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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MALIGNA / Gregory Maguire
MALIGNA / Gregory Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

A uma milha acima de Oz, a Bruxa se equilibrava à beira do vento, como se fosse uma partícula integrante da Terra, erguida e arremessada a distância pelo ar turbulento. Nuvens de tempestade brancas e roxas se amontoavam a seu redor. Lá embaixo, a Estrada dos Tijolos Amarelos se dobrava e encurvava, como um laço frouxo. Embora as tempestades de inverno e as ferramentas dos agitadores houvessem danificado a estrada, esta ainda conduzia, sem esmorecer, à Cidade Esmeralda. A Bruxa via os companheiros caminhando com dificuldade, contornando as partes tombadas, margeando valas, dando saltos quando o caminho se abria. Pareciam inconscientes de seu destino. Mas não cabia à Bruxa alertá-los.

Ela usou a vassoura como uma espécie de balaústre, descendo do céu feito um de seus macacos voadores. Com isso, acabou caindo no galho mais alto de um salgueiro escuro. Logo abaixo, ocultas pelos ramos, suas presas tinham parado para descansar. A Bruxa enfiou sua vassoura sob o braço. Rastejante e silenciosa, ela desceu ágil e prontamente, até que parou pouco acima deles. O vento agitava as gavinhas oscilantes da árvore. A Bruxa olhou e escutou.

 

 

 

 

As presas eram quatro. Ela viu uma enorme espécie de Gato ― era um Leão, não era? ― e um reluzente lenhador. O Homem de Lata estava tirando piolhos da juba do Leão, e o Leão grunhia e se contorcia com a irritação. Um Espantalho animado se recostava preguiçosamente ao lado, soprando cabecinhas de dentes-de-leão ao vento. Não se via a menina, escondida pelas cortinas ondulantes do salgueiro.

“Na certa, considerando o que dizem, é a irmã sobrevivente que ficou louca”, disse o Leão. “Que Bruxa! Psicologicamente deformada; possuída pelos demônios. Insana. Uma figura nada agradável.”

“Ela foi castrada ao nascer”, respondeu o Homem de Lata calma-mente. “Ela nasceu hermafrodita; ou talvez inteiramente masculina.”

“Ora, você vê castração por toda parte”, disse o Leão.

“Só repito o que o povo diz”, disse o Homem de Lata.

“Todo mundo tem direito a uma opinião”, disse o Leão, excitado. “Ela foi privada do amor da mãe, foi o que eu ouvi dizer. Foi uma criança mal-tratada. Ficou viciada em remédio por causa de sua pele.”

“Ela foi infeliz no amor”, disse o Homem de Lata, “tal como todos nós”. Fez uma pausa e pôs sua mão no meio do peito, como se estivesse aflito.

“Ela é uma mulher que prefere outras mulheres”, disse o Espantalho, sentando-se.

“Ela é a amante rejeitada de um homem casado.”

“Ela é um homem casado.”

A Bruxa ficou tão atordoada que quase soltou a mão que apertava o galho. A última coisa que a preocupava era fuxico. No entanto, ela ficara longe por tanto tempo que se espantou com as enérgicas opiniões daqueles sujeitinhos insignificantes.

“Ela é uma déspota. Uma tirana perigosa”, disse o Leão com convicção.

O Homem de Lata puxou um cacho da juba mais do que era necessário. “Tudo é perigoso para você, seu covarde. Ouvi dizer que ela é uma dona de casa exemplar para os famosos winkies.”

“Quem quer que ela seja, deve estar lamentando a morte de sua irmã”, disse a menina, numa voz sombria, carregada de significado e sincera demais para alguém tão jovem. A pele da Bruxa formigou.

“Não se meta a simpática agora. Eu não consigo.” O Homem de Lata suspirou, um pouco cinicamente.

“Mas, Dorothy está certa”, disse o Espantalho. “Ninguém escapa ao sofrimento.”

A Bruxa estava profundamente aborrecida com essas condescendências que lhe faziam. Ela se movia em torno do tronco da árvore, esticando-se para tentar enxergar a menina. O vento estava aumentando e o Espantalho tremia. Enquanto o Homem de Lata continuava a remexer nos cachos do Leão, ele se encostou no animal, que o abraçou ternamente. “Tempestade no horizonte”, disse o Espantalho.

A milhas de distância, trovões ecoavam. “Tem uma bruxa à vista!” disse o Homem de Lata, fazendo cócegas no Leão. O Leão ficou assustado e rolou sobre o Espantalho, choramingando, e o Homem de Lata desabou em cima dos dois.

“Bons amigos, vamos ter de nos prevenir contra essa tempestade!”, disse a menina.

Os ventos que se levantavam removeram por fim a cortina de folhagem, e a Bruxa pôde enxergar a menina. Ela estava agachada, com seus braços agarrados aos joelhos. Não era uma garota bonitinha, mas uma garota de fazenda de bom tamanho, vestida de xadrez azul e branco e avental. Em seu colo, um cãozinho comum se aninhava e gania.

“A tempestade faz você ficar desconfiada. É natural, depois do que passou”, disse o Homem de Lata. “Relaxe.”

Os dedos da Bruxa se cravaram na casca da árvore. Ela ainda não conseguia ver o rosto da menina, apenas seus fortes antebraços e o topo de sua cabeça, onde o cabelo negro estava arrumado em um rabo-de-cavalo. Ela tinha de levar a impressão a sério, ou era apenas uma semente de den-te-de-leão que fora soprada ao acaso e pega no lado errado do vento? Se pudesse ver o rosto da menina, a Bruxa sentia que saberia a resposta.

Mas, enquanto a Bruxa esticava o pescoço lá do tronco da árvore, a garota virava seu rosto, escapando. “A tempestade está chegando e vem rapidamente.” A apreensão em sua voz aumentava à medida que o vento rugia. Ela tinha uma veemência rouca, como alguém que argumentasse sob a ameaça de lágrimas iminentes. “Conheço tempestades, sei como elas pe-gam a gente!”

“Nós estamos a salvo aqui”, disse o Homem de Lata.

“Claro que não” respondeu a menina, “porque a árvore é o ponto mais elevado do lugar, e se o raio cair, vai cair bem aqui.” Ela agarrou seu cão. “A gente não viu um abrigo lá em cima na estrada? Vem, vem; Espantalho, se um raio cair, você vai queimar mais rápido que todo mundo! Vem!”

Ela já se pusera a correr, meio desajeitada, e seus companheiros a seguiam no pânico crescente. Quando os primeiros pingos firmes de chuva caíram, a Bruxa conseguiu ver não o rosto da menina, mas seus sapatos. Eram os sapatos de sua irmã. Eles reluziam, mesmo na tarde escura. Reluziam como diamantes amarelos, e brasas de sangue, e estrelas pontiagudas.

Se tivesse visto os sapatos primeiro, a Bruxa nunca teria podido ouvir a menina e seus amigos. Mas as pernas da menina tinham ficado enfiadas debaixo de sua blusa. Agora, a Bruxa se lembrava de sua necessidade. Os sapatos deviam pertencer a ela! ― ela não tinha durado o bastante, ela não os tinha ganhado? A Bruxa bem que gostaria de ter caído do céu direto na cabeça da menina, e brigado para tirar aqueles sapatos de seus pés impertinentes, se houvesse sido possível.

Mas a tempestade da qual os companheiros fugiam, cada vez mais depressa e para longe da Estrada dos Tijolos Amarelos, incomodava a Bruxa mais que o fizera com a menina que corria no meio da chuva e o Espanta-lho que poderia se queimar. A Bruxa não podia se aventurar num aguaceiro tão feroz e penetrante. Em vez disso, tinha de se espremer toda entre algumas raízes expostas do salgueiro negro, onde nenhuma água iria colocá-la em risco, e esperar a tempestade passar.

Ela ia renascer. Sempre que fora preciso, ela o conseguira. O punitivo clima político de Oz a tinha vencido, secado e expulsado ― como uma planta ela vagueara, aparentemente desidratada demais para formar raiz. Mas era certo que a maldição estava na Terra de Oz, não nela. Embora Oz lhe tivesse dado uma vida deformada, não a tinha tornado também muito engenhosa?

Não importava que os companheiros tivessem fugido. A Bruxa podia esperar. Eles acabariam se reencontrando.

Deitada numa cama amarrotada, a esposa disse: “Eu acho que hoje é o dia. Olhe só como estou fraca”.

“Hoje? Isso seria bem de acordo com você, perversa e inconveniente”, disse seu marido, caçoando dela, parado na soleira e olhando para longe, para o lago, os campos, os declives da floresta mais além. Ele avistava apenas as chaminés de Margens Agitadas, de onde subia a fumaça dos alimentos que se preparavam para o desjejum. “O pior momento possível para o meu sacerdócio. Naturalmente.”

A esposa bocejou. “Não há muita escolha. É o que eu sei. Seu corpo fica deste tamanho e vai crescendo ― se você não pode acomodar a coisa, querido, então é melhor sair do caminho. Porque ela tem um rumo próprio e nada vai detê-la agora.” Ela se ergueu, tentando ver melhor por cima da proeminência de sua barriga. “Sinto-me uma refém de mim mesma. Ou do bebê.”

“Pratique um pouco de autocontrole.” Ele se aproximou dela e ajudou-a a sentar-se. “Pense nisso como num exercício espiritual. Vigilância dos sentidos. Continência ética e corporal.”

“Autocontrole?” Ela riu, chegando pouco a pouco à beira da cama. “Eu já nem tenho mais auto... Sou apenas uma hospedeira do parasita. Onde está meu auto, afinal? Onde será que eu deixei essa coisa antiga?”

“Pense em mim.” O tom de voz tinha mudado; ele falava sério.

“Frex” ― ela o afrontou ― “quando o vulcão está pronto, não tem pastor neste mundo que possa aquietá-lo.”

“O que meus confrades vão dizer?”

“Eles vão se reunir e dizer: ‘Irmão Frexpar, como foi que você permitiu que sua mulher parisse seu primeiro filho bem quando tinha um problema comunitário para resolver? Mas que falta de consideração de sua parte; demonstra uma falta de autoridade. Está demitido de sua posição’.” Ela zombava dele, já que não havia ninguém que pudesse demiti-lo. O bispo mais próximo estava longe demais para prestar atenção aos problemas particulares de um clérigo unionista residente no interior.

“É uma ocasião tão terrivelmente inoportuna!”

“Penso que você tem metade da culpa por essa ocasião”, ela disse. “Quero dizer, depois de tudo que fez, Frex.”

“É natural pensar assim, mas eu me pergunto...”

“Você se pergunta?” Ela riu, jogando a cabeça bem para trás. A linha que partia de sua orelha para o côncavo abaixo de sua garganta fez Frex compará-la a uma elegante concha de prata. Mesmo no desleixo da manhã, com uma barriga grande como uma chata, ela era majestosa.

Seus cabelos tinham o brilho laqueado de folhas molhadas de carvalho caídas ao sol. Ele a acusava de ter nascido para o privilégio e admirava seus esforços para superá-lo ― e ao mesmo tempo a amava também.

“Você quer dizer que se pergunta se é o pai” ― ela se agarrou no enxergão; Frex apanhou seu outro braço e puxou-a, endireitando-a como pôde; “ou você questiona a paternidade dos homens em geral?” Ela estava em pé, monumental, uma ilha ambulante. Empurrando a porta num passo de lesma, ela se riu dessa idéia. Ele ouviu sua risada lá de fora enquanto foi se vestindo para a batalha diária.

Frex penteou sua barba e azeitou seu couro cabeludo. Prendeu uma fivela de osso e couro cru na nuca, para manter o cabelo longe de seu rosto, porque suas expressões hoje tinham de ser lidas a distância. Não poderia haver vagueza nos significados. Aplicou um pouco de pó de carvão para escurecer suas sobrancelhas, deu uma esfregada de cera vermelha em suas bochechas flácidas. Escureceu seus lábios. Um pastor bonito atraía mais fiéis do que um que fosse sem graça.

Na cozinha Melena flutuava suavemente, não com a habitual gravidade decorrente da gravidez, mas como se estivesse inflada, um enorme balão transportando suas cordas através da sujeira. Ela carregava uma frigideira numa mão e alguns ovos e maços peludos de cebolinhas de outono na outra. Cantava para si mesma, mas só em frases curtas. Frex não devia ouvi-la.

Com sua sóbria toga bem apertada ao colarinho, suas sandálias presas às perneiras, Frex tirou de seu esconderijo ― embaixo de uma cômoda ― o relatório a ele enviado por um pastor confrade morador na aldeia de Três Árvores Mortas. Escondeu as páginas escuras dentro de um bolsinho de seu traje. Vinha mantendo-as escondidas de sua esposa, temendo que ela se interessasse ― fosse para ver a graça, se era divertido, ou para sofrer a co-moção, se fosse aterrador.

Enquanto Frex respirava profundamente, preparando seus pulmões para um dia repleto de oratória, Melena balançava uma colher de madeira na frigideira e remexia os ovos. O tinido dos cincerros soava através do lago.

Ela não o ouvia; ou ouvia outra coisa, uma coisa que só era audível dentro dela. Era um som sem melodia ― como uma música irreal, lembrada por seu efeito, mas não por suas quebras e recorrências harmônicas. Ela imaginava que era o filho lá dentro dela, cantarolando feliz. Ela sabia que ele seria uma criança dada a cantar.

Melena ouvia Frex lá dentro, começando a improvisar, se aquecendo, decorando as frases de efeito de sua argumentação, convencendo-se a si mesmo de sua correção.

Como era mesmo aquele provérbio, o que sua Babá cantava para ela, havia muitos anos, no berço?

 

“Nascido na matina,

desgraça repentina;

Nascido pela tarde,

malvado que até arde;

Nascido na noitinha,

desgosto se avizinha;

Se à noite for nascido,

igual ao amanhecido”

 

Mas ela se lembrava disso como brincadeira, afetuosamente. Desgosto é o final lógico da vida, e, no entanto, continuamos a ter bebês.

Não, disse a Babá, um eco na cabeça de Melena (e categoricamente, como de costume): Não, não, sua garotinha mimada. Nós não continuamos a ter bebês, é bem óbvio. Só temos bebês quando somos jovens o bastante para desconhecer como a vida pode ficar sombria. Depois que percebemos a verdadeira extensão da coisa ― aprendemos lentamente, nós, mulheres ―, secamos de desgosto e interrompemos sensatamente a produção.

Mas os homens não secam, Melena objetou; eles podem ser pais até morrer.

Ah, somos lerdas para aprender, a Babá se opôs. Mas eles não aprendem de jeito nenhum.

“Desjejum”, disse Melena, despejando os ovos num prato de madeira. Seu filho não seria tão burro como a maioria dos homens. Ela o criaria para desafiar a marcha inexorável do desgosto.

“É uma época de crise para a nossa sociedade”, declarava Frex. Para um homem que condenava os prazeres mundanos, ele até que comia com elegância. Ela amava observar o arabesco formado por seus dedos e os dois garfos. Suspeitava que debaixo de seu íntegro ascetismo ele possuísse uma aspiração oculta pelas volúpias da vida.

“Todo dia é dia de grande crise para a nossa sociedade.” Ela zombava dele, respondendo nos termos que os homens costumam usar. Pobre coisa obtusa, ele não ouvia de jeito nenhum a ironia em sua voz.

“Estamos numa encruzilhada. A idolatria cresce. Os valores tradicionais estão em perigo. A verdade está ameaçada e a virtude foi abandonada.”

Ele não estava conversando com ela, mas ensaiando seu discurso contra o próximo espetáculo de violência e magia. Havia em Frex um lado que beirava o desespero; ao contrário da maioria dos homens, ele era hábil para manejá-lo em seu próprio benefício. Com alguma dificuldade, ela conseguiu sentar-se num banco. Corais completos cantavam mudamente dentro de sua cabeça! Será que isso era costumeiro numa mulher que entraria em trabalho de parto? Ela gostaria de perguntar sobre isso às mulheres intrometidas do lugar, que viriam nessa tarde murmurar sobre a sua condição. Mas não ousava. Não podia se livrar de seu belo sotaque, que elas achavam afetado ― mas podia evitar parecer ignorante nesses aspectos tão básicos.

Frex percebeu seu silêncio. “Você não está com raiva por eu ir trabalhar hoje, está?”

“Com raiva?” Ela ergueu suas sobrancelhas, como se nunca tivesse tido uma idéia semelhante.

“A História rasteja atrás dos passos trôpegos das pequenas vidas individuais”, disse Frex, “e ao mesmo tempo as forças eternas convergem. Não se pode atuar nas duas arenas de uma vez só.”

“Nosso filho pode muito bem não ter uma vida pequena.”

“Agora não é hora para discussão. Você pretende me distrair de meu trabalho sagrado de hoje? Estamos diante da presença do mal verdadeiro em Margens Agitadas. Eu não conseguiria mais viver comigo mesmo se ignorasse esse fato.” Ele falava com convicção, e foi devido a essa intensidade que ela se apaixonara por ele; mas, com certeza, era devido a essa mesma intensidade que o odiava também.

“As ameaças são constantes ― voltarão novamente.” Sua última palavra sobre o assunto. “Já seu filho nascerá uma vez só, e se esse dilúvio re-virando dentro de mim é um sinal, eu acho que vai ser hoje.”

“Haverá outros filhos.”

Ela se virou para que ele não visse a raiva em seu rosto.

Mas não pôde sustentar a fúria contra ele. Talvez fosse essa a sua fraqueza moral. (Via de regra, não era muito dada a se preocupar com fraquezas morais; ter como marido um pastor parecia suficiente para suprir o pensamento moral de um casal.) Deslizou melancolicamente para o silêncio. Frex beliscou a comida.

“É o demônio”, disse ele, suspirando. “O demônio está chegando.”

“Não me diga uma coisa dessas no dia em que nosso filho está para nascer!”

“Refiro-me à tentação que está lá em Margens Agitadas! E você sabe o que quero dizer, Melena!”

“Palavras são palavras, e o dito já foi dito”, ela respondeu. “Não exijo toda a sua atenção, Frex, mas eu preciso de um pouquinho dela!” Ela deixou cair a frigideira com ruído no banco que ficava encostado à parede da casa.

“Bem, é assim mesmo”, ele disse. “Contra o que você acha que estou lutando hoje? Como vou convencer meus fiéis a se afastarem do deslumbrante espetáculo da idolatria? Provavelmente, vou voltar hoje à noite vencido por uma atração de impacto maior ainda. Você pode conquistar uma criança hoje. Quanto a mim, posso fracassar.” No entanto, ao dizer isso, ainda parecia orgulhoso; fracassar tendo como causa uma elevada questão moral era satisfatório para ele. Como é que isso poderia ser comparado à carne, ao sangue, à confusão e ao estardalhaço de ter um bebê?

Por fim, ele se levantou para sair. Um vento vinha por cima do lago agora, atingindo as partes mais elevadas das colunas de fumaça da cozinha. Elas pareciam funis de água girando os drenos em estreitas e focalizadas espirais, pensou Melena.

“Fique tranqüila, meu amor”, disse Frex, embora mantivesse sua se-vera expressão pública da cabeça aos pés.

“Sim.” Melena suspirou. A criança deu-lhe um soco lá dentro, no fundo, e ela teve de correr para a casinha de fora outra vez. “Seja um santo, e eu ficarei aqui pensando em você ― minha espinha dorsal, meu escudo. E também tente não ser assassinado.”

“Só se for pela vontade de Deus Inominável”, disse Frex.

“Pela minha também”, disse ela, blasfemando.

“Aplique sua vontade àquilo que é necessário”, ele respondeu. Agora, ele era o pastor e ela a pecadora, uma combinação que ela particularmente não apreciava.

“Adeus”, disse ela, e preferiu o mau cheiro e o alívio da casinha a ficar lhe acenando a distância enquanto ele dava passadas largas em direção à estrada de Margens Agitadas.

 

Frex se preocupava com Melena mais do que ela supunha. Ele parou na primeira cabana de pescador que encontrou e falou com o homem à soleira da porta. Será que uma ou duas mulheres não poderiam passar o dia e, se fosse necessário, a noite, com Melena? Seria uma caridade. Frex se inclinava para pedir o favor com um toque de gratidão na voz, sabendo silenciosamente que Melena não era muito apreciada nesses lugares.

Então, antes de seguir para o extremo de Água Mortiça e em direção a Margens Agitadas, ele parou junto a uma árvore caída e tirou duas cartas de sua bolsinha de pano.

O remetente era um primo distante de Frex, também pastor. Havia algumas semanas, o primo gastara tempo e tinta valiosos na descrição do que vinha sendo chamado de O Relógio do Dragão do Tempo. Frex preparara-se para a sagrada missão do dia relendo sobre o relógio idolatrado.

 

Escrevo com pressa, Irmão Frexpar, para registrar minhas impressões antes que desapareçam.

O Relógio do Dragão do Tempo está montado num vagão e é tão alto como uma girafa. Não é nada além de um teatro improvisado, cambaleante, disposto nos quatro lados com caramanchões e arcos de proscênio. No teto há um dragão com mecanismo de relógio, um artefato de couro pintado de verde, com garras prateadas, olhos de rubi. Sua pele é feita de centenas de discos de cobre, bronze e ferro sobrepostos. Debaixo das flexíveis dobras de suas escamas há uma armadura controlada pelo mecanismo do relógio. O Dragão do Tempo cobre em círculos seu pedestal, dobra suas estreitas asas de couro (fazem um som parecido ao de um fole) e vomita bolas sulfurosas de um alaranjado flamejante e fedorento.

Logo abaixo dele, expostos em dúzias de portas, janelas e pórticos, vê-se bonecos, marionetes, estatuetas. Criaturas de contos folclóricos. Caricaturas de camponeses e figuras da realeza. Animais e fadas e santos ― os santos de nossa união, Irmão Frexpar, roubados debaixo de nossos narizes! Eu fico furioso. As figuras se movem em rodas dentadas. Elas circulam para dentro e para fora. Elas se curvam na cintura, dançam e param e brincam, flertando umas com as outras.

 

Quem teria elaborado esse Dragão do Tempo, esse falso oráculo, esse instrumento de propaganda para o mal que desafiava o poder da união e do Deus Inominável? Os manipuladores do relógio eram um anão e alguns lacaios de cintura fina que pareciam ter capacidade mental apenas para tirar o chapéu. Quem por trás do anão e de seus lacaios decorativos estaria tirando proveito da coisa?

A segunda carta do primo avisava que o relógio estava seguindo rumo a Margens Agitadas. Contava uma história mais específica.

 

O espetáculo começou com um dedilhar de cordas e um chacoalhar de ossos. O público se aproximou, extasiado. Dentro de uma janela iluminada no palco, vimos uma cama de casal, com os bonecos de uma esposa e um marido. O marido estava sonolento e a esposa suspirava. Fazia um movimento com suas mãos entalhadas para sugerir que o marido era decepcionante de tão malservido. A platéia dava risadas estridentes. Aí, a esposa-boneca se recolheu para dormir. Quando ela roncou, o marido-boneco saiu furtivamente da cama.

Nessa altura, lá em cima, o Dragão se moveu na base, e apontou suas garras para a multidão, indicando ― sem sombra de dúvida ― um humilde cavador de poços chamado Grine que havia sido um marido fiel, embora indiferente. Então, o dragão recuou e estendeu dois dedos num gesto de venha-cá, isolando uma viúva chamada Letta e sua filha, moça de dentes pontiagudos. A multidão murmurou e se afastou de Grine, Letta e da moça ruborizada, como se houvesse sido subitamente contagiada por feridas purulentas.

O Dragão parou de novo, mas descortinou uma asa sobre outra arcada, que se iluminou para revelar o marido-boneco, que vagava pela noite. Junto a ele vinha uma viúva-boneca, com cabelo enfeitado e roupa de cores berrantes, arrastando atrás de si uma filha com maus dentes que protestava. A viúva beijou o marido-boneco e baixou suas calças de couro. Ele estava equipado com dois apetrechos de atributos masculinos, um pela frente e outro pendurado na base de sua espinha. A viúva colocou a sua filha na miniatura bélica da frente, e procurou tirar vantagem para si do dispositivo menos ameaçador que estava atrás. Os três bonecos pulavam e balançavam, emitindo guinchos de alegria. Quando a viúva-boneca e sua filha terminaram, desmontaram e beijaram o marido-boneco.

E aí deram joelhadas nele, ao mesmo tempo, para a frente e para trás. Afetado em suas molas e dobradiças, ele tentava recuperar todas as partes danificadas.

A platéia rugia. Grine, o verdadeiro cavador de poços, suava em bicas grandes como uvas. Letta fingia dar gargalhadas, mas sua filha já havia desaparecido, de tão envergonhada. Antes que a noite findasse, Grine foi procurado por seus vizinhos agitados e investigado por sua grotesca anomalia. Letta foi evitada. Sua filha parece ter desaparecido por completo. Suspeita-se o pior.

Felizmente, Grine não foi assassinado. No entanto, quem pode dizer como nossas almas foram afetadas por terem testemunhado um drama tão cruel? Todas as almas são reféns de seus invólucros humanos, mas as almas devem se aviltar e padecer com tamanha indignidade, não concorda?

 

Às vezes, parecia a Frex que qualquer bruxa itinerante e qualquer profeta tagarela e desdentado de Oz que pudesse lançar o mais transparente dos feitiços tinha se aproveitado dos cafundós de Pedras do Caminho para abrir um negócio. Ele sabia que os moradores de Margens Agitadas eram ignorantes. Suas vidas eram duras e suas esperanças escassas. Enquanto a seca se arrastava, a fé tradicional da união sofria erosão. Frex estava ciente de que o Relógio do Dragão do Tempo combinava os atrativos da ingenuidade e da magia ― e teria de se valer das mais profundas reservas de sua convicção religiosa para combatê-lo. Se sua congregação se provasse vulnerável à assim chamada fé no prazer, sucumbindo ao espetáculo e à violência ― bem, que é que se poderia esperar?

Ele tinha de vencer. Ele era o pastor daqueles fiéis. Ele tinha extraído seus dentes e enterrado seus bebês e benzido seus trens de cozinha por muito tempo. Ele tinha se humilhado por eles. Ele tinha vagado com uma barba em desalinho e uma cuia de mendigo de povoado a povoado, deixando a pobre Melena sozinha a cuidar de seu posto por várias semanas, certa vez. Sacrificara-se por eles. Eles não podiam ser influenciados por essa criatura do Dragão do Tempo. Eles lhe deviam isso.

Ele seguiu caminhando, ombros ajustados, queixo erguido, o estômago num revolto azedo. O céu estava escurecido pela areia e sujeira que ondulavam no ar. O vento soprava no alto das colinas com um trêmulo gemido, como se tentasse transpor uma fissura de rocha, em algum espinhaço que ficava além de qualquer coisa que Frex pudesse enxergar.

 

Era já quase noite quando Frex sentiu-se com coragem o bastante para entrar no povoado em ruínas de Margens Agitadas. Ele suava profusa-mente. Firmava seus calcanhares e bombeava seus punhos apertados, e clamava num tom rouco, carregado. “Escutai, vós de pouca fé! Uni-vos enquanto é tempo, pois a tentação se anuncia para testar-vos dolorosa-mente!” As palavras eram arcaicas, até ridículas, mas funcionavam, pois já se aproximavam dele os pescadores taciturnos, retirando suas redes vazias da doca. Já se chegavam os fazendeiros de subsistência, cujas pobres terras mal tinham se formado ao longo desse ano seco. Antes mesmo que ele tivesse começado o discurso, já olhavam para ele com caras de tão culpados quanto a própria culpa.

Eles seguiram-no até os raquíticos degraus da casa de conserto das canoas. Frex sabia que todos esperavam que o maligno relógio chegasse a qualquer momento; o mexerico era tão contagioso quanto a peste. Ele vociferava sobre a multidão para aumentar a expectativa sedenta. “Sois tolos como recém-nascidos que engatinham, estendendo as mãos para tocar em belas brasas! Sois como ovas do útero do dragão, prontas para sugar tetas de fogo!” Essas eram imprecações clássicas já desgastadas e soaram frouxas nessa noite; ele estava cansado e não em sua melhor forma.

“Irmão Frexpar”, disse Bfee, o prefeito de Margens Agitadas, “poderia por favor reduzir um pouco a sua lenga-lenga até que possamos ver que nova forma a tentação poderá assumir?”

“Vocês não têm fibra para resistir a novas formas”, disse Frex, cuspindo.

“Mas não foi você nosso mestre competente todos esses anos?” disse Bfee. “Nós nunca tivemos uma oportunidade tão boa como essa de provar-nos contra o pecado! Esperamos ansiosamente pela... pela prova espiritual que isso significará.”

Os pescadores riam e zombavam, e Frex intensificava sua carranca, mas ao ouvir o som de rodas inabituais nos sulcos pedregosos da estrada, todos viraram suas cabeças e caíram em silêncio. Ele perdera a atenção do público mesmo antes de começar.

O relógio vinha puxado por quatro cavalos e escoltado pelo anão e sua corte de jovens sicários. Seu amplo teto era coroado pelo dragão. Mas que monstro! Parecia aprumado como se estivesse pronto para saltar, como se realmente possuísse vida. O revestimento do palanquim era decorado com cores carnavalescas, folheadas a ouro. Os pescadores iam ficando boquiabertos à medida que ele se aproximava.

Antes que o anão pudesse anunciar quando a apresentação se daria, antes que o grupo de jovens pudesse dar as suas cartas, Frex encostou-se no degrau mais baixo da coisa ― um palco dobrável. Por que isso é chamado de relógio? A única aparência de relógio que tem é rasa, estúpida e perdida em todos esses detalhes tapeadores. Ademais, os ponteiros não se movem; olhem, vejam por vocês mesmos! Estão pintados para permanecer em um minuto antes da meia-noite! Tudo que vocês vêem aqui é pura mecânica, meus amigos: sei disso como fato consumado. Vocês vêem o crescimento de campos de trigo mecânicos, luas minguantes de cera, um vulcão a expelir um pano vermelho revestido de lantejoulas pretas e vermelhas. Com todo esse aparato falso, por que não colocar um par de braços giratórios na frente do relógio? Por que não? Eu pergunto a você, sim, você, Gawnette, e você, Stoy, e você, Perippa. Por que não há um relógio verdadeiro aqui?”

Eles não escutavam, nem Gawnette nem Stoy nem Perippa, nem os outros. Estavam ocupados demais em arregalar os olhos de expectativa.

“A resposta, com certeza, é que o relógio não foi feito para medir o tempo terreno, mas o tempo da alma. O tempo da redenção e da condenação. Para a alma, cada instante é um minuto a menos de julgamento.”

“Um minuto a menos de julgamento, meus amigos! Se vocês morressem nos próximos sessenta segundos, gostariam de passar a eternidade nas sufocantes profundezas reservadas aos idolatras?”

“Barulhão medonho vai rolar por aqui esta noite”, disse alguém nas sombras ― e os espectadores riram. Acima de Frex ― ele girou para ver ― de uma pequena porta, emergiu latindo um cachorro-boneco, com o cabelo tão escuro e crespo quanto o de Frex. O cachorro saltava de uma mola, e o volume de seu latido era irritantemente alto. As risadas aumentaram. A noite ficara mais escura, e ficava menos fácil para Frex distinguir quem estava rindo, quem agora gritava para que ele se afastasse a fim de que o público pudesse ver.

Ele não se movia, portanto, foi mandado embora de seu posto sem maior cerimônia. O anão fez uma saudação poética ao público. “Todas as nossas vidas são atividades sem sentido; nós nos entocamos como ratos e nos contorcemos como ratos vida afora e como ratos somos lançados em nossos túmulos, no final. De vez em quando, por que não ouvirmos a voz de uma profecia, ou vermos a execução de um milagre? Por sob a aparente falsidade e indignidade de nossas vidas de ratos, um padrão e um significado humildes ainda podem ser percebidos! Aproxime-se, minha gente querida, e observe o que um pouquinho de conhecimento extra augura para nossas vidas! O Dragão do Tempo vê o antes e o além e o oculto de seu quinhão de anos neste mundo! Olhe o que ele tem a lhes mostrar!”

A multidão se aproximava. A lua se erguera, sua luz semelhante ao olho de um deus raivoso e vingativo. “Parem, deixem-me passar”, Frex clamava; era pior do que ele tinha imaginado. Ele nunca tinha sido maltratado pela sua própria congregação.

O relógio revelou a história de um homem publicamente virtuoso, com barba como lã de cordeiro e cachos de cabelos pretos, que pregava a simplicidade, a pobreza e a generosidade enquanto ocultava um cofre de ouro e esmeraldas ― nas dobras do peito de uma delicada filha de gente de sangue azul. O crápula foi sendo varrido com uma longa estaca de ferro do jeito mais brutal e entregado a seu faminto rebanho como um Pedaço de Pastor Assado.

“Isso é uma apelação aos seus piores instintos!” Frex vociferou, seus braços dobrados e seu rosto roxo de fúria.

Mas agora que a escuridão era quase total, alguém veio por trás dele para calá-lo. Um braço cercou seu pescoço. Ele se virou para ver qual paroquiano danado tomara tais liberdades, mas todos os rostos estavam cobertos por capuzes. Levou uma joelhada na virilha e dobrou-se, seu rosto caindo no pó. Um pé chutou-o direto entre as nádegas e as vísceras. O resto da multidão, contudo, não estava notando. Os espectadores uivavam de alegria com algum outro entretenimento posto em ação pelo Dragão do Relógio. Uma mulher simpática, envolta num xale de viúva, agarrou seu braço e tirou-o dali ― ele estava muito abobalhado, dolorido demais para se firmar e entender quem era. “Vou lhe colocar no fundo de um porão, debaixo de um saco de aniagem, juro que vou”, murmurou a boa senhora,porque logo eles vão perseguir você com forcados, pelo jeito que a coisa está ficando! Vão procurar você na casinha de pastor, mas não vão procurar no meu quarto de dormir.”

“Melena”, ele agourou, “eles a pegarão!”

“Ela será ajudada também”, disse sua vizinha.

“Nós, mulheres, podemos cuidar disso, eu acho!”

 

Na casinha de pastor, Melena lutava para ficar consciente enquanto duas parteiras entravam e saíam de foco diante dela. Uma era a esposa de um pescador, a outra uma velha encarquilhada; faziam turnos pondo as mãos em sua testa, examinando o meio de suas pernas, e lançando olhares furtivos sobre as pequenas jóias e tesouros que Melena tinha lutado por trazer para casa ao vir dos Solos de Colwen. “Masca esta pasta de folhas de alfineteiro, patinha, faz isso, tá? Você ficará inconsciente rapidinho”, disse a esposa do pescador. “Você vai relaxar, o preciosinho vai nascer, e tudo estará bem de manhã. Pensei que você cheirava a água de rosas e orvalho de fada, mas você fede como todos nós. Masca, minha querida, masca.”

Ao som de uma batida na porta, a velha ergueu culposamente seus olhos, afastando-os da arca diante da qual se ajoelhara e que esquadrinhara implacavelmente. Deixou a tampa se fechar com um estrépito e adotou uma posição fingida de quem estivesse rezando, com os olhos fechados. “Entre”, ela convidou.

Uma moça de pele macia e corada entrou. “Oh, eu esperava encontrar alguém aqui”, ela disse. “Como ela está?”

“Quase pronta, e o bebê também”, respondeu a esposa do pescador. “Só mais uma hora, eu calculo.”

“Bem, me disseram para avisá-las. Os homens estão bêbados e caçando por aí. Foram incitados por aquele Dragão do Relógio Mágico, como vocês sabem, e procuram Frex para matá-lo. Foi o relógio que mandou. Eles estão zanzando aqui por perto. Seria melhor a gente esconder a mulher ― ela pode ser transportada?”

Não, não posso ser transportada, pensou Melena, e se os camponeses acharem Frex para matá-lo, será bom e ruim para mim, porque nunca senti uma dor tão fora do comum, que me fizesse ver sangue diante de meus olhos, como esta que sinto agora. Matem o meu marido por ter me aprontado esta. A esse pensamento, ela sorriu num lampejo de alívio e desmaiou.

“Vamos deixá-la aqui e fugir!” disse a moça. “O relógio disse que era para matá-la também, e matar o pequeno dragão que ela vai parir. Eu não quero ser pega.”

“Temos nossas reputações a manter”, disse a esposa do pesca-dor. “Não podemos abandonar essa coisa metida a dama no meio do parto. Eu não me importo com o que qualquer relógio diz.”

A velha, com sua cabeça de novo enfiada na arca, disse: “Alguém aí quer uma verdadeira renda de Gillikin?”

“Há um carrinho de carregar feno no campo lá embaixo, mas vamos fazer isso agora”, disse a esposa do pescador. “Venham, me ajudem a ir buscá-lo. Você, sua velha mãe bruxa, tira a cara daí dos panos de linho, e venha umedecer este belo rostinho rosa. Certo, vamos lá.”

Poucos minutos depois, a velha encarquilhada, a esposa e a moça estavam empurrando ruidosamente um carrinho de feno por um caminho raramente usado que passava pelas hastes e folhas castanhas das florestas outonais. O vento tinha aumentado. Assobiava sobre os morros desprovidos de árvores de Colinas de Pano. Melena, escarrapachada entre cobertores, arquejava e gemia em dor inconsciente.

Ouviram uma turba bêbada passar, com forcados e archotes, e as mulheres ficaram mudas e aterrorizadas, ouvindo as maldições engroladas. Então, puseram-se a caminho com uma urgência ainda maior e chegaram a um bosque nevoento ― bem à beira de um cemitério para cadáveres não-consagrados. Dentro dele viram os contornos diluídos do relógio. Fora deixado lá pelo anão por uma questão de segurança ― nada bobo, ele; podia adivinhar que esse canto particular do mundo era o último lugar que os aldeões agitados procurariam nessa noite. “O anão e seus lacaios estavam bebendo na taberna também”, disse a moça, sem fôlego. “Não há ninguém aqui que possa deter-nos!”

A velha disse: “Então, você anda espiando os homens pelas janelas da taberna, sua piranha?” Ela empurrou e abriu a porta na retaguarda do relógio.

Achou um espaço ocupado. Pêndulos se dependuravam na penumbra de forma ameaçadora. Enormes rodas dentadas pareciam preparadas para fatiar qualquer invasor em rodelas de salsicha. “Venham, ponham-na aqui dentro”, disse a velha.

A noite de tochas e nevoeiro deu lugar, no amanhecer, a amplas e escarpadas nuvens de tempestade, dançantes esqueletos de relâmpagos. Lampejos de céu azul apareciam fugazmente, embora de vez em quando chovesse tão forte que o que parecia cair não era água, mas pingos de lama. As parteiras, rastejando com mãos e joelhos lá atrás do vagão do relógio, conseguiram enfim liberar o fardo. Protegeram a criança do gotejamento de calha. “Vejam, um arco-íris”, disse a mais velha, meneando a cabeça. Um lenço enfermiço de luz colorida pendia do céu.

O que elas viram, esfregando os resquícios do saco amniótico e o sangue da pele ― seria apenas um engano causado pela luz? Afinal, passada a tempestade, a grama parecia palpitar com sua própria cor, as rosas zumbiam e pairavam com louca glória em seus caules. Mas mesmo com esses efeitos de luz e atmosfera, as parteiras não podiam negar o que viam. Por baixo da excreção dos fluidos da mãe, a criança cintilava com um escandaloso tom esmeralda-pálido.

Não houve nenhum gemido, nenhum latido de fúria de recém-nas-cido. A criança abriu sua boca, respirou, e se manteve imperturbável. “Geme, seu demônio”, disse a velha, “é seu primeiro trabalho.” O bebê ignorava suas obrigações.

“Outro menino voluntarioso”, disse a esposa do pescador, suspirando. “Devemos matá-lo?”

“Não seja tão ruim com ele”, disse a velha, “é uma menina.”

“Hah”, disse a moça de vista turva, “olhem de novo, aí está o cata-vento.”

Por um momento elas entraram em discórdia, mesmo com a criança nua diante delas. Só depois de uma segunda e terceira esfregada ficou claro que a criança era de fato feminina. Talvez durante o parto um pouco de eflúvio orgânico houvesse sido captado e rapidamente secado no lugar da fenda. Assim que foi enrolada numa toalha, notou-se que ela era belamente formada, com uma longa cabeça elegante, antebraços lindamente torneados, pequenas nádegas boas de beliscar, dedos espertos com pequenas unhas que arranhavam.

E um inegável toque de verde na pele. Havia um rubor salmão nas bochechas e na barriga, um efeito de bege em torno das pálpebras apertadas, uma listra amarelo-castanho no couro cabeludo revelando o padrão de cabelo escasso. Mas o efeito principal era o de se estar diante de um vegetal.

“Olha aí o que a gente arrumou para ter problemas”, disse a moça. “Uma pequena porção verde de manteiga. Por que não a matamos? Vocês sabem o que as pessoas vão dizer.”

“Acho que ela é podre”, disse a esposa do pescador, e examinou para ver se encontrava a raiz de uma cauda, contando os dedos das mãos e dos pés. “Fede como esterco.”

“É esterco mesmo que você está cheirando, sua idiota. Você está se agachando numa bosta de vaca.”

“É doente, é frágil, deve ser essa a razão da cor. Vamos jogá-la no charco, vamos afogar a coisa. A mãe nunca saberá. Está desacordada há horas em seus desmaios de grande dama.”

Deram risadinhas. Embalaram a criança na curva de seus braços, passando-a de uma para outra no teste de peso e equilíbrio. Matá-la seria o mais bondoso plano de ação. A questão era como.

Então a criança abriu a boca, e a esposa do pescador distraidamente deu-lhe um dedo para fazer agrado, e ela mordeu o dedo para arrancá-lo, aproveitando a fraqueza momentânea. Ela quase engasgou na golfada de sangue. O dígito caiu de sua boca sobre a lama como um carretel. As mulheres se puseram imediatamente em ação. A esposa do pescador investiu sobre a menina para estrangulá-la, e a velha e a moça se arrojaram na defesa. O dedo foi retirado da lama com uma escavação e empurrado para dentro de um bolso de avental, talvez para ser recolocado na mão que o per”era. "É um pinto, ela acabou de notar que não tinha um”, gritou a moça, e caiu no chão de tanto rir. “Oh, que se cuide o primeiro menino estúpido que tentar se satisfazer com ela! Ela vai cortar seu tenro broto com uma tesoura para guardar de recordação!”

As parteiras se arrastaram de volta para o relógio e deixaram a coisa no colo da mãe, medrosas de cogitar de um crime de misericórdia devido ao pavor do que o bebê ainda poderia morder. “Talvez ela retalhe uma teta dessa vez, isso vai trazer a Dona Sonolenta Delicadeza de volta à realidade bem depressa”, a velha cacarejou. “Que criança, chupa sangue antes mesmo da primeira mamada no leite da mãe!” Deixaram uma panelinha de barro com água por perto e, protegidas pela rajada da tempestade seguinte, foram embora de vez para procurar seus filhos e maridos e irmãos, e repreendê-los e surrá-los se estivessem à mão, ou enterrá-los se não os encontrassem.

Nas sombras, a criança, de olhos arregalados, erguia a cabeça para olhar para os dentes lubrificados e regulares do relógio do tempo.

 

Melena passou dias sem conseguir olhar para a coisa. Ela a segurava por dever de mãe. Esperava que o manancial de afeição maternal brotasse e a dominasse. Não chorava. Mascava folhas de alfineteiro, para flutuar muito longe do desastre.

Era uma ela. Era uma mulher. Melena praticava mutações em seu pensamento quando estava sozinha. O fardo contraído e infeliz não era masculino; não era neutro; era uma mulher. A coisa dormia, parecendo uma pilha de folhas de repolho lavadas e deixadas para enxugar sobre a mesa.

Em pânico, Melena escreveu para Solos de Colwen para tirar a Babá de sua aposentadoria. Frex se adiantou, indo de carroça apanhar a Babá na estação do caminho de Ponta de Espato. Na viagem de volta, ela perguntou a Frex o que andava errado.

“O que há de errado.” Ele suspirou e ficou perdido em pensamentos. A Babá percebeu que tinha escolhido mal as palavras; agora Frex estava desatento. Ele começou a resmungar de modo genérico sobre a natureza do mal. Um vácuo provocado pela inexplicável ausência do Deus Inominável e dentro do qual o veneno espiritual deve se alojar. Um vórtice.

“Estou perguntando qual é o estado da criança!”, retorquiu a Babá, explosivamente. “Não é sobre o universo, mas sobre uma simples criança que eu quero saber alguma coisa, se é que vou ser de alguma ajuda! Por que Melena chama a mim e não à mãe dela? Por que não há uma carta para seu avô? Ele é o Eminente Thropp, pelo amor de Deus! Melena não deve ter esquecido seus deveres tão completamente, ou a vida no campo é pior do que pensávamos?”

“É pior do que nós pensávamos”, disse Frex, sombrio. “O bebê ― é melhor se preparar, Bá, para não dar um grito —, o bebê é desgraçado.”

“Desgraçado?” A mão da Babá ficou mais apertada em sua valise e ela olhou para as árvores de folhas avermelhadas de fruta-pérola que ladeavam a estrada. “Frex, pode me contar tudo.”

“É uma menina”, disse Frex.

“Desgraça de fato”, disse a Babá, brincando, mas Frex, como sempre, não via graça. “Bem, pelo menos o legado da família fica preservado para outra geração. Ela tem todos os membros?”

“Sim.”

“Alguma coisa além do necessário?”

“Não.”

“Está mamando?”

“Nós não deixamos. Tem dentes fora do comum, Bá. Tem dentes de tubarão, ou algo parecido.”

“Bem, ela não será a primeira criança a ser criada com uma garrafa ou um trapo em vez de um peito, não se preocupe com isso.”

“A cor é que está errada”, disse Frex.

“Qual cor é a cor errada?”

Por uns momentos, Frex conseguia apenas balançar a cabeça. A Babá não gostou e na verdade não gostava dele, mas procurou atenuar. “Frex, não pode ser tão ruim assim. Sempre há uma solução. Diga para mim.”

“É verde”, ele disse, finalmente. “Bá, a coisa é verde como musgo.”

“Ela é verde, você quer dizer. É uma ela, pelos céus.”

“Não é pelos céus.” Frex começou a chorar. “O céu não vai melhorar por esse fato, Bá; o céu não aprova. O que nós vamos fazer?”

“Cale-se.” A Babá detestava ver homem chorando. “Não pode ser tão horrível assim. Não tem uma pitada de sangue ruim nas veias de Melena. Qualquer praga que a criança tenha, o tratamento da Babá aqui dará um jeito. Confie em mim.”

“Confiei no Deus Inominável”, soluçou Frex,

‘Nós não trabalhamos sempre com propósitos iguais, Deus e eu”, disse a Babá. Sabia que era blasfemo, mas não conseguia resistir a fazer uma pilhéria ao perceber que a guarda de Frex estava baixa. “Mas não se preocupe, eu não vou soprar uma palavra que seja à família de Melena. Vamos resolver a coisa num relâmpago, e ninguém precisará ficar sabendo. O bebê tem um nome?”

“Elphaba”, ele disse.

“Por Santa Elphaba da Cachoeira?”

“Sim.”

“Um belo nome antigo. Vocês usarão o apelido comum Fabala, suponho.”

“Quem pode saber se ela vai chegar a viver o bastante para ter um apelido.” Soava como se Frex tivesse a esperança de que isso acontecesse.

“Paisagem interessante, estamos ainda em Pedras do Caminho?”, a Babá perguntou, para mudar de assunto. Mas Frex se fechara por dentro, mal se importando em guiar os cavalos pelo caminho certo. O campo estava sujo, esburacado, pisoteado pelos roceiros; a Babá começou a desejar não ter-se vestido com sua melhor roupa de viagem. Os ladrões de estrada podiam achar que encontrariam ouro numa mulher mais velha de aparência tão refinada, e teriam razão em suas suposições, pois a Babá portava uma liga dourada surrupiada havia anos do toucador de grande dama. Que humilhação, se a liga fosse levada anos depois da coxa bem torneada, embora envelhecida, que ela tinha! Mas os medos da Babá eram infundados, pois a carroça chegou, sem incidentes, ao quintal da casinha do pastor.

“Deixe-me ver o bebê primeiro”, a Babá disse. “Será mais fácil e mais justo com Melena se eu souber com que estamos lidando.” E isso não foi difícil de arranjar, pois Melena estava alheia ao problema graças às folhas de alfineteiro, enquanto o bebê numa cesta sobre a mesa gemia suavemente.

A Babá pegou uma cadeira para que não se machucasse ao desmaiar e cair de costas. “Frex, ponha a cesta no chão onde eu possa olhar para dentro.” Frex fez a obrigação, e então saiu para devolver a carroça e os cavalos a Bfee, que raramente precisava deles para suas obrigações de prefeito, mas os emprestava para ganhar alguns dividendos eleitorais.

A criança estava envolta em panos de linho, ela viu, e a boca e os ouvidos estavam amarrados com uma tipóia. O nariz parecia uma saliência de cogumelo venenoso, pressionada para o alto por necessidade de ar, e os olhos estavam abertos.

A Babá se aproximou mais. A criança não poderia ter, o quê, três semanas de vida? No entanto, enquanto ela se movia de lá para cá, olhando para o seu perfil de um ângulo ou de outro, como se quisesse avaliar o formato do cérebro, os olhos da menina seguiam cada movimento seu. Eram castanhos e profundos, de uma cor de terra carregada, salpicada de mica. Havia um entrecruzamento de frágeis linhas vermelhas a cada ângulo suave onde as pálpebras se encontravam, como se a menina estivesse rompendo as linhas de sangue com o exercício de observar e entender.

E a pele, ah, sim, a pele era verde como o pecado. Não era uma cor feia, a Babá pensou. Só que não era uma cor humana.

Ela estendeu as mãos e passou o dedo pelo rosto do bebê. A criança recuou, e sua espinha arqueou, e o pano que a envolvia com segurança do pescoço ao dedão do pé partiu-se e abriu como palha de milho. A Babá rangia os dentes e estava decidida a não ser intimidada. O bebê tinha-se exposto, do esterno à virilha, e a pele de seu peito era da mesma cor in-confundível. “Vocês ao menos tocaram nessa criança?” murmurou a Babá. Ela pôs a palma da mão sobre o peito arfante do bebê, os dedos cobrindo os quase invisíveis bicos dos seios, e aí deslizou sua mão a fim de examinar o aparato logo abaixo. A criança estava molhada e manchada, mas podia-se sentir que era feita de acordo com o padrão tradicional. A pele era o mesmo milagre de maleável suavidade da pele que Melena tivera quando menina.

“Venha com a Babá, sua coisinha horrível.” A Babá se abaixou para pegar o bebê, com tralha e tudo.

O bebê se virou para evitar o toque. A sua cabeça bateu no fundo empalhado do cesto.

“Você dançou lá dentro do útero, eu bem que noto”, disse a Babá, “com que música terá sido? Músculos tão bem desenvolvidos! Não, você não vai fugir de mim. Venha cá, pequeno demônio. A Babá não dá bola. A Babá gosta de você.” Ela mentia feio, mas ao contrário de Frex, ela acreditava que algumas mentiras eram sancionadas pelo céu.

E ela manteve as mãos sobre Elphaba, e ainda colocou-a em seu colo. E ali a Babá esperou, cantarolou e de vez em quando olhava para longe, para além da janela, para se recuperar e se impedir de vomitar. Ela esfregava a barriga do bebê para acalmá-lo, mas não havia jeito de acalmá-lo, ao menos não por enquanto.

Pela tarde, Melena se apoiou em seus cotovelos quando a Babá trouxe uma bandeja com chá e pão. “Já me acomodei na casa”, disse a Babá, “e já fiz amizade com sua queridinha. Agora, volte a si, doçura, e deixe-me dar-lhe um beijo.”

“Oh, Bá!”, Melena se permitiu ser mimada. “Obrigada por vir. A senhora viu o monstrinho?”

“Ela é adorável”, disse a Babá.

“Não minta e não disfarce”, disse Melena. “Se quiser ajudar, terá de ser honesta.”

“Se eu vou ajudar, você é que terá de ser honesta”, disse a Babá. “Não precisamos entrar no assunto agora, mas eu terei de saber tudo, meu doce. Assim, decidiremos o que tiver de ser feito.” Bebericaram seu chá, e porque Elphaba havia adormecido, pareceu por uns momentos que voltavam aos velhos dias de Solos de Colwen, quando Melena voltava para casa de seus passeios vespertinos com graciosos jovens bem-nascidos com os quais flertava e se gabava da beleza masculina deles a uma Babá que fingia não tê-la notado.

Na realidade, com o passar das semanas, a Babá notou algumas coisas bem perturbadoras no bebê.

Para começar, ela tentou tirar as bandagens, mas Elphaba parecia determinada a morder e arrancar as suas mãos, e os dentes dentro daquela bela boca de lábios finos eram realmente monstruosos. Ela abriria um buraco ali na cesta se fosse deixada sem vigilância. Ela se virava contra o próprio ombro e o retalhava em carne viva. Ela parecia um ser que estivesse se estrangulando. “Não se pode arranjar um barbeiro para vir extrair os dentes?”, a Babá perguntava. “Ao menos até que o bebê aprenda a ter auto-controle?”

“A senhora está maluca”, Melena disse. “Vai correr pelo vale todo que ela é verde como abobrinha. Vamos manter o queixo amarrado para cima até resolvermos o problema da pele.”

“Como diabos foi que a pele dela saiu verde?”, a Babá se perguntava, estupidamente, porque Melena ficava branca e Frex avermelhava, e o bebê prendia a respiração como se tentasse ficar azul para satisfazer a todos.

A Babá decidiu ter uma conversa com Frex mais além, no quintal. Depois do duplo choque do nascimento e de seu malogro público, ele ainda não estava pronto para engajamentos profissionais e lá ficava, esculpindo rosários com cascas de carvalho, entalhando e inscrevendo emblemas da Inominabilidade de Deus pelos troncos afora. A Babá escondera Elphaba bem dentro da casa ― ela tinha um medo irracional de ser ouvida oniscientemente e, pior ainda, compreendida, pela menina ― e saíra fuçando no quintal à procura de uma abóbora para a ceia.

“Frex, eu não suponho que exista verde nos antepassados de sua família”, ela começou, sabendo muito bem que o avô poderoso de Melena teria confirmado uma tal predisposição antes de concordar em deixar sua neta casar-se com um pastor unionista ― entre todas as escolhas que ela tinha!

“Nossa família nada tem a ver com o dinheiro e com os poderes terrenos”, disse Frex, não se ofendendo dessa vez. “Mas eu descendo em linha direta de seis pastores antes de mim, de pai a filho. Somos tão bem considerados em nossos círculos espirituais quanto a família de Melena nos salões finos e na corte de Ozma. E não, não há verde em nenhuma parte. Nunca ouvi falar disso em minha família.”

A Babá concordou e disse: “Bem, tudo bem, eu estava só perguntando. Eu sei que você é mais santo que os mártires gnomos”.

“Mas”, disse Frex humildemente, “Bá, eu acho que fui o causador desse problema. Minha língua escorregou no dia do nascimento da menina ― anunciei que o demônio estava chegando. Eu queria dizer o Relógio do Dragão do Tempo. Mas vamos supor que essas palavras abriram a porta para o demônio...”

“A criança não é um demônio!”, respondeu a Babá, asperamente. Não é anjo tampouco, ela pensou, mas guardou o pensamento só para si.

“Por outro lado”, Frex continuou, soando mais seguro, “ela pode ter sido amaldiçoada acidentalmente por Melena, que interpretou mal minha observação e chorou por isso. Talvez Melena tenha aberto dentro de si uma janela pela qual um duende desgarrado entrou e coloriu a criança.”

“Bem no dia em que ela estava para nascer?” disse a Babá. “Um duende muito capacitado. Será que sua bondade é tão exaltada que atrai sempre os mais poderosos entre os Espíritos da Aberração?”

Frex deu de ombros. Há algumas semanas teria concordado, mas sua confiança agora estava arruinada pelo fracasso abjeto que sofrerá em Margens Agitadas. Ele não se atrevia a sugerir o que temia: que a anomalia da criança era um castigo por seu fracasso em proteger seus fiéis da fé no prazer.

“Bem...”, a Babá perguntou a bem dizer, “se com tal maldição o bem foi arruinado, através do que o mal poderá ser remediado?”

“Um exorcismo”, disse Frex.

“Você está autorizado para isso?”

“Se eu for bem-sucedido em modificar a criança, saberemos que estou autorizado”, disse Frex. Mas agora que tinha um objetivo, seu ânimo se iluminava. Ele passaria alguns dias jejuando, pesquisando orações e recolhendo subsídios para o ritual arcano.

Quando ele saiu para as florestas e Elphaba cochilava, a Babá se empoleirou ao lado do duro colchão de casamento de Melena.

“Frex está pensando se a profecia dele de que o demônio estava chegando não teria feito uma janela se abrir em você, deixando passar uma coisa maligna para estragar o bebê”, disse a Babá. Ela estava fazendo uma ponta de renda de crochê, desajeitada; nunca tivera muito jeito para trabalhinhos, mas gostava de lidar com a agulha de marfim polido do crochê. “Eu cá me pergunto se você não teria aberto outra janela?”

Melena, grogue com as folhas de alfineteiro como de hábito, ergueu uma sobrancelha, confusa.

“Você dormiu com algum sujeito que não fosse o Frex?” a Babá perguntou.

“Não seja louca!”, disse Melena.

“Eu a conheço, benzinho”, disse a Babá. “Não estou dizendo que você não seja uma boa esposa. Mas nos tempos em que os rapazes ficavam zumbindo feito zangões no pomar da casa dos seus pais, você trocava suas perfumadas roupas de baixo mais de uma vez por dia. Não a estou rebaixando. Mas não finja para mim que seus apetites não eram bem sadios.”

Melena afundou o rosto no travesseiro. “Oh, naqueles tempos!”, ela gemeu. “Não é que eu não ame o Frex! Mas eu odeio ser superior a esses idiotas roceiros daqui!”

“Bem, agora que essa filha verde traz você ao nível deles, você deveria ficar satisfeita”, disse a Babá, insinuante.

“Bá, eu amo o Frex. Mas ele me deixa sozinha com tanta freqüência! Eu ficaria muito feliz se algum vendedor ambulante passasse e me vendes-se mais que uma cafeteira de lata! Eu pagaria bem por alguém que fosse menos santo e tivesse mais imaginação!”

“É uma questão para o futuro”, disse a Babá, sensatamente. “Estou lhe perguntando é do passado. O passado recente. A partir do seu casa-mento.”

Mas o rosto de Melena ficara vago e apagado. Ela concordava, ela dava de ombros, ela balançava a cabeça.

“A teoria óbvia envolve um elfo”, disse a Babá.

“Eu não iria transar com um elfo!”, Melena berrou.

“Nem eu”, disse a Babá, “mas o verde faz a gente pensar. Há elfos aqui por perto?”

“Há bandos barulhentos deles por aí, elfos das árvores, em algum lugar lá pelo alto das colinas, mas talvez sejam mais débeis mentais que os bons moradores de Margens Agitadas. Verdade, Bá, nunca vi nenhum, ou se vi, foi a distância. A idéia é repulsiva. Elfos riem de tudo, a senhora sabia? Um deles cai de um carvalho e esmaga o crânio como um nabo podre, e os outros se juntam para rir do coitado e daí a pouco já se esqueceram dele. E um insulto seu a mera insinuação de uma coisa dessas.”

“Pois se acostume com a idéia, se não acharmos uma saída desse atoleiro.”

“Bem, a resposta é não.”

“Então, outra pessoa. Algum sujeito bonito o bastante para os padrões locais, trazendo um germe que talvez você tenha contraído.”

Melena ficou chocada. Ela não havia pensado em sua própria saúde desde que Elphaba nascera. Será que ela estava em perigo?

“A verdade”, disse a Babá. “Temos de saber.”

“A verdade”, disse Melena de um modo distante. “Bem, impossível sabê-la.”

“Que é que você está tentando dizer?”

“Eu não sei a resposta para a sua pergunta.” E Melena explicou. Sim, a sua casa estava fora da trilha mais usada, e claro que ela nunca fora além dos mais lacônicos cumprimentos com os fazendeiros, pescadores e cretinos em geral do lugar. Mas apareciam nas colinas e florestas mais viajantes do que você poderia acreditar. Muitas vezes ela ficara, alheia e solitária, enquanto Frex estava ausente em suas pregações, e se consolara oferecendo a algum forasteiro de passagem uma refeição simples e uma conversa animadora.

“E que mais?”

Mas nesses dias maçantes, Melena murmurava, dera para mascar folhas de alfineteiro. Quando acordava de seu torpor, o sol estava se pondo ou Frex estava por ali de cara fechada ou sorrindo para ela, pouca coisa conseguia lembrar.

“Você está querendo dizer que caiu no pecado do adultério e não tem nem a vantagem de uma boa lembrança apimentada do que fez?”, a Babá estava escandalizada.

“Eu não sei o que fiz!” disse Melena. “Eu não tinha escolha, quero dizer que não tinha como fazê-la com um pensamento claro. Mas eu me lembro de uma vez em que um vendedor ambulante com um sotaque engraçado me deu um trago de alguma infusão embriagadora de uma garrafa de vidro verde. E eu tive uns sonhos de uma rara expansão, Bá, do Outro Mundo, realmente ― cidades de vidro e neblina ― ruído e cor ― que eu tentei lembrar.”

“Então, você bem que poderia ter sido estuprada por elfos. Seu avô não ficará lá muito satisfeito em saber do jeito que Frex toma conta de você.”

“Pare!”, gritou Melena.

“Bem, eu não sei o que deve ser feito!” A Babá estava perdendo a calma, por fim. “Todo mundo está sendo irresponsável! Se você não se lembra se seus votos de casamento foram ou não quebrados, não há bem nenhum em agir como uma santa ofendida.”

“A gente sempre pode afogar o bebê e recomeçar.”

“Você que tente afogar aquela coisa”, murmurou a Babá. “E eu terei pena do pobre lago que for usado para isso.”

Mais tarde, a Babá examinou minuciosamente a pequena coleção de remédios de Melena ― ervas, pastilhas, raízes, aguardentes, folhas. Ela pensava, sem muita esperança, se poderia inventar alguma coisa que pudesse branquear a pele da menina. Por trás da gaveta, a Babá achou a garrafa de vidro verde de que Melena falara. A luz era ruim e sua vista não era boa, mas ela conseguiu distinguir as palavras ELIXIR MILAGROSO num pedaço de papel grudado na frente.

Embora fosse dotada de uma habilidade inata para curar, a Babá se sentia incapaz de fazer uma poção para mudar a pele. Banhar a criança em leite de vaca não tornara a pele branca, tampouco. Mas a criança não deixava de modo algum que a enfiassem num balde de água do lago; ela se contorcia e se esquivava como um gato em pânico. A Babá seguiu usando o leite de vaca. Ele deixava um horrível cheiro azedo se ela não o esfregas-se e tirasse completamente com um pano.

Frex organizou um exorcismo. Envolvia velas e hinos. A Babá observou de uma certa distância. O homem ficava com os olhos lacrimejantes, transpirava com o esforço, embora as manhãs estivessem mais e mais frias. Elphaba dormia envolta em seus panos no meio do tapete, indiferente ao sacramento.

Nada acontecia. Frex se rendia, exausto e desgastado, e embalava sua filha verde dentro da curva de seus braços, como se finalmente abraçasse a prova de algum pecado não descoberto. O rosto de Melena se enrijecia.

Havia apenas uma coisa a tentar. A Babá tomou coragem de trazê-la à tona no dia em que estava para retornar a Solos de Colwen.

“Vemos que os tratamentos rústicos não funcionam”, disse ela, “e que a intervenção espiritual falhou. Você tem coragem de pensar em feitiçaria? Haverá por aqui alguém que pudesse tirar a peçonha verde da criança com artes mágicas?”

Frex pulou para cima da mulher, brandindo os punhos. A Babá caiu de costas de seu banco, e Melena se precipitou sobre ela, gritando. “Como se atreve!” gritou Frex. “Nesta família! A menina verde já não é ofensa o bastante? A feitiçaria é o refúgio dos amorais; quando não é charlatanismo desvairado, é mortalmente perigosa! Contratos com os demônios!”

A Babá dizia: “Oooh, Deus me defenda! Você, bom homem, não conhece o uso do fogo contra fogo?”.

“Bá, já basta”, disse Melena.

“Batendo numa velha frágil”, disse a Babá, magoada. “Que apenas tentava ajudar.”

Na manhã seguinte, a Babá arrumou a sua valise. Não havia mais nada que pudesse fazer, e ela não estava querendo viver o resto de sua vida com um ermitão fanático e um bebê estragado, mesmo em consideração a Melena.

Frex levou-a de volta à estalagem em Ponta de Espato, para a carruagem pontual conduzi-la para casa. A Babá sabia que Melena podia ainda estar pensando em matar a criança, mas tinha lá as suas dúvidas. Segurava a sua valise junto ao peito largo, temendo os bandidos outra vez. Dentro dela escondia sua liga dourada (poderia sempre alegar que fora posta lá sem que ela soubesse, conquanto fosse difícil alegar que fora posta em sua perna nas mesmas circunstâncias). Ela também se apoderara da agulha de crochê de marfim, de três dos rosários de oração de Frex, porque gostava dos entalhes, e da bela garrafa de vidro verde deixada por algum vendedor itinerante que oferecia, pelo jeito, sonhos, paixão e sonolência.

Não sabia o que pensar. Seria Elphaba um fruto dos demônios? Seria ela um meio-elfo? Seria um castigo para o fracasso de seu pai como pastor, ou para a moral frouxa e a memória curta de sua mãe? Ou seria simplesmente uma enfermidade física, uma praga como uma maçã deformada ou um bezerro de cinco patas? A Babá bem sabia que sua visão do mundo era nebulosa e caótica, prejudicada por demônios, fé e crendice popular. Todavia, não escapava à sua atenção que Melena e Frex tinham acreditado de maneira intransigente que teriam um menino. Frex era o sétimo filho de um sétimo filho, e para piorar essa equação poderosa, ele descendia de seis pastores de uma série. Qual criança dos dois (ou de qualquer um dos dois) sexos ousaria seguir uma linha tão auspiciosa?

Talvez, pensou a Babá, a pequena e verde Elphaba houvesse escolhido seu próprio sexo, e sua própria cor, e que seus pais fossem para o inferno.

 

Por um curto e úmido mês, no começo do ano seguinte, a seca se dissipou. A primavera transbordou como água verde de poço, espumando nas sebes, borbulhando à beira da estrada, salpicando o teto da casa com grinaldas de hera e flores de trepadeira. Melena vagava pelo quintal num estado de tranqüilo pouco-vestir, para poder sentir o sol em sua pele pálida e o profundo calor de que sentira falta o inverno todo. Presa com correias em sua cadeira à soleira da porta, Elphaba, agora com um ano e meio de idade, batia nos peixinhos de seu desjejum com o bojo da colher. “Oh, coma a coisa, não a esmague”, dizia Melena, mas com suavidade. Desde que a tipóia do queixo fora retirada, mãe e filha começaram a prestar alguma atenção uma à outra. Para sua surpresa, Melena às vezes achava Elphaba afetuosa, do jeito que um bebê deve ser.

Essa paisagem era a única coisa que ela vira desde que deixara a elegante mansão de sua família ― a superfície varrida pelo vento do lago de Água Mortiça, as distantes casinhas de pedra escura e as chaminés de Margens Agitadas do outro lado, as colinas se estendendo em torpor mais além. Ela enlouquecia; o mundo não era nada além de água e carência. Se uma bagunça de elfos acontecesse ali no quintal, ela saltaria para junto deles para ter companhia, para fazer sexo ou cometer um crime.

“Seu pai é uma fraude”, ela disse para Elphaba. “Ausente, cuidando de si, todo o inverno deixando-me só você como companhia. Coma essa papinha, pois você não vai conseguir outra se jogá-la no chão.”

Elphaba pegava o peixe e o jogava no chão.

“Seu pai é um charlatão”, continuava Melena. “Ele foi muito bom de cama para um homem religioso, e foi assim que eu soube seu segredo. Homens santos devem estar acima dos prazeres terrenos, mas seu pai gostava de sua farrinha da meia-noite. Era uma vez! Não devemos nunca lhe contar que sabemos que ele é uma farsa, isso partiria seu coração. Não queremos partir seu coração, queremos?” E aí Melena irrompia em gargalhada estrondosa.

O rosto de Elphaba não sorria, imutável. Ela apontava para o peixe.

“Papinha. Papinha caiu no chão. Papinha agora é pros insetos”, Me-lena dizia. Ela deixava a gola de seu roupão de primavera cair um pouco mais e a canga rosa de seus ombros nus girava. “Vamos passear hoje à beira do lago pra você morrer afogada?”

Mas Elphaba nunca se afogava, nunca, porque ela nem mesmo chegava perto do lago.

“Talvez a gente possa dar uma voltinha de barco e aí você cai!” Melena gritava.

Elphaba virava a cabeça para um lado como se escutasse alguma parte de sua mãe que não estivesse intoxicada pelas folhas e pelo vinho.

O sol saía de trás de uma nuvem. Elphaba franzia as sobrancelhas. O roupão de Melena escorregava. Seus seios abriam caminho por entre os sujos folhos da gola.

Olhem para mim, pensava Melena, mostrando meus peitos para uma criança a quem não posso dar leite por medo de amputação. Eu que era a rosa de Pedras do Ninho. Eu que fui a beldade da minha geração! E agora estou reduzida a companhias que nem sequer desejo, minha garotinha torta e espinhenta. É mais um gafanhoto que uma menina, com essas pequenas coxas angulosas, essas sobrancelhas arqueadas, esses dedos agressivos. Ela está no momento de aprender como qualquer outra criança, mas não encontra deleite neste mundo: empurra e quebra e mordisca sem nenhum prazer. Como se tivesse a missão de provar e avaliar todos os desaponta-mentos da vida, dos quais Margens Agitadas é generosamente suprido. Peço perdão ao Deus Inominável, ela é um horror, ela é. Ela é.

“Ou a gente podia dar uma caminhada pelos bosques hoje e colher as últimas bagas do inverno.” Melena se sentia cheia de culpa por sua falta de sentimento materno. “Podemos fazer uma torta com elas. Podemos colocá-las numa torta? Vamos fazer isso, benzinho?”

Elphaba ainda não falava, mas ela balançou a cabeça e começou a ficar agitada para descer. Melena começou um joguinho de bater palmas de que ela não tomou conhecimento. A criança grunhia e apontava para o chão, e arqueava suas longas pernas elegantes para explicar seu desejo. Então, dava sinais em direção ao portão que levava do quintal da cozinha para o galinheiro.

Havia um homem encostado às estacas do portão, de aparência tímida e faminta, com uma pele da cor das rosas ao crepúsculo: um vermelho sombrio, do tom da penumbra. Ele trazia um par de sacolas de couro nos ombros e costas, e um cajado de andarilho, e um rosto perigosamente bonito e desprovido de expressão. Melena soltou um grito penetrante e se re-compôs, colocando sua voz num registro mais baixo. Havia muito tempo não falava com ninguém e só dirigira a palavra uma vez a um caminhante queixoso. “Deus do céu, você nos assustou!”, gritou. “Está procurando comida?” Ela perdera o jeito do convívio social. Por exemplo, seus seios não deviam apontar para o homem daquele jeito. Contudo, não fechou seu roupão.

“Favor perdoar a aparência repentina de um desconhecido ao portão de uma dama”, disse o homem.

“Perdoado, é claro”, ela disse impacientemente. “Venha para cá onde eu possa vê-lo melhor ― venha, venha!”

Elphaba vira tão poucas outras pessoas em sua vida que escondeu um olho atrás da colher e ficou espiando com o outro.

O homem se aproximou. Seus movimentos revelavam a falta de jeito de quem está exausto. Ele era largo de tornozelos e tinha pés grossos, esbelto de cintura e ombros, e o pescoço também era grosso ― como se tivesse sido fabricado num torno mecânico e trabalhado depressa demais nas extremidades. Suas mãos, depositando as sacolas no chão, pareciam animais com opiniões próprias. Eram descomunais e esplêndidas.

“Viajante não sabe onde está”, disse o homem. “Duas noites para cruzar as colinas de Milharais da Baixada. Para procurar a taberna em Três Árvores Mortas. Para descansar.”

“Você está perdido, você errou o caminho”, disse Melena, decidindo não ficar espantada com suas palavras desordenadas. “Não tem importância. Deixa eu lhe fazer uma comida e me conte a sua história.” Ela passava as mãos pelos cabelos, que uma vez tinham sido considerados tão preciosos quanto bronze esculpido. Limpos ao menos eles estavam.

O homem era polido e bem apanhado. Quando tirou seu boné, seus cabelos caíram em meadas oleosas, rubras como a aurora. Ele se lavou na bomba de água, despindo-se da camisa, e Melena percebeu que era bom ver de novo os quadris de um homem (Frex, louvado fosse, dera para ficar roliço nesse ano e pouco que transcorrera desde o nascimento de Elphaba). Será que todos de Quadling tinham esse delicioso cor-de-rosa sombreado? O nome do homem, Melena ficou sabendo, era Coração de Tartaruga, e ele era um soprador de vidro de Ovvels, no pouco conhecido Estado de Qua-dling.

Ela finalmente guardou seus seios, embora com relutância. Elphaba emitiu um grito prolongado para que ela a soltasse, e, sem hesitar, o visitante desafivelou-a e jogou-a para o alto e pegou-a novamente. A criança cacarejava de surpresa, de prazer até, e Coração de Tartaruga repetiu o truque. Melena tirou proveito da concentração do homem na pirralha para pegar os peixinhos não comidos da sujeira do chão e limpá-los. Ela os deixou cair no meio dos ovos e da raiz de alcatrão amassada, esperando que Elphaba não aprendesse a falar de repente e a deixasse embaraçada. Ela era bem o tipo de criança que faria isso.

Mas Elphaba estava por demais encantada com esse homem para bagunçar ou fazer birra. Ela nem mesmo se queixou quando Coração de Tartaruga finalmente foi até o banco e sentou-se para comer. Ela engatinhava entre suas macias panturrilhas desprovidas de pêlos (porque ele tirara as suas meias) e murmurava alguma musiquinha de sua própria lavra com um sorriso afetado e satisfeito no rosto. Melena se descobriu com ciúme de uma fêmea que não contava ainda com dois anos de idade. Ela não teria achado nada ruim sentar-se no chão entre as pernas de Coração de Tartaruga.

“Nunca conheci ninguém de Quadling”, ela disse, num tom alto demais, brilhante demais. Os meses de solidão tinham-na feito esquecer suas boas maneiras. “Minha família nunca recebeu um morador de Quadling para jantar em casa ― não que houvesse muitos, ou nenhum, que eu soubesse, nas chácaras vizinhas à nossa propriedade. Havia histórias que pintavam os de Quadling como dissimulados e incapazes de dizer a verdade.”

“Como pode um quadling responder a uma tal acusação se um quadling é sempre dado à mentira?” Ele sorriu para ela.

Ela se derreteu como manteiga em pão quente. “Acreditarei em qualquer coisa que você diga.”

Ele lhe contou de sua vida nos asilos de Ovvels, as casas apodrecendo suavemente no pântano, a colheita de caracóis e escuras ervas daninhas, os costumes da vida comunitária e da veneração dos ancestrais. “Então, vocês acreditam que seus ancestrais vivem com vocês?” ela alfinetou. “Não quero ser intrometida, mas é que fiquei interessada em religião a despeito de mim mesma.”

“A dama não acredita que seus ancestrais estejam ao seu lado?”

Ela mal podia se concentrar na questão, tão claros eram os olhos do homem, e tão maravilhoso era ser chamada de dama.

Seus ombros se endireitaram. “Meus ancestrais mais próximos não poderiam estar mais distantes”, ela admitiu. “Quero dizer, meus pais ainda estão vivos, mas tão desinteressantes para mim que não faria diferença se estivessem mortos.”

“Quando mortos poderão visitar a dama com freqüência.”

“Não serão bem-vindos. Caiam fora.” Ela riu, enxotando. “Você quer dizer fantasmas? Melhor que não apareçam. Isso é o que eu chamo o pior dos dois mundos ― se é que há Outro Mundo.”

“Há um outro mundo”, ele disse com toda convicção.

Ela ficou arrepiada. Ergueu Elphaba e apertou-a firmemente entre os braços. Elphaba vergou como um invertebrado em seus braços, nem reagindo nem retribuindo ao abraço, só se esquivando da novidade de estar sendo tocada. “Você é um vidente?”, disse Melena.

“Coração de Tartaruga sopra vidro”, ele disse. Ele parecia querer dizer que aquela era a resposta.

Melena repentinamente lembrou-se dos sonhos que tinha, de lugares exóticos que sabia que era limitada demais para inventar. “Casada com um pastor, e não sei se acredito em outro mundo”, ela admitiu. Ela não quisera dizer que era casada, embora achasse que estava implícito, devido à criança.

Mas Coração de Tartaruga havia parado de falar. Ele baixara o prato (tinha posto os peixinhos à parte) e tirou de suas sacolas um potinho, um cachimbo, e alguns sacos de areia, bicarbonato de sódio, cal e outros minerais. “Pode Coração de Tartaruga agradecer à dama por sua boa acolhida?” ele perguntou; ela concordou.

Ele acendeu o fogo da cozinha, escolheu e misturou seus ingredientes, e arrumou os utensílios, e limpou o fornilho de seu cachimbo com um paninho especial dobrado em sua própria bolsa de tabaco. Elphaba, imóvel como uma moita, com as mãos verdes nos verdes dedos do pé, ficava observando com curiosidade em seu rosto contorcido.

Melena nunca tinha visto o vidro ser soprado, e também nunca vira papel sendo feito, nem roupa sendo tecida, nem toras sendo arrancadas a machados dos troncos das árvores. Parecia-lhe tão maravilhoso quanto as histórias locais do relógio itinerante que tinha enfeitiçado seu marido, levando-o àquela paralisia profissional da qual ele não tinha ainda escapado completamente ― embora vivesse tentando.

Coração de Tartaruga murmurava uma nota musical através do nariz ou do cachimbo enquanto soprava um bulbo irregular de um gelo esverdeado. A coisa fumegava e sibilava no ar. Ele sabia o que fazer; era um feiticeiro na arte do vidro; Melena teve de colocar Elphaba para trás para protegê-la de queimar suas mãos enquanto tentava pegá-la.

Num tempo que pareceu nem ter passado, no que parecia mágica, o vidro passou de semilíquido e abstrato para uma realidade concreta e fria.

Era um círculo liso e impuro, como um prato ligeiramente oblongo. Ao longo do tempo todo em que Coração de Tartaruga trabalhou nele, Melena pensou em sua própria personalidade, indo do éter da juventude à casca endurecida da maturidade, transparentemente vazia. Vulnerável, também. Mas antes que se perdesse em remorsos, Coração de Tartaruga tomou suas duas mãos e passou-as bem perto, sem tocar, na superfície lisa do vidro.

“Dama conversar com seus ancestrais”, ele disse. Mas ela não queria lutar para se comunicar com gente velha mortalmente aborrecida no Outro Mundo, não enquanto aquelas mãos enormes cobriam as suas. Ela respirava pelo nariz para suprimir o cheiro do desjejum em sua boca não lavada (fruta e um copo ― ou dois de vinho?). Ela achava que ia desmaiar.

“Olhe para o vidro”, ele a pressionou. Ela conseguia olhar apenas para seu pescoço e seu queixo cor de mel de framboesa. Ele olhava para ela. Elphaba se aproximou, firmou-se com uma mão pequena em seu joelho e observou também.

“Marido está chegando”, disse Coração de Tartaruga. Era uma profecia feita através do prato de vidro ou ele estava lhe fazendo uma pergunta? Mas ele continuou: “Marido está viajando de burro para trazer mulher velha visitar você. Espera visita de ancestral?”

“É velha ama-de-leite, provavelmente”, Melena disse. Ela estava caindo em sua sintaxe deformada com desavergonhada simpatia. “Você vê isso aí?”

Ele concordou. Elphaba concordou também, mas com o quê?

“Quanto tempo teremos até que ele chegue aqui?”, ela perguntou.

“Até a noite.”

Não trocaram mais uma só palavra até o pôr-do-sol. Abafaram o fogo e carregaram Elphaba para o arnês, e sentaram-na diante do vidro esfriado, que penduraram num fio como uma lente ou um espelho. A coisa parecia hipnotizá-la e acalmá-la; ela nem mesmo ficava roendo, alheia, seus pulsos e dedos do pé. Eles deixaram a porta da casa aberta para que, de quando em quando, pudessem olhar da cama para vigiar a criança que, na claridade de um dia de sol, não seria capaz de focalizar seus olhos para ver nas sombras da casa, e que, de qualquer modo, nunca fora de se virar para ver. Co-ração de Tartaruga estava insuportavelmente belo. Melena enroscou-se como cobra-dragão, cobriu-o com sua boca, derramou-o em suas mãos, aqueceu e esfriou e deu forma à sua luminosidade. Ele preenchia o seu vazio.

Estavam banhados, vestidos, com a ceia quase toda feita, quando o burro soltou um zurro a uma milha na descida do lago. Melena ficou corada. Coração de Tartaruga voltou para seu cachimbo, soprando novamente. Elphaba se virou e olhou para a direção do agudo anúncio do burro. Seus lábios, que sempre pareciam quase negros contra a cor de maçã nova de sua pele, torceram-se num aperto, mascando-se. Ela mordeu o lábio de baixo como se fizesse isso para pensar, mas não sangrou; tinha aprendido a usar os dentes de algum modo, através de tentativa e erro. Pôs sua mão no disco brilhante. O círculo de vidro captou o derradeiro azul do céu, até ficar parecido com um espelho mágico tendo por dentro nada além de água de um frio prateado.

 

Ao longo do caminho, desde Ponta de Espato, onde Frex fora ao encontro da sua carruagem, a Babá se queixou. Lumbago, rins fracos, espinhelas caídas, gengivas doloridas, dor de cadeiras. Frex queria dizer: E que dizer de seu ego inchado? Embora houvesse ficado fora de circulação por um tempo, sabia que a observação seria rude. A Babá dava uma de impaciente e se paparicava, firmando-se com determinação em seu assento até que chegaram à pequena casa perto de Margens Agitadas.

Melena cumprimentou Frex com afetada timidez. “Meu escudo, minha espinha dorsal”, murmurou. Ela estava delgada depois de um inverno duro, as maçãs de seu rosto mais proeminentes. Sua pele parecia purificada pela pincelada de um artista ― mas ela sempre tivera a aparência de uma água-forte em carne humana. Era habitualmente expansiva em seus beijos e ele achou sua reserva alarmante, até que notou que havia um desconhecido nas sombras. Então, apresentações feitas, a Babá e Melena se agitaram para colocar uma refeição na mesa, e Frex pôs lá fora um pouco de aveia para o pobre cavalo que tivera de puxar a carroça. Quando terminou, foi sentar-se junto à filha à luz do anoitecer de primavera.

Elphaba ficou cautelosa ao lado do pai. Ele tirou de sua bolsa um presentinho que tinha entalhado para ela, um pequeno pardal com um bico gracioso e asas erguidas. “Olhe, Fabala”, ele sussurrou (Melena detestava o derivativo, por isso ele o usava: era seu laço particular com Elphaba, o pacto pai-filha contra o mundo.) “Olhe o que eu achei na floresta. Um passarinho de madeira de bordo.”

A criança pegou a coisa em suas mãos. Tocou-a suavemente, e pôs sua cabeça na boca. Frex se enrijeceu para ouvir o inevitável estilhaçar da madeira, e para conter seu suspiro de desapontamento. Mas Elphaba não mordeu. Ela chupou a cabeça e tornou a olhá-la. Molhada, parecia ter mais vida.

“Você gostou”, disse Frex.

Ela concordou, e começou a apalpar as asas. Agora que estava distraída, Frex podia colocá-la em seus joelhos. Ele enfiou seu queixo de barba ondulada carinhosamente no cabelo da menina ― cheirava a sabão, a fumaça de lenha e a torrada fresca, cheiro bom e saudável ― e fechou os olhos. Era bom estar em casa.

Ele passara o inverno numa cabana de pastor de ovelhas abandonada na direção do vento em Cabeça de Grifo. Orando e jejuando, movendo-se para o fundo e para longe de si. E por que não? Em sua terra natal, sentira o desprezo do povo de todo o claustrofóbico vale de Água Mortiça; eles haviam associado a história escandalosa do pastor corrupto ao nascimento da criança deformada. Tinham tirado suas próprias conclusões. Evitavam seus ofícios na capela. Portanto, a escolha de uma vida de ermitão, ao menos a pequenos intervalos, lhe parecera a um só tempo penitência e preparo para uma outra coisa, algo que logo viria ― mas, o quê?

Ele sabia que essa vida não era a que Melena havia esperado ao casar-se com ele. Como seus antepassados, Frex parecia talhado para uma posição de examinador ou mesmo, eventualmente, de bispo. Ele havia imaginado a felicidade que Melena teria como uma dama de sociedade, presidindo jantares festivos, bailes de caridade e chás episcopais. Em vez disso, ele a via à luz da lareira, raspando uma última, mole cenoura de inverno, dentro de uma panela de peixe ― e aí ela se exauria, como a cônjuge de um casamento difícil numa fria e sombria zona lacustre. Frex percebia que ela não lamentava que ele se retirasse de tempos em tempos para que ela pudesse se alegrar ao vê-lo de volta.

Enquanto ruminava esses pensamentos, sua barba fazia cócegas no pescoço de Elphaba, e ela abocanhava as asas de seu pardal de madeira. Chupava nelas como se assobiasse. Desviando-se dele, ela correu para uma lente de vidro pendurada no beiral que se projetava, e deu um tapa nela.

“Não, você vai quebrar!” disse-lhe o pai.

“Não conseguir quebrar aquilo.” O viajante, o visitante de Quadling, vinha da bacia, onde estivera se lavando.

“Ela acabou de aleijar o seu brinquedo”, Frex disse, apontando para a imitação de pássaro danificada.

“Ela se satisfaz com coisas despedaçadas”, Coração de Tartaruga disse. “Eu acho. A menininha brincar melhor com pedaços quebrados.

Frex não entendeu lá muito bem, mas concordou. Ele sabia que os meses que permanecera distante da voz humana deixavam-no a princípio desajeitado. O menino da taberna, que subira a Cabeça de Grifo para entregar o pedido da Babá para ser apanhada em Ponta de Espato, tinha obviamente julgado que Frex fosse um selvagem, um ser gutural e descabelado. Frex teve de citar um pouco do Ozíada para provar alguma humanidade: “Terra do verde abandono, terra da infindável relva" - foi tudo que lhe veio à lembrança.

“Por que ela não conseguiria quebrá-la?”, perguntou Frex.

“Porque não a fiz para ser quebrada”, respondeu Coração de Tartaruga. Mas ele sorria para Frex, sem agressividade. E Elphaba vagava ao redor com o vidro brilhante como se fosse um brinquedo, captando sombras, reflexos, luzes em sua superfície imperfeita, como se estivesse brincando.

“Aonde você vai?”, perguntou Frex, bem quando Coração de Tartaruga lhe dizia, “De onde você é?”

“Sou da Terra de Munchkin”, disse Frex.

“Eu pensar que todos os de Munchkin ser mais baixos que eu e você.”

“Os camponeses, os fazendeiros, sim”, Frex disse, “mas qualquer um com antepassados dignos de nota casou-se com gente mais alta em alguma parte. E você? Você é do Estado de Quadling.”

“Sim”, disse o quadling. Seu cabelo avermelhado tinha sido lavado e secava como um nimbo aéreo. Frex estava contente por ver Melena tão generosa a ponto de oferecer a um andarilho água para se banhar. Talvez ela estivesse, afinal, se adaptando à vida do lugar. Porque, por Deus, um quadling figurava no escalão social tão baixo quanto era possível para alguém que ainda fosse humano.

“Mas eu entender”, disse o quadling. “Ovvels é um mundo pequeno. Até eu partir, eu não saber das colinas, uma atrás da outra e dos espinhaços circulares em torno de um mundo tão amplo. As manchas muito distantes ferir meus olhos, por isso eu não via. Favor o senhor me descrever o mundo que conhece.”

Frex pegou uma varinha. No solo, desenhou um ovo a seu lado. “O que me ensinaram nas lições”, ele disse. “Dentro do círculo fica Oz. Faça um X” ― ele fez, dentro do oval ― “e, grosso modo, você tem uma torta dividida em quatro partes. O topo é Gillikin. Cheia de cidades e universidades e teatros, a vida civilizada, como dizem. E as indústrias.” Ele se moveu no sentido horário. “Ao leste fica a Terra de Munchkin, onde estamos no momento. Terra agrícola, a cesta básica de Oz, exceto quando se desce para o sul montanhoso ― esses traços, no distrito de Pedras do Caminho, são as colinas que você está escalando.” Ele batia com a varinha e designava. “Direto ao sul do centro de Oz está o Estado de Quadling. Terras ruins, me disseram ― pantanosas, inúteis, infestadas de insetos e ares febris.” Coração de Tartaruga ficou espantado ao ouvir isso, mas concordou. “Depois, o Oeste, o que chamam de Estado de Winkie. Não sei muito a respeito, exceto que é seco e desabitado.”

“E ao redor?”

“Desertos de arenito a norte e oeste, desertos de pedras manchadas a leste e sul. Dizia-se que as areias do deserto eram mortalmente venenosas; é apenas propaganda rotineira. Mantém os invasores de Ev e Quox receosos de entrar.

A Terra de Munchkin é um rico e desejável território agrícola, e Gilli-kin também não é má. No Glikkus, aqui em cima,” ― ele esboçou linhas no noroeste, na fronteira entre Gillikin e a Terra Munchkin ― “ficam as minas de esmeralda e os famosos canais de Glikkus. Eu sei que há uma disputa para saber se o Glikkus pertence a Munchkin ou a Gillikin, mas não tenho uma opinião a respeito.”

Coração de Tartaruga movia suas mãos sobre o desenho no chão, flexionando suas palmas, como se estivesse lendo o mapa mais acima. “Mas, aqui?” ele disse. “O que fica aqui?”

Frex pensou que ele se referisse ao céu sobre Oz. “O reino do Deus Inominável?”, ele disse. “O Outro Mundo? Você pertence à união?”

“Coração de Tartaruga é soprador de vidro”, ele disse.

“Eu quero dizer, em termos de religião.”

Coração de Tartaruga baixou sua cabeça e evitou o olhar de Frex. “Coração de Tartaruga não saber de que nome chamar isso.”

“Eu não conheço os quadlings” disse Frex, animando-se com uma possível conversão. “Mas os de Gillikin e Munchkin são amplamente unionistas. Desde que o paganismo Lurlinista acabou. Por séculos, santuários e capelas unionistas têm-se espalhado por Oz. Não há nenhum no Estado de Quadling?”

“Coração de Tartaruga não reconhecer o que é isso”, ele disse.

“E agora respeitáveis unionistas estão convertendo-se aos montes à fé no prazer”, disse Frex, rindo, desdenhoso, “ou mesmo ao tiktokismo, que é difícil até de qualificar como religião. Para os ignorantes, tudo é espetáculo, hoje em dia. Os antigos monges e monjas sabiam seus lugares no universo reconhecendo a fonte da vida como sublime demais para ser nomeada ―, e agora nós suspiramos nas barras do manto de qualquer mago mofado que apareça. Hedonistas, anarquistas, solipisistas! A liberdade individual e o entretenimento são tudo! Como se a feitiçaria tivesse algum componente moral! Feitiços, mágica vagabunda de rua, dispositivos de som e luz com propulsão industrial, falsos ilusionistas! Charlatões, nababos da necromancia, das sabedorias químicas e herbáceas, hedonistas impostores! Vendendo suas receitas de pântano e aforismos de velhas e seus encantamentos de ginasianos! Isso me deixa doente.”

Coração de Tartaruga disse: “Coração de Tartaruga pode lhe trazer um pouco de água, Coração de Tartaruga pode lhe fazer repousar?”. Ele punha os dedos macios como pele de bezerro sobre o pescoço de Frex. Frex tremia e percebia que estivera gritando. A Babá e Melena observavam lá da porta com uma panela de peixe, silenciosas.

“É uma figura de retórica, eu não estou doente”, ele disse, mas estava comovido pela preocupação demonstrada pelo estrangeiro. “Acho que agora vamos comer.”

E foi o que fizeram. Elphaba ignorou sua comida, exceto para espetar os olhos do peixe cozido, arrancá-los e tentar enfiá-los no seu passarinho já sem asas. A Babá resmungava jovialmente sobre o vento que vinha do lago, seus arrepios, sua espinhela, sua digestão. Seus gases pareciam estar só um pouquinho além e Frex se moveu, tão discretamente quanto possível, para ficar contra o vento. Acabou por sentar-se perto do quadling no banco.

“Então, tudo ficou claro para você?” Frex apontou um garfo para o mapa de Oz.

“Onde ficará a Cidade Esmeralda?” disse o quadling, ossos de peixe escapando por entre seus lábios.

“Bem no centro”, Frex disse.

“E lá está Ozma”, disse Coração de Tartaruga.

“Ozma, a imperatriz consagrada de Oz, ou algo assim”, disse Frex, “embora o Deus Inominável deva ser o rei de tudo, em nossos corações.”

“Como pode uma criatura sem nome reinar...” começou Coração de Tartaruga.

“Nada de teologia na hora do jantar”, interrompeu Melena, “é uma regra da casa que data do começo de nosso casamento, Coração de Tartaruga, e nós a obedecemos.”

“Além disso, eu guardo certa devoção a Lurline.” A Babá lançou o rosto na direção de Frex. “Gente velha como eu está autorizada a isso. Você conhece algo sobre Lurline, estrangeiro?”

Coração de Tartaruga balançou a cabeça.

“Se não pudermos conversar sobre teologia, tampouco conversaremos sobre essa porcaria de besteira pagã...” começou Frex, mas a Babá, sendo uma visita e invocando um toque de surdez quando lhe era conveniente, fez que não ouviu.

“Lurline é a Rainha das Fadas que voava sobre os secos desertos e pintalgava sobre eles a verde Terra de Oz. Ela deixou sua filha Ozma à frente do reino em sua ausência e prometeu retornar quando este vivesse sua hora mais difícil.”

“Hah!”, disse Frex.

“Sem essa de fazer hahs para mim.” A Babá fungou. “Tenho tanto direito às minhas crenças quanto você, Frexpar, o Santo, às suas. Pelo menos elas não me metem em confusão como as suas.”

“Bá, controle seu temperamento”, disse Melena, gostando da coisa.

“É disparate”, disse Frex. “Ozma reina na Cidade Esmeralda, e qualquer um que a tenha visto, ou visto pinturas dela, sabe que ela é de origem gillikinesa. Ela tem a mesma testa bem ampla, os dentes frontais ligeira-mente separados, o frisado de cabelo loiro crespo, as rápidas mudanças de humor ― geralmente para raiva. Tudo característico do povo de Gillikin. Você a viu, Melena, diga a ele.”

“Oh, ela é elegante a seu modo”, Melena admitiu.

“A filha de uma Rainha das Fadas?”, disse Coração de Tartaruga.

“Mais besteira”, disse Frex.

“Não é besteira!”, explodiu a Babá.

“Acham que ela renasce de si mesma indefinidamente, como uma fênix”, disse Frex. “Hah, hah e duplo hah. Decorreram trezentos anos de Ozmas muito diferentes. Ozma, a Mentirosa, era uma monja dedicada, que ditava regras, fazendo-as descer por um balde da câmara mais alta do quarto de um mosteiro. Ela era tão desvairada quanto um besouro jogado no chão. Ozma, a Guerreira, conquistou o Glikkus ao menos uma vez, e confiscou as esmeraldas com as quais decoraria a Cidade Esmeralda. Ozma, a Bibliotecária, nada fez senão ler genealogias pela vida toda. Então veio Ozma, a Pouco Adorada, que mantinha arminhos domesticados. Ela sobretaxou os fazendeiros para começar o sistema rodoviário dos tijolos amarelos que eles ainda lutam para completar, e boa sorte, é o que lhes digo.”

“Quem é Ozma agora?”, perguntou Coração de Tartaruga.

“Na verdade”, disse Melena, “eu tive o prazer de conhecer a Ozma mais recente numa temporada social na Cidade Esmeralda ― meu avô, o Eminente Thropp, tinha uma casa na cidade. No inverno em que completei quinze anos, eu debutei na sociedade de lá. Ela era Ozma, a Biliosa, por causa de um estômago doente. Ela era do tamanho de uma baleia branca de lago, mas se vestia belamente. Eu a vi com seu marido, Pastorius, no Festival de Canção e Sentimento de Oz.”

“Ela não é mais a Rainha?”, perguntou Coração de Tartaruga, confuso.

“Ela morreu num acidente infeliz envolvendo veneno de rato”, disse Frex.

“Morreu”, disse a Babá, “ou seu espírito foi de encontro ao de sua filha, Ozma Tippetarius.”

“A Ozma atual tem a mesma idade de Elphaba”, disse Melena, “assim, seu pai, Pastorius, é o Regente Ozma. O bom homem vai reinar até que Ozma Tippetarius tenha idade suficiente para assumir o trono.”

Coração de Tartaruga balançou a cabeça. Frex estava aborrecido porque tinham passado tempo demais conversando sobre o governo temporal e ignorado o reino eterno, e a Babá foi atacada por uma indigestão a qual todos lamentaram, para falar em termos olfativos.

De qualquer modo, mesmo estando irritado, Frex estava feliz por estar em casa. Por causa da beleza de Melena ― nessa noite, ela estava tão luminosa quanto o sol que deixava o céu ― e por causa da surpresa da presença de Coração de Tartaruga, sorrindo e sem autoconsciência perto dele. Talvez por causa do vácuo religioso de Coração de Tartaruga, que Frex considerava desafiador e atraente, quase tentador.

“Então há o dragão embaixo de Oz, numa caverna escondida”, a Babá estava dizendo para Coração de Tartaruga. “O dragão que sonhou este mundo, e que vai atear fogo nele quando despertar...”

“Pára com essa baboseira supersticiosa!”, gritou Frex.

Elphaba, de quatro pés, avançava pelas tábuas irregulares do assoalho. Ela arreganhava os dentes ― como se soubesse o que era um dragão, como se fingisse ser um ― e rugia. Sua pele verde a tornava ainda mais convincente, como se ela fosse uma filha de dragão. Ela rugiu novamente ― “Oh, querida, não”, disse Frex ― e fez xixi no chão, e cheirou sua urina com satisfação e repulsa.

 

Numa tarde indo para o fim do verão, a Babá disse: “Um animal se aproxima. Eu o vi na penumbra várias vezes, escondido nas samambaias. Que espécie de criaturas são nativas dessas colinas, afinal?”.

“Você não vai achar nada maior que um geômio*”, disse Melena. Elas estavam na beira do riacho, lavando roupa. A umidade da pequena prima-vera cessara havia tempo, e a seca outra vez pousava sua mão avara sobre a região. A corrente era apenas um magro fio de água. Elphaba, que não chegava perto da água, estava despindo um pé de pêra selvagem de sua safra mirrada. Ela se agarrava ao tronco com suas mãos e pés virados para fora, e erguia a cabeça, apanhando a fruta azeda com seus dentes, e então cuspia as sementes e o pedúnculo no chão.

“Esse a que me refiro é maior que um geômio”, disse a Babá. “Creia em mim. Vocês não têm ursos, não? Bem que podia ter sido um filhote de urso, embora se movesse com grande rapidez.”

“Não há ursos por aqui. Há boatos de que existem tigres da rocha no topo das colinas, mas me dizem que nenhum foi avistado em eras. E tigres da rocha são notoriamente ariscos e tímidos. Eles não se aproximam das moradas humanas.”

“Um lobo então? Não há lobos?” A Babá deixou o lençol cair na água. “Podia ter sido um lobo.”

“Bá, a senhora pensa que está no deserto. Pedras do Caminho é desolada, concordo, mas é domesticada e improdutiva para tudo isso. A senhora está me alarmando com sua conversa sobre lobo e tigre.”

Elphaba, que ainda não falava, fazia um rosnado surdo na cavidade de sua garganta.

“Não gosto disso”, disse a Babá. “Vamos parar e secar essas coisas lá na casa. Já bastou. Além disso, há outras coisas que eu quero lhe dizer. Vamos dar a criança para Coração de Tartaruga cuidar e ir para outro lugar.” Ela estremeceu. “Outro lugar mais seguro.”

“O que a senhora tem a dizer, pode dizer ao alcance de Elphaba”, disse Melena. “A senhora sabe que ela não entende uma só palavra.”

“Você confunde não falar com não ouvir”, disse a Babá. “Eu acho que ela entende plenamente.”

“Olhe, ela está lambuzando o pescoço com fruta, como se fosse uma colônia...”

“Como uma pintura de guerra, você quer dizer.”

“Oh, Bá teimosa, pare de ser boba e esfregue melhor esses lençóis. Estão imundos.”

“Eu nem preciso perguntar de quem é esse suor e esse vazamento...”

“Oh, não, a senhora não precisa perguntar, mas não venha me passar sermão...”

“Mas você sabe que Frex vai notar mais cedo ou mais tarde. Essas vigorosas sonecas da tarde que você tira ― bem, você sempre teve uma quedinha para o sujeito bem servido de salsicha e ovos cozidos...”

“Bá, vamos, isso não é de sua conta.”

“Tanto pior”, disse a Babá, suspirando. “Envelhecer não é mesmo uma tapeação cruel? Eu trocaria minhas tão penosamente conquistadas pérolas da sabedoria por uma boa brincadeirinha com o Tio Pau de Bandeira algum dia.”

Melena, de mão cheia, atirou água no rosto da Babá para fazê-la calar. Ela cegou e disse: “Bem, é seu terreno, plante nele o que escolher e colha o que resultar. Estou querendo é falar da criança, afinal”.

A menina estava agora acocorada atrás do pé de pêra, olhos apertados e fixos em alguma coisa a distância. Ela se parecia com uma esfinge, com uma besta mitológica de pedra, pensou Melena. Uma mosca chegou a pousar em seu rosto e caminhou sobre a ponta de seu nariz, e ela não se encolheu ou contorceu. Então, subitamente, saltou em direção a um objeto preciso, como um gato verde nu perseguindo uma borboleta invisível.

“Que a senhora quer dizer sobre ela?”

“Melena, ela precisa se acostumar com outras crianças. Ela começará a falar um pouquinho se vir que as outras crias estão falando.”

“Conversa entre crianças é um conceito superestimado.”

“Não seja precipitada. Você sabe que ela precisa se acostumar a outras pessoas que não nós. Ela nunca terá vida fácil por causa disso, a menos que se livre da pele verde conforme for crescendo. Ela precisa dos hábitos de conversação. Olhe, eu lhe dou tarefinhas para fazer, eu gorjeio cantigas infantis para ela. Melena, por que ela não responde como as outras crianças?”

“Ela é chata. Há crianças assim.”

“Ela devia ter seus bonecos para brincar. O senso de divertimento deles poderia contagiá-la.”

“Francamente, Frex não espera que uma filha dele se interesse por divertimento”, disse Melena. “O divertimento é levado a sério demais neste mundo, Bá. Eu concordo com ele nesse ponto.”

“Então, as suas enroscadas com Coração de Tartaruga são o quê: práticas de exercícios devocionais?”

“Eu lhe disse para não ser traiçoeira, por favor!” Melena fixava a atenção na toalha, batendo-a com aborrecimento. A Babá continuava com o assunto; ela tinha alguma coisa em mente. E havia posto o dedo na ferida, pois sob essa ferida se movimentava Coração de Tartaruga, entrando pelas sombras frias da casa quando Melena estava cansada de uma manhã de trabalho na horta. Ele a cobria com um senso de dever sagrado, e quando os dois tombavam ofegantes nos lençóis da cama, ela não atirava de lado apenas as roupas de baixo. Ela perdia seu senso de vergonha.

Sabia que a coisa não seguia a razão convencional. Apesar disso, se um tribunal de pastores unionistas a convocasse para um julgamento por adultério, ela contaria a verdade. De algum modo Coração de Tartaruga a salvara e restaurara seu senso de graça, de esperança no mundo. Sua crença na benevolência das coisas havia se espatifado quando a pequena e verde Elphaba virará um ser. A criança era uma punição extravagante por um pecado tão pequeno que ela nem mesmo sabia se o havia cometido.

Não fora o sexo que a salvara, embora o sexo fosse vigoroso, até assustador. O que a salvara foi Coração de Tartaruga não ter ficado corado quando Frex aparecera, foi ele não recuar diante da bestial pequena Elphaba. Ele se estabelecera no quintal ao lado, soprando vidro e labutando, como se a vida o tivesse trazido ali só para redimir Melena. Qualquer outro lugar para onde ele estivesse indo ficara esquecido.

“Muito bem, sua velha vaca intrometida”, disse Melena. “Em matéria de argumento, o que a senhora propõe?”

“Devemos levar Elfinha para Margens Agitadas e encontrar algumas crianças pequenas para brincar com ela.”

Melena caiu das pernas. “Mas a senhora deve estar brincando!”, ela gritou. “Lerda e deliberada como Elphaba é, aqui pelo menos está protegida! Eu posso não ser capaz de dar muito calor maternal, mas eu a alimento, Bá, e eu a impeço de ferir-se! Que cruel, impor o mundo exterior a ela! Uma criança verde será um convite aberto ao desprezo e a maus-tratos. E as crianças são mais malvadas que os adultos, elas não têm senso de restrição. Com esse raciocínio, seria o mesmo que jogá-la no lago, de que ela tem tanto medo.”

“Não, não, não”, disse a Babá, pondo suas mãos gordas sobre seus próprios joelhos; sua voz estava densa de determinação. “Agora eu vou discutir com você sobre isso, Melena, até que você ceda. O tempo, com sua sabedoria, vai aproximar você de meu modo de pensar. Me escute. Me escute. Você é apenas uma garotinha rica e mimada que saltou de aulas de música para aulas de dança com crianças da vizinhança igualmente riquinhas e estúpidas. É claro que há crueldade neste mundo.. Mas Elphaba deve aprender quem ela é e deve encarar a crueldade bem cedo. E haverá menos crueldade do que você pensa.”

“Não banque a Babá Santa comigo. Eu não vou entrar nessa.”

“A Babá não vai desistir”, disse ela, com a mesma ferocidade. “Tenho uma visão de longo alcance de sua felicidade bem como da dela, e creia, se você não lhe der as armas e armaduras com as quais se defender do desprezo, ela tornará sua vida tão infeliz como a dela infalivelmente será.”

“E ela aprenderá a ter armas e armaduras com os sujos diabretes de Margens Agitadas?”

“Zombaria. Divertimento. Caçoada. Sorriso.”

“Ora, por favor.”

“Eu não estou longe de chantagear você para esse fim, Melena”, disse a Babá. “Eu posso dar um pulo a Margens Agitadas nesta tarde e descobrir onde Frex está realizando a sua reunião de retorno e sussurrar umas palavrinhas a ele. Enquanto Frex estiver ocupado tentando despertar o ardor religioso dos preguiçosos de Margens Agitadas, será que não ficará interessado em saber o que sua esposa está fazendo com Coração de Tartaruga?”

“Você é uma miserável diaba velha! Você é uma vilã repulsiva e desleal!”, gritou Melena.

A Babá sorriu, orgulhosa. “Não passa de amanhã”, ela disse, “Vamos lá amanhã e faremos Elphaba começar a viver.”

 

Pela manhã um vento forte e implacável despencou a galope das alturas. Revolveu as velhas folhas e os restos das colheitas malogradas e dos pomares. A Babá jogou um xale sobre seus ombros redondos e pôs um gorro na cabeça. Seus olhos estavam cheios de animais pelos cantos; ela continuou se virando para ver se via algum felino furtivo ou uma raposa se dissolvendo em coágulos de folhas mortas e escombros.

A Babá achara um cajado de abrunheiro para ajudá-la a atravessar as pedras e buracos do caminho, mas ela contava estar preparada para brandi-lo contra alguma besta faminta. “A terra está seca e fria”, ela observou, quase que só para si mesma. “E tão pouca chuva! É claro que os animais selvagens sairão dos montes. Vamos caminhar juntas, nada de correr na minha frente, sua verdinha.”

Fizeram a marcha em silêncio: a Babá com medo, Melena com raiva de perder sua diversão das tardes e Elphaba como um brinquedo de corda, um pé solidamente em frente do outro. As margens do lago tinham recuado, e algumas das docas naturais eram agora caminhos sobre seixos e podridões secas, com as águas sendo empurradas para além de seu alcance.

A cabana de Gawnette era de pedra preta, com um telhado moldado de sapé. Por causa das cadeiras doentes, Gawnette não estava em forma para puxar as redes de pesca ou para se ajoelhar no trabalho nas desoladas hortas. Ela era dona de uma mistura de pequenas crianças em vários graus de nudez, de gritaria, aborrecimento e agitação, que se espalhavam num pequeno bando pelo quintal sujo. Ela olhou para a família do pastor, que se aproximava.

“Bom dia, e você deve ser Gawnette”, disse a Babá alegremente. Ela estava satisfeita por ter aberto o portão e ficado em segurança dentro do jardim, mesmo o dessa choça. “O irmão Frexpar disse que nós a encontra-ríamos aqui.”

“Doce Lurline, o que dizem é verdade!”, disse Gawnette, fazendo um sinal da cruz sobre Elphaba. “Pensei que eram mentiras maldosas, e aqui está ela!”

A criança tinha diminuído a marcha para andar. Havia ali meninos e meninas, de cara escura ou branca, todos imundos, todos ávidos por alguma novidade. Embora continuassem andando, brincando de algum jogo de resistência ou faz-de-conta, não tiravam os olhos de Elphaba.

“Você sabe que esta aqui é Melena ― claro que sabe ― e eu sou sua Babá”, disse. “Temos prazer em conhecê-la, Gawnette.” Ela deu uma olhada de esguelha para Melena e mordeu seu lábio superior, sorrindo.

“Muito prazer, sem dúvida”, disse Melena, rígida.

“E precisamos de algum conselho, pois você é bem recomendada”, disse a Babá. “A menininha tem problemas, e, por melhor que possamos pensar, não temos tido boas idéias.”

Gawnette inclinou-se um pouco mais, desconfiada.

“A criança é verde”, sussurrou a Babá confidencialmente. “Você pode não ter notado, distraída por seu encanto e sua simpatia. É claro que sabemos que o bom povo de Margens Agitadas não deixará que uma coisa dessas o incomode. Mas devido a ser verde, ela é tímida. Olhe para ela. Pequena tartaruga verde assustada. Precisamos desenvolvê-la, fazê-la feliz, e não sabemos como.”

“Ela é verde mesmo”, disse Gawnette. “Não admira o inútil irmão Frexpar ter-se afastado de sua pregação por tanto tempo!” Ela jogou sua cabeça para trás e disparou a rir rouca e grosseiramente. “E só agora tomou coragem de recomeçar! Bem, ele tem culhões de fato!”

“O irmão Frexpar”, interrompeu Melena friamente, “nos lembra as Escrituras: ‘Ninguém sabe a cor de uma alma’. Gawnette, ele sugeriu que eu lhe recordasse precisamente esse texto.”

“Não diga”, murmurou Gawnette, sentindo-se punida. “Bem, então, o que vocês querem comigo?”

“Que ela brinque, que ela aprenda, que ela venha aqui e seja orientada por você. Você sabe mais do que nós”, disse a Babá.

A astuciosa vaca velha, pensou Melena. Ela está tentando a mais rara das estratégias, contar a verdade e fazê-la parecer plausível. Elas se sentaram.

“Eu não sei se eles a aceitarão”, disse Gawnette, soltando-se um pouco. “E vocês sabem que minhas cadeiras não me deixam saltar e ir detê-los quando eles correm.”

“Veremos. E é claro que haverá alguma remuneração, um dinheirinho, Melena concorda totalmente”, disse a Babá. O pedaço de horta improdutivo tinha chamado a sua atenção. Aquilo era a pobreza. A Babá deu um empurrão em Elphaba. “Bem, vá, criança, e veja como é.”

A menina não se movia, não piscava. As crianças se aproximaram dela. Havia cinco meninos e duas meninas. “Que cãozinho feio!”, disse um dos meninos mais velhos. Ele tocou Elphaba no ombro.

“Brinque direito agora”, disse Melena, quase saltando, mas a Babá conteve a sua mão para dizer: “Fique sentada.”

“Pega, vamos pegar!”, disse o menino, “quem é a mosca verde?”

“Esta não, esta não!” As outras crianças gritaram e correram para tocar Elphaba com suas mãos, e então fugiram. Ela ficou parada por um momento, insegura, as próprias mãos pendidas e agarradas, e então correu alguns passos, e parou.

“É isso aí, exercício saudável”, disse a Babá, aprovando. “Gawnette, você é um gênio.”

“Conheço meus franguinhos”, disse Gawnette. “Não diga que eu não conheço.”

Como um rebanho, as crianças voltaram à carga, dando pegadinhas e depois se afastando, correndo, mas a menina não as seguiu. Assim, aproximaram-se dela de novo.

“É verdade que vocês tem um quadling imundo feito rã morando lá também?”, disse Gawnette. “É verdade que ele come apenas grama e esterco?”

“Que foi que disse?”, gritou Melena.

“É o que dizem por aí, é verdade?”, disse Gawnette.

“Ele é um bom homem.”

“Mas é um quadling?”

“Bem ― sim.”

“Não o traga aqui então, porque ele espalha uma praga”, disse Gawnette.

“Eles não espalham coisa alguma”, protestou Melena.

“Não joga, Elphabinha querida”, a Babá alertou.

“Eu digo apenas o que ouvi dizer. Dizem que de noite, quando os quadlings dormem, suas almas saem pelas bocas e vagam por aí.”

“Gente estúpida diz um monte de coisas estúpidas.” Melena foi rude e falou alto demais. “Eu nunca vi sua alma sair de sua boca enquanto ele dormia, e eu tive um monte de oportu...”

“Querida, nada de pedras”, gritou a Babá. “Nenhuma das outras crianças tem pedras na mão.”

“Agora elas têm”, observou Gawnette.

“Ele é a pessoa mais sensível que eu já conheci”, disse Melena.

“Sensível não é lá muita coisa para a mulher de um pescador”, disse Gawnette. “Como é que é para um pastor e para a mulher do pastor?”

“Agora apareceu sangue, que vexame”, disse a Babá. “Crianças, deixem a Elfinha de lado para que eu possa limpar o corte. E eu que não trouxe um pano. Gawnette?”

“Sangrar é bom para eles, tira um pouco a fome”, disse Gawnette. “Considero sensível uma coisa muito superior a estúpido”, disse Melena, fervendo.

“Sem morder”, disse Gawnette a um de seus menininhos, e, então, vendo Elphaba abrir a boca para retaliar, ergueu-se prontamente, com cadeiras doentes ou não, e berrou, “não morda, pelo amor de Deus!”

“Crianças não são mesmo divinas?”, disse a Babá.

 

A cada dois ou três dias a Babá pegava Elphaba pela mão e caminhava devagar pela estrada sombria que levava a Margens Agitadas. Ali Elphaba ia para se misturar às sujas crianças, ficando sob a vigia da taciturna Gawnette. Frex se mudara novamente (seria confiança ou desespero?) ― andava agora ocupado em assustar povoados miseráveis com sua barba franzida e sua seleta de opiniões sobre fé. Desaparecia por oito, dez dias de cada vez. Melena praticava arpejos de piano num teclado de imitação sem som que Frex tinha esculpido para ela, para aperfeiçoar a escala.

Coração de Tartaruga parecia definhar e ressecar à medida que o outono chegava. As tardes de divertimento começaram a perder o calor da urgência e evoluíram para algo mais morno. Melena sempre apreciara as atenções de Frex e fora identicamente atenciosa com ele, mas era claro que o corpo de seu marido não havia sido tão maleável como o de Coração de Tartaruga. Ela se entregava ao sono com a boca de Coração de Tartaruga num de seus seios e as mãos ― aquelas manoplas ― vagando pelo seu corpo como bichinhos de estimação sensitivos. Ela imaginava que Coração de Tartaruga dividia seu corpo quando ela fechava os olhos; sua boca vagueava, seu pênis se erguia e se movia e encostava delicadamente, sua respiração estava em algum lugar que não a boca, silvando-lhe elegantemente nos ouvidos, algo sem palavras, seus braços parecendo estribos.

Mesmo assim ela não o conhecia, não do mesmo modo que conhecia Frex; ela não conseguia ver dentro dele como via dentro de outras pessoas. Ela atribuía isso a seus modos muito formais, mas a Babá, sempre observadora, observou certa noite que era apenas devido aos seus serem os modos de um quadling e que Melena nem havia notado que ele vinha de uma cultura diferente da sua.

“Cultura, o que é cultura?” Melena disse preguiçosamente. “Gente é gente.”

“Não se lembra de seus versinhos de infância?” A Babá pôs sua costura de lado (com alívio) e recitou.

 

“Dos meninos o estudo, das meninas o saber,

É assim que as lições costumam ser.

Meninos aprendem, meninas esquecem,

É assim que as lições permanecem.

Os de Gillikin, ferinos preparados.

Em Munchkin, todos uns superados.

Glikkuneses espancam as mulheres feias,

Winkies são sem graça nas colméias cheias.

Mas os quadlings, oh, que gente, essa!

Só rogar sujas pragas em santos lhe interessa,

São de comer seus jovens e os velhos enterrar

Um dia antes dos seus corpos esfriar.

Me dá uma maçã e eu recito de novo.”

 

“Que é que você sabe dele?” a Babá perguntou. “Será casado? Por que ele deixou o Buraco Lamacento ou qualquer que tenha sido o lugar de onde veio? Naturalmente, sei que não me cabe fazer perguntas...”

“Desde quando você conhece o seu limite e respeita isso?”

“Quando a Babá deixar os seus limites, creia, você saberá”, disse ela.

Numa noite no início do outono, por divertimento, ergueram uma fogueira no quintal. Frex estava em casa e de bom humor, e a Babá estava pensando em voltar para Solos de Colwen, o que deixava Melena bem-humorada também. Coração de Tartaruga fizera uma ceia, um desagradável goulash* com pequenas maçãs azedas novas, queijo e bacon.

Frex se sentia expansivo. O efeito daquela maldita engenhoca de tiquetaquear, o Relógio do Dragão do Tempo, estava começando a sofrer desgastes ― graças ao Deus Inominável ―, e os pobres infelizes estavam voltando a ouvir a sua arenga novamente. Uma missão de duas semanas em Três Árvores Mortas tinha sido um sucesso. Frex tinha sido presenteado com uma pequena carteira de moedas de bronze e fichas de permuta, e o brilho da devoção ou mesmo da ânsia no rosto de mais de um penitente.

“Talvez nosso tempo aqui seja limitado”, disse Frex, suspirando de contentamento e cruzando os braços atrás da cabeça ― a típica reação masculina à felicidade, pensou Melena: prognosticar sua pouca duração. Seu marido continuou. “Talvez a estrada de Margens Agitadas nos leve a coisas mais elevadas, Melena. Maiores posições na vida.”

“Oh, por favor”, ela disse. “Minha família lutou para sair de suas origens humildes por nove gerações para que eu terminasse aqui, enfiada na lama, no meio de lugar nenhum. Eu não acredito em coisas mais elevadas.”

“Eu me refiro às sublimes aspirações do espírito. Eu não estava dizendo que pretendia tomar de assalto a Cidade Esmeralda e me tornar confessor particular da Rainha Ozma.”

“Por que você não tenta se tornar o confessor de Ozma Tippetarius?” a Babá perguntou. Ela via-se a si mesma ascendendo à corte da sociedade da Cidade Esmeralda se Frex galgasse tal posição. “Que importa se o bebê real tenha só, o quê, dois anos de idade? Três? Assim, temos o governo de um rei novamente. É apenas um compromisso limitado ― como a maior parte dos negócios masculinos. Você ainda é jovem ― ela crescerá ― e estará bem colocado para influir na política...”

“Eu não me interesso em pregar na corte, nem para uma Ozma, a Devota Fanática.” Frex acendeu um cachimbo de pau de salgueiro. “Minha missão é pregar para os oprimidos e os humildes.”

“Bom homem deveria ir para o Estado de Quadling”, disse Coração de Tartaruga. “Pregar para os oprimidos de lá.”

Coração de Tartaruga não falava de seu passado com freqüência, e Melena lembrou-se da zombaria de sua Babá sobre sua falta de curiosidade. Ela espantou a fumaça para longe com a mão e perguntou: “Por que você deixou Ovvels, afinal?”.

“Horrores”, ele disse.

Elphaba, que estava por ali esperando que as formigas rastejassem sobre a mó para que pudesse esmagá-las com uma pedra, ficava olhando para a bacia rasa do moinho. Os outros esperavam que Coração de Tartaruga continuasse falando. O coração de Melena começou a palpitar com inquietação ― ela fora tomada de uma súbita premonição de que as coisas mudariam a partir dali, dessa exata noite, dessa mais esplêndida e deliciosa noite, coisas que dariam para entortar logo agora quando estavam se ajeitando.

“Que espécie de horrores?”, perguntou Frex.

“Sinto um arrepio. Vou pegar um xale”, disse Melena.

“Ou servir de pastor para Pretorius! A Rainha Ozma! Por que não, Frex?”, a Babá dizia. “Estou certa de que com as relações da família de Melena, você poderia arrancar um convite...”

“Horrores”, disse Elphaba.

Era a primeira palavra que ela dizia, e foi recebida com silêncio. Mesmo a lua, um círculo luminoso por entre as árvores, pareceu se imobilizar.

“Horrores?”, Elphaba disse novamente, olhando ao redor. Embora sua boca estivesse carrancuda, seus olhos brilhavam; ela havia percebido seu próprio feito. Ela tinha quase dois anos de idade. Os grandes dentes pontiagudos em sua boca não podiam mais manter as palavras trancadas lá dentro. “Horrores”, ela experimentou num sussurro. “Horrores”.

“Venha com a Babá, querida. Venha sentar-se no meu colo e fique um pouco quietinha.”

Ela obedeceu, mas sentou-se mais para a frente, longe do peito acolchoado da Babá, permitindo a esta que enlaçasse sua cintura, mas sem nenhum outro contato. Ela olhava com atenção para Coração de Tartaruga e esperava.

E Coração de Tartaruga falou, numa voz estupefata: “Coração de Tartaruga está achando que a criança falar pela primeira vez”.

“Sim”, disse Frex, desprendendo um anel de fumaça, “e ela está perguntando sobre os tais horrores. Você se importaria de contar-nos?...”

“Coração de Tartaruga falar pouco. Coração de Tartaruga trabalhar no vidro e deixar as palavras para Santo Homem e sua Senhora e a Babá. E agora para a Menina.”

“Fale um pouco, seja como for. Já que você trouxe o assunto à tona.”

Melena tremeu; ela não fora buscar o xale. Não conseguia se mover. Estava pesada como uma pedra.

“Trabalhadores de Cidade Esmeralda e outros lugares, eles vir ao Estado de Quadling. Eles olhar e provar e tirar amostras do ar, da água, do solo. Eles planejar a estrada. Quadlings saber que isso é tempo perdido e esforço inútil. Eles não escutar as vozes dos quadlings.”

“Os quadlings não são engenheiros de estrada, suspeito”, disse Frex tranqüilamente.

“A região é delicada”, disse Coração de Tartaruga. “Em Ovvels as casas flutuar entre árvores. Plantas crescer em pequenas plataformas enganchadas em cordas. Meninos mergulhar na água rasa para colher pérolas. Muitas árvores, e não tem luz o bastante para colheitas e saúde. Poucas árvores e a água sobe e as raízes de plantas flutuando por cima não podem alcançar o solo. Estado de Quadling é região pobre, mas ser rico de beleza. Só sustentar vida por planejamento cuidadoso e cooperação.”

“Portanto, a resistência à Estrada dos Tijolos Amarelos...”

“É só uma parte da história. Quadlings não poder convencer engenheiros da estrada, que querer construir diques de lama e pedra e cortar o Estado de Quadling em pedaços. Quadlings discutir, e implorar, e provar, e não poder vencer com palavras.”

Frex segurava seu cachimbo com as duas mãos e observava Coração de Tartaruga falando. Frex estava cativado por ele; Frex ficava sempre cativado pela intensidade.

“Quadlings planejam lutar”, disse Coração de Tartaruga. “Porque eles achar que isso é apenas o começo. Quando os construtores testar solo e peneirar água, eles aprender o que os quadlings sabem faz tempo, mas ficar quietos.”

“Coisas que você sabe?”

“Coração de Tartaruga falar de rubis”, ele disse, com um grande suspiro. “Rubis debaixo da água. Vermelhos como o sangue do pombo. Engenheiros dizer: Corundum* vermelho em grupos de calcário cristalino sob o pântano. Quadlings dizer: o sangue de Oz.”

“Como o vidro vermelho que você faz?”, disse Melena.

“Vidro cor de rubi surgir pela adição de cloreto de ouro”, disse Coração de Tartaruga. “Mas o Estado de Quadling situado bem no topo de depósitos de verdadeiros rubis. E a notícia por certo chegar à Cidade Esmeralda pela boca dos engenheiros. Depois será horror atrás de horror.”

“Como você sabe?” perguntou Melena vivamente.

“Ver no vidro”, disse Coração de Tartaruga, apontando para a rodela que fizera como brinquedo para Elphaba, “é ver no futuro, em sangue e rubis.”

“Não acredito em ver o futuro. Isso me cheira à fé no prazer”, disse Frex raivosamente. “O fatalismo do Dragão do Tempo. Pfahh. Não, o Deus Inominável traçou para nós uma história insondável, e a profecia é mera adivinhação e medo.”

“Medo e adivinhação é o bastante para fazer Coração de Tartaruga deixar o Estado de Quadling, então”, disse o soprador de vidro sem se desculpar. “Quadlings não chamar sua religião uma fé no prazer, mas eles escutar sinais e observar mensagens. Quando a água correr vermelha com rubis, vai correr com o sangue dos quadlings.”

“Besteira!” Frex reagiu, aborrecido, ficando também avermelhado. “Eles precisam de uma boa conversa.”

“Além disso, o tal Pastorius não é um simplório?”, disse Melena, que, separada dos dois, proclamava uma opinião que corria pela casa real. “O que ele fará até que Ozma alcance a idade certa para reinar além de chefiar caçadas, e comer delícias dos pasteleiros de Munchkin, e tentar transar com as empregadas domésticas que passarem por perto?”

“O perigo é um estrangeiro”, disse Coração de Tartaruga, “não uma rainha ou rei criados por aqui. As velhas mulheres, e os xamãs, e os moribundos: eles ver um estranho rei, cruel e poderoso.”

