! Madame Montaigne ia arrancar o seu couro!

 


Philippe já estava com seu uniforme e esperava na cozinha pela ordem para começar a servir, junto com outros cinco serviçais que usavam as mesmas vestes. Tirando o serviço escravo que fizera durante o dia inteiro, não via necessidade para o terem ali. O número de criados dos Montaigne era mais do que suficiente, ao seu ver, para servir um pequeno grupo de pessoas.

De qualquer forma, estava ansioso para ir embora. Sentia-se um gato de rabo comprido numa sala cheia de cadeiras de balanço. Ao menos, o dia tinha sido tranquilo. Puxado, mas tranquilo. Mal vira Madame Montaigne e, graças a Deus, não se encontrara com Carlo, cujas mentiras sempre faziam um enorme estrago. Agora, era apenas servir e terminar aquele dia, são e salvo.

As primeiras bandejas foram entregues, com petiscos para servir os convidados que já estavam na grande mesa toda arrumada. Assim que serviu as primeiras pessoas, Philippe parou ao colocar a bandeja sobre a mesa. Celine o encarou surpresa. Ravin, ao seu lado, sorria.

Refeito do susto, continuou seu trabalho, fingindo não ouvir os comentários que começavam a se espalhar pela mesa.

– O que ele está fazendo aqui?! – sussurrou Celine para Ravin.

– Como vou saber? – respondeu Ravin. – Só vim aqui comer!

– Não é o mestiço de Lamayer? – perguntou Thibault, pai de Ravin, alto o bastante para ser ouvido por todo mundo.

– Precisávamos de ajuda para hoje e Fernand nos emprestou dois criados da casa – explicou Madame Montaigne.

Philippe continuou seu trabalho, impassível. Não tinha vergonha de trabalhar, embora não lhe agradasse servir àquele ninho de víboras. Voltou para a cozinha, onde lhe mandaram levar e servir mais vinho.

Na mesa, serviu Celine e Ravin. Este o olhou diretamente e perguntou:

– O vinho está frio, mestiço? Porque eu gosto dele servido assim, frio. Como a vingança.

Philippe olhou para ele por um momento, e passou para o próximo copo. Celine mantinha a cabeça baixa, e ele sabia que neste momento ela se envergonhava dele. E isso lhe doeu.

Aquelas poucas horas da noite pareceram durar mais do que o dia inteiro. Mas já estavam todos na sobremesa e ele já tinha deixado de ser a atração principal. Ao menos, era o que ele pensava.

Alguns convidados já tinham se despedido e ele já se imaginava voltando para seu quarto no castelo, encerrando aquele dia de uma vez por todas. Restavam apenas Ravin e Celine, Carlo e Bernardete, a namorada dele, os pais de Ravin e os pais de Bernardete, além dos donos da casa e Jeanne, a filha mais nova.

Philippe estava na cozinha, sentado num banco e enxugando o suor do rosto, pois trabalhara o dia inteiro e o cansaço começava a dar seus sinais. Apesar de se sentir exausto, estava aliviado. O dia tinha finalmente acabado, o serviço, chegado ao fim, e o pior que seus inimigos conseguiram foi diminuí-lo diante de Celine. Philippe sabia que nunca estaria à altura dela. Mas, apesar do que Ravin pudesse pensar, não se importava em servi-la. Fechou os olhos por um instante, pensando em sua cama quente, quando ouviu uma confusão na sala de jantar. A governanta surgiu na porta e o chamou com urgência.

Ao chegar à sala, as pessoas estavam de pé e Madame Montaigne estava histérica. Assim que o viu, ela apontou o dedo cheio de anéis.

– Devolva o que é meu, seu imprestável! E saiba que não serei condescendente dessa vez!

– O quê?!

Pessoas falavam ao mesmo tempo e ele teve dificuldades de compreender rapidamente. Na confusão, ele finalmente entendeu que Madame Montaigne estava fazendo exatamente o que fizera da outra vez. Acusando-o de um roubo do qual ele era inocente.

– Senhora, eu não peguei nada!

– Você pegou meu cordão de diamante, e tenho testemunha!

Philippe ia perguntar quem era essa testemunha, embora já imaginasse que fosse Carlo, o grande mentiroso. Antes que ele falasse, no entanto, a voz de Celine foi ouvida.

– Madame, Philippe mora há um ano no castelo e posso lhe garantir que ele nunca roubou nada!

– Cale-se, Celine! – disse rispidamente Ravin, pegando-a pelo braço. – Não se meta nisso!

– Então faça alguma coisa! – pediu ela.

Como se atendendo ao pedido, Ravin a soltou e se virou para Philippe.

– Tenho certeza de que encontraremos o colar com ele!

Com um simples olhar, dois empregados da casa o agarraram e começaram a revistá-lo de maneira brusca. Philippe tentou se desvencilhar, mas os homens o seguraram com firmeza. Como não encontrassem nada em seus bolsos, começaram a retirar suas roupas.

Acuado, o rapaz se defendeu. Tinha aprendido novos golpes com Bergére e não se deteve em usá-los. Com uma cabeçada, acertou o nariz de um dos homens e com uma cotovelada, afastou o outro. Carlo e Ravin se juntaram a mais empregados que o agarraram. Com os braços imobilizados, Philippe chutou no meio das pernas de Carlo, que saiu urrando para o outro lado da sala. Ravin lhe acertou um murro no estômago e, com a ajuda de mais três empregados, finalmente o imobilizaram. Os homens arrancaram suas roupas e o deixaram nu. Seguindo as instruções dos Montaigne, dois empregados o seguraram pelos braços para que ele não fugisse, enquanto os outros procuraram nas roupas algum bolso falso onde uma joia tão pequena caberia.

Ravin sorria, vendo seu inimigo humilhado. Philippe estava de frente para Celine, que o olhava horrorizada. Tentou se soltar mais uma vez, até que desistiu e baixou a cabeça, envergonhado. Não viu quando Celine fuzilou Ravin com os olhos e saiu correndo da sala.

– Nada aqui, madame! – reportou um dos empregados.

O Sr. Montaigne se aproximou do rapaz, a testa larga de grandes entradas brilhando com respingos de suor. Apontou-lhe o dedo no nariz.

– Diga onde escondeu o colar, moleque! Diga e faremos com que o número de chibatadas seja menor!

Philippe não respondeu. Mantinha a cabeça baixa, tentando controlar a própria respiração ofegante. Como não respondesse, o homem lhe deu uma bofetada. Seguiram-se mais ameaças e ofensas.

– Acho que não nos resta outra opção além de fazer uma revista mais minuciosa... – disse Ravin, retirando as luvas e se aproximando.

Philippe tentou se afastar, mas os empregados apertaram seus braços, segurando-o firmemente. Mesmo assim, o rapaz se debateu e tentou escapar, derrubando uma bandeja com uma bebida que estava próxima. Ela foi ao chão com grande estardalhaço. Sentiu que mexiam em seus fartos cabelos, procurando pela joia. A fita que prendia num rabo de cavalo caiu no chão sem ser notada. Olharam seus ouvidos, o apalparam de maneira grosseira e humilhante e seguraram fortemente sua mandíbula, mandando-o abrir a boca.

– Se colocar sua mão na minha boca eu vou arrancar seus dedos! – vociferou para Ravin.

– Eu avisei, mestiço... – foi a resposta de Ravin. – Eu não me esqueceria do Château dos Damascos.

Conforme Ravin se aproximava mais, mais ele se debatia. Afastaram suas pernas e torceram seu braço para que ficasse quieto.

– Parem com isso agora!

A voz imponente era de Bergére, que entrava acompanhado de Guillaume de Lorris, outro dos guardas do castelo.

– Isso é um caso doméstico, soldado! – disse o monsieur Montaigne. – Não precisamos de vocês aqui! Podemos resolver do nosso jeito!

– Não podem, não!

Celine surgiu atrás dos dois soldados.

– Philippe é um criado do castelo, não dessa casa! – disse ela com voz firme. – Como duquesa, ordeno que ele seja devolvido!

Bergére retirou seu próprio manto e cobriu o rapaz. Os empregados o soltaram assim que o guarda corpulento se aproximou.

– Mas eu fui roubada! – reclamou Madame Montaigne. – Como fica isso?

– Meu pai, o Duque, julgará o caso!

– Então o acusado deve ficar sob custódia da parte lesada, já que o Duque não se encontra no castelo! – interferiu Ravin, lançando um olhar de fogo para a noiva.

– Não haverá necessidade – disse Bergére. – O Duque e o Capitão retornaram essa noite. Eles já estão no castelo.

A surpresa da notícia foi evidente. Bergére, puxou Philippe pelo braço e o guiou para fora da casa. Os outros os seguiram, determinados a levar sua versão dos fatos ao Duque e exigir que a lei fosse cumprida.

 


Capítulo 28


Crime e castigo

 

A cidade dos homens era muito movimentada, cheia de novidades e pessoas vendendo e comprando, soldados uniformizados em cavalos imponentes, construções maravilhosas e pobres espalhados nas sarjetas. O Duque e o Capitão seguiram direto para o ponto de encontro com François Maynard. Assim que os dois homens entraram na taberna, encontraram o homem de cabelos muito escuros e manto negro sentado numa mesa ao fundo. Ele acenou para eles e se cumprimentaram com entusiasmo.

– Faz tempo, velho lobo...

Uma olhada mais severa de Lamayer fez com que Maynard se corrigisse rapidamente.

– ...do mar! Velho lobo do mar! Como andam as coisas no seu navio?

Eles se sentaram e pediram mais vinho.

– Achei que chegaria bem mais tarde! – disse Lamayer.

– Eu consegui me livrar de uns compromissos. E acho que o que tenho a dizer requer uma certa urgência.

Enquanto a taberna esteve vazia, eles conversaram ali mesmo. Quando ela começou a se tornar ruidosa e apinhada, preferiram pagar a conta e procurar um lugar mais tranquilo para terminar a conversa. E Maynard tinha razão. Aquilo requeria uma certa urgência.

Durante as horas seguintes, os três homens trocaram informações sobre estranhas aparições de lobisomens, feras alucinadas e incrivelmente fortes, quase impossíveis de se matar. Os ataques se deram no campo, vitimando cordeiros e três camponeses.

– Sabe o que aconteceu com os corpos?

– Aí é que a coisa fica interessante... – disse Maynard, cujas sobrancelhas eram grossas e quase se juntavam acima dos seus olhos. – Foi ordenado que cremassem os corpos.

– Quem ordenou? – perguntou Lamayer.

– Nosso amigo, François de Montrachet, o novo bispo de Luçon.

Segundo Maynard, o bispo fora visto num encontro furtivo com um homem chamado Charles Lemaire, conhecido erudito e estudioso das artes ocultas. Ou seja, um mago. Mas não um mago qualquer. Um mago negro. O pior tipo, da pior espécie.

Maynard se empenhou em investigar Charles Lemaire e suas conexões com o bispo e descobriu que ele estava em um bizarro projeto que visava encontrar as Cidades Secretas. Ele achou que o objetivo do bispo era livrar o mundo do que ele considerava um grande sacrilégio, que era a existência de homens que viravam lobos ou feras sob a Lua, ou os grandes tesouros em ouro e joias que acreditava-se haver nessas cidades. Porém, Maynard descobriu que o objetivo era infinitamente mais terrível.

– Ele quer nos roubar e nos destruir – disse o Capitão. – O que pode ser mais terrível que isso?

Maynard os olhou com uma sombra no rosto.

– Ele quer dar um jeito de controlar as feras das Cidades Secretas. Ele quer um exército de feras que o obedeçam! Assim, a Igreja e os nobres, até mesmo a realeza, terão que se curvar a ele!

– Esse homem é louco? – perguntou Lamayer.

– Completamente! – respondeu Maynard. – Ele contratou Lemaire para encontrar algum jeito de controlá-los. Mas ele não encontrou nenhum puro para seus testes.

– Então ele está usando humanos contaminados como cobaias – concluiu o Capitão.

– Mas isso é horrível! – espantou-se Lamayer.

– Ele tem usado indigentes, miseráveis ou presidiários. Acreditamos que haja um grupo já contaminado e que a fera que atacou os campos tenha escapado. Uma criança sobreviveu a um dos ataques. Ela disse que a besta tinha uma marca de cruz na testa.

Lamayer queria voltar imediatamente ao Château das Vertentes, mas as notícias que receberam sobre as experiências com lobisomens assassinos de Charles Lemaire e do bispo de Luçon o dissuadiram. Não iria se arriscar a ser um alvo durante a noite na floresta, nem para Lemaire, nem para suas bestas.

Porém, a urgência do que ouvira o fez querer voltar o mais cedo possível para casa. Felizmente, o fato de Maynard ter chegado cedo também facilitou. O Capitão e o Duque das Vertentes partiram de manhã bem cedo a trote rápido, chegando assim antes do previsto ao château.

Já estava escuro quando chegaram ao castelo. Criados vieram e levaram seus cavalos, enquanto os dois homens entraram.

Lamayer foi direto para uma garrafa de vinho em cima de uma bandeja sobre a mesa na grande sala.

– O que pretende fazer? – perguntou o Capitão.

Haviam conversado muito na volta sobre o assunto, mas nenhum deles falara sobre algum tipo de plano.

– Eu não sei – respondeu o Duque, servindo ao amigo uma taça de vinho. – É uma situação inédita.

– Colocarei os homens de prontidão – disse o Capitão. – E podemos treinar mais alguns jovens da cidade, aumentar a guarda.

– Estamos cansados – disse o Duque esfregando os olhos. – Vamos esquecer isso por hoje. Não há sentido em pensarmos em problemas agora. Descansaremos e amanhã, revigorados, pensaremos no que fazer.

Eles beberam o vinho e nesse exato instante a porta se abriu e uma balbúrdia invadiu o castelo. Dois guardas vinham na frente, um deles segurando Philippe pelo braço. Atrás do rapaz descalço e envolto apenas por um manto, um grupo dissonante que falava ao mesmo tempo.

– Que diabo! – praguejou o Duque em voz alta, fazendo todos se calarem.

– Houve uma acusação de roubo, senhor – disse Bergére.

– Esse moleque roubou o colar de diamante de minha esposa, Duque! – começou o senhor Montaigne. – Seus guardas impediram que fizéssemos uma revista! Eu exijo que ele devolva o que roubou! Se ele se recusar, que possamos usar todos os métodos conhecidos para reaver a joia.

A senhora Montaigne prosseguiu com acusações e exigências, assim como Carlo. Philippe também era acusado de agredir alguns dos empregados e Carlo. Um olhar do Duque fez com que todos se calassem. Ele caminhou lentamente na direção de Philippe, que mantinha-se cabisbaixo e quieto no meio de toda a confusão.

Lamayer o observou por alguns instantes. O rapaz tinha os ombros caídos e tremia debaixo do manto, incapaz de reerguer a cabeça para encarar o Duque ou as pessoas da sala. Todos sabiam que o Duque não gostava do rapaz e que não pensou duas vezes em mandá-lo para o tronco quando este lhe faltou com o respeito.

– Philippe nunca roubou nada antes... – disse o Duque.

– Claro que roubou! – retrucou Madame Montaigne. – Ano passado, ele esteve na minha casa e roubou uma moeda de ouro do quarto do meu filho, Carlo! Se não fosse por Gerard, não teríamos reavido o dinheiro!

– Isso não é verdade! – disse o Capitão Diderot, dando passos a frente.

– Acaso está chamando minha esposa de mentirosa, Capitão? – confrontou-o Eustache.

– Eu estive presente nessa ocasião – continuou o Capitão, ignorando a provocação. – Gerard moeu esse menino de pancadas até que ele confessasse o que não tinha feito.

– Mas ele tinha a moeda de ouro no bolso, Capitão! – interferiu Carlo, apavorado com a iminência de ser descoberto.

– Minha esposa havia lhe dado aquela moeda naquela manhã, pois era aniversário dele – esclareceu o Capitão. – Na verdade, Philippe é quem foi roubado naquele dia!

Os nobres rebateram a ofensa, mas o Duque mandou que eles se calassem. Observou novamente Philippe, esperando alguma reação, mas não havia nenhuma. O rapaz que sempre debatia e tinha uma língua afiada estava finalmente derrotado, emudecido e humilhado, sem esperanças de que a justiça pudesse ser feita.

– Posso saber quem é sua testemunha, Madame Montaigne? – perguntou o Duque.

– Sim, claro! É Brigite, a outra criada deste castelo!

Nesse momento, Philippe ergueu a cabeça. Os olhos brilhantes procuraram atônitos pela criada para onde todos os olhos se voltaram. Brigite arregalou os olhos assustados.

– Não precisa ter medo, Brigite! – disse Ravin, aproximando-se dela. – Apenas conte o que viu!

Brigite hesitou. Então apontou para Philippe.

– Eu o vi pegar o colar do quarto de Madame Montaigne, de dentro de uma caixa de joias. Ele disse que ela era rica e nem sentiria falta.

– Guardas! – ordenou o Duque. – Revistem a criada!

Brigite gritou e tentou se soltar, mas os guardas fizeram o seu serviço. Diferente de Philippe, ela não precisou ser despida, pois um fino cordão com um pingente de diamante foi logo encontrado com ela. O guarda entregou a joia para o Duque que a observou com olhar duro.

– É esse o colar? – perguntou o Duque, mostrando-o para Madame Montaigne.

A mulher apertou os olhos e confirmou. O Duque entregou-o a ela e deu mais uma ordem.

– Por ter furtado o colar de Madame Montaigne, a criada está condenada a receber dez chicotadas amanhã pela tarde.

Brigite começou a chorar e a pedir perdão.

– E mais dez chicotadas pela falsa acusação! – concluiu o Duque.

Os guardas levaram a moça se debatendo para a masmorra do castelo, onde ficaria até a execução da sentença. Philippe acompanhou com os olhos até que ela desaparecesse por trás de pesadas portas de madeira.

– Essa situação foi deveras desagradável – disse o Duque, voltando-se para a pequena plateia que agora estava em silêncio. – E para evitar que se repita, estão proibidas as transações de empréstimos de criados entre esse castelo e a Casa Montaigne.

– Mas... – começou Madame Montaigne.

– Boa noite, senhores!

E com isso, o Duque encerrou a discussão, dando-lhes as costas, enquanto dava sua ordem final antes de deixar o local.

– Capitão, leve o menino aos seus aposentos.

Philippe estava ligeiramente desorientado e foi preciso que Diderot o guiasse levemente pelo ombro para que tomasse o caminho das escadarias.

Em seu quarto, o rapaz ficou parado no meio do quarto, enquanto Diderot pegava algumas roupas de dormir em uma gaveta.

– Inacreditável! – resmungou o Capitão, abrindo a gaveta. – É óbvio que Ravin tem alguma coisa a ver com isso! Essa gente não desiste?

Ele se virou com a roupa nas mãos e viu que o rapaz continuava no mesmo lugar. Aproximou-se, tentando olhar em seus olhos.

– Você está bem?

Philippe ergueu o rosto para ele e as lágrimas fizeram seu caminho pelo rosto, enquanto ele balançava lentamente a cabeça. Não, ele não estava bem.

Diderot deixou que o menino recostasse a cabeça em seu ombro e esperou que as lágrimas e os soluços silenciosos terminassem. O Capitão conseguira livrar Philippe de Gerard, mas se sentia impotente quando o assunto envolvia os nobres. Então, ele fazia o possível. E quando não era o suficiente, oferecia o ombro e um abraço amigo. Era só o que podia fazer.

 


Celine e Ravin tiveram uma briga muito feia logo na manhã seguinte. O rapaz a acusou de ter protegido Philippe e de ter desobedecido seu futuro marido. Celine também estava furiosa com o comportamento de Ravin e palavras duras não foram poupadas. Quando Ravin a acusou de ter uma queda pelo mestiço, uma bofetada explodiu no rosto dele. A discussão parou, enquanto Celine o fitava com olhos furiosos.

– É melhor você sair agora – disse a moça, sabendo que não poderiam retirar as palavras, as acusações e muito menos a bofetada que ela dera.

Ele saiu no mesmo instante, batendo a porta atrás dele. Andou pelos corredores, irritado e furioso. Desceu as escadas até o calabouço, onde encontrou um guarda para quem deu algumas moedas. Este indicou a porta da cela que ele procurava.

– Sua estúpida! – disse ele, assim que o rosto magro e branco surgiu na portinhola gradeada. – Eu disse para colocar o colar no bolso dele!

– Eu tentei! – defendeu-se ela. – Mas não consegui! Por favor, Ravin! Me ajude!

– E o que eu posso fazer? – disse ele. – Apenas as pessoas que foram prejudicadas pelo roubo podem pedir redução ou anulação da pena. Não posso pedir à Madame Montaigne sem levantar suspeitas!

– Mas pode pedir para Philippe! – balbuciou a moça.

Ravin fez uma expressão condizente com um pedido para ele pular numa enorme poça de sanguessugas.

– Ficou louca, mulher? Eu jamais pediria nada àquele mestiço!

– Mas ele pode...

– Cale a boca! Você estragou tudo! Agora, aguente! São apenas algumas chibatadas, estará boa em poucas semanas!

A moça começou a chorar. Ele relaxou o rosto.

– Eu a recompensarei por isso...

E então a deixou chorando na cela escura.

 


Philippe só conseguira dormir porque foi vencido pelo cansaço, mas a sensação horrível do que tinha passado o assaltava de vez em quando. Assim que pôde, saiu de seu quarto e vagou pelo bosque. Sentia-se muito sozinho e o tempo arisco não ajudava em nada. Terminou de pé no túmulo de sua mãe, Elle. Costumava conversar com ela de vez em quando, mas somente naquele momento percebera que há muito tempo não ia até ali. No final das contas, era só um túmulo. Sua mãe não estava mais ali e ele duvidava que ela o ouvisse.

A chuva e o frio apertaram, obrigando-o a voltar para o castelo. Tentou se desviar das pessoas, pois não se sentia disposto a falar com ninguém. Num dos corredores, porém, foi surpreendido por François, um dos criados do castelo.

– Eu soube o que aconteceu... – disse o rapaz.

Philippe olhou em volta, sem responder.

– Eu sinto muito.

– Por quê? – perguntou Philippe.

O outro não se surpreendeu com a pergunta.

– Você não fala direito comigo desde o baile, não me diz nem bom dia e é sempre rude. Por que sente muito?

François deu um passo a frente, tentando tomar coragem.

– Gostaria de lhe pedir que intercedesse por Brigite.

Philippe contorceu o rosto, incrédulo. François continuou.

– Como parte prejudicada, você pode pedir anulação da sentença para o Duque.

– E por que diabos eu faria isso?!

– Brigite é só uma mulher! Você já esteve no tronco, sabe como é terrível! Imagine o estrago que aquele chicote pode fazer na carne de uma moça! Tenha misericórdia, é só o que estou pedindo!

Philippe não respondeu e François achou melhor deixá-lo com a ideia de salvar a moça que o acusara falsamente. François sabia que Brigite errara. Mas seu amor por ela era forte o bastante para passar por cima disso.

 


Muitas pessoas estavam presentes quando Brigite foi levada para o tronco. Ela passou por Philippe e seus olhos se encontraram.

– Me ajude, por favor! Me ajude! – suplicou ela.

Philippe não se moveu. Ficou e viu a moça ser amarrada no tronco, no mesmo tronco onde ele também já estivera. O Capitão pronunciou o crime e a sentença e um guarda pegou o chicote, enquanto outro rasgou as costas do vestido, fazendo a moça emitir um gemido de desespero. A chuva tinha parado fazia tempo e o sol brilhava opaco por trás de nuvens de tom metálico.

A primeira chicotada veio acompanhada com o grito de dor e desespero de Brigite. Philippe estremeceu, vendo as costas dela se tingir de vermelho. Ele olhou para Ravin, a poucos metros dele. Sabia que ele tinha algo a ver com isso, então esperava que ele interrompesse a punição de sua cúmplice. Ravin, porém, parecia impassível. Outro estalar, mais sangue, mais uma marca nas costas dela que levaria para sempre como lembrança daquele dia.

Philippe achou que Brigite merecia aquilo. Ele tinha sido muito humilhado e teria sido muito pior se Celine não tivesse pedido ajuda dos guardas, que, ele só soube depois, estavam por perto por ordens do Capitão que lhes pediu que ficassem de olho enquanto estivesse fora. Porém, Brigite fora apenas uma pequena parte da conspiração que tentou vitimá-lo naquela noite. Ele sabia que outras pessoas arquitetaram o plano, e que sua noite teria sido muito, muito pior se não tivesse tido ajuda. No entanto, apenas Brigite, a pobre criada magricela, estava sendo punida. Quanto aos outros, estavam ali, assistindo de camarote o sangue dela espirrar.

Ele achou que ela merecia. Mas não conseguiu se manter impassível. Na quinta chicotada, quando os joelhos dela começavam a dobrar e os gritos se transformavam num choro de desespero, ele se aproximou do Duque e pediu-lhe que parasse com aquilo. Lamayer ergueu a mão, mandando o soldado parar. Olhou novamente para o rapaz.

– Tem certeza? – perguntou. – Ontem, ela não teve misericórdia de você...

O Duque tinha razão. Mas Philippe achou que já tinha pesadelos o bastante com seus inimigos quase violentando-o em público para acrescentar mais essas cenas brutais de Brigite sendo chicoteada por causa dele. Anuiu com a cabeça, confirmando sua decisão. O Duque então mandou que a soltassem, suspendendo o restante do castigo.

François correu e a ajudou, junto com o irmão mais velho dela. Os dois homens olharam para Philippe por um breve instante, com um olhar de agradecimento, enquanto o povo que assistia o espetáculo dispersava lentamente.

 


Capítulo 29


A Raposa e o Coelho

 

– Você está me evitando?

A pergunta o pegou de surpresa, quebrando sua concentração e fazendo a flecha passar longe do alvo, raspando o tronco de uma árvore e desaparecendo no mato. Ele se virou e viu Celine parada com as mãos na cintura.

– Estou tentando achar você há três dias!

– Você me fez errar o alvo.

