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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAPA DOS DIAS / Ransom Riggs
MAPA DOS DIAS / Ransom Riggs

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

 

Eu nunca havia duvidado tanto da minha sanidade quanto naquela primeira noite, quando a mulher-ave e seus protegidos apareceram para impedir que me internassem em um hospital psiquiátrico. Eu estava espremido entre dois tios parrudos no carro dos meus pais quando um grupo de crianças peculiares pareceu sair direto da minha imaginação para a rua à nossa frente, como uma legião de anjos à luz dos faróis.
O carro cantou pneu e parou bruscamente, erguendo uma nuvem de poeira que apagou tudo do lado de fora do para-brisa. Será que eu havia conjurado ecos dos meus amigos, uma espécie de holograma trêmulo projetado das profundezas do meu cérebro? Qualquer coisa era mais plausível que a presença deles ali, naquele momento. Quando se trata de peculiares, tudo parece possível, mas receber uma visita deles era uma das poucas impossibilidades das quais eu ainda podia ter certeza.
Eu tinha escolhido deixar o Recanto do Demônio e voltar para casa, para onde meus amigos não poderiam ir. Tinha a esperança de, ao retornar, conseguir de algum modo unir os dois lados tão díspares da minha vida: o normal e o peculiar, o comum e o extraordinário.
Outra impossibilidade. Meu avô também havia tentado isso, sem sucesso. No fim das contas, acabou se isolando tanto de sua família peculiar quanto da normal. Sua recusa em escolher uma vida em detrimento da outra o condenou a perder ambas. E estava prestes a acontecer o mesmo comigo.
Vi alguém se aproximando em meio à poeira que baixava.

— Quem diabo é você? — perguntou meu pai.

— Alma LeFay Peregrine. Diretora-interina do Conselho de Ymbrynes e mentora destas crianças peculiares. Já nos encontramos antes, embora eu não espere que você lembre. Crianças, digam oi.

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO UM


É estranho o que a mente é capaz de absorver e aquilo a que ela resiste. Eu havia sobrevivido ao verão mais surreal que se pode imaginar (vagando por outros séculos, enfrentando monstros invisíveis, me apaixonando pela ex-namorada do meu avô que vivia congelada no tempo), mas só agora, na perfeita normalidade do presente, na casa em que eu crescera, é que eu tinha dificuldade em acreditar no que meus olhos viam.

Ali estava Enoch em nosso grande sofá bege, tomando uma Coca-Cola no copo do meu pai com o brasão de um time de futebol americano da Flórida; ali estava Olive, tirando os sapatos de chumbo para subir flutuando até o ventilador de teto e brincar de dar voltas; ali estavam Horace e Hugh em nossa cozinha, Horace observando as fotos na porta da geladeira enquanto Hugh procurava alguma coisa para comer; ali estava Claire, com as duas bocas abertas, encarando o monólito preto na parede, nossa televisão; ali estava Millard, folheando as revistas de decoração da minha mãe, que se erguiam sozinhas da mesa de centro e se abriam no ar, seus pés descalços deixando duas marcas no tapete. Era uma fusão de mundos que eu havia imaginado milhares de vezes, sem nunca sonhar que seria possível. Mas ali estava: meu Antes e meu Depois colidindo com a força de asteroides.

Millard já havia tentado me explicar como era possível que eles estivessem ali, aparentemente sem perigo e sem medo. O colapso da fenda temporal no Recanto do Demônio, que quase matara todos nós, havia reiniciado o relógio biológico deles. Ele não entendia muito bem o mecanismo, só sabia que não havia mais a ameaça de um repentino envelhecimento catastrófico se passassem muito tempo no presente. Envelheceriam um dia de cada vez, exatamente como eu. Ao que parecia, a dívida que carregavam, de anos e anos acumulados, fora perdoada — como se não tivessem passado a maior parte do século XX revivendo o mesmo dia ensolarado. Era um milagre inegável, algo sem precedentes na história peculiar, e ainda assim o que me assombrava muito mais era a presença deles ali: ao meu lado, Emma, a linda e forte Emma, os dedos entrelaçados nos meus, observando tudo em volta com um brilho de assombro nos olhos verdes. Emma, com quem eu tanto havia sonhado durante as longas e solitárias semanas que passara desde minha volta para casa. Ela usava um discreto vestido cinza que cobria os joelhos, sapatos sem salto bem resistentes que lhe permitiriam correr se fosse necessário, o cabelo claro preso em um rabo de cavalo. Décadas sendo responsável por aquelas crianças a haviam tornado uma pessoa muito prática, mas nem a responsabilidade nem o peso dos anos que ela carregava tinham sido capazes de apagar aquela faísca de menina que a iluminava de dentro para fora. Emma era ao mesmo tempo macia e dura, amarga e doce, velha e jovem. Essa capacidade de conter tantas coisas dentro de si era o que eu mais amava nela. Sua alma era infinita.

— Jacob?

Ela estava falando comigo. Tentei responder, mas minha cabeça estava mergulhada em oníricas areias movediças.

Ela acenou para mim, depois estalou os dedos, uma fagulha brotando em seu polegar como um isqueiro. O susto me arrancou do transe.

— Ah. Desculpa.

— Em que mundo você estava?

— Eu só... — Abanei a mão no ar como se afastasse teias de aranha. — É bom ver vocês, só isso.

Completar uma frase era como tentar abraçar uma dúzia de balões ao mesmo tempo.

O sorriso dela não foi capaz de esconder uma leve preocupação.

— Imagino como deve ser estranho para você, com todos nós aparecendo assim tão de repente. Espero que não tenha sido um choque terrível.

— Não, não. Quer dizer, um pouco. — Olhei em volta, observando todos os presentes na sala. Um caos alegre acompanhava nossos amigos onde quer que estivessem. — Será que eu não estou sonhando?

— Será que eu não estou? — Emma se virou para mim e segurou minha outra mão também. Seu calor e seu toque firme ajudaram a fixar o mundo real. — Nem sei quantas vezes, nesses anos todos, eu já me imaginei visitando essa cidadezinha.

A princípio não entendi, mas então... É claro. Meu avô. Ele havia morado ali desde antes de meu pai nascer; eu tinha visto o endereço da Flórida nas cartas que Emma guardava. O olhar dela se perdeu, como se estivesse vagando em lembranças, e senti uma dolorosa pontada de ciúme — mas logo depois veio a vergonha. O passado de Emma lhe pertencia, e, assim como eu, ela tinha toda razão para estar confusa com a colisão dos nossos mundos.

A srta. Peregrine entrou na sala parecendo um furacão. Havia tirado o sobretudo, revelando um chamativo casaco de tweed verde e uma calça de montaria, como se tivesse vindo a cavalo. Atravessou a sala disparando ordens e advertências em todas as direções:

— Olive, desça já daí! Enoch, tire os pés do sofá! — Com o dedo em riste e um olhar para a cozinha, ela me chamou: — Sr. Portman, temos questões que exigem sua atenção.

Emma me deu o braço e seguimos juntos, para meu alívio, pois o mundo ainda não havia parado totalmente de girar.

— Mal chegamos e vocês já vão ficar de namorico? — reclamou Enoch.

Emma rapidamente esticou a mão livre e queimou o alto do cabelo dele. Enoch se afastou batendo na cabeça, que soltava fumaça, e a risada que me escapou pareceu afastar um pouco da névoa em minha mente.

Sim, meus amigos eram reais e estavam bem ali. Não só isso: a srta. Peregrine tinha dito que eles ficariam por um tempo. Para aprender um pouco sobre o mundo moderno. Tirar umas férias, um merecido descanso dos horrores vividos no Recanto do Demônio — que se tornara o lar temporário deles após a destruição do imponente casarão de Cairnholm. É claro que eram todos bem-vindos, e eu jamais conseguiria expressar minha gratidão por sua presença, mas como seria isso, exatamente? O que fariam meus pais e meus tios, que naquele momento estavam na garagem, sendo vigiados por Bronwyn? Era muita coisa para processar, então decidi adiar aqueles pensamentos.

Absortos numa discussão diante da geladeira aberta, a srta. Peregrine e Hugh pareciam absurdamente deslocados naquela profusão de aço escovado e acabamentos modernos da cozinha, como atores que tivessem ido parar no set do filme errado. Hugh mostrava um pacote de queijo processado em fatias embaladas individualmente.

— Mas só tem coisas estranhas aqui, srta. Peregrine, e eu não como nada há séculos!

— Não exagere, querido.

— Não estou exagerando. É 1886 no Recanto do Demônio, e foi lá que tomamos café da manhã.

Horace saiu da área da despensa batendo a porta.

— Terminei meu levantamento e estou francamente abismado. Bicarbonato de sódio, uma lata de sardinhas e um pacote de massa pronta para bolo infestada de insetos. O governo está racionando alimentos? Estamos no meio de alguma guerra?

— A gente geralmente pede comida — expliquei, me aproximando. — Meus pais não são muito de cozinhar.

— Então de que serve uma cozinha tão magnífica? — quis saber Horace. — Sei que sou um grande chef, mas não há quem consiga preparar algo do zero.

A verdade é que meu pai tinha visto aquela cozinha em uma revista de decoração e se convencido de que precisava ter uma igual. Tentou justificar o custo prometendo aprender culinária e oferecer memoráveis jantares em família, mas, como muitos de seus planos, esse também esfriou e morreu depois de algumas poucas aulas. Então, agora tínhamos uma cozinha caríssima usada quase exclusivamente para descongelar refeições prontas e requentar sobras de delivery.

Em vez de explicar tudo isso, apenas dei de ombros.

— Estou certa de que mais cinco minutos não farão vocês morrerem de fome — disse a srta. Peregrine, expulsando os dois da cozinha. — Muito bem, sr. Portman. Você me pareceu um tanto atordoado. Está se sentindo bem?

— Melhor a cada minuto — respondi, ainda que um pouco envergonhado.

— Você pode estar sofrendo de um caso leve de lag temporal — explicou a srta. Peregrine. — Um tanto tardio, eu diria. É perfeitamente normal entre nós que viajamos no tempo, sobretudo entre os menos experientes. — Ela falava comigo enquanto perambulava pela cozinha, espiando dentro dos armários. — Os sintomas costumam ser leves, embora haja exceções. Quando começaram as vertigens?

— Foi só quando vocês chegaram, mas não se preocupe, eu estou bem, de verdade...

— Úlceras venosas, joanetes inflamados ou enxaquecas?

— Nada disso.

— Perturbações mentais repentinas?

— Hã... não que eu lembre.

— Lag temporal não é motivo de riso, sr. Portman. Pessoas morrem por não se tratarem. Ah, biscoitos! — exclamou a srta. Peregrine, sacudindo um cookie que pegara de uma lata e dando uma mordida. — Vermes nas fezes? — prosseguiu ela em seu questionário, enquanto mastigava.

Contive uma risada de incredulidade.

— Não.

— Gravidez espontânea?

Emma fez uma careta.

— A senhorita só pode estar brincando!

— Já houve casos. Ou melhor, um único caso. Ao que sabemos — esclareceu a srta. Peregrine, pousando a lata de biscoitos e me encarando fixamente. — Com um homem.

— Eu não estou grávido! — retruquei, um pouco alto demais.

— Ainda bem! — gritou alguém, lá da sala.

A srta. Peregrine me deu um tapinha no ombro.

— Creio que não seja nada. Mas eu deveria tê-lo alertado.

— Acho que foi melhor não saber — respondi.

Eu teria ficado paranoico. Além do mais, se eu tivesse passado aquele mês comprando testes de gravidez às escondidas e procurando vermes nas minhas fezes, meus pais já teriam me mandado para o hospício muito antes.

— Ótimo — disse a srta. Peregrine. — Agora, antes que possamos todos descansar e conversar, vamos a algumas questões. — Ela começou a andar em círculos pela cozinha, no pequeno espaço entre os fornos duplos e a pia. — Item número um: segurança e proteção. Já avaliei os arredores da casa. Tudo parece em ordem, mas as aparências enganam. Há algo que eu deva saber sobre seus vizinhos?

— Tipo o quê?

— Histórico criminal, tendências violentas, coleções de armas de fogo...

Tínhamos apenas dois vizinhos: a octogenária sra. Melloroos, que vivia numa cadeira de rodas e só saía de casa acompanhada pela enfermeira, e um casal alemão que passava a maior parte do ano sabe-se lá onde, só aparecendo no exagerado casarão para passar o inverno, já que é uma área mais quente do país.

— A sra. Melloroos é meio intrometida às vezes — falei —, mas, se ninguém fizer nada peculiar demais no jardim dela, acho que não vai nos trazer problemas.

— Entendido. Item dois: você identificou a presença de algum etéreo desde que retornou para casa?

Senti meu coração dar um salto ao ouvir aquela palavra, que não havia cruzado meus pensamentos nem meus lábios fazia semanas.

— Não — respondi rápido. — Por quê? Teve mais algum ataque?

— Não. Nenhum sinal deles, na verdade. É o que me preocupa. Bem, em relação à sua família...

— Não matamos ou capturamos todos eles no Recanto do Demônio? — interrompi, me recusando a deixar o assunto de lado assim tão rápido.

— Não todos, exatamente. Um pequeno núcleo escapou com alguns acólitos depois de nossa vitória, e acreditamos que eles tenham cruzado o oceano até aqui. Duvido que tenham coragem de se aproximar de você, acredito que essa lição eles aprenderam, mas só posso imaginar que estejam planejando algo. Cautela nunca é demais.

— Eles morrem de medo de você, Jacob — comentou Emma, orgulhosa.

— Sério?

— Depois da surra que você deu neles, seriam estúpidos se não tivessem medo — comentou Millard, sua voz surgindo de algum ponto perto da porta da cozinha.

— Pessoas educadas não bisbilhotam conversas particulares — ralhou a srta. Peregrine.

— Não estou bisbilhotando, estou com fome. Também fui enviado para lhe pedir que não monopolize Jacob. Todos nós viemos de muitíssimo longe para vê-lo.

— Eles sentiram muita falta de Jacob — confirmou Emma à srta. Peregrine. — Quase tanto quanto eu.

— Bem, talvez esta seja uma boa hora para um discurso de boas-vindas, sr. Portman — concordou a ymbryne. — Explique a eles as regras básicas.

— Regras básicas? Como assim?

— São meus protegidos, sr. Portman, mas esta é sua cidade e sua época. Vou precisar de sua ajuda para orientar as crianças e evitar problemas.

— Se não morrerem de fome primeiro — comentou Emma.

Eu me virei para a srta. Peregrine.

— O que você ia dizer antes, sobre a minha família?

Não podíamos prendê-los na garagem para sempre, e eu estava começando a ficar nervoso, sem saber como conviveríamos com eles na mesma casa.

— Não há com que se preocupar — respondeu a srta. Peregrine. — Bronwyn tem a situação sob controle.

As palavras mal tinham saído de sua boca quando ouvimos um estrondo de tremer as paredes, e parecia vir da garagem. Os copos de uma prateleira próxima se espatifaram no chão.

— Isso me pareceu nitidamente fora de controle — comentou Millard.

Já estávamos correndo.


— Não saiam daqui! — gritou a srta. Peregrine na direção da sala de estar.

Saí disparado da cozinha, Emma nos meus calcanhares, a adrenalina me impulsionando. Eu não sabia o que esperar quando entramos a toda na garagem. Fumaça? Sangue? Tinha parecido uma explosão. O que eu definitivamente não imaginava encontrar eram meus pais e tios estirados no carro, dormindo feito bebês. A traseira do veículo estava encaixada em um imenso amassado na porta de correr da garagem, e caquinhos das lanternas brilhavam no chão ao redor. O motor zunia, ainda ligado.

Bronwyn estava parada em frente ao carro, o para-choque nas mãos.

— Puxa vida, me desculpa, eu não sei como isso foi acontecer — disse ela, e largou o para-choque, que atingiu o chão com um clangor.

Percebendo que eu precisava desligar o motor para não morrermos sufocados, corri até a porta do motorista, mas estava trancada. É claro: minha família, lá dentro, devia ter feito de tudo para evitar contato com Bronwyn. Com certeza haviam passado aquele tempo todo aterrorizados.

— Deixe que eu abro — disse Bronwyn. — Para trás!

Ela firmou os pés e segurou a maçaneta da porta com as duas mãos.

— O que você vai...? — comecei.

Não terminei a pergunta, pois, com um puxão potente, Bronwyn arrancou a porta das dobradiças. A grande peça de metal saiu voando de suas mãos e foi se cravar na parede dos fundos, com um barulho que me empurrou para trás quase como uma força física.

— Porcaria! — exclamou Bronwyn no silêncio atordoado que se seguiu.

A garagem de nossa casa estava começando a parecer uma das casas bombardeadas que eu tinha visto na Londres da época da guerra.

— Bronwyn! — gritou Emma, só então baixando os braços da cabeça. — Você poderia ter decapitado alguém!

Eu me enfiei pelo buraco onde antes ficava a porta do motorista e, esticando o corpo sobre meu adormecido pai, tirei as chaves da ignição. Minha mãe estava caída no ombro dele, e meu pai roncava. No banco traseiro, meus tios dormiam abraçados. Ninguém havia se mexido, mesmo com toda aquela barulheira. Eu só conhecia uma substância capaz de fazer alguém cair em sono tão profundo: o pó da Mãe Poeira. Quando saí do carro, Bronwyn tentava explicar o ocorrido, e vi que ela segurava justamente uma bolsinha da substância.

— O homem atrás... — dizia ela, apontando para meu tio Bobby. — Eu vi ele usar o... o negocinho... — Ela tirou o aparelho do bolso dele.

— O celular — falei.

— Isso — continuou ela. — Então eu peguei o negócio da mão dele, e aí todos endoideceram de vez feito cavalos chucros, então fiz como a senhorita me mostrou...

— Você usou o pó? — perguntou a srta. Peregrine.

— É, soprei no rosto deles, mas não fez efeito logo de cara. Então o pai do Jacob ligou o carro, mas, em vez de ir para a frente, ele... ele... — Escapando-lhe as palavras, Bronwyn indicou a porta da garagem com um gesto.

A srta. Peregrine lhe deu uns tapinhas no braço.

— Eu entendo, querida. Você lidou com a situação muito bem.

— Bem mal, você quer dizer — completou Enoch.

Quando nos viramos, vimos todos os outros peculiares aglomerados na porta, espiando.

— Eu mandei vocês não saírem de lá! — repreendeu a srta. Peregrine.

— Depois daquele barulhão?! — retrucou Enoch.

— Desculpa, Jacob — disse Bronwyn. — Eles estavam muito agitados, e eu não sabia o que fazer. Não machuquei ninguém, né?

— Acho que não. — Eu já tinha experimentado o sono aconchegante induzido pelo pó da Mãe Poeira e sabia que não era nada horrível passar algumas horas sob seu efeito. — Posso ver o celular do meu tio?

Bronwyn me entregou o aparelho. A tela estava toda rachada, mas ainda dava para ler. Quando a luzinha se acendeu, vi uma sequência de mensagens da minha tia:

O que está acontecendo?
Que horas vc vai chegar?
Tá tudo bem???

Em resposta, tio Bobby tinha começado a digitar CHAME A POLÍCIA, mas provavelmente se deu conta de que poderia ele mesmo fazer isso. Só que não deu tempo, porque Bronwyn tomou o celular dele. Mais alguns segundos, e talvez estivéssemos recebendo uma visita da SWAT. Senti um aperto no peito ao pensar em como aquilo poderia ter evoluído rapidamente para algo bem perigoso e complicado. Quer dizer, pensei, olhando para o carro destruído e a parede destruída e a porta destruída. Já evoluiu.

— Não se preocupe, Jacob — disse a srta. Peregrine. — Já passei por situações bem mais delicadas. — Ela estava circundando o carro, avaliando o estrago. — Sua família vai dormir profundamente até amanhã, e acredito que deveríamos tentar fazer o mesmo.

— E depois? — insisti, ansioso e começando a suar no ambiente não refrigerado da garagem.

— Quando acordarem, vou apagar a memória recente deles e mandar seus tios para casa.

— Mas o que eles vão...

— Vou explicar que somos parentes distantes da família do seu pai, vindos da Europa para oferecer nossas condolências pela morte de Abe. Quanto à sua visita marcada no hospital, você já está se sentindo muitíssimo melhor e não necessita mais de cuidados psiquiátricos.

— Mas e...

— Ah, eles vão acreditar. Os normais sempre ficam altamente suscetíveis após uma limpeza de memória. Poderíamos convencê-los até de que viemos de uma colônia na Lua.

— Srta. Peregrine, por favor, pare com isso.

Ela sorriu.

— Perdão. Um século como diretora me treinou a adivinhar questionamentos, em nome da praticidade. Agora, vamos, crianças. Precisamos discutir os protocolos para os próximos dias. Temos muito a aprender sobre o presente, e nada melhor que o momento presente para começarmos.

Dito isso, ela começou a reunir todos e a conduzi-los para fora da garagem, enquanto a metralhavam de perguntas e reclamações.

— Quanto tempo vamos ficar? — quis saber Olive.

— Podemos sair amanhã para conhecer a cidade? — pediu Claire.

— Preciso comer alguma coisa antes que eu desapareça da face da Terra — disse Millard.

Então me vi sozinho na garagem, em parte porque me sentia mal com a ideia de deixar minha família passar a noite ali, mas também porque a limpeza de memória me assustava. Embora a srta. Peregrine parecesse confiante, daquela vez seria preciso algo bem maior que os dez minutos de lembranças que ela apagara em Londres. E se ela não apagasse o bastante? Ou se apagasse demais? E se meu pai esquecesse tudo que sabia sobre aves ou minha mãe esquecesse o francês que aprendera na faculdade?

Fiquei um tempo observando-os dormir, o peso dessas dúvidas assentando sobre mim. E me senti subitamente, desconfortavelmente adulto diante daqueles quase bebês — vulneráveis, tranquilos, babando um pouquinho.

Tinha que haver uma alternativa.

Emma surgiu à porta.

— Está tudo bem? — perguntou ela. — Acho que os meninos vão entrar em parafuso se não providenciarmos logo algum jantar.

— Não queria deixá-los aqui — expliquei, indicando minha família.

— Eles não vão a lugar algum. E não precisam ser vigiados. Com a dose que receberam, só devem acordar amanhã à tarde.

— Eu sei, é só que... me sinto meio mal.

— Não fique assim. — Ela se aproximou. — Não é sua culpa. Não mesmo.

— Eu sei. É que parece meio triste, só isso.

— O quê?

— Que o filho de Abe Portman nunca venha a saber como seu pai foi um homem especial.

Emma pegou meu braço e o colocou sobre os próprios ombros.

— Acho mil vezes mais trágico que ele nunca venha a saber como seu filho é um homem especial.

Eu estava me inclinando para beijá-la quando o celular do meu tio vibrou no meu bolso. Nós dois levamos um susto. Era uma nova mensagem da minha tia:

Já internaram o doidinho?

— O que diz? — perguntou Emma.

— Nada de mais. — Guardei o celular de volta e me dirigi à porta. De repente, não me parecia mais tão cruel deixar que passassem a noite na garagem. — Vamos, temos que inventar um jantar.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Apaguei as luzes antes de sairmos.


Sugeri que pedíssemos pizza de um restaurante que ficava aberto até mais tarde. Só algumas das crianças sabiam o que era uma pizza, enquanto o conceito de entrega em domicílio era desconhecido para todos.

— Eles preparam a comida em outro local e depois trazem na sua casa? — perguntou Horace, como se a ideia fosse ligeiramente obscena.

— Pizza... — disse Bronwyn. — É um prato típico aqui da Flórida?

— Na verdade, não — respondi. — Mas confiem em mim: vocês vão gostar.

Fiz um pedido gigantesco, e nos distribuímos pelos sofás e poltronas da sala para esperar. A srta. Peregrine sussurrou no meu ouvido:

— Acho que está na hora daquele discurso.

Sem esperar uma resposta, ela pigarreou e já foi anunciando que eu gostaria de dizer algumas palavras. Assim, fiquei de pé e comecei, meio sem jeito, meu improviso:

— Estou muito feliz por ter vocês todos aqui comigo. Não sei se sabem aonde minha família pretendia me levar hoje, mas não era um lugar legal. Quer dizer... — Hesitei. — Quer dizer, talvez seja legal para algumas pessoas, tipo, pessoas com problemas mentais de verdade, mas... Bem, se não fosse por vocês, confesso que eu estaria agora na maior merda.

A srta. Peregrine fechou a cara.

— Sem você, nós é que estaríamos na... — Bronwyn olhou de relance para a diretora antes de concluir a frase — ... lama. Só estamos retribuindo o favor.

— Obrigado. Quando vocês chegaram, achei que fosse um sonho, porque desde que nos conhecemos eu sonhava em ver todos vocês aqui. Foi bem difícil acreditar que aquilo estava acontecendo de verdade. Bem, mas o que importa é que vocês estão aqui, e espero que eu consiga recebê-los tão bem quanto vocês me receberam na sua fenda temporal. — Baixei os olhos, envergonhado. — Então é isso, pessoal. Muito feliz, amo vocês, acabou o discurso.

— Também te amamos! — disse Claire, pulando da cadeira para ir me abraçar.

Olive e Bronwyn se juntaram a ela, e logo estavam todos esmagando meus pulmões em um grande abraço coletivo.

— É tão bom estar aqui! — exclamou Claire.

— ... e não no Recanto do Demônio! — completou Horace.

— Vamos nos divertir à beça! — cantarolou Olive.

— Mil perdões por destruirmos sua casa — desculpou-se Bronwyn.

— Ei, quem destruiu foi você — corrigiu Enoch.

— Ar... — consegui dizer. — Preciso... ar...

Então eles se afastaram um pouco, e pude respirar. Hugh se meteu no meio do círculo e me cutucou no peito, dizendo:

— Não estamos todos aqui, esqueceu? — Uma única abelha zumbia e desenhava círculos agitados em torno de sua cabeça. Os outros se afastaram, dando espaço para Hugh e seu inseto enfurecido. — Você disse que está feliz por estarmos todos nós aqui. Não estamos.

Não entendi de imediato o que ele estava dizendo, mas, quando entendi, fiquei envergonhado.

— Sinto muito, Hugh. Não foi minha intenção falar como se Fiona não existisse.

Ele baixou os olhos para as meias listradas.

— Às vezes parece que todo mundo a esqueceu, menos eu. — Notei que seu lábio tremia, depois vi que ele fazia força para não chorar. — Ela não morreu, sabe?

— Espero que não.

Ele ergueu o rosto e me encarou com um olhar desafiador.

— Ela não morreu.

— Tudo bem. Ela não morreu.

— Sinto muita falta dela, Jacob.

— Todos nós sentimos. Eu não a esqueci. Desculpa.

— Desculpas aceitas.

Hugh limpou o rosto, virou-se e saiu da sala.

— Pode não parecer, mas isso foi um progresso — disse Millard após um segundo.

— Com a gente ele mal fala — completou Emma. — Está revoltado e se recusa a aceitar a verdade.

— Vocês não acham possível que Fiona esteja viva em algum lugar?

— Eu diria improvável — respondeu Millard.

A srta. Peregrine fez uma expressão de desagrado e levou o dedo aos lábios, pedindo silêncio. Estava nos puxando discretamente para um canto da sala e, com as mãos em nossas costas, nos reuniu em um grupinho separado.

— Entramos em contato com todos os grupos de peculiares que conhecemos, em todas as fendas temporais — disse ela, baixinho. — Mandamos comunicados, avisos, fotografias, descrições detalhadas... Até enviei as pombas peculiares da srta. Wren para sobrevoarem as florestas próximas à procura de Fiona. Até agora, nada.

Millard suspirou.

— Se ela estivesse viva... pobrezinha... já não teria nos procurado? Não é difícil nos achar.

— Tem razão — comentei. — Mas alguém já tentou encontrar o... bem...

— O corpo dela? — completou Millard.

— Millard, por favor — reclamou a diretora.

— Isso foi indelicado? Devo usar um termo mais vago?

— Quieto — sussurrou a srta. Peregrine.

Não é que Millard não tivesse sentimentos; ele só não era muito bom em considerar os sentimentos dos outros.

— A queda que provavelmente matou Fiona — explicou ele — ocorreu na fenda de animais da srta. Wren, que depois foi destruída. Mesmo que o corpo dela tenha ficado lá, jamais poderemos recuperá-lo.

— Tenho pensado se não deveríamos realizar uma cerimônia de despedida para Fiona — comentou a srta. Peregrine —, mas a simples menção ao assunto faria Hugh mergulhar numa profunda depressão. Temo que, se forçarmos, ele...

— Ele nem quer adotar abelhas novas — contou Millard. — Diz que não poderia amá-las como amava as anteriores igualmente, pois elas nunca conheceriam Fiona. Só mantém a última que sobrou, que, a esta altura, já está em uma idade bem avançada.

— Acho que essa mudança de ares vai fazer bem a ele — comentei.

Foi quando a campainha tocou. Bem na hora, pois o clima estava cada vez mais pesado.

Claire e Bronwyn fizeram menção de me acompanhar até a porta para receber as pizzas, mas a srta. Peregrine foi rápida em impedi-las.

— Aonde pensam que vão? Vocês ainda não estão preparadas para conversar com normais.

Pessoalmente, eu achava que não teria grandes problemas se elas conhecessem o entregador de pizza... até abrir a porta e ver um garoto da minha escola, equilibrando uma pilha de caixas nas mãos.

— Noventa e quatro e sessenta — murmurou ele mecanicamente, mas de repente fez uma cara de surpresa. — Ei, olha só! Jacob?

— Justin. Oi.

O nome dele era Justin Pamperton, embora todo mundo o chamasse de Pampers. Era um dos skatistas maconheiros que viviam nos estacionamentos desertos da nossa escola.

— Tá com uma cara boa — disse ele. — Você... tipo, tá melhor?

— Como assim? — perguntei, embora na verdade não quisesse saber o que ele queria dizer, e contei o dinheiro o mais rápido que podia (mais cedo eu havia saqueado a gaveta de meias dos meus pais, onde sempre tinha algumas notas escondidas).

— Andaram dizendo por aí que você, tipo, deu uma pirada. Com todo o respeito.

— Hum, não — respondi. — Eu estou bem.

— Beleza — disse ele, assentindo como um bonequinho de mola. — Porque o que me falaram foi que...

Ele parou no meio da frase. Alguém lá dentro estava rindo.

— Tá rolando uma festa na sua casa, cara?

Peguei as pizzas e enfiei as notas na mão dele.

— Mais ou menos — respondi. — Pode ficar com o troco.

— Com garotas? — Ele tentou dar uma olhada dentro da casa, mas fui para o lado, bloqueando sua visão. — Daqui a uma hora eu tô largando o trabalho, posso trazer umas cervejas...

Nunca quis tanto que alguém sumisse da minha frente.

— Desculpa, mas é meio que particular.

Ele pareceu impressionado.

— Mandou bem, cara. — Ele ergueu a mão para bater na minha, mas no meio do caminho, lembrando que eu estava segurando as pizzas, fechou a mão e deu um soquinho no ar para disfarçar. — A gente se vê semana que vem.

— Semana que vem?

— As aulas, cara! Em que planeta você andou?

Ele voltou com seu andar meio gingado para a moto ainda ligada, balançando a cabeça e rindo sozinho.


Todas as conversas pararam assim que as pizzas foram distribuídas. Por três minutos inteiros, só se ouvia o ruído de mastigação e os ocasionais gemidos de satisfação. Enquanto isso, fiquei pensando nas palavras de Justin. As aulas voltariam em uma semana; eu havia esquecido totalmente. Antes de meus pais concluírem que eu estava maluco e decidirem me internar, eu estava determinado a voltar para o colégio. Meu plano era ficar em casa até me formar, depois fugir para Londres para viver com Emma e meus amigos, mas agora os amigos que pareciam tão distantes e todo aquele mundo inacessível tinham surgido à minha porta. Da noite para o dia, tudo havia mudado. Meus amigos agora podiam andar por onde (e em qualquer época) quisessem. Será que eu aguentaria passar o dia inteiro sentado aturando aulas intermináveis, almoços e palestras sabendo que estavam todos me esperando?

Talvez não, mas era muita coisa para processar naquele momento, com a pizza no meu prato, ainda tonto com o fato de tudo aquilo ser possível. Ainda faltava uma semana. Eu tinha tempo. Por enquanto, podia apenas comer e aproveitar a companhia.

— Essa é a melhor comida do mundo! — anunciou Claire, com a boca cheia de queijo derretido. — Vou comer isso todo dia.

— Não se quiser continuar viva até o fim da semana — comentou Horace, tirando as azeitonas de sua fatia com uma precisão cirúrgica. — Só nesse pedaço tem mais sódio do que em todo o Mar Morto.

— Está com medo de ficar gordo? — zombou Enoch. — Horace Bola. Eu bem ia gostar de ver isso.

— Medo de inchar — corrigiu Horace. — Minhas roupas são feitas sob medida, ao contrário dos sacos de batata que você usa.

Enoch fez uma autoavaliação. Ele vestia uma camisa cinza simples, um colete preto, uma calça preta com a barra desfiada e sapatos de couro já há muito sem brilho.

— Minhas roupas são de Parrí — respondeu ele, forçando um sotaque francês. — Arrumei com um rapaz bem alinhado que não faria mais uso delas.

— Um rapaz morto — comentou Claire, com uma careta de nojo.

— Funerárias são as melhores butiques de artigos de segunda mão — disse Enoch, dando uma mordida imensa na pizza. — É só ter o cuidado de pegar as roupas antes que o ocupante comece a emanar fluidos.

— Perdi o apetite — reclamou Horace, largando o prato na mesa de centro.

— Trate de terminar sua refeição — ordenou a srta. Peregrine. — Nada de desperdício.

Com um suspiro, ele obedeceu.

— Às vezes eu invejo Millard. Ele poderia engordar cem quilos e ninguém perceberia.

— Para sua informação, eu sou muito esbelto — retrucou Millard, fazendo um barulho que só podia ser um tapa na barriga nua. — Venha me apalpar, se não acredita.

— Obrigado, mas dispenso.

— Pelo amor das aves, vista-se, Millard — reclamou a srta. Peregrine. — O que foi que eu disse sobre nudez desnecessária?

— Que diferença faz, se ninguém pode me ver?

— É deselegante.

— Mas está muito quente!

— Agora, sr. Nullings.

Millard saiu resmungando algo sobre puritanos ao passar. Voltou um minuto depois, com uma toalha amarrada na cintura, o que a srta. Peregrine também reprovou. Quando ele retornou pela segunda vez, estava soterrado de roupas encontradas no meu armário: botas, calça de lã, casaco, cachecol, chapéu e luvas.

— Assim você vai morrer sufocado! — exclamou Bronwyn.

— Pelo menos ninguém é obrigado a me imaginar como vim ao mundo! — reclamou ele, o que teve o efeito desejado de irritar a srta. Peregrine.

Alegando que precisava fazer outra verificação de segurança, ela deixou a sala.

Na mesma hora, explodimos em risadas que estávamos segurando durante toda a cena.

— Viram a cara dela? — comentou Enoch. — Por pouco ela não esgana você, Millard!

A dinâmica entre as crianças e a srta. Peregrine havia mudado um pouco. Elas pareciam mais adolescentes, inclusive no sentido negativo, como se estivessem começando a testar sua autoridade.

— Vocês estão sendo maus! — reclamou Claire. — Parem com isso!

Bem, nem todos estavam agindo diferente.

— Você não acha cansativo levar bronca por qualquer coisinha? — perguntou Millard.

— Coisinha! — exclamou Enoch, com uma gargalhada. — Millard tem uma... Aaaaaaai!

Claire tinha mordido seu ombro com a boca de trás. Enquanto Enoch esfregava o local, ela reclamou:

— Não, não acho cansativo. E é estranho você ficar pelado na presença de moças.

— Blá-blá-blá — debochou Millard. — Mais alguém se incomoda?

Todas as meninas levantaram a mão.

Millard suspirou.

— Tudo bem, então. Adotarei a prática das vestimentas completas em período integral, para não ferir a sensibilidade alheia em relação a fatos básicos da biologia.


Conversamos até cansar. Era tanto assunto para colocar em dia! Voltamos muito rápido à antiga intimidade, como se tivéssemos passado apenas alguns dias separados, não quase seis semanas. Muitas coisas haviam acontecido naquele período — com eles, pelo menos. Emma já havia me contado algumas, por cartas, mas tinha muito mais, e eles começaram a narrar suas aventuras na exploração de lugares peculiares com o Polifendador. Por segurança, foram somente a fendas em que as ymbrynes já haviam feito um reconhecimento inicial e considerado seguras, já que ainda não se sabia muito bem o que os aguardava atrás daquelas muitas portas.

Em uma fenda temporal na Mongólia de milênios atrás, eles conheceram um pastor peculiar que falava a língua das ovelhas e por isso não precisava de cajado nem cão para conduzir seu rebanho. Olive tinha gostado especialmente da fenda que visitaram na Cordilheira do Atlas, no norte da África, onde todos os peculiares de certa cidadezinha eram flutuadores como ela. Havia telas instaladas por toda a cidade, para que as pessoas pudessem seguir com suas vidas sem a necessidade de usar pesos: elas iam de um lugar a outro como acrobatas em gravidade zero. Havia também uma interessante fenda temporal na Amazônia que se tornara um destino popular entre eles, uma fantástica cidade no meio da floresta, em que todos os caminhos, pontes e casas eram feitos de árvores, raízes e galhos trançados. Os peculiares de lá eram capazes de manipular as plantas, como Fiona, o que fizera Hugh voltar às pressas para o Recanto do Demônio.

— O clima era quente demais, e os insetos eram um transtorno — contou Millard —, mas as pessoas eram muitíssimo acolhedoras. Elas nos ensinaram a fazer remédios fantásticos com plantas.

— E, para pescar, eles usam um veneno especial que deixa os peixes tontos, não os mata — contou Emma. — Assim, podem simplesmente pegar da água a quantidade que querem. Muito espertos.

— Fizemos muitas outras viagens! — disse Bronwyn. — Emma, mostre suas fotos para ele!

Emma se levantou do sofá e foi correndo pegar as fotografias na bagagem. Quando voltou, nos reunimos em torno do abajur para vê-las.

— Ainda não sei tirar fotos muito bem, tem pouco tempo que comecei...

— Deixe de modéstia — falei. — As que você me mandou junto com as cartas eram incríveis.

— Argh, tinha esquecido isso.

Emma não era nada exibida, mas também não tinha constrangimento em assumir o que fazia bem. Se ela estava com vergonha das fotos que havia tirado, era porque tinha expectativas altas e queria alcançá-las. Para minha sorte (não sou muito bom em fingir entusiasmo), Emma tinha um talento nato. E, embora a composição, o ângulo e a exposição fossem interessantes (não que eu seja um especialista), era o tema o que as tornava únicas — e, em alguns casos, terríveis.

A primeira foto mostrava um grupo de vitorianos posando casualmente como se estivessem em um piquenique, só que sobre telhados desabados de casas que pareciam ter sido esmagadas por um gigante raivoso.

 

 

— Um terremoto no Chile — explicou Emma. — Imprimi em um papel que não envelheceu bem desde que saímos do Recanto. Uma pena.

Ela passou para a fotografia seguinte: um trem descarrilado. Em volta, havia diversas crianças (peculiares, imagino), algumas de pé, outras sentadas. Todas sorriam como se estivessem se divertindo muito.

 

 

— Acidente de trem — explicou Millard. — A carga era algum tipo de substância química volátil. Poucos minutos depois que tiramos essa foto, quando já estávamos a certa distância, vimos o trem explodir. Uma cena e tanto.

— Por que vocês foram a essas cenas trágicas? — perguntei. — A fenda temporal da Amazônia deve ser bem mais divertida.

— Estávamos ajudando Sharon — respondeu Millard. — Você se lembra dele? O barqueiro do Recanto do Demônio, alto, de capa. Cultivava amizade com ratos...

— Como eu poderia esquecer?

— Ele está usando o Polifendador para montar um novo roteiro do Pacote Fome e Chamas e pediu que testássemos uma versão experimental. Além do terremoto e do acidente de trem, conhecemos uma cidade em Portugal em que chovia sangue.

— Sério?

— Eu não fui nessa — disse Emma.

— Sorte a sua — comentou Horace. — Nossas roupas ficaram manchadas para sempre.

— Pelo visto, vocês se divertiram bem mais que eu — falei. — Acho que só saí de casa umas seis vezes desde que me despedi de vocês.

— Espero que isso mude — disse Bronwyn, animada. — Eu sempre quis conhecer os Estados Unidos, ainda mais no presente. Nova York fica muito longe daqui?

— Sinto dizer que sim.

— Ah — lamentou ela, afundando entre as almofadas do sofá.

— Eu queria visitar Muncie, em Indiana — disse Olive. — O guia diz que você não viveu até visitar Muncie.

— Que guia?

— Planeta Peculiar: América do Norte — respondeu ela, erguendo um livro com uma capa verde já bem gasta. — É um guia de viagens para peculiares. Ele elegeu Muncie a Cidade Mais Normal por seis anos seguidos. Totalmente comum em tudo!

— Esse guia está muito desatualizado — disse Millard. — É provável que não tenha mais serventia alguma.

— Diz aqui que nada de estranho ou fora do comum acontece por lá — continuou Olive, ignorando-o. — Nunca!

— Nem todo mundo acha as pessoas normais tão interessantes quanto você — lembrou Horace. — Além do mais, essa cidade deve ser infestada de turistas peculiares.

Olive, que estava sem seus sapatos de chumbo, flutuou por cima da mesa de centro até o sofá onde eu estava e largou o livro no meu colo, aberto numa página que descrevia as acomodações para peculiares mais próximas da tal cidade: um lugar chamado Hospedaria Boca do Palhaço, em uma fenda temporal nos arredores de Muncie. Como o nome sugeria, eram quartos dentro de uma gigantesca escultura de gesso em forma de cabeça de palhaço.

 

 

Achei aquilo bem esquisito e fechei logo o livro.

— Não precisamos ir tão longe para conhecer lugares comuns. Existem vários bem aqui em Englewood, podem acreditar.

— Vocês fiquem à vontade para fazer o que quiserem — disse Enoch. — De minha parte, meus únicos planos para as próximas semanas são dormir até meio-dia e sentir a areia quentinha sob meus pés.

— Ah, não seria nada mau... — comentou Emma. — Tem alguma praia aqui por perto?

— É só atravessar a rua — respondi.

Os olhos de Emma se iluminaram.

— Odeio praia — resmungou Olive. — Nunca posso tirar meus sapatos idiotas. Perde toda a graça.

— Podemos amarrar você numa pedra perto da água — sugeriu Claire.

— Seria mágico — resmungou Olive, pegando de volta seu exemplar de Planeta Peculiar e seguindo, flutuando, para um canto. — Vou pegar um trem para Muncie e tchauzinho para vocês.

— Nada disso — disse a srta. Peregrine, voltando à sala naquele momento.

Será que ela tinha ouvido toda a nossa conversa, escondida no corredor?

— Sei que vocês merecem um descanso, crianças, mas temos responsabilidades que não nos permitem simplesmente passar semanas e semanas sem qualquer ocupação.

— O quê?! — reclamou Enoch. — Eu me lembro claramente de ouvir a senhorita dizendo que estávamos de férias.

— Férias parciais. As oportunidades de aprendizado que temos aqui são de grande valor.

Ao ouvir a palavra “aprendizado”, todas as crianças resmungaram em uníssono.

— Já não temos lições suficientes? — choramingou Olive. — Desse jeito, meu cérebro vai explodir.

A srta. Peregrine lançou um olhar severo para ela e se postou no meio da sala.

— Não quero ouvir nem mais uma palavra de reclamação. Com a extraordinária liberdade que ganharam agora, vocês serão inestimáveis nos esforços de reconstrução. Com o devido preparo, podem se tornar embaixadores para outros peculiares no futuro. Podem explorar novas fendas e territórios. Planejar, mapear, liderar e construir. Serão tão importantes na reconstrução do nosso mundo quanto foram na derrota dos acólitos. Por acaso vocês não querem que isso aconteça?

— Claro que queremos — respondeu Emma. — Mas por que isso impediria nossas férias?

— Para que se tornem tais líderes, você precisam aprender a transitar por este mundo. No presente. Aqui. Precisam se familiarizar com os costumes deste país e aprender a se comunicar para enfim serem capazes de se passar por normais. Senão, colocarão em perigo a si mesmos e a todos nós.

— Então você pretende instaurar... — começou Horace — ... sei lá, aulas de normalidade?

— Exato. Quero que aprendam tudo que puderem durante sua estadia aqui, não que fiquem só torrando suas cabecinhas no sol. E acontece que eu conheço o professor perfeito para a tarefa. — A srta. Peregrine olhou para mim e sorriu. — Aceita o trabalho, sr. Portman?

— Eu? Olha, eu não sou exatamente especialista em ser normal. Não é à toa que me sinto tão à vontade com vocês.

— A srta. Peregrine tem razão — disse Emma. — Você é a pessoa perfeita para nos ensinar. Passou a vida toda aqui, cresceu acreditando ser normal, mas é um de nós.

— Bem, meus planos de passar uma temporada numa camisa de força foram por água abaixo mesmo, então... Acho que não custa nada ensinar algumas coisinhas para vocês.

— Aulas de normalidade! — exclamou Olive. — Que divertido!

— É tanta coisa... — falei. — Por onde começamos?

— Amanhã — respondeu a srta. Peregrine. — Está ficando tarde, é melhor irmos nos deitar.

Ela tinha razão. Era quase meia-noite, e meus amigos haviam começado o dia no Recanto do Demônio, vinte e três horas antes (e mais de cento e trinta anos). Estávamos todos exaustos. Dei um jeito de instalar todos em algum canto: nos quartos de hóspedes, nos sofás, até numa pilha de cobertores na dispensa — para Enoch, que tinha preferência por passar a noite em cantos escuros e pequenos como ninhos. Ofereci à srta. Peregrine a cama dos meus pais, que estaria vaga aquela noite.

— Agradeço, mas sugiro que Bronwyn e a srta. Bloom a ocupem. Vou passar a noite de vigia.

Ela me dirigiu um olhar que dizia: Vigiando não só a casa, e tive que me segurar para não transparecer minha irritação. Tive vontade de responder: Não precisa se preocupar, Emma e eu estamos indo devagar, mas a srta. Peregrine não tinha nada a ver com aquilo. Fiquei tão irritado que, no segundo em que a ela saiu para colocar Olive e Claire na cama, fui até Emma.

— Quer conhecer meu quarto? — sugeri.

— Mas é claro!

Fomos pé ante pé pelo corredor e escada acima.


Ouvi a voz da srta. Peregrine em um dos quartos de hóspedes, onde ela cantava uma canção de ninar delicada e triste. Como todas as músicas peculiares, aquela era bem longa. Contava a saga de uma menina cujos amigos eram todos fantasmas. Tínhamos alguns minutos garantidos até que ela fosse procurar Emma.

— Vou logo avisando que meu quarto é meio bagunçado.

— Eu estava em um dormitório com mais vinte e quatro meninas — disse ela. — Nada pode me surpreender.

Quando entrei e acendi a luz, Emma ficou de queixo caído.

— Que tantas coisas são essas?

— Ah. Então.

Talvez eu tivesse cometido um erro. Explicar meu quarto ocuparia um tempo que poderíamos aproveitar nos beijando.

Eu não tinha coisas, eu tinha coleções. Muitas. Objetos cobriam uma porção de estantes por todo o quarto. No entanto, eu não me consideraria um acumulador; aquela era uma das maneiras de lidar com a solidão que eu desenvolvera na infância. Quando seu melhor amigo é seu avô de setenta e cinco anos, você passa muito tempo em atividades típicas de velhinhos, e, no nosso caso, a atividade principal era passear por vendas de garagem todo sábado de manhã (vovô Portman podia ser um herói de guerra peculiar e um caçador de etéreos durão, mas poucas coisas lhe davam mais prazer que uma boa barganha).

Ele sempre me deixava escolher algum item que custasse menos de cinquenta centavos. Multiplique isso por várias vendas de garagem a cada fim de semana e você entenderá como juntei, ao longo de uma década, uma imensa quantidade de vinis antigos, livros de banca com histórias de detetive e capas ridículas, edições da revista MAD e tantas outras porcarias aos olhos de terceiros, mas expostas como verdadeiros tesouros. Meus pais volta e meia me imploravam para dar uma limpeza e me livrar da maior parte, mas fiz apenas algumas tentativas sem muito empenho e nunca avancei muito. O restante da casa era tão grande, moderno e vazio que eu passara a ter horror a espaços desocupados, portanto preferia manter cheio o único cômodo sobre o qual eu tinha certo controle. Por isso é que, além das prateleiras transbordantes, eu havia coberto uma parede inteira com mapas, do chão ao teto, e uma outra com capas de discos antigos.

— Nossa, você gosta mesmo de música! — comentou Emma.

Ela se afastou de mim e foi até a parede em que as capas brotavam feito ervas daninhas. Eu estava começando a ficar com raiva do efeito distrativo da minha decoração.

— Ah, como todo mundo.

— Nem todo mundo cobre as paredes com capas de discos.

— Sou mais das antigas.

— Ah, eu também! Não gosto dessas bandas modernas, com guitarras barulhentas e garotos de cabelo comprido — comentou ela, fazendo cara feia para um Meet the Beatles!.

— Mas esse álbum é de, sei lá, cinquenta anos atrás...

— Justamente. — Emma foi caminhando ao longo da parede, passando os dedos pelos discos, observando tudo. — Você nunca falou que gostava tanto de música. Tem muitas coisas como essa que eu não sei sobre você, mas eu quero saber.

— É verdade. Sinto que a gente se conhece muito bem em certos aspectos, mas em vários outros é como se ainda fôssemos quase estranhos um para o outro.

— Em nossa defesa, andávamos bem ocupados tentando não morrer, resgatando as ymbrynes e tudo o mais. Mas agora temos tempo.

Temos tempo. Sempre que eu ouvia essas palavras, sentia uma corrente de eletricidade nas minhas veias ao pensar em tantas novas possibilidades. — Ponha um para tocar — pediu Emma, indicando a parede de discos. — Seu preferido.

— Não sei se tenho um preferido. São tantos...

— Quero dançar com você. Escolha uma música boa de dançar!

Com um sorriso, ela voltou a examinar minhas coisas. Pensei um pouco e acabei me decidindo por Harvest Moon, do Neil Young. Coloquei o disco na vitrola e, com cuidado, pousei a agulha logo depois da terceira faixa. Fez-se aquele gostoso crepitar do vinil e então a música começou, linda, tocante. Eu queria que Emma viesse até o meio do quarto, onde eu tinha aberto um espacinho para dançarmos, mas ela havia chegado à parede dos mapas. Eram camadas e mais camadas deles: mapas-múndi, mapas urbanos, mapas de linhas do metrô, mapas rodoviários arrancados de edições antigas da revista National Geographic.

— São incríveis, Jacob.

— Sempre passei muito tempo me imaginando em outro lugar — expliquei.

— Eu também.

Ela foi até minha cama, que ficava encostada na parede, cercada pelos mapas, e subiu no colchão para observá-los mais de perto.

— Às vezes eu lembro que você só tem dezesseis anos — disse ela. — Dezesseis mesmo. Dá meio que um nó na minha cabeça.

Ela se virou para mim com um olhar de encantamento.

— O que fez você pensar nisso agora? — perguntei.

— Não sei. É que é estranho. Você não parece ter só dezesseis anos.

— E você não parece ter noventa e oito.

— Eu tenho só oitenta e oito.

— Ah, sim. Você tem cara mesmo de oitenta e oito.

Ela riu, depois olhou de volta para a parede.

— Vem cá — chamei. — Vem dançar comigo.

Mas Emma pareceu não me ouvir. Ela havia chegado aos mapas mais antigos, aqueles que eu mesmo produzi, com meu avô, quando tinha oito ou nove anos. Eram desenhados em todo tipo de papel, do quadriculado a guardanapos. Passávamos muitas tardes de verão inventando símbolos cartográficos, desenhando criaturas estranhas nas margens, às vezes escrevendo nomes de lugares imaginários por cima dos reais. Quando me dei conta do que havia ali, senti um aperto no coração.

— É a letra do Abe? — perguntou Emma.

— A gente fazia todo tipo de projeto junto. Ele era meu melhor amigo.

— O meu também. — Ela percorreu com o dedo algumas palavras escritas por ele, como Lago Okechobe. Então se virou e desceu da cama. — Mas isso faz muito tempo.

Então ela foi até mim, segurou minhas mãos e apoiou a cabeça no meu ombro. Começamos a nos balançar de leve com a música.

— Desculpa — disse Emma. — Eu não estava esperando ver algo assim.

— Tudo bem. Vocês passaram tanto tempo juntos. E agora você está aqui...

Senti que ela balançava a cabeça: Não vamos estragar esse momento. Então suas mãos soltaram as minhas e envolveram minha cintura. Apoiei o rosto em sua testa.

— Você ainda se imagina em outro lugar? — perguntou ela.

— Não mais — respondi. — Pela primeira vez em muito tempo, estou feliz onde estou.

— Eu também.

Então ela ergueu o rosto, e nos beijamos.

Ficamos ali dançando e nos beijando até a música terminar e dar lugar ao sussurro arranhado do vinil, e mesmo assim continuamos dançando mais um pouco, porque ainda não estávamos prontos para que o momento acabasse. Tentei afastar a sensação estranha de ter mencionado meu avô. Era parte da história dela, e tudo bem. Mesmo que eu não entendesse.

Por enquanto, disse a mim mesmo, o que importava era estarmos bem e juntos. Por enquanto, isso bastava. Era mais do que jamais tivéramos. Não havia contagem regressiva até o momento em que ela definharia e viraria pó; não havia bombas transformando o mundo em chamas à nossa volta; não havia etéreos à espreita. Eu não sabia o que nosso futuro nos guardava, mas, naquele momento, me bastava acreditar que havia um futuro.

Ouvi a voz da srta. Peregrine no térreo. Era hora de me despedir de Emma.

— Até amanhã — sussurrou ela no meu ouvido. — Boa noite, Jacob.

Trocamos mais um beijo. Era como uma corrente elétrica que deixava cada parte do meu corpo formigando. Então ela saiu do quarto, e, pela primeira vez desde que eles haviam chegado, me vi sozinho.


Dormi pouco naquela noite. Não tanto pelos roncos de Hugh, que dormia sobre alguns cobertores estendidos no chão do meu quarto, e mais pelo barulho dentro da minha cabeça — tantas dúvidas e tanta empolgação com as muitas possibilidades recém-surgidas. Eu tinha ido embora do Recanto do Demônio porque considerava importante terminar o colégio e manter uma boa relação com meus pais (o suficiente para me fazer aguentar Englewood por mais alguns anos), mas o tempo que eu levaria para me formar tinha tudo para ser uma tortura, ainda mais com Emma e meus amigos presos em fendas temporais do outro lado do oceano.

Tudo havia mudado naquela noite. Agora, talvez eu não precisasse esperar. Agora, talvez não precisasse escolher entre um e outro: peculiar ou normal, esta vida ou a outra. Eu queria e precisava dos dois mundos, embora não na mesma medida. Não tinha o mais vago interesse em construir uma carreira normal, em ficar com alguém que não entendia quem eu era ou em, um dia, ter filhos e precisar esconder deles uma parte da minha vida — como meu avô fizera.

Por outro lado, não queria simplesmente abandonar o colégio (não dá para colocar “matador de etéreos” no currículo) e, embora meus pais não fossem exatamente dignos do prêmio de Progenitores do Ano, também não podia excluí-los da minha vida. Não queria me afastar tanto do mundo normal a ponto de esquecer como transitar por ele. O mundo peculiar era incrível e fundamental para mim, eu sabia disso, mas também tinha algo de muito assustador e intenso. Pelo bem da minha sanidade mental a longo prazo, eu precisava manter alguma conexão com minha vida normal. Precisava desse equilíbrio.

Agora, porém, talvez os anos seguintes não precisassem ser a sentença prisional que eu havia imaginado. Talvez eu pudesse ficar com meus amigos e com Emma e ao mesmo tempo com minha casa e minha família. Talvez Emma até pudesse estudar comigo. Ou todos eles! Assistiríamos às aulas juntos, almoçaríamos juntos, iríamos juntos aos bailes e às festinhas idiotas. Mas é claro: que lugar melhor que a escola para ensinar como é a vida e os hábitos dos adolescentes normais? Em menos de um ano eles já conseguiriam se passar por normais tranquilamente (afinal, se até eu tinha aprendido, qualquer um podia aprender) e não chamariam atenção quando nos aventurássemos por outros universos peculiares dos Estados Unidos e da América. Voltaríamos ao Recanto do Demônio sempre que o tempo permitisse, para ajudar na causa, ajudar a reconstruir as fendas e, com sorte, tornar nosso mundo mais seguro contra possíveis ameaças futuras.

Infelizmente, tudo dependia dos meus pais. Eles poderiam facilitar as coisas ou poderiam tornar a situação impossível. Se ao menos houvesse uma maneira de meus amigos estarem por perto sem que meus pais enlouquecessem... sem que precisássemos ficar o tempo todo em alerta, com medo de deixar escapar uma peculiaridade que os fizesse sair aos berros pelas ruas e trazer a catástrofe sobre nossas cabeças...

Tinha que haver alguma coisa capaz de fazer tudo parecer muito natural aos olhos dos meus pais. Algum jeito de explicar meus amigos; sua presença ali, sua estranheza, talvez até suas habilidades. Revirei meu cérebro em busca da desculpa perfeita. Eles eram alunos de intercâmbio que eu conhecera em Londres; tinham salvado minha vida, me abrigado, e eu queria retribuir o favor (o bom era que isso não estaria tão longe da verdade). Por acaso, eles também eram mágicos muito talentosos, que praticavam seus números o tempo todo. Mestres da ilusão. Mágicas tão elaboradas que era impossível desvendar os truques por trás delas.

Talvez. Talvez houvesse um jeito. E aí seria tudo muito bom.

Meu cérebro era uma máquina de produzir esperança.

 

 

CAPÍTULO DOIS


No dia seguinte, acordei com um nó amargo no estômago, convencido de que tudo não havia passado de um sonho. Já me preparando para a decepção, desci a escada meio que esperando encontrar minhas malas prontas e meus tios mais uma vez vigiando as portas para evitar qualquer tentativa de fuga. Em vez disso, vi uma cena de pura alegria doméstica entre peculiares.

Todo o andar de baixo estava inundado por conversas animadas e pelo cheiro bom de comida. Horace ia de lá para cá na cozinha, preparando tudo, enquanto Emma e Millard colocavam a mesa. A srta. Peregrine assobiava e abria as janelas para deixar entrar a brisa da manhã. Lá fora, no jardim, Olive, Bronwyn e Claire brincavam de pega-pega: Bronwyn a agarrava e jogava bem alto, a uns bons seis metros, e Olive descia rindo, flutuando, trazida de volta devagar pelo peso dos sapatos. Na sala, Hugh e Enoch tinham os olhos grudados na TV, deslumbrados com um comercial de sabão em pó. Eu jamais poderia imaginar uma cena melhor.

Fiquei um bom tempo ali no alto da escada, processando tudo aquilo. Da noite para o dia, meus amigos haviam conseguido transformar minha casa em um lugar mais feliz e mais aconchegante do que meus pais não conseguiram em muitos anos.

— Que bom que você se levantou! — cantarolou a srta. Peregrine, me arrancando do meu transe.

Emma veio correndo.

— O que foi? — perguntou ela. — Está tendo tonturas de novo?

— Não, só apreciando a cena.

Eu a puxei para um beijo. Emma enlaçou meu pescoço para me beijar de volta. Fui completamente envolvido por uma sensação de cócegas agradáveis e pela repentina impressão de estar fora do meu próprio corpo. Era como se eu tivesse levitado até o teto e estivesse vendo lá de cima toda aquela cena feliz, o rosto lindo e delicado daquela garota incrível e meus amigos em volta. Como um momento tão perfeito havia surgido na minha vida?

O beijo terminou rápido demais, antes mesmo que alguém na sala notasse. Demos os braços e fomos à cozinha.

— Há quanto tempo vocês estão acordados? — perguntei.

— Ah, algumas horas — respondeu Millard, levando um tabuleiro de biscoitos recém-assados para a sala de jantar. — Estamos com um lag temporal terrível.

Ele estava todo vestido: uma calça cor de ameixa, um casaco leve e um lenço no pescoço.

— Eu que escolhi o figurino dele hoje — explicou Horace, surgindo à porta da cozinha. — Millard é uma folha em branco, indumentariamente falando.

Horace usava um avental sobre uma camisa branca, gravata e calça social, ou seja, muito provavelmente tinha acordado bem mais cedo só para passar as roupas.

Pedi licença e fui de fininho até a garagem ver como estava minha família. Eles continuavam dormindo, exatamente onde eu os deixara. Mal haviam se mexido. Então uma ideia horrível passou pela minha cabeça. Corri até o carro e aproximei a mão do nariz de cada um. Quando tive certeza de que estavam todos vivos, voltei para dentro de casa.

Os peculiares estavam sentados à “mesa boa”, como meus pais chamavam aquele enorme móvel com tampo de vidro preto. A sala de jantar era um local que eu associava a comportamentos rígidos e conversas entediantes, porque só era usada quando recebíamos visitas de familiares ou quando meus pais tinham “um assunto importante para conversar” comigo — geralmente, uma bronca pelas minhas notas, minha postura ruim, minhas amizades ou a falta delas etc. e tal. Assim, foi bom encontrar ali um monte de comida, amigos e risadas.

Dei um jeito de sentar ao lado de Emma, e Horace deu início à elaborada apresentação de cada prato que havia preparado para o café da manhã.

— No menu de hoje, temos pain perdu, batatas assadas à la royal, uma variedade de pães franceses e mingau com frutas caramelizadas!

— Dessa vez você se superou, Horace — elogiou Bronwyn, já de boca cheia.

Pratos servidos e agradecimentos feitos, eu estava com tanta vontade de comer que só depois de alguns minutos me ocorreu perguntar como ele tinha arranjado os ingredientes para tudo aquilo.

— Talvez tenham saído flutuando das prateleiras de um mercado aqui da rua e vindo parar nas minhas mãos — respondeu Millard.

Parei de mastigar na mesma hora.

— Você roubou isso tudo?

— Millard! — exclamou a srta. Peregrine, horrorizada. — E se flagrassem você?

— Impossível. Sou mestre na arte de roubar. É minha terceira melhor habilidade, ficando atrás apenas de minha inteligência incrível e minha memória quase perfeita.

— Só que hoje em dia as lojas têm câmeras — expliquei. — Se você foi filmado, pode dar um problemão.

— Ah — disse Millard, de repente fascinado pelo pedaço de pêssego caramelizado espetado em seu garfo.

— Um verdadeiro mestre na arte de roubar — disse Enoch. — Qual é mesmo sua primeira melhor habilidade?

A srta. Peregrine pousou os talheres na mesa e estalou os dedos.

— Muito bem, crianças. Roubar de normais acaba de entrar para a lista de proibições estritas.

Todo mundo chiou.

— Isso é muito sério! — avisou a srta. Peregrine. — Se a polícia aparecesse aqui, não seria um mero inconveniente.

Enoch afundou dramaticamente na cadeira.

— O presente é tão cansativo... Lembram como era fácil resolver as coisas na fenda temporal? — Ele passou o dedo pela garganta. — Crec! Adeus, normal inoportuno!

— Não estamos mais em Cairnholm — disse a srta. Peregrine — e não estamos brincando de Ataque ao Vilarejo. O que vocês fizerem aqui terá consequências reais e permanentes.

— Eu estava brincando — resmungou Enoch.

— Não estava, não — sibilou Bronwyn.

A srta. Peregrine levantou a mão, pedindo silêncio.

— Qual é nossa nova regra? — perguntou ela.

— Não roubar — responderam todos, em um coro desanimado.

— E?

Segundos se passaram. A diretora franziu a testa.

— Não matar normais? — arriscou Olive.

— Isso mesmo. Vocês não podem matar ninguém no presente — enfatizou a srta. Peregrine.

— Mas e se for uma pessoa totalmente insuportável? — insistiu Hugh.

— Não importa. Vocês não podem matar ninguém.

— Sem a sua permissão — emendou Claire.

— Não, Claire — respondeu a srta. Peregrine, ríspida. — Não podem matar.

— Tudo bem... — concordou a menina, resignada.

Essa poderia ter sido uma conversa assustadora se eu não os conhecesse tão bem. Mesmo assim, serviu para me lembrar que eles ainda precisavam aprender muitas coisas sobre a vida no presente.

A propósito...

— Quando vamos começar as aulas de normalidade? — perguntei.

— Que tal hoje? — sugeriu Emma, empolgada.

— Agora mesmo! — opinou Bronwyn.

— Por onde começo? O que vocês querem saber?

— O que acha de nos atualizar quanto aos acontecimentos dos últimos setenta e cinco anos aproximadamente? — sugeriu Millard. — Nas múltiplas esferas de história, política, música, cultura popular, descobertas científicas e novas tecnologias...

— Talvez seja melhor ensinar vocês a não falarem como pessoas da década de 1940 e a atravessarem a rua sem morrer.

— Creio que sejam conhecimentos igualmente importantes — disse Millard.

— Eu só quero sair um pouco — reclamou Bronwyn. — A última coisa que fizemos foi atravessar um pântano fedorento e andar de ônibus.

— É! — concordou Olive. — Quero conhecer uma cidade americana. E um aeroporto. E uma fábrica de lápis! Eu li um livro bem legal sobre fábricas de lápis...

— Acalmem-se — pediu a srta. Peregrine. — E tratem de tirar essa ideia da cabeça. Não vamos fazer nenhuma grande expedição hoje. Um passo de cada vez, e, como temos opções limitadas de transporte, uma caminhada me parece uma boa ideia. Sr. Portman, conhece algum lugar nas proximidades em que haja poucas pessoas? Enquanto as crianças ainda não têm certa prática, prefiro que não interajam com normais.

— Tem a praia — respondi. — Fica bem vazia essa época.

— Perfeito! — exclamou a srta. Peregrine, e em seguida mandou as crianças se trocarem. — Quero ver vocês protegidos do sol! — acrescentou ela. — Chapéus! Sombrinhas!

Eu já ia subir também quando senti o medo voltar.

— Srta. Peregrine, o que vamos fazer com a minha família?

— Bem, eles receberam uma dosagem suficiente para dormirem até a tarde — explicou ela. — Mas, por precaução, vamos deixar alguém aqui com eles.

— Tudo bem. Mas e depois?

— Você quer dizer depois que acordarem?

— É. Como eu vou explicar... vocês?

Ela sorriu.

— Isso, sr. Portman, é uma decisão que cabe unicamente a você. Mas é claro, se for ajudá-lo, podemos pensar juntos em uma estratégia durante nosso passeio.


Dei permissão geral para que meus amigos vasculhassem os armários à vontade e pegassem roupas apropriadas para a praia, já que eles não tinham trazido nada do tipo. Foi muito estranho vê-los, alguns minutos depois, em trajes modernos. Como nada cabia em Olive nem em Claire, as duas apenas se muniram de chapéu de sol e óculos escuros, parecendo celebridades em fuga de paparazzi. Millard passou apenas uma camada de protetor solar no rosto e nos ombros, tornando-se uma grande mancha branca ambulante. Bronwyn usava uma blusa florida e uma calça de linho; Enoch pegou um calção de banho e uma camiseta velha, e Horace ficou bem engomadinho com uma camisa polo azul e uma calça cáqui, a bainha dobrada. O único que não trocou de roupa foi Hugh; ainda triste e deprimido, ele se voluntariou para ficar em casa. Dei o celular do meu tio a ele, coloquei meu número e o ensinei a me ligar, caso meus pais acordassem.

Quando a srta. Peregrine apareceu na sala, foi uma chuva de exclamações de admiração. Ela usava uma blusa ombro a ombro com franjas, uma calça cápri de estampa tropical e óculos de aviador. O cabelo, sempre preso em um coque alto, se erguia logo atrás de uma viseira de plástico cor-de-rosa. Era meio estranho vê-la com roupas da minha mãe, mas sua aparência era perfeitamente comum, o que, pensando bem, devia ser o objetivo.

— Você está tão moderna! — disse Olive, impressionada.

— E estranha — emendou Enoch.

— Precisamos ser mestres do disfarce se quisermos passar despercebidos em mundos diferentes — explicou a srta. Peregrine.

— Cuidado, hein — disse Emma, entrando na sala. — Desse jeito, todos os solteirões vão correr atrás de você!

— Olha quem fala! — disse Bronwyn. — Fiu fiu! Tomem cuidado, garotos!

Quando me virei, minha respiração ficou presa na garganta. Ela estava de maiô e, por cima, uma saia que ia até o meio da coxa. Nada escandaloso em si, mas era a roupa mais reveladora que eu a via usar (Emma tinha pernas!). Eu sabia desde o momento em que a conheci: Emma Bloom era incrivelmente linda, e tive que me controlar para não ficar com os olhos colados nela.

— Ah, pare com isso — disse Emma, mas sorriu ao encontrar meu olhar.

Aquele sorriso... Meu Deus, ele me iluminava por dentro.

— Sr. Portman?

Eu me virei para a srta. Peregrine, meu sorriso bobalhão se derretendo no rosto.

— Hã... oi.

— Está pronto? Ou ficou completamente incapacitado?

— Não, não, tudo certo.

— Imagino — disse Enoch, com uma risadinha.

Dei uma ombrada nele quando passei pelo meio do grupo para abrir a porta, pronto para apresentar meus amigos peculiares ao mundo.


Eu morava em Needle Key, uma estreita faixa de terra que se estende mar adentro, oito quilômetros de bares turísticos e casas com um deque na frente e um nos fundos dando para a praia do outro lado, que se estendia após uma ruazinha arborizada. Needle Key só é considerada uma ilha — tecnicamente, uma ilha-barreira — por causa do longo corpo d’água de trezentos metros de largura que a separa do continente. Na maré baixa, dá para atravessar o trecho a pé sem nem molhar a camisa. As casas dos ricos ficam de frente para o Golfo, enquanto o restante dos moradores tem vista para a Lemon Bay, sempre muito agradável nas manhãs calmas, com veleiros cruzando a água preguiçosamente e garças pescando o café da manhã junto aos bancos de areia. É um lugar seguro e tranquilo para se viver, e sinto que talvez eu devesse ter valorizado mais isso, mas passei a adolescência inteira lutando contra as sensações — no início assustadoras, depois esmagadoras — de que pertencia a outro lugar, de que meu cérebro tinha começado a derreter e de que, se eu ficasse ali um único dia a mais que o necessário, minha massa cinzenta se liquefaria e começaria a escorrer pelos meus ouvidos.

Orientei todos a ficarem escondidos atrás de uma cerca viva na entrada da minha garagem e esperei passarem todos os carros que eu ouvia para só então atravessarmos a rua, rápido, até um caminho de terra no meio de um arvoredo que não era podado justamente para que os turistas não entrassem ali. Depois de um ou dois minutos desbravando-a, chegamos à maior atração de Needle Key: uma vasta faixa de areia clara, a água de um tom verde como esmeralda se estendendo até o infinito.

Ouviram-se suspiros involuntários. Meus amigos conheciam algumas praias, inclusive viveram em uma ilha a maior parte de suas vidas anormalmente longas, mas era improvável que conhecessem uma tão bonita, com águas tão tranquilas quanto um lago, uma faixa de fina areia branca que se curvava sutilmente rumo ao horizonte e palmeiras balançando de leve ao vento. Essa vista perfeita era a única razão para que umas vinte mil almas morassem no meio do nada, e em momentos como aquele, com o sol a pino e uma brisa afastando o calor, era fácil entender por quê.

— Uau! — exclamou a srta. Peregrine, inspirando fundo. — Isto é um pedaço do paraíso.

— Esse é o oceano Pacífico? — perguntou Claire.

Enoch riu.

— Não. Estamos no Golfo do México. O Pacífico fica do outro lado do continente.

Caminhamos pela praia, as crianças menores correndo à nossa volta e catando conchas enquanto os outros apreciavam a vista e o sol. Retardei o passo para alcançar Emma. Quando peguei sua mão, ela olhou para mim e sorriu. Suspiramos os dois ao mesmo tempo, o que nos fez rir. Conversamos um pouco sobre a praia e sobre como era bonita, mas logo o assunto se esgotou — e aí perguntei ao grupo como tinha sido a vida no Recanto do Demônio desde que eu fora embora. Eles só tinham me contado sobre as viagens pelo Polifendador, e com certeza haviam feito algo além de viajar.

— Viajar é fundamental para o desenvolvimento pessoal — disse a srta. Peregrine, estranhamente na defensiva. — Mesmo os indivíduos que se consideram mais instruídos permanecem ignorantes se nunca viajaram. É de suma importância que as crianças aprendam que o universo peculiar não gira em torno de nossa sociedade.

Ela me contou que, além das excursões ocasionais pelo Polifendador, as ymbrynes tinham unido forças para criar um ambiente estável para seus protegidos. Assim como meus amigos, a maioria fora arrancada das fendas temporais em que passaram a maior parte da vida. Algumas fendas haviam se fechado para sempre. Muitos perderam amigos nos ataques dos etéreos, foram feridos ou sofreram outros traumas. E, apesar de o Recanto do Demônio (com sua sujeira, seu caos e seu histórico como centro do império maléfico de Caul) não ser o lugar ideal para quem quer se recuperar de traumas, as ymbrynes deram o máximo de si para transformar o local num refúgio para os peculiares. Foi ali que muitos adultos em fuga das campanhas de terror dos acólitos e muitas crianças refugiadas encontraram um novo lar. Elas haviam até mesmo fundado uma universidade, com aulas diárias e debates organizados pelas ymbrynes, quando elas estavam disponíveis, ou por peculiares adultos especialistas em cada área de conhecimento.

— É um pouco entediante, às vezes — comentou Millard. — Mas é bom estar entre estudiosos.

— Só é entediante porque você acha que sabe mais que os professores — protestou Bronwyn.

— A verdade é que, quando não são as ymbrynes dando aula, normalmente eu sei mais mesmo — retrucou ele. — E hoje em dia as ymbrynes só vivem ocupadas.

Segundo a srta. Peregrine, elas estavam ocupadas com “milhares e milhares de tarefas desagradáveis”, a maioria relacionada ao caos deixado pelos acólitos por toda parte.

— Uma desordem espantosa — disse ela.

Um dos problemas era a desordem literal: o campo de prisioneiros onde estavam os acólitos vencidos na batalha, as fendas temporais que eles haviam danificado, ainda que não destruído. No entanto, o maior problema era o grande contingente de peculiares feridos e debilitados deixados para trás, como os viciados em ambrosia do Recanto do Demônio. Eles precisavam de tratamento para o vício, mas nem todos aceitavam. Havia também uma questão espinhosa: quem, entre eles, era confiável? Muitos haviam ajudado os acólitos; alguns foram coagidos, mas outros o fizeram por vontade própria, e tanta vontade que denotava uma ação malévola, até uma traição. Era preciso julgá-los. O sistema de justiça peculiar, criado para dar conta de poucos casos por ano, crescia rapidamente para dar conta de dezenas de processos, a maioria nem iniciada. Os acusados aguardavam julgamento na prisão construída por Caul para as vítimas de seus experimentos cruéis.

— Quando não estamos resolvendo todos esses aborrecimentos, o Conselho de Ymbrynes se reúne — explicou a srta. Peregrine. — Reuniões que nos tomam o dia inteiro, ou que se estendem até tarde da noite.

— Para discutir o quê? — perguntei.

— O futuro — respondeu ela, com firmeza.

— A autoridade do Conselho está sendo desafiada — disse Millard. A srta. Peregrine fez cara feia, mas ele continuou, indiferente: — Há quem diga que é hora de mudar nosso modo de governo. Que o sistema das ymbrynes é antiquado, moldado para outros tempos. Eles dizem que o mundo mudou e que precisamos acompanhar as transformações.

— Cambada de ingratos — desabafou Enoch. — Por mim, podem jogar todos na cadeia, junto com os traidores.

— Isso seria totalmente errado — retrucou a srta. Peregrine. — O governo das ymbrynes é baseado no consentimento popular. Todos devem ter a liberdade de expressar suas ideias, mesmo que sejam equivocadas.

— E no que eles discordam de vocês? — perguntei.

— Se devemos viver em fendas temporais, por exemplo — respondeu Emma.

— A maioria dos peculiares não precisa viver em fendas?

— Sim, a menos que a ideia seja criar um colapso de fendas temporais em larga escala, como o que reiniciou nosso relógio biológico — explicou Millard. — Aquilo despertou alguns olhares perplexos entre os nossos.

— Despertou a inveja, isso sim — disse Emma. — Você não imagina o que ouvi quando souberam que faríamos uma longa visita ao presente! Ficaram roxos de inveja.

— Mas nós podíamos ter morrido no fechamento daquela fenda — protestei. — É perigoso demais.

— Isso é verdade, pelo menos até compreendermos bem como funciona esse fenômeno — concordou Millard. — Se conseguirmos desenvolver uma ciência sólida a partir disso, talvez seja possível reproduzir com segurança o que aconteceu conosco. Talvez.

— Mas pode levar um bom tempo — disse a srta. Peregrine. — E nem todos estão dispostos a esperar. Estão tão cansados de viver em fendas que arriscariam a própria vida.

Horace balançou a cabeça

— Loucos — sentenciou ele. — Eu não fazia ideia de quantos peculiares de miolo mole havia por aí até sermos jogados no Recanto juntos, espremidos como numa lata de sardinha.

— E eles nem chegam perto do nível de loucura daquele pessoal do Novo Mundo — disse Emma. Só de ouvir falar em Novo Mundo, a srta. Peregrine suspirou. — Eles querem se juntar com a sociedade normal.

— Ah, nem me lembre desses lunáticos! — disse Enoch. — Acham que o planeta se tornou um lugar tão aberto e tolerante que podemos simplesmente parar de nos esconder. Oi, mundo! Somos peculiares, e com orgulho! Como se não fôssemos acabar na fogueira, como nos velhos tempos.

— São jovens, só isso — ponderou a srta. Peregrine. — Nunca viveram uma caça às bruxas ou um pânico antipeculiar.

— Eles são perigosos, isso sim — emendou Horace, mexendo as mãos nervosamente. — E se fizerem alguma bobagem?

— Melhor prendê-los também — sugeriu Enoch, tranquilamente. — É o que eu penso.

— É por isso que você não faz parte do Conselho, querido — disse a srta. Peregrine. — Bem, basta por ora. Política é a última coisa que quero discutir num dia tão bonito.

— Aliás — disse Emma —, por que eu vesti essa roupa de banho se não vamos entrar no mar?

— O último a pular na água é mulher do padre! — gritou Bronwyn, e saiu em disparada, dando início a uma corrida para ver quem chegava antes ao mar.

Fiquei para trás, com a srta. Peregrine. Eu tinha outras coisas na cabeça e não estava com vontade de entrar na água. E, apesar da conversa sobre problemas e complicações, a ymbryne não parecia nem um pouco abalada. Ela também tinha muito em que pensar, mas seus problemas — ao menos o que eu sabia a respeito deles — eram relacionados a crescimento, cura e liberdade. E tudo isso era algo pelo qual se agradecer.


— Venha nadar com a gente, Jacob! — gritou Emma, da arrebentação, erguendo uma estrela-do-mar capturada entre a espuma das ondas.

Algumas das crianças brincavam no raso, mas outras estavam nadando de verdade. No verão, a água morna do golfo era quentinha como um banho de banheira, muito diferente das ondas tempestuosas do Atlântico que açoitavam os penhascos de Cairnholm.

— É magnífico! — exclamou Millard.

O corpo dele era um vácuo em forma de pessoa no mar. Até Olive estava se divertindo, apesar de afundar uns dez centímetros na areia a cada passo que dava.

— Jacob! — chamou Emma outra vez, acenando, seu corpo subindo e descendo em uma onda.

— Estou de calça! — gritei de volta.

Não era mentira, mas a verdade completa era que eu preferia ficar só como observador. Era tão bom vê-los se divertindo ali... a cena derretia um bloco de gelo que havia se formado sobre minha noção de lar. Como eu queria que eles pudessem fazer aquele tipo de passeio sempre que quisessem — ter aquela paz descomplicada.

E talvez houvesse um meio de tornar isso possível.

Naquele momento, eu soube o que fazer com meus pais. Era tão simples que não sei por que não havia me ocorrido antes. Eu não precisava inventar uma mentira infalível, não precisava bolar uma história mirabolante, cheia de detalhes. Histórias inventadas podem acabar se contradizendo e mentiras podem ser descobertas, e, mesmo que isso não acontecesse, teríamos que pisar em ovos sempre que falássemos com meus pais e viveríamos com medo de eles verem algo fora do normal, surtarem e destruírem essa paz. Além do mais, a ideia de esconder indefinidamente quem eu era de verdade me parecia exaustiva, ainda mais agora que minha vida normal estava em rota de colisão direta com minha vida peculiar. Mas a questão principal era: meus pais não eram pessoas más. Nunca sofri abuso ou fui negligenciado. Eles simplesmente não me entendiam, e eu achava que mereciam uma chance de mostrar que podiam fazer isso.

Decidi contar a verdade. Se eu a revelasse aos poucos e com jeito, talvez não fosse um choque. Se eles conhecessem meus amigos em um ambiente calmo, um de cada vez, e só vissem suas habilidades após já terem tido algum contato, talvez funcionasse. Por que não? Meu pai tinha pai e filho peculiares! Se havia algum normal capaz de entender, seria ele. E se minha mãe levasse mais tempo, ele poderia ajudá-la.

Talvez assim eles finalmente acreditassem em mim e me aceitassem. Talvez finalmente nos tornássemos uma família de verdade.

Eu estava com medo de sugerir essa ideia, então tentei falar primeiro com a srta. Peregrine, sem os outros ouvirem. A maioria das crianças continuava na água ou procurando conchas na areia. A srta. Peregrine estava sendo seguida por um grupo de narcejas pequenininhas que lhe davam bicadinhas nos tornozelos com seus bicos compridos.

— Xô! — fez ela enquanto andava, dando chutes no ar para afastar as aves. — Não sou a mãe de vocês!

As narcejas se afastaram um pouco, mas continuaram seguindo-a pela praia, incansáveis.

— As aves amam você, hein?

— As britânicas me respeitam, e respeitam meu espaço pessoal, mas as daqui são carentes demais. — Ela deu outro chute no ar. — Vão embora! Xô! — As narcejas deram uma corridinha até a beira d’água. — Precisamos ter uma conversa, certo?

— Eu estava pensando... e se eu simplesmente explicasse toda a verdade para os meus pais?

— Enoch, Millard, parem com essas brincadeiras violentas! — gritou ela, com as mãos em concha na boca, e depois se voltou para mim. — Em vez de apagar a memória deles?

— Queria fazer uma última tentativa antes de desistir deles de uma vez por todas. Sei que pode não dar certo, mas, se der, vai ser tudo bem mais simples.

Eu estava com medo de a srta. Peregrine rejeitar a ideia de imediato, mas ela não fez isso; não exatamente.

— Seria uma grande exceção a uma regra estabelecida há muito tempo — explicou ela. — São pouquíssimos os normais que conhecem nossos segredos. Seria preciso uma aprovação especial do Conselho de Ymbrynes, e existe um rito de iniciação. Uma cerimônia, com juramento. Além de um longo período de experiência...

— Você está dizendo que não vale a pena.

— Não é isso.

— Não?

— Só estou dizendo que seria complexo. Mas, no caso dos seus pais, pode valer a pena tentar.

— Tentar o quê? — perguntou Horace, que surgira por trás.

Lá se ia minha ideia de manter o assunto só entre mim e a srta. Peregrine.

— Eu estava pensando em contar a verdade aos meus pais — expliquei. — Para ver como eles reagiriam.

— O quê? Por quê?

Aquele, sim, era o tipo de reação que eu estava esperando.

— Acho que eles merecem saber.

— Eles tentaram enfiar você num hospício! — retrucou Enoch.

Agora os outros estavam saindo da água e se reunindo à nossa volta.

— Eu não esqueci o que eles fizeram — respondi. — Mas eles só estavam preocupados comigo. Se soubessem a verdade e a aceitassem, nunca teriam feito aquilo. E seria bem mais fácil quando vocês quisessem vir me visitar ou vice-versa.

— Você quer dizer que não vai voltar com a gente? — perguntou Olive.

Emma havia acabado de se aproximar, pingando, e na mesma hora seu olhar se voltou para mim. Ainda não tínhamos discutido o assunto sozinhos, e ali estava eu, falando sobre isso na frente de todo mundo.

— Vou terminar o colégio antes, mas, se tudo der certo, vamos poder nos ver o tempo todo nos próximos anos.

— É um baita se — disse Millard.

— Imaginem — pedi. — Talvez, nos fins de semana, eu pudesse ir ajudar na reconstrução do mundo peculiar, e vocês poderiam vir para cá quando quisessem aprender sobre o mundo normal. Até poderiam ir à escola comigo, se quisessem.

Emma estava com os braços cruzados e uma expressão indecifrável.

— Ir para a escola junto com normais? — perguntou Olive.

— Não pudemos nem atender à porta quando a pizza chegou — argumentou Claire.

— Eu vou ensinar vocês como agir entre eles. Vão ficar experts rapidinho.

— Isso está parecendo cada vez mais impossível — disse Horace.

— Eu só queria dar uma chance aos meus pais — insisti. — E se não funcionar...

— Bem, se isso não funcionar, a srta. Peregrine apaga a memória deles — completou Emma, que então se aproximou de mim e me deu o braço. — Vocês não acham trágico que o filho de Abe Portman não saiba quem foi o próprio pai?

Emma estava do meu lado. Apertei o braço dela, feliz por contar com seu apoio.

— É trágico, mas necessário — argumentou Horace. — Não podemos confiar nos pais deles. Não podemos confiar em nenhum normal. Fico nervoso só de pensar no que eles podem fazer. Eles podem nos expor!

— Eles não fariam isso — retruquei.

Será que não?, ouvi perguntar uma voz bem baixinha na minha cabeça.

— Por que simplesmente não fingimos ser normais quando eles estiverem por perto? — perguntou Bronwyn.

— Acho difícil que isso funcione — falei.

— Não esqueçam que nem todos têm o privilégio de poder fingir que são normais — completou Millard.

— Odeio fingir — falou Horace. — Que tal sermos nós mesmos e a srta. Peregrine apagar a memória deles no fim de cada dia?

— Pessoas que têm a memória apagada muitas vezes acabam ficando com problemas na cabeça — avisou Millard. — Gemendo, babando, essas coisas.

Olhei para a srta. Peregrine, que confirmou com um aceno.

— E se eles fossem passar umas férias num lugar bem distante? — sugeriu Claire. — A srta. Peregrine pode plantar essa ideia depois que apagar a memória deles, quando estiverem sugestionáveis.

— E quando eles voltarem?

— Aí prendemos sua família no porão — disse Enoch.

— Devíamos prender você no porão — retrucou Emma.

Eu estava causando estresse e ansiedade em todos. Eles iam ficar preocupados. Eu ia ficar preocupado. E tudo isso pelo bem dos meus pais, que só tinham me dado tristeza nos últimos seis meses.

Eu me virei para a srta. Peregrine:

— Não. É complicado demais. É melhor você simplesmente apagar a memória deles.

— Acho que você deveria tentar contar a verdade, se é o que quer — respondeu ela. — Vejo que o esforço geralmente compensa.

— Sério? Tem certeza?

— Se tivermos bons sinais de que vai funcionar, pedirei a aprovação do Conselho em caráter retroativo. Se não, tenho a impressão de que saberemos bem rápido.

— Ótimo! — disse Emma. — Agora que resolvemos isso... — Ela me puxou para a água. — Hora de nadar!

Fui pego tão de surpresa que não consegui impedi-la.

— Espere... Não! Meu celular!

