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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MENTIRAS CONSENTIDAS Michael Hjort e Hans Rosenfel
MENTIRAS CONSENTIDAS Michael Hjort e Hans Rosenfel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Sonho contigo.
Quase todas as noites desde que comecei.
Que pensarias, se soubesses?
Sobre o que estou a fazer.
Provavelmente, mal.
Pedir-me-ias para parar.
Eras uma pessoa melhor do que eu sou.
Mas, esta noite, pediste-me para te salvar.
Para vos salvar aos dois.
Não consegui.
Nem no sonho consegui.
Por isso, faço o que posso.
Penso fazê-lo outra vez.
Esta noite.
A quinta.
A Klara Wahlgren.

 

 

 


 

 

 


Outubro chegara e trouxera o Inverno consigo.

Fora um ano singular, em termos meteorológicos.

A Primavera só começara verdadeiramente no final de Maio. Tinha caído neve tanto nos chapéus de feltro dos estudantes finalistas, durante a celebração tradicional e muito frequentada da noite de Santa Valburga, como nos desfiles consideravelmente menos movimentados do 1.º de Maio, na tarde seguinte. O Verão fizera-se esperar até ao final de Junho e, na semana a seguir ao solstício, a temperatura passara, pela primeira vez, ligeiramente dos vinte graus, mas, por outro lado, o calor mantivera-se até meados de Setembro.

Depois, quase não houvera Outono.

No dia 8 de Outubro, ela estava de volta. Um manto fino como pó branco surpreendera os habitantes de Uppsala, quando, nessa manhã, subiram as persianas. Pouco mais de quatro meses sem neve dera, naturalmente, pano para mangas aos que negavam as alterações climáticas.

«Não me parece nada que o planeta esteja a ficar mais quente, se querem que vos diga.»

«Mas ninguém te perguntou nada», era o que Klara tinha vontade de responder de cada vez que ouvia a frase já gasta e via o sorrisinho de satisfação que habitualmente a acompanhava.

As alterações climáticas eram bem reais.

Três anos de Ciências do Ambiente, em Lund, e um mestrado em Desenvolvimento Sustentável, em Uppsala, davam a Klara essa certeza. Anos de investigação pelo mundo deixavam as coisas bem claras, independentemente do que se pudesse ver da janela da cozinha, em Outubro.

«Mas está mesmo frio», pensou Klara ao sair do edifício onde decorria o curso, poucos minutos antes das nove da noite, e apertou a gabardina demasiado fina. Como de costume, ficara até mais tarde para limpar e arrumar as coisas, depois de o último aluno sair.

Estofamento de móveis.

Das 18h30 às 20h30, com início a 15 de Setembro.

Nove sessões.

Naquela noite, encontraram-se para a quinta sessão. Klara sentia uma grande satisfação ao observar a evolução de todos os participantes. Adorava organizar aqueles cursos.

Era o quarto ano.

Antes de começar a descer a rua östra ågatan, confirmou mais uma vez que a porta atrás de si estava trancada. O frio fazia-a estugar o passo. O seu telemóvel tocou. Klara retirou-o do bolso e respondeu com um pequeno sorriso de surpresa.

— Então, amor, não estás a dormir?

— Quando é que vens para casa? — perguntou Victor com a voz sonolenta. Klara viu-o sentado no sofá, com o seu pijama do Homem Aranha, os dentes escovados, o cabelo despenteado, a lutar para manter os olhos abertos.

— Estou a ir para o carro agora, por isso, chego daqui a quinze, vinte minutos. Querias alguma coisa especial?

— A ferida.

Na semana anterior, antes de a neve cair, durante uma aula de Educação Física na escola, o filho participara numa prova de orientação e, ao tropeçar, caíra em cima de uma espécie de sucata enferrujada que alguém deixara na floresta e cortara-se na barriga da perna. Precisara de cinco pontos. O penso tinha de ser mudado todas as noites.

— Não pode ser o pai a fazer isso?

— Tu sabes fazer melhor.

Klara suspirou em silêncio. Era sempre bom ser apreciada e desejada, mas ela e Zach tinham dividido a licença parental em partes iguais e ele estivera tão presente quanto ela durante os primeiros anos do filho, por vezes até mais, mas, mesmo assim, quando se tratava de... de quase tudo, na verdade, Victor chamava mais pela mãe. Klara percebia que Zach ficava um pouco magoado por ser sempre a segunda escolha.

— Mas eu agora não estou em casa e tu tens de ir dormir — tentou convencê-lo Klara enquanto virava para a rua Ångkvarnsgatan.

— Então e a ferida?

— Deixa o pai tratar disso e vai-te deitar. Se estiveres acordado quando eu chegar e não estiver bem, faço-o outra vez.

A sugestão foi recebida em silêncio, como se o menino de oito anos estivesse a tentar perceber se estava a ser, de alguma forma, enganado.

— Combinamos assim? — perguntou-lhe Klara.

— Está bem...

— Boa. Um beijinho, até amanhã.

Klara terminou a chamada e voltou a colocar o telefone no bolso, mas não retirou a mão. Estava mesmo frio.

Teria feito a coisa acertada?

Se Victor estivesse acordado quando ela chegasse a casa, se lhe mudasse o penso, isso não seria admitir que Zach não o fazia tão bem quanto ela? Deveria ter sido mais dura? Deveria ter dito que era o pai que ia tratar do penso e que o que ele tinha de fazer era deitar-se a seguir, ponto final?

Não lhe apresentar alternativas.

Recusar-se a mudar o penso outra vez.

Provavelmente.

«Na melhor das hipósteses, Victor estará a dormir quando eu chegar a casa e poderei assim evitar o problema», pensou Klara enquanto virava para o parque de estacionamento.

Havia seis lugares no pátio interior quadrangular. Dois pertenciam à associação educativa. O seu Polo azul, na esquina mais distante, era o único carro que continuava ali.

Klara deteve-se.

Estava escuro.

Mais escuro do que o habitual.

Os edifícios em volta, às escuras àquela hora, eram todos de escritórios e associações. Costumava ser assim, mas, naquela noite, até os dois candeeiros das fachadas exteriores estavam apagados. Klara não sabia onde se encontravam os interruptores, mas pensou que alguém devia tê-los desligado por engano.

Contudo, não era esse o caso, constatou ao aproximar-se do carro enquanto os seus olhos se adaptavam devagar à escuridão. Exactamente por baixo da estrutura de ferro que segurava um dos candeeiros, junto à fachada e próximo do seu carro, viu estilhaços de vidro.

O candeeiro estava partido.

Ou ter-se-ia, de alguma forma, soltado do suporte, caído e partido ao embater no pavimento? Mas, uma vez que ambas as luzes estavam fundidas, provavelmente alguém se divertira a parti-las. Apesar de Klara ainda se considerar nova, deu por si a pensar: «Coisas de adolescentes, de certeza.» Talvez fosse mais um desejo. Que o vandalismo e outros comportamentos desregrados estivessem apenas ligados a uma certa imaturidade. Os sinais em toda a sociedade apontavam cada vez mais para que não fosse isso.

Klara retirou do bolso as chaves do carro. Os piscas do Polo acenderam e apagaram duas vezes e os espelhos retrovisores deslizaram para a posição de condução com um zumbido suave. Estava prestes a colocar a mão no puxador da porta, certamente gelado, quando um ruído chamou a sua atenção e um arrepio instintivo lhe percorreu o corpo.

Passos leves atrás de si.

Não estava sozinha.

Num abrir e fechar de olhos, viu uma sombra negra reflectida na janela do carro.

Distorcida. Grande. Próxima.

Sem pensar, Klara deu um passo rápido para o lado, ao mesmo tempo que se virou. Em vez de conseguir aproximar-se pelas suas costas, o grande vulto escuro acabou ao seu lado, contra o carro. Teve tempo de reparar no capuz preto e na cara coberta, antes de o som a surpreender, alto e penetrante.

Como um alarme.

Klara demorou alguns segundos a aperceber-se de que era ela quem gritava.

A figura à sua frente pareceu sobressaltar-se com a intensidade da sua voz. Mas isso só deu mais força a Klara.

Nem lhe passou pela cabeça tentar fugir, correr dali para fora.

Defender-se-ia.

A qualquer preço.

Algures no seu subconsciente, pairava a informação que ouvira sobre oferecer a maior resistência possível num eventual ataque e foi isso, exactamente, o que Klara fez. Socou e pontapeou. Debateu-se com os braços e as pernas. Acertaram no corpo do atacante. Com força. Uma e outra vez. Cega e furiosamente. Ao mesmo tempo que continuava a gritar.

Klara não soube quanto tempo aquilo durou, talvez alguns segundos, mesmo que lhe tivesse parecido muito mais tempo, até ver o atacante recuar alguns passos e deixar o local a correr na direcção da entrada do parque de estacionamento e depois para a esquerda, para a rua Ångkvarnsgatan.

Klara ficou onde estava. A respiração ofegante, entrecortada. Teve tempo para pensar que os gritos deviam ter-lhe danificado algo na garganta, antes de as forças a abandonarem e ela deslizar para o chão, quase sem sentir o frio e a humidade que de imediato atravessaram as suas calças. A respiração ofegante transformou-se num gemido surdo. Olhou fixamente para o chão. Em seguida, viu, no asfalto, junto ao carro, um pequeno objecto comprido.

Uma seringa cheia de líquido.

Ia ser anestesiada.

Anestesiada e violada.

Exactamente como Ida.


Sentiria falta da Riksmord?

Vanja apercebeu-se de que se colocava muitas vezes aquela questão. Como naquele preciso momento, enquanto preparava uma chávena de chá na cozinha do pequeno apartamento de duas assoalhadas, na avenida Norbyvägen, que um dos colegas de Uppsala lhe subarrendara. Por um ano, para começar, enquanto ele trabalhava em Haia numa parceria com a União Europeia contra o tráfico de seres humanos. Cinquenta e dois metros quadrados onde Vanja não conseguia, de repente, apontar um único móvel ou objecto escolhido por ela, se tivesse mobilado ou decorado o apartamento sozinha, à excepção talvez da televisão de setenta e cinco polegadas que dominava a parede em frente do sofá gasto de pele preta. Quando se arrendava um espaço já mobilado, era assim. Vanja aguentaria aquilo durante um ano. Se ficasse mais tempo, teria de arranjar outra coisa. Algo próprio.

Sentiria falta da Riksmord?, pensou enquanto retirava a saqueta de chá de dentro da chávena com uma imagem da Guerra das Estrelas e a atirava para o lava-loiça.

Não da unidade em si, nem mesmo do trabalho. O que estava a fazer em Uppsala era, no mínimo, igualmente interessante. Não obstante, sentia falta dos colegas. Depois de estar longe deles há alguns meses, apercebia-se agora de que eram mais seus amigos do que colegas de trabalho. Talvez os seus únicos amigos.

À excepção de Sebastian, portanto.

Sebastian não era um amigo.

Vanja abriu o frigorífico, deitou leite na chávena e levou-a para a pequena sala de estar, onde o seu computador portátil estava ligado em cima da mesa de vidro fumado do IKEA.

Prometera a Torkel que regressaria.

Quando conseguisse pôr a sua vida em ordem.

Fosse o que fosse que isso quisesse dizer.

Continuava sem manter nenhum contacto com Anna. Nesse aspecto, nada se alterara. A mãe mentira-lhe a vida inteira e quando, finalmente, a verdade viera à luz, traíra Vanja novamente, ao contactar Sebastian nas suas costas. E, ainda pior, fora para a cama com ele.

Tinha falado com Valdemar algumas vezes. Telefonemas breves e impessoais sobre a mudança, a nova cidade e os novos colegas. Não a fora visitar. Embora Valdemar tivesse deixado Anna para poder reparar a sua relação com Vanja e tivesse sido o seu pai durante toda a sua infância — aquele de quem ela fora mais próxima e que amara mais do que a qualquer outra pessoa —, não tinham conseguido reaproximar-se.

Isso magoava-a.

Deixava-a zangada.

O facto de Sebastian ter conseguido destruir uma das poucas coisas que tinham mesmo significado alguma coisa na sua vida. Talvez conseguissem aproximar-se um do outro novamente, nos seus novos papéis. Porém, a investigação que decorria sobre os crimes económicos e a tentativa de suicídio de Valdemar ainda representava um obstáculo, apercebeu-se Vanja.

Era tudo uma confusão.

A sua vida.

Muito, muito longe de estar em ordem.

A única coisa que realmente funcionava era a sua relação com Jonathan. E era cada vez melhor. A viagem de férias, que começara em Copenhaga e os levara a mais cinco países da Europa, fora tudo o que Vanja esperara. Jonathan mostrara uma certa preocupação por Vanja precisar apenas de companhia, não necessariamente dele, mas não levara muito tempo até essa preocupação se revelar infundada. Depois do Verão, Jonathan falara sobre um futuro em conjunto como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Jonathan não ficara empolgado com a mudança de Vanja para Uppsala, porém, estavam apenas a quarenta minutos de comboio um do outro e Vanja ia a Estocolmo sempre que podia. Quando lá ia, ficava em casa dele, pois subarrendara o seu apartamento da rua Sandhamnsgatan.

Por isso, tudo estava bem com Jonathan, e a Sebastian não o via desde que ele a deixara na garagem subterrânea do edifício de Waterfront, há mais de três meses. Vanja sabia que ele ficara ferido, numa louca viagem de carro com uma bomba no interior, com algumas costelas e um braço partidos, segundo Ursula. Vanja não sabia mais do que isso.

E, mais do que isso, também não queria saber.

Quanto menos espaço Sebastian Bergman ocupasse na sua vida, melhor. Estava certa de que o mesmo se aplicava a todas as outras pessoas.

Então, deixou de pensar nele, afundou-se no sofá e voltou a concentrar-se na transcrição da denúncia de Therese Andersson à Polícia, enquanto sorvia pequenos goles da bebida escaldante.

A queixosa deixa uma festa, no número 23 da rua Molngatan, pouco antes da uma e meia da manhã, no dia 4 de Outubro, e decide ir a pé para casa, na rua Almqvistgatan, a pouco mais de um quilómetro dali. Foi pela rua pedonal até à praça Liljefors Torg e, quando passou pela escola de Liljefors, ouviu passos cada vez mais perto e depois alguém a agarrou por trás e sentiu uma picada no pescoço.

Vanja, a denunciante, sabia que não podia esperar que todas as denúncias fossem transcritas numa linguagem perfeita, estava até bastante segura de que as que o eram representavam uma minoria, e aquela era bem a prova disso. Procurou pelo nome de quem a redigira. Inspector estagiário Oscar Appelgren. Ou seja, alguém ainda em formação. Mas, uma vez que a linguística não fazia parte do plano de estudos da Academia de Polícia, as probabilidades de aquilo melhorar eram bastante baixas. Vanja suspirou profundamente e continuou a ler.

Depois disso, não se lembra de nada até acordar deitada no chão, entre alguns arbustos, ao lado da rua pedonal. A saia estava puxada para cima, os collants rasgados e a queixosa tinha uma espécie de saco na cabeça. A queixosa levanta-se e vai para a rua Vaksalagatan, onde pede ajuda. Então já eram mais ou menos duas e meia.

O hospital chama a Polícia e um exame médico mostra um sangramento genital, depois de penetração, e restos de esperma. Uma análise ao sangue mostra restos de Flunitrazepam no sangue.

Vanja fechou o documento excessivamente descritivo, pegou na chávena de chá e recostou-se no sofá.

Ataque seguido de violação na forma consumada.

Estes casos representavam uma proporção mínima das queixas de violação registadas anualmente. Na grande maioria dos casos, as vítimas e os agressores eram conhecidos ou próximos e o crime acontecia em casa de um deles. Porém, os primeiros recebiam muita atenção dos media, o que levava as pessoas a acreditar que aconteciam com mais frequência do que na realidade. Até àquele momento, pouco se escrevera sobre o que acontecera a Therese. Não obstante, essa atenção aumentaria se alguém começasse a interessar-se seriamente pelo assunto.

A verdade é que ela não era a primeira vítima.

Vanja voltou a inclinar-se para a frente, pousou a chávena na mesa e pegou no relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.

Não dava muito mais informação.

Pegadas de um sapato de ginástica da marca Vans, modelo UA-SK8-Hi MTE, marcadas na terra, por baixo dos arbustos, e o ADN extraído da amostra de esperma, mas o agressor não aparecia em nenhuma base de dados. Por outro lado, as provas eram compatíveis com outras relativas a uma violação ocorrida apenas um mês antes.

Ida Riitala, trinta e quatro anos de idade.

Atacada no antigo cemitério no dia 18 de Setembro.

A mesma cidade, o mesmo modus operandi.

Um agressor que a atacara por trás injectara um líquido anestésico no pescoço da vítima, colocara-lhe um saco de juta na cabeça e levara a cabo a agressão enquanto a vítima estava inconsciente.

O telefone tocou e Vanja lançou um olhar rápido para o visor.

A sua nova chefe. Anne-Lie Ulander.

Eram quase nove e meia. O que significava mais trabalho. Vanja atendeu a chamada.

— Olá, diz.

A conversa durou pouco mais de trinta segundos antes de Vanja desligar o computador, levantar-se e deixar o apartamento. Se tinham alguma dúvida de que estavam a lidar com um violador em série, agora tinham deixado de as ter.

Havia uma terceira vítima.


Klara estava encolhida no sofá. Apesar de ter três camadas de roupa na parte superior do corpo e de estar enrolada numa manta, sentia frio. Parecia não conseguir aquecer. Como se o frio do pátio interior escuro a tivesse seguido até casa, como uma segunda pele. Agarrava com firmeza na chávena de chá com as duas mãos enquanto contemplava a mulher com o bloco de notas, sentada na outra ponta do sofá, inclinada para a frente.

Anne-Lie Ulander. Comissária da Polícia Judiciária.

Klara achou que ela mais parecia uma advogada famosa, de alguma série televisiva norte-americana, com o seu vestido vermelho elegante, simples mas indubitavelmente caro, e o cabelo escuro que lhe dava pelos ombros, com um penteado descontraído, mas que Klara desconfiava não o ser de facto.

— Roupa preta, capuz na cabeça e algo que lhe cobria a cara. Recorda-se de mais alguma coisa em relação a ele?

Klara encarou o olhar compassivo de Anne-Lie e abanou a cabeça.

— Tem alguma ideia da altura dele?

Klara reflectiu alguns segundos. Ao mesmo tempo que estava segura de que nunca conseguiria esquecer o que acontecera, pois os acontecimentos daquela noite ficariam registados para sempre na sua mente, as memórias pareciam-lhe estranhamente imprecisas e incoerentes. Como se o seu cérebro estivesse a tentar protegê-la, não permitindo que se lembrasse de muitos detalhes.

— Não sei. Mais alto do que eu.

— E que altura tem?

— Um metro e sessenta e nove.

Anne-Lie tomou nota da última informação no curto relato de Klara sobre o desenrolar dos acontecimentos no pátio interior. Assim que Vanja chegasse, iria para o local do crime. Carlos já lá estava e era um bom agente, mas não podiam dar-se ao luxo de cometer o mais pequeno erro. Três ataques no espaço de um mês. Havia um homem muito perigoso à solta pelas ruas.

— Ele acordou quando eu cheguei a casa — disse Klara, em voz baixa. Anne-Lie levantou os olhos das suas notas e seguiu o olhar de Klara até à cozinha, onde um homem estava sentado à mesa com um rapaz, que vestia um pijama do Homem Aranha, ao colo. — Tinha adormecido, mas deve ter-nos ouvido, percebeu que se passava alguma coisa...

— Quer que fale com ele?

Klara desviou os olhos do marido e do filho e, com ar inquisitivo, virou-se para Anne-Lie.

— Para lhe dizer o quê?

— Que idade tem?

— Oito.

— Posso dizer que estamos a falar consigo, porque viu uma coisa, não porque lhe aconteceu alguma coisa. Desdramatizar um pouco a nossa presença.

— O Zach já o fez. Disse-lhe que uns adultos maus estavam a lutar à porta da escola e eu fiquei um pouco assustada...

Klara parou de falar quando ouviu a porta da rua abrir-se e sentiu todo o corpo ficar tenso. Anne-Lie reparou na sua reacção e pôs-lhe uma mão no braço para a tranquilizar.

— É a minha colega — explicou-lhe. Klara virou-se para a porta da sala de estar e, com o olhar, seguiu a mulher mais nova que entrou na sala e se apresentou como Vanja Lithner.

— Klara Wahlgren — respondeu com a voz rouca. Doía-lhe a garganta cada vez mais. Algo devia estar magoado. Talvez devesse ir ao hospital. Embora não o tivesse feito na altura, logo de seguida. Como, na verdade, não lhe acontecera nada.

Pelo menos, não aquilo que poderia ter acontecido.

Voltou a sentir um calafrio e bebeu mais um gole de chá. A bebida quente não conseguiu mitigar as dores na garganta nem aquecê-la, mas Klara continuou a beber. Chá de camomila, da sua chávena «Melhor mãe do mundo», sentada no sofá depois de chegar a casa do curso.

Era o normal.

Estava segura.

A nova agente da Polícia despiu o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que lhe perguntava como estava. Klara limitou-se a encolher os ombros. Como estava? Não sabia. Os pensamentos atropelavam-se. Sentia-se completamente esgotada, agora que a adrenalina já não lhe inundava o sangue, mas, mesmo assim, parecia que o corpo continuava em estado de alerta extremo.

Anne-Lie levantou-se do sofá e entregou o seu bloco de notas a Vanja.

— Tenho de ir ao local do crime, mas a minha colega Vanja substitui-me. — Pegou num cartão-de-visita e colocou-o em cima da mesa de centro. — Se precisarem de ajuda, alguma pergunta que queiram fazer, entrar em contacto com o hospital, seja o que for, é só ligar.

— Obrigada.

Por um instante, Anne-Lie colocou a mão no ombro de Klara, antes de dirigir a Vanja um «Falamos mais logo» e deixar a sala e o apartamento. Klara viu-a sair. Na parede ao lado da porta que dava para o corredor, estava pendurada uma fotografia. Ela, Zach e Victor. No ano anterior, em Creta. Tinham encontrado uma pequena aldeia, chamada Loutro, no lado sul da ilha. Não havia caminhos para lá, era preciso ir de barco. Cerca de cinquenta casas espalhadas em semicírculo em volta da baía de águas transparentes. Alguns pequenos restaurantes e hotéis. Havia muito pouco para fazer, além dos banhos de mar e de sol e de se relaxar.

As férias perfeitas.

A vida perfeita.

Será que alguma vez conseguiria sentir isso novamente?

Por baixo da moldura, estava uma poltrona que ela própria estofara. Deixou o olhar repousar no padrão florido, quando se lembrou de algo. Já pensara naquilo na altura, quando estivera sentada no chão, mas depois esquecera-se.

— Foi o mesmo que atacou a Ida?

Vanja olhou-a, surpreendida, levantando os olhos do bloco de notas.

— A Ida Riitala?

Klara assentiu.

— Foi o mesmo atacante?

— Conhece-a? — perguntou Vanja, imediatamente interessada, em vez de lhe responder. Na melhor das hipóteses, o facto de duas das vítimas se conhecerem poderia ajudar a limitar a busca do agressor. Ainda que também pudesse não ter qualquer significado. Poderia ser uma mera coincidência. Mas... e se tivesse partido as luzes da fachada e esperado por ela? Porém, não sabiam ao certo se tinha sido o agressor a parti-las. Talvez tivesse simplesmente visto Klara sair da associação educativa, tivesse decidido segui-la, a tivesse visto entrar no pátio interior vazio e escuro e aproveitado a oportunidade.

Contudo, ela conhecia Ida Riitala.

— Como é que a conhece?

— Costumávamos cantar no mesmo coro. Somos amigas. — Calou-se, mas parecia que tinha algo mais para dizer. Vanja esperou. — Pelo menos, no Facebook — continuou Klara depois de parecer ponderar no tipo de relação que tinham realmente. — Não nos encontramos com muita frequência...

— E uma Therese Andersson, também conhece? — quis saber Vanja.

— Não, quem é?

— É mais ou menos da sua idade, trabalha como consultora de medicina preventiva, mora na rua Almqvistgatan com o seu companheiro Milo Pavic.

Klara abanou a cabeça.

— Tenho aqui uma fotografia.

Vanja costumava ter no telemóvel fotografias dos que faziam parte das suas investigações. Não estava certa de isso ser inteiramente compatível com as leis e regras relativas à protecção de dados pessoais, mas era prático e ajudava-a no seu trabalho, por isso, nem se preocupara em inteirar-se da legislação.

Percorreu a galeria até encontrar uma fotografia de Therese e mostrou-a a Klara, que, depois de lançar um olhar rápido para o visor, voltou a abanar a cabeça.

— É por isso que vieram as duas aqui? — Fez um gesto com a cabeça para o lugar no sofá onde Anne-Lie estivera sentada. — Pensei que talvez viesse algum... sabe o que quero dizer, um polícia normal, pelo menos. Estamos sempre a ouvir que vocês não têm tempo nem recursos para todas as investigações.

Vanja reprimiu um suspiro audível. Estava cansada de ver que a confiança na Polícia era cada vez menor e que, de ano para ano, a imagem de uma instituição ineficaz, com poucos recursos e, nalguns casos, incompetente, se cimentava cada vez mais junto do público. Mesmo que, em certos casos, infelizmente, isso fosse verdade.

— Os crimes violentos têm prioridade, mas, sim, estamos aqui porque pensamos que a pessoa que a atacou pode já ter atacado outras mulheres aqui em Uppsala.

— Como no caso do Homem de Haga.

Desta vez, Vanja não conseguiu reprimir o suspiro. Ela própria pensara o mesmo quando recebera a chamada de Anne-Lie.

O chamado Homem de Haga, condenado por duas tentativas de homicídio, quatro violações, duas das quais com extrema violência, e dois casos de tentativa de violação, mas suspeito de mais uns quantos ataques na cidade de Umeå, entre 1998 e 2005. Sete anos. Sete anos até conseguirem apanhá-lo.

Demasiadas vítimas.

Demasiado sofrimento.

Demasiado medo.

— Vamos apanhá-lo muito antes de se assemelhar ao caso do Homem de Haga. — Não havia dúvida nenhuma de que Vanja estava a ser sincera ao proferir aquelas palavras. Klara pareceu não reagir, deixou apenas o olhar vaguear de novo para a cozinha. Até à família.

— Já estamos a terminar? — perguntou a Vanja. — Já começa a ficar tarde...

— Claro, se não se lembra de mais nada...

— Não.

— Se se lembrar, é só ligar — respondeu Vanja, levantando-se e vestindo o casaco.

Klara também se levantou, mas não fez nenhum gesto que mostrasse que acompanharia Vanja à porta. Em vez disso, foi para a cozinha e, sem proferir uma única palavra, pegou no filho, que estava meio a dormir. Ele envolveu-a com os braços e afundou o nariz no seu pescoço. Zach levantou-se e, com uma mão suave nas suas costas, dirigiram-se os três para o quarto.

A pequena família.

Klara perguntou-se se alguma vez voltaria a sentir sono.

Se alguma vez teria coragem de fechar os olhos. Se ousaria descontrair-se.

Naquele momento, parecia-lhe impossível.


Carlos Rojas tiritava de frio e, sem parar de bater com os pés no chão fora do perímetro vedado, observou os elementos da Polícia Científica a movimentarem-se cuidadosamente em volta do único carro estacionado no pequeno pátio interior. Vestira-se com bastante roupa quando recebera a chamada. Gorro, luvas, cachecol, várias camadas de roupa por baixo do casaco, até tinha ido buscar sapatos mais quentes ao sótão.

Mesmo assim, estava com frio.

As pessoas que ouviam o seu nome e viam o seu cabelo e tez escura pensavam que era por ser espanhol, que não estava habituado ao clima nórdico. O que não era verdade. Vivera na Suécia toda a sua vida. A mãe conhecera o pai numa viagem de férias a Málaga, trinta e oito anos antes, e mudara-se com ela para a Suécia, onde tinham tido Carlos e as suas duas irmãs. Por isso, não era por ter passado a infância na Espanha soalheira que fazia que não estivesse bem preparado para o frio. Era simplesmente assim.

E não era apenas no Inverno.

Sentia sempre frio.

Bateu palmas com as mãos cobertas pelas luvas e deu alguns saltos rápidos. Não surtiu efeito nenhum.

Carlos soube que Anne-Lie estava a chegar, ainda antes de a ver. Nos seis anos em que trabalhara com ela, como sua chefe, aprendera a reconhecer o som dos seus passos. Sempre de sapatos ou botas de salto alto.

Sempre bem vestida.

Estilo simples, clássico, caro.

As suas roupas transmitiam uma autoridade evidente.

Aquela noite não era excepção. As botas pretas pelo joelho, o vestido vermelho visível por baixo do sobretudo preto de botões duplos, da marca Hope, e o colorido cachecol de pura lã à volta do pescoço. A moda era um interesse que partilhavam. Carlos não conseguia compreender as pessoas que não se interessavam por ela. O que alguém vestia dizia mais sobre essa pessoa do que a maioria pensava ou talvez quisesse admitir. Não tinha nada que ver com dinheiro. O estilo não precisava de ser caro. Ou se tinha ou não se tinha. Como, por exemplo, a sua nova colega, Vanja Lithner: boa polícia, uma pessoa muito correcta, mesmo que não tivesse grandes dotes sociais, mas era evidente que não dedicava nem três minutos por semana a pensar na roupa que deveria vestir ou comprar.

— Estás com frio? — perguntou-lhe Anne-Lie quando se aproximou dele e viu os seus ombros encolhidos.

— O que é que achas?

— Acho que vais ter um Inverno difícil, ainda só estamos em Outubro — respondeu-lhe com um sorriso antes de se virar para o cenário do pátio interior. — O que temos até agora?

— Pegadas. Parecem ser da mesma marca e tamanho que nos outros sítios, mas, desta vez, ele deixou cair a seringa.

— Conseguiremos localizá-lo através dela?

— Temos de esperar para ver.

— Encontraram algum saco de juta?

Carlos abanou a cabeça. Anne-Lie virou-se e olhou para os dois lados da rua.

— Não há câmaras de vigilância?

— Nenhuma aqui nesta rua, mas há uma na rua Östra Ågatan. Já requisitei todas as as gravações a partir das 20h30.

— Óptimo.

— E mais uma coisa...

— O quê?

— Os candeeiros na fachada. Telefonei às pessoas que têm os lugares reservados ali. — Carlos apontou novamente para o pátio iluminado pelos técnicos. — Um tal Frederik Filipsson veio buscar o carro e saiu pouco depois das oito, dizendo que estavam os dois a funcionar.

— Então, ele esperou por ela.

— Parece que sim.

— Porque a conhecia.

— Pode tê-la seguido durante algum tempo. Ela estaciona aqui todas as quintas-feiras e volta sempre mais ou menos à mesma hora. Exactamente como Ida Riitala, que fazia sempre o mesmo desvio pelo cemitério depois dos treinos.

Anne-Lie suspirou de novo. Virou as costas a Carlos e olhou na direcção do canal do rio Fyrisån e do campo de futebol universitário, para lá das águas escuras e geladas. Adorava o seu trabalho. Em todos os aspectos, mas não queria dedicar-se a isso. Tinham de resolver o caso, e depressa. O ideal era que Anne-Lie pedisse amostras de ADN a todos os homens de Uppsala com mais de quinze anos.

— Três casos em menos de um mês.

Era uma constatação. Ainda assim, Carlos respondeu.

— Exacto.

— Ele não vai parar.

— Pois não.

— As mulheres vão ficar com medo de andar na rua.

— Com mais medo.

Anne-Lie assentiu. Era a realidade e um problema social. As mulheres tinham medo de andar sozinhas na rua. Em todas as cidades, em todo o lado. De acordo com um estudo do Instituto de Prevenção Criminal, mais de um quinto das mulheres já alguma vez na vida evitara sair de casa por medo. A liberdade de movimentos das mulheres ficava condicionada e as suas possibilidades limitadas. Isso quando a situação era «normal».

Sem haver um violador em série à solta.

— Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance — disse Anne-Lie, e virou-se novamente para Carlos.

— Queres mais pessoal?

— Quero outro pessoal.

E, com este comentário, foi-se embora. Carlos continuou a ouvir os seus saltos altos, mesmo depois de a ter perdido de vista. Não sabia ao certo o que ela quisera dizer com «outro pessoal», mas tinha a certeza de que o descobriria em breve.

Quando Anne-Lie decidia uma coisa, era isso que se fazia.


— Já estás despachado?

Billy ouviu a pergunta vinda do outro lado da porta da casa de banho, mas não fez caso. Limpou a condensação do espelho, inclinou-se para a frente por cima do lavatório e observou o seu próprio reflexo.

Como fizera naquele dia.

Naquela manhã de Junho. Quando acordara no sofá com uma ressaca monumental. Parecia-lhe que fora há uma eternidade. A mesma cara, um espelho diferente.

Em casa dela. Em casa de Jennifer.

Antes de se lembrar...

A água escorria-lhe do cabelo molhado, ficava um instante nas sobrancelhas e gotejava pelas faces. Encarou o seu próprio olhar. Olhou no mais fundo dos seus olhos. O espelho da alma, como diziam os poetas. Mas, se assim fosse, os seus revelariam a verdade e, por enquanto, isso não acontecia. Os seus olhos eram bondosos, diziam-lhe. My costumava dizê-lo. «Tens uns olhos bondosos.» Não lhe diziam nada sobre a necessidade obscura que se escondia no seu âmago, como uma serpente faminta. Nada sobre os pensamentos de domínio e controlo que trazia dentro de si há algum tempo, mas que ultimamente conseguia reprimir. Depois do que acontecera com Jennifer. Billy não costumava entregar-se a pensamentos filosóficos profundos, todavia, nos últimos tempos, não conseguia deixar de se perguntar: quem era ele, na verdade?

Em quem se tornara? No que se tornara?

O jogo de squash da tarde, do qual normalmente saía esgotado, deixara-o transtornado. Não o jogo em si, mas o que acontecera a seguir no balneário. O colega que acabara de lhe vencer três sets consecutivos (11-8, 11-8, 12-10) saíra do duche e sentara-se ao seu lado no banco, com a toalha ainda enrolada à volta da cintura e o cabelo molhado. Billy decidira tomar duche em casa. Estava mais aborrecido com a derrota do que queria admitir. Três sets consecutivos, essa merda não lhe acontecia há anos. Talvez estivesse a ficar doente ou algo do género.

— Conheces a Jennifer, não conheces? A Jennifer Holmgren? — perguntara-lhe o colega enquanto procurava o desodorizante no saco de ginástica. Billy ficara petrificado, todos os pensamentos sobre o jogo evaporaram-se imediatamente do seu cérebro. Aquele era terreno minado. O que se passara?

— Sim, trabalhámos juntos algumas vezes. Porque perguntas?

Aquilo era verdade, mas não era a verdade toda. Longe disso. Também tinham ido para a cama algumas vezes. Mais vezes do que as que tinham trabalhado juntos. E, a última vez, tinha acabado em desgraça.

— Ouviste o que aconteceu?

— Não, o quê?

Bateram à porta da casa de banho ao mesmo tempo que a abriram. Nunca trancavam as portas. My achava desnecessário; uma vez que só viviam os dois ali, sabiam automaticamente se a casa de banho estava ocupada ou não. Billy sobressaltou-se em frente ao espelho, como se tivesse sido apanhado a fazer algo que não devia. O que não estava muito longe da verdade.

— O que estás a fazer fechado aqui dentro?

— Nada.

— Preciso de lavar os dentes, vou deitar-me daqui a bocado.

My entrou na casa de banho, pegou na sua escova de dentes eléctrica e colocou uma bola de pasta na cabeça redonda.

— Viste o link que te mandei?

My enfiou-se entre ele e o lavatório, abriu a torneira e colocou a escova dos dentes por baixo. Billy forçava-se para se focar no aqui e agora. Obrigava-se a parecer implicado e interessado na conversa.

— Sim, acho que sim. Qual deles?

— Hoje só te enviei um. De Töreboda. — Soava como se estivesse deitada numa cadeira de dentista, tentando manter a espuma de pasta dos dentes dentro da boca enquanto falava. — A casa de madeira branca com praia privada.

Billy assentiu como se se tivesse lembrado, agora que ela falava disso. Até podia ser que, naquele dia, My só lhe tivesse enviado um link, mas a verdade era que Billy já não abria todos os mails que ela lhe enviava. De qualquer maneira, ela acabaria por fazer um determinado roteiro para um fim-de-semana próximo para irem ver algumas casas e acabariam por comprar a que ela escolhesse. Billy apenas teria de parecer interessado.

Falaria sobre remodelações e sobre aquilo que poderiam fazer no terreno.

Acompanhá-la-ia ao Banco e certificar-se-ia de que conseguiam um empréstimo.

Havia de assentir, sempre com um sorriso, quando My dissesse como os seus futuros filhos iam gostar de ali passar os Verões.

Iria realmente desejar que assim fosse.

Que tivessem um futuro juntos. Billy amava My. E tinha realmente feito um esforço ao longo dos últimos meses. Para pôr tudo atrás das costas. Para se tornar naquele que fora. Naquele por quem My se apaixonara. O rapaz simples, simpático e descomplicado.

Não era tarde demais, tentou convencer-se a si próprio.

My queria uma casa de Verão e costumava conseguir o que queria. Tinham-se conhecido numa festa do solstício de Verão, há pouco mais de um ano. Em Outubro, My sugerira que fossem viver juntos e, em Maio desse ano, onze meses depois de se terem visto pela primeira vez, tinham casado.

Em Junho, Billy fora-lhe infiel.

Com Jennifer.

Jennifer, que sabia.

Que algo acontecera no seu interior quando fora obrigado a disparar mortalmente sobre Edward Hinde, para salvar Vanja, e Charles Cederkvist, para se salvar a si próprio. Como retirara prazer daquela sensação intoxicante. O poder de decidir sobre a vida e a morte.

Jennifer, que o compreendia.

Que o ajudara a viver as suas fantasias de controlo, superioridade física e domínio associados ao sexo e ao prazer físico. Que mantivera a serpente satisfeita e a ele equilibrado.

Até se embebedar.

Até acabar tudo em desgraça.

Apercebeu-se de que não dissera nada em relação à casa de madeira branca em Töreboda. My cuspiu para o lavatório e olhou-o com uma expressão muito séria.

— O que é que se passa?

— Nada.

— De certeza? Estás um bocado estranho desde que chegaste do treino.

Claro que ela tinha reparado. Era esse o seu trabalho. Analisar as pessoas, interpretá-las e levá-las a alcançar o seu potencial máximo. E era boa no que fazia.

Era boa para ele. Billy não queria mentir-lhe. Não obstante, My não precisava de saber tudo. Uma meia verdade não era uma mentira.

— Lembras-te da Jennifer? Aquela com quem trabalhei algumas vezes...?

Claro que My se lembrava. Billy falara dela algumas vezes e My sabia que também se encontravam fora do trabalho.

— Sim, o que é que ela tem? — respondeu.

— Acham que pode ter-se afogado.

— O quê?

— Em França. Num acidente de mergulho, lembras-te?, ela fazia desportos radicais.

— Meu Deus, que horror! — exclamou My, envolvendo-o num abraço. — Tenho tanta pena, sei que eras amigo dela.

— Sim, pois era...

Ficaram alguns segundos de pé, abraçados em silêncio, antes de My se soltar um pouco para o olhar nos olhos.

— Mas só acham que ela se afogou? Não encontraram o corpo?

— Não, mas encontraram a roupa dela à entrada de umas grutas. Acho que deve depender do que se passou, mas se houver muitas correntes e assim...

My exalou um suspiro profundo, esticou-se e deu-lhe um beijo leve nos lábios.

— Fico tão triste...

Billy não percebeu se My se referia a ele ou a Jennifer quando o abraçou novamente, à laia de consolo. Ela nunca saberia toda a verdade e, por mais horrível que aquilo parecesse, com Jennifer morta em França, Billy podia pôr toda a história para trás das costas. Começar a convencer-se de que aquilo nunca acontecera. Recomeçar do zero.

Não era tarde demais.


Sala.

Havia, ou pelo menos tinha havido, ali uma mina de prata.

Isso era tudo o que Sebastian sabia sobre a cidade onde, de momento, se encontrava. Isso e que havia um hotel de duas estrelas a cinco quilómetros da cidade, num grande edifício acinzentado de quatro pisos que nem sequer pretendia parecer atractivo, nem por dentro nem por fora. O quarto tinha provavelmente alguns metros quadrados a mais para ser considerado um roupeiro. Quatro paredes pintadas num tom amarelo-nicotina, que só fazia que parecessem sujas, e cujo único elemento decorativo era uma reprodução barata de um quadro de Carl Larsson, numa moldura ordinária. Um banco servia de mesa-de-cabeceira num dos lados da cama estreita. Uma pequena televisão antiga, numa prateleira de canto, aos pés da cama. Nem se tinham dado ao incómodo de esconder os cabos eléctricos, nem da televisão nem dos dois candeeiros. E uma casa de banho onde Sebastian, com alguma dificuldade, conseguia virar-se sem bater em nenhuma das paredes. Claro que, nos tempos que corriam, era difícil gerir uma livraria, mas que corresse assim tão mal... Agora era só aceitar sem reclamar, como o responsável da livraria lhe dissera, quando as dificuldades do livro em formato físico tinham surgido em conversa, no dia em que Sebastian lá fora falar com ele.

Lutar e aceitar sem reclamar.

Sebastian tinha, sem dúvida, aceitado a situação.

Talvez estivesse até resignado, mas ninguém o podia impedir de reclamar.

Já não fazia parte da equipa da Brigada de Homicídios. Torkel acabara por se cansar. Ou, melhor dizendo, Vanja acabara por se cansar dele, pelo que Torkel fora obrigado a escolher. E acabara por escolher Vanja. O que não era de estranhar. Sebastian teria feito o mesmo, naquela situação. O que era realmente estranho era terem deixado Sebastian lá ficar um ano e meio. Ele não tinha propriamente feito um esforço para ser nomeado funcionário do mês, se se quisesse pôr as coisas nesses termos.

Vanja. A sua filha.

Não a via desde Junho.

Recordava-se da sensação que tivera quando a deixara na garagem subterrânea do edifício da Waterfront e saíra dali com uma bomba no carro: julgou que era a última vez que a veria.

Que ela desapareceria da sua vida.

Para sempre.

E, agora, parecia ser esse o caso. Durante muito tempo, tivera esperança de que ela o fosse visitar para saber como estava, mas nunca aparecera. Era evidente que não queria ter nenhum contacto com ele.

Por culpa dele. Obviamente.

Como de costume.

Tinha tido tantas oportunidades com ela e nunca aproveitara nenhuma.

Estava perfeitamente consciente de que fazia sempre as escolhas erradas, de que tornava as coisas piores para si próprio. Porém, cada vez que sentia algo parecido com felicidade ou, pelo menos, quando se sentia em paz, era consumido pelos sentimentos de culpa.

Acabara por largá-la.

A sua outra filha.

Agarrara a pequena mão, mas acabara por deixá-la ser levada pela água.

Sebastian não merecia.

Era errado, não tinha dúvida, mas saber que algo era errado e fazer qualquer coisa em relação a isso eram duas coisas diferentes. Portanto, continuou.

Nem sequer participara no trabalho posterior à investigação do último caso da equipa. O assassino dos reality shows, David Lagergren, o homem que matara para acicatar a opinião pública contra a estupidificação e infantilização da sociedade actual, mas que acabara como terrorista. O julgamento tivera lugar em Setembro e, sem surpresas, David Lagergren fora condenado a prisão perpétua. Sebastian suspeitou de que demoraria algum tempo a definirem um prazo específico para a pena.

O único aspecto positivo do caso Lagergren fora o facto de, durante as diligências, Sebastian ter colaborado numa parte importante da investigação e ter desempenhado um papel central na busca e detenção do assassino. O trajecto de carro completamente louco, que acabara com uma explosão na baía de Riddarfjärden, também não o prejudicara, traduzira-se até em algumas participações em programas de televisão e noticiários durante um Verão muito parco em notícias. A sua antiga editora voltara a contactá-lo em Agosto. Tinha surgido um certo interesse pelos livros de Sebastian sobre Edward Hinde e agora queriam saber se ele poderia considerar escrever um novo? Talvez sobre David Lagergren? Sebastian recusara-o de forma decidida mas educada. Não queria contribuir para que aquele homem conseguisse mais atenção mediática, uma vez que havia outras pessoas que o interessavam mais.

Como Ralph Svensson, por exemplo.

O homem que assassinara quatro mulheres, por ordem de Hinde.

Mulheres com quem Sebastian tivera uma curta relação, basicamente sexual.

O homem que também assassinara o velho amigo e colega de Sebastian, Trolle Hermansson.

A editora adorara a ideia. Uma continuação natural dos primeiros livros e, além disso, relacionada com o próprio autor, o que poderia tornar a obra mais pessoal e intimista. Sebastian não tinha qualquer intenção de a tornar nem pessoal nem intimista, mas aceitara de bom grado um pagamento antecipado e começara a trabalhar. Passara dias em casa, no escritório que, durante muitos anos, estivera inutilizado. Passara muito tempo a fazer uso apenas do quarto de hóspedes, da cozinha e da casa de banho, porque o resto da casa lhe trazia demasiadas lembranças de outros tempos.

De tempos mais felizes.

Da época feliz.

A única de que conseguia lembrar-se.

Da que passara com Lily e a sua filha. Não tinham vivido ali durante muito tempo, porque depois de se casarem tinham ido viver para Colónia, na Alemanha, mas sempre tinham estado ali juntos. Sabine tivera um quarto para si. Vanja também lá dormira algumas vezes.

Então, ainda não o odiava.

Antes de ele estragar tudo.

O Aprendiz seria o título do novo livro, com o subtítulo O legado de Edward Hinde. Até agora, Sebastian dedicara-se apenas à fase de pesquisa e à preparação para a primeira entrevista com Ralph, marcada para a semana seguinte.

Tinha muito que fazer.

Lançou um olhar ao portátil que estava em cima da cama, mas rejeitou a ideia. Tal como deveria ter feito quando a editora o contactara para propor uma pequena tournée literária, com sessões de autógrafos. Seis locais espalhados pelo país, em duas semanas. Coincidiria com uma edição limitada das primeiras obras em formato de bolso.

Sebastian concordara com a ideia.

E era por isso que se encontrava agora naquele deprimente quarto de hotel, em Sala.

A única livraria da cidade era também a anfitriã da sessão de leitura e autógrafos. Uma loja grande e bem abastecida, a poucos passos da praça central. Com pessoas que pareciam genuinamente contentes por Sebastian ter vindo. Quarenta pessoas no público, talvez quarenta e cinco. A maior parte eram mulheres, claro, como na maioria dos eventos culturais, independentemente da região do país onde decorressem.

Não que Sebastian tivesse algo a reclamar em relação a esse aspecto.

Quando queria, era bem-sucedido junto das mulheres. E, grande parte das vezes, era isso que queria. Quase sempre, até.

A corte, a sedução e o sexo posterior eram das poucas coisas que ainda conseguiam entusiasmá-lo.

Preencher o vazio temporariamente. Mitigar a dor.

Como sempre, o público da livraria tinha-se mostrado atento e interessado. Principalmente uma mulher, de uns cinquenta anos, que se sentara à direita do palco provisório. Fora a primeira a colocar questões quando o público fora convidado a participar e, a seguir, colocara-se na fila para conseguir os dois livros autografados. Eram da edição mais antiga, reparara Sebastian, comprados antes de o seu envolvimento no caso do assassino dos reality shows o lançar temporariamente para a ribalta.

— Pode dedicar à Magda — dissera-lhe com um sorriso que, pelo menos para Sebastian, podia ser interpretado como de admiração. Uma fã, o que tornava tudo mais fácil.

— «Magda» é a senhora? — perguntara-lhe Sebastian, retribuindo-lhe o sorriso.

— Sim, sou eu. Também pode escrever uma dedicatória mais pessoal, se não se importar — continuara a mulher, com o olhar fixo no dele.

Sebastian escrevera praticamente um pequeno conto na página da dedicatória e continuara a conversar com ela enquanto assinava as cópias das outras pessoas que aguardavam na pequena fila. No final, saíram juntos da livraria e ela perguntara-lhe onde estava hospedado. Sebastian contara-lhe e Magda lamentara. Havia melhores hotéis em Sala.

Era bom que assim fosse, respondera Sebastian.

Pelo bem da cidade.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som vindo do computador. Uma chamada Skype. Não precisou de olhar para o monitor para saber quem era. Ponderou, por alguns instantes, se estaria com vontade de falar com ela; concluiu que sim e atendeu a chamada. Ursula apareceu no ecrã.

— Olá, não te acordei, pois não?

— Não, não estava a dormir — respondeu Sebastian, e sentiu que fizera bem em atender a chamada. Ficou contente por ver Ursula.

— Onde é que estás? — perguntou ela depois de estudar o ecrã à sua frente e não reconhecer o que via por detrás dele.

— Num hotel de merda em Sala.

— O que é que estás aí a fazer?

— Uma parte do livro. E tu, o que é que estás a fazer?

— Ainda estou no escritório.

— Pois, estou a ver.

Sebastian reconheceu a parede atrás de Ursula. Estava sentada na sala de reuniões no terceiro piso, aquela a que chamavam sempre «a Sala». O lugar fixo no edifício da Brigada de Homicídios onde costumavam compilar toda a informação relativa aos casos em que estavam a trabalhar. Sebastian deu por si a sentir falta daquilo. Falta de tudo. Do trabalho e dos colegas. Uma sensação inútil, na verdade, pois estava bastante seguro de que nunca mais voltaria àquele sítio.

— Continuas sem muito que fazer?

— Estou a ajudar o grupo dos casos não resolvidos com uma coisa.

O que significava que a equipa da Brigada de Homicídios não tinha nenhum novo caso e que, portanto, ela continuava sem ter vida pessoal. Sebastian percebeu que não devia continuar a insistir naquele assunto. Ursula telefonara-lhe tão tarde para conversar. Pensava nele. Devia estar agradecido por alguém o fazer. Ainda que a gratidão e o abandono de certos assuntos não fossem o seu forte.

— Então, o Torkel não está aí?

Ursula sorriu, inclinou-se para diante e baixou ligeiramente a voz, o que pareceu completamente desnecessário a Sebastian, pois tinha dificuldade em acreditar que ela não estivesse sozinha no escritório àquela hora. Sozinha na Sala estava de certeza.

— Ele sai do trabalho às cinco em ponto, todos os dias, desde que foi morar com a Lise-Lotte.

Sebastian reparou que, pelo menos, Ursula não dissera «aquela Lise-Lotte», o que era um progresso, mas pareceu-lhe continuar a perceber uma ponta de ciúme na sua voz sempre que o novo amor de Torkel vinha à conversa. Talvez estivesse só a imaginar. Fora Ursula quem terminara a relação de ambos. Porém, isso não queria necessariamente dizer que ela desejasse que ele fosse mais feliz com outra pessoa. Mesquinho talvez, e parvo, mas Ursula era apenas uma pessoa e as pessoas podiam ser tanto mesquinhas como parvas.

— Quando é que voltas para casa?

— Amanhã.

— Queres combinar alguma coisa? Ir jantar fora?

— Sim, porque não?

Ursula soltou uma gargalhada breve.

— Vê lá se controlas esse entusiasmo!

Antes de Sebastian ter tempo de responder, alguém bateu à porta do quarto.

— Quem é?

— É o serviço de quartos.

— Num hotel de merda a esta hora da noite?

Por vezes, Sebastian esquecia-se de que Ursula era uma excelente polícia.

— Tenho de desligar. Falamos amanhã.

Antes de Ursula ter tempo de perguntar ou protestar, Sebastian desligou. Sorriu um pouco para consigo. Apesar das inúmeras más decisões, não conseguira desprender-se totalmente de tudo e de todos. Gostava de Ursula. Tinham tido uma relação turbulenta ao longo dos anos, mas agora estabilizara em qualquer coisa que Sebastian não podia descrever de outra maneira senão uma relação de amizade. Mesmo que o seu objectivo fosse levá-la para a cama outra vez. Não que sentisse uma particular falta dela ou que achasse que o sexo os aproximaria mais. Apenas porque era muito claro que teria de se esforçar para o conseguir. Quem sabe jogar as cartas de que dispunha muito melhor do que alguma vez fizera, apenas para vencer. Ursula era um verdadeiro desafio.

Ao contrário da noite que tinha pela frente, quis imaginar.

Abriu a porta que dava para o corredor.

E ali estava Magda. Da livraria.

Sebastian nem sabia o seu apelido. E também não tencionava descobri-lo. Pegou no casaco que estava pendurado num gancho atrás da porta e vestiu-o.

— Vamos beber alguma coisa a qualquer lado ou queres ir comer? — perguntou-lhe ao mesmo tempo que saía para o corredor. Não tencionava dar-lhe sequer uma oportunidade para ela sugerir que ficassem ali.

Aquele quarto nem para foder servia.


Billy estava totalmente desperto. Olhava para o tecto e tentava controlar a respiração. Lançou um olhar rápido para o lado, para My. Dormia sossegada, deitada sobre o lado esquerdo, como de costume. Isso significava, então, que o mais provável era não ter feito barulho nenhum.

Não gritara.

Como fizera no sonho.

Estivera algum tempo sem ter aquele sonho, mas agora ele voltara. Billy presumiu tratar-se de uma reacção natural à conversa no balneário e a tudo o que se seguira. My perguntara-lhe se ele queria falar do assunto, mas tivera a inteligência e empatia suficientes para não o tentar obrigar, quando ele dissera que não queria. Ainda assim, mantivera-se perto dele o resto da noite, compreensiva e presente. Habitualmente, My adormecia assim que a sua cabeça tocava na almofada, mas daquela vez tinha ficado acordada a abraçá-lo e a acariciar-lhe o cabelo. Próxima. Pele com pele. Ali para ele, se ele precisasse dela.

My era boa para Billy. Muito melhor do que ele merecia. Mas ia fazer-se merecedor dela. O tempo muda o que acontece até transformar tudo numa memória distante. Desapareceria como uma música de fundo. Transformar-se-ia num sussurro baixinho que ele aprenderia a não escutar.

Depois, o sonho voltou.

Não há nada de onírico nele. Nada de abstracto ou irrealista. Sem contornos suaves, nada que amorteça ou embeleze. Pelo contrário. Tudo é inexplicavelmente claro e pormenorizado.

Levara-o de volta.

Ele corre da casa de banho, atravessa o apartamento até ao quarto de Jennifer, onde ela está nua, deitada em cima da cama. As mãos por cima da cabeça, presas à cabeceira com algemas. As pernas afastadas, amarradas com finas correias de couro. Billy tem a respiração tão pesada que até treme quando estende uma mão para o ombro dela, mas detém-se.

Àquele momento e àquele lugar.

Marcas roxo-escuras em volta do pescoço dela. Marcas dos dedos dele. Na parte da frente, os dois polegares bem definidos com que ele lhe apertara a garganta durante o estrangulamento. A cara de Jennifer. A ponta da língua que assoma entre os lábios secos. Vasos sanguíneos rebentados sob a pele do rosto e nos olhos que o fitavam, um olhar a que é impossível escapar...

Billy atirou o edredão para o lado e sentou-se na cama. Seria impossível voltar a adormecer naquela noite. A ansiedade dominava-o de novo. Quase tão forte e paralisante como dantes.

Quando tudo aquilo acontecera.

Não se recordava de todos os pormenores do preciso momento em que a encontrara nem quanto tempo passara até recuperar a consciência. Lembrava-se de como pensamentos absurdos que resultavam de outros triviais, como o facto de não dever perder o comboio para a costa oeste, ou My ficar aborrecida com ele. Misturaram-se com o que acontecera. Com o que ele fizera.

Jennifer estava morta.

E fora ele quem a matara.

A combinação do pânico com a ressaca fê-lo vomitar. Quando se levantara, após ter abraçado a sanita, e lavara o sabor dos restos de álcool misturado com bílis, pensara que estava na hora de o denunciar. Telefonar à Polícia, aos colegas. Explicar tudo. Levá-los a compreender que fora um acidente. Porém, detivera-se. Não faria grande diferença. O facto de não ter sido intencional.

Jennifer estava morta e fora ele quem a matara.

Ia perder tudo. O seu trabalho, My, os amigos, tudo.

Lembrou-se de como voltara para a sala de estar, quanto gritara e chorara e como batera com as mãos na cabeça numa tentativa de pensar com clareza.

Fazer o correcto ou salvar-se.

A luta interior.

Por fim, decidira. Lembrava-se do momento exacto. Estava sentado no sofá de Jennifer, os olhos postos na picareta de escalada e nos mosquetões pendurados na parede. Não só decidira o que fazer mas também começara logo a traçar um plano. Sabia o que ia fazer. O que tinha de fazer.

Ia salvar-se, ia salvar o que lhe restava.

Billy levantou-se da cama e saiu do quarto; fechou a porta em silêncio atrás de si e, pé ante pé, aproximou-se do portátil que estava sobre a mesa da cozinha. Agora, que Jennifer estava oficialmente desaparecida, e talvez até morta, havia o risco de alguém tentar investigar os últimos meses da sua vida. Não podia cometer nenhum erro.

Billy sentou-se, ligou o computador e digitou a palavra-passe para iniciar a sessão. Delinear o plano fora bastante simples. No entanto, a sua execução exigira não só tempo mas também que pusesse em prática os seus conhecimentos específicos.

Billy decidira manter Jennifer viva de forma digital.

Telefonara a My e dissera-lhe que teria de trabalhar mais uma semana no caso do assassino dos reality shows. O procurador não aceitaria a mais pequena falha na investigação. Ela ficara desiludida, claro, oferecera-se mesmo para regressar a Estocolmo e fazer-lhe companhia. Conseguira dissuadi-la dessa ideia, dizendo que seria melhor se ela ficasse na costa oeste a divertir-se com os amigos, como tinham planeado, que ele iria ter com eles assim que conseguisse.

E, dessa forma, ganhara uma semana.

Pegara no telefone, no computador, nos cartões de crédito, nos códigos bancários e noutras coisas de Jennifer de que pudesse precisar. Verificou a frequência com que ela costumava actualizar as suas redes sociais. Estava com sorte, o Instagram algumas vezes por semana e a mesma coisa com o Facebook. Algumas comunicações via Messenger, mas nada que ele não conseguisse controlar. A situação mais difícil seria se alguém lhe telefonasse, mas, mais uma vez, tivera a sorte do seu lado. As pessoas mais próximas dela pareciam manter o contacto com ela principalmente através de mensagens escritas e do Snapchat. Das poucas vezes que recebera uma chamada, Billy deixara o telemóvel tocar e respondera mais tarde, enviando uma mensagem, dizendo que vira que lhe ligara e perguntando se era importante. A maior parte das vezes, não era, e toda a situação ficava resolvida com mais algumas trocas de mensagens.

Dedicara a semana em Estocolmo a fazer actualizações esporádicas, nas quais Jennifer passeava sozinha pela cidade e fazia diversas coisas. Em geral, não aparecia nas fotografias que publicava, mas, algumas vezes, Billy sentira que tinha de enviar uma selfie. Não muitas, porque era um processo moroso e arriscado. Tinha de captar bem as proporções, a luz e a distância. Não obstante, as novas tecnologias facilitavam muito. Naquela época, havia a possibilidade de falsear fotografias e filmes como nunca antes e, se se fizesse tudo bem, era praticamente impossível distingui-los dos autênticas. O resto do tempo fora dedicado a passar os seus posts antigos a pente fino, de maneira a familiarizar-se com o seu estilo, a maneira como se expressava, como utilizava as abreviaturas e os emojis. Conseguira evitar, com sucesso, os poucos convites para sair à noite, ir à praia e a jantares de churrasco. Em geral, ninguém parecia questionar a existência de Jennifer.

Na semana seguinte, tivera de ir à costa oeste para se encontrar com My. Isso fora o mais difícil. Quando estivera sozinho em Estocolmo, conseguira estar tão concentrado naquela tarefa que quase se esquecera da razão pela qual fazia tudo aquilo. Porém, quando chegara ao mundo real, tudo se tornara mais complicado. As pessoas comuns, os relacionamentos, os amigos, os filhos dos amigos, o minigolfe, os passeios a pé, as noites com My. Por vezes, surpreendera-se a observar-se de fora, pensando que todos podiam ver aquilo em que se tornara. Que se esforçava tanto para agir normalmente, que provocava o efeito contrário. Fizera algumas actualizações esporádicas, sugerindo que Jennifer continuava em Estocolmo, embora planeasse viajar em breve.

Levara mais tempo do que Billy pensara até encontrarem as suas roupas e pertences. Era verdade que escolhera uma gruta identificada como sendo de imersão difícil, praticamente inexplorada e onde, por isso, não havia muita gente, mas mesmo assim...

Billy fora a França em meados de Julho.

Antes disso, certificara-se de que Jennifer «perdera» o seu telemóvel durante quase uma semana e pedira a todos os que precisassem de a contactar que o fizessem através do Messenger. Desse modo, ao menos, evitara ter de actualizar as fotografias. Depois, Jennifer regressara às redes sociais e informara os amigos de que comprara um bilhete de autocarro para França, mas nada dissera sobre a sua intenção de fazer mergulho enquanto lá estivesse.

França fora um desafio.

Por um lado, conseguir estar fora quase uma semana sem levantar as suspeitas de My. Por outro, falsear a viagem de autocarro sem nunca o mostrar, para que ninguém pudesse contactar a empresa de transporte, certificar-se de que Jennifer apenas reservava hotéis com check-in automático e sem câmaras de segurança na recepção, para poder entrar tarde e sair muito cedo, de modo a ser menor o número de hóspedes que pudesse vê-la. Ser cuidadoso com os locais onde ela usava o cartão de crédito.

Passados quatro dias, Billy deixara de fazer actualizações e Jennifer desaparecera. Ouvira rumores de que ela fora dada como desaparecida pelo pai, quando não se apresentara no trabalho, como previsto, no início de Agosto, mas depois tudo se desenrolou de forma muito lenta.

Até agora.

Tinham finalmente encontrado as suas coisas, que Billy colocara junto à entrada da gruta de imersão difícil. Era uma irresponsabilidade mergulhar ali sozinha, mas, quem conhecesse Jennifer, sabia que era uma coisa que podia perfeitamente ter acontecido.

Pela excitação, o desafio, a adrenalina.

Pelo menos, era o que Billy esperava.

Percorreu o seu histórico em todas as redes sociais. Havia algumas publicações novas no Facebook, de pessoas a dizer que não acreditavam que fosse verdade e esperavam que Jennifer voltasse a dar sinais de vida. Billy não conseguia ver nada em que pudesse ter errado. Ninguém reagia ao facto de Jennifer não ser realmente vista desde finais de Junho.

— O que estás a fazer?

Billy sobressaltou-se quando ouviu a voz de My. Percebeu logo que, do sítio onde estava, ela não conseguia ver o monitor, mas, mesmo assim, mudou imediatamente de página para algo relacionado com o trabalho.

— Estou a trabalhar, não conseguia dormir.

My aproximou-se dele, pôs um braço em volta dos seus ombros e olhou de relance para o computador antes de se inclinar para lhe dar um beijo na cabeça.

— É pelo que aconteceu à Jennifer?

— Provavelmente.

— Queres companhia?

Billy pôs a mão no fundo das suas costas e suspirou.

— Não, vai-te deitar e tenta dormir.

My assentiu, mas permaneceu onde estava. Os segredos entre eles consumiam-no, mas, em breve, deixariam de existir. Quando o acidente de mergulho em França se tornasse na versão oficial dos acontecimentos, também Billy poderia convencer-se de que aquilo era mesmo verdade. Os gritos que constantemente borbulhavam sob a superfície tornar-se-iam um derradeiro e silencioso sussurro. Estava convencido disso.

Como era natural, o corpo de Jennifer nunca seria encontrado.

Também tivera de tratar disso nos dias em que estivera sozinho em Estocolmo.

Fora uma semana muito difícil.


14 de Outubro

Já foi ontem.

Quando te desiludi.

Desiludi-vos a todos. Falhei.

Não consegui dormir.

Queria sair. Levantar-me.

Lembras-te das noites de Verão, quando nos sentávamos no telhado?

Ficávamos a observar a cidade.

Quase sempre em silêncio, mas, às vezes, falávamos.

Sobre tudo. Sobre o futuro.

Nunca pensámos que fosse tão curto.

A Polícia apareceu. Lá, donde a Klara escapou. Eu vi-os.

Era uma pena se eu cometesse algum erro.

Se eles já estivessem a aproximar-se.

Preciso de mais tempo.

Pensei que o teria.

Mas também pensámos nisso, naquela altura.

Naquelas noites no telhado.

Não tenho visto nem ouvido nada sobre Gävle.

Por isso, ainda têm um longo caminho pela frente.

Mas não vale a pena especular.

Vou continuar a seguir o plano.

Ainda não terminei.

Nem por sombras.

Amanhã vou para Västerås.


Sebastian empurrou a porta de madeira castanha do hotel. O rapaz atrás do balcão sorriu-lhe quando ele se aproximou da recepção.

— Bom dia! — exclamou num tom tão alegre e jovial que Sebastian passou a detestá-lo por ter proferido apenas aquelas duas palavras. Olhou-o fixamente e continuou o seu caminho sem dizer nada. — Tem uma visita.

Sebastian deteve-se. O seu primeiro instinto foi virar costas e sair dali. Fugir. Não havia ninguém que pudesse visitá-lo ali. Ninguém além de Magda. Teria conseguido chegar ao hotel antes dele? Acordara sozinha na cama, sentindo-se usada, pegara no carro, insatisfeita com o papel que lhe fora atribuído? Sebastian passou a noite anterior em revista. Ela tinha todos os seus livros, sabia bastantes coisas acerca dele. Mostrara-se muito interessada.

Demasiado interessada, talvez?

Se fosse ela, Sebastian esperava que viesse para o descompor. Com isso podia ele bem. O problema era se viesse com alguma intenção de prolongar a noite. Só os deuses sabiam que ele já tinha o seu quinhão de mulheres que tinham atribuído demasiada importância a uma noite de sexo casual. A última das quais até estava presa na penitenciária de Ystad, pela tentativa de homicídio de Ursula.

— Estás aí!

Sebastian virou-se para o corredor de acesso ao interior do hotel. Encostadas a uma das paredes, havia duas poltronas pretas de pele, com uma mesa baixa entre elas, cheia de jornais e revistas gratuitas. Numa das poltronas, estava uma mulher sentada. Não era Magda. Tinha pouco mais de quarenta anos, adivinhou Sebastian. Também reparou logo no seu cabelo escuro pelos ombros, nos olhos azuis e na figura bonita por baixo da gabardina, enquanto ela pousava a revista que estivera a folhear e se levantava.

— Não me reconheces — constatou a mulher, aproximando-se de Sebastian com um sorriso de satisfação nos lábios.

— Não — respondeu ele com sinceridade.

Deveria conhecê-la? Será que tinha estado no evento na livraria, na tarde anterior? Nesse caso, Sebastian teria certamente reparado nela. Aquela mulher parecia muito mais interessante do que a pequena e insípida Magda, com quem passara a noite.

— Anne-Lie Ulander, conhecemo-nos em Lund.

O que também não o ajudava minimamente. Teria ido para a cama com ela?

Era possível. Quem sabe? Com sorte...

No entanto, isso não explicava o que fazia ela ali no seu hotel, em Sala, às seis e meia da manhã. Quando fora a última vez que estivera em Lund? Fora há muitos anos.

— Ajudaste-nos lá numa investigação — esclareceu-o Anne-Lie.

— És polícia em Lund — concluiu Sebastian e perdeu o interesse quando se apercebeu de que aquela visita, provavelmente, estava relacionada com o trabalho.

— Era. Agora trabalho em Uppsala.

— Então, está bem.

— Já tomaste o pequeno-almoço?

Ainda não tinha tomado. Magda continuara a dormir quando ele saíra sorrateiramente de sua casa, pouco depois das cinco da manhã. Sebastian estudara o mapa no seu telemóvel e vira que demoraria uns quarenta minutos a regressar ao hotel a pé. Tivera esperança de que a caminhada lhe fizesse bem, lhe permitisse manter aquela sensação passageira de satisfação, mas, logo a meio do caminho, na cidade escura e deserta, voltara a sentir-se vazio e pesado. Por isso, fizera um desvio, na esperança de que o Sol nascesse enquanto caminhava, que, literalmente, o iluminasse. Contudo, continuava escuro quando chegara ao hotel.

Escuro e deprimente.

No entanto, Sebastian não permaneceria ali, já decidira isso. Pensava ir directamente para o quarto, arrumar as suas coisas e fazer o check out. Todavia, Anne-Lie aparecera.

— Nunca tomo o pequeno-almoço — respondeu-lhe. O que não era verdade. Mas não queria, de maneira nenhuma, prolongar a sua estada em Sala ou sequer saber o motivo pelo qual uma polícia de Uppsala o procurava.

— Mas eu tomo — contrapôs Anne-Lie com um sorriso antes de dar uma vista de olhos pela sala onde se encontravam e pegar-lhe no braço. — Só que não aqui.


— Não!

A resposta era clara e concisa. Não dava lugar a interpretações ou mal-entendidos. Não obstante, era evidente que Anne-Lie não tencionava desistir tão facilmente.

— Mas porquê? — perguntou-lhe, mais curiosa do que desiludida, enquanto dava uma dentada na sanduíche de abacate que comprara.

— Porque não quero.

A verdade, pura e simples.

Sebastian pousou a chávena de café, a única coisa que pedira na cafetaria onde Anne-Lie o levara, um sítio onde só estavam eles os dois e mais quatro clientes. Ainda era cedo.

— E posso fazer alguma coisa para que mudes de ideias? — continuou Anne-Lie, olhando-o nos olhos, por cima do rebordo do copo de sumo de cenoura. Não havia o mínimo sinal de convite ou conotação sexual na pergunta e Sebastian decidiu fingir que também não a tinha interpretado dessa forma.