Philippe começou a caminhar pelo bosque na direção da flecha perdida. Celine o seguiu, continuando a falar.

– Eu ajudo a procurar! Mas antes me diga: está zangado comigo?

– Não. – respondeu ele sem parar.

Ela ainda ficou parada, esperando alguma coisa acontecer, mas ele simplesmente seguiu em frente até chegar em uns arbustos e começar a procurar a flecha que se desviara. Ela o seguiu e começou a procurar também.

– Então, por que está me evitando?

Philippe ainda procurou a flecha por mais alguns minutos, enquanto Celine simplesmente continuava olhando para ele, esperando uma resposta. Então, vendo que ela não ia embora, ele parou também.

– Não estou evitando você. Estou evitando todo mundo.

– Por quê?

Ele se virou para ela, sem acreditar que tinha perguntado aquilo.

– Está brincando comigo?

– Por causa daquilo? Não foi culpa sua! Não tem do que se envergonhar!

Philippe sentou-se num tronco caído com um suspiro de irritação. Celine se sentou ao seu lado.

– Se está envergonhado porque o despiram, acredite em mim – disse ela com um sorriso. – Você não tem nada do que se envergonhar! Nada mesmo!

Philippe olhou para ela surpreso, deparando-se com um sorriso maroto que ele não esperava. Imediatamente suas bochechas e orelhas pegaram fogo.

– É sério, Philippe! – insistiu Celine, vendo que ele estava enrubescendo. – Além do mais, não é como se eu nunca o tivesse visto nu antes!

Ele arregalou os olhos para ela. Definitivamente, não se lembrava de nenhum momento em que ela o tivesse visto nu antes. Celine se inclinou para cima dele. Seus rostos ficaram a apenas alguns centímetros de distância e ele teve medo que o calor que ele estava sentindo naquele dia fresco e ensolarado colocasse fogo nos cabelos dela. Ela se esticou mais, ficando quase no colo dele, e então voltou com uma flecha de penas brancas na mão.

– Tome. Sua flecha!

Ele pegou a flecha e voltou a olhar para ela, esperando uma explicação. A moça sorriu e então ela mesma enrubesceu.

– Quando você nadava no lago... Eu costumava observar daquela pequena na direção do pôr do sol.

Philippe riu, um riso nervoso, piscando várias vezes e sacudindo a cabeça.

– Por que fazia isso? – perguntou ele.

– Porque você é bonito – respondeu ela, sem constrangimento.

Ele sorriu de novo e abaixou a cabeça.

– Obrigado por tentar me fazer me sentir melhor.

– Só disse a verdade... Então, não está mais chateado comigo?

– Eu não estava chateado com você. Na verdade, se não fosse por você, teria sido tudo muito pior...

– Todos acharam muito nobre sua atitude de poupar Brigite...

Ele olhou para a frente, lembrando da cena que preferia esquecer, da moça sangrando sendo retirada do tronco.

– Ela é só uma coitada... – respondeu ele. – Não era ela quem devia estar naquele tronco.

– Está falando de Ravin, não está?

– Estou falando de todos eles!

Philippe se levantou irritado e caminhou até uma árvore de tronco grosso e cheio de musgo. Virou-se para a moça que continuava sentada olhando para ele pacientemente.

– Eu nunca roubei nada, Celine! Nunca! Nem quando era criança! E desde sempre alguém me acusa de ter roubado alguma coisa! E, na maioria das vezes, não faz diferença se roubei ou não, eles só querem alguém para culpar e alguém para punir! E isso não está certo! Eu não deveria ser tratado como culpado, sendo inocente! E sempre que eu acho que as coisas estão mudando, algo assim acontece pra jogar na minha cara que eu nunca vou ser tratado como igual!

Celine o olhou longamente e então sorriu.

– Você não é igual a nós...

Ele a encarou com os olhos púrpuras escuros.

– Nós somos movidos a preconceito, somos tolos e superficiais e arrogantes e cretinos! E você não é nada disso!

Ele voltou até onde ela estava e se sentou ao lado dela.

– Obrigado...

Celine recostou a cabeça no ombro dele, enlaçando seu braço. Dentes de leão flutuavam pelo lugar e riscos de luz cruzavam as copas das árvores, fazendo com que trechos de troncos e folhas no chão brilhassem em dourado.

– Não mude, Philippe... – disse ela. – Não deixe quem mudem você. Precisamos de alguém para nos lembrar o que é a verdadeira nobreza...

Eles ficaram assim por algum tempo. Ele recostou o rosto na cabeça dela e deixou que sua amizade aquecesse seu coração e afastasse um pouco o rancor que começara a criar raízes.

 


Naquela mesma semana, o Duque mandara um mensageiro aos châteaus das imediações. Numa carta selada, revelava suas descobertas sobre os planos do bispo de Luçon e o mago que fazia experimentos com lobisomens. Revelou também sua experiência com o lobisomem furioso que encontraram em sua viagem e como ele parecia mais resistente do que lobisomens normais. Lembrou que as flechas de Philippe, dadas por Paralda e, portanto, encantadas de alguma forma, penetravam sem problemas a couraça resistente que mal era arranhada por suas espadas. Caso se encontrassem com uma criatura dessas, que se lembrassem de ter uma arma encantada nas mãos. Lamayer esperava que logo mensagens chegassem com novas informações, mas o que ele queria mesmo era alertar os outros para os planos do bispo.

Duas semanas depois, o mensageiro entregava cartas e Philippe corria empolgado para encontrá-lo nos jardins de entrada do castelo. O jovem de cabelos arruivados lhe entregou um maço e ele logo reconheceu a caligrafia de Prateada. Abriu um sorriso e agradeceu ao rapaz, correndo para o banco perto da fonte na lateral do castelo.

Era um lugar tranquilo e agradável, com o som da água, o perfume de gerânios e o som de pássaros que sempre se banhavam ali. Sentou-se no banco e começou a ler as cartas, sentindo a alegria de senti-la perto dele através das palavras.

Das cartas que o Duque recebera, uma lhe chamou a atenção e ele a abriu imediatamente. Nela, Madame Margaux dizia que um informante seu dizia que o bispo de Luçon estava fazendo muitos inimigos dentro do clero e poderia em breve ser destituído do cargo eclesiástico. Essa era uma excelente notícia. Talvez, afinal, não precisassem se preocupar com o bispo e seus planos de conquista por muito tempo.

– Quem é esse Thierry de Fontaine?!

Celine flagrou Philippe falando sozinho, perguntando para alguém invisível quem é esse sujeito enquanto olhava para uma carta com o cenho franzido.

– Não sei. O que ele fez? – perguntou a moça, sentando-se ao lado dele.

Philippe se surpreenderia com a presença súbita dela se não estivesse tão incomodado com o tal Thierry.

– Um novo amigo de Prateada, um estudante do Château das Letras. Ela fala dele o tempo todo em suas últimas cartas!

– E daí? – perguntou Celine.

– E daí? E daí que... Daí que ela mal o conhece! Quem é esse sujeito afinal?...

– Você está com ciúmes! – riu ela.

– Não estou, não!

Philippe se levantou com a carta nas mãos e marchou para longe. Celine foi atrás dele, determinada a provocá-lo.

– Está com ciúmes, sim! Prateada achou um novo “você” no Château das Letras!

– Não enche, Celine! – disse ele, sem parar de andar. – Vá perturbar Ravin!

Celine parou e deixou que ele seguisse adiante.

– Pois saiba que vou mesmo!

E virou-lhe as costas, caminhando na direção da casa de seu noivo. Philippe parou por um instante e a viu indo embora. Preferia que ela não tivesse obedecido. Mas, enfim, estava muito irritado no momento para sentir remorso. Continuou seu caminho de volta ao castelo, onde pegaria seu arco e flecha e sumiria no bosque para extravasar sua raiva em folhas e frutos pendurados nas árvores.

Celine e Ravin tiveram dias complicados depois do ocorrido naquela noite. Ravin cobrava de Celine lealdade enquanto Celine cobrava dele um pouco mais de compaixão. No final, ninguém pediu desculpas para ninguém, mas as coisas se acalmaram naturalmente. Claro que Ravin não sabia de seus encontros com Philippe, de suas longas conversas e de como Celine se sentia mais segura de si depois de cada encontro com ele. Ela imaginou o que aconteceria se Ravin soubesse que o mestiço que ele tanto detestava era o melhor amigo dela. Celine bem que tentou interromper esses encontros, mas não conseguiu. A verdade é que Philippe lhe fazia bem e ela não queria parar de vê-lo.


Mais duas semanas se passaram e uma nova safra de cartas chegou. Emily estava no boticário, procurando alguns unguentos para misturar às suas ervas, quando esbarrou sem querer com Madame Montaigne.

– Bom dia, minha jovem! – disse Madame Montaigne.

Emily exibiu seu sorriso falso. Ela, como todo mundo, sabia do incidente que terminara com uma criada no tronco e um menino humilhado. Seu desejo era gritar um monte de impropérios para Madame Montaigne, mas sabia que não podia fazer isso. Não com uma das mulheres mais poderosas e influentes do château.

– E então? O que vai fazer nesse domingo?

Emily não entendeu a pergunta que vinha com um tom malicioso embutido.

– Espero que não vá passear de novo com aquele rapaz... – e em tom de fofoca, Madame Montaigne se inclinou para ela para continuar. – Porque as pessoas já estão falando pelas suas costas sobre seus encontros com o mestiço.

Emily arregalou os olhos, confusa e surpresa. Duas mulheres no balcão deram uns risinhos e o boticário fingiu olhar para o outro lado. Antes que Emily conseguisse formular uma resposta, Madame Montaigne mandou outra:

– O que seu marido diria se soubesse! Um homem tão garboso e tão cobiçado não ficaria sozinho muito tempo, querida!...

E foi quando Emily esqueceu a educação que sua boa mãe lhe dera e falou uma sequência de palavras impublicáveis que fizeram todas as pessoas da loja, incluindo o boticário, paralisarem. Ela voltou para casa, esquecendo-se do que tinha que comprar, furiosa e imaginando que seu pequeno show no boticário chegaria sem demora aos ouvidos de Diderot. Assim que chegou em casa, encontrou Philippe sentado na soleira da porta com algumas cartas nas mãos.

– Philippe?

– Bom dia, madame!

O rapaz se levantou com um sorriso e pegou uma cesta que estava ao seu lado.

– Eu trouxe maçãs, morangos e outras frutas! Estão frescas e doces.

Palavras são muito poderosas. As palavras venenosas de Madame Montaigne, soltas no ar com irresponsabilidade e malícia, colocavam agora na cabeça de Emily imagens que corrompiam seus verdadeiros pensamentos. Philippe estava mais alto e mais forte, não era mais o garoto que conheceram. Era um rapaz, e um rapaz muito bonito por sinal. Um rapaz que tinha idade para ser seu filho. Como aquelas pessoas ousavam maldar o relacionamento deles?

– Madame Emily, algum problema? – perguntou Philippe, vendo que a mulher continuava parada diante dele.

Ela sacudiu rapidamente a cabeça e sorriu.

– Não, querido! Está tudo bem! Vamos entrar, Diderot chegará logo e poderemos almoçar.

Philippe ajudou Emily com as hortaliças, enquanto falavam dos acontecimentos da semana. Quando o Capitão chegou, almoçaram e, depois do almoço, Philippe leu as cartas de Prateada, como sempre fazia. Quando o Capitão e Emily recebiam alguma carta dela, também a liam para ele. Quando Philippe terminou, Diderot se surpreendeu.

– Já acabou?

Philippe colocou as três cartas que tinha sobre a mesa.

– As cartas dela estão diminuindo... – disse, preocupado. – Eram seis ou sete por vez. Dessa vez foram apenas três.

– Ela deve estar atarefada, Philippe. – consolou-o Emily. – Tenho certeza de que ela escreverá mais das próximas vezes!


Depois que saiu da casa do Capitão, Philippe se encaminhou para a casa de Jacques, um lugar que não costumava visitar. A criada que o atendeu pareceu surpresa, mas chamou seu senhor, conforme pedido.

– Philippe? – estranhou Jacques.

– Olá, Jacques – disse Philippe, entregando-lhe um envelope fechado. – Uma das cartas de Prateada para você ficou comigo por engano.

Jacques recebeu a carta com um sorriso.

– Obrigado!

– Você faria o mesmo – respondeu Philippe, despedindo-se.

Já tinha dado uns quatro passos para longe da porta quando Jacques o chamou. Philippe virou-se.

– Quer beber alguma coisa?

Philippe hesitou. Jacques o chamou para entrar e o rapaz acabou aceitando o convite inesperado. Assim, passaram a tarde tomando hidromel e vinho, enquanto conversavam sobre as aventuras de Prateada no Château das Letras, contadas nas cartas que chegavam com constância às mãos deles.

 


Duas semanas depois, mais uma remessa de cartas chegou.

– Tem certeza de que é só isso? – perguntou Philippe, estranhando.

O mensageiro confirmou e Philippe ficou com a única carta nas mãos. Não entendia o que estava acontecendo. Ele mantinha fielmente o número de cartas, entregando ao mensageiro sempre seis ou sete envelopes com duas ou três folhas cada uma. Já as cartas de Prateada foram diminuindo consideravelmente para todos no château. Mesmo o Duque e o Capitão já não recebiam cartas dela há semanas. Todos pareciam encarar isso como algo natural, menos ele. Não esperava que Prateada parasse de lhe escrever. Será que ela estava realmente ocupada, como dizia Emily? Ou estava apenas se esquecendo dele, como todos previram?...

Não muito longe dali, o Duque e o Capitão acompanhavam num passeio a cavalo dois visitantes. O primeiro era Octavien de Saint-Gelais, homem grande de rosto quadrado e gargalhada sonora, dessas que ecoam até onde não tem eco. O segundo era mais magro e tinha o rosto desenhado por uma barba muito bem feita. Seu nome era Thomas Sébillet e se vestia com simplicidade e discrição. Ninguém poderia dizer que esses dois homens fossem incrivelmente mortais em suas habilidades. Octavien dominava todo tipo de luta com espadas e machados, enquanto Thomas era melhor em facas e armadilhas de todo tipo.

Eram ambos membros do clã e, diferente da maioria dos Lobos Brancos, não viviam em nenhum château, mas viajavam pelas cidades, atendendo chamados onde fossem necessários. O Duque conseguira localizá-los e agora mostrava a propriedade, enquanto falavam sobre o que desejavam deles.

– Podemos treinar seus soldados, senhor – respondia Thomas. – A questão é que nem todos possuem talento para as armas. Precisamos ver como são seus homens antes de lhe dizer quanto tempo vai levar.

– Não somos especialmente bélicos, mas sabemos brigar – disse o Duque. – Além do mais, não precisam se preocupar com pagamento. Levem o tempo que for preciso para ensinar o que sabem aos homens.

– Parece uma boa proposta, Octavian – disse Thomas. – Além do mais, sempre quis passar uma temporada no Château das Vertentes. Dizem que é um lugar muito tranquilo...


Ravin atirava facas numa árvore indefesa com precisão. Depois da terceira faca, foi até o tronco arrancá-las e começar de novo.

– Por que não a mata logo e acaba com sua agonia? – perguntou Albert, recostado num banco de madeira.

– Não enche, Albert! – foi a resposta de Ravin, que voltava com as facas e recomeçava a atirar no tronco.

– Ravin está chateado, Albert – disse Carlo. – Deixe-o em paz!

– Chateado por quê? – zombou Albert. – Só porque o mestiço agora é quem manda?

Ravin se virou irritado para Albert.

– De onde você tirou isso?

Albert abriu os braços como se tudo a sua volta fossem provas do que acabara de dizer.

– De tudo o que tem acontecido até agora, ué! Ou só você não notou que Philippe agora é mais importante do que eu ou você?

Ravin atirou as facas no tronco com um intervalo tão pequeno que mal foram vistas atingindo seu alvo. Ele se virou para Albert. Os dois tinham se tornado amigos quase que imediatamente quando o jovem chegou ao Château das Vertentes enviado pela família para uma temporada, onde deveria aprender algumas coisas. A verdade sobre a ida de Albert para um château tão distante do seu lar era sabida pelos amigos. O fato é que o rapazinho de cabelos curtos e negros havia seduzido algumas moças em seu antigo château. Como a família não queria casamento com moças pobres e camponesas, o mandaram para longe para evitar tanto o compromisso, quanto a confusão.

Albert se divertira a princípio com as perseguições ao mestiço, com jogo e com a taberna. Agora, começava a se entediar.

– É só um mestiço! – disse Ravin. – E ele deve obediência a qualquer um de sangue puro.

– É mesmo? – respondeu Albert. – Então prove!


Talvez tenha sido essas estranhas confluências do destino que fazem com que pessoas se encontrem em lugares inesperados. Philippe caminhava lendo a única carta de Prateada que recebera, onde ela lhe contava sobre a biblioteca gigantesca do Château das Letras, e como muitos dos livros de um lugar chamado Alexandria tinham ido parar ali. Ela descrevia algumas capas, desenhos e um livro gigante chamado Livro de Kells, repleto de histórias fantásticas, cores e figuras. Ela também dizia que sentia a falta dele e que não via a hora de voltar. Philippe sorriu, acalentado pela ideia de que ela pensava nele com afeto e com saudade.

E foi nesse momento que a carta lhe foi arrancada das mãos.


Deparou-se com Ravin, Carlo e Albert. Fazia muito tempo que não os encontrava, graças ao seu cuidado ao olhar por onde anda. Dessa vez, distraíra-se completamente com a carta de Prateada, e a carta se tornou seu principal objetivo. Avançou para Ravin para retomar o papel.

Ravin desviou, empurrando-o e começando a ler a carta como se fosse uma mulher.

– “Querido Philippe, há muitos livros na grande biblioteca daqui! Você iria adorar!”

– Me dê isso!

Philippe fez um movimento rápido e quase conseguiu pegar a carta de volta, mas Ravin a ergueu no ar no momento em que seus dedos roçaram o papel.

– Calma, mestiço! Você precisa aprender bons modos, sabia? Vamos fazer o seguinte... Você limpa minhas botas e eu lhe devolvo sua preciosa carta.

Philippe fechou os punhos, pronto para voar em cima de Ravin.

– Limpe você mesmo suas botas!

Ravin ficou sério.

– Não está entendendo, mestiço... Não foi um pedido.

Carlo e Albert agarraram Philippe pelos braços, imobilizando-o. Então Ravin rasgou a carta de Prateada e deixou que o vento levasse os pedaços. Philippe gritou e tentou se soltar, mas os outros dois o seguravam firmemente, já prevendo sua reação.

Ravin colocou a bota sobre uma pedra e deu a ordem.

– É hora de aprender a obedecer, mestiço... Limpe minhas botas... Com a língua!

Os outros riram e chutaram a dobra das pernas, obrigando Philippe a ficar de joelhos. Forçaram sua cabeça para frente e seus braços para trás, esfregando sua boca na bota de Ravin, até que não houvesse mais como ele resistir e fizesse o que lhe era mandado.

Ravin sorriu, vitorioso, enquanto os outros riam.

– Isso, mestiço... – disse Ravin. – Não esqueça nenhum pedacinho. Depois, você fará o mesmo com as botas dos meus amigos, então capriche!


– O que está acontecendo?

A voz do Duque fez com que os rapazes soltassem Philippe imediatamente. Ravin tentou explicar, enquanto Philippe permanecia no chão.

– Não é nada, senhor! Só estávamos colocando o assunto em dia...

Philippe sentia as juntas dos ombros doerem, por terem torcido tanto seus braços. Havia terra em sua boca e muito ódio em seus olhos. Num movimento rápido, ele saltou em cima de Ravin, que, sem esperar o ataque, caiu de costas no chão.

Os dois rapazes se atracaram em uma luta feroz, obrigando o Capitão a descer para separá-los, coisa que não foi fácil. Quando finalmente conseguiu tirar Philippe do pescoço de Ravin, seguro por Albert e Carlo, o rapaz gritava enfurecido:

– Chega, Ravin! Chega! Eu o desafio para uma luta! Uma luta de verdade, sem essa sua corja de covardes para ajudá-lo! E quando eu vencer, você nunca mais vai tocar em mim! Entendeu? Nunca mais!

– Parece que você foi desafiado, Ravin... – disse o Duque de seu cavalo. – Aceita o desafio?

Ravin parou de se debater e Albert e Carlo o soltaram. Limpou um pouco de sangue do canto do lábio de um murro bem dado de Philippe e riu.

– E o que EU ganho se você perder?

Philippe parou de se debater também e o Capitão o soltou. Ravin deu um passo a frente.

– Eu lhe digo o que eu quero! Se eu vencer, quero um contrato de servidão! Você será criado de minha casa e servirá a mim e a minha família até o fim dos seus dias!

Philippe ofegava, sem tirar os olhos do inimigo de uma vida inteira.

– Então, você mantém o desafio? – perguntou Ravin, sorrindo com sangue nos dentes.

– Mantenho. Amanhã pela manhã eu vou arrebentar você, Ravin!

Ravin apenas riu.

– Assim será então! – confirmou o Duque.

Os rapazes saíram e Philippe se pôs a catar os pedaços da carta que ainda estavam espalhados pelo chão.

– Nos encontramos adiante, Capitão! – anunciou o Duque, seguindo o caminho com Octavian e Thomas.

– Nossa primeira semana e já vamos ver uma boa briga! – comemorou Octavian. – Acho que podemos iniciar as apostas! Voto em Ravin! Tem porte, é forte e alto, deve ser bom de briga.

– Eu não sei, Octavian... – disse Thomas. – Você viu a velocidade e a fúria do garoto de cabelos compridos? Talvez ele surpreenda!

– Duvido! Talvez hoje, na hora da raiva, com o sangue quente, ele vencesse. Amanhã já é outra história. E você, Duque? Aposta em quem?

– Se uma raposa caça um coelho, quem vocês acham que vai correr mais? – perguntou Lamayer.

– A raposa! – respondeu prontamente Octavian.

– Não, senhores! – riu o Duque. – O coelho! A raposa corre por uma refeição. Já o coelho corre pela sua vida. Por isso, eu aposto no coelho.

 

Capítulo 30


Nunca mais

 

– Você ficou louco, Philippe?! – Diderot estava apavorado. – Como foi concordar com uma coisa dessas?!

O rapaz recolheu o último pedaço que achou e olhou para o Capitão.

– Eu não posso mais viver assim, Diderot! Não posso viver achando que a cada dia me aguarda uma emboscada! Que a cada curva, Ravin está lá me esperando para me humilhar de novo!

– Eu entendo! – disse o Capitão. – Mas não devia ter concordado com o que ele lhe propôs! Um contrato de servidão vai tornar você escravo dele e da família dele! Eles poderão fazer o que quiserem com você, Philippe, e nem eu, nem mesmo o Duque, poderemos impedir.

– Não se preocupe com isso – respondeu Philippe. – Ele não vai vencer.


A notícia do desafio correu rapidamente pela cidade e na manhã seguinte havia uma pequena multidão a espera dos dois rapazes. Havia duas cadeiras de estofamento de veludo vermelho para o Duque e para sua filha.

Philippe tivera pesadelos terríveis durante a noite. No sonho, ele perdia a luta para Ravin e se tornava seu escravo. Sempre que acordava em pânico, percebia que era um pesadelo, mas um pesadelo que poderia se tornar real. Voltava a dormir e o sonho começava da mesma maneira. Ele perdia a luta. Estava no chão e não conseguia se levantar. Mas sua vida de escravo continuava do ponto onde tinha parado o sonho anterior. Em uma das vezes, ele servia uma mesa onde a família de Ravin tinha cabeça de animais, numa visão grotesca e aterrorizante.

– Eu não vou perder... – murmurou para si mesmo, ao ver o Duque e Celine chegarem.

A moça falou algo para o pai e então foi até Ravin. Falou algo para ele, Philippe não tinha ideia do quê. Ravin apenas a olhou de canto de olho e seguiu tirando o casaco, preparando-se para a luta.

– Um desafio foi feito ontem! – pronunciou-se Lamayer. – E o desafio foi aceito. Que vença o melhor!

Desafios nos châteaus não eram incomuns. Eram usados para resolver pendências de toda a sorte. Eram também uma ocasião para apostas e agitação, uma bem-vinda quebra de rotina. Para quem assistia, claro. Para quem lutava, era sempre uma questão de honra. Nesse caso, para Philippe, era também uma questão de vida ou morte.

Ravin estava calmo. Não tinha nenhuma dúvida de que venceria o mestiço. Ele era evidentemente mais forte e certamente mais preparado para uma luta corpo a corpo. Philippe só tinha o ódio ao seu favor e essa era uma vantagem que Ravin também tinha. Ali estavam dois homens que realmente se odiavam.

Philippe deu o primeiro golpe. Ravin se esquivou com facilidade. Eles se olhavam nos olhos, tentando prever o próximo golpe. Quando Philippe tentou acertar um murro em Ravin novamente, este se esquivou e acertou-lhe um soco no estômago. E a partir daí, os golpes não pararam.

Philippe perdeu o fôlego com o golpe, e viu o punho fechado de Ravin crescer diante de seu rosto. Conseguiu impedir o golpe e voltou a atacar. No começo, estavam bem equilibrados. Poderia-se dizer que ambos estavam no mesmo nível. Os gritos incentivavam seus campeões, mostrando que as apostas haviam sido feitas.

Diderot observava, vendo Emily na multidão a observá-lo com reprovação. A esposa insistira que ele deveria impedir aquela luta, mas ele não poderia, mesmo que quisesse. Não se retira um desafio. Seria o fim para Philippe desistir antes de lutar. Além do mais, ele também não conseguiria dissuadir o garoto.

Porém, o Capitão sabia que as chances de Philippe não eram boas e ele tinha prometido à Prateada que o manteria seguro. Caso ele perdesse, Diderot já tinha um plano em mente. Não era um plano muito bom, mas era o que tinha. Preparara uma fuga com rota direta para o Château das Letras, onde ele deveria se encontrar com Prateada. Fugas não eram permitidas, mas o que mais ele poderia fazer? Sabia que Prateada daria um jeito e ele jamais permitiria que Philippe ficasse nas mãos sádicas de Ravin.