Consegui tirar o aparelho do bolso justo antes de a água bater na altura do meu peito, então o joguei para Horace, na areia.


Emma jogou água em mim e saiu nadando. Fui atrás dela, rindo. De repente me dei conta de que estava muito feliz. Feliz por estar entre amigos, meus olhos inundados pelo sol, nadando atrás de uma garota linda que gostava de mim. Que me amava, como ela mesma tinha dito certa vez.

Felicidade.

Mais à frente, Emma tinha encontrado um banco de areia submerso. Mesmo longe da praia, a água batia na cintura dela. Era uma das coisas que eu amava nas marés tranquilas.

— Olá, moça! — falei, meio sem ar, alcançando o banco de areia.

— Você sempre nada de calça comprida? — perguntou ela, com um sorriso.

— Ah, sim. Todo mundo faz isso. É a última moda.

— Duvido.

— É sério. O nome desse tecido é nanojeans. Seca em cinco segundos.

— Aham. Sei.

— Sem contar que a roupa feita do nanojeans se dobra sozinha.

Emma me encarou desconfiada.

— Está falando sério?

— Ele também prepara o café da manhã.

Ela jogou água em mim.

— É feio ficar enganando garotas de séculos passados!

— Não tenho culpa se você cai fácil! — retruquei, me abaixando e jogando água de volta nela.

— Para falar a verdade, eu achei que o presente teria carros voadores, robôs domésticos e coisas do tipo. Calças robóticas eram o mínimo que eu esperava.

— Lamento por isso. Mas temos a internet.

— Decepcionante.

— Pois é. Preferia carros voadores.

— Quis dizer que é decepcionante ver você se tornando um grande mentiroso. Eu acreditei no nosso relacionamento. Que pena.

— Desculpa, mas eu não resisti. Agora chega, prometo!

— Promete?

— Pode me fazer qualquer pergunta. Eu prometo falar a verdade.

— Tudo bem. — Ela sorriu, afastou a franja molhada dos olhos e cruzou os braços. — Então me conte como foi seu primeiro beijo.

Senti o rosto corar e tentei afundar na água para disfarçar. É claro que não consegui, porque precisava respirar.

— Eu caí direitinho na sua, hein?

— Você sabe praticamente todos os detalhes da minha vida amorosa. Não é justo que eu não saiba nada da sua.

— É que não tem nada que valha a pena saber.

— Ah, que lorota. Nem um beijinho?

Olhei em volta, torcendo para ver algo que a distraísse e interrompesse o interrogatório.

— Hã...

Deixei a boca afundar na água e murmurei algumas palavras que saíram como bolhas.

Ela encostou a palma das mãos na superfície da água, que em segundos começou a evaporar e chiar.

— Se não me contar, eu cozinho você!

Voltei à tona.

— Tá bom, tá bom, eu confesso! Namorei uma modelo internacional que também era cientista espacial. E gêmeas que ganharam um prêmio pelo trabalho humanitário e pelas habilidades exóticas de fazer amor. Mas você é muito melhor que todas elas juntas!

Por um segundo, o vapor escondeu Emma, e quando se dissipou, ela havia desaparecido.

— Emma?

Entrei em pânico e comecei a procurá-la na água.

— Emma!

De repente, ouvi um barulho às minhas costas. Quando me virei, levei água na cara. Ali estava ela, rindo de mim.

— Eu avisei para não tentar me enganar!

— Que susto você me deu! — falei, secando os olhos.

— Você quer mesmo que eu acredite que um garoto bonito como você nunca beijou ninguém antes de mim?

— Tudo bem, eu beijei uma menina — admiti. — Mas nem conta direito. Acho que ela estava, tipo, só treinando comigo.

— Hum... Está ficando interessante.

— O nome dela era Janine Wilkins. Foi no aniversário da Mehlanie, na pista de patinação. Ela me beijou atrás das arquibancadas. Disse que estava cansada de ser “boca virgem” e queria saber como era beijar. Depois me fez jurar segredo e disse que, se eu contasse a alguém, todo mundo ia saber que eu ainda fazia xixi na cama.

— Minha nossa, que traiçoeira!

— E esse é todo o meu incrível histórico romântico.

Ela arregalou os olhos e deitou na água para boiar. O burburinho distante dos nossos amigos sumia sob o ruído suave de cada onda e voltava.

— Jacob Portman, tão puro quanto a neve que cai...

— Eu... hã... Pois é. — Fiquei envergonhado. — Que jeito estranho de colocar as coisas.

— Você sabe que não tem por que se envergonhar, não sabe?

— Sei.

Mas não tinha tanta certeza. Todo filme e seriado para adolescentes dava a impressão de que ser virgem aos dezesseis anos era sinal de fracasso. Eu sabia que era bobagem, mas, depois que se escuta a mesma história tantas vezes, é difícil afastá-la da cabeça.

— Isso significa que você toma cuidado com seu coração. Acho admirável. — Ela me encarou. — Além do mais, eu não me preocuparia com isso. Tenho certeza de que não é... — Emma deslizou o dedo na água, e uma trilha de vapor se levantou atrás — ... uma condição permanente.

— Ah, é?

Um arrepio percorreu meu corpo.

— O tempo dirá — acrescentou ela, e deixou as pernas afundarem para ficar de pé.

Ela me encarou com um olhar intenso, me avaliando conforme nos aproximávamos, de mãos dadas, nossos pés se enroscando debaixo d’água. Mas, antes que pudéssemos nos enroscar um pouco mais, escutamos gritos e vimos a srta. Peregrine e Horace acenando para nós da areia.


— Jacob, é o Hugh — avisou Horace, me passando meu celular quando saí da água.

Tomei o cuidado de manter o aparelho longe do meu cabelo encharcado.

— Alô?

— Jacob! Seus tios estão acordando. E acho que seus pais também.

— Chego em cinco minutos. Segure eles aí!

— Vou tentar, mas corra — respondeu Hugh. — Não tenho mais daquele pó, e seus tios são difíceis.

Todos os que podiam correr correram.

Bronwyn carregou Olive. A srta. Peregrine, que podia andar e voar mas não correr, mandou irmos na frente. Enquanto eu corria, olhei para trás e a vi mergulhando no mar e desaparecendo sob as ondas. Um segundo depois, suas roupas boiavam na superfície, e ela saiu da água de repente em sua forma de pássaro, passando por cima de nós em direção à casa. Sempre que eu a via mudar de forma, tinha vontade de aplaudir e comemorar, mas daquela vez me contive, por medo de ser visto.

Chegamos à porta suados, sujos de areia e sem fôlego, mas não havia tempo para nos limparmos. Eu ouvia as vozes zangadas dos meus tios na garagem. Precisávamos cuidar deles primeiro, antes que a sra. Melloroos ouvisse a confusão e chamasse a polícia.

Cruzei o portão de casa, fui até a garagem e comecei a me desculpar. Meus tios estavam irritados e confusos e logo começaram a ficar agressivos, e, após cerca de um minuto nisso, passaram por mim e entraram na casa. A srta. Peregrine aguardava no corredor, com sua pena e seu olhar penetrante, e em questão de segundos os dois estavam calmos, quietos e extremamente dóceis. Apagar a mente deles foi quase decepcionante, de tão fácil. Vendo que estavam entorpecidos e bastante sugestionáveis, ela me deixou falar com eles. Fiz os dois se sentarem nos banquinhos da cozinha e expliquei que as vinte e quatro horas anteriores tinham sido perfeitamente comuns, que eu estava em pleno domínio de minha saúde mental e que todo o drama familiar recente havia sido resultado de um diagnóstico errado por parte do meu novo psiquiatra. Só para garantir, acrescentei que qualquer britânico que eles encontrassem nas semanas seguintes, ou com quem falassem por telefone (caso ligassem para minha casa), eram parentes distantes do meu pai, que tinham vindo prestar as últimas homenagens a meu querido e falecido avô. Tio Bobby assentiu hipnoticamente. Tio Les continuou murmurando “aham” enquanto enchia os bolsos de restos dos ovos mexidos do café da manhã. Pedi que fossem embora, dormissem um pouco, e os mandei para casa em um táxi.

Era hora de enfrentar meus pais. Pedi a Bronwyn que os levasse para o quarto deles, no segundo andar, antes que passasse o efeito do pó, para não acordarem em um carro destruído e cercados por elementos que os lembrariam do trauma da véspera. Bronwyn os colocou na cama e fechou a porta. Por um minuto, fiquei andando em círculos no corredor, deixando pegadas de areia no carpete, pensando em como falar com eles, muito nervoso.

Emma subiu.

— Ei — sussurrou ela. — Antes de entrar, quero que saiba de uma coisa.

Fui até ela; Emma pegou minha mão.

— O quê? — perguntei.

— Ela gostava de você.

— Quem?

— Janine Wilkins. — respondeu Emma. — Uma garota não daria seu primeiro beijo em qualquer um.

— Ah... — Meu cérebro estava tentando, em vão, ficar em dois lugares bem diferentes ao mesmo tempo. — Você está brincando comigo, né?

Ela riu e olhou para baixo.

— Bom, ela gostava de você, pode acreditar, mas estou brincando, sim. Só vim desejar boa sorte. Não que você precise. Vai dar tudo certo.

— Obrigado.

— Estamos logo ali embaixo, se precisar de nós.

Assenti. E dei um beijo em Emma. Ela sorriu e desceu.


Meus pais acordaram aos poucos, na própria cama. O sol passava pelas venezianas. Eu estava sentado em uma cadeira no canto, observando os dois, roendo as unhas e tentando me acalmar.

Minha mãe foi a primeira a abrir os olhos. Piscou devagar e esfregou o rosto. Sentou-se, resmungou, massageou o pescoço. Não fazia ideia de que tinha dormido por dezoito horas dentro de um carro. Qualquer um ficaria com o corpo dolorido.

Quando me viu, ela pareceu estranhar.

— Querido, o que está fazendo aqui?

— Eu... Eu queria explicar umas coisas.

Nesse momento, ela olhou para o próprio corpo e notou que usava as mesmas roupas da noite anterior. Uma expressão confusa perpassou seu rosto.

— Que horas são?

— Umas três. Está tudo bem.

— Não — disse ela, olhando ao redor, sua confusão se transformando em pânico.

Eu me levantei. Ela apontou para mim.

— Fique aí.

— Fique calma, mãe. Me deixe explicar.

Ela olhou para o outro lado, me ignorando. Como se fosse possível eu não estar ali de verdade.

— Frank? — Ela chacoalhou meu pai sem a menor delicadeza, tentando acordá-lo. — Frank!

— Hum.

Ele virou para o outro lado. Ela o sacudiu com mais força.

— Franklin!

Aquela era minha última oportunidade. O momento para o qual eu vinha me preparando. Eu tinha pensado em algumas maneiras de abordar o assunto, mas, naquele instante, todas pareciam ridículas — desajeitadas, ou bobas. Quando meu pai se sentou na cama e começou a esfregar o sono dos olhos, perdi a coragem quase por completo, subitamente convencido de que não tinha as palavras certas.

Não importava. Pronto ou não, era hora do show.

— Mãe, pai, preciso conversar com vocês.

Fui até o pé da cama e comecei. Não lembro direito o que falei, só me lembro de ter me sentido um vendedor ambulante que bate de porta em porta com um argumento de venda muito ruim. Tentei explicar como as últimas palavras do meu avô, as fotografias estranhas e o cartão-postal da srta. Peregrine me levaram a descobrir o antigo casarão dos peculiares, onde moravam todos os velhos amigos de Abe, que não só estavam vivos como não tinham sequer envelhecido. Percebi que tentava evitar as palavras fenda temporal e habilidades, porque seria muita coisa a processar e ainda não era hora. Somada ao meu nervosismo, minha versão censurada e atrapalhada da verdade só parecia confirmar para eles que eu estava biruta. Quanto mais eu falava, mais eles se afastavam de mim, minha mãe puxando o edredom para os ombros e meu pai como se quisesse atravessar a cabeceira, a veia que sempre aparecia em sua testa quando ele estava nervoso pulsando sem parar.

Como se minha loucura fosse contagiosa.

— Pare! — gritou minha mãe, enfim me interrompendo. — Não consigo ouvir mais nada!

— Mas é verdade! Se você parasse para me escutar...

Ela jogou longe as cobertas e pulou da cama.

— Já ouvimos o suficiente! E já sabemos o que aconteceu. Foi a morte do seu avô que mexeu com você. E você escondeu de nós que não estava tomando os remédios. — Ela dava voltas pelo quarto, irritada. — Mandamos você para o outro lado do mundo na pior hora possível, aconselhados por um charlatão, e foi o que causou o surto. Não precisa ter vergonha, mas precisamos encarar os fatos com honestidade, entende? Você não pode continuar se iludindo com essas... histórias.

Foi como levar um tapa na cara.

— Vocês não vão nem me dar uma chance de...

— Já demos centenas de chances — disse meu pai.

— Não. Vocês nunca acreditam em mim.

— Claro que não — disse minha mãe. — Você é um menino solitário que perdeu uma pessoa importante. E depois conheceu aquelas crianças que são “especiais” como seu avô e que só você vê. Não precisa ser ph.D. para fazer um diagnóstico. Você tem amigos imaginários desde os dois anos.

— Eu nunca falei que só eu podia vê-las. Vocês conheceram eles, ontem, na saída da garagem.

Por um instante, meus pais pareciam ter visto um fantasma. Talvez tivessem bloqueado na mente os acontecimentos da véspera. Isso pode acontecer, quando um acontecimento isolado discorda completamente da nossa concepção da realidade.

— Do que você está falando? — perguntou minha mãe, numa voz trêmula.

Não havia alternativa senão apresentar meus amigos a eles.

— Querem conhecê-los? — perguntei. — De novo?

— Jacob — disse meu pai, em tom de advertência.

— Eles estão aqui. Juro que não são perigosos. Fiquem tranquilos, tá bom?

Abri a porta, chamei Emma e entrei com ela no quarto.

— Olá, sr. e sra. Portman.

Foi só ela terminar de falar e minha mãe soltou um grito.

A srta. Peregrine e Bronwyn chegaram correndo.

— O que foi? — perguntou a srta. Peregrine.

Minha mãe deu um empurrão nela. Ela empurrou a srta. Peregrine!

— Fora daqui. FORA!

Bronwyn se controlou para não jogar minha mãe na parede.

— Maryann, acalme-se! — gritou meu pai.

— Eles não vão fazer nada! — falei.

Tentei segurá-la pelos ombros, mas ela se desvencilhou de mim e saiu correndo do quarto.

— Maryann! — gritou meu pai mais uma vez.

Ele tentou ir atrás dela, mas Bronwyn o segurou pelos braços. Ainda se recuperando da Mãe Poeira, ele não tinha forças para lutar.

Desci e fui até a cozinha, atrás da minha mãe. Ela pegou uma faca. Foi quando os outros peculiares apareceram. De costas contra a geladeira, ela começou a brandir a faca, e eles formaram um círculo em volta dela, mantendo-se distantes da lâmina.

— Acalme-se, sra. Portman! — pediu Emma. — Não queremos fazer nenhum mal!

— Fiquem longe de mim! Ah, meu Deus... Meu Deeeus!

Talvez tenha sido por ver Olive engatinhando no teto (ela havia encontrado uma rede de pesca na garagem e pretendia jogá-la na minha mãe) ou Millard gritando dentro de um roupão flutuante, mas sei que, finalmente, minha mãe desmaiou. A faca retiniu no piso, e ela desabou. Uma cena tão deprimente que precisei virar o rosto.

Ouvi meu pai gritando no andar de cima, chamando minha mãe. Deve ter achado que a havíamos matado.

— Vamos cuidar dela, Jacob — disse Emma. — Vá ver seu pai.

Chutei a faca para debaixo de um armário, só para o caso de minha mãe acordar. Emma, Horace, Hugh e Millard a levantaram e a carregaram até o sofá. Não havia mais nada que eu pudesse fazer, então voltei a subir, correndo.

Meu pai estava encolhido num canto do quarto, agarrado a um travesseiro. Bronwyn estava de guarda na porta, os braços abertos, preparada para agarrá-lo se ele tentasse fugir.

Quando me viu, ele ficou pálido.

— Onde ela está? — perguntou. — O que fizeram com ela?

— Ela está bem — respondi. — Está dormindo.

Ele balançava a cabeça.

— Ela nunca vai superar isso.

— Vai, sim. A srta. Peregrine tem o poder de apagar certas lembranças. Ela não vai nem se lembrar do que aconteceu.

— E seus tios?

— Também — respondi.

A srta. Peregrine se aproximou.

— Sr. Portman, como vai?

Meu pai a ignorou. Manteve os olhos fixos em mim.

— Como pôde fazer isso? — Ele cuspia as palavras. — Como pôde trazer essa gente para dentro da nossa casa?

— Eles vieram me ajudar. Para convencer vocês de que eu não sou louco.

— Você não pode simplesmente fazer isso com as pessoas. — Ele estava falando com a srta. Peregrine agora. — Aparecer assim, de repente, na vida delas. Deixar todo mundo apavorado. Apagar as lembranças que quiser. Não é certo.

— Parece que sua esposa não é capaz de tolerar a verdade... ao menos por ora — disse a srta. Peregrine. — Jacob tinha grandes esperanças de que o senhor não reagiria da mesma maneira.

Ele se levantou devagar. Abaixou os braços. Parecia resignado, magoado.

— Muito bem, então. Acho melhor você começar — disse ele, olhando para mim.

Encarei a srta. Peregrine.

— Tem certeza? — perguntou ela.

Assenti.

— Estarei logo ali, do lado de fora.

Então ela saiu junto com Bronwyn e fechou a porta.


Falei por um bom tempo. Fiquei sentado na beira da cama, e meu pai, na cadeira do canto, cabisbaixo e curvado, como uma criança levando bronca. Mas não me deixei abalar. Contei minha história desde o início, e dessa vez estava calmo.

Contei o que tinha descoberto na ilha. Como conheci as crianças peculiares e como elas eram. Como descobri que era um deles. Falei até dos etéreos, mas não entrei nas complicações que vieram depois: as batalhas, a Biblioteca de Almas, os irmãos malignos da srta. Peregrine. Por ora, bastava que ele soubesse quem tinha sido seu pai e quem eu era.

Quando acabei, esperei alguns minutos, meu pai calado o tempo todo. Não parecia mais amedrontado, apenas triste.

— E então? — perguntei.

— Eu deveria ter imaginado. Você e seu avô sempre se deram tão bem... Era como se falassem uma língua secreta. — Ele assentia para si mesmo. — Eu deveria ter imaginado. Acho que no fundo eu sabia.

— Como assim? Você sabia sobre o vovô, mas não sobre mim?

— Sim. Não. Que inferno, não sei! — Ele encarava um ponto atrás de mim, como se tentasse enxergar através de uma névoa. — Acho que no fundo eu sabia, mas nunca quis acreditar.

Cheguei um pouquinho mais para a beirada da cama.

— Ele contou para você? — perguntei.

— Acho que tentou contar uma vez. Devo ter bloqueado a lembrança, ou então alguém a apagou da minha mente. Mas ontem... — Ele deu um tapa na testa. — Quando vi aquela gente toda na nossa porta, alguma chave girou na minha cabeça.

Agora era a vez dele de falar e minha vez de escutar.

— Eu tinha uns dez anos. Naquela época, seu avô fazia longas viagens a trabalho. Às vezes, passava semanas fora. Eu sempre quis ir com ele. Implorava, argumentava, mas ele nunca, nunca deixava. Até um dia. Um dia ele disse sim.

Meu pai se levantou e começou a andar de um lado para o outro, como se a lembrança lhe injetasse uma dose forte de energia que ele precisava gastar de alguma forma.

— Fomos de carro até... não lembro muito bem... até o norte da Flórida ou a Geórgia. Pegamos um colega de trabalho dele no caminho. Eu o conhecia, ele já havia visitado nossa casa uma ou duas vezes. Um cara negro. Sempre com um charuto na boca. Abe o chamava de H. Só H. Bom, ele tinha sido muito legal comigo nas outras vezes, mas naquele dia senti uma energia esquisita, ele ficava me olhando, e algumas vezes o ouvi perguntar ao meu pai: “Tem certeza disso?”

Meu pai fez uma pausa. Instantes depois, continuou:

— Então escureceu, e nós paramos. Ficamos em um hotel de beira de estrada qualquer. No meio da noite, meu pai me acordou, assustado. Ele me mandou pegar minhas coisas e fomos correndo até o carro. Ainda estava de pijama, e agora eu estava assustado. Porque meu pai não tinha medo de nada. Nada. Bem, arrancamos e deixamos o estacionamento como se estivéssemos sendo perseguidos por zumbis, mas só conseguimos avançar alguns quarteirões até que o carro fez um uom: simplesmente deu uma guinada, como se alguma coisa tivesse atingido a lateral. Só que não havia nenhum outro carro na estrada. Meu pai freou e parou. Ele saiu correndo e disse: “Abaixe-se, Frank, fique escondido!” Mas eu não conseguia desviar os olhos. Então vi meu pai ser erguido no ar por alguma força invisível. Ele começou a fazer uns sons guturais horríveis e depois voltou ao chão, ainda fazendo uns barulhos horrorosos, como um animal. Os olhos dele... dava para ver à luz dos faróis... os olhos dele estavam brancos, virados nas órbitas, e as roupas dele estavam imundas, cobertas de uma substância preta. Eu saí do carro e corri para o meio de um milharal. Não olhei para trás. Acho que desmaiei em algum momento, porque, depois disso, só me lembro de estar de volta à cama do hotel, e lá estavam meu pai, H. e mais duas ou três pessoas. Eles estavam muito esquisitos. Sujos de terra e sangue, e o cheiro... Meu Deus, que cheiro! Um deles... nunca vou esquecer... um deles não tinha rosto. Só uma máscara de pele. Eu estava morrendo de medo. Tanto medo que não conseguia nem gritar. Então meu pai disse: “Está tudo bem, Frank, não tenha medo, essa senhora vai conversar com você agora, não tenha medo.” E a mulher... a mulher se parecia com ela...

Em algum momento a srta. Peregrine tinha aberto a porta e voltado ao quarto de fininho. Meu pai apontava para ela.

— Ela fez alguma coisa comigo, e no dia seguinte as lembranças daquela noite tinham praticamente sumido. Como se tudo tivesse sido um pesadelo. Meu pai nunca tocou no assunto.

— Ela deveria ter apagado suas lembranças — explicou a srta. Peregrine. — Pelo visto, não fez um bom trabalho.

— Meu Deus, como eu queria que ela tivesse apagado tudo de vez. Tive pesadelos durante anos. Por um tempo, achei que estava ficando louco. Meu pai pediu a ela que não apagasse por completo. É meio sádico fazer uma coisa dessas com uma criança, não acham? No fundo ele queria que eu soubesse. Minha mente era como um... um quadro-negro apagado: se a gente força bem a vista, ainda dá para ler o que foi escrito, sabe? Só que eu não queria ver. Não queria lembrar. Porque não queria que aquela fosse a verdade sobre meu pai. Não queria que ele fosse... aquilo.

— Você só queria ter um pai normal — concluí.

— Isso — concordou ele, como se eu finalmente tivesse entendido.

— Mas ele não era normal. E eu também não sou.

— Estou vendo.

Ele parou de andar e se sentou na beirada da cama, inclinando o corpo para longe de mim.

— Seu filho é um jovem de coragem e talento — disse a srta. Peregrine friamente. — Você deveria se orgulhar dele.

Meu pai murmurou alguma coisa. Perguntei o que ele tinha dito.

Ele me encarou, e havia algo em seu olhar, algo que não estava ali um segundo antes. Repulsa.

— Você fez uma escolha.

— Não foi uma escolha. É o que eu sou.

— Não. Você escolheu eles. Escolheu esses... essa gente em vez de nós.

— Não precisa ser assim. Podemos coexistir.

— Diga isso à sua mãe, que gritou feito uma louca! Diga isso aos seus tios, lá no... Onde eles estão? O que vocês fizeram com eles?

— Eles estão bem, pai.

— Não tem NADA BEM! — berrou ele, voltando a ficar de pé. — Você nos destruiu!

A srta. Peregrine, que até então estava junto à porta, avançou pelo quarto, Bronwyn logo atrás dela.

— Sente-se, sr. Portman...

Ele a empediu de se aproximar.

— Não! Eu não vou viver num hospício! Não vou sujeitar minha família a essa insanidade!

— Mas tudo pode ficar bem — insisti. — Estou dizendo...

Ele avançou sobre mim. Achei que fosse me bater, mas parou bem na minha frente.

— Eu fiz minha escolha, Jacob. Muito tempo atrás. E parece que agora você fez a sua.

Estávamos frente a frente, muito próximos. Meu pai tinha o rosto vermelho e a respiração pesada.

— Eu ainda sou seu filho — sussurrei.

Ele manteve o olhar firme, mas vi seus lábios tremerem, como se fosse responder, mas então deu meia-volta, foi até a cadeira, sentou-se de novo e levou as mãos ao rosto. O ambiente ficou em silêncio por alguns instantes. O único som no quarto era da respiração irregular e entrecortada do meu pai.

Finalmente, quebrei o silêncio:

— Diga o que você quer que eu faça.

Ele ergueu o rosto, mas sem olhar para mim; levou um dedo à têmpora e disse, num fiapo de voz:

— Vão em frente. Apaguem. É o que vocês vão fazer mesmo, de um jeito ou de outro.

Fui tomado por um súbito desespero.

— Não se você não quiser! Não se você achar que...

— É o que eu quero — interrompeu ele, olhando para a srta. Peregrine. — Mas, desta vez, termine o que começou.

Ele se sentou de volta na cadeira, quase caindo, e uma luz pareceu se apagar de seus olhos.

A srta. Peregrine olhou para mim.

Senti meu corpo ficar dormente, da cabeça aos pés.

Assenti para ela. E saí do quarto.


Emma me parou quando eu descia correndo a escada.

— Você está bem? Não ouvi o que aconteceu...

— Está tudo bem.

Não estava, mas eu ainda não me sentia capaz de falar.

— Jacob, por favor, fale comigo.

— Agora não.

Eu precisava muito ficar sozinho. Para ser mais específico, precisava gritar pela janela de um carro em alta velocidade até ficar sem ar.

Ela me deixou ir. Não olhei para trás; não queria ver a expressão no rosto dela. Passei correndo por minha mãe, que estava encolhida no sofá, e por meus amigos, que sussurravam entre si, nervosos. Peguei as chaves do carro no balcão da cozinha, fui até a garagem e dei um soco no botão que abria o portão. O mecanismo fez um rangido doloroso, o portão impedido de se abrir pelo para-choque traseiro do carro. Seguiu-se o silêncio. Soltei um palavrão e chutei com toda a força a primeira coisa que vi, uma TV velha, de tubo, guardada embaixo da bancada. Meu pé descalço atravessou a parte de trás do aparelho, fazendo pedaços de plástico voarem para todo lado. Meu pé ficou dormente e provavelmente machucado. Saí mancando pela porta lateral que dava para o jardim e gritei para as árvores.

O nó de raiva fervente no meu peito se desfez um pouco.

Dei a volta na casa e atravessei o gramado dos fundos até o pequeno deque empenado pelo sol, que dava para a baía. Não tínhamos barco. Nem canoa. Eu só usava o deque para uma coisa: sentar na ponta com os pés dentro da água marrom, pensando em coisas ruins. Exatamente o que fiz naquele momento.

Minutos depois, ouvi passos nas tábuas de madeira. Estava pronto para mandar para o inferno quem quer que fosse, mas os passos ligeiramente irregulares só podiam ser da srta. Peregrine, e eu não conseguiria ser mal-educado com ela.

— Cuidado com os pregos — falei, sem me virar.

— Obrigada por avisar. Posso me sentar?

Dei de ombros, ainda olhando para a água. Ouvi um barco passando ao longe.

— Está feito — avisou ela. — Seus pais estão sugestionáveis, prontos para absorver novas informações. Preciso saber o que quer que eu diga.

— Qualquer coisa. Não me importo.

Alguns segundos se passaram. Ela se sentou atrás de mim.

— Quando eu tinha a sua idade, tentei fazer algo parecido com meus pais.

— Srta. Peregrine, não estou com a menor vontade de conversar.

— Então, apenas escute.

Às vezes era impossível discutir com ela.

— Eu já estava longe de casa havia alguns anos, na academia de ymbrynes da srta. Avocet — começou ela —, quando me ocorreu que ainda tinha pai e mãe e que seria bom revê-los. Como um tempo considerável tinha se passado desde que eu ganhara asas e fora expulsa de casa sem a menor cerimônia, achei que talvez agora eles pudessem me ver com outros olhos, como uma pessoa e uma filha, não como uma aberração repugnante. Quando os encontrei, estavam morando num casebre fora do nosso vilarejo. Foram expulsos por minha causa. Até nossos parentes se recusavam a falar com eles, todos acreditavam que eles tinham pacto com o demônio. Tentei reconquistá-los. Eles ainda me amavam, mas o medo que sentiam de mim era maior que seu amor. No fim das contas, minha mãe amaldiçoou o dia em que nasci e meu pai me mandou ir embora de sua casa com um ferro de atiçar a lareira. Muitos e muitos anos depois, recebi a notícia de que haviam morrido. Entraram no mar com pedras nos bolsos costurados.

Ela suspirou. Uma brisa correu, afastando o calor do verão por um momento. Parecia quase impossível que aquele mundo que ela descrevia existisse junto com este.

— Sinto muito — falei.

— Não é raro que nossos consanguíneos não suportem a verdade.

Aquilo me incomodou.

— Não foi isso que você falou uma hora atrás. Você disse que vale a pena encarar os problemas em nome da verdade.

Ela pareceu desconfortável. Ajeitou o corpo e tirou areia da barra do vestido.

— Achei que deveria deixar você tentar.

— Por quê? — perguntei, elevando a voz.

— Não cabe a mim dizer o filho que você deve ser para seus pais.

— Até onde eu sei, não tenho pais.

— Não diga isso. Sei que eles falaram coisas terríveis, mas você não pode...

Eu me levantei de súbito e pulei na água.

Prendi a respiração e fiquei submerso, torcendo para a escuridão e o frio repentino apagarem meus pensamentos:

Ele não quer saber quem você é.

Ele prefere esquecer tudo a saber quem você é de verdade.

Então gritei nas profundezas turvas do lago até ficar sem ar. Quando voltei para a superfície, estava a alguns metros do deque, onde vi a srta. Peregrine de pé, pronta para mergulhar atrás de mim.

— Jacob! Você...

— Sim, sim, estou bem. — A água ali era tão rasa que dava para tocar o leito sem dificuldade. — Eu avisei que não estava a fim de conversar.

— De fato.

Ela permaneceu no deque, e eu fiquei na baía com a água na cintura, meus pés afundando na lama enquanto peixinhos mordiscavam minhas pernas.

— Vou lhe dizer uma coisa — anunciou ela. — E você não tem permissão de responder fazendo birra.

— Tudo bem.

— Sei que não gosta dela no momento, mas garanto que vai se arrepender de jogar fora sua vida normal.

— Que vida? Eu não tenho amigos aqui. E meus pais têm medo e vergonha de mim.

— Seus pais estão vivos, o que já é mais do que a maioria tem. E cinco minutos atrás eles esqueceram tudo que aconteceu.

— Pois eu não esqueci. Não quero passar o resto da vida fingindo ser alguém que não sou. Se esse é o preço para ser o filho deles, não estou disposto a pagar.

Tive a impressão de que a srta. Peregrine quis gritar comigo em resposta, mas ela se conteve.

— Eu nunca disse que seria fácil ser um de nós. Muitas coisas na vida de um peculiar são desagradáveis e difíceis, e acredito que a parte mais complicada seja aprender a viver num mundo que não nos compreende nem tem intenção de compreender. Muitos acham isso impossível e simplesmente vão para as fendas temporais. Nunca achei que você seria um desses. Você tem um talento muito especial, e não estou me referindo à sua habilidade com os etéreos. De certa forma, você é um mutante, Jacob, capaz de transitar facilmente entre os mundos. Você não foi feito para ficar preso a uma só casa ou a uma só família. Você terá muitas delas, como seu avô.

Olhei para cima no momento em que um pelicano nos sobrevoava, cada batida de asas um leve suspiro, e imaginei a vida que meu avô tivera. Ele passou a maior parte de sua existência numa casinha miserável à beira de um pântano. Sua esposa e seus filhos mal o conheciam. Arriscou a vida, ano após ano, lutando pela causa peculiar, e sua recompensa foi ser tratado como um velho rabugento.

— Eu não quero ser como meu avô. Não quero ter a vida que ele teve.

— E não vai ter. Você terá uma vida própria. E a escola?

— Acho que você não está me escutando. Eu não quero... — fiquei de frente para a baía, abri os braços e gritei: — Não quero NADA! DESSA! MERDA!

Me virei de volta para a srta. Peregrine, o rosto corando.

— Já acabou? — perguntou ela.

— Sim — respondi, baixinho.

— Ótimo. Agora que fui muito bem informada quanto ao que você não quer... O que você quer?

— Quero fazer alguma coisa para ajudar as únicas pessoas que já se importaram de verdade comigo. Os peculiares. E quero fazer alguma coisa importante. Uma coisa grande.

— Pois bem. — Ela se agachou e estendeu a mão para mim. — Pode começar agora mesmo.

Voltei até o deque, e ela me ajudou a subir.

— Tenho uma tarefa crucial e que ninguém mais no mundo peculiar pode fazer, apenas você — explicou a srta. Peregrine enquanto andávamos.

— Tudo bem. O que é?

— As crianças precisam de roupas contemporâneas. Preciso que as leve para fazer compras.

— Compras? — Parei. — Você só pode estar brincando.

Ela se virou para mim, o rosto impassível.

— Não estou.

— Eu disse que queria fazer uma coisa importante. No mundo peculiar!

Ela se aproximou e, em voz baixa e intensa, me disse:

— Já falei uma vez, mas vou repetir: é imperativo para o futuro daquele mundo que estas crianças saibam se virar neste. E não há ninguém além de você para ensiná-las, Jacob. Quem mais poderia cumprir esse papel? Os que vivem há décadas nas fendas não sabem nada sobre o presente. Não conseguiriam sequer atravessar uma rua! E os que não estão lá há muito tempo são tão velhos ou tão jovens e novos em nosso mundo peculiar que não passam de novatos. — Ela segurou meus ombros. — Eu sei. Sei que está com raiva e que quer ir embora. Mas eu lhe imploro. Fique um pouco mais. Acho que sei de um jeito de você existir aqui... só às vezes, quando quiser, enquanto realiza trabalhos importantes conosco nas fendas.

— Ah, é? — perguntei, cético. — E como seria?

— Me dê até... — Ela pegou o relógio de bolso e olhou a hora. — Até a noite. Então você verá. Está bom assim?

Meu primeiro pensamento foi que tinha algo a ver com o Polifendador, mas a fenda mais próxima, a que eles haviam usado para chegar ao presente na noite anterior, ficava a horas de distância dali, no meio de um pântano. Além disso, eu não queria ficar indo e voltando de um mundo para o outro. Queria deixar tudo para trás, ir embora de vez do presente. No entanto, era difícil dizer não à srta. Peregrine, e eu já tinha concordado em ajudá-los a aprender sobre o presente. Não seria certo quebrar minha promessa tão cedo.

— Tudo bem — concordei. — Hoje à noite.

— Excelente. — Ela estava prestes a ir embora quando disse: — Ah, antes que eu esqueça. — E me entregou um envelope que levava no bolso. — Para cobrir as despesas.

Dei uma olhada. Estava cheio de notas de cinquenta dólares.

— É suficiente? — perguntou ela.

— Hã... acho que sim.

Ela assentiu com firmeza, satisfeita, e seguiu em direção à casa, me deixando ali perplexo com o envelope na mão.

— Tenho muito a fazer, muito a fazer — murmurava a srta. Peregrine, então apontou para o céu e gritou, olhando de relance para trás: — Hoje à noite!

 

 

CAPÍTULO TRÊS


Como só cabia metade do grupo no carro aleijado dos meus pais, teríamos que fazer as compras em duas etapas. No primeiro grupo iriam Emma, porque eu sempre lhe dava tratamento preferencial e não escondia isso de ninguém; Olive, porque estava sempre alegre e eu bem que precisava recobrar o ânimo; Millard, porque só falava disso; e Bronwyn, porque seus músculos eram a única maneira de abrir a porta da garagem. Prometi a Hugh, Horace, Enoch e Claire que voltaria em algumas horas. Mas Horace declarou não ter interesse em adquirir roupas novas.

— O dia em que o jeans se tornou aceitável como roupa casual foi o dia em que a moda contemporânea perdeu toda a credibilidade — reclamou ele, me olhando de esguelha. — A passarela dos tempos modernos parece um acampamento de mendigos.

— Você precisa de roupas novas — disse Claire. — A srta. Peregrine mandou.

Enoch fez cara feia.

— A srta. Peregrine mandou, a srta. Peregrine mandou! Você parece um disco arranhado.

Deixei os dois discutindo e fui à garagem. Com fita adesiva, arame e uma ajudinha de Emma nas soldas, conseguimos prender de volta a porta arrancada. Não abria nem fechava, mas pelo menos evitava que a polícia nos parasse ao ver um veículo de três portas. Um minuto depois, partimos, seguindo entre as figueiras da via principal de Needle Key.

Os casarões se seguiam dos dois lados da pista, e no espaço entre um e outro vislumbrávamos a praia. Era a primeira vez que meus amigos viam tantas coisas do mundo moderno durante o dia. Estavam calados, absorvendo tudo. As garotas, no banco de trás, tinham o olhar grudado nas janelas, e a respiração de Millard embaçava o vidro do carona. Tentei imaginar o que estariam achando daquelas paisagens que para mim eram quase invisíveis havia muito tempo.

Conforme seguíamos para o sul, a faixa de terra se estreitava e os casarões eram substituídos por residências mais modestas, que, por sua vez, davam lugar a um aglomerado de condomínios dos anos 1970 cujos nomes eram indicados em placas espalhafatosas: Caribe, Paraíso Litorâneo, Ilha da Fantasia. Quando chegamos ao centro, mais explosões de cores: lojinhas com telhados cor-de-rosa vendendo protetor solar e porta-latinhas; lojas de pescaria pintadas de amarelo-ovo; imobiliárias com toldos listrados. E bares, claro, muitos bares com tochas de bambu, as chamas dançando, as portas escancaradas para deixar entrar a brisa do mar, o chiado metálico dos karaokês ecoando Jimmy Buffett até a beira da água. O limite de velocidade naquela área é tão baixo, e a rua tão cheia de banhistas vagarosos após tanto sol, que dava para cantar junto. Nada havia mudado desde que eu me entendia por gente. Como uma peça em cartaz há muito tempo, era possível acertar o relógio pelo movimento dos atores e as deixas do cenário, sempre iguais todos os dias: os turistas europeus vermelhos como camarões, cozinhando nas sombras estreitas das palmeiras; os pescadores com pele de couro e a barriga pendendo como a aba do chapéu, sempre com um isopor a tiracolo, lançando suas iscas nas águas rasas ao longo de todo o parapeito da ponte.

Saímos da ilha cruzando a baía resplandecente ao sol, os pneus zumbindo no metal da ponte. Do outro lado, no continente, nos vimos em um arquipélago de galerias comerciais e shoppings cercados de estacionamentos oceânicos por todos os lados.

— Que lugar estranho... — comentou Bronwyn, rompendo o silêncio. — Por que Abe veio morar logo aqui, num país tão grande como os Estados Unidos?

— A Flórida já foi uma das melhores regiões para peculiares se esconderem — explicou Millard. — Pelo menos antes da Guerra dos Etéreos. Era onde todos os circos se instalavam para o inverno, e a parte central do estado é um imenso pântano sem estradas. Diziam que aqui qualquer um, por mais peculiar que fosse, encontrava um lugar para se encaixar... ou para desaparecer.

Deixamos para trás o esquecido centro da cidade, passando pelos outlets fechados e pelos condomínios inacabados que pouco a pouco eram retomados pela natureza, e seguimos na direção da maior loja de departamentos da região. Virei na Piney Woods Road, um corredor de um quilômetro no qual estão instaladas todas as casas de repouso, estacionamentos de trailers para idosos e comunidades de aposentados. A estrada é ladeada por outdoors nada sutis anunciando hospitais, funerárias e cemitérios. Todos na cidade chamavam a Piney Woods Road de Estrada para o Paraíso.

Reduzi a velocidade quando chegamos a uma placa com um círculo de pinheiros, e só depois de fazer a curva percebi o que tinha feito. Havia vários caminhos possíveis para a loja, mas, por força do hábito, eu tinha seguido por aquele e, distraído, meu inconsciente me levara a pegar a entrada para o Circle Village, o condomínio onde meu avô havia morado.

— Opa, caminho errado — comentei, parando e engatando a ré.

— Espere um minuto — disse Emma. — Jacob, espere.

Minha mão ficou parada no câmbio, uma onda de medo percorrendo meu corpo.

— O que foi?

Emma se virou no banco para olhar tudo em volta atentamente.

— Não era aqui que Abe morava? — perguntou ela.

— Era.

— Sério? — perguntou Olive. — É aqui?

— Entrei sem querer, foi automático — expliquei. — Eu vinha tanto aqui...

— Eu quero conhecer — disse Olive. — A gente pode dar uma olhada?

— Desculpa, mas hoje não dá tempo — respondi, observando Emma pelo retrovisor.

Só consegui ver sua nuca, pois ela estava virada para trás, olhando fixamente para a guarita da entrada do condomínio.

— Mas a gente já está aqui — insistiu Olive. — Lembram que a gente sempre falava de visitar o Abe? Vocês não viviam imaginando como era a casa dele?

— Olive, não — brigou Millard. — Não é uma boa ideia.

— É — concordou Bronwyn, cutucando Olive e apontando a cabeça para Emma. — Talvez outro dia.

Olive finalmente entendeu.

— Ah. Tudo bem. Na verdade, eu também não queria muito...

Liguei a seta, pronto para fazer o retorno.

— Eu quero ir — disse Emma. — Quero ver a casa dele.

— Quer mesmo? — perguntei.

— Tem certeza? — perguntou Millard.

— Tenho. — Ela fez cara feia. — Não me olhem assim.

— Assim como? — perguntei.

— Como se eu não fosse aguentar.

— Ninguém disse isso — retrucou Millard.

— Mas pensaram.

— E as compras? — perguntei, ainda torcendo para fugir daquela situação.

— Acho que devemos prestar nossas homenagens — argumentou Emma. — É mais importante que roupas.

A ideia de passear com eles pela casa vazia do meu avô me parecia totalmente mórbida, mas, àquela altura, seria cruel negar isso a eles.

— Tá bom — concordei, relutante. — Mas tem que ser rápido.

Para os outros, pensei, era apenas uma curiosidade, uma vontade de saber mais sobre quem Abe havia se tornado após deixar Cairnholm. Para Emma, porém, era mais que isso. Eu sabia que ela estava pensando nele desde que chegara ali. Emma passara anos imaginando como e onde ele morava, imaginando a vida dele nos Estados Unidos, montando pequenas peças que recebia pelas cartas. Anos sonhando visitá-lo. Agora que ela finalmente estava ali, era impossível não pensar nisso. Notei que ela tentava, mas não conseguia, depois de tanto tempo sonhando com ele, com a casa dele. O fantasma do meu avô vinha nos assombrando em nossos momentos a sós. Talvez aquela visita servisse como um encerramento e o deixasse enfim descansar.


Eu não ia àquela casa desde a viagem ao País de Gales — quando eu ainda não sabia de nada. De tudo que eu tinha vivido desde a chegada dos meus amigos, nenhum fora mais onírico do que andar pelas ruas pacatas e repetitivas do condomínio do meu avô com as pessoas que ele me pedira para encontrar.

Quase tudo permanecia igual. Ali estava o mesmo guarda acenando no portão, o rosto esbranquiçado pelo protetor solar. Ali estavam os gnomos de jardim, os flamingos de plástico e as caixas de correio enferrujadas em formato de peixe, em frente a inúmeras fachadas iguais, um desfile de tons desbotados. Ali estavam os mesmos velhinhos pedalando devagar em seus triciclos ortopédicos entre a quadra poliesportiva e o centro comunitário. Como em uma fenda temporal. Talvez por isso meu avô gostasse dali.

— Um local humilde — comentou Millard. — Ninguém diria que um renomado caçador de etéreos viveu aqui, isso é certo.

— Com certeza era essa a intenção — comentou Emma. — Abe tinha que manter a discrição.

— Mesmo assim. Eu esperava algo um pouco mais grandioso.

— Achei bonitinho — comentou Olive. — As casinhas todas em fila. Só fico triste que, depois de tantos anos querendo visitar Abe, ele não esteja aqui.

— Olive! — disse Bronwyn.

Ela olhou para Emma e se encolheu.

— Tudo bem — falou Emma, tranquilamente.

Quando a olhei pelo retrovisor, porém, ela logo desviou o olhar. Fiquei me perguntando se na verdade ela só queria fazer aquilo para me provar que tinha superado aquela história, que as antigas feridas não doíam mais.

Depois de uma curva, ali estava ela, humilde como uma caixa de sapatos, no fim de uma rua sem saída tomada pelo mato. Todas as casas da rua Ave da Manhã pareciam abandonadas, já que a maioria dos moradores ainda estava no norte, passando o verão, mas a de Abe parecia pior: a grama seca, o amarelo da moldura do telhado descascando. Quando retornassem, no outono, os vizinhos descobririam que Abraham Portman não voltaria mais.

— Bom, é isso — falei, estacionando. — Uma casa comum.

— Por quanto tempo ele morou aqui? — perguntou Bronwyn.

Antes que eu pudesse responder, me distraí com algo que não tinha percebido até então: uma placa de VENDE-SE cravada no jardim. Saí do carro, cruzei o gramado a passos largos, arranquei a placa e a joguei no lixo.

Ninguém tinha me contado. Claro, eu teria feito um escândalo, e meus pais não queriam mais aborrecimentos. Meus sentimentos davam muito trabalho.

— Tudo bem? — perguntou Emma, aproximando-se.

— Eu é que deveria perguntar isso a você.

— Comigo tudo bem. É só uma casa. Certo?

— Certo. Então por que me incomoda tanto saber que meus pais a colocaram à venda?

Ela me abraçou por trás.

— Não precisa explicar. Eu entendo.

— Obrigado. E eu entendo perfeitamente se você quiser ir embora, a qualquer hora. É só falar.

— Está tudo bem. — E acrescentou, baixinho: — Mas obrigada.

De repente, ouvimos uma confusão. Quando nos viramos, vimos Bronwyn e Olive ao lado do porta-malas.

— Tem alguém aqui dentro! — gritou Bronwyn.

Corremos até lá. Ouvi um grito abafado. Abri o porta-malas.

— Enoch! — exclamou Emma.

— O que você está fazendo aqui? — perguntei.

— Vocês realmente acharam que iam me deixar para trás? — Ele apertou os olhos com força por causa da claridade repentina. — Pois se enganaram!

— Seu cérebro... — começou Millard, balançando a cabeça. — Às vezes ele desafia a lógica.

— Sim, meu brilhantismo pega muita gente de surpresa. — Enoch pulou para a calçada e olhou em volta, confuso. — Esperem. Isto não é uma loja de roupas.

— Uau, ele é mesmo brilhante — comentou Millard.

— Esta era a casa do Abe — explicou Bronwyn.

Enoch ficou de queixo caído.

— O quê? — Ele olhou desconfiado para Emma. — De quem foi essa ideia?

— Minha — respondi, tentando encerrar a conversa constrangedora antes que começasse.

— Viemos prestar nossas homenagens — explicou Bronwyn.

— Se é o que você diz... — retrucou Enoch.

Eu não tinha levado as chaves, mas não tinha importância, pois deixávamos uma cópia embaixo de uma concha na horta, um esconderijo que só vovô e eu conhecíamos. Fiquei um pouco emocionado em ainda encontrá-la ali. Em instantes estávamos abrindo a porta e entrando.

Com a casa fechada durante quase todo o verão, o ar ali dentro estava pesado e abafado, mas o estado do lugar era ainda pior. Pilhas instáveis de roupas e papéis no chão, utensílios domésticos largados pelas superfícies, lixo transbordando de uma pirâmide de sacos pretos em um canto. Meu pai e minha tia não haviam terminado de arrumar os pertences do meu avô. Meu pai abandonara a tarefa (e a casa, aparentemente) quando fomos para Gales e deixara uma placa de vende-se torcendo para que alguém fizesse o trabalho por eles. Parecia um armazém abandonado do Exército da Salvação, não a residência de um senhor respeitável. Senti muita vergonha e comecei a me desculpar e arrumar as coisas ao mesmo tempo, como se fosse possível esconder o que todos já tinham visto.

— Caramba — disse Enoch, estalando a língua ao olhar em volta. — Ele devia estar muito mal no fim da vida.

— Não... Nunca... nunca foi assim — gaguejei, tirando um monte de revistas velhas da poltrona cativa dele. — Não enquanto ele era vivo...

— Jacob, pare — pediu Emma.

— Vocês podem esperar um pouco lá fora enquanto eu ajeito isso?

— Jacob! — repetiu ela, me segurando pelos ombros. — Pare.

— Vai ser rápido. Ele não vivia assim. Eu juro.

— Eu sei — disse ela. — Abe não tomava nem o café da manhã sem vestir uma camisa limpa.

— Exatamente. Então...

— Vamos ajudar — disse Emma.

Enoch fez uma careta.

— Vamos?

— Sim! — concordou Olive. — Vamos todos ajudar.

— É isso mesmo — disse Bronwyn. — A casa não pode ficar assim.

— Por que não? — reclamou Enoch. — Abe está morto. Quem se importa se a casa dele está bagunçada?

— Nós.

Enoch cambaleou para trás como se Millard o tivesse empurrado.

— E, se você não vai ajudar, pode voltar para a mala do carro! — acrescentou Millard.

— Isso mesmo! — gritou Olive.

— Sem violência, amigos. — Enoch pegou uma vassoura em um canto e a girou na mão. — Viram? Estou pronto. Varrendo, varrendo!

Emma bateu palmas uma vez.

— Então vamos deixar esse lugar um brinco.

Começamos na mesma hora. Assumindo o comando, Emma começou a dar ordens como um sargento, e acho que isso a ajudou, ocupando sua mente e evitando pensamentos ruins.

— Livros nas estantes! Roupas nos armários! Lixo nas lixeiras!

Bronwyn levantou a poltrona acima da cabeça com apenas uma das mãos.

— Isso aqui vai onde?

Limpamos e varremos. Abrimos as janelas para ventilar a casa. Bronwyn levou os imensos tapetes para o quintal e bateu o pó de todos, sozinha. Assim que entramos no ritmo, nem Enoch pareceu incomodado. Toda a sujeira e a poeira foram parar em nossas mãos, roupas e pele. Mas ninguém pareceu se importar.

Durante todo o tempo eu via imagens fantasmagóricas do meu avô por toda parte. Ele em sua poltrona xadrez, lendo um livro de espionagem. Ele à janela da sala, sua silhueta recortada contra o céu ensolarado da tarde, só observando. “Estou esperando o carteiro”, dizia, com uma risada. Ou na cozinha, mexendo uma panela de ensopado polonês e me contando histórias. Ao meu lado diante da grande mesa de desenho que ele tinha na garagem, os alfinetes e linhas espalhados, criando mapas comigo nas tardes de verão. “Onde vamos colocar o rio?”, ele me perguntava, me entregando a canetinha azul. “E a cidade?” Os cabelos brancos se erguiam de sua cabeça como fumaça. “Que tal aqui?”, sugeria, empurrando minha mão um pouco mais para cá ou para lá.

Quando terminamos de limpar, fomos para a varanda e ficamos descansando à brisa suave, secando o rosto. Claro que Enoch tinha razão: não fazia diferença alguma se a casa estava limpa ou não. Foi um gesto inútil, mas significativo. Eles eram amigos de Abe e não puderam estar presentes em seu funeral; aquela foi a maneira que encontraram de dizer adeus.

— Vocês não precisavam ter feito isso — falei.

— A gente sabe — disse Bronwyn. — Mas foi bom.

Ela abriu o refrigerante que encontramos na geladeira, tomou um longo gole, arrotou e passou a garrafa para Emma.

— Só fico triste que os outros não estejam aqui — comentou Emma, bebendo um golinho. — Podemos trazê-los outro dia, para conhecerem a casa também.

— Mas ainda tem mais, não tem? — perguntou Enoch, em tom de decepção.

— Na casa, não. A não ser que você queira limpar o quintal também.

— E a sala de guerra? — perguntou Millard.

— Hein?

— Ora... onde Abe planejava os ataques, recebia mensagens criptografadas de outros caçadores de etéreos, essas coisas. Ele certamente tinha uma sala de guerra.

— Hã... não, não tinha.

— Talvez ele só não tenha contado a você — sugeriu Enoch. — Provavelmente estava cheia de coisas muito secretas, e você não tinha como entender porque era só uma criancinha boba.

— Se Abe tivesse uma sala de guerra, Jacob saberia — interveio Emma.

— Isso mesmo — concordei.

Mas eu não tinha tanta certeza. Eu era o garoto que, mesmo depois de ouvir toda a verdade sobre os peculiares, tinha deixado os colegas de escola me convencerem de que tudo não passava de histórias fantasiosas. Eu praticamente havia chamado meu avô de mentiroso, e sei que isso o magoou. Se eu não tinha confiado nele, talvez ele também não tivesse me confiado um segredo daquela magnitude.

Ainda assim, como alguém poderia esconder uma sala de guerra numa casa pequena como aquela?

— E um porão? — perguntou Bronwyn. — Abe devia ter um espaço para se proteger dos etéreos.

— Se tivesse, não teria sido morto por um deles, não acha? — respondi, ficando frustrado com aquela discussão.

Ela pareceu magoada. Fez-se um silêncio constrangedor.

— Jacob — chamou Olive. — Isso aqui é o que eu estou achando que é?

Ela estava passando a mão por um grande rasgo na porta de tela que dava para o quintal.

Senti raiva do meu pai. Por que ele não havia consertado a porta ou arrancado a tela de uma vez? Por que ainda estava daquele jeito, pendurada, como se fosse uma evidência em uma cena de crime?

— Sim. Foi por aí que o etéreo passou. Mas não aconteceu aqui. Eu o encontrei... — apontei para a mata — ... lá fora.

Olive e Bronwyn trocaram um olhar de preocupação. Emma baixou os olhos, a cor sumindo do rosto. Talvez aquilo fosse, finalmente, demais para ela.

— Não tem nada para ver, é só mato — continuei. — E nem sei se eu conseguiria achar o lugar certo.

Mentira. Eu encontraria de olhos fechados.

— Se não se importa de tentar... — pediu Emma, me encarando com uma expressão determinada. — Preciso ver onde tudo aconteceu.


Conduzi meus amigos pela grama alta até mergulharmos na escuridão do bosque de pinheiros. Ensinei a eles como evitar se cortar nas palmeiras-anãs e enroscar os pés nas trepadeiras, e também como identificar e evitar ninhos de cobra. Durante o caminho, contei novamente a história daquela fatídica noite, a noite que dividira minha vida em Antes e Depois. Abe ligando em pânico para o meu trabalho; eu demorando a chegar porque estava esperando uma carona — um atraso que pode ter custado a vida do meu avô ou salvado a minha —; eu encontrando a casa destruída e a lanterna dele caída no gramado, ainda acesa, apontando para o bosque. Eu caminhando pela escuridão das árvores, exatamente como fazíamos naquele momento, e então...

Algo se mexeu nos arbustos. Todos nós pulamos de susto.

— É só um guaxinim! — falei. — Não se preocupem. Se tivesse algum etéreo aqui, eu sentiria.

Passamos por um trecho que achei familiar, mas não tive certeza de que era aquele o ponto. As plantas crescem rápido na Flórida, e a mata havia mudado desde a última vez que eu estivera ali. Acho que, no fim das contas, eu não conseguiria encontrar o lugar de olhos fechados. Muitos meses tinham se passado.

Chegamos a uma clareira ensolarada onde as trepadeiras eram mais baixas e o mato parecia ter sido pisado.

— Foi mais ou menos aqui. Acho.

Formamos um círculo e fizemos um momento de silêncio. Então, um a um, eles se despediram de Abe.

— Você foi um grande homem, Abraham Portman — disse Millard. — Precisamos de mais peculiares como você. Sentimos muito sua falta.

— Não foi justo o que aconteceu — disse Bronwyn. — Queria que a gente pudesse ter protegido você do mesmo jeito que você nos protegia.

— Obrigada por nos mandar Jacob — disse Olive. — Sem ele, teríamos morrido.

— Não vamos exagerar — disse Enoch, e aproveitou para dizer algumas palavras. Primeiro, ficou remexendo a terra com a ponta do sapato, em silêncio, e só então disse: — Por que você foi fazer essa besteira de ser morto? — Ele deu uma risadinha sem graça. — Desculpa se alguma vez fui grosseiro com você. Se vale de alguma coisa, eu queria que você ainda estivesse aqui. — Ele virou o rosto e sussurrou: — Adeus, meu velho amigo.

Olive levou a mão ao peito.

— Enoch, isso foi tão bonito...

— Ah, chega. — Ele balançou a cabeça, envergonhado, e começou a fazer o caminho de volta. — Espero vocês na casa.

Bronwyn e Olive olharam para Emma, que ainda não tinha falado.

— Eu gostaria de um momento sozinha, por favor.

As meninas pareceram um pouco decepcionadas, mas seguiram Enoch. Eu fiquei. Emma me lançou um olhar. Ergui as sobrancelhas.

Eu também?

Ela pareceu um pouco envergonhada.

— Se não se importar.

— Claro que não. Vou esperar ali mais para trás, se precisar de mim.

Caminhei uns trinta passos e esperei recostado em uma árvore. Emma ficou ali parada por vários minutos. Evitei olhar para ela, mas, à medida que o tempo passava, mais eu me pegava procurando algum sinal de que ela estava chorando.

Então fiquei observando um urubu dando voltas no céu. Pouco depois, um barulho no meio dos arbustos me chamou a atenção.

Bronwyn veio correndo. Levei um susto tão grande que quase caí.

— Jacob! Emma! Venham comigo! Rápido!

Quando a viu, Emma foi correndo até nós.

— O que houve? — perguntei.

— Encontramos uma coisa — respondeu Bronwyn. — Na casa.

Pela expressão dela, pensei que fosse algo terrível, como um cadáver, mas sua voz transbordava empolgação.


Entramos no quarto que servia de escritório. O antigo tapete persa que ocupava quase toda a extensão do cômodo estava enrolado em um canto, revelando as tábuas claras e gastas do piso.

Emma e eu estávamos sem fôlego de tanto correr.

— Bronwyn disse que... que vocês acharam alguma coisa — disse Emma.

— Eu queria testar uma teoria — começou Millard. — Aproveitei enquanto vocês estavam namorando no mato e pedi que Olive caminhasse pela casa.

Olive fez uma pequena demonstração: os sapatos de chumbo faziam um baque pesado a cada passo.

— Imaginem minha surpresa quando chegamos a este cômodo. Olive, por favor.

Ela começou na parede e atravessou o escritório. Quando passou no centro, o som mudou drasticamente, de um baque surdo para um ruído mais oco... e ligeiramente metálico.

— Tem alguma coisa aqui embaixo — falei.

— Um espaço vazio — concordou Millard. — Uma concavidade.

Ouvi o joelho de Millard sendo apoiado no chão, depois vi um abridor de cartas flutuar com a ponta para baixo e se enfiar entre duas tábuas. Grunhindo, Millard ergueu um recorte no piso de mais ou menos um metro quadrado. A madeira se ergueu em uma dobradiça e revelou uma porta de metal que parecia permitir a passagem de um homem adulto.

— Cacete.

Olive ficou chocada. Eu não falava palavrões na frente deles, mas aquilo...

— É uma porta — anunciei.

— Mais um alçapão, na verdade — corrigiu Bronwyn.

— Não é do meu feitio dizer isto, mas... — começou Millard. — Eu falei, não falei?

A portinhola era de aço fosco. Tinha uma alça embutida e um teclado numérico. Eu me ajoelhei e dei umas batidinhas no metal. Parecia grosso e firme. Puxei a alça, mas nada aconteceu.

— Está trancada — avisou Olive. — Já tentamos abrir.

— Qual a combinação? — perguntou Bronwyn.

— Como eu vou saber? — retruquei.

— Como eu imaginava — disse Enoch. — Tem muita coisa que você não sabe, hein?

Suspirei.

— Preciso pensar.

— Será que a senha é o aniversário de alguém? — sugeriu Olive.

Tentei alguns: o meu, o de Abe, o do meu pai, o da minha avó e até o de Emma, mas nenhum funcionou.

— Não é um aniversário — disse Millard. — Abe nunca usaria uma senha tão óbvia.

— Nem sabemos quantos algarismos tem a senha — comentou Emma. — Talvez nem seja um aniversário.

Bronwyn apertou meu ombro.

— Vamos lá, Jacob. Pense.

Tentei me concentrar, mas minha mágoa estava me distraindo. Sempre achei que fosse a pessoa mais próxima do meu avô. Como ele nunca havia mencionado uma porta secreta no piso do escritório? Ele tinha vivido mais da metade da vida nas sombras e nunca tentara dividi-la comigo. Claro, me contava histórias que pareciam invenções e me mostrava algumas fotos antigas, mas nunca tinha me mostrado nada. Eu jamais teria duvidado das histórias se ele tivesse se esforçado um pouco mais para prová-las — por exemplo, me mostrando a passagem para sua sala secreta.

Ao contrário do meu pai, eu queria acreditar.

Será que meu ceticismo o fizera desistir de me contar tudo? Eu não conseguia mais acreditar nisso. Se ele tivesse simplesmente me contado a verdade, eu teria guardado seus segredos como se deles dependesse minha vida. Acho que, no fundo, ele não confiava em mim. E agora ali estava eu, tentando descobrir a combinação para abrir uma porta que ele nunca havia mencionado e que guardava segredos que ele nunca me permitira descobrir.

Então, por que eu estava incomodado?

— Não faço a menor ideia — falei, me levantando.

— Você vai desistir? — perguntou Emma.

— Talvez seja só um porão.

— Você sabe que não é.

Dei de ombros.

— Minha avó levava a fabricação de geleias muito a sério.

Enoch deu um suspiro frustrado.

— Talvez você esteja escondendo alguma coisa da gente.

— O quê? — perguntei, me virando para ele.

— Acho que você sabe qual deve ser a senha, mas quer os segredos de Abe só para você, mesmo tendo sido nós que encontramos a porta.

Avancei na direção dele, com raiva, mas Bronwyn se colocou entre nós.

— Calma, Jacob! Enoch, fique quieto. Você não está ajudando em nada.

Mostrei o dedo do meio para ele.

— Ah, quem liga para o que tem no buraco velho do Abe — disse Enoch, com uma risada. — Aposto que são só as cartas de amor que ele recebeu da Emma mil anos atrás.

Foi a vez de Emma mostrar o dedo para ele.

— Deve ser um altar, com uma foto gigante dela e velas para todo lado... — Ele bateu palmas. — Ah, seria tão constrangedor para vocês dois!

— Venha aqui que vou queimar suas sobrancelhas.

— Ignore, Emma — pedi.

Nós dois nos afastamos e ficamos junto à porta do quarto, as mãos nos bolsos. Enoch tinha conseguido nos deixar sem jeito.

— Não estou escondendo nada. Não sei mesmo qual é a senha.

— Eu acredito — disse Emma. — Eu estava pensando... talvez não seja um número.

— Mas é um teclado numérico.

— Talvez seja uma palavra. Veja, as teclas também têm letras.

Eu me aproximei novamente e dei uma olhada. Emma tinha razão: embaixo do número em cada tecla havia três letras, como nos telefone antigos.

— Tem alguma palavra que significasse algo para vocês dois? — perguntou ela.

— E-m-m-a? — sugeriu Enoch.

— Juro por Deus, Enoch...

Bronwyn o levantou e o colocou no ombro.

— Ei! Me larga!

— Está de castigo — avisou ela, e saiu do quarto levando um Enoch que se debatia e protestava.

— Como eu ia dizendo — continuou Emma —, vocês tinham algum segredo só entre vocês? Alguma coisa que só vocês diziam.

Pensei mais um pouco e me ajoelhei perto do alçapão. Tentei alguns nomes: Jacob, Abe, Emma. Então, só por desencargo, digitei p-e-c-u-l-i-a-r.

Nada. Óbvio demais.

— Talvez nem fosse em inglês — comentou Millard. — Abe também falava polonês.

— Pense nisso durante a noite — sugeriu Emma.

Mas minha mente estava a mil. Polonês. Sim, ele falava polonês de vez em quando, normalmente sozinho. Eu não aprendi o idioma, só uma palavra. Tygrysku: o apelido que ele me deu. Significava “tigrinho”.

Digitei.

O mecanismo dentro da fechadura se abriu com um clenc.

Cacete.


Ao se abrir, a escotilha revelou uma escada que descia para a escuridão. Pisei no primeiro degrau.

— Me desejem sorte — falei.

— Eu vou na frente — disse Emma, erguendo a palma da mão com uma chama.

— É melhor não. Se tiver alguma coisa horrível lá embaixo, que me devore primeiro.

— Que cavalheiro — comentou Millard.

Dez degraus abaixo, alcançamos um chão de concreto. Ali dentro devia estar pelo menos uns cinco graus mais frio que no resto da casa. À minha frente, a escuridão era total. Peguei o celular e liguei a lanterna, que só iluminava o bastante para mostrar paredes curvas de concreto cinza. Era um túnel: apertado e claustrofóbico, tão baixo que eu precisava andar curvado. A luz do celular não mostrava o que havia adiante no caminho nem a extensão do túnel.

— E aí? — perguntou Emma, lá em cima.

— Nenhum monstro! — gritei em resposta. — Mas uma luz viria a calhar.

E lá se foi o cavalheirismo.

— Estou indo! — respondeu ela.

— A gente também — ouvi Olive dizer.

Foi só então, enquanto esperava eles descerem, que me dei conta: meu avô queria que eu achasse aquele lugar.

Tygrysku. Era uma pista que ele havia deixado para mim. Assim como o cartão-postal da srta. Peregrine escondido no livro de Emerson.

Emma me alcançou e acendeu uma chama na palma da mão.

— Olha — disse ela, observando o túnel —, definitivamente não é só um simples túnel do esgoto.

Emma piscou para mim e eu sorri de volta. Ela parecia bem tranquila, mas eu sabia que era pose. Cada nervo do meu corpo estava tenso.

— Posso descer? — perguntou Enoch, ainda no escritório. — Ou serei punido por ter senso de humor?

— Você vai ficar aí — ordenou Bronwyn, chegando ao pé da escada. — Não queremos ser pegos desprevenidos caso alguém chegue.

— Caso chegue quem?

— Qualquer um — respondeu ela.

Nós quatro nos juntamos, com Emma à frente, a mão erguida para iluminar o caminho.

— Vamos devagar, prestem atenção em sons estranhos, fiquem atentos — avisou ela. — Não sabemos o que tem aqui embaixo, e é possível que Abe tenha instalado armadilhas.

Começamos a caminhar, curvados, com cuidado. Tentei calcular em que direção íamos em relação à casa lá em cima. Depois de uns dez metros, provavelmente chegamos à sala. Depois de uns doze, ultrapassamos o perímetro da casa em si, e mais um pouco estávamos abaixo do jardim.

O túnel terminava numa porta, que parecia tão pesada quando a escotilha de entrada. Mas estava entreaberta.

— Olá? — chamei. Bronwyn levou um susto com minha voz. — Desculpa.

— Está esperando alguém? — perguntou Millard.

— Não. Mas nunca se sabe.

Tentei não demonstrar, mas estava tão nervoso que meu corpo vibrava.

Emma cruzou a porta e ficou parada por um momento, olhando em volta.

— Parece seguro — disse ela. — Mas isso pode ajudar...

Ela acionou um interruptor, e uma sequência de lâmpadas fluorescentes se acendeu.

— Olha só! — exclamou Olive. — Agora sim.

Emma fechou a mão, apagando a chama. Então todos entramos. Dei uma volta devagar, absorvendo tudo em volta. Era um cômodo pequeno, uns seis metros por quatro, mas pelo menos ali dava para ficar com as costas retas. Tudo estava meticulosamente arrumado, como meu avô gostava. Junto a uma parede havia quatro camas de metal em dois beliches; aos pés de cada um, lençóis e cobertores enrolados e embalados em plástico, formando um rolo firme. Emma abriu um armário grande chumbado à parede e encontrou lanternas, pilhas, ferramentas e comida enlatada suficiente para várias semanas. Ao lado do armário, havia um galão azul de água potável e uma caixa plástica estranha que reconheci das revistas sobre técnicas de sobrevivência que eu às vezes encontrava na garagem do meu avô: era um banheiro químico.

— Ei, olhem só isso! — exclamou Bronwyn, em um canto, o rosto colado num cilindro de metal que saía do teto. — Dá para ver lá fora!

O cilindro tinha alças na base e uma lente. Bronwyn se afastou para eu dar uma olhada, e vi uma imagem embaçada da rua lá fora. Segurando pelas alças, girei o cilindro e vi a casa do meu avô, parcialmente escondida pela grama alta.

— É um periscópio. Deve estar escondido em algum ponto do jardim.

— Para poder vê-los se aproximar — concluiu Emma.

— O que será esse lugar? — perguntou Olive.

— Devia ser um abrigo — respondeu Bronwyn. — Em caso de ataque de etéreos. Está vendo as quatro camas? A família dele também poderia se esconder aqui.

— Era mais que um abrigo — disse Millard. — Era uma estação receptora.

Sua voz veio da parede oposta, de um ponto ao lado de uma grande mesa de madeira cuja superfície estava quase toda ocupada por uma máquina esquisita de metal prata e verde. Era uma mistura de impressora antiga e aparelho de fax, com um teclado mal encaixado na frente.

— Devia ser com isso que ele se comunicava.

— Com quem? — perguntou Bronwyn.

— Com outros caçadores de etéreos. Isso aqui é um teletipo pneumático.

— Uau — exclamou Emma, atravessando o pequeno cômodo para olhar de perto. — Eu me lembro disso. A srta. Peregrine tinha um. Onde foi parar?

— Era parte de uma estratégia de comunicação entre ymbrynes — explicou Millard. — Com esses aparelhos, elas podiam se falar sem precisar sair da segurança das fendas temporais. No fim das contas, não funcionou. Era complexo demais e muito vulnerável a interceptações.

Atordoado, mal prestei atenção ao que ele dizia. Estava tentando absorver o fato de que tudo aquilo estava perto de mim o tempo todo — literalmente debaixo do meu nariz — por anos e eu nunca soube. Eu havia passado inúmeras tardes brincando no gramado a dez metros de onde me encontrava agora. A surpresa me fez pensar: quantos outros elementos do mundo peculiar não teriam cruzado minha vida sem que eu percebesse? Pensei nos amigos do meu avô, os velhinhos que apareciam para visitá-lo de vez em quando e com quem ele passava algumas horas batendo papo na varanda ou no escritório.

Nos conhecemos na Polônia, Abe dissera certa vez sobre um deles.

Um amigo da época da guerra, ele descrevera outro.

Quem seriam eles, na verdade?

— Você disse que isso servia para se comunicar com outros caçadores de etéreos — falei. — O que vocês sabem sobre eles?

— Sobre os caçadores? — perguntou Emma. — Não muito, e eles preferem assim. São muito reservados.

— Sabem quantos existem?

— Não mais que dez, imagino — respondeu Millard. — Mas isso é mera suposição.

— E todos eles podiam controlar os etéreos? — perguntei.

Talvez houvesse outros peculiares como eu por aí. Talvez eu pudesse encontrá-los.

— Ah, acho que não — disse Emma. — Era o que tornava Abe tão especial.

— E você, Jacob — completou Bronwyn.

— Tem uma coisa que não faz sentido — disse Millard. — Por que Abe não veio se abrigar aqui na noite em que o etéreo atacou?

— Talvez ele não tenha tido tempo — sugeriu Olive.

— Não — falei. — Ele sabia que ia acontecer um ataque. Ele me ligou horas antes, em pânico.

— Talvez tenha esquecido a senha — tentou Olive mais uma vez.

— Ele não estava senil — argumentou Emma.

Só havia uma explicação, mas era difícil dizê-la em voz alta. Minha respiração ficou presa na garganta ao pensar naquela hipótese.

— Ele não se escondeu porque sabia que eu viria até aqui, para ver se estava tudo bem. Embora ele tenha implorado que eu não viesse.

Bronwyn cobriu a boca com a mão, chocada.

— E se ele estivesse aqui embaixo... enquanto você estava lá em cima...

— Ele tentou desviar o etéreo para a mata para proteger você — completou Emma.

Meu corpo parecia pesado demais para minhas pernas, então me sentei em um beliche.

— Você não tinha como saber — continuou ela, sentando-se ao meu lado.

— Não. — Suspirei. — Ele me disse que os monstros estavam vindo, mas eu não acreditei. Ele poderia estar vivo, mas eu não acreditei nele. De novo.

— Não se torture assim. — Ela parecia com raiva. — Ele não contou tudo, não chegou nem perto disso. Se tivesse contado, você teria acreditado. Certo?

— Certo...

— Abe adorava segredos.

— E como — completou Millard.

— Acho que gostava mais dos seus segredinhos do que das pessoas — continuou Emma. — E, no fim, foi isso que o matou. Os segredos... não você.

— Talvez.

— Tenho certeza.

Eu sabia que Emma tinha razão... em grande parte. Estava com raiva do meu avô por não ter me contado mais coisas, mas era difícil abandonar a ideia de que, se eu não o tivesse magoado com meu ceticismo, talvez ele tivesse feito isso. Era raiva e remorso ao mesmo tempo, mas eu não podia expressar isso para Emma. Então, simplesmente concordei.

— Bem... pelo menos encontramos este lugar — falei. — Menos um segredo que Abe guarda no túmulo.

— Talvez não só um — disse Millard, abrindo uma gaveta da mesa. — Tem uma coisa aqui que talvez seja do seu interesse, Jacob.

Atravessei o cômodo em um segundo. Era um fichário grande, abarrotado de páginas. Na etiqueta da capa, lia-se “registros de operações”.

— Minha nossa! — exclamei. — Isso é...?

— É exatamente o que diz — respondeu Millard.

Peguei o fichário da gaveta enquanto os outros se juntavam em volta de mim. Devia ter uns bons cinco centímetros de espessura e pesar pelo menos dois quilos.

— Anda, abre logo — pediu Bronwyn.

— Não me pressione.

Abri em uma página aleatória, no meio. Era um relatório de missão datilografado, com duas fotos grampeadas: uma criança fantasiada em um sofá e um homem e uma mulher vestidos de palhaço.

Li em voz alta. Estava escrito na linguagem fria e seca da lei. Resumia uma missão para resgatar uma criança peculiar das mãos de um acólito e um etéreo que a assombravam e levá-la para uma fenda temporal segura.

Passei algumas páginas. O fichário estava cheio de relatórios semelhantes, com datas que começavam lá nos anos 1950. Fechei.

— Você sabe o que isso significa, não sabe? — perguntou Millard.

— Abe fazia mais que encontrar e matar etéreos — respondeu Bronwyn.

— Sim — concordou ele. — Ele também salvava crianças peculiares.

Olhei para Emma.

— Você sabia disso?

Ela baixou a cabeça.

— Ele nunca falava de trabalho comigo.

— Salvar crianças peculiares é trabalho das ymbrynes — comentou Olive.

— Sim — concordou Emma. — Mas se os acólitos estavam usando crianças como isca, como nesse relatório que você leu, talvez elas não pudessem fazer isso.

Eu ainda estava pensando em outro detalhe, mas deixei para um outro momento.

Então ouvimos alguém gritar:

— EI!

Levamos um grande susto. Era Enoch, à porta.

— Eu falei para você não descer! — reclamou Bronwyn.

— O que você queria? Que eu continuasse lá sozinho mais um século? — Ele entrou na sala e deu uma olhada em volta. — Então aquele escândalo todo era por causa disso? Parece uma cela de prisão.

Emma olhou para o relógio.

— Já são quase seis horas. É melhor voltarmos.

— Eles vão nos matar — disse Olive. — Ficamos fora a tarde toda e não compramos nenhuma roupa!

Então me lembrei da promessa da srta. Peregrine. Ela disse que me mostraria alguma coisa naquela noite, ou seja, em uma ou duas horas. Para ser sincero, eu já nem estava mais interessado. Só pensava em ir para o meu quarto, fechar a porta e ler o fichário do meu avô do início ao fim.


Quando chegamos em casa, o sol estava começando a se pôr atrás das árvores. Os que tinham ficado para ir no segundo grupo de compras reclamaram por termos passado tanto tempo fora, mas, quando explicamos o motivo — e o que encontramos —, eles esqueceram a raiva e ouviram atentamente cada palavra de Millard ao contar a história.

Meus pais tinham ido embora. Fizeram as malas e viajaram para algum lugar na Ásia. No balcão da cozinha, encontrei um bilhete com a caligrafia da minha mãe dizendo que eles sentiriam muito minha falta, mas que eu podia telefonar ou mandar e-mails sempre que quisesse. Também pedia que eu não esquecesse de pagar o jardineiro. Pelo tom tranquilo e casual do bilhete — Amamos você, Jacob! —, ficou claro que a srta. Peregrine tinha sido muito bem-sucedida em apagar da memória deles os últimos meses de preocupação comigo. Meus pais não pareciam nem pensar na possibilidade de eu ter um surto ou fugir enquanto estivessem fora. Na verdade, pareciam não estar pensando em nada. Por mim, tudo bem. Já vão tarde, pensei. Pelo menos teríamos a casa só para nós.

Não encontrei a srta. Peregrine. Ela havia saído logo depois de nós e também passara o dia todo fora, segundo Horace.

— Ela não disse aonde ia? — perguntei.

— Não, só avisou que deveríamos encontrá-la precisamente às 19h15 no galpão de jardinagem do seu quintal.

— No galpão de jardinagem — repeti.

— Precisamente às 19h15.

Eu ainda tinha pouco mais de uma hora.

Subi de fininho. Coloquei para tocar o disco IV, do Led Zeppelin, o álbum que eu ouvia sempre que precisava me concentrar. Subi na cama, abri o fichário e comecei a ler.

 

 

Eu não tinha passado nem da primeira página quando Emma apareceu. Eu a chamei para ficar ali comigo.

— Não, obrigada. Já tive o bastante de Abe Portman por hoje.

O fichário tinha centenas e centenas de folhas, relatando décadas de trabalho. A maior parte seguia o formato da que li no bunker: poucos detalhes, zero emoção. Muitas vezes eram acompanhadas por uma foto ou outro registro visual. Aquilo tudo levaria uma semana para ser lido. Tendo apenas uma hora livre, só pude folhear, mas foi o suficiente para eu ter uma ideia do que Abe fazia.

Na maior parte das vezes ele agia sozinho, mas algumas entradas tinham referências a outros “agentes”, cada um deles tendo apenas uma letra como nome: F., P., V. De todas, a que mais aparecia era H.

H. era o homem que meu pai havia conhecido, se é que dava para confiar em sua memória parcialmente apagada. Se Abe confiava em H. a ponto de apresentá-lo ao filho, ele devia ser importante. Quem seria ele? Qual seria a estrutura da organização? E quem passaria as missões?

Nos primeiros dias, o trabalho deles consistia majoritariamente em caçar e matar etéreos, mas, com o passar dos anos, surgiam mais e mais missões de encontrar e resgatar crianças peculiares. Era um trabalho admirável, sem dúvida, mas a pergunta de Bronwyn não saía da minha cabeça: isso não era função das ymbrynes? Alguma coisa as impedia de cumprir essa tarefa no continente americano?

O que havia de errado com elas?

As entradas começavam em 1953 e paravam, abruptamente, em 1985. Por quê? Será que havia outro fichário, que eu não tinha encontrado? Será que em 1985 Abe tinha se aposentado daquelas missões? Ou será que algo havia mudado?

Depois de passar uma hora lendo, eu agora tinha algumas respostas novas, porém muitas perguntas mais. A primeira: será que ainda havia trabalho a ser feito? Será que ainda existia um grupo de caçadores de etéreos em algum lugar, lutando contra monstros e resgatando peculiares? Se havia, eu queria muito encontrá-los. Queria fazer parte do grupo e usar meu dom para honrar a memória do meu avô e continuar seu trabalho. Afinal, talvez esse fosse seu desejo. Sim, ele havia trancado seus segredos, mas usou como senha o apelido que me dera. Só morreu antes de me contar.

Um passo de cada vez. Para conseguir as respostas às minhas perguntas, eu precisava encontrar a única pessoa no mundo que talvez conhecesse os segredos de Abe.

Eu precisava encontrar H.

 

 

CAPÍTULO QUATRO


Demos a volta até o quintal, onde esperaríamos a srta. Peregrine. Eram 19h12, e quase não havia mais luz no céu. Olhei para o galpão, uma construção bem pequena, toda em treliça de madeira, que se erguia junto à sebe. Minha mãe havia tido sua fase de jardinagem alguns anos antes e o usava como depósito de materiais, mas agora a casinha estava abandonada, servindo apenas de abrigo para ervas daninhas e aranhas.

Precisamente às 19h15, todos sentimos um estalo de eletricidade estática no ar. Horace fez “Ohhh!” e o cabelo de Claire ficou completamente de pé, e então o galpão se iluminou por dentro. Foi um flash leve. As centenas de frestas nas treliças ficaram brancas e logo voltaram a escurecer. Então veio a voz da srta. Peregrine, lá de dentro:

— Prontinho! — Ela saiu para o gramado. — Ahh! — fez, respirando fundo. — Ah, sim, este clima me agrada bem mais. — Finalmente, olhou para nós. — Perdão pelo atraso.

— Foram só trinta segundos — disse Horace.

— Sr. Portman, você parece um pouco confuso.

— Não entendi muito bem isso que acabou de acontecer — falei. — Nem de onde você veio. Nem... nada.

— Isto — começou ela, apontando para a estufa — é uma fenda.

Meu olhar foi dela para a construção pequenina.

— Tinha uma fenda temporal no meu quintal e eu não sabia?

— Agora tem. Criada esta tarde.

— Uma versão em miniatura — concluiu Millard. — Isso é fantástico, srta. Peregrine! Achei que ainda não tivessem sido aprovadas pelo Conselho.

— Só esta, e só por hoje — disse ela, com um sorriso de orgulho.

— Por que fazer uma fenda especificamente no dia de hoje?

— A data não importa. O que as minifendas trazem de vantajoso é o tamanho reduzido, o que torna sua manutenção muito fácil. Ao contrário das fendas padrão, estas só precisam ser reiniciadas mensalmente, ou mesmo quinzenalmente.

Todos os outros sorriam e trocavam olhares animados, mas eu continuava confuso.

— E de que serve uma fenda desse tamanho?

— Como local de refúgio, não tem serventia, mas é de grande utilidade como portal. — Ela pegou no bolso do vestido um objeto fino de bronze no formato de um projétil de revólver, com alguns orifícios. — Com a lançadeira, mais uma das invenções geniais de meu irmão Bentham, posso conectar esta fenda ao Polifendador. E... voilà: temos uma porta para o Recanto do Demônio.

— Bem aqui. No meu quintal.

— Se não acredita, tudo bem — disse ela. — Veja por si mesmo.

Dei um passo para o galpão.

— É sério?

— Um admirável mundo novo, sr. Portman. E estaremos logo atrás de você.


Quarenta segundos: esse foi o tempo que levei para ir do quintal da minha casa para uma fenda temporal da Londres novecentista. Quarenta segundos entre ir até os fundos da casinha e sair de um armário no Recanto do Demônio. Fiquei tonto, já desacostumado dos solavancos de entrar e sair das fendas temporais.

Fora do armário, me vi em um corredor familiar: comprido, com um carpete refinado e cheio de portas idênticas, identificadas por plaquinhas. Na porta logo à minha frente estava escrito:

DEN HAAG, PAÍSES BAIXOS, 8 DE ABRIL DE 1937

Então me virei para trás. Havia um papel colado na parede:

RESIDÊNCIA DE JACOB PORTMAN, FLÓRIDA, DIAS ATUAIS
ACESSO EXCLUSIVO PARA A. PEREGRINE E PUPILOS

Saímos direto no coração do Polifendador, a máquina de Bentham capaz de envergar as dimensões da realidade e que agora dava acesso direto à minha casa na Flórida. Eu ainda estava processando isso quando a porta do armário se abriu. Era Emma.

— Olá, estranho — disse ela, me dando um beijo na bochecha.

Logo depois veio a srta. Peregrine, seguida pelos outros peculiares. Todos conversavam animadamente, nem um pouco afetados pela travessia instantânea de um oceano e um século.

— Isso significa que não precisamos dormir no Recanto do Demônio nunca mais — dizia Horace.

— Nem pegar aquela estrada enorme até o pântano quando quisermos ir à casa do Jacob — acrescentou Claire. — Eu fico enjoada quando ando muito tempo de carro.

— A melhor parte é a comida! — disse Olive, abrindo caminho até a frente do grupo. — Pensem só: podemos tomar um café da manhã inglês completo, almoçar pizza no Jacob e jantar costeletas de carneiro fresquinhas do Smithfield Market!

— Quem imaginaria que uma pessoa tão pequena é capaz de comer tanto? — comentou Horace.

— Continue comendo assim e talvez um dia você não precise mais desses sapatos de chumbo! — zombou Enoch.

— Não é maravilhoso?! — exclamou a srta. Peregrine, me puxando de lado. — Agora você entende o que eu quis dizer quando mencionei uma solução. Com esta minifenda, você pode viver num mundo sem precisar se isolar do outro. E, com sua ajuda, poderemos continuar a expandir nosso conhecimento sobre os tempos atuais sem negligenciar nossos afazeres aqui no Recanto. Há fendas temporais a serem reconstruídas, peculiares a serem reabilitados psicologicamente, acólitos a serem julgados... E não esqueci a promessa que lhe fiz. Você terá trabalhos muito importantes a fazer aqui. O que me diz?

Minha cabeça girava, cheia de novas possibilidades que acabavam de se revelar para mim.

— Que tipo de trabalho você tem em mente?

— Não sei ainda, pois é o Conselho de Ymbrynes que atribui as funções. E elas me disseram que têm algo muito interessante para você.

— E quanto a nós? — perguntou Enoch.

— Queremos fazer diferença no mundo — disse Millard. — Não nos dê funções inúteis só para nos manter ocupados.

— Nem de limpeza — acrescentou Bronwyn.

— Vocês terão papéis importantes, prometo.

— Pensei que fosse importante aprender a nos disfarçar como normais no presente — lembrou Enoch. — Se não é, por que estamos perdendo tempo nesse pardieiro?

A srta. Peregrine não gostou.

— Enquanto ampliam seus conhecimentos e se desenvolvem para atuar no presente, vocês podem ajudar na reconstrução aqui do Recanto. Podemos ir e voltar todo dia, como pessoas modernas indo ao trabalho. Não é divertido?

Enoch balançou a cabeça e desviou o olhar.

— É tudo politicagem. Você só não quer admitir.

A srta. Peregrine o fuzilou com o olhar.

— Que grosseria, Enoch — disse Claire.

— Não — disse a srta. Peregrine. — Continue, Enoch. Quero ouvir sua opinião.

— A turma lá do alto achou que não ficava bem estarmos hospedados na casa do Jacob, no presente, enquanto todo o resto continua aqui, sem poder sair, vivendo como refugiados e limpando a bagunça que os acólitos deixaram. Mas não me importa o que pensam. Droga, nós merecemos umas férias!

— Todos aqui merecem férias! — A srta. Peregrine fechou os olhos e apertou a ponte do nariz, como se afetada por uma dor de cabeça repentina. — Pense da seguinte maneira: para as outras crianças, será inspirador ver vocês, os heróis da Batalha pelo Recanto do Demônio, trabalhando lado a lado pelo bem comum.

