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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MALDITA PARENTELA / França Júnior
MALDITA PARENTELA / França Júnior

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

França Júnior

 

 

 

 

COMÉDIA EM UM ATO
PERSONAGENS: CASSIANO VILASBOAS (33 anos) HERMENEGILDA TAQUARUÇU DE MIRANDA (30 anos) DESIDÉRIO JOSÉ DE MIRANDA (60 anos) DAMIÃO TEIXEIRA (50 anos) RAIMUNDA (sua mulher, 45 anos) MARIANINHA (sua filha, 20 anos) MAJOR BASÍLIO (60 anos; suas filhas) LAURINDINHA (20 anos) COCOTA (20 anos) GUIMARÃES (40 anos) DOUTOR AURÉLIO (25 anos) Três criados; três meninos de 7 a 10 anos; uma menina de 8 anos; convidados.
A ação passa-se no Rio de Janeiro, no ano de 1871.
ATO ÚNICO O teatro representa uma sala mobilada com elegância. É noite.


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CENA I Damião Teixeira e Raimunda.
 
DAMIÃO (entrando por uma das portas da esquerda, a Raimunda, que entra pela direita)  Onde está Marianinha? (Com alegria) As salas regurgitam de gente e neste momento acaba de entrar a família do comendador Pestana.
 
RAIMUNDA  Marianinha está no toalete com as filhas do conselheiro Neves.
 
DAMIÃO  Que reunião luzida! São apenas nove horas e já tenho em casa dois desembargadores, três deputados, um conselheiro, um tenentecoronel... 
 
RAIMUNDA  O pior é que chove a cântaros.
 
DAMIÃO  Tanto melhor. Haverá à porta maior número de carros e o nosso baile, durante uma semana pelo menos, será o assunto das conversações na vizinhança.
 
RAIMUNDA  Você só pensa nos seus comendadores e barões e não se lembra do mano Basílio e das meninas da Prainha. Sabe Deus como elas virão por aí, coitadinhas, metidas num bonde, todas enlameadas e correndo o risco de uma constipação.
 
DAMIÃO  Se é por esse motivo que a chuva a incomoda, então fique sabendo desde já que eu não duvidaria dar às almas o dobro do que gastei esta noite para ver desabar sobre a cidade um tremendo temporal, dez vezes maior que o de dez de outubro.
 
RAIMUNDA  Se a minha família o envergonha, por que casou comigo?
 
DAMIÃO  Ora Raimunda, falemos com franqueza, a tua parentela é um escândalo!
 
RAIMUNDA  Em que é que os seus parentes são melhores que os meus?
 
DAMIÃO  Aqui para nós, que ninguém nos ouve, tu achas teu mano Basílio... 
 
RAIMUNDA  Teu mano, não; seu cunhado.
 
DAMIÃO  Vá lá; tu achas que meu cunhado Basílio e aquelas duas filhas; uma muito desengonçada e a dar gargalhadas a todo o momento e a outra de cara sempre amarrada a responder às amabilidades que lhe dizem com desaforos e muxoxos de crioula, estão no caso de entrar em um salão de gente que se trata?
 
RAIMUNDA  Quem te viu e quem te vê!
 
DAMIÃO  Desde que me entendo, encontro-as em toda a parte com uns célebres vestidos brancos, tão cheios de fofinhos, pregas e canudos que parecem estar vestidas de tripas. E o tal senhor Cassiano Vilasboas? Não se me dá de apostar que ele vem por aí de casaca e calça branca.
 
RAIMUNDA  Pois olhe, o primo Vilasboas foi sempre um janota. 
 
DAMIÃO  Um janota da Ponta do Caju, que me tem quebrado, com os seus estouvamentos, quanta louça tenho em casa.
 
RAIMUNDA  Não é tanto assim.
 
DAMIÃO  Eu daria parabéns a mim próprio, senhora, se a sua parentela tivesse a feliz lembrança de não pôr cá os pés. Sabe que este baile é dado especialmente ao senhor Joaquim Guimarães, que é um homem às direitas, com quem desejo casar Marianinha. Já vê, pois, que é preciso que nos meus salões se encontre a nata da sociedade fluminense.
 
RAIMUNDA  Não compreendo porque queres a nata da sociedade em tua casa quando pretendes casar tua filha com um lorpa, um sujeito sem educação, que vai fazer a sua infelicidade.
 
DAMIÃO  Pois um homem que traz para o casal aquilo com que se compram os melões faz porventura a infelicidade de alguém?! Pelo amor de Deus, senhora, não diga disparates.
 
RAIMUNDA  Se reservavas esta sorte para a pobre menina, seria melhor que não a tivesses mandado educar com todo o esmero em um colégio francês.
 
DAMIÃO  Pois saiba que é atendendo mesmo a essa educação que desejo casála com o tal lorpa, como a senhora o chama. Marianinha está acostumada ao luxo, à vida da alta sociedade e um marido dinheiroso é para ela hoje tão necessário como o ar que respira.
 
RAIMUNDA  Um marido que há de envergonhá-la em toda a parte.
 
DAMIÃO  Não há de ser tanto assim. Concordo que a princípio ele cometa suas inconveniências e que dê mesmo algumas patadas bravias; mas depois há de ir se acostumando pouco a pouco à atmosfera dos salões e acabará finalmente por falar a linguagem do bom-tom e não dar um passo sem atender ao formulário da etiqueta.
 
RAIMUNDA  Veremos.
 
DAMIÃO  Ora, minha amiga, tu queres medir todos pela bitola de tua família, que nasceu na Prainha, na Prainha foi educada e há de morrer na Prainha.
 
RAIMUNDA  Está bom, a minha família não está em discussão.
 
DAMIÃO  Eu já sei o que a senhora quer. Vem com pés de lá advogar a causa do tal doutorzinho que me anda a namorar a pequena... 
 