“O que está o Regente Ozma fazendo, planejando obras rodoviárias naquele lamaçal abandonado por Deus novamente?” Melena perguntou.

“Progresso”, disse Frex, “significa a Estrada dos Tijolos Amarelos cruzar a Terra de Munchkin. Progresso e controle. O movimento das tropas. A regularização das taxas. Proteção militar.”

“Proteção contra quem?”, disse Melena.

“Ahh”, disse Frex, “essa é a pergunta importante.”

“Ahh”, disse Coração de Tartaruga, quase num sussurro.

“Então, para onde você vai?”, disse Frex. “Não que você precise nos deixar, claro. Melena ama a sua presença. Nós todos a amamos.”

“Horrores”, disse Elphaba.

“Quietinha, agora”, disse a Babá.

“A Dama é bondosa e Homem Santo é bondoso para Coração de Tartaruga. Que nunca pretendeu ficar mais que um dia. Coração de Tartaruga estava a caminho da Cidade Esmeralda e se perder. Coração de Tartaruga esperar pedir audiência com Ozma...”

“Ozma Regente, agora”, interpôs Frex.

“... e implorar misericórdia para a Terra de Quadling. E avisar sobre o estrangeiro brutal...”

“Horrores”, disse Elphaba, batendo palmas com prazer.

“A criança lembrar Coração de Tartaruga de seus deveres”, ele disse. “Falar disso trazer obrigações de volta com a dor do passado. Coração de Tartaruga esquecer. Mas quando as palavras são faladas no ar, as ações dever segui-las.”

Melena olhou com ódio para a Babá, que tinha posto a menina no chão e começado a se ocupar com guardar a louça da ceia. Veja o que dá se intrometer e xeretar, Bá? Está vendo? Apenas a destruição de minha única felicidade nesta terra, só isso. Melena desviou seu rosto da criança horrível, que parecia estar sorrindo, ou aquilo era um estremecimento? Ela olhava para seu marido com desespero. Faça alguma coisa, Frex!

“Talvez seja essa a ambição mais elevada que procuramos”, ele estava murmurando. “Deveríamos ir para Quadling, Melena. Deveríamos deixar o luxo da Terra de Munchkin e testar-nos a nós mesmos na fogueira de uma situação de privação verdadeira.”

“O luxo da Terra de Munchkin?”, a voz de Melena era estridente.

“Quando o Deus Inominável fala através de um humilde vaso”, começou Frex, gesticulando para Coração de Tartaruga, que parecia desesperado novamente, “podemos escolher ouvir ou escolher ensurdecer nossos corações...”

“Bem, ouça isto, então”, disse Melena. “Estou grávida, Frex. Não posso viajar. Não posso me mexer. Estou com uma nova criança para cuidar, bem como já tenho Elphaba para criar, é demais você sugerir que a gente fique vagueando lá por aquela Terra de Lama.”

Depois que o silêncio que sobreveio perdeu um pouco de seu impacto, ela continuou. “Bem, não era a minha intenção revelar a coisa assim.”

“Parabéns”, disse Frex friamente.

“Horrores”, disse Elphaba à sua mãe. “Horrores, horrores, horrores.”

“Já basta de conversa fiada por esta noite", disse a Babá, tomando a frente. “Melena, você pegará um resfriado ficando aí. As noites de verão estão ficando mais frias de novo. Vamos para dentro e vamos deixar a coisa rolar.”

Mas Frex se levantou e foi beijar a sua esposa. Não estava claro para ninguém se ele suspeitava que Coração de Tartaruga fosse o pai, nem estava claro para Melena qual deles, seu marido ou seu amante, era o pai. Ela na verdade não se importava. Ela só não queria que Coração de Tartaruga partisse, e ela o odiou com fúria por ficar tão repentinamente dividido pelo sentimento moral por seu povo miserável.

Frex e Coração de Tartaruga conversaram em voz baixa que Melena não pôde captar. Sentaram-se junto ao fogo, cabisbaixos, e Frex pôs o braço sobre os ombros trêmulos de Coração de Tartaruga. A Babá preparou Elphaba para ir dormir, deixou-a lá fora com os homens, e veio depois sentar-se na cama de Melena com um copo de leite quente numa bandeja e uma pequena tigela de cápsulas medicinais.

“Bem, eu sabia que isso ia acontecer”, disse a Babá calmamente. “Beba o leite, querida, e pare de lamuriar. Está-se comportando como uma criança novamente. Há quanto tempo você sabe?”

“Oh, seis semanas”, disse Melena. “Não quero leite, Bá, quero vinho.”

“Você vai beber é leite mesmo. Nada de vinho até o bebê nascer. Você quer gerar outra catástrofe?”

“Tomar vinho não muda a cor de pele dos embriões”, disse Melena. “Eu posso ser uma bobalhona, mas isso de biologia eu sei.”

“É ruim para seu estado de espírito, nada mais nada menos. Beba o leite e engula uma destas cápsulas.”

“Para quê?”

“Eu fiz o que lhe disse que ainda ia fazer”, disse a Babá, numa voz conspiratória. “No último outono eu dei uma xeretada lá pelo Baixo Mundo de nossa capital pensando em te ajudar...”

Melena ficou subitamente alerta. “Bá, a senhora não devia! Que cabeça! Não ficou aterrorizada?”

“Claro que fiquei. Mas esta Babá ama você, não importa quão estúpida você seja. Eu achei uma loja marcada com as insígnias do negócio dos alquimistas.” Ela franziu seu nariz à lembrança do cheiro de gengibre apodrecido e urina de gato. “Eu me sentei com uma velha vendedora de Shiz de jeito atrevido, uma idosa chamada Yackle, e bebi o chá e virei a xícara para que ela pudesse ler as folhas. Yackle mal podia ver sua própria mão, quanto mais ler o futuro.”

“Uma verdadeira profissional”, Melena disse secamente.

“Seu marido não acredita em previsões, portanto, fale baixo. De qualquer modo, eu expliquei o verdor de seu primeiro filho e a dificuldade de saber por que exatamente isso aconteceu. Não queremos uma repetição, eu disse. Assim, Yackle catou algumas ervas e minerais, torrou-os com óleo de gomba, e fez algumas rezas pagas, e tudo que me lembro foi que cuspiu na coisa ― eu não fiquei olhando de muito perto. Mas eu paguei por um suprimento de nove meses, para começar assim que você tomasse ciência da gravidez. Estamos atrasadas em um mês, mas isso será melhor que nada. Eu tenho suprema confiança nessa mulher, Melena, e você deveria ter também.”

“Por quê?”, disse Melena, engolindo a primeira das nove cápsulas. Tinha um sabor de tutano cozido.

“Porque Yackle previu grandeza para os seus filhos”, disse a Babá. “Ela disse que Elphaba será mais do que você acredita, e o segundo seguirá o padrão. Ela disse para você não desistir da vida. Ela disse que a história ainda está para ser escrita, e que sua família tem uma parte nela.”

“O que ela diz sobre meu amante?”

“Você é uma peste”, disse a Babá. “Ela disse para você repousar e não se preocupar. Ela deu a sua bênção. Ela é uma piranha imunda, mas sabe do que está falando.” A Babá não mencionou que Yackle tinha certeza de que o próximo filho seria uma menina também. Havia chance demais de que Melena tentasse abortar, e Yackle parecia completamente segura de que a história pertencia a duas irmãs, não a uma menina apenas.

“E você chegou em casa com segurança? Ninguém suspeitou?”

“Quem suspeitaria que a velha avozinha inocente estaria comprando substâncias ilegais no Baixo Mundo?”, riu a Babá. “Eu faço meu tricô e cuido de minha vida. Agora, vá dormir, meu amor. Nada de vinho pelos próximos meses. Tome esse remédio direitinho e teremos para você e Frex uma criança decente, sadia, que vai garantir uma recuperação sem-fim para o seu casamento.”

“Meu casamento está perfeitamente bem”, disse Melena, aconchegando-se sob as cobertas ― a cápsula teve um efeito vigoroso, mas ela não queria que a Babá soubesse ―, “desde que não nos ponhamos a chapinhar na lama ao pôr-do-sol.”

“O sol se põe no oeste, não no sul”, disse a Babá brandamente. “Foi golpe de mestre falar da gravidez esta noite, minha cara. Eu não viria visitar-lhes se vocês estivessem remando para o Estado de Quadling, aliás, faço cinqüenta anos neste ano, como sabe. Há algumas coisas em que a Bá é realmente velha demais para fazer.”

“O bom é que ninguém vá a lugar nenhum”, disse Melena, e começou a pegar no sono.

A Babá, satisfeita consigo mesma, lançou um olhar pela janela nova-mente enquanto se preparava para repousar. Frex e Coração de Tartaruga travavam ainda uma profunda conversa. A Babá era mais perspicaz do que deixava transparecer; ela vira o rosto de Coração de Tartaruga quando ele estava lembrando a ameaça feita a seu povo. Ele se abrira como um ovo de galinha e a verdade saltou para fora, palpitando com a mesma inocência de um pintinho amarelo. E com a mesma fragilidade. Não admira que Frex se sentasse ao lado do assediado quadling muito mais perto do que ela considerava totalmente digno. Mas parecia não haver fim para a bizarrice nessa família.

“Mande a menina para cá para eu levá-la pra dormir”, ela falou da janela, em parte para interromper a intimidade dos dois.

Frex olhou ao redor. “Ela está aí, não está?”

A Babá deu uma olhadela. A criança não era dada a brincadeiras de esconde-esconde, nem ali nem com os pirralhos da aldeia. “Não, ela não está com vocês?”

Os homens se viraram e olharam. A Babá pensou ter visto um borrão de movimento nas sombras azuis do teixo selvagem. Ela se ergueu um pouco mais e se apoiou no parapeito. “Bem, saiam à procura dela. É hora de bicho sair para caçar.”

“Não tem nada aqui, Bá, é a sua imaginação exagerada”, Frex falou arrastadamente, mas os homens ficaram rapidamente alertas e olharam ao redor.

“Melena, querida, não durma ainda; você sabe onde Elphaba está? Você a viu sair por aí?”, disse a Babá.

Melena lutou para conseguir se apoiar num cotovelo. Lançou um olhar por entre os cabelos caídos e o ar embriagado. “O que vocês estão dizendo?”, perguntou numa linguagem indecifrável, “quem está andando por aí?”

“Elphaba”, a Babá disse. “Venha, melhor você se levantar. Onde ela pode estar? Onde ela pode estar?” Ela se pôs a ajudar Melena a ficar em pé, mas isso ia muito devagar, e o coração da Babá começara a bater apressado. Ela puxou as mãos de Melena para os pés da cama, dizendo: “Vamos, Me-lena, isso não é nada bom”, e pegou o seu cajado de abrunheiro.

“Quem?”, disse Melena. “Quem se perdeu?”

Os homens estavam chamando no lusco-fusco purpúreo pelo qual vagavam. “Fabala! Elphaba! Elfinha! Rãzinha!” Eles circulavam longe do quintal, longe das brasas mortiças da fogueira feita para a ceia, perscrutando e batendo nos galhos mais baixos dos arbustos. “Cobrinha! Menina-lagarto! Onde está você?”

“É a coisa, a coisa desceu lá das colinas, seja lá o que for!”, gritou a Babá.

“Não há coisa nenhuma, sua velha tola”, disse Frex, mas ele pulava cada vez com mais força de pedra em pedra por trás da casinha, quebrando os galhos ao lado com estalos. Coração de Tartaruga estava imóvel, suas mãos erguidas para o céu, como se estivesse tentando receber a luz desmaiada das primeiras estrelas dentro de suas palmas.

“É Elphaba?”, perguntou Melena da porta, finalmente conseguindo fixar os olhos e dando passos à frente com sua camisola de dormir. “A criança se foi?”

“Ela sumiu, ela foi levada”, disse a Babá furiosamente, “esses dois idiotas estavam flertando como duas colegiais e o animal das colinas vai chegar!”

Melena chamou, suas palavras crescendo em intensidade e terror: “Elphaba! Elphaba, me escute! Vem pra cá neste instante! Elphaba!”

Só o vento respondia.

“Ela não está longe”, disse Coração de Tartaruga depois de um momento. Na escuridão profunda ele estava quase invisível, enquanto Melena, em sua camisola branca de algodão cru, brilhava como um anjo, como que iluminada por dentro. “Ela não está longe, apenas não está aqui.”

“Que diabo você quer dizer”, a Babá disse, chorando, “com seus enigmas e charadas?”

Coração de Tartaruga tombou. Frex havia retornado a ele para lançar um braço em torno dele e erguê-lo, e Melena veio pelo outro lado. Ele se inclinou um pouco, como se estivesse desmaiando; Melena gritou de medo. Mas Coração de Tartaruga conseguiu se aprumar e erguer, e começou a andar, e eles se dirigiram para o lago.

“O lago não, a menina não iria, ela não suporta água, vocês sabem”, lembrou a Babá, mas ela já se apressava em segui-los, usando seu cajado para sentir o chão à sua frente e não tropeçar.

Isto é o fim, pensou Melena. Seu cérebro estava enevoado demais para que pensasse outra coisa, e ela o repetiu seguidamente, como se para impedir que a coisa se concretizasse.

Isto é o começo, pensou Frex, mas de quê?

“Ela não está longe, ela não está aqui”, disse Coração de Tartaruga novamente.

“Castigo para seus pecados, seus hedonistas de duas caras”, a Babá disse.

O chão fazia um declive em direção à margem plácida, recuada, do lago. Primeiro à altura de seus pés, depois de suas cinturas, e mais além, a doca em forma de praia se erguia como uma ponte para lugar nenhum, terminando no ar.

Debaixo da doca, nas sombras, havia uns olhos.

“Oh, doce Lurline”, murmurou a Babá.

Elphaba estava sentada debaixo da doca com o espelho que Coração de Tartaruga fizera. Ela o segurava nas duas mãos, e o fitava com um olho fechado. Ela o perscrutava, envesgava; seu olho aberto estava distante e vazio.

Reflexo da luz nas estrelas que vinha das águas, pensou Frex, ansiou Frex, mas ele sabia que o vazio olho reluzente não era iluminado pelas estrelas.

“Horrores”, murmurava Elphaba.

Coração de Tartaruga caiu de joelhos. “Ela vê o homem chegando”, disse roucamente, “ela vê o homem chegar; ele vir do ar; está por perto. Um balão do céu, da cor de uma bolha de sangue, um enorme globo carmim, um globo de rubi: ele cai do céu. O Regente está caído. A Casa de Ozma caída. O Relógio estava certo. Um minuto para o Juízo.”

Ele tombou, quase no pequeno colo de Elphaba. Ela não pareceu notá-lo. Atrás dela ouvia-se um rosnado surdo. Havia ali um animal, um tigre do topo das colinas, ou algum estranho híbrido de tigre e dragão, com brilhantes olhos alaranjados. Elphaba estava sentada nas suas patas dianteiras como se estivesse acomodada num trono.

“Horrores”, ela disse novamente, olhando sem visão binocular, fixando os olhos no espelho onde seus pais e a Babá não podiam ver nada além de escuridão. “Horrores.”

 

Wittica, Settica, Curva de Wiccasand, Areia Vermelha, Casa de Dixxi, muda em Casa de Dixxi para Shiz; siga a bordo deste vagão por todos os pontos do Leste; Tenniken, Brox Hall, e todos os caminhos para Traum” ― o condutor parava para tomar fôlego e voltava a falar ― “próxima parada Wittica, Wittica chegando!”

Galinda apertou seu pacote de roupas junto ao peito. O velho bode que se estatelava no assento diante do dela estava perdendo a parada em Wittica. Ela estava satisfeita com o fato de os trens deixarem os passageiros sonolentos. Não queria continuar evitando o seu olhar. No último momento antes que ela entrasse no trem, sua conselheira, Ama Clutch, pisara num prego enferrujado e, aterrorizada com a síndrome da cara-paralisada, pedira permissão para ir à sala de cirurgia mais próxima para tomar remédios e ouvir palavras tranqüilizadoras. “É claro que eu posso ir para Shiz sozinha”, Galinda dissera friamente, “não se preocupe comigo, Ama Clutch”. E Ama Clutch não se preocupara. Galinda esperava que Ama Clutch sofresse uma pequena paralisia no queixo antes que ficasse bem o bastante para aparecer em Shiz e fazer o papel de companheira de Galinda perante qualquer acontecimento que estivesse por vir.

Seu próprio queixo estava duro, ela acreditava, revelando um aborrecimento enorme com a viagem de trem. Na verdade, ela nunca estivera mais que um dia de viagem de carruagem longe da casa de sua família na pequena cidade comercial de Frottica. A linha ferroviária, construída havia uma década, fizera com que as fazendas de laticínios fossem retalhadas em propriedades estatais para os comerciantes e fabricantes de Shiz. Mas a família de Galinda continuara a preferir a Gillikin rural, com seus covis de raposas, seus vales encharcados, seus isolados templos pagãos em honra a Lurline. Para eles, Shiz era uma ameaça urbana distante, e mesmo a comodidade do transporte ferroviário não os seduzia a assumir os riscos das complicações, curiosidades e costumes malignos da cidade.

Galinda não via o mundo verdejante que se descortinava pelo vidro do vagão; em vez dele, via seu próprio reflexo. Ela tinha a miopia da juventude. Raciocinava que, por ser bonita, era importante, embora o que ela importasse, e para quem, não fosse claro ainda. O vaivém de sua cabeça fazia os longos anéis cremosos de seus cabelos balançar, captando a luz, como uma pilha de moedas que se entrechocassem. Seus lábios eram perfeitos, tão bicudinhos como uma dedaleira a desabrochar, e coloridos de um rubro cintilante. Seu roupão de viagem verde almofadado em musselina ocre sugeria riqueza, enquanto o xale negro caindo tão bem em seus ombros era um sinal de suas inclinações acadêmicas. Afinal, ela estava a caminho de Shiz porque era inteligente.

Mas havia mais que uma maneira de ser inteligente. Ela tinha dezessete anos. A cidade inteira de Frottica a vira partir. A primeira garota de Pertha Hills a ser aceita em Shiz! Ela se saíra bem nos exames iniciais, escrevendo uma meditação em Aprendendo a Ética do Mundo Natural (“As Flores Ficam Sentidas ao Ser Colhidas para Formar um Buquê? As Chuvas Praticam Abstinência? Os Animais Podem Escolher Ser Bons? Ou: Uma Filosofia Moral para a Primavera.”) Ela extraíra citações da Ozíada em ex-cesso, e sua prosa arrebatada cativara a mesa de examinadores. Uma bolsa de estudos de três anos em Crage Hall. Não era um dos melhores colégios ― esses eram ainda fechados para mulheres. Mas era a Universidade de Shiz.

Seu companheiro no compartimento, despertando quando o condutor retornou, esticou os calcanhares para bocejar. “Você faria o favor de pegar a minha passagem, está na parte de cima”, ele disse. Galinda se ergueu e encontrou a passagem, consciente de que a velha coisa barbuda estava examinando sua atraente figura. “Aqui está”, ela disse, e ele respondeu, “Não para mim, queridinha, para o condutor. Sem polegares opostos, não tenho esperança de pegar um pedacinho de cartolina.”

O condutor perfurou a passagem e disse: “Você é o único animal que está autorizado a viajar de primeira classe”.

“Oh”, disse o bode. “Faço objeção ao termo animal. Mas as leis ainda permitem que eu viaje de primeira classe, presumo?”

“Dinheiro é dinheiro”, disse o condutor, sem má vontade, perfurando a passagem de Galinda e devolvendo-a a ela.

“Não, dinheiro não é dinheiro”, disse o bode, “não se levarmos em conta que minha passagem custou o dobro da dessa jovem senhora. Nesse caso, dinheiro é um visto. Acontece que eu tenho um aqui.”

“Indo para Shiz, não é?”, disse o condutor para Galinda, ignorando a observação do bode. “Eu posso notar pelo xale acadêmico.”

“Oh, bem, é algo a fazer”, disse Galinda. Ela não se importava de conversar com condutores. Mas quando ele se afastou, seguindo para o fundo do vagão, Galinda descobriu que gostava menos ainda do maligno olhar que o bode lançava sobre ela.

“Você espera aprender alguma coisa em Shiz?”, ele perguntou.

“Eu já aprendi a não falar com estranhos.”

“Então, eu vou me apresentar e não seremos mais estranhos. Eu sou Dillamond.”

“Não estou disposta a conhecê-lo.”

“Sou membro graduado da Universidade de Shiz, da Faculdade de Artes Biológicas.”

Você é um maltrapilho, mesmo para um bode, Galinda pensou. Dinheiro não é tudo. “Então, devo superar minha timidez natural. Meu nome é Galinda. Sou do clã de Arduenna pelo lado materno.”

“Deixe-me ser o primeiro a lhe dar boas-vindas a Shiz, Glinda. É o seu primeiro ano?”

“Por favor, é Galinda. A apropriada velha pronúncia gillikinesa, se você não se importa.” Ela não conseguia chamá-lo de senhor. Não com aquele horrível cavanhaque e aquele colete puído que parecia recortado do capacho de algum botequim.

“O que você acha dos Interditos propostos para viagem pelo Mágico?” Os olhos do bode eram untuosos, cálidos, e assustadores. Galinda não tinha a menor idéia do que eram Interditos. E foi franca. Dillamond ― será que era Doutor Dillamond? ― explicou em tom informal que o Mágico pensava em restringir a presença de Animais em transportes públicos, com exceção dos veículos designados para esse fim. Galinda respondeu que os animais tinham sempre gozado de serviços à parte. “Não, estou falando de Animais. Aqueles que possuem um espírito.”

“Oh, aqueles”, disse Galinda asperamente. “Bem, eu não consigo ver o problema.”

“Ora, ora”, disse Dilamond. “Não consegue mesmo?” O cavanhaque tremia; ele estava irritado. Ele começou a doutriná-la agressivamente sobre os Direitos Animais. Do jeito de as coisas iam, sua própria velha mãe não poderia viajar de primeira classe, e teria de usar um cercado para animais quando quisesse visitá-lo em Shiz. Se os Interditos do Mágico passassem pela Sala de Aprovação, como parecia que passariam, ele próprio seria intimado pela lei a abrir mão dos privilégios que ganhara através de anos de estudo, treinamento e economia. “Isso lá é certo para uma criatura dotada de espírito?”, ele disse. “Daqui para lá, de lá para cá, numa gaiolinha?”

“Concordo plenamente, viajar é tão instrutivo”, disse Galinda. Eles suportaram o resto da viagem, incluindo a mudança na plataforma em Casa de Dixxi, num gélido silêncio.

 

Vendo seu espanto com o tamanho e o alvoroço do terminal de Shiz, Dillamond ficou com pena e ofereceu-se para apanhar uma carruagem para levá-la a Crage Hall. Ela o seguiu, tentando parecer o menos mortificada possível. Sua bagagem foi logo atrás, nas costas de uma dupla de carrega-dores.

Shiz! Ela tentava não parecer deslumbrada. Todo mundo se agitando com suas ocupações, rindo e se afobando e se beijando, se enfiando em carruagens, enquanto os edifícios da Praça da Ferrovia, de pedras marrons e azuis e cobertos com trepadeiras e musgo, lançavam vapor suavemente à luz do sol. Os animais ― e os Animais! Ela mal se dera conta dos estranhos frangos que piavam filosoficamente em Frottica ― mas ali via um quarteto de zebras num café ao ar livre, vestidas vistosamente com faixas preto-e-branco de cetim no figurino de seu desenho natural; e um elefante em suas patas traseiras orientando o tráfego; e um tigre trajado em algum tipo de uniforme religioso exótico, uma espécie de monge ou monja ou freira ou qualquer coisa do gênero. Sim, sim, eram Zebras e Elefante e Tigre e o pretenso Bode. Ela teria de se acostumar a pronunciar as letras maiúsculas ou senão revelaria suas origens caipiras.

Compassivamente, Dillamond conseguiu-lhe uma carruagem com um condutor humano e levou-o a Grange Hall, pagando adiantado, pelo que Galinda tivera de esboçar um fraco sorriso de aprovação. “Nossos caminhos vão se cruzar outra vez”, disse Dillamond, galante embora meio áspero, como se lançando uma profecia, e desapareceu enquanto a carruagem seguia, sacolejante. Galinda se afundou novamente nas almofadas. Ela começou a lamentar que Ama Clutch tivesse perfurado seu pé com um prego.

Crage Hall ficava a apenas vinte minutos da Praça da Ferrovia. Atrás de seus próprios muros de pedra azul, o complexo se erguia com largas janelas de vidro pálido em formação de lanceta. Uma tessela de quatrifólios e multifólios tapados margeava com excesso a linha do telhado. A apreciação de arquitetura era uma paixão particular de Galinda, e ela olhava com cuidado para as características que podia identificar, embora as trepadeiras e os musgos tornassem indistintos muitos dos mais belos detalhes dos edifícios. Bem depressa ela ficava desorientada.

A Diretora de Crage Hall, uma mulher gillikinesa de cara de peixe, pertencente à classe mais alta, usando uma porção de pulseiras soltas, estava cumprimentando os recém-chegados no átrio. A Diretora fugia ao tom pardacento do traje profissional das mulheres que Galinda esperava encontrar. Em vez disso, a mulher imponente estava usando um roupão cor de groselha estampado com padrões de círculos de preto retinto sobre o corpete como se fossem sinais musicais em partituras soltas.

A sala de visitas estava cheia de belas jovens, todas vestidas de verde ou azul e carregando xales negros às costas como se fossem sombras cansadas. Galinda estava satisfeita com as vantagens naturais de seu cabelo louro, e se punha a uma janela para que a luz pudesse dar mais relevo aos seus anéis. Ela pouco bebericou o chá. Num cômodo ao lado, as Amas acompanhantes estavam se servindo de uma chaleira, e rindo e tagarelando já como se fossem velhas amigas de uma mesma aldeia. Era um tanto grotesco, aquelas mulheres desleixadas rindo uma para outra, fazendo um rebuliço de feira.

Galinda não lera o impresso delgado bem de perto. Ela não tinha percebido que haveria uma necessidade de “colegas de quarto”. Ou teriam seus pais pago algum extra para que ela pudesse ter um aposento particular? E onde ficaria Ama Clutch? Olhando ao redor, notava que algumas daquelas jovens embonecadas procediam de famílias muito melhores que a sua. Ah, as pérolas e diamantes que as cobriam! Galinda estava satisfeita de ter escolhido um simples colar de prata com suportes de metanito. Havia algo de vulgar em viajar coberta de jóias. Assim que percebeu essa verdade, ela transformou-a numa frase de efeito. A primeira perfeita oportunidade ela a usaria como prova de que era capaz de ter opiniões ― e de que era viajada. “A viajante excessivamente vestida traz mais interesse em ser vista do que em ver”, ela murmurava, experimentando seu efeito, “enquanto a verdadeira viajante sabe que o mundo novo à sua frente serve como o acessório mais apropriado.” Bom, muito bom.

Madame Morrible contava as cabeças, segurava uma xícara de chá e tangia todas para a Sala Principal. Ali Galinda percebeu que permitir a Ama Clutch que fosse à procura de ajuda médica tinha sido um enorme equívoco. Aparentemente, aquele bate-papo todo entre as Amas não fora frívolo e sociável. Elas tinham sido instruídas para sortear entre elas as jovens às quais deveriam fazer companhia. As Amas tinham sido instruídas a chegar mais rapidamente ao xis do problema do que as próprias estudantes. Ninguém falara por Galinda ― ela fora sem representação!

Depois das esquecíveis observações de boas-vindas, enquanto par a par as estudantes e Amas saíam para localizar seus alojamentos e neles se instalar, Galinda se descobriu pálida de embaraço. Ama Clutch, a velha tonta, a teria colocado habilidosamente junto de alguém com apenas alguns furos acima na escala social! Próxima o bastante para que Galinda não ficasse envergonhada, e acima o bastante para que a aproximação social fosse digna de ser empreendida. Mas agora, todas as melhores jovens estavam agregadas. Diamante com diamante, esmeralda com esmeralda, pelo que ela podia notar! Enquanto a sala se esvaziava, Galinda pensava se não deveria tomar a iniciativa de se adiantar e interromper Madame Morrible, explicando o problema. Galinda era, afinal de contas, uma Arduenna das Terras Altas, ao menos por um lado. Era um acidente medonho. Seus olhos estavam esgazeados.

Mas ela não teve coragem. Ficou empoleirada à beira da cadeira frágil, estupidificada. Exceto por ela, todo o centro da sala se esvaziara, e as jovens mais inibidas e dispensáveis tinham desaparecido, esgueirando-se pelas bordas, nas sombras. Cercada por uma fileira de obstáculos de cadeiras douradas vazias, Galinda fora deixada sozinha como uma valise não reclamada.

“Agora o resto de vocês ficou aqui sem Amas, vejo”, disse Madame Morrible, com o nariz um pouco torcido. “Já que exigimos acompanha-mento, vou indicar cada uma de vocês a um dos três dormitórios para calouros, que servem para quinze garotas cada. Não há discriminação social quanto aos dormitórios, posso acrescentar. Nenhuma.” Mas ela estava mentindo, e não era nem convincentemente.

Galinda finalmente se levantou. “Por favor, Madame Morrible, há um mal-entendido. Eu sou Galinda dos Arduennas. Minha Ama enfiou um prego em seu pé na viagem e foi detida por uns dias. Eu não fico na turma do dormitório, portanto.”

“Que triste para você”, disse Madame Morrible, sorrindo. “Tenho certeza de que sua Ama ficaria satisfeita de ser sua acompanhante no, digamos, Dormitório Rosa? Quarto andar à direita...”

“Não, ela não ficaria satisfeita”, interrompeu Galinda, tomando coragem completa. “Eu não estou aqui para ficar num dormitório Rosa ou qualquer outro. A senhora entendeu mal.”

“Eu não entendi mal, Senhorita Galinda”, disse Madame Morrible, parecendo-se mais e mais com um peixe à medida que seus olhos começavam a se arregalar. “Há acidente, há atraso, há decisões a ser tomadas. Como não foi equipada, por sua Ama, a tomar sua própria decisão, eu tenho autoridade para fazê-lo pela senhorita. Por favor, estamos ocupadas e eu devo classificar as outras jovens que vão se juntar a você no Dormitório Rosa...”

“Eu preciso ter uma conversa particular com a senhora, Madame”, disse Galinda, em desespero. “Para mim, companheiras de dormitório ou uma simples colega de quarto não faz diferença. Mas não posso recomendar que a senhora peça à minha Ama para supervisionar outras jovens por razões que não posso revelar em público.” Ela estava mentindo com tanta segurança quanto lhe era possível, e bem melhor que Madame Morrible, que parecia no mínimo intrigada.

“Está me parecendo impertinente, Senhorita Galinda”, ela disse suavemente.

“Eu ainda não importunei a senhora, Madame Morrible.” Galinda embrulhou sua fala atrevida com o mais doce de seus sorrisos.

Madame Morrible escolheu rir, graças a Lurline! “Uma fagulha de ousadia! Pode vir a meus aposentos nesta noite e me relatar a história das falhas de sua Ama, pois preciso saber quais foram. Mas quero lhe propor um compromisso, Senhorita Galinda. A menos que faça objeção, eu terei de pedir à sua Ama para acompanhar você e outra jovem que venha também desprovida de Ama. Pois, compreenda, todas as outras estudantes com Amas já fizeram suas duplas, e você ficou sendo a nota dissonante.”

“Estou certa de que minha Ama poderá fazer isso, no mínimo.”

Madame Morrible deu uma olhada na página com os nomes e disse: “Muito bem. Para se juntar à Senhorita Galinda dos Arduennas num quarto duplo... devo convidar a Terceira Descendente do Thropp, vinda de Pedras do Ninho, Elphaba?”

Ninguém se mexeu. “Elphaba?”, disse Madame Morrible novamente, ajustando suas pulseiras e pondo dois dedos na base de sua garganta.

A jovem estava lá no fundo da sala, uma pobretona com um vestido vermelho de vistosos arabescos, e com um par de botas de sola reforçada, dos usados por gente velha. A princípio, Galinda pensou que o que via era um jogo de luz, um reflexo dos edifícios adjacentes cobertos de trepadeiras e musgo. Mas quando Elphaba deu um passo adiante, puxando sua própria bagagem, ficou óbvio que ela era verde. Uma jovem de talhe sombrio com pele verde putrefata e cabelos pretos longos, que pareciam de uma estrangeira. “Uma munchkinesa de nascimento, embora com muitos anos passados na Terra de Quadling”, Madame Morrible leu em suas anotações. “Que fascinante para nós, Senhorita Elphaba. Ficaremos ansiosas por ouvir histórias de lugares e épocas exóticos. Senhorita Galinda e Senhorita Elphaba, aqui estão as suas chaves. Vocês podem ocupar o vinte e dois no segundo andar.”

Ela sorriu generosamente para Galinda quando as jovens se aproximaram. “Viajar é tão instrutivo”, ela entoou. Galinda ficou aterrorizada, a praga de suas próprias palavras voltava-se contra ela. Fez uma mesura e fugiu. Elphaba, com os olhos postos no chão, seguiu-a.

 

Quando Ama Clutch chegou no dia seguinte, com o pé enrolado numa bandagem três vezes maior que seu tamanho natural, Elphaba já havia tirado da mala seus poucos pertences. Estavam pendurados como trapos nos ganchos do armário; magras, informes peças, como que envergonhadas e jogadas para um canto pelos cintos cafonas, anquinhas engomadas e ombreiras e cotoveleiras almofadadas do guarda-roupa de Galinda. “Estou feliz como o quê de ser sua Ama também, isso não me importa”, disse a Ama, sorrindo largamente na direção de Elphaba, antes que Galinda tivesse uma oportunidade de chamá-la sozinha de lado e lembrá-la de que sua função implicava uma recusa. “É claro que meu pai está pagando você para ser a minha Ama”, disse Galinda significativamente, mas Ama Clutch respondeu: “Nem tanto assim, patinha, nem tanto assim. Eu posso tomar minhas próprias decisões”.

“Ama”, disse Galinda quando Elphaba tinha saído para usar as instalações de tirar bolor, “Ama, você está cega? Essa garota munchkinesa é verde.”

“Esquisito, né? Eu pensei que todos de lá fossem baixinhos. No entanto, ela tem uma altura apropriada. Acho que eles têm tamanhos variados. Oh, você ficou incomodada pelo verde? Bem, se você deixasse isso de lado, talvez fosse bom. Se você deixasse. Você está tomando uns ares mundanos, Galinda, mas ainda não conhece o mundo. Eu acho que é uma curtição. Por que não? Por que não, mesmo”

“Não é seu trabalho organizar minha educação, mundana ou qualquer outra, Ama Clutch!”

“Não, minha cara”, disse Ama Clutch, “você faz a confusão toda só por responsabilidade sua. Eu estou sendo simplesmente serviçal.”

Assim, Galinda ficou sem ação. A breve entrevista da noite anterior com Madame Morrible não havia oferecido nenhuma rota de fuga, tampouco. Galinda chegara pontualmente, vestindo uma saia salpicada de morfelina com corpete de renda, uma verdadeira visão, como dissera a si mesma, em púrpuras noturnos e azuis de meia-noite. Madame Morrible acolheu-a na sala de recepção, na qual um pequeno conjunto de cadeiras de couro e um canapé estavam colocados diante de uma lareira desnecessária.

A Diretora serviu chá de hortelã e ofereceu gengibre cristalizado embrulhado em folhas de fruta-pérola. Indicou uma cadeira para Galinda, mas ficou ela mesma junto ao consolo da lareira como uma caçadora de caça das grandes. Na melhor tradição da classe superior a desfrutar seus luxos, elas primeiro beberam em golinhos e mordiscaram delicadamente. Isso deu a Galinda a oportunidade de observar que Madame Morrible era parecida com um peixe não apenas no semblante, mas na vestimenta: seu folgado casaco de raposa de primeira classe brotava como uma enorme bexiga inflada da linha da nuca cheia de babados até os joelhos, onde estava forte-mente pregueado e ia diretamente ao chão, apertando a barriga das pernas e os tornozelos em caprichosas, anticlimáticas dobras. Ela olhava para o mundo como uma carpa gigante num clube masculino. E não uma carpa sensitiva, mas uma carpa aborrecida, monótona, que ali ficasse.

“Agora, vamos à sua Ama, minha cara. A razão pela qual ela é incapaz de supervisionar um dormitório. Sou toda ouvidos.”

Galinda levara a tarde toda se preparando. “Veja, Madame Diretora, eu não queria dizer isso em público. Mas Ama Clutch sofreu uma terrível queda no último verão quando estávamos fazendo um piquenique nas Colinas de Pertha. Ela tentou pegar um punhado de tomilho selvagem da montanha e despencou de cabeça de um rochedo. Ficou em coma semanas a fio, e quando abriu os olhos não tinha lembrança alguma do acidente. Se indagasse a respeito, ela nem sabia o que você estava dizendo. Amnésia por trauma.”

“Entendo. Que cansativo deve ter sido para você. Mas, por que isso a torna desqualificada para o trabalho que propus?”

“Ela ficou biruta. Ama Clutch, de vez em quando, fica confusa entre o que tem e o que não tem Vida. Ela se senta e fala com, oh, digamos, uma cadeira e então relata a história dela para a gente. Suas aspirações, suas re-servas...”

“Suas alegrias, suas dores”, disse Madame Morrible. “Que verdadeiro romance. A vida emocional da mobília. Nunca vi nada parecido.”

“Mas, tola quanto pareça, e embora seja causa para momentos de gozação, a doença que disso resultou é mais alarmante. Madame Morrible, eu devo lhe dizer que Ama Clutch às vezes se esquece de que as pessoas estão vivas. Ou os animais.” Galinda parou para pensar, e acrescentou: “Mesmo os Animais.”

“Continue, minha cara.”

“Tudo bem para mim, porque Ama tem sido minha Ama por toda a vida, e eu a conheço. Conheço seus modos. Mas às vezes ela se esquece de que uma pessoa está ali, ou precisa dela, ou mesmo que é uma pessoa. Uma vez ela esvaziou um guarda-roupa e jogou-o em cima de um empregado, quebrando as suas costas. Ela não percebeu o grito dele bem pertinho, bem a seus pés. Ela dobrou as roupas de dormir e conversou com a camisola da minha mãe, fazendo-lhe toda espécie de pergunta impertinente.”

“Que condição fascinante”, disse Madame Morrible. “E que vergonha para você, realmente.”

“Eu não podia permitir que ela aceitasse responsabilidade por quatorze outras garotas”, Galinda confidenciou. “Para mim, sozinha, não há problema. Eu amo a velha tola, de certo modo.”

Madame Morrible disse: “Mas, e quanto à sua colega de quarto? Você pode expor seu bem-estar a risco?”

“Eu não pedi por ela.” Galinda olhou para o olho vidrado, imóvel, da Diretora. “A pobre munchkinesa parece estar acostumada a uma vida de penúria. Ou ela vai se adaptar ou, suponho, vai fazer petição para que a senhora a tire do meu quarto. A menos, claro, que a senhora ache de seu dever tirá-la de lá para a sua própria segurança.”

Madame Morrible disse: “Eu suponho que se a Senhorita Elphaba não puder suportar a vida que nós lhe oferecemos, ela deixará Crage Hall por sua própria conta. Não acha?”

Era o nós em o que nós lhe oferecemos: Madame Morrible estava forçando-a a um compromisso. Ambas sabiam. Galinda lutava para manter a sua autonomia. Mas ela tinha apenas dezessete anos, e tinha sofrido aquela mesma indignidade de exclusão na Sala Principal havia poucas horas. Ela não sabia o que Madame Morrible podia ter contra Elphaba, a não ser pela sua aparência. Mas havia alguma coisa, havia claramente alguma coisa. O que era? Ela sentia que era errado de algum modo. “Não acha, minha cara?”, disse Madame Morrible, curvando-se um pouco para a frente como um peixe arqueado num pulo em câmera lenta.

“Bem, é claro, devemos fazer o que pudermos”, disse Galinda, tão vagamente quanto possível. Mas era ela quem parecia o peixe, e apanhado pelo mais inteligente dos anzóis.

Saindo das sombras da sala de recepção se aproximava uma pequena coisa que tiquetaqueava, com cerca de três pés de altura, feita de bronze lustrado, com uma placa de identificação parafusada em sua frente. A placa dizia Homem Mecânico de Smith e Tinker, em inscrição floreada. O ajudante mecânico recolheu as xícaras de chá vazias e, com um zumbido, afastou-se. Galinda não sabia quanto tempo ele havia permanecido lá, ou o que ele tinha ouvido, mas ela nunca gostara de criaturas tiquetaqueantes.

 

Elphaba tinha uma pasta do que Galinda chamava de leituras maçantes. Elphaba não se encurvava ― ela era muito esquelética para se encurvar ― mas se dobrava sobre si mesma, o cômico nariz verde enfiado nas folhas mofadas do livro. Ela brincava com seu cabelo enquanto lia, enrolando-o para cima e para baixo em torno de seus dedos tão magros e semelhantes a gravetos que pareciam quase os de um esqueleto. Seu cabelo nunca ficava ondulado, não importando com quanta freqüência Elphaba os enrolasse com as mãos. Era um cabelo bonito, de uma maneira esquisita, espantosa, com um brilho semelhante ao do pêlo de uma saudável porca. Seda negra. Café moído em filetes. Chuva noturna. Galinda, não dada a metáforas no geral, achava o cabelo de Elphaba fascinante, mais ainda porque no resto ela era tão feia.

Elas não conversavam muito. Galinda estava ocupada demais forjando alianças com as melhores estudantes, que haviam sido suas legítimas perspectivas como colegas de quarto. Sem dúvida ela podia mudar de quarto achando algum meio-termo, ou em todo caso no próximo outono. Assim, deixava Elphaba a sós, e voava para o saguão para bater papo com suas novas amigas. Milla, Pfannee, Shenshen. Tal como nos livros infantis sobre internatos, cada nova amiga era mais rica que a anterior.

A princípio, Galinda não mencionava quem era sua colega de quarto. E Elphaba não mostrava qualquer sinal de expectativa quanto à sua companhia, o que era um alívio. Mas o fuxico tinha de começar mais cedo ou mais tarde. A primeira onda de discussão sobre Elphaba dizia respeito a seu guarda-roupa e à sua evidente pobreza, como se suas colegas de classe estivessem acima de notar sua enfermiça e repulsiva cor. “Alguém me contou que Madame Morrible disse que a Senhorita Elphaba era a Terceira Descendente do Thropp de Pedras do Ninho”, disse Pfanee, que também era uma munchkinesa, mas de tronco inferior, não tamanho grande, como a família Thropp. “Os Thropps são altamente considerados em Pedras do Ninho e mesmo mais além. O Eminente Thropp reunificou a milícia da região e abriu a Estrada dos Tijolos Amarelos que o Regente Ozma planejava quando éramos pequenas ― antes da Gloriosa Revolução. Não havia grosserias no Eminente Thropp e sua família, incluindo sua neta Melena, podem estar certas.” Por grosserias, na certa, Pfnee estava se referindo à cor verde.

“Mas como os poderosos decaíram! Ela é tão maltrapilha quanto uma cigana”, observou Milla. “Vocês já viram roupas de tanto mau gosto? Sua ama deveria ser posta no olho da rua.”

“Ela não tem ama, eu acho”, disse Shenshen. Galinda, que tinha certeza, calou-se.

“Disseram que ela passou uns tempos no Estado de Quadling”, Milla continuou. “Talvez sua família tenha sido exilada como criminosos?”

“Ou eram especuladores no mercado de rubis”, disse Shenshen.

“Então, cadê a riqueza?”, cortou Milla. “Os especuladores de rubis se deram muito bem, Senhorita Shenshen. Nossa Senhorita Elphaba não tem duas fichas de permuta para esfregar e chamar de suas.”

“Talvez seja um tipo de vocação religiosa? Uma pobreza escolhida?”, sugeriu Pfannee, e diante desse absurdo todas jogaram as cabeças para trás e gargalharam estrondosamente.

Elphaba, se aproximando da manteigueira para apanhar uma xícara de café, fazia com que elas atingissem explosões ainda mais estridentes de riso. Elphaba não olhava para elas, mas todas as outras estudantes reparavam no que elas faziam, cada jovem desejando ser incluída no círculo fechado de sua diversão, que fazia as quatro novas amigas se sentirem tão bem.

 

Galinda estava lentamente chegando a um acordo com o aprendizado verdadeiro. Ela havia considerado sua admissão na Universidade de Shiz uma espécie de prova de seu brilhantismo, e acreditava que iria adornar as salas do saber com sua beleza e suas frases ocasionalmente inteligentes. Ela supunha, seriamente, que estava destinada a ser uma espécie de busto de mármore vivo: Esta é a Inteligência Jovem; admirem-Na. Ela Não é Adorável?

Não havia realmente ocorrido a Galinda que havia mais a aprender, e muito mais do que ela conseguiria assimilar. A educação que todas as novas garotas mais queriam, é claro, nada tinha a ver com Madame Morrible ou os Animais que jogavam conversa fora sobre estantes e margaridas. O que as garotas queriam não era equações ou citações ou orações ― elas queriam era desfrutar da própria Shiz. A vida citadina. A ampla, ofensiva armadura da vida e a própria Vida, entrelaçadas de modo inconsútil.

Galinda ficava aliviada por Elphaba nunca participar das saídas que as Amas organizavam. Desde que passou a parar freqüentemente num refeitório para uma refeição modesta, a brigada semanal ficou informalmente conhecida como a Sociedade do Comer e Marchar. O distrito universitário se inflamava pela cor do outono, que vinha não apenas das folhas secas, mas também das bandeirolas das fraternidades, que se agitavam nos topos de telhados e torres.

Galinda se embebia da arquitetura de Shiz. Aqui e ali, na maior parte em pátios fechados de colégios e ruas laterais, a mais velha arquitetura doméstica sobrevivente ainda se mantinha, a antiga taipa e as estruturas ex-postas de barrote se erguendo como avós paralíticos amparados por parentes mais jovens e mais robustos de ambos os lados. Então, em estonteante sucessão, em incomparáveis glórias: o Pedra de Sangue Medieval, o Mértico (tanto o mais antigo quanto o mais fantástico recente), o Gallantine com suas simetrias c restrições, o Gallantine Reformado com todas aquelas ogivas volumosas e frontões triangulares quebrados, o Pedra Azul Revivido, o Bombástico Imperial, e o Moderno Industrial, ou, como os críticos da imprensa liberal denominavam, o Estilo Cru Altamente Hostil, a forma propagada pelo modernizado Mágico de Oz.

Além da arquitetura, a excitação era moderada, para falar a verdade. Numa ocasião notável, que nenhuma jovem de Crage Hall presente jamais esquecera, os rapazes decanos do Colégio Três Rainhas além do canal, por farra e ousadia, tinham enchido a cara de cerveja no meio da tarde, contratado um Urso Branco violinista, e descido para dançar juntos debaixo dos salgueiros, usando nada além de suas apertadas ceroulas de algodão e seus cachecóis escolares. Foi deliciosamente pagão, já que tinham colocado uma velha estátua de madeira lascada de Lurline a Rainha das Fadas num banco de três pés, e ela parecia sorrir para a algazarra de corpos liberados. As jovens e as Amas fingiram ficar chocadas, mas sem convicção; elas se demoraram ali, observando, até que inspetores horrorizados do Três Rainhas vieram correndo para cercar os festeiros. Seminudez era uma coisa, mas lurlinismo público ― mesmo por brincadeira ― chegava a ser intoleravelmente retrógrado, até monárquico. E isso não era permitido no reinado do Mágico.

 

Numa noite de sábado, quando as Amas tiveram uma rara folga e saíram para um encontro de fé no prazer no Ticknor Circus, Galinda teve uma breve e boba discussão com Pfanee e Shenshen, depois da qual se re-tirou para seu dormitório, reclamando de uma dor de cabeça. Elphaba estava sentada na cama, enrolada em seu cobertor marrom de comissário. Ela estava inclinada sobre um livro, como de hábito, e seus cabelos pendiam como pequenos pedestais dos dois lados de seu rosto. Ela parecia a Galinda uma daquelas águas-fortes ― os livros de história natural estavam cheios delas ― de excêntricas mulheres winkies das montanhas que escondiam sua estranheza com um xale sobre a cabeça. Elphaba estava mascando as sementes de uma maçã, tendo comido todo o resto dela. “Bem, você parece bem acomodada, Senhorita Elphaba”, disse Galinda, desafiadoramente. Em três meses essa era a primeira observação que ela dirigia à sua companheira de quarto.

“Aparências são só aparências”, disse Elphaba, sem olhar para ela.

“Atrapalharia a sua concentração eu me sentar perto da lareira?”

“Você vai fazer sombra, se ficar ali.”

“Oh, lamento”, disse Galinda, e se mudou. “Não devemos fazer sombras, não é, quando palavras urgentes clamam por ser lidas?”

Elphaba já tinha voltado a ler, e não respondeu.

“Que diacho você está lendo, noite e dia?”

Era como se Elphaba estivesse emergindo do fundo de um plácido e isolado laguinho para tomar um pouco de ar. “Quando eu não leio a mesma coisa todo dia, você sabe, de noite fico lendo alguns dos sermões dos antigos pastores unionistas.”

“Por que alguém no mundo iria querer fazer isso?”

“Não sei. Eu nem mesmo sei se quero lê-los. Fico apenas lendo.”

“Mas, por quê? Senhorita Elphaba a Delirante, por que, por quê?”

Elphaba olhou para Galinda e sorriu. “Elphaba a Delirante. Gostei.”

Antes que ela tivesse tempo de preparar uma réplica, Galinda devolveu o sorriso, e ao mesmo tempo um vento furioso soprou granizo sobre o vidro da janela, e o trinco quebrou. Galinda pulou para fechar o caixilho, mas Elphaba correu apressada para o canto extremo do quarto, fugindo da umidade. “Dê-me o fecho do meu bagageiro de couro, Senhorita Elphaba, que está dentro da minha bolsa de escola ― lá na prateleira, atrás das caixas de chapéu ― sim ― e eu vou prender aqui até que possamos chamar o porteiro para vir consertar amanhã.” Elphaba achou a tira, mas, ao fazer isso, as caixas de chapéu despencaram, e três chapéus coloridos rolaram pelo chão frio. Enquanto Galinda subia, atrapalhada, numa cadeira, para manter a janela fechada novamente, Elphaba devolvia os chapéus às suas caixas. “Oh, experimente um, experimente”, disse Galinda. Ela queria era ter alguma coisa da qual dar risada, algo para contar às Senhoritas Pfanee e Shenshen, achando assim um caminho de volta às suas boas graças.

“Oh, não tenho coragem, Senhorita Galinda”, Elphaba disse, e foi pôr o chapéu à parte. “Não, experimente, eu insisto”, Galinda disse, “só por farra. Eu nunca a vi usando nada bonito.”

“Eu não uso coisas bonitas.”

“Qual é o problema?”, disse Galinda. “Vai ser só aqui. Ninguém mais precisa ver você.”

Elphaba ficou olhando para o fogo, mas virava a cabeça até os ombros para olhar longa e fixamente em Galinda, que ainda não tinha pulado da cadeira. A munchkinesa estava de camisola, um saco pardacento sem nenhum auxílio de borda rendada ou fitinhas. O rosto verde acima do tecido cinza-trigo parecia quase brilhar, e o glorioso cabelo negro longo e escorrido caía bem sobre onde os seios deveriam estar, se ela fosse de re-velar qualquer evidência de que os possuía.

Elphaba se parecia com alguma coisa entre um animal e um Animal, como alguma coisa maior que a vida, mas não propriamente Vida. Havia uma expectativa, mas nenhuma intuição, era isso? ― como uma criança que nunca se lembrasse de haver tido um sonho ouvindo agora alguém lhe desejar que tivesse bons sonhos. Era uma coisa que se poderia quase chamar de não-refinada, mas não num sentido social ― mais num sentido de a natureza não ter completado seu trabalho com Elphaba, não ter-se esforçado completamente para torná-la parecida o bastante consigo mesma.

“Oh, ponha o danado do chapéu, realmente”, disse Galinda, para quem, quando o assunto era introspecção, o bastante era o bastante.

Elphaba concordou. A coisa era uma adorável esfera comprada do melhor chapeleiro nas colinas de Pertha. Tinha babados cor de laranja e uma renda amarela que podia ser drapeada para atingir variados graus de disfarce. Na cabeça errada pareceria horripilante, e Galinda ansiava ter de morder seus lábios por dentro para não cair na gargalhada. Era o tipo de coisa superfeminina que os rapazes em pantomima usavam quando fingiam ser garotas.

Mas Elphaba deixou o enfeite açucarado cair em sua estranha cabeça pontuda, e olhou para Galinda outra vez por debaixo da aba larga. Ela ficou parecida a uma flor rara, sua pele como um caule em seu suave reflexo perolado, o chapéu uma excentricidade botânica. “Oh, Senhorita Elphaba”, disse Galinda, “sua terrível, você está bonita.”

“Oh, e agora você mentiu, então vá já confessar ao pastor unionista”, disse Elphaba. “Tem um espelho por aqui?”

“Claro que tem, fica lá embaixo no lavatório.”

“Não vou lá. Eu não vou querer ser vista por aquelas estúpidas usando isso.”

“Bem, então”, decidiu Galinda, “você pode achar um ângulo sem esconder a luz do fogo, e olhar em seu reflexo na janela escura?”

Ambas olharam para o verde e florido espectro refletido no velho vidro apagado, cercado pela escuridão, chacoalhado pela forte chuva lá fora. Uma folha de bordo, no formato de uma estrela com pontas rombudas, ou como um coração que crescera torto, subitamente atirado na noite e colado no reflexo no vidro, irradiando vermelho e refletindo a lareira, justamente onde o coração devia ficar ― ou assim parecia do ângulo pelo qual Galinda olhava.

“Fascinante”, ela disse. “Há alguma estranha qualidade exótica de beleza em você. Eu nunca pensei.”

“Surpresa”, disse Elphaba, e então ficou quase ruborizada, se um verde mais escuro pudesse ser tomado por rubor... “Quero dizer, surpresa, não beleza. É apenas surpresa.”

“Bem, o que você sabe?”

“Não é beleza.”

“Quem sou eu para discutir”, disse Galinda, sacudindo seus anéis e fazendo uma pose, e Elphaba até riu disso, e Galinda aderiu ao riso, em parte horrorizada enquanto o fazia. Elphaba então arrancou o chapéu, e recolocou o em sua caixa, e quando ela apanhou seu livro novamente, Galinda disse: “Então, o que é que a Beldade está lendo, afinal? Eu quero dizer, realmente, diga-me, por que os velhos sermões?”

“Meu pai é um pastor unionista”, disse Elphaba. “Eu estou apenas curiosa por saber o que significa isso, é só.”

“Por que não pergunta a ele?”

Elphaba não respondeu. Seu rosto assumiu um aspecto denso, ansioso, como o de uma coruja que estivesse pronta para apanhar um rato.

“Então, sobre o que os livros são? Alguma coisa interessante?”, disse Galinda. Não fazia sentido desistir de sua curiosidade agora, não havia nada mais a fazer e ela estava perturbada demais pela tempestade para dormir.

“Este aqui é uma reflexão sobre o bem e o mal”, disse Elphaba. “Se eles existem de fato.”

“Oh, chatice”, disse Galinda. “O mal existe, eu sei, e seu nome é Tédio, e os pastores são, dentre todos, o grupo que mais comete esse pecado.”

“Você acha isso mesmo?”

Galinda não tinha o costume de parar para considerar se acreditava ou não no que dizia; o importante era que a conversa fluísse. “Bem, eu não quis insultar seu pai, porque sei que ele é um divertido e esperto pastor.”

“Não, eu quero dizer, você acha que o mal realmente existe?”

“Bem, como vou saber o que penso?”

“Bem, pergunte a si mesma, Senhorita Galinda. O mal existe?”

“Eu não sei. Você que diga. O mal existe?”

“Não tenho esperança de saber.” O aspecto de Elphaba mudara um pouco para oblíquo e introspectivo, ou era o cabelo balançando para frente como um véu novamente?

“Por que você não pergunta a seu pai? Eu não entendo. Ele deve saber, é o trabalho dele.”

“Meu pai me ensinou bastante”, Elphaba disse lentamente. “Ele foi muito bem educado, de fato. Ele me ensinou a ler e escrever e pensar, e mais. Mas não o suficiente. Eu só acho, como nossos professores daqui, que os pastores são eficazes, bons para fazer perguntas que levam você a pensar. Não acho que eles podem ter as respostas. Não necessariamente.”

“Oh, bem, diga isso ao nosso pastor maçante em casa. Ele tem todas as respostas, e responsabilidades por elas, também.”

“Mas talvez haja alguma coisa no que você diz”, disse Elphaba. “Quero dizer, mal e aborrecimento. Mal e tédio. Mal e falta de estímulo. Mal e sangue parado.”

“Parece que você está escrevendo um poema. Por que uma garota estaria interessada no mal?”

“Eu não estou interessada nele. É apenas o assunto de que tratavam todos esses últimos sermões que li. Assim, eu penso naquilo que abordavam, só. Às vezes eles falam de dieta e não comer Animais, então, reflito sobre a coisa. Eu apenas gosto de refletir sobre o que leio. Você não?”

“Eu não leio muito bem. Assim, não acho que penso muito bem tampouco.” Galinda sorriu. “Apesar disso, me visto para arrasar.”

Não houve reação de Elphaba. Galinda, habitualmente satisfeita por saber o modo correto de conduzir toda conversa para um louvor a ela mesma, estava confusa, sem saber o que dizer. Ela mal e mal arriscou, irritada por ter de fazer um esforço. “Bem, que diabos aqueles velhos grosseiros pensavam sobre o mal, então?”

“É difícil dizer com exatidão. Eles pareciam obcecados por localizá-lo em alguma parte. Quero dizer, uma nascente má nas montanhas, uma fumaça ruim, sangue ruim nas veias indo de pai a filho. Eles se pareciam com os pioneiros exploradores de Oz, exceto que os mapas que faziam eram de substância invisível, muito incoerentes um com o outro.”

“E onde está localizado o mal?” Galinda perguntou, afundando em sua cama e fechando os olhos.

“Bem, eles não chegavam a um acordo, chegavam? Ou senão por que teriam de escrever sermões discutindo a respeito? Alguns diziam que o mal original era o vácuo causado pelo fato de a Rainha Fada Lurline haver abandonado o ser humano. Quando o bem se afasta, o espaço que ele ocupa se corrói e se transforma em mal, e talvez se pulverize e multiplique. De modo que toda coisa ruim se tornará um sinal da ausência da deusa.”

“Bem, eu não identificaria uma coisa ruim se ela caísse sobre mim”, disse Galinda.

“Os primeiros unionistas, que eram em grande parte mais lurlinistas que os unionistas de hoje, argumentavam que algum invisível foco de corrupção flutuava ao redor de suas moradas, um descendente direto da dor que o mundo sentiu quando Lurline se afastou. Como uma golfada de ar frio numa plácida noite quente. Uma alma perfeitamente cordial poderia apanhá-la ao andar e ficar infectada, e então ir matar um vizinho. Mas, então, seria falta sua se você estivesse andando por acaso no meio desse ar ruim? Se você não pudesse percebê-lo? Nunca houve um só conselho de unionistas que decidisse a questão de um modo ou de outro, e hoje em dia tanta gente nem mesmo acredita em Lurline.”

“Mas eles acreditam no mal ainda”, disse Galinda com um bocejo. “Não é engraçado, a deusa está ultrapassada, mas os atributos e implicações da deusa permanecem...”

“Você está pensando!”, Elphaba gritou. Galinda ergueu-se nos cotovelos, afetada pelo entusiasmo na voz de sua companheira de quarto.

“Eu estou a ponto de dormir, porque isso é profundamente maçante para mim”, Galinda disse, mas Elphaba estava rindo de orelha a orelha.

 

Pela manhã Ama Clutch regalou as duas com histórias da noite que passara fora. Havia uma jovem bruxa talentosa vestindo nada exceto roupas de baixo rosa-choque, enfeitadas com plumas e contas. Ela cantou canções para a platéia e recolheu dos ruborizados homens não-graduados das mesas próximas vales-refeição, que colocou nas dobras de seus seios. Fez um pouco de mágica doméstica, transformando água em suco de laranja, transformando repolhos em cenouras, e perseguindo e matando um aterrorizado porquinho, que esguichou champanhe em vez de sangue. A platéia toda tomou um golinho. Um terrível homem gordo e barbudo perseguiu a bruxa como se quisesse beijá-la ― oh, a coisa foi cômica demais, cômica demais! No fim, o elenco inteiro e a platéia juntos ficaram em pé e cantaram “O que Não Permitimos em Públicos Lugares (Na Verdade Está à Venda nas Bancas Mais Vulgares”). As Amas tiveram uma diversão fora do comum, todas.

“Realmente”, disse Galinda, torcendo o nariz. “A fé no prazer é tão ― tão comum.”

“Mas vejo que a janela quebrou”, disse Ama Clutch. “Espero que não tenham sido os garotos tentando entrar.”

“Ficou louca?”, disse Galinda. “Naquela tempestade?”

“Que tempestade?”, disse Ama Clutch. “Isso não faz sentido. A noite passada foi calma como um raio de lua.”

“Hah, isso é efeito de algum show”, disse Galinda. “Você foi tão contagiada pela fé no prazer que perdeu o juízo, Ama Clutch.” Desceram juntas para o desjejum, deixando Elphaba ainda dormindo, ou talvez fingindo que dormia. Apesar disso, enquanto caminhavam juntas pelos corredores, o sol através das amplas janelas fazendo faixas de luz nos pisos de ardósia fria, Galinda pensou seriamente no capricho do tempo. Seria mesmo possível para uma tempestade despencar numa parte da cidade e ignorar outra? Havia tanta coisa nesse mundo que ela não sabia.

 

“Ela não fez nada além de papear sobre o mal”, disse Galinda às suas amigas, ignorando os biscoitinhos amanteigados recheados com geléia de pé de charrua. “Alguma torneira lá por dentro foi aberta, e a conversa fiada jorrou dela. E, meninas, quando ela experimentou o meu chapéu, eu quase morri. Ela parecia a tia solteirona de alguém que tivesse retornado do túmulo, quero dizer, tão desmazelada como uma Vaca. Suportei a coisa só por vocês, para que pudesse lhes contar tudo; não fosse assim, eu teria morrido de rir ali mesmo. Foi demais!”

“Pobrezinha de você, ter de ser nossa espiã e suportar o vexame daquela coleguinha gafanhoto!”, disse Pfanee devotamente, apertando a mão de Galinda. “Você é boa demais!”

 

Numa noite ― a primeira noite de neve ― Madame Morrible realizou um sarau poético. Rapazes do Três Rainhas e Torres de Ozma foram convidados. Galinda desfilou seu roupão de seda vermelho-claro com o xale e os chinelos combinando e um leque gillikinês que recebera de herança, pintado com um desenho de samambaia e fênix. Ela chegou adiantada para pegar a cadeira estofada que melhor realçaria seu traje, e arrastou a cadeira até a altura das prateleiras de livros de modo que a luz das velas da biblioteca incidisse suavemente sobre ela. O resto das jovens ― não apenas as calouras, mas as secundanistas e as decanas ― entraram num grupo sussurrante e acomodaram-se em sofás e divas da mais bela sala de visitas de Crage Hall. Os rapazes que vieram eram um pouco decepcionantes; não eram tantos, e pareciam aterrorizados, ou davam risadinhas tolas uns para os outros. Então os professores e doutores chegaram, não apenas os Animais de Crage Hall, mas os professores dos rapazes também, que eram na maior parte humanos. As garotas começaram a ficar alegres por terem-se vestido bem, pois, enquanto os rapazes eram uma mancha indistinta, os professores exibiam solenes e charmosos sorrisos.

Mesmo algumas das Amas vieram, embora tenham ficado atrás de um biombo ao fundo da sala. O som de suas agulhas de tricotar trabalhando em ritmo rápido era tranqüilizador para Galinda, de certo modo. Ela sabia que Ama Clutch lá estava.

As portas duplas no fim da sala de visitas foram escancaradas por aquele pequeno caranguejo de bronze industrial que Galinda havia conhecido na sua primeira noite em Crage Hall. Tinha sido especialmente equipado para a ocasião; o odor cortante do polimento de metal podia ser detectado. Madame Morrible então fez uma entrada, severa e impressionante em um manto preto-carvão, que ela deixava cair até o chão (a coisinha o recolhia e lançava sobre um sofá de retaguarda); seu roupão era de um laranja flamejante, com cascas de caramujo do lago alinhavadas no conjunto. A despeito de si mesma, Galinda tinha de admirar o efeito. Em tons ainda mais untuosos que o habitual, Madame Morrible saudava as visitas e liderava polidos aplausos ao conceito da Poesia e Seus Civilizados Efeitos.

Então ela falou da nova forma de verso que vinha fazendo furor nos salões finos e nos antros de Shiz. “É conhecido como o Brando”, disse Madame Morrible, em seu sorriso de Diretora, que exibia uma impressionante fileira de dentes. “O Brando é um poema curto, de natureza enaltecedora. Ele emparelha uma seqüência de trinta linhas curtas, tendo como ar-remate um apotegma sem rima. A graça do poema está na revelação do contraste entre o argumento da rima e o dito do arremate. Por vezes eles podem se contradizer, mas sempre iluminam e, como toda poesia, santificam a vida.” Ela estava radiante como um farol na neblina. “Nesta noite, especialmente, um Brando pode servir como um anódino para os desagradáveis tumultos que soubemos que vêm acontecendo na capital da nação.” Os rapazes ficaram no mínimo alarmados, e todos os professores compreenderam, embora Galinda não tivesse conseguido notar em nenhuma das garotas uma percepção do que fosse “desagradáveis tumultos”. Madame Morrible estava jogando conversa fora.

Uma jovem do terceiro ano improvisou alguns acordes estridentes num teclado de cordas de martelo, e os convidados limparam suas gargantas e olharam para os sapatos. Galinda viu Elphaba chegando lá no fundo da sala, vestida com seu displicente traje vermelho de hábito, dois livros sob o braço e um lenço enrolado na cabeça. Ela afundou na última cadeira vazia, e mordeu uma maçã bem quando Madame Morrible estava tomando fôlego solenemente para começar.

 

Canta um hino à retidão.

Arrojada multidão.

Vai em grato rastejar

A atitude aprimorar.

Elevando o nosso bem,

Sermos só irmãos convém

Celebremos autoridade,

Fraternal comunidade

Unidos, restringiremos

O mal que em liberdade temos.

Nada há tão luminoso

Quanto o Poder generoso

Reprimindo o desastroso.

Desça o porrete e eleve a criança.

 

Madame Morrible abaixou sua cabeça para deixar claro que terminava. Houve um surdo rumor de comentários indistintos. Galinda, que não sabia muito de poesia, pensou que essa talvez fosse a maneira habitual de apreciá-la. Ela deu alguns resmungos para Shenshen, que se sentava numa cadeira de espaldar reto ao seu lado, com um ar hidrópico. A cera da vela comprida estava caindo no roupão branco de ombreiras de seda com dobras de chiffon verde-limão que ela usava, e o arruinaria, era quase certo, mas Galinda concluiu que a família de Shenshen tinha recursos para comprar outro para a amiga. Ficou impassível.

“Mais um”, disse Madame Morrible. “Mais um Brando.”

A sala ficou em silêncio, mas não estaria um pouco incomodada?

 

Ai! Punir a impropriedade

Com a guilhotina da piedade.

Para sanar a sociedade

Não aderir à saciedade

Em abusada felicidade.

Escolhe a sã sobriedade.

Age como se a divindade

Viesse em mistério e majestade

Saudada com sonoridade.

Deixa tua história especial

Erguer-se em forma comunal

Cujas virtudes exemplos dão

E os Bens Sociais só crescerão.

Os animais devem ser vistos e não ouvidos.

 

Novamente, houve rumor, mas era de uma natureza diferente agora, numa clave mais agressiva. O Doutor Dillamond pigarreou e bateu o casco fendido no chão, e foi ouvido a dizer: “Bem, isso não é poesia, é propaganda, e nem boa propaganda chega a ser”.

Elphaba foi para o lado de Galinda com sua cadeira sob o braço, e deixou-a cair entre Galinda e Shenshen. Encostou seu esqueleto às ripas do assento e se inclinou para Galinda e perguntou: “O que vocês acham disso?”

Era a primeira vez que Elphaba dirigia a palavra a Galinda em público. A mortificação brotou. “Eu não sei”, ela disse debilmente, olhando para outra direção.

“É uma perfídia, não é?”, disse Elphaba. “Quero dizer aquela última linha, você não poderia perceber por aquele tom elegante se a referência era aos Animais ou aos animais. Não admira o Doutor Dillamond estar furioso.”

E ele estava. O Doutor Dillamond olhava para toda a sala como se tentasse organizar a oposição. “Estou chocado, chocado”, ele disse. “Profundamente chocado”, emendou, e marchou para fora da sala. O professor Lenx, o javali que ensinava matemática, também saiu, chocando-se acidentalmente com um antigo aparador dourado ao tentar evitar pisar na cauda de renda amarela da Senhorita Milla. O Senhor Mikko, o macaco que ensinava história, se sentou desconsoladamente nas sombras, confuso e ferido demais em seu bem-estar para esboçar um movimento. “Bem”, disse Madame Morrible num tom carregado, “é previsível que a poesia, se for Poesia, incomode. É o Direito da Arte.”

“Eu acho que ela é pirada”, disse Elphaba. Galinda achou isso horrível demais. O que aconteceria se algum dos garotos cheios de espinhas visse Elphaba cochichando para ela? Ela nunca ergueria a cabeça em sociedade outra vez. Sua vida estava arruinada. “Shh, estou escutando, eu amo poesia”, Galinda lhe falou severamente. “Não converse comigo, você está arruinando a minha noite.”

Elphaba recuou, e terminou sua maçã, e ambas ficaram escutando. Os rumores e murmúrios aumentavam ao fim de cada poema, e os rapazes e garotas começaram a relaxar e olhar em volta uns para os outros.

Quando o último Brando da noite tinha-se finado (com o críptico aforismo “Uma bruxa prevenida vale por nove”), Madame Morrible se retirou ao som de aplausos desiguais. Ela autorizou seu serviçal de bronze a servir chá para os convidados, e depois para as jovens, e finalmente para as Amas. Num entrechoque de seda farfalhante com tilintantes cascas de caramujos do lago, ela recebia cumprimentos dos professores e alguns dos rapazes mais corajosos, e pedia-lhes para sentarem-se a seu lado para que pudesse apreciar suas críticas. “Digam mesmo a verdade. Eu exagerei na dramaticidade, não? É a minha maldição. O palco me chamava, mas eu escolhi uma vida de Serviço as Jovens.” Ela baixava suas pálpebras, tomada pela modéstia, enquanto sua platéia cativa murmurava um morno protesto.

Galinda ainda estava tentando livrar-se da companhia embaraçosa de Elphaba, que seguia falando sobre os Brandos e o que eles significavam, e como se fossem algo de proveito. “Como posso saber, como você pode saber, somos jovens primeiranistas, lembra?”, disse Galinda, ansiando por zarpar para o lugar onde Pfanee, Milla e Shenshen estavam espremendo limões nas xícaras de chá de alguns rapazes salientes.

“Bem, sua opinião é tão boa quanto a dela, acho”, disse Elphaba. “Esse é o poder verdadeiro da arte, eu acho. Não pregar sermão, mas lançar desafios. Senão, para que se preocupar?”

Um rapaz se aproximou delas. Galinda achou que ele não valia um grande olhar, mas qualquer coisa era melhor que a sanguessuga verde a seu lado. “Como vai?”, disse Galinda, nem esperando que ele tomasse coragem. “É tão bom conhecê-lo. Você deve ser de... vamos ver...”

“Bem, eu sou de Briscoe Hall, na verdade”, ele disse. “Mas sou munchkinês, de origem. Como pode notar.” E ela podia, porque ele mal chegava a seus ombros. Levando isso em conta, até que ele não tinha má aparência. Um ninho de rolos de algodão de cabelo dourado mal penteado, um sorriso de dentes regulares, um aspecto melhor que o de alguns outros. A túnica de noite que ele usava era de um azul caipira, mas havia salpicos de linhas prateadas sobre ela. A seu jeito, era bem apanhado. Suas botas estavam polidas e ele se curvava, pernas bem separadas, pés avançados.

“Isso é o que eu amo”, disse Galinda, “conhecer gente nova. Isso é o que Shiz tem de melhor. Eu sou gillikinesa.” Ela fazia por não acrescentar isso, claro, porque acreditava que a coisa ficava evidente por sua vestimenta. As jovens de Munchkin tinham o hábito de vestir-se mais discretamente, e isso era tão entranhado que em Shiz eram confundidas com criadas.

“Bem, então, alô para você”, disse o rapaz. “Meu nome é Mestre Boq.”

“Senhorita Galinda dos Arduennas das Terras Altas.”

“E você?”, disse Boq, virando-se para Elphaba. “Quem é você?”

“Estou saindo”, ela disse. “Bons sonhos, para todos.”

“Não, não se vá”, disse Boq. “Eu acho que a conheço.”

“Você não me conhece”, disse Elphaba, pensativa, ao virar-se. “Como é que me conheceria?”

“Você é a Senhorita Elfinha, não é?”

“Senhorita Elfinha!”, exclamou Galinda alegremente. “Que delícia!”

“Como você sabe quem eu sou?”, disse Elphaba. “Mestre Boq da Terra de Munchkin? Eu não o conheço.”

“Eu e você brincávamos juntos quando você era pequena”, disse Boq. “Meu pai era o prefeito da aldeia onde você nasceu. Você nasceu em Margens Agitadas, em Pedras do Caminho, não foi? Você é filha do pastor unionista, esqueci o nome dele.”

“Frex”, disse Elphaba. Ela olhava de esguelha, com cautela.

“Frexpar o Santo!” disse Boq. “Está certo. Sabe que ainda falam dele, e de sua mãe, e da noite em que o Relógio do Dragão do Tempo veio a Margens Agitadas? Eu tinha dois ou três anos e me levaram para vê-lo, mas não me lembro direito. Mas, recordo que você era parceira de brincadeiras comigo quando eu ainda usava calças curtas. Você se lembra de Gawnette? Era a mulher que cuidava da gente. E Bfee? Ele é meu pai. Lembra de Margens Agitadas?”

“Tudo isso é cortina de fumaça e jogo de adivinhação”, disse Elphaba. “Como posso contradizer? Deixe-me dizer o que aconteceu em sua vida antes do que você pode lembrar. Você nasceu como rã.” (Isso era indelicado, porque Boq tinha de fato um aspecto meio anfíbio.) “Foi sacrificado ao Relógio do Dragão do Tempo e se transformou num rapaz. Mas, na sua noite de núpcias, quando a sua mulher abrir as pernas, você se transformará de novo num girino e...”

“Senhorita Elphaba!”, exclamou Galinda, arreganhando o leque para espantar o rubor de vergonha de seu rosto. “Que língua!”

“Oh, bem, eu não tenho infância”, disse Elphaba. “Então você pode dizer o que quiser. Eu cresci na Terra de Quadling com o povo do pântano. Eu me esborracho quando ando. Você não quer conversar comigo. Converse com a Senhorita Galinda, ele é melhor em matéria de salões do que eu. Tenho de sair agora.” Elphaba fez uma saudação de boa noite e os deixou, quase como se fugisse.

“Por que ela disse tudo aquilo?”, disse Boq, sem embaraço, apenas com espanto, na voz. “Claro que me lembro dela. Quantas pessoas verdes há neste mundo?”

“É bem possível”, considerou Galinda, “que ela não gostou de ser re-conhecida por causa da cor da pele. Eu não sei com certeza, mas talvez ela se melindre por isso.”

“Ela deve saber que isso é o que as pessoas lembrariam.”

“Bem, até onde sei, você acertou no que disse sobre ela”, Galinda continuou. “Disseram-me que o avô dela era o Eminente Thropp de Solos de Colwen em Pedras do Ninho.”

“É ela”, Boq disse. “Elfinha. Pensei que nunca mais a veria.”

“Não quer um pouco mais de chá? Chamo o garçom para você”, Galinda disse. “Vamos nos sentar aqui e você me contará sobre a Terra de Munchkin. Estou trêmula de curiosidade.” Ela se empoleirou na cadeira-de-cores-combinadas e fez a sua melhor pose. Boq se sentou, e balançou a cabeça, como se estivesse perplexo com a aparição de Elphaba.

Quando Galinda se recolheu naquela noite, Elphaba já estava na cama, com os cobertores enrolados na cabeça, e emitindo um ronco obviamente teatral. Galinda, contrariada, jogou-se na cama murmurando um “sua corcunda”, irritada por ser ela a rejeitada por uma garota verde.

 

Na semana seguinte muito foi dito sobre a noite dos Brandos. O Doutor Dillamond interrompeu sua palestra de biologia para instigar seus alunos a darem uma resposta. As garotas não entendiam o que poderia ser uma resposta biológica à poesia e fizeram silêncio às suas principais questões. Ele finalmente explodiu: “Ninguém aqui faz a associação entre a ex-pressão daqueles pensamentos e o que está acontecendo atualmente na Cidade Esmeralda?”.

A Senhorita Pfanee, que não acreditava estar pagando a taxa escolar para ser repreendida, retrucou. “Não temos a menor noção do que possa estar acontecendo na Cidade Esmeralda! Pare de fazer charadas com a gente; se tiver algo para dizer, diga. Não berre desse jeito.”

O Doutor Dillamond arregalava os olhos na direção das janelas e parecia estar tentando controlar o seu temperamento. Os estudantes estavam empolgados pelo pequeno drama. Então o Bode se virou e, numa voz mais suave do que aquela que eles esperavam, contou-lhes que o Mágico de Oz tinha decretado Interditos na Mobilidade dos Animais, efetivados havia vá-rias semanas. Isso significava não apenas que os Animais teriam restrições em seu acesso às comodidades de viagem, alojamentos e serviços públicos.

A Mobilidade a que o decreto se referia era também profissional. Qualquer Animal adulto estava proibido de trabalhar no setor público. Na verdade, eles estavam sendo expulsos de volta para as fazendas ou florestas se quisessem ter trabalho remunerado.

“O que vocês pensam que Madame Morrible estava dizendo quando concluiu aquele Brando com o epigrama Os Animais devem ser vistos e não ouvidos?”, perguntou o Bode concisamente.

“Bem, qualquer um ficaria furioso”, disse Galinda. “Quero dizer, qualquer Animal. Mas, não parece que seu emprego esteja ameaçado, está? Aí está você, nos ensinando.”

“E quanto a meus filhos? E quanto às minhas crianças?”

“Você tem filhos? Pensei que não fosse casado.”

O Bode fechou os seus olhos. “Não sou casado, Senhorita Galinda. Mas poderia ser. Ou posso. Ou talvez eu tenha sobrinhos e sobrinhas. Eles já foram realmente banidos do estudo em Shiz porque não podem segurar um lápis com que escrever um ensaio. Quantos Animais a senhorita já viu neste paraíso da educação?” Bem, isso era verdade, não havia nenhum.

“Bem, acho que é bem horrível”, disse Galinda. “Por que o Mágico de Oz faria uma coisa dessas?”

“Porque, realmente”, disse o Bode.

“Não, realmente, por quê? É uma pergunta de fato. Eu não sei.”

“Nem eu.” O Bode se virou para sua tribuna e empurrou alguns papéis para lá e para cá, e então foi visto agarrando um guardanapo de uma prateleira mais baixa, e assoando o nariz. “Minhas avós eram cabras de leite numa fazenda em Gillikin. Através de toda uma vida de sacrifícios e labutas pagaram um professor local para me educar e tomar ditado quando fui para meus exames. Seus esforços estão perto de desmoronar.”

“Mas você ainda pode ensinar!”, disse Pfanee petulantemente.

“Estou por um fio, minha querida”, disse o Bode, e dispensou a classe mais cedo. Galinda se pegou olhando de relance para Elphaba, que trazia um estranho olhar fixo. Enquanto Galinda saía da sala de aula, Elphaba foi lá para a frente, onde o Doutor Dillamond estava tremendo em espasmos incontroláveis, os chifres abaixados.

Alguns dias depois, Madame Morrible deu uma de suas ocasionais palestras de abertura sobre Hinos Antigos e Louvores Pagãos. Ela propunha questionários, e a assembléia inteira ficou espantada ao ver Elphaba sair de sua costumeira posição fetal no fundo da sala e dirigir a palavra à Diretora.

“Madame Morrible, dê licença”, disse Elphaba, “nós não tivemos a oportunidade de discutir os Brandos que a senhora recitou no salão na semana passada.”

“Discutir”, disse Madame Morrible com um generoso, embora aversivo, chacoalhar de suas mãos cheias de pulseiras.

“Bem, pareceu-me que o Doutor Dillamond achou que eles eram de gosto duvidoso, devido aos Interditos para a Mobilidade dos Animais.”

“Ai, o Doutor Dillamond”, disse a Madame Morrible, “é um doutor. Ele não é um poeta. Ele é um Bode também, e eu posso lhes perguntar, garotas, seja viram um Bode que fosse grande autor de sonetos e baladas? Ai, cara Senhorita Elphaba, o Doutor Dillamond não conhece a convenção poética da ironia. Você gostaria de definir ironia para a classe, por favor?”

“Eu não acho que possa, Madame.”

“Ironia, dizem alguns, é a arte de justapor partes incongruentes. Re-quer uma distância consciente. A ironia pressupõe distanciamento, de que, ai, no caso dos Direitos Animais, devemos perdoar o Doutor Dillamond por estar desprovido.”

“Então, aquela frase a que ele fez objeção ― Animais devem ser vistos e não ouvidos ― ela era irônica?”, continuou Elphaba, analisando seus papéis e sem olhar para Madame Morrible. Galinda e suas colegas de classe estavam interessadíssimas, pois estava claro que cada uma das mulheres nos extremos opostos da sala teria gostado de ver a outra sucumbir a um súbito ataque do baço.

“Pode-se considerar que era um modo irônico, é uma escolha”, disse Madame Morrible.

“Qual é a sua escolha?”, disse Elphaba.

“Que impertinente!”, disse Madame Morrible.

“Bem, mas eu não tenho a intenção de ser impertinente. Eu quero aprender. Se a senhora ― se qualquer um ― achou que aquela declaração era verdadeira, então não estava em contradição, com a chatice autoritária que a precedeu. Era apenas argumento e conclusão, e não consigo ver onde estava a ironia.”

“Você não vê muito, Senhorita Elphaba”, disse Madame Morrible. “Você deve aprender a pôr-se no lugar de alguém mais culto, e olhar por esse ângulo. Estar preso à ignorância, estar circunscrito aos muros de uma perspicácia limitada, bem, isso é muito triste em alguém tão jovem e tão brilhante.” Ela cuspiu a última palavra, e pareceu a Galinda, de certo modo, um comentário baixo sobre a cor da pele de Elphaba, que hoje estava de fato lustrosa devido ao esforço de falar em público.

“Mas eu tentava me pôr no lugar do Doutor Dillamond”, disse Elphaba, quase lamentando, mas não entregando os pontos.

“No caso da interpretação poética, eu arrisco sugerir, deve realmente ser verdade. Os animais não devem ser ouvidos”, replicou Madame Morrible.

“A senhora está querendo dizer isso ironicamente?”, disse Elphaba, mas a Diretora se sentou com suas mãos sobre o rosto, e não voltou a erguê-lo pelo resto da sessão.

 

Quando o segundo semestre começou, e Galinda estava ainda carregando o fardo de ter Elphaba como colega de quarto, ela fez um breve protesto a Madame Morrible. Mas a Diretora não permitia mudança, não permitia um novo arranjo. “Transtorno demais para as minhas outras garotas”, ela disse. “A menos que você queira se mudar para o Dormitório Rosa. Sua Ama Clutch parece, aos meus olhos observadores, estar se recuperando das seqüelas que você descreveu quando nos conhecemos. Talvez agora ela possa supervisionar quinze garotas?”

“Não, não”, disse Galinda rapidamente. “Há recaídas de tempos em tempos, mas eu não as menciono. Eu não gosto de ser importuna.”

“Quanta consideração”, disse Madame Morrible. “Seja abençoada, doçura. Agora, minha cara, pergunto se poderíamos tirar um momento, já que veio para uma conversa, para discutir seus projetos acadêmicos para o próximo outono? Como sabe, o segundo ano é quando as garotas escolhem suas especialidades. Você já pensou nisso?”

“Muito pouco”, disse Galinda. “Francamente, pensei que meus talentos emergiriam naturalmente e tornariam claro se eu deveria tentar ciência natural, ou as artes, ou a feitiçaria, ou talvez apenas história. Não acho que sou talhada para o trabalho ministerial.”

“Não fico surpresa que alguém como você fique em dúvida”, disse Madame Morrible, o que não foi muito estimulante para Galinda. “Mas, posso sugerir a feitiçaria? Você poderia ser muito boa nisso. Eu me orgulho de conhecer essa espécie de coisa.”

“Pensarei nisso”, disse Galinda, embora seu apetite inicial por feitiça-ria houvesse esmorecido assim que soubera que terrível labuta era aprender feitiços e, pior ainda, entendê-los.

“Caso você escolha feitiçaria, talvez seja possível ― só possível ― encontrar para você uma nova colega de quarto”, disse Madame Morrible, “dado que a Senhorita Elphaba já me disse que os interesses dela vão na direção das ciências naturais.”

“Oh, bem, então, vou refletir seriamente sobre isso”, disse Galinda. Ela lutava com indefiníveis conflitos dentro dela. Madame Morrible, com toda aquela fala de classe mais alta e fabuloso guarda-roupa, parecia um tanto ― oh ― perigosa. Como se seu largo sorriso público fosse composto por um relance implícito de facas e lanças, como se sua voz profunda mascarasse o ruído surdo de explosões distantes. Galinda sempre se sentia incapaz de ver o quadro completo. Era desconcertante, e no mínimo para seu crédito sentia dentro de si o rasgar de algum tecido valioso ― seria a integridade? ― quando se sentava na sala de visitas de Madame Morrible e tomava de seu perfeito chá.

“Pois a irmã, pelo que sei, virá para Shiz”, concluía Madame Morrible alguns minutos depois, como se não tivesse havido um intervalo de silêncio, e muitos biscoitos saborosos comidos, “porque nada posso fazer para impedir uma coisa dessas. E isso, pelo que entendo, será horrível. Você não gostará. A irmã, sendo como é, terá de passar sem dúvida muito tempo no quarto da Senhorita Elphaba, terá de ajudá-la.” Ela sorria palidamente. Uma lufada de aroma de pó-de-arroz saía do flanco de seu pescoço, quase como se Madame Morrible pudesse emitir um agradável odor pessoal quando lhe desse na telha.

“A irmã sendo como é.” Madame Morrible estalava a língua, desaprovadora, e sacudia sua cabeça para trás e para a frente enquanto levava Galinda para a porta. “Chato, realmente, mas suponho que devamos nos unir e enfrentar isso. Esta é a fraternidade feminina, não é?” A Diretora apertou seu xale e pôs a mão afetuosamente no ombro de Galinda. Ela tremeu, e teve certeza de que Madame o sentiu, mas a Diretora não deu um sinal que fosse. “Mas, então, esse meu uso de fraternidade ― como é irônico. Espirituoso demais. Depois de um longo tempo, com certeza, e quando se ganhou um conhecimento maior, não há nada que se diga ou faça que não seja irônico no fim.” Ela apertou a espádua de Galinda como se fosse um guidão de bicicleta, quase de uma maneira mais brutal do que era a apropriada para uma mulher. “Só podemos esperar ― ha, ha ― que a irmã use alguns véus! Mas ainda falta um ano. Enquanto não acontecer, teremos tempo. Pense na feitiçaria, tá? Pense mesmo. Agora, adeus, meu amor, e bons sonhos.”

Galinda voltou para seu dormitório lentamente, pensando em como seria a irmã de Elphaba para provocar esses comentários ferinos sobre véus. Ela queria perguntar à própria Elphaba. Mas não conseguia pensar em como fazê-lo. Não tinha coragem.

 

Venha para fora”, disseram os rapazes. “Venha.” Eles estavam encostados na entrada para o quarto de Boq, num bando caótico, iluminados pela lâmpada de óleo do estúdio mais adiante. “Estamos enjoados de livros. Venha conosco.”

“Não posso”, disse Boq. “Estou atrasado em teoria da irrigação.”

“Foda-se a teoria da irrigação quando os botecos estão abertos”, disse o empetecado janota gillikinês chamado Avaric. “Você não vai melhorar suas notas atrasado desse jeito, com os exames quase terminados e os examinadores já quase ‘dando o prego’.”

“Não são as notas”, disse Boq. “É que eu não entendo a teoria ainda.”

“Vamos indo pro boteco, vamos indo pro boteco”, cantaram alguns rapazes que pareciam ter tido um porre inicial. “Foda-se, Boq, a cerveja espera, e já está ficando quente!”

“Digam qual o boteco, então, talvez eu possa ir pra lá dentro de uma hora”, disse Boq, firmemente sentado em sua cadeira e não colocando seus pés no banquinho, pois sabia que isso poderia incitar seus colegas de classe a erguê-lo nos ombros e carregá-lo para fora com eles para uma noite de farra. Sua baixa estatura parecia inspirar esse tipo de molecagem. Os pés diretos no chão faziam-no parecer mais plantado, ele imaginava.

“O Javali e Erva-Doce”, disse Avaric. “Tem uma nova bruxa se apresentando lá. Disseram que ela é quente. Ela é uma bruxa de Kumbric.”

“Hah”, disse Boq, não convencido. “Bem, vão e peguem um bom lugar. Eu irei quando puder.”

Os rapazes caíram fora, sacudindo as portas de outros amigos, entortando os retratos de rapazes mais velhos agora transformados em augustos patronos. Avaric ficou na entrada e esperou mais um minuto. “Podíamos nos livrar de alguns grosseirões e selecionarmos uma turma para irmos ao Clube da Filosofia”, ele disse, sedutoramente. “Mais tarde, quero dizer. É fim de semana, afinal de contas.”

“Oh, Avaric, vá tomar uma ducha fria”, disse Boq. “Você admitiu que estava curioso. Você admitiu. Então, por que não um trato de fim de semestre?”

“Lamento ter dito que estava curioso. Tenho curiosidade quanto à morte, também, mas posso esperar para descobrir o que é, obrigado. Suma, Avaric. Melhor ir se juntar aos seus amigos. Curta as palhaçadas de Kumbric que, aliás, penso que são propaganda enganosa. Os talentos da Bruxa de Kumbric caíram de moda há centenas de anos. Se é que um dia existiram.”

Avaric virou para cima a segunda gola de sua jaqueta-túnica. A parte de dentro era uma faixa de veludo fino de um vermelho profundo. Contra o elegante pescoço barbeado, a faixa parecia uma fita singular a indicar privilégio. Boq descobriu-se, novamente, fazendo comparações mentais entre ele mesmo e o belo Avaric, e concluindo ― bem, concluindo que era inferior. “Ora, Avaric”, ele disse, tão impaciente consigo mesmo quanto estava com seu amigo.

“Algo aconteceu com você”, disse Avaric. “Não sou tão bobo assim. O que há de errado?”

“Não há nada errado”, disse Boq.

“Diga-me pra cuidar de minha própria vida, diga que eu vá me foder, me peça pra cair fora, vamos lá, diga, mas não me diga que não tem nada errado. Porque você não é um mentiroso lá muito bom, e eu não sou tão estúpido. Mesmo sendo um dissipado gillikinês da nobreza decadente.” Sua expressão era suave, e Boq, por um momento, se sentiu tentado a falar. Sua boca se abriu como se ele pensasse no que estava para dizer, mas, ao som dos sinos das Torres de Ozma, no repique das horas, a cabeça de Avaric se virou por um momento. No que lhe dizia respeito, Avaric não estava inteiramente ali. Boq fechou sua boca, pensou um pouco mais, e disse: “Se quiser, chame de indiferença munchkinesa. Não vou mentir, Avaric, você é bom amigo demais para que eu o faça. Mas não há nada a dizer agora. Agora, saia e vá se divertir. Mas, tenha cuidado.” Ele estava quase acrescentando uma palavra de advertência quanto ao Clube de Filosofia, mas controlou-se. Se Avaric ficasse aborrecido, então a preocupação maternal de Boq poderia provocar fogo contrário e estimular Avaric a ir.

Avaric deu uns passos adiante e beijou-o nas bochechas e na testa, um costume de classe alta nortista que deixava Boq profundamente incomodado. Então, com uma piscada e um gesto obsceno, ele desapareceu.

O quarto de Boq dava para uma aléia de pedras arredondadas, através da qual Avaric e seus camaradas desciam bagunçando e trançando. Boq ficou para trás, nas sombras, mas não precisava ter-se preocupado; seus amigos já não pensavam nele. Tinham chegado a um ponto satisfatório em seus exames e recebido uma folga por alguns dias. Depois dos exames, o campus ficaria vazio, exceto pelas presenças dos professores mais fanáticos e dos alunos mais pobres. Boq já tinha passado por isso. Ele preferia estudar, no entanto, a escovar velhos manuscritos com uma escova de pêlo de texugo de cinco fios, o que ele fora obrigado a fazer na biblioteca do Três Rainhas por todo o verão.

Ao lado da aléia se estendia o muro de pedras azuis de um estábulo privado, pertencente a alguma mansão que ficava a umas poucas ruas de uma praça elegante. Além do telhado do estábulo, viam-se os topos copados de umas poucas árvores frutíferas, na horta da cozinha de Crage Hall, e acima delas as janelas lancetadas dos dormitórios e salas de aula. Quando as jovens se esqueciam de fechar suas cortinas ― o que acontecia com freqüência de pasmar ― podiam ser vistas em vários estágios de nudez. Nunca nuas de corpo inteiro, claro; nesse caso ele teria evitado olhar, ou teria dito severamente a si mesmo que era essa a melhor atitude a tomar. Mas, ah, o róseo e o azulado de roupas de baixo e camisolas, os babados dos trajes básicos, o farfalho das anquinhas e o frufru dos bustos. Era uma educação em matéria de lingerie, se não fosse algo mais. Boq, que não tinha irmãs, simplesmente olhava.

O dormitório do Crage Hall era distante o suficiente para que ele não distinguisse nenhuma garota em particular. E Boq estava cheio de desejo de ver sua paixonite outra vez. Maldição! Dupla maldição! Ele não conseguia se concentrar. Ele seria dispensado se prejudicasse seus exames! Ele causaria desgosto a seu pai, o velho Bfee, e à aldeia, e às outras aldeias.

Inferno e mais inferno. A vida era dura e a cevada pouca. Boq se viu de repente pulando o banquinho, agarrando sua capa de estudante, arremetendo-se pelos corredores, e descendo em giros pela escada de espiral de pedras na torre do canto. Ele não podia esperar mais. Ele tinha de fazer alguma coisa, e uma idéia lhe ocorrera.

Ele cumprimentou o porteiro por dever, passou pelo portão e virou à esquerda, e caminhou apressadamente pela estrada, no lusco-fusco, evitando o melhor que podia as generosas pilhas de estrume de cavalo. Com seus colegas de classe longe dali, divertindo-se, ao menos ele não estaria fazendo-se se de bobo do ponto de vista deles. Não havia viva alma em Briscoe. Então, ele virou à esquerda, e de novo à esquerda, e dentro em pouco caminhava pela aléia ao longo do estábulo. Um paiol de ripas, a ponta saliente de uma persiana maior, o suporte de um guincho. Boq era pequeno, mas era ágil também, e com poucos arranhões em suas articulações, conseguira pular na calha de lata do estábulo, e ali esperneava como um caranguejo do lago sobre o íngreme telhado pontudo.

Aha! Ele devia ter pensado nisso há semanas, meses! Mas a noite em que todos os rapazes teriam saído para festejar, a noite em que ele podia ter certeza de que não seria visto de Briscoe Hall, era essa noite, e talvez apenas essa. Alguma espécie de senso de destino fizera com que resistisse convictamente ao convite de Avaric. Pois agora estava montado no telhado do estábulo, e o vento que corria pelas folhas úmidas dos pés de azedinha e de pêra fazia uma suave fanfarra. E as garotas começavam a entrar lá no quarto ― como se houvessem ficado no corredor até que ele conseguisse a posição certa ― como se soubessem que ele estava vindo!

De perto elas não eram, no geral, assim tão bonitas...

Mas, onde estava aquela que o interessava?

E bonitas ou não, elas estavam nítidas. Os dedos que elas mergulhavam nas laçadas de seda, para desamarrá-las, os dedos dos quais tiravam as luvas, e desabotoavam manhosas fileiras de quarenta botões de pérola, os dedos que umas cediam às outras, mexendo nas íntimas rendas e nas partes pudendas das quais os rapazes de colégio sabiam apenas por mitologia! Os inesperados tufos de pêlos ― que suavidade! Como eram maravilhosamente animalescos! Suas mãos se apertavam e soltavam, como se tivessem vontade própria, mas famintas daquilo que ele mal conhecia ― e onde estava ela?

“Que diabos você está fazendo aí em cima?”

Então, ele escorregou, talvez porque estivesse deslumbrado, e talvez porque o destino, tendo sido tão bom ao premiá-lo com esse êxtase, por desforra, precisasse matá-lo agora. Seu pé lhe faltou e ele tentou se agarrar à chaminé, mas não conseguiu. Cabeça sobre as coxas, ele rolou como um brinquedo de criança, chocando-se contra a galharia da maldita pereira, que provavelmente salvou a sua vida, interrompendo sua queda. Ele aterrissou com um baque surdo num canteiro de alfaces, e o ar foi ruidosamente expelido dele, de um modo um tanto mortificante, através de todos os orifícios disponíveis.

“Oh, brilhante”, disse uma voz. “Neste ano as frutas estão caindo mais cedo.”

Ele teve uma última, perdida esperança de que a pessoa que falava fosse a sua amada. Tentou parecer composto, embora seus óculos tivessem despencado em algum outro lugar.

“Como vai?”, ele disse, incerto, sentando-se. “Não era assim que eu pretendia chegar.”

Descalça e de avental, ela saiu de trás de uma latada de uvas Pertha rosadas. Não era ela, não era a esperada. Era a outra. Ele podia notar isso até sem óculos. “Oh, é você”, ele disse, tentando não parecer desesperado.

Ela trazia uma peneira com algumas uvas minúsculas, das azedas que se usa em saladas rápidas. “Oh, é você”, ela disse, chegando mais perto. “Eu conheço você.”

“Mestre Boq, estou às suas ordens.”

“Você quer dizer, Mestre Boq, que está é nas minhas alfaces.” Ela catou seus óculos da rama dos feijões saltadores, e devolveu-os a ele.

“Como está você, Senhorita Elfinha?”

“Eu não estou ácida como uma uva e nem tão esborrachada como uma alface”, ela disse. “Como está, Mestre Boq?”

“Eu estou”, ele disse, “um tanto embaraçado. Vou arrumar algum problema aqui?”

“Posso dar um jeito nisso, se quiser.”

“Não tenha esse trabalho. Eu caio fora do mesmo jeito que cheguei.” Ele olhou para a pereira. “Coitada, eu quebrei alguns ramos de bom tamanho.”

“Pobrezinha da árvore. Por que você fez isso com ela?”

“Bem, eu estava apavorado”, ele disse, “e tinha uma opção: me jogar como uma ninfa da floresta pelas folhas, ou despencar silenciosamente do outro lado do estábulo, no meio da rua, e voltar à minha vida normal. O que você escolheria?”

“Ah, essa é a questão", ela disse, “mas sempre aprendi que a primeira coisa a fazer é negar a validade da questão. Eu, se estivesse assustada, nunca me jogaria silenciosamente na rua, nem despencaria ruidosamente nas árvores, rumo às alfaces. Eu me viraria do avesso para ficar mais leve, eu flutuaria até que a pressão do ar exterior tivesse me estabilizado. Daí, eu deixaria o lado interno da minha pele se acomodar no telhado, pondo um dedo do pé de cada vez.”

“E você então inverteria a sua pele?”, ele disse, surpreso.

“Depende de quem estivesse lá e o que quisessem, e se me desse na telha. Também depende de que cor o lado de dentro de minha pele ficasse. Como nunca me inverti, você sabe, eu não posso ter certeza. Sempre achei que deve ser horrível ficar cor de rosa e branco como uma porquinha.”

“Em geral é”, disse Boq. “Especialmente no banho. Você se sente como um bife mal passado...” Mas ele se interrompeu. O absurdo estava ficando muito pessoal. “Realmente, peço desculpas”, ele disse. “Eu assustei você e não queria isso.”

“Você estava olhando no topo das árvores, examinando a nova safra, suponho?”, ela disse, brincando.

“É verdade”, ele respondeu friamente.

“Você viu a árvore dos seus sonhos?”

“A árvore dos meus sonhos é dos meus sonhos, e eu não falo dela nem para os meus amigos nem para você, que eu mal conheço.”

“Oh, mas você me conhece. Nós estivemos juntos numa brincadeira de infância, no ano passado você lembrou que nos tínhamos conhecido. Ué, nós somos quase irmão e irmã. Você pode na certa descrever sua árvore favorita para mim, e eu direi se sei onde ela está.”

“Você está me gozando, Senhorita Elfinha.”

“Ué, não é o que eu pretendo, Boq.” Ela usou seu nome sem o honorífico de um modo amável, como se tentasse sublinhar o seu comentário anterior sobre eles serem feito irmãos. “Suspeito que você queira saber da Senhorita Galinda, a jovem gillikinesa que conheceu no matadouro poético da Madame Morrible no último outono.”

“Talvez você realmente me conheça mais do que penso.” Ele suspirou. “Posso ter esperança de que ela pense em mim?”

“Bem, esperança você pode ter”, disse Elphaba. “Seria mais eficaz você perguntar a ela e acabar com isso. Ao menos você saberia.”

“Mas você é amiga dela, não é? Você não sabe?”

“Você não vai querer confiar no que eu sei ou não sei”, disse Elphaba, “ou no que eu disser que sei. Eu poderia mentir. Eu poderia estar apaixonada por você, e trair minha colega de quarto mentindo sobre ela...”

“Ela é sua colega de quarto?”

“Está muito surpreso com isso?”

“Bem... não... apenas... apenas satisfeito.”

“Os cozinheiros devem estar lá tentando adivinhar que diálogos serão esses que estou travando com os aspargos”, Elphaba disse. “Posso dar um jeito de trazer a Senhorita Galinda até aqui alguma noite, se você quiser. De preferência o mais breve possível, de modo a acabar com a sua alegria de um modo mais claro e completo. Se é que é isso que irá acontecer”, ela disse, “mas, como digo, como poderei saber? Se não posso prever o que vamos ter de sobremesa, como posso prever as afeições de alguém?”

Marcaram um encontro para três noites a partir dali, e Boq agradeceu Elphaba ardentemente, apertando suas mãos com tal força que seus óculos caíram no nariz. “Você é uma grande e velha amiga, Elfinha, mesmo que eu não a tenha visto por quinze anos”, ele disse, devolvendo a ela seu nome sem o honorífico. Ela bateu em retirada, esgueirando-se por debaixo dos galhos da pereira, e desapareceu na trilha. Boq achou a saída para a horta da cozinha e voltou a seu dormitório, e releu seus livros, mas o problema não estava resolvido, não, não estava. O problema fora exacerbado. Ele não conseguia se concentrar. Ficou acordado até ouvir os estardalhaços, os pedidos de silêncio, e as cantorias murmuradas, feitos pelos rapazes embriagados ao retornarem a Briscoe Hall.

 

Avaric partira no verão, assim que os exames terminaram, e Boq tinha ou superestimado suas possibilidades ou fracassado, nos dois casos havendo pouco a perder agora. Esse primeiro encontro com Galinda poderia ser o último. Boq se preocupou com as roupas mais que o habitual, e obteve uma dica de como arrumar seu cabelo na nova moda que reinava nos cafés (uma fina faixa branca em torno da cabeça, empurrando seu cabelo direto do topo, de modo que caísse em anéis, como espuma transbordando de uma bacia de leite entornado). Ele engraxou seus sapatos várias vezes. Estava muito quente para usar sapatos, mas ele não tinha sandálias de noite. Que fosse do jeito que fosse.

Na noite marcada, ele refez o seu caminho e, no telhado do estábulo, descobriu que uma escada de apanhador de frutas fora deixada encostada no muro, assim, não precisava descer pelas folhas como um chimpanzé vertiginoso. Ele desceu cuidadosamente pelos primeiros degraus, e daí saltou valentemente pelo resto do caminho, evitando as alfaces dessa vez. Num banco sob os castanheiros lá estavam Elphaba, os joelhos dobrados em direção ao peito e os pés descalços esparramados no assento do banco, e Galinda, cujos tornozelos estavam caprichosamente cruzados e que se ocultava atrás de um leque de seda, olhando para outra direção.

“Bem, quem diria, uma visita”, disse Elphaba. “Que baita surpresa.”

“Boa noite, senhoras”, ele disse.

“Sua cabeça parece a de um porco-espinho em pânico, o que é que você fez?”, disse Elphaba. Uma olhadinha pelo menos Galinda se virou para dar, mas daí desapareceu novamente por trás do leque. Ela estaria tão nervosa? Seu coração estaria fraquejando?

“Bem, eu sou Porco-Espinho em parte, não lhe contei?”, disse Boq. “Pelo lado de meu avô. Ele acabou virando costeleta para a comitiva de Ozma numa temporada de caça, e uma lembrança saborosa para todos. A receita passa de mão em mão na família, registrada num álbum. Serve-se com queijo e molho de noz. Mmm.”

“Você é mesmo?”, disse Elphaba. Ela pôs o queixo nos joelhos. “Porco-Espinho no duro?”

“Não, foi uma brincadeira. Boa noite, Senhorita Galinda. Foi amável de sua parte concordar em se encontrar comigo de novo.”

“Isso é altamente impróprio”, disse Galinda. “Por um bom número de razões, como bem sabe, Mestre Boq. Mas minha colega de quarto não me deu sossego até que eu dissesse sim. Não posso dizer que estou satisfeita por encontrá-lo novamente.”

“Oh, diga, diga sim, talvez isso se torne verdade”, disse Elphaba. “Faça uma tentativa. Ele até que não é tão ruim. Para um rapaz pobre.”

“Eu estou satisfeita que você esteja tão interessado em mim, Mestre Boq”, disse a Senhorita Galinda, usando de cortesia. “Estou lisonjeada.” Era claro que ela não estava lisonjeada, estava era humilhada. “Mas você deve entender que não pode haver uma amizade especial entre nós. Tirando a questão dos meus sentimentos, há muitos obstáculos sociais para enfrentarmos. Eu concordei em vir apenas para que pudesse lhe dizer isso pessoalmente. Parecia a única atitude justa.”

“Parecia a única atitude justa e podia ser engraçado também”, disse Elphaba. “Eis porque eu vim junto.”

“Há a questão das culturas diferentes, para começar”, disse Galinda. “Eu sei que você é munchkinês. Eu sou uma gillikinesa. Precisarei me casar com alguém de minha própria terra. É o único jeito, sinto muito” ― ela baixou seu leque e ergueu sua mão, mostrando a palma, para interromper o protesto de Boq ― “e, além disso, você é um fazendeiro, da escola de agricultura, e eu quero um estadista ou um banqueiro das Torres de Ozma. É assim que as coisas são. Além do mais”, disse Galinda, “você é muito baixinho.”

“E que dizer de sua violação dos costumes vindo aqui desse jeito, e que dizer de sua burrice?”, disse Elphaba.

“Basta”, disse Galinda. “Isso é suficiente, Senhorita Elphaba.”

“Por favor, você é segura demais de si mesma”, disse Boq. “Se eu posso ter o atrevimento de dizer.”

“Você não é tão atrevido”, disse Elphaba, “você é quase tão atrevido quanto um chá feito de folhas usadas. Você está me decepcionando com essa resposta. Vamos, diga alguma coisa interessante. Estou começando a preferir ter ido à igreja.”

“Você está interrompendo”, disse Boq. “Senhorita Elfinha, você fez uma coisa maravilhosa encorajando a Senhorita Galinda a se encontrar comigo, mas devo lhe pedir para nos deixar a sós para resolver isso.”

“Nenhum de vocês dois vai entender o que o outro está dizendo”, disse Elphaba calmamente. “Sou uma munchkinesa por nascimento, se não por formação, e sou uma garota por acaso se não por escolha. Sou o árbitro natural entre vocês dois. Não acredito que vocês possam se entender sem mim. De fato, se eu sair desta horta, vocês deixarão de decifrar a linguagem de cada um completamente. Ela fala a língua dos Ricos, você fala a dos Pobres Esfarrapados. Além disso, paguei por esse espetáculo tentando convencer a Galinda por três dias corridos. Tenho de assistir.”

“Seria tão bom você ficar, Senhorita Elphaba”, disse Galinda. “Eu preciso de uma acompanhante quando estou com um rapaz.”

“Viu o que eu disse?”, Elphaba falou a Boq.

“Então, se você vai ficar, ao menos me deixe falar”, Boq disse. “Por favor, deixe-me falar, por uns minutos, Senhorita Galinda. O que você diz é verdade. Você é bem-nascida e eu sou comum. Você é gillikinesa e eu, munchkinês. Você tem um padrão social a obedecer, e eu também. E o meu não inclui me casar com uma jovem rica demais, estrangeira demais, exigente demais. Casamento não foi o que vim aqui para propor.”

“Estão vendo, fiz bem de não ter saído, a coisa está ficando boa”, disse Elphaba, mas fechou a matraca quando os dois olharam para ela, ferozes.

“Eu vim aqui para propor que nos encontrássemos de quando em quando, só isso”, disse Boq. “Que nos víssemos como amigos. Que, livres de expectativas, viéssemos a nos conhecer como bons amigos. Eu não nego que você me deslumbra com sua beleza. Você é a lua em tempos de plenitude; você é a fruta da árvore flamejante; você é a fênix em círculos de fogo...”

“Isso parece ensaiado”, disse Elphaba.

“Você é o oceano mitológico”, ele concluiu, jogando todos os ovos no cesto.

“Eu não sou muito ligada em poesia”, disse Galinda. “Mas você é muito amável.”

Ela pareceu ficar pouco animada com os cumprimentos. De qualquer modo, o leque se moveu mais rápido. “Eu não entendo realmente o trecho da amizade, como você diz, Mestre Boq, entre pessoas não-casadas da nossa idade. Me parece ― perturbador. Vejo que pode levar a complicações, especialmente quando você confessa uma quedinha a que eu não posso corresponder. Nem em um milhão de anos.”

“Estamos na idade da ousadia”, disse Boq. “É a melhor época que temos. Devemos viver no presente. Somos jovens e vivos.”

“Eu não sei se vivos explica tudo”, disse Elphaba. “Me parece uma coisa forçada.”

Galinda deu uma pancadinha na cabeça de Elphaba com seu leque, que foi fechado com habilidade e se reabriu com a desenvoltura de antes, um gesto de elegância experiente que impressionou a todos. “Você está sendo cansativa, Senhorita Elfinha. Eu aprecio a sua companhia, mas não preciso de um comentário a cada fala. Sou perfeitamente capaz de decidir sobre os méritos do discurso de Mestre Boq por mim mesma. Deixe-me examinar as idéias estúpidas que ele tem. Lurline dos céus, mal posso ouvir meus próprios pensamentos!”

Perdendo o controle, Galinda ficava mais bonita que nunca. Então, o velho provérbio estava certo, também. Boq estava aprendendo muito sobre garotas! O leque estava abaixado. Era um bom sinal? Se ela não tivesse alguma afeição por ele, teria posto um vestido com um decote que descia só um pouquinho mais abaixo do que ele ousaria desejar? E havia a essência de água de rosas que ela usava. Ele sentiu uma onda de possibilidade, uma inclinação a roçar seus lábios no ponto onde o ombro de Galinda se transformava em pescoço.

“Seus méritos”, ela dizia. “Bem, você é corajoso, suponho, e inteligente, para ter imaginado isso. Se Madame Morrible o encontrasse aqui, estaríamos numa grande encrenca. Claro que você não sabia disso, então, vamos cortar o corajoso. Fica apenas o inteligente. Você é inteligente e um pouco, oh, bem, eu quero dizer que, de aparência, você é...”

“Bonito?”, sugeriu Elphaba. “Vistoso?”

“Você é engraçado”, concluiu Galinda.

Boq ficou de queixo caído. “Engraçado?”, ele disse.

“Eu daria muito para chegar a engraçada”, disse Elphaba. “O máximo a que posso aspirar é estimulante, e quando as pessoas dizem isso, geral-mente se referem à digestão...”

“Bem, eu posso ser todas ou nenhuma das coisas que você diz”, disse Boq com firmeza, “mas você verá que eu sou persistente. Não deixarei você dizer não à nossa amizade, Galinda. Ela significa muito para mim.”

“Observem o animal macho rosnando na selva à procura de sua parceira”, disse Elphaba. “Vejam como o animal fêmea fica soltando risadinhas afetadas atrás de um arbusto enquanto se enfeita para dizer: ‘Perdão, querido, você disse alguma coisa?’ ”

“Elphaba!”, os dois gritaram com ela.

“Peço a palavra, patinha!”, disse uma voz atrás deles, e os três se viraram. Era alguma ajudante de meia-idade num avental listrado, seu fino ca-belo grisalho enrolado num laço na cabeça. “O que você está aprontando aqui?”

“Ama Clutch!”, Galinda disse. “Como pensou em me procurar aqui?”

“Aquele cozinheiro zebra me disse que um papinho animado andava rolando no quintal. Você acha que eles são cegos lá na cozinha? Agora, quem é esse aí? Isso não me parece muito bom, não para mim.”

Boq se aprumou. “Eu sou Mestre Boq de Margens Agitadas, Terra de Munchkin. Sou quase um graduado terceiranista de Briscoe Hall.”

Elphaba bocejou. “Isso é uma exibição?”

“Bem, eu estou chocada! Um convidado não se apresenta numa horta do quintal, por isso acho que o senhor veio sem convite! Senhor, saia já daqui, antes que eu chame os porteiros para retirá-lo!”

“Oh, Ama Clutch, não me faça uma cena”, disse Galinda, suspirando.

“Ele mal é desenvolvido o bastante para a gente se preocupar”, apontou Elphaba. “Olhe, ele ainda nem barba tem. E do que podemos deduzir...”

Boq disse prontamente: “Talvez tudo isso esteja errado. Eu não vim aqui para ser insultado. Perdão, Senhorita Galinda, se eu fracassei até em divertir a senhorita. E quanto a você, Senhorita Elphaba” ― a voz era tão fria quanto lhe era possível produzir, e mais fria que qualquer outra que ouvira em si mesmo ― “Eu estava enganado ao confiar em sua compaixão.”

“Espere para ver”, disse Elphaba. “O engano leva um tempo danado para ser provado, segundo minha própria experiência. Enquanto tal não acontece, por que você não dá uma aparecidinha de vez em quando?”

“Não haverá segunda vez para isso”, disse Ama Clutch, dando um puxão em Galinda, que estava se provando tão sedentária quanto cimento fixo. “Senhorita Elphaba, que vergonha a senhorita estimular um escândalo desses.”

“Nada foi feito aqui além de uma brincadeira, e brincadeira sem graça, até”, disse Elphaba. “Senhorita Galinda, você está me parecendo muito obstinada. Você está se plantando na horta na esperança de que a Visita desse Rapaz possa ocorrer novamente? Será que entendemos mal o seu interesse?”

Por fim, Galinda se aprumou com alguma dignidade. “Meu caro Mestre Boq”, ela falou, como se estivesse lendo um ditado, “minha intenção desde o princípio foi dissuadi-lo de me perseguir, para uma ligação romântica ou mesmo para uma amizade, como colocou. Não tive a intenção de feri-lo. Não é de meu feitio.” Ao ouvir isso, Elphaba revirou os olhos, mas dessa vez manteve a boca fechada, talvez porque Ama Clutch tivesse cravado as unhas no seu cotovelo. “Não vou me dignar a arranjar outro encontro como esse. Como Ama Clutch lembrou, está abaixo de mim.” Ama Clutch não havia dito isso exatamente, mas mesmo assim concordou, sombriamente. “Mas se nossos passos se cruzarem de um modo legítimo, Mestre Boq, farei a cortesia de ao menos não ignorá-lo. Confio em que ficará satisfeito com isso.”

“Nunca”, disse Boq com um sorriso, “mas é um começo.”

“E agora, boa noite”, disse Ama Clutch, em beneficio de todos, afastando as jovens dali. “Bons sonhos, Mestre Boq, e não volte!”

“Senhorita Elfinha, você é horrível”, ele ouviu Galinda dizer, enquanto Elphaba se virava e acenava um adeusinho com uma risada que ele não pôde entender claramente.

 

Assim começou o verão. Tendo sido aprovado nos exames, Boq estava livre para planejar um último ano em Briscoe Hall. Diariamente ele caminhava apressado para a biblioteca em Três Rainhas, onde, sob o olho vigilante de um Rinoceronte titânico, o bibliotecário do principal arquivo, ficava limpando velhos manuscritos que claramente não eram pesquisados mais que uma vez a cada século. Quando o Rino saía da sala, ele travava frívola conversação com os dois rapazes que ficavam de seu lado, tipos clássicos do Rainhas, cheios de jargão fuxiqueiro e referências arcanas, importunos e leais. Ele os apreciava quando estavam de bom humor, e detestava suas birras. Crope e Tibbett. Tibbett e Crope. Boq fingia estar confuso quando eles ficavam muito maliciosos e insinuantes, o que parecia acontecer uma vez por semana, mas eles sumiam rapidamente. Pelas tardes, levavam seus sanduíches de queijo às margens do Canal do Suicídio e contemplavam os cisnes. Os rapazes fortes em grupos, cruzando o canal para cima e para baixo na prática de esportes de verão, faziam Crope e Tibbett se envergonharem e esconderem os rostos na grama. Boq ria deles, não ofensivamente, e esperava que o destino colocasse Galinda de novo em seu caminho.

Não foi uma espera muito longa. Cerca de três semanas depois de sua conversa na horta, numa manhã ventosa de verão, um pequeno terremoto causou alguns danos menores na biblioteca do Três Rainhas, e o prédio teve de ser fechado para alguns reparos. Tibbett, Crope e Boq levaram seus sanduíches, com algumas xícaras de papel para tomar chá, junto com a manteigueira, e se esparramaram no seu lugar favorito nas margens relvadas do canal. Quinze minutos depois, apareceram, juntas, Ama Clutch e Galinda e duas outras garotas.

“Tenho certeza que a gente conhece você”, disse Ama Clutch enquanto Galinda ficava um passo atrás, recatada. Em casos como esse, era dever da serviçal declinar os nomes dos estranhos no grupo, a fim de que pudessem se cumprimentar pessoalmente. Ama Clutch registrou em voz alta que eles eram Mestre Boq, Crope e Tibbett, sendo apresentados às Senhoritas Galinda, Shenshen e Pfannee. Daí, Ama Clutch deu um passo adiante para permitir aos jovens que dirigissem palavras uns aos outros.

Boq se ergueu feito mola e fez uma pequena mesura, e Galinda disse: “Seguindo a minha promessa, Mestre Boq, posso lhe perguntar como tem passado?”.

“Muito bem, obrigado”, disse Boq.

“Ele está maduro como um pêssego”, disse Tibbett.

“Ele está francamente delicioso, aqui deste ângulo”, disse Crope, sentado a uns poucos passos, mas Boq se virou e os olhou com tamanha fúria que Crope e Tibbett se sentiram castigados, e caíram num enfado gozador.

“E você, Senhorita Galinda?”, continuou Boq, examinando o rosto bem composto da jovem. “Você está bem? Que emocionante ver você em Shiz para o verão.” Mas essa não era a coisa certa a dizer. As jovens mais finas iam para casa no verão, e Galinda como uma gillikinesa devia se ressentir profundamente de estar encalhada ali, como uma munchkinesa ou uma estudante comum! O leque entrou em ação. Os olhos se abaixaram. As senhoritas Shenshen e Pfannee tocaram o ombro de Galinda em muda simpatia. Mas ela reagiu.

“Minhas caras amigas, as Senhoritas Pfannee e Shenshen estão alugando uma casa para o mês de alto verão nas praias do Lago Chorge. Uma pequena casa de fantasia perto da vila de Vale do Nunca. Decidi passar minhas férias lá, em vez de fazer uma jornada cansativa de volta às colinas de Pertha.”

“Que delícia.” Ele viu as bordas oblíquas de suas unhas laqueadas, as pálpebras coloridas como mariposas, a esmaltada e polida suavidade do rosto, a sensitiva dobra de pele bem na fenda de seu lábio superior. Na luz da manhã de verão, ela ficava realçada de um modo perigoso e arrebatador.

“Fique firme”, disse Crope, e ele e Tibbett se levantaram e pegaram Boq por um cotovelo. Ele, então, lembrou-se de respirar. Apesar disso, não conseguia pensar em nada para dizer, e Ama Clutch estava virando sua bolsa sem parar em suas mãos.

“Nós temos nossos empregos”, disse Tibbett, tentando salvar a situação. “A biblioteca do Três Rainhas. Estamos fazendo a guarda doméstica da literatura. Somos as faxineiras da cultura. Está trabalhando, Senhorita Galinda?”

“Eu acho que devo dizer não”, disse Galinda. “Preciso de um descanso dos meus estudos. Foi um ano angustiante, angustiante. Meus olhos estão ainda cansados de tanta leitura.”

“E quanto a vocês, garotas?”, disse Crope, com uma displicência ultrajante. Mas, elas soltaram apenas risinhos afetados e se recusaram a falar e foram se afastando aos poucos. Era o encontro de sua amiga, não delas. Boq, recuperando a compostura, sentiu o grupo se deslocando em fuga outra vez. “E a Senhorita Elfinha?”, ele inquiriu, para tentar detê-las. “Como anda sua colega de quarto?”

“Voluntariosa e difícil”, disse Galinda severamente, pela primeira vez falando numa voz normal, não num tênue sussurro social. “Mas, graças a Lurline, ela tem um emprego, então, me dá um pouco de alívio. Está trabalhando no laboratório e na biblioteca sob as ordens do Doutor Dillamond. Você o conhece?”

“Doutor Dillamond? Se o conheço?”, disse Boq. “Ele é o mais notável professor de biologia de Shiz.”

“Por falar nisso”, disse Galinda, “ele é um bode.”

“Sim, sim. Eu gostaria que ele fosse nosso professor. Mesmo nossos mestres reconhecem a sua importância. Pelo jeito, há muito tempo, quando houve o reino do Regente, e mesmo antes, ele era convidado anualmente para dar palestras em Briscoe Hall. Mas as restrições mudaram até isso, portanto, nunca cheguei a conhecê-lo. Só tê-lo visto naquela noite poética, no ano passado, de passagem, foi uma coisa e tanto...”

“Bem, o fato é que ele continua por aí”, disse Galinda. “Brilhante ele pode ser, mas não percebe quando fica chato. De qualquer modo, a Senhorita Elfinha trabalha duro, fazendo uma coisa ou outra. Ela vai continuar com isso, também. Eu acho que é contagioso!”

“Bem, um laboratório, ele cria coisas”, disse Crope.

“Sim”, disse Tibbett, “e incidentalmente acrescento que você é adorável tal e qual a perda de fôlego por emoção de Boq. A causa disso deve ser uma imaginação hiperativa nascida de uma frustração afetiva e fisiológica...”

“Você sabe”, disse Boq, “entre a sua Senhorita Elfinha e meus ex-amigos aqui, não temos nenhuma esperança de amizade. Vamos organizar um duelo e matar-nos um ao outro, em vez disso? Contar dez passos, virar e atirar? Isso pouparia muito aborrecimento.”

Mas Galinda não aprovava esse tipo de gozação. Ela balançou a cabeça como que desfazendo a reunião, e o grupo de mulheres se afastou pela trilha de cascalhos, seguindo a curva do canal. Ouviu-se a Senhorita Shenshen dizer numa profunda, alentada voz: “Oh, minha querida, ele é doce, de um modo brincalhão”.

A voz desapareceu, Boq voltou a se apoiar em Crope e Tibbett, mas eles deram para lhe fazer cócegas e todos caíram numa pilha de sobras do almoço. E desde que não havia jeito de mudar aqueles dois, Boq abandonou o impulso de corrigi-los. Realmente, que diferença faziam suas caçoadas joviais se a Senhorita Galinda o achava tão impossível?

 

Uma ou duas semanas depois, numa tarde de folga, Boq foi à Praça da Ferrovia. Ele lá ficou num quiosque, observando. Cigarros, imitações de talismãs de amor, desenhos sem valor de mulheres se despindo, e pergaminhos pintados com bombásticos crepúsculos, encimados por slogans inspiradores. “Lurline Vive Dentro de Cada Coração.” “Seja fiel às Leis do Mágico, e as Leis do Mágico o Protegerão.” “Peço ao Deus Inominável que a Justiça Chegue a Oz.” Boq observou a variedade: os incitamentos eram pagãos, autoritários e unionistas.

Mas nada era diretamente simpático aos monarquistas, que haviam caído em ostracismo nos dezesseis ásperos anos depois que o Mágico arrebatara o poder das mãos do Regente Ozma. A frase de Ozma era de origem gillikinesa, e certamente devia haver ativos bolsões de resistência ao Mágico. Mas Gillikin tinha, na verdade, prosperado sob o poder do Mágico, de modo que os monarquistas permaneciam de bico calado. Além disso, todos tinham ouvido boatos sobre severas ações legais movidas contra os vira-casacas e revolucionários.

Boq comprou uma folha liberal publicada fora da Cidade Esmeralda ― velha de várias semanas, mas era a primeira que via ultimamente ― e se acomodou num café. Leu que a Milícia da Cidade Esmeralda havia suprimido alguns dissidentes Animais, que estavam promovendo um motim nos jardins do palácio. Ele procurou notícias das províncias, e encontrou um “tapa-buraco” sobre a Terra de Munchkin, que continuava a sofrer penúrias de pré-seca; trovoadas ocasionais molhavam os solos, mas a água era insuficiente ou afundava inutilmente no barro. Dizia-se que lagos subterrâneos ocultos subjaziam na região de Vinkus, que as reservas aquáticas de lá poderiam abastecer toda Oz. Mas a idéia de um sistema de canais que cruzasse o país inteiro fazia todos rirem. A despesa em que isso implicaria! Havia grande desacordo entre as Eminências e a Cidade Esmeralda sobre o que devia ser feito.

Secessão, pensou Boq, belicosamente, e, ao levantar os olhos, tinha diante de si Elphaba que, sozinha, sem uma Babá ou uma Ama, olhava para ele. “Que expressão deliciosa você traz no rosto, Boq”, disse ela. “É mais interessante que o amor.”