— Bobagem — disse Enoch, e se pôs a limpar as unhas.

— Pois eu estou animada — disse Bronwyn. — Sempre quis um trabalho de verdade, com responsabilidades de verdade, mesmo que para isso a gente precise interromper nossas aulas de normalidade.

— Interromper? — retrucou Horace. — Ainda não tivemos uma única aula!

— Como não? — perguntou a srta. Peregrine, olhando para mim. — E aquele dia das compras?

— Ah, é que... fizemos um pequeno desvio — respondi.

— Ah — fez ela, desconfiada. — Bem, não importa. Temos tempo de sobra. Mas não hoje!

E saiu marchando pelo corredor, fazendo sinal para irmos atrás dela.


Seguimos a srta. Peregrine pelo corredor, cruzando com uma porção de pessoas indo e vindo pelas várias portas do Polifendador. Todas tinham um ar de gente muito séria e ocupada e usavam roupas muito diversas, para todo tipo de atividade. Passamos por uma mulher num vestido azul com uma saia tão armada que precisamos seguir em fila indiana e colados na parede para lhe dar espaço. Passamos por um homem com roupas térmicas para neve e um chapéu de pele redondo, e por um outro com botas pesadas que chegavam ao meio das coxas e um casaco de marinheiro com fivelas douradas brilhantes. Eu estava tão distraído com esse desfile de vestimentas inusitadas que quase dei de cara numa parede — quer dizer, parecia uma parede, até ela falar comigo.

— Jovem Portman! — brandiu a voz.

Olhei para cima, dobrando o pescoço para conseguir ver o rosto do homem. Com seus mais de dois metros de altura e numa capa preta, ele era tanto uma visão da morte encarnada quanto um velho amigo, e às vezes me pegava sentindo saudades dele de vez em quando.

— Sharon!

Ele fez uma mesura e cumprimentou a srta. Peregrine e depois a mim, seus dedos gelados tão mais compridos que os meus que sua mão se fechava com a minha dentro.

— Finalmente veio encontrar seus fãs, hein?

— Ha, ha — falei. — Aham.

— Ele não está brincando — disse Millard. — Você é uma celebridade agora. Tome cuidado quando sair à rua.

— O quê? Sério?

— Ah, sim — confirmou Emma. — Não fique surpreso se pedirem seu autógrafo.

— Só não deixe o sucesso subir à cabeça — alertou Enoch. — Todos nós somos um pouco famosos agora, depois do que fizemos na Biblioteca de Almas.

— Ah, é? — disse Emma. — Você é famoso?

— Um pouco — respondeu ele. — Já recebi cartas de fãs.

— Você recebeu uma carta. No singular.

Enoch baixou o olhar e mexeu os pés, sem graça.

— É o que você pensa...

A srta. Peregrine pigarreou.

— Pois bem! Hoje, as crianças vão receber suas atribuições no projeto de reconstrução. Sharon, você poderia nos acompanhar até o prédio ministerial?

— Mas é claro, senhorita — respondeu ele, fazendo uma segunda mesura. O cheiro que saiu de seu casaco era de mofo e terra molhada. — Para convidados tão honoráveis, é um imenso prazer abrir uma brecha em minha concorrida agenda.

Ele seguiu pelo corredor, liderando o grupo.

— Veja bem — disse Sharon em certo momento, virando-se para mim —, eu sou o majordomo desta casa, assim como o supervisor-geral do Polifendador e de seus muitos portais.

— Ainda não consigo acreditar que colocaram esse cara no comando — murmurou Enoch.

Sharon se virou para ele, e um sorriso demente reluziu por baixo de seu capuz.

Enoch se encolheu atrás de Emma e tentou desaparecer.

— Como dizemos por aqui, “O papa está ocupado e a Madre Teresa já morreu”. Ninguém conhece esse lugar melhor que eu, com exceção, talvez, do velho Bentham, mas Bentham, graças ao jovem Portman aqui, está permanentemente impossibilitado de assumir o posto. — O tom de voz de Sharon era cuidadosamente neutro, tornando impossível saber se ele lamentava ou não a morte do ex-empregador. — Então, sinto muito, mas vocês terão que me aguentar.

Depois de uma curva, chegamos a um corredor largo. Estava cheio como um aeroporto em véspera de feriado: viajantes carregando malas pesadas iam e vinham por portas de ambos os lados do corredor. Longas filas se formavam diante de atendentes uniformizados que conferiam documentos. Guardas mal-encarados ficavam de olho em todos.

— Mantenha essa porta fechada! — gritou Sharon para um atendente próximo. — Está deixando escapar metade do Natal de 1911 em Helsinki!

O atendente se levantou de um pulo e bateu uma porta de cuja frestinha saíam flocos de neve.

— Isso tudo é para que as pessoas entrem apenas nas fendas que têm permissão de visitar — explicou Sharon. — São mais de uma centena de portas nestes corredores, mas menos da metade delas foi considerada segura pelo Ministério dos Assuntos Temporais. Muitas ainda não foram exploradas o suficiente, enquanto outras não são abertas há anos. Por isso, até segunda ordem, todas as viagens pelo Polifendador precisam da autorização expressa do Ministério. E deste que vos fala.

Sharon foi até um sujeito acanhado que usava uma capa de chuva marrom e arrancou a passagem da mão dele.

— Quem é você e para onde está indo?

Ele estava nitidamente deliciado em poder exercer alguma autoridade.

— Sou Wellington Weebus — balbuciou o homem, que tinha a língua presa. — Meu destino é a Estação da Pensilvânia, Nova York, 8 de junho de 1929. — Um segundo depois, o sujeito acrescentou: — Senhor.

— E o que vai fazer por lá?

— Senhor, eu atuo como agente de inclusão linguística e fui designado para as colônias americanas. Sou tradutor e intérprete.

— E por que precisamos de intérprete em Nova York? Eles não falam o inglês normal?

— Não exatamente, senhor. O inglês falado por lá é na verdade bem estranho, senhor.

— E por que a capa de chuva?

— Está chovendo por lá, senhor.

— O senhor passou pela verificação dos indumentaristas para avaliação do risco de anacronismos nestes seus trajes?

— Passei, sim, senhor.

— Eu jurava que todos os nova-iorquinos dessa época usavam chapéu.

O homem retirou um pequeno quepe da capa.

— Estou levando um comigo, senhor.

A srta. Peregrine, que já estava batendo com o pé no chão havia algum tempo, perdeu a paciência.

— Se você é necessário aqui, Sharon, podemos perfeitamente encontrar sozinhos o prédio ministerial.

— De modo algum! — exclamou ele, devolvendo a passagem ao homem. — Fique esperto, Weebus, estou de olho em você.

O homem seguiu seu caminho às pressas.

— Por aqui, crianças. Não é longe.

Fomos atrás de Sharon, que abria passagem pela aglomeração de gente no corredor e depois nos fez descer por um lance de escada. No térreo do casarão, passamos pela grande biblioteca de Bentham, cuja mobília havia sido retirada para dar lugar a camas. Parecia haver mais de cem.

— Era aqui que estávamos dormindo, até irmos morar com você — me contou Emma. — Moças naquela sala, rapazes nesta.

Seguimos em frente, cruzando a antiga sala de jantar, agora também revertida para dormitório e com ainda mais camas que a biblioteca. Todo aquele andar da casa fora transformado em abrigo para peculiares exilados.

— Vocês ficavam confortáveis aqui? — perguntei.

Que pergunta idiota.

Emma deu de ombros.

— Melhor do que dormir numa prisão dos acólitos — disse ela, por fim.

— Não tão melhor — opinou Horace, que, ao contrário de Emma, adorava reclamar e se aproximou prontamente no momento em que farejou uma oportunidade para isso. — Vou lhe contar, Jacob, era horrível. Nem todo mundo leva a higiene pessoal tão a sério quanto eu. Havia noites em que eu precisava tapar o nariz com pregador de roupa! E não se tem privacidade, nem armários, nem quartos para nos vestirmos, nem mesmo banheiros apropriados. Sem contar que não havia um pingo de criatividade culinária! — Estávamos passando pela cozinha naquele momento. Pela porta, vi um batalhão de cozinheiros cortando ingredientes e mexendo panelas. — E a profusão de gemidos e gritos dos pobres coitados de outras fendas? Como têm pesadelos! Mal se consegue dormir à noite.

— Olha só quem fala — interveio Emma. — Você mesmo acorda gritando mais de uma vez por semana.

— Sim, mas pelo menos meus sonhos têm significado.

— Sei de uma moça capaz de remover pesadelos — comentou Millard. — Talvez ela possa ajudar.

— Não há ninguém no mundo qualificado para manipular meus sonhos — respondeu Horace, irritado.

As cartas que Emma escrevera para mim eram todas muito alegres e animadas, contando apenas os bons momentos e as pequenas aventuras deles no Recanto. Em nenhum momento ela havia mencionado as condições em que viviam ali nem as dificuldades diárias. Pensar nisso só fez crescer meu respeito por sua resiliência.

Então Sharon abriu a enorme e pesada porta no final do corredor. O barulho da rua e a luz do dia invadiram a casa.

— Fiquem todos juntos! — gritou a srta. Peregrine.

E saímos para a corrente de corpos em movimento.


Se Emma não tivesse me puxado pela mão, talvez eu não tivesse saído do lugar. Estava tudo irreconhecível. Eu havia deixado o Recanto do Demônio quando a torre de Caul ainda era uma pilha de escombros fumegando, as ruas cheias de acólitos em fuga sendo perseguidos por multidões enfurecidas. Por toda parte, viciados em ambrosia saqueavam estoques não vigiados e cúmplices dos acólitos incendiavam locais em que houvesse evidências de seus crimes. Isso já fazia algum tempo, e parecia ter havido um grande progresso desde então. Embora, em essência, continuasse um local tenebroso — as construções cobertas de fuligem e o céu do mesmo tom amarelado de antes —, não havia incêndio à vista, não havia destroços pelas ruas, e peculiares uniformizados orientavam o tráfego intenso de carroças.

Mais que o lugar em si, porém, as pessoas estavam diferentes. Não se viam mais os viciados de olhar vazio rondando as ruas, os traficantes de carne peculiar exibindo seus produtos em vitrines, os lutadores dopados com luz saindo dos olhos. A julgar pelas roupas ecléticas e de épocas variadas, aqueles peculiares vinham de fendas da Europa, da Ásia, da África, do Oriente Médio — e de muitos períodos diferentes também.

Os acólitos não haviam tido preconceitos na caça por almas peculiares. Haviam chegado muito mais longe do que eu imaginava.

Mais do que as roupas, fiquei impressionado com a dignidade que aquelas pessoas exibiam apesar das circunstâncias. Elas vinham de fendas temporais danificadas ou destruídas. Tinham perdido suas casas, tinham testemunhado a morte de amigos e entes queridos, sofrido traumas inimagináveis, mas não havia olhares chocados e vazios. Ninguém usava trapos. Cada uma delas havia sofrido um grande golpe na vida, mas uma energia carregada de determinação pulsava nas ruas.

Talvez só não tivessem tempo para o luto. No entanto, eu preferia acreditar que fosse pelo fato de que, pela primeira vez em quase um século, os peculiares podiam fazer mais do que se esconder em suas fendas e nutrir esperanças. O pior havia passado. E, tendo sobrevivido a isso, havia muito a ser feito. Eles tinham um mundo para reconstruir. E podia ser um mundo melhor.

Caminhei dois quarteirões tão concentrado em observar todos em volta que nem percebi que muitos também me encaravam. Então alguém me olhou uma segunda vez, outra pessoa apontou para mim e eu pude jurar que era meu nome se formando nos lábios deles.

Eles sabiam quem eu era.

Passamos por um garoto vendendo jornais que gritava:

— Jacob Portman deverá visitar o Recanto hoje! Herói retorna pela primeira vez desde a vitória sobre os acólitos!

Senti meu rosto ficar quente.

— Por que ele leva todo o crédito? — ouvi Enoch dizer. — Nós também participamos!

— Jacob! Jacob Portman! — chamavam duas adolescentes que me seguiam balançando um papel no ar. — Pode nos dar seu autógrafo?

— Ele está atrasado para uma reunião importante! — disse Emma, me puxando pelo aglomerado de gente.

Não demos nem dez passos quando um par de mãos fortes me parou. Elas pertenciam a um homem de fala rápida que tinha um único olho no meio da testa e usava um chapéu escrito IMPRENSA.

— Farish Obwelo, do Investigador Vespertino. Que tal uma foto rápida?

Sem esperar uma resposta, ele me virou para uma câmera (uma coisa gigante e antiquada que parecia pesar uma tonelada) e um sujeito abaixado atrás dela levantou o flash.

— Então, Jacob, como foi comandar um exército de etéreos? — perguntou o repórter. — Como você se sentiu em vencer tantos acólitos? Quais foram as últimas palavras de Caul antes de você dar o golpe fatal?

— Hã... não foi bem assim que...

A câmera disparou o flash, me deixando cego por um instante, e logo em seguida outro par de mãos estava em cima de mim: dessa vez, eram da srta. Peregrine, me resgatando dali.

— Não fale com a imprensa, sobre assunto nenhum — sussurrou ela no meu ouvido. — Muito menos sobre o que aconteceu na Biblioteca de Almas!

— Por quê? — perguntei. — O que eles acham que aconteceu?

Ela não respondeu. Não deu tempo, porque de repente eu estava sendo erguido sobre a cabeça de Bronwyn, que me carregou como uma travessa para longe da multidão. E foi assim que seguimos, com a ajuda de Sharon e seus enormes braços abrindo caminho pelo mar de humanos e repetindo: Isso mesmo, estamos quase lá! Ele apontava para um portão de ferro bem alto, atrás do qual se erguia um enorme prédio de pedra escura.

Um guarda ao portão fez sinal para passarmos. Quando deixamos a multidão para trás, Bronwyn me colocou no chão e todos me cercaram, enquanto eu me ajeitava.

— Achei que fossem arrancar um pedaço de você! — disse Emma.

— Eu falei que agora ele é famoso! — disse Millard, de um jeito um pouco debochado.

— Sim, mas eu não achei que você quisesse dizer...

— Famoso famoso? — completou Emma.

— É só um assunto passageiro — disse Enoch, com um gesto de desdém. — Vocês vão ver, até o Natal já o terão esquecido.

— Tomara! — falei.

— Por quê? — perguntou Bronwyn. — Você não quer ser famoso?

— Não! Isso é... — eu queria dizer aterrorizante — ... um pouco demais.

— Você se portou de modo esplêndido — disse a srta. Peregrine. — E com o tempo vai ficar mais fácil. As pessoas se acostumarão a ver você e já não farão tanto alarde. Você ficou um tempo ausente, Jacob, e sua lenda cresceu um bocado durante esse período.

— Percebi. Mas o que ele quis dizer com aquela história de eu ter matado Caul?

Ela aproximou o rosto do meu.

— Uma ficção necessária — respondeu, baixando a voz. — É melhor que todos acreditem que ele foi morto. As ymbrynes assim decidiram.

— E isso não é verdade?

— Muito provavelmente — respondeu ela, num tom casual demais para que eu acreditasse completamente. — Mas a verdade é que não sabemos o que acontece dentro de uma fenda temporal destruída. Ninguém jamais escapou de uma para contar. Caul e Bentham podem estar mortos, assim como podem apenas estar... em algum lugar.

— Algum lugar inacessível em termos extradimensionais — esclareceu Millard.

— Inacessível para sempre, é claro — completou a srta. Peregrine. — Mas não queremos que o público tenha alguma dúvida disso, nem os poucos acólitos que conseguiram escapar de nossas mãos. Para que não tenham ideias de resgatá-lo.

— Então, meus parabéns, você também matou Caul — disse Enoch, transbordando sarcasmo.

— Não podia ter sido um de nós? — reclamou Horace.

— Você é que não podia ter sido — zombou Enoch. — Quem acreditaria?

— Falem baixo! — exigiu a srta. Peregrine.

Eu ainda estava tentando processar a ideia de que Caul estava apenas muito provavelmente morto e de que qualquer um, mesmo o supermonstro que ele se tornara no fim, poderia sobreviver a algo tão violento quanto o colapso de uma fenda temporal, quando um tapinha de Sharon nas minhas costas quase me derrubou.

— Meu garoto, preciso voltar. Não hesite em me chamar caso precise novamente de escolta.

A srta. Peregrine agradeceu, e, com uma grande mesura, ele se virou para partir, a capa esvoaçando às suas costas em um efeito dramático.

Então encaramos o prédio de aparência austera que assomava diante de nós.

— E aí, que lugar é este? — perguntei.

— Por ora, é o centro do governo peculiar — respondeu a srta. Peregrine. — Onde o Conselho de Ymbrynes se reúne e onde funcionam os diversos ministérios.

— É aqui que recebemos nossas tarefas diárias — disse Bronwyn. — Chegamos aqui de manhã e eles nos dizem o que precisa ser feito.

Havia um nome gravado no portão. Li em voz alta:

— Asilo para Lunáticos São Barnabé.

— Não tínhamos muitas opções de locações vagas — justificou a srta. Peregrine.

— À brecha novamente, meus amigos — disse Millard, que então riu e me deu um empurrãozinho para que eu entrasse logo.


O nome completo da instituição era Asilo para Lunáticos, Vigaristas e Transgressores Criminais São Barnabé. Todos os internos haviam fugido no caos que se seguira à derrota dos acólitos, embora a maioria vivesse ali em caráter voluntário. O local, portanto, estava desocupado até ser requisitado como base de operações temporária para o Conselho de Ymbrynes — cujo prédio oficial fora coberto de gelo durante um ataque de etéreos. Agora, era ali que funcionava a maior parte dos ministérios governamentais peculiares da Europa, ocupando as masmorras deploráveis, as celas acolchoadas e os corredores úmidos e enchendo o lugar de escrivaninhas, mesas de reunião e arquivos. Apesar da mudança no mobiliário, porém, todas as salas preservavam a mesmíssima aparência de câmaras de tortura.

Atravessamos um lobby sombrio em que predominava o zunido típico de burocratas e funcionários de escritório, a maioria deles em camisa social e colete e soterrada por papéis e livros. Ao longo das paredes havia uma série de cabines, com um balcão de recepção à entrada de cada uma delas e placas com o nome dos ministérios: Assuntos Temporais, Anacronismos, Relações Normais, Registros Fotográficos e Sonoros, Microgerenciamento e Minúcias e Reconstrução. A srta. Peregrine nos conduziu direto até a última cabine.

— Saudações, Bartleby — chamou ela, dando batidinhas no balcão. — Alma Peregrine para ver Isabel Cuckoo.

Um homem ergueu o rosto para ela e piscou rapidamente ao vê-la. Cinco olhos se apertavam em seu rosto entre uma têmpora e outra, com um monóculo no do meio.

— Ela está esperando — disse o homem.

A srta. Peregrine agradeceu e seguiu em frente.

— Está olhando o quê? — perguntou ele para mim, quatro de seus olhos piscando.

Corri para alcançar os outros.

Entramos por uma das muitas passagens que se abriam em leque no lobby de entrada, chegando a uma sala com um monte de cadeiras enfileiradas em que meia dúzia de peculiares preenchia formulários.

— Testes de aptidão — Emma me explicou. — Para saberem qual é o trabalho mais apropriado para cada um.

Uma mulher veio a passos largos e de braços abertos até a srta. Peregrine.

— Alma, você voltou!

Elas trocaram beijos nas bochechas.

— Crianças, esta é a srta. Isabel Cuckoo, uma velha amiga muito querida e também a ymbryne responsável pela designação das tarefas especializadas de reconstrução.

A mulher tinha uma pele negra brilhante e um leve sotaque francês. Usava um terninho muito chique de veludo azul, com ombreiras largas que pareciam asas e se estreitavam até uma cinturinha decorada com botões dourados reluzentes. Tinha o cabelo curto e prateado, quase metálico, dividido ao meio. Parecia uma estrela do rock futurista, não uma antiga dama vitoriana.

— Faz tanto tempo que desejo conhecer vocês — disse ela, muito simpática. — Alma me fala tanto sobre seus protegidos que sinto como se fôssemos próximos. Você deve ser Emma, a faísca. E você seria Hugh, o autoapicultor?

— Muito prazer.

Ela conhecia quase todo mundo. Apertou a mão de todos, um por um, até chegar a mim.

— E você é Jacob Portman. Você tem uma reputação e tanto!

— É, ouvi falar.

— Ele não parece muito animado — comentou a srta. Cuckoo, virando-se para a srta. Peregrine.

— O rapaz não esperava toda essa atenção — explicou a srta. Peregrine. — E ele vem de tempos bem mais calmos no presente.

A srta. Cuckoo riu.

— Bem, pois agora seus dias de calmaria acabaram! Isto é, se estiver disposto a trabalhar por uma boa causa.

— Quero ajudar como puder — falei. — O que posso fazer?

— Ahh! — Ela balançou o dedo. — As coisas boas vêm com o tempo.

— Eu gostaria de trabalhos mais significativos — disse Millard. — Acredito que meus talentos colossais tenham usos mais frutíferos.

— Vocês estão com sorte. Aqui não há tarefas desimportantes, e não há habilidade peculiar que não seja útil para a causa, por mais estranha que seja. Na semana passada mesmo designei um rapaz com saliva adesiva para produzir talas inquebráveis para pernas. Qualquer que seja seu talento, temos uma função para você. Diga.

Enoch tinha levantado a mão.

— Meu talento é hipnotizar mulheres com minha beleza. O que tem para mim?

A srta. Cuckoo lançou um sorriso esperto para ele.

— Enoch O’Connor, ressuscitador, nascido numa família de agentes funerários. — Ela ainda sorria. — E de um senso de humor insolente. Vou me lembrar disso.

Enoch sorriu para o chão, as bochechas ficando vermelhas.

— Ela me conhece mesmo — eu o ouvi dizer.

A srta. Peregrine parecia prestes a assassiná-lo.

— Peço mil desculpas, Isabel...

A srta. Cuckoo fez um gesto de desdém.

— Ele é bobo, mas é corajoso. Isso pode ser útil. — Ela olhou para o restante de nós. — Mais alguém tem uma piada para me contar?

Ninguém disse nada.

— Então, aos trabalhos!

Ela deu o braço para a srta. Peregrine e as duas seguiram juntas até a saída, parecendo irmãs de séculos diferentes. Saímos da sala e subimos um lance de escadas.

— Enoch, o que deu em você? — ouvi Millard dizer. — Ela tem mil anos a mais que você e é uma ymbryne!

— Ela disse que eu sou corajoso — respondeu Enoch, com um olhar panaca no rosto.

De repente, ele não parecia mais incomodado com suas tarefas no Recanto.

— Pensei que nunca fosse entender os meninos — disse Bronwyn, balançando a cabeça. — Mas acho que entendi agora. São todos idiotas!


Seguimos por um corredor escuro, iluminado pela luz bruxuleante de lampiões a gás.

— Agora vamos entrar nos bastidores — disse a srta. Cuckoo, andando de costas para olhar para nós enquanto falava conosco. — Os escritórios dos ministérios.

A cada poucos metros havia uma porta, cada uma com duas identificações: acima dos dizeres originais do hospício, entalhados na madeira em letras grandes e grossas, os ministérios tinham colado um papel indicando a nova função da sala. Por uma porta entreaberta que anunciava tanto MALFEITORES quanto Ministério dos Assuntos Temporais, vi um homem datilografando numa máquina de escrever com uma das mãos enquanto segurava um guarda-chuva na outra. Caía tanta água de uma goteira no teto que, à primeira vista, achei que estivesse chovendo dentro da sala. Na porta seguinte (PERVERTIDOS/ Ministério dos Assuntos Não Humanos), uma mulher usava uma vassoura para proteger seu almoço de uma pequena horda de ratos. Emma, que não tinha medo de quase nada mas detestava roedores, segurou meu braço.

— Estou surpresa por terem escolhido justamente este prédio para os ministérios — disse Emma à srta. Cuckoo. — Vocês estão bem instalados aqui?

A ymbryne riu.

— Nem um pouco, mas é essa a intenção. Se nenhum de nossos pupilos está em instalações muito confortáveis aqui no Recanto do Demônio, também não devemos ficar confortáveis, pois assim todos se empenham em serem eficientes em nossos esforços de reconstrução. Afinal, todos queremos dar o fora daqui e voltarmos para nossas fendas temporais o mais rápido possível.

Eu tinha minhas dúvidas quanto à possível eficiência de uma força de trabalho que precisava passar metade do tempo lutando contra ratos ou goteiras, mas o propósito era nobre. Se as ymbrynes e os oficiais tivessem escolhido para si um palácio, despertariam ressentimentos no povo. Havia certa honra em dividir o espaço com roedores.

— Bem, como podem imaginar — começou a srta. Cuckoo —, há muito trabalho a ser feito aqui em Londres, e, neste nosso mercado de mão de obra peculiar, vocês são valiosíssimos. Precisamos de cozinheiros, guardas, pessoas capazes de carregar peso... — Ela apontou para Bronwyn. — Há vários departamentos ansiosos pela ajuda da srta. Bruntley: Resgate e Demolição, a força carcerária, as guardas...

Olhei de relance para Bronwyn e vi seu sorriso se desfazendo.

— Ora, Bronwyn, é melhor que recolher detritos, não há como negar! — disse a srta. Peregrine.

— Eu gostaria muito de fazer parte da força expedicionária na América...

— Não temos uma força expedicionária na América.

— Ainda não. Eu poderia ajudar a criar uma.

— Com uma ambição dessas, não duvido de que conseguirá — disse a srta. Cuckoo. — Mas precisamos prepará-la um pouco, antes de a mandarmos para as linhas de frente.

Tive a impressão de que Bronwyn tinha mais a dizer, e talvez tivesse prosseguido no assunto se estivesse a sós com a srta. Peregrine, mas, na presença da srta. Cuckoo, segurou a língua.

A srta. Cuckoo apontou para um espaço ao meu lado onde o casaco e a calça flutuantes de Millard nos acompanhavam.

— Sr. Nullings, você tem uma atraente proposta de trabalho no Serviço de Inteligência Peculiar — disse a ymbryne. — Invisíveis são sempre os melhores agentes de campo.

— O Ministério de Mapeamento não seria mais apropriado? — questionou Millard. — Qualquer invisível é capaz de bisbilhotar e ouvir segredos às escondidas, mas aposto que meu conhecimento de cartografia é ímpar.

— Pode ser. É que a Inteligência está com carência de recursos humanos, enquanto o Mapeamento já se encontra lotado. Sinto muito. Portanto, queira se apresentar ao sr. Kimble, sala 301.

— Sim, senhora — disse Millard, sem um pingo de animação, e logo se virou e seguiu no sentido contrário do corredor.

Passamos por uma sala grande e de pé-direito alto em que meia dúzia de homens e mulheres vasculhavam pilhas de cartas. A srta. Cuckoo apontou para a porta.

— Sr. O’Connor, tenho certeza de que o Departamento de Correspondência Expirada apreciaria sua ajuda.

Enoch pareceu bastante desapontado.

— Triagem de cartas que foram devolvidas? E o meu talento?

— Nosso Departamento de Correspondência Expirada não trata do manejo de cartas devolvidas, mas daquelas que têm peculiares falecidos como destinatários ou remetentes.

Um dos funcionários mostrou um envelope sujo de lama da cova.

— A caligrafia deles é um horror — disse o homem. — Só não é pior que a gramática. Você tem que ser especialista para decifrar. — Ele inclinou o envelope, fazendo sair um monte de minhocas e insetos. — Seria bem útil se pudéssemos perguntar ao próprio remetente, mas nenhum de nós aqui é ressuscitador.

— Os mortos trocam cartas entre si? — perguntou Emma.

— Eles sempre querem saber de um e de outro, ou querem mandar notícias para velhos amigos — respondeu Enoch. — São uns fofoqueiros, boa parte deles. Quando tenho tempo, às vezes deixo escreverem um cartão-postal antes de mandá-los de volta ao túmulo.

— Pense nisso! — disse o funcionário. — Estamos sempre precisando de uma mãozinha aqui.

— Ou uma mãozona! — completou um outro nos fundos da sala, levantando um braço assustadoramente comprido e tocando o teto com a ponta dos dedos enormes.

Seguimos adiante no corredor, deixando o sujeito rindo sozinho.

A srta. Cuckoo nos mandou acelerar o passo.

— Srta. Bloom, posso alocá-la facilmente na força carcerária. Você seria excelente para vigiar os acólitos mais perigosos. Mas a srta. Peregrine mencionou que você desenvolveu outros interesses nos últimos tempos...

— Sim, a fotografia. Afinal, já tenho um flash de mão... — Ela ergueu a mão e fez surgir uma chama.

A srta. Cuckoo riu.

— Muito bom. Com certeza precisaremos de fotógrafos qualificados para documentar acontecimentos conforme restabelecermos contato com as colônias americanas, mas no momento suas habilidades ainda nos servem mais como arma. Gostaria que ficasse à disposição para situações emergenciais de segurança.

— Ah, sim — disse Emma, tentando disfarçar sua nítida frustração.

Ela me lançou um olhar resignado, como se tivesse sido ingênua em esperar mais que aquilo. Suas habilidades com o fogo eram tão poderosas que a aprisionavam, peculiarmente falando, e eu percebia que isso estava começando a incomodá-la.

Em questão de minutos, todos haviam recebido alguma tarefa que parecia, se não interessantíssima ou vital para a causa, pelo menos relevante em relação a suas habilidades peculiares. Exceto eu. Um por um, meus amigos foram nos deixando para se dirigirem a seus respectivos setores, e me vi sozinho com as duas ymbrynes. Entramos em uma sala grande cujas paredes eram um quebra-cabeça de janelas sufocadas por hera pelo lado de fora. Havia uma imensa mesa de reunião preta com o selo oficial das ymbrynes em alto-relevo: um pássaro com um relógio pendurado no bico, segurando uma cobra em uma das garras. Aquela era a câmara do Conselho das Ymbrynes, onde elas se reuniam e decidiam nosso futuro. Senti uma estranha reverência em estar ali, mesmo sendo um espaço temporário. A única decoração era uma série de mapas presos nas janelas mais baixas.

— Sentem-se, por favor — disse a srta. Cuckoo, indicando a mesa.

Puxei uma cadeira (simples, estofada com um tecido cinza liso) e me sentei. Não havia nada dourado na sala, nem tronos, cetros, túnicas ou qualquer outro ornamento. Até os elementos de decoração das ymbrynes eram humildes, com o intuito de demonstrar que elas não pensavam em si mesmas como superiores ao restante da população e que o papel de liderança a elas confiado era uma responsabilidade, não uma glória.

— Nos dê licença um minuto, Jacob — disse a srta. Peregrine.

As duas foram até o outro lado da sala, cada passo dos saltos altos da srta. Cuckoo ressoando como uma martelada no chão de pedra. Ali, tiveram uma pequena conversa aos sussurros, me olhando de relance de vez em quando. A srta. Peregrine parecia estar explicando alguma coisa, pois a srta. Cuckoo apenas ouvia, muito séria.

Ela deve ter algo muito importante para mim, pensei. Algo tão importante e tão perigoso que precisaria convencer a srta. Cuckoo a permitir minha participação. Uma pessoa tão jovem, tão inexperiente... Isso nunca aconteceu antes, imaginei a srta. Cuckoo dizendo. Mas a srta. Peregrine me conhecia, sabia do que eu era capaz e não teria dúvidas de que eu daria conta.

Tentei não me empolgar demais. Não dava para querer abraçar o mundo. Mas meu olhar começou a vaguear pela sala, e, quando ele pousou de novo nos mapas, minha mente começou a formar uma ideia sobre o que a srta. Peregrine havia reservado para mim.

Eram mapas dos Estados Unidos.

Havia apenas um mapa atual, e vários bem antigos, anteriores à incorporação do Alasca e do Havaí, além de um tão velho que o país acabava no rio Mississippi. Este mais antigo era dividido em grandes áreas coloridas: Sudeste roxo, Nordeste verde, a maior parte do Oeste laranja e o Texas cinza. Havia também símbolos fascinantes e legendas escritas aqui e ali — semelhantes às que eu vira no Mapa dos dias da srta. Peregrine. Comecei a inclinar o corpo para a frente, quase saindo da cadeira para ver melhor.

— Um problema espinhoso! — exclamou a srta. Cuckoo.

— O quê? — perguntei.

— A América — respondeu ela, cruzando a sala de volta. — Há anos é uma terra incógnita. Uma selva, se me permite, com uma geografia temporal que não nos é mais compreendida. Muitas das fendas americanas foram perdidas e muitas outras simplesmente desconhecemos.

— Ah, é? Por que isso?

Eu estava ficando animado. Claro. Eu era o peculiar perfeito para uma missão arriscada nos Estados Unidos. Era a minha área.

— O maior problema é que a América não tem uma autoridade peculiar centralizada, um órgão de governo. É um continente fragmentado e dividido entre clãs. Mantemos relações diplomáticas com a maior parte desses clãs, mas eles estão presos em um conflito por recursos e territórios que vem se delineando há tempos. Por muitos anos, a ameaça dos etéreos agiu como uma tampa nessa panela de pressão, mas agora que ela foi retirada, tememos que velhas rixas transbordem na forma de conflitos físicos armados.

Eu me empertiguei e encarei a srta. Cuckoo com um olhar firme.

— E você quer que eu vá lá e ajude a colocar um ponto final nisso.

Ela assumiu uma expressão de divertimento, como se estivesse contendo o riso, e a srta. Peregrine me olhou com um ar aflito.

A srta. Cuckoo colocou a mão no meu ombro. E se sentou ao meu lado.

— Tínhamos outra ideia para você.

A srta. Peregrine veio se sentar do meu outro lado.

— Queremos que você compartilhe sua história.

Minha cabeça virava de uma para a outra.

— Não entendi.

— Leva-se uma vida árdua aqui no Recanto do Demônio — disse a srta. Cuckoo. — Exaustiva, desanimadora. Os peculiares que se encontram aqui precisam de algo inspirador, e eles adoram ouvir a história de como você derrotou Caul.

— Na hora de dormir, as crianças pequenas só querem saber sobre a Batalha pelo Recanto do Demônio — acrescentou a srta. Peregrine. — Ouvi rumores de que está sendo adaptada para ser encenada pelo grupo teatral da srta. Grackle. Um musical!

— Ai, meu Deus... — falei, mortificado.

— Você vai começar aqui, no Recanto — continuou a srta. Peregrine. — Depois, poderá ir para outras fendas, aquelas que foram arrasadas pelos acólitos mas ainda são habitadas...

— Mas... e quanto à América? O problema espinhoso?

— No momento, nossa prioridade é reconstruir nossa sociedade — respondeu a srta. Cuckoo.

— Então por que você me contou tudo aquilo?

A srta. Cuckoo deu de ombros.

— Você estava olhando para os mapas com tanto interesse...

Balancei a cabeça, incrédulo.

— Você disse que o meu país está cheio de fendas desconhecidas. E que existem conflitos e problemas.

— Sim, mas...

— Eu sou americano. Posso ajudar. Meus amigos também.

— Jacob...

— Nós todos podemos ajudar, assim que eu ensinar a eles a se passarem por normais. Que inferno, Emma já está pronta, e a maioria deles só precisa de alguns dias, talvez uma semana...

— Sr. Portman, você está se precipitando — disse a srta. Peregrine.

— Não é para isso que você quer que eles aprendam sobre o presente? Não foi por isso que os levou para ficar um tempo comigo?

A srta. Peregrine deu um suspiro forte.

— Jacob, valorizo muito sua ambição, mas o Conselho acha que você ainda não está pronto.

— Alguns meses atrás, você nem sabia que era um peculiar — argumentou a srta. Cuckoo.

— E só decidiu ajudar na causa hoje de manhã! — Quase parecia que a srta. Peregrine estava zombando de mim.

— Eu estou pronto. E os outros também. Queremos a chance de trabalhar para vocês nos Estados Unidos, como meu avô fazia.

— A equipe de Abe não atuava sob ordens nossas — disse a srta. Peregrine. — Eles tinham pleno autogerenciamento.

— Sério?

— Abe agia à sua própria maneira — explicou a srta. Peregrine. — Nosso mundo mudou muito desde então e não podemos mais trabalhar desse jeito. De qualquer modo, não cabe nesta conversa discutirmos como Abe conduzia suas missões. O que importa é que a situação na América ainda está se desenhando. Por ora, é tudo que podemos lhe dizer. Quando precisarmos de sua ajuda lá, e quando o Conselho achar que você e seus amigos estão prontos, pediremos.

— Sim — disse a srta. Cuckoo. — Mas até que isso aconteça...

— Vocês querem que eu dê uma de palestrante motivacional.

A srta. Peregrine suspirou. Estava começando a se cansar de mim, e eu, a me irritar com ela.

— Você teve um dia difícil, sr. Portman.

— Você nem imagina — respondi. — Olha, eu só quero fazer alguma coisa que realmente importe.

— Talvez ele queira se tornar uma ymbryne? — disse a srta. Cuckoo, com um sorriso.

Eu me levantei.

— Aonde você vai? — indagou a srta. Peregrine.

— Encontrar meus amigos — respondi, seguindo para a porta.

— Um passo de cada vez, Jacob! — gritou ela enquanto eu saía da sala. — Você ainda tem o resto da vida para ser um herói.


Os outros ainda estavam em salas diversas pelo prédio, recebendo orientações, então fiquei sentado no saguão movimentado, esperando, e, enquanto eu esperava, tomei uma decisão. Meu avô nunca havia pedido permissão das ymbrynes para fazer seu trabalho, e eu também não precisava da permissão delas para dar continuidade ao trabalho dele. O fato de ter deixado para mim os registros de suas missões já era permissão suficiente. Eu precisava de uma missão. E, para isso...

— Não acredito.

— Hã... você é Jacob Portman?

Duas garotas tinham se sentado ao meu lado. Encerrei à força minha linha de pensamento para responder e, quando me virei, fiquei surpreso ao ver que era só uma garota. Uma menina asiática, pouco mais nova que eu, com uma camisa de flanela e uma calça boca de sino típicas dos anos 1970. E, definitivamente, estava sozinha.

— Sou eu — respondi.

— Pode autografar meu braço? — pediu a garota, estendendo o braço. Então ela estendeu o outro braço e disse, com uma voz mais grave: — O meu também!

Ela viu que eu fiquei confuso.

— Somos binárias — explicou a menina. — Às vezes as pessoas acham que somos uma pessoa só, com dupla personalidade, mas na verdade temos dois corações, duas almas, dois cérebros...

— E duas gargantas! — completou a outra voz.

— Uau, que maneiro — falei, realmente impressionado. — Legal conhecer vocês. Mas... não sei se devo autografar o corpo de outras pessoas.

— Ah... — disseram as duas ao mesmo tempo.

— Está animado com a peça da srta. Grackle? — perguntou a voz mais grave. — Mal posso esperar. Na última temporada ela montou um espetáculo sobre a srta. Wren e seus animais, A fauna da montanha.

— Foi um estouro. Muito transada.

— Quem você acha que vai interpretar você?

— Hã... Nossa, não faço a mínima ideia. Olha, me desculpem, mas podem me dar licença um minuto?

Eu me levantei, pedi desculpas de novo e me afastei às pressas. Não porque quisesse me livrar delas (não só por isso, pelo menos), mas porque tinha visto uma pessoa familiar. Senti uma coceirinha no fundo do cérebro. Eu precisava descobrir quem era.

Era um atendente de uma das cabines, um jovem com cabelo quase raspado, a pele morena e um rosto de traços suaves. Eu conhecia aquela fisionomia de algum lugar, mas não conseguia lembrar de onde. Talvez se eu falasse com ele, desse uma refrescada na memória. Notei que ele me viu e que tratou de pegar uma caneta de pena para fingir que estava escrevendo alguma coisa.

— Eu conheço você de algum lugar? — perguntei ao me aproximar.

O garoto não ergueu o rosto para mim.

— Não — respondeu ele.

— Sou Jacob Portman.

Ele me olhou de soslaio, ainda sem erguer o rosto. Não parecia impressionado.

— Ok — respondeu apenas.

— Tem certeza de que já não nos encontramos antes?

— Tenho.

Eu não estava chegando a lugar nenhum. Na cabine estava escrito Informações, então tentei outra tática:

— Preciso de uma informação.

— Sobre?

— Um conhecido do meu avô. Estou tentando entrar em contato com ele. Se ele ainda estiver vivo.

— Não somos uma lista telefônica, senhor.

— Então que tipo de informação vocês dão?

— Não damos. Nós coletamos.

Ele se esticou até o outro lado do balcão e me entregou um formulário.

— Tome. Preencha isto.

— Você só pode estar brincando — falei, jogando os papéis no balcão.

Ele me olhou feio.

— Jacob!

A srta. Peregrine vinha atravessando o saguão, seguida por meus amigos. Em pouco tempo eu estaria cercado de gente.

Eu me inclinei sobre o balcão.

— Eu sei que conheço você de algum lugar — falei.

— Se você diz...

— Podemos ir? — perguntou Horace.

— Estou morrendo de fome — disse Olive. — Podemos comer comida americana de novo?

— E então, qual tarefa deram para você? — Emma me perguntou.

Enquanto eles me conduziam para a saída, olhei para trás. O garoto estava imóvel, me observando, o cenho franzido de preocupação.

A srta. Peregrine me puxou de lado.

— Teremos uma conversa logo, logo, só você e eu — disse ela. — Sinto muito que tenha se magoado na reunião. É muito importante para mim, e para todas as ymbrynes, que você se sinta realizado, mas, como dissemos, a situação na América é bem espinhosa.

— Só queria que vocês acreditassem em mim. Não estou pedindo para ser capitão de um exército nem nada.

Na verdade, não estou pedindo mais nada, pensei, mas não falei.

— Eu sei, mas tenha paciência, por favor. E acredite: se nossa cautela parece excessiva, é porque estamos pensando na sua segurança. Se algo acontecesse a você, a qualquer um de vocês, seria desastroso.

Tive um pensamento egoísta: o que ela queria dizer era que os outros achariam ruim se algo acontecesse comigo, assim como achariam ruim se não nos vissem ajudando na reconstrução do Recanto do Demônio. Eu sabia que não era só isso que a preocupava; é claro que a srta. Peregrine se importava conosco. No entanto, ela também se importava com a opinião de pessoas que não me conheciam a respeito do que eu fazia com a minha vida. Eu não me importava.

Mas não falei nada disso.

— Tudo bem, não tem problema. Eu entendo.

Eu sabia que não mudaria sua forma de pensar.

Ela sorriu e me agradeceu, o que me fez me sentir um pouco mal (só um pouco) por mentir para a srta. Peregrine. À porta, ela se despediu de nós.

O relógio acabava de passar do meio-dia no Recanto do Demônio. A srta. Peregrine ainda tinha assuntos a tratar ali no prédio ministerial, então combinamos de encontrá-la na minha casa mais tarde.

— Vão direto para lá — avisou ela. — Sem delongas, sem desvios, sem dispersões ou desnorteamentos.

— Sim, srta. Peregrine — respondemos, em coro.

 

 

CAPÍTULO CINCO


Não fomos direto para casa. Sugeri que tentássemos achar um caminho por ruas pouco movimentadas, e, tomados pelo desejo de explorar e ser um pouco desobedientes, todos concordaram. Enoch disse que conhecia um caminho rápido que muito provavelmente estaria deserto, e foi assim que, um minuto depois, nos vimos seguindo pela margem do rio, o Valão da Febre.

Aquela área do Recanto ainda não havia sido limpa como o centro. Talvez fosse impossível de limpar. Afinal, o Recanto do Demônio era uma fenda temporal, então os fatos ambientais básicos se repetiam dia após dia. O Valão seria sempre um rio marrom, imundo e poluído. A pouca luz solar capaz de atravessar a cortina de fumaça das fábricas, que pairava acima de nós, seria sempre da cor de chá ralo. Os normais presos ali, integrando o cenário que se repetia indefinidamente, seriam sempre os mesmos desgraçados miseráveis e famintos que nos olhavam desconfiados dos becos e das janelas dos cortiços quando passávamos. Millard comentou que em algum lugar devia haver um mapa indicando todos os pontos do Recanto do Demônio em que havia acontecido algum assassinato, roubo ou briga no dia capturado pela fenda temporal, para que os peculiares os evitassem, mas nenhum de nós o conhecia. No entanto, todos sabíamos que era preciso ter cuidado ao transitar pelas regiões dos normais. Para desviar dos prédios escurecidos, seguíamos pela margem do Valão até não aguentarmos mais o mau cheiro.

Quando não estavam concentrados no medo, olhando em volta a todo momento, meus amigos discutiam os trabalhos que lhe haviam incumbido. Falavam com frustração. Alguns estavam até amargurados.

— Eu deveria estar mapeando os Estados Unidos! — resmungou Millard. — Perplexus Anomalous se tornou nada menos que o diretor do Ministério de Mapeamento. Se as ymbrynes acham que não nos devem nada por tudo que fizemos, ele certamente discorda.

— Fale direto com ele, então — sugeriu Hugh.

— É o que vou fazer.

Enoch tinha percebido, assim que passara a empolgação inicial, que apenas cinco por cento de seu trabalho no Departamento de Correspondência Expirada era despertar mortos, e os outros noventa e cinco por cento se resumiam a preencher papéis.

— Como elas podem nos colocar para fazer trabalho braçal depois de tudo que fizemos na Biblioteca de Almas? — reclamou ele. — Nós salvamos o couro das ymbrynes. Ou elas nos deixam tirar férias bem longas ou nos dão trabalhos interessantes, com vários subalternos.

— Eu não colocaria exatamente nesses termos, mas concordo — disse Horace. — Assistente de anacronismo no Departamento de Indumentária? Deveriam me colocar, no mínimo, como consultor de estratégia no Conselho de Ymbrynes. Pelo amor das aves, eu vejo o futuro!

— Eu achava que a srta. Peregrine acreditava em nós — disse Olive.

— Ela acredita — disse Bronwyn. — O problema são as outras ymbrynes, que não nos conhecem direito.

— Elas se sentem ameaçadas por nós — argumentou Enoch. — Sabem por que nos dão essas tarefas? Para nos colocar no nosso devido lugar. Ainda somos só crianças peculiares.

Emma se juntou a mim, e seguimos caminhando meio abatidos. Perguntei como tinha sido sua reunião de trabalho.

— Veja só isso — disse ela, pegando na bolsa uma fina caixinha retangular. — É uma câmera de fole dobrável.

Ela apertou um botão, e uma lente sanfonada se projetou da câmera.

— Então eles deram o trabalho que você queria, afinal? Em documentação?

— Que nada. Eu surrupiei isso aqui da sala de equipamentos. Vou fazer a segurança de ymbrynes durante interrogatórios de acólitos, três vezes por semana.

— Pode ser interessante. É capaz de você ouvir umas coisas bem bizarras.

— Eu não quero ouvir nada. Não quero saber de todos os crimes que eles cometeram e o que fizeram conosco por anos e anos... Estou cansada de reviver histórias antigas. Quero ver coisas novas, conhecer gente nova. E você?

— Eu também.

— Quis dizer: que função você recebeu? Estou doida para saber. Aposto que foi algo incrível.

— Vou ser palestrante motivacional.

— Mas que demônios significa isso?

— Tenho que ir de fenda em fenda contando minha história.

Ela estranhou.

— Para quê?

— Para... inspirar as pessoas.

Ela riu tanto que fiquei um pouco magoado.

— Ei. Não é tão esquisito assim.

— Não me entenda mal, eu acho você muito inspirador, só não... não consigo imaginar.

— Nem eu. É por isso que não vou aceitar.

— Sério? E o que vai fazer, então?

— Outra coisa.

— Ah, entendi. Muito misterioso.

— Isso aí.

— Você vai me contar?

— Você será a primeira a saber.

Eu não estava escondendo meus planos de Emma. É que eu ainda não tinha planos, tinha apenas a certeza de que alguma ideia ia surgir.

E surgiu. Ouvimos barulhos no rio: um espirrar de água, seguido por uma respiração ruidosa.

— Peixe-monstro! — berrou Claire.

Todos nos viramos para olhar, mas o que pensamos ser uma criatura marinha era, na verdade, um homenzarrão com uma pele escamosa e pálida. Ele nadava rápido ao nosso lado, só com a cabeça e os ombros fora d’água, impulsionado sob a superfície por algo que não dava para ver.

 

 

— Ei, vocês aí! — chamou ele. — Esperem, jovens!

Apertamos o passo, mas não adiantou, o homem nos acompanhava.

— Só quero fazer uma pergunta!

— Vamos parar — pediu Millard. — Ele não vai nos fazer mal. Você é peculiar, não é?

O homem se ergueu. As guelras em seu pescoço se abriram e cuspiram água escura.

— Meu nome é Comichão — respondeu ele, pois já tínhamos a resposta para nossa pergunta inicial. — Só queria saber uma coisa. Vocês são os pupilos da Alma Peregrine, correto?

— Isso mesmo — confirmou Olive, bem na beirada do Valão, para mostrar que não tinha medo.

— E é verdade que podem ir aonde quiserem sem nunca envelhecer? Que o relógio biológico de vocês foi reiniciado?

— Foram duas perguntas — protestou Enoch.

— Sim, é verdade — respondeu Emma.

— Entendi — disse Comichão. — Quando vamos poder fazer o mesmo?

— Você e mais quem? — perguntou Horace.

Outras quatro cabeças emergiram ao redor do homem: dois meninos com barbatanas nas costas, uma senhora com pele escamosa e um velhinho com aqueles olhos arregalados dos peixes, um de cada lado da cabeça.

— Minha família adotiva — explicou Comichão. — Estamos há tempo demais nesse maldito Valão, respirando essa água poluída.

— Hora de uma mudança de ares — grasnou o velho com olhos de peixe.

— Queremos ir para um lugar limpo — acrescentou a mulher.

— Não é assim tão simples — explicou Emma. — O que aconteceu com a gente foi um acidente, que poderia ter nos matado.

— Não tem problema — disse Comichão.

— Eles não querem contar o segredo! — reclamou um dos meninos.

— Não é isso — interveio Millard. — Nem sabemos se existe um meio de repetir o processo. As ymbrynes ainda estão investigando como tudo isso aconteceu.

— As ymbrynes! — A mulher cuspiu água escura pelas guelras. — Mesmo que soubessem, elas nunca nos contariam. Senão, todos sairíamos das fendas e elas não teriam ninguém em quem mandar.

— Ei! — gritou Claire. — Que coisa mais feia de se dizer!

— Coisa de traidor — comentou Bronwyn.

— Traição! — gritou Comichão, nadando até a beirada e subindo até a rua. Fomos recuando devagar enquanto a água escorria do corpo dele, revelando uma camada de algas esverdeadas que o cobriam do peito aos pés. — É uma palavra perigosa de se usar assim, de qualquer jeito.

Os meninos também saíram do valão, seguidos pela mulher, cujo corpo era quase tão coberto de algas quanto o de Comichão. Apenas o velho permaneceu na água, nadando em círculos agitados.

— Olha, somos todos peculiares aqui — falei, achando que poderia acalmar os ânimos. — Não temos por que brigar.

— O que pensa que sabe? — perguntou a mulher. — Você acabou de chegar!

— Ele acha que é nosso salvador! — disse Comichão. — Você não passa de um impostor sortudo.

— Falso profeta! — gritou um dos meninos, depois o outro, e os adultos fizeram coro.

Agora estavam todos gritando e formando um semicírculo ao nosso redor.

— Falso profeta! Falso profeta!

— Eu nunca disse que era profeta — tentei explicar. — Eu nunca disse que era nada.

No prédio atrás de nós, uma porção de normais tinha ido às janelas para entender o tumulto e agora também estavam gritando. E jogando lixo em nós.

— Vocês são um bando de poluídos! — xingou Enoch. — O cérebro de vocês apodreceu no Valão!

Emma acendeu uma chama na mão e Bronwyn parecia a ponto de acertar Comichão, mas os outros as seguraram. Éramos um grupo em evidência ali no Recanto do Demônio, não podíamos sair machucando peculiares, mesmo que em legítima defesa.

A família aquática havia nos encurralado em um beco e trocaram os gritos de “falso profeta” por exigências para que contássemos nosso segredo. Não tivemos escolha: saímos correndo, e ainda ouvíamos os ecos dos gritos deles mesmo depois de virarmos uma esquina.

No fim, conseguimos sair daquela área perigosa da cidade e voltar ao centro, mas ficamos um tempo atordoados, tudo parecendo um borrão; abalados, sentíamos como se fossem irreais os cumprimentos e apertos de mão cordiais que recebíamos da multidão ao nos encaminharmos para a casa de Bentham.

O que estaria por trás daqueles sorrisos?

Quantos deles escondiam a inveja que tinham de nós?

Chegando ao Polifendador, passamos pela alfândega peculiar, subimos a escada cabisbaixos e seguimos pelo longo corredor em silêncio, perdidos em pensamentos.


Entramos todos juntos no armário, espremidos. Logo sentimos o vacilar, o acelerar, e, quando vimos, estávamos de volta à Flórida.

Fazia uma noite quente. O telhado do galpão de jardinagem soltou um leve vapor acompanhado de um leve sibilo, como um motor sendo resfriado.

— Ozônio — comentou Millard.

— Vinte e dois minutos e quarenta segundos. — A srta. Peregrine estava ali no quintal, de braços cruzados. — É o atraso de vocês.

— Não foi culpa nossa, diretora... — disse Claire.

— Não digam nada — sussurrou Emma, e em seguida se dirigiu à srta. Peregrine: — Tentamos pegar um atalho, mas nos perdemos.

Além de exaustos e ainda nervosos com o que havia acontecido no Valão, ainda tivemos que aturar um sermão sobre pontualidade e responsabilidade. Notei a raiva contida em todos. Após deixar extremamente claro que estava muito decepcionada com a gente, a srta. Peregrine assumiu a forma de ave e voou até o telhado da minha casa.

— O que foi isso? — perguntei, baixinho.

— É o que ela faz quando precisa ficar um tempo sozinha — explicou Emma. — Deve estar bem chateada mesmo.

— Só porque chegamos vinte e dois minutos depois do combinado?

— Ela está sob muita pressão — justificou Bronwyn.

— E resolveu descontar na gente — disse Hugh. — Não é justo.

— Acho que muitos peculiares não estão querendo obedecer às ymbrynes — disse Olive. — Mas a srta. Peregrine tinha certeza de que a gente obedeceria. Por isso é que quando fazemos besteira, mesmo bem pequenininha...

— Ela que enfie os nervos no meio das penas! — esbravejou Enoch, um pouco alto demais.

Bronwyn deu um tapa na boca dele, e os dois se atracaram e caíram no chão, se batendo.

— Parem com isso! Parem! — pedia Olive.

Emma e eu tentamos separar os dois, mas, na confusão, acabamos sendo derrubados também. No fim, ficamos todos largados na grama, sem fôlego e começando a suar no ar úmido da noite.

— Isso é tão ridículo — disse Emma. — Não vamos mais brigar entre nós.

— Trégua? — sugeriu Bronwyn.

Enoch estendeu a mão, e os dois selaram a paz.

Todos queríamos descansar e encontrar um jeito de esquecer o que tinha acontecido mais cedo. Horace preparou uma refeição deliciosa com o que havia restado dos alimentos roubados, e eu os apresentei à consagrada tradição americana de comer em frente à TV. Fiquei zapeando pelos canais enquanto eles encaravam fixamente a tela, alguns tão absortos que esqueceram a comida esfriando no prato. O canal de telecompras, comerciais de ração para cachorro e de produtos de cabelo, um pastor numa emissora evangélica, um show de talentos, trechos de notícias sobre conflitos em terras distantes: tudo era novidade para eles. Quando superaram o choque de ter dentro de casa uma tela como aquela, com imagens coloridas, som surround e cem canais para escolher, eles começaram a fazer perguntas. Algumas me surpreenderam.

Hugh, enquanto passava um episódio antigo de Star Trek:

— Muita gente tem nave espacial hoje em dia?

Bronwyn, vendo um reality show só com socialites:

— Não existem mais pobres nos Estados Unidos?

E Olive:

— Por que elas são tão grosseiras umas com as outras?

Horace, durante um comercial de carro:

— Esse barulho é considerado música?

Quando passamos por um noticiário sensacionalista, Claire se encolheu e reclamou:

— Por que eles precisam gritar assim?

Eles estavam começando a ficar perturbados. Emma parecia tensa, Hugh andava de um lado para o outro, Horace apertava o braço do sofá.

— Isso é excessivo — reclamou Emma, esfregando os olhos. — Tudo tão barulhento e tão rápido!

— Nunca fica mais de um segundo parado — acrescentou Horace. — Chega a dar vertigem.

— Deve ser por isso que os normais do presente quase não percebem os peculiares por aí — disse Enoch. — O cérebro deles derreteu!

— Se as pessoas modernas assistem a isto, devemos fazer o mesmo — argumentou Millard.

— Eu não quero que meu cérebro derreta! — protestou Bronwyn.

— Nada vai derreter — retrucou Millard. — Pense nisso como uma vacina. Uma pequena dose já basta para inocular nosso organismo contra as maiores surpresas deste mundo.

Continuamos trocando os canais por mais um tempo, mas o efeito anestesiante foi passando, e minha mente começou a entrar em temas desagradáveis. Assistindo a um episódio do programa de encontros amorosos The Bachelor, comecei a entender um pouco melhor o mundo em que cresci. Durante minha vida toda me senti confuso em relação às pessoas normais: as coisas ridículas que faziam para impressionar as outras, os objetivos medíocres que pareciam perseguir, a banalidade de seus sonhos. A rejeição a qualquer coisa que não se encaixasse no paradigma estreito de normalidade, como se aqueles que pensavam, agiam, se vestiam ou sonhavam diferente fossem uma ameaça à própria existência delas. Era esse, acima de tudo, o motivo da minha solidão. Eu achava estúpido tudo que os normais consideravam importante. Como nunca tive com quem conversar sobre isso, guardava para mim essas impressões. Tinha voltado para o mundo normal com a certeza de que um lar me esperava no mundo peculiar, mas aquele dia no Recanto do Demônio me fez sentir que também lá eu era um estranho — herói para alguns, uma fraude para outros. E incompreendido por todos, assim como no mundo normal.

Eu estava tentando explicar Os Simpsons e caindo em uma sonolência profunda (tinha sido um dia longo) quando algo em meu cérebro despertou e lembrei onde tinha visto aquele atendente. Deixei o controle remoto com Enoch, pedi licença alegando que iria ao banheiro e subi correndo.

Assim que fechei a porta do meu quarto, procurei embaixo da cama e peguei o fichário com os registros de operações de Abe. Comecei a folheá-lo, esperando encontrar o rosto do atendente. Levei alguns minutos, entre tantas páginas e tantos rostos, mas finalmente achei, em uma entrada de 1983. Era uma foto bem antiga, talvez dos anos 1930 ou 1940, mas o rapaz continuava igual, ou seja, tinha vivido em fendas temporais por muitas décadas. Seu nome estava registrado como Lester Noble Jr. Na foto, ele usava um chapéu de aba larga e olhava para a câmera serenamente, sem traços do medo que eu vira mais cedo em seu rosto. Li as anotações do meu avô sobre aquela missão específica, depois soltei os grampos que prendiam a foto e a guardei no bolso.

 

 

Ao sair, esbarrei com Emma no corredor.

— Vim procurar você — disse ela.

— E eu estava indo procurar você. Preciso da sua ajuda.

Ela chegou mais perto.

— Claro, é só falar.

— Me dê cobertura. Só por uma ou duas horas. Preciso voltar ao Recanto.

— Por quê? Para quê?

— Não dá tempo de explicar. Na volta a gente conversa.

— Eu vou com você.

— Preciso fazer isso sozinho.

Ela cruzou os braços.

— É melhor que seja por um bom motivo.

— Vai ser. Acho.

Beijei Emma, desci a escada de fininho, saí pela garagem e fui até o galpão de jardinagem.


Voltei ao saguão do prédio ministerial, mas não encontrei o atendente. A cabine estava fechada, sem ninguém ao balcão. Fui até a cabine ao lado e perguntei à atendente se ela sabia onde eu poderia encontrar o rapaz.

Ela estreitou os olhos atrás dos óculos de lentes grossas.

— Quem?

— O garoto que trabalha bem aqui do lado. Lester Noble.

— Não conheço ninguém com esse nome — respondeu ela, tamborilando com a caneta-tinteiro na mesa. — Já o mocinho que trabalha aqui ao lado saiu agora mesmo, acabou de encerrar o expediente. Talvez você ainda o alcance se... Ah, ali está ele.

Ela apontava para o outro lado do saguão. Eu me virei bem a tempo de vê-lo se dirigindo à saída às pressas. Murmurei um agradecimento apressado e saí correndo, alcançando-o logo antes de ele chegar à porta.

— Lester Noble — falei, me colocando na frente dele.

Ele ficou um tanto pálido.

— Meu nome é Stevenson. E você está no meu caminho.

Ele tentou passar por mim, mas me mantive firme no lugar, e notei que ele não queria chamar atenção.

— Seu nome é Lester Noble Jr. e esse seu sotaque britânico é falso.

Peguei a foto do bolso e a mostrei. Ele ficou paralisado por um segundo, depois a arrancou da minha mão. Quando ergueu novamente o rosto e me encarou, parecia amedrontado.

— O que você quer? — sussurrou ele.

— Estou procurando uma pessoa.

Ele olhou de esguelha para trás e se voltou para mim.

— Pegue aquele corredor e me encontre na sala 137 em dois minutos. Não podemos ser vistos juntos.

Peguei a foto de volta.

— Isso fica comigo. Por enquanto.

Eu o encontrei diante de uma porta de madeira lisa, identificada apenas com o número 137. Ele se atrapalhou ao pegar as chaves, pois suas mãos tremiam. Entramos. Ele trancou a porta. Era uma sala pequena abarrotada de arquivos de papel pardo, de uma parede a outra, do chão ao teto.

— Olha, garoto — começou ele, virando-se para mim com as mãos unidas. — Eu não sou criminoso, está bem? — O sotaque britânico tinha sumido, substituído pela cadência típica do Sul dos Estados Unidos. — No meu país tem umas pessoas ruins atrás de mim, e eu não podia deixar que me encontrassem. Troquei de nome quando cheguei aqui. Achei que nunca mais fosse ouvir o antigo.

— Os etéreos de lá eram tão piores assim?

— Eles eram malignos, mas não foi por causa deles que eu fugi. O problema eram os peculiares. São uns loucos.

— Nossa. Mas loucos como?

Lester balançou a cabeça com nervosismo.

— Estou quebrando umas cem regras só em deixar você entrar aqui. Se quiser um arquivo, tudo bem, mas não tenho tempo para contar histórias.

— Tudo bem — falei. — O que você tem sobre os caçadores de etéreos?

Lester hesitou.

— Quem?

— Eu sei que você sabe de quem eu estou falando.

Então contei o que tinha lido sobre a missão. Segundo o relatório, Lester vivia em uma fenda do dia 5 de janeiro de 1935, na cidade de Anniston, Alabama, até um ataque dos etéreos que matou sua ymbryne. Abe e H. o encontraram escondido em um hotel no presente (então 1983), à mercê de um envelhecimento acelerado, e o levaram para outra fenda temporal. Ele devia ter conseguido sair do país em algum momento depois disso, provavelmente uma outra história angustiante por si só. O problema era que eu não tinha tempo para ouvir, e Lester também não parecia disposto a contá-la após ouvir minha versão sobre sua história.

— Como você sabe isso tudo? — perguntou Lester.

Ele estava tenso da cabeça aos pés, como se estivesse se preparando para receber uma notícia ruim.

— Abe era meu avô.

— Ele contou a você sobre mim?

Ele falava cada vez mais alto. Eu devia ter assustado mesmo o cara.

— Não exatamente. Olha, não precisa se preocupar nem entrar em detalhes. Não vim aqui desenterrar nada, só preciso encontrar a pessoa que é chamada de H. Você passou um tempo com ele. E você trabalha aqui, no santuário sagrado... — Fiz um gesto indicando a ligação entre os fatos. — Você é minha melhor chance.

Lester suspirou e pareceu relaxar um pouco. Então cruzou os braços e se recostou em uma prateleira.

— Eles não me deram nenhum cartão de visita nem nada do tipo. E já faz muito tempo.

— Imaginei que pudesse haver alguma informação nos seus arquivos. As ymbrynes deviam ter algum jeito de entrar em contato com eles.

— Então por que não pergunta a elas?

Agora ele estava ficando um pouco à vontade demais.

— Estou tentando ser discreto. Mas, se precisar, vou mesmo recorrer a elas. Direi que foi Lester Noble Jr. quem me sugeriu fazer isso.

Lester franziu a testa.

— Tudo bem — disse ele, com rigidez na voz. — Vou ver o que tenho.

Ele seguiu ao longo de uma parede, passando o indicador pelas abas das pastas até pegar uma delas. Folheou o conteúdo, murmurando sozinho, depois passou para a parede seguinte e pegou outras duas pastas. Balançou a cabeça, colocou-as debaixo do braço e seguiu para a terceira. Depois de alguns minutos nessa busca, ele voltou até mim com a mão estendida. Trazia um daqueles brindes de fósforos em papel, destacáveis.

— O que é isso? — perguntei.

— É tudo que temos.

Peguei a cartela de fósforos. Estava amassada, como se tivesse passado um bom tempo no bolso de alguém. Por fora não havia nada; dentro, a propaganda de um restaurante chinês, um endereço, uns números e letras aparentemente aleatórios e, escritas a lápis, as instruções: Queime depois de ler. Obviamente, a ordem havia sido ignorada.

 

 

Lester pegou a foto da minha mão.

— Muito bem. Eu diria que é uma troca justa, considerando que posso ser demitido só por deixar você entrar nesta sala, que dirá por permitir que saia daqui com isso.

— São só fósforos velhos. De que me serve isso?

— Isso cabe a você descobrir. — Ele se adiantou, abriu a porta e ficou esperando que eu saísse. — Agora, me faça um favor, meu caro — disse, o sotaque britânico voltando. — Esqueça que um dia me viu.


Voltei até a casa de Bentham caminhando tão rápido e tão concentrado que ninguém teve coragem de me parar nas ruas. Chegando lá, subi correndo, fui até a porta ACESSO EXCLUSIVO PARA A. PEREGRINE E PUPILOS e me joguei lá dentro. Logo fui cuspido na grama do meu quintal. Fiquei alguns instantes parado, atordoado, os grilos e sapos cantando na noite quente, a luz da TV brilhando nas janelas da sala.

A srta. Peregrine não estava mais no telhado. Ninguém tinha me visto saindo do galpão. Eu ainda tinha um tempo sozinho. Fui até o deque e me sentei na borda: ali era o único lugar onde eu podia ter alguma privacidade, e eu ouviria os passos se alguém se aproximasse.

Peguei o celular e os fósforos e comecei a pensar como aquilo poderia me levar a H. Com um minuto de pesquisa na internet, descobri o seguinte: a estranha sequência de letras e algarismos era um número de telefone, mas impossível de discar, pois utilizava um sistema alfanumérico que havia caído em desuso nos anos 1960.

Dei sorte com o nome do restaurante: o estabelecimento ainda existia. Então procurei o telefone atual e liguei.

Ouvi uma série de cliques, como se a ligação estivesse sendo transferida para outro país. Depois, começou a chamar. Tocou umas dez, doze vezes, até uma voz masculina rabugenta atender.

— Gostaria de falar com H. — anunciei. — Meu nome é...

A linha ficou muda. Ele desligou na minha cara!

Liguei de novo. Dessa vez, ele atendeu em dois toques.

— Número errado.

— Aqui é Jacob Portman.

Silêncio. Ele não desligou.

— Sou neto de Abe Portman.

— Isso é o que você diz.

Meu coração estava disparado. O número ainda funcionava. Eu estava falando com uma pessoa que havia conhecido meu avô. Talvez o próprio H.

— Posso provar.

— Digamos que eu acredite. Talvez acredite mesmo, talvez não. O que Jacob Portman quer?

— Um trabalho.

— Procure nos classificados.

— Quero fazer o que você faz.

— Palavras cruzadas?

— O quê?

— Estou aposentado, rapaz.

— O que você fazia, então. Você, Abe e os outros.

— E o que você sabe sobre isso? — Ele ficou na defensiva de repente.

— Muita coisa. Li os registros de missões do Abe.

Ouvi um rangido metálico, depois um grunhido. Parecia que H. havia se levantado de uma cadeira.

— E daí?

— E daí que eu quero ajudar. Sei que ainda há etéreos soltos por aí. Talvez não muitos, mas um já é capaz de causar sérios problemas. E tem muitas coisas a serem feitas além disso.

— É muita gentileza da sua parte, rapaz, mas não estamos mais na ativa.

— Por que não? Porque Abe morreu?

— Porque estamos velhos.

— Bem, então... — senti uma onda de autoconfiança atravessar meu corpo — ... eu posso reativar o grupo. Tenho amigos que também podem ajudar. Uma nova geração.

Ouvi uma porta de armário bater e uma colher tilintar em louça.

— Já esteve frente a frente com um etéreo?

— Sim. Já até matei um.

— É mesmo?

— Não ouviu falar da Biblioteca de Almas? Da Batalha pelo Recanto do Demônio?

— Não ando muito por dentro.

— Tenho o mesmo poder que Abe tinha. Eu vejo os etéreos. E também os controlo.

— Olha... — Ele deu um gole ruidoso. — Talvez eu tenha ouvido falar de você.

— Sério?

— Sim. Você está cru, não se provou ainda. É impulsivo, e, no nosso tipo de trabalho, quem age assim acaba morrendo bem rápido.

Trinquei os dentes, mas consegui manter a voz calma e controlada.

— Sei que tenho muito a aprender. Mas acho que também tenho muito a oferecer.

— Você está falando sério, então.

Ele parecia achar graça e estar impressionado ao mesmo tempo.

— Estou.

— Muito bem. Você conseguiu uma entrevista.

— Isso não foi a entrevista?

Ele riu.

— Nem chegou perto.

— Entendi. Então, o que eu...?

— Não ligue de novo. Espere eu ligar.

A linha ficou muda.


Entrei correndo e passei pela sala acenando para meus amigos, que estavam vendo um filme de zumbi. Emma se levantou de um salto e me acompanhou até um quarto.

Ela me abraçou com força, depois me cutucou no peito.

— Pode começar a me contar, Portman.

— Fiz contato com um dos antigos parceiros do meu avô. Acabei de falar com ele pelo telefone.

Ela se afastou, com os olhos arregalados.

— Não brinca.

— É sério. Esse cara, H., trabalhou com meu avô durante décadas. Eles fizeram várias missões juntos. Só que agora ele está velho e precisa da nossa ajuda.

Talvez eu estivesse exagerando um pouco. Mas só um pouquinho. H. precisava da nossa ajuda; só tinha que admitir isso.

— Para quê?

— Para uma missão. Aqui nos Estados Unidos.

— Se ele precisa de ajuda, deveria falar com as ymbrynes.

— Nossas ymbrynes não têm autoridade aqui. E pelo visto não existem ymbrynes americanas.

— Por que não?

— Sei lá, Emma. Tem um milhão de coisas que eu não sei. Mas sei que Abe trancou aquele alçapão com uma senha que só eu conheceria. E deixou o fichário com os registros das missões para que eu encontrasse. E se meu avô tivesse ideia de que você poderia estar aqui, ele ia querer que você visse o fichário também.

Ela desviou o olhar, em algum conflito interno.

— Não podemos simplesmente sair por aí numa missão qualquer. A srta. Peregrine nunca deixaria.

— Eu sei.

Ela me encarou.

— O que seria essa missão?

— Ainda não sei. H. disse que vai entrar em contato.

— Você realmente detestou a tarefa que as ymbrynes lhe deram, não foi?

— Aham. Odiei.

— Acho que você se sairia bem. Acabou de fazer um discurso bastante motivacional.

— Então você topa?

Um sorriso se abriu no rosto dela.

— Óbvio.

 

 

CAPÍTULO SEIS


Naquela noite, tive um pesadelo terrível. Eu estava num descampado cheio de focos de incêndio, o horizonte coberto de cinzas e chamas, um líquido preto se acumulando na terra. Estava flutuando, suspenso acima de um poço fundo, e das profundezas desse poço brilhavam duas luzes azuis. Pertenciam a Caul — Caul em sua forma monstruosa, com trinta metros de altura, os braços feito troncos de árvores, os dedos como raízes compridas e ávidas tentando me alcançar.

Ele me chamava: Jacob, Jacob, e sua voz era um cantarolar agudo e provocativo. Estou vendo você. Estou vendo você aí. Estou vendoooooo vocêêêêêêêêêê...

Ondas de ar fétido se erguiam ao meu redor, cheirando a carne humana queimada. Eu queria vomitar, escapar dali, mas estava paralisado. Tentei falar, gritar, e não saía nenhuma palavra.

De repente, um ruído que era um leve arranhar, como se ratos subissem pelas paredes do poço.

— Você não é real — consegui dizer finalmente. — Eu matei você.

Sim, respondia ele. E agora eu estou em todo lugar.

Então o som de arranhar foi ficando mais alto, até que os dedos de Caul emergiram do poço, dez raízes retorcidas subindo pelo meu corpo, enroscando-se no meu pescoço.

Tenho grandes planos para você, Jacob... Grandes planos...

Meus pulmões ameaçavam explodir, e senti uma pontada no estômago.

Então me levantei depressa, arfando e apertando a barriga. Estava acordado, em casa, no chão do meu quarto, as cobertas todas emaranhadas em volta de mim.

Um feixe de luar dividia o quarto. Enoch e Hugh ressonavam na minha cama. Aquela dor era antiga e familiar. E, além de dor, era a agulha de uma bússola.

A agulha apontava para baixo e para fora.

Eu me desvencilhei das cobertas, saí correndo do quarto e desci. Lá embaixo, caminhei sem fazer barulho, na ponta dos pés. Se eu estava prestes a encontrar o que imaginava, ninguém poderia me ajudar. Os outros só atrapalhariam, e eu não queria causar pânico antes de avaliar a situação. O medo só alimentava os etéreos.

O medo lhes abria o apetite.

Peguei uma faca ao passar pela cozinha — não seria muito útil contra um etéreo, mas era melhor que nada — e saí pela garagem, a caminho do quintal, quase tropeçando em uma mangueira enrolada. Um vago rastro de ozônio subia do telhado do galpão de jardinagem — alguém havia acabado de passar pela minifenda.

Então, de modo tão repentino quanto havia surgido, a dor passou. A agulha da bússola apontou para a baía, depois girou até o outro lado e parou aí. Isso nunca tinha acontecido. Fiquei sem entender nada. Será que tudo não havia passado de um alarme falso? Será que pesadelos ativavam meus reflexos peculiares?

Sentindo a grama molhada entre os dedos dos pés, olhei para baixo e vi que estava descalço, com uma calça de moletom rasgada e uma camiseta velha. Foi assim que Abe morreu, pensei. Exatamente assim, ou quase. Atraído para a escuridão de pijama, levando uma arma improvisada.

Baixei a faca. Aos poucos, minha mão parou de tremer. Contornei a casa uma vez, depois no sentido contrário, esperando. Nenhuma sensação. Então voltei para o quarto e me deitei novamente, mas não dormi.


Passei a manhã inteira olhando o celular a toda hora, ansioso pela ligação de H. Ele não tinha falado quando entraria em contato. Emma e eu discutimos se deveríamos contar aos outros, mas resolvemos esperar até termos uma missão definida. Ou talvez nem assim contássemos. Talvez a missão incluísse apenas nós dois. Ou talvez os outros não quisessem ir, ou fossem contra a ideia, e aí correríamos o risco de um deles nos dedurar à srta. Peregrine antes que pudéssemos ir.

Depois do café da manhã, eu estava incumbido de levar o pessoal para comprar roupas. Achei que seria uma boa maneira de ocupar minha mente, então tentei me concentrar na tarefa e esquecer H.

O primeiro grupo era formado por Hugh, Claire, Olive e Horace. Fomos de carro até o shopping. Não o shopping perto da minha casa, onde eu poderia acabar encontrando alguém da minha escola, mas o Shaker Pines, que ficava na interestadual. No caminho, mostrei os componentes básicos dos bairros de classe média americanos atuais — aquilo é um banco, aquilo é um hospital, aquilo é um condomínio —, porque eles não paravam de me perguntar sobre tudo que viam. Coisas que eu considerava banais eram fascinantes para eles.

Durante o tempo que eles passaram na fenda temporal, a srta. Peregrine tinha operado milagres na proteção física de seus pupilos, mas, nesse zelo, proibira qualquer visitante de falar com eles sobre o mundo moderno, o que os deixara em desvantagem. Superprotegidos, acabaram como pequenos Rips van Winkles, acordando de um longo cochilo em um mundo que não entendiam. Até certo ponto, eles conheciam produtos da modernidade: eletricidade, telefone, carro, avião, filmes antigos, música antiga e outras coisas comuns ou populares antes de 3 de setembro de 1940. Quanto ao que viera depois disso, o conhecimento deles era irregular e inconsistente. Não haviam passado mais que algumas horas esporádicas no presente, e a maior parte delas em Cairnholm, onde o tempo praticamente não tinha passado, mesmo que o calendário seguisse normalmente. Comparado à antiga ilha deles, até minha pequena cidade parecia avançar a um milhão de quilômetros por hora, o que às vezes os deixava paralisados de ansiedade.

Quando chegamos ao gigantesco estacionamento do shopping, Horace não quis sair do carro.

— O passado é muito menos apavorante — explicou ele, depois de insistirmos para que nos acompanhasse. — Mesmo a era mais terrível do passado é ao menos conhecida. Pode ser estudada. O mundo sobreviveu. No presente, ninguém nunca sabe quando o mundo inteiro pode chegar a um fim violento.

Tentei argumentar de forma racional:

— O mundo não vai acabar hoje. E, se acabar, vai acontecer quer você entre ou não no shopping.

— Eu sei, mas eu sinto como se fosse acabar. Se eu ficar aqui, quietinho, talvez tudo fique parado também e nada de ruim aconteça.

Naquele exato momento, um carro com as janelas abertas passou por nós tocando uma música alta com um grave superpotente. Horace ficou tenso e fechou os olhos com força.

— Viu? — disse Claire. — O mundo vai continuar escandaloso, mesmo que você fique enfurnado aqui, então é melhor vir com a gente.

— Ah, pombas — resmungou ele, e abriu a porta com violência.

Enquanto os outros aplaudiam sua coragem, fiz uma nota mental para lembrar que talvez Horace não fosse a melhor companhia para levarmos em nossa primeira missão.

O Shaker Pines era um shopping padrão: barulhento, com um brilho antisséptico e cheio de referências culturais desnorteantes (tente explicar, digamos, o Bubba Gump Shrimp Co., inspirado em Forrest Gump, a alguém da primeira metade do século passado). Além de tudo, o lugar estava apinhado de adolescentes — o que era meio que nosso objetivo. Não estávamos ali só para comprar roupas. Eu queria mostrar pessoas normais, pessoas que eles deveriam fingir ser. Não era só um passeio de compras, era uma verdadeira expedição antropológica.

Fomos dando uma olhada nas vitrines das lojas, todos amontoados à minha volta como exploradores em uma floresta cheia de tigres perigosos. Comemos lanches gordurosos na praça de alimentação e ficamos sentados observando os adolescentes que estavam ali, cada um estudando em silêncio o comportamento deles: os sussurros e piadas; as súbitas explosões de gargalhadas; a própria forma como se distribuíam fisicamente, formando grupinhos fechados; o fato de fazerem tudo, até comer, sem largar os celulares nem por um segundo sequer.

— Eles são de famílias muito ricas? — perguntou Claire, em voz baixa, inclinando-se para o nosso grupo sobre sua bandeja de plástico.

— Acho que não — respondi.

— Eles não trabalham?

— Talvez façam alguma coisa de meio período nas férias. Não sei.

— De onde eu venho, se a pessoa já conseguia levantar certo peso, então já podia trabalhar — disse Hugh. — Não tinha isso de ficar sentado o dia inteiro, só comendo e jogando conversa fora.

— Nós já trabalhávamos antes mesmo de levantar coisas pesadas — observou Olive. — Meu pai me mandou para uma fábrica de graxa quando eu tinha cinco anos. Foi horrível.

— O meu me mandou para uma casa de correção — contou Hugh. — Eu passava o dia inteiro fabricando cordas.

— Deus do céu — murmurei.

Eles eram de um tempo em que nem havia o conceito de adolescência. Isso foi inventado no pós-guerra; antes, ou você era adulto ou era criança. Fiquei pensando: como eles conseguiriam imitar adolescentes modernos se nem conheciam a ideia da adolescência?

E se tudo aquilo fosse uma má ideia?

Peguei o celular, nervoso.

Nenhuma ligação de H. Nem de ninguém.

Fomos comprar as roupas, mas perdemos Horace no caminho, pois ele entrou num supermercado que ocupava uma ala inteira do shopping. Encontramos nosso amigo na seção de frios, olhando abismado para uma enorme parede de queijos.

— Feta, muçarela, Camembert, Gouda, cheddar! — enumerava ele, extasiado. — O paraíso para um gourmand.

Para mim, eram só queijos, mas para Horace era um milagre: dez metros dos mais variados tipos, fatiados, processados, em pedaços grandes ou pequenos, embalados, feitos com leite desnatado, integral ou semidesnatado. Ele lia os pacotes como se estivesse em transe, e várias vezes tive que lembrá-lo de falar baixo para não chamar atenção.

— Eles têm de tudo... Tudo — murmurou. — Veja só isso! — comentou com um senhor que passava naquele momento com um carrinho de compras. — Veja!

O senhor apertou o passo.

— Horace, você está assustando as pessoas — falei, puxando-o. — É só queijo.

— Só queijo?! — repetiu ele, indignado.

— Tudo bem, é muito queijo.

— Isso aqui é o ápice das façanhas humanas — afirmou ele, sério. — Eu achei que a Grã-Bretanha fosse um império. Mas isso... isso... isso é a dominação mundial!

— Sinto dor de barriga só de olhar — disse Claire.

— Como ousa?! — retrucou Horace.

Finalmente conseguimos tirá-lo do mercado. Na loja de departamentos, Horace não ficou tão impressionado com a seleção de roupas e acessórios. Escolhi a loja mais genérica de todo o shopping e indiquei a eles peças que não chamassem atenção: cores neutras, combinações comuns, os modelos que estivessem nos manequins.

Ele foi ficando mais soturno conforme enchíamos as sacolas.

— Prefiro andar pelado — declarou quando lhe ofereci uma calça jeans, que ele pegou como se segurasse uma cobra venenosa. — É isso que você quer que eu vista? Jeans, feito um camponês?

— Hoje em dia, todo mundo usa jeans — expliquei. — Não só os trabalhadores rurais.

Na verdade, calça jeans era até bom demais se comparado ao que os outros clientes estavam vestindo. Horace ficou pálido ao observar os shorts de ginástica, as calças cargo e os moletons.

Deixou a calça jeans cair no chão.

— Ah, não — sussurrou. — Ah, não, não...

— O que foi? — perguntou Enoch. — As roupas deles não estão à altura dos seus padrões?

— Padrões! E quanto à decência? E quanto ao amor-próprio?

Um homem passou por nós com calça de estilo militar, chinelos de cor laranja e uma camisa do Bob Esponja com as mangas cortadas.

Achei que Horace fosse chorar.

Enquanto ele lamentava o fim da civilização, pegamos roupas para todos os outros. Como os sapatos de chumbo de Olive pareciam ter saído do armário do monstro de Frankenstein, deixamos que ela escolhesse um novo par. Bastaria que fosse um ou dois números maior, pois assim poderíamos encher o espaço vazio com peso.

Por insistência minha, todos ficaram em silêncio enquanto estávamos no caixa. Eles continuaram em silêncio enquanto saíamos do shopping e atravessávamos o estacionamento até o carro, os braços cheios de sacolas e a mente sobrecarregada de estímulos a processar.


Ao chegarmos em casa, descobrimos que os outros tinham ido para o Recanto naquela tarde. Foram para algum tipo de reunião de orientação para as tarefas de reconstrução, de acordo com um bilhete deixado pela srta. Peregrine. Também segundo o bilhete, Emma havia ficado em casa, mas não a vi em lugar algum. Fui encontrá-la, depois de um bom tempo, no banheiro de visitas do segundo andar, pois ouvi seu assobio.

Bati na porta.

— É o Jacob. Tudo bem aí dentro?

Via-se uma débil luz vermelha pela fresta debaixo da porta.

— Só um segundo! — respondeu ela.

Ouvi Emma arrumando coisas com pressa. Logo depois, a luz normal se acendeu e a porta se abriu.

— Ele ligou? — perguntou ela, ansiosa.

— Ainda não. O que está acontecendo aí?

Olhei por cima dela para o pequeno banheiro e vi equipamentos de revelação de fotografia por todos os cantos: cilindros de metal sobre a caixa do vaso sanitário, bandejas de plástico apoiadas nas bordas da pia e, no chão, um ampliador enorme. O cheiro sufocante de produtos químicos fez meu nariz arder.

— Você se importa de eu transformar esse banheiro numa câmara escura? — perguntou Emma, com um sorriso acanhado. — Porque eu meio que já fiz isso.

Não me importava, pois tínhamos outros dois banheiros. Ela me convidou para entrar e ver o processo de revelação. Não havia muito espaço, então tive que me espremer num canto. Ela era eficiente e trabalhava sem pressa, enquanto conversava. Apesar de dizer que era nova naquilo, seus movimentos pareciam seguros e experientes.

— Eu sei que é um clichê. — Ela se agachou de costas para mim e girou botões no ampliador. — A peculiar posando de fotógrafa.

— É um clichê? Jura?

— Ha, ha, muito engraçado. Você deve ter notado que toda ymbryne tem um álbum de fotografias, e existe um ministério inteiro dedicado a nos catalogar por fotos. Um a cada três peculiares se acha um gênio com uma câmera na mão... mas a maioria não consegue nem tirar uma foto dos próprios pés. Aqui, me ajude com isso.

Ela segurou de um lado do ampliador, e eu do outro. Era mais pesado do que parecia. Nós o pousamos em um suporte que ela havia preparado na banheira.

— E você imagina o motivo disso? — perguntei.

Eu nunca tinha pensado muito no assunto até então, mas realmente parecia estranho que pessoas que viviam o mesmo dia várias e várias vezes precisassem se lembrar de si mesmas por imagens.

— As pessoas normais tentam nos exterminar há séculos. Acho que a fotografia é uma maneira de marcarmos nosso lugar. De provar que estamos aqui e que não somos os monstros que imaginam.

— É. Faz sentido.

Um timer disparou. Ela pegou um dos cilindros de metal da caixa do vaso, tirou a tampa e jogou uma mistura de produtos químicos na pia. Em seguida, tirou do cilindro um carretel de plástico, desenrolou um rolo de negativos tão comprido quanto seu braço, retirou o excesso de água passando-o entre dois dedos e o prendeu em uma corda esticada no boxe.

— Agora que estamos no presente, é diferente — continuou Emma. — Estou ficando mais velha e, pela primeira vez desde que me entendo por gente, cada dia que eu vivo não vai se repetir. Então, vou tirar pelo menos uma foto por dia, para me lembrar. Mesmo que não seja um dia bom.

— Suas fotos são ótimas. A que você me mandou no verão, das pessoas descendo para a praia... era linda!

— Você achou mesmo? Obrigada.

Emma raramente ficava envergonhada. Achei uma graça.

— Tudo bem, então, já que você se interessou... Eu estava revelando alguns filmes que usei nas últimas semanas. — Ela pegou uma foto da corda. — Estes são membros da Guarda Nacional Peculiar. — Ela me estendeu a foto, ainda um pouco úmida. — Aqui, estão enchendo o buraco onde ficava a torre de Caul. Estão trabalhando em turnos de doze horas, há um bocado de tempo. Era muita destruição.