RAIMUNDA  Pois fique sabendo que Marianinha já me disse que, a não dar a mão ao senhor Doutor Aurélio, não se casava com mais ninguém. E eu acho que ela faz muito bem.
 
DAMIÃO  O quê?! Pensa porventura a senhora Raimunda que eu vou casar minha filha com um valdevinos sem fortuna e sem família?... 
 
RAIMUNDA  Mas... 
 
DAMIÃO  Sim, sem família. Dou um doce ao tal sujeitinho se ele for capaz de dizer quem sejam seus pais.
 
 
CENA II Os mesmos e três convidados.
 
DAMIÃO (a duas damas e a um velho que entram pelo fundo)  Ó senhor Visconde, pensei que não viesse. (Aperta a mão do Visconde) Raimunda, leva as capas das senhoras para o toalete. (Raimunda beija as duas moças, tira-lhes as capas e entra pela esquerda voltando logo. As moças sentam-se) Pode dispor desta casa como se fosse sua.
 
RAIMUNDA (para as moças)  A senhora Viscondessa por que não veio?
 
DAMIÃO (para o velho)  É verdade, por que não trouxe a Excelentíssima senhora?
 
 
CENA III Os mesmos e mais três convidados.
 
DAMIÃO (a um moço que entra com duas damas pelo fundo)  Ó Excelentíssimo! Raimunda? O senhor Doutor Chefe de Polícia. Minha mulher. 
 
(Raimunda cumprimenta o moço, beija as três moças, tira-lhes as capas e leva-as para o toalete, depois do quê, volta para a cena. As moças sentamse)
 
 
CENA IV Raimunda, Damião, os convidados, Basílio, Laurindinha, Cocota, três meninos, de 7 a 10 anos e uma menina de 8 anos.
 
RAIMUNDA  Como está, mano Basílio? (Laurindinha, Cocota e os meninos tomam a bênção a Raimunda)
 
DAMIÃO (à parte)  Jesus! Veio a família em peso!
 
LAURINDINHA (rindo-se às gargalhadas)  Estamos todas enlameadas! (Apertando a mão de todos que estão na sala, um por um) Como tem passado? (A outra) Eu estou boa, muito obrigada. (A outro) Boa noite. (A outro) Tem passado bem? (A outro) Como vai?
 
DAMIÃO (à arte)  Que vergonha, meu Deus! Entram em um baile apertando a mão de todos, sem uma apresentação sequer!
 
LAURINDINHA (a outra)  Viva!
 
DAMIÃO (baixo a Raimunda)  Senhora, pelo amor de Deus, toque essas sirigaitas daqui para fora. 
 
(O major Basílio, os três meninos, a menina e Cocota seguem também um atrás do outro apertando a mão de todos, que ocultam o riso com o lenço na boca)
 
RAIMUNDA (baixo a Damião)  De que é que esta súcia se ri?
 
DAMIÃO (baixo)  A senhora ainda o pergunta?! Olhe para aqueles vestidinhos, cheios de fitas de todas as cores. Parece-me estar vendo o mastro do Castelo em dia de chegada de voluntários.
 
BASÍLIO (abraçando o Chefe de Polícia)  Oh! Há quanto tempo não o vejo.
 
DAMIÃO (à parte)  O que é aquilo, o que é aquilo?!
 
BASÍLIO  Não é o senhor Tomé da rua do Alcântara, a quem tenho a honra de falar?
 
DAMIÃO (pondo-se de permeio)  Venha tirar par para uma quadrilha, excelentíssimo.
 
BASÍLIO  Desculpe-me, estou sofrendo tanto da vista.
 
LAURINDINHA (rindo-se)  Ah! Ah! Ah! Titia, não imagina o reboliço que houve hoje lá em casa por causa deste baile.
 
DAMIÃO (com riso forçado)  Nós imaginamos, nós imaginamos.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah! Eu e Cocota queríamos fazer uns vestidos novos para pôr poeira hoje aqui em tudo. O diabo do italiano que costuma levar fazendas lá na Prainha flauteou-nos e não tivemos remédio senão lançar mão destes vestidos que fizemos para a chegada do Conde D'Eu. Toca a mudar fitas. Ah! Ah! Ah! O caixeiro do armarinho entrava e saía. Ah! Ah! Ah! Papai estava furioso. Já não posso com tanta despesa, disse ele. Ah! Ah! Ah! Saímos de casa todas engomadas, principiava a fuzilar. Quando chegamos ao Largo da Imperatriz, desabou uma pancada d'água... Ah! Ah! Ah! Os bondes passavam... papai, sciu, sciu, sciu, pára! Qual! Iam todos atopetados. Ah! Ah! Ah!
 
DAMIÃO (interrompendo)  Vamos tirar pares, vamos tirar pares.
 
LAURINDINHA  A mana está danada.
 
COCOTA (zangada)  Me deixe.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah! Está com os sapatos todos encharcados, e a meia caiulhe pela perna abaixo.
 
COCOTA (zangada)  Não é de sua conta; cuide de sua vida que não faz tão pouco.
 
LAURINDINHA  Eu lá tenho a culpa que você viesse com os sapatos rotos?
 
COCOTA  Vá plantar batatas.
 
DAMIÃO (à parte)  Que vergonha! (Alto) Vamos tirar pares, vamos tirar pares.
 
COCOTA  Se você me exaspera muito, olhe que eu faço uma das minhas, hein?
 
BASÍLIO (para Cocota e Laurindinha)  Vocês não trouxeram aquela música a quatro mãos?
 
COCOTA  Eu não, não tinha eu mais que fazer.
 
BASÍLIO  Mas por que não trouxeste a música?
 
COCOTA  Porque não quis, está aí.
 
 
CENA V Os mesmos e Vilasboas.
 