“É amor, de certo modo”, disse Boq, então caiu em si, e ergueu-se prontamente. “Quer ser minha convidada? Por favor, sente-se. A menos que você se preocupe por não estar trazendo acompanhante.”

Ela se sentou, parecendo um pouco adoentada, deixando que ele pedisse uma xícara de chá mineral. Ela trazia um pacote em papel pardo amarrado com barbante sob o braço. “Uns presentinhos para a minha irmã”, ela explicou. “Ela é como a Senhorita Galinda, gosta do encanto externo das coisas. Encontrei um xale de Vinkus num bazar, rosas vermelhas contra um fundo preto, com franjas pretas e verdes. Estou mandando para ela, junto com um par de meias listradas que Ama Clutch tricotou para mim.”

“Não sabia que você tinha uma irmã”, ele disse. “Ela estava na turma com que a gente brincava quando criança?”

“Ela é três anos mais nova”, Elphaba disse. “Ela virá para Crage Hall dentro em breve.”

“Ela é tão difícil como você?”

“Ela é difícil de um modo diferente. Ela é aleijada, gravemente, é minha Nessarose, e vai dar trabalho. Nem Madame Morrible conhece a completa extensão do problema. Mas, quando ela vier, serei uma jovem terceiranista e terei coragem de encarar a Diretora, imagino. Se algo me deixa fula da vida, é ver as pessoas tornando a vida difícil para Nessarose. A vida já é bastante difícil para ela.”

“Sua mãe está cuidando dela?”

“Minha mãe morreu. Meu pai cuida dela, nominalmente.”

“Nominalmente?”

“Ele é um religioso”, disse Elphaba, e fez o gesto de girar as palmas que significava que você pode pôr para funcionar os moinhos e moinhos que quiser, mas não haverá pedra de mó que possa produzir farinha se não houver grão algum para moer.

“Parece muito difícil para todos. Como sua mãe morreu?”

“Ela morreu quando a criança nasceu, e este é o fim do interrogatório.”

“Fale-me do Doutor Dillamond. Soube que você trabalha para ele.”

“Fale-me você de sua divertida campanha para conquistar o coração de Galinda, a Rainha do Gelo.”

Boq queria realmente saber alguma coisa sobre o Doutor Dillamond, mas foi desarmado pela observação de Elphaba. “Eu vou continuar, Elfinha, eu vou! Quando eu a vejo, fico tão tomado pelos desejos, é como fogo em minhas veias. Não posso falar, e as coisas em que penso são como visões. É como sonhar. É como flutuar em sonhos.”

“Eu não sonho.”

“Diga-me, será que há alguma esperança? O que ela diz? Será que ela chega a imaginar que seus sentimentos por mim podem mudar?”

Elphaba estava com os dois cotovelos apoiados na mesa, as mãos apertadas contra o rosto, os indicadores postos um contra o outro sobre seus finos lábios acinzentados. “Você sabe, Boq”, ela disse, “o problema é que eu aprendi a admirar Galinda. Debaixo de seu amor deslumbrado por si mesma, existe uma mente que se esforça por funcionar. Ela de fato reflete sobre as coisas. Quando sua mente realmente está trabalhando, ela pode, se induzida, pensar em você — até, desconfio, com algum afeto. Eu disse que desconfio. Eu não sei. Mas, quando ela retorna a si mesma, quero dizer, quando retorna à garota que passa duas horas enrolando os cachos daquele belo cabelo, é como se a Galinda inteligente se enfiasse em algum armário interno e fechasse a porta. Ou como se ela batesse em histérica retirada de coisas que são grandes demais para ela. Gosto dela das duas maneiras, mas acho isso bem esquisito. Eu não me importaria de deixar isso pra lá, mas eu não sei que atitude tomar.”

“Eu acho que você está sendo dura com ela, e você é seguramente ferina demais”, disse Boq, seriamente. “Se ela estivesse aqui conosco, acho que ficaria estarrecida vendo-a falar tão livremente.”

“Tento apenas me comportar como uma amiga deve se comportar. Certo, eu não tenho muita prática.”

“Bem, ponho em dúvida sua amizade comigo, se você considera Galinda sua amiga, e se é desse jeito que você retalha um amigo em sua ausência.”

Embora Boq estivesse irritado, achava que essa era uma discussão mais animada que a conversinha fiada convencional que ele e Galinda tinham mantido até ali. Ele não queria espantar Elphaba com críticas. “Estou pedindo outro chá mineral para você”, ele disse, numa voz de mando, na verdade tal e qual a voz de seu pai, “e aí você me falará um pouco do Doutor Dillamond.”

“Deixa pra lá esse chá, eu ainda estou cuidando deste aqui, e aposto que você não tem mais dinheiro que eu”, disse Elphaba, “mas eu lhe falarei do Doutor Dillamond. A menos que você esteja ofendido demais com o gume e o enfoque das minhas opiniões.”

“Por favor, talvez eu esteja errado”, disse Boq. “Olhe, é um belo dia, nós dois estamos fora do campus. Como é que você conseguiu sair sozinha, por falar nisso? Sua saída foi autorizada por Madame Morrible?”

“Tente adivinhar”, ela disse, rindo. “Desde que ficou claro que você poderia ir e vir de Crage Hall pegando o caminho da horta e do telhado do estábulo vizinho, concluí que eu podia também. Ninguém vai dar por minha falta.”

“É difícil para mim acreditar”, ele disse, ousadamente, “porque você não é do tipo que combina com pular árvores. Mas, agora, me fale do Doutor Dillamond. Ele é meu ídolo.”

Ela suspirou, e finalmente pôs o pacote sobre a mesa, e se preparou para uma longa conversa, Ela lhe contou do trabalho do Doutor Dillamond com essências naturais, tentando determinar por metodologia científica qual era a verdadeira diferença entre os tecidos dos animais e dos Animais, e entre os tecidos dos Animais e dos humanos. A literatura sobre o assunto, tal como aprendera fazendo ela mesma o percurso, estava toda expressa em termos unionistas, e em termos pagãos anteriores a estes, que não resistiam a exame científico. “Não esqueça que Shiz no princípio foi um monastério unionista”, disse Elphaba, “assim, apesar da atitude de vale-tudo entre a elite educacional, ainda prevalecem camadas de preconceito unionista.”

“Mas eu sou um unionista”, disse Boq, “e eu não vejo o conflito. O Deus Inominável se acomoda a muitas maneiras de ser, não apenas a humana. Você está falando de um sutil preconceito contra Animais, entrelaçado a alguns primitivos conceitos unionistas, e ainda em funcionamento hoje em dia?”

“Com certeza é isso o que o Doutor Dillamond acha. E ele próprio é um unionista. Explique esse paradoxo e eu ficarei satisfeita em me converter. Admiro o Bode intensamente. Mas o interesse real dessa coisa para mim é o viés político. Se ele puder isolar algum pedacinho da arquitetura biológica para provar que não há diferença nenhuma lá no fundo dos invisíveis bolsões da carne humana e da Animal ― que não há diferença entre nós ― ou mesmo entre nós todos, se você levar em conta a carne dos animais comuns também ― bem, você pode deduzir as implicações.”

“Não”, disse Boq. “Eu acho que não consigo.”

“Como podem os Interditos da Mobilidade Animal serem sustentados se o Doutor Dillamond puder provar, cientificamente, que não há nenhuma diferença intrínseca entre humanos e Animais?”

“Oh, esse é um projeto para algum impossível futuro utópico”, disse Boq.

“Pense nisso”, disse Elphaba. “Pense, Boq. Com quais argumentos o Mágico poderia continuar a decretar esses Interditos?”

“Como ele poderia ser convencido a não fazê-lo? O Mágico dissolveu a Sala de Aprovação indefinidamente. Eu não acho, Elfinha, que o Mágico esteja aberto a argumentos diversificados, nem mesmo quando oferecidos por um Animal augusto como o Doutor Dillamond.”

“Mas é claro que ele deve estar. Ele é um homem no poder, sua função é levar em conta as oportunidades de conhecimento. Quando o Doutor Dillamond obtiver a prova, ele escreverá ao Mágico e começará a fazer lobbies pela mudança. Não há dúvida que ele fará o que puder para que os Animais do país saibam o que ele está pretendendo, também. Ele não é bobo.”

“Bem, eu não disse que ele é um bobo”, disse Boq. “Mas, em quanto você acha que ele pode estar se aproximando da evidência concreta?”

“Eu sou uma estudante auxiliar”, disse Elphaba. “Eu nem entendo o que ele quer dizer. Sou apenas uma secretária, uma amanuense ― você sabe que ele não consegue escrever, não pode manejar uma caneta com seus cascos. Eu faço anotações e arquivo e corro para a biblioteca de Crage Hall para fazer pesquisas.”

“A biblioteca de Briscoe Hall seria um lugar melhor para caçar esse tipo de material”, disse Boq. “Mesmo a de Três Rainhas, onde trabalho neste verão, tem pilhas de documentos das observações dos monges sobre vida animal e vegetal.”

“Sei que eu não tenho uma aparência tradicional”, disse Elphaba, “mas creio que devido ao fato de ser uma garota eu esteja excluída da biblioteca de Briscoe Hall. E que devido ao fato de ser um Animal, o Doutor Dillamond também o esteja. Portanto, essas fontes valiosas estão fora do nosso alcance.”

“Bem”, disse Boq, displicentemente, “se vocês souberem exatamente o que querem... eu tenho acesso às pilhas das duas bibliotecas.”

“E quando o bom Doutor concluir sua investigação da diferença entre Animais e gente, eu vou propor a ele que aplique os mesmos argumentos no campo das diferenças entre os sexos”, disse Elphaba. Então ela se deu conta do que Boq dissera, e estendeu-lhe a mão, quase o tocando. “Oh, Boq. Boq. Em nome do Doutor Dillamond, aceito sua generosa oferta de ajuda. Vou conseguir a primeira lista de fontes a pesquisar ainda nesta semana. Apenas deixe meu nome de fora disso. Eu não me importo muito em atrair a ira da Horrível Madame Morrible sobre mim, mas eu não quero que ela desforre sua irritação sobre minha irmã, Nessarose.”

Ela engoliu o resto de seu chá, apanhou seu pacote, e se retirou quase antes que Boq pudesse se levantar. Vários fregueses, que prolongavam suas pequenas refeições lendo seus próprios jornais ou romances, pararam para olhar a jovem deselegante que empurrava as portas. Quando Boq voltou a sentar-se, ainda mal se dando conta da coisa em que acabara de entrar, percebeu, lenta e detalhadamente, que nessa manhã não havia Animais tomando seu chá da manhã ali. Não havia Animal de espécie alguma.

 

Nos anos vindouros ― e Boq viveria uma vida longa ― ele se lembraria do resto do verão como algo marcado pelo cheiro do mofo de velhos livros, um tempo em que antigos manuscritos nadavam diante de seus olhos. Ele investigou sozinho as pilhas emboloradas, ele flutuou sobre as gavetas de mogno cheias de pergaminhos. Ao longo de toda a estação, as janelas em forma de losango entre fasquias e cruzetas de pedras azuis foram diluídas cada vez mais pelas manchas de chuva leve, mas contínua, quase tão quebradiça e irritante como areia. Aparentemente, a chuva não chegava lá na Terra de Munchkin ― mas Boq tentava não pensar nisso.

Crope e Tibbett foram coagidos a pesquisar para o Doutor Dillamond, também. A princípio tiveram de ser dissuadidos de insistir na pilhagem de apetrechos de disfarce ― falsos pincenês, perucas empoadas, mantos de golas altas, todos fáceis de encontrar no bem abastecido cofre da Sociedade Terpsicoreana e Teatral dos Estudantes do Três Rainhas. Mas, quando foram convencidos da seriedade da missão, engajaram-se nela com gosto. Uma vez por semana se encontravam com Boq e Elphaba no café da Praça da Ferrovia. Elphaba aparecia, durante essas semanas nevoentas, completamente enrolada num manto marrom com um capuz e um véu que escondiam tudo, exceto seus olhos. Ela usava luvas cinzentas longas e puídas que se gabava de ter comprado de segunda mão de uma funerária, baratas por terem sido usadas em serviços fúnebres. Ela forrara suas pernas de varas de bambu com meias de algodão de dupla espessura. A primeira vez que Boq viu Elphaba desse jeito, disse: “Eu acabo de lutar para convencer Crope e Tibbett de abrir mão de suas tralhas de espionagem, e você me aparece igual à Bruxa de Kumbric original.”

“Não me visto para a aprovação de vocês, rapazes”, ela disse, tirando seu manto e dobrando-o às avessas de modo que a lã molhada nunca a tocasse. Quando um freguês qualquer passava, espirrando água de um guarda-chuva, Elphaba sempre recuava, esquivando-se mesmo se fosse atingida por gotas esparsas.

“É por convicção religiosa, Elfinha, que você se mantém tão seca?”, disse Boq.

“Eu já lhe disse, eu não compreendo religião, embora convicção seja um conceito que estou começando a entender. Em todo caso, alguém com uma convicção religiosa verdadeira é, digamos, um sentenciado convicto, e merece a cadeia.”

“Deriva daí”, observou Crope, “sua aversão a toda espécie de água. Sem você saber disso, pode ser um salpico de pia batismal que você teme, pois aí a sua liberdade de uma agnóstica livre-pensadora seria diminuída.”

“Eu pensei que vocês viviam absorvidos demais por si mesmos para notarem minha patologia espiritual”, disse Elphaba. “Agora, turma, o que temos pra hoje?”

Boq sempre pensava: que bom se Galinda estivesse aqui também. Pois a camaradagem espontânea que crescera entre eles durante aquelas semanas era tão refrescante ― um modelo de conforto e mesmo inteligência. Contra a convenção, eles tinham abolido o uso de honoríficos. Eles interpelavam-se e riam e sentiam-se corajosos e importantes devido à natureza secreta de sua missão. Crope e Tibbett pouco ligavam para Animais ou Interditos ― eram ambos rapazes da Cidade Esmeralda, filhos, respectivamente, de um coletor de impostos e de um conselheiro de segurança do palácio ― mas a crença apaixonada de Elphaba naquele trabalho os animava. Ele imaginava Galinda formando fileiras com eles, perdendo sua reserva de classe superior, deixando seus olhos brilhar com um propósito secreto e compartilhado.

“Pensei que conhecesse todas as formas de paixão”, Elphaba disse numa tarde clara. “Quero dizer, sendo criada com um pastor unionista como pai, você acaba achando que a teologia é o fundamento sobre o qual todos os outros pensamentos e crenças se baseiam. Mas, rapazes! ― nesta semana, o Doutor Dillamond fez alguma espécie de avanço científico. Não sei bem o que foi, mas envolvia lentes manipuladoras, um par delas, de modo que ele podia perscrutar partículas de tecido que ele tinha colocado num vidro transparente e iluminado com luz de vela. Ele começou a ditar, e ele estava tão excitado que cantava suas descobertas; ele compunha árias inspiradas naquilo que estava vendo! Recitativos sobre estrutura, sobre cor, sobre as formas básicas de vida orgânica. Ele tem uma horrível voz de lixa, como você pode imaginar num Bode; mas como ele gorjeava! Trêmulo nas anotações, vibrato nas interpretações e sostenuto nas implicações: longas, triunfantes vogais abertas de felicidade pela descoberta! Eu estava certa de que alguém acabaria ouvindo. Eu cantei com ele, eu li as suas notas para ele como uma estudante de composição musical.”

O bom Doutor estava encorajado por suas descobertas, e ele pedia que a pesquisa deles ficasse mais e mais direcionada. Ele não queria anunciar qualquer avanço até que houvesse descoberto o meio mais politicamente vantajoso de apresentá-lo. Próximo ao fim do verão, o impulso era encontrar os relatórios dos lurlinistas e primeiros unionistas sobre como os Animais e os animais haviam sido criados e diferenciados. “Não é uma questão de revelar uma teoria científica elaborada por um grupo pré-científico de monges unionistas e sacerdotes e sacerdotisas pagãos”, explicou Elphaba. “Mas o Doutor Dillamond quer autenticar a maneira pela qual nossos ancestrais pensavam sobre isso. O Direito do Mágico de impor leis injustas poderá ser melhor enfrentado se soubermos como os velhos lunáticos explicavam a coisa para eles mesmos.”

Era um exercício interessante.

“De uma forma ou de outra, nós todos conhecemos alguns mitos de origem que precedem a Ozíada”, disse Tibbett, jogando suas louras melenas para trás com um floreio teatral. “O mais coerente deles traz nossa cara pretensa Lurline Rainha das Fadas fazendo uma viagem. Ela estava cansada de viajar pelo ar. Ela parou e invocou das areias do deserto uma fonte de água que estava oculta nas profundezas das dunas secas do solo. A água obedeceu em tal abundância que, da Terra de Oz em toda a sua febril variedade, brotou quase instantaneamente. Lurline mergulhou num estupor e subiu para um longo repouso no topo do Monte Runcible. Quando ela despertou, urinou copiosamente, e isso se tornou o Rio Gillikin, a correr pelas vastas extensões da Grande Floresta de Gillikin e a contornar as margens orientais do Vinkus, vindo a desembocar em Água Mansa. Os animais eram terrícolas e, portanto, de uma ordem inferior à de Lurline e sua comitiva. Não me olhem desse jeito, eu sei o que essa palavra quer dizer ― eu pesquisei. Significa aquilo que vive na terra ou perto dela.

“Os animais surgiram como coágulos de terra enrolados que foram desalojados da exuberante vida vegetal. Quando Lurline se aliviou, os animais pensaram que a torrente furiosa fosse um dilúvio, mandado para afundar seu mundo recém-nascido, e desesperaram da existência. Em pânico, atiraram-se nas águas e tentaram atravessar a urina de Lurline a nado. Aqueles que ficaram intimidados e voltaram à terra permaneceram animais, bestas de carga, abatidos devido à carne, caçados por esporte, avaliados como possível lucro, admirados pela inocência. Aqueles que continuaram nadando e chegaram à praia mais distante receberam os dons da consciência e da linguagem.”

“Que dom, ser capaz de imaginar sua própria morte”, resmungou Crope.

“Então, tornaram-se Animais. A convenção, desde o começo da história, estabelece uma divisão entre os animais e os Animais.”

“Batismo pelo mijo”, disse Elphaba. “Não será uma maneira sutil de explicar os talentos dos Animais e denegri-los ao mesmo tempo?”

“E que é que dizem dos animais que se afogaram?”, perguntou Boq. “Eles devem ter sido os verdadeiros perdedores.”

“Ou os mártires.”

“Ou os fantasmas que vivem em subterrâneos agora e interrompem o suprimento de água para que os campos da Terra de Munchkin fiquem secos.”

Todos riram e mais chá foi trazido à sua mesa.

“Descobri algumas escrituras mais recentes com um viés mais unionista”, Boq disse. “Elas contam uma história que imagino que seja derivada da literatura pagã, mas foi um pouco expurgada. O dilúvio, ocorrendo algum tempo depois da criação e antes do advento da humanidade, não foi uma mijada monumental de Lurline, mas o mar de lágrimas chorado pelo Deus Inominável na única visita que fez a Oz. O Deus Inominável percebeu o sofrimento que se abateria sobre a terra indefinidamente, e gritou de dor. Oz toda estava afundada em ondas de água salgada de uma milha de profundidade. Os animais conseguiam flutuar valendo-se de uma barca estranha, a árvore de raízes para cima. Aqueles que engoliram das lágrimas do Deus Inominável em quantidade suficiente se impregnaram de uma simpatia notável por seus parentes mais próximos, e começaram a construir jangadas dos destroços. Salvaram sua espécie por obra de misericórdia e, devido à sua bondade, tornaram-se um novo e consciente grupo: os Animais.”

“Um outro tipo de batismo, pelo lado de dentro”, disse Tibbett. “Ingestão. Gosto disso.”

“E quanto à fé no prazer?”, disse Crope. “Uma bruxa ou um feiticeiro podem pegar um animal e, através de um feitiço, transformá-lo em Animal?”

“Bem, essa é a coisa que eu tenho pesquisado”, disse Elphaba. “Os adeptos da fé no prazer dizem que se algo ― Lurline ou o Deus Inominável ― fez a coisa uma vez, a magia pode fazê-la de novo. Eles chegam a insinuar que a distinção original entre Animais e animais foi um feitiço da Bruxa de Kumbric, tão forte e duradouro que nunca se esgotou. Isso é propaganda perigosa, maldade encarnada. Ninguém sabe se existe uma coisa como a Bruxa de Kumbric, e deixa pra lá se algum dia existiu. Quanto a mim, penso que é uma parte do ciclo lurlinista que se desligou do conjunto e se desenvolveu independentemente. Besteira total. Não temos prova de que a magia seja tão poderosa...”

“Não temos prova de que o Deus seja tão poderoso”, interrompeu Tibbett.

“Me parece um argumento tão bom contra o Deus quanto contra a magia”, disse Elphaba, “mas, não tem importância. A questão é que, se for um duradouro feitiço de Kumbric, que venha se arrastando há séculos, pode ser reversível. Ou pode ser percebido como reversível, o que é igualmente ruim. Nesse ínterim, enquanto os feiticeiros estão ocupados experimentando seus encantos e feitiços, os Animais estão perdendo seus direitos, um a um. De um modo lento o bastante para que fique difícil se notar que é uma campanha política coerente. É um cenário perigoso, um que o Doutor Dillamond não percebeu...”

A essa altura da conversa, Elphaba puxou a parte do albornoz de seu manto sobre a cabeça e desapareceu nas sombras de suas dobras. “O quê?” disse Boq, mas ela pôs um dedo sobre os lábios. Crope e Tibbett, como que seguindo uma deixa, deram para representar alguma palhaçada tal como serem seqüestrados por piratas do deserto e obrigados a dançar o fandango trajados apenas com grilhões de escravos. Boq não viu nada errado: um par de escriturários lendo as formalidades do dia, algumas senhoras gentis com suas limonadas e romances, uma criatura tiquetaqueante comprando grãos de café pelo peso, uma paródia de um velho professor tentando resolver algum teorema pelo ato de arrumar e rearrumar cubos de açúcar que estavam ao lado de sua faca de manteiga.

Momentos depois, Elphaba relaxou. “Aquela coisa tiquetaqueante trabalha em Crage Hall. Acho que se chama Grommetik. Serve à Madame Morrible como um boneco doente de amor pela dona. Não acho que me viu.”

Mas ela estava nervosa demais para continuar a conversa, e depois que ficou claro quais seriam suas próximas tarefas, o grupo se dispersou pelas ruas nevoentas.

 

Duas semanas antes que Briscoe Hall reabrisse para o segundo semestre, Avaric retornou de sua casa, o sítio do Margrave de Dez Campos. Ele zombou de Boq por ter estreitado relações de amizade com rapazes do Três Rainhas, e sob outras circunstâncias Boq provavelmente teria deixado sua nova aliança com Crope e Tibbett se desfazer. Mas eles estavam todos engajados na pesquisa para o Doutor Dillamong agora, e Boq simples-mente ignorou os escárnios de Avaric.

Elphaba disse um dia que havia recebido uma carta de Galinda, que viajara com as amigas para o Lago Chorge. “Você acredita numa coisa dessas? ― ela propôs que eu pegasse uma carruagem e fosse visitá-la num fim de semana”, disse Elphaba. “Ela deve estar realmente pra lá de enfadada com aquelas garotas de sociedade.”

“Bem, Elfinha, quando você irá?”, perguntou Boq.

“Nunca”, disse Elphaba. “Este nosso trabalho é importante demais.”

“Deixe-me ver a carta.”

“Não está comigo.”

“Traga-a, então.”

“O que é que você está querendo?”

“Talvez ela precise de você. Ela parece estar sempre precisando de você.”

“Ela precisar de mim?”, Elphaba riu, bem alto e asperamente. “Bem sei que você está louco de amor e me sinto um pouco responsável por isso. Eu lhe mostrarei a carta na semana que vem. Mas não vou fazer isso só pra lhe dar uma emoção vicariante, Boq. Ou se é amigo ou não.”

Na outra semana ela entregou a carta.

 

Minha cara Senhorita Elphaba,

Fui autorizada a lhe escrever por minhas anfitriãs, as Senhoritas Pfannee de Pfann Hall e Shenshen do Clã de Minkos. Estamos passando um verão adorável no Lago Chorge. O ar é tranqüilo e doce e tudo é completamente agradável. Se quiser nos visitar por três ou quatro dias antes de as aulas recomeçarem, sabemos que tem trabalhado duro por todo o verão. Poderia ser uma pequena mudança. Se gostar da idéia de vir, não é preciso escrever para fazer uma visita. E só pegar a carruagem em Vale do Nunca e vir a pé ou alugar uma carruagem menor, de dois lugares, fica a só uma ou duas milhas pela ponte. A casa é de luxo, coberta por rosas e hera, conhecida como o “Capricho dos Pinhais”.

Quem não adoraria um lugar desses! Eu espero que você venha mesmo! Tenho a esperança de que você venha por razões que não ouso escrever. Não posso recomendar-lhe acompanhantes, pois Ama Clutch já se encontra aqui, e também estão aqui Ama Clipp e Ama Vimp. Você pode decidir. Esperamos por longas horas de conversa divertida. Sempre sua amiga querida,

Senhorita Galinda das Arduennas das Terras Alta33

Alto Verão, meio-dia em Capricho dos Pinhais.

 

“Mas, você deve ir!”, Boq gritou. “Olha só como ela escreve para você!”

“Ela escreve como alguém que não tem o hábito de escrever”, Elphaba observou.

“Eu espero que você venha mesmo!”, ela diz. “Ela precisa de você, Elphaba. Insisto em que você vá!”

“Oh, você insiste? Por que não vai você mesmo, então?”, disse Elphaba.

“Eu não poderia ir, não tendo sido convidado.”

“Bem, isso é fácil de resolver. Eu escreverei e direi a ela para convidar você”, Elphaba procurou um lápis em seu bolso.

“Não me trate como bobo, Senhorita Elphaba”, disse Boq severa-mente. “Isso deve ser levado a sério.”

“Você está louco de amor e iludido”, disse Elphaba. “E eu não gosto disso de você ter voltado a me chamar de ‘Senhorita Elphaba’ para me punir por discordar de você. Além disso, não posso ir. Eu não tenho acompanhante.”

“Serei seu acompanhante.”

“Hah! Como se Madame Morrible permitisse uma coisa dessas!”

“Bem ― que tal” ― Boq olhou em derredor ― “que tal meu amigo Avaric? Ele é filho do margrave. Devido a essa posição, é imaculado. Até Madame Morrible se acovardaria diante do filho de um margrave."

“Madame Morrible não se acovardaria nem diante de um furacão. Ademais, você não tem consideração por mim? Não me agrada muito a idéia de viajar com esse Avaric.”

“Elfinha”, disse Boq, “você me deve essa. Eu venho lhe ajudando todo o verão, e pedi a Crope e Tibbett que a ajudassem também. Agora, é hora de me pagar. Você pedirá ao Doutor Dillamond para ficar uns dias fora, e eu pedirei o mesmo a Avaric, que está arrebentando de vontade de fazer alguma coisa. Nós três iremos para o Lago Chorge. Avaric e eu alugaremos um quarto numa taberna, e ficaremos um tempinho. Tempo suficiente para ter certeza de que a Senhorita Galinda está bem.”

“É com você que me preocupo, não com ela”, disse Elphaba, mas Boq viu que tinha vencido.

 

Madame Morrible não queria liberar Elphaba aos cuidados de Avaric. “Seu querido pai nunca me perdoaria”, ela disse. “Mas eu não sou a Madame Horrível* que você julga que sou. Oh, sim, eu bem sei como me chama por aí, Senhorita Elphaba. Tão divertido, tão juvenil! Eu me preocupo com seu bem-estar. E com toda essa trabalheira no verão todo, vejo que ficou, oh, como dizer, verde-grisalha? Portanto, farei uma proposta de compromisso. Desde que você convença Mestre Avaric e Mestre Boq a viajar com você e meu pequenino Grommetik, que deixarei a seus cuidados cuidando também de você, permitirei seu pequeno folguedo de verão.”

Elphaba, Boq e Avaric foram no coche, e Grommetik foi levado lá em cima, com a bagagem. Elphaba procurava os olhos de Boq de vez em quando, fazendo uma careta, mas ignorava Avaric, por quem sentira uma aversão instantânea.

Quando terminou de preencher as formalidades, Avaric provocou Boq sobre a viagem. “Eu devia ter notado quando parti em férias de verão que você estava sucumbindo às dores do amor! Você me apareceu com aquela carranca de queixo duro e isso me enganou. Pensei que era tuberculose, no mínimo. Você devia ter saído comigo naquela noite antes da minha partida! Uma visita ao Clube de Filosofia teria sido exatamente o que o médico prescreveria.”

Boq estava mortificado por ver uma espelunca daquelas ser mencionada na presença de uma mulher. Mas Elphaba pareceu não se ofender. Talvez não soubesse o que o clube era. Ele tentou desviar Avaric desse assunto.

“Você não conhece a Senhorita Galinda, mas vai achá-la encantadora”, ele disse. “Eu garanto.” E ela provavelmente achará você encantador, ele pensou, um pouco mais tarde. Mas ele estava disposto a até mesmo conviver com isso, se tivesse de ser o preço para ajudar Galinda a sair de uma situação complicada.

Avaric se dirigiu a Elphaba com desprezo. “Senhorita Elphaba”, disse formalmente, “seu nome por acaso significa que há sangue de elfo na família?”

“Que idéia original”, disse Elphaba. “Se houvesse, suponho que meus membros seriam tão quebradiços quanto massa não-cozida, e se romperiam com a mais leve das pressões. Você se importaria de fazer um pouco de força?" Ela ofereceu um antebraço, tão verde quanto um limão na prima-vera. “Faça, eu estou pedindo, assim poderemos esclarecer essa questão de uma vez por todas. Concluiremos que a força relativa que você necessita para quebrar meu braço ― oposta a outros braços que você quebrou ― é proporcional à relativa quantidade de sangue humano versus sangue de elfo nas minhas veias.”

“É claro que eu não vou tocar em você”, disse Avaric, esforçando-se por dar às coisas mais de um sentido.

“O elfo que há em mim lamenta”, disse Elphaba. “Se você tivesse me desmembrado, eu poderia ter sido mandada de volta a Shiz em pequenos pedaços e sido poupada do tédio desta féria forçada. E de certas companhias.”

“Oh, Elfinha”, Boq suspirou. “Isso não é um bom começo, como sabe.”

“Eu acho que está excelente”, disse Avaric, olhando com ferocidade.

“Eu não sabia que a amizade exigia tanto assim”, retrucou Elphaba a Boq. “Antes, eu estava bem melhor.”

 

Era tarde avançada quando chegaram a Vale do Nunca e se alojaram na taberna, e pegaram a pé o caminho às margens do lago para Capricho dos Pinhais.

Duas mulheres idosas estavam ao sol no pórtico, descascando feijões-de-cerca e quebra-punhos. Aquela que Boq reconheceu foi Ama Clutch, a acompanhante de Galinda; a outra devia ser a conselheira da Senhorita Shenshen ou da Senhorita Pfannee. Elas se assustaram ao ver a procissão que chegava, e Ama Clutch deu alguns passos adiante, os feijões-de-cerca caindo de seu colo. “Bem, ora essa”, ela disse enquanto eles subiam, “é a Senhorita Elphaba em carne e osso. Pelas barbas do meu tio. Por essa eu não esperava.” Ela foi avante, e apertou Elphaba em seus braços. Elphaba ficou tão rija como uma figura de gesso.

“Dê-nos um minutinho para recuperar o fôlego, patinhos”, disse Ama Clutch. “O que, pelos santos céus, você está fazendo aqui, Senhorita Elphaba? Não parece possível.”

“Fui convidada pela Senhorita Galinda”, disse Elphaba, “e meus companheiros de viagem aqui insistiram em me acompanhar. Então, senti-me forçada a aceitar.”

“Não sei nada disso”, disse Ama Clutch. “Senhorita Elphaba, deixe-me levar essa bagagem pesada e providenciar algo limpo para você se vestir. Você deve estar exausta da viagem. Os cavalheiros aí na certa ficarão na aldeia. Mas, agora, as garotas estão na casinha de verão na beira do lago.”

Os viajantes seguiram por uma trilha interrompida por degraus de pedra nas partes mais íngremes. Grommetik andava devagar, e foi deixado lá para trás, e ninguém sentiu vontade de se retardar e dar uma mãozinha a uma figura de pele dura e pensamentos mecânicos. Margeando o renque final de moitas de azevinho, eles chegaram ao quiosque.

Era um esboço de casa de troncos rústicos, seis lados abertos ao vento, ornada com galhos em forma de arabescos, tendo o Lago Chorge como um poderoso campo azul ao fundo. As garotas estavam sentadas nos degraus e em cadeiras de vime, e Ama Clipp estava absorta em algum trabalhinho de mão envolvendo três agulhas e muitas cores de linha.

“Senhorita Galinda!”, irrompeu Boq, precisando que a sua fosse a primeira voz a ser ouvida.

As garotas ergueram as cabeças. Em evanescentes camisolas de verão, livres de cintos e anquinhas, pareciam pássaros a ponto de levantar vôo.

“Cruz-credo!”, disse Galinda, de queixo caído. “O que você está fazendo aqui?”

“Eu não estou prevenida!”, gritou Shenshen, chamando a atenção para seus pés descalços e seus pálidos tornozelos expostos.

Pfannee mordeu um canto de seu lábio e tentou converter seu sorriso afetado num sorriso de boas-vindas.

“Eu não vou ficar muito tempo”, disse Elphaba. “A propósito, meninas, este é o Mestre Avaric, Descendente do Margrave de Dez Campos, Gillikin. E este é o Mestre Boq da Terra de Munchkin. Ambos vêm de Briscoe Hall. Mestre Avaric, como se você já não pudesse notar pela ex-pressão apaixonada no rosto de Mestre Boq, estas são a Senhorita Galinda das Arduennas e a Senhorita Shenshen e a Senhorita Pfannee, que podem declinar seus pedigrees perfeitamente bem.”

“Mas, que encanto, que brincadeira”, disse a Senhorita Shenshen. “Senhorita Elphaba que-nunca-nos-dá-a-mínima, você se redimiu pelo resto da vida por essa surpresa agradável. Como estão, cavalheiros?”

“Mas”, gaguejou Galinda, “mas, por que vocês vieram? O que há de errado?”

“Estou aqui porque estupidamente mencionei seu convite ao Mestre Boq, que o interpretou como um sinal do Deus Inominável de que deveríamos vir.”

Mas, a essa altura, a Senhorita Pfannee não pôde mais se controlar, e caiu no chão do quiosque, contorcendo-se de rir. “O quê?”, disse Shenshen, “o quê?”

“Mas, de que convite você está falando?”

“Eu não preciso lhe mostrar”, disse Elphaba. Pela primeira vez desde que Boq a conhecera, ela se mostrou confusa. “Com certeza não preciso trazê-lo...”

“Acho que armaram para que eu ficasse mortificada”, disse Galinda, lançando um olhar feroz para a desamparada Pfannee. “Estou sendo humilhada por esporte. Isso não é engraçado, Senhorita Pfannee! Eu estou quase ― quase dando um pontapé em você!”

Foi quando Grommetik se arremeteu pela margem das moitas de aze-vinho. A visão da estúpida coisa acobreada balançando junto a um degrau de pedra fez Shenshen despencar junto a uma coluna e se juntar a Pfannee numa gargalhada incontrolável. Até Ama Clutch se pôs a sorrir enquanto recolhia os pertences das garotas.

“Mas, o que está acontecendo?”, disse Elphaba.

“Você nasceu para me dar azar?”, Galinda disse, chorosa, para sua colega de quarto. “Eu pedi a sua companhia?”

“Não”, disse Boq. “Não, Senhorita Galinda, por favor, não diga outra palavra. Você está furiosa.”

“Fui ― eu ― que ― escrevi ― a ― carta”, arquejou Pfannee, em meio às suas explosões de gargalhada. Avaric começou a rir, e os olhos de Elphaba ficaram arregalados e meio fora de foco.

“Você quer dizer que não me convidou para visitá-la aqui?”, disse Elphaba a Galinda.

“Oh, querida, não, eu não convidei”, disse Galinda. Em sua raiva, ela começava a recuperar um pouco do controle, mesmo assim, imaginou Boq, o erro fora cometido com boa intenção. “Minha querida Senhorita Elphaba, eu não teria nem sonhado expô-la a crueldades tão impensadas como as que essas garotas aprontam umas com as outras e comigo só por diversão. Além disso, você não faria sentido num lugar desses.”

“Mas, eu fui convidada”, disse Elphaba. “Senhorita Pfannee, foi você, em vez da senhorita Galinda, que escreveu aquela carta?”

“E você engoliu!”, riu Pfannee, deliciada.

“Bem, esta é a sua casa e eu aceito o convite, mesmo que tenha sido escrito sob falsas intenções”, Elphaba disse, sua voz tranqüilamente convicta enquanto olhava fixamente para os olhos apertados da Senhorita Pfannee. “Vou lá desfazer as minhas malas.”

Com passadas largas, ela se afastou. Somente Grommetik a seguiu. O ar azedou com as coisas não-ditas. Pouco a pouco a histeria de Pfannee foi se aquietando, e ela apenas bufava e respirava com dificuldade, e por fim se tranqüilizou, deitando-se despenteada, vaporosamente, no chão de laje do quiosque.

“Bem, vocês não precisam ficar me perfurando com suas fungadas de desprezo”, ela disse por fim. “Foi uma brincadeira.”

 

Elphaba ficou em seu quarto por um dia. Galinda ia e vinha, ocupada com um jantar. Ela veio e ficou por alguns minutos. Os rapazes se puseram a nadar e remar no lago com as garotas. Boq tentou insuflar em si mesmo um interesse por Shenshen ou Pfannee, que, claro, eram coquetes o bastante. Mas as duas pareciam encantadas era com Avaric.

Por fim, Boq encurralou Galinda na varanda e reclamou que ela conversasse com ele. Ela concordou, um pouco de sua conduta recatada re-tornando, e eles se sentaram a uma pequena distância um do outro numa cadeira de balanço. “Suponho que eu seja culpado por não ter notado essa artimanha”, disse Boq. “Elfinha não estava querendo aceitar o convite. Eu que forcei.”

“O que significa esse Elfinha agora?”, disse Galinda. “O que se passou de fato nesse verão, posso perguntar?”

“Nós nos tornamos amigos.”

“Bem, posso jurar que já tinha notado isso. Por que você a forçou a aceitar o convite? Você não sabia que eu não escreveria uma coisa daquelas?”

“Como poderia saber? Você é a colega de quarto dela.”

“Por ordens expressas da Madame Morrible, não por escolha minha! Faço questão de lembrar isso!”

“Eu não sabia. Vocês pareciam unidas.”

Ela fungou, fez um bico, mas parecia ser uma observação que dirigia apenas a si mesma.

Boq continuou: “Se você foi tão miseravelmente humilhada, por que não vai embora?”.

“Talvez eu faça isso mesmo”, ela disse. “Estou pensando. Elphaba diz que partir é admitir a derrota. No entanto, se ela sair de seu esconderijo e começar a enturmar com o resto de vocês ― e comigo ― a brincadeira ficará insuportável. Elas não gostam dela”, explicou.

“Bem, nem você gosta, é o que acho!”, disse Boq, num sussurro explosivo.

“É diferente, eu tenho direito e razão”, ela replicou. “Eu sou forçada a me relacionar com ela! E tudo porque minha Ama estúpida pisou num prego enferrujado na estação ferroviária de Frottica e perdeu o rumo! Minha carreira acadêmica toda virando fumaça por causa do descuido de minha Ama! Quando eu for uma feiticeira, vou me vingar dela por isso!”

“Você poderia dizer que Elphaba nos trouxe juntos”, disse Boq suavemente. “Sou tão chegado a ela como sou chegado a você.”

Galinda pareceu a ponto de desistir. Ela recostou sua cabeça nas almofadas aveludadas da cadeira de balanço e disse: “Boq, você sabe que, a despeito de tudo, eu o acho um tantinho doce. Você é um tantinho doce e um tantinho encantador e um tantinho irritante e um tantinho viciante.”

Boq prendeu a respiração.

“Mas você é baixo!”, ela concluiu. “Você é um munchkinês, pelo amor de Deus!”

Ele a beijou, beijou, beijou, beijou pedacinho a pedacinho.

 

No dia seguinte Elphaba, Galinda, Boq e Grommetik ― e, natural-mente, Ama Clutch ― fizeram a viagem de seis horas de volta a Shiz com pouco mais que uma dúzia de palavras trocadas entre eles. Avaric ficou para trás desfrutando Pfanee e Shenshen. A chuva amaldiçoada cobria os arredores de Shiz, e as augustas fachadas de Crage Hall e Briscoe Hall estavam quase invisíveis de tão cobertas pela névoa quando eles chegaram, finalmente, em casa.

 

Boq não teve tempo ou vontade de fazer comentários sobre seu romance quando viu Crope e Tibbett. O bibliotecário rinoceronte, que até aí prestara escassa atenção nos rapazes ou em seu rendimento no verão, subitamente dera-se conta de quão pouco fora obtido, e era só reumáticas bufadas e olhos vigilantes. Os rapazes conversavam pouco, escovavam e limpavam os pergaminhos, e esfregavam óleo de frango d’água nas encadernações de couro e poliam os fechos de metal. Faltavam poucos dias para que esse tédio acabasse.

Numa tarde, Boq deixou seu olhar se deter num códice que estava manuseando. Geralmente, ele trabalhava sem atentar para o assunto dos materiais com que estava lidando, mas seu olho foi atraído pelo traço em vermelho vivo aplicado na ilustração. Era um quadro ― de talvez quatrocentos, quinhentos anos? ― de uma Bruxa de Kumbric. Alguma preocupação ou ansiedade visionária quanto à magia havia inspirado o pincel de um monge. A Bruxa ficava num istmo que ligava duas terras rochosas, e se estendia sobre os dois lados de mar azul-cerúleo, com lábios branqueados por ondas de um vigor e uma particularidade surpreendentes. Segurava em suas mãos um animal de espécie irreconhecível, embora ele estivesse claramente afundado, ou quase afundado. Ela o embalava num braço que, sem considerar a real flexibilidade do esqueleto, circundava afetuosamente as costas úmidas e cheias de ferrões peludos do animal. Com sua outra mão, tirava um seio de seu manto, oferecendo de mamar à criatura. Sua expressão era difícil de decifrar, ou teria a mão do monge manchado, ou o peso do passar dos anos e da sujeira teriam dado a ela um esfumo de simpatia? Ela era quase maternal, como se acalentasse uma criança desamparada. Seu olhar era interiorizado, ou melancólico, ou algo mais. Mas, seus pés não combinavam com sua expressão, pois estavam plantados na praia estreita com garras bem fechadas, que apontavam nos sapatos cor de prata, cujo brilho de moedas-do-reino tinha atraído o olhar de Boq a princípio. Ademais, os pés estavam virados em ângulos de noventa graus para as canelas. Eles mostravam em perfil, como imagens de espelho, calcanhares unidos e dedos apontando em direções opostas, feito uma postura de balé. O traje era de um azul esmaecido de aurora. Ele adivinhou, pelos tons esmaltados do trabalho, que o documento não era aberto havia séculos.

Dramaticamente, ou teologicamente, essa imagem parecia alguma espécie de híbrido dos mitos da criação dos Animais. Ali estavam as águas do dilúvio, derivassem elas das lendas de Lurline ou das do Deus Inominável, estivessem elas emergindo ou afundando. A Bruxa de Kumbric estaria interferindo ou executando o destino traçado dos animais? Embora num texto muito rabiscado e arcaico para que Boq pudesse decifrá-lo, talvez esse documento oferecesse fundamento à fábula de um feitiço da Bruxa de Kumbric que dera aos Animais os dons da fala, da memória e do remorso. Talvez ele simplesmente a refutasse, mas com brilho. Por qualquer ângulo que fosse olhado, havia nele o sincretismo do mito, o apetite feliz por ampliar a abrangência da narrativa que este possui. Talvez essa pintura fosse a sugestão de algum monge assustado de que os Animais houvessem recebido as suas forças ainda por uma outra espécie de batismo, amamentados pela teta da Bruxa de Kumbric? Induzidos pelo leite da Bruxa?

Esse tipo de análise não era o seu ponto forte. Ele tivera tempos difíceis o bastante analisando os nutrientes e as pragas comuns da cevada. Ele faria o impensável e entregaria esse verdadeiro pergaminho ao Doutor Dillamond. Seria valioso saber o que ele significava.

 

Ou talvez, pensou enquanto caminhava rapidamente à procura de Elphaba, com a coisa escondida com segurança no fundo do bolso de sua capa e bem distante da biblioteca do Três Rainhas, talvez a Bruxa não estivesse alimentando o animal encharcado, mas matando-o? E se estivesse sacrificando-o para deter o dilúvio?

A arte estava muito, muito além de seu entendimento.

Ele tinha recorrido a Ama Clutch no bazar e pedido a ela que entregasse um bilhete a Elphaba. A boa mulher lhe parecera mais simpática que de costume; estaria Galinda tecendo louvores a ele na privacidade de seu quarto?

Era a primeira vez que ele via o engraçado feijão verde saltador desde que retornara a Shiz. E lá estava ela, pontual, chegando ao café tal como fora combinado, num vestido cinza que mais lembrava o de um fantasma, com um pulôver tricotado que estava puído nas mangas e um guarda-chuva masculino, grande e negro e semelhante a uma lança quando fechado. Elphaba sentou-se com uma pose travessa desgraciosa e examinou o pergaminho. Ela o olhou com mais atenção que aquela que daria depois a Boq. Mas ela escutou a sua exegese, e achou-a frágil. “O que impede essa mulher do quadro de ser a Fada Rainha Lurline?”, ela perguntou.

“Bem, não há aparatos de glamour. Quero dizer, o nimbo dourado do cabelo. A elegância. As asas transparentes. A varinha de condão.”

“Esses sapatos cor de prata são bem berrantes.” Ela mastigou um bis-coito seco.

“Não me parece um retrato de determinação ou ― o que quero dizer ― gênese. Parece reativo ao invés de ativo. Essa figura está no mínimo confusa, não acha?”

“Você tem ficado demais na companhia de Crope e Tibbett, volte para a sua cevada”, ela disse, acertando o alvo. “Você está ficando vago e artístico. Mas eu darei isso ao Doutor Dillamond. Eu lhe juro, ele continua fazendo progressos. O negócio de lentes opostas abriu todo um novo mundo de arquitetura corpuscular. Ele me deixou olhar uma vez, mas eu não entendi nada muito além de ênfase e viés, cor e pulso. Está muito animado. O problema que encontro agora é fazê-lo parar ― ele está no limiar de fundar um ramo inteiramente novo do conhecimento, e as descobertas diárias provocam centenas de novas questões. Clínicas, teóricas, hipotéticas, empíricas, até ontológicas, suponho. Ele fica acordado até tarde nos laboratórios. Podemos ver suas luzes acesas quando ele puxa as cortinas à noite.”

“Bem, ele precisa de mais alguma coisa de nós? Tenho apenas mais dois dias de biblioteca, e então as aulas começam.”

“Eu não consigo chamá-lo à realidade. Eu acho que ele está apenas juntando aquilo que já possui.”

“E quanto a Galinda, então”, ele disse, “se a questão da espionagem para nós está encerrada por enquanto? Como ela está? Ela pergunta de mim?”

Elphaba permitiu-se olhar para Boq. “Não. Galinda não disse realmente nada sobre você. Para lhe dar esperanças que você não merece, devo acrescentar que ela mal fala qualquer coisa comigo, também. Ela vive num aborrecimento sombrio.”

“Quando a verei de novo?”

“Isso significa tanto assim para você?” Ela sorriu palidamente. “Boq, ela significa tanto assim para você?”

“Ela é o meu mundo”, ele respondeu.

“Seu mundo é muito pequeno se ficar resumido a ela.”

“Você não pode criticar o tamanho de um mundo. Não posso evitar e não posso deter e não posso negar o que sinto.”

“Devo dizer que você me parece bobo”, ela disse, secando as últimas gotas de chá morno de sua xícara. “Devo dizer que você ainda olhará para esse verão em retrospecto e se envergonhará. Ela pode ser adorável, Boq ― não, ela é adorável, concordo ―, mas você merece uma garota doze vezes melhor.” Ante a expressão chocada de Boq, ela ergueu as suas mãos. “Não é comigo! Eu não quero dizer eu! Por favor, esse olhar chocado não! Me poupe!”

Mas ele não tinha certeza se acreditava nela. Elphaba apanhou suas coisas e foi-se embora depressa, topando na escarradeira com estardalhaço, brandindo o seu grande guarda-chuva bem em cima do jornal de alguém. Ela não olhava para os lados enquanto avançava pela Praça da Ferrovia e foi quase ceifada por um velho Boi que guiava um incômodo triciclo.

 

Ao rever Elphaba e Galinda, tempos depois, todas as idéias românticas de Boq desapareceram. Aconteceu no pequeno parque triangular à saída de Crage Hall. Ela passava por ali casualmente, outra vez, e nessa ocasião com Avaric a reboque. Os portões haviam sido abertos e Ama Vimp se precipitara para fora, cara branca e nariz escorrendo, e uma leva de garotas se esparramou a seguir. Entre elas estavam Elphaba e Galinda e Shenshen e Pfannee e Milla. Livres de seus muros, as garotas se ajuntavam em círculos de bate-papo, ou ficavam sob as árvores, agitadas, ou beijavam-se umas às outras, e choravam e enxugavam-se mutuamente os olhos.

Boq e Avaric correram em direção às suas amigas. Elphaba tinha os ombros altos, como a canga ossuda de um gato, e seu rosto era o único que continuava seco. Ela ficava a boa distância de Galinda e as outras. Boq ansiava por tomar Galinda em seus braços, mas ela não olhou para ele mais que uma vez antes de mergulhar seu rosto na gola de peles de Milla.

“O que é? O que aconteceu?”, disse Avaric. “Senhorita Shenshen, Senhorita Pfannee?”

“É horrível demais”, elas gritaram, e Galinda balançou a cabeça, e encostou seu nariz confusamente junto à linha do ombro da blusa de Milla. “Os policiais estão lá, e um médico, mas parece que...”

“O quê?”, disse Boq, e virou-se para o lado de Elphaba. “Elfinha, que é isso, quê?”

“Eles descobriram”, ela disse. Seus olhos estavam esgazeados como os da velha porcelana de Shiz. “De algum modo, os bastardos descobriram.”

O portão se abriu novamente, com um rangido, e pétalas de flores de trepadeiras de início de outono, azuis e roxas, desceram dançando sobre o muro do colégio. Elas pendiam, e dançavam como borboletas, e caíam lentamente, enquanto três policiais vestindo capas e um médico trajando negro surgiam, carregando uma padiola. Um cobertor branco envolvia o paciente, mas o vento que sacudia as pétalas virou uma ponta do cobertor e puxou-a, fazendo uma dobra triangular. As garotas todas soltaram um berro e Ama Vimp correu para prender o cobertor, mas, à luz do sol, todos tinham notado e visto os ombros torcidos e a cabeça lançada para trás do Doutor Dillamond. Sua garganta estava ainda envolta em cordões endurecidos pelo sangue negro, nos lugares onde fora retalhada tão cuidadosamente como se ele tivesse passado por um matadouro.

Boq sentou-se, desgostoso e assustado, desejando não haver visto a morte, como se esta fosse uma horrível ferida desfrutável. Mas os policiais e o médico não tinham pressa, não havia razão para apressarem-se agora. Boq encostou-se ao muro, e Avaric, que nunca vira o Bode, apertou as mãos de Boq fortemente com uma mão, cobrindo seu rosto com a outra.

Dentro em pouco, Galinda e Elphaba afundaram-se ao lado dele, e houve choro, algum choro prolongado, antes que as palavras pudessem sair. Por fim, Galinda contou a história.

“Fomos para a cama na noite passada ― e Ama Clutch se levantou para fechar as cortinas. Como sempre faz. E ela olha para lá embaixo e diz sempre lá para si mesma: ‘Bem, as luzes estão acesas, o Doutor Bode está lá outra vez’. Então, ela observa um pouco mais, por todo o pátio, e diz: ‘Bem, não é engraçado?’, e eu não presto atenção, fico só olhando, mas Elphaba diz: ‘Que é que é engraçado, Ama Clutch?’. E Ama Clutch puxa a cortina com muita força e diz numa voz cômica: ‘Oh, nada, minhas patinhas. Só vou descer um pouco para examinar e ter certeza de que tudo anda bem. Enquanto vocês ficam aí na cama.’ Ela diz boa-noite e sai, e não sei se ela vai para lá ou o quê, mas nós duas caímos no sono e de manhã ela não está lá para servir o chá. Ela sempre serve o chá! Sempre!”

Galinda se derramou em lágrimas, afundando-se e erguendo-se dos joelhos e tentando rasgar seu traje de seda negra com as dragonas e os bilros brancos. Elphaba, de olho tão seco quanto uma pedra do deserto, continuou.

“Esperamos até depois do café-da-manhã, mas daí fomos procurar a Madame Morrible”, disse Elphaba, “e lhe dissemos que não sabíamos onde Ama Clutch estava. E Madame Morrible disse que Ama Clutch havia tido uma recaída durante a noite e se recuperava na enfermaria. Ela não ia deixar a gente entrar, em princípio, mas daí, quando o Doutor Dillamond não apareceu para nossa primeira aula do semestre, vagamos por ali e simples-mente demos um jeito de entrar. Ama Clutch estava num leito hospitalar. Seu rosto parecia cômico, como a última panqueca da fornada, do jeito que fica quando dá pra desandar. Perguntamos: ‘Ama Clutch, Ama Clutch, o que aconteceu com você?’. Ela não respondeu nada, embora seus olhos estivessem abertos. Ela não parecia ouvir-nos. Pensamos que ela estivesse dormindo ou sofrerá um choque, mas sua respiração era normal e sua cor era boa, embora seu rosto parecesse esquisito. Daí, quando estávamos já saindo, ela se virou e olhou para o lado da cama.

“Perto de uma garrafa de remédio e um copo de limonada havia um comprido prego enferrujado numa bandeja de prata. Ela estendeu uma mão trêmula até o prego e pegou-o e segurou-o na palma da mão, terna-mente, e conversou com ele. Ela disse alguma coisa como: ‘Oh, bem, então, eu sei que você não tinha a intenção de perfurar meu pé ano passado. Você apenas tentava atrair a minha atenção. É isso o que o mau comportamento geralmente é, só um punhadinho de amor extra que a gente reclama. Bem, não se preocupe, Prego, porque vou amá-lo na quantidade que você precisa. E, depois que eu tirar uma sonequinha, você poderá me contar como aconteceu de estar virado para cima lá na plataforma da estação ferroviária em Frottica, porque parece um grande avanço sobre os primeiros anos como um simples gancho de aviso de FECHADO PARA A TEMPO-RADA naquele hotel encardido de que você me falou’.”

Mas Boq não ouvia esse blábláblá. Ele não ia entrar na história de um Prego vivo enquanto um Bode morto estava sendo carpido por histéricos membros da faculdade. Boq não conseguiu ouvir os sons das orações pelo repouso da alma do Animal. Ele não conseguiu ver a partida do cadáver, quando o levaram embora em silêncio. Pois ficara claro, com um vislumbre do rosto impassível do Bode, que aquilo que dava ao doutor uma aparência animada, fosse o que fosse, já havia desaparecido.

 

Não havia dúvida na cabeça de ninguém que vira o cadáver que a palavra, a palavra apropriada para aquilo era assassinato, O modo com que o pêlo acima do pescoço tinha se arqueado, aglutinando-se como o pincel de pintura que um pedreiro não tivesse limpado; o cru e âmbar oco dos olhos. A história oficial era que o doutor havia quebrado uma lente de aumento e tropeçado nela, cortando uma artéria ao fazê-lo ― mas ninguém acreditava nisso.

A única pessoa em que poderiam pensar para saber alguma coisa, Ama Clutch, só fazia sorrir quando iam visitá-la, com punhados de belas folhas amareladas ou um prato das mais frescas uvas de Pertha. Ela devorava as uvas e punha-se a conversar com as folhas. Era uma enfermidade que ninguém nunca havia conhecido.

Glinda ― pois, como uma espécie de desculpa atrasada por sua aspereza inicial com o martirizado Bode, ela agora se referia a si mesma do modo com que ele uma vez a chamara ― Glinda parecia haver emudecido diante da realidade de Ama Clutch. Ela não a visitava, nem discutia a pobre condição da mulher, e, assim, era Elphaba que ia sorrateiramente vê-la uma ou duas vezes ao dia. Boq supunha que Ama Clutch padecia de uma moléstia passageira. Mas, três semanas depois, Madame Morrible começou a ficar preocupada com o fato de Elphaba e Glinda ― ainda colegas de quarto ― não terem acompanhante. Ela sugeriu o dormitório coletivo para ambas. Glinda, que não queria ver mais Madame Morrible em particular, balançou a cabeça e aceitou o rebaixamento. Foi Elphaba quem apareceu com uma solução, mais para salvar algum fiapo de dignidade de Galinda.

Foi assim que, dez dias depois, Boq descobriu-se, no pátio do Galo e Abóboras, a esperar o coche do meio de semana que chegaria da Cidade Esmeralda. Madame Morrible não permitira que Elphaba e Galinda fossem com ele ― portanto, tinha que descobrir por si mesmo quais dos sete passageiros que apeariam eram a Babá e Nessarose. As deformidades da irmã de Elphaba eram bem disfarçadas, Elphaba lhe dissera; Nessarose podia até descer de uma carruagem com graça, desde que o degrau fosse seguro e o chão liso.

Ele encontrou-as e disse alô. A Babá parecia mais compota de ameixa que mulher; vermelha e flácida, sua velha pele parecia pronta a se rachar nas dobras dos cantos da boca, nos rebites carnosos à beira dos olhos. Mais que uma vintena de anos nas terras ruins de Quadling a tornaram letárgica, descuidada e saturada de ressentimento. Na sua idade, ela já devia ter sido recolhida a algum cálido borralho. “É bom ver um pequeno munchkinês”, ela murmurou a Boq. “É como nos velhos tempos.” Então, ela se virou e disse para as sombras: “Venha, minha boneca”.

Se não tivesse sido avisado, Boq não tomaria Nessarose por irmã de Elphaba. Ela não era verde de maneira alguma, ou mesmo de um branco azulado como alguma boa pessoa atacada de má circulação. Nessarose desceu da carruagem elegantemente, cautelosamente, estranhamente, ajustando seu calcanhar e seus dedos no degrau de ferro. Caminhando daquele modo esquisito, ela chamava a atenção para seus pés, o que afastava os olhares do torso, ao menos a princípio.

Os pés aterrissaram no solo, ali postos com uma intenção furiosa de obter equilíbrio, e Nessarose se ergueu à sua frente. Ela era tal como Elphaba dissera: magnífica, rosada, esguia como um ramo de trigo, e sem braços. O xale acadêmico sobre seus ombros estava habilidosamente dobrado para amenizar o choque.

“Alô, bom senhor”, ela disse, balançando a cabeça ligeiramente. “As valises estão lá em cima. Pode tirá-las para nós?” Sua voz era tão suave e untuosa quanto a de Elphaba cheia de arestas. A Babá empurrou Nessarose delicadamente em direção ao coche que Boq conseguira. Ele via agora que Nessarose não se movimentava bem sem ser amparada por uma mão firme.

“Então, agora a Babá aqui tem de cuidar das garotas em sua vida escolar”, disse a Babá para Boq enquanto avançavam. “Que remédio, com a santa mãe delas em seu túmulo encharcado nesses anos todos, e o pai com o juízo perdido. Bem, a família sempre foi brilhante, e o brilho, como você sabe, decai brilhantemente. A loucura é o modo mais brilhante de se decair. O mais idoso, o Eminente Thropp, está vivo ainda, e sensível como uma velha lâmina de charrua. Sobreviveu à sua filha e à sua neta. Elphaba é a Terceira Descendente do Thropp. Ela será a Eminência um dia. Como um munchkinês, você sabe dessas coisas.”

“Bá, não faça fuxico, isso me magoa”, disse Nessarose.

“Oh, minha lindinha, não fique choramingando. Este Boq é um velho amigo, ou tão bom quanto um”, disse a Babá. “Lá pelos pântanos do inferno de Quadling, meu amigo, perdemos a arte da conversação. Nós coaxamos em coro com o que restou do povo-rã.”

“Vou ter uma dor de cabeça de tão envergonhada”, disse Nessarose, charmosamente.

“Mas eu conheci a Elfinha quando ela era pequenininha”, disse Boq. “Eu sou de Margens Agitadas de Pedras do Caminho. Devo ter conhecido você também.”

“No começo, eu preferia residir em Selos de Colwen”, disse a Babá. “Eu era um auxílio fundamental para a Senhora Partra, a Segunda Descendente do Thropp. Mas, de vez em quando, visitava Margens Agitadas. Assim, devo tê-lo conhecido quando você era ainda menino de andar sem calças.”

“Como vai?”, disse Nessarose.

“O nome é Boq”, disse ele.

“Esta é Nessarose”, disse a Babá, como se fosse muito doloroso para a jovem apresentar-se por si mesma. “Ela estava por vir para Shiz no próximo ano, mas soubemos que há um problema com uma orientadora gilli-kinesa que tombou em serviço. Então, a Babá aqui é chamada para resolver, e pode ela deixar sua queridinha vir sozinha? Você vê o motivo.”

“Um triste mistério, que esperamos esclarecer”, disse Boq.

Em Crage Hall, Boq testemunhou o reencontro das irmãs, que foi caloroso e gratificante. Madame Morrible pôs seu autômato Grommetik em ação para servir chá e biscoitos para as descendentes do Thropp, e para a Babá, Boq e Glinda. Boq, que havia começado a se preocupar com a fuga de Glinda para o silêncio, ficou aliviado ao vê-la lançar um agudo e experiente olhar sobre o elegante vestido de Nessarose. Como podia ser, ele supunha que Glinda pensasse, que duas irmãs fossem deformadas e se vestissem de maneiras tão diferentes? Elphaba usava a mais humilde de suas roupas escuras; hoje, vestia um roxo profundo que era quase negro. Nessarose, equilibrada num sofá perto da Babá, que a ajudava erguendo xícaras de chá e quebrando pedaços amanteigados de rosquinhas, vestia sedas verdes, da cor do musgo, da esmeralda, e rosas verdes e amarelas. A verde Elphaba, sentada ao seu lado e servindo-lhe de apoio quando ela jogava sua cabeça para trás para engolir seu chá, parecia um acessório de moda.

“A solução toda é altamente fora do comum”, Madame Morrible dizia, “mas, ai, nós não temos quartos em número ilimitado para resolver cada caso em particular.

Deixaremos a Senhorita Elphaba e a Senhorita Galinda ― é Glinda agora, não, querida? Que original ― deixaremos essas duas velhas companheiras tal como estão, e vamos colocá-la, Senhorita Nessarose, com sua Babá, no quarto ao lado, aquele que a pobre Ama Clutch ocupava. É pequeno, mas vocês devem considerá-lo aconchegante.”

“Mas, e quando Ama Clutch se recuperar?”, disse Glinda.

“Oh, mas, minha querida”, disse Madame Morrible, “que confiança os jovens possuem! Comovente, mesmo.” Ela prosseguiu, numa voz mais afiada. “Você já tinha me falado das recorrências de prazo indefinido desse tipo raro de condição patológica. Eu posso apenas supor que a coisa degenerou numa espécie de recaída permanente.” Ela mastigava um biscoito a seu modo lento, como um peixe, suas bochechas se abrindo e fechando como as abas de couro de um fole. “Claro, podemos todos ter esperanças. Mas temo que não mais que isso.”

“E podemos rezar”, Nessarose disse.

“Oh, bem, sim, isso”, disse a Diretora. “Isso não precisa ser mencionado entre gente bem nascida, Senhorita Nessarose.”

Boq notou que Nessarose e Elphaba coraram. Glinda pediu licença e se retirou. A habitual agonia de pânico que Boq sentia quando ela partia foi amenizada por saber que a veria novamente nas aulas de ciências da vida na semana seguinte, pois, com as novas proibições quanto a contratação de Animais, os colégios tinham decidido dar palestras para todos os estudantes de todos os estabelecimentos de uma vez só. Boq veria Glinda na primeira palestra co-educacional a ser ministrada em Shiz. Ele mal podia esperar.

Apesar disso, ela havia mudado. Ela certamente havia mudado.

 

Glinda estava mudada. Ela própria o sabia. Ela chegara em Shiz como uma coisa fútil, bobinha e agora se descobria num antro de víboras. Talvez fosse por falha sua. Ela inventara uma doença inexistente para Ama Clutch, e Ama Clutch fora acometida realmente por ela. Seria isso prova de uma habilidade inerente para a feitiçaria? Glinda optara por se especializar em feitiçaria nesse ano, e aceitara como punição que Madame Morrible não houvesse mudado a sua companheira de quarto, como prometera. Glinda não se importava mais. Ao lado da morte do Doutor Dillamond, os vários outros assuntos pareciam insignificantes.

Mas ela também não confiava em Madame Morrible. Glinda não contara a ninguém, além da diretora, aquela estúpida e extravagante mentira. Assim, ela não admitiria mais que Madame Morrible detivesse uma posição de mando em sua vida. E Glinda ainda não tinha coragem de contar seu crime não-intencional a ninguém. Enquanto ela padecia, Boq, a irritante mosquinha, ficava zanzando ao redor dela em busca de atenção. Ela lamentava ter deixado que ele a beijasse. Que erro! Bem, tudo isso havia ficado lá para trás, agora, eram apenas tremores que haviam precedido o desastre social. Ela agora via as Senhoritas Pfannee etc. como realmente eram ― superficiais, egoístas, vaidosas ― e não teria mais relações com elas.

Assim, Elphaba, que não era mais um risco social, tinha todo o potencial para tornar-se uma amiga verdadeira. Se ficar sobrecarregada com essa boneca quebrada, que era a sua irmã mais nova, não atrapalharia demais. Fora apenas com ferroadas que Glinda conseguira arrancar de Elphaba informações sobre a sua irmã, a fim de que pudesse ficar preparada para a sua chegada e a ampliação de seu círculo social.

“Ela nasceu em Solos de Colwen, quando eu tinha perto de três anos”, Elphaba lhe contara. “Minha família havia retornado a Solos de Colwen para uma breve estada. Era numa daquelas épocas de seca intensa. Papai nos disse, tempos mais tarde, depois que mamãe morrera, que o nascimento de Nessarose coincidira com um breve reaparecimento de água potável nos arredores. Fez-se danças pagãs e houve um sacrifício humano.”

Glinda fixara os olhos em Elphaba, que parecia a um só tempo precipitada e sem vontade de falar.

“Um amigo deles, um soprador de vidro de Quadling. A multidão, in-citada por alguns agitadores do populacho adeptos da fé no prazer e num relógio profético, caiu sobre ele e o matou. Um homem chamado Coração de Tartaruga.” Elphaba pressionara a palma de suas mãos sobre os coturnos de seus sapatos de segunda mão de um preto retinto, mantendo os olhos experientes no chão. “Eu acho que foi por isso que os meus pais se tornaram missionários para o povo do Estado de Quadling, não retornando nunca mais a Solos de Colwen ou à Terra de Munchkin.”

“Mas a sua mãe morreu quando a criança nasceu?”, disse Glinda. “Como ela pôde ter sido uma missionária?”

“Ela sobreviveu por cinco anos ainda”, disse Elphaba, olhando para as dobras de seu vestido, como se a história fosse um embaraço. “Ela morreu quando nosso irmão mais novo nasceu. Meu pai o batizou de Shell*, por causa de Coração de Tartaruga, eu acho. Assim, Shell e Nessarose e eu vivemos como crianças ciganas, mudando de povoado a povoado de Quadling com a Babá e nosso pai, Frex. Ele pregava, e a Babá nos ensinava e criava e mantinha a casa tal como sempre fora, o que não dava muito trabalho. Enquanto isso, os homens do Mágico começaram a drenar as terras ruins para chegar aos depósitos de rubis. Isso nunca funcionou, é claro. Eles deram para perseguir os quadlings e matá-los, fechando-os em campos de concentração para se protegerem e matá-los de inanição. Eles devastaram as terras ruins, pilharam os rubis e partiram. Meu pai ficou meio louco com eles. Nunca houve por lá rubis o bastante para justificar o esforço; ainda não temos nenhum sistema de canais para transportar aquela lendária água do Vinkus pela região toda até a Terra de Munchkin. Depois da seca, depois de alguns adiamentos promissores, a coisa continua sem solução. Os Animais são chamados de volta para as terras de seus ancestrais, uma estratégia para dar aos fazendeiros algum senso de controle sobre alguma coisa. É uma sistemática marginalização de populações inteiras, Glinda, e é isso o que significa o reinado do Mágico.”

“Nós estamos falando sobre a sua infância”, disse Glinda.

“Bem, é isso, e tudo isso é parte dela. Você não pode separar sua vida particular da política”, Elphaba disse. “Você quer saber o que nós comíamos? Como brincávamos?”

“Eu quero saber como é Nessarose, como é Shell”, disse Glinda.

“Nessarose é uma semi-inválida cheia de força de vontade”, disse Elphaba. “Ela é muito inteligente, e pensa que é santa. Ela herdou o gosto de meu pai por religião. Ela é boa para tomar conta de outras pessoas porque nunca aprendeu a tomar conta de si mesma. Bem, ela nem pode fazê-lo. Meu pai me incumbiu de cuidar dela na maior parte de minha infância. O que ela fará quando a Babá morrer, não sei. Suponho que terei de tomar conta dela novamente.”

“Oh, que perspectiva de vida medonha”, disse Glinda, antes que pudesse se controlar.

Mas Elphaba apenas balançou a cabeça, soturna. “Não posso seguir com esta conversa”, ela disse.

“Quanto a Shell”, continuou Glinda, imaginando em que ferida recente ela podia ter pisado.

“Macho e branco e o resto”, ela disse. “Ele tem agora perto de uns dez anos, eu imagino. Ele ficará em casa e tomará conta de nosso pai. Ele é um menino, do jeito que os meninos são. Um pouco besta, talvez, mas ele não teve as vantagens que tivemos.”

“Quais foram?”, perguntou Glinda de imediato.

“Mesmo que por breve tempo”, disse Elphaba, “nós tivemos uma mãe. Uma mulher frívola, bêbada, imaginativa, incerta, desesperada, corajosa, teimosa, protetora. Nós a tivemos. Melena. Shell não teve mãe alguma exceto a Babá, que fez o melhor que pôde.”

“E quem era o favorito de sua mãe?”, disse Glinda.

“Não posso te dizer isso”, disse Elphaba casualmente, “não sei. Teria sido Shell, provavelmente, visto ele ser menino. Mas ela morreu sem conhecê-lo, e, assim, não teve nem esse pequeno consolo.”

“E o favorito de seu pai?”

“Oh, aí é fácil”, disse Elphaba, erguendo-se e procurando seus livros na pasta, e se preparando para bater em retirada, interrompendo a conversa por aí mesmo. “É Nessarose. Você entenderá isso quando conhecê-la. Ela seria a favorita de qualquer um.” Ela caiu fora do quarto com não mais que um breve aceno dos dedos verdes, em sinal de despedida.

 

Glinda não estava tão certa de que a irmã de Elphaba seria uma favorita para ela. Nessarose parecia tão carente. A Babá era exageradamente solícita, e Elphaba continuava a sugerir ajustamentos em seus arranjos domésticos para aperfeiçoar as coisas. Colocar as cortinas neste ângulo em vez daquele, manter o sol longe da bela pele de Nessarose. Podemos ficar com a lâmpada de óleo a uma altura em que Nessarose possa ler? Shh, nada de conversinhas tarde da noite; Nessarose já se recolheu e ela tem um sono tão leve.

Glinda estava um pouco espantada com a beleza bizarra de Nessarose. A irmã de Elphaba se vestia bem (se não extravagantemente). Ela desviava a atenção sobre si mesma, contudo, por um sistema de pequenos tiques sociais ― a cabeça abaixada num repentino ataque de devoção, os olhos piscando. Era especialmente comovente ― e irritante ― ter de enxugar um fio de lágrimas provocado por alguma epifania na rica vida espiritual do interior de Nessarose, da qual os espectadores não podiam ter uma vaga idéia. O que alguém poderia dizer?

Glinda começou a se desinteressar por seus estudos. A feitiçaria vinha sendo ensinada por uma nova instrutora desajeitada chamada Senhorita Greyling. Ela tinha uma arrebatada veneração pela matéria, mas, como logo ficou visível, pouca habilidade natural. “Em seu sentido mais elementar, um feitiço nada mais é que uma receita de mudança”, ela entoava afetadamente para os alunos. Mas, quando o frango que ela tentou transformar num pedaço de torrada se transformou numa mistura de grãos de café co-locada numa folha de alface em forma de xícara, os estudantes anotaram lá para si que não deveriam nunca aceitar um convite para jantar na casa dela.

No fundo da sala, esgueirando-se com pretensa invisibilidade para que pudesse melhor observar, Madame Morrible balançava a cabeça e ria. Uma ou duas vezes não pôde se abster de interferir. “Longe de mim dar palpites na sala de visitas da feiticeira”, clamava, “ainda assim, Senhorita Greyling, não terá omitido as etapas de ligação e persuasão? Estou apenas perguntando. Deixe-me experimentar. Você sabe que tenho um prazer especial em nosso treinamento de feitiçaria.” Inevitavelmente, a Senhorita Greyling se penitenciava do que restara de alguma demonstração anterior, ou deixava a sua crista baixar, desmoronando numa pilha de vergonha e mortificação. As garotas davam risadinhas, e não sentiam que estivessem aprendendo muita coisa.

Ou estavam? O bom da falta de jeito da Senhorita Greyling era que as autorizava a não sentirem medo de tentar por si mesmas. E ela não economizava entusiasmo se uma estudante conseguia realizar a tarefa do dia. A primeira vez em que Glinda conseguiu fazer desaparecer um carretel de linha com um feitiço de invisibilidade, mesmo por segundinhos, a Senhorita Greyling bateu palmas e pulou para cima e para baixo e quebrou uma ponta traseira do sapato. Era gratificante, e estimulante.

“Não que eu faça objeção”, disse Elphaba um dia, quando ela e Glinda (e, inevitavelmente, a Babá) estavam sentadas debaixo de uma árvore de fruta-pérola perto do Canal do Suicídio. “Mas eu tenho de perguntar. Como será que a universidade continua a ensinar feitiçaria se seu decreto original era tão estritamente unionista?”

“Bem, não há nada inerentemente religioso ou não-religioso no caso da feitiçaria”, disse Glinda. “Haverá? Também não há nada nela que lembre a fé no prazer.”

“Feitiços, transformações, aparições? É tudo entretenimento”, disse Elphaba. “É teatro.”

“Bem, pode parecer teatro, e nas mãos da Senhorita Greyling se parece mais é com mau teatro”, admitiu Glinda. “Mas o âmago da coisa não está relacionado ao uso. É mais uma habilidade prática, como ― como ler e escrever. Não é bem que você possa, é mais o que você lê ou escreve. Ou, se você me perdoar o jogo de palavras, o feitiço que você lança.”

“Papai desaprovava vigorosamente”, Nessarose disse, nos tons adocicados da fé inquebrantável. “Papai sempre dizia que a magia é a prestidigitação do diabo. Ele dizia que a fé no prazer não era mais um exercício para afastar as massas do verdadeiro objeto de sua devoção.”

“Essa é uma conversa unionista”, disse Glinda, sem se mostrar ofendida. “Uma opinião sensata, se aquilo a que você se opõe são os charlatões e os mágicos de rua. Mas, a feitiçaria não tem de ser isso, necessariamente. Que dizer das bruxas comuns que vivem em Glikkus? Dizem que elas enfeitiçam as vacas que importaram de Munchkin para que não cheguem mugindo à beira de algum precipício. Quem poderia dar-se ao luxo de co-locar uma cerca em cada uma das beiras de abismo que existem? A magia é então uma habilidade local, uma contribuição para o bem-estar da comunidade. Não tem de suplantar a religião.”

“Pode não ter de”, disse Nessarose, “mas se tende a suplantar, então não temos o dever de desconfiar?”

“Oh, desconfiar, tudo bem, também fico precavida até com a água que bebo, pode estar envenenada”, disse Glinda. “Isso não significa que eu vá parar de tomar água.”

“Bem, eu não acho que isso seja uma questão tão importante”, disse Elphaba. “Eu acho que a feitiçaria é trivial. É relacionada no mais das vezes só consigo mesma, não vai além.”

Glinda se concentrou com empenho e tentou fazer com que o sanduíche que estava no lado esquerdo de Elphaba se elevasse sobre o canal. Ela conseguiu apenas explodir a coisa numa pequena combustão de maionese e cenoura esfrangalhada e azeitonas picadas. Nessarose perdeu o equilíbrio de tanto rir, e a Babá teve de ancorá-la novamente. Elphaba ficou coberta com pedaços de comida, que tirava de sobre si e ia comendo, para o nojo e a diversão de todos. “Tudo isso são apenas efeitos, Glinda”, ela disse. “Não há nada de ontologicamente interessante na magia. Não que eu acredite em unionismo tampouco”, ela clamou. “Eu sou uma ateísta e uma espiritualista.”

“Você diz isso só para chocar e escandalizar”, disse Nessarose, empertigada. “Glinda, não ouça nada do que ela fala. Ela sempre faz isso, geralmente para deixar papai fulo de raiva.”

“Papai não está aqui”, Elphaba lembrou à sua irmã.

“Eu assumo o lugar dele e fico ofendida”, disse Nessarose. “Muito bom franzir o nariz para o unionismo quando o Deus Inominável nos deu um nariz. É bem engraçado, não, Glinda? Infantil.” Ela parecia estar cuspindo fúria.

“Papai não está aqui”, disse Elphaba novamente, num tom que chegava a soar como um pedido de desculpas. “Você não precisa sair em defesa pública das obsessões que ele tinha.”

“O que você chama de obsessões dele são meus artigos de fé”, ela disse com uma fria clareza.

“Bem, você não é uma feiticeira ruim, para uma principiante”, disse Elphaba, virando-se em direção a Glinda. “Foi uma bela bagunça, a que você fez com meu almoço.”

“Obrigada”, disse Glinda. “Eu não tinha a intenção de manchar você. Mas eu estou melhorando, não estou? E melhorando em público.”

“Uma exibição chocante”, Nessarose disse. “Exatamente o que papai deplorava na feitiçaria. A atração está toda na superfície.”

“Eu concordo, ainda tem gosto de azeitona”, Elphaba disse, achando um resto de azeitona preta na manga da camisa e segurando-o na ponta do dedo para colocá-lo junto à boca da irmã. “Quer provar, Nessa?”

Mas Nessarose virou seu rosto e se afundou numa prece silenciosa.

 

Alguns dias depois, Boq se esforçou por atrair a atenção de Elphaba no encerramento de sua aula de ciências da vida, e eles se encontraram por fim no caramanchão do corredor principal. “O quê você acha desse novo Doutor Nikidik?”, ele perguntou.

“Eu acho que é difícil de escutar”, ela disse, “mas é porque eu ainda quero ouvir o Doutor Dillamond e não consigo acreditar que ele morreu.” Em seu rosto havia um ar de soturna submissão a uma dura realidade.

“Bem, essa é uma das coisas que me deixam curioso”, ele disse. “Você me falou sobre o avanço do Doutor Dillamond. Você sabe se seu laboratório já foi desocupado? Talvez haja lá alguma coisa digna de encontrar. Você tomava notas para ele, elas não poderiam ser a base de alguma proposta, ou de no mínimo algum futuro estudo?”

Ela olhou para ele com uma expressão rija, vigorosa. “Você acha que eu já não estou muito à frente de você?”, ela perguntou. “É claro que fui fuçar por lá bem no dia em que seu corpo foi encontrado. Antes que alguém pudesse vedar a porta com cadeados e interdições mágicas. Boq, você me toma por boba?”

“Não, eu não acho que você seja boba, então, me diga o que você descobriu”, ele disse.

“Suas descobertas estão bem escondidas”, ela disse, “e embora haja lacunas colossais em meu treinamento, eu estou estudando-as a meu modo.”

“Você quer dizer que não vai mostrá-las para mim?” Ele estava chocado.

“A coisa nunca foi de seu interesse particular”, ela disse. “Além disso, até que haja algo para provar, qual é o ponto? Eu não acho que o Doutor Dillamond houvesse chegado a ele, ainda.”

“Eu sou um munchkinês”, ele respondeu orgulhosamente. “Olha, Elfinha, você mais ou menos me convenceu daquilo que o Mágico está querendo fazer. O confinamento dos Animais em fazendas ― para dar aos insatisfeitos fazendeiros de Munchkin a impressão de que está fazendo algo por eles ― e também para obter trabalho forçado para a escavação de novos poços inúteis. É torpe. Mas isso afeta Pedras do Caminho e as cidadezinhas de onde vim. Eu tenho o direito de saber o que você sabe. Talvez possamos decifrar juntos, trabalhar por uma mudança.”

“Você tem muito a perder”, ela disse. “Eu vou fazer isso sozinha.”

“Fazer o que sozinha?”

Ela apenas balançou a cabeça. “Quanto menos você souber, melhor, e eu digo isso para a sua segurança. Quem quer que tenha assassinado o Doutor Dillamond não quer que suas descobertas se tornem públicas. Que espécie de amiga eu seria para você se o pusesse em risco?”

“Que espécie de amigo eu seria para você se eu não insistisse?”, ele retrucou.

Mas ela não lhe contou. Quando ele se sentou ao lado dela pelo resto da aula e passou-lhe pequenas anotações, ela a todas ignorou. Mais tarde ele pensou que poderiam ter gerado um verdadeiro impasse em sua amizade se não houvesse ocorrido um estranho ataque ao professor novato durante aquela mesma aula.

O Doutor Nikidik estava palestrando sobre a Força da Vida. Enrolando em cada punho os dois cachos separados de sua longa barba irregular, ele falava em tons sussurrantes de tal modo que apenas metade de cada sentença chegava ao fundo da sala de aula. Nenhum estudante em particular conseguia seguir seus raciocínios. Quando o Doutor Nikidick tirou uma pequena garrafa do bolso de seu colete e murmurou alguma coisa sobre “Extrato de Intenção Biológica”, apenas os estudantes da fila dianteira se levantaram e ergueram seus olhos. Para Boq e Elphaba, o murmúrio soava como: “Um pouco de tempero para a sopa hum, hum, como se a criação fosse um inconcluído hum, hum, hum, não obstante as obrigações de todos os seres sensíveis hum, hum, hum, e então como um pequeno exercício para os que não estão ouvindo lá atrás do hum, hum, hum, observem um pequeno milagre mundano, cortesia de hum, hum, hum.”

Um arrepio de excitação havia despertado a todos. O Doutor desar-rolhava a garrafa embaçada e fazia um movimento espasmódico. Todos podiam ver uma pequena lufada de pó, como uma efervescência de talco, ir se transformando num penacho que ondulava no ar acima do pescoço da garrafa. O Doutor agitou um pouco as suas mãos, para fazer as correntes de ar subirem num redemoinho. Mantendo alguma rara espécie de coerência espacial, o penacho começou a se revolver. Os ooohs que os estudantes se sentiam inclinados a emitir foram todos adiados. O Doutor Nikidick apontava um dedo em sua direção para que se calassem, e eles podiam perceber por quê. Uma vasta entrada de fôlego mudaria o padrão das correntes de ar e desviaria a substância flutuante do pó. Mas os estudantes começaram a rir, a despeito deles mesmos. Acima do palco, em meio aos padronizados símbolos cerimoniais de chifres de cervos e trompas de bronze trançadas, pendiam quatro retratos a óleo dos pais fundadores das Torres de Ozma. Em seus trajes arcaicos e expressões sisudas, eles olhavam para os estudantes de hoje. Se essa “intenção biológica” fosse para ser aplicada num dos pais fundadores, o que ele diria, vendo homens e mulheres reunidos como estudantes na grande sala? O que ele teria a dizer sobre qualquer coisa? Era um grande momento de expectativa.

Mas quando uma porta lateral do palco se abriu, a mecânica das correntes de ar foi perturbada. Um estudante olhava para dentro, espantado. Era um novo estudante, bizarramente vestido com perneiras de camurça e uma camisa branca de algodão, com um desenho de diamantes azuis tatuado na pele escura de seu rosto e de suas mãos. Ninguém nunca o vira, nem vira ninguém como ele. Boq agarrou a mão de Elphaba firmemente e sussurrou: “Olha! Um winkie!”.

E assim parecia, um estudante vindo da Terra de Vinkus, num estranho traje cerimonial, chegando atrasado à aula, abrindo a porta errada, confuso e penitente, mas a porta se fechara atrás dele e se trancara deste lado, e não havia por perto assentos disponíveis nas filas dianteiras. Assim, ele se deixou cair onde estava e sentou-se com as costas voltadas para a porta, esperando, sem dúvida alguma, não ser muito notado.

“Maldito seja, a coisa foi com certeza afetada”, disse o Doutor Nikidik. “Seu estúpido, por que você não veio para a aula na hora certa?”

A névoa brilhante, quase do tamanho de um buquê de flores, tinha virado para cima numa corrente, e se desviado das fileiras dos dignitários há muito falecidos que esperavam uma oportunidade inesperada de discursar novamente. Em vez disso, cobriu um dos suportes dos chifres de cervos, parecendo pendurar-se por um momento nas pontas retorcidas. “Bem, eu nem posso esperar ouvir uma palavra de sabedoria da boca deles, e eu me recuso a desperdiçar mais desse artigo precioso em demonstrações de classe”, disse o Doutor Nikidik. “A pesquisa ainda está incompleta e eu pensei que hum, hum, hum. Deixarei que vocês descubram por si mesmos se hum, hum, hum. Eu nunca ia querer prejudicar os seus hum, hum, hum.”

Os chifres de repente se retorceram convulsivamente na parede, e se projetaram violentamente para longe do painel de carvalho. Deram uma cambalhota e caíram no chão ruidosamente, aos sons dos gritos e risadas dos estudantes, especialmente porque, por um momento, o Doutor Nikidik não atinara com o motivo do tumulto. Ele se virou a tempo de ver os chifres se endireitarem e esperarem, trêmulos, torcidos, no tablado, como um galo de briga em pose bélica e preparado para entrar no ringue.

“Oh, bem, não olhem para mim”, disse o Doutor Nikidik, recolhendo seus livros, “Eu não pedi nada de vocês. Se há algum culpado, é aquele ali.” E ele casualmente apontou para o estudante de Vinkus, que estava agachado, de olhos tão arregalados que os mais cínicos dos estudantes mais velhos começaram a suspeitar que tudo aquilo era uma armação.

Os chifres permaneciam armados e se moviam ligeiros, meio de lado, pelo tablado. Enquanto os estudantes se erguiam num grito unânime, os chifres se arremetiam, descontrolados, sobre o corpo do rapazinho de Vinkus e o fixavam contra a porta trancada. Um suporte do painel atingiu-o no pescoço, prendendo-o numa canga em formato de V, e o outro se empinou no ar para atingi-lo no rosto.

O Doutor Nikidik tentou se mover ligeiro, e desmontou em seus joelhos artríticos, mas, antes que ele pudesse se endireitar, dois rapazes estavam no tablado, saindo da primeira fila, agarrando os chifres e se atracando com eles no chão. O rapaz de Vinkus soltou um berro numa língua estrangeira. “Aqueles são o Crope e o Tibbett!”, disse Boq, sacudindo o ombro de Elphaba: “Olha!”. Os estudantes de feitiçaria se erguiam todos de suas cadeiras e tentavam lançar feitiços sobre os chifres assassinos, e Crope e Tibbett perdiam o controle dos chifres e daí a pouco o recuperavam, até que por fim conseguiram quebrar uma ponta de um deles, e daí foram quebrando outra, e os pedaços, ainda agitados, caíram no chão do tablado sem mais demora.

“Oh, coitado do sujeito”, disse Boq, pois o estudante de Vinkus estava tendo um colapso e chorava copiosamente por trás de suas mãos tatuadas com diamantes azuis. “Eu nunca tinha visto um estudante de Vinkus. Que medonha acolhida em Shiz.”

 

O ataque ao estudante de Vinkus provocou falatório e especulação. Na aula de feitiçaria, no dia seguinte, Glinda pediu à Senhorita Greyling que explicasse uma coisa. “Como pôde o ‘Extrato de Intenção Biológica’ do Doutor Nikidik ou o que quer que fosse, como pôde ser ensinado debaixo da chancela de ciências da vida quando se portava como um feitiço de primeira? Qual é realmente a diferença entre ciência e feitiçaria?”

“Ah”, disse a Senhorita Greyling, escolhendo esse momento para aplicar-se no cuidado de seu cabelo. “A ciência, minhas queridas, é a dissecação sistemática da natureza, para reduzi-la a partes funcionais que mais ou menos obedecem a leis universais. A feitiçaria se move na direção oposta. Ela não rasga, ela remenda. Ela é síntese, mais que análise. Ela constrói de novo em vez de ficar só revelando o que é velho. Nas mãos de alguém realmente talentoso” ― a esta altura, ela se espetou com um grampo e ganiu ― “ela significa Arte. Pode-se realmente chamá-la como a Maior ou a Mais Bela das Artes. Ultrapassa as Belas Artes da pintura e do drama e da declamação. Não faz pose ou representa o mundo. Ela o transforma. Uma vocação muito nobre.” Ela começou a choramingar docemente sob a força de sua própria retórica. “Pode haver um desejo maior que o de mudar o mundo? Não traçar projetos Utópicos, mas realmente ditar mudanças? Revisar o malformado, remediar os equívocos, justificar as margens desse erro esfarrapado que é o universo? Viver através da feitiçaria?”

Na hora do chá, ainda estupefata e divertida, Glinda relatou o pequeno discurso apaixonado da Senhorita Greyling às duas irmãs Thropp. Nessarose disse: “Apenas o Deus Inominável cria, Glinda. Se a Senhorita Greyling confunde feitiçaria com criação, ela corre o risco de corromper seus princípios morais.”

“Bem”, disse Glinda, pensando em Ama Clutch, que estava acometida pela doença mental que ela imaginara para a mulher uma vez, “meus princípios morais não estão na melhor forma para serem corrompidos, Nessa.”

“Então, se a feitiçaria pode ser de grande auxílio, deve ajudá-la a re-construir o seu caráter”, disse Nessarose firmemente. “Se você se empenhar nessa direção, suspeito que tudo dará certo no fim. Use seu talento para a magia, não seja usada por ele.”

Glinda suspeitava que Nessarose estava desenvolvendo uma aptidão para ser superior de um modo secante. Ela estremeceu, mesmo tendo levado a sugestão a sério.

Mas Elphaba disse: “Glinda, essa foi uma boa pergunta. Bem que eu queria que a Senhorita Greyling a tivesse respondido. Aquele pequeno pesadelo com os chifres pareceu mais magia que ciência para mim, também. Pobre daquele rapazinho de Vinkus! Vamos fazer essa pergunta ao Doutor Nikidik na semana que vem?”.

“Quem é que teria coragem para fazer isso?”, gritou Glinda. “A Senhorita Greyling é no mínimo ridícula. Já o Doutor Nikidik, com aquele adorável jeito incoerente de resmungar e murmurar que ele tem ― é tão distinto.”

 

Na aula de ciências da vida da semana seguinte, todos os olhos estavam voltados para o rapaz de Vinkus. Ele chegou cedo e se acomodou na sacada, tão longe da estante quanto possível. Boq tinha quanto aos nômades toda a desconfiança dos fazendeiros estabelecidos. Mas tinha de reconhecer que a expressão nos olhos do novo estudante era inteligente. Avaric, deslizando para a cadeira próxima a Boq, disse: “Ele é um príncipe, segundo ouvi dizer. Um príncipe sem tostão ou trono. Um nobre empobrecido. Em sua tribo particular, eu quero dizer. Ele fica em Torres de Ozma e seu nome é Fiyero. Ele é um winkie verdadeiro, puro-sangue. Que será que ele pensa da civilização?”

“Se aquilo que aconteceu aqui na semana passada era civilização, ele deve estar suspirando por suas origens bárbaras”, disse Elphaba da cadeira do outro lado de Boq.

“Para que ele está usando aquela pintura boba?”, disse Avaric. “Ele apenas chama a atenção para si mesmo, com aquilo. E aquela pele. Eu que não ia querer ter uma pele cor de merda.”

“Que coisa pra se dizer!”, disse Elphaba. “Se você quer saber, acho que é uma opinião merdosa.”

“Oh, por favor”, disse Boq. “Vamos calar a boca.”

“Eu tinha me esquecido, Elfinha, que pele é um assunto que lhe diz respeito também”, disse Avaric.

“Deixe-me fora disso”, ela disse. “Nós acabamos de almoçar, e você me dá dispepsia, Avaric. Você e os feijões que comemos no almoço.”

“Vou mudar de cadeira”, avisou Boq, mas o Doutor Nikidik chegou nesse exato momento, e a classe se levantou no sinal de respeito habitual, voltando a sentar-se ruidosamente, comunicativa, conversando sem parar.

Por um momento, Elphaba ergueu sua mão para chamar a atenção do Doutor, mas ela estava sentada muito lá atrás e ele estava murmurando sobre algum outro assunto. Ela finalmente se inclinou para Boq e disse: “No recreio, mudarei de cadeira e irei para a frente e ele me notará”. Então, a classe observou quando o Doutor Nikidik finalizou seu preâmbulo inaudível e acenou a um estudante para que abrisse a mesma porta ao lado do palco na qual Fiyero tropeçara na semana anterior.

Entrou por ela um rapaz do Três Rainhas empurrando uma mesa como se fosse uma bandeja de chá. Sobre ela, agachado como se procurasse fazer-se tão pequeno quanto possível, havia um filhote de leão. Mesmo de lá da sacada dava para se sentir o terror do animal. Sua cauda, um pequeno chicote da cor de amendoins amassados, açoitava de lá para cá, e seus ombros se arqueavam. Não havia ainda sinal de juba, ele era muito pequeno. Mas a cabeça amarelo-castanho se contorcia de um modo ou de outro, como se avaliasse as ameaças ao redor. Ele abriu sua boca em um pequeno uivo aterrorizado, a forma infantil de um rugido adulto. Por toda a sala de aula os corações se derreteram e as pessoas disseram: “Ohhhh”.

“Pouca coisa mais que um gatinho”, disse o Doutor Nikidik. “Pensei em chamá-lo de Prrr, mas ele treme mais do que ronrona, então eu o chamei de Brrr.”

A criatura olhou para o Doutor Nikidik, e se afastou para a ponta oposta do carrinho.

“Agora a questão da manhã é esta”, disse o Doutor Nikidik. “Citando um pouco dos interesses algo equivocados do Doutor Dillamond, quem hum, hum. Quem pode me dizer se isso é um Animal ou um animal?”

Elphaba não esperou para ser chamada. Ela se levantou na sacada e lançou sua resposta numa voz clara e forte. “Doutor Nikidik, a pergunta que o senhor fez é quem pode dizer se esse é um Animal ou um animal. Me parece que a resposta é que a mãe do bicho é a única que pode responder. Onde está a mãe dele?”

Um burburinho de espanto. “Afundou no pântano das semânticas sintáticas, bem vejo”, disse o Doutor alegremente. Ele falou mais alto, como se houvesse percebido só agora que havia naquela sala uma sacada. “Bem observado, Senhorita. Deixe-me refazer a pergunta. Alguém aqui arriscaria emitir uma hipótese sobre a natureza deste espécime? E dar uma razão para a designação que fizer? Vemos diante de nós um animal numa idade tenra, muito antes que qualquer um desses seres bestiais possa dominar a linguagem, se a linguagem fizesse parte de sua estrutura. Antes da linguagem ― supondo que houvesse uma ― seria um Animal?”

“Eu repito minha pergunta, Doutor”, reafirmou Elphaba. “Esse é um filhote muito jovem. Onde está a sua mãe? Por que foi tirado de sua mãe em idade tão tenra? Como ele poderá se alimentar?”

“Essas são perguntas impertinentes para a questão acadêmica ora abordada”, disse o Doutor. “Contudo, o coração dos jovens sangra facilmente. A mãe, devemos dizer, morreu numa explosão tristemente marcada. Vamos presumir, em consideração ao argumento, que não havia meio de discernir se a mãe era uma Leoa ou uma leoa. Afinal, tal como vocês devem ter sabido, alguns Animais estão voltando à vida selvagem para escapar às implicações das leis em vigor.”

Elphaba sentou-se, perplexa. “Isso não me parece justo”, ela disse a Boq e Avaric. “Em consideração à ciência, arrastar um filhote para cá sem a sua mãe. Olhem como ele parece aterrorizado. Ele está tremendo. E não é de frio.”

Outros estudantes começaram a arriscar opiniões, mas o Doutor as descartava uma por uma. O ponto em questão era que, aparentemente, sem a linguagem e chaves contextuais, em suas etapas infantis uma besta não era claramente Animal ou animal.

“Isso tem uma implicação política”, disse Elphaba ruidosamente. “Eu pensei que a matéria era ciências da vida, não acontecimentos da atualidade.”

Boq e Avaric fizeram com que se calasse. Ela estava ganhando uma terrível reputação como gritalhona.

O Doutor não voltou a citar o episódio depois que todos haviam digerido o ponto em questão. Mas, finalmente, ele se virou e disse: “Agora, vocês pensam que, se pudéssemos cauterizar aquela parte do cérebro que desenvolve a linguagem, poderíamos eliminar a idéia de dor e, portanto, a sua existência? Testes iniciais nesse filhote de leão mostram resultados interessantes”. Ele tinha apanhado um pequeno martelo com uma cabeça de borracha e uma seringa. O animal se ergueu e silvou, e depois recuou e caiu no chão, e correu como um raio em direção à porta, que havia sido fechada e trancada deste lado tal como na semana anterior.

Mas não foi apenas Elphaba que se levantou para gritar. Quase uma dúzia de estudantes estavam gritando com o Doutor. “Dor? Eliminar a dor? Olhe para a coisa, está aterrorizada! Ela já sente dor! Não faça isso, o que você é, louco?”

O Doutor parou, apertando de forma visível o fecho de sua pasta. “Eu não vou presidir uma tão chocante recusa ao aprendizado!”, ele disse, afrontado. “Vocês estão regredindo a conclusões descuidadas baseadas em sentimentos e não em observação. Tragam a besta aqui. Tragam-na de volta. Jovem senhora, eu insisto. Eu ficarei completamente contrariado.”

Mas duas garotas de Briscoe Hall desobedeceram e fugiram da sala de aula carregando o leão enfurecido num avental. A sala degenerou em tumulto e o Doutor Nikidik escapuliu do palco. Elphaba virou-se para Boq e disse: “Bem, acho que não vou fazer a boa pergunta de Glinda sobre a diferença entre a ciência e a magia, vou? Descemos a uma escala bem diferente hoje”. Mas sua voz estava trêmula.

“Você sentiu por aquele animal, não foi?”. Boq estava comovido. “Elfinha, você está tremendo. Não digo isso de uma maneira insultuosa, mas você quase ficou branca de paixão. Venha, vamos nos esconder e pegar um chá no café da Praça da Ferrovia, em comemoração aos velhos tempos.”

 

Talvez qualquer aproximação acidental de pessoas tenha um curto período de graça, que vai da timidez e do preconceito no início a uma eventual repugnância e traição no fim. Para Boq, parecia que sua obsessão de verão com a então Galinda fazia sentido apenas como introdução para essa subseqüente e mais madura acomodação que encontrou num círculo de amigos que começou a se sentir inevitável e permanentemente unido.

Ainda não fora permitido o acesso de rapazes ao Crage Hall, nem as garotas tinham acesso às escolas masculinas, mas a área urbana central de Shiz se tornara uma extensão das salas de aula e palestra nas quais eles estavam autorizados a se misturar. Numa tarde de meio de semana, numa manhã de fim de semana, encontravam-se às margens do canal com uma garrafa de vinho, ou num café ou num boteco de estudantes, ou caminhavam e discutiam pontos da arquitetura de Shiz, ou riam dos excessos de seus professores. Boq e Avaric, Elphaba e Nessarose (com a Babá), Glinda, e às vezes Pfannee e Shenshen e Milla, e às vezes Crope e Tibbett. E Crope trouxe Fiyero consigo e apresentou-o, o que gelou Tibbett por mais ou menos uma semana até a noite em que Fiyero disse, a seu modo tímido e cerimonioso: “É claro ― eu fui casado por uns tempos. Nós nos casamos bem jovens lá em Vinkus”. Os outros ficaram espantados com a notícia, e se sentiram ainda mais jovens.

Para sermos exatos, Elphaba e Avaric alfinetavam-se um ao outro implacavelmente. Nessarose abusava da paciência de todos com suas arengas religiosas. A torrente de observações picantes de Crope e Tibbett fez com que fossem atirados no canal mais que uma vez. Mas Boq estava aliviado por descobrir que sua paixonite por Glinda estava se dissipando um pouco. Ela se sentava junto a uma toalha de piquenique com um ar de autoconfiança, e desviava as conversas de si mesma. Ele amara a garota que amava o seu próprio glamour, e essa garota parecia haver desaparecido. Mas ele estava feliz por ter Glinda como uma amiga. Bem, em resumo: ele amara Galinda e essa agora era Glinda. Alguém que ele não podia mais entender completamente. Caso encerrado.

Era um círculo influente.

 

Todas as jovens evitavam Madame Morrible quando podiam. Numa certa noite fria, contudo, Grommetik foi à procura das irmãs Thropp. A Babá se zangou e enrolou os cordões de um avental novo na cintura, e empurrou Nessarose e Elphaba escada abaixo em direção à sala da Direto-ra. “Eu odeio esse Grommetik”, disse Nessarose. “Como é que ele funciona mesmo? É mecânica ou magia, ou alguma combinação dos dois?”

“Eu sempre imaginei uma porção de absurdos ― que havia um anão ali dentro, ou uma família de elfos acrobatas, cada um comandando um membro”, disse Elphaba. “Toda vez que Grommetik se aproxima, minha mão sente uma estranha ânsia de pegar um martelo.”

“Eu não consigo imaginar”, disse Nessarose. “Que uma mão possua ânsias, quero dizer.”

“Silêncio, vocês duas, a coisa tem ouvidos”, disse a Babá.

Madame Morrible lançava um olhar sobre os jornais de negócios, fazendo algumas anotações laterais, antes de se dignar a prestar atenção às suas estudantes. “Isso não me tomará senão um momentinho”, ela disse. “Eu tenho uma carta de seu querido pai, e um pacote para vocês. Achei que era mais amável dar as notícias pessoalmente.”

“Notícias?”, disse Nessarose, ficando pálida.

“Ele podia ter escrito tanto a nós quanto à senhora”, disse Elphaba.

Madame Morrible a ignorou. “Ele escreve para perguntar da saúde e do progresso de Nessarose, e para dizer a vocês duas que entrará em jejum e penitência pelo retorno de Ozma Tippetarius.”

“Oh, a garotinha abençoada”, disse a Babá, se entusiasmando ao ver surgir um de seus assuntos favoritos. “Quando o Mágico tomou o Palácio de assalto há tantos anos e prendeu o Regente Ozma, nós todos pensamos que a santa filha de Ozma revidaria com um raio na cabeça do Mágico. Mas, dizem que ela se evadiu e congelou numa caverna, como Lurline. Será que Frexpar foi capaz de derretê-la ― será que soou a hora de ela retornar?”

“Por favor”, disse Madame Morrible às irmãs, depois de dar um olhar azedo de relance para a Babá: “Eu não as chamei aqui para que sua Babá se pusesse a discutir essa apocrifia contemporânea, nem para caluniar nosso glorioso Mágico. A transição de poder foi pacífica. Que a saúde do Regente Ozma tenha sido afetada quando ocorreu a tomada da casa foi uma me-ra coincidência, nada mais. Quanto ao poder de seu pai para despertar a desaparecida criança real de algum insubstancial estado de sonolência ― bem, vocês mais ou menos admitiram para mim que seu pai é excêntrico, se não louco. Posso apenas desejar a ele que tenha saúde em suas atividades. Mas sinto que é meu dever dizer a vocês, garotas, que nós não acolhemos atitudes indisciplinadas em Crage Hall. Espero que vocês não tenham importado os anseios monárquicos de seu pai para os dormitórios daqui”.

“Nós devemos reverência ao Deus Inominável, não ao Mágico nem a algum possível remanescente da Família Real”, Nessarose disse orgulhosa-mente.

“Não tenho nenhuma posição quanto a esse assunto”, murmurou Elphaba, “exceto que papai adora causas perdidas.”

“Muito bem”, disse a Diretora. “É assim que deve ser. Agora, recebi um pacote para vocês.” Ela o passou para Elphaba, mas acrescentou: “É para Nessarose, eu acho”.

“Abra, Elfinha, por favor”, disse Nessarose. A Babá se encostou para ver.

Elphaba desfez o cordão e abriu uma caixa de madeira. De uma pilha de fitas de madeira, ela tirou um sapato, e depois outro. Eram prateados? ― ou azuis? ― ou então vermelhos? ― laqueados com um brilho de casca de confeito no polimento? Era difícil de perceber e não importava; o efeito era deslumbrante. Até Madame Morrible perdeu o fôlego ante o seu esplendor. A superfície dos sapatos parecia pulsar com centenas de reflexos e refrações. À luz do fogo, era como olhar para corpúsculos ferventes de sangue colocados sob uma lente de aumento.

“Ele escreve que os comprou para você de alguma vendedora ambulante desdentada no subúrbio de Ovvels”, disse Madame Morrible, “e que ele os revestiu com contas de vidro prateado feitas por ele mesmo ― ou que alguém o ensinou a fazer...”

“Coração de Tartaruga”, disse a Babá, soturna.

“― e” ― Madame Morrible deu uma pancadinha na carta, olhando furtivamente ― “ele diz que quis dar alguma coisa especial antes que você partisse para a universidade, mas nas súbitas circunstâncias da doença de Ama Clutch... blablablá... ele ficou desprevenido. Assim, ele os envia para a sua Nessarose para que mantenha seus belos pés aquecidos e enxutos e belos, e os manda com todo o amor.”

Elphaba enfiou seus dedos através dos arabescos formados pelas fitas de madeira. Não havia nada mais na caixa, nada para ela.

“Não são maravilhosos?”, Nessarose exclamou. “Elfinha, coloque-os nos meus pés, me faria esse favor? Oh, como eles reluzem!”

Elphaba ficou de joelhos diante de sua irmã. Nessarose sentou-se, fazendo uma pose tão regia quanto uma Ozma, a espinha ereta e o rosto brilhando. Elphaba ergueu os pés de sua irmã e tirou-lhe os chinelos domésticos comuns, e substituiu-os pelos sapatos deslumbrantes.

“Quanta consideração ele tem por mim!”, disse Nessarose.

“Boa coisa você poder se apoiar nos seus dois pés”, disse a Babá a Elphaba, e pôs sua velha mão indulgente sobre as suas omoplatas, mas Elphaba a repeliu.

“Eles são pra lá de maravilhosos”, disse Elphaba, exagerando. “Nessarose, eles foram feitos para você. Servem como um sonho.”

“Oh, Elfinha, não fique contrariada”, Nessarose disse, olhando para seus pés. “Não arruíne minha felicidade com ressentimento, está bem? Ele sabe que você não precisa desse tipo de coisa...”

“Claro que não”, disse Elphaba. “É claro que eu não preciso.”

 

Naquela noite os amigos correram o risco de ultrapassar o toque de recolher pedindo mais uma garrafa de vinho. A Babá desaprovou e reclamou, mas como entornou sua porção tão bem quanto os outros, foi controlada. Fiyero contou a história de como havia se casado aos sete anos com uma garota de uma tribo vizinha. Todos ficaram boquiabertos com sua aparente falta de vergonha. Ele vira sua noiva apenas uma vez, por acaso, quando os dois tinham perto de nove anos. “Eu não vou me unir fisicamente a ela até que tenha vinte anos, e eu estou só com dezoito”, acrescentou. Com o alívio de imaginar que ele podia ser ainda tão virgem quanto o resto da turma, eles pediram mais outra garrafa.

As velas tremulavam, uma leve chuva outonal caía. Embora o aposento fosse seco, Elphaba se cobrira com o seu manto como se antecipasse a caminhada que faria para casa. Ela fora afetada pela indiferença de Frex. Ela e Nessarose começaram a contar histórias engraçadas sobre o pai, como se para provar a si mesmas e a todo mundo que não havia nada fora do lugar. Nessarose, que bebia pouco, até se permitiu dar umas risadas. “Apesar de minha aparência, ou talvez por causa dela, ele sempre me chamou de seu bichinho bonito”, ela disse, aludindo à sua falta de braços pela primeira vez em público. “Ele dizia: ‘Vem cá, meu bichinho, e deixa eu te dar um pedaço de maçã’. E eu ia andando da melhor maneira que podia, tombando e vacilando se a Babá ou Elfinha ou a Mamãe não estavam ali para me ajudar, e caía no colo de meu pai, e me apoiava nele sorrindo, e ele punha pedacinhos da fruta na minha boca.”

“De que ele te chamava, Elfinha?”, perguntou Glinda.

“Ele a chamava de Fabala”, interrompeu Nessarose.

“Em casa, em casa apenas”, Elphaba disse.

“É verdade, você é a pequena Fabala de seu pai”, murmurou a Babá, quase que falando só consigo mesma, fora do círculo das faces sorridentes. “Pequena Fabala, pequena Elphaba, Elfinha.”

“Ele nunca me chamou de bichinho”, disse Elphaba, erguendo seu copo para a irmã. “Mas todos sabemos que ele disse a verdade, já que Nessarose é a mascote da família. Por isso, ganhou aqueles sapatos esplêndidos.”

Nessarose corou e aceitou uma torrada. “Ah, mas enquanto eu obtinha essa atenção devido à minha condição, você cativava o coração dele quando cantava”, ela disse.

“Cativava seu coração? Hah. Você quer dizer que eu desempenhava uma função necessária.”

Mas os outros disseram a Elphaba: “Oh, então você sabe cantar? Ora essa! Cante, cante, você vai ter de cantar! Mais uma garrafa, mais um copo, recuem as cadeiras, e antes de irmos embora, você vai ter de cantar! Vamos lá!”

“Só se todos cantarem juntos”, disse Elphaba, bancando a mandona. “Boq? Alguma ciranda de Munchkin? Avaric, uma balada gillikinesa? Glinda? Babá, um acalanto?”

“Sabemos um monte de porcarias, se você for, vamos atrás”, disseram Crope e Tibbett.

“E eu cantarei um canto de caça de Vinkus” disse Fiyero. Todos riram com prazer e bateram em suas costas. Então, Elphaba teve de ficar em pé, pôr sua cadeira de lado, limpar a sua garganta e fazer um som na mão fechada, e começar. Como se estivesse cantando outra vez para seu pai, depois de tanto tempo.

A dona do bar bateu com um trapo em alguns velhos barulhentos para que ficassem quietos, e os jogadores de dardos baixaram os braços. O ambiente todo silenciou. Elphaba cantou uma cançoneta ali onde estava, de saudade e de estranhamento, de dias remotos e futuros. Os desconhecidos fecharam os olhos para ouvir.

Boq também. Elphaba tinha uma voz aceitável. Ele viu o lugar imaginário que ela invocava, uma terra onde a injustiça e a crueldade coletiva e a ordem despótica e a mão empobrecedora da seca não se uniam para pegar todos pelos colarinhos. Não, ele não estava lhe dando crédito: Elphaba tinha uma boa voz. Era controlada e sensível e não histriônica. Ele ouviu até o fim, e a canção se apagou no silêncio de um boteco respeitoso. Mais tarde, pensou: A melodia se apagou como um arco-íris depois de uma tempestade, ou como ventos finalmente apaziguados; e o que restou foi calma e promessa e consolo.

“Você canta agora, você prometeu”, gritou Elphaba, apontando Fiyero, mas ninguém queria cantar novamente, porque ela o fizera tão bem. Nessarose pediu a Babá que enxugasse uma lágrima que aparecera no canto de seu olho.

“Elphaba diz que não é religiosa, mas vejam com que sentimento ela canta sobre a vida após a morte”, disse Nessarose, e dessa vez ninguém se sentiu disposto a objetar.

 

Numa certa manhã bem cedo, quando o mundo parecia ter ficado Glinda. Ama Clutch, ao que parecia, estava nas últimas. Glinda e suas colegas de quarto correram para a enfermaria.

A Diretora encontrou-as lá, e levou-as para uma alcova sem janelas. Ama Clutch estava se debatendo na cama e conversando com a fronha. “Não me provoque”, ela dizia raivosamente, “pois o que posso fazer por você? Vou abusar de sua boa vontade, patinha, e colocar meus cachos oleosos sobre seu fino tecido e cravarei meus dentes nas suas bordas de laçarotes aplicados! Você será uma estúpida se permitir isso, eu garanto! Eu não me importo com questões de serviço! É tudo tapeação, te juro, tapeação!”

“Ama Clutch, Ama Clutch, sou eu”, disse Glinda. “Ouça, querida, sou eu! É sua pequena Galinda.”

Ama Clutch virou a sua cabeça de um lado para outro. “Seu protesto é insultante para seus antepassados!”, ela continuou, dirigindo seus olhos para a fronha outra vez. “Aquelas plantações de algodão nas margens do Água Mansa não se deixaram colher para que você pudesse se estender aqui como uma esteira e deixasse qualquer pessoa imunda babar sobre você com papo-furado de noite! Não faz um pingo de sentido!”

“Ama!”, Glinda chorava. “Por favor! Você está delirando!”

“Aha, você vê que eu não tenho nada a dizer sobre isso”, disse Ama Clutch com satisfação.

“Volte a si, Ama, volte a si, uma vez mais antes de ir embora!”

“Oh, doce Lurline, isso é horrível”, a Babá dizia. “Queridinhas, se eu ficar desse jeito, vocês façam o favor de me envenenar, está bem?”

“Ela está indo embora, eu bem vejo”, Elphaba disse. “Eu vi o bastante disso no Estado de Quadling, eu conheço os sinais. Glinda, diga o que você precisa dizer, rapidamente.”

“Madame Morrible, posso ter um pouco de privacidade?”, Glinda disse.

“Eu ficarei ao seu lado e lhe darei apoio. É meu dever para com minhas garotas”, disse a Diretora, pousando as mãos roliças com decisão em sua cintura. Mas Elphaba e a Babá levantaram-se e foram levando-a para fora da alcova, em direção à sala, atravessando a porta, fechando-a e trancando-a. A Babá foi cacarejando o tempo todo, dizendo: “Que delicadeza da sua parte, Madame Diretora, mas não é preciso. Não é preciso mesmo”.

Glinda agarrou a mão de Ama Clutch. Gotas de suor branco estavam se formando como água de tomate na testa da empregada. Ela lutou por afastar a mão de Glinda, mas sua força estava se esvaindo. “Ama Clutch, você está morrendo”, Glinda disse, “e isso é culpa minha.”

“Oh, pare com isso”, Elphaba disse.

“É sim”, Glinda disse com fúria. “É sim”.

“Não quero discutir isso”, disse Elphaba, “quero dizer que deve tirar você mesma dessa conversa; esta é a morte dela, não a sua entrevista com o Deus Inominável. Vamos lá. Faça alguma coisa!”

Glinda agarrou as mãos, as duas mãos, com mais força ainda. “Eu vou fazer uma mágica para trazer você de volta”, ela disse, entre os dentes que rangiam. “Ama Clutch, você faça como eu digo! Ainda sou a sua patroa e é melhor que você me obedeça! Agora, ouça este feitiço e comporte-se!”

Os dentes de Ama rangeram, os olhos viraram, e o queixo se transformou numa ponta, como se tentasse empalar algum demônio invisível que estivesse no ar acima de sua cama. Os olhos de Glinda se fecharam e seus maxilares se agitaram, e uma fieira de sons, sílabas incoerentes até para ela mesma, foi se desenrolando de seus lábios lívidos.

“Espero que você não vá explodi-la como fez com o sanduíche”, resmungou Elphaba.

Glinda ignorou isso. Ela zumbia e atuava, ela se agitava e arquejava. As pálpebras de Ama Clutch se moveram tão freneticamente sobre os olhos fechados que parecia que suas órbitas estavam mascando seus próprios olhos. “Magicordium senssus ovinda clenx”, Glinda concluiu bem alto, “e se isso não funcionar, desisto; mesmo os cheiros e sinos de um equipamento completo não ajudariam, eu acho.”

Em seu leito de palha Ama Clutch caiu de costas. Um pouco de sangue escorreu do canto de cada olho. Mas o frenético movimento giratório do foco havia cessado. “Oh, minha querida”, ela murmurou, “então, você está bem, ou eu estou morta agora?”

“Ainda não”, disse Glinda. “Sim, querida Ama, sim, estou bem. Mas, meu amor, eu acho que você está partindo.”

“Claro que estou, o Vento está aqui, você não ouve?”, Ama Clutch disse. “Não importa. Oh, lá está a Elfinha também. Adeus, minhas filhotas. Fiquem longe do Vento até que o tempo melhore ou serão sopradas na direção errada.”

Glinda disse: “Ama Clutch, eu tenho uma coisa para lhe dizer ― eu tenho de lhe pedir desculpas...”.

Mas Elphaba avançou, tirando Glinda da linha de visão de Ama Clutch, e disse: “Ama Clutch, antes que você vá, conte-nos quem matou o Doutor Dillamond”.

“Claro que vocês sabem”, Ama Clurch disse.

“Dê-nos certeza”, Elphaba disse.

“Bem, eu vi, quero dizer, quase vi. Tinha acabado de acontecer e a faca ainda estava lá” ― Ama Clutch lutava penosamente por fôlego ― “manchada com o sangue que não tivera tempo de secar.”

“O que você viu? Isso é importante.”

“Eu vi a faca no ar, eu vi o Vento chegar para levar o Doutor Dillamond embora, eu vi a coisa mecânica se virar e o tempo do Bode se findou.”

“Foi Grommetik, não foi?”, Elphaba murmurou, tentando fazer com que a idosa dissesse as palavras esperadas.

“Bem, é o que eu estou dizendo, patinha”, disse Ama Clutch.

“E ele viu a senhora, ele se virou na sota direção?”, gritou Glinda. “Foi isso que a adoeceu, Ama Clutch?”

“Era minha hora de ficar doente”, disse Ama Clutch gentilmente, “então, eu não podia me queixar. E agora é minha hora de morrer, por isso me deixe. Só aperte a minha mão, querida.”

“Mas a culpa é minha...” começou Glinda.

“Seria melhor para mim que você se calasse, doce Galinda, minha filhotinha”, disse Ama Clutch docemente, e afagou a mão de Glinda. Depois, fechou seus olhos e aspirou e expirou algumas vezes. Elas ficaram no quarto numa espécie de silêncio que parecia um pouco o da classe operária de Gillikin, embora fosse difícil, mais tarde, explicar por quê. Lá fora, Madame Morrible subia e descia as tábuas do assoalho, contando os passos. Então, elas imaginaram ouvir um Vento, ou o eco de um Vento, e Ama Clutch se foi, e a ultra-submissa fronha soltou um pequeno derramamento de sumo humano da beira de sua boca afrouxada.

 

O funeral foi modesto, o cumprimento da louvação e sepultamento de praxe. As amigas íntimas de Glinda compareceram, preenchendo dois bancos, e na segunda fileira da capela um bando de Amas compunham um cortejo profissional. O resto da capela estava vazio.

Depois que o cadáver em seu lençol dobrado deslizou pelo escorrega-douro lubrificado em direção ao forno crematório, carpideiras e confrades se recolheram à sala particular de Madame Morrible, onde ela provou que não autorizara gastos com os refrescos. O chá era de um estoque antigo, mofado como serragem, os biscoitos eram duros, e não havia creme de açafrão nem geléia de tamorna. Glinda disse, reprovadora, à Diretora: “Nem mesmo uma tigelinha de creme?”. E Madame Morrible respondeu: “Minha jovem, eu tento poupar minhas protegidas do pior em matéria de carências alimentares fazendo compras criteriosas e me abstendo pessoalmente, mas não sou inteiramente responsável pela sua ignorância. Se as pessoas obedecessem o Mágico em caráter absoluto, haveria abundância. Você não percebe que as condições estão se tornando escassas e as vacas estão morrendo de inanição a duzentas milhas daqui? Isso torna o creme de açafrão muito caro no mercado”. Glinda começou a se afastar, mas Madame Morrible alcançou-a com um lance dos dedos acolchoados, bulbosos e enfeitados de jóias. O toque fez o sangue de Glinda esfriar. “Eu gostaria de conversar com você, e com a Senhorita Nessarose e a Senhorita Elphaba”, disse a Diretora. “Depois que os convidados se retirarem. Por favor, aguarde.”

“Fomos intimadas a uma conversa”, sussurrou Glinda às irmãs Thropp. “Temos de soltar o berro.”

“Nem uma palavra sobre o que Ama Clutch disse ― ou que ela ficou lúcida”, disse Elphaba ansiosamente. “Entenderam isso, Nessa? Bá?”

Todas concordaram. Boq e Avaric, dizendo adeusinhos, disseram que o grupo voltaria a se reunir no boteco da Parada do Regente. As garotas aceitaram se encontrar com eles lá depois da conversa com a Diretora. Elas pretendiam fazer um memorial mais honesto para Ama Clutch no Pêssego e Rins.

Quando a pequena multidão se dispersou, apenas Grommetik ficando para limpar as xícaras e as migalhas, Madame Morrible em pessoa acendeu a lareira ― um gesto de simpatia que não passou despercebido a ninguém ― e mandou Grommetik embora. “Mais tarde, coisinha”, ela disse, “mais tarde. Vá se lubrificar em algum reservado por aí.” Grommetik saiu rodando com um ar ofendido, se tal era possível. Elphaba teve de controlar uma gana de dar-lhe um pontapé com a ponta de sua vigorosa bota preta.

“Saia você também, Babá”, Madame Morrible disse. “Faça uma pequena pausa em seu trabalho.”

“Oh, não”, a Babá disse. “A Babá aqui não abandona a sua Nessa.”

“Abandona, sim. Sua irmã é perfeitamente capaz de tomar conta dela sozinha”, disse a Diretora. “Não é mesmo, Senhorita Elphaba? A própria alma da caridade.”

Elphaba abriu a boca ― a palavra alma sempre a provocara, Glinda sabia ― mas fechou-a novamente. Ela fez um sinal trêmulo indicando a porta. Sem uma palavra, a Babá levantou-se para sair, mas antes que a porta fechasse, ela disse: “Não é lugar para eu reclamar, mas, realmente: faltar creme? Num funeral?”.

“Socorro”, disse Madame Morrible quando a porta fechou, mas Glinda não tinha certeza se isso era uma crítica a serviçais em geral ou um lampejo de simpatia. A Diretora recuperou-se arrumando as abas, aberturas e cadarços de seu vistoso blusão social. Coberta de lantejoulas de um alaranjado-cobre, ela parecia uma deusa peixe-dourado enorme, estofada, de ponta-cabeça. Como será que teria conseguido o cargo de Diretora?, Glinda pensava.

“Agora que Ama Clutch se tornou cinzas, vamos, digo, devemos seguir em frente com coragem”, Madame Morrible começou. “Minhas jovens, posso lhes pedir que recontem a triste história de suas últimas palavras? É uma terapia essencial para que vocês se recuperem da aflição.”

As garotas não olharam umas para as outras. Glinda, que nessa situação era a porta-voz, tomou fôlego e disse: “Oh, ela só expeliu absurdos no fim”.

“Não é surpresa, vindo de uma coisa velha caduca”, disse Madame Morrible, “mas, que espécie de absurdo?”

“Nós não conseguimos entender”, disse Glinda.

“Pensei se ela não teria falado da morte do Bode.”

Glinda disse: “Oh, o Bode? Bem, eu mal pude notar...”

“Suspeitei que, na condição insana em que ela se encontrava, pudesse querer retornar ao momento crítico. Os moribundos com freqüência tentam extrair sentido, no seu derradeiro momento, do enigma de suas vidas. Esforço inútil, é claro. Sem dúvida, Ama Clutch estava intrigada por tudo que lhe aconteceu, o corpo do Bode, o sangue. E Grommetik.”

“Oh?”, disse Glinda, debilmente. As irmãs ao seu lado tomavam todo o cuidado para não parecerem nervosas.

“Naquela terrível manhã eu estava em pé cedo ― fazendo minhas meditações espirituais ― e notei a luz no laboratório do Doutor Dillamond. Assim, mandei Grommetik para lá com um estimulante bule de chá para o velho Bode. Grommetik encontrou o Animal caído sobre uma lente quebrada; parece que ele deu um passo em falso e cortou sua própria veia jugular. Um acidente tão triste, devido ao zelo (para não dizer o orgulho) acadêmico e a uma lastimável falta de senso comum. Descanso, nós todos precisamos de descanso, mesmo os mais brilhantes entre nós precisam de descanso. Grommetik, em sua confusão, sentiu o pulso ― nada descobriu ― e eu suponho que foi justo quando Ama Clutch chegou. Deparou-se com o querido Grommetik salpicado pelos jorros de uma forte pulsação circulatória. Ama Clutch chegou de lugar nenhum e estava extrapolando suas incumbências, devo acrescentar, mas não vamos falar mal dos mortos, não é?”

Glinda engoliu as suas lágrimas, e não mencionou que Ama Clutch mencionara ter visto alguma coisa fora do comum na noite anterior, e que saíra para observar.

“Sempre achei que o choque de ver aquele sangue todo deve ter sido a gota d’água que fez com que Ama Clutch piorasse em sua enfermidade. Incidentalmente, vocês podem entender por que eu dispensei Grommetik agora há pouco. Ele está ainda muito sensível ao caso e desconfia, eu creio, que Ama Clutch o julgou responsável pela horrível morte do bode.”

Glinda disse, com hesitação: “Madame Morrible, a senhora deve saber que Ama Clutch não padeceu nunca dessa doença que lhe descrevi. Eu a inventei. Mas eu não a reforcei. Não a envolvi nisso, nem ela ficou sabendo”.

Elphaba olhou para Madame Morrible firmemente, embora mantivesse uma aparência de interesse moderado. As pestanas de Nessarose palpitavam. Se Madame Morrible já tinha ciência do que Glinda acabara de revelar, seu rosto não a traía. Ela tinha a aparência tão imperturbável quanto a de um barco amarrado num ancoradouro. “Bem, isso apenas dá peso às minhas observações”, ela admitiu. “Há um poder imaginativo, mesmo profético, em seu destacado pequeno círculo social, Senhorita Glinda.”