A foto mostrava uma fileira de homens uniformizados jogando pedras e terra dentro de uma cratera.

 

 

— E aqui um retrato que tirei da diretora — continuou Emma, me entregando uma segunda foto. — Ela não gosta de ser fotografada, então tive que pegá-la de costas.

Na foto, a srta. Peregrine usava vestido e chapéu escuros e se aproximava de um portão também escuro.

 

 

— Parece que ela está indo para um funeral.

— Todos nós estávamos. Nas primeiras semanas depois que você foi embora, houve funerais quase todos os dias, para as vítimas dos ataques dos etéreos.

— Não consigo me imaginar indo a tantos funerais seguidos. Deve ter sido horrível.

— E foi.

Emma tinha outras fotos para revelar.

— Posso ficar vendo?

— Se não se incomodar com o cheiro dos produtos... Algumas pessoas ficam com dor de cabeça.

Ela voltou ao ampliador.

— Estou curioso para saber por que você não usa uma câmera digital — comentei. — Seria bem mais fácil.

— É que nem o seu computador telefônico?

— Mais ou menos.

Aquilo me lembrou de olhar o celular outra vez. Mas não havia chamadas perdidas.

— Então não ia funcionar na maior parte das fendas temporais — disse ela. — Do mesmo modo que o seu computador telefônico não funciona. Já essa raposa velha — ela levantou a câmera de fole dobrável — pode ir a qualquer lugar. Agora, feche a porta.

Obedeci. Ela acendeu a lâmpada vermelha e apagou a do teto. Mergulhamos em uma escuridão quase total, e, naquele cômodo diminuto, era difícil não esbarrar em Emma enquanto ela ia de lá para cá.

Eu nunca tinha visto ninguém trabalhar numa câmara escura. Envolve um bom tempo de espera, cronometrado cuidadosamente. A cada quarenta e cinco segundos, ela tinha que agitar um dos cilindros, tirar uma das soluções químicas para colocar outra ou pendurar os negativos para secarem. Nesse meio-tempo, não havia nada a fazer além de esperar. Esperar e trocar beijos no canto daquele banheiro apertado, sob a luz vermelha. Os primeiros quarenta e cinco segundos foram tímidos e suaves, só um aquecimento. Os seguintes foram menos. No terceiro intervalo, acabamos chutando uma bandeja cheia de produtos e começamos a ignorar o timer. Tenho quase certeza de que um dos rolos de filme foi inutilizado.

Então meu celular começou a tocar.

A tela mostrava número desconhecido.

— Alô?

— Preste atenção. — Era a mesma voz rouca do outro lado. H. — No lugar de Abe, nove da noite. Sente-se à mesa dele. Peça o que ele pedia.

— Você quer... me encontrar?

— Vá sozinho.

Ele desligou.

— Que rápido — disse Emma. — E aí?

— Temos um encontro marcado.


O que vestir para uma entrevista de trabalho como caçador de etéreos? Sem uma resposta, decidi pelo básico: calça jeans, meu melhor tênis e a camisa mais profissional que eu tinha, uma polo azul-clara da Smart Aid, com meu nome bordado na altura do bolso. Emma preferiu suas fiéis roupas do pré-guerra: um vestido azul simples, apertado na cintura com um laço cinza, e sapatilhas pretas. Não mencionei que H. havia me mandado ir sozinho. Não queria sair em nenhuma missão sem ela, então é claro que ela precisava ir comigo naquele primeiro encontro. Se eu comentasse que ela não havia sido convidada, só faria deixá-la constrangida.

Os que haviam ido comigo ao shopping mais cedo estavam experimentando as roupas, e o restante dos peculiares ainda não voltara do Recanto. Assim, foi fácil sair sem ninguém notar. Às oito e meia, estávamos no carro, rumo à cidade.

Só me restava torcer para ter entendido as instruções lacônicas de H. “O lugar de Abe” podia significar qualquer coisa, mas “mesa dele” e “o que ele pedia” me remeteram ao Mel-O-Dee, um restaurante-lanchonete das antigas na Rota 41 que servia hambúrgueres gordurosos e refeições baratas desde que Deus era criança (ou desde 1936, o que dá no mesmo). Era uma lembrança feliz da minha infância, pois também tinha sido meu lugar preferido, assim como o do meu avô. Eu adorava aquele restaurante, mas meus pais nunca queriam ir (era “deprimente” e servia “comida de velho”), então era só meu e de Abe. Quase todo sábado, nos instalávamos na mesma mesa à janela, eu com um sanduíche de pasta de atum gosmenta e um milk-shake de morango, Abe com um prato de iscas de fígado aceboladas. Eu não ia lá desde os doze ou treze anos. Não me lembrava nem de ter passado de carro por lá nos últimos tempos. Eu torcia para que ainda existisse. A cidade estava sofrendo mudanças rápidas, e a maior parte dos lugares como aquele, mais antigos e com personalidade, tinha sido demolida para dar espaço a desinteressantes shopping centers modernos. Acelerei, mexendo nos botões do rádio e batucando no volante para aliviar o nervosismo.

Após uma curva, o restaurante surgiu atrás de um aglomerado de árvores. Parecia um lugar moribundo, com o estacionamento quase vazio e parte do letreiro em neon queimada.

— É aqui que ele quer nos encontrar? — perguntou Emma, colocando a cabeça para fora da janela enquanto eu estacionava.

— Tenho noventa e oito por cento de certeza.

Ela me olhou com ceticismo.

— Maravilha.

Entramos. Nada ali havia mudado. Mesas de plástico amarelo separadas por plantas também de plástico, um longo balcão de fórmica e uma máquina de refrigerantes. Olhei em volta, procurando alguém que pudesse ser H., mas havia só um casal de velhos decrépitos no canto e um sujeito de meia-idade maltrapilho mexendo uma xícara de café no balcão.

— Podem escolher o lugar! — gritou a garçonete, do outro lado do salão.

Conduzi Emma até a mesa em que Abe e eu sempre nos sentávamos. Pegamos o cardápio.

— Por que esse lugar se chama Mel-O-Dee? — perguntou ela.

— Acho que, muito tempo atrás, aqui era um restaurante daqueles com garçons-cantores. Mel-O-Dee... Melody... Entendeu?

A garçonete se aproximou a passos lânguidos. Era uma mulher corcunda, com uma peruca loura que não combinava com suas rugas nem com a maquiagem malfeita. NORMA, dizia a plaquinha na camisa dela. Eu me lembrava dela. Trabalhava no Mel-O-Dee havia um bom tempo. Ela tirou os óculos de leitura, olhou para mim e sorriu.

— É você, garoto? Minha Nossa, como ficou bonito! — comentou, dando uma piscadela para Emma. — Falando em beleza, como vai seu avô?

Baixei o olhar.

— Ele faleceu. No início do ano.

— Ah, sinto muito, querido.

Ela colocou a mão enrugada sobre a minha.

— Acontece — falei.

— Nem me diga. Eu mesma vou fazer noventa anos daqui a pouco.

— Uau! Isso é incrível.

— Não é pouca coisa não. Praticamente todo mundo que eu conhecia morreu. Meu marido, meus amigos, meu irmão e duas irmãs. Às vezes acho que meus genes bons são uma maldição divina. — Ela exibiu a grande dentadura num sorriso. — O que vão querer, crianças?

— Café — disse Emma.

— Eu quero o... hã... o fígado acebolado.

Norma me olhou como se algo nas profundezas de sua memória tivesse sido acionado.

— Não quer um sanduíche de atum?

— Estou experimentando novos sabores.

— Hum-humm.

Ela levantou um dedo, prometendo que logo voltaria, e se afastou. Passou por baixo do balcão e voltou trazendo uma coisa.

Então se inclinou e sussurrou:

— Ele está esperando você. — Norma colocou na mesa uma pequena chave azul e se virou, apontando para os fundos do restaurante. — Lá atrás. Última porta depois dos banheiros.


A última porta depois dos banheiros era de metal pesado e tinha uma placa que alertava: entrada proibida. Girei a chave na fechadura e abri a porta, e fomos engolidos por uma mortalha de ar congelante. Cruzando os braços para nos protegermos do frio, entramos.

Era um monte de comida congelada estocada em prateleiras nas paredes. No teto, pequenas estalactites de gelo apontavam para nós como os espinhos de uma Dama de Ferro.

— Não tem ninguém aqui — concluí, olhando em volta. — Acho que a Norma está gagá.

— Olhe para o chão — disse Emma.

Havia setas feitas com fita isolante. Elas apontavam para os fundos da câmara, onde faixas de plástico grosso se estendiam do teto ao chão, formando uma cortina. Letras em estêncil indicavam o local como SALADA CARNE.

— Isso está escrito errado? — perguntou Emma. — Será que é “salada e carne” ou “sala da carne”?

— Vamos descobrir.

Passei pela cortina de plástico, toda suja de restos de carne ressecados, e me vi num cômodo ainda menor e mais frio, iluminado por uma luz fluorescente que piscava sem parar. Havia peças de carne por todo o local: caindo de qualquer jeito de caixas abertas, largadas no chão, cobertas por uma fina camada de gelo.

— O que será que aconteceu aqui? — falei.

Cutuquei com o pé um pedaço de carne de carneiro. Ainda estava congelada, mas tinha sido mordida. Tive um súbito mau pressentimento.

— Vamos dar o fora daqui. Pode ser uma...

A palavra armadilha estava quase saindo da minha boca quando três coisas aconteceram em sequência:

Pisei num grande X marcado no chão com fita isolante.

A luz oscilante explodiu e ficamos na escuridão total.

Senti um frio no estômago e uma pressão repentina na cabeça.

Então a luz voltou — só que agora era uma lâmpada incandescente dentro de uma gaiola. As caixas abarrotadas de carne haviam desaparecido, substituídas por sacos de legumes congelados. Comecei a sentir a inconfundível dor aguda na barriga.

Toquei na mão de Emma e levei o dedo aos lábios, formando a palavra etéreo sem falar.

Emma pareceu apavorada, mas então engoliu em seco e se manteve firme.

— Você consegue controlá-lo? — sussurrou ela no meu ouvido.

Fazia milênios que eu não falava com um etéreo de verdade ou apenas confrontava um deles, estava fora de forma. E mesmo quando minhas habilidades estavam afiadas, controlar o etéreo nunca era algo instantâneo.

— Preciso de tempo para sentir — respondi, também sussurrando. — Um ou dois minutos.

Emma assentiu.

— Então vamos esperar.

Ele estava dentro do frigorífico, junto conosco. A agulha da minha bússola interna esquentava, apesar de meu corpo estar congelando, e a agulha indicava que a criatura estava logo depois da cortina de plástico. Dava para ouvi-la mastigando, grunhindo e salivando. Emma e eu nos agachamos atrás de um grande caixote de madeira, na esperança de que ele não nos visse. Os segundos se passavam.

De repente, a criatura atirou longe o que estava comendo e soltou um arroto estrondoso.

Emma me perguntou com o olhar: Alguma coisa? Balancei a cabeça: Nada, ainda. Eu precisava ouvi-lo falar para começar a exercer controle sobre ele.

O etéreo deu um passo na nossa direção, sua sombra recortada pela cortina de plástico. Com os ouvidos atentos, eu torcia por qualquer coisa que pudesse usar como alavanca para seu cérebro (qualquer sílaba ajudaria), mas, com exceção de alguns ruídos, ele se mantinha em silêncio completo. Farejava o ar, avaliando nosso cheiro. Abrindo o apetite.

Cutuquei Emma e fiz sinal de positivo. Ficamos de pé devagar. Teríamos que lutar.

Emma estendeu as mãos com as palmas para cima, e eu cerrei os dentes, que batiam de frio ou de medo, não sei bem ao certo. Provavelmente de medo. Era um pavor que eu não esperava sentir.

A sombra do etéreo se dobrou e uma de suas línguas musculosas atravessou a cortina, dando voltas e experimentando o ar, como um periscópio nos espionando.

Emma avançou um passo e, em silêncio, acendeu chamas nas mãos — pequenas, mas, a julgar pela tensão em seus ombros, eu soube que ela estava se preparando para uma explosão. Então a segunda língua do etéreo atravessou a cortina. As chamas cresceram um pouco, depois mais. Uma gota gelada caiu na minha nuca: as estalactites no teto estavam começando a derreter.

Aconteceu de repente, como a violência costuma ser. O etéreo gritou e atirou a última língua pela cortina, e então as três avançaram sobre nós. Emma gritou e lançou a explosão de fogo que estava preparando, queimando as línguas assim que nos alcançaram e fazendo-as recuar — mas não antes de uma delas se enroscar no meu pé e me puxar.

Fui arrastado de costas pelo chão através da cortina para a área central do frigorífico. O etéreo se jogara de costas na porta, para escapar do fogo, e me puxava para sua boca aberta. Estiquei o braço enquanto era puxado, esbarrando nas estantes até conseguir me agarrar a alguma coisa. Mas de nada adiantou, pois era só um caixote, que acabei levando comigo.

Ouvi Emma gritar meu nome. Agindo por puro reflexo, peguei o caixote com a outra mão e o segurei na minha frente. Foi o que me salvou quando eu já ia ser engolido: o caixote, pois o enfiei entre as mandíbulas do etéreo.

Ele largou meu tornozelo por um instante, o que me deu tempo de fugir para um canto. A essa altura, ele já tinha emitido alguns sons, então tentei reproduzi-los, trazendo à tona a bizarra linguagem gutural dos etéreos, até então adormecida dentro de mim.

Emma correu para perto de mim. Eu estava ajoelhado no chão.

— Você está bem?

— Sim. Mas temos que sair logo daqui. Nunca lute com etéreos num espaço fechado.

Ela viu o caixote aparentemente suspenso no ar perto da porta.

— Ele está bloqueando a saída — disse Emma.

O etéreo desistiu de tentar tirar o caixote da boca e simplesmente cravou os dentes na madeira, esmagando-a como se fosse um punhado de batatas chips.

Afaste-se, ordenei, testando algumas palavras na língua dos etéreos.

Ele deu um passo na nossa direção, mas ainda estava no nosso caminho. Tentei uma pequena modificação:

Para o lado.

Ele deu mais um passo na nossa direção. Suas línguas dançavam no ar como cascavéis prontas para dar o bote.

— Não está funcionando — insistiu Emma.

As chamas nas mãos dela estavam começando a derreter todos os alimentos congelados em volta, a água que pingava do teto já formando uma poça no chão.

— Produza mais fogo. Tive uma ideia.

Emma respirou fundo e se preparou. Suas chamas cresceram.

— Quando eu mandar, você corre para esse lado que eu corro para o outro — sussurrei para ela.

O etéreo soltou um grito agudo e avançou sobre nós. Gritei “AGORA!”, e Emma deu um pulo para a direita enquanto eu saltei para a esquerda. As línguas do monstro passaram perto da nossa cabeça. Corri para o canto da câmara. Ele tentou me seguir, mas escorregou na poça e caiu, com um guincho de dor. Suas línguas me perseguiram, mas uma delas ficou presa numa prateleira de metal encostada na parede. Ao tentar puxá-la de volta, o etéreo derrubou a pesada estante e todos os engradados de comida congelada desabaram em cima dele.

— VAI! — gritei.

Conseguimos chegar até a porta, e a abri. No segundo seguinte, estávamos de volta ao corredor, fechando a porta atrás de nós.

— Tranque! — lembrou Emma. — Cadê a chave?

Mas aquela porta tinha uma maçaneta diferente e nenhuma fechadura, então demos meia-volta e corremos até o salão do restaurante, que estava banhado pela luz do sol e cheio de clientes em roupas antigas novinhas em folha. Todos se viraram para os estranhos que surgiram do nada, encharcados e sem fôlego. Só então Emma se lembrou das chamas acesas em suas mãos, e na mesma hora as escondeu às costas, bem no momento em que três garçons, os únicos ali que não haviam notado nossa presença, começaram a entoar uma canção antiga:

— Hello my baby, hello my honey, hello my ragtime gaaaaaa...

Foi quando um estrondo vindo dos fundos interrompeu a cantoria antes que terminassem a palavra. Os clientes se levantaram de um pulo, assustados.

— Saiam daqui! — gritei. — Saiam todos, agora mesmo!

Emma mostrou novamente o fogo nas mãos.

— Isso mesmo, saiam! Saiam!

O estrondo seguinte os fez sair do lugar, o barulho da porta de metal sendo arrancada e lançada longe. Agora, estavam todos de pé, em pânico e correndo para as saídas.

Então nos viramos para trás. O etéreo saiu da câmara frigorífica com passos pesados, virou-se para nós e uivou, suas três línguas horríveis sendo lançadas pelo corredor como linhas de pesca reforçadas e então se enrijecendo e vibrando com o urro que o etéreo deu.

Um garçom me deu um esbarrão ao passar por mim, correndo para a porta mais próxima. Mesmo o etéreo sendo invisível, o urro bastou para aterrorizar todo mundo. Quanto à visão apavorante da criatura, isso era privilégio exclusivamente meu.

— Me diga que você está quase conseguindo... — pediu Emma.

— Estou quase.

Quando o etéreo começou a correr na nossa direção, eu gritei:

Pare! Deitado! Feche a boca!

Ele desacelerou um pouco, como se minhas palavras tivessem penetrado seu crânio mas não entrado direito no cérebro, e em seguida partiu para cima de nós com o dobro da velocidade. Eu queria poder sair dali e enfrentá-lo no estacionamento, mas as saídas estavam obstruídas pelos clientes em pânico. Pulamos para trás do balcão e corremos até a caixa registradora, do outro lado do salão. Continuei gritando com ele, tentando maneiras diferentes de dizer a mesma coisa: Fique quieto! Vai dormir! Sente-se! Não se mexa!, mas eu o ouvia destruindo o lugar conforme ele se aproximava. Mesas e cadeiras voavam, as pessoas gritando desesperadas. Arrisquei uma olhada sobre o balcão e vi o etéreo laçar um garçom pela cintura e atirá-lo por uma janela de vidro.

Em movimentos rápidos, Emma se levantou, pegou uma garrafa com um líquido verde e a abriu. Em seguida, começou a rasgar pedaços de pano do próprio vestido.

— O que está fazendo? — perguntei.

— Um coquetel molotov — respondeu ela, enfiando uma tira de tecido na garrafa.

— Isso é refrigerante!

Emma soltou um palavrão, então colocou fogo no pano e o jogou por cima do balcão mesmo assim.

A agulha da minha bússola interna se movimentou. O etéreo estava se aproximando.

— Por aqui! — sibilei.

Fomos engatinhando até a outra ponta do balcão. Um segundo depois, as línguas do etéreo destruíram a parede onde estávamos encostados antes, lançando ao chão cinquenta garrafas de vidro ao mesmo tempo.

Uma mulher gritou. Pessoas estavam sendo feridas, talvez até mortas. Eram habitantes da fenda, que não teriam lembranças do que acontecia agora e não perderiam o amanhã — para elas não havia amanhã —, mas ainda assim... Não havia escapatória, nenhuma solução simples. Eu teria que enfrentar a fera, e era agora ou nunca.

Então me levantei de detrás do balcão e gritei para o etéreo, que segurava pelo pescoço uma moça com bobes cor-de-rosa no cabelo, e ela gritava tão alto que os bobes estavam começando a se soltar. Quando ele me viu, largou a mulher, que caiu de lado, mas logo saiu correndo para se esconder sob uma mesa. O etéreo partiu para cima de mim, soltando murmúrios e sons indistintos. Permaneci no lugar e comecei a imitar cada som que ele emitia, embora não soubesse o que significavam.

Ele parou por um momento para esmagar uma mesa em seu caminho. Minha língua estava começando a pegar as tonalidades da fala do monstro e, de repente, pareceu funcionar sozinha...

PARE! DEITE-SE!

O etéreo hesitou. E se jogou no chão.

FECHE A BOCA.

Ele recolheu as línguas. Peguei uma faca de uma pilha de louças caídas no chão. Emma se aproximou com as mãos em chamas.

NÃO SE MEXA.

Ele se contorcia, tentando se livrar dos meus comandos, mas estava paralisado, e agora eu só precisava...

— É o suficiente!

Era uma voz familiar. Eu me virei e notei um senhor de terno claro, sentado tranquilamente a uma mesa no canto (a mesa de Abe), o corpo virado para mim, um cotovelo pousado na mesa. Era a única pessoa que permanecera no restaurante e não parecia nem um pouco amedrontado.

— Santo Deus. Você tem mesmo o dom do seu avô. Agora, se não se importa... — Ele murmurou algo em linguagem de etéreo, e senti que eu perdia o controle sobre a criatura. — Prometi a Horatio uma bela refeição se ele se comportasse direitinho hoje. Não foi, garotão?

O etéreo enrolou as línguas, correu até o homem e se sentou aos pés dele como se fosse apenas um cachorro grande demais.


O homem pegou um bife da mesa e o jogou para o etéreo, que o agarrou com os dentes e engoliu de uma vez. Ele então fez menção de se levantar, mas Emma ergueu as mãos ainda em chamas e o impediu:

— Não se mexa!

Ele permaneceu sentado.

— Sou amigo, não acólito.

— Então por que está com um etéreo?

— Já não vou mais a lugar algum sem Horatio. Prefiro não acabar como o avô desse menino, se puder evitar.

— Você é H., certo? — perguntei.

— O próprio. — Ele fez um gesto para as cadeiras desocupadas do outro lado da mesa. — Fiquem à vontade.

— Você é completamente louco! — vociferou Emma. — Seu etéreo quase nos matou!

— Garanto que em nenhum momento vocês correram perigo real. — Ele repetiu o gesto. — Por favor. Temos cinco minutos até a polícia chegar e muito a discutir.

Olhei de relance para Emma. Ela parecia incomodada, mas fechou as mãos, apagando as chamas, e baixou os braços. Cruzamos o salão, atravessando pilhas de louça quebrada e mobília derrubada, até H. O etéreo agora estava encolhido no chão ao lado dele. Parecia dormir. A agulha da minha bússola interna tinha ficado dormente, mas não desligada, e foi quando percebi que sua intensidade variava de acordo com o humor do etéreo. Os agressivos e famintos causavam mais dor que os calmos e de barriga cheia.

Emma se sentou na cadeira mais distante do etéreo. H. se debruçou sobre a mesa, esticando o pescoço para um canudo em um copo alto. Transparecia tranquilidade e segurança.

— Estou pronto para a entrevista — falei.

H. ergueu o dedo, ainda bebendo. Fiquei avaliando-o enquanto esperávamos. Tinha um rosto de beleza inusitada e com linhas de expressão bem marcadas, os olhos fundos e penetrantes. Usava uma barba desgrenhada e um colete por cima do suéter que lhe dava um leve ar de professor. Ali, me dei conta de que já tinha visto uma foto dele nos registros de Abe, em que ele usava quase a mesma roupa.

 

 

Quando acabou de beber, H. afastou o copo e se recostou no banco.

— Coca com sorvete — disse ele, e deu um suspiro satisfeito. — A comida não tem mais gosto. É por isso que nunca perco a oportunidade de fazer uma refeição quando estou numa fenda. — Ele apontou com a cabeça para vários pratos na mesa. — Pedi para você um filé à milanesa com molho e uma torta de limão. Teria providenciado algo para você também, srta. Bloom — ele me lançou um olhar descontente —, mas esperava que Jacob atendesse a meu pedido de vir sozinho.

— Você sabe quem eu sou? — perguntou Emma.

— Claro. Abe falava muito de você.

Ela baixou o olhar, mas não conseguiu esconder o sorriso.

— Emma e eu somos uma equipe — declarei. — Trabalhamos juntos.

— Percebi — disse H. — Você passou, a propósito.

— Passei o quê?

— Na entrevista.

Ri, aquela risada que é mais de surpresa que divertimento.

— Isso foi a entrevista? Um ataque?

— A primeira parte. Eu precisava saber se era sério o que você dizia.

— E?

— Seu domínio da língua pode melhorar. E você precisa assumir o controle mais rápido: dava para ter evitado tantos feridos. — Ele apontou para a janela quebrada e para o garçom lá fora, todo se retorcendo e gemendo no capô de um Chevrolet Bel Air. — Mas era sério. Não há dúvida.

Senti uma pontada de orgulho.

— Não vá se animando ainda, rapazinho. Ainda tem outras coisas que você precisa saber.

Fiz força para não sorrir.

— Quero saber de tudo.

— O que seu avô lhe contou sobre o trabalho dele?

— Nada.

O homem reagiu com surpresa.

— Nada mesmo?

— Ele dizia que era caixeiro-viajante. Meu pai me contou que Abe passava semanas em viagens de trabalho e que vez ou outra voltava com a perna quebrada ou um curativo no rosto. Minha família achava que ele tinha se metido com gente mau-caráter ou que era viciado em jogo.

H. passou a mão na barba.

— Então, só teremos tempo para o básico. Abe veio para a os Estados Unidos depois da guerra. Queria ter a vida mais normal possível, porque achava que, com a redução dos seus poderes, seria mais uma ameaça do que uma ajuda a seus amigos peculiares. À srta. Bloom e seus companheiros, para ser mais exato. Na época, o país vivia em relativa paz. Os normais tinham nos perseguido bastante por anos e semeado a discórdia entre os clãs de peculiares, mas nunca tivéramos os problemas com etéreos e acólitos que tínhamos na Europa. Pelo menos até o fim dos anos 1950, quando eles vieram com tudo atrás das ymbrynes e causaram um grande estrago. Foi aí que Abe entendeu que precisava sair da aposentadoria precoce e fundou a organização.

Percebi que estava prendendo a respiração. Eu tinha esperado tanto para descobrir sobre os primeiros anos do meu avô nos Estados Unidos que mal dava para acreditar que estava realmente acontecendo.

H. continuou, enrolando a ponta da barba enquanto falava:

— Éramos doze. Para todos os efeitos, levávamos uma vida normal. Nenhum de nós vivia em fendas temporais, essa era uma regra. Alguns tinham emprego e família. Nos encontrávamos em segredo e nos comunicávamos por códigos. No início, só íamos atrás dos etéreos, mas em determinado momento, quando os acólitos estavam capturando muitas ymbrynes, elas tiveram que se esconder. Foi quando começamos a fazer o trabalho delas.

— Encontrar crianças peculiares que vivessem entre os normais — completou Emma. — E levá-las para um lugar seguro.

— Você leu o livro de registros.

Assenti.

— Não era fácil. E nem sempre conseguíamos. De vez em quando, as coisas davam errado. Um ou outro era caso perdido. — Ele olhou pela janela, revisitado por uma dor antiga. — Ainda carrego essas derrotas comigo.

— Onde estão os outros? — perguntei. — Os dez membros restantes?

— Alguns foram mortos nas missões, outros desistiram. Não conseguiam mais viver daquele jeito. Os anos 1980 foram difíceis para nós.

— E Abe nunca quis substituí-los?

— Era difícil encontrar gente de confiança. O inimigo estava sempre tentando se infiltrar na nossa organização, descobrir nossos segredos. Tenho orgulho de dizer que fomos uma grande pedra no sapato deles. E a ameaça começou a diminuir quando eles se voltaram para a Europa. Basicamente, já tinham conseguido o que queriam aqui, ainda que tivessem pagado bem mais caro, graças a nós. — Ele baixou o olhar por um momento. — Mas talvez seja o início de uma nova era. Sempre torci para que meu telefone tocasse e fosse você do outro lado da linha.

— Você podia ter me ligado.

— Prometi a Abe que não faria o primeiro contato. Seu avô não... ele não queria forçar você a isso. Queria que fosse uma escolha sua. Mas sempre soube que você apareceria em algum momento.

— Você fala como se já nos conhecêssemos.

Ele deu um sorrisinho.

— Não se lembra do sr. Anderson?

— Ah, meu Deus! Lembro! Você me deu um sacão de balas.

— Você devia ter uns oito, nove anos. — Ele sorriu e balançou a cabeça. — Ah, foi um dia e tanto. Abe não queria que nenhum de nós fosse à casa dele. Sempre tão cauteloso... Mas eu queria conhecer aquele neto de quem ele tanto se orgulhava, então um dia simplesmente apareci, do nada, e você estava lá. Abe ficou com tanta raiva que dava para fritar um ovo na testa dele! Mas valeu a pena. E, no minuto em que o vi, eu soube que você também tinha o dom.

— Sempre achei que meu avô e eu fôssemos os únicos.

— No nosso grupo, eu e mais três víamos os etéreos. Só Abe e eu podíamos controlá-los. E, que eu saiba, você é o único capaz de controlar mais de um ao mesmo tempo.

Comecei a ouvir sirenes ao longe.

— Então você tem uma missão para nós? — perguntei.

— Na verdade, sim. — Ele pegou alguma coisa na cadeira ao seu lado e colocou na mesa. Eram dois pacotinhos, cada um do tamanho de um livro de bolso, embrulhados em papel pardo. — Preciso que você entregue isto. Sem abrir.

Quase ri.

— Só isso?

— Considere esta a segunda parte da entrevista. Prove que dá conta da entrega e eu lhe dou uma missão de verdade.

— Claro que damos conta disso — afirmou Emma. — Você tem ideia de tudo que já fizemos?

— Aquilo foi na Europa, mocinha. Por aqui é que a porca torce o rabo.

— A mocinha aqui é muito mais velha que você. E que expressão mais esquisita.

— É assim que vai ser.

— Tudo bem — aceitei. — Então, onde devemos entregá-los?

— Está escrito nos pacotes.

Em um deles estava escrito Amigo Rosa.

No outro, Portal.

— Não sei o que significa isso — falei.

— Vou dar uma pequena pista.

Ele levantou o copo e empurrou para mim o jogo americano de papel. No tempo em que frequentei o local, o jogo americano do Mel-O-Dee exibia um mapa da Flórida com traços infantis e indicações das atrações turísticas, mas só isso. Não havia estradas nem cidades pequenas ou médias. A capital do estado ficava coberta pelo desenho de um jacaré tomando um drinque. Pela seriedade no rosto de H. ao me passar o papel sobre a mesa, parecia que ele estava nos dando um mapa do tesouro. Ele bateu com o dedo bem no centro do mapa, onde seu copo tinha deixado uma marca circular em volta de um lugar chamado Terra das Sereias.

— Quando os pacotes forem entregues, entrarei em contato. Vocês têm setenta e duas horas.

Emma encarava a mesa sem acreditar.

— Isso é um absurdo. Precisamos de um mapa de verdade.

— Não. Se um mapa de verdade caísse em mãos erradas, iria tudo por água abaixo. Além do mais, parte do nosso trabalho é encontrar coisas difíceis de encontrar. — Ele bateu com o dedo no mapa outra vez. As sirenes estavam se aproximando, e curiosos começavam a se aglomerar no estacionamento. — Você nem tocou na comida.

— Não estou com fome — falei. — Quando tem um etéreo por perto, fico com o estômago embrulhado.

— Quem guarda, tem. — Ele pegou uma garfada da torta de limão e se levantou. — Vamos, eu acompanho vocês até a saída.

Duas viaturas de estilo antigo entraram no estacionamento. Coloquei os pacotes debaixo do braço, o mapa dobrado entre eles, e saí da mesa. H. deu um assobio com dois dedos na boca. O etéreo se esticou no chão e foi atrás de nós pelo corredor, obediente como um cão de caça.

— Algumas coisas a se ter em mente — disse H., enquanto andávamos. — Os lugares e as pessoas peculiares aqui dos Estados Unidos não são como os que vocês conhecem. Aqui é doideira. Não temos mais ymbrynes propriamente ditas. Em alguns lugares, é cada peculiar por si, não dá para confiar em ninguém.

— E tem havido conflitos entre algumas fendas — lembrei.

Ele me olhou de soslaio.

— Vamos torcer para que não haja. E não quero me adiantar, mas vou dizer uma coisa: vocês podem ter expulsado os acólitos da Europa, mas tenho a impressão de que eles ainda não terminaram por aqui. Acho que adorariam uma guerra entre peculiares. Seria perfeito para os objetivos deles.

H. abriu a porta para o frigorífico e entramos.

— Mais uma coisa: não contem a ninguém que estão trabalhando comigo. A organização nunca se revela.

— E quanto à srta. Peregrine? — perguntou Emma.

— Nem a ela.

Passamos pela cortina de plástico e nos juntamos no canto onde o X estava marcado no chão. Enquanto saíamos da fenda, algo me ocorreu. Esperei terminar a travessia e voltamos ao presente para perguntar:

— Se não há mais ymbrynes, como esta fenda existe?

H. abriu a cortina de plástico e seu etéreo saiu correndo.

— Eu não disse que não havia mais ymbrynes — respondeu ele. — As que temos... as que sobraram, devo dizer... não são do mesmo calibre daquelas a que você está acostumado.

No corredor, nossa velha e simpática garçonete estava recostada na parede, fumando um cigarro e soprando a fumaça para a saída de emergência.

— Estávamos falando de você — disse H., abrindo um largo sorriso. — Como vai, srta. Abernathy?

Ela jogou fora a guimba e deu um abraço meio desanimado em H.

— Você não vem me visitar mais, seu safado.

— Andei bem ocupado, Norma.

— Claro.

— Ela é uma ymbryne? — perguntou Emma.

— Tem quem nos chame de semi-ymbryne — respondeu Norma —, mas acho que guarda-fenda soa melhor. Não me transformo em ave, não crio fendas temporais nem faço nada muito complexo, mas consigo manter as já existentes por um bom tempo. E pagam direitinho.

— Eles pagam você?

— Acha que eu faria isso por pura bondade? — Ela jogou a cabeça para trás e riu com vontade.

— Norma gerencia algumas fendas temporais aqui no sul da Flórida — explicou H. — A organização se encarrega de mantê-la. — Ele enfiou a mão no bolso e pegou um maço de notas presas com um elástico. — Obrigado pela ajuda hoje.

— Comigo é só em dinheiro vivo — comentou Norma, dando uma piscadela ao guardar as notas no avental. — Quero distância dos fiscais da receita! — Ela deu outra gargalhada e saiu bamboleando para a cozinha. — É melhor eu fechar o restaurante para limpar a cagada que vocês deixaram lá atrás. Até mais ver!

Saímos para o estacionamento. A lua estava alta no céu e o ar noturno, frio. O etéreo correu atrás de um gato de rua, e caminhamos até meu carro, um dos dois únicos automóveis parados ali.

— Então... depois que entregarmos esses pacotes vamos receber uma missão de verdade? — perguntei.

— Depende.

— De quê?

H. deu um sorrisinho.

— Se vão dar conta.

— Claro que vamos — afirmou Emma. — Mas chega de ataques-surpresa, tá bom?

— Se virem outro etéreo, não vai ser Horatio, então podem matar sem pena.

Chegamos ao meu carro. H. olhou estranho para o para-choque faltando e a porta presa com arames.

— Você sabe mesmo dirigir, filho?

— Não fui eu que fiz isso. Eu dirijo bem.

— Espero que sim, porque nesse trabalho você vai precisar. Mas não dá para dirigir essa coisa. A polícia vai parar você a cada dez quilômetros. Pegue um dos carros do Abe.

— Abe não dirigia. Ele nem tinha carro.

— Ah, tinha sim. Uma belezinha. — H. se virou para mim com a sobrancelha erguida. — Quer dizer que você foi até aquele bunker subterrâneo, mas não encontrou o... — Ele riu, balançando a cabeça.

— O quê? — perguntamos Emma e eu ao mesmo tempo.

— Tem outra porta lá embaixo.

Ele se virou para ir embora.

— Não pode nos dizer mais nada sobre a missão? — insisti.

— Você vai saber quando for a hora, nem um segundo antes — respondeu ele. — Mas posso dizer o seguinte: envolve uma criança peculiar não registrada que está em perigo. Em Nova York.

— Por que você não vai ajudá-la? — questionou Emma.

— Não sei se vocês notaram, mas já não sou mais um garoto. Tenho dor ciática, joelhos ruins, diabetes... Sem contar que não sou a pessoa certa para o trabalho.

— Nós somos — afirmei. — Garanto.

— Tomara. Boa sorte para os dois.

Ele foi andando até o outro veículo estacionado, um antigo Cadillac com portas suicidas, todo brilhoso. H. assobiou para o etéreo, que foi correndo e se jogou para dentro pela janela aberta do banco de trás. O carro deu partida com um ronco alto. H. nos fez uma pequena saudação e saiu a toda a velocidade, deixando apenas uma trilha de fumaça de pneus.


— Isso é uma grande loucura, não é? — Eu estava dirigindo, mas só olhava para Emma, no banco do carona, meus olhos voltando para a rua a cada poucos segundos. — Sério, é a mais péssima das ideias péssimas, por uma porção de razões. Não é?

Ela assentia.

— Mal sabemos quem é esse homem. Acabamos de conhecê-lo.

— Aham — confirmou Emma.

— Não sabemos nem o nome verdadeiro dele. E ele quer que a gente vá cumprir uma missão esquisita, lá longe...

— Pois é...

— Para entregar uns pacotes que não podemos nem abrir para dar uma olhadinha...

— Sim! E essa missão que ele tem em mente pode ser perigosa de verdade. Seja lá o que for! Nem sabemos o que pode ser.

— E a srta. Peregrine vai matar a gente.

Passei para a pista contrária para ultrapassar um carro. A ansiedade me faz dirigir rápido.

— Ela vai ficar furiosa — comentei. — Talvez nunca mais fale com a gente.

— E nem todos os outros vão concordar.

— Eu sei, eu sei.

— Podemos causar uma ruptura no grupo — disse Emma.

— Seria péssimo.

— Seria.

— Péssimo, péssimo.

Olhei de soslaio para ela.

— Mas...

Emma suspirou, uniu as mãos no colo e olhou pela janela.

— Mas...

Sinal vermelho. Reduzi até parar. Ficamos calados por alguns instantes, e só então notei que não tinha desligado o rádio, apenas reduzido o volume. Uma música tocava baixinho na estação de rock clássico. Tirei as mãos do volante e me virei para Emma. Ela se virou para mim.

— Vamos fazer isso, não vamos?

— Sim. Acho que sim.

Começou a cair uma chuvinha leve, borrando as luzes da cidade à nossa volta. Acionei os limpadores de para-brisa.

Começamos a pensar nas questões práticas conforme nos aproximávamos de casa. Contaríamos aos nossos amigos, mas não à srta. Peregrine, e torceríamos para que ela não descobrisse enquanto não estivéssemos fora do seu alcance, tarde demais para que ela nos impedisse. Levaríamos dois dos nossos amigos, os que parecessem mais capazes e entusiasmados. E então não haveria mais chance para hesitação. Meu instinto me dizia com todas as letras que eu precisava fazer aquilo. Que aquela era a vida que eu queria para mim: não inteiramente no mundo normal nem inteiramente no mundo peculiar, sem as regras e os caprichos das ymbrynes.

Minha vontade era ir direto até a casa do meu avô e satisfazer minha curiosidade sobre o que mais havia naquele bunker (um carro? sério?), mas, antes de qualquer coisa, precisávamos falar com os outros.

Logo que entramos, a primeira coisa que ouvi foi a voz de Olive acima da minha cabeça:

— Onde vocês estavam???

Quase tive um ataque do coração. Ela estava no teto, sentada de cabeça para baixo, os braços cruzados.

— Há quanto tempo você está aí em cima, nos esperando? — perguntou Emma.

— Um tempão.

Olive deu impulso no teto e desceu até o chão. Em um único movimento hábil, ela se endireitou e enfiou os pés nos sapatos de chumbo.

Os outros nos ouviram e vieram até o hall de entrada, cada um de um ponto da casa, loucos para nos interrogar.

— Cadê a srta. Peregrine? — perguntei, dando uma olhada por cima daquele monte de cabeças para tentar enxergar a sala.

— Ainda no Recanto — respondeu Horace. — Para a sorte de vocês, todas as ymbrynes estão numa reunião bem longa.

— Tem alguma coisa séria acontecendo — disse Millard.

— E vocês dois? Onde estavam? — perguntou Hugh.

— Aos beijos na praia? — sugeriu Enoch.

— No bunker secreto do Abe? — disse Bronwyn.

— Que bunker secreto é esse? — perguntou Hugh.

Ele não estava conosco quando fomos à casa de Abe, por isso não sabia.

— Não sabíamos se podíamos contar — disse Bronwyn.

Comecei a explicar, mas em pouco tempo a situação virou um caos de perguntas feitas aos berros, todo mundo falando ao mesmo tempo, até que Emma levantou os braços e teve que gritar para pedir silêncio.

— Pessoal, vamos para a sala. Jacob e eu temos uma coisa para contar.

Quando estavam todos sentados, começamos a contar. Narramos tudo, desde as descobertas do dia anterior, na casa de Abe, até o encontro com H. e a pequena missão que ele nos dera como teste, além da promessa de uma bem mais importante.

— Vocês não podem estar realmente cogitando essa possibilidade — disse Horace.

— Claro que estamos — falei. — E queremos que dois de vocês venham com a gente.

— Somos uma equipe — disse Emma. — Todos nós.

As reações foram variadas. Claire ficou com raiva; Horace ficou quieto e nervoso. Hugh e Bronwyn estavam receosos, mas pareciam passíveis de serem convencidos. Já Enoch, Millard e Olive estavam dispostos a entrar no carro naquele instante e ir conosco.

— A srta. Peregrine é tão legal com a gente... — disse Claire, de cara amarrada. — Devemos muito a ela.

— Concordo — falou Bronwyn. — Não vou mentir para ela. Odeio mentir.

— Na minha opinião, estamos preocupados demais com o que a srta. Peregrine vai pensar — disse Emma.

— Acho que as missões do meu avô e seu grupo são o que devemos fazer — falei. — Não queremos reconstruir nosso mundo com trabalho burocrático.

— Eu gostei da função que me deram — disse Hugh.

— Mas estamos desperdiçando nossos talentos no Recanto — argumentou Millard. — Podemos explorar o presente sem medo. Quem mais com o nosso nível de experiência poderia fazer isso?

— Mas só tivemos uma aula de normalidade até agora — contrapôs Hugh.

— Talvez vocês já estejam prontos — arrisquei.

— Metade de nós ainda não tem nem roupas modernas! — disse Horace.

— Vamos dar um jeito! — falei. — Olha, tem peculiares nos Estados Unidos precisando da nossa ajuda, e isso é mais importante do que reconstruir umas fendas temporais.

— Apoiado! — disse Emma.

— Tem uma criança precisando da nossa ajuda — refutou Hugh. — Talvez. Se é que esse tal de H. não está mentindo.

— O fichário do meu avô tem registros de centenas de missões que eles fizeram — argumentei, tentando não transparecer minha frustração crescente —, e metade delas envolvia jovens peculiares em perigo. Não pararam de nascer peculiares depois que Abe se aposentou. Eles continuam por aí, e ainda precisam de ajuda.

— Sem nenhuma ymbryne de verdade para cuidar deles — completou Emma.

— É para isso que vocês estão aqui — falei, com firmeza. — É isso que precisamos fazer. Os caçadores de etéreos estão velhos, as ymbrynes estão ocupadas demais com reuniões e não tem ninguém melhor que nós para ajudar. Esta é nossa chance!

— Só precisamos provar isso para um sujeito aí que nunca vimos mais gordo! — disse Enoch, sarcástico.

— É um teste — falei. — E eu quero passar. Se mais alguém também quiser isso, esteja no andar de baixo com as malas prontas amanhã de manhã, às nove em ponto.

 

 

CAPÍTULO SETE


Mais tarde naquela noite, eu estava no quarto preparando minha mochila quando meu olhar foi atraído para os mapas que cobriam a parede. Eram camadas e mais camadas de papéis presos com cola, fita ou grampos, um por cima do outro, formando um grande mosaico que com o tempo se tornara, para mim, um papel de parede com estampa abstrata. Naquele momento, algo me chamou a atenção. Parei o que estava fazendo e subi na cama, em cima dos travesseiros empilhados, para observar de perto uma pequena imagem colorida que aparecia por baixo de três mapas entrecruzados da National Geographic: o desenho de um jacaré tomando um drinque de canudinho.

Soltando a ponta com cuidado, puxei parte dos mapas presos por cima e me deparei com um antigo jogo americano do Mel-O-Dee, o mesmo que tinha um mapa da Flórida. As crianças ganhavam giz de cera para desenharem enquanto comiam, e era isso o que meu avô e eu havíamos usado para incrementar aquela ilustração, anos antes. Eu nem me lembrava daquele dia, tampouco daquele mapa, entre tantos outros, mas então entendi o que Abe fizera— pois quase todos os rabiscos e palavras naquele mapa tinham o traço firme de um adulto. Ele havia circulado, bem no centro, a Terra das Sereias. O mesmo ponto em que o copo de H. havia deixado uma marca. Ao lado, Abe havia acrescentado uma pequena caveira e dois ossos formando um X. Bem nos pântanos dos Everglades, desenhara um cardume de peixes com pernas (ou seriam pessoas com cabeça de peixe?), além de espirais em vários pontos do estado. Se eu bem me lembrava das legendas no exemplar do Mapa dos dias da srta. Peregrine, agora perdido, aquilo se lia como fenda temporal bem aqui. Havia também alguns símbolos que não consegui decifrar.

Não fazemos mapas, dissera H. Se essa era uma das regras dos caçadores de etéreos, meu avô a tinha violado ao desenhar aquilo para mim. E, ao violar a regra, estava correndo um risco.

 

 

A questão era: por quê?

Depois de arrancar o jogo americano, voltei a examinar a parede de mapas em busca de mais algum desenho de Abe. Que outras pistas ele teria deixado para mim, escondidas em plena vista? Fui ficando louco, procurando nos armários qualquer coisa que tivesse algo rabiscado ou escrito. Encontrei alguns mapas que eram só desenhos à mão, em papel sulfite colorido, mas sem legendas, sem linhas de fronteiras formando locais reconhecíveis. Notei algumas marcações num mapa rodoviário dos estados adjacentes de Maryland e Delaware, então os dobrei e coloquei junto com o do Mel-O-Dee. Havia também alguns cartões-postais presos com alfinete no mural da parede que mostravam lugares por onde Abe havia passado: hotéis baratos de beira de estrada, lojinhas de souvenires toscas, cidades das quais eu nunca tinha ouvido falar. Ele só parou de viajar quando eu tinha uns onze anos. Apesar dos frequentes protestos dos meus pais, pegava a estrada sozinho, para “visitar uns amigos de outro estado”. Nunca se dava ao trabalho de ligar para meu pai, mas sempre me mandava postais. Talvez não tivessem pista nenhuma, mas, por via das dúvidas, peguei todos e enfiei entre as páginas de um livro, junto com os mapas. Então coloquei o livro na mochila, por cima das roupas que já havia separado. Mais cedo, eu também havia recolhido todo o dinheiro que encontrara na casa, que não era muito, e juntado com um maço de notas que tinha achado dentro de uma meia numa gaveta dos meus pais. Enrolei todas as notas com um elástico e as guardei em uma lancheira velha do Pokémon. Acrescentei alguns itens de higiene e alguns remédios para enjoo, para o caso de passarmos algum tempo significativo perto de um etéreo.

Quando já ia fechar a mochila, me lembrei de um último item, então me ajoelhei e peguei, debaixo da cama, o livro de registros de Abe. Com o fichário nas mãos, considerei se valia mesmo a pena levar aquele tijolo de informações confidenciais. H. provavelmente não gostaria que eu corresse o risco de perdê-las ou de deixá-las caírem em mãos erradas, e eu sabia que seria melhor deixá-lo no bunker, por segurança. Mas e se eu precisasse recorrer àquelas anotações? Elas eram uma fonte riquíssima de fotos e detalhes sobre como eles faziam aquele tipo de trabalho. Uma mina de ouro.

Esvaziei a mochila. Peguei os postais e mapas que havia guardado no meio do livro e os enfiei na aba do fichário, que coloquei no fundo da mochila, com as roupas e a lancheira por cima. Fechei o zíper e a levantei em um braço só para avaliar o peso — era como erguer uma anilha de quinze quilos. Larguei. A mochila quicou no colchão e rolou para o chão com um baque que fez as paredes tremerem.


Não preguei o olho aquela noite. Despertei junto com o sol e saí às escondidas com Emma. Fomos até a casa do meu avô, abrimos o alçapão no piso do escritório e descemos para o bunker a fim de explorar o que ainda havia a descobrir por ali. Eu estava torcendo — como H. tinha deixado subentendido — para que fosse um carro com quatro portas inteiras, mas não conseguia imaginar como caberia um veículo em um túnel que me obrigava a andar curvado, e, ainda que coubesse, como eu conseguiria tirá-lo dali.

Levamos apenas alguns minutos vasculhando a oficina subterrânea do meu avô para encontrar uma maçaneta escondida entre duas estantes de metal. Na verdade, as estantes e parte da parede eram uma porta oculta, que levava a uma continuação do túnel. Lá fomos nós, mais uma vez encolhidos. Aquela parte era ainda mais claustrofóbica e mais baixa que a anterior. Emma acendeu uma chama para iluminar o caminho, enquanto eu pegava entre as coisas do meu avô uma lata com pequenas embalagens de comida desidratada (no caso, porções para o café da manhã) para colocar na porta e impedi-la de bater.

Depois de uns trinta metros, chegamos a uma escada estreita de concreto que ia dar em uma porta de metal grosso. Era uma porta de correr, que ia dar dentro de um closet. Um closet comum, de casas comuns, com carpete e tudo. Saímos pelas portas venezianas do closet e nos vimos em um quarto como qualquer outro, com uma cama não forrada, uma mesinha de cabeceira e uma cômoda. Nada nas paredes. As janelas estavam fechadas com tábuas pregadas por cima, o cômodo iluminado apenas pela luz que entrava pelas frestas entre as tábuas.

Estávamos em outra casa daquela rua.

— Que lugar é esse? — perguntou Emma, passando o dedo pela camada de poeira que cobria a cômoda.

— Será que é um esconderijo? — respondi, dando uma olhada no banheiro da suíte, que nada tinha além de uma única toalha de rosto cor-de-rosa pendurada ao lado da pia.

Emma baixou a voz para um sussurro ao perguntar:

— Acha que tem alguém aqui?

— Duvido. Mas fique atenta.

Seguimos devagar e cautelosos por um corredor curto, olhando os outros cômodos ao passar pelas portas. Era uma casa que continha apenas o mínimo, como os típicos ambientes montados feito mostruário nas lojas de móveis ou cômodos de hotéis medianos: peças nada marcantes, impessoais, mas ótimas para dar a impressão de que alguém morava ali. No fim do corredor, virei à esquerda, sabendo que chegaria à sala de estar, pois a planta era idêntica à da casa do meu avô. Tive a sensação estranha de déjà-vu ao conhecer cada pedaço de um lugar em que nunca havia pisado. Tábuas haviam sido pregadas também nas janelas da sala, só me restando ir até a porta da frente e olhar lá para fora pelo olho mágico.

Lá estava a casa de Abe, a poucos metros, do outro lado da rua.

Fomos até a garagem. Assim que entramos, ficou claro que aquele era o único cômodo que realmente importava naquela casa. As paredes eram cobertas de prateleiras e ganchos e uma variedade de ferramentas e peças automotivas. No centro disso tudo, cercados de refletores, dois carros estavam estacionados lado a lado.

— Quem diria — murmurei. — Ele tinha carros.

Um dos automóveis eu reconheci: era um Caprice Classic branco. Parecia uma barra de sabão sobre rodas e era muitíssimo popular entre os motoristas idosos da Flórida. Era o que meu avô usava antes de meus pais o proibirem de dirigir (sempre achei que o tivesse vendido, mas ali estava ele). O outro era um cupê preto potente que parecia um Mustang dos anos 1960, só com a traseira mais larga e linhas mais suaves. Não havia nenhuma marca para identificá-lo.

O Caprice era para viajar incógnito, deduzi. O outro era para viajar rápido, e com estilo.

— Você realmente não sabia que ele tinha esses carros? — perguntou Emma.

— Não. Eu sabia que ele dirigia, mas meu pai o convenceu a parar quando ele não passou no exame de vista para renovar a carteira. Ele fazia umas viagens sozinho de vez em quando. Coisa de dias, às vezes semanas. Como as que fazia quando meu pai era criança, só que menos. Imagine passar a depender de alguém para levá-lo ao médico ou ao mercado... deve ter sido difícil.

Enquanto eu dizia isso, me ocorreu que talvez ele nunca tivesse parado de dirigir; talvez só fizesse isso escondido.

— Mas manteve os carros — disse Emma.

— E cuidou bem deles — acrescentei. Ao contrário de todo o restante da casa, os carros tinham só uma fina camada de poeira. Fora isso, estavam em perfeitas condições. — Ele devia vir aqui de vez em quando para encerar, trocar o óleo e tal. Assim ele os mantinha por perto, mas escondidos da família.

— Quanto trabalho... Fico pensando se valia a pena — comentou ela.

— Caçar etéreos? — perguntei.

— Ter uma família.

Eu não sabia o que responder, então fiquei quieto. Fui até o Caprice e procurei no porta-luvas os documentos do carro. Estavam ali, ainda válidos, renovados algumas semanas antes da morte do meu avô. Mas não estavam no nome dele.

— Já ouviu falar de um tal de Andrew Gandy? — perguntei a Emma, estendendo os papéis.

— Devia ser um nome falso que ele usava — concluiu ela, me devolvendo o documento. — Minha nossa.

Fechei o porta-luvas e saí do carro. Emma estava com uma cara estranha.

— O que foi? — perguntei.

— Já não sei mais nem se Abe era o nome verdadeiro dele.

Não era uma pergunta injustificada, mas mesmo assim doeu.

— Claro que era.

— Tem certeza?

Em seu olhar havia uma pergunta não feita. Se Abe era capaz de tantos subterfúgios, será que eu era também?

— Absoluta — respondi, me virando. — Já são quase nove horas. Vamos pegar um dos carros e ir.

— Você dirige, você escolhe.

Foi uma escolha fácil. O Caprice seria mais prático: quatro portas, mais espaço de porta-malas, discreto. Mas o outro era muito, muito mais legal, e parecia bem mais rápido. Assim, depois de longos três segundos de deliberação, elegi o preto. Para quem nunca tinha feito uma road trip (no máximo, tinha ido visitar uns primos em Miami, mas não contava), não dava para resistir à ideia de ter essa primeira experiência naquele carro.

Entramos. Acionei a porta da garagem e liguei o motor, que despertou com um rugido glorioso e rascante. Emma levou um susto. Enquanto eu saía de ré, notei que ela estava com uma cara estranha.

— Só o Abe mesmo — disse ela, tendo que gritar por causa do barulho do motor.

— Do que está falando?

— Ter um carro desses para missões secretas.

Deixei o cupê misterioso na rua enquanto colocava o carro dos meus pais na garagem de Abe, depois voltei para o volante e, com um sorriso de satisfação para Emma, pisei fundo. O motor rugiu como uma fera ao partir em disparada, nos jogando para trás nos bancos.

Às vezes a gente tem que se divertir um pouco. Mesmo em missões secretas.


Enquanto Emma e eu estávamos fora, a srta. Peregrine tinha voltado do Recanto, após uma reunião que correra madrugada adentro, e desabado na cama (raras vezes ouvi falar que ela tenha dormido). Reunimos todos em um dos quartos no térreo e fechamos a porta para não acordá-la com o barulho.

— Quem está com a gente? — perguntei.

Enoch, Olive e Millard ergueram a mão. Claire, Hugh, Bronwyn e Horace, não.

— Missões me deixam nervoso — explicou Horace.

— Claire, por que não levantou a mão? — perguntou Emma.

— Nós já temos missões. Eu vou ser responsável pela distribuição do almoço e da sobremesa para todas as equipes de reconstrução nas fendas temporais da Bélgica.

— Isso não é uma missão, Claire, é só um trabalho.

— Vocês estão indo entregar pacotes! — ela desdenhou. — Como podem chamar isso de missão?

— A missão é ajudar um peculiar em perigo — explicou Millard. — Depois que entregarmos os pacotes.

— E você, Bronwyn? — perguntei. — Topa?

— Não me sinto confortável em mentir para a srta. Peregrine. Não deveríamos contar isso a ela?

— NÃO — responderam todos em uníssono, exceto Claire.

— Por que não?

— Eu também não fico confortável com isso, mas ela não nos deixaria ir, então não podemos contar — expliquei.

— Só assim vamos conseguir ajudar os peculiares do mundo — argumentou Emma. — Sendo a nova geração de guerreiros, não fazendo trabalhinhos para posarmos de esforçados no Recanto.

— Ou tendo que pedir permissão para cada coisinha que quisermos fazer — completou Enoch.

— Exato! — concordou Millard. — A diretora ainda nos trata como se fôssemos crianças. Temos quase um século de idade, pelo amor das aves, e já está mais do que na hora de agirmos como centenários. Quer dizer, como adultos. Temos que começar a tomar nossas próprias decisões.

— É o que eu digo há anos — ressaltou Enoch.

Meus amigos peculiares haviam mudado, percebi, mas a maneira de a srta. Peregrine cuidar deles, não. Todos eles, inclusive eu, haviam ganhado uma grande dose de liberdade desde a fuga de Cairnholm, mas depois, no Recanto, haviam passado um bom tempo sob a supervisão de não apenas uma, mas uma dúzia de ymbrynes ou mais. Estavam sufocados. Haviam crescido mais nos últimos meses do que em meio século.

— E você, Apiston? — perguntou Emma.

— Eu iria, mas tenho minha própria missão.

Ele não precisou explicar. A missão pessoal de Hugh era procurar por Fiona pelas portas do Polifendador.

— A gente entende — falei. — Vamos nos lembrar de perguntar por ela aonde quer que essa viagem nos leve.

Ele assentiu com ar grave.

— Obrigado, Jacob.

Todos queriam ir conosco, exceto Horace, Claire e Bronwyn. E aí Bronwyn mudou de ideia.

— Tudo bem, eu topo. Não gosto de mentir, mas se vamos ajudar uma criança peculiar que está em perigo, e só mentindo vamos poder ajudá-la, então seria errado não mentir, certo?

— Essa sua desculpa foi tão elaborada que chega a ser ridícula — comentou Claire.

— Bem-vindos a bordo — disse Emma.

Agora, restava escolhermos nossa equipe. Sugeri irmos apenas quatro de nós, o que causou alguns resmungos de frustração. Apesar do que eu havia defendido antes, de que estavam todos prontos, eu tinha um pouco de medo ao contabilizar apenas meia aula de normalidade e uma consequente falta de preparo para enfrentar o mundo moderno. Por um lado, eu queria a ajuda deles, mas, por outro, precisava me concentrar na missão, não podia perder tempo explicando como funcionam as faixas de pedestre, os elevadores e as mais simples interações com normais. Em vez de explicar tudo isso e magoá-los, aleguei que era melhor não sobrecarregar o carro.

— Então me escolha — disse Olive. — Sou pequena e não peso quase nada.

Imaginei Olive esquecendo de calçar os sapatos e nós correndo atrás dela, tendo que persegui-la como um balão que escapou da nossa mão.

— Para essa missão, precisamos de pessoas que pareçam mais velhas.

Não expliquei por quê, e ela não perguntou.

Emma e eu conversamos em um canto por um minuto, depois anunciamos nossas escolhas: Millard e Bronwyn. O primeiro, pela inteligência, o talento com mapas e a facilidade em escapar caso fosse necessário (bastando tirar as roupas); e a segunda, pela força e prestatividade extremas.

Os outros ficaram decepcionados, mas prometemos levá-los em missões futuras.

— Se houver missões futuras — enfatizou Enoch. — Supondo que vocês não estraguem esta.

— E o que fazemos aqui enquanto vocês estiverem longe? — perguntou Horace.

— Apenas façam seus trabalhos no Recanto e ajam normalmente. Vocês não sabem nada sobre nós ou sobre o que estamos fazendo.

— Sabemos, sim — disse Claire. — E se a srta. Peregrine perguntar, eu vou contar tudo.

Bronwyn a pegou pelas axilas e a ergueu à altura de seus olhos.

— Isso sim é que é uma ideia idiota — disse ela, a ameaça tão clara quanto surpreendente para quem sempre tratava os mais novos com cuidado quase excessivo.

Claire rosnou para Bronwyn com a boca de trás enquanto gritava com a boca normal:

— Me solte!

Bronwyn fez isso, mas a ameaça bastou, pois Claire parecia envergonhada. Recado dado.

— Quando a srta. Peregrine acordar, ela vai perguntar por nós — disse Emma. — Ela está mesmo só... dormindo?

Aquilo era bem estranho para uma ymbryne, mesmo depois de uma reunião muito longa.

— Talvez eu tenha soprado só uma pitadinha de pó no quarto...

— Millard! — gritou Horace. — Seu tratante!

— É... acho que isso nos dá um bom tempo de vantagem — disse Emma. — Com sorte, ela só vai dar pela nossa falta à noite.


— Rapaz... — disse Millard, dando um tapinha no capô do carro. — Isso sim é um carro de viagem.

Estávamos reunidos em volta do veículo, que eu havia deixado em frente à casa.

— Discordo — reclamou Bronwyn. — É chamativo demais, e é britânico.

Tudo bem que ele tinha um visual arrojado, mas eu não o descreveria propriamente como chamativo — não era vermelho, não tinha para-choques cromados nem nenhuma das extravagâncias que costuma ter em carros esporte.

— Qual o problema de ser britânico? — perguntou Emma.

— Vive quebrando. É o que dizem.

— Será mesmo que Abe escolheria sair em missões com um automóvel de estrutura problemática? — argumentou Millard.

— Abe entendia de carros, inclusive sabia consertá-los — disse Enoch.

Ele estava apoiado no porta-malas com uma bolsa de viagem no ombro e um sorriso presunçoso.

— Você não vai com a gente — falei. — Não tem espaço.

— Eu falei que queria ir, por acaso?

— Você parece que quer ir — disse Emma. — Anda, sai daí.

Fiz Enoch se afastar para poder guardar nossas bolsas no porta-malas, mas, depois de uns vinte segundos tentando, me dei conta de que não sabia abri-lo.

— Com sua licença — disse Enoch, e acionou um mecanismo entre as lanternas, fazendo a tampa se abrir com um clique. — Aston Martin. — A passos lentos, ele percorreu toda a extensão do carro, acariciando o painel lateral. — Abe sempre teve estilo.

— Achei que fosse algum Mustang — falei.

— Como ousa?! — exclamou Enoch. — Este é um Aston Martin V8 Vantage de 1979. Trezentos e noventa cavalos de potência, vai de zero a cem em cinco segundos, chega a atingir duzentos e setenta quilômetros por hora. Uma verdadeira fera. O primeiro carro esporte britânico.

— Desde quando você entende de carros? — perguntei. — Ainda mais de carros criados depois de 1940?

— Revistas e manuais — explicou Millard, no lugar dele. — Entregues em Cairnholm no presente.

— Ah, ele adora o assunto — disse Emma, com ar de enfado. — Dirigir mesmo, isso ele nunca fez, mas nem pense em perguntar sobre o que tem embaixo do capô...

— A mecânica me fascina tanto quanto a biomedicina — explicou Enoch. — Órgãos. Motores. Troque óleo por sangue e verá que não são tão diferentes. E para ressuscitar um motor morto não preciso de um pote de corações. Ainda bem, porque um carro britânico de quase quarenta anos... só dá para confiar nele se for feita a manutenção religiosamente. Com Abe morto e tudo o mais, tenho quase certeza de que sou a única pessoa num raio de mil quilômetros que saberia mexer nesse carro. E é por isso que, embora eu não queira — ele fez uma pausa para jogar sua bolsa de viagem no porta-malas, ao lado da minha mochila —, vocês precisam que eu vá.

— Ah, tá bom, entra logo e vamos embora — disse Emma.

— Eu vou na frente! — gritou Enoch, se jogando no banco do carona.

— Vai ser uma longa viagem — disse Millard.

Suspirei. Não tínhamos escolha.

Os que iriam ficar se reuniram na calçada para se despedir de nós. Trocamos abraços, e eles nos desejaram boa sorte. Claire, ainda ressentida, ficou na porta.

— Quando vocês voltam? — perguntou Hugh.

— Espere uma semana para começar a se preocupar — falei.

— Avisou tarde — comentou Horace. — Já estou preocupado.

 

 

CAPÍTULO OITO


Deixando meu bairro para trás, cruzamos a ponte e saímos da cidade para pegar a rodovia Interestadual 75 e seguir para o norte. A primeira parada era o Amigo Rosa — o que quer que isso fosse —, que, segundo H., podia ser encontrado na área que ele havia marcado no mapa com o copo. Eram mais ou menos oitenta quilômetros quadrados na pantanosa área central do estado, a algumas centenas de quilômetros de onde eu morava.

Eu dirigia concentrado, tentando me adaptar ao potente mas estranho carro do meu avô. A direção era dura e, nas curvas, dava uma guinada que fazia meu coração parar. Além disso, todos os botões e controles ficavam em lugares estranhos.

Emma ia na frente comigo, com um mapa rodoviário não peculiar da Flórida no colo (Millard também levou o Planeta Peculiar, mas os mapas do livro estavam desatualizados). Insisti que Emma fosse minha copilota como uma desculpa para forçar Enoch a ir para trás. Eu queria passar os dois dias seguintes olhando para o rosto dela, não para o dele. Enoch ficou emburrado, olhando pela janela e de vez em quando dando um chute no meu assento. Millard, espremido entre ele e Bronwyn, teve que se sentar de lado para que suas pernas coubessem.

— Daqui para o círculo marcado no mapa são aproximadamente quinhentos quilômetros — informou Emma, comparando o mapa simplificado do Mel-O-Dee com o real. — Se formos direto, podemos chegar em cerca de cinco horas.

— Vamos ter que parar em algum momento — disse Bronwyn. — Você ainda não comprou roupas modernas para nós.

Ela tinha razão. O grupo que havia feito compras tinha ficado na casa. Bronwyn, Enoch e Millard estavam com as mesmas roupas que usavam ao chegar e logo chamariam atenção.

— Tudo bem, então. Vamos fazer uma parada daqui a pouco — anunciei. — Só quero abrir uma boa distância antes, para que a srta. Peregrine não nos alcance.

— Onde você acha que fica o portal? — perguntou Enoch. — Será que é muito longe?

— Talvez.

— Você vai aguentar dirigir por tanto tempo, Jacob? — questionou Millard.

— Tenho que aguentar.

Não podíamos revezar, porque nenhum deles tinha carteira. Além disso, Millard era invisível, e a polícia nos pararia na hora se visse um carro em movimento sem ninguém ao volante; Bronwyn estava assustada demais para dirigir; e Enoch não sabia mesmo. Apenas Emma poderia revezar comigo, mas aí voltamos à questão da carteira. Então, era só eu mesmo.

— Só peço que me mantenham abastecido de café — completei.

— Eu posso dirigir — disse Enoch. — Aposto que chego bem mais rápido que você.

— Sem chance. Você pode fazer aulas de direção quando a gente voltar, mas agora não é a hora de aprender.

— Não preciso de aulas — retrucou ele. — Já sei tudo sobre o funcionamento de um carro.

— Não é a mesma coisa.

Ele deu outro chute no meu banco, forte dessa vez.

— Por que fez isso?

— Porque você dirige feito uma velhinha.

Estávamos chegando ao acesso para a Interestadual. Fiz a curva e pisei fundo. O motor gemeu. Deixei escapar uma risadinha, e quando entrei na autoestrada de vez, Enoch já estava gritando para eu ir mais devagar. Depois de uma olhada nos retrovisores, para ver se havia viaturas policiais por perto, voltei à velocidade normal e baixei os vidros.

— Uaaaau — disse Bronwyn quando sua janela desceu deslizando. — Que chique!

— Música? — perguntei.

— Sim, por favor — respondeu Emma.

O carro tinha um rádio com entrada para fita cassete. Já havia uma fita dentro, então simplesmente apertei o play. Um segundo depois, uma guitarra melodiosa e uma voz aveludada surgiram dos alto-falantes: Joe Cocker cantando “With a Little Help from My Friends”. Depois de três minutos, eu tinha certeza de que nenhuma música jamais havia soado tão bem, e meus amigos, todos sorrindo e se balançando, cabelo ao vento, pareciam concordar. Cantar alto aquela música com aquele grupo enquanto dirigia aquele carro me deu um arrepio louco na espinha, uma sensação que até então eu não conhecia. Era como se estivéssemos reivindicando o mundo e nossa própria vida.

Isso é meu. Só meu. E eu faço disso o que eu quiser.


Era estranho e antinatural pensar na srta. Peregrine como algo além de nossa protetora e cuidadora, mas naquele momento ela parecia mais uma adversária. Quando descobrisse que tínhamos saído em viagem sem sua autorização, ela certamente iria à nossa procura, e faria isso da melhor forma que sabia: pelo ar. Com sua velocidade, a altura que podia alcançar, a visão precisa de longo alcance e seu radar interno para peculiares, ela não teria dificuldade para nos encontrar a céu aberto em um raio de cento e cinquenta quilômetros. Por isso não fiz nenhuma parada nas primeiras três horas de estrada, nem quando Bronwyn precisou ir ao banheiro. Eu queria abrir o máximo de distância possível.

Por fim, após termos percorrido mais de trezentos quilômetros, me rendi ao coro cada vez mais alto de reclamações no banco traseiro. Mesmo assim continuei atento, observando as nuvens ao sairmos da autoestrada e pararmos no estacionamento de um gigantesco centro comercial. Emma também olhava para o céu.

Enchi o tanque num posto enquanto os outros iam ao banheiro da lojinha de conveniência. Através das janelas enormes, vi o atendente e os poucos clientes reparando nos meus amigos na fila: esticavam o pescoço para observar, cochichavam uns com os outros, encaravam abertamente. Um sujeito até tirou uma foto deles com o celular, sem que notassem.

— Temos que comprar roupas novas para vocês — decidi quando eles voltaram. — Agora.

Ninguém fez objeção.

Eu também tinha isso em mente ao escolher aquela saída, pois sabia que naquele centro comercial havia o maior do maior dos mercados: um Super All-Mart vinte e quatro horas. Era a nave-mãe do varejo. Uma verdadeira cidade.

— Meu Deus, que lugar é esse? — perguntou Millard quando entramos no estacionamento gigantesco.

— É só uma loja. Grande.

Na entrada, as portas automáticas se abriram para nós com um sibilar. Enoch levou um susto.

— Quê, quê, QUÊ? — gritou, erguendo os punhos.

As pessoas já estavam olhando, e ainda nem tínhamos entrado.

Chamei todos para o canto e expliquei como funcionavam os sensores de movimento e as portas automáticas.

— Qual é o problema de usar uma maçaneta para abrir uma porta? — perguntou Enoch, irritado e constrangido.

— É difícil quando a pessoa está carregando muitas compras. Que nem aquele cara ali. — Apontei para um homem empurrando um carrinho cheio.

— Por que ele precisa de tantas coisas? — perguntou Emma.

— Talvez esteja estocando alimentos para o caso de um bombardeio — sugeriu Enoch.

— Vocês vão entender quando entrarem.

Eu cresci fazendo compras em lojas como o All-Mart, então nunca me dei conta realmente da estranheza intrínseca delas, mas, quando eles paralisaram logo na entrada — uma expressão de choque e deslumbramento nos rostos —, comecei a entender.

Corredores se estendiam a uma distância sem fim; uma variedade caleidoscópica de produtos clamava pela atenção do cliente em cada prateleira; um pequeno exército de estoquistas carrancudos patrulhava o local em uniformes estampados com enormes smileys. O lugar era mil vezes maior que o mercadinho que Millard tinha roubado. É claro que eles estavam impressionados.

— Ele disse que “é só uma loja” — comentou Emma, virando o pescoço para absorver tudo. — Não parece nenhuma outra loja que eu já tenha visto em toda a minha vida.

Enoch assobiou.

— Parece mais um hangar de dirigíveis.

Peguei um carrinho e, após insistir um bocado, voltamos a andar, ainda que não exatamente na direção certa. Depois de finalmente processarem a imensidão do lugar, eles passaram a se maravilhar com a quantidade bizarra de produtos à venda. Eu tentava levá-los até a seção de vestuário, mas eles acabavam se distraindo, se dispersando e pegando produtos aleatórios das prateleiras.

— O que é isso? — perguntou Enoch, balançando um par de pantufas com bolinhas massageadoras na sola.

Tirei as pantufas da mão dele e as devolvi à gôndola.

— É para limpar o chão com os pés? Não?

— E isso aqui? — perguntou Emma, apontando para uma caixa que dizia ALIMENTADOR DE PÁSSAROS FALANTE: AGORA COM BLUETOOTH!

— Não sei — respondi, me sentindo uma mãe estressada tentando controlar um monte de bebês —, mas só temos setenta e duas horas para completar as tarefas, então é melhor...

— Sessenta e duas, agora — corrigiu Emma. — Talvez menos.

De repente, um mostruário de livros desabou no fim do corredor, e tive que correr para impedir Millard (que estava nu, portanto invisível) de tentar arrumá-lo.

Eu ficava de olho especialmente nele (ou onde achava que ele estava), porque a última coisa que queria era perder um garoto invisível no All-Mart.

Nunca conseguíamos avançar muito. Tínhamos acabado de passar pelos alimentadores de pássaros com bluetooth quando Enoch parou no corredor de artigos de camping.

— Ah, uma coisinha dessas aqui faria maravilhas nas costelas de uma galinha — disse ele, observando alguns canivetes em exposição num mostruário trancado.

Emma não parava de perguntar por quê. Por que precisávamos de tantas variedades de tudo? Para que serviam aquelas coisas? Ficou especialmente incomodada com o corredor de maquiagem.

— Quem precisa de tantos tipos de creme? — perguntou, pegando um ANTI-IDADE FIRMADOR NOTURNO. — Todo mundo tem doenças de pele? Teve alguma praga dermatológica recentemente?

— Não que eu saiba — falei.

— Que estranho!

— É fácil para você dizer isso, querida — comentou uma senhora de cabelo volumoso e brincos de argola. — Você tem a pele de um bebê!

Emma devolveu o creme à prateleira, e fomos andando.

Millard não falou quase nada (atendendo às minhas súplicas), mas, pelos pequenos suspiros e murmúrios, dava para perceber que estava registrando tudo. Quantas vidas em uma fenda temporal Millard levaria para fazer um relato de tudo que acontecia naquele lugar num período de vinte e quatro horas?

Quando finalmente chegamos à seção de roupas, o tempo era minha maior preocupação — eu estava nervoso com as horas, com os normais que ficaram olhando para a gente desde que entramos na loja, com a chance de a srta. Peregrine nos encontrar se ficássemos ali muito tempo, mesmo a centenas de quilômetros da minha casa e com a possibilidade de ela ainda estar dormindo sob efeito da Mãe Poeira. Mal prestei atenção às peças que eles colocavam no carrinho e só percebi que estava com fome quando chegamos ao caixa. Estávamos todos famintos, na verdade, só que, em vez de voltar para a loja e comprar comida decente, pegamos o que podíamos dos mostruários perto do caixa: chocolates, biscoitos, balas.

— Comida imortal — definiu Emma, lendo a data de validade no verso de um pacote de biscoitos recheados. — Interessante.

Depois de pagar, fomos para os banheiros, onde todos entraram para se trocar. Conforme eles saíam, um a um, ficava claro que ainda havia trabalho a fazer. Mesmo nas roupas mais normais da loja mais normal do universo, ainda não convenciam como normais. Talvez não estivessem à vontade, ou então eu estava tão acostumado a vê-los com as roupas antigas que a mudança súbita me desarmou. Eles pareciam fantasiados.

Exceto Emma. Ela voltou do banheiro com uma calça de jeans escuro justa, tênis brancos e uma bata. Estava linda, pensei, vendo-a girar em frente a um espelho.

— Estou parecendo um homem.

— Está linda. E moderna.

Ela suspirou e levantou a sacola plástica em que tinha enfiado o vestido velho.

— Já sinto falta dele.

— Esse tecido é tão... não piniquento — reclamou Bronwyn, puxando a camiseta de malha cinza. — Não vou me acostumar.

Enoch voltou usando um par de tênis de solas grossas, calças de pijama com caveiras flamejantes nos joelhos e uma camiseta que dizia NÃO CONFIO EM GENTE NORMAL.

Emma balançou a cabeça.

— Essa é a última vez que você escolhe suas roupas.

Não havia tempo de devolver nada, então fomos embora — e conseguimos atrair ainda mais olhares do que ao entrar. Ao passar com o carrinho pelas portas automáticas, um alarme soou.

— O que é isso? — perguntou Emma, assustada.

— Talvez a gente não tenha... hã... pagado por tudo — disse Millard.

— O quê? Por quê? — perguntei.

Dois sujeitos de uniforme azul se aproximavam a passos rápidos.

— É difícil largar os velhos hábitos — confessou Millard. — Mas o que importa é: corram!

Ele pegou o carrinho de mim e saiu correndo para o carro. Agora, pelo menos cem pessoas assistiam a um carrinho andando sozinho pelo estacionamento, seguido por um grupo de moleques esquisitos, que, por usa vez, eram seguidos por dois seguranças.

Mergulhamos no carro com as sacolas. Enfiei a chave na ignição e dei partida, e o motor ligou com um ronco tão alto que me fez ranger os dentes. Pisei fundo no acelerador e passei batido pelos seguranças, que se jogaram para os lados para não serem atropelados.

— Se é para infringir a lei, pelo menos faça isso com elegância, Millard — reclamou Emma. — Você não está nem tentando!

— Eu sabia das câmeras — defendeu-se ele —, mas ninguém me falou nada sobre alarmes!


Voamos por muitos quilômetros, sempre dando uma olhada nos retrovisores procurando a luz do giroflex da polícia, até que cheguei à conclusão de que não estávamos sendo perseguidos. Em algum momento, pegamos uma estradinha e nos afastamos da costa em direção ao coração da Flórida. No mapa do Mel-O-Dee, o círculo feito por H. envolvia uma área no meio do estado que contava com apenas uma estrada grande — a que tínhamos pegado. Nessa zona ficava a Terra das Sereias. Eu não sabia se encontraríamos o Amigo Rosa ali, mas era a única coisa marcada naquela parte do mapa então fazia sentido começar a busca por aquele lugar.

— Espere um minuto. Estamos nos afastando do mar. Por que sereias viveriam num pântano?

— Não são sereias de verdade, Bronwyn — respondi. — Isso é só um mapa de atrações turísticas de beira de estrada velhas e cafonas. São comuns aqui nos Estados Unidos.

— Pode ser — disse Millard —, mas a Terra das Sereias também consta no Planeta Peculiar. — Ele me mostrou o guia, depois leu: — “Atrações novinhas em folha e apropriadas para syndrigasts, com incríveis apresentações aquáticas. Acomodações em fenda temporal próxima. Leve as crianças!”

— Isso não significa que as sereias sejam peculiares — ressaltou Emma. — Apenas que tem uma fenda temporal na cidade.

— Ou tinha — disse Millard. — Lembrem-se: este guia é de quase setenta anos atrás. Todas as informações devem ser tratadas com altas doses de ceticismo.

Continuamos a viagem. O sol mergulhava devagar no horizonte, e a estrada de duas faixas em cada sentido se reduziu a uma. Estávamos chegando a um lugar que parecia outro estado dentro da Flórida. Longe das praias cheias de ricos, sem grandes lojas nem shoppings novos. A mata se fechava em ambos os lados da pista e, quando ocasionalmente se abria, dava para ver placas indicando fazendas de colheita de morangos, serviços de empresas de escavação e caçadores de recompensa.

Em vez dos subúrbios com casas iguaizinhas se estendendo por quilômetros e mais quilômetros, ali havia cidades pequenas em torno das interseções das estradas. As maiores tinham lanchonetes de fast-food e, no meio, uma rua principal com alguns quarteirões, mas completamente morta — um banco respeitável, um cinema fechado, uma igrejinha modesta. Em toda cidade que tinha sinal de trânsito ficamos parados no vermelho, obrigados a esperar enquanto idosos sentados em bancos e pedestres nos olhavam como se fôssemos a atração mais interessante que já aparecera. Pegamos ódio dos sinais. No terceiro ou quarto, um garoto com mullet que segurava uma latinha de cerveja aberta gritou, gargalhando:

— O Halloween é só mês que vem!

Muitos quilômetros depois, passamos por um outdoor que anunciava a Terra das Sereias, e, mais alguns quilômetros à frente, finalmente chegamos. Era um campo de terra batida ocupado por tendas deprimentes e, ao longe, casas pré-fabricadas que poderiam ser escritórios ou alojamento de funcionários. O portão estava fechado, então estacionei no acostamento e entramos a pé.

Cruzamos o campo na direção das tendas. O lugar parecia vazio, mas então ouvimos alguém resmungar e xingar atrás da tenda mais próxima.

— Olá? — chamei, indo na direção do som.

Demos a volta na tenda e encontramos duas pessoas com maquiagem de palhaço. A mulher tinha cabelo louro bagunçado e, além do rosto pintado, estava fantasiada de sereia, e o homem a carregava pela cintura, meio sem jeito, enquanto andava pesadamente para trás, já que as pernas e os pés dela estavam presos na fantasia.

 

 

— Não sabem ler? — perguntou a sereia. — Estamos fechados.

O palhaço não disse nada, nem nos olhou.

— Não vimos nada que dissesse isso — falei.

— Então por que a fantasia? — perguntou Enoch.

— Fantasia? Que fantasia? — Ela balançou o que obviamente era um rabo falso e deu uma risada estranha. Então o sorriso desapareceu. — Sumam daqui. Estamos em obras. — Ela cutucou o palhaço que a carregava. — Vamos nessa, George.

O palhaço voltou a carregá-la para a tenda.

— Esperem! — pediu Emma. — Nós lemos sobre vocês no guia.

— Não estamos em guia nenhum, querida.

— Ah, estão, sim — respondeu Emma. — No Planeta Peculiar.

A sereia virou a cabeça bruscamente.

— George, pare. — Ele parou. A sereia nos observou por um momento, desconfiada. — Onde vocês arranjaram essa coisa velha?

— Nós... achamos — mentiu Emma. — Diz que tem algumas coisas para ver aqui.

— Não me diga... Tem algumas coisas para ver aqui, sim, mas para o tipo certo de gente. Que tipo de gente vocês diriam que são?

— Depende. De que tipo vocês são?

— George, me coloque no chão. — O palhaço obedeceu, e a sereia se equilibrou no rabo e se apoiou no tal George. Seu rabo flexionou feito um músculo, em vez de se enrugar como um tecido de fantasia. — Somos do show business. Mas já faz um tempo que não temos uma plateia digna de nossa apresentação. — Ela fez um gesto para a entrada da tenda. — Querem assistir?

A sereia parecia convencida de que éramos peculiares, o que me fez suspeitar que ela própria também era. Seu tom de voz tinha mudado de amargo e implicante para exageradamente simpático.

— Só estamos interessados em palhaços cor-de-rosa — disse Bronwyn.

A sereia inclinou a cabeça.

— Do que você está falando? Eu lá tenho cara de palhaça?

— Temos uma encomenda para o Amigo Rosa — expliquei. — Foi por isso que viemos.

Uma expressão de surpresa cruzou o rosto da sereia, mas notei que ela disfarçou.

— Quem mandou vocês? — perguntou ela, a cordialidade falsa sumindo. — Para quem trabalham?

Felizmente, lembrei que H. havia me avisado para não mencionar o nome dele.

— Não trabalhamos para ninguém — respondi. — O que nos traz aqui são assuntos particulares.

George fez a mão em concha e sussurrou algo no ouvido da sereia.

— Dá para ver que vocês não são daqui. — A simpatia melosa tinha voltado. — Não tem nada rosa no nosso espetáculo, mas por que não ficam um pouco e aproveitam as outras atrações?

— Não podemos mesmo — disse Emma. — Tem certeza de que não sabe nada sobre o que seria esse Amigo Rosa?

— Sinto muito, crianças. Mas temos três sereias, um urso dançarino, e o George aqui sabe fazer malabarismo com picaretas...

Nesse momento, duas pessoas apareceram por trás da tenda: um terceiro palhaço e um sujeito fantasiado de urso.

 

 

— Vamos servir o jantar — avisou a sereia, sem perceber que estávamos andando para trás. — Um jantar e um show! O que pode ser melhor?

— Música! — respondeu o palhaço, e começou a tocar um realejo preso na cintura.

O urso, que usava uma máscara horrível, mais parecida com uma caveira, entendeu que aquela era a deixa para começar a cantar. Mas as palavras estavam em uma língua estranha, e a cadência era tão lenta e a voz tão grave que na mesma hora senti sono. Pela cara dos meus amigos, o mesmo acontecia com eles.

— Sofur thu svid thitt — cantava ele. — Svartur i augum.

— Não podemos — falei, as palavras saindo devagar e enroladas. — Temos... que...

— O melhor show da cidade! — exclamou a sereia, saltitando na nossa direção.

— Far i fulan pytt — cantava o homem-urso. — Fullan af draugum...

— O que está acontecendo comigo? — perguntou Bronwyn, sonolenta. — Minha cabeça está tão leve...

— A minha também — indagou Millard.

Ao ouvir uma voz sem corpo, a sereia, o urso e os dois palhaços deram um salto e olharam para nós com um novo tipo de fome. Se havia alguma dúvida da nossa peculiaridade, Millard acabou com ela.

De algum modo, conseguimos fugir — empurrando e puxando uns aos outros, cambaleando pelo campo —, e, embora eles não tenham tentado nos parar fisicamente, usando as mãos ou o corpo, escapar parecia quase impossível. Era como atravessar cem teias de aranha gigantes, uma atrás da outra. Quando chegamos ao portão, foi como se as teias se rompessem, e recuperamos a capacidade de falar e pensar normalmente.

Abrimos as portas do carro com pressa. Dei partida no motor. Saímos em disparada, os pneus levantando uma nuvem de poeira.


— Quem eram aqueles peculiares horríveis? — perguntou Bronwyn. — E o que eles fizeram com a gente?

— Parecia que estavam tentando entrar no meu cérebro — disse Enoch. — Eca, não consigo me livrar da sensação.

— Deve ter sido por causa deles que Abe marcou essa parte do mapa com uma caveira — falou Emma. — Está vendo?

Ela pegou o jogo americano do Mel-O-Dee com as anotações de Abe e mostrou aos outros.

— Se o lugar é perigoso, por que H. nos mandou ir lá? — perguntou Bronwyn.

— Talvez seja um teste — sugeriu Millard.

— Com certeza — concluí. — A questão é: nós passamos? Ou isso foi só o começo?

Como que num passe de mágica, olhei pelo retrovisor e vi um carro da polícia se aproximando.

— Polícia! — avisei. — Vamos agir normalmente.

— Você acha que eles sabem do roubo? — perguntou Bronwyn.

— De jeito nenhum. Isso foi lá atrás.

Mas os policiais estavam, sim, nos seguindo. Estavam tão perto do meu para-choque que pensei que fossem bater. Então a pista se alargou e eles aceleraram para ficar lado a lado conosco, mas não ligaram a sirene nem o giroflex. Também não gritaram com um megafone, mandando que parássemos. Apenas ficaram ao nosso lado, o motorista com o braço na janela, bem à vontade, nos encarando.

 

 

— O que eles querem? — perguntou Bronwyn.

— Boa coisa não pode ser — disse Emma.

A outra coisa estranha era a viatura. Era velha. Devia ter uns trinta, talvez quarenta anos. Comentei que já não se fabricavam mais carros como aquele havia um bom tempo.

— Talvez eles não tenham dinheiro para comprar carros novos — disse Bronwyn.

— Pode ser.

Os policiais frearam e ficaram para trás. Vi o motorista falando pelo rádio conforme a viatura desaparecia no retrovisor. Então eles fizeram uma curva fechada, pegaram uma estradinha de terra e sumiram de vista.

— Isso foi muito estranho — comentei.

— Vamos sair daqui antes que eles voltem — disse Enoch. — Portman, pare de dirigir feito o meu avô e pisa fundo.

— Boa ideia — falei, e acelerei.

Quilômetros depois, porém, o motor começou a fazer um barulho estranho e uma luz vermelha começou a piscar no painel.

— Ah, que inferno — murmurei.