— Como é que me encontraste? — perguntou-lhe, mudando de assunto.

— Telefonei ao Torkel Höglund. Ele disse-me que já não trabalhavas com eles, que estás a escrever um livro. É verdade?

Surpreendeu-o que Torkel o soubesse. Ursula devia ter-lhe contado. Sebastian perguntou-se se Torkel lhe teria perguntado por interesse ou se Ursula lhe contara espontaneamente. Não que fizesse alguma diferença. Dos seus antigos colegas, não era de Torkel que sentia falta.

— Então, telefonei à tua editora e eles disseram que estavas aqui — continuou Anne-Lie quando a sua pergunta ficou sem resposta.

— Mas porque é que não me telefonaste?

— Terias atendido?

— Não.

— Terias devolvido a chamada?

— Não.

Anne-Lie sorriu de novo, como se o seu estilo de aberto desprezo estivesse a diverti-la.

— São só quarenta e cinco minutos até aqui — disse-lhe e encolheu os ombros. — Achei que seria mais difícil dizeres-me que não pessoalmente — continuou, olhando de relance para a mesa que os separava. — Sobretudo se for eu a oferecer o pequeno-almoço.

— Mas não será isso — interrompeu-a Sebastian. — Acabei de o fazer.

O sorriso de Anne-Lie desapareceu. Pegou num guardanapo e limpou a boca antes de se inclinar para ele. Tinha uma expressão séria.

— Temos duas violações brutais e uma tentativa, em menos de um mês. Ele não vai parar. Mais mulheres hão-de sofrer. É um predador.

— Mas há muitos desses — constatou Sebastian, encolhendo os ombros.

— E não sentes que tens a responsabilidade de as tentares parar, se puderes? — quis saber Anne-Lie, outra vez com uma curiosidade genuína na voz.

Sebastian olhou-a nos olhos. A verdade era que não, não sentia. Não se sentia responsável pelo mal no mundo. Não o movia nenhum desejo de o transformar num lugar melhor. Sentia-se responsável por si próprio e pelas suas acções, nunca compreendera aquelas pessoas que, quando alguém fazia alguma coisa errada, «sentiam vergonha de ser suecos» ou «sentiam vergonha de ser homens» ou sentiam qualquer tipo de vergonha pelos actos de outras pessoas. Sebastian não acreditava na culpa colectiva. Nem tão pouco na responsabilidade colectiva. Estava ciente de que explicá-lo o faria parecer tão egoísta e insensível como realmente era, e, por alguma razão, não queria que Anne-Lie pensasse assim tão mal dele.

— Já não trabalho com a Polícia — acabou por dizer e bebeu um gole de café depois de desviar o olhar.

— E foi por decisão própria? — Sebastian olhou-a com curiosidade. Era evidente que não tencionava responder, pelo que Anne-Lie prosseguiu. — Deixar a equipa da Brigada de Homicídios para andar em livrarias de cidades da província a falar sobre livros de há vinte anos?

Sebastian permaneceu calado. Anne-Lie empurrou o prato com a sanduíche, cruzou as mãos por baixo do queixo e fitou-o.

— Eu já li os teus livros. São satisfatórios, és um bom escritor, mas és um excelente psicólogo criminal.

— Sou o melhor — ouviu-se Sebastian responder, como por reflexo.

— Então, porque não te dedicas a fazer aquilo em que és o melhor, em vez daquilo em que és relativamente bom?

— Porque não quero.

— Okay, tudo bem. Pelo menos, tentei — respondeu Anne-Lie e recostou-se novamente na cadeira. — Então, vou ter de tentar com aquele, o outro, Persson Riddarstolpe.

— Esse gajo é um cretino — disse Sebastian sem conseguir reprimir um sorriso breve. — E percebo perfeitamente o que estás a tentar fazer.

— O que estou a tentar fazer? — perguntou Anne-Lie de novo com o mesmo sorriso encantador.

— Estás a usar a minha conhecida aversão ao Riddarstolpe para me levar a aceitar trabalhar contigo. Pois não vai funcionar.

— Então pronto, vamos terminar o nosso pequeno-almoço de forma aprazível e depois cada um vai à sua vida. — Anne-Lie levantou a chávena de café e recostou-se. — Viste algum filme interessante, ultimamente?

Sebastian observou-a. Anne-Lie era diferente dos outros polícias com quem trabalhara. Agora percebia o motivo pelo qual não queria que pensasse tão mal dele. Gostava dela. Porém, não iria trabalhar para ela e ela nunca iria para a cama com ele, por isso, as coisas decorreriam como ela dissera: pequeno-almoço de forma aprazível e depois cada vai à sua vida.

O telefone de Anne-Lie tocou. Retirou-o do bolso do casaco, olhou para o ecrã e atendeu sem se desculpar.

— Olá, Vanja, diz.

Desviou-se dele e escutou a resposta, mas Sebastian mal reparou nisso. Teria ouvido correctamente?

Seria a Vanja? A sua Vanja?

Estaria a trabalhar em Uppsala agora?

Sebastian sabia que Vanja estava de licença da equipa da Brigada de Homicídios, mas Ursula não dissera nada sobre o sítio onde estava. Sebastian não perguntara, Ursula não lhe contara. Anne-Lie terminou a chamada, dizendo que estaria de volta ao trabalho pelas nove horas, e colocou o telemóvel em cima da mesa, mais uma vez sem pedir qualquer desculpa.

— Quem era? — perguntou Sebastian num tom, esperava ele, neutro.

— Uma das minhas investigadoras. Deves conhecê-la, também trabalhou na Brigada de Homicídios. Chama-se Vanja.

— Vanja Lithner.

— Sim, exactamente. Boa miúda.

Sebastian seria a última pessoa a acreditar em intervenções divinas, destino ou sequer no acaso, mas isto... Vanja estava em Uppsala a trabalhar numa investigação na qual ele acabava de ser convidado a participar. De tanta merda de lugares no mundo, logo tinha ela de aparecer, de manhã cedo, ali em Sala.

Uma nova oportunidade.

Uma última oportunidade.

Sebastian pegou na chávena de café e inclinou-se para trás na cadeira, com cuidado, para não parecer demasiado ansioso.

— Pensei numa coisa enquanto estavas a falar ao telefone... — começou por dizer, e bebeu um pouco de café, como se estivesse à procura da melhor maneira de se expressar. — Então, tu achas que este homem vai ser pior que o Homem de Haga?

Anne-Lie olhou-o, surpreendida. Como era evidente, nem imaginava que Sebastian tivesse estado a pensar no caso que acabava de lhe apresentar.

— Se o deixarmos continuar, sim — respondeu com uma certa esperança na voz.

Sebastian assentiu para consigo, parecendo fazer considerações, e, de seguida, olhou-a nos olhos.

— Okay, conta-me mais coisas.


— Porra, só podes estar a gozar!

Não era claro a quem se dirigia, mas, uma vez que Vanja não deixou de o olhar quando ele entrou no escritório, Sebastian presumiu que a pequena explosão era dirigida a ele, mesmo sendo Anne-Lie a responsável pela sua presença ali.

Sebastian estivera a reflectir sobre a melhor forma de a abordar, quando Anne-Lie virou para a rua Svartbäcksgatan e estacionou o carro à porta da sede da Polícia, um edifício moderno de nove andares, com a fachada envidraçada, que, segundo as placas no exterior, eles partilhavam com os serviços criminais e a Procuradoria-Geral.

Sebastian ficara sentado no carro, nervoso com aquele encontro, apercebera-se.

Deveria fingir-se surpreendido, como se não fizesse ideia de que ela estava a trabalhar em Uppsala e, muito menos, naquela investigação? Se tivesse sabido, nunca teria aceitado o trabalho? Descartou rapidamente essa ideia. Mentir era uma coisa, ele era excelente nisso, mas conseguir parecer surpreendido ao ponto de ela acreditar era muito pouco provável que acontecesse. Além disso, Anne-Lie poderia dizer que tinham falado sobre Vanja quando se encontravam em Sala e revelar a mentira em menos de um segundo.

Anne-Lie batera na janela do lado do passageiro, Sebastian saíra do carro e, depois de se identificar e inscrever, seguira-a até aos elevadores, na parte recém-construída do edifício. Sebastian decidiu fazer uma abordagem de desculpabilização. Começaria por lhe dizer que sabia que ela não o queria ali, continuaria com a promessa de que era apenas para trabalharem juntos, reconheceria os seus erros anteriores e prometeria mudanças e melhorias.

Sim, faria isso.

Porém, mal teve tempo de sair do elevador, e ainda menos para dizer fosse o que fosse. Vanja tinha-os visto logo no corredor e Sebastian pudera reparar como ela ficara imediatamente tensa. Quando abriram a porta do escritório e entraram, os olhos de Vanja escureceram, ela ergueu os ombros e ficou com o corpo todo hirto, como se se preparasse para um ataque. Antes de Anne-Lie ter tempo de o apresentar, Vanja perguntou a Sebastian se a sua presença ali era para ser levada a sério. Anne-Lie limitou-se a lançar um rápido olhar a Vanja antes de estender o braço para um homem de uns trinta e cinco anos que estava sentado a uma secretária perto da janela.

— Este é Carlos Rojas, o meu braço direito — apresentou-o. O homem levantou-se e, de mão estendida, aproximou-se de Sebastian, reparando que ele usava, pelo menos, três camisolas.

— Este é Sebastian Bergman, psicólogo criminal. Vai ajudar-nos no caso — continuou Anne-Lie, ao mesmo tempo que despia o casaco.

— Olá, bem-vindo — cumprimentou-o Carlos enquanto lançava um olhar inquisidor a Anne-Lie. Não teria ela ouvido a reacção de Vanja? Não iria fazer nenhum comentário?

— Obrigado — respondeu Sebastian, apertando-lhe a mão, que estava gelada como se acabasse de chegar da rua num dia de Inverno depois de um passeio sem luvas.

— Vanja, posso trocar umas palavras contigo? — prosseguiu Anne-Lie em tom de conversa habitual e fez um gesto com a cabeça na direcção do seu gabinete, que, na realidade, eram apenas quatro paredes de vidro dispostas em volta de uma secretária, uma estante de livros e duas cadeiras para as visitas.

— Olá, Vanja — disse Sebastian num tom suave, mas ela fulminou-o com o olhar antes de seguir a sua chefe.


Anne-Lie pendurou o casaco ao mesmo tempo que fazia sinal a Vanja para que se sentasse numa das duas cadeiras para as visitas, do designer Hans Wegner. Vanja sentou-se de costas para Sebastian e Carlos, que haviam ficado lá fora. As paredes de vidro não proporcionavam tanta privacidade como Vanja desejava. Parecia-lhe sentir os olhares de Sebastian nas suas costas, mas não quis virar-se para ver se seria apenas imaginação sua.

— Então, conta lá... — pediu-lhe Anne-Lie, sentando-se à frente de Vanja.

Por onde havia de começar? Como Sebastian lhe pedira e implorara constantemente que ela o deixasse entrar na sua vida, apenas para a magoar logo de seguida? Como lhe prometera fazer todos os possíveis para, afinal, acabar sempre por desiludi-la? Como se sentira tão ofendida quão indignada por vê-lo outra vez ali e agora? Quanto deveria contar?

Sobre Anna, Valdemar e Sebastian?

Mãe, pai e pai.

— Antes de mais, deixa-me que te diga que ele é meu pai.

Tinha de começar por algum lado e esta era, sem dúvida, a informação mais importante.

— A sério? — perguntou Anne-Lie, levantando as sobrancelhas.

— Sim, a sério.

Anne-Lie olhou para o escritório onde Carlos levava Sebastian até um lugar para se sentar. De seguida, virou-se novamente para Vanja e assentiu para que continuasse. Pelos vistos, considerava que a relação familiar não era razão suficiente para justificar a forte reacção da colega ou a sua reacção à presença de Sebastian. Vanja decidiu não suavizar minimamente a descrição.

— Ele é um viciado em sexo. Foram várias as vezes em que foi para a cama com pessoas envolvidas nas nossas investigações: testemunhas, procuradoras, familiares das vítimas, tudo. É de uma total falta de profissionalismo.

— É bom saber — assentiu Anne-Lie, tranquila e para si própria.

Não era exactamente a reacção que Vanja esperara e sentiu como começava a perder as estribeiras. Teria mesmo de estar ali sentada, a explicar o motivo pelo qual Sebastian Bergman não deveria de todo poder aproximar-se de uma investigação ou sequer de pessoas normais?

— É um arrogante, egoísta, malcriado, sexista, não sei quanta informação precisas de ouvir, mas ele é um maldito problema laboral com pernas!

— Eu sou a chefe, por isso, cabe-me a mim resolver os problemas laborais.

Vanja suspirou, desiludida. Era evidente que não estava a conseguir explicar-se. Anne-Lie parecia estar decidida e, pelos vistos, o que Vanja dizia não fazia qualquer diferença.

— Magoou-me, pessoalmente, várias vezes — acabou por dizer, numa última tentativa de apelar aos sentimentos da mulher que tinha à sua frente. — Ele foi a razão pela qual deixei a Brigada de Homicídios.

O que apenas em parte era verdade. Na Primavera anterior, apercebera-se de que precisava de mudar alguns padrões. Fazer algo de novo. No fundo, resumira-se a uma necessidade de reflectir sobre o que realmente queria, quem era, «encontrar-se», mesmo que da sua boca nunca saísse essa expressão. Deixar a equipa da Brigada de Homicídios fora apenas uma parte desse processo, mas a capacidade constante de Sebastian se imiscuir nas suas investigações acelerara essa decisão. Anne-Lie olhou-a nos olhos e inclinou-se para a frente.

— Estou a ouvir o que estás a dizer, Vanja. Não tenho escutado muitas coisas positivas sobre ele, isso é verdade. — Levantou-se e foi até à janela, olhou para o trânsito na rotunda, oito pisos mais abaixo. — Mas é apenas uma questão de tempo até a imprensa trazer isso à luz do dia. Em grande. E, nessa altura, tenho de ter feito tudo o que estiver ao meu alcance. E incluir o melhor psicólogo criminal do país na investigação é um passo na direcção certa.

Vanja deu por si a assentir. Do ponto de vista policial, não havia nenhuma dúvida de que o raciocínio de Anne-Lie fazia sentido.

— Se puseres o plano pessoal de lado... — continuou Anne-Lie, voltando-se de novo para Vanja. — Ele não é bom naquilo que faz?

Vanja não tinha intenção de contribuir para que Sebastian ficasse em Uppsala, perto dela, por isso, não disse nada, o que era, em si mesmo, uma resposta.

— Ele vai manter a pila dentro das calças e tratar as pessoas com respeito enquanto aqui estiver.

— Boa sorte com isso, então — interrompeu Vanja, bufando e revirando os olhos.

— Mas a questão aqui é... — continuou Anne-Lie como se não tivesse presenciado a sua reacção — ... conseguirás trabalhar com ele?

— Preferia não ter de o fazer — respondeu Vanja de forma sincera.

— Tenho pena, Vanja, mas era uma pergunta para um «sim» ou «não».


Tinham tentado tornar a manhã o mais normal possível. Por Victor. Levantaram-se juntos, fizeram o pequeno-almoço, prepararam o seu saco de ginástica.

Tinham demorado bastante tempo a adormecer. Tanto ela como Zach tinham ficado acordados até tarde, a sussurrar um para o outro, com o filho a dormir entre os dois. Zach acabara por adormecer por volta da uma e meia e, para seu próprio espanto, Klara também conseguira dormitar algumas horas e, de manhã, sentia-se melhor. Talvez fossem as rotinas, o dia-a-dia. Victor obrigava-a a ser a mãe de sempre. Zach perguntara-lhe o que deviam fazer, se ele devia ficar em casa e não ir trabalhar. Podia voltar depois de deixar Victor na escola. Decidiram ir todos juntos. Quando se despediram de Victor, Zach perguntou-lhe de novo o que iam fazer. O que queria ela fazer.

Klara queria ir visitar Ida.

Há cerca de um mês, quando ouvira falar do que acontecera no cemitério, considerara, por um momento breve, contactar Ida, mas não o fizera. Agora, tencionava ir vê-la.

Não sabia ao certo porquê.

Mas sentia que era a coisa acertada.

Zach acompanhou-a até lá e decidiram que a iria buscar dentro de uma hora. Se Klara quisesse ficar mais, ou menos, tempo poderia enviar-lhe uma mensagem.

Klara ficou chocada quando viu a sua velha amiga. Ida parecia esgotada, com olheiras escuras em volta dos olhos, a pele acinzentada e o cabelo baço e sem vida, como se não tomasse banho há muito tempo. Além disso, também perdera bastante peso. Isso poderia obviamente ter acontecido antes do ataque. Klara não a via há vários anos, mas ficou com a sensação de que não era esse o caso. Ida não mostrara grande alegria ou apreço pela visita, pronunciando um simples cumprimento — «ah, és tu, olá» — em tom de constatação, dando-lhe um abraço rápido e fazendo um gesto para que entrasse.

Agora estavam sentadas na cozinha onde Klara estivera tantas vezes antes.

Quando ainda se davam.

Tudo estava na mesma. A mesa de cozinha em semicírculo encostada à parede, as cadeiras brancas, a cómoda encostada à outra parede, com a pequena tigela de estanho e as estatuetas de Jesus e Maria e o quadro de cortiça por cima, os armários de cozinha cremes, o microondas em cima da bancada de madeira clara. Klara não conseguia encontrar nada diferente desde a última vez que ali estivera.

— Porquê? É a única coisa em que consigo pensar — disse Ida, aproximando-se e servindo café nas duas chávenas que estavam em cima da mesa. Pareceu a Klara que trazia consigo um ténue odor a lixo. — Porque é que aquilo aconteceu? Porquê a mim?

— Tens alguém com quem falar? — perguntou-lhe Klara, esticando-se para pegar no pacote de leite em cima da mesa.

— Na verdade, não — respondeu Ida, voltando a colocar a cafeteira na máquina. — A minha mãe disse que podia vir cá e ficar algum tempo, mas eu não quis.

— Porquê? Assim não precisavas de estar sozinha.

Porquê? Ida também se perguntara o mesmo. Não tinha dúvidas de que teria sido bom ter alguém consigo nas primeiras semanas, quando se assustava com qualquer som no apartamento, qualquer passo na escada do prédio. Mas não queria. Se pudesse escolher, preferia que ninguém sequer soubesse o que acontecera.

— Ela não ia aguentar, ficaria mais preocupada do que eu.

Tentou esboçar um sorriso quando regressou à mesa e se sentou em frente a Klara.

— E não quero que ela me trate de maneira diferente.

Embora tudo estivesse diferente.

Agora, de facto, o seu corpo tinha praticamente recuperado o ritmo habitual. Deixara de tremer descontroladamente e já não acordava com tanta frequência durante a noite. Ainda tinha de se forçar a comer, mas conseguia fazê-lo. Em termos emocionais, era outra questão. Tinha dificuldade em concentrar-se, oscilava entre emoções extremas, sentindo-se zangada e triste ao mesmo tempo. Os seus pensamentos voltavam constantemente ao mesmo.

Porquê?

Por que motivo acontecera aquilo?

Porquê a mim?

Rezava. Mais do que nunca. Sentia que precisava de ajuda para compreender, para sarar. Porém, não obtinha respostas. Tentara encontrar conforto na Bíblia. Não queria ir à igreja, não queria que as pessoas encolhessem os ombros e sentissem pena dela.

Ou, ainda pior, pensassem que ela merecia.

Que era um castigo justo por alguma coisa que fizera.

Ida sabia que Deus não castigava dessa maneira, que Jesus assumira a responsabilidade pelos pecados de todos e que era suficiente pedir perdão para o obter. Mas nem todas as pessoas da paróquia viam as coisas da mesma maneira. Alguns acreditavam no justo castigo divino. Não podia falar sobre isso com Klara. Tinham-se conhecido na igreja há vários anos, mas Klara seguira outro caminho.

— E não há ninguém da igreja que te ajude? — ouviu a sua velha amiga perguntar, como se tivesse lido os seus pensamentos.

— Sim, há sempre alguém que me faz companhia até à loja uma vez por semana, não tenho coragem de sair sozinha.

Klara conseguia compreender. Apercebera-se de quão nervosa ficara quando Zach a deixara sozinha à porta do prédio de Ida, de como o medo a ia invadindo lentamente na curta subida pelas escadas até à porta de Ida. A experiência de Ida teria de ser cem vezes pior.

— Às vezes, nem consigo sair para levar o lixo — confirmou Ida. Quase tudo fora do apartamento accionava imagens e memórias do ataque. Sons, cheiros, pessoas. A solução era ficar em casa. O seu mundo reduzira-se a duas assoalhadas e à cozinha. Levantou-se para servir mais café. — Será que o podes levar quando saíres?

— Claro que sim. Achas que é uma coincidência, termos sido as duas atacadas?

Surgiu-lhe do nada. A pergunta. Quando se ouviu a si própria a pronunciá-la, Klara ficou com a sensação de que, inconscientemente, fora isso que a levara ali. A busca de uma relação.

— O que é que havia de ser? — perguntou Ida, de imediato. — Não disseste que havia uma terceira mulher?

— Sim, uma Therese...

— Que nós não conhecemos de todo — interrompeu Ida.

— Pois não.

— Então, pronto.

A cozinha ficou em silêncio. Ida voltou a colocar a cafeteira na máquina e permaneceu de pé junto à bancada. Parecia não ter muita vontade de continuar a conversar à mesa. A verdade é que estava a ter sentimentos contraditórios em relação à visita de Klara. Assim que lhe contara o motivo da sua vinda, o que lhe acontecera na noite anterior, aquela pergunta familiar surgira-lhe imediatamente.

Porquê eu?

Mas, desta vez, uma voz silenciosa acrescentara:

Por que não ela?

Tentou não pensar que era injusto. Era errado desejar algo de mau a outras pessoas. Mas Klara virara as costas a Deus. Deixara a igreja e a congregação e livrara-se do ataque com algumas dores de garganta. Ida nunca duvidara, nem uma única vez. E fora violada.

— Olha, tenho muita pena, mas estou mesmo cansada — disse e confirmou, desse modo, que a visita estava terminada. Klara limitou-se a assentir com a cabeça e levantou-se.

— Claro, compreendo — respondeu.

Ida acompanhou-a à porta e observou-a em silêncio enquanto Klara calçava os sapatos e vestia o casaco, pegava nos dois sacos de lixo e se detinha com a mão já na maçaneta da porta.

— Liga-me se precisares de alguma coisa ou se quiseres que te ajude.

Ambas sabiam que isso não aconteceria.

Ida trancou a porta depois de Klara sair e colocou a corrente de segurança antes de voltar para a cozinha e começar a arrumar as chávenas.

Poderia ter sido uma visita agradável.

Uma velha amiga que tentava retomar o contacto.

Uma mão estendida.

Poderia ter sido uma coisa normal.

Mas a sua vida nunca mais voltaria a ser como dantes. Em poucos minutos, um homem destruíra-a. Ida inspirou profundamente e tentou afastar aqueles pensamentos. Empurrá-los para o lado. Por vezes, conseguia fazê-lo, convencer-se a si própria de que não podia perder a esperança.

Tinha sobrevivido.

As coisas podiam melhorar.

O pior já tinha passado.

Foi até ao lava-louça e passou as chávenas por água, felizmente inconsciente de quão errada estava.


Rashid saiu do carro e olhou para cima, para a janela do terceiro andar. As persianas estavam fechadas. Como era natural. Trancou o carro, suspirou e atravessou a estrada.

A empresa imobiliária nomeara-o a pessoa de contacto com os inquilinos, há pouco mais de um ano. A ideia era que pudessem contactar sempre a mesma pessoa. Facilitar a comunicação entre inquilinos e senhorios. Ajudaria a construir uma relação, a estabelecer a confiança.

Não funcionara assim tão bem com Rebecca Alm.

Era a quarta vez que ele estava ali pelo mesmo motivo.

Marcou o código, abriu a porta do prédio, foi até ao elevador e carregou no botão para o terceiro andar. Todos os inquilinos tinham concordado que os esforços da empresa, com vista a instalar detectores de fumo em cada apartamento e equipá-los com um extintor, eram bem-vindos e positivos.

Todos, menos Rebecca.

Rebecca estava completamente convencida de que eles continham câmaras, ou outro equipamento de vigilância, e não quisera, de maneira nenhuma, que fossem instalados no seu apartamento. Rashid não dissera uma única palavra sobre quão paranóico aquilo soava, limitara-se a explicar pacientemente que também estava em causa a segurança dos outros inquilinos e que, infelizmente, a instalação não era negociável. Por isso, apesar dos protestos em tom exaltado, os equipamentos foram mesmo instalados. Na semana seguinte, Rashid fizera uma visita ao apartamento de Rebecca e, como esperara, os detectores de fumo haviam sido retirados. Ali começara uma troca de palavras azedas, que acabara com uma combinação de que Rebecca instalaria os seus próprios detectores de fumo, no máximo até ao dia 1 de Outubro. Rashid tentara contactar Rebecca desde o dia 3, para poder ir ao apartamento fazer uma inspecção à instalação, mas ela não atendera o telefone nem lhe devolvera as chamadas.

Rashid saiu do elevador e aproximou-se da porta de madeira clara com o apelido «Alm» na caixa do correio. Tocou à campainha e esperou, sem grande esperança de que Rebecca abrisse, mesmo que estivesse em casa. Tocou novamente, várias vezes, ouvindo o som da campainha através da porta fechada. Porém, ninguém abriu. Com um suspiro breve, Rashid retirou a chave-mestra do bolso. Depois de telefonar, enviar mensagens escritas, mails e cartas sem receber nenhuma resposta, a empresa tinha discutido o caso com os seus advogados e haviam chegado à conclusão de que poderiam entrar no apartamento sem o consentimento do inquilino. Tratava-se da segurança do prédio todo.

Rashid tocou mais uma vez, esperou mais meio minuto e, de seguida, colocou a chave na fechadura, rodou-a e abriu a porta alguns centímetros.

— Com licença! Rebecca! — chamou através da pequena abertura. — É o Rashid, vou entrar.

Nenhuma resposta. Apenas silêncio dentro do apartamento. Rashid abriu um pouco mais a porta e deu um pequeno passo para o hall de entrada.

— Olá? Rebecca? É o Rashid. Está em casa?

O silêncio denso que o recebeu deu-lhe a resposta a essa pergunta e Rashid relaxou um pouco quando fechou a porta atrás de si. Não tivera muitos assuntos a tratar com Rebecca Alm, mas sabia que ela se oporia veementemente ao seu acesso ao apartamento com uma chave-mestra. Agora não precisava de se preocupar em a acalmar e, muito provavelmente, também não precisaria de se preocupar com uma queixa feita à Polícia por invasão de propriedade.

Limpou os sapatos no tapete da entrada, avançou para o interior do apartamento e entrou na sala de estar, que ficava ao lado da cozinha e seria renovada dali a dois anos. Rashid lançou um olhar rápido para o tecto por cima do sofá de dois lugares e da mesa de centro. Nenhum sinal de um detector de fumos. Sentiu uma certa desilusão. Tivera esperança de que aquela fosse a última vez que tivesse de se dedicar àquele assunto, mas, pelos vistos, não era o caso. Continuou a percorrer a habitação, espreitou para a bancada da cozinha. Havia restos de um pequeno-almoço que pareciam estar ali há algum tempo. Seria dali que vinha um cheiro ligeiramente adocicado?

Rashid continuou até à porta do quarto, que estava fechada. Tinham combinado que ela instalaria um detector de fumos em cada divisão. Uma vez que não havia nenhum na sala de estar, não tinha grandes expectativas de que o quarto estivesse devidamente equipado, mas devia verificá-lo. Abriu a porta e deu imediatamente um passo atrás.

Rebecca estava em casa.

Estava a dormir.

Passaram-lhe rapidamente vários pensamentos pela cabeça. Não podia acordá-la, isso assustá-la-ia de morte. Então, o que devia fazer? Deixar o apartamento? Deixar aberta a porta do quarto e voltar a tocar à campainha? Voltar noutro dia? Depois, uma parte do seu cérebro registou o que acabava realmente de ver. Rebecca estava deitada na cama, sim, mas não estava a dormir. Não naquela posição.

De barriga para baixo, por cima da colcha e com as pernas por fora da cama.

Nua da cintura para baixo, à excepção das meias.

Com um saco na cabeça.


Torkel saiu da estação do metropolitano e começou a subir a rua Bergsgatan. Um pouco atrasado em relação ao que planeara. Ficara na cama até mais tarde, de manhã. Outra vez. Enfiou as mãos sem luvas nos bolsos do sobretudo. Ouvia toda a gente queixar-se do frio, de que o Inverno chegara ridiculamente cedo, mas Torkel achava que era refrescante. Não tinha nada de que reclamar. A verdade é que acordava todas as manhãs com uma sensação quase de irrealidade.

Estava feliz.

Apercebeu-se de que havia muito tempo que não se sentia assim. A sua relação com Yvonne deixara de ser feliz muitos anos antes do divórcio, e depois... O que tinha tido? O trabalho, que lhe ocupava a maior parte do tempo, e uma espécie de relação com Ursula, em que de vez em quando dormiam juntos, não passara daí.

Sentia-se sozinho.

E não se dava bem com a solidão.

Então, chegara o Verão. Depois de entregarem ao procurador a investigação sobre David Lagergren, Torkel regressara a Ulricehamn. Para junto de Lise-Lotte. Tinham passado ali uns dias, antes de irem juntos para a casa de Verão de Torkel, nos arredores de Mjölby, onde passariam duas semanas. Vilma e Elin tinham ido ter com eles e ficado alguns dias. De livre e espontânea vontade. Elin tinha conseguido arranjar um trabalho de Verão num restaurante no bairro de Söder, em Estocolmo, mas tivera uma semana de férias no final de Julho. Até levara consigo um dos empregados de mesa, que era seu namorado. Tudo correra bem. As filhas pareciam não só aceitar mas também gostar de Lise-Lotte.

Na última noite na casa de campo, antes de Torkel ter de regressar ao trabalho — nem toda a gente tinha férias de Verão prolongadas como Lise-Lotte —, tinham jantado no terraço e dividido uma garrafa de vinho. Lise-Lotte pousara o seu copo em cima da mesa e virara-se, com ar sério, para Torkel.

— Não quero que fiques todo... nervoso agora — começara por dizer, pegando-lhe na mão.

Torkel sentira-se gelar, apesar da noite morna de Verão. Não havia maneira nenhuma de aquilo ser bom. Passaram-lhe todo o tipo de pensamentos pela cabeça. Todos como uma variação do mesmo tema.

«Ela vai deixar-me.»

Sabia-o bem. Aquilo era demasiado bom para ser verdade.

Não disse nada, olhou-a, simplesmente; nem se recordava de ter respirado.

— Tenho andado a pensar numa coisa — continuara Lise-Lotte.

«Vai mesmo deixar-me», pensou Torkel.

— Na verdade, não tenho nada que me prenda em Ulricehamn.

«Pronto, vai mudar-se para mais perto da filha ou trabalhar para o estrangeiro durante uns anos. Não há-de ser nada melhor.»

— Gostavas que eu me mudasse para Estocolmo? Que fosse viver contigo?

Primeiro, Torkel julgara que não tinha ouvido bem. Se gostava?

Era o que mais desejava.

— Quero dizer, se achas que isto está a avançar demasiado depressa, diz-me — prosseguira Lise-Lotte, olhando-o um pouco preocupada. Torkel apercebera-se de que continuava sem dizer nada e que, se calhar, era boa altura para falar.

— Não, não, não, claro que não — conseguira, por fim, dizer. E calara-se de novo. Compreendera que aquilo podia ser interpretado como uma hesitação. Como se precisasse de pensar numa forma de sair daquela situação. Que estaria prestes a apresentar um «mas». Não havia dúvida de que aquele tipo de conversa não era o seu forte. — Gostava muito — acabara por acrescentar.

— Gostavas muito — repetira Lisa-Lotte, mas com um sorriso de alívio, que mostrava que também ela se sentira um pouco nervosa com a proposta. Torkel apercebera-se de que aquela resposta não dava o justo valor à situação nem ao que ele sentia. Percebera que teria de usar palavras mais fortes, aquelas que raramente usava e que, por isso, o deixavam desconfortável.

— Não me atrevia a ter essa esperança, quanto mais a fazer a sugestão, mas não há nada que deseje mais. — Olhou Lise-Lotte nos olhos e apertou-lhe a mão. — Adorava que viesses viver comigo. Amo-te.

Se era para usar palavras mais fortes, mais valia usar as mais fortes de todas. Por isso, agora viviam no apartamento de Torkel, no bairro de Hornstull. Lise-Lotte conseguira um novo emprego dentro do mesmo grupo escolar, como directora de uma escola básica e secundária, no bairro de Mälarhöjden. Deitavam-se juntos à noite, acordavam juntos de manhã. Pela primeira vez em muito tempo, Torkel ansiava por voltar para casa depois do trabalho.

Pertencia a alguém.

Estava feliz.


— Bom dia! — chamou na direcção de Ursula quando abriu a porta do escritório.

— Ou boa tarde, quase — respondeu Ursula, levantando os olhos do computador. — Alguns de nós chegaram mesmo quando ainda era de manhã.

Torkel não comentou a provocação amistosa, apenas retirou o gorro da cabeça e desapertou o cachecol a caminho da cozinha e da segunda chávena de café do dia.

— Queres alguma coisa? — perguntou, apontando para a despensa com um gesto da cabeça.

— Não, obrigada — respondeu Ursula. — Tens uma visita.

Torkel deteve-se. Visita? Tanto quanto se lembrava, não tinha nada agendado para aquela manhã. Seria alguém que Gunilla se tivesse esquecido de colocar na agenda? Não seria nada comum nela. Torkel lançou um olhar por cima do ombro, através das paredes de vidro do seu gabinete.

Vanja estava sentada no sofá das visitas.

Torkel não conseguiu dissimular uma breve gargalhada de satisfação. Não se viam desde aquela tarde de Junho, quando ela lhe contara que planeava afastar-se da equipa da Brigada de Homicídios durante algum tempo. Sentira saudades dela. Mais do que admitira para si próprio, apercebia-se agora, que voltava a vê-la. Torkel decidiu logo desistir do café e foi direito ao seu gabinete. Vanja já estava de pé quando ele abriu a porta e entrou.

— Mas quem temos nós aqui, visitas importantes! — Aproximou-se e deu-lhe um abraço forte e demorado. — Então, estás aqui de passagem? — perguntou-lhe quando se separaram.

— Sim, quero dizer... é mais do que isso. Se puder.

— Queres voltar? — perguntou Torkel cheio de esperança na voz, e apontou de novo para o sofá. Vanja sentou-se. — Queres? Juntar-te à equipa outra vez? — Torkel sentou-se na poltrona à frente de Vanja e inclinou-se para a frente.

— Sim, quero regressar — assentiu Vanja, sem conseguir reprimir um sorriso quando viu quão feliz Torkel ficou.

— És mais do que bem-vinda, sabes disso! — respondeu Torkel, e parecia estar a fazer um esforço enorme para não saltar do sofá ou explodir num aplauso espontâneo. — Mas pensei que estavas a gostar de estar em Uppsala.

Vanja inspirou fundo. Na verdade, quanto mais pensava no assunto, mais surreal a situação lhe parecia. Sete regiões policiais, trinta distritos de polícia e incontáveis comissariados locais. Ocorriam e investigavam-se crimes por todo o país. Ainda assim, Sebastian Bergman conseguira entrar pelo seu local de trabalho.

— Sim, e estava — começou por dizer Vanja. — Tivemos um violador em série. Ataques completos...

— Tiveram? — interrompeu Torkel. — Não li nada sobre isso.

— É só uma questão de tempo.

— Quantas pessoas?

— Três, até agora. Em pouco mais de um mês. Por isso, há-de haver mais.

Torkel assentiu, sério. Ataque seguido de violação. Terrível, sobretudo para as vítimas, claro, mas havia poucos crimes que afectavam toda a sociedade daquela maneira e que, com razão, deixavam aterrorizada metade da população. Nem tiroteios entre gangues nem carros incendiados nem a criminalidade organizada tinham o mesmo efeito. Causavam uma sensação de insegurança, sim, aumentada pela imprensa, que lançava achas para a fogueira, e por políticos, que se atiravam de cabeça em explicações simplistas, mas a maioria das pessoas, ainda assim, compreendia que se tratava maioritariamente de ajustes de contas pessoais. Porém, nos casos de ataques e violações... Desde que se fosse mulher, qualquer uma, fosse quem fosse, podia ser a vítima seguinte.

— Seja como for — continuou Vanja. — Adivinha quem é que a minha chefe contratou para a investigação.

Torkel só conseguia pensar numa pessoa que levaria Vanja a deixar o seu lugar numa investigação complexa. Ela era, apesar de tudo, uma das melhores polícias do país.

— Não acredito! — exclamou.

— Sim, acredita — respondeu Vanja e assentiu com a cabeça para reforçar a resposta.

— O Sebastian? — Torkel sentiu-se obrigado a perguntar para confirmar que estavam a falar da mesma pessoa.

— Na sua altamente irritante pessoa. A Anne-Lie perguntou se eu podia trabalhar com ele, sim ou não, e aqui estou — completou Vanja com um leve encolher de ombros.

— Depois lembra-me de lhe mandar flores — gracejou Torkel, mas compreendeu perfeitamente. Sebastian representara um fardo para todo o grupo desde que Torkel o aceitara de volta em Västerås, mas sobretudo para Vanja.

Tinha, literalmente, mudado toda a sua vida.

— Mas então posso voltar? — perguntou-lhe Vanja. — Ainda não contrataste ninguém para o meu lugar?

— Não, não houve razão para isso. Temos trabalhado nalguns casos arquivados, mas nada de significativo. Nada exclusivo.

Vanja suspirou, tranquila. Quando deixara Uppsala, fora directamente para a Brigada de Homicídios, tinha de saber se ainda teria um lugar para onde voltar, uma ligação.

— Como está toda a gente? — perguntou, pronta para ser mais social e pessoal, agora que a parte mais importante estava esclarecida.

— Bem, acho — respondeu Torkel, olhando, através da porta de vidro, para Billy, que acabara de chegar e pousara a mochila em cima da secretária, ao mesmo tempo que despia o casaco.


— Hoje era dia de ficar até mais tarde na cama ou perdi alguma coisa? — perguntou Ursula, olhando de relance para Billy enquanto o colega pendurava o casaco nas costas da cadeira.

— Estive em casa com a My, tínhamos umas coisas a tratar — mentiu Billy e retirou o computador portátil da mochila. A verdade era que não tinha conseguido adormecer antes das cinco e meia da manhã e acordara duas horas mais tarde, quando My se levantara para ir para o ginásio treinar antes de atender o primeiro cliente do dia. A angústia e o medo com que lutara durante toda a noite continuavam a persegui-lo e dedicara mais uma hora da manhã a confirmar e a reconfirmar os vestígios digitais que Jennifer deixara antes de «desaparecer».

Ursula dissimulou um suspiro. Claro que Billy estivera com My. Até há pouco tempo, Ursula fora a única pessoa da equipa com uma relação estável. Com Micke. Ainda que tremida e disfuncional, ela era regularmente infiel, ele era claramente infeliz, mas, ainda assim, continuavam juntos.

Torkel era divorciado de Yvonne.

Vanja e Billy eram solteiros.

Isso era nessa altura.

Agora, todas as manhãs, Torkel chegava e fazia com que a noite anterior soasse a oitava maravilha do mundo, mesmo que ele e a namorada só tivessem jantado e ficado a ver televisão. Billy tinha My, que Ursula nunca conhecera, mas que parecia ter o colega numa rédea tão curta que Ursula ficava admirada por ele não lhe telefonar de cada vez que tinha de exprimir a sua opinião sobre qualquer coisa.

E, agora, Vanja estava de volta.

Ursula fora buscar um café e conversara com ela quando Vanja aparecera, pouco mais de uma hora antes, e depressa descobrira que até ela estava irritantemente satisfeita com a vida. Vanja não era pessoa de partilhar muito sobre a sua vida pessoal.Ainda assim, Ursula tivera de ouvir mais do que o suficiente sobre as férias na Europa e sobre Jonathan, com quem agora teria de ir viver, uma vez que o seu apartamento estaria subarrendado por mais meio ano.

O que fazia Ursula quando não estava a trabalhar?

Habitualmente, acabava no sofá, com uns copos de vinho, a ver alguma coisa na Netflix. Às vezes, lia um livro. Só lhe restava admitir.

Estava sozinha.

Estivera sozinha mesmo quando vivera com Micke e Bella. Era quem era ou, talvez, quem escolhera ser. Portanto, não invejava os colegas por serem felizes. Na verdade, não dedicava muito tempo a pensar neles fora do trabalho.

Para além de Torkel.

Nele, pensava com frequência.

Apesar de tudo, tido havido alguma coisa entre os dois. Não o que ele queria ter, mas aquilo que ela pudera dar-lhe. Que, naturalmente, se mostrara não ser suficiente. Não era suficiente para ninguém.

Com uma excepção.

Sebastian.

Um telefone tocou. Era o de Billy. Ursula ouviu os sinais, ouviu-o responder, mas não registou nada. Anos a trabalhar em espaços abertos ensinaram-lhe rapidamente a filtrar o que se passava à sua volta, mas que não lhe dizia respeito. Porém, havia algo na voz de Billy que lhe chamou a atenção.

— O que é que ele quer?

Uma frase simples, mas a sua voz estava diferente. Tensa.

— Porquê?

Ursula lançou um olhar na direcção de Billy. O colega estava sentado com as costas completamente direitas, como se estivesse preparado para se levantar da cadeira de imediato. Preparado para fugir.

— Ele está aqui agora?

Definitivamente tenso, tanto na voz como no corpo.

— Não, não, eu vou descer.

Billy desligou, levantou-se e dirigiu-se para a porta. Ursula seguiu-o com o olhar. Fosse quem fosse que estivesse à espera de Billy, era alguém que ele não queria ver.


Billy passou as portas giratórias automáticas e saiu para a recepção. Lançou um olhar rápido a Tamara, sentada atrás do balcão da recepção, e ela, com um movimento da cabeça, indicou um homem, com uns cinquenta e cinco anos, vestido com calças de ganga e um casaco de aviador bordeaux por cima de uma camisola de malha. Estava sentado com uma pasta, um gorro, luvas e cachecol ao lado, junto à entrada. Não que Tamara precisasse de o ter feito, já que o homem se levantou mal viu Billy, que também o reconheceu. Billy percorreu a curta distância que os separava e estendeu a mão para o visitante.

— Olá. Billy Rosén. Veio para falar comigo?

— Sim, sou Conny Holmgren, o pai da Jennifer.

— Ah, sim, bem me parecia que estava a reconhecê-lo — respondeu Billy de forma tão natural quanto conseguiu. — Vi-o numa fotografia em casa da Jennifer.

Era melhor dizer logo que já lá estivera. Dar a ideia de uma relação de amizade normal, entre colegas. As mentiras mais convincentes eram as que estavam muito próximo da verdade. Confirmar tudo, principalmente se fossem factos fáceis de demonstrar. Manter em segredo, ou negar o mínimo possível, apenas o que era absolutamente necessário.

Como ter estrangulado alguém até à morte, durante uma relação sexual, completamente alcoolizado.

Conny assentiu como se aquilo soasse muito credível. Depois olhou para Billy, que tinha os olhos vermelhos de tanto chorar e cheios de tristeza e desespero.

— Já deve ter ouvido o que aconteceu.

— Sim, contaram-me ontem. Terrível, eu... não sei o que dizer. É tão horrível...

Conny não respondeu, limitou-se a assentir novamente com a cabeça.

— Já tem mais alguma notícia? — continuou Billy com o que esperava ser a dose certa de esperança na voz.

— Não, nada — respondeu Conny, abanando a cabeça. — Os seus chefes em Sigtuna contactaram a Polícia francesa, mas até agora... — Não terminou a frase. Pareceu ficar perdido nos seus próprios pensamentos, e Billy não soube o que dizer.

— Terrível... — repetiu para quebrar o silêncio, ficando à espera de que Conny lhe revelasse o motivo da visita. Contudo, não parecia muito disposto a fazê-lo. O homem continuava em silêncio e com o olhar fixo no vazio.

— Posso ajudá-lo nalguma coisa? — perguntou-lhe Billy depois de mais alguns segundos de silêncio.

— Conhecia-a, não é verdade? Vocês conviviam? — questionou-o Conny, olhando-o nos olhos. Billy tentou perceber se «conviviam» era a forma discreta que o homem escolhera para dizer «iam para a cama». Os olhos de Conny não revelavam nada.

— Sim, ela trabalhou connosco algumas vezes e depois mantivemos o contacto — justificou Billy.

Conny pareceu contentar-se com a resposta. Billy descontraiu um pouco, parecendo-lhe que o pai de Jennifer não sabia de nada. O contrário teria sido deveras estranho. Que mulher adulta contaria ao pai com quem ia para a cama?

— Ela falou-nos de si — continuou Conny em voz baixa.

Billy limitou-se a assentir em silêncio. Falara-lhes de quê? Quanto? Não o mencionara em nenhuma mensagem escrita ou conversa no Messenger com os pais, isso sabia. Mas o que Jennifer lhes contava quando falava com eles, isso já era outra história. Disso, Billy não tinha nenhuma informação. Devia ir com cuidado e descobrir mais coisas.

— Sim, nós mantivemos o contacto. Como disse, encontrámo-nos algumas vezes, esporadicamente.

— Ela disse que trabalhava consigo aqui na parte técnica — explicou Conny, fazendo um gesto com a mão para o conjunto do edifício. — Com os computadores e coisas assim.

— Sim, é isso que faço, entre outras coisas.

— Quero mostrar-lhe umas coisas — prosseguiu Conny, virando-se para o banco onde deixara a sua pasta. — Podemos ir para qualquer lado?

— Falei com os seus chefes em Sigtuna, mas eles não se mostraram particularmente interessados — disse Conny, abrindo a pasta. Estavam sentados numa mesa junto à janela, num café da rua Polhemsgatan, com duas chávenas de café que Billy comprara mas nas quais ainda nenhum tocara. Conny afastou o vaso com flores e colocou dois papéis em cima da mesa.

— Veja isto — disse, empurrando um dos papéis para Billy, que se inclinou para a frente. Era uma fotografia impressa da conta de Instagram de Jennifer. Uma das que Billy criara durante a semana no final de Junho, quando estivera sozinho em Estocolmo.

Uma selfie. Supostamente tirada em Långholmen.

Jennifer sorridente no canto inferior direito da imagem, com a água a reflectir os raios de sol de Verão e a ponte de Västerbron ao fundo.

— E agora olhe para esta — continuou Conny e colocou o outro papel ao lado. Também era outra fotografia de Jennifer, mas mais antiga e que ela tirara sozinha. Billy reconheceu-a imediatamente. Fora tirada na Primavera anterior, em Oslo. Com a água ao fundo. Fora por isso que Billy decidira recortar a silhueta de Jennifer dessa fotografia e colá-la na selfie de Långholmen. Reduzira-a um pouco, ajustando a luminosidade e girando-a cento e oitenta graus, mas era a mesma imagem.

— É a mesma fotografia — afirmou Conny, como um eco dos seus pensamentos.

— O que quer dizer com isso, a mesma fotografia? — Billy não teve coragem de levantar a cabeça e enfrentar o olhar de Conny. — São completamente diferentes.

— É a mesma imagem de Jennifer.

— Acho que não estou a perceber... — conseguiu Billy dizer, e arriscou levantar a cabeça. A voz soara muito natural e Conny não descobrira nada. Esperava que o seu olhar demonstrasse o mesmo.

— Alguém a falsificou — contestou Conny com determinação, apontando para a fotografia de Långholmen. — Veja o cabelo dela. Está a esvoaçar exactamente da mesma maneira, só que nesta — apontou para a imagem de Oslo — voa para a direita e nesta voa para a esquerda. Está espelhada.

Uma vez que, aparentemente, os chefes de Jennifer em Sigtuna não tinham acreditado em Conny, Billy também lhe lançou um olhar rápido de cepticismo antes de se inclinar para diante e estudar as duas imagens mais detalhadamente. Agora via-o claramente. Um vento vindo de trás fizera com que o cabelo de Jennifer esvoaçasse de maneira característica e, tinha de admitir, era fácil de identificar. Como era possível não ter visto aquilo? Amaldiçoou-se. Uma coisa tão fácil de corrigir.

— Mas onde está a tentar chegar?

Conny hesitou. Billy já percebera onde a conversa iria parar, mas presumiu que Conny estaria a ponderar com todo o cuidado o melhor momento de o apresentar, uma vez que o que pretendia dizer soava um tanto louco. A Polícia de Sigtuna já rejeitara a ideia.

— Então é assim: eu e a Karin, a minha mulher, falámos sobre isto quando denunciámos o desaparecimento de Jennifer em Agosto, pois não falávamos com ela desde finais de Junho. Telefonámos-lhe três vezes, nunca atendeu, e, de todas as vezes, respondeu-nos por mensagens escritas, nunca nos devolveu as chamadas.

— Okay. E...? — interpelou-o Billy.

— Então, falei com alguns amigos dela, no início de Agosto e também ontem e hoje. Ninguém a vê desde o dia 25 de Junho.

Billy não respondeu. Conny voltou a colocar o dedo indicador em cima das imagens que estavam na mesa à sua frente.

— Se estas imagens são falsas, pode ter-lhe acontecido alguma coisa logo em Junho.

— Como por exemplo? — perguntou Billy, olhando-o, inquisitivo. — Que pode estar desaparecida de livre vontade ou quê?

— Não. — Conny conseguiu juntar irritação e decepção na mesma palavra. — Se Jennifer se tivesse afastado de livre vontade, não tinha nenhum motivo para falsificar fotografias.

Conny inspirou fundo, perfeitamente consciente de que simplesmente não era capaz de aceitar a morte da filha, pelo menos, não daquela maneira, e que se agarrava ao mais pequeno sinal de que isso não fosse verdade.

— Tenho noção do que isto parece, mas... — Voltou a procurar o olhar de Billy e, pela primeira vez durante a conversa, pareceu que ia começar a chorar. — Ela era destemida, gostava de desafios, mas nunca iria mergulhar sozinha numa gruta desconhecida em França. Não era imprudente.

Billy limitou-se a assentir enquanto analisava rapidamente a situação. Na realidade, o facto de o pai de Jennifer o ter procurado era uma sorte enorme. Conny não lhe parecia um homem que desistisse facilmente. Mais cedo ou mais tarde, alguém acabaria por acreditar nele e começaria a investigar o desaparecimento e a morte de Jennifer. Essa pessoa devia ser ele próprio. A única coisa que Conny parecia saber sobre ele era que trabalhava na parte técnica da Brigada de Homicídios. «Computadores e essas coisas», segundo o próprio. Que, nem por um momento, Conny tivesse pensado que ele pudesse estar envolvido devia-se ao facto de Billy ser polícia e de a maior parte das pessoas, com razão, não conseguirem imaginar um polícia a cometer um crime grave. Ainda não sabia o que faria em relação ao assunto, mas conseguiria ganhar algum tempo se decidisse ajudar Conny.

— Parece-me bastante rebuscado — observou Billy, como se continuasse a ponderar se devia acreditar ou não naquela história. — Mas eu gostava realmente da Jennifer, por isso, posso dar uma vista de olhos à imagem para ver o que posso fazer.

— Obrigado, obrigado. — Era impossível ignorar o alívio e a gratidão na voz do homem mais velho. Era evidente que se preparara para mais um «não».

— Posso dar-lhe acesso a tudo o que ela andou a publicar no Facebook e nas outras redes sociais, desde finais de Junho — continuou. — Pode ficar com essas fotografias, se quiser.

Billy assentiu, sem responder, ainda inseguro quanto à maneira como deveria proceder. A única coisa que sabia era que não queria passar mais tempo naquele café, com o pai enlutado de Jennifer. Quase como se tivesse sido combinado, o seu telemóvel começou a tocar. Billy pegou nele. Era Torkel.

A sua outra vida chamava por si.


Billy reparou que Vanja continuava no escritório quando entrou, apressado, na Sala e se sentou na cadeira vazia, mais perto da porta.

— Desculpem. O que é que perdi?

— Nada, estávamos à tua espera — respondeu Torkel, enquanto se levantava da cadeira onde estivera sentado, do outro lado da mesa, com uma pasta meio vazia à sua frente. — Deixem-me começar por dizer que estou muito contente por estarmos todos juntos outra vez — continuou, olhando para cada um deles. — É mesmo muito bom.

Ursula esteve prestes a acrescentar que faltava Sebastian para que estivessem todos novamente reunidos, mas deixou passar. Tendo em conta a companhia, um comentário desse tipo iria apenas estragar a, até então, boa disposição.

— O quê, estás de volta? — perguntou Billy, olhando para Vanja, ao mesmo tempo que se esticava para uma das garrafas de água que estavam em cima da mesa.

— Sim, estou de volta!

— Que bom! Mas porquê, pensei que estavas a gostar de Uppsala?

— Sim, estava. Depois conto-te.

— Acho que, infelizmente, vamos ter de falar disso agora — interrompeu Torkel. — Encontraram um corpo num apartamento de Gävle, esta manhã. — Continuou a olhar para Vanja antes de pegar na pasta que estava em cima da mesa e a abrir. Vanja franziu a testa. Reparara numa espécie de pedido de desculpa no olhar de Torkel. Como se soubesse que ela não iria gostar do que tinha para dizer.

Um corpo em Gävle.

Que tinha isso que ver com as suas razões para deixar Uppsala?

Era um facto que Gävle ficava na jurisdição de Gävleborg, que, por sua vez, pertencia à região policial Centro, que era dirigida por Uppsala. Onde Anne-Lie e Sebastian Bergman se encontravam naquele momento. Mas era tudo. Seria por isso que iriam falar do motivo pelo qual Vanja se demitira? Parecia-lhe muito rebuscado.

Assim que viu as fotografias que Torkel colocou em cima da mesa à frente deles, Vanja apercebeu-se de que, afinal, não era.

Antes pelo contrário.

— Eh, pá, porra! — Vanja não conseguiu controlar-se quando viu as fotografias. Tanto Ursula como Billy se viraram, curiosos, para ela, mas Vanja apenas se afundou mais na cadeira, cruzou os braços sobre o peito, baixou o queixo como uma criança a fazer birra e lançou um olhar furioso a Torkel e às imagens em cima da mesa, plenamente consciente do caminho que a reunião ia tomar.

— Rebecca Alm — disse Torkel, apontando para uma das fotografias, na qual se via uma mulher deitada de barriga para baixo em cima de uma cama.

As pernas caídas sobre a beira da cama.

Nua da cintura para baixo, à excepção das meias.

Com um saco enfiado na cabeça.

— Encontrada hoje de manhã, como já disse, por um dos representantes dos proprietários. Foi logo possível fazer a ligação com uma investigação em curso em Uppsala, por isso, o caso ficou sob a jurisdição deles.

— Sob a jurisdição da Anne-Lie — acrescentou Vanja.

— Exactamente — confirmou Torkel com um movimento da cabeça.

— Algum de vocês vai explicar ou vamos ter de adivinhar o que vem a ser isto? — interrompeu Ursula, virando-se para Vanja, que olhou para Torkel, que, por sua vez, encolheu um pouco os ombros e fez um gesto de «podes explicar tu». Vanja inspirou fundo e endireitou-se na cadeira.

— Estávamos a investigar um violador em série que sedava as vítimas e lhes enfiava um saco na cabeça. Exactamente assim — disse, fazendo um gesto para as fotografias que Torkel colocara em cima da mesa. Billy inclinou-se por cima da mesa e puxou-as mais para si. — Anne-Lie, a minha chefe em Uppsala, contratou Sebastian para ajudar na investigação e foi por isso que me fui embora — concluiu Vanja.

— E agora ela também quer a nossa ajuda — constatou Billy.

— Como ela própria disse: ontem, tinham um violador em mãos; hoje, muito provavelmente, têm um assassino — confirmou Torkel.

— Ela é boa nesse aspecto — acrescentou Vanja. — Sabe pedir ajuda quando precisa.

A decepção subjacente ao elogio era clara. Era excelente fazer uso de todos os recursos disponíveis, mas isso significava que fosse obrigada a trabalhar com Sebastian outra vez. Que todos eles tivessem de trabalhar outra vez com Sebastian.

— Vamos ter de aceitar a investigação — continuou Torkel sem conseguir esconder o tom desculpabilizador na voz.

— Sim, já percebi — respondeu Vanja, ligeiramente mais brusca do que pensara.

— E o que é que estás a pensar? — perguntou-lhe Torkel enquanto se aproximou de Billy, pegou nas fotografias de Rebecca e as guardou novamente na pasta. — O que queres fazer?

O que queria, realmente, fazer? De certa forma, e estranhamente, sentia-se mais desanimada do que indignada. Parecia que não havia maneira nenhuma de conseguir evitar Sebastian Bergman. Vezes sem conta, ele conseguira imiscuir-se nas investigações do grupo, chegar cada vez mais perto da equipa, e dela. Não tinha importância o número de vezes que se livravam dele, porque regressava sempre. Como um maldito bumerangue humano. Se Vanja acreditasse em poderes superiores, no carma ou no destino, acreditaria que, de alguma forma, estava destinada a ter a seu lado aquele merdas insuportável.

Como um castigo.

Como uma prova.

Como algo predestinado.

— Parece que não consigo livrar-me dele... — Vanja resumiu os seus pensamentos com um ligeiro encolher de ombros.

— Há outros departamentos onde podes trabalhar — propôs Torkel.

Verdade, mas Sebastian já conseguira afastá-la de Uppsala. Iria deixar que a afastasse também da Brigada de Homicídios? Era o seu local de trabalho. Ela pertencia ali. Ele não. Havia limites para o poder que permitiria que tivesse sobre ela. Estava na hora de se erguer. Exactamente como da última vez que ele voltara e ela ponderara partir. Isso seria facilitar demasiado. Era cobarde.

— Não, vamos continuar. Vou ter de tirar o melhor de uma má situação.

— Tens a certeza?

Vanja apenas assentiu com a cabeça.

— Posso ver o que posso fazer quando chegarmos lá, mas não sei, ao certo, se conseguirei exigir que seja afastado.

— Eu sei.

— Mesmo achando que ninguém aqui dentro quer realmente trabalhar com ele outra vez — continuou Torkel, olhando para Ursula e Billy. Este assentiu, mas um pouco ausente. Ursula sentiu que começava a ficar ligeiramente irritada. Ela fora a pessoa que, da primeira vez, mais se opusera ao regresso de Sebastian. Muita coisa acontecera desde então, e, enquanto os colegas conspiravam contra ele, ela sentiu que não podia continuar calada. Que se lixasse a boa disposição.

— Eu, por acaso, não tenho nada contra trabalhar com ele outra vez — disse calmamente, fitando cada um dos colegas como se estivesse a convidá-los a protestar. Ninguém o fez, mas Vanja olhou-a como se a tivesse traído e, sem dizer uma palavra, levantou-se e deixou a Sala.

— Então, pronto, vamos embora — suspirou Torkel, sentindo a felicidade daquela manhã desvanecer-se rapidamente. Como sempre que Sebastian Bergman aparecia em cena.


O corpo continuava no quarto.

Billy deu consigo à porta a olhá-lo fixamente. Uma mulher morta, numa cama. Era impossível parar o comboio de pensamentos.

No carro, a caminho de Gävle, numa viagem de duas horas que Billy reduzira para menos de hora e meia, perguntara-se se deveria trazer o nome de Jennifer à conversa. Afinal de contas, tinham trabalhado todos juntos algumas vezes. Ursula até gostara de Jennifer, se Billy bem se recordava. Seria a coisa mais natural do mundo perguntar-lhes se tinham ouvido falar do que acontecera, mas, ao mesmo tempo, deixava-o pouco tranquilo que se pudesse notar nele algo que não estava como devia. My não reparara em nada, mas ela também não era polícia e nunca tinha trabalhado com ele.

Além disso, Vanja era como um maldito detector de mentiras humano.

Um tom de voz falso, uma breve e inesperada hesitação, e ela atacava logo como uma cascavel.

Por outro lado, se, mais tarde, os colegas viessem a descobrir que ele sabia dos acontecimentos desde o princípio e não dissera nada durante toda a viagem, também pareceria estranho. Estivera prestes a dizer alguma coisa quando se detivera.

Vanja sabia que ele fora infiel.

Billy contara-lhe durante um momento de fraqueza, quando sentira um peso na consciência. Agora, parecia-lhe quase ridículo sentir remorsos por ter sido infiel, mas sentira e contara-lhe.

Contara-lhe também com quem?

Teve de reflectir muito bem. Não, parecia-lhe que não. Ou contara-lhe? Tentou recordar-se da situação. Tinham estado sentados a ver as filmagens de uma bomba de gasolina, em busca de uma autocaravana.

Ele confessara-lhe.

Ela perguntara-lhe com quem.

E ele respondera... que não tinha importância.

Sim, fora assim que se passara. Estava certo disso. Então, a questão agora era: tocar no assunto ou não?

— Ouviram falar do que aconteceu a Jennifer? — perguntou Vanja, finalmente, decidindo, assim, por ele.

— Sim, ouvi — respondeu Ursula. — Horrível. Vocês não se davam fora do trabalho também? — perguntou, virando-se para Billy.

— Sim, cheguei a encontrar-me com ela, depois de termos estado juntos em Kiruna, mas não foram muitas vezes — respondeu Billy, concentrando-se na estrada e na condução.

— Nunca fui muito à bola com ela, para ser sincera — reconheceu Vanja, em voz baixa, do banco de trás, enquanto, através do vidro, olhava para a paisagem que passava a uma velocidade que dava direito à apreensão da carta de condução de Billy.

— Isso foi porque ela te substituiu — respondeu Billy, satisfeito pela rápida mudança de conversa, embora cuidadoso para não parecer que tinha Jennifer em melhor consideração do que Vanja.

Não queria compará-las como agentes da Polícia.

Ele próprio comparara-se com Vanja uma vez, e os instintos competitivos dela e a sua incapacidade de aceitar que nem sempre era a melhor levara-os a distanciar-se. Antes disso, tinham sido como irmãos. Agora eram colegas, amigos até, mas a proximidade e a confiança que tinham existido nunca mais haviam sido restabelecidas. «Uma sorte, talvez», pensou Billy. Se tivessem continuado tão próximos, talvez também lhe tivesse contado com quem fora infiel.

As coisas já eram suficientemente más assim.

— Não, era porque nunca fui muito à bola com ela — insistiu Vanja. — Parecia que queria que o trabalho fosse sempre uma maldita excitação. Corridas, perseguições, tiros e isso tudo.

— Acho que estás a ser um pouco injusta com ela — contrapôs Billy.

— Ela foi mergulhar sozinha numa gruta em França!

— E morreu!

Aquilo saíra-lhe mais alto e mais brusco do que pensara. A voz tremera-lhe um pouco e fizera-se silêncio no carro.

— Desculpa, fui insensível — ouvira-se dizer, em voz baixa, do banco traseiro. Vanja colocara uma mão no ombro de Billy e apertara-o. — Desculpa, sei que gostavas dela e eram amigos.

— Sim...

Aumentara ainda mais a velocidade e não tinham voltado a falar de Jennifer. Billy esperava que continuassem assim.

— Com licença.

Um dos técnicos tentava entrar no quarto. Billy deu um passo atrás com um suspiro profundo.

Concentração.

Voltou para a sala, passando pela cozinha. Os técnicos ainda não tinham encontrado nenhum telemóvel nem computador mas também ainda não tinham revistado todos os armários nem gavetas. Era por ali que pensava começar.

Ser um bom polícia.

Não pensaria mais em Jennifer.

Ela deveria ocupar menos espaço na sua cabeça, não mais.

Os gritos tinham de se transformar num sussurro.


Vanja estava sentada nas escadas do prédio, encostada à parede, a segurar um relatório muito preliminar — na verdade, pouco mais do que algumas anotações — dos primeiros agentes a chegar ao local do crime. Não tinha muito que fazer no local do homicídio. Esse era o domínio de Billy e, sobretudo, de Ursula. Porém, a viagem até Gävle permitira-lhe adiar por mais umas horas o reencontro com Sebastian.

Deu uma vista de olhos ao texto que tinha à sua frente.

Rashid Nasir chegara ao apartamento pouco depois das nove da manhã daquele dia. Abrira a porta com uma chave-mestra e encontrara o corpo. O 112 recebera o alarme às 9h16. O primeiro agente chegara ao local menos de dez minutos depois, confirmara as informações dadas por Rashid, vedara o acesso ao local e chamara reforços e o pessoal técnico. Os técnicos da Polícia Científica ainda estavam a trabalhar no pequeno apartamento, mas a única coisa que podiam afirmar, em termos preliminares, era que não havia qualquer sinal de arrombamento da porta da entrada. Encontravam-se no terceiro andar, por isso, era pouco provável que o agressor tivesse entrado por alguma janela. Vanja tomou nota para não se esquecer de descobrir quantas chaves da casa havia em circulação. Rashid tinha uma. Talvez houvesse mais. Aquele era praticamente todo o material de que dispunha. Ainda ninguém falara com os vizinhos. Não sabia quando Rebecca fora vista viva pela última vez. Nem há quanto tempo vivia ali. Nenhum dado sobre a sua procedência. Presumiu que Carlos já teria reunido a informação mais importante. Contudo, se não fosse o caso, Billy conseguiria obtê-la em minutos, quando chegassem à sede da Polícia. Todavia, ela ainda se encontrava ali. Poderia fazer algo mais útil do que ficar apenas sentada na escada.

Levantou-se, foi até à porta mais próxima da de Rebecca e tocou. A porta abriu-se de imediato, como se a pessoa, um homem barbudo de uns trinta e cinco anos, vestido com uma camisa de flanela aos quadrados e calças de ganga demasiado largas, tivesse estado a seguir os acontecimentos na escada através do óculo da porta.

— Bom dia. Vanja Lithner, da Brigada de Homicídios — apresentou-se, mostrando a sua identificação. — Posso fazer-lhe algumas perguntas?

— Claro — respondeu o homem com a atenção dividida entre Vanja e o choro de criança que vinha do interior do apartamento e que se tornava cada vez mais intenso. — Entre, entre. Pensei que ele voltaria a adormecer... — disse o homem, e abriu completamente a porta antes de se dirigir para o interior da habitação.

Rapidamente, o som do choro tornou-se mais audível quando outra porta se abriu e o homem começou a falar calmamente com alguém. Vanja entrou, fechou a porta atrás de si e passou em frente do carrinho de bebé que estava no corredor. Mesmo defronte, havia um quarto onde, através da porta entreaberta, Vanja conseguiu ver uma cama de casal por fazer. Virou à direita e entrou na sala de estar. Havia um sofá cinzento diante de uma mesa de centro redonda de madeira escura, com uma prateleira de apoio por baixo. Uma única poltrona com escabelo encostada à esquina do sofá. Paredes claras e limpas, com quadros escolhidos por serem apreciados e não pelo seu valor monetário. Um espaço bastante desarrumado devido aos brinquedos espalhados pelo chão e uma cozinha de brincar encostada à parede, por baixo da janela. Um lar onde viviam pessoas. Aconchegantemente desordenado. Vanja sentia-se bem ali.

— Sente-se, sente-se — disse o homem, apontando para o sofá quando saiu do quarto contiguo à sala de estar e que Vanja presumiu ser o quarto do bebé, uma vez que ele trazia num dos braços um menino sonolento, de fralda e T-shirt e chucha na boca.

Com um aceno, Vanja saudou a criança, que esfregou um dos olhos com as costas da mão antes de virar rapidamente a cabeça e enterrar a cara no pescoço peludo do pai. Vanja sentou-se, olhando para a cozinha onde o homem acabava de pegar num frasco de papa, abrindo a tampa e colocando-o no microondas. Enquanto a comida aquecia, encheu um copo infantil com água e deu-o à criança, que bebeu sofregamente ao mesmo tempo que contemplava Vanja com olhos cheios de cepticismo, por ter acabado de acordar.

Jonathan deveria ser um bom pai, pensou logo Vanja. Poderiam ter uma família assim. Tinham falado sobre o assunto. Sobre ter filhos. Em parte na brincadeira, mas não totalmente. Parecia-lhe um passo natural, que queria muito dar com Jonathan. Fazia trinta e cinco anos no próximo ano.

— Como é que se chama? — perguntou ao homem, que colocara um babete, um prato fundo de plástico e uma pequena colher verde de borracha em cima da mesa, em frente à cadeira alta.

— Ah, desculpe, chamo-me Pierre. Este é o Grim — respondeu e fez um gesto com a cabeça para o filho que tinha ao colo. O microondas apitou e Pierre abriu a porta, retirou o frasco de papa e colocou-o em cima da bancada. Depois, foi até à cadeira alta e sentou Grim nela. O bebé começou logo a gemer e a levantar os braços para que o pai o tirasse dali.

— Sim, sim, sim, espera um pouco e já vais ver... — disse-lhe Pierre antes de pegar no frasco da comida.

Sentou-se à mesa da cozinha ao lado de Grim, despejou o conteúdo do frasco no prato, mexeu-o e soprou um pouco enquanto pegava no babete e o colocava à volta do pescoço de Grim, antes de, finalmente, enfiar a colher verde de borracha na comida. Aproximou o prato do menino, que pegou na colher e começou a tentar enfiá-la na boca com um resultado irregular. Vanja reparou que não devia ser a primeira vez que Pierre ficava sozinho em casa com o filho.

— A sua vizinha, Rebecca... — começou Vanja, agora que a situação parecia estar mais controlada e Pierre poderia dividir a sua atenção entre ela e o filho. — Há quanto tempo é que vive aqui?

— Não tenho a certeza, nós vivemos aqui há dois anos e meio, quase, e ela já cá estava quando nos mudámos.

— Então não a conhecia bem?

— Não a conhecia de todo, na verdade. Ups, calma... — Inclinou-se rapidamente para a frente e, com cuidado, guiou a mãozita com a colher cheia por cima da mesa, quando parecia que Grim ia começar a dirigir uma orquestra com movimentos majestosos.