VILASBOAS (entra pelo fundo, traja casaca e calça branca; traz um cachenê ao pescoço, a bainha da calça dobrada, sapatos de borracha e um chapéu de chuva sobraçado com a ponta para o ar)  Afinal, sempre cheguei.
 
LAURINDINHA (batendo palmas) Iu... ó primo Vilasboas. Que pagode. Ah! Ah! Ah! 
 
(Vilasboas cumprimenta a todas com a ponta do guarda-chuva voltada para o ar)
 
DAMIÃO (à parte)  Mais outro.
 
BASÍLIO (a Vilasboas que o cumprimenta)  Olhe que você fura-me um olho.
 
VILASBOAS  Estou molhado como um pinto. (Recuando para apertar a mão de Raimunda dá com o cabo do chapéu em um aparador e atira uma jarra ao chão)
 
DAMIÃO (à parte)  Começa o diabo a quebrar-me tudo.
 
VILASBOAS (para Raimunda)  Não se incomode, eu pago. Com licença. (Abre o chapéu de chuva e coloca-o no chão)
 
DAMIÃO  O que é isto, senhor?
 
VILASBOAS  É para enxugar. 
 
(Damião fecha o chapéu e coloca-o a um canto. Vilasboas senta-se no sofá, tira os sapatos de borracha e atira-os para baixo, desenrola o cachenê e desdobra a bainha da calça)
 
DAMIÃO (baixo a Raimunda)  Estou com a cara mais larga que um tacho. (Alto) Vamos tirar pares, vamos tirar pares.
 
 
CENA VI
 
Vilasboas, os convidados, os meninos, Laurindinha, Cocota, Basílio, Damião, Raimunda, Hermenegilda e Miranda.
 
RAIMUNDA  Entre, prima Hermenegilda.
 
HERMENEGILDA (cumprimentando a todos)  Pensei que não nos apropinquássemos mais às avenidas deste palácio, todo por dentro e por fora iluminado, como diz Alexandre Herculano no Otelo.
 
DAMIÃO (à parte)  Faltava mais este casal para coroar a obra.
 
VILASBOAS (para Laurindinha)  A mana Hermenegilda fala que se pode ouvir.
 
HERMENEGILDA  Deixamos a poética Praia do Caju envolvida nos vapores fosforescentes do cair das sombras que abandonavam a terra.
 
DAMIÃO (à parte)  Quanta asneira, meu Deus!
 
HERMENEGILDA  A lua ocultava o perfil entre nuvens negras como diz o cantor do Jocelyn.
 
DAMIÃO (interrompendo)  Mas vamos tirar pares, vamos tirar pares.
 
MIRANDA (para o Chefe de Polícia)  Se não me engano, é o senhor Doutor Chefe de Polícia da Corte? Há de permitir-me que apresente minha filha a Sua Excelentíssima. (Apresentando Hermenegilda) O senhor Doutor Chefe de Polícia. Minha filha, Dona Hermenegilda Taquaruçu de Miranda.
 
HERMENEGILDA  Creio que é inútel esta apresentação, porquanto já tive o prazer de enlaçar o meu braço no de vossa excelência no voluptuoso baile do Fragoso.
 
VILASBOAS  É verdade, como esteve voluptuoso aquele baile! Havia gente como terra. (A orquestra toca dentro uma quadrilha)
 
DAMIÃO  A orquestra dá o sinal para a segunda quadrilha. Não há tempo a perder, meus senhores.
 
MIRANDA (para o Chefe de Polícia)  Se vossa excelência não tem par, tomo a liberdade de oferecer-lhe minha filha. 
 
(O Chefe de Polícia dá o braço a Hermenegilda)
 
HERMENEGILDA  Eu amo a dança, como o saltitante colibri, pulando de várzea em várzea ora aqui, ora ali, ama as pétalas de flores, onde a borboleta vai colher o delicioso mel. 
 
(Saem ambos)
 
LAURINDINHA (para Vilasboas)  Primo, você dança comigo; nós cá quando nos ajuntemos, pintemos. Ah! Ah! Ah! (Sai de braço com Vilasboas)
 
BASÍLIO (para a menina)  Eu vou ver um par para ti, Isabelinha. (Dirigindo-se a um dos convidados) Se ainda não tem dama peço-lhe que dance com esta menina. (A menina sai de braço com o convidado) Vocês (Para as meninas) vejam lá como se portam, vão para a sala, fiquem bem sossegadinhas num canto e sobretudo não me metam a mão nas bandejas. (Saem as meninas, os outros convidados tiram pares e saem também)
 
DAMIÃO (para Cocota)  Você não vai dançar, menina?
 
COCOTA  Estou muito bem sentada.
 
DAMIÃO  Se veio cá para fazer papel de jarra, seria melhor ter ficado em casa.
 
COCOTA  Jarra será ele, veja lá se está falando com seus negros. Se pensa que faço muito empenho em vir aos seus bailes, fique sabendo que vim cá somente para fazer a vontade a papai. Depois que apanhou umas patacas ficou tão cheio de imposturias e de soberbias que parece que tem o rei na barriga. Eu não faço caso de dinheiro.
 
BASÍLIO  Menina, respeite seu tio, que é mais velho; vá dançar.
 
COCOTA  Não vou, não vou e não vou. (Sai para a toalete levando consigo uma moça)
 
BASÍLIO (dando o braço a duas damas e saindo) É muito bem criada, mas quando teima, ninguém pode com ela.
 
 
CENA VII Damião e Miranda.
 
MIRANDA  Na realidade, invejo a posição em que te achas.
 
DAMIÃO (com ar pretensioso) 
 
Ora, meu amigo, mudemos de conversa.
 
MIRANDA  Infelizmente não posso fazer outro tanto, apesar de ter um elemento com que podia figurar mais do que tu.
 
DAMIÃO  Qual é?
 
MIRANDA  Uma filha inteligente e interessante.
 
DAMIÃO  Não te compreendo.
 