— Talvez seja fácil de consertar — disse Enoch. — Mas só vou saber dando uma olhada.

Havíamos acabado de passar por uma placa desbotada pelo sol que dizia:

BEM-VINDO A STARKE, POP. 502.

Depois dela, havia um cartaz feito à mão que anunciava:

VENDEM-SE COBRAS — PARA ESTIMAÇÃO OU REFEIÇÃO.

O barulho do motor foi aumentando. Eu não queria mesmo ter que parar em Starke, população de quinhentos e dois habitantes, mas parecíamos não ter opção. Então, parei em um lava a jato de caminhões com um estacionamento praticamente deserto e saímos para ver Enoch mexer debaixo do capô.

— Que coisa esquisita — disse ele, após dar uma rápida olhada. — Eu sei o que quebrou, mas não entendo o que aconteceu. Deveria durar mais de cem mil quilômetros.

— Você acha que alguém mexeu nisso? — perguntei.

Enoch coçou o queixo, deixando uma mancha de graxa no rosto.

— Não vejo como isso é possível, mas não tenho outra explicação.

— Não importa como quebrou, só queremos saber se você consegue consertar — disse Emma.

— E em quanto tempo — acrescentou Bronwyn, olhando para o céu.

Já estava anoitecendo, e nuvens de chuva se formavam no horizonte. Parecia que seria uma noite ruim.

— Claro que consigo consertar — respondeu Enoch, estufando o peito —, mas pode ser que eu precise da ajuda do maçarico humano aqui. — Ele indicou Emma. — E o tempo que vai levar depende de umas coisinhas.

— Boa tarde — disse uma voz desconhecida.

Quando nos viramos, vimos um garoto a poucos metros de distância, num degrau onde o estacionamento encontrava um terreno gramado.

Ele parecia ter uns treze anos. Era negro e vestia uma camisa e um boné de estilo antigo. Falava manso e andava ainda mais manso — tanto que nenhum de nós notou que alguém se aproximava.

— De onde você saiu? — perguntou Bronwyn. — Que susto!

— Vim dali — respondeu o garoto, apontando para o campo atrás dele. — Meu nome é Paul. Precisam de ajuda?

— Não, a não ser que você tenha um carburador de corpo duplo e fluxo descendente para um Aston Martin Vantage modelo 1979 — disse Enoch.

— Não — respondeu Paul. — Mas tenho um lugar onde vocês podem esconder esse troço aí enquanto o consertam.

Isso chamou nossa atenção.

— E de quem deveríamos nos esconder?

Paul nos observou por um momento. Estava mergulhado nas sombras, sua silhueta recortada contra o sol poente, e não consegui ver sua expressão, mas ele parecia muito responsável para um garoto daquela idade.

— Vocês não são daqui, né?

— Somos da Inglaterra — disse Emma.

— Bem — disse ele —, por essas bandas, o nosso pessoal só sai de casa à noite se tiver uma boa razão para isso.

— O que você quer dizer com “nosso pessoal”? — perguntou Emma.

— Vocês não são os primeiros peculiares de fora que enguiçam nesse trecho da estrada.

— O que foi que ele... — começou Millard, ousando se pronunciar pela primeira vez. — Ele acabou de dizer peculiar?

O garoto não pareceu surpreso ao ouvir palavras que surgiam do nada.

— Eu sei o que vocês são. Eu também sou. — Paul deu meia-volta e começou a andar pelo campo. — Vamos. Vocês não vão querer estar aqui quando o pessoal que colocou essa armadilha vier conferir o que pegaram. E tragam o carro! — gritou ele, olhando sobre o ombro. — Imagino que a garota forte consiga empurrar.

Observamos o garoto ir embora, impressionados, mas sem saber o que fazer. Nossas interações com peculiares naquela parte do mundo nos haviam deixado com a pulga atrás da orelha. Então, Emma se aproximou de mim e disse:

— Podíamos perguntar a ele sobre o...

No exato momento em que ela soltou as palavras, elas apareceram ao longe, em neon, do outro lado do campo:

AMIGO ROSA

Era um letreiro. Ali já estivera escrito HOTEL FLAMINGO ROSA, mas boa parte das letras tinha queimado. O hotel em si — ou o que quer que fosse aquele lugar — ficava escondido por uma fileira de pinheiros.

Emma e eu nos entreolhamos, chocados, mas sorrindo.

— Bem, vocês ouviram o garoto — disse ela.

— Peculiares têm que ficar juntos — afirmei.

E fomos atrás dele.

Seguimos o menino ao longo do campo por um caminho de terra ladeado por grama alta, o que tornava impossível ver da estrada. Bronwyn tinha ficado para trás, resmungando enquanto empurrava o Aston pelo terreno irregular. Tirando um carro ou outro que passava pela estrada principal ou o ruído do lava a jato, a tarde estava silenciosa.

Passamos pelo velho letreiro e pelas árvores, até finalmente chegarmos ao hotel — ou ao que restava dele. Provavelmente estava “na crista da onda” em 1955, com uma piscina curvilínea em formato de feijão e chalés separados do prédio principal, mas agora parecia apenas um prédio abandonado. O telhado estava cheio de remendos de lona. O jardim era uma selva de árvores sem poda. Latas-velhas enferrujavam no estacionamento esburacado. A piscina estava vazia, com alguns centímetros de água esverdeada no fundo e uma coisa comprida que poderia ser (embora fosse difícil distinguir no escuro) um jacaré.

— Não reparem na bagunça — disse Paul. — Lá dentro é melhor.

— Mas de jeito nenhum que eu vou entrar aí — disse Bronwyn.

— Deve ser uma fenda, minha querida — lembrou Millard. — Nesse caso, tenho certeza de que dentro é melhor.

As fendas costumam ter pontos de entrada bem assustadores — isso ajuda a manter os normais longe —, e o Planeta Peculiar mencionava “acomodações em fenda” perto da Terra das Sereias, provavelmente se referindo ao “Amigo Rosa”.

E, mesmo que isso não fosse razão suficiente para seguir Paul, não poderíamos sair dali enquanto Enoch não consertasse o carro.

— Olhem — murmurou Bronwyn, e nos viramos para o lava a jato de caminhões.

A viatura velha estava dando lentas voltas por ali, a luz de busca iluminando um lado e outro.

— Vou entrar — avisou Paul, a voz de repente tensa. — Aconselho que venham comigo.

Ele não precisou insistir.

 

 

CAPÍTULO NOVE


Paul nos conduziu por uma extensa passagem coberta que levava ao jardim interno do hotel. Bronwyn ia por último, empurrando o carro. No meio do caminho, senti uma aceleração, e de repente o crepúsculo à nossa frente se fez dia claro. Saímos para uma manhã fresca e ensolarada, em um pátio interno pavimentado e bem-cuidado. Ao redor ficavam os quartos, que eram rosa-shocking e pareciam quase novos. Não havia mais os remendos no telhado, a piscina estava cheia de uma água azul cristalina e as lata-velhas no estacionamento haviam sumido, substituídas por carros dos anos 1950 e 1960 em ótimo estado. Provavelmente, era onde estávamos: fim dos 60, talvez início dos 70.

— Uma entrada de fenda própria para abrigar carros — comentou Millard. — Que moderno!

Corri para alcançar Paul.

— Pronto, estamos aqui — falei. — Agora você vai nos explicar o que aconteceu com a gente?

— É melhor falarem com a srta. Billie. Ela é quem toma conta daqui.

Ele nos levou até um chalé separado dos outros, que uma placa anunciava como: RECEPÇÃO.

— Pode deixar o carro aí — disse Paul a Bronwyn. — Ninguém vai encostar nele.

Ela parou de empurrar o Aston e deu uma corridinha para nos alcançar.

Havia mais gente ali, naquele lado da fenda. Dois velhinhos que estavam sentados à beira da piscina fazendo palavras cruzadas baixaram o jornal para nos observar. A cortina de uma janela se mexeu, e vi uma mulher aparecer para nos espiar.

— Srta. Billie? — chamou Paul, batendo à porta da recepção. Logo em seguida ele a abriu, fazendo um gesto para entrarmos. — O carro deles quebrou na estrada.

Entramos em uma sala com um balcão de atendimento e algumas cadeiras, em uma das quais estava a mulher. Era uma senhora branca que usava batom e um vestido arrumado. Segurava no colo três poodles bem pequenos, os braços em torno deles de maneira protetora.

 

 

— Ah, meu pai — disse ela, com um pesado sotaque sulista. Os poodles tremeram. Ela os abraçou com mais força, sem fazer menção de se levantar. — Alguém viu eles entrarem?

— Acho que não — respondeu Paul.

— E os salteadores?

— Nem sinal deles.

Se os tais salteadores que eles mencionavam eram os caras na viatura policial, Paul havia acabado de mentir por nós. Eu não sabia por quê, mas me senti grato mesmo assim.

— Não estou gostando disso... — disse a srta. Billie, balançando a cabeça. — É um risco. Sempre um risco, sempre. Mas agora que já estão aqui... — ela baixou um pouquinho os óculos de aro grosso e olhou para nós — ... acho que não posso jogar vocês para os lobos, não é mesmo?

— Se me dão licença — disse Paul —, tenho minhas obrigações.

Ele saiu. A srta. Billie continuou nos encarando.

— Vocês não vão envelhecer de repente, vão? — disse ela. — Já tenho muitos velhos por aqui. Se querem morrer, fiquem à vontade, mas façam isso em outro lugar.

— Não vamos morrer — falei. — Só temos algumas perguntas a fazer.

— Por exemplo: a senhora é a diretora daqui? — começou Bronwyn.

A srta. Billie franziu a testa.

— Como assim, diretora?

— Uma ymbryne.

— Minha nossa! — exclamou a srta. Billie, recostando-se na cadeira. — Eu pareço assim tão velha?

— Ela é uma semi-ymbryne — disse Emma.

— É tipo uma ymbryne, só que em versão light — expliquei aos outros.

— Sou a gerente e pronto — respondeu a srta. Billie. — Recebo os pagamentos e não deixo o lugar cair aos pedaços. Rex aparece de duas em duas semanas para dar corda no relógio.

Ela apontou para um grande relógio de pé. Muito antigo e grande, tinha ornamentos de estilo incongruente com a decoração espalhafatosa do hotel.

— Quem é Rex? — perguntei.

— Rex Posthlewaite, guarda-fendas extraordinário. Também cuida do encanamento e mexe um pouco com elétrica, só não tem a licença.

— Espere aí. Vocês não têm uma ymbryne, e a ymbryne de mentira só vem a cada duas semanas?

— Só ele consegue dar corda no relógio. Ou outro guarda-fendas, imagino. Mas Rex é o responsável por todo o norte da Flórida, então acho que não temos muita escolha.

— E se ele ficar doente? — perguntou Millard.

— Ou morrer? — completou Enoch.

— Ele que se atreva!

— Aliás, que troço é esse? — perguntou Enoch, aproximando-se do relógio. — Eu nunca vi um...

Os três cachorros começaram a latir desesperadamente.

— Não chegue perto! — esbravejou a srta. Billie.

Enoch se afastou na mesma hora.

— Eu só estava olhando!

— Não olhe — completou a srta. Billie. — Não quero você mexendo no meu relógio de fenda, menino. Vai acabar escangalhando tudo.

Enoch cruzou os braços e fez cara feia, mas ficou quieto. Concluí que estava na hora de cumprir nossa missão.

— Tenho uma encomenda para você — falei assim que os cães pararam de latir.

E mostrei o pacote de H., o que tinha “Flamingo Rosa” anotado.

Ela deu uma olhada por cima dos óculos.

— O que é isso?

— Não sei, mas imagino que seja para a senhora, que é quem toma conta do lugar.

Ela estava desconfiada.

— Abra você.

Rasguei o papel do embrulho. Estava doido para saber o que tinha ali desde que o pegara.

Era um saco de biscoitos para cachorro. SABOR NOTA 10! DIVERSÃO NOTA 10!, lia-se no rótulo.

— Só pode ser brincadeira — reclamou Emma.

O rosto da srta. Billie se iluminou.

— Que beleza! É o preferido das meninas! — As cachorrinhas viram o pacote e começaram a balançar o rabo, animadas. A srta. Billie o pegou da minha mão e o ergueu bem acima do focinho delas. — Ei! Ei! Nada de olho grande!

— A gente passou por tudo aquilo para entregar biscoitos de cachorro? — reclamou Enoch.

— Não é um biscoito qualquer — explicou a srta. Billie, virando-se para guardar o pacote na bolsa.

O focinho das cadelas seguiu o movimento.

— Não quer saber quem mandou? — perguntou Emma.

— Eu sei quem mandou. Quando o virem, agradeçam por mim e digam que somos amigos de novo. Agora... — Ela apertou as cadelinhas junto ao peito e se levantou com elas no colo. — Tenho que levar as meninas para fazer pipi, então ouçam bem as regras do meu hotel. Número um: nada de mexer no relógio. Número dois: não gostamos de barulho e confusão, então fiquem quietos. Número três: tem um posto de gasolina com uma mecânica aqui ao lado. Podem levar lá o carro de vocês. Depois que consertarem, se pirulitem daqui. Não temos quartos vagos.

Ela se virou para sair.

— A senhora tem alguma coisa para nós? — perguntei.

— Que tipo de coisa?

— Uma pista — expliquei. — Estamos procurando um... portal?

Eu esperava que ela pelo menos me desse algo útil em troca do pacote. Um pedaço de mapa, um cartão-postal com um endereço; qualquer coisa que nos ajudasse a encontrar nosso destino seguinte.

— Ah, querido, se vocês estão perdidos na pista, lamento dizer que não posso ajudá-los! — Ela gargalhou. — Agora vão, tenho que levar as meninas para passear.


Conversávamos perto da piscina enquanto os residentes do Flamingo nos observavam por entre as persianas.

— Biscoito de cachorro — comentou Bronwyn. — Não estou acreditando.

— Não importa o que tinha dentro — disse Enoch. — O que importa é que entregamos.

— Ele quer saber se pode confiar na gente — expliquei.

Paul se aproximou.

— Conversei com os rapazes da oficina aqui ao lado — disse ele, apontando para uma construção logo depois dos chalés. — Eles têm algumas peças extras, mas não sei se têm carburadores.

— Até uma chave soquete já ajudaria — respondeu Enoch. — Obrigado.

Paul assentiu e saiu às pressas de novo.

— E o próximo lugar, esse tal de portal? — perguntou Bronwyn. — Como vamos achá-lo?

— Vamos perguntar — disse Emma. — Alguém deve saber o que é.

— A não ser que H. tenha nos mandado aqui à toa — reclamou Enoch. — Só para testar nossa paciência.

— Ele não faria isso — disse Emma.

Enoch chutou uma bola inflável, lançando-a na piscina.

— Talvez você não esteja acostumada a pessoas fazendo você de boba assim, mas esse é bem o tipo de coisa que Abe faria, pelo menos comigo. E esse fulano trabalhava para ele.

— Trabalhava com ele — corrigiu Emma, que ainda ficava nervosa quando alguém criticava meu avô.

— Dá no mesmo.

— Vai logo consertar o carro! — gritou ela. — Foi só para isso que você veio, não foi?

Enoch pareceu ofendido.

— Vamos, Bronwyn — resmungou ele —, a rainha está mandando.

Os dois foram até o Aston. Enoch entrou, apontou para a oficina mecânica e gritou:

— EM FRENTE!

Bronwyn balançou a cabeça e suspirou.

— Depois disso tudo, vou querer minha parte do jantar em dobro. — Ela apoiou as mãos no para-choque e começou a empurrar.

— Ora, olá, rapaz! Olá, senhorita!

Um senhor sorridente ia a passos largos na nossa direção. Ele me cumprimentou com uma mão grande e áspera.

— Adelaide Pollard, encantado.

Era um senhor negro e alto, em um belo terno e um chapéu, tudo azul. Parecia ter uns setenta anos, mas talvez fosse mais velho, já que vivia em uma fenda.

 

 

— Adelaide — repetiu Emma, sorrindo como eu nunca a tinha visto sorrir para um estranho. — Que nome incomum!

— Eu sou um homem incomum! O que traz vocês ao nosso pedacinho de pântano?

— Paramos em um lugar chamado Terra das Sereias — contou Millard, e vi o rosto de Adelaide ficar sombrio. — Tentaram nos enfeitiçar, eu acho.

— Nós escapamos — completou Emma. — Mas aí uns policiais nos seguiram, e logo depois nosso carro quebrou.

— Sinto muito mesmo por ouvir isso — disse ele, balançando a cabeça. — É uma tristeza, as pessoas fazendo esse tipo de coisa com nosso próprio povo. Uma tristeza!

— Quem são eles? — perguntou Emma.

— Nada além de vilões deploráveis — explicou Adelaide. — Tentam atrair peculiares de fora, que caem naquela armadilhazinha maldita, para vendê-los aos salteadores.

— Os policiais? — perguntei.

— Eles não são policiais de verdade. São uma gangue, por assim dizer. Ficam indo e vindo na estrada, assediando as pessoas que passam por esse trecho, roubando, como se fossem donos de tudo. Não passam de uns malfeitores e enganadores.

— Antigamente a gente só se preocupava com aqueles monstros das sombras. — Um velho branco numa cadeira de rodas chegava por trás de Adelaide. Ele usava a perna esquerda da calça dobrada e presa, e carregava um cinzeiro no colo, onde batia um charuto aceso. — Juro, às vezes eu sinto falta deles. Desde que os monstros sumiram, esses bandidos de estrada estão correndo soltos. Acham que podem fazer o que bem entendem. — Ele tragou o charuto pelo buraco nos dentes da frente. — Aliás, meu nome é Al Potts. — Ele nos deu um aceno. — Potts, para vocês.

 

 

— Sinto muito por isso tudo, crianças — repetiu Adelaide. — Vocês parecem pessoas muito boas.

— E somos mesmo — disse Millard. — Mas não se preocupem, nós vamos ficar bem.

— “Somos mesmo”, ele disse! — Adelaide riu. — Gostei.

O sr. Potts se inclinou e cuspiu no chão por entre os dentes.

— Você ri demais, Adelaide.

O outro senhor o ignorou.

— É uma pena — disse ele. — Este lugar aqui já foi muito bom. Peculiares simpáticos como vocês vinham aqui para se divertir. Agora, as pessoas só aparecem por acaso, e acabam presas — lamentou Adelaide.

— Eu não estou preso coisa nenhuma. Estou aposentado.

— Aham. Continue se enganando.

— O que aconteceu com a ymbryne que criou esta fenda? — perguntou Millard. — Por que ela não ficou para protegê-la?

Adelaide olhou para mim e assobiou.

— Ymbryne! — repetiu Adelaide. — Quando foi a última vez que você ouviu essa palavra, Al?

— Ah, mas já faz é tempo — respondeu Potts.

— Não vejo uma faz uns... ih, uns quarenta anos! — disse Adelaide, com doçura e nostalgia na voz. — Uma de verdade, não essas mais ou menos, que nem mudam de forma.

— Onde foram parar todas elas? — perguntou Emma.

— Nunca houve muitas, na verdade — respondeu Potts. — Lembro que, nos anos 1950, a fenda onde eu morava, em Indiana, dividia uma ymbryne com a fenda mais próxima. Srta. Pigeon Hawk. Aí, um dia parecia que os acólitos e aquelas criaturas sombrias estavam por toda parte e odiavam as ymbrynes mais que qualquer coisa. Fizeram de tudo para se livrar delas. E fizeram um belo de um trabalho, para ser sincero.

— Como? — perguntou Emma. — Na Europa, havia acólitos e etéreos desde 1908 e eles odiavam nossas ymbrynes tanto quanto os daqui, mas a maioria delas sobreviveu.

— Não sou especialista nas operações dos acólitos — explicou Adelaide —, mas vou te dizer uma coisa: nossas ymbrynes eram tão fortes quanto as de qualquer outro lugar; mais, até. Eu confiaria minha vida a uma ymbryne americana, se encontrasse alguma. Não eram umas fracotes, não.

— E, em vez delas, vocês têm um assim chamado guarda-fendas — comentou Millard, desconfiado.

— O velho Rex — disse Potts. — Guarda-fendas razoável. Bebe demais.

— Ele bebe? — perguntou Millard, surpreso.

— Feito uma esponja — disse Adelaide. — Aparece aqui de vez em quando para ajeitar o relógio, transformar o dia em noite e coisa e tal...

— E sai com uma garrafa da aguardente caseira da srta. Billie — completou Potts. — Acho que é o pagamento dele.

— Millard, você já ouviu alguma história como essa? — perguntou Emma.

— Só apócrifas.

Adelaide bateu palmas de repente.

— Vocês já comeram? — perguntou. — Acabei de fazer um café no meu quarto, e Al sempre tem umas rosquinhas escondidas.

— Você não me encoste naquelas rosquinhas! — reclamou Potts.

— Essas crianças tiveram um dia difícil, Al. Vá pegar as rosquinhas.

Adelaide nos levou para seu quarto, que ficava do outro lado do pátio. Passamos por um chalé fechado em que uma mulher cantava ópera a plenos pulmões.

— Está afinada que só, baronesa! — gritou Adelaide.

— Obrigadaaaaaaaaaaaaaaaaa! — cantou a mulher em resposta.

— É impressão minha — sussurrou Emma —, ou todo mundo aqui é meio...

— Maluco? — completou Potts, e deu uma gargalhada. — Somos mesmo, querida. Somos, sim.

— Nossa, que ouvido bom — comentei.

— A vista já era — disse ele, nos ultrapassando em sua cadeira de rodas. — Mas os ouvidos funcionam.

Tomamos café e comemos rosquinhas na sala do chalé de Adelaide, um espaço bem pequeno com um conjunto de sofá florido, uma TV antiga presa à parede e vasos de flores. Reparei em uma mala ao lado da porta, e perguntei o motivo.

— Ah, estou indo embora — respondeu Adelaide.

Potts riu.

— É o que você vive dizendo.

— Vou a qualquer momento.

Olhei para Potts. Ele balançou a cabeça.

— Vou para Kansas City — explicou Adelaide. — Ver uma antiga namorada minha.

— Você não vai a lugar nenhum! — exclamou Potts. — Está preso aqui que nem todo mundo.

Aquilo me lembrou a casa de repouso em que morava minha avó materna, que tinha mal de Alzheimer. Ela só falava em ir embora, mas é claro que nunca poderia.

— Temos que encontrar um portal — expliquei. — Vocês conhecem algum por aqui?

Adelaide olhou para Potts, que resmungou e balançou a cabeça.

— Eu não — respondeu.

— Não existe portal nenhum — disse Millard. — Vamos ouvir a mesma resposta o tempo todo. É um beco sem saída.

— Falem com a baronesa — sugeriu Adelaide. — Ou com Weiss, nosso fisiculturista nonagenário. Esses dois já viajaram muito.

— Vamos fazer isso — respondi. — Obrigado.

Comemos em silêncio por alguns minutos. Então, Bronwyn baixou a xícara de café e perguntou:

— Sem querer ser intrometida, mas qual é a peculiaridade dos senhores?

Adelaide engasgou e baixou os olhos, e Potts fingiu não ter ouvido a pergunta.

— Que tal sairmos e pegarmos um solzinho? — convidou Adelaide.

Eu e meus amigos nos entreolhamos. Foi um momento estranho.

Saímos do chalé. Paul estava passando por ali.

— Jovem! — chamou Adelaide, acenando.

Paul se aproximou. Carregava um galho fino e retorcido debaixo do braço e uma faca na mão.

— Sim?

— Essas pessoas querem encontrar um... Como é mesmo?

— Um portal — completou Emma.

— Ah, claro — respondeu Paul, assentindo.

Ele não parecia nem um pouco confuso, como se fosse totalmente normal alguém aparecer ali procurando um portal.

— Sério? — perguntei.

— Bem, melhor voltarmos — disse Adelaide, empurrando Potts na cadeira de rodas. — Boa sorte para vocês.

— Obrigada pelo lanche — agradeceu Bronwyn. — Desculpa se deixei os senhores sem jeito.

Fiz uma careta. Novamente eles fingiram não ouvir, e entraram no chalé de Adelaide. Olhamos de volta para Paul, tentando disfarçar o momento constrangedor.

— Você disse que sabe onde fica o portal — insistiu Emma.

— Certamente — respondeu ele. — Sou de lá.

— Você veio de um portal? — perguntou Millard. — Não existe...

— Eu sou de Portal. A cidade. Portal, Geórgia. Não conhecem?

— Existe uma cidade chamada Portal? — perguntei.

— Não é famosa nem nada. Mas, sim, existe.

— Onde fica? Pode nos mostrar no mapa?

— Claro. Mas vocês estão procurando a cidade ou a fenda temporal que fica próxima? A cidade não é lá grande coisa.

Abri um sorriso.

— A fenda, com certeza.

— Aí é outra história. Vocês não chegariam à fenda sem mim.

— Sou cartógrafo profissional — disse Millard. — Tenho certeza de que consigo interpretar até as instruções mais complexas.

— Não é questão de instruções. A localização da entrada muda.

Millard bufou.

— Ela muda?

— Só peculiares do meu tipo conseguem encontrá-la. Radioestesistas. Ou sensitivos, chamem como preferirem. Nossa peculiaridade é captar certas energias que os seres e a natureza transmitem.

— E você pode nos levar até lá? — perguntei.

— Hum, não sei.

— Por favor — pediu Emma. — Somos uma ótima companhia.

— Não gosto muito de viajar. E não é um passeio agradável.

— Qual o problema?

Ele deu de ombros.

— Só não é... muito bom.

— Faísca, preciso de você — chamou Enoch, os braços cobertos de graxa até os cotovelos.

E ele correu até Emma como se fosse limpar a sujeira nas roupas novas dela. Emma pulou e se afastou. Enoch riu, depois voltou para a oficina.

Uma parte da blusa de Emma acabou saindo da calça. Ela a enfiou de volta, fazendo cara feia.

— Idiota.

Fomos até a mecânica. Paul foi junto, aparentemente mais curioso para saber o que estávamos aprontando do que envergonhado por ter negado nosso pedido.

Enquanto atravessávamos o estacionamento, Bronwyn perguntou:

— Eu fui indiscreta agora há pouco, perguntando aos velhinhos sobre as peculiaridades deles?

— Habilidades peculiares são como músculos — respondeu Millard. — Se não são usadas por muito tempo, podem atrofiar. Talvez eles não tenham mais nenhuma e você tenha tocado em um assunto delicado.

— Não foi isso — explicou Paul. — A verdade é que eles não têm permissão para usá-las.

— Como assim? — perguntou Emma.

— A gangue no comando proíbe que qualquer um além deles próprios use suas peculiaridades. Às vezes, chegam ao ponto de contratar informantes para ficar de olho em quem tentar burlar a regra.

— Meu Deus! — exclamou Millard. — Que país é este?

— Um país cruel — comentou Emma.

Paul suspirou.

— E não são todos cruéis?


A placa dizia OFICINA DO ED, mas o lugar parecia apenas um armazém antigo. Não tinha ninguém por perto; a fenda devia ter sido criada em um domingo ou feriado. Bronwyn havia deixado o Aston em uma vaga cercada de ferramentas, e Enoch já estava quase acabando o conserto. Restavam algumas partes de metal a serem soldadas, e para isso ele precisava de Emma.

Foram vários minutos de esforço contínuo, Emma andando de um lado para outro, esfregando as mãos até ficarem quentes o bastante para soldar o metal. Estavam quase brancas, brilhando. Era tão perigoso que Emma precisava mantê-las bem longe do corpo, para não botar fogo nas próprias roupas. Todos nos afastamos quando ela se aproximou do capô, e voaram faíscas. Era tão barulhento e fascinante que só ouvimos os gritos raivosos vindos do hotel quando ela terminou, o rosto suado e a respiração acelerada.

Saímos correndo da oficina. O mesmo carro de polícia que tinha nos perseguido pela estrada estava no estacionamento do Flamingo Rosa, com as portas abertas.

— Parece que eles encontraram vocês — disse Paul. — Fujam! Saiam pelos fundos. — Ele apontou para uma rua que contornava a oficina mecânica e levava para fora da cidade.

Millard hesitou.

— Não podemos deixá-los à mercê desses bandidos — disse ele.

— O quê? — reclamou Enoch. — Claro que podemos.

Foi quando um dos falsos policiais apareceu arrastando a srta. Billie pelo braço, os três poodles minúsculos correndo atrás deles e latindo loucamente pelo pátio.

— Se me dão licença um segundo, vou dar um pulinho ali e quebrar a cara daquele sujeito — disse Bronwyn.

— Não adianta brigar com esses sujeitos — explicou Paul. — Só vão conseguir irritá-los. E aí depois eles voltam com mais gente e mais armas, e vai ser pior.

— Sempre adianta brigar — disse Emma. — Ainda mais quando é para fazer pessoas más chorarem. — Ela entrelaçou e estalou os dedos, fazendo faíscas espocarem das palmas de suas mãos ainda brilhantes. — Enoch, como está nosso carro?

— Novinho em folha.

— Maravilha. Deixe o motor ligado. — Ela se virou para mim. — Já volto. — E para Bronwyn: — Você vem?

Bronwyn estalou o pescoço e balançou os braços, se aquecendo.

No fundo, eu adorava quando Emma ficava daquele jeito: tão irritada que parecia estranhamente calma, sua raiva uma ferramenta que ela usava para provocar grande destruição.

As duas partiram de volta para o hotel. Não queríamos ficar para trás, é claro, mas, como elas eram as mais habilitadas para embates físicos, deixamos que fossem na frente.

No pátio, um dos falsos policiais segurava a srta. Billie pelos pulsos e a interrogava aos gritos enquanto o outro batia de porta em porta.

— Eles estavam aqui, tenho certeza! — berrou o segundo, e abriu de supetão a porta do chalé de Adelaide. — Vocês vão se arrepender de mentir pra nós! Vocês sabem o castigo pra quem não obedece!

Olhando bem, eles não pareciam policiais de verdade. Usavam camisa verde e coturno e tinham o cabelo raspado e o jeito idiota e autoconfiante que, tendo crescido na Flórida, eu conhecia tão bem. O mais baixo levava uma arma na cintura.

— Desobedecer é pior que não pagar a taxa de proteção! — gritou o mais alto. — Da próxima vez que o relógio de vocês precisar de corda, é capaz de o velho Rex não aparecer!

— Deixem ele em paz! — reclamou a srta. Billie.

O homem chegou a erguer o braço para dar uma bofetada nela, mas desistiu quando o mais baixo falou, a boca aberta em surpresa ao apontar para nós:

— Ali eles, Darryl!

— Ora, ora — disse Darryl, soltando a srta. Billie, que saiu correndo e se escondeu atrás de uma placa com as regras de uso da piscina.

Atravessamos o pátio e paramos na beira. Uns cinco metros nos separavam. Emma e Bronwyn estavam na frente; Enoch e eu, atrás. Millard estava calado e, esperava eu, esgueirando-se por trás dos bandidos. Mantive Paul atrás de mim.

— Vocês devem ser novos por aqui — disse Darryl, e pigarreou alto. — A estrada que vocês pegaram tem um pedágio. Quanto está o pedágio hoje, Jackson?

— Ele aumenta para quem tenta passar sem pagar. — Jackson se aproximou do outro falso policial na viatura, apoiou-se na porta e prendeu os polegares nos passadores do cinto. Estava nos avaliando dos pés à cabeça e não parecia preocupado com o que via. Seus lábios se esticaram em um sorriso repulsivo. — Vamos ver... o dinheiro e o carro. — Ele indicou a oficina com a cabeça. — Mas olha só... acho que eu já vi uma dessas belezinhas numa revista.

— Vão pro inferno! — disse Emma.

Notei que os moradores do hotel acompanhavam tudo por trás das persianas, como se assistissem a uma cena de filme de faroeste.

Darryl também abriu um sorriso falso.

— Que gracinha, ela fala.

— Não permito que ninguém me desrespeite — disse Jackson. — Muito menos uma mulher.

— Muito menos! — repetiu Darryl. Ele bufou de novo, depois pegou um lenço do bolso e esfregou o nariz. — Licença.

Darryl se virou de lado, tapou uma narina com o dedo e, expirando com força, expeliu uma meleca preta, que ficou fumegando no chão, corroendo o cimento.

Emma teve ânsia de vômito.

— Uau — sussurrou Enoch ao meu lado, quase com admiração.

— Que mania mais nojenta, Darryl — repreendeu Jackson.

— Não é mania. É doença.

Emma avançou um passo na direção dos homens. Bronwyn fez o mesmo.

— Então esse aí tem catarro atômico — disse Emma para o mais baixo. — E você, qual a sua peculiaridade? Ser o maior babaca do planeta?

Darryl soltou uma gargalhada. O sorriso de Jackson sumiu. Ele se afastou do carro, desabotoando o coldre da arma.

Bronwyn e Emma avançaram mais um passo.

— Acho que as garotas querem dançar — disse Darryl. — Qual das duas você prefere?

— A menorzinha — respondeu ele, encarando Emma. — Sabe que eu gostei dessa boquinha atrevida?

Então as duas dispararam na direção dos dois. Jackson sacou a arma. Emma, que vinha mantendo as mãos às costas, as ergueu rapidamente e agarrou a pistola.

A arma derreteu na mesma hora. Assim como a mão de Jackson. Ele caiu no chão se debatendo e gritando de dor.

Darryl se escondeu atrás da viatura. Nem teve tempo de atirar, pois Bronwyn deu uma ombrada na porta do motorista. O carro sambou, pneus cantando, depois capotou de lado, prendendo o homem embaixo dele. Do começo ao fim, a briga inteira durou quinze segundos.

— Minha nossa senhorinha! — ouvi Adelaide gritar, e quando me virei, vi que ele assistia a tudo da porta do chalé.

Potts comemorava e gargalhava, na cadeira de rodas. Algumas portas adiante, uma mulher saiu de um quarto (só podia ser a baronesa, porque usava um vestido longo brilhante e luvas brancas) e entoou um agudo “Graças a Deeeeeeeeeeeeeuuuuuuuuuuus!” em um vibrato trêmulo.

— Ops — disse Bronwyn, dando uma olhada embaixo do carro. — Eles morreram?

— Podem ter só desmaiado — respondeu Emma, cutucando o mais baixo com o pé. — Não sei o outro, mas este aqui parou de se debater e já não está nem se mexendo mais.

A srta. Billie surgiu de trás de alguns latões de lixo, seguida pelos poodles trêmulos.

— Tinha mais um. Um magrelinho.

— Aliiiiiiiiiiiiiii! — cantou a baronesa, apontando para a saída da fenda.

Ouvimos alguém correr. O terceiro homem tinha saído de onde se escondera e corria disparado para a saída.

— PARE! — gritou Emma, e partiu atrás dele.

O cara olhou para trás, aterrorizado. Então pareceu tomar uma decisão e puxou uma arma da cintura, virando-se para nós.

— Todo mundo no chão! — gritou. — Todo mundo paradinho!

Erguemos as mãos e obedecemos. Pelo canto do olho, vi a srta. Billie pegar algo da bolsa.

— Aqui, queridinhas! — disse ela, na voz aguda que usava para falar com os poodles.

O terceiro falso policial se virou e apontou a arma para ela, mas, quando viu os poodles, caiu na gargalhada.

— Vai soltar essas coisinhas pra cima de mim, é? A senhora tá é maluca. Agora, deita no chão ali junto com o resto.

A srta. Billie ergueu as mãos e obedeceu. Os poodles latiam e comiam os biscoitos.

O bandido se aproximou de nós com cuidado, os braços tensos, tremendo de adrenalina. Viu o que tínhamos feito com seus amigos e parecia pronto para fazer pior conosco.

— Vou ficar com as chaves dessa belezura — avisou. — Passa pra cá.

Enoch tirou as chaves do bolso e as jogou aos pés do sujeito.

— Muito bem. Agora passa a grana.

Minha mente estava a mil, tentando imaginar como escapar da situação. Talvez a gente pudesse enganar o sujeito, fazendo-o se aproximar de alguma maneira para atacá-lo de repente. Mas não. Ele tinha visto o que aconteceu com os parceiros quando deixaram as meninas se aproximarem, e não repetiria o erro.

— Agora! — berrou ele, dando um tiro para o alto.

Eu me encolhi todo, meu corpo inteiro ficando tenso. Fazia meses que não ouvia um tiro, não estava acostumado. Falei que tinha algumas centenas de dólares no carro.

— Vai pegar — ordenou ele.

Devagar, ainda com as mãos erguidas, eu me levantei.

— Preciso das chaves. O dinheiro está trancado no porta-luvas.

— Mas que mentiroso duma figa. Eu devia meter bala em você agora mesmo. — Ele estava se aproximando de mim. — Quer saber? Acho que é isso mesmo que eu vou fazer.

A srta. Billie levou dois dedos aos lábios e assobiou. O cara girou e apontou a arma para ela.

— Ô dona, que foi que...

Então ouvimos um ofegar alto e grave, e de trás de um chalé surgiu um dos poodles da srta. Billie — só que vinte vezes maior do que três minutos antes. Do tamanho de um hipopótamo.

O homem se virou, gritou e apontou a arma para o cachorro gigante.

— Xô! Sai! Xô!

Então os outros dois cachorros apareceram também, rosnando tão alto quanto um motor de caminhão. No instante em que o bandido se virou para eles, o primeiro cachorro pulou, a boca escancarada e os dentes reluzindo, e arrancou a cabeça dele na primeira mordida. O resto do corpo caiu no chão.

— Boa menina! Boa menina! — exclamou a srta. Billie, batendo palmas com ardor.

Todos no Flamingo Rosa começaram a comemorar. Emma e os outros se levantaram.

— Pelas aves! — exclamou Bronwyn. — Que raça de cachorro é essa?

— Poodle Colosso — respondeu a srta. Billie.

Um deles trotou até mim com a boca aberta. Ergui os braços e dei alguns passos para trás.

— Uôu! Acho que ela ainda está com fome!

— Não fuja, ela vai achar que você quer brincar de pique-pega! — disse a srta. Billie. — Ela só está sendo simpática.

A cachorra esticou uma língua que era como uma imensa prancha de surfe rosa e me lambeu do pescoço ao topo da cabeça. Acho que dei um gritinho. No fim, estava pingando baba e morrendo de nojo, mas aliviado por estar vivo.

A srta. Billie riu.

— Viu só? Ela gostou de você!

— Suas cachorrinhas nos salvaram — disse Emma. — Obrigada.

— Foram vocês, meninas, que criaram a oportunidade para elas entrarem em ação. Obrigada às duas pela coragem. E agradeçam a H. também, quando o virem.

Adelaide atravessou o pátio empurrando a cadeira de Potts.

— Meus jovens, que ótimo trabalho!

— É, mas quem vai arrumar essa bagunça? — resmungou Potts.

— Imagino que esses caras não vão incomodar vocês de novo — sugeriu Emma.

— Duvido muito — disse a srta. Billie.

Emma e eu nos afastamos com Paul.

— Última chance — avisou ela. — Você reconsideraria vir com a gente?

Ele pensou por um momento, olhando de Emma para Bronwyn, depois para mim, e por fim assentiu.

— Estou mesmo devendo uma visita em casa...

— Eba! — exclamou Emma. — Portal, aí vamos nós.

— Mas como ele vai caber no carro? — perguntou Enoch. — Já somos cinco!

— Ele pode ir na frente — respondeu Emma. — É só botarmos você no porta-malas.

 

 

CAPÍTULO DEZ


Eu dirigia devagar pela mesma passagem escura por onde havíamos entrado, algumas horas antes, empurrando o carro enguiçado. Ele agora ronronava feliz, graças aos conhecimentos de Enoch e às habilidades de Emma com soldagem.

A súbita mudança de pressão nos atingiu quando estávamos no meio do curto túnel. Segurei o volante um pouco mais firme, com a sensação de que estávamos caindo por um desfiladeiro, e logo depois saímos no presente, nas primeiras horas da noite.

Quando estiquei o braço para ligar os faróis, Paul me deteve.

— Ainda não — sussurrou ele, e apontou para o outro lado do vasto campo. — Ali. Olhe.

No lava a jato de caminhões, os faróis de dois veículos se cruzavam, e contra a luz se desenhava a silhueta de vários homens que aguardavam na saída. Um deles segurava perto do rosto um aparelho que parecia de radiocomunicação. Não dava para saber se eles tinham nos visto.

— Pisa fundo — disse Enoch. — Passa por cima deles.

— Não — disse Paul. — Eles têm rifles e boa mira. Ainda temos muito chão pela frente até conseguirmos nos livrar deles.

— Então vamos pelo outro lado — sugeriu Emma. — Não vale a pena correr o risco.

Ela tinha razão. Como todas as fendas temporais, aquela tinha uma saída pela frente e uma entrada dos fundos, atravessando o dia capturado na fenda. O problema de pegarmos a saída dos fundos era que teríamos que viajar pelo passado, e o problema de viajar pelo passado (pelo menos no último século) era o fato de ser cheio de etéreos. Mas esse problema eu tinha como resolver, graças à minha habilidade, então engatei a ré e atravessamos mais uma vez a entrada da fenda temporal. Num segundo, regressamos ao mundo ensolarado do hotel da srta. Billie.

— Já voltaram? — disse ela, indo até nós com as cachorras.

As poodles estavam começando a encolher. Imaginei que em algumas horas estariam de volta ao colo dela.

— Tem mais salteadores lá fora — disse Paul, colocando a cabeça para fora da janela. — Eles devem ter chamado reforços.

— Se eu pudesse, levaria todos vocês — falei.

A srta. Billie deu de ombros.

— Enquanto durarem os biscoitos das meninas, ficaremos bem.

— Vamos pedir a H. que mande mais pacotes assim que possível — disse Emma.

— Eu agradeço.

— Pode nos mostrar a saída dos fundos? — pedi.

— Claro — respondeu ela. — Mas é arriscado irem por lá. Em 1965, até a Flórida era infestada de criaturas sombrias.

— Não se preocupe. Tenho um bom faro para etéreos.

A srta. Billie se empertigou ligeiramente.

— Você é como o H.?

— Ele é como o Abe — corrigiu Emma, cheia de orgulho.

— Não conheço esse. Mas se H. o contratou, é porque confia em você. Imagino que saibam o que estão fazendo. E é claro que os rapagões lá fora não seguiriam vocês pelo território dos etéreos. Borrariam as calças se tivessem que enfrentar aquelas criaturas.

Ela nos deu instruções rápidas: depois da garagem, seguir pela rua principal, virar à direita na delegacia.

— E quando sentirem aquele poc! no ouvido, é porque atravessaram a membrana.

Agradecemos novamente, mas não havia tempo para despedidas longas. Após os incidentes assustadores daquela manhã, a maior parte dos residentes do Flamingo Rosa estava no quarto, mas alguns nos gritaram um “Boa sorte!” quando passávamos pela viatura policial e saíamos do hotel. Fiquei pensando que eram eles que precisavam de sorte, e muita, presos ali à mercê daqueles criminosos.

Pegamos a rua principal, e fiquei de olho nos retrovisores enquanto dirigia, na expectativa de ver outra viatura. Quando viramos à direita na delegacia, senti um frio no estômago e uma reverberação no ar, como as ondas de calor, mas nada havia mudado; pelo menos nada que eu pudesse ver.

— Saímos — disse Paul, com um estranho misto de alívio e pavor.

Tendo passado pela membrana, não estávamos mais nos limites de proteção da fenda. Agora, o tempo seguiria em frente, dia a dia, e os etéreos (se houvesse algum por ali) eram uma ameaça. Precisei lembrar a mim mesmo que eles não eram menos perigosos por serem do passado, e levei a mão à barriga, involuntariamente, atento a alguma pontada diferente. Por ora, nada.

Atravessamos cidades pequenas, dirigindo em silêncio na maior parte do tempo, ainda processando a loucura dos últimos acontecimentos. Além disso, estávamos cansados. E não apenas devido ao desgaste emocional e físico do que acontecera no hotel, mas também porque já era tarde: embora fosse meio-dia ali, no presente já seria quase meia-noite. Era inconcebível a ideia de que naquele mesmo dia havíamos descoberto o bunker secreto do meu avô. Uma vida inteira havia se passado desde então.

— Vamos telefonar para casa — sugeriu Bronwyn. — Para avisar que estamos bem. Eles devem estar preocupados.

— Não dá — disse Millard. — Estamos em 1965. Ligaríamos para a casa de Jacob no passado.

— Ah, é.

Olhei para Bronwyn pelo retrovisor e acabei notando que Emma, ao lado dela, tinha uma expressão intensa mas inescrutável, como se estivesse reprimindo um pensamento que a deixava desconfortável. Quando encontrou meu olhar, seu rosto voltou ao normal.

Fez-se um breve silêncio que com certeza nenhum dos outros estranhou, exceto Emma e eu.

Então ela perguntou:

— Paul, sua fenda temporal fica muito longe?

— A gente deve chegar no fim do dia — respondeu ele.

— Pode mostrar aqui no nosso mapa onde fica a cidade?

Emma abriu o mapa rodoviário (não sem certa dificuldade, já que, com os quatro imprensados no banco de trás, mal dava para se mexer) na página da Geórgia, o estado que fica logo acima da Flórida.

— Fica... bem aqui — disse ele, pegando o mapa e indicando um espaço sem nada entre as cidades de Atlanta e Savannah.

Enoch ajeitou as pernas para se inclinar e dar uma olhada. Ele riu.

— Você está de brincadeira. Resolveram criar uma fenda temporal numa cidade chamada Portal?

— Na verdade, foi a fenda que deu o nome à cidade — explicou Paul. — Pelo menos é o que dizem.

— E em Portal também tem salteadores? — perguntou Millard.

— Pode ter certeza que não — respondeu Paul. — Foi por isso que a ymbryne fez com que a entrada mudasse de lugar todos os dias, para que ninguém mal-intencionado a encontrasse.

— Qual foi a ymbryne que a criou? — perguntou Millard.

— Srta. Honeythrush. Mas eu não a conheci. Hoje em dia temos um guarda-fenda, como todo mundo.

— Você sabe o que aconteceu com ela?

— Não, mas talvez a srta. Annie saiba. Podemos perguntar a ela. Fiquem alguns dias conosco, para descansar um pouco.

— Acho que não vai ser possível — disse Emma. — Temos uma missão importante pela frente.

Descansar. A própria palavra parecia tão deliciosa que comecei a sonhar com camas, travesseiros e lençóis macios. Naquele momento, percebi que se eu quisesse chegar a Portal sem enfiar o carro num poste, precisava tomar café, e rápido. Mas, antes, tínhamos que abrir uma boa distância de Starke, então só comecei a procurar algum lugar para pararmos quando já estávamos perto da divisa dos estados. Havia muitas cafeterias diferentes naquele tempo, quando os Estados Unidos ainda não eram colonizados pelas grandes redes. Aliás, aquelas cidades pequenas pareciam mais habitadas e mais prósperas ali em 1965. Todas tinham um banco, uma loja de material de construção, um pequeno hospital, alguns restaurantes, um cinema e muito mais, não apenas um monte de lojinhas fechadas e um shopping center gigantesco engolindo tudo. Não era preciso ser um gênio para perceber a conexão entre essas coisas.

Quando eu já não conseguia mais evitar bater cabeça no volante, fiz uma parada no primeiro lugar que me pareceu decente. Era uma lanchonete chamada Johnnie’s Brite Spot.

— Alguém quer café? — perguntei. — Estou precisando urgentemente.

Todo mundo levantou a mão, menos Paul.

— Não sou de beber café.

— Coma um sanduíche, então — sugeri. — Já é hora do almoço.

— Não, obrigado. Vou esperar vocês aqui.

— É melhor ficarmos todos perto do Jacob — disse Emma. — Caso apareça algum etéreo.

Paul cruzou as mãos no colo e baixou o olhar.

— Eu não entro aí — disse ele, por fim.

— O garoto não quer facilitar! — exclamou Enoch.

Então eu entendi. Um tremor de repulsa percorreu meu corpo.

— Ele não pode entrar — expliquei.

— Por que não? — insistiu Enoch, exasperado.

Paul parecia ao mesmo tempo irritado e envergonhado.

— Porque eu sou negro — respondeu ele, baixinho.

— O que isso tem a ver, meu Deus? — disse Enoch.

Millard suspirou.

— Enoch não é um grande conhecedor de história — justificou.

— Estamos em 1965 — falei. — No Sul dos Estados Unidos.

Eu me senti muito mal por aquilo não ter me ocorrido antes.

— Que horror! — exclamou Bronwyn.

— É repugnante — falou Emma. — Como podem tratar as pessoas dessa maneira?

— Tem certeza de que não vão deixar você entrar? — perguntou Enoch, dando uma olhada na fachada do restaurante. — Não tem nenhum aviso nem nada...

— Não precisa — disse Paul. — Estamos numa cidade de brancos.

— Como você sabe?

Paul ergueu a cabeça num movimento brusco ao responder:

— Porque é boa.

— Ah — fez Enoch, encabulado.

— Não é só por causa dos etéreos que não gosto de viajar no passado. Eles são o de menos. — Paul respirou fundo e tornou a olhar para baixo. Um segundo depois, quando olhou para nós mais uma vez, havia escondido os sentimentos lá no fundo. — Vão vocês. Eu espero aqui.

— De jeito nenhum — disse Emma. — Eu não comeria aqui nem se estivesse morrendo de inanição.

— Nem eu — falei.

O cansaço até passou, de tão revoltado que fiquei. Nasci e cresci no Sul dos Estados Unidos, ainda que numa versão esquisita do Sul: toda tropical e cheia de imigrantes de outras regiões. Mas eu nunca havia me deparado com aquele nosso passado tão feio. Afinal, eu era um garoto branco e rico numa cidade de maioria branca. Fiquei envergonhado por nunca ter realmente encarado aquilo de frente, por nunca ter sequer imaginado como seria difícil um simples percurso de carro pelo meu próprio estado para alguém de aparência diferente da minha. E não apenas no passado. Só porque as leis de segregação racial estavam extintas, não significava que o racismo em si havia acabado. Aliás, em certas partes do país aquelas leis ainda constavam nos livros didáticos e tudo!

— E se a gente tacasse fogo nesse lugar? — propôs Enoch, animado. — Seria rapidinho.

— Não levaria a nada — disse Millard. — O passado...

— Eu sei, eu sei, o passado cura a si mesmo.

— O passado? — Paul balançou a cabeça. — O passado não é nada além de uma ferida aberta.

— Ele quis dizer que não dá para mudar o passado — justificou Bronwyn.

— Eu sei o que ele quis dizer — retrucou Paul, e não disse mais nada.

De repente, ouvi uma batida incisiva na minha janela. Era um homem de avental e crachá, e ele olhava fixo para nós, uma das mãos apoiada no teto do nosso carro.

Desci o vidro só um pouquinho.

— Precisando de ajuda? — perguntou ele.

Nenhum sinal de sorriso.

— Já estamos indo embora — respondi.

— Hum-hum. — O olhar dele foi para o banco de trás, depois para o banco do carona. — O garoto aí tem idade para dirigir?

— Sim.

— O carro é seu?

— É.

— Você é policial, por acaso? — perguntou Emma.

— Que modelo que é? — continuou o sujeito, ignorando-a.

— Este é um Aston Martin Vantage modelo 1979 — respondeu Enoch prontamente.

Então ele arregalou os olhos ao perceber o erro que cometera.

O homem apenas nos encarou por um momento, sem expressão.

— Você é comediante, é? — Então ele se virou e acenou para alguém. — Carl!

Um policial que havia acabado de dobrar a esquina no fim do quarteirão deu meia-volta e começou a ir na nossa direção.

— Ligue o carro — sussurrou Emma.

Girei a chave na ignição. O motor fez um barulho capaz de acordar os mortos, e o homem deu um pulo para trás.

Quando se recuperou do susto, ele tentou enfiar a mão pela janela, mas seu braço não passou pela pequena abertura. Acionei a ré e arranquei. O homem soltou um palavrão e puxou o braço a tempo de não ficar sem ele.


O motor potente do Aston tinha a desvantagem de beber muita gasolina. Naquelas sete horas que levamos para chegar a Portal, tivemos que parar duas vezes para abastecer, e fomos obrigados a aguentar as perguntas enxeridas dos frentistas enquanto eles enchiam o tanque para nós. E, como estávamos no Sul, eles ainda por cima eram lentos. Trabalhavam devagar, falavam devagar, contavam o troco devagar e ofereciam trocar o óleo e dar uma conferida nos pneus e lavar o vidro e mil outras coisas desnecessárias, tudo como desculpa para andar em volta do Aston, dando uma boa olhada no veículo e em nós, de todos os ângulos possíveis.

Essas paradas também teriam sido boas oportunidades para esticarmos as pernas e irmos ao banheiro, mas, além de não estarmos com roupas de 1965, eu me recusava a usar um banheiro que Paul era proibido de usar, e sabia que os outros pensavam da mesma maneira. Por conta disso, acabamos nos aliviando numa plantação de laranjas bem na divisa dos estados, nos embrenhando pelas árvores. Voltamos carregados de frutas maduras, que comemos durante a viagem, o suco escorrendo pelo queixo e as cascas voando pelas janelas. Os únicos que saíram do carro em outros momentos além desses foram Emma e Enoch, que, no segundo posto em que paramos, compraram três copos de café na loja de conveniência e os trouxeram para dividirmos entre todos nós. Depois que partimos, estávamos num estado de espírito estranho e taciturno, principalmente Emma. Ao lado dela, Bronwyn perguntou se estava tudo bem, e Emma respondeu um sim que parecia um não, mas não quis dizer mais nada.

As laranjas e o café me sustentaram pelo resto da viagem, e foi um percurso bem chato. À época, a malha rodoviária interestadual ainda não estava completa, por isso tivemos que nos meter em vias secundárias, cruzando cidadezinhas com infinitos sinais de trânsito. Como nosso carro atraía muita atenção (o design do Aston podia até ser exótico em 1979, mas em 1965 era bem futurista), eu precisava me lembrar o tempo todo de me manter abaixo do limite de velocidade, apesar da tentação constante de pisar fundo só para ouvir o ronronar daquele V8 sedento. Estávamos presos em 1965 até encontrarmos uma fenda temporal que nos levasse de volta ao presente (provavelmente, a de Paul), portanto não valia a pena correr o risco de provocar uma perseguição ao estilo Os gatões só para poder chegar logo em Portal.

Anoitecia quando finalmente chegamos. Portal era um nada no meio do nada: colinas suaves pontilhadas por milharais e cercadas por florestas densas, uma cidade de nome esquisito enfurnada entre outras de nomes igualmente esquisitos: Queromais, Avareza, Esperoquegoste, Papai Noel (juro). Imagino que os nomes esquisitos atuassem como uma espécie de camuflagem. A entrada da cidade era marcada por uma placa cravejada de buracos de bala que dizia BEM-VINDO A PORTAL, embora não houvesse nada depois da placa, apenas mais e mais milharais.

Millard pigarreou e se virou para Paul:

— Você disse que o ponto de entrada... muda?

— Isso mesmo — confirmou Paul. — Pode parar aqui? Preciso pegar meu forcado.

Freei e parei no acostamento. Paul saiu do carro e foi até a placa de entrada. Lá, pegou uma chave do bolso do casaco, ajoelhou-se e a inseriu na base da trave que sustentava a placa, abrindo uma portinhola. Havia um pequeno compartimento secreto, de onde ele tirou algo que parecia uma esfera de madeira e alguns bastões de formatos estranhos.

— Que maluquice é essa? — indagou Emma.

Paul encaixou na esfera o maior dos bastões, depois pegou outros dois bastões menores, conectou um ao outro e então os inseriu na parte superior da bola. Ficou parecendo um tubérculo bizarro em que brotara um par de antenas. Paul começou a voltar para o carro segurando aquela coisa no alto, mas no meio do caminho o forcado deu uma guinada para a direita. Ele parou e o segurou firme, com as duas mãos. Então o forcado começou a vibrar, até o momento em que parecia que sairia voando das mãos de Paul, mas ele firmou os pés, chegando a se inclinar um pouco para trás. O forcado apontou as antenas para algum ponto atrás de nós e logo depois parou de vibrar.

 

 

— Está afiado hoje! — disse Paul, rindo, ao voltar para o carro.

Ele entrou e esticou o corpo para fora, pela janela, estendendo o forcado à frente para deixá-lo indicar o caminho conforme eu dirigia.

O forcado deu um tranco para a direita.

— Por ali! — gritou ele.

Fiz uma curva abrupta para uma estradinha de terra. Depois de seguirmos por ali por quase um quilômetro, o forcado virou de repente para a esquerda, apontando para uma área de plantação.

— Esquerda! — gritou Paul.

Olhei receoso para ele.

— Pelo milharal?

A colheita já tinha sido feita, deixando apenas grandes amontoados de milho aqui e ali e fileiras de restolhos que se estendiam pela colina a perder de vista.

 

 

— A entrada está em algum lugar por ali — disse Paul, o forcado divinatório puxando seu braço com tanta força que tive medo de ele sofrer um deslocamento do ombro.

Olhei novamente para o terreno acidentado.

— Não quero estragar o carro.

— Isso mesmo — disse Enoch. — Vai desalinhar as rodas. Ou coisa pior.

— Não podemos ir andando? — perguntou Millard.

— Não podemos deixar o carro fora da fenda — respondeu Paul. — Podem encontrá-lo e descobrir por onde procurar a entrada.

— Você disse que não havia salteadores por aqui — falei.

— Normalmente não tem, mas podemos ter sido seguidos.

— Muito bem. — Engatei a marcha. — Vou tentar ir com calma.

— Melhor não — disse Paul. — Na nossa fenda, coisas grandes e pesadas precisam de bastante impulso para entrar. Recomendo que você vá o mais rápido que puder.

Senti um sorriso se formando no meu rosto.

— Bem... se é mesmo necessário...

— Se o carro quebrar de novo, você que vai consertar dessa vez — resmungou Enoch.

— Delícia! — disse Bronwyn, esfregando as mãos.

— Segurem firme — alertei. — Todos prontos?

Paul se inclinou para fora, segurando com força o forcado em ambas as mãos, apoiando as costas na moldura da porta e firmando os pés do lado de dentro.

Então ele assentiu para mim.

— Pronto.

Depois de duas pisadas rápidas no acelerador, tirei o pé do freio e pisei fundo. Partimos a toda pelo milharal. De repente, tudo vibrava: o carro, o volante, meus dentes.

— Direita! — gritou Paul.

E dei uma guinada para a direita, passando de raspão por um montinho de milho.

— Agora esquerda! — disse ele, já com quase o corpo todo para fora.

Os pneus lançavam jatos de poeira atrás de nós. Pés de milho ainda não colhidos açoitavam a parte inferior da carroceria e o corpo de Paul.

— Agora vai em frente! — gritou ele.

Mas estávamos indo direto para um dos montes de milho, que se aproximava rapidamente.

— Preciso desviar! — gritei.

— Em frente, estou dizendo! Em frente!

Tive que lutar contra o forte instinto de virar o volante. O monte de milho estava vindo veloz na nossa direção, e todo mundo começou a gritar, menos Paul. Fomos engolidos pela escuridão por um breve segundo, como um filme faltando um frame, depois houve um momento de leveza e sentimos a mudança na pressão atmosférica. Então o monte de milho sumiu e o milharal à nossa volta era só terra para todos os lados.

Paul voltou para dentro do carro e gritou:

— Agora freia, freia, FREIA LOGO!

Meti o pé no pedal quando chegávamos ao alto da colina. As quatro rodas do carro saíram do chão por um segundo, e quando aterrissamos, senti o carro derrapando até finalmente pararmos.

— Ughhhhh — grunhiu Millard, no banco de trás.

A poeira dava voltas no ar. O motor continuou fazendo um barulho arrastado. Tínhamos parado perto de um velho celeiro vermelho, na entrada de uma cidadezinha.

Paul saiu.

— Bem-vindos a Portal! — anunciou ele.

— Ah, graças ao Hades — disse Millard, empurrando os outros para sair, e o ouvi vomitar lá fora.

Então todos saímos, satisfeitos em sentir o chão firme sob nossos pés. Tínhamos cruzado o milharal com as janelas abertas, e agora estávamos todos cobertos por uma fina camada de terra e suor. Passei a mão pelo rosto e meus dedos ficaram sujos.

— Agora você está com a cara listrada — disse Emma, limpando minha bochecha com a manga da blusa.

— Vocês podem se limpar na minha casa — ofereceu Paul, fazendo sinal para que o acompanhássemos.


Entramos na cidade. Portal consistia em meros três quarteirões de ponta a ponta e parecia toda construída à mão, desde as casas até as ruas de terra batida e as calçadas de madeira. Ali era 1935, Paul nos informou, no auge da Grande Depressão. Apesar disso, porém, era um local muito limpo e arrumado, com flores e cores vivas em todo canto possível, e as pessoas que passavam na rua naquele momento, cerca de uma dúzia, usavam suas melhores roupas. Um lugar feliz e aconchegante, e eu já lamentava ter que ir embora dali.

— Paul Hemsley! — gritou alguém.

— Epa — murmurou Paul.

Uma jovem veio correndo até ele. Usava um vestido muito branco e um belo chapéu, e tinha fogo nos olhos.

— Você não telefona, não escreve...

— Desculpa por ter demorado um pouco, Alene.

— Um pouco! — A menina bateu nele com o chapéu. — Você sumiu por dois anos!

— Fui dar umas voltas.

— Eu vou dar uma volta no seu pescoço!

Paul pulou da calçada ao levar mais uns golpes de chapéu. Por fim, a menina bufou e se virou para nós.

— Alene Norcross. Muito prazer.

Nem tivemos tempo de responder, pois apareceram duas outras garotas que aparentavam ter a mesma idade de Alene. Paul as apresentou como June e Fern, suas irmãs. Ambas o abraçaram forte, depois lhe deram bronca por ter passado tanto tempo longe e só então se dirigiram a nós.

 

 

— Obrigada por trazerem nosso Paul de volta — disse Fern. — Espero que ele não tenha causado muitos inconvenientes.

— Nenhum — falei. — Ele nos fez um grande favor, na verdade.

— É — disse Bronwyn. — Precisávamos encontrar este lugar, mas achávamos que fosse um portal portal, não uma cidade chamada Portal, porque temos que... aaai!

Emma deu um beliscão no braço de Bronwyn e se aproximou discretamente para murmurar alguma coisa no ouvido dela. Afinal, nem Paul sabia sobre H. ou sobre o pacote. Estávamos seguindo o conselho de H., de não comentar nada com ninguém enquanto não soubéssemos para quem entregar o pacote. Bronwyn olhou feio para Emma, que respondeu da mesma forma.

— Temos um encontro importante aqui — falei.

Fern se animou.

— Ah, é mesmo? Com quem?

— Com quem for o responsável pelo lugar — respondeu Emma. — Imagino que vocês não tenham uma ymbryne, mas têm alguém que seja mais ou menos isso?

— A srta. Annie — respondeu June.

Fern e Alene confirmaram.

— Ela é a mais antiga aqui na cidade. Se você tem uma dúvida, se precisa de um conselho, é só falar com a srta. Annie.

— Podemos ir agora mesmo? — perguntou Emma.

As garotas se entreolharam.

— Acho que ela está dormindo — disse Alene.

— Mas fiquem para o jantar — convidou Fern. — Elmer está preparando seu famoso cordeiro de setenta e duas horas, e a srta. Annie nunca perde a oportunidade.

— Assado no espeto — comentou June. — A carne fica soltinha.

Olhei para Emma, que deu de ombros. Pelo visto, ficaríamos para o jantar.

Seguimos Paul pela cidade. Ele diminuiu o passo quando nos aproximamos de um rapaz ajoelhado junto de um filhote de cachorro muito fofinho.

 

 

— Irmão Reggie! — gritou Paul. — Já ensinou ele a rolar?

— Ei, olha só quem voltou! — exclamou o rapaz, acenando para Paul. — Ainda não. Ele é um bom garoto, mas tem um cérebro pequeno que só.

— Ai, que maldade... — disse Bronwyn.

— Não é isso. Só preciso deixá-lo fora da fenda por um tempo, para que possa crescer. Aqui, ele vai ser sempre um filhotinho.

— Não tinha pensado nisso.

— É por isso que quase não há bebês nas fendas temporais — explicou Emma. — É considerado errado mantê-los tão pequenos por um período tão longo e antinatural.

Um minuto depois, passamos por uma casa de madeira em que um garotinho branco estava à janela com fones de ouvido antigos. Parecia extremamente concentrado. Paul levantou a mão em um cumprimento, e o menino se inclinou para fora e acenou de volta.

 

 

— O que eles estão falando hoje, Hawley? — gritou Paul.

O garoto tirou os fones de ouvido.

— Nada muito divertido — respondeu ele, desanimado. — De novo sobre dinheiro.

— Tomara que amanhã seja melhor. Você vai no cordeiro?

Ele assentiu com vontade.

— Vou!

Seguimos nosso caminho.

— Esse é meu irmão Hawley — explicou Paul. — Ele ouve os mortos pelo rádio.

— Ué — disse Emma, olhando para trás. — Esse menino é seu irmão?

— Ninguém aqui é parente de sangue — respondeu Paul. — Mas somos quase todos sensitivos, e isso já é afinidade suficiente.

— E todos vocês conseguem fazer o mesmo tipo de coisa?

— Olha, tem umas diferenças. Nenhum de nós é exatamente igual a outro. Alene, por exemplo, encontra fontes de água no deserto. Fern e June encontram pessoas desaparecidas. Hawley já é mais sensível a frequências espirituais. Tem até os que leem corações, para saber se uma pessoa ama alguém ou não.

Ele acenou para uma velha senhora numa cadeira de balanço num beco estreito, entre duas casas bem próximas. Ela usava óculos por cima de um tapa-olho, mas parecia nos ver bem. A senhora ergueu a mão em um cumprimento silencioso. Algo manteve meu olhar preso a ela, e cheguei a virar a cabeça como se assim pudesse não perdê-la de vista.

 

 

— E você? — perguntou Millard a Paul.

— Eu encontro portas. É por isso que consigo voltar para casa sempre que preciso. Ah! Falando nela...

Havíamos chegado a uma casa com um minúsculo jardim florido e simpáticas cortinas nas janelas.

— Deixamos arrumadinha para você — disse June. — Gostou das cortinas novas?

— São lindas.

— Sabia que você voltaria alguma hora — disse Fern.

— Eu não tinha tanta certeza — murmurou Alene.

Já no alpendre, Paul se virou para nós. Parecia encantado.

— Não fiquem aí parados — disse ele. — Entrem e vão tomar banho para o jantar!

 

 

CAPÍTULO ONZE


Depois que tomamos banho, deliciados por estar em uma casa confortável após tantas horas na estrada, Paul nos levou até o espaçoso quintal, que era comum a várias casas. Uma grande mesa havia sido montada ali fora. Fazia um belo dia para se comer ao ar livre, e o cheiro que vinha da mesa era divino. Por mais de mil quilômetros, havíamos comido apenas as rosquinhas velhas de Al Potts e “comida imortal”, e acho que só nos demos conta do tamanho da nossa fome quando nos vimos diante das travessas fumegantes de cordeiro e batatas. Arrancávamos grandes nacos do pão caseiro que nos ofereciam e engolíamos litros do chá gelado de hortelã. Acho que foi a melhor refeição da minha vida.

Parecia que metade da cidade estava reunida ali, inclusive todas as pessoas que havíamos conhecido até então: June, Fern e Alene; Reggie e seu cachorrinho, que corria de um lado para outro embaixo da mesa; e Hawley, que mesmo durante a refeição manteve um dos fones no ouvido. E havia as caras novas. Sentado à minha frente estava um sujeito chamado Elmer, de terno e gravata por baixo de um avental estampado com bocas fazendo biquinho e os dizeres COZINHEIRO É FOGO!. Ao lado dele estava um rapaz que se apresentou como Joseph.

— Essa carne está extremamente saborosa — comentou Millard, limpando a boca.

Ninguém achou aquilo estranho nem ficou olhando para o guardanapo flutuante, ou eram muito educados, ou então Millard não era o primeiro invisível que se sentava à mesa com eles.

— Por favor, me esclareça: como você prepara um cordeiro de setenta e duas horas em uma fenda de vinte e quatro? — quis saber Millard.

— A fenda foi criada quando o cordeiro já estava assando fazia dois dias — explicou Elmer. — Assim a gente pode comer cordeiro de três dias todo dia.

— Que brilhante uso das fendas temporais.

— Isso foi bem antes de eu chegar — disse Elmer. — Bem que eu queria ter tido essa ideia, mas tudo que faço é tirar do espeto e cortar!

— Por que não contam um pouco sobre vocês? — pediu Alene. — Ainda não sei quem são.

— Que grosseria, Alene — censurou June. — Eles são convidados do Paul.

— Qual o problema? Temos o direito de saber.

— Claro — disse Emma. — Eu também ficaria curiosa.

— Somos pupilos da srta. Peregrine — explicou Enoch, mastigando batata. — De Gales. Não ouviram falar de nós?

Ele falou como se todos ali obviamente nos conhecessem.

— Não estou lembrado — respondeu Joseph.

— Sério? — surpreendeu-se Enoch, olhando para os outros à mesa. — E vocês? — Todos balançaram a cabeça. — Ninguém? Hum. Bem, somos meio que importantes.

— Não seja esnobe, Enoch — censurou Millard, e então se dirigiu aos nossos anfitriões: — O que ele quer dizer é que temos alguma importância na comunidade peculiar, por conta de nossa atuação na vitória contra os acólitos na Batalha do Recanto do Demônio. Foi de particular mérito para nosso sucesso a participação de Jacob, que...

— Pare com isso — sibilei.

— ... mas vocês, por serem americanos, devem conhecer mais o avô dele, Abraham Portman.

Mais negativas.

— Sinto muito, nunca ouvi falar — respondeu Reggie, abaixando-se para alimentar seu filhote embaixo da mesa.

— Estranho — notou Millard. — Eu tinha a firme convicção de que...

— Abe provavelmente usava um nome falso — disse Emma. E, dirigindo-se aos nossos anfitriões, prosseguiu: — Ele podia ver os etéreos. Não se lembram de ninguém? Ele também podia... influenciá-los.

— Ah! — exclamou Alene. — Será o sr. Gandy?

Aquele nome não me era estranho.

— Seu avô tinha um sotaque diferente? — perguntou um rapaz sentado ao lado de Elmer.

— Polonês.

— Hum. — Ele assentiu. — E às vezes ele viajava com um homem ou uma moça?

— Uma moça? — repetiu Enoch, erguendo as sobrancelhas para Emma.

Emma pareceu ficar tensa.

— Era outra pessoa — retrucou ela, de repente tensa.

June saiu da mesa às pressas e voltou com um álbum de fotos.

— Acho que temos uma foto dele. — Ela foi virando as páginas. — Fazemos isso para nos lembrarmos das pessoas que passam por aqui. Assim sabemos em quem confiar se a pessoa só volta depois de muito tempo. Já tivemos inimigos se passando por amigos.

— Os acólitos são mestres do disfarce, como vocês devem saber — completou Elmer.

— Ah, sabemos bem — falei.

— Então é melhor conferirmos a foto de Paul — comentou Alene. — Será que ele é mesmo quem diz que é?

Paul pareceu magoado.

— Eu não estou igual a antes?

— Acho que está melhor — disse Fern.

— Achei. — June se enfiou entre minha cadeira e a de Emma para nos mostrar o álbum. — Este é Gandy.

Era uma foto em preto e branco de um homem sentado embaixo de uma árvore, falando com alguém que estava fora da imagem. Eu me perguntei quem seria a outra pessoa e o que ele estaria dizendo. Ele tinha o rosto sem rugas e o cabelo preto, e havia um cachorro simpático ao seu lado. O cão usava um boné. Era meu avô como eu raramente o vira: chegando à meia-idade, mas ainda cheio de juventude, ainda em plena forma. Como eu gostaria de tê-lo conhecido naquela época.

 

 

Nossos amigos se levantaram e se reuniram em volta para ver a foto. Emma estava lívida e parecia assustada.

— É ele — disse ela, sua voz quase um suspiro. — É Abe.

— Você é neto do Gandy? — disse Paul, surpreso. — Por que não disse antes?

Em parte, não falei nada porque eu não sabia que Abe usava uma identidade falsa durante as missões, não só na carteira de motorista (que, como lembrei, era onde eu tinha visto aquele nome). Mas o principal motivo era o pedido de sigilo de H.

— Alguém em quem confio me pediu para não comentar com ninguém sobre os caçadores de etéreos.

— Nem com outros peculiares? — perguntou June.

— Com ninguém.

— Não consigo imaginar por quê — comentou Elmer. — Eles são heróis para todos nós.

Ao ver a reação das pessoas ao nome de Gandy, pensei que talvez pudesse ser um pouco mais flexível quanto à regra de H.

— Como podemos ter certeza de que eles estão falando a verdade? — questionou Alene. — Não me levem a mal, mas é que não conhecemos essas pessoas.

— Dou minha palavra de que eles são confiáveis — afirmou Paul.

— Você conhece esse pessoal faz só um dia!

— Esse pessoal matou dois salteadores e colocou um terceiro para correr! — retrucou Paul. — Eles ajudaram à beça os peculiares do Flamingo Rosa, em Starke.

— Não está vendo a semelhança? — disse Elmer, apontando para a foto do meu avô. — O menino é a cara do Gandy!

Os olhos de Alene iam de mim para a foto e de volta para mim. Dava para ver que ela concordava.

— Você disse que o nome verdadeiro dele era Abraham, não foi?

— Sim.

— Como vai ele? — perguntou Elmer. — Já deve estar com a idade avançada. Já não aparece por aqui faz um bom tempo.

— Ele faleceu alguns meses atrás, infelizmente — respondeu Millard.

Houve uma onda coletiva de murmúrios tristonhos.

— Sinto muito — disse Joseph.

— Morreu de quê? — perguntou Reggie.

Fern o censurou com o olhar.

— Que deselegante!

— Tudo bem — falei. — Um etéreo o matou.

— Então ele lutou até o fim — disse Elmer, e ergueu o copo de chá gelado, dizendo: — A Abraham.

Todos fizeram o mesmo, repetindo o brinde:

— A Abraham!

Todos menos Emma.

— E as pessoas que viajavam com ele? — perguntou ela. — Quem eram?

June folheou mais algumas páginas do álbum.

— O sujeito que estava sempre de terno e fumando era o parceiro dele. Vinha nos ajudar quase tanto quanto Gandy. — Ela virou mais uma página e deslizou o dedo no papel até chegar à foto de um jovem H., muitos anos antes. — A foto é antiga, mas é ele.

De fato, era bem antiga, mas não havia dúvida de que era H.: o mesmo rosto, os mesmos olhos que pareciam digerir você em um único instante. Ele tinha um charuto apagado entre os lábios. Aquela imagem mostrava um homem sem disposição para posar para fotos, um homem com coisas mais importantes a fazer.

 

 

— Esse era o parceiro do Gandy — confirmou Joseph. — Um cara muito engraçado. Sabe o que ele me disse uma vez? Eu tinha acabado de voltar do Vietnã, e ele me apareceu naquele carrão antigo e...

— E a garota? — interrompeu Emma, séria.

Joseph parou de falar e abafou uma risada.

— Ops — disse Enoch, com um sorrisinho maldoso. — Alguém parece estar nervosinha.

— A menina? Lembro que a chamavam de V. — respondeu Alene. — Era muito estranha.

— Caladona — explicou Elmer. — Só ficava observando. No início, eu achava que ela fosse a protegida de Abe, como se estivesse sendo preparada para assumir o lugar dele um dia, mas depois, às vezes eu tinha a sensação de que era ela quem estava no comando.

— Ouvi ela dizer uma vez que já foi do circo — contou Joseph.

— Ouvi dizer que ela era dançarina do balé nacional da Rússia — comentou Fern.

— Ouvi dizer que ela foi para o Oeste e virou vaqueira por lá — acrescentou Reggie.

— Ouvi dizer que ela matou sete cabeças numa briga de bar no Texas e teve que fugir para a América do Sul — disse June.

— Isso está me cheirando a impostora — disse Emma.

— Pensando bem — disse Joseph, observando Emma —, ela se parecia um pouco com você. Quando vocês chegaram, no início eu bem achei que você fosse ela.

Quase pensei que sairia fumaça pelas orelhas de Emma.

— Não deve ser o que você está pensando — sussurrei.

Mas Emma me ignorou.

— Tem foto dela? — perguntou.

— Aqui. — June foi até a página que havia marcado com o dedo.

Na foto, V. parecia o tipo de pessoa que come pregos no café da manhã. Ou que ganha a vida montando ursos. E que, aliás, tinha acabado de descer de um deles quando a foto foi tirada. A imagem a mostrava de pé, braços cruzados e olhar distante, queixo erguido em uma expressão desafiadora. E tive que concordar com Joseph: ela realmente lembrava Emma. Mas eu jamais admitiria isso em voz alta.

 

 

Emma observou a foto em silêncio, com um olhar intenso, como se estivesse decorando os traços da menina.

— Está bem — disse ela finalmente.

Notei seu esforço consciente para engolir os sentimentos; quase dava para ver a bile descendo por sua garganta. Então seu rosto se desanuviou e ela abriu um sorriso para June, talvez um pouco exagerado.

— Muito obrigada — agradeceu.

— Ótimo — disse June, e, fechando o álbum prontamente, voltou para seu lugar. — Minha comida está esfriando no prato.

Reggie, sentado diante de mim, se inclinou por cima da mesa:

— Jacob, diz aí: Gandy te ensinou tudo que sabia? Sobre caçar etéreos e tudo o mais? Você deve ter cada história!

— Pior que não. Na verdade, eu sempre achei que fosse normal.

— Ele só soube que era peculiar no início deste ano — contou Millard.

— Caramba! — exclamou Elmer. — Deve estar sendo um aprendizado e tanto!

— Com certeza.

— Ainda falta bastante... — comentou Enoch.

— Sabia que seu avô foi um dos primeiros peculiares que conheci? — contou Joseph, que tinha raspado o prato e estava recostado na cadeira, reclinando-a de leve para trás. — Eu era um peculiar novo, na época. Vivia em Clarksville, Mississippi, lá nos idos de 1930. Estava com treze anos e tinha perdido meus pais para a gripe espanhola. Não fazia a menor ideia de nada sobre peculiaridade, mas sabia que tinha alguma coisa mudando dentro de mim. Era a radioestesia dando os primeiros sinais, e logo comecei a sentir que estava sendo caçado. Ainda bem que seu avô e H. me encontraram a tempo. E me trouxeram para cá.

— Não foram poucas as crianças que Gandy e H. trouxeram para cá nesses anos todos — acrescentou Elmer.

— Mas por que trazer você para uma fenda temporal tão distante? — perguntou Millard. — Não havia outras mais perto?

— Não para sensitivos — respondeu Joseph.

Olhei para meus amigos, e o rosto deles parecia traduzir a mesma pergunta que me ocorreu.

— Quer dizer que só sensitivos podem morar aqui? — perguntei.

— Ah, não, não, não, não somos de excluir ninguém — respondeu Fern. — Qualquer tipo de peculiar pode ficar na nossa fenda. — Ela apontou para uma casa do outro lado do quintal. — O Smith ali é dobra-ventos. Moss Parker, que mora do lado dele, é telecinético, embora só com comida. É bem útil na hora de colocar a mesa!

— Durante muitos anos, tivemos um menino que transformava ouro em alumínio — contou June. — Só não era uma habilidade lá muito requisitada, sabe como é.

— Mas algumas fendas realmente não permitem estranhos, sabe? — disse Elmer. — Te chutam pra fora sem pensar duas vezes.

— Não confiam em ninguém que não seja o mesmo tipo de peculiar que eles — disse Alene.

— Mas somos todos peculiares — disse Bronwyn. — Não é o suficiente?

— Pelo visto, não — respondeu Reggie.

Ele jogou um pedaço de cartilagem na grama, e o cachorrinho saiu correndo para abocanhar.

— Não é contra o código das ymbrynes permitir só um tipo de peculiar no lugar? — perguntou Bronwyn.

— Claro que não — respondeu Enoch. — Não se lembra do povo que fala com as ovelhas naquela fenda da Mongólia? Ou da cidade de flutuadores no norte da África?

— Existem muitas vantagens em viver com outros peculiares que têm a mesma habilidade — disse Millard. — Conheço várias comunidades de invisíveis, por exemplo.

— Ah — disse Bronwyn. — Achei que fosse proibido.

— A organização demográfica por tipo de habilidade é desencorajada pelo código das ymbrynes, porque pode gerar a formação de clãs e assim criar conflitos desnecessários — explicou Millard. — O que é expressamente proibido são fendas fechadas, em que somente um tipo de peculiar pode viver e os outros são banidos.

— Com todo o respeito — disse Elmer —, mas hoje em dia não sobraram muitas ymbrynes para contar história. Os códigos e leis delas não valem muita coisa.

— E por que não há mais ymbrynes? — perguntou Bronwyn. — Até agora, ninguém conseguiu me explicar o que aconteceu com elas, e isso está me deixando nervosa!

— É assim que são as coisas, desde que a gente lembra — respondeu Reggie.

— Algumas pessoas têm uma memória mais longa — disse alguém atrás de nós.

Era a senhorinha de tapa-olho, e ela vinha devagar até a mesa.

— Vejo que começaram sem mim.

— Perdão, srta. Annie — disse Fern.

— Não têm respeito pelos mais velhos — resmungou a srta. Annie.

Mas ficou claro, quando todos se levantaram para recebê-la, que aquela senhora era muito respeitada pela comunidade. Seguindo o exemplo deles, nos levantamos também. Fern saiu às pressas para ajudá-la a se sentar à cabeceira, que estava reservada para ela. Assim que alcançou a mesa, a senhora se segurou na beirada e desceu o corpo lentamente até o assento da cadeira. Só então voltamos a nos sentar.

— Vocês querem saber como chegamos ao ponto em que estamos hoje. — A voz dela tinha tanta potência e força que parecia brotar do fundo de um rio caudaloso. — O que aconteceu com nossas ymbrynes.

Ela uniu as mãos em cima da mesa. O silêncio caiu de repente sobre todos.

— Elas também eram o núcleo da nossa sociedade — prosseguiu a velha senhora —, como ainda são na de vocês. As sementes de sua queda foram plantadas muito tempo atrás, quando os britânicos, os franceses, os espanhóis e os nativos americanos ainda brigavam por estas terras. Um tempo em que nenhum deles havia pensado ainda em brigar pelo direito de pessoas serem donas de outras pessoas.

— A srta. Annie é velha como as montanhas — sussurrou Fern. — Aposto que ela estava lá.

— Tenho cento e sessenta e três anos, mais ou menos. E meus ouvidos ainda funcionam, Fern Mayo.

A jovem baixou os olhos para as batatas.

— Perdão, srta. Annie.

— Alguns de vocês não são daqui, então talvez não saibam. — A senhora olhava para nós ao dizer isso. — Esta nação foi construída com o trabalho roubado dos negros e com a terra roubada dos indígenas. Um século e meio atrás, o sul deste país era uma das áreas mais ricas do mundo, e grande parte dessa riqueza não estava em algodão, ouro nem petróleo, mas na forma de seres humanos escravizados.

Ela fez uma pausa para suas palavras serem absorvidas. Emma parecia enojada, enquanto Bronwyn e Enoch estavam apenas calados, de olhos baixos. Eu tentava compreender aquilo, aquela maldade institucionalizada, de proporções insondáveis, engolindo geração após geração. Avós, pais e filhos e filhos e mais filhos. Era inimaginável, horrendo.

— Tanto dinheiro e tanta riqueza dependiam de uma só coisa: da capacidade de um grupo de pessoas dominar e controlar outro grupo — continuou a srta. Annie. — Agora, imaginem o que acontece quando se introduz a peculiaridade em um sistema assim.

— O caos — concluiu Elmer.

— E o pânico, para as pessoas que estão no controle — prosseguiu a srta. Annie. — Imagine. Um escravo trabalha o dia todo colhendo algodão. Essa é sua vida e sua sentença. Então um dia, sem mais nem menos, essa pessoa, uma menina, manifesta sua peculiaridade. E de repente ela consegue voar.

Ao dizer isso, a srta. Annie olhou para o alto, os braços bem abertos, e a cena que ela descrevia era tão clara em minha mente que me perguntei se ela estava descrevendo a própria experiência. O olhar dela se voltou para Bronwyn.

— O que você faria, se fosse essa menina?

— Eu sairia voando para bem longe dali. Não... Eu esperaria anoitecer, usaria meu poder para ajudar todo mundo a escapar e depois voaria para bem longe dali.

— E se houvesse alguém capaz de transformar o dia em noite? Ou capaz de transformar um homem em um asno?

— Eu faria o meio-dia virar meia-noite — respondeu June. — E transformaria o capataz em jumento.

— Por aí vocês entendem por que eles tinham medo de nós — disse a srta. Anne, as mãos voltando a pousar na mesa, a voz baixando novamente. — Sempre fomos poucos. A peculiaridade sempre foi um traço raro nas populações de toda parte. Mas eles tinham tanto medo desses poucos, que pagavam adivinhos, médicos falsos e exorcistas para saber quem não era normal. Inventavam mentiras e lendas de que os peculiares eram crias de Satã. Tentavam fazer os escravos entregarem uns aos outros. Matavam gente só por conhecerem um peculiar. Por falarem a palavra “peculiar”! E de quais de nós vocês acham que eles tinham mais medo?

— De nossas ymbrynes — respondeu Paul.

— Isso mesmo. Nossas ymbrynes. Aquelas que criaram nossos refúgios, lugares em que nenhum normal entraria, que jamais encontraria. Que tornaram possível nossa sobrevivência. Eles odiavam as ymbrynes mais que qualquer coisa.

— Então esses normais sabiam sobre as ymbrynes? — perguntou Emma. — Sabiam o que elas eram?

— Fizeram de tudo até descobrir. Afinal, era muita coisa em jogo. Os peculiares ameaçavam toda a economia deles, a vida que levavam, ameaçavam a essência de todo aquele sistema perverso, e por isso os donos de escravos planejaram nosso fim com uma força que não deve ter havido igual em outros lugares. Formaram uma organização secreta dedicada a nos encontrar, a destruir nossas fendas temporais e, acima de tudo, a matar nossas ymbrynes. Eles eram impiedosos, incansáveis, obcecados. Tanto que essa organização secreta continuou a existir mesmo depois do fim dos Confederados, mesmo depois do fim da Reconstrução. E os estragos foram imensos. Quando eu era moça, lá por 1860, já eram bem poucas as ymbrynes. E essas poucas nunca davam conta de tudo e estavam sempre correndo perigo. Era uma ymbryne para quatro ou cinco fendas, e mal a víamos. Até que, um dia, parecia que elas haviam desaparecido por completo. O que restou foram semi-ymbrynes e guarda-fendas, que são contratados e mercenários, não líderes, e, na ausência da influência delas, os peculiares deste país foram pouco a pouco se dividindo e perdendo a confiança uns nos outros.

Algo me ocorreu: uma rápida lembrança do restaurante em que paramos em 1965.

— As fendas temporais também eram segregadas, na época? — perguntei. — Por raça?

— Claro — respondeu a srta. Annie. — Só porque eram peculiares, não significa que não fossem racistas. Nossas fendas temporais não eram nenhuma utopia. Em muitos aspectos, eram só um reflexo do mundo lá fora.

— Mas não são mais — disse Bronwyn, olhando para Hawley, o menino branco com fone de ouvido, na outra ponta da mesa, e para uma jovem branca sentada em frente a ele.

— Levamos muito tempo para nos integrarmos, mas, bem devagarinho, conseguimos.

— Os etéreos não querem saber que cor tem nossa pele — comentou Elmer. — Só querem nossa alma. Isso ajudou a nos unir.

— E as fendas de outras partes do país? — perguntou Enoch. — Elas ainda têm ymbrynes?

— As ymbrynes do Sul foram as primeiras a serem caçadas, e as que mais sofreram — disse Elmer. — Mas, aos poucos, as ymbrynes de todo o país desapareceram.