— Ela era um bocado estranha.

— Como assim?

— Nunca cumprimentava, só murmurava para si própria, parecia estar mal com tudo, quase nunca a víamos. — Pierre pegou na colher com que servira a comida, apanhou o que caíra no babete e voltou a colocá-lo no prato. — Ela achava que estava a ser seguida.

— Por quem? — perguntou Vanja, endireitando-se no sofá.

— Não sei, acho que ela também não sabia muito bem, mas era à volta disso que toda esta questão dos detectores de fumo girava.

Vanja levantou-se do sofá, aproximou-se da mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. Grim olhou-a de olhos arregalados e colher na boca.

— Conte-me.


Já começava a anoitecer quando Billy, Vanja e Ursula chegaram a Uppsala. Vanja indicou a Billy onde podia estacionar o carro, certificou-se de que lhes davam cartões de identificação e chaves de acesso e levou-os ao oitavo andar. Abriu a porta do departamento que deixara há pouco mais de um dia e onde Carlos e Sebastian estavam agora sentados, cada um à sua secretária. Ambos levantaram os olhos do que estavam a fazer e Vanja lançou um olhar rápido e duro a Sebastian antes de se dirigir a Carlos.

— Apresento-te o Billy e a Ursula, colegas da Brigada de Homicídios — disse.

Carlos levantou-se e aproximou-se dos que chegavam.

— Sou o Carlos Rojas, bem-vindos. — Apertaram as mãos e, de seguida, Carlos virou-se para as secretárias que estavam junto à janela. — Eu sento-me ali e o Sebastian ali — disse, apontando. — Presumo que a Vanja vá ocupar o lugar dela ali ao fundo outra vez, mas, fora isso, podem sentar-se onde quiserem. Para as palavras-passe, os dados de acesso e essas coisas, é só virem ter comigo.

— Obrigado — responderam Billy e Ursula em uníssono e atravessaram a pequena sala. Billy escolheu a secretária que ficava mais longe da janela, Ursula sentou-se na que estava em frente da de Sebastian. Sorriu-lhe quando se sentou, mas Sebastian desviara a atenção para outro lado.

Para Vanja.

Obviamente.

Levantou-se da cadeira e foi ter com ela.

— Olá — começou por dizer, esforçando-se por parecer o mais aberto e arrependido possível. Não que Vanja se dignasse sequer a olhar para ele, mas ainda assim... — Sei que não me queres aqui — continuou em voz baixa.

— Apesar disso, estás aqui — respondeu Vanja, passando por ele e dirigindo-se ao seu antigo lugar. Sebastian hesitou. Quando Torkel chegara, Sebastian perguntara-lhe por Vanja e ficara a saber que ela pensava voltar. Que não estava nada contente com a situação, mas daria o seu melhor. Sebastian não sabia muito bem o que isso significava. De certeza, evitá-lo a todo o custo.

Compreensível. Mas não podia aceitar.

Precisava dela.

Conseguira uma última oportunidade para se redimir. Desta vez, não ia desperdiçá-la. Não ia desiludi-la nem magoá-la. Vanja acabaria, mais dia, menos dia, por o aceitar. Não como pai, já nem se atrevia a esperar isso, mas como alguém próximo. Alguém que pudesse suportar. Um pouco patético, mas poderia contentar-se com isso. Tinha consciência de que não seria fácil, mas tencionava seguir o plano que delineara no elevador antes do primeiro reencontro com ela.

— Desta vez vai ser diferente — disse-lhe e seguiu-a até à sua secretária.

— Não me parece — constatou Vanja rapidamente enquanto se sentava na sua cadeira e se virava de costas para Sebastian.

— Vamos ser apenas colegas a trabalhar na mesma investigação. Nada mais. Prometo.

— Até agora, nunca cumpriste uma promessa, por isso...

O que podia responder? Não se lembrava de todas as promessas que lhe fizera, mas depreendeu que as quebrara. Era o que costumava fazer. Tanto as pequenas como «claro que fico para o pequeno-almoço», como as grandes: «vou proteger-te para sempre». Toda a sua vida era o resultado de mentiras e promessas vãs.

— Eu sei que fiz muitas coisas estúpidas, que te magoei, mas...

Vanja girou a cadeira e olhou-o nos olhos pela primeira vez desde que entrara na sala.

— Neste momento, tens alguma coisa a dizer sobre o caso?

— O quê? Não... ou sim... — Sebastian olhou para o gabinete de Anne-Lie, onde Torkel e ela estavam sentados a conversar. — Mas o Torkel disse que íamos fazer um apanhado da situação assim que vocês chegassem, por isso, espero até lá.

— Então, porque é que estás aqui?

— O que queres dizer com isso?

— Íamos ser apenas colegas a trabalhar no mesmo caso. Nada mais do que isso. — Vanja encostou-se de novo na cadeira e cruzou os braços sobre o peito, como se quisesse marcar uma distância entre eles com todo o seu corpo. Não apenas com palavras. — Se não tens nada a dizer em relação ao caso, porque continuas aí parado?

— Mas os colegas também falam uns com os outros, ou não? — tentou Sebastian.

— Pois, mas nós não — declarou Vanja e virou-lhe ostensivamente as costas, de novo.

Sebastian continuou no mesmo sítio mais alguns segundos, ponderando se valeria a pena insistir, mas apercebeu-se de que apenas a irritaria se continuasse ali.

— Está bem... — disse em voz baixa, mais para si próprio, e deixou-a em paz. Reparou que Ursula o observava com um sorriso que não soube bem interpretar. Talvez com compaixão e divertida, se é que isso existia. Se Vanja era a pessoa que estava menos satisfeita por voltar a vê-lo e Ursula a que estava mais, havia alguém que ficava entre ambas. Ou, pelo menos, foi isso que Sebastian depreendeu. Mais valia tratar de tudo de uma vez por todas, fazer a ronda à equipa completa, pensou enquanto se dirigia a Billy, que estava a montar o seu equipamento.

— Olá, há quanto tempo!

— Pois.

Algo naquela resposta curta deixava claro que, para Billy, não importava que tivessem ficado mais tempo ainda sem se ver.

— Como estás? — perguntou-lhe Sebastian num tom natural enquanto se sentava no canto da secretária. Billy lançou-lhe um olhar que significava que percebia perfeitamente que, naquela pergunta, havia algo mais do que a mera curiosidade sobre o seu estado de saúde. Sebastian era uma das poucas pessoas — na verdade, agora a única —, que conhecia a sua obscura ansiedade. Que vira até onde ele estava disposto a ir.

— Estou bem, obrigado — respondeu Billy em tom neutro. — E tu, como tens passado?

— Não tens feito pequenas excursões a lojas de animais, canis ou algo assim? — continuou Sebastian sem desviar os olhos do colega. Billy endireitou-se ao mesmo tempo que olhava em volta. Nenhum dos outros na sala parecia prestar-lhes atenção. Então, deu um passo para Sebastian e baixou a voz.

— Essa piada começa a enjoar.

— Não é uma piada.

— Pára. Estou a falar a sério. — Havia um tom duro na voz de Billy que fez com que Sebastian não duvidasse disso por um segundo sequer. — Sei o que viste, mas isso foi naquela altura. Não aconteceu mais nada desde então.

— Okay, tudo bem.

— Por isso, esquece.

Billy inclinou-se ainda mais para a frente, ficando tão próximo de Sebastian que este sentiu a respiração contra o seu rosto. Olharam-se fixamente por alguns segundos. Por breves instantes, Sebastian foi invadido por uma nova sensação.

Billy podia ser perigoso.

E não apenas para um pobre gato.

— Tudo bem, não volto a falar sobre isto.

— Óptimo — respondeu Billy. Recuou um passo e continuou a pôr em ordem a sua nova mesa de trabalho. — Vai ser bom trabalhar contigo outra vez — acrescentou como se a troca de palavras dos últimos segundos não tivesse ocorrido. Sebastian levantou-se da secretária e regressou ao seu lugar, onde Ursula o esperava. Deu-lhe um abraço rápido mas amistoso.

— É bom ver-te outra vez.

— Uma de três — respondeu Sebastian com um sorriso e fez um gesto vago para Vanja e Billy. — É mais do que normalmente gostam de mim.

Ursula percebeu que aquilo era uma brincadeira, mas, infelizmente, era absolutamente verdade.


Estavam os sete reunidos numa das maiores salas de reuniões, que fazia com que a Sala na sede de Kungsholmen parecesse um local a precisar de remodelação urgente. Parquet lacado em espinha, de cor branca, com um grande tapete vermelho rectangular por baixo de uma mesa de madeira de carvalho maciça para doze pessoas. As cadeiras de couro preto e costas altas eram mais confortáveis do que a maior parte das que tinha em casa, pensou Billy ao sentar-se. Do tecto, a iluminação moderna, mas funcional, pendia sob a forma de três longos tubos de alumínio com lâmpadas embutidas. Numa das paredes, um quadro branco com várias fotografias partilhava o espaço com um mapa de Uppsala. O mapa tinha uma fina placa de vidro por cima, o que permitia fazer anotações directamente num local geográfico e apagá-las quando já estivessem desactualizadas ou precisassem de ser corrigidas. Torkel tentou não se esquecer de arranjar para a Sala um modelo igual de Estocolmo. Ao longo de uma das paredes, havia um aparador de portas abertas, cheio de material de escritório — papel, blocos, canetas, pastas e blocos de post-it —, em pilhas bem ordenadas. Em cima do aparador, havia uma fruteira e várias garrafas de água e refrigerantes. No tecto, um projector de última geração apontado para a parede do quadro branco onde havia uma tela enrolada até acima. Nos dois cantos da sala, em de tripés rotativos, estavam colocados ecrãs para videochamadas. Ao longo dos anos, a Brigada de Homicídios já ocupara diversas salas por todo o país, mas aquela era, de longe, a mais luxuosa. Parecia mais que estavam a preparar-se para uma reunião da direcção de alguma empresa milionária cotada em Bolsa do que para falarem sobre violações e homicídios.

— Então, vamos lá — começou Anne-Lie por dizer enquanto corria a cortina de riscas cor de laranja, que tapava toda a parede de vidro que dava para o corredor e, assim, os deixava com total privacidade. — É melhor começarmos pelo elefante na sala e despacharmos já esse assunto. Sebastian...

Todos se viraram para Sebastian, que acabava de se inclinar para trás na cadeira ao lado da de Ursula, com uma garrafa de água mineral na mão.

— Ele vai ficar — especificou Anne-Lie. — Quero que ele participe neste caso, e a investigação é minha.

— Expliquei-lhe que, habitualmente, somos nós quem assume a responsabilidade pelas investigações, quando somos chamados — acrescentou Torkel, olhando para Vanja, mas foi interrompido por Anne-Lie.

— Aqui não vai ser assim. Fico muito grata pela vossa ajuda, mas não me vou ajoelhar como uma saloia toda impressionada com a chegada da grande equipa de Estocolmo.

Ursula apercebeu-se de que gostara logo de Anne-Lie. Pela atitude mas também pela simples razão de ter utilizado a expressão «saloia». Há muito tempo que Ursula defendia a tese de que a competência dos colegas se baseava numa relação inversamente proporcional à distância a que se encontravam das grandes cidades. A escolha de palavras poderia indiciar que encontrara uma alma gémea na nova colega e chefe da investigação.

— Mas também sabemos — prosseguiu Anne-Lie, virando-se directamente para Sebastian — que vais manter a pila dentro das calças e portar-te como uma pessoa normal. Senão vais para o olho da rua.

Sim, Ursula gostava definitivamente dela.

Sebastian assentiu e engoliu um trago de água, limpando a boca com as costas da mão.

— Será que posso tirá-la de vez em quando para mijar?

Anne-Lie nem se dignou a responder-lhe. Em vez disso, puxou uma cadeira para a cabeceira da mesa e sentou-se.

— Óptimo, então, temos isto esclarecido. Agora, vamos continuar para as coisas importantes. Quem quer começar?

Percorreu a mesa com o olhar. Carlos levantou-se e apertou o fino colete de penas que vestia por cima de uma camisa e da camisola de lã, antes de colocar no quadro branco, ao lado das outras, uma fotografia tipo passe ampliada de uma mulher. Cabelo fino e escorrido castanho, olhos escuros, maçãs-do-rosto bem definidas, lábios finos.

— Rebecca Alm, trinta anos, nascida em Nässjö, mudou-se para Gävle aos vinte e dois. Vivia lá há oito anos, portanto. Trabalhava a tempo parcial na cantina da escola Ängsskolan, uma escola cristã privada. Não se dava muito com os colegas de trabalho. Pelos vistos, parecia ser um pouco solitária. Não tinha nenhum diagnóstico feito, mas a colega com quem falei disse que achava que, de vez em quando, sofria de depressão ou de algo parecido — concluiu Carlos. — É tudo o que sabemos sobre ela até agora, mas vou continuar a investigá-la.

Com um pequeno gesto de cabeça para si próprio, como se quisesse confirmar que tinha terminado, Carlos regressou ao seu lugar.

— Encontrámos um telefone em casa dela, mas nenhum computador — continuou Billy, indicando com um gesto de cabeça a fotografia de Rebecca no quadro. — Vou investigá-lo o mais depressa possível e ver se a encontro nas redes sociais.

— O seu vizinho disse que ela achava que estava a ser seguida — acrescentou Vanja.

— Por quem? — perguntou Torkel, inclinando-se, interessado, para a frente.

— Isso, ele não sabia — respondeu Vanja com um pequeno encolher de ombros. — Mas ela tinha-se recusado a instalar detectores de fumo por achar que podiam ter câmaras de filmar.

— Mas porque havia alguém de querer vigiá-la? — questionou Anne-Lie ao mesmo tempo que se levantava para escrever «vigiada?» junto à fotografia de Rebecca. — Deve ter falado com alguém sobre isso, não?

Virou-se para Carlos, que imitou o leve encolher de ombros de Vanja.

— Que nós saibamos, não. Pelo menos, até agora.

— Okay. E sabemos há quanto tempo morreu?

Ursula endireitou-se na cadeira. Sebastian olhou-a pelo canto do olho, perguntando-se se o convite para jantar ainda estaria de pé. De contrário, esperava-o mais uma noite solitária no quarto de hotel. Tencionava fazer o seu melhor para cumprir a promessa de mudança e melhoria que fizera a Vanja, e algumas horas na companhia de Ursula facilitar-lhe-iam a tarefa.

— Tendo em conta as circunstâncias e o estado de decomposição em que o corpo se encontrava, eu diria que há umas duas semanas, mais coisa, menos coisa.

— O vizinho viu-a no dia 2 de Outubro — disse Vanja.

— Esse também foi o último dia em que foi trabalhar — acrescentou Carlos.

— E ninguém deu pela sua falta? — perguntou Anne-Lie, enquanto escrevia «2/10» com um ponto de interrogação à frente do nome de Rebecca.

— Sim, telefonaram-lhe e dois colegas até foram a sua casa, mas como não atendeu... — Carlos abriu os braços num gesto que indicava que fora até ali que chegara o interesse dos colegas. — Pelos vistos, ela já se ausentara do trabalho algumas vezes no passado, mas voltava sempre.

Uma pessoa solitária.

As cidades estavam cheias delas. Quanto maiores, mais casos havia.

Pessoas como Rebecca, que podiam ausentar-se durante dias, semanas, sem que ninguém sentisse a sua falta. Sebastian deu por si a pensar quanto tempo passaria até alguém o encontrar, se tivesse um ataque cardíaco no seu apartamento da rua Grev Magnigatan. Muito tempo. Provavelmente, mais de duas semanas. Quem sentiria a sua falta? Talvez Ursula. Mas não o suficiente para se inquietar com a possibilidade de algo lhe ter acontecido.

— Ninguém reagiu ao cheiro? — perguntou Vanja.

— O apartamento estava bastante frio; ela era pequena e magra, quase esquelética, não havia muita matéria orgânica para decompor. Pode dizer-se que ficou praticamente mumificada de imediato — explicou Ursula.

«Sempre era alguma coisa», pensou Sebastian. Com os seus quilos a mais à volta da cintura, provavelmente começaria a largar algum cheiro. Talvez até começasse a escorrer líquido através do chão para a casa da velha Ekensköld, do andar de baixo. Esse seria, a partir de agora, o seu argumento para ignorar as palavras da sua médica quando lhe dissesse que se sentiria melhor se perdesse alguns quilos.

— Se houver hipnóticos no sangue ou vestígios de esperma, o exame forense vai detectá-los — continuou Ursula, folheando as notas dispostas em cima da mesa à sua frente. — Tinha um pequeno hematoma no pescoço, talvez provocado por uma agulha, mas só vamos ter a certeza depois da autópsia — concluiu, recostando-se na imponente cadeira.

Anne-Lie assentiu e dirigiu-se para o mapa com um marcador na mão.

— A Ida Riitala foi atacada aqui... — fez um pequeno círculo no mapa e escreveu o número «1» ao lado. — ... no antigo cemitério, no dia 18 de Setembro. — Escreveu «18/9» ao lado do círculo.

— A seguinte foi Therese Andersson, cinco dias depois, aqui. — Desenhou um novo círculo, um «2» e uma nova data: «23/9». — E, depois disso, ela vai para Gävle. — Escreveu o nome de «Rebecca» fora do mapa e «2/10» com um ponto de interrogação à frente. — Klara Wahlgren aqui, a 13 de Outubro. — Um círculo, um «4» e «13/10» finalizaram as anotações. Anne-Lie pousou o marcador e recuou um passo. Todos estudaram o mapa em silêncio.

— Uppsala, Uppsala, Gävle e outra vez Uppsala — disse Sebastian.

— Sim, e então? — perguntou Carlos.

— Poderia significar que as vítimas foram escolhidas previamente — respondeu Vanja no lugar de Sebastian, o que o fez sentir uma ponta de orgulho.

Ela estava a pensar bem. Estava a pensar como ele.

Tal pai, tal filha.

— Ou, pelo menos, Rebecca foi. — Sebastian desenvolveu o raciocínio e dirigiu um olhar de aprovação a Vanja, que, naturalmente, o ignorou. — Há alguma ligação entre as vítimas de Uppsala e Alm?

— Que saibamos, não — respondeu Carlos. — Mas ainda não falámos com as outras três sobre isso.

— Há uma relação entre Ida e Klara — corrigiu Vanja.

— Em que aspecto?

— Conhecem-se. Cantaram no mesmo coro.

Sebastian assentiu para consigo. Duas das vítimas conheciam-se. Para chegar à outra, o agressor mudara de cidade. Poderiam estar a chegar a qualquer coisa com aquilo.

— Sabemos como ele entrou? — perguntou Torkel, olhando para Billy e Ursula, que tinham estado na habitação.

— Não — respondeu Ursula. — A fechadura estava intacta. Estamos a tentar perceber quantas chaves existem em circulação.

— Poderá ter sido ela a abrir-lhe a porta?

— Os planos que tinha era que ela continuasse viva, por isso, não é muito provável que isso tenha acontecido, pois não? — respondeu Sebastian sem tentar esconder que achava aquela a pergunta mais absurda que até então algum deles fizera.

— Ele pode ter usado uma máscara, empurrado a porta assim que ela a abriu — insistiu Torkel, tentando não deixar transparecer a irritação que sentia.

— A porta tinha óculo? — quis saber Sebastian, virando-se para Ursula, que assentiu em silêncio.

— Uma mulher que acredita que está a ser vigiada espreita pelo visor da porta, vê uma pessoa do outro lado a usar uma máscara, não abre a porta — completou Sebastian, usando um tom como se estivesse a explicar algo a uma criança de cinco anos. Torkel estava prestes a responder quando Anne-Lie os interrompeu.

— Mas tens alguma coisa para acrescentar ou só estás aqui para criticar as ideias dos outros?

— Ainda bem que perguntas. — Sebastian levantou-se e aproximou-se do quadro branco. Ficou de costas para os colegas e estudou o quadro durante alguns segundos. Costumava começar as suas conferências daquela maneira. Em silêncio e de costas para o público. A ouvir o burburinho desaparecer. A conseguir a máxima atenção e expectativa.

— Hoje, de preferência — ouviu-se Torkel, impaciente, dizer.

Sebastian virou-se com um suspiro.

— O autor dos factos fantasiou sobre os ataques durante bastante tempo, e a primeira vítima foi, provavelmente, atacada num ambiente com o qual ele estava familiarizado, não muito longe da sua própria casa — começou por dizer, apontando para o círculo com o número um no mapa.

— Portanto, centrou-se em Ida Riitala — resumiu Torkel rapidamente. — E que mais?

Sebastian olhou-o nos olhos. Ficou com a sensação de que Torkel queria que ele fizesse má figura, talvez um primeiro passo para tentar livrar-se dele.

Não ia funcionar.

— A mulher era, possivelmente, alguém que ele conhecia ou, pelo menos, conhecia de vista. Talvez tivesse mesmo andado a observar os seus hábitos. Queria ter o menor número de surpresas possível.

Sebastian virou-se de novo para o quadro, desta vez apontando com a mão as fotografias afixadas.

— A motivação para este tipo de crime costuma ser poder e controlo, mesmo que não possamos descartar a simples misoginia, mas a abordagem aponta para algo mais complexo que isso.

Olhou para os colegas e viu que conseguira captar o seu interesse. Ponderou fazer uma nova pausa dramática, mas absteve-se.

— O facto de as anestesiar pode depender de dois factores: ele não acreditar que consiga realizar aquele acto se a vítima estiver acordada ou da necessidade de experimentar uma sensação de controlo absoluto.

Billy levantou o olhar dos papéis que folheava. Estaria a imaginar ou o último comentário fora dirigido a si?

— No caso de ser a segunda hipótese — continuou Sebastian —, podemos presumir que a pessoa, muito provavelmente, já o experimentou antes em cenários de controlo e submissão. Em contextos sexuais.

Desta vez, Billy não imaginou. Tinha a certeza de que Sebastian o olhara mesmo.

— Uma espécie de sadomasoquismo? — perguntou Vanja, abanando um pouco a cabeça, significando isso que não conseguia realmente compreender as pessoas que se dedicavam àquele tipo de sexo.

Billy compreendia-as perfeitamente.

O controlo. O poder inebriante. A satisfação.

— Dominação de algum tipo, pelo menos — assentiu Sebastian. — Se o agressor considerar que tem dúvidas sobre a sua capacidade de realizar aquele acto, então, estamos a lidar com alguém que, muito provavelmente, tem pouca, ou mesmo nenhuma, experiência sexual anterior, e, se as teve, talvez tenham sido negativas.

— Como é que o encontramos? — perguntou Anne-Lie.

— A segunda categoria é mais difícil, uma vez que esse tipo de pessoa é, habitualmente, muito solitária — respondeu Sebastian com um pequeno suspiro. — Se for a outra, e se tivermos sorte, pode ter sido procurado nos círculos sadomasoquistas, mas não ter sido suficiente.

— O saco na cabeça também tem que ver com controlo? — perguntou Ursula.

— Esse pormenor pode servir duas funções. Uma é como medida de precaução, já que, se as vítimas acordarem, não o podem identificar.

— Isso quer dizer que o conhecem? — interrompeu Vanja.

— Não obrigatoriamente, também se pode tratar de um sentimento de culpa. Ter necessidade de despersonalizar as vítimas. Torná-las anónimas e desconhecidas.

— Sabemos ao certo que a Ida Riitala foi a primeira vítima? — perguntou-lhe Billy.

— Bem, a data dá-nos uma certa indicação — respondeu Sebastian com sarcasmo, e visualizou mentalmente que o prémio para a pergunta mais estúpida da reunião passara de Torkel para Billy.

— Pode haver casos não reportados, ou não? Mulheres que não quiseram ou não tiveram coragem de ir à Polícia — defendeu-se Billy, lançando um olhar desafiador para Sebastian.

— Isso é raro acontecer em casos de violação por desconhecidos — argumentou Sebastian, mas apercebeu-se, contra a sua vontade, que Billy, no fundo, podia ter razão. Torkel teria de ficar com o prémio.

— Focamo-nos na Ida, por enquanto — decidiu Anne-Lie. — Na conferência de imprensa desta tarde, anunciaremos um número de telefone para que qualquer pessoa que tenha sido atacada o denuncie à Polícia, a ver se nos chegam novos dados — concluiu, levantando-se como se quisesse para dar por terminada a reunião.

— E das câmaras de videovigilância no caminho que a Ida seguiu até casa, há alguma coisa? — perguntou Billy enquanto reunia o material que espalhara à sua frente.

— Há algumas, mas nenhuma no sítio onde foi atacada — respondeu Carlos.

— Posso ficar com uma cópia?

— Claro que sim.

— Se houver alguma relação entre as vítimas, quero essa informação antes da conferência de imprensa — acrescentou Anne-Lie. Todos assentiram e a reunião ficou assim concluída. Vanja levantou-se e foi a primeira a deixar a sala, sem sequer olhar na direcção de Sebastian. De volta ao seu lugar, ele lançou um olhar rápido a Anne-Lie, que lhe fez um aceno de cabeça e sorriu, satisfeita. Era agradável o reconhecimento, mas não era da parte de Anne-Lie que o desejava.


Estava ferida.

Fora a primeira coisa que Sebastian pensara assim que Ida abrira a porta até onde a corrente de segurança lhe permitia, depois de tanto ele como Ursula lhe terem mostrado as identificações pelo óculo da porta. Ela não se sentia bem e não os queria ali, principalmente a ele. Fora o que Sebastian sentira quando Ida, relutantemente, lhes indicara a sala de estar do apartamento fechado, onde agora estavam sentados, um ao lado do outro, no sofá. Ela própria mantivera-se de pé, perto da porta, como se estivesse preparada para fugir ao menor sinal de perigo. Sebastian reparou como ela, nervosa, torcia uma madeixa de cabelo baço entre os dedos e mordia o lábio inferior. Algo se quebrara na mulher frágil e de olhar vazio, naquela noite, no antigo cemitério. Algo que não sarara, que não melhorara.

— Não se quer sentar? — perguntou Ursula com amabilidade, fazendo sinal para a poltrona junto à janela.

— Estou bem aqui — respondeu Ida, abanando a cabeça. — O que querem?

— Conhece a Rebecca Alm?

Ida abanou a cabeça de novo.

— Alguma vez viu esta mulher? — continuou Ursula, colocando uma fotografia em cima da mesa e empurrando-a na direcção de Ida, que deu um passo em frente para a olhar sem qualquer sinal de que iria pegar-lhe. Voltou a abanar a cabeça.

— Não, não sei quem é. — Levantou os olhos da fotografia e fitou Ursula. — Porque querem saber?

— Aconteceu-lhe o mesmo que a si — interrompeu Sebastian antes de Ursula ter tempo de responder. — Em Gävle — acrescentou, com a esperança de que Ida sentisse alguma segurança pelo facto de o homem que a atacara se ter mudado, por haver várias dezenas de quilómetros a separá-los. Era desnecessário dizer mais, explicar tudo. Que, desta vez, o ataque tivera consequências fatais e que ocorrera em casa da vítima era uma informação de que Ida não precisava. Privá-la-ia do único local onde se sentia segura: a sua casa. Era verdade que faltavam apenas algumas horas para que a imprensa descobrisse que havia uma relação entre os casos e que Rebecca estava morta, mas Sebastian ficou com a sensação de que o isolamento de Ida também se estendia às notícias e à Internet. Na melhor das hipóteses, nunca descobriria.

Ida limitou-se a assentir para si própria, não fez nenhuma pergunta, nem como nem porquê nem se tinham alguma pista.

Alguns segundos em silêncio.

«Ela está mal», pensou Sebastian de novo. Todo o seu ser evidenciava choque e caos. Ao seu lado, Ursula voltou a pegar na fotografia que colocara em cima da mesa e levantou-se.

— Então, nunca a viu antes?

Novo abanar de cabeça de Ida. Ursula deu alguns passos em volta da mesa de centro e olhou para Sebastian. Estava na altura de se irem embora.

— Tem alguém que a ajude? — perguntou Sebastian, suavemente, permanecendo sentado. — Com o que aconteceu?

— O que quer dizer com isso?

— As pessoas não funcionam normalmente depois de viverem uma experiência tão violenta. Podemos precisar de ajuda para recuperar, alguém com quem conversar.

— Eu rezo.

— Alguém, para além de Deus.

Ida olhou-o nos olhos pela primeira vez desde que entraram em sua casa.

— Não acha que Ele me pode ajudar?

Sebastian não respondeu de imediato. Ele próprio não acreditava em nenhum tipo de poder superior. Porém, estava convencido de que a fé e a religião podiam dar às pessoas uma sensação de pertença a uma unidade, a sensação de que havia algo maior, uma ordem, um significado. Acreditar em alguma coisa podia realmente ajudar em muitas situações. Não obstante, também estava convencido de que uma jovem mulher que tivesse passado por um grande trauma precisava de algo diferente, algo mais.

— Penso que a sua capacidade para ajudar de forma concreta no dia-a-dia é um pouco limitada.

— Não acredita em Deus nem em Jesus — respondeu-lhe Ida, e pareceu que tinha formado uma ideia do tipo de pessoa que era Sebastian e, com isso, formara uma opinião sobre ele.

— Os meus pais acreditavam — respondeu Sebastian com sinceridade, numa tentativa de recuperar o contacto com Ida.

— Mas você não — insistiu Ida, perante a sua falta de resposta. — É por isso que não percebe como Ele pode ajudar, desde que confiemos n’Ele.

Era verdade. Sebastian não percebia.

Nunca percebera.

E confiar, ainda menos.

Em vez disso, dedicara grande parte da sua infância a lutar contra tudo aquilo em que os pais acreditavam e tudo o que defendiam. Pelos vistos, no final, não haviam sido apenas eles a cansar-se do seu desinteresse rebelde e distanciamento activo. A mãe dissera-lhe isso na última vez que se viram.

— Deus abandonou-te, Sebastian. Afastou a Sua mão de ti.

Sem dúvida que isso explicaria algumas coisas, se assim fosse. Porém, Sebastian não tencionava tornar-se uma daquelas pessoas que, quando passavam por dificuldades na vida, começava a procurar resposta entre igrejas e crenças. Seria conveniente poder pôr as culpas noutra pessoa, nalguma coisa. Não ser totalmente responsável por não ter sido capaz de manter a filha a seu lado, não ter conseguido salvá-la. Poder pensar que a sua morte fazia parte de um plano maior, divino. Incompreensível, talvez, mas, ainda assim, um plano.

Todavia, não tencionava entrar numa discussão. Sabia, por experiência própria, que isso não levaria a lado nenhum. Era uma questão de fé. Ou se acredita ou não se acredita, e, quando as pessoas acreditavam como aquela jovem que estava à sua frente, a razão ou a argumentação nunca venciam.

— Vejo que não está bem — disse, agora de forma mais empática. Ida não lhe respondeu. — Quando foi a última vez que saiu de casa? — continuou Sebastian, mas ficou de novo sem resposta. — Ida...

— A semana passada, talvez — acabou por se ouvir.

— Esconder-se do mundo não é solução.

— Deus há-de mostrar-me a solução.

— A forma de Deus a ajudar talvez seja levá-la a falar com alguém — tentou Sebastian novamente e viu que, pela primeira vez, Ida parecia estar a aceitar o que ele tentava dizer-lhe. — Os seus caminhos são insondáveis — prosseguiu com uma citação que se recordava de ter ouvido umas quantas vezes em casa, quando algum acontecimento não podia ser explicado. — Talvez tenha sido por isso que me enviou aqui — acabou por dizer, vendo pela reacção de Ida que tinha ido longe demais.

— Acha que é representante da vontade de Deus? — lançou-lhe Ida com desprezo na voz.

Em situações normais, aquele poderia ser um pensamento apelativo para ele, porém, naquela situação, só queria morder a língua e retirar o que dissera. Poderia ter estado prestes a chegar a algum lado com Ida, mas estragara tudo.

— Não sou eu que preciso de acreditar — respondeu com a esperança de que a formulação imprecisa apelasse, de novo, a algo dentro dela. Não foi o caso.

— Quero que se vão embora agora — disse Ida sem rodeios.

Sebastian levantou-se devagar. Ida recuou quando ele se aproximou dela e da porta da rua.

— Precisa de falar com alguém — insistiu uma última vez.

— Por favor, saiam.

— Não há ninguém a quem eu possa telefonar? — insistiu Sebastian, mas Ida cruzou os braços por cima do peito e olhou para o chão.

— Sebastian... — Ursula chamou-o e fez-lhe um sinal para que viesse embora. Não havia mais nada que pudessem fazer. Pelo menos, por enquanto. Com um suspiro desanimado, Sebastian seguiu Ursula até ao patamar fora do apartamento.

Assim que a porta se fechou atrás deles, Ida trancou-a com a chave e voltou a colocar a corrente de segurança. De seguida, soltou um suspiro e teve de se apoiar na parede para conseguir manter-se de pé, fisicamente esgotada pelo esforço que tivera de fazer para conseguir ter duas pessoas desconhecidas perto de si. Polícias, ainda por cima.

Foi à cozinha, sentou-se numa das cadeiras e tentou acalmar os pensamentos. Deixou o olhar repousar sobre o telemóvel em cima da bancada. Deveria telefonar a Klara? Perguntar se também tinham falado com ela?

Claro que tinham.

Que dissera ela? Teria dito alguma coisa?

Nervosa, mordeu o lábio inferior enquanto pensava como iria aguentar a próxima visita da Polícia, quando voltassem para lhe dizer que Klara Wahlgren reconhecera Rebecca e dissera que Ida também a devia ter reconhecido. Que, pelos vistos, se tinham conhecido bastante bem. Talvez fosse suficiente dizer que não a reconhecera naquela fotografia específica, que só olhara para ela de relance.

Ida sentiu o sabor a sangue e levou um dedo à boca. Mordera o lábio inferior até sangrar. Observou a mancha de sangue misturado com saliva que tinha no dedo. Os pensamentos giravam-lhe na cabeça. Eram demasiados, coisas a mais. Rebecca também. Tinha de ser isso. Não podia ser outra coisa. Com o olhar ausente, lambeu o sangue do dedo indicador. Ele tivera razão. Aquele psicólogo.

Precisava de alguém.

Precisava de ajuda.

Precisava de orientação, de respostas. De alguém que tomasse decisões. Tinha de saber se estava a fazer o correcto. Pegou no telefone e marcou um número.


Ingrid estava irritada já antes de receber o telefonema.

Estava a ter um autêntico dia de merda, para ser sincera.

Cedo naquela manhã, um jornalista telefonara com perguntas sobre algo que, aparentemente, dissera durante um acampamento de preparação para o crisma, na região de Jämtland, na época em que era pastora na paróquia de Nova Uppsala, e que um dos participantes considerara ofensivo e depreciativo. Ingrid presumiu que a razão pela qual esse assunto surgia agora, vários anos mais tarde, tinha que ver com a eleição iminente para o bispado. Na realidade, não estava preocupada, tinha apenas espalhado a palavra do Senhor tal como fora escrita. Se alguém se ofendera com isso ou achara que era depreciativo, talvez não devesse ser crismado. O crisma consistia na confirmação do baptismo, em dizer «sim» a Deus, em aceitar colocar a vida nas suas mãos.

Mesmo que a organização para a qual trabalhava, a Igreja da Suécia, tentasse vender a ideia como uma espécie de curso sobre a visão da vida. «A mensagem principal é que tu és valioso e importante por seres quem és. Como pessoa, és responsável tanto pela tua própria vida como pela forma como respondes aos outros», assim dizia na página oficial da Igreja, onde havia informação sobre o acto eclesiástico. Tretas que poderiam ter sido tiradas de qualquer livro de filosofia barata de auto-ajuda. Muito pouco ou nada sobre Deus. Claro que os candidatos ao crisma deviam perceber «o valor de serem exactamente quem eram, e que eram amados por Deus», mas não lhes diziam nada sobre também deverem corresponder ao Seu amor.

Adorá-Lo.

Idolatrá-Lo.

Que é em torno de Deus e de Jesus que tudo gira.

Porém, tudo o que, hoje em dia, não se dirigia directamente ao ego crescente dos jovens era considerado desinteressante, presumiu Ingrid.

Mesmo não tendo dado muito valor ao telefonema daquela manhã, acabara por afectar os seus preparativos para o interrogatório, ou o hearing, como a diocese, por algum motivo incompreensível, insistia em chamar-lhe. Duas pessoas que, durante pouco mais de meia hora, a interrogaram sobre a iminente eleição. Uma delas era professora catedrática de Teologia e Filosofia, na Universidade de Umeå, a outra era a responsável pelos programas para os seminários da Igreja sueca, num centro de conferências em Lund. Certamente, não havia nada de errado com nenhum deles, mas Ingrid achou que se centravam nos temas errados, faziam as perguntas erradas, o que a obrigava a ter de redireccioná-las constantemente e podia ser interpretado como se estivesse a evitar as questões.

Relutante em responder.

Como os políticos.

No final, agradeceram-lhe e disseram que tinha sido muito bom. Ingrid não conseguira dizer se se tratava de simples cortesia ou se estavam a ser sinceros. Toda a sua campanha fora pensada como um contraponto aos ventos liberais que sopravam pela igreja, uma alternativa para aqueles que queriam recuperar os valores clássicos. E eram muitos. Muitos que, com receio, viam a sua Igreja discutir seriamente se Deus realmente existia ou se seria apenas uma metáfora. Muitos que não conseguiam acreditar no que ouviam quando pessoas em altos cargos afirmavam que a verdade estava no sentido metafórico e não no literal. Muitos que tinham seguido o debate onde os cristãos eram incentivados a esconder o crucifixo se trabalhassem em áreas como a saúde, porque poderia ser interpretado como uma provocação.

Ingrid tinha resposta para tudo aquilo, mas isso implicava que alguém colocasse as questões certas. O que ninguém fizera.

Ficou com uma sensação insistente de que perdera uma oportunidade fantástica de estender a mão, algo que apenas servira para aumentar o seu nível de irritação quando, depois da audiência, se pusera a caminho de uma reunião com representantes do sindicato, para falar de problemas do ambiente de trabalho. Todos sabiam o nome desse problema e que posto ela ocupava. Já tinham passado incontáveis horas em reuniões sobre investigações e planos de acção relativos a ela. Nada de novo surgiria da reunião desse dia, Ingrid estava completamente convencida disso. Mas ficara surpreendida. Parecia que, afinal, o dito «problema de ambiente de trabalho» até estava disponível para deixar o lugar. Se lhe pagassem um salário anual como indemnização. Nesse caso, o conhecimento dos problemas de equipa na paróquia também não precisaria de sair para fora da congregação.

Nada mais do que uma extorsão.

Estavam a aproveitar-se do facto de ela estar a concorrer ao cargo de bispo.

Ingrid era uma de sete candidatos, dos quais, na sua opinião, três tinham uma probabilidade real de ganhar. Poderiam reduzir-se a dois, se decidisse utilizar o que sabia sobre Göran Peltzén. A viagem a Londres, em 2012, tornara-se bastante mais cara do que o previsto pela paróquia de Strängnäs. Se alguém decidisse investigar melhor aquela questão e se Ingrid tivesse percebido bem a coisa, acabaria por encontrar uma série de facturas de restaurantes e teatros, cujo pagamento por parte da paróquia seria difícil de explicar. Além disso, parecia que algumas esposas e alguns esposos tinham acompanhado a delegação a preços consideravelmente reduzidos. A questão era se deveria utilizar, ou não, o que sabia. Em todo o caso, fazer uma denúncia anónima à imprensa local. No entanto, se o fizesse, teria de se certificar de que a informação não poderia levar até si. A difamação acabaria por ser um obstáculo para ela própria. Na verdade, preferia ser superior a essas estratégias, mas, naquele momento, todos os meios pareciam ser permitidos. Estava certa de que fora algum dos seus rivais que trouxera o crismado ofendido à tona.

Pensara naquilo no caminho para casa, na véspera, ao final do dia. Chegara à conclusão de que estava indignada e furiosa, a pior combinação de sentimentos possível para tomar decisões importantes. Por isso, decidira, por enquanto, guardar o que sabia sobre Göran Peltzén para si própria. Ainda faltavam dois meses para a eleição. Tinha tempo suficiente. Deixaria passar algumas semanas, tentaria perceber as reacções gerais da sua audiência. Seria tudo publicado na Internet, para que aqueles com direito de voto pudessem formar uma opinião sobre os candidatos. Talvez não tivesse corrido tão mal como pensava. Procuraria a publicação assim que chegasse a casa e agiria em conformidade. Sim, era isso que devia fazer. Quando virou para o acesso à garagem da sua moradia na rua Domherrevägen, sentiu-se ligeiramente mais bem-disposta.

Tudo se resolveria.

Deus acabaria por lhe mostrar o caminho correcto.

Como sempre.

Acabara de desligar o motor e preparava-se para sair do carro, quando o seu telemóvel tocou. Número desconhecido. «Só espero que não seja aquele jornalista outra vez», pensou antes de atender. Mas não era.

— Estou? Olá, é a Ida. A Ida Riitala — ouviu-se suavemente do outro lado.

— Sim...?

— Não sei se se lembra de mim, eu fiz parte da Ab...

— Eu lembro-me de ti — interrompeu Ingrid bruscamente. A última coisa que precisava agora era de ser lembrada daquela fase do seu tempo em Uppsala. — Em que é que te posso ajudar? — continuou, num tom mais amistoso.

Passou os cinco minutos seguintes a escutar enquanto Ida falava sobre violações, sobre Klara e Rebecca, sobre a Polícia, sobre não ter contado nada, sobre as dúvidas.

— Mas não sei — acabou por dizer. — Talvez devêssemos. Talvez fosse melhor. O que achas?

Ingrid reclinou-se sobre o encosto da cabeça, fechou os olhos e inspirou profundamente. Já estava irritada antes de receber o telefonema.

— Acho que fizeste o correcto — disse com aquela voz que sabia que levava as pessoas a escutá-la. A confiar nela. — Não há nenhum motivo para voltarmos atrás no tempo. Já pusemos isso para trás das costas, já nos arrependemos, pedimos perdão e obtivemo-lo.

Ida ficou em silêncio, um silêncio que Ingrid interpretou como dúvida.

Era fácil duvidar quando se era posto à prova.

— Fizeste o correcto. Contar, envolver a Polícia, isso são soluções humanas. Tens de te focar nas soluções de Deus. Ele vê a totalidade, Ele usa aquilo que acontece para te melhorar, para te fortalecer. Ele está a testar-te, mas nunca mais do que sabe que consegues aguentar. Podes estar certa disso.

A resposta de Ida confirmou que Ingrid utilizara a argumentação certa, que conseguira chegar a ela. Continuou a conversa por mais cinco minutos, até estar totalmente convencida de que Ida concordava que o melhor era não dizer nada a ninguém. Terminou com a sugestão de que Ida lhe telefonasse a qualquer hora, fosse qual fosse o motivo, mesmo que, no fundo, esperasse que nunca o fizesse.

Permaneceu sentada no carro a ponderar. Deveria telefonar às restantes? Klara abandonara a Igreja, abandonara Deus. O argumento que utilizara com Ida não ia funcionar com Klara. Uma chamada de Ingrid a pedir-lhe que continuasse calada até poderia ter o efeito contrário. A mesma coisa com Rebecca Alm. Se Ingrid lhe telefonasse, o mais provável era levá-la a pensar que se tratava de uma conspiração, que forças poderosas estavam conta si. Sempre tivera uma imaginação fantástica.

O melhor que Ingrid podia fazer era esperar.

Ver o que acontecia.

Confiar que Deus a ajudaria a resolver a questão.

Saiu do carro e entrou em casa. Descalçou os sapatos e despiu o casaco. Acendeu algumas luzes a caminho da cozinha e, quando encheu a chaleira com água, percebeu quão cansada estava.

Fora um dia longo.

Mas ainda não tinha terminado. Enquanto esperava que a água fervesse, foi ao escritório e ligou o computador. Sentou-se na cadeira à secretária, apoiou os cotovelos na mesa e pousou a cabeça nas palmas das mãos. A casa estava em silêncio. Apenas... Ingrid endireitou-se, escutou. Teria ouvido alguma coisa? Virou a cabeça para a porta que dava para o resto da casa.

Nada. Silêncio.

Depois, o suave clique na cozinha, que anunciava que a água estava a ferver. Introduziu a palavra-passe no computador antes de se levantar e ir preparar uma chávena de chá.

Pressentiu-o mais do que o ouviu.

Havia alguém lá em casa.

Atrás dela.

O pânico intensificou-se, mas não teve tempo de se virar.

«Outra vez não, outra vez não.»

O pensamento passou-lhe a correr pela cabeça antes de sentir a picada no pescoço e cair no chão.


— Obrigada a todos por terem vindo, apesar de ser tão tarde — começou Anne-Lie por dizer na conferência de imprensa, quando ela e Torkel se sentaram, um ao lado do outro, à mesa de uma das salas de reuniões do rés-do-chão do edifício da sede da Polícia e o murmúrio se dissipou. Torkel calculou que houvesse lugar para umas trinta pessoas. Cerca de metade das cadeiras estavam ocupadas, o que queria dizer que estariam umas quinze pessoas presentes. A quantos jornais, canais e páginas da Internet isso correspondia, não fazia a mais pequena ideia. A maior parte estava a filmá-los com tudo, desde câmaras profissionais em cima de tripés até telemóveis na mão.

— Este é o Torkel Höglund, da Brigada de Homicídios — continuou Anne-Lie, fazendo um gesto para Torkel. — Ele e a sua equipa estão a ajudar-nos nesta investigação.

Torkel assentiu levemente com a cabeça para a plateia. Só reconhecia uma pessoa.

Axel Weber.

Obviamente.

O repórter costumava seguir o trabalho da Brigada de Homicídios. e, na última investigação da equipa, assumira um papel activo. Um papel demasiado activo, todos concordariam. Weber mostrou-lhe um pequeno sorriso e levantou a mão em jeito de cumprimento. Torkel não respondeu a nenhuma das coisas.

— Até este momento, estamos a lidar com um homicídio, duas violações e uma tentativa de violação, que pensamos terem sido levados a cabo pela mesma pessoa — começou Anne-Lie por dizer, e Torkel observou que o interesse dos participantes aumentava.

Costas a endireitarem-se.

Canetas pousadas nos blocos de notas.

Pontas dos dedos a tocar nos teclados.

Antes de começar, tinham decidido que seria Anne-Lie a liderar a conferência de imprensa. Torkel responderia a perguntas que lhe fossem feitas directamente ou que Anne-Lie lhe passasse. Mais nada. Não lhe fazia diferença, na verdade. Não tivera qualquer objecção a fazer a essa divisão. Fora antes a forma como ela a apresentara. Como uma ordem. Torkel apercebeu-se de que há muito tempo que não recebia ordens de ninguém e percebeu que não o apreciava particularmente.

Também tinham acordado o que iam responder, que informação revelariam e qual a que manteriam em segredo. Sebastian e Ursula tinham regressado do encontro com Ida Riitala com a mesma informação que Vanja conseguira na visita que fizera a Klara Wahlgren.

Nenhuma delas conhecia Rebecca.

Vanja, no entanto, achava que houvera algo ligeiramente evasivo no testemunho de Klara e queria dedicar mais algum tempo a tentar encontrar uma ligação. Torkel estava convencido de que acabaria por consegui-lo. Os instintos de Vanja naquele tipo de questões eram insuperáveis. Carlos reportara exactamente a mesma coisa da sua conversa com Therese Andersson. Também ela dissera que não conhecia Rebecca nem nunca ouvira falar dela. Por isso, não havia nenhum motivo para informarem a comunicação social de que duas das vítimas se conheciam há algum tempo. Isso só levaria a especulações desnecessárias. Também não iriam mencionar nada sobre as injecções e os sacos na cabeça. Se o assunto tivesse um impacto tão grande como Torkel suspeitava que teria, ambos os detalhes acabariam, de qualquer forma, por se tornar conhecidos em vinte e quatro horas. Casos de prioridade alta e que despertavam o interesse da imprensa costumavam ser alvo de fugas de informação.

— Podem revelar os nomes das vítimas? — perguntou um homem calvo que estava sentado na ponta do lado direito, com um telemóvel na mão, quando Anne-Lie terminou a sua apresentação e abriu a sessão de perguntas.

— Não, não podemos. Só de Rebecca Alm.

— A que morreu. Em Gävle — disse Weber, olhando para o seu bloco de notas.

— Exacto.

— E sabem por que motivo o suspeito mudou de cidade?

Torkel assentiu para si próprio. Uma pergunta inteligente. Uma pergunta lógica. Weber era repórter criminal há tanto tempo que quase desenvolvera instinto policial.

— Não, neste momento, não.

— Isso não indica que ela foi uma vítima predeterminada, que ele queria atacá-la precisamente a ela? — Weber fixou o olhar em Torkel. Todavia, foi Anne-Lie quem voltou a responder.

— Não necessariamente. O suspeito podia encontrar-se em Gävle por variadíssimos motivos.

— Mas essa é uma teoria que estão a estudar?

— Claro que sim, uma de muitas.

Weber apenas assentiu com a cabeça e voltou a olhar para o seu bloco de notas. Parecia satisfeito com a resposta, por enquanto. Torkel perguntou-se se acabaria por receber uma chamada mais tarde. Uma mulher ruiva de cinquenta e poucos anos, sentada à direita atrás de Weber, levantou a mão ao mesmo tempo que se inclinou para a frente.

— Disse algo sobre sexo BDSM, pode desenvolver um pouco?

— De que forma?

— Só desenvolver um pouco mais.

Torkel compreendeu exactamente o que ela procurava. Mais de sessenta anos depois da chamada revolução sexual, que deveria ter desdramatizado e normalizado o sexo, esse continuava, no entanto, a ser um assunto emocionante. Continuava a ser sedutor. Se, além disso, se tratasse de um tipo de sexualidade ligeiramente diferente e se fosse possível relacioná-la com crimes violentos, transformava-se em pura dinamite. Ou num verdadeiro íman de cliques, como se dizia na actualidade.

— O nosso psicólogo criminal tem a teoria de que o homem de que estamos à procura pode ter experimentado antes situações de controlo e submissão — confirmou Anne-Lie, ao seu lado. — Em contextos sexuais.

— Como assim?

Pensar que a mulher se contentaria com aquela formulação tão vaga era ter esperanças vãs, obviamente.

Ela queria mais.

Todos queriam mais.

Anne-Lie e Torkel trocaram um olhar rápido. Quanta informação deveriam revelar? Se Sebastian tivesse razão, queriam conseguir entrar em contacto com pessoas que pudessem ter passado por cenários idênticos com o criminoso, mas, ao mesmo tempo, não queriam que demasiados detalhes acabassem na comunicação social. Anne-Lie assentiu com a cabeça para Torkel, como se lhe dissesse «podes responder tu agora». Torkel ficou com a sensação de que era para ter alguém que pudesse culpar se, mais tarde, se revelasse que aquilo dificultara a investigação.

— Pode ter acontecido que ele tenha pedido a mulheres que ficassem deitadas de barriga para baixo, completamente imóveis, durante uma relação sexual. Que escondessem a cara ou que a tapassem.

— Ele tapou a cara das vítimas durante as violações? — ouviu-se um jovem, ao fundo da sala.

— Esse tipo de actividades — respondeu Torkel como se não tivesse ouvido a pergunta seguinte, e sentiu, mais do que viu, que Anne-Lie achava que ele já revelara coisas a mais.

— Queremos entrar em contacto com todas as pessoas que possam ter estado perto dos locais e dos endereços onde os ataques aconteceram, tanto antes como depois das horas em questão — disse Anne-Lie, deixando claro para todos os que estavam reunidos que a conversa sobre sexo e a abordagem das vítimas estava terminada. — Imprimimos uma lista dos locais e horários em causa; levem-na, certifiquem-se de que publicam a informação correcta — prosseguiu, assentindo com a cabeça para os dois agentes fardados que estavam à porta, cada um com uma pequena pilha de papéis nas mãos.

— E, se houver alguém que não denunciou um ataque ou tentativa de ataque, agradecemos que nos contactem imediatamente — acrescentou Torkel.

— Então podem existir mais vítimas, é isso? — constatou o homem ao fundo.

— É isso que queremos averiguar — respondeu Anne-Lie, levantando-se. Sem dizer mais nada, juntou os seus papéis e deixou o local antes de Torkel ter sequer tempo de reagir. Num segundo eram dois, no segundo seguinte, estava ali sozinho. Surpreendido pela saída rápida, virou-se para a imprensa ali reunida. Procurou o olhar de Weber, mas o jornalista estava, aparentemente, imerso nas suas anotações.

— Bem... obrigado por terem vindo — acabou Torkel por dizer enquanto também ele se levantava. — Ficamos agradecidos se puderem ajudar-nos a espalhar a informação que precisamos de tornar pública e informar-vos-emos com regularidade se houver desenvolvimentos. Obrigado, mais uma vez. — Com isto, seguiu Anne-Lie, saindo da sala acompanhado por uma ou outra pergunta feita atrás de si.

Dentro da sala de reuniões, recomeçou o burburinho provocado pelos quinze jornalistas ali presentes enquanto arrumavam as suas coisas e se preparavam para publicar o que tinham descoberto nas diferentes plataformas.

Uppsala estava a ser atacada por um violador em série.

Que matara uma mulher.

E que, eventualmente, se dedicava a sexo excêntrico.

Axel Weber permaneceu sentado, quieto. Observava os seus apontamentos. No meio da página, fizera vários círculos com a caneta à volta da mesma coisa.

Duas palavras.

Rebecca Alm.

Já ouvira aquele nome em qualquer lado.


Estou em Uppsala, queres combinar alguma coisa?

Pronto, agora já estava dito. Impossível voltar atrás.

Gostava muito, mas não estou aí.

Ursula estava prestes a perguntar-lhe onde se encontrava, quando se apercebeu de que a) o homem era comercial e podia estar em qualquer lado, em vendas, e b) ela não tinha nada que ver com isso. Talvez até fosse uma mentira rápida, para não ter de se encontrar com ela.

Okay, fica para a próxima, então.

Agora, a iniciativa era dele, não dela.

Mas volto amanhã. Ainda vais estar por aí?

Sim, vou estar aqui alguns dias, pelo menos.

E amanhã à noite? Estás disponível?

Sim, pode ser.

Óptimo. Eu digo-te qualquer coisa e depois combinamos. Vai ser bom conhecer-te finalmente.

Sim, também acho.

Acabaram por trocar números de telefone para poderem entrar em contacto um com o outro mais facilmente. Ursula copiou o número e fez logo uma busca na Internet. Pertencia a um Petros Samaras, de Uppsala. Até agora, tudo coincidia. Fechou o computador e recostou-se na cadeira com um suspiro. Mais uma noite num quarto banal, num hotel banal.

Já passara por centenas.

Aquele chamava-se Gillet e ficava a uma distância que lhe permitia ir a pé para a sede da Polícia. Um edifício de cinco andares que gritava «anos 70» do exterior e tentava, com bastante sucesso, parecer moderno e agradável por dentro. Tinha spa, ginásio, restaurante e bar. Ursula não estava com vontade de fazer uso de nenhuma das ofertas mas também não tinha um trabalho em que pudesse refugiar-se. Só receberiam os resultados preliminares relativos a Rebecca Alm no dia seguinte, e já revira o restante material. Mais de uma vez.

Então, o que poderia fazer?

Torkel regressara a Estocolmo. Com Lise-Lotte. Vanja estava com o namorado, que viera ter com ela a Uppsala, e, de qualquer maneira, não estava hospedada no hotel. Billy ficara em Uppsala, mas ainda estava no trabalho. Quando Torkel lhe perguntara se podiam ir juntos para Estocolmo, Billy dissera que planeava ficar a rever as filmagens das câmaras de vigilância. A ver se conseguia encontrar alguma coisa que pudesse servir-lhes de pista, de rumo para a investigação. Estava casado há meio ano, mas não queria ir ter com a mulher. Porém, quem era Ursula para julgar? Durante todo o tempo em que fora casada, nunca tentara despachar-se de trabalho nenhum para ir ter com o marido e a família.

Só restava Sebastian.

Se alguma vez Ursula se permitisse pensar no passado, reconheceria que fora com ele que se sentira tão contente e satisfeita como podia estar. Talvez por serem tão parecidos, por ele também não conseguir, ou não querer, viver com as exigências que os outros lhe impunham, as expectativas, a imagem estereotipada do amor, o romantismo e a vida de casal. Ursula tinha sérias dúvidas sobre se conseguiria amar como a maior parte das pessoas esperava ser amada. Mas amara Sebastian. Quando ele a traíra, sentira-se pior do que quando Micke lhe contara que conhecera Amanda e que pensava deixá-la.

Tinham estado prestes a avançar para algo, ela e Sebastian, antes de Ursula ser alvejada. Depois, ele voltara a desiludi-la. Agora eram amigos. Pelo menos, era o que Ursula sentia, mas ficava sempre com a sensação de que Sebastian não se conformava com isso, que havia sempre uma esperança de manterem o envolvimento sexual. Que era esse o objectivo quando estavam juntos.

Amigos coloridos.

Ou fuck buddies, uma expressão que provavelmente se aplicava melhor a Sebastian.

Ele abrira-se com ela, contara-lhe. Sobre os sentimentos de culpa, a saudade e a tristeza. Tornaram-se mais próximos, mas só iriam até ali.

Mesmo que Ursula achasse que poderiam fazer bem um ao outro, dar-se realmente bem, não tinha intenções de levar a relação mais longe.

Dava demasiado trabalho.

Ele era demasiado difícil, estava demasiado ferido.

Nunca se permitiria ser feliz, voltaria a traí-la apenas para estragar as coisas, e Ursula não tencionava expor-se a isso.

Não novamente.

Contudo, precisava de ter alguma coisa, não, na verdade, não precisava de nada, mas queria ter alguma coisa. Alguma coisa simples, espontânea, sem expectativas.

Como em tempos tivera com Torkel.

Há pouco menos de um mês, depois de passar alguns dias a fazer pesquisas na Internet, registara-se num sítio de encontros. Aparentemente, era dessa forma que, actualmente, toda a gente conhecia alguém, mas, ainda assim, fora com uma certa sensação de desconforto que preenchera os seus dados e criara uma conta. As respostas, ou os contactos, não se tinham feito esperar. Apagara a maior parte deles de imediato, outros, depois de curtas conversas. À excepção de um, com quem falara pelo chat nas últimas três semanas.

Petros Samaras, cinquenta e três anos, divorciado, dois filhos, comercial de uma empresa farmacêutica, vivia em Uppsala.

Pelo menos, era isso que afirmava. Era impossível sabê-lo com toda a certeza, claro. Ursula nem sabia se ele se parecia mesmo com a sua fotografia de perfil. Nunca se tinham encontrado. Resistira à tentação de pesquisar o nome no registo criminal, fizera apenas uma busca rápida na Internet para se assegurar de que havia mesmo alguém com aquele nome a residir na Suécia.

Ao regressar do trabalho, tinha ligado o computador portátil, entrado na conta, aberto a janela do chat privado e escrito um cumprimento breve, perguntado se ele tinha um momento livre.

Ele demorara menos de dois minutos a responder.

Depois das frases introdutórias sobre como estavam (bem), o que estavam a fazer (nada de especial) e a informação de que estivera mesmo a pensar escrever-lhe alguma coisa minutos antes de receber a mensagem dela (duas almas, o mesmo pensamento), Ursula permaneceu sentada, com os dedos a pairar sobre o teclado. De repente, a resolução inicial já não era tão forte. Deveria mesmo levar aquilo mais longe? Sim, fora a resposta. Porque não?

Estou em Uppsala, queres combinar alguma coisa?

E agora estava ali sentada, no seu quarto de hotel.

Pegou no telemóvel. O melhor seria guardar o número nos contactos, assim poderia saber se era ele quem lhe ligava. Quando terminou, ficou sentada com o telemóvel na mão.

Na verdade, havia outra pessoa que conhecia em Uppsala.

Não tão bem como deveria, mas ainda assim...


— Mas porque é que tínhamos de nos encontrar aqui? — perguntou Ursula, olhando de relance para o local.

— Porque está aberto, é central e é barato — respondeu Bella, colocando um copo de cerveja e outro de vinho em cima da mesa antes de se sentar no banco em frente ao da mãe.

— Não precisava de ser barato, eu pago.

— Eu gosto deste sítio.

Ursula observou a filha, que bebeu um gole de cerveja. Talvez gostasse mesmo daquele sítio mas também poderia perfeitamente tê-lo escolhido por saber que Ursula não ia sentir o mesmo. Uma espécie de cave, sombria, quase às escuras, com algumas lâmpadas cobertas por abat-jours poeirentos nas paredes de tijolo degradadas. Mesas de madeira peganhentas, com um banco de cada lado, sem cadeiras. Bolas de espelhos que Ursula não via desde os anos 80 e uma máquina de jogo solitária a um canto. Os outros clientes tinham ar de quem não tinha dinheiro ou de quem não era admitido em mais lado nenhum.

Não obstante, Ursula largou logo o assunto.

Antes de deixar o hotel, decidira não ser conflituosa nem procurar discussões. Faria tudo para que se tornasse num serão agradável entre mãe e filha. Os deuses sabiam que não tinham tido essa oportunidade muitas vezes ao longo dos anos.

Por culpa dela. Como sempre.

Mantivera as distâncias.

Não fora como as outras mães.

As outras mães não deixavam as filhas, quando elas tinham sete anos, para se mudarem para Estocolmo com um amante.

As outras mães não estavam presentes para as filhas apenas quando lhes convinha.

As outras mães mostravam, com palavras e actos, que amavam as suas filhas.

Ursula tinha, de todas as maneiras possíveis, empurrado Bella para se tornar a menina do papá.

Durante o divórcio, apercebera-se de que teria de criar uma nova relação com Bella, para não a perder completamente. Isso estava a correr mais ou menos até agora.

Telefonemas esporádicos.

Nenhuma visita. Até àquele momento.

— Pareces estar bem — disse à filha, provando o vinho. Era o da casa. O único branco que havia, de acordo com o que Bella dissera quando lhe pedira um Chardonnay.

— Sim, estou bem, obrigada.

— Como estão a correr os estudos?

— Bem.

— O que estás a estudar agora?

— Direito Fiscal.

— Interessante.

— Nem por isso.

Ficaram em silêncio. Ursula bebericou o seu vinho ácido. Parecia que teria de ser ela sozinha a fazer conversa.

— Já não nos víamos há muito tempo.

— Desde o ano passado. Vieste cá para contar que tu e o pai se iam divorciar.

Esse encontro também não acabara como Ursula esperara, nada que precisasse de recordar nem que lhe recordassem, o que a levou a deixar o assunto cair de imediato.

Não ser conflituosa, não provocar discussões.

Uma conversa agradável entre mãe e filha.

— Como é que estão as coisas com o Andreas?

Um suspiro profundo revelou que a pergunta não era bem-vinda ou que era, de alguma maneira, errada.

— Já não estamos juntos. Acabámos há quase um ano.

— Não me contaste.

— Não perguntaste.

— Mas também me podes contar coisas que eu não te pergunte.

— Talvez o fizesse se achasse que tu estavas interessada... na minha vida.

Ali estava. A crítica. Fora demasiado optimista ao pensar que poderiam encontrar-se como se nada fosse, depois de anos de distância e outras prioridades.

— Desculpa se te dei essa impressão — respondeu Ursula com uma sinceridade na voz que não dava para ignorar. Bella olhou-a como se não fosse aquilo que esperara ouvir. Antes que Ursula se sentisse injustamente acusada, se defendesse, tentasse desresponsabilizar-se.

— Interesso-me — continuou Ursula com a mesma sinceridade. — Só que sempre tive alguma dificuldade em demonstrá-lo. E tu sempre foste mais próxima do pai.

— Porque será? — interrompeu Bella.

— Antes de nos separarmos, era ele que me contava coisas sobre ti — prosseguiu Ursula sem dar importância ao comentário. — Vou melhorar, prometo. Quero melhorar.

Bella não respondeu, mas assentiu. Sempre era alguma coisa. Não que tudo se resolvesse por si, como por magia; mais dia, menos dia, teriam de conversar sobre o papel que Ursula desempenhara e como a relação delas havia terminado assim, mas esse era um primeiro passo. Ursula ficou com a sensação de que sentiam as duas a mesma coisa e que não precisavam de continuar a falar daquele assunto naquela noite.

— Então, não tens namorado. Mas como é que está a correr o vólei? — perguntou-lhe descontraidamente, numa tentativa de desviar a conversa do assunto sério.

— Eu não disse que não tinha namorado, disse que eu e o Andreas já não estamos juntos.

— Então, quem é agora?

— Chama-se Nicco. Está a estudar no ano anterior ao meu. Conhecemo-nos na semana de recepção aos novos estudantes.

Ursula sorriu para a filha enquanto bebia o seu vinho, tentando não fazer esgares, como forma de a incentivar a aprofundar a conversa, mas, pelos vistos, aquilo era o máximo que Bella estava disposta a partilhar sobre o seu novo amor. Seria agora que Ursula lhe ia fazer mais perguntas para mostrar interesse ou isso seria apenas interpretado como curiosidade irritante? Tinha tão pouca experiência nestas coisas...

— Queres que te conte coisas que não me perguntas? — quis saber Bella, decidindo por ela o rumo da conversa.

— Sim, quero.

Ursula reparou no pequeno sorriso por trás do copo de cerveja e, de repente, ficou com a sensação de que talvez se fosse arrepender daquilo.

— Vou ter um meio-irmão.

— Ai vais?

— Sim, em Fevereiro. A Amanda está no quinto mês.

Ursula demorou a responder. Definitivamente, não sentia ciúmes, e, na verdade, nem estava surpreendida. Micke tivera a oportunidade de refazer a vida, de fazer as escolhas acertadas, e claro que a aproveitara.

Era outra coisa que a perturbava.

— Que bom — acabou por dizer. — Dá-lhes os meus parabéns quando estiveres com eles.

— Claro.

Era o sorriso de Bella. Talvez estivesse apenas ansiosa por ter um irmão, feliz pelo pai. Ou, então, estava a gostar de contar algo que pensava que a mãe não queria saber.

Escolheu acreditar na segunda hipótese, que a sua filha, de forma inconsciente, queria magoá-la. Virou-se para o bar cheio de gente. Tanto lhe fazia que o vinho fosse ácido e estivesse à temperatura ambiente. Queria mais um copo. No mínimo.


O barman colocou mais um copo de ginger ale à sua frente.

Sebastian assentiu, em agradecimento, e pegou no copo com um suspiro. Irritação, ansiedade e aborrecimento, assim resumia bem o que estava a sentir.

Ficara no quarto algum tempo depois de terem regressado da sede da Polícia, reflectira sobre o caso, estivera prestes a adormecer, mas resistira.

Não quisera arriscar sonhar.

Acordara transpirado, com a mão direita cerrada. Com o rugido das massas de água a zumbir-lhe nos ouvidos. Com o vazio e o sofrimento a dilacerá-lo de tal maneira que mal conseguia respirar. Então, não conseguiria voltar a adormecer, não voltaria a dormir a noite toda.

Por isso, levantara-se, tomara um duche rápido e fora bater à porta do quarto de Ursula.

Ficara sem resposta. Não havia lá ninguém.

Desiludido, fora até ao bar e sentara-se ao balcão. Pedira o primeiro ginger ale da noite e dera uma vista de olhos pelo local. Havia algum potencial. Não muito nem muita gente, mas conseguiria de certeza levar alguém dali para a cama. Como a mulher sentada com o computador portátil aberto, numa das mesas mais ao fundo, por exemplo.

Na casa dos quarenta e cinco anos, talvez. Aspecto comum. Nem a roupa nem o penteado transmitiam segurança em si própria. Alguns quilos a mais à volta da cintura. Imaginou-se a ir ter com ela. Começar uma conversa. Como, em poucos minutos, conseguiria transpor a falta de vontade de ter companhia e convencê-la a deixá-lo oferecer-lhe uma bebida. Quando voltasse para junto dela com os copos, ficaria a saber o seu nome e em que trabalhava e o que a mantinha ocupada numa noite como aquela, num hotel em Uppsala.

Interessado, atento, a querer saber mais.

Completamente concentrado na mulher à sua frente.

O jogo. A sedução. Como uma dança. Guiar e deixar-se levar, alternadamente. Tudo para que ela se sentisse especial, apreciada, reforçada e, com isso, despertar vontade de algo mais, para que sentisse que era ela que o seduzia a ele, não o contrário. Que a ideia de deixarem o bar fosse dela, e a ideia de irem para o seu quarto, dele.

Teria, sem dúvida nenhuma, funcionado. Já o fizera centenas de vezes antes. Mas não aquela noite. Prometera portar-se bem.

Sebastian Bergman, versão 2.0.

New and improved.

Já se sentia arrependido.

A irritação estava quase a afastar tanto a ansiedade como o aborrecimento, enquanto sentimentos dominantes nele.

A culpa era de Anne-Lie.

E a sua regra de celibato de merda.

Não ir para a cama com pessoas ligadas à investigação era uma coisa, mas qual era o problema se fodesse alguma assistente de contabilidade de Vänersborg ou outro tipo de mulheres que houvesse por perto? Nenhum. Porém, não se atrevia a arriscar. Se fosse apanhado, seria excluído da investigação.

Isso não podia acontecer.

Ursula poderia tê-lo salvado daquela situação. Tinham combinado jantar juntos, mas, pelos vistos, ela arranjara outra coisa, algo melhor, para fazer. Deixara-o sozinho. Por isso, também era culpa dela.

Um movimento junto às portas da recepção captaram a sua atenção. Por falar no Diabo... Ursula estava de volta. Sebastian chamou-a e acenou-lhe para que se juntasse a ele. Reparou que estava ligeiramente alcoolizada quando se aproximou e se sentou numa das cadeiras do bar, ao seu lado. Talvez a noite não fosse acabar desperdiçada, apesar de tudo.

— Onde é que estiveste?