Novos golpes arrancaram sangue da boca e nariz dos dois rapazes. Ravin começava a perder o ar confiante. Não esperava que Philippe lutasse tão bem. Ele ignorava que Bergére lhe ensinara muito sobre luta corpo a corpo e que esta era a primeira vez em que lutava com o mestiço sem apoio de seus amigos.

A luta estava se estendendo demais e nenhum dos dois caía. Ravin achou que era hora de encerrar o espetáculo, antes que o mestiço ganhasse confiança demais. Com uma sucessão de golpes rápidos, Ravin conseguiu o que queria. Derrubou Philippe e, para que não houvesse chance dele se levantar, chutou seu estômago com o máximo de força.

Philippe cuspiu sangue e Celine se levantou com a mão sobre os lábios. Ravin deu um segundo chute, dessa vez no peito, fazendo com que Philippe perdesse o fôlego e achasse que o coração tinha parado. Emily sentiu os olhos marejarem e gritou o nome do rapaz. Diderot olhou para Lamayer, esperando a ordem de interromper o que estava se tornando um massacre. O Duque negou-lhe qualquer ação com um movimento de cabeça.

Ravin deu mais dois chutes em Philippe até que ele não tivesse mais chance de revidar. A multidão parou de torcer ao ver que a luta chegara ao fim. No chão, Philippe cuspia sangue e rastejava, contorcido em dor, sem conseguir respirar. Ravin deu-lhe as costas, dando uma ordem aos seus criados.

– Tragam o ferro em brasa! Vou marcá-lo, como os animais de minha propriedade!

Os criados se movimentaram para atender ao pedido, algo que já estava preparado. Celine se virou para o pai.

– Não pode permitir isso, papai!

Philippe no chão via as cenas de seus pesadelos. Viu tudo o que passaria nas mãos daquela gente, nas mãos de Ravin. Viu as pessoas com cabeças de animais, de bodes e touros, de galos com bico em sangue. Eles o estraçalhariam, mas não de uma vez. Aos poucos, com dor, com humilhação, com sofrimento. E, de tudo isso, o que mais o assustava, o que mais o apavorava era o fato de que seria tirado de Prateada para sempre. Não tê-la mais ao seu lado, não poder estar do lado dela, não poder mais pertencer a ela como pertencia, era o que o fazia tremer de pavor. E o que o fez se apoiar no cotovelo e usar todas as forças que tinha para se levantar.

A multidão viu estarrecida o rapaz se levantar, trôpego, sangrando, provavelmente incapaz de dar algum golpe. Ravin se virou e riu, limpando o sangue do nariz. Se aproximou com o punho erguido para um último golpe.

Num movimento rápido e inesperado, Philippe se esquivou e usou o movimento de Ravin para derrubá-lo. Ravin caiu no chão e levantou, atônito e muito zangado. Partiu para cima do oponente e, para sua surpresa, foi recebido com um murro no rosto que o fez ver pontos vermelhos dançarem diante dele. Philippe deu outro murro, e outro, até que Ravin sentiu os joelhos dobrarem e foi ao chão. Philippe pulou em cima dele e continuou esmurrando-o, enquanto gritava.

– Você nunca mais vai encostar em mim, Ravin!! Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!!!

Lamayer fez um movimento para o Capitão e este correu e retirou Philippe de cima de Ravin, cujo rosto estava agora terrível. O nariz fora quebrado, um dos olhos estava fechado por causa do inchaço, a boca estava com alguns dentes a menos e o sangue cobria a maior parte dele.

Philippe esperneou, tomado por uma fúria enlouquecida, uma fúria de tantas covardias do passado, sem parar de gritar, exibindo uma energia alimentada unicamente pela ira, enquanto o Capitão o arrastava para longe do oponente caído.

Carlo, Albert e o monsieur Thibault Denvier, correram para ajudar o rapaz caído. Seus olhos viam tudo manchado de vermelho, mas ele não conseguia deixar de olhar. Viu Philippe sendo arrastado para longe dele. Viu as pessoas passarem sacos de moeda umas para as outras, numa inesperada mudança de rumo na luta. Viu Philippe finalmente parar de gritar, sem no entanto tirar os olhos dele, e deixar-se cair de joelhos, exausto, ferido, o sangue escorrendo pelas têmporas e pela boca, os cabelos desgrenhados caindo pelos ombros e pelo rosto, e o olhar que dizia “eu venci” que simplesmente o esmagava e parecia manter Ravin preso ao chão. Viu Emily correr para ele com lágrimas nos olhos. E, o que nunca mais esqueceria, viu o que não queria ver.

Viu Celine correr para Philippe, ao invés de correr para ele.

 

Capítulo 31


Sob a luz do sol

 

O espanto do inimaginável pode nos paralisar. Pois foi o que fez à Ravin. Levado para casa, tratado pelo médico, mimado pela mãe, consolado pelos amigos... Nada o tirou do torpor de ter perdido uma luta que considerava ganha. Por algumas horas, enquanto o médico da família tentava consertar o seu nariz quebrado e dava pontos nos cortes abertos por onde o sangue escorria abundantemente, Ravin revia a luta em sua mente, tentando entender o que tinha acontecido. Como pudera perder para o mestiço?!

Mas não era isso que estava fazendo seu sangue ferver. O que fazia seus punhos se fecharem e jurar que destruiria o mestiço de qualquer jeito era a lembrança de ver Celine correr para ele, ao invés de correr para seu futuro marido. Mesmo naquele momento, onde estava ela? Podia garantir que estava ao lado do mestiço, segurando as mesmas mãos que o esmurraram.

E Ravin estava certo. Levado de volta para o castelo, Philippe ainda tinha a adrenalina no corpo, o que o fazia tremer. O doutor Marceau já estava a postos, pois todos sabiam que aquela luta terminaria com sangue e ossos quebrados.

Philippe sentiu um pano molhado limpar o sangue do seu rosto e piscou várias vezes para tentar focar a visão. Viu o rosto de Madame Emily diante dele, a aflição estampada em seus olhos e nos caminhos que as lágrimas fizeram. Philippe sorriu.

– Acho que realmente vou acabar com seu estoque de pó da caledônia...

O Duque se aproximou de Celine que observava o médico cortar com cuidado a camisa de Philippe.

– Ele vai ficar bem? – perguntou a moça.

– Provavelmente – respondeu seu pai. – Eu posso estar errado, mas... Você não deveria estar fazendo essa pergunta para o médico que está cuidando de seu noivo?

 

Ravin já estava limpo, com roupas limpas e curativos nos diversos cortes. O maior estrago tinha sido realmente em seu rosto e em seu orgulho. Sua mãe tentava fazê-lo tomar uma sopa quando Celine surgiu na porta. A mulher deixou o prato sobre a bandeja na mesa e se retirou, deixando-os a sós. Celine recostou-se na porta fechada, vendo o rosto inchado e marcado de Ravin.

– Que surpresa vê-la aqui, Celine!... – disse ele, sem sorrir. – Depois que correu para o mestiço, achei que se casaria com ele.

– Você quase o matou – respondeu ela.

– Ele venceu a luta! Talvez se eu tivesse vencido, você tivesse ficado do meu lado! Deveria imaginar que...

– Cale a boca, Ravin!

Celine caminhou até ele, o rosto duro que o surpreendeu.

– Eu lhe pedi para não machucá-lo! Eu lhe pedi várias vezes antes da luta! Eu implorei para você desistir! E você disse que ser um criado em sua casa não seria assim tão ruim para um mestiço, que ele deveria se sentir até um felizardo! E então, o que você faz? Você o destroça, você usa toda a sua força! E quando achou que tinha vencido, você ia marcá-lo com um ferro em brasa, como faz com seus animais!

– E você correu para ele! – gritou Ravin.

– Corri para ele porque ele é mais homem que você! – gritou de volta Celine.

Nem ela esperava que aquelas palavras saíssem de sua boca.

– Retire o que disse, Celine... – ordenou ele, com voz rouca.

– Não retiro, não! Philippe nunca quebrou sua palavra antes, coisa que você faz o tempo todo! Homens de verdade não são medidos pelos punhos, Ravin! São medidos pela confiança que podemos depositar neles! E, nesse momento, sinceramente, eu não confio em você!

– Saia daqui!!! – gritou ele.

Os olhos de Celine brilharam, as lágrimas quase caindo pelo rosto lívido. Ravin pegou uma caneca de água no criado mudo ao seu lado e jogou na direção dela. A moça se encolheu e a caneca explodiu na parede atrás dela.

– SAIA!!!!

Ela correu para fora do quarto e não parou quando passou pela mãe dele no corredor, mesmo quando esta chamou seu nome.

 


Por uma semana, Ravin não foi visto pela cidade. Ele não precisava de tanto tempo para convalescer, já que não havia quebrado nada, mas não queria encarar as pessoas e seus comentários. Sabia que daria um murro no primeiro palhaço que lhe dirigisse a palavra em tom jocoso. Preferiu então ficar em casa, saindo apenas para uns rápidos passeios nos próprios jardins. Durante esse período, Celine não voltara a visitá-lo.

Depois de uma semana, porém, ele já se sentia bem o bastante para ceder ao convite dos amigos para tomar uma cerveja na Taberna Presas de Prata. Houve um ligeiro constrangimento nos primeiros momentos, mas logo Jacques começou a conversar sobre outros assuntos, Albert puxou um brinde e Carlo falou uma cretinice, aliviando a tensão. Depois de algumas cervejas, porém, o assunto acabou voltando à baila.

– Ele apenas deu sorte, Ravin! – disse Albert. – E você está aqui, andando e bebendo, enquanto o mestiço está morrendo de dores numa cama. Você deu mesmo um jeito nele!

Ravin fechou o rosto. Imaginar Philippe numa cama era imaginar Celine ao lado dele. Ninguém sabia da discussão que ele tivera com a noiva, ou, ao menos, ninguém tocara no assunto. Olhou para Jacques que desviou o olhar.

– Tem visto Celine? – perguntou Ravin.

Jacques fez aquele leve estremecer dos olhos que precedia uma mentira.

– Não, não a tenho visto...

E voltou a beber sua cerveja.

 

Albert não mentira que Ravin tinha feito um real estrago no oponente. Philippe estava pagando por sua coragem com muita dor. Foram quatro costelas quebradas, uma delas perfurou o fígado, provocando uma infecção, além dos inúmeros hematomas que se espalhavam pelo corpo. Até respirar era uma tarefa árdua. O doutor não tinha ideia de como ele continuara lutando com tamanha fúria estando tão debilitado. Mas ele ficaria bom. Com o conhecimento de medicina e magia unidos, em poucas semanas, já poderia se levantar.

Apesar do quadro difícil, Philippe estava feliz. O olhar estava altivo e tinha sempre uma piada na ponta da língua. A dor não lhe importava. Havia vencido! Não se preocuparia mais com Ravin e seus capangas, pois se tentassem algo, o próprio Duque os colocaria a ferros. O Duque podia não gostar muito dele, mas era um homem muito rígido e não aceitaria que quebrassem o acordo e a lei diante do seu nariz.

Sorriu, lembrando que quebrou o nariz de Ravin. A satisfação encheu seu peito e a simples imagem que fez em sua mente de Ravin com a cara amassada o fez rir. Parou quando doeu.

Celine apareceu na porta com um livro.

– Escolhi outro livro para você! – disse ela, com um sorriso.

– O mensageiro já veio? – perguntou Philippe, ansioso.

Celine se sentou na beirada da cama com um sorriso triste.

– Veio. Lamento, não tinha nenhuma carta de Prateada dessa vez...

– Nenhuma?! – estranhou ele. – Nem mesmo pra mim?!

– Ela deve estar muito ocupada! Tenho certeza de que virão cartas dela da próxima vez!

Philippe não comprou sua animação. A preocupação ocupou o lugar da alegre satisfação que sentira antes. Celine tocou sua mão.

– Não fique assim, Philippe...

Ele anuiu com a cabeça. Celine se acomodou numa poltrona individual próxima e começou a leitura do novo livro. Depois de três capítulos, o rapaz adormecera.

Celine se levantou e colocou o livro na cabeceira. Retirou uma mecha de franja comprida da testa dele enquanto o observava por alguns minutos. Então, ela se inclinou e beijou os lábios dele, levemente, como se fosse uma brisa.

 


Foram quatro semanas até que ele pudesse andar de novo. Com ajuda de Constance, conseguiu descer as escadas e caminhar até o jardim, depois de andar apenas dentro do próprio quarto. Constance deixou-o sentado no banco, aproveitando o Sol do qual ele tanto sentira falta. O rapaz agradeceu-lhe pela gentileza e respirou o ar com cheiro de mato. O clima estava agradável e o Sol era gentil. Ele voltou o rosto para o Sol que brilhava no céu azul opaco, deixando que sua luz o invadisse e o energizasse. Não contara para ninguém, mas estava decidido. Assim que se recuperasse, pediria ao Duque para ir até Prateada. Precisava saber por que ela não estava mais lhe escrevendo.

Enquanto ele fazia seus planos sob a luz do sol, uma figura conhecida entrava na cidade. Foi Carlo quem o vira e, assim que teve certeza de quem era, correu para a casa de Ravin para avisá-lo.

– Tem certeza?! – perguntou o outro, levantando-se da cadeira onde estava.

– Absoluta! Acabou de chegar na cidade, certamente deve estar indo para sua velha casa!

Ravin pensou rapidamente. Aquele fato poderia ser a solução imediata de seus problemas.

– Preciso de sua ajuda, Carlo! – disse, pegando o casaco e vestindo-o. – Quero que descubra onde está o mestiço. Assim que souber, vá me avisar. Vou encontrar nosso velho amigo no caminho do bosque, antes que ele chegue à sua velha casa.

Carlo, feliz em ser necessário, correu para cumprir sua missão, enquanto Ravin montava seu cavalo cor de terra escura e disparava na direção do bosque.

 


Philippe ficou mais de duas horas naquele banco, matando suas saudades do Sol, caindo num cochilo saudável de vez em quando. Abriu os olhos quando sentiu um perfume adocicado conhecido.

– Celine?

– Como soube que era eu? – perguntou a moça, saindo de trás dele e sentando-se ao seu lado.

Philippe sorriu e seus olhos brilharam, tornando-o encantador.

– Como se sente hoje? – perguntou a moça.

– Bem melhor! Acho que à noite já poderei desafiar Ravin de novo!

A moça riu e então pareceu entristecer, como uma rosa que murcha de repente.

– Desculpe, eu não queria aborrecer você... – disse ele.

– Não é você, é... outra coisa...

Philippe se inclinou para olhar melhor para ela.

– Você está bem?

Celine se virou para ele. O rosto estava ainda pálido, mas os cortes nos lábios já tinham cicatrizado. Havia um leve tom de roxo abaixo de um dos olhos, algo que desapareceria com alguns dias de sol. Ele não mudara muito desde que ela o conhecera, quando eram crianças que corriam pelas terras do château.

– Desejo algo que não posso ter... – disse ela, finalmente.

Philippe sorriu.

– Você é Celine Lamayer, duquesa das Vertentes. Pode ter o que quiser!

E num impulso que urgia por uma ação já há muito tempo, Celine se inclinou para ele e colou seus lábios nos dele. Pego de surpresa, Philippe inclinou-se um pouco para trás. O calor do beijo dela era algo que o capturaria facilmente, pois ele sentia-se ser puxado para aquele momento como se estivesse caindo e não pudesse impedir. Porém, quando achou que a queda não tivesse mais fim, segurou-a pelos ombros e a afastou.

– O que está fazendo?! – perguntou ele, o coração acelerado.

– Eu não sei... – respondeu ela, a respiração ofegante a apenas alguns centímetros dele.

Ela se inclinou de novo para cima dele e de novo seus lábios se tocaram. Ele a empurrou gentilmente de volta.

– Celine, não podemos! Seu pai nos mata! Ravin nos mata!

Ele se afastou um pouco dela e passou a mão nos cabelos, tirando algumas gotas de suor que se formaram em sua testa.

– Eu não sou nada, Celine! – disse ele, lutando contra a própria confusão. – Você é filha do Duque, não pode nem pensar em ter sentimentos assim por mim!

– Não pensei nos sentimentos – respondeu ela, sem tirar os olhos dele. – Apenas senti! E tenho sentido há muito tempo. E pensar não tem adiantado muita coisa!

Uma terceira voz se impôs e Philippe sentiu calafrios lhe percorrerem a espinha ao reconhecê-la.

– A vagabundagem acabou, moleque! Está na hora de voltar a trabalhar!

Celine não reconheceu Gerard de primeira, mas Philippe ficou gelado. O homem andava com um chicote na cintura.

– Já recebi ordens de levar você de volta ao trabalho, então você vai começar pela minha casa. Vamos!

– Ordens de quem?! – perguntou Celine.

– Com todo o respeito, não se meta nisso, duquesa!

Gerard estava muito perto agora e Philippe simplesmente não conseguia se mover. Há certas reações que não podemos explicar, mas que encontram sua raiz num passado muito distante. Philippe via em Gerard uma nova ameaça a sua liberdade. Por toda sua infância e adolescência, aquele homem fora seu pesadelo, matando-o de trabalhar, gritando imprecações, fazendo – e cumprindo – ameaças. Não podia cair nas mãos dele de novo, não agora que se livrara de Ravin.

– Não está me ouvindo, moleque?!

Gerard agarrou Philippe pela gola e o puxou, não encontrando nenhuma resistência. Celine se levantou e tentou impedir Gerard. O homem não se incomodou, afastando-a com um safanão de pouca intensidade. Começou a arrastar Philippe, mas este subitamente pareceu acordar e se livrou das mãos do ex-capataz.

– Eu não sei de que pesadelo você saiu – disse Philippe, sentindo a voz falhar, – mas você não tem nenhum direito sobre mim!

– Tenho, se um nobre de sangue puro o entregou para mim! – disse Ravin, retirando um papel de dentro do bolso da camisa.

Celine começou a gritar, chamando pelos guardas do castelo. Estavam numa lateral, os guardas ficavam sempre na entrada, mas ela não queria correr até lá e deixar Philippe. Então gritou a plenos pulmões.

Gerard agarrou Philippe pelos cabelos, sabendo que tinha que tirá-lo dali antes dos guardas chegarem, mas o rapaz tentou se desvencilhar. Isso irritou o capataz que lhe deu um puxão, jogando-o no chão. Philippe se arrastou, tentando se afastar de Gerard. As indicações do doutor Marceau soavam em sua mente como um sino muito alto. Não podia apanhar de novo. Tinha remendos por todo o corpo e um golpe com mais violência poderia simplesmente matá-lo.

O homem se aproximou com os punhos cerrados e foi quando Celine se interpôs entre eles. Ela empurrou Gerard.

– Celine, não! – gritou Philippe, que sabia do que Gerard era capaz.

Os olhos do homem faiscaram, sentindo-se desafiado. Deu um murro na moça, jogando-a para o lado. O golpe foi tão forte que ela caiu, batendo com a cabeça no banco em que estavam antes. O baque da batida da cabeça dela fez um som horrível, de algo se quebrando, e seu corpo já caiu imóvel na grama.

Guardas vinham correndo e Gerard, apavorado com a possibilidade de ter matado a filha do Duque, deu alguns passos para trás e correu. Philippe correu, ignorando as dores, até Celine. Virou-a e a apoiou nos braços. Sangue vertia de sua cabeça, manchando o belo rosto. Ele chamou por ela, e continuou chamando, enquanto os guardas chegavam correndo para tirá-la dos braços dele e levá-la para dentro do castelo.

 

Capítulo 32


Rompimento

 

A confusão que se instaurou no castelo foi imediata e tensa. O Duque não encarou muito bem ver sua filha entrar carregada nos braços e sangrando. Levada às pressas para seus aposentos, o doutor foi chamado, enquanto Constance e o Duque limpavam o ferimento e verificavam se a moça estava respirando.

Poucos minutos depois, o Duque saiu do quarto da filha bufando de raiva. Desceu as escadas e encontrou os guardas que a trouxeram junto com Philippe.

– Como ela está? Ela vai ficar bem?

Lamayer apertou os olhos e se aproximou ameaçadoramente do rapaz.

– O que você fez?! – rosnou o Duque, fazendo o garoto andar para trás conforme ele avançava. – O que aconteceu lá fora?! Vamos, responda!!!

– Foi Gerard! – respondeu Philippe.

– Gerard está no Château das Flores! – respondeu o Duque, continuando a avançar.

– Ele voltou! E foi até o banco onde estávamos dizendo que tinha direitos sobre mim! Ele começou a me arrastar e Celine tentou impedir. Foi quando ele bateu nela e ela bateu com a cabeça!

O Duque o encarou com olhos brilhantes que não piscavam nem por um momento. Então, olhou para os guardas.

– Nós ouvimos a duquesa pedir socorro e vimos quando um homem a agrediu – respondeu um dos guardas. – O rapaz estava no chão, ela se colocou entre eles. Quando nos aproximamos, o homem fugiu.

– Então o que estão esperando, seus palermas?! Vão atrás dele! E tragam esse homem aqui ou nem voltem!

Os guardas correram, sabendo que, embutida na ordem, estava uma ordem para avisarem ao Capitão, que mandaria mais homens no encalço do agressor.

O Duque se afastou, tentando recuperar o foco.

– Senhor?

A voz preocupada do rapaz o fez se virar para Philippe novamente.

– Ela vai ficar bem?

O rosto de Lamayer, feroz como um lobo que foi ferido, subitamente perdeu a dureza. Olhou nos olhos do rapaz, vendo a preocupação verdadeira.

– Eu não sei – respondeu, antes de deixar Philippe sozinho e voltar para o quarto da moça.


Celine fora tratada, mas o doutor estava muito preocupado com a profundidade da ferida. Golpes na cabeça podem matar de muitas formas diferentes. Podem matar sua memória, seu poder de falar, seu poder de andar, sua capacidade de ver, podem matar até mesmo sua capacidade de acordar, prendendo a alma num corpo que simplesmente não se move. Não tinham meios para saber nada disso, a não ser, esperando.

Depois que o doutor terminou sua parte, Emily começou a sua. Enviou energia de cura, pedindo aos gnomos que a ajudassem a restaurar o corpo físico de Celine. Fernand chamou o Duque e este desceu novamente as escadas. Lá embaixo, o Capitão e alguns guardas traziam Gerard.

– Aparentemente, ele foi liberado de sua dívida no Château das Flores, e chegou ao Château das Vertentes hoje – explicou o Capitão.

O homem estava chorando como uma criança.

– Perdão, senhor! Perdão, eu juro que não queria ferir a moça!

O Duque ficou de pé diante dele e dava para ver que ele estava lutando contra a vontade de estrangulá-lo ali mesmo. Não precisava pensar muito para ligar os pontos. O perdão da dívida que o liberara dos serviços do Château das Flores certamente tinha a ver com sua participação na emboscada que vitimou Philippe e quase fez Prateada cometer assassinato. Porém, o Duque não queria pensar nisso no momento. Ele queria saber o que aconteceu com sua filha.

– Quem lhe deu o contrato de servidão de Philippe? – perguntou Lamayer.

Gerard hesitou. Olhou em volta e logo viu Philippe a encará-lo.

– O jovem mestiço sempre trabalhou para mim! – respondeu Gerard.

– Você disse que um nobre lhe deu o direito de levá-lo. Quem foi?

Gerard abaixou a cabeça e retirou o papel amassado de dentro do bolso, entregando-o ao Duque.


Ravin entrou correndo no castelo e se deparou com uma cena que demorou alguns segundos para entender o quão próxima do desastre ela estava. O Capitão e os guardas o olhavam como se o acusassem. Philippe e Fernand também estavam lá. Gerard mantinha a cabeça baixa. E o Duque lia um pedaço de papel que ele prontamente reconheceu.

Ele se aproximou, já sabendo que era tarde demais para uma dissimulação.

– Senhor, eu nunca pensei que Celine pudesse se ferir! Eu não...

Um murro explodiu em seu rosto, jogando-o longe. Lamayer caminhou até ele, o papel amassado em sua mão fechada. Ravin levou a mão ao nariz que sangrava abundantemente.

– Saia daqui! – rosnou o Duque. – Saia antes que eu te mate!

Ravin olhou em volta e então se levantou e saiu, sem dizer mais nada.

 

Demorou cerca de uma hora e meia até que um guarda fosse até sua casa e lhe dissesse para ir até o castelo. Ravin não podia deixar de contar o que houve para sua família. Seu pai o chamou de estúpido, de idiota e de outros nomes ruins. Sua mãe culpou Celine, que não devia ter se metido em assuntos de homens. Ravin se sentia péssimo. Não queria que Celine se ferisse e não saberia o que fazer se o ferimento fosse fatal.

Ele acompanhou o guarda até o castelo. Entrou e Fernand o acompanhou escadas acima até o quarto de Celine. Quando ele entrou, encontrou o Duque, o doutor e Constance que dava um pouco de água para Celine, que tinha a cabeça enfaixada. Ravin sentiu um alívio tão grande que deu um suspiro profundo e feliz.

– Celine, que bom que você está bem! – disse ele, se aproximando dela.

A moça olhou para ele, notando o nariz machucado. Não perguntou, pois já imaginara que tinha sido seu pai. Ravin se aproximou mais, ajoelhando-se ao lado dela, os olhos cheios de lágrimas.

– Eu sinto muito... – disse ele, o remorso remoendo o coração como ferrugem consome o ferro mais duro. – Sinto muito, Celine!... Por favor, me perdoe...

– Eu perdoo você, Ravin... – disse ela.

Mas antes que ele pudesse sorrir, Celine retirou o anel de noivado e entregou-o a ele.

– Mas não quero ser sua esposa.

 

Capítulo 33


Mães e filhos

 

Semanas se passaram e os dias se despediram do outono. Logo, os ventos frios e as chuvas que pareciam infinitas começaram. Aquele inverno seria, segundo as previsões, especialmente duro e esperavam por neve. O cotidiano da cidade voltou-se para a expectativa do inverno, com estoque extra de lenha, consertos de janelas, manufatura de cobertores e limpezas de chaminés.