MIRANDA  Desconheces porventura a importância da mulher na sociedade? Não sabes que de um momento para outro ela pode arremessar-nos ao abismo com a mesma facilidade com que eleva-nos às mais altas posições? Hermenegilda tem todos os dotes para fazer-me subir e, no entretanto, ainda nada consegui até hoje.
 
DAMIÃO  Ora Miranda... 
 
MIRANDA  Ela, por sua parte, coitada, faz todo o possível. Não a viste, há pouco, com o Chefe de Polícia? Um homem solteiro, em boa posição... um corte de marido, às direitas. Parece-me que o caiporismo vem de mim.
 
 
CENA VIII Os mesmos e Joaquim Guimarães.
 
GUIMARÃES (entrando pelo fundo) 
 
Há um quarto de hora que ando pelas salas a sua procura. Irra!... Estou suando como um burro.
 
DAMIÃO  Ó senhor Guimarães, a sua ausência já me era muito sensível!
 
MIRANDA (baixo a Damião)  Este homem não é aquele sujeito muito apatacado de que me falaste uma vez?
 
GUIMARÃES  Não pude vir mais cedo. Mandei ver umas botas para o seu bródio, encomendo ao diabo do caixeiro que me procurasse quarenta e oito, três, que é o número que calço, e o ladrão traz-me estas botinas. Estou com os pés intransitáveis.
 
MIRANDA (baixo a Damião)  Apresenta-me a este homem.
 
GUIMARÃES  Decididamente não me sei haver com isto. Quem me tira de um bom chinelo-de-tapete, tira-me de tudo.
 
DAMIÃO  Já esteve na sala da frente?
 
GUIMARÃES  Acabo de sair de lá.
 
DAMIÃO  Que tal?
 
GUIMARÃES  O mulherio é magnífico!
 
MIRANDA (à parte)  É preciso que ele dance com Hermenegilda.
 
GUIMARÃES  Mas quer que lhe fale com franqueza? Eu não gosto de bailes de cerimônia. Se algum dia der reuniões em minha casa, não hei de fazer convites. Encontrando algum conhecido na rua, chamo-o e digo-lhe: Vem cá, fulano, vai tomar hoje uma xícara de água suja lá em casa; podes ir assim mesmo que lá não vai ninguém de bem. Não me entendo com negócios cá de casaca e gravata ao pescoço, está a gente fora de seus hábitos.
 
MIRANDA  O senhor é como eu.
 
GUIMARÃES  Quem é o senhor?
 
MIRANDA  Chamo-me Desidério José de Miranda, moro na Ponta do Caju e sou pai de uma menina que é um anjo.
 
GUIMARÃES  Onde está ela?
 
DAMIÃO (interrompendo com vivacidade)  Vamos para a outra sala; minha filha espera-o com ansiedade.
 
MIRANDA  Venha, eu vou apresentá-la.
 
DAMIÃO  Oh! Aí vem Marianinha.
 
 
CENA IX Marianinha, Aurélio, Damião, Miranda e Guimarães.
 
GUIMARÃES (a Marianinha) 
 
Ora muito boas noites, minha senhora. Então, como vai a Sé velha? (Apertando-lhe a mão)
 
DAMIÃO (a Aurélio)  Desejava falar-lhe, senhor Doutor.
 
AURÉLIO (à parte)  Compreendo.
 
MIRANDA (à parte)  O patife quer me empatar as vasas.
 
DAMIÃO (saindo com Aurélio)  Vamos também, Miranda, quero comunicar-te um negócio de muita importância. 
 
(Saem os três. Aurélio lança, ao sair, um olhar furtivo para Marianinha)
 
 
CENA X Marianinha e Guimarães.
 
GUIMARÃES (à parte)  Que diabo lhe hei de eu dizer? (Alto) O dia de hoje tem me corrido muito bem, minha senhora.
 
MARIANINHA  Deveras?
 
GUIMARÃES  É verdade.
 
MARIANINHA  Então, pelo quê?
 
GUIMARÃES Vendi de manhã no meu armazém três barricas de paios avariados e tenho agora o prazer de estar ao seu lado.
 
MARIANINHA  Que amabilidade!
 
GUIMARÃES  Ah! eu não sou homem de etiquetas, digo o que sinto. Fiz um bom negócio e desabafo com a menina, que é uma pessoa a quem amo com todas aquelas. Também se não gostasse da senhora, dizia-lhe logo nas ventas; eu para isso sou bom.
 
MARIANINHA  O senhor gosta da franqueza?
 
GUIMARÃES  É a alma do negócio.
 
MARIANINHA (com ironia)  O senhor Guimarães é um espírito altamente poético; o negócio jamais lhe sai da cabeça, mesmo ao lado da mulher a quem ama.
 
GUIMARÃES  Se eu não pensar no negócio ao pé da senhora, quando é que hei de pensar então? Além disso o casamento é um verdadeiro negócio.
 
MARIANINHA  Ah?!
 
GUIMARÃES  Sim, senhora; é uma sociedade sujeita a perdas e lucros e que tem por capital o amor. Quando o capital se esgota, dissolve-se a firma social, e cada um trata de procurar o seu rumo.
 
MARIANINHA  Pois já que o senhor gosta da franqueza, há de permitir-me que lhe diga que a nossa firma social é impossível.
 
GUIMARÃES  Impossível?! Por quê?
 
MARIANINHA  Já dei o meu capital a outra sociedade.
 
GUIMARÃES  Já deu o seu capital?! Não é isto o que seu pai tem me dito!
 
MARIANINHA  Mas é o que lhe digo agora.
 
GUIMARÃES  Ora, a menina está caçoando. E se o senhor Damião a obrigar?
 
MARIANINHA  Casar-me-ei com o senhor, mas o meu coração nunca lhe pertencerá. 
 