— Fui encontrar-me com a Bella... a minha filha — acrescentou quando viu que Sebastian não teve nenhuma reacção. — Está a estudar aqui em Uppsala.

— Sim, eu sei — mentiu Sebastian. De certeza que ela já lhe teria dito aquilo antes, mas ele não tinha prestado atenção. — Porquê?

— Conseguiu entrar aqui na universidade.

— Não! Porque é que foste encontrar-te com ela?

— Porquê o quê? Que raio de pergunta é essa? — Ursula continuava a soar completamente incrédula. — É minha filha!

— Mas isso nunca teve importância até agora. Tu não foste qualquer coisa como a pior mãe da Suécia?

Ursula olhou-o fixamente. Pronto, ia ser uma das tais noites. Tinha duas alternativas, ou deixava o bar e voltava para o seu quarto ou ignorava a humilhação e tentava dirigir a conversa para algo mais sério. Podia contar-lhe o encontro com Bella, como se havia sentido toda a tarde, oscilando constantemente entre bem e desconfortável, dizer-lhe que não sabia como correra nem de que lhes havia servido, na verdade.

Mas Sebastian não mostraria interesse nenhum. Não em circunstâncias normais e muito menos naquela noite, em que claramente já estava de mau humor. Talvez fingisse interesse, mas apenas porque achava que isso ajudaria a conseguir levá-la para a cama.

— Mas que merda de insulto foi esse? — perguntou-lhe Ursula num tom brusco, e decidiu-se por uma terceira alternativa: ficar ali, mas impor limites. — Queres que me vá embora outra vez?

— Não — respondeu Sebastian em voz baixa e desviou o olhar.

— Então, controla-te!

— O que foi? É verdade!

— Mas isso não quer dizer que tenhas o direito de mo atirar à cara!

Um gesto discreto seguido de silêncio, em vez de fazer aquilo que pessoas normais teriam feito: pedir desculpa, tentar redimir-se. Pessoas normais, não Sebastian.

— O que se passa contigo? — perguntou Ursula, por fim. — Porque é que estás tão azedo?

— Tive uma noite de merda e a culpa é tua.

— Como assim?

— Íamos jantar juntos e depois desapareceste.

— Ai íamos?

— Foi o que tu disseste. Ontem.

Pois fora, na chamada por Skype, mas tinha sido uma sugestão, quando os dois pensavam que estariam em Estocolmo, e Sebastian ficara apenas comedidamente interessado, segundo o que Ursula recordava.

— Pois, mas não aconteceu — respondeu-lhe com um suspiro. — Por isso, controla-te.

Uma nova e excelente oportunidade para ele lhe pedir desculpa.

— Caga nisso, estás aqui agora — disse Sebastian, em vez das desculpas, e fez um gesto com a cabeça para o barman. — A noite ainda é uma criança, ainda me podes compensar.

Olhou-a com um leve sorriso e o que Ursula achou serem laivos de expectativa e esperança no olhar. Ou estaria apenas a imaginar, a ler demasiado na situação só porque o conhecia muito bem? Mais valia ser clara.

— Só para esclarecer, não estou a pensar ir para a cama contigo.

Conseguia realmente sentir a irritação a crescer dentro dele. Porém, esse era um problema dele, não dela. Colocou cuidadosamente a sua mão sobre a dele, em cima do balcão do bar.

— Posso ficar aqui contigo a beber um copo de vinho, se quiseres companhia.

Era isso que os amigos faziam. Estavam presentes. Dedicavam tempo uns aos outros. Ofereciam proximidade e carinho. Obviamente que em relação a essas coisas, quando se tratava de Sebastian Bergman, era tempo perdido, devia ter percebido isso ainda antes de ele ter retirado a mão da sua.

— Porque tens pena de mim.

— Porque gosto de estar contigo quando não és um cabrão. O que continuas a ser demasiadas vezes, só para que saibas.

Sebastian olhou-a nos olhos. Arrependia-se de se ter aberto com ela, daquela vez na sua cozinha, no apartamento da rua Grev Magnigatan. De se ter mostrado vulnerável, de lhe ter dado a impressão de que precisava de alguém, que queria manter laços. De lhe ter dado uma oportunidade para se aproveitar da sua fraqueza, simplesmente.

— Prefiro estar sozinho do que estejas comigo por compaixão.

— Tudo bem, faz como quiseres — respondeu-lhe Ursula ao mesmo tempo que deslizou da cadeira e pegou na mala. Atingira o limite. De longe. Dera-lhe mais hipóteses do que qualquer outra pessoa teria dado. — Hoje, estiveste bem com a Ida Riitala. É um lado teu que devias cultivar mais.

— Bonzinho e fofinho e simpático... Esse tipo de homem tem um nome. Chama-se Torkel.

Ursula não tinha paciência para tentar descobrir se aquilo era apenas um insulto ao chefe ou uma expressão de algum tipo de inveja. Também não estava interessada em saber.

— O Torkel é boa pessoa e tu sabes disso — disse simplesmente.

— É a versão humana da posição de missionário. Consegue cumprir o objectivo, mas não tem gracinha nenhuma.

— Boa noite, Sebastian.

Ursula foi-se embora. Sebastian observou-a.

Correra tudo mal.

Por sua culpa.

Quanto mais perto alguém tentava chegar, mais se esforçava para que assim fosse. Ursula sabia como ele funcionava, o que o motivava, estava convencido disso, mas não era certo que isso ajudasse. Pegou no telemóvel e escreveu uma mensagem, «DESCULPA!», ao mesmo tempo que se recordava do que ela lhe dissera em Ulricehamn.

«Em vez de seres um cretino e depois pedires desculpa por isso, já pensaste em deixar de ser um cretino?»

Mesmo assim, enviou a mensagem.

Era melhor do que nada. Esperava.

Pediu que as bebidas fossem cobradas na conta do quarto e deixou o bar. Subiu e deitou-se na cama. Ligou a televisão. Um documentário sobre formigas. Como se a noite ainda não tivesse sido suficientemente desastrosa.


Obrigou-se a fechar os olhos.

Apesar de o mínimo ruído a deixar sobressaltada, tentou convencer-se de que poderia relaxar.

Estava segura. A casa estava vazia. Ele já não estava lá.

Mas regressara. Fizera-lhe mal de novo.

Lenta, mas deliberadamente, começou a reprimir as memórias sobre como acordara, a escuridão apesar de ter os olhos abertos antes de retirar o saco. Como a sua respiração estivera pesada e acelerada enquanto se levantara, despira a roupa da cintura para cima e fora para o duche. Como lá ficara muito tempo. A pele dos dedos continuava enrugada, agora que tinha as mãos cruzadas sobre o peito. Concentração na respiração. Inspirar pelo nariz, expirar pela boca. Ignorar a pequena voz que soava do seu subconsciente. Em vez de pensar no que acontecera, fazer uma oração silenciosa e persistente ao Senhor.

Ele estava a pô-la à prova.

Mas ela ia superá-la.

Deus permitira que o terrível acontecesse. Duas vezes. Teria sido tão fácil começar a duvidar. Porém, sabia que ele queria usar o que acontecera para a mudar. Deixá-la sair daquilo mais forte do que dantes. Juntamente com Ele. Desde que estivesse disposta a colocar a sua vida nas Suas mãos, Deus levá-la-ia a uma nova fase. Ajudá-la-ia a alcançar novos conhecimentos, um novo nível, a aproximá-la da pessoa que ele queria que ela se tornasse e que fosse. A prova, por mais dolorosa, acabaria por se provar valiosa. No calor do forno, a escória flutua até à superfície para que o ouro saia limpo, como um colega expressara a questão uma vez.

Então, manteve-se quieta e de olhos fechados, deitada de costas na cama, as mãos cruzadas sobre o peito, a rezar em silêncio. A confirmar repetidamente que estava disposta a entregar-se, a si e à sua vida, nas Suas mãos, a elogiá-Lo na sabedoria de que Ele representava sempre a solução, de que havia um plano. Sentiu uma certa tranquilidade e as memórias começaram a desvanecer, pareceu-lhe. Estava confiante de que Deus a ajudaria a encontrar um caminho, pois sabia que ela tinha o que era preciso para seguir em frente.

Tal como da vez anterior. Da primeira vez.

Ele acompanhara-a em todo o processo. Passara dias, semanas até, sem pensar naquilo; sentira que, de algum modo estranho, o acontecimento a levara a focar-se, havia um sentido para que acontecesse agora, tão perto da eleição para o bispado. Fora obrigada a olhar para dentro, a examinar-se a si própria, aproximar-se mais da pessoa que Jesus pretendia que ela fosse.

A diferença era que, desta vez, tinha uma ideia do que se tratava.

Ela, Ida, Klara e Rebecca.

Uma acção punitiva.

Era difícil acreditar que poderia tratar-se de qualquer outra coisa, mas nunca permitiria que alguém descobrisse.

Nem agora nem nunca.

A questão surgira-lhe no duche. Deveria ligar às outras? Avisá-las? Contar-lhes que o terrível poderia repetir-se? Que não acabara?

Se o fizesse, elas acabariam seguramente por contactar a Polícia. Pedir protecção. Talvez conseguissem encontrar uma forma de montar uma armadilha para o homem em questão. Fosse como fosse, a Polícia ficaria a saber onde procurar, acabaria por prendê-lo mais cedo ou mais tarde e seria o fim dos ataques e do sofrimento. Se se pensasse apenas nesses aspectos, a resposta à questão era simples. Sim, tinha de lhes telefonar. Tinha de as avisar.

No entanto...

A Polícia iria querer saber qual era a relação entre as quatro mulheres — Ida falara brevemente de uma quinta mulher, mas não era ninguém de quem Ingrid tivesse ouvido falar anteriormente —, o motivo pelo qual haviam começado por mentir e o que acontecera para desencadear uma série de ataques tão violentos.

Seriam obrigadas a contar. Acabaria por se tornar público. No preciso instante em que isso acontecesse, as suas hipóteses de ganhar as eleições para o bispado seriam aniquiladas. A sua capacidade de proclamar o evangelho e espalhar a palavra de Deus, como estava a pensar fazer, estaria irremediavelmente perdida. A decadência da Igreja da Suécia ia continuar a progredir, e com total liberdade e uma voz forte, ao menos do lado da oposição.

Decisões difíceis de tomar em situações normais, praticamente impossíveis nas circunstâncias actuais. Por fim, decidiu não fazer nada. Não dizer nada. Pelo menos, por enquanto. Se fosse a vontade do Senhor avisar as outras, que não sofressem outro mal, e Ele próprio se certificaria de que elas o soubessem.

Também rezou para que assim fosse. Para que Ele mantivesse a sua mão protectora sobre as suas cabeças. Intercalava esse pedido com promessas e adorações que a acalmavam, mas parecia não conseguir calar a pequena voz que lhe ressoava na cabeça.

Teria tomado a decisão acertada? Pelas razões certas? Não teria, no fundo, colocado os seus próprios interesses acima dos de outros? Agindo de forma egoísta? Pouco cristã, até. Tinha, possivelmente, a oportunidade de prevenir o sofrimento. O preço que seria obrigada a pagar era o título de bispo.

Valeria a pena? Seria o correcto?

Fazia tudo parte da prova, e só Deus a poderia resolver. Não ela. Ela podia apenas procurar a Sua ajuda. Sem conseguir evitá-lo, lembrou-se imediatamente da carta de Paulo aos Romanos 12:19.

Não vos vingueis por vós mesmos, amados meus, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança; eu a cobrarei, diz o Senhor.

Ingrid afastou aquele pensamento, todos os pensamentos, incluindo aquela voz sussurrante. Rezou intensamente para conseguir esquecer. Não apenas o trauma físico e mental da noite, mas tudo: Linda Fors, a fatídica noite de há oito anos, as decisões que então tomaram.

Para que o fardo fosse levantado dos seus ombros, mesmo que apenas por um momento.

As suas preces foram ouvidas sob a forma de um sono agitado.


15 de Outubro

Falam sobre mim nos jornais. Na net.

Parece que Rebecca Alm morreu. Não sabia.

Sabes que não foi minha intenção.

A Polícia está a pedir ajuda. Pistas. Procuram testemunhas.

Aparentemente, ninguém disse nada.

A culpa e a vergonha devem estar a impedi-las.

Por isso, precisam da ajuda do público.

É estúpido sentir-me confiante, acreditar que não cometi erros nenhuns.

Aumentar o ritmo, conseguir mais antes de me prenderem, ou não dar nas vistas por algum tempo, essa é a grande questão.

Tenho de continuar. Mas uma palavra, alguém que mencione o teu nome, e encontram-me. Param-me.

Ainda não terminei.

Tu sabes disso, Linda.

Sonhei contigo esta noite, outra vez.

É sempre assim, quando o teu aniversário se aproxima.

Estavas no banco traseiro. Havia sangue por todo o lado.

A culpa não foi delas, disseste.

Mas era um sonho.

A culpa foi delas, sim.


A música que ouvira no rádio, quando estacionara o carro, ficara-lhe na cabeça.

Não sabia como se chamava, mas tinha sido tocada em todo o lado no Verão anterior. Uma canção em espanhol, na qual Justin Bieber cantava uma parte. Sabia isso, porque Vilma era fã de Justin Bieber. Se tivesse sido há dois, três anos atrás, teriam falado de idolatrar, mas a obsessão mais forte já acalmara um pouco e Torkel achava que estava no nível de «gostar».

Saiu do elevador a assobiar, foi até à máquina de café, pegou numa chávena e carregou no botão com a opção de café com leite. Tinha tido uma noite agradável na véspera. Um jantar tardio com Lise-Lotte, conversa sobre o dia de trabalho enquanto davam uma vista de olhos pelas notícias e depois cama.

Alguém na sua casa.

Alguém com quem conversar.

Alguém com quem adormecer.

Era tudo o que ele queria.

Pegou na chávena e foi para o escritório. Anne-Lie já estava no seu lugar, atrás das paredes de vidro. Torkel levantou a mão num aceno, dirigiu-se à sua secretária e despiu o casaco.

— Já cá estás — constatou Anne-Lie quando saiu do gabinete e foi ao seu encontro. Pensou que seria o primeiro a chegar. Saíra de casa quarenta e cinco minutos antes do que realmente precisava, para o caso de, à saída da cidade, o trânsito estar congestionado, mas fora tranquilo.

— Queria certificar-me de que está tudo a postos com o pessoal extra e os formandos.

— Tem havido muitas chamadas?

— Por acaso, não. Algumas, mas não muitas.

Torkel assentiu, surpreendido e decepcionado. Da última vez que a Brigada de Homicídios fizera uma conferência de imprensa a pedir a ajuda do público, tinham recebido centenas de pistas. Embora também fosse de prever que a cobertura mediática fosse muito maior, apesar de tudo, porque as vítimas eram famosos de segunda classe.

— Alguma coisa que nos possa ser útil? — quis saber Torkel, sentando-se no seu lugar e bebendo um pouco de café.

— Até agora não.

Anne-Lie puxou a cadeira da secretária mais próxima e sentou-se ao lado dele.

— Há quanto tempo trabalhas na Brigada de Homicídios?

— Há muito tempo, mais de vinte anos.

— Então, gostas do trabalho.

— Sim, quase sempre.

— Que idade tens?

Torkel olhou-a, surpreendido. Não era uma pergunta de que estivesse à espera.

— Cinquenta e oito. Porquê?

— Achas que vais continuar a trabalhar até aos sessenta e três?

— Não sei. Talvez. Porquê?

Anne-Lie ficou calada. Tinha aquela ideia na cabeça há algum tempo. No dia anterior, quando chegara a casa, formulara-o em voz alta. Era polícia há quase vinte anos. Chegara a inspectora-chefe, tinham-lhe oferecido o lugar de chefe da região policial, mas recusara-o. Demasiado trabalho administrativo. Trabalhara por quase todo o país, mudara de sítio com frequência, uma vez que se fartava depressa. Não do trabalho em si, mas dos sítios, das pessoas. Quando tudo começava a ser rotineiro, sentia necessidade de partir. Porém, a ideia de viajar pelo país em novas investigações, com novos colegas, trabalhar sempre em casos importantes, isso assentar-lhe-ia que nem uma luva. Gostaria de o fazer.

— Estava só a pensar... Sou amiga chegada da Rosmarie Fredriksson no DON, e falamos sobre isso, de vez em quando — acabou por dizer com um encolher de ombros que mostrava que estava só a fazer conversa.

— Falam sobre a minha eventual reforma? — Torkel pousou a chávena de café e inclinou-se ligeiramente para a frente. Rosmarie Fredriksson não trabalhava apenas no Departamento Operacional Nacional, também era a chefe directa de Torkel. Descreveria a relação dos dois como profissionalmente tensa.

— Não, não — respondeu Anne-Lie com uma pequena gargalhada desarmante. — Sobre parecer ser um trabalho muito divertido.

— Queres ficar com o lugar?

Anunciar abertamente que andava atrás do emprego de Torkel seria, provavelmente, demasiado arriscado e não ajudaria a relação já um pouco tensa, mas também não tencionava mentir nem pedir desculpas por ser ambiciosa.

— É teu — respondeu, de forma diplomática e concisa.

— É verdade. É meu.

Torkel manteve o olhar fixo no dela e esperou que ficasse bem claro para Anne-Lie que tencionava mantê-lo. Anne-Lie sorriu-lhe ligeiramente, ao mesmo tempo que Carlos entrava na sala, acompanhado por Vanja e Ursula.

— Porra, que frio que está! — resmungou Carlos, esfregando as mãos enluvadas uma na outra a caminho do seu lugar. Torkel não respondeu, tinha visto no termómetro do carro que estavam quatro graus positivos em Uppsala. Talvez fosse frio para a altura do ano, mas era fácil de resolver com alguma roupa, e não havia razão nenhuma para soar como se se estivesse a regressar de uma expedição polar.

— Bom dia a todos — cumprimentou-os Anne-Lie, levantando-se. — Vão buscar cafés e aquilo que quiserem; encontramo-nos na sala de reuniões daqui a dez minutos.

— Billy e Sebastian já cá estão? — perguntou Vanja.

— Espero que estejam daqui a dez minutos.

E, com isso, regressou ao seu gabinete. Torkel pegou na sua chávena e juntou-se a Vanja e Ursula.

— Bom dia, vieram juntas?

— Vanja foi-me buscar — respondeu Ursula com um sorriso para a colega.

— E onde deixaste Sebastian?

— Não sabia que ele era responsabilidade minha.

— Vocês estão hospedados no mesmo hotel, pensei que...

— Não o vejo desde ontem à noite.

— Ah não? Então, vamos esperar que ele apareça.

— Ou não — acrescentou Vanja.

Um campo minado. Perderia de qualquer forma. Se concordasse com Vanja, ainda que em tom de brincadeira, irritaria Ursula; se desse a entender que Sebastian fazia parte da equipa, irritaria Vanja. Por isso, ficou em silêncio.

— Café? — perguntou Ursula, virando-se para Vanja.

— Vou contigo.

Juntas, deixaram a sala. Torkel ficou com a sensação de que, de alguma forma, conseguira irritar as duas. A equipa já não era a mesma. Por vezes, parecia que estavam a ser puxados, cada um para o seu lado. E talvez estivessem mesmo, acontecera muita coisa na vida de ambos, nos últimos anos, mas Torkel não conseguia livrar-se da sensação de que os problemas tinham começado quando Sebastian aparecera em Västerås e ele o incluíra na investigação. Recordava-se do que dissera a Sebastian nessa altura, depois da sua primeira reunião.

«Não me faças arrepender-me desta decisão.»

Perdera a conta ao número de vezes que já se arrependera desde esse dia.

E acabava de acrescentar mais uma à lista.


— Bom dia!

Quando os outros entraram, Sebastian já se encontrava na sala de reuniões, com uma série de papéis separados em diferentes montes à sua frente, em cima da mesa. A saudação foi lançada para toda a sala mas com o olhar fixo em Vanja; era evidente que era dirigido principalmente para ela. Vanja respondeu com um olhar que deixava claro que queria ignorá-lo por completo, mas que a sua educação e boa moral não lhe permitiam fazê-lo.

— Olá.

Mais curto que isso era impossível. Puxou a primeira cadeira vazia que havia à mesa, o mais distante possível de Sebastian.

— Fui comprar croissants para todos — continuou Sebastian, aparentemente de excelente humor, e fez um gesto com a cabeça para o prato com os bolos, colocado no centro da mesa.

— O que estás aqui a fazer tão cedo? — perguntou-lhe Torkel, gesticulando com a cabeça para o material que Sebastian tinha à sua frente, ao mesmo tempo que se sentava.

— Achei que era melhor dar uma vista de olhos a todas as pistas que chegaram ontem.

— Temos um grupo de agentes encarregado de fazer isso — informou Anne-Lie.

— Eu sei, era só para me certificar de que não deixavam passar nada. É por isso que estou aqui, não é? Para contribuir com a minha experiência.

Não tencionava contar-lhes que acordara do mesmo sonho, às quatro e meia da manhã, e que não conseguira voltar a adormecer. Que o quarto lhe parecera uma cela. Que a angústia o obrigara a sair dali e que, em abono da verdade, não tinha mais sítio nenhum para onde ir.

— Fora isso, passei a noite no hotel — continuou em tom descontraído. — Estive um bocado com a Ursula no bar, quando ela voltou do encontro com a filha, e depois fui para o quarto deitar-me. Sozinho. Portei-me bem, a pila dentro das calças. Como combinado.

— Okay, vamos mas é tentar avançar — disse Anne-Lie com um suspiro, ao mesmo tempo que Billy entrava na sala com o seu portátil numa mão e uma chávena de café na outra.

— Desculpem o atraso — murmurou Billy ao mesmo tempo que se sentava e preparava as coisas. Sebastian observou-o enquanto, em piloto automático, fazia a ligação do computador ao projector da sala. Billy parecia cansado, mas podia ser apenas falta de sono, por ter estado a trabalhar até tarde.

Sebastian esperava que fosse esse o caso.

As alternativas assustavam-no.

Billy estava quebrado. Vira-se forçado a matar em serviço. Duas vezes. De alguma maneira, associara esses actos ao prazer. Poder, desejo e prazer. Sebastian conhecia-o bem, mas encontrara várias desculpas para nunca reflectir sobre o assunto. Convencera-se de que não era necessário. Que fora um acto isolado ter visto Billy matar um gato no Verão anterior. Que Billy se apercebera da loucura daquele acto. Que tinha a situação sob controlo, como garantira a Sebastian da última vez que haviam falado do assunto.

No entanto, Sebastian ficara com a sensação de que, na véspera, ele mostrara outra faceta. Não que se tivesse excedido, necessariamente, mas fora o suficiente para o levar a questionar-se se o colega tinha mesmo tudo sob controlo. O mais provável era Sebatian ter de voltar a abordar o assunto, admitiu com alguma relutância.

— Quem quer começar? — perguntou Anne-Lie, interrompendo os pensamentos de Sebastian.

— Ontem revi as filmagens das câmaras de vigilância mais próximas dos locais dos crimes — disse Billy, respondendo assim à pergunta de Anne-Lie. — Do meu ponto de vista, na verdade, dão-nos apenas uma pista possível.

Pressionou algumas teclas, e uma imagem desfocada de uma câmara de vigilância apareceu na parede.

— Aquilo é um Audi Q3 preto de 2015. No dia 18, passa em frente à câmara, que está na rua Thunbergsvägen, dez minutos antes de a Ida Riitala ser atacada.

Carlos levantou-se, aproximou-se do mapa pendurado na parede, pegou numa caneta e fez uma pequena cruz. Todos puderam ver que ficava muito próxima do círculo do número «1» que Anne-Lie lá escrevera anteriormente. Billy abriu outra imagem, que ficou projectada ao lado da primeira.

— Aqui está um Audi Q3 preto, do mesmo ano, na esquina da rua Sågargatan com a avenida Kungsängsesplanaden, apenas alguns minutos depois do ataque à Klara Wahlgren, anteontem.

Carlos marcou novamente o local no mapa, a alguns quarteirões do parque de estacionamento onde Klara deixara o seu carro.

— E que matrícula tem? — perguntou Torkel, chamando a atenção de todos para o pequeno rectângulo sobreposto nas duas fotografias, onde as matrículas deviam estar visíveis.

— Está tratada com algum tipo de spray reflector, para evitar as câmaras.

Quase todos os presentes à mesa assentiram em silêncio. Aquele facto, na verdade, não tornava o carro menos suspeito.

— E quantos Audi Q3 do ano de 2015 existem na região? — quis saber Torkel, virando-se novamente para Billy.

— Muitos, demasiados. Retirei uma lista da direcção-geral de viação. Depois, fiquei a pensar no que o Sebastian disse sobre a possibilidade de o primeiro ataque não ter ocorrido muito longe da casa do criminoso.

As imagens das câmaras de vigilância foram substituídas por uma fotografia do registo de passaportes. Um homem de quarenta e poucos anos, com entradas marcadas e uma barba escura bem aparada num rosto largo, olhava directamente para a lente.

— Este é o Dan Tillman. Tem um e vive no número 83 da rua Vänortsgatan.

Carlos fez outra cruz no mapa e deixou claro para todos que Tillman morava apenas a alguns minutos do antigo cemitério.

— E o que sabemos sobre ele?

— Tem quarenta e dois anos, trabalha como product developer numa empresa tecnológica de Estocolmo, é divorciado e tem a custódia dos filhos dois fins-de-semana por mês, nunca foi condenado, mas tem várias denúncias policiais.

— Porquê?

— Ameaças e assédio contra a ex-mulher e namoradas. Nada que tenha sido levado a julgamento. A mais recente foi este Verão, quando publicou fotografias de uma ex-namorada nua, num grupo do Facebook.

— Um gajo simpático, portanto — comentou Vanja.

— De todo — respondeu Billy. — É activo em vários grupos, quase todos abertamente antifeministas e/ou racistas. Muitas vezes comenta que espera que as pessoas que não pensam como eles sejam violadas. Ou as suas mulheres, quando se trata de homens. De preferência, por imigrantes.

Billy mostrou mais uma página na qual reunira alguns comentários do utilizador «DanneTillman1». A fotografia de perfil mostrava claramente que era o mesmo homem que tinham visto na imagem do passaporte. Demoraram alguns segundos a ler os curtos comentários, que todos, sem excepção, interpretaram como o desejo de que a violência sexual afectasse outros ou fosse motivo de alegria quando acontecesse.

— O que te parece?

Anne-Lie virou-se para Sebastian.

— É muito raro este tipo de homens levar as coisas mais além das caixas de comentários. Conseguir um escape para a raiva e obter reconhecimento dos outros costuma ser suficiente.

Billy olhou para os comentários projectados na parede e sentiu-se quase desolado. Era um dos maiores defensores da Internet. Era uma ferramenta que adorava. Havia tanta coisa útil e fantástica nela. Porém, actualmente, parecia que tudo girava em torno do que era negativo. A maneira como a informação era armazenada e divulgada. Os possíveis barões do Google, todas as mentiras, todo o ódio e todas as ameaças. Para Billy, a Internet era como uma grande cidade. Havia de tudo. A oferta era enorme. Havia algo para todos. Todavia, como em todas as grandes cidades, havia esgotos e fossas onde a merda se acumulava, e, se estivéssemos metidos neles, então, significava que fedíamos.

— Em todo o caso, vamos falar com ele — concluiu Sebastian.

— Mas, se ele vive tão perto, ia mesmo pegar no carro? — acrescentou Ursula ao mesmo tempo que Billy desligava o computador.

— Há homens de uma certa idade que vão de carro para todo o lado — respondeu Sebastian. — Mas, para além disso, sim, o carro dá-lhe a possibilidade de se afastar dos locais rapidamente, uma maior sensação de segurança, que funciona como uma barreira de protecção.

— Okay, bom trabalho. Vamos falar com ele. Vanja, Carlos?

Ambos assentiram com a cabeça em resposta e trocaram um olhar rápido e um sorriso enquanto Carlos regressava ao seu lugar. Anne-Lie manteve a atenção em Billy.

— Da rua Ångkvarnsgatan, o ataque à Klara Wahlgren. O que é que temos aí?

— As pegadas são de uns ténis da marca Vans, modelo UA-SK8-Hi MTE, o mesmo sapato que antes. Não dá para descobrir a origem da seringa que encontrámos, é possível comprá-la num sem-número de sítios na Internet.

— E a Rebecca Alm?

— Nada até agora — constatou Ursula. — Estou a contar receber um relatório preliminar ao longo da manhã.

— Mais alguma coisa? — perguntou Anne-Lie, dirigindo-se a todos os presentes. Como resposta, todos abanaram a cabeça.

— Okay, a Vanja e o Carlos vão falar com o Tillman. Billy, vê se consegues descobrir mais coisas sobre ele.

— Tudo bem.

— Ursula, informa-nos assim que receberes notícias do laboratório. Vamos manter-nos atentos a todas as pistas que cheguem por telefone ao longo do dia — concluiu, voltando-se para Torkel. — Queres acrescentar alguma coisa?

Na realidade, o que mais havia a acrescentar? Anne-Lie já dera ordens a todo o grupo menos a Sebastian, de quem, em todo o caso, não se podia esperar que fizesse o que lhe era pedido. Era como se ela não só liderasse a investigação mas também já tivesse assumido o seu trabalho. Torkel também poderia estar a tirar demasiadas conclusões devido à curta conversa da manhã. Não valia a pena dramatizar a situação. Por enquanto.

— Não, parece-me um bom plano.

— Então, pronto.

A reunião ficou, assim, concluída. Todos arrumaram as suas coisas e deixaram a sala, à medida que se despachavam. Vanja aproximou-se do mapa afixado na parede e estudou-o, como se quisesse memorizar as novas informações. Sebastian levantou-se e chegou junto dela devagar.

— Ouvi dizer que o teu namorado veio cá.

— Sim? — respondeu Vanja depressa e na defensiva, sem se voltar para ele.

Mas, ao menos, era uma resposta. Melhor que nada.

— Que bom. É Jonathan, não é?

Pelos vistos, Vanja não tencionava responder-lhe a mais de uma coisa. A sua pergunta bateu num muro de silêncio, mas Vanja virou-se para ele.

— Queres alguma coisa que tenha que ver com o trabalho?

— Sim, por acaso. Pensei que podia ir com vocês falar com o Tillman.

— Não, isso não vai acontecer.

Vanja passou por ele, pegou nas coisas que deixara em cima da mesa e saiu da sala. Sebastian soltou um suspiro. Já estava a contar ter de se esforçar, mas como poderia mostrar que mudara se ela não lhe dava um único milímetro de espaço? Lançou um olhar a Ursula, que ficara para trás. A colega abanou a cabeça num gesto que dizia «porque é que não desistes?» e esperou que Vanja fechasse a porta para se voltar para ele.

— Olha, sobre ontem à noite...

— Sim, eu sei, fui estúpido. Não recebeste a minha mensagem?

— Recebi.

— Ainda bem.

Contudo, algo na expressão de Ursula dizia-lhe que não estava tudo bem.

— Queres que to diga pessoalmente também? Desculpa, fui estúpido ontem.

Realmente, era preciso procurar com muita atenção para encontrar um laivo de remorso no tom de voz de Sebastian, e, por momentos, Ursula pareceu ponderar se valia mesmo a pena continuar. Não obstante, aproximou-se dele mais um passo.

— Não é só sobre ontem. Por muita merda que tenhas na tua vida, nada te dá o direito de tratar as pessoas de qualquer maneira.

— Percebo isso. E não o quero fazer... Pelo menos, a ti — acrescentou, apercebendo-se de que aquela afirmação era um bocado forçada.

— Então, vê lá se te controlas. Mais uma dessas e passo para o lado da Vanja.

— Percebido.

— E tu não queres isso — disse-lhe num tom levemente mais suave, como para esclarecer que estava a ameaçá-lo para seu próprio bem. Porque sabia o que ele queria, o que, naquele caso, era verdade.

— Pois não, não quero — confirmou Sebastian com sinceridade.

Ursula olhou-o nos olhos por segundos antes de recuar alguns passos, inclinar-se, pegar num croissant e deixar a sala e Sebastian.

Controlar.

A sua vida.

Era a mesma coisa que ter-lhe pedido para subir ao cume do Evereste.


— Preciso de um advogado?

Dan Tillman era grande, musculado e mais alto do que Vanja imaginara, certamente mais de um metro e noventa. Fora isso, era igual à fotografia do passaporte. A única diferença era uma tatuagem que despontava da gola da camisola. Devia ser recente, presumiu Vanja, senão tê-la-iam visto.

— O senhor tem advogado? — perguntou Carlos, surpreendido. Nunca deixava de se espantar com a influência de todos os filmes e séries norte-americanas sobre polícias e advogados. Como todas as pessoas pareciam saber muito mais sobre os procedimentos e o seu sistema legal do que sobre os suecos.

— Suponho que tenham de me arranjar um oficioso. Tenho direito a um.

Quando estacionaram na rua Vänortsgatan, em frente ao prédio de três andares de tijolo claro, Vanja teve a sensação de que aquilo não ia ser fácil. Algumas das publicações que lera na conta de Facebook de Tillman mostravam, em combinação com a misoginia e o racismo, um desprezo que, na maior parte das vezes, resvalava para puro ódio contra as autoridades e os políticos, em particular os que se posicionavam mais à esquerda. Também mencionava a Polícia em poucas publicações, mas nunca de forma positiva. Vanja quase se arrependera de não terem levado Sebastian, teria sido um cretino contra outro cretino.

Enquanto subiam as escadas, Vanja partilhara a sua preocupação com Carlos, mas o colega dissera-lhe apenas para não se deixar provocar. Não era o seu lado mais forte, pensou Vanja quando tocaram à porta. Tinham-se apresentado e mostrado as identificações policiais a Tillman, que imediatamente perguntara sobre a necessidade de representação jurídica.

— Não é suspeito de nada — explicou Vanja da maneira mais calma possível.

— Então, o que estão aqui a fazer?

— Queremos falar consigo.

— E se eu não quiser conversas convosco?

Era evidente que não queria. Vanja considerou que a porta se fecharia dali a dez segundos, quando Carlos deu um passo em frente.

— Nesse caso, vamos embora e continuamos a nossa investigação. O senhor vai parecer-nos um pouco mais suspeito, o que nos levará a investigá-lo melhor. E, se encontrarmos alguma coisa, por mais pequena que seja, voltamos aqui, prendemo-lo, interrogamo-lo, com um advogado presente, se quiser, e depois logo se vê o que acontece.

Carlos fez uma curta pausa e depois levantou um dedo indicador, como se acabasse de se lembrar de algo.

— Ou, então, fala connosco agora, apenas alguns minutos. Ajuda-nos a esclarecer umas coisas e esperamos não ter de o incomodar novamente.

Fez-se silêncio enquanto Tillman ponderava. Vanja ouviu o choro inconsolável de uma criança, vindo do apartamento ao lado. Ficou impressionada. Até àquele momento, Carlos passara despercebido, mas aquela descrição eloquente do que aconteceria, com uma educada ameaça sub-reptícia, fora fantástica.

Com um grunhido de insatisfação, Tillman desviou-se para o lado e deixou-os entrar no apartamento. Carlos pôs uma mão no bolso, pegou com cuidado no seu telemóvel, pô-lo a gravar e voltou a metê-lo no bolso. Tinha o pressentimento de que seria bom documentar a conversa que iam ter. Poderia ser vantajoso ter bem documentada a conversa que se aproximava.

Seguiram Dan pelo corredor sem janelas, até à cozinha. O papel de parede era azul-claro e havia azulejos brancos por cima do lava-loiça e da bancada. Frigorífico e congelador em aço inoxidável. Ao lado, um móvel com forno encastrado e, por baixo, uma garrafeira. O lava-loiça estava vazio, as bancadas, limpas e arrumadas, e havia ervas aromáticas em vasos junto ao fogão. Tudo limpo e arrumado. Nenhum sinal de que moravam ali crianças dois fins-de-semana por mês, nem sequer de vez em quando. Nenhuma fotografia, nenhum desenho, nenhum brinquedo, nenhum horário nem notas «a não esquecer» coladas no frigorífico. Vanja julgou sentir no apartamento um leve odor a amoníaco, mas não viu nada na cozinha que mostrasse que Dan tivesse um gato.

— Então, o que querem?

Não os convidou a sentar. Ele próprio se encostou à ombreira da porta com os braços cruzados sobre o peito. Não era preciso ser-se um especialista em linguagem corporal para perceber que marcava a distância.

— Temos aqui impressas umas mensagens suas no Facebook, comentários que escreveu... — começou Carlos por dizer, e, sem ser convidado, puxou uma cadeira, sentou-se e colocou os papéis em cima da mesa da cozinha. Durante alguns segundos, pareceu que Dan ia protestar, mas manteve-se em silêncio.

— «Se levar o suficiente com uma picha afegã no cu, essa puta de merda comunista talvez se arrependa» — Impassível, Carlos levantou os olhos do papel. — Isto é sobre uma mulher que, há alguns anos, se empenhou no acolhimento de refugiados menores que chegaram sozinhos.

— Não fui eu que escrevi isso.

— Esta não é a sua conta? — perguntou Vanja, colocando a folha impressa à frente de Dan. — DanneTillman1, uma só palavra, e a fotografia de perfil é muito parecida consigo.

Dan olhou um instante para o papel e depois para Vanja, com um pequeno sorriso que contrastava com os seus olhos, que obscureciam.

— Eu não disse que a conta não era minha. Se prestasse mais atenção e não estivesse a armar-se, teria ouvido que eu disse que não fui eu que escrevi isso.

— A armar-me? Eu estou a armar-me? — Vanja virou-se para Carlos, que estava contente por ficar com tudo gravado. Parecia que a conversa começara depressa a correr mal.

— Se não foi o senhor, então, quem foi? — perguntou-lhe Vanja calmamente, tentando tornar a conversa de novo normal.

— Não faço a mínima ideia. Deve ter sido um hacker que entrou na minha conta.

— Então, também não escreveu isto? — perguntou Vanja, lutando para não deixar a raiva e o desprezo transparecerem na sua voz. Pegou num dos papéis que estavam num monte à frente de Carlos e leu.

— «Só esperamos que alguém a castigue com uma foda dura e prolongada e que a deixem a sangrar num sítio qualquer, estúpida puta de merda.»

Dan permaneceu encostado à ombreira da porta e limitou-se a abanar a cabeça, como se não estivesse a compreender a conversa.

— Parece que esta é uma rapariga de dezasseis anos que lutou para que um dos colegas de turma pudesse ficar no país.

— Ao que parece, há muitos hackers a entrar na sua conta — constatou Carlos, com um gesto para o material à sua frente. — Isto é só uma parte do que encontrámos.

— Talvez sim, não a uso com frequência — respondeu Tillman num tom que revelava que estava ciente de que eles sabiam que mentia.

— E não tem nenhum problema com o facto de alguém escrever este tipo de coisas em seu nome? Regularmente?

— Não estou a perceber! — exclamou Dan, que, afastando-se com um impulso da ombreira da porta e abrindo os braços, disse, irritado: — É por isso que estão aqui? Isso são opiniões. Liberdade de expressão, já ouviram falar? Aplica-se a todos, não é só à mafia do politicamente correcto, embora seja difícil acreditar.

— É essa a sua opinião sobre violações, que algumas mulheres o merecem? — perguntou Vanja, e, desta vez, nem tentou esconder o que sentia.

— Mas a sério? Estão aqui por causa de uma coisinha de merda dessas? Como se fossem um bando da Gestapo das opiniões? Foi por isso que não mandaram bófias a sério?

— Bófias a sério? O que quer dizer com isso? — perguntou Vanja num tom que indicava que já sabia a resposta mas que queria ouvi-la da boca dele.

— Vocês devem ser dos que entraram por discriminação positiva.

— Porque eu sou mulher e ele é... ?

— Culturalmente diverso, sim.

— Na verdade, estamos aqui para falar do seu carro — ouviu-se dizer num tom calmo e objectivo, da mesa da cozinha, como se Carlos não tivesse presenciado o que se passara nos últimos trinta segundos.

— Acabou-se a conversa — afirmou Dan sem hesitações. — Podem bazar daqui.

— O seu Audi Q3, de 2015, foi visto nas imediações de dois locais de crimes no último mês. — Vanja deu um passo na direcção dele e ficou tão próxima que conseguia sentir a sua respiração. — É motivo suficiente para si?

Ficaram os dois de pé, a medir forças com o olhar. Vanja não desviou o seu. Nem um milímetro. Não tencionava dar-lhe essa satisfação.

— Não é, não.

— Foi apanhado por câmaras de vigilância.

— Bom esforço, mas a minha matrícula não é apanhada pelas câmaras — respondeu Dan, autoconfiante, aparentemente satisfeito com a oportunidade de os pôr no lugar.

— Não?

— Está coberta por spray reflector. Vou a Estocolmo e volto todos os dias e não vou pagar nem mais um cêntimo do que já pago para andar de carro. Completamente legal, se querem saber.

— Mas não cobre a cara com spray, pois não? — sorriu Vanja, igualmente confiante e satisfeita. Para sua grande felicidade, viu que Tillman desviou rapidamente o olhar.

— Pode explicar-nos o que estava a fazer nestes locais, a estas horas? — perguntou Carlos, passando-lhe um papel com as datas e as horas correspondentes aos ataques a Ida e Klara. Tillman aproximou-se da mesa, pegou no papel e leu-o.

— Anteontem, estive a jogar floorball à noite. No liceu Bolandsgymnasiet, jogamos lá todas as semanas. No dia 18 de Setembro...

Retirou o telemóvel do bolso, desbloqueou-o, abriu a agenda electrónica e, passando o dedo no visor, recuou para o mês anterior.

— Estive num jantar em Estocolmo com alguns colegas.

— Precisamos dos nomes dessas pessoas — constatou Carlos.

Dan assentiu e Carlos deu-lhe uma caneta.

Aparentemente, tinha dois álibis, pensou Vanja, mas as violações não demoravam muito tempo a levar a cabo. O risco de ser apanhado era constante. Cinco, dez minutos, no máximo. Se Dan Tillman tivesse chegado dez minutos atrasado ao treino de floorball ou deixado o jantar quinze minutos mais cedo, continuaria a ser um possível suspeito.

Vanja queria mesmo que fosse esse o caso.

Não queria outra coisa do que encontrar um motivo para o prender.

Prendê-lo e, de preferência, atirar a chave da cela para o lixo.

— Tem ido a Gävle ultimamente? — perguntou enquanto Tillman anotava nomes e números de telefone na parte de trás de uma das mensagem impressas que tinham levado com eles.

— Não.

— De certeza?

Dan nem se dignou a responder, continuando a escrever. Vanja não achou que estivesse a tentar escapar-se, porque precisava de ganhar tempo ou talvez estivesse com medo de se contradizer. Estava apenas a marcar que a conversa terminara e que os queria fora dali quanto antes. Vanja tentou uma última estratégia.

— Queremos uma amostra de ADN.

Desta vez, Dan parou de escrever e virou-se para ela. «Diz que não, diz que não, diz que não», pensou Vanja, esperançosa.

— Sem problema.

Vanja quase ficou sem ar. O homem à sua frente podia, de muitas formas, ser um idiota completo, mas não era estúpido.

Provavelmente, havia somado dois e dois.

O seu carro em dois dos locais dos crimes.

A conversa sobre violações.

Lera sobre os ataques em Uppsala.

Por isso, de um momento para o outro, se mostrara cooperante e disposto a providenciar os álibis. O facto de também não apresentar objecções à sugestão de lhes dar uma amostra de saliva, sabendo que, muito provavelmente, haveria ADN nos locais dos crimes, tornava bastante improvável que tivesse alguma coisa a esconder.

O homem era um porco.

Vanja estava convencida de que, um dia, acabaria preso por algum motivo.

Mas não naquele dia, não por aquilo.


Rebecca Alm.

O nome ocorrera-lhe assim que Weber acordara naquela manhã.

Na noite anterior, no carro, quando voltava da conferência de imprensa em Uppsala, tentara recordar-se onde já ouvira aquele nome.

Recordar-se de quem era.

Em que circunstâncias o teria ouvido.

Ao chegar a Estocolmo, ainda fora para o escritório, escrevera sobre as violações em Uppsala e o homicídio em Gävle. Praticamente, uma transcrição da informação que lhes fora disponibilizada pela Polícia, mas sob um formato diferente.

Uma fotografia de Rebecca Alm.

Uma imagem de arquivo do antigo cemitério.

Um destaque sobre o Homem de Haga.

Não tinha mais nenhum nome das vítimas, para além do de Rebecca, nem tinha familiares com quem falar e também não tencionara começar a procurá-los tão tarde, por isso, o artigo fora mais factual do que emotivo. Se o caso crescesse, se a concorrência lhe dedicasse mais atenção ou se a nova chefe de redacção, por algum motivo, o quisesse, poderia investigar mais profundamente. Mesmo sabendo, por experiência própria, que as investigações lideradas por Torkel Höglund raramente sofriam fugas de informação, acabaria por descobrir um nome. Algum familiar, amigo ou colega de trabalho. Poderia tornar os artigos pessoais e subjectivos. Encontrar os pequenos detalhes na imensidão do caso. O luto. O ponto de vista pessoal sobre como viver numa cidade com medo.

Weber publicara o que escrevera na Internet e garantira que o artigo também chegaria à impressa escrita. Provavelmente, levaria nas orelhas por não ter filmado nada, toda a gente queria imagens em movimento. Cliques que atraíssem anunciantes. Por vezes, Weber sentia que trabalhava mais para um canal de televisão do que para um jornal. Apesar de Sonia, a sua nova chefe, não parecer tão obcecada com o digital como Källman, o seu antecessor. Até falara com Weber sobre algumas peças de investigação mais longas, que seriam exclusivas da edição impressa.

Logo veriam como corria.

Quando entregara aquilo que tivera para entregar, percorrera o seu telefone e o seu e-mail.

Procurara por Rebecca Alm.

Não encontrara nada. Então, fora para casa.

Quando chegara ao apartamento de duas assoalhadas, na rua Vegagatan, deixara o assunto correr. Acabaria por se recordar, tinha a certeza disso. Era assim que a sua cabeça funcionava. Se não continuasse a tentar e se se dedicasse a algo completamente diferente, a sua mente acabaria por lhe revelar o que procurava.

Fora até à máquina de flippers.

Uma Bally’s Kiss, de 1979. Comprada em 1998.

As seis mil coroas mais bem gastas de sempre.

Descontracção total e concentração, sempre.

Sabia, por experiência própria, que aquelas máquinas eram facilmente associadas ao clássico apartamento de solteiro, a uma certa infantilidade, talvez a algo levemente melancólico. «Ah, um jogo de flippers!», costumavam exclamar as poucas mulheres que tinham estado no seu apartamento, num tom de «Estás-sozinho-há-algum-tempo-e-percebo-porquê».

Excepto Derya, recordava. Ela acompanhara-o até casa depois da festa dos cinquenta anos do irmão, no final do mês anterior. Tinham bebido mais vinho e até jogado flippers algumas horas, ela tinha realmente parecido divertir-se. Pelo menos, rira-se bastante enquanto jogava. Mas ela era a excepção. E não voltara a contactá-lo depois dessa noite. Talvez devesse telefonar-lhe. Sentira-se bem na sua companhia...

A noite anterior não correra particularmente bem.

Conseguira uma pontuação máxima de 99 430. Tivera noites em que conseguira chegar perto dos 300 000.

Por isso, fora-se deitar.

E acordara com o nome na cabeça.

Rebecca Alm.

Agora, estava sentado no escritório, a beber a terceira chávena de café do dia. Continuava, no entanto, sem fazer a mínima ideia de onde ouvira aquele nome antes. Pelos vistos, não pensar no assunto não ajudara nada, então, teria de se esforçar um pouco. Pegou no telemóvel e ligou para Torkel. Preparava-se para deixar uma mensagem de voz, mas, quando a chamada foi atendida ao segundo toque, apanhou-o desprevenido.

— Olá, é o Weber.

— Eu sei, o que é que queres?

Não havia um tom de rejeição na sua voz mas também não o convidava a ter uma conversa de circunstância, pelo que Axel foi directo ao assunto.

— A Rebecca Alm já tinha estado envolvida em alguma investigação antes?

— Que eu saiba, não. Porquê?

— O nome é-me familiar, reconheço-o de algum lado, mas não consigo situá-lo.

— Ela não está em nenhum dos nossos registos, mas, se foi testemunha ou se, de alguma maneira, esteve envolvida noutro caso, não sei. Pelo menos, nos registos da Brigada de Homicídios, não está.

— Okay, vou ter de pensar melhor, então.

— Se descobrires alguma coisa, agradecemos que partilhes connosco, já sabes.

Era impossível não perceber que Torkel se referia à entrevista com o chamado Assassino dos Reality Shows.

— Logo vemos. Nada de novo até agora?

— Nada.

— Okay, óptimo. Obrigado, voltaremos certamente a falar.

Desligou. Não valia a pena tentar pressioná-lo. Mantinham uma boa relação. Axel gostava de Torkel e sentia que este, ao menos, não desgostava dele. Apesar de as coisas terem ficado bastante azedas entre os dois quando, há alguns meses, Weber conseguira entrar em contacto com David Lagergren sem o comunicar à equipa da Brigada de Homicídios.

Deteve-se nas suas reflexões. Havia ali algo. O Assassino dos Reality Shows enviara-lhe coisas. Por estafeta. Objectos físicos. Porque não pensara nisso antes?

Grande parte das pistas que recebia chegavam, no entanto, por correio normal. A maioria das pessoas parecia que tinha medo de deixar atrás de si um rasto digital, que perduraria para sempre.

Correio físico. Cartas. Envelopes. Selos.

Costumava guardá-los na gaveta de baixo da sua secretária. Naquela época, tinha um gabinete próprio. Desde essa altura, tinham mudado de edifício e de andar, tinham passado de gabinetes individuais para um open space, depois, para espaços de trabalho não fixos e novamente para um open space. Nalgumas dessas mudanças, colocara as cartas numa caixa de sapatos.

Que levara para casa, segundo se recordava.

— Volto daqui a uma hora, mais ou menos! — exclamou para Kajsa, e saiu da redacção a correr. Já de volta à rua Vegagatan, parara no corredor do seu apartamento e tentara concentrar-se. Onde teria ido parar aquela caixa de sapatos? Deu uma vista de olhos rápida pelo quarto que usava como escritório, só por precaução, antes de agarrar nas chaves e subir no elevador até ao sótão.

Estava frio lá em cima, cheirava a humidade e a mofo. Weber teve outro calafrio ao passar pelos cubículos separados por redes de galinheiro, que davam a todos os inquilinos a possibilidade de guardar mais coisas do que realmente precisavam. Viu alguns aparelhos sazonais que, provavelmente, seriam retirados dali em alturas de celebrações ou mudanças de estação, mas a maior parte das coisas, uma vez relegada ao sótão, nunca mais voltaria a ser utilizada. Candeeiros, estantes, cadeiras, electrodomésticos, quadros, malas, baús com roupas que nunca ninguém voltaria a usar e brinquedos com que ninguém voltaria a brincar. Um andar inteiro que era como um cemitério de elefantes da sociedade de consumo.

Abriu o cadeado do seu cubículo, empurrou a porta de rede e entrou. O seu espaço também não era excepção. Na verdade, não tinha lá muita coisa, mas o que lá estava eram objectos dos quais nunca voltara a precisar e em que nunca mais voltara a pensar. Uma cómoda, cadeiras, alguns posters emoldurados, umas quantas caixas de mudanças, a maior parte com livros, segundo se recordava, e uma estante do IKEA com alguns dossiers e caixas mais pequenas lá enfiadas. Duas caixas de sapatos. Pegou numa delas e abriu-a. Cheia de fotografias. Weber deu uma vista de olhos rápida pela caixa, para se certificar de que não havia mais nada no fundo. Amigos e colegas com quem perdera o contacto, namoradas que tinham seguido os seus caminhos, o seu irmão e a sua família.

Outro tempo.

Possivelmente mais feliz.

Pôs a caixa de lado, não estava ali para se dedicar a viagens nostálgicas.

Passou à segunda caixa.

Ali estavam.

A lâmpada solitária do corredor lá fora teria de ser luz suficiente, pensou ao sentar-se no chão frio, começando a folhear as cartas. Cerca de trinta, no total. Algumas tinham o endereço do remetente escrito no verso, o que lhe facilitava o trabalho. Porém, nada de Rebecca Alm ali.

Então, começou a retirar as restantes cartas dos envelopes e a olhar apenas para as assinaturas. A terceira que abriu terminava com «Melhores cumprimentos, Rebecca Alm» e um número de telefone. Ter-lhe-ia telefonado? Teria, inclusive, falado com ela?

Começou a ler. A carta não era longa. Era como uma amostra, uma pequena prova para lhe despertar o interesse.

Nässjö, 2006

Para: Axel Weber

Jornal Expressen

Escrevo-lhe porque não sei o que hei-de fazer. Você é alguém em quem me atrevo a confiar. Já tentei contar à Polícia, aqui em Nässjö, mas deve haver alguém envolvido, porque ninguém põe cobro ao que está a acontecer. Tenho a certeza absoluta de que o município está envolvido.

Há uma quinta enorme perto da minha casa, que se chama Ljungbecka Gård. É propriedade do município e há muita gente poderosa envolvida, por isso, é muito importante que eu possa permanecer no anonimato e estar protegida. Ali chegam crianças do estrangeiro, e, pelo menos, três das crianças que ali estiveram desapareceram. Eu sei disso. E acho que foram mortas. Espero que acredite em mim. Pode entrar em contacto comigo pelo meu número de telefone, mas prometa-me que mantém o meu nome em segredo. Prometa-mo!

Melhores cumprimentos,

REBECCA ALM

0707554281

Weber virou a folha e viu que anotara algo na parte de trás. Uma descrição resumida do que fizera a seguir, o que conseguira confirmar, ou não, a quem telefonara e com quem falara antes de decidir que não havia ali nenhuma história. Em 2006, o município transformara, provisoriamente, a quinta em estada transitória, e algumas crianças refugiadas não acompanhadas tinham lá ficado. De seguida, tinham sido transferidas para outro sítio, ou, na verdade, tinham desaparecido dos radares das autoridades, o que, infelizmente, era comum naquele tipo de acomodação, e não havia nada que indicasse que as informações daquela carta fossem verdadeiras.

Percorreu os restantes envelopes na caixa, à procura da mesma caligrafia. Encontrou mais duas cartas. Abriu a primeira.

Uppsala, 2009

Para: Axel Weber

Jornal Expressen

Rebecca Alm outra vez. Preciso da ajuda de alguém com coragem, como o senhor. Continuo a acreditar que aconteceu alguma coisa na quinta Ljungbecka, mas o município deve ter demasiado poder também para si, imagino, uma vez que nunca foram denunciados. Mudei-me para Uppsala, estive doente durante algum tempo e acabei no Hospital Universitário. Como tenho dificuldade em dormir, passo muitas noites aqui a andar pelos corredores, e eles estão a fazer qualquer coisa em segredo. Fazem operações durante a noite. Enganam as pessoas e tiram-lhes partes do corpo e órgãos. Depois, vendem-nos. Sei que o director clínico está envolvido e, um dia, também lá vi um político. Portanto, isto é uma coisa de alto nível. Contacte-me e posso mostrar-lhe que estou a dizer a verdade!

O meu número de telefone é 0763773921.

REBECCA

Weber leu as suas anotações no verso da carta e voltou a guardá-la no envelope. Parecia-lhe ter uma vaga memória daquilo. Unicamente por descargo de consciência, tinha feito algumas chamadas e ficara indubitavelmente esclarecido de que não havia um grão de substância naquelas acusações. Com um breve suspiro, pegou no último envelope. Abriu-o, mais para acabar com aquilo. Já se lembrava de onde ouvira o nome antes e agora percebia por que razão não o memorizara.

Teóricos de conspirações.

Ou, pelo menos, com uma imaginação fértil.

Talvez em combinação com uma necessidade de atenção.

Não tinha grandes expectativas em relação à terceira carta.

Gävle, 2010

Para: Axel Weber

Jornal Expressen

Olá Axel,

Provavelmente, conseguiram pará-lo das outras vezes, ou, então, não acreditou em mim, mas agora tem de o fazer. Vi-o com os meus próprios olhos. Tive o sangue nas minhas mãos. A Igreja matou-a. Aquele que devia ser o mais bondoso de todos. Queriam decidir por ela, e ela morreu. Eu vi!

Mas eles conhecem toda a gente em Uppsala. Têm dinheiro e poder. Vão perseguir -me e ninguém vai acreditar em mim. Ninguém. Talvez nem o senhor. Por favor, acredite em mim!

Mudei-me para Gävle e consegui um número confidencial para eles não me encontrarem. Telefone-me, juro por tudo que é verdade!!

Juro!!!

REBECCA

07374321090

Era como se estivesse a ler aquilo pela primeira vez, não tinha memória nenhuma daquela carta. Virou o papel, não havia anotações. Talvez tivesse reconhecido logo o nome de Rebecca na altura, tivesse recordado as cartas anteriores e, por isso, dado apenas uma vista de olhos, forçado a isso, para a pôr imediatamente de lado.

Talvez ela tivesse gritado «Lobo!» vezes demais.

Agora lia a carta mais uma vez.

Uma Igreja em Uppsala, não tinha a certeza de qual pudesse ser, queria decidir em relação a uma mulher que, aparentemente, tinha matado. Sobre quem era e quando acontecera, Rebecca não escrevera nada.

Não havia muito por onde pegar e já tinham passado oito anos.

Porém, Rebecca Alm estava morta. Estavam a ser violadas mulheres em Uppsala. Ainda não tivera nenhuma reacção ao artigo do dia anterior, por isso, tinha tempo para fazer uma pequena investigação.

Ia dedicar-lhe um dia.


Determinada, Klara empurrou as portas da recepção.

Tomara a decisão durante a manhã. Acordara cedo, quando ainda estava escuro, e sentira que não conseguiria voltar a adormecer, por isso, levantara-se com cuidado, fechara a porta do quarto de Victor, fora até à sala de estar, estendera o seu tapete e fizera uma sessão de ioga de noventa minutos. A casa estava tranquila, o que não acontecia com frequência, e Klara apreciou o silêncio e o exercício. De seguida, tomara um duche, vestira-se, acordara Victor e Zach com panquecas acabadas de fazer e compota, para o pequeno-almoço. Quando chegara a hora de levar Victor à escola, Zach perguntara-lhe, pela quinta vez, se ela não se importava mesmo que ele fosse trabalhar a seguir. Klara respondera, também pela quinta vez, que não.

Depois de o marido e o filho terem saído de casa, Klara arrumara a cozinha, sentindo que a inquietava estar fechada em casa. Quanto tempo iria ficar sem trabalhar? Só tinham passado dois dias desde o ataque, mas sentia-se surpreendentemente bem. Sentia que ter os colegas à sua volta e um trabalho em que tivesse de se concentrar a fariam sentir-se melhor. Quando acabara de arrumar a cozinha, e depois de ter feito uma máquina de roupa, sentara-se no sofá com o seu iPad e uma chávena de café. Percorrera as páginas da Internet que costumava consultar. Não demorara muito a encontrar o primeiro título.

SÁDICO VIOLADOR EM SÉRIE DEIXA UPPSALA EM PÂNICO

Lera o artigo todo. O seu nome não fora mencionado, ela era apenas a «quarta vítima», de há dois dias. Havia bastante informação sobre Rebecca, em Gävle, naturalmente, mas o foco insidia no facto de a maior parte dos ataques ter ocorrido em Uppsala, de o homem continuar em liberdade e de poder ter ligações a círculos sadomasoquistas. A Polícia queria saber se alguém vira alguma coisa suspeita, e era facultada uma lista de horários e locais. Klara sentira um calafrio ao ler «nos quarteirões em volta da rua Ångkvarnsgatan, no dia 13 de Outubro, entre as 20:30 horas e as 21:00 horas». Por momentos, quase conseguira reviver o pânico e o terror que experimentara. O medo que tivera, quão insignificante se sentira.

Talvez não tivesse recuperado tão bem como pensara.

Continuara a percorrer as páginas. O outro jornal vespertino não dera tanta atenção aos crimes e o título não era tão alarmista.

VIOLADOR RELACIONADO COM HOMICÍDIO

Lera o segundo artigo com igual atenção.

O mesmo conteúdo, mas exposto de outra forma.

No entanto, fixara-se no final.

A POLÍCIA NÃO TEM NENHUM SUSPEITO E AINDA NÃO ESTÁ PRESTES A FAZER NENHUMA DETENÇÃO.

Klara pousou o iPad. Não sabia quem ele era, mas poderia fornecer-lhes uma orientação. Assinalar-lhes a direcção certa. Não o fizera no dia anterior, quando aquela polícia, Vanja Lithner, voltara para lhe explicar o que acontecera a Rebecca e perguntar se Klara a conhecia. Naquela altura, mentira. Instintivamente. Sentira que precisava de tempo para pensar. Agora, sentia uma decisão a formar-se. Se conseguisse ajudá-los a deter aquele homem antes de ele continuar a magoar mais mulheres, impedir que outras tivessem de passar pelo mesmo que ela passara, não teria essa obrigação? Mesmo que o preço fosse elevado?

Decidira-se e saíra de casa.

Quinze minutos mais tarde, estava a empurrar as portas da entrada da sede da Polícia e, com passo firme, pisou o chão de mármore até chegar à recepção.

Tencionava contar-lhes que sim, que conhecia Rebecca Alm.

Que tanto ela como Ida a conheciam.

Pertenciam ao mesmo grupo.

Não podia ser uma coincidência o facto de as três terem sido vítimas da mesma coisa. Ou quase da mesma coisa, corrigiu-se. Ida, pelo menos, sobrevivera e ela própria escapara ilesa, literalmente, com um simples susto.

Tinha de estar relacionado com o grupo.

Com o que acontecera a Linda.

Estava tão concentrada no balcão da recepção à sua frente, que se sobressaltou quando o seu telefone tocou. Pegou nele e olhou para o ecrã. Era Zach. Klara inspirou fundo e atendeu.

— Olá, era só para saber como estás.

Com a cabeça ligeiramente inclinada, virou costas às outras pessoas que estavam no átrio da entrada e deu alguns passos para junto das janelas mais afastadas.

— Estou bem, obrigada.

— O que estás a fazer?

Klara perguntou-se se daria para ouvir, através do telefone, que não estava em casa. Hesitou, não sabia se havia de dizer a verdade. Não sabia porquê. Contar-lhe-ia tudo naquela noite, quando ele chegasse a casa. Seria obrigada a explicar-lhe.

— Vim só até à baixa, vou encontrar-me com uma amiga.

— Estás bem?

— Sim, estou.

— Era só para saber.

Fazia-lhe a mesma pergunta frequentemente desde que o incidente acontecera. E Klara adorava-o por isso. Zach era tão atencioso e preocupado. Ela e Victor tinham muita sorte, ele era o melhor marido e o melhor pai do mundo.

— É muito querido da tua parte, mas a sério que está tudo bem.

— Okay, mas liga imediatamente se precisares de alguma coisa.

— Claro, não te preocupes. Vemo-nos à noite.

— Sim, até logo. Um beijo.

— Beijinho.

Klara permaneceu de pé, com o telemóvel na mão, a olhar para o balcão da recepção junto à entrada.

A determinação inicial fora substituída pela hesitação.

E se aquilo não tivesse nada que ver com o grupo? Nesse caso, estaria a chamar a atenção sem necessidade nenhuma. Qual seria o prazo de prescrição para homicídios? Ou para um homicídio por negligência, como naquele caso, obviamente? Se tanto. Também não havia algo chamado homicídio involuntário?

Agora, Klara tinha Victor. Não podia pensar só nela.

Klara nunca ouvira falar naquela Therese Qualquer Coisa, não fora membro. Também nada acontecera a Ingrid. Caso contrário, já teria sabido. Ela era a mais conhecida do grupo.

O que a levava a pensar que, afinal, aquilo poderia não estar relacionado com o grupo.

Estaria prestes a arranjar problemas desnecessários? Estaria a apontar os holofotes para coisas que era melhor deixar escondidas e esquecidas? Quem sairia a ganhar se contasse alguma coisa? O que estava feito feito estava e, agora que pensava melhor, o que agora estava a acontecer, as violações, o saco na cabeça, a seringa... que tinha aquilo que ver com Linda?

Nada, decidiu.

Lançando um último olhar à mulher vestida à civil, atrás do balcão e com quem não tencionava falar, Klara voltou a guardar o telemóvel no bolso e, com os mesmos passos determinados com que entrara, dirigiu-se para as portas da recepção que davam para a rua.

Ao sair, cruzou-se com uma mulher da sua idade em quem não pôde deixar de reparar. Cabelo curto preto, eyeliner preto à volta dos olhos, lábios encarnados, pele pálida. Casaco de pele desabotoado, calças de ganga justas e botas até ao joelho. Os saltos ecoavam contra o mármore enquanto se dirigia ao balcão de atendimento.

— O meu nome é Stella Simonsson, quero falar com alguém sobre as violações.


— Merda!

Ursula praguejou para o computador. Todos os que estavam presentes na sala viraram-se para ela.

— O que aconteceu? — perguntou Torkel.

— Podes pedir que venham aqui todos? — respondeu Ursula com um suspiro e o olhar ainda colado ao monitor que tinha à sua frente.

Torkel levantou-se, foi ao gabinete de Anne-Lie e bateu no vidro. Fez-lhe um gesto para que se juntasse a eles quando ela levantou os olhos. Os restantes já estavam reunidos em volta da secretária de Ursula quando ela se lhes juntou.

— O que se passa?

— Recebi um relatório preliminar sobre Rebecca Alm — começou Ursula por dizer. — O saco parece ser do mesmo material e da mesma marca, mas precisam de fazer testes mais aprofundados. Tinha resíduos de tranquilizante no sangue e esperma na vagina. O tranquilizante era Rohypnol, mas...

Fez uma pequena pausa dramática, enquanto olhava para os colegas. Não iam gostar do que ela tinha para dizer a seguir.

— ... O ADN não corresponde ao encontrado nos outros casos.

— O que estás a dizer?

— Estou a dizer que a prova de ADN aponta para que tenha sido outro homem a violar e matar a Rebecca Alm.

Fez-se silêncio enquanto os colegas processavam a nova informação e o seu significado para o seu trabalho deles, para o caso. A maioria das pessoas preferia coisas simples e lineares. Os polícias não eram excepção. Pensavam que estavam à procura de um único suspeito. Aquela nova informação dificultava-lhes o trabalho, e, consequentemente, a vida.

— Disseste que o relatório é preliminar... — disse Torkel, esperançado.

— Sim.

— Achas que podem simplesmente ter-se enganado?

— Não numa coisa tão simples como comparar amostras de ADN — garantiu Ursula sem hesitação.

Sebastian olhou em volta. Todos ao seu redor pareciam abatidos. Ele próprio só estava ali por causa de Vanja. O saco na cabeça e o tranquilizante tornavam o caso um pouco mais interessante, mas o facto era que perseguiam um criminoso sexual comum. Até agora...

— O que isto significa?

Mais uma vez, Anne-Lie dirigia a pergunta a Sebastian, não conseguindo evitar sentir-se feliz e um pouco orgulhoso por isso. Anne-Lie valorizava as suas opiniões. Os restantes colegas da Brigada de Homicídios nunca lhe pediam a sua opinião, costumava quase ter de os obrigar a ouvi-lo.

Infelizmente, daquela vez, teria de a desiludir.

— Não sei. Vários suspeitos, aparentemente.

— Um copycat?

Sebastian abanou a cabeça.

— Os copycats costumam ter a ideia de copiar através do que sabem pela imprensa, de certa maneira.

Virou-se para Vanja, que, como de costume, fizera questão de marcar uma distância física ao colocar-se o mais longe possível dele.

— Tu estavas aqui em Uppsala. Quando Rebecca foi assassinada, não havia praticamente informação nenhuma escrita sobre os ataques à Ida e à Therese, pois não?

Uma pergunta exclusivamente relacionada com trabalho, de acordo com as regras que ela estabelecera para a relação de ambos.

— Não, decididamente, nada sobre sacos na cabeça e tranquilizantes — confirmou Vanja.

— O que quer dizer, neste caso, que devem conhecer-se ou, pelo menos, inspirar-se um ao outro — continuou Sebastian.

— O que queres dizer com «inspirar»?

— Se o «nosso» homem — Sebastian fez o sinal de aspas com os dedos no ar — comunicou, de alguma maneira, sobre aquilo que faz, pode ter influenciado outros a fazerem o mesmo, sem que isso queira dizer que alguma vez se tenham encontrado ou sequer que se conheçam.

— Isso poderia explicar a mudança de cidade — acrescentou Torkel, concordando.

— O Dan Tillman pode ter-se vangloriado nalgum sítio na Internet — comentou Vanja.

— Os álibis dele parecem confirmar-se — constatou Carlos. — Vou falar com mais algumas pessoas sobre aquele jantar, mas até agora...

— Estamos a falar de margens mínimas — opôs-se Vanja e dirigiu-lhe um olhar furioso, apesar de Carlos estar apenas a fazer o seu trabalho. — Basta uma diferença de dez, quinze minutos para ainda poder ser ele.

— Mas não temos o ADN dele? — perguntou Sebastian.

— Vamos saber esta tarde se coincide — respondeu Ursula.

— Não coincidirá — retorquiu Sebastian. — A pessoa que está aqui em causa nunca nos daria uma amostra de ADN voluntariamente. Não é o Tillman.

Vanja calou-se.

Provavelmente, Sebastian tinha razão.

Ela chegara à mesma conclusão em casa de Tillman, não tanto devido ao que ele dissera, mas mais pela forma como o dissera. Sempre que estava certo de alguma coisa, adoptava um tom de superioridade pomposa, como se fosse um grande pensador numa sala cheia de idiotas. Vanja não o suportava.

— Temos o carro dele em dois locais de crime.

Não queria abandonar aquele assunto, por um lado, porque queria mesmo pôr Sebastian no seu lugar, mas também, e, principalmente, porque não conseguia livrar-se do que sentira em casa de Tillman.

Um desprezo e uma raiva que roçavam o ódio.