Gerard recebeu, afinal, sua punição. Depois de amargar algumas semanas na prisão do castelo, lugar pouquíssimo agradável, foi mandado de volta para o Château das Flores com um contrato de servidão perpétua. Isso significava que ele seria para sempre criado e propriedade do Château das Flores. Dois guardas o escoltaram e Philippe viu de seu cavalo quando o capataz deixou para sempre o Château das Vertentes. O homem lhe lançou um olhar amargo e, junto com as lembranças igualmente amargas, foi tudo o que deixou.

Celine se recuperara bem da pancada na cabeça. De vez em quando, fazia um charminho, dizendo sentir uma dor que não estava lá. Celine gostava de ser mimada. Felizmente, ela estava cercada de pessoas que gostavam de mimá-la, fazendo então uma combinação feliz.

Demorou um pouco até que ela e Philippe ficassem sozinhos de novo. O silêncio que se formou entre eles foi o sinal de que as coisas não eram mais como antes. Estavam no bosque, passeando num dia frio, sob galhos secos e árvores nuas.

– Não podemos fazer isso – disse Philippe, sendo o primeiro a tocar no assunto.

Celine não o encarou. Continuou olhando para o chão, envolta em seu manto verde escuro.

– Tudo bem... – respondeu ela, finalmente.

Ficaram em silêncio por mais algum tempo, até que ela retomou a questão.

– Você não tem medo de passar o resto da vida sozinho?

Philippe suspirou. Celine não sabia que o principal motivo dele não corresponder às investidas dela era Prateada. Além de ser segredo, um segredo que poderia valer sua vida e a coroa dela, era também uma notícia que feriria Celine, coisa que ele não queria fazer.

– Não, não tenho... – respondeu ele. – Me basta estar por perto das pessoas que me importam.

Então ele pegou a mão dela e sorriu. Celine respondeu com um sorriso, mais tranquila. O fato é que seu coração ainda batia por aquele rapaz proibido, incrivelmente acessível, porém irremediavelmente fora de alcance. Tê-lo por perto já era uma coisa boa. Mais do que isso, alimentava sua esperança de que ele se apaixonasse por ela, como já se apaixonara uma vez. E que isso fosse forte o bastante para um amor como aquele sobreviver num mundo como o deles.

 


No primeiro dia de inverno, havia um passeio tradicional exclusivo do Château das Vertentes. Algumas senhoras saíam para um passeio até o Lago Negro acompanhadas por seus filhos. Eram pequenos grupos que, durante o dia, seguiam a tradição de levar até lá um presente, uma oferenda, à Mãe da Lagoa Negra, um espírito que levava para suas profundezas suas dores e seus medos. A oferenda era um simples papel embrulhado em canudo e amarrado com uma fita negra. No papel, o pedido para a Mãe da Lagoa Negra levar algo embora. A tradição exigia que as mães fossem acompanhadas por seus filhos, o que tornava uma data especialmente cruel para aquelas que não conceberam ou que perderam seus filhos antes do tempo.

E Emily era uma dessas mulheres. Era uma mulher bonita, com um rosto vívido sempre com um sorriso, e encontrou o amor muito cedo. Ela tinha apenas 13 anos quando conheceu Diderot, que passavam um tempo em sua cidade Natal, o Château dos Pinheiros, um dos mais distantes de Château das Vertentes. Ele, dois anos mais velho, acabou ficando e sua estadia foi prolongada até que se casaram. Diderot só retornou ao Château das Vertentes quando seu pai adoeceu. Depois de sua morte, o cargo de capitão da guarda passou para ele e o Château das Vertentes se tornara seu novo lar.

Eram felizes, todos podiam ver isso. Mas Emily nunca pudera conceber um bebê. Ele nunca cobrou isso dela. E ela nunca demonstrou infelicidade. Os caminhos da Grande Mãe são insondáveis.

Mas ela raramente pensava nisso, pois preferia se concentrar nas coisas que ela tinha e que a faziam feliz, ao invés de se lamentar pelo que não tinha. Talvez isso a tenha afastado um pouco das mulheres do château. Sua amizade com as senhoras casadas era tênue e muito superficial. Seu melhor amigo sempre fora e sempre seria Diderot, com quem conversava e ria por horas a fio.

Emily nem percebera que o primeiro dia do inverno já chegara e comprava pães na padaria quando Madame Montaigne a interpelou.

– Oh, olá, querida! Como vai você?

– Bem, madame. E a senhora, como vai?

Outra mulher se juntou a elas. Era Madame Alouete Couteaux, que estava feliz por ter dado à luz tardiamente a um menino há alguns anos. Estava mais cheinha e continuava com seu hábito estranho de usar chapéus engraçados.

– Olá, meninas! Estão comprando pães para o passeio de hoje até a Lagoa Negra? Sabe, como é, a lagoa é muito distante, sempre é bom fazer um lanchinho.

– Emily não irá, Alouete... Ela não tem um filho, a pobrezinha!... Mas não desanime, querida, Alouete tinha a sua idade quando teve seu bebê! A esperança é a última que morre, ou, nesse caso, a última que nasce, não é mesmo? – E como se não tivesse falado absolutamente nada demais, Madame Montaigne continuou seu assunto. – Madame Travelle também não irá, pois só teve uma filha mulher, então iremos com Madame Suzanne e seu filho, Jacques, já comprei as frutas e...

– Na verdade, eu vou, sim!

As duas mulheres olharam para Emily como se ela tivesse criado asas e saído voando. Mas ela continuava ali, e repetiu sua decisão.

– Eu irei, já estou comprando os pães!

– Mas... Mas você não tem um filho, querida! – disse Madame Montaigne que sempre tinha um jeito de dizer um “querida” que diminuía qualquer mulher com quem falasse.

– Eu tenho um filho! E eu o levarei hoje.

Emily saiu, despedindo-se cortesmente. Não sabia o que a levara a fazer aquilo. Mas estava feito.


Logo depois do almoço, as três senhoras e seus rebentos se encontraram a cavalo com suas cestas de guloseimas e seu pergaminho enrolado em canudo para a Mãe da Lagoa Negra. Alouete Couteaux estava feliz com o garotinho de seis anos que trazia consigo. Ninguém esperava mais que ela concebesse, pois seu ventre não segurava nenhum bebê. Até que um dia, um milagre aconteceu. Madame Montaigne levou consigo Carlo, que sempre se sentia desconfortável em meio às senhoras, mas não podia recusar um pedido de sua mãe. Madame Suzanne era a mãe de Jacques. Normalmente, Ravin e sua mãe, Madame Marcielle Denvier, estariam presentes. Dados os últimos ocorridos, não era surpresa que não estivessem vindo a público recentemente.

As mulheres se cumprimentaram e relembravam como seus filhos eram maravilhosos, quando alguém viu Emily chegando. E não estava sozinha.

– Olá, senhoras! – disse ela, sorrindo. – Este é Philippe!

O rapaz sorriu e fez uma mesura com a cabeça. Estava bem vestido e já retomara a cor morena, apesar do pouco sol das últimas semanas. Trazia nas costas a aljava e o arco que recebera de Paralda.

– Mas... Mas... Mas ele não é seu filho, querida! – respondeu Madame Montaigne.

– Claro que é! Ele tem sido meu filho nos últimos anos! Ele tem me ajudado com os afazeres, consertado coisas em casa, conversado comigo e com meu marido sobre os assuntos mais diversos, comido de minha comida e me enchido de preocupação. O que mais um filho faz?

As mulheres se entreolharam, confusas. Na verdade, os filhos delas faziam bem menos do que isso. Sem nada a responder, elas seguiram o caminho. Logo, começaram a conversar. Alouete foi a primeira a aceitar a ideia de Philippe ser o filho de Emily.

– Eu achei muito bom você adotá-lo, Emily! – disse ela, com o pequeno Alex de seis anos sentado na frente dela enquanto cavalgavam. – É um jovem bonito e saudável! E certamente poderá cuidar de você e seu esposo na velhice!

Emily olhou para Philippe e ele concordou.

– Eu cuidarei de vocês dois, dona Emily! Não precisa se preocupar com isso!

Eles seguiram por uma trilha que estreitou e depois desapareceu por completo. Era assim o caminho para a Lagoa Negra. As conversas se cruzavam de vez em quando, mas na maior parte do tempo, mães falavam com mães e Jacques falava com Philippe.

Carlo estava muito desconfortável com Philippe e o incômodo era recíproco, preferindo manter-se fora das conversas com ele. Madame Montaigne não gostara da presença do rapaz, mas já tinha tido sua cota de brigas naquela temporada e não queria se indispor com a esposa do Capitão, homem que exercia grande influência não só com o Duque, mas também em toda a cidade. Achou que, em algum momento, o jovem mestiço cometeria uma gafe e envergonharia Emily, mostrando afinal a ordem das coisas.

Cerca de uma hora depois, chegaram à Lagoa Negra. Era uma grande extensão de água doce cuja superfície brilhava na cor negra. Diziam que eram os cabelos da Mãe Negra que nela vivia, e que seus longos cachos se enrolavam em nadadores incautos, arrastando-os para o fundo. Porém, quando lhe prestavam o devido respeito, a Mãe Negra levava para o fundo seus pesares e lavava suas almas de toda a tristeza.

Eram muitas as lendas da Mãe Negra, ou da Dama de Cabelos Negros, ou da Mãe da Lua. Depois de contar algumas delas, chegou a hora do ritual. As mulheres ficaram diante das águas, os vestidos balançando ao vento, os cabelos soltando mechas que dançavam diante dos rostos. Com o canudo nas mãos, elas então caminhavam até as margens e deixavam que as águas levassem seus pesares, ali escritos.

Era um momento de silêncio, onde as lembranças dos momentos tristes, os vícios dos maridos, as doenças dos familiares, os medos e as incertezas eram levados pela Mãe da Lagoa Negra para o fundo. O vento fez a superfície espelhada do lago estremecer, enquanto os pergaminhos iam afundando, um a um. Então, as mães se ajoelhavam nas margens e lavavam as mãos nas águas frias do lago. Os filhos deveriam ficar logo atrás delas, ajudando-as a se levantarem, pois o terreno era incerto. Então, elas se levantavam e, com as mãos ainda molhadas, acariciavam os rostos dos jovens.

– É para lavar as lágrimas – explicou Emily a Philippe.

Ele sorriu. Se tem algo que ele já derramara muito eram lágrimas. Um trovão distante e um vento mais frio os fez olhar para o céu, que ia ficando cada vez mais escuro.

– Uma tempestade está vindo – disse Philippe. – Melhor irmos embora.

Ninguém reclamou, exceto Alouete, que queria muito fazer o lanchinho. Seguiram o caminho de volta. Por algum tempo, o silêncio imperou, talvez como eco do ritual que acabaram de fazer, até que Carlo reclamou.

– Andamos por horas para ficar por cinco minutos e voltar! Isso é meio idiota!

– Cale a boca, Carlo! – ralhou Madame Montaigne. – Não seja desrespeitoso!

Emily e Philippe se entreolharam com a cumplicidade que poucas pessoas possuem, sendo da mesma família ou não. Eles seguiam na frente, deixando que as discussões entre Carlo e Madame Montaigne ficassem um pouco para trás.

– Dona Emily, eu agradeço muito... – disse Philippe.

– Pelo quê?

O rapaz se virou para ela com um sorriso.

– Por isso! Por me trazer. Foi importante para mim...

Emily viu o brilho nos olhos dele e de repente entendeu uma coisa. Aquele dia de mães e filhos não era só difícil para ela, que não tivera filhos. Para Philippe, que perdera a mãe, era um dia especialmente triste. Emily lamentou não ter percebido isso antes, logo ela que era tão perceptiva. Mas ficou feliz de seu movimento absolutamente egoísta ter irradiado algo de bom para ele também.

– Pois ano que vem viremos juntos de novo! – disse Emily. – Desde que você continue sendo um bom filho e cuide de nós na velhice!

– Trato feito! – respondeu ele, com um largo e iluminado sorriso. – Prometo picar a carne bem pequenininha quando fizer sua sopa de velhinha.

Emily deu uma risada, aquela risada gostosa e aberta que ele adorava, quando algo prateado cruzou com velocidade na frente de Philippe. Ele parou o cavalo, reconhecendo a flecha que por um centímetro não o acertara em cheio. Percebeu então que a risada de Emily tinha sido interrompida. Olhou para o lado e a viu caindo do cavalo, a mão segurando a flecha que se fincara em seu peito.

 


Capítulo 34


A longa agulha de gelo

 

Flechas voaram sobre eles e os cavalos empinaram e relincharam. Philippe desceu de Alvorada o mais rápido que pôde, enxotando-a enquanto gritava:


– É uma emboscada!!! Desçam a ravina!

Ele desceu a pé a inclinação, tentando não cair, esperando que os outros o tivessem ouvido. Chegou até a mulher ferida no chão, coberta de folhas que se grudaram em seu vestido, e virou-a com cuidado. A flecha se quebrara com a queda e ela segurava o ferimento que sangrava. Era numa região perigosa, perto do coração, mas como ela estava acordada e tentando se levantar, a flecha não atingira nenhum órgão vital.

Philippe olhou em volta, ouvindo cavalos. Viu que Jacques liderava o pequeno grupo que descera a ravina como ele instruíra, e agora se aproximava. Atrás deles, havia uma gruta natural não muito grande e quase oculta pela vegetação. Philippe ergueu Emily nos braços, enquanto dava novas instruções.

– Espantem os cavalos, talvez eles os sigam! Vamos nos esconder!

– Eu não vou perder meu cavalo! – disse Carlo.

– Então boa sorte! – respondeu Jacques, descendo e espantando sua montaria.

Ele ajudou as mulheres e, vendo-se sozinho, Carlo acabou fazendo o mesmo. Correram todos para dentro da gruta e ficaram lá dentro, em silêncio, tentando ouvir algum movimento lá fora.

Philippe colocara Emily em um canto e se mantinha perto dela, segurando sua mão. Sons de galopes foram ouvidos, mas eles não viram nada.

– Seguiram por ali!

– Lobos estúpidos... Vamos, Lemaire só precisa de um com vida! Se conseguirmos dois, tanto melhor, mas só se não der trabalho!

Os tropéis se afastaram.

– É nossa chance! – disse Carlo. – Vamos fugir!

– Não! – disse Philippe, em um sussurro. – Não sabemos quantos tem lá fora! Vamos esperar! Estamos seguros aqui!

– E quem você pensa que é para...

– Cala a boca, Carlo! – interrompeu Jacques. – Eles não podem nos ouvir! Se você abrir a boca de novo eu faço você comer essas pedras!

Carlo não gostou, mas obedeceu. Ficaram imóveis por mais alguns minutos, onde apenas o vento foi ouvido. Philippe se voltou para Emily, ajoelhando-se ao lado dela.

– Como a senhora está?

– Estou bem – disse ela, tentando sorrir. – Mas esse vestido vai precisar de uma reforma...

E então Carlo, vendo que Philippe e Jacques estavam ocupados, concentrados em Emily, saiu correndo da gruta. Madame Suzanne estava junto com Alouete que abraçava seu menino, enquanto Madame Montaigne ficou estática, vendo seu filho fugir e deixar todos para trás.

Jacques e Philippe correram para a beirada da gruta e viram quando dois cavalos o cercaram e armaram uma rede para jogar sobre ele. Carlo tentou voltar, mostrando claramente onde todos estavam.

– Aquele gordo!!! – xingou Philippe, colocando o arco em posição e saindo da gruta para ter uma melhor visão do alvo.

Carlo corria na direção dele, o rosto apavorado pedindo socorro, os dois cavaleiros já erguendo a rede. A flecha de Philippe voou sobre Carlo e acertou o ombro de um dos homens, desequilibrando-o e derrubando-o do cavalo. A rede fora com ele. O segundo cavaleiro parou ao se deparar com o arqueiro que preparava outra flecha. Tentou se desviar, mas nunca vira flechas tão rápidas. Com uma flecha no ombro, ele não chegou a cair do cavalo, mas se embrenhou no bosque fechado que cercava o lugar.

Carlo entrou correndo na gruta. Philippe, ainda com uma flecha preparada, andou de costas até estar dentro da pequena caverna. Chegou a tempo de ver Jacques dando um soco no rosto de Carlo.

– Seu imbecil!!! Agora eles sabem onde estamos! Você entregou todos nós!

Vozes de homens foram ouvidas, falando da localização deles, e logo seis cavaleiros surgiram diante da gruta. Dois deles eram os que Philippe acertara com as flechas, que já haviam sido arrancadas ou quebradas.

– Você poderia tê-los matado! – disse Carlo. – Por que não atirou para matar?

Philippe não respondeu. A verdade é que não queria matar ninguém, mas agora, vendo os inimigos na sua porta, começava a se arrepender de sua decisão.

Havia um homem que se destacava. Ele era alto, tinha cabelos escuros penteados elegantemente para trás e belas vestes de brocado e veludo, diferente dos homens que o acompanhavam, que pareciam caçadores comuns. Foi este homem que falou com voz calma e firme.

– Só queremos um de vocês! Se tiverem um voluntário, deixaremos os outros irem embora. E por favor, cavaleiros, que não seja a criança ou a mulher ferida...

Todos dentro da gruta se entreolharam. Os olhos das mulheres brilhavam como suas joias na escuridão do lugar.

– O que vamos fazer? – perguntou Alouete, com voz de choro.

– Quem é essa gente? – Madame Montaigne estava desesperada. – O que querem afinal?

– Quem vai sair? – perguntou Carlo.

– Ninguém vai sair! – respondeu Philippe. – Vocês viram a maneira que eles falaram há pouco? Disseram que esse tal de Lemaire só queria um vivo!

– Então! – continuou Carlo. – Não é isso que prometeram?

– Não, seu idiota! Só querem um vivo! O resto, não precisa estar vivo! Eles não vão nos deixar sair daqui. Já sabem que temos mulheres, uma criança e uma ferida!

Os homens continuavam lá fora, esperando a decisão.

– O que faremos então? – perguntou Carlo com voz trêmula.

– Está perguntando pra mim? – murmurou Philippe, sem tirar os olhos dos homens lá fora. – Eu sou só um mestiço...

Os homens lá fora começaram a ficar impacientes.

– E então, lobos? Já decidiram? – perguntou o homem.

Philippe armou uma flecha e atirou. Dessa vez, não teve clemência. Mirou no peito, onde um grande medalhão de ouro brilhava. A flecha partiu tão rápida que não demorou nem uma respiração dos que estavam dentro da gruta.

No entanto, algo aconteceu. A flecha simplesmente passou de raspão no homem, que mal se mexera.

– Sua mira é ruim assim mesmo ou você está tentando ir para o céu? – perguntou Carlo, irritado.

– Eu mirei no coração! – exclamou Philippe, que não tinha ideia de como aquilo tinha acontecido.

Compreendendo que aquela era a resposta deles, os homens saíram da frente da gruta e se ocultaram na vegetação. Philippe ainda tentou acertar algum deles, mas em um segundo eles simplesmente se mesclaram com a floresta.

– Você viu isso?! – perguntou Jacques.

– Então não estou maluco! – disse Philippe.

– São magos! – disse Emily. – Magos negros!

– E estão atrás de lobos brancos... – murmurou Jacques.

– Pra quê? – perguntou Philippe. – O que eles fazem?

– Não sei – respondeu Jacques com a espada em mãos. – Mas duvido que nos levem pra passear...

– Talvez tenha uma saída pelo outro lado! – sugeriu Suzanne.

Era uma boa ideia. Deixaram Carlo vigiando a saída e procuraram rapidamente. A gruta era pequena e úmida, com alguns insetos que não gostavam de luz e muitas pedras. Não havia outra saída.

– Podemos esperar até anoitecer – sugeriu Madame Montaigne.

– É Lua cheia? – animou-se Philippe.

– Não. Crescente – respondeu a mulher. – Mas podemos nos transformar em lobos. Como lobos, podemos correr. Como humanos, não teremos a menor chance.

A solução era prática, mas cruel, pois deixaria para trás uma criança de seis anos, uma mulher ferida e o mestiço que não se transformava.

Algo que pareceu uma pedra foi jogada dentro da caverna, fazendo com que eles se afastassem instintivamente.

– O que é isso? – perguntou Philippe.

Como ninguém respondeu, ele se virou para olhar. Todos pareciam engasgados, com as mãos no pescoço, buscando um ar que parecia ter acabado sem aviso. Todos, exceto o garotinho e Philippe. Ele olhou de novo a coisa, uma pedra repleta de inscrições estranhas. Sem pensar duas vezes, pegou a pedra e jogou-a para fora. Assim que o fez, as pessoas voltaram a respirar.

– Desgraçado! – foi a primeira coisa que Jacques conseguiu falar.

– Isso é magia! Não temos chance contra isso! – desesperou-se Carlo.

A palavra magia fez soar um sino na cabeça de Philippe. A voz de Prateada voltou em sua cabeça. Ele se lembrou de quando ela, o Capitão e ele estavam em viagem e ela falava no caminho ensolarado sobre seu arco. As palavras dela vinham claramente à sua mente agora:


“Eu não acredito que seu arco seja um simples arco! A rainha do mundo das fadas não ia se dar ao trabalho de colocar meia e sapato, pentear o cabelo, colocar os brincos e vir lá da dimensão dela só para lhe dar um arco igualzinho a qualquer um que você mesmo poderia fazer!”


O Capitão lhe dissera que só precisava se lembrar do que a rainha das fadas dissera. E o que ela lhe dissera? Ele fechou os olhos, tentando se isolar das perguntas sem respostas que todos começaram a fazer dentro da gruta.


“Suas flechas são mais rápidas, pois o vento é seu aliado e as sílfides o ajudarão a acertar o alvo.”


Sim ele já percebera isso, embora não tivesse funcionado com o homem que queria suas peles. Então, velocidade não seria exatamente uma vantagem, já que alguma coisa não o deixava acertar aquele alvo em especial.


“As fadas das nuvens e as dríades das árvores também o reconhecerão como um amigo quando precisar delas. O resto, deixarei para que você mesmo descubra...”


Philippe abriu os olhos e foi até a entrada da caverna. Estavam cercados por árvores num bosque denso.

– Arqueiro!

Era a mesma voz firme que o chamava. Eles fizeram silêncio.

– Está me ouvindo, arqueiro?

– O que você quer? – perguntou irritado Philippe.

Ouviu uma risada e então o homem voltou a falar. Philippe tentava descobrir de onde vinha a voz, mas simplesmente não via nada além de árvores.

– Tenho uma proposta para você! – disse o homem. – Ao que parece, você não é um deles. Então, deixarei que parta. Pode ir embora, não iremos atrás de você.

Por essa ninguém esperava. Philippe olhou para as pessoas dentro da gruta, assustadas como pássaros pegos em uma armadilha da qual não conseguem sair.

– É uma boa chance para você, Philippe... – disse baixinho Jacques. – Talvez você possa pedir ajuda para nós.

– Ele não pode nos deixar! – disse Madame Montaigne.

– Ele deveria! – retrucou Jacques. – Se ficar aqui, terá o mesmo destino que nós. Ou será morto! Se ele escapar, pelo menos alguém saberá o que aconteceu conosco...

– Então leve meu bebê! – pediu, em prantos, Alouete. – Peça a eles para levar a criança com você, salve-o!

Emily tossiu. Philippe se ajoelhou perto dela, sentindo-a gelada.

– Eles têm razão, Philippe... – disse ela, apertando a mão dele. – Aceite o acordo.

Ele meneou a cabeça lentamente.

– Nunca... – foi sua resposta.

Ele se levantou e voltou para a entrada da gruta, apertando o arco nas mãos. Philippe olhou para o arco por um instante. Ainda lhe restavam muitas flechas. O que lhe faltava eram alvos. Então, olhou novamente para a floresta, puxou uma flecha da aljava e retesou o arco.

– Fadas das árvores, dríadas das folhas, espíritos da floresta, se vocês puderem me oferecer alguma ajuda agora, eu aceito!

E então ele soltou a flecha, que se fincou numa árvore.

– O que está fazendo? – perguntou Jacques.

E então o inimaginável aconteceu. A árvore começou a se mover.


Primeiro, lentamente. Os galhos meio secos se moveram, derrubando várias folhas que resistiram ao outono. Jacques chegou a pensar que fosse o vento, mas havia algo de muito estranho naquele balançar, algo que lembrava uma pessoa muito velha erguendo-se de uma cama, esticando os braços ossudos e... as pernas!

As raízes se moveram, levantando terra e fazendo um som bizarro.

– O... que... diabo... é... isso...? – murmurou Jacques.

Um grito foi ouvido e eles viram um dos galhos da árvore arrancar um homem que estava oculto atrás de um grande e velho olmo. O homem gritava apavorado, enquanto a árvore o sacudia no ar, batendo em outros galhos.

Assim que conseguiu sair da surpresa que o paralisou, Philippe usou sete das outras onze flechas de sua aljava, acertando outras árvores. E um pequeno e apavorante exército de árvores se ergueu e perseguiu os homens. Eles tentaram se defender com espadas e com armas de fogo, mas eram inúteis contra a casca endurecida pelo tempo daquelas árvores anciãs.

– Vamos! Temos que sair daqui rápido! – gritou Philippe, ajudando Emily a se levantar.

Jacques o ajudou com a mulher ferida e saíram da gruta. Philippe assobiou e em alguns segundos a bela égua branca apareceu. Ele ajudou Emily a subir e correram na direção em que os cavalos tinham corrido. Esperavam encontrá-los adiante, na melhor das hipóteses. Na pior, era a direção do château e apenas teriam um longo caminho para percorrer a pé.

Philippe olhou para trás, vendo que as árvores ainda detinham os homens. Agradeceu em seu íntimo à Paralda e às dríades. Não sabia quanto tempo aquilo ia durar, mas com certeza lhes deu algum tempo de dianteira.

Como esperado, encontraram os cavalos adiante. A tempestade começava seu trabalho, com pingos grossos e duros. Correram o mais rápido que puderam de volta ao Château das Vertentes.