A Diretora se levantou, as saias farfalhando, como o vento através de um campo de trigo. “O que eu digo agora é da mais estrita confidencia. Eu espero que minhas jovens obedeçam ao meu comando. Estamos de acordo?” Ela pareceu tomar o silêncio atordoado das três como aceitação. Olhou para elas detidamente. Era por isso que ela se parecia com um peixe, Glinda pensou subitamente. Ela nunca piscava.

“Devido à autoridade que me foi investida por alguém elevado demais para que eu possa citar, fui incumbida de uma tarefa crucial”, disse a Diretora. “Uma tarefa essencial para a segurança interna de Oz. Eu tenho trabalhado para cumprir essa tarefa já há alguns anos, e o tempo chegou, e os recursos estão à minha disposição.” Ela escrutinou-as. Eram elas os recursos.

“Vocês não repetirão o que ouviram nesta sala”, ela disse. “Vocês não deverão ter nem querer, nem escolha, nem capacidade de repetir. Estou envolvendo cada uma de vocês num casulo fechado como proteção para essa matéria muito delicada. Não” ― ela ergueu uma mão a um protesto de Elphaba ― “não, vocês não têm o direito de objetar. O feito já está feito e vocês devem ouvir e ficar abertas àquilo que vou dizer.”

Glinda tentou examinar-se para sentir se ficara envolvida, ou fechada, ou se não tremia sob o efeito de algum feitiço. Mas ela se sentia apenas assustada e jovem, o que deveria ser mais ou menos a mesma coisa. Ela olhou de relance para as duas irmãs. Nessarose em seus sapatos deslumbrantes estava na cadeira, as narinas se dilatando em medo ou excitação. Elphaba, do outro lado, parecia tão impassível e contrariada como sempre.

“Vocês vivem num pequeno útero aqui, num pequeno ninho bem prote­gido, garota com garota. Oh, eu sei que vocês têm uns garotos bobos sempre por perto, coisas desprezíveis. Bons para uma coisa só e nem para esta são muito confiáveis. Mas, estou digressionando. Devo dizer é que vocês sabem pouco ou nada da situação do país hoje. Vocês não têm uma idéia do grau de inquietação a que as coisas chegaram. Comunidades marginalizadas, grupos étnicos uns contra os outros, banqueiros contra fazendeiros e fábricas contra lojas. Oz é um vulcão fervilhante ameaçando entrar em erupção e queimar­-nos com seu próprio pus venenoso.

“Nosso Mágico parece forte o bastante para enfrentar isso. Ah, mas será mesmo? Ele tem o domínio da política interna. Ele não é frouxo nas negocia­ções de taxas de câmbio com as sanguessugas de Ev ou Jemmicoe ou Fliann. Ele governa a Cidade Esmeralda com uma diligência e uma habilidade que o decadente e arrogante clã de Ozma nunca nem sonhou possuir. Sem ele, teríamos sido varridos para longe por uma chuva de fogo, há anos. Não de­vemos ficar senão agradecidos. Um pulso forte faz maravilhas numa situação de decadência. Caminhe suavemente, mas leve junto um bom porrete. Vejo que estou sendo ofensiva. Bem, um homem é sempre bom quando julgado pela face externa do poder, não é?

“Sim. Mas as coisas não são sempre como parecem ser. E ficou claro, de repente, que o saco de truques do Mágico não funcionará para sempre. Há no horizonte iminentes levantes populares ― daquele tipo insensível, estúpido, no qual pessoas fortemente obtusas se deliciam em ser mortas em considera­ção a mudanças políticas que serão revertidas dentro de uma década. É uma coisa que dá um tal significado a vidas insignificantes, não é? Não se pode imaginar nenhum outro motivo para isso. De qualquer modo, o Mágico pre­cisa de novos agentes. Ele tem necessidade de alguns generais. Pessoas com habilidades para exercer o poder. Pessoas com iniciativa.

“Em resumo, mulheres.”

“Eu chamei vocês três aqui. Vocês não são mulheres ainda, mas o mo­mento em que serão está se aproximando, mais depressa do que possam ima­ginar. A despeito de minha opinião quanto ao comportamento de vocês, tive de escolhê-las. Há em vocês muito mais do que aquilo que os olhos podem ver. Senhorita Nessarose, sendo a mais jovem, você é a mais indecifrável para mim, mas, assim que superar esse encantador hábito da fé, vai desenvolver uma autoridade feroz. Seu defeito corporal não conta aqui. Senhorita Elpha­ba, você é um caso isolado, e mesmo com minha fala cativante, fica aí rumi­nando desprezo por tudo que eu digo. Isso é evidência de um grande poder interior e força de vontade, uma coisa que respeito profundamente mesmo quando dirigida contra mim. Você não mostrou sinal algum de interesse por feitiçaria e não afirmo que você tenha qualquer aptidão natural para isso. Mas sua esplêndida atitude e espírito de lobo solitário pode ser utilizada, oh sim se pode, e você não precisará viver uma vida de fúria reprimida. E Senhorita Glinda: você se surpreendeu com os talentos que possui para a feitiçaria. Eu sabia que ia surpreender-se. Eu tive a esperança de que suas inclinações pudessem contagiar a Senhorita Elphaba, mas o fato de elas não terem con­tagiado é a prova mais firme do caráter de ferro da Senhorita Elphaba.

“Vejo em seus olhos que você questiona meus métodos. Você pensa, um tanto revoltada: será que a Horrível Morrible não terá feito o prego perfurar o pé de minha Ama Clutch, fazendo com que eu fosse forçada a dividir um quarto com Elphaba? Ela não terá feito Ama Clutch descer para encontrar o Bode morto, a melhor maneira de tirá-la do caminho e assim colocar a Babá e Nessarose no cenário? Quanta lisonja a senhora ainda pensar que eu tenho tal poder.”

A Diretora fez uma pausa e quase ficou ruborizada, o que nela era al­guma coisa tão difícil quanto o separar da nata numa chama muito elevada. “Sou uma subordinada a serviço de superiores”, ela continuou, “e meu talento especial é estimular o aparecimento de talentos. A meu próprio modo mo­desto, a vocação para a educação me chamou, e aqui faço minhas pequenas contribuições à história.

“Agora, para ser mais específica. Quero que vocês reflitam sobre seus futuros. Eu gostaria de chamá-las, de batizá-las como se fossem um Trio de Adeptas. Nessa trajetória, gostaria de designá-las para missões ministeriais de bastidores nas diferentes partes do país. Fui investida de poder para fazer isso, lembrem-se, por aqueles cujas solas de botas eu não sou digna de lamber.” Mas ela parecia presunçosa, como se no fundo se julgasse muito digna sim da atenção dessas forças misteriosas. “Vamos dizer que vocês serão parceiras secretas do mais alto nível do governo. Vocês serão anônimas embaixadoras da paz, ajudando a restringir os elementos insubordináveis entre nossas po­pulações civilizadas. Nada foi decidido ainda, é claro, e vocês têm direito a dizer algo sobre a questão, dizer a mim, e a ninguém mais que seja, como foi traçado ― mas gostaria que vocês refletissem sobre isso. Eu preciso ― even­tualmente ― colocar uma Adepta em algum ponto estratégico de Gillikin. Senhorita Glinda, com sua posição social de médio alcance e suas ambições transparentes, você pode se ajustar tanto aos bailes de margraves quanto estar à vontade em chiqueiros. Oh, não se embarace assim, você tem sangue bom apenas por um lado e nem é uma linhagem tão refinada. A Adepta de Gillikin, Senhorita Glinda? Não cairá bem?”

Glinda apenas ouvia. “Senhorita Elphaba”, disse Madame Morrible, “cheia do desprezo adolescente que vem da posição herdada, você é, todavia a Terceira Descendente do Thropp, e seu bisavô, o Eminente Thropp, já está senil. Um dia herdará o que restou de Solos de Colwen, o pretensioso reduto em Pedras do Ninho, e poderia ajustar-se no papel da Adepta de Munchkin. A despeito da infeliz condição de sua pele ― na realidade, talvez em razão dela ― você desenvolveu um voluntarismo e uma iconoclastia que têm um apelo dis­creto quando não inspiram repulsas. Isso será proveitoso. Acredite em mim.”

“E Senhorita Nessarose”, ela continuou, “tendo sido criada no Estado de Quadling, você quererá retornar para lá com a Babá. A situação social em Quadling é uma total confusão, que dizer de um décimo da população anfíbia esborrachada, mas pode melhorar, em certa medida, e vai precisar haver alguém lá para supervisionar as minas de rubi. Precisamos de alguém para cuidar das coisas lá no Sul. Assim que você se recuperar de sua mania religiosa, será um arranjo perfeito. Você não espera viver na alta sociedade de modo algum, não sem braços. Afinal, como conseguiria dançar?

“Quanto ao Vinkus, não achamos que precisaremos de uma Adepta posicionada lá, ao menos não durante as suas existências. Os planos princi­pais deixam de fora qualquer povoamento apreciável naquele lugar esquecido por Deus.”

Aqui a Diretora parou de falar e olhou ao redor. “Oh, garotas. Sei que são jovens. Sei o quanto isso as aflige. No entanto, não precisam ver isso como uma sentença de prisão, mas como uma oportunidade. Perguntem a si mesmas: como poderei chegar a uma posição de proeminência e responsabi­lidade, embora silenciosa? Como poderão meus talentos desabrochar? Como, minhas queridas, como eu poderei ajudar meu Oz?”

O pé de Elphaba se mexeu, atingiu a ponta de uma mesa lateral, e uma xícara com pires caiu no chão e se espatifou.

“Vocês são tão previsíveis”, disse Madame Morrible, suspirando. “E isso que faz meu trabalho tão fácil. Agora, garotas, presas como estão a um jura­mento de silêncio, peço-lhes que se retirem e meditem sobre o que eu disse. Por favor, nem mesmo tentem discutir a coisa juntas, ou isso lhes dará dor de cabeça e cólicas. Não conseguirão fazer isso. Em algum dia do próximo semestre chamarei cada uma de vocês aqui e vocês me darão a resposta. E se vocês escolherem não ajudar o seu país nesta hora de necessidade...”. Ela apertou suas mãos numa paródia de desespero. “Bem, vocês não são os únicos peixes que há no mar, são?”

A tarde havia se tornado ameaçadora, com montículos de nuvens cor de ameixa ao norte, aparecendo no céu mais para além das agulhas e cam­panários das torres de pedras azuis. A temperatura caíra vinte graus des­de o início da manhã, e as garotas conservavam seus xales bem apertados enquanto caminhavam em direção ao boteco. A Babá, tremendo ao vento tempestuoso, gritou: “E o que a velha intrometida tinha a dizer que eu fui proibida de ouvir?”.

Mas, não havia nada que pudessem dizer. Glinda não conseguia nem olhar para as outras. “Ergueremos um copo de champanhe para Ama Clutch”, disse Elphaba finalmente, “quando chegarmos ao Pêssego e Rins.”

“Eu pedirei uma colher cheia de creme verdadeiro”, disse a Babá. “Que mão-de-vaca aquela velha porca é. Não tem respeito pelos mortos.”

Mas Glinda achava que a fala da Madame tivera um efeito mais pro­fundo, cortara mais fundo do que ela podia entender. Não era apenas que elas não podiam comentar a respeito. Ela já começara a sentir mais ― não encontrando palavras, vacilando em seus pensamentos, falhando em relacio­nar a entrevista à sua memória. Havia a tal proposta. Era uma proposta, não era? De alguma questionável tarefa no (não era isso?) serviço civil? Fazendo alguma coisa ― dançar nos bailes, o que não fazia muito sentido. Um tanto de risada, um copo de champanhe, um belo homem tirando a faixa da cin­tura e pressionando os punhos engomados sobre seu pescoço, enxugando as lágrimas em formas de rubis de seus olhos... Fale macio, mas carregue um porrete grande. Ou não era uma proposta, mas uma profecia? Um pequeno encorajamento amigável para alguma coisa futura? E ela estava sozinha, as outras não tinham escutado. Madame Morrible falara diretamente com ela. Uma prova adorável do... potencial de Glinda. A oportunidade de subir na vida. Caminhe suave, mas case com um bem-dotado. Um homem tirando a sua gravata de noite numa cama, pegando seus botões de diamantes, em­purrando-os com o nariz pelo declive da parte superior de seu pescoço... Era um sonho, Madame Morrible não devia ter dito isso! Ela devia estar confusa de aflição. Pobre Ama Clutch. Tinha tido apenas uma discreta palavra de condolência da querida e devotada Diretora, que achava tão difícil falar em público. Mas a língua de um homem entre as suas pernas, uma colher cheia de creme de açafrão...

Nessarose disse: “Peguem-na, eu não posso, eu sou...”, e ela caiu so­bre o peito da Babá, e Glinda desmaiou ao mesmo tempo. Elphaba lançou os braços fortes e apanhou Glinda no meio do desmaio. Glinda não havia perdido a consciência de fato, mas a desconfortável proximidade física do rosto rapace de Elphaba depois desse indesejável ato de desejo fazia com que sentisse vontade de tremer de repugnância e ronronar ao mesmo tempo. “Fique firme, garota, aqui não”, disse Elphaba, “resista, vamos!”. Resistir era exatamente o que Glinda não queria fazer. Mas, afinal, na sombra de uma carroça de maçãs, perto do mercado onde os mercadores vendiam o último peixe do dia, baratinho, bem, não era bem o melhor lugar. “Vamos, vê se endurece”, disse Elphaba, parecendo puxar as palavras do fundo da garganta. “Vamos, Glinda ― você tem boa cabeça ― vamos lá! Eu te amo muito, sai dessa, sua idiota!”

“Bem, realmente”, ela disse, enquanto Elphaba a colocava numa pilha de palha de embrulho mofada. “Não precisa ser tão romântica assim!” Mas ela se sentiu melhor, como se uma onda de mal-estar tivesse acabado de passar.

“Vocês, garotas, eu lhes digo, esses desmaios, eles vêm desses sapatos apertados”, disse a Babá, zangando-se e afrouxando os sapatos glamorosos de Nessarose. “Gente sensível deve usar couro ou madeira.” Ela massageou os peitos dos pés de Nessarose por um momento, e Nessarose gemeu e arqueou suas costas, mas começou a respirar normalmente em alguns minutos.

“Bem-vindas de volta a Oz”, disse a Babá daí a pouco. “Que comidinhas vocês todas andaram beliscando, lá com a Diretora?”

“Vamos, eles estão esperando”, disse Elphaba. “Não faz sentido ficar demorando. De todo jeito, estou com medo que comece a chover.”

No Pêssego e Rins, o resto da turma havia confiscado uma mesa na alcova a vários degraus acima do primeiro piso. Eles estavam bem entretidos com suas taças àquela altura da tarde, e estava claro que lágrimas haviam sido derramadas. Avaric estava encostado preguiçosamente a uma parede de tijolos do antro de estudantes, os braços em torno de Fiyero e suas pernas estendidas no colo de Shenshen. Boq e Crope discutiam sobre alguma coisa, picuinha, e Tibbett estava cantando uma canção interminável para Pfannee, que parecia mais era sentir vontade de atirar um dardo na polpa de sua coxa. “Ahhh, as mulheres”, grunhiu Avaric, e fez como se fosse levantar.

Eles cantavam e tagarelavam e pediam sanduíches, e Avaric deixou cair um número exagerado de moedas para pagar uma salva de creme de açafrão, em memória de Ama Clutch. O dinheiro fez maravilhas e o creme foi encon­trado na despensa, o que deu a Glinda um sentimento de desconforto, embora ela não soubesse por quê. Eles punham os montinhos de terra voadores com colheres nas bocas uns dos outros, esculpiam com eles, misturavam-nos no champanhe, lançavam-nos em bolinhas uns sobre os outros, até que o gerente do bar viesse e lhes dissesse para pararem com a bagunça. Eles obedeciam, resmungando. Não sabiam que era a última vez que estariam todos juntos, senão teriam ficado um pouco mais.

Uma chuva rápida viera e se fora, mas as ruas ainda estavam barulhentas devido às enxurradas, e a luz das lâmpadas cintilava e dançava nos montícu­los saltitantes de água de um negro prateado entre as pedras. Imaginando o possível bandido a vagar pelas sombras, ou o andarilho faminto emboscado ali por perto, eles ficavam bem juntos uns dos outros. “Eu tenho uma idéia”, disse Avaric, pondo um pé aqui e outro ali, como se fosse flexível feito um homem de palha. “Quem é homem o bastante para ir ao Clube de Filosofia nesta noite?”

“Oh, não, você não”, disse a Babá, que não bebera muito.

“Eu quero ir”, Nessarose lamentou, mais bamba que o habitual.

“Você nem sabe o que isso é”, disse Boq, dando uma risadinha e um soluço.

“Eu não me importo, eu não quero ir embora”, disse Nessarose. “Nós só temos uns aos outros, e eu não quero ser abandonada, e eu não quero ir para casa!”

“Quieta, Nessa, quieta, quieta, minha linda”, disse Elphaba. “Aquilo não é lugar para você, nem para mim. Venha, vamos para casa. Glinda, venha.”

“Eu não tenho mais Ama agora”, disse Glinda, de olhos arregalados, esticando um dedo ameaçador sobre Elphaba. “Eu sou minha própria agente. Eu quero ir para o Clube de Filosofia e ver se é verdade.”

“O resto pode fazer o que quiser, mas nós vamos para casa”, disse El­phaba.

Glinda desviou-se de Elphaba, que se dirigia a um Boq que aparenta­va muita incerteza. “Agora, Boq, você não quer ir àquele lugar desagradável, quer?” Elphaba dizia. “Vamos lá, não deixe os rapazes obrigarem você a fazer uma coisa que não deseja.”

“Você não me conhece”, ele disse, parecendo dirigir a palavra mais para um poste de amarrar animais. “Elfinha, como você sabe o que eu quero? A menos que eu próprio descubra? Hmmm?”

“Venha conosco”, disse Fiyero para Elphaba. “Por favor, se nós lhe pe­dirmos educadamente?”

“Eu quero ir também”, gemeu Glinda.

“Oh, venha, Glindinha”, disse Boq, “talvez eles levem a gente. Em con­sideração aos velhos tempos, que nunca existiram.”

Os outros tinham despertado um sonolento condutor de carruagem de aluguel e contratado seus serviços. “Boq, Glinda, Elfinha, venham”, Avaric chamou da janelinha. “Cadê a coragem de vocês?”

“Boq, pense bem nisso”, Elphaba pressionava.

“Eu sempre penso, eu nunca sinto, eu nunca vivo”, ele gemeu. “Não posso simplesmente viver de vez em quando? Uma vez só? Só porque sou baixo não sou uma criança, Elfinha!”

“Não até agora”, disse Elphaba. Meio falsa hoje, pensou Glinda, e se retorceu toda para subir no carro de aluguel. Mas Elphaba agarrou-a pelo cotovelo e a girou. “Você não pode”, ela sussurrou. “Nós vamos para a Cidade Esmeralda.”

“Eu vou ao Clube de Filosofia com meus amigos...”

“Nesta noite”, sibilou Elphaba, “sua pequena idiota, nós não temos tem­po a desperdiçar com sexo!”

A Babá já havia levado Nessarose embora, e o condutor estalou suas rédeas e o veículo moveu-se pesadamente e afastou-se. Glinda tropeçou e disse: “Que você estava quase para dizer? O que ia dizer?”.

“Eu já disse e não vou dizer de novo”, disse Elphaba. “Minha querida, eu e você vamos voltar a Crage Hall nesta noite apenas para arrumar uma valise. Depois, cairemos fora.”

“Mas os portões estarão fechados...”

“Vamos sair pelo muro da horta”, disse Elphaba, “e vamos ver o Mágico, haja o que houver e aconteça o diabo que acontecer.”

 

Boq não podia acreditar que finalmente estava indo ao Clube de Filosofia. Ele esperava não vomitar num momento crucial. Esperava lembrar-se da coisa toda no dia seguinte, ou ao menos de algum grãozinho fundamental dela, apesar da dor de cabeça que se formava vingativamente nos ocos de suas têmporas.

O lugar era discreto, embora fosse a espelunca mais conhecida de Shiz. Ocultava-se sob uma fachada de janelas com painéis. Dois Macacos de chá­cara vagavam vigilantes na rua defronte, dando porradas em causadores de problemas que tinham ficado até fora de hora. Avaric contou os integrantes do grupo conforme iam apeando da carruagem. “Shenshen, Crope, eu, Boq, Tibbett, Fiyero e Pfannee. Rapaz, como nós todos coubemos nesse carro em que nunca caberíamos, dá o que pensar.” Pagou o condutor e lhe passou uma gorjeta, ainda em alguma obscura homenagem a Ama Clutch, e então foi para a frente do grupo de companheiros. “Vamos, estamos na idade certa e no ponto certo de embriaguez”, ele disse, e disse ao rosto oculto nas sombras da janela: “Sete. Somos sete, bom senhor”.

O rosto apontou fora do vidro e olhou de soslaio para ele. “O nome é Yackle, e eu não sou nem senhor nem sou bom. Que tipo você quer nesta noite, Senhor Fulano?” Quem falava através do painel era uma idosa, com dentes escassos e uma brilhante peruca branca e rosa que caía por um lado de sua calva perolada.

“Tipo?”, disse Avaric, e, então, ostentando mais coragem: “Qualquer tipo”

“Eu quero dizer os ingressos, pão docinho. Fazer pose e tocar desafina­do no salão, ou armar um puteiro nas velhas adegas?”

“Tudo que houver”, disse Avaric.

“Você compreende as regras da casa? As portas fechadas, a política de você-só-brinca-se-pagar?”

“Dê-nos sete ingressos, e vamos logo com isso. Não somos bobos.”

“Vocês nunca são bobos”, disse a mulher bestial. “Bem, então aqui estão vocês, e venha o que vier. Ou quem vier.” Ela afetou uma postura de virtuosa, como se fosse a pintura de uma santa virgem unionista. “Entrem e sejam salvos.”

A porta se abriu, e eles desceram um lance de degraus de tijolos irregu­lares. No patamar do lance havia um anão que carregava um albornoz roxo. Ele olhou para seus ingressos e disse: “De onde vocês são, almofadinhas? De fora da cidade?”.

“Somos todos da universidade”, disse Avaric.

“Uma turminha eclética. Bem, vocês têm ingressos com sete-de-dia­mantes. Vejam aqui, os sete diamantes vermelhos da ilustração, e aqui.” Ele disse: “Tomem um drinque na casa, vejam o show da mulher, e dancem um pouco se quiserem. A cada hora, mais ou menos, eu fecho esta porta para a rua e abro a outra”. Ele apontou para uma enorme porta de carvalho, barrada com duas monstruosas vigas fechadas por argolas de cadeados de ferro.” Vo­cês entram todos juntos ou não vão entrar de jeito nenhum. Essa é a regra da casa.”

Havia uma cantora cantando uma imitação de “O que será de Oz sem Ozma”, e zombando de si mesma com um boá de plumas cor de papagaio. Uma pequena banda de elfos ― elfos verdadeiros! ― soprava e arranhava em minúsculo acompanhamento. Boq nunca tinha visto um elfo, embora sou­besse que havia uma colônia deles não muito longe de Margens Agitadas. “Que esquisito”, ele disse, seguindo em frente. Eles pareciam macacos sem pêlos, e nada vestiam exceto pequenos bonés vermelhos, não apresentando características sexuais avaliáveis. Eram verdes como o pecado. Boq se virou para dizer: Olhe, Elfinha, é como se você tivesse tido uma boa ninhada de bebês, mas ele não a viu e aí se lembrou de que ela não tinha vindo. Nem Glinda, pelo jeito. Maldição.

Eles dançaram. A multidão era a mais heterogênea que Boq já vira na vida. Havia Animais, humanos, anões, elfos, e várias coisas robóticas de gênero incompleto ou experimental. Um esquadrão de rapazes louros bem apanhados circulava com canecos de vinho ordinário, que os amigos bebiam porque era gratuito.

“Eu não sei se eu quero fazer alguma coisa mais audaciosa que isto”, disse Pfannee para Boq a uma certa altura. “Quero dizer, olhe, aquela namo­rada de um Babuíno está quase pelada. Talvez seja o que chamamos de uma grande noite.”

“Você acha?”, disse Boq. “Quero dizer, eu estou na jogada, mas se você se sente incomodada...”. Oh, hurra, uma saída. Ele se sentia incomodado tam­bém. “Bem, vamos atrás do Avaric. Ele está por aí conduzindo a Shenshen.”

Mas, antes que eles pudessem abrir caminho na pista de dança apinha­da de gente, os elfos começaram a emitir um grito agourento de bruxa, e a cantora lançou os quadris para a frente e disse: “Este é o chamado de acasa­lamento, bonecos! Senhoras e gentis amigos! Vamos fazer, e eu quero dizer fazer mesmo” ― ela lia uma anotação em sua mão ― “carta seis de paus preta, três de paus preta, seis de copas vermelha, sete de diamantes vermelha, e ― em sua lua-de-mel, não é um doce?” ― ela simulou gagueira ― “dois de espadas preta. Vamos lá pra toca da felicidade infinita, gentis galináceos”.

“Avaric, não”, disse Boq.

Mas a idosa lá da frente, que se chamava Yackle, veio agitada pelo salão ― tendo, ao que tudo indicava, fechado a porta temporariamente ― e ela lembrou aos possuidores as cartas designadas, e os nomeou com um sorriso. “Montarias e cavaleiros, preparem-se”, ela disse, “aqui estamos, no finalzinho da noite! Alegrem-se, rapazes, não é um funeral, é uma diversão!” Tinha sido um funeral, Boq se lembrou, tentando invocar o caloroso, abnegado espírito de Ama Clutch. Mas o tempo de fugir, se esse tempo chegara a existir, havia passado.

Eles foram varridos para dentro das portas de carvalho e foram entran­do por uma passagem ligeiramente inclinada cujas paredes eram revestidas de veludo vermelho e azul. Uma alegre canção estava sendo executada mais adiante, uma melodia de dança sincopada. Um cheiro de folhas de tomilho assadas ― doce e envolvente, você quase podia senti-las abrindo suas bordas arroxeadas. Yackle os levava, e os vinte e três festeiros seguiam, num confuso estado de apreensão, exaltação e tesão. O anão seguia logo atrás. Boq tentava se manter frio, tanto quanto sua mente trôpega lhe permitia. Um Tigre ereto, usando botas altas e uma capa. Um par de banqueiros e suas consortes da noite, todos usando máscaras negras: como proteção contra chantagem ou como afrodisíaco? Um grupo de comerciantes de Ev e Fliann, a negócios na cidade. Um par de mulheres de dentes mais ou menos longos, enfeitadas como uma joalheria. O casal em lua-de-mel era de Glikkus. Boq esperava que sua turma não fosse tão debilóide quanto os dois. Quando lançou um olhar ao redor, viu que apenas Avaric e Shenshen pareciam ansiosos ― e Fiyero, talvez porque ele não tivesse ainda compreendido o que era aquilo. Os outros pareciam pouco mais que enjoados.

Eles entraram num pequeno teatro circular escuro, com o espaço para o público dividido em seis compartimentos. Acima, o teto se dissolvia numa escuridão de pedra. Velas finas e longas tremulavam, e uma música abafa­da era transmitida através das fissuras na parede, fazendo ainda maior uma atmosfera extraterrena de deslocamento e estranheza. Os compartimentos circundavam e davam de frente para o palco central, que estava coberto por um cortinado negro. Os compartimentos eram separados um do outro por tiras verticais de madeira de treliça e ripas de espelho. Todos os grupos es­tavam se misturando, todos os amigos e companheiros se separavam. Havia incenso no ar também? Ele parecia fazer a mente de Boq se partir ao meio, como palha de milho, e permitir que uma mente mais amena, mais compla­cente, emergisse. O mais suave, o mais vulnerável aspecto, a intenção oculta, o eu submisso.

Ele sentiu que estava cada vez menos e menos consciente, e que era mais e mais belo ficar assim. Por que ele ficara alarmado? Estava sentado num tamborete, e em volta dele no compartimento se encontravam, quase sobrenaturalmente próximos, um homem de máscara negra, uma Áspide que ele não notara antes, o Tigre cujo hálito chegara quente e carnoso em seu pescoço, uma bela colegial, ou era aquela noiva na noite de núpcias? Teria o compartimento todo se inclinado para a frente, como um balde suavemente oscilante? De qualquer modo, eles se encostavam juntos no tablado central, que era um altar de véus e sacrifícios. Boq afrouxou o seu colarinho e depois o seu cinto, sentiu o vivo apetite entre o coração e o estômago e o conseqüente enrijecimento do aparato lá embaixo. A música de flautas e assobios era para­lisante, ou era ele que observava e esperava e respirava tão, tão lentamente que a secreta área do seu interior, onde nada importava, deixava cair seu manto?

O anão, agora com um capuz mais escuro, apareceu no palco. De seu ponto vantajoso, ele podia ver todos os compartimentos, mas os farristas, se­parados em cada um deles, não podiam ver-se uns aos outros. O anão se inclinou e tocou uma mão ou outra que aqui e ali lhe dava boas-vindas, acenando. Chamou uma figura de mulher que estava num compartimento, de um outro chamou um homem (seria Tibbett?) e, no compartimento onde Boq estava, gesticulou para o Tigre. Boq sentiu pouco não haver sido escolhido quando viu o anão passar um frasco fumegante nas narinas dos três acólitos, e ajudá­-los a tirar as suas roupas. Havia algemas, e uma bandeja de óleos aromáticos e emolientes, e um baú cujo conteúdo permanecia misterioso. O anão colocou vendas negras em torno das cabeças dos engajados.

O Tigre andava de quatro e rosnava suavemente, atirando sua cabeça para a frente e para trás em aflição ou excitação. Tibbett ― pois era ele, embora quase inconsciente ― foi estendido de costas no piso do palco. O Tigre andou em largas passadas sobre ele e permaneceu impassível quando o anão e seus assistentes amarraram seus pulsos no peito, e seus tornozelos no pélvis do Tigre, de modo que Tibbett ficou pendurado à barriga do Tigre, como se fosse um porco no espeto, seu rosto enfiado no pêlo do peito do Animal.

A mulher foi colocada num tamborete virado, quase como uma enorme tigela inclinada, e o anão enfiou alguma coisa aromática e ágil nas regiões ocultas. Então, o anão apontou para Tibbett, que começava a se contorcer e gemer no peito do Tigre. “X agora será o Deus Inominável”, disse o anão, empurrando Tibbett pelas costelas. Depois, bateu no flanco do tigre com um chicote de montaria, e o Tigre avançou com esforço, colocando sua cabeça entre as pernas da mulher. “Y será o Dragão do Tempo em sua caverna”, disse o anão, batendo no Tigre outra vez.

Enquanto prendia a mulher numa meia-concha, esfregando os bicos de seus seios com uma pomada brilhante, passava a ela o chicote de montaria com o qual ela poderia açoitar os flancos e o rosto do Tigre. “E Z será a Bruxa de Kumbric, e veremos se ela existe nesta noite...” A multidão chegou mais perto, quase todos participantes, e o excitante senso de aventura fazia-os arrancar seus próprios botões, morder os próprios lábios e ir se encostando mais, mais e mais.

“Tantas são as variáveis em nossa equação”, disse o anão enquanto o aposento ficava ainda mais escuro. “Agora, sim, vamos começar o verdadeiro e clandestino estudo do conhecimento.”

 

Os industriais de Shiz, desde o princípio um tanto cautelosos quanto ao poder crescente do Mágico, tinham escolhido não estender a linha ferroviária de Shiz à Cidade Esmeralda como fora originalmente planejado. Portanto, levava uns bons três dias de viagem ir de Shiz à Cidade Esmeralda ― e isso quando o tempo estava em seu melhor, para os abastados que podiam pagar por uma constante muda de cavalos. Para Glinda e Elphaba levou mais de uma semana. Uma semana árida, branqueada pelo frio, em que os ventos de outono arrancavam as folhas das árvores com um bramido seco e um chocalhar dos frágeis, lamurientos ramos.

Elas descansavam, como outros viajantes de terceira classe, nos quar­tos modestos sobre as cozinhas das tabernas. Num simples catre, elas se ajuntavam para obter calor e estímulo e, Glinda dizia a si mesma, proteção. Os homens que cuidavam dos cavalos murmuravam e gritavam na área de estábulo abaixo, as moças da cozinha iam e vinham, barulhentas, em horas importunas. Glinda se sobressaltava como se estivesse num sonho terrível, e se aninhava ainda mais em Elphaba, que parecia nunca dormir à noite. De dia, Elphaba atenuava as longas horas passadas em carruagens de péssimas molas encostando-se ao seu ombro. A terra lá fora parecia menos suculenta e variada. As árvores eram ranzinzas, como se lutassem para conservar a sua força.

Mais à frente, o árido cerrado se mostrava domado pelas terras de cul­tivo. Campos de pastagem eram manchados pela presença de vacas, com suas espáduas atrofiadas e secas, seu surdo desespero. Um vazio se instalara nas fazendas. Glinda viu uma fazendeira parada à porta de casa, as mãos profun­damente enfiadas nos bolsos do avental, o rosto marcado pela aflição e a raiva diante do céu inútil. A mulher viu a carruagem passar, e seu rosto demonstrou um anseio de seguir dentro dela, de estar morta, de estar em qualquer outro lugar, menos nessa carcaça do que fora uma propriedade.

As fazendas davam lugar a moinhos desertos e granjas abandonadas. Então, abrupta e decisiva, a Cidade Esmeralda ergueu-se diante delas. Uma cidade de insistência, de afirmação abrangente. Não fazia sentido, cobrindo o horizonte, brotando como uma miragem nas terras planas monótonas da Oz central. Glinda odiou-a desde o primeiro momento em que a viu. Cidade presunçosa como um novo-rico. Ela supôs que era a sua superioridade gilli­kinesa que reagia. Ela estava contente por isso.

A carruagem passou por um dos portais do norte, e o tumulto da vida se ergueu novamente, mas numa clave urbana, menos restrita e indulgente que aquela de Shiz. A Cidade Esmeralda não se divertia consigo mesma, nem considerava a diversão uma atitude adequada a uma cidade. Sua autoconsi­deração elevada se refletia nos espaços públicos, praças cerimoniais, parques e fachadas e lagos espelhados. “Que imaturidade, que ausência de ironia” murmurou Glinda. “A pompa, a pretensão!”

Mas Elphaba, que tinha passado uma vez apenas pela Cidade Esmeral­da, a caminho de Shiz, não tinha interesse algum por arquitetura. Seus olhos estavam grudados nas pessoas. “Não há Animais”, ela disse, “não que você possa ver, ao menos. Talvez tenham ido todos para os subterrâneos.”

“Subterrâneos?”, disse Glinda, pensando em ameaças lendárias como o Rei Gnomo e sua colônia do subsolo, ou anões em suas minas de Glikkus, ou o Dragão do Tempo dos velhos mitos, sonhando o mundo de Oz lá de sua tumba fechada.

“Nos esconderijos”, disse Elphaba. “Veja, os pobres ― quero dizer, serão eles os pobres? Os famintos de Oz? Saídos das fazendas falidas? Ou eles são apenas ― o excedente? A descartável perfumaria humana? Olhe para eles, Glinda, essa é uma questão real. Os quadlings, mesmo não tendo nada, pareciam ― mais ― que estes...”

Longe do bulevar, quando começaram a trilhar aléias ramificadas, viram folhas de lata e papelão servindo como tetos para o dilúvio de indigentes. Muitos deles eram crianças, embora alguns fossem os minúsculos munchki­neses, e alguns fossem anões, e alguns fossem gillikineses vergados pela fome e pela seca. A carruagem se movia lentamente, e os rostos se erguiam. Um jovem glikkunês sem dentes e sem pés ou barrigas da perna, com seu coto de joelhos, dentro de uma caixa, mendigando. Uma quadling. “Olhe, uma quadling!”, disse Elphaba, agarrando o pulso de Glinda. Glinda teve o vis­lumbre de uma mulher de um vermelho queimado que usava um xale e que erguia uma pequena maçã para uma criança que estava pendurada numa tira em torno de seu pescoço. Três garotas gillikinesas vestidas como mulheres de aluguel. Mais crianças num amontoado, correndo e guinchando como porquinhos, arremetendo-se sobre um mercador, para bater a sua carteira. Mercadores esfarrapados empurrando carriolas. Guardas de quiosques cujas mercadorias ficavam trancadas sob grades de segurança. E uma espécie de milícia civil, se podia ser chamada assim, perambulando aos quartetos em cada quarteirão, brandindo porretes e espadas.

Pagaram o dono da carruagem e caminharam com seus pacotes de rou­pas em direção ao Palácio. Este se erguia, de um modo recuado, uma constru­ção de domos e minaretes, botaréus ostensivos no mármore verde, biombos de ágata azul nas janelas intervaladas. Centrais e mais destacados, os amplos e suaves dosséis do pagode se erguiam junto à Sala do Trono, cobertos por trabalhadas escamas de ouro puro, brilhantes na luz da tarde que se esvaía.

 

Cinco dias depois tinham passado pelo guardião do portal, pelas recep­cionistas e pela secretaria social. Tinham ficado horas a fio esperando por uma entrevista de três minutos com o Comandante-Geral das Audiências. Elphaba, com uma expressão dura, contraída, em seu rosto, ensaiara expelir as palavras “Madame Morrible” de seus lábios grampeados. “Amanhã às onze horas”, disse o Comandante-Geral. “Vocês terão direito a quatro minutos entre o Embaixador de Ix e a Matrona da Brigada de Nutrição da Guarda Social do Lar das Senhoras. É preciso observar o código de vestimenta.” Ele passou a ela um cartão de regulamentos que, estando elas desprovidas de traje social, foram obrigadas a ignorar.

Às três da tarde seguinte (tudo se atrasava), o Embaixador de Ix deixou a Sala do Trono parecendo agitado e raivoso. Glinda afofou as plumas arrui­nadas de seu chapéu de viagem pela octagésima vez, e suspirou: “Agora é você quem dirá o que deve ser dito”. Elphaba concordou. Para Glinda, ela parecia cansada, assustada, mas forte, como se sua constituição fosse de ferro e uísque em vez de osso e sangue. O Comandante-Geral de Audiências apareceu à entrada da porta do salão de espera.

“Vocês têm quatro minutos”, ele disse. “Não se aproximem até que sejam autorizadas a fazê-lo. Não falem, a menos que a palavra lhes seja dirigida. Não se metam a dar palpite a menos que seja para responder a um comentário ou a uma pergunta. Vocês podem se referir ao Mágico como ‘Sua Alteza’.”

“Isso me soa bem régio. Eu pensei que a monarquia havia sido...” Mas aí Glinda deu uma cotovelada em Elphaba para fazê-la calar-se. Realmente, Elphaba perdia o bom senso, de vez em quando. Elas não tinham chegado tão longe para serem expulsas devido a um radicalismo adolescente.

O Comandante-Geral não pareceu ter notado nada. Enquanto se apro­ximavam de um cenário de altas portas duplas, entalhadas com sinais sigilosos e outros hieróglifos ocultos, o Comandante-Geral mencionou: “O Mágico não está de bom humor hoje devido a notícias de uma rebelião no distrito de Ugabu no norte do Estado de Winkie. Eu ficaria preparado para o pior, se fosse vocês”. Dois estóicos guardas abriram as portas, então, e elas entraram.

Mas o trono não se estendia diante delas. Em vez disso, a antecâmara conduzia à esquerda, e depois da arcada havia uma outra, e outra. Era como olhar através do reflexo de um corredor de espelhos em que estes ficassem de frente um para o outro; dava uma desorientação interior. Ou, pensou Glinda, como passar pelas estreitas, tortuosas câmaras de um submarino. Elas per­correram o circuito de oito ou dez salões, cada um ligeiramente menor que o outro, cada um impregnado de uma luz coalhada que vinha das vidraças centralizadas acima. Por fim, as antecâmaras terminavam numa arcada den­tro de uma sala circular cavernosa, mais alta do que ampla, e escura como uma capela. Prateleiras de arcaico ferro batido sustentavam archotes de cera de abelha moldada que ardiam numa profusão de pavios, e o ar era rarefei­to e ligeiramente farinhoso. O Mágico estava ausente, embora eles tivessem visto o trono num tablado circular, cravejado de esmeraldas que brilhavam foscamente à luz das velas.

“Ele saiu para ir ao toalete”, disse Elphaba. “Bem, esperaremos.”

Elas ficaram na arcada, não se atrevendo a ir além dali sem serem con­vidadas.

“Se temos apenas quatro minutos, espero que isso não conte”, disse Glinda. “Quero dizer, tomou-nos dois minutos chegar de lá até aqui.”

“Nesta altura...”, disse Elphaba, e então fez “Shhhh”.

Glinda se calou. Ela não achou que escutara alguma coisa, então não estava certa de nada. Não havia mudança que ela pudesse discernir na pe­numbra, mas Elphaba parecia um cão pointer em alerta. Seu queixo se pro­jetava, sua cabeça estava erguida e suas narinas dilatadas, os olhos escuros examinando furtivamente e arregalando-se para tudo esquadrinhar.

“O quê?”, disse Glinda, “o quê?”

“O som de...”

Glinda não ouvia sons, a menos que fosse o ar quente que emanava das chamas nas sombras arrepiantes que havia entre os escuros caibros. Ou era o farfalhar de roupões de seda? Seria o Mágico se aproximando? Ela olhava para uma e outra direção. Não ― havia um farfalhar, uma espécie de silvo, como o de toucinho estalando numa frigideira. As chamas das velas subitamente penderam todas, obedecendo a um vento irritado que vinha da área do trono.

Então, o tablado foi atingido por grossas gotas de chuva, e um estre­mecimento de trovão caseiro que afetasse mais caldeiras de cozinha que tím­panos. No trono havia um esqueleto de luzes dançantes; a princípio, Glinda pensou que fosse um relâmpago, mas daí ela notou que eram ossos luminosos enganchados uns nos outros para sugerir alguma coisa vagamente humana, ou ao menos mamífera. A armadura da costela se dobrou e abriu como duas mãos gastas, e uma voz falou na tempestade, não de dentro do crânio, mas do olho escuro da tempestade onde o coração da criatura fulgurante devia ficar, no tabernáculo da armadura.

“Eu sou Oz, o Grande e Terrível”, a coisa disse, e fez tremer a sala com seu próprio eflúvio. “Quem são vocês?”

Glinda olhou de relance para Elphaba. “Vamos lá, Elfinha”, ela disse, acotovelando-a. Mas Elphaba parecia aterrorizada. Bem, claro, era devido à chuva. Ela tinha esse problema com tempestades.

“Quemmm sãããooo vocêssss?”, bramiu a coisa, o Mágico de Oz, fosse o que fosse.

“Elfinha”, silvou Glinda. E então disse: “Oh, seu coisa inútil, que só conversa e ― eu sou Glinda de Frottica, tenha a bondade, Sua Alteza, des­cendo em linha materna dos Arduennas das Terras Altas, e esta ao meu lado, tenha a bondade, é Elphaba, a Terceira Descendente do Thropp de Pedras do Ninho. Tenha a bondade”.

“E se eu não tiver a bondade?”

“Oh, realmente, foi criancice”, disse Glinda, ofegante. “Elfinha, vamos, eu não consigo dizer por que a gente veio aqui!”

Mas o comentário banal do Mágico pareceu tirar Elphaba de seu terror. Ficando onde estava à entrada da sala, agarrando a mão de Glinda como apoio, ela disse: “Somos alunas de Madame Morrible em Crage Hall em Shiz, Sua Alteza, e estamos de posse de informações vitais”.

“Estamos mesmo?”, disse Glinda. “Obrigada por me contar.”

A pequena chuva pareceu cessar um pouco, embora o quarto estivesse escuro como se houvesse ocorrido um eclipse. “Madame Morrible, aquele paradigma de paradoxos”, disse o Mágico. “Informações vitais da parte dela, como?”

“Não”, disse Elphaba. “Isto é, não cabe a nós interpretar o que ouvimos. Fofoca não é coisa confiável. Mas...”

“Fofoca é instrutivo”, disse o Mágico. “Revela para que lado o vento está soprando.” O vento então soprava na direção das garotas, e Elphaba recuava mais para evitar ser molhada. “Vão em frente, jovens, podem contar a fofoca.”

“Não, disse Elphaba. “Estamos aqui para uma finalidade mais importante.”

“Elfinha!”, disse Glinda. “Você quer que nos ponham na cadeia?”

“Quem são vocês para decidirem o que é importante?”, rugiu o Mágico.

“Eu fico de olhos abertos”, disse Elphaba. “Você não nos chamou aqui para ouvir conversa fiada; nós viemos aqui com nossa própria agenda.”

“Como sabem que eu não chamei vocês aqui?”

Bem, elas não sabiam, especialmente depois do que quer que houvesse acontecido com elas no chá com Madame Morrible. “Abaixe a voz, Elfinha”, sussurrou Glinda, “você o está deixando furioso.”

“E daí?”, Elphaba disse. “Eu estou furiosa.” Ela ergueu a voz novamente. “Eu tenho notícias do assassinato de um grande cientista e pensador, Sua Alteza. Tenho novas de importantes descobertas que ele vinha fazendo, e da supressão dessas descobertas. Eu tenho todo interesse em procurar a justiça e eu sei que Sua Alteza também, pois as espantosas revelações do Doutor Dillamond o ajudarão a reverter seus recentes julgamentos sobre os direitos dos Animais...”

“Doutor Dillamond?”, disse o Mágico. “Isso é tudo de que você tem para falar?”

“É sobre uma população inteira de Animais sistematicamente privados de seus...”

“Eu sei do Doutor Dillamond e sei de seu trabalho”, disseram os ossos brilhantes do Mágico, rindo com desdém. “Lixo derivativo, inautêntico, en­ganador. O que se pode esperar de um Animal acadêmico. Baseado em duvi­dosas idéias políticas. Empirismo, charlatanismo, infantilidade. Choradeira, arenga e retórica. Você foi talvez contagiada pelo seu entusiasmo? Pela sua paixão de Animal?” O esqueleto dançou uma jiga, ou talvez fosse um espasmo de desagrado. “Conheço os interesses e as descobertas dele. Sei muito pouco do que você chama de seu assassinato e eu pouco me importo.”

“Não sou escrava de emoções”, Elphaba disse firmemente. Ela estava puxando papéis da manga de sua camisa, de onde aparentemente os trazia enrolados em torno do braço. “"Isto não é propaganda, Sua Alteza. Isto é uma bem articulada Teoria da Inclinação da Consciência, tal como ele a chama. E Sua Alteza ficará espantado ao ver suas descobertas! Nenhum governo bem pensante poderá se dar ao luxo de ignorar as implica...”

“Você presumir que eu seja bem pensante é tocante”, disse o Mágico. “Pode deixar as coisas aí mesmo onde você está. A menos que prefira se aproximar?” O marionete reluzente arreganhou os dentes e abriu os braços. “Meu bichinho?”

Elphaba deixou cair os papéis. “Bom, meu Senhor”, ela disse numa voz ferina, pretensiosa: “Eu vou continuar considerando-o bem pensante, pois, se não o fizer, serei obrigada a me engajar em algum exército contra o senhor.”

“Oh, diabos, Elfinha”, disse Glinda, e falou mais alto, “ela não fala em nome de nós duas, Sua Alteza. Sou uma pessoa independente aqui.”

“Por favor”, disse Elphaba, a um só tempo suave e dura, orgulhosa e suplicante. Glinda se deu conta de que nunca havia visto Elphaba querendo alguma coisa. “Por favor, senhor. A opressão sobre os Animais vai além do suportável. Não é apenas o assassinato do Doutor Dillamond. É a repatriação forçada, essa ― essa escravização de Bestas livres. O senhor deve sair daí e ver o sofrimento que é. Há conversas por aí ― há a preocupação de que o próximo passo será a carnificina e o canibalismo. Isso não é mero ultraje adolescente. Por favor, senhor. Não é apenas emoção desatada. O que está acontecendo é imoral...”

“Eu não escuto quando alguém usa a palavra imoral”, disse o Mágico. “Nos jovens ela é ridícula, nos velhos ela é sentenciosa e reacionária e um sinal precoce de apoplexia. Na meia-idade, quem ama e teme a idéia de uma vida moral acima de tudo, é hipócrita.”

“Se não for imoral, que palavra posso usar que signifique errado?”, disse Elphaba.

“Tente misterioso e então relaxe um pouco. O caso, minha garotinha verde, é que não cabe a uma jovem, ou a um estudante, ou a um cidadão decre­tar o que é errado. Isso é atributo dos líderes, a razão de nossa existência.”

“Bem, então, nada me impede de assassinar o senhor, se eu não sei o que é errado.”

“Eu não acredito em assassinato, eu nem mesmo sei o que isso significa”, Glinda interrompeu. “Eu vou é dar o fora agora, enquanto ainda estou viva.”

“Esperem”, disse o Mágico. “Eu tenho uma coisa a lhes perguntar.”

Elas pararam. Ficaram assim por minutos. O esqueleto dedilhava suas costelas, tocando-as como se fossem as cordas frágeis de uma harpa. A música soou como pedras revirando num leito de rio. O esqueleto tirou os dentes ilu­minados de suas mandíbulas e fez malabarismo com eles. Depois, lançou-os sobre o assento do trono, onde eles explodiram em lampejos coloridos como confeitos. A chuva estava abrindo um escoadouro no chão, Glinda notou.

“Madame Morrible”, disse o Mágico. “Agente provocadora e tagarela, amiga íntima e companheira, professora e sacerdotisa. Diga-me por que ela as mandou para aqui.”

“Ela não nos mandou”, disse Elphaba.

“Você ao menos sabe o significado da palavra penhor?”, gritou o Mágico.

“Você sabe o que significa resistência?”, Elphaba retrucou.

Mas o Mágico apenas riu, em vez de eliminá-las ali mesmo. “O que ela quer de vocês?”

Glinda retomou a fala; não era sem tempo. “Uma educação decente. Apesar de seus modos bombásticos, ainda assim ela é boa administradora. Não deve ser fácil.” Elphaba estava olhando para ela de um modo estranho e oblíquo.

“Ela explicou a vocês...”

Glinda não entendeu por completo. “Nós somos apenas secundaris­tas. Nós apenas começamos a nos especializar. Eu em feitiçaria, Elphaba em ciências da vida.”

“Entendo.” O Mágico pareceu parar para refletir. “E depois que se for­marem no próximo ano?”

“Eu suponho que voltarei para Frottica e me casarei.”

“E você?”

Elphaba não respondeu.

O Mágico girou, estendeu seus fêmures e golpeou o assento do trono como se este fosse um tímpano. “Realmente, está ficando ridículo, é tudo espetáculo de fé no prazer”, disse Elphaba. Ela deu um passo ou dois para diante. “Dá licença, Sua Alteza? Antes que nosso tempo se encerre?”

O Mágico se virou. Seu crânio pegava fogo, um fogo não abrandado pela cortina de chuva que ia se adensando. “Direi uma última palavra”, o Mágico arriscou, numa voz que soava como um gemido, a voz de alguém que sentisse dor. “Eu citarei, do Ozíada, o relato heróico da antiga Oz.”

As garotas esperaram.

O Mágico de Oz recitou:

 

“Então, geleira trôpega, a velha Kumbricia

Roça o firmamento nu até que chova sangue.

Arranca a pele do sol e a come em brasa.

Enfia a lua em foice em seu paciente bolso.

E a joga fora, como pedra falsa que cresceu.

Caco por caco ela rearranja o mundo.

Parece o mesmo, diz, mas já não é.

Parece o que esperavam, mas não é.”

“Cuidado com aqueles a que servem", disse o Mágico de Oz. E então se foi, e os regos no chão abriram-se em borbotões, e as velas foram imediata­mente apagadas. Não havia nada que pudessem fazer além de voltar sobre seus passos.

 

Na carruagem, Glinda tinha se instalado e feito um pequeno ninho para elas no desejável banco da frente, protegendo o lugar de Elphaba dos outros passageiros. “Minha irmã”, ela mentiu: “Estou guardando este lugar para a minha irmã”. E como mudei, ela pensou, em um ano e pouco. Passei do desprezo que tinha pela garota colorida a proclamar que pertencemos ao mesmo sangue! Assim, a vida universitária muda você realmente, de um modo que você não pode imaginar. Eu devo ser a única pessoa em toda Co­linas de Pertha a ter visto uma vez nosso Mágico. Não por meu próprio esforço, não por minha iniciativa ― mesmo assim, estive lá. Eu fiz a coisa. E nós não estamos mortas.

Mas, não conseguimos muita coisa.

Então, apareceu Elfinha, finalmente, correndo pelas pedras do pavimen­to com seus cotovelos se salientando e seu magro torso ossudo enfrentando os elementos, como de hábito, com uma capa. Ela vinha pelo meio da multidão, afastando os passantes mais lerdos para poder passar, e Glinda empurrou a porta aberta. “Graças aos céus, pensei que você ia se atrasar”, ela disse. “O condutor está doido para partir. Você conseguiu um almoço para nós?”

Elphaba lançou em seu colo um par de laranjas, um naco de queijo im­penitente, e uma bisnaga de pão que encheu o compartimento de um ranço pungente. “Isso terá de dar até a sua parada nesta noite”, ela disse.

“Minha, minha?”, disse Glinda. “Que você quer dizer com isso? Você tem alguma coisa melhor para comer?”

“Algo pior, eu desconfio”, disse Elphaba, “mas algo que precisa ser feito. Eu vim para dizer adeus. Eu não vou voltar com você para Crage Hall. Eu acharei um lugar para estudar do meu jeito. Eu não farei parte da escola de Madame Morrible novamente.”

“Não, não”, protestou Glinda: “Não vou deixar você fazer isso! A Babá vai me comer viva! Nessarose morrerá! Madame Morrible vai ― Elfinha, não me faça isso. Não!”

“Diga a eles que raptei você e lhe obriguei a vir aqui, eles acreditarão nis­so, vindo de quem vem”, disse Elphaba. Ela estava plantada no piso do degrau. Uma gorda anã glikkunesa, tendo captado a essência do drama, mudou para o assento mais confortável próximo a Glinda. “Eles não precisam procurar por mim, Glinda, porque não vou ser fácil de encontrar. Vou descer.”

“Descer para onde? De volta ao Estado de Quadling?”

“Isso seria revelar”, Elphaba disse. “Mas não vou mentir para você, mi­nha querida. Não preciso mentir. Eu não sei ainda para onde irei. Eu não decidi, portanto, eu não tenho de mentir.”

“Elfinha, entre nesta carruagem, não seja uma louca”, Glinda gritou. O con­dutor estava ajustando as rédeas e gritando para Elphaba subir rapidamente.

“Você ficará bem”, disse Elphaba, “agora que é uma viajante experimen­tada. Essa é só uma pernada de volta numa viagem que você já conhece.” Ela pôs o seu rosto contra o de Glinda e o beijou. “Agüente as pontas, se você puder”, ela murmurou, e beijou-a novamente. “Agüente as pontas, minha querida.”

O condutor estalou as rédeas, e lançou um grito para partir. Glinda es­ticou sua cabeça para ver Elphaba desaparecer lá atrás, no meio da multidão. Levando em conta a sua compleição singular, foi espantoso vê-la rapidamen­te ficar camuflada no indigente mosaico urbano da Cidade Esmeralda. Ou talvez isso se devesse a algumas lágrimas bobas que estivessem embaçando a visão de Glinda. Elphaba não havia chorado, é claro. Sua cabeça tinha se virado rapidamente enquanto ela descia, não para esconder lágrimas, mas para amenizar a realidade de sua ausência. Mas a dor, no caso de Glinda, foi verdadeira.

 

Numa noite nevoenta de fim de verão, cerca de três anos depois da gra­duação na Universidade de Shiz, Fiyero parou na capela unionista da Praça de Santa Glinda, para passar algum tempo até se encontrar com um conterrâneo seu na ópera.

Fiyero não fora levado ao unionismo como estudante, mas tinha de­senvolvido um olho apreciador para os afrescos que adornavam os cubículos das velhas capelas. Ele esperava encontrar um retrato de Santa Glinda. Ele não via Glinda dos Arduennas das Terras Altas desde a sua formatura ― ela tinha se graduado no ano anterior. Mas ele esperava que não fosse sacrílego acender uma vela devota em frente ao retrato de Santa Glinda, e ter em mente o nome da jovem.

Um ofício terminava, e a congregação de sensíveis rapazes na adolescên­cia e avós cobertas de xales negros saía lentamente da capela. Fiyero esperou até que a tocadora de lira da nave terminasse de dedilhar um hábil minueto, e aí se aproximou dela. “Peço perdão ― eu sou um visitante do oeste.” Bem óbvio, com a rica cor de ocre de sua pele e as suas marcas tribais. “Eu não vejo um atendente ― um oficial de igreja ― um sacristão, seja lá qual for a palavra ― nem acho um panfleto para me informar ― eu estava procurando um ícone de Santa Glinda.”

O rosto dela permaneceu sério. “Você terá sorte se isso não houver sido coberto por um cartaz de Nosso Glorioso Mágico. Sou uma instrumentista itinerante, que passa por aqui só de vez em quando. Mas, acho que você pode dar uma conferida na última nave; há ali um oratório para Santa Glinda, ou havia. Boa sorte.”

Localizando-a ― um espaço tumular com uma fenda de arqueiro em vez de uma janela ― Fiyero viu, iluminada por uma rósea luz de santuário, uma nevoenta imagem da Santa, um pouco pendida para a direita. O retrato era meramente sentimental e não vigorosamente primitivo, uma decepção. O dano causado pelas águas deixara grandes manchas brancas como falhas de lavagem a sabão nos sagrados trajes da Santa. Ele não conseguia se lem­brar de sua lenda particular, nem o modo elevado pelo qual ela fora levada à morte em consideração à salvação de sua alma e para a edificação de seus admiradores.

Mas aí ele viu, nas sombras profundas, que o oratório tinha a presença de um penitente. A cabeça se curvava em oração, e ele estava para se retirar quando lhe ocorreu, com sobressalto, que sabia quem era aquela figura.

“Elphaba!”, ele disse.

Ela virou sua cabeça lentamente; um xale rendado caiu em seus ombros. Seu cabelo estava preso em laçada na sua cabeça, com presilhas de marfim. Seus olhos se cruzaram uma ou duas vezes lentamente, como se ela estivesse indo em direção a ele, vinda de uma grande distância. Ele havia interrom­pido a sua oração ― não se lembrava que fosse religiosa ―, talvez ela não o reconhecesse.

“Elphaba, é Fiyero”, ele disse, rumando para a porta, bloqueando a sua saí­da, e também a luz ― de repente, ele não podia ver seu rosto, e se perguntava se teria ouvido corretamente o que ela dissera: “Queira desculpar-me, senhor?”.

“Elphaba ― sou Fiyero ― estivemos juntos em Shiz”, ele disse. “Minha esplêndida Elfinha ― como vai você?”

“Senhor, acho que está me confundindo com outra pessoa”, ela disse, com a voz de Elphaba.

“Elphaba, a Terceira Descendente do Thropp, se bem recordo a nomen­clatura”, ele disse, rindo decididamente: “Eu não estou enganado, de modo algum. Eu sou Fiyero dos Arjikis ― você me conhece, você se lembra de mim! Das aulas do Doutor Nikidik em ciências da vida!”.

“Você se confundiu”, ela disse, “senhor.” Esta última palavra soou um pouco como advertência sarcástica, bem ao gênero de Elphaba. “Agora, não se importa se eu desejar ficar em paz, fazendo a minha devoção?” Ela pôs o seu xale sobre a cabeça, e ajeitou-o para cair em suas têmporas. O queixo em perfil poderia fatiar um salame, e mesmo na luz débil ele sabia que não estava equivocado.

“O que é isso?”, ele disse. “Elfinha ― bem, Senhorita Elphaba, se preferir ― não me expulse assim. É claro que é você. Não há disfarce para alguém como você. Que joguinho é esse que está fazendo?”

Ela não respondeu em palavras, mas, mostrando seu rosário ostensiva­mente, estava lhe pedindo que sumisse.

“Não vou embora”, ele disse.

“Está interrompendo minha meditação, senhor”, ela disse suavemente: “Será que vou ter de chamar o sacristão e botar o senhor para fora?”

“Eu a encontrarei lá fora”, ele disse. “Quanto tempo leva para você ter­minar essa reza? Meia, uma hora? Esperarei.”

“Uma hora, então, do outro lado da rua; há uma pequena fonte pública com alguns bancos. Conversarei com você por cinco minutos, apenas cinco minutos, e lhe mostrarei que você cometeu um equívoco. Não um equívoco sério, mas que fica cada vez mais irritante para mim.”

“Perdoe se me intrometi. Numa hora, então ― Elphaba.” Ele não ia deixá-la bater em retirada, fosse qual fosse o jogo que estivesse jogando. No entanto, ele se afastou, e se dirigiu à musicista que estava por trás da nave. “Há alguma outra saída deste edifício além das portas principais?”, ele per­guntou, a voz se sobrepondo aos jorros de seus arpejos. Quando ela achou conveniente lhe responder, ergueu a cabeça e moveu os olhos. “A porta ao lado do claustro das freiras não é aberta ao público, mas você pode pegar uma saída de serviço por ali.”

Ele esperou à sombra de um pilar. Dentro de uns quarenta minutos, uma figura oculta sob um manto entrou na capela e rumou, apoiando-se numa bengala, diretamente para o oratório que Elphaba ocupava. Ele estava distante demais para ouvir as palavras que fossem trocadas, ou qualquer outra coisa. (Talvez o recém-chegado fosse simplesmente outro devoto de Santa Glinda, e quisesse solidão para orar.) A figura não se demorou; foi-se embora tão agilmente quanto suas juntas enrijecidas poderiam permitir.

Fiyero deixou cair uma oferenda na pobre caixa ― uma cédula, para evitar o tinido de uma moeda. Numa parte da cidade tão infestada de mise­ráveis, sua situação de relativa riqueza requeria a dádiva penitencial, embora sua motivação fosse caracterizada mais por culpa que por caridade. Então, ele deslizou pela porta lateral, entrando num grande jardim de claustro. Algumas mulheres velhas em cadeiras de rodas riam lá no fundo e não o notaram. Ele imaginou se Elphaba não pertenceria a essa comunidade de freiras monásti­cas ― monjas, eram chamadas.

Ele agora se lembrava que elas eram mulheres vivendo na mais parado­xal das instituições: uma comunidade de ermitões. Aparentemente, porém, seus votos de silêncio eram revogados quando chegavam à decadência de anciãs. Ele concluiu que Elphaba não podia ter mudado tanto em cinco anos. Então, ele saiu pela passagem de serviço, indo para a rua.

Três minutos se passaram, e Elphaba emergiu da saída de serviço, como ele suspeitava que ela faria. Ela tinha a intenção de evitá-lo! Por que, por quê? A última vez que a vira ― ele se lembrava bem! ― fora no dia do funeral de Ama Clutch, e da festa de bebedeira no boteco. Ela fora para a Cidade Esme­ralda em alguma missão obscura, da qual nunca retornara, enquanto ele fora arrastado para os estupefacientes terrores e alegrias do Clube de Filosofia. Houve boato de que o bisavô, o Eminente Thropp, havia contratado agentes para procurar por ela em Shiz, na Cidade Esmeralda. De Elphaba mesmo nunca veio um postal, uma mensagem, nem uma só pista. Nessarose ficara inconsolável a princípio, e depois começara a se ressentir por a irmã tê-la feito sofrer com tal separação. Nessa se perdeu nas profundezas da religião, a tal ponto que seus amigos começaram a evitá-la.

Amanhã Fiyero pediria desculpas por ter perdido a ópera e feito seu colega de negócios esperar. Hoje, não perderia Elphaba de vista. Enquanto ela ia apressada pelas ruas, olhando para trás mais que uma vez para ver se alguém a seguia, ele pensou: se você estivesse tentando perder-se de alguém, se você realmente pensasse que havia alguém em seus calcanhares, era essa a hora certa do dia para fazê-lo ― não por causa das sombras, mas por causa da luz. Elphaba seguia dobrando esquinas ao sol de verão que, reluzente, disparava setas ofuscantes de luz sobre as ruas laterais, através das arcadas e ao longo dos muros dos jardins.

Mas ele tinha muitos anos de prática de rastrear animais sob condições similares ― nenhum lugar de Oz tinha o sol como tão grande adversário quanto as Pastagens Milenares. Ele sabia como olhar de esguelha e manter a persistência do movimento, e esquecer a idéia de identificar pela forma. Ele sabia também como esconder-se ao longo do caminho sem dar na pinta ou perder o equilíbrio, como se agachar subitamente, como procurar outras pistas de que a presa começara a se mover novamente ― os pássaros assus­tados, uma mudança de som, o vento rompendo. Ela não ia se perder dele, e tampouco conseguiria notar que ele estava em seu rastro.

Assim, ele deu voltas por meia cidade, desde o elegante centro cita­dino ao distrito comercial de baixos aluguéis, em cujas portas sombrias os destituídos erguiam seus lares fedorentos. A uma distância mínima de uma barraca de exército, Elphaba parou diante de algum pequeno armazém de cereais coberto de tábuas, localizou uma chave em algum bolso interno, e abriu a porta.

Ele a chamou de uma curta distância, numa voz comum: “Fabala!”. Mes­mo no ato de se virar, ela tomou ciência de que estava se revelando e tentou recompor a expressão. Mas, era tarde demais. Tinha demonstrado que o re­conhecia, e percebeu. O pé dele estava bloqueando o caminho antes que ela pudesse bater-lhe a pesada porta na cara.

“Você está metida em alguma encrenca?”, ele perguntou.

“Deixe-me em paz”, ela disse. “Por favor. Por favor.”

“Você está com problemas, deixe-me entrar.”

“Você é o problema. Cai fora.” Suas últimas dúvidas sumiram. Ele arrombou a porta com seu ombro.

“Você está me transformando num monstro”, ele disse, grunhindo com o esforço ― ela era forte. “Não vou roubá-la nem estuprá-la. Eu apenas ― não vou ― ser ignorado desse jeito. Por quê?”

Ela então desistiu, e ele caiu estupidamente sobre a parede de tijolos sem reboco do vão da escada, como um personagem bobo se esborrachando num trecho de vaudeville. “Eu me lembrava de você como um cara cheio de delicadeza e graça”, ela disse. “Você queria pegar alguma coisa por acaso, ou estudou para ser desastrado?”

“Ora, vamos”, ele disse, “você força um cara a se comportar como um caipira desajeitado, você não dá chance a ninguém. Não fique tão surpresa. Eu ainda posso ter um pouco de graça. Eu posso fazer delicadezas. Um mo­mentinho só.”

“Shiz ficou em você”, ela disse, com as sobrancelhas erguidas, mas zom­beteira; ela não estava realmente surpresa. “Ouça só as afetações de escola su­perior. Onde está o rapaz do interior cheirando a uma charmosa ingenuidade como um almíscar bem selecionado?”

“Você me parece bem também”, ele disse, um pouco magoado. “Você mora neste vão de escada ou nós vamos a algum outro lugar um pouquinho mais confortável?”

Ela praguejou e escalou os degraus; eles estavam cobertos de excremen­tos de rato e tiras de palha de embrulho. Uma baça luz noturna era filtrada pelas janelas de vidro de um cinzento enfarruscado. Numa curva da escada um gato branco estava esperando, desdenhoso e hostil como todos de sua espécie. “Malky, Malky, miau, miau”, disse Elphaba ao passar por ele, e o bicho se dignou a segui-la até a porta arqueada no topo da escada.

“Da casa?”, disse Fiyero.

“Oh, essa é boa”, disse Elphaba. “Bem, logo serei tomada por bruxa, como sou tomada por outras coisas. Por que não? Aqui, Malky, um leitinho.”

O aposento era grande e parecia apenas casualmente arrumado para moradia. Originariamente um depósito de mercadorias, fora construído com portas duplas que podiam abrir para fora, para receber ou entregar sacos de cereal que eram transportados por guincho até a rua. A única luz natural incidia sobre um par de janelas de vidro numa clarabóia aberta em quatro ou cinco polegadas. Penas de pombo e uma torrente de dejetos brancos e sanguinolentos no assoalho lá embaixo. Oito ou dez caixotes em círculo, servindo como assentos. Uma cama de enrolar. Roupas dobradas num baú. Algumas plumas estranhas, lascas de ossos, dentes enfileirados, e uma pata murcha de ave, castanha e enrolada como uma tira de bife: estas coisas esta­vam penduradas em pregos na parede, e arranjadas como arte decorativa ou como objetos de feitiçaria. Uma mesa de madeira de salgueiro ― uma bela peça de mobília, aquela! ― cujos três pés arqueados terminavam em patas de corça elegantemente entalhadas. Alguns pratos de lata, vermelhos com pon­tinhos brancos, alguma comida embrulhada com pano e barbante. Uma pilha de livros ao lado da cama. Um gato de brinquedo amarrado a um cordão. De maior efeito, e mais horrível, havia a caveira de um elefante pendurada num caibro, e um buquê de rosas de um rosado cremoso, secas, emergia de um bu­raco central na carcaça do crânio ― como os miolos explodidos de um animal moribundo, ele não podia deixar de pensar, lembrando-se dos interesses de juventude de Elphaba. Ou talvez uma homenagem às pretensas habilidades mágicas dos elefantes?

Abaixo disso estava pendurada uma tosca fôrma oval de vidro, riscada e lascada, usada como espelho, talvez, embora seu potencial para refletir não parecesse confiável.

“Então, este é o seu lar”, disse Fiyero enquanto Elphaba trazia um pouco de comida para o gato e continuava indiferente a ele.

“Não me faça perguntas e eu não direi mentiras”, ela disse.

“Posso me sentar?”

“Essa é uma pergunta” ― mas ela estava rindo ― “oh, bem, então, sente­-se por uns dez minutos e me fale de você. Entre tantos, por que foi logo você quem se tornou sofisticado?”

“As aparências enganam”, ele disse. “Eu posso usar o traje e adotar a linguagem rebuscada, mas no fundo continuo sendo um membro da tribo de arjiki.”

“Como é a sua vida?”

“Tem aí alguma coisa para beber? Não álcool ― eu tenho apenas sede.”

“Eu não tenho água corrente. Eu não uso. Há algum leite duvidoso por aí ― ao menos o Malky pode encará-lo ― ou talvez haja uma garrafa de cerveja preta ali no alto da prateleira ― sirva-se.”

Ela tomou um pouco da cerveja de uma panela de barro, deixando o resto para ele.

Ele fez o mais conciso dos esboços de sua vida. De sua esposa, Sarima, a noiva de infância, que crescera e se tornara fecunda ― tiveram três filhos. Dos velhos centros administrativos das usinas hidráulicas do Escritório de Obras Públicas em Kiamo Ko, que, por emboscada e ocupação, seu pai ha­via transformado no reduto de um chefe e numa fortaleza tribal tal como nos tempos do Regente Ozma. Da atordoante vida esquizóide de ter de se mudar todo ano das Pastagens Milenares na primavera e no verão, quando o clã caçava e festejava, para um outono e inverno mais seguros em Kiamo Ko. “Um príncipe de Arjiki pode ter negócios aqui em Cidade Esmeralda?”, disse Elphaba. “Se forem financeiros, você deveria estar em Shiz. O negócio desta cidade é militarismo, meu velho amigo. Que é que você faz?”

“Você já sabe o bastante a meu respeito”, ele disse. “Também sei bancar o melindroso e enganador, se tudo se trata de fingimento e não segredos muito sérios.” Ele supôs que o negócio trivial de acordos comerciais não impressio­naria a sua velha amiga; ele se envergonhava por suas atividades não serem mais audaciosas ou emocionantes. “Mas, eu segui vivendo. E você, Elfinha?”

Ela não disse nada por uns momentos. Improvisou um pouco de salsi­cha seca e algum pão envelhecido, e pegou umas laranjas e limão, e colocou tudo sem cerimônia na mesa. Na atmosfera infestada de traças, ela parecia mais uma sombra que uma pessoa; sua pele verde parecia exoticamente suave, como folhas de primavera em seu mais suave aspecto, e alisada, como o cobre. Ele teve uma ânsia sem precedentes de agarrá-la pelo pulso e fazê-la parar de se movimentar ― se não para fazê-la falar, ao menos para imobilizá-la, a fim de poder olhar para ela.

“Coma essa coisa”, ela disse por fim. “Eu não tenho fome. Você come, vamos lá.”

“Diga-me uma coisa”, ele pediu. “Você nos deixou em Shiz ― desapare­ceu como a neblina da manhã. Por que, para onde e para quê?”

“Como você é poético”, ela disse. “Tenho a impressão de que a poesia é a forma mais elevada de auto-engano.”

“Não mude de assunto.”

Mas ela estava agitada. Seus dedos se contorciam; ela chamou o gato, e se irritou com ele e fez com que se escafedesse de seu colo. Finalmente, disse: “Oh, bem, foi tudo isso, então. Mas você não vai nunca mais voltar aqui. Eu não quero procurar um outro lugar, este é bom demais para mim. Você promete não revelar?”.

“Vou concordar apenas em pensar na promessa, é tudo. Como posso prometer mais que isso? Eu não sei nada ainda.”

Ela disse, apressadamente: “Bem, eu estava de saco cheio de Shiz. A morte do Doutor Dillamond me deixou vexada, e todo mundo lamentava, mas ninguém fazia nada. Não mesmo. Não era o lugar certo para mim, de qualquer jeito, com todas aquelas garotas cretinas. Embora eu goste de Glin­da. Como ela anda?”.

“Não tenho tido contato. Continuo esperando abordá-la algum dia em alguma recepção do Palácio ou qualquer outra. Fiquei sabendo informalmen­te que ela se casou com um baronete de Paltos.”

Elphaba pareceu perturbada e suas costas se enrijeceram. “Apenas um baronete? Nem um barão ou visconde, pelo menos? Que decepção. Suas aspirações iniciais não deram resultado, então.” Tentando ser engraçada, sua observação era dura e deselegante. “Ela se tornou mãe?”

“Eu não sei. Sou eu quem pergunta agora, lembra?”

“Sim, mas recepções no Palácio?”, ela disse. “Você está mancomunado com o Nosso Glorioso Mágico?”

“Soube que ele é um recluso, na maior parte do tempo. Nunca o co­nheci”, Fiyero disse. “Ele aparece de vez em quando na ópera e ouve a música por trás de um biombo portátil. Em seus próprios jantares sociais ele janta à parte, numa câmara ao lado, atrás de uma grelha de mármore entalhado. Vi só o perfil de um homem imponente que caminhava por um passeio público. Se era o Mágico, é tudo que conheço dele. Mas, você, você: você. Por que rompeu com todos nós?”

“Eu os amava demais para continuar tendo contato com vocês.”

“O que isso significa?”

“Não me pergunte”, ela disse, debatendo-se um pouco, seus braços como remos agitados na azulada escuridão da noite de verão.

“Pergunto sim. Você continuou vivendo aqui desde então? Durante cinco anos? Você estuda? Você trabalha?” Ele esfregava os braços ao tentar imaginar: o que ela estaria fazendo? “Você está associada à Liga de Proteção dos Animais ou a alguma daquelas pequenas organizações humanitárias rebeldes?”

“Eu nunca uso as palavras humanista e humanitária, já que me parece que ser humano é ser capaz dos mais hediondos crimes na natureza.”

“Você está fugindo outra vez.”

“É o meu trabalho”, ela disse. “Aí está, é uma pista para você, querido Fiyero.”

“Aumente isso.”

“Eu fui para a clandestinidade”, ela disse suavemente, “e ainda estou nela. Você é a primeira pessoa a violar meu anonimato desde que eu disse adeus para Galinda há cinco anos. Por aí você pode compreender por que não posso dizer mais nada, ou por que você não pode me ver novamente. Por tudo que sei você me levaria à Tropa da Tormenta.”

“Hah! Aqueles milicos! Você pensa muito mal de mim se acha que eu...”

“Como eu sei, como eu posso saber?” Ela contorceu seus dedos, fechan­do-os uns contra os outros, formando um quebra-cabeça de varetas verdes. “Eles marcham com aquelas botas sobre os pobres e os oprimidos. Eles ater­rorizam as famílias no meio da madrugada e desaparecem com os dissidentes ― e arrebentam as impressoras com seus machados ― e fazem julgamentos gozadores por traição à meia-noite e executam os condenados pela manhã. Eles investigam cada pedaço desta bela e falsa cidade. Eles fazem uma boa colheita de vítimas mensalmente. E o governo pelo terror. Neste exato mo­mento, podem estar pelas ruas, se juntando. Nunca me perseguiram, mas podem ter perseguido você.”

“Você não é tão difícil de ser perseguida como pensa”, ele disse. “Você é boa na coisa, mas nem tanto. Eu posso lhe ensinar umas coisinhas.”

“Aposto que pode”, ela disse, “mas não vai, porque não vamos encontrar­-nos outra vez. É perigoso demais, tanto para você quanto para mim. É o que quero dizer quando digo que eu amava demais a todos vocês para manter algum contato. Você acha que a Tropa da Tormenta é incapaz de torturar amigos e familiares para obter informações pertinentes? Você tem uma mu­lher e filhos, e eu sou simplesmente uma velha amiga de colégio que conheceu. Muito inteligente você me seguir. Não me faça isso outra vez, está bem? Vou mudar de endereço se notar que você está me seguindo. Posso sair daqui agora mesmo, e estar longe em trinta segundos. Faz parte do meu treinamento.”

“Não faça isso comigo”, ele disse.

“Somos velhos amigos”, ela disse, “mas não somos nem especialmente bons amigos. Não transforme isso num encontro sentimental. É um prazer rever você, mas eu não vou querer que isso aconteça de novo. Tome conta de você mesmo e cuidado ao estabelecer altas ligações com os bastardos, por­que, quando a revolução chegar, não vai haver misericórdia para bajuladores lambe-cus.”

“Aos ― quantos? vinte e três anos? ― você está bancando a Senhora Rebelde?”, ele disse. “Não é conveniente.”

“É inconveniente mesmo”, ela concordou. “Uma palavra perfeita para minha nova vida. Inconveniente. Eu, que sempre fui inconveniente, acabei ficando à margem das conveniências. Embora eu assinale que você tem a mesma idade que eu, e esteja bancando o arrogante, como um príncipe. Mas, você já comeu? Temos de nos despedir agora.”

“Não vamos nos despedir”, ele disse, firmemente. Ele queria pegar as mãos dela nas suas ― ele não se lembrava de jamais tê-la tocado. Corrigiu-se ― ele sabia que nunca a tinha tocado.

Era quase como se ela pudesse ler o seu pensamento. “Você sabe quem você é”, ela disse, “mas não sabe quem eu sou. Você não pode ― quero dizer que você não pode e não pode ― porque é uma coisa proibida para um, e, para o outro, trata-se de uma impossibilidade. Vá com Deus, se é que eles usam essa frase lá no Vinkus ― se lá isso não significar um xingamento. Vá com Deus, Fiyero.”

Ela lhe passou seu traje para a ópera, e estendeu sua mão para apertar a sua. Ele apanhou sua mão, olhou em seu rosto, que só por um segundo se abrira. O que ele viu nele fez com que se arrepiasse e aquecesse, em estontean­te simultaneidade, com a forma e a intensidade da carência que ali havia.

 

“Que é que você sabe do Boq?”, ela perguntou, na vez seguinte em que se encontraram.

“Você simplesmente não vai responder a nada do que eu lhe perguntar sobre você mesma, não é?”, ele disse. Ele se reclinava com os pés sobre a sua mesa. “Por que você finalmente aceitou que eu voltasse se permanece muda como uma prisioneira?”

“Eu gostava de Boq, isso é tudo.” Ela riu. “Deixei você voltar para poder arrancar informações a respeito dele e dos outros.”

Ele contou a ela o que sabia. Boq havia se casado com a Senhorita Milla, entre outras viradas surpreendentes. Ela fora arrastada para Pedras do Ninho, e odiara a coisa. Várias vezes tentara suicídio. “Suas cartas mandadas nos festejos de Lurlinemas todo ano são histéricas; elas registram suas tentativas de se matar como uma espécie de relatório anual de família.”

“Isso me faz pensar o que minha mãe não terá passado, nas mesmas cir­cunstâncias”, disse Elphaba. “A infância privilegiada num grande lar da classe superior, e, depois, o rude choque de uma vida de penúria lá na terra-de-­ninguém. No caso de mamãe, a mudança de Solos de Colwen para Margens Agitadas, e daí para os pântanos de Quadling. É realmente uma penitência da espécie mais dura.”

“Tal mãe, tal filha”, disse Fiyero. “Você também não deixou uma boa quan­tidade de privilégios, para viver aqui, feito um caracol? Escondida e reclusa?”

“Lembro-me da primeira vez que o vi”, ela disse, pingando gotas de vinagre sobre as raízes e vegetais que preparava para a ceia. “Foi na sala de aula daquele ― qual era o nome? ― Doutor...”

“Doutor Nikidik”, disse Fiyero. Ele avermelhara.

“Você tinha aquelas belas marcas no rosto ― nunca vira nada igual. Você calculou aquela entrada para ganhar lugar em nossos corações?”

“Juro por minha honra que, se pudesse ter feito qualquer outra coisa, teria sido melhor. Eu estava ao mesmo tempo mortificado e aterrorizado. Sabe que cheguei a pensar que aqueles chifres enfeitiçados iam me matar? E o vaidoso Crope e o ágil Tibbett foram a minha salvação.”

“Crope e Tibbett! Tibbett e Crope! Eu me esquecera deles. Como estão?”

“Tibbett nunca mais foi o mesmo depois daquela aprontada no Clube de Filosofia. Crope, eu acho, passou a trabalhar numa casa de leilão de artes, e ainda dá umas flertadinhas com a turma do teatro. Eu o vejo de vez em quando nesses lugares. Não conversamos.”

“Nossa, você está severo!” Ela riu. “Claro que, sendo tão interessada em sexo quanto qualquer ser humano, eu sempre me pus a imaginar o que vocês teriam achado do Clube de Filosofia. Você sabe, em outra vida eu bem que gostaria de rever a turma toda. E Glinda, querida Glinda. E mesmo o nojento Avaric. O que foi feito dele?”

“Com Avaric eu ainda converso. Na maior parte do ano, ele fica lá nas terras do margrave, mas tem uma casa em Shiz. E, quando ele vem à Cidade Esmeralda, freqüentamos o mesmo clube.”

“Ele continua um grosseirão presunçoso?”

“Nossa, você é que dá uma de severa agora!”

“Suponho que sim.” Eles fizeram a ceia. Fiyero esperou que ela pergun­tasse mais sobre a sua família. Mas eram as suas respectivas famílias que eles estavam escondendo um do outro, aparentemente: a esposa e os filhos dele em Vinkus, e, dela, o círculo de agitadores e revolucionários.

Da próxima vez que voltasse, ele pensou, deveria usar uma camisa aber­ta no pescoço, para que ela pudesse ver que a tatuagem de diamantes azuis em seu rosto continuava inviolável perto de seu peito... Já que ela parecera apreciar aquilo.

 

“Com certeza, você não fica o outono inteiro aqui em Cidade Esmeral­da?”, ela perguntou numa certa noite, quando o frio estava chegando.

“Mandei dizer a Sarima que os negócios estão me prendendo aqui in­definidamente. Ela não se importa. Como iria se importar? Arrancada de um imundo caravançarai e casada já em criancinha com um príncipe de Arjiki? Sua família não era estúpida. Ela tem comida, criados, e as sólidas muralhas de pedra de Kiamo Ko como defesa contra as outras tribos. Ela está ficando um pouquinho gorda depois do terceiro filho. Ela realmente nem nota se eu estou ou não em casa ― bem, ela tem cinco irmãs, e todas moram juntas. Casei-me com um harém.”

“Não!”, Elphaba parecia intrigada e um pouco embaraçada com a idéia.

“Você está certa, não, não é bem assim. Sarima disse uma ou duas ve­zes que suas irmãs mais jovens podiam e teriam prazer em esgotar minhas energias à noite. Depois que você ultrapassa os Grandes Kells, o tabu contra essa prática não é tão forte quanto parece ser no resto de Oz, portanto, pare de me olhar com essa cara de chocada.”

“Não posso evitar. Você fez isso?”

“Eu fiz o que?” Ele estava provocando-a.

“Você dormiu com suas cunhadas?”

“Não”, ele disse. “Não por causa de elevados padrões morais, ou por falta de interesse. É só porque Sarima é uma mulher sagaz, e tudo em casamento é compromisso. Eu ficaria sob controle dela muito mais do que já estou.”

“E isso é uma coisa ruim?”

“Você não é casada, portanto, não sabe: sim, é uma coisa ruim.”

“Eu sou casada”, ela disse, “só que não com um homem.”

Ele ergueu as sobrancelhas. Ela pôs as mãos em seu rosto. Ele nunca a vira daquele jeito ― como se suas palavras houvessem chocado a ela mesma. Ela teve de virar sua cabeça por um momento, limpar a sua garganta, assoar o nariz. “Oh, merda, lágrimas, elas ardem como fogo”, ela gritou, subitamente tomada de fúria, e correu em busca de um cobertor para enxugar seus olhos antes que a umidade salgada descesse pelo seu rosto.

Ela ficou curva como uma mulher idosa, um braço ao contrário, o co­bertor caindo de seu rosto ao chão. “Elfinha, Elfinha”, ele disse, horrorizado, e cambaleou em direção a ela, abraçando-a. O cobertor ficou no meio deles, da cabeça aos pés, mas quase se queimou com a chama, ou se transformou em rosas, ou numa fonte de champanhe e incenso. Estranho como as mais ricas imagens surgem naturalmente na cabeça quando o próprio corpo se encontra no seu máximo despertar...

“Não”, ela gritou, “não, não, eu não sou um harém, eu não sou uma mulher, eu não sou nem mesmo uma pessoa, não.” Mas, seus braços se move­ram por vontade própria, como velas de um moinho de vento, como aqueles chifres enfeitiçados, não para matá-lo, mas para prendê-lo apaixonadamente, para encostá-lo à parede.

Malky, com um raro gesto de discrição, subiu ao peitoril da janela e olhou para outra direção.

 

O romance entre os dois desenrolou-se no aposento acima do pequeno armazém de cereais abandonado enquanto o tempo de outono vinha a passos trôpegos do leste: num dia havia calor, noutro dia sol, e depois eram quatro dias de ventos gelados e chuva fina.

Dias se enfileiravam sem que eles pudessem se ver. “Eu tenho compro­missos, eu tenho trabalho, confie em mim ou eu vou desaparecer de sua vida”, ela dizia. “Escreverei para Glinda e lhe perguntarei como fazer o feitiço de de­saparecer numa nuvem de fumaça. Estou provocando, mas falo sério, Fiyero.”

Fiyero + Fae, ele escrevia na farinha que transbordava quando ela enro­lava massinha de pastel. Fae, ela tinha sussurrado, como se para impedir que o gato ouvisse, era seu nome de código. Ninguém em sua célula podia saber o nome verdadeiro que o companheiro tinha.

Ela não deixava que ele a visse nua na claridade, mas, desde que tampou­co podia visitá-la durante o dia, mal chegava a ser um problema. Ela esperava por ele nas noites combinadas, nua debaixo do cobertor, lendo ensaios de teoria política ou filosofia moral. “Eu não sei se os entendo, leio-os como se fossem poesia”, ela admitiu uma vez. “Gosto do som das palavras, mas não espero que minha penosa e tortuosa impressão do mundo seja mudada por aquilo que eu leio.”

“E pela maneira como você vive, ela não muda?”, ele perguntou, apagan­do a luz e se livrando das roupas.

“Você pensa que tudo isso é novo para mim”, ela disse, suspirando. “Você pensa que sou tão virgem.”

“Você não sangrou da primeira vez”, ele observou. “Então, o que eu ia pensar?”

“Eu sei o que você pensa”, ela disse. “Mas, quão experiente és, oh, Senhor Fiyero, Príncipe Arjiki de Kiamo Ko, Supremo Guardião das Pastagens Mi­lenares, Chefe dos Chefes nos Grandes Kells?”

“Eu sou massa em suas mãos”, ele disse, confiantemente. “Eu me casei com uma criança prometida e, para preservar a minha força, não tinha sido infiel. Até agora. Você não é como ela”, ele disse. “Você não sente como ela, eu não sinto o mesmo. Você é mais secreta.”

“Eu não existo”, ela disse, “portanto, você também não está sendo infiel.”

“Vamos não ser infiéis agora mesmo, então”, ele disse. “Mal posso es­perar”, enlaçando as suas costas, descendo ao plano firme de seu estômago. Ela sempre conduzia aquelas mãos para seus magros, expressivos seios; não queria ser tocada por mão alguma abaixo de sua cintura. Eles se moviam juntos, como diamantes azuis num campo verdejante.

 

Ele não tinha o bastante que fazer ao longo dos dias. Sendo o chefe do povo de Arjiki, sabia que era do interesse político deste permanecer ligado inelutavelmente ao centro comercial da Cidade Esmeralda. No entanto, os in­teresses comerciais de Arjiki requeriam apenas que Fiyero aparecesse social­mente, em reuniões de empresa e recepções financeiras. O resto do tempo ele apenas vagueava pela cidade, procurando afrescos de Santa Glinda e outros santos. Elphaba-Fabala-Elfinha-Fae nunca lhe contara o que estava fazendo na capela de Santa Glinda ligada ao monastério na Praça de Santa Glinda.

Um dia ele encontrou Avaric e almoçaram juntos. Avaric sugeriu um show de garotas como sobremesa, e Fiyero declinou. Avaric estava opiniático, cínico, corrupto e bonitão como sempre. Não extrairia dele conversa provei­tosa que pudesse levar a Elphaba.

O vento arrancava as folhas das árvores. A Tropa da Tormenta conti­nuava a empurrar os Animais e colaboradores para fora da cidade. As taxas dos bancos de Gillikin estavam nas alturas ― bom para investidores, mau para aqueles que tomavam empréstimos. Execuções de hipotecas num monte de valiosas propriedades do centro da cidade. Bem depressa o comércio come­çou a acender as luzes verdes e douradas de Lurlinemas, tentando atrair os cautelosos e deprimidos cidadãos ao interior das lojas.

Mais que tudo, ele queria caminhar pelas ruas da Cidade Esmeralda com Elphaba ao lado ― não havia lugar melhor para apaixonados, especial­mente quando ao crepúsculo as luzes das lojas se acendiam, reluzindo em ouro sobre o céu de um azul-purpúreo da noitinha. Ele nunca estivera apaixo­nado, e só agora o notava. Isso o humilhava. Isso o assustava. Não conseguia suportar quando a ausência forçada chegava a quatro ou cinco dias.

“"Beijos para Irji, Manek e Nor”, ele escrevia no fim de sua carta semanal para Sarima, que não podia respondê-la porque, entre outras coisas, nunca fora alfabetizada. De certo modo, o silêncio da esposa parecia-lhe uma tácita aprovação de seu interlúdio extraconjugal. Ele não escrevia beijos para ela, tampouco. Esperava que os chocolates cumprissem esse papel.

 

Ele rolava, puxando o cobertor para seu lado; ela o puxava de volta para si. O ar no aposento era tão frio que parecia enregelar. Malky, na ponta, tolerava as pernas que se debatiam a fim de ir ficando por perto, recebendo calor, dando o que nos gatos passa por afeição.

“Minha querida Fae”, disse Fiyero. “Acho que você já sabe disso, e eu não vou me tornar um co-conspirador do que quer que você esteja fazendo ― reduzindo multas de biblioteca ou revogando a necessidade de coleiras para gatos ou seja lá o que seja. Mas eu mantenho meus ouvidos atentos. Os quadlings estão sob as patas da milícia avançada outra vez. Ao menos é o que ouço dizer lá no saguão do clube, entre jornais e murmúrios. Parece que uma divisão do exército entrou no Estado de Quadling, chegando até Qhoyre, efetuando alguma espécie de missão arrebenta-e-queima. Seu pai, seu irmão e Nessarose ― eles ainda vivem por lá?”

Elphaba ficou sem resposta, por um momento. Ela parecia estar pen­sando não só no que iria dizer, mas talvez até no que era possível lembrar. Sua expressão era de espanto, até de irritação. Ela disse: “Vivemos em Qhoyre um certo tempo, quando eu tinha perto de dez anos. É uma pequena cidade engraçada, construída em solo encharcado. Metade das ruas são canais. Os telhados são baixos, as janelas são grelhadas ou com venezianas para dar privacidade e ventilação, o ar é úmido e a flora excessiva ― folhas de palmas em formato de enormes rodelas, quase parecidas a travesseiros acolchoados, fazendo um som característico ao baterem umas nas outras ao vento ― tirr, tirr, tirr, tirr”.

“Eu não sei se restou muito de Qhoyre”, disse Fiyero cuidadosamente. “Se o boato que eu ouvi tiver fundamento.”

“Não, Papai não está lá agora, graças ― graças a sei lá quem, a sei lá o que, graças a nada”, continuou Elphaba. “A menos que as coisas tenham mudado. O bom povo de Qhoyre não foi lá muito receptivo aos esforços missionários. Convidavam Papai e eu, serviam-nos bolinhos úmidos e chá morno de hortelã vermelha. Nós nos sentávamos em almofadas baixas e emboloradas, espan­tando lagartixas e aranhas para os cantos mais escuros. Papai se punha a falar monotonamente sobre a generosa natureza do Deus Inominável, emitindo seu ponto de vista xenofílico básico. Ele me apontava como prova. Eu sorria com horrível doçura e cantava um hino - a única música que Papai aprovava. Eu era miseravelmente tímida e envergonhada de minha cor, mas Papai me convencera do valor desse trabalho. Invariavelmente, os gentis cidadãos de Qhoyre sucumbiam por causa de sua hospitalidade. Aceitavam fazer orações ao Deus Inominável, mas você não podia dizer que o faziam de coração. Eu acho que eu percebia muito mais - de um modo bem menos desanimador que o meu pai ― como nós tínhamos pouca penetração”.

“Então, onde eles estão agora? Papa, Nessarose e o garoto ― seu irmão, qual é mesmo o nome dele?”

“Shell, este é o seu nome. Bem, Papai sentiu que seu trabalho seria mais efetivo ao sul do Estado de Quadling, bem lá nos confins. Tivemos uma série de pequenas moradas modestas em torno de Ovvels ― as Choupanas de Ovvels*, como as chamávamos ―, que era uma zona agreste lúgubre, primi­tiva, cheia de sanguinária beleza.”

Diante da expressão intrigada de Fiyero, Elphaba prosseguiu. “Quero dizer, há quinze, vinte anos, Fiyero, os especuladores de Cidade Esmeralda descobriram lá depósitos de rubi. Primeiro foi sob o Regente Ozma, e, en­tão, depois do golpe, sob o governo do Mágico: as mesmas práticas sujas de negócios.

Embora, sob o Regente Ozma, a exploração não exigisse crime e brutali­dade. Usando elefantes, os engenheiros transportaram seixos, obstruíram nas­centes, aperfeiçoaram um complicado sistema de mineração a três pés abaixo de terrenos encharcados de água salobra. Papai achava que esse desarranjo na comunidade pantanosa abria um terreno perfeitamente propício para o tra­balho missionário. E ele estava certo. Os quadlings lutaram contra o Mágico com proclamações precárias, recorreram aos totens, mas suas únicas armas militares eram estilingues. Por isso, agruparam-se em torno do meu pai. Ele os converteu, e eles foram à luta com o zelo dos recém-convertidos. Foram desapropriados e desapareceram. Tudo com a bênção da graça unionista.”

“Nossa, como você é amarga.”

“Ele foi um instrumento. Meu querido pai me usou ― e a Nessarose um pouco menos, por causa de seu problema para se mover ―, ele me usou como objeto de sua pedagogia. Com a aparência que eu tinha, mesmo sa­bendo cantar ― confiavam nele em parte como reação à minha esquisitice. Se o Deus Inominável podia amar a mim, amaria muito mais a eles, os não deformados.”

“Então, minha querida, você não se importa com onde ele possa estar, ou com o que esteja acontecendo com ele agora?”

“Como você pode dizer isso?” Ela se ergueu, bufando. “Eu amava o velho bastardo cheio de viseiras. Ele realmente acreditava naquilo que pregava. Ele chegava a achar que o cadáver de um quadling, encontrado a flutuar em algum laguinho de água salobra ― desde que portasse uma tatuagem em alguma parte a indicar que era um convertido ―, era muito melhor que um sobrevi­vente. Sentia que a morte do coitado não passava de um simples passaporte para a assembléia do Outro Mundo, presidida pelo Deus Inominável, que ele fornecera. Acho que considerava isso trabalho bem-feito.”

“E você não acha?” Fiyero tinha uma vida espiritual bem anêmica; sen­tia-se desqualificado para emitir uma opinião sobre a vocação do pai de El­phaba.

“Talvez fosse trabalho bem-feito”, ela disse tristemente. “Como posso saber? Mas não era trabalho bem-feito para mim. Povoado após povoado, fomos ceifando os convertidos. Povoado após povoado, as turmas de en­genheiros vinham, para detonar a vida comunitária. Não houve clamor de protesto algum em toda Oz. Ninguém ouviria. Quem se importava com os quadlings?”

“Mas o que o levou para lá, a princípio?”

“Ele e Mamãe tinham tido um amigo, um quadling, que morrera em minha casa ― um quadling andarilho, um soprador de vidro.” Elphaba fez uma carranca e fechou os olhos, e nada mais disse. Fiyero beijou as pontas de seus dedos. Beijou o V entre seu polegar e seu indicador, lambeu-o como se fosse fatia de limão. Ela recuou, em entrega, para deixá-lo desfrutar muito mais de seu corpo.

Um pouco depois, ele disse: “Mas, Elfinha-Fabala-Fae ― você não está mesmo preocupada com seu pai e Nessarose e o irmão pequeno ― esqueci o nome?”

“Meu pai persegue causas perdidas. Isso dá a seu fracasso na vida al­guma justificativa. Por uns tempos, ele se proclamou um profeta do retorno do último, perdido embrião da estirpe de Ozma. Isso agora acabou. E meu irmão Shell ― é possível que esteja perto dos quinze anos agora. Olha, Fiyero, como posso me preocupar com eles enquanto me preocupo com os compro­missos assumidos aqui? Eu não posso sobrevoar Oz ― naquele famoso cabo de vassoura, como uma bruxa das fábulas! ―, eu escolhi a clandestinidade exatamente para não ter de me preocupar com isso. Ademais, sei o que acon­tecerá com Nessarose. Mais cedo ou mais tarde.”

“E que será?”

“Quando meu bisavô finalmente pifar, ela será o próximo Eminente Thropp.”

“Você está no páreo, também. Não é mais velha que ela?”

“Eu desapareci, queridinho, num passe de mágica, sumi numa nuvem de fumaça. Esqueça isso. E, você sabe, isso será bom para Nessarose. Ela será uma espécie de rainha local lá em Pedras do Ninho.”

“Parece que ela seguiu um curso de feitiçaria, você sabia? Em Shiz?”

“Não, não sabia. Bem, bravos para ela. Se alguma vez ela descer daquele pedestal ― aquele que traz escrito nas bordas a frase A CAMPEÃ DA RE­TIDÃO MORAL ―, se ela chegar a se permitir ser a piranha que realmente é, ela será a Piranha do Leste. A Babá e a comitiva devota de Solos de Colwen lhe darão apoio.”

“Pensei que você gostasse dela!”

“Você não reconhece afeição debaixo de seu nariz?”, disse Elphaba, zom­beteira. “Eu amo a Nessie. Ela é um pé no saco, ela é intoleravelmente correta, ela é uma nojenta peça rara. Eu sou devotada a ela.”

“Ela será a Eminente Thropp.”

“Melhor ela do que eu”, disse Elphaba secamente. “Só para dar um exemplo, ela tem muito bom gosto em matéria de sapatos.”

 

Numa noite, entrando pela clarabóia, a luz da Lua cheia caía plena­mente sobre a adormecida Elphaba. Fiyero havia despertado e fora se aliviar num urinol do aposento. Malky estava caçando ratos nas escadas. Ao voltar, ele contemplou as formas de sua amante, mais peroladas que verdes nessa noite. Uma vez ele lhe dera um lenço de franjas de seda tradicional em Vinkus ― rosas sobre um fundo negro ― e o enrolara em sua cintura, e desde então isso se tornara um costume ao fazerem amor. Dessa vez, ao dormir, ela o er­guera, e ele admirava a curva de seu flanco, a suave fragilidade de seu joelho, o tornozelo ossudo. Havia ainda no ar um pouco de perfume, e havia um odor resinoso, animalesco, misturado a um cheiro que vinha do oceano místico e a outro, doce, disfarçado, de pêlos eriçados por sexo. Ele se sentara ao lado da cama e a olhava. Seu pêlos púbicos cresciam, mais roxos que negros, em pequenos cachos cintilantes, um tanto diferentes dos de Sarima. Havia uma sombra estranha perto da virilha ― momentaneamente aturdido, ele pensou se algum de seus diamantes azuis não teria, no calor do sexo, se fundido à pele de Elphaba ― ou se aquilo não seria uma cicatriz?

Mas, nesse exato momento, ela despertou, e, à luz do luar, cobriu-se com o cobertor. Ela sorriu para ele, sonolenta, e o chamou. “Yero, meu Yero”, e isso o derreteu.

 

Apesar disso, por vezes ela era de uma fúria!

“Eu não ficaria surpresa se o bife de porco que você está devorando agora, com gula tão indiferente, tivesse sido retalhado de um Porco”, ela o alfinetou uma vez.

“Só porque você já comeu, não precisa arruinar o meu apetite”, ele pro­testou mansamente. Os Animais livres não estavam em muita evidência no seu território natal, e as poucas bestas racionais que conhecera em Shiz, à ex­ceção daquelas que vira naquela noite no Clube de Filosofia, tinham lhe cau­sado pouca impressão. A situação aflita dos Animais não o comovia muito.

“Eis uma boa razão para a gente não se apaixonar: ficamos cegos. O amor é uma distração maldosa.”

“Agora, você estragou o meu almoço.” Ele deu o resto do bife de porco para Malky. “Que tanto você sabe sobre maldade? Você está meio que brin­cando no meio dessa rede de renegados, não está? Você é uma novata.”

“Eu sei muito bem isto: o mal dos homens é que seu poder aumenta a estupidez e a cegueira”, ela disse.

“E o das mulheres?”

“As mulheres são mais fracas, mas sua fraqueza é cheia de astúcia e uma certeza moral igualmente rígida. Já que seu espaço para luta é menor, sua capacidade de dano é menos alarmante. Embora sejam mais íntimas, são mais traiçoeiras.”

“E quanto ao meu potencial maléfico?”, disse Fiyero, sentindo-se atin­gido e incomodado. “E quanto ao seu?”

“O potencial maléfico de Fiyero consiste em acreditar convictamente na própria bondade.”

“E o seu?”

“Em pensar através de epigramas.”

“Você tirou seu corpo fora com jeitinho”, ele disse, subitamente um pouco irritado. “É isso que a sua rede secreta a incumbiu de fazer? Produzir epigramas espirituosos?”

“Oh, há grandes coisas sendo feitas”, ela disse, vagamente. “Eu não esta­rei no centro das ações, mas serei de auxílio nas margens, acredite.”

“Do que você está falando? De um golpe de Estado?”

“Não se meta, e permanecerá inocente. Tal como você quer ser.” Isso era desprezível da parte dela.

“Um assassinato? E o que acontecerá se você matar algum General Açougueiro? O que isso a tornará? Uma santa? Uma santa da revolução? Ou uma mártir, se for morta em campanha?”

Ela não respondeu. Balançou sua cabeça estreita, irritada, e depois jogou seu xale rosado no quarto como se este a tivesse enraivecido.

“E se algum transeunte inocente for atingido quando você apontar para o General Matador de Porcos?”

“Eu nada sei sobre mártires e pouco me importo com eles”, ela disse. “Tudo isso me cheira a um plano mais elevado, a uma cosmologia ― uma coisa na qual não acredito. Se não compreendemos o plano em que estamos, como é que um plano mais alto faria sentido? Mas, se eu acreditasse no martírio, suponho que lhe diria que você só pode ser um mártir se souber pelo que está morrendo, e fazer disso uma escolha.”

“Ah, então há vítimas inocentes nesse negócio. Aqueles que não esco­lhem morrer, mas entram na linha de fogo.”

“Há... haverá... acidentes, eu acho.”

“Existe angústia, remorso, em seu exaltado círculo? Existe nele alguma coisa parecida com erro? Existe algum senso de tragédia?”

“Fiyero, seu bobo desleal, a tragédia está bem em volta de nós. Preo­cupar-se com algo menor que isso é distração. Qualquer conseqüência da luta será culpa deles, não nossa. Nós não abraçamos a violência, mas não negamos a sua existência ― como poderíamos negar quando seus efeitos estão aí, bem visíveis? Se existe pecado, esse tipo de negação se enquadra bem no conceito...”

“Ah ― agora eu ouvi a palavra que eu nunca esperava que você dissesse.”

“Negação? Pecado?”

“Não. Nós.”

“Eu não sei por quê...”

“A solitária desertora de Crage Hall se tornou institucional? Uma garota da turma? Uma jogadora pertencente a um time? Nossa pioneira Senhorita Rainha dos Solitários?”

“Você não compreende. Há uma missão, mas não há agentes, há um jogo, mas não jogadores. Eu não tenho colegas. Eu não tenho um eu. Nunca tive, aliás, mas isso não vem ao caso. Sou apenas um espasmo muscular num grande organismo.”

“Hah! Logo você, a mais individual, a mais isolada, a mais real...”

“Tal como todos, você se refere à minha aparência. E tira um sarro dela.”

“Eu adoro sua aparência e a admiro, Fae.”

Eles se despediram sem palavras naquele dia, e ele passou a noite no salão de apostas, perdendo dinheiro.

 

Quando voltou para vê-la, ele trouxe três velas verdes e três douradas e decorou seu aposento em comemoração aos festejos de Lurline. “Eu não acredito em festas religiosas”, ela disse, e, dando o braço a torcer, “mas, ficou bonito.”

“Você não tem alma”, ele a provocou.

“Você tem razão”, ela respondeu orgulhosamente. “Eu não pensava que isso transparecesse.”

“Agora, você está fazendo um jogo de palavras.”

“Não”, ela disse. “Que prova posso ter da existência de uma alma?”

“Como você poderia ter uma consciência se não tivesse uma alma?”, ele perguntou, a despeito dele mesmo ― porque o que desejava era manter as coisas num plano mais leve, voltar a um terreno mais seguro depois do último episódio de corpo-a-corpo moral e desavença.

“Como pode um passarinho alimentar seus filhotes se ele não tem cons­ciência do antes e do depois? Uma consciência, Yero, meu herói, é apenas o ser consciente de uma outra dimensão, a do tempo. O que você chama de cons­ciência eu prefiro chamar de instinto. Os passarinhos alimentam seus filhotes sem saber por que, sem chorar pelo fato de que tudo que nasceu deve morrer, oh, soluços, soluços. Faço meu trabalho com uma motivação similar: o movi­mento visceral em direção ao que é bom, justo e seguro. Sou só mais um animal no meio do rebanho, isso é tudo. Sou uma folha descartável da árvore.”

“Já que seu trabalho é terrorismo, esse é o argumento mais extremista para cometer crimes que eu já tive oportunidade de ouvir. Você está fugindo a toda responsabilidade individual. É tão ruim quanto aqueles que sacrificam sua vontade pessoal aos pântanos sombrios da vontade desconhecida de al­gum deus insondável. Se você suprime a noção de pessoa, suprime também a noção de culpabilidade individual.”

“O que é pior, Fiyero? Suprimir a noção de pessoa ou suprimir, através de tortura e encarceramento, pessoas realmente vivas? Olha: você se preocu­paria com salvar algum precioso retrato sentimental num museu de belas-­artes quando a cidade toda ao redor estivesse pegando fogo e pessoas reais estivessem sendo queimadas até morrer? Mantenha alguma proporção dentro disso!”

“Mas até um transeunte inocente ― vamos dizer, alguma chata senhora de sociedade ― é uma pessoa real, não um retrato. Sua metáfora é desatenta e depreciativa, é uma desculpa cega para o crime.”

“Uma senhora de sociedade escolheu desfilar como um retrato vivo. Ela deve ser tratada como tal. E seu dever. A negação disso, esse é seu mal, para voltarmos à discussão do outro dia. Digo que salve o transeunte inocente se puder, mesmo que seja uma senhora de sociedade, mesmo se for um capitão de indústria que esteja prosperando poderosamente com esses movimentos repressivos ― mas não, não, não à custa de outras pessoas, mais reais. E, se você não puder salvá-los, não salvará, ora. Tudo tem seu preço.”

“Eu não acredito nesse conceito de pessoas ‘reais’ e mais ‘reais’.”

“Você não?” Ela sorriu, mas não foi um belo sorriso. “Quando eu desa­parecer novamente, queridinho, é certeza de que eu serei menos real do que sou agora.” Ela pareceu simular o ato sexual.contra ele; ele virou sua cabeça, surpreso com a força da aversão que sentira.

 

Mais tarde, naquela noite, quando tinham se reconciliado, ela sofreu um ataque de tontura e suores doloridos. Não deixou que ele a tocasse. “Você de­via ir embora, não sou digna de você”, ela gemeu, e dentro em pouco, quando estava mais calma, murmurou, antes de cair no sono novamente: “Eu amo tanto você, Fiyero, mas você não entende: ter nascido com um talento e uma inclinação para a bondade é a aberração”.

Ela estava certa. Ele não entendia. Ele enxugou seu rosto com uma toalha seca e ficou bem perto dela. Havia gelo na clarabóia, e eles dormiram debaixo de seus cobertores de inverno para se aquecer.

 

Numa tarde animada, ele mandou, num pacote conciliador, luminosos brinquedos de madeira para os filhos e um colar de pedras preciosas para Sarima. O trem de carga contornava os Grandes Kells pela rota do norte. Não entregaria os presentes pelos festejos de Lurline em Kiamo Ko até que fosse primavera, mas ele podia alegar tê-los enviado antes. Se as neves se dissipassem, ele estaria em casa nessa ocasião, inquieto e impaciente nos altos quartos estreitos da fortaleza da montanha, mas ele obteria o crédito por sua consideração. E talvez o merecesse, por que não? Com certeza, Sarima estaria passando pelos seus desânimos de inverno (diferentes de seus humores de primavera, seu tédio de verão e de sua congênita condição outonal). Um colar poderia talvez reanimá-la, um pouquinho ao menos.

Ele parou para um tomar um café num ponto fora dos lugares de rotina o bastante para ser a um só tempo boêmio e caro. A gerência se desculpava: o jardim de inverno, habitualmente aquecido com caldeiras e adornado com caras flores de estufa, tinha sido alvo de uma explosão na noite anterior. “O bairro está transtornado; quem poderia imaginar?”, disse o gerente, tocando o cotovelo de Fiyero. “Dizia-se que Nosso Glorioso Mágico havia erradicado a desordem civil: não era bem esse o objetivo dos toques de recolher e das leis de restrição?”

Fiyero não tinha vontade de comentar, e o gerente tomou seu silêncio como concordância. “Mudei algumas mesas para minha sala particular depois das escadas, se você não se incomodar com se apertar lá no meio das relíquias de família”, ele disse, mostrando o caminho. “Achar um bom munchkinês para ajudar a reparar o dano está ficando mais difícil, também. O toque tiqueta­queante do munchkinês, não há nada melhor. Mas, um monte dos nossos amigos do setor de serviços voltou para suas fazendas no leste. Assustados com a violência que sofreram ― bem, tantos deles são tão pequenos, não acha que é como se eles provocassem a violência? ― são todos covardes.” Ele se in­terrompeu para dizer, “Posso notar que você não tem parentes munchkineses, ou não teria feito esse comentário.”

“Minha mulher é de Pedras do Ninho”, disse Fiyero, mentindo de modo inconvincente, mas tocando no ponto nevrálgico.

“Eu recomendo o frapê de cereja e chocolate hoje, fresco e delicioso”, disse o gerente, refugiando-se na formalidade arrependida, e empurrando uma cadeira para uma mesa próxima às velhas janelas altas. Fiyero sentou-­se e olhou para fora. Uma persiana enfeitada fora danificada e não podia se dobrar sobre a parede externa como antes, mas havia ainda uma vista considerável. Telhados, canos de chaminé ornamentais, o estranho caixilho da janela elevada cheio de escuros amores-perfeitos de inverno, e pombos voando e trançando como senhores do céu.

O gerente era um representante de uma espécie peculiar; depois de muitas gerações na Cidade Esmeralda, essa espécie parecia uma ramificação étnica à parte. As pinturas de sua família mostravam os claros e meditativos olhos de avelã, e as refinadas e recuadas entradas capilares idênticas em ho­mens e mulheres (e puxadas nos couros cabeludos das crianças também, à moda da classe média ansiosa de ascensão da Cidade Esmeralda). A visão dos afetados garotos vestidos em seda cor-de-rosa carregando seus cãezinhos de estimação de cabecinhas frisadas, e das garotinhas usando ruge pesado e decotes em V feito mulheres adultas (o que deixava à mostra sua ingênua ausência de seios), Fiyero sentiu, de novo, uma repentina saudade de seus filhos frios e distantes. Embora danificados por sua particular vida de família ― e quem não o era? ―, em sua memória Irji, Manek e Nor mantinham mais integridade que esses príncipes de estufa de uma família pretensiosa.

Mas aquilo era cruel, e ele estava sendo afetado por uma convenção artística, não por crianças de verdade. Ele dirigiu seu olhar para a vista da janela quando ouviu um pedido, para evitar artimanhas sujas, para evitar as outras pessoas no salão.

Tomar café no jardim de inverno abaixo geralmente oferecia o bônus de uma vista de muros de tijolo cobertos de parreiras, arbustos e uma ou outra estátua de mármore de algum improvavelmente belo e vulnerável efebo nu. Contudo, de um lance acima, podia-se ver, além do muro, uma ruazinha in­terna. Parte dela era um estábulo, outra um toalete contíguo, aparentemente; e bem dentro do alcance de sua visão aparecia o muro quebrado pela explosão. Alguma espécie de torcida rede de arame farpado fora erguida na abertura, que levava a um pátio de escola.

Enquanto observava, uma das portas.da escola adjacente foi empurrada, e um pequeno grupo emergiu, tremendo e espreguiçando à luz do sol. Parecia haver ali ― Fiyero examinou ― um par de mulheres idosas e alguns machos adolescentes do Estado de Quadling, os bigodes juvenis fazendo uma sombra azulada contra sua bela pele de um rosa-ferrugem. Cinco, seis, sete quadlings ― e um par de homens corpulentos que podiam ser parcialmente gillikineses, era difícil saber ― e uma família de ursos. Não ― de Ursos. Pequeninos Ursos Vermelhos, um pai e uma mãe e um filhote.

O pequeno Urso rumou infalivelmente em direção a algumas bolas e arcos que estavam ao pé da escada. Os quadlings formaram um círculo e começaram a dançar e cantar. Os mais velhos, com passos artríticos, jun­tavam suas mãos às dos mais jovens e se moviam num formato de pernas afastadas, para dentro e para fora, como se formassem a face de um relógio que revertesse o sentido dos ponteiros. Os troncudos gillikineses dividiam um cigarro e olhavam para a barreira de arame farpado junto aos destroços do muro. Os Ursos Vermelhos estavam mais apáticos. O macho se sentava à beira de um cercado de areia, esfregando seus olhos e penteando o pelame abaixo de seu queixo. A fêmea se movia para a frente e para trás, chutando a bola para manter seu filhote na brincadeira e depois dando uns tapas na cabeça abaixada de seu companheiro.

Fiyero bebericava seu drinque e olhava mais. Se havia ali, vamos dizer, uns doze prisioneiros, e apenas uma cerca de arame entre eles e a liberdade, por que não fugiam? Por que estavam isolados em suas espécies e grupos raciais?

Depois de uns dez minutos, as portas se abriram novamente e um mem­bro da Tropa da Tormenta entrou, garboso e ― sim, Fiyero tinha de admitir, finalmente ― aterrorizante. Aterrorizante em seu uniforme vermelho-tijolo com botas verdes, e a cruz de esmeralda que ocupava o centro da camisa, uma correia vertical da virilha à alta gola engomada, outra correia de axila a axila através dos peitorais. Era apenas um jovem cujo cabelo cacheado era tão louro que chegava a parecer branco ao sol de inverno. Plantou-se de pernas abertas no degrau da varanda da escola.

Embora Fiyero nada pudesse ouvir pela janela fechada, o soldado apa­rentemente deu uma ordem. Os Ursos se enrijeceram e o filhote começou a gemer e a se agarrar na própria bola. Os gillikineses se aproximaram e se mostraram docilmente disponíveis. Os quadlings ignoraram a ordem e continuaram com a sua dança. Eles balançavam seus quadris, e punham os braços à altura dos ombros, mexendo suas mãos numa mensagem semafóri­ca, embora o que ela significasse Fiyero pudesse apenas imaginar. Ele nunca tinha visto um quadling.

O soldado da Tropa da Tormenta ergueu a voz. Ele trazia um porrete numa laçada de couro na cintura. O filhote se escondeu por trás do pai, e podia-se ver a mãe a resmungar.

Unam-se, Fiyero se surpreendeu pensando, mal se julgando capaz de ter um pensamento desses. Unam-se como uma equipe ― vocês são doze e ele é um só. Serão suas diferenças que mantêm vocês submissos? Ou haverá lá dentro parentes que serão torturados se vocês abrirem uma brecha para a liberdade?

Era tudo especulação; Fiyero não podia notar a dinâmica da situação, mas ele estava concentrado. Percebeu que sua mão estava aberta, a palma posta contra o vidro da janela. Lá embaixo, devido aos Ursos não terem-se levantado para ficar em fila, o soldado ergueu seu porrete e baixou-o no crâ­nio do filhote. O corpo de Fiyero estremeceu, ele derrubou seu drinque e a xícara se quebrou, cacos de porcelana se espalhando no escorregadio piso de carvalho com desenhos em formato de espinha de peixe.

O gerente surgiu detrás de uma porta verde de baeta e emitiu um som de desaprovação, e fechou as cortinas, mas não antes que Fiyero visse uma última coisa. Recuando de tal modo que parecia nunca haver caçado e matado animais nas Pastagens Milenares, ele desviou seus olhos e eles se dirigiram para o alto, onde teve um vislumbre de formas claras e esmaecidas de rostos ­duas ou três dúzias de crianças nas janelas mais altas da escola, olhando para baixo com fascinação e boquiabertas diante da cena no pátio de recreio.

“Eles não têm consideração pelos vizinhos que têm um negócio a tocar, contas a pagar e entes queridos a alimentar”, alfinetou o gerente. “Não precisa ver essas palhaçadas enquanto toma seu café, senhor.”

“A destruição em seu jardim de inverno”, disse Fiyero. “Isso foi alguém tentando quebrar seu muro para entrar naquele pátio, e tirá-los vivos dali.”

Fiyero não tomou a xícara de chocolate com cereja que veio em substi­tuição à quebrada. Ouviram-se gritos torturantes da mãe Ursa, e depois se fez um silêncio no mundo exterior além daquelas pesadas cortinas de damasco. Foi um acidente eu ter visto isso, Fiyero pensou, olhando para o gerente com novos olhos. Ou o mundo apenas se revela a você, repetidas vezes, assim que você está pronto para lançar um novo olhar para ele?

 

Ele queria contar a Elfinha o que tinha visto, mas recuou, por moti­vos que não conseguiu definir. De certo modo, para equilibrar as afeições recíprocas, ele sentia que ela precisava uma identidade separada da sua. Se ele se convertesse à sua causa, ela poderia desaparecer. Ele não queria correr esse risco. Mas a visão do urso espancado o perseguia. Ele apertou Elfinha o mais forte que pôde, tentando comunicar uma paixão mais profunda sem dizer nada.

Ele notou, também, que, quando ela estava agitada, era mais liberal ao fazer amor. Começou a ser capaz de notar quando ela ia dizer: “Não até a semana que vem”. Ela parecia mais generosa, mais estimulante, como se es­tivesse talvez praticando um exercício purificador antes de desaparecer por alguns dias. Numa manhã, quando ele se pusera a roubar um pouco do leite do gato para seu café, ela esfregou algum tipo de óleo na pele, estremecendo, sensitiva, e disse por sobre seus ombros de suave mármore verde: “Duas se­manas, meu querido. Meu bichinho, como dizia meu pai. Eu preciso desse intervalo de privacidade agora”.

Ele sentiu uma angústia súbita, uma premonição de que ela iria deixá-lo. Era um meio de ela arranjar duas semanas para reorganizar sua vida. “Não!”, ele disse. “Não vai dar, Fae-Fae. Não está certo, é tempo demais.”

“Precisamos disso.” Ela explicou: "Não eu e você, mas os outros nós. Obviamente eu não posso lhe contar o que vamos fazer, mas os planos da missão de outono estão por se concretizar. Haverá um episódio ― não posso dizer mais ― e devo ficar disponível para a rede o tempo todo.”

“Um golpe?”, ele disse. “Um assassinato? Uma bomba? Um seqüestro? O quê? Diga apenas a natureza da coisa, não as particularidades, o que será?”

“Não é apenas que não possa lhe contar”, ela disse. “É que também não sei. Serei esclarecida só sobre meu pequeno papel, e o desempenharei. Só sei que é uma complicada manobra, com um monte de peças interligadas.”

“Você é o dardo?”, ele disse. “Você é a faca? O estopim?”

Ela disse (embora ele não estivesse convencido): “Meu queridinho, meu boneco, eu sou verde demais para me expor num lugar público e fazer uma coisa errada. É tudo previsível demais. Os guardas de segurança me vigiam como corujas de olho num rato. Minha mera presença provoca alarme e vi­gilância redobrada. Não, não, o papel que eu desempenharei será o de uma criada, prestando um pequeno auxílio nas sombras”.

“Não faça isso”, ele disse.

“Você é egoísta”, ela disse, “e você é um covarde. Eu amo você, doçura, mas suas queixas quanto a esse assunto são equivocadas. Você só quer preser­var minha insignificante vida, você nem tem um sentimento moral sobre se estou agindo certo ou errado. Não que eu queira que você tenha, não que eu me importe com o que você pense. Mas eu apenas observo, suas objeções são da espécie mais débil. Agora, isso não é mais coisa para ser discutida. Duas semanas a partir de hoje, você pode voltar.”

“Essa ― ação ― será completada por eles? Quem decide?”

“Eu não sei o que é ainda, e também nem sei quem decide, portanto, não me pergunte.”

“Fae...” De repente, ele não gostava mais de seu nome de código. “Elpha­ba, você não sabe mesmo quem está puxando as cordas que fazem você se mo­ver? Como é que você sabe que não está sendo manipulada pelo Mágico?”

“Você se porta como um novato nisso, levando em conta o seu status de um príncipe tribal!”, ela disse. “Como eu não notaria se estivesse sendo um peão no xadrez do Mágico? Eu pude perceber quando estava sendo mani­pulada por aquela megera, Madame Morrible. Eu aprendi um pouco sobre prevaricação e sinceridade em Crage Hall. Me dê um crédito por ter passado alguns anos nisso, Fiyero.”

“Você não pode me dizer com certeza quem é ou quem não é o chefe.”

“Papai não sabia o nome de seu Deus Inominável”, ela disse, erguendo-­se e esfregando óleo em seu estômago e entre as pernas, mas modestamente, virando as costas para ele, “A questão nunca é o quem, não é? E sempre o porquê.”

“Como você é informada? Como eles dizem a você o que deve fazer?”

“Olha, você sabe que eu não posso dizer.”

“Eu sei que pode.”

Ela se virou: “Esfregue óleo em meus seios, sim?”

“Eu não sou esse machão estúpido, Elphaba.”

“Você é sim” ― ela riu, mas com afeto ―, “venha.”

Era um amanhecer, o vento rugia e chegava a fazer tremer as tábuas do assoalho. O frio céu acima do vidro era de um azul-rosado de espécie rara. Ela livrou-se de sua timidez como de uma camisola, e no líquido clãrão da luz do sol nas velhas tábuas, ela ergueu as suas mãos ― como se, no terror do conflito iminente, ela tivesse por fim entendido que era bela. A seu modo.

O desmoronar de sua reserva o assustava mais que qualquer outra coisa.

Ele pegou um pouco de óleo de coco e aqueceu-o em suas palmas, e deslizou suas mãos como animais de couro aveludado sobre seus pequenos, receptivos seios. Os mamilos se ergueram, o rubor se espalhou. Ele já estava todo vestido, mas afoitamente se precipitou sobre a forma suavemente resis­tente de Elphaba. Uma de suas mãos deslizou por suas costas; ela se arqueou contra ele, gemendo. Mas talvez, dessa vez, não por carência?

Mesmo assim, ele enfiou a mão em suas nádegas, apalpou seu rosto, e foi além, apalpando o ponto onde um músculo se ressaltava em curva, pre­ciosamente, sentiu o suavíssimo esboço do pêlo a produzir suas sombras en­trecruzadas, a girar em direção ao vórtice. Ele conduziu a sua mão inteligente, lendo os sinais de sua resistência.

“Eu tenho quatro companheiros”, ela disse subitamente, livrando-se o bastante para não se desligar dele, mas para desencorajá-lo um pouco. “Oh, coração, eu tenho quatro camaradas; eles não sabem quem é o líder de nossa célula, tudo é feito no escuro, com uma máscara para encobrir a voz e distor­cer os rostos. Se eu soubesse mais, a Tropa da Tormenta poderia me pegar e arrancar essas informações sob tortura, não compreende?”

“Qual é o objetivo de vocês?”, ele tomou fôlego, beijando-a, afrouxando as calças novamente, como se fosse pela primeira vez, a língua trilhando o funil de seu ouvido.

“Matar o Mágico”, ela respondeu, enlaçando-o pelas pernas. “Eu não sou a ponta da flecha, eu não sou o dardo, eu sou apenas a haste da lança, a aljava...” Ela derramou mais óleo em sua mão e enquanto eles deslizavam e caíam na luz, untou-o de óleo, tornando-o mais ágil e ansioso, levando-o para mais fundo dela do que nunca.

“Mesmo depois de todo este tempo comigo, você poderia ser um agente secreto do Palácio”, ela disse depois.

“Não sou”, ele disse. “Eu sou bom.”

 

Caiu um pouco de neve numa semana, e um pouquinho mais na outra. A festa de Lurlinemas se aproximava. As capelas unionistas, tendo apropria­do e transformado a parte mais visível das velhas crenças pagas, erguiam-se despudoradamente em verde e ouro, adornadas por velas verdes e gongos de ouro e grinaldas de frutas verdes e douradas. Ao longo da Rua dos Co­merciantes, lojas procuravam superar umas às outras (e até as igrejas) com a decoração, exibindo roupas da moda e inúteis e caras quinquilharias. Nas vitrines, figuras de papel machê evocavam a Boa Fada Lurline em sua car­ruagem alada, e a sua ajudante, a fadinha Preenella, que distribuía delícias embrulhadas para presente de sua espaçosa cesta mágica.