— Se não é ele, pode ser outra pessoa que tenha cometido as violações enquanto ele ficou a assistir. Pode até levá-los aos locais, mas, pelas filmagens, não conseguimos ver quantas pessoas vão no carro.

Tendo em conta os últimos casos que tinham investigado juntos, aquela não era, com toda a certeza, a teoria mais absurda que já tinham ouvido, pensou Vanja quando viu os olhares cépticos dos colegas, mas era uma ideia absurda. Em especial, encontrando-se numa fase tão prematura da investigação. Tillman fora o primeiro e, até ao momento, o único nome que surgira, e todas as provas apontavam para que o culpado não fosse ele.

— Só estou a dizer que ainda acredito que está de alguma maneira envolvido nisto — continuou Vanja, abrindo os braços, como para desdramatizar a situação.

— Não acreditas, não — contrariou-a Sebastian com objectividade. — És demasiado boa polícia para isso. Tu queres é que ele esteja envolvido no caso, mas isso é outra coisa.

— Não me venhas dizer o que eu quero ou deixo de querer! — exclamou Vanja na direcção de Sebastian, surpreendendo todos com intensidade e raiva na voz. — Não fazes a mais pequena ideia do que eu quero, nunca fizeste, e, quando te expliquei o que era, cagaste nisso!

Fez-se um silêncio desconfortável. Vanja arrependeu-se imediatamente da sua pequena explosão. Os sentimentos, a antipatia que sentia em relação a Tillman tinham-se sobreposto à sua objectividade, ao seu profissionalismo, e, quando se viu confrontada com isso, reagiu matando o mensageiro.

Sebastian tivera razão.

Outra vez.

— Desculpem — pediu, em voz baixa, a todos, excepto a Sebastian.

— Não faremos nada em relação ao Tillman até termos os resultados do teste de ADN. Depois, logo se vê — decidiu Anne-Lie para acabar com a discussão.

— Já que estamos todos aqui reunidos — acrescentou Torkel, fazendo Anne-Lie deter-se a caminho do seu gabinete —, vamos investigar melhor a Rebecca Alm.

— Porquê?

— O Axel Weber reconheceu esse nome de algum lado.

Anne-Lie viu a equipa da Brigada de Homicídios assentir com a cabeça, como se o que Torkel dissera significasse alguma coisa.

— Quem é o Axel Weber?

— É um repórter criminal do Expressen.

— E como sabes que ele reconheceu o nome?

— Porque me ligou a dizer isso mesmo.

Anne-Lie compreendeu as vantagens que poderiam retirar da imprensa e que o público tinha direito a alguma informação, mas a sua atitude de base era presumir que eram o inimigo. Havia muitas queixas relativamente à Polícia por não conseguir evitar as fugas de informação, e, claro, quem não conseguia ficar calado não devia ser polícia. Por outro lado, se não houvesse interesse nas informações que deviam ser mantidas em segredo, inclusivamente propostas para pagar por elas, uma parte do problema estaria resolvido. A caça incessante aos detalhes, que poderiam atrair leitores por parte da imprensa, era, no melhor dos casos, de bastante mau gosto, dificultando-lhes sempre o trabalho de investigação; e, no pior dos casos, podia até fazer com que mais de um criminoso saísse em liberdade. Não lhe agradava que um repórter de um jornal vespertino, segundo parecia, tivesse conversas regulares e directas com Torkel.

Sobre o caso.

O seu caso.

Os pensamentos sobre quando e como poderia deixar bem claro o seu ponto de vista foram interrompidos pelo toque do telemóvel.


A sala estreita e comprida fora, na verdade, concebida para facilitar as conversas com os colaboradores, realizar reuniões mais pequenas ou para poder falar ao telefone sem ser incomodado. Três cadeiras, modernas mas desconfortáveis, estavam colocadas em volta de uma pequena mesa redonda, sobre um tapete grosso de pêlo comprido cor de laranja. Stella Simonsson estava sentada na cadeira mais distante da porta. Puxara-a para o canto da sala, para poder encostar a cabeça à parede coberta por uma tapeçaria colorida. Vanja e Carlos estavam sentados à sua frente. Sebastian também lá estava. Vanja quisera opor-se outra vez à sua presença, mas apercebera-se de que a sua pequena explosão de há pouco, quando estavam todos no escritório, já teria preenchido a cota anti-Sebastian do dia.

Quando entraram na pequena sala, ele foi buscar uma cadeira à despensa e, por iniciativa própria, sentou-se atrás de Vanja e de Carlos, junto à parede ao lado da porta. Deixara claro, assim, que tencionava ser mais espectador do que participante activo e que estava satisfeito com isso. Sempre era alguma coisa, pensou Vanja, pegando no seu bloco de notas e numa caneta. Colocou-os em cima da mesa, mas apercebeu-se de que o tampo, por algum motivo que não compreendeu, estava quase à mesma altura dos assentos das cadeiras, talvez até um pouco mais baixo. Como lhe parecia que perdia autoridade se se sentasse curvada para a frente, decidiu cruzar as pernas e pousar o bloco no joelho.

— Stella Simonsson, é este o seu nome, não é? — começou Vanja por dizer, olhando para a mulher de cabelo preto e espetado que estava à sua frente.

— Sim.

— Pode explicar-nos porque está aqui?

Stella endireitou-se na cadeira, inclinou-se para a frente e pousou os cotovelos nas pernas, olhando Vanja directamente nos olhos.

— Li um artigo sobre as violações. Tenho um cliente que acho que pode estar envolvido — disse-lhes sem a mínima hesitação.

— E qual é a sua ocupação? — perguntou Carlos.

— Sou trabalhadora do sexo.

Carlos julgou saber a que se referia, mas depreendeu que também poderia ser actriz de filmes eróticos, vendedora de brinquedos sexuais ou algum tipo de terapeuta sexual. Não queria tirar conclusões precipitadas nem preconceituosas.

— Vende sexo?

— Sim.

— É prostituta — constatou Vanja, simplesmente.

— Sou trabalhadora do sexo — repetiu Stella enfaticamente e com um olhar demarcado por eyeliner que deixava claro que a questão da terminologia estava assim esclarecida.

Vanja suspirou para dentro. Não queria insistir, mas, aos seus olhos, quando alguém aceitava dinheiro em troca de serviços sexuais, essa pessoa era uma prostituta. Stella era uma prostituta. Vanja não percebia de que forma a expressão «trabalhador sexual» alterava isso, mas também não tencionava aprofundar o assunto.

— E porque acha que pode ser um dos seus clientes? — decidiu perguntar-lhe.

— Li aquilo de ficar deitada, quieta, de barriga para baixo, com a cara tapada. Ele faz isso.

— Isso o quê?

— Quer que eu esteja deitada de barriga para baixo quando ele entra. E vestida. Põe-me uma fronha na cabeça e eu não me posso mexer de maneira nenhuma. Depois despe-me as calças e fá-lo por trás.

Stella descrevia o decurso dos acontecimentos com toda a objectividade. Poderia bem estar a explicar-lhes as rotinas de uma consulta no dentista.

— Mas já o viu? — perguntou Vanja, esperando que a conversa proporcionasse algo mais para além de uma visão da, na sua opinião, triste vida profissional de Stella.

— Sim.

— E consegue descrevê-lo a um polícia retratista?

— Posso tentar.

— Ele tem alguma tatuagem, cicatriz, aparelho auditivo, alguma coisa desse género? — perguntou Carlos, com a esperança de que um tatuador, hospital ou centro médico lhes pudesse dar alguma informação antes de o retrato-robô estar concluído.

— Na cara não tem nada, mas ele nunca se despe. Só desaperta a braguilha.

— E o que acontece depois? — Sebastian meteu-se na conversa pela primeira vez. Stella olhou-o por cima do ombro de Vanja, como se se tivesse esquecido de que estava ali sentado. — Ele diz-lhe alguma coisa?

— Não, não diz nada.

— E o que faz a seguir, quando está despachado?

Aquele aspecto interessava-o mais do que o acto sexual em si. A descrição desse fora quase exactamente o que Sebastian esperara. No entanto, a forma como agia em seguida poderia dar-lhe uma ideia melhor sobre o tipo de pessoa com quem estavam a lidar.

Pedia desculpa?

Chorava?

Mostrava-se superior, como se tivesse derrotado um inimigo?

— Vai-se embora — respondeu Stella simplesmente, encolhendo os ombros. —Não me posso mexer nem tirar a fronha da cara antes de ele ter saído.

— E quantas vezes costuma fazê-lo?

— Uma vez. Costuma ser bastante rápido, alguns minutos, no máximo.

— Não era a isso que me referia — corrigiu-a Sebastian sem conseguir evitar um sorriso. — Queria dizer, com que assiduidade costuma ele requisitar os seus serviços?

— Ah, okay, sorry. — Stella desculpou-se e devolveu-lhe o sorriso. Sebastian reparou que o batom encarnado lhe manchara um pouco os dentes da frente. — Varia um pouco. Às vezes, vem uma vez por semana, outras vezes, passam semanas ou um mês.

— Quando esteve com ele pela última vez?

— No início de Setembro.

Sebastian assentiu, satisfeito consigo próprio. Até ao momento, aquela era a melhor pista. O autor dos factos tinha, durante algum tempo, conseguido realizar as suas fantasias com Stella. Contudo, precisava de mais, precisava de as levar mais longe. E, no dia 18, passara para o plano da realidade.

— Como é que contactam um com o outro? — questionou Vanja, também ela mais inclinada para a frente. Sem saber, os seus pensamentos estavam na mesma linha dos de Sebastian. Em meados de Setembro, Ida fora atacada. Tudo batia certo até ali.

— Temos uma página na Internet.

— «Temos»?

— Um grupo de trabalhadoras do sexo.

— Numa espécie de bordel virtual?

Stella recostou-se de novo na cadeira; continuava a sorrir como se tivesse decidido que nem sequer valia a pena irritar-se com Vanja; que era melhor divertir-se com o seu aparente moralismo em relação ao sexo. Na versão profissional, pelo menos.

— Pode achar aquilo que bem entender sobre o que eu faço. Vender sexo é legal, comprar é que não é.

— Eu sei disso.

— Mas não lhe agrada.

— Não é tão simples como agradar ou não agradar, por isso, não precisamos de entrar por aí.

— Como é que ele lhe paga? — quis Carlos saber, tentando redireccionar a conversa. Estava com esperança de que fosse com cartão de crédito ou por algum outro tipo de transferência electrónica que pudessem rastrear.

A estratégia clássica follow the money.

— Em dinheiro.

Obviamente! Porque é que alguma coisa haveria de ser simples?

— Claro que não sabe o nome dele. — Aquela era mais uma afirmação do que uma pergunta. Vanja partiu do princípio de que Stella já lhes teria dito se o soubesse, mas era uma última tentativa de conseguir algo que, de facto, lhes pudesse ser útil antes de terem o retrato-robô.

— Pois não. Temos aquela lei que criminaliza o comprador de sexo, por isso, os clientes não costumam vir com muita vontade de usar os nomes verdadeiros e assim...

O tom de Stella mostrava a sua dúvida quanto a Vanja ser uma defensora acérrima da lei relativa à compra de sexo.

A verdade era que estava muito dividida. Ainda era uma das ferramentas mais importantes contra o tráfico de seres humanos, e a taxa de crimes violentos relacionados com a compra de sexo era mais baixa na Suécia do que em países sem leis semelhantes. Mas, uma vez que praticamente ninguém que era apanhado cumpria de facto uma pena, tornava-se ineficaz. Além disso, no fundo, havia um discurso moralista e antiquado de que todos os que vendiam sexo eram, de uma maneira ou de outra, vítimas e precisavam de protecção. Não tinham minimamente em conta pessoas como Stella, que o faziam de forma totalmente voluntária e viviam disso. O problema principal residia, como era óbvio, no facto de certas pessoas sentirem que tinham o direito de comprar o corpo de outras. Mas, e se se quisesse vender, seria isso então um problema ou apenas uma tomada de posição moral? Também havia implicações jurídicas. Poderia um senhorio despejar alguém que vendia sexo no seu apartamento, apesar de não ser ilegal? Os detractores eram tantos quanto os defensores.

Confirmava-se, era complicado.

— Onde costumam encontrar-se? — perguntou Vanja, e escolheu, mais uma vez, não entrar naquela discussão.

— Temos um local.

— Onde?

— Porquê?

— Precisamos de saber, para vermos se há alguma câmara de vigilância nas imediações.

Se houvesse, era urgente conseguirem as filmagens, que só eram guardadas durante dois meses, o que queria dizer que, a partir de meados de Agosto para trás, tudo já desaparecera. Stella parecia considerar as vantagens e desvantagens de deixar a Polícia saber onde trabalhava.

— Não quero bófias à porta a prender os clientes — acabou por dizer quando chegou à conclusão de que as desvantagens eram maiores.

— Não estamos interessados em andar à caça de clientes sexuais.

— Vocês talvez não.

Carlos inclinou-se para a frente, olhando Stella nos olhos.

— Estamos muito gratos por ter vindo aqui — disse-lhe, devagar e sinceramente. — E prometo-lhe que não vamos utilizar a informação que nos der para perseguir os seus clientes.

— E sinceramente — acrescentou Vanja. — Se quiséssemos mesmo estragar-lhe o negócio, podíamos encontrar a vossa página, marcar um encontro com alguma de vocês e conseguíamos a morada de qualquer maneira.

Pelo canto do olho, viu como Carlos se recostou na cadeira com um suspiro resignado, e sentiu o olhar de Sebastian. A intenção fora reforçar o que Carlos dissera, que não estavam interessados nos clientes de Stella, mas a ela aquilo soou mais como uma ameaça.

Pelos vistos, Stella decidiu que Vanja não teria mais oportunidades e virou-se ostensivamente para Carlos.

— Estamos na rua Norrforsgatan, número 36. Perto da zona de Tunaberg.

— Seria uma grande ajuda se nos conseguisse dizer exactamente a última vez que ele esteve lá. Acha que consegue?

— Agora não, mas tenho isso no computador.

— Precisamos de aceder a esse computador — constatou Vanja.

Desta vez, Stella não precisou de reflectir nem um segundo. Olhou para Vanja e mostrou o seu maior sorriso até então.

— Isso não vai acontecer.


— É aqui.

Do lado de fora, o edifício na rua Norrforsgatan era igual a qualquer outro de uma pequena empresa numa zona industrial; também não havia nada no espaço comum onde Billy entrou que revelasse o tipo de actividade que ali tinha lugar. Dois sofás, duas poltronas e uma mesa de centro com algumas revistas em cima. Uma pequena cozinha com um frigorífico, microondas e máquina de café. Música a tocar de colunas escondidas. Tainted Love, a versão cover dos Soft Cell. Provavelmente, de alguma lista de reprodução aleatória, depreendeu Billy, caso contrário, seria um sinal de sentido de humor muito subtil ou um autêntico distanciamento consciente. Todo o ambiente parecia uma sala de espera, mas Billy presumiu que a maioria daqueles que usufruíam dos serviços ali prestados não queria aguardar acompanhado de ninguém e que, por isso, o espaço fosse mais para Stella e as suas colegas. Uma delas, uma mulher ruiva, que andaria pelos trinta anos, estava sentada numa das poltronas com um iPad na mão. Levantou os olhos para eles quando entraram.

— O Billy é bófia, veio aqui por causa daquele gajo que te contei — disse Stella, fazendo um gesto por cima do ombro para Billy. A outra mulher assentiu, levantou a mão num aceno e voltou a fazer o que estava a fazer.

Stella virou à esquerda, percorreu um corredor pintado de cinzento até uma porta fechada, que abriu antes de se desviar para o lado para deixar Billy entrar.

Ali já não era possível pensar que se tratava de uma pequena empresa comum. Billy nunca vira nada assim. Toda a sala estava pintada de vermelho opaco e era dominada por uma cama larga no meio, com correntes presas aos pés e à cabeceira. Nas paredes, pendiam vários brinquedos sexuais, como chicotes, varas, algemas e outros objectos destinados a restringir a mobilidade. Numa das paredes, havia um grande X, também esse com correntes presas nos extremos. Ao lado destas estruturas, via-se um banco forrado de napa dourada, que mais parecia pertencer a um ginásio, mas que Billy percebeu que cumpria uma função completamente diferente da que lhe atribuía, mesmo que não soubesse bem qual.

— Está aqui ao fundo — disse Stella, deslocando-se para junto de algo que, na verdade, parecia uma simples secretária. Retirou dela um computador portátil , abriu-o e ligou-o. Enquanto esperava que ficasse operacional, virou-se para Billy, que continuava parado junto à porta a observar o espaço. Era quase como levar um alcoólico em recuperação a uma adega ou apresentar-lhe um bar aberto. Billy sentiu o desejo despertar lentamente, como a serpente no estômago começava a mover-se devagar.

Tinham decidido que deveria ser ele a ir àquela casa depois de, já sem Vanja na sala, terem convencido Stella a, pelo menos, deixá-los ver o computador.

Stella tinha concordado. Com duas condições.

Não teria de o entregar.

E estaria presente, a controlar tudo o que fizessem com ele.

Não tinham podido recusar as suas condições. Tal como no caso de Dan Tillman, não tinham informação suficiente para conseguir um mandado de busca e queriam manter uma boa relação com Stella. Se, de facto, se tratasse de um dos criminosos, Sebastian suspeitava de que voltaria a contactá-la. Não fora bem-sucedido com Klara e sabia que tinham encontrado Rebecca morta. A sua morte não fora intencional, o que também fazia dela, de certa forma, um fracasso. Portanto, agora estava a ser perseguido. Possivelmente, começava a duvidar de si próprio e das suas capacidades. Dar rédea solta aos seus instintos começava a ser perigoso.

As fantasias eram mais seguras.

A questão era se seriam suficientes, agora que já as levara para o nível seguinte.

Havia uma possibilidade de que, pelo menos, tentasse, pensou Sebastian, por isso, queriam que Stella lhes dissesse se o homem a contactasse novamente.

Por essa razão, contentavam-se em dar uma vista de olhos ao computador.

E a visita calhara a Billy.

— Isto foi o que escrevemos um ao outro — disse Stella depois de concluir o login e abrir a página que Billy poderia analisar. Viu-o ali parado à porta e sorriu diante do seu aparente fascínio pelo seu quarto enquanto se aproximava dela. — Não entre em nenhum outro dos meus clientes.

— Prometo.

Billy olhou em volta e, não vendo nenhuma cadeira, puxou o banco forrado a napa até à secretária e começou.

— Villman — constatou ao percorrer a conversa digital.

— Sim, como disse à sua colega, aquela legislação, a única coisa que faz é os clientes não quererem dizer quem são, por isso, é impossível controlá-los e, às vezes, pode correr mal.

— Já aconteceu?

— Nunca ficamos sozinhas com um cliente. Quer dizer, aqui dentro fico sozinha, mas há sempre mais alguém cá em casa. Como a Alma, que estava ali fora, por exemplo.

Billy concentrou-se no trabalho e tentou localizar a origem das mensagens de Villman. Stella estava atrás dele, a olhar para o computador.

— Eu faço isto porque quero, só para que saiba. É um bom dinheiro. Sei que nem todas gostam do que fazem, mas eu gosto.

— Então, ainda bem.

— Não gostei da associação que vocês fizeram para a imprensa. O BDSM não tem nada que ver com abusos e maus-tratos. São pessoas adultas que, de mútuo acordo, o fazem com consentimento expresso.

Billy estava concentrado no ecrã e no teclado, digitava rapidamente os seus comandos. Aquele era um assunto sobre o qual realmente não queria discutir.

— Eu sei — disse, simplesmente, e teve esperança de que fosse o fim daquela conversa.

— Estamos de acordo sobre o que vamos fazer — continuou Stella. — Planificamos para evitar riscos de nos magoarmos. Para que ambas as partes tenham prazer.

«Mas, às vezes, não funciona», pensou ele. Quando uma das partes está demasiado bêbeda para se importar com a palavra de segurança. Quando a sensação de poder sobre a vida e a morte se apodera de tudo. Quando se precisa da satisfação total que esse poder confere.

— Sim, eu sei.

Stella deixou-o e sentou-se na cama. Aparentemente, confiava nele, pois, daquela posição, não conseguia ver o monitor. Billy continuou a trabalhar, agradecido pelo silêncio.

— Como é que sabe? — perguntou Stella, de repente.

— Como é que sei o quê? — respondeu Billy sem sequer tentar esconder que preferia poder continuar a trabalhar sem conversas.

— Aquilo do consentimento, que é um acordo... Foi só uma coisa que disse, que leu ou já experimentou?

Billy fechou os olhos, engoliu em seco e inspirou fundo. Aquele era um capítulo encerrado. Algo que acontecera, mas que nunca mais voltaria a acontecer. Algo com que lutava todos os dias.

Estava casado com My.

Amava My.

Tornar-se-ia no homem que ela merecia. O homem que, em tempos, fora. Mesmo que a serpente no estômago tivesse começado a mover-se. Podia reprimir a necessidade, o desejo. Era obrigado a isso.

— Parecia que já tinhas experimentado — ouviu-se da cama.

Billy continuou sem responder. Expeliu lentamente o ar dos pulmões para se acalmar. Tinha de se manter concentrado, estava quase despachado. Depois, deixaria aquele lugar e nunca mais lá voltaria.

— Gostou? — perguntou Stella com curiosidade. Pelos vistos, ela interpretara o seu silêncio como uma confirmação de que estava no caminho certo. — Pareceu-me que sim, quando entrou aqui.

Ia provavelmente continuar a falar, a perguntar e a interpretar, por isso, mais valia responder.

— Sim — respondeu em voz baixa e concentrado.

— Era dominador?

— Sim.

— Eu posso trocar, dependendo do que querem. Mas gosto mais de ser submissa.

Ouvira bem ou estaria a imaginar coisas? Estaria apenas a fazer conversa ou a tentar seduzi-lo? Era uma trabalhadora do sexo. Estaria a tentar arranjar um cliente? Não tinha mais tempo para pensar naquilo. O computador acabara de fazer aquilo que tinha para fazer.

— Porra!

— O que foi?

Stella levantou-se da cama e foi ter com ele. Colocou uma mão sobre o seu ombro ao inclinar-se para a frente para ver melhor o monitor. Billy sentiu o calor da sua mão através da camisa. A serpente moveu-se.

— Enviou tudo de um cartão pré-pago.

— Mas conseguem localizar isso ou não?

— Se tivesse o número de telefone conseguia obter o IMEI da operadora e localizar o telefone, se estivesse ligado, mas assim... — Em vez de terminar a frase, abanou simplesmente a cabeça, fechou o computador e levantou-se num único movimento.

— Ligue-nos se ele a contactar — disse para Stella, retirando um cartão-de-visita da carteira e colocando-o em cima da tampa do computador.

— Claro.

Billy dirigiu-se rapidamente para a porta. Precisava de sair dali, afastar-se, precisava de um pouco de ar. Limpar os pensamentos.

— Sabe o nome da minha página — ouviu Stella dizer atrás de si. Se dúvidas houvesse, tinham-se agora dissipado por completo. Sem dúvida que Stella tentava atrair um cliente. Billy não respondeu. Saiu para o corredor, atravessou a sala onde estava Alma, que nem olhou para ele, e saiu para a rua a passos largos.

Já na rua, continuou assim até ao carro. Estava prestes a entrar quando o seu telemóvel tocou. Era um número que não reconheceu. Atendeu a chamada.

— Billy Rosén.

— Olá, Billy, é o Conny.

Billy demorou alguns segundos a fazer a ligação.

Conny Holmgren.

O pai de Jennifer.

Billy praguejou em silêncio, furioso por ter atendido e, ao mesmo tempo, fazendo um esforço para soar o mais descontraído possível.

— Olá, o que... em que posso ajudá-lo?

— Só queria saber como está a correr.

— Estamos a trabalhar num caso, em Uppsala, por isso... Não tenho tido muito tempo para ver aquilo.

— Eu compreendo.

— Pois...

— E quando é que acha que vai ter tempo?

Billy apertou a cana do nariz entre o indicador e o polegar, fechou os olhos e apoiou-se no carro. Não precisava mesmo daquilo.

Não agora. Nem nunca.

Porém, Conny provavelmente não pensava noutra coisa, por isso, tinha de resolver o assunto.

— Eh, em breve. Devemos estar quase despachados daqui. Depois, posso ver isso — mentiu de forma a ganhar algum tempo.

— Senão, posso tentar encontrar outra pessoa que me possa ajudar.

— Não. — Billy tentou manter o pânico longe da voz. — Não, eu ajudo-o. Quero ajudá-lo, pela Jennifer.

— Então, ligue-me quando encontrar alguma coisa.

«Quando», não «se». Conny estava absolutamente convencido de que tinha razão. Billy estava numa situação da qual só podia sair a perder. Se lhe dissesse que não parecia que alguém tinha manipulado as imagens, Conny continuaria até encontrar outra pessoa que confirmasse as suas suspeitas.

Se Billy concordasse com ele, se dissesse que sim, que tinham sido manipuladas, daria início a uma investigação e correria o risco de técnicos bem mais competentes do que ele serem implicados no caso. Estavam, apesar de tudo, a falar de uma agente da Polícia que desaparecera em circunstâncias suspeitas e que provavelmente fora assassinada.

— Sim, ligo-lhe logo, sabe que sim. Digo-lhe alguma coisa assim que puder.

Depois de se despedirem com algumas frases feitas, Billy ficou uns segundos de pé, concentrado na respiração, antes de abrir o carro e se sentar. Não fez nenhum gesto para pôr o carro a trabalhar. Ficou apenas sentado, imóvel, até de repente bater violentamente com as mãos no volante.

— Foda-se, foda-se, foda-se!!

Percebeu que estava com dificuldade em respirar. Nunca tivera nenhum, mas percebeu que aquilo era o que se sentia quando se sofria um ataque de ansiedade ou de pânico.

Conseguira ganhar algum tempo. Alguns dias, na melhor das hipóteses.

Mas que raio havia de fazer agora?

Era obrigado a resolver o assunto.

Tudo voltaria ao normal outra vez. Tudo ficaria bem.

Repetiu aquelas palavras para si próprio como um mantra enquanto tentava controlar novamente a respiração.

Quando ligou o carro e deixou a rua Norrforsgatan, nem ele mesmo sabia quão longe estava disposto a chegar para que aquilo se tornasse verdade.


Depois de encontrar as cartas no sótão, Axel Weber passara a manhã a fazer aquilo que mais apreciava no seu trabalho. Sem saber nada, ou tendo muito poucos dados, começar aos poucos a reunir cada vez mais informação de diferentes fontes até, finalmente, conseguir fazer com que todas as pequenas peças individuais formassem um todo coerente.

Daquela vez, o puzzle levara-o até à igreja de Fugelkyrkan, na paróquia de Nya Uppsala. Um colosso maciço de tijolo amarelo, que mais parecia uma escola ou um pavilhão desportivo (com uma espécie de decoração moderna e abstracta, sob a forma de cruz metálica na parede lateral) do que uma igreja. Weber não tinha muitos conhecimentos de arquitectura, mas sabia que era impossível aquele edifício ter sido construído em qualquer outro momento fora dos anos 70.

Depois de lá chegar e se apresentar, um dos funcionários presentes acompanhara-o até à sala «Pam», uma das três salas na cave, que ficava entre a sala «Pim» e a sala «Pum», segundo as placas nas portas; oferecera-lhe uma chávena de café, que Weber recusara, e dissera-lhe que Cornelis chegaria dali a pouco.

Weber dera uma volta pela pequena sala para observar o seu interior. Um crucifixo numa das paredes e um calendário com citações bíblicas eram as únicas coisas que mostravam que se estava numa igreja. Se não fosse isso, aquela bem podia ser uma pequena sala de reuniões numa qualquer empresa. Weber perguntou-se se Rebecca alguma vez ali estivera. Era como se a tivesse conhecido nessa mesma manhã.

Rebecca Alm, nascida em Nässjö em 1988. Filha única de Måns e Karin Alm, ambos falecidos. Não tivera dificuldade em encontrar a morada.

Pesquisara-a no Google Maps.

Uma urbanização de vivendas.

Tivera esperança de que Nässjö não fosse muito diferente da maior parte das outras urbanizações daquele género, donde os jovens saíam e onde os idosos ficavam. Procurara a morada, mas acabara por tocar à porta de um vizinho. Sim, claro, recordava-se bem da família Alm, mas já nenhum deles ali vivia. A filha, Rebecca, era especial.

Em que sentido é que Rebecca era diferente?

Era solitária, mal cumprimentava as pessoas. Por vezes, era abertamente depreciativa, nunca recebia amigos em casa. Mas também, com aqueles pais, não era muito estranho. Não queria falar mal dos mortos, mas toda a família era um pouco estranha. Até parecia recordar-se de que os serviços sociais lá tinham ido algumas vezes.

Um antigo colega de escola de Rebecca fornecera-lhe outras peças do puzzle. Rebecca entrara naquela escola no oitavo ano; pelos vistos, era a terceira ou a quarta escola em que andava, não estava completamente certo.

E sabia o motivo pelo qual ela mudara de escola tantas vezes?

Nunca se adaptava em lado nenhum, parecia interpretar tudo como um ataque pessoal, vinha sempre com montes de acusações, normalmente, eram mal-entendidos que ela exagerava de forma desmedida, ou, então, convencia-se simplesmente de que as pessoas andavam atrás dela. Era estranha, solitária, mantinha as pessoas à distância.

Nada se alterara no secundário, tanto quanto Weber conseguira perceber.

Um mês depois de terminar o secundário, os seus pais morreram num acidente de viação. O carro circulara em sentido contrário e provocara uma colisão frontal com um camião carregado de troncos de árvores. Correram rumores de que se tinham suicidado. A igreja mais próxima estendera-lhe a mão; era a única filha do casal, uma rapariga solitária, de dezanove anos, que poderia precisar de ajuda e apoio. Ela rejeitara-os, obviamente.

E explicara porquê?

Achava que lhe queriam fazer mal, que estavam à procura de alguma coisa, que iam aproveitar-se dela, agora que estava sozinha. Uma das mulheres que pertenciam à igreja conseguira, apesar de tudo, manter contacto esporádico com ela. Sabia que tinha vendido a casa de Nässjö e se mudara para Uppsala. Que falava em estudar Teologia, mas que tinha de melhorar as notas através de uma formação para adultos.

Quando Weber recolhera todas as informações, fizera uma pesquisa no Google.

Dificuldade em confiar nas pessoas. Interpretava as interacções de forma negativa, como ataques ou ameaças. Dificuldade em esquecer injustiças ou insultos imaginados. Passava uma imagem fria, tinha dificuldades de cooperação.

O diagnóstico do seu médico fora que provavelmente Rebecca sofrera de um transtorno de personalidade paranóide. «Mas não é paranóia se andarem realmente atrás de nós», surgira na sua cabeça. Uma citação, provavelmente de algum filme, mas que não se recordava qual era. Em todo o caso, não tinha nada mais interessante para fazer e, na melhor das hipóteses, podia estar prestes a descobrir algo grande.

Uma verdadeira história.

Os seus pensamentos foram interrompidos quando a porta se abriu e um homem de uns quarenta anos entrou na sala, Com uma barba farta, brinco numa orelha e cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo. Vinha vestido de maneira informal, com calças de ganga e ténis. Poderia perfeitamente trabalhar nalguma pequena destilaria de cerveja independente na zona de Södermalm, em Estocolmo, se não fosse o colarinho branco na camisa bordeaux por baixo do blazer.

— Olá, desculpe tê-lo feito esperar — disse o homem ao avançar para Weber com a mão estendida. — Sou Cornelis Hed, pastor aqui da paróquia.

— Axel Weber, do Expressen.

Cornelis indicou-lhe uma das poltronas junto à janela. Sentaram-se um em frente ao outro.

— Ao telefone, disse-me que tinha algo importante para falar comigo — disse Cornelis, cruzando as pernas e apertando as mãos por cima dos joelhos.

— Rebecca Alm — foi tudo o que Weber respondeu. A experiência ensinara-lhe que o melhor era dizer o mínimo possível, deixar que a outra pessoa começasse a falar, que fizesse associações livres, para ver por onde seguia a conversa. Seguir, em vez de guiar. Surpreendentemente, eram os que tinham mais a esconder que falavam mais. Não era o caso de Cornelis. Calado, parecia procurar na memória o nome, tentando situá-lo.

— Acho que não estou a ver quem é — acabou por responder com uma pequena ruga de preocupação na testa.

Weber pegou numa fotografia de Rebecca, a mesma que utilizara no artigo que publicara na edição do dia anterior do jornal, e mostrou-lha. Cornelis inclinou-se para a frente e observou-a com atenção. Parecia tentar de novo recordar-se de alguma coisa, mas acabou por negá-lo com a cabeça.

— Não, não a reconheço. É membro desta paróquia?

— Era. Morreu, foi assassinada há poucas semanas.

— Que horror...

— Sim, viveu em Gävle os últimos anos...

— E quando foi paroquiana aqui? Foi há muito tempo? Deveria reconhecê-la?

— Aparentemente, foi muito activa nesta igreja, entre 2008 e 2010. E o senhor já estava aqui nessa altura — constatou Weber.

— Trabalhava na congregação, mas noutra paróquia. Só cheguei à igreja Fugelkyrkan em 2011, na Primavera.

Weber ficou em silêncio, amaldiçoou-se. Apenas pesquisara quem era o chefe e os anos de serviço, não estudara todo o histórico. Falha sua. De acordo com o registo populacional, Rebecca mudara-se de Uppsala em finais de Agosto de 2010. Meio ano antes de o sacerdote com ar de hipster começar a trabalhar ali.

— Posso saber por que motivo me pergunta a mim, ou a nós, à igreja, sobre ela?

Podia perguntar, mas não iria ouvir a verdadeira razão.

De acordo com a fonte de Weber, Rebecca continuara a isolar-se, raramente participara em alguma coisa e fizera a formação de adultos a distância. As únicas vezes que parecia sair de casa era quando ia à igreja de Fugelkyrkan. A mulher de Nässjö ficara com a sensação de que a igreja se tornara importante para ela e a encorajara a ir lá.

Em 2010, Rebecca enviara uma carta a Weber sobre a tal mulher que morrera. Em Julho, de acordo com o carimbo no selo. Ao mesmo tempo, deixara não só a igreja mas também Uppsala; desistira dos estudos e arranjara um emprego a tempo parcial em Gävle. Algo acontecera, e, uma vez que parecia que não interagia com mais ninguém, poderia muito bem ter acontecido na igreja, como a carta sugeria.

Essa era a resposta verdadeira.

— Estou a escrever uma peça sobre a violência contra as mulheres e quero fazer um retrato mais pessoal dela — preferiu dizer Weber. — Para que não se torne apenas numa vítima anónima, um número na estatística, mas uma pessoa a sério.

Cornelis assentiu, aparentemente satisfeito com a resposta; pareceu até concordar que era uma boa ideia.

— Tenho pena de não poder ajudá-lo, mas, como lhe disse, não a conheci.

— E quem era o responsável aqui em 2008, antes de si?

— A minha antecessora, Ingrid Drüber.

— E onde posso encontrá-la?

— Em Västerås, ela está lá há sete anos e, este ano, candidatou-se às eleições para o bispado.

Não havia muito mais a dizer. Weber agradeceu-lhe, deixou a igreja e dirigiu-se ao seu carro. Um pouco aborrecido consigo próprio. O desvio até Uppsala poderia ter sido evitado. Lançou um olhar para o relógio. Valeria a pena ligar a Ingrid Drüber e perguntar-lhe se podiam encontrar-se, talvez nessa mesma tarde? Ou deveria apenas ir lá, aparecer sem avisar?

Havia vantagens e desvantagens em ambas as opções.

Se não soubessem que ele estava a caminho, não teriam tempo de se preparar e mais facilmente revelariam alguma coisa, ou então recusariam falar com ele de todo, o que era sempre sinal de que estava no caminho certo e tinha motivos para continuar a investigar.

Por outro lado, se combinasse um encontro, haveria uma hora específica reservada para a conversa, o que proporcionava ao seu interlocutor uma sensação de controlo, que também o poderia levar a baixar a guarda. Partindo do princípio de que havia uma guarda a baixar.

Decidiu que era demasiado tarde para uma visita espontânea. Se optasse por telefonar e combinar um encontro, poderia fazê-lo no carro, no caminho de regresso a Estocolmo. Também tinha de dar seguimento ao artigo do dia anterior. Sonia telefonara-lhe quando ia a caminho de Uppsala. Como o Bladet, um jornal da concorrência, dizia algo sobre um saco na cabeça das vítimas, na edição digital, chamavam agora ao autor dos factos «O Homem do Saco». Weber dissera-lhe que estava a seguir uma pista própria, que poderia fazer a revelação do Bladet parecer uma história da carochinha. Embora aquilo tivesse sido antes da absurda reunião com Cornelis Hed.

Agora tinha tão pouca informação como no dia anterior.

Ou seja, nada.

Sem contar com o retrato tocante de uma jovem que sofria de problemas psíquicos e morrera sozinha, num apartamento em Gävle.

Mas isso não era, de todo, o que andava à procura. Weber queria uma conspiração.

Tinha esperança de que Ingrid Drüber, em Västerås, pudesse facultar-lha.


Ingrid telefonara a dizer que estava doente.

Cancelara todas as reuniões. Todas, excepto uma.

A revista cristã O Dia queria fazer um retrato seu. Tinham escrito coisas muito positivas sobre ela, anteriormente. Pareciam apreciar o seu ponto de vista sobre o lugar que o Cristianismo deveria ocupar na Suécia e como a Igreja sueca deveria agir e estavam dispostos a divulgá-lo aos seus leitores. Ingrid não sabia quantos dos leitores de O Dia tinham direito a voto nas eleições para o bispado, mas os textos anteriores tinham suscitado boas críticas e haviam tido muita divulgação. Na verdade, não andava a fazer campanha, isso não era costume entre as eleições para o bispado, mas não deixavam, todavia, de ser eleições.

As pessoas iam votar.

Era a vitória que estava em causa.

Então, serviria para a dar a conhecer, a ela e às suas posições. A Igreja tinha uma única missão, delegada por Jesus Cristo, e essa era difundir o Evangelho, a mensagem verdadeira. Nunca pediriam desculpa por terem tido a oportunidade de melhorar e mudar, não apenas a vida individual de cada pessoa, mas todo o nosso mundo. Tratava-se de ousar defender que a Bíblia era a verdade única. Nunca era demais recordá-lo.

Fora isso, dedicara o dia a tentar esquecer de forma activa.

O dia anterior, obviamente, mas também aquela noite de Verão, há oito anos.

Depois de ter organizado a sua agenda, cancelado ou reagendado o que tinha marcado, fizeram uma longa caminhada que a acalmara. Era fácil aproximar-se e ver a magnificência de Deus e a beleza da Criação na Natureza. Quando regressara, já tinha comido um almoço leve e dedicara o resto do dia à oração e à meditação.

De seguida, voltara a tomar banho, maquilhara-se um pouco (achou que tinha um ar cansado e gasto, e o jornalista com quem se ia encontrar trazia um fotógrafo) e levara o carro para o centro. Iam encontrar-se num café perto do lago Mälaren.

Quando lá chegara, cinco minutos antes da hora marcada, uma jovem levantara-se e fora ter com ela; apresentara-se como Emma. Mostrara-se efusivamente agradecida pelo facto de Ingrid estar disponível para ser entrevistada, falara sobre quanto ansiara a oportunidade e perguntara-lhe se poderia oferecer-lhe alguma coisa. Assim, com uma chávena de chá cada uma, tinham começado a entrevista.

Emma colocara-lhe questões oportunas, as questões certas. «Eram pessoas como ela que a diocese deveria contratar para fazer as audiências», pensou Ingrid. Bem informada, atenta, interessada. O tempo passara a correr.

— Acho que já tenho o que preciso — concluiu Emma, olhando para o gravador que tinha em cima da mesa. Uma hora e trinta e seis minutos de gravação. — Também costumamos ter meia página com vinte perguntas rápidas, uma coisa mais divertida, não sei se já viu alguma.

Ingrid negou com a cabeça, nunca o vira antes e não estava com humor para «uma coisa mais divertida».

— Que tipo de perguntas?

— Bem, de todo o tipo, na verdade, como a sua comida preferida, o tipo de música que ouve e coisas assim...

Ingrid não estava com muita vontade, mas assentiu; não lhe faria mal mostrar um lado mais descontraído e passar a ideia de que era uma pessoa acessível.

— Tem alguma alcunha?

— Não. Chamavam-me Idde nos tempos de escola, mas já ninguém o faz.

— Qual é a cor dominante no seu guarda-roupa?

Ingrid teve de pensar alguns instantes, tentou visualizar o roupeiro no seu quarto.

— Verde, acho.

— A que horas acordou hoje de manhã?

— O despertador tocou pouco depois das sete, como sempre.

Uma meia-verdade. O despertador tocara, de facto, às sete e dez, mas ela não acordara nessa altura. Há horas que estava acordada.

O sonho fora tão real. Não tivera elementos oníricos, nada alterado ou distorcido que assinalasse que o que se passava era apenas fruto do seu subconsciente.

Não fora tanto um sonho, mas a repetição da vida real.

Os gritos no banco de trás. As vozes. Altas, histéricas, em pânico. As actualizações constantes e as perguntas.

«Ela está a sangrar!»

«Quanto tempo falta para chegarmos?»

«Ela está inconsciente!»

«Vai-se safar?»

«Acho que não está a respirar! Está a respirar?!»

Concentrara-se na estrada, em atravessar Uppsala o mais depressa possível na noite ainda clara de Verão. Fizera o melhor que conseguira para evitar os olhos assustados e suplicantes no espelho retrovisor. Aqueles que se apercebiam de que algo estava realmente mal e que, em silêncio, imploravam a Ingrid para que a salvasse.

Afastou os pensamentos respondendo à pergunta sobre o que comera ao pequeno-almoço naquela manhã (nada, embora soubesse que devia), o filme que vira mais recentemente (O diário de Bridget Jones, na televisão) e os doces favoritos (chocolate negro).

— Há alguma coisa de que se arrependa?

Como deixar uma mulher a sangrar até à morte, sozinha à porta de um hospital, a meio da noite?

Naquela manhã, ou noite, quando o sonho a acordara, ocorrera-lhe aquele pensamento. Em que tinha pensado, na verdade?

Não sabiam que Linda ia morrer. Rezaram e imploraram para que não morresse. O que teria acontecido, então? Se tivesse corrido como pediram, esperaram, desejaram. Se ela tivesse sobrevivido. Já era suficientemente mau estarem envolvidas na situação em que ela acabara, mas terem-na deixado ali sem saberem com toda a certeza se ia receber ajuda, terem-na abandonado? Nunca teria sido possível justificá-lo ou legitimá-lo.

Fora por isso que ela morrera? A ajuda teria chegado demasiado tarde?

Claro que havia algo de que se arrependia. Demorou alguns segundos e, de seguida, fixou o olhar de Emma.

— Arrependo-me de não ter encontrado Jesus Cristo mais cedo, foi só aos dezanove anos.

Emma assentiu com empatia. Fez as últimas perguntas.

A disciplina preferida na escola.

O que levaria para uma ilha deserta.

O que tinha nos bolsos naquele momento.

Questões sem importância e respostas absolutamente banais, antes de Emma lhe agradecer de novo pelo seu tempo e pela entrevista. Fora realmente um prazer conhecê-la e esperava sinceramente que Ingrid ganhasse a eleição. Eram precisas mais pessoas como ela na Igreja da Suécia, dados os tempos em que se vivia. Mal o fotógrafo chegara, saíram para tirar algumas fotografias junto à água.

De seguida, a caminho do seu carro, Ingrid apercebeu-se de que, apesar das circunstâncias, se sentia relativamente bem.

Correra bem.

Iria correr bem.

Tudo ficaria bem.

Não o sabia, mas, ao mesmo tempo que se sentava no seu carro, o ligava e se dirigia para casa, Axel Weber escrevia o seu nome no motor de busca no computador do trabalho, carregava na tecla Enter e começava a interessar-se pela leitura.


Felix Hoekstra puxou o jarro de leite para si e despejou-o na chávena. Provou o café e começou a preparar-se para as entrevistas. O facto de ter tanto que fazer provocava-lhe sentimentos contraditórios. Por um lado, agradava-lhe que a sua organização de voluntários crescesse e fosse necessária, mas a razão pela qual tantas pessoas lhe ligavam partia-lhe o coração.

O «Homem do Saco».

Tinham passado de dois para cinco carros-patrulha em menos de um mês, e, se continuasse assim, iriam precisar do dobro. No mínimo. O terror espalhara-se entre as mulheres de Uppsala. Obviamente que era terrível, mas, para os «Carros Seguros», aquilo significara um impulso substancial. Felix fora entrevistado por dois jornais, participara em programas tanto da rádio local como nacional, o município contactara-o para saber se podiam, de alguma forma, apoiar a organização e vários patrocinadores tinham mostrado interesse. Todos os participantes trabalhavam como voluntários, mas havia vários custos associados e, até agora, as receitas nem sempre tinham acompanhado as despesas, o que tornava toda a ajuda bem-vinda. Todavia, não conseguia mesmo conciliar os dois sentimentos contraditórios, o que talvez fosse inevitável. A necessidade de ter uma empresa como a sua era, em si, uma tristeza.

Tivera aquela ideia quando as suas filhas começaram a sair sozinhas. Nem sempre queriam que ele as fosse buscar, mas era caro andar de táxi e, mesmo que ele se oferecesse para pagar, nem sempre queriam essa solução. Fazia tudo parte do processo de emancipação, depreendera ele. Então, há cinco anos, iniciara a actividade, porque queria fazer a diferença e ajudar as pessoas. Mas, principalmente, porque precisava de se concentrar em algo que não o divórcio. O seu grande amor deixara-o e perdera as duas filhas. Claro que se encontrava com elas de vez em quando, mas tinham-se mudado para os arredores de Hässleholm com o novo marido, cães e cavalos. Felix sentira que não tivera nada para oferecer, em especial, nos primeiros anos.

Tudo o atingira como um relâmpago vindo do céu.

Um dia, chegara a casa e Lisa explicara-lhe que as duas filhas iam dormir em casas de amigos. Ele tivera tempo de pensar que nunca costumavam dormir fora de casa durante a semana, antes de perceber que havia algo importante que ambos tinham de discutir.

Fora Lisa quem falara. Ele, praticamente, só chorara.

Implorara. Sem nenhum resultado.

Ela já se decidira. Só estava a informá-lo. O nome dele era Max.

Conhecera-o numa conferência, no ano anterior, e estava apaixonada por ele. Continuava a gostar muito de Felix e esperava sinceramente que pudessem continuar a ser amigos no futuro, pois tinham, apesar de tudo, as filhas em comum. Não obstante, iriam mudar-se as três, depois do final do ano lectivo. Para junto de Max, na sua quinta de cavalos situada na região de Skåne, no Sul da Suécia. Não fora uma decisão fácil, mas tinha de seguir o seu coração. Para o bem de todos.

Ambos tinham sido generosos na divisão de bens. Lisa não lutara por nada, queria afastar-se dele da forma mais simples e o mais depressa possível, depreendera Felix, embora ela nunca o tivesse expressado nesses termos.

No início, as filhas tinham vindo ter com ele de comboio, em fins-de-semana alternados, mas a viagem demorava quase cinco horas em cada sentido e depressa se tinham limitado a ir visitá-lo quando tinham fins-de-semana prolongados ou durante as férias. A sensação de as filhas estarem a afastar-se gradualmente e de ele não ter nenhuma maneira de o evitar fora absolutamente terrível.

Durante esse período, na escuridão compacta, apercebera-se de que tinha de fazer algo, focar-se noutra coisa para além da sensação de abandono. Dedicara algum tempo a analisar todos os seus sentimentos e percebera que aquilo de que sentia mais falta era de ser útil para alguém.

De ser importante para alguém.

De fazer a diferença na vida de alguém.

Não era mais complicado do que isso.

Precisava de encontrar algo que colmatasse essa necessidade. Que preenchesse o vazio. E a ideia dos carros de segurança surgira-lhe novamente. Uppsala era uma cidade de estudantes. Muitas jovens, como as suas filhas, sozinhas na rua à noite. Durante o ano todo.

Contactara as maiores associações de estudantes e oferecera os seus serviços para estabelecer parcerias com elas. Todas tinham aceitado imediatamente. Durante bastante tempo, tinham sido muito poucos para poder oferecer o serviço fora dos fins-de-semana, mas, gradualmente, tinham crescido.

Muito graças a Remi. Ela chegara até eles no segundo ano e tornara-se rapidamente a trabalhadora mais importante e o seu braço direito. Era organizada, uma administradora nata. Ajudava-o a rever todas as candidaturas, fazia uma verificação completa dos antecedentes dos candidatos, organizava tudo, desde as agendas ao contacto com os patrocinadores. Além disso, era solteira há alguns anos, e, em Maio daquele ano, tinham iniciado um relacionamento. Encontravam-se regularmente, tinham sexo e Felix ficara feliz por ter sido ela a tomar a iniciativa; ele nunca teria tido coragem de o fazer. Remi era um pouco mais velha do que ele, com uma feminilidade e paixão que o atraíam muito. Começara rapidamente a desejar que houvesse oportunidade de desenvolver a relação no sentido de algo mais permanente, mas também queria ter cuidado. Não podia ser magoado novamente. A ferida emocional provocada por Lisa não tinha realmente sarado, por mais que tentasse assegurar às filhas que conseguira ultrapassar a situação. Mas estava no caminho certo. Elas tinham ficado orgulhosas quando o ouviram falar na rádio.

Ele era preciso.

Aquilo que sempre quisera ser.

Agora, só tinha de se certificar de que a organização continuava a crescer sem problemas. Não recebiam apenas muitas chamadas de mulheres receosas que precisavam de boleia, também eram contactados por vários novos voluntários que queriam ajudar. Isso significava que tinham de ser ainda mais cuidadosos. Não podiam deixar entrar ovos podres. Um seria suficiente para que toda a organização fosse posta em causa. Então, ele e Remi aumentaram o controlo dos antecedentes, exigiam mais referências para além do registo criminal e começaram a realizar entrevistas pessoais mais demoradas.

A primeira pessoa que viria naquele dia estava na casa dos trinta anos. Não tinham muitos colaboradores dessa idade, pois costumavam estar muito ocupados com o trabalho, a família, os treinos e a vida social. O puzzle da vida, simplesmente.

Zacharias Wahlgren era o seu nome; chegou a horas, vinha bem vestido e parecia sério, por isso, começavam bem. Felix pediu-lhe que se sentasse. O escritório mais não era, na verdade, do que uma grande sala mobilada com três secretárias e cinco computadores. Um placard informativo, alguns posters e um mapa de Uppsala nas paredes. Num dos cantos, havia uma pequena kitchenette com dois microondas, um frigorífico, um congelador, uma máquina de café e uma pequena mesa com quatro cadeiras desdobráveis à volta. Para além de um diploma da Universidade de Uppsala por meritórios serviços prestados, não havia nada que revelasse o que se fazia ali, mas, pelo menos, dava a sensação de que não havia muito dinheiro, de que era um sítio onde se trabalhava voluntariamente.

Felix ofereceu um café a Zacharias e começou a fazer-lhe as perguntas-padrão.

— O que o leva a querer trabalhar connosco?

— A minha mulher foi atacada recentemente, e, desde então, sinto que quero fazer alguma coisa. Li sobre vocês e pensei que poderia ver se era alguma coisa apropriada para mim.

— Como é que ela está? — perguntou Felix com empatia.

— Está bem, não correu tão mal como poderia ter corrido.

— É bom ouvir isso. E o senhor, como está?

— Como assim?

— Acontece que toda a atenção se vira para ela, para a vítima, mas também é traumático para as pessoas mais próximas.

O homem que tinha à sua frente parecia reflectir sobre o que acabara de ouvir, como se fosse uma novidade para ele. Felix inclinou-se para a frente. Havia algo em Zacharias que ele apreciava instintivamente.

Um homem bom. Abalado.

Felix sabia que ainda havia homens que não gostavam de falar sobre os seus sentimentos. Ele próprio fora um deles, mas Zacharias olhou-o, agradecido.

— Obrigado, mas estou bem... Não pude fazer nada na altura e a única coisa que posso fazer agora é estar lá para ela. E para outras pessoas, espero.

Conversaram durante mais algum tempo, mas, se não houvesse nada no registo criminal e Remi não encontrasse nada de duvidoso no seu passado, Felix sentia que acabara de encontrar um novo colaborador.


Era um grupo abatido que se preparava para deixar a sede da Polícia. Apesar de todos terem trabalhado intensamente, apesar de terem conseguido duas pistas sólidas que haviam investigado o dia todo, durante a reunião do ponto da situação, viram-se forçados a admitir que não tinham chegado a lado nenhum. O ADN de Dan Tillman não coincidia com o esperma recolhido de nenhuma das vítimas, o que, na verdade, não fora surpresa para ninguém. Sebastian saíra-se com um verdadeiramente inoportuno «eu bem disse» quando Ursula comunicara à equipa o teor do relatório, levando a que a disposição geral piorasse ainda mais. Quando estava a falar de Tillman, Carlos reparara que ninguém lhe perguntara o número de sapatos que usava, pelo que lhe telefonara e, no seu estilo diplomático e calmo, ficara a saber que calçava o 45. Às vezes, o 46. As pegadas dos ténis Vans encontradas nos locais dos crimes correspondiam a um tamanho 42,5. O nome de Tillman continuava a figurar na investigação, mas foi excluído enquanto suspeito até encontrarem mais ou novas provas que o incriminassem.

A primeira pista, apesar do nome, não os levara a lado nenhum.

A segunda fora desfeita por Billy.

Em relação ao cliente de Stella Simonsson.

Fizera-lhes uma descrição breve da visita a sua casa. Muito pouco sobre o local onde as mulheres trabalhavam, nada sobre o quarto de Stella, apenas um relato das conversas por chat no computador. Todas curtas e concisas.

Ele queria, quando é que ela podia? Combinar uma hora. Terminar.

O homem que comprava os seus serviços chamava-se Villman. Havia cinco Villman em Uppsala, mas todos se escreviam com «W». O pagamento fora em numerário, como já sabiam, por isso, não tinham nenhuma transacção que pudessem investigar, e toda a comunicação fora realizada através de um cartão de telemóvel pré-pago, também esse impossível de localizar por enquanto. No que dizia respeito às câmaras de vigilância, Billy também investigara. A mais próxima estava colocada na estrada secundária 272, que começava em Uppsala e terminava em Bollnäs. Era bastante movimentada durante a maior parte do dia e da noite, mas, mesmo que soubessem as horas exactas a que Villman estivera em casa de Stella, não era certo que tivesse sido apanhado pelas câmaras. Havia pelo menos duas outras estradas que davam acesso àquela zona industrial, contudo, nenhuma delas era monitorizada por câmaras de controlo de trânsito.

Resumidamente: Niente.

Como se isso não fosse suficiente, Anne-Lie terminou a reunião, atirando um dos jornais vespertinos para cima da mesa.

— Então, não sabemos grande coisa, mas o pouco que realmente sabemos já saiu para a merda da imprensa.

Sebastian pensava perguntar-lhe de que estava à espera, mas abstivera-se. Anne-Lie não parecera precisar de mais motivos de irritação naquele momento e era uma das poucas pessoas do grupo, talvez a única, que ainda o tolerava.

— Estão a chamar-lhe «Homem do Saco» — continuou, furiosa, olhando fixamente para Torkel. — Isto não devia ter acontecido. Quero apanhá-lo antes que se transforme no «Homem de Uppsala» ou outra merda qualquer de «Homem». Foi por isso que vos chamei!

— Só chegámos aqui há dois dias — respondeu Billy, e fizera um gesto com os braços que indicava que não percebia que expectativas ela tivera. — Vocês estavam a trabalhar nisto há mais de um mês antes de nós chegarmos.

— E foste tu que convocaste a conferência de imprensa, chamaste a atenção para o caso, que o tornaste visível — acrescentou Ursula. — Eles nunca se contentam com o que conseguem daí.

Torkel reparou como Vanja assentira, concordante, e se sentia aliviada. Podiam ter-se afastado um pouco nos últimos tempos, mas, quando as coisas ficavam feias para ele, todos se apoiavam uns aos outros. Todos, excepto Sebastian, claro.

— Não lhes devíamos ter dito que ele tapa a cara das vítimas! — insistiu Anne-Lie, ainda com o olhar fixo em Torkel.

Então, tivera razão, constatara Torkel. Ela deixara-o desenvolver o raciocínio em torno do domínio e do controlo para poder ter alguém em quem pôr as culpas mais tarde. Sentira a sua irritação aumentar e inspirara profundamente para a controlar.

— Talvez não — concordara. Era o máximo que estava disposto a ceder. Não iria, de maneira nenhuma, desculpar-se. — Mas agora já está publicado e não podemos controlar a imprensa — continuou, encolhendo os ombros e esperando que isso pusesse fim à discussão.

— Mas também não precisamos de ser amigos dos jornalistas!

Pronto, aquilo já era demais. Torkel sentiu que estava farto.

Farto de estar no banco dos suplentes.

Farto de ser questionado, apontado como o bode expiatório e abertamente desafiado em relação ao seu posto de trabalho. Empurrou a cadeira para trás, ergueu-se de repente e levantou a voz.

— O Axel Weber trabalha no Expressen. Isto aqui é da sua competência! — Torkel pôs o dedo indicador no jornal que tinha à sua frente e bateu-lhe algumas vezes. — Eu lido com a imprensa há vinte anos, sei muito bem o que posso, ou não posso, dizer-lhes. Não gosto do que estás a insinuar!

— Eu não disse que foste tu!

— Foi por isso que usei a palavra «insinuar».

Fez-se silêncio na sala de reuniões. Torkel e Anne-Lie ficaram os dois de pé, parecendo medir forças com o olhar, como se o primeiro que dissesse alguma coisa perdesse. Os restantes trocaram olhares um pouco incomodados e espantados.

— Oiçam lá, não podemos simplesmente... — tentou dizer Vanja, mas foi interrompida por Sebastian.

— Chiu, o papá e a mamã estão a discutir! — Era impossível não reparar que a situação o divertia imensamente. Não havia muitas pessoas que conseguissem levar Torkel a mostrar fúria, ou outras emoções, abertamente. Nem sequer Sebastian conseguira levá-lo a levantar a voz muitas vezes. E ele podia ser inacreditavelmente irritante.

— Hoje, ficamos por aqui — constatou Torkel, regressando ao seu lugar e, assim, terminando a reunião.

Sebastian ficara com a sensação de que as coisas seriam um pouco diferentes dali para a frente.

Antes de todos deixarem a sala, perguntou se alguém queria fazer-lhe companhia ao jantar, mas Billy e Torkel iam voltar directamente para Estocolmo; Ursula não podia; Vanja não respondeu, claro, mas Sebastian sabia, depois de ter ouvido uma conversa anterior entre a sua filha e Torkel (uma daquelas que ele próprio desejava poder ter com ela um dia) que aquela era a última noite que passava com Jonathan em Uppsala. O rapaz regressaria a Estocolmo na manhã seguinte. Carlos respondeu que ia jantar com a sua família e Sebastian não o elucidou de que o convite não lhe fora dirigido. Anne-Lie já tinha regressado ao gabinete. De certo modo, Sebastian duvidava muito de que ela estivesse com disposição para ir jantar. Ele também não estava assim com tanta vontade de a ter por companhia, para ser sincero.

Pelo menos, não naquela noite.

Como, de qualquer maneira, não podia tentar seduzi-la...

Por um breve momento, Sebastian ponderou se devia ir com Billy de volta à capital. Aproveitar para ter uma conversa com ele no carro. Perguntar-lhe como iam as coisas. Mas Billy parecia estar muito melhor. Talvez naquela manhã só estivesse cansado.

Talvez tivesse tudo realmente controlado.

Sebastian esperava que sim. Não estava com muita paciência para se empenhar. Além disso, surgiriam também inúmeras perguntas chatas se fosse obrigado a relatar a situação a Torkel.

Há quanto tempo sabia daquilo?

Porque não tinha dito nada antes?

Tinha a certeza absoluta?

Portanto, não, uma viagem de quarenta e cinco minutos num carro com Billy, não era nada apelativa.

Nem com Torkel.

Sebastian tinha a certeza de que ele tentaria ressuscitar a amizade adormecida entre os dois. Tentaria encontrar um elo de ligação. Com perguntas pessoais ou, pior ainda, historietas sobre a sua nova vida feliz com a sua triste professorazinha.

Além disso, que raio iria ele fazer em Estocolmo? Sozinho. No seu apartamento demasiado grande. Onde estava absolutamente convencido de que jamais voltaria a ser feliz. Trabalhar? Com o seu livro? Talvez preparar as entrevistas com Ralph Svensson. Ou ir lá para se deitar com alguém sem que ninguém o apanhasse? Tentador, obviamente, mas não.

Um por um, deixaram a sala. Apenas Ursula continuava ao computador quando também Sebastian se preparava para sair.

— Vamos juntos para o hotel? — perguntou-lhe enquanto vestia o casaco.

— Não, vai andando, vou ficar aqui mais um bocado e depois vou sair.

— O que vais fazer? — Sebastian parou à porta, curioso.

— Se quisesse que soubesses, já te tinha contado.

— Porque não posso saber?

— Porque serias cínico e sarcástico.

— Não sou, prometo.

Ursula olhou-o, ponderando se devia contar-lhe. O facto de Sebastian Bergman prometer alguma coisa não significava rigorosamente nada, sabia-o bem. Mas, naquela manhã, dissera-lhe o que esperava dele. Que ele tinha de atinar, controlar o primeiro impulso e deixar de ser desprezível. Tinha de o provar.

— Tenho um encontro.

— Um encontro?

— Sim.

— Com um homem?

— Sim.

— Quem?

— É só isso que vais ficar a saber.

— Mas com «encontro» queres dizer que é alguém com quem vais foder?

Ursula não podia fazer mais nada do que abanar a cabeça. Tão perto. Mas depreendeu que Sebastian não conseguia evitá-lo. Não compreendia que as pessoas normais interpretavam um comentário daqueles não só como ordinário mas também ofensivo, uma vez que essa era a única razão que ele tinha para se encontrar com alguém do sexo oposto.

— Adeus, Sebastian — disse-lhe e virou-se novamente para o seu monitor, de forma a mostrar que a conversa estava terminada.

— Vê lá se tens cuidado, há pelo menos um maluquinho à solta por aí.

E fechou a porta atrás de si. Ursula não sabia ao certo como havia de interpretar aquele último comentário. Podia ser uma expressão de pura preocupação da sua parte mas também podia muito bem ser uma forma de despertar nela suspeitas desnecessárias em relação à pessoa com quem se ia encontrar e, dessa forma, sabotar o seu encontro. Fosse qual fosse o motivo, ela própria já pensara a mesma coisa.

Não sobre ela e Petros. Ursula sabia tomar conta de si própria.

Mas sobre Bella e Nicco.

Ou Nicolas Linton, como, na verdade, ele se chamava. Ursula tinha aproveitado para lhe perguntar, para se mostrar interessada, já que lhe telefonara para agradecer a companhia na noite anterior.

Ursula pensou se deveria fazer uma pesquisa pelo seu nome nos sistemas da Polícia. Só para jogar pelo seguro.

Para confirmar que não era Tillman.

Havia muitos Tillman por aí.

E era para bem de Bella. Que nunca precisaria de saber. A não ser que Ursula não encontrasse nada sobre ele no registo. Que faria, nesse caso? Como lhe poderia contar sem que Bella percebesse a forma como chegara àquela informação? Seria o último prego no caixão da relação delas, já de si frágil. Ursula tinha de mostrar que se preocupava com a filha, mas aquela seria a forma errada. Não era assim que se construía uma relação de confiança.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som de uma mensagem a entrar no computador. Ursula abriu o separador onde já iniciara a sessão.

Gostas de comida tailandesa?


Petros começara por sugerir que se encontrassem no hotel. O restaurante tinha fama de ser bom e ele nunca lá jantara.

Ursula recusara-se.

Nem pensar.

Por dois motivos.

O primeiro talvez fosse um pouco ridículo, mas não queria que o seu quarto estivesse tão perto, queria ter a possibilidade de dizer «obrigada e adeus» junto a um táxi, dar um abraço rápido e um beijo na cara e depois cada um ir para seu lado. Como fazia com Sebastian em Estocolmo, quando ele queria mais qualquer coisa. Talvez fosse apenas porque, durante vários anos, dormira com Torkel em diferentes hotéis do país, mas tinha a sensação de que a maior parte dos homens associava os quartos de hotel à possibilidade de terem sexo.

O segundo motivo, plenamente legítimo, era que, se jantassem no hotel, Sebastian poderia aparecer no restaurante a qualquer momento, e Ursula não conseguia imaginar pior cenário.

Por isso, estavam agora sentados à mesa de um restaurante tailandês com um nome composto por uma quantidade enorme de vogais, quase todas «A». Ursula pesquisara o restaurante no Google. Ficava a menos de vinte minutos de distância do hotel. Um passeio agradável, independentemente de como a noite terminasse.

Encontraram-se à porta. Ela chegou à hora marcada e ele já lá estava, com um ramo de flores na mão. Por momentos, ingrata, Ursula pensara o que havia de fazer com um ramo de flores num quarto de hotel, mas afastara aquele pensamento e agradecera-lhe, dizendo que eram muito bonitas. Era evidente que ele tinha mais jeito para aquele tipo de situação do que ela, pensara Ursula enquanto Petros lhe segurara a porta. Ele vestira-se bem, esforçara-se.

Ela fora para ali directamente do trabalho.

Um empregado levou-os a uma mesa, entregou um menu a cada um e perguntou-lhes se queriam beber alguma coisa. A caminho do restaurante, Ursula tivera uma sensação estranha que não reconhecia. Agora, sentada com o menu na mão a conversar sobre entradas e o que iriam beber com a comida, apercebeu-se de que estava nervosa.

Há muito tempo que não sentia necessidade de parecer interessante, se é que alguma vez isso acontecera. Não se recordava ao certo de como fora com Micke. Lembrava-se apenas que se tinham tornado um casal, ele mais interessado nela do que ela nele. O que não se alterara ao longo do casamento.

Tornaram-se um casal, foram viver juntos, tiveram Bella, davam-se bem.

Uma vivenda numa zona agradável, dinheiro suficiente, empregos interessantes.

Uma boa vida. Tão boa quanto se podia esperar, presumira Ursula.

Porém, nunca o amara.

Depois, Sebastian entrara na sua vida.

Mostrara claramente que estava interessado nela, que a queria, uma vez que tomara todas as iniciativas. Ela não precisara de fazer nada. Sebastian arrebatara-a de uma forma que Micke nunca fizera e da qual Ursula ainda sentia falta.

Sebastian, o primeiro homem que ela amara verdadeiramente.

Olhou para Petros, sentado do outro lado da mesa. Poderia ele arrebatá-la? Conseguiria chegar até ela, apesar de ela não permitir a ninguém uma real aproximação, vencer a distância que ela mantinha sempre? Ou aprender a viver com ela. Apreciá-la, até. Como Sebastian fizera?

Apercebeu-se de que o facto de estar a pensar no seu antigo amante, provavelmente, dificultaria esse mesmo arrebatamento. Então, forçou-se a parar de observar a situação de fora, a analisar tudo como se ainda estivesse no trabalho e a sua vida sentimental fosse o local de um crime que tinha de ser examinado de forma metódica.

Se é que, naquelas circunstâncias, se podia falar de «vida».

Por vezes, Ursula questionava-se.

Mas talvez pudesse descobri-lo agora, se simplesmente parasse de sabotar tudo, analisando-o até à exaustão. Então, decidiu relaxar e deixar-se ir.

Os pratos foram servidos. Petros tivera razão, a comida era mesmo fantástica. O vinho branco também. Ursula considerou pedir um segundo copo. A conversa fluía. Sobretudo, porque Petros era muito hábil a conduzi-la, com uma mistura de conversa trivial e perguntas mais pessoais. Parecia genuinamente interessado sem, por isso, dar a entender que estava a questioná-la ou a entrevistá-la. Era evidente que tinha estudado a lição, pois recordava-se de tudo o que Ursula lhe contara, o que, honestamente, não fora grande coisa.

Já ela, nem por nada conseguia lembrar-se sequer dos nomes dos filhos dele.

Num dos silêncios curtos, mas não desconfortáveis, que se geraram, Ursula tentou encontrar algo para lhe perguntar. Queria tomar a iniciativa. Que sabia sobre ele?

Nome, idade, estado civil, profissão e que não tinha podido encontrar-se com ela no dia anterior...

— E ontem, onde estiveste? — perguntou-lhe, sentindo-se satisfeita por, pelo menos por um instante, ser ela a conduzir a conversa.

— Em Västerås. Temos bastantes clientes lá.

— Uma vez tivemos um caso em Västerås — comentou Ursula.

— E resolveram-no?

— Sim.

Petros não perguntou mais nada sobre o caso e Ursula apreciou a atitude. Nos poucos acontecimentos sociais em que participara nos últimos anos, a maioria das pessoas quisera saber sobre os detalhes das investigações, assim que descobriam em que Ursula trabalhava. Como se ela fosse uma merda de uma fotonovela sensacionalista qualquer.

Não obstante, recordava-se claramente de Västerås. Não tanto por o caso ser particularmente trágico, mas, sobretudo, por ser a primeira vez em muitos anos que reencontrara Sebastian.

Interrompeu-se. Bebeu o último gole de vinho. Tinha mesmo de pedir outro copo.

Relaxar e estar presente.

Não pensar em Sebastian.


Desta vez, fora a versão longa e carregada de pormenores.

Começara com a manhã de preguiça no quarto de hotel. Lilly em fato-de-treino, a acenar-lhe de longe. O calor recebeu-os como um muro de humidade quando, finalmente, saíram para a rua. A decisão de irem à praia, em vez de ficarem na piscina. A mãozita de Sabine na sua, o seu polegar a tocar o pequeno anel com uma borboleta que tinha no indicador. As palavras dela quando viu uma criança com um golfinho insuflável. «Papá, também quero um daqueles.» A última frase que lhe disse.