 

 

A chegada deles chamou imediata atenção dos soldados. Philippe levou Emily direto para o castelo, pois sabia que o doutor morava ali perto e logo chegaria, pois Jacques tinha ido buscá-lo. Diderot o encontrou logo na entrada, ajudando a descer Emily do cavalo. Ela foi levada para o quarto de Prateada porque era o mais próximo. A colocaram na cama e uma correria de criadas comandadas por Constance a cercou, buscando bacias com água e panos limpos. Logo depois, o doutor Marceau entrou correndo.

Diderot segurava a mão da esposa, chamando por seu nome. Ela abriu os olhos e sorriu para ele. Passou a mão nos cabelos do esposo.

– Vai ficar tudo bem, querido... – disse ela.

O doutor pediu que Diderot se retirasse e, com resistência, ele obedeceu. Ele desceu as grandes escadas forradas com tapete vermelho e encontrou as mulheres encharcadas falando ao mesmo tempo. Lamayer deu um basta. Quando o silêncio se fez, virou-se para Jacques e perguntou o que aconteceu.

O rapaz contou da maneira mais resumida que pôde e foi interrompido quando citou o nome que ouvira.

– Como era o nome que ouviram?

– Lemaire – confirmou Jacques. – Eles queriam um de nós para um tal de Lemaire.

Lamayer viu Diderot se aproximar e caminhou até ele, preocupado.

– Como ela está?

– Acordada – respondeu Diderot.

– Philippe a salvou! – disse de repente Alouete.

A mulher estava com mechas molhadas grudadas no rosto magro, e seus olhos estavam ainda esbugalhados, enquanto se mantinha agarrada ao filho. Parecia ligeiramente louca.

– Ele salvou todos nós! – continuou ela. – Eles disseram que ele podia ir embora, mas ele não foi! Ele nos protegeu o tempo todo! Ele nos salvou!

Então a mulher foi até Philippe. Colocou a criança no chão e se ajoelhou, beijando sua mão.

– Obrigada, meu senhor! Obrigada por salvar a minha vida e a vida de meu bebê!

Philippe, totalmente desconcertado, puxou gentilmente a mulher para que ela se levantasse, dizendo que não foi nada, mas Jacques e Suzanne confirmaram a história e deram mais detalhes. Incluindo a fuga de Carlo, que revelou o esconderijo e colocou todo mundo em perigo de novo.

Era muita informação e o Duque pediu que as mulheres fossem acompanhadas até suas casas, uma vez que não estavam feridas, mas estavam histéricas. No salão do castelo, ficou apenas Philippe, Jacques, Suzanne, Diderot, Celine e Lamayer. Todos esperando notícias de Emily.

E elas não demoraram, o que era um ótimo sinal. Constance desceu e disse que o doutor estava chamando Diderot. Ele subiu as escadas correndo. Lamayer pegou uma taça de vinho e foi até a lareira. Para eles, ainda haveria mais espera.

Diderot entrou no quarto ansioso e logo viu a esposa com uma camisola que fora de prateada. O ferimento havia sido limpo e ela tinha todo o tórax enfaixado. O rosto estava pálido e os cabelos escuros cascateavam soltos pelo travesseiro. Duas criadas retiravam uma bacia com água vermelha e alguns tecidos rubros. O doutor puxou gentilmente o Capitão para um canto da sala.

– Ela vai ficar bem?

Essa é a pergunta que todos fazemos quando alguém que amamos se fere. Tudo o que queremos é ouvir o sim. O sim nessas horas dá a sensação de que mergulharam nosso coração em chamas num balde de água fresca e limpa. Ele nos dá tempo! Porque tudo o que queremos nesse momento é mais tempo com aquela pessoa, é saber que não teremos que nos conformar com as lembranças que temos dela, que poderemos ter mais. O “sim” é saber que algo quebrado poderá ser concertado, que um acidente será só mais uma história a ser contada, é a única palavra que queremos ouvir porque é a única palavra que pode nos salvar.

E é por isso que queremos tanto ouvir um sim... E é por isso que o coração se aperta quando ele demora a sair da boca do médico.

O doutor abriu um pedaço de tecido e mostrou uma coisa retorcida que brilhou à luz das velas no quarto. Uma coisa prateada.

– Essa é a ponta da flecha que acertou Emily... – disse o médico.

Diderot olhou com horror.

– É prata...

O doutor anuiu com a cabeça.

– Retirei o que foi possível, mas a seta se quebrou. Fragmentos ficaram dentro dela.

– Você pode retirá-los depois! – disse Diderot, sentindo as mãos começarem a tremer. – Não pode?

– Estão perto demais do coração, Diderot... Eu sinto muito, mas você sabe que a prata é como veneno para nós... E esse veneno, infelizmente, já se espalhou.

O médico o deixou com a esposa. As criadas saíram. O Capitão ficou parado diante da esposa na cama. Ela abriu os olhos e sorriu para ele.

– Não fique aí parado!... Venha até aqui!...

Ele andou até ela, a informação ainda tentando ser compreendida. Ela estava ali, sorrindo, linda como sempre. Como ela poderia estar morrendo? Ele se ajoelhou no chão e pegou a mão dela. Foi quando viu seu sorriso entristecer.

– Me perdoe por nunca ter lhe dado um filho...

– É preciso dois para fazer um filho, Emily... – disse ele, a voz tremulando como a chama da vela na cabeceira. – E eu nunca lhe pedi isso. Eu só lhe pedi para ficar ao meu lado para sempre.

– Então... – ela tentou sorrir, mas as lágrimas começaram a surgir. – Me perdoe por não poder fazer isso também...

Ele se ergueu um pouco e beijou a mulher, sentindo os lábios dela, tentando prender aquela lembrança, tentando torná-la eterna, tentando manter o beijo para sempre. Quando se separaram, olharam-se nos olhos, as lágrimas caindo pelos rostos ainda tão jovens para se separarem.

– Não vá... – implorou ele. – Por favor, não vá...

Ela apertou a mão dele e acariciou o rosto dele com a outra mão.

– É que eu já tenho esse compromisso, sabe?...

– Então me deixe ir com você!

Ela sorriu de novo.

– Eu deixo... Mas você está sempre atrasado!... Então eu vou primeiro e guardo um lugar pra você, está bem?

O Capitão a abraçou e chorou, sentindo o perfume dela que os unguentos e remédios do doutor não conseguiram apagar. Então, ela lhe pediu para chamar Philippe.


Uma criada chamou o rapaz que subiu correndo as escadas, saltando os degraus. Ele entrou e correu para a cama. O Capitão tinha se levantado e estava de costas para eles, envolto pela sombra. Philippe segurou a mão de Emily, sorrindo, imaginando que ela estava bem.

– Parece que vou liberar você de sua missão...

– Que missão? – perguntou ele, sem entender.

– A de cortar a carne bem pequenininha quando eu for velhinha...

A noção do que estava acontecendo demorou alguns segundos para atingi-lo. Seu sorriso se desfez e ele olhou para o Capitão, que agora os observava com os olhos tristes, os ombros caídos, a cabeça baixa e o pranto no peito.

– Não... – murmurou Philippe, segurando a mão dela. – Não, você vai ficar boa! O doutor conserta qualquer coisa, ele já me consertou várias vezes!

Emily tocou no rosto dele, fazendo-o parar de falar.

– Quero que me ouça... Eu tive muito, muito orgulho de você hoje...

As lágrimas subiram aos olhos dele e ele apertou os lábios.

– Você foi um filho maravilhoso!... E eu tenho muito orgulho de ter sido sua mãe nesses anos...

– Obrigado... – ele forçou as palavras que saíam trêmulas – Obrigado, mãe...

Emily soluçou, ouvindo pela primeira vez aquela palavra e o puxou para um abraço. Deixou que o menino chorasse sua perda e então, com um movimento de mão, chamou o marido.

Juntou as mãos dos dois.

– Agora, vocês terão que cuidar um do outro... Eu cuidarei de vocês dois de uma outra maneira...


Ela suspirou. Puxou o ar como tivesse se lembrado de alguma coisa. E então ela parou, fitando o nada, congelada no tempo, deixando lágrimas e pranto enquanto se despedia da vida e daqueles que mais amara na vida que poderia ser mais comprida...


No grande salão, Celine falava com Jacques, que lhe dava os detalhes da aventura, quando o Duque deixou o cálice cair no chão.

– Papai? – perguntou a moça. – O senhor está bem?

Lamayer levou a mão ao peito. Sentiu uma dor como se uma agulha feita de gelo e muito longa fosse enfiada lentamente em seu coração. Seu rosto ficou lívido e ele se segurou na pequena murada de pedra que cercava a lareira. Ele sentiu as lágrimas subirem e o peito doer com uma saudade que não esperaria para começar seu trabalho eterno. A sala mergulhou em silêncio quando a mesma sensação foi sentida por Jacques, Celine, Suzanne, Constance...

E, como uma onda, aquela sensação se espalhou por todo o Château das Vertentes. Naquela noite, um deles partira ao encontro da Grande Loba Cinzenta.

 

Capítulo 35


Noites frias

 

No dia seguinte, um grupo de homens armados liderado pelo Duque foi até o local da emboscada. Philippe e Jacques foram também para mostrar os exatos locais do ataque. Lamayer liberou o Capitão da tarefa, mas ele insistiu em ir. Foi uma viagem silenciosa e fria, com uma chuvinha fina e constante a cobrir tudo com pontos minúsculos de luz opaca.

Encontraram o lugar onde Emily foi alvejada e onde ela caiu. O Capitão encontrou a flecha partida e se abaixou para pegá-la. Seus movimentos estavam lentos e ele estava calado, ainda anestesiado pela perda súbita. Segurou a flecha e a observou por alguns momentos, enquanto os outros seguiam caminho para a gruta.

Quando ele entrou na pequena caverna, o grupo já estava ouvindo os detalhes da história.

– ...E foi nessa hora que o Carlo saiu correndo como uma mulherzinha – finalizava Jacques que tinha ficado muito zangado com a atitude covarde do outro.

Philippe estava de pé, alheio, olhando para um ponto perto da parede da gruta. Diderot se aproximou dele, tocando-lhe levemente o ombro e tirando-o da lembrança. Philippe não falava, mas ainda sentia Emily. Sentia o perfume de flores do campo, sentia o calor da mão dela e seu olhar que o enchia de confiança. Não conseguia acreditar que seu riso havia sido interrompido por uma flecha traiçoeira. O rapaz se virou para o Capitão com olhos cheios de lágrimas e então deixou a gruta, antes que elas caíssem.

Foram até o local onde as árvores se ergueram em sua defesa. Lá, encontraram quatro homens caídos e mortos. Seus rostos ainda mantinham o olhar de pânico e seus ossos estavam quebrados.

– Quantos eram? – perguntou Octavian, que, assim como Thomas, havia recebido um cargo de importância no corpo da guarda do castelo em troca de seus serviços.

– Seis – respondeu Jacques.

– Faltam dois – concluiu Thomas.

– Não – corrigiu Philippe, apontando para cima. – Falta um.

No alto de uma árvore, um cadáver olhava para eles, pendurado num galho. Se não tivessem ouvido a história, levariam a vida toda tentando entender como aquele homem fora parar lá.

Depois de procurarem mais um pouco, acharam os cavalos vagando por perto.

– O líder deles não está aqui – disse Philippe.

– Charles Lemaire... – disse o Duque. – O mago...


Os corpos foram amontoados em uma clareira. Jogaram querosene e atearam fogo. Octavian entregou para Philippe um maço de flechas.

– Os homens encontraram pelo local – explicou ele. – Infelizmente, algumas estão quebradas.

– Obrigado.

– E o sujeito lá de cima? – perguntou Bergére.

– Os corvos darão um jeito – respondeu friamente o Duque.

Deixaram o local enquanto a fumaça subia aos céus acinzentados.

 


Foram dias tristes e pesados. Lentos, como são os dias tristes e pesados. Diderot não quis ser liberado de suas funções, pois precisava se manter ocupado ou enlouqueceria. Mesmo assim, havia momentos em que não tinha para onde fugir e precisava encarar a ausência da esposa. A poltrona vazia, o livro deixado pela metade, o bordado inacabado...

Sem saber como escapar da dor, ele se abrigava dentro dela. Sentava-se à mesa com uma caneca de vinho e ficava ali, parado, em silêncio. Philippe geralmente lhe fazia companhia, à sua maneira. O garoto também estava ferido. Perder uma mãe já não é fácil, perder duas é insuportável. Então, ele se sentava à mesa com Diderot, com uma caneca de vinho que demorava para esvaziar, e ficavam ambos em silêncio, sofrendo sozinhos, mas juntos. De fez em quando, um deles falava alguma coisa. Algo tolo, como a possibilidade de nevar hoje ou sobre a cerca que precisava de conserto. Eram palavras jogadas naquele mar de dor como boias. Elas lembravam que, por mais que o sofrimento da perda fosse único e pessoal e que ninguém poderia carregar aquele fardo para qualquer um deles, o outro ainda estava ali.

 


Uma semana depois, Philippe ainda olhava para a carta começada e não terminada. A pena na mão e diante dele apenas um “Querida Prateada”. Leves batidas na porta anunciaram a presença de alguém, mas ele não ouviu. Celine entrou, já sabendo que o rapaz andava muito distraído e que sempre precisavam chamá-lo duas vezes. Ele só a notou quando ela tocou seu ombro gentilmente.

– Ainda tentando escrever a carta? – perguntou ela, sentando-se numa cadeira ao lado dele.

– Não sei como contar a ela o que aconteceu...

Celine ficou em silêncio. No fundo, achava que Philippe não conseguia escrever porque quando o fizesse, a morte de Emily se tornaria real e irremediável. Ele não mais poderia acreditar que acordaria um dia e descobriria que tudo fora um pesadelo e que ela o receberia com aquele largo sorriso e braços abertos, como sempre fazia.

O rapaz amassou o papel e o jogou longe, nitidamente frustrado.

– Qual o ponto de escrever para ela se ela nunca responde?

A moça não sabia o que dizer. Então, simplesmente, recostou a cabeça loira no ombro dele, deixando o silêncio e o tempo darem cabo daquela tristeza.

 


O mensageiro tinha ido ao château naquela manhã. Como esperado, não havia cartas de Prateada. Depois de falar com o Duque e recolher suas cartas, o mensageiro montou em seu cavalo e seguiu até um ponto ermo do bosque.

– E então?

O mensageiro retirou da bolsa um maço de cartas com a mesma caligrafia e entregou ao rapaz.

– Ela está escrevendo cada vez mais, hein? – espantou-se Ravin.

– Claro! – disse o mensageiro, sem achar muita graça naquilo. – A menina está ficando desesperada. Só não voltou ainda porque há guardas tomando conta de tudo, e sem permissão, ela não pode sair.

Ravin estendeu a mão, pedindo as outras cartas. O mensageiro entregou-lhe hesitante as cartas do Duque, de Constance, de Celine e de Philippe. Ravin juntou todas num bolo só.

– Olhe, isso está ficando perigoso – disse o mensageiro. – O Duque hoje falou comigo, praticamente me interrogou sobre esse silêncio de Prateada. Se eles descobrirem, eu estou morto!

– É, o risco é grande – concordou Ravin. – Por isso mesmo você está sendo bem pago.

E entregou-lhe um saquinho de moedas.

– Até quando vamos seguir com isso? – perguntou o mensageiro, que somente nas últimas semanas começara a pesar sua participação naquela trama e nas punições que receberia quando descobrissem, pois ele mesmo sabia que era uma questão de tempo.

– Não se preocupe! – respondeu Ravin, subindo em seu cavalo. – Meus problemas acabam hoje. Depois de hoje à noite, pode entregar as cartas que quiser!

Ele partiu, deixando para trás o mensageiro que não entendera o que ele dissera e não se sentia nem um pouco mais tranquilo.

 


Quando a noite chegou, Philippe recebeu de um menino que só conhecia de vista um recado. Não era exatamente uma carta, nem envelope tinha. Era um papel dobrado, mas suas poucas palavras o fizeram sair correndo imediatamente.

Saiu tão rápido que nem foi visto deixando o castelo. Porém, quando passou pela grande praça do centro da cidade, esbarrou com alguém que estava indo para a Presas de Prata, cuja luz já se podia ver dali.

– Calma, Philippe! – disse a voz conhecida. – Aonde vai com tanta pressa?

– Jacques?! – surpreendeu-se o outro. – Desculpe, eu não te vi.

– Percebi. Estou indo para a taberna. Quer me acompanhar?

– Não, não posso, tem uma coisa que preciso fazer urgente! A gente se fala depois!

E então ele saiu correndo, sem atender ao chamado de Jacques. Philippe já estava longe quando o outro percebeu um papel no chão. Pegou e, como não estivesse selado, leu.


“Tenho notícias urgentes de Prateada. Ela está em perigo. As paredes têm ouvidos, não fale a ninguém desse recado. Encontre-me na clareira do bosque e contarei tudo.


Celine”


Jacques releu o bilhete, sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo inteiro. Não sabia como era a caligrafia de Celine. Mas sabia como era a de Ravin.

Philippe exigiu o máximo de si, enquanto sua mente ia de um ponto a outro na velocidade da luz. Desmembrava as palavras do bilhete e encaixava-as em seus medos mais profundos. O Duque mandara Prateada para o Château das Letras. Seu plano sempre fora afastá-la e finalmente conseguira. Se o castelo não era um lugar seguro nem para Celine falar o que sabia, certamente Lamayer tinha algo a ver com isso. Como pudera se enganar? Como pudera acreditar que deixar Prateada partir sem ele era o melhor para ela?

Philippe estava quase chegando ao lugar combinado. Para chegar lá só precisava subir uma pequena e íngreme trilha. Estava no alto, quando ouviu alguém gritar seu nome. Virou-se e viu Jacques, quase sem fôlego, parando a alguns metros dele.

– É uma cilada!

Assim que a notícia atingiu Philippe, Ravin surgiu de trás de uma árvore a alguns centímetros dele. Tinha um pedaço de pau nas mãos e ele girou com rapidez, acertando Philippe na cabeça. O rapaz rodopiou com o golpe e rolou até lá embaixo, desacordado.

 

A cabeça latejava e era muito difícil abrir os olhos. Vozes alteradas invadiam sua inconsciência e ele se forçou a despertar, pois sentia o perigo muito próximo. Abriu os olhos e viu as figuras embaçadas de Ravin, Carlo, Jacques e Albert. Sentiu a boca seca e percebeu que estava amordaçado. Tentou se mover e viu que seus pulsos estavam amarrados diante dele. A discussão começou a fazer sentido, enquanto ele se via preso.

– Não foi Celine quem escreveu o bilhete! – dizia Jacques. – Foi você!

– E você tentou estragar tudo! – gritou Ravin. – Como pode estar do lado dele?! Nós éramos amigos! Somos amigos desde crianças!

– E eu ainda sou seu amigo, Ravin! Estou aqui para impedi-lo de cometer o maior erro de sua vida! Se matá-lo, vai infringir a Lei, será caçado até o fim dos seus dias, e, quando capturado, será torturado e morto! Sua família cairá em desgraça, seu nome será apagado! Você acha que ele é tão importante assim para valer isso tudo?

Ravin parou um pouco. Então caminhou para o rapaz caído no chão. Philippe tentou se afastar, mas estava debilitado com a pancada na cabeça. Ravin o segurou pelo braço e o ergueu com violência, e empurrando-o contra uma árvore próxima.

– Você tem razão, Jacques – disse Ravin, sem desviar seu olhar de Philippe, apreciando ver o medo estampado nos olhos do mestiço. – Seria minha ruína se eu derramasse o sangue desse mestiço. Por isso mesmo, não vou matá-lo. Vou fazer algo muito melhor.

Ravin arrastou Philippe pelo caminho, sendo seguido pelos outros. Jacques lhe perguntou o que ia fazer, mas ele não respondeu. A noite estava escura, apesar de ser de Lua cheia. As nuvens baixas e pesadas não permitiam que a Lua aparecesse, o que não fazia diferença para eles. A Lua estaria sempre lá para eles.

Estancaram quando encontraram uma carruagem negra parada no meio do bosque. Um homem vestido de preto e de aparência bizarra estava de pé perto da porta. Ele era careca e meio corcunda, com mãos grandes e pernas compridas. Assim que viu os rapazes, abriu a porta da carruagem e um antigo visitante do château saiu. Elegantemente vestido, com seu sorriso amigável, Michel Decartier caminhou até eles com sua bengala de ponta de prata.

– Boa noite, senhores!... – disse, fazendo uma mesura de cabeça.

Jacques se aproximou de Ravin, pegando-o pelo braço.

– O que está fazendo??! São vampiros!

– Eu disse que não ia matá-lo!

– Mas isso é ainda pior!

Ravin apenas sorriu.

– Pode me dar um minuto?

Ravin puxou Philippe consigo e os outros o seguiram.

– Ouça bem, Jacques! – disse Ravin entredentes. – Essa é a hora que você vai escolher de que lado está e quem de fato é! Está do lado desse lixo?

Ravin segurou Philippe pelo pescoço e bateu suas costas contra a árvore onde estavam.

– Ou está do lado de seus amigos?

Jacques começou a falar em sussurros.

– Vampiros são terríveis, Ravin! Você conhece as histórias! Por que tem que fazer isso?

– Porque eu não posso viver num mundo em que eu não tenha nada! – Ravin vociferou, aproximando-se com olhos furiosos de Philippe. – E ele tenha tudo!!!

Os olhos de Ravin mudaram de cor e pareceram acesos, como se chamas furiosas serpenteassem dentro dele. Sua voz estava rouca e já se podia ver seus dentes se pronunciando., transformando-se em presas.

– Faça sua escolha, Jacques!

Jacques olhou para Philippe, apavorado e indefeso. Então concordou com a cabeça, baixando os olhos em seguida. Ravin sorriu vitorioso e arrastou o garoto de volta ao homem que os esperava pacientemente.

– Tome! – disse Ravin, empurrando o rapaz para o vampiro. – É todo seu!

– Olá, Philippe! – disse Michel, segurando-o pelo braço. – Imagino que se lembre de mim...

Ele fez um sinal e o corcunda trouxe um pequeno baú de madeira. Abriu e mostrou seu conteúdo em ouro e joias. A seguir, o fechou e o entregou para Ravin que o passou para Albert. Ravin retirou do bolso um papel dobrado em um envelope e o entregou a Michel. Este o leu com atenção.

– Está certo... – disse o vampiro. – O contrato de servidão está perfeito. Senhores, foi um prazer fazer negócio com vocês!

– Só mais uma coisa! – disse Ravin.

Ele se aproximou de Philippe. Sorriu, vitorioso e se inclinou, sussurrando em seu ouvido para que apenas ele pudesse ouvi-lo.

– Eu ouvi dizer que vampiros são muito cruéis. Roubam sua juventude, destroem qualquer inocência, e o obrigam a fazer coisas abomináveis! Ouvi que eles fazem coisas inomináveis com seus escravos... Sinceramente, eu espero que com você façam pior!

Philippe se agitou, tentando se soltar, mas Michel o tinha preso e não ia deixá-lo ir embora tão fácil. Na agitação, algo brilhou em seu pescoço e Ravin puxou curioso o cordão de ouro com uma estrela.

– O que é isso?

– Um bruxedo cigano... – disse Michel, apertando os olhos. – De proteção, pelo jeito...

– Bom, não funcionou muito bem, mas melhor evitar os riscos... – respondeu Ravin, arrancando o cordão de uma só vez e jogando-o no mato.

Ele se afastou, olhando mais uma vez nos olhos do rapaz assustado, vendo seu horror e sua impotência, seu espanto e seu ódio. Então, com passos para trás, se afastou. Philippe foi puxado pelo braço com firmeza, mas tentou se soltar.

Antes mesmo que tentasse correr, o corcunda estava ali para segurá-lo e levá-lo esperneando para dentro da carruagem. Jacques ainda viu seu rosto pela janela, olhando-o com desespero, enquanto a carruagem negra se afastava dentro da noite escura.

 

Capítulo 36


A longa viagem

 

A carruagem tinha cortinas negras e suas janelas também eram pintadas de negro. Naquele momento, porém, estavam abertas, fazendo o garoto estremecer, embora não soubesse ao certo se era o frio ou o pavor de ter sido vendido aos inimigos dos lobos. Olhava fixamente para Michel, sentado diante dele com aparência tranquila. O cocheiro corcunda guiava a carruagem com pressa, fazendo-a sacolejar.

– Espero que não tenha se ofendido pela forma como isso aconteceu – disse finalmente o homem de traços retos e um olhar que escondia muito mais do que revelava. – Se ficou ofendido, não fique! Saiba que paguei uma pequena fortuna por você! Aposto que você nunca valeu tanto!

Michel riu, mas Philippe continuava encarando-o com rancor, as mãos geladas amarradas, a boca amordaçada.

– Se prometer se comportar, eu desamarro você – disse o vampiro.

Não houve reação, além do olhar raivoso.

– Eu vou soltar você! – decidiu-se Michel. – Mas antes que pense em fazer alguma coisa muito estúpida, deixe-me explicar uma coisa.

O homem se inclinou com um sorriso.

– Não estou raptando você. Eu o comprei. De acordo com a Lei dos Lobos, nobres de sangue puro podem dispor de seus criados como desejarem, se estes lhe causarem algum dano, prejuízo ou sei lá. Podem puni-los, vendê-los para outros nobres, outros clãs e até para nós, vampiros.

Philippe sacudiu a cabeça, impedido de falar, tentando explicar que não era um criado de Ravin. Mas Michel lhe ergueu a mão, pedindo que ouvisse a história toda.

– Infelizmente para você, minha criança, mestiços são considerados propriedade do château onde vivem. Qualquer nobre pode vendê-lo. E foi o que Ravin Denvier fez. Tenho um documento no bolso que prova que você é legalmente minha propriedade, então, não adianta fugir, pedir ajuda ou tentar voltar. Seu destino, menino, está traçado na assinatura desse papel...

Dando-se por entendido, Michel retirou a mordaça do rapaz e, em seguida, cortou a corda que prendia seus pulsos. Philippe massageou os pulsos, enquanto Michel se recostava confortavelmente em seu assento.