Ele se perguntava, repetidamente, se estava ou não apaixonado por El­phaba.

E ainda se indagava por que demorara tanto a fazer-se essa pergunta, depois de dois meses de uma ligação apaixonada; e se sabia o que as palavras realmente queriam dizer; e se isso realmente tinha alguma importância.

Escolheu mais presentes para os filhos e para a amuada Sarima, aquela bem-alimentada mal-agradecida, aquele monstro. Ele sentia um pouco a falta dela; seus sentimentos por Elphaba pareciam não competir com os que trazia por Sarima, mas complementá-los. Elphaba mostrava a orgulhosa indepen­dência das mulheres da montanha de Arjiki que Sarima, casada ainda tão menina, nunca desenvolvera. E Elfinha não era apenas um diferente (para não dizer original) tipo provincial ― ela parecia um avanço no gênero, ela parecia, por vezes, pertencer a uma espécie diferente. Ele se surpreendeu com uma ereção descomunal ao recordar aquele último encontro, e teve de se esconder atrás de alguns lenços femininos de uma loja até que aquilo baixasse.

Comprou três, quatro, seis dos lenços para Sarima, que nunca os usava. E comprou seis para Elphaba, que era usuária.

A garota da loja, uma obtusa anã munchkinesa que teve de subir numa cadeira para alcançar a caixa registradora, disse por sobre seu ombro: “Só um momentinho, senhora”. Ele se virou para dar espaço no balcão a outro freguês.

“Mas, Mestre Fiyero!”, exclamou Glinda.

“Senhorita Glinda”, ele disse, estupefato. “Que surpresa.”

“Uma dúzia de lenços”, ela disse. “Olhe, Crope, veja só quem está aqui!”

E ali estava Crope, um pouco papudo, embora não tivesse ainda vinte e cinco anos ― ou não? ― a olhar com uma expressão envergonhada de perto de um mostruário de objetos de pena e pluma.

“Vamos tomar um chá”, disse Glinda, “vamos. Venha agora. Pague esta bela senhorinha e já vamos sair.” Em suas volumosas saias, ela farfalhava como um grupo de bailarinas.

Não se lembrava de tê-la conhecido assim tão frívola; talvez fosse o efeito da vida de casada. Ele olhou de esguelha para Crope, que estava revi­rando os olhos atrás dela.

“Vá pondo isto na conta de Sir Chuffrey, e mais isto, e isto”, Glinda dizia, amontoando coisas no balcão, “e mande para nossos aposentos no Clube de Florinthwaithe. Vou precisar para o jantar, de modo que arranje alguém para levar logo, se puder. Que gracinha. Tão gentil. Blablablá. Rapazes, sigam-me.”

Ela agarrou Fiyero com mão decidida e conduziu-o para fora; Crope a seguiu feito um cãozinho de estimação. O Clube Florinthwaithe era a apenas uma rua ou duas longe dali e eles poderiam ter facilmente carregado os pacotes. Glinda saltitava e subia ruidosamente a grande escadaria para a Sala de Carvalho, fazendo barulho o bastante para que todas as mulheres no local a recompensassem com um olhar de reprovação.

“Agora, você aí, Crope, faça o papel de Mãe e nos sirva quando formos atendidos, e caro Fiyero, você fique aqui, bem perto de mim, isto é, não for casado demais.”

Eles pediram chá; Glinda, aos poucos, foi se acostumando à presença dele e começou a se acalmar.

“Mas, realmente, quem pensaria uma coisa dessas?”, ela disse, apanhan­do um biscoito e pondo-o de volta na mesa, por umas oito vezes. “Nós éramos os grandes e os bons em Shiz, realmente. Olhe só para você, Fiyero ― você é um príncipe, não é mesmo? Devemos lhe chamar Sua Alteza? Eu acho que nunca conseguiria. E você ainda está casado com aquela menininha?”

“Ela agora está crescida, e nós temos uma família”, Fiyero lhe explicou cautelosamente. “Três filhos.”

“E ela por certo está aqui. Preciso conhecê-la.”

“Não, ela está em nossa casa de inverno nos Grandes Kells.”

“Então, acho que você está tendo algum caso”, disse Glinda, “porque parece tão feliz. Com quem? Alguém que eu conheça?”

“Fico feliz por vê-la”, ele disse; e de fato se sentia assim. Ela parecia maravilhosa. Ela se completara. Aquela beleza fantasmagórica aumentara, mas não ficara vulgar. Era agora mais mulher que garota carente, e mais esposa que mulher. Seu cabelo era cortado curto, num estilo masculinizado, muito apropriado, e havia algo como uma tiara em seus cachos. “E, agora, você é uma feiticeira.”

“Oh, mais ou menos”, ela disse. “Posso ao menos conseguir que aquela garçonete traga logo as tortas e a geléia? Não posso. Sim, posso assinar uma centena de cartões de saudação para as ocasiões de festa de uma vez só. Mas é um talento muito menor, garanto-lhe. A feitiçaria é altamente superestimada na opinião pública. Não fosse assim, por que o Mágico não mandaria seus adversários magicamente para o inferno? Não, estou satisfeita com tentar ser uma boa companheira para meu Chuffrey. Ele está no câmbio hoje, resolvendo suas coisinhas financeiras. Oh, você ficou sabendo quem está na cidade hoje? Essa é boa demais, conte a ele, Crope.”

Crope, surpreso por ter sido contemplado com uma brecha, engasgou com a boca cheia de chá. Glinda se antecipou. “Nessarose! Pode acreditar? Ela está na casa de sua família lá na rua do Baixo Mennipin ― um endereço que teve grande relevo na década passada, devo acrescentar. Nós a vimos onde, Crope, onde? Foi no Empório do Café...”

“Foi no Jardim de Gelo...”

“Não, eu me lembro, foi no Cabaré da Cidade de Lantejoulas! Fiyero, você sabe, fomos lá ver aquela velha Sillipede, você se lembra? Não, não se lembra não, posso ver na sua cara. Ela era a cantora que estava se apresentan­do no Festival de Canção e Sentimento de Oz no dia em que o Glorioso Má­gico desceu dos céus num balão e orquestrou aquele golpe! Ela está fazendo ainda uma de suas inumeráveis excursões de volta ao mundo artístico. Ela é um pouco brega, atualmente, mas, nossa, era divertidíssima. E lá, numa mesa melhor do que a que tínhamos conseguido, vou lhe contar, estava a Nessie! Ela estava com seu avô, ou será o bisavô? O Eminente Thropp? Ele deve ser arquicentenário, a esta altura. Eu fiquei chocada por vê-la até que percebi que ela foi apenas para lhe servir de acompanhante. Ela não queria saber de mú­sica ― ele ficou de cara fechada e rezando durante o entreato todo. E a Babá estava lá também. Quem teria imaginado isso, Fiyero ― você é um príncipe, e Nessarose está a pouco de se tornar a próxima Eminente Thropp, e Avaric, é claro, o Margrave de Dez Campos, e a humildezinha de mim casada com o Sir Chuffrey, detentor do mais inútil título e da maior pasta ministerial nas Colinas de Pertha?” Glinda quase parou para respirar, mas voltou a investir amavelmente: “E Crope, é claro, querido Crope. Crope, conte a Fiyero tudo sobre você, ele está louco por saber, estou notando”.

Realmente, Fiyero estava interessado, ao menos para ter um descanso daquela falação em stacatto.

“Ele é tímido”, Glinda prosseguiu, “tímido, tímido, tímido, sempre foi.” Fiyero e Crope trocaram olhares e tentaram impedir que suas bocas se con­traíssem. “Ele é dono de um pequeno palácio avant-garde, um apartamen­to improvisado no andar superior da sala de cirurgia de um médico, pode imaginar? Vistas assombrosas, as mais belas vistas da Cidade Esmeralda, e nesta época do ano ele dá suas pinceladinhas na pintura, não é, querido? Faz pintura, faz o desenho do cenário de alguma pequena opereta musical aqui e ali. Quando éramos jovens, pensávamos que o mundo girava em torno de Shiz. Você sabe que há teatro de fato por aqui agora? O Mágico tornou isto uma cidade muito mais cosmopolita, não acha?”

“É bom te ver, Fiyero”, disse Crope, “diga alguma coisa você mesmo, rápido, antes que seja tarde demais.”

“Seu mal-educado, você zomba cruelmente de mim”, entoou Glinda. “Eu vou contar pra ele seu pequeno caso ― bem, deixa pra lá. Não sou tão malvada.”

“Não há nada a dizer”, disse Fiyero, sentindo-se ainda mais taciturno e nativo de Vinkus do que se sentia quando chegara pela primeira vez em Shiz. “Eu gosto de minha vida, eu chefio meu clã quando precisam de mim, o que não é tão freqüente. Meus filhos são saudáveis. Minha esposa é ― bem, eu não sei...”

“Fértil”, acrescentou Glinda.

“Sim”. Ele riu. “Ela é fértil e eu a amo, e não posso ficar muito com vocês, já que devo me encontrar com alguém para uma conferência de negócios do outro lado da cidade.”

“Devemos nos ver”, disse Glinda, parecendo de repente queixosa, apa­rentando solidão. “Oh, Fiyero, não somos velhos ainda, mas somos velhos o bastante para sermos já velhos amigos, não somos? Olhe, sei que estou muito nervosa, como uma debutante que esqueceu de passar seu perfume favorito. Sinto muito. É que aquela foi uma época tão boa, mesmo com toda a sua estranheza e tristeza ― e a vida não é a mesma atualmente. É maravilhosa, mas não é a mesma.”

“Eu sei”, ele disse, “mas não sei se vou poder vê-la de novo. Há tão pouco tempo, e eu tenho de voltar para Kiamo Ko. Estou longe de lá desde o último verão.”

“Olhe, nós todos estamos aqui, eu e Chuffrey, Crope, Nessarose, você ― Avaric está por aí, a gente poderia fazê-lo juntar-se a nós! Poderíamos nos reunir, fazer um jantar tranqüilo em nossas casas. Prometo não ser tão tagarela. Por favor, Fiyero, por favor, Sua Alteza. Seria uma tamanha honra para mim.” Ela virou sua cabeça para cima e encostou um dedo no queixo, elegantemente, e ele notou que ela travava uma luta com a linguagem de sua classe para expressar algo real.

“Se eu achar que posso, eu lhe informarei, mas, por favor, você não deve ficar contando com isso”, ele disse. “Haverá outras ocasiões. Eu não costumo ficar na cidade por tanto tempo ― é uma ocasião excepcional. Meus filhos estão esperando ― você tem filhos, Glinda?”

“Chuffrey é tão estéril como duas nozes cozidas”, disse Glinda, fazendo Crope engasgar com o chá outra vez. “Antes que você vá ― noto que você está se aprontando para cair fora ― querido, querido Fiyero ― o que é que você sabe de Elphaba?”

Mas ele estava preparado para essa pergunta, e controlara o rosto para que ficasse neutro, e disse apenas: “Eis um nome que não ouço todo dia. Ela chegou a reaparecer? Com certeza Nessarose sabe alguma coisa”.

“Nessarose diz que se sua irmã realmente aparecer, ela cuspirá em seu rosto”, Glinda observou, “assim, devemos todos rezar para que Nessarose nun­ca perca a sua fé, porque isso significaria a evaporação de toda aquela tole­rância e delicadeza. Eu acho que ela mataria Elphaba. Nessa foi abandonada, rejeitada, forçada a cuidar de seu pai demente, da herança do avô, daquele irmão, daquela Babá, daquela casa, da turma toda ― e você nem pode dizer que com uma só mão, porque ela não tem mão nenhuma!”

“Eu acho que vi Elphaba uma vez”, disse Crope.

“Oh?”, disse Fiyero e Glinda juntos, e Glinda continuou: “Essa você nunca me contou, Crope”.

“Eu não tinha certeza”, ele disse. “Eu estava no trole que corre ao lado da piscina espelhada do Palácio. Estava chovendo ― foi há alguns anos ― e vi uma figura lutando com um grande guarda-chuva. Achei que ela estava para ser levada pelo vento. Uma rajada virou o guarda-chuva às avessas e o rosto, um rosto esverdeado que foi a razão de eu ter notado a pessoa, abaixou-se para evitar o espirro da água de chuva ― vocês devem se lembrar como Elphaba odiava ficar molhada.”

“Ela era alérgica à água”, Glinda opinou. “Eu nunca soube como ela se mantinha tão limpa, e eu era sua colega de quarto.”

“Óleo, acho”, disse Fiyero. Ambos olharam para ele. “Isto é, lá no Vinkus”, ele gaguejou, “os mais velhos esfregam óleo em vez de água na pele ― e eu sempre supus que era isso o que Elphaba fazia. Eu não sei. Glinda, se for para eu me encontrar com você novamente, o que seria um dia apropriado?”

Ela enfiou a mão na bolsa à procura de um diário. Crope aproveitou a oportunidade para se inclinar e dizer a Fiyero: “É bom de verdade ver você, como sabe”.

“Bom ver você também”, disse Fiyero, surpreso com aquela sinceridade. “Se um dia você for aos Grandes Kells, apareça para ficar em Kiamo Ko com a gente. E só mandar um aviso, já que ficamos lá apenas por meio ano.”

“Isso é bem seu gênero, Crope, os animais selvagens do incivilizado Vinkus”, disse Glinda. “Fico só pensando nas possibilidades de fazer moda, todas aquelas tiras e franjas de couro e tal, podiam interessá-lo, mas não consigo vê-lo como o Mister Rapaz da Montanha.”

“Não, provavelmente não”, concordou Crope. “A menos que ofereça fa­bulosos cafés a cada quatro ou cinco quarteirões, não acho que uma paisagem seja desenvolvida o bastante para habitação humana.”

Fiyero trocou um aperto de mãos com Crope e então, lembrando-se dos boatos sobre a deterioração do pobre Tibbett, beijou-o; ele passou os braços em torno de Glinda e beijou-a firmemente. Ela enlaçou seu braço no dele e conduziu-o para a porta.

“Deixa eu me livrar de Crope e ter você de volta, só para mim mesma”, ela disse numa voz baixa, seu murmúrio se transformando em algo mais sério. “Não posso lhe contar tudo, caro Fiyero. O passado parece ao mesmo tempo mais misterioso e mais compreensível com você diante de mim. Sinto que há coisas que eu ainda poderia saber. Eu não quero lamentar, querido, isso nunca! Mas já estamos nos despedindo.” Ela segurou a mão dele entre as suas. “Algo está acontecendo em sua vida. Não sou tão boba quanto pareço. Algo bom e ruim ao mesmo tempo. Talvez eu possa ajudar.”

“Você sempre foi muito amável”, ele disse, e fez um sinal para o porteiro chamar uma carruagem. “Como lamento não conhecer Sir Chuffrey.”

Ele saiu pela porta, atravessou a calçada de mármore da entrada, e vi­rou-se para saudá-la com o chapéu. Parada em frente às portas (os porteiros mantinham-nas abertas para que ele tivesse uma boa visão), ela era uma mulher calma, resignada, nem transparente nem insignificante ― era até mes­mo, podia-se dizer, uma mulher cheia de graça. “Se você a vir”, disse Glinda debilmente, “diga que ainda sinto falta dela.”

 

Ele não voltou a ver Glinda. Ele não voltou a aparecer no Clube Florin­thwaithe. Ele não deu nenhuma passadinha pela casa de família do Thropp na rua do Baixo Mennipin (embora se sentisse dolorosamente tentado). Ele não parou nenhum vendedor de ingressos para tentar conseguir entrada para a triunfante quarta excursão anual de retorno da cantora Sillipede. Ele o que fez foi acabar entrando na Capela de Santa Glinda na Praça de Santa Glinda, da qual podia ouvir de vez em quando as monjas enclausuradas cantando e sussurrando como um enxame de abelhas.

Quando as duas semanas finalmente passaram, e a cidade estava en­feitada para as tolas festividades de Lurline, ele foi ver Elphaba, meio na expectativa de que ela houvesse desaparecido.

Mas ela estava lá, firme e amorosa e no meio do preparo de uma torta de legumes para ele. Seu precioso Malky punha os pés na farinha e deixa­va marcas das patinhas pelo aposento inteiro. Eles conversaram, um pouco constrangidos, até que Malky virou a tigela de vegetais, e isso fez com que ambos rissem.

Ele não lhe falou de Glinda. Como poderia? Elphaba trabalhara tão duro para mantê-los todos ignorantes do que ela fazia, e agora estava enga­jada na maior missão de sua vida, a coisa em que vinha trabalhando havia cinco anos. Ele não aprovava a anarquia (bem, ele sabia que duvidava pre­guiçosamente de tudo; a dúvida tinha mais eficiência, do ponto de vista da energia, que a convicção). Mas, mesmo depois de ter visto o filhote de Urso ser espancado, ele tinha de manter uma relação imparcial e cautelosa com o Poder que estava no trono ― em consideração à sua tribo.

Fiyero não queria também tornar a vida de Elfinha mais dura do que já era. E sua necessidade de ficar confortavelmente ao lado dela superava sua necessidade de revelar. Então, não lhe disse tampouco que Nessarose e a Babá estavam, ou haviam estado, na cidade. (Por tudo que sabia, racionalizou silenciosamente, podiam já ter ido embora.)

“Eu fico pensando”, ela disse naquela noite, enquanto as estrelas vigia­vam através do estranho desenho de gelo na clarabóia, “Fico pensando se você não deveria sair da cidade antes da Véspera de Lurlinemas.”

“O conflito então vai explodir?”

“Eu não lhe disse, não conheço o plano completo; não posso conhecer; não devo conhecer. Mas, talvez algum tumulto vá acontecer. Talvez fosse melhor você ir embora.”

“Não vou e você não pode me obrigar.”

“Tenho feito cursos de feitiçaria por correspondência em paralelo, eu vou virar fumaça e transformar você em pedra.”

“Quer dizer que vai me deixar duro? Eu já estou duro.”

“Pare. Pare.”

“Oh, sua malévola, você me enfeitiçou, olhe, ele tem vontade própria...”

“Fiyero, pare. Pare. Agora, olhe, eu estou falando sério. Quero saber onde você estará na véspera de Lurlinemas. Só para ter certeza de que não será ferido. Me diga.”

“Quer dizer que não ficaremos juntos?”

“Será noite de trabalho para mim", ela disse soturnamente. “Verei você no dia seguinte.”

“Esperarei você aqui.”

“Não, não esperará. Acho que disfarçamos nossos rastros muito bem, mas, mesmo nessa data, haverá uma possibilidade de aparecer alguém para me pegar. Não ― você fica lá em seu clube e toma um banho. Tome um belo banho longo e frio. Entendeu? Nem pense em sair. Dizem que estará nevando na época, pelo jeito.”

“É Véspera de Lurlinemas! Eu não vou passar o feriado numa banheira completamente sozinho.”

“Bem, contrate alguma companhia, veja só se vou me importar com isso.”

“Como se você não se importasse.”

“Só fique longe de toda atividade social, quero dizer teatro ou multi­dões, ou mesmo restaurantes, por favor, me promete isso?”

“Se você fosse mais precisa, eu poderia ser mais cuidadoso.”

“Você seria mais cuidadoso se deixasse a cidade por completo.”

“Você seria mais cuidadosa se me dissesse...”

“Desista disso, vamos parar. Eu não acho que queira nem saber onde você estará, nem vir a pensar numa coisa dessas. Só quero que você esteja em segurança. Você ficará a salvo? Você ficará recluso, longe das embriagadoras comemorações pagãs?”

“Posso ir à capela e rezar por você?”

“Não.” Ela o olhou de maneira tão feroz que ele não teve coragem de provocá-la novamente.

“Por que é que eu devo me manter tão a salvo?”, ele perguntou a ela, mas estava quase praticando um monólogo. O que há em minha vida que seja digno de ser preservado? Com uma boa mulher lá nas montanhas, tão serviçal quanto uma velha colher, de coração seco por ter sido aterrorizada com a obrigação de um casamento desde que tinha seis anos de idade? Com três filhos tão inibidos com seu pai, o Príncipe dos Arjikis, que nem mesmo se aproximam dele? Com um clã aflito movendo-se daqui para lá, enfrentando sempre as mesmas disputas, conduzindo os mesmos rebanhos, rezando as mesmas orações, repetindo o que vem fazendo há quinhentos anos? E eu, com uma mente superficial e dispersiva, sem engenho para falar ou criar hábitos, sem nenhum apreço especial pelo mundo? O que poderá tornar minha vida digna de ser preservada?

“Eu amo você”, disse Elphaba.

“Então, é isso que vale, é isso aí”, ele lhe respondeu, e achou a resposta para si mesmo. “E eu também amo você. Portanto, prometo ser cuidadoso.”

Cuidadoso com nós dois, ele pensou

 

Então, ele passou a persegui-la novamente. O amor faz com que nos tornemos todos uns caçadores. Ela se encobria com longas saias negras, como as usadas por mulheres religiosas, e escondia o cabelo no interior de um cha­péu de aba larga com uma copa em forma de cone. Levava um lenço negro, roxo e dourado, amarrado em seu pescoço, embora precisasse mais que um lenço para disfarçar aquela proa adorável que era o seu nariz. Usava elegantes, apertadas luvas, um tipo de acessório mais bonito do que aqueles que habi­tualmente comprava, embora temesse que lhe fosse dar um controle menos ágil de suas mãos. Seus pés estavam enfiados em grandes botas de biqueiras de aço, do tipo usado pelos mineiros do Glikkus.

Se você não soubesse que ela era verde, seria difícil notar ― nessa inter­minável tarde escura, debaixo dessas dolorosas rajadas de neve.

Ela não olhava para trás; talvez não se importasse com estar sendo perseguida. Seu percurso a levava a circundar algumas das maiores praças da cidade. Ela se ocultava por um momento na Capela de Santa Glinda perto do monastério, aquela em que ele a vira pela primeira vez. Talvez estivesse recebendo instruções de última hora, mas ela não proporcionava a ele (nem a ninguém) a oportunidade de surpreendê-la em algum deslize. Voltava para a rua em um ou dois minutinhos.

Ou talvez ― que fosse fulminado por este pensamento ― ela estaria na verdade rezando para obter orientação e força?

Ela cruzava a Ponte do Tribunal, vagava ao longo do Aterro do Rio Ozma e cortava em diagonal através dos jardins de rosa abandonados da Alameda Real. A neve a importunava; a silhueta de suas finas pernas longas e escuras enfiadas naquelas botas enormes e cômicas se delineava contra o fundo de brancura do Parque dos Cervos de Oz (agora, naturalmente, desprovido de Cervos e mesmo de cervos). Ela marchava, cabeça abaixada, passando pelos cenotáfios e obeliscos e placas de memoriais erguidos em honra aos Magníficos Mortos, aventurando-se aqui e ali. As décadas ― Fiyero pensou, tão apaixonado ou tão temeroso por ela que ele podia tomar a coisa por amor ―, as décadas ali registradas não percebiam a sua passagem. Elas se miravam umas às outras do alto de seus engastes fixos e não notavam a revolução andando a passos largos entre elas, a caminho de seu destino.

Mas o Mágico não devia ser o seu objetivo. Ela devia ter revelado a verdade ao dizer que ela era inexperiente demais, e muito óbvia, para ser escolhida como assassina do Mágico. Ela devia estar envolvida em alguma tática diversionista, ou com a busca de algum possível sucessor ou aliado de alto nível. Pois à noite o Mágico estaria inaugurando a antimonárquica, revisionista Exposição de Luta e Virtude na Academia de Arte e Mecânica próxima ao Palácio. No entanto, no extremo da estrada para Shiz, Elphaba se pôs a caminhar lateralmente, longe do distrito do Palácio, cortando através do pequeno, elegante distrito de Refúgio de Ouro. As residências dos corruptos ricos eram vigiadas por mercenários, e ela passou imperceptivelmente por suas calçadas e pelos trabalhadores de estábulo que estavam do lado de fora varrendo a neve com suas vassouras. Ela não olhava para cima ou para baixo ou para trás sobre o ombro. Fiyero achou que, naquela perseguição, ele era a figura mais ostensiva, andando a passos largos na neve, com sua capa de ópera, a uns cem passos atrás dela.

No limite do Refúgio de Ouro havia um primoroso teatro de pedras azuis, o Mística da Mulher. Na praça frívola, porém elegante, que ficava diante dele, luzes claras de douradas e verdes lantejoulas apareciam em profusão, penduradas de poste a poste. Algum oratório de feriado estava programado ― ele conseguia ler apenas ESGOTADO na tábua que ficava defronte ― e as portas ainda não tinham sido abertas. A multidão estava se aglomerando, alguns ambulantes vendiam chocolate quente em altos copos de cerâmica, e uma horda de adolescentes arrogantes se divertia e importunava algumas pes­soas idosas cantando uma paródia de um velho hino unionista da temporada. A neve caía sobre todos, nas luzes, no teatro, nas multidões; aterrissava no chocolate quente, engrossava o mingau, punha gelo nos tijolos.

Corajosamente, tolamente ― sem decisão ou escolha, ao que parecia ― Fiyero subiu os degraus de uma biblioteca particular próxima, para ficar de olho em Elphaba, que sumira entre a multidão. Haveria um assassinato no teatro? Haveria um incêndio premeditado, com os sibaritas inocentes sendo assados como castanhas? Haveria um simples alvo, uma vítima designada, ou rolaria sangueira e catástrofe, quanto mais e pior, melhor?

Ele não sabia se estava ali para evitar o que ela estava para fazer, ou para salvar quem quer que fosse da calamidade, ou para ajudar alguém que fosse ferido acidentalmente, ou mesmo só para testemunhar os acontecimentos, para, assim, ficar sabendo mais sobre ela. E amá-la ou não amá-la, mas, afinal, saber qual das duas coisas escolher.

Ela estava circulando pela multidão, como se tentasse localizar alguém. Ele acreditava, incrivelmente, que ela não sabia que ele estava atrás dela ― se­ria ela tão determinada em achar a vítima certa, e ele tão incapaz? Ela não sentiria a presença de seu amado na mesma praça a céu aberto a caminhar com ela enquanto o vento soprava as cortinas de neve?

Uma falange de soldados da Tropa da Tormenta surgiu de uma aléia entre o teatro e uma escola vizinha. Eles tomaram seus lugares diante das barreiras de porta de vidro. Elphaba escalou os degraus de um antigo mercado de lã, uma espécie de quiosque de pedra. Fiyero viu que ela trazia algo sob o manto. Explosivos? Algum apetrecho mágico?

Ela teria companheiros espalhados ali pela praça? Estariam se comuni­cando uns com os outros? A multidão continuava a engrossar, à medida que a hora do oratório se aproximava. Dentro das portas de vidro, a gerência da casa se ocupava aprumando estacas e estendendo cordas de veludo para promover uma entrada de gala no vestíbulo. Ninguém espremia e dava empurrões em espaços públicos como os muito ricos, Fiyero bem sabia.

Uma carruagem veio do canto de um prédio no lado oposto da pra­ça. Não podia ir diretamente às portas do teatro, já que as multidões eram muito densas, mas procedia como se isso fosse possível. Sentindo a presença de alguma autoridade, a multidão recuou e parou um pouco. Poderia ser o evasivo Mágico, ou alguma visita não anunciada? Um cocheiro, portando um capuz de pele, abriu rapidamente a porta, e estendeu sua mão para ajudar o passageiro a apear.

Fiyero prendeu o fôlego; Elphaba virou madeira petrificada. Era esse o alvo.

Pondo os pés na rua coberta de neve, numa vaga provocadora de marés de seda negra e lantejoulas prateadas, surgiu uma mulher enorme; ela era im­periosa e augusta, era Madame Morrible, ninguém mais; Fiyero a reconheceu, embora a tivesse visto uma única vez.

Ele viu que Elphaba sabia que era essa a pessoa que ela tinha de matar; ela sabia disso; num instante, tudo ficou absolutamente claro. Se ela fosse pega e capturada e submetida a interrogatórios, sua motivação não poderia ser mais maravilhosa ― ela era apenas uma estudante enlouquecida do Crage Hall dirigido por Madame Morrible, ela carregava rancor, ela nunca esque­cera. Era perfeito demais.

Mas estaria Madame Morrible envolvida em intriga com o Mágico? Ou era apenas uma manobra diversionista, para desviar a atenção das autoridades de algum alvo mais urgente?

A capa de Elphaba se mexeu; sua mão se enfiou nela, como se estivesse preparando alguma coisa. Madame Morrible estava resmungando uma sau­dação para a multidão, a qual, embora não necessariamente sabendo quem era ela, apreciava o espetáculo, se não a grandeza, de sua chegada.

A Diretora do Crage Hall deu quatro passos em direção ao teatro, agar­rada ao braço de um lacaio automático, e Elphaba se moveu um pouco mais para a frente em seu posto no mercado de lã. Seu queixo agora se projetava agudamente para fora do lenço, seu nariz também se salientando; era como se ela fosse capaz de cortar Madame Morrible em pedacinhos, usando apenas as lâminas serrilhadas de suas feições naturais. Suas mãos continuaram a procurar coisas debaixo da capa.

Mas, então, foram abertas as portas frontais do edifício pelo qual Ma­dame Morrible estava passando ― não do teatro, mas da escola adjacente, o Seminário Feminino de Madame Testane. Delas saiu um pequeno e tumul­tuado ajuntamento de estudantes de classe alta. O que elas estavam fazendo na escola na véspera de Lurlinemas? Fiyero percebeu que Elphaba estava violentamente surpresa. As garotas eram seis ou sete, pequenas massas in­formes e cremosas de feminilidade incipiente, revestidas com luvas de pele, enfiadas em lenços de pele e equilibradas em botas com bordas de pele. Elas estavam rindo e cantando, rouca e firmemente como as mulheres adultas que ainda se tornariam, e no meio delas havia uma figura de pantomima, alguém que interpretava a fada Preenella. Era um homem, seguindo a convenção, um homem maquilado de maneira boba feito um palhaço, usando um busto postiço de gozação, e uma peruca e saias extravagantes, e um chapéu de pa­lha, carregando uma enorme cesta que transbordava de quinquilharias. “Oh, sociedade...”, ele flautou para Madame Morrible, “a boa Fada Preenella pode ter um presente para o Felizardo Pedestre.”

Por um momento, Fiyero pensou que o homem em farrapos ia tirar uma faca de algum lugar e matar Madame Morrible bem em frente às crianças. Mas, não, a espionagem era organizada, mas nem tanto ― era um acidente ver­dadeiro, um imprevisto. Eles não haviam imaginado que ali haveria um evento escolar naquela noite, nem que surgiria um grupo estridente de estudantes rebocando ansiosamente um ator vestido com saias e falando em falsete.

Fiyero virou-se para observar Elphaba. O rosto dela travava intensa luta com a incredulidade. As crianças estavam bem no caminho do que quer que ela estivesse por fazer. Elas eram um pequeno grupo indisciplinado, brin­cando em torno de Preenella, pulando sobre ele/ela, apoderando-se dos pre­sentes. Eram o contexto acidental ― ruidosas, inocentes filhas de magnatas, déspotas e generais carniceiros.

Ele via Elphaba penando, ele via suas mãos lutando uma com a outra, para fazer qualquer coisa, ou para se abster de fazê-la ― fosse o que essa coisa fosse.

Madame Morrible seguiu avante, como uma enorme embarcação num desfile de Dia da Recordação, e as portas do teatro se abriram para ela. Ela passou grandiosamente para um lado mais seguro. Lá fora, as crianças dan­çavam e cantavam na neve, a multidão ondulava numa ou noutra direção.

O público formou fila para entrar no teatro. As crianças berravam sua canção nas ruas, inundadas de alegria e ânsia. A carruagem que trouxera Ma­dame Morrible estava pronta para estacionar em frente ao teatro e começar a sua longa espera pelo retorno da Diretora. Fiyero estava imóvel, incerto, não sabendo se havia um plano alternativo, se Elphaba guardava alguma coisa na manga, se o teatro ia explodir.

Então, ele começou a ficar apreensivo com a possibilidade de, nos pou­cos minutos em que a perdera de vista, ela haver sido cercada pela Tropa da Tormenta. Poderiam ter sumido com ela tão rapidamente? O que ele faria se ela se tornasse um dos desaparecidos?

Num passo rápido, ele se encaminhou às ruas. Misericordiosamente, achou um veículo de aluguel à espera, e fez com que este o levasse diretamente para a rua de armazéns adjacente à guarnição militar do nono distrito da cidade.

 

Num estado de profunda agitação, ele chegou ao pequeno ninho de ave de rapina no alto do armazém de cereais onde Elphaba se ocultava. Ao subir as escadas, seus intestinos subitamente viraram água, e foi só com muito esforço que ele conseguiu chegar ao reservado do vaso. Suas vísceras se esva­ziaram ruidosa e liquidamente, enquanto ele segurava o rosto repleto de suor. O gato estava empoleirado sobre o armário, de olhos arregalados para ele. Esvaziado, purificado, e ao menos razoavelmente refeito, ele tentou agradá-lo com uma tigela de leite. O gato não a quis.

Encontrou algumas bolachas secas, comeu-as penosamente, e então pu­xou a corrente para abrir a clarabóia, para arejar o aposento. Uns fragmen­tos de neve caíram e se depositaram ali, sem se derreter, era aquele frio do maldito lugar. Ele se moveu para acender um fogo, abrindo a porta de ferro do fogão.

O fogo se ergueu, e flamejou, e as sombras se destacaram como se fos­sem movidas por vontade própria, mas eram rápidas, atravessavam o apo­sento diante dele sem que ele pudesse discernir o que eram. Exceto que havia três, ou quatro, ou cinco, e que estavam usando roupas escuras, e tinham os rostos escurecidos como carvão, e suas cabeças estavam envoltas em lenços coloridos como aqueles que comprara para Elphaba, para Sarima. No ombro de uma delas viu a cintilação de uma dragona dourada: era um membro de alta patente da Tropa da Tormenta. Havia um cacete, e ele desceu sobre a sua cabeça, como o coice de um cavalo, como o ramo quebrado de uma árvo­re atingida por um raio. Devia sentir dor, mas estava surpreso demais para notar. Aquilo devia ser sangue, esguichando uma mancha cor de rubi sobre o gato branco, fazendo-o recuar. Ele viu os olhos do bicho se abrirem, duas luas de um verde-dourado, combinando com a época, e o gato então fugiu pela clarabóia aberta e se perdeu na noite nevada.

 

A monja mais jovem era obrigada a abrir a porta do convento se a cam­painha soasse durante as refeições. De fato, já estava recolhendo as sobras de sopa de abóbora e biscoitos de centeio, as outras monjas rumando, num âni­mo disciplinado, em direção à capela do monastério no pavimento superior. Ela hesitou antes de se decidir por atender à campainha ― dentro de mais uns três minutos, também deveria se perder em devoções, e o som da campainha teria passado despercebido. Ela preferia, francamente, lavar os pratos. Mas o espírito do feriado a forçava a ser caridosa.

Ela abriu a porta enorme para encontrar uma figura encurvada como um macaco no canto escuro da varanda de pedra. Mais além, a neve enrugava a fachada da Igreja de Santa Glinda adjacente, fazendo-a parecer um reflexo na água, destacando apenas o lado certo. As ruas estavam vazias e um ruído de corais era filtrado pela igreja iluminada à luz das velas.

“O que é?”, disse a noviça, lembrando-se então de acrescentar: “Feliz Lurlinemas, meu amigo”.

Assim que viu o sangue nos estranhos punhos verdes, e a raiva naquele olhar, a decência associada ao feriado obrigou-a a levar a criatura para dentro. Mas ela ouvia as suas irmãs reunidas na sua capela particular, e a monja-mãe começara a cantar um prelúdio em seu prateado contralto. Era o primeiro grande evento litúrgico da noviça desde que se tornara membro da comuni­dade, e ela não queria perder um momentinho que fosse.

“Venha comigo, bonequinha”, ela disse, e a criatura ― uma mulher jovem só um ano ou dois mais velha que ela ― conseguiu se endireitar o bastante para andar, ou mancar, como um aleijado, como uma pessoa tão mal-ali­mentada que suas extremidades não podiam ser flexionadas e seus membros pareciam prestes a rachar.

A noviça parou num lavatório para enxaguar o sangue dos pulsos, e para se assegurar de que aquilo era coisa espirrada pela decapitação de alguma galinha para uma ceia do feriado, e não uma triste tentativa de suicídio. Mas a estranha recuou à visão da água, e pareceu tão desconcertada e infeliz que a noviça parou. Ela optou por uma toalha seca.

As monjas estavam começando as antífonas no pavimento superior! Que coisa irritante! A noviça escolheu a linha de menor resistência. Ela arrastou a coisa desamparada para o salão de inverno, onde as velhas empregadas apo­sentadas viviam suas vidas numa névoa de amnésia e discretamente plantavam moitas de plantas ornamentais, cujo doce miasma ajudava a mascarar odores de velhice e incontinência. As idosas viviam num tempo todo próprio, não podendo ser levadas lá para o alto, para a capela sagrada, de modo algum.

“Olhe, eu vou colocá-la aqui”, ela disse à mulher. “Eu não sei se você precisa de santuário ou alimento ou um banho ou um perdão, o que for. Mas, você pode ficar aqui, quente e enxuta e segura e silenciosa. Voltarei para cá depois da meia-noite. É por causa do dia de festa, como vê. É o ofício de vigília. Fique e aguarde, e tenha esperanças.”

Ela pôs a perseguida e assombrada mulher numa cadeira macia, e trouxe um cobertor. A maioria das idosas estava roncando, as cabeças tombando nos seios, babando suavemente em peitilhos enfeitados de frutinhas e folhas verdes e douradas. Algumas desfiavam as contas dos rosários. O pátio, que em geral ficava aberto no verão, estava agora protegido do inverno por painéis de vidro, e por isso parecia um tanque quadrado para peixes num aquário; a neve caindo sobre ele sempre infundia tranqüilidade às idosas.

“Olhe, você pode ver a neve, branca como a graça do Deus Inominável”, disse a noviça, lembrando os requisitos pastorais. “Pense nisso, e descanse, e durma. Aqui está um travesseiro. Aqui está uma almofada para seus pés. Lá em cima, nós vamos estar cantando e saudando o Deus Inominável. Rezarei por você.”

“Não...”, disse a hóspede fantasmagoricamente verde, e então deixou sua cabeça cair repentinamente sobre o travesseiro.

“O prazer é meu”, disse a noviça, um pouco agressivamente, e bateu em retirada, bem a tempo de pegar o hino em andamento.

Por um momento, o salão de inverno ficou em silêncio. Era como um aquário em que um peixe novo houvesse sido introduzido. A neve caía como que movida por uma máquina, amável e hipnotizante, com um sussurro tê­nue. Os botões das plantas ornamentais se fechavam um pouco à medida que o frio aumentava no salão. Lâmpadas de óleo lançavam suas funéreas fitas crepes no ar. No outro lado do jardim ― pouco visível através da neve e das duas janelas ― uma monja decrépita, com uma compreensão mais precisa do calendário que as suas irmãs, começou a murmurar um insolente velho hino pagão a Lurline.

Uma das idosas se aproximou à trêmula figura da recém-chegada, avan­çando aos poucos numa cadeira de rodas. Ela se encostou e farejou. Do manto de um cobertor xadrez, azul e marfim, ela pôs desajeitadamente suas velhas mãos sobre os descansos. Daí, alcançou e tocou a mão de Elphaba.

“Bem, a pobre bonequinha está doente, a pobre bonequinha está cansa­da”, disse a coisa vetusta. Suas mãos tatearam, como as da noviça, à procura de feridas nos pulsos. Nada. “Embora esteja intacta, a pobre bonequinha está sofrendo”, ela disse, como se aprovasse. Uma cúpula de couro cabeludo recém-raspado apontou debaixo do capuz do cobertor. “A pobre bonequinha está fraca, a pobre bonequinha está vacilando”, ela continuou. Ela chacoalhou um pouco e pressionou as mãos de Elphaba entre as suas, como que para aquecê-las, mas era duvidoso que seu anêmico e incompetente velho sistema circulatório pudesse aquecer um estranho quando mal podia aquecer a si mesmo. Mesmo assim, ela prosseguiu. “A pobre marionete é a desgraça em pessoa”, ela murmurou. “Felizes festas para todos. Venha, minha querida, encoste-se no peito da velha Mãe. A Velha Monja-Mãe vai dar um jeito nas coisas.” Ela nem podia puxar Elphaba de sua posição de sofrimento insone e sem sonhos. Ela conseguia apenas manter as mãos de Elphaba fortemente agarradas às suas, como uma sépala se encaixa nas dobras de uma pétala tenra. “Venha, minha preciosa, e tudo ficará bem. Descanse no peito da louca Mãe Yackle. Mãe Yackle tomará conta de você.”

 

No dia em que a monja de sete anos estava para partir, a irmã Bursar tirou a enorme chave de ferro de seu peito e destrancou a despensa, e disse: “Venha”. Ela puxou da prensa três mudas de roupas negras, seis cami­solas, luvas e um xale. Ela também lhe passou a vassoura. Finalmente, para emergências, um cesto de coisas básicas ― ervas e raízes, tinturas, arruda, pomadas e bálsamos.

Havia papel, também, embora não muito; umas doze páginas ou algo assim, de diferentes formas e espessuras. Papel estava sempre faltando em toda parte de Oz. “Faça-o durar, trate-o com a devida importância”, advertiu a irmã Bursar. “Você é alguém especial, por todos os seus amuos e silêncios.” Ela encontrou uma caneta. Uma pluma de fênix, famosa pela durabilidade e a força da pena. Três potes de tinta preta, selados com salientes envoltórios de cera.

Oatsie Mão-Ferida estava esperando no ambulatório com a velha Mon­ja Superiora. O convento estava pagando uma quantia decente por esse ser­viço e Oatsie precisava da remuneração. Mas ela não gostou da aparência da taciturna monja que a irmã Bursar trouxe. “Esta é a sua passageira”, disse a Monja Superiora. “Seu nome é Irmã Santa Elphaba. Ela passou muitos anos em vida solitária e cuidando de doentes. O hábito de conversar está perdido. Mas já é tempo de ela mudar, e mudar é o que ela vai fazer. Você não terá problemas com ela.”

Oatsie olhou bem para a passageira e disse: “O Expresso da Trilha de Relva não garante a sobrevivência desta pessoa, Monja. Eu chefiei duas dúzias de viagens nesses últimos dez anos ou quase, e houve mais acidentes do que gosto de admitir”.

“Ela está partindo de livre e espontânea vontade”, disse a Monja Supe­riora. “Caso ela queira retornar de algum ponto, vamos recebê-la de volta. Ela é uma de nós.”

Ela não pareceu uma de coisa nenhuma para Oatsie, nem gente nem bi­cho, nem idiota nem intelectual. Irmã Santa Elphaba apenas olhava fixamente para o chão. Embora parecesse ter cerca de trinta anos, tinha uma aparência adoentada, adolescente.

“E há a bagagem ― você pode carregá-la?” A Monja Superiora apon­tou para a pequena pilha de suprimentos no imaculado espaço defronte ao monastério. Depois, virou-se para a monja que partia. “Doce filha do Deus Inominável”, disse a Monja Superiora, “Você nos deixa para realizar um exer­cício de expiação. Você acha que há uma penalidade a cumprir antes que possa encontrar a paz. O silêncio inquestionável do claustro não é mais o que você precisa. Você está retornando a você mesma. Portanto, deixamo-la ir com nosso amor e com nossas esperanças de que tenha sucesso. Vá com Deus, minha boa irmã.”

A passageira manteve seus olhos experientes no chão e não respondeu.

A Monja Superiora suspirou. “Devemos voltar às nossas devoções”. Ela tirou algumas notas de um rolo de dinheiro mantido nos recessos de seus véus, e passou-as para Oatsie Mão-Ferida. “Isso deve bastar, e até vai além.”

Era uma ótima quantia. Oatsie se aprumou por ganhar esse tanto para es­coltar essa mulher taciturna através dos Kells ― ganhar mais que de todo o resto do grupo que levaria. “A senhora é boa demais, Monja-Mãe”, ela disse. Pegou o dinheiro com sua mão firme, e fez um gesto de deferência com a frouxa.

“Ninguém é bom demais”, disse a Monja Superiora, mas simpaticamen­te, e se recolheu com rapidez surpreendente atrás das portas do monastério. A Irmã Bursar disse: “Você está livre agora, Irmã Elfinha, e oxalá todas as estrelas brilhem em seu caminho!”, e desapareceu do mesmo jeito. Oatsie se moveu para carregar a bagagem e os suprimentos para o vagão. Havia um pequeno, atarracado garoto maltrapilho dormindo atrás do baú. “Fora daqui”, disse Oatsie, mas o garoto murmurou: “Eu tenho de ir também, foi o que me disseram”.

Vendo que a Irmã Santa Elphaba nem confirmava nem negava esse plano, Oatsie começou a entender por que o pagamento para levar embora a monja verde havia sido mais que generoso.

 

O Claustro de Santa Glinda estava localizado em Pedras Ralas, doze milhas ao sul da Cidade Esmeralda. Era um monastério em posto avançado, sob a proteção do outro que ficava na cidade. A Irmã Santa Elphaba passara dois anos na cidade e cinco anos ali, de acordo com a Monja Superiora. “Você ainda quer ser chamada de Irmã, agora que foi libertada daquele santo cárce­re?”, perguntou Oatsie quando estalou as rédeas e atiçou os cavalos.

“Elfinha está bom”, disse a passageira.

“E o garoto, que nome ele tem?”

Elfinha deu de ombros.

A carruagem encontrou o resto da caravana a poucas milhas à frente. Havia quatro vagões ao todo, e quinze viajantes. Elfinha e o garoto foram os últimos a chegar. Oatsie Mão-Ferida delineou a rota proposta: ao sul pelas bordas do Rio Kells, a oeste através do Desfiladeiro de Kumbricia, ao norte pelas Pastagens Milenares, parando em Kiamo Ko, e depois hibernando num ponto mais a noroeste. O Vinkus era uma terra selvagem, Oatsie lhes disse, e havia grupos tribais a temer: os yunamatas, os scrows, os arjikis. E havia animais. E havia espíritos à solta. Eles precisariam ficar unidos. Precisariam confiar uns nos outros.

Elfinha não dava sinal de que escutasse alguma coisa. Ela brincava ocio­samente com a pluma de fênix e traçava desenhos no solo a seus pés, elabo­rando formas espiraladas como dragões retorcidos e fumaça ascendente. O garoto estava acocorado a oito ou dez pés de distância, cauteloso e fechado. Ele parecia ser seu pajem, pois carregava suas malas e atendia às suas necessi­dades, mas não olhavam um para o outro, nem se falavam. Oatsie achou isso estranho ao extremo, e esperou que não fosse augúrio de algo ruim.

O Expresso da Trilha de Relva partiu ao pôr-do-sol, e avançou umas poucas milhas até sua primeira parada para acampar num leito de rio. O grupo ― gillikeneses, na maioria ― tagarelava nervosamente, espantado ante a própria coragem de ir para tão longe da segurança de Oz central! Todos por diferentes motivos: negócio, necessidades de família, pagar uma dívida, matar um inimigo. O Vinkus era uma fronteira, e os winkies um povo bélico, sedento de sangue, que sabia pouco sobre o asseio de interiores ou as regras de etiqueta com os quais o grupo se deleitava em loas a si mesmo. Oatsie tomou parte da conversa por pouco tempo, mas ela sabia que dificilmente haveria entre eles quem não preferisse ter ficado onde estava e evitar as profundezas de todo o Vinkus. Exceto talvez aquela Elfinha, que estava cuidando muito bem de si mesma.

 

Deixaram a margem próspera de Gillikin para trás. O Vinkus começava com um emaranhado de seixos espalhados em úmido solo castanho. À noite a Estrela do Lagarto apontava a direção sul, margeando os Grandes Kells, indo para o perigoso Desfiladeiro de Kumbricia. Pinheiros e negras seivas-­estreladas se erguiam como dentes em cada aterro. Durante o dia eles eram acolhedores, por vezes davam sombra. À noite, porém, eles se erguiam como torres ameaçadoras, e abrigavam corujas predadoras e morcegos.

Elfinha ficava acordada à noite, em geral. A reflexão ia lhe voltando, talvez até se expandindo sob a amplidão selvagem, onde os pássaros cantavam em vozes desmaiadas, e os meteoros lançavam augúrios pelo céu. Às vezes ela tentava escrever com a pena de fênix; às vezes, ela sentava-se e deixava os pensamentos rolando, e não os registrava no papel.

A vida fora do claustro parecia acenar à sua frente com tanta particu­laridade ― a forma de seus últimos anos estava já se dissipando. Todo aquele tempo indiferenciado, lavando pisos de terracota sem mergulhar suas mãos no balde ― levava horas para cobrir um simples aposento, mas nenhum piso fora antes tão bem lavado. Fazer vinho, cuidar dos doentes, trabalhar na ala da enfermaria, que lhe fizera lembrar um pouco de Crage Hall. O benefício de um uniforme era que não se precisava lutar para ser original ― quanta ori­ginalidade poderia o Deus Inominável ou a Natureza criar? Podia-se afundar inconscientemente na rotina do dia-a-dia, podia-se achar um caminho pró­prio sem andar às apalpadelas. As pequenas mudanças ― o pássaro vermelho pousando no peitoril da janela, e era primavera ― as folhas para revolver com o ancinho no terraço, e era outono ― eram suficientes. Três anos de silêncio absoluto, dois anos de murmúrios, e então, transferida por decisão da Monja Superiora, dois anos na enfermaria para os doentes incuráveis.

Ali, por nove meses ― pensou Elfinha debaixo das estrelas, descrevendo a coisa para si mesma como se o fizesse para outra pessoa ― ela atendia aos moribundos, e àqueles desajeitados demais para morrer. Ela crescera ao ver a morte como um desenho, belo a seu modo. Uma forma humana é como uma folha, ela morre naturalmente a menos que algo interfira: primeiro isto, de­pois aquilo e finalmente isto. Ela podia ter continuado a ser enfermeira para sempre, cruzando pulsos num arranjo agradável sobre lençóis engomados, lendo as palavras absurdas das escrituras que pareciam ser de tanta valia. Ela sabia lidar com moribundos.

E então, havia um ano, um pálido e inválido Tibbett dera entrada no Lar para os Incuráveis. Ele não demorou muito a reconhecê-la mesmo debaixo de seu véu e de seus silêncios. Fraco, incapaz de defecar ou urinar sem ajuda, sua pele caindo aos pedaços e parecendo um pergaminho, era melhor que ela em matéria de viver. Egoisticamente, exigia que ela fosse um indivíduo, e se dirigia a ela chamando-a pelo nome. Ele brincava, recordava histórias, criticava velhos amigos por terem-no abandonado, notava suas diferenças em como ela mudava dia após dia, em como ela pensava. Fez com que lembrasse que, afinal, ela era um ser pensante. Sob o exame acurado daquela figura, ela foi recriada, contra a vontade, como um indivíduo. Ou quase.

Por fim ele morreu, e a Monja Superiora disse que era tempo de ela ir embora e reparar os seus erros, embora nem mesmo a Monja soubesse que erros eram esses. Quando teriam acontecido? ― bem, ela era ainda uma mu­lher jovem, poderia formar uma família. Pegar a sua vassoura e não esquecer: obediência e mistério.

“Você não dorme”, disse Oatsie uma noite ao ver Elfinha vigilante à luz das estrelas.

Mas, embora seus pensamentos fossem ricos e complicados, suas pala­vras eram pobres, e ela meramente grunhiu. Oatsie fez algumas piadas com as quais Elfinha tentou rir, mas Oatsie riu o bastante pelas duas. Grandes, fartas risadas. Isso a cansou.

“Esse cozinheiro não era mesmo uma peça rara?”, disse Oatsie, e contou algum episódio que parecia irrelevante, e riu com a própria história. Elfinha tentou achar engraçado, tentou rir, mas acima delas as estrelas ficavam mais densas no céu, parecendo-se mais com cintilantes cardumes que com grãozi­nhos de sal; giravam em seus percursos com um som de pena, de maldição, que ela gostaria tanto de ouvir. Não podia ouvi-lo; Oatsie era muita grosseira e estridente.

Havia muita coisa que odiar neste mundo, e coisas demais para amar.

Não demorou para que chegassem à beira do Rio Kells, uma perigosa fatia de água que se estendia como uma fenda dentro de uma nuvem de tem­pestade. Era todo cinzento, sem luz alguma. “É por isso”, disse Oatsie, “que nem os cavalos nem os viajantes bebem dessa água; é por isso que nunca foi captada em aquedutos e levada à Cidade Esmeralda. É água morta. E vocês pensavam que tinham visto de tudo.” Mesmo assim, os viajantes estavam impressionados. Uma muralha cor de alfazema se erguia em sua margem ocidental ― um primeiro sinal dos Grandes Kells, as montanhas que sepa­ravam o Vinkus do resto de Oz. Dali as montanhas apareciam de modo tão tênue que pareciam gás.

Oatsie demonstrou o uso do feitiço da neblina em caso de um ataque por um grupo de caçadores yunamatas. “Vamos ser atacados?”, perguntou o garoto que parecia ser o pajem de Elfinha. “Eu mato eles antes que ninguém fique sabendo o que está acontecendo.” O medo que brotou dele se espalhou entre os outros. “Em geral nós nos saímos bem”, disse Oatsie, “só precisamos ficar preparados. Eles podem ser amigos. Se formos amigáveis.”

 

A caravana vagueava de dia, quatro vagões mantendo uma certa dis­tância entre si, acompanhados por nove cavalos, duas vacas, um touro, uma novilha e vários frangos sem muita personalidade. O cozinheiro tinha um cachorro chamado Matalegria que parecia a Elfinha, ao contrário, um Fazalegria*, uma coisa arquejante, farejadora. Algumas pessoas pensaram por mo­mentos que ele pudesse ser um Cachorro disfarçado, mas deixaram a idéia de lado. “Hah”, disse Elfinha aos outros, “vocês falaram com Animais tão ra­ramente que nem podem se lembrar mais da diferença?” Não, ele era apenas um cachorro, mas um muito glorioso cachorro “cachorrento”, cheio de fúrias e devoções exageradas. Matalegria era de uma espécie montanhosa, parte linster, parte collie, parte lenx terrier, e talvez parte lobo. Seu focinho se erguia como um rolinho de manteiga, em arestas e nervuras de um cinza-escuro. Ele não podia reprimir seu instinto de caçador, mas não pegava muita coisa. De noite, quando os vagões ficavam juntos, em posição de defesa, o fogo da cozinha no meio, os animais bem ali, do lado de fora, e a cantoria começava, Matalegria se escondia debaixo de algum vagão.

Oatsie ouviu o garoto dizer o seu nome ao cachorro. “Sou Liir”, disse ele. “Você pode ser meu cachorro, se quiser.” Ela teve de sorrir. O menino gordo não era bom para fazer amigos, e um menino solitário precisa mesmo de um cão.

 

O Rio Kells ficou para trás, fora de visão. Alguns se sentiram mais seguros longe daquilo. Quase ao mesmo tempo os Grandes Kells surgiram e se avultaram, agora com a cor da casca castanha de um melão amanhecido. Mas a trilha ainda serpenteava pelo vale, o Rio Vinkus à sua direita e as montanhas mais além.

Quando avançaram, Matalegria finalmente pegou um lagarto de areia do vale. Ele sangrou e ganiu, e foi tratado por envenenamento. Liir deixou-o ficar em seus braços, o que fez Elfinha ficar um pouco enciumada. Ela estava quase espantada por notar em si mesma um sentimento tão aborrecido e fora de moda como o ciúme.

O cozinheiro ficou com raiva de Matalegria preferir qualquer outra companhia à sua ― ele brandiu seu colherão para o alto como se apelasse para a cólera vingativa dos chefes das hordas angélicas do céu estrelado. Elfinha o achou um carniceiro, já que parecia não ter escrúpulos de caçar coelhos e comê-los. “Como é que você sabe se não são Coelhos?”, ela disse, e não tocou em nenhum naco daquela carne.

“Quietinha, você, ou eu vou cozinhar aquele menininho”, ele respondeu.

Ela tentou plantar em Oatsie a idéia de demitir o cozinheiro, mas Oat­sie não ouviu. “Estamos chegando ao Desfiladeiro de Kumbricia”, ela disse, “minha cabeça está voltada para outras coisas.”

Eles não podiam deixar de sentir o inquietante erotismo da paisagem. Pelo ângulo leste, o Desfiladeiro de Kumbricia parecia uma mulher deitada de costas, as pernas bem abertas, acolhendo a todos.

No alto das encostas, os galhos dos pinheiros tapavam o sol, as perei­ras selvagens emaranhavam seus galhos retorcidos, como se os envolvessem numa luta corporal. Uma repentina umidade, um novo clima particular ― a frota umedeceu, o ar mergulhava pesadamente na pele, como uma toalha mal lavada. Assim que entraram na floresta, os viajantes não puderam mais ver os montes. Tudo cheirava a samambaias e folhagens. E nas margens de um pequeno lago erguia-se uma árvore morta. Abrigava uma comunidade de abelhas, que exercia seu labor de música de câmara e mel.

“Quero levá-las com a gente”, disse Elfinha. “Vou conversar com elas e verei se estão interessadas em vir.”

Ela lembrou-se que tinha havido abelhas na horta de Crage Hall, e tam­bém no Claustro de Santa Glinda nas Pedras Ralas. Elfinha ficou arrebatada com elas. Mas Liir estava aterrorizado, e o cozinheiro ameaçou abandonar o grupo traumatizado pela impossibilidade de fazer um molho bechamel da mais alta qualidade naqueles ermos. Travou-se uma discussão. Um velho do grupo, que viajava para o oeste para morrer devido a alguma visão noturna, arriscou dizer como um pouco de mel iria melhorar o sabor do insípido chá ordinário servido na caravana. Uma glikkunesa que se casaria por correspon­dência concordou. Oatsie, dada a arroubos sentimentais quando isso era o menos esperado, votou pelo mel.

Assim, Elfinha subiu na árvore e conversou com as abelhas, e elas vie­ram todas juntas num enxame, mas a maioria dos viajantes ficou em outros vagões, subitamente assustados com qualquer salpico de poeira que lhes ro­çasse a pele.

Usando tambores e fumaça, enviaram um pedido para atrair a atenção de um rafique contratado, pois o tráfego de caravanas não era permitido entre as terras das diferentes tribos de Vinkus sem um guia que negociasse per­missões e taxas. Aborrecidos com a noite, reagindo à escuridão, os viajantes deram para discutir a lenda da Bruxa de Kumbric. Quem viera primeiro, a Fada Rainha Lurline ou a Bruxa de Kumbric?

Igo, o velho homem doente, citou o Ozíada, e lembrou a todos como a criação fora feita: o Dragão do Tempo criara o Sol e a Lua, e Lurline os amaldiçoara e dissera que seus filhos não conheceriam os próprios pais, e então a Bruxa de Kumbric veio, trazendo o dilúvio, a guerra, a disseminação do mal pelo mundo.

Oatsie Mangelhand discordou. Ela disse: “Seus velhos tolos, o Ozíada é apenas um fútil, romântico poema sobre lendas mais antigas e mais ásperas. O que vive na memória do povo é mais verdadeiro do que o que qualquer poeta artificioso diz. Na memória do povo o mal sempre derrota o bem”.

“Isso pode ser verdade?”, perguntou Igo, com interesse.

“É claro que há uma porção de contos de fada de infância que começam com “Uma vez no meio de uma floresta vivia uma velha bruxa” ou “O diabo um dia saiu a passeio e encontrou uma criança”, disse Oatsie, que estava de­monstrando ter alguma cultura e coragem. “Para os pobres coitados não há necessidade de se tecer fábulas sobre a razão de o mal aparecer num dado lugar; porque ele apenas aparece; ele apenas existe. Ninguém nunca sabe como a bruxa se tornou malvada, ou se essa era a escolha certa para ela ― será esta a escolha certa, realmente? Será que o demônio não luta para ser bom novamente, e, sendo assim, não é demônio coisa nenhuma? Em última análise, é uma questão de definições.”

“É bem verdade que há abundância de histórias sobre a Bruxa de Kum­bric”, concordou Igo. “Todas as outras bruxas acabam sendo uma sombra, uma filha, uma irmã, alguma descendente que entrou em decadência; a Bruxa de Kumbric é o modelo original que parece impossível ultrapassar.”

Elfinha lembrou a pintura em rolo de pergaminho da Bruxa de Kum­bric ― seria ela? ― encontrada na biblioteca do Três Rainhas, naquele verão de tempos atrás; plantada em sapatos brilhantes, escarranchando um continente, embalando ou estrangulando um animal.

“Eu não acredito na Bruxa de Kumbric, nem aqui no Desfiladeiro de Kumbricia”, jactou-se o cozinheiro.

“Você não acredita em Coelhos tampouco”, rosnou Elfinha, subitamente irritada. “A pergunta é, será que a Bruxa de Kumbric acredita em você?”

“Temperamental”, declarou Oatsie, e tentou abafar a coisa começando uma canção para todos cantarem. Elfinha bateu em retirada. Tudo isso se parecia demais com sua infância, discussões com seu pai e Nessarose sobre a origem do mal. Como se alguém pudesse saber! Seu pai costumava orques­trar provas sobre a existência do mal como meios para levar seu rebanho à conversão. Elfinha chegara a pensar, quando estava em Shiz, que, enquanto as mulheres eram água-de-colônia, os homens eram provas: para assegurar sua própria visão de si mesmos, e assim serem atraentes. Mas não era verdade que o mal estava além de qualquer prova, assim como a Bruxa de Kumbric estava além dos domínios da história conhecível?

 

O rafique chegou, um homem magro, calvo, com cicatrizes de guerra. Po­dia haver problemas pelo lado dos yunamatas neste ano, ele disse. “A caravana está chegando bem quando acabou uma temporada de sujas pilha­gens pela cavalaria da Cidade Esmeralda. Coisa dos winkies”, ele lamentou. Não estava claro se estava falando de uma questão local sobre uma desfeita de um bêbado para uma moça de Vinkus ou sobre um tráfico de escravos e áreas da reserva.

O acampamento se desfez, o lago ficou para trás, e eles seguiram pela floresta por metade de um dia. A luz do sol passava pelo dossel de quando em quando, mas era uma luz rala, parecida a uma gema de ovo, e parecia estar sempre nas paralelas do caminho, nunca incidindo sobre a trilha pela qual a caravana seguia. Era sinistra, como se Kumbricia em carne e osso estivesse se movimentando ao lado deles, oculta, proibida, passando de árvore para árvore, esgueirando-se entre as rochas, esperando nas profundezas sombrias, observando e escutando. O velho aflito fazia um lamento nasal, e rezava para poder sair dessa misteriosa floresta antes de morrer, ou seu espírito poderia nunca achar o caminho de volta. O menino chorava como uma menina. O cozinheiro torceu o pescoço de um frango.

Até as abelhas pararam de zumbir.

No meio da noite o cozinheiro desapareceu. Houve consternação entre todos, exceto Elfinha, que não se importou. Fora um seqüestro, ou um episó­dio de sonambulismo, ou um suicídio? Estariam os raivosos yunamatas por perto, e observando a todos? Seria Kumbricia em pessoa se vingando deles por tê-la discutido tão impenitentemente? Houve muitas opiniões, e os ovos do desjejum ficaram malfeitos e incomíveis.

Matalegria não notou o desaparecimento do cozinheiro. Ele se aninhou, rindo em seu sono comatoso, bem pertinho de Liir.

 

As abelhas entraram em alguma espécie de hibernação misteriosa den­tro da junção de tronco de árvore que era carregada junto à caravana para deixá-las felizes. Matalegria, ainda dolorido devido ao veneno do lagarto de areia, dormia vinte e duas horas por dia. Os viajantes, temerosos de serem ouvidos por desconhecidos, pararam de falar juntos.

À medida que a noitinha avançou, os pinheiros por fim começaram a escassear, e a floresta a mudar de pinhos para carvalhos cabeça-de-cervo, que, com seus galhos mais amplos, deixavam entrever mais ― um céu de amarelo lívido, mas, afinal, um céu ― e então chegaram à beira de um penhasco. Ti­nham subido mais alto do que qualquer um deles se apercebera; abaixo e além se estendia o resto do Desfiladeiro de Kumbricia, uma viagem de quatro ou cinco dias. O começo das Pastagens Milenares ficava muito além daquilo.

Ninguém estava reclamando da luz e do espaço que o céu permitia. Até Elfinha sentiu seu coração se aliviar, inesperadamente.

 

No meio da noite os yunamatas chegaram. Trouxeram como presentes frutas secas e cantaram canções tribais, e fizeram os que pareciam capazes de dançar se levantarem e entrarem na dança. Os viajantes estavam mais assus­tados com sua hospitalidade do que com o ataque que tinham esperado.

Tal como Elfinha supusera, os yunamatas pareciam um povo amável, submisso, tão cheios de temor e destemidos quanto colegiais ― ao menos, era o que demonstravam. Eram vivazes, opiniáticos; faziam-na lembrar os quadlings, com os quais fora criada. Talvez etnicamente fossem primos dis­tantes. Longas pestanas. Cotovelos estreitos. Pulsos flexíveis como os de be­bês. Cabeças oblongas e lábios finos concentrados ― mesmo com sua língua desconhecida, eles lhe pareciam familiares.

Os yunamatas partiram pela manhã, queixando-se rudemente da ruin­dade dos ovos do café do desjejum. O rafique disse que não dariam mais problema. Até ele parecia desapontado, como se sua função houvesse ficado às traças.

Não houve uma só palavra sobre o cozinheiro. Os yunamatas pareciam não saber nada sobre ele.

 

Enquanto a caravana continuava a sua descida, o céu de novo se abria, vivaz e outonal, amplo como o remorso. Dali até lá! ― o olho mal podia abranger tudo. A planície que abaixo se estendia, comparada às montanhas, parecia lisa como um lago.

O vento fazia vogas através dela, como se pronunciasse coisas numa linguagem de chicotadas e ondulações. Nenhuma vida selvagem se avistava dessa distância, embora fogos tribais se erguessem aqui e ali. O Desfiladeiro de Kumbricia fora deixado para trás, ou quase.

Então, um mensageiro yunamata veio em velozes pés descalços, che­gando do Desfiladeiro que ficara para trás, para trazer a notícia de que um corpo fora achado na base do penhasco. Talvez fosse o cozinheiro; julgava-se que fosse um homem, mas a superfície do cadáver ficara tão inchada devido às lesões que os indícios se perderam. “Foram as abelhas”, disse alguém, cheio de raiva.

“Oh, foram?”, soou a voz calma de Elfinha. “Elas ficaram dormindo por tanto tempo. Não teria havido gritos se elas houvessem atacado um homem no meio da noite? Será que as abelhas ferroaram sua garganta primeiro, para fazer com que as cordas vocais se calassem? Abelhas muito hábeis, essas.”

“Foram as abelhas”, foi o murmúrio que se ouviu, e a implicação era clara. Você também.

“Oh, esqueci-me do tamanho da imaginação humana”, Elfinha disse maldosamente. “Como ela é grande, afinal.”

Mas ela não estava aborrecida, não realmente. Pois Matalegria voltara a si, finalmente, e as abelhas tinham acordado também. Talvez as elevadas altitudes do topo do Desfiladeiro de Kumbricia fossem as responsáveis por tamanho sono. Elfinha começou a preferir a companhia deles à do resto dos viajantes. Enquanto eles despertavam, na descida dos montes, ela se sentia mais e mais desperta também.

 

O rafique apontou no horizonte várias espirais de fumaça que se amon­toavam. A princípio os viajantes pensaram que se tratasse de tornados, mas Oatsie os acalmou e alertou ao mesmo tempo: eram fogos noturnos de um grande acampamento. Scrow. Era a temporada de caça de outono, embora, em termos de bicho, nada houvesse sido visto exceto uma lebre ou uma raposa da relva (seu pêlo parecia uma forte pincelada de bronze no campo de um dourado diluído, e seus pés eram revestidos de meias negras como os de uma serviçal). Matalegria ficou extasiado com as possibilidades de luta; ele mal podia suportar ter de descansar à noite. Mesmo em seus sonhos ele rolava com suas presas de caça.

Os viajantes temiam os scrows mais do que tinham temido os yuna­matas. O rafique não dissera muita coisa para apaziguar seus medos. Ele era mais hesitante do que parecera a princípio; talvez o trabalho de negociar entre povos desconfiados exigisse mesmo essa cautela. Liir o idolatrava sem esperança, depois de uns poucos dias de viagem. Elfinha pensava: Coisas tão bobas, as crianças ― e tão embaraçosas ― porque elas vão mudando sem nenhuma vergonha, sem a necessidade de serem amadas ou algo assim. En­quanto os animais já nascem quem são, aceitam o fato, e a coisa é o que é. Eles vivem numa paz muito maior que a das pessoas.

Ela sentia em si um tremor de agradável ansiedade ao pensar em se aproximar dos scrows. Junto com muitas outras coisas, havia se esquecido de como a expectativa era agradável. Enquanto a noite caía, todo mundo parecia mais alerta, transbordando medo e excitação. Os céus palpitavam em azul-turquesa, mesmo à meia-noite. A luz das estrelas e as caudas de cometas alumiavam de prata esmerada as extremidades da relva interminável que havia lá embaixo. Como milhares de velas numa capela, apagadas, mas ainda alumiando.

Se alguém pudesse se afogar na relva, pensou Elfinha, poderia ser esta a melhor maneira de morrer.

 

Era meio-dia quando a caravana se encostou à margem do acampamento scrow. Uma comitiva da tribo conduziu-os para os limites deste, onde as tendas cor de areia se erguiam sobre a relva imaculada ― homens e mulheres a cavalo, sete ou oito deles, usando fitas azuis e pulseiras de marfim. Também surgiu uma mulher idosa, na certa de uma hierarquia superior, enorme como uma laje, carregada num palanquim de alguma espécie, a armação cheia de tambores e amuletos que tilintavam e finíssimos véus. Ela deixou o rafique e os paladinos da tribo trocarem cumprimentos e insultos. Depois de alguns momentos, grunhiu uma ordem e suas cortinas foram descidas, para que pudesse olhar. Tinha um lábio projetado, tão grande que se dobrava sobre si mesmo como uma torneira de cabeça para baixo numa bilha. Seus olhos eram circulados com kajal. Em seus ombros havia dois corvos de aparência indigesta. Os pés das aves eram acorrentados com elos dourados e ligados a laços que pendiam da gola ornamental, em que a idosa deixara pingar restos da fruta que estivera comendo enquanto esperava. Seus ombros estavam sal­picados dos dejetos dos corvos.

“A Princesa Nastoya”, disse o rafique por fim.

Ela era a mais imunda, a menos refinada das princesas, contudo, tinha alguma dignidade; mesmo o mais ardente dos democratas entre os viajantes se curvou. Ela riu de maneira rouquenha. Depois pediu a seus carregadores que a levassem embora para algum lugar menos tedioso.

O acampamento scrow era disposto em círculos concêntricos, com a tenda da Princesa bem no meio, enfeitada com extensões de baldaquins lis­trados e desbotados pelos dois lados. Era um pequeno palácio etéreo feito de sedas e musselina de algodão. Seus conselheiros e maridos de concubinato pareciam viver no círculo mais íntimo (e os maridos constituíam um grupo bem magricela, pensou Elfinha, mas talvez fossem escolhidos pela timidez e a magreza, para que ela, por contraste, parecesse sempre a maior). Além do ajuntamento da Princesa, havia umas quatrocentas tendas, o que devia equivaler a um milhar de pessoas morando juntas. Mil seres humanos, com sua pele de salmão cozido, seus olhos úmidos e estalados (mas sensitivos, dados a olhares baixos, para evitar confronto), seus belos narizes generosos e grandes ancas e amplos quadris roliços, idênticos em homens e mulheres.

Os viajantes da caravana, na maioria, ficaram grudados nas portas de seus vagões, imaginando um crime a cada nova tenda. Mas Elfinha achou impossível ficar alheia, com toda essa novidade acenando. Quando ela saiu caminhando, houve gritos sufocados, e os adultos timidamente recuaram para que ela passasse. Mas passaram-se só dez minutos para que contasse com sessenta crianças numa turba barulhenta, seguindo-a, correndo na frente, como uma nuvem de mosquitos.

O rafique aconselhara cautela, aconselhara retornar ao acampamento; mas a infância nos pântanos de Quadling havia tornado Elphaba não apenas ousada, era também curiosa. Havia mais maneiras de viver do que aquelas concedidas pelos nossos superiores.

Depois da refeição da noite, uma imponente delegação de velhos dignatários scrows aproximou-se do Expresso da Trilha de Relva e entabulou comprido palavrório com o rafique. No fim, o guia traduziu a mensagem: um pequeno grupo estava convidado ― chamado ― (intimado?) ― a visitar o santuário scrow. Levaria uma hora de camelo. Por seu estigma da cor da pele, presumivelmente, ou possivelmente pela coragem de dar uma caminhada solitária através da cidade de tendas dos scrows, Elfinha foi chamada a se juntar a Oatsie, ao rafique, a Igo pela idade venerável, e a um dos aventurei­ros do ramo das finanças ― chamado Filatabaco, ou talvez fosse apenas um apelido asqueroso.

À luz de tochas de madeira de salgueiro, os camelos, em cintilante jaez, cambaleavam e moviam-se pesadamente numa trilha batida. Era como subir e descer uma escada ao mesmo tempo. Elfinha sentou-se na relva, um ponto vantajoso sobre a grande superfície bruxuleante. Embora o oceano fosse ape­nas uma idéia surgida da mitologia, ela podia quase ver de onde ela procedia ― havia pequenos predadores da grama que se lançavam como peixes que saltassem das vagas espumantes, alcançando os vaga-lumes, abocanhando-os e depois caindo para trás com um borrifo seco. Morcegos passavam, fazendo um som trêmulo, engrolado, que terminava numa agonizante investida. A planície em si parecia parir cores noturnas: ora um heliotrópio, ora um verde­-bronze, ora uma cor parda misturada com vermelho e prata. A lua se erguia, uma deusa opalescente produzindo luz com sua aguda cimitarra maternal. Nada mais precisava ter acontecido; a Elphaba parecia que era suficiente sentir-se capaz de uma estranha resposta extática à cor suave e ao espaço seguro. Mas, não, era preciso continuar ― continuar.

Finalmente ela notava uma plantação de árvores, cuidadosamente cul­tivada nessa amplidão desolada. Primeiro um espruce de cerrado, contorcido pelos ventos em figuras nodosas de casca rachada e agulhas sibilantes - e com o odor pagão de seiva. Depois, surgiam sebes mais altas e, mais além, árvores de altura ainda maior. Era o desenho circular do acampamento scrow novamente.

O grupo passou por ele em silêncio, como se passasse por um labirinto, através de curvos corredores de moitas sussurrantes, movendo-se dos círcu­los exteriores para os interiores iluminados por lâmpadas de azeite presas a postes entalhados.

Dentro, no centro, estava a Princesa Nastoya cingida num traje nativo de couro e grama tornado mais impressionante por uma extensão de roxo listrado e branco atoalhado que ela devia ter barganhado com um viajante ou outro. Ela estava ali, distraída e respirando pesadamente, apoiando-se em resistentes cajados; em torno dela, pedras druídicas como dentes enfileirados lembravam uma jaula de pedra através da qual ela dificilmente poderia passar, devido a seu volume.

Os convidados se juntaram aos anfitriões no comer, beber e fumar de um cachimbo com um fornilho entalhado como uma cabeça de corvo. Os corvos se enfileiravam ao redor nos topos das pedras druídicas, vinte, trinta, quarenta? A cabeça de Elfinha girou, a lua se ergueu, a planície à noite, invisível dali daquele jardim oculto num labirinto verde, girava como a cabeça de uma criança. Ela quase podia ouvir o som do giro. Os velhos scrows cantavam uma arenga.

Quando a arenga se extinguiu, a Princesa Nastoya ergueu sua cabeça.

As enormes barbelas de carne velha abaixo de seu pequeno queixo ba­lançaram. Seu atoalhado caiu ao chão. Ela estava nua e velha e forte; o que tinha parecido tédio era paciência, memória, controle. Ela sacudiu o próprio cabelo para fora de sua cabeça e este se desenrolou em suas costas e desa­pareceu. Seus pés se moviam maciçamente, como se procurassem a melhor posição, como colunas, como pilares de pedra. Ela deixou os braços caírem para a frente e suas costas viraram um domo; no entanto, sua cabeça estava erguida, seus olhos eram os mais claros possíveis, seu nariz fungava podero­samente; ela era um Elefante.

Uma deusa-Aliá, Elfinha pensou, sua mente recuando em terror e de­leite, mas a Princesa Nastoya disse: “Não”. Ela falava através do rafique imó­vel; ele tinha obviamente visto isso antes, embora sob o efeito do álcool ele gaguejasse e tivesse de procurar as palavras.

Um por um os viajantes foram tendo suas intenções sondadas. “Dinheiro e comércio”, disse Filatabaco, levado pelo choque a ser hones­to: dinheiro e comércio e pilhagem e saque a qualquer custo.

“Um lugar para morrer onde eu possa descansar, e meu espírito ir em­bora”, arriscou Igo.

“Segurança e movimento, ficando fora de perigo”, disse Oatsie cora­josamente, pelo que ficou claro que ela queria dizer: fora do caminho dos homens.

O rafique deu um sinal de que a resposta de Elfinha ainda estava pendente.

Na presença de um tal Animal, Elfinha não podia ficar alheia. Assim, ela falou da melhor forma que pôde. “Retirar-me do mundo depois de ter certeza da segurança dos sobreviventes do meu amante. Encarar sua viúva, Sarima, com culpa e responsabilidade, e então me remover do mundo escuro.”

A Aliá pediu aos outros, exceto o rafique, que saíssem.

A Aliá ergueu sua tromba e cheirou o vento. Seus velhos olhos inchados piscaram lentamente e suas orelhas se moveram para a frente e para trás, revol­vendo o ar para captar nuances. Ela urinou abundantemente, num fluxo vapo­roso, com dignidade e displicência, os olhos firmemente fixos em Elphaba.

Através do rafique, a Aliá então disse: “Filha do dragão, eu também vivo sob efeito de um feitiço. Sei como ele pode ser quebrado, mas como um desafio, escolhi viver. Uma Aliá é uma coisa perseguida nestes tempos. Os scrows me acolheram. Eles têm venerado os elefantes desde um tempo em que ainda não existia linguagem, o tempo anterior ao início da história. Eles sabem que não sou uma deusa. Eles sabem que sou uma besta que escolhe o mágico encarceramento na forma humana para não ter de escolher a perigosa liberdade de minha própria forma poderosa.

“Quando os tempos são de provação, quando o ar está cheio de crise”, ela disse, “aqueles que são mais fiéis a si mesmos são as vítimas.”

Elfinha apenas ouvia, não conseguia falar.

“Mas a chance de salvar a você mesma pode ela própria ser mortífera”, disse a Princesa Nastoya.

Elfinha concordou, olhando para longe, olhando para trás.

“Eu lhe darei três corvos como seus membros de família”, disse a Prince­sa. “Você está escondida como uma bruxa agora. Isso é o que vejo.” Ela falou alguma coisa para os corvos, e três coisas sórdidas, de aparência maligna, vieram e ficaram esperando por perto.

“Uma bruxa?”, Elphaba disse. O que seu pai pensaria disso? “Escondida de quê?”

“Nós temos o mesmo inimigo”, respondeu a Princesa. “Estamos ambas em risco. Se você precisar de ajuda, mande os corvos. Se eu estiver viva, seja como uma velha monarca matriarcal, seja como uma Aliá livre, virei em seu socorro.”

“Por quê?”, perguntou Elfinha. “Porque nenhuma fuga ao mundo pode mascarar aquilo que está em seu rosto”, ela respondeu.

A Princesa disse mais. Havia anos ― mais que uma década ― que Elfi­nha ficara capaz de conversar com um Animal. Quem, Elfinha perguntou, a tinha enfeitiçado? Mas a Princesa Nastoya não disse ― em parte como auto­proteção, pois a morte do feiticeiro podia às vezes significar a revogação dos feitiços lançados, e sua maldição era a sua segurança.

“Mas a vida será digna de ser vivida na forma errada?”, disse Elfinha.

“O interior não muda”, ela respondeu, “exceto pelo auto-envolvi-mento. Do qual não é preciso ter medo, mas é preciso ter consciência.”

“Eu não tenho interior”, disse Elphaba.

“Alguma coisa disse àquelas abelhas para matarem o cozinheiro”, ela respondeu, com um brilho em seus olhos. Elphaba sentiu que empalidecia.

“Eu não!”, ela disse. “Não, não pode ter sido eu! E como é que você ficou sabendo?”

“Você disse alguma coisa, em algum nível. Você é uma mulher forte. E eu posso ouvir as abelhas, você sabe. Minhas orelhas são muito sensíveis.”

“Eu gostaria de ficar aqui com você”, disse Elphaba. “A vida tem sido muito dura. Se você pode me ouvir quando eu mesma não me ouço ― uma coisa que a Madre Superiora nunca poderia fazer ― você poderia me ajudar a não causar sofrimento neste mundo. Isso é tudo que eu quero ― não causar sofrimento.”

“Como você mesma admitiu, tem um trabalho a fazer”, disse a Princesa. Ela enrolou sua tromba em torno do rosto de Elphaba, sentindo seus contor­nos e verdades. “Vá e faça-o.”

“Posso voltar para ver você?”

Mas a Princesa não respondeu. Ela estava ficando cansada ― ela era uma coisa velha mesmo como Aliá. Sua tromba oscilou para trás e para a frente como um pêndulo num relógio. Então a grande mão-focinho se adiantou e se pôs com maravilhosa leveza e precisão nos ombros de Elphaba, e se enrolou um pouco em torno de seu pescoço. “Me escute, irmã”, ela disse. “Lembre disto: nada está escrito nas estrelas. Nem nestas estrelas, nem nas outras. Ninguém controla seu destino.”

Elphaba não pôde responder, tão chocada ficara com aquele toque. Ela bateu em retirada ao ser dispensada, completamente fora de si.

Depois, deu-se o retorno nos camelos através das cores trêmulas da relva noturna: hipnótico, vago e angustiante. Contudo, houvera algo de abençoado nessa noite. Elphaba tinha esque­cido a bênção também ― como tantas outras coisas.

 

Eles deixaram o acampamento dos scrows e a Princesa Nastoya para trás. O Expresso da Trilha de Relva se moveu em círculos em direção ao norte, agora, um amplo arco.

Igo morreu, e foi enterrado numa árida colina. “Dê ao seu espírito mo­vimento e vôo”, disse Elfinha na cerimônia.

 

O rafique admitiu mais tarde que pensara que um dos convidados da reunião obrigatória com a Princesa Nastoya seria sacrificado em assassinato ritual. Isso já acontecera anteriormente. A Princesa, embora cúmplice com seu dilema, não estava acima da idéia de vingança. Foi a honestidade de Filatabaco que o salvou, e ele era a escolha óbvia. Ou talvez Igo tivesse usado a iminência de sua morte mais próxima à superfície do que os humanos poderiam ver, e a Aliá tivesse se compadecido.

 

Os corvos eram irritantes; importunaram as abelhas, defecaram sobre o vagão todo, provocaram Matalegria. A glikkunesa, Raraynee, parou num poço, encontrou seu viúvo prometido-para-esposo, e deixou o Expresso da Trilha de Relva. O novo marido banguela já tinha seis filhos sem mãe, e eles se aproximaram de Raraynee como patinhos órfãos atrás de um cão de fazenda. Ficaram apenas dez viajantes.

“Agora, estamos entrando nas terras tribais dos arjiki”, disse o rafique.

 

O primeiro bando dos arjikis se aproximou deles alguns dias depois. Não usavam nada tão esplêndido como o que Fiyero usava, a exemplo das tatuagens azuis ― eram nômades, pastores, cercando as ovelhas das colinas ocidentais aos pés dos Grandes Kells para a contagem anual e, ao que parecia, para vendê-las no Leste. No entanto, sua bela aparência bastou para deixar o coração de Elphaba em pedaços. Sua selvageria. Sua estranheza. Isso deve ser uma punição na hora da minha morte, ela pensou.

O Expresso da Trilha da Relva agora estava reduzido a apenas dois va­gões: num deles, o rafique, Oatsie, Liir, o garoto, Filatabaco, o empreendedor, e um mecânico gillikinês chamado Kowpp. No outro, a própria Elfinha, e as abelhas, os corvos e Matalegria. Ela já fora, ao que parecia, aceita como uma bruxa. Não era um disfarce inteiramente desagradável.

Kiamo Ko ficava a apenas uma semana de viagem.

 

O Expresso da Trilha da Relva virou para a direção leste, rumando para os desfiladeiros de cinza-aço dos íngremes Grandes Kells. O inverno era menor aqui, e os últimos viajantes ficaram satisfeitos por as neves estarem se dissipando. Oatsie pretendia passar o fim do inverno num acampamento arjiki a umas vinte milhas à frente. Na primavera, ela voltaria à Cidade Es­meralda, seguindo a rota do norte através de Ugabu, e as Colinas de Pertha de Gillikin. Elfinha pensou em enviar um bilhete para Glinda, se depois de todos esses anos ela ainda estivesse lá ― mas, sentindo-se incapaz de decidir que sim, decidiu que não.

 

“Amanhã”, disse Oatsie, “veremos Kiamo Ko. A fortaleza da montanha pertencente ao clã governante dos arjikis. Você está pronta, Irmã Elfinha?”

Ela estava provocando, e Elfinha não gostava disso. “Não sou mais uma irmã. Sou uma bruxa”, ela disse, e tentou desejar coisas peçonhentas para Oat­sie. Mas Oatsie era uma pessoa mais forte que o cozinheiro, ao que parecia, pois apenas riu e seguiu seu caminho.

O Expresso da Trilha da Relva parou ao lado de um pequeno lago de montanha. Os outros disseram que a água era refrescante, embora fosse fria de gelar; Elfinha não sabia ou não se preocupava com isso. Mas no meio do lago havia uma ilha ― uma coisinha, do tamanho de um colchão, da qual brotava uma árvore sem folhas feito um guarda-chuva desprovido de sua parte de pano.

Antes que Elphaba pudesse se dar conta por completo ― a luz da noite chegava mais cedo nessa época do ano, e mais cedo ainda nas montanhas ― Matalegria havia mergulhado febrilmente na água, provocando espirros e nadando rumo à ilhota, atraído por algum pequeno movimento ou cheiro interessante que houvesse farejado. Ele esmiuçou os juncos, e então cravou seus dentes ― a mais lupina de suas feições ― suavemente sobre o crânio de um pequeno animal que estava na grama.

Elfinha não podia vê-lo, mas se parecia com um bebê.

Oatsie gritou, Liir tremeu como um montinho de geléia, Matalegria largou sua presa, mas apenas para agarrá-la novamente daí a pouco; ele estava babando sobre a cabeça da pequena coisa que pegara.

Não havia jeito de atravessar a água ― seria morte certa... Mas os pés de Elphaba foram em frente de qualquer modo...

Bateram com força na água, e a água com força respondeu...

E foi se tornando gelo enquanto à medida que ela entrava ― pé após pé de gelo para cada pé que ela enfiava. Uma extensão de prata se formou imediatamente, projetando-se feito viga de gelo, formando uma ponte fria e segura para a ilhota.

Onde Matalegria podia levar um pito, e o bebê ser salvo, embora ela não ousasse ter esperanças de que o conseguisse a tempo. Ela forçou as man­díbulas de Matalegria para separá-las, e arrancou a coisa dali. Esta tremeu de terror e de frio. Seus brilhantes olhos negros estavam alertas e vigilantes, prontos para repreender ou condenar ou amar, da mesma forma que uma criatura adulta capaz.

Os outros ficaram surpresos por vê-la, como ficaram surpresos de terem visto a forma de gelo, que talvez fosse resultado de alguma palavra mágica proferida à beira do lago de algum mágico ou bruxa que estivesse passando por ali. Era um pequeno macaco ― da variedade conhecida como macaco de neve. Um bebê abandonado por sua mãe e sua tribo, ou talvez separado destes por algum acidente?

Ele não tinha grande apreço por Matalegria, mas gostou do calor do vagão.

 

Eles acamparam a meio caminho da perigosa subida pela ladeira que levava a Kiamo Ko. O castelo se erguia em íngremes ângulos negros numa rocha negra. Elfinha via-o empoleirado acima deles como uma águia com as asas dobradas; suas torres de telhados cênicos, suas ameias e torreões, seus portões de ferro e janelas de fendas ― tudo denunciava a sua intenção original de comandar os sistemas hidráulicos. Abaixo dele serpenteava um poderoso tributário do Rio Vinkus no qual o Regente Ozma uma vez quisera construir uma represa e um aqueduto que levasse água ao centro de Oz ― até onde as secas eram mais ameaçadoras. O pai de Fiyero tomara essa fortaleza num cerco violento e a transformara numa propriedade dos príncipes de Arjiki, antes de morrer e deixar a liderança do clã para seu filho único, se Elphaba recordava bem.

A pequena bagagem foi feita, as abelhas zumbiam (as melodias que, semana após semana, lhe pareciam cada vez mais espantosas), Matalegria estava ainda amuado por não ter podido exercer seus instintos assassinos, os corvos sentiam que uma mudança estava por vir e não queriam comer o jantar. O macaco, que foi chamado Chistérico por causa do som que fazia, chilreou e estalejou dentes sem parar agora que estava aquecido e em segurança.

Em torno da fogueira do acampamento, adeuses foram ditos, alguns brindes, e mesmo algumas lamentações, foram feitos. O céu ficou mais escuro do que estava: talvez fosse o contraste com os picos nevados em derredor. Liir apareceu com um pacote de roupas e alguma espécie de instrumento musical, e disse adeuses também.

“Oh, então você vai ficar aqui, por acaso?”, disse Elfinha.

“Sim”, ele disse, “com você.”

“Com os corvos, com o macaco, com as abelhas, com o cão e com a bruxa?”, ela disse. “Comigo?”

“Para onde mais iria?”, ele perguntou.

“Tenho certeza que não sei”, ela respondeu.

“Eu tomo conta do cachorro”, ele disse calmamente. “Eu posso colher o mel para você.”

“Não faz diferença para mim”, ela disse.

“Tudo bem”, ele disse, e assim Liir se preparou para entrar na casa de seu pai.

 

Sarima”, disse a irmã mais nova, “acorde. Terminou a hora da soneca. Temos um convidado para a ceia, e eu preciso saber se temos de matar uma galinha. Há tão poucas, e o que servimos aos viajantes perdemos todo inverno em ovos... O que acha?”

A Viúva Princesa dos Arjikis gemeu. “Detalhes, detalhes”, ela disse, “não posso treinar você para resolver tudo sozinha!”

“Muito bem”, replicou a irmã, “eu decidirei, e você poderá dispensar o seu ovo da manhã quando estivermos na escassez.”

“Oh, Seis, não me dê ouvidos”, disse Sarima, “é só que estou tão pouco acordada. Quem é o convidado? Algum patriarca com mau hálito, que planeja nos aborrecer com histórias das caçadas que ele fez há cinqüenta anos? Por que permitimos essas coisas?”

“É uma mulher ― mais ou menos”, disse Seis.

“Isso sim é indesejável”, disse Sarima, sentando-se. “Não somos mais as ninfas rosadas que um dia fomos, Seis.” Do outro lado do quarto ela se via refletida no espelho do guarda-roupa: pálida como pudim de leite, seu rosto ainda bonito se aninhando em poças de gordura que caíam de acordo com as leis da gravidade. “Só porque você é a mais jovem, Seis, e pode ainda ajustar a sua cintura, não há necessidade de ser ferina.”

Seis fez beicinho. “Bem, é apenas uma mulher, então: fazemos ou não a galinha? Diga-me agora para que Quatro possa cortar a sua cabeça e depenar, ou não comeremos antes da meia-noite.”

“Teremos fruta e queijo e pão e peixe. Há peixe no poço, não é?” Sim, havia. Seis se virou para sair, mas se lembrou de dizer: “Eu lhe trouxe um copo de chá doce, está ali no seu toucador”.

“Abençoada seja. Agora, me diga, sem sarcasmo, por favor, como é nossa convidada, realmente?”

“Verde como o pecado, magra e curvada, mais velha que qualquer uma de nós. Vestida de preto como uma velha madre ― mas não tão velha. Imagino que tenha perto de oh, trinta, trinta e dois? Ela não disse o seu nome.”

“Verde? Que divino”, disse Sarima.

“Divino não é bem a palavra que me vem à cabeça”, disse Seis.

“Você não quer dizer verde de inveja ― você quer dizer realmente verde?”

“Talvez seja de inveja, não posso dizer, mas ela é verde com certeza. Legítimo verde capim.”

“Oh la. Bem, eu usarei branco nesta noite para não entrar em choque. Ela está sozinha?”

“Ela chegou com a caravana que vimos na descida do vale ontem. Ela parou por aqui com um pequeno bando de animais ― um cão-lobo, uma colméia de abelhas, um moleque, alguns corvos e um macaco-bebê.”

“O que ela fará com todos eles nas montanhas no inverno?”

“Pergunte você a ela.” Seis franziu o nariz. “Ela me faz tremer.”

“Até gelatina mal-feita faz você tremer. Quando será o jantar hoje à noite?”

“Sete repiques e meio. Ela vira meu estômago.”

Seis saiu, esgotando suas expressões de desgosto, e Sarima tomou seu chá na cama até que sua bexiga reclamou. Seis tinha avivado o fogo e fechado as cortinas, mas Sarima abriu-as novamente para olhar para o pátio lá embai­xo. Kiamo Ko se exibia orgulhosa em suas torres e torreões, construída em maciças saliências circulares que se erguiam da pedra da própria montanha. Depois que o clã dos arjikis arrebatara o edifício da comissão hidráulica, ameias serrilhadas tinham sido acrescentadas para fazer a defesa. A despeito das restaurações, o plano da casa era ainda simples. Era construída na for­ma genérica de um U, uma sala central com duas longas alas estreitas que contornavam um pátio elevado. Quando chovia, a água escorria abundante sobre as pedras redondas, e deslizava pelos portões entalhados de carvalho rijo e os painéis de jaspe, passando pelo enfermiço ajuntamento de casas da aldeia aninhadas nos muros exteriores do castelo. Nessa hora, o pátio era de um cinza-carvão. Frio e imundo com retalhos de feno e pedacinhos de folhas voejando ao vento. Havia uma luz na velha casinha do sapateiro, e fumaça se evolando da chaminé que acusava falta aguda de uma reforma ― como tudo mais nessa mansão decadente. Sarima estava contente pela casa propriamente não ter sido exibida à sua convidada. Como Viúva Princesa dos Arjikis, ela gozava do privilégio de dar boas-vindas ao viajante nas câmaras privadas de Kiamo Ko.

Depois do banho, ela se vestiu com um traje diáfano de pintas brancas, e pôs o seu belo colar que havia chegado, feito uma mensagem do Outro Mundo, de seu querido finado marido, meses depois do Incidente. Fugindo ao hábito, Sarima derramou algumas lágrimas admirando a si mesma dentro do confortável amplexo de sua gola segmentada, enfeitada pela jóia. Se esti­vesse muito paramentada do ponto de vista dessa viajante, ela poderia sempre disfarçar a coisa com um guardanapo. Mas ela ainda saberia que a jóia estava lá. Mesmo antes de suas lágrimas secarem ela estava murmurando, esperando ansiosamente pela novidade.

Ela deu uma olhadela nos filhos antes de descer. Estavam saltitantes; os estranhos sempre os deixavam assim. Irji e Manek, de doze e onze anos, já estavam quase velhos o suficiente pára saírem desse ninho de pombas peçonhentas. Irji era mole e chorava bastante, mas Manek era um pequeno combativo, sempre fora. Se ela os deixasse partir com o clã para as Pastagens, na migração de verão, ambos poderiam ter suas gargantas cortadas ― havia muitos homens do clã disputando a liderança para eles mesmos ou para os filhos. Portanto, Sarima os mantinha por perto.

Sua filha, Nor, de pernas longas e chupando o polegar até os nove anos, ainda precisava de um colo no qual se aninhar antes de ir dormir. Vestida para a refeição, Sarima se sentiu inclinada a não dar colo, mas se abrandou. Nor tinha um ceceio delicado e dizia zorrendo na zuva em vez de correndo na chuva. Ela fazia amizade com pedras e velas e hastes de capim que cresciam contra toda a lógica nas rachaduras das pedras de muro em torno das janelas. Ela suspirou e esfregou o rosto contra o seu colar e disse: “Tem um menino também, Mãe. Nós brincamos com ele no quintal do moinho”.

“Como ele é? Verde também?”

“Não. Ele é normal. Ele é um bebezão ― gordo e forte, e Manek jogou pedras nele para ver o quanto ele conseguiria desviar delas. Ele deixou o Manek fazer isso. Talvez você sendo gordo não se machuque?”

“Duvido disso. Qual é o nome dele?”

“Liir. Não é um nome esquisito?”

“Soa estrangeiro. E sua mãe?”

“Não sei o nome dela e não acho que ela seja mãe dele. Ele não disse nada quando a gente perguntou. Irji disse que ele deve ser um bastardo. Liir disse que não se importava. Ele é boa gente.” Ela levou seu polegar direito à boca, e com a sua mão esquerda tateou o tecido do roupão de Sarima bem abaixo da gola, até que encontrou um mamilo, e passou seu polegar sobre ele afetuosamente, como se fosse um bichinho de estimação. “Manek fez o menino abaixar as calças pra gente poder ter certeza de que a coisa dele não era verde.”

Sarima desaprovou ― em consideração à hospitalidade, se não fosse por mais nada ― mas foi compelida a perguntar: “E o que você viu?”

“Oh, bem, você sabe.” Nor virou a cabeça e colocou-a no pescoço da mãe, e então espirrou com o pó-de-arroz com o qual Sarima mantinha seus queixos protegidos de fricção. “Coisa de menino tem aparência estúpida. Me­nor que as de Manek e Irji. Mas não verde. Eu fiquei tão aborrecida que não olhei muito.”

“Nem eu olharia. Foi muito grosseiro.”

“Não fui eu que o obriguei a fazer isso. Foi Manek!”

“Bem, basta disso. Agora, vamos pra uma historinha antes de dormir. Eu tenho de descer, então vamos pra uma curta. O quê você quer ouvir, minha pequena?”

“Eu quero ouvir a história da Bruxa e os bebês-raposas.”

Com menos drama que habitualmente, Sarima se animou a narrar o conto de como os três bebês-raposas foram raptados e enjaulados e alimenta­dos até ficarem gordinhos, na preparação de uma caçarola de queijo-e-carne de filhote de raposa, e como a Bruxa foi buscar fogo no sol para cozinhá-los. Mas, quando ela voltou para a sua caverna, exausta e de posse da chama neces­sária, os filhotes de raposa levaram a melhor sobre ela cantando um acalanto para fazê-la dormir. Quando o braço da bruxa caiu, a chama que ela trouxera do sol queimou a porta da jaula, e os filhotes se evadiram. Então, eles uivaram chamando a velha mãe-lua para descer e ficar como uma porta irremovível na entrada da caverna. Sarima encerrou com o tradicional desfecho. “E lá a maléfica velha Bruxa ficou presa, por um tempão.”

“E ela não conseguiu sair?”, perguntou Nor, fazendo a sua parte no joguinho num estado quase hipnótico.

“Ainda não”, disse Sarima, beijando e mordendo sua filha no pulso, o que fez ambas darem risadinhas, e então as luzes se apagaram.

As escadas do apartamento privado de Sarima desciam sem corrimões para a fortaleza do castelo, alinhando-se primeiro a uma parede e, então, depois de uma curva, a mais outra. Ela desceu o primeiro lance cheia de graça e autodomínio, suas saias brancas se encapelando, seu colar uma pala de cores suaves e metais preciosos, seu rosto uma cuidadosa composição de boas-vindas.

Na plataforma, ela viu a viajante, sentada num banco num caramanchão, olhando para ela.

Ela desceu o segundo lance até o nível da laje, consciente do cinismo que fervilhava por baixo de sua leal recordação de Fiyero, consciente do aguilhão desse cinismo; consciente de sua beleza perdida; de seu peso; de sua tolice de reinar sobre nada além de crianças irritantes e irmãs mais jovens traidoras; da escassa pretensão de autoridade que mal mascarava seu medo do presente, do futuro e mesmo do passado.

“Como vai?”, ela conseguiu dizer.

“Você é Sarima”, disse a mulher, erguendo-se, seu queixo parecido a uma estalactite que se projetasse feito uma raiz de rutabaga apodrecida.

“É provável!”, ela disse, satisfeita pelo colar; parecia-lhe um escudo ago­ra, para proteger seu coração de ser perfurado por aquele queixo. “Saudações a você, minha amiga. Sim, eu sou Sarima, senhora de Kiamo Ko. De onde você vem, e como se chama?”

“Eu venho de algum lugar por trás do vento”, disse a mulher, “e eu tenho escondido o meu nome tão freqüentemente que não vou gostar de revelá-lo novamente para você.”

“Bem, você é bem-vinda aqui”, disse Sarima tão suavemente quanto pôde, “mas se não temos nada de que chamá-la, você ficará sendo a Titia. Você quer jantar? Nós a serviremos logo.”

“Eu não jantarei enquanto não nos falarmos”, disse a convidada. “Não debaixo de seu teto, derramando-me em fingimentos por uma noite; eu pre­feriria cair no fundo de um lago. Sarima, eu sei quem você é. Eu estudei com seu marido. Soube de você há uns doze anos ou quase.”

“É claro”, disse então Sarima, vendo as coisas se encaixando. Os velhos, bem guardados detalhes da vida de seu marido emergiram rapidamente em sua memória. “É claro que Fiyero falou de você ― e de sua irmã, Nessinha, certo? Nessarose. E da glamourosa Glinda, por quem achei que ele estivesse um tantinho apaixonado, e dos rapazes brincalhões invertidos, e de Avaric, e do sólido velho Boq! Eu tinha imaginado se aquele tempo feliz da vida de meu marido não seria sempre exclusivo, sempre dele e nunca meu ― é bom que você tenha vindo para lembrá-lo. Eu teria gostado de ter passado uma temporada ou outra em Shiz, mas temo que não tivesse miolos, nem minha família dispusesse de dinheiro para isso. Eu lembrei-me de você num minu­to, bem, a cor de sua pele, não há nada igual a ela, não é? Ou estou sendo provinciana demais?”

“Não, é única”, disse a convidada. “Antes que digamos umas dez frases de tolices bem-educadas uma para a outra, eu tenho de lhe contar uma coisa, Sarima. Eu acho que fui a causa da morte de Fiyero...”

“Bem, você não seria a única”, interrompeu Sarima, “é um passatempo nacional por aqui culpar-se pela morte de um príncipe. Uma oportunidade para aflição e expiação pública, que eu secretamente acredito que as pessoas saboreiem um pouquinho.”

A convidada torceu seus dedos, como se para abrir um espaço para si mesma nas opiniões de Sarima. “Eu posso lhe contar como, eu quero lhe contar...”

“Não a menos que eu queira ouvi-la, o que é prerrogativa minha. Esta é minha casa e eu escolho ouvir o que eu quero.”

“Você deve me ouvir, assim poderei ser perdoada”, disse a mulher, vi­rando seus ombros para cá e para lá, quase como se fosse uma besta de carga com uma canga invisível sobre si.

Sarima não gostava de ser acuada em sua própria casa. Haveria tempo suficiente para considerar essas implicações repentinas, quando ela se sentisse com vontade para isso. E não antes. Dizia a si mesma que estava no comando. E então podia dar-se ao luxo de ser amável.

“Se bem me lembro”, disse Sarima ― sua mente disputava uma corrida com a memória ― “você é aquela, Fiyero falou de você, é claro ― Elphaba, é isso ― você é aquela que não acreditava na existência da alma. Eu me lembro bem assim, então, o que há para perdoar, queridinha? Sei que você viajou cansativamente ― impossível chegar aqui sem viajar exaustivamente ― e você precisa de uma boa refeição quente e algumas noites de sono, e a gente poderá conversar em alguma manhã da próxima semana?”

Sarima juntou seu braço ao de Elphaba. “Mas eu esconderei seu nome das pessoas, se você prefere assim”, disse. Ela conduziu Elphaba através das altas portas de carvalho empenado na direção da sala de jantar e anunciou: “Olhem quem está aqui, Titia Hóspede”. As irmãs se postavam ao lado de suas cadeiras, famintas e curiosas e impacientes. Quatro tinha o colherão enfiado na sopeira, e o mexia; Seis se vestira de um roxo-avermelhado hostil; Dois e Três, as gêmeas, olhavam piamente para os seus cartões de oração; Cinco estava fumando e soprando anéis concêntricos na direção de uma travessa com um peixe amarelo sem olho que elas haviam pescado do lago subterrâneo. “Irmãs, exultemos, uma velha amiga de Fiyero veio comparti­lhar memórias queridas e avivar nossas vidas. Acolham-na como acolheram a mim.” Talvez fosse uma escolha infeliz de palavras, pois as irmãs todas se ressentiram e desprezaram Sarima. Por que ela se casara com alguém que morreria tão cedo e as condenara não só a ficar solteironas, mas também à privação e à negação?

Elphaba não falou palavra durante a refeição toda nem levantou os olhos de seu prato. Apesar disso, devorou o peixe e o queijo e as frutas. Sarima deduziu de seus modos alimentares que ela vivera debaixo de uma regra de silêncio quanto a refeições, e não ficou surpresa, mais tarde, ao ser informada sobre o monastério.

Tomaram um copo de um xerez precioso na sala de música, e Seis entreteve-as com um noturno agitado. A convidada parecia acabrunhada, o que deixava as irmãs felizes. Sarima suspirava. A única coisa que podia ser dita a respeito da convidada era esta: ela era mais velha que Sarima. Talvez, durante o curto tempo de sua estada, Elphaba pudesse sair daquele amuo e ficar sabendo como a vida de Sarima era problemática e cheia de provações. Seria bom conversar com alguém, mas não em reunião de família.

 

Uma semana se passou até que Sarima dissesse para Três: “Por favor, diga à nossa Titia Hóspede que eu gostaria de vê-la amanhã para uma peque­na refeição no Solar”. Sarima julgava que Elphaba já tivera tempo suficiente para perceber a medida das coisas. A sofrida mulher verde estava em alguma espécie de lentidão controlada, forçada. Ela se movia espasmodicamente, per­seguindo alguma coisa no pátio, batendo os pés até farelar, como se tentasse fazer buracos no piso com seus calcanhares. Seus cotovelos estavam sempre curvados em ângulos retos, e suas mãos se apertavam e desapertavam.

Sarima se sentiu mais forte que nunca, o que não era muito. Fazia-lhe bem ter uma mulher de sua idade por perto, não importando quão frustrada ela pudesse estar. As irmãs desaprovavam a cordialidade de Sarima, mas as passagens das montanhas altas já estavam bloqueadas devido ao inverno, e não se podia mandar um estranho embora sumariamente por aqueles vales traiçoeiros. As irmãs conferenciavam em sua sala, enquanto se ocupavam tricotando odiosos porta-vasinhos cinzentos para os pobres, que elas não achavam merecedores, ganharem na época de Lurlinemas. Ela é doente, di­ziam; ela é inerte, incompleta (ainda mais do que elas eram, era a conclusão não mencionada, uma idéia imensamente agradável); ela é amaldiçoada. E aquele balão gordo que passa por menino é seu filho, ou uma criança escrava, ou é um de seus animais domésticos? Por trás das costas de Sarima elas cha­mavam a mulher que vivia na casinha do sapateiro de Titia Bruxa, ecoando as velhas lendas de Kumbricia, que eram mais vis ― e mais persistentes ― nos Kells que em qualquer parte de Oz.

Foi Manek, o filho do meio de Sarima, quem ficou mais curioso. Numa manhã, enquanto todos os meninos se postavam nas ameias urinando à von­tade (um jogo pelo qual a pobre Nor tinha de fingir não estar interessada), Manek disse: “E se a gente mijasse na Titia? Será que ela gritaria?”.

“Ela te transformaria num sapo”, disse Liir.

“Não, eu quero dizer, será que isso a machucaria? Parece que água dá nela dores e tremores. Será que ela chega a beber? Ou a água faz sua parte de dentro doer?”

Liir, não especialmente uma criança observadora, disse: “Eu acho que ela não bebe. Às vezes ela lava as coisas, mas ela usa varas e escovas. Melhor a gente não mijar nela”.

“E o que ela faz com todas aquelas abelhas e o macaco? Eles são mágicos?”

“Sim”, disse Liir.

“Que tipo de mágicos?”

“Eu não sei.” Eles saíram da beira vertiginosa da ameia e Nor foi cor­rendo atrás. “Eu tenho uma palha mágica”, ela disse, segurando uma cerda marrom. “Da vassoura da Bruxa.”

“A vassoura é mágica?”, disse Manek a Liir.

“Sim. Pode varrer o chão bem depressa.”

“Pode falar? E enfeitiçada? O que ela diz?”

Eles ficaram mais interessados, e Liir corou diante de sua curiosidade. “Eu não posso dizer. É um segredo.”

“Vai continuar sendo um segredo se a gente te jogar da torre?”

Liir pensou. “O que você quer dizer?”

“Você conta ou a gente te joga.”

“Não me empurrem da torre, seus retardados.”

“Se a vassoura é mágica, ela virá voando e te salvará. Além disso, você é tão gordo que acho que vai quicar que nem uma bola.”

Irji e Nor riram disso, a despeito deles mesmos. Fazia uma imagem muito engraçada em suas cabeças.

“A gente só quer saber os segredos que a vassoura conta pra você”, disse Ma­nek com um grande sorriso. “Então, conta pra gente. Ou a gente te empurra.”

“Vocês não estão sendo justos, ele é boa companhia”, disse Nor. “Ve­nham, vamos procurar alguns ratos na despensa e fazer amigos.”

“Num minuto. Vamos empurrar Liir do telhado primeiro.”

“Não”, disse Nor, começando a chorar. “Vocês meninos são tão malva­dos. Você tem certeza de que a vassoura é mágica, Liir?”

Mas Liir agora não queria dizer mais nada.

Manek atirou um seixo do telhado e pareceu passar um longo tempo antes que se ouvisse o ping do impacto.

Numa questão de momentos, o rosto de Liir começara a apresentar bolsas profundamente negras sob os olhos. Ele mantinha as mãos caídas do lado como um traidor numa corte marcial. “A Bruxa ficará tão furiosa com vocês que ela os odiará”, Liir disse.

“Eu não acho”, disse Manek, dando um passo adiante. “Ela nem vai dar bola. Ela gosta mais do macaco que de você. Ela nem notará se você estiver morto.”

Liir ofegava. Embora houvesse acabado de urinar, a parte da frente de suas calças largas havia ficado escura de umidade. “Olhe, Irji”, disse Manek, e seu irmão mais velho olhou. “Ele não serve nem pra viver, não é? É como se não fosse fazer falta nenhuma. Vamos lá, Liir, me conta. O que a maldita da vassoura disse pra você?”

O torso superior de Liir inflava e desinflava como um fole. Ele sussur­rou, “A vassoura me contou ― que ― que ― vocês todos vão morrer!”

“Oh, é só isso”, disse Manek. “A gente já sabia disso. Todo mundo morre. A gente já sabia.”

“Vocês sabiam?" disse Liir, que não sabia.

“Venham”, Irji disse, “venham, vamos pegar alguns ratos na despensa e poderemos cortar seus rabinhos e usar a palha mágica de Nor para furar os olhos deles.”

“Não!”, disse Nor, mas Irji tinha surrupiado a sua palha. Manek e Irji davam-se encontrões, os membros soltos como os de marionetes, junto ao parapeito, descendo as escadas. Com um enorme, aflito suspiro, Liir se re­compôs e arrumou as suas roupas, e seguiu-os como um anão trabalhador forçado nas minas de esmeralda. Nor ficou para trás, seus braços cruzados em desafio, seu queixo trêmulo de frustração. Então ela cuspiu na murada e se sentiu melhor, e seguiu os meninos.

 

No meio da manhã, Seis levou a convidada até o solar. Com um sorri­so afetado pelas costas de Titia, ela depositou uma bandeja de biscoitinhos cruéis, duros como cimento, numa mesa coberta com um tapete que se tor­nara marrom e sem desenho definido. Sarima, tendo já se desincumbido do que era a sua rotina diária de abluções espirituais, sentia-se preparada.

“Você está aqui há uma semana e parece que isso vai durar mais”, disse Sarima, autorizando Seis a servir um pouco de café de raiz amarga antes de dispensá-la. “A trilha norte está toda coberta de neve no momento, e não há um refúgio seguro entre nós e as planícies. Os invernos são penosos nas montanhas, e conquanto possamos nos virar com nossas provisões e nos­sa própria companhia, valorizamos muito uma novidade. Leite? Eu não sei exatamente o que você pretendia. Uma vez que a sua visita já se encontra cumprida, quero dizer.”

“Há boatos sobre a existência de cavernas nestes Kells”, Elphaba disse, quase mais para si mesma que para Sarima. “Eu vivi por alguns anos no Claus­tro de Santa Glinda nas Pedras Ralas, nos arredores de Cidade Esmeralda. Os dignatários nos visitavam, e enquanto permanecêssemos sob voto de silêncio, ninguém poderia falar do que soubesse. Celas monásticas. Eu pensava, quan­do cheguei aqui, que eu poderia ser levada a uma caverna e... e...”

“E ser uma dona-de-casa”, disse Sarima, como se ir para as cavernas fosse tão costumeiro quanto casar e parir bebês. “Alguns fazem isso, eu bem sei. Há um velho ermitão no penhasco ocidental de Garrafa Quebrada ― é um pico que há nas proximidades ― que dizem estar lá há alguns anos, e ele regrediu a um momento mais primitivo da natureza. Da natureza dele, quero dizer.”

“Uma vida sem palavras”, Elfinha disse, olhando para o seu café sem tomá-lo.

“Dizem que esse ermitão se esqueceu tudo sobre higiene pessoal”, disse Sarima, “o que, considerando o que os meninos fedem quando ficam sem banho por algumas semanas, me parece ser uma defesa natural contra ataque de animais selvagens.”

“Eu não espero ficar aqui por muito tempo”, Elphaba disse, virando sua cabeça com um giro de pescoço que a fez parecer um papagaio e olhando para Sarima de um modo estranho. Oh, cuidado, pensou Sarima cautelosamente, embora tivesse uma tendência a gostar de sua hóspede: Cuidado, ela está to­mando a direção da discussão em suas próprias mãos. Isso não será bom. Mas a hóspede continuou: “Eu tinha pensado que ficaria uma ou duas noites, três talvez, e poderia encontrar um buraco para me esconder antes que o inverno tomasse conta. Eu estava trabalhando com o calendário errado, eu pensava em como, e quando, o inverno chega a Shiz e a Cidade Esmeralda. Mas vocês estão adiantados em seis semanas, aqui.”

“Adiantados no outono e atrasados na primavera, ai”, disse Sarima. Ela tirou seus pés da almofada e colocou-os no chão, bem firmes, para mostrar seriedade. “Agora, minha nova amiga, há algumas coisas que preciso dizer para você.”

“Tenho coisas a dizer também”, Elfinha disse, mas Sarima saiu na frente dessa vez.

“Você vai me julgar uma pessoa impolida, e estará certa, é claro. Oh, quando eu fui escolhida para ser noiva em criança, uma boa governanta foi contratada em Gillikin para me ensinar e ensinar minhas irmãs a como usar verbos e pronomes e talheres de salada. E mais tarde eu comecei a dominar a leitura. Mas a maior parte do que aprendi sobre comportamento polido foi com o que Fiyero foi generoso o bastante para me ensinar quando concluiu sua educação e retornou. Não há dúvida que cometo gafes sociais. Você tem todo o direito de rir em minhas costas.”

“Não sou dada a esse tipo de atitude”, replicou Elphaba.

“Vá que seja. Mas eu ainda tenho opiniões, e sou observadora, embora não seja escolarizada. Isso a despeito de minha vida protegida, casada aos sete anos, como você deve saber, criada e guardada atrás das cortinas do castelo. Confio no meu próprio senso das coisas e não mudo de idéia. Então, deixe­-me continuar”, ela disse, quando Elphaba tentou interrompê-la. “Há tempo de sobra e o sol é belo aqui, não é? No meu pequeno refúgio.”

“Parece-me que você veio aqui para ― vamos dizer ― aliviar-se de al­gum negócio pesado ou outro. Você traz isso na cara. Não se espante, minha querida, porque, se há um ar que reconheço, é o ar de alguém que carrega um fardo. Lembre-se, eu escuto minhas irmãs, ano após outro, quando elas graciosamente me revelam todas as maneiras pelas quais me odeiam, e por quê.” Ela sorriu, divertindo-se com a própria tirada. “Se você quer se livrar de seu fardo, jogue-o aos meus pés, ou sobre meus ombros. Você talvez queira chorar um pouco, dizer adeus, e então partir. E quando você partir daqui, você irá sumir no mundo.”

“Eu não farei uma coisa assim”, disse Elfinha.

“Você fará sim, mesmo que não saiba disso. Você não terá nada que ligue você ao mundo. Mas eu sei meus próprios limites, Titia Hóspede, e sei para que você veio. Você me contou. Você me contou lá na sala, você disse que se sentia responsável pela morte de Fiyero...”

“Eu...”

“Não fale. Não fale nada. Esta é minha casa, eu sou uma Viúva Princesa de Bosta de Pato nominalmente, mas eu tenho o direito de ouvir e de não ouvir. Mesmo que seja para fazer um visitante sentir-se melhor.”

“Eu...”

“Não fale.”

“Mas eu não quero lhe sobrecarregar, Sarima, eu quero é lhe tirar um peso contando a verdade ― se você me permitir, você é o maior e o mais leve deles; o perdão abençoa o doador tanto quanto o recebedor.”

“Eu farei de conta que não ouvi essa observação sobre eu ser o maior peso”, disse Sarima. “Mas, ainda tenho o direito de escolher. E eu acho que você me quer mal. Você me quer mal e nem sabe disso. Você quer me punir por alguma coisa. Talvez por não ter sido uma esposa boa o bastante para Fiyero. Você me quer mal e está se enganando ao pensar que isso possa ser um cursinho terapêutico de barrinhas de chocolate.”

“Você sabe como ele morreu, ao menos?”, disse Elphaba.

“Sei que foi em alguma ação violenta, sei que seu corpo nunca foi en­contrado, sei que isso aconteceu num ninho de amor”, disse Sarima, perdendo sua pose por um momento. “Eu não sei quem foi que fez isso exatamente, mas eu já conversei bastante sobre isso com aquele vil Sir Chuffrey para formar minha sólida opi...”

“Sir Chuffrey!”

“Eu disse não. Eu disse basta. Agora, tenho uma oferta a lhe fazer, Titia, se você me ouvir. Você e o menino podem se mudar para a torre a sudeste, se quiserem. Há um par de grandes quartos redondos com tetos altos, e boa ilu­minação, e vocês ficarão longe daquela casinha de sapateiro cheia de correntes de ar, e mais aquecidos. Você terá sua própria escada para ir e voltar da sala principal, e não incomodará as garotas nem elas vão perturbá-la. Vocês não podem ficar naquela casinha o inverno todo. O menino tem me parecido pá­lido e choroso, acho que está sempre resfriado. Você está numa condição tal, temo afirmar, que terá de aceitar minha palavra mais firme nessas questões. Eu não quero discutir meu marido ou os aspectos de sua morte com você.”

Elphaba parecia horrorizada, e derrotada. “Não tenho escolha além de aceitar”, ela disse, “ao menos temporariamente. Mas eu lhe aviso, eu pretendo me tornar tão completamente amiga sua que você mudará de opinião. E con­tinuo achando que você precisa saber de certas coisas, você precisa conversar sobre elas, tal como faço ― e não poderei partir por essa vastidão adentro até que tenha obtido de você a solene promessa de...”

“Basta!”, disse Sarima. “Chame o porteiro da guarita e peça a ele para levar a sua bagagem para a torre. Venha, eu lhe mostro. Você não tocou no seu café.” Ela parou. Por um momento embaraçoso, houve respeito e descon­fiança, em igual medida, fervilhando no tapete como a poeira aos raios de sol. “Venha”, disse Sarima, mais suavemente, “no mínimo você precisa se aquecer. Você deve sair daqui falando bem de nós, os ratos caipiras de Kiamo Ko.”

 

No que dizia respeito a Elphaba, aquilo era um quarto de bruxa, e ela se divertiu com ele. Como todos os bons quartos de bruxa nas histórias infantis, tinha paredes curvas, seguindo a forma essencial de uma torre. Tinha uma ampla janela que, por estar virada para o leste, longe do vento, podia ser destrancada e arreganhada sem que tudo e todos fossem levados pelos ares, pelos vales nevados. Mais além, os Grandes Kells eram uma fila de sentinelas, de um negro arroxeado quando o sol de inverno nascia atrás deles, virando painéis de um branco azulado à medida que o sol se encaminhava para o pino, e ficando dourados e avermelhados na tarde que caía. Havia de vez em quando alguns desmoronamentos ruidosos de gelo e pedras soltas.

O inverno dominava a casa. Elphaba logo aprendeu o bastante para ficar satisfeita com o alojamento, no mínimo por estar certa que nenhum outro quarto tinha um fogo mais quente. E, com exceção de Sarima, ela não se importava com as outras companhias que a casa oferecia. Sarima vivia na ala ocidental, com os filhos: os meninos Irji e Manek, a menina Nor. As cinco irmãs de Sarima viviam na ala oriental ― elas eram chamadas por números de 2 a 6, e se alguma vez chegaram a ter outros nomes, estes tinham murchado devido ao desuso. Por direito de sua condição de não-casáveis, as irmãs recla­mavam os melhores quartos do lugar, embora Sarima fosse a dona do Solar. Onde Liir se enrascava para dormir Elphaba não sabia, mas ele reaparecia toda manhã para trocar seus farrapos ao pé do poleiro dos corvos. E trazia chocolate para ela, também.

Os Lurlinemas se aproximavam, e surgiram ali algumas decorações gas­tas das quais o dourado desaparecera. As crianças passaram um dia inteiro amarrando bugigangas e brinquedos nas arcadas, fazendo os adultos baterem a cabeça e praguejarem. Manek e Irji pegaram alguns galhos de espruce e ramos novos de azevinho. Nor ficava em plano secundário e pintava cenas de vida feliz no castelo em folhas de papel que ela e Liir tinham encontrado no quarto da Titia Bruxa. Liir disse que ela não sabia desenhar, e por isso se esgueirou por ali e desapareceu, talvez para fugir de Manek e Irji. A casa ficou em silêncio até que se ouviu um ruído de panelas de cobre atiradas na cozinha. Nor foi correndo para ver o que era, e Liir saiu de algum cubículo oculto para olhar também.

Era Chistérico. O macaco estava comendo alguma provisão, e todas as irmãs, cozinhando pão de mel, jogavam nele montinhos de massa, tentando afastá-lo da roda que estava pendurada, os utensílios fazendo barulho ao serem chacoalhados, acima da mesa de trabalho.

“Como é que ele entrou aqui?”, disse Nor.

“Leva ele pra fora, Liir, chama ele!”, disse Dois. Mas Liir não tinha so­bre Chistérico mais autoridade que elas. O macaco fugiu para o topo de um guarda-roupa, daí para uma enorme vasilha de alimentos secos, e abriu uma gaveta, encontrando uma preciosa provisão de passas, com a qual encheu a boca. Seis disse: “Vão pegar a escada da sala, vocês dois, e tragam aqui”, mas quando eles a trouxeram, Chistérico estava de volta à roda, fazendo-a rodo­piar e retinir como um carrossel num carnaval.

Quatro pôs um pedaço de melão amassado numa tigela. Cinco e Três tiraram seus aventais, ficando prontas para enxotá-lo quando ele descesse. Chistérico estava ainda olhando para a fruta quando a porta abriu com estré­pito contra a parede e Elphaba entrou, com passos desajeitados. “Com toda essa comoção, como conseguem ouvir vocês mesmas pensando?”, ela gritou, e então percebeu a presença de Chistérico, subitamente servil e tomado de remorso, e das irmãs, aprumadas para pegá-lo na armadilha de seus aventais cheios de farinha.

“Que diabos ele fez?”, ela disse.

“Não precisa gritar”, disse Dois aborrecida, sussurrando, mas elas bai­xaram seus aventais.

“Estou perguntando, o que é isto? O que é que realmente está aconte­cendo aqui? Vocês todas se parecem com Matalegria, com sede de sangue nas caras! Vocês estão brancas de raiva desse pobre animal!”

“Eu acho que não é raiva, é farinha”, disse Cinco, o que fez com que elas dessem risadinhas.

“Suas imundas selvagens”, disse Elfinha. “Chistérico, venha cá, desça. Imediatamente. Vocês, mulheres, merecem ser solteironas, porque assim não trazem nenhuma selvagem criança rastejante a este mundo. Não me ponham nunca a mão nesse macaco, estão me ouvindo? E como foi que ele fugiu de meu quarto? Eu estava no Solar com a irmã de vocês.”

“Oh”, disse Nor, lembrando, “oh, Titia, sinto muito. Fomos nós.”

“Vocês?” Ela se virou e olhou para Nor pela primeira vez, e Nor não gostou muito daquilo. Ela se encolheu, encostando-se à porta do frio porão. “O quê vocês estavam querendo lá?”, disse Elfinha.

“Um pouco de papel”, disse Nor debilmente, e num desesperado jogo de tudo ou nada, disse: “Eu fiz algumas pinturas para todo mundo, quer ver? vem cá”.

Chistérico nos braços, Elphaba seguiu-os até a sala desconfortável, onde o vento que vinha por debaixo da porta da frente fazia os papéis flutuarem contra a pedra esculpida. As irmãs vieram também, seguindo-os a uma dis­tância segura.

Elfinha ficou muito quieta. “Este papel é meu”, ela disse. “Eu não os autorizei a usá-lo. Olhem, tem palavras no verso. Vocês sabem o que são palavras?”

“Claro que eu sei, você acha que sou estúpida?”, respondeu Nor agres­sivamente.

“Vocês deixem meus papéis em paz”, disse Elphaba. Então, ela e Chis­térico subiram os degraus, e a porta para a torre se fechou estrepitosamente na cara deles.