— Todas mesmo? — insistiu Bronwyn. — Não sobrou nenhuma?

— Há quem diga que ainda existem algumas — respondeu a srta. Annie. — As que conseguiram se esconder. Mas não têm nem metade do poder ou da influência de antes.

— E os nativos americanos? — perguntou Millard. — Eles tinham fendas temporais?

— Tinham, mas não muitas, porque em geral eles não se sentiam ameaçados pela peculiaridade, e os peculiares entre eles não eram perseguidos, pelo menos não por seu próprio povo.

— E assim chegamos ao século XX, do qual eu posso falar um pouco — disse Elmer. — A Organização foi desaparecendo, principalmente porque não havia mais ymbrynes a caçar. Os normais começaram a nos esquecer. Em vez disso, as fendas passaram a brigar entre si. Brigavam por território, influência, recursos.

— Taí uma coisa que as ymbrynes nunca permitiriam — disse Alene.

— Ouvimos falar um pouco do que vocês estavam sofrendo na Europa com os etéreos — disse Elmer —, mas a maior parte dos monstros permaneceu do lado de lá do oceano. Tudo isso mudou no fim dos anos 1950, quando os acólitos e etéreos vieram prontos para destruir este país. Isso acabou com as guerras entre clãs, mas mal conseguíamos sair das fendas, com medo de sermos devorados por aquelas criaturas malditas.

— Foi quando meu avô e H. começaram a lutar contra eles — concluí.

— Isso mesmo.

— Então os normais americanos... — disse Bronwyn. — Eles ainda sabem sobre nós?

— Não — respondeu June. — Já faz muito tempo. E não era tanta gente que sabia, mesmo no século XIX.

— Não, não, não, June, isso não é verdade — interrompeu a srta. Annie, balançando a cabeça vigorosamente. — Isso é só o que eles querem nos fazer acreditar. Anote o que estou dizendo: ainda tem muita gente que sabe. Ainda existem normais por aí que conhecem nosso poder, que têm medo de nós, que querem nos controlar.

— Mas do que eles poderiam ter medo? — perguntou June.

— De uma ideia — respondeu a senhora. — A ideia de nós, peculiares, não vivermos divididos e assustados. Do poder que uma nação de peculiares unida poderia ter. É tão assustador para eles hoje quanto era antigamente. — Ela assentiu, reforçando sua conclusão, depois respirou fundo e pegou o garfo. — Agora, se me dão licença... Vocês já acabaram de comer, e eu ainda não dei nem uma mordida.


Todos esperamos a srta. Annie terminar a refeição para sairmos da mesa, e então começamos a arrumar tudo. Ficou óbvio que era para ela o segundo pacote, então me ofereci para acompanhá-la até em casa.

Ela aceitou, e estendi o braço. Ao fim da breve caminhada, entreguei a ela o pacote, que cabia no bolso.

Ela parecia já estar esperando.

— A senhora não vai abrir? — perguntei.

— Eu sei o que é e quem mandou. Me ajude a subir essa escada.

Subimos juntos os três degraus do alpendre, suas costas curvadas a um ângulo de quase noventa graus.

— Espere um segundo — disse ela ao chegar à porta, e entrou.

A srta. Annie voltou menos de um minuto depois, trazendo algo que colocou na minha mão.

— Ele me pediu para lhe dar isto.

Era outra cartela de fósforos de papel antiga.

— O que é isso?

— Leia e vai ver.

De um lado havia um endereço na Carolina do Norte. E, como se isso já não fosse uma instrução bem clara, do outro lado estava escrito: Quem é ESPERTO para aqui... onde seu dinheiro vale MAIS!

 

 

Guardei a cartela.

— Quando encontrá-lo, agradeça por mim — disse a srta. Annie. — E diga para vir ele mesmo da próxima vez, para eu poder dar uma boa olhada naquela carinha bonita. Sentimos falta dele aqui.

— Obrigado.

— Não desista dele. Ele pode ser teimoso e um belo dum chute nas partes, mas não deixe que o convença de que ele não precisa de ajuda. Ele carrega um grande peso nos ombros há muitos anos, e precisa de vocês.

Assenti solenemente e ergui a mão em despedida. A srta. Annie entrou e fechou a porta.

Voltei para meus amigos. Fui até Emma, que conversava com June. Antes que as duas me notassem, June parecia estar explicando algo que não deixou Emma nada feliz. Emma estava de pé, os braços cruzados, o rosto fechado e sério. Quando me viu, aquela expressão desapareceu, e ela se despediu de June e veio correndo ao meu encontro.

— Do que vocês estavam falando?

— Trocando dicas de fotografia. Sabia que ela mesma revelou grande parte daquele álbum?

Era uma mentira deslavada, e me surpreendeu que tivesse lhe ocorrido tão rápido.

— Então por que você está com essa cara? — perguntei.

— Que cara?

— Você estava perguntando sobre a garota. A que viajava com meu avô.

— Não — disse Emma. — Não me importo com isso.

— Não era o que parecia.

Seu olhar ficou bravo.

— Quer parar de pegar no meu pé? — retrucou ela. — Olhe, Bronwyn e Enoch estão vindo.

Millard também estava com eles (tinha se vestido, então estava fácil de ver), assim como June, Fern e Paul, com quem logo tinham feito amizade.

— A gente resolve isso depois.

Emma deu de ombros.

— Não tem nada para resolver.

Quase perdi a paciência naquele momento, mas disse a mim mesmo que nunca entenderia o que Emma estava sentindo e que, se quisesse ficar com ela, eu tinha que respeitar que ela estava passando por uma situação delicada e lhe dar espaço.

Fazia sentido. Mas não diminuía minha mágoa.

Nos preparamos para partir. Paul chegou com uma garrafa térmica.

— Café. Assim vocês não precisam parar.

Elmer veio trocar apertos de mãos.

— Se um dia precisarem de um radiestesista, já sabem onde nos encontrar — disse ele.

— Que homem interessante — comentou Millard quando Elmer se foi. — Vocês sabiam que ele lutou em três guerras ao longo de setenta anos? Durante a Grande Guerra, ele dormia em uma fenda nas trincheiras de Verdun, para não envelhecer.

Bronwyn e Fern se abraçaram.

— Você vai mandar cartas? — perguntou Fern.

— Melhor: vamos visitar vocês — respondeu Bronwyn.

— Seria ótimo.

Eles se despediram, e Paul nos acompanhou até a entrada da cidade, onde havíamos deixado o carro. No caminho, mostrei a todos a cartela de fósforos que a srta. Annie me dera.

— Um endereço! — exclamou Millard. — H. facilitou, dessa vez.

— Acho que os testes acabaram — comentei. — Está na hora da missão de verdade.

— Vamos ver — disse Emma. — Parece que ele nunca se cansa de nos testar.

— Tomem cuidado lá no Norte — avisou Paul. — Ouvi dizer que não é nem um pouco menos perigoso que aqui.

Ele nos explicou como voltar ao presente. Não havia como voltar a 1965 (não que quiséssemos), porque sair pelos fundos nos levaria a um dia de primavera em 1930, quando a fenda de Portal tinha sido criada. Sair pela frente era simples, bastava tomarmos o mesmo caminho de quando entramos: pelos campos, e rápido.

Então nos despedimos de Paul. Verifiquei se todos estavam com o cinto de segurança, girei a chave e pisei fundo.

O carro sacudia inteiro enquanto eu seguia as marcas de pneus no campo aberto, correndo cada vez mais mesmo no trecho mais difícil do terreno. Lá pela metade do caminho, quando chegamos ao ponto em que entramos na fenda e em que as marcas de pneus desapareciam, sentimos um impacto de dar um nó nas tripas. O dia virou noite. O campo reto se transformou em uma muralha de pés de milho. O carro ia atropelando tudo pela frente, derrubando pés e mais pés, que nos acertavam de todos os lados. Eu estava prestes a pisar no freio quando ouvi Millard gritar: Não pare, senão vamos atolar!, então continuei com o pé firme no acelerador, o motor roncando, até que os pneus conseguiram ganhar tração, e, segundos depois, o milharal nos cuspiu na estrada.

Parei. Recuperamos o fôlego. Acendi os faróis. A estrada de terra estava asfaltada, mas, tirando isso, os arredores de Portal eram bem parecidos com o cenário de 1965.

Saí do carro para conferir os estragos, e Millard saiu para vomitar. Havia uma rachadura no alto do para-brisas e espigas esmagadas presas nos para-choques e nas rodas, mas consegui arrancá-las. Até que estava inteiro.

— Todos bem? — perguntei, enfiando a cabeça pela janela.

— Millard não — respondeu Emma.

Olhei bem no momento em que um jorro de vômito atingiu o pavimento. Eu nunca tinha visto uma pessoa invisível vomitar, e não foi algo que eu consiga esquecer tão cedo.

Enquanto ele botava os bofes para fora, senti meu celular (já com sinal de novo, agora que havíamos voltado ao presente) vibrar sem parar no bolso.

24 ligações perdidas, era a notificação na tela. 23 mensagens de voz.

Eu não precisava olhar para saber de quem eram.

Dei a volta e fiquei atrás do carro fingindo verificar mais alguma coisa enquanto ouvia as mensagens às escondidas. As primeiras tinham um tom de ligeira preocupação, mas se tornavam assustadas e raivosas à medida que se sucediam. A décima terceira era algo nesta linha:

“Sr. Portman, aqui é sua ymbryne. De novo. Quero que me ouça com muita atenção. Estou decepcionada que o senhor tenha partido em viagem sem me informar. Extremamente decepcionada. Mas você não tinha o direito de levar as crianças sem minha permissão. Retorne a esta casa neste instante. Obrigada. E um abraço.”

Parei nessa. Até pensei em contar aos outros, mas acabei pensando melhor. Todos nós sabíamos, antes de pegar a estrada, que a srta. Peregrine não aprovaria a viagem; as mensagens só os deixariam agitados e talvez os fizessem cogitar a ideia de voltar.

— Pronto — disse Millard, voltando ainda meio trôpego. — Terminei.

Guardei o celular.

— Sinto muito que você não esteja se sentindo bem.

— Imagino que não possamos seguir de trem — disse ele, a voz fraca. — Estou ficando um tanto quanto cansado de automóveis.

— O resto da viagem vai ser tranquilo — falei. — Prometo.

Millard suspirou.

— Não faça promessas que não pode cumprir.

 

 

CAPÍTULO DOZE


Estávamos de volta ao presente, e felizmente as autoestradas americanas modernas permitem viagens mais rápidas, pelo menos durante a madrugada. Assim, energizados pelo café de Paul e por uma fita cassete do álbum Dark Side of the Moon que encontrei no fundo do porta-luvas, os quilômetros logo ficaram para trás. Quando me dei conta, já tínhamos terminado de cruzar a Geórgia e todo o estado da Carolina do Sul. Agora faltava pouco para a cidade indicada na cartela de fósforos, situada no norte da Carolina do Norte. Após a breve briga que Emma e eu tivéramos, em Portal, o clima entre nós havia caído para temperaturas abaixo de zero. Ela resolveu passar para o banco de trás, mesmo estando apertado, e Enoch aproveitou para ir na frente comigo.

Às vezes eu dava uma olhada em Emma pelo retrovisor. Quando não estava dormindo ou olhando pela janela com cara de poucos amigos, estava folheando o livro de registros de Abe, lendo-o sob a luz tremeluzente de uma chama rosada. Mais uma vez, tentei argumentar comigo mesmo que era um momento complicado para ela, que ela estava tentando entender algo que nunca havia precisado enfrentar tão diretamente, porque sempre viveu muito distante de Abe — do outro lado do oceano, do outro lado do tempo. Só que agora parecia que ela estava me dando um gelo, me punindo por eu tê-la questionado. E eu não sabia até quando aguentaria aquilo.

Eram três e meia da madrugada e minha bunda estava dormente quando enfim chegamos à saída que precisávamos pegar. Eu me orientei pelo celular para chegar ao endereço que constava na cartela de fósforos de H. Não fazíamos a menor ideia do que encontraríamos lá. Um posto de gasolina? Uma cafeteria? Outro hotel?

Nenhuma das opções acima. Era uma lanchonete de fast-food chamada OK BURGER 24 HORAS. O lugar brilhava palidamente no meio de um estacionamento vazio, escuro e deserto e, fazendo jus ao nome, estava aberto àquela hora e parecia mesmo ok. Olhei pelo vidro e vi que todas as cadeiras estavam viradas de cabeça para baixo nas mesas, mas havia uma plaquinha na porta avisando: DRIVE-THRU ABERTO.

Estacionei bem em frente à entrada, o único carro ali. H. não estava lá. Na verdade, não havia ninguém lá — apenas o infeliz funcionário alocado para o turno da madrugada. Olhei para dentro e vi o garoto mexendo no celular atrás do balcão.

— Não estava escrito a que horas H. viria nos encontrar? — perguntou Bronwyn.

— Não — respondi. — Mas ele nunca esperaria que a gente chegasse às três e meia da manhã.

— Então vamos ter que ficar aqui esperando até amanhecer? — indagou Enoch. — Que estupidez.

— Tenha paciência — pediu Millard. — Ele pode chegar a qualquer momento. A madrugada é o melhor horário para um encontro... se for um encontro secreto.

Esperamos. Os minutos passavam devagar. O jovem atendente lá dentro guardou o celular e começou a varrer o chão.

Um ronco ressoou ao meu lado de repente, e todo mundo olhou para Enoch.

— Isso foi um motor de caminhão? — perguntou Millard.

— É fome — respondeu Enoch, olhando para a própria barriga.

— Não dá para esperar? — perguntou Bronwyn. — E se H. aparecer, como ele vai saber que estamos no drive-thru?

— Na verdade, Enoch teve uma boa ideia — disse Millard. — Posso ver a cartela de fósforos de novo?

Entreguei a ele. Millard a virou e revirou na mão.

— Não é só um endereço — concluiu ele. — É uma pista. Veja o que está escrito.

Ele deu a caixa a Bronwyn, que leu em voz alta:

— “Quem é esperto para aqui... Onde o seu dinheiro vale mais”. E daí?

— Daí que acho que temos que comprar alguma coisa.

Liguei o carro e dei a volta para a entrada do drive-thru. Fomos em direção ao alto-falante em que os pedidos são feitos, com a enorme placa luminosa do menu.

Uma voz muito alta e fina surgiu com interferência metálica:

— BEM-VINDOS AO OK BURGER 24 HORAS, O QUE VÃO...

Bronwyn deu um grito e, numa reação instantânea, enfiou o comprido braço pela janela e deu um soco no alto-falante. O aparelho se soltou do suporte fixo no chão e tombou, quebrado e calado.

— Bronwyn, ficou maluca?! — gritei. — Ele só ia anotar o nosso pedido!

— Desculpa. — Ela se encolheu no banco do carro. — Levei um susto.

— Você não pode sair de casa, hein? — reclamou Enoch.

Fossem circunstâncias normais, eu teria ido embora da cena do crime, mas aquela não era uma circunstância normal, então tirei o pé do freio e avancei devagar até a janela de retirada dos pedidos, onde o funcionário adolescente de avental laranja ainda falava no microfone.

— Alô? Estão me ouvindo?

Ele falava muito devagar e estava com os olhos vermelhos e inchados. Devia estar chapado.

— Oi — chamei. — O som não... hã... não está funcionando.

O garoto deu uma baforada tão forte que tremeu os lábios.

— Beleeeeeeza — disse ele, abrindo a janela. — O que vai ser?

— O que tem de bom aqui? — perguntou Millard.

— O que você está fazendo? — sussurrou Emma para ele.

O funcionário estranhou e olhou para o banco de trás.

— Quem disse isso?

— Fui eu — respondeu Millard. — Sou invisível. Desculpe, eu deveria ter mencionado antes.

— Millard! — exclamou Bronwyn. — Seu bocó!

Mas o garoto pouco se importou.

— Ah, saquei — disse ele, assentindo chapadamente. — Eu iria no combo 2, com certeza.

— Então me veja o combo 2, por favor — pediu Millard.

— E cinco hambúrgueres! — gritou Enoch. — Completos. E com chips.

— Não temos chips.

— Ele quis dizer batata frita — traduzi.

Paguei pelo pedido, e o garoto foi para a cozinha preparar a comida. Voltou alguns minutos depois, com um saco de papel pesado já quase transparente, de tão encharcado de gordura. Abri o saco para conferir. Tinha um monte de hambúrgueres, uma quantidade imensa de batatas e um maço de guardanapos. Comecei a distribuir a comida, até que restou no saco apenas um pequeno envelope branco. Um envelope chique, com um selo de cera vermelha.

— O que será isso? — perguntei, mostrando o envelope para os outros.

— Não faz parte do combo? — respondeu Emma, com indiferença.

Saindo do drive-thru, voltei ao estacionamento e parei para abrir o envelope. Acendi a luz interna, e todo mundo se inclinou para a frente para ver também. Era outro guardanapo, mas este tinha algo datilografado, em máquina de escrever. O papel engordurado dizia:

Peculiar novo sendo caçado, situação de alto risco.

Missão: proteger e extrair.

Proposto transferir para fenda 10.044.

Necessário extrema cautela.

 

 

E mais nada. Não dizia o nome do peculiar em questão nem especificava onde ficava a tal fenda 10.044. Mas no verso do guardanapo havia algumas coordenadas.

— Eu entendo de coordenadas! — disse Millard, animado. — A longitude é um número negativo, então o lugar fica bem a oeste do meridiano de Greenwich...

— É um colégio no Brooklyn, em Nova York — completei, vendo no celular. — Basta colocar as coordenadas no aplicativo.

Millard bufou.

— Nenhuma tecnologia jamais substituirá os talentos de um cartógrafo de verdade.

— Temos uma missão e um local — disse Emma. — Só não temos o nome do peculiar que devemos procurar.

— Talvez H. não saiba o nome — sugeriu Bronwyn. — Talvez parte da missão seja descobrir o nome.

— Ou então é uma questão de segurança — disse Enoch. — Não dá para sair por aí deixando o nome de peculiares em perigo em guardanapos que poderiam cair nas mãos de, sei lá, um atendente de lanchonete.

— Acho que ele não é só um atendente — disse Millard. — Jacob, você se importaria de voltar lá?

Liguei o motor, dei a volta e entrei de novo no drive-thru. Quando o garoto abriu a janela, parecia um pouco incomodado.

— Ah. Oi.

Millard se inclinou para fora.

— Desculpe incomodá-lo, meu amigo. Poderia nos servir um combo número 3?

O atendente registrou o pedido num teclado engordurado e nos cobrou dez dólares e cinquenta. Enquanto eu estava pagando, foi a vez de Bronwyn se inclinar para fora.

— Você conhece o H.? — perguntou ela. — Você é um caçador de etéreos? Que lugar é esse?

Ele não respondeu. Apenas me deu o troco, agindo como se não tivesse ouvido nada.

— Ei! — insistiu Bronwyn.

O garoto nos deu as costas e foi até a cozinha.

— Ele não deve ter permissão para responder a esse tipo de pergunta — falei.

Depois de um minuto, ele voltou e depositou na bancada outro saco de papel engordurado. O saco chegou a fazer um baque ao pousar.

— Tenham uma boa noite — disse o garoto, e fechou a janela.

O saco estava mais pesado que o normal, mas só tinha batatas fritas e anéis de cebola. Combo mais sem graça, pensei, entregando o saco a Millard enquanto saía da lanchonete para pegar a estrada. Era um longo caminho até o Brooklyn, e eu queria partir antes que o movimento intenso da manhã transformasse as vias expressas em estacionamentos.

Millard terminou de comer uns dez minutos depois, quando já voávamos pela estrada. Ouvi sua risada e me virei para trás por um momento.

Ele tirou do saco de papel um objeto pesado e de forma oval.

— O que é isso? — perguntei.

— O combo 3, ao que parece. Batata frita com uma granada de acompanhamento.

Bronwyn deu um gritinho e se abaixou atrás do banco.

Então o OK Burger era mais que um posto de entrega de mensagens: era um depósito de armas para peculiares. Fiquei me perguntando quantos dos postos secretos utilizados pelo meu avô seriam como aquele, escondidos em plena vista (também fiquei curioso em saber qual seria o brinde que viria com o combo 1).

Millard ria, passando a granada engordurada de uma das mãos para a outra.

— Veja só, nosso dinheiro realmente vale mais lá!


Continuei dirigindo, beliscando a comida com uma das mãos enquanto os outros devoravam a deles. Eram corpos adolescentes, crescendo e envelhecendo pela primeira vez em muitos anos, por isso ficavam muito famintos às vezes. Quando terminaram de comer, todos caíram num sono pesado. Menos Emma, agora novamente ao meu lado. Se eu não podia dormir, ela também não dormiria, explicou.

Por uma hora, mal nos falamos. Eu passava por emissoras de rádio em volume baixo enquanto ela observava o mundo escurecido se desenrolar lá fora. Estávamos no meio do estado da Virgínia quando um amanhecer levemente cinzento começou a tingir o céu. O silêncio entre nós começou a parecer uma pedra se formando no meu peito. Eu estava tendo conversas imaginárias com Emma nos últimos oitenta quilômetros e finalmente não consegui aguentar mais.

— Temos que...

— Jacob, eu...

Nenhum de nós dois tinha dito uma só palavra em um bom tempo, e de repente nós dois falamos juntos. Olhamos um para o outro, surpresos com a estranha sincronia.

— Você primeiro — pedi.

— Não, você.

Dei uma olhada no retrovisor: Bronwyn e Enoch dormiam profundamente. Enoch até roncava um pouco.

— Você não o esqueceu. — Eu não pretendia ser tão brusco, mas havia guardado aquelas palavras por tanto tempo que estavam entaladas na garganta. — Você não o esqueceu. E isso não é justo comigo.

Ela olhou para mim, chocada. Como se estivesse com medo de dizer o que precisava.

— Sempre que alguém menciona o nome dele, você reage de maneira estranha — continuei. — Desde que descobriu que havia uma garota entre os caçadores de etéreos, sua cabeça está em outro lugar. Como se ele tivesse traído você. E como se tudo isso não tivesse sido há muito tempo.

— Você não entende. Não tem como entender.

Meu rosto ficou quente. Eu só queria que ela admitisse e se desculpasse, mas aquilo estava tomando um outro rumo. Um rumo pior.

— Eu estou tentando — falei. — Fico dizendo a mim mesmo que é para ignorar, para não ser tão sensível, para te dar seu espaço. Tento me convencer de que é só um período difícil para você. Mas a gente não tem mais como adiar essa conversa.

— Acho que você não vai querer ouvir o que está passando pela minha cabeça — disse ela.

— Se a gente não conversar, isso nunca vai se resolver.

Ela baixou o olhar por um breve instante. Estávamos passando por uma fábrica naquele momento, duas chaminés gêmeas soprando fumaça no ar.

— Você já amou alguém a ponto de ficar doente de amor? — disse Emma.

— Eu amo você — respondi. — Mas isso não me deixa doente.

— Que bom. Espero que nunca se sinta assim, porque é horrível.

— Você já? — perguntei.

Ela assentiu.

— Por Abe. Principalmente depois que ele foi embora.

— Hum.

Tentei manter uma expressão neutra, mas estava magoado.

— Foi ruim. Fiquei obcecada por alguns anos. Acho que ele também, no início. Mas, para ele, passou, e para mim só piorou.

— Você entende por que isso aconteceu?

— Porque eu estava presa na fenda temporal, e ele, não. Quando a gente fica confinada assim por tantos anos, o mundo parece um lugar muito pequeno. Não faz bem para a mente nem para o espírito. Os menores problemas tomam proporções enormes. E a saudade, que normalmente passaria em alguns meses, começa a... a nos consumir. Por um tempo, eu realmente pensei em tentar fugir para viver com ele, mesmo sabendo que seria extremamente perigoso para mim.

Tentei imaginar Emma naquela época. Sozinha e triste, vivendo de cartas que demoravam cada vez mais a chegar, o mundo exterior representando um sonho distante.

A fábrica ficara para trás, dando lugar a campos extensos. Cavalos pastavam na neblina da manhã.

— Por que não tentou? — perguntei.

Emma não era o tipo de pessoa que se acovardava diante de um desafio, ainda mais se precisasse fazer algo por alguém que amasse.

— Porque eu tinha medo de que ele não ficasse tão feliz em me ver quanto eu ficaria em vê-lo — respondeu ela. — E isso eu não suportaria. Além do mais, seria só trocar uma fenda por outra, uma prisão por outra. Abe não era ligado a nenhuma fenda. Eu teria que encontrar alguma perto dele e viver lá, como um pássaro na gaiola, esperando que ele fosse me visitar quando tivesse algum tempo. Não fui feita para isso, para ser esposa do capitão do navio: olhando para o mar todo dia, preocupada, esperando. Eu é que quero estar lá, no meio do mar, em movimento.

— É o que você está fazendo agora. E agora está comigo. Então por que ainda pensa nele?

Ela balançou a cabeça.

— Você fala como se fosse simples — disse Emma. — Mas não é fácil esquecer um sentimento que me acompanhou por cinquenta anos. Cinquenta anos de saudade, dor e raiva.

— Você tem razão, eu não posso nem imaginar. É que achei que já tínhamos superado isso. Achei que já tivéssemos falado bastante sobre o assunto.

— Sim — disse ela. — Eu também achei que tivesse superado. Não teria dito tudo que falei para você se não achasse isso. Eu só... eu não imaginava que me afetaria tanto vir para cá. Tudo que fazemos aqui, todos os lugares... parece que o fantasma de Abe está em cada esquina. E aquela ferida antiga que eu pensei estar cicatrizada é reaberta a toda hora, toda hora.

— Pelo amor de Deus — disse Enoch —, será que vocês podem adiantar esse rompimento de namoro para eu poder voltar a dormir?

— Achei que você estivesse dormindo! — respondeu Emma.

— Quem consegue dormir com todo esse chororô?

— Não estamos terminando — falei.

— Ah, não? Olha, quem vê até pensa...

Emma jogou uma embalagem de comida vazia nele.

— Vai cuidar da sua vida, Enoch.

Ele deu uma risadinha e voltou a fechar os olhos. Talvez tivesse adormecido outra vez, talvez não. De qualquer forma, não nos sentíamos mais à vontade para conversar, então apenas seguimos em frente, e, em vez de palavras, nos demos as mãos, meio sem jeito com o câmbio da marcha entre nós, os dedos entrelaçados firmes, como se tivéssemos medo de soltar um ao outro.

As palavras de Emma davam voltas na minha cabeça. Em parte, eu estava aliviado por termos enfim conversado, mas no fundo desejava nunca ter ouvido nada daquilo. Desde o início, uma voz dentro de mim sussurrava, nos piores momentos: Ela amou mais a ele. Até então, eu sempre encontrara um meio de calar essa voz, de sufocá-la, mas agora Emma tinha lhe dado um megafone. E eu nunca admitiria isso, porque senão ela saberia que eu já nutria esse medo antes, que eu era inseguro, e isso só faria a voz crescer. Assim, apenas apertei a mão dela e continuei dirigindo.

Dirigindo o carro maneiro do seu avô, provocou a voz. Para seguir numa missão herdada dele. Para provar... o quê?

Que eu era capaz, essencial e digno de respeito como ele fora.

Eu tinha dito que não queria a vida do meu avô, e era verdade, em grande parte. Eu queria minha própria vida. Mas queria que as pessoas sentissem por mim o que sentiam por ele. Ao colocar dessa forma, eu via como era patético meu desejo. Só que desistir e dar meia-volta agora seria ainda mais patético. O único caminho, a meu ver, era ser tão bom naquilo a ponto de sair da sombra dele de uma vez por todas, conquistar o respeito de todos e ficar com a mocinha da história — não um eco do que ela sentira por Abe, mas seu coração por inteiro.

Eram metas grandiosas. No entanto, pelo menos dessa vez, o destino de todo o mundo peculiar não estava em risco. Apenas meu relacionamento e minha autoestima.

Ha.

Foi quando Enoch, que estava novamente apenas fingindo dormir, se manifestou mais uma vez:

— Depois que você terminar com a Emma, posso voltar para o banco da frente? As pernas gigantescas da Bronwyn estão me esmagando.

— Eu vou matar esse garoto — ameaçou Emma. — Homicídio, sério.

Enoch levou a mão ao peito, fingindo estar chocado.

— Ah, meu Deus... Você não vai terminar com ela!

— Não se mete — falei.

— Jacob, tenha um pouco de respeito por si mesmo! A garota ainda está gamada no seu avô!

— Você não sabe do que está falando — disse Emma, tão alto que acordou Bronwyn e Millard.

— Se não era Abe, então para quem você estava dizendo Te amo no telefone ontem?

— O quê? Que telefone?

Olhei para Emma. Seu olhar fixo parecia empenhado em abrir um buraco no piso do carro.

— Aquele atrás do posto de 1965 — respondeu Enoch. — Ops! Você não contou essa parte para ele?

— Era uma conversa particular — murmurou Emma.

Por pouco eu não perdi a saída que precisava pegar, mas tive que fazer a curva no último segundo.

— Uooou! — fez Bronwyn. — Não precisa matar a gente!

Parei no acostamento, abri a porta do carro e saí andando sem olhar para trás. Fui até a sombra de um elevado ali perto, atravessando um monte de lixo atirado pelos carros que passavam por ali. Lá de baixo vinha um som que parecia de um rio.

— Eu devia ter lhe contado.

Era Emma, que vinha atrás de mim. Continuei andando. Ela me seguiu.

— Sinto muito, Jacob. Me desculpa. Eu precisava ouvir a voz dele uma última vez.

Ela havia falado com um Abe de outros tempos, uma versão antiga capturada pela fenda temporal, de uma época em que ele ainda era de meia-idade.

— Você acha que eu não tenho vontade de falar com ele? Todo dia?

— Você sabe que não é a mesma coisa.

— Claro que não é. Ele foi seu namorado, você o amou. Mas aquele homem me criou. Ele foi mais importante para mim do que meu próprio pai. E eu o amava mais que você o amou! — Eu estava gritando, para ser ouvido acima do eco dos rugidos do tráfego. — Você não tem o direito de fazer isso. Não tem o direito de ligar em segredo para um Abe do passado quando eu daria tudo para falar com ele de novo. Não tem o direito de dizer que não sei o que é perder alguém ou ter raiva por ter sido deixado para trás e por ele ter escondido coisas de mim. Porque eu sei o que é isso.

— Jacob, eu...

— E não pode dizer que me ama, dizer que vamos ficar juntos e ficar cheia de charme e ser linda e meiga e forte e incrível e tudo de maravilhoso que você é, para depois ficar com saudade dele e dizer que o ama pelas minhas costas!

— Eu queria me despedir. Só isso.

— Mas escondeu isso de mim. Isso é o pior.

— Eu ia falar com você, mas estamos o tempo todo rodeados de gente!

— Como posso acreditar em você?

— Eu ia contar. É verdade. Isso estava me consumindo por dentro, mas eu não sabia como falar.

— É só dizer: eu ainda o amo! Não consigo tirar Abe da cabeça! Você é só uma imitação fajuta dele, mas quebra um galho!

Emma arregalou os olhos.

— Não, não, não. Não diga isso. Você não é isso, não mesmo. Não é.

— Mas é como me sinto. Não foi por isso que você veio comigo nessa missão?

— Do que você está falando?!

Emma estava quase gritando.

— Não está só vivendo uma fantasia antiga? Tentando recuperar o tempo perdido, compensar todos os anos que ficou para trás? Essa é sua chance de finalmente sair em missão com Abe, ou pelo menos o mais próximo possível disso.

— Agora é você que não está sendo justo comigo.

— Ah, não estou?

— NÃO! — gritou Emma, virando-se de costas para mim ao mesmo tempo que uma pequena bola de fogo escapou de suas mãos fechadas e salpicou o chão, deixando em chamas algumas embalagens de comida e um casaco velho.

Lentamente, ela se virou de volta para mim.

— Não foi por isso — disse Emma, pausadamente, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu vim porque isso significava muito para você. Porque eu queria ajudar você. Não tem nada a ver com ele.

— A grama está pegando fogo.

Fomos correndo e começamos a pisar nas chamas para apagá-las. Quando terminamos, nossos tornozelos e tênis estavam cobertos de terra.

— Eu devia ter ouvido os meus instintos — disse Emma. — E eles me diziam para não vir para a América. Para nunca ir à casa em que Abe morou. Seria como perseguir o fantasma dele.

— É isso o que você está fazendo?

Ela hesitou para responder, parecendo realmente pensar na pergunta.

— Não.

— Às vezes, sinto que é isso o que eu estou fazendo.

O rosto de Emma se transformou ao ouvir isso. Ela me olhou como se enfim baixasse a guarda e permitiu um vislumbre de sua vulnerabilidade.

— Você não está perseguindo o fantasma de Abe — disse ela. — Está se inspirando nele.

Comecei a abrir um sorriso, mas parei. Eu queria tocá-la, mas mantive as mãos nos bolsos. Algo ainda me incomodava, e eu não queria fingir que não via isso. Um único momento de compreensão mútua não resolveria nosso problema.

— Se quer que eu vá embora, é só dizer. Eu volto para o Recanto. Tem muito a ser feito lá.

— Não — respondi. — Só não quero que a gente minta um para o outro. Sobre o que somos, ou sobre o que estamos fazendo.

— Muito bem. — Ela cruzou os braços, o corpo rígido. — O que nós somos, então?

— Somos amigos.

Meu corpo gelou quando eu disse isso, mas era verdadeiro e correto. O que sentíamos um pelo outro era desproporcional, e o melhor a fazer era me afastar. Ficamos ali parados por um tempo, o ruído do tráfego nos varrendo em ondas, sem saber direito o que fazer. Então ela me abraçou e disse Sinto muito.

Não a abracei de volta.

Quando me soltou, Emma seguiu para o carro sem mim.


Bronwyn, Enoch e Millard estavam com fome, então compramos café e sanduíches e voltamos para a estrada. Emma continuou ao meu lado, mas por um bom tempo não nos falamos. Os outros não sabiam o que tinha acontecido entre nós, mas sabiam que alguma coisa tinha acontecido, e até Enoch percebeu que era melhor não fazer perguntas.

Emma e eu entramos num acordo tácito de que não falaríamos sobre nossas questões pessoais na frente dos outros. Não brigaríamos. Seríamos profissionais, cumpriríamos a missão. E, quando tudo tivesse terminado, talvez a gente não se visse por um tempo.

Tentei não pensar nisso. Tentei me deixar levar pelo ritmo da estrada, mas a dor insistiu em ficar ali, latejando logo acima do limite do ignorável, um incômodo constante que atrapalhava minha concentração.

Começamos a atravessar a sequência de grandes metrópoles da Costa Leste, e a primeira delas era a própria capital dos Estados Unidos, Washington, D.C. Meu avô e eu criamos um mapa daquela região, entre os muitos que fizemos quando eu era pequeno. Era cheio de marcações incompreensíveis de Abe. Algumas rodovias hachuradas, outras destacadas com linhas paralelas, e um monte de símbolos ao redor da cada cidade: uma pirâmide preenchida com linhas pontilhadas, uma espiral dentro de um triângulo. Agora eu via claramente que eram locais de alguma importância para Abe, H. e os outros caçadores de etéreos, mas, se indicavam pontos de apoio ou perigo, isso não sabíamos.

Numa estrada nas cercanias da capital, notamos que estávamos nos aproximando de um desses lugares marcados com símbolos estranhos, e pensamos em ir até lá para ver o que era.

— Pode ser um esconderijo, assim como pode ser um covil da morte — disse Millard. — Não temos como saber.

— Essas marcações todas podem ser uma porção de fendas temporais — disse Bronwyn.

— Ou uma porção de namoradas — acrescentou Enoch.

Emma o fuzilou com o olhar.

Foi quando meu celular tocou. Levei um tempo para resgatá-lo do amontoado de guardanapos e batatas fritas geladas no console central.

Na tela aparecia EU, ou seja, era alguém telefonando da minha casa.

— Atende! — disse Bronwyn.

— Não, não, não, péssima ideia — falei, pensando que poderia ser a srta. Peregrine de novo, mas, quando fui apertar o botão de rejeitar a chamada, me atrapalhei e acabei apertando o de atender. — Merda.

— Alô? Jacob?

Era Horace, não a srta. Peregrine.

Coloquei a chamada em viva-voz.

— Horace? — respondi.

— Estamos todos ouvindo — disse Millard.

— Graças a Deus! — exclamou Horace. — Estava com medo de vocês terem morrido.

— O quê? — perguntou Emma. — Por quê?

— Ah, porque... Nada não.

Um sonho, com certeza. Ele só não queria nos assustar.

— São eles? — ouvi Olive dizer ao fundo. — Quando eles voltam?

— Nunca! — gritou Enoch, inclinando-se para perto do telefone.

— Não dê ouvidos a ele — disse Millard. — Estamos na estrada agora. Voltaremos para casa assim que possível. Mais alguns dias, no máximo.

Era uma suposição, e teria sido a minha também. Quanto tempo seria necessário para encontrar um peculiar num colégio, levá-lo para outro lugar e voltar para casa percorrendo de novo todos aqueles quilômetros? “Alguns dias” me parecia razoável.

— Escutem, a diretora está furiosa — disse Horace, ao telefone. — Disfarçamos de todo jeito, mas Claire acabou dando com a língua nos dentes, e agora ela quer matar vocês. Está transtornada.

— Foi por isso que você ligou? — perguntei. — Já sabíamos que ela ficaria assim.

— Façam um favor para nós. Se ela perguntar, digam que falamos para vocês não irem, mas que vocês não nos deram ouvidos.

— É melhor voltarem agora mesmo! — disse Olive.

— Não podemos — disse Bronwyn. — Estamos numa missão.

— Tenho certeza de que ela vai entender quando souber o que fizemos — disse Millard.

— Não sei, não — retrucou Olive. — Ela fica com a cara de uma cor esquisita só de ouvir o nome de um de vocês.

— Onde ela está agora? — perguntei.

— Está procurando vocês — respondeu outra voz. — Aqui é o Hugh, a propósito.

Imaginei todos eles amontoados em volta do aparelho de telefone no quarto dos meus pais, as cabeças coladas.

— Oi, Hugh — disse Emma. — A srta. Peregrine está nos procurando onde?

— Ela não falou. Só avisou para não sairmos daqui, senão ficaríamos de castigo para o resto da vida, e saiu voando.

— Castigo uma ova! — disse Enoch. — Não deixem que ela trate vocês como bebês.

— É fácil falar — respondeu Hugh. — Vocês aí tendo altas aventuras, enquanto nós ficamos com uma diretora louca da vida. Levamos um sermão interminável ontem, que na verdade era para vocês ouvirem. Quatro horas ouvindo ela falar de responsabilidade, honra, lealdade e sei lá mais o quê. Achei que minha cabeça fosse cair do pescoço.

— Por aqui não é só diversão, sabiam? — disse Bronwyn. — Esse negócio de aventura é uma complicação. Mal dormimos, não tomamos banho e não comemos direito desde que saímos. Sem contar que quase fomos mortos a tiros, e Enoch está começando a feder que nem cachorro molhado.

— Rá! — respondeu Enoch. — Pelo menos eu não tenho cara de cachorro.

— Ainda é melhor que ficar preso aqui — disse Horace. — Mas olha, por favor, tomem cuidado e voltem vivos. E sei que vocês vão estranhar o que vou dizer, mas, quando estiverem vivendo suas aventuras, lembrem: comida chinesa é boa, comida continental é ruim.

— Do que você está falando? — perguntou Emma.

— O que seria “comida continental”? — perguntei.

— Faz parte do sonho que eu tive — respondeu Horace. — Só posso dizer que é importante.

Prometemos nos lembrar, e então Horace e Olive se despediram. Antes de desligarem, Hugh perguntou se tínhamos descoberto alguma coisa sobre Fiona em nossas viagens.

Olhei para Emma, que ficou tão envergonhada quanto eu de repente me senti.

— Ainda não — respondeu Emma. — Mas vamos continuar perguntando, Hugh. Em todos os lugares.

— Está bem — disse ele, baixinho. — Obrigado.

E desligou.

Guardei o celular. Emma se virou para os outros com uma careta de dor.

— Não me olhe assim — disse Enoch. — Fiona era uma garota maravilhosa, mas ela morreu, e não temos culpa se Hugh não consegue aceitar isso.

— Mesmo assim, devíamos ter perguntado — disse Bronwyn. — Poderíamos ter perguntado no hotel Flamingo, em Portal...

— Vamos perguntar a partir de agora — decidi. — E se ela tiver mesmo morrido, pelo menos podemos dizer a Hugh que fizemos o que podíamos.

— Combinado — disse Emma.

— Combinado — disse Bronwyn.

— Hum — disse Enoch.

— Podemos tratar do nosso plano? — perguntou Millard, que era mestre em mudar de assunto quando as coisas ficavam emotivas demais.

— Que ideia excelente — respondeu Enoch. — Eu nem sabia que tínhamos um plano.

— Vamos até o colégio, vamos encontrar o peculiar que está em perigo e aí vamos ajudá-lo — disse Bronwyn.

— Mas é claro. Como pude esquecer esse plano tão genial e elaborado?

— Eu já sei perceber quando você está sendo sarcástico — disse Bronwyn. — Agora você está sendo, acertei?

— De forma alguma! — respondeu Enoch, sarcástico. — É muito simples. A gente entra nessa tal escola em que nunca pisamos antes e pergunta para todo mundo que encontrar pela frente: “Diga-me, você conhece alguma pessoa peculiar? Algum aluno manifestou habilidade peculiar nos últimos tempos?” Mais cedo ou mais tarde, vamos encontrá-la!

Bronwyn balançava a cabeça.

— Enoch, esse é um péssimo plano.

— Ele está sendo sarcástico — disse Millard.

— Mas você falou que não estava! — reclamou Bronwyn, chateada.

A hora do rush matutino começava a congestionar a rodovia. Um caminhão entrou na minha frente e tive que reduzir de repente. Então o caminhão arrotou uma nuvem de fumaça preta sobre nós. Millard e eu começamos a tossir. Abri as janelas.

— E para onde exatamente levaríamos esse peculiar? — perguntou Enoch.

Emma pegou o guardanapo com a proposta de missão.

— Para a fenda 10.044 — respondeu ela.

— E onde fica isso? — perguntou Bronwyn.

— Não sabemos ainda.

Bronwyn cobriu o rosto com as mãos.

— Ai, meu Deus, isso não vai dar certo! E a srta. Peregrine nunca vai nos perdoar, e terá sido tudo a troco de nada!

Apenas um minuto antes ela estava convencida de que seria fácil, e agora tinha perdido toda a esperança.

— Você só está meio desnorteada — disse Emma. — Tarefas muito grandes sempre parecem impossíveis se tentamos antecipar cada detalhe. Temos que ir com calma, um passo de cada vez.

— É como aquele velho ditado, sobre como se come um urxinim.

— Que nojo, Millard — disse Bronwyn, ainda com as mãos no rosto.

— É só uma metáfora. Ninguém come urxinins de verdade.

— Alguém deve comer — disse Enoch. — Será que eles assam ou comem cru?

— Cala a boca — ordenou Emma. — Uma dentada de cada vez, é assim que se come um urxinim. Então vamos nos concentrar no nosso próximo passo, e depois nos preocupamos com o passo seguinte. Vamos encontrar o peculiar, e depois nos preocupamos em encontrar a fenda. “Uma dentada de cada vez”. Tudo bem assim?

Bronwyn enfim levantou a cabeça, olhando para Emma através dos dedos abertos.

— Podemos usar uma outra metáfora?

Emma riu.

— Claro.

A hora do rush começava a afrouxar suas garras, até que nos libertamos do trânsito e seguimos rumo à Filadélfia, depois a Nova York e a tudo de desconhecido que nos esperava por lá. Mergulhamos no silêncio, contemplando nossa próxima dentada.

 

 

CAPÍTULO TREZE


Eu tinha feito e testemunhado muitas loucuras nos últimos meses, mas entrar em Nova York de carro pela primeira vez foi uma das experiências mais intensas daquele verão. A cidade era um borrão alucinante de automóveis buzinando, um sem-número de pistas, túneis sufocantes e pontes vertiginosas. A todo momento meus companheiros de viagem gritavam sobre esse ou aquele perigo, e eu agarrava o volante com força, o suor escorrendo pelas minhas costas. Depois de incontáveis quase batidas e entradas erradas, as instruções dadas pela inabalável voz robótica do aplicativo de celular conseguiram, por algum milagre, nos fazer chegar ao nosso destino: a Escola de Ensino Médio J. Edgar Hoover. Eu não era nenhum conhecedor da geografia de Nova York (só tinha estado ali antes uma vez, quando criança, com meus pais), e a Hoover não ficava perto de nenhum dos pontos famosos que eu pudesse reconhecer da TV ou dos filmes. Para começar, ficava no Brooklyn, não em Manhattan, e não era nem em um dos bairros hipsters do Brooklyn. O lugar era uma versão mais pobre e mais apertada dos típicos subúrbios americanos, com casas menores e mais antigas coladas umas nas outras e carros estacionados em ambos os lados das ruas.

Encontramos a escola com facilidade. Era um imponente edifício de tijolinhos que ocupava o quarteirão inteiro, o tipo de lugar que poderia muito bem ser uma prisão de segurança mínima, uma estação de tratamento de água ou uma variedade de outras instituições, mas que, no caso, abrigava centenas de jovens mentes impressionáveis. Em outras palavras, era bem parecida com a minha própria escola na Flórida, e a ideia de entrar me deu calafrios.

Era o meio da tarde. Estacionamos do outro lado da rua e ficamos no carro observando a entrada do prédio, tentando decidir por onde começar.

— E aí, como está o nosso plano superelaborado? — perguntou Enoch.

— Podemos simplesmente entrar e dar uma olhada — sugeriu Millard. — Ver se alguém chama nossa atenção.

— São centenas de alunos — retruquei. — Acho difícil a gente encontrar nosso peculiar assim.

— Só vamos saber deitando — disse Millard, abrindo um bocejo. — Quer dizer, tentando.

— Também queria descansar um pouco — concordou Bronwyn. — Meu cérebro derreteu.

— E o meu — falei.

Bronwyn me ofereceu a garrafa térmica que Paul nos dera. Ainda tinha metade, mas o café já estava gelado. Além do mais, eu estava muito tenso, ainda que cansado, e o café só me deixaria mais aflito. Depois de mais de vinte e quatro horas sem dormir, eu me sentia prestes a me desintegrar.

Ouvimos o sinal da escola tocar, e trinta segundos depois as portas se abriram, lançando um jorro de estudantes no pátio. Em questão de segundos, o gramado estava cheio de adolescentes.

— Essa é nossa chance — disse Bronwyn. — Algum deles parece peculiar a vocês?

Um menino de moicano roxo passou por nós na calçada, seguido por uma menina de calça saruel e coturno xadrez e cem outros adolescentes, cada um com seu estilo e suas estranhezas únicas.

— Sim — respondeu Emma. — Todos.

— Isso não faz sentido — retrucou Enoch. — Se o nosso peculiar está em perigo, então ele está com medo, e se está com medo, vai tentar passar despercebido em vez de chamar atenção.

— Ah, então estamos procurando alguém tão normal que seja suspeito. Normal demais.

— Não, sua idiota, estou querendo dizer que é inútil ficarmos olhando achando que vamos encontrar a pessoa. Alguma outra ideia?

Ficamos observando as hordas de alunos por mais um minuto, mas era óbvio que Enoch tinha razão. Seria como tentar encontrar uma agulha num palheiro.

— Talvez a gente pudesse, não sei, perguntar a algumas pessoas — sugeriu Emma.

Enoch riu.

— Ah, sim. “Com licença, estamos procurando um aluno com características ou poderes estranhos. Tipo uma segunda boca na nuca.”

— Sabem quem saberia como agir nessa situação? — falei. — Abe.

Enoch revirou os olhos.

— Ele está morto, lembra?

— Sim, mas nos deixou um manual de instruções. Ou o mais perto disso que teremos.

Peguei o livro de registros, que eu havia guardado embaixo do banco do passageiro.

— É uma boa ideia — disse Millard. — Temos o registro de todas as missões que ele fez com H. em trinta e cinco anos. Claro que eles já passaram por situações como esta. Vamos ver o que fizeram.

— E podemos voltar amanhã, depois que descansarmos um pouco — falei.

Do jeito que eu estava, não conseguiria achar nem o palheiro, quanto mais a agulha.

— Excelente plano — disse Emma. — Se eu não dormir em breve, vou começar a ter alucinações.

— Tem alguém vindo! — sussurrou Bronwyn.

Olhei pela janela e vi um homem branco e magro se aproximando com um walkie-talkie na mão. Usava uma camisa polo preta para dentro da calça cáqui e óculos de sol espelhados. O típico inspetor-geral.

— Nomes! — ladrou ele.

— Olá, tudo bem? — falei, com muita calma e simpatia.

— Quero os nomes de vocês — repetiu ele, muito austero. — E sua carteira de motorista.

— Não estudamos aqui, então não temos que lhe dar satisfação — disse Bronwyn.

Enoch escondeu o rosto entre as mãos.

— Sua idiota.

O homem se abaixou um pouco para olhar dentro do carro e ergueu o walkie-talkie.

— Base, aqui é perímetro, temos uns jovens desconhecidos aqui.

E deu a volta para informar o número da placa.

Liguei o carro e dei uma acelerada, e o rugido do motor fez o homem cambalear para trás de susto (eu estava começando a me apegar a esse truque). Aproveitei e fui embora dali.

— Esse homem me deu uma sensação ruim — comentou Emma.

— Típico dos inspetores — respondi.

Senti uma pontada aguda no estômago quando estava virando a esquina, mas aguentei firme e me encolhi, para disfarçar.

Seria possível que fosse um etéreo? Seria esse o perigo que rondava aquele peculiar?

Então a dor passou, de modo tão repentino quanto havia surgido, e decidi, por ora, guardar essas dúvidas para mim.


Encontramos um lugar para descansar graças aos postais que eu havia trazido, os que Abe me enviara de suas viagens. Eu me lembrava de ter visto alguns de Nova York, então, quando já estávamos a alguns quilômetros da escola, estacionei para procurar. A imagem era uma foto bem antiga de um quarto de hotel sem atrativos, e no verso havia o nome do lugar, o endereço e uma mensagem curta de Abe. O carimbo postal tinha a data de nove anos antes.

 

 

Ficarei aqui por alguns dias, nos arredores de NY. É um

espaço tranquilo e agradável, com serviços

nota dez. Vou encontrar uns amigos de longa

data. Se um dia você vier a Nova York, recomendo que se hospede

aqui. Peça para ficar no quarto 203. Com muito amor, vovô

— Notaram algo nesta mensagem? — perguntou Millard.

— É meio aleatória — comentou Emma. — Qual a necessidade de dizer em que quarto ele ficou?

— É o código mais simples que existe. Um acróstico.

— Um o quê? — perguntei.

— Veja a primeira letra de cada linha. Qual palavra forma?

Dei uma segunda olhada.

— F... E... N... D... A.

— Santo pai do céu! — exclamou Bronwyn, inclinando-se para ver.

— Ele estava lhe mandando mensagens em código — disse Millard. — O bom e velho Abe, cuidando de você mesmo do além-vida.

Eu balançava a cabeça, impressionado, virando e revirando o postal na mão.

— Valeu, vô — falei baixinho.

— Mas não precisamos ficar em fendas — lembrou Emma. — Não estamos fugindo de etéreos e não corremos perigo de envelhecimento acelerado. Pode dar mais trabalho do que ajudar.

— É verdade, cada gente estranha que a gente conhece em fendas temporais... — concordou Bronwyn. — E, sem querer ser antissocial nem nada, mas eu só quero dormir.

— Acho que devemos tentar — disse Millard. — Precisamos encontrar a fenda 10.044, talvez alguém lá possa nos dar alguma informação.

Enoch suspirou.

— Contanto que tenha uma cama... Meu pescoço já está torto de tanto dormir nesse carro.

Eu queria ir, então desempatei na decisão. Era mais por curiosidade, e eu gostava da sensação de estar seguindo os passos do meu avô. Então lá fomos nós, atravessando o Brooklyn e a imensa ponte de dois andares que leva à Staten Island. Em vinte minutos chegamos ao hotel, chamado The Falls. Era um prédio pequeno e malcuidado, com quartos que davam para a rua movimentada e uma placa que alardeava com orgulho: TV EM TODOS OS QUARTOS.

Na recepção, pedimos o quarto 203. O atendente era um rapaz grandalhão e desengonçado, que estava sentado lendo uma revista com as pernas apoiadas no balcão. Usava um casaco de lã, apesar do calor lá fora. Ele deixou a revista de lado e perguntou:

— Por que vocês querem esse quarto específico?

— Foi muito bem recomendado — respondi.

O rapaz tirou os pés da mesa e se inclinou para nós.

— De que clã vocês são?

— Da srta. Peregrine — respondeu Bronwyn.

— Nunca ouvi falar.

— Então, de nenhum.

— Não devem ser daqui.

— Não é para isso que servem os hotéis? — questionou Emma. — Para abrigar pessoas que não moram por perto?

— Olha, em geral só recebemos hóspedes afiliados a algum clã, mas, como estamos quase vazios, vou abrir uma exceção. Só preciso ver algum comprovante de identificação.

— Claro — falei, já pegando minha carteira.

— Não desse tipo. Quis dizer um comprovante.

— Acho que ele quer uma prova de que somos peculiares — disse Millard, e ergueu do balcão um peso de papel, que balançou no ar e colocou de volta no lugar. — Invisível aqui. Oi.

— Ok — disse o atendente. — Que tipo de quarto vocês querem?

— Tanto faz — respondeu Enoch. — Só queremos dormir.

Mas o atendente já tinha pegado um mostruário. Ele o abriu sobre o balcão e começou a listar as opções:

— Bom, é claro que temos quartos padrão, e são bons, mas não têm nada de especial. Nossa especialidade são as acomodações especiais que oferecemos aos hóspedes peculiares. Temos, por exemplo, um quarto perfeito para os deficientes gravitacionais. — Ele nos mostrou uma foto de uma família sorridente posando em um quarto com a mobília toda presa ao teto. — Os flutuadores adoram. Podem relaxar, comer, até dormir em conforto total, sem precisar de roupas ou cintos especiais.

 

 

Ele virou mais uma página e nos mostrou uma foto de uma menina na cama com um lobo, ambos em roupas de dormir.

 

 

— Aceitamos animais peculiares de quase todos os tipos, contanto que sejam treinados, pesem menos de quarenta e cinco quilos e sejam comprovadamente não letais.

Ele virou mais uma página, para uma foto de um ambiente que parecia um bunker subterrâneo com bela mobília.

 

 

— E temos um quarto especial para nossos hóspedes... hum... incendiáveis. — Ele olhou de relance para Emma. — Para que não coloquem fogo na propriedade durante o sono.

Ela pareceu ofendida.

— Eu nunca entro em combustão espontânea. E não temos animais, nem flutuamos.

Mas o atendente ainda não tinha terminado sua exposição.

— Temos também um quarto de piso forrado com terra fofa, próprio para aqueles que têm raízes, ou para os parcialmente mortos...

— Não precisamos de quartos estranhos! — explodiu Enoch. — O comum serve.

— Como quiser. Quarto comum. — O rapaz fechou o mostruário prontamente. — Só mais algumas perguntas.

Enoch gemeu quando o atendente pegou uma ficha.

— Fumegantes ou não fumegantes?

— Você quer dizer fumantes? Não, não fumamos — respondeu Bronwyn.

— Quero saber se emitem fumaça por alguma parte do corpo.

— Ah. Não.

— Não fumegantes. — Ele assinalou um item na ficha. — Individuais ou duplos?

— Gostaríamos de ficar todos no mesmo quarto, se for possível — disse Millard.

— Não foi o que perguntei. Vocês têm algum duplo? Doppelgängers, replicantes, binários... Nesses casos, cobramos um valor adicional e exigimos documentos de cada um.

— Não — respondi.

Ele assinalou outro item.

— Quantos anos vão ficar?

— Quantos anos?

— ... vão ficar?

— Só uma noite — respondeu Emma.

— Assim tem taxa extra — murmurou o atendente, assinalando mais itens na ficha. — Ok. Por aqui.

Ele saiu de trás do balcão e nos conduziu por um corredor externo lúgubre e tomado pela poluição sonora do trânsito até uma área de serviço também escura. Era uma entrada de fenda. Dessa vez eu percebi logo, então já estava preparado para o solavanco. Quando saímos, era noite lá fora, fazia frio e muito silêncio ao redor. O atendente nos fez voltar pelo mesmo corredor, que era bem mais limpo em sua versão do passado.

— É sempre noite aqui. Facilita para nossos hóspedes dormirem quando quiserem. — Ele parou em frente a um quarto e abriu a porta para nós. — Se precisarem de mim, é só atravessarem a entrada da fenda, estarei na recepção.

Ele foi embora, e nós entramos. O quarto era igual à foto do postal enviado pelo meu avô. Havia uma cama de casal, umas cortinas horrorosas, uma TV gorda cor de laranja e simulações de painéis de parede de pinho, a variedade de cores e padrões se fundindo numa desarmonia que era quase um barulho, um zumbido incômodo. O quarto tinha também um sofá-cama e uma cama de casal dobrável, o suficiente para acomodar nós cinco. Enquanto os outros se instalavam, Millard e eu sentamos no sofá-cama para darmos uma olhada no livro de registros de Abe.

— Eles fizeram algumas missões que guardam certas semelhanças com nossa incumbência atual — comentou Millard. — Pode ser elucidativo vermos como eles enfrentaram os desafios no caminho.

Por sorte, Millard havia lido o fichário inteiro duas vezes ao longo das muitas horas na estrada, sua mente tão aguçada que havia memorizado longos trechos. Ele foi direto até um registro do início dos anos 1960, uma missão em que Abe e H. precisavam resgatar uma criança peculiar no norte do Texas, mas não sabiam exatamente em qual cidade.

— Por onde eles começaram? — perguntou-se Millard em voz alta, dando uma rápida lida por alto. — Transitando pelas cidades e conversando com a população local. Até que souberam de um circo itinerante que estava de passagem pela área, e, como bem sabemos, esse é o tipo de lugar que os peculiares adoram, pois se sentem confortáveis. Eles encontraram o circo montado nos arredores perto da cidade de Amarillo. A criança peculiar estava escondida dentro de uma das atrações, um elefante de papelão gigante. — Anexada ao registro estava uma foto do elefante. Era mesmo imenso, maior que uma casa. — Dá para acreditar? — disse Millard, rindo. — Um elefante de Troia!

 

 

— Então eles só saíam perguntando por aí? — questionou Enoch, que estava acompanhando nossa conversa. — Era esse o método de investigação brilhante deles?

— Investigação simples e direta — respondeu Millard. — O melhor tipo.

— Certo — falei. — O que mais eles faziam?

— Buscas periódicas! — exclamou ele, com uma animação que eu não entendi. — Veja. — Ele passou várias páginas até achar o registro que estava procurando. — Havia uma moça que estava se tornando invisível rapidamente. Ela era uma peculiar nova e, se minhas experiências pessoais servem de parâmetro, certamente estava aterrorizada. O objetivo de Abe era encontrá-la antes que desaparecesse totalmente e levá-la para algum grupo peculiar bondoso, de preferência outros invisíveis. Mas não seria fácil, pois a moça havia fugido de todas as tentativas de contato anteriores.

— E eles a encontraram pelo jornal? — perguntei, olhando o relatório. — Como?

— Abe e H. conseguiram localizá-la graças a uma manchete sensacionalista. Os tabloides não podem ser levados a sério, mas de vez em quando eles contêm certa dose de verdade. Veja. — Ele virou a página. Presa no verso com um clipe estava uma foto de duas crianças em uma praia. No primeiro plano via-se um jornal amassado na areia. A manchete estava meio borrada, mas dava para ler uma parte. — Por meio desta notícia ridícula, eles conseguiram encontrá-la numa cidadezinha praiana na Califórnia, e, lá, chegaram ao local específico. Praias são péssimos lugares para os invisíveis, porque as pegadas deixam marcas na areia. Eles conseguiram explicar quem eram e o que estava acontecendo com ela, e assim a moça aceitou ajuda.

 

 

— E se não sair nenhuma manchete absurda sobre o nosso peculiar? — perguntou Emma. — Se não houver nada tão óbvio quanto um circo na cidade?

— E se tivermos que procurar a pessoa numa escola em que todos os três mil adolescentes parecem peculiares? — completou Enoch.

— Nesses casos, quando sabiam o local específico mas não tinham nenhuma outra informação, eles se infiltravam na área e simplesmente esperavam que surgisse alguma pista.

— Espionagem — falei. — Como nos filmes!

— Quanto tempo demora uma espionagem? — perguntou Bronwyn.

— Semanas, às vezes mais.

— Semanas! — exclamou Enoch. — Ou mais!

— Não vai ser preciso tudo isso — falei. — Vamos entrar na escola, conversar com os alunos, fazer umas perguntas. Vocês vão ter que fingir que são como os outros.

— Vai ser moleza, depois de tantas e tão proveitosas aulas de normalidade que tivemos com você — comentou Enoch.

— Isso foi sarcasmo! — apontou Bronwyn.

Enoch estalou os dedos para ela.

— Você está chegando lá.


Se eu não estivesse tão cansado, a estranheza de dormir no sofá-cama enquanto Emma dormia do outro lado do quarto certamente teria me tirado o sono por metade da noite. A distância entre nós era esquisita, e nos poucos momentos de calma, quando mais nada estava acontecendo, nossa situação ocupava minha mente por completo, mas naquela noite eu apaguei assim que deitei a cabeça no travesseiro. Tive a impressão de terem se passado apenas alguns minutos quando abri os olhos e vi Bronwyn me sacudindo. Oito horas transcorreram em um estalar de dedos, e, embora eu não me sentisse nem um pouco recuperado, era preciso levantar.

A primeira aula começava dali a duas horas, e eu queria ter o dia inteiro à disposição para nossa busca. Só nos permitimos perder um pouco mais de tempo no banho. Estávamos todos com o cabelo oleoso e com poeira de estrada nas orelhas e nas unhas, uma péssima imagem a passar dos peculiares para a tal pessoa que estávamos procurando. Por consenso geral, no mínimo não podíamos dar a impressão de que morávamos no carro.

Fui o primeiro a tomar banho, o que me proporcionou um tempo livre enquanto eu esperava os outros, e decidi dar uma olhada nos jornais, como Abe e H. haviam feito no caso da menina invisível. Com a internet, essa era uma tarefa mais fácil hoje em dia, mas para isso precisei sair do quarto e sair da fenda para meu celular funcionar.

No presente quente e barulhento, fiz uma busca pelo nome da escola. Encontrei rapidamente uma matéria de jornal publicada algumas semanas antes, com a manchete: APAGÃO INEXPLICÁVEL DEIXA COMPANHIA ELÉTRICA CONFUSA E ALUNOS EM PÂNICO NA HOOVER HIGH. Em resumo, o incidente relatado era que, durante uma apresentação no auditório, todas as luzes da escola haviam se apagado, deixando oitocentos alunos na escuridão repentina. O caos foi tamanho que houve uma debandada para sair do local, ocasionando ferimentos em várias pessoas.

Não entendi. O que poderia haver de tão assustador em uma queda de luz? Acontecia na minha escola o tempo todo, já que a Flórida é um estado com alto índice de tempestades de raios. Desci a tela até a seção de comentários, alguns dos quais eram de alunos da própria escola, explicando que não havia sido um simples apagão. As luzes de emergência, que deveriam ter sido acionadas pelo gerador, não funcionaram, e um dos comentários na página dizia: “A lanterna do meu celular não ligava, nem a minha nem a de ninguém.” O blecaute havia durado apenas alguns minutos, mas foi suficiente para deixar sérios estragos.

A meu ver, devia ter sido um pulso eletromagnético. Isso explicaria a queda dos aparelhos, tanto os elétricos quanto os de bateria, mas a segunda parte da história não se encaixava nessa teoria: no mesmo dia do blecaute houve um segundo incidente, uma explosão em um dos banheiros femininos. Só que não foi propriamente uma explosão, de acordo com os comentários.

“Foi como se tivesse estourado uma bomba de luz”, escreveu alguém. “Porque as paredes estavam queimadas e tal, mas não quebrou nada.”

Em outras palavras, não houvera estragos físicos, o que indicava que não podia ter sido uma explosão normal ou um incêndio. O que será que havia acontecido, então?

Segundo a matéria, dois homens haviam se ferido na explosão, ambos funcionários, e a suspeita recaía sobre uma aluna, cujo nome não era divulgado por se tratar de uma menor de idade. Ela havia fugido do local e estava sendo procurada pelo jornal para dar mais informações. O que os dois homens estariam fazendo no banheiro feminino? A matéria não levantava hipóteses, mas um comentário apontava: “TARADOS!”

Entrei novamente na fenda e voltei ao quarto para contar tudo aos outros.

— Isso tem bem cara de incidente peculiar — disse Bronwyn.

Emma, que estava ajeitando o cabelo no banheiro, enfiou a cabeça pela porta.

— Se foi isso — disse ela, a voz vibrando junto com o secador —, então estamos procurando alguém capaz de manipular a eletricidade.

— Ou a luz — acrescentou Millard.

— Podemos começar falando com as pessoas sobre o que houve naquele dia — sugeri. — Perguntando do que elas se lembram e quem estava presente. Escolas são fábricas de fofocas, só precisamos fazer umas amizades e aproveitar a tendência natural das pessoas a falar mal dos outros.

Enquanto eu falava, minha própria ideia parecia absurda. “Só fazer umas amizades”? Em dois anos no ensino médio, meu saldo geral era de um amigo.

— Talvez alguém saiba quem é a menina suspeita — disse Bronwyn. — A que fugiu.

— Talvez a gente consiga botar as mãos nas gravações da câmera de segurança — comentou Enoch.

— Seja quem for, essa peculiar deve ser poderosa — disse Emma.

— Sem dúvida — disse Millard, que estava de calça social, camisa de botão e boina. — Se tem alguém caçando essa peculiar, ela deve valer a pena, então eu diria que, sim, ela é poderosa. E perigosa, talvez. Por isso, se acontecer de vocês acharem que sabem quem é, não façam nada por conta própria. Vamos decidir juntos o melhor plano de ação.

— Por que você se vestiu? — perguntei. — Vamos sair daqui a pouco.

— Às vezes eu sinto falta de usar roupas. E tem a questão das assaduras.

— Digamos que a gente encontre essa pessoa — disse Enoch, retomando o assunto em pauta. — O que fazemos? Dizemos “Ei, venha com a gente! Temos que levar você para uma fenda temporal!”?

— Por que não? — perguntou Bronwyn.

— Porque ela vai achar que somos loucos!

— É um peculiar novo, lembram? — falei. — Ela não sabe o que é fenda temporal, o que nós somos, não sabe que existem pessoas como ela no mundo... Nada disso.

Enoch tinha calçado os tênis e estava ensaiando andar com eles.

— Argh, são tão molengas.

— Jacob não sabia de nada quando o conhecemos e deu tudo certo — disse Bronwyn.

— Eu achei que tinha ficado maluco. E Emma quase cortou minha garganta!

— Achei que você fosse um acólito! — gritou ela, do banheiro.

— Ok, foi um começo difícil — concluiu Bronwyn, dando de ombros —, mas veja no que deu, agora vocês se amam!

Fingi estar ocupado arrumando a mochila, enquanto Enoch e Millard a ignoraram. Bronwyn ficou confusa.

— O que foi que eu disse de errado?

Então Emma saiu do banheiro, o cabelo preso num rabo de cavalo despojado. Ela vestia uma blusa de manga comprida verde-clara que combinava com seus olhos e, em contraste com os tênis esportivos, uma elegante calça de jeans escuro que lhe serviu, digamos, com perfeição. A pontada que senti foi tão intensa que me virei para não olhar.

Num sotaque americano passável, ela disse:

— Vamos lá, pessoal?

Bronwyn ergueu o polegar.

— Arrasou, cara! — Ela forçou um sotaque estranho e numa voz esganiçada. — Vamos mandar ver, galera!

Meus ouvidos doeram.

— Talvez seja melhor usar seu sotaque normal. E esquece as gírias.

Ela fez beicinho e girou o polegar para baixo.

— Não curti.

 

 

CAPÍTULO CATORZE


Chegamos à escola pouco antes do primeiro sinal. Estacionei a quarteirões de distância, para que nenhum inspetor obcecado por disciplina nos abordasse. Enquanto caminhávamos até a escola, fiquei concentrado nos meus instintos, atento ao menor indício de presença de etéreos, mas não senti nada.

Nos misturamos à massa de estudantes subindo a entrada e chegamos a um longo corredor bem-iluminado, com diversas salas de aula e apinhado de corpos. Tivemos que colar o corpo na parede para não sermos pisoteados, e ficamos ali esperando, meio atordoados no meio daquele intenso fluxo de adolescentes que parecia um grande cardume de peixes.

Escapamos para uma sala de aula vazia, com pôsteres de Shakespeare e James Joyce na parede e as carteiras organizadas em fileiras certinhas. Notei que Emma observava tudo em volta com um ar um pouco melancólico, e então me lembrei de ela ter comentado que nunca havia frequentado uma escola de verdade.

— Normalmente, eu nunca sugeriria isto, mas acho melhor nos separarmos — disse Millard. — Um grupo grande de gente desorientada chama muita atenção.

— Assim também podemos explorar mais áreas em menos tempo — completou Emma.

— Então, está decidido.

Eu ainda não acreditava que eles estivessem prontos para andar sozinhos por uma escola moderna, mas Millard tinha razão, e não havia escolha. Bronwyn formou dupla com Enoch e sugeriu perambularem pelas quadras de educação física e as áreas externas. Conversariam com algumas pessoas (sem aquele seu bizarro sotaque pseudoamericano) e tentariam extrair informações. Como era invisível, Millard não podia falar com ninguém, mas poderia entrar escondido na secretaria.

— Se houve um incidente tão grave a ponto de sair no jornal, com certeza há registros de eventualidades menores — argumentou ele.

— Pode ser que haja também registro de alguma advertência disciplinar para o nosso peculiar — lembrou Emma.

— Ou de uma avaliação psiquiátrica — sugeri. — Se ele já tentou contar a verdade sobre o que estava acontecendo, no mínimo foi encaminhado para uma avaliação de saúde mental.

— Bem pensado — concordou Millard.

E assim sobramos Emma e eu, uma dupla relutante. Combinamos de irmos ao refeitório, que é sempre um caldeirão de fofocas.

— Têm certeza de que vocês vão ficar bem? — perguntei antes de nos separarmos. — Vão se lembrar de não falar nada sobre os anos 1940 nem usar suas habilidades?

— Pode deixar, Portman — respondeu Enoch. — Preocupe-se com vocês.

— A gente se reencontra em uma hora, em frente a esta sala — falei. — Se alguma coisa der errado, acionem o alarme de incêndio e corram para a entrada principal. Entendido?

— Sim — responderam todos, menos Millard.

— Millard? — chamou Emma. — Cadê você?

A porta da sala se fechou. Ele já tinha saído.


Os refeitórios escolares figuravam já fazia um tempo entre as primeiras posições no meu ranking pessoal de lugares menos preferidos do planeta. São sempre barulhentos, feios, fedorentos e lotados de grupinhos de adolescentes ansiosos zanzando de lá para cá em uma dança social complexa que nunca aprendi direito. Aquele não era exceção à regra. E lá estava eu, encostado numa parede, ao lado de Emma, tendo me oferecido para passar uma hora naquele inferno. Como eu sempre fazia nessas situações, me imaginei um antropólogo observando os rituais de um povo pouco conhecido. Emma parecia bem mais à vontade que eu, mesmo estando rodeada de gente oito décadas mais jovem que ela. Com a postura relaxada, observava o ambiente com tranquilidade. Ela sugeriu entrarmos na fila do café da manhã e nos sentarmos para comer.

— Claro, para fingir que somos mesmo alunos daqui — concluí. — Boa estratégia.

— A verdade é que estou com fome.

— Ah.

Entramos na fila. Funcionárias com redinhas no cabelo nos entregaram bandejas com ovos mexidos borrachudos, uma gosma marrom de salsichas gordurosas e caixinhas de leite achocolatado. Emma pareceu pouco empolgada com o cardápio, mas aceitou tudo sem reclamar. Pegamos nossas bandejas e começamos a circular em busca de alguma mesa. Naquele momento, meu plano de simplesmente falar com as pessoas do local, teoricamente tão lógico, começou a me parecer absurdo. Como nos apresentaríamos a pessoas aleatórias? E aí, vocês repararam em alguém esquisito por aqui nos últimos tempos? Todos estavam imersos em suas vidas, batendo papo, fechados em seus grupinhos já estabelecidos...

— Oi. A gente pode sentar aqui? Meu nome é Emma, e este é o Jacob.

Quatro rostos apalermados nos encararam: uma garota loura que tinha apenas uma maçã na bandeja, uma garota de gorro cobrindo o cabelo rosa e dois caras com boné de beisebol que pareciam atletas, cujas bandejas transbordavam de comida.

— Aham — respondeu a de cabelo rosa, indiferente.

— Meu nome é Karen — murmurou a garota da maçã, abrindo espaço para eu me sentar.

Colocamos as bandejas na mesa e nos sentamos. Três deles nos olhavam como se fôssemos aberrações, mas Emma parecia nem perceber. Ela foi direto ao assunto:

— Somos novos aqui na Hoover. Ouvimos umas histórias bem loucas sobre essa escola.

Ela falava quase igual a uma americana. Quase.

— De onde vocês são? — perguntou a Cabelo Rosa.

— Inglaterra, País de Gales... por ali.

— Maneiro — disse um dos garotos de boné. — Lá tem galinha também? Ha, ha.

— Que idiota — falou a Cabelo Rosa.

— Somos alunos de intercâmbio — falei.

A Garota da Maçã pareceu surpresa.

— Você não parece estrangeiro.

— Canadá.

Eu ia mergulhar o garfo de plástico na gororoba marrom, mas desisti.

— Essa escola anda muito louca mesmo — disse a Cabelo Rosa.

— O que aconteceu no auditório? — perguntei. — Faltou luz ou o quê?

— Que nada — respondeu o mais calado dos garotos de boné. — Isso foi só o que disseram aos nossos pais.

A Garota da Maçã concordou com ele.

— Jon estava lá quando aconteceu. Ele acha que esta escola é um lugar mal-assombrado.

— Não é isso. Eu só não engulo esse papo de “queda de energia”. Eles estão escondendo alguma coisa.

— Que tipo de coisa seria? — perguntei.

Mas o garoto baixou a cabeça e ficou mexendo na gororoba marrom.

— Ele não gosta de falar sobre isso — sussurrou a Cabelo Rosa. — Tem medo que achem que ele é maluco.

— Cala a boca, Karen — disse a Garota da Maçã, e se virou para Jon. — Você não me contou.

— Que isso, cara — disse o outro garoto de boné. — Só a Karen pode saber, a gente não?

— Tá legal, tá legal — aceitou Jon, erguendo os braços em rendição. — Mas, tipo, não estou dizendo que foi assim que aconteceu, sacou? Foi só o que eu vi.

Todos olharam para ele com expectativa. O garoto respirou fundo.

— Estava bem escuro. Nenhum celular e nenhuma lanterna funcionava. Eles disseram que foi uma pane elétrica, só que o auditório tem uma porta que dá para o estacionamento aberto. — Ele se inclinou para a frente e baixou a voz: — Alguém abriu a porta. Mas quase não iluminou lá dentro. E estava fazendo sol no dia.

— Como assim? — perguntou a Garota da Maçã. — Não entendi.

— Tipo — a voz do garoto ficou ainda mais baixa —, foi como se a escuridão estivesse engolindo a luz.

Eu estava prestes a falar sobre a “explosão” no banheiro, que tinha acontecido no mesmo dia, quando senti uma pancada no ombro. Era o sujeito que eu tinha visto no dia anterior, o cara que posava de inspetor-geral. Estava acompanhado de uma mulher de cabelo curto, olhos azuis gélidos e cara fechada.

— Com licença — disse o homem. — Preciso que vocês dois venham conosco.

Emma se virou com a mão erguida.

— Saiam daqui, estamos conversando.

Os outros adolescentes da mesa ficaram impressionados.

— Caraca — sussurrou a Cabelo Rosa.

— Não estou pedindo.

A mulher de olhar frio agarrou Emma pelo ombro, mas Emma se contorceu e se desvencilhou.

— Não toque em mim!

A partir daí, a situação ficou bem feia. Parecia que o refeitório inteiro tinha parado de falar para acompanhar a cena. A mulher foi para cima de Emma, e o homem pegou meu braço. Joguei minha bandeja de comida no sujeito, e ele me largou por tempo suficiente para eu pular na mesa. Emma deve ter queimado a mulher, porque ela gritou e pulou para trás. Logo em seguida já estávamos correndo juntos para a saída mais próxima. A mulher tinha sido nocauteada, mas o homem que posava de inspetor-geral estava nos perseguindo e gritando para outras pessoas ajudarem a nos pegar. Alguns tentaram, mas desviamos. Então, mais na frente, meia dúzia de atletas em uniforme de basquete bloquearam a saída para a qual estávamos correndo.

Paramos a poucos metros deles e nos preparamos para o confronto.

— E agora? — falei.

— Agora abrimos o caminho a fogo — disse Emma.

Segurei suas mãos.

— Não — sussurrei. Alguns alunos gravavam o tumulto com a câmera do celular. — Não com todo mundo olhando.

Eu me conformei com a ideia de sermos pegos. Já havia começado a pensar em maneiras de escapar quando, de repente, as portas atrás dos atletas se abriram com violência e uma porção de garotas entrou correndo e berrando. E gritando de verdade, o rosto contorcido em pavor e coberto de lágrimas. Imediatamente, o foco dos atletas, do Pose de Inspetor e de todos em volta se voltou para elas. Eu não conseguia nem imaginar o que teria feito aquelas garotas gritarem daquele jeito, só agradeci aos céus pela oportunidade. Emma e eu passamos pelos atletas distraídos e conseguimos atravessar as portas, correndo.

Paramos derrapando. Olhamos em volta, tentando lembrar o caminho para a entrada principal. Então vi algo bizarro correndo na nossa direção.

Um bando de gatos.

Eles estavam pingando de tão molhados e se sacudindo de um jeito duro, estranho. Então ouvi Enoch gargalhando e vi Bronwyn correndo atrás dele, saindo de um laboratório de ciências na outra ponta do corredor. Enoch estava se escangalhando de rir.

— Desculpa! Não deu para resistir!

Enquanto os gatos cambaleavam pelas nossas pernas, senti um cheiro fortíssimo: formol.

— Enoch, seu idiota! — esbravejou Bronwyn. — Você estragou tudo!

Talvez ele tivesse criado a única distração poderosa o suficiente para nos salvar: um pelotão de gatos-zumbis.

— Nunca pensei que diria isso, mas graças às aves esse garoto veio conosco — disse Emma.

A gritaria no refeitório parecia estar diminuindo. Não demoraria muito para as pessoas se lembrarem de voltar a nos perseguir.

— Deixe os agradecimentos para mais tarde — falei.

Então corri até a parede e acionei o alarme de incêndio.


— Você os transformou em zumbis?

Emma tentava demonstrar raiva, mas parecia mais perto de cair na gargalhada. Estávamos no pátio da frente, escondidos no meio da multidão de estudantes que saía do prédio às pressas.

— Aquilo era um desperdício de gatos mortos! — disse Enoch. — Eles iam simplesmente cortar e examinar os bichos.

— Pelo bem da ciência — falou Bronwyn.

— Claro... — Enoch desenhou aspas no ar ao repetir, com desdém: — Ciência.

— Vocês deviam estar nas quadras de educação física — falei.

— Ninguém queria conversar com a gente — disse Enoch.

— Fale por você — disse Bronwyn. — Aí por isso você ficou entediado e saiu de lá.

— Senti o doce cheiro de fluido de embalsamento escapando de uma janela aberta e não resisti...

Quase vomitei.

— Por sorte, consegui fazer alguma coisa de útil enquanto você brincava com animais mortos — disse Bronwyn. — Conversei com um rapaz muito atencioso que estava aqui quando o incêndio no banheiro começou. Ele disse que ouviu um estrondo e viu uma luz ofuscante e uma garota sair correndo logo depois, perseguida por alguns adultos.

— Como eles eram? — perguntei.

— A garota era morena e de cabelo comprido, e os adultos estavam com marcas de queimadura e saindo fumaça das roupas. E pareciam com muita raiva.

— Eles pegaram a garota? — perguntei.

— Não. Ela escapou.

— Qual era o nome dela?

— Não sei.

Senti um puxão na manga da camisa.

— Finalmente. — Era Millard, sussurrando, porque estávamos cercados de normais. — Procurei vocês por toda parte. Foi difícil. Alguma besta acionou o alarme de incêndio.

— Fomos nós — disse Emma. — Precisávamos sair de lá.

— Ainda precisamos — corrigi.

Em diversos pontos no pátio e nos degraus da entrada principal havia adultos de camisa polo que pareciam funcionários da escola e olhavam em volta, à nossa procura.

O alarme de incêndio parou de tocar e uma voz soou nos alto-falantes, mandando todos voltarem para as salas de aula.

— Vamos embora agora — falei. — Enquanto ainda tem esse monte de gente para nos dar cobertura.

— Separem-se — disse Emma, e apontou para o outro lado da rua. — Nos encontramos ali, atrás daqueles carros.

Fizemos como ela mandou: nos dividimos. Cruzamos o pátio a passos rápidos, atravessamos a rua e nos reunimos atrás da fileira de carros estacionados. Os outros se agacharam enquanto eu ficava de olho em adultos de camisa polo.

— Agora, escutem — disse Emma. — Descobrimos uma coisa também.

— Eu também — anunciou Millard. — Não tive sorte nos arquivos e registros, mas falei com uma menina muito legal na secretaria...

— Você falou com alguém? — interrompi. — Nenhum de vocês se importa se descobrirem que somos peculiares?

— Eu sou muito mais sutil do que vocês imaginam — respondeu Millard. — Sério, não tem motivo para esse pânico todo.

— Então você conversou com alguém — falou Bronwyn.

— Sim! Com uma jovem muito amável que acredito conhecer nosso alvo... e onde encontrá-la!

— Tudo bem. Onde? — perguntou Emma.

— Não quis pressioná-la. Ela é amiga do nosso alvo. Ela sabe que a garota está em perigo, então tentou protegê-la. Eu estava ganhando a confiança dela, mas o alarme de incêndio soou e fui atrás de vocês.

— Então volte lá e termine de ganhar a confiança dela — disse Enoch.

— Combinamos de nos encontrar mais tarde. Ela não estava muito à vontade para conversar no colégio.

— Eu não acredito que você falou com alguém — disse Emma, balançando a cabeça.

— Já falei que ninguém me viu. — Millard bufou. — Ninguém confia no velho Nullings?

A garota tinha concordado em encontrá-lo numa cafeteria, depois da escola. Ainda faltavam algumas horas de aula, então voltamos para o carro e discutimos o que fazer em seguida.

Bronwyn queria ver uns pontos turísticos.

— Estamos em Nova York! Temos que conhecer a Estátua da Liberdade! E ver outros lugares importantes!

— Estamos em missão — falei. — Não dá.

— E daí? Caçadores de etéreos nunca se divertiam em missão?

— Se faziam isso, não mencionavam nos registros — respondeu Millard.

Bronwyn cruzou os braços e fez cara feia. Não me importei. Mesmo que tivéssemos tempo de conhecer a Estátua da Liberdade, eu não estava no clima para passear. Bronwyn tinha o dom de conseguir separar as coisas e deixar o estresse de lado, mas eu estava preocupado demais em encontrar a garota e persuadi-la a aceitar nossa ajuda. Mesmo que completássemos esses dois passos, ainda não sabíamos onde ficava a fenda 10.044. Eu compreendia por que muitas coisas precisavam ser veladas e escritas em códigos, mas queria, só daquela vez, que H. tivesse me dito com todas as letras o que fazer e aonde ir.

— O que vocês acham que significam esses números da fenda? — perguntei.

Estávamos no carro, tentando decidir o que fazer.

— Será que todas as fendas nos Estados Unidos são numeradas? — sugeriu Enoch. — Se for assim, só precisamos de uma lista com os números.

— Isso seria ótimo, mas não temos lista — respondi. — Só temos os papéis que eu trouxe de casa.

Pesquei na minha mochila os postais, os mapas e o fichário, e, juntos, revimos tudo em busca de qualquer coisa que eu tivesse deixado escapar. Procuramos o número 10.044 em todas as páginas do livro de registros de operações. Depois de uma hora nisso, eu estava começando a ficar vesgo e alguns bocejavam. Mesmo tendo dormido oito horas na noite anterior, quase não nos recuperamos do cansaço. Caí no sono com o fichário no colo e a cabeça no volante.

Acordei assustado, com Bronwyn gritando com Enoch:

— Agora vou ter que lavar minhas roupas. Que nojo!

Antes mesmo de poder perguntar sobre o que ela estava falando, senti o cheiro: formol. Mais cedo, eu estava tão exausto que nem percebi que Enoch fedia a formol. Agora, depois de algumas horas trancados no carro com ele, nós estávamos com o mesmo fedor.

— Precisamos encontrar um banheiro para nos lavarmos e para vocês trocarem de roupa — disse Millard, num tom meio apavorado.

Tínhamos dormido por algumas horas, e não nos restava muito tempo até irmos ao encontro da nova amiga de Millard. Digitei o nome da cafeteria no aplicativo de mapas.

— É perto daqui — falei. — Dá tempo, não vamos nos atrasar.

— Ainda bem — disse ele. — A primeira impressão é a que fica!

— Nossa, você deve ter gostado mesmo dela — comentou Enoch. — Se importando com seu cheiro? Isso é quase amor.

Liguei o motor e saí da vaga. Só então, quando estava prestes a entrar em uma rua movimentada, Millard disse, como quem não quer nada:

— Aliás, enquanto vocês estavam dormindo eu deduzi a localização da fenda 10.044.

— O quê? — falei. — Sério?

Ele mostrou um dos cartões-postais de Abe. Só consegui dar uma olhada rápida, mas na frente havia a ilustração de uma ponte enorme cruzando um rio e uma ilha longa e estreita, mais até que Needle Key, aparentemente. Quando parei em um sinal, pude olhar com mais calma. No alto do cartão estava escrito: Queensboro Bridge e Ilha Blackwell, Nova York.

 

 

— Ilha Blackwell — li. — Nunca ouvi falar.

— Leia o verso. — Millard virou o cartão-postal.

Comecei a ler em voz alta a mensagem do meu avô, mas Millard me interrompeu:

— Não, aqui. No carimbo do correio, Jacob.

O carimbo estava incompleto e meio borrado, mas dava para ver a data, de doze anos antes, e, na última linha do pequeno círculo preto, um número.

10.044.

— Rapaz... — falei.

Passei o postal para os outros, que imploravam para dar uma olhada. Com uma das mãos no volante e a outra segurando o celular, busquei o número 10.044. Na mesma hora surgiu um mapa: uma linha vermelha em volta de uma ilha longa e estreita no meio do East River, entre Manhattan e o Queens.

O número da fenda não era um código secreto. Era um CEP.


Fizemos o resto do caminho até a cafeteria com as janelas abertas, para deixar sair o cheiro do formol, e paramos em uma lanchonete para nos limparmos no banheiro. Millard se lavou da cabeça aos pés com água da torneira e sabão do dispenser. No fim, achou que estava quase apresentável — o que achei engraçado, considerando a peculiaridade dele —, e fomos a pé até a cafeteria.