– Não fique tão chateado! Vou lhe contar as vantagens de ser um vampiro! Você verá que não é tão ruim quanto dizem!

Num movimento rápido, Philippe se jogou contra a porta e se atirou para fora da carruagem, rolando no chão várias vezes até parar. Dentro da carruagem, Michel continuava impassível, olhando para o espaço vazio onde antes estava o rapaz.

– Ou você pode se atirar pela porta ao invés de me ouvir! – disse, concluindo.

Philippe se levantou com dificuldade, sentindo o corpo doer e rezando para não ter quebrado nada. Assim que ficou de pé, a carruagem parou. Não tinha muito tempo, então correu pela floresta, mancando um pouco até pegar o ritmo.

Correu por cerca de quinze minutos, embrenhando-se na mata, esquivando-se de galhos tortos, saltando buracos. Não vira ou ouvira ninguém atrás dele, então recostou-se um minuto numa árvore, tentando recuperar o fôlego. Tomou um susto quando Michel apareceu bem do lado dele.

– Já cansou? Podemos voltar para nossa conversa?

Bergére tinha sido um bom professor e Philippe era sempre um bom aluno. Deu três socos rápidos em Michel, jogando-o para trás. Girou o corpo para ganhar impulso e acertar-lhe um chute no rosto. O homem rodopiou e caiu numa pequena ribanceira, enlameada e escorregadia. Philippe se inclinou um pouco para ver, mas estava muito escuro. Deu dois passos para trás e se virou para continuar correndo.

– Você está ferindo meus sentimentos!

Dar de cara com Michel logo atrás dele, quando sabia que ele caíra no barranco, fez Philippe quase gritar de susto. O rapaz tentou correr de novo, mas Michel o puxou pelo braço e o imprensou contra a árvore. Seus olhos brilharam em vermelho e ele já não parecia mais o sujeito amigável e tranquilo de antes.

– Eu poderia fazer isso aqui mesmo, agora! – sussurrou, imobilizando o garoto e se aproximando de seu pescoço.

Philippe emitiu um gemido, um pedido mudo para que não fizesse aquilo. Sentiu as presas roçarem seu pescoço e achou que estava tudo terminado. Então, Michel se afastou, voltando ao semblante amigável.

– Mas eu prefiro fazer isso em outro lugar!

Ele o agarrou pelo braço com força e o puxou de volta para a carruagem. Jogou-o lá dentro e trancou as portas. Puxou os pulsos do rapaz e o amarrou novamente.

– Bem... Onde estávamos?

A carruagem retomou seu caminho e Michel retomou sua conversa.

 

– Uau! Eu não sabia que era tanto!

Albert e Carlo estavam encantados com o brilho de tantas joias.

– Vamos repartir por três? – perguntou Carlo.

– Não – respondeu Ravin. – Por quatro.

Os rapazes não entenderam e olharam para Jacques.

– Mas ele não fez nada! – reclamou Carlo. – E ainda por cima, quase atrapalhou!

– Não importa! – cortou-o Ravin, retirando sacos de tecido de dentro de seu casaco. – Ele ficou do nosso lado no final, certo, Jacques? E merece sua parte!

Assim, eles dividiram o conteúdo em sacolas de tecido. Carlo ficou com o baú para si, e todos voltaram para casa. Deixaram Jacques na porta de sua casa.

– É bom sabermos que está conosco de novo, Jacques – disse Albert, com aquele tom zombeteiro que era quase natural em sua voz.

Jacques se virou e olhou para os três rapazes. Ele sabia que não confiavam nele e que só fizeram questão de colocá-lo na partilha para torná-lo cúmplice do crime.

– Se tivessem mencionado o dinheiro antes, já teriam conseguido meu apoio – disse ele, entrando em sua casa.

– Todo mundo tem seu preço!... – disse Albert.

– É... – concordou Ravin. – E todo mundo mente.

A pose blasé de Jacques desmontou assim que ele passou pela porta. Seus pais já estavam em seus aposentos, a casa estava às escuras. Subiu correndo os degraus que levavam até sua casa e acendeu as velas. Observou com discrição por uma fresta da cortina os jardins e logo viu uma figura caminhando nas sombras. Não deu para ver se era Albert, Carlo, ou mesmo Ravin. Mas tinha certeza de que um deles estava à espreita em sua porta, esperando que ele saísse correndo para contar o que ocorrera a alguém.

Jacques caminhou pelo quarto. Ravin não só emboscara Philippe, mas também o emboscara. Se saísse agora para contar, seria pego por eles. Considerando as atitudes desesperadas de Ravin, não poderia garantir sua própria segurança nas mãos deles, ainda mais na Lua cheia. Se esperasse amanhecer, Philippe estaria perdido para sempre. Jacques se sentou na cama, nervoso. Precisava pensar em uma saída.

Lá fora, no frio da noite e no silêncio do inverno, Albert e Carlo espreitavam a porta da frente, enquanto Ravin observava a porta dos fundos. Nenhum deles confiava em Jacques, mas sabiam que bastava que impedissem que ele abrisse a boca nas próximas horas. Acreditavam que Jacques não se arriscaria a ser julgado e punido junto com eles, pois seria a palavra de três contra um. Além do mais, Ravin estava muito confiante de que, caso fossem descobertos, não haveria punição severa. Bem ou mal, ele agira dentro da lei.

Cerca de vinte minutos depois que Jacques entrara na casa, uma figura encapuzada saía pela porta dos fundos. Ravin apertou os olhos. Não se parecia com Jacques, mas com seu pai, monsieur Martin Le Franc.

– Se Jacques pensa que basta colocar as roupas do pai para me despistar, é um completo idiota... – murmurou Ravin.

Ele caminhou até a figura que se esgueirava pelas sombras. Quando se aproximou, puxou-o pelo ombro.

– Aonde pensa que vai, Jacques?

Ravin parou confuso ao reconhecer monsieur Martin. O homem parecia surpreso ao encontrá-lo àquela hora da noite nas proximidades de sua casa.

– Ravin? O que faz aqui?

– Senhor Le Franc? Eu... achei que era Jacques...

– Jacques já deve estar dormindo há horas! A mãe dele odeia que ele fique até tarde na taberna...

O homem se virou para ir embora, quando Ravin o chamou novamente.

– Senhor Le Franc, aonde está indo tão tarde?

Monsieur Le Franc se virou com um sorriso malicioso.

– À taberna, garoto!... Aonde mais eu iria depois que minha esposa dormiu?

Então ele fez um gesto com o dedo sobre os lábios, pedindo segredo de suas escapadelas e seguiu seu caminho. Ravin apertou os olhos castanhos. Correu até a frente da casa, onde encontrou Carlo e Albert.

– Carlo, vá para os fundos e continue vigiando. Eu vou seguir monsieur Le Franc.

Ravin apertou o passo e seguiu o homem a uma certa distância. Não acreditava que ele soubesse de algo, mas sua intuição lhe dizia que havia algo errado. Viu o homem se dirigir à taberna e desaparecer lá dentro. Ravin ficou algum tempo ainda do lado de fora, até se convencer finalmente de que tinha apenas flagrado o pai de Jacques em uma fuga típica de maridos.

Dentro da taberna, monsieur Martin Le Franc passava rapidamente pelos habitués até alcançar a porta dos fundos, por onde saiu rapidamente. Pegou um cavalo que estava amarrado lá atrás emprestado e saiu em disparada.

As batidas na porta eram altas e desesperadas, o que fez o Capitão se apressar em atender. Batidas como aquelas não eram bom sinal em momento algum, mas no meio da noite, eram especialmente aziagas. Assim que abriu a porta, monsieur Martin entrou, fechando-a atrás de si.

– Meu filho me mandou procurá-lo! – disse, antes mesmo do Capitão perguntar o que tinha acontecido. – Ravin armou uma emboscada para Philippe. Ele o vendeu hoje para os vampiros. Jacques tentou avisar Philippe, mas acabou sendo pego no meio da confusão! Ele acha que pretendem acusá-lo também.

O Capitão ia ouvindo as informações e tentando dar significado às palavras.

– Aos vampiros?!

– Aqueles que já estiveram aqui há alguns meses, ele disse! Ele me mandou avisar você, pois não sabe se o Duque ia tomar alguma providência, tratando-se de ser o mestiço...

Diderot passou a mão pela cabeça, andando pela sala de lareira acesa.

– Há quanto tempo foi isso?

– Cerca de uma hora, eu acho.

O Capitão pegou seu manto e sua espada saiu apressado.

– Não temos tempo a perder!

Monsieur Le Franc o acompanhou até o castelo, onde o Capitão mandou um sonolento Fernand acordar o Duque.

– O que pode ser tão importante que não pode esperar até...

Diderot deu passos pesados e firmes na direção de Fernand, fazendo o eco se espalhar pelo castelo adormecido.

– AGORA, FERNAND!!!

O homem tropeçou nos degraus e correu até os aposentos do Duque. Este desceu pouco depois, envolto em um roupão de veludo.

– O que houve, Capitão?

Diderot se empertigou.

– Vim solicitar dispensa como capitão da guarda, senhor.

– O quê?!

Diderot o olhou nos olhos.

– Ravin armou uma cilada para Philippe e o vendeu aos vampiros. Eu sei que o senhor não gosta do menino por ser filho de Pelouse. Mas o senhor sabe o que vampiros podem fazer com suas vítimas. Eu prometi à Prateada e prometi à Emily que tomaria conta desse garoto. Por isso, vim pedir dispensa. Irei atrás dele imediatamente.

O Duque estava perplexo e não respondeu de imediato. Olhou para algum ponto distante por alguns momentos.

– Não é preciso pedir dispensa, Capitão – disse, finalmente, com voz firme. – Reúna seis dos seus melhores homens! Iremos atrás de Philippe. E eu irei também.

Atônito com a ordem, o Capitão levou alguns segundos para se mover de novo. Mas quando o fez, foi com velocidade.

 

Capítulo 37


A Zona Cinzenta

 

Os preparativos foram rápidos, mas ainda assim tomaram tempo. O fato é que estavam saindo em uma jornada sem previsão de volta. Não sabiam para onde estavam levando o rapaz, quanto tempo levariam para encontrá-lo e quanto tempo levariam para voltar. Uma coisa era certa: não estavam dispostos a voltar sem ele.

O castelo estava agitado, com Celine e Jacques tentando capturar as informações pelo caminho. Jacques interpelou o Duque, quando este passava com sua capa, ajeitando as luvas.

– Senhor, eu posso ir também?

Lamayer parou surpreso.

– Vai ser perigoso – respondeu.

O rapaz anuiu com a cabeça. O Duque deu sinal positivo e Jacques se pôs a correr também. Apesar de apreensivos com a decisão do filho, Suzanne e Martin Le Franc deram sua bênção. Martin Le Franc mudara sua opinião sobre Philippe depois do que ocorrera na gruta. Sabia que devia a vida da esposa e filho a ele, e por isso não hesitara em ajudar.

Ravin, Carlo e Albert foram trazidos por guardas diante do Duque. O Capitão e outros homens que estavam prontos para partir estavam lá. Celine e Jacques também e não esperavam ver os três naquela situação.

– Senhor, eu exijo que nos solte! Não fizemos nada contra a Lei!

– Cale-se, Ravin! – berrou o Duque. – Não me fale da Lei! Não fale nada! Vou lidar com você e vocês dois quando voltar! Até lá, pensem no que fizeram no calabouço!

Os três rapazes se agitaram e se colocaram a argumentar contra aquela ação, enquanto o Duque ordenava que os guardas os colocassem na prisão do castelo e os mantivessem sob vigilância. Não poderiam receber visitas até que o Duque retornasse.

Então ele se voltou para Celine e pegou suas mãos.

– Celine, você é a responsável pela cidade na minha ausência!

– Farei o meu melhor, papai... – disse a moça.

O pai tentou ir, mas ela o puxou pela mão.

– Traga-o de volta, papai... – pediu ela.

O pedido não o surpreendeu. Mas o olhar dela, sim. O Duque fez um gesto positivo com a cabeça e deu a ordem para partirem.

E, assim, o grupo de nove cavaleiros partiu em velocidade enquanto o vento começava a soprar do Norte, jogando as gotas frias da chuva em seus rostos.

 

– E, como vê, há muitos pontos positivos em estar na sua situação! – concluía Michel, que passara as últimas três horas falando sem parar.

Como parara de falar, esperou Philippe dizer alguma coisa. O garoto apenas o olhava fixamente. Michel pegou seu relicário de platina ricamente decorado com pedras preciosas e retirou algumas balinhas de açúcar, jogando-as na boca. Ofereceu ao rapaz, que virou o rosto.

– Não vai dizer nada?

– Você só me contou mentiras! – respondeu Philippe, furioso. – O que quer que eu diga?

– Como assim, mentiras?

– Você está tentando me convencer de que é uma alegria ser escravo!

– Eu vou lhe dar a vida eterna, meu jovem! Vou manter sua beleza e sua juventude para todo o sempre. É claro que vou querer algo em troca!

– Isso não é vida eterna! – gritou Philippe. – É a morte eterna! De que me adianta ter beleza e juventude se todos os que eu amo vão envelhecer e morrer a minha volta? Você vai me tornar um pária, vai me fazer ser odiado pelos meus, me transformar em um assassino e ainda vai me obrigar a servi-lo! Você vai me desgraçar, Michel! Não vai me fazer favor nenhum...

Michel cruzou os braços e se recostou, impaciente. Não gostava daquela relutância, mais ainda, não contava com ela. Achou que o rapaz ia correr como um cachorrinho a lamber as botas do primeiro que não o escorraçasse.

– Talvez eu deva mostrar para você...

Ele abriu a portinhola de trás e falou com o cocheiro.

– Vamos dar uma parada em Allors!

A carruagem fez uma curva fechada e logo alcançou uma estrada de pedras que levava a uma cidade.

– Vou lhe mostrar a natureza de minha proposta...

Ele desamarrou os pulsos do rapaz, que os massageou.

– E, por favor, não tente fugir! Estou cansado hoje, não quero correr.

Michel desceu e o cocheiro levou a carruagem para um ponto mais discreto. O homem levava o rapaz pelo braço, apertando-o quando sentia que ele estava tentando se soltar. Quando o garoto o olhava, Michel apenas sorria.

– Pra onde está me levando?

– Para um lugar onde verá que somos todos iguais!

Eles entraram em uma taberna que estava logo do outro lado da rua. De fora, parecia um lugar comum. Mas por dentro, ela não se parecia em nada com a Presas de Prata. Havia mulheres com decotes dadivosos, cantoria, gargalhadas e era um lugar bem grande. Bandejas de grandes canecas de bebida passavam para lá e para cá. Michel cumprimentou uma linda moça que o recebeu com um beijo na boca.

– Há quanto tempo não aparece, Michel!

– Bebi demais, meu docinho! – respondeu ele, agarrando-a pela cintura. – Perdi o caminho!

– Acontece com todo mundo! – respondeu ela.

– Este é meu novo amigo, Philippe! Trate-o bem. Mas não bem demais, ou vou ficar com ciúmes!

A moça sorriu e se insinuou para Philippe. Seus olhos acenderam e Philippe viu que ela era igual a Michel: uma vampira.

– Bela escolha, Michel... – disse a moça. – Então, meu anjo! O que você vai querer?

Philippe não respondeu. Apenas olhou em volta, procurando uma forma de escapar. Michel o puxou para uma mesa e o obrigou a sentar.

– Não seja um desmancha prazeres! – ordenou Michel. – Senta aí e bebe!

A moça de cabelos arrumados num coque de mechas soltas colocou uma caneca para cada um.

– O que é isso? – perguntou Philippe, vendo o líquido vermelho. – Sangue?

– Não, idiota... – respondeu Michel. – É só vinho, pode beber!

– O que é esse lugar?

– É uma Zona Cinzenta – explicou Michel, tomando sua bebida. – Em todas as cidades, províncias ou aglomerações de humanos, há uma Zona Cinzenta, um lugar onde todos nós podemos nos reunir sem que nos matemos! Há de tudo aqui: vampiros, bruxas, magos, feiticeiros e até humanos.

Philippe olhou em volta. Pessoas se beijavam, gargalhavam, fumavam e faziam outras coisas que o deixaram enrubescido.

– Pensei que só bebessem sangue... – comentou, vendo Michel terminando sua caneca de vinho.

– É, todo mundo pensa... – respondeu o outro. – Mas o fato é que bebemos e comemos de tudo. A diferença é que o sangue nos faz sentir o gosto, a textura, o sabor, os sons, as cores, tudo! Quando ficamos muito tempo sem sangue, as coisas começam a ficar com gosto de papel. Tudo perde a cor, a música perde sua beleza, e é como viver num mundo em preto e branco...

– Então vocês matam para a comida ficar mais gostosa... – resumiu Philippe.

Michel riu.

– De certa forma, é. Você não tem ideia de como é viver sem sentir nada! Viver sem ver a beleza, sem sentir prazer no sexo, o sabor de um beijo, o gosto de uma fruta! É um pesadelo, é como se você estivesse...

– Morto! – completou Philippe.

Michel riu e tentou uma nova abordagem.

– Pense desse jeito! Lobos precisam caçar coelhos, ou eles infestarão o planeta e comerão tudo o que for verde. Conosco, é parecido! Nós controlamos os humanos. Você não tem ideia de como essa raça é destrutiva...

Philippe respirou fundo e se apoiou na mesa, tentando fazer Michel compreender.

– Ouça, eu não quero isso.

– Isso o quê? – perguntou o outro.

Philippe fez um gesto com os braços que abrangeu o lugar inteiro.

– ISSO!

– E por que pensa que vai ter isso? Posso apenas sugar você até matá-lo!

Philippe perdeu a cor. Michel caiu na gargalhada.

– Você acreditou? Acha que eu pagaria uma pequena fortuna e andaria isso tudo só por uma refeição, guri? Não se preocupe, não vou matá-lo. Viu? Diante da outra possibilidade, até que ser meu servo não é tão ruim assim!

– Michel, velho amigo! O que temos aqui?

Um homem se apoiou na mesa deles. Era alto e tinha cabelos castanhos na altura do pescoço. Michel não pareceu muito feliz em vê-lo.

– O que tem feito desde... nosso último encontro?

– Andando por aí, Olivier... – respondeu Michel, sem muito ânimo.

Foi então que o outro parou, como se tivesse sentido alguma coisa no ar. Virou-se para Philippe e deu um sorriso, enquanto seus olhos se acenderam como labaredas escarlate.

– Olha o que temos aqui!... Um Lobo Branco!...

Philippe olhou para Michel, sem saber ao certo o que fazer e sentindo o perigo aumentar.

– Vamos lá, Olivier, não vai querer que ele se transforme e faça uma bagunça... É Lua cheia, você sabe!

O outro olhou para Philippe e então se voltou com um sorriso para Michel, os caninos já aparecendo.

– É mesmo? Então vamos ver se ele se transforma...

Olivier ergueu Philippe pela gola com tamanha facilidade que o rapaz parecia não ter peso nenhum. Jogou-o em cima da mesa, derrubando várias garrafas e canecas. Algumas pessoas gritaram, mas eram gritos de incentivo.

De costas na mesa, Philippe tinha os braços imobilizados pelo homem que começava sua transformação. Seus dentes ficaram protuberantes, não apenas nos caninos, como imaginava, mas em toda a boca.

O rapaz gritou e tentou se soltar, mas o vampiro era muito mais forte. O homem segurou o rosto dele com mãos de dedos longos demais para serem remotamente humanos.

– Ele é uma beleza, Michel... – disse a criatura, com uma voz sibilante. – Você sempre soube escolher! E, considerando nossa história, acho que você me deve a cortesia de ser o primeiro...

O vampiro virou o rosto do rapaz e rasgou sua camisa, deixando à mostra o pescoço alvo. Philippe sentiu o hálito frio no pescoço e implorou que parasse. As pessoas da taberna gritavam extasiadas com o espetáculo. Mesmo assim, a voz de Michel se sobressaiu.

– Ele é um Lamayer!

A criatura parou e olhou para Michel, procurando saber se ele dizia a verdade. Então, lentamente se afastou e soltou o garoto.

Michel puxou Philippe de cima da mesa, mantendo-o ao seu lado. O rapaz massageava o pescoço, tentando ver se não tinha sido mordido. Diante de seus olhos, o monstro que estava agora mesmo com as garras em seu pescoço agora era um homem. Sem dizer nada, ele apenas deu alguns passos para trás e se retirou. Aos poucos, a taberna foi voltando ao burburinho e ao som de canecas, garrafas, risadas e tilintares de moedas.

Philippe se virou furioso para Michel.

– É isso que você queria me mostrar?! É essa a vida que você diz que será maravilhosa?! Quantas vezes uma mentira vai me salvar de ser atacado desse jeito?! E quando meu agressor perceber que não sou da família do Duque? O que vai acontecer então?

Ele não esperou a resposta. Estava assustado e zangado, e tudo o que queria era sair dali. Correu, empurrando as pessoas – ou que quer que elas fossem – tentando ultrapassar a multidão e despistar seu captor. Ocultou-se atrás de uma parede de madeira, o ar faltando, o corpo trêmulo pelo susto de ter sido atacado e de não ter podido contar com nada além da torcida da plateia para que seu agressor o destroçasse.

Uma pessoa lhe chamou a atenção. Olhou de novo e esperou que algumas moças e rapazes que atendiam os fregueses saíssem da frente. Teve certeza quando conseguiu vê-lo pela segunda vez.

– Cazevielle!

Philippe correu até o jovem que bebia com outros dois amigos que ele não reconheceu. Chegou esbaforido na mesa.

– Cazevielle! Me ajude!

O jovem de olhos avermelhados pela bebida o reconheceu com um sorriso.

– Philippe do Château das Vertentes! – disse, com voz arrastada. – Sente-se conosco e tome uma bebida!

O garoto ia lhe explicar que precisava de ajuda de verdade quando Michel apareceu ao lado dele e segurou seu braço.

– Precisa parar de fazer isso – disse, com uma voz mais impaciente.

Philippe tentou se soltar e Cazevielle se levantou.

– O que está acontecendo?

– Fui sequestrado! Me ajude!

Cazevielle pareceu se livrar imediatamente dos efeitos da bebida. Seu rosto ficou sério e os dois amigos que o acompanhavam se levantaram também, encarando Michel.

– Isso é quebra do acordo, vampiro! – disse o jovem.

Philippe puxou o braço e se soltou da mão de Michel, indo se abrigar ao lado de Cazevielle. Michel deu um suspiro de resignação. Calmamente, retirou um papel dobrado de dentro do bolso interno de seu elegante gibão. Apresentou o papel à Cazevielle, que o pegou e leu atentamente. Então, virou-se para Philippe com desapontamento.

– Você é um mestiço?!

Philippe não soube o que responder. Cazevielle, o jovem com quem trocara tantas ideias e que chegou a considerar um amigo em sua passagem pelo Château das Pérolas, o pegou pelo braço e o entregou a Michel, devolvendo também o documento.

– Tome. É sua mercadoria – disse, voltando a se sentar em sua mesa.

Michel segurou Philippe e o puxou para que saíssem dali, enquanto o rapaz olhava estupefato para Cazevielle que voltava a beber com os amigos, indiferente. Ficou tão arrasado pelo abandono que não resistiu quando o vampiro o arrastou para fora da taberna. Quando estavam do lado de fora, o Michel o pressionou contra a parede, os olhos acesos e os dentes pontiagudos à mostra.

– Estou cansado de você, garoto! Tente escapar de novo e lhe garanto que vou tornar a sua não-vida muito desagradável!

Arrastou-o de volta à carruagem e o jogou lá dentro. Voltou a amarrá-lo e já não havia nenhum traço de gentileza nele, porque dessa vez acrescentou a mordaça. Quando a carruagem já estava andando, Michel pegou mais de suas balinhas de açúcar de seu relicário. Fez uma careta, como se não tivessem mais o gosto que ele esperava. Fechou o objeto e cruzou as pernas.

– Eu não menti.

O garoto amordaçado olhou para ele, os olhos deixando transparecer ressentimento e derrota.

– Quando disse que você é da linhagem dos Lamayer – explicou o vampiro. – Eu não menti.

 

Seguir rastros com chuva é algo que beira o impossível. Mesmo assim, eles prosseguiram. Horas depois, viram que o rastro da carruagem mudava de rumo e seguia para uma cidade.

– É Allors! – disse Octavian. – Tem uma zona cinzenta lá!

– Podemos conseguir alguma informação – disse o Duque. – Ou até mesmo encontrá-los.

Chegaram a galope e entraram na estranha taberna, chamando alguma atenção. Olharam em volta na taberna apinhada de pessoas rindo, bebendo, falando alto, negociando e fazendo outras coisas. Num canto perto do balcão, um casal parecia viver um longo beijo sensual, que se mostrou ser o último quando o corpo da moça desfaleceu e sangue escorreu do canto da boca de seu suposto amante.

O vampiro sorriu para o Capitão que via a cena, os olhos acesos em vermelho, a mulher morta nos braços. Diderot desviou os olhos, enquanto pela sua cabeça passavam várias perguntas. Aquela moça tinha pai? Mãe? Alguém a esperava em casa? Seria mãe de alguma criança que ficou órfã? Alguém saberia o que aconteceu com ela?

Sabia que ela estava morta e que seu corpo seria despojado em algum lugar como lixo. Sabia que naquele exato instante terminada sua história e ninguém saberia como. Ela simplesmente deixou de existir, deixando atrás de si apenas dúvidas e suposições baseadas na esperança de quem esperava por ela. Uma angústia subiu ao peito, pensando em Philippe. Não permitiria que fizessem isso com ele. Não aceitaria mais essa perda.

Os homens se espalharam para cobrir a área da taberna mais rapidamente. O Capitão não tinha se separado do Duque ainda quando reconheceu Cazevielle em uma mesa, com uma moça de seios fartos quase à mostra sentada em seu colo. Eles se aproximaram em passos rápidos.

– Cazevielle, certo? – perguntou Diderot, que não tinha certeza de se lembrar corretamente do nome do jovem.