“Quem quer ajudar a enrolar o pão de mel?”, disse Dois, aliviada que crâ­nios não tivessem sido rachados. “E esta sala está muito bonita, passarinhos, estou certa que Preenella e Lurline ficarão impressionadas hoje à noite.” As crianças voltaram para a cozinha e fizeram imitações de pessoas em pão de mel, e também de corvos, macacos e cães, mas não conseguiam fazer abelhas, eram pequenas demais. Quando Irji e Manek vieram, espalhando grama ne­vada no piso de ardósia, ajudaram a fazer as formas de pão de mel também, mas faziam formas asquerosas que não mostravam às crianças mais novas, e continuaram engolindo a massa crua e rindo histericamente por isso, o que deixava todo mundo louco da vida.

 

De manhã as crianças acordaram e correram para o andar inferior para ver se Lurline e Preenella haviam passado por lá. Decerto, havia lá um cesto de vime marrom com uma fita verde e dourada sobre ele (um cesto e uma fita que as crianças de Sarima já tinham visto ano após ano), e dentro havia três pequenas caixas coloridas, cada uma com uma laranja, um boneco, um pequeno saco de bolas de gude e um rato de pão de mel.

“Onde está o meu?”, disse Liir.

“Não vejo nenhum com seu nome em cima”, disse Irji. “Olhe: Irji. Ma­nek. Nor. Acho que Preenella deixou algum pra você lá na sua velha casa. Onde é que você morava?”

“Eu não sei”, disse Liir, e começou a chorar.

“Aqui, você pode ficar com o rabinho do meu rato, só o rabinho”, disse Nor gentilmente. “Primeiro você tem de dizer: ‘Posso ficar com o rabinho de seu rato?’ ”

“Posso por favor ficar com o rabinho do seu rato?”, disse Liir, embora suas palavras soassem quase ininteligíveis.

“E eu prometo obedecê-lo.”

Liir continuou murmurando. A permuta foi finalmente consumada. De vergonha, Liir não mencionou o descaso. Sarima e as irmãs nunca o notaram.

Elphaba não mostrou seu rosto o dia todo, mas mandou uma mensagem dizendo que a Véspera de Lurlinemas e Lurlinemas faziam-na sentir-se mal, e estava de folga por uns dias em conforto solitário, e não queria ser perturbada nem com refeições nem com visitas, nem com barulho de espécie alguma.

Assim, enquanto Sarima se recolhia à sua capela particular para lembrar seu querido marido nesse dia sagrado, as irmãs e as crianças cantavam alegres cânticos o mais alto que podiam.

 

Poucas semanas depois, quando as crianças travavam batalhas de bolas de neve, e Sarima estava preparando algum grogue medicinal na cozinha, Elfinha deixou seu quarto por fim e desceu furtivamente as escadas e bateu à porta da sala das irmãs.

Elas não gostaram disso, mas sentiram-se obrigadas a acolhê-la. A ban­deja de prata com garrafas de licor forte, o precioso cristal carregado em lombo de burro da Casa de Dixxi em Gillikin até ali, o mais belo e ricamente escarlate dos tapetes nativos no piso, o luxo das lareiras a cada um dos lados do aposento, cada uma delas flamejando alegremente ― bem, elas teriam escondido um pouco disso caso houvessem sido informadas da visita. Tal como foi, Quatro teve de esconder entre as almofadas do sofá o volume de couro que ela lia em voz alta, uma história forte de uma pobre mulher jovem assediada por uma abundância de bonitos pretendentes. O livro tinha sido um presente de Fiyero, o melhor que ele mandara para as irmãs ― e também o único. “Você gostaria de tomar um pouco de cevada com limão?”, disse Seis, serviçal até o dia de sua morte, a menos que por sorte alguém morresse antes.

“Sim, tudo bem”, Elphaba disse.

“Sente-se ― neste assento aqui, vai achá-lo mais confortável.”

Elfinha não tinha o ar de quem procura conforto, mas ela se sentou no assento indicado, de qualquer modo, rija e pouco à vontade naquele aposento que mais parecia um casulo acolchoado.

Ela tomou o menor golinho possível de sua bebida, como se suspeitasse de algum veneno.

“Suponho que preciso pedir desculpas por aquele tropel por causa do Chistérico”, ela disse. “Sei que sou hóspede aqui em Kiamo Ko. Eu apenas perdi um pouco a cabeça.”

“Bem, foi bem isso que você fez”, começou Cinco, mas as outras disse­ram, “Oh, não foi nada, nós todas temos dias como esse, na verdade para nós acontece sempre no mesmo dia, tem sido assim há anos...”

“É muito censurável”, Elfinha disse com algum esforço. “Eu passei mui­tos anos sob voto de silêncio, e eu não aprendi ainda a regular a voz no volume permissível.

Além disso, aqui estamos numa cultura diferente, de certo modo.”

“Nós, arjikis, sempre nos orgulhamos de ser capazes de falar com qual­quer outro cidadão de Oz”, disse Dois. “Em casa, recebemos de maneira igua­litária tanto o maltrapilho vagabundo scrow da parte sul quanto a elite de Cidade Esmeralda da parte leste.” Não que elas tivessem saído alguma vez do Vinkus.

“Quer um bocadinho?”, disse Três, trazendo uma lata de frutas de marzipã.

“Não”, Elfinha disse, “mas estou pensando no que vocês poderiam me contar sobre a tristeza particular de sua irmã.”

Elas se aprumaram, atraídas pelo assunto, e desconfiadas.

“Eu gosto de meus papos com ela no Solar”, disse Elfinha, “mas toda vez que a conversa chega perto de seu falecido esposo ― a quem vocês podem perceber que conheci pessoalmente ― ela mostra má vontade para discutir qualquer coisa.”

“Oh, bem, foi tão triste”, disse Dois.

“Uma tragédia”, disse Três.

“Para ela”, disse Quatro.

“Para nós”, disse Cinco.

“Titia Hóspede, ponha um pouco de licor de laranja na sua cevada com limão”, disse Seis, “ele vem das ladeiras aromáticas dos Kells Menores e é um luxo absoluto.”

“Bem, só um pouquinho”, disse Elfinha, mas não bebericou o licor que Seis lhe oferecera. Pôs os cotovelos sobre os joelhos e inclinou-se para a frente e disse: “Por favor, me contem como ela soube da morte de Fiyero”.

Houve um silêncio. As irmãs evitaram lançar olhares umas para as ou­tras, ocupando-se com as pregas de suas saias. Depois de uma pausa, foi Dois que disse: “Aquele triste dia. Ainda dói na memória”.

As outras se mexeram em seus assentos, virando-se desrespeitosamente para ela. Elphaba piscou duas vezes, parecendo um de seus próprios corvos.

Dois contou a história, sem sentimento ou drama. Um dos colegas de negócio de Fiyero, um comerciante arjiki, viera até o desfiladeiro da montanha no primeiro degelo de primavera, em lombo de escarque. Ele pediu para se encontrar com Sarima e insistiu que as irmãs ficassem por perto para apoiá-la quando ela recebesse as más notícias. Ele contou a elas como, nos Lurline­mas, recebera em seu clube uma mensagem anônima revelando que Fiyero tinha sido assassinado. Era num endereço em área de má reputação ― não havia vizinhança residencial. O membro do clã contratou um par de brutos e arrombou a porta do armazém. Lá dentro havia um pequeno apartamento no andar superior, um ambiente para encontros furtivos, obviamente. (O membro do clã relatou isso sem hesitação, talvez por uma manobra para diminuir o impacto do fato.) Havia evidência de luta e maciças quantidades de sangue, tão espesso em alguns pontos que ainda estava pegajoso. O corpo tinha sido removido, e nunca foi recuperado. Elphaba apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo, soturnamente, ao ouvir essa recapitulação.

“Por um ano”, continuou Dois, “nossa querida aflita Sarima recusou-se a crer que ele estivesse realmente morto. Nós não ficaríamos surpresas se surgisse um bilhete pedindo resgate. Mas, nos Lurlinemas seguintes, quando não apareceu notícia alguma sobre o caso, tivemos de aceitar o inevitável. Além disso, a liderança do clã foi tão longe quanto pôde com uma colabo­ração imprevista; eles requisitaram um simples chefe, e ele foi posto à frente da investigação, saindo-se bem. Quando Irji ficar adulto, ele poderá reclamar os direitos de progenitor, se for ousado o bastante; ele ainda não é ousado, de maneira alguma. Manek é o candidato mais óbvio, mas ele é apenas o segundo pela ordem.”

“E o que Sarima acredita que aconteceu?”, disse Elfinha. “E vocês? Todas vocês?”

Agora que a parte mais sombria da história havia sido contada, as outras irmãs sentiram que podiam chegar a um consenso. Vinha à tona que Sarima por alguns anos suspeitara que Fiyero tinha tido um caso de amor com uma antiga colega de escola chamada Glinda, uma garota gillikinesa de lendária beleza.

“Lendária?”, Elfinha disse.

“Ele nos contou como ela era encantadora, como era discreta, que graça e que brilho ela tinha...”

“Isso seria o equivalente a dizer que ele exaltava as qualidades de uma mulher com quem estaria cometendo adultério?”

“Os homens”, disse Dois, “como todas sabemos, são ao mesmo tempo cruéis e astuciosos. Que artimanhas ele teria melhor que essa de admitir fervorosamente e sempre que ele a admirava? Sarima não teria bases para acusá-lo de manha e trapaça. Ele nunca deixou de ser atencioso com ela...”

“A seu modo frio, mal-humorado, reservado, amargo”, Três se interpôs.

“Muito diferente daquilo que se lê nos romances”, disse Quatro.

“Em caso de se ler romances”, disse Cinco.

“O que não se faz aqui”, disse Seis, fechando seus lábios sobre uma pêra de marzipã.

“E então Sarima acredita que seu marido estava tendo um romance com essa... essa...”

“Essa mulher deslumbrante”, disse Dois. “Você deve tê-la conhecido, você não freqüentava Shiz?”

“Conheço-a um pouquinho”, disse Elfinha, sua boca se esquecendo de ficar fechada. Ela estava passando por maus bocados para tentar acompanhar as múltiplas narrações. “Não a vejo há anos.”

“E na mente de Sarima está claro o que aconteceu”, disse Dois. “Glinda era ― e, por tudo que sei, ainda é ― casada com um rico senhor mais velho chamado Sir Chuffrey. Ele deve ter suspeitado de alguma coisa, e a seguiu, e descobriu o que se passava. Então ele contratou uns bandidos assassinos para matar o bastardo. Quero dizer, o pobre Fiyero. Não faz sentido?”

“É totalmente plausível”, Elfinha disse lentamente. “Mas, há alguma prova disso?”

“Prova nenhuma”, disse Quatro. “Se houvesse, a honra da família teria exigido que Sir Chuffrey fosse assassinado por vingança. Mas ele deve ain­da estar gozando de boa saúde. Não, é apenas uma teoria, mas é nisso que Sarima acredita.”

“É a isso que ela se apega”, disse Seis.

“E por que não?”, disse Cinco.

“É direito dela”, disse Três.

“Tudo é direito dela”, disse Dois tristemente. “Além do mais, pense só nisso. Se seu marido tivesse sido assassinado, não seria mais fácil de suportar o fato se você achasse que de algum modo, mesmo que fosse só um pouqui­nho, ele bem que merecia?”

“Não”, Elfinha disse, “eu não acho que seria.”

“Nem nós”, admitiu Dois, “mas nós achamos que é o que ela pensa.”

“E vocês?”, Elfinha perguntou, estudando o desenho do tapete, os losan­gos de um vermelho sangüíneo, as franjas pontiagudas, os animais e folhas de acanto e os medalhões em relevo. “O que vocês pensam?”

“Dificilmente pode-se esperar de nós uma opinião unânime”, disse Dois, mas ela desembestou a falar de qualquer jeito. “Parece razoável supor que, sem que a gente soubesse, Fiyero se envolveu em algum movimento político na Cidade Esmeralda.”

“Uma estada que era para ser de um mês acabou durando quatro”, disse Quatro.

“Ele tinha ― afinidades políticas?”, disse Elphaba.

“Ele era o Príncipe dos Arjikis”, Cinco lembrou a todas. “Ele tinha liga­ções ― responsabilidades ― alianças ― que quem de nós poderia adivinhar? Era direito seu ter opiniões sobre coisas que nós não precisávamos saber.”

“Ele era simpatizante do Mágico?”, disse Elfinha.

“Você está dizendo que ele estava envolvido numa daquelas campanhas? Num daqueles ― genocídios? Primeiro os quadlings, depois os Animais?”, disse Três. “Você parece surpresa que saibamos dessas coisas. Você acha que vivíamos tão isoladas do resto de Oz?”

“Nós somos isoladas”, disse Dois. “Mas nós escutamos muita coisa. Gostamos de dar abrigo a viajantes quando eles cismam de parar por aqui. Sabemos muito bem como a vida pode ser podre por aí.”

“O Mágico é um déspota”, disse Quatro.

“Nossa casa é nosso castelo”, disse Cinco ao mesmo tempo. “Algum alheamento quanto a todas essas coisas é uma coisa saudável. Com isso, mantemos nossa fibra moral, ficamos imaculadas.”

Todas deram risadinhas de gozação ao mesmo tempo.

“Mas, vocês acham que Fiyero tinha uma opinião sobre o Mágico?”, Elphaba perguntou novamente, pressionando com alguma urgência.

“Ele guardava essas coisas só para si”, replicou Dois. “Em nome da doce Lurline, ele era um príncipe e um homem! ― e nós não éramos nada senão suas mais jovens e dependentes cunhadas! Você acha que ele faria confiden­cias conosco? Ele podia até ter sido um amigo íntimo do Mágico, por tudo que sabemos! Ele com certeza tinha ligações no Palácio, pois era um príncipe. Mesmo que apenas de nossa pequena tribo. O que ele fazia com essas ligações ― quem somos nós para dizer? Mas nós não achamos que ele morreu como vítima de um marido ciumento. Talvez estejamos nos resguardando, mas não achamos. Achamos que ele foi pego no fogo cruzado de alguma luta alheia. Ou que ele foi surpreendido no meio de um ato de traição de algum grupo esquentado ou outro. Ele era um homem bonito”, disse Dois, “e nenhuma de nós negaria isso, naquele tempo e agora. Mas ele era forte e reservado, e duvidamos que teria se afrouxado o bastante para manter um caso de amor.” Pelo menor dos gestos ― uma repuxada em seu abdômen e uma endireitada em seus ombros ― Dois deixou escapar o motivo de sua posição: Como ele poderia ter sucumbido aos encantos de Glinda se fora capaz de resistir às suas próprias cunhadas?

“Mas”, perguntou Elfinha a boca pequena, “vocês acham que ele traba­lhava como espião para alguém?”

“Por que seu corpo nunca foi encontrado?”, disse Dois. “Se tivesse sido por um ataque de ciúme, o corpo não precisaria ter sido removido. Talvez não tivesse morrido ainda. Talvez tivesse sido levado para uma sessão de tortura. Não, em nossa limitada experiência, achamos que isso leva jeito de ter sido uma traição de feitio político, não romântico.”

“Eu...”, disse Elphaba.

“Você ficou pálida, querida. Seis, traga um pouco d’água...”

“Não”, disse Elphaba. “É só que ― ninguém pensava nisso naquele mo­mento ― eu nunca. Devo lhes contar o pouco que sabia a respeito? E talvez vo­cês possam repassar para a Sarima.” Ela começou a narrar. “Eu vi Fiyero...”

Mas, no momento mais estranho possível, a solidariedade familiar deu as caras. “Querida Titia Hóspede”, disse Dois, num tom de responsabilidade, “estamos debaixo das ordens mais estritas de nossa irmã para não cansar você com conversinhas sobre Fiyero e as tristes circunstâncias de sua morte.” Era evidente que Dois tivera de travar uma luta consigo mesma para dizer isso, já que o apetite por ouvir o que Elphaba tinha a dizer era enorme. As barrigas ali presentes estavam roncando pela carne que estava por vir. Mas o decoro, ou o medo da cólera de Sarima quando ela descobrisse, venceu. “Não”, disse Dois novamente, “não, creio que não devemos mostrar um interesse indevido. Podemos não ouvir e não falaremos a Sarima do que ouvimos.”

No fim, Elphaba deixou-as ali, e saiu trôpega. “Numa outra ocasião”, ela continuou dizendo, “quando vocês estiverem prontas, quando ela estiver pron­ta, falaremos disso. Vocês entendem que isso é essencial; há tanta angústia de que ela poderia ser aliviada ― e que ela mesma poderia aliviar, também...”

“Adeus, por enquanto”, elas disseram, e a porta se fechou para ela. As chamas nas lareiras gêmeas se refletiram por todo o aposento, e elas tomaram suas posições de dignidade frustrada, por terem de obedecer à irmã mais velha ― que Sarima fosse para o quinto dos infernos.

 

O gelo grudava nos telhados, desalojava telhas e pingava sujeira nos apo­sentos particulares, na sala de música, nas torres. Elphaba deu para usar seu chapéu dentro de casa para evitar a queda casual de gelo em sua cabeça. Os corvos estavam com os bicos mofados e traziam algas entre as garras. As irmãs concluíram a leitura de seu romance, e coletivamente suspiraram ― por vida, por vida! ― e começaram a ler de novo, como vinham fazendo havia oito anos. Na feroz corrente de ar ascendente do vale, a neve parecia tanto estar caindo quanto subindo. As crianças adoravam isso.

Numa tarde melancólica Sarima enfeitou-se com agasalhos de lã verme­lha e, para matar o tédio, saiu a vagar por quartos mofados e em desuso. Ela localizou uma escada num eixo trapezoidal, oblíquo ― talvez essa alta alcova se encostasse a algum lado da cumeeira que não era visível, ela não era boa em imaginar arquitetura em três dimensões. De qualquer modo, ela subiu os degraus. No topo, através de uma tosca treliça, ela viu uma figura na clara penumbra. Sarima tossiu para não sobressaltá-la.

Elphaba se curvava quase em duas sobre um enorme fólio estendido num banco de carpinteiro. Ela se virou, surpresa, mas não muito, e disse: “Nós temos a mesma inclinação, que curioso”.

“Você encontrou alguns livros de que eu tinha me esquecido completa­mente”, disse Sarima. Ela sabia ler agora, mas não bem, e os livros faziam-na sentir-se inferior. “Eu não poderia lhe dizer do que eles tratam. Tantas palavras, você mal poderia imaginar que o mundo merecesse tamanho escrutínio.”

“Aqui diante de mim tenho uma geografia arcaica”, disse Elfinha, “e al­guns registros de pactos de usufruto entre várias famílias dos arjikis ― aposto que haveria chefes que ficariam muito felizes de vê-los. A menos que estejam anacrônicos. Alguns textos que Fiyero tinha em Shiz ― eu os reconheço tam­bém, do curso de estudos de ciências da vida.”

“E essa coisa grande ― páginas roxas e tinta prateada, que enorme.”

“Achei no piso do guarda-roupa. Parece ser um Livro das Sombras”, Elfinha disse, pondo a sua mão numa página apenas suavemente empenada com a umidade. Fazia um belo contraste, sua mão no pergaminho.

“O que é isso, além de belo?”

“Tal como posso entender”, Elfinha disse, “uma espécie de enciclopédia de coisas místicas. Magia; e do mundo dos espíritos; e de coisas vistas e não vistas; e de coisas passadas e futuras. Posso compreender apenas uma linha aqui ou ali. Repare como elas se misturam quando você olha.” Ela apontou um parágrafo de texto em letra manuscrita. Sarima verificou. Embora sua habilidade para ler fosse mínima, ela ficou boquiaberta com o que viu. As letras flutuavam e se rearranjavam na página, como se estivessem vivas. A página ia mudando de opinião à medida que era olhada. As letras se coalha­vam num grande emaranhado negro, como se fossem um monte de formigas. Então Elphaba virou uma página. “Aqui, esta seção é um bestiário.” Havia elegantes, diluídos desenhos em vermelho-sangue e folheados a ouro, nas elevações fronteiras e traseiras de (parecia) um anjo, com anotações em uma letra delgada sobre os aspectos aerodinâmicos do ente sagrado. As asas se dobravam para cima e para baixo e o anjo sorria com uma espécie de santidade atrevida. “E há uma receita nesta página. Ela diz: ‘De maçãs de casca negra e polpa branca: para encher o estômago de gula até a Morte’.”

“Eu me lembro deste livro agora”, Sarima disse. “Eu realmente lembro como veio parar aqui, eu mesma o pus aqui; eu tinha esquecido. Bem, os livros são tão fáceis de ser negligenciados, não são?”

Elfinha olhou pensativa, seus olhos se apertando debaixo das pétreas glabras sobrancelhas. “Conte-me, Sarima, por favor.”

A Viúva Princesa de Kiamo Ko ficou alvoroçada. Ela foi até uma pe­quena janela e tentou abri-la, mas incrustações de gelo a impediram. Assim ela sentou-se pesadamente num caixote e contou a história para Elphaba. Ela não se lembrava exatamente quando, mas fora há um longo tempo, quando todos eram jovens e esbeltos. O adorado Fiyero ainda estava vivo, mas estava distante, nas Pastagens Milenares, com a tribo. Queixando-se de uma dor de cabeça, ela estava completamente sozinha no castelo. O sino da ponte levadiça soou e ela foi ver quem era.

“Madame Morrible”, Elphaba disse. “Uma ou outra Bruxa de Kumbric.”

“Não, não era a Madame. Era um homem idoso usando túnica e pernei­ras, com um manto que precisava urgentemente de um reparo da costureira. Ele disse que era um feiticeiro, mas talvez fosse apenas um louco. Ele pediu uma refeição e um banho, coisas que lhe foram concedidas, e depois me disse que queria retribuí-las dando-me este livro. Disse a ele que, com um castelo para administrar, eu não tinha muito tempo para frivolidades, leituras e o mais. Ele disse que isso não importava.

Sarima soltou seus roupões, e traçou um desenho no pó frio numa pilha de códices próxima. “Ele me contou um caso fabuloso que me persuadiu a pegar o presente que me entregava. Revelou que era um livro de sabedoria, e que pertencia a um outro mundo, mas não estava seguro lá. Então, ele o trouxera para cá ― onde podia ficar escondido e fora de perigo.”

“Que monte de porcarias”, disse Elfinha. “Se tivesse vindo do outro mundo eu não seria capaz de ler nada do que estava escrito. E bem que pude ler um pouco.”

“Mesmo que seja mágico, como ele disse?”, disse Sarima. “Mas você sabe que acreditei nele. Ele disse que havia mais intercâmbio entre os mundos do que qualquer pessoa poderia acreditar, que nosso mundo possuía atributos do seu, e o seu do nosso, uma espécie de efeito de vazamento, ou talvez uma infecção. Ele tinha uma barba franzida branca e cinza, e modos muito amáveis e abstratos, e cheirava a alho e creme azedo.”

“Prova indiscutível de que era extraterreno...”

“Não zombe de mim”, disse Sarima brandamente, “você me pediu, então estou contando. Ele disse que o livro era poderoso demais para ser destruído, mas ameaçador demais ― para aquele outro mundo ― para ser preservado. En­tão, fizera uma viagem mágica ou qualquer coisa do gênero e viera para cá.”

“Kiamo Ko o chamou e ele não pôde resistir às suas atrações...”

“Ele disse que éramos isolados, e uma fortaleza”, disse Sarima, “e eu não podia discordar! E que diferença ia fazer para mim pegar outro livro? Nós simplesmente o trouxemos para cá, e o pusemos junto com o resto. Eu nem sei se falei a mais alguém sobre isso. Então, ele me abençoou e partiu. Ele se foi com um cajado de carvalho espinhento pela Trilha do Galho Preso.”

“Você pode realmente dizer que pensou que o homem que trouxe isto para cá era um feiticeiro?”, disse Elfinha. “E que este livro provém de... outro mundo? Você acredita mesmo em outros mundos?”

“Já acho um grande esforço acreditar neste em que vivo”, disse Sarima, “embora ele pareça estar aqui; então, por que deveria me fiar na minha dúvida sobre outros mundos? Você não acredita?”

“Bem que tentei, quando era criança”, disse Elfinha. “Fiz um esforço. O velho, estúpido, indistinto semblante do mundo da salvação ― o Outro Mundo ― eu não podia captá-lo, não conseguia focalizá-lo. Agora, penso apenas que são nossas próprias vidas que estão ocultas de nós. O mistério ― quem é aquela pessoa no espelho ― isso é chocante e insondável o bastante para mim.”

“Bem, ele era um feiticeiro, ou louco, fosse o que fosse, bem simpático.”

“Talvez fosse algum agente leal do Regente Ozma”, disse Elfinha. “Es­condendo aqui algum antigo tratado lurlinista. Antecipando um renascimen­to da monarquia, um golpe palaciano, preocupado com Ozma Tippetarius, que dizem ter sido seqüestrada e ter sucumbido a um feitiço do sono, ele teria vindo disfarçado para esconder seu documento num lugar bem distante, mas ainda recuperável...”

“Você está cheia de teorias de conspiração”, disse Sarima. “Notei isso com você. Este era um senhor idoso, muito idoso. E ele falava com um so­taque. Ele era certamente um mágico andarilho que vinha de outra parte. E ele não estava certo? A coisa tem ficado aqui, esquecida, por quanto tempo, afinal? Dez anos ou mais.”

“Posso pegar para olhar?”

“Eu não me importo. Ele nunca me disse para não lê-lo”, disse Sarima. “Naquele tempo eu talvez nem pudesse ler nada ― me esqueço. Mas olhe aquele belo anjo ali! Você fala seriamente quando diz que não acredita numa Outra Terra? Numa vida após a morte?”

“Bem o que precisamos.” Elphaba riu com desdém enquanto pegava o tomo. “Um Vale de Lágrimas pós-Vale de Lágrimas.”

 

Numa manhã, depois que Seis tinha tentado e desistido várias vezes de passar algumas lições para as crianças, Irji sugeriu um jogo de esconde­esconde entre paredes. Eles tiraram palhas e Nor perdeu, e aí ela escondeu seus olhos e contou. Quando ficou cansada de esperar, gritou: “Cem!”, e foi procurar.

Ela pegou Liir primeiro. Embora ele gostasse de desaparecer sozinho por longos intervalos, era ruim em se esconder quando isso era obrigatório. Assim, eles se juntaram para procurar os outros, e encontraram Irji no Solar de Sarima, agachado atrás dos folhos de veludo pendurados no poleiro de um grifo empalhado.

Mas Manek, o melhor na arte de se esconder, não pôde ser encontrado. Nem na cozinha, nem na sala de música, nem nas torres. Cheias de especu­lações, as crianças até ousaram descer ao bolorento porão.

“Há túneis daqui até o inferno”, disse Irji.

“Onde? Por quê?”, disse Nor, e Liir repetiu.

“São escondidos. Eu não sei onde. Mas todo mundo diz isso. Pergunte a Seis. Eu acho que é porque aqui já foi o quartel-general dos sistemas hi­dráulicos ― foi sim. O inferno queima tão ardido que eles precisam de água, e os demônios fizeram os túneis até aqui.”

Nor disse: “Olhe, Liir, aqui é o poço dos peixes”.

No centro de um aposento de abóbadas baixas, insalubre devido à umi­dade que gotejava em suas paredes de pedra, via-se um poço baixo com um tampo de madeira. Para ajudar, havia ali uma corrente e uma pedra para deslocar o tampo. Era brincadeira de criança destampar o poço.

“Lá embaixo”, disse Irji, “é onde pescamos os peixes que comemos. Nin­guém sabe se lá existe um lago inteiro ou se é um poço sem fundo, ou se por ele você pode ir diretamente pro inferno.” Ele moveu a vela acima, e apareceu um círculo de água negra fazendo um reflexo brilhante, em estilhaços e cír­culos de gelada luz branca.

“Seis diz que há uma carpa dourada aí”, disse Nor. “Ela a viu uma vez. É a coisa mais antiga que existe, ela pensou que fosse uma chaleira de metal flutuante que estivesse balançando na superfície, e então a carpa se virou e olhou para ela.”

“Talvez fosse uma chaleira de metal”, disse Liir.

“Chaleiras não têm olhos”, disse Nor.

“Seja como for, Manek aí não está”, disse Irji. “Está?” Ele chamou: “Alô, Manek”, e o eco rolou e se dissolveu na escuridão úmida.

“Talvez Manek tenha ido pro inferno por um desses túneis”, disse Liir.

Irji recolocou o tampo do poço do peixe. “Mas agora é com você, Nor, eu não vou olhar mais para baixo.”

Eles ficaram arrepiados, e correram de volta para cima. Quatro ralhou com eles por terem feito barulho demais.

Nor encontrou Manek por fim nas escadas do lado de fora da porta que dava para o quarto da Titia Hóspede. “Shh”, ele disse quando eles se aproxi­maram, e Nor deu uma batidinha nele para dizer: “Te pegamos”.

“Shh”, ele disse outra vez, com mais urgência. Eles se revezaram em turnos para olhar por uma rachadura na desgas­tada madeira da porta.

A Titia punha o dedo num livro, e murmurava coisas para si mesma, fazendo-as soar ora de um modo ora de outro. Na cômoda próxima a ela, Chistérico se acocorava num inquieto, mas obediente silêncio.

“O que está acontecendo?”, disse Nor.

“Ela está tentando lhe ensinar a falar”, disse Manek.

“Deixe-me olhar”, disse Liir.

“Diga espírito”, disse a Titia em uma voz gentil. “Diga espírito. Espírito. Espírito.”

Chistérico torceu sua boca para um lado, como se pensasse no que deveria fazer.

“Não há diferença”, disse a Titia para si mesma, ou talvez para Chis­térico. “Os elementos são os mesmos, os meandros são os mesmos; a pedra recorda; a água tem memória; o ar tem um passado pelo qual pode ser res­ponsabilizado; a chama renasce de si mesma como uma fênix. O que é um animal senão algo feito de pedra e água e fogo e éter! Lembre-se de como se fala, Chistérico. Você é animal, mas o Animal é seu primo, maldito. Diga espírito.”

Chistérico catou um piolho de seu peito e comeu-o.

“Espírito”, gritou a Titia, “há espírito, eu sei. Espírito!”

“Espito”, ou algo parecido, disse Chistérico.

Irji empurrou Manek para um lado e as crianças quase caíram no chão ao ver a Titia rindo e dançando e cantando. Ela agarrou Chistérico e o beijou, e disse: “Espírito, oh espírito, Chistérico! Há espírito! Diga espírito!”

“Espito, espito, espito”, disse Chistérico, sem se impressionar consigo mesmo. “Espita.”

Mas Matalegria despertou de uma soneca ao som da voz diferente.

“Espírito”, disse Titia.

“Espeto”, disse Chistérico pacientemente. “Espato. Espora. Esputo es­puto esputo. Espato, espeto, espito, espera, espada, espeta.”

“Espírito”, disse a Titia, “oh, meu Chistérico, nós ainda descobriremos um elo com o velho trabalho do Doutor Dillamond! Há um padrão comum a todos nós, pudéssemos nos aprofundar o bastante para vê-lo! Tudo não foi em vão! Espírito, meu amigo, espírito!”

“Esporte”, disse Chistérico.

As crianças não conseguiam parar de rir. Elas desceram as escadas rui­dosamente e foram parar no dormitório, e davam risadinhas abafadas debaixo dos cobertores.

Elas não mencionaram o que viram para Sarima ou para as irmãs. Fi­caram com medo que a Titia devido a isso interrompesse os ensinamentos, e todas queriam que Chistérico aprendesse a linguagem o suficiente para que pudesse brincar junto com elas.

 

Num dia sem vento, quando parecia que todos tinham de se evadir de Kiamo Ko ou morreriam de tédio, Sarima teve a idéia de que fossem esquiar num lago próximo. As irmãs concordaram, e desenterraram os enferrujados esquis que Fiyero lhes trouxera da Cidade Esmeralda. As irmãs cozinharam caramelos e prepararam cantis de chocolate, e até enfeitaram-se com fitas verdes e douradas, como se a ocasião fosse uma espécie de segundo Lurline­mas. Sarima se adornou com um roupão de veludo marrom guarnecido de bordas de pele, as crianças puseram calças e túnicas extras, e até Elphaba se juntou a todos, num manto espesso de brocados roxos e usando as pesadas botas de pele de bode dos arjikis, além de luvas, carregando a sua vassoura. Chistérico pegou carona num cesto de damascos secos. As irmãs, vestidas com os sisudos sobretudos dos homens da tribo, cintadas e abotoadas, for­mavam a retaguarda.

Os aldeões tinham tirado a neve do centro do lago. Era uma autêntica pista de salão de baile revestida de prata, ornamentada por mil arabescos, circundada por travesseiros e rolos para proporcionar um descanso seguro aos esquiadores que se esquecessem de como frear ou virar. A pleno sol, as montanhas pareciam se destacar como lâminas no fundo azul; grandes egretes e grifos de gelo se salientavam lá no alto. O rinque de patinação já estava barulhento devido aos gritos dos endiabrados e trôpegos adolescentes (aproveitando toda oportunidade para darem saltos acrobáticos e amontoa­rem-se uns sobre os outros confortavelmente em sugestivas posições). Seus pais se moviam mais lentamente, deslizando pelo gelo com mais cuidado. A multidão fez silêncio quando a proprietária de Kiamo Ko se aproximou, mas, como as crianças são crianças, o silêncio não durou muito.

Sarima se aventurou no gelo, suas irmãs formando um laço em torno dela com os braços dados. Volumosa como era, Sarima ficava nervosa temen­do cair, não se fiando em seus tornozelos, que não eram fortes. Mas dentro em pouco ela se lembrou como as coisas eram ― este pé, depois o outro, longas passadas langorosas ― e a desconfortável aproximação de classes sociais foi bem-sucedida. Elphaba se parecia com um de seus corvos: joelhos para a frente, cotovelos malhando, trapos se agitando, mãos enluvadas se juntando à procura de equilíbrio.

Depois que os adultos tiveram excitação em dose considerada suficiente (mas as crianças ainda estavam se aquecendo para a folia), Sarima e as irmãs e Elfinha desabaram dentro de peles de urso que a organização tinha provi­denciado para elas.

“No verão”, disse Sarima, “fazemos uma enorme fogueira e matamos al­guns porcos, antes que os homens desçam para as planícies, ou que os rapazes subam às montanhas para pastorear ovelhas e bodes. Todos vêm ao castelo para lambiscar o porco e tomar umas canecas de cerveja. E, claro, toda vez que aparece um leão da montanha ou algum urso particularmente perigoso, nós os usamos como guardas até que a besta seja morta ou desapareça.” Ela sorriu educadamente, de um modo discreto, a meia distância, embora os aldeões estivessem alheios ao pessoal do castelo no momento. “Titia querida, você está uma figura com esse roupão, e carregando essa vassoura.”

“Liir diz que é uma vassoura mágica”, disse Nor, que correra para jogar um punhado de flocos de neve granulada no rosto da mãe. Elphaba virou sua cabeça rapidamente e ergueu a sua gola para evitar o ricochete do espirro da neve. Nor sorriu com desfeita numa frase musical que evocava a de uma flauta de madeira, e fugiu em corrida desabalada.

“Então, conta pra nós como é que sua vassoura se tornou mágica”, disse Sarima.

“Eu nunca disse que ela é mágica. Eu a ganhei de uma monja idosa chamada Mãe Yackle. Ela me protegia, quando ainda estava lúcida, e dava-me ― bem, orientação, como eu suponho que vocês chamem a coisa.”

“Orientação”, disse Sarima.

“A velha monja disse que a vassoura seria o meu elo com meu destino”, disse Elfinha. “Entendi que ela queria dizer que meu destino era doméstico. Não mágico.”

“Entrar para a irmandade feminina”, Sarima bocejou.

“Eu nunca soube se Mãe Yackle era completamente louca ou era uma velha galinha sábia e profética”, disse Elfinha, mas as outras não estavam ouvindo, portanto, ela caiu em silêncio.

Daí a pouco Nor veio se arremessar ao colo da mãe novamente. “Conte-­me uma história, Mamãe”, ela disse. “Aqueles meninos são nojentos.”

“Meninos são criaturas vergonhosas”, concordou a sua mãe. “De vez em quando. Posso contar a história de quando você nasceu?”

“Não, essa não”, disse Nor, bocejando. “Uma história real. Conte-me aquela da Bruxa e dos bebês-raposa outra vez.”

Sarima recusou, sabendo muito bem que as crianças consideravam a Titia Hóspede uma bruxa. Mas Nor era, teimosa e Sarima cedeu, e narrou o conto. Elphaba ouviu. Seu pai lhe transmitira preceitos morais, pregando sermões sobre responsabilidade; a Babá lhe deitara muita falação; Nessaro­se gemera as suas prédicas. Mas ninguém lhe contara histórias quando era pequena. Ela se adiantou um pouco mais para ouvir o conto acima do ruído da multidão.

Sarima recitou o conto com escasso envolvimento dramático, mas, ainda assim, Elphaba sentiu uma ferroada ao ouvir o desfecho. “E lá a maléfica velha Bruxa ficou, por muito, muito tempo.”

“Ela conseguiu sair?”, recitou Nor, os olhos brilhando com o encanto do ritual.

“Ainda não”, respondeu Sarima, e avançou, fingindo que ia morder o pescoço de Nor. Nor guinchou e, com um bamboleio, se afastou, indo juntar­-se aos meninos.

“Acho uma coisa vergonhosa, mesmo que seja só uma fábula, propor uma vida eterna para o mal”, disse Elphaba. “Qualquer espécie de vida eterna é uma manipulação e uma chantagem. É vergonhoso o modo como os unio­nistas e os pagãos continuam falando do inferno para intimidar e do etéreo Outro Mundo para recompensar.”

“Não fale nada”, disse Sarima. “Porque, entre outras coisas, é lá que Fiyero estará esperando por mim. E você sabe disso.”

O queixo de Elphaba caiu. Quando ela menos esperava, Sarima sempre estava disposta a lhe surgir com um ataque-surpresa. “Na outra vida?”, disse Elfinha.

“Oh, que é que você tem contra isso?”, disse Sarima. “Tenho pena das almas do Outro Mundo quando forem chamadas para dar boas-vindas a você. Que maçã azeda você é, o tempo todo!”

 

Ela é louca”, disse Manek, com um ar de saber do que estava falando. “Todo mundo sabe que não se pode ensinar um animal a falar.”

Eles estavam no estábulo de verão abandonado, pulando de um palhei­ro, erguendo lufadas de feno e ondas de neve na luz peculiar.

“Bem, o que ela está fazendo com o Chistérico, então?”, perguntou Irji. “Já que você está tão certo do que fala?”

“Ela está ensinando o macaco a imitar, feito um papagaio”, disse Manek.

“Eu acho que ela é mágica”, disse Nor.

“Você, você pensa que tudo é mágico”, Manek disse, “garotinha estúpida.”

“Bem, tudo é”, disse Nor, afastando-se dos meninos como que num comentário adicional a seu ceticismo.

“Você pensa realmente que ela é mágica?”, disse Manek a Liir. “Você a conhece melhor que qualquer um de nós. Ela é a sua mãe.”

“Ela é a minha Titia, não é?”, Liir disse.

“Ela é nossa Titia, ela é sua mãe.”

“Eu sei”, disse Irji, fingindo mergulhar no assunto para evitar outro pulo. “Liir é irmão de Chistérico. Liir é o que Chistérico era antes de ela lhe ensinar a falar. Você é um macaco, Liir.”

“Eu não sou um macaco”, disse Liir, “e eu não fui enfeitiçado.”

“Bem, vamos perguntar isso ao Chistérico”, disse Manek, “Não é hoje o dia em que a Titia tem café marcado com a Mamãe? Vamos conferir se o Chistérico aprendeu palavras o bastante para responder a algumas perguntas.”

Eles dispararam pela escada de pedra em espiral acima, rumo ao apar­tamento da Titia Bruxa.

De fato, ela saíra, e lá estava Chistérico mordiscando algumas nozes, e Matalegria cochilando junto ao fogo, rosnando em seu sono, e as abelhas zumbindo em seu coro incessante. As crianças não gostavam muito de abe­lhas, nem davam bola para Matalegria. Mesmo Liir havia perdido o seu in­teresse pelo cachorro, ao dispor de crianças para brincar. Mas Chistérico era um favorito. “Coisinha doce, oh, o bebezinho”, ela dizia. “Aqui, animalzinho, venha com a Titia Nor.” O macaco olhava com desconfiança, mas, então, com as articulações das mãos e os pés ágeis, ele disparava pelo chão e saltava para os braços da menina. Ele examinava seus ouvidos com prazer, e, de cima de seus ombros, lançava olhares perscrutadores sobre os meninos.

“Diz pra gente, Chistérico, a Titia Bruxa é mesmo mágica?”, disse Nor. “Conta pra gente quem ela é.”

“Olha a Bruxa”, dizia Chistérico, brincando com os dedos. “Que desgra­ça que.” Eles podiam jurar terem ouvido uma pergunta, pelo jeito como sua testa se enrugava feito sobrancelhas.

“Você está enfeitiçado?”, disse Manek.

“Feitiço ruim. Estraga feitiço”, respondeu Chistérico. “Joga fora.”

“Como é que podemos estragar o feitiço? Como faremos você voltar a ser um menino?”, perguntou Irji, o mais velho, mas tão fascinado quanto os outros. “Existe algum jeito especial?”

“Que jeito?”, disse Chistérico. “Pediu, danou. Por quê?”

“Diga-nos o que fazer”, disse Nor, fazendo-lhe um afago.

“Fazer, morrer”, disse Chistérico.

“Grande”, disse Irji. “Então, não podemos quebrar o feitiço que foi feito em você?”

“Oh, ele está só balbuciando”, Elphaba disse, que estava à porta. “Olhem só, estou com visitas que não convidei.”

“Oh, alô, Titia”, eles disseram. Sabiam que não deviam estar lá. “Ele está falando, ou coisa parecida. Ele está enfeitiçado.”

“No mais das vezes, está é repetindo o que vocês dizem”, disse Elphaba, aproximando-se. “Portanto, deixem-no em paz. Vocês não estão autorizados a entrar aqui.”

Eles disseram “desculpe”, e saíram. De volta ao quarto dos meninos, caíram no colchão e riram até chorar, e não conseguiam explicar o que era tão engraçado. Talvez fosse o alívio de terem escapados ilesos dos aposentos da Bruxa, embora não tivessem nada a fazer lá. As crianças chegaram à conclusão que não precisavam mais temer a Titia Bruxa.

 

Eles estavam cansados de ficar confinados em casa, mas, por fim, começara a chover em vez de só nevar lá fora. Brincavam bastante de esconde-es­conde, esperando a chuva parar para que pudessem sair.

Numa manhã, Nor foi a escolhida. Ela continuou a achar Manek facil­mente, porque Liir sempre se escondia perto dele e o delatava. Manek perdeu a paciência. “Eu sempre sou pego, porque você é tão desajeitado. Por que você não se esconde bem*?”

“Não posso me esconder no poço*”, Liir disse, não entendendo.

“Oh, você pode sim”, disse Manek, deliciado.

O segundo round começou, e Manek levou Liir para baixo, descendo as escadas do porão. Este estava mais úmido que de costume, com a água do subsolo escorrendo pelas pedras da fundação. Quando tiraram o tampo do poço, notaram que o nível da água havia subido. Mas ainda estava a uns bons doze ou quatorze pés de profundidade.

“Isso vai servir direitinho”, Manek disse, “olhe, se passarmos a corda por este gancho, o balde vai ficar firme o bastante para você subir nele. Então, quando eu girar a manivela, o balde vai lentamente descer pela parede do poço. Eu vou pará-lo antes de ele chegar à água, não se preocupe. Então, porei o tampo sobre o poço e Nor vai procurar e procurar! Ela nunca será capaz de achar você.”

Liir então inspecionou o poço desagradavelmente pegajoso. “E se hou­ver aranhas lá embaixo?”

“Aranhas odeiam água”, disse Manek categoricamente. “Não se preocupe com elas.”

“Por que você mesmo não faz isso?”, disse Liir.

“Você não é forte o bastante para me baixar, este é o motivo”, disse Manek com paciência.

“Não se esconde muito longe”, disse Liir. “Não me desce fundo demais. Não fecha o tampo todinho, eu não gosto do escuro.”

“Você está sempre se queixando”, Manek disse, oferecendo-lhe uma mão. “É por isso que a gente não gosta de você, como sabe.”

“Bem, todo mundo é malvado comigo”, Liir disse.

“Desce de uma vez agora. Segura na corda com as duas mãos. Se o balde esbarrar na parede um pouco, você se afasta. Vou descer você devagarinho.”

“Onde é que você vai se esconder?”, Liir disse. “Não tem mais nenhum lugar neste porão.”

“Me esconderei debaixo das escadas. Ela nunca vai me achar nas som­bras, ela odeia aranhas.”

“Pensei que você tivesse dito que não havia aranhas!”

“Ela acha que há”, Manek disse. “Um, dois, três. Esta é mesmo uma grande idéia, Liir. Você é tão corajoso.” Ele grunhiu com o esforço. Dentro do balde, Liir era mais pesado do que ele imaginara, e a corda enrolava rapi­damente demais. Ela emperrava na junção entre o sarilho e os suportes, e o balde parava e se chocava contra a parede com um baque que fazia eco.

“Isso foi rápido demais”, vinha a voz de Liir, fantasmagórica no escuro.

“Oh, não seja um maricás”, Manek disse. “Agora shhh, eu vou girar o tam­po até no meio, assim ela não vai adivinhar nada. Não faça barulho nenhum.”

“Eu acho que tem peixe aqui embaixo.”

“Claro que tem, é um poço de peixe.”

“Bem, eu estou muito perto da água. Eles pulam?”

“Sim, eles pulam, e têm dentes afiados, seu bestinha, e eles gostam de molequinhos gordos”, disse Manek. “É claro que eles não pulam. Se eles pu­lassem, você acha que eu ia te expor a um perigo desses? Fala a verdade, você não confia totalmente em mim, não é mesmo?” Ele suspirou, como se estivesse desapontado de um modo além das palavras, e quando o tampo girou não em parte, mas por completo, cobrindo o poço, ele notou sem surpresa que Liir estava magoado demais para se queixar.

Manek se escondeu debaixo das escadas por alguns momentos. Quan­do Nor não desceu, decidiu que atrás das margens do altar da velha capela mofada haveria um lugar ainda melhor. “Volto logo, Liir”, ele sibilou, mas, como Liir não respondeu, supôs que o menino estivesse ainda lamuriando lá embaixo.

 

Sarima estava fazendo um raro turno na cozinha, preparando um en­sopado de legumes frescos com ingredientes da despensa. As irmãs estavam num recital de dança promovido lá entre elas no quarto de música do andar de cima. “Soa como uma manada de elefantes”, Sarima disse, quando a Titia Hóspede apareceu, procurando alguma coisa para beliscar.

“Eu não esperava encontrar você aqui”, disse Elphaba. “Você sabe, eu tenho uma queixa a fazer contra seus filhos.”

“Os doces pequenos vândalos, o que será que aprontaram agora?”, Sari­ma disse, nervosa. “Eles puseram aranhas em seus lençóis outra vez?”

“Eu não me importaria, caso fossem aranhas. No mínimo, os corvos as comeriam. Não, Sarima, as crianças xeretaram nos meus pertences, provoca­ram Chistérico sem misericórdia, e não me ouviram quando falei com elas. Não pode fazer nada a respeito?”

“Que é que posso fazer?”, disse Sarima. “Aqui, prove esta rutabaga, é boa pra dar aos cachorros!”

“Nem Matalegria tocaria num negócio desses”, concluiu Elphaba. “É melhor você usar cenouras. Eu acho que essas crianças são ingovernáveis, Sarima. Elas não deveriam estar na escola?”

“Oh, sim, numa vida melhor, elas estariam, mas, que jeito?”, disse a mãe placidamente. “Eu já lhe disse que são alvos perfeitos para os homens da tribo Arjiki. Já é muito ruim até deixá-los correr pelos penhascos perto de Kiamo Ko no verão, eu nunca sei quando serão descobertos, aprisionados, e sangrados como porcos, e trazidos para casa apenas para o enterro. É o preço da viuvez, Titia; a gente deve fazer o melhor que puder.”

“Eu fui uma boa filha”, Elfinha disse, resolutamente. “Eu tomei conta de minha irmãzinha, que nasceu horrivelmente desfigurada. Obedeci a meu pai, e a minha mãe, até que ela morreu. Vaguei e labutei como criança missionária e dei testemunhos do Deus Inominável, muito embora fosse uma descrente, em essência. Eu acreditava na obediência, e não acho que isso me feriu.”

“Então, o que foi que a feriu?”, perguntou Sarima, espirituosamente.

“Você não entenderá”, disse Elfinha, “por isso não vou nem dizer. Mas, sejam quais forem os motivos, suas crianças são ingovernáveis. Eu desaprovo seus métodos frouxos.”

“Oh, as crianças são boas de coração”, Sarima disse, raspando as ce­nouras. “São tão inocentes e alegres. Fico alegre de vê-las correndo pela casa numa brincadeira ou noutra. Depressa demais esses dias preciosos vão passar, cara Titia, e então teremos saudade dos tempos em que a casa vivia cheia dos repiques das risadas infantis.”

“Risadas demoníacas.”

“Há alguma coisa naturalmente boa nas crianças”, disse Sarima convic­tamente, inflamada pelo assunto. “Você conhece a história daquela pequena Ozma, que há anos foi deposta pelo Mágico? Dizem que ela está escondida em algum lugar, congelada numa caverna ― talvez até mesmo aqui nos Kells, até onde eu saiba. Foi preservada em sua inocência infantil porque o Mágico não teve coragem de matá-la. Um dia ela voltará para governar Oz, e ela será a melhor e mais sábia soberana de todos os tempos, devido à sabedoria de sua tenra idade.”

“Eu nunca acreditei em salvadores infantis”, Elphaba disse. “Até onde sei, são as crianças que precisam de salvação.”

“Você está irritada só porque as crianças têm espíritos elevados.”

“Seus filhos são é uns duendes encapetados”, Elfinha disse, num tom desaprovador.

“Meus filhos não são maus, nem minhas irmãs e eu fomos crianças más.”

“Seus filhos não são bons”, disse Elfinha.

“Bem, como é que você julga Liir nesse aspecto, então?”

“Oh, Liir”, Elfinha disse, e fez uma expressão, e disse pfaaah, com sua língua e as mãos. Sarima estava prestes a abordar isso ― um assunto que sempre a deixara curiosa ― quando Três entrou correndo na cozinha.

“As passagens devem ter derretido mais cedo que de costume”, ela disse, “porque a gente avistou uma caravana lutando para passar pela Trilha do Galho Preso, vinda lá do norte! Ela vai chegar aqui amanhã!”

“Oh, beleza”, Sarima disse, “e o castelo nesta bagunça! Isso sempre acon­tece. Por que a gente nunca aprende? Rápido, chame as crianças e vamos ter de dar um jeito de esfregá-las e limpá-las. A gente nunca sabe, Titia, pode ser um visitante de alta honra. A gente tem de ficar preparada.”

Manek e Nor e Irji deixaram correndo a sua brincadeira. Três contou lhes a notícia, e eles imediatamente tiveram de subir à torre mais alta para ver o que podiam avistar através da chuva branda, e para acenar com aventais e lenços. Sim, havia uma caravana, cinco ou seis escarques e um pequeno vagão, avançando através da neve e da lama, enfrentando problemas ao va­dear as correntezas, parando para consertar uma roda fendida, parando para alimentar os animais! Era um prazer maravilhoso, e, durante toda a refeição de sopa de legumes do jantar, as crianças jogaram conversa fora falando das surpresas que poderiam encontrar entre os passageiros da caravana. “Eles nunca deixaram de achar que o pai ainda voltará”, disse Sarima, em cochicho para Elphaba. “Essa excitação toda é uma esperança para eles, embora não se lembrem disso.”

“Onde está o Liir?”, perguntou Quatro, “é um perfeito desperdício de uma boa sopa quando ele não aparece a tempo. Ele não vai conseguir nada se vier gemendo me pedir depois. Crianças, onde está o Liir?”

“Ele estava brincando com a gente no começo. Talvez tenha pegado no sono”, disse Irji.

“Vamos fazer uma fogueira e um sinal de fumaça com um alô para os viajantes”, disse Manek, saindo aos pulos da mesa.

 

Era hora do almoço quando os escarques e o vagão começaram a ascensão final e penosa do penhasco rumo ao portão de ferro e aos portões de jaspe e carvalho do castelo. Os aldeões saíram de suas choças e ajudaram a empurrar a caravana com seu peso, fazendo-a atravessar os sulcos de lama e gelo, até que por fim ela se aprumou e cruzou a ponte levadiça erguida. El­phaba, com a curiosidade espicaçada como todo mundo, ficou com a Viúva Princesa dos Arjikis e suas irmãs num parapeito acima da rudemente enta­lhada porta frontal. As crianças esperavam no pátio de pedras redondas logo abaixo, todas, exceto Liir.

O líder da caravana, um homem jovem grisalho, fez a mais apagada mesura montanhesa para Sarima. Os escarques defecaram mole nas pedras do pátio, para deleite das crianças, que nunca tinham visto os excrementos daquela espécie. Então, o líder se dirigiu à cabine e abriu a porta, e subiu para dentro. Podiam ouvir a sua voz, erguida a bom volume como se conversasse com alguém que tivesse dificuldade para escutar.

Esperaram. O céu era de um azul penetrante, na verdade quase um azul de primavera, e os pingentes de gelo pendurados nos beirais, como perigosos punhais, derretiam-se rapidamente. As irmãs todas encolheram as barrigas, maldizendo algum pedaço extra de pão de mel, o creme melado no café, desejando ostentar a melhor das aparências. Por favor, doce Lurlina, dá-nos a graça de um homem.

O líder saiu novamente, e estendeu uma mão, e ajudou uma figura a apear da cabine: uma velha figura de membros rachados, vestindo saias des­botadas e um gorro horrivelmente fora de moda, mesmo do ponto de vista provinciano. Mas Elphaba se adiantou, cortando o ar com seu queixo pon­tudo e seu nariz de machadinha, e farejando como um animal. A visitante se virou e o sol bateu em seu rosto.

“Pela glória divina”, disse Elfinha, perdendo o fôlego. “É minha velha Babá!” E ela deixou o parapeito para correr e agarrar a idosa em seus braços.

“Sentimentos humanos, olhem só”, disse Quatro, com desprezo. “Eu não a supunha capaz dessas coisas.” Pois a Titia Hóspede estava soluçando de prazer.

 

O líder da caravana não ficou para a refeição, mas a Babá com suas valises e baús tinha a clara intenção de não ir para outro lugar que não fosse aquele. Ela se alojou num pequeno quarto mofado abaixo do de Elphaba, e levou o tempo infindável que os idosos gastam para fazer a sua toalete. Quando ela ficou pronta para ser apresentável, o jantar foi servido. Uma velha galinha de corte, feita mais de fibras que de carne, se estendia num pires com pimentas sobre uma das travessas de receber visitas. As crianças estavam vestidas nos trinques, e dessa vez autorizadas a jantar naquele aposento. A Babá entrou de braço dado com Elphaba, e sentou-se ao seu lado esquerdo. Devido a essa ser uma visita para Elfinha, as irmãs tinham amavelmente colocado o porta-guardanapo de Elphaba na ponta da mesa, no oposto de Sarima ― um lugar que por costume era deixado vago, em honra ao pobre falecido Fiyero. Foi um grande erro, e elas o reconheceram imediatamente, já que Elphaba nunca abria mão de seu lugar habitual. Mas, por ora, tudo eram sorrisos e hospitalidade saborosa. O único pequeno aborrecimento (além do de a Babá não ser um jovem pretendente à procura de noiva) era que Liir ainda se obstinava em sua atitude de mal-humorado sumiço. As crianças não sabiam onde ele estava.

A Babá era uma idosa cansada e caduca, a pele rachada como a de um sabão seco, os cabelos fininhos e as mãos de um branco amarelado com veias tão salientes quanto os cordões em torno de um queijo de cabra de Arjiki. Ela comunicou de modo ofegante, com muitas pausas para respirar e refletir, que soubera por alguém chamado Crope, da Cidade Esmeralda, que sua velha afilhada Elphaba tinha ajudado Tibbett em seus últimos dias no Claustro de Santa Glinda na periferia da Cidade Esmeralda. Ninguém da família tinha notícias de Elphaba havia anos, e a Babá decidira que era tarefa exclusivamente sua sair à procura dela. As monjas a princípio foram relutantes em informá-la, mas a Babá persistiu, e então esperou até que uma nova caravana estivesse pronta para partir. As monjas revelaram que Elphaba tinha uma missão em Kiamo Ko, e a Babá conseguiu passagem na primavera seguinte. E ali estava ela.

“E do mundo exterior?”, perguntou Dois ansiosamente. Deixe essas duas se pegarem com assuntos de família quando tiverem tempo.

“O que você quer dizer?”, disse a Babá.

“Política, ciência, moda, as artes, o centro dominante!”, disse Dois.

“Bem, nosso magnífico Mágico coroou-se Imperador”, disse a Babá. “Vocês sabiam disso?”

Não sabiam. “Autorizado por quem?”, perguntou Cinco, escarninha. “E, ademais, Imperador de quê?”

“Não há ninguém que tenha mais autoridade que ele, como ele mesmo afirmou”, disse a Babá calmamente, “e quem vai discutir com isso? Do jeito que as coisas são, ele é o encarregado de distribuir as honrarias anualmente. Aí, ele apenas decretou uma honraria extra para si mesmo. Quanto ao de que ele é Imperador, não sei. Algumas pessoas dizem que isso implica em ambições expansionistas. Mas, até onde ele poderá se expandir ― eu não poderia dizer; não poderia mesmo. Até o deserto? Além dele, a Quox, Ix ou Fliann?”

“Ou ele desejará ter um maior controle sobre terras que ele governa apenas frouxamente”, perguntou Elphaba, “como o Vinkus?” Ela sentiu um calafrio, como se uma velha ferida bem abaixo de suas costelas a fisgasse.

“Ninguém está particularmente feliz”, disse a Babá. “Há um recruta­mento forçado agora, e a Tropa da Tormenta ameaça exceder em número o Exército Real. Ninguém sabe se não estará havendo uma luta interna pelo poder, e se o Mágico não estará se preparando para alguma tomada de poder definitiva. Quem pode ter uma opinião firmada sobre essas coisas? Velhas e mulheres como somos?”, ela sorriu ao incluí-las todas. As irmãs e Sarima fuzilaram-na com o olhar mais cheio de juventude que puderam ostentar.

 

O dia seguinte mal teve uma aurora, tão escuro, tão ameaçador em vagas nuvens ameaçadoras de chuva se mostrou. Na sala de visitas, esperando que a Babá despertasse e continuasse sua obrigação de entretê-las, as irmãs e Sarima discutiam quais novos fatos sobre a Titia Hóspede elas tinham conhecido. “Elphaba”, refletiu Dois. “É um nome bem bonitinho. De onde será que vem?”

“Eu me lembro”, disse Cinco, que em certa época entrara numa fase debilmente religiosa ao perceber que as possibilidades de casamento estavam se apagando. “Eu tive uma Vida dos Santos uma vez. Santa Elphaba da Ca­choeira ― ela foi uma mística da terra de Munchkin, há seis ou sete séculos. Vocês não se lembram? Ela queria rezar, mas tinha uma tal beleza que os homens de sua terra ficavam importunando-a em busca de... atenção.”

Todas suspiraram, em coro.

“Para preservar a sua santidade, ela foi para uma floresta desolada com suas escrituras sagradas e um simples cacho de uvas. As bestas selvagens ameaçaram-na, e os homens selvagens também a perseguiram, e ela sofria com as aflições. Foi quando chegou a uma enorme cachoeira que caía de um rochedo. Ela disse: “Esta é a minha caverna”, e tirou todas as suas roupas, e atravessou a tela de água que caía. Depois dela, havia uma caverna escavada pela força da água. Ela lá se estabeleceu, e, com a ajuda da luz que era coada através da parede de água, lia seu livro sagrado e meditava sobre questões espirituais. Ela comia algumas uvas de vez em quando. Quando, por fim, o alimento acabou, ela saiu da caverna. Centenas de anos haviam se passado. Havia uma aldeia erguida às margens do rio, e até mesmo uma represa nas proximidades. Os aldeões tremeram de horror, porque, quando crianças, ti­nham todos brincado na caverna atrás da cachoeira ― amantes ali marcaram encontro ― ali haviam ocorrido assassinatos e outros atos repugnantes ― um tesouro ali fora enterrado ― e ninguém nunca chegara a ver Santa Elphaba em seu nu esplendor. Mas tudo que Santa Elphaba teve de fazer foi abrir a boca e falar seus velhos sermões, e todos souberam que só podia ser ela, e construíram uma capela em sua honra. Ela abençoou as crianças e os velhos, e ouviu as confissões dos de meia-idade, e curou alguns doentes e alimentou alguns famintos, toda essa espécie de coisa, e então desapareceu novamente por trás da cachoeira com outro cacho de uvas. Acho que dessa vez levou um cacho maior. E isso foi a última coisa que dela se soube.”

“Então, pode-se desaparecer e não estar morta”, disse Sarima, olhando pela janela, com um ar um pouco sonhador, para a chuva.

“Se você for uma santa”, disse Dois, prontamente.

“Se você acredita mesmo nisso”, disse Elphaba, que tinha entrado na sala de visitas no fim da narração. “A ressuscitada Santa Elphaba deve ter sido alguma namoradeira da cidade próxima que queria oferecer aos crédulos camponeses uma boa transadinha.”

“Essa sua mania de duvidar, deixa tudo desprovido de esperança”, Sari­ma disse, aversiva. “Titia, de vez em quando você me mata, realmente.”

“Eu acho que seria encantador chamar você de Elphaba”, disse Seis, “porque é uma história encantadora. E foi bom saber seu nome verdadeiro pelos lábios da Babá.”

“Nem tente”, disse Elfinha. “Se a Babá não pode evitar, tudo bem; ela é uma anciã e isso é difícil de mudar. Mas você não.”

Seis franziu seus lábios como se estivesse para articular uma argumen­tação, mas nesse exato momento ouviu-se um ruído de pés no andar inferior, e Nor e Irji irromperam na sala.

“A gente achou o Liir!”, eles disseram. “Venham, a gente acha que ele está morto! Ele está caído no poço dos peixes!”

Todas desceram as escadas que levavam ao porão. Chistérico fora quem o achara. O nariz do macaco de neve tinha enrugado quando ele e os meninos passavam pelo poço dos peixes, e ele gemera, e choramingara, e tentara puxar com força a cobertura pesada. Nor e Irji tiveram a idéia de baixá-lo no balde então, mas quando eles giraram o tampo para descobrir o poço, o lúgubre brilho da luz na pálida carne humana os aterrorizara.

Manek veio correndo quando ouviu o barulho de sua mãe e dos outros exclamando diante do poço. Puxaram Liir da água. A água subira, o que complementava o contínuo derretimento da neve e a chuva adicional. Liir parecia um cadáver abandonado numa correnteza, intumescido. “Oh, é onde ele estava”, disse Manek numa voz de gozação. “Vocês sabem que ele disse que queria descer nesse poço um dia.”

“Vão embora, crianças, vocês não elevem ver isso, vão para cima”, Sarima disse, ralhando com eles. “Vamos agora, comportem-se, o lugar de vocês é lá em cima”. Eles não sabiam para que estavam olhando e estavam com medo de olhar mais de perto.

“Não posso acreditar nisso, é tão terrível”, disse Manek de um modo excitado, e Elphaba lançou-lhe um olhar penetrante, cheio de ódio.

“Obedeça a sua mãe”, ela disse bruscamente, e Manek fez uma cara de nojo, mas ele e Irji e Nor correram para o andar superior, e se acotovelaram na porta aberta lá no topo para ouvir, e observar.

“Oh, quem daqui tem a arte da medicina nas mãos, você tem, Titia?”, perguntou Sarima. “Vamos rápido, pode ainda restar algum tempo para ele. Você tem as artes, não tem, você estudou as ciências da vida! O que você pode fazer?”

“Irji, vá buscar a Babá, diga a ela que é uma emergência”, gritou Elfinha. “Vamos levá-lo para a cozinha, com carinho, agora. Não, Sarima, eu não sei o suficiente.”

“Use seus feitiços, use sua mágica!”, exclamou Cinco.

“Ressuscite-o”, pressionou Seis, e Três acrescentou, “Você é capaz disso, não seja hipócrita e tímida com seu dom agora!”

“Eu não posso ressuscitá-lo”, disse Elphaba, “Eu não posso! Eu não tenho aptidão para a feitiçaria! Eu nunca tive! Foi tudo uma tola armação de Madame Morrible, que eu rejeitei!” As seis irmãs olharam para ela de esguelha.

Irji escoltou a Babá até a cozinha, Nor trouxe a vassoura, Manek trouxe o Livro das Sombras, e as irmãs e Sarima trouxeram o corpo de Liir, gote­jante e inchado, e estenderam-no na tábua do abatedouro. “Oh, agora, quem é este?”, a Babá se espantou, mas começou a trabalhar bombeando as pernas e os braços, e pôs Sarima para pressionar o abdômen.

Elphaba folheou rapidamente o Livro das Sombras, contorceu seu rosto e bateu nas próprias têmporas com seus pulsos, e lastimou: “Mas eu não te­nho experiência pessoal com uma alma ― como vou encontrar a dele se nem sei com que uma alma se parece?”

“Ele está mesmo mais gordo que de costume”, disse Irji.

“Se você furar os olhos dele com uma palha mágica da vassoura mágica, a alma retornará”, disse Manek.

“Eu me pergunto por que será que ele entrou no poço dos peixes?”, disse Nor. “Eu nunca entraria.”

“Santa Lurlina, tende misericórdia, misericórdia!”, disse Sarima, cho­rando, e as irmãs começaram a murmurar o ofício dos mortos, louvando o Deus Inominável pela vida que partira.

“A Babá não pode fazer tudo”, disse asperamente a Babá, “Elphaba, dê uma ajuda! Você é igualzinha à sua mãe quando acontece uma crise! Ponha a sua boca na dele e sopre ar dentro dos pulmões do menino! Vamos!”

Elphaba enxugou a umidade do rosto pastoso de Liir com a borda da manga de sua blusa. O rosto se fixava no ponto para onde era empurrado. Ela fez uma careta, e cuspiu alguma coisa dentro de um balde, e então afundou a sua boca na boca da criança, e respirou fundo, empurrando pela passagem azeda seu próprio ar azedo. Seus dedos se enrijeceram, agarrados nos lados da tábua do abatedouro, arrancando lascas, como se ela estivesse num êxtase de tensão sexual. Chistérico respirava junto com ela, golfada após golfada.

“Ele cheira como peixe”, Nor disse, respirando fundo.

“É com isso que você se parece quando se afoga, eu preferiria queimar até morrer”, disse Irji.

“Eu simplesmente não vou morrer”, Manek disse, “e ninguém vai me fazer mudar de idéia.”

O corpo de Liir começou a dar sinais de sufocamento. Pensaram a prin­cípio que era uma reação involuntária, o ar da boca de Elphaba engolido e de novo expelido, e saiu uma pequena corrente de alguma coisa repugnante amarelada. Então, as pálpebras do menino se moveram, e sua boca se mexeu por vontade própria.

“Oh, misericórdia”, Sarima murmurou. “É um milagre. Obrigada, Lur­lina! Abençoada seja!”

“Não saímos da encrenca ainda”, disse a Babá. “Ele ainda pode morrer de frio. Rápido, tirem as roupas dele.”

As crianças observaram a tola indignação das mulheres adultas arrancando as estúpidas calças e a túnica de Liir. Elas esfregaram banha de porco no corpo todo do menino. Isso deu às crianças um pretexto para risadinhas abafadas, e fez com que Irji se sentisse muito cômico em suas calças, pela primeira vez em sua vida. Então, envolveram Liir num cobertor de lã, o que gerou uma grande bagunça, e prepararam-se para pô-lo na cama.

“Onde ele dorme?”, disse Sarima.

Todos se entreolharam. As irmãs olharam para Elphaba, e Elphaba olhou para as crianças. “Oh, às vezes no chão do nosso quarto, às vezes no chão do quarto da Nor”, disse Manek.

“Ele quer dormir na minha cama também, mas eu o empurro pra fora”, disse Nor. “Ele é gordo demais, não sobraria lugar para mim e para as minhas bonecas.”

“Ele não tem nem mesmo uma cama?”, Sarima friamente perguntou a Elphaba.

“Bem, não me pergunte, esta é a sua casa”, disse Elfinha.

E Liir se agitou de algum modo, e disse: “O peixe falou comigo. Eu falei com o peixe. O peixe dourado falou comigo. Ela disse que era...”

“Quieto, pequenino”, disse a Babá, “vai ter tempo pra isso mais tarde.” Ela lançou um olhar feroz para as mulheres e as crianças na cozinha. “Bem, não seria preciso chamar a Babá para achar para ele uma cama apropriada, mas se não há mais nenhuma para ele, o menino pode subir para o meu quarto, e eu dormirei no chão!”

“Claro que não, mas que idéia”, começou Sarima, agitando-se.

“Bárbaras, vocês todas!”, gritou a Babá.

Pelo que ninguém em Kiamo Ko jamais conseguiu perdoá-la.

 

Sarima repreendeu a Titia Hóspede severamente pelo que aconteceu com Liir. Elphaba tentou dizer que isso não fora causado por ela, não era culpa sua. “Foi brincadeira de algum menino, algum jogo, alguma provocação”, ela disse. Suas acusações passaram, e elas começaram a conversar sobre as diferenças entre meninos e meninas.

Sarima contou à Titia Hóspede o que ela sabia sobre o rito de inicia­ção dos meninos na tribo. “Eles são levados para as pastagens, e deixados lá com nada senão uma tanga e um instrumento musical. Exige-se que eles invoquem os espíritos e os animais dentro da noite, para conversar com eles, para aprender com eles, para acalmá-los se precisam de paz, para lutar com eles se precisam de luta. O menino que morre à noite dá prova clara de falta de discernimento para decidir se a sua companhia precisa de luta ou de paz. Então, é correto que ele morra jovem e não seja um peso para a tribo com a sua estupidez.”

“O que os meninos dizem dos espíritos que se aproximam deles?”, per­guntou a Titia Hóspede.

“Os meninos falam muito pouco, especialmente sobre o mundo dos espíritos”, ela respondeu. “Contudo, você colhe o que dá para colher. E eu acho que alguns espíritos são muito pacientes, muito desgastantes, muito obstinados. A sabedoria supõe que deveria haver conflito, hostilidade, bata­lha, mas eu penso cá comigo se, em contato com os espíritos, os meninos não precisariam era de uma boa ajuda de raiva fria.”

“Raiva fria?”

“Oh, sim, você não conhece a distinção? As mães tribais sempre dizem a seus filhos que há duas espécies de raiva: a quente e a fria. Meninos e meninas experimentam as duas, mas, à medida que crescem, as raivas se separam de acordo com o sexo. Os meninos precisam de raiva quente para sobreviver. Eles precisam da inclinação para lutar, o impulso para enfiar a faca na carne, a energia e a iniciativa da fúria. É uma exigência de caça, de defesa, de orgulho. Talvez de sexo, também.”

“Sim, eu sei”, disse Elphaba, relembrando.

Sarima ficou ruborizada e pareceu infeliz, e continuou: “E as meninas precisam de raiva fria. Elas precisam da fervura branda, do ressentimento constante, do talento para evitar a absolvição, para evitar o compromisso. Elas precisam saber quando dizer alguma coisa da qual nunca, nunca irão voltar atrás. É a compensação para uma liberdade de ação menor no mundo. Cruze o caminho de um homem e você lutará, um de vocês vencerá, haverá um ajuste e uma continuidade ― ou você ficará lá, morto. Cruze o caminho de uma mulher e o universo mudou, mais uma vez, pois a raiva fria exige uma eterna vigilância em todos os aspectos da desfeita e da ofensa”. Ela olhou ferozmente para Elphaba, alfinetando-a com acusações não exprimidas sobre Fiyero, sobre Liir.

Elphaba refletiu sobre isso. Ela pensou na raiva quente e na raiva fria, e se era dividida entre os sexos, e qual ela sentia, se sentira as duas, se alguma vez as tinha sentido. Pensou na sua mãe que morrera jovem, e em seu pai com suas obsessões. Ela pensou na raiva que o Doutor Dillamond tinha sentido ― uma raiva que o levara ao estudo e à pesquisa. Pensou na raiva que Madame Morrible mal podia disfarçar, quando tentava seduzir as garotas do colégio para entrar no serviço secreto do governo.

Ela sentou-se e pensou nisso na manhã seguinte enquanto observava o sol aumentar em intensidade e brilhar, vitorioso, sobre os montes de neve nos salpicados telhados logo abaixo. Ela observava o sol sangrar a água do gelo da geleira. Calor e frio trabalhando juntos para formar uma geleira. Calor e raiva fria trabalhando juntos para fazer uma fúria, uma fúria digna o bastante para que fosse usada como uma arma contra as velhas coisas que ainda precisavam ser combatidas.

De uma certa forma ― sem nenhum meio de prová-la, naturalmente ―, ela sempre se sentira capaz de raiva quente quanto qualquer homem. Mas, para ser bem-sucedido, é preciso ter acesso às duas formas...

Liir sobreviveu, mas Manek não. A geleira sobre a qual Elphaba treinou seu olhar afiado, pensando nas armas que eram necessárias para enfrentar tal abuso ― partiu-se feito uma lança a partir do beiral, e caiu zunindo, atingindo o crânio do menino quando ele saiu para procurar algum novo meio de fazer mal a Liir.

 

Eles estão te chamando de bruxa, você sabe?”, disse a Babá. “Agora, por que será que fazem isso?”

“Bobeira e estupidez”, disse Elphaba. “Quando eu cheguei, me sentia distanciada do meu nome depois dos meus anos no monastério, quando eu era chamada de Irmã Santa Elphaba. Elphaba parecia o nome de alguém que desaparecera havia muitos anos. Pedi que me chamassem de Titia. Embora eu nunca tivesse sentido vontade de ser a Titia de ninguém, nem soubesse como isso era. Nunca tive tias ou tios.”

“Hmmm”, disse a Babá, “eu não acho que você tenha muito de uma bruxa. Sua mãe ficaria escandalizada, Deus guarde a sua alma. Seu pai também.”

Elas estavam caminhando no pomar de maçãs. Uma nuvem de flores deixava o ar repleto de perfume. As abelhas da Bruxa estavam tendo um dia de festa, zumbindo com força. Matalegria sentou-se, sacudindo a cauda, à sombra da pedra tumular de Manek, erguida junto ao muro. Os corvos se revezavam em corridas pelo ar, espantando todos os outros pássaros, à exceção das águias. Irji e Nor e Liir, por insistência da Babá, foram levados à escola da aldeia. Kiamo Ko ficava numa bem-aventurada tranqüilidade até o meio-dia.

A Babá tinha setenta e oito anos. Ela caminhava com uma bengala. Não desistira de seus pequenos esforços no sentido de se embelezar, embora agora eles parecessem mais arruiná-la que dignificá-la. Seu pó-de-arroz era espesso demais, o rubro de seus lábios manchava e ficava fora de lugar, e o frágil xale rendado era inútil devido às características do vale. Por seu lado, a Babá achava que Elphaba estava com uma aparência ruim, como se seu formato estivesse às avessas. Pálida. Uma desintegração de adoentada. Ela parecia não se importar nem um pouco com seu belo cabelo, mantendo-o escondido lá no alto, debaixo daquele chapéu ridículo. E o seu roupão negro bem que andava precisando de uma lavagem e secagem.

Elas se detiveram junto a um muro torto e se encostaram nele. As irmãs os estavam colhendo flores a uns poucos campos mais além, e Sarima, inchada como um balão, as acompanhava. Em seu escuro roupão de luto, ela lembrava um enorme perigoso casulo que se desprendera de seu suporte. Era bom ouvir sua risada novamente, mesmo que fosse falsa; a luz tinha esse estranho efeito purificador sobre todo mundo, mesmo sobre Elphaba.

A Babá contara a Elfinha sobre a sua família. O Eminente Thropp finalmente morrera. Na ausência de Elphaba, que todos supunham morta, o manto de Eminência ficara para Nessarose. Assim, a irmã mais nova esta­va agora confinada em Solos de Colwen, emitindo declarações dogmáticas sobre fé e culpa. Frex estava lá com ela também, sua carreira de pastor quase pelo fim. À medida que ele desistia dos esforços, sua mente ia recuperando o equilíbrio. Shell? Ele vinha e voltava. Abundavam boatos de que se tornara um agitador na luta da terra de Munchkin para separar-se de Oz. Ele crescera bonito e bem, na suspeita opinião da Babá: membros saudáveis, pele clara, fala direta, bom coração. Estava agora nas primícias dos vinte anos.

“E o que Nessarose pensa da secessão?”, Elfinha tinha perguntado. “Sua opinião sobre isso será importante, agora que ela é a Eminente Thropp.”

A Babá relatou que Nessarose se tornara muito mais inteligente do que qualquer um previra. Ela mantinha cartas na manga e emitia vagas de­clarações sobre a causa revolucionária, declarações que poderiam ser lidas de vários modos, dependendo do público. A Babá dava como certo que Nessa­rose tinha a intenção de construir alguma espécie de teocracia, incorporando às leis governamentais da terra de Munchkin sua restritiva interpretação do unionismo. “Seu próprio santo pai não sabe se isso será bom ou ruim, e faz silêncio a respeito do assunto. Ele não é muito dado à política, ele prefere o reino místico.” Havia, segundo a Babá observara, até um certo apoio aos planos de Nessarose entre os nativos. Mas, como Nessarose controlava bem as suas observações, as forças armadas do Mágico que tinham guarnição na área não encontravam pretexto para prendê-la. “Ela é perita, uma verdadeira adepta, nisso. Shiz a ensinou bem. Anda muito bem com os próprios pés, agora.”

Essas palavras causaram arrepios na espinha de Elphaba. Estaria Nessa­rose bem agora capitulando a alguma espécie de feitiço que Madame Morrible lançara sobre ela, naqueles nebulosos anos atrás na sala de Crage Hall? Seria ela na verdade um peão de xadrez, uma Adepta do Mágico ou de Madame Morrible? Será que ela sabia por que fazia o que fazia? Nesse aspecto, não seria ela mesma, Elphaba, nada além da peça do jogo de um poder maior e maléfico?

A recordação das propostas de Madame Morrible para as suas carreiras ― dela, de Nessarose e de Glinda ― voltara à memória de Elfinha com um choque que viera depois da recuperação de Liir de sua extenuação e quase afogamento no inverno anterior. Quando o menino se refizera o suficiente para responder a perguntas sobre como fora parar no fundo do poço dos pei­xes, ele só conseguira dizer: “O peixe falou comigo, ela me disse para descer”. Elfinha sabia no coração que fora Manek, o horrivelmente maldoso Manek, que torturara o menino implacável e abertamente o inverno todo. Ela não se importava com o fato de ele haver morrido, mesmo sendo o filho precioso de Fiyero. Qualquer torturador era fichinha para geleiras bem afiadas. Mas ela tivera de parar para pensar, engolindo seco, com o que Liir lhe dissera depois. Ele dissera: “O peixe me contou que ele era mágico. Ele disse que Fiyero era meu pai, e que Irji e Manek e Nor são meus irmãos e minha irmã.”

“Peixe dourado não fala, meu doce”, Sarima disse. “Você está imagi­nando coisas. Você ficou lá em baixo tempo demais e seu cérebro se encheu de água.”

Elphaba ficara ansiosa em relação a Liir, uma estranha, infeliz com­pulsão. Quem era esse menino que vivia ao seu lado? Oh, ela sabia mais ou menos de onde ele viera, mas quem ele era ― parecia fazer uma diferença, pela primeira vez em sua vida. Ela se aproximara e colocara a mão em seu ombro. Ele a tirara dali; não estava acostumado com um tal gesto. E ela se sentira rejeitada.

“Quer ver meu rato de estimação, Liir?”, disse Nor, que fora calorosa com o menino durante a sua convalescença. Liir sempre escolhia a compa­nhia de seus pares, alheio ao questionamento dos adultos, e fora impossível arrancar dele informações sobre sua experiência penosa. Ele não parecia mui­to mudado, exceto pelo fato de que, com Manek morto, podia vaguear por Kiamo Ko com maior animação e liberdade.

E Sarima olhara para Elphaba, e Elphaba pensara que a hora de sua libertação estava por perto, enfim. “Que bobagem desse menino, ele é decep­cionante”, Sarima dissera por fim. “A idéia de Fiyero ser seu pai. Fiyero não tinha um grama de gordura em seu corpo, e olhe só para esse menino.”

Debaixo das condições que ela estabelecera para a sua hospedagem, Elphaba não podia forçar Sarima a mudar de opinião, mas ela olhou fixo para a sua anfitriã, desejando que ela aceitasse os fatos. Mas ela não aceitara. “E quem poderia ser a mãe?”, disse Sarima brandamente, tocando a bainha de sua saia com suavidade. “É um absurdo além de todas as palavras.”

Pela primeira vez, Elfinha desejou que Liir tivesse ao menos uma su­gestão de verde em sua pele.

Sarima se retirara, para chorar na sua capela pelo seu marido, pelo seu segundo filho.

E os termos do aprisionamento de Elfinha ― como uma traidora inde­sejável, como uma monja exilada, como uma mãe infeliz, como uma rebelde fracassada, como uma Bruxa disfarçada ― permaneceram imutáveis.

Mas a idéia de um Peixe Dourado ou uma Carpa no poço de peixes revelando aquelas coisas para Liir ― havia qualquer possibilidade de uma coisa dessas? Ou teria Madame Morrible a habilidade de mudar de forma, de viver na escuridão fria, de deslizar por ali e observar o que Elphaba fazia? Liir não tinha imaginação para falar de tal coisa, ele não poderia ter chegado àquilo sozinho. Poderia?

Quando ela fora olhar no poço de peixes, muitas vezes em todas as horas do dia ou da noite, a velha carpa ― ou Carpa ― estava fora de vista.

“Estou contente por saber que Nessarose anda com seus próprios pés”, disse Elphaba por fim, voltando do mundo de suas reflexões para a realidade do pomar. A Babá estava roendo um pedaço de açúcar-cande.

“Eu disse isso literalmente, você sabe”, disse a Babá no meio de sua saliva. “Ela não precisa mais ser carregada. Nem figurativa nem literalmente. Ela consegue ficar em pé sozinha, firmar-se e sentar-se.”

“Sem a ajuda dos braços? Eu não acredito nisso”, disse a Bruxa.

“Você terá de acreditar. Você se lembra daquele par de sapatos que Frex enfeitou para ela?”

Claro que Elphaba se lembrava! Os belos sapatos! O sinal da devoção de seu pai à sua segunda filha, de seu desejo de realçar a sua beleza e afastar as atenções que se voltassem sobre a sua deformidade.

“Bem, a velha Glinda dos Arduennas, lembra-se dela? Casada com Sir Chuffrey, e fracassada, na minha humilde opinião. Ela veio a Solos de Colwen há alguns anos. Ela e Nessarose passaram ótimas horas matando as saudades, recordando os tempos de colégio. E ela calçou justamente aqueles sapatos como numa espécie de encantamento. Não me pergunte nada. A magia nunca foi minha praia. Os sapatos permitiram a Nessarose sentar-se, firmar-se em pé e caminhar sem apoio. Ela nunca fica sem eles. Ela afirma que eles lhe transmitem virtudes morais também, mas então acho que desse artigo ela tem mais do que precisa. Você ficaria surpresa ao ver como os munchkineses deram para ficar supersticiosos, ultimamente.” A Babá suspirou. “Foi por isso que fiquei livre para sair à procura de você, queridinha. Os sapatos mágicos me tornaram redundante. A Babá ficou sem emprego.”

“Você é velha demais para trabalhar, fique sentada e aproveite o sol”, disse Elphaba. “Pode ficar por aqui quanto tempo quiser.”

“Você fala como se esta fosse a sua casa”, disse a Babá. “Como se você tivesse o direito de fazer tais convites.”

“Até que eu possa partir, esta é a minha casa”, disse Elfinha. “Não posso evitar.”

A Babá entrefechou os olhos e olhou para o alto das montanhas, que à luz do meio-dia parecia um chifre polido. “Essa é muito boa, pensar em você como uma Bruxa, de uma certa maneira, e em sua irmã tentando se estabelecer como Santa residente. Quem teria pensado numa coisa dessas, lá naqueles anos lamacentos nos pântanos de Quadling? Não acredito que você seja uma bruxa, não importa o que você diga. Mas uma coisa eu quero saber. Liir é seu filho?”

Elphaba tremeu, embora seu coração, no mais profundo de sua reserva de frieza, manifestasse desgosto com energia quente. “Não é uma pergunta que eu possa responder”, ela disse, tristemente.

“Você não precisa esconder nada de mim, queridinha. Lembre-se, a Babá foi enfermeira e confidente de sua mãe também, e uma mulher mais sociável e sensual que ela estou ainda por encontrar. As convenções não a prendiam, nem na juventude nem depois de casada.”

“Eu não acho que queira saber dessas coisas”, disse Elfinha.

“Então, vamos falar de Liir. Que diabos quer você dizer, afirmando que não pode responder a uma pergunta tão simples quanto essa? Ou você o concebeu e pariu, ou não. Por tudo que sei deste mundo, não há outras histórias.”

“O que quero dizer”, disse Elphaba, “e a única observação que farei so­bre isso é esta. Quando eu cheguei ao monastério, sob os bons serviços da Mãe Yackle, eu não estava em condições de saber o que estava acontecendo comigo, e passei quase um ano num sono de morta. É bem possível que eu tenha levado um filho comigo e dado à luz. Eu era outra doente com um ano inteiro para recuperação. Assim que assumi meus deveres, trabalhei com os enfermos e os moribundos, e também com as crianças abandonadas. Eu não tinha mais relações com Liir que com qualquer outra daquelas dúzias de pirralhos. Quando deixei o monastério para vir para cá, foi sob a condição de que traria Liir comigo. Eu não questionei a ordem ― não se questiona as ordens de superiores. Eu não tenho calor maternal com relação ao menino” ― ela engoliu, para caso isso não fosse mais verdade ― “e eu não sinto que te­nha passado pela experiência de parir uma criança. Eu não acredito que seja completamente capaz disso, na verdade, embora eu esteja disposta a admitir que seja simplesmente ignorância e cegueira de minha parte. Mas isso é tudo que posso dizer a respeito. Não direi mais, nem você o fará.”

“Você tem uma obrigação de ser maternal com ele então, a despeito do mistério?”

“As únicas obrigações a que me sujeito são aquelas que escolho para mim mesma. E isso, Bá, é isso.”

“Você está muito ácida, essa situação a deixa infeliz. Mas, se acha que vim para cá para criar outra geração de Thropps, esqueça. A Babá está em seu período senil agora, lembre-se, e feliz assim.”

Mas Elphaba não pôde deixar de notar nas semanas seguintes que a Babá começou a satisfazer às necessidades de Liir de modo mais afetuoso que aquele com que tratava Nor e Irji. Elphaba registrou o fato com vergo­nha, pois ela também viu como Liir respondeu à atenção da Babá com boa vontade.

Ao contar episódios das façanhas de Shell ― seu velho coração vivaz palpitando quase visivelmente debaixo de seu peito ― a Babá revelou detalhes das campanhas do Mágico. Isso deixou Elphaba furiosa, pois até aí vinha mantendo a esperança de perder o interesse pelas ações dos homens maus.

 

A Babá fuxicou sobre o Mágico haver montado uma nova espécie de acampamento para a juventude, o Jardim do Imperador ― uma bela, eufe­mística denominação. Todas as crianças munchkinesas de quatro a dez anos foram obrigadas a aderir, em residências por um mês de verão. As crianças prestavam juramento de segredo ― um grande jogo para elas, sem dúvida. A Babá contou uma história cheia de longos desdobramentos, mais apropria­da para velhas desdentadas sentadas em volta de uma lareira que para uma mesa de jantar com eretas e reprimidas solteironas arjikis, de como Shell, o querido desconhecido irmão Shell, se disfarçou como um vendedor de batatas fazendo entregas. E atravessou os portões. Oh, as muitas aventuras divertidas de um libertino! A filha adolescente do General do Acampamento num roupão, os inventivos álibis de Shell, seus flertes, suas escapadas por um triz! Quase sendo descoberto em suas relações ― por crianças! Que farra! A Babá permanecia, no fundo, uma velha camponesa bocuda, apesar de seus ares de importância. Elphaba pensava: Ela mal compreende que está falando de doutrinação, traição, recrutamento forçado de crianças numa guerra de baixo nível. Com a recém-descoberta preocupação quanto ao fato de Liir estar ainda pairando nos limiares da vida, movendo-se desajeitada e afetuosamente através de seus dias, ela achava essas histórias de crianças doutrinadas hor­ríveis e repugnantes.

Ela foi ao Livro das Sombras e escancarou sua capa maciça ― ornamen­tada de couro com argolas de cadeado e pregadores dourados, revestida de lâmina de prata ― e examinou os tomos para encontrar o que torna as pessoas sedentas por tanta autoridade e força. Seria a crua natureza da besta interior, o animal humano dentro do Ser Humano?

Ela procurou uma receita para derrubar um regime. Encontrou muita coisa sobre poder e destruição, mas pouco sobre estratégia.

O Livro das Sombras descrevia o envenenamento dos lábios que se aproximam dos copos, o enfeitiçamento dos degraus de uma escada para fazê-los vergar, a incitação de um cãozinho de estimação de um monarca para que desse uma mordida num lugar indesejável. Sugeria a inserção noturna, através de qualquer orifício apropriado, de uma invenção demoníaca, um fio parecido a uma corda de piano, em parte tênia em parte estopim aceso, para causar uma morte particularmente dolorosa. Tudo isso parecia de um ilusionismo carnavalesco para Elphaba. O que era mais interessante, em seu entender, era um pequeno desenho que ela vira perto de uma seção denomi­nada Características do Demônio. O desenho ― feito, a acreditar na crédula Sarima, num outro mundo ― era um esboço inteligente de uma mulher-de­mônio de rosto cheio. Manuscritas de modo angular, cheio de ramificações, com elegantes serifas afuniladas, estavam as palavras UIVO DO CHACAL. Elphaba olhou novamente. Ela viu uma criatura em parte mulher, em parte chacal dos campos, suas mandíbulas arreganhadas, suas garras dianteiras erguidas para dilacerar o coração que saía de uma teia de aranha. E a criatura fazia com que ela lembrasse da velha Mãe Yackle do monastério.

Teorias de conspiração, como Sarima dissera, pareciam assombrar seus pensamentos. Ela virou a página.

Não havia nada no Livro das Sombras sobre como derrubar um tirano ― nada que fosse útil. Legiões de anjos superiores não eram coisas que pu­dessem lhe dar respostas. Não havia naquelas páginas nada que descrevesse por que homens e mulheres podiam ser tão horríveis. Ou tão maravilhosos ― se é que esta alternativa ainda pudesse ocorrer.

 

Na verdade, a família fora devastada pela morte de Manek. Havia um sentimento não confessado de que a vida de Liir, de algum modo, fora salva ao custo da vida de Manek. As irmãs tinham sofrido a mais temida das perdas: o roubo do Manek adulto de suas vidas. Seu triste fardo fora supor­tável nesses anos todos porque Manek iria ser o homem que Fiyero fora, e talvez até mais. Elas perceberam em retrospecto que tinham tido a esperança de que Manek recuperasse as glórias perdidas de Kiamo Ko.

O fraco Irji não tinha mais senso de destino que um cão da pradaria. E Nor era uma menina, mais frívola e distraída que estas costumam ser. Assim, Sarima, debaixo de seus gestos extasiados de aceitação da vida (suas alegrias, suas dores, seus mistérios, tal como ela gostava de fantasiar), ficou ainda mais alheia. Nunca fora chegada às suas irmãs, e agora começara a tomar suas refeições sozinha no Solar.

Irji e Nor, que tinham gostado de unirem-se de tempos em tempos numa espécie de aliança contra a maldade dominadora de Manek, tinham agora menos coisas a uni-los. Irji começou a vagar pela velha capela unionista, ensinando-se a ler melhor pelo estudo de mofados hinários e breviários. Nor não gostava da capela ― ela achava que o fantasma de Manek permanecera lá, já que fora lá o último lugar em que ela vira o corpo do menino numa mortalha descoberta ― então, tentou se engraçar com a Titia Bruxa ― mas sem proveito. “Você é dada a fazer mal ao Chistérico”, protestou Elfinha, “e eu tenho mais que fazer. Vai encher o saco de outro.” Ela simulou dar um pontapé em Nor, que, choramingando e gritando como se este houvesse de fato a atingido, foi embora apavorada.

Nor dera para vagar ― agora que o verão se aproximava ― pelo vale elevado, aquele com o rio em sua base ― e subia pelo outro lado, onde as ovelhas pastavam a melhor grama que teriam no ano todo. No passado, teria ido para lá na companhia dos irmãos, ou teria sido proibida de fazer a esca­lada sozinha. Mas, nesse ano, ninguém estava prestando atenção a ela para proibi-la de nada. Ela não se importaria de sofrer uma proibição, não teria nem mesmo se incomodado com uma correia que a prendesse. Andava se sentindo solitária.

Um dia ela vagou para pontos particularmente distantes do vale, delei­tando-se com a força e a resistência de suas pernas fortes. Ela tinha apenas dez anos, mas eram dez anos robustos, maduros. Ela erguera a sua saia verde até a cintura, e porque o sol estava a pino e forte, tirara a sua blusa e a amar­rara como uma tiara em sua cabeça. Ela mal estufava seu peito aqui e ali para espantar alguma ovelha, e, de qualquer modo, esperava poder avistar um pastor a milhas de distância.

Como foi que, de todos os lugares de Oz, eu vim parar logo aqui, ela se perguntava, pisando no terreno da reflexão como uma novata. Aqui estou eu, uma menina numa montanha, nada além de vento e ovelhas e relva semelhan­te a um prado esmeralda, verde e dourado como os enfeites de Lurlinemas, sedoso por cima, tosco por baixo. Só eu e o sol e o vento. E aquele grupo de soldados vindo por detrás das rochas. Ela recuou e se abaixou na relva, recolocou a sua blusa, e se apoiou nos cotovelos, escondendo-se.

Não eram soldados como aqueles que ela já tinha visto. Não eram ho­mens arjikis em seus uniformes e capacetes cerimoniais, com suas lanças e escudos. Esses eram homens em uniformes e boinas marrons, com mosquetes ou coisas parecidas pendurados em seus ombros. Usavam um tipo de bota mais ou menos alto e impróprio para caminhadas pelos montes, e quando um deles parou e se pôs a perder tempo com um prego ou uma pedra em sua bota, seu braço desapareceu nela até a altura do cotovelo.

Havia uma listra verde na frente de seus uniformes, e uma barra a cru­zava, e Nor sentiu-se esfriar com um desconhecido senso de premonição. Ao mesmo tempo ela queria ser vista. O que Manek teria feito?, ela se pergun­tava. Irji fugiria, Liir ficaria espantado e tremeria, mas, Manek? Manek teria marchado na direção deles e descoberto o que estava acontecendo.

E ela assim faria. Examinou a blusa novamente para se certificar de que seus botões estavam fechados, e foi descendo o penhasco em passadas largas na direção dos homens. Quando ela conseguiu toda a atenção deles, e o ho­mem que tirara a bota já a tinha recolocado, começou a repensar a sensatez de seu plano. Mas era tarde demais para fugir agora.

“Salve”, ela disse de um modo formal, usando a linguagem do leste, não seu próprio vernáculo arjiki. “Salve e alto. Eu sou a Princesa Filha dos Arjikis, e isto em que vocês estão pisando com suas grandes botas pretas é o meu vale.”

Era meio-dia alto quando ela os conduziu para dentro dos domínios do castelo de Kiamo Ko. As irmãs estavam em seu pátio de lavar roupas no verão, batendo tapetes elas mesmas porque não confiavam que as lavadeiras nativas tratassem-nos com o devido cuidado. O som de botas a ressoar nas pedras fez as irmãs correrem por uma arcada, todas ruborizadas e empoeiradas, o cabelo enrolado em lenços de algodão. Elphaba ouviu o barulho, também, e escancarou a janela, arregalando os olhos. “Não dêem um passo adiante antes que eu desça”, ela gritou, “ou eu as transformarei em roedores. Nor, afaste-se deles. Todas vocês, afastem-se.”

“Vou buscar a Viúva Princesa”, disse Dois, “se isso os agrada, cavalheiros.”

Mas quando Sarima chegou, com resquícios sonolentos de um cochi­lo, Elphaba já tinha descido, a vassoura sobre o ombro, suas sobrancelhas erguidas até o crânio. “Vocês não são bem-vindos aqui”, parecendo mais que nunca uma Bruxa em suas saias monacais, “então, como é que querem ser tratados? Quem está na chefia? Você? Quem é o mais velho à frente dessa missão? Você?”

“Se me faz um favor, Madame”, disse alguém, um rijo homem gillikinês de cerca de trinta anos. “Eu sou o Comandante ― o nome é Pedra Cereja ― e estou sob as ordens do Imperador para requisitar uma casa grande o bastante para abrigar nosso grupo enquanto estivermos neste distrito de Kells. Esta­mos fazendo uma inspeção das passagens para as Pastagens Milenares.” Ele tirou de dentro de sua camisa um documento manchado de suor.

“Eu que os encontrei, Titia Bruxa”, disse Nor orgulhosamente.

“Vá embora. Vá pra dentro”, disse Elphaba para a garota. “Vocês, ho­mens, não são bem-vindos aqui e a menina não tem o direito de convidá-los. Virem de volta e marchem para além daquela ponte levadiça imediatamente.” O rosto de Nor empalideceu.

“Isso não é um pedido, é uma ordem”, disse o Comandante Pedra Cereja num tom arrependido.

“Isso não é uma sugestão, é um aviso”, disse Elphaba. “Vão embora, ou sofram as conseqüências.”

Sarima, a essa altura, tinha se recuperado o bastante para dar um passo avante, suas irmãs cochichando, empolgadas, a seu redor. “Titia Bruxa”, ela disse, “você se esqueceu do código das montanhas, o mesmo pelo qual você pôde se alojar aqui, e sua velha Babá depois. Nós não mandamos visitas em­bora. Por favor, senhores, perdoem nossa amiga melindrosa. E perdoem-nos. Faz muito tempo que não vemos soldados em uniforme.”

As irmãs se enfeitaram o melhor que podiam ao ouvir esse curto pro­nunciamento.

“Eu não vou aceitar isso, Sarima”, Elphaba disse, “você nunca saiu daqui, você não sabe quem são esses homens ou o que eles vão fazer! Eu não vou aceitar isso, ouviu bem?”

“É o espírito elevado, a determinação, que a torna tão agradável de ter por perto”, disse Sarima um tanto maldosamente, já que em geral ela real­mente gostava da companhia de Elphaba. Mas ela não gostava de ter sua autoridade usurpada. “Cavalheiros, venham por aqui. Vou lhes mostrar onde podem se lavar.”

 

Irji não sabia bem o que fazer na presença de militares, e não se aproxi­mava muito. Se estava com medo de ser recrutado ou enfeitiçado, não sabia dizer. Levou um colchão de dormir à capela, e dormiu lá, agora que o tem­po era calorento o bastante. Na opinião da Babá, ele estava ficando biruta. “Acredite, depois de uma vida cuidando do devoto marido de sua mãe, Frex, e de sua irmã logo depois, reconheço um lunático religioso infalivelmente”, ela disse para Elphaba. “O menino devia era estar aprendendo lições de virilidade com esses homens, aconteça aqui o que acontecer.”

Por outro lado, Liir estava no paraíso. Ele seguia o Comandante Pedra Cereja por toda parte a menos que ele se virasse, e buscava água para os homens e engraxava as suas botas, num excesso de paixão indisfarçável. As perambulações que eles faziam, fazendo reconhecimento de terreno dos vales locais, mapeando os lugares para vadear o rio, apontando com precisão os pontos estratégicos, deram a Liir mais exercício e ar livre do que jamais tivera. Sua espinha, que estivera ameaçada de se tornar tão curva quanto o arco de uma harpa montanhesa, pareceu se aprumar. Os soldados eram indiferentes a ele, mas não eram manifestamente grosseiros, e Liir interpretava isso como aprovação e afeto.

As irmãs recuperaram um pouco do bom senso quando pararam de pensar que tipo de homem era esse que ingressava no exército. Mas não foi fácil.

Sarima, por sua vez, parecia indiferente à perturbação de sua rotina. Ela recorreu aos aldeões e requisitou seus favores para que a ajudassem a alimentar a hoste de soldados, e, numa mescla de ressentimento e medo, seus vizinhos apareceram com leite, ovos, queijos e legumes. Havia estocho ou garmota do poço de peixes quase toda noite. E os jogos de verão, natural­mente ― codorna, fênix da colina, pássaro Roca-bebê ―, nos quais os homens provaram perícia. A Babá suspeitava que o grupo de reconhecimento estava ajudando Sarima a superar seu sofrimento, trazendo-a no mínimo de volta à mesa da família.

Mas Elphaba estava furiosa com todos eles. Ela e o Comandante tinham discussões todo dia. Elfinha proibiu-o de permitir que Liir o seguisse de perto ― e proibiu o próprio Liir ― o que foi absolutamente sem efeito. Seus primeiros sentimentos verdadeiramente maternais foram de incompetência e de ser jocosamente ignorada como alguém inconseqüente. Ela não conseguia entender como a raça humana se desenvolvera para além de uma única ge­ração. Ela continuamente queria estrangular Liir, como um meio de salvá-lo de figuras paternais de fala macia.

À medida que Elfinha tentava com mais afinco esmiuçar a natureza de sua missão, fazendo uso de toda a amabilidade da esquivança, o Comandante Pedra Cereja ficava mais gélido e polido. A única coisa que Elphaba nunca conseguira dominar fora a cortesia de salão, e esse soldado ― de todas as pes­soas existentes ― era um mestre nisso. A coisa fazia com que se sentisse como se sentira entre as garotas de sociedade de Crage Hall. “Não preste atenção a esses soldados, eles irão embora uma hora dessas”, dizia a Babá, que estava numa época de sua vida em que tudo ou era a fatal crise derradeira ou um assunto de fato dispensável.

“Sarima diz que raramente vira qualquer das tropas do Mágico no Vinkus. Isto aqui foi sempre árido, sem vida, de pouco interesse para os fazendeiros e comerciantes da Oz do norte e do leste. As tribos aqui viveram por décadas, séculos, suponho, com nada a não ser um ocasional cartógrafo passando e batendo em retirada rapidamente. Você não acha que isso sugere uma espécie de missão por estes lados? Que mais essa movimentação pode sugerir?”

“Veja quanto tempo levou para que esses homens jovens se recupe­rassem de sua caminhada pelo interior”, disse a Babá. “Isso é com certeza apenas uma missão de reconhecimento, como eles afirmam. Eles pegarão as informações e partirão. Além disso, todo mundo me diz, o maldito lugar fica todo encharcado de neve e lama por dois terços do ano. Você é uma paranói­ca, sempre foi. O jeito com que você agarrava os quadlings que a gente usava como prosélitos, como se eles fossem seus brinquedos particulares! Como você ficou quando eles foram recolocados ou qualquer coisa assim! Isso cos­tumava dar uma preocupação sem-fim à sua mãe, acredite.”

“Está devidamente documentado que os quadlings foram exterminados, e nós fomos testemunhas”, disse Elphaba. “Você também, Bá.”

“Eu cuido de meus jovens, não posso cuidar do mundo”, disse a Babá, sorvendo uma xícara de chá e cocando o nariz de Matalegria. “Eu tomo conta de Liir, que é mais do que você faz.”

Elphaba não achou que valia a pena desancar a velha empregada. Ela foi folhear o Livro das Sombras novamente, tentando achar algum pequeno feitiço de aprisionamento com o qual pudesse fechar os portões do castelo para aqueles homens. Ela desejou ter ao menos por uma vez acompanhado uma aula de magia da Senhorita Greyling na universidade em Shiz.

“É claro que sua mãe ficava preocupada com você, ela sempre ficava, disse a Babá.” Você era uma coisinha tão esquisita. E as provações pelas quais a pobre mulher passou! Você me lembra ela agora, só que é mais rígida do que ela foi. Ela tinha realmente de que se queixar. Você sabe, ela ficou tão fula da vida com o fato de você ser uma menina ― ela estava tão convencida de que você seria um menino ― que me enviou para a Cidade Esmeralda para encontrar um elixir para garantir...” Mas a Babá parou, atrapalhada. “Ou foi aquele elixir para evitar que o filho seguinte nascesse verde? Sim, foi isso.”

“Por que ela queria que eu fosse um menino?”, disse Elphaba. “Eu te­ria concordado com ela se pudesse dar palpite nesse assunto. Não para ser simplista, mas isso sempre fez com que eu me sentisse horrível, saber como a desapontei tão cedo. Sem mencionar a aparência.”

“Oh, não a acuse de ter motivos odiosos”, disse a Babá. Ela tirou seus sapatos e esfregou por trás dos pés com a bengala. “Melena tinha odiado a sua vida em Solos de Colwen, você sabe. Foi por isso que ela maquinou se apaixonar por Frex e ir-se embora de lá. Seu avô, o Eminente Thropp, tinha deixado muito claro que ela herdaria o título. O título munchkinês passa atra­vés da linhagem feminina, a menos que não haja filhas. A posição da família, e todas as suas responsabilidades, passaria dele para a Senhora Partra, e daí para Melena, e então para a primeira filha que Melena tivesse. Sua mãe tinha a esperança de ter só filhos, para ficar longe daquele lugar.”

“Ela sempre falava disso tão afetuosamente!”, disse Elphaba, atônita.

“Oh, tudo é maravilhoso, uma vez que tenha passado. Mas, para uma pessoa jovem, educada no meio de toda aquela riqueza e responsabilidade ― bem, ela odiava aquilo. Ela manifestava sua revolta fazendo sexo bem cedo e com freqüência, com qualquer um que lhe desse na telha, e ela de bom grado fugiu com Frex, que foi o primeiro pretendente que a amou por si mesma e não por sua posição e herança. Ela achava que uma filha ia achar tudo igual­mente letal, por isso preferia filhos.”

“Mas, isso não faz sentido. Se ela tivesse filhos e não filhas, então, seu filho mais velho herdaria. Se eu fosse um menino sem irmãs, eu ainda estaria ‘envolvido’ na mesma bagunça.”

“Não necessariamente”, disse a Babá. “Sua mãe tinha uma irmã mais velha, que nascera com um problema congênito de superexcitação nervosa, talvez também com uma coisa faltando lá no departamento dos miolos. Ela foi criada fora de casa. Mas ela ficou adulta, e era saudável também, o bas­tante para procriar, e era possível que parisse uma filha. Se tivesse tido uma filha primeiro, esta teria herdado o título de Eminência, e a propriedade e as riquezas com ele.”

“Então, eu tenho uma tia louca”, disse a Bruxa. “Talvez a loucura reine na família toda. Onde ela está agora?”

“Morreu de gripe quando você ainda era uma criancinha, e não deixou herdeiro. Portanto, as esperanças de Melena foram por água abaixo. Mas era isso que ela pensava, naqueles atrevidos, corajosos dias de disparates juvenis.”

Elphaba tinha poucas lembranças de sua mãe, e elas eram às vezes calo­rosas, às vezes secas. “Mas, o que é isso de ela tomar remédio para evitar que Nessarose nascesse verde?”

“Eu consegui para ela uns tabletes na Cidade Esmeralda, de alguma mulher meio cigana”, disse. “Eu expliquei à criatura horrenda o que acontecera ― quero dizer, que você nascera com uma cor desgraçada, e com aqueles dentes ― graças a Lurline que sua segunda etapa foi mais humana! ― e a mulher cigana fez alguma profecia tola sobre duas irmãs que deveriam ser fundamentais na história de Oz. Ela me deu umas pílulas poderosas. Sempre me perguntei se aquelas pílulas não teriam causado o problema de Nessarose. Não mexi mais com poções ciganas, acredite. Nem com o que conhecíamos naqueles dias.” Ela sorriu, tendo há muito tempo se eximido de qualquer culpa no caso todo.

“O problema de Nessarose”, refletiu Elphaba. “Nossa mãe tomou algum remédio cigano, e pariu uma segunda filha sem braços. Ou verde ou aleijada. Mamãe não deu muita sorte com meninas, não é?”

“Shell, no entanto, é um refresco para os olhos sofridos”, disse a Babá, otimista. “Então, quem pode dizer que foi tudo falha de sua mãe? Primeiro houve a confusão sobre saber quem era realmente o pai de Nessarose, e depois as pílulas daquela idosa Yackle, e a melancolia de seu pai...”

“Idosa Yackle? O que você quer dizer com isso?”, perguntou Elphaba, assustando-se. “E quem diabos era o pai de Nessarose se o Papai não era?”

“Oh”, disse a Babá, “sirva-me uma outra xícara de chá e eu lhe contarei tudo. Você está crescida o bastante, e Melena morta há muito tempo.” Ela vagueou por uma história sobre o soprador de vidro de Quadling chamado Coração de Tartaruga, e pela incerteza de Melena sobre Nessarose ser filha dele ou de Frex, e por uma visita a Yackle, de quem ela não conseguia se lem­brar nada exceto o nome, as pílulas e a profecia, não se tira dente de galinha, e, portanto, parou de tentar. Ela não mencionou (e nunca o fizera) como Melena ficara deprimida quando Elphaba nascera. Não havia necessidade.

Elfinha ouviu tudo isso, impaciente e irritada. Por um lado, ela queria atirar tudo pela janela: o passado era imaterial. Por outro, as coisas assumiam uma ordem ligeiramente diferente agora. E aquela Yackle! O nome seria ape­nas uma coincidência? Ela se sentiu tentada a mostrar para a Babá o quadro do Uivo do Chacal no Livro das Sombras, mas resistiu. Não fazia sentido alarmar a velha mulher, ou enchê-la de pavores noturnos.

Assim, as duas mulheres extravasaram-se mutuamente e pouparam-se de observações dolorosas sobre o passado. Mas Elphaba começou a lamen­tar por Nessarose. Talvez Nessinha não quisesse a posição de Eminência, e estivesse tão encarcerada lá como sua irmã mais velha estava aqui. Talvez Elphaba devesse a ela a oportunidade de lhe oferecer liberdade. No entanto, quanto de fato pode alguém dever a outras pessoas? Seria um encadeamento interminável?

 

Nor estava além dela mesma. Num curto intervalo de tempo toda a sua vida fora mudada tão completamente. O mundo era mais mágico que nunca, mas parecia estar alojado no interior, não fora, dela mesma. Seu corpo estava esperando para arder e desabrochar, e ninguém parecia se importar ou perceber.

Liir havia se tornado um aguadeiro para os soldados expedicionários. Irji passava seu tempo compondo longos libretos devotos em louvor a Lurlina. Num estado de incerteza sobre os homens que ali faziam uma residência, as irmãs permaneciam confinadas em seus aposentos por sua própria vontade, embora tremessem de disponibilidade para o caso de as coisas mudarem. Nada podia mudar, como ditava a convenção, a menos que Sarima se casasse outra vez, e elas ficassem livres para ser cortejadas. Suas campanhas domés­ticas para aproximar o Comandante Pedra Cereja de Sarima, contudo, não tiveram sucesso. Elas redobraram seus esforços. Três até abordou a Titia Bruxa solicitando uma poção de amor da enciclopédia mágica. “Hah”, disse Elphaba, “só no dia que o sol nascer quadrado”, e isso foi tudo.

Nor, privada de companhia, deu para se aproximar do dormitório dos homens, tentando se estabelecer com tarefas que não pediam para Liir fazer, com as quais os homens não se importavam muito. Pendurou seus mantos ao sol. Poliu seus botões. Trouxe flores das colinas para eles. Preparou uma ban­deja de frutas de verão e queijo que pareceu agradá-los, especialmente quando a serviu ela mesma. Um soldado jovem, escuro, calvo, com um sorriso cativan­te, pediu a ela que estourasse os gomos da laranja diretamente em seus lábios, e chupou o suco de seus dedos, causando uma mistura de deleite e inveja nos outros. “Senta no meu colo”, ele disse, “e deixa eu te alimentar.” Ele ofereceu um morango a ela, mas ela não se sentou no seu colo ― e adorou recusar.

Um dia ela decidiu agradá-los com uma limpeza total do quarto. Eles estavam fora, fazendo um inventário dos vinhedos nos penhascos mais baixos e ficariam ausentes o dia todo. Cobriu-se de trapos, pôs-se a carregar baldes, e já que a Titia Bruxa se encontrava em profunda conversação com a Babá sobre, ao que parecia, Sarima, surrupiou a vassoura da Bruxa, devido às suas cerdas mais densas e ao seu maior alcance. E rumou para as barracas.

Ela não conseguia ler muito, portanto, ignorou as letras e os mapas que caíam das tiracolos deixadas negligentemente penduradas nas costas de uma cadeira. Ela arrumou os baús, e varreu, e no esforço levantou um monte de poeira, e ficou entusiasmada.

Tirou a sua blusa, e pendurou uma das capas duras dos homens sobre seus ombros bronzeados de sol. Esta exalava um tão imperativo aroma de masculinidade, mesmo depois de espanada, que ela quase desmaiou. Deitou­-se sobre um colchão de palha com a capa negligentemente aberta, a fim de poder imaginar que caía no sono, com a presença recíproca de um homem, e ver a bela linha de pele uniforme que corria por entre seus seios tenros. Ela pensou em fingir cair no sono. Mas sabia que não faria isso. Sentou-se, insatisfeita com as possibilidades, e estendeu a mão para agarrar a coisa mais próxima em que pudesse bater para desabafar a sua frustração ― que calhou de ser a vassoura.

O objeto estava fora de alcance, mas deu uma estocada para o lado dela. Veio pelo chão por sua própria vontade. Ela compreendeu. A vassoura era mágica.

Ela a tocou, meio a medo, como se tentasse adivinhar as intenções que o objeto possuía. No tato, não era diferente de nenhuma vassoura comum. Apenas se movia, como se fosse guiada pela mão de um espírito invisível. “De que árvore você foi tirada, de que campo você foi ceifada?”, ela perguntou à vassoura, quase ternamente, mas não esperava resposta e não obteve nenhu­ma. A vassoura tremeu, e se ergueu um pouco do chão, como se esperasse.

A capa tinha um capuz, e ela o baixou sobre seu rosto. Então, ela puxou para cima sua saia de verão, e lançou uma perna sobre a vassoura, para caval­gar nela como uma criança cavalga um cavalo de estimação.

A coisa se ergueu, hesitante, para que ela pudesse manter seu equilíbrio roçando as pontas dos pés no chão, corrigindo, corrigindo ― o centro de gravidade era alto, e a envergadura tão estreita. O topo da mão se inclinou ao máximo, e ela deslizou pelo cabo até chegar à ponta da vassoura, como se esta fosse um pouco como uma sela. Ela se preparou firmemente; suas per­nas, especialmente na coxa superior, davam a impressão de estar inchadas, o melhor que pudessem para apertar o cabo entre elas. A larga janela na outra extremidade do quarto estava aberta, para receber ar e luz, e a vassoura se moveu alguns pés cruzando o chão, até que atingiu o peitoril.

Então, a vassoura ergueu-se alguns pés, e carregou-a para fora da janela. O estômago de Nor apertou, e seus calcanhares bateram na parte de baixo. Misericordiosamente, ela saíra não no pátio do castelo, onde era provável que fosse vista, mas do outro lado, onde a terra não desaparecia completa e rapi­damente na distância. Nor gemia suavemente na estranheza e no êxtase da aventura. A capa se descortinava, expondo seu peito, e como um dia ela teria imaginado que queria ser vista sem uma blusa? “Oh, oh”, ela gritava, mas se era para a vassoura ou para algum espírito guardião, não sabia. Ela estremecia com a exposição e o choque, e a vassoura se erguia mais e mais alto, até que chegou ao nível da janela mais elevada, que ficava na torre da Bruxa.

A Bruxa e sua Babá estavam olhando, boquiabertas, com xícaras de chá a meio caminho de seus lábios.

“Você desça daí imediatamente”, ordenou a Bruxa. Nor não sabia se a ordem era dirigida a ela ou à vassoura. Ela não tinha rédeas para puxá-la, nem palavras mágicas para controlá-la. Contudo, a vassoura, aparentemente disciplinada, deu uma virada para trás, desceu, e fez uma aterrissagem um pouco desajeitada no chão das barracas dos homens. Nor saltou do veícu­lo, choramingando e tremendo, e se vestiu apropriadamente. Ela não queria tocar a vassoura outra vez, mas quando ela a pegou, a vida desaparecera do objeto, e ela o carregou até os aposentos da Bruxa esperando uma severa reprimenda.

“O que você estava fazendo com a minha vassoura?”, ladrou a Bruxa.

“Eu estava limpando os quartéis dos soldados”, Nor disparou a falar. “É uma bagunça tão grande, os papéis todos espalhados, suas roupas, seus mapas...”

“Mantenha suas mãos longe de minhas coisas, você”, disse a Bruxa. “Que tipo de papéis?”

“Projetos, mapas, cartas, eu não sei”, disse Nor, recuperando sua cora­gem, “vá olhar você mesma. Eu não prestei atenção.”

A Bruxa tomou a vassoura e pareceu estar considerando a possibilidade de bater em Nor com ela. “Não seja uma boba, Nor. Fique longe daqueles homens”, ela disse friamente. “Fique longe deles!” Ela ergueu a vassoura como um bastão. “Eles te magoarão assim que puderem cuspir em você. Fique longe deles, repito. E fique longe de mim!”

 

Elphaba lembrou-se que a vassoura lhe fora dada pela Mãe Yackle. Como mulher jovem, vira na velha monja uma inválida, uma senil, um aborre­cimento, mas agora reconsiderava e se perguntava se não havia na idosa mais do que a vista poderia alcançar. Teria aquela vassoura sido enfeitiçada por ela, com um vestígio de algum instinto Kumbricial? Ou teria Nor um poder se desenvolvendo nela, e o injetara na tola vassoura? Nor era aparentemente uma crente fervorosa na magia; talvez a vassoura só tivesse esperado alguém que acreditasse nela. Com Elphaba, será que voaria também?

Uma noite, quando todos já tinham se recolhido, Elphaba trouxe a vas­soura ao pátio. Sentiu-se um pouco boba, curvando-se sobre o objeto como uma criança sobre um cavalo de estimação. “Vamos, voe, sua estúpida”, ela murmurou. A vassoura se contorcia para a frente e para trás de um jeito as­sustador, suficiente para erguer vergões em suas coxas. “Não sou uma colegial inocente, pare com esse absurdo”, disse Elphaba. A vassoura ergueu-se por um pé e meio e depois jogou Elphaba para a ponta de seu cabo.

“Ponho fogo em você, e será seu fim”, disse Elphaba. “Sou velha demais para essa espécie de humilhação.”

Levou de cinco a seis noites de treino até que ela conseguisse controlá-la para pairar a uns seis pés do chão. Ela era desajeitada para a feitiçaria. Não estaria predestinada a ser desajeitada em tudo? Foi um prazer, finalmente, assustar as corujas e morcegos do estábulo de um modo bem desajuizado. E era bom estar longe de tudo. Quando sentiu mais confiança, ela voou por sobre o vale, indo longe, até os domínios da barragem que o Ozma Regente tentara erguer; descansou e esperou que não tivesse de voltar andando. Não precisou. A vassoura era resistente à sua intenção, mas ela conseguiu mantê-la atrelada ameaçando-a com o fogo.

Sentiu-se um verdadeiro anjo noturno.

 

No meio do verão, um comerciante arjiki apareceu com vasos e colhe­res e carretéis de linha, e trazia consigo algumas cartas deixadas num posto fronteiriço mais ao norte. Entre elas, havia um bilhete de Frex ― pelo jeito, a Babá tinha lhe contado sobre suas intenções de sair em caça de Elphaba, e ele escrevera ao monastério, que por sua vez remetera a carta para Kiamo Ko no Vinkus. Frex escrevera que Nessarose orquestrara uma revolta, e que a terra de Munchkin ― ou a maior parte dela, de qualquer modo ― tinha se separado de Oz, e se proclamado um Estado independente.

Nessarose, como a Eminente Thropp, tinha se tornado a líder política do Estado. Frex aparentemente achava que isso era um direito nato de Elphaba, e que ela deveria vir a Solos de Colwen e questionar sua irmã sobre o assunto. “Pode ser que ela não seja a mulher certa para essa função”, ele escreveu, embo­ra Elphaba tenha achado surpreendente a sua apreensão. Não era Nessarose a filha espiritualmente calorosa que Elfinha nunca conseguira ser?

Elphaba não tinha sede de liderança, e não queria desafiar Nessarose de modo algum. Mas agora que a vassoura parecia capaz de levá-la para grandes distâncias, ela pensou se não poderia voar à noite para Solos de Colwen, e passar alguns dias na companhia de Papai, Nessie e Shell novamente. Fazia doze anos que ela deixara Ness em Shiz, embriagada e soluçando, logo após a morte de Ama Clutch.

A Terra de Munchkin ficar livre das garras do Mágico! ― só por isso a viagem valeria. A coisa fazia com que Elphaba risse um pouco para si mesma, sentir seu velho desprezo pelo Mágico se disseminar. Talvez fosse isso que a cura significasse, afinal.

Por segurança, numa tarde Elphaba entrou nas barracas vazias dos soldados. Fuçou em seus papéis. Todos os documentos se relacionavam a questões de mapeamento e pesquisa geológica. Nada mais. Não parecia haver nenhum projeto oculto de ameaça aos arjikis ou a quaisquer outras tribos do Vinkus.

Quanto mais cedo ela partisse, mais rápido retornaria. E seria melhor que ninguém soubesse. Então, disse a todos que estava tirando um período de isolamento em sua torre, e que não queria nem comida nem visitas por alguns dias. Quando a meia-noite irrompeu, ela voou para Solos de Colwen, que agora era o lar de sua poderosa irmã.

 

Ela dormia de dia nas sombras dos estábulos, nas abas dos telhados, no abrigo das chaminés. Viajava de noite. No escuro, Oz se espalhava lá embaixo ― ela pairava sobre o reino a uns oitenta pés, em cálculos aproxi­mados ― e, por onde ela passava, a terra ia praticando suas transformações geográficas com a facilidade de um cenário de espetáculo de vaudeville que fosse se desenrolando. A passagem mais difícil fora ao descer pelos íngremes flancos dos Grandes Kells. Assim que ficou livre das montanhas, contudo, ela viu Oz se estendendo ao nível da rica planície aluvial do Rio Gillikin.

Ela voou por sobre o rio, sobre afluentes e ilhas intercomunicáveis, até que desembocou no Água Mansa, o maior lago de Oz. Manteve-se na direção da margem sul, e levou uma noite inteira para atravessá-lo, como se ele ser­penteasse infindavelmente em ondas de seda negra oleosa, por entre carriças e charcos. Teve problemas para achar a desembocadura do Rio Munchkin, que escoava no Lago Água Mansa pela direção leste. Assim que conseguiu, contudo, foi fácil localizar a Estrada dos Tijolos Amarelos. As terras cultiva­das apareciam logo além, ainda mais viçosas. Os efeitos da seca, tão drásticos em sua infância, haviam sido erradicados, e fazendas de diaristas e pequenas aldeias pareciam prosperar, alegres como cidades de algum brinquedo de criança, graciosas e aconchegantes na enrugada, plácida terra de solo arável e clima ameno.

Quanto mais ela se dirigiu para o leste, contudo, mais esburacada a estrada se tornou. Alavancas tinham arrancado tijolos, árvores tinham sido abatidas e muros compactos erguidos. Era como se algumas das pontes meno­res tivessem sido dinamitadas. Uma medida de segurança contra uma possível retaliação do exército do Mágico?

Sete dias depois de deixar os aposentos de Kiamo Ko, Elphaba entrou no povoado de Solos de Colwen, e dormiu debaixo de um loureiro verde. Quando despertou, perguntou a um comerciante onde ficava a casa grande, e ele lhe apontou o caminho, trêmulo, como se ela fosse um demônio. Então, uma pele verde ainda causa arrepios nos munchkineses, ela observou, e ca­minhou as poucas milhas restantes, chegando aos portões frontais de Solos de Colwen um pouco depois da hora do desjejum.

Ela ouvira sua mãe falar de Solos de Colwen, tristonha e raivosamente, enquanto chapinhavam com botas impermeáveis, afundadas umas seis po­legadas na água do Estado de Quadling. Os anos de Elfinha na presunçosa antigüidade de Shiz e na pompa da Cidade Esmeralda deviam tê-la preparado para entrar numa mansão imponente. Mas ela ficou assustada, até chocada, diante da grandiosidade de Solos de Colwen.

O portão era dourado, o vestíbulo limpo de qualquer vestígio de relva ou excremento, e uma bancada de santos de topiaria em vasos de terracota decorava a sacada acima da maciça porta da frente. Dignatários com fai­xas que denotavam novos postos de hierarquia e prestígio na Terra Livre de Munchkin, ela imaginou, se postavam em pequenos grupos a um lado. Com xícaras de café nas mãos, os oficiais, ao que parecia, tinham concluído uma reunião particular do conselho feita logo de manhãzinha. Ao passar o por­tão, homens armados de espadas avançaram decididamente e barraram seus passos. Começou a protestar ― o que foi imediatamente classificado como ameaça e loucura, ela notou ― e estava para ser expulsa quando uma figura apareceu de um canto de uma casinha ornamental, e mandou-os parar.

“Fabala!”, ele disse.

“Sim, Papai, eu estou aqui”, ela respondeu, com a polidez de uma filha.

Ela se virou. Os dignatários fizeram uma pausa em suas discussões, e recomeçaram, como se percebessem que ouvir a conversa desse encontro seria o máximo em grosseria. Os guardas baixaram sua barreira quando Frex se aproximou. Seu cabelo era fino e longo e preso por um apetrecho de couro cru, como sempre fora. Sua barba era de cor creme e chegava à sua cintura quando ele tirava as mãos de cima dela.

“Esta é a irmã da Eminência do Leste”, disse Frex, fixando os olhos em Elphaba, “e minha filha mais velha. Deixem-na passar, meus caros, agora e sempre que ela se aproximar daqui.” Ele se aproximou e pegou a sua mão, e virou sua cabeça como um pássaro para vê-la através de um olho capaz. O outro, como ela percebeu, estava morto.