(Aurélio aparece ao fundo. Marianinha vai retirar-se)
 
GUIMARÃES  Venha cá.
 
MARIANINHA (para Aurélio)  Dê-me o seu braço, senhor Aurélio. (Sai com Aurélio)
 
GUIMARÃES (pensando)  Nada. (Pausa) Não me serve.
 
 
CENA XI Guimarães, Miranda e Hermenegilda.
 
MIRANDA (apresentando Hermenegilda) 
 
Aqui está o anjo de que lhe falei. (Baixo a Hermenegilda) — Trata-o com toda a amabilidade e vê se o seguras; olha... (Faz sinal de dinheiro) Eu a entrego, senhor Guimarães.
 
GUIMARÃES  Minha senhora... 
 
HERMENEGILDA  Eu já o conhecia tradicionalmente.
 
GUIMARÃES (à parte)  Isto é aguardente de outra pipa.
 
HERMENEGILDA  O seu ar nobre, as suas maneiras distintas, cativaram-me o peito em arroubos divinais.
 
GUIMARÃES  Ora, minha senhora, quem sou eu? Um pobre diabo carregado de esteiras velhas.
 
HERMENEGILDA  Mas que tem um coração magnânimo e generoso, como um poeta. Não gosta de versos?
 
GUIMARÃES  Hum... Assim, assim.
 
HERMENEGILDA  Certamente ama mais a música?
 
GUIMARÃES  Já fiz parte da Sociedade Recreio da Harmonia, estive aprendendo a tocar clarinete, mas tenho uma péssima embocadura. Nunca cheguei a sair incorporado à banda.
 
HERMENEGILDA A música é a minha paixão predilética. Naquelas notas místicas, como diz Eugene Sue nos Ciúmes do Bardo, a alma esvai-se em perfumes ignotos. Conhece Meyerbeer?
 
GUIMARÃES  Muito. Não conheço eu outro.
 
HERMENEGILDA  Que alma!
 
GUIMARÃES  É verdade, mas deu com os burros n'água.
 
HERMENEGILDA  Com os burros n'água?!
 
GUIMARÃES  Sim, senhora. Pois o Meyerbeer não é aquele mocinho estrangeiro que tinha uma loja de drogas na rua Direita? Quebrou e está hoje sem nada.
 
HERMENEGILDA  Não, eu falo de Meyerbeer, o cantor da Africana, de Julieta e Romeu, e da Traviata.
 
GUIMARÃES  Com esse nunca tive relações. (À parte) Decididamente, isto é gênero de primeira qualidade.
 
HERMENEGILDA  Não gosta da dança?
 
GUIMARÃES  Lá isto sim, é o meu fraco; morro por dançar, como macaco por banana.
 
HERMENEGILDA  Já tem par para a primeira polca?
 
GUIMARÃES  Não, senhora.
 
HERMENEGILDA  Poderei eu merecer a honra de voltigear com o senhor nesses mundos aéreos, até onde não ousa subir a acanhada concepção dos espíritos tacanhos e positivos?
 
GUIMARÃES  O que é que a senhora quer? Eu não compreendi bem.
 
HERMENEGILDA  Quer dançar esta polca comigo?
 
GUIMARÃES  Essa é boa, pois não. (À parte) Esta mulher está me provocando, e eu ataco-lhe já uma declaração nas bochechas.
 
 
CENA XII Guimarães, Vilasboas, Hermenegilda e Laurindinha.
 
LAURINDINHA (rindo-se às gargalhadas)  Ah! Ah! Ah! Você já viu, primo, que súcia de feiosas, todas caiadas e a fazerem umas cortesias muito fora de propósito! (Arremedando)
 
VILASBOAS  E que linguinhas! Uma delas que dançou perto de mim, estava falando do seu balão.
 
LAURINDINHA  O que é que ela podia dizer do meu balão?
 
VILASBOAS  Eu lá sei; disse que você estava estufada, como uma pipoca.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah! E elas são umas escorridas; parecem uns chapéus de sol fechados!
 
 
CENA XIII Os mesmos e Cocota.
 
COCOTA (entrando pelo fundo zangada)  Vamos ver a capa, eu vou-me embora.
 
LAURINDINHA  O que foi?
 
COCOTA  Estou furiosa! Vamos embora.
 
VILASBOAS (para Laurindinha)  Não caia nessa, prima. Já que veio cá, espere pela mamata, que não há de tardar.
 
LAURINDINHA  Mas o que foi que te aconteceu?
 
COCOTA  Um diabo de um mono que encontrei na sala tirou-me para uma quadrilha e entendeu que devia tomar-me para seu palito. Depois de me ter dito uma porção de asneiras, perguntou-me se eu não era da Cascadura, e acabou por pedir-me o molde do meu penteado.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah! E tu encavacaste com isto?
 
COCOTA  Ora, falem com franqueza, vocês acham alguma coisa neste penteado? Pois o mono saiu às gargalhadas dizendo aos companheiros: Olhem o chique com que está aquela flor espetada no cabelo; parece uma lanterna de tílburi! Eu, que não aturo desaforos, mandei-o plantar abóboras e dei-lhe as costas.
 
GUIMARÃES  A menina fez muito bem. Uma ocasião, no baile das Nove Musas, estive às duas por três por lascar uma bolacha numa sujeita que me dirigiu uma graçola pesada. (Para Vilasboas) O senhor quer ouvir o que ela me disse? Olhe, escute. (Diz-lhe um segredo ao ouvido)
 
VILASBOAS  Safa!
 
 
CENA XIV Raimunda, Cocota, Laurindinha, Vilasboas, Guimarães, Hermenegilda, dois criados, um com uma bandeja de doces e outro com a do chá, uma negra, com um pão-de-ló em uma salva, os meninos e a menina, Basílio e depois Damião (Os três meninos pulam para alcançar as bandejas que devem ser levantadas pelos criados).
 