O rapaz demorou um pouco para reconhecê-lo e o Capitão resolveu apressar sua memória.

– Sou o Capitão Diderot, do Château das Vertentes!

O Duque também se aproximou, avivando a memória já meio alta do jovem.

– Ah, sim! Claro! Como vão?

– Estamos procurando por Philippe! – disse o Duque. – Você o conheceu, é o rapaz de cabelos longos e negros com quem você conversava quando estivemos no seu château.

– Eu me lembro... – disse Cazevielle, desfazendo o sorriso. – Claro que ninguém me avisou que ele era um mestiço. Senão, jamais teria perdido meu tempo falando com ele!

– Você o viu! – disse o Capitão.

– Vi – Cazevielle tomou um gole de cerveja preta. – Ele teve o desplante de me pedir ajuda! Um vampiro o comprou de alguém do seu château, a documentação estava em ordem e eu o entreguei, como manda a Lei.

O Capitão o puxou pela gola da camisa, derrubando a moça que estava sentada em seu colo, e o empurrou através de mesas e cadeiras até prensá-lo contra a parede da taberna. O Duque o seguiu calmamente, lançando apenas um olhar de ameaça aos dois amigos que se levantaram para ajudar, mas desistiram assim que se depararam com o olhar de Lamayer.

– Ele pediu ajuda e você recusou?! – disse entredentes o Capitão.

– Ele é um mestiço! Não tem valor nenhum, a não ser para vampiros que procuram um cachorrinho de estimação! – respondeu o outro, irritado.

– Para onde eles foram? – perguntou secamente o Duque.

– Eu não sei!

O Capitão ergueu o punho com muita vontade e Cazevielle pediu para parar. O punho ficou parado no ar enquanto o rapaz tentava falar o que sabia.

– Uma das moças da taberna me disse que o vampiro se chama Michel e que ele mora com sua “família” em Beloise! É só o que eu sei, eu juro!

O Duque ponderou por uns instantes. Então deu um sinal para o Capitão de que ele podia continuar. O punho desceu e voltou a fazer o trajeto de subir e descer mais algumas vezes, amassando o jovem rosto de Cazevielle, que terminou desacordado no chão da taberna, enquanto seus dois amigos observavam sem se aproximar.

 


Capítulo 38


A Dama Vermelha das Últimas Horas

 

Assim que os lobos saíram de Allors, começou a nevar. Isso era uma coisa ruim. Muito ruim. Além de tornar a viagem mais difícil e lenta, também dificultava o rastreamento. Porém, com a pista para a cidade de Beloise, era um pouco mais fácil.

Beloise era uma cidade considerada grande, e não uma província de passagem como Allors. Como em toda cidade de grande porte, havia lobos brancos vivendo entre humanos e, felizmente, Lamayer conhecia um deles. Seu nome era Denis Amiel e ele vivia numa casa modesta na periferia de Beloise. Se o encontrassem, seria de grande ajuda.

Logo amanheceu, o céu cinzento trazendo mais nuvens e um vento frio que gelava até os ossos. Mas não havia reclamação. Todos estavam concentrados em chegar à Beloise. Foram obrigados a parar algumas vezes para os cavalos descansarem e para se alimentarem. Ninguém falava sobre a possibilidade de já ser tarde demais, de a essa altura, Philippe já ser um vampiro ou já estar morto, e era como se essa possibilidade não existisse. Porém, lá no fundo, eles sabiam que ela existia.


Era noite quando a carruagem parou. Philippe despertou, sem perceber que cochilara, vencido pelo cansaço de uma viagem de uma noite e um dia cercados de uma turbulência emocional de medo, raiva e frustração.

Michel não disse nada. O cocheiro corcunda desceu e abriu a porta para seu senhor. Michel desceu e ajudou Philippe a descer, sem, no entanto, desamarrá-lo. O rapaz olhou a grande mansão com faias gigantescas nas laterais que lembravam grandes guardiãs. Philippe se lembrou de seu arco e de como ele poderia fazer com que aquelas árvores se erguessem para ajudá-lo. Mas seu arco havia ficado para trás, assim como tudo o que ele tinha e tudo o que ele conhecia.

Estava escuro e o vento frio chicoteou seu rosto. Michel o levava pelo braço dolorido pelo caminho que levava à porta principal. O vento balançava as copas das faias de maneira assombrosa e a mansão parecia assustadora. Nuvens cinzentas de vários tons flutuavam acima dela, e a grande porta de madeira vermelha parecia uma bocarra pronta para engolir sua vida e tudo o que ele amava. Resistiu, tentando não entrar, apavorado com os terrores que o aguardariam dentro daquela mansão assombrada por tantas mortes e agonia, mas Michel continuou a puxá-lo sem fazer muito esforço.

A porta se abriu e eles entraram. E toda a impressão que Philippe tivera da mansão do lado de fora mudou do lado de dentro. Em um pequeno hall de entrada, dois criados pálidos e jovens receberam Michel e pegaram seu casaco, sempre olhando para baixo e sem nenhuma palavra. Philippe os olhou e pensou se era nisso que iria se transformar: um escravo sem alma, uma alma sem futuro, um futuro em solidão e silêncio.

Som de música e pessoas falando crescia conforme se aproximavam do grande salão central, onde um grupo de pessoas bem vestidas parecia se divertir. Um homem de cabelos ruivos tocava uma canção animada ao violino, enquanto outros o acompanhavam com palmas. Reparou na moça que dançava e logo reconheceu seus cabelos abundantes, seus movimentos vívidos e selvagens. Era Beatrice, a mulher com quem dançara na primeira vez em que estivera na taberna.

Sentada, sorrindo e lindíssima como sempre, estava sua amiga Nicole, a loira de olhos amendoados. Ao lado dela, Louis, com uma taça de vinho – ou algo rubro – nas mãos. Havia ainda outras pessoas que ele não conhecia, e todas elas pararam de fazer o que estavam fazendo quando ele entrou.

– Amigos, estou de volta! – disse Michel. – E trouxe um presente para todos nós!

Ele apresentou Philippe, que passou a ser alvo de todas as atenções. O violino parou, enquanto os vampiros o olhavam curiosos e exibiam um sorriso de contentamento. Louis, no entanto, levantou-se, deixando o copo sobre uma mesinha com um rosto muito zangado.

– Eu não acredito que você fez isso! – disse. – Esse é o jovem mestiço do château onde estivemos! Eu disse para ficar longe dele!

– Como você é chato, Louis! – reclamou Michel. – Eu não o raptei! Eu o comprei!

Ele tirou o papel de dentro do casaco e mostrou-o ao amigo.

– Pode conferir! É tudo legal!

– É um Lobo Branco?! – perguntou uma mulher de vestido vermelho, aproximando-se de Philippe e tocando seu rosto com agradável surpresa.

– Exato, Madelaine! – respondeu Michel. – Um Lobo Branco! E vocês sabem o que isso significa!

– Aquele que for o primeiro poderá se transformar em lobo quando quiser! – disse o jovem do violino, colocando o instrumento de lado com a expressão de quem encontrara um presente caro e inesperado debaixo de sua cama.

– Muito bem, Jules! Quando iniciamos um lobo, passamos a ter o poder de nos transformarmos em lobo também – reiterou Michel.

– O problema é que assim que eles se transformam, nos destroçam! – apontou um homem de cabelos muito pretos e curtos, e uma barba desenhada no rosto magro. – Aliás, é Lua cheia! Se esse garoto se transformar agora...

As expressões de animação mudaram rapidamente para apreensão, enquanto todos começaram a se afastar de Philippe como se ele fosse explodir em chamas a qualquer momento.

– Ele não vai se transformar, Rolland! – tranquilizou Michel. – É um mestiço! Já passou da idade da transformação, não será perigo nenhum.

– E ainda é lindo! – disse uma moça com rosto de boneca que parecia muito jovem, tocando o peito de Philippe.

– Pois o que você diria, Emanuele, se eu lhe dissesse que pretendo dividi-lo com você?

A moça arregalou os grandes olhos verdes.

– Comigo?

– Na verdade, com todos vocês! – disse Michel, caminhando pela sala e servindo-se de um copo de vinho.

Os outros o ouviram com atenção, acompanhando-o com os olhos pela sala.

– Todos podemos receber o dom de nos transformarmos em lobo – explicou Michel. – E todos poderemos tê-lo como um servo e o usarmos como quisermos depois! Basta que o mordamos ao mesmo tempo!

A ideia não era ruim. O grupo estava prestes a concordar, até que Louis falou.

– Vocês sabem quem é esse garoto? – perguntou, com o papel nas mãos. – É um mestiço do Château das Vertentes!

O nome mudou algumas expressões, mas não todas.

– O Duque das Vertentes é Jean Lamayer.

E então todos arregalaram os olhos. Emanuele, que estava acariciando o peito e os cabelos do rapaz como se ele fosse uma iguaria se afastou quase com um pulo.

– Michel não está fazendo nenhuma caridade! – disse, apontando-lhe o dedo. – Ele está é colocando todos nós na lista de assassinatos de Lamayer!

– Louis é um exagerado! – rebateu Michel. – O garoto é um mestiço com quem ninguém se importa! O que acham? Que o Duque viria até aqui pegá-lo de volta?

– O pai dele veio... – comentou Nicole, calada até o momento.

Um breve silêncio se fez, enquanto imagens de um passado contado e recontado em tom de lenda passavam pelas cabeças dos presentes.

Beatrice se aproximou de Philippe e ficou olhando em seus olhos. Nicole se levantou e cruzou os braços, ficando no meio da sala e encarando Michel.

– Todos vocês lembram o que aconteceu há mais de trinta anos! – disse ela. – Do porque do nome Lamayer ser um alerta para nós. O pai de Jean Lamayer matou um de nós, um dos mais fortes de nós, e isso quase começou uma guerra. Todos os envolvidos foram duramente punidos, então é melhor pensarmos bem se queremos repetir o mesmo erro, com a mesma família.

Michel apertou os olhos, fulminando Nicole por trazer isso à tona. Ele sempre contava com a péssima memória dos vampiros.

– Ninguém virá atrás do mestiço! – disse Michel. – E se vier, tenho um contrato de servidão, algo que nosso velho amigo Sacha não tinha, o que o levou a ser estraçalhado pelos Lobos há trinta anos. Bem, amigos! A proposta está na mesa! Eu ofereço uma noite inesquecível e o raríssimo dom de se transformarem em lobos, além de serem mestres e senhores desse belo exemplar de Lobo Branco, sem o risco dele se transformar numa fera e arrancar suas cabeças. Então, o que me dizem?

Houve um silêncio, enquanto as pessoas da sala ponderavam, olhando umas para as outras.

– Não vou participar disso! – disse Louis, devolvendo o papel para Michel.

Nicole observou o rapaz e voltou a olhar para Michel.

– Desculpe, Michel, mas eu gosto demais do meu pescoço para me envolver nisso. Estou fora.

– Ele está apaixonado!

Todos olharam para Beatrice que continuava cara a cara fitando os olhos do rapaz. Ela tinha esse dom quando era humana e o manteve depois de transformada em vampira. Se olhasse nos olhos de uma pessoa, podia ver coisas. Seus crimes, sentimentos, sua natureza e até seus segredos.

– Ele ama aquela moça do baile... – disse ela, virando-se para os outros. – Ama de verdade.

– Ótimo! – comentou Jules. – Isso melhora o sabor de seu sangue!

Beatrice se virou para ele, pronta para sua decisão.

– Eu sei o que é ser tirado de quem se ama... Não vou fazer isso com ele. Estou fora também.

Havia ainda cinco pessoas para votar. Emanuele, Madelaine, Rolland, Jules e Pierre. Philippe respirava ofegante, a mordaça lhe tirando o direito de falar por si, secando-lhe a boca, dificultando a respiração. Olhou para os desconhecidos, rezando para que vissem que ele não queria aquilo, implorando para que, fosse por medo ou por piedade, que o deixassem em paz naquela noite e que devolvessem sua liberdade.

– Bem, eu vim de muito longe com esse garoto e ele me custou uma pequena fortuna – disse Michel. – Mas são vocês quem decidem. Se for do desejo de todos, eu o liberto hoje mesmo. Beatrice, Nicole e Louis já mostraram seu ponto. E vocês? O que me dizem?

 


Já estava bem escuro quando avistaram a casa de Denis. O homem saiu, armado com uma espada.

– Quem está aí?

– Duque de Lamayer e seus soldados, Denis! – disse o Duque, aproximando-se mais.

O homem apertou os olhos e viu o brasão num cordão no peito do homem e assim que ele retirou o capuz, o reconheceu.

Denis era um homem alto, com os olhos levemente esbugalhados e uma barba rala. Quando andava, parecia meio desengonçado e ele se mantinha, como muitos lobos que vivem em cidades, ao largo dos grandes centros. Diferente dos vampiros, que sempre procuravam as cidades mais movimentadas e adoravam viver no centro de tudo, lobos de cidade preferiam lugares mais afastados. Alguns pareciam especialmente estranhos e levantavam suspeitas. Outros eram elegantes e finos, podendo frequentar a alta sociedade sem que ninguém jamais desconfiasse. Mas uma coisa era certa. Todos preferiam casas mais perto das florestas e bosques.

Os homens desmontaram e amarraram seus cavalos na entrada da casa de madeira de bom tamanho, com lareira e móveis talhados por Denis. Este lhes ofereceu água, pois estavam todos sedentos, enquanto ouvia as rápidas explicações do que os trazia ali.

– Michel Decartier? – exclamou ele, arregalando os olhos já esbugalhados.

– Esse mesmo! Você o conhece? Sabe onde ele fica?

– Michel é um encrenqueiro! – disse. – Está sempre provocando alguém e por isso se muda um bocado.

– Quantos são na família dele? – perguntou o Capitão, imaginando quantos vampiros teria que enfrentar.

– Uns dez, eu acho.

– Tudo isso?! – surpreendeu-se Octavian.

– Ele é encrenqueiro... – explicou Denis. – Mas muito popular!

Em poucos minutos, estavam todos do lado de fora, já pegando seus cavalos, enquanto Denis pegava um casaco e um manto para acompanhá-los até o último esconderijo conhecido de Michel, quando o Capitão viu o Duque olhando para o céu, antes de subir em sua montaria. Diderot acompanhou o seu olhar e seu semblante mudou para a decepção. No céu, a Lua imperava, vermelha e sangrenta, enquanto nuvens negras como fuligem dançavam diante dela. O Duque se virou para o Capitão e disse o que precisava ser dito.

– Diderot... Se o encontrarmos tarde demais, faça o que precisa ser feito.

O Capitão não respondeu e ninguém falou nada. Montaram em seus cavalos e seguiram Denis. A lua vermelha era o sinal de que um lobo estava em perigo. Não um perigo qualquer. Um perigo que lhe arrancaria o coração, corromperia sua essência, o mudaria para sempre, uma morte em vida. Nenhum Lobo gostava de ver no céu aquela lua avermelhada, pois sabiam que ela era prenúncio de que aquela perda seria sofrida demais. E, enquanto eles corriam com o vento no rosto, não podiam deixar de vê-la.

Imponente, irrevogável, a dama vermelha das últimas horas... Era a Lua Carmesim.

 


Capítulo 39


Medidas extremas

 

De dia, Beloise era uma cidade populosa e movimentada. Repleta de comércios, ladrões e pobres, podia-se encontrar de tudo nela. De noite, porém, ela se tornava deserta e esquisita. Guetos escuros pululavam de pessoas que já esqueceram que eram pessoas, comendo restos e bebendo para esquecer que ainda estavam vivas. Becos eram um convite para assaltos e estupros. E os assassinatos eram comuns por toda a cidade. Para alguns, isso era apenas o resultado de uma cidade grande. Mas a verdade é que era apenas o sintoma de uma cidade infestada de vampiros.

Denis os guiou até o lugar que mais parecia um mausoléu, mas que já havia sido um teatro. Eles entraram, sentindo nas narinas o cheiro de flores mortas típico que os vampiros deixavam. Jacques acendeu um lampião para que vissem melhor e um monte de morcegos voou sobre suas cabeças, achando a saída pela porta aberta. Assim que voltaram a olhar o lugar, viram sob a luz do lampião que estava abandonado há muito tempo.

– Eu lamento... – disse Denis. – Era aqui que eles ficavam.

– Não tem outro lugar? Tente pensar! – insistiu o Capitão, sentindo o coração apertar em chegar tão perto e não poder ajudar o garoto.

– Talvez possamos perguntar nas ruas... – sugeriu Denis.

– Não temos esse tempo... – murmurou o Duque, vendo as esperanças definharem.

Jacques virou o lampião e tomou um tremendo susto ao ver debaixo de um arco de pedras uma mulher parada. Os homens imediatamente puxaram suas espadas e se prepararam. A mulher deu um passo a frente. Os cabelos longos emoldurando do rosto pálido, ela olhou diretamente para Diderot.

– Eu vi você nos olhos dele!

Octavian se preparou para atacar e os olhos da mulher se acenderam em vermelho enquanto ela dava um passo para trás. Diderot fez um sinal com a mão, mandando esperarem. Então, ele mesmo guardou a espada e deu um passo na direção dela.

– Eu conheço você. Esteve no Château das Vertentes há alguns meses. Beatrice, não é?

A moça sorriu e por um momento pareceu a pessoa que fora há muito, muito tempo.

– Você se lembra!...

– Estamos procurando Philippe.

– Eu sei. Ele está com Michel e os outros.

– Onde? – perguntou o Duque.

A moça olhou para ele e então voltou a olhar para Diderot.

– Eu vi muitas coisas nos olhos de Philippe. Vi que ele ama muito a moça de cabelos prateados, nutre uma profunda afeição por você e uma paixão de infância pela moça de cabelos loiros. Muitas flores bonitas nasceram naquele coração onde sementes ruins foram lançadas o tempo inteiro... Por isso, eu fui contra transformá-lo em um de nós, já que era claro que não era o que ele queria. Alguns de nós acharam o mesmo.

– E então? – perguntou Diderot.

– Outros, não.

– Nos diga onde ele está! – pediu o Capitão.

A moça sorriu.

– Farei melhor. Levarei vocês até lá!

 

Atravessaram a cidade a galope, o som dos cascos dos cavalos ecoando pelas ruas escuras e silenciosas. Quando chegaram na frente da mansão, o dia já estava chegando. Beatrice desceu do cavalo de Diderot num salto gracioso.

– É aqui! Espero que dê tempo!

O Capitão estendeu a mão para a moça e olhou em seus olhos negros.

– Obrigado, Beatrice!

Ela sorriu e então pareceu triste.

– Sinto muito pela sua esposa...

Então ela soltou a mão dele e correu para as sombras das árvores do outro lado da rua, colocando o capuz para se proteger da luz fraca daquela manhã cor de chumbo.

Os homens desceram dos seus cavalos e chegaram rapidamente até a grande porta de madeira esculpida, pintada de vermelho e com detalhes em ouro. Estava trancada e iam arrombar, mas um movimento na tranca os fez suspender o plano. Um corcunda completamente calvo com orelhas muito grandes abriu a porta. Era alto, pois mesmo com a corcunda, podia olhar diretamente nos seus rostos sem ter que erguer o seu próprio.

– O que desejam, senhores? – perguntou.

O Duque o empurrou para dentro e todos entraram de supetão.

– Octavian e Diderot, procurem nos quartos lá em cima! – ordenou o Duque. – Os outros, busquem no restante da casa, em duplas. Ninguém vai até o porão ou sótão até que eu mande!

– O que estão fazendo?!! – horrorizou-se o corcunda. – Meus mestres não estão e não vão gostar nada disso!

O Duque imprensou o homem contra a parede, com seu braço em sua garganta.

– Onde ele está? – rosnou.

O corcunda se engasgou e tentou argumentar, enquanto o Duque continuava apertando seu pescoço, impedindo que ele soasse o alarme para seus mestres adormecidos em algum lugar da casa.

Diderot subiu as escadas saltando degraus e começou a procurar em todos os quartos, abrindo as portas e chamando por Philippe. Octavian se dirigiu até o final do corredor, começando a verificar os aposentos do outro lado da mansão.

Estava pensando em como tiveram sorte em encontrar Beatrice, e como havia uma chance muito boa de não terem feito nada a Philippe, em como poderia encontrá-lo e levá-lo para casa inteiro e a mesma pessoa que ele conhecia. Pensava nisso quando abriu a terceira porta e não precisou procurar mais.

Entrou devagar no aposento iluminado parcamente pela luz da manhã. A janela aberta deixava a cortina branca e fina ir e vir, fazendo movimentos fantasmagóricos. Na cama, em lençóis impossivelmente brancos, jazia o garoto. Os cabelos soltos desgrenhados, pelas costas. De bruços, parecia morto. Apenas um lençol cobria parte de seu corpo nu.

Diderot se aproximou lentamente e o virou para ver seu rosto, colocando-o parcialmente em seu colo. Apesar do lençol branco, havia marcas de mordidas por praticamente todo o corpo dele. Estava pálido e gelado, mas podia sentir sua respiração fraca.

Retirou uma mecha do rosto do rapaz. Então, o puxou para si e chorou sua perda. Era tarde demais para ele.

Ergueu o rosto, tentando se recompor. Pegou um punhal na cintura e encostou no pescoço do menino.

Os olhos púrpuras se abriam. Devagar, sonolentos, cansados. Philippe olhou para Diderot. Queria falar alguma coisa, mas estava fraco demais. Lágrimas rolaram pelo rosto do garoto enquanto sentia a lâmina fria em seu pescoço. E então, seus olhos se fecharam de novo.

 

Lá embaixo, Lamayer apertou tanto o pescoço do corcunda que o homem desmaiou. Não era um vampiro, eles sabiam disso. Era um lacaio, um humano que em troca de dinheiro ou promessas escolhia servir vampiros.

– Não encontramos nada! – disse Jacques, chegando com outros soldados. – Talvez tenhamos que ir ao porão.

O Duque queria evitar o porão porque costuma ser lá que todos os vampiros e seus escravos dormem e um confronto direto não era algo que ele queria naquele momento. Antes de responder, porém, Lamayer teve sua atenção voltada para alguém descendo as escadas, e os outros acompanharam seu olhar.

Diderot trazia Philippe nos braços, parecendo morto, envolto em um lençol, perfurações negras de mordidas certeiras em seu pulso braço e pescoço. O Capitão olhou para Lamayer.

– Eu não posso fazer isso... – disse Diderot, com a voz rouca.

Lamayer olhou para o rapaz desfalecido e então voltou a olhar para Diderot, cujos olhos não mentiam que ele havia chorado.

– Traga-o! – ordenou. – Vamos sair daqui!

 

Os homens esperavam na sala da cabana de Denis algum parecer. Ele estava com Lamayer e Diderot no quarto, cuidando de Philippe. Quando os três homens saíram, seus semblantes não traziam boas notícias.

– Ele está muito fraco – disse Denis. – A transformação deve começar no início dessa noite. Ele morrerá, provavelmente pela manhã, e quando abrir os olhos de novo, não será mais um de nós.

A decepção dos homens era palpável. Jacques se sentou em uma cadeira, tentando digerir a notícia. Ninguém sabia o que dizer, mas a frustração e a tristeza eram claramente sentidas. Tudo mergulhou em silêncio, até que o Duque o quebrou.

– E se o vampiro que o mordeu primeiro morresse essa noite?

Todos olharam surpresos para o Duque, mas com um brilho de esperança.

– Ele não se transformará – disse Denis, que tinha se tornado um tipo de especialista morando ali há tanto tempo. – Mas não posso garantir que ele viva. Tiraram muito sangue dele, não sei se ele terá forças para sobreviver.

– Mas há uma chance! – perguntou Diderot, dando um passo na direção do outro.

– Há! – concordou Denis. – Certamente, há uma boa chance. SE o vampiro que o mordeu primeiro sofresse um infeliz acidente e morresse essa noite.

O Capitão se aproximou do Duque.

– Senhor, eu agradeço o que está fazendo – disse. – Mas Ravin entregou um documento para Michel. Se o matarmos, estaremos quebrando o acordo. Não posso pedir que faça isso.

O Duque ponderou por alguns momentos. A situação não era a mesma de trinta anos atrás, quando seu pai fizera algo bem parecido.

– E se não houver documento nenhum? – perguntou Thomas.

Os outros olharam para ele. Octavian compreendeu logo a ideia do amigo.

– Matamos o vampiro primordial e eliminamos o documento! Assim, será a palavra deles contra a nossa. E nós somos muitos!

– Talvez a moça de ontem, Beatrice, possa endossar nossa história! – lembrou Jacques.

O Duque anuiu lentamente com a cabeça.

– Admiro a coragem de vocês – disse, por fim. – Mas Diderot tem razão. Assim como ele não pode me pedir para fazer isso, não posso pedir a vocês a mesma coisa. Se algo der errado, estaremos numa situação muito complicada. Podemos terminar na prisão, ou banidos, ou mortos.

Os homens ouviam com atenção. O Duque fez uma pausa.

– Se alguém aqui quiser desistir, eu vou entender.

Novo silêncio, onde os guardas ponderavam sobre o peso de suas ações e de suas não ações e com qual dos dois não conseguiriam viver. Octavian riu.

– Aquele garoto me fez perder um bom dinheiro quando venceu aquela luta com Ravin! – disse ele. – Pouca gente já me surpreendeu a ponto de me fazer perder dinheiro. Acho que ele vale o risco!

– Philippe nos salvou no ataque do mago negro – disse Jacques. – E considerando como nós o tratamos a vida inteira, ele não precisava ter feito isso.

– Eu odeio vampiros! – disse Thomas. – Não posso perder a oportunidade de matar um!

E então todos se colocaram a serviço, dispostos a lutar ao lado do Duque e do Capitão por um mestiço que afinal tinha muita importância.

 

 

Quando a noite chegou, a velha mansão estava em polvorosa. Michel gritava com o pobre lacaio que foi incapaz de acordá-los quando os Lobos vieram. Ao mesmo tempo, os outros vampiros cobravam explicações de Michel.

– Você disse que ninguém viria atrás desse menino! – disse Madelaine.