A água que recuara da praia quando eles chegaram à areia, que ele erradamente acreditou dever-se à maré. A alegria, misturada com medo, quando a submergiu até à barriga, ela ainda um pouco receosa da água do mar.

As brincadeiras e as gargalhadas.

Ele e a sua filha, na água morna.

As mãozinhas macias contra a sua barba de três dias. O corpito quente encostado ao dele. O seu cheiro, a sabonete de bebé e a protector solar. A sensação de amor incondicional e ilimitado. A existência perfeita.

Depois, o ribombar.

A massa de água.

O caos implacável.

A sua mãozinha de novo na dele. Um único pensamento. Nunca a largar. Toda a vida na sua mão direita. A compreensão de que o fizera. De a ter perdido. Para sempre.

Cometera o erro de se deitar na cama quando voltara. Apenas para descansar um pouco. A manhã começara cedo.

Agora, estava sentado na cama, acabado de acordar, a tentar aliviar o espasmo na mão direita. Descobrira, para seu espanto, que tinha a cara molhada. Levantou a mão, quase à espera de que fosse sangue, que durante o sono se tivesse, de alguma maneira, arranhado até fazer uma ferida, não que tivesse chorado. Estava habituado a acordar com ansiedade, um vazio, desespero, mas muito raramente em lágrimas. Todavia, nos últimos meses, os sonhos tinham crescido em força e intensidade.

Agora, tivera-o por duas vezes em menos de vinte e quatro horas.

Com relutância, pensou ter descoberto uma causa, encontrado um padrão. Será que sonhava mais com Sabine quanto maior era a distância que Vanja mantinha dele? Que a ausência de uma filha se manifestava em sonhos com a outra? Enquanto psicólogo, Sebastian não queria validar essa hipótese, mas era impossível negar que, quando as coisas estavam bem, ou, pelo menos, quando reinava uma certa trégua entre ele e Vanja, se sentia melhor.

Sonhava com menos frequência. Com menor intensidade.

Agora, estavam outra vez em guerra aberta. Totalmente por culpa sua. Poderia tê-la mantido na sua vida se tivesse jogado as cartas com um pouco mais de inteligência. Como acontecia com a maior parte das pessoas que não se esforçava para levar para a cama. Quando se conheceram, Vanja sentira, instintivamente, que não gostava dele. Mas isso fora antes de ele saber quem ela era. Que era sua. Quanto mais problemas ela tivera com a mãe e Valdemar, mais o procurara. Tinham definitivamente estado prestes a chegar a qualquer coisa significativa depois de, no casamento de Billy, ele lhe ter contado que era seu pai.

Vanja aceitara tê-lo na sua vida.

Muito lentamente, tinham-se aproximado de algo que poderia ter sido bom. Contudo, ele estragara tudo. Obviamente. Traíra-a. Aliara-se à única pessoa que Vanja realmente detestava. Ignorara a única coisa que ela de facto lhe pedira: que se mantivesse longe de Anna.

«Não fazes a mais pequena ideia do que eu quero, nunca fizeste e, quando te expliquei o que era, cagaste nisso!»

Recordava aquelas palavras. O que ela lhe atirara à cara naquela tarde. Se fizesse uma análise à sua actuação, o que detestava mesmo fazer, não teria ela razão?

Teria sequer tentado? Ter-se-ia preocupado o suficiente? De verdade?

Claro que não.

Tudo o que fizera dizia respeito a si próprio. Ao que ele queria. Ao melhor para ele.

Como quando sabotara as possibilidades de ela ir para os Estados Unidos, fazer uma formação no FBI, apenas para poder tê-la perto de si, e não do outro lado do oceano Atlântico.

Não era nenhuma surpresa, na verdade. Sempre soubera que era um completo egoísta. Consideração pelas outras pessoas era algo que estava completamente subvalorizado, mas, se o seu comportamento fosse um obstáculo para alcançar os seus objectivos, teria de o mudar.

Mas o que queria ela, na verdade?

Que poderia fazer para que ela lhe desse mais uma oportunidade, a última que ele tanto queria? Aquela de que precisava desesperadamente?

Ignorava-o e ela nunca lho diria se ele lhe perguntasse.

Mas sabia quem o saberia, ou, pelo menos, deveria saber. Aquele que agora estava mais próximo dela.

De quem até Sebastian só ouvira coisas positivas.

O homem que ela amava.

Estava na altura de ter uma conversa com Jonathan Bäck.


Jonathan estava na cozinha relativamente pequena da avenida Norbyvägen, a preparar o jantar.

Poderia facilmente enumerar vinte coisas em que era melhor. Trinta, até. Porém, era bastante divertido e relaxante quando não entrava em pânico com coisas que ora ferviam até transbordar ora não ferviam de todo, que se queimavam, ou quando descobria que vários ingredientes que já deviam estar nas panelas continuavam em cima da bancada. Naquela noite, ia fazer um prato de massa, com um molho cremoso à base de natas, com salmão, funcho e limão, terminada com agrião, rabanetes e queijo parmesão. Parecia complicado, mas fizera uma pesquisa na Internet em busca de receitas com menos de dez ingredientes e encontrara aquela. Aparentemente, era de uma cozinheira da televisão. Jonathan não fazia a menor ideia de quem era.

Vanja entrou na cozinha em calças de fato-de-treino, T-shirt e cabelo molhado, depois de ter tomado um duche. A sincronização perfeita. Jonathan acabara de juntar o molho à massa, que, se tudo tivesse corrido bem, estaria al dente.

— Podes pôr a mesa? — perguntou-lhe, e ela assentiu, tirando um rabanete de cima da bancada e comendo-o antes de abrir o armário que estava à direita de Jonathan, obrigando-o a desviar-se de repente para o lado.

— Como é possível até a loiça desta casa ser feia? — resmungou Vanja enquanto retirava dois pratos fundos do armário.

Jonathan não respondeu.

Por um lado, porque não era uma pergunta para a qual ela esperava uma resposta, por outro, porque era uma daquelas noites em que, dissesse ele o que dissesse, estaria errado. Vanja ficava assim de vez em quando e, na maior parte das vezes, Jonathan esperava até lhe passar. Não gostava de discutir. Conhecia vários casais que diziam que discutir era um sinal de que a relação era forte e apaixonada, que mostrava que os membros do casal se importavam um com outro, que era útil, vital até, para desanuviar. Talvez fosse verdade, mas Jonathan não gostava disso, portanto, evitava-o o mais possível. Como agora.

Também sabia que, na verdade, não se tratava do apartamento. Era outra coisa, uma coisa maior. Desde que chegara a casa, Vanja não falara de outra coisa para além do que a irritara durante o dia.

O pior fora Tillman. Que agora, por diferentes motivos, já não era suspeito, mas contra quem Vanja parecia estar disposta a iniciar uma cruzada pessoal, apenas para o prender. Portanto, tinha falado muito de Tillman ao final do dia, mas também bastante de Sebastian, que, como de costume, era horrível. E, por fim, Anne-Lie, de quem Jonathan, na verdade, até então, só ouvira coisas positivas, mas que naquele dia, pelos vistos, subira várias posições na shitlist de Vanja depois de, abertamente, ter criticado e posto Torkel em causa e, com isso, toda a equipa da Brigada de Homicídios.

— E sabes o que é pior? É que ele tem filhos! Aquele gajo nojento tem uma filha! — disse enquanto punha os talheres e os copos na mesa. Jonathan depreendeu que se referia de novo a Tillman. — Ela só tem oito anos, mas, quando crescer, pode tornar-se numa daquelas «bruxas do batik», como ele diz, ou numa feminista militante; talvez também ele queira que alguém a viole.

Mesmo que Vanja não estivesse à espera de uma resposta àquela pergunta, Jonathan sentiu que tinha de dizer alguma coisa. Ser sincero. Pareceu-lhe que ela estava a ir um pouco longe demais com aquilo.

— Claro que não. — O olhar que Vanja lhe lançou deixava claro que o interpretara como se Jonathan estivesse a defender Tillman, pelo que tinha de desenvolver aquilo um pouco mais. — Ele parece ser uma pessoa horrível, mas isso não quer dizer que queira mal à filha. Não deve haver nenhum pai ou mãe que queira uma coisa dessas.

— Muitos querem! Consciente ou inconscientemente. Há montes de pais de merda por aí!

Jonathan não a contrariou. Como polícia, Vanja já vira de tudo. Perguntava-se muitas vezes como é que ela aguentava, como é que alguém aguentava, todos os dias, encontrar-se com aqueles que mostravam o lado mais negro da Humanidade e com as suas vítimas. Além disso, conhecia bem a relação complicada que Vanja tinha com os próprios pais. Os três. Sabia que todos, de diferentes maneiras, a tinham magoado e traído. Poderia esse facto explicar a sua incapacidade de se abstrair dos acontecimentos do dia?

Jonathan pôs a comida na mesa e sentaram-se.

— Todos os dias, vês pessoas de quem não gostas. O que tem Tillman de especial? Porque não consegues simplesmente esquecê-lo, como costumas fazer?

Queria dar-lhe uma oportunidade para reflectir. Ver se ela própria se apercebia de que, no fundo, se tratava de outra coisa. Se não, teria de ponderar se deveria fazer o papel de psicólogo amador e abordar o assunto. Não estava com muita vontade de o fazer. Mesmo que fosse positivo para ela falar do assunto, sabia que a sua família era praticamente uma ferida aberta na qual ela não gostava de tocar.

— Não sei — respondeu Vanja enquanto se servia.

O que Jonathan dissera era verdade. Uma grande parte do seu trabalho e, com isso, da sua vida era conhecer pessoas que ela considerava mais ou menos difíceis, com quem antipatizava, que, por vezes, até desprezava. Ela não era, de maneira nenhuma, a polícia mais compreensiva nem com a mente mais aberta nem que procurasse factores subjacentes ou circunstâncias atenuantes. Era rápida a julgar mas também era bastante boa a não deixar que o trabalho afectasse a sua vida privada.

Enrolou a massa em volta do garfo e meteu-a na boca.

— Isto está bom — comentou, sem mais nada.

— Não, não está, nem por isso — corrigiu-a Jonathan.

— Pronto, está bem, não foi o teu melhor momento na cozinha — respondeu Vanja com um sorriso. Levantou-se, abriu outro dos armários da cozinha e retirou um jarro de vidro.

— Talvez tenha que ver com o facto de ser pai — comentou, de costas voltadas para Jonathan enquanto enchia o jarro com água da torneira. — E depois tenho de me encontrar com Sebastian todos os dias, e tudo aquilo com o Valdemar e a minha mãe e essa merda toda... Estás a ver, pais... pais que dão problemas.

Vanja voltou para a mesa e sentou-se novamente, servindo os dois copos de água.

Jonathan tivera razão. Não sabia exactamente o que se passara, tinham acontecido muitas coisas entre Vanja e os pais, mas ele não estivera presente o tempo todo. Contudo, na primeira fase da sua relação, Jonathan encontrara Valdemar várias vezes. Gostara dele e ficara com a sensação de que o sentimento era recíproco, mas, acima de tudo, fora sempre evidente a relação incrivelmente próxima que ele tinha com Vanja. Não era de todo um «pai de merda».

— Pensei que Valdemar era o melhor pai que se podia ter — respondeu-lhe e comeu mais um pouco.

— E era, até há mais ou menos um ano.

— Mas, se foi fantástico durante os trinta anos anteriores, porque não o contactas? Para esclarecer as coisas.

— Não é assim tão simples.

Vanja sentiu que aquilo que acabara de dizer era verdade, o que a deixou um pouco surpreendida. Valdemar fora verdadeiramente o melhor pai que ela podia imaginar. Não havia uma única situação difícil na sua vida que ele não a tivesse ajudado a ultrapassar. Não havia nada que ele não tivesse feito por ela. Ainda continuava a fazer tudo o que podia. Separara-se de Anna, cooperava com o procurador, estava disposto a cumprir a sua pena, pedira desculpa, mostrara um arrependimento genuíno. Fora absolutamente sincero com ela, algo que não acontecera nos últimos anos.

Estava disposta a perdoar-lhe, a seguir em frente, a ver se conseguiam voltar ao que tinham sido. Decidira criar uma nova vida para si própria e, durante algum tempo, pensou que talvez pudesse ter os seus dois pais com ela.

Depois, tudo se desmoronara outra vez, e a única mudança que tinha feito fora ir viver para Uppsala, ou fugir para Uppsala, dependendo do ponto de vista.

Tudo assentava fundamentalmente na sensação de que Valdemar a traíra. Soubera todo o tempo, mas nunca dissera nada. Mesmo que as suas motivações fossem as melhores, não quisera estragar nada entre eles, mas ainda assim... Uma vida inteira construída sobre falsidades não podia ser simplesmente varrida com uma mão.

— É mesmo muito simples — manteve Jonathan. — Telefona-lhe, tenho a certeza de que ia ficar contentíssimo.

— Não sei se o quero deixar contentíssimo.

— Mas tens saudades dele — constatou Jonathan.

Vanja olhou-o nos olhos e assentiu ao de leve.

— Tenho saudades do que tínhamos, mas não tenho a certeza se conseguimos tê-lo outra vez.

Vanja empurrou o prato, levantou-se e, com isso, mostrou que tanto a conversa sobre Valdemar como a refeição estavam terminadas. Durante alguns segundos, Jonathan sentiu-se desiludido. O jantar não estava bom mas também não estava incomestível. Ela só comera três garfadas.

— Não gostaste mesmo — constatou.

— Estou cheia — mentiu Vanja.

— Podemos ir comprar qualquer coisa.

— Ou, então, vamos deitar-nos.

Vanja aproximou-se dele e esperou que empurrasse a cadeira para se poder sentar ao seu colo. Pegou-lhe na cara com as duas mãos e beijou-o.

— Amo-te — disse-lhe, passando a mão pelo seu cabelo.

— Eu também te amo.

Vanja olhou-o de uma maneira que deixava claro que havia algo de que lhe queria falar, mas que estava certa de que ele não ia gostar.

— Pronto, vais achar que sou superesquisita...

— Eu já acho que és superesquisita — brincou Jonathan e beijou-a novamente.

— Mas a propósito de pais — continuou Vanja como se não tivesse ouvido o comentário de Jonathan. — O que te parece também seres um?


O plano era tão simples que nem sequer era um plano.

Iria para casa. Directamente para casa. Sairia da sede da Polícia em Uppsala, pegaria no carro, viraria à esquerda, depois à direita, seguiria quarenta e cinco minutos pela auto-estrada com o Cardi B no máximo no Spotify e, de seguida, casa.

Para My. Com My. Ele e My.

Enquanto descia no elevador para a garagem, recebeu uma mensagem. Era My. Billy abriu-a. Um link para a página de uma revista de casas, sem texto. Não o abriu, mas, antes de voltar a guardar o telemóvel, ele tocou outra vez.

Quando é que vens para casa?

Billy escreveu «chego daqui a uma hora», acrescentou dois emojis de uma cara com corações nos olhos e enviou a mensagem.

Quando virava para entrar na auto-estrada, My ligou-lhe. Já que ele ia entrar na cidade pelo lado norte, não podia ir buscar sushi a um restaurante em Åkersberga, de que ela ouvira falar? Ficava demasiado longe para ir lá de propósito, mas já que ele vinha dessa direcção... My enviou-lhe o endereço. Telefonaria para lá para fazer a encomenda e ele teria apenas de lá passar para a levantar.

Billy chegou a casa e My cumprimentou-o com um beijo, dizendo-lhe que sentira a sua falta, antes de pegar no saco com a comida e ir para a cozinha. Estava esfomeada. Tinha almoçado muito cedo e não comera nada desde então e quisera esperar por ele para poderem jantar juntos. Sentaram-se logo à mesa. Ambos concordaram que o sushi valera a pena o desvio. Enquanto comiam, My contou-lhe o que acontecera no seu trabalho, que estava a pensar ir fazer um curso de três dias em Janeiro e que começara a negociar um contrato com a Tele2, para ser uma espécie de consultora pessoal a quem os colaboradores podiam recorrer se concordassem com os chefes de que precisavam de progredir, em termos pessoais ou profissionais. Se conseguisse esse contrato, não seria apenas um enorme reconhecimento, também significaria um rendimento completamente diferente.

Por falar de rendimento...

— Viste o link que te mandei? Sobre Värmdö? É perfeita!

— Não, vi que mandaste, mas já estava a entrar no carro e não o abri.

My levantou-se, foi buscar o tablet, abriu o anúncio e viram-no juntos. Uma casa de férias na ilha Värmdö Stor-Saxaren. Sessenta metros quadrados, casa de hóspedes independente, doca própria. Três milhões, setecentas e noventa e cinco mil coroas. Billy não tinha nenhuma opinião particular sobre a casa, mas conversaram sobre ela algum tempo. Olhou para as vinte e cinco fotografias que acompanhavam o anúncio e My disse-lhe que ia telefonar ao agente imobiliário para agendar uma visita para o dia seguinte, se ele estivesse de acordo. Sim, estava de acordo.

Era assim que as coisas iam ser: chegar a casa, jantar, falar sobre o trabalho, o dia de cada um, sobre tudo e sobre nada, ver casas de férias.

Isto era ele.

Esta era a sua vida.

A vida dos dois.

— Há outra coisa que te quero mostrar — disse My, abrindo uma nova página. — O que achas disto?

Billy lançou um olhar à página. Sol, mar, montanhas, casas coloridas, praias e um título que o informava que era a Cidade do Cabo que lhe podia oferecer tudo aquilo.

— Estava a pensar irmos uma semana, em Novembro. É demasiado caro ir no Natal, mas também acho que até é melhor ir em Novembro, quando o tempo aqui, de qualquer maneira, está horrível.

— Era óptimo, mas não sei se tenho férias para isso.

— Ainda tens de ter, pelo menos, uma semana.

Billy levantou os olhos do tablet com uma expressão de confusão genuína.

— Porquê?

— Então, porque tiveste de ficar a trabalhar mais uma semana no Verão.

Quase lhe vieram as lágrimas aos olhos. Estava a ir tão bem, sentira-se tão bem, tão normal. Tivera esperança de que aquilo fosse realmente funcionar um dia, e depois lá entrou de novo a outra parte, como um comboio de carga. Fizesse o que fizesse, por mais que tentasse não pensar naquilo.

Mas tornar-se-ia mais fácil. Com o tempo, as ocasiões que lhe recordassem o que acontecera seriam cada vez menos frequentes. Por fim, deixariam de surgir por completo. Nada, nem ninguém, empurraria os seus pensamentos para Jennifer. Seria como se nunca tivesse acontecido. Mas não naquele dia, não agora.

A semana a seguir ao feriado do solstício de Verão.

A Brigada de Homicídios pensava que ele estava de férias.

My pensava que ele estava a trabalhar.

Ao contrário de Conny, este era um problema menor que, se tudo corresse bem, Billy depressa poderia resolver. Férias formais tinham de ser requisitadas, ficavam registadas e já não tinha mais dias para tirar naquele ano. Contudo, era esperado que estivessem disponíveis para o serviço praticamente vinte e quatro horas por dia quando tinham uma investigação. Por isso, Torkel não costumava ser muito rigoroso a controlar dias livres quando terminavam um caso.

Portanto, se o caso de Uppsala estivesse terminado em Novembro, podia simplesmente falar com Torkel para lhe pedir para tirar uns dias. Se a investigação ainda estivesse aberta, bem, então o assunto estaria resolvido por si mesmo. Billy suspirou, tranquilo.

— Logo vemos se posso tirar uns dias, não tenho a certeza se dá.

— Mas se calhar temos de marcar já ou, pelo menos, em breve.

— Não podemos fazer isso. Se não tivermos resolvido o caso de Uppsala, não posso ir de férias.

— E estão quase?

— Infelizmente, não. — Billy disse aquilo com tal decepção na voz que facilmente escondia que nunca estivera tão satisfeito por ainda não terem chegado a lado nenhum numa investigação. — Mas, se conseguirmos concluí-la, podemos ver uma viagem de última hora — continuou num tom encorajador ao ver a reacção de My.

Ela assentiu, compreendendo que o trabalho tinha de vir em primeiro lugar. Abandonou aquele assunto e sugeriu que vissem um filme juntos. Ou Billy tinha uma ideia melhor? Não. Um filme, sentado no sofá com a mulher, era a noite perfeita.

My foi buscar um copo de vinho para si e uma cerveja para ele e sentaram-se a percorrer a oferta de programação nos serviços de streaming. Era sempre um pouco problemático encontrar algo que ambos quisessem ver. Tinham gostos cinematográficos completamente diferentes e, por mais de uma noite, tinham acabado por não conseguir concordar sobre o que deveriam ver e tinham decidido fazer outra coisa. Mas, naquela noite, Billy deixou-a escolher. My encontrou O fabuloso destino de Amélie na Netflix e soltou um «Oooh», como se tivesse visto um pequeno gatinho abandonado.

— Adorei este filme quando o vi a primeira vez. Tu gostaste?

— Nunca vi esse filme.

— Como é que podes nunca ter visto a Amélie?

— É francês.

Facto que, para Billy, era explicação suficiente. My viu uma excelente oportunidade para desenvolver o gosto cinematográfico do marido, e, uma vez que ele a deixara escolher, decidiu-se por esse. Carregou no play, encostou-se a Billy e dobrou as pernas em cima do sofá. O filme começou.

Uma mosca varejeira pousa algures numa rua, alguns copos de vinho sobre uma mesa num sítio ventoso, um homem apaga o nome de outro homem de uma agenda. De acordo com o narrador, tudo isso acontecia no exacto momento da concepção daquela que seria a personagem principal do filme.

Amélie.

Poulain.

Logo no genérico, Billy começou a antipatizar com ela. Depois surgiram sequências curtas sobre a sua infância que deveriam ser adoráveis, engraçadas, poéticas e, acima de tudo, um pouco loucas. Era um filme que pretendia ser bonito e, ao mesmo tempo, fora do normal. Tão engraçado e adorável que não conseguia deixar de gritar bem alto toda a emoção que transmitia.

Passados dez minutos, os olhos de Billy continuavam abertos, mas sem registar rigorosamente nada do que se passava no ecrã. Os pensamentos tinham voado para Uppsala.

— Não estás a ver!

My deu-lhe um toque ao de leve com o cotovelo e sorriu.

— Estou sim! — respondeu Billy automaticamente, com a esperança de que ela não o interrogasse sobre o enredo. My inclinou-se para a frente, pegou no comando da televisão, pôs o filme em pausa e virou-se para ele.

— Estás bem?

Billy olhou para ela. A sua mulher, ali ao lado no sofá, numa noite comum.

— Sim, estou bem — respondeu com sinceridade.

— Estás a pensar na Jennifer? — perguntou My como se não conseguisse contentar-se com aquela resposta, como se o desinteresse de Billy pelo filme não pudesse basear-se apenas no facto de ele ser péssimo.

— Não, por acaso, não. Era sobre Uppsala, desculpa...

— Posso ver o filme num dia em que não estejas em casa. — Inclinou-se de novo para a frente. Pegou no comando e desligou a televisão. Depois, virou-se outra vez para Billy. — Queres falar sobre isso?

— Na verdade, não. Não há muito para dizer. — Percebeu que ela se referia ao caso. Era verdade que não havia muito sobre o caso que sentisse necessidade de discutir mas também não era isso que o estava distrair em Uppsala.

Tinha regressado à rua Norrforsgatan.

Ao quarto vermelho.

Fantasiava com tudo o que poderia fazer ali.


— Quem era? — perguntou Lise-Lotte quando Torkel voltou para a sala de estar. Conseguira ouvi-lo do quarto e percebera que ele se esforçava para manter o tom de voz educadamente neutro durante a chamada telefónica.

— Era Rosmarie Fredriksson — respondeu Torkel e colocou o telemóvel em silêncio, para se assegurar de que não ouviria se ela ligasse outra vez.

— O que queria a esta hora?

— Pois, o que queria? Bem, principalmente, saber como é que as coisas estão a correr. Está preocupada com as fugas de informação e com o facto de a investigação não parecer estar a avançar à velocidade desejada.

Torkel recitou aquela última parte como se fosse uma citação, usando um tom de voz mais agudo do que o normal, como se estivesse a tentar imitar Rosmarie, ao mesmo tempo que deixava claro o que pensava sobre o que ela dissera.

Nunca gostara particularmente dela.

Desde o princípio, tratara-se de uma tolerância mútua.

Construída sobre a premissa de que ela não se intrometia no trabalho dele. Desde que o seu departamento não ultrapassasse o orçamento, não atraísse publicidade particularmente negativa, todas as tarefas administrativas fossem concluídas a tempo e correctamente, Rosmarie não se interessava minimamente com o que eles faziam. Era uma polícia de secretária na absoluta acepção da expressão.

Nunca antes se preocupara com fugas de informação. Ou sequer se mantivera a par das investigações.

Torkel sabia perfeitamente donde vinha o súbito interesse. De Anne-Lie Ulander.

Lise-Lotte sabia quem ela era, mas não mais do que isso. Torkel tinha o hábito de lhe contar as coisas mais importantes do dia quando chegava a casa, mas muito raramente expressava opiniões sobre os colegas. A não ser que fossem positivas, claro. Tinha muita facilidade em elogiar e incentivar quando alguém fazia algo bem feito.

Era apenas uma das suas muitas qualidades.

Porém, a propósito da conversa telefónica daquela noite, parecia que as comportas se tinham aberto. Lise-Lotte ficou a saber tudo sobre Anne-Lie e nada era particularmente positivo.

A forma como se recusara a entregar-lhes a responsabilidade, o que era praticamente uma prática corrente.

A forma como os questionava constantemente.

A sua ambição clara e desmedida de ficar com o lugar dele.

— Se alguém vai ficar com o meu lugar, é Vanja! — exclamou Torkel. Em tempos, estivera seguro de que ela também queria o mesmo. Agora, já não tinha tanta certeza.

Lise-Lotte também já ouvira falar de Vanja. E muito. Por vezes, Torkel falava dela com tanto carinho que podia ficar-se com a ideia de que se tratava da sua terceira filha.

— Gosto quando me falas dos teus colegas. Só conheço um.

Era verdade, quando Lise-Lotte e Torkel tinham acabado de se juntar, a primeira vez que ela dormira em casa dele, cruzara-se com Ursula, que lá fora por causa do trabalho, mas era tudo.

— Também não conheço nenhum dos teus.

— E queres conhecê-los?

— Nem por isso...

— Eu quero conhecer os teus. Vocês trabalham juntos há tanto tempo, mais parece que são a tua segunda família.

Verdade, era isso que eles eram. Não a «segunda», mas antes a sua verdadeira família. Passava mais tempo com eles do que com as filhas, que agora viviam praticamente sempre com Yvonne. Talvez fosse por isso que andava preocupado com o ambiente na equipa. Sebastian era Sebastian e punha sempre muita pressão sobre Vanja, mas mesmo Billy parecia andar mais em baixo e fechado, e Ursula também parecia mais... perdida do que dantes.

— Claro, podemos arranjar isso.

— Não queres convidá-los para jantar cá em casa?

Não fora isso que Torkel imaginara. Quando Lise-Lotte lhe dissera que queria conhecer os seus colegas, Torkel pensara que ela poderia passar um dia pelo escritório, ir buscá-lo ao final do dia, para poder apresentá-la a todos. Depois de dez minutos de conversa de circunstância, poderiam ir embora. Ela ficaria a conhecer a equipa toda. Missão cumprida.

Mas um jantar? Durante várias horas?

— Acho que isso ia ser um bocado estranho — acabou por protestar, à falta de argumentos mais ponderados.

— Como é que podia ser estranho? Vocês estão juntos todos os dias há não sei quantos anos.

— Mas não nos damos dessa maneira — respondeu Torkel com um encolher de ombros.

— Cada um pode trazer o seu parceiro, se achas que é mais fácil — sugeriu Lise-Lotte. — São só mais duas pessoas, ou Ursula tem alguém?

Torkel hesitou por alguns momentos.

Agora a conversa estava a tornar-se um pouco delicada. Nunca contara a Lise-Lotte sobre a sua relação com Ursula. Nunca se proporcionara. Pensara nisso no princípio. Deveria contar-lhe? Mas depois o tempo passara e tornara-se demasiado estranho trazer o assunto à baila, achara ele. «A propósito, passei anos a ir para a cama com uma das minhas colegas de trabalho...».

Não se diziam esse tipo de coisas, ou diziam-se?

Ele, pelo menos, nada dissera.

Também nada sabia sobre as relações que Lise-Lotte tivera depois do divórcio. Mas, claro, ela provavelmente não se encontrava com o seu ex todos os dias. Se assim fosse, talvez lhe tivesse contado.

— Não, acho que não, pelo menos nunca falou de ninguém.

— E Sebastian? — perguntou Lise-Lotte. Essa resposta era muito mais simples.

— Não. Mas, se formos para a frente com isto, ele não vem — disse Torkel, decidido.

— Ele não trabalha convosco?

— Temporariamente, mas não se pode ter Sebastian juntamente com outras pessoas e acreditar que vai ser uma noite agradável.

— Pensei que vocês tivessem sido amigos, em tempos.

Na verdade, isso fora tudo o que Torkel lhe dissera sobre Sebastian Bergman no plano pessoal. Que tinham sido amigos e trabalhado juntos durante vários anos. Falara de uma forma muito positiva sobre os seus conhecimentos profissionais, mas fora claramente poupado nas palavras sobre Sebastian enquanto pessoa.

— E fomos, mas já deixou bem claro que isso não significa nada para ele, a não ser quando precisa de alguma coisa.

— De todos os teus colegas, é sobre ele que tenho mais curiosidade.

— Não tenhas, nunca o vais conhecer.

Lise-Lotte ficou a olhar para Torkel em silêncio, mas viu na sua cara que a conversa sobre os convites ainda não estava terminada.

— Em quantas investigações é que ele já trabalhou?

— Desde que «regressou»? Esta é a sexta.

— Em menos de dois anos.

— Sim.

— Então é de muito mau tom não o convidar.

— Ele nunca nos convidaria para nada.

— E nós vamos descer ao nível dele, então?

Torkel deixou escapar um suspiro profundo e abanou a cabeça. Desistia. Como poderia dizer-lhe que não? A verdade era que não conseguia.

— Okay, mas depois não digas que não te avisei.

Lise-Lotte riu-se, inclinou-se para a frente e deu-lhe um beijo.

Então, iam receber a sua ex-amante e Sebastian Bergman para jantar.

Havia coisas pelas quais Torkel ansiara mais.

Como arrancar um dente, por exemplo. Sem anestesia.


16 de Outubro

Parabéns, meu amor.

Trinta e um anos, hoje.

Se não te tivessem roubado de mim.

Todos os dias são difíceis.

De certa maneira, tornou-se mais difícil quando descobri.

Quando Ulrika me contou.

Mas hoje é o mais difícil.

Poderia ter feito alguma coisa diferente?

Claro que podia.

Podia ter descoberto mais coisas.

Perguntado, exigido respostas, não me contentar com «vai ficar tudo bem».

Que tudo ia correr bem.

Mas a minha atitude foi demasiado fraca. Demasiado respeitosa.

Não queria ir contra as tuas decisões, os teus desejos, as tuas vontades.

Então, vou à tua sepultura.

Sinto a tua falta. Todos os dias, constantemente.

Ontem comprei dálias.

Dois ramos grandes. Um para a Ulrika também.

Primeiro, detestei-a. Já era suficientemente difícil como era.

Sem saber o medo que tiveste, as dores que tiveste, como te arrependeste.

Que te assassinaram.

Mas também me ajudou.

Deu-me um rumo. Um foco. Um objectivo.

Devem ter pensado que estavam safas.

Que iam viver as suas vidas. Amar, rir, ser felizes.

Oito anos.

Que teria acontecido se não te tivessem matado?

Que teríamos feito, tu e eu, em conjunto?

Como seriam as nossas vidas?

Quem serias tu, com trinta e um anos?

Tento não pensar nisso, é demasiado doloroso.

Mas, no teu aniversário, é impossível não pensar.


Ursula olhou à sua volta para o escritório. Todos em silêncio. O som dos dedos a tocarem nos teclados, uma cadeira a chiar quando o seu ocupante mudava de posição, o som de fundo do sistema de ventilação zunindo baixo. Se um estranho ali entrasse, provavelmente parecer-lhe-ia que todos estavam muito concentrados.

Ursula, porém, sabia a verdade: era frustração contida, desilusão. Reconhecia-a.

O curto briefing que tinham feito de manhã deixara bem claro que não estavam de todo mais próximos de uma detenção do que quando tinham chegado, há três dias.

Não tinham nada.

Ou melhor, tinham algumas coisas: ADN, pegadas, os sacos e a seringa.

Mas nada das câmaras de vigilância, nenhuma testemunha, nenhuma pista do público em geral.

O ambiente pesado devia-se ao facto de todos estarem conscientes de que, provavelmente, não poderiam fazer mais nada até o suspeito voltar a atacar.

Até terem uma nova vítima.

O maior fracasso de todos.

Aquilo que, a qualquer custo, queriam evitar.

O lugar à sua frente estava vazio. Ursula não fazia a menor ideia de onde estava Sebastian.

No dia anterior, tinham-se encontrado um instante apenas, quando Ursula regressara daquilo que depreendera ter sido um encontro romântico. Sebastian estivera sentado no bar e chamara-a. Fora a segunda noite consecutiva que esperara por ela. Ursula lembrou-se de quando era mais nova e o pai não conseguia ir deitar-se antes de ela chegar a casa. Porém, sem sequer estar embriagada, parecia querer comparar Sebastian com o pai, por isso, afastou rapidamente aqueles pensamentos, foi ter com ele e sentou-se.

— Como correu?

Ursula observou-o, para tentar perceber se ele estava a gozar com ela e ia fazer algum comentário grosseiro, mas Sebastian parecia estar genuinamente interessado e Ursula decidiu ser sincera.

— Bem, acho eu.

— Foi agradável?

Quando ele fez aquela pergunta, Ursula apercebeu-se de que fora isso mesmo, agradável. E, sinceramente, não tivera expectativas de que fosse nada mais além disso. Não era uma adolescente que se apaixonava perdidamente e deixava os sentimentos dominá-la. Nunca fora, nem quando era jovem.

Mas tinha sido agradável.

Não como com Sebastian.

Não lhe parecia que fosse ser difícil ou desafiante.

Também não estava segura de que fosse o que procurava. Não sabia ao certo o que queria, se era que queria alguma coisa. Talvez devesse fazer uma pausa até descobrir.

— Agradável, descomplicado e divertido — respondeu, assentindo.

— Vão encontrar-se outra vez?

— Acho que sim.

— Não combinaram nada?

Começava a ser difícil perceber se aquele era um Sebastian interessado em ouvir ou se a situação estava a aproximar-se de um interrogatório assente nalgum possível ciúme.

— Ele perguntou-me e eu respondi-lhe «porque não?».

— Ele perguntou-te se querias encontrar-te com ele outra vez e tu respondeste «porque não»? — certificou-se Sebastian sem conseguir reprimir uma pequena gargalhada.

— Sim.

— Ele deve ter-se sentido mesmo especial.

Ursula apercebera-se do que dissera e de como um «gostava muito» ou algo parecido teria sido uma resposta melhor. Mas já estava feito, e houvera uma razão para tal.

— Ele não era especial, era agradável — constatou Ursula, encolhendo os ombros.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Sebastian ao escritório.

Um «olá» para a geral antes de despir o casaco. Nenhum pedido de desculpas pelo atraso, nenhuma explicação.

— Bati à tua porta antes de sair. Onde estiveste? — perguntou-lhe Ursula quando Sebastian se sentou.

— Saí, só isso.

O que era mentira.

Tinha programado o despertador, acordara cedo, levantara-se antes de o sonho ter tempo de o perseguir e fora até à rua Norrbyvägen.

Esperara lá fora. Um frio de rachar.

Ficara a saltitar e a bater com os pés no asfalto, atrás de uma paragem de autocarro.

A situação fizera-o lembrar o Verão anterior, quando, todos os dias durante um determinado período, ficara à porta do prédio de Vanja, em Estocolmo. Apenas para poder vê-la, ver o que ela fazia, para poder estar perto dela.

Vê-la. Ficar a conhecê-la.

Mas agora não era Vanja que queria ver. Tinha esperança de que Jonathan regressasse ao trabalho naquele dia. Se tivesse um horário normal, deveria apanhar um comboio por volta das sete, ou pouco depois. Um passeio de meia hora até à estação central. Então, Sebastian pusera-se num local estratégico às seis e meia, para ter uma boa margem.

Mas, porra, que frio que estava.

Às seis e quarenta e cinco, precisamente quando pequenos flocos de neve começavam a pairar no ar, Jonathan saiu do prédio. Sozinho. Sebastian até aplaudiu em pensamento. Não pensara em nenhum plano alternativo, para o caso de Vanja ter decidido acompanhá-lo até ao comboio e só depois ir para o escritório. Ou se Jonathan tivesse chamado um táxi.

Mas agora estava sozinho.

Não havia nenhum carro à sua espera.

Sebastian seguiu-o. Lançou alguns olhares rápidos para trás, de maneira a certificar-se de que Vanja não saía de casa logo de seguida e o via a perseguir o seu namorado. Isso não teria sido bom. Mas Vanja não apareceu, e, quando estavam fora da vista do prédio, Sebastian acelerou o passo e alcançou Jonathan.

— Jonathan!

O homem mais novo abrandou e virou-se para Sebastian com uma expressão de surpresa, deixando claro que não o reconhecia. Como podia tê-lo reconhecido? Sebastian calculou que não devia haver nenhuma fotografia sua emoldurada lá por casa.

— Sim?

— Chamo-me Sebastian Bergman, trabalho com a Vanja.

Sebastian viu, pela sua reacção imediata, que Vanja já lhe falara dele. E não apenas coisas positivas, a julgar pela sua expressão facial.

— O que quer?

— Quero falar consigo. Sobre a Vanja.

— Acho que não devo falar consigo, não me parece correcto.

— Ela não gosta de mim, eu sei.

— Isso é um eufemismo.

Jonathan acelerou novamente o passo. Sebastian teve de se esforçar para conseguir acompanhá-lo.

— Ouça, eu sei o que ela pensa de mim, e mereço, mas quero compor as coisas.

— Então, fale directamente com ela, não é mais simples?

— Ela não me ouve. — Jonathan continuou em silêncio, deixando claro que tencionava fazer o mesmo. — É a única coisa que lhe peço, que me oiça, depois pode fazer o que quiser.

Sebastian viu, mais do que ouviu, o suspiro de Jonathan enquanto continuava a andar, mas, pelo menos, não pediu a Sebastian que o deixasse em paz, o que ele interpretou como uma porta aberta.

E Sebastian aproveitou-a.

Começou a contar-lhe. Tudo, desde o início.

Como descobrira que Vanja era sua filha, como tentara aproximar-se dela. Foi completamente sincero sobre quem era e o que tinha feito para ela se recusar a falar com ele. Não disse nada sobre a sabotagem da sua formação nos Estados Unidos nem que estava envolvido na acção judicial contra Valdemar, mas tudo o resto sim. Todos os erros, todas as promessas quebradas, todas as desilusões e más escolhas, mas que estava consciente de como agira mal e que agora queria realmente tentar redimir-se.

— O que é que ela quer? — perguntou, por fim, a Jonathan. — O que é que ela deseja? O que posso fazer por ela? O que lhe faz falta?

— Não é o senhor, isso é bem certo.

— Eu sei, é por isso que quero falar consigo.

Tinham chegado ao contentor preto e baixo que era a estação intermodal e que parecia não só saído de um tempo completamente diferente do magnífico edifício contíguo, a antiga estação ferroviária instalada numa espécie de palacete amarelo, como também de outro universo, onde o conceito de «bem enquadrado» era desconhecido. Jonathan parou junto às portas e virou-se para Sebastian. Hesitava, compreensivelmente. Sebastian fez uma última tentativa.

— Ambos queremos que ela seja o mais feliz possível, não é? Estou disposto a fazer qualquer coisa, desde que me diga o quê.

Jonathan estudou-o durante mais alguns segundos, em silêncio, antes de um novo suspiro que lhe saiu da boca provocar uma nuvem branca de vapor.

— Ela quer reaproximar-se do pai — acabou por dizer. — Do Valdemar — corrigiu-se, logo de seguida. — De vocês os três, ele é o único de quem ela sente falta.

— Ela disse isso?

— Não foi preciso.

Sebastian tentou processar a nova informação. Parecia-lhe credível. Raramente vira duas pessoas tão próximas numa relação como Vanja e Valdemar. Era uma ligação de que, com toda a certeza, qualquer pessoa sentiria falta, se a perdesse.

— Obrigado — respondeu-lhe com sinceridade. — Mais uma coisa, agradecia que não contasse à Vanja esta conversa.

— Sem problema, ia dizer exactamente o mesmo.

Com isto, Jonathan entrou no edifício e as portas fecharam-se atrás dele. Sebastian pôs as mãos nos bolsos e começou a dirigir-se para a sede da Polícia.


Agora estava sentado a olhar para ela. Vanja, a sua filha.

Houve um tempo em que realmente tinha feito tudo o que lhe fora possível para a levar a cortar relações com Valdemar, para o empurrar daquele pedestal onde Vanja o colocara. Agora ia ajudá-lo a subir outra vez para ele.

Valdemar seria o pai dela.

Ele próprio receberia os louros por ter tido uma atitude altruísta e por mostrar que, por uma vez, quisera o melhor para Vanja.

Valdemar, o bem-amado.

Ele, o aceite.

Podia viver com isso.

— Reuni a informação toda sobre a Rebecca Alm — anunciou Carlos da sua secretária.

Torkel levantou os olhos do monitor, onde estava mais a fingir que estava ocupado. Agradeceu a interrupção. Sempre era algo que acontecia naquela investigação que acabara num verdadeiro beco sem saída.

De manhã, Carlos fizera um pequeno resumo sobre o que descobrira.

Bem organizado, uma boa apresentação. Era competente.

Mas nada do que ele dissera os levava a compreender o motivo pelo qual Axel Weber reconhecera o nome de Rebecca. Uma rapariga estranha, com uma infância complicada. Os pais tinham morrido quando era jovem. Mudara-se primeiro para Uppsala e depois para Gävle. Nada de especial nisso, tanto quanto conseguiam ver. Definitivamente nada que devesse ter sido apanhado pelo radar de um repórter criminal. Torkel pensou voltar a telefonar a Weber e perguntar-lhe directamente se conseguira recordar-se de onde já ouvira o nome dela.

De repente, no escritório, ouviu-se uma música estilo rap. Era o telemóvel de Billy. Torkel não estava na vanguarda tecnológica, mas não conhecia mais ninguém que ainda usasse músicas como toque de telemóvel. As suas filhas não o faziam de certeza. Mas talvez fosse uma coisa de nerd das tecnologias. Como jogar videojogos há vinte anos.

A música parou quando Billy atendeu. Quase se sentiu uma alteração física na sala quando ele ouviu a pessoa do outro lado da linha.

— Espera um pouco, dá-me dois segundos — disse Billy, exaltado, virando-se para os outros, que já tinham toda a atenção dirigida para ele.

— É a Stella Simonsson, ele contactou-a outra vez. Quer encontrar-se com ela.


Sentiu o frio cortante quando saiu do carro. Não tinha garagem e não gostava de ter de raspar o gelo dos vidros de manhã, mas, fora isso, não tinha nada contra o frio. Enquanto retirava as suas coisas do banco de trás, cantarolava uma música que ouvira na rádio. Fechou a porta, trancou-a e começou a dirigir-se para a igreja.

Sentia-se muito melhor naquele dia. Dormira mais descansada, tivera apetite logo de manhã, mais energia e menos ansiedade. Agradeceu a Jesus pela força que lhe dera.

— Ingrid Drüber?

Ingrid virou-se e viu um homem dirigir-se a ela. Por um segundo, sentiu o pânico percorrer-lhe o corpo. «Outra vez não», pensou. «Outra vez não.» De seguida, apercebeu-se de que o homem que lhe fizera mal não a interpelaria cara a cara.

Isto era outra coisa. Outra pessoa.

— Desculpe incomodar, o meu nome é Axel Weber, trabalho no Expressen. Queria saber se tem tempo para responder a algumas questões.

Ingrid deteve-se e pensou freneticamente. Devia apenas rejeitá-lo, educada mas determinadamente? Ou, pelo menos, descobrir o que ele queria? Teria mais alguma coisa que ver com aquele acampamento do crisma? Ou alguém teria desenterrado alguma coisa, algo pior? Se fosse esse o caso, teria de divulgar o que sabia sobre Göran Peltzén ao jornal local assim que entrasse no escritório. Ou talvez a Emma do Dia. Isso teria um impacto maior e mais directo nos círculos certos. Se os outros jogavam sujo, ela não tencionava ficar para trás. Mas, para isso, tinha de saber de que se tratava.

— Depende do assunto — respondeu, dando um passo na direcção de Weber.

— Rebecca Alm.

Isto era ainda pior, mas Ingrid ficou impávida e serena. Pelo menos, não se tratava de alguém a tentar prejudicar conscientemente a sua candidatura. Se fosse esse o caso, teriam fornecido um nome completamente diferente ao jornalista.

Linda Fors.

Mas por que motivo estava ele aqui? Tinha de ter conseguido estabelecer uma ligação entre Rebecca e a igreja de Fugelkyrkan, mas quanto saberia?

— Ah, sim? — respondeu-lhe num tom que tanto podia querer dizer que reconhecia o nome como que nunca ouvira falar dela. Dependendo das respostas dele, escolheria o caminho apropriado.

— Conhece-a?

— O nome é-me familiar, mas cruzo-me com tantas pessoas... — Continuava a poder dirigir a conversa para várias direcções. Afinal de contas, tinham publicado o nome de Rebecca em todos os jornais. Era uma explicação perfeitamente natural para ela achar que reconhecia o nome.

Axel Weber pegou numa fotografia e mostrou-lha. Ingrid pegou nela e estudou-a com atenção. De seguida, abanou a cabeça, lenta e pensativamente.

— Não, porque pergunta?

Pela sua voz, era impossível perceber que não só estava a mentir como também sabia perfeitamente que Rebecca estava morta. Agora só tinha de ser convincente a fingir surpresa e horror quando ele lho dissesse. Se ele o fizesse. Não sabia o que o homem queria, mas, fosse o que fosse, não seria ela a dar-lho. Já passara por demasiadas coisas para desistir agora.

— Ela morreu. Foi assassinada em Gävle, há umas semanas.

Ingrid achou que teve uma prestação digna de um Oscar ao reagir com consternação, mas, ao mesmo tempo, contenção suficiente para não parecer, de maneira nenhuma, que aquilo a afectava pessoalmente.

— Ela frequentava muito a sua igreja quando vivia em Uppsala. Tem a certeza de que não a reconhece? — insistiu Weber, depois de Ingrid exprimir o seu horror.

— Infelizmente, não, não me recordo mesmo dela. — Ingrid entregou-lhe novamente a fotografia. — E o que pretende saber sobre ela, se é que posso perguntar?

Weber pensou dar-lhe a sua resposta-padrão acerca de uma série de artigos sobre violência contra as mulheres e o retrato pessoal, mas deteve-se. Queria pressioná-la um pouco mais antes de desistir. Havia um risco subjacente de tudo terminar ali, e, nesse caso, queria estar seguro de que fizera tudo o que estava ao seu alcance.

— Ela escreveu-me uma carta, em 2010.

Retirou uma cópia da carta do bolso interior do blazer e entregou-lha. Ingrid leu-a com atenção antes de voltar a olhar para ele com uma expressão de incompreensão.

— Não sei nada sobre isto...

Ingrid começou a sentir-se mais descontraída. A carta não o levaria a lado nenhum. Não colocou nenhuma questão sobre Ida nem Klara, o que queria dizer que ainda tinha um longo caminho a percorrer até chegar à verdade, à ligação.

— E porque deixou Uppsala, em 2011?

Ingrid lançou-lhe um olhar que dizia que esperava que ele não estivesse a insinuar que a sua mudança de Uppsala tinha alguma coisa que ver com aquela carta.

— Mudei de trabalho. Porquê?

— Só queria saber se havia alguma razão em particular.

— Que tivesse que ver com esta carta e essa jovem? — perguntou Ingrid com o preciso grau de indignação na voz que uma mulher que, sentindo-se afrontada e injustamente acusada, teria usado.

— Com a Rebecca Alm, sim.

— Mas não houve — disse com firmeza, devolvendo-lhe a carta. — Eu estava em Uppsala há muitos anos e era altura de fazer outra coisa, noutro sítio. A Igreja é como um posto de trabalho qualquer. As pessoas mudam de posição depois de alguns anos, não há nada de estranho nisso.

Axel não respondeu. Estivera prestes a desistir, a agradecer pelo tempo dispensado, regressar a Estocolmo e obrigar-se a aceitar que a terceira carta de Rebecca, do ponto de vista jornalístico, era tão desinteressante como as duas primeiras. Mas, depois, Ingrid dera-lhe a resposta sobre a mudança de trabalho. Como uma breve exposição dos factos para frisar que não havia absolutamente nenhum outro motivo para ter deixado Uppsala, além de querer mudar de ares. O que poderia querer dizer que havia.

— Por isso, se me dá licença... — Ingrid fez um gesto na direcção da igreja atrás de si, para lhe mostrar que era para lá que tencionava ir. Naquele preciso instante.

Axel reflectiu por alguns momentos. Havia mais uma coisa. Um verdadeiro tiro no escuro. Não pensara mencionar aquilo, pois não lhe atribuíra particular importância, mas já que estava ali.

— Só mais uma coisa...

Ingrid virou-se novamente para ele, com toda a sua expressão corporal a deixar bem claro que seria a última vez e que ele se despachasse.

— Sabe o que é a «Ab Ovo»?

— «Ab»... ?

— «Ovo».

Ingrid reflectiu por um segundo e abanou a cabeça resolutamente.

— Não, o que é isso?

— Não tem importância. Obrigado pelo seu tempo.

Ingrid assentiu com a cabeça na sua direcção, dirigiu-se para a igreja e desapareceu atrás das portas de madeira maciça. Axel esperou que elas se fechassem atrás dela antes de regressar ao seu carro com um sorriso de satisfação nos lábios.

Tinha sido rápido. Umas décimas de segundo, no máximo. Depois, tinha conseguido recuperar a mesma expressão facial. Mas fora o suficiente. Axel sabia o que vira. Estava totalmente seguro disso.

Ingrid Drüber sabia perfeitamente o que significava «Ab Ovo».

Ele próprio não fazia ideia. Ainda não.

Mas era apenas uma questão de tempo. E aí teria a sua história.

Tinha a certeza disso.


Era uma operação demasiado grande.

Eram demasiadas pessoas.

Esperavam um homem sozinho, que sabiam quando e onde ia aparecer. Não havia nenhum motivo para ele desconfiar de alguma coisa, por isso, toda a operação era, teoricamente, simples.

Manter os locais na rua Norrforsgatan sob vigilância.

A partir de uma distância segura, registar a sua chegada.

Deixá-lo entrar, certificar-se de que todas as entradas e saídas estavam vigiadas, para o caso de ele tentar fugir.

Prendê-lo quando entrasse no quarto de Stella.

O que poderia correr mal?

Variadíssimas coisas, como se provaria.

Stella dissera que costumava responder-lhe em menos de dez minutos, mas poderia estar com outro cliente, por isso, também não seria estranho se demorasse uma hora. Parecia que ninguém queria esperar todo esse tempo. Em poucos minutos, notara-se uma alteração marcante na energia e no ambiente, e agora havia uma expectativa febril e quase palpável no ar. Queriam resultados imediatos. Agora.

— Corresponde ao que sabemos sobre ele — constatou Sebastian quando se juntaram todos na sala de reuniões. — Perdeu a autoconfiança, precisa de algo seguro, algo que sabe que vai conseguir levar até ao fim.

— Okay, então, o que fazemos? — perguntou Billy enquanto ligava o computador ao projector.

— Tenho uma ideia.

Torkel aproximou-se do mapa na parede sem dar oportunidade a Anne-Lie de assumir o controlo e encontrou a morada que procurava. Tinha um plano que dependia do tipo de área com que estivessem a lidar. Estudou o mapa por alguns instantes antes de se virar para Billy.

— Precisamos de um mapa mais detalhado desta zona.

— Tenho aqui um — confirmou Billy, e projectou uma imagem do Google Maps na parede.

— O sítio delas na rua Norrforsgatan é este — disse e desenhou uma seta vermelha no mapa.

— E isto aqui, o que é? — perguntou Torkel, apontando para o edifício que ficava em frente.

Billy colocou um novo alfinete no mapa, escolheu a opção Street View e conseguiram ver a fachada de um edifício vermelho, de dois andares, com o telhado plano. Uma placa indicava que lá dentro se encontrava a clínica veterinária Sahléns.

— Um veterinário.

— Telefonem para lá, digam que precisamos de entrar, ficamos aqui... — apontou para as janelas do segundo andar do edifício na imagem — ... e vigiamos o estacionamento. Quando o nosso suspeito chegar, contactamos a pessoa que tivermos no interior, provavelmente Vanja. — Torkel olhou para ela e Vanja assentiu, em concordância. O resto parecia simples e acertado, pensou. Quando o suspeito entrasse, os outros deixariam o veterinário e, juntamente com Billy e Carlos, vigiariam todas as possíveis vias de fuga.

Um plano sólido.

— Como é que o vamos reconhecer? — perguntou Vanja.

— Temos o retrato-robô.

— Que, para sermos sinceros, só nos mostra um homem branco, de uns quarenta anos. Não é uma grande pista.

— Ele marcou uma hora, a pessoa que aparecer a essa hora é o nosso suspeito — disse Billy, que, pelo tom, parecia achar que estavam a complicar desnecessariamente a questão.

— Também podemos ter a Stella no exterior — sugeriu Carlos. — Assim, pode indicar-nos a pessoa certa quando ela chegar. Também pode ficar ali, no veterinário.

— Deixem-me confirmar uma coisa rapidamente — disse Billy, pegando no telefone e saindo da sala.

Anne-Lie estivera sentada em silêncio. Então, virou-se para Torkel e ele preparou-se para o pior.

— Quero mais pessoal ali.

— Porquê? — perguntou Torkel, apesar de julgar saber a resposta. Ele dissera que a equipa seria suficiente, todo o seu plano era baseado nisso. Anne-Lie simplesmente não queria dar-lhe razão.

— Quero ter a certeza de que o apanhamos.

— Nós apanhamo-lo.

Trocaram um olhar furioso, mas a discussão não se prolongou. Billy voltou a entrar na sala.

— Okay, costuma ser assim: ele entra, Stella recebe-o, vai para o quarto, prepara-se e ele entra dois minutos depois.

— Então, ela não pode estar no exterior — constatou Carlos, retirando a sua própria proposta.

— Ela não pode combinar com as... colegas para não aceitarem outros clientes à mesma hora? — perguntou Vanja, dirigindo-se a Billy.

— Posso perguntar-lhe.

— Em que é que isso nos ajuda? — quis Torkel saber.

— Se não for lá mais ninguém, saberemos com toda a certeza que a pessoa que aparecer àquela hora é o nosso suspeito. Stella pode estar dentro de casa, recebê-lo, deixá-lo descontrair, e nós ganhamos algum tempo.

Torkel assentiu com a cabeça e reflectiu rapidamente sobre eventuais falhas naquele plano. Não encontrou nenhuma. Virou-se para Billy e voltou a assentir. Billy pegou no telemóvel outra vez e saiu da sala. Antes de chegar à porta, deteve-se e virou-se para trás.

— Esperem, de quanto tempo precisamos? Quando é que queremos que ela combine a sessão com ele?

— Deixa que seja ele a sugerir, mas, no mínimo, daqui a uma hora.

Torkel reflectiu sobre todo o plano. Sim, conseguiriam cumpri-lo. Entrar no consultório veterinário talvez fosse exigir algum tempo e persuasão. Se não lhes dessem acesso, teriam de ficar sentados num carro no local. Estariam mais expostos, seria um risco maior, mas também poderia funcionar. Ter um pouco mais de tempo também não faria mal nenhum.

— Se ela conseguir dar-nos duas horas, melhor ainda.

— Pelo menos, duas! — objectou Anne-Lie.

Torkel lançou-lhe, de novo, um olhar cansado. Não haveria nada com que pudesse simplesmente concordar sem ter de ficar com a última palavra?

— Quero ter tempo para fazer um briefing adequado com a equipa — acrescentou, para explicar a sua decisão.

— Não precisamos de nenhum briefing — respondeu Torkel devagar e com clareza, como se estivesse a explicar alguma coisa a uma criança rebelde de dois anos. — Nós os cinco somos suficientes.

— Pelo menos, duas horas — repetiu Anne-Lie para Billy, que, depois de lançar um olhar interrogativo a Torkel, que apenas assentiu com a cabeça com ar cansado, saiu novamente da sala.

— Eu e tu no veterinário. A Vanja com a Stella. O Carlos e o Billy nas proximidades, para vigiarmos o edifício depois de ele entrar. É suficiente. Para que é que queres mais gente?

— Vamos apanhá-lo.

— Nisso estamos completamente de acordo.

— Não vamos desperdiçar tempo a discutir sobre isto. A investigação é minha, fazemos como eu estou a dizer.

Era uma operação demasiado grande.

Eram demasiadas pessoas.

De quantos precisavam realmente?

Se a pergunta fosse colocada a Anne-Lie, aparentemente, precisavam de mais meia dúzia. Todos homens, todos armados. Torkel estava presente durante o briefing, com os braços cruzados sobre o peito, a ouvir. Não importava o que fizesse ou pensasse. Para haver uma mudança na relação de trabalho entre os dois, teria de adoptar medidas mais drásticas.

Ou assumiam a responsabilidade exclusiva da investigação ou teriam de a abandonar.

Nenhuma das alternativas era particularmente apelativa: continuar a trabalhar com pessoal sobre o qual fora obrigado a passar por cima nunca era o ideal, e deixar a investigação criaria uma sensação de tremendo fracasso. Mas algo teria obrigatoriamente de mudar, isso era mais do que evidente. Contudo, agora não era a altura certa. Não quando estavam a fazer um briefing como se estivessem prestes a desmantelar um grande e fortemente armado cartel de droga, em vez de, com calma, apanharem um homem sozinho que, sem saber, caíra numa armadilha. Torkel deixou o olhar percorrer o local. O mapa na parede, as cruzes nos sítios onde se iam posicionar, os traços a indicar como se iam mover e quando. Instruções sobre a comunicação via rádio.

Surpreendia-o que ela não tivesse arranjado um nome de código para a operação.

Anne-Lie terminou a sua intervenção, dizendo aos elementos da equipa que fossem buscar as armas e os coletes à prova de bala. Deveriam reunir-se junto aos carros dentro de quinze minutos.

Torkel levantou-se da cadeira e saiu calmamente da sala.

Quinze minutos. Tempo suficiente para beber mais um café e certificar-se de que não acabava no mesmo carro que Anne-Lie e o «Esquadrão Classe A».

A operação era demasiado grande.

Eram demasiadas pessoas.

Torkel não conseguia tirar aquele pensamento da cabeça, ali sentado, com os binóculos à frente dos olhos, juntamente com Anne-Lie, numa das salas de observação do andar de cima da clínica veterinária. Sentia-se um odor a desinfectantes e detergente misturado com o cheiro a cão molhado. Os proprietários deixaram-nos alegremente entrar e perguntaram, cheios de curiosidade, o que estavam a vigiar, aparentemente ignorando por completo o tipo de actividade que decorria no edifício em frente ao deles. Torkel não vira nenhum motivo para os elucidar, apenas respondera que tinham razões para pensar que um suspeito apareceria ali naquele dia.

Anne-Lie fez um controlo via rádio para que todos estivessem nos seus lugares. Torkel conseguia vê-los sem qualquer problema, seis homens aos pares, em três posições diferentes, mas presumiu que era preciso procurá-los de forma activa ou saber que estavam ali para que fosse possível descobri-los. Alguém que, não sabendo de nada, entrasse com o carro no parque de estacionamento, não os veria. Ia funcionar. Era apenas uma operação desnecessariamente grande para algo tão simples. Teria sido suficiente ter Billy e Carlos, que Torkel também conseguia ver sentados num carro, à porta do edifício vizinho do bordel.

Os seus pensamentos foram interrompidos por um carro que entrou no parque de estacionamento. Um Hyundai verde-escuro, um condutor aparentemente sozinho na viatura. Parou, o motor desligou-se, mas ninguém saiu.

— É ele? — sussurrou Anne-Lie a Torkel, apesar de não haver risco absolutamente nenhum de alguém os ouvir. Tinham o retrato-robô no banco à sua frente. Torkel lançou-lhe um olhar rápido e, de seguida, voltou a colocar os binóculos à frente dos olhos, focando na direcção do homem que estava dentro do carro.

— Não sei. — O ângulo não era o melhor e o homem estava virado de lado, a olhar para a porta da qual esperavam que ele se aproximasse em breve.

— Está cinco minutos adiantado — disse Anne-Lie depois de olhar para o relógio.

Então, o homem saiu do carro e trancou-o. Olhou, indiferente, à sua volta, antes de, a passos rápidos, se aproximar da porta de entrada do edifício.

— O alvo chegou. Preparem-se — informou Anne-Lie, via rádio.

O homem passou a porta e fechou-a atrás de si.

— Era ele?

— Não sei, é difícil dizer, mas devia ser.

Torkel baixou os binóculos. Até agora, tudo correra como planeado. Só faltava Stella recebê-lo, ir para o quarto, dizer a Vanja que era mesmo ele. Vanja, por sua vez, informá-los-ia, esperaria que o homem entrasse no quarto e prendê-lo-ia. Se, por algum motivo, conseguisse escapar-lhe, os outros já teriam tido tempo de cercar o edifício.

— Que merda estão eles a fazer?! — perguntou Torkel, exaltado, quando viu movimentos. Dois dos homens de Anne-Lie tinham saído dos seus esconderijos e aproximavam-se lentamente do edifício.

— Ele já está lá dentro!

— Ainda não temos a confirmação de que é ele!

— Mas tu próprio disseste. Quem é que havia de ser?

Stella inspirou fundo e abriu a porta para o corredor. Avançou para a sala de espera e tentou manter a pulsação sob controlo. Estava nervosa, muito mais do que pensara que ia estar. Tinha de agir de forma absolutamente natural com Villman. Mas... e se ele se apercebesse?

Conseguiria fazê-la refém? Feri-la-ia?

Agora já era tarde demais para pensar nisso.

Com um último suspiro para se acalmar, Stella saiu para o espaço comum. O homem estava sentado na beira de uma das poltronas.

Stella deteve-se, surpreendida.

Não era Villman.

— Oh, não... — deixou Stella escapar ao mesmo tempo que olhava à sua volta. Teria havido algum engano? Haveria mais alguém ali dentro?

— Tenho uma marcação com a Alma — disse o homem com um sorrisinho nervoso e um gesto com a cabeça na direcção do quarto de Alma.

— Sim, espere um momento...

Stella foi ao quarto de Alma em passo rápido, abriu a porta sem bater primeiro e entrou. Alma estava sentada na cama, a apertar os atacadores das botas.

— Mas que merda! Devias ter cancelado todos os clientes! — sibilou Stella, zangada, e deu alguns passos na direcção de Alma.

— Não consegui falar com este, que raio querias que fizesse?

— Faz alguma coisa agora, ele que saia dali!

— Está bem, porra...

Alma levantou-se da cama e acompanhou Stella à sala comum. O homem levantou-se rapidamente quando as viu e Alma, com um sorriso acolhedor, quase o arrastou para o seu quarto. Stella tentou recompor-se rapidamente antes de regressar ao quarto vermelho. Vanja estava encostada a uma das paredes, à espera.

— Então? — perguntou Vanja, ansiosa, assim que Stella fechou a porta. Não via a hora de sair dali. Não conseguia compreender que tipo de pessoas se dedicavam àquilo. Ela não era pudica, gostava de sexo, adorava, mas aquilo... Chicotes, algemas, correntes, grampos, bolas para pôr na boca...

— Não era ele.

— Não era ele?

— A Alma não conseguiu falar com um dos seus clientes. Era ele. Não era o Villman.

— Que merda!

Vanja precipitou-se para o walkie-talkie que estava em cima da cómoda.

— Não era ele! Era outro cliente, não era ele!

No andar de cima da clínica veterinária, Torkel e Anne-Lie estavam praticamente a sair. Quando ouviram o barulho do rádio, estavam os dois à espera de ouvir uma confirmação e demoraram alguns segundos a registar o que Vanja estava a dizer. Torkel virou-se para Anne-Lie antes de ir a correr à janela.

— Diz-lhes para recuarem, diz-lhes para recuarem!

Lá fora, viu como os dois homens armados estavam já praticamente à porta de entrada, aproximando-se de cada um dos lados.

— Diz-lhes para recuarem AGORA!

Ouviu Anne-Lie dar as ordens ao mesmo tempo que viu os dois polícias junto à porta reagirem ao som que lhes chegava pelo auricular. Mas era tarde demais. Outro carro aproximava-se do edifício. Um Ford vermelho. Foi tudo o que Torkel conseguiu ver. Era impossível o condutor do automóvel não ver os homens armados à porta da casa. Depois de abrandar por um breve momento, como se quisesse certificar-se de que realmente estava a ver aquilo, o homem acelerou a fundo, fez inversão de marcha e foi-se embora.

— Merda, era ele! É ele! Vai conseguir fugir!

Torkel agarrou no seu próprio walkie-talkie e chamou Carlos e Billy.

— Ele está a sair daí, é ele! Num Ford vermelho!

À porta do edifício vizinho, viu Billy ligar o carro e iniciar a perseguição. Ambos os carros desapareceram do seu campo de visão em poucos segundos. Torkel reclinou-se antes de se levantar bruscamente e dar um pontapé num carrinho metálico que fez os instrumentos que lá estavam colocados voarem para o chão.

— Merda! Merda!


Billy não demorou muitos segundos a conseguir alcançar o carro vermelho. Carlos ainda estava a apertar o cinto de segurança quando ele apareceu à frente deles.

— Tira a matrícula! — exclamou Billy, aproximando-se mais alguns metros do carro em fuga à sua frente. Estavam perto da estrada 222, e, sem abrandar nada, o Ford vermelho virou à esquerda, na direcção do centro da cidade. Billy seguiu-o. Com a mão direita começou a procurar a luz azul intermitente portátil, que estava num compartimento por baixo do rádio.

— Eu faço isso, concentra-te na estrada! — exclamou Carlos, afastando a mão de Billy e colocando o pirilampo no painel de instrumentos. Billy ligou-o e accionou as sirenes simultaneamente. As luzes de travão do carro da frente acenderam-se por um momento e, por instantes, pareceu que o condutor ia aproveitar a primeira oportunidade para virar à direita, mas depois arrependeu-se e continuou em frente. Mas não por muito tempo. Sem abrandar, virou no desvio seguinte à direita, uma rampa de acesso a outra estrada. Depois de uma curva de cento e oitenta graus, entraram numa estrada mais larga.

— Qual é esta? — perguntou Billy e tentou aumentar ainda mais a velocidade. Perdera alguma na curva de acesso, mas, felizmente, o trânsito fluía e depressa conseguiu recuperar a distância.

— Qual é esta quê? — repetiu Carlos, sem compreender.

— Que estrada é esta? — especificou Billy e ultrapassou pela direita um Toyota branco, que, por algum motivo incompreensível, circulava na via da esquerda.

— É a cinquenta e cinco.

— Vê se consegues que cubram todas as saídas.

Assim que disse aquilo, apercebeu-se de que talvez não fosse possível. Implicaria que alguém, algures, recebesse a chamada, reagisse suficientemente depressa, conhecesse o percurso da estrada de cor e enviasse, a tempo, várias equipas de carros para as diferentes saídas. Isso nunca aconteceria. Se lhes calhasse a pessoa certa, talvez conseguissem coordenar aquele tipo de esforço, mas nunca antes de o carro que perseguiam há muito ter deixado o município e, provavelmente, mudado de jurisdição.

— Aliás, caga nisso — disse para Carlos. — Actualiza-os constantemente com a nossa posição e vê se, ao menos, há alguém nas imediações que possa intervir.

Carlos assentiu, pegou no microfone do rádio fixo e começou a transmitir a localização de forma contínua enquanto Billy se focava outra vez apenas na estrada e no Ford em fuga. A estrada tinha duas vias, mas, cada vez que Billy se aproximava para tentar uma ultrapassagem, o carro à sua frente colocava-se no meio e bloqueava-o com eficácia. Billy abrandou, aproximou-se da traseira e guinou para a direita, mas o Ford acompanhou-o e impediu uma ultrapassagem por qualquer um dos lados.

Depois de pouco mais de um quilómetro e meio, apareceu uma saída. O Ford dirigiu-se para ela e subiu a rampa até à rotunda no viaduto, no outro nível. Billy reparou numa barreira sonora coberta de graffiti do lado direito, mas principalmente nos arbustos do lado esquerdo. Alguns deles eram bem altos e bloqueavam a visão ampla da rotunda, obrigando-os, assim, a diminuírem a velocidade. Algo que o condutor do Ford claramente não pensava fazer.

Cruzou a rotunda pelo centro a toda a velocidade.

Uma carrinha branca, com um grande logótipo de uma empresa de piscinas na lateral, foi obrigada a travar a fundo e apitou raivosamente. O Ford virou logo à direita, para uma estrada mais pequena. As placas indicavam que iam na direcção de um hospital e de uma zona chamada Svartbäcken. Carlos comunicou pelo rádio que acabavam de virar para a rua Svartbäcken e que se dirigiam para sul. Se agissem rapidamente, seria possível apanhá-lo.

— O que queres dizer com isso? — perguntou-lhe Billy.

— Esta estrada acaba naquele cruzamento grande, mesmo à frente da sede da Polícia.

— Então, aí têm de ser capazes de fazer sair alguém, porra!