RAIMUNDA (para Laurindinha)  Já tens par para todas as quadrilhas? 
 
(Cocota e Laurindinha sentam-se no sofá)
 
BASÍLIO (com uma xícara de chá, seguindo atrás das bandejas)  Deixa ver isto. 
 
(Os criados, atropelados pelas crianças, levantam as bandejas, sem atenderem a Basílio. Guimarães tira uma xícara que oferece a Hermenegilda, Vilasboas tira outra que vai oferecer a Cocota no momento em que as meninas esbarram-se com ele, obrigando-o a despejar a xícara em cima do vestido de Cocota)
 
COCOTA  Ah! Estou com a pele da barriga toda assada! Que diabo de desastrado!
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah!
 
VILASBOAS  Não foi por querer, prima.
 
DAMIÃO (entrando pelo fundo e deparando com a negra que traz o pãode-ló, baixo, zangado, a Raimunda)  A senhora mande esta negra para dentro. Pois eu alugo para o serviço criados do Carceler e a senhora quer me envergonhar?! (Para a negra, baixo) Passa para dentro, tição. (À parte) Põem-me a cabeça tonta! (Olha para os lados como quem procura alguma coisa e sai pelos fundos. A negra sai)
 
VILASBOAS  Não haverá por aí pão com manteiga?
 
GUIMARÃES  O senhor é dos meus, para chá, pão com manteiga. Não entendo cá essas histórias de biscoitinhos e doces. 
 
(Laurindinha e Basílio enchem os lenços de doces)
 
RAIMUNDA (tirando doces da bandeja, para Basílio)  Leve este para Chiquinha. (Para Laurindinha) Dê este docinho à filha do Barnabé do Tesouro; diga-lhe que não me esqueci dela.
 
VILASBOAS (para o criado)  Deixa-me ver outra xícara. (Tira a xícara, para Guimarães) Não vai a outra?
 
GUIMARÃES  Reservo-me para logo mais.
 
VILASBOAS  Faz bem; é preciso deixar algum lugar para o sólido, mas, por causa das dúvidas, vou sempre me prevenindo. 
 
(A orquestra toca dentro sinal para uma polca, os criados saem seguidas pelos meninos e a menina)
 
GUIMARÃES (para Hermenegilda)  Esta é a nossa. 
 
(Saem. Entram dois convidados e tomam o braço de Cocota e Laurindinha, saindo todos pelo fundo)
 
RAIMUNDA  Dão sinal para uma polca, primo Vilasboas.
 
VILASBOAS  E eu que não tenho par. Ora, hei de encontrar alguma desgarrada. (Sai juntamente com Raimunda e Basílio)
 
 
CENA XV Aurélio e Marianinha.
 
MARIANINHA  Por que está tão triste hoje?
 
AURÉLIO  A tristeza tem-me sido companheira fiel desde o berço e há de guiarme talvez até ao túmulo. (A orquestra dentro toca a polca) No horizonte negro que se estendia diante dos meus olhos vi luzir uma estrela de bonança. Quando seus raios principiaram a aquecer-me, o astro empalideceu e disse ao coração do pobre órfão: — Louco, que ousaste sonhar a felicidade, volta ao martírio e segue teu destino.
 
MARIANINHA  O teu destino é o meu; expele de teu rosto as nuvens sombrias da tristeza e pensa nesse amor que será a nossa ventura.
 
AURÉLIO  Esse amor é impossível, Marianinha. Sem nome, sem família e sem fortuna, vejo-me repelido por teu pai e a consciência diz-me, nas horas em que a esperança vem acalentar-me, que devo fugir quanto antes desta casa.
 
MARIANINHA  Mas minha mãe te adora, Aurélio.
 
AURÉLIO  O coração de uma mãe é sempre generoso!
 
MARIANINHA  Eu te juro que serei tua.
 
AURÉLIO  Não jures; entre a opulência que te espera, embora amargurada, e a pobreza feliz, teu pai escolherá aquela e os teus votos serão impotentes diante de tão funesta ambição.
 
MARIANINHA  Tu não me conheces.
 
AURÉLIO  Conheço-te. És um anjo! Se a sorte te ligar a esse homem não te criminarei por isso. Curvar-me-ei submisso ante o meu destino e seguirei meu caminho.
 
 
CENA XVI Os mesmos e Damião.
 
DAMIÃO (entrando às pressas pelo fundo, baixo a Marianinha) 
 
Lá está a deslambida da Hermenegilda a dançar com o Guimarães e tu aqui. Anda, vem para a sala. Com licença, senhor Aurélio. (Sai com Marianinha)
 
 
CENA XVII Vilasboas e a Menina, Aurélio e depois Hermenegilda e Guimarães.
 
VILASBOAS (para a menina)  Afinal sempre achei um par! Vamos dançar aqui, Isabelinha, que está mais folgado. (Dançam, e Aurélio senta-se pensativo) Faça o passo largo, levante mais o braço, não envergue tanto o pescoço; bravo! Assim.
 
GUIMARÃES (com Hermenegilda)  Aqui não há tanto aperto. (Dança a varsoviana ao passo que Hermenegilda dança a polca)
 
HERMENEGILDA  Nós laboramos em engano. O que é que o senhor está dançando?
 
GUIMARÃES  Pois não é assim?
 
HERMENEGILDA  A orquestra executa uma polca e o senhor está dançando a varsoviana!
 
GUIMARÃES  Pois isto que estão tocando não é a valsa-viana? Minha senhora, eu aprendi com o Guedes e sei onde tenho o nariz. Vamos lá, havemos de acertar. 
 
(Dançam outra vez desencontrados; Vilasboas esbarra-se com Guimarães e atira-o ao chão)
 
VILASBOAS (continuando a dançar muito entusiasmado) 
 
Desculpe-me; quando encontro um bom par, perco a cabeça. (A orquestra para)
 
HERMENEGILDA (para Guimarães)  Machucou-se? Venha beber um copo de água. 
 