Michel deu de ombros.

– Eu errei, ué! Acontece com qualquer um!

– Mas eles não podiam fazer isso! – disse Jules, um jovenzinho que não parecia ter mais do que 17 anos, mas que já caminhava por aquele mundo há 120 anos. – Nós temos o contrato! Está dentro da Lei e eles não podem quebrar o acordo!

– Jules está certo! – Emanuele engrossava o coro dos indignados. – Eles entraram na nossa casa e levaram uma mercadoria pela qual pagamos!

– EU paguei! – corrigiu Michel.

– Que seja! – continuou ela. – Pois eu acho que deveríamos ir até a toca deles e pegar o moleque de volta!

Batidas na porta fizeram todos se calarem. O lacaio foi atender e avisou que eram os Lobos. Os vampiros se entreolharam, surpresos com a audácia.

– Mande-os entrar!

A porta foi aberta e o Duque e o Capitão entraram.

– Duque das Vertentes, nos encontramos de novo! – disse Michel. – E acho que você tem uma coisa minha!

– Viemos negociar – disse o Duque.

– É mesmo?! Negociar a entrega do que roubaram de mim, suponho.

– Queremos saber quem foi o primeiro. E queremos o contrato de servidão.

Michel deu uma sonora gargalhada que ecoou pelo salão.

– Andou aprendendo uns truquezinhos com seu pai, Lamayer? – provocou Michel. – Acha que pode repetir a façanha dele?

O Duque suspirou, impaciente.

– Quem foi o primeiro? – perguntou.

Michel se aproximou, o sorriso desenhado por centenas de anos saindo impune de suas travessuras.

– Vou lhe contar uma coisa, Duque... – disse, os olhos acesos de excitação em provocar uma fera tão perigosa de tão perto, o tipo de emoção que só se sente ao passar tão perto da morte.

O Duque o olhou com expressão dura. Michel sorriu e continuou.

– Fomos todos nós...

O Capitão e o Duque se entreolharam, incrédulos.

– Tivemos que controlar o quanto cada um poderia tomar de sangue dele e o momento exato em que fincaríamos as presas naquela carne jovem e tenra, mas, fora isso, foi fácil! E o sangue dele é tão doce, tão puro, tão poderoso que apenas um pouco já nos deixou em plena forma! O desespero que ele sentiu, a dor e todo aquele pavor, porque o menino estava aterrorizado, você precisava ver, foi um tempero a mais e deu um sabor agridoce à nossa noite!

Enquanto detalhava o prazer que o menino lhes proporcionara, ele pegou seu relicário e jogou algumas balinhas na boca. Parou para sentir o sabor do açúcar se espalhar por sua boca como se fossem fogos de artifício.

– Hummm! Isso não tem um sabor tão bom há muuuito tempo!...

A notícia tinha pego o Duque e o Capitão de surpresa. Diderot aguardou a decisão do Duque, e ele já imaginava qual era. Não poderiam matar uma família inteira de vampiros sem chamar atenção da realeza. Os planos tinham mudado. Ao menos, era o que ele achava.

– Então... – disse o Duque, depois de um breve silêncio. – Foram todos vocês...

– Exato, meu caro Duque! – respondeu Michel, abraçando Jules que sorria maliciosamente para os dois Lobos diante dele.

– E estão todos aqui, suponho... – continuou o Duque.

– Estamos... – respondeu Michel. – Por quê? Acaso pretende matar todos nós?

O Duque olhou para o chão por um momento, como se tivesse sido atingido por uma triste notícia. Então, ergueu o rosto, altivo e tranquilo.

– É exatamente o que pretendo!

Michel o encarou, os olhos acendendo em vermelho. O Duque não desviou o olhar.

– Eu gostaria de vê-lo tentar...


Não deu para saber o que aconteceu primeiro, pois tudo parecia acontecer ao mesmo tempo. Michel saltou em cima do Duque com a bocarra escancarada em uma mordida assassina. Com aquelas presas, um simples golpe no pescoço mataria qualquer um em questão de segundos. Madelaine e Jules saltaram em cima de Diderot, enquanto Emanuele e Rolland se aproximavam correndo. Pierre correu na outra direção, procurando algo precioso naquele momento.

Tanto o Duque quanto o Capitão foram jogados ao chão com o impacto, mas quando caíram, já eram feras enormes. As roupas se desfizeram em pedaços e eles mordiam a carne morta de seus agressores que se juntavam em cima deles como uma praga de gafanhotos.

Diderot jogou os dois vampiros longe, mas eles simplesmente usaram a parede para lhes dar novo impulso, voltando a atacá-lo como ágeis feras. Jules, porém, não chegou a alcançá-lo, pois Jacques, agora uma fera imensa de presas mortais, o interceptara. Foi quando Madelaine viu, horrorizada, o grande salão se encher com aquelas bestas, saltando pela janela, entrando pela porta, surgindo do nada numa emboscada planejada.

O Duque se transformara na grande criatura meio homem, meio lobo, e fincava as presas no ombro de Michel, enquanto este fazia o mesmo, sugando seu sangue, ganhando poder, ficando mais forte. Emanuelle e Rolland continuavam mordendo e arranhando o Duque, quando foram arrancados de cima dele por um enorme homem-lobo.

Pierre não esperava encontrar a sala repleta de feras e hesitou na hora de mirar. Procurou aquele que sabia ser o Duque, acreditando que os outros parariam se matasse seu líder. Apontou a pistola com bala de prata para a criatura.

Alguma coisa se chocou contra ele, fazendo o tiro sair torto. O Duque urrou de dor ao sentir uma bala de prata cortar em fogo seu braço. Porém, aquilo só servira para aumentar a sua fúria que se voltou contra os vampiros que rasgavam sua carne com presas afiadas.

Do outro lado da sala, Pierre tentava evitar que o monstro que o atingiu, desviando a bala, o devorasse e enfiou suas garras em sua garganta. A criatura mostrou ainda mais os dentes e, ignorando as garras que se enfiavam em seu pescoço, avançou na cabeça do inimigo, mordendo e apertando, abafando o grito do vampiro dentro de sua bocarra, até arrancar-lhe a cabeça de vez.

No salão, Michel caiu, jogado contra uma mesa com violência por Lamayer. A mesa cedeu e virou, e Michel foi ao chão. Somente então viu o estado da situação. Madelaine tentava correr e foi abocanhada pelas costas, sacudida como uma boneca de pano e jogada com violência contra a parede. Ela não se mexeu mais. Pierre tinha sua cabeça arrancada num canto da sala. Jules estava nas mãos de um deles que apertava seu pescoço com suas garras, até que ele caísse inconsciente.

Michel se levantou, pasmo. Emanuele lutava bravamente quando finalmente sucumbiu, tendo o pescoço quebrado por uma das criaturas. Ele não imaginava que houvesse tantas. Nunca vira tantas! Não achou que arriscariam uma guerra por causa de quem quer que fosse.

Enfim, sua hora tinha chegado. Sorriu, o sangue do lobo nos dentes. Viu ao seu lado sua elegante bengala de prata, caída na hora em que tudo começou. Pegou-a e puxou a espada de prata afiada que se ocultava nela, ouvindo seu sibilar como se fosse uma canção. Havia tantas cores, tanto vermelho, tanta luz naquela sala que ele não conseguia deixar de sorrir.

Com a bocarra escancarada em um sorriso insano, partiu para cima do Duque, fazendo vários cortes em seu peito com movimentos rápidos. Duas grandes garras do Lobo lhe rasgaram o estômago e o jogaram longe.

Rolland caiu morto, depois de muito lutar. Michel viu seu último segundo o aproveitou, sabendo que era sua última chance. Saltou, a espada em riste, pronta para o golpe fatal. Em seu voo, olhava o Duque, agora uma festa bestial, coberto de sangue e de presas à mostra. Viu também uma série de rostos, dezenas, centenas deles, explodirem em luz diante de seus olhos enquanto ouvia uma música tocada em algum lugar na vizinhança.

Foram frações de segundos, mas ele viu e sentiu o passado e o presente, as mortes e as vidas que ocuparam seus dias, suas alegrias e suas tristezas. Conforme se aproximava num salto interminável na direção de sua presa, seus olhos se encheram d’água, tornando sua visão mais brilhante e repleta de pontos de luz.

Algo interceptou sua visão. Diante do Duque, que aguardava de garras preparadas a chegada de Michel e a lâmina de prata afiada que empunhava, surgiu uma outra fera, enorme e manchada de sangue. O Capitão saltava na sua direção na forma de uma grande fera cor de marfim que voou no ar com as presas à mostra, ao encontro da espada prateada.

Os dois se encontraram no ar e caíram. Ninguém conseguiu ver exatamente o que houve, mas era fato que sangue jorrou. As feras na sala, sem oponentes e na expectativa de terem perdido um dos seus, observaram os dois corpos caídos no chão, imóveis.

Até que o vampiro se moveu. Arrastou-se, metade do pescoço destruído. A fera caída também se moveu. Lentamente, se levantou, sangue escorrendo de suas mãos, onde segurava a espada que tentou se cravar em seu coração. A fera jogou a espada longe e ela fez um barulho ao se chocar com o mármore do chão.

Michel continuava se arrastando, mas não estava tentando fugir. Tentava alcançar a peça que brilhava no tapete cor de sangue. Seus dedos finos e brancos tocaram o relicário caído e ele sorriu. Não tinha mais a carranca de vampiro assassino. Era novamente um homem feliz em ter suas balinhas. Deixou-se cair de costas e abriu o relicário. Derramou as últimas balas de açúcar na boca e deixou que o gosto doce se espalhasse. Sorriu, admirado com o fim de sua jornada, porque mesmo uma não-vida ainda é uma história a ser contada. Ninguém imaginava o que se passava enquanto seus olhos brilhavam e ele sorria, quando relicário caiu de sua mão.

Uma a uma, as feras se tornaram homens. Túnicas e mantos que estavam escondidos do lado de fora foram jogados para eles por um dos soldados. Vestiram-se em segundos e olharam os corpos espalhados. Era um estrago difícil de esconder e quase impossível de explicar.

– Queimem tudo! – ordenou o Duque.

As labaredas lambiam as cortinas de veludo e os tapetes persas. O vermelho e o dourado das chamas se espalharam com rapidez pelos móveis de madeira esculpida, e manchou de negro as paredes decoradas. Uma pintura emoldurada ricamente onde dois garotinhos posavam. Um estava sentado, o outro de pé. Um sorria e o outro estava sério, com ar adulto. Os dois encararam o pintor alguns séculos antes e agora observavam impassíveis as chamas consumirem os corpos caídos. O sorriso inocente foi devorado pelas chamas, da mesma forma como tantas vidas foram devoradas ali. Um dos meninos do quadro tinha um sorriso familiar e, se olhássemos com atenção, veríamos um relicário de platina decorado com pedras preciosas aparecendo em seu bolso.

Quando as chamas chegaram em seus olhos, os homens já estavam fora da casa, caminhando firmemente sem olhar para trás, o vento balançando seus mantos negros e as faias que pareciam protestar em movimentos caóticos contra a destruição da casa que guardavam. As chamas acenderam a grande mansão e apagaram todas as suas histórias, enquanto uma fumaça preta subia aos céus na direção da grande Lua cheia.

 


Capítulo 40


Melancolia

 

Chegaram na cabana de Denis, onde este os recebeu com um corte na cabeça.

– O que houve? – perguntou o Duque, preocupado.

– O garoto ficou louco, achando que a casa estava pegando fogo! Foi um auê e deu um trabalho danado, mas tive uma ajuda inusitada. Conto tudo depois! Ele está bem agora. E então? Como foi lá? Acharam o vampiro?

– Achamos – respondeu o Capitão.

E só então Denis percebeu que estavam quase todos feridos. Entraram e cuidaram de seus ferimentos. A bala de prata que atingira o Duque felizmente atravessara, ferindo apenas seu braço. Os ferimentos de garras e dentes doíam, mas felizmente não os contaminariam com a maldição dos vampiros, já que estavam todos mortos. Enquanto faziam isso, contaram o desfecho da história a Denis, que não conseguia parar de arregalar os olhos.

Quando colocaram os eventos da noite, perceberam o quão terrível tinha sido o que fizeram.

– Se descobrirem, será uma quebra do acordo – disse Thomas. – Podemos ter declarado uma guerra!

– Ninguém nos viu – disse o Duque. – Ao menos, ninguém que possa contar. Se havia mais algum vampiro naquela casa, queimou junto com ela.

– Ele tem razão – concordou o Capitão, enfaixando a mão ferida. – Acharão que foi obra de caçadores. Ou de outra família de vampiros.

– Bom, não é como se eles não tivessem inimigos... – concordou Denis. – Isso eles tinham aos montes!

– Mesmo assim, é melhor partirmos o quanto antes – determinou Lamayer. – Não devemos ser encontrados nas proximidades daquela casa. Nada pode nos ligar a esse lugar ou a essa noite!

Assim, descansaram até o amanhecer, o que aconteceu em algumas horas. Foi um sono pesado e curto, daqueles que parecem mais atrapalhar do que ajudar, insuficiente para repor as forças.

Quando o céu cinzento se mostrou, Denis, Diderot e Lamayer foram até o quarto de Philippe. Aquela era a hora da verdade. Se um único vampiro que tenha participado do plano de Michel tivesse escapado, tudo o que fizeram teria sido em vão. Se Philippe naquela manhã fosse outra pessoa – ou outra coisa – teriam que terminar o que os vampiros começaram.

Diderot ajoelhou-se ao lado da cama do menino que tinha um sono agitado. Afagou-lhe a testa, passando a mão pela franja.

– Volte para nós... – murmurou. – Prateada está esperando por você.

Ele fez um sinal com a cabeça para Denis que foi até a cortina e a abriu de uma só vez, deixando a luz do sol entrar. Mesmo opaca por causa da manhã de inverno, aquela luz faria um vampiro recém-transformado arder em queimaduras terríveis numa morte muito dolorosa.

Philippe franziu levemente o cenho, incomodado com a luz súbita. Então, abriu lentamente os olhos, piscando algumas vezes. Diderot sorriu aliviado e virou-se para o Duque. Não se surpreendeu ao vê-lo sorrindo também.


Eles partiram naquela mesma manhã, deixando para Denis a missão de espalhar boatos sobre caçadores de vampiros na cidade que estavam atrás de Michel por vingança. Michel tinha imaginação e conhecimento o bastante para inventar os detalhes necessários a um bom boato e faria isso assim que os companheiros desaparecessem na estrada.

Philippe ainda estava muito debilitado, mas não podiam se arriscar a ficar mais tempo ali. Saíram de Beloise e seguiram caminho pela estrada. Pararam diversas vezes, pois o rapaz não estava aguentando bem a viagem. De noite, montaram acampamento sob as árvores altas. A neve fez uma camada branca sobre a vegetação e sobre o chão e estava muito frio, mas não havia nenhuma taberna ou hospedaria nas proximidades, já que decidiram evitar Allors.

Os homens se dividiram em pequenos grupos para caçar algo para comerem, deixando no acampamento apenas o Capitão, o Duque e o jovem que resgataram. Diante da fogueira, Philippe estava sentado encolhido, os olhos amortecidos vendo as chamas em sua dança caótica. Coberto por um manto grosso, o rapaz ainda tremia de frio, o rosto pálido com manchas escuras abaixo dos olhos, os cabelos caídos pelos ombros. Diderot sentou-se ao lado dele e lhe entregou uma caneca de vinho quente com mel e algumas ervas. O rapaz pegou com mãos trêmulas e quase deixou cair. O Capitão o ajudou a levar a caneca até os lábios quase azulados.

– Eu agradeço... – murmurou o rapaz. - ...pelo que fizeram por mim...

O Capitão viu os olhos tristes e sabia que viria um “mas”.

– Mas era melhor terem me matado...

Diderot olhou para a fogueira. Sabia que as marcas na alma daquele menino eram agora profundas demais. No final, seu medo se concretizara. Ravin conseguira enfim fazer algo do qual ele talvez não conseguisse se recuperar.

– Prometi à Prateada que ela o encontraria vivo e bem quando voltasse.

Lágrimas desceram pela face do rapaz.

– Ela não vai voltar... – disse ele. – Ela já me esqueceu... E depois do que fizeram comigo, é melhor que me esqueça mesmo.

Então ele soluçou e levou a mão ao rosto. Diderot tirou a caneca de suas mãos trêmulas e o abraçou, imaginando o que Emily falaria numa hora dessas. Ela sempre sabia o que falar quando tudo estava desmoronando. Quando a esperança estava em seu último suspiro, ela sempre sabia como trazê-la de volta à vida.

– Prateada voltará para você – disse o Capitão. – Ela prometeu que o faria. E ela o fará.

O menino continuou soluçando baixinho, acolhido no abraço paterno do Capitão, até que finalmente adormeceu, acalentado em uma esperança de que talvez ele estivesse certo. Talvez Prateada voltasse para ele.

 


Celine estava na janela de seu quarto quando viu os cavaleiros chegando. Desceu correndo e os encontrou na porta, junto com Constance e uma dúzia de criados que aguardavam ansiosos. A moça segurava o peito, sentindo o coração em suspenso. Viu um cavalo vazio e temeu pelo pior. Porém, logo viu que Philippe estava nos braços do Capitão, envolto em um manto.

Os guardas do castelo ajudaram a descer o rapaz desacordado e o levaram para dentro. O doutor Marceau chegou quase que ao mesmo tempo, já preparado para aquele momento há dias. Havia muitas perguntas, muito movimento e demorou alguns dias até que as coisas se tranquilizassem novamente.


Três dias depois, Celine estava ao lado da cama de Philippe. Ele abriu os olhos cansados.

– Prateada?

– Não, Philippe... Sou eu, Celine...

Então ele entristecia e fechava novamente os olhos. Às vezes, derramava algumas lágrimas. Às vezes, não. O doutor terminara seus exames. Quando ele saiu do quarto, Celine foi atrás, seguindo-o pelas escadas até o salão principal, onde aguardavam seu pai, o Capitão e Jacques.

– Ele não está melhorando! – disse Celine.

– Eu sei – concordou o médico.

– Mas nós impedimos a transformação! – retrucou Diderot.

– Não tem nada a ver com isso – explicou o médico.

Como os outros esperassem o restante da explicação, ele suspirou, colocando sua bolsa de equipamentos estranhos sobre uma mesinha.

– É a melancolia – respondeu finalmente. – Eu lamento, mas o garoto está morrendo de tristeza, literalmente.

Eles pareceram perdidos. Depois de tudo o que fizeram, a morte continuava ali, insistente, e não sabiam mais o que fazer.

– Prateada! – disse Celine. – Ele precisa de Prateada!

– Já mandamos um mensageiro mandando-a voltar, mas vai levar mais uns quinze dias até que ela chegue – disse o Capitão, passando a mão nos cabelos longos cor de areia, pensando em alguma outra solução.

– Precisamos dela agora! – gritou Celine.

– A duquesa tem razão... – disse o médico. – Nesse ritmo, ele não aguenta mais uma semana...

Houve um momento de silêncio. Talvez fosse mesmo o fim. Talvez não tivessem tido nenhuma chance de salvá-lo, no final das contas. Talvez fossem dessas coisas que estão escritas e não podem ser apagadas. Jacques se sentou, desanimado, numa cadeira próxima. Celine queria voltar para o quarto, mas continuava ali, paralisada esperando uma solução entrar pela porta milagrosamente.

A porta se abriu de uma vez, deixando o vento frio entrar e revelando uma figura inesperada. Os cabelos desgrenhados e o rosto com alguns arranhões, vestida numa camisola grossa branca, Prateada estava ali. Ou não. Por alguns segundos, ninguém teve certeza se era mesmo Prateada ou um fantasma.

– Prateada? – murmurou o Duque.

A moça entrou, passos difíceis, deixando em seu caminho pegadas de sangue. Viram que suas mãos também estavam sangrando, deixando marcas nas coisas que ela tocava.

– Como... Como você chegou aqui?! – Lamayer correu até ela para ajudá-la a se manter de pé.

– Eu vim andando... – respondeu ela sorrindo.

Celine e Jacques aproximaram também, felizes e atônitos. Diderot encheu uma caneca com a água de uma ânfora.

– Não deu tempo do nosso mensageiro chegar! – disse Diderot, entregando-lhe a caneca com água fresca. – Como você soube que precisava vir?

A menina bebeu sofregamente a água, pedindo mais. Ele encheu novamente e ela tomou, derramando um pouco pelos cantos da boca.

– Madame Emily me avisou!

Diderot sentiu o coração parar.

– O quê?

– Há uns... dez dias, ela foi até lá e me disse que eu tinha que vir. Ela me acompanhou na maior parte do caminho. Ela me deu essa roupa na casa dela e então nos despedimos. Ela deve chegar daqui a pouco!

O Capitão olhou a camisola e percebeu os pequenos lacinhos bordados que o acompanharam por tantos anos. Seus olhos se encheram d’água. Era a camisola de Emily e ele não percebera.

Prateada entregou a caneca vazia para ele e afastou gentilmente as pessoas que a cercavam, recusando até mesmo a ajuda de Lamayer. Então ela subiu as escadas, deixando as pegadas de sangue no caminho, marcando também o corrimão onde se apoiava. Diderot deixou que as lágrimas caíssem, imaginando que não encontraria Emily quando chegasse em casa, mas que certamente ela estaria perto dele, de alguma forma.

– Ela disse que cuidaria de nós, à maneira dela... – disse ele, quando Lamayer tocou seu ombro.


Ela entrou no quarto, mancando, cansada, magra e abatida. Mesmo assim, acelerou seu passinho ao ver o rapaz encolhido na cama. Contornou até ficar de frente para ele e sentou-se na cama. Ele despertou, imaginando que era Celine novamente, ou Constance, tentando fazê-lo comer. Piscou várias vezes, até reconhecer de vez a moça. Ergueu o tronco para ver melhor.

– Prateada?

A moça sorriu, os olhos cheios d’água. Ele acariciou o rosto dela, sujo e arranhado pelas árvores secas do inverno. Segurou suas mãos rubras de sangue e viu as pegadas que a levaram até ele.

– Você veio andando?... – perguntou ele, sem acreditar.

– Era o jeito mais rápido – respondeu ela, com um sorriso. – Lobos correm muito! Eu até tentei me transformar em um cavalo, mas não deu certo...

Ele baixou o rosto, olhando as mãos pequenas e delicadas machucadas. Lágrimas pesadas caíram sobre elas. Com um soluço sentido, ele a puxou para si, sentindo o cheiro dela, deixando que o pranto saísse. Abraçada a ele, ela deixou que as lágrimas de saudade que derramara todos esses meses caíssem novamente, enquanto prometia a si mesma que nunca, nunca mais o deixaria partir, ou o deixaria para trás.

– Nunca mais vamos nos separar! – soluçou ela. – Você ouviu? Nunca mais vamos nos separar!...

Philippe não respondeu. Continuou soluçando abraçado a ela, enquanto seus corações batiam acelerados e seus corpos se aqueciam naquele inverno infeliz, sem querer soltá-la daquele abraço jamais.

 

Epílogo

 

Lucian era um jovem de extrema beleza, embora contasse com mais de 300 anos. Observava o inverno fazer seu trabalho cobrindo tudo de neve enquanto uma onda de nostalgia o dominava. Desde que soubera da morte de Michel andava saudoso dos velhos tempos. Percebia, com pesar, que seus amigos de juventude estavam rareando, morrendo ou sendo mortos.

Sentia-se só e se perguntava se estava fazendo a coisa certa em seu reinado. As coisas podiam estar bem mais serenas agora, mas eram como as árvores lá fora. Mortas e cobertas de gelo. O incêndio na mansão de Michel, onde ambos cresceram juntos, despertou muitos sentimentos.

Lucian fez questão de ir até lá quando soube do ocorrido. Alguns vampiros jovens recém-transformados foram mortos no porão, identificados apenas por alguns pertences que o fogo não destruiu. Não tinham como precisar quantos morreram lá, mas Lucian não se importava com números. A única coisa que lhe doía é que Michel Decartier estava entre os mortos.

Lembrou de como caminhou pelas cinzas, vendo tudo destruído, lembrando como sua infância e seu passado como humano foram apagados pelas chamas. Encontrou o relicário de Michel, ainda aberto e coberto de fuligem, em cima de um monte de cinzas.

O mesmo relicário estava em sua mão agora, polido e belo, como da primeira vez que os dois meninos colocaram os olhos nele. O passado começou a vir, sem critério, com bons e maus momentos, boas e más escolhas, quando alguém o chamou, tirando-o de seu devaneio. Virou-se e olhou para o servo, um jovem vampiro ricamente vestido.

– Majestade, há um homem aqui que deseja vê-lo.

Lucian deu um suspiro. Olhou novamente para a janela.

– Mande-o voltar outro dia – disse. – Não quero ver ninguém hoje.

– Majestade, se me perdoa...

Lucian voltou a olhar para o jovem, esperando ele terminar.

– Acho que o senhor vai querer falar com esse homem...


Alguns instantes depois, um homem entrou no rico salão do palácio de Lucian, um castelo coberto de luxo e beleza. Tapetes grossos de pele de ovelhas cobriam o chão de pedras, enquanto grandes quadros ostentavam frutas, paisagens e rostos elegantes com molduras de ouro nas paredes. Lucian aguardou o homem se aproximar, olhando-o curioso.

E ele tinha motivos para estar curioso. O homem destoava da beleza que o cercava. Calvo, dono de um rosto de traços pouco harmônicos e dentição defeituosa, o pobre coitado ainda tinha sido contemplado com uma corcunda.

– Bem... – disse Lucian. – O que você tem a me dizer?

De joelhos diante do príncipe regente dos vampiros, o corcunda sorriu e retirou um papel dobrado de dentro do bolso, entregando-o ao jovem que lhe fizera a pergunta.

 


[1] “História de uma viagem feita na terra do Brasil”, primeira edição (1578), Nova edição de Frank Lestrignant , Presses du Languedoc/Max Chaleil Editeur,1992.

 

 

                                                                  Eddie Van Feu

 

 

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