“Venha, vamos nos cumprimentar na intimidade, longe dessa atenção toda”, disse Frex. “Palavra, Fabala, você ficou a cara da sua mãe nesses longos anos!” Ele juntou seu braço ao dela, e eles entraram no edifício por uma porta lateral, chegando a um pequeno salão decorado com sedas cor de açafrão e almofadas de veludo cor de ameixa. A porta se fechou atrás deles. Frex se abaixou cautelosamente no sofá e afagou o estofado próximo a ele. Ela se sentou, cansada, espantada com a riqueza de seu sentimento por ele. Estava repleta de carência. Mas, advertia-se, não se esqueça de que você é uma mu­lher madura.

“Eu sabia que você viria se eu escrevesse”, ele disse. “Fabala, eu sempre soube disso.” Ele a envolveu em seus braços, apertadamente. “Agora, eu posso chorar um pouquinho.” Quando ele terminou, perguntou-lhe para onde fora, o que fizera e por que nunca retornara.

“Eu não tinha certeza se haveria um lugar para onde retornar”, ela res­pondeu, percebendo a verdade de suas palavras enquanto falava. “Quando você acabou de converter uma cidade, Papai, você mudou para novos campos. Seu lar estava no pastoreio das almas; o meu nunca esteve. Além disso, eu tinha meu próprio trabalho a fazer.” Ela acrescentou, um momento depois, numa voz baixa: “Ou eu pensava que tinha”.

Ela mencionou que vivera anos na Cidade Esmeralda, mas não revelou o porquê.

“E a Babá estava certa? Você foi mesmo uma monja? Eu não a criei para uma tal submissão”, ele disse. “Estou surpreso. Tanto conformismo e obediência...”

“Não fui uma monja mais do que fui uma unionista”, ela o repreendeu gentilmente, “mas vivi com elas. Elas fizeram um bom trabalho, a despeito do equívoco ou da inspiração de suas crenças. Foi um tempo de recuperação de uma passagem difícil. E então, no ano passado, eu fui para o Vinkus, e acho que fiz meu lar por lá, embora não possa dizer por quanto tempo.”

“E o que você faz?”, ele disse. “Você está casada?”

“Eu sou uma bruxa”, ela respondeu. Ele recuou, desgostoso, perscrutan­do com o olho sadio para ver se ela estava falando por brincadeira.

“Fale-me de Nessinha antes que eu a veja, e de Shell”, ela disse. “Sua carta deu-me a impressão de que ela precisava de ajuda. Eu farei o que puder no tempo curto em que puder ficar aqui.”

Ele lhe falou da ascensão de sua irmã ao posto de Eminência, e da secessão que houvera na última primavera. “Sim, sim, eu sei disso, mas não sei o porquê”, ela disse, aguilhoando. Então, ele descreveu o incêndio de uma granja onde reuniões da oposição vinham sendo feitas, a denúncia do es­tupro de um par de moças munchkinesas depois de um baile do exército do Mágico que estava com uma guarnição perto de Armário do Dragão. Ele mencionou o massacre em Macieira Distante e a pesada taxação sobre as colheitas das fazendas. “A gota d’água”, ele disse, “até onde Nessie ficou sabendo, foi a intempestiva destruição de simples capelas do campo pelos soldados do Mágico.”

“Não parece a gota d’água”, disse Elphaba. “Um cômodo de fundos de uma mina de carvão não é um lugar tão santo para oração quanto uma capela? Quero dizer, segundo o ensinamento?”

“Bem, o ensinamento”, disse Frex. Ele deu de ombros; tais distinções estavam além de seu alcance, agora. “Nessinha ficou encolerizada, e mani­festou sua indignação, e antes que ela soubesse, a faísca se alastrou e pegou fogo. Dentro de uma semana, depois que deflagrou uma carta furiosa para o Imperador Mágico em pessoa ― um ato perigoso e indisciplinado ―, a febre revolucionária havia se aglutinado em torno dela. Isso aconteceu bem aqui no vestíbulo de Solos de Colwen. Foi magnífico, e você teria imaginado que Nessinha nascera para a dissidência. Ela se dirigiu aos homens mais velhos das comunidades rurais de perto e de longe, e manteve sua convicção reli­giosa sob controle, sensatamente, eu acho. Assim, seu apelo para que eles a apoiassem foi esmagadoramente respondido. Houve uma aprovação unânime para a secessão.”

Papai ficara pragmático depois de velho, Elphaba observou com alguma surpresa.

“Mas como você se livrou das patrulhas das fronteiras?”, ele perguntou. “Estando as coisas do jeito que estão ― esquentando cada vez mais, como dizem.”

“Eu só tive de voar por cima delas, um pequeno pássaro negro dentro da noite”, ela respondeu, sorrindo para ele, e tocando na sua mão. Estava vitrificada e de um rosa mosqueado, como uma lagosta do lago na fervura. “Mas o que eu não sei, Papai, é por que você me chamou aqui. O que espera que eu faça?”

“Eu achei que você poderia se unir à sua irmã em seu trono de autori­dade”, ele disse, com a esperança simplória de alguém cuja família estava de há muito separada. “Eu sei quem você é, Fabala. Eu duvido que você tenha mudado muito durante esses anos. Conheço sua astúcia e sua convicção. Eu também sei que Nessinha está à mercê de suas vozes religiosas, e ela poderia ter uma recaída e desfazer o grande bem que está fazendo neste momento ao ser uma figura central para a resistência. Se isso acontecer, as coisas não irão bem para ela.”

Então, estou aqui para me fazerem de Cristo, pensou Elphaba, para ser a linha de frente da defesa. Seu prazer se evaporou.

“E não irão bem para eles, os ansiosos que estão lhe dando apoio”, Frex disse, fazendo com a mão um sinal que significava a maior parte da Terra de Munchkin. Seu rosto se curvou ― seu sorriso era fruto de esforço também, ela pensou friamente ― e seus ombros caíram. “Eles passaram mais de uma geração sob a ditadura suave desse nosso Glorioso Mágico patife ― oh, até esqueço que estamos agora na Terra Livre de Munchkin ―, esses fazendeiros na certa subestimam a dimensão de uma eventual retaliação. Na verdade, Shell descobriu, por fontes fidedignas, que os estoques de cereais na Cidade Esmeralda são maciços, e que podemos ficar algum tempo sem a necessidade de um governo. Salvo o desbaratamento de algumas divisões de soldados na fronteira, e a prisão de alguns arruaceiros bêbados, tem sido uma dissidên­cia muito tranqüila até aqui. Estamos iludidos ao acreditar que estamos em segurança. Eu quero dizer que Nessinha está iludida também, acho. Você possui uma mente mais clara, foi o que sempre percebi. Você pode ajudá-la a se preparar, você pode oferecer a ela o equilíbrio e o apoio necessários.”

“Eu sempre fiz isso, Papai”, ela disse. “Na infância e no colégio. Agora, soube que ela poderia se virar sozinha.”

“Você soube de meus sapatos preciosos”, ele disse. “Comprei-o de uma velha decrépita, e então os restaurei para Nessa com minhas próprias mãos, usando as habilidades para lidar com vidro e metal que aprendi com Coração de Tartaruga. Fiz os sapatos com a intenção de dar a ela um pouco de beleza, mas não esperava que fossem enfeitiçados por outra pessoa. Não lamento que tenham sido. Mas, Nessa agora pensa que não precisa de mais ninguém, para se sustentar ou para apoiar seu governo. Ela escuta menos que nunca. Em alguns aspectos, acho que aqueles sapatos são perigosos.”

“Eu queria que os tivesse feito para mim, Papai”, ela disse numa voz surda.

“Você não precisava deles. Você tinha a sua voz, a intensidade, até mes­mo a sua crueldade, como escudo.”

“Minha crueldade!” Ela recuou.

“Oh, você era uma coisinha demoníaca”, disse Frex, “mas e daí?, as crian­ças crescem para desenvolver aquilo que são, dentro e fora das expectativas. Você era um terror quando se aproximou de outras crianças pela primeira vez. Você se acalmou apenas quando começamos a viajar e tinha de carregar o bebê. Foi Nessarose quem a domou, você sabe. Você tem de agradecer a ela; ela abrandou sua fúria com a carência óbvia que tinha. Você não se lembra disso, suponho.”

Elfinha não conseguia lembrar-se, ela não conseguia sequer pensar nes­sas coisas. Até a idéia de haver sido cruel lhe escapava. Em vez disso, tentava sentir afeto por seu pai, apesar do cansaço de ser obrigada a ser outra vez um subtenente, a serviço de sua querida e carente Nessarose. Ela estava era con­centrada na preocupação de seu pai com os cidadãos da Terra de Munchkin Sempre uma sensibilidade pastoral, a dele. Embora rejeitasse sua teologia, ela o adorava por seu senso de compromisso.

“Vou querer saber mais sobre Coração de Tartaruga algum dia”, ela disse num tom leve, “mas, agora, suponho que devo ir agradecer à minha irmã. E vou pensar no que o senhor disse, Papai. Eu não consigo me imaginar como parte de um triunvirato governamental, com você e Nessarose ― ou de um comitê, caso Shell entre nisso também. Mas suspenderei meu julgamento, por enquanto. E Shell, Papai, como ele está?”

“Atrás das linhas inimigas, dizem”, Frex respondeu enquanto ela se er­guia para sair. “Ele é um sem-juízo e estará entre os primeiros a morrer, quan­do a coisa de fato esquentar. Ele parece com você, em certos aspectos.”

“Ele ficou verde?”, ela perguntou, espantada.

“É tão irredutível quanto as manchas do pecado”, ele respondeu.

 

Nessarose estava isolada numa sala do pavimento superior, fazendo a sua meditação matutina. Frex providenciou para que Elphaba tivesse li­berdade para vagar pela casa e dependências. Afinal, houvesse sido outra a configuração dos eventos, Elphaba poderia estar (ou poderia ainda se tornar) a Eminente Thropp, a Eminência do Leste, a líder nominal da Terra Livre de Munchkin. Frex observava sua filha verde passando pelos corredores de mármore, carregando a sua vassoura como uma arrumadeira, olhando para os ormolus, os damascos, as flores frescas, os serviçais, os retratos. Sentia, como sempre sentira, uma pontada dolorida no fundo de seu peito pelas coisas ocultas e inconfessáveis que ele fizera de errado ao criá-la. Mas estava feliz por ela estar ali, enfim.

Elphaba encontrou o caminho para a capela particular no final de uma sala de mogno polido. Era mais barroca que antiga, e estava em meio a um trabalho de redecoração. Nessarose na certa mandara que os afrescos fossem cobertos de cal; talvez as imagens suculentas distraíssem as pessoas de suas tarefas de meditação. Elphaba sentou-se num banco ao lado, em meio a baldes de calcário e brochas de pintura e escadas. Ela não fingiu que estava rezando, embora se sentisse muito desconfortável com a situação toda. Fixou seu olhar, para focalizar sua mente, numa secção de grandes proporções que ainda exibia as suas imagens. Mostrava anjos rotundos levitando com a ajuda de asas de tamanho considerável. Seus trajes haviam sido recortados para acomodar a irregularidade anatômica, notou. Estavam mais para senhoras de corpos cheios, mas as asas não estavam se salientando com artérias reforçadas nem rachando nas pontas. O artista tinha levado em conta o comprimento e a largura ideais exigidos para que as obesas senhoras fossem guinchadas para o alto. A fórmula parecia equivaler a asas três vezes mais compridas que o braço, corrigidas talvez para se ajustar à imponência do conjunto. Se alguém pode abrir seu caminho para o Outro Mundo com um batimento de asas, por que não com uma vassoura?, ela pensou. E percebeu que devia estar mui­to cansada; normalmente, teria deixado de lado a especulação sem sentido quanto a esses absurdos unionistas sobre uma vida após a morte, um Além, um Outro Mundo.

Eu devo é me lembrar minhas lições no curso de ciências da vida, ela pensou. Todas as devastadoras fronteiras de conhecimento que o Doutor Dillamond estava por cruzar. Eu quase entendi alguma coisa daquilo tudo. Eu poderia costurar asas no Chistérico. Ele poderia voar comigo. Que farra.

Ela se ergueu e foi se encontrar com a irmã.

 

Nessarose ficou menos surpresa vendo a irmã do que Elfinha teria es­perado. Talvez fosse porque Nessa houvesse se acostumado a ser o centro das atenções, pensou. E de novo ela era mesmo o centro das atenções. “Querida Elfinha”, ela disse, erguendo os olhos de um par de livros idênticos que algum auxiliar deixara ali, um bem próximo ao outro, para que ela pudesse ler quatro páginas sem chamar alguém para ajudá-la a virar uma. “Dê-me um beijo.”

“Oh, você está aí, então”, Elphaba disse, condescendente. “Como está, Nessinha? Você está com boa aparência.”

Nessarose se levantou, exibindo os belos sapatos, e sorriu radiosamente. “A graça do Deus Inominável me enche de força, como sempre”, ela disse.

Mas Elphaba não estava disposta a se aborrecer. “Você evoluiu, você se ergueu, e não digo apenas quanto a seus pés”, ela disse. “A História a esco­lheu para desempenhar um papel nela, e você o aceitou. Fico orgulhosa com isso.”

“Não precisa se orgulhar”, disse Nessarose. “Mas, obrigada, querida. Eu achei que você provavelmente viria. O Papai obrigou você a vir para cá a fim de tomar conta de mim?”

“Ninguém me obrigou a vir para cá, mas Papai escreveu.”

“Então, depois de todos esses anos de isolamento, o tumulto político a traz de volta. Onde você estava?”

“Aqui e ali.”

“Você sabe que chegamos a pensar que você tinha morrido”, disse Nes­sarose. “Estenda aquele xale nos meus ombros e o prenda com um alfinete, por favor, para que eu não tenha de chamar uma criada. Eu me refiro àquela época medonha, medonha, em que você me abandonou em Shiz. Ainda estou furiosa com você devido àquilo, acabo de lembrar.” Ela franziu o lábio, afeta­damente; Elphaba ficou feliz ao notar que ela possuía ao menos um resíduo de senso de humor.

“Éramos todos jovens naqueles tempos, e talvez eu estivesse errada”, disse Elfinha. “Meu abandono não lhe causou nenhum dano duradouro, de qualquer modo. Ao menos não pelo que posso notar.”

“Tive de me virar com Madame Morrible sozinha, por dois anos. Glin­da foi de ajuda por algum tempo, aí se graduou e foi em frente. A Babá foi a minha salvação, mas ela já estava velha naquela época. Ela foi ao seu encontro recentemente, não foi? Bem, naqueles tempos eu me senti terrivelmente só. Apenas minha fé me sustentou.”

“Bem, a fé faz dessas coisas”, disse Elfinha, “quando você a possui.”

“Você fala como alguém que ainda vive nas terras sombrias da dúvida.”

“Na verdade, acho que temos a discutir coisas mais importantes que o estado de minha alma e a lacuna nela existente. Você está com uma revolução em suas mãos ― sinto, foi a força do hábito ― e você é a comandante geral residente. Parabéns!”

“Oh, eventos fatigantes do mundo enganador, sim, sim”, disse Nessarose. “Olhe, é uma beleza ali fora, nos jardins. Vamos caminhar e tomar um pouco de ar um pouquinho. Você parece verde de fome...”

“Tudo bem, eu mereço isso...”

“... e há tempo de sobra para entrar nos assuntos diplomáticos. Eu tenho uma reunião daqui a pouco, mas ainda há tempo para dar uma passeadinha. Você precisa conhecer este lugar. Deixe-me mostrá-lo a você.”

 

Elphaba só conseguiu obter a atenção de Nessarose por pequenas frações de tempo. Embora fosse desatenta quanto às exigências de sua liderança, Nessarose era muito consciente de sua agenda social, e passava horas prepa­rando-se para reuniões.

A princípio as discussões foram frívolas ― memórias da família, dos dias de escola. Elfinha estava impaciente para abordar o âmago da questão ali. Mas Nessarose não se deixava apressar. Às vezes deixava Elfinha plantada à espera enquanto mantinha audiências com os cidadãos. Elfinha não estava muito satisfeita com o que via.

Uma tarde uma mulher idosa de algum povoado no Cesto de Milho apareceu. Ela fez mesura de uma maneira muito nauseante e servil, e Nessa­rose pareceu reagir a isso com um brilho de glória. A mulher queixou-se de ter uma empregada que, tendo se apaixonado por um lenhador, queria deixar seu serviço para se casar. Mas a idosa já havia dado três filhos para o reforço de defesa da nova milícia local, e ela e a empregada eram a única mão-de-obra disponível para fazer a colheita. Se a empregada debandasse ao lado de seu lenhador, as colheitas seriam danificadas e ela ficaria arruinada. “E tudo em nome da liberdade”, ela concluiu amargamente.

“Bem, o que a senhora quer que eu faça?”, disse a Eminência do Leste.

“Eu posso lhe dar duas Ovelhas e uma Vaca”, disse a idosa.

“Eu tenho criação...”, disse Nessarose, mas Elphaba a interrompeu e disse: “A senhora quer dizer Ovelhas? Uma Vaca? Quer dizer Animais?”

“Animais de propriedade inteiramente minha”, a idosa respondeu, or­gulhosamente.

“Como é que a senhora pode ser dona de Animais?”, Elphaba perguntou, e cerrou os dentes. “Os Animais agora são bens móveis na terra de Munchkin?”

“Elfinha, por favor”, disse Nessarose, surdamente.

“O que fará para libertá-los?”, cobrou Elfinha, passionalmente.

“Eu já disse. Faça alguma coisa no caso desse lenhador.”

“O que a senhora quer que eu faça?”, interrompeu Nessarose, desgostosa por sua irmã estar usurpando seu papel de arbitra da justiça.

“Eu lhe trouxe o machado dele. Pensei que você poderia enfeitiçá-lo e fazer com que o matasse.”

“Que vergonha!”, disse Elphaba, mas Nessarose disse: “Oh, bem, isso não seria muito bom.”

“Muito bom?”, Elfinha disse. “Isso não seria muito bom de jeito ne­nhum, Nessinha.”

“Bem, você é quem define a justiça por aqui”, disse a idosa, resoluta­mente. “O que sugere?”

“Eu poderia enfeitiçar seu machado e fazê-lo escorregar”, disse Nessaro­se refletidamente, “só o bastante para cortar seu braço. Eu sei por experiência própria que uma pessoa sem um braço não é tão desejável para o sexo oposto quanto uma que tenha os dois.”

“Acho que dá”, disse a idosa, “mas, se isso não funcionar, voltarei aqui e você fará mais, pelo mesmo preço. Ovelhas e uma Vaca não saem baratas por aqui, como sabe.”

“Nessarose, você não é uma bruxa, não, não acredito nisso”, disse Elpha­ba. “Você não faz feitiços, de modo algum!”

“A pessoa virtuosa pode fazer milagres em nome do Deus Inominável”, disse Nessarose calmamente. “Mostre-me esse machado, se você o trouxe.”

A idosa estendeu um machado de lenhador, e Nessarose se ajoelhou perto dele, como se estivesse rezando. Era uma coisa estranha, até arrepiante, ver o delgado corpo desprovido de braços conseguir se projetar, sem amparo e fora de equilíbrio, e depois, com o feitiço já realizado, ser capaz de se en­direitar sozinho. Isso é por obra de certos sapatos, pensou Elfinha, discreta e amargamente. Glinda tem algum poder, por todo o seu deslumbramento social, ou talvez o poder provenha do amor de nosso pai por Nessinha. Ou uma mistura dos dois. E se Nessarose não estiver soprando areia nos olhos dessa velha trabalhadora, ela se tornou uma feiticeira também, seja qual for o nome que der a isso.

“Você é uma bruxa”, disse Elphaba novamente; não conseguiu calar-se. Talvez fosse um erro, já que a mulher idosa estava acabando de agradecer a Nessarose por seus esforços. “Trarei os Animais do estábulo”, ela disse. “Estão acorrentados na cidade”.

“Animais! Acorrentados!”, exclamou Elfinha, fervendo.

“Obrigado, Senhora Eminência”, disse a idosa. “A Eminência do Leste. Ou devo chamá-la de a Bruxa do Leste?” Ela riu com todos os dentes, tendo conse­guido o que queria, e saiu pela porta carregando o machado enfeitiçado sobre seu ombro do mesmo jeito que um jovem lenhador todo desenvolto faria.

 

Elas não conseguiram ficar sozinhas novamente por mais algum tempo. Elphaba foi então fazer uma ronda em torno do estábulo e dos abrigos até que encontrou um ajudante que pôde conduzi-la até as duas Ovelhas e a Vaca. Estavam num cercado com palha limpa, cada uma olhando para um canto diferente, ruminando abstrações.

“Vocês são os novos Animais, trazidos para cá por aquela velha diaba vingativa”, disse Elphaba. A Vaca olhava, confusa, como se estivesse desacos­tumada a ter quem lhe dirigisse a palavra. As Ovelhas não deram sinal de haver entendido.

“Que tipo de carne é a sua?”, disse a Vaca, com humor negro.

“Tenho vivido no Vinkus”, disse Elfinha. “Não há muitos Animais por lá. Uma vez fui agitadora no movimento popular pelos Direitos Animais ― eu não sei realmente como as coisas andam para os Animais munchkineses agora. O que vocês podem me dizer?”

“Posso lhe dizer para ir se meter com a própria vida”, disse a Vaca.

“E as Ovelhas?”

“Essas Ovelhas não podem lhe dizer nada, ficaram mudas.”

“Elas são ― ovelhas comuns? Isso acontece?”

“Fala-se de humanos que viram legumes ― ou nozes ― ou mesmo frutas”, disse a Vaca, “mas não querem dizer isso literalmente. As Ovelhas não viram ovelhas, elas viram Ovelhas mudas. Aliás, nem precisam ser discutidas aqui, já que não estão nem ouvindo.”

“Claro. Peço desculpas”, ela disse às Ovelhas, uma das quais piscou de modo funesto. À Vaca ela acrescentou: “Eu preferiria chamá-la pelo seu nome.”

“Desisti de usar meu nome em público”, disse a Vaca. “Não posso me arvorar a ter direitos individuais o bastante para ter um nome próprio. Re­servo-o para uso privado.”

“Eu entendo isso”, disse Elphaba. “Eu sinto o mesmo. Eu sou apenas a Bruxa agora.”

“Sua Eminência em pessoa?” Um fio viscoso de cuspe pingou do queixo da Vaca. “Fico lisonjeada. Não sabia que você chamava a si mesma de Bruxa, eu pensei que era apenas um desprezível apelido que se dizia pelas costas. A Bruxa do Leste.”

“Bem, não. Eu sou a irmã dela. Eu poderei ser a Bruxa do Oeste, se você achar melhor.” Ela sorriu. “Na verdade, eu não sabia que ela era tão depreciada.”

A Vaca tinha cometido uma gafe. “Asseguro que não quis desrespeitar a sua família”, ela disse. “Eu deveria ficar com a minha boca fechada e me concentrar em minha ruminação. O fato é que estou chocada ― ser vendida em troca de um feitiço de bruxa! Não há nada de errado com aquele lenhador ― oh, eu tenho ouvidos, eu tenho, embora eles se esquecem ― e a idéia de um simplório de bom coração como Nick Chopper ser ferido por um feitiço de bruxa ― sendo eu parte do custo da troca ― bem, é difícil imaginar como alguém poderia cair tão baixo na vida.”

“Eu vim para libertar vocês”, Elfinha disse.

“Com autoridade de quem?”, a Vaca bufou, desconfiada.

“Eu lhe disse, sou irmã da Eminente Thropp ― a Eminência do Leste.” Ela se corrigiu: “A Bruxa do Leste. É a minha prerrogativa aqui.”

“E livres para irmos para onde? Para fazermos o quê?”, disse a Vaca. “Iríamos daqui para o Monte de Estrume de Baixo e seríamos atreladas no­vamente. Sujeitas à escravidão sob o governo do Mágico, e a catecismos sob o poder da Eminente Thropp! Nós não nos misturamos com esses pequeninos e rastejantes munchkineses humanos.”

“Você ficou um pouco melancólica”, disse Elphaba.

“Você nunca ouviu falar da Vaca louca?”, ela respondeu. “Meu amor, meu úbere está ferido com o puxão diário dos humanos. Sou usada como torneira para dar leite de manhã à noite. Eu não posso nem querer uma coisa como ser montada por ― bem, não importa. Mas, pior ainda, meus filhos foram engordados com leite e abatidos para virarem vitela. Eu ouvia seus gritos lá no matadouro, os humanos nem se importaram de me afastar do alcance dos gritos!” Aqui, ela virou sua cabeça para a parede, e as Ovelhas vieram cada uma por um de seus lados, pressionando como um par vivo de calorosos suportes de livros junto a seus flancos mais baixos e a barriga.

Elphaba disse: “Eu não poderia ficar mais sentida nem mais envergo­nhada. Olha, eu estava trabalhando com o Doutor Dillamond ― você já ouviu falar dele? ― em Shiz, tempos atrás. Eu me dirigi ao próprio Mágico para protestar contra o que estava acontecendo...”.

“Oh, o Mágico não se importa com os de nossa espécie”, disse a Vaca, depois que tinha recuperado a sua compostura. “Eu não sinto vontade de conversar mais. Todo mundo está do seu lado enquanto precisa de você. A Eminente Nessarose provavelmente nos trouxe com o objetivo de nos enfiar em alguma procissão cerimonial religiosa. Meus flancos sedosos sempre ficam enfeitados com guirlandas ou coisas do gênero. E, depois, sabemos bem o que acontece.”

“Agora você deve estar enganada a esse respeito”, disse a Bruxa. “Disso eu discordo. Nessarose é uma unionista rigorosa. Os unionistas não praticam sacrifício de sangue...”

“Os tempos mudam”, disse a Vaca. “E ela tem uma população de se­guidores nervosos e mal-educados para apaziguar. O que, diga, por favor, funciona melhor que a carnificina ritual?”

“Mas, como foi que isso pôde chegar a esse ponto?”, disse a Bruxa. “Su­pondo que você esteja dizendo a verdade? Este é um estado rural. Vocês deveriam estar bem estabelecidas aqui.”

“Animais presos têm tempo de sobra para desenvolver teorias”, disse a Vaca. “Ouvi mais de uma criatura inteligente traçar uma ligação entre a ascensão do tiktokismo e a erosão do trabalho Animal tradicional. Nós não éramos bestas de carga, mas éramos bons trabalhadores confiáveis. Se nos tornamos dispensáveis como força de trabalho, era apenas questão de tempo para que nos tornássemos socialmente dispensáveis também. De qualquer modo, essa é uma teoria. Meu próprio modo de sentir me diz que há um verdadeiro mal surgindo no horizonte. O Mágico ergue o estandarte, e a sociedade segue o padrão como um bando de ovelhas. Perdão pela referência caluniosa”, ela disse, balançando a cabeça para suas companheiras de cercado. “Foi um deslize.”

Elphaba escancarou a porta do cercado. “Venham, vocês estão livres”, ela disse. “O que fazer disso é questão que só diz respeito a vocês. Se vocês ficarem, será problema de vocês.”

“É problema nosso se sairmos daqui, também. Você acha que uma Bru­xa que enfeitiça um machado para retalhar um ser humano se deteria diante um par de Ovelhas e uma velha Vaca aborrecida?”

“Mas esta pode ser a sua única chance!”, Elphaba gritou.

A Vaca saiu, e as Ovelhas a seguiram. “Nós voltaremos”, ela disse. “Esse é um exercício para a sua educação, não para a nossa. Grave minhas palavras, minha alcatra vai ser servida como raridade nos seus mais finos pratos de jantar de porcelana da Casa de Dixxi antes que o ano termine.” Ela mugiu uma última observação ― “Eu espero que vocês engasguem” ― e, com a cauda espantando as moscas, rebolando, ela se afastou.

 

Uma embaixatriz do Glikkus, querida”, Nessarose disse, quando El­phaba pediu que marcassem uma reunião. “Realmente, não posso mandá-la embora. Ela veio para discutir pactos de defesa mútua em caso de o Glikkus se separar de Oz a seguir. Ela acha que há agentes secretos rastreando a sua família, e ela precisa partir em sua viagem de retorno hoje à noite. Mas nós jantaremos juntas, como nos velhos tempos? Você, eu e minha criada?”

Elphaba não teve escolha a não ser protelar mais uma tarde. Ela loca­lizou Frex e o persuadiu a sair a passeio para mais além dos lagos ornamen­tais e dos gramados primorosos, lá nos limites de Solos de Colwen, onde começavam as florestas. Ele caminhava de maneira tão rija, tão lenta, que era uma tortura; ela era uma caminhante de passos largos. Mas manteve-se controlada.

“O que você acha de sua irmã?”, ele lhe perguntou. “Depois de todos esses anos? Muito mudada?”

“Ela sempre foi autoconfiante, a seu modo”, Elfinha disse, com reserva.

“Eu nunca achei isso, e continuo não achando”, Frex disse. “Mas eu acho que ela fez uma boa coisa, e tem ficado melhor.”

“Por que você me pediu para vir aqui, realmente, papai?”, Elphaba disse. “Eu não tenho muito tempo a perder, você sabe. Você deve ser franco.”

“Você seria uma Eminência mais esperta que Nessinha”, ele disse. “E é seu direito congênito. Sim, eu sei que as leis estritas da herança do título não eram importantes para a sua mãe. Apenas acho que o povo da terra de Munchkin se sairia melhor com você no leme. Nessa é ― devota demais, se tal coisa existe. Devota demais para ser uma figura central na vida pública, de qualquer modo.”

“Esse deve ser o único aspecto em que eu puxei à minha mãe”, Elphaba disse, “mas uma posição herdada não é de interesse para mim, e não chega a me pesar o fato de ser a Eminência por direito. Há muito tempo abdiquei dessa posição na família. Nessarose tem todo o direito de abdicar da sua, e então Shell pode ser localizado para substituí-la. Ou, melhor ainda, essa tra­dição estúpida pode muito bem ser abolida, e vamos deixar os munchkineses governarem-se sozinhos até morrer.”

“Ninguém insinuou que um líder não seja tão bode expiatório quanto um humilde peão”, disse Frex. “Em todo caso, é possível. Mas eu estou falando de liderança, não de hierarquia e privilégio. Estou falando sobre a natureza dos tempos em que vivemos, e do trabalho que precisa ser feito. Fabala, você sempre foi a irmã mais capaz. Shell é um palhaço maluco, atualmente brin­cando de agente secreto, e Nessinha é uma garotinha melindrosa...”

“Oh, por favor”, ela disse, com desgosto. “Não é hora de superar isso?”

“Ela não superou”, ele disse, magoado. “Você a vê envolvida nos braços de um amante? Você a vê parindo seus próprios filhos, engajando-se na vida de um modo que faça sentido? Ela se esconde por trás de sua devoção do mesmo modo que um terrorista se esconde atrás de seus ideais...” Ele a viu reagir mal a essa frase, e parou.

“Eu conheci terroristas capazes de amar”, ela disse tranqüilamente, “e eu conheci boas monjas, solteironas e sem filhos, fazendo caridade para pessoas destruídas.”

“Você já viu Nessa ter alguma ligação adulta com alguém que não o Deus Inominável?”

“Olhe só quem fala”, ela disse. “Você teve sua mulher e seus filhos, mas eles ficaram em segundo lugar na ordem de prioridades quando surgiram os quadlings para ser convertidos.”

“Eu fiz o que tinha de ser feito”, ele disse rigidamente. “Não ouvirei sermões de minha própria filha.”

“Bem, também não ouvirei sermões seus sobre meus perpétuos deveres para com Nessinha. Eu dei a ela minha infância, eu a ajudei quando foi para Shiz. Ela fez sua vida do modo que queria, e ainda tem escolha e vontade livre até agora. E o mesmo pode-se dizer de seus seguidores, que podem depô-la e cortar a sua cabeça se suas preces forem um obstáculo no caminho deles.”

“Ela não é uma mulher poderosa”, Frex disse tristemente. Elfinha olhou­-o de esguelha, e pela primeira vez o viu como um fraco ― o tipo de velho que Irji, se sobrevivesse, se tornaria. Constantemente esperneando à margem dos acontecimentos, reagindo em vez de agindo, lamentando o passado e rezando pelo futuro em vez de se atirar com ânimo ao presente.

“Como foi que ela ficou assim?”, ela perguntou, tentando ser bondosa. “Tinha dois bons pais.”

Ele não respondeu a isso.

Eles continuaram caminhando e saíram das florestas pela margem de um campo de milho. Um par de colonos estava consertando uma cerca e erguendo um espantalho. “Tarde, Irmão Frexpar”, eles disseram, retirando seus bonés. Olharam meio de esguelha para Elphaba. Quando ela e seu pai retomaram a conversa fora do alcance de seus ouvidos, ela disse: “Eles estavam usando um pequeno talismã ou alguma coisa em suas túnicas, você notou? Parecia uma pequena boneca de palha ou coisa semelhante.”

“Oh, sim, o homem de palha”. Ele suspirou. “Outro costume pagão que havia desaparecido quase por completo, e então foi revivido durante a Grande Seca. Trabalhadores da roça ignorantes usam um homem de palha como um talismã contra as pestes da colheita: seca, corvos, insetos, podridão. Houve uma tradição de sacrifício humano em torno desse assunto.” Ele parou para tomar fôlego e enxugar o seu rosto. “Nosso amigo de família, Coração de Tartaruga, o quadling ― ele foi assassinado bem aqui em Solos de Colwen, no dia em que Nessarose nasceu. Um anão itinerante e um enorme relógio de entretenimento mecânico estavam fazendo apresentações naquele ano, e oferecendo uma válvula de escape para as mais feias tendências humanas. Chegamos bem na hora em que Coração de Tartaruga estava sendo captu­rado. Nunca me perdoarei por não ter notado o que estava para acontecer ― mas sua mãe estava em trabalho de parto, e nós havíamos saído da cidade. Eu não estava pensando claro o bastante sobre coisa nenhuma.”

Elphaba já tinha ouvido falar de tudo isso ― ou de algo parecido. “Você estava apaixonado por ele”, ela disse, para facilitar as coisas.

“Nós dois estávamos, nós o compartilhávamos”, disse Frex. “Sua mãe e eu. Foi há muito tempo e eu não sei mais por quê; eu não acho que na época soubesse tampouco. Eu não amei ninguém desde que sua mãe morreu, exceto, claro, meus filhos.”

“Que brutal história de sacrifícios”, ela disse. “Eu estava conversando com uma Vaca que acha que será sacrificada. Isso é possível?”

“Quanto mais civilizados ficamos, mais horrendos se tornam nossos entretenimentos”, disse Frex.

“E isso nunca mudará, ou não? Eu me lembro da etimologia da palavra Oz, ao menos como foi explicada numa aula de nossa Diretora, Madame Morrible. Ela disse que os acadêmicos se inclinavam a localizar a raiz do termo no cognato gillikinês oos, que embute uma carga de significados re­lacionados a crescimento, desenvolvimento, poder, geração. Até ooze*, com seu substantivo companheiro distante vírus, julga-se que pertence à mesma família. Quanto mais velha fico, mais acertada essa derivação me parece.”

“E, no entanto, o poeta da Ozíada chama isto de ‘Terra do verde aban­dono, terra da relva infindável.’ ”

“Poetas são tão responsáveis pela construção de um império quanto quaisquer outros trabalhadores.”

“Às vezes, sinto que daria qualquer coisa para ir-me embora daqui, mas tremo ao pensar numa viagem através das areias letais.”

“Isso é apenas uma lenda”, disse Elfinha. “Papai, você me ensinou que as areias não são mais letais que esses campos. Isso me faz lembrar outra teoria, a de que Oz estaria relacionada à palavra oásis. O que os povos nômades do norte pensavam de Gillikin, num tempo além da imaginação, quando Oz foi descoberta e fundada. Agora olhe, Papai, você não precisa fugir para tão longe. O Vinkus é praticamente um outro país. Por que você não volta comigo?”

“Eu adoraria, meu bem”, ele disse. “Mas, como poderia abandonar Nes­sarose? Eu nunca conseguiria.”

“Mesmo que ela não seja filha sua, mas do Coração de Tartaruga?”, ela disse, ferindo por estar ferida.

“Especialmente por isso”, ele respondeu.

E Elphaba entendeu que, por não saber ao certo se Nessarose fora ge­rada por ele ou por Coração de Tartaruga, Frex decidira de algum modo subconsciente que ela era filha dos dois. Nessarose era a prova de sua breve união ― sua e, obviamente, de Melena também. Não importava quão inváli­da Nessarose fosse; ela seria sempre, sempre mais que Elphaba. Ela sempre significaria mais.

Elphaba e Nessarose estavam no quarto de dormir de Nessarose. Uma criada servia um pouco de sopa feita de estômago de vaca. Elfinha, que não era normalmente enjoada, não conseguiu comê-la. A criada elegantemente colocou pequenas porções na boca de Nessinha com uma colher.

“Não vou fazer rodeios”, Nessarose disse. “Eu gostaria que você se unisse a mim aqui como uma irmã-em-armas, para liderar meu círculo de conse­lheiros e me substituir em minha ausência se eu viajar.”

“Eu não sou querida na terra de Munchkin, pelo que vi até aqui”, disse Elphaba. “O povo é cruel e impressionado por hipocrisias, a pompa do lugar é opressiva, e eu acredito firmemente que você está sentada num barril de pólvora.”

“Mais razão para você ficar e me ajudar”, disse Nessarose. “Não fomos ambas criadas com a expectativa de uma vida de trabalho?”

“Seus sapatos a tornaram forte”, disse Elfinha. “Eu não sabia que sapatos podiam fazer isso. Eu não acho que você precisa de mim. Mas não perca esses sapatos.” Ela pensou: Seus sapatos lhe dão um equilíbrio antinatural. Você fica parecida com uma serpente erguida a partir da cauda.

“É verdade que você se lembra como eles eram?”

“Sim, mas eu sei que Glinda os aprimorou com uma palavra mágica, ou coisa do gênero.”

“Oh, aquela Glinda! Que tipo!” Nessinha engoliu e sorriu. “Bem, você pode ficar com meus sapatos, minha querida ― passando sobre meu cadáver. Eu reescreverei meu testamento e os legarei para você. Embora eu mal possa imaginar o que eles fariam por você. Eles não me deram novos braços. Talvez sapatos encantados não consigam mudar a cor de sua pele, mas farão você tão atraente que isso nem chegará a ter importância.”

“Eu já estou velha demais para ser tão atraente.”

“Ué, você ainda está na aurora da vida, e eu também!”, disse Nessarose, rindo. “Conte-me se você tem algum namorado numa iurta ou tenda ou bar­raca ou o que quer que possa ser chamado de casa lá no Vinkus. Vamos lá.”

“Eu tenho cismado com uma coisa, desde que vi você fazer aquele feitiço nesta manhã”, Elfinha disse. “O feitiço no machado.”

“Oh, certo. Batatas pequenas, quero aquela.”

“Você por acaso se lembra daquela ocasião em Shiz quando Madame Morrible disse que estava nos enfeitiçando? E que não poderíamos conversar umas com as outras sobre isso?”

“Vá em frente. Parece familiar. Ela era tão sinistra, não era? Uma mestra em tirania.”

“Ela disse que tinha nos escolhido ― eu, você e Glinda ― para ser Adeptas. Para ser agentes de alguém lá do alto. Para ser feiticeiras e, não tenho certeza, cúmplices secretas. Ela prometeu que teríamos uma posição elevada e atuante. Ela nos fez pensar que não poderíamos nunca discutir isso entre nós.”

“Oh, sim, aquilo. Eu lembro mesmo. Que bruxa ela era.”

“Bem, você acha que há alguma verdade nisso? Você acha que ela tinha o poder de nos obrigar ao silêncio? De nos tornar poderosas feiticeiras?”

“Ela tinha o poder de nos assustar até perder o juízo, mas nós éramos jovens e muito estúpidas, se bem me lembro.”

“Eu tive a impressão, naquela ocasião, que ela estava em conluio com o Mágico, e que ela mandou a sua coisa tiquetaqueante ― Grommetik, o nome acabou de me voltar, a memória não é mesmo uma coisa estranha? ― matar o Doutor Dillamond.”

“Você vê demônios armados com facas atrás de qualquer cadeira, você sempre foi assim”, Nessarose disse. “Eu não acho que Madame Morrible ti­vesse qualquer poder real. Ela era uma mulher manipuladora, mas seu poder era muito limitado, e, em nossa ingenuidade, nós a víamos como uma vilã. Ela era apenas cheia de si.”

“Estou pensando. Tentei dizer alguma coisa sobre o acontecimento de­pois. Nós todas não desmaiamos?”

“Nós éramos inocentes e horrivelmente sugestionáveis, Elfinha.”

“E Glinda casou-se com o dinheiro, como Madame Morrible disse. Sir Chuffrey ainda está vivo?”

“Se aquilo pode ser chamado de vida, sim. E Glinda é uma feiticeira, não há dúvida quanto a isso. Mas Madame Morrible estava apenas fazendo prognósticos sobre nós; ela viu nossos talentos, o que era previsível em se tratando de uma educadora, e aconselhou-nos sobre como aproveitá-los da melhor maneira possível. O que há de tão surpreendente nisso?”

“Ela tentou nos aliciar para o serviço secreto de algum mestre desco­nhecido. Eu não estou inventando isso, Nessinha.”

“Ela sabia como chegar a você, obviamente, apelando para seu senso de conspiração. Eu não me lembro dessa sedução absurda.”

Elphaba caiu em silêncio. Talvez Nessinha estivesse certa. E, no entanto, aqui estavam elas, uma dúzia de anos depois: duas Bruxas, de um certo modo. E Glinda uma feiticeira de utilidade pública. Era o suficiente para fazer El­finha voltar para Kiamo Ko e queimar aquele Livro das Sombras, e queimar a vassoura também, devido a isso.

“Ela sempre lembrou uma carpa para Glinda”, disse Nessarose. “Você lá pode ficar assustada com um peixe, depois de todos esses anos?”

“Uma vez eu vi num livro o desenho de um monstro do lago, ou um monstro do mar, se você acredita em oceanos”, disse Elfinha. “Eu não posso ter certeza de que monstros existem, mas eu preferiria passar minha vida em dúvida do que ser convencida pela experiência real.”

“Você disse a mesmíssima coisa sobre o Deus Inominável uma vez”, disse Nessarose, surdamente.

“Oh, por favor, não vá começar com isso.”

“Uma alma é coisa valiosa demais para ser ignorada, Elfinha.”

“Bem, não é ótimo que eu não tenha nenhuma, então? Assim, não há nem desordem nem rebuliço.”

“Você tem uma alma. Todo mundo tem.”

“E quanto à Vaca que você permutou hoje, e as Ovelhas?”

“Eu não estou falando de ordens inferiores.”

“Esse tipo de conversa me ofende, Nessinha. Eu libertei aqueles Ani­mais hoje, você sabe.”

Nessarose deu de ombros. “Você tem alguns direitos aqui em Solos de Colwen. Eu não vou sair por aí proibindo suas missões com pequenos animais.”

“Disseram coisas bem horríveis sobre como os Animais estão sendo tratados aqui. Pensei que era apenas na Cidade Esmeralda e em Gillikin; de algum modo, achei que a Terra de Munchkin, sendo mais rural, teria mais senso comum.”

“Sabe?”, disse Nessinha, dando sinal para que a criada limpasse a sua boca com um guardanapo, “uma vez, num ofício de oração, eu conheci um soldado. Ele havia perdido um membro numa campanha contra alguns rebel­des quadlings. Ele dizia que toda manhã batia no coto que restara no lugar onde ficava seu braço. Seu sangue tinia, e daí a poucos minutos surgia uma sensação de formigamento, e, assim, ele desenvolveu uma espécie de membro fantasma. Não foi de imediato, e nem de forma física: o que ele recuperou foi um senso do que ele havia sentido. A coisa chegava ao cotovelo, e então a sua memória, sua memória corporal, dos membros em espaço tridimensio­nal, se expandia, finalmente, descendo até seus dedos. Assim que o membro fantasma era colocado em seu lugar, isto é, mentalmente, ele podia encarar o dia como um homem aleijado. Além disso, ele conseguira um maior equi­líbrio físico.”

Elphaba, sentindo-se mais e mais uma verdadeira Bruxa, olhava para a sua irmã, esperando pelo desfecho.

“Eu tentei por uns tempos. Por meses, na verdade. A Babá massageou minhas pequenas saliências no lugar. Depois de muito trabalho da parte da coitada, eu comecei a desenvolver apenas o começo de uma impressão de como seria ter braços. Isso nunca foi muito longe, até que Glinda encantou estes sapatos. Agora ― eu não sei por que, talvez sejam muito apertados e minha circulação reclame ―, depois de ficar com eles por uma hora, possuo braços fantasmas. Pela primeira vez em minha vida. Só não posso sentir os dedos por completo.”

“Membros fantasmas”, disse Elfinha. “Bem, fico feliz por você.”

“Sabe? Se você se esbofeteasse, espiritualmente falando”, disse Nessaro­se, “poderia desenvolver uma alma fantasma, ou alguma coisa que se parecesse com uma. É um bom guia interno, uma alma. Acho que você poderia até reconhecer que não seria um fantasma de todo ― seria uma alma real.”

“Isso basta, Nessinha”, disse Elphaba. “Eu não quero discutir minhas experiências espirituais com você.”

“Por que você não fica aqui comigo, entra para meu grupo, e a batiza­mos?”, disse Nessarose, calorosamente.

“A água é profundamente dolorida para mim, como você bem sabe, e não vou discutir isso novamente. Eu não posso fazer aliança com nada que seja Inominável. É uma falsidade.”

“Você está se condenando a uma vida de tristeza”, Nessarose disse.

“Bem, com isso eu já me acostumei, e assim ao menos não há nada que possa surgir de imprevisto e me surpreender.” Elfinha abaixou o guardana­po. “Eu não posso ficar aqui, Nessinha. Não posso ajudar você. Eu tenho responsabilidades com minha própria vida no Vinkus, o qual você mostrou ter pouquíssimo interesse em conhecer. Oh, tudo bem, eu sei, uma revolu­ção ocorreu e você virou uma nova primeira-ministra ou coisa parecida, e, de todo mundo, você é quem mais tem direito a estar distraída. Ou você aceita o fardo da liderança ou deixa a coisa de lado, mas nos dois casos veja isso como uma escolha consciente, e não como um acidente da história, um martírio por descuido. Eu me preocupo por você, mas eu não posso ficar e ser seu faz-tudo.”

“Eu fui desajeitada e sincera. Não exija que eu me lembre de como ser fraternal num tempo tão curto...”

“Você teve Shell com quem praticar nesses anos todos”, Elphaba disse, severamente.

“É só isso, você se levanta e vai embora?” Nessarose se levantou também, daquele modo sinuoso, excêntrico, que era o seu. “Depois de doze anos de separação, temos três, quatro dias de reencontro e fica por isso mesmo?”

“Cuide-se bem”, Elfinha disse, e beijou a sua irmã nas duas faces. “Eu sei que você será uma boa Eminência pelo tempo que quiser ser.”

“Eu rezarei por sua alma”, prometeu Nessarose.

“E eu esperarei por seus sapatos”, Elfinha respondeu.

No seu caminho de saída, Elfinha pensou em ir dizer adeus a seu pai, e então decidiu que não o faria. Ela dissera a ele tudo que poderia revelar de si mesma. Eles tinham-na assediado, ao modo claustrofóbico e afetuoso comum nas famílias, e ela não queria mais saber disso.

 

Tomando a rota do norte por sobre os Madeleines, ela percebeu que pas­saria pelo Lago Chorge. Decidiu fazer uma parada lá, a meio caminho de casa, estimulada por notar que estava realmente feliz por ter sido obrigada a voltar. Ela contornou a margem do lago, procurando pelo Capricho dos Pinhais, mas não pôde distinguir o lugar entre as muitas vilas do balneário que tinham se espalhado desde aquela visita que fizera em sua juventude.

Mas não era a terra visível o que ela realmente via. Era o mundo em sua amplidão. As características que ele parecia ter, o modo como se referia a si mesmo. Como é que Nessarose podia crer no Deus Inominável? Por trás de cada aspecto do mundo o que há é um outro aspecto do mundo. Num certo sentido, não era isso que o Doutor Dillamond pesquisara quando vivo? Ele imaginara uma nova criação verdadeira do mundo, defensável por provas e experiências; ele descobrira como localizá-la. Mas, ela não era uma visionária. Por trás do papel marmorizado azul e branco do lago, por trás da diluída seda do céu, Elphaba não via nada.

Nada sobre a crua matéria da vida: a estrutura muscular das asas dos anjos, a ação dos pequenos vasos capilares requerida para lançar um olhar fixo. Nem sobre os pegajosos temas do firmamento: nada sobre o bem, se o Deus Inominável seria de fato bom. Nada sobre o mal, também.

Pois, quem estava sob controle de quem, realmente? E isso poderia chegar a ser sabido? Cada agente trabalhava em cumplicidade e antagonis­mo ― como o frio e o sol juntos criando uma mortal lança de gelo... Seria o Mágico um charlatão, uma fraude, um déspota dotado de poderes apenas humanos e falíveis? Será que ele controlava as Adeptas ― Nessarose e Glinda, e uma terceira não nomeada, que certamente não era ela ― ou isso era apenas uma coisa que Madame Morrible atribuía a ele, para mitigar seu ego óbvio, seu apetite pela aparência do poder?

E Madame Morrible? E Yackle? Haveria alguma ligação entre elas? Se­riam a mesma pessoa, seriam ásperas divindades, avatares de um poder das trevas, fragmentos de carne venenosos arrancados do corpo demoníaco da Bruxa de Kumbric? Ou seriam elas ― juntas ou separadamente ― a própria velha Kumbricia, ou algo parecido que se presumiria ter sobrevivido à heróica era da mitologia nestes caóticos, limitados dias atuais? Elas governariam o Mágico, movimentando-o como uma marionete?

Quem estava sob o domínio de quem?

E, enquanto você espera para saber, a geleira mortal, formada por todas as forças antagônicas, cai e enfia sua garra gelada na carne penetrável.

Ela deixou as costas de pinheirais do Lago Chorge num estado de alta frustração e energia. Não tendo confiança para decidir sobre questões de hierarquia política ou teológica, sentia-se impelida a fuçar naquelas velhas anotações que recolhera do laboratório do Doutor Dillamond um dia depois que ele fora assassinado. Precisava de alguma coisa concreta sob a ponta de seus dedos. Uma lente de aumento, uma faca cirúrgica, uma sonda esteri­lizada. Talvez agora ela estivesse madura o suficiente para entender com o que ele estivera lidando. Ele fora um unionista essencialista; ela, uma ateísta principiante. Mas ela ainda poderia tirar algum proveito de seu trabalho, depois de todo este tempo.

O vento esteve a seu favor ao cruzar os penhascos mais baixos dos Grandes Kells. Daí em diante, ela encontrou mais dificuldades, tanto em loca­lizar o seu caminho quanto em manter o seu assento firme. Um bom número de vezes teve de desmontar e andar. Felizmente, não estava muito frio, e nos vales fechados ela avistou pequenos grupos de nômades, que a mantiveram trilhando na direção certa. Ainda assim, ela estava empenhada nesse retorno já havia duas semanas, mesmo com o auxílio de uma vassoura. De tardezinha, com o sol ainda quente e alto, se fosse comparado aos hábitos que tinha no inverno, ela moveu-se penosamente pelo caminho que levava aos últimos penhascos, com Kiamo Ko surgindo em seu estreito perfil negro bem lá em cima. Sentiu-se uma criança erguendo a cabeça para olhar o topo do chapéu de um homem muito alto. Ansiosa por evitar formalidades e rebuliços, contornou a aldeia. Sem a vassoura, essa aproximação seria quase impossível; tal como era, mesmo a vassoura dava sinais de estar esgotada com o esforço. Ela deu uma parada no pomar, aproximou-se da porta de trás, e achou-a aberta, o que significava que as irmãs estavam fora, colhendo flores ou alguma tolice assim.

O lugar estava silencioso. Ela pegou uma maçã escurecida do aparador e subiu os degraus de sua torre sem escorregar em nenhum. Quando passou pelo quarto da Babá, girou a maçaneta da porta e disse: “Bá?”.

“Oh,”, ouviu-se um gritinho, “você me assustou!”

“Posso entrar?”

“Um minutinho.” Ouviu-se o som de mobília sendo desencostada da porta. “Bem, esta foi uma bela bagunça, Senhorita Elphaba! Indo embora e largando a gente aqui para ser assassinada, ou coisa parecida!”

“Do que você está falando? Deixe-me entrar.”

“E não diga uma palavra. Você nos deixou loucas de preocupação...” A última peça de móvel foi arranhando o chão, e a Babá escancarou a porta. “Você, mulher medonha e ingrata!” Ela caiu pesadamente em seus braços e arrebentou em lágrimas.

“Por favor, já tive drama em dose suficiente para o resto da minha vida”, disse Elphaba. “O que está acontecendo com vocês?”

Levou algum tempo para a Babá se acalmar. À procura de sais aromá­ticos, fez uma busca minuciosa em sua mala, tirando dela pequenas garrafas e bolsas em quantidade suficiente para abrir seu próprio negócio de farma­cêutica. Havia ali frascos de vidro azuis, níveas caixas de pílulas, envelopes de pele de cobra contendo pós e pílulas, e uma bela garrafa de vidro verde que trazia um velho rótulo rasgado, ELIXIR MILA...

Ela ministrou-se agentes tranqüilizantes e, quando conseguiu respirar novamente, disse: “Bem, você sabe -―minha querida ― você deve ter visto, suponho, que todo mundo desapareceu?”.

Elphaba franziu as sobrancelhas, mergulhada em confusão. E num medo crescente, repentino.

A Babá tomou um fôlego profundo. “Agora, não fique brava com a Babá. Não é culpa dela. Aqueles soldados de repente decidiram que seus exercícios estavam concluídos. Eu não sei como, talvez Nor tenha contado a eles que você havia partido? Ela contou para nós; ela dera para andar furtivamente por aí, à procura de sua vassoura, e dissera que você não estava mais lá. Assim, pode ter mencionado isso para eles. Você sabe como eles eram bons para ela, como eles a adoravam. Os soldados vieram à porta da frente e disseram que tinham de escoltar a família inteira, Sarima e suas irmãs e Nor e Irji, de volta a seu campo de base, onde quer que ele fique. Eles não iam me requisitar, disseram, o que me pareceu de fato um insulto, e manifestei isso a eles. Sarima perguntou por que, e aquele belo Comandante Pedra Cereja disse que era para a própria proteção da família. Caso um batalhão de choque chegasse, ele disse, não era bom que houvesse ainda ali algum membro da família real, ou poderia ocorrer algum acidente sangrento.”

“Chegasse um batalhão? Quando?” Elfinha bateu no peitoril da janela com a mão aberta.

“Estou tentando lhe dizer. Não tão cedo, ele disse; isso é apenas plane­jamento antecipado. Eles ficaram insistentes. Dispersaram os camponeses na aldeia ― eu não acho que houve alguma morte, tudo parecia bastante humano exceto pelas correntes ― e só eu fui deixada para trás, sendo velha demais para descer uma montanha, e, ademais, sem relações. Também deixaram Liir, já que ele não era uma ameaça e acho que sentiam afeto por ele. Mas, alguns dias depois, ele também desapareceu. Estou certa de que estava se sentindo desesperadamente só, e deve tê-los seguido até o campo de base.”

“E ninguém protestou?”, gritou Elfinha.

“Não grite comigo. Claro que protestaram. Bem, Sarima desmoronou, apagando-se feito morta, e Irji e Nor ficaram tomando conta dela. Mas as irmãs, aquele bando desbocado, fizeram barricadas na sala de jantar e pu­seram fogo numa ala da capela, tentando chamar atenção, e Três bateu na mão do Comandante Pedra Cereja com uma pedra pontiaguda, e quebrou todos os ossos daquele pulso, aposto. Cinco e Seis bateram o sino, mas os pastores ficam muito longe, e tudo aconteceu depressa demais. Dois escreveu mensagens e tentou amarrá-las nas patas dos seus corvos, mas eles não alça­ram vôo, só ficaram empoleirados nos peitoris das janelas de novo, as velhas criaturas inúteis. Quatro teve uma grande idéia com óleo fervente, mas não conseguiram manter a chama alta o bastante. Oh, rolou uma bela perseguição aqui por um dia ou dois, mas é claro que os soldados venceram. Os homens sempre vencem.”

A Babá prosseguiu petulantemente: “E todas nós pensamos que eles tinham emboscado você antes de tudo, para tirá-la do caminho. Você é a única aqui que tem poder, todo mundo sabe disso. Todos eles pensam que você é uma Bruxa. Os aldeões me disseram que, se você voltasse, era para entrar em contato com o povoado de Moinho de Vento Vermelho lá pelas baixadas da barragem, você sabe qual. Eles acham que você pode resgatar a sua família real, sã e salva. Eu disse que isso era uma confiança equivocada, que você não estaria interessada, mas eu prometi a eles que passaria a mensagem a você, então, aí está”.

Elphaba andou de um lado para outro. Desatou seu cabelo do laço costumeiro e sacudiu-o, como se tentasse livrar-se do que estava escutando. “E Chistérico?”, ela disse, por fim.

“Agachado atrás do piano na sala de música, sem dúvida nenhuma.”

“Bem, esta é uma bela de uma embrulhada.”

Ela andou, sentou, socou seu queixo, deu um chute no urinol da Babá e quebrou-o. “Em que fria eu entrei’, ela resmungou. “Temos a vassoura. Temos as abelhas. Temos o macaco. Temos Matalegria ― eles machucaram o Ma­talegria? Então, temos Matalegria. Temos os corvos. Temos a Babá. Temos os moradores da vila, se não foram feridos. Temos o questionável Livro das Sombras. Não é muito.”

“Não, não é”, disse a Babá, suspirando. “Ruim, ruim, eu diria.”

“Nós podemos resgatá-los”, disse Elfinha. “Nós conseguiremos.”

“Conte com a Babá", disse a Babá, “embora eu nunca tenha gostado des­sas irmãs, confesso.”

Elfinha apertou os punhos e tentou não bater em si mesma. “Liir se foi também”, ela disse. “Vim aqui para pedir desculpas a Sarima, e em troca perdi o Liir. Será que não presto para nada nesta vida?”

Kiamo Ko estava mortalmente silenciosa, a não ser pelo penoso resso­nar da Babá ao tirar uma soneca na cadeira de balanço. Matalegria batia a cauda no chão, feliz por ver a sua dona. Além das janelas, o céu se abria amplo e desesperançado. Elphaba estava muito cansada, mas não conseguia dormir. Pois, de quando em quando, ela imaginava ouvir o som da água batendo de leve nas beiradas do poço dos peixes, como se o lendário lago subterrâneo estivesse subindo para tragá-los a todos.

 

Mais tarde, houve muita discussão sobre o que as pessoas pensavam que havia acontecido. O barulho parecia ter vindo de todos os cantos do céu de uma só vez.

Jornalistas, armados com o vernáculo e com as escrituras apocalípticas, atra­palharam-se e foram derrotados pela coisa. “Uma deliqüescência engolfadora de ar encanado, enlouquecido...” “Um vulcão do invisível, sombriamente construído...”

Para os adeptos da fé no prazer com paixões tiktokistas, era o som de artefatos mecânicos estirando suas cordas e funcionando em louca velocidade. Era a liberação da energia vingativa.

Para os essencialistas, parecia que o mundo havia repentinamente se descoberto farto demais da vida, com células se rachando aos bilhões, mo­léculas se desunindo até a aniquilação, átomos estremecendo e explodindo em seus invólucros.

Para os supersticiosos, era o desmoronar do tempo. Era o esvair-se do mundo numa força crepuscular, que tinha a intenção de golpear o mundo em seu âmago de uma vez por todas.

Para os religiosos mais tradicionais, era o ataque-relâmpago das legiões de anjos vingativos, o medonho nome do Deus Inominável revelando-se por fim ― surpresa ― e a evaporação de todas as esperanças de misericórdia.

Um ou dois fingiram pensar que eram esquadrões de dragões voadores no ar, preparados para o ataque, libertando o céu de suas amarras pelo bater das asas tripartidas.

No curso de destruição que a coisa causou, ninguém teve a ousadia ou coragem (ou a experiência prévia) para sustentar e clamar haver reconheci­do o ato de terror pelo que realmente era: um vento retorcido numa trança giratória.

Em resumo: um tornado.

 

Foram perdidas as vidas de muitos munchkineses ― junto com milhas quadradas de solo agrícola com centenas de ano de cultivo. Os deslocamentos das reservas de areia do deserto oriental engolfaram várias aldeias sem deixar traço, e não houve sobreviventes para contar a história de seu sofrimento. Rodopiando como algo que saísse de um pesadelo, o funil de vento entrou em Oz a trinta milhas ao norte de Ponta de Espato, e delicadamente contornou Solos de Colwen, deixando cada pétala de rosa intocada e cada espinho em seu devido lugar. O tornado retalhou o Cesto de Milho, devastando a base da economia da nação renegada, e foi se extinguindo, como se cumprisse um desígnio, não apenas no extremo oriental da amplamente defunta Estrada dos Tijolos Amarelos, mas também no lugar preciso ― o povoado de Munch Cen­tral ― onde, nos exteriores de uma capela local, Nessarose distribuía prêmios para o perfeito comparecimento às aulas de educação religiosa. A tempestade fez desabar uma casa em sua cabeça.

Todas as crianças sobreviveram para rezar pela alma de Nessarose no ofício em louvor à sua memória. O perfeito comparecimento nunca fora mais perfeito.

Houve um grande número de piadas sobre o desastre, naturalmente. “Você não pode se esquivar ao destino”, alguém disse, “aquela casa tinha seu nome gravado nele.” “Aquela Nessarose, ela estava fazendo um sermão tão bom sobre lições religiosas, que a casa realmente veio abaixo!” “Todo mundo precisa crescer e deixar o lar algum dia, mas às vezes O LAR NÃO GOSTA DA IDÉIA,” “Que diferença há entre uma estrela e uma casa cadente?” “Uma que seja propícia satisfaz desejos e concede delícias, outra que seja viciosa esmaga bruxas horrorosas.” “O que é grande, grosso, faz a terra se mover, e quer se aproximar de você?” “Eu não sei, mas você pode me apresentar?”

Um redemoinho de tais proporções nunca fora visto em Oz. Vários grupos terroristas reivindicaram a autoria, especialmente quando chegaram notícias de que a Malvada Bruxa do Leste ― também conhecida como Emi­nente Thropp, dependendo da filiação política de cada um ― havia sido traga­da. A princípio, nem todos entenderam que a casa tinha passageiros. A mera presença de uma casa de padrão exótico, despencando quase intacta sobre o palanque armado para os dignitários visitantes, era o bastante para aumentar a credulidade. Que criaturas humanas pudessem haver sobrevivido a uma tal queda ou era patentemente inacreditável ou era clara prova da mão do Deus Inominável no acontecimento. Previsivelmente, surgiram algumas pessoas cegas que de repente gritaram: “Eu posso ver!”. Um Porco aleijado que ficou em pé e dançou uma jiga, apenas para ser piedosamente levado embora ― essa espécie de coisa. A garota desconhecida ― ela se chamava Dorothy ― foi, em virtude de sua sobrevivência, elevada ao posto de santidade viva. O cão foi considerado apenas importuno.

 

Quando a notícia da morte prematura de Nessarose chegou a Kiamo Ko por pombo-correio, a Bruxa estava profundamente envolvida com uma cirurgia de espécies, costurando as asas de um Pássaro Roca macho de crista branca num músculo traseiro de uma de suas atuais crias da prole de macacos da neve. Ela tinha mais ou menos aperfeiçoado o procedimento, após anos de fracassos desajeitados e hediondos, quando a morte por misericórdia parecia a única coisa justa a fazer à criatura que deles fora objeto. Os velhos livros de escola de ciências da vida, do curso do Doutor Nikidik, pertencentes a Fiyero, deram-lhe algumas orientações. O Livro das Sombras também fora de ajuda, se é que ela o estava lendo corretamente: ela descobrira feitiços que tinham a finalidade de convencer os nervos axiais a pensar em direção ao céu e não em direção às árvores. E, assim que conseguiu acertar, os macacos de asas pareceram ficar bem felizes com seu quinhão. Era coisa ainda por ser vista uma macaca da nova população gerar um bebê dotado de asas, mas ela conservava as suas esperanças.

Seguramente, os bichos aprenderam melhor a voar que a usar a lingua­gem. Chistérico, agora um patriarca no zoológico do castelo, estacionara nas palavras de uma sílaba, e ainda parecia não ter uma idéia clara do que estava dizendo.

Foi Chistérico, na verdade, quem levou a carta trazida pelo pombo à sala de cirurgia de Elphaba. A Bruxa o teve ao lado, segurando o cortador de folhas, enquanto virava a página. A breve mensagem de Shell falava a respeito do tornado e a informava da cerimônia em honra à memória da irmã, que fora programada para várias semanas mais tarde na esperança de que ela recebesse a mensagem a tempo de comparecer.

Ela pôs a mensagem de lado e voltou ao trabalho, expulsando de sua mente a aflição e o remorso. Era um trabalho cheio de manhas, a anexação de asas, e o sedativo que ela ministrara a este macaco não duraria a manhã toda. “Chistérico, é hora de ajudar a Babá a descer as escadas, e encontrar Liir se você puder, e dizer a ele que precisamos conversar na hora do almoço”, ela disse, rangendo os dentes, olhando de novo para seus próprios diagramas para se assegurar de que arrumara corretamente, da frente para trás, a superposi­ção dos grupos musculares.

Agora, era uma proeza quando a Babá conseguia chegar à sala de jantar uma vez ao dia. “Este é meu trabalho, isto e dormir, e a Babá faz os dois muito bem”, ela dizia todo meio-dia ao chegar, faminta devido aos esforços que tinha de fazer nas escadas. Liir trazia o queijo e o pão e o ocasional acompanhamen­to frio, que os três cortavam e mordiscavam, em geral de um modo insociável, antes de se atirarem às suas tarefas vespertinas.

Liir estava com quatorze anos, e insistiu que queria ir com a Bruxa para Solos de Colwen. “Eu nunca fui a lugar nenhum, exceto aquela vez com os soldados”, ele se queixou. “Você nunca me deixa fazer nada.”

“Alguém tem de ficar e tomar conta da Babá”, disse a Bruxa. “Não vai resolver nada a gente discutir isso agora.”

“Chistérico pode cuidar dela.”

“Chistérico não pode. Ele está ficando esquecido, e ele com a Babá seria o mesmo que botar fogo na casa e derrubá-la. Não, não há mais nada a dis­cutir, Liir; você não vai. Além disso, eu vou viajar em minha vassoura, acho, para chegar a tempo.”

“Você nunca me deixa fazer nada.”

“Você pode fazer a faxina.”

“Você sabe o que eu quero dizer.”

“Do que ele está reclamando agora, meu doce?”, perguntou a Babá em voz alta.

“De nada”, disse a Bruxa.

“O que é isso que você está dizendo?”

“Nada.”

“Você não vai contar para ela?”, disse Liir. “Ela ajudou a criar a Nessa­rose, não ajudou?”

“Ela é velha demais, ela não precisa saber. Ela tem oitenta e cinco anos, isso só vai perturbá-la.”

“Babá”, disse Liir, “Nessinha morreu.”

“Cale-se, moleque inútil, antes que eu arranque seus testículos com meu pé.”

“Nessinha fez o quê?”, berrou a Babá, com os olhos úmidos a fitá-los.

“Mesmo morreu morta”, entoou Chistérico.

“Fez o quê?”

“Nessinha MORREU”, disse Liir.

A Babá começou a chorar com a idéia mesmo antes de confirmá-la. “Isso pode ser verdade, Elfinha? Sua irmã está morta?”

“Liir, você vai me pagar por esta”, disse a Bruxa. “Sim, Bá, não posso mentir para você. Houve uma tempestade e um prédio desmoronou. Ela se foi placidamente, dizem.”

“Ela foi direto para o seio de Lurlina”, disse a Babá, soluçando. “A car­ruagem de ouro de Lurlina veio para levá-la de volta para casa.” Ela deu uma palmadinha no pedaço de queijo de seu prato, inexplicavelmente. Depois, passou manteiga num guardanapo e deu uma mordida. “Quando partiremos para o funeral?”

“Você é velha demais para viajar, querida. Eu parto dentro de alguns dias. Liir vai ficar e cuidar de você.

“Não vou, não”, disse Liir.

“Ele é um bom menino”, disse a Babá, “mas não tão bom quanto Nes­sarose. Oh, dia miserável! Liir, eu vou tomar meu chá no meu quarto, eu não posso ficar aqui e conversar com vocês como se nada tivesse acontecido.” Ela ergueu-se com dificuldade, apoiando-se na cabeça de Chistérico. (O macaco era devotado a ela.) “Você sabe, querida”, ela disse à Bruxa, ‘Eu não acho que o menino tenha idade suficiente para perceber as minhas necessidades. E se o castelo for atacado novamente? Lembre-se o que aconteceu da última vez que você viajou.” Ela fez uma pequena careta acusadora.

“Bá, a milícia arjiki guarda este lugar dia e noite. O exército do Mágico está bem alojado na cidade de Moinho de Vento Vermelho lá embaixo. Eles não têm intenção de deixar aquele porto seguro e arriscar a aniquilação nesses desfiladeiros ― não depois do que fizeram. Aquela foi a escaramuça, aquela foi a missão deles. Agora, são apenas cães de vigia. Há auxiliares no posto da fronteira para informar se há sinais de invasão ou problema com os clãs das montanhas. Você sabe disso. Não há nada a temer.”

“Sou velha demais para ser levada em correntes como a pobre Sarima e a sua família”, a Babá disse. “E como você poderia me resgatar, se você não pôde trazê-los de volta?”

“Eu ainda estou trabalhando nisso’, disse a Bruxa no ouvido esquerdo da Babá.

“Sete anos. Você é muito teimosa. Minha opinião é que eles estão viran­do pó num túmulo só, nesses sete longos anos. Liir, você tem de dar graças a Lurline por não ter ficado com eles.”

“Eu tentei resgatá-los”, disse o obstinado Liir, que havia reescrito a fuga em sua própria mente para dar a si mesmo um papel mais heróico nela. Não era a saudade da companhia dos soldados, ele dizia a si mesmo, não, era o corajoso esforço de tentar salvar a família! Na verdade, o Comandante Pe­dra Cereja, com sua amabilidade, mantivera Liir amarrado e o deixara num saco no estábulo de alguém, para evitar que o tivessem de encarcerar com os outros. O Comandante não havia percebido que Liir era o filho bastardo de Fiyero, já que nem o próprio Liir sabia disso.

“Sim, bem, esse é um bom menino.” A Babá estava agora esquecida das tristes notícias, voltando a sua atenção para a tragédia que ela lembrava mais visceralmente. “Claro que fiz tudo que pude, mas a Babá era uma mulher idosa já naquela época. Elfinha, você acha que eles estão mortos?”

“Eu não descobri nada”, disse a Bruxa pela décima-milésima vez. “Se foram seqüestrados e levados para a Cidade Esmeralda ou se foram assassi­nados. Não consegui apurar. Você sabe disso, Bá. Subornei gente. Espionei. Contratei agentes para seguir toda a rota. Escrevi para a Princesa Nastoya dos Scrows para ouvir um conselho. Passei um ano seguindo toda pista falsa que surgiu. Você sabe disso. Não me torture com a lembrança de meu fracasso.”

“Foi fracasso meu, tenho certeza”, disse a Babá pacificamente; eles todos sabiam que ela não pensava assim em momento algum. “Eu devia ser mais jovem e vigorosa. Eu teria dito àquele Comandante Pedra Cereja o que eu pensava! E agora Sarima desapareceu, desapareceu, e suas irmãs também. Suponho que não seja falha nossa, realmente”, ela concluiu menos engenho­samente, lançando um olhar severo sobre a Bruxa. “Você tinha um lugar para ir, portanto, foi; quem pode criticar você por isso?”

Mas a imagem de Sarima acorrentada, Sarima como um cadáver em decomposição, ainda negando à Bruxa o perdão pela morte de Fiyero ― era tão dolorida quanto a água para ela. “Sai pra lá, velha megera”, disse a Bru­xá, “minha própria família deve me fustigar desse jeito? Vá tomar seu chá, demônio.”

A Bruxa se sentou, enfim, e pensou em Nessarose, e no que estava por vir. Ela tentara ficar alheia aos negócios do mundo político, mas sabia que uma mudança de liderança na terra de Munchkin poderia desequilibrar as coisas ― talvez até com resultado positivo. Sentia uma culposa leviandade em relação à morte da irmã.

Fez uma lista de coisas a levar para a cerimônia de louvor à memória de Nessarose. A primeira delas era uma página do Livro das Sombras. Em seu quarto, estudou cuidadosamente o enorme tomo mofado, e finalmente arrancou dele uma página especialmente misteriosa. Suas letras ainda con­tinuavam a se contorcer sob seus olhos, por vezes se misturando e se remis­turando, como se fossem formadas por uma colônia de formigas. Toda vez que ela olhava para o livro, emergia de uma página um sentido que no dia anterior havia sido não mais que ilegíveis ciscadas de galinha; e por vezes o sentido desaparecia assim que ela fixava os olhos. Ela indagaria seu pai, que, com seus olhos santos, enxergaria melhor a verdade.

 

Solos de Colwen estava coberta por cortinas negras e por bandeiras roxas. Quando a Bruxa chegou, foi saudada por um pouco acolhedor comitê de um homem só, um munchkinês barbudo chamado Nipp, que parecia encar­nar a um só tempo as funções de porteiro, zelador e ativo Primeiro-Ministro. “Sua linhagem não mais lhe permite quaisquer liberdades particulares na terra de Munchkin”, foi-lhe dito. “Com a morte de Nessarose, o título hono­rífico de Eminência foi enfim abolido.” A Bruxa não se importou muito, mas, por natureza, não era dada a aceitar uma sentença unilateral sem uma réplica. Ela respondeu: “Estará abolido quando eu decidir que está abolido”. Não que o honorífico fosse muito usado nos anos recentes; segundo a carta por vezes divagadora que ela recebera de Frex, Nessarose começara a se divertir com o estigma de “Maléfica Bruxa do Leste”, e o considerava uma penitência pública digna de uma pessoa com tanta elevação moral. Ela dera até mesmo para referir-se a si mesma daquela forma.

Nipp levou-a a seus aposentos. “Eu não preciso de muito”, disse a Ma­léfica Bruxa do Oeste (como, em contraste, ela permitiu-se ser chamada, ao menos por esses presunçosos munchkineses). “Uma cama por alguns dias, e gostaria de ver o meu pai e ir à cerimônia. Eu pegarei algumas coisas, e irei embora em breve. Agora, você sabe se nosso irmão, Shell, estará aqui?”

“Shell desapareceu de novo”, disse Nipp. “Ele deixou suas saudações, para que eu lhe retransmitisse. Há no Glikkus uma missão de que ele está incumbido, coisa que não pode esperar. Alguns daqui pensam que ele está é desertando, preocupado com uma mudança no governo, agora que a tirana morreu. E ele faz bem em se preocupar”, ele acrescentou friamente. “Você precisa de toalhas?”

“Eu não as uso”, disse a Bruxa. “Está tudo certo. Vá embora agora.” Ela estava muito cansada, e triste.

 

Aos sessenta e três anos, Frex estava mais calvo, e com a barba mais branca do que estivera na última vez em que ela o vira. Seus ombros se ar­queavam, como se tentassem encontrar um ao outro, sua cabeça afundava numa cavidade natural formada por uma espinha dorsal e um pescoço de­teriorados. Ele estava sentado na varanda, debaixo de um cobertor. “E quem é esta?”, ele disse quando a Bruxa subiu e sentou-se perto dele. Ela percebeu que sua vista estava arruinada.

“É sua outra filha, Papai”, ela disse, “aquela que partiu.”

“Fabala”, ele disse, “o que farei sem minha bela Nessarose? Como viverei sem meu bichinho?”

Ela segurou sua mão até que ele caiu no sono, e enxugou seu rosto, embora suas lágrimas ardessem em sua pele.

 

Os munchkineses libertados estavam destruindo a casa. A Bruxa não era dada a enfeites, mas parecia uma vergonha arruinar uma propriedade desse jeito. A profanação tinha vistas tão curtas; eles não sabiam que, não importava como houvessem decidido viver agora, Solos de Colwen poderia ser o prédio de seu parlamento?

Ela ficou ao lado do pai por algum tempo, mas eles não falaram mui­to. Numa manhã, quando ele estava mais alerta e enérgico que de costume, perguntou a ela se realmente era uma bruxa. “Oh, bem, o que é uma bruxa? Quem alguma vez confiou na linguagem nesta família?”, ela respondeu. “Pa­pai, você daria uma olhadinha numa coisa para mim? Você me dirá o que viu?” Ela tirou de um bolso escondido a página do Livro das Sombras e desdobrou­-a como um grande guardanapo em seu colo. Ele passou suas mãos sobre ela, como se pudesse apreender significados com a ponta dos dedos, e depois aproximou-a dele, perscrutando e olhando com os olhos apertados.

“O que você vê?”, ela perguntou. “Pode me revelar a natureza desse es­crito? É para o bem ou para o mal?”

“As inscrições são bastante claras, e amplas. Acho que sou capaz de entendê-las.” Ele virou a página de ponta-cabeça. “Mas, pequena Fabala, não consigo ler este alfabeto. É numa língua estrangeira. Você consegue?”

“Bem, de vez em quando eu me sinto capaz, mas é uma habilidade passageira”, disse a Bruxa, “não sei se são meus olhos ou é o manuscrito que está me pregando peças.”

“Você sempre teve olhos poderosos”, disse seu pai. “Mesmo quando en­gatinhava, você conseguia ver coisas que ninguém via.”

“Hah”, ela disse, “eu não sei o que você quer dizer com isso.”

“Você tinha um espelho que Coração de Tartaruga fez para você, e você olhava nele como se pudesse ver outros mundos, outros tempos.”

“Talvez eu estivesse olhando para mim mesma.”

Mas ambos sabiam que isso não era verdade, e Frex, pela primeira vez, disse isso. “Você não olhava para você mesma”, ele disse, “porque odiava isso. Você odiava a sua pele, suas feições pontiagudas, seus olhos estranhos.”

“Onde foi que aprendi esse ódio?”, ela perguntou.

“Ao nascer, você já o conhecia”, ele disse. “Era uma maldição. Você nasceu para amaldiçoar a minha vida.” Ele bateu de leve em sua mão, afetuosamente, como se não quisesse dizer nada de grave com isso. “Quando você perdeu seus estranhos dentes de bebê, e sua segunda dentição veio normalmente, nós todos nos tranqüilizamos um pouco. Mas nos dois primeiros anos ― até que Nessarose nascesse ― você era um monstrinho. Só quando a santa Nessarose foi dada a nós, até mais prejudicada que você, foi que você se estabilizou como uma criança normal.”

“Por que rogaram pragas para que eu fosse diferente?”, ela disse. “Você é um homem santo, você deve saber.”

“Você é meu fracasso”, ele disse. A despeito de suas palavras, ele estava atribuindo culpa mais a ela que a ele mesmo, embora ela não fosse ainda perspicaz o bastante para perceber como isso era feito. “Pelo que eu fracassei em fazer, você nasceu para me amaldiçoar. Mas, não se preocupe com isso agora”, ele acrescentou, “foi há tanto tempo.”

“E Nessarose?”, ela perguntou. “As ponderações e os balanços da vergo­nha e da culpa a afetaram em quanto?”

“Ela é um retrato da moral frouxa de sua mãe”, Frex disse, calmamente.

“E essa é a razão por que você podia amá-la tanto”, disse a Bruxa. “De­vido à fraqueza humana de mamãe não ser culpa sua.”

“Não leve a sério assim, você sempre agrava as coisas”, Frex disse. “E agora ela está morta, então, que mais importa?”

“Minha vida continua a existir.”

“Mas a minha está se esvaindo”, ele respondeu, tristemente. Assim, ela pôs a mão dele de volta no colo, e o beijou afetuosamente, e voltou a dobrar a página do Livro das Sombras e a enfiá-la em seu bolso. Então, virou-se para cumprimentar a pessoa que se aproximava deles, vinda pelo gramado. Ela pensou que era alguém trazendo o chá (Frex concordara em receber um certo número de privilégios, devido à sua idade e à brandura, e, ela supunha, à sua vocação), mas ela se levantou e baixou a frente de sua tosca saia negra quando viu quem era.

“Senhorita Glinda dos Arduennas”, ela disse, com o coração zumbindo.

“Oh, você veio, eu sabia que você viria”, disse Glinda. “Senhorita Elpha­ba, a derradeira e verdadeira Eminente Thropp, não importa o que digam por aí!”

Glinda se aproximou lentamente, devido à idade ou à timidez, ou por­que seu ridículo traje pesava tanto que era difícil para ela obter fôlego su­ficiente para passadas largas. Ela parecia um arbusto repleto de frutinhas “glindinescas”, foi tudo que a Bruxa pôde pensar; debaixo daquela saia devia haver uma anquinha do tamanho da cúpula da igreja de Santa Florix. Havia lantejoulas e debruns de pele e uma espécie de História de Oz, ao que parecia, bordada em pesponto nos seis ou sete panos ovóides em volta da saia toda. Mas, quanto ao rosto: debaixo da pele empoada, das rugas sob as pálpebras e a boca, havia a expressão de uma tímida colegial das Colinas de Pertha.

“Você não mudou nem um tiquinho”, disse Glinda. “Este é o seu pai?”

A Bruxa concordou, mas fez com que ela se calasse; Frex tinha apagado outra vez. “Venha, caminharemos nos jardins antes que eles arranquem as rosas com alguma heróica tentativa de erradicar a injustiça.” A Bruxa tomou o braço de Glinda. “Glinda, você está horrível com essas roupas. Pensei que você adquirira alguma sobriedade, ultimamente.”

“Quando nas províncias”, ela disse, “você tem de mostrar um pouco de estilo a esses caipiras. Não acho que está tão mal assim. Ou será que os sinos de seda no ombro não serão um pouquinho excessivos demais?”

“Excessivos sim”, concordou a Bruxa. “Alguém que vá correndo pegar as tesouras; isso é um desastre.”

Elas riram. “Minha querida, o que fizeram com este antigo lugar gran­dioso”, disse Glinda. “Olhe, aqueles frontões triangulares foram feitos para dar suporte a urnas mortuárias, e aqueles slogans revolucionários estão pintados por todo esse primoroso mirante. Espero que você tome alguma providência aqui, Elfinha. Não há um mirante que se compare a este fora da capital.”

“Eu nunca tive um amor à arquitetura como o seu, Glinda”, disse a Bru­xa. “Eu só leio os slogans: ELA PISOU EM NÓS. Por que eles não deviam pintar isso por todo o mirante? Se ela na verdade pisou em todos eles?”

“Tiranos vêm e vão, mirantes são eternos”, disse Glinda. “Eu posso lhe recomendar os mais finos restauradores no momento que você pedir.”

“Eu soube que você foi dos primeiros a aparecer”, disse a Bruxa, “quando Nessarose morreu. Como foi que isso aconteceu?”

“Sir Chuffrey ― meu maridinho ― tem alguns investimentos em ações no negócio de carne de porco, você sabe, e a Terra de Munchkin está tentando diversificar sua base econômica a fim de não ficar à mercê dos bancos de Gilli­kin e da Bolsa de Cereais da Cidade Esmeralda. Nunca se sabe que espécie de relação poderá se desenvolver entre a Terra de Munchkin e o resto de Oz, e é melhor ficar preparado. Assim, onde Sir Chuffrey faz negócios, eu faço filantropia. É uma parceria celestial. Sabe que tenho mais dinheiro até do que posso gastar?” Ela riu afetadamente e apertou o braço da Bruxa. “Eu nunca imaginei que fazer caridade pública fosse render tamanho progresso.”

“Então, você estava aqui, na terra de Munchkin?”

“Sim, eu fui a um orfanato nas praias de Mossmere, e por farra pensei em dar um passeio num parque de diversões ― há dragões por lá agora, e eu nunca vira um dragão ― então, eu estava a menos que doze milhas de distância quando a tempestade veio. Até lá tivemos ventos terríveis; não con­sigo imaginar como uma cerimônia poderia estar transcorrendo em Munch Central naquele momento. Em Mossmere, vários segmentos do parque foram fechados para os visitantes devido ao temor de que árvores caíssem e Animais fugissem...”

“Oh, então chamam a coisa de parque de diversões, com Animais?”, disse a Bruxa.

“Você deve ir, querida, é uma curtição. Bem, como eu dizia, a casa caiu como um raio em céu azul, e acho que digo isso literalmente ― se tivessem pressentido uma grande tempestade, certamente teriam cancelado o evento e corrido para um abrigo. De todo modo, o serviço de informações está muito avançado agora em algumas partes da Terra de Munchkin; Nessarose em pessoa supervisionou a criação de um sistema de faróis e sinais de código tiquetaqueantes, para alertar quanto a invasões do Mágico e problemas a oeste. Então, foi só uma questão de minutos para que as notícias fossem enviadas em todas as direções. Eu peguei uma Fênix Madura e pedi a ela que me trouxesse a Munch Central, e cheguei antes que os nativos tivessem entendido direito o que os atingira.”

“Fale-me disso”, disse a Bruxa.

“Você ficará satisfeita em saber que não houve sangue. Arrisco imaginar que houve maciços ferimentos internos, mas não houve sangue. Claro que os derradeiros poucos seguidores devotos de Nessarose acharam que isso quis dizer que seu espírito subiu intacto ao céu, e que ela sofreu pouco. Eu não imagino que ela tenha sofrido muito, não com aquele tipo de pancada na cabeça. Seus seguidores mais infelizes, que eram em maior número, acha­ram que era um ato gozador de Lurlina, libertando-os da forma particular de servidão fundamentalista a que Nessarose os submetia. Houve festança quando eu cheguei, e muita saudação para a garota e o cachorro que parecem ter morado na casa.

“Oh, quem é essa?”, disse a Bruxa, que não soubera dessa parte.

“Bem, você sabe como os munchkineses fazem mesura e rasgam seda, apesar de suas inclinações democráticas. Tão longo eu cheguei, já foram me paparicando, apresentando-me como uma bruxa. Tentei corrigi-los, uma fei­ticeira é realmente muito mais adequado, mas, deixa pra lá. Não houve dúvida quanto ao meu traje, ele os intimidou. Eu vestia um costume rosa-salmão naquele dia, e ele realmente combinava bem comigo.”

“Continue”, disse a Bruxa, que nunca gostara de conversas sobre rou­pas.

“Bem, a criança se apresentou: Dorothy do Kansas. Eu não conhecia o lugar, e disse a verdade. Ela parecia tão surpresa quanto os outros com o que acontecera, e ela tinha um cãozinho nojento latindo em seus calcanhares. Tatá ou Totó ou algo assim. Totó. Então, essa Dorothy estava em alguma espécie de estado de choque, posso lhe garantir. Uma garotinha bem grosseira, com pouco gosto para se vestir, mas suponho que na vida alguns só adquiram isso mais tarde.” Ela olhou de lado para a Bruxa. “Muito mais tarde, em alguns casos.” E as duas riram muito com aquilo.

“Dorothy supôs que devia tentar voltar para a sua casa, mas, como ela não conseguia lembrar se havia estudado alguma coisa sobre Oz na escola, nem eu recordar um lugar chamado Kansas, concluímos que ela deveria pro­curar ajuda em outro lugar. Os volúveis munchkineses pareciam dispostos a nomeá-la sucessora de Nessinha, o que teria enraivecido Nipp e todos aqueles ministros de Solos de Colwen que passaram suas carreiras manobrando para alcançar posições quando e se Nessarose estivesse para morrer. Além disso, devem estar acontecendo outros desdobramentos. Dorothy deve ter pegado o seu caminho.”

“Um olho para assuntos públicos, bem, não estou assim tão surpresa”, disse a Bruxa, na verdade completamente satisfeita. “Eu sempre soube que você devia estar fazendo isso em algum lugar, Glinda.”

“Bem, eu achei que o melhor procedimento seria tirar Dorothy da Terra de Munchkin antes que uma guerra civil tornasse esse lugar mais dividido do que já é. Há facções, você sabe, que apóiam a reanexação da Terra de Mun­chkin por Oz. Não faria nenhum bem à garota ser posta no fogo cruzado de interesses antagônicos.”

“Oh, ela não está aqui?”, disse a Bruxa. “Eu pensei que iria conhecê-la.”

“Dorothy? Agora você não vai se virar contra ela, vai?”, disse Glinda. “Ela é uma criança, na verdade. Grande pelos padrões munchkineses, é claro, mas uma coisinha atarracada, apesar disso. Ela é uma inocente, Elfinha; eu vejo pelo brilho em seu olhar que você está ficando tomada por sua velha mania paranóica outra vez. Ela não estava pilotando a casa, você sabe, ela estava presa nela. Esse é o tipo de luta em que você faria melhor não se intrometendo.”

A Bruxa suspirou. “Você pode estar certa. Você sabe, estou ficando acos­tumada a endurecer os músculos de manhã. Às vezes acho que a vingança é uma questão de formação de hábito também. Um endurecimento da atitude. Continuo tendo esperança que o Mágico será derrubado enquanto eu ainda for viva, e essa aspiração parece avessa à felicidade. Suponho que não possa ficar querendo me vingar da morte de uma irmã com quem eu nem me dava tão bem.”

“Especialmente se a morte foi um acidente”, Glinda disse.

“Glinda”, disse a Bruxa. “Sei que você deve se lembrar de Fiyero, e deve ter sabido de sua morte. Há quinze anos.”

“Claro”, disse ela. “Bem, eu soube que ele morreu, em circunstâncias misteriosas.”

“Eu conheci a sua esposa”, disse a Bruxa, “e suas cunhadas. Alguém me insinuou uma vez que ele estava tendo um caso com você na Cidade Esmeralda.”

Glinda ficou amarelo-rosa. “Minha cara”, ela disse. “Eu apreciava Fiyero e ele era um bom homem e um correto estadista. Mas, entre outras coisas, você deve se lembrar que ele tinha pele escura. Mesmo que eu fosse dada a flertar ― uma tendência que acho que raramente traz benefícios a uma pessoa ― você está outra vez sendo desconfiada e ranzinza ao suspeitar de mim com Fiyero! Que idéia!”

E a Bruxa percebeu, humilhada, que isso era certamente verdadeiro; a feia habilidade para o esnobismo estava renascendo em Glinda em seus anos maduros.

Mas, pelo seu lado, Glinda não tinha uma suspeita real de que a Bruxa a estivesse implicando no amor adúltero de Fiyero. Glinda era espalhafatosa demais para ouvir uma coisa dessas atentamente. A Bruxa, na verdade, a alar­mava um pouco. Não era apenas pela novidade de vê-la novamente, mas pelo estranho carisma que Elphaba possuía, capaz de sempre colocá-la em plano secundário. Também havia a empolgação, de fundo indefinível, que tornava Glinda tímida, e a fazia se precipitar em suas palavras, e falar numa falsa voz alta, como uma adolescente. Como alguém pode ser lançado rapidamente de volta à terrível incerteza de sua juventude!

Pois, quando ela escolheu lembrar-se de sua juventude toda, conseguiu trazer à memória uma vaga recordação daquele audacioso encontro com o Mágico. Ela pôde lembrar com mais clareza como ela e Elphaba tinham di­vidido uma cama na estrada para a Cidade Esmeralda. Como aquilo a fizera sentir-se corajosa, e como a deixara vulnerável também.

Elas caminharam por um trecho num silêncio inquieto.

“As coisas devem começar a melhorar agora”, disse a Bruxa, um pouco depois. “Quero dizer que a Terra de Munchkin ficará bagunçada só por algum tempo. Um tirano é uma coisa terrível, mas ele ou ela impõe uma ordem. A anarquia que vem depois da deposição de um tirano pode ser mais sanguiná­ria que a anterior. No entanto, as coisas podem se ajeitar. Papai sempre dizia que, quando deixados a si mesmos, os munchkineses tinham uma grande capacidade de senso comum. E Nessinha era, para efeitos práticos, uma es­trangeira. Ela foi criada no Estado de Quadling e, você sabe, ela pode ter sido metade quadling, como vim a saber. Ela foi uma rainha estrangeira nesta terra, apesar do título que herdou. Com seu desaparecimento, os munchkineses podem dar um jeito em si mesmos.”

“Que a alma dela seja abençoada”, disse Glinda. “Ou você ainda não acredita em alma?”

“Não posso fazer comentários sobre as almas dos outros”, disse a Bruxa.

Caminharam um pouco mais. Aqui e ali a Bruxa via, como antes, os totêmicos homens de palha, presos em túnicas, e erguidos como efígies nos cantos dos campos. “Eu os acho um pouco sinistros”, ela disse a Glinda. “Ago­ra, uma outra coisa que eu quero lhe perguntar; e eu perguntei isso a Nessa uma vez. Você se lembra de Madame Morrible encurralando-nos em sua sala de visitas, e propondo que nos tornássemos três Adeptas, três altas bruxas de Oz? Uma espécie de sacerdotisas locais, formulando um plano de ação pública por trás dos bastidores, contribuindo para a estabilidade ― ou a ins­tabilidade ― de Oz tal como era exigida por alguma indefinida autoridade mais elevada?”

“Oh, aquela farsa, aquele melodrama, como poderia esquecer?”, disse Glinda.

“Eu me pergunto se não fomos enfeitiçadas naquela ocasião? Você se lembra, ela disse que não poderíamos falar daquilo, e não parecia que pu­déssemos?”

“Bem, estamos falando a respeito, então, se havia alguma verdade na coisa, do que duvido, está certamente sem efeito, agora.”

“Mas, olhe o que aconteceu com a gente. Nessarose se tornou a Ma­léfica Bruxa do Leste ― você sabe que era assim que a chamavam, não finja ficar tão chocada ― e eu tenho uma fortaleza no Oeste, e parece que estou arregimentando os arjikis em torno de mim, à força de a família governante estar ausente ― e aí está você, bem estabelecida no Norte com suas contas bancárias e seus lendários talentos para a feitiçaria.”

“Lendários coisa nenhuma; quanto a isso, creio que sou admirada nos círculos apropriados”, disse Glinda. “Agora, minha memória é tão boa quanto a sua. E Madame Morrible propôs que eu fosse uma Adepta de Gillikin, mas que você fosse uma Adepta na Terra de Munchkin, e Nessa fosse uma Adepta no Estado de Quadling. Com o Vinkus ela nem se importava. Se ela estava vendo o futuro, via errado. Ela viu você e Nessa de forma totalmente errada.”

“Esqueça os detalhes”, disse a Bruxa acidamente. “Eu só quero dizer, Glinda, será que é possível que estejamos vivendo nossas vidas adultas por inteiro debaixo do feitiço lançado por alguém? Como poderíamos notar se fôssemos os peões do jogo mais obscuro de alguém? Eu sei, eu sei, eu posso ver no seu rosto: Elfinha, você está farejando teorias de conspiração outra vez Mas você estava lá. Você ouviu o que eu ouvi. Como você sabe se sua vida não tem sido manipulada pelos fios de alguma mágica maligna?”

“Bem, eu rezo bastante”, disse Glinda, “não com muita convicção, eu admito, mas eu tento. Acho que o Deus Inominável teria piedade de mim e me daria o benefício da dúvida, e me libertaria de algum feitiço, se eu aciden­talmente fosse enfeitiçada. Você não? Ou você ainda é tão atéia?”

“Eu sempre me senti como um joguete”, disse a Bruxa. “A cor de minha pele foi uma maldição, meus pais missionários me tornaram abstêmia e pas­sional, meus dias de escola me trouxeram,revolta com os crimes cometidos contra os Animais, minha vida amorosa implodiu e meu amante morreu, e se possuo alguma espécie de trabalho próprio, não o descobri ainda, exceto na frugalidade animal, se você puder chamá-la assim.”

“Eu não sou um joguete”, disse Glinda. “Eu assumo toda a responsabili­dade do mundo por minha própria tolice. Santo Deus, querida, tudo na vida é um feitiço. A gente sabe disso. Mas a gente tem uma margem de escolha.”

“Bem, eu fico em dúvida”, disse a Bruxa.

Elas continuaram caminhando. Grafites estavam pichadas aos lados dos blocos de suporte das estátuas. AGORA O SAPATO ESTÁ EM OUTRO PÉ. Glinda ironizou. “Frugalidade animal?”, ela disse.

Elas cruzaram uma pequena ponte. Pássaros azuis lançavam música sobre elas como um entretenimento sentimental.

“Eu mandei essa Dorothy, essa garota, para a Cidade Esmeralda”, disse Glinda. “Eu lhe disse que nunca tinha visto o Mágico ― bem, tive de mentir, não olhe para mim desse jeito; se eu dissesse a ela a verdade sobre ele, ela nunca sairia daqui. Eu disse a ela que pedisse a ele para que a levasse de volta para casa. Com esses espiões de reconhecimento por toda Oz, e sem dúvida mais além, ele deve saber onde fica o Kansas, estou certa disso. Ninguém mais sabe.”

“Foi uma coisa cruel”, disse a Bruxa.

“Ela é uma criança tão inofensiva, ninguém a leva a sério”, disse Glinda, displicentemente. “Se os munchkineses começarem a se agrupar aqui, a reu­nificação poderá ser um negócio muito mais sangrento do que esperamos.”

“Então, você tem esperanças de uma reunificação?”, murmurou a Bruxa, desgostosa. “Você a apóia?”

“Ademais”, Glinda prosseguiu alegremente, “em algum lugar dentro des­te meu peito empinado deve existir algum instinto maternal, pois eu dei a ela os sapatos de Nessa como uma espécie de proteção.”

“Você o quê?” A Bruxa girou e encarou Glinda. Por um momento fi­cou muda de raiva, mas só por um momento. “Ela não apenas vem do céu e derruba sua grande casa desajeitada sobre a minha irmã, mas pega os sapatos dela também? Glinda, não eram seus para que você os desse! Meu pai fez os sapatos para ela! E, ademais, Nessa me prometeu que eu poderia ficar com eles quando ela morresse!”

“Oh sim”, disse Glinda numa falsa calma, examinando a Bruxa de alto a baixo, “e eles seriam o acessório perfeito para essas roupas tão dentro da moda que você usa. Ora, Elfinha, quando foi que, entre todas as coisas, você se preocupou com sapatos? Olhe só para essas botas do exército que você está usando!”

“Que eu as use ou não, não é coisa que lhe diga respeito. Você não pode ir dispondo do trabalho de uma pessoa desse jeito, que direito você tem? Pa­pai restaurou esses sapatos usando habilidades que aprendeu com Coração de Tartaruga. Você botou sua varinha de condão onde não devia!”

“Deixe-me lembrar você”, disse Glinda, “que esses sapatos estavam se partindo em pedaços até que pus neles uma nova sola, e os consertei com um especial feitiço de ligação de minha própria lavra. Nem seu pai nem você fizeram tanto assim por ela. Elfinha, eu lhe dei amparo quando você a aban­donou em Shiz. Tal como você me abandonou. Você fez isso, não negue, pare de lançar esses olhares feito raios sobre mim, eu não aceito. Eu me tornei a irmã substituta de Nessarose. E, como uma velha amiga, eu dei a ela o poder de ficar em pé nesses sapatos, e se cometi um erro, sinto, Elfinha, mas ainda sinto que os sapatos eram mais meus que seus para que eu dispusesse deles como bem entendesse.”

“Bem, eu os quero de volta”, disse a Bruxa.

“Oh, deixa isso pra lá, por favor, são apenas sapatos”, disse Glinda, “você se comporta como se fossem relíquias sagradas. Eram sapatos, e um pouco fora de moda, verdade seja dita. Deixe a garota ficar com eles. Ela não tem mais nada.”

“Olhe aqui o que o povo daqui pensa delas”, disse a Bruxa; ela apontou para um estábulo onde estava escrito em garranchos, em grandes letras ver­melhas: CAIAM FORA VOCÊS SUAS BRUXAS VELHAS.

“Por favor, me dê um descanso”, disse Glinda, “eu estou com uma baita dor de cabeça começando.”

“Onde está ela?”, disse a Bruxa. “Se não for buscá-los, eu mesma vou.”

“Se eu soubesse que você os queria”, disse Glinda, tentando ajeitar as coisas, “eu os teria guardado para você. Mas você tem de entender, Elfinha, que os sapatos não podiam ficar aqui. Os ignorantes pagãos munchkineses ― todos lurlinistas, quando você raspa seu verniz ― puseram muita fé naqueles tolos sapatos. Quero dizer, uma espada mágica eu poderia compreender, mas sapatos? Por favor. Eu tive de tirá-los da Terra de Munchkin.”

“Você está trabalhando em conluio com o Mágico para submeter a Terra de Munchkin à anexação”, disse a Bruxa. “Você não tem um projeto de caridade, Glinda. Ao menos não engane a si mesma. Ou você está mesmo sob efeito de algum feitiço anacrônico de Madame Morrible, depois de todo esse tempo?”

“Não aceitarei que você me critique”, disse Glinda. “A garota partiu, ela está na estrada há uma semana, tomou a direção oeste. Eu lhe garanto, é apenas uma garota tímida, e não significa dano algum. Ela ficaria aflita se soubesse que levou uma coisa que você tanto queria. Não há poder nesses sapatos para você, Elfinha.”

A Bruxa disse: “Glinda, se esses sapatos caírem nas mãos do Mágico, ele os usará de algum modo numa manobra para reanexar a Terra de Mun­chkin. Neste momento, eles têm significado demais para os munchkineses. O Mágico não pode se apoderar desses sapatos!”

Glinda se aproximou e tocou o cotovelo da Bruxa. “Eles não vão fazer com que seu pai ame você mais do que já ama”, ela disse.

A Bruxa recuou. Elas se olharam fixamente. Tinham demais uma histó­ria em comum para se separarem devido a um par de sapatos, e, no entanto, os sapatos estavam plantados entre elas, um símbolo grotesco de suas dife­renças. Nenhuma poderia recuar, nem avançar. Era estúpido, e elas estavam paralisadas, e alguém precisava quebrar o encanto. Mas tudo que a Bruxa pôde fazer foi insistir: “Eu quero esses sapatos”.

 

Na cerimônia em louvor à memória de Nessarose, Glinda e Sir Chuffrey se empoleiraram na sacada reservada para dignitários e embaixadores. O Mágico mandou um representante, resplandecente em seus trajes verme­lhos com as faixas quadriculadas da cruz esmeralda em seu peito, um pelotão de guarda-costas em alerta ao seu redor. A Bruxa sentou-se logo abaixo, e não olhou para os olhos de Glinda. Frex chorou até que foi acometido por um ataque de asma, e a Bruxa ajudou-o a sair por uma porta lateral, para um ponto onde ele pudesse tomar ar.

Depois da cerimônia, o emissário do Mágico aproximou-se da Bru­xa. Ele disse: “Você foi convidada a uma audiência com o Mágico. Ele está viajando com imunidade diplomática especial, via Fênix, para oferecer suas condolências à família nesta noite. Você deve se preparar para encontrá-lo em Solos de Colwen na noite de hoje”.

“Ele não pode vir aqui!”, disse a Bruxa. “Ele não se atreveria!”

“Os que agora tomam decisões pensam de outro modo”, disse o emis­sário. “Seja como for, ele vem na calada da noite, e apenas para falar com você e sua família.”

“Meu pai não está disposto a receber o Mágico”, disse a Bruxa. “Eu não vou aceitar isso.”

“Ele verá vocês, então”, disse o emissário. “Ele insiste. Ele tem questões de natureza diplomática a abordar com vocês. Mas vocês não devem tornar pública essa visita, ou isso poderia trazer problemas para seu pai e seu irmão. E para você”, ele acrescentou, como se isso não fosse bem evidente.

Ela refletiu sobre como poderia usar essa audiência com a mais alta au­toridade para sua própria vantagem: Sarima, a segurança de Frex, o destino de Fiyero. “Eu concordo”, ela concluiu. “Vou me encontrar com ele.” E, a despeito dela mesma, ficou momentaneamente satisfeita pelos sapatos enfeitiçados de Nessarose estarem em segurança bem longe dali.

Assim que os sinos vespertinos soaram, a Bruxa foi intimada a sair de seu quarto por uma criada munchkinesa. “Você terá de se submeter a uma revista”, disse o emissário do Mágico, encontrando-a na antecâmara. “Você deve entender o protocolo aqui.”

Ela controlou sua fúria enquanto era sondada e apalpada pelos oficiais que cercavam o lugar. “O que é isto?", disseram quando encontraram a página do Livro das Sombras em seu bolso.

“Oh, isso”, ela disse, pensando rápido. “Sua Alteza vai querer ver isso.”

“Você não pode levar nada com você”, eles lhe disseram, e tomaram a página dela.

“Por minha linhagem, eu posso reinstalar as funções do Eminente Thropp esta noite e prender o seu líder”, ela os advertiu. “Não me digam o que posso e não posso fazer nesta casa.”

Eles não lhe deram atenção e conduziram-na para um pequeno aposen­to, que, exceto por um par de cadeiras estofadas dispostas sobre um tapete florido, estava vazio. Ao lado das franjas do tapete, ratos empoeirados rolavam pelo registro da chaminé.

“Sua Alteza, o Imperador Mágico de Oz”, disse um criado, e retirou-se. Por um minuto, a Bruxa ficou sozinha. Então, o Mágico entrou no aposento.

Sem disfarce, ele era um homem idoso comum usando uma camisa de gola alta e um pesado sobretudo, com um relógio e um berloque dependura­dos no bolso do colete. Sua cabeça era rósea e mosqueada, e tufos de cabelo caíam sobre suas orelhas. Ele enxugou seu rosto com um lenço e sentou-se, fa­zendo um sinal para que a Bruxa se sentasse, também. Ela não o obedeceu.

“Como vai você?”, ele disse.

“O que você quer de mim?”, ela respondeu.

“Há duas coisas”, ele disse. “Há o que vim aqui para dizer a você, e depois a questão que você pode me esclarecer.”

“Você fala comigo”, ela disse, “porque eu nada tenho a dizer a você.”

“Não adianta ficar fazendo rodeios”, ele disse. “Eu queria saber suas intenções sobre a sua posição quanto à última Eminência.”

“Tivesse eu alguma intenção”, ela disse, “não seria da sua conta.”

“Ah, ai de mim! É da minha conta sim, porque a reunificação está a caminho”, disse o Mágico, “neste momento em que nos falamos. Eu entendo que Lady Glinda, abençoada seja sua tolice bem-intencionada, sensatamen­te evacuou tanto a infeliz garota quanto os sapatos totêmicos daqui deste distrito, o que pode tornar a anexação menos problemática. Eu gostaria de possuir esses sapatos, para evitar que eles lhe dessem idéias. Você não tinha, eu sei, calorosa simpatia pelo tipo de despotismo religioso de sua irmã, mas eu espero que não tenha intenção de se estabelecer aqui. Se você o fizer, de­vemos fazer uma pequena barganha ― uma coisa que eu nunca fui capaz de fazer com a sua irmã.”

“Há pouca coisa que me interesse por aqui”, disse a Bruxa, “e não tenho aptidão para governar ninguém, nem a mim mesma, pelo jeito.”

“Além disso, há a pequena questão do exército em ― chama-se Moinho de Vento Vermelho? ― a cidade aos pés de Kiamo Ko.”

“Então é por isso que os soldados ficaram lá todos esses anos”, disse a Bruxa.

“Para manter você sob vigilância”, ele disse. “Uma despesa, mas aí está você.”

“Por rancor a você, eu deveria reclamar o título de Eminência”, disse a Bruxa. “Mas eu pouco me importo com esse povo idiota. O que os munchki­neses fazem agora não é de meu interesse. Contanto que meu pai permaneça a salvo. Se isso é tudo...”

“Há a outra questão”, ele disse. Seus modos ficaram mais animados. “Você trouxe uma página com você. Eu pergunto onde foi que a achou?”

“Isso é meu e sua gente não tem direito de pegar.”

“O que eu quero é saber onde você a achou, e onde eu posso achar o resto.”

“O que você me dará se eu lhe contar?”

“O que você poderia querer de mim?”

Aí estava a razão de ela haver aceitado a conversa. Ela tomou um fôlego profundo e disse: “Para saber se Sarima, Princesa Viúva dos Arjikis, ainda está viva. E onde posso encontrá-la, e como posso negociar a sua liberdade”.

O Mágico sorriu. “Como as coisas se encaixam. Agora, não é interessan­te que eu possa imaginar onde isso lhe diz respeito?” Ele fez sinal com uma mão. Criados invisíveis do lado de fora da porta aberta trouxeram para dentro um anão trajando calças brancas imaculadas e uma túnica.

Não, não era um anão, ela viu; era uma jovenzinha curvada. Correntes atadas à gola de sua túnica desciam pelas suas roupas até seus tornozelos, mantendo-a assim; as correntes tinham apenas dois ou três pés de compri­mento. A Bruxa teve de examinar atentamente para se certificar de que era Nor. Ela estaria agora com dezesseis ou dezessete anos. A idade que Elfinha tinha quando fora para Crage Hall em Shiz.

“Nor”, disse a Bruxa, “Nor, você está aí?”

Os joelhos de Nor estavam imundos e seus dedos se enroscavam nos elos das correntes. Seu cabelo fora cortado curto e vergões eram visíveis por sob as trancas improvisadas. Ela lançava a sua cabeça para trás como se ou­visse música, mas nenhum olhar se deslocou na direção de Elphaba.

“Nor, é a Titia Bruxa. Vim aqui lutar por sua libertação, finalmente”, disse a Bruxa, improvisando.

Mas o Mágico fez um sinal aos criados invisíveis para que levassem Nor para fora. “Temo que isso não seja possível”, ele disse. “Ela é minha proteção contra você, como vê.”

“E os outros?”, disse a Bruxa. “Eu tenho de saber.”

“Nada está documentado”, disse o Mágico, “mas creio que Sarima e suas irmãs estejam todas mortas.”

O fôlego da Bruxa se contraiu em seu peito. As últimas esperanças de perdão tinham desaparecido!... Mas o Mágico continuou. “Talvez algum subalterno sem autoridade no assunto tivesse algum apetite por banhos de sangue. É tão difícil conseguir ajuda confiável nas forças armadas.”

“Irji?”, disse a Bruxa, controlando a apreensão.

“Agora, ele tinha de morrer”, disse o Mágico, justificando-se. “Ele seria o primeiro a herdar o título de Príncipe, não seria?”

“Diga-me que não foi brutal”, disse a Bruxa. “Oh, diga-me isso!”

“O Colar de Parafina”, admitiu o Mágico. “Bem, era uma questão pú­blica. Uma posição tinha de ser tomada. Então, agora, agindo contra minha sensatez, eu disse o que você queria saber. Agora, é sua vez. Onde posso encontrar o livro de que essa página foi tirada?” O Mágico tirou o papel de seu bolso e apertou-o junto ao peito. Suas mãos tremiam. Ele olhou para a página. “Um feitiço para Controle de Dragões”, ele disse, espantando-se.

“É isso que significa?”, ela disse, surpresa. “Eu não tinha certeza.”

“É claro. Você deve ter penado para entender isso”, ele disse. “Você vê, não provém deste mundo. Provém do meu mundo.”

Ele era louco, obcecado por outros mundos. Como o seu pai.

“Você não está dizendo a verdade”, disse a Bruxa, esperando estar certa.

“Oh, como se a verdade me importasse!”, ele disse, “mas sou verdadeiro, conforme o caso.”

“Por que você quereria isso?”, disse a Bruxa, tentando ganhar algum tempo, tentando descobrir como poderia barganhar pela vida de Nor. “Eu nem sei o que é. Não acredito que você saiba tampouco.”

“Eu sei”, ele disse. “Este é um antigo manuscrito de magia, criado em um mundo muito distante deste em que vivemos. Durante muito tempo, julgou-se que era apenas lendário, ou que fora destruído nos obscuros ata­ques dos invasores nortistas. Por segurança, foi removido de nosso mundo por um mágico muito mais poderoso que eu. É por isso que vim para Oz em primeiro lugar”, ele continuou, quase que falando só consigo mesmo, como os idosos são propensos a fazer. “Madame Blavatsky localizou-o em uma bola de cristal, e eu fiz os sacrifícios apropriados e preparos para viajar para cá há quarenta anos. Eu era um homem jovem, cheio de ardor e defeitos. Não tinha a intenção de governar um país aqui, mas apenas a de localizar esse documento e levá-lo de volta ao seu mundo de origem, e estudar os seus segredos por lá.”

“Que tipo de sacrifícios?”, ela disse. “Você não se limita a assassinar por aqui.”

“Assassinato é uma palavra usada por hipócritas”, ele disse. “É uma força de expressão com a qual condenam qualquer ação corajosa que seja realizada além de sua compreensão. O que fiz, o que faço, não pode ser considerado crime. Pois, vindo de outro mundo, eu não posso ser responsável pelas tolas convenções de uma civilização ingênua. Eu estou muito além dessa canhestra recitação infantil de certos e errados.” Seus olhos não brilhavam enquanto ele falava; estavam afundados sob véus de alheamento de um azul frio.

“Se eu lhe der o Livro das Sombras, você irá embora?”, ela disse. “Você me dará Nor e sumirá com sua espécie maligna e nos deixará em paz, finalmente?”

“Estou velho demais para viajar agora”, ele disse, “e por que eu deveria desistir de uma coisa pela qual lutei nesses anos todos?”

“Porque eu usarei este livro e destruirei você com ele, se você não se for”, ela disse.

“Você não pode lê-lo”, ele disse. “Você é de Oz e não consegue fazer uma coisa dessas.”

“Sei ler nele mais do que você desconfia”, ela disse. “Eu não sei o que tudo isso significa. Li páginas sobre a liberação das energias ocultas da maté­ria. Li páginas sobre a manipulação do fluxo ordenado do tempo. Li fórmulas secretas sobre armas vis demais para usar, sobre como envenenar a água, sobre como produzir uma população mais dócil. Há nele diagramas sobre armas de tortura. Embora as ilustrações e as palavras me pareçam nebulosas, eu posso continuar a aprender. Eu não sou tão velha.”

“São idéias de grande interesse para nossos tempos”, ele disse, embora parecesse surpreso por ela ter percebido o tanto que percebera.

“Não para mim”, ela disse. “Você já fez o bastante. Se eu lhe der o livro, você me cederá Nor?”

“Você não deveria confiar em minha palavra”, ele disse, suspirando. “Realmente, minha filha.” Mas ele continuou de olho pregado na página que ela estendera para ele. “Pode-se aprender a subjugar um dragão para uso pessoal”, ele a contemplava pensativamente, e virou-a para ler o que estava escrito no verso.

“Por favor”, ela disse. “Eu acho que nunca supliquei por nada em minha vida. Mas, eu lhe suplico. Não é direito que você esteja aqui. Supondo por um momento que você possa dizer a verdade ― volte para esse outro mundo, vá para onde quiser, mas abdique desse trono. Deixe-nos em paz. Leve o livro com você, faça o que tiver vontade. Deixe-me realizar ao menos isto em minha vida.”

“Em troca de eu lhe dizer sobre amigos e parentes de seu adorado Fiye­ro, você está disposta a me dizer onde o livro está”, ele lembrou-a.

“Bem, acho que não”, ela respondeu. “Eu repensei minha oferta. Dê-me Nor, e eu lhe darei o Livro das Sombras. O livro está tão bem escondido e você nunca o encontrará. Você não teria habilidade para tanto.” Ela esperava estar sendo persuasiva.

Ele se aprumou e enfiou a página no bolso. “Eu não vou executar você”, ele disse. “Ao menos, não nesta audiência. Eu conseguirei este livro, por um ou outro meio. Você não pode me obrigar a uma promessa, eu estou muito além de compromissos com palavras. Eu pensarei no que você disse. Mas, enquanto isso, eu manterei minha jovem escrava comigo. Porque ela é minha defesa contra o seu ódio.”

“Dê a garota para mim!”, disse a Bruxa. “Já, já, já. Aja como um ho­mem, não como um charlatão! Dê a garota para mim e eu lhe mandarei esse livro!”

“Barganha é coisa para outras pessoas”, disse o Mágico. Menos que ofendido, ele parecia desanimado, como se falasse consigo mesmo e não com ela. “Eu não faço barganhas. Mas eu penso. Esperarei e verei como vai a reu­nificação com a Terra de Munchkin, e, se você não interferir, poderei ficar gentilmente disposto a pensar sobre o que você me disse. Mas eu não faço barganhas.”

A Bruxa respirou profundamente. “Eu já o conhecia, você sabe”, ela disse. “Você uma vez me concedeu uma entrevista na Sala do Trono, quando eu era uma estudante de Shiz.”

“É mesmo?”, ele disse. “Oh, é claro ― você deve ter sido uma das queri­dinhas de Madame Morrible. Aquela maravilhosa ajudante e companheira. Está em idade senil agora, mas nos seus tempos de apogeu, o que ela não me contava sobre quebrar os espíritos de jovenzinhas voluntariosas! Sem dúvida, então, como o resto, você foi dominada por ela?”

“Ela tentou me recrutar para servir a algum mestre desconhecido. Era você?”

“Quem pode dizer? Nós estávamos sempre armando uma intriga ou outra. Ela era muito divertida. Ela nunca seria tão rude assim” ― ele apontou para a porta aberta através da qual a subjugada Nor podia ser vista, murmu­rando para si mesma ― “ela manobrava jovens estudantes com finesse muito maior!” Ele estava para deixar o aposento, mas, ao chegar à porta, ainda se virou. “Você sabe, agora eu lembro. Foi ela que me avisou sobre você. Ela me contou que você a traíra, que você rejeitara as suas ofertas. Foi ela quem me advertiu para vigiar você. Foi por causa dela que descobrimos seu pequeno romance com o príncipe tatuado com diamantes.”

“Não!”

“Então, você já me conhecia. Eu tinha esquecido. De que forma eu lhe apareci?”

Ela teve de se controlar para não vomitar. “Você era um esqueleto com ossos iluminados, dançando numa tempestade.”

“Oh, sim. Era um recurso inteligente. Você ficou impressionada?”

“Senhor”, ela disse, “eu acho que o senhor é um mágico da pior qualidade.”

“E você”, ele respondeu, alfinetando, “é apenas a caricatura de uma bruxa.”

“Espere”, ela gritou quando ele saía pela porta, “espere, por favor. Como receberei a sua resposta?”

“Vou te enviar um mensageiro antes que este ano acabe”, ele disse. A porta se fechou com estrépito atrás dele. Ela caiu de joelhos, sua testa quase tocando o chão. Nos seus flancos, seus pulsos se cerraram. Ela não tinha a intenção de ceder o Livro das Som­bras a tamanho monstro, de modo algum. Se necessário, ela até morreria para mantê-lo longe de suas mãos. Mas poderia ela armar uma trapaça a fim de que ele lhe entregasse Nor primeiro?

Ela partiu poucos dias depois, primeiro se assegurando de que o pai não seria tirado de seu quarto em Solos de Colwen. Ele não quis segui-la até o Vinkus; era velho demais para fazer a jornada. Ademais, ele julgava que Shell voltaria a procurá-lo mais cedo ou mais tarde. A Bruxa sabia que Frex não viveria muito, angustiado como estava pela perda de Nessarose. Ela tentou afastar o rancor que sentia por ele quando ela lhe disse adeus pelo que suspeitava que fosse a última vez.

Quando saía pelo vestíbulo de Solos de Colwen, cruzou novamente com Glinda. Mas as duas evitaram olharem-se e apressaram os passos em direções contrárias. Para a Bruxa, o céu era uma pedra enorme a desabar sobre ela. Para Glinda, era exatamente o mesmo. Mas Glinda ainda se virou, e lamentou: “Oh, Elfinha!”

A Bruxa não se virou. Nunca mais se viram.

 

Ela sabia que não dispunha de tempo para armar uma perseguição de larga escala a essa tal Dorothy. Glinda devia estar contratando cúmplices para seguir os rastros dos sapatos; era o mínimo que ela poderia fazer, com seu dinheiro e suas relações. Mesmo assim, a Bruxa parou aqui e ali ao longo da Estrada dos Tijolos Amarelos, e perguntou àqueles que tomavam sua bebi­dinha da tarde em botequins à beira da estrada se tinham visto uma garota desconhecida em roupa xadrez de azul e branco, caminhando com um cachor­rinho. Houve uma animada discussão quando os donos do boteco lutaram para decidir se a Bruxa verde não teria intenções de fazer mal à menina ― apa­rentemente, a criança tinha aquele raro dom de encantar desconhecidos ―, mas quando se satisfizeram com a explicação de que nenhum dano seria possível, responderam. Dorothy estivera ali havia alguns dias, e disseram à Bruxa que ela passara a noite com alguém a uma ou duas milhas da estrada, antes de re­tomar seu caminho. “A casa bem cuidada com um telhado de domo amarelo”, eles disseram, “e a chaminé em forma de minarete. Não tem como errar.”

A Bruxa achou a casa, e encontrou Boq num banco no quintal, balan­çando um bebê em seu joelho.

“Você!”, ele disse. “Eu sei por que você está aqui! Milla, olhe quem está aqui, venha depressa! É a Senhorita Elphaba, de Crage Hall! Em carne e osso!”

Milla apareceu, um par de crianças nuas agarradas aos cordões de seu avental. Corada pelo esforço de lavar roupa, ela afastou seu cabelo emara­nhado de cima dos olhos e disse: “Oh, minha nossa, e nós nos esquecemos de vestir nossa melhor roupa hoje. Olhe quem vem rir de nosso desmazelo caipira”.

“Ela não é uma coisa?”, disse Boq, afetuosamente.

Milla conservara sua silhueta, embora houvesse quatro ou cinco crias em evidência, e, sem dúvida, mais algumas fora de vista. Boq se tornara um barrilzinho, e seu belo cabelo espetado ficara prematuramente grisalho, dan­do-lhe uma dignidade que ele nunca tivera quando estava estudando. “Nós soubemos da morte de sua irmã, Elfinha”, ele disse, “e mandamos nossas con­dolências ao seu pai. Nós não sabíamos onde você estava. Soubemos que você tinha vindo acompanhar a ascensão de Nessinha ao governo da Terra de Munchkin, mas não soubemos para onde você voltou quando partiu. É bom ver você novamente.”

O azedume que ela sentira devido à traição de Glinda foi melhorado pela cortesia singela e a fala direta de Boq. Ela sempre gostara dele, por sua paixão e por seu bom senso. “Você é que é uma visão, ora se é”, ela disse.

“Rikla, levante desse tamborete e deixe nossa visita sentar”, disse Milla para um dos filhos. “E Yellowgage, corra à casa do titio e empreste um pouco de arroz e cebola e iogurte. Rápido agora, para que eu possa começar a fazer uma refeição.”

“Eu não vou ficar, Milla, estou com pressa”, disse a Bruxa. “Yellowgage, não precisa se incomodar. Eu adoraria ficar um pouco, e saber novidades sobre vocês, mas estou tentando localizar uma garota estrangeira, que passou por aqui, segundo me disseram, e ficou uma ou duas noites.”

Boq enfiou as mãos nos bolsos. “Bem, ela passou sim, Elfinha. O que você quer com ela?”

“Eu quero os sapatos de minha irmã. Eles me pertencem.”

Boq pareceu tão surpreso quanto Glinda ficara. “Você nunca foi de gos­tar de ornamentos como sapatos chiques”, ele disse.

“Sim, bem, talvez eu esteja para debutar tardiamente na sociedade da Cidade Esmeralda, afinal, e ofereça um baile para me exibir.” Mas, ela estava sendo ácida com Boq, e não queria isso. “É uma questão pessoal, Boq; eu quero os sapatos. Meu pai os fez e eles são meus agora, e Glinda deu-os a essa garota sem minha permissão. E vai acontecer uma desgraça na Terra de Munchkin se eles caírem nas mãos do Mágico. Como ela é, essa Dorothy?”

“Nós a adoramos”, ele disse. “Simples e direta como semente de mos­tarda. Ela não deverá ter problemas, embora seja uma longa caminhada para uma criança, daqui até a Cidade Esmeralda. Mas todos que a virem infalivel­mente a ajudarão, eu diria. Nós ficamos juntos até a lua surgir, conversando sobre sua casa, e Oz, e o que ela podia encontrar pela estrada. Ela nunca tinha viajado tanto assim.”

“Que encantador”, disse a Bruxa. “Quanta novidade para ela.”

“Você está armando uma de suas campanhas?”, disse Milla, súbita e as­tuciosamente. “Você sabe, Elfinha, quando você não voltou da Cidade Esme­ralda com Glinda aquela vez, todo mundo disse que você tinha enlouquecido, e tinha se tornado uma assassina.”

“As pessoas sempre gostaram de falar, não é mesmo? É por isso que chamo a mim mesma de bruxa agora: a Maléfica Bruxa do Oeste, se quiserem o nome em sua completa glória. Já que as pessoas vão me chamar de lunática de um modo ou de outro, por que não tirar alguma vantagem? Isso liberta a gente das convenções.”

“Você não é maléfica”, disse Boq.

“Como você sabe? Tanto tempo passou”, disse a Bruxa, mas sorriu para ele.

Boq retribuiu o sorriso, calorosamente. “Glinda usava seus colares cinti­lantes, e você seus modos e conteúdos exóticos, mas vocês não estavam apenas fazendo a mesma coisa, tentando maximizar o que tinham a fim de conseguir o que queriam? Pessoas que afirmam que são más não são habitualmente piores que o resto de nós.” Ele suspirou. “É com gente que afirma ser boa, ou, de qualquer modo, melhor que o resto de nós, que você deve se acautelar.”

“Alguém como Nessarose”, disse Milla malvadamente, mas ela estava dizendo a verdade, também, e todos concordaram.

A Bruxa pôs um dos filhos de Boq no joelho e fez gracejos com ele, distraidamente. Ela não gostava de crianças mais do que sempre gostara, mas anos de lida com os macacos tinham-lhe dado uma compreensão da mentalidade infantil que ela nunca antes alcançara. O bebê arrulhou e fez xixi prazerosamente. A Bruxa passou-o de volta rapidamente antes que aquilo encharcasse a sua saia.

“Independente dos sapatos”, disse a Bruxa, “você acha que uma criança como essa deveria ser mandada desarmada diretamente para as mandíbulas do Mágico? Terão contado para ela que monstro ele é?”

Boq pareceu incomodado. “Bem, Elfinha, eu não gosto de falar mal do Mágico. Temo que haja faladores com grandes ouvidos demais nesta comu­nidade, e você nunca sabe quem está de que lado. Cá entre nós, espero que a morte de Nessa resulte em alguma espécie de governo sensato, mas se formos ocupados por um exército invasor dentro de dois meses, não quero que se espalhe que estive falando mal dos invasores. E há boatos de reunificação.”

“Oh, não me diga que você está esperando isso”, ela disse, “não você também.”