(Saem todos menos Aurélio)
 
 
CENA XVIII Basílio e Aurélio.
 
BASÍLIO  Não dança, senhor Aurélio?
 
AURÉLIO  Já dancei a primeira quadrilha.
 
BASÍLIO  Devia ter dançado a segunda que é a dos namorados. Maganão!
 
AURÉLIO (à parte)  Que maçante!
 
BASÍLIO  Eu também já não danço. O meu maior prazer nestas reuniões é a boa conversa. (Tirando a boceta de rapé e oferecendo uma pitada a Aurélio) — Não gosta? (Aurélio agradece) Ora, diga-me uma coisa; o senhor não é filho de São Paulo?
 
AURÉLIO  Sim, senhor; nasci na capital, lá eduquei-me e formei-me.
 
BASÍLIO  Boa terra! Passei ali a minha mocidade e ainda tenho saudosas recordações dos pagodes que lá tive. Nós, quando somos moços, fazemos cada extravagância... 
 
AURÉLIO  Eu imagino o que o Major por lá faria... 
 
BASÍLIO  O senhor conheceu lá uma... Não; não há de ser do seu tempo.
 
AURÉLIO  Diga sempre.
 
BASÍLIO  Ora, isto já foi há tantos anos, e graça é que nunca mais soube notícias daquela pobre criatura! Foi uma rapaziada. Mas, enfim, eu lhe conto. Havia na Luz uma rapariguinha viva e travessa que era requestada por muitos estudantes, menina séria. Eu fazia o meu péde-alferes com a sujeita e em um belo dia, quando menos pensava, sou apanhado em flagrante pela velha que era um demônio. Espalhou-se a notícia pela cidade, a polícia soltou atrás de mim os seus agentes, e eu, — pernas para que te quero! Venho para a corte, meu pai soube do negócio e assenta-me a farda às costas. Pobre menina! Nunca mais dela soube notícia.
 
AURÉLIO (com interesse)  Esta mulher morava na Luz?
 
BASÍLIO  Sim, senhor, quase a chegar à Ponte Grande.
 
AURÉLIO (Com interesse crescente)  E como se chamava?
 
BASÍLIO  Maria da Conceição.
 
AURÉLIO  Maria da Conceição!! E o nome da velha que morava com ela?
 
BASÍLIO  Mas que diabo tem o senhor?
 
AURÉLIO (disfarçando)  Nada. O nome da velha?
 
BASÍLIO  Creio que era Aurélia.
 
AURÉLIO (Segurando em Basílio)  Foi pois o senhor quem atirou no caminho da perdição uma mulher pura e inocente que devia mais tarde lançar ao mundo um desgraçado?!
 
BASÍLIO  O que é isto, senhor? Deixe-me.
 
AURÉLIO  Sim; saiba que este que tem à sua frente é o fruto desse amor criminoso.
 
BASÍLIO  O fruto? Pois que... O senhor... Tu és meu filho! (Chorando e ajoelhando-se) Perdão.
 
AURÉLIO  Senhor, minha pobre mãe, que está no céu, sofreu tanto... 
 
BASÍLIO  Perdão, meu Aurélio. Deixa-me contemplar teu rosto. (Abraça-se com Aurélio chorando em altas vozes) — Se procedi como um miserável para com aquela infeliz que te deu o ser, eu juro que doravante saberei ser teu pai. Vira para cá esse rosto. (Dá um beijo em Aurélio chorando) És o retrato da tua defunta mãe. E como chegaste à posição em que te achas?
 
AURÉLIO  Graças à alma generosa de um protetor que já não existe e que foi um verdadeiro pai que encontrei no caminho da vida.
 
BASÍLIO  O teu verdadeiro pai aqui está... Tu serás o arrimo da minha velhice. Não me perdoas?
 
AURÉLIO  Meu pai. (Abraça a Basílio)
 
BASÍLIO  Meu filho. (Abraça-o chorando e rindo-se ao mesmo tempo)
 
 
CENA XIX Os mesmos e Damião.
 
DAMIÃO (entrando pela direita)  O que é isto?
 
BASÍLIO (abraçado com Aurélio)  Eu fui um grandíssimo patife, porém juro-te que serei teu escravo.
 
DAMIÃO (para Basílio)  Mas que diabo é isto?
 
BASÍLIO  Ah! És tu? Abraça-me, abraça-me, Damião! (Abraçando-o) Eu quero abraçar todo o mundo.
 
DAMIÃO  Já sei, tu fizeste algumas visitas à copa e bebeste mais do que devias.
 
BASÍLIO  O que se passa em mim é tão grande, acho-me neste momento tão altamente colocado, que não desço a responder à chufa pesada que acabas de me dirigir.
 
DAMIÃO  Por que motivo queres abraçar então todo o mundo?
 
BASÍLIO  Conheces aquele rapaz?
 
DAMIÃO  Pois não conheço o senhor Doutor Aurélio?!
 
BASÍLIO  Olha bem para ele. (Pausa) Olha agora para mim. (Pausa) Não achas ali um quê... 
 
DAMIÃO  Um quê?!
 
BASÍLIO  Aurélio é meu filho e eu sou seu pai.
 
DAMIÃO  Ah! Ah! Ah!
 
BASÍLIO  É uma história que depois te contarei. (Para Aurélio) Vamos para a sala, preciso desabafar com todos a alegria que me vai pelo coração. Vamos, meu filho, quero te apresentar como tal às tuas irmãs. (Sai com Aurélio)
 
DAMIÃO  Um filho natural! Eu já devia sabê-lo. Aquele rubor que lhe subia às faces quando se lhe falava na família... (Sai pensativo pelo fundo)
 
 
CENA XX Hermenegilda e Guimarães.
 