Não percorreram muitos metros até estarem rodeados por zonas habitacionais dos dois lados. Vida e movimento. Ciclovias, passadeiras, crianças e carrinhos de bebé. Billy levantou ligeiramente o pé do acelerador. A distância até ao Ford aumentou imediatamente. Era evidente que o homem à sua frente não tencionava abrandar. Nem mesmo quando uma placa assinalava «Escola» e a velocidade máxima permitida por lei se reduzia para trinta quilómetros por hora, Billy viu qualquer luz vermelha de travão acesa. Poderiam definitivamente juntar umas quantas infracções às regras de trânsito aos pontos de acusação quando conseguissem capturá-lo.

No cruzamento seguinte, um casal com um carrinho de bebé aproximava-se da passadeira quando se aperceberam da aproximação das sirenes e pararam. O Ford guinou ligeiramente para a esquerda, mas sem abrandar. Se o casal tivesse avançado, não teria tido a mínima hipótese de se desviar.

— Temos de o parar — constatou Billy.

— Ou deixá-lo seguir — respondeu Carlos.

Billy ponderou essa alternativa rapidamente. Não era, de maneira nenhuma, uma sugestão parva, talvez até fosse a melhor. Se algo acontecesse, se um peão inocente ou outro condutor ficasse ferido ou se o carro à frente deles perdesse o controlo e se despistasse, a grande notícia seria que isso acontecera durante uma perseguição policial. Haveria sempre alguém pronto para dizer que eles é que tinham provocado o acidente, que tinham deixado a adrenalina sobrepor-se ao bom senso. Claramente, não valia a pena. Billy voltou a levantar o pé do acelerador. A distância para o carro da frente aumentou.

— Já conseguiram mandar sair alguém? — perguntou Billy e abrandou ainda mais, embora continuassem a circular acima dos setenta quilómetros por hora.

— Estamos a aproximar-nos, estão a postos? — ouviu Carlos perguntar para o rádio.

Billy voltou a acelerar.

Era parvo deixá-lo escapar agora.

Se visse que já não o perseguiam, poderia virar para uma das ruas transversais mais estreitas, que Billy calculou serem muitas, que haveriam de cruzar até chegarem à sede da Polícia. Para sua grande desilusão, ouviram pelo rádio que ainda não tinham conseguido fazer sair ninguém. Billy praguejou em voz alta enquanto Carlos informou os colegas que tinham menos de um minuto para o fazer.

Aproximavam-se de uma rotunda. Billy viu a pessoa na pequena mota que se aproximava pela ciclovia do lado esquerdo e que, claramente, não vinha com ideias de parar. Em vez disso, virou para a via central, embalada pela certeza de que estaria protegida pela lei da prioridade nas passadeiras sem sinais luminosos. No entanto, essa lei não se aplicava se a pessoa permanecesse sentada no seu veículo, e definitivamente não quando o carro que se aproximava estava a ser perseguido pela Polícia.

O Ford vermelho travou no último segundo e conseguiu virar o suficiente à direita para evitar a motorizada por uns escassos centímetros. O condutor, no entanto, perdeu o controlo e caiu, deslizou para a frente e impediu Billy de continuar pelo mesmo caminho que o Ford. Billy compreendeu que nunca conseguiria travar a tempo, não tinha outra alternativa senão guinar para a esquerda. Chocou com o sinal vertical no refúgio central que sinalizava a passadeira, atravessou a faixa de rodagem pelo meio da via e, ao entrar pela rotunda, derrubou um dos pilares baixos de iluminação que circundavam o seu perímetro e onde, como decoração na parte interior, havia seis sólidas esferas de cimento. Agrupadas três a três, de diferentes tamanhos. Como se fossem dois bonecos de neve que se tivessem deitado a dormir na relva.

Billy colidiu com um dos conjuntos e o carro imobilizou-se.

Por momentos, o mundo ficou branco quando o airbag foi accionado com um barulho estrondoso, que se sobrepôs ao do metal a amachucar-se. Os ouvidos de Billy continuavam a zumbir quando, ao fim de alguns segundos a procurar orientar-se, tentou afastar o seu airbag o mais possível e se virou para Carlos.

— Estás bem?

Carlos apenas assentiu com a cabeça e Billy viu que ele estava a sangrar do nariz. Um fino fio de sangue escorria-lhe para o lábio superior e pingou-lhe para dentro da boca quando ele a abriu e moveu o maxilar inferior de um lado para o outro, como se estivesse a tentar desentupir um ouvido.

— Não oiço nada do ouvido esquerdo — respondeu e continuou a fazer a ginástica facial. Billy sabia que, se se tivesse azar, o airbag podia rebentar um tímpano, mas a audição acabaria por voltar.

Pelo rádio, ficaram a saber que ninguém tinha conseguido parar um Ford vermelho em frente à sede da Polícia. Se era porque não tinham tido tempo de se mobilizar ou porque o condutor tinha mudado de direcção antes de lá chegar, Billy não sabia e também não se importava.

Tinham a matrícula do carro.

Apanhá-lo-iam na mesma.


Quando Vanja regressou ao escritório, só lá estavam Sebastian e Ursula.

— Foi um inferno — assim resumiu Vanja os acontecimentos daquela manhã.

— Pois, já ouvimos dizer — respondeu Ursula. Talvez estivesse só a imaginar, mas Sebastian ficou com a sensação de que, no futuro, Ursula acabaria por usar aquilo contra Torkel, todas as vezes que ele lhe pedisse para ter uma mente mais aberta em relação aos colegas de outros sítios que não Estocolmo.

— Como estão o Billy e o Carlos? — perguntou-lhe. Mostrar alguma preocupação nunca ficava mal. Além disso, era, sem dúvida, uma pergunta relacionada com trabalho.

— Estão no centro de saúde. O Billy estava um bocado dorido, talvez tenha um ligeiro traumatismo craniano, e o Carlos deve ter rebentado um tímpano. Já encontrámos o carro?

— Onde estão os outros? — perguntou Ursula, em vez de responder à pergunta de Vanja.

— O Torkel e a Anne-Lie tinham de falar com alguém sobre o que vamos dizer à imprensa. Parece que já há quem refira uma perseguição louca numa zona de habitação densa... O carro? — perguntou novamente.

— Ainda não o encontrámos, mas sabemos quem é o proprietário.

— Quem é?

Vanja foi ter com Ursula, como se a resposta estivesse no computador da colega.

— Está registado no nome de uma empresa, Brode & Hammarsten. A morada está aqui.

Ursula estendeu um pequeno post-it a Vanja, que o olhou rapidamente antes de o colocar no bolso e se virar para se ir embora novamente.

— Também vens? — perguntou a Ursula, por cima do ombro.

— Não.

Vanja deteve-se, já com a porta aberta.

— Porquê?

— Acabei de receber o relatório relativo à autópsia e à inspecção completa do apartamento da Rebecca Alm. Tenho de o analisar.

— Ah, okay...

— Leva o Sebastian — sugeriu Ursula, anuindo na direcção dele.

Vanja lançou-lhe um olhar que deixava bem claro o que pensava sobre aquela sugestão.

— Já somos poucos em situações normais, e agora quatro de nós não estão presentes. Se trabalhamos juntos, trabalhamos juntos — continuou Ursula sem soar repreensiva, mas com um tom subjacente que deixava transparecer a única coisa que poderia fazer Vanja mudar de ideias: que a sua atitude estava a ser pouco profissional. Vanja hesitou. Parecia procurar uma razão objectiva para ir sozinha, mas desistiu.

— Então, anda — acabou por suspirar com o mesmo entusiasmo como se lhe tivessem pedido para ir dar banho a um cão cheio de pulgas. Sebastian praticamente saltou da cadeira, pegou no casaco que estava pendurado nas costas, murmurou um «obrigado» quando passou por Ursula e foi atrás de Vanja.


O GPS indicou-lhes que caminho deviam tomar para a avenida Dag Hammarskjöld. Era a única voz que se ouvia dentro do carro. Sebastian ia em silêncio, lembrava-se da primeira vez que andara de carro com Vanja, quando ainda não fazia ideia de quem ela era. Também dessa vez fora um GPS a indicar-lhes o caminho para a antiga escola do seu pai. Por momentos, brincou com essa ideia...

Que teria acontecido se nunca tivesse descoberto?

Se nunca tivesse encontrado as cartas em casa dos seus pais, se nunca tivesse procurado, se nunca a tivesse encontrado?

A vida de Vanja seria, se não melhor, pelo menos muito mais simples.

Nunca teria sido raptada por Hinde.

Anna e Valdemar continuariam juntos. Teriam uma filha juntos.

Trolle Hermansson provavelmente continuaria vivo, se não tivesse bebido até à morte.

Ursula nunca teria sido alvejada.

Tinha influenciado a vida de tantas pessoas, nenhuma das quais de maneira positiva, tanto quanto Sebastian conseguia lembrar-se. E como seria com a sua própria vida?

Nunca teria tentado voltar para a Brigada de Homicídios. Possivelmente, teria acabado lá de qualquer maneira, quando Edward Hinde ficara envolvido, mas apenas enquanto consultor. Entrar e sair, assim que resolvessem o caso. Sem nenhum motivo para se agarrar àquilo. De volta a uma vida solitária, num apartamento em que só usava algumas partes, a intercalar relações sexuais sem sentido com trabalhos ocasionais desinteressantes, numa cruzada sem rumo. Também se poderia dizer que isso era uma descrição bastante aproximada da sua existência actual, mas não totalmente. Agora queria algo, estava disposto a lutar por isso, conseguira encontrar um caminho, que antes não existira de todo. Tivera altos e baixos, mas a equipa da Brigada de Homicídios fora, apesar de tudo, uma sorte constante. Se quisesse ser sentimental, poderia dizer que Vanja dera de novo sentido à sua vida. Independentemente do tipo de relação que tivessem, o simples facto de ela existir, de ele saber que ela existia, era bom para ele. Salvara-o.

Então, como era possível ter feito tanta merda naquela situação?

Pois, ele era Sebastian Bergman.

Essa era a resposta mais simples à sua pergunta.

— Costumas comprar sexo?

Sebastian foi arrancado dos seus pensamentos. Teria ouvido bem? Poderia ter passado horas a tentar adivinhar qual seria a primeira coisa que ela diria quando finalmente decidisse falar com ele, mas nunca teria arriscado aquilo.

— Porque perguntas?

— Estava a pensar no sítio onde estivemos hoje, no bordel, um sítio deprimente e nojento, e pensei em ti.

«Deprimente e nojento, e pensei em ti.» Era evidente que ela não tencionava facilitar-lhe a vida de maneira nenhuma.

— Costumas? — perguntou Vanja novamente, quando ele não respondeu.

— Estás à procura de motivos para gostar ainda menos de mim? — tentou Sebastian.

— Acho que não é possível.

Sebastian olhou para ela com a esperança de ver um leve sorriso que tornasse aquelas palavras um pouco menos duras. Contudo, percebeu imediatamente que eram esperanças vãs.

— Não, não faço isso — respondeu com sinceridade. — Não pago para ter sexo.

— Por ser ilegal? Já que não tens nenhuns escrúpulos morais...

— É demasiado simples — explicou-lhe. — Pagar e receber algo. Não é disso que se trata. A queca em si nunca foi o mais importante.

— Okay, não quero saber.

Sebastian estava prestes a dizer-lhe que, se não queria saber, não devia perguntar, mas ficou em silêncio. Deixou que fosse ela a decidir.

— Tenho pensado em nós — disse, tentando avançar quando o GPS lhes indicou que deveriam virar na próxima à direita e outra vez à direita passados oitocentos metros.

— Não há nenhum «nós» — constatou Vanja, secamente.

— Okay, tenho pensado em ti e em mim. Naquilo que disseste. — Não houve nenhuma resposta mas também nenhuma ordem para se calar, por isso, continuou. — Que não me interesso pelo que tu queres.

Continuava sem haver nenhuma reacção da parte dela. Sebastian manteve os olhos presos na estrada, com medo de que o mínimo movimento a levasse a mandá-lo calar-se outra vez.

— Mas eu interesso-me. Sempre me interessei, desde que descobri que és minha filha. Mas eu sou, ou tornei-me, muito egoísta, e às vezes esqueço-me do bem que tu me fazes e quão agradecido estou por te ter encontrado. Espero poder mudar isso.

— Agora, pára de falar.

Sebastian fez o que Vanja lhe pediu. Calou-se. Conseguira dizer mais do que esperara. Contudo, falar era uma coisa, era simples, qualquer pessoa podia fazê-lo. Dizer que estava triste, que se apercebia dos seus erros, que iria fazer melhor. O que valia isso? Nada.

As acções eram mais importantes do que as palavras.

Era por isso que tinha de fazer algo altruísta, provar-lhe que estava a ser sincero. Que, se não pudesse ser seu pai, queria, ao menos, ser seu amigo. Certificar-se-ia de que ela e Valdemar se reconciliavam outra vez.

Contudo, naquele momento, ficou calado.


Chegaram ao edifício que procuravam na avenida Dag Hammarskjöld, um imóvel simples de tijolo, com dois andares, que poderia ter sido um infantário, um centro de dia, uma habitação, qualquer coisa. Agora, uma placa na parede lateral indicava que pertencia à Brode & Hammarsten. Vanja estacionou e saíram os dois do carro.

— A que se dedicam aqui? — perguntou, olhando em volta, enquanto se aproximavam da entrada.

— Content marketing, segundo Ursula.

— O que é isso?

— Tinha esperança de que tu soubesses.

— Espera aí.

Vanja caminhou na direcção de um dos carros que estava parado num lugar mais afastado do estacionamento. Quando lá chegou, pegou no telemóvel e encontrou rapidamente o que procurava. Marca, ano do modelo, cor e matrícula do automóvel de que estavam à procura. Não sabia nada sobre anos dos modelos, mas tudo o resto coincidia.

Um Ford vermelho com a matrícula certa.

Aproximou-se da janela lateral e espreitou para o interior ao mesmo tempo que marcava um número e punha o telefone na orelha.

— Ursula, ele está aqui. O carro. No parque de estacionamento — disse assim que Ursula atendeu. — Vem cá ou manda alguém.

E desligou. Regressou para junto de Sebastian, a passos rápidos. Se o carro estava ali, a pessoa que o conduzira também poderia estar. Ou, pelo menos, iam descobrir de quem se tratava. Vanja sentiu a adrenalina começar a percorrer-lhe o corpo.

Se o edifício parecia sem graça do exterior, do lado de dentro indicava exactamente o contrário. Depois de terem passado as portas interiores, foram recebidos por uma grossa e escura carpete que se entendia até um balcão de recepção branco, com luzes embutidas e um pesado vaso de cerâmica, cheio de lírios brancos, numa das extremidades. Na parede atrás do balcão, via-se novamente o logótipo da empresa, desta vez em letras metálicas iluminadas, emolduradas por um fundo de papel de parede preto e branco. Havia holofotes embutidos no tecto branco e, de altifalantes escondidos, soava música ambiente.

Atrás da recepção abria-se um vasto open space. Sebastian calculou que estariam ali cerca de trinta pessoas, na sua maioria jovens, sentados em frente aos seus computadores, muitos deles com auscultadores.

— Vanja Lithner, este é o meu colega Sebastian Bergman. Queríamos falar com a pessoa responsável pela frota automóvel da empresa — disse Vanja, mostrando a sua identificação. A mulher atrás do balcão da recepção, que usava uma placa com o nome Rosa, olhou para a identificação de Vanja, depois olhou para ela, para Sebastian, que se limitou a levantar uma mão num pequeno cumprimento, e de novo para Vanja.

— Responsável como?

— Vocês têm um Ford vermelho, propriedade da empresa, que está estacionado ali fora. — Vanja fez um gesto com a cabeça na direcção do parque de estacionamento. — Quero falar com a pessoa responsável por ele.

— Não sei quem é. Mas podem falar com a Christina.

— Quem é a Christina?

— É a nossa chefe.

— Óptimo, chame a Christina.

Rosa assentiu com a cabeça e marcou o número de uma extensão no telefone à sua frente. Vanja recuou um passo e olhou em volta enquanto escutava Rosa a explicar pelos auriculares com microfone que a Polícia estava ali. Na parede do lado direito do balcão da recepção havia uma estante embutida, com algo que parecia um apoio de cabeça metálico, mas que, pelas chávenas e cápsulas colocadas ao lado, Vanja percebeu ser uma máquina de café. Uma garrafa de vidro com água, fatias de pepino, uma fruteira e uma travessa com bolachas compunham o resto da estante bem decorada. Na parede livre, havia prateleiras rectangulares embutidas, onde algo que só poderiam ser prémios e diferentes condecorações estavam bem iluminados.

Uma mulher de uns quarenta anos veio ter com eles. Tinha o cabelo preso num rabo-de-cavalo solto, uma camisa de ganga azul, calças de fato cinzentas e sapatos rasos de tecido preto.

— Olá, sou a Christina — disse, com a mão estendida. — Em que posso ajudá-lo?

Vanja apresentou-se, mostrou novamente a sua identificação, e Sebastian levantou outra vez a mão num cumprimento rápido. Christina quis saber se lhes podia oferecer algo para beber. Ambos recusaram e Vanja repetiu o motivo da visita. O Ford vermelho.

— É um dos carros da frota — assentiu Christina.

— O que é que isso quer dizer?

— Temos três carros que o pessoal pode utilizar. Chegámos à conclusão de que ficava mais barato do que ter toda a gente a andar de táxi o tempo todo.

— E como podemos saber quem o conduziu?

— Podem ser reservados com antecedência, mas, se houver algum disponível, basta indicar quanto tempo se julga precisar dele e levantá-lo.

— E onde é que isso é apontado?

Christina indicou-lhes, com um gesto, que a seguissem, passando pelas prateleiras com os prémios até à outra extremidade do escritório. Os que trabalhavam naquela zona tinham os seus próprios pequenos gabinetes com paredes de vidro, todos em fila. Ali também havia uma sala de refeições com uma mesa comprida, que se estendia ao longo de toda a zona de cozinha, com a sua igualmente comprida superfície de trabalho, dois grandes frigoríficos, vários microondas, máquinas de lavar a loiça e ainda mais máquinas de café e um dispensador de água.

— Posso saber porque estão interessados naquele carro? — perguntou Christina, e deteve-se diante de uma porta branca, não identificada, com tranca electrónica.

— Porque foi visto no local de um crime, esta manhã.

O que não era de todo verdade, mas era a versão mais rápida e simples e Vanja tinha esperança de que isso não levasse a mais perguntas.

— Têm a certeza de que era um dos nossos carros? — Não havia dúvida de que tinha esperança de que se tivessem enganado, de que a sua empresa não tivesse de se ver envolvida numa investigação criminal.

— Sim, temos — constatou Vanja, acabando com a leve esperança que restava.

Christina limitou-se a abanar a cabeça, como se não conseguisse compreender que um dos seus colaboradores pudesse estar envolvido nalgum crime. Marcou o código na porta e abriu-a. A luz acendeu-se automaticamente quando entraram, revelando inúmeras prateleiras cheias de material de escritório, dossiers e pastas, papel higiénico, luzes de Natal, velas em castiçais, sacos com sobras de aperitivos de alguma festa, latas de cerveja numa grade meio vazia. A despensa contrastava fortemente com o exterior austero, moderno e deslumbrante. Mesmo ao lado da porta, havia um pequeno chaveiro do qual pendia um bloco de espirais, com uma caneta num cordão.

— Aqui está.

Vanja pegou no bloco e abriu-o com entusiasmo e ansiedade. Foi para a última página, última entrada.

Nadia Aziz.

Vanja sentiu a decepção invadi-la. Não podia ser uma mulher.

— Isto não pode estar bem — disse Christina, e endireitou-se depois de ter espreitado por cima do ombro de Vanja. — Nadia não esteve cá toda a semana.

Vanja controlou a data do último registo. Dia 12 de Outubro. Depois disso, nada. Olhou para o bloco com mais atenção. Agora via claramente que a página seguinte tinha sido arrancada, havia restos de papel agarrados a algumas espirais.

— Ele arrancou a página — disse para Sebastian antes de se virar novamente para Christina. — Quantas pessoas trabalham aqui?

— Temos quarenta e seis empregados.

— Quantas mulheres?

— Não sei exactamente, vinte, vinte e duas, talvez.

— Então, haverá uns vinte e cinco homens...

— Há alguém que possa saber quem usou o carro hoje? — perguntou Sebastian.

— Não sei, mas podemos tentar descobrir — sugeriu Christina, e Sebastian apercebeu-se de quão prestável ela era, e, pela primeira vez, considerou o que aconteceria se a procurasse novamente por algum assunto «policial». Deixou o olhar descer até à sua mão esquerda sem anel. Não que fizesse alguma diferença, na verdade, muitas vezes até era mais fácil. Para o bom e para o mau. Mas ele prometera...

— Esperem — disse Vanja e pegou no telemóvel outra vez, desbloqueou-o e procurou até encontrar o que precisava.

— Reconhece esta pessoa? — perguntou e mostrou-lhe o retrato-robô que Stella os ajudara a elaborar. Christina inclinou levemente a cabeça e observou-o com atenção.

— Podia ser o Silas. Silas Franzén. Um dos nossos content managers.

— Ele está cá?

— Está.

— Há algum sítio onde possamos falar com ele à vontade?

— Podem ir para um das nossas salas ali — respondeu Christina, apontando para duas portas que pareciam cabinas telefónicas britânicas.

— E pode trazê-lo aqui?

Silas Franzén era grande. Foi a primeira coisa que Vanja pensou quando o homem entrou na pequena sala. Musculado. A camisa aos quadrados azuis que vestia ficava-lhe justa. Pescoço taurino, rosto quadrado por baixo do cabelo cortado à escovinha. Vanja conseguiu ver imediatamente a semelhança com o retrato-robô. O facto de Stella ter conseguido evitar dizer que ele parecia o Hulk era um mistério. Cumprimentou-os, puxou uma cadeira, sentou-se com as pernas abertas, inclinou-se para a frente, pousou os cotovelos nos joelhos e, franzindo o sobrolho, olhou para Vanja e Sebastian.

— Okay, o que se passa?

Vanja viu Ursula através da porta, atrás de Silas. Levantou-se com um pedido de desculpas rápido e deixou a sala.

— O que se passa? — repetiu Silas para Sebastian quando Vanja saiu.

— Ela zanga-se comigo se começar sem ela, temos de esperar um pouco — respondeu Sebastian e começou a inspeccionar as suas próprias unhas.

Aquilo estava a correr bastante bem. Agora podia ver se Silas mostrava algum sinal de nervosismo ou impaciência. Se ia começar a questionar Sebastian, numa tentativa de conseguir perceber o que sabiam e como poderia defender-se. Porém, o homem à sua frente limitou-se a assentir com a cabeça e inclinou-se para trás na cadeira. Aparentemente, sem nenhuma preocupação perante a situação.

Lá fora, Vanja foi ter com Ursula.

— Trouxeste reforços?

— Sim.

— Diz-lhes para se ocuparem do carro e revistarem o seu local de trabalho enquanto está aqui connosco. — Fez um gesto com a cabeça para a sala onde conseguiam ver Silas e Sebastian sentados. — Ele chama-se Silas, pede a alguém que te indique o seu lugar.

Ursula assentiu em silêncio e deixou-a. Vanja regressou à sala e sentou-se.

— Desculpe tê-lo feito esperar...

— Não faz mal, mas talvez agora possam dizer-me de que se trata — tentou pela terceira vez.

— Onde esteve hoje entre as onze horas e o meio-dia e meia? — perguntou Vanja, o que não respondia de todo à pergunta dele.

— Às onze horas estava aqui. Por volta das onze e meia, saí para tratar de um assunto e depois almocei. Voltei um pouco antes da uma. Porquê?

Uma rápida troca de olhares entre Sebastian e Vanja mostrava que estavam ambos a pensar o mesmo. Muito detalhado e minucioso, mais do que a maior parte das pessoas e sem sequer precisar de pensar primeiro. Como se tivesse treinado. Ensaiado.

— Que assunto era?

— Fui buscar uma encomenda.

— Onde?

— Ao supermercado, numa daquelas caixas automáticas.

— Foi lá de carro?

— Não, o supermercado é mesmo aqui ao lado.

— Então, hoje não usou nenhum dos carros da frota?

— Não.

— Onde almoçou? — interveio Sebastian.

— Fui ao 7-Eleven aqui ao pé, comprei um wrap e uma cola. Comi no jardim botânico.

— Está um frio de morrer lá fora — constatou Vanja.

Silas estendeu os braços com um ar de quem não percebia o que isso tinha que ver com o assunto.

— Alguém lhe fez companhia ao almoço, encontrou-se com alguém?

— Não.

Sebastian observou o homem, aparentemente relaxado, que tinha à sua frente. Era esperto. Um assunto para o qual não precisava de interagir fosse com quem fosse. Ninguém se lembraria dele no 7-Eleven, tão perto de uma universidade, à hora de almoço, quando o local certamente estava cheio de estudantes. Sozinho no jardim botânico. Impressões digitais no carro poderiam facilmente ser explicadas. Se não encontrassem ninguém que o tivesse visto usar o carro, não teriam muito por onde pegar. Claro que podiam pedir a Stella que o identificasse enquanto testemunha, mas isso só provava que ele tinha frequentado o bordel anteriormente, não que fora ele quem fugira do local no Ford vermelho e, definitivamente, não que fosse o culpado do que desconfiavam que tinha feito.

Sebastian levantou-se sem dizer uma palavra, deixou a sala e foi até ao open space, onde algumas pessoas estavam num grupo mais pequeno, aos cochichos. Sebastian compreendeu porquê. Com um par de luvas finas calçadas, Ursula examinava minuciosa e metodicamente uma secretária junto à janela. Se ele e Vanja tinham sido discretos, já a presença de Ursula era suficiente para que rumores e perguntas começassem a aflorar. Sobretudo, tendo em conta que a recepcionista era uma das pessoas do grupo e os outros a ouviam com toda a atenção.

Sebastian passou por eles e dirigiu-se para Ursula.

— Olá, encontraste alguma coisa?

— Ainda não. Vamos levar o computador, entregá-lo ao Billy. Como está a correr convosco?

— Não muito bem. Precisamos de alguma coisa para podermos levá-lo connosco.

— Estou quase despachada aqui, portanto... — Ursula encolheu os ombros como se pedisse desculpa. Pegou no blazer azul que estava pendurado nas costas da cadeira e apalpou-o. — Espera.

Meteu a mão no bolso interior e retirou um telemóvel.

— Ora vê.

— Um telemóvel — constatou Sebastian pouco impressionado; era mais ou menos a única coisa que alguém poderia esperar encontrar no bolso interior de um blazer.

— Um segundo telemóvel. — Ursula fez um gesto com a cabeça para a secretária, onde outro telemóvel estava ligado a um carregador, ao lado do teclado. Ursula ligou o telefone que acabara de encontrar, esperou que estivesse operacional e constatou que estava bloqueado.

— Dá-mo cá.

Ursula pegou num saco de provas e colocou o telemóvel no seu interior. Sebastian pegou nele, dirigiu-se, a passos largos, de novo para o escritório onde Vanja e Silas se encontravam e mostrou-lhe o telemóvel.

— Desbloqueie isto, por favor.

Silas olhou para o telemóvel e reconheceu-o de imediato; conseguiram ver como cerrou os maxilares de raiva e o seu olhar furioso quando se virou para Vanja.

— Revistaram as minhas coisas?

Vanja não respondeu.

— Desbloqueie-o, por favor — repetiu Sebastian.

Silas reclinou-se, cruzou os braços por cima do peito e adivinharam o que ele ia dizer, mesmo antes de abrir a boca.

— Não.


Mas como tinha chegado ali, efectivamente?

Não tinha precisado de ficar no centro de saúde, só tinha um dos ombros doridos, hematomas no sítio onde o cinto de segurança o tinha apertado, algo que poderia ser um ligeiro traumatismo craniano, mas, como não sentia náuseas nem tonturas, era provavelmente uma simples dor de cabeça. Em geral, estava bem. Não havia nada que o impedisse de voltar ao trabalho, se quisesse.

Mas fora para ali.

Para a rua Norrforsgatan.

Para trabalhar, convenceu-se a si próprio. Confirmar como estava Stella. Tinham-na deixado abruptamente e ela passara bastante tempo com Vanja, cujo forte não era esconder nem disfarçar o que pensava de alguém. Mais valia descobrir já se era melhor pedir desculpas pela colega. Além disso, havia uma possibilidade de Villman a ter contactado, furioso por ter estado prestes a cair numa emboscada, ao perceber que tinha de ser ela a denunciá-lo. Até a podia ameaçar. Ou apenas perguntar que raio estava a Polícia a fazer no exterior.

Havia variadíssimas razões para procurar Stella Simonsson novamente. No seu quarto vermelho.

Conseguia vê-lo à sua frente.

Imaginou tudo o que poderia fazer nele.

Sabia que não devia. E sabia porquê, mas depressa afastou as dúvidas com explicações racionais: o que acontecera com Jennifer nunca mais voltaria a acontecer, não podia acontecer, nunca teria acontecido se ele não estivesse bêbedo. Sóbrio, tinha um controlo absoluto. Além disso, havia mais pessoas no local. Até seria bom para ele, para todos. Ficaria calmo, satisfeito, os pensamentos obscuros que, de vez em quando, lhe surgiam desapareceriam. A serpente ficaria calma e satisfeita.

O facto de Stella ser prostituta e ele polícia era um problema evidente. Se fossem apanhados, ele perderia o emprego. E My. Era até provável que perdesse tudo. Então, era completamente louco estar ali sentado, sequer, a ponderar naquilo. Com a página dela aberta no telemóvel.

Mas recordou-se da sensação.

Do que fizera com Jennifer antes de tudo se transformar num inferno. A experiência mais intensa que alguma vez tivera, a seguir a realmente matar alguém. O poder inebriante e o controlo absoluto, directamente seguidos de uma satisfação sexual que nunca estivera nem perto de experimentar até então.

Nem com My nem com ninguém.

Apenas com Jennifer.

Agora, tinha isso tudo ao seu alcance.

Foi interrompido pelo som do telemóvel. Uma notificação por cima da página de Stella. Era Ursula. De volta à realidade. Abriu a mensagem da colega. Queria saber onde ele estava, se se sentia em condições de trabalhar. Billy respondeu que estava tudo bem, ia a caminho. Guardou o telefone, pôs o carro a trabalhar e arrancou. Abalado por ter estado tão perto de fazer algo realmente estúpido.


Tinham-se visto obrigados a esperar pela chegada de um advogado de defesa. A interrupção não fora inoportuna, dar-lhes-ia hipótese de preparar o interrogatório, discutir como deveriam prosseguir. Depois do fracasso com Stella, tinham improvisado, tinham seguido a via mais fácil, e parecia que fora frutífera, mas chegara o momento de darem alguma estrutura ao assunto, de delinearem um plano.

Anne-Lie, em conjunto com o porta-voz da Polícia, estava a elaborar uma nota de imprensa para os dados que já tinham publicado.

PERSEGUIÇÃO LOUCA ACABA EM CHOQUE VIOLENTO

Imagens do Volvo preto no meio da rotunda e testemunhas que os tinham visto avançar como loucos numa zona residencial cheia de crianças. Era preciso tratar do assunto.

Billy estava a trabalhar no telemóvel de Silas e Ursula deslocara-se à residência de Franzén, para ver se encontravam algo que o ligasse às violações e ao homicídio. Precisavam de alguma coisa.

Quando a advogada, que se apresentou como Mette Blomberg, finalmente chegou, Silas exigiu logo que o telefone que tinham encontrado fosse excluído como prova contra si, uma vez que o tinham conseguido através de métodos ilegais. Mette quisera saber mais antes de iniciarem o interrogatório.

— A Polícia no local pode decidir revistar os pertences do suspeito, se o crime de que é suspeito der pena de prisão superior a dois anos — explicou Vanja sem conseguir evitar um tom ligeiramente repreensivo.

— Eu sei disso.

— E infracções muito graves de trânsito podem dar dois anos de prisão.

— Mas vocês são da Brigada de Homicídios — ripostou Mette. — Estão aqui por causa das violações e do homicídio da Rebecca Alm, não para investigar crimes contra a lei de compra de serviços sexuais ou infracções ao código da estrada.

— É por isso que é um presumível suspeito — disse Torkel, assumindo o controlo da conversa, sentindo que tinham de avançar com cautela. Mette era perspicaz. — Mas, já que ele aqui está, queremos interrogá-lo relativamente a outros crimes.

— As violações e o homicídio.

— Exacto.

— Mas não é suspeito disso.

Torkel hesitou um instante. Claro que era suspeito disso, mas as provas eram muito fracas. A associação entre Silas e o caso que tinham em mãos era, do ponto de vista jurídico, inexistente.

— Não, neste momento, não é suspeito nesse caso — foi obrigado a admitir.

— Então, vou aconselhá-lo a não responder a nenhuma pergunta relacionada com isso — declarou Mette. — Vamos começar?


Torkel ligou o gravador que estava em cima da mesa da sala descaracterizada. Duas janelas estreitas, com vidros foscos, eram a única coisa que destoava das paredes de um branco-sujo. Estavam sentados em simples cadeiras de plástico com pernas metálicas. Silas e Mette de um lado da mesa e Torkel e Vanja do outro. Sebastian voltara ao seu papel de espectador, encostado à parede junto da porta, atrás dos colegas.

Antes de Mette chegar, tinham planeado dirigir rapidamente a conversa para os crimes mais graves, fazer perguntas sobre álibis, falar das vítimas, pressioná-lo. Queriam, além disso, recolher uma amostra do seu ADN. Contudo, tencionavam deixar isso para mais tarde.

Silas iria recusar-se, Mette iria questionar.

Agora, o objectivo era conseguir o suficiente para que um procurador concordasse em detê-lo. Ganharem mais tempo para, calmamente, encontrarem as provas que, naquele momento, não tinham.

De qualquer modo, Torkel estava bastante satisfeito com o ponto de partida.

Registou quem estava presente na sala, de que crimes Silas era suspeito, e perguntou como ele se declarava face às acusações.

— Não tenho nada que ver com nenhuma dessas coisas — respondeu Silas calmamente.

— Já desbloqueámos o telefone que encontrámos no seu blazer — iniciou Vanja, colocando em cima da mesa o aparelho, que estava dentro de um saco de plástico transparente.

— Isso não é meu.

— Estava no seu casaco — repetiu Vanja.

— Não, não estava. — Silas olhou calmamente de Vanja para Torkel e de novo para Vanja. — Alguém vos viu encontrá-lo?

Torkel olhou para ele com um ar cansado. Esta era a desvantagem de dar demasiado tempo a um suspeito antes do interrogatório. Dava-lhes a oportunidade de, em maior ou menor grau, planearem as respostas com antecedência. Não lhe pareceu que aquilo fosse algo que tivesse combinado com Mette. Ela era demasiado inteligente para isso.

— Lembra-se que tirámos as suas impressões digitais quando cá chegou? — perguntou Torkel calmamente.

Silas apercebeu-se do que isso significava e calou-se.

— Então, voltando ao conteúdo — prosseguiu Vanja. — Conversas com uma mulher, no chat de uma página de trabalhadoras sexuais. Combinaram um encontro para hoje.

— Eu não combinei nenhum encontro com ninguém.

— Um Ford Mondeo vermelho, com a matrícula KVT 665, ao qual você tem acesso livre, apareceu à hora e no local exactos da combinação feita através deste telefone.

— Eu não combinei hora nenhuma.

— Não percebeu esta parte das suas impressões digitais? — perguntou Vanja num tom azedo, e Mette dirigiu-lhe um olhar reprovador.

— Não, o telefone é meu, mas deve ter sido outra pessoa que o usou.

— O chat começou há vários meses.

Silas limitou-se a encolher os ombros, como se isso fosse algo que ele não conseguia explicar.

— Então, a pessoa deve tê-lo usado várias vezes sem eu ter reparado.

— Quantas pessoas no seu trabalho sabem que anda com um telemóvel pré-pago no bolso interior do casaco?

— Não sei. Mas alguém sabe. Aparentemente.

— E porque anda com um telemóvel pré-pago no bolso?

— Isso não é ilegal, ou é?

— Deixe-me ver se estou a percebê-lo correctamente — disse Torkel devagar enquanto se inclinava para a frente. — Está a dizer que outra pessoa, durante vários meses, combinou encontros com uma trabalhadora sexual através do seu telefone e foi até lá com um carro da sua empresa para se encontrar com ela?

Silas assentiu com a cabeça enfaticamente, como se achasse que aquela explicação soava ainda melhor quando a ouviu ser pronunciada em voz alta.

— Sim, tem de ter sido isso que aconteceu.

Torkel e Vanja trocaram um olhar rápido. Claro que nada do que estavam a ouvir era verdade, mas o problema, até com telemóveis com contrato, era conseguir provar quem realmente os utilizara. Se não conseguissem desmontar aquilo ali, ele não seria detido, estavam os dois absolutamente certos disso.

Algo vibrou no bolso de Torkel e ele pegou no seu telemóvel; olhou rapidamente para o ecrã e empurrou a cadeira. Disse para o gravador que ia deixar a sala e foi exactamente o que fez. Quando saiu, Sebastian levantou-se da sua cadeira e sentou-se na que Torkel acabara de deixar vazia. Vanja olhou para ele com uma surpresa desaprovadora.

— Fale-me do sexo — disse Sebastian, inclinando-se com ar interessado para Silas, que se sobressaltou ligeiramente na cadeira. — O sexo com Stella Simonsson — especificou.

— Não sei de que está a falar — respondeu Silas com determinação.

— Estou a falar de homicídio, violação e tentativa de violação...

— Espere lá, calma... — interrompeu Mette. Silas pareceu nervosamente surpreendido, pois, estava claro, não esperava que a conversa tomasse aquele rumo. Virou-se para Mette para tentar perceber o que se passava, mas ela apenas colocou uma mão apaziguadora no seu braço e o silenciou. — Isso não são crimes de que o meu cliente seja suspeito. — Virou-se outra vez para Vanja. A irritação no seu olhar correspondia à dureza do seu tom. — Ele não vai responder a pergunta nenhuma sobre isso.

Sebastian virou-se para ela com um sorriso complacente que não lhe chegava aos olhos.

— Se fechar a matraca uns minutos, faço um monólogo que, prometo, não vai acabar em nenhuma pergunta.

Sem esperar por uma resposta, virou-se de novo para Silas.

— Quero que saiba que é por isso que está aqui. Três crimes. Três crimes verdadeiramente graves. Com este nível. — Sebastian levantou a mão quase um metro acima do tampo da mesa. — Prisão perpétua. Depois, temos a compra de serviços sexuais e infracções ao código da estrada. Mais dois crimes. Não particularmente graves. Mais ou menos aqui em baixo, na escala de penas. — Inclinou-se para o lado e manteve a palma da mão aberta mais ou menos a dez centímetros do chão.

— Três aqui.

Sebastian levantou novamente a mão e manteve-a acima da mesa.

— E dois aqui.

Voltou a baixá-la para debaixo da mesa, sem nunca deixar de olhar para Silas.

— Temos o telemóvel, temos o carro, vamos acabar por encontrar uma câmara de vigilância algures ao longo da estrada. Vamos acabar por apanhá-lo com essas duas. Mas nem sequer é certo que tenha de ficar em prisão preventiva. Ninguém vai a julgamento por comprar sexo, é uma lei de fachada, e as infracções às regras de trânsito são sempre um pouco subjectivas. Vai acabar por sair daqui em liberdade quando tivermos acabado.

Sebastian levantou-se da cadeira. Vanja seguiu-o com o olhar. Havia muito a objectar naquele raciocínio, mas permaneceu calada. Não percebeu inteiramente onde Sebastian queria chegar, mas deixou-o continuar.

— Mas agora está a mentir, e fá-lo pessimamente, se quer que lhe diga — prosseguiu Sebastian, começando a andar pela sala. — Quando mente, leva-nos a pensar que há uma razão para isso. Que está a esconder alguma coisa. Alguma coisa mais do que dois delitos de merda que podia perfeitamente confessar para sair daqui e, assim, esperar em casa que as multas cheguem pelo correio, pagá-las sem que a mulher descubra nada, voltar ao trabalho amanhã, dizer às miúdas, durante a pausa para café, que foi tudo um erro e continuar com a sua vida.

Sebastian calou-se para lhe dar tempo de reflectir. Agora, estava atrás de Silas, mas, apesar de não poder ver a sua cara, teve a sensação de que todo aquele corpo enorme ficara mais tenso enquanto Silas tentava decidir o que fazer de seguida, se Sebastian estava a enganá-lo e, nesse caso, onde queria ele chegar. Virou-se um pouco para o lado e lançou um olhar a Mette, que abanou a cabeça enfaticamente; permaneceu calado durante o que pareceu um minuto, antes de inspirar fundo e, resignado, abanar a cabeça. Sebastian olhou para Vanja, que lhe retribuiu o olhar e fez um sinal quase imperceptível para que continuasse. Estava a funcionar.

— Okay — disse Silas em voz baixa. — Combinei um encontro com a...

— Não, não, não — interrompeu-o Sebastian e esforçou-se por eliminar o sorriso de satisfação extrema do rosto, antes de voltar para o campo de visão de Silas. — O «como» não me interessa, estou-me nas tintas para como se encontraram; eu quero saber porquê.

Sebastian voltou a sentar-se e dirigiu para Silas toda a sua atenção. Por um lado, porque era a primeira coisa que realmente se podia mostrar interessante com aquele homem, por outro, porque aquilo lhe poderia dar uma ideia do tipo de criminoso com que estavam a lidar. Era um conhecimento inestimável para futuros interrogatórios, mais detalhados.

— Porque... não funciona de outra maneira.

— O sexo?

Silas assentiu com a cabeça e baixou os olhos.

— Porque não?

— Não sei, eu... preciso de... de me sentir... sei lá, como se fosse só eu. Que simplesmente... posso fazê-lo. Sem me preocupar com a outra pessoa. — Levantou a cabeça e enfrentou o olhar de Sebastian, procurando tanto compreensão como as palavras adequadas. — Apenas... não sei, foder. À bruta.

— E porque lhe tapa a cara?

— Porque é uma puta... Não quero ter de ver que estou a foder uma puta.

A porta atrás deles abriu-se e Torkel voltou a entrar na sala com um saco de plástico na mão. Sebastian suspirou de modo audível; era o pior momento possível, mas era demasiado tarde para pedir a Torkel que esperasse um momento. Silas endireitou-se na cadeira e o momento de confidências estava terminado. Sebastian devolveu o lugar à mesa a Torkel e reparou que ele parecia mais satisfeito agora do que quando deixara a sala. Fosse o que fosse que tivesse descoberto durante a sua ausência, eram boas notícias.

— Estivemos em sua casa — começou Torkel por dizer ao mesmo tempo que se sentava. Silas saltou da cadeira. Torkel ficou imediatamente em alerta e Vanja também. Silas era grande, enorme. Mette agarrou-o firmemente pelo braço.

— Silas...

— A minha mulher está em casa — sibilou Silas por entre os maxilares cerrados.

— Com o vosso quarto filho, nós sabemos — respondeu Vanja calmamente. — Sente-se.

Silas permaneceu de pé, a olhá-los, furioso e com a respiração pesada. Retirou bruscamente o braço da mão de Mette e sentou-se, inclinando-se para trás, com os braços cruzados sobre o peito enorme.

— O que lhe disseram? — perguntou-lhes.

— Dissemos que precisávamos de revistar a vossa casa — respondeu Torkel objectivamente.

— Disseram porquê? Aquele ali disse que ninguém precisava de saber. — Apontou para Sebastian, e Torkel olhou para Vanja com ar inquiridor. Que raio se passara ali dentro enquanto estivera ausente? Vanja limitou-se a encolher um pouco os ombros e Torkel virou-se novamente para Silas.

— Não, mas sabe o que é que encontrámos no seu escritório?

Torkel pegou no saco que trouxera com ele e começou a colocar o conteúdo em cima da mesa. Em sacos de provas individuais, trazia umas quantas caixas de comprimidos, cem em cada caixa. Metaxon-10. Outros sacos, outras caixas, outros nomes. Pequenas garrafas com líquidos. Por fim, tinham uma pequena farmácia em cima da mesa. Tudo EAA’s. Esteróides androgénicos anabolizantes.

— Isso não é meu.

— Isto também não? — perguntou Torkel, levantando umas quantas seringas. Vanja reconheceu-as, eram do mesmo tipo que a que tinham encontrado no local onde Klara Wahlgren fora atacada. Silas seria mesmo detido, não restava qualquer dúvida. Apesar de agora abanar veementemente a cabeça.

— Um amigo pediu-me para guardar isso durante algum tempo.

— E como se chama esse amigo?

— Isso não vou dizer.

Menos agressivo, menos seguro de si. Sebastian viu um homem que acabava de perceber que o jogo estava perdido.

Utilizaria ele próprio aqueles preparados?

Provavelmente, sim. Não era nada invulgar que os homens tivessem fantasias sexuais sobre dominação e poder. Se Silas tivesse problemas de relacionamento e impotência, o que não era raro quando se tomava esteróides, e uma sensação crescente de não ter a vida sob controlo, talvez tivesse decidido realizar essas fantasias. No entanto, Sebastian ficou com a sensação de que Silas não era homem que levasse as coisas mais longe. Parecia ter conseguido encontrar aquilo que procurava, com Stella. Pela sua breve conversa, Sebastian percebeu que havia um certo sentimento de vergonha envolvido, a ideia de estar a fazer algo de errado. Fazer depois a mesma coisa com uma mulher desconhecida e inconsciente ao ar livre... Claro, era verdade que o abuso de esteróides muitas vezes levava a comportamentos violentos, mas nada nos ataques mostrava sinais de ódio descontrolado, de raiva que passara os limites. Pelo contrário, pareciam clinicamente estudados e levados a cabo.

Não achava que o homem que tinham à frente fosse o autor dos factos que procuravam.

Tinha até esperança de que não fosse esse o caso.

Em parte, porque adorava ter razão, mas, sobretudo, porque assim que o caso estivesse resolvido, não haveria mais nenhuma razão para continuar a ver Vanja. Se não trabalhassem juntos, ela faria os possíveis para que nunca mais se vissem. Ele próprio nunca mais voltaria a fazer parte da Brigada de Homicídios, por isso, aquela era a sua última hipótese, e ainda não terminara.

Como uma manifestação do seu egoísmo, desejou que um violador continuasse à solta pelas ruas.


No dia 16 de Outubro, Axel Weber ficou a saber muita coisa.

Mas também havia muita coisa sobre a qual não fazia a menor ideia.

Continuava, por exemplo, sem saber o que era a Ab Ovo, ou se era sequer alguma coisa. A razão pela qual questionara Ingrid Drüber sobre isso fora o facto de ter encontrado aquela expressão num blogue há muito desactivado, juntamente com o nome dela. Não fazia ideia de quem escrevera o blogue, e a única coisa que lá dizia era que Ingrid era a líder da Ab Ovo e que se podia ler mais sobre aquilo numa ligação do artigo. Porém, quando clicara nela, a única coisa que aparecera fora uma página em branco com a informação «404 error». A página já não existia ou não podia ser encontrada.

Também tinha perguntado aos colegas na redacção — aos que tinham mais conhecimentos informáticos do que ele, e que eram praticamente todos excepto, possivelmente, Harriet — se alguém podia ajudá-lo a reconstruir o documento de alguma maneira, mas ninguém soubera como. No departamento de Informática disseram-lhe que talvez o conseguissem encontrar, embora não tivessem a certeza, porque não dependia deles. Não explicaram de que dependia, e Axel percebeu que aquilo não ia entrar para a lista de assuntos prioritários.

Sabia que Ab Ovo era uma expressão latina, que significava «do ovo» ou algo parecido, e que tinha que ver com poesia épica, com Homero e Helena de Tróia, mas isso não lhe dizia grande coisa.

Também sabia, depois de ter passado horas ao computador a pesquisar sobre praticamente tudo o que acontecera em Uppsala no ano de 2010, nos meses antes de Rebecca lhe ter escrito a carta, que uma mulher grávida fora encontrada a sangrar, à porta das emergências do Hospital Universitário, na noite de 23 de Junho. A mulher, chamada Linda Fors, e o seu filho, que ainda não nascera, morreram na manhã seguinte. Iniciara-se uma investigação policial, mas a conclusão fora que nenhum crime havia sido cometido que pudesse estar relacionado com a sua morte ou com a da criança. Aquele fora, na verdade, o único acontecimento que se destacara do resto das notícias durante aqueles meses, por isso, Axel Weber continuou a investigar.

Quando, várias horas mais tarde, deixou a redacção, não sabia que Derya Neshat, a mulher que conhecera na festa dos cinquenta anos do seu irmão e que fora para casa com ele a seguir e, sempre a rir, jogara flipper com ele durante algumas horas, nesse preciso momento, pegava no telefone e marcava o número do Expressen e pedia à telefonista que transferissem a sua chamada para a extensão de Axel Weber.

— Telefone de Axel Weber. Fala Kajsa Kronberg.

Derya apresentou-se e pediu para falar com Axel, mas ficou a saber que ele acabara de sair da redacção. Poderia Kajsa deixar-lhe algum recado?

— Não, não é preciso, eu volto a ligar — respondeu Derya e, depois de uma despedida rápida, desligou. Arrependeu-se logo. Podia perfeitamente ter deixado uma mensagem, dizer que gostava de se encontrar com ele outra vez ou, melhor ainda, pedir-lhe o número do telemóvel. Durante alguns segundos, ponderou telefonar de novo, mas isso pareceria estranho. Decidiu ligar-lhe de novo no dia seguinte. Então? Não desistiria tão facilmente. Sentiu-se quase ansiosa, agora que decidira ser ela a dar o primeiro passo, sentiu que poderia ter algo bom com Axel Weber.

Quando Weber foi buscar o carro à garagem subterrânea do arranha-céus do jornal diário Dagens Nyheter e virou para o viaduto Kungsholmen, dirigindo-se para norte, ignorava por completo que quase fora contactado por alguém com quem teria podido passar o resto da sua vida.

O que sabia era que estava ansioso por passar aquele tempo no carro. Conduzir relaxava-o. Ainda tinha vários CD no compartimento entre os assentos e lançou um olhar rápido à pequena colecção que praticamente gritava «homem branco de meia-idade»: Rolling Stones, Bruce Springsteen, Neil Young, John Fogerty, Ulf Lundell. Mas não fazia mal, era isso mesmo que ele era. Agarrou num discos e inseriu-o no rádio. Slugger, um hit de Ulf Lundell de 1998. As primeiras notas da canção brotaram dos altifalantes, e Axel aumentou o som e cantou a canção.

O que agora sabia era que Linda Fors era um ano mais velha do que Rebecca Alm e que, mesmo que não tivessem vivido na mesma zona, a igreja de Fugelkyrkan era a que ficava mais próximo das duas. Passara a tarde a tentar descobrir o máximo possível sobre Linda. Precisara de encontrar pessoas que a tivessem conhecido. Descobrir se ela ia à igreja, se conhecera Rebecca, se alguém a ouvira referir Ingrid Drüber e/ou a Ab Ovo. Uma resposta afirmativa a qualquer uma dessas perguntas e teria a sua história. Sentiu instintivamente que podia estar à beira de algo realmente grande.

Em Uppsala, Torkel Höglund voltou para a sua secretária, depois de ter terminado o interrogatório a Silas Franzén, e viu um pequeno post-it com o nome de Axel em cima da mesa. Ainda não lhe telefonara para saber se Weber chegara a descobrir onde tinha ouvido o nome de Rebecca Alm. Não tinham publicado mais nada sobre ela nos jornais, mas isso não queria dizer que Axel tivesse largado a história. Mesmo que nunca lhes fosse contar tudo, Torkel tinha esperança de que partilhasse informação que pudesse ser directamente relevante para o caso. Se tivesse alguma. Que trabalhasse com eles em vez de correrem lado a lado, como se fosse uma competição para chegar à linha da meta. Esperava que Weber simplesmente tivesse aprendido alguma coisa com os acontecimentos anteriores ao Verão. Torkel telefonar-lhe-ia pessoalmente, a perguntar, se se mostrasse que Silas não era o homem que procuravam, o que iam saber já dali a umas horas, quando chegasse um resultado preliminar ao teste de ADN.

Sobre isso, Axel não sabia absolutamente nada, enquanto, a cantar e a tamborilar no volante, se aproximava do seu destino.

Também não sabia que era alérgico às benzodiazepinas e que esse era o princípio activo, por exemplo, do Rohypnol.

Soube que tinha chegado à morada correcta quando o GPS lhe indicou que o seu destino se encontrava do seu lado esquerdo. Estacionou na rua em frente, saiu do carro, trancou-o e dirigiu-se para a casa. Não telefonara a anunciar a sua visita. Esperava que não tivesse sido preciso, que o deixassem entrar, que conseguisse mais algumas peças do puzzle para completar a história. Tinha essa esperança, mas não o sabia com toda a certeza.

Também não sabia que lhe restavam menos de vinte minutos de vida.


SEGUNDA PARTE


27 de Outubro

Ela está sozinha em casa.

Milan conseguiu entrar numa pós-graduação.

Ela estava tão orgulhosa disso no Facebook.

Pensei que não ia ter oportunidade.

Depois de aquele jornalista ter cá vindo.

Quando ele morreu.

Tive a certeza de que a Polícia viria depois disso.

Ingrid, Ida, Therese e Klara é uma coisa.

Elas querem tentar esconder.

Não terem de recordar. Ser normais. Inocentes.

Ida surpreendeu-me.

Mas o jornalista...

Não o podia deixar revelar o que descobriu.

Mas também não o queria matar.

Tu sabes disso.

Mas agora sei que me odiarias.

Odiarias o que eu fiz. Aquilo em quem me tornei.

Custou-me muito. O jornalista.

Completamente inocente.

Mas já passaram onze dias.

E continuo aqui. Ninguém cá vem.

E Therese está sozinha em casa hoje à noite.

Está mais do que na hora de continuar.


Terminaram o dia de trabalho na Sala.

Billy desculpara-se há mais de uma hora, havia qualquer coisa que tinha para tratar, e os outros também já teriam ido para casa se Rosmarie Fredriksson não tivesse insistido em fazer uma actualização. Oficialmente, a Brigada de Homicídios continuava a fazer parte da investigação, tinham contacto diário com Anne-Lie e com Carlos, mas, à excepção de algumas visitas curtas, já não estavam em Uppsala há mais de dez dias. Ali não havia nada que não pudessem fazer nos seus escritórios. Na verdade, não havia nada para fazer. Ponto.

Continuavam basicamente à espera de que algum dos agressores voltasse a atacar, para conseguirem novas provas, novas testemunhas, novas possibilidades. Esperavam que um deles cometesse o seu primeiro erro. Depois do ataque a Klara Wahlgren, há duas semanas, não acontecera mais nada, não tinham recebido outra queixa.

Se tivessem mudado de cidade novamente, a Brigada de Homicídios acabaria por saber. Tinham enviado pormenores sobre as metodologias dos ataques a todos os distritos policiais, e até Ursula tinha sido obrigada a admitir que o saco e a seringa eram suficientemente específicos para nem mesmo à Polícia provincial, menos atenta, poder escapar.

Se, por algum motivo, os ataques tivessem terminado por completo, corriam o grande risco de nunca conseguirem apanhá-los. A menos que fossem apanhados e presos por outro motivo, num outro caso, mais tarde, e um rotineiro teste de ADN acabasse por coincidir. Se assim fosse, seria pura sorte da Polícia.

Ninguém queria isso.

Muito menos Torkel.

A equipa da Brigada de Homicídios tinha uma taxa de sucesso altíssima. Esse era um dos motivos pelos quais Torkel podia gerir o seu departamento sem demasiado envolvimento político interno. Era apenas Rosmarie, a mulher que achava que a definição de trabalho policial de qualidade era cumprir o orçamento, que de vez em quando ficava com a ideia de que devia informar-se acerca das actividades da equipa. E sempre que se tratava de casos muito falados, que a imprensa e, por conseguinte, o chefe nacional da Polícia, queria seguir.

Torkel sabia que ela queria estar informada apenas para projectar uma imagem de envolvimento e interesse para os seus superiores e para fora, ao mesmo tempo que, sem hesitar um segundo, também poria as culpas por eventuais insucessos em cima dele e da sua equipa, se tivesse de o fazer.

Era uma clássica pessoa LBBA.

Lambe-botas ou bota-abaixo.

Só se preocupava com o seu quintal. Mas não havia nada a fazer, era só dar-lhe o que ela queria e precisava. Torkel tinha jeito para lidar com Rosmarie. Claro que, às vezes, se irritava com o facto de ela ter conseguido o lugar e a maneira como o conseguira, mas a situação não melhoraria por se pôr a remoer em coisas que, de qualquer forma, não podia mudar. Portanto, acima de tudo, Torkel sentia alguma pena dela. Todas as suas acções tinham por base a falta de confiança. Não era boa no seu trabalho e estava consciente disso. Só podia estar agradecido por ela ser tão má no jogo político para sequer se tornar uma ameaça real. Naquele dia, porém, não pôde deixar de se irritar com ela quando, mais uma vez, obrigou Ursula a explicar, passo a passo, a forma como analisara as provas técnicas.

Há algumas semanas, antes de Uppsala, antes de Anne-Lie, quando ele e Lise-Lotte já se tinham ido deitar, dissera-lhe que andava a pensar deixar o seu cargo.

Não para se reformar, mas para se afastar um pouco.

Fazer outra coisa.

Algo menos exigente, com horários de escritório e menos viagens.

Para ter mais tempo para ela, para eles os dois enquanto casal. Estava convencida de que o seu trabalho fora uma causa decisiva para o fim dos seus dois casamentos anteriores. Não queria perder Lise-Lotte também.

Lise-Lotte achara que era muito querido da sua parte, mas pedira-lhe para reflectir seriamente sobre o assunto antes de decidir. O ex-marido mudara muita coisa na sua vida, adaptara-se àquilo que pensava que ela queria, àquilo que seria o melhor para os dois. No final, acabara por se perder a ele próprio, desistira de demasiadas coisas e acabara por acusá-la disso.

Torkel não conseguira realmente largar aquilo.

Deixar a Brigada de Homicídios não era necessariamente uma má ideia.

O trabalho ainda era emocionante, interessante e compensador, mas sentia que já não era tão importante e estava no mesmo posto há muitos anos. Se quisesse fazer algo novo, algo diferente, teria de ser agora. Não o faria por ela, não exclusivamente. Ia fazê-lo por eles. Lise-Lotte abrira uma nova porta, dera-lhe a oportunidade de ter uma nova vida, que ele, na verdade, nunca se atrevera a desejar. Porque não mudar mais coisas, mudar tudo? Começar de novo, numa tentativa de construir algo duradouro.

Mas isso fora naquela altura. Antes de Anne-Lie, aos seus olhos, o ter desafiado tão abertamente no seu cargo e ele ter sentido que ela tinha o apoio da sua chefe directa. Agora, esta noite, na Sala, a ideia de sair de cena estava muito longe dos seus pensamentos. Não tinha intenção nenhuma de deixar o seu cargo agora. Não enquanto houvesse a possibilidade de o lugar ir para Anne-Lie Ulander assim que ele fechasse a porta.

Ursula terminou a sua revisão das provas técnicas: o saco, a seringa, o tranquilizante, as pegadas, o ADN, a metodologia, tudo o que tinham, mas nada de novo. O que Rosmarie pareceu não apreciar. Deixou o olhar percorrer o comprimento da mesa para, por fim, o pousar em Torkel.

— Então, o que vão fazer agora? Qual é o próximo passo?

Torkel tossicou e esperou que a voz soasse objectivamente profissional quando respondesse. Tinha mantido Rosmarie continuamente actualizada. Ela sabia que passos tinham dado. Talvez fosse o teórico da conspiração que despertara dentro dele, mas ficou com a sensação de que ela queria ouvi-lo dizer aquilo, porque realmente não parecia que tivessem feito muita coisa.

— Lançámos um novo apelo ao público em geral para que nos dessem testemunhos dos locais em questão, nas datas em questão; voltámos a analisar a informação que recebemos da primeira vez e fomos de novo bater às portas das zonas correspondentes. Até agora, não deu qualquer resultado.

— E este Silas?

Mais uma vez, algo que ela já devia saber. Se tivesse lido a informação que Torkel lhe enviava, o que obviamente não era seguro que fizesse. Ou talvez também só o quisesse ouvir declarar mais um fracasso.

— Completamente excluído. O ADN dele era compatível com um caso de maus-tratos de há uns meses, mas mais nada.

— Por isso, está detido por compra de sexo, infracções muito graves e negligência grosseira no trânsito, delitos com narcóticos e agressões graves — acrescentou Vanja, e Torkel ficou com a sensação de que o fazia por solidariedade para com ele, a equipa, para mostrar avanços, mesmo que não fossem aqueles que mais queriam.

— Mas não pelas violações nem pelo homicídio da Rebecca Alm — constatou Rosmarie.

— Não, ele está detido por compra de sexo, infracções muito graves e negligência grosseira no trânsito, delitos com narcóticos e agressões graves — repetiu Vanja e quase conseguiu ouvir o «tens algum problema de compreensão?» no silêncio que se instalou de seguida.

— Desculpa, também já sei que não sou um polícia a sério — interrompeu Sebastian e fez um gesto intencional com a cabeça para Rosmarie. — Mas não achas que te tínhamos dito, se ele também estivesse detido por violação e homicídio? — Fez-lhe um sorriso desarmante e encantador, que, ao mesmo tempo, lhe chamava estúpida. — É que aí o caso estaria resolvido, tu poderias fazer aquilo que fazes melhor, dar graxa ao chefe e certificar-te de que toda a gente te tira fotografias do melhor ângulo na conferência de imprensa, e nós podíamos estar todos nalgum sítio onde não perdêssemos lenta, mas seguramente, toda a vontade de viver.

Torkel olhou para Sebastian, sentado do outro lado da mesa, ao lado de Ursula. Se não o conhecesse tão bem, poderia pensar que até Sebastian estava a tomar o seu partido, mas o resultado foi tornar Rosmarie ainda mais hostil do que já era.

Tinham discutido se Sebastian deveria sequer continuar a fazer parte da investigação quando se mudaram para Estocolmo. Fora Anne-Lie quem o contratara e que lutara por mantê-lo. Se fosse para ele continuar, então, devia ficar em Uppsala, argumentara Torkel.

Mas isso não acontecera.

No que dizia respeito a Sebastian, parecia que nunca acontecia o que ele queria.

Naquela noite, por exemplo, iria tê-lo em sua casa para jantar.

— Mas com que contribuis, na verdade? — bufou Rosmarie, ansiosa por não se mostrar afectada pela resistência compacta que enfrentou. — Não recebo nenhuma actualização do perfil do autor dos factos há uma semana.

— Há mais de uma semana, acho eu — assentiu Sebastian, em concordância.

— E como é que explicas isso?

Sebastian sabia exactamente como, mas fingiu ter de reflectir. Tentara tornar-se o mais útil possível, mas, uma vez que o trabalho estritamente policial estava mais ou menos parado e que não havia nenhuma nova informação disponível, o perfil que elaborara continuava a ser um primeiro rascunho, bastante vago. Não estava satisfeito mas também não podia fazer muito mais sem novas informações.

— Como é que posso explicar de maneira a que percebas...? — disse-lhe, pensativo, e reforçou a impressão de reflexão profunda ao apertar o queixo entre o indicador e o polegar. — Então é assim: já sabes que se chama «perfil do autor dos factos» e que se faz com base nas suas agressões, ou seja, naquilo que ele comete na realidade. Se não fizer nada, não há nada para analisar e, por conseguinte, nada para actualizar.

— Se ele não tem tarefas para realizar, talvez devesses rever-lhe o contrato — disse Rosmarie a Torkel, claramente decidida a ignorar Sebastian por completo.

— Foi Anne-Lie que insistiu que o queria aqui — respondeu Torkel objectivamente. — Do ponto de vista formal, ele continua a ser subordinado dela e os custos estão alocados a eles, não são nossos. Se queres mudar isso, fala com ela.

O que esperava sinceramente que ela fizesse. Nesse caso, poderia resultar algo de positivo do facto de Sebastian a ter irritado ainda mais. Ela podia ir ter com a sua amiga Anne-Lie e pedir-lhe, como um favor entre amigas, que se desfizesse de Sebastian, e, voilà!, todos os problemas estariam resolvidos.

— Então, tudo o que vocês conseguiram atingir em duas semanas foi uma vistosa perseguição automóvel numa zona de grande densidade populacional — resumiu Rosmarie, aparentemente determinada a ter a última palavra e a que ninguém deixasse a Sala com a sensação de realmente ter feito alguma coisa de útil.

— Isso foi porque dois agentes sob o comando da Ulander não obedeceram às ordens — respondeu Torkel, percebendo que aquilo soara mais a querer atirar as culpas para cima de alguém do que desejara.

Pareceu-lhe que Rosmarie estava prestes a dizer que, apesar de tudo, ele era o responsável máximo, mas deteve-se quando se lembrou de que não era esse o caso. Pela primeira vez, e provavelmente única, Torkel ficou contente com isso.

— Como sabes, eu não sou o responsável máximo pela investigação, por isso, fico um pouco de mãos atadas pelas decisões tomadas a nível local — continuou, para o caso de ter interpretado erradamente a tentativa de a chefe dizer alguma coisa.

Rosmarie lançou um olhar rápido ao papel que tinha à sua frente, mas, aparentemente, não tinha mais nada na sua lista de coisas-irritantes-para-falar-com-a-equipa-da-Brigada de Homicídios, pois levantou-se, agradeceu sucintamente pela reunião, reforçou a importância de a manterem sempre informada e abandonou a sala.

A equipa uniu-se num suspiro colectivo quando ela fechou a porta atrás de si. Os olhares trocados entre eles diziam o suficiente sobre o que cada um achava dos últimos quarenta e cinco minutos; não precisavam de falar sobre o assunto. Em vez disso, Ursula quis confirmar as horas a que deviam estar em casa de Torkel e Lise-Lotte para jantar, e os outros, antes de saírem, juntaram-se a ela para dizer quanto apreciavam o convite.

Quando deixaram a sala, Torkel permaneceu sentado a apreciar a solidão e o silêncio relativo. Porém, não conseguia livrar-se de uma certa sensação de desconforto. Em parte, estava preocupado com a investigação, insatisfeito com o facto de realmente não terem chegado mais longe. Tinham passado duas semanas desde que haviam sido chamados e, naquele momento, não estavam de todo mais próximos de uma detenção do que então. Havia ainda o risco de este se tornar um caso que realmente não seriam capazes de resolver. Por outro lado, também não conseguia deixar de se preocupar com o jantar daquela noite. Por mais incomodado que tivesse ficado com a reunião com Rosmarie, tinha a sensação de que essa não ia ser a pior coisa daquele dia.

Acabaria por provar-se que tinha toda a razão.


Billy estava deitado, nu, meio a dormir, meio a sonhar, se é que isso era possível.

My, Conny, Stella.

Aquelas três pessoas, que ocupavam quase todo o tempo que passava acordado, entravam e saíam do seu consciente numa mistura de memórias e elaborações inconscientes, ao mesmo tempo que ouvia o duche no quarto ao lado e os baixos que saíam dos altifalantes escondidos no outro lado da parede.

Tinha passado o fim-de-semana com My.

A ver casas de férias.

Em três sítios diferentes, onde ela tinha marcado visitas. Três ávidos agentes imobiliários, que os receberam à chegada. Três casas em diferentes estados de conservação e estilos que Billy, na verdade, não estava interessado em ver, apesar de, estranhamente, ainda esperar ser proprietário de uma delas.

Porque isso era o normal.

Ter uma casa de Verão. Não tão longe que não pudessem ir para lá depois do trabalho, à sexta-feira, passar o fim-de-semana. Com amigos. Celebrar o solstício de Verão. Dar uma volta no barco que teriam de comprar, uma vez que todas as casas tinham cais próprio. Fazer pequenos arranjos na casa durante as férias. Decidir se queriam mudar a madeira do terraço ou se esperavam pelo ano seguinte. Cortar a relva. Acender a lareira, quando lá fossem no Outono.

Uma vida normal.

A sua vida. Com My.

Bem longe dos outros dois. Conny e Stella.

Billy telefonara ao pai de Jennifer. Porque era obrigado. Se não o contactasse, Conny acabaria por levar aquilo a outra pessoa, e essa seria a pior alternativa. Billy chegara à conclusão de que o melhor era insinuar que parecia que Conny tinha razão. Que as imagens pareciam ter sido manipuladas. Mas que precisava de mais tempo para poder ter a certeza e ver se havia alguma hipótese de conseguir arranjar provas que os pudessem ajudar a levar o assunto por diante. Conny quase chorara de gratidão e alívio. Billy prometera voltar a contactá-lo em breve.

Isso fora há quatro dias.

Depois de deixar Stella.

O quarto vermelho e tudo o que podia fazer nele. Tudo o que ela o deixava fazer. A primeira vez que a contactara, convencera-se de que seria apenas uma vez. Ia experimentar, mas, independentemente do resultado, nunca mais voltaria a fazê-lo. A única vez seria também a última.

Fizera-lhe mais duas visitas depois disso.

Era como uma droga. Sabia exactamente o que estava a fazer. Como a maioria das pessoas com problemas de dependência, convencia-se de que poderia parar quando quisesse. Mas não precisava de parar. Seria mesmo assim tão perigoso, aquilo que estava a fazer? Sentia-se melhor pessoa, um homem melhor, nos dias a seguir às visitas a Stella. Ficava mais calmo, pensava com mais clareza, ficava mais atento depois de ter esgotado os seus impulsos. Quando a serpente ficava saciada.

A água do duche parou de correr e, do outro lado da parede, ouviu-se o Maneater, dos Hall & Oates, dar a vez a Bon Jovi a cantar You Give Love a Bad Name. Alguém gostava dos seus anos 80, e Billy reparou que a playlist talvez tivesse sido mais deliberada do que pensara no início.