“Eu não espero nada, exceto paz e tranqüilidade”, ele disse. “Eu já tenho problemas demais com minhas colheitas nestes campos pedregosos. Foi isso que fui aprender em Shiz, lembra-se? ― agricultura. Pus o melhor dos meus esforços nas nossas pequenas propriedades, e só conseguimos ganhar a vida com dificuldade.”

Mas ele parecia era orgulhar-se disso, e Milla também.

“E acho que você tem algumas Vacas em seu estábulo”, disse a Bruxa.

“Oh, como você é irritável. Claro que não. Você acha que eu esqueci aquilo pelo que trabalhávamos ― você e Crope e Tibbett e eu? Foi o ponto alto de uma vida muito parada.”

“Você não tinha de ter uma vida parada, Boq”, disse a Bruxa.

“Não seja superior. Eu não disse que lamentava isso, não lamento a agitação de uma campanha justificada nem o consolo de uma família e uma fazenda. Será que fizemos alguma coisa boa naquela época?”

“Se nada fizemos”, disse a Bruxa, “ao menos ajudamos o Doutor Dilla­mond. Ele estava muito sozinho em seu trabalho, você sabe. E a base filo­sófica para a resistência nasceu de sua hipótese pioneira. Suas descobertas sobreviveram a ele; ainda sobrevivem.” Ela não mencionou seus próprios ex­perimentos com os macacos alados. Suas aplicações práticas derivavam das teorias do Doutor Dillamond.

“Não tínhamos idéia de que estávamos no fim de uma era de ouro”, Boq disse, suspirando. “Qual foi a última vez que você viu um Animal exercendo profissões?”

“Ah, não me deixe nervosa”, a Bruxa disse. Ela não conseguia ficar sentada.

“Você se lembra, você guardou aquelas anotações do laboratório do Doutor Dillamond. Você, na verdade, nunca me deixou saber de que se tra­tava. Você fez algum uso delas?”

“Com suas pesquisas, aprendi o bastante para continuar questionando”, disse a Bruxa, mas sentia-se bombástica, e queria parar de conversar. Esse assunto a deixava triste e desesperada demais. Milla notou isso e, com uma brusca compaixão, declarou: “Esses tempos já passaram, e bons ventos os levem, também. Estamos inapelavelmente animados. Agora somos a geração das cinturas grossas, puxando nossos filhos e carregando nossos pais nas costas. E estamos no comando, enquanto as figuras que estavam habituadas a exigir respeito de nossa parte estão desaparecendo”.

“O Mágico não desaparece”, disse a Bruxa.

“Bem, Madame Morrible sim”, disse Milla. “Ou foi o que Shenshen me contou na sua última carta.”

“Oh?”, disse a Bruxa.

“Sim, é isso mesmo”, disse Boq. “Embora de seu leito de agonia Madame Morrible continue a orientar o Imperador Mágico em questões de planos de ação para a educação. Estou surpreso que Glinda não tenha mandado Doro­thy para Shiz para estudar com Madame Morrible. Em vez disso, mandou-a diretamente para a Cidade Esmeralda.”

A Bruxa não conseguiu visualizar Dorothy, mas por um momento ela viu a figura curvada de Nor. Ela viu uma multidão de garotas como Nor, em correntes e cangas, perambulando em torno de Madame Morrible do mesmo modo que aquelas estudantes tinham feito, todos aqueles anos atrás.

“Elfinha, sente-se novamente, você não parece bem”, disse Boq. “É uma ocasião difícil para você. Acho que estou lembrando, você não se dava bem com Nessarose.”

Mas a Bruxa não queria pensar em sua irmã. “É um nome mais para feio, Dorothy”, ela disse. “Vocês não acham?” Ela se sentou pesadamente, e Boq relaxou num tamborete pouco distante.

“Eu não sei”, ele disse. “Na verdade, tivemos uma conversa sobre isso. Ela disse que o Rei de sua terra natal era um homem chamado Theodore. Seu professor explicou que o nome significava Dádiva de Deus, e que isso era um sinal de que ele estava preparado para ser Rei ou Primeiro-Ministro. Dorothy observou que Dorothy era uma espécie de Theodore de trás pra frente, mas o professor pensou e disse não: Dorothy significa Deusa das Dádivas.”

“Bem, eu sei o que ela pode me dar”, disse a Bruxa. “Ela pode me dar meus sapatos. Você estava tentando dizer que pensava que ela era uma dádiva de Deus, ou que ela é alguma espécie de rainha ou deusa? Boq, você não era dado a embarcar em superstições.”

“Não estou dizendo nada desse tipo. Estou conversando sobre deriva­ções de palavras”, ele respondeu calmamente. “Deixo a outros mais iluminados que eu a tarefa de deslindar os significados ocultos da vida. Mas eu acho interessante que o nome dela se pareça tanto com o nome de seu rei.”

Milla disse: “Bem, eu acho que ela é uma garotinha santa, comum e santificada exatamente como toda criança é, nem mais nem menos. Yellow­gage, tire suas patas dessa torta de limão, posso te ver daqui, ou te dou uma surra de agora até a eternidade. Essa Dorothy me fez pensar em como Ozma poderia ser, ou poderá ainda ser, se acordar do profundo sono ao qual dizem que foi levada por um feitiço”.

“Ela parece um pequeno horror”, disse a Bruxa. “Ozma, Dorothy ― toda essa conversa sobre crianças messiânicas. Eu sempre detestei isso.”

“Você sabe o que é?”, disse Boq, pensando cuidadosamente. “Já que es­tamos falando sobre os velhos tempos, agora me vem à memória... Será que você se lembra daquela pintura medieval que eu achei uma vez na biblioteca do Três Rainhas? Aquela com a figura feminina embalando o animal? Havia uma espécie de ternura e horror naquela pintura. Bem, há algo em Dorothy que me faz pensar naquela figura inominada. Você pode até mesmo batizá-la de Deusa Inominada ― será que é sacrilégio ou algo assim? Dorothy tinha a mesma terna compaixão por seu cachorro, um belo animalzinho horrível. E o cheiro? Você não acreditaria em como era repugnante. Uma vez ela colocou o cão em seus braços e se curvou, cantarolando, para ele, na mesma pose que vimos na figura medieval. Dorothy é uma criança, mas ela tem a seriedade de porte de um adulto, e uma gravidade que você não encontra nos jovens em geral. Ela é muito digna. Elfinha, fiquei encantado com ela, para dizer a verdade.” Ele quebrou algumas nozes e macarandas do leste, e passou-as para todos. “Tenho certeza que você vai ficar também.”

“Eu gostaria de evitá-la a todo custo, só por saber disso”, disse a Bruxa. “A última coisa pela qual estou disposta a me encantar, ultimamente, é a pu­reza juvenil. Mas eu insisto em recuperar o que é de minha propriedade.”

“Os sapatos são muito mágicos, não?”, disse Milla. “Ou isso é apenas simbólico?”

“Como posso saber?”, disse a Bruxa. “Eu nunca os usei. Mas se eu pu­desse pegá-los e se eles pudessem me levar para longe desta vida incerta, eu não acharia ruim.”

“De qualquer forma, todo mundo acusava os sapatos de serem os responsáveis pela tirania de Nessa. Eu acho que foi sensato Glinda tê-los afastado da Terra de Munchkin. A menina está contrabandeando-os para o estrangeiro sem nem mesmo saber.”

“Glinda mandou a garota para a Cidade Esmeralda”, disse a Bruxa, luci­damente. “Se o Mágico se apoderar deles, será uma licença para marchar sobre a Terra de Munchkin. E vocês são tolos de ficar em cima do muro, como se não fizesse diferença alguma o que ele faz ou não.”

“Você ficará para alguma coisa, ao menos para um chá”, disse Milla, pro­curando esfriar a discussão. “Olhe, eu pedi para Clarinda preparar as panelas, e temos creme de açafrão. Lembra-se da festa de creme de açafrão depois do funeral de Ama Clutch?”

A Bruxa suspirou pesadamente, por um momento; havia uma dor em seu esôfago. Ela não gostava de lembrar daqueles tempos difíceis. E Glinda sabia muito bem que Madame Morrible estava por trás da morte de Ama Clutch. Agora, como Lady Glinda, ela era parte da mesma classe dominante. Era he­diondo. E Dorothy, fossem quais fossem as suas origens, era ainda apenas uma criança, e eles estavam usando-a para ajudar a Terra de Munchkin a ficar livre daqueles malditos sapatos totêmicos. Ou para levar os sapatos para o Mágico. Tal como Madame Morrible tinha usado suas estudantes como Adeptas.

“Eu não posso ficar aqui papeando como uma idiota”, ela gritou, assus­tando-os, derrubando a tigela de nozes no chão. “Não perdemos tempo o suficiente na escola conversando entre nós mesmos até morrer?” Ela apanhou a vassoura e o chapéu.

Boq olhou-a perplexo e quase caiu para trás de sua cadeira. “Bem, Elfi­nha, por que você está se ofendendo?”

Ela estava além de respostas. Girou num pequeno ciclone feito de saias e lenços negros, e saiu pela estrada.

Seguiu a pé, apressadamente, pela Estrada dos Tijolos Amarelos, mal percebendo que um plano estava se desenhando em sua mente. Mas ela pensa­va com tanta intensidade que, por um momento, esqueceu-se completamente de que carregava a sua vassoura, e foi apenas quando parou para descansar, e se apoiou nela, que se deu conta disso.

Boq, Glinda, mesmo seu pai, Frex: como eles pareciam decepcionantes agora. Essas pessoas tinham decaído em suas qualidades desde a juventude, ou não teria sido ela ingênua demais para vê-los do jeito que realmente eram? Sentia desgosto das pessoas, e ansiava por voltar para casa. Ela estava abor­recida demais para procurar alojamento numa taberna ou num boteco. Mas fazia calor o bastante para que pudesse ficar ao relento e descansar.

Ela se estendeu à margem de um campo de cevada. A lua surgiu, enorme como às vezes fica ao aparecer no horizonte. Iluminou uma estaca com uma barra cruzada, que se erguia como se esperasse um corpo para crucificar, ou um espantalho para pendurar.

Por que ela não unira forças com Nessarose, e erguera exércitos contra o Mágico? Velhos ressentimentos de família tinham obstruído o caminho.

Nessarose pedira sua ajuda para governar a Terra de Munchkin, e a Bruxa recusara. Em vez disso, retornara a Kiamo Ko por aqueles sete anos. Ela desperdiçara a oportunidade de juntar forças com sua irmã.

Virtualmente, toda campanha que ela empreendera por si mesma havia terminado em fracasso.

Ela se contorceu à luz da lua e, à meia-noite, torturada pelas reflexões sobre a morte de Nessa ― o fato concreto de ter sido espremida feito um inseto finalmente tomando uma forma imaginária nas fantasias da Bruxa ―, ela se ergueu e pegou um novo caminho. Dorothy sem dúvida tomaria a Es­trada dos Tijolos Amarelos para a Cidade Esmeralda, e alguém tão exótica como ela poderia ser facilmente localizada ao longo do trajeto. A Bruxa iria e tentaria realizar a missão que traçara para si mesma havia quinze anos. Madame Morrible ainda esperava por ser morta.

 

Shiz agora era uma fábrica de dinheiro. Os Colégios, ocupando um distrito histórico, permaneciam em grande parte inalterados, exceto por algum dormitório mais moderno e edifícios vistosamente atléticos. Fora do distrito universitário, contudo, Shiz havia prosperado com a economia de guerra. Um enorme monumento em bronze e mármore, o Espírito do Império, dominava o que restava da Praça da Estação, e o espaço circundante era recortado por pesados edifícios industriais, vomitando negras colunas de poluição no ar. A pedra azul agora era pedra sombria. O próprio ar parecia quente e grave ― as dez mil exalações de uma cidade que arfava sem parar para aumentar a sua riqueza. As árvores estavam murchas e cinzentas. E não havia um só Animal à vista.

Crage Hall parecia absurdamente mais velha e mais nova ao mesmo tempo. A Bruxa preferiu não incomodar o porteiro, e voou para o muro da horta da cozinha, onde uma vez Boq despencara de um telhado adjacente, praticamente em seu colo. O gramado atrás do pomar desaparecera, e em seu lugar erguia-se uma estrutura de pedra, sobre cujas portas brilhantes estava gravado CONSERVATÓRIO DE MÚSICA E ARTES TEATRAIS DE SIR CHUFFREY E LADY GLINDA.

Três garotas desceram apressadas pelo pavimento, tagarelando, car­regando os livros junto ao peito. Elas deram um susto na Bruxa, como se fossem fantasmas de Nessarose, Glinda e dela mesma. Ela teve de se segurar na vassoura e se firmar. Não levava em conta a distância que percorrera, mas o quanto estava velha.

“Preciso ver a Diretora”, ela disse, assustando-as.

Mas uma delas recobrou sua autoconfiança juvenil e indicou o caminho. O escritório da Diretora era ainda na Sala Principal. “Você a encontrará lá”, elas disseram. “Ela está sempre lá nesta hora da manhã, tomando chá sozinha ou com os contribuintes.”

A segurança deve andar muito afrouxada, já que nenhuma delas sequer questiona minha presença na horta da cozinha, pensou a Bruxa. Tanto me­lhor; eu posso até fugir sem ser detida.

A Diretora tinha um secretário agora, um rechonchudo cavalheiro ido­so com um cavanhaque. “Ela não está esperando você?”, ele disse. “Verei se ela está livre.” Ele voltou e disse: “Madame Morrible vai recebê-la agora. Quer deixar sua vassoura no suporte de guarda-chuvas, por favor?”

“Que amável. Não, obrigada”, disse a Bruxa, e entrou.

A Diretora ergueu-se de uma poltrona de couro. Ela não era mais Mada­me Morrible; era uma mulherzinha rosada com cachos cor de cobre e modos voluntariosos. “Eu entendi seu nome?”, ela disse, polidamente. “Você é uma garota velha, mas eu sou uma nova” ― ela riu de sua própria espirituosidade, mas a Bruxa não ― “e temo não ter ainda entendido: dúzias de velhas garotas voltam todo mês para reviver os momentos prazerosos da formação que tive­ram aqui. Por favor, diga-me o seu nome e eu pedirei um chá para nós.”

Com algum esforço, a Bruxa disse: “Eu era chamada de Senhorita El­phaba quando estudava aqui, há mais anos do que eu julgava possíveis. Na verdade não vou tomar chá, não posso ficar muito tempo. Fui mal informada. Eu esperava encontrar Madame Morrible. Você sabe de seu paradeiro?”.

“Bem, isso é boa ou má sorte?”, disse a atual Diretora. “Até bem recente­mente, ela passava parte de cada semestre na Cidade Esmeralda, em reuniões com Sua Alteza em pessoa, sobre políticas educacionais a serem implantadas em toda a Oz Leal. Mas ela retornou recentemente a seu retiro no Asilo ― sinto, é uma piada das garotas e me escapou. É chamado o Edifício da Filha, na verdade, já que foi financiado pelas generosas filhas de Crage Hall, nossas alunas. Veja, a saúde dela piorou, e ― embora eu deteste ser portadora de más novas ― acho que ela está muito perto do fim.”

“Eu gostaria de dar uma passadinha e dizer um alô”, disse a Bruxa. Fingir nunca combinara com ela, e era só porque a nova Diretora era tão jovem, tão tola, tão garota ela mesma, que a Bruxa pôde executar a coisa. “Fui uma grande favorita dela, você sabe; eu acho que lhe faria uma surpresa maravilhosa.”

“Vou chamar Grommetik para levá-la até lá”, disse a Diretora. “Mas devo chamar a enfermeira de Madame Morrible primeiro para saber se ela está disponível para uma visita.”

“Não chame o Grommetik, eu posso encontrar o caminho. Eu conver­sarei com a enfermeira, e só vou ficar um tempinho. E então voltarei para cá antes de partir, prometo, e talvez eu possa verificar se posso fazer uma contribuição ao fundo anual, ou para alguma campanha de arrecadação que vocês estejam promovendo.”

Recordando bem, ela nunca havia mentido em sua vida.

 

O Asilo era uma grande torre redonda, como um silo atarracado, ergui­do ao lado da capela na qual fora feito o panegírico do Doutor Dillamond. Um ajudante, que passava com baldes e vassouras, disse à Bruxa que Madame Morrible estava no andar de cima, atrás da porta coberta pelo estandarte do Mágico.

Um minuto depois a Bruxa estava diante do estandarte. Um balão com um cesto, comemorando sua chegada espetacular à Cidade Esmeralda, e es­padas cruzadas logo abaixo. De alguns pés de distância, o estandarte parecia uma enorme caveira, e o cesto um queixo torto, e as espadas cruzadas um X de proibido. A maçaneta virou com um puxão, e ela entrou nos apartamentos.

Havia vários quartos, todos abarrotados de lembranças da escola e re­líquias de estima de várias instituições da Cidade Esmeralda, incluindo o Palácio do Imperador. A Bruxa passou por uma espécie de sala de visitas, com uma lareira acesa a despeito do calor da estação, e uma área de copa e cozinha. A um lado havia um sanitário, e a Bruxa ouviu o som de alguém soluçando, e o assoar de um nariz. A Bruxa empurrou uma cômoda contra a porta, e avançou por um quarto de dormir.

Madame Morrible estava estendida no meio de uma enorme cama em formato de fênix. A cabeça e o pescoço de uma fênix entalhada em ouro emergiam da cabeceira, e as laterais da cama simulavam as asas do pássaro. A idéia das plumas da cauda aparentemente não ocorrera à ingenuidade do marceneiro, pois não havia nenhuma. Era apenas um pássaro numa posição desajeitada, na verdade, como se houvesse sido abatido no ar por algum tiro, ou como se estivesse se esforçando de uma maneira humana para se libertar da grande massa de carne que pesava sobre seu estômago e se reclinava sobre seu peito.

No chão havia uma pilha de jornais de negócios, e um par de óculos fora de moda estava em cima dela. Mas o tempo para leitura estava acabado.

Madame Morrible repousava num monte cinzento, suas mãos dobra­das sobre a barriga, e seus olhos estavam abertos e rasos, imóveis. Ela ainda se parecia com uma Carpa descomunal em tudo, exceto no cheiro de peixe ― uma vela fora acesa havia tão pouco tempo que o mau cheiro do enxofre da mecha ainda pairava no quarto.

A Bruxa puxou a sua vassoura. Do outro aposento vinha o som do bater da porta do sanitário. “Você pensou que ficaria para sempre a salvo escon­dendo-se por trás de jovens estudantes?”, disse a Bruxa, além de si mesma, além de qualquer precaução, e ergueu sua vassoura. Mas Madame Morrible era apenas um corpo inerte, indiferente.

A Bruxa atingiu Madame Morrible com a ponta da vassoura, ao lado da cabeça e no rosto. Não deixou marcas. Então, a Bruxa pegou no consolo da lareira um troféu de reconhecimento com a maior base de mármore possível, e bateu pesadamente com ele no crânio de Madame Morrible, produzindo um som que lembrava o de lenha sendo rachada.

Ela deixou o troféu nos braços da velha mulher. Sua inscrição podia ser lida por todos, exceto pela fênix entalhada que a olharia de ponta-cabeça. EM RECONHECIMENTO A TUDO QUE A SENHORA FEZ, ela dizia.

 

A Bruxa esperara quinze anos por esse momento, mas o tempo de execu­ção não durou mais que cinco minutos. Assim, a tentação de voltar e arrebentar Grommetik foi intensa. Mas a Bruxa resistiu. Ela não se importava de ser condenada e executada pelo espancamento do corpo de Madame Mor­rible, mas não queria ser presa por causa da vingança contra uma máquina.

Ela tomou uma refeição num café e deu uma olhada nos tablóides. Daí, saiu a vagar pelo distrito comercial. Nunca dada a quinquilharias, ela estava intensamente aborrecida, mas queria ouvir falar sobre a morte de Madame Morrible. Ela esperava pelas notícias, naturalmente. E desconfiava que nunca voltaria a Shiz nem a qualquer outra cidade. Era a sua última chance de ver a Oz Leal em ação.

Mas, conforme a tarde foi se esvaindo, ela começou a se preocupar. E se tivesse havido um ocultamento? E se a atual Diretora, para evitar escândalo, tivesse feito silêncio quanto à notícia da agressão? Especialmente de um crime contra alguém tão próximo ao Imperador? A Bruxa começou a se irritar com a idéia de que lhe negariam crédito pelo seu ato. Ela se esforçou por lembrar de alguém a quem pudesse se confessar, alguém que na certa comunicaria o fato rapidamente às autoridades. Que tal Crope, ou Shenshen, ou Pfannee? Ou, para aquele caso específico, o Margrave de Dez Campos, o nojento Avaric?

A casa citadina do Margrave se situava no parque dos cervos, nas proxi­midades de Shiz. Era tarde avançada quando ela chegou ao Jardim do Impera­dor, como era agora chamada. Residências particulares iam ficando obsoletas com o progresso, cada uma delas protegida por sua própria força de segu­rança, muros altos cobertos com cacos de vidro, cães ferozes. A Bruxa tinha jeito para lidar com cães e muros altos não a intimidavam. Ela escalou o muro tranqüilamente, descendo num terraço, onde uma criada inclinada sobre uma cama de flores estampadas teve um faniquito e desmaiou ali mesmo. A Bruxa encontrou Avaric em seu escritório, assinando alguns documentos com uma caneta de pluma imponente, e bebericando um pouco de uísque cor de mel num copo de cristal. “Eu já disse que não vou sair para coquetéis, você faça o que quiser, não me escuta?”, ele começou a falar, mas aí ele viu quem era.

“Como foi que você entrou aqui sem ser anunciada?”, ele disse. “Eu co­nheço você. Não conheço?”

“Claro que sim, Avaric. Sou a garota verde de Crage Hall.”

“Oh, sim. Qual era o seu nome mesmo?”

“Meu nome era Elphaba.”

Ele acendeu uma lâmpada ― a tarde estava escurecendo, ou talvez fican­do nublada agora ― e eles se entreolharam. “Sente-se, então. Suponho que, se a sociedade arromba a porta do escritório de alguém, este fica privado dos direitos de rejeitá-la. Toma um drinque?”

“Um pequenininho.”

Diferente de todos, ele, que tinha sido bonito demais para crer, ficara mais bonito ainda. Usava o cabelo puxado para trás; este se conservava belo e farto, da cor de uma moeda polida, e ele claramente tivera o benefício de uma vida de exercício e repouso, pois sua figura era forte e delgada, sua postura ereta, sua cor saudável. Os que nascem com vantagens sabem como capitaliza­-las, observou a Bruxa, depois de seu primeiro gole.

“A que devo esta honra?”, ele disse, sentando-se diante dela com um drinque recém-feito em suas mãos. “Ou é o mundo inteiro que está fazendo reprises hoje?”

“O que você quer dizer com isso?”

“Eu fiz uma caminhada ao meio-dia”, ele disse, “no parque, com meus guarda-costas, como de hábito. E me aproximei de um espetáculo carnava­lesco que vi lá. Vai abrir amanhã, acho, e o parque ficará lotado de estudantes inteligentes, criadas domésticas e operários de fábrica, e com famílias gordu­rentas e tagarelas do Pequeno Glikkus. Havia lá o elenco habitual de crianças atraídas pela atração de um bom ato circense, a maior parte adolescentes procurando se virar, sem dúvida em fuga a famílias aborrecidas e pequenas cidades provincianas. Mas o sujeito que estava no comando era um pequeno anão sanguinário.”

“Como assim, sanguinário?”, perguntou a Bruxa.

“Eu quero dizer agressivo, me perdoe pela gíria. Todo mundo já viu anões, não é essa a questão. É que eu tinha visto esse mesmo anão em algum lugar. Eu o reconheci como alguém de tempos atrás.”

“Fantástico, isso.”

“Bem, eu não teria pensado mais nisso, mas então você me aparece nesta tarde, vinda mais ou menos da mesma região da memória. Você também não esteve lá? Você não foi conosco ao Clube de Filosofia naquela noite, quando ficamos tão bêbados, e eles ofereciam lá aquela coisa de encantamento sexual, e o efeminado Tibbett ficou tão fascinado e perdeu o juízo e o resto quando o Tigre...? Você estava lá, com certeza.”

“Eu não acho que estava.”

“Não estava? Boq estava, o pequeno esfarrapado Boq, e Pfannee e Fiye­ro, eu acho, e alguns outros. Você não se lembra? Havia lá uma velha megera chamada Yackle, e o anão, e eles nos deixaram entrar, e eram tão sinistros! De qualquer forma, não importa ― é apenas...”

“Yackle não”, disse a Bruxa. Ela pôs seu drinque de lado. “Isso é loucu­ra, meus ouvidos estão tendo alucinações. Todo mundo tem razão, eu sou paranóica. Não, Avaric, eu me recuso a admitir que você recorde o nome de alguém por uns vinte anos assim.”

“Ela era uma cigana calva com uma peruca, e olhos meio castanhos, grudada com o anão. Eu não sei como ele se chamava. Por que é que eu me lembraria disso?”

“Você não se lembrava do meu nome.”

“Você não me assusta muito. Na verdade, você nunca me assustou.” Ele riu. “Eu era provavelmente um chato para você. Eu era um cuzão, naquela época.”

“Você ainda é.”

“Bem, a prática leva à perfeição, e mais de uma vez fui chamado de um perfeito cuzão.”

“Eu vim para lhe dizer que matei Madame Morrible hoje”, disse a Bruxa. Ela estava tão orgulhosa daquela frase; parecia menos falsa quando dita em voz alta. Talvez fosse verdadeira. “Eu a matei. Eu queria encontrar alguém que ficasse sabendo isso.”

“Oh, por que você fez isso?”

“Você sabe, os motivos se juntam de formas diferentes a cada vez que penso neles.” Ela se sentou com um pouco mais de firmeza. “Porque ela me­recia.”

“O Anjo Vingador da Justiça agora é verde?”

“Um disfarce bem eficiente, você não acha?” Os dois riram.

“Então, vamos falar dessa Madame Morrible, que você afirma ter assas­sinado? Você sabia que ela convocou os seus amigos e associados e passou-nos um pequeno sermão quando você fugiu?”

“Você nunca foi meu amigo.”

“Eu estava perto demais para ser desconsiderado. Eu me lembro da si­tuação. Nessarose estava mortificada e despedaçada pela coisa toda. Madame Morrible pegou seus boletins e traçou para nós um perfil completo de seu caráter tal como avaliado por seus vários professores. Fomos advertidos sobre a sua natureza ferina, sua marginalidade, que palavras mesmo eles usaram? Eu não consigo me lembrar disso, não foram palavras memoráveis. Mas ela nos disse que você poderia tentar nos aliciar para alguma espécie de esforço juvenil de deflagrar algum tipo de rebelião estudantil. Dizia para evitarmos você a qualquer custo.”

“E Nessarose estava mortificada, bem, faz sentido”, disse a Bruxa so­turnamente.

“Glinda também”, disse Avaric. “Ela entrou em outra depressão, igual àquela em que entrara depois que o Doutor Dillamond caiu sobre suas lentes de aumento...”

“Oh, por favor, essa mentira podre de velha continua circulando?”

“... oh, tudo bem, foi brutalmente assassinado por bandoleiros desconhe­cidos, escolha o que achar melhor. Bandoleiros na visão de Madame Morrible, é o que você supõe que eu queira dizer. Então, por que na verdade você fez isso?”

“Madame Morrible tinha uma escolha. Ninguém estava em posição melhor que ela para decidir que suas estudantes tivessem uma educação e não uma lavagem cerebral. Por estar submetida à Cidade Esmeralda, ela en­ganou todas as suas estudantes que acreditavam que uma educação liberal significava pensar por si mesmas. Além disso, era um demônio vil, e conspirou mesmo para que o Doutor Dillamond fosse assassinado. Não importa o que você diga.”

Mas a Bruxa se interrompeu, ouvindo em suas próprias palavras sobre Madame Morrible ― ela tinha uma escolha ― um eco do que a Princesa Alia Nastoya lhe dissera certo dia: Ninguém controla o seu destino. Mesmo na pior situação ― sempre há uma escolha.

Avaric estava se animando. “E você a matou. Duas coisas erradas não fa­zem uma certa, como nós, garotos, costumávamos entoar no parque, em geral quando estávamos no chão com o joelho de alguém em nossa virilha. Por que você não fica para a refeição? Temos convidados, uma turma inteligente.”

“Para que você possa chamar a polícia? Não, obrigada.”

“Não vou chamar a polícia. Você e eu, nós estamos acima desse tipo de justiça presunçosa.”

A Bruxa acreditou nele. “Tudo bem”, ela disse. “Com quem você está casado, a propósito? Você se casou com Pfannee, ou Shenshen, ou alguma outra? Não consigo lembrar.”

“Com uma qualquer”, disse Avaric, derramando mais um dedo de uísque no copo. “Não consigo guardar pequenos detalhes em minha cabeça, nunca consegui.”

 

A despensa do Margrave era abundante, seu cozinheiro um gênio, e sua adega de vinhos incomparável. Os convivas mergulharam em caracóis com alho, crista assada de galinha silvestre com coentro e molho de laranjinhas, e a Bruxa se permitiu um suntuoso reforço de torta de limão com creme de aça­frão. Os copos de cristal não ficaram vazios por um só momento. A conversa foi exaltada e insensata, e quando o Margrave conduziu-os às confortáveis cadeiras na sala de visitas, o aplique de reboco do teto parecia girar como a fumaça do cigarro.

“Nossa, você está vermelha”, disse Avaric. “Você deve ter sido uma bê­bada o tempo todo, Elphaba.”

“Não estou certa de que o vinho tinto combine comigo”, ela disse.

“Você não está em condições de ir a parte alguma. A criada vai arrumar um dos quartos dos fundos. É adorável, há uma vista direta para o pagode na ilha.”

“Eu não ligo para vistas desse tipo.”

“Você não quer esperar até chegarem os jornais de manhã para ver se fizeram a coisa certa? Se trazem a notícia completa?”

“Pedirei que você me mande um. Não, eu tenho de ir, sinto necessidade de um pouco de ar fresco. Avaric ― Madame ― amigos ― foi uma surpresa e suponho um prazer”. Mas ela se sentiu ressentida ao dizer isso.

“Um prazer para alguns”, disse a Margravesa, que não tinha aprovado a conversa. “Acho impróprio falar sobre o mal durante uma refeição. Estraga a digestão.”

“Oh, mas que coisa”, a Bruxa disse, “será que é só na juventude que temos coragem de propor a nós mesmos essas sérias questões?”

“Bem, eu me apego à minha sugestão”, disse Avaric. “O mal não é fazer coisas más, é sentir-se mal depois de fazê-las. Não há um valor absoluto para reger o comportamento. Primeiro de tudo...”

“Inércia institucional”, sustentou a Bruxa. “Mas qual é a grande atração do poder absoluto, de qualquer forma?”

“É o que alego ser apenas uma aflição do espírito, como a vaidade ou a ganância”, disse um magnata do cobre. “E todos sabemos que a vaidade e a ganância podem produzir alguns espantosos resultados nos negócios huma­nos, nem todos condenáveis.”

“É uma ausência do bem, só isso”, disse seu caso de amor, uma tia ago­nizante que trabalhava para o Informativo de Shiz. “A vocação do mundo é ser plácido, e realçar e apoiar a vida, e o mal é uma ausência dessa índole da matéria para ficar em paz.”

“Porcaria”, disse Avaric. “O mal é uma fase inicial ou primitiva da evo­lução moral. Todas as crianças são demoníacas por natureza. Os criminosos entre nós são apenas aqueles que não evoluem...”

“Eu acho que é uma presença, não uma ausência”, disse um artista. “O mal é um personagem encarnado, um incubo ou um súcubo. É um outro. Não é nós.”

“Nem mesmo eu?”, disse a Bruxa, interpretando seu papel com mais vigor do que esperava. “Uma criminosa confessa?”

“Oh, vamos lá, você”, disse o artista, “todos nós nos mostramos em nosso melhor ângulo. É apenas a vaidade natural.”

“O mal não é uma coisa, não é uma pessoa, é um atributo, como a beleza.”

“É um poder, como o vento...”

“É uma infecção...”

“É metafísico, essencialmente; a corruptibilidade da criação...”

“Ponha a culpa no Deus Inominável, então.”

“Mas o Deus Inominável criou o mal intencionalmente, ou foi apenas um erro da criação?”

“Não é coisa do éter e da eternidade, o mal; é coisa terrena; é física, um descompasso entre nossos corpos e nossas almas. O mal é estupidamente corpóreo, são os seres humanos causando dor uns aos outros, nem mais nem menos...”

“Eu gosto da dor, se fecharem minha boca com uma tira de couro e amarrarem meus punhos por trás...”

“Não, vocês todos estão errados, nossa religião de infância estava certa: o Mal é moral em sua essência ― a escolha do vício em vez da virtude; vocês po­dem fingir não saber, podem racionalizar, mas o sentem em sua consciência...”

“O mal é um ato, não um desejo. Quantos já não desejaram esquartejar a garganta de algum cretino com quem estejam sentados à mesa de jantar? O grupo aqui presente está excluído, é claro. Todos têm o desejo. Se você cede a ele, isto, esse ato é o mal. O desejo é normal.”

“Oh, não, o mal é reprimir esse desejo. Eu nunca reprimo desejo algum.”

“Eu não suporto essa conversa em minha sala de visitas”, disse a Mar­gravesa, quase em lágrimas. “Vocês estão se comportando a noite toda como se uma mulher idosa não houvesse sido massacrada nos lençóis de sua cama. Ela não tinha uma mãe também? Ela não tinha uma alma?”

Avaric bocejou e disse: “Vocês são tão ternos e ingênuos. Quando não é embaraçoso, é tão charmoso”.

A Bruxa se levantou, sentou-se rapidamente, e levantou-se de novo, ajudada por sua vassoura.

“Por que você fez isso?”, perguntou o anfitrião com espírito.

A Bruxa deu de ombros. “Por divertimento? Talvez o mal seja uma forma de arte.”

Mas, ao caminhar tropegamente para a porta, ela disse: “Sabem, vocês são um bando de tolos. Vocês deviam ter-me afastado em vez de me entre­terem a noite toda.”

“Você nos entreteve”, disse Avaric liberal e galantemente. “Este acabará sendo o jantar festivo mais importante da temporada. Mesmo que você tenha mentido a noite toda sobre haver assassinado essa velha mestra anacrônica. Que farra.” Os convidados do jantar aplaudiram-na alegremente.

“A verdadeira coisa sobre o mal”, disse a Bruxa junto à porta, “não é nada do que vocês disseram. Vocês percebem um lado dele ― o lado humano, digo ― e o lado eterno fica na sombra. Ou vice-versa. E como o velho provérbio: Com que parece um dragão dentro da casca? Bem, ninguém pode dizer, pois assim que se quebra a casca para ver, o dragão não está mais lá. A verdadeira desgraça dessa questão é que é da natureza do mal o ser secreto.”

 

A lua estava no céu outra vez, um pouco menos dilatada que na noite an­terior. A Bruxa não confiava em si mesma para subir em sua vassoura, e assim vagueou em ziguezague pelo gramado. Ela queria achar um lugar para tirar uma soneca longe da claustrofobia de um ambiente de sociedade.

Aproximou-se da construção de que Avaric havia falado. Era uma velha, primitiva coisa tiquetaqueante, uma espécie de monumento portátil feito de madeira entalhada e estatuetas, variadas e numerosas demais para que a Bruxa as compreendesse nesta noite. Talvez houvesse uma tábua estendida debaixo da qual ela pudesse descansar, uma plataforma elevada poucas pole­gadas acima do chão úmido. Ela examinou e foi em frente.

“E aonde você pensa que vai?”

Um munchkinês, não, um anão, se interpôs em seu caminho. Ele tinha um porrete numa mão, e batia forte com ele na palma de couro espesso da outra.

“Vou dormir, quando puder”, ela disse. “Então, você é o anão, e esta é a coisa de que Avaric falou.”

“O Relógio do Dragão do Tempo”, ele disse, “aberto para função amanhã à noite, e não antes.”

“Estarei morta e desaparecida amanhã à noite”, ela disse.

“Não, não estará”, ele respondeu. .

“Bem, desaparecida, ao menos.” Ela olhou para ele e se aprumou, e então alguma coisa lhe voltou à memória. “Eu fico imaginando como foi que você conheceu Yackle”, ela disse.

“Oh, Yackle”, ele disse. “Quem não conhece Yackle? Não é tão grande surpresa.”

“Ela foi assassinada hoje?”, disse a Bruxa. “Por algum acaso?”

“De jeito nenhum”, ele respondeu.

“Quem é você?” Ela estava com medo, subitamente, depois de toda essa torrente de dor e violência.

“Oh, o menos significativo dos pequenos”, ele disse.

“Para quem você trabalha?”

“Para quem já não trabalhei?”, disse o anão. “O demônio é um anjo muito grande, mas é um homem muito pequeno. Mas eu não tenho nome neste mundo, portanto, não se importe comigo.”

“Estou bêbada e desalinhada”, ela disse, “e não agüento mais tanto enig­ma. Eu matei alguém hoje, eu posso matar você também.”

“Você não a matou, ela já estava morta”, disse o anão calmamente. “E você não pode me matar, pois sou imortal. Mas você anda penando demais nesta vida, e assim eu vou lhe dizer isto. Eu sou o guardião do livro, e eu fui trazido a esta terra apavorada e desamparada para acompanhar e vigiar a história do livro, para impedi-lo de voltar para o lugar de onde veio. Eu não sou bom, eu não sou mau; mas estou preso aqui, condenado a uma vida sem morte para proteger o livro. Eu não me importo com o que aconteça a você ou a qualquer outra pessoa, mas protejo o livro: é a minha incumbência.”

“O livro?” Ela lutava para entender; sentia-se mais embriagada quanto mais ouvia o relato.

“O que você chama de Livro das Sombras. Ele tem outros nomes ― não importa.”

“Então, por que você não o leva com você, por que você não o tem?”

“Eu não trabalho desse modo. Eu sou o parceiro silencioso. Eu trabalho através dos acontecimentos, eu vivo em segundo plano, eu me dedico a causas e efeitos, eu observo como as mal planejadas criaturas deste mundo vivem suas vidas. Eu interfiro apenas para manter o livro a salvo. Até certo ponto, eu posso ver o que está por vir, e, dentro deste limite, eu me intrometo nas coisas dos homens e dos animais.” Ele dançou como um pequeno demônio. “Você me vê aqui, você me vê ali. Dar uma segunda olhada é uma grande vantagem em casos de segurança.”

“Você trabalha com Yackle?”

“Nós dois às vezes temos as mesmas intenções e às vezes não. Os inte­resses dela parecem ser diferentes dos meus.”

“Quem é ela? Qual é o interesse dela? Por que você fica rondando às margens de minha vida?”

“No mundo de onde venho, há anjos da guarda”, disse o anão, “mas, até onde posso compreender, ela é um número oposto, e sua preocupação é você.”

“Por que mereço um tal demônio? Por que minha vida é tão amaldiçoa­da? Quem a autorizou a influir em minha vida?”

“Há coisas que eu não sei e coisas que eu sei”, disse o anão. “A quem Yackle serve, se for alguém, se for alguma coisa, está além da minha área de conhecimento ou interesse. Mas, por que você foi escolhida? Você deve procu­rar saber isso. Pois você” ― o anão falava num tom claro e improvisado ― “não é nem isto nem aquilo ― ou devo dizer que é as duas coisas, isto e aquilo? Tanto de Oz quanto do outro mundo. Seu velho Frex sempre esteve enganado; você nunca foi uma punição para os erros que ele cometeu. Você é uma espécie mista, você é uma nova espécie, você é um membro enxertado, você é uma perigosa anomalia. Você sempre foi atraída pelas criaturas compósitas, pelos quebrados e desconjuntados, pois é isso que você é. Como pôde ser tão burra a ponto de não ter percebido isso?”

“Mostre-me alguma coisa”, ela disse. “Eu não sei o que você quer dizer. Mostre-me alguma coisa que o mundo não me mostrou ainda.”

“Para você, será um prazer.” Ele desapareceu, e ouviu-se o som de partes mecânicas sendo acionadas por corda, movendo-se umas contra as outras, o rangido de engrenagens lubrificadas, a batida de correias de couro, as panca­dinhas de pêndulos que balançavam. “Uma audiência privada com o Dragão do Tempo em pessoa.”

No topo, uma besta armava seu bote, dobrando suas asas numa dança de gestos, dando boas-vindas e intimidando a um só tempo. A Bruxa arre­galou os olhos.

Uma pequena área parcialmente elevada ficou iluminada. “Uma peça de três atos”, soou a voz do anão, de alguma profundeza interior. “Ato Um: O Nascimento da Santa.”

Mais tarde ela não conseguiu dizer como soube o que era, mas o que viu, numa pantomima resumida, foi a vida de Santa Elphaba. A boa mulher a mística, a reclusa, que desapareceu para viver em oração por trás de uma cachoeira. A Bruxa recuou ao ver a santa atravessar a cachoeira (uma torneira gotejante em algum ponto acima fazia escorrer água verdadeira sobre uma bandeja escondida abaixo). Ela esperou que a santa mecânica saísse, mas ela não saiu, e finalmente as luzes foram apagadas.

“Ato Dois: O Nascimento do Mal.”

“Espere, a Santa não emergiu como dizem as histórias”, disse a Bruxa. “Eu quero satisfação garantida ou meu dinheiro de volta, por favor.”

“Ato Dois: O Nascimento do Mal.”

As luzes se refletiram sobre outro pequeno palco. Surgiu uma imitação convincente de Solos de Colwen pintada num cenário de cartolina ao fundo. Uma estatueta que simulava Melena beijava seus pais em despedida e partia com Frex, um belo boneco pequeno com uma barba preta curta e um passo ligeiro. Eles pararam numa pequena cabana, e Frex beijou-a e seguiu em fren­te para pregar. Por todo o resto da cena ele ficava do lado de fora, enxotando alguns camponeses que estavam ocupados em copular uns com os outros no chão diante dele, em cortar-se mutuamente em pedaços e comer seus órgãos sexuais, o que era feito com um tempero real; podia-se sentir o cheiro de alho e cogumelos fritos. Melena, em casa, bocejava e esperava, e remexia em seus belos cabelos. Então surgiu um homem que a Bruxa não conseguiu identificar a princípio. Ele tinha uma pequena mala preta e dela tirou uma garrafa de vidro verde. Ele deu-a para Melena beber, e, assim que ela bebeu, caiu em seus braços, ou estupefata e bêbada como a Bruxa estava nesta noite, ou liberada. Não ficava claro. O viajante e Melena fizeram amor no mesmo ritmo animado dos paroquianos de Frex. O próprio Frex começou a dançar àquele ritmo. Então, quando o ato de amor estava consumado, o viajante desgrudou de Melena. Ele estalou seus dedos, e um balão com um cesto logo abaixo desceu do espaço aberto logo acima. O viajante entrou nele. Era o Mágico.

“Oh, besteira”, disse a Bruxa. “Isso é pura conversa fiada.”

As luzes diminuíram. A voz do anão soou de dentro da engenhoca. “Ato Três”, ele disse. “O Casamento do Santo e do Maligno.”

Ela esperou, mas nenhuma área ficou iluminada, nenhuma marionete se moveu.

“Bem?”, ela disse.

“Bem o quê?”, ele respondeu.

“Onde está o fim da peça?”

Ele pôs sua cabeça para fora da porta de um alçapão e lançou-lhe uma piscadela. “Quem disse que o fim já estava escrito?”, ele respondeu, e bateu a porta na cara dela. Outra porta se abriu, perto da mão da Bruxa, e uma ban­deja deslizou para fora. Estendido sobre ela havia um espelho oval, rachado de um dos lados, com a superfície riscada. Parecia-se com o espelho que ela tivera em criança, aquele onde ela imaginava ver o Outro Mundo, nos tempos em que acreditava nessas coisas. A última vez que se lembrara desse espelho oval fora no seu acampamento-esconderijo na Cidade Esmeralda. Dentro do vidro viviam reflexos de um jovem e belo Fiyero, e uma jovem e apaixonada Fae. A Bruxa pegou o espelho, guardou-o em seu avental e bateu em retirada.

 

Não havia nada nos jornais da manhã sobre a morte de Madame Mor­rible. A Bruxa, com uma dor de cabeça traiçoeira, concluiu que não podia esperar mais. Ou Avaric e seus estúpidos convidados espalhariam os boatos, ou não. Não havia mais nada a fazer.

Apesar disso, ela dizia para si mesma, espere só até a notícia chegar ao Mágico. Eu gostaria de ser uma mosca na parede de seu esconderijo quando isso acontecer. Deixe-o pensar que eu a matei. Deixe ser esta a forma com que a notícia se espalhará.

 

Ela retornou à Terra de Munchkin numa viagem punitiva, exaurindo a si mesma. Havia dormido muito pouco, e sua cabeça ainda latejava. Mas estava orgulhosa de si mesma. Ela chegou ao pátio em frente ao chalé de Boq e chamou a família.

Boq tinha ido para o campo, e um de seus filhos teve de ser despachado para buscá-lo. Quando ele chegou correndo, trazia um enxó numa das mãos. “Eu não estava esperando você, me levou um minuto”, ele disse, arfando.

“Você teria corrido mais depressa se deixasse sua ferramenta lá”, ela reparou.

Mas ele não a colocou no chão. “Elfinha, por que você voltou?”

“Para lhe dizer o que eu fiz”, ela disse. “Eu achei que você gostaria de sa­ber. Eu matei Madame Morrible, e ela não pode mais prejudicar ninguém.”

Mas Boq não pareceu satisfeito. “Você agrediu aquela mulher velha?” ele disse. “Agora que ela estava além do ponto de poder ferir alguém?”

“Você comete o engano que todos cometem”, disse a Bruxa, cruelmente decepcionada. “Você não sabe que esse ponto não existe?”

“Você trabalhou para proteger os Animais”, disse Boq. “Mas você não tinha a intenção de cair ao nível daqueles que os brutalizavam.”

“Respondi ao fogo com fogo”, disse a Bruxa, “e devia ter feito isso antes! Boq, você se tornou um tolo equivocado.”

“Crianças”, disse Boq, “corram para dentro e busquem sua mãe.”

Ele estava com medo dela.

“Você está em cima do muro”, ela disse. “Sua preciosa Terra de Mun­chkin aqui vai ser engolida pelas dobras da Oz Real, sob Sua Alteza o Impera­dor Mágico. E você vê o que Glinda faz, e você põe aquela menina no caminho para seguir com os sapatos que pertencem a mim. Você tomou uma posição quando era jovem, Boq! Como você pode ter-se estragado assim?”

“Elfinha”, disse Boq, “olhe para mim. Você está fora de si. Você tomou algum porre? Dorothy é só uma criança. Você não deve distorcer isso para torná-la alguma espécie de demônio!”

Milla, alarmada com a tensão no pátio frontal, saiu e se pôs atrás de Boq. Ela carregava uma faca de cozinha. Sussurrando alto, as crianças observavam da janela.

“Vocês não precisam se defender com facas e enxós”, disse a Bruxa fria­mente. “Eu pensei que vocês gostariam de saber sobre Madame Morrible.”

“Você está tremendo”, disse Boq. “Olhe, eu vou pôr isto no chão. Evi­dente que você está furiosa. A morte de Nessa foi dura para você. Mas você deve se controlar, Elfinha. Não faça nada contra Dorothy. Ela é uma criatura inocente. Ela está completamente sozinha. Eu lhe imploro.”

“Oh, não implore, não implore”, disse a Bruxa, “eu não poderia supor­tar, dentre todos, logo você implorando!" Ela rangeu os dentes e apertou os punhos. “Não vou lhe prometer nada, Boq!”

E desta vez ela subiu em sua vassoura e voou para longe. Imprudente­mente, ela montou nos flancos das correntes de ar, até que o chão lá embaixo perdesse qualquer detalhe nítido o bastante para lhe causar sofrimento.

 

Ela estava começando a sentir-se longe demais de Kiamo Ko. Liir era um idiota, alternando-se entre voluntarioso e covarde, e a Babá às vezes es­quecia onde estava. A Bruxa não queria pensar sobre ontem, a morte de Madame Morrible, as acusações feitas pelo jogo de bonecos. Ela dificilmente poderia ser mais avessa ao Mágico do que já era; se houvesse um fiapo de possibilidade na triste idéia de ele tê-la gerado, isso só fazia com que o odiasse ainda mais. Ela interrogaria a Babá sobre isso quando chegasse em casa.

Quando chegasse em casa. Ela tinha trinta e oito anos, e só agora per­cebia como era o sentimento de possuir um lar. Por essa, Sarima, eu lhe agradeço, ela pensava. Talvez a definição de lar seja a de um lugar onde você nunca é perdoado, podendo assim pertencer sempre a ele, aprisionado pela culpa. E talvez o preço do pertencimento seja ser digno dele.

Mas ela decidiu tomar o rumo de Kiamo Ko seguindo pela Estrada dos Tijolos Amarelos. Ela faria uma última tentativa de conseguir os sapatos. Ela nada tinha a perder. Se os sapatos caíssem nas mãos do Mágico, ele os usaria para sustentar seu direito à Terra de Munchkin. Talvez, se ela tentasse, con­seguisse dar de ombros e deixar a Terra de Munchkin entregue a seu próprio destino ― mas, que a coisa se danasse, os sapatos eram dela.

 

Ela finalmente encontrou um mascate que tinha visto Dorothy. Ele parou ao lado de seu vagão e esfregou as orelhas de seu burro enquanto dis­cutia com ela. “Ela passou aqui há poucas horas”, ele disse, mastigando uma cenoura e dividindo-a com o burro. “Não, ela não estava sozinha. Ela tinha uma turma de amigos maltrapilhos. Guarda-costas, eu suspeito.”

“Oh, a pobre coisa assustada”, disse a Bruxa. “Quem? Não seriam rapa­zes musculosos de Munchkin?”

“Não exatamente”, disse o mascate. “Havia um homem de palha e um lenhador de lata e um grande gato que se escondeu nos arbustos quando eu passei ― um leopardo talvez, ou um puma.”

“Um homem de palha?”, disse a Bruxa. “Ela estará despertando as figu­ras do mito, estará ressuscitando-as por encantamento? Deve ser uma criança atraente. Você reparou nos seus sapatos?”

“Eu quis comprá-los dela.”

“Sim! Sim, você comprou?”

“Não estão à venda. Ela parecia muito apegada a eles. Ganhou-os de presente de uma Bruxa Boa.”

“Grande porcaria, eles eram.”

“Não tenho nada a ver com isso, de qualquer jeito”, disse o mascate. “Não quer comprar alguma coisa?”

“Um guarda-chuva”, disse a Bruxa. “Vim sem nenhum, e o tempo parece estar ficando feio.”

“Eu bem que lembro os velhos bons dias da seca”, disse o mascate, pes­cando entre seus produtos um guarda-chuva um pouco gasto. “Ah, aqui está o guarda-chuva. Seu por um níquel de florim.”

“Meu de graça”, disse a Bruxa. “Você não o negaria a uma pobre mulher idosa, negaria, meu amigo?”

“Se negasse, não viveria para contar, bem vejo”, ele respondeu, e seguiu seu caminho sem compensação.

Mas, enquanto o vagão passava, a Bruxa ouviu uma outra voz: “Claro, ninguém pergunta nada a uma besta de carga, mas, em minha opinião, ela é a Ozma que saiu de seu aposento de sono profundo, e está marchando em direção a Oz para recuperar o seu trono”.

“Eu odeio monarquistas”, disse o mascate, e estalou o reio. “Eu odeio animais com atitudes.” Mas a Bruxa não pôde parar para intervir. Até aí, fora incapaz de salvar Nor, fora incompetente para barganhar com o Mágico. Também chegara um pouco tarde demais para matar Madame Morrible ― ou fora bem em cima da hora? De todo modo, ela não deveria tentar o que estava claramente fora de seu alcance.

 

A Bruxa tremia na boca de uma corrente de ar ascendente. Ela voara com a vassoura mais alto que nunca; ela estava num estado de excitação e pâ­nico. Deveria perseguir Dorothy, deveria arrebatar aqueles sapatos ― e quais eram seus reais motivos? Era mantê-los distantes das mãos do Mágico, tal como Glinda os quisera fora das mãos dos pobres e famintos munchkineses. Ou era se apoderar de alguma migalha da atenção de Frex, tivesse ela alguma vez a merecido ou não?

Logo abaixo da vassoura, as nuvens começaram a cobrir de névoa fina a visão das colinas manchadas por pedras e dos retalhados campos de melão e milho. Os finos fios retorcidos de vapor pareciam as marcas de rasura feitas pela borracha de uma criança de escola, traçando riscos brancos ao longo de uma paisagem que era como um esboço de aquarela. Que aconteceria se ela fosse em frente, impelindo a vassoura para cima, puxando-a para o alto? O objeto se espatifaria, como se tivesse se chocado contra os céus?

Ela poderia desistir desses esforços. Ela poderia deixar Nor de lado. Ela poderia liberar Liir. Ela poderia abandonar a Babá. Ela poderia render-se a Dorothy. Ela poderia desistir dos sapatos.

Mas um vento surgiu, um violento empuxo de ar que se encostou ao seu lado esquerdo. Ela não conseguiu forçar a vassoura contra ele. Ela foi levada para lá e para cá, e finalmente para baixo, até que a Estrada dos Tijolos Amarelos se delineou como um fio dourado entre florestas e campos. Havia uma tempestade no horizonte, encaixando barras de chuva acastanhada entre nuvens de cinza-lavanda e campos de cinza-esverdeado. Ela não tinha muito tempo.

Então, ela pensou tê-los visto lá embaixo, e mergulhou para conferir. Eles estavam parando para descansar debaixo de um salgueiro? Se fosse as­sim, ela acabaria com tudo agora.

 

Quando a tempestade amainou ― e a Bruxa despertou do que agora ela reconhecia como uma horrível ressaca ― ela não teve certeza de que fosse o mesmo dia. Ela não estava certa nem de que chegara perto deles ― poderia ela tê-los deixado escapar entre seus dedos daquele jeito? Mas, qualquer que fosse o caso, ilusão ou memória nebulosa, a Bruxa não ousou segui-los até a Cidade Esmeralda. Madame Morrible tinha muitos amigos nesse regime putrefato, e as notícias teriam se espalhado a essa altura. Deveria haver até grupos dando caça à Bruxa. Então, que acontecesse o que tinha de acontecer.

Embora isso a atormentasse, por aquele momento teria de desistir da idéia de reclamar os sapatos de Nessa. Ela mal dormiu a viagem inteira de volta a Kiamo Ko, exceto para parar e colher algumas frutinhas, e mordiscar algumas nozes e raízes doces, para manter as forças.

O castelo não havia sido destruído pelo fogo. O exército de reconhe­cimento do Mágico estava ainda acampado em seu posto avançado perto de Moinho de Vento Vermelho num estado de prontidão entediada. A Babá estava ocupada fazendo uma bela cobertura de caixão de crochê para seu próprio funeral, e elaborando listas de convidados. A maioria deles estava já no Outro Mundo, presumindo-se que para a Babá existisse Outro Mundo.

“Como seria bom ver Ama Clutch outra vez, eu concordo”, gritou a Bruxa, provocando um aperto nos ouvidos da Babá. “Eu sempre gostei dela. Ela tinha mais caráter que sua afetada Glinda.”

“Você era devotada a Glinda, você era”, disse a Babá. “Todo mundo sabia disso.”

“Bem, agora não mais”, disse a Bruxa. “A traidora.”

“Você cheira a sangue, vá se lavar”, disse a Babá. “Não está na hora?”

“Eu nunca me lavo, você sabe disso. Onde está Liir?”

“Quem?”

“Liir.”

“Oh, está por aí.” Ela sorriu. “Procure no poço dos peixes!”

Agora, era uma velha piada de família.

“Que nova besteira é essa?”, disse a Bruxa, ao encontrar Liir na sala de música.

“Eles sempre estiveram certos”, ele disse. “Olhe o que eu finalmente pe­guei, depois de todos esses anos.”

Era a carpa dourada que por muito tempo assombrara o poço dos pei­xes. “Oh, reconheço que estava morta e eu a tirei do fundo com um balde, não com um anzol ou uma rede. Mas, mesmo assim. Você acha que poderemos algum dia contar a eles que finalmente a pegamos?”

Todos esses últimos meses ele começara a falar sobre Sarima e a família como se eles fossem fantasmas que estivessem se ocultando bem atrás da curva da escada em espiral na torre, abafando risadinhas nessa longa, longa brincadeira de esconde-esconde.

“Só podemos esperar que sim”, ela disse. Ela raciocinou, debilmente, se não seria imoral criar os filhos com o hábito da esperança. Não era, no fim, muito mais difícil para eles ajustar-se à realidade de como o mundo funcio­nava? “Tudo mais correu bem enquanto estive fora?”

“Tudo bem”, ele disse. “Mas estou feliz por você ter voltado.”

Ela resmungou, e foi saudar Chistérico e sua família tagarela.

 

Em seu quarto ela pendurou o velho espelho com um cordão e um prego, e se absteve de olhar para ele. Ela tinha a horrível sensação de que veria Dorothy, e não queria vê-la de novo. A criança fazia com que se lembrasse de alguém. Era a sua inquestionável objetividade, aquele olhar não toldado pela vergonha. Ela era tão natural quanto um quati ― ou uma samambaia ― ou um cometa. A Bruxa pensou: não será Nor? Não será porque Dorothy me faz lembrar de Nor quando tinha a sua idade?

Mas, de volta à casa, a Bruxa não havia pensado em Nor, não realmente, muito embora seu rosto fosse uma pequena e aveludada evocação do rosto de Fiyero. Exceto por Nessarose e Shell, a Bruxa nunca se aquecera com a radiante promessa das crianças. Ela se sentia mais sozinha nesse aspecto que na questão da cor.

Não ― e agora seu olhar caiu de relance sobre o velho e cansado espelho, a despeito de suas intenções. Ela pensou: a Bruxa com seu espelho. Quem vemos nós que não seja nós mesmos? E é esta a maldição ― Dorothy me faz pensar em mim mesma, naquela idade, seja lá como for...

 

... A época passada em Ovvels. Lá está a garota verde, tímida, palerma e humilhada. Para evitar a dor dos pés úmidos, espirrando água aqui e ali com suas perneiras encharcadas feitas de couro de bezerro do pântano e botas à prova d’água. Mamãe, grávida de Shell, enorme como uma barcaça. Mamãe repetindo sem parar por meses a fio que ela podia ao menos trazer uma criança saudável a este mundo. Mamãe atirando as garrafas de bebida alcoólica e as folhas de alfineteiro na lama.

A Babá se inclina mais para a pequena Nessa, carregando-a ainda pe­quenina na procura diária de peixe assado, flores espinhentas, e trepadeiras de feijão graúdo. Nessa pode ver, mas não pode tocar: que maldição para uma criança! (Não admira que ela acredite em coisas que não pode ver ― nada pode ser provado pelo toque.) Para sua própria expiação, Papai leva a garota verde consigo numa expedição à casa dos parentes de Coração de Tartaruga, uma família de muitos ramos que vive num ninho de choças e passarelas sus­penso num pequeno bosque de árvores enormes, apodrecidas. Os quadlings, que são mais largos de quadris, são criaturas esquivas. O cheiro de peixe cru em suas casas, em sua pele. Eles ficam assustados com o pastor unionista, que foi em busca deles em seu esquálido povoado. Eu não tenho lembrança nítida de indivíduos, mas de uma velha matriarca, banguela e orgulhosa.

Os quadlings apareceram, depois de um período de timidez, não para o pastor, mas para mim, a garota verde. Ela não é mais eu, ela é algo muito an­tigo, ela é apenas ela, impenetravelmente misteriosa e densa ― ela se apruma feito Dorothy se aprumava, alguma coragem inata tornando a sua espinha ereta, tornando seus olhos diretos. Os ombros recuados, as mãos ao lado. Submissa ao toque dos dedos dos curiosos em seu rosto. Sem vacilar na causa do trabalho missionário.

Papai pede perdão pela morte de Coração de Tartaruga, que aconteceu há talvez cinco anos. Ele diz que é culpa sua. Ele e sua esposa tinham se apaixonado pelo soprador de vidro de Quadling. O que posso dar a vocês para compensá-los por isso, ele diz. Elphaba, a garota, pensa que ele está louco, ela acha que eles não estão escutando, eles estão é hipnotizados por sua estranheza. Por favor, perdoem-me, ele diz.

Só a matriarca responde a essas palavras; talvez seja ela a única que na verdade se lembre de Coração de Tartaruga. Ela tem a aparência de alguém que foi surpreendido se aventurando a sair de por baixo de uma pedra. Bem, num povo cujo código moral é tão frouxo, tão pouca coisa é errada.

Ela diz alguma coisa como: nós não perdoamos, nós não perdoamos, e não por Coração de Tartaruga, não; e ela bate no rosto de Papai com um junco, cortando-o com riscos finos. Eu era apenas uma testemunha, eu não estava realmente viva na época, mas eu vi. Foi quando Papai começou a se perder de seu caminho, é uma coisa que teve origem nesse açoitar.

Eu o vejo chocado: não ocorre na sua vida moral que alguns pecados possam ser imperdoáveis. Ele fica lívido, de um branco de cebola por trás das perfurações de sangue perolado que resultam do ataque da mulher. Talvez ela tenha todo direito de fazer o que fez, mas na vida de Papai ela se tornou a velha Kumbricia.

Eu a vejo, voluntariosa, orgulhosa: seu sistema moral não admite per­dão, e ela é tão prisioneira quanto ele, mas não sabe disso. Ela ri, toda gengivas e ameaça, e coloca o junco em sua clavícula, onde a extremidade de penas de flecha cai como um colar em seu próprio pescoço.

Ele aponta para mim, e diz ― não para mim, mas para todos eles: Isso não é punição suficiente?

Elphaba, a garota, não sabe ver seu pai como um homem fracassado. Tudo que ela sabe é que ele passa seu fracasso para ela. Diariamente, seus hábitos de acusar o mundo e lamentar a si mesmo fazem com que ela se sinta uma inválida. Diariamente, ela retribui com amor porque não conhece outro jeito.

Eu me vejo lá: a garota testemunha, de olhos bem abertos como Doro­thy. Fitando um mundo horrível demais para ser compreendido, acreditando ― à força de ignorância e inocência ― que por baixo desse inquebrável contrato de culpa e acusação há sempre um contrato mais velho que pode prender e libertar de um modo mais salutar. Um mais antigo precedente de resgate, pois não podemos ser sempre atormentados por nossa vergonha. Nem Dorothy nem a jovem Elphaba podem falar disso, mas a crença nisso está nos rostos de nós duas...

 

A Bruxa tinha apanhado a garrafa de vidro verde, em cujo rótulo ainda se podia ler ELI MILAGRO..., e colocou-o na mesa ao lado de sua cama. Tomou uma colher do antigo elixir antes de dormir, procurando alguma ver­são do fabuloso álibi que Dorothy alegava, o de que procedia de um mundo de algum modo diferente ― não provinha dos estados reais que haviam além do deserto, mas de uma existência geofísica separada. Uma existência até mesmo metafísica. O Mágico fizera essa afirmação quanto a ele mesmo, e, se o anão estava certo, a Bruxa tinha essa origem também. De noite ela tentou treinar-se para olhar na periferia de seus sonhos, para notar os detalhes. Era um pouco como tentar ver em torno das margens de um espelho, mas, achava ela, mais compensador.

Mas, o que conseguiu? Tudo, tudo bruxuleava, como uma vela, mas de maneira mais áspera, com mais estridência. As pessoas se movimenta­vam com gestos curtos, espasmódicos. Elas eram incolores, eram insípidas, eram alucinadas, eram histéricas. Os edifícios eram altos e implacáveis. Os ventos eram fortes. O Mágico aparecia em um ou outro desses quadros, um homem de aspecto muito humilde no contexto. Numa janela, numa loja da qual emergia um tanto desalentado, ela pensou, captou algumas palavras uma vez, e fez um tremendo esforço de vontade para despertar a fim de poder transcrevê-las. Mas elas não faziam nenhum sentido para ela. NENHUM IRLANDÊS PRECISA SE AJUSTAR.

Então, numa noite ela teve um pesadelo. Outra vez o Mágico estava no início dele. Ele caminhava sobre colinas de areia, com capinzais altos e cin­zentos soprando em feroz vendaval ― milhares, milhares de capinzais como aquele do junco espinhento com o qual a velha matriarca quadling tinha batido em Frex ― e o Mágico parou junto a um amplo trecho desprovido de vegetação. Ele se livrou de suas roupas, e olhou para um relógio em suas mãos, como se memorizasse um momento histórico. Então, avançou, nu e abatido. Quando a Bruxa percebeu que ele estava se aproximando, ela tentou sair do sonho com um grito, mas não conseguiu se desvencilhar. Era o oceano mítico, e o Mágico caminhava com a água até os joelhos, suas coxas, sua cintura; ele parava e tremia, e jogava água sobre o resto de seu corpo como uma espécie de penitência. Então, ele seguiu caminhando, e desapareceu dentro do mar, como Santa Elphaba da Cachoeira desaparecera sob o véu líquido. O mar tremia como um terremoto, vomitando sobre a areia da praia, golpeando com uma agitação de tímpano. Não havia um Outro Lado para aquilo. Devolveu o Mágico de suas águas, seguidamente, embora seguidamente este forçasse um novo mergulho, mais e mais exausto. O estoicismo, a determinação: não admira ele houvesse conseguido dominar uma nação. O sonho terminou com ele devolvido à praia pela última vez, chorando de frustração.

Ela acordou, nauseada, aterrorizada além de descrições, com sal em suas narinas.

Depois, passou a evitar o elixir milagroso. Em vez dele, fazia uma poção, derivada do livro de receitas da Babá e das margens do Livro das Sombras, para permanecer acordada. Se caísse no sono novamente, seria presa daquela visão de destruição terrestre, e ela preferia morrer a voltar a tê-la.

A Babá não tinha muito a dizer sobre pesadelos. “Sua mãe tinha tam­bém”, ela observou por fim. “Ela costumava dizer que via a desconhecida ci­dade da fúria em seus sonhos. Ela ficara tão furiosa com o modo com que você nasceu, você sabe ― eu quero dizer fisicamente, querida, não olhe desse jeito para mim: uma garota verde não é fácil para uma mãe explicar ― que ela engolia aquelas pílulas como doces quando estava grávida de Nessarose. Se Nessarose estivesse ainda por aqui para manifestar rancor, ela acusaria você, de certo modo, pelo que aconteceu a ela.”

“Mas, onde você conseguiu aquela garrafa verde?”, disse a Bruxa dentro do ouvido bom da Babá. “Olhe para ela, Bá querida, e tente se lembrar.”

“Desconfio que a comprei num bazar filantrópico”, ela disse. “Eu sabia fazer um centavo se esticar, acredite.”

Você poderia esticar a verdade para mais-além, pensou a Bruxa. Ela repri­miu um desejo de esmagar o vidro verde. Como estamos todos atados por laços de raiva em família, pensou a Bruxa. Nenhum de nós consegue se libertar.

 

Algumas semanas depois, numa tarde, Liir voltou de uma andança todo agitado e perturbado. A Bruxa odiou saber que ele tinha estado nova­mente em intimidades com os soldados do Mágico que estavam acampados no Moinho de Vento Vermelho.

“Eles tinham notícias, um despacho da Cidade Esmeralda”, ele disse. “Uma delegação de estrangeiros foi lá para ver o Mágico. E era só uma garo­ta! Dorothy, eles disseram, uma garota do Outro Mundo. E alguns amigos. O Mágico não permite audiência com seus súditos há anos ― ele trabalha através dos ministros, dizem. Um monte de soldados pensa que ele morreu há muito tempo, e que é só um complô do Palácio para assegurar a paz. Mas Dorothy e seus amigos entraram, e viram-no, e contaram a todo mundo como a coisa era!”

“Bem, bem”, disse a Bruxa. “Imagine só. Toda Oz, desde a Leal até a Opo­sição, está tagarelando sobre essa Dorothy. Que mais os tolos disseram?”

“O soldado que trouxe o despacho disse que as visitas pediram ao Má­gico que atendesse a alguns pedidos. O Espantalho queria um cérebro, Nick Chopper, o Homem de Lata, pedia um coração e o Leão Covarde pedia co­ragem.”

“E eu suponho que Dorothy pediu uma palmilha de sapato?”

“Dorothy pediu para ser mandada de volta para casa.”

“Espero que ela realize o seu desejo. E?”

Mas Liir ficou tímido.

“Oh, vamos lá, eu sou velha demais para ficar aborrecida com fuxicos”, ela provocou.

Liir pareceu corar com um prazer culposo. “Os soldados disseram que o Mágico rejeitou os pedidos estranhos.”

“E você está assim tão surpreso?”

“O Mágico disse a Dorothy que ele atenderia a seus desejos ― quando eles ― quando eles...”

“Você não gagueja faz anos. Não comece de novo, ou bato em você.”

“Dorothy e seus amigos têm de vir aqui para matar você”, ele concluiu. “Os soldados disseram isso porque você matou uma mulher em Shiz, uma ve­lha senhora famosa, e você é uma assassina. Você também é louca, disseram.”

“Eu sou provavelmente mais criminosa do que esses vagabundos in­competentes conseguem ser”, ela disse. “Ele estava apenas tentando se livrar dessas visitas. Provavelmente, orientou seus próprios soldados da Tropa da Tormenta para cortar a garganta da garota assim que ela estivesse a uma distância segura do público.” E sem dúvida o Mágico havia confiscado os sapatos. Isso a deixou atormentada. Mas como ela se sentiu lisonjeada pelas notícias de sua agressão terem se espalhado. Nesse momento, teve certeza de que tinha matado Madame Morrible. Só fazia sentido que ela o fizera.

Mas Liir balançou a sua cabeça. “O engraçado”, ele disse, “é que Dorothy está sendo chamada de Dorothy Tormenta. Os soldados de Moinho de Vento Vermelho disseram que os integrantes da Tropa da Tormenta não a tocariam, eles são supersticiosos demais.”

“O que esses soldados sabem de intriga, estacionados aqui do outro lado da lua?”

Liir deu de ombros. “Você não está impressionada pelo Mágico de Oz saber quem você é? Você é uma criminosa?”

“Oh, Liir, você entenderá quando ficar mais velho. Ou, de qualquer for­ma, não entender se transformará numa segunda natureza, e não importará mais. Eu não feriria você, se é isso que você quer dizer. Mas você parece tão surpreso que eu seja conhecida na Cidade Esmeralda. Só porque você me desobedece e me trata como um refugo, você acha que o mundo inteiro faz o mesmo?” Contudo, ela estava satisfeita. “Mas você sabe, Liir, se houver a mais remota chance de existir alguma verdade nesses boatos, é melhor você ficar distante do Moinho de Vento Vermelho por uns tempos. Eles podem seqüestrar você e mantê-lo para resgate até que eu desista dessa colegial e de seus companheiros carentes.”

“Eu quero conhecer Dorothy”, ele disse.

“Você não tem idade para isso, por favor, nos poupe”, ela disse. “Eu sem­pre quis transformar você em picles antes que chegasse à puberdade.”

“Bem, eu não vou ser seqüestrado, não se preocupe”, ele disse. “Ademais, eu quero estar aqui quando eles chegarem.”

“Preocupar-me seria a última coisa que eu faria se você fosse seqüestra­do”, ela respondeu. “Seria uma maldita falha só sua, e um grande alívio para mim ter uma boca a menos para alimentar.”

“Oh, bem, então quem carregaria a lenha escada acima todo inverno?”

“Eu contrataria aquele sujeito, o Nick Chopper. Seu machado me parece bem afiado.”

“Você o viu?”, Liir ficou boquiaberto. “Não, você não o viu!”

“Eu o vi sim”, ela disse. “Quem disse que eu não tenho acesso aos mais altos círculos?”

“Como ele é?”, ele disse, o rosto ansioso e iluminado. “Você deve ter visto Dorothy também. Como ela é, Titia Bruxa?”

“Não me chame de Titia, você sabe que isso me irrita.”

Ele importunou sem parar até que finalmente ela teve de gritar com ele. “Ela é uma bela bobalhona que acredita em tudo que todo mundo diz para ela! E se ela vier aqui e você disser que a ama, ela provavelmente acreditará em você! Agora, caia fora daqui, eu tenho mais que fazer!”

Ele se demorou junto à porta e disse: “O Leão quer coragem, o Homem de Lata, um coração e o Espantalho, cérebro. Dorothy quer voltar para casa. O que é que você quer?”

“Um pouco de paz e tranqüilidade.”

“Não é isso, não.”

Ela não poderia dizer perdão, não para Liir. Ela começou a dizer “um soldado”, para zombar de suas afeições apaixonadas por sujeitos que usassem uniforme. Mas, percebendo que o que dizia o deixaria ferido, ela se controlou a meio caminho, e no fim o que saiu de sua boca surpreendeu os dois. Ela disse: “Uma alma...”.

Ele olhou surpreso para ela.

“E você?”, ela disse, numa voz mais surda. “O que você iria querer, Liir, se o Mágico pudesse lhe dar alguma coisa?”

“Um pai”, ele respondeu.

 

Ela se perguntou, em resumo, se não estava ficando louca. Naquela noite sentou-se numa cadeira e pensou sobre o que havia dito.

Uma pessoa que não acredita no Deus Inominável, ou em nada, não pode acreditar numa alma.

Se você pudesse tirar as estacas da religião, aquelas que formam a sua estrutura, tornando-o consciente de cada passo que dá ― se você pudesse retirar as cimitarras da religião de seus sistemas mentais e morais ― você conseguiria mesmo ficar em pé? Ou você precisa de religião como, digamos, os hipopótamos nas Pastagens Milenares precisam dos pequenos parasitas venenosos que vivem em seu interior, para ajudá-los a digerir fibras e pol­pas? A história dos povos que se livraram da religião não é um argumento especialmente persuasivo para viver sem ela. Não será a religião ela mesma ― aquela cansada e irônica frase ― o mal necessário?

A idéia de religião funcionava para Nessarose, funcionava para Frex. Pode não haver nenhuma cidade real acima das nuvens, mas sonhar com ela pode dar vida ao espírito. Talvez na generosa experiência do unionismo em nossa era, permitindo a todas as ânsias devocionais viver e respirar sob o dossel do Deus Inominável, nós tenhamos selado nosso próprio destino. Talvez seja tempo de nomear o Deus Inominável, mesmo fragilmente e refletindo a nossa imagem maligna, para que possamos ao menos sobreviver sob a ilusão de uma autoridade que poderia tomar conta de nós.

Pois exclua do Deus Inominável qualquer coisa que se pareça com ca­ráter, e que você terá? Um grande vento vazio. E o vento pode ter força de vendaval, mas não ter força moral; e uma voz num furacão é um truque char­latanesco de um propagandista.

Mais atraentes ― ela agora via, pela primeira vez ― são as anacrônicas idéias do paganismo. Lurlina em sua carruagem de fadas, pairando comple­tamente fora de alcance sobre as nuvens, pronta para descer num milênio ou outro e lembrar-nos quem somos. Quanto ao Deus Inominável, em virtude de seu anonimato, não se poderia nunca esperar uma visita-surpresa. E reconheceríamos o Deus Inominável se ele batesse às nossas portas?

 

As vezes ela tirava uma soneca, contra a vontade, seu queixo caindo sobre seu peito, às vezes despencando direto sobre o topo da mesa, fazendo seus dentes bater e sacudindo a sua mandíbula, e despertando-a com um sobressalto.

Ela deu para ficar à janela, olhando para o vale. Levaria semanas até que Dorothy e seu grupo chegassem, se na verdade eles não tivessem já sido assassinados e seus corpos queimados, tal como os de Sarima e família de­viam ter sido.

Uma noite Liir voltou de uma visita à caserna. Ele estava chorão e inar­ticulado, e ela tentou não se preocupar com isso, mas estava curiosa demais para deixar passar em branco. Finalmente, ele contou a ela. Um dos soldados havia proposto a seus companheiros que, quando Dorothy e amigos che­gassem, os amigos fossem mortos e Dorothy amarrada para um pequeno divertimento entre os homens solitários, carentes de sexo.

“Oh, os homens têm de ter as suas fantasias”, disse a Bruxa, mas ela estava perturbada.

O que fez Liir chorar foi que seus amigos tinham levado as observações do soldado a seu superior. O soldado foi despido e castrado, e pregado no moinho. Seu corpo girava em círculos enquanto os abutres vinham e tenta­vam bicar as suas entranhas. Ele ainda não estava bem morto.

“Não é difícil encontrar o mal neste mundo”, disse a Bruxa. “O mal é sempre mais facilmente imaginado que o bem, de certo modo.” Mas ela estava chocada com a veemência da reação do Comandante contra um dos seus. Então, Dorothy devia ainda estar viva, e estava aparentemente sob ordens de proteção das mais altas patentes militares da terra.

Liir segurava Chistérico em seu colo e soluçava sobre sua cabeça. Chis­térico dizia, “Bem, enquanto a gente geme, a desgraça gira.”*

“Eles não formam um lindo par?”, observou a Babá. “Isso não daria uma pintura das mais ternas?”

Sob o manto da escuridão, a Bruxa se esgueirou em sua vassoura, e dela viu que o soldado agonizante havia, finalmente, morrido.

Numa certa tarde ela pensou, inexplicavelmente, no filhote bebê de leão separado de sua mãe, e obrigado a trabalhar para o laboratório do Dou­tor Nikkidik nos tempos de Shiz. Ela lembrou-se de como ele se agachara, lembrou-se do estardalhaço que ela fizera por isso. Ou estaria ela apenas glorificando a si mesma numa percepção tardia?

Se era o mesmo Leão, que crescera tímido e antinatural, não teria cora­gem de atacá-la. Ela o salvara quando ele era ainda jovenzinho. Não salvara?

Eles a confundiam, esse bando de Soldados Irregulares da Estrada dos Tijolos Amarelos. O Homem de Lata era oco, uma cifra mecânica, ou um ser humano eviscerado sob efeito de encantamento. O Leão era uma perversão de seus instintos naturais. Ela sabia conversar com engenhocas mecânicas, ela sabia lidar com animais. Mas era o Espantalho que ela temia. Era um feitiço? Era uma máscara? Haveria dentro dele um simples dançarino inteligente? To­dos os três tinham sido emasculados de um modo ou de outro, mistificados sob o feitiço da inocência da garota.

Ela podia dar ao Leão uma história, e pensar nele como o filhote que sofrerá abuso numa sala de ciências de Shiz. Ela suspeitava que esse Nick Chopper era a vítima do rancor e da magia de sua própria irmã, uma con­seqüência do machado enfeitiçado. Mas não encontrava meio de definir o Espantalho.

Ela começou a pensar que por trás daquele saco de milho pintado que era seu rosto, havia um outro rosto que ela conhecia, um rosto que estivera esperando.

Ela acendeu uma vela e disse as palavras em voz alta, como se realmente pudesse fazer os feitiços. As palavras soaram em torno do funil de fumaça cinzenta que subia do sebo gordurento. Se tinham sobre o mundo um outro efeito que não aquele, ela não sabia ainda. “Fiyero não morreu”, ela disse. “Ele foi aprisionado, e escapou. Ele está voltando para Kiamo Ko, está voltando para mim, e está disfarçado de espantalho porque não sabe ainda o que vai encontrar pelo caminho.”

Exigiria muito cérebro executar um tal plano.

Ela pegou uma velha túnica das que Fiyero usava. Chamou o Matalegria idoso e pediu que ele a cheirasse bem, e mandou-o para o vale o dia inteiro, para que, caso os viajantes aparecessem, ele fosse capaz de localizá-los, e con­duzi-los para casa alegremente.

E, embora ela tentasse não dormir, em certos momentos ela não conseguia evitar o sono; seus sonhos trouxeram Fiyero para mais e mais perto dela.

 

Houve um dia, nos primeiros eflúvios de outono, em que as bandei­ras e estandartes do acampamento abaixo foram trocados e os clarins soaram estridentes pelos penhascos do castelo. Devido a isso, a Bruxa adi­vinhou que o bando havia chegado a Moinho de Vento Vermelho, e estava recebendo uma saudação imperial. “Eles vieram tão longe, eles não perdem por esperar”, ela disse. “Vá, Matalegria, vá buscá-los e traga-os para cá o mais rápido possível.”

Ela soltou o cachorro veterano, e tão fortes foram as suas exortações que a prole toda saiu na corrida com ele, uivando de alegria e excitação em obediência a seu dever.

“Bá”, gritou a Bruxa, “vista uma saia limpa e troque seu avental, teremos companhia à noite!”

Mas os cães não regressaram, por toda tarde e pela noitinha, e a Bruxa logo viu a razão. Com um olho telescópico num invólucro cilíndrico ― inven­tado pela Bruxa ao seguir as leituras das descobertas do Doutor Dillamond sobre lentes opostas ― ela teve um choque diante de uma carnificina. Dorothy e o Leão tremiam com o Espantalho ao lado enquanto o Homem de Lata rachava as cabeças dos animais uma após outra com seu machado. Matalegria e sua família lupina jaziam espalhados como soldados mortos num campo de refugiados.

A Bruxa pulou de raiva e chamou Liir. “Seu cachorro está morto, olhe o que eles fizeram!”, ela gritou. “Olhe e me dê certeza de que eu não apenas imaginei isso!”

“Bem, eu não gostava muito daquele cão ultimamente”, disse Liir. “Ele teve uma boa vida longa, de qualquer forma.” Ele decidiu cooperar com ela, tremendo, mas depois dirigiu a lente para o penhasco outra vez.

“Seu tolo, aquela Dorothy não é coisa para brincar!”, ela gritou, tirando o instrumento de sua mão. “Para alguém que está por receber visitas, você está impaciente em ex­cesso”, ele disse, soturno.

“Eles estão vindo aqui é para me matar, se é que você se lembra”, ela disse, embora houvesse se esquecido disso, assim como esquecera o desejo de ter os sapatos até que os avistara novamente na lente. O Mágico não os tinha tomado de Dorothy! Por que não? Que nova forma de armadilha era essa?

Ela girou pelo quarto, estalando as páginas do Livro das Sombras para a frente e para trás. Recitou um feitiço, errou, recitou novamente, e então se virou e tentou aplicá-lo aos corvos. Embora os três corvos originais tivessem caído do topo da porta havia muito tempo, restavam bandos de outros na residência, meio crus e abobalhados, mas sugestionáveis de um modo estú­pido, coletivo.

“Voem”, ela disse. “OLhem com seus olhos mais perto do que posso ver, tirem a máscara do Espantalho para que possamos saber quem ele é. Peguem-­nos para mim. Furem os olhos de Dorothy e do Leão. E três de vocês devem seguir em frente, em busca da velha Princesa Nastoya, que está lá nas Pasta­gens Milenares, porque está chegando o tempo de todos nos reunirmos. Com a ajuda do Livro das Sombras, o Mágico poderá finalmente ser derrubado!”

“Eu nunca sei do que você está falando, ultimamente”, disse Liir. “Você não pode cegar aquele bando!”

“Oh, fique só observando”, rosnou a Bruxa. Os corvos voaram para longe numa nuvem negra e cruzaram o céu como chumbo grosso, planando pelos precipícios recortados, até chegarem aos viajantes.

“Um belo pôr-do-sol, não é?”, disse a Babá, subindo ao aposento da Bruxa em uma de suas raras incursões pelo castelo, Chistérico ao seu lado como sempre, prestando serviço.

“Ela mandou os corvos cegarem os convidados para o jantar!”

“O quê?”

“Ela está CEGANDO OS CONVIDADOS PARA O JANTAR!”

“Bem, é um modo de evitar o trabalho de tirar o pó, suponho.”

“Por que não vão mais depressa, seus lunáticos?” A Bruxa estava se contorcendo como se tivesse um colapso nervoso; batia seus cotovelos feito asas, como se ela própria fosse um corvo. Soltou um longo uivo quando os localizou de novo na lente.

“O que, o que, deixe-me ver”, disse Liir, agarrando a coisa. Ele explicou à Babá, porque a Bruxa estava quase sem fala agora. “Bem, acho que o Espan­talho sabe como espantar corvos* muito bem.”

“Por que, o que foi que ele fez?”

“Os corvos não vão voltar, é tudo que posso dizer”, disse Liir, lançando um olhar de esguelha para a Bruxa.

“Ainda pode ser ele”, ela disse por fim, a respiração opressa. “Você pode realizar o seu desejo ainda, Liir.”

“Meu desejo?” Ele não se lembrava que fizera o pedido de ter um pai, e ela não se dera ao trabalho de lembrá-lo. Nada ainda a convencera de que o Espantalho não fosse um homem disfarçado. Ela não precisaria de perdão se Fiyero não houvesse morrido!

A luz diminuía, e o estranho grupo de amigos estava subindo a colina numa boa marcha. Eles tinham vindo sem escolta de soldados, talvez devido aos soldados realmente acreditarem que Kiamo Ko era governado por uma Bruxa Maléfica.

“Vamos, abelhas”, disse a Bruxa, “trabalhem comigo agora. Todas juntas desta vez, docinhos. Precisamos de um ferrãozinho, precisamos de um zum­bidinho, queremos fazer ruindade, vocês podem nos dar umas espetadinhas? Não, nós não, ouçam o que lhes digo, suas simplórias! O negócio é com a garota na colina lá embaixo. Ela está querendo pegar a sua Abelha-Rainha! E quando vocês terminarem o seu serviço, eu irei lá para pegar os sapatos.”

“Do que essa velha megera está falando agora?”, disse a Babá para Liir.

As abelhas ficaram atentas à intensidade na voz da Bruxa, e se ergueram num enxame saindo pela janela.

“Vocês vigiem, eu não consigo olhar”, disse a Bruxa.

“A lua está igualzinha a um belo pêssego subindo sobre as montanhas”, disse a Babá com o telescópio encostado em seu olho afetado pela catarata. “Por que não plantamos pessegueiros em vez daquelas infernais macieiras lá no pomar?”

“As abelhas, Bá. Liir, tome o telescópio das mãos dela e me diga o que realmente está acontecendo.”

Liir fez um relato detalhado. “Elas estão investindo, parecem um gênio ou qualquer coisa assim, voando todas num grande bloco com uma cauda des­grenhada. Os viajantes estão vendo-as chegar. Sim! Sim! O Espantalho está tirando palha de seu peito e de suas perneiras e cobrindo o Leão e Dorothy e também tem lá um cachorro pequenininho. Assim, as abelhas não conseguem passar pela palha, e o Espantalho está feito em pedaços no chão.”

Não podia ser. A Bruxa tomou a peça ocular das mãos de Liir. “Liir, você é um mentiroso imundo”, ela gritou. Seu coração rugia como um vendaval.

Mas, era verdade. Não havia nada além de palha e ar dentro das roupas do Espantalho. Nenhum amante que retornava, nenhuma última esperança de salvação.

E as abelhas, não tendo ninguém exceto o Homem de Lata para atacar, arremeteram-se sobre ele, e foram caindo em montículos negros no chão, como sombras carbonizadas, seus ferrões trombando na lataria.

“Você tem de dar crédito às suas visitas pela ingenuidade”, disse Liir.

“Quer se calar antes que eu dê um nó na sua língua?”, disse a Bruxa.

“Acho que devo descer e preparar uns aperitivos, eles ficarão com fome depois desse sofrimento todo que vocês estão fazendo-os passar”, disse a Babá. “Vocês têm preferência por queijo e bolachas ou legumes frescos ao molho de pimenta?”

“Eu prefiro queijo”, disse Liir.

“Elphaba? Qual é a sua opinião?”

Mas ela estava ocupada demais fazendo pesquisas no Livro das Som­bras. “Fica tudo a meu cargo, como sempre”, disse a Babá. “Tenho de fazer todo o trabalho. Era para eu estar chorando de alegria, na minha idade. Eu deveria poder descansar meus pés de uma vez por todas, mas não. Sempre a criada da noiva, nunca a noiva.”

“Sempre o padrinho, nunca o noivo”, disse Liir.

“Vocês dois, por favor, tenham pena de mim! Vá caindo fora, Bá, já que está indo embora!” A Babá rumou para a porta com a rapidez que seus velhos membros lhe permitiam. A Bruxa disse: “Chistérico, deixe-a ir com suas próprias forças, eu preciso que você fique aqui”.

“Claro, deixe-me cair na minha sepultura, feliz por ser tão prestativa”, disse a Babá. “Vai ser queijo, então.”

A Bruxa explicou a Chistérico o que ela queria. “Isso é estúpido. Vai es­curecer daqui a pouco, e eles cairão de algum rochedo e morrerão. Os pobre­zinhos, eu preferia que não. Quero dizer, o Homem de Lata e o Espantalho podem cair o quanto quiserem e nem se machucar muito, imagino. Um bom lateiro pode consertar um torso danificado. Mas traga-me Dorothy e o Leão. Dorothy está com meus sapatos, e eu quero ter uma conversa particular com o Leão. Somos velhos amigos. Você pode fazer isso?”

Chistérico envesgou, aceitou, recusou, deu de ombros, cuspiu.

“Bem, pelo menos tente, pra que você prestaria se não tentasse?”, ela disse. “Cai fora, você e sua turma.”

Ela se virou para Liir. “É isso aí, ficou satisfeito? Eu não pedi que nin­guém os matasse. Eles serão escoltados até aqui como visitantes. Pegarei os sapatos e os deixarei ir embora. Depois, levarei este Livro das Sombras co­migo para uma montanha e viverei numa caverna. Você é velho o bastante para tomar conta de si mesmo. Boa solução para uma bela porcaria. Quem precisa de perdão agora? Está certo?”

“Eles estão vindo para matar você”, ele disse.

“Sim, e você não está morrendo de ansiedade por isso?”

“Eu a protegerei”, ele disse, incomodado, e então acrescentou, “mas não a ponto de ferir Dorothy.”

“Oh, vá cuidar de pôr a mesa, e dizer para a Babá para deixar o queijo e as bolachas de lado, e fazer os legumes.” Ela sacudiu a vassoura para ele. “Vá, estou dizendo, e é pra valer!”

 

Quando ela ficou sozinha, desmoronou. Ou uma sorte fenomenal pro­tegia esses viajantes, ou eles tinham coragem, cérebros e coração o bastante para se virarem muito bem. Ela estava tentando a abordagem errada, eviden­temente. Ela daria as boas-vindas à garota, explicaria a situação direitinho, e pegaria os malditos sapatos quando pudesse. Com os sapatos, com o auxílio da Princesa Nastoya, talvez conseguisse ainda se vingar do Mágico. De qual­quer forma, o Livro das Sombras ficaria escondido. Ela daria um jeito. E os sapatos seriam conservados fora do alcance do Mágico.

Mas o choque da morte de seus familiares esfriava o seu sangue. Ela sentia seus pensamentos e intenções se atropelando uns aos outros sem parar. E ela não tinha muita certeza do que faria quando ficasse cara a cara com Dorothy.

 

 

Liir e a Babá se plantaram lado a lado na porta, sorridentes, quando Chis­térico e seus companheiros surgiram com uma balbúrdia insana, descar­regando seus passageiros nas pedras do pátio interno. O Leão gemia de dor e chorava de medo da altura. Dorothy vinha sentada, agarrando o cachorrinho em seus braços, e disse: “E onde podemos estar agora?”

“Bem-vindos”, disse a Babá, ajoelhando-se.

“Alô”, disse Liir, enrascando um pé no outro e caindo num balde de água. “Vocês devem estar cansados depois de sua longa viagem”, disse a Babá. “Vocês não gostariam de se refrescar antes de servirmos uma pequena re­feição? Nada fora do comum, vocês sabem, estamos muito longe do mundo convencional.”

“Isto aqui é Kiamo Ko”, disse Liir, vermelho como beterraba e levantan­do-se novamente. “A fortaleza da tribo arjiki.”

“Aqui ainda é território Winkie?”, disse a garota ansiosamente.

“O que eles estão dizendo, os bonecos? diga a eles para falar mais alto”, disse a Babá.

“Aqui é chamado Vinkus”, disse Liir. “Winkie é uma espécie de insulto.”

“Oh, Deus, eu não quero ofender ninguém!”, ela disse. “Misericórdia, não.”

“Você não é mesmo uma garotinha bonita, todos os braços e pernas no lugar certo, e uma pele tão delicada, sensível e inofensiva”, disse a Babá, sorrindo.

“Eu sou Liir”, ele disse, “e eu moro aqui. Este é meu castelo.”

“Eu sou Dorothy”, ela disse, “e estou muito preocupada com meus ami­gos ― o Homem de Lata e o Espantalho. Oh, por favor, alguém não poderá fazer alguma coisa por eles? Está escuro, e eles se perderão!”

“Eles não podem ser feridos. Eu vou pegá-los amanhã à luz do dia”, disse Liir. “Prometo. Faria qualquer coisa. No duro, qualquer coisa.”

“Você é tão bonzinho, tal como todo mundo aqui”, disse Dorothy. “Oh, Leão, você está bem? Foi terrível!”

“Se o Deus Inominável quisesse que os Leões voassem, ele teria posto neles uns balões de ar quente”, disse o Leão. “Eu acho que perdi meu almoço em alguma parte da ravina.”

“Calorosas boas-vindas”, pipilou a Babá. “Estávamos esperando vocês. Gastei meus dedos até os ossos, preparando umas coisinhas. Não é muito, mas tudo que temos é seu. É nosso lema aqui nas montanhas. O viajante é sempre bem-vindo. Agora, vamos buscar água quente para a sopa na bomba, vamos, e depois entraremos.”

“Você é muito gentil ― mas eu preciso encontrar a Maléfica Bruxa do Oeste”, Dorothy disse. “Eu disse A MALÉFICA BRUXA DO OESTE. Estou tão aborrecida por incomodar. E isto aqui parece um castelo perfeita­mente maravilhoso. Talvez eu possa voltar aqui depois, se minhas viagens me fizerem passar por este caminho.”

“Oh, bem, ela mora aqui também”, disse Liir. “Comigo. Não se preocupe, ela está aqui.”

Dorothy empalideceu um pouco. “Ela está aqui?”

A Bruxa apareceu na porta. “Ela está aqui sim, senhora, e ei-la”, ela disse, e desceu as escadas a passo rápido, suas saias rodopiando, sua vassoura se apressando a ficar disponível para serviço. “Bem, Chistérico, você fez um bom trabalho! Estou satisfeita por ver que todos os meus esforços não foram a troco de nada. Você, Dorothy, Dorothy Tormenta, aquela cuja casa teve a coragem de fazer uma aterrissagem forçada em cima de minha irmã!”

“Bem, não era a minha casa, no sentido legal, estritamente falando”, disse Dorothy, “e na verdade nem pertencia muito à Titia Em e Tio Henry, descontando umas janelas e a chaminé. Quero dizer que o Primeiro Banco Estatal de Mecânicos e Fazendeiros de Wichita é dono da hipoteca, assim eles são os responsáveis. Isto é, se você quiser entrar em contato com alguém. Eles são o banco que toma conta da coisa”, ela explicou.

A bruxa sentiu-se, subitamente, estranhamente calma. “Não tenho nada a ver com quem é dono da casa”, ela disse. “O fato é que minha irmã estava viva antes que você chegasse, e agora ela está morta.”

“Oh, estou tão sentida por esse fato”, disse Dorothy nervosamente. “Es­tou mesmo. Faria tudo para tê-lo evitado. Eu sei como me sentiria mal se uma casa caísse em cima da Titia Em. Uma vez uma tábua do telhado da varanda caiu sobre ela. Ela ficou com um galo enorme na cabeça e cantou hinos a tarde inteira, mas à noite voltou a ser a velha ranzinza de sempre.”

Dorothy enfiou seu cachorrinho debaixo do braço e subiu e pegou as mãos da Bruxa nas suas. “Estou sentida mesmo”, ela insistiu. “É uma coisa terrível perder alguém. Eu perdi meus pais quando era pequena, e bem me lembro.”

“Afaste-se de mim”, disse a Bruxa. “Eu odeio sentimentalismo. Faz mi­nha pele formigar.”

Mas a garota continuou segurando as mãos da Bruxa, com uma espécie de intensidade atenuada, e nada disse, apenas esperou.

“Tudo bem, tudo bem”, disse a Bruxa.

“Você era muito apegada à sua irmã?”, perguntou Dorothy.

“Isso não vem ao caso”, ela replicou.

“Porque eu era muito apegada à minha Mamãe, e quando ela e Papai se perderam no mar, eu quase não suportei.”

“Perdidos no mar, como assim?”, disse a Bruxa, desgrudando-se da ga­rota pegajosa.

“Eles estavam indo visitar minha avó no velho mundo, porque ela estava morrendo, e uma tempestade veio e seu navio foi atingido, partiu-se ao meio e foi parar no fundo do mar. E todas as almas a bordo se afogaram.”

“Oh, então eles tinham almas”, disse a Bruxa, sua mente recuando ante a imagem de um navio no meio de tanta água.

“E ainda têm. É tudo que resta para eles, desconfio.”

“Por favor, não grude em mim desse jeito. E venha comer alguma coisa.”

“Venha você, também”, disse a garota ao Leão, e ele se ergueu, mal-hu­morado, em suas grandes patas acolchoadas, pondo-se a caminho.

Então, agora nós viramos um restaurante, pensou a Bruxa, amarga­mente. Essa é boa, devo mandar um macaco voador para Moinho de Vento Vermelho em busca de um violinista para fazer música ambiente? Mas que criminosa mais singular ela estava se tornando.

A Bruxa começou a pensar em como desarmar a garota. Era difícil notar que espécie de arma ela usava, exceto aquela espécie de bom senso inane e honestidade emocional.

Durante o jantar Dorothy começou a chorar.

“O que houve, ela preferia legumes a queijo?”, disse a Babá.

Mas a garota não respondeu. Ela colocou as duas mãos no topo da mesa de carvalho que fora esfregada, e seus ombros tremeram de aflição. Liir ficou suspirando por levantar-se e envolvê-la em seus braços. A Bruxa fez um sinal severo de que ele deveria manter a compostura. Irritado, ele bateu sua caneca de leite com força na mesa.

“Tudo está muito bem”, Dorothy disse por fim, fungando, “mas eu estou tão preocupada por Tio Henry e a Titia Em. Tio Henry se aborrece tanto quando eu me atraso só um pouquinho ao voltar da escola, e Titia Em ― bem, ela pode ficar tão brava quando está irritada!”

“Todas as Titias são bravas”, disse Liir.

“Coma logo, pois quem sabe se ainda haverá outra refeição em sua vida”, disse a Bruxa.

A garota tentou comer, mas continuou se derretendo em lágrimas. Finalmente, Liir começou a chorar também. O cachorrinho. Totó, ficava pedindo as migalhas, o que fazia a Bruxa pensar em suas próprias perdas. Matalegria, que ficara consigo por oito anos, era agora um cadáver servindo de montaria para moscas e endurecendo na colina, junto com todos de sua prole. Ela se importava menos com as abelhas e os corvos, mas Matalegria era seu mascote especial.

“Bem, isto é uma festa”, disse a Babá. “Acho que devia ter enfeitado tudo com uma vela.”

“Acende vela fica chato”, disse Chistérico.

A Babá acendeu uma vela e cantou “Parabéns pra você” para fazer com que Dorothy se sentisse melhor, mas ninguém aderiu.

Então, fez-se silêncio. Só a Babá continuou comendo, terminando o queijo e começando a roer a vela. Liir ficava branco e rosa alternadamente, e Dorothy começou a olhar, perplexa, para um olho de nó na envernizada ma­deira do suporte da mesa. A Bruxa riscava seus dedos com uma faca, e passava a lâmina por seu indicador suavemente, como se fosse a pena de uma fênix.

“O que vai acontecer comigo?”, disse Dorothy, caindo num tom mono­córdio. “Eu não devia ter vindo para cá.”

“Bá, Liir”, disse a Bruxa, “retirem-se para a cozinha. Levem o Leão com vocês.”

“Essa velha desagradável está falando comigo?”, a Babá perguntou a Liir. “Por que a garotinha está chorando, não gostou da nossa comida?”

“Eu não vou sair do lado da Dorothy!”, disse o Leão.

“Eu não conheço você de algum lugar?”, disse a Bruxa numa voz baixa, tranqüila. “Você era o filhote que fez experiências no laboratório de ciências de Shiz tempos atrás. Você estava aterrorizado, então, e eu o defendi. Eu pouparei você novamente se ficar bem comportadinho.”

“Eu não quero ser poupado”, disse o Leão, petulantemente.

“Conheço essa sensação”, disse a Bruxa. “Mas você pode me ensinar alguma coisa sobre os animais na selva. Se eles revertem ao estado natural, e quanto. Eu sei que você foi criado na selva. Você pode ser útil. Você pode me proteger quando eu me embrenhar por ela com o Livro das Sombras, meu li­vro de feitiços, meu Malleus Maleficarum, meu hipnotizante incunábulo, meu códice de escaravelho, suástica e cruz gamada, meu texto taumatúrgico.”

O Leão rugiu tão subitamente que todos, até Dorothy, tremeram, so­bressaltados, em suas cadeiras. “Se de noite tem trovão, é do demônio a sa­tisfação”, observou a Babá, olhando pela janela para fora. “Acho melhor ir cuidar da roupa.”

“Eu sou maior que você”, disse o Leão para a Bruxa, “e não vou deixar Dorothy ficar sozinha com você.”

A Bruxa, investindo, se abaixou e agarrou o cachorrinho em seus braços. “Chistérico, vai jogar esta coisa aqui no poço dos peixes”, ela disse. Chistérico olhou, hesitante, mas fugiu depressa com Totó debaixo de seus braços como uma fatia de pão peluda que latisse.

“Oh, não, salvem o cachorrinho, alguém!”, disse Dorothy. A Bruxa pegou sua mão e prendeu-a na mesa, mas o Leão tinha se lançado rumo à cozinha atrás do macaco de neve e de Totó.

“Liir, feche a porta da cozinha”, gritou a Bruxa. “Passe uma tranca nela para que eles não possam voltar.”

“Não, não”, gritou Dorothy. “Eu irei com você, só não me machuque o Totó! Ele não fez nada para você!” Ela virou para Liir e disse, “Por favor, não deixe aquele macaco machucar meu Totó. O Leão é inútil, não acredito que ele poderia salvar meu cachorrinho!”

“Será que entendi que vamos comer pudim perto da lareira?”, disse Babá, com os olhos brilhantes. “É creme de caramelo.”

A Bruxa pegou a mão de Dorothy e começou a levá-la embora. Liir subitamente pulou para seu lado e pegou a outra mão de Dorothy. “Sua velha megera, deixe-a em paz”, ele gritou.

“Liir, realmente, você escolhe as horas mais inconvenientes para desen­volver o seu caráter”, disse a Bruxa enfastiada e surdamente. “Não nos meta em trapalhadas com essa pose de corajoso.”

“Tudo ficará bem ― só tome conta do Totó”, disse Dorothy. “Oh, Liir, tome conta de Totó, não importa o que acontecer ― por favor. Ele precisa de um lar.”

Liir se aproximou e beijou Dorothy, que caiu contra a parede de tão surpresa.

“Deus me livre”, resmungou a Bruxa. “Sejam quais forem meus pecados, juro que não mereço isto.”

 

Ela empurrou Dorothy em direção ao quarto da torre, e fechou a porta atrás de si. O longo período de insônia que vinha atravessando fazia sua cabeça girar. “Para que você veio aqui?”, ela disse à garota. “Eu sei por que você caminhou da Cidade Esmeralda até aqui ― mas vamos lá, fale na minha cara! Você veio para me matar, como dizem os boatos ― ou você traz uma mensa­gem do Mágico, talvez? Ele está querendo agora trocar o livro pela Nor? A magia pela garota? Diga-me! Ou ― eu bem sei ― ele pode ter instruído você para roubar meu livro! Na certa é isso!”

Mas a garota apenas recuava, olhando para a esquerda e a direita, ten­tando vislumbrar alguma forma de fuga. Não havia saída exceto a janela, e dali seria uma queda mortal.

“Diga-me”, disse a Bruxa.

“Eu estou completamente sozinha numa terra estranha, não me force a fazer nada”, disse a garota.

“Você veio para me matar e depois roubar o Livro das Sombras!”

“Não sei do que você está falando!”

“Primeiro me dê os sapatos”, disse a Bruxa, “porque são meus. Depois, conversaremos.”

“Eu não posso, eles não saem dos meus pés”, disse a garota, “eu acho que Glinda pôs um feitiço neles. Venho tentando tirá-los há dias. Minhas meias estão tão suadas, é inacreditável.”

“Me dê os sapatos!”, rosnou a Bruxa. “Se você voltar ao Mágico com eles, você estará sendo um joguete dele!”

“Não, olhe, eles estão grudados!”, a garota gritou. Ela chutou num cal­canhar com a outra ponta do pé. “Olhe, veja, estou tentando, tentando, eles não saem, é verdade, eu juro! Eu tentei dá-los para o Mágico quando ele os pediu, mas não saíram! Há alguma coisa na matéria de que foram feitos, eles são apertados demais ou algo assim! Ou talvez eu esteja crescendo.”

“Você não tem o direito de ficar com esses sapatos”, disse a Bruxa. Ela girava em círculos. A garota só fazia recuar, tropeçando na mobília, arre­bentando a colméia, e pisando na abelha-rainha, que havia emergido dos pedaços.

“Tudo que tenho, tudo, tudo que tenho morre quando você aparece”, disse a Bruxa. “Lá embaixo está o Liir, disposto a me jogar fora em troca de um simples beijo. Meus animais estão mortos, minha irmã está morta, você espa­lha morte em seu caminho, e é apenas uma menina! Você me faz lembrar Nor! Ela pensava que o mundo era mágico, e olhe só o que aconteceu com ela.”

“O que, o que aconteceu?”, disse Dorothy, em luta penalizante por ga­nhar tempo.

“Ela descobriu apenas como ele era mágico, ela foi seqüestrada, e vive sua vida miserável como uma prisioneira política!”

“Mas você também me seqüestrou, e não fui eu que pedi nada disso, nada. Você precisa ter compaixão.”

A Bruxa se aproximou e agarrou a garota pelo punho. “Por que você quer me matar?”, ela disse. “Você acredita realmente que o Mágico fará o que promete? Ele não sabe o que significa a verdade e, então, nem sabe como ele mente! E eu não seqüestrei você, sua boba! Você veio para cá por sua própria vontade, para me matar!”

“Eu não vim matar ninguém”, disse a garota, encolhendo-se.

“Você é a Adepta?”, disse a Bruxa repentinamente. “Aha! Você é a Ter­ceira Adepta? É isso? Nessarose, Glinda e você? Madame Morrible recrutou você a serviço do poder oculto? Vocês trabalham em conluio: os sapatos de minha irmã, o feitiço de minha amiga e a sua força inocente. Admita, admita que você é a Adepta! Admita!”

“Eu não sou adepta, eu sou adotada*”, disse a garota. “É claro que não sou adepta de nada, você não nota?”

Você é a minha alma querendo a minha carniça, eu posso sentir”, disse a Bruxa.

“Eu não aceito, eu não aceito. Eu não quero ter uma alma; com a alma vem a eternidade, e a vida já me torturou demais.”

A Bruxa empurrou Dorothy de volta para o corredor, e transformou a ponta de sua vassoura num archote. A Babá subia as escadas mancando, apoiando-se em Chistérico, que trazia alguns pratos de pudim numa bandeja. “Tranquei todos na cozinha até que parem de fazer grosserias.” A Babá se queixava. “Tanta conversa estridente, tanta barulheira, tanta choradeira, a Babá não aceita isso, a Babá é velha demais. Eles são todos uns animais.”

Lá embaixo, nos empoeirados recessos de Kiamo Ko, o cachorro latiu uma ou duas vezes, o Leão rugiu e se arremeteu contra a porta da cozinha, e Liir gritou: “Dorothy, nós vamos indo!”. Mas a Bruxa se virou e deu um pontapé, e derrubou a Babá escada abaixo. A velha rolou e deslizou, soltando ohs e ais, Chistérico indo logo atrás, consternado. As dobradiças da porta da cozinha se romperam, e o Leão e Liir saíram tropeçando, caindo sobre a pilha desmoronada que a Babá virará ao pé das escadas. “Subam vocês, subam”, gritou a Bruxa, “Aprontei com vocês antes que vocês aprontassem comigo!”

Dorothy conseguiu libertar-se com esforço e correu para a escada em es­piral da torre à frente da Bruxa. Havia apenas uma saída, e era em direção ao parapeito da janela. A Bruxa seguiu em boa velocidade, precisando terminar seu trabalho antes que o Leão e Liir chegassem. Ela pegaria os sapatos, levaria o Livro das Sombras embora, abandonaria Liir e Nor, e desapareceria no deserto. Ela queimaria o livro e os sapatos, e depois daria cabo de si mesma.

Dorothy era uma forma escura, confusa, nauseada, entre as pedras.

“Você não respondeu à minha pergunta”, disse a Bruxa, erguendo o ar­chote, produzindo espectros e fantasmas no meio das sombras da arquitetura do castelo. “Você veio me caçar e eu quero saber. Por que você me matará?”

A Bruxa bateu a porta com violência atrás de si e trancou-a. Tanto melhor.

A garota só conseguia arfar.

“Você acha que não estão espalhando histórias a seu respeito por toda Oz? Você acha que não sei que o Mágico a mandou para cá para levar de volta a prova de que eu estava morta?”

“Oh, isso”, disse Dorothy, “isso é verdade, mas não foi por isso que vim!”

“Você não consegue ser uma mentirosa competente, não com essa cara!” A Bruxa empunhava a vassoura num ângulo favorável. “Diga-me a verdade, porque em ocasiões assim, minha pequenina, você deve matar antes de ser morta.”

“Eu não conseguiria matá-la”, disse a garota, chorando. “Fiquei horrori­zada por ter matado a sua irmã. Como poderia matar você também?”

“Muito simpático”, disse a Bruxa, “muito bonito, muito comovente. En­tão, por que veio?”

“Sim, o Mágico pediu para que eu a matasse”, Dorothy disse, “mas nunca tive a intenção de fazê-lo, e não foi por isso que vim!”

A Bruxa elevou a vassoura flamejante ainda mais, e se aproximou para olhar no rosto da garota.

“Quando eles disseram... quando disseram que era a sua irmã, e que nós tínhamos de vir para cá... foi como uma sentença de prisão, e eu não queria... mas eu pensei, bem, eu vou, e meus amigos vão comigo para me ajudar... e eu vou... e eu digo...”

“Diz o quê?”, gritou a Bruxa, impaciente.

“Eu digo”, disse a garota, endireitando-se, cerrando os dentes. “Eu digo: você um dia me perdoará por esse acidente, pela morte de sua irmã; você um dia me perdoará, pois eu não consegui me perdoar!”

A Bruxa gritou, de pânico, de descrença. O mundo agora iria se detur­par desse jeito, ferindo-a mais uma vez: Elphaba, que havia suportado que Sarima não a perdoasse, teria de dar perdão a uma menina incoerente? Como tirar uma coisa assim para dar de dentro de seu próprio vazio?

Ela fora pega, e se contorcia, penava, resistindo o quanto podia, mas a quê? Um fragmento da cauda da vassoura escapou, e queimou sua saia, e a seguir as chamas se espalharam por seu colo, espalhando fogo no pavio mais seco do Vinkus. “Oh, será que este pesadelo nunca vai se acabar?”, berrou Dorothy, e ela pegou um balde de recolher água de chuva que, na súbita luz causada pelo fogo, havia surgido à sua vista. Ela disse: “Eu vou salvar você!”; e atirou a água sobre a Bruxa.

 

Um instante de dor aguda antes da inconsciência total. O mundo era feito de dilúvios por cima e de fogos por baixo. Se houvesse uma coisa cha­mada alma, teria sido apostada numa espécie de batismo, e teria vencido?

O corpo pede à alma perdão pelos seus erros, e a alma pede perdão ao corpo por ocupá-lo sem permissão.

Um círculo de rostos expectantes se obscurece diante da luz; eles se movem nas sombras como fantasmas devoradores. Lá está Mamãe, brincando com seus cabelos, lá está Nessarose, rija e lívida como madeira exposta ao tempo. Lá está Papai, perdido em seus pensamentos, procurando seu rosto no meio dos pagãos desconfiados. Lá está Shell, ainda não completamente ele mesmo, a despeito de sua aparente inteireza.

Eles se transformam em outros; eles se transformam na Babá em seus primórdios, ácida e cerimoniosa; e Ama Clutch e Ama Vimp e as outras Amas, agora reunidas num borrão maternal. Eles se transformam em Boq, doce e ágil e honesto, quando ainda não se dobrara; e Crope e Tibbett em sua cômica, exagerada ânsia de serem amados; e Avaric em sua superioridade. E Glinda em seus trajes, esperando tornar-se boa o bastante para merecer o que procura.

E aqueles cujas histórias se encerraram: Manek e Madame Morrible e Doutor Dillamond e, acima de todos, Fiyero, cujos diamantes azuis têm o azul da água e do fogo sulfuroso também. E aqueles cujas histórias ficaram curiosamente inacabadas ― tinha de ser assim? ― a Princesa Nastoya dos Scrows, cuja ajuda não chegou a tempo; e Liir, o misterioso garoto enjeita­do, saindo de seu invólucro vegetal. Sarima, que, a despeito de sua afetuosa acolhida e sua fraternidade, não a perdoou, e as irmãs e os filhos de Sarima e o futuro e o passado...

E aqueles que tombaram sob a opressão do Mágico, incluindo Matale­gria e as outras criaturas residentes; e, por trás de todos, o Mágico em pessoa, um fracasso até que se exilou de sua própria terra; e, atrás dele, Yackle, fosse ela quem fosse, se alguém ela chegava a ser, e as anônimas Adeptas, caso tivessem existido, e o anão, que não declarara o seu nome.

E as criaturas de vidas provisórias, os desconjuntados unidos pelo acaso, os desajustados e os maltratados: o Leão, o Espantalho, o mutilado Homem de Lata. Eles surgem das sombras por um instante, e são trazidos à luz; depois, desaparecem.

Por fim, surge a Deusa das Dádivas, movendo-se entre as chamas e a água, e tenta dar-lhe amparo, murmurando alguma coisa, mas as palavras permanecem obscuras.

 

Oz distava de Kiamo Ko uma boa centena de milhas ao oeste e ao norte, e ficava ainda mais distante ao leste e ao sul. Na noite em que a Malé­fica Bruxa do Oeste morreu, qualquer um que tivesse olhos de ver, olhando do parapeito, notaria uma coisa. Na direção oeste, a lua estava se erguendo sobre as Pastagens Milenares. Embora os pacíficos yunamatas não houves­sem aderido, os clãs dos arjikis e scrows estavam reunidos para debater um pacto de aliança, devido à presença esmagadora dos exércitos do Mágico no Desfiladeiro de Kumbricia. A chefia arjiki e a Princesa Nastoya haviam concordado em enviar uma delegação à Bruxa do Oeste, e pedir orientação e apoio. Enquanto brindavam a ela e lhe desejavam saúde, menos que uma hora antes de sua morte, os corvos mensageiros que Elphaba despachara em busca de auxílio foram atacados por pássaros Roca noturnos e devorados.

A lua prateava as elevações e baixios dos Grandes Kells, e as sombras de prata se espalhavam pelos vales dos Kells Menores. Os escorpiões das Areias Ácidas saíam para distribuir suas ferroadas, os escarques do Deserto de Thursk se acasalavam em seus abrigos. No Altar Kvon, praticantes de uma seita tão obscura que não possuía nem nome faziam suas oferendas noturnas para as almas dos mortos, supondo, como a maioria faz, que os mortos tinham tido almas.

O Estado de Quadling, uma terra desolada de lama e rãs, fermentava silenciosamente em putrefação noite adentro, exceto por um incidente que ocorrera no Qhoyre. Um Crocodilo entrara num quarto de criança e engolira um bebezinho. O Animal fora destruído, e os dois cadáveres foram cremados, com grandes manifestações de lamentação e raiva.

Em Gillikin, os bancos investiram seu dinheiro para torná-lo mais ativo e mais vibrante, as fábricas derramaram seus produtos no mercado, os comerciantes traíram suas esposas, os estudantes de Shiz sacaram novas proposições intelectuais, e a tropa dos trabalhadores mecânicos reuniu-se secretamente, no que fora uma vez o Clube de Filosofia, para ouvir o liberto e aflito Grommetik falar de uma revolução de classes. Lady Glinda teve uma noite ruim, uma noite de tremores e remorso e dor; ela achava que eram os primeiros sinais de gota que apareciam devido à sua dieta de fartura. Mas ela passou sentada a metade da noite e acendeu uma vela numa janela, por razões que não conseguiu definir. A lua passava por sua cabeça fazendo seu trajeto que começara no Vinkus, e ela sentiu seu reflexo acusador, e se afastou das janelas altas.

Através do baixo espinhaço de montes conhecidos como Madeleines, entrando pelo Cesto de Milho, olhando para dentro das janelas de Solos de Colwen, a lua prosseguiu sua jornada. Frex estava insone, sonhando com Coração de Tartaruga e, sim, com Melena, sua bela Melena, fazendo seu desjejum no dia em que ele fora pregar contra o relógio maligno. Melena era um manancial de beleza, enorme como um mundo, a derramar sobre ele coragem, ousadia, amor. Frex mal se moveu quando Shell entrou na ponta dos pés, voltando de algum encontro clandestino, e foi sentar-se ao seu lado na cama. Shell não teve certeza de que notou, não teve certeza de que seu pai realmente despertara. “O que nunca pude entender foram aqueles dentes”, murmurou Frex, “por que aqueles dentes?”

“Quem saberia?”, disse Shell afetuosamente, não entendendo o mur­múrio sonhador.

A lua na Cidade Esmeralda? Não pôde ser vista por ninguém; luzes claras demais, energia muito frenética, espíritos armados em demasia. Nin­guém olhava para ela. Num quarto, surpreendentemente despojado e simples para alguém de posição tão elevada, o insone Mágico de Oz esfregava o seu rosto, e meditava por quanto tempo sua sorte duraria. Ele havia pensado a mesma coisa por quarenta anos, e esperara que a sorte começasse a parecer uma coisa natural, questão de mérito inato. Mas ele ouvia os muitos ratos que roíam as fundações de seu Palácio. A chegada daquela Dorothy Tormenta, de Kansas, fora um sinal, ele sabia; ele soube disso ao olhar para o rosto da menina. Não adiantava mais procurar pelo Livro das Sombras. Seu anjo vingador viera para levá-lo para casa. Um suicídio esperava por ele lá no seu próprio mundo, e, a esta altura, ele devia ter aprendido o bastante para executá-lo com sucesso.

Ele enviara Dorothy, presa àqueles sapatos como ela estava, para matar a Bruxa. Ele enviara uma garota para fazer o trabalho de um homem. Se a Bruxa fosse vitoriosa ― bem, a garota encrenqueira teria sido tirada de seu caminho, então. No entanto, perversamente, de uma maneira paternal, ele meio que desejou que Dorothy fosse bem-sucedida em suas tentativas.

 

Tornou-se um evento festivo, a morte da Maléfica Bruxa do Oeste. Foi saudado como um assassinato político ou um crime suculento. A descrição de Dorothy sobre o que aconteceu foi tida como auto-engano, ou como uma men­tira descarada. Fosse crime ou morte por misericórdia ou acidente, de qualquer modo, contribuiu de modo indireto para livrar o país de seu ditador.

Dorothy, mais aturdida que nunca, fez seu caminho de volta para a Cidade Esmeralda com o Leão, o Homem de Lata, o Espantalho e com Liir. Ali teria tido sua segunda famosa audiência com o Mágico. Talvez ele tivesse tentado novamente arrancar os seus sapatos para as próprias conveniências, e talvez Dorothy tenha levado a melhor sobre ele, estimulada pelas advertências da Bruxa. De qualquer maneira, ela o presenteou com algo que levara da casa da Bruxa para provar que havia estado lá. A vassoura ficara queimada além de qualquer possibilidade de reconhecimento, e o Livro das Sombras parecera incômodo demais para carregar, portanto, ela levou a garrafa de vidro verde que dizia ELI MILAGRO no papel que estava colado na frente.

Deve ser meramente apócrifo que quando o Mágico viu a garrafa de vidro, soltou um grito sufocado, e apertou freneticamente o coração. A his­tória é contada de tantas maneiras, dependendo de quem narra, e do que o interlocutor precisa ouvir de cada vez! E questão para a história, contudo, que, depois de um curto tempo, o Mágico tenha fugido do Palácio. Ele teria partido da maneira como havia chegado ― num balão de ar quente ― poucas horas antes que ministros rebeldes pudessem liderar uma revolta no Palácio e realizar uma execução sem julgamento.

Um monte de absurdos circulou sobre a maneira como Dorothy deixou Oz. Há alguns que sustentam que ela nunca o fez; dizem, como diziam de Ozma antes dela, que está escondida, disfarçada, paciente como uma criada, à espera do dia em que haverá de voltar e se exibir novamente. Outros insistem que ela voou para o céu como uma santa fazendo a sua ascensão ao Outro MUNDO, acenando frivolamente o seu avental e carregando aquele maldito cãozinho estúpido.

Liir desapareceu no mar de gente da Cidade Esmeralda, à procura de sua meia-irmã, Nor. Não se ouviu falar dele por um bom tempo.

Não se importando com o que tivesse acontecido aos sapatos originais, todos se lembravam deles como objetos belos, até mesmo atordoantes. Imi­tações bem-feitas e com marcas parecidas ficaram disponíveis no mercado e não saíram de moda por um longo período. Os sapatos ou suas réplicas, com sua sugestão de mágica residual, apareceram em público em tantas cerimônias que, como as relíquias dos santos, começaram a se multiplicar para preencher a demanda do consumo.

E quanto à Bruxa? Na vida de uma Bruxa, não há depois, no para sem­pre de uma Bruxa, não há felizes; na história de uma Bruxa, não há palavra final. Daquela parte que fica além da história de vida, além da história da vida propriamente dita, não há ― ai de mim, ou talvez graças aos céus ― quem possa contar nada. Ela estava morta, morta e enterrada, e tudo que restou dela foi a carapaça de sua fama de maldosa.

 

 

 

                                                                               Gregory Maguire 

 

 

 

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Coxeando para casa sob um céu encarneirado, me deparo com um grupo de crianças. Estavam jogando seus brinquedos ao ar, cada uma contando e interpretando uma história. Uma peça sobre uma garota bonita que era desdenhada por suas meias-irmãs. An­gustiada, a criança se disfarçou para ir a um baile. Lá, a grande revi­ravolta: conheceu um príncipe que a adorou e iniciou um romance com ela. Sua felicidade eclipsava a situação difícil de suas meias-ir­mãs, cuja feiúra era motivo de grande caçoada.

Ouvi sem ser observada, pois os idosos são geralmente invisíveis para os jovens.

Pensei: como tudo isto se parece com alguma história antiga. Te­rão es­tas crianças entreouvido seus avós revirando velhos mexericos sobre mim e a minha família, e estão os pequeninos transformando um deles numa história de fadas doméstica? Cheia de toques fantás­ticos: sapatinhos de cristal, uma fada madrinha? Ou estão as crianças se vestindo segundo um relato mais antigo, ao qual a saga da minha família se assemelha apenas acidentalmente?

Nas vidas das crianças, abóboras podem se transformar em carruagens, camundongos, e ratos em seres humanos. Quando cres­cemos, aprendemos que é mais comum seres humanos se transfor­marem em ratos.

Nada na minha infância foi encantador. A sorte que se debruçou sobre nossas vidas foi cortesia do ciúme, da cobiça e do assassinato. E nada na minha infância foi encantado. Ou nada que eu pudesse enxergar na época. Se a magia estava presente, ela se movia debaixo da pele do mundo, debaixo da capacidade dos olhos humanos de a divisarem.

Além do mais, que tipo de magia é essa, se não pode ser vista?

Talvez todas as velhas desdentadas se reconheçam vendo crianças brincarem. Mesmo assim, na nossa época nós, meninas, raramente cabriolávamos nas ruas! Não éramos mocinhas turbulentas, nós não! — éramos mais como sérias noviças numa abadia. Posso invo­car uma prova muito apropriada. Posso espiá-la como se fosse uma pintura, através do nebuloso aparato da mente...

 

 

 

 

...Num quarto, três garotas, irmãs de certo modo, estão debru­çadas sobre um engradado. A tampa foi retirada e estamos remexendo no conteúdo. A camada superior são galhos de pinheiro espalhados. Embora tenham viajado uma longa distância, as folhas ainda recen­dem a um ar da China, origem da carga. Nós sibilamos e recuamos — arrghh! Bichos cor de estéreo, de algum lugar ao longo da Rota da Seda, se aninharam e se multiplicaram enquanto o navio rolava para o norte através da longa estrada do mar.

Mas os bichos não nos interrompem. Esperamos encontrar bul­bos para plantar, pois até mesmo nós, meninas, pegamos a febre. Estamos ansiosas por aqueles corações acebolados que nos prometem as flores das tulipas. Seria esse o engradado errado? Debaixo das folhas de pinheiro, apenas um pilha de pesados pratos de porcelana. Cada um está embrulhado num pano áspero, com mais galhos entremea­dos. O prato de cima — o primeiro — não sobreviveu intacto à via­gem. Quebrou-se em três pedaços.

Cada uma de nós pega um pedaço. Como as crianças adoram coisas quebradas! E um quebra-cabeça é juntar os cacos, especialmen­te para as jovens, que ainda acreditam ser possível.

Mãos adultas começam a remover o resto do valioso serviço de mesa Ming, como se em nossa impaciência pelos bulbos nós, garotas, tivéssemos quebrado o prato de cima. Caminhamos para um canto, à luz do dia — pintem a luz do dia da infância com uma cor de linho creme —, três garotas à janela. As arestas do disco se atritam como giz quando as juntamos. Achamos que a imagem nesse prato conta uma história, mas suas figuras são obscuras. Aqui a linha azul está borrada, ali é bem definida como o pêlo de um porco. Esta é uma história de duas pessoas, ou três, ou quatro? Estudamos o efeito geral.

Fosse eu um pintor, capaz de preservar um dia da minha vida em tintas a óleo e luz, eis o quadro que pintaria: três meninas pensativas com um prato quebrado. Cada pedaço contando uma parte da história. Na verdade, éramos crianças comuns, não tão calmas quanto a maioria. Um momento depois estávamos provavelmente brigando entre nós, aborrecidas pelos bulbos de tulipa perdidos. Barulhentas como os pequeninos que encontrei hoje. Mas deixem-me lembrar o que escolhi. Coloquem duas das meninas na sombra, a que pertencem, e deixem a luz esparramar-se sobre a terceira. Nossa tulipa, nossa Clara.

Clara era a menina mais bonita, mas sua vida foi...

 

 

 

 

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