HERMENEGILDA  Os perfumes dos salões falam-me às fibras mais recônditas da alma. Sinto um indefinível que me atrai para os espaços como as estrelas que brilham no éter purpurino das melodias do céu.
 
GUIMARÃES (com um cravo na mão, à parte)  O negócio há de começar por esta flor.
 
HERMENEGILDA (depois de pequena pausa)  Que ar pensativo é este que lhe anuvia a fronte em cismas de poeta?
 
GUIMARÃES  O que é que a senhora está dizendo?
 
HERMENEGILDA  Por que está tão pensativo?
 
GUIMARÃES  Eu... Ora esta... É meu modo. Quando estou no armazém é sempre assim. (À parte) Vou lhe dar a flor. (Alto) Minha senhora... (À parte) Deixe-me ver se me lembro... 
 
HERMENEGILDA  O que quer?
 
GUIMARÃES (oferecendo-lhe o cravo)  Tomo a liberdade de oferecer um cravo a outro cravo.
 
HERMENEGILDA  Ah! Será possível? Deixe-me oferecer-lhe também uma flor do meu inodoro ramalhete. (Tira uma flor do buquê que traz) Tome, é uma perpétua. Sabe o que quer dizer no dicionário das flores esta inocente filha dos vergéis, vestida com as cores sombrias do sentimentalismo?
 
GUIMARÃES  Não, senhora.
 
HERMENEGILDA  Quer dizer constância eterna.
 
GUIMARÃES (à parte)  Eu atiro-me aos pés dela e acabo com isto de uma vez.
 
HERMENEGILDA (pondo o cravo no peito)  Este cravo não me sairá do peito até que morra. "Morte, morte de amor, melhor que a vida."
 
GUIMARÃES (ajoelhando bruscamente)  Ah! Minha senhora, eu a adoro; pela senhora... Eu a amo.
 
HERMENEGILDA  Não repita essa palavra, que me afeta todo o sistema nervoso.
 
 
CENA XXI Os mesmos, Vilasboas e Laurindinha.
 
VILASBOAS  Um patife ajoelhado aos pés de minha mana.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah!
 
VILASBOAS  Não se ria, prima, que isto é muito sério.
 
GUIMARÃES (levantando-se)  Que tem você com isto?
 
VILASBOAS  O que tenho com isto?!
 
LAURINDINHA (apontando para Guimarães) 
 
Ah! Ah! Ah! Olhe, que cara, primo Vilasboas.
 
VILASBOAS  Não se ria, prima, que eu tenho gosto de sangue na boca. (Para Guimarães) Prepare-se para bater-se comigo, senhor.
 
GUIMARÃES  Pois para bater-me com você é preciso preparar-me?
 
VILASBOAS  Escolha as armas!
 
HERMENEGILDA (pondo-se de permeio)  Cassiano Vilasboas, meu irmão, não derrames o sangue deste homem.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah!
 
VILASBOAS  Escolha as armas, senhor!
 
GUIMARÃES  Estou pronto. (Avança para Vilasboas e dá-lhe uma bofetada)
 
VILASBOAS (gritando)  Ai! Ai! Ai!
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah!
 
GUIMARÃES  Em guarda, e defenda-se! (Dá outra bofetada) 
 
VILASBOAS (gritando)  Ai! Ai! Socorro! Socorro! 
 
(Hermenegilda desmaia nos braços de Laurindinha)
 
 
CENA XXII Vilasboas, Hermenegilda, Miranda, Damião, Raimunda, Marianinha, Basílio, Laurindinha, Cocota, Guimarães, Aurélio, convidados, e os Meninos.
 
DAMIÃO  O que é isto, meus senhores? Que escândalo!
 
VILASBOAS (apontando para Guimarães)  Este homem ousou levantar a mão para o meu rosto. Deve-me uma reparação.
 
MIRANDA  Minha filha! 
 
(Hermenegilda acorda)
 
VILASBOAS (para Miranda)  Meu pai, surpreendi-o aos pés de minha mana e desafiei-o para bater-se comigo.
 
MIRANDA (à parte)  É preciso fazer render a situação. (Alto, para Guimarães) O senhor deve-nos uma reparação.
 
GUIMARÃES  Mas que diabo de reparação querem vocês? Eu gosto desta moça, caso-me com ela e está acabado.
 
MIRANDA (abraçando Guimarães)  O senhor é um homem de bem.
 
DAMIÃO (para Guimarães)  Mas, minha filha... 
 
GUIMARÃES  Sua filha disse-me na bochecha que já tinha dado o capital a outra sociedade e isto de mulher sem o capital... Hum... temos conversado.
 
BASÍLIO (para Damião)  Sua filha tem aqui um noivo. (Apresentando Aurélio) E eu, como pai, dou o meu consentimento.
 
LAURINDINHA e COCOTA  Como pai?!
 
BASÍLIO  Sim, é seu irmão.
 
LAURINDINHA  Ah! Ah! Ah! Donde saiu este irmão de comédia?
 
MARIANINHA (ajoelhando-se com Aurélio aos pés de Damião) Meu pai, a sua bênção. (Damião volta o rosto)
 
GUIMARÃES (Para Vilasboas)  Se quiser bater-se comigo ainda estou às suas ordens.
 
VILASBOAS  Uma vez que o senhor vai ser meu cunhado, eu o perdoo; fica a bofetada em família.
 
DAMIÃO (para Marianinha e Aurélio)  Casem-se, eu irei acabar a minha vida longe daqui. Maldita parentela! Envergonham-me, roubam-me o genro e acabam introduzindo-me em casa ainda um parente! (Canta)
 
Meus senhores, neste espelho Podem todos se mirar.
 
Em parentes desta ordem Ninguém deve se fiar. Se algum dia se casarem Vejam lá, tenham cautela! Que há mulheres que, por dote, Trazem esta parentela.

 

 

                                                                  França Júnior

 

 

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