Era um ambiente à meia-luz e aconchegante que mais parecia uma sala de estar, com sofás velhos, pisca-piscas de Natal enrolados nos caibros e, nos fundos, um balcão em que um grande moedor de café zumbia sem parar. O lugar não estava muito cheio, então logo a avistei, sentada a uma mesa no canto. Tinha cabelo castanho ondulado, usava uma boina preta e calça camuflada. Metida a artista. Ela segurava uma xícara de café gigante e ouvia algo no celular com apenas um fone no ouvido. Quando entramos, a garota virou a cabeça na nossa direção.

Fomos até a mesa.

— Lilly?

— Millard — disse ela, e olhou para cima, mas não exatamente para Millard.

— Estes são os meus amigos — explicou ele. — De quem falei mais cedo.

Trocamos cumprimentos e nos sentamos. Eu estava tentando entender por que ela não parecia assustada ao ouvir uma voz sem corpo.

— O que está escutando? — perguntou Millard.

— Escute você mesmo.

O segundo fone de ouvido, que estava sobre a mesa, flutuou até a orelha de Millard. Enquanto ele ouvia a música, duas coisas me chamaram a atenção: uma bengala fina de metal encostada na cadeira de Lilly e os olhos dela, que não focavam no rosto de nenhum de nós.

Emma me cutucou, e trocamos olhares surpresos.

— Bem que ele disse que não tinha sido visto... — murmurou ela.

— Ahh! — fez Millard, com uma expressão que deve ter sido de êxtase. — Eu não ouvia essa peça havia anos. Segovia, certo?

— Muito bem! — disse Lilly.

— Esta é uma das melhores peças musicais já compostas.

— Não é todo dia que encontro outro apaixonado por violão clássico. Ninguém da minha idade sabe nada sobre música de verdade.

— Nem eu. E olha que tenho noventa e sete anos.

Emma encarou Millard com os olhos arregalados e furiosos. Lilly riu e acariciou o braço dele.

— Você tem a pele bem macia para um nonagenário.

— O corpo é jovem, mas a alma...

— Sei exatamente como é.

Eu estava começando a achar que estávamos segurando vela.

— Ei — gritou Enoch —, você é cega!

Lilly caiu na gargalhada.

— Hã... sim.

— Cala a boca, Enoch — disse Bronwyn.

— Millard, seu safadinho! — falou Enoch, rindo também.

— Lilly, peço desculpas. O cérebro de Enoch tem algum problema — disse Millard. — Quando alguma coisa nasce ali dentro, sai na mesma hora pela boca.

— Tudo bem por aí, Lilly? — perguntou o atendente da cafeteria, bem alto.

A garota ergueu o polegar.

— Tudo certo, Ricko.

— Eles conhecem você — notei.

— Esse lugar é praticamente minha segunda casa. Eu me apresento aqui toda quinta à noite. Mas é jazz e pop, nada de Segovia. — Ela apontou com a cabeça para um estojo de guitarra apoiado na parede ali perto e deu de ombros. — Acho que o mundo ainda não está pronto. — Então, a expressão dela mudou de repente. Ficou um pouco mais dura, como se ela tivesse se lembrado de algo desagradável. — Millard disse que vocês estão procurando alguém.

— Estamos procurando a garota que... que queimou aqueles dois homens — respondeu Bronwyn.

Lilly fez cara feia.

— Eles a atacaram. Ela só estava se defendendo.

— Não quis dizer o contrário.

— Uma defesa e tanto — comentou Enoch.

— Eles mereciam coisa pior — falou Lilly.

— Onde podemos encontrá-la? — perguntou Emma.

As perguntas estavam deixando Lilly tensa.

— Por que se importam com Noor? Vocês nem a conhecem.

Noor. O nome dela era Noor.

— Mas podemos ajudá-la — disse Bronwyn.

— Não sei se devo acreditar em vocês, e isso não responde à minha pergunta.

— Nós entendemos um pouco o que ela está passando — expliquei, tentando me aproximar da verdade sem revelá-la totalmente.

— Tudo bem. — Lilly tomou um gole de café e se virou para mim. — O que ela está passando?

Troquei um olhar com Emma. O quanto podíamos dizer? E, mesmo se confiássemos em Lilly, ela acreditaria em nós?

— Alguma coisa aconteceu com sua amiga, mas ela não consegue entender direito o que é — disse Bronwyn.

— E não pode falar sobre o assunto com os pais — acrescentei.

— Pais adotivos — corrigiu Lilly. — Na verdade, são só os responsáveis legais por ela.

— Pode estar afetando o corpo dela — continuou Emma. — Causando mudanças físicas.

— Talvez ela esteja sendo observada — continuou Millard. — Por pessoas que não conhece. E isso é assustador.

— Vocês estão descrevendo as experiências de quase toda adolescente — disse Lilly.

— E — continuei, me aproximando dela e baixando a voz — ela pode fazer coisas que outras pessoas não podem. Coisas que parecem impossíveis.

— Coisas poderosas e perigosas — acrescentou Millard.

Lilly ficou parada por um momento. Então respondeu, bem baixo:

— Sim.

— Nós sabemos pelo que ela está passando porque passamos pela mesma coisa — revelou Emma. — Cada um à sua maneira.

Então contamos, um de cada vez, sobre nossas habilidades peculiares. Ela ouviu tudo com atenção, quase sem falar. Não pareceu assustada. Não saiu correndo.

Millard foi o último. Senti que ele estava relutante. Era óbvio que ele gostava da garota e não queria abandonar a fantasia que tinha alimentado nas últimas horas — de que era apenas um garoto comum que talvez, quem sabe, tivesse uma chance com ela.

— E eu, minha querida — falou Millard —, sinto muito em informá-la que, bem, assim como meus amigos, também não sou completamente normal...

Enoch balançou a cabeça.

— Ai, isso vai doer.

— Tudo bem, Millard — disse Lilly. — Eu sei.

— Sabe?

— Você é invisível.

Não dava para ver a expressão de Millard, mas o imaginei de olhos arregalados, o queixo caído.

— Como... como você...?

— Eu não sou cem por cento cega. Muitos cegos têm um resquício de visão. Eu tenho mais ou menos dez por cento. Não é o suficiente para andar sem a bengala, mas é mais que suficiente para perceber quando uma voz sem corpo está falando comigo! Confesso que a princípio achei que estivesse ficando louca, mas quando você começou a me fazer perguntas sobre Noor, tudo começou a fazer sentido.

— Nem sei o que dizer — respondeu Millard.

— Eu sabia que Noor não podia ser a única.

— Minha querida, por que não falou nada? — perguntou Millard.

— Eu queria ver se você ia me contar primeiro. — Lilly sorriu. — Fico feliz por ter feito isso.

— Estou me sentindo tão tolo... — disse Millard. — Espero que não pense que sou um cafajeste.

— Não mesmo. Tenho certeza de que você precisa tomar cuidado. Mas eu também. — Ela baixou a voz. — Vocês não são os únicos que estão procurando por ela, sabe?

— Quem mais está? — perguntei. — A polícia?

— Não. Não sei bem quem são. Eles foram à casa dela e à escola. Fizeram muitas perguntas.

— Como eram essas pessoas? — perguntei.

— Ela é cega — lembrou Enoch.

— Você está empenhado em me lembrar isso — rebateu Lilly. — São as mesmas que foram atrás de Noor na escola, depois do que aconteceu com as luzes no auditório. Eles a encurralaram no banheiro, e ela foi obrigada a se defender.

Minha mente foi direto para o Pose de Inspetor e sua colega de olhar frio. Será que eles eram peculiares? Ou acólitos, talvez?

— Noor disse que eles andam sempre em carros grandes com janelas escuras — continuou Lilly. — Agem como se fossem autoridades. Policiais, assistentes sociais, funcionários da escola. Ela não consegue mais confiar em adultos. — Lilly fez uma expressão de angústia. — Noor é a pessoa mais forte que eu conheço, e nunca a vi com tanto medo.

— Fomos enviados até aqui para ajudá-la — disse Emma. — Acho que nosso dever é protegê-la dessa gente.

— Vocês me contaram o que podem fazer — disse ela —, mas quem são vocês?

— Somos as crianças peculiares da srta. Peregrine — respondeu Bronwyn.

— Sabe de uma coisa? — disse Enoch. — Essa definição já não me parece mais tão correta.

— Ainda não sabemos como nos chamar — confessei. — Mas meu avô era... meio que um agente do FBI para pessoas como nós, sabe? E estamos assumindo as missões que ele fazia.

— Excêntricos — disse Lilly. — Liga... dos... Vigilantes Excêntricos.

— Ela acabou de inventar um nome para nós, assim, na lata? — disse Bronwyn.

— Gostei — disse Millard.

— Óbvio — disse Enoch.

— Se não encontrarmos e ajudarmos sua amiga, não vamos precisar de um nome legal — comentou Emma. — Vamos voltar para o Recanto e seremos punidos pelo resto da nossa vida infinita.

— Pode nos levar até ela? — perguntei.

— Noor está escondida — disse Lilly. — Mas posso mandar uma mensagem perguntando se ela quer se encontrar com vocês.

Naquele momento, vi, lá fora, um carro com janelas escuras passando na frente do café bem devagar. O vidro do passageiro tinha uma pequena fresta aberta e, dentro do automóvel, uma pessoa de óculos escuros observava ao redor.

— É melhor a gente dar o fora daqui — alertei. — Essa cafeteria tem uma saída nos fundos?

— Eu levo vocês, mas antes preciso mandar uma mensagem para Noor — disse Lilly. — Só que, para isso, vou ter que falar alto no meu celular, porque eu uso um aplicativo que transforma fala em texto. Considerando o assunto, acho melhor fazer isso num lugar mais reservado.

— Posso ser de alguma ajuda? — perguntou Millard, empurrando a cadeira para trás.

Alguém em outra mesa olhou intrigado para nós.

— Millard, vai com calma — sussurrei. — As pessoas estão reparando.

Lilly se levantou.

— Obrigada, mas pode deixar que eu me viro.

Com um andar um tanto lento porém confiante, ela foi até o banheiro, nos fundos.

Quando ela não podia mais nos ouvir, Millard deixou escapar um suspiro longo e desejoso.

— Amigos — anunciou —, acho que estou apaixonado.

 

 

CAPÍTULO QUINZE


Quando Lilly saiu do banheiro, alguns minutos depois, Millard correu para lhe oferecer o braço e conduzi-la de volta até a mesa. Ela aceitou, mas discretamente, para os outros clientes não repararem.

— Tudo certo. Ela concordou com um encontro.

— Ótimo! — falei. — Onde?

— Eu levo vocês. Sou a única que consegue chegar aonde ela está.

Fiquei intrigado, sem conseguir imaginar o que poderia ser. Saímos pela porta dos fundos, que dava para um beco, e, com todo o cuidado, dei a volta até a frente, onde nosso carro estava estacionado. Sem nenhum veículo suspeito à vista, peguei o carro e fui buscá-los no beco. Millard insistiu em que Lilly fosse na frente. Depois de todos instalados, ela nos deu um endereço próximo dali.

Mesmo sendo um trajeto curto, a aparência do bairro havia mudado. As casas foram ficando mais antigas e feias, até desaparecerem por completo, dando lugar a galpões e fábricas velhos e em mau estado. Pelo retrovisor, notei que um sedã cinza nos seguia. Fiz uma curva repentina para a direita, depois mais três, uma após a outra. Depois disso, o carro sumiu.

O endereço nos levou a uma rua com vários galpões. No final do quarteirão havia um prédio de cinco ou seis andares, ainda em construção. Cercas de arame circundavam a propriedade, e os andares superiores ainda estavam no esqueleto, não havia nem janelas. Passei direto e estacionei em uma rua lateral.

Antes de sairmos do carro, abasteci minha mochila com alguns itens essenciais. Uma lanterna, o livro de registros de missões (era pesado, mas eu estava paranoico com a ideia de deixá-lo para trás) e certo objeto oval que ganhamos de brinde numa lanchonete (nunca se sabe quando algo assim será útil em uma missão). Com a mochila no ombro, fechei a mala do carro e me virei para o grupo.

— Pronto.

— Como vamos entrar? — perguntou Emma.

— Tem uma entrada secreta — respondeu Lilly. — Venham comigo.

Era até um pouco difícil acompanhar o passo de Lilly, que caminhava rápido batendo a bengala à frente.

— Você parece bem segura do caminho — comentou Millard.

— É. A gente vem aqui às vezes, Noor e eu. Quando precisamos ficar longe dos outros, sabe?

— De quem, por exemplo? — perguntei.

— Ah, você sabe. Dos adultos. Principalmente dos pais adotivos da Noor.

Lilly murmurou algo sobre eles que não consegui entender, depois se virou e entrou em um beco entre o prédio em construção e um dos galpões. Em determinada altura, ela diminuiu o passo e começou a passar a mão pela cerca de madeira, até parar em uma tábua específica.

— É aqui. — Ela empurrou a tábua, que girou para cima, revelando uma passagem para a área de construção. — Vão na frente.

— Vocês passam o tempo aqui? — perguntou Bronwyn.

— Não tem perigo nenhum. Nem os mendigos sabem como entrar.

O prédio parecia uma obra iniciada dez anos antes por uma construtora escusa que largou o projeto pela metade por falta de verba. Era um estado de deterioração inconcluso, pois o imóvel parecia ao mesmo tempo novo e velho.

Lilly pegou o celular e apertou o botão que convertia suas palavras em mensagem escrita:

— Estamos subindo.

Logo depois veio a resposta, que todos nós ouvimos na voz robótica do aparelho: “Espere na entrada. Quero dar uma olhada neles.”

Era Noor. Nossa peculiar. Estávamos quase lá.

Enquanto seguíamos Lilly por entre os tapumes, meu celular começou a vibrar no meu bolso.

A tela informava número desconhecido. Normalmente eu ignoraria a ligação, mas algo me disse para atender.

— Só um minuto — falei.

E me afastei do restante do grupo para atender.

— Aqui é H.

Meu corpo inteiro ficou rígido.

— Por onde você andou? Achei que nos encontraríamos depois de Portal.

— Não dá para explicar agora. Olha, você precisa abortar a missão.

Achei que tivesse ouvido errado.

— Como é?

— Abortar. Cancelar. É isso mesmo que você ouviu.

— Por quê? Está tudo indo de acordo com...

— As circunstâncias mudaram. Você não precisa saber dos detalhes, só volte logo para casa. Já.

Senti raiva. Depois de tudo que tínhamos feito... Não dava para acreditar.

— Foi alguma coisa que fizemos? Fizemos alguma besteira?

— Não, não. Olha, filho, a coisa está ficando perigosa demais. Faça como estou dizendo, aborte a missão. Vá para casa.

Eu segurava o telefone com tanta força que minha mão tremia. Tínhamos chegado longe demais para desistir assim.

— A ligação está ruim — falei. — Não consigo ouvir.

— Mandei vocês VOLTAREM.

— Foi mal, chefe, sinal ruim.

— Quem era? — perguntou Emma.

Ela tinha ido me buscar.

Encerrei a ligação e guardei o celular na mochila, onde não o sentiria vibrar.

— Era engano.


Lilly ia na frente, mostrando o caminho. Cruzamos uma entrada sem porta e pegamos um corredor onde os fios de cobre da instalação elétrica haviam sido arrancados, deixando cortes profundos como veias negras pelas paredes. O piso coberto de sujeira e pó de gesso fazia ruído de trituração sob nossos passos. Pedaços do isolante térmico cor-de-rosa estavam espalhados pelo chão, como algodão-doce. Lilly pisava nos mesmos pontos em que já havia pegadas, como se tivesse decorado o caminho passo a passo. De vez em quando ela tocava com a bengala em objetos que pareciam não fazer parte do lugar (uma lata de feijão velha, uma caixa de papelão virada); imaginei que tivessem sido colocados naqueles pontos de propósito, para indicar a distância do corredor.

Chegamos a uma escada.

— Eu consigo subir sozinha, mas é mais seguro se você me ajudar — disse ela, e todos entendemos que você era Millard.

Ele ficou mais que contente em oferecer o braço a Lilly. Subimos seis lances de escada, chegando ao topo já sem fôlego.

— Agora as coisas vão ficar meio estranhas — avisou Lilly.

Entramos em um corredor mergulhado na escuridão absoluta. E quando digo absoluta, quero dizer que não havia luz alguma, nem um resquício da claridade das escadas. Em vez de uma redução gradual, era um corte repentino, como se houvesse uma barreira invisível para a luz.

— Igual ao que aconteceu na porta do auditório — falei. Emma concordou.

Peguei a lanterna e apontei para a escuridão, mas o facho de luz foi engolido. Emma acendeu uma chama na palma da mão, mas o brilho se mantinha apenas por alguns centímetros.

— Noor absorveu a luz em volta — explicou Lilly. — Para que ninguém além de mim consiga encontrá-la.

— Incrível — comentou Enoch.

— Deem os braços uns aos outros e formem uma corrente atrás de mim — orientou ela. — Vou guiar vocês.

Seguimos Lilly corredor adentro, devagar e tropeçando na escuridão. Passamos por dois cômodos com janelas, mas a luz que vinha lá de fora não ultrapassava a porta. Parecia que estávamos debaixo d’água, ou no espaço sideral. Fizemos algumas curvas, e até tentei desenhar um mapa mental do caminho que estávamos fazendo, mas logo desisti, totalmente perdido, e achei que jamais conseguiríamos sair dali sem a ajuda de Lilly.

De repente, o ruído dos nossos passos mudou. O corredor terminava em um cômodo grande.

— Chegamos! — gritou Lilly.

Um facho de luz ofuscante nos iluminou de cima. Fechamos os olhos, agora cegos pela claridade, não pela escuridão.

— Quero ver a cara de vocês! — gritou uma voz de menina, também vinda de cima. — E digam seus nomes!

Tirei a mão do rosto e ergui os olhos. Gritei meu nome. Os outros fizeram o mesmo.

— Quem são vocês? — perguntou a menina. — O que querem?

— Podemos conversar frente a frente? — pedi.

— Ainda não — veio a resposta ecoante.

Imaginei quantas vezes meu avô devia ter passado por situações como aquela e desejei ter um pouco de sua vasta experiência. Tudo pelo que havíamos passado nos levara até ali. Se a menina não gostasse do que eu falasse ou não acreditasse em mim, todo o nosso esforço teria sido em vão.

— Viemos de muito longe só para encontrar você — comecei. — Queremos dizer que você não está sozinha, que existem outras pessoas como você. Nós somos como você.

— Vocês não sabem nada sobre mim — gritou ela de volta.

— Sabemos que você não é como a maioria das pessoas — disse Emma.

— E que estão atrás de você — acrescentei.

— E que você está com medo — completou Bronwyn. — Eu também fiquei com medo quando descobri que era diferente.

— Ah, é? — disse a menina. — Diferente como?

Concluímos que era melhor mostrar. Eu não podia demonstrar minha peculiaridade naquela situação, mas Emma acendeu uma chama nas mãos, Bronwyn levantou um bloco de concreto acima da cabeça e Millard ergueu alguns objetos aleatórios.

— Foi sobre ele que eu falei com você — comentou Lilly.

Quase ouvi o sorriso de orgulho de Millard.

— Então, podemos conversar? — perguntei.

— Esperem aí onde estão.

E a luz se apagou.


Ficamos esperando na escuridão, ouvindo passos cada vez mais próximos. Noor cruzou algum piso acima de nós e desceu. Quando a vi, fiquei sem fôlego. Ela literalmente brilhava. No início, parecia um globo de luz ambulante, mas, ao se aproximar, meus olhos se acostumaram, e então a vi: uma garota indiana alta, de belos traços, cabelo escuro emoldurando o rosto e olhos grandes com um brilho intenso. Cada centímetro de sua pele morena resplandecia. Até seu casaco e sua calça brilhavam de leve, a luz atravessando o tecido das roupas.

Ela foi até Lilly e lhe deu um abraço apertado. Lilly batia na altura da bochecha de Noor. Nos braços da amiga, por um momento ela pareceu envolta em luz.

— Você está bem? — perguntou Lilly.

— Só entediada — respondeu Noor.

Lilly deu uma risadinha e se virou para nós.

— Esta é Noor, pessoal.

— Oi — disse ela, com frieza, ainda nos avaliando.

— Noor, esses são... Hum, como vocês se chamam?

— Eu sou Emma.

— Quer dizer, o que vocês disseram que são mesmo?

Emma hesitou.

— Acho melhor ficarmos só com Emma por enquanto.

— Jacob — me apresentei, dando um passo à frente e estendendo a mão, mas a menina apenas continuou me encarando, até que baixei o braço, constrangido. — Tem algum lugar onde a gente possa conversar?

— Claro. Vamos para a sala de visitas.

Noor pegou o braço de Lilly e se dirigiu a um corredor, sem medo de nos dar as costas. Devia ter concluído que não éramos uma ameaça. Notei que a luz que emanava dela diminuía, como se aos poucos fosse reabsorvida pelo corpo, e agora eu só via um brilho por seu casaco aberto e por um rasgo em sua calça jeans. Antes desconfiada, parecia que ela agora começava a relaxar, e a luz provavelmente refletia suas emoções.

Do cômodo espaçoso com paredes de concreto, fomos a um menor e sem janelas. Algumas cadeiras e um sofá antigo haviam sido arrastados até ali e cobertos de mantas, e havia livros, quadrinhos e caixas de pizza espalhados, evidências de longos dias passados ali. Não vi lâmpadas, mas uma luz quente e amarela como a de velas brilhava nas quinas do cômodo, aparentemente vinda do nada.

Nós sentamos. Conversamos. Na verdade, eu falei mais que todos, já que poucos meses antes tinha passado por aquelas mesmas descobertas. Noor ouvia com reserva. Contei que havia crescido sem saber nada sobre minha verdadeira natureza, contei como a morte do meu avô deu início à busca pela verdade e me fez encontrar uma fenda temporal, onde viviam as crianças peculiares.

Nesse momento ela ergueu a mão, pedindo que eu parasse.

— Eu estava entendendo até você falar de fenda temporal.

— Ah, verdade. Já me acostumei com essas coisas e às vezes esqueço como soa bizarro.

— É o mesmo dia que se repete infinitamente a cada vinte e quatro horas — explicou Emma. — Esse lugares servem de refúgio para nosso povo há séculos.

— Pessoas normais não entram nas fendas — acrescentou Millard. — Nem os monstros que nos caçavam antigamente.

— Que monstros? — perguntou Noor.

Explicamos da melhor forma que conseguimos como era a aparência, o cheiro e o som dos etéreos. Quando terminamos, Noor parecia intrigada.

— O que foi? — perguntei. — Você já foi atacada por um deles?

— Estou tentando entender qual é a de vocês — disse Noor. — Vocês falam cada maluquice... Fendas temporais, monstros invisíveis, gente que muda de forma... — Ela foi até o sofá e pegou um gibi amassado. — Acho que leram histórias demais — continuou ela, balançando o gibi no ar. — Eu já teria enxotado todos vocês daqui se não fosse pela Lilly, que pelo visto se amarrou em vocês, e pelo... hã...

— Por isso — concluiu Emma, produzindo uma bola de fogo e a jogando de uma mão para a outra, em um movimento hipnótico.

— Exato. — Noor largou o gibi. — Por isso aí. — Ela cruzou os braços e sentou no braço do sofá. — E não são monstros que estão me perseguindo. Acho que não.

— Por que não conta a eles? — sugeriu Lilly. — Eles querem ajudar.

— Sabe quantas vezes eu já ouvi isso na vida? “Eles só querem ajudar. Pode confiar. Que mal pode fazer?” Sempre a mesma história. — Ela inspirou fundo e soltou o ar com força. — Mas acho que agora não tenho alternativa.

— Você está vivendo escondida num prédio abandonado, dependendo de uma menina cega para se alimentar — lembrou Enoch.

Noor o encarou com frieza.

— E o que você tem de peculiar, rapazinho?

— Ah, nada muito interessante — interrompeu Emma, colocando-se na frente de Enoch.

— Como é que é? — Ele deu um passo para o lado, saindo de trás dela. — O que foi? Está com vergonha?

— Claro que não, só acho que é um pouco... cedo demais.

— Se a questão é essa, acho que já é tarde — interrompeu Noor. — Hora de colocar as cartas na mesa. Sem segredos.

Enoch passou por Emma.

— Você ouviu. Sem segredos.

— Tudo bem — concordou Emma. — Só não exagere.

Enoch se levantou e pegou no bolso um saco plástico pesado que parecia conter algo úmido e escuro.

— Ainda bem que guardei um dos corações de gato que peguei na escola. — Ele olhou em volta, procurando alguma coisa. — Alguém tem uma boneca ou um bicho de pelúcia? Ou... um animal morto?

Noor recuou involuntariamente, mas parecia interessada.

— Tem um monte de pombos mumificados ali no corredor.

Ela o levou até o local e, um minuto depois, voltou correndo, rindo e sacudindo os braços. Logo em seguida, um pombo sem olhos e sem uma das asas entrou voando e se debatendo como louco. Abaixamos a cabeça e nos desviamos. O pombo se espatifou na parede e caiu no chão, imóvel, erguendo uma nuvem de penas.

Enoch voltou correndo.

— Eu nunca controlei uma ave antes. Incrível!

— Isso foi muito louco — comentou Noor, sorrindo enquanto recuperava o fôlego. — Que doideira!

— O que posso dizer? Sou extremamente talentoso.

— Você é bizarro! — retrucou ela, rindo. — Mas é maneiro. Sério.

Enoch ficou todo orgulhoso.

— Agora você sabe tudo — disse Emma, levantando-se.

— Sua vez — falei.

— Tá bom, tá bom. — Noor se sentou no sofá. — Na verdade, vai ser um alívio contar isso. A única pessoa que sabe de tudo é Lilly.

Nós sentamos em torno dela. As luzes diminuíram. Então, falando baixo mas com firmeza, Noor começou a contar sua história.

— A primeira vez que percebi algo estranho foi no fim do ano passado. — Ela suspirou, depois olhou para nós. — É tão estranho dizer isso em voz alta...

— Leve o tempo que precisar — disse Emma. — Não temos pressa.

Noor assentiu, agradecida, e recomeçou:

— Foi no dia 2 de junho, uma terça-feira, início da tarde. Eu tinha acabado de chegar da escola, e o Cara de Meleca, que é o meu não pai, estava me esperando o dia todo.

A palavra que ela usou para o pai adotivo não foi “meleca”, mas também começava com M.

— A gente teve uma discussão enorme e muito desagradável. Ele disse que eu estava perdendo tempo fazendo os cursos extras da escola e que devia arranjar um emprego bosta numa lanchonete. Falei que estava fazendo atividades importantes para conseguir entrar numa faculdade e que não precisava de mais dinheiro. Ainda terminei falando que, além de tudo, o governo dava dinheiro para ele e Teena me criarem. Ele não gostou. Começou a gritar. E eu fiz o que sempre faço quando ele grita, que é correr para o quarto que divido com meus não irmãos. A porta tem chave. Greg e Amber não estavam em casa, eu estava sozinha, e o Cara de Meleca não me deixava em paz por nada, ficou gritando na porta, e eu estava cada vez mais irritada e não sabia o que fazer. Cheguei ao meu limite. Mas quando finalmente abri a boca para gritar uma resposta mal-educada, minha voz não saiu, e todas as luzes do quarto se acenderam de uma vez e ficaram mais fortes por um segundo. Muito mais. E explodiram.

— E foi aí que você soube que era diferente? — perguntou Emma.

— Não, não, eu achei que tivesse um fantasma no quarto, sei lá. — Um breve sorriso surgiu no rosto dela. — Só me dei conta uns dias depois. No El Taco Junior.

— Ahhhh, sim! — comentou Lilly. — Foi nesse dia?

— Aham. Eu tinha acabado de passar para um curso preparatório de belas-artes na Bard. Nunca achei que teria chance, mas você me obrigou a tentar.

— Claro que você ia passar. Fala sério.

Noor deu de ombros.

— Ia me ajudar a entrar na faculdade e tudo, mas custava três mil dólares, exatamente dois mil e seiscentos a mais do que eu tinha. Então eu decidi largar as atividades extras da escola e trabalhar. O Cara de Meleca ficou todo feliz porque eu ia fazer o que ele queria, mas disse que o meu salário seria para ajudar nas contas da casa, não para dar dinheiro para uma faculdade qualquer quando eu não tinha nem terminado o colégio ainda. Então lembrei a ele que eu tinha direito a uma conta bancária independente, e ele começou a gritar de novo. Aí eu saí de casa, e foi quando encontrei você no El Taco.

— Ele foi atrás da Noor — continuou Lilly, no lugar da amiga — e começou a gritar com ela no meio do restaurante. Aí eu comecei a gritar com ele, e acho que ele não teve coragem de gritar com uma garota cega em público, então saiu batendo o pé e ficou esperando a gente terminar de comer.

— Aí a gente resolveu fazer a refeição mexicana mais demorada da história.

— Até conseguimos terminar o Macho Meal — disse Lilly —, um feito inédito, porque aquilo tem quatro mil e seiscentas calorias, mas ficamos ali tanto tempo, e eu estava tão nervosa...

— E ele ficou o tempo todo lá fora, encarando a gente. Teve uma hora que eu fiquei tão irritada com o Cara de Meleca olhando para a gente que não aguentei e corri para o banheiro. E foi aí que aconteceu. Eu senti aquela coisa dentro de mim e estava a ponto de gritar, mas me segurei. As luzes do banheiro começaram a piscar e ficaram estranhas, e eu... não sei explicar, eu simplesmente sabia o que fazer. Sabia o que podia fazer. Levantei a mão e peguei a luz do ar. O banheiro ficou todo escuro, mas o espacinho entre os meus dedos brilhava como se eu tivesse capturado o vaga-lume mais poderoso do mundo.

— Isso é tão maneiro... — disse Enoch.

— Pode até parecer maneiro, mas ao mesmo tempo foi muito assustador. Depois daquele dia, achei que eu tivesse um problema no cérebro. Porque começou a acontecer o tempo todo, e no início eu não conseguia controlar. Sempre que ficava chateada, triste ou irritada, acontecia. E como eu odeio a escola, lá era direto. Eu sentia aquilo vindo e sempre conseguia me esconder em algum lugar sozinha. Acho que algumas pessoas perceberam alguma coisa, mas não imaginavam que aquilo poderia ser por culpa minha. Só viam que eu estava chateada e que as luzes começavam a piscar. Mas foi nessa época que eles começaram a aparecer na escola. O pessoal novo.

— Quem eram eles?

— Ainda não sei. Pareciam funcionários da escola, e as pessoas que já trabalhavam lá antes agiam como se eles fossem dali, mas ninguém sabia quem eram. No início, eles ficavam meio que de olho em todo mundo, mas depois de um tempo percebi que estavam atrás de mim. Foi aí que aconteceu o lance do auditório, e eu tive certeza.

— O que aconteceu exatamente?

— Nós lemos o que saiu no jornal — disse Millard —, mas queremos ouvir sua versão dos fatos.

— Foi o pior dia da minha vida. Ou talvez o segundo ou terceiro pior. Aconteceu no meio da assembleia escolar, que começou normal, como mais uma daquelas palestras insuportáveis em que eles ficam falando sobre o espírito escolar e sei lá mais o quê, mas depois virou um sermão para mim. Só que eles não sabiam que era eu. Disseram que tinha alguém vandalizando as instalações da escola, quebrando lâmpadas e queimando coisas, e que se a pessoa responsável estava ali presente, que se levantasse e pedisse desculpas, para não ser expulsa. Eu comecei a ficar nervosa, como se eles soubessem que era eu, como se estivessem me testando para ver se eu confessaria. Aí uma menina que estava atrás de mim, aquela ridícula da Suze Grant, começou a cochichar com uma outra garota que aquilo devia ser minha culpa porque eu não tinha família, blá-blá-blá, a órfã pobretona vandalizando a escola, e eu comecei a sentir raiva. Muita, muita raiva.

— E foi aí que aconteceu? — perguntei.

— O auditório tem um monte de refletores gigantes no teto. Todos acenderam ao mesmo tempo e explodiram, e começou a chover vidro em todo mundo.

— Putz — disse Lilly. — Eu não sabia que tinha sido nesse nível.

— Foi horrível. Eu tinha que sair dali, então fiz tudo ficar escuro e fugi. Dois dos funcionários falsos foram atrás de mim, e nisso eu saquei que eles tinham certeza de que era eu. Eles me seguiram até o banheiro, e só me restou explodir na cara deles toda a luz que eu tinha sugado do auditório.

— Como eles são, fisicamente? — perguntei, embora já soubesse.

— São tão normais que eu nem sei descrever.

— Idade? Altura? Peso? Cor da pele?

— Nem jovens nem velhos, nem altos nem baixos, nem gordos nem magros. A maioria homens, uma ou duas mulheres. Alguns brancos, outros negros. Normais.

— E como eles se vestem? — perguntou Millard.

— Camisa polo ou de botão. Casaco. Azul-marinho ou preto, sempre. Como se comprassem as roupas numa loja de gente normal com emprego normal e vida normal.

— O que você fez depois de queimar os caras? — perguntei.

— Tentei ir para casa, mas eles estavam lá, me esperando. Então eu vim para cá. Minha sorte é que eu tenho bastante experiência em fugir das pessoas.

— Quanto mais você fala deles — comentou Bronwyn —, menos parecem peculiares.

— Não parecem nem um pouco peculiares — concordou Millard. — Para mim, são acólitos.

— Católicos? — perguntou Noor, sem entender.

— Não, não, acólitos — corrigiu Emma. — São ex-peculiares que viraram monstros em um acidente. Nossos inimigos há mais de um século.

— Ah — fez Noor. — Hum, que confuso.

— Não pode ser — falei. — Os acólitos trabalham sozinhos ou em grupos pequenos.

— E nem sobraram tantos deles — completou Emma.

— Que a gente saiba — lembrou Enoch.

— Talvez eu tenha sentido a presença de um etéreo na escola ontem — admiti.

— Hein? — gritou Emma. — Por que não falou nada?

— Foi muito rápido. Não deu para ter certeza. Mas, se eram acólitos mesmo, provavelmente tem pelo menos um etéreo com eles.

— Amigos, no momento não cabe pensarmos em quem eles são — disse Millard. — O importante é levar Noor para um lugar seguro. Depois, aí, sim, podemos debater até a morte sobre a identidade das pessoas de camisa polo.

— Um lugar seguro? — perguntou Noor. — E que lugar seria esse?

— Uma fenda temporal — respondi.

Ela virou o rosto e passou a mão na testa. A luz num dos cantos da sala piscou.

— Depois de tudo que vocês falaram, eu devia acreditar nisso também, mas...

— Eu sei — interrompi. — É muita coisa, e tudo ao mesmo tempo.

— Não é só muita coisa. É muita doideira. Eu teria que estar maluca para ir com vocês para algum lugar.

— Você vai ter que confiar em nós — disse Emma.

Noor olhou para nós em silêncio por alguns segundos. Começou a assentir, devagar, mas, por fim, falou:

— Mas não confio. — Ela se levantou e deu alguns passos na direção da porta. — Desculpa. Vocês parecem legais, mas não tenho como confiar em pessoas que acabei de conhecer. Mesmo as que ressuscitam os mortos e acendem fogo nas mãos.

Olhei para Emma, Bronwyn e Enoch. Estávamos todos em silêncio. Eu realmente não sabia o que dizer, não sabia como argumentar, mas sabia que precisava dizer alguma coisa. Não podíamos terminar daquele jeito. Eu não podia falhar com ela, com meu avô, com meus amigos. Comigo mesmo. Mas, assim que abri a boca para falar, o prédio começou a tremer.

A sensação veio acompanhada pelo som de um motor. Um helicóptero sobrevoava o prédio.


Trocamos olhares nervosos, esperando o som do helicóptero sumir. Segundos se passaram, mas o rugido só aumentava. Não precisamos dizer nada para saber o que aquilo significava. Mas falei mesmo assim:

— Eles nos seguiram.

Noor me encarou com raiva e medo ao mesmo tempo.

— Ou vocês os trouxeram?

Ela pegou Lilly pela mão e saiu com ela às pressas. Fomos atrás das duas, implorando.

— Não trouxemos ninguém aqui! — disse Millard. — Não de propósito. Juro pela nossa ymbryne!

Chegamos a um cômodo maior e paramos, olhando para o céu por uma claraboia aberta. De repente, o helicóptero surgiu, o barulho e o vento dos rotores preenchendo todo o lugar.

Um holofote se acendeu, deixando tudo branco em volta e formando sombras no chão. Noor levantou a cabeça, com ferocidade no olhar, aparentemente pronta para enfrentar qualquer um só para não ter que ir conosco.

— Você tem que vir com a gente! — gritei. — Não tem outro jeito!

— Claro que tem! — gritou ela de volta.

Então ela ergueu as mãos e sugou a luz. Tudo ao redor e acima ficou preto, as únicas fontes de luz restantes sendo um pontinho no céu e um orbe resplandecente nas mãos de Noor.

Algo caiu pela claraboia, um objeto pequeno e sibilante que rolou em alguma superfície, na escuridão, antes de quicar com um som metálico no piso de concreto. Aquilo começou a soltar uma fumaça branca: gás lacrimogêneo ou algo do tipo.

— Prendam a respiração! — gritou Emma.

Lilly começou a tossir.

Bronwyn a pegou no colo.

— Sou eu, Bronwyn! Eu levo você!

— Por aqui — disse Noor, e disparou para um dos corredores escuros.

Nós a seguimos, praticamente colados. Ninguém queria ficar para trás naquela escuridão artificial. No fim do corredor, tínhamos que pegar a esquerda ou a direita. Noor foi para a direita e nós fomos atrás, mas logo em seguida ouvimos vozes e passos pesados. De repente, surgiram dois homens com uma lanterna potente.

Eles nos mandaram parar. Ouvimos um poc! e ouvimos outra lata ser lançada, caindo perto de nós e cuspindo fumaça para todo lado.

Corremos na direção oposta, tossindo. Estava claro que a ideia não era nos matar. Queriam levar Noor viva; talvez, àquela altura, quisessem todos nós.

— Precisamos sair do prédio — gritei enquanto corríamos. — A escada! Para que lado fica a escada?

Depois de uma curva, chegamos a um beco sem saída. Noor se virou.

— Atrás daqueles caras — respondeu ela, apontando na direção de onde vinham os passos.

— Ferrou — falei. — Vou ter que usar nosso brinquedinho do McLanche Feliz...

Eu já estava abrindo a mochila para pegar a granada, mas Noor não parecia nem um pouco preocupada com nossa falta de opções de fuga.

— Aqui dentro! — gritou ela, enfiando-se em um quartinho apertado.

Fomos atrás dela. Não havia janelas, portas ou qualquer outra saída.

— Estamos presos aqui! — falei, segurando a granada dentro da mochila.

Eu não queria usá-la (e se o prédio desabasse na nossa cabeça?), mas, caso não houvesse alternativa, correria o risco.

— Não querem que eu confie em vocês? — disse ela. — Primeiro vão ter que confiar em mim.

Os passos soavam cada vez mais altos.

Tirei a mão da mochila. Noor nos empurrou para o canto, depois parou no meio do quarto e começou a cavar o ar com as mãos. A cada movimento o cômodo ficava mais escuro, a pouca luz natural do corredor diminuindo e desaparecendo em suas mãos. Então ela pegou todo aquele brilho concentrado, enfiou na boca e engoliu.

Só posso contar o que vi, uma das cenas mais peculiares que já testemunhei. A bola de luz brilhou através de suas bochechas e desceu pela garganta até a barriga, onde seu corpo pareceu abafar a luminosidade, até por fim desaparecer completamente bem no momento em que as pegadas chegavam à porta. Ficamos em um pretume tão absoluto que, quando os dois homens pararam na passagem e apontaram a lanterna, os fachos de luz foram reduzidos a pontinhos. Eles entraram às cegas, um deles dando pancadas na lanterna, o outro falando em um walkie-talkie cheio de estática.

— Alvos no andar seis. Repito, andar seis.

Colamos o corpo na parede, em silêncio, mal ousando respirar. Estávamos tão ocultos pela escuridão que realmente achei que eles não nos veriam. E talvez isso tivesse acontecido, se não fosse por um detalhe.

Meu celular. Estava no silencioso, mas, mesmo dentro da mochila, a vibração fazia barulho. Um zumbido baixinho que nos entregou.

Tudo pareceu acontecer com uma rapidez espantosa depois disso. Os dois homens se ajoelharam. As palavras posição de tiro surgiram na minha mente no momento em que Noor soltou um grunhido gutural e a luz presa em seu estômago foi vomitada sobre os homens, uma explosão que, mesmo eu estando com o rosto virado e de olhos bem fechados, me pareceu mil lâmpadas se acendendo ao mesmo tempo. Senti uma onda de calor. Ouvi os homens gritarem e caírem. Quando abri os olhos, cada centímetro do cômodo brilhava intensamente e os homens estavam no chão, com as mãos no rosto.

Saltamos os dois e já íamos sair dali quando mais passos se aproximaram. Um terceiro homem surgiu no corredor, com uma arma em punho, e parecia disposto a usá-la. Quando ele passou da porta, Bronwyn se jogou em cima do sujeito, o agarrou pelos ombros e o lançou na parede dos fundos no momento em que a arma disparou. O corpo do homem atravessou os tijolos, e o concreto pulverizado no ar se misturou com uma nuvem de sangue. Noor só teve tempo de olhar para Bronwyn, boquiaberta, pois na mesma hora vimos a oportunidade: atravessamos o buraco.

Do outro lado da parede, deixando para trás o homem caído, chegamos a um cômodo iluminado pelo sol e, mais à frente, uma escada. Descemos correndo os seis andares, Bronwyn carregando Lilly nos ombros, todos nós dando a volta a cada patamar com uma velocidade alucinante até chegarmos ao térreo. Fomos a toda até a cerca, atravessamos o buraco que dava no beco e cruzamos o estacionamento de um galpão até outro beco sem olhar para trás, só ouvindo o helicóptero cada vez mais distante, até que não aguentamos e tivemos que parar para recuperar o fôlego.

— Acho... acho que você matou aquele cara — disse Noor, os olhos arregalados.

— Ele estava armado — justificou Bronwyn, pousando Lilly no chão. — Se você aponta uma arma para os meus amigos, eu posso matar você. Essa... — ela fez uma pausa para limpar o suor da testa, e deu um suspiro — ... essa é a regra.

— Boa regra — concordou Noor, virando-se para mim. — Desculpa ter dito aquilo. Que vocês talvez estivessem com eles.

— Tudo bem. Se eu fosse você, talvez também não tivesse acreditado em nós.

Noor foi até Lilly e segurou a mão da amiga.

— Você está bem? — perguntou.

— Meio abalada. Mas vou sobreviver.

— Temos que sair daqui o quanto antes — disse Emma. — Qual o caminho mais rápido?

— O metrô — respondeu Noor. — Tem uma estação no próximo quarteirão.

— Temos nosso carro! — questionou Enoch.

— A essa altura, eles já conhecem nosso carro — falei. — A gente volta para buscar depois.

— Se estivermos vivos — acrescentou Millard.


Minutos depois, estávamos em um vagão de metrô rumo a Manhattan. Será que aquele era o caminho certo? Tínhamos entrado no primeiro trem que passara, para escapar dos caras esquisitos. Enquanto meus amigos conversavam aos sussurros sobre quem seriam aquelas pessoas — acólitos? Algum clã desconhecido? —, consultei o mapa na parede do vagão. As linhas do metrô se irradiavam para todos os lados. O plano era levar Noor à ilha no meio de um rio: 10.044. Ilha Blackwell, era o que dizia o postal. Noor e Lilly não conheciam o lugar, e no subterrâneo o celular não pegava. E quando encontrássemos o lugar? Como acharíamos a fenda temporal? As entradas de fenda não costumam ser nada óbvias.

Quanto mais eu pensava no nosso passo seguinte, mais inseguro me sentia em continuar com o plano. A súbita ordem de abortar a missão havia me deixado com a pulga atrás da orelha. Quais circunstâncias haviam mudado? O que ele estava tentando me avisar? Será que seu medo era por causa das pessoas que tinham nos perseguido, ou a fenda 10.044 não era mais segura?

Acima de tudo, o alvo da missão não era mais um alvo. Era Noor, uma garota peculiar com nome, história e rosto (bem bonito, aliás); era difícil me imaginar entregando-a nas mãos de estranhos. Como eu poderia largá-la em uma fenda que nenhum de nós conhecia, lavar as mãos e ir para casa?

Olhei para ela ali, sentada abraçada aos joelhos, os pés apoiados no assento de plástico, encarando o chão com um cansaço de profundezas inimagináveis.

— Você sentiria falta de Nova York, se tivesse que ir embora daqui? — perguntei a ela.

Noor levou uns cinco segundos para emergir de seus pensamentos e se virar para mim.

— Se eu sentiria falta de Nova York? Por quê?

— Porque acho que você devia vir com a gente.

Emma me olhou sem entender, mas foi Millard quem objetou:

— Não foi essa a missão que recebemos.

— Esqueçam a missão — falei. — Ela vai ficar mais segura com a gente do que numa fenda temporal qualquer nessa cidade maluca. Mais do que em qualquer lugar deste lado do oceano, na verdade.

— Nós moramos em Londres, na maior parte do tempo — explicou Emma. — No Recanto do Demônio.

Noor fez uma careta.

— Não é tão ruim quanto parece — disse Millard. — Depois que você se acostuma com o cheiro, fica mais fácil.

— Já estamos quase no fim dessa missão infernal — interrompeu Enoch. — Não vamos estragar tudo agora. Vamos levar Noor para o lugar combinado e acabar com isso.

— Não sabemos quem vive nessa fenda, ou se são competentes — falei. — Não sabemos nada sobre eles.

— E por que isso seria sua preocupação? — questionou ele.

— Concordo com Jacob — disse Millard. — Quase não restaram ymbrynes nos Estados Unidos, e o trabalho de uma ymbryne é proteger e orientar peculiares perdidos. Quem vai ensiná-la sobre o mundo peculiar?

Noor ergueu a mão.

— Alguém pode me explicar o que está acontecendo?

— Uma ymbryne é uma... São tipo professoras — falei. — Cuidadoras.

— E líderes do governo — acrescentou Millard. Depois completou, baixinho: — Embora não sejam eleitas...

— E umas metidas a sabe-tudo infernais que vivem se metendo na vida dos outros — disse Enoch.

— Basicamente, a espinha dorsal da nossa sociedade — disse Emma.

— Não precisamos de uma ymbryne, só de um lugar seguro — falei. — Sem contar que a srta. Peregrine deve estar querendo matar a gente.

— Ela vai superar — disse Enoch.

— E então? Quer vir com a gente? — perguntei a Noor.

Ela suspirou, depois deu uma risada.

— Por que não? Seria bom tirar umas férias.

— Ei, e eu? — perguntou Lilly.

— Você é mais do que bem-vinda para vir também — disse Millard, um pouco animado demais. — Embora os normais não possam entrar nas fendas temporais, infelizmente.

— Eu não poderia ir mesmo. As aulas acabaram de começar. — Ela riu. — Minha nossa, vejam só o que eu disse. Como se nada dessa insanidade toda tivesse acontecido! A escola realmente estragou meu cérebro.

— Bem, estudar é importante — disse Millard.

— Mas tem meus pais, e eles são legais. Ficariam muito preocupados comigo.

— Eu volto — disse Noor. — Mas me parece uma ótima ideia ficar um tempo fora até a poeira baixar.

— Então agora você confia em nós? — perguntei.

— O bastante — respondeu ela, dando de ombros.

— O que me diz de uma road trip?

De repente, Bronwyn escorregou do assento e caiu no chão.

— Bronwyn! — gritou Emma, agachando-se ao lado dela.

Se algum passageiro viu, não demonstrou.

— Ela está bem? — perguntou Enoch.

— Não sei — disse Emma, dando tapinhas no rosto de Bronwyn e repetindo o nome dela até vê-la abrir os olhos.

— Amigos, acho que... Droga, eu devia ter falado antes.

Bronwyn fez uma careta e levantou um pouco a barra da blusa. Estava sangrando na barriga.

— Bronwyn! — exclamou Emma. — Meu Deus!

— O cara armado... Acho que ele me acertou. Mas não se preocupem, não é uma bala de verdade.

Ela abriu a mão, mostrando um dardo manchado de sangue.

— Por que você não disse nada? — perguntei.

— Tínhamos que sair de lá rápido. E eu sou forte, achei que fosse me recuperar logo. Mas parece que...

Sua cabeça tombou de lado e ela desmaiou.

 

 

CAPÍTULO DEZESSEIS


Não estávamos procurando uma fenda. Naquele momento, queríamos qualquer coisa, menos uma fenda. Só pensávamos em levar Bronwyn a um hospital. Saltamos na estação seguinte do metrô, mal vendo onde estávamos. Para subir a escada até a rua, Lilly tomou o braço de Millard, enquanto Emma, Noor e eu ajudávamos Bronwyn. Ela estava fraca, mas ainda consciente, caminhando a passos pesados entre a multidão nos degraus e na calçada. Saímos em Manhattan, a área central de Nova York. Ali, os prédios eram mais altos, e as ruas, mais movimentadas.

Peguei meu celular para chamar uma ambulância, enquanto Enoch abordava pessoas na rua, gritando “Hospital! Onde tem um hospital?” A estratégia se revelou eficiente, pois uma senhora gentil se sensibilizou e nos mostrou por onde ir, só que resolveu ir junto e ficou fazendo perguntas preocupadas sobre o estado de Bronwyn. É claro que não podíamos contar nada, muito menos que ela fosse conosco até o pronto-socorro e quisesse saber quem éramos (eu já estava imaginando como arranjaríamos uma ymbryne para apagar a memória dela... e também a dos médicos e das enfermeiras). A solução foi fingir que era tudo mentira, como se estivéssemos aprontando uma brincadeira de mau gosto. A mulher foi embora compreensivelmente zangada.

O hospital ficava logo à frente, já dava para ver a placa no quarteirão seguinte. No caminho, porém, senti um cheiro incrível de comida e acabei retardando o passo.

— Estão sentindo isso? — disse Enoch. — É pão de alecrim torrado com patê de foie gras!

— Claro que não! — disse Emma. — É torta de carne.

Nosso ritmo estava diminuindo.

— Eu reconheceria esse cheiro em qualquer lugar — disse Noor. — São dosas. Paneer masala dosas.

— Do que vocês estão falando? E por que estão parando?

— Lilly tem razão, precisamos levar Bronwyn ao médico — disse Millard. — Se bem que é o coq au vin mais aromático que já tocou minhas narinas...

Não adiantava insistir em continuar. Estávamos parados diante de um suposto restaurante, embora não houvesse nenhuma placa que confirmasse isso, apenas letreiros dizendo sempre aberto e todos são bem-vindos.

— Olha, já estou melhor — disse Bronwyn. — Só com uma fominha, na verdade, agora que vocês tocaram no assunto.

Não era o que parecia: ela falava com a voz arrastada e ainda apoiava o peso do corpo em nossos braços, mas a parte do meu cérebro responsável por registrar isso parecia dormente.

— Ela está sangrando! — observou Emma. — E o hospital é logo ali.

Bronwyn olhou para a própria blusa.

— Não muito — respondeu ela, apesar de a mancha vermelha parecer aumentar.

Havia dois desejos em conflito dentro de mim. Uma voz gritava: Vá para o hospital, seu idiota!, mas eu mal a ouvia, pois uma outra voz (que, estranhamente, parecia a do meu pai) insistia, de um jeito meio bobo alegre, que já é quase hora do jantar e por que não experimentar a culinária nova-iorquina já que estamos aqui, é só comer rapidinho?

Todo mundo concordou, menos Lilly e Emma, mas mesmo os protestos das duas estavam perdendo a força.

Fui lá e abri a porta, chamando todo mundo para entrar. Era mesmo um restaurante: um lugarzinho antigo, com toalhas de mesa xadrez, cadeiras de treliça e uma máquina de refrigerante. No balcão, uma garçonete de avental e chapeuzinho sorria como se tivesse passado o dia inteiro à nossa espera. Éramos os únicos clientes.

 

 

— Vocês parecem com fome! — disse ela, dando pulinhos.

— E como! — respondeu Bronwyn.

A garçonete não deu nenhum sinal de que havia notado o sangue na blusa de Bronwyn.

— Na verdade, vocês parecem famintos — disse a garçonete.

— Sim — confirmou Enoch, num tom meio robótico. — Famintos.

— Que tipo de restaurante é esse? — perguntou Noor. — Achei que tivesse sentido cheiro de paneer.

— Ah, temos de tudo — disse Bernice, com um pequeno aceno de mão. — Qualquer prato que vocês queiram.

Ela havia se apresentado? Como eu sabia seu nome? Meu cérebro tinha virado mingau.

A voz baixa que questionava se aquela era uma boa ideia baixou para um sussurro. As objeções de Lilly também cessaram. Sua última tentativa tinha sido: “Fiquem aqui se quiserem, mas eu vou levar a amiga de vocês para o hospital!” Mas seus esforços para arrastar Bronwyn pelo cotovelo não surtiram efeito (não é qualquer um que consegue carregar Bronwyn a um lugar contra a vontade dela).

Então constatei:

— Não temos dinheiro.

A decepção que senti ao perceber que nosso dinheiro tinha ficado no carro foi quase tão grande quanto a dor de perder alguém.

— Estamos com uma promoção especial hoje — disse Bernice. — Tudo por conta da casa.

— Sério? — perguntou Bronwyn.

— Isso mesmo. O dinheiro de vocês não serve de nada aqui.

Fomos até o balcão e nos sentamos nas banquetas de plástico fixas. Não havia cardápio. Falávamos o que queríamos, e Bernice gritava os pedidos para uma equipe de cozinheiros que não conseguíamos ver. Após um tempo incomumente curto, uma campainha soou e ela começou a servir prato após prato. Carne ao molho de vinho para Millard. Dosas e uma bebida indiana à base de manga para Noor. Cordeiro assado com geleia de hortelã para Emma. Um cheesebúrguer duplo com batatas e milk-shake de morango para mim. Uma lagosta para Bronwyn, acompanhada de um talher próprio para frutos do mar e um babador com o desenho do crustáceo. Um bibimbap coreano fumegante, com um ovo estrelado em cima, para Lilly. Era a variedade mais eclética que se podia imaginar para um restaurante — ainda mais para um lugar tão pequeno, antigo e engordurado com apenas uma funcionária à vista. Só que a parte do meu cérebro que estava estranhando tudo isso falava cada vez mais baixo:

Não coma.

Vá embora.

É uma péssima ideia.

Pare antes que seja

tarde demais.

Não me lembro de ter comido o cheesebúrguer duplo com batatas e milk-shake de morango. De repente, o copo estava vazio, só havia migalhas no prato e minha cabeça estava pesada, muito pesada.

— Ah, queridos! — Bernice deu a volta no balcão e foi até nós, a mão no peito. — Vocês estão com uma carinha exausta!

E eu estava mesmo exausto. Esgotado.

— Estou tão cansada, mas tão, tão, tão cansada... — disse Emma.

Seguiu-se uma onde de murmúrios em concordância.

— Por que não vão lá para cima e dormem um pouco?

— Precisamos ir — disse Noor, tentando descer da banqueta, mas sem forças para isso.

— Precisam mesmo? — disse Bernice. — Eu acho que não.

— Jacob — sussurrou Emma no meu ouvido.

Ela parecia bêbada.

— Temos que ir.

— Eu sei.

Fomos hipnotizados. Eu sabia. Foi mais ou menos o mesmo que os peculiares da Terra das Sereias tentaram fazer. Só que, dessa vez, nós caímos.

— Temos quartos com camas prontinhas para vocês. É por aqui...

Quando ela disse isso, me vi capaz de me levantar. De uma hora para outra, estávamos todos de pé. E Bernice nos empurrava gentilmente para um corredor que mais parecia um túnel, pintado com listras vermelhas e brancas.

Nos deixamos levar. O corredor dava a sensação de se alongar quando entrávamos nele.

Ouvi um barulho e me virei. Com o braço estendido, Bernice estava barrando a entrada de Lilly.

— Eeeei — falei, bem devagar. — Seja legal com ela.

Lilly falava alguma coisa. Eu via sua boca se mexendo, as veias saltando no pescoço, mas sua voz não chegava aos meus ouvidos (ou era impedida).

— A gente já volta, Lilly, espere aí — disse Noor.

É claro que ela não poderia ir conosco mesmo que Bernice não a impedisse. Mais ou menos no meio do corredor, senti a aceleração momentânea e o frio no estômago e, puf!, estávamos na fenda.

Lilly não estava mais lá atrás, e agora eu via onde o corredor terminava: em uma escada.

— É só subir! — ecoou a voz de Berenice, embora ela não estivesse à vista em lugar algum.

Subimos devagar, degrau após degrau, e quando chegamos ao segundo andar, os últimos resquícios da minha força de vontade se foram. Estávamos à mercê do canto da sereia que nos guiava, e só o que podíamos fazer no momento era obedecer.


No corredor do segundo andar, duas meninas pequenas estavam de gatinhas, absorvidas no que parecia uma análise minuciosa das tábuas do piso, centímetro a centímetro. Quando nos aproximamos, elas pararam.

 

 

— Vocês viram uma boneca? — perguntou a menina mais velha. — Frankie perdeu uma das bonecas dela.

Ela falava como se estivesse contando uma piada, mas sem sorrir.

— Desculpe, não vi — respondeu Noor.

— Nós pedimos uma... soneca? — disse Millard, confuso.

— Por ali — disse a mais velha, indicando a porta atrás de si.

Passamos por elas.

— Fujam — pensei ter ouvido uma delas dizer. — Fujam enquanto podem.

Mas quando me virei, elas estavam novamente encarando o chão, de volta a sua análise metódica. Eu me movimentava como se estivesse num sonho.

A porta levava a uma cozinha pequena e bem-arrumada. Um menino estava sentado a uma mesa, com um homem de gravata-borboleta de pé ao seu lado. Havia quebra-cabeças e blocos de empilhar na mesa, como se o homem estivesse fazendo algum exame no menino. Quando nos ouviu entrar, o homem apontou para o cômodo seguinte.

 

 

— Por ali. — Ele nem olhou para nós, sua atenção toda no menino. — Sanguis bebimus. Corpus edimus.

— Mater semper certa est — respondeu o menino, encarando o vazio. — Mater semper certa est.

— “A mãe sempre tem razão” — traduziu Millard.

O tutor se empertigou e bateu na parede.

— Silêncio aí! — bradou ele, mas não para nós.

Eu não entendi o que o havia irritado, até que entramos no cômodo seguinte e ouvimos a cantoria.

Uma voz entorpecida e desafinada gemia:

— Parabééééééns pra vocêêêêêêêê ... nessa daaaaaata queriiiidaaaaa ...

Eu não conseguia fazer meus pés se mexerem mais rápido, mas teria saído correndo dali se eles colaborassem. Quem estava cantando era um homem com maquiagem de palhaço e uma peruca branca feito papel. Ele estava sentado numa espreguiçadeira, diante de uma mesinha de bebidas, e servia uma dose de uma das garrafas. Parecia emperrado numa sequência: dava um gole, enchia mais um pouco a taça, cantava algumas poucas palavras e dava outro gole. Quando nos viu, ergueu a taça em um brinde:

— Tim-tim! Feliz aniversário, Frankie!

 

 

— Feliz aniversário — falei, involuntariamente.

O palhaço pareceu congelar naquela posição, com a taça erguida e a boca aberta, e do fundo de sua garganta veio um som como algo se desenrolando, as palavras quase ininteligíveis:

Me

deixe

dormiiiiiiiiir.

— Venham cá! — chamou uma voz fina, do outro cômodo.

Entramos, todos de uma vez, num quarto cheio de bonecas. Todo espaço disponível estava abarrotado delas. Tinha bonecas no chão, bonecas nas prateleiras das paredes, bonecas transbordando de uma poltrona grande no canto e de uma cama de ferro. Eram tantas bonecas que eu nem vi a garota no meio: na cama, parcialmente enterrada naquela avalanche de rostos de porcelana. Então ela ordenou:

— Sentaí!

E começou a jogar longe as bonecas que a cercavam.

 

 

Nos sentamos no chão em movimentos automáticos. Bronwyn grunhiu; a dor devia estar piorando.

— Eu não deixei vocês fazerem barulho! — disse a menina. Ela usava uma camiseta larga de algodão e uma calça de veludo amarela típica dos anos 1970 ou 1980, e quando falava, seu lábio superior formava uma expressão de escárnio. — E então? Quem são vocês?

Senti minha língua destravar.

— Meu nome é Jacob e eu moro na Flórida...

— Chato, chato, chato! — gritou a menina, e apontou para Emma. — Você!

Emma pareceu levar uma sacudida e então começou:

— Meu nome é Emma Bloom. Nasci na Cornualha e cresci numa fenda temporal no País de Ga...

— CHATA!

A menina apontou para Enoch.

— Meu nome é Enoch O’Connor, e nós dois temos algo em comum.

A menina pareceu intrigada. Ela se levantou da cama, em que estava deitada entre as bonecas, e foi até ele.

— Eu posso fazer seres mortos se mexerem usando o coração de seres vivos — continuou Enoch. — Para isso preciso arrancá-los, mas...

A menina estalou os dedos, e Enoch se calou imediatamente.

— Você é bonitinho — disse ela, passando o dedo pela linha do maxilar de Enoch —, mas quando abre a boca, estraga tudo. — Ela tocou na ponta do nariz dele. — Depois a gente conversa mais.

Ela se virou para Bronwyn.

— Você.

— Meu nome é Bronwyn Bruntley e eu sou bem forte, e o meu irmão, Victor, também era...

— CHATA! — berrou a garota — COCÔ!

Passos apressados vieram na nossa direção. O homem de gravata-borboleta apareceu à porta.

— Sim?

— Não quero mais nenhuma boneca que nem essas, Cocô. Olhe bem para a cara delas. Você acha que seria divertido jogar Banco Imobiliário com elas? ACHA?

— Hã... não?

— ISSO MESMO. NÃO SERIA.

Ela deu um chute numa pilha de bonecas, que saíram voando.

— Dele eu gosto. — Ela apontou para Enoch. — Mas o resto é HORRÍVEL e CHATO.

— Peço mil desculpas, Frankie.

— O que fazemos com eles, Cocô? — Ela se virou para nos dar uma breve explicação: — O nome dele não é Cocô. Só chamo ele assim porque posso chamar todo mundo do que eu quiser.

— Poderíamos comê-los — sugeriu Cocô.

Frankie fez um esgar de escárnio.

— Você só pensa em comer todos. Que coisa esquisita, Cocô. Aliás, da última vez eu fiquei com dor de barriga.

— Ou poderíamos vendê-los.

— Vender-los para quem?

— Vendê-los — disse o tutor, e logo depois tapou a boca, pálido.

A menina teve um acesso de fúria. Ela apontou para o homem e então fez um gesto rápido para o chão. O tutor se pôs de joelhos como uma marionete sendo puxada pelos fios.

— VOCÊ. NÃO. ME. CORRIGE!

— Sim, Frankie. Sim, madame. — A voz dele tremia. — Mater semper certa est.

— Isso mesmo. Extremamente correto. — Uma pequena fila de bonecas vinha marchando na direção dele. — Como você é muito obediente, Cocô, vou mandar que elas comam só uma das suas pernas.

O tutor repetia a frase sem parar, cada vez mais rápido: Mater semper certa est, mater semper certa est!, até que as palavras começaram a se embolar. As bonecas o cercaram, agarrando-o e batendo os dentinhos de porcelana. O homem chorava e soluçava, mas nada fazia para tentar afastá-las. Quando ele parecia prestes a desmaiar, a menina abriu bem os braços e bateu palmas uma vez. Todas as bonecas ficaram molengas e tombaram no chão.

— Ah, Cocô, você é tão divertido...

O homem se recuperou, limpou as lágrimas do rosto e ficou de pé.

— Onde eu estava mesmo? — Ele pigarreou. — Ah, sim. Você poderia vendê-los para os Animistas, os Mentatis, os Climatólogos... — Ele levou a mão trêmula ao pescoço, checou o pulso rapidamente e voltou a levar a mão às costas. — Porém, como sempre, os Intocáveis estão pagando melhor.

— Blergh. Eu odeio eles. — A menina fez uma careta. — Mas desde que nenhum deles coloque os pés aqui...

— Vou telefonar e marcar uma reunião de vendas.

— Só não vou vender aquele.

Ela apontou para Enoch e, com dois dedos, traçou no ar um U invisível. Um sorriso exagerado e grotesco se formou no rosto de Enoch.

— Perfeitamente, Frankie. Ótima decisão.

— Eu sei. O resto não me importa. Só tenho uma condição: se o comprador for fazer alguma coisa nojenta com eles, eu quero assistir.


Depois de um longo sono sem sonhos, acordei amarrado a uma cadeira. Estávamos enfileirados, nossos pés presos aos das cadeiras e as mãos amarradas às costas: Emma, Bronwyn, Noor e até Millard, as cordas envolvendo uma cadeira que parecia vazia. Faltava Enoch. Ele não estava em lugar nenhum.

Estávamos no palco de um teatro velho, atrás de uma cortina amarela maltrapilha. Quando olhei para cima, vi cordas e polias às nossas costas e holofotes presos a uma passarela no alto. Não estávamos amordaçados, mas mesmo assim eu não conseguia falar. Não conseguia nem obrigar minha boca a se abrir. Então ouvi vozes do outro lado da cortina. E pareciam estar falando sobre nós.

— Eles estavam invadindo minha propriedade! Tentando roubar de mim! — Era a garotinha psicótica, Frankie. — Eu tenho o direito legal de enforcá-los, mas, em vez disso, estou sendo piedosa. E fazendo um favor a vocês.

— Que curioso, normalmente é você que tenta roubar de nós — disse uma voz masculina bruta. — O último espécime que comprei de você virou pó depois de meros dois dias de uso.

— Não tenho culpa se você não cuida direito deles.

— O vendedor não se responsabiliza por manuseio errado — disse uma voz escorregadia.

Reconheci a voz: Cocô, o tutor.

— Você me vendeu lixo! Exijo um de graça em compensação!

Parecia que eles iam começar a brigar, mas então uma mulher mais velha gritou:

— Parem! É proibido brigar em território neutro!

As coisas se acalmaram.

— Você já me fez perder meu dia, Frankie — disse a voz bruta. — Vamos começar logo.

— Tá bem. COCÔ!

Com um guincho alto e uma nuvem de poeira, a cortina começou a subir, revelando diante de nós um teatro vazio e decadente. As poltronas tinham rasgos no couro, o balcão oscilava num ângulo precário e ameaçava cair a qualquer momento.

No palco havia seis pessoas. Elas nos observavam, mas ao mesmo tempo pareciam estar de olho umas nas outras com muita atenção, mantendo-se a uma distância defensiva. Frankie e Cocô eram os que estavam mais perto de nós. A menina usava uma casaca e segurava um bastão, como se fosse a mestra de cerimônias de um circo.

Hoje me parece incrível, mas naquele momento eu não tinha como saber quem eram os outros — e provavelmente foi melhor assim, porque, se soubesse da reputação deles, acho que eu não teria nem conseguido pensar direito. Frankie havia anunciado seus produtos para as maiores gangues de peculiares de Nova York, e ali estavam os líderes de três delas. No centro estava um rapaz com um cabelo que parecia uma onda congelada. Usava um terno impecável, mas sapatos sujos de lama vermelha, e tinha um sorriso ameaçador. Seu nome era Estrago Donovan. Atrás dele, dois lacaios montavam guarda: uma garota quieta lendo um jornal muito casualmente e um garoto que não me pareceu capaz de ler nada, a boca entreaberta em espanto baço.

 

 

Estrago me encarava enquanto discutia com uma garota de vestido branquíssimo com um grande laço na cintura. O cabelo dela estava arrumado em uma série complexa de cachos artificiais que lhe caíam pelas costas. Seu rosto era branco como leite, de linhas suaves e muito frio, a boca o inverso da de Estrago: com os cantos virados para baixo, e sempre se mexendo, como se estivesse o tempo todo mastigando ou falando sozinha. Seu traço mais estranho era uma nuvem de fumaça preta que dava voltas acima de sua cabeça e seus ombros, agitando-se devagar mas nunca se dissipando. A nuvem se afunilava e parecia brotar da orelha direita da menina. Seu nome era Angelica, e ela estava sozinha, sem capangas.

Estrago odiava ser fotografado, mas um dia eu veria uma foto borrada dele posando da mesma forma que se apresentava diante de mim agora. Angelica, por outro lado, adorava as câmeras, e determinado retrato dela — deprimida num balanço, a nuvem de fumaça ao lado — ficaria famosa entre os peculiares americanos, emoldurada e pendurada com orgulho por alguns ou, por outros, usada para prática de tiro ao alvo ou para cartazes de PROCURA-SE.

 

 

Estrago e Angelica discutiam sobre alguém que ainda não tinha aparecido, o representante dos Intocáveis, e Frankie se recusava a começar sem ele.

— De jeito nenhum que ele vai mostrar aquela cara peluda dele aqui — disse Estrago. — Ou em qualquer lugar da cidade, por sinal. — A voz dele era melodiosa, marcada por um leve sotaque irlandês.

— Tomara que ele apareça — disse seu lacaio de queixo mole. — Amarro ele e entrego para levar a recompensa.

— Eu pagaria para ver — disse Angelica. — Nenhum de vocês vai botar as mãos naquela recompensa. O Canino e o clã dele não têm medo de vocês. Do Leo e seus capangas, sim, mas não de vocês.

Ela tinha um jeito de falar que era como um bocejo cantado, as frases começando altas e alegres para depois esvoaçarem até o chão.

Estrago deu uma olhada no relógio de bolso, descruzou as pernas e se levantou.

— Só mais um minuto, Frankie. Senão, pego meus lacaios e me mando.

— Cocô, faça ele se sentar — gritou Frankie.

— Por favor, sente-se, sr. Donovan — disse o tutor.

— Nunca vou obedecer a um homem que se deixa humilhar por uma criança.

— Você vai se arrepender de falar comigo assim — disse Frankie. — Um dia, vai implorar pelo meu perdão.

Antes que a discussão esquentasse, ouviu-se uma batida nos fundos do teatro e portas duplas se abriram. Uma pessoa pequena entrou às pressas.

— Aí está ele! — disse Frankie. — Eu falei.

Ele cruzou o corredor a passos firmes, tirando o chapéu e o casaco de gola alta que escondia seu rosto.

— Desculpa o atraso — disse ele. — Trânsito terrível!

Quando ele subiu os degraus, as luzes do palco o iluminaram. Fiquei chocado ao ver seu rosto: cada centímetro, com exceção dos olhos e da boca, era coberto por uma pelugem de fios longos e grossos. Então aquele era Canino, o líder dos Intocáveis da rua Eldritch, o clã peculiar mais detestado de Nova York.

 

 

— Canino! — gritou Estrago. — Eu realmente achei que você não teria coragem de dar as caras por aqui, depois da surra que levou da gente na semana passada.

— Você chama aquilo de surra? — respondeu Canino, lambendo a ponta dos dedos e afastando um chumaço de pelos dos olhos. — Que engraçado, eu me lembro de três da sua gangue sendo levados para o curador, e só dois meus.

— Acho que você não sabe fazer conta — disse Estrago. — Fique fora do meu território, senão você não vai nem para o curador, vai direto para o necrotério.

— Buá, buá — zombou o garoto peludo. — Fique fora do meu território! Alguém precisa trocar a fralda.

Estrago, que tinha voltado a se sentar, pulou da cadeira sobre Canino, mas um de seus lacaios o segurou a tempo. Canino nem piscou, dando risadinhas enquanto Estrago fazia uma cena, tendo que ser arrastado de volta à cadeira para evitar a briga.

— Eu nem tentaria, se fosse você — disse Canino. — Tenho três rapazes esperando lá fora com a orelha colada na porta. Se eles ouvirem um latido que seja, você é um homem morto.

— Já chega dessas picuinhas desgastantes — disse Angelica, com um olhar plácido, mas a nuvem de fumaça densa e dando voltas.

— Sim, por favor, vamos começar — disse o tutor.

Todos se sentaram. Embora a tensão fosse palpável, aos poucos o foco dos líderes se voltou para meus amigos e eu.

— O que você tem para nós hoje, Frankie? — perguntou Canino, esfregando as mãos, ansioso. — Mais um bando de caipiras?

— Não preciso de mais nenhum peculiar com truques de quinta categoria — disse Estrago. — Quero talento real.

— É — disse Canino. — Ele já tem idiotas inúteis suficientes no time dele.

Estrago lançou a ele um olhar vil.

— Não, não, esses são coisa fina — disse Frankie. — E vão custar bem caro.

— É o que veremos — disse Angelica.

— O que me importa é: eles sabem roubar? — perguntou Estrago. — Preciso de músculos. E de vigias.

— Eu preciso de camaleões — disse Canino. — Meu pessoal tem sido notado por alguns normais e tivemos que raspar tudo.

— Você devia fazer o mesmo — disse Estrago, rindo.

— Este aqui é invisível! — disse Frankie, e cutucou Millard com seu cetro.

Ele guinchou. Ainda não conseguíamos falar.

— Hum — fez Estrago, unindo os dedos. — Talvez me interesse...

— Não são feios o suficiente para a sua gangue — disse Canino. — É melhor deixar para mim.

— Eu preciso de climatólogos, como sempre — disse Angelica, com um suspiro. — Troca-ventos, semeia-nuvens. E competentes.

— Muito bem, falem — disse Frankie, balançando o bastão na nossa direção. — Digam o que sabem fazer.

Senti meu maxilar afrouxar e minha língua, que quase tinha ficado dormente, começar a pinicar toda conforme a sensação voltava. Foi difícil falar, no início. Bronwyn também tentou, mas parecia que tínhamos esquecido como formar sílabas.

Canino jogou as mãos no ar.

— Eles são idiotas, por acaso?

— Claro que são — disse Estrago. — Como você acha que foram capturados?

— Pode arrancar o número do meu telégrafo da sua agenda — disse Angelica, e se levantou para ir embora.

— É só língua cansada! — suplicou Frankie. — Não vá! — Frankie começou a bater em Bronwyn com o bastão, gritando: — FALA DIREITO!

Aquilo me deixou com tanta raiva que recuperei a voz:

— PARE!

Frankie se virou furiosa e foi para cima de mim com o bastão. No entanto, Emma tinha queimado as cordas do punho sem que ninguém percebesse, e, quando Frankie passou por ela, atacou a garota, mesmo com os pés ainda amarrados à cadeira, e a derrubou.

Emma conseguiu dar uma gravata em Frankie e levou a mão em chamas para bem perto da cabeça da menina.

— Pare, pare, pare! — gritava Frankie, contorcendo-se toda.

Ela parecia ter perdido o controle telecinético sobre Emma e, mesmo com muito esforço, não conseguia recuperá-lo.

— Nos soltem, ou derreto a cara dela! — ameaçou Emma. — Estou falando sério!

— Por favor — disse Angelica. — Ela é um porre.

Os outros riram. Pareciam surpresos, mas não incomodados com a súbita reviravolta.

— Por que estão parados aí? — berrou Frankie. — Matem eles!

Canino cruzou as pernas e entrelaçou os dedos atrás da cabeça.

— Não sei, Frankie. Agora está ficando interessante.

Angelica concordou.

— Ao menos hoje fico feliz por ter saído da cama.

— Nenhum de vocês se importa se ela morrer??? — perguntou Emma, revoltada.

— Eu me importo — respondeu o tutor.

Mas ele não parecia muito convincente.

— Você não pode fazer isso comigo! — gritou Frankie. — Você é minha! Eu peguei você!

Eu estava começando a recuperar o controle sobre meus braços, pernas e a língua.

O feitiço da garota havia se quebrado. Olhei para os outros e vi que eles também começavam a se mexer.

— Eu proponho que a gente divida eles igualmente — disse Estrago, pegando da cintura um revólver de barril grande e engatilhando. — Um para você, outro para você e dois para mim.

— Tenho uma ideia melhor — disse Canino, que então se pôs de quatro e começou a rosnar ferozmente. — Fico com todos.

— Não vai se assim tão fácil — ameaçou Angelica. A nuvem dela reluziu, ficando muito branca por um momento, e trovejou. A fumaça era, na verdade, uma nuvem carregada. Ela então se dirigiu a Emma: — E nem pense em usar esse fogo contra nós.

— Ninguém vai ficar com ninguém — falei, indignado. — Ninguém vai nos comprar.

— Quando o Conselho de Ymbrynes descobrir o que está acontecendo aqui, vocês vão ver só — disse Millard.

O comentário fez algumas sobrancelhas se erguerem. Estrago deu um passo adiante.

— Vocês entenderam errado — disse ele, de repente um pouco mais respeitoso. — Não compramos pessoas. Esse tipo de comércio foi proibido há um bom tempo. De vez em quando, damos lances para arcar com a fiança de peculiares condenados por algum crime. Se forem do nosso agrado.

— Que tipo de crime? — perguntou Millard. — Vocês são os criminosos.

— Vocês invadiram o território de Frankie — disse Canino.

Frankie, que nem conseguia falar de tanto medo que estava, assentiu vigorosamente.

— Caímos numa armadilha! — defendeu-se Bronwyn. — Ela nos drogou!

— Ignorantia legis neminem excusat — disse o tutor. — O desconhecimento da lei não é justificativa.

— Nós pagamos a fiança de vocês — continuou Estrago. — Vocês se livram de ir para a prisão e nos agradecem prestando serviços por um período de três meses. Mesmo depois desse período, muitos decidem continuar conosco.

— Os que sobrevivem — disse Canino, com um sorriso malicioso. — Nossas iniciações não são para os de coração fraco.

— Você, senhorita, é muito talentosa — disse Angelica, aproximando-se de Emma com cautela e fazendo uma leve mesura. — Acho que se sentiria em casa no meu clã. Somos elementais, como você.

— Vamos deixar uma coisa bem clara — disse Emma. — Eu não vou a lugar algum com vocês, nem eu nem meus amigos.

— Eu acho que vão, sim — disse Canino.

Fez-se um barulho alto. Bronwyn tinha arrebentado as cordas e se soltado da cadeira.

— Não se mexa! — gritou Estrago. — Ou eu atiro!

— Se você atirar, eu a queimo — avisou Emma.

— Faça o que ela mandar! — choramingou Frankie.

Depois de uma breve hesitação, Estrago baixou a arma um pouco. Apesar de alegarem indiferença, eles não queriam que Frankie fosse morta. Ou não queriam nos matar.

Bronwyn foi até Noor e arrebentou as cordas que a prendiam.

— Obrigada — disse Noor, levantando-se e esfregando os punhos.

Então, Noor passou a mão no ar e coletou a luz do holofote cegante. Ainda estava ligado, lá no alto, mas agora a luz parava bem acima de nós.

— Pronto. Assim está melhor.

Ela apertou a bola de luz entre as mãos e a colocou na boca, a bochecha estufada como se houvesse ali um grande chiclete brilhante.

— Misericórdia — murmurou Estrago.

— Quem são vocês? — perguntou Canino.

Bronwyn tinha acabado de soltar Millard e agora ia até mim.

— Eles não podem ser daqui — disse Angelica. — Com essas habilidades, todo mundo os conheceria.

— Vocês se lembram dos acólitos? — disse Millard.

— Vocês só podem estar de brincadeira — disse Estrago.

— Eles estão mortos ou presos por nossa causa.

— Mais por causa dele — acrescentou Bronwyn, que tinha arrebentado as cordas dos meus pulsos e agora levantava meu braço como se eu fosse um campeão de boxe. — Somos os pupilos da srta. Peregrine. E quando ela souber o que vocês fazem, ela e as outras ymbrynes vão vir com tanta força para cima de vocês que vocês nem vão saber o que os atingiu.

— Essa é a maior maluquice que eu já ouvi — disse Estrago.

— Acho que eles vão se adaptar muito bem por aqui — disse Canino.

A dinâmica havia mudado. Havíamos conquistado certo respeito relutante por parte deles, equilibrando a balança de poder. Mas os líderes dos clãs continuavam receosos de nós (e uns dos outros), por isso ninguém baixou a guarda. Estrago ainda empunhava o revólver, Emma mantinha a chama no rosto de Frankie, Canino ainda estava de quatro, pronto para atacar, e a nuvem de Angelica agora chovia em silêncio, pingos de chuva molhando sua cabeça e escorrendo por seus ombros. Estávamos dançando em torno de uma dinamite com o pavio aceso.

— Tenho uma pergunta para vocês, e é melhor falarem a verdade — disse Estrago. — Pessoas como vocês não apareceriam por essas bandas se não fosse por uma boa razão. Então, digam: o que fazem aqui?

Acho que eu pensei que poderia falar com eles de igual para igual, mas depois, ao relembrar o ocorrido, não sabia explicar por que contei aquilo. Estava me sentindo confiante e destemido, e acabei deixando escapar a verdade:

— Viemos ajudá-la. — Apontei para Noor com a cabeça. — Ela é uma peculiar nova e está em perigo. Vamos levá-la com a gente.

Houve um segundo de silêncio tenso, enquanto os líderes dos clãs processavam a informação. Eles se entreolhavam.

— Você disse que ela é nova? — perguntou Canino. — Quer dizer... não registrada?

Ele se sentou sobre os calcanhares, sua voz mudando de rosnado para o tom normal.

— Sim — respondeu Emma. — Qual o problema?

Angelica estava balançando a cabeça, a água da chuva pingando de seu queixo.

— Isso não é bom.

— Droga! — disse Estrago, dando um soco no ar. — Droga, eu queria muito a esquentadinha.

— Do que vocês estão falando? — perguntou Bronwyn.

— É, o que aconteceu? — disse Noor.

Frankie começou a rir.

— Ah, vocês estão ferrados!

— Cala essa boca — disse Emma.

— Sequestro de peculiar não registrado é crime grave — explicou o tutor. — Muito grave.

— Eu não fui sequestrada — manifestou-se Noor.

— Vocês são de fora e estão transportando uma peculiar nova através dos territórios — disse Estrago. — Isso significa... — Ele deu um suspiro alto e bateu com o pé no chão. — Odeio isso!

Canino ficou de pé e bateu a poeira das mãos.

— Vamos ter que entregar vocês — disse ele. — Ou seremos considerados cúmplices do crime.

— Temos mesmo que fazer isso? — perguntou Angelica. — Estou gostando deles cada vez mais.

— Você só pode estar brincando — disse Canino, e começou a andar de um lado para o outro, nervoso. — E se não informarmos e a notícia chegar aos ouvidos de Leo? Será nosso fim. Um fim doloroso.

— Achei que você não tivesse medo de “ninguém, nenhum homem nem nada” — provocou Angelica.

Canino se virou com raiva para ela.

— Só um idiota não teria medo de Leo! — gritou ele.

Estrago se virou de costas e, quando voltou a nos encarar, segurava algo que parecia um celular pequeno.

— Odeio ter que fazer isso. De verdade. Queria mesmo trabalhar com vocês. Mas não tenho alternativa.

Ele apertou alguns botões no aparelho, e uma sirene começou a berrar. O som parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo: das paredes, do teto, do próprio ar. Meus amigos e eu trocamos olhares, depois olhamos para os americanos, que tinham baixado as armas e não faziam mais nenhum movimento ameaçador. Pareciam apenas frustrados.

Emma soltou Frankie. A garota caiu no chão.

— Cadê o nosso amigo? — gritou Emma. — O que você fez com Enoch?

Frankie correu para perto dos americanos.

— Ele agora faz parte da minha coleção! — gritou ela, entre os joelhos de Estrago. — Vocês não vão conseguir pegar ele de volta!

Com isso, parecia não haver mais razão para ficar ali, e nada nos prendia. A sirene continuava a soar.

— É melhor a gente dar o fora — falei.

— Não precisa falar duas vezes — respondeu Emma.

Ela, Noor e eu ajudamos Bronwyn, que parecia recuperada, ainda que um pouco tonta, e descemos a escada, depois pegamos o corredor até a saída dos fundos o mais rápido que podíamos — ou seja, não muito rápido.

Os americanos e seus lacaios não fizeram a menor tentativa de nos impedir. Saímos em disparada para a rua, o sol já se pondo lá fora.

Meia dúzia de homens usando ternos de estilo típico dos anos 1920 corriam na nossa direção empunhando metralhadoras antigas. Eles as apontaram para nós e nos mandaram parar. Uma chuva de balas ricocheteou na parede de concreto às nossas costas.

Um dos homens me deu uma rasteira. Caí de cara no chão, um sapato esmagando minha nuca.

Uma ordem foi dada:

— Cega eles.

Colocaram um saco de pano na minha cabeça.

Tudo ficou preto.

 

 

CAPÍTULO DEZESSETE


Alguém me segurou e me arrastou com força, depois me ergueu pelos braços e me jogou num piso metálico. Uma porta bateu. Tive a impressão de que estava na traseira de um veículo. Com o capuz que tinham enfiado na minha cabeça, não enxergava nada; mal conseguia respirar. Meu queixo estava dolorido por causa da pancada no concreto, e meus pulsos, presos outra vez, ardiam com a fricção das amarras apertadas. Um motor potente roncou, ganhando vida. Ouvi Emma dizer alguma coisa, mas um dos homens a mandou calar a boca rispidamente, e logo depois ouvi um tapa. Em seguida, fez-se silêncio. Senti a raiva crescer no meu peito.

O veículo trepidou e balançou. Ninguém falava nada. Duas coisas me ocorreram enquanto aguardávamos nosso destino: primeiro, que aqueles homens deviam trabalhar para Leo, a única pessoa em Nova York que todos pareciam temer; segundo, que eu tinha perdido minha mochila. A mochila com o livro de registros. A única coisa que meu avô havia feito questão de manter trancada em um bunker subterrâneo secreto. Um arquivo cheio de informações confidenciais. Um registro de todos aqueles anos atuando como caçador de etéreos. E eu não sabia onde estava.

Minha última lembrança de estar com a mochila era ao entrar no restaurante de Frankie. Provavelmente o tutor a pegara entre aquele momento e o teatro abandonado. Será que ele a havia aberto? Será que sabia o que tinha em mãos? O que seria pior: ele jogar fora ou ler?

Não que isso importasse mais. Se aqueles realmente eram os capangas de Leo, e se ele era tão terrível quanto todos demonstravam, talvez eu não sobrevivesse para contar história.

O motorista deu uma freada brusca. Escorreguei pelo assoalho de metal até um dos homens me segurar pela nuca. O veículo parou, e ouvi as portas se abrirem. Fomos arrastados para fora, até um edifício, e levados por um corredor e uma entrada de fenda tão suave que quase não senti a travessia. Pelo que senti e ouvi, saíramos em outro ambiente. Fazia frio, e a rua estava cheia. Tínhamos entrado em uma época passada. O som dos passos na calçada era diferente — mais pesado, porque ninguém usava tênis. Havia carros ao redor, mas os motores soavam mais ásperos, as buzinas mais agudas e os escapamentos, mais fumacentos.

Após eu tropeçar duas vezes na calçada irregular, o homem que me segurava desistiu: resolveu me avisar para não tentar nenhuma bobagem, tirou o capuz da minha cabeça e me fez apressar o passo. Fiquei piscando, a vista ofuscada pelo sol forte, tentando observar o cenário e descobrir onde estava. Eu sabia que minha vida poderia depender de uma fuga rápida.

Estávamos em Nova York, em algum momento da primeira metade do século XX — anos 1930 ou 1940, imaginei. Os carros e ônibus antigos eram inconfundíveis, e todos os homens usavam terno e chapéu. Meus raptores se encaixavam perfeitamente ali. Tiraram meu capuz porque não tinham mais que se preocupar com o fato de eu ver onde estava; provavelmente controlavam a fenda inteira. Pedir ajuda ali não adiantaria de nada — os homens matariam qualquer normal que ficasse em seu caminho. A única coisa que se deram ao trabalho de esconder, para não assustar os normais, foram as metralhadoras, enroladas nos jornais que carregavam debaixo do braço.