Depois de falar com Conny, tinha verificado cada uma das coisas que publicara nas redes sociais de Jennifer. Examinara-as à lupa. Analisara todos os riscos.

Havia um problema enorme.

Se confirmasse a Conny que as actualizações eram falsificadas, ele iria imediatamente contactar a Polícia, e a palavra de Billy e o facto de Jennifer ter sido uma colega seriam factores determinantes para despertar o interesse e levá-los a abrir uma investigação. A primeira coisa que um polícia perspicaz faria. Que raio, nem precisava de ser particularmente perspicaz, aquilo era rotina — seria localizar os movimentos do telemóvel de Jennifer e todo o seu tráfego, bem como do seu computador. Essa pessoa descobriria rapidamente que Jennifer publicara três imagens de Estocolmo enquanto o seu telemóvel, curiosamente, se encontrava na região de Bohuslän. Em povoações e lugares onde Billy estivera, no mesmo período. Billy, que, definitivamente, tinha conhecimentos suficientes para fazer aquilo que agora se suspeitava que alguém tivesse feito.

Mas em que merda tinha estado a pensar naquela altura?

Sabia bem no que pensara. Fora obrigado a ir ter com My para que ela não começasse a fazer muitas perguntas sobre o que estava a fazer e tivera receio de que uma interrupção de uma semana no feed de Jennifer parecesse suspeito.

Como podia ter sido tão estúpido?

Descuidado.

Contudo, naquele momento, esse era o único problema que Billy via na confirmação das suspeitas de Conny. Mas, por outro lado, era um problema realmente muito grande, que tinha de resolver antes de poder dar mais um passo.

Mais uma razão para se encontrar com Stella. Ela tornava aquele desejo obscuro manejável, sem importância até, de modo que não conseguia concentrar-se. Estar desperto.

— Tens de te ir embora, tenho um novo cliente a chegar.

Gostava mais daquela no Risten, foi a última coisa que lhe passou pela cabeça antes de abrir os olhos e ver Stella ao lado da cama, com o duche acabado de tomar e vestida com um roupão branco. Quando My lhe pedisse que enumerasse as casas que tinham visitado, por ordem de preferência, e ela fá-lo-ia com toda a certeza — estava na hora de avançar, de continuar a procurar se não tivessem gostado de nenhuma daquelas três, ou de marcar uma hora no Banco se alguma delas fosse a escolhida —, seria a casa de madeira vermelha, de pouco mais de sessenta metros quadrados, com o relvado inclinado até ao lago Risten, a que ele julgava ser a sua favorita.

Sentou-se na cama e afastou os últimos resquícios de sono da sua consciência. Depois, levantou-se e começou a vestir-se. Olhou para Stella, que estava sentada em frente ao espelho, num dos cantos do quarto, a aplicar uma maquilhagem discreta. Não conseguia ver se tinha alguma marca no corpo. Tinha sido uma sessão bastante dura.

— Estás bem? — perguntou-lhe enquanto enfiava a T-shirt pela cabeça.

— Não fizeste nada que não tivéssemos combinado antes — respondeu Stella, olhando-o directamente através do espelho. Não era bem uma resposta à sua pergunta, e Billy ponderou como poderia colocá-la de outra maneira, se devia sequer fazê-lo, quando o seu telemóvel tocou. Retirou-o do bolso e olhou para o ecrã. Era My, claro. Deixou-o tocar enquanto levantava a mão, num aceno rápido. Stella acenou-lhe de volta, em silêncio, e continuou a maquilhar-se. Billy deixou o quarto e encaminhou-se a passos largos para a saída. Atendeu quando já estava quase na porta da rua.

— Olá!

— Olá, onde estás? — Não havia nenhuma desconfiança nem ciúme na voz. Apenas uma pergunta casual para saber onde se encontrava.

— Em Uppsala — respondeu Billy honestamente, a caminho do carro.

— Não te esqueceste de que vamos sair hoje, pois não?

— Claro que não, estou a caminho de casa.

— Devíamos levar alguma coisa.

— Okay.

— Passas no supermercado e compras uma garrafa de vinho ou de espumante, ou outra coisa qualquer?

— Claro!

— Óptimo, então, até já.

Billy já estava junto ao carro e viu o seu reflexo na janela lateral. Apercebeu-se de que estava a sorrir. De que estava satisfeito. Não por causa do sítio de onde vinha, mas daquele para onde se dirigia. Pelo que tinha. Uma vida com uma mulher que lhe telefonava a pedir para comprar uma garrafa de vinho antes de irem juntos para um jantar.

— My, olha... — disse-lhe e parou.

— Diz.

— Gostei mais da que fica junto ao Risten. Aquela pequenina, vermelha.

— Eu também. — Billy conseguiu ouvir que ela sorria do outro lado da linha. Imaginou-a já a planear o passo seguinte, sentiu quanto a amava e que tinha de lho dizer.

— Amo-te.

— Eu também te amo. Conduz com cuidado.

E desligou. Billy ficou onde estava, com um sorriso aberto e o telemóvel na mão, como se fosse uma comédia romântica e acabasse de descobrir que ia chegar ao casamento a tempo, apesar de todos os obstáculos e dificuldades.

O problema com Conny ainda estava por resolver, mas lá chegaria.

Venceria tudo.


Nunca se habituara àquilo.

O globo ocular vazio, uma cova escura que entrava pelo interior da cabeça.

Depois de ter lavado a cavidade, pegou numa toalha limpa e secou a face e a zona em redor do olho, que naquele momento estava pousado sobre uma compressa na beira do lavatório. Ouviu Bella dizer qualquer coisa na sala de estar, mas não percebeu, pelo que entreabriu a porta da casa de banho.

— O que disseste?

— Porque é que ainda tens B e M na tua caixa de correio? Nós já não moramos aqui.

— Por nenhuma razão em especial, só ainda não os tirei — respondeu Ursula e iniciou o processo da recolocação do olho. Desinfectou as mãos e calçou umas finas luvas cirúrgicas.

— Mas porquê?

— Porque ainda não me apeteceu.

Concentrou-se em colocar a prótese húmida no sítio, levantando a pálpebra superior, introduzindo-a debaixo dela, puxando a pálpebra inferior ligeiramente para fora e deixando o olho deslizar para a posição correcta. Pestanejou algumas vezes e olhou para o seu reflexo no espelho. Muito melhor.

— Nenhum de nós vai voltar a viver aqui, sabes disso, não sabes?

Como sempre acontecia com Bella, não conseguia perceber ao certo se aquilo era simples conversa de circunstância ou uma forma de a picar. Contudo, naquele momento, estava demasiado bem-disposta para se importar com isso.

— Não me interpretes mal, mas também não quero nenhum de vocês aqui — disse-lhe em tom de brincadeira, para que Bella percebesse que estava a sorrir, mesmo sem a ver.

Saiu da casa de banho e ajustou o vestido verde-escuro sem mangas, que a própria Bella a ajudara a escolher, antes de Ursula sentir que a prótese ocular começara a incomodá-la.

Ficara surpreendida ao ouvir a campainha da porta, pois já não recebia muitas visitas, mas ainda mais surpreendida ficara quando vira que era Bella. A filha ia a uma festa no bairro Söder e queria deixar umas coisas de que iria precisar no dia seguinte em casa de Ursula, onde pensava dormir depois da festa, se não houvesse problema por ela.

Claro que não havia problema.

Era muito bem-vinda.

Bella escolhera o seu apartamento em vez do de Micke e Amanda. Ursula até lhe perguntara mais tarde sobre a razão para isso, enquanto abriam uma garrafa de vinho na cozinha. Bella respondera que, além de a casa de Ursula ter mais espaço e de o seu antigo quarto ainda ali estar, Amanda continuava com muitas náuseas, e Bella não queria acordar, na manhã seguinte, com ela a soluçar e a vomitar. Além disso, andava constantemente de péssimo humor. Bella não a censurava por isso, andar com náuseas o dia todo durante meses tinha de ser uma verdadeira tortura.

— Aquele miúdo nunca vai ter irmãos... ou irmãos mais novos — corrigiu-se.

Ursula permitiu-se sentir uma ligeira satisfação e inveja ao ouvir que, ao menos, Amanda não andava a passear descalça pela casa com chão de tábuas corridas, em roupas leves de linho branco, a irradiar luz, enquanto bebia chás de ervas e acariciava a barriga arredondada, e tudo era maravilhoso como imaginara que seria quando Bella lhe contara que Amanda estava grávida.

— Nada de coisas nojentas agora, tens o olho posto, não tens? — perguntou Bella, colocando uma mão à frente dos olhos, como quando estava à espera de que algo assustador acontecesse num filme, no momento em que Ursula apareceu à porta da sala de estar. Com um sorriso, Ursula abriu bem os olhos e mostrou que estavam os dois no sítio.

— Perdão, mas faz-me mesmo imensa impressão — desculpou-se Bella.

— A mim também — concordou Ursula, que foi para a cozinha, tirou a garrafa de vinho do frigorífico, levou-a para a sala, mostrou-a em tom de pergunta a Bella, que assentiu com a cabeça e lhe estendeu o copo. Ursula encheu os dois copos antes de se sentar na poltrona em frente da sua filha. Ainda tinha algum tempo antes de ter de sair.

— Quem mais vai a esse jantar? — perguntou Bella, sentada no sofá, a bebericar o seu vinho.

— Billy e a mulher, Vanja e o namorado, eu e o Sebastian.

— O Sebastian em casa de quem foste alvejada?

— Sim.

— Foi por causa dele que te mudaste para Estocolmo?

Ursula ficou tensa. Esperara outra pergunta sobre como fora baleada, nunca tinham falado muito sobre o assunto. Mas aquela pergunta? De onde vinha aquilo? Ursula sabia perfeitamente do que Bella estava a falar, mas quando é que a filha fizera aquela ligação? E como? Decidiu rapidamente fazer-se desentendida e ver onde a conversa as levava.

— Quando?

— Quando nos deixaste, a mim e ao pai, quando eu tinha sete anos.

Ursula não ouviu nenhuma acusação na sua voz, apenas uma curiosidade objectiva, uma filha adulta que queria saber mais coisas acerca de um período da sua infância. Na verdade, não havia nada de estranho nisso. Mas Ursula tinha de decidir como ia responder àquilo.

Mentir e ser a que mentia para salvar a própria pele.

Responder honestamente e ser a pessoa que deixava a família para ir viver com outro homem.

Independentemente do que escolhesse, revelar-se-ia uma egoísta. Mas era melhor ter sido assim naquela altura do que sê-lo agora. Devia reconhecer os seus erros, em vez de cometer novos. Talvez houvesse uma saída sem ter de responder. Desviar a atenção, ver o que Bella sabia, adaptar-se à sua conversa.

— Onde foste buscar essa ideia?

— Falei com a Barbro.

Mais uma coisa que Ursula não esperara. De todo, na verdade. Estava convencida de que fora Micke quem lhe contara. Provavelmente, ele sabia mais do que dava a entender. Sempre soubera. Mas a Barbro... Ursula conhecia apenas uma Barbro, por isso, não podia ser outra pessoa, mas, ainda assim, queria ter a certeza.

— A minha irmã?

— Sim.

Ursula não pensava em Barbro há muitos anos, não soubera nada dela desde a tarde em que a confrontara e destruíra o seu casamento.

— Porque falaste com ela? — O tom de voz mais frio e acusador do que pretendera revelou claramente o que pensava da sua irmã mas também o que achava do facto de a sua filha ter falado com ela.

— Ligou-nos quando foste alvejada. Queria saber como estavas, estava preocupada contigo.

Ursula soprou como se não acreditasse em nada naquilo.

— Só devia querer saber se eu ia morrer.

— Isso não sei... Mas prometi-lhe que não te ia contar que tinha falado com ela.

— Mas agora contaste.

— Foste tu que quiseste que eu te contasse coisas.

Ursula assentiu em silêncio. Era verdade. Ficou com a sensação de que fora a sua mão estendida e a ida ao pub em Uppsala, umas semanas antes, que fizera com que, naquele momento, Bella estivesse sentada no seu sofá. Um princípio, uma oportunidade para um novo começo. Não queria, de maneira nenhuma, estragá-lo por parecer ingrata.

— Então e sou só eu ou tu também vais contar-me coisas? — quis Bella saber. Bebeu mais um pouco de vinho, olhando-a, expectante, por cima do copo. Ursula inspirou fundo, como se estivesse literalmente prestes a submergir em águas profundas.

— O Sebastian foi uma das razões para eu me ter mudado, sim. Mas também queria mudar de emprego e a Brigada de Homicídios era muito mais excitante e melhor do que o meu antigo trabalho na Federação de Municípios e Distritos Regionais — reconheceu Ursula.

— Mais excitante e melhor do que nós?

Uma argumentação ligeiramente simplista e injusta, achou Ursula, mas decidiu repetir a receita de sucesso anterior: não ser conflituosa, não procurar discussões. Fazer tudo para que a conversa continuasse agradável.

— Nós ainda falámos em mudar a família toda, mas o Micke não quis. Na verdade, foi ele que sugeriu que vivêssemos separados durante algum tempo.

— Mas não falaram comigo.

— Eras demasiado pequena.

— Se te tivesse pedido para ficar, achas que tinhas ficado?

— Nunca me pediste.

— Mas se tivesse pedido...?

Era uma pergunta hipotética. No caso de... Só podia especular. O facto era que Bella nunca lhe pedira para não ir. Tinha ficado triste, obviamente, mas também expressara de forma muito clara que lhe parecia ser o progenitor correcto que se mudava. Já então, existia uma barreira emocional entre elas. Uma distância que agora Ursula tinha a oportunidade de reduzir, pelo menos, um pouco.

— Não sei. Provavelmente, não.

Bella limitou-se a assentir com a cabeça. Parecia satisfeita com a resposta. Não era uma surpresa que Ursula pusesse as suas próprias necessidades, a sua própria vontade, à frente das dela durante a sua infância, mas ao menos agora estava a ser sincera em relação a isso.

— O que aconteceu contigo e com a Barbro? — perguntou Bella, mudando o rumo da conversa.

— Ela não te disse?

— Não.

— Então, o que te disse?

Bella inspirou fundo, pousou o copo de vinho e sentou-se direita no sofá.

— Ela telefonou-me, perguntou o que tinha acontecido, eu disse-lhe que alguém te tinha dado um tiro em casa de um tal Sebastian, ela perguntou «aquele Sebastian?», e eu não sabia a quem se referia, ela respondeu «aquele por quem ela se mudou para Estocolmo», e eu respondi que não sabia, ela disse «então, deve ser ele» e depois voltou a perguntar como é que tu estavas e não falámos mais disso.

Silêncio.

Um novo olhar expectante de Bella.

Ursula reflectiu. Que tinha realmente a perder se contasse? Nada, foi a conclusão a que chegou. Nessa parte da história, era mesmo ela a vítima.

— Ela foi para a cama com ele. Ou melhor, ele foi para a cama com ela, naquele Outono em que voltei outra vez para Linköping, quando o teu pai estava doente.

— Quando ele voltou a beber, queres tu dizer.

Ursula estava tão habituada a defender Micke, a arranjar desculpas, a protegê-lo, estava-lhe no sangue. Esquecia-se de que Bella já há muito tempo percebera que, durante a sua infância, o pai tivera problemas com o álcool. Limitou-se a assentir com a cabeça.

— Eu não amava o Michael, provavelmente nunca o amei, mas amei o Sebastian.

— Acabaste de dizer que não foi por causa dele que saíste de casa.

— E não foi, não foi só por ele. Comecei a amá-lo em Estocolmo. Quando começámos a passar mais tempo juntos... Mas ele depois foi para a cama com a Barbro.

Fez-se novo silêncio na sala. Era a primeira vez que conversavam como tinham feito nos últimos minutos, o que revelava muitas coisas sobre a sua mãe. Era quase avassalador. Havia, certamente, mais coisas para dizer. Muito mais. Sobre a sua infância, sobre Micke, as escolhas que Ursula fizera, a sua relação com Sebastian, com quem agora, depois de tantos anos, trabalhava outra vez. Mas teriam tempo para isso.

— E agora vão a um jantar juntos — constatou Bella.

— Sim, agora vamos a um jantar juntos.

Parecia-lhes um bom momento para terminar a conversa.

Ursula lançou um olhar rápido ao relógio, levantou-se, pegou no seu copo de vinho, foi à cozinha e colocou-o no lava-loiça. Bella ficou sentada no sofá. A festa só começava dali a algumas horas. Ursula telefonou a pedir um táxi, vestiu o casaco, confirmou que tinha tudo o que precisava e soltou um «até logo» para o interior do apartamento. Bella apareceu no hall de entrada.

— Vemo-nos amanhã, então — disse e abraçou a mãe.

Se Ursula bem se lembrava, aquilo nunca acontecera antes.

Sentiu que poderia facilmente habituar-se àquilo.


— Olá, entra.

Torkel afastou-se para o lado e deixou Sebastian entrar no apartamento.

«Está com ar de quem queria que a noite já tivesse terminado», pensou Sebastian enquanto despia o casaco e o pendurava no cabide.

— Sou o primeiro a chegar?

— Sim.

Lise-Lotte saiu da cozinha, cumprimentou-o e comentou quão satisfeita estava por finalmente o conhecer. Ouvira falar tanto dele. «O que não pode ser coisa boa», pensou Sebastian.

— Então, tu és a razão para o Torkel parecer tão feliz ultimamente — disse, estendendo-lhe as flores que comprara no caminho.

— Espero que sim!

— Tenho a certeza — respondeu Sebastian com um sorriso.

— Queres tomar alguma coisa?

— Qualquer coisa sem álcool, obrigado.

— Cerveja sem álcool?

— Perfeito, obrigado.

Torkel ficara de pé ao seu lado, a observá-lo. Sebastian Bergman. A comportar-se como uma pessoa normal. Era fácil esquecer quão manipulador e charmoso conseguia ser quando realmente queria. Torkel calculou que deveria sentir-se contente por ele, pelo menos, por estar a fazer um pequeno esforço. Foram para a sala de estar. Sebastian deteve-se a olhar em volta.

— Eu nunca estive aqui, pois não?

— Sabes bem que não.

— Gira, a casa. Confortável. Há quanto tempo vives aqui?

— Desde o divórcio da Yvonne.

Sebastian assentiu com a cabeça, aparentemente interessado, e voltou a olhar à sua volta, dando depois alguns passos até à estante mais próxima.

— São as tuas filhas? — perguntou Sebastian com um gesto da cabeça para uma fotografia de Vilma e Elin. Pegou nela e analisou-a melhor.

Manteve-se fiel ao que planeara.

Conversa de circunstância sobre coisas sem importância.

Coisas que um homem sem graça e sem imaginação como Torkel poderia apreciar. Porque, mesmo que conseguisse convencer Vanja a, pelo menos, tolerar a sua presença, isso não seria suficiente para poder ficar na Brigada de Homicídios. Para isso, precisava de Torkel.

— Estão enormes, elas.

— O que estás a fazer? — perguntou-lhe Torkel, tirando-lhe a moldura com a fotografia das filhas e voltando a colocá-la na prateleira.

— O que foi?

— O que queres? As únicas vezes em que tentas comportar-te como uma pessoa normal é quando queres alguma coisa.

Okay, talvez tivesse exagerado ligeiramente, mas, se bem conhecia Torkel, o melhor era seguir em frente, em vez de recuar.

— Quero... quero uma parte da minha antiga vida. — Calou-se como se precisasse de procurar as palavras certas. — Reaproximei-me da Ursula, como sabes, e apercebi-me de que... de que estive muito, muito sozinho nos últimos anos. E nós os dois fomos amigos, em tempos.

Torkel observou-o em silêncio e Sebastian contemplou-o com o olhar mais sincero e aberto que conseguiu. Seria demasiado? Demasiado rápido? Era melhor esperar por uma resposta e adaptar-se a ela.

Não teve tempo de obter nenhuma antes de tocarem à campainha. Torkel foi abrir, ao mesmo tempo que Lise-Lotte entrava na sala e lhe estendia um copo de cerveja. Um minuto depois, entrou Ursula. Deteve-se por um instante quando percebeu que apenas Sebastian ali estava. Devia contar-lhe que acabara de falar nele? Que fizera uma pequena viagem a memórias passadas? De que serviria isso? Ele não dedicara um único pensamento ao que acontecera desde que acontecera, disso estava certa. Nunca lhe pediria desculpa. Nem tinha a certeza se ele se recordava que essa fora a razão para ela o ter odiado durante tantos anos.

Lise-Lotte deixou Sebastian e aproximou-se dela para a cumprimentar.

— Mas nós já nos conhecemos — disse ao apertar a mão estendida de Ursula.

— Pois já, é verdade — respondeu Ursula com um sorriso. Já dessa vez, quando Lise-Lotte acabara de acordar e estava sem maquilhagem, Ursula reparara como era bonita. Agora, com o cabelo arranjado, uma maquilhagem discreta e um simples vestido Karen Millen, estava absolutamente deslumbrante.

Ursula perguntou se podia ajudar Lise-Lotte com alguma coisa na cozinha, mas a maior parte do jantar já estava pronto. Tinha preparado quase tudo na véspera e tinha feito o resto quando chegara a casa naquela mesma tarde. Ursula queria beber alguma coisa? Vinho tinto, branco, cerveja, água com gás, coca-cola?

— Um copo de vinho branco, por favor — respondeu Ursula, e observou Lise-Lotte a caminho da cozinha. Claro que também era uma anfitriã perfeita. Foi ter com Sebastian; sentiu os efeitos de já ter bebido dois copos de vinho, tinha de ter algum cuidado.

— Que lindo vestido — disse-lhe Sebastian.

— Obrigada.

— O teu Tinder date também vem?

— Ele não é um Tinder date, e não, não vem. Só nos encontrámos uma vez.

— Um dia, levei uma mulher que tinha acabado de conhecer no metropolitano a uma festa de lançamento.

— Não me surpreende nada. Infelizmente.

Voltaram a ouvir a campainha da porta e, em pouco tempo, chegaram Vanja e Jonathan. Entraram, cumprimentaram e foram cumprimentados, ofereceram-lhes uma bebida. Vanja absteve-se de beber álcool. Era ela que conduzia, explicou. A verdade era que não tinha a certeza se estaria grávida ou não. Se não estivesse, não era certamente por falta de tentativas. Na verdade, era por isso que estavam um pouco atrasados.

Cumprimentaram Sebastian, que apertou a mão de Jonathan e se apresentou com o primeiro e o último nome. Nem uma palavra sobre já se conhecerem. Esta era a ocasião perfeita para mostrar uma nova, e melhor, faceta de si próprio. Numa noite daquelas, Vanja certamente não lhe podia exigir que só falassem de trabalho. Principalmente, porque Torkel e Lise-Lotte lhes pediram que mantivessem a conversa profissional reduzida ao mínimo, por deferência aos acompanhantes de cada um. O que era perfeito para Sebastian. Uma vez que Torkel e Lise-Lotte tinham de dividir a sua atenção entre os convidados e a cozinha, na prática, só sobravam eles os quatro.

Tinha de continuar a seguir o seu plano.

Esforçar-se.

Falar sobre coisas sem importância.

My e Billy foram os últimos a chegar e tudo se repetiu na íntegra uma última vez: despir os casacos, entrar, cumprimentar, beber alguma coisa.

— Desculpem o atraso, mas o Billy estava em Uppsala — desculpou-se My depois de se cumprimentarem.

— O que estavas lá a fazer? — perguntou Sebastian num tom educado.

— Tinha só umas coisas para confirmar.

— Que coisas?

— Agora vamos parar de falar de trabalho — interrompeu-os Lise-Lotte com um sorriso. — Podem vir para a mesa, já está tudo pronto.

Começaram todos a movimentar-se na direcção da cozinha. Sebastian ficou a olhar para Billy. Ele próprio também passara a maior parte do dia em Uppsala, a trabalhar. Não tinha visto Billy na sede da Polícia, nem Anne-Lie nem Carlos tinham dito nada acerca de um encontro com ele.

— Não há lugares marcados — disse Lise-Lotte quando todos entraram na cozinha, onde a mesa estava posta para oito pessoas.

Sebastian olhou para Vanja, que estava claramente à espera de que ele se sentasse primeiro, para poder escolher o lugar mais distante possível dele.

O jantar começou.

Crepes de couve-flor gratinados com parmesão.

O vinho foi servido. As conversas começaram. Jonathan, Lise-Lotte e My receberam a maior parte da atenção e do interesse. Novas histórias, novas experiências, novas profissões, e, por conhecerem as facetas mais pessoais de três pessoas da equipa, descobriram novos pontos de vista e fizeram algumas descobertas sobre os velhos companheiros de trabalho.

Bacalhau fresco com molho de camarão e batatas novas com molho de endro.

Ao chegar o prato principal, Sebastian deu por si a sentir-se realmente bem. Os temas de conversa fluíam com naturalidade entre todos. Trabalho, música, séries de televisão, cidades de origem, rumores, política. Na companhia de todos, até Vanja parecia mais descontraída na presença dele.

No dia seguinte, seria ainda melhor.

Tinha falado com Valdemar, tinham combinado um encontro. Sim, Valdemar sabia perfeitamente quem ele era, claro, um colega que trabalhava com a sua filha (ainda lhe chamava assim), mas nunca, durante toda a conversa, mencionara a paternidade, por isso, Sebastian presumiu que ele, pura e simplesmente, não sabia de nada, que Vanja nunca lhe contara.

Sebastian dissera-lhe que era exactamente de Vanja que se tratava, que tinha a impressão de que lhe faltava alguma coisa e que essa «coisa» era Valdemar. Quando ouvira dizer que Vanja sentia a sua falta, parecera-lhe que Valdemar ia começar a chorar. Não era preciso muito para o convencer de que devia concordar com uma visita surpresa. Se ela soubesse que ia acontecer, se lhe perguntassem, apenas encontraria motivos para não o fazer.

Manter o status quo era sempre o mais simples.

As mudanças é que eram difíceis.

Mudanças e reconciliações.

Musse de limão, maracujá e crumble de bolachas de aveia torradas.

A seguir à sobremesa, todos agradeceram, excedendo-se em elogios pela qualidade do jantar. Ursula insistiu em ajudar na cozinha. Lise-Lotte queria que deixassem tudo ficar como estava, porque ela e Torkel poderiam arrumar no dia seguinte. Fizeram como Ursula queria. Os outros foram para a sala de estar. Sebastian não conseguia recordar-se da última vez que estivera num contexto social daqueles sem tentar encontrar alguém com quem ir para a cama. Apenas conversar com diferentes pessoas. Tinha de ter sido com Lily, a última vez. Há muito tempo. Olhou em volta para a sala.

Jonathan e Billy estavam sentados, com as cabeças praticamente coladas, a discutir um assunto em que Sebastian nem sequer tencionava fingir que estava interessado. Vanja não estava presente, talvez estivesse na cozinha. Talvez tivesse a oportunidade de falar um pouco com ela. Estava a ser uma noite agradável, até ela parecia estar a divertir-se. A caminho da cozinha passou por My, que acabava de interpelar Torkel.

— Posso perguntar-te uma coisa? — ouviu My perguntar. Sebastian abrandou o passo, manteve-se por perto, particularmente interessado, uma vez que dizia respeito a Billy.

— Claro que sim.

— Em Novembro, se não acontecer nada de especial — continuou My —, achas que vocês podem dispensar o Billy durante uma semana?

— Logo se vê, é difícil dizer agora. Porquê?

— Estávamos a pensar fazer uma viagem. Umas pequenas férias.

— Logo se vê, como disse. Ele ainda tem dias de férias?

— Sim, ele trabalhou uma semana a mais, depois do feriado do solstício de Verão.

— Ai foi?

— Sim, ele só foi ter comigo a Bohuslän no início de Julho.

— Okay — disse Torkel e assentiu com a cabeça para si próprio. — Vou confirmar.

Nada naquela conversa interessou Sebastian e pareceu-lhe que também não a iam levar adiante. Continuou a dirigir-se para a cozinha, onde Ursula e Lise-Lotte estavam a limpar os últimos pratos. Vanja também não estava ali. Talvez estivesse na casa de banho, mas não podia ficar à porta à sua espera só para poder falar com ela. Lise-Lotte virou-se quando ele entrou na cozinha e puxou uma cadeira.

— Queres mais alguma coisa, Sebastian?

— Não, obrigado, estou bem. Estava tudo óptimo, e presumo que nada disto tenha sido graças ao Torkel.

— Ele ajudou!

— Ai foi? Então, olha, apesar disso, estava tudo óptimo — respondeu Sebastian com um sorriso amistoso. — Esta foi uma excelente iniciativa. Foi bom poder conhecer-te.

— Também é bom poder conhecer-vos a todos, oiço falar de vocês desde que nos juntámos.

— Então, vamos esperar que possamos repeti-la mais vezes.

Ursula lançou-lhe um olhar como se precisasse de se convencer a si própria de que, de facto, estava a ouvir bem. Estaria Sebastian ali sentado a flirtar com Lise-Lotte?

Atencioso, educado, brincalhão.

Sebastian nunca se comportava assim, a não ser que quisesse alguma coisa, e, quando queria alguma coisa, era sempre o mesmo: levar alguém para a cama. Porém, nem mesmo a sua versão mais autodestrutiva poderia seriamente estar a tentar engatar o novo amor de Torkel. Ou seria algum jogo psicológico para a levar a sentir ciúmes? Sentir a falta dele. «Olha aqui, Ursula, o homem tão interessante que estás a perder...»

— E logo vocês as duas acabarem aqui juntas, sozinhas — ouviu-o dizer e apercebeu-se de imediato que a conversa estava a tomar um rumo que acabaria por tornar o eventual flirt um problema menor. — Nem toda a gente teria estômago para isso.

O sorriso de Lise-Lotte gelou numa expressão de incompreensão.

— O quê? Porque dizes isso?

— Sebastian... — disse Ursula num tom suave, para desviar a atenção. Teve o efeito contrário. Lise-Lotte olhou de Sebastian para Ursula, com uma ruga de dúvida na testa, que se afundou quando olhou de novo para Sebastian, que permanecera em silêncio. A percepção de que Torkel não contara a Lise-Lotte sobre Ursula acabava de o atingir.

— Porque não havíamos de conseguir estar juntas? — Lise-Lotte repetiu a pergunta num tom que indiciava que, de certa maneira, já adivinhara a resposta. Contudo, o olhar que dirigiu a Sebastian dizia-lhe que, ainda assim, queria ouvi-la.

— Porque... porque... — começou por dizer, sentindo-se como um aluno que acabava de ser chamado ao seu gabinete de reitora. Ele nem sequer quisera tentar estragar nada, para ninguém, certamente não para si próprio, só queria parecer simpático. Se Lise-Lotte gostasse dele, era mais provável que Torkel o aceitasse de volta. Tentou encontrar uma boa resposta, mas a sua mente estava em branco. Ele, que até a dormir conseguia mentir. Mas tinha de dizer alguma coisa.

— Okay, eu não queria mesmo... Pensei que ele te tinha contado...

— Contado o quê?

— Sebastian... — repetiu Ursula, como se parar de falar fosse uma alternativa para sair daquela situação.

— Contado o quê? — perguntou Lise-Lotte novamente, com uma certa raiva subjacente na voz.

— Torkel e Ursula... tinham... alguma coisa...

— Qual coisa?

— Tu sabes, uma coisa — disse Sebastian, encolhendo um pouco os ombros. A situação já era suficientemente má sem ter de entrar em detalhes.

— Há quanto tempo?

— Não sei. — Olhou para Ursula em busca de algum apoio. — Há pouco mais de meio ano, talvez um pouco mais...

Um ou dois meses antes de a conhecer, portanto. Lise-Lotte ficou a assimilar a informação em silêncio, quebrado apenas pela entrada de Torkel na cozinha.

— Ulander telefonou, temos de ir. Ele voltou a atacar.


A pequena sala de espera era iluminada por focos de luz suave, os móveis e têxteis em tons de verde e amarelo. As cores que a maior parte das pessoas associavam a algo tranquilo, relaxante, quente e confortável. Um aquário ao longo de uma das paredes, grandes plantas verdes e revistas espalhadas sobre a mesa que havia entre o sofá amarelo e as poltronas verdes. Ouvia-se uma música instrumental a fluir, baixo, dos altifalantes embutidos. Parecia que algum arquitecto de interiores tinha realmente estudado bem a lição sobre como as cores e o ambiente influenciam os pacientes.

Therese estava sentada no sofá, vestida com uma sweatshirt macia e um par de calças cinzentas de fato-de-treino. Tinha os calcanhares em cima do sofá e estava abraçada aos joelhos, como se quisesse parecer mais pequena ou desaparecer. Tinha os olhos vermelhos de chorar, uma parte do cabelo escuro preso num rabo-de-cavalo e a restante pendurada num lado da cabeça.

— Fui sair com amigos, regressei a casa por volta das dez e meia — disse tão baixinho, que Anne-Lie teve de se inclinar para a frente para conseguir ouvi-la. — Telefonei a um Carro Seguro.

— O que é isso?

— É como um táxi, mas para raparigas sozinhas. É grátis. Começou como uma coisa para estudantes...

Anne-Lie assentiu com a cabeça. Recordava-se de ter lido algo sobre aquilo, há umas semanas atrás. Que a procura dos serviços, infelizmente, tinha aumentado substancialmente nos últimos tempos.

— Quando chamou esse carro...

— Sim?

— ... disse que estava sozinha em casa?

Uma vez que o assaltante estivera à sua espera, quando chegara a casa, Anne-Lie quis tentar perceber se alguém sabia que a casa estava vazia. Uns anos antes, tinham desmantelado um grupo de assaltantes em Gotemburgo, no qual vários motoristas de táxi estavam envolvidos. Informavam os três indivíduos que cometiam os roubos sempre que recebiam pedidos de viagens para o aeroporto internacional e as casas onde apanhavam os passageiros pareciam ficar vazias. Nalguns casos, até tinham feito conversa de circunstância com os clientes, para tentarem perceber quanto tempo as pessoas iam estar fora. No caso de Therese, a margem de tempo era consideravelmente mais pequena, obviamente, mas não era impossível.

— Não, não disse nada — respondeu Therese.

— Tem a certeza?

— Tenho.

Ainda assim, Anne-Lie tomou nota. Uma empresa de táxis que levava mulheres sozinhas, à noite, para casa. Valia a pena dar uma vista de olhos com mais atenção.

A porta da pequena sala de espera abriu-se, e Gabriella, a irmã mais nova de Therese, regressou. Trazia na mão uma chávena de chá quente, que colocou na mesa em frente a Therese antes de se sentar ao seu lado no sofá.

— Consegui falar com o Milan. Ele está de regresso, deve chegar a casa daqui a umas horas.

Therese limitou-se a agradecer à irmã com um aceno de cabeça e ficou sentada, abraçada às pernas, sem dar qualquer sinal de que ia pegar na chávena com a bebida quente. Gabriella pegou-lhe na mão e apertou-a.

— Milan está fora, a fazer um curso — disse a Anne-Lie em tom de explicação.

— E quem sabia disso? Que estava sozinha?

Gabriella olhou para a irmã, era algo a que tinha de ser ela a responder.

— Os nossos amigos, as pessoas do seu trabalho, os nossos pais... — Therese olhou para a irmã, tanto para buscar apoio como para perguntar se se lembraria de mais alguém. Gabriella ficou em silêncio.

— Escreveu alguma coisa sobre isso nalguma rede social? — perguntou Anne-Lie. Não queria, de modo algum, dar motivos a Therese para se culparbilizar. O mais importante a perceber em relação a crimes sexuais era que o atacante é que era o responsável, apenas ele. Mas precisava de saber se estavam à procura de um homem que talvez estivesse mais próximo das vítimas do que tinham pensado ou se a informação de que ele precisava para realizar os ataques estava disponível quando simplesmente se entrasse num computador. O facto de a ter atacado dentro de casa, de ter esperado por ela no seu apartamento apontava para que tivesse contado que estivesse sozinha em casa.

— Sim, escrevi sobre isso no Facebook — admitiu Therese.

— E Milan publicou fotografias no Instagram desde ontem à noite — acrescentou Gabriella.

— Falámos sobre isso — disse Therese, aos soluços e, pela primeira vez desde que entrara na sala, olhou Anne-Lie nos olhos. — Sobre ele ir-se embora tão cedo depois... bem, sabem do que estou a falar. Da primeira vez.

A voz tornou-se trémula e as lágrimas inundaram-lhe os olhos. Gabriella colocou um braço em volta dos seus ombros e abraçou-a.

— Eu disse-lhe que não havia problema. Não podíamos deixar aquilo afectar-nos tanto. Só queria esquecer o que tinha acontecido e continuar a viver normalmente, como dantes.

Era uma atitude admirável, mas Anne-Lie sabia muito bem que a maioria das pessoas que passavam pela mesma experiência que Therese tinham sérias dificuldades em seguir em frente e atirar o sucedido para trás das costas. Todas ficavam extremamente afectadas pelos ataques, mesmo que as reacções e as alturas em que se evidenciavam fossem bastante diferentes. Depressão, sentimentos de culpa, dificuldades em dormir, ansiedade, automutilação, até mesmo pensamentos suicidas. Todas as pessoas reagiam de modo diferente. Imediatamente a seguir, ou poderia ser algo a desencadear uma reacção vários anos depois do ataque. Havia muito poucas pessoas que realmente conseguiam seguir em frente como se nada tivesse acontecido.

— Não percebo... Porque é que isto me aconteceu a mim outra vez? — perguntou Therese, mais para si própria do que para alguém em particular.

— Não sei. — Anne-Lie sentiu verdadeira compaixão por ela. Se Therese, com maior ou menor sucesso, tinha conseguido reprimir o que lhe acontecera da primeira vez, agora, isso seria imensamente difícil, se não mesmo impossível. Até mesmo quando o tivessem apanhado, seria difícil para Therese cicatrizar.

Anne-Lie odiava aqueles homens.

Tinham de os apanhar.

— Tem alguma ideia da razão pela qual alguém poderia querer que isto lhe acontecesse? — perguntou calmamente, mais uma vez a esforçar-se para evitar qualquer laivo de dúvida em Therese, para que ela não se culpasse de maneira nenhuma. Contudo, Therese apenas abanou a cabeça devagar.

O telemóvel de Anne-Lie vibrou e ela olhou para o ecrã. A equipa da Brigada de Homicídios tinha chegado.

— Precisamos de voltar a falar consigo sobre isto, mas não agora. — Anne-Lie fechou o bloco de notas e levantou-se. Inclinou-se para a frente e agarrou suavemente o antebraço de Therese. — Tem de ficar muito atenta como à forma que se sente daqui para a frente. Prometa-me.

Therese assentiu com a cabeça, as lágrimas a correr em silêncio. Anne-Lie virou-se para a irmã.

— Tome conta dela.

Gabriella também assentiu com a cabeça e abraçou a irmã com mais força.

Torkel, Vanja e Sebastian estavam à espera num corredor vazio. Sebastian sentado em cima de uma maca de hospital a balançar as pernas. Vanja de um lado para o outro, com alguma impaciência, enquanto Torkel encontrara uma cadeira e uma revista chamada Diário de Pesca, na qual fingia estar interessado. Nenhum deles dizia nada.

Tinham ido para Uppsala em dois carros. No de Torkel e no de Billy. Vanja e Billy conduziram, uma vez que Torkel e Ursula tinham bebido álcool ao jantar. Torkel menos do que Ursula, mas o suficiente para não querer sentar-se ao volante. Sebastian insistira em ir no mesmo carro que Torkel. Tinha de poder explicar-se, tentar redimir-se. Torkel acabara por concordar, sobretudo porque era o mais simples. Ursula e Billy iriam directamente para o local do crime, por isso, era lógico que fossem no mesmo carro e que ele, Vanja e Sebastian, que iriam directamente para o hospital, fossem noutro. Mal tinham deixado Kungsholmen e já Sebastian, honesta e frontalmente, lhe pedia desculpas.

— Pensei mesmo que lhe tivesses contado — disse Sebastian, sentado no lugar do meio do banco de trás. — Vocês trabalham juntos todos os dias.

— Exactamente por isso — respondeu Torkel com brusquidão.

Vanja decidira manter-se fora da discussão. Ela também pensara que Torkel teria contado a Lise-Lotte que ele e Ursula tinham uma história em comum. Era obrigada a concordar com Sebastian nesse ponto. Quem não conta que trabalha todos os dias com um ex? Contudo, não tencionava partilhar nada disso com os demais. Concentrou-se em tentar acompanhar Billy quando entraram na auto-estrada e se dirigiram para norte.

— Garanto-te que não estava a tentar estragar nada. Posso perfeitamente explicar isso à Lise-Lotte, se quiseres.

— Não, não quero.

— Pergunta à Ursula — tentou Sebastian. Era importante que Torkel acreditasse nele, que não passasse a sua imagem habitual de cabrão. Principalmente, com Vanja no carro. — Ela estava lá, ela sabe que eu não disse aquilo com segundas intenções, foi um erro.

— Convidar-te para jantar é que foi um erro — respondeu Torkel, entredentes, do lugar da frente, e não falaram mais daquilo durante o resto do caminho. Não falaram de todo.

Nem quando estacionaram.

Nem quando entraram no hospital e lhes indicaram o sítio onde podiam aguardar.

Nem no corredor enquanto esperavam por Anne-Lie, que agora se aproximava deles.

— São só vocês os três? — perguntou-lhes quando chegou.

—Ursula e Billy foram directos para o apartamento — respondeu Torkel, pousando a revista de pesca e levantando-se.

— O Carlos já lá está — informou Anne-Lie.

— Óptimo, ele que se mantenha no comando, nós estivemos num jantar e a Ursula bebeu uns copos de vinho.

— Então, porque a trouxeste? — Anne-Lie mostrou-se completamente incrédula. Porquê? Na verdade, nunca passara pela cabeça de Torkel que Ursula não fosse com eles. Ela não estava bêbeda, sabia o que podia e não podia fazer, como se devia comportar. Mas Torkel arrependeu-se imediatamente de ter dito aquilo. Pressentiu que a próxima vez que ouvisse falar de colegas sob o efeito de álcool e o que ele, sendo o chefe, pensava disso, seria Rosmarie a puxar a conversa. Decidiu não mencionar que ele próprio também bebera duas cervejas ao longo da noite.

— O que é que ela vos contou? — perguntou-lhe em vez de responder, desviando a conversa.

— Chegou a casa pelas dez e quarenta e cinco. Alguém estava à sua espera no apartamento, aproximou-se dela por trás e sedou-a. Acordou com o saco por cima da cabeça. Violação consumada outra vez. O exame médico confirmou vestígios de esperma.

— Coitada da mulher. Como está? — perguntou Vanja.

— Fisicamente, fizeram-lhe exames de despistagtem a doenças sexualmente transmissíveis e deram-lhe uma pílula do dia seguinte. Tinha sido vacinada contra a hepatite B da outra vez. Psicologicamente, não está nada bem e é provável que piore.

— Mas ela vive com uma pessoa — acrescentou Torkel, voltando a dirigir a conversa para a investigação. — Como sabia ele que estava sozinha?

— Pelas redes sociais. Se não a conhecia pessoalmente, claro.

Sebastian assentiu com a cabeça, desanimado. Não era a primeira vez. Nunca deixava de se surpreender com a quantidade de informação que as pessoas disponibilizavam voluntariamente sobre si próprias, informação essa que as deixava mais expostas e vulneráveis.

— Ela foi para casa num dos Carros Seguros. Uma espécie de rede de táxis que leva mulheres sozinhas a casa, gratuitamente.

— O que sabemos sobre essa empresa?

— Apenas que existe. Vamos investigá-la melhor amanhã.

— Está a atacar dentro de casa outra vez, em casa delas — constatou Sebastian. Isto era o que tinham esperado e, ao mesmo tempo, receado. Um novo ataque. Agora, o caso complicava-se ainda mais. — E, mais importante ainda: voltou a escolher Therese.

— Parece ser esse o caso, sem dúvida, mas será que foi coincidência?

A pergunta não era tão estúpida como parecia. A pior coisa que podiam fazer era retirar conclusões precipitadas, procurar provas que confirmassem uma teoria definitiva, em vez de as procurarem de forma incondicional.

— Isso quereria dizer que ele tinha escolhido um apartamento ao acaso, depois de passar o Facebook a pente fino à procura de mulheres sozinhas, e encontrado Therese sem a reconhecer — resumiu Sebastian, e, olhando para os outros, colocou em palavras aquilo que, na verdade, já sabiam. — Ela foi escolhida. Isto é uma coisa pessoal.

— Nesse caso, quer dizer que ele também pode atacar a Ida e a Klara — afirmou Vanja.

Olharam uns para os outros. Pois claro; sem dúvida. Com alguma sorte, não seria tarde demais. Sebastian saltou da maca e seguiu os outros.


Recordava-se bem de como vira Ida da última vez.

Com medo. Isolada. Ferida.

Assim que Sebastian encontrou o seu número de telemóvel, enviou-lhe uma mensagem escrita, já no carro, a dizer que iam a caminho de sua casa. Caso contrário, corriam o risco de ela ficar completamente aterrorizada se acordasse com alguém a tocar à sua campainha a meio da noite. Não recebeu resposta à mensagem, então, enviou outra. Quando estavam à porta do prédio, telefonou-lhe. A chamada foi directamente para a caixa de correio de voz. Sebastian desligou sem dizer nada. Não valia a pena. Iam tocar-lhe à porta dali a alguns segundos.

Juntamente com Anne-Lie, subiram apressadamente as escadas até ao apartamento no segundo andar. Tocaram à campainha. O prédio era suficientemente antigo e não tinha sido remodelado, para ainda ter a caixa de correio na porta e não à entrada, no rés-do-chão. Sebastian agachou-se e levantou a abertura estreita do correio. Viu que havia uma luz acesa no corredor.

— Ida, é o Sebastian Bergman, da Brigada de Homicídios — chamou suficientemente alto para que ela conseguisse ouvir no interior do apartamento, mas não tão alto que algum vizinho curioso também pudesse escutar.

Não aconteceu nada.

Anne-Lie voltou a tocar. Desta vez, deixou o dedo pousado no botão mais tempo. Sebastian tentou espreitar pela abertura do correio; tinha um ângulo limitado, mas não viu ninguém deitado no chão.

— Ida, consegue ouvir-nos? É o Sebastian, da Brigada de Homicídios. Precisamos de falar consigo.

Continuavam sem ouvir nada do interior do apartamento.

Sebastian levantou-se e virou-se para Anne-Lie, que acabava de pegar no telemóvel.

— O que fazemos?

— Vamos entrar — decidiu Anne-Lie e marcou um número no telefone ao mesmo tempo que desceu alguns degraus da escada. Sebastian ficou parado, um pouco perplexo.

Não demorou mais de dez minutos até chegar uma patrulha com as ferramentas certas para abrirem a porta trancada. Embora estivesse bastante certo de que o apartamento estava vazio, Sebastian disse novamente pela abertura do correio o que tencionavam fazer. Apesar de tudo, havia uma pequena possibilidade de Ida estar a dormir. Se acordasse com alguém a tentar entrar em sua casa, poderia ter um ataque de pânico.

A porta abriu-se e o polícia fardado que a abrira afastou-se para o lado. Sebastian entrou.

— Ida...?

Não houve resposta. Apenas um envelope solitário, no chão, do lado de dentro da porta. Tudo em silêncio e sossegado. O apartamento estava bafiento, o ar pesado, precisava de ser arejado. Sebastian e Anne-Lie continuaram a entrar. Havia luzes acesas, tanto na cozinha como na sala de estar. Sebastian entrou na cozinha. Tal como da primeira vez que tinham estado ali, estava tudo arrumado e limpo, à excepção de um saco de papel no chão e algumas coisas em cima da bancada. Uma das gavetas estava aberta. Sebastian olhou para o seu interior. Utensílios de cozinha: facas, filtro de chá, garfos de madeira, espátulas, um batedor de varas e outros objectos. Deixou o olhar percorrer a bancada. Algumas latas de conservas, um pedaço de queijo, um pacote de manteiga, ovos, uma embalagem de almôndegas congeladas e outra de papel higiénico. Algumas daquelas coisas estariam definitivamente melhor no frigorífico ou no congelador. Sebastian olhou para dentro do saco de papel pousado no chão. No fundo, viu um recibo. Baixou-se, apanhou-o, verificou a data: 21 de Outubro. Há seis dias.

Ouviu Anne-Lie praguejar e foi ter com ela.

— O que foi?

Ela limitou-se a fazer um gesto com a cabeça para o interior do quarto. Sebastian aproximou-se e olhou lá para dentro. Um saco de juta, que já conhecia demasiado bem, atirado para o chão, ao lado da cama; as calças e as cuecas de Ida num monte, à cabeceira da cama.

— Merda, chegámos demasiado tarde!

Quase em simultâneo, viraram-se os dois para a porta fechada da casa de banho. O único sítio onde ainda não tinham procurado. Viram que estava trancada. Com um mau pressentimento, Sebastian aproximou-se da porta e bateu.

— Ida, é o Sebastian, da Brigada de Homicídios.

Nenhuma resposta. Não se ouvia ninguém mexer-se do lado de dentro da porta trancada. Sebastian trocou um olhar rápido com Anne-Lie, que assentiu com a cabeça e foi chamar o polícia fardado, que aguardava nas escadas.

A porta da casa de banho foi fácil de arrombar. Mais uma vez, o agente de uniforme deu um passo para o lado e deixou Sebastian e Anne-Lie entrarem primeiro. Sebastian inspirou fundo e escancarou a porta. Tinha esperança de a encontrar no chão, paralisada de medo, incapaz de se mexer.

A sensação que, de imediato, o invadiu foi de tristeza.

Ida estava deitada na banheira.

A água vermelha de sangue.

Uma faca de fruta no chão.

Cortes profundos abertos ao longo de um dos antebraços. O seu olhar fixo no vazio. O corpo ligeiramente inchado, depois de estar na água desde, calculou Sebastian, o dia 21 de Outubro. Seis dias.

Imaginou Ida finalmente a encher-se de coragem para ir às compras, sozinha ou acompanhada. Como regressara a casa e começara a arrumar as coisas na cozinha, como o homem que a esperara aparecera por trás, a anestesiara e arrastara para o quarto. Como ela acordara com o saco por cima da cabeça.

Se o segundo ataque conseguira quebrar Therese, não era nada comparado com o que este fizera a Ida. Ela já estivera de rastos. As semanas de solidão não a tinham ajudado minimamente, disso tinha Sebastian a certeza. Todo aquele tempo para reviver, reflectir, culpabilizar-se, arrepender-se, deixar os pensamentos vaguearem à vontade, dominarem-na, sem que ninguém a ajudasse a racionalizá-los ou controlá-los.

Ninguém para a ajudar.

Recuou para a porta aberta, afectado pelo arrependimento por não ter feito mais, por não ter feito algo. Ao despertar da sua inconsciência, Ida devia ter-se apercebido de que já não aguentava mais. Aquilo que estava rachado partira-se por completo, deixando que os pensamentos mais lúgubres a inundassem livremente e afogassem os outros, aqueles que tentavam, ainda assim, encontrar uma saída, uma maneira de aguentar, de continuar em frente, apesar de tudo. Uma onda de puro desespero, impossível de ser contida.

Fora à cozinha, pegara numa faca de fruta, fora para a casa de banho e enchera a banheira...

Os remorsos que Sebastian, na verdade, não experimentava há muito tempo, e que nem tinha a certeza de ainda poder sentir, misturaram-se com sentimentos de raiva. Aqueles homens tinham muito por que responder. Não obstante, e quase nem para si próprio conseguia admiti-lo, o caso acabava de se tornar realmente interessante. Um grupo, ou pelo menos duas pessoas, com um autocontrolo muito desenvolvido, o que era raro em casos de violência sexual, que não deixavam nada ao acaso quando cometiam os seus crimes.

Bem planeados, frios, eficazes, com um objectivo bem claro.

Vítimas escolhidas a dedo.

O que deitava por terra tudo aquilo que até então acreditavam saber sobre os perpetradores. A primeira vítima não fora escolhida aleatoriamente, com base apenas numa determinada posição geográfica. A motivação já não se relacionava com poder, controlo, misoginia, sexo, nenhuma das coisas sobre as quais tinham especulado. O saco na cabeça e as seringas continuavam a ter importância, porém, não se tratava de desumanizar as vítimas ou da necessidade de controlo total. Não era nada certo que tivessem experimentado cenários de dominação e submissão anteriormente.

Como resultado do ataque a Therese e da morte de Ida, eram obrigados a repensar tudo. A pensar de outra maneira.

Sebastian pegou no telemóvel e ligou para Torkel. Resumiu-lhe o que tinham encontrado em casa de Ida. Ele e Vanja ainda estavam em casa de Klara?

Tinham mesmo de falar com ela.

Sebastian estava absolutamente convencido de que Klara era a única que lhes podia dar a solução.


— A Ida está morta?!

Klara parecia completamente perdida. Tinham-na levado para a sede da Polícia, apesar de passar da uma da manhã. Ela perguntara por que motivo não podiam ficar em casa, mas Vanja e Torkel apenas lhe responderam que era melhor continuarem a conversa nos seus escritórios e, como Klara não protestara demasiado, Vanja ficara com a sensação de que, de certa maneira, já sabia sobre o que queriam falar com ela.

Que aquilo não fora uma verdadeira surpresa para ela.

Que antecipara que aquilo fosse acontecer, mais cedo ou mais tarde.

Que lhes escondera informação.

Tinham-na acordado. O seu marido abrira-lhes a porta. Quando lhe disseram que estavam ali porque precisavam de falar com Klara, ele perguntara se o assunto não podia esperar pela manhã seguinte, uma vez que ela estava a dormir. Responderam-lhe que não, e, passados alguns minutos, estavam os quatro sentados na cozinha enquanto Torkel e Vanja, em voz baixa, lhes contavam o que acontecera a Therese. Sabiam que elas não se conheciam, mas as provas apontavam para que as vítimas fossem escolhidas e que ela podia ser atacada de novo. Conseguia pensar em alguma razão para que assim fosse?

Vanja achou que Klara respondia de forma evasiva. Que se focara mais no facto de não conhecer Therese e de não terem nada em comum do que na pergunta mais importante: se ela também fora escolhida previamente, qual seria o motivo?

Então, Sebastian telefonou com a notícia de que Ida estava morta. As suas teorias tinham-se confirmado e precisavam de todas as respostas que ela pudesse dar. Agora, imediatamente.

Por isso, estavam todos juntos nesse momento, sentados na sala de reuniões: Klara, Anne-Lie, Torkel, Vanja e Sebastian. Anne-Lie tapara o quadro branco, de forma a esconder os dados sobre a investigação, e estavam todos espalhados pela sala, para diminuir a sensação de que havia um grupo unido contra Klara, quatro em frente dela, ao mesmo tempo que a sua presença enfatizava a seriedade da situação.

— Sim, parece-nos que ela foi atacada de novo e depois se suicidou — respondeu Anne-Lie, objectivamente. Compreendia que Klara estivesse confusa e preocupada: acordada a meio da noite, levada para a sede da Polícia, uma conhecida sua encontrada morta. O mais compassivo e empático teria sido deixar tudo esperar pelo dia seguinte, mas Anne-Lie não podia perder mais tempo. Agiriam de forma profissional e eficaz, mas, se a mulher que tinham à sua frente tivesse alguma informação, conseguiriam obtê-la.

— Meu Deus... — Os olhos de Klara encheram-se de lágrimas enquanto abanava a cabeça.

— Foi a segunda vez que tanto ela como a Therese foram atacadas.

— Conhecia a Ida — constatou Torkel, e levantou-se. Klara assentiu com a cabeça. Torkel foi até ao móvel do material de escritório. Ao lado da fruteira que estava em cima dele havia um monte de guardanapos de papel; pegou em dois ou três e entregou-os a Klara. — Mas a Therese não?

Klara abanou novamente a cabeça e agradeceu os guardanapos.

— Então e a Rebecca?

Uma breve hesitação. Depois, um leve assentimento. Vanja inclinou-se para a frente na cadeira. «Agora é que vai ser», pensou. Da última vez que lhe haviam perguntado, Klara dissera que são sabia quem era Rebecca Alm. Uma mentira, mas agora iam descobrir a verdade. Até Sebastian se sobressaltou um pouco e ficou mais alerta, ali onde estava, de pé, encostado à parede junto à porta.

— Talvez também a conhecesse — disse Klara em voz baixa, com o olhar fixo no tampo da mesa. — Éramos... fizemos parte de um grupo, digamos assim, há oito ou dez anos.

— Que grupo? — perguntou Vanja.

— Chamava-se Ab Ovo. Encontrávamo-nos na igreja.

— E o que faziam nesse Ab Ovo?

Klara inspirou fundo, levantou os olhos da mesa e contemplou Vanja. Sebastian ficou com a sensação de ter visto qualquer coisa no seu olhar que dava a entender que aquelas não eram memórias que ela gostasse de reviver.

— O objectivo era apoiar mulheres que engravidavam, para que ficassem com o bebé e não abortassem.

— Um grupo antiaborto?

— Não nos definíamos como anti-qualquer coisa, mais como pró. Pró-vida.

— Um grupo antiaborto, portanto — confirmou Vanja, e a forma como entoou a palavra deixou claro que não seria o próximo membro.

Sebastian conhecia-a o suficiente para saber o que ela pensava de alguém que tentasse decidir o que devia fazer com o seu próprio corpo. Principalmente se fosse baseado num livro com dois mil anos que remetia para a vontade de um deus.

— Quem mais fazia parte desse grupo? — perguntou Anne-Lie, ansiosa por prosseguir.

— Foi a Ingrid Drüber que o fundou. Depois, passámos a ser nós as três, a Ida, a Rebecca e eu, e a Ulrika.

— Ulrika quê?

— Månsdotter. Ela era mais velha, da idade da Ingrid.

Anne-Lie olhou para Torkel, que, assentindo com um pequeno aceno de cabeça, saiu para pedir a Billy e Carlos que começassem a investigar os apelidos Drüber e Månsdotter.

— Então, você, a Ida e a Rebecca, todas faziam parte desse grupo. Mas a Therese não — constatou Sebastian. Três de quatro era suficiente para terem uma certeza relativa de que estavam no caminho certo. Teriam de descobrir mais tarde o motivo para o ataque a Therese. Havia uma relação, disso tinha a certeza.

— Não.

— E se tiver que ver com o grupo, o que se passou que possa levar alguém a querer atacar-vos?

Klara voltou a hesitar. Mais tempo, desta vez. Logo no primeiro dia que falara com a Polícia, depois de ter sido atacada junto ao seu carro, ocorrera-lhe aquela ideia. Quando Rebecca morrera, tivera a certeza, mas, ainda assim, conseguira convencer-se de que poderia ter que ver com outra coisa, um acaso, que poderia estar enganada.

Queria estar enganada.

Estar certa custar-lhe-ia um preço muito elevado.

Ela não estivera presente naquela noite, mas sabia.

Sabia o que acontecera. Sabia o que tinham feito.

Sabia e mantivera-se em silêncio. Já não podia continuar assim.

— A única coisa de que me consigo lembrar é da Linda. O que aconteceu com a Linda.

— Qual Linda? E o que é que lhe aconteceu? — Vanja estava completamente alerta. Aquilo era um motivo. Klara ia finalmente dar-lhes um motivo.

— A Linda Fors. Ela veio ter connosco, os médicos tinham-na aconselhado a não prosseguir com a gravidez, mas ela queria mesmo ter o bebé. Nós apoiámo-la nessa decisão.

— Apoiaram-na ou convenceram-na?

Klara olhou para Vanja, percebendo a acusação, mas estava demasiado cansada para se enervar, para se defender.

— Apoiámo-la, ela já tinha decidido, mas foi difícil para ela.

— O que aconteceu?

— Ela morreu. Eu não estive presente nessa noite, tinha acabado de ter o Victor, por isso, estava em casa. Não sei exactamente o que aconteceu, mas ela morreu, e, depois disso, não voltei a encontrar-me com elas. O grupo desfez-se, a Ingrid e a Rebecca mudaram-se e eu deixei a igreja.

— Quando é que isso foi?

— Em 2010. O Victor tem oito anos.

— A igreja sabia disto? — perguntou Sebastian sem conseguir evitar sentir-se ansioso, caso se comprovasse que sim, por revelar aquilo ao resto do mundo. Uma vingança simbólica dirigida ao seu pai, muito religioso, que ele odiara e que o sabia, mas que, ainda assim, lhe dava uma certa satisfação.

— Acho que não, era um projecto da Ingrid e ela insistia sempre para que não falássemos sobre aquilo com outras pessoas da paróquia.

— Ingrid Drüber?

— Sim.

— Disse que ela se mudou? Sabe para onde?

— Acho que foi para Västerås.

A sua cidade natal. Onde ele jurara que nunca mais voltaria, depois da última vez que lá estivera.


Ficaram sentados na sala de reuniões.

Tentaram concentrar-se durante mais algum tempo. A escuridão do outro lado das janelas era opaca e outonal, e a forte luz do tecto não fazia nada para ajudar a disfarçar a palidez e o cansaço do grupo. O café deixara de surtir efeito e já só lhes aumentava a acidez do estômago.

Fora um dia excepcionalmente longo.

Klara fora escoltada de volta a casa. Tinham-se assegurado de que não ficava sozinha antes de voltarem a falar com ela e estabelecerem um plano de acção para o futuro próximo. Protecção pessoal e outras medidas poderiam ter de ser consideradas.

Billy e Carlos juntaram-se ao grupo e relataram o pouco que tinham conseguido descobrir. No que dizia respeito à Ab Ovo, era ainda menos que pouco; era nada, na realidade. Não parecia ser uma organização apoiada oficialmente pela Igreja, e o único sítio onde tinham encontrado uma referência ao nome na Internet levava a uma página com o erro 404.

Sobre Linda Fors, tinha sido mais fácil encontrar informação. Fora encontrada a esvair-se em sangue num caminho perto da entrada do Hospital Universitário, na noite de 23 de Junho de 2010. Apesar de todos os esforços, não a conseguiram salvar, nem à criança. A Polícia iniciara uma investigação, mas depressa estabelecera um cenário plausível no qual não havia suspeitas de crime, o que levara ao encerramento da mesma.

— E qual foi o cenário? — perguntou Torkel.

— Que ela se encontrou com umas amigas quando estava a caminho de casa e começou a ter contracções e a sangrar. Tentou ir até ao hospital, mas desfaleceu antes de conseguir chegar à porta.

— O hospital ficava no caminho para casa dela?

— Não era um desvio enorme — disse Carlos e aproximou-se do mapa na parede. — Ela morava aqui... — Fez um ponto verde com um dos marcadores do quadro branco. — O hospital fica aqui. — Outro ponto, a alguns centímetros de distância do primeiro. — E as amigas disseram que se tinham separado aqui. — Mais uma marcação. Em linha recta em relação à primeira, ligeiramente para a direita da segunda.

— Onde tinham estado? — perguntou Vanja, estudando os pontos no mapa como se lhe pudessem dar alguma resposta.

— Em casa da Ulrika a jantar e a conversar. A Linda depois quis dar um passeio até casa, estava bom tempo — disse Billy depois de consultar a documentação da antiga investigação que tinha à sua frente sobre a mesa.

— Quem disse isso?

— O polícia responsável só falou com uma delas, a Ingrid Drüber.

— E o telefone da Linda? — continuou Vanja, ainda com o olhar fixo no mapa, como se não estivesse bem a acreditar na descrição dos acontecimentos que acabava de ouvir. — Não tentou ligar ao serviço de emergência, ao hospital ou ao marido, se é que tinha um?

— Não, não houve nenhuma chamada do seu telefone durante toda a noite, de acordo com os registos.

— Isso não é estranho? — Vanja virou-se para os outros, em busca de concordância. — Está grávida, vai para casa, sente dores, começa a sangrar e decide ir para o hospital a pé? Sem telefonar a ninguém?

— Talvez não tivesse começado de maneira tão grave e depois tivesse piorado rapidamente... — tentou Torkel, mas percebeu logo que não fazia sentido.

— O que sabemos sobre a Drüber? — perguntou Anne-Lie de forma a avançarem. Não havia motivos para especulações, queria terminar a reunião o mais depressa possível.

— Nascida em Jönköping em 1970, tem um mestrado em Teologia pela Universidade de Gotemburgo, foi aceite como sacerdotisa na diocese de Västerås em 1998, mudou-se para Uppsala em 2003 e outra vez para Västerås em 2011, onde agora é candidata ao bispado. Defende um cristianismo conservador, foi membro da «Missão Evangélica Luterana: amigos fiéis à Bíblia». Não é casada, não tem filhos, não tem antecedentes criminais e não reportou nenhuma violação — resumiu Carlos. — Há mais coisas, mas como também já é tarde... — concluiu, quase desculpando-se com um olhar para Anne-Lie, ao mesmo tempo que colocava um monte de folhas impressas em cima da mesa, para que os outros levassem cópias.

— Temos de falar com ela. Avisá-la — afirmou Vanja ao esticar-se para um dos papéis.

— A outra, a quinta mulher, a Månsdotter, o que sabemos sobre ela? — interpelou-os Ursula. Debatia-se para manter os olhos abertos e apercebeu-se de que não contribuíra com rigorosamente nada nos últimos quinze minutos. Torkel contara-lhe que se descaíra sobre o álcool ao jantar, mas Ursula não tencionava dar um único motivo a Anne-Lie para reclamar.

— Está morta — respondeu Billy. — Morreu em Abril. Cancro de mama.

— Mas com a Drüber, se ainda não aconteceu, vai acontecer; e, se já aconteceu, vai acontecer outra vez. Segundo a Klara, ela era a líder do grupo — insistiu Vanja.

— Ou, então, ela está implicada de alguma maneira — largou Sebastian para o ar, a testar.

— De que forma?

— Não sei, mas, como tu mesma disseste, ela era a líder e a única do grupo que não foi atacada.

— Ou, então, simplesmente não denunciou o ataque à Polícia — contrapôs Vanja.

— Seja como for, não lhe vai acontecer nada esta noite — disse Sebastian e encolheu ligeiramente os ombros, como para acabar a discussão. — Nunca houve dois ataques na mesma noite.

— Um deles pode já estar em Västerås. Há mais de um.

Era evidente que Vanja não ia desistir, por muito tarde que fosse. Sebastian suspirou ligeiramente e deslocou-se do sítio onde estava, junto à porta, até ao quadro branco, onde todas as datas e locais dos ataques continuavam anotados.

— As horas dos ataques e a ordem pela qual ocorreram — começou por dizer, apontando para o quadro enquanto prosseguia. — Primeiro, a Ida, depois, a Therese, a Rebecca e a Klara. Depois, outra vez a Ida, a Therese, de novo, a Rebecca morreu, portanto, a Klara é a próxima na lista.

— Como podes saber isso? Não sabemos onde é que a Ingrid se encaixa nisto tudo. Ela se calhar não denunciou o ataque de que foi vítima. Quantas vezes terei de dizer isso?

Sebastian não respondeu.

Claro que Vanja tinha razão.

Não sabiam nada acerca de Ingrid Drüber, podia ser uma vítima como as outras, podia até ser a próxima vítima. Estar de alguma maneira implicada não era mais do que uma mera especulação, algo que, de facto, não tinha nenhum fundamento.

Mas Sebastian também tinha razão.

Ela não seria atacada naquela noite e valia a pena esperar para terem mais informação quando fossem falar com ela, no dia seguinte.

Porém, não era nisso que Sebastian estava a pensar quando estava ali de pé, em silêncio, a observar o quadro. Uma ideia começara lentamente a formar-se quando enumerara os nomes e vira as datas. Virou-se para Carlos e Billy, que tinham feito a primeira pesquisa rápida dos novos nomes que Klara lhes fornecera.

— A criança tinha pai? A Linda tinha marido ou companheiro?

— Um companheiro — respondeu Carlos depois de dar uma vista de olhos aos seus papéis. — Hampus Bogren. Professor do ensino especial, agora vive em Hudiksvall. Porquê?

— Acho que estamos à procura de um homem... — respondeu Sebastian, devagar, como se estivesse a tentar organizar o raciocínio em voz alta, à medida que as peças iam caindo no sítio certo na sua cabeça. — Ou de homens que perderam alguma coisa, que perderam tudo, quando a Linda morreu.

— Porquê?

— É como um calendário, violações repetidas com um número determinado de semanas de intervalo. — Continuava a soar como se estivesse a tentar organizar os pensamentos, ao mesmo tempo que lhes dava voz. Contudo, de repente, pareceu satisfeito com a sua conclusão, calou-se e virou-se para o resto do grupo cansado. — A intenção é deixá-las grávidas.

— O quê?!

— Os médicos tinham informado a Linda sobre os riscos de prosseguir com a gravidez — Sebastian assentiu com a cabeça para si próprio, cada vez mais seguro do que dizia, com as palavras a fluírem com maior rapidez. — A Ab Ovo convenceu-a a ficar com o bebé e ela morreu. Agora, as pessoas responsáveis pela sua morte vão ser obrigadas a escolher entre duas coisas que, em princípio, são impensáveis para elas: ter uma criança fruto de uma violação ou fazer um aborto. Entre a espada e a parede ao mais alto nível.

A sua teoria foi recebida em silêncio pelos restantes colegas. Um violador em série era mau, mas, de vez em quando, apareciam. Quando o perpetrador ou, neste caso, os perpetradores, além disso, atacavam as mesmas mulheres várias vezes, era ainda pior, ainda mais doentio e, logo aí, algo a que nunca tinham assistido antes. Porém, a teoria de Sebastian, na sua crueldade retorcida, raiava o limite do concebível.

Ao mesmo tempo, no imediato, não conseguiam apontar-lhe falhas. Tudo o que ele dissera poderia perfeitamente corresponder à realidade. Se olhassem objectivamente para o que acontecera, e para quando acontecera, podia muito bem ser aquele o motivo. Infelizmente.

— Ainda maior razão para avisar a Ingrid Drüber — disse Vanja em voz baixa.

— Há algumas perguntas em aberto em relação a ela — acrescentou Anne-Lie. — Como é que