 

 

Fomos caminhando pela rua. Ninguém parecia nos notar, e eu não sabia ao certo se esse era simplesmente o jeito dos nova-iorquinos ou se as pessoas eram instruídas a ignorar os capangas de Leo porque era melhor para elas. Tentei olhar para trás e ver se meus amigos estavam comigo, mas tudo que consegui foi um tapa. Vi homens de Leo andando à minha frente e ao meu lado, e ouvi, em algum ponto atrás de mim, Canino e Estrago conversando em voz baixa.

Entramos em uma ruela, subimos uma rampa de carga, passamos por vários homens de macacão e, por fim, entramos em um galpão escuro.

— Leo está esperando — rosnou um dos homens.

Fomos conduzidos por uma cozinha barulhenta em que os cozinheiros e garçons se encostavam nas paredes para nos deixar passar, tomando o cuidado de nunca erguer os olhos. Atravessamos um salão de baile e um bar luxuoso que parecia meio melancólico à luz do dia — mas ainda assim razoavelmente cheio —, subimos uma escadaria dourada e entramos em um escritório.

A sala era chique e espaçosa, com móveis de madeira entalhados e toques de ouro. Na parede dos fundos, atrás de uma mesa imensa com tampo de vidro extremamente polido, um homem estava sentado à nossa espera. Usava um terno preto risca de giz com uma gravata roxa chamativa e um chapéu de feltro bege que não combinava com a roupa. Um homem alto estava de pé ao lado dele. Parecia um agente funerário, todo de preto.

 

 

Enquanto eu ia na direção do homem sentado, ele me encarava. Minha pele pinicava como se estivessem espetando em mim mil agulhas de gelo. Ele estava brincando com um abridor de cartas, enfiando a ponta no feltro verde da mesa e deixando buraquinhos. De repente, seus olhos mudaram de direção, e logo em seguida Emma, Millard e Bronwyn foram trazidos, deixados ao meu lado.

Noor não estava com eles. Fiquei me perguntando o que tinham feito com ela, um arrepio frio percorrendo minha espinha. Então Estrago, Angelica e dois capangas de Estrago entraram às pressas, cada um deles com um capanga. Canino não estava em lugar algum; claramente, tinha conseguido escapar.

— Leo, que bom ver você! Já faz um tempo, hein? — cumprimentou Estrago, fingindo tocar a aba de um chapéu invisível; seus seguranças ficaram em silêncio.

Angelica fez uma reverência.

— Olá, Leo — cumprimentou, sua nuvem em um tamanho razoável e próxima do corpo, como se também estivesse intimidada.

Leo apontou o abridor de carta para a menina.

— Não me venha chover aqui, gatinha! O carpete acabou de ser limpo.

— Pode deixar, senhor.

— Então... — Leo brandiu o abridor de cartas na nossa direção. — São eles?

— São — confirmou Estrago.

— Cadê o menino lobo?

— Escapou — respondeu o homem alto, com uma voz sibilante.

Leo apertou o abridor de cartas.

— Isso não é nada bom, Bill. Vão achar que a gente pega leve com criminosos.

— Vamos pegar ele, Leo.

— Acho bom. — Ele olhou para Estrago e Angelica. — Agora, vocês. Ouvi falar que estavam em um leilão ilegal.

— Ah, não, nada disso — explicou Estrago. — Está falando destes peculiares aqui? A gente só ia contratar o pessoal. Era tipo um... uma feira de talentos.

— Feira de talentos! — Leo deu uma risada. — Essa é nova. Tem certeza que não estavam vendendo essas pessoas por baixo dos panos? Ameaçando e intimidando para obrigá-los a trabalhar de graça para vocês?

— Não, não, não — repetia Estrago, sem parar.

— Nunca faríamos isso — completou Angelica.

— E o que vocês devem fazer com forasteiros? — perguntou Leo.

— Trazer para o senhor — respondeu Estrago.

— Isso mesmo.

— Frankie achou que eles não eram ninguém, por isso...

— Frankie é uma anã maluca! — berrou Leo. — Não é trabalho dela descobrir quem é um zé-ninguém e quem é espião! Vocês trazem os forasteiros para mim e eu decido! Entendido?

— Sim, Leo — responderam os dois, em uníssono.

— E a come-luz, cadê ela?

— Se acalmando no salão — respondeu o parceiro de Leo, Bill. — Com Jimmy e Walker.

— Ótimo. Não sejam duros demais com ela. Queremos primeiro tentar ser amigos, não esqueçam.

— Pode deixar, Leo.

Ele tirou os pés da mesa e se sentou de frente para nós.

— De onde vocês são? São califórnios, não são? Pessoal do Meese?

— Eu sou da Flórida — falei.

— E nós somos do Reino Unido — respondeu Bronwyn.

— Não sabemos quem é Meese, nem entendemos nada do que o senhor está dizendo — comentou Emma.

Leo assentiu. Baixou os olhos para a mesa. Ficou calado por um tempo estranhamente longo. Quando levantou a cabeça, seu rosto estava vermelho de raiva.

— Meu nome é Leo Burnham, e eu sou dono dessa cidade.

— Da Costa Leste inteira — completou Bill.

— É assim que as coisas vão funcionar: eu vou fazer perguntas e vocês vão responder com a verdade. É bom não mentirem para mim. Não gosto de perder tempo.

De repente, Leo ergueu a mão e socou a mesa, cravando o abridor de cartas no tampo. Todo mundo levou um susto.

— Leia as acusações, Bill.

O sujeito abriu um bloco.

— Invasão de propriedade. Resistência a prisão. Sequestro de peculiar novo.

— Coloque aí: falsidade ideológica.

— Pode deixar — disse Bill, anotando.

Leo se levantou, foi para trás da cadeira e apoiou os braços na moldura dourada do espaldar.

— Depois que os acólitos e os monstros das sombras saíram da cidade e as coisas começaram a melhorar — começou ele —, eu sabia que seria questão de tempo até alguém tentar roubar nosso território. Imaginei que começariam tentando por uma fenda num fim de mundo qualquer. O pessoal da Fineman em Pine Barrens, o canto de Juice Barrow em Poconos... Mas vir atrás de um dos ferais mais poderosos que já vimos em sei lá quanto tempo, e bem na nossa cara, em plena luz do dia? — Ele se empertigou ao falar, perdigotos voando. — Isso não é só coragem, é um insulto. Já até ouço os califórnios dizendo: “O Leo é um fraco. Tá dormindo no ponto. Vamos chegar lá no quintal dele e passar a mão em tudo, porque vai ficar por isso mesmo.”

— O senhor está claramente bem chateado — disse Millard —, e, embora eu certamente não deseje chateá-lo ainda mais ao discordar, a verdade é que nós simplesmente não somos quem o senhor está pensando.

Leo saiu de trás da cadeira e se colocou bem na frente de Millard, que havia sido forçado a colocar um vestido listrado para dificultar qualquer tentativa de fuga despercebida.

— Você é daqui? — perguntou Leo, casualmente.

— Não — respondeu Millard.

— Estava tentando remover aquela feral?

— O que é uma feral?

Leo deu um soco na barriga de Millard, que se dobrou e gemeu.

— Pare com isso! — gritou Emma.

— Bill, explique a eles o que é um feral.

— Um feral é um peculiar que não sabe que é peculiar e ainda não está aliado a nenhuma equipe ou clã específico — disse Bill, como se estivesse recitando de cor.

“Feral” devia ser um sinônimo de “novo”. Só que depreciativo.

— Ela estava em perigo — falei. — A gente estava tentando ajudá-la.

— Tirando a garota da cidade. — Leo parecia não acreditar.

— Para a nossa fenda em Londres — explicou Bronwyn. — Onde ela ficaria a salvo de gente como você.

Leo ergueu as sobrancelhas.

— Londres. Está vendo, Bill? É pior do que eu pensava. Agora temos peculiares do Velho Mundo tentando ferrar a gente, não só Los Californios.

— Ela não é uma de vocês nem é sua — falei. — Ela escolheu vir com a gente.

Leo ajeitou a lapela e se aproximou de mim. O segurança apertou meu braço com mais força.

— Não sei se vocês são realmente ignorantes ou se só estão fingindo — falou Leo, baixinho —, mas não interessa. A lei é a lei, e é a mesma em todo o país. Aquela come-luz é uma peculiar local. Induzi-la a ir embora é crime, e vocês confessaram. Não tenho escolha. Terei que usar vocês como exemplo.

Ele me deu um tapa tão repentino que não tive tempo de me preparar. O choque e a força do golpe quase me derrubaram.

— Bill, tire esses moleques da minha frente. Descubra quem são, e não tenha medo de apertá-los bem. Chega de moleza.

— Pode deixar, Leo.

Enquanto nos arrastavam para fora, Emma e eu nos olhamos. Sem falar, tentei lhe dizer: Vai dar tudo certo, mas, pela primeira vez desde que saíramos da Flórida, dias antes, não tinha tanta certeza.

Aquela foi a primeira vez que encontrei Leo, mas não seria a última.


Não sei dizer quanto tempo passei na cela. Senti como se fossem dias, mas provavelmente foram menos de vinte e quatro horas. Não havia janelas nem luz do sol, e nada além de um leito e um vaso sanitário. A única luz vinha de uma lâmpada que ficava acesa o tempo todo. Nessas condições, era difícil conceber a passagem do tempo, especialmente quando você está sofrendo lag temporal e seu corpo mal sabe que horas são.

Eles me levaram comida em um pote de metal e água em um copo de latão. De tempos em tempos, alguém aparecia para me interrogar. Em geral, cada vez era uma pessoa diferente. No início, só queriam saber de onde eu era e para quem trabalhava. Realmente pareciam acreditar que eu era da Califórnia e estava mentindo. Diziam que eu era um “califórnio” — era a palavra que usavam. Embora eu tenha negado de todas as maneiras, a verdade — que eu era do mesmo grupo de peculiares vindos da Grã-Bretanha — parecia pouco provável, considerando que eu era obviamente americano e dos tempos atuais, enquanto meus amigos, não. Foi difícil convencê-los. Minha história não fazia sentido. Eles falavam com uma tranquilidade cruel sobre me matar e sobre as terríveis e variadas penas para os “crimes” que eu e meus amigos havíamos cometido. Mas não me batiam. Não me torturavam. Acho que tinha algo a ver com o homem no fim do corredor. Quando apareciam, eles me tiravam da cela e me levavam para outra sala sem janelas, onde eu me sentava de frente para um homem com cara de coruja, cabelo bem curto e óculos redondos que me encarava por longos minutos sem falar nada, comendo picles recostado na cadeira.

 

 

Minha teoria é de que ele estava tentando ler minha mente. Não sei se o picles fazia parte da técnica ou se o sujeito era só viciado mesmo. Em algum momento, ele provavelmente descobriu o que queria — ou talvez alguém tenha tirado a informação do cérebro de um dos meus amigos —, porque meus interrogadores mudaram a linha de investigação. De repente, passaram a acreditar quando eu dizia que não era da Califórnia e que fazia parte do grupo de peculiares europeus.

Depois disso, começaram a querer saber tudo sobre os peculiares da Europa, sobre as ymbrynes e sobre a srta. Peregrine. Estavam convencidos de que as ymbrynes estavam planejando algum tipo de invasão ou ataque. Queriam saber quantos outros peculiares tínhamos sequestrado nos Estados Unidos. Quantos ferais tínhamos pegado. Eu disse que nenhum e que agimos sozinhos e sem o conhecimento das ymbrynes. E repeti o que tinha dito a Leo: havíamos atendido a um chamado para ajudar uma peculiar em perigo. Queríamos ajudá-la, e só.

— Em perigo do quê? — perguntou meu interrogador, um grandalhão com papada, barba por fazer e cabelo grisalho.

Concluí que não faria mal contar a verdade, então descrevi pessoas que a estavam perseguindo, os carros com janelas escuras, o helicóptero sobrevoando o prédio e os homens que nos perseguiram e acertaram Bronwyn com um dardo tranquilizante.

— Não sou um cara muito estudado — disse o interrogador —, mas se tem uma coisa que conheço bem são os nossos inimigos. Sei a cara deles, como se vestem, o que comem no café da manhã, até o nome da mãe. E a descrição que você está me dando dessas pessoas não bate com a de nenhum dos nossos inimigos.

— Eu juro que é verdade. As ymbrynes não têm nada a ver com isso. A srta. Peregrine não teve nada a ver com esta história. A garota estava em perigo e nós só queríamos ajudar.

Ele caiu na gargalhada.

— “Só queríamos ajudar.” — Ele se inclinou tão perto que senti seu cheiro, uma mistura amarga de menta e calafrios noturnos. — Eu vi uma ymbryne certa vez. Foi em Schenectady. Era uma velhota, vivia na floresta com umas vinte crianças. Seguiam a mulher pra todo lado, que nem uns patinhos. Dormiam na mesma cama. Iam atrás dela até no banheiro. — Ele balançou a cabeça. — Ninguém nesse mundo só quer ajudar. E nenhum protegido de ymbryne age sozinho.

Senti um nó amargo de orgulho ferido.

— Meu avô agia. — Por que manter segredo? Eu não podia deixá-los pensar que as ymbrynes estavam atacando os clãs americanos. As consequências seriam inimagináveis. — Ele tinha uma equipe que lutava contra etéreos e ajudava peculiares em perigo. Era conhecido como Gandy.

Meu interrogador parou de rir e começou a anotar todas as minhas palavras em um caderninho.

— Ele morreu no início do ano — continuei — e queria que eu continuasse o trabalho. Pelo menos é o que eu acho. Recebemos a missão de um parceiro dele.

O interrogador tirou os olhos do caderno.

— Você disse que um dos parceiros de Gandy ainda está vivo?

O jeito como ele me olhou me deu um arrepio. Percebi que tinha cometido um erro.

— Não... — Agi como se estivesse confuso. — Quis dizer que recebemos a missão de uma máquina — menti. — Um daqueles teletipos, sabe? As informações foram impressas enquanto eu estava por perto, como se alguém soubesse que eu estava ali. Mas presumi que fosse de um velho companheiro do meu avô.

Eu queria apagar o que tinha dito sobre o H., mas era tarde demais.

Ele fechou o caderno.

— Você foi de muita ajuda — concluiu, dando uma piscadinha e arrastando a cadeira para trás.

— Não queríamos passar por cima de ninguém — falei rápido. — Não sabíamos nada de territórios, leis nem nada assim.

As chaves tilintaram na fechadura, e a porta se abriu. O interrogador abriu um sorriso.

— Tenha um bom dia.


Vinte minutos depois, eles me arrastaram até Leo. Na sala estavam só ele, seu braço direito (Bill) e o homem que me segurava. Assim que passei pela porta, Leo se aproximou.

— Seu avô era um assassino. Você sabia disso, não sabia?

Eu não fazia ideia do que dizer, então fiquei quieto. Ele claramente estava bem nervoso.

— Gandy. Ou seja lá como você o chame.

— O nome dele era Abraham Portman — falei baixinho.

— Sequestro. Assassinato. O cara era doente. Olhe pra mim.

Ergui os olhos.

— Você não sabe do que está falando.

— Ah, é? Bill, me traga o arquivo do Gandy.

Bill foi até um armário e começou a procurar.

— Ele era um homem bom — argumentei. — Lutava contra monstros. Salvava pessoas.

— Era o que achávamos também — disse Leo. — Até descobrirmos que ele era o monstro.

— Encontrei, Leo.

Bill se aproximou com uma pasta de papel pardo. Leo a pegou e a abriu. Virou uma página, e algo mudou em sua expressão fria.

— Aqui — disse ele, e vi a dor em seus olhos.

De repente, ele me deu um tapa na cara. Quase caí, mas Bill me segurou. Minha cabeça estava formigando.

— Ela era minha afilhada — disse Leo. — Um doce de menina. Oito aninhos. Agatha.

Ele virou o arquivo para mim. Presa à página estava a foto de uma garotinha em um triciclo. Um nó amargo de medo começou a se formar no meu estômago.

 

 

— Gandy e seus comparsas a levaram no meio da noite. Estavam até acompanhados de uma criatura sombria. Trabalhando para eles. Aquela coisa quebrou a janela e a tirou da cama, no segundo andar. Uma trilha de gosma preta ia da janela até onde ela dormia.

— Ele não faria isso. Nunca sequestraria uma criança.

— Ele foi visto! — berrou Leo. — Mas ela, não. Nunca mais. E nós procuramos, você não sabe o quanto procuramos. Ou ele deu minha Agatha para aquele monstro comer ou a matou com as próprias mãos. Se ela tivesse sido vendida para outro clã, eu saberia. Ela teria escapado, nos procurado.

— Sinto muito que isso tenha acontecido — insisti. — Mas posso garantir que não foi ele.

Leo me bateu de novo, dessa vez no outro lado do rosto, e a sala ficou embaçada, meus ouvidos zunindo. Quando voltei a enxergar direito, ele estava perto da janela, contemplando a tarde cinzenta lá fora.

— Esse é só um dos mais de dez sequestros atribuídos a ele. Dez crianças que foram levadas e nunca mais vistas. Ele tem sangue nas mãos. Mas você diz que ele morreu. Então eu digo que o sangue está nas suas mãos.

Ele foi até um carrinho cheio de garrafas, se serviu uma dose de uma bebida escura e a tomou de um só gole.

— Agora, onde se encontra esse sócio que você diz ainda estar vivo?

— Não sei. Não sei.

Eu tinha decidido contar a verdade sobre H.; já tinha dado com a língua nos dentes mesmo, e além de tudo não tinha informações que pudessem levá-los a ele. Nem sabia onde ele morava.

O capanga de Leo estava segurando meu pescoço, e senti que começou a fazer mais força.

— Você sabe, sim. Você ia levar a garota para ele!

— Não, ia levar para uma fenda. Não era para ele.

— Que fenda?

— Não sei — menti. — Ele ainda não me disse.

Bill estalou os dedos.

— Ele está se fazendo de idiota, Leo. Acha que você é burro.

— Tudo bem. Vamos encontrar o sujeito. Ninguém se esconde de mim na minha cidade. O que eu realmente quero saber é o que vocês fazem com elas, com as suas vítimas.

— Nada — respondi. — Não temos vítimas.

Ele pegou o arquivo novamente, virou mais uma página e enfiou uma fotografia na minha cara.

— Essa é uma das crianças que seu vovozinho salvou. Encontramos o menino duas semanas depois. Ele parece bem? Hein?

Era a foto de uma pessoa morta. Um garotinho. Desfigurado. Horrível.

Leo me deu mais um soco na barriga. Eu me dobrei, gemendo de dor.

— É algum tipo de negócio de família? É isso?

Ele me deu mais um chute, e caí no chão.

— Onde está ela? Cadê a Agatha?

— Eu não sei, não sei... — dizia eu, ou tentava dizer, enquanto ele me chutava mais duas vezes.

Eu mal conseguia respirar, e meu nariz espirrava sangue por todo o chão.

— Levanta o moleque — ordenou Leo, enojado. — Mas que droga! Agora vou ter que mandar limparem o carpete de novo.

Fui erguido pelos braços, mas minhas pernas não aguentaram meu peso, e acabei caindo de joelhos.

— Eu ia matar o Gandy — continuou Leo. — Eu ia matar aquele filho da mãe doente com as minhas próprias mãos.

— Gandy morreu, Leo — comentou Bill.

— Gandy morreu — repetiu Leo. — Então acho que você vai servir, garoto. Que horas são?

— Quase seis — respondeu Bill.

— Vamos matá-lo amanhã de manhã. Fazer um evento. Convoque as tropas para assistir.

— Você está enganado — sussurrei, a voz trêmula. — Você está enganado sobre ele.

— Como você prefere, moleque? Tiro ou afogamento?

— Posso provar.

— Que tal os dois? — sugeriu Bill.

— Ótima ideia. Um por ele, outro pelo vovozinho querido. Agora levem ele daqui.


Naquela noite, apagaram a luz da cela. Fiquei deitado no escuro, cheio de dor, desejando que meu corpo se desfizesse, lutando contra meus próprios pensamentos. Eu estava morrendo de preocupação com meus amigos. Será que eles também estavam apanhando, sendo torturados e ameaçados? Também me preocupava com Noor e com o que planejavam fazer com ela. Será que ela estaria melhor se eu não tivesse tentado ajudá-la — se tivesse dado ouvidos a H. e abortado a missão?

Sim. Muito provavelmente, sim.

Admito que também estava preocupado comigo mesmo. Os capangas de Leo me ameaçavam desde que havíamos chegado, mas pela primeira vez a promessa de me matarem parecia real. Leo não precisava de mim para mais nada. Não queria mais informações. Parecia que só queria me ver morrer.

E o que era toda aquela loucura sobre o meu avô? Não pensei, nem por um segundo, que alguma parte do que ele dizia pudesse ser verdade — mas como puderam pensar aquilo? A única possibilidade era que os acólitos tivessem tentado incriminá-lo, cometendo sequestros e assassinatos e plantando pistas falsas que levassem a ele, torcendo para que o clã de Leo o pegasse e fizesse o trabalho sujo. Quanto ao fato de meu avô ser identificado nas cenas dos crimes (um ponto que Leo havia enfatizado), os acólitos eram mestres do disfarce. Talvez um deles tivesse se vestido como Abe ou usado uma máscara realista.

De repente, houve um estrondo; era alguém batendo com força na porta da minha cela.

Pronto. Eles tinham vindo me pegar. Não haviam nem esperado a manhã seguinte.

A portinhola se abriu.

— Portman.

Era Leo. Eu me surpreendi, mas de repente fez sentido: ele próprio queria puxar o gatilho.

— Venha aqui.

Fui até a porta.

— Os acólitos incriminaram meu avô — insisti, não por achar que ele acreditaria em mim, mas por que precisava dizer aquilo.

— Fecha essa maldita boca. — Ele inspirou, se recompondo. — Conhece esta senhora aqui?

Ele passou uma fotografia pela portinhola. Fiquei tão confuso com essa reviravolta que levei um segundo para reagir. Era a foto de uma diva loira usando luvas brancas e chapéu de plumas. Estava segurando uma lata de um produto de limpeza e, aparentemente, cantando.

 

 

— É a baronesa — falei, aliviado por não ter me dado um branco.

Leo baixou a fotografia e me observou por um momento, o rosto franzido. Não entendi o que estava acontecendo. Será que eu tinha passado em um teste? Ou tinha falado a coisa errada?

— Demos alguns telefonemas — disse ele, por fim. — Seus amigos contaram que vocês pararam no Flamingo. Naturalmente, ficamos preocupados, então fizemos uma ligação para nossos contatos, para ver se vocês tinham deixado alguém vivo. Para minha surpresa, não só vocês se comportaram bem, como também cuidaram de uns assuntos pendentes meus.

Eu não estava entendendo nada.

— Assuntos?

— Aqueles idiotas que andam por lá como se fossem donos do pedaço, sabe? Já fazia um tempo que eu queria ir à Flórida deixar os caras pianinho. Vocês me economizaram a viagem.

— Hã... não tem de quê.

Eu estava tentando parecer calmo e tranquilo, e não alguém com medo de ser morto a qualquer momento.

Leo deu uma risadinha e baixou os olhos como se estivesse envergonhado.

— Talvez você não entenda por que um figurão como eu se importa com uma fendinha turística qualquer. Olha, eu não ligaria, mas a minha irmã mora lá.

— A baronesa?

— O nome dela é Donna. Ela gosta de climas quentes. — Ele balançou a cabeça e resmungou: — Fez meia dúzia de aulas de canto, e aí já viu...

— Você está me libertando?

— Em geral, uma recomendação da minha irmã seria o bastante para evitar a pena de morte. Mas você tem amigos em lugares interessantes.

— Tenho?

Leo fechou a portinhola. A chave girou na fechadura e a porta se abriu. Estávamos a um metro um do outro, sem nada entre nós. Ele deu um passo para o lado e ali, caminhando pelo corredor na minha direção, estava a srta. Peregrine.

Por um momento achei que estivesse sonhando. Então ela falou:

— Jacob, saia daí agora mesmo.

Ela estava brava, mas seu rosto estava tão dominado pela dor e pela preocupação, e seus olhos tão arregalados de alívio, que eu sabia que ela abriria os braços quando corri até ela — e foi o que ela fez. Abracei-a com força.

— Srta. Peregrine! Srta. Peregrine! Sinto muito.

Ela deu tapinhas nas minhas costas e beijou minha testa.

— Mais tarde, sr. Portman.

Eu me virei para Leo.

— E os meus amigos?

— Estão esperando na rampa de carga.

— E a Noor?

Ele fechou a cara na mesma hora.

— Não força, moleque. E nunca mais volte aqui. Ajudar minha irmã foi seu golpe de sorte. Mas só funciona uma vez.


Os homens de Leo nos escoltaram pelos corredores, passando pelo bar e pela cozinha e saindo pela rampa de carga. Sob a fraca luz do amanhecer, vi Emma e Bronwyn esperando, e ao lado delas a camisa branca e as calças cinza de Millard. Quando os vi inteiros e ilesos, dei um suspiro de alívio que me fez estremecer inteiro. Até então, eu não tinha me dado conta de que minhas esperanças eram mínimas.

— Ah, minhas aves, graças às aves! — cantarolou Bronwyn, juntando as mãos quando apareci com a srta. Peregrine.

— Eu falei que ele estaria bem — disse Millard. — Jacob sabe se cuidar.

— Bem? — repetiu Emma, ficando pálida. — O que fizeram com você?

Eu não me olhava em um espelho fazia algum tempo, mas, considerando o nariz quebrado e as pancadas, provavelmente estava horrível.

Emma me abraçou. Por um instante não importava o que havia acontecido entre nós, e foi muito bom tê-la nos meus braços de novo. Em certo momento ela me apertou um pouco forte demais, e senti uma pontada de dor nas costelas.

Garanti a eles que estava bem, embora minha cabeça parecesse um balão prestes a estourar.

— Cadê o Enoch? — perguntei.

— No Recanto — respondeu Millard.

— Ainda bem.

— Ele escapou daquele restaurante horrível — disse Emma —, ligou para a sua casa e contou tudo que aconteceu para a srta. Peregrine. Ela seguiu nosso rastro até aqui.

— Devemos nossa vida a ele — disse Millard. — Nunca achei que diria algo assim.

— Vocês podem conversar no caminho para o Recanto — disse alguém com sotaque francês, e quando me virei, vi a srta. Cuckoo de pé perto da saída, junto com outra ymbryne.

Não pareciam nem um pouquinho felizes em nos ver.

— Venham, temos um carro esperando.

Os homens de Leo ficaram observando enquanto saíamos, os olhos e as armas seguindo cada passo que dávamos. Pensei novamente em Noor e no fato de que a abandonaríamos ali, de certa forma presa. Isso me deixou péssimo. Não só fracassamos na missão como também a condenamos a um destino pior do que se a tivéssemos deixado em paz.

As ymbrynes nos guiaram para fora do galpão até um carro espaçoso, que deu a partida e arrancou antes mesmo de as portas estarem fechadas.

— Srta. Peregrine?

Ela virou o rosto levemente, ficando de perfil.

— Seria melhor se você não abrisse a boca.

 

 

CAPÍTULO DEZOITO


Fomos levados ao Recanto do Demônio por uma entrada de fenda em Manhattan conectada ao Polifendador. Se soubéssemos desse caminho antes, teríamos sido poupados de dias na estrada e inúmeros problemas. Só não recebi logo uma bronca porque estava machucado. As ymbrynes me deixaram aos cuidados de um remenda-ossos chamado Rafael, que trabalhava na frente de uma casa em ruínas na rua Facadinha. Passei o resto do dia e a noite inteira deitado, num quarto cheio de potes de unguentos e medicamentos naturais, enquanto ele aplicava alguns pós ardidos e cataplasmas doloridos nas minhas feridas. Não era nenhuma Mãe Poeira, mas em pouco tempo senti que eu começava a sarar.

Eu estava confinado à cama, sem conseguir dormir, assombrado pelos meus fracassos, por dúvidas e pela culpa (se ao menos eu tivesse escutado H... se ao menos tivesse abortado a missão quando ele me implorou que fizesse isso...). E estava atormentado por tudo que Leo havia falado sobre meu avô. Não que eu acreditasse naquela história — claro que ele tinha sido incriminado por acólitos, era a única explicação possível —, mas o simples fato de alguém ter criado tantas mentiras me deixara abalado. Eu teria que esclarecer aquilo de qualquer forma, se um dia conseguisse que H. voltasse a falar comigo. O que mais me torturava, porém, era a culpa que sentia em relação a Noor. Se ela nunca tivesse me conhecido, estaria mais segura. Sendo caçada, sim, mas ao menos estaria livre.

Recebi visitas pela manhã. Emma, Millard, Bronwyn. Até Enoch, que contou que, ao ser libertado do estranho transe provocado por Frankie, percebera que estava vestido como uma boneca e se livrou das roupas o mais rápido possível antes de fugir.

— Achamos que ele acordou quando eu ataquei Frankie — disse Emma. — Naquele momento, o poder dela parou de surtir efeito em nós, e deve ter acontecido o mesmo com Enoch.

— Ela deve ser muito poderosa, para conseguir controlar pessoas de tão longe... — comentou Millard. — Vou ter que incluí-la no meu novo livro: Quem é quem na América peculiar.

— Eu também consigo controlar pessoas de longe — disse Enoch. — Desde que estejam mortas.

— É uma pena, vocês teriam formado um belo casal — brinquei.

Enoch se aproximou da cama e beliscou um machucado no meu braço. Dei um grito.

Pelo que disseram, a srta. Peregrine ainda não tinha conversado com nenhum deles, nem para dar uma bronca. Aliás, ela mal nos dirigira a palavra desde que voltamos, só disse para não sairmos do Recanto.

— Ela continua com muita raiva — disse Emma. — Nunca a vi desse jeito antes.

— Nem eu — concordou Bronwyn. — Nem quando meu irmão afundou a barca de Cairnholm com todos nós dentro.

— E se formos expulsos do mundo peculiar? — perguntou Emma.

— Não existe expulsão do mundo peculiar — retrucou Enoch. — Ou existe?

— Isso tudo foi uma péssima ideia — lamentou Bronwyn.

— Estávamos indo bem até você levar aquele dardo sonífero ou sei lá o quê — disse Enoch.

— Então a culpa é minha?

— Nunca teríamos caído na fenda-armadilha de Frankie se não estivéssemos passando por ali a caminho do hospital!

— Não é culpa de ninguém — falei. — Só demos azar.

— Se não fosse isso, teria sido outro problema — disse Emma. — É impressionante que tenhamos chegado tão longe, considerando que não sabíamos nada sobre nada. Fomos bobos de pensar que poderíamos realizar uma missão dessas com tão pouco preparo. — Ela olhou para mim, mas logo desviou o olhar. — Só existiu um Abe Portman.

Foi um golpe baixo, e machucou. Morrendo de dor, fiz um esforço para me sentar na cama.

— O parceiro dele achava que estávamos preparados. Ele nos deu a missão.

— E eu adoraria saber por quê — disse alguém à porta.

Todos nos viramos. Era a srta. Peregrine, apoiada no batente, segurando um cachimbo apagado. Havia quanto tempo ela estava ali?

Todo mundo ficou tenso, preparado para um sermão daqueles. A srta. Peregrine entrou, observando o quarto e os equipamentos.

— Imagino que vocês não façam ideia de quantos problemas causaram.

Ela parou no meio do cômodo.

— A senhorita deve ter ficado bem preocupada — disse Millard.

Ela virou a cabeça rapidamente para ele e cerrou os olhos. Ficou claro que ainda não era hora de falarmos.

— Fiquei, sim, mas não apenas com vocês. — Ela falava com uma frieza que não lhe era típica. — Há alguns meses, antes mesmo de os etéreos serem neutralizados, estávamos envolvidas em negociações para um acordo de paz com os clãs americanos. Vocês colocaram em risco todos esses esforços.

— Não sabíamos disso — falei, baixinho. — Você e a srta. Cuckoo falaram que as ymbrynes estavam ocupadas na reconstrução.

— Era um assunto ultrassecreto. Jamais me ocorreu que eu teria que avisar aos meus próprios pupilos sobre a necessidade de não fugirem sozinhos por um território perigoso e pouco explorado sem minha permissão, sem ao menos me contarem que pretendiam realizar uma missão de resgate totalmente improvisada e passada a vocês por uma fonte não apenas desconhecida como completamente questionável... — A voz dela foi ficando mais estridente à medida que avançava na frase. Então ela parou e coçou o olho com a articulação do dedo. — Perdão. Não durmo há dias.

Ela pegou um fósforo do bolso do vestido, riscou-o na sola do sapato e acendeu o cachimbo. Após algumas tragadas pensativas, continuou:

— Tivemos que trabalhar muito para negociar a soltura de vocês do Clã dos Cinco Distritos, de Leo Burnham. É muito complicado quando as próprias pessoas que estão tentando negociar um acordo de paz são acusadas de crimes graves. — Ela deixou que absorvêssemos a informação antes de continuar: — Os Estados Unidos estão terrivelmente mal divididos. Vou dar só um exemplo dessa divisão para mostrar como vocês conseguiram piorar as coisas. Existem três facções grandes: o Clã dos Cinco Distritos, influente em quase toda a Costa Leste; a Mão Invisível, que concentra o poder em Detroit; e os Califórnios do Oeste, com base em Los Angeles. O Texas e o Sul são autônomos, zonas praticamente sem lei, que resistiram aos esforços para a centralização do controle em uma única fenda, e essa situação lamentável só fez aumentar o racha na sociedade. Mas as tensões entre os três grandes são o problema principal. Há muito tempo eles disputam fronteiras, remoendo velhos rancores, mas durante um século a ameaça de ataques de etéreos reduziu a mobilidade deles e evitou que conflitos ocasionais se tornassem guerras. Agora que a maior parte dos etéreos se foi, os conflitos voltaram a se intensificar.

— Em outras palavras, não poderíamos ter escolhido hora pior para cometer tantos desacertos — disse Millard.

— Exato. Especialmente se considerarmos o trabalho delicado que nós, ymbrynes, estamos fazendo.

Eu já tinha ouvido uma parte de tudo aquilo, mas os outros, não. Eles pareciam decepcionados e horrorizados ao mesmo tempo.

— Entendo por que a situação é complicada — falei. — Só não entendo o que há de tão horrível em tentar ajudar uma peculiar em perigo.

— Não seria, na Europa — respondeu a srta. Peregrine. — Nos Estados Unidos, é um crime grave.

— Mas meu avô passou a vida inteira encontrando e ajudando peculiares novos...

— Isso já tem anos! — disse ela, quase gritando. — As convenções mudam, sr. Portman! As leis são revistas! E, se você tivesse simplesmente perguntado a mim ou a qualquer outra ymbryne, teríamos dito que os americanos são territorialistas e que um ato considerado heroico há vinte e cinco anos é hoje considerado um crime passível de pena capital.

— Mas por quê?

— Porque o recurso mais valioso no mundo peculiar somos nós mesmos, os peculiares. Se duas fendas entram em conflito, elas precisam do maior número possível de peculiares em suas fileiras, para serem soldados, remenda-ossos, batedores, espiões e tantos mais. Um exército. Mas nossa população é muito pequena, por isso é difícil recrutar. E, graças à fome maldita dos etéreos, por um bom tempo foi difícil encontrar peculiares novos. Eles desapareceram. Sem sangue novo, as populações peculiares envelhecem e ficam presas a uma fenda. Um exército que não pode se afastar demais da fenda por medo de envelhecer não é muito eficiente. Portanto, no nosso mundo, não há nada mais valioso que um peculiar novo. Sobretudo se ele carregar em si um imenso poder.

— Por que H. não nos contou isso? — perguntei. — Ele devia saber que, ao ajudar Noor, irritaríamos os clãs locais.

— Também gostaria de saber — respondeu a srta. Peregrine, com raiva. — E tenho diversas outras perguntas a fazer a ele.

— Tenho certeza de que os motivos dele eram justificáveis — disse Millard. — Ela estava sendo caçada por pessoas perigosas.

— Ajudar Noor poderia ter sido uma atitude nobre — afirmou a srta. Peregrine. — Envolver meus pupilos no assunto, não.

— Estamos muito arrependidos — disse Emma. — Espero que acredite.

A srta. Peregrine a ignorou, assim como tinha ignorado todas as nossas tentativas de pedir desculpas. Ela foi até a janela e soprou uma nuvem de fumaça para a rua barulhenta.

— Estávamos fazendo progresso nas negociações de paz, mas este episódio acabou com a pouca confiança que os clãs tinham em nós. A parte neutra não pode ser suspeita de ter qualquer outro objetivo que não seja a paz. Sofremos um retrocesso considerável.

— Você acredita que eles vão entrar em guerra por nossa causa? — perguntou Millard.

— Talvez ainda exista uma chance de corrigir as coisas. O problema é que os clãs discordam em muitas questões fundamentais. Eles precisam entrar em acordo sobre limites territoriais, eleger um conselho de paz... Não são questões simples, e os riscos são altos. Uma guerra entre eles seria desastrosa não só para os peculiares americanos, mas para todos nós. A guerra é um germe que raramente pode ser contido. Certamente se espalharia.

Pelos nossos ombros curvados e nossa cara de desânimo, deu para ver que estávamos morrendo de vergonha. Eu já estava começando a me arrepender de tudo — até de ter entrado em contato com H.

Depois do que pareceu um bom tempo, a srta. Peregrine se virou e nos encarou.

— Mas o pior de tudo isso — disse ela, suspirando —, pior do que os clãs não poderem confiar em nós, é minha sensação de eu não poder mais confiar em vocês.

— Não diga isso, senhora diretora, não diga isso — implorou Bronwyn.

— Acho que minha maior decepção é com você, srta. Bruntley. Esse tipo de comportamento não é tão surpreendente vindo da srta. Bloom ou do sr. O’Connor. Mas você sempre foi tão leal e gentil...

— Eu vou me redimir. Prometo.

— Vai começar trabalhando na limpeza da cozinha aqui do Recanto por um mês.

— Sim, sim, claro — respondeu Bronwyn, assentindo com energia.

Ela pareceu aliviada por receber uma punição, pois isso significava que talvez pudesse ser perdoada.

— Srta. Bloom, você será realocada para o incinerador de lixo da Rua da Fumaça. — Emma estremeceu, mas não contestou. — Sr. O’Connor, você vai limpar chaminés. Sr. Nullings...

Eu a interrompi:

— Srta. Peregrine?

Ela parou no meio da frase. Todos me encararam, cada um em um nível diferente de incredulidade.

— O que foi?

Eu sabia que estava prestes a dizer algo que sofreria grande resistência, mas tinha que falar.

— E quanto a Noor?

— O que tem ela?

A paciência dela estava por um fio, mas era preciso levantar aquele ponto.

— Nós simplesmente... a largamos lá.

— Estou ciente do que aconteceu — disse a srta. Peregrine. — E, se tivesse sido possível trazê-la, eu o teria feito, mas precisei usar todo o meu poder de influência para garantir a liberdade de vocês. Se eu insistisse em levá-la também, eles pensariam que nosso objetivo era ela desde o início. Achariam que de fato estávamos atrás dos seus preciosos peculiares novos. E isso teria arruinado de vez as negociações de paz.

Ela tinha razão, mas estava falando de política, e eu, de uma pessoa. Não era possível evitar a guerra e também salvar Noor?

— Leo é louco e perigoso — insisti. — Sei que a situação ficaria ruim com eles, mas talvez exista uma maneira de a resgatarmos discretamente, sem saberem que fomos nós...

Emma me lançou um olhar furioso. Seu rosto dizia PARE.

A srta. Peregrine estava nitidamente prestes a perder o controle.

— Sr. Portman, se a garota em questão está em perigo, a culpa é sua — retrucou ela. — Depois de tudo que falei, não acredito que você continue insistindo em removê-la da fenda. Simplesmente não consigo acreditar.

— Sei que a culpa é minha, e admito isso. — Eu estava falando rápido, tentando me explicar sem deixá-la ainda mais furiosa. — Mas você precisava ver as pessoas que estavam atrás dela! Eles tinham helicópteros e equipamentos de operações táticas!

— Um dos outros clãs, certamente.

— Não, não era — retruquei, mais alto que ela. — Os homens do Leo não sabiam quem eles eram.

— Sr. Portman...

— Ela tem algo especial, algo importante, e tenho a sensação de que...

— Sr. Portman!

— Jacob, pare — sussurrou Millard.

— Só acho que H. não teria nos mandado atrás de Noor se ela não fosse importante, entendeu? Ele não é idiota.

— Sr. Portman, ela não é problema seu! — gritou a srta. Peregrine.

Eu nunca tinha ouvido a nossa ymbryne gritar daquela maneira. Todos ficaram quietos. Até o barulho da rua que vinha da janela pareceu diminuir.

Ela tremia de raiva.

— Às vezes, situações imperfeitas precisam ser toleradas em nome do bem maior — explicou ela, controlando o tom de voz a muito custo. — A segurança de um não pode ser mais importante que a segurança de milhares.

Eu também estava nervoso, por isso não consegui pensar em nada melhor para dizer do que:

— Que merda.

Bronwyn soltou uma exclamação de susto. Ninguém falava com a srta. Peregrine daquele jeito.

Ela deu um passo à frente e, inclinando-se sobre a cama, disse:

— Sim, sr. Portman, é uma merda. É exatamente por isso que a liderança às vezes é uma merda, porque somos obrigados a tomar decisões entre opções que são uma merda. E é por isso que não envolvemos nem jamais envolveremos crianças em questões de alto grau de responsabilidade.

Ela pronunciou a palavra crianças com tanta ênfase que parecia estar jogando na nossa cara.

— Srta. Peregrine — chamou Emma, contrariada.

A ymbryne se virou rápido, como se a desafiasse a falar.

— Diga, srta. Bloom.

— Não somos mais crianças.

— São, sim. Provaram isso hoje.

E, dizendo isso, ela lhe deu as costas e deixou o quarto.

Deixando para trás um silêncio atordoado, ela saiu de casa. Só quando o som de seus passos sumiu é que os outros recuperaram a voz.

— Você é muito burro mesmo, Portman — disse Enoch. — Ficou enchendo o saco com a história da garota e só fez a srta. Peregrine se zangar mais!

— Se um de vocês ainda estivesse naquela fenda, estaríamos todos preocupados — argumentei. — Por que não devemos nos preocupar com ela?

— Isso não é problema seu, como disse a diretora — murmurou Bronwyn.

— Eles não vão matar Noor nem nada do tipo — disse Enoch. — Ela deve estar mais segura com o pessoal do Leo do que se escondendo de helicópteros num prédio abandonado.

— Não temos como saber isso! — falei. — A missão era levá-la para uma fenda temporal segura, não largá-la em qualquer...

— Esqueça essa maldita missão! — gritou Emma. — Não existe mais missão! Acabou! E era uma missão idiota!

— Sim, sim, sim — disse Bronwyn. — Melhor esquecermos tudo isso e torcer pelo perdão das ymbrynes.

— Elas também têm culpa! — rebati. — Nada disso teria acontecido se tivessem nos contado o que estava acontecendo. Como eu ia adivinhar que estavam tentando um acordo de paz?

— Não tente culpá-las por isso — disse Bronwyn.

— Elas nos tratam feito imbecis! Vocês mesmos falaram isso!

— Não sei quanto a você — disse Bronwyn —, mas, depois de ver como os peculiares americanos vivem, fico feliz de ter as ymbrynes. Nunca mais vou reclamar delas. Então, se é isso que estamos fazendo agora, não contem comigo.

— Não estou reclamando. Só estou dizendo que...

— Não estamos no mesmo nível das ymbrynes, Jacob. Nem você. Tudo bem, o que você fez por todo mundo na Biblioteca de Almas foi fantástico, mas só porque é um herói famoso e porque querem o seu autógrafo não quer dizer que esteja à altura de uma delas.

— Eu nunca disse que era.

— Mas está agindo como se fosse. Então, se a srta. Peregrine quiser esconder um segredo de você, tenho certeza de que ela tem uma boa razão para isso — concluiu Bronwyn, e também saiu, deixando mais um silêncio para trás.

— E vocês? — perguntei.

— Nós o quê? O quê? — perguntou Emma, com amargura.

— E todo aquele papo de serem independentes? De tomar as próprias decisões? Vamos esquecer tudo só porque a srta. Peregrine está brava?

— Não venha bancar o ingênuo — disse Enoch. — Poderíamos ter começado uma guerra!

— Ela tem todo o direito de estar furiosa — disse Emma.

— Concordo que muitas vezes somos tratados como crianças, mas escolhemos um péssimo momento para afirmar nossa independência — argumentou Millard.

— Não tínhamos como saber disso. E só porque erramos não significa que devemos desistir de tudo.

— Significa, sim — retrucou Enoch. — Neste caso, significa. Vou baixar a cabeça, limpar chaminés e torcer para que as coisas voltem ao normal logo.

— Que heroico! — provoquei.

Enoch riu, mas percebi que ficou magoado. Ele se aproximou da cama, pegou algumas margaridas murchas do bolso e as jogou no cobertor.

— Você também não é nenhum herói — disse ele. — Você não é nem nunca vai ser Abe Portman. Por que não desiste de tentar? — E saiu.

Fiquei paralisado. Não sabia o que dizer.

— É melhor eu ir também — murmurou Millard. — Não quero que a diretora pense que nós...

Não ouvi o resto.

— Não quer que ela pense o quê? Que estamos conspirando?

— Por aí.

— E aos outros? Eles vêm me ver?

Eu não via Horace, Hugh, Olive e Claire desde que saíramos em missão, o que parecia fazer muito tempo.

— Acho que não — respondeu Millard. — Mais tarde nos vemos, Jacob.

Aquilo estava acabando de uma maneira que não me agradava nem um pouco. Eu via uma linha sendo desenhada: de um lado estava todo mundo; do outro, eu, sozinho.

Millard se foi, o casaco e a calça flutuando para o corredor, e me vi sozinho com Emma, que também já se encaminhava para a porta.

— Não vá embora — pedi de repente, sentindo um desespero vergonhoso tomar conta de mim.

— É melhor eu ir. Sinto muito, Jacob.

— Não precisa acabar assim. É só um contratempo.

— Pare. Por favor. — As lágrimas brilhavam nos olhos dela, ameaçando cair, e senti que nos meus também. — Precisa, sim. Precisa acabar.

— Vamos dar um jeito de falar com H., explicar o que aconteceu e ver o que podemos fazer...

— Escute, Jacob. Por favor, escute. — Ela uniu as mãos e tocou a ponta dos dedos nos lábios, como se estivesse rezando, implorando. — Você não é o Abe. Você não é ele, e acho que, se continuar insistindo, isso vai destruir você.

Ela se virou devagar, o batente a emoldurando, e foi embora.


Fiquei deitado na cama escutando o barulho da rua, pensando, sonhando, conversando com Rafael quando ele aparecia para aplicar uns pós estranhos nos meus ferimentos. Eu adormecia e despertava várias vezes de um sono inquieto. Minhas emoções iam da raiva ao arrependimento. Sim, eu me sentia abandonado pelos meus amigos — será que ainda podia chamá-los assim? —, mas também entendia a atitude deles. Tinham corrido muitos riscos por mim e perdido quase tudo. Eu não sabia se era possível ser excomungado do mundo peculiar, mas acho que chegamos perto disso.

Também fiquei com raiva de Emma, pelo que ela fez, por ter ido embora. Mas ao mesmo tempo me perguntava se o fim do nosso relacionamento tinha sido culpa minha. Será que eu tinha empurrado minha namorada na direção de antigos sentimentos que ela evitava de propósito havia anos? Se eu nunca tivesse entrado no bunker de Abe, ligado para H. ou envolvido Emma em nada daquilo, será que ainda estaríamos juntos?

E a srta. Peregrine... Ela podia ser sufocante, rigorosa e condescendente, mas tinha razão de ficar com raiva de mim. E meus amigos também. Até certo ponto — um ponto incômodo, diga-se de passagem —, tudo havia sido motivado pela minha frustração com as ymbrynes e meu ressentimento com meus pais. O problema, na verdade, foi que eu tentei transitar em um mundo para o qual não estava preparado. O universo peculiar era extremamente complexo, cheio de regras, tradições, classificações e histórias que nem meus amigos, que estudaram o assunto por quase toda a vida, dominavam bem. Recém-chegados deveriam ser obrigados a treinar e estudar tanto quanto astronautas se preparando para ir ao espaço. Mas, quando a fenda da srta. Peregrine entrou em colapso, eu fui jogado nesse mundo de qualquer jeito, e minha única alternativa foi fazer de tudo para salvar minha vida. Milagrosamente, por uma combinação de pura sorte, talento peculiar e coragem dos meus amigos, eu sobrevivi — e até saí vitorioso.

A questão é que nem sempre dá para depender da sorte, e eu não podia culpar a srta. Peregrine por isso. Na verdade, não podia nem ficar irritado com ela ou com meus amigos. Quanto mais eu pensava nisso, mais minha raiva se concentrava em outra pessoa. Uma pessoa que não estava presente. Uma pessoa que nem estava mais viva: meu avô. Ele sabia quem eu era. Como peculiar, ele sabia o que eu teria que enfrentar um dia, mas não me preparou nem um pouco para nada disso.

E por quê? Porque fui mal-educado com ele quando criança? Porque feri seus sentimentos? Era difícil acreditar que ele tivesse sido tão mesquinho. Ou será que, como sugerira a srta. Peregrine, ele queria que eu crescesse me sentindo normal e tentou me poupar da dor?

Era uma boa tese, mas só até a página dois. Se eu a questionasse um pouco, ela caía por terra. Porque ele sabia. Meu avô tinha vivido naquele lugar complicado, sangrento e dividido que era o mundo peculiar nos Estados Unidos. Se ele realmente escondera a verdade para me poupar, foi porque sabia que me colocaria em risco. Mesmo se os etéreos nunca me pegassem, cedo ou tarde alguma gangue de peculiares iria me identificar. Imagine minha surpresa se eu descobrisse que era um peculiar dessa maneira — me tornando o prêmio feral de um bandido sem coração.

Abe me deixara sem mapa, sem chave, sem pista. Sem uma única dica de como me virar nessa estranha nova realidade. A função dele era me contar, e ele não fez isso.

Como ele podia ter sido tão descuidado?

A verdade era que ele não se importava.

Isso era o que dizia aquela voz baixinha desagradável na minha cabeça. Ela estava de volta.

Eu não conseguia acreditar que ele não se importava. Tinha que existir outra resposta.

Então me dei conta de que alguém ainda vivo poderia me dar a explicação definitiva.

— Rafael?

O remenda-ossos se ajeitou na cadeira. Estava dormindo perto da janela, banhado pela luz azulada do amanhecer.

— Sim, mestre Portman?

— Preciso sair da cama.


Três horas depois, eu estava novamente de pé e andando. Estava com um olho roxo e morrendo de dor nas costelas, mas, fora isso, Rafael tinha feito um milagre, e eu me sentia muito bem. Tentei voltar para o Polifendador de fininho, mas para onde quer que olhasse havia pessoas — o rush da manhã com força total —, e acabei sendo parado algumas vezes para dar autógrafos. (Eu ainda me surpreendia toda vez que era reconhecido. Tinha passado tanto tempo da minha vida como um zé-ninguém que sempre que alguém falava comigo, meu primeiro pensamento era de que tinham me confundido com outra pessoa).

Eu sabia que não deveria sair do Recanto. Estava correndo o risco de ser visto por alguém que poderia avisar a srta. Peregrine, mas essa não era minha maior preocupação. Atravessei a porta, segui pelo corredor e subi a escada até o Polifendador. Quando o atendente me reconheceu, inventei que estava voltando para casa, e ele me deixou passar. Andei pelo corredor, passando por viajantes atarefados e oficiais nas mesas de checagem, a voz de Sharon retumbando por uma porta aberta. Virei uma esquina, entrei em um corredor menor — onde estava minha porta — e encontrei o armário com o aviso ACESSO EXCLUSIVO PARA A. PEREGRINE E PUPILOS. Entrei direto.

Ao sair do galpão de jardinagem, fui recebido pelo sol baixo e o calor pantanoso das tardes da Flórida.

Meus amigos estavam no Recanto; meus pais, viajando pela Ásia.

A casa estava vazia.

Entrei, sentei-me no sofá da sala e peguei o celular do bolso. Ainda tinha um pouco de bateria. Digitei o número de H. Depois de três toques, um homem atendeu.

— Hong’s.

— Quero falar com o H.

— Um momento.

Dava para ouvir vozes no fundo e o som de pratos batendo. Então, H. pegou o telefone.

— Alô? — atendeu ele, cauteloso.

— É o Jacob.

— Achei que a essa altura as ymbrynes já tivessem trancado você num poço.

— Não exatamente, mas ficaram furiosas. E garanto que também não ficariam felizes se soubessem que estou ligando para você.

Ele riu.

— Tenho certeza disso. — Eu sabia que H. também havia ficado com raiva de mim. Dava para perceber pelo seu tom de voz. Mas ele parecia já ter me perdoado, provavelmente antes mesmo de nos falarmos. — Sabe, fico feliz em saber que você está bem. Fiquei preocupado.

— É. Também fiquei preocupado comigo.

— Por que você não me escutou? Agora, as coisas estão todas cagadas.

— Eu sei. Desculpa. Deixa eu ajudar a corrigir isso.

— Não, obrigado. Você já fez o suficiente.

— Eu deveria ter abortado a missão quando você mandou. Mas... — Hesitei, com medo de parecer uma acusação. — Por que não me disse que estávamos fazendo uma coisa ilegal?

— Ilegal? De onde você tirou isso?

— É a lei dos clãs. Ninguém pode pegar um peculiar novo...

— Todos nós devemos ser livres para ir aonde quisermos — disse ele, me interrompendo. — Qualquer lei que tire nossa liberdade deve ser ignorada.

— Eu concordo. Mas as ymbrynes estão tentando negociar um acordo de paz entre os clãs, e...

— Acha que eu não sei disso? — falou ele, ficando frustrado. — De um jeito ou de outro, os clãs vão partir para a guerra se quiserem, e não deixe que o convençam de que isso tem a ver com você ou comigo. Enfim... no momento há mais coisas em risco do que uma possível guerra de clãs.

— É? Como o quê?

— A garota.

— Noor?

— Claro. E não diga o nome dela em voz alta de novo.

— Por que ela é tão importante?

— Não vou explicar isso por uma linha não segura. Além do mais, você não precisa saber. A verdade é que eu nunca devia ter envolvido você, em primeiro lugar. Fui contra os meus instintos. Além de tudo, quebrei uma promessa, e isso está me deixando arrasado. Você quase foi morto por minha culpa.

— Que promessa? Para quem?

Houve uma pausa. Eu teria até pensado que a ligação tinha caído se não fosse o som dos pratos ao fundo. Por fim, ele respondeu:

— Para o seu avô.

Aquilo me lembrou por que eu tinha ligado.

— Por quê? — perguntei. — Aliás, por que ele nunca me disse nada? Por que pediria para você esconder as coisas de mim?

— Ele queria proteger você, filho.

— Isso nunca seria possível. Ele só conseguiu me deixar completamente despreparado.

— Ele sempre quis lhe contar, mas morreu antes de poder fazer isso.

— Então, do que ele estava me protegendo?

— Do nosso trabalho. Ele não queria que você se envolvesse.

— Se é assim, por que ele me mandou cartões-postais das missões que vocês faziam? Por que fez mapas para mim? Por que colocou meu apelido como a senha do bunker?

Ouvi H. respirar fundo e expirar devagar.

— Ele estava deixando ferramentas para você, em caso de emergência. Só isso. Agora, sinto muito, mas você me pegou de saída.

— Vai fazer o quê?

— Um último trabalho. Depois disso, me aposento de vez.

— Vai tentar pegar a garota de volta, não é?

— Não interessa.

— Espere por mim. Eu vou até você. Quero ajudar. Por favor.

— Não, obrigado. Como eu disse, você já fez o bastante... e não sabe cumprir ordens.

— Eu vou obedecer, prometo.

— Tudo bem, então obedeça a esta ordem: volte para a sua vida. Volte para as suas ymbrynes e para o seu mundinho seguro, porque você ainda não está pronto para o mundo real. Talvez um dia a gente se reencontre, quando você estiver preparado.

Ele desligou.

 

 

CAPÍTULO DEZENOVE


Fiquei parado na sala, o telefone na mão, ainda ouvindo o silêncio no outro lado da linha. Minha cabeça estava a mil. Eu precisava encontrar H., e rápido. Precisava ajudá-lo. Era imaturo e inexperiente, tudo bem, mas ele estava velho e fora de forma. Ele precisava de mim, mesmo que não quisesse admitir.

H. tinha razão em um ponto: eu era péssimo em acatar ordens. Paciência. Aquela era minha segunda chance de ajudar Noor. Uma chance pequena, talvez, mas àquela altura eu aceitaria qualquer coisa.

Primeiro, eu tinha que encontrar H., e sabia exatamente por onde começar a procurar: pelo número de telefone na primeira cartela de fósforos, aquela do restaurante chinês em Manhattan. Quando liguei, ouvi os sons inconfundíveis de um restaurante ao fundo — uma cozinha agitada, talvez, ou a área de serviço — e tive certeza de que algum funcionário havia atendido. Concluí que H. morava nos fundos ou no segundo andar. O nome e o endereço estavam na cartela de fósforos, então seria fácil de encontrar. Eu só precisava chegar a Nova York.

Dessa vez, não levei nenhuma bagagem nem nada especial. Só troquei a roupa, que vinha usando fazia dias e já estava manchada de sangue e começando a cheirar mal. Então saí pela porta dos fundos, entrei no galpão de jardinagem e saí no Recanto do Demônio. Quando cheguei ao corredor do Polifendador, sabia exatamente aonde ir. A srta. Peregrine nos trouxera de Nova York por uma porta mais ou menos no meio do corredor, no andar superior. Eu só precisava refazer o caminho do dia anterior. Chamaria atenção demais se fosse correndo, então baixei a cabeça e apenas apertei o passo, torcendo para que nenhum viajante ou atendente me visse. Cheguei até a escada sem ser parado, mas dei de cara com uma imensa parede escura.

A parede falou, e a voz grave e retumbante era, inconfundivelmente, de Sharon.

— Portman! Não era para você estar na nova fenda de fauna da srta. Wren, limpando as jaulas dos urxinins?

A srta. Peregrine tinha saído antes de me dizer qual seria meu castigo, mas, ao que tudo indicava, Sharon já sabia.

Notícias vergonhosas se espalham rápido.

— Como você sabe disso?

— As paredes têm ouvidos, meu amigo. Qualquer dia desses eu te mostro. Precisamos tirar o excesso de cera de tempos em tempos.

Com nojo, tentei afastar a imagem da cabeça.

— Eu estava indo para lá agora.

— Que estranho. A fenda é lá embaixo. — Ele cruzou os braços e se inclinou para a frente. — Você arranjou uma baita bagunça por aqui, sabia? Irritou muita gente.

— Não queríamos chatear ninguém. Juro.

— Ei, não estou dizendo que foi ruim. — Ele baixou a voz para acrescentar: — Às vezes as pessoas precisam de uma sacudida. Se é que você me entende.

— Aham — respondi, nervoso, pois a qualquer momento uma ymbryne podia passar por ali e me ver.

— Nem todo mundo gosta de como as ymbrynes têm conduzido as coisas. Elas estão muito mal-acostumadas a tomar todas as decisões. Sem consultar ninguém. Sem perguntar a opinião de ninguém.

— Entendo.

— Entende?

Eu entendia mesmo. Só não queria conversar naquele momento.

Sharon se aproximou mais e sussurrou no meu ouvido, sua respiração gelada e cheirando a terra:

— Tem uma reunião sábado que vem no antigo abatedouro. Quero te ver lá.

— Reunião de quê?

— Pessoas com interesses semelhantes trocando ideias. Sua presença seria muito bem-vinda.

Dei uma olhada por baixo do capuz de Sharon e por um instante vislumbrei dentes brancos na escuridão.

— Eu vou aparecer — sussurrei de volta —, mas não espere que eu me posicione contra as ymbrynes.

O brilho sob o capuz se transformou em sorriso.

— Não é o que você está fazendo agora?

— É complicado...

— Imagino. — Sharon se ajeitou, depois saiu do meu caminho. — Seu segredo está seguro comigo. Tome. Vai precisar disso.

Era um bilhete. De um lado, dizia: MINISTÉRIO DOS ASSUNTOS TEMPORAIS e, do outro, QUALQUER LUGAR.

— As fendas temporais americanas estão muito vigiadas. A coisa está feia. Não podemos deixar qualquer um passar.

Tentei pegar o bilhete, mas Sharon demorou para largar o papel.

— Sábado — enfatizou ele, e só então abriu a mão.


Agora que eu estava viajando sozinho, ir de um lugar a outro era bem mais fácil. Depois de uma semana tendo que me preocupar com três ou quatro pessoas, era libertador poder andar rápido por um corredor cheio sem ficar o tempo todo olhando para trás, além de passar despercebido numa multidão e entregar apenas um bilhete ao atendente. Era um sujeito grandalhão empoleirado em um banquinho atrás de um balcão. Ele estudou meu bilhete para QUALQUER LUGAR como se nunca tivesse visto um igual.

— Você está com roupas modernas — constatou ele, me observando. — Os indumentaristas verificaram seus anacronismos?

— Aham. Disseram que está tudo ok.

— Você tem um passe?

— Hum, sim — respondi, apalpando os bolsos. — Deixa eu só ver onde foi que coloquei...

A fila estava aumentando atrás de mim. O atendente cuidava de cinco portas ao mesmo tempo, e sua paciência estava no limite.

— Vá logo se cobrir com um dos casacos do outro lado da porta — falou, e acenou para que eu passasse. — Tem um mapa nos bolsos, se precisar.

Agradeci e fui até a porta. Uma plaquinha dourada dizia: LOJA DE DEPARTAMENTOS BULLOCK’S, NOVA YORK, 8 DE FEVEREIRO DE 1937.

Atravessei a porta, peguei um casaco preto antigo pendurado em um gancho — figurino emergencial — e o vesti. Fechei a porta, fui até o fundo do cômodo apertado e vazio e, depois de uma escuridão repentina e do já familiar impacto da travessia, percebi que os sons do lado de fora tinham mudado. Saí em uma loja de departamentos que parecia recém-fechada: o chão estava coberto de cabides vazios e poeira, havia manequins nus espalhados por todos os lados, e um brilho fraco iluminava o lugar, vindo das janelas cobertas com jornais. Havia um guarda sonolento parado à entrada. Pelo seu uniforme, muito parecido com o do atendente do Recanto do Demônio, percebi que era um dos nossos. Seu trabalho era avaliar as pessoas que queiram voltar para o Recanto, não avaliar quem saía, então foi fácil, para um viajante sozinho e sem bagagem como eu, passar por ele com um simples aceno confiante.

De repente eu estava na rua, andando apressado pela Sexta Avenida em um dia escuro de inverno, passando por uma lavanderia que jogava vapor na calçada, grandes amontoados de neve escura, uma fila de homens tremendo de frio em casacos esfarrapados e uma placa anunciando REFEIÇÃO QUENTE 1 CENTAVO. Enfiei a mão no bolso do casaco e encontrei um mapa rudimentar. Mostrava a entrada da fenda da loja de departamentos e, um quilômetro à frente, a membrana externa da fenda, além da qual ficava o presente. O mapa instruía que fosse queimado depois de ler, então amassei a folha e a joguei em um latão em chamas rodeado de homens pobres se aquecendo. Comecei a tremer de frio. Decidi correr.

Depois de alguns quarteirões, comecei a sentir o ar rarear e tremeluzir ao meu redor. Um pouco mais à frente, atravessei a membrana da fenda, voltando de 1937 para o presente. Imediatamente comecei a sentir calor, o sol ficou mais forte e os prédios se transformaram em imensos arranha-céus.

Chamei um táxi, dei o endereço da cartela de fósforos ao motorista e, dez minutos depois, paramos em um prédio alto com escadas de emergência por toda a volta. No térreo ficava um restaurante chinês comum, o Hong’s. Havia patos pendurados na vitrine e uma típica lanterna vermelha chinesa acima da porta. Paguei o táxi, entrei no restaurante e perguntei a um garçom sobre H. Ele pareceu confuso, então mostrei a cartela de fósforos, e ele assentiu e me levou para fora.

— Número 4, nos fundos — explicou, apontando para um beco. — Avise que o aluguel vence quarta.

Havia um telefone público no beco — uma coisa tão estranhamente antiga na Nova York moderna —, dentro de uma cabine com porta dobrável. O telefone ficava entre a porta dos fundos do Hong’s, de onde dava para ouvir a comida sendo frita e os pratos tilintando, e uma porta que levava ao hall de um prédio residencial caindo aos pedaços. Entrei no hall e dei de cara com uma série de caixas de correio em uma das paredes e dois elevadores na outra, um deles com um aviso de DESLIGADO.

Qual andar? Apertei o botão para chamar o elevador e, quando ouvi o apito e as portas se abrirem, senti aquela pontada na barriga de quando havia um etéreo por perto. A sensação podia significar que de fato havia um etéreo no prédio ou que um deles havia passado tantas vezes ali que tinha formado uma trilha. Só podia ser o etéreo de H.

Entrei no elevador e apertei o botão do último andar. A porta se fechou lentamente. Comecei a subir.

Enquanto os andares passavam, senti a dor apontando para direções diferentes — no início, diretamente para cima, mas, conforme eu subia, a seta descia. Quando passei do décimo quarto, minha bússola interna apontava a quase noventa graus, então apertei o 15.

O elevador parou. A porta se abriu. Imediatamente, percebi duas coisas muito ruins.

A primeira era uma trilha de sangue no corredor. Olhei para baixo e percebi que acabava nos fundos da cabine do elevador, onde uma poça de sangue já começava a coagular.

Meu coração começou a bater de maneira descontrolada. Alguém tinha se machucado, e feio.

A segunda coisa era que não havia luz mais adiante no corredor. Nada. Porém, não estava simplesmente escuro, ou sem lâmpadas. Eu não conseguia ver paredes, chão, teto. E meu compasso apontava direto para lá.

Isso indicava que Noor estava ali e que algo terrível tinha acontecido. Eu havia chegado tarde demais.

Saí correndo, seguindo a trilha de sangue que desaparecia escuridão adentro. Quando não consegui mais enxergar meus pés, reduzi o passo e ergui os braços, deixando a pontada na barriga me guiar. Em determinado momento, cheguei a uma quina e tropecei em uma caixa que alguém havia deixado no corredor. Mais alguns passos no escuro e minha bússola girou de repente para a esquerda, na direção de um apartamento.

A porta estava entreaberta, e pela fresta vi, finalmente, um raio de luz. Empurrei a porta com o ombro. Era bem mais pesada do que parecia, como se fosse de aço. Segui a luz por um corredor curto, passando por uma cozinha apertada cheia de panelas sujas, até uma saleta escura e bagunçada com um monte de vasos de plantas e tomada por um cheiro doce e enjoativo.

Noor estava encolhida em um sofá no canto. Seu corpo emitia um brilho suave alaranjado que iluminava a sala. Ela não se mexia.

Corri até ela. O cabelo cobria seu rosto. Com todo o cuidado, deitei-a de costas no sofá. Eu estava tão perto que a luz quase me cegava. Toquei seu pescoço com dois dedos. A pele estava quente. Rapidamente achei a artéria, e quando senti a pulsação, suspirei de alívio.

Um estranho gemido agudo veio do quarto ao lado. Fui olhar. H. estava caído no chão, sobre um antigo tapete persa. Seu etéreo estava em cima dele, uma das línguas musculosas em volta da cintura e as outras prendendo seus pulsos. Parecia prestes a arrebentar a cabeça de H. para devorar seu cérebro.

— Saia! — gritei, e o gemido parou.

O etéreo se virou e rosnou para mim.

Então eu entendi que ele não queria matar H. Seu amigo estava morrendo.

Ele estava chorando.

Pensei em algumas palavras para afastar a criatura. Ela rosnou para mim novamente, recolheu as línguas e se escondeu na cozinha.

Eu me ajoelhei ao lado dele. O sangue havia manchado sua camisa, a calça e o tapete.

— H. É o Jacob Portman. Está me ouvindo?

Ele despertou, e seus olhos se fixaram em mim.

— Mas que droga, garoto — disse ele, com uma careta. — Você não sabe mesmo seguir ordens.

— Temos que levar você para um hospital.

Comecei a passar os braços por baixo de H., mas ele grunhiu de dor, e o etéreo uivou de tristeza junto.

— Esquece. Já perdi sangue demais.

— Você consegue. A gente só tem que...

Ele se afastou de mim.

— Não! — Sua voz e seus braços demonstraram uma força que me surpreendeu, mas o esforço o exauriu, e H. caiu de volta no chão. — Não me obrigue a fazer Horatio atacar você. Tem um monte de homens de Leo espalhados aqui por perto. Se eu sair, vai chover tiros.

No canto do sofá, Noor soltou um gemido e se mexeu, mas continuava de olhos fechados.

— Ela está bem — disse H. — Recebeu uma boa dose de pó de sono, daqui a pouco acorda.

Ele fez uma careta de dor e seus olhos ficaram embaçados.

— Água.

Eu me levantei para correr até a cozinha, mas, antes de dar três passos, uma língua do etéreo passou zunindo por mim com um copo cheio. Ajudei H. a se sentar enquanto o etéreo levava o copo aos lábios dele. Fiquei impressionado com aquela cena estranhamente carinhosa.

H. terminou de beber e o etéreo pousou o copo na mesa de centro. Num porta-copo.

— Você treinou ele direitinho — comentei.

— Também, a essa altura... Estamos juntos há quarenta anos. Somos como um casal de velhinhos. — Ele baixou a cabeça e olhou para a própria barriga. — Minha nossa, estou parecendo um queijo suíço.

Ele tossiu uma nuvem de sangue. O etéreo grunhiu e se remexeu, ali perto. Seus olhos negros estavam marejados de lágrimas oleosas que escorriam e pingavam em um lenço manchado amarrado no seu pescoço.

Olhei para H. e, de repente, também senti vontade de chorar.

Está acontecendo de novo, pensei, o choro se formando no peito. Estou perdendo mais um.

Segurei as lágrimas e consegui dizer:

— O que aconteceu?

— Era pra ter sido moleza. Uma extração simples. Se não fosse por Horatio, que nos tirou de lá, seríamos todos prisioneiros de Leo agora. — Ele suspirou. — Acho que estou velho.

— Por que não me deixou ajudar?

— Eu não podia deixar que você se machucasse — respondeu ele, os olhos fixos no teto, lembrando-se de algo. — O garotinho de Abe. O bebê Moisés no cesto de junco.

— Como é?

H. olhou para Noor.

— Agora você pode ajudar a srta. Pradesh. Estou morrendo, então não tem mais ninguém para assumir a tarefa.

— O que eu faço? Para onde vamos?

— Saiam de Nova York, para começar.

— Podemos ir para o Recanto.

— Não. As aves vão devolvê-la para Leo. Não sabem a importância dela. — Ele estava perdendo a consciência, falando mais devagar. — Nem ela mesma sabe.

— Por que ela é tão importante?

— Antes de receber o pó na cara, ela me salvou três vezes, sabia? Eu é que deveria tê-la salvado. — H. deu uma risada fraca. — Pena que o truque da lâmpada não pare as balas.

Seus pensamentos estavam cada vez mais confusos, e seus olhos se recusavam a ficar abertos.

Toquei o rosto dele, a barba áspera, e o forcei a olhar para mim.

— H., por que ela é importante?

— Eu jurei para seu avô. Jurei que não envolveria você.

— Agora é tarde.

Ele assentiu, triste.

— É, acho que sim. — H. respirou fundo, trêmulo. — Ela é uma dos sete cuja vinda foi anunciada.

Aquilo não estava entre as muitas coisas que achei que ele me diria.

— Uma dos sete... sete o quê?

— Eles serão os emancipadores dos peculiares. É o que diz o Apócrifo.

— O que é isso? Algum tipo de profecia?

— Escritos muito antigos. O nascimento dela marca a chegada de uma nova era. Uma era perigosa. — Ele fez uma careta de dor e fechou os olhos. — É por isso que essas pessoas estão atrás dela.

Eu assenti.

— Os caras nos helicópteros e nos carros pretos.

— Eles mesmo.

— Eles são um dos clãs?

— Não. Muito pior. Um grupo muito antigo e muito secreto de normais. Eles querem nos subverter e... — ele se contraiu, puxando o ar dolorosamente — ... nos controlar. — H. não conseguia mais respirar. Estava perdendo o fôlego entre as palavras. — Chega de histórias. Leve a menina até V. Ela é a última de nós. A última dos caçadores.

— V. Do livro de registros. A que ele mesmo treinou.

— Sim. Ela hoje vive no vendaval. Não quer ser encontrada, então tome cuidado. Horatio, o mapa do cofre...

O etéreo grunhiu, correu até uma parede e tirou um quadro do lugar, revelando um cofre pequeno. Enquanto a criatura girava a combinação, me concentrei em H. Dava para ver que ele estava fraco. Apertei sua mão.

— H., preciso saber uma coisa. — Ele estava perdendo a consciência, e a ideia de que a última conexão com os segredos do meu avô estava prestes a desaparecer despertou em mim algo que eu vinha tentando esconder. — Por que alguém diria que meu avô foi um assassino?

H. me observou com uma expressão intensa.

— Quem te disse isso?

Eu me aproximei mais. Ele tremia. Contei rapidamente as loucuras de que Leo havia acusado Abe. Sequestrar sua afilhada. Matar pessoas. Não só pessoas... crianças.

H. poderia ter dito que era tudo invenção dos acólitos, poderia ter dito simplesmente que era mentira. Mas não.

— Então você sabe.

Minha visão ficou embaçada por um momento. E, como uma doença, o vírus da dúvida começou a correr pelo meu organismo.

— Como assim? Do que você está falando?

Sacudi H. pelos ombros. O etéreo berrou, enrolou a língua na minha cintura e me jogou do outro lado da sala. Meu corpo deslizou no chão até bater no pé de uma mesa.

Um medo terrível me invadiu: de que havia verdade nas acusações de Leo. De que aquele era o segredo do meu avô — ele não estava tentando me proteger da perda da normalidade, dos etéreos nem de algum grupo de inimigos misteriosos em carros pretos. Estava me protegendo de si mesmo.

Eu me levantei. O etéreo rosnava para mim, inclinado sobre H., me impedindo de vê-lo. Mandei a criatura se afastar, mas ela me desafiou. Ou talvez H. e o etéreo estivessem, os dois, lutando contra mim.

Corri na direção da criatura, gritando, Sai, sai, vai embora — e ela obedeceu, saltando para longe de H. e se pendurando pelas línguas no lustre. Foi então que percebi um detalhe: uma floresta de desodorizadores de ar em formato de pinheiros pendurada no teto. Para disfarçar o cheiro, é claro. Porque o etéreo morava ali.

Eu me ajoelhei perto de H.

— Sinto muito. — Dessa vez, não o toquei. — Por favor. Me conte a verdade. — Eles nos enganaram. Sete vezes, eles nos enganaram.

— Quem? O quê?

— A Organização.

Eu não estava prestando muita atenção. Só queria saber uma coisa.

— Meu avô matou aquelas crianças?

— Não. Não.

— Ele as sequestrou?

— Não. — O rosto de H. estava contorcido de dor e arrependimento. — Nós achávamos... — ele tentou respirar — ... que estávamos salvando aquelas crianças.

De repente fiquei tonto, tive que me sentar. Ele não era um assassino. Não era uma pessoa má. Eu não tinha me dado conta do quanto aquela simples possibilidade estava pesando sobre mim.

— Nós fizemos muitas coisas boas — continuou H. — Também cometemos erros. Mas Abe tinha bom coração. E amava muito você, muito mesmo. — Sua voz tinha se reduzido a um sussurro.

Meus olhos ardiam com as lágrimas.

— Sinto muito.

— Não. — Com o que lhe restava de forças, ele segurou meu braço. — Agora a missão é sua. Me perdoe por não ter quem o ajude a cumpri-la.

— Obrigado. Vou tentar estar à altura de vocês.

— Eu sei que vai. — Ele sorriu. — Chegou minha hora. — Ele ergueu os olhos para o teto. — Horatio, desça e venha até aqui.

O etéreo lutou contra meu controle.

— Pode deixar — disse H. — Muito tempo atrás eu prometi uma coisa a esta pobre criatura, e preciso cumprir a promessa antes de morrer. Deixe ele vir.

Eu me levantei, dei alguns passos para trás e abri caminho. O etéreo desceu do teto.

— Venha, Horatio. Sinto que estou partindo. Venha.

O etéreo se aproximou devagar. H. tentou virar as costas para mim.

— Não olhe. Não quero que esta seja sua última lembrança minha.

O etéreo subiu em H. e se sentou no seu peito. Tentei não olhar, mas não consegui. Quando me dei conta do que iria acontecer, quis mandar o etéreo sair, aos berros, mas H. estava me bloqueando.

Dava para ouvi-lo sussurrar para a criatura:

— Você foi um bom garoto, Horatio. Não esqueça o que lhe ensinei. Agora, vamos lá.

O etéreo ganiu, tremendo.

— Tudo bem — disse H. com gentileza, fazendo carinho na garra da criatura. — Eu vou ficar bem.

Virei o rosto, mas nunca vou me esquecer daquele som. Quando olhei de volta, os olhos de H. tinham desaparecido. Suas órbitas eram como ameixas maduras mordidas. A criatura mastigava e seus ombros tremiam, e o som que fazia era ao mesmo tempo de êxtase e agonia. De repente, Horatio se levantou e me deu as costas, como se estivesse envergonhado.

— Eu perdoo você — disse H. — Eu perdoo você, irmão.

Ele parecia estar falando não com o etéreo, mas com o nada. Com um fantasma.

E então se foi.


O etéreo e eu nos encaramos por cima do corpo de H. Tentei controlá-lo.

Sente-se.

Pensei que seria mais fácil agora que seu mestre estava morto, mas meu comando não surtiu efeito.

Tentei uma segunda vez, uma terceira, mas foi em vão. Comecei a pensar em maneiras de matá-lo antes que ele tentasse arrancar meus olhos ou os de Noor.

De repente, o etéreo arreganhou as mandíbulas, esticou as línguas e fez um som aterrorizante — um guincho tão agudo que achei que as janelas fossem rachar. Agarrei um peso de papel na mesinha de centro e me preparei para uma briga violenta.

Mas o etéreo não estava vindo atrás de mim. Caminhou para trás e, depois de alguns passos, bateu as costas na parede e parou. A dor crônica que me dizia onde os etéreos estavam começou a desaparecer. Ao mesmo tempo, as línguas da criatura se encolheram. Ressecaram, se enrolaram e ficaram marrons, como se estivessem podres, e por fim caíram, mortas como flores velhas.

O etéreo se apoiou na parede, a cabeça baixa e o peito subindo e descendo como se tivesse corrido uma maratona. De repente, caiu no chão, o corpo tomado por tremores e convulsões violentas.

Comecei a me aproximar devagar, com passos calculados e cuidadosos, morrendo de medo de ser um truque. Então, tão de repente quanto haviam começado, as convulsões pararam. No mesmo instante, minha dor sumiu de vez.

O etéreo começou a se mexer. Virou a cabeça e me encarou. Seus olhos não eram mais poços negros e úmidos; estavam cinzentos e clareavam a cada segundo, até ficarem brancos, sem pupilas.

A criatura estava se transformando em outra coisa: um acólito. Fiquei vendo aquilo por um minuto, com repulsa e fascínio, pronto para acertar sua cabeça com o peso de papel se fosse necessário.

Seu corpo começou a estremecer. O movimento parecia involuntário, como se os órgãos estivessem sofrendo uma metamorfose dentro do peito. A respiração, antes carregada e irregular como a de todo etéreo, ficou silenciosa e calma.

A criatura se sentou. Olhou para mim.

De repente, uma ideia me ocorreu, e dei um passo para trás. A criatura tinha sido companheira de H. por anos. Tinha visto e ouvido muitas coisas. E agora era quase humana. E se ela lembrasse? E se tivesse qualquer memória? Até que ponto um acólito se lembrava de sua vida como etéreo? E quando essas lembranças começavam a voltar, se fosse o caso?

— Diga alguma coisa — ordenei. — Fale.

A criatura só olhou para mim. Nem emitiu som. Talvez acólitos nascessem como animais, com a capacidade de ficar de pé e até de correr, mas mudos, sem saber nada.

De repente, o acólito esticou o braço, se apoiou na parede e lentamente ficou de pé. Arrastando os pés, foi até uma mesa de canto e puxou a toalha que a cobria. Por um momento achei que iria enrolar o pano na cintura — como se de repente a criatura tivesse percebido que estava nua e sentisse vergonha —, mas em seguida foi pé ante pé até H. e cobriu o rosto dele com o tecido.

Isso queria dizer que ele se lembrava de uma coisa: H. tinha sido seu mestre.

— Você consegue falar? — perguntei. — Quero ouvir sua voz.

Ele se virou para mim com o olhar vazio, balançando-se de leve. A boca se abriu. Um som saiu:

— Errrhhhhhh.

Um gemido, não uma palavra. Melhor que nada.

— Isso! — falei. — Qual é seu nome?

Ele balançou a cabeça. Estava se esforçando ao máximo para formar palavras, mas a impressão era de que um nevoeiro encobria sua mente.

O acólito abriu a boca de novo. Respirou fundo.

Então um grito atravessou o ambiente silencioso. Eu me virei e vi Noor sentada, apavorada, os olhos indo de mim para o acólito e para a mortalha que cobria H.

— Tudo bem! — gritei. — Está tudo bem!

Mas minha voz trêmula e todo o cenário ao redor desmentia minhas palavras. Agora que o etéreo estava se transformando, poderia ser visto por qualquer pessoa. Noor havia acordado de repente no meio de uma cena apavorante, e a luz dentro dela, que pulsava de leve durante o sono, se tornou uma estrela potente subindo pela coluna até a garganta. Eu me aproximei e repeti que não havia perigo, mas ela apenas balançava a cabeça e parecia incapaz de falar. Estava com medo. Não de mim, do acólito ou do corpo — mas de não conseguir parar aquilo dentro de si mesma. Ela ainda não sabia controlar muito bem sua habilidade.

Eu me joguei no chão e cobri a cabeça. Por entre os dedos, vi Noor se segurar no sofá e virar o rosto para longe de mim. Como um espirro de luz, o brilho explodiu de sua boca e seu nariz, uma turbina formando um cone de luz que atingiu a cozinha em cheio. As paredes, o piso, o apartamento inteiro tremeu. Uma onda de pressão e calor passou por cima de mim, chamuscando os cabelos da minha nuca. Ouvi azulejos rachando, pratos se quebrando e metal entortando, e o brilho repentino e ofuscante da explosão me forçou a fechar os olhos.

Quando a claridade perdeu a força, ergui a cabeça. Havia uma nova luz na sala: não o brilho vermelho-alaranjado que havia emanado de Noor, mas a luz do dia atravessando uma janela aberta. Uma fumaça saía da cozinha. O ex-etéreo não estava à vista. O coice da explosão tinha feito Noor voar longe. Ela estava gemendo, no chão.

— Noor? — Eu me levantei devagar. — Você se machucou?

— Minha cabeça está me matando. — Seu rosto surgiu de trás do sofá. — Tirando isso... — Ela deu uma olhada em si mesma. — Inteira. — Um fio de fumaça saía de sua boca quando ela falava. — E você?

— Estou bem. Não sei se você se lembra de mim, mas...

— Jacob. — Ela continuou atrás do sofá, me observando. — O que está fazendo aqui?

Eu me empertiguei.

— Vim ajudar você.

— Não tem dado muito certo. — Ela olhou para H. e fez uma careta. — Para ninguém. — Noor pousou a cabeça no sofá. — Fico dizendo para mim mesma que nada disso está acontecendo — disse ela para as almofadas —, mas não consigo acordar desse pesadelo. — Ela olhou de volta para mim. — Droga. Você continua aqui.

— Não é um sonho. Eu passei pela mesma coisa alguns meses atrás. Sei exatamente como está se sentindo.

— Pode acreditar que não sabe. Só me explique que raios está acontecendo.

— Isso levaria horas, mas, resumindo, tem umas pessoas más querendo pegar você, eu sou um dos mocinhos, e a gente precisa deixar a cidade o mais rápido possível.

— Você nem me conhece. Por que está me ajudando?

— É meio difícil explicar, mas digamos que se trata de um negócio familiar. — Olhei para H. mais uma vez. — E eu fiz uma promessa.

— Você fala coisas com sentido alguma vez na vida?

— Você vai entender. — Fui até o sofá. — Consegue andar?

Ela se apoiou no braço do sofá e fez força para se levantar, então deu alguns passos.

— E correr?

Ela bambeou um pouco, depois se largou de volta no sofá.

— Ainda estou recuperando as forças. E para onde vamos?

— Temos que encontrar uma pessoa chamada V. Ela trabalhava com H. e com meu avô. É só o que eu sei.

Ela riu.

— Isso é loucura.

— Sempre é. Mas você se acostuma.

Ouvimos um barulho atrás de nós, e quando nos viramos, vimos as costas curvadas e brancas da criatura que tinha sido um etéreo mas ainda não era um acólito. Ele estava encarapitado na janela como uma gárgula, segurando-se ao parapeito, o corpo inclinado para a rua como se fosse pular.

Noor se encolheu no sofá.

— O nome dele é Horatio — expliquei. — Você não conseguia vê-lo antes, mas ele estava com esse senhor o tempo todo.

— Ssssssss — fez o ex-etéreo, virando-se para nós. Parecia estar tentando falar. — Sssssssss... êêêêêêêssssss...

— Seis! Foi isso que você falou? — Animado, dei um passo à frente, mas Horatio deu um guincho de alerta e começou a soltar as mãos. Parei na mesma hora e ergui os braços. — Não!

A coisa parecia ao mesmo tempo uma recém-nascida e uma criatura incompreensivelmente antiga. E muito, muito cansada. Abriu a boca de novo.

— Deeeeeeee — falou.

Noor se inclinou para a frente.

— O que é um D.?

— Ceeeeeeee... enc.

— Cinco — repeti, me virando para Noor. — Ele está falando com a gente!

— Parecem coordenadas — disse Noor. — E-6. D-5. Como um mapa.

Como um Mapa dos dias.

— Na tem... pestade — disse o ex-etéreo, com uma voz trêmula e aguda.

Ele falava!

— No coração... tempestade.

— O quê? — perguntei. — O que está no coração da tempestade?

— O que você busca.

Ele tirou a mão do parapeito e apontou para a parede. A parede em que ficava o cofre, agora aberto.

Corri até lá. A explosão de Noor tinha arrebentado a porta do cofre, e o chão estava coberto de papéis: um bolo de notas de dólar, uma fotografia, um livro, um mapa antigo e gasto. Peguei a foto do chão. Era uma imagem em preto e branco de uma cidadezinha encoberta por um céu assustador e um tornado afunilado no horizonte escuro.

 

 

O coração da tempestade. No vendaval.

Ergui a foto.

— É aqui que vamos encontrar V.?

Olhei para trás, mas vi apenas a janela vazia, a cortina esvoaçando na brisa. O ex-etéreo tinha sumido.

— O que houve? — perguntou Noor.

Ela estava de pé, tentando ir até a janela, os olhos arregalados.

— Ele... se jogou.

Gritos ecoavam lá embaixo, na rua. Noor se apressou para olhar.

— Não! — gritei. — Eles vão ver você!

Ela me ouviu tarde demais, e se ajoelhou embaixo da janela.

— Acho que já viram.

— Tudo bem. A gente encontra outro jeito de sair.

Peguei o mapa, o dinheiro e a foto e me juntei a Noor sob a janela. Estávamos abaixados, os joelhos se tocando, o vento bagunçando nosso cabelo.

— Pronta? — perguntei.

— Não.

Mas ela não parecia com medo, seu olhar me desafiando.

— Você confia em mim?

— Claro que não.

Dei uma risada.

— A gente resolve isso depois.

Estendi a mão.

Ela estendeu a dela.

 

 

                                                                                                    Ransom Riggs

 

 

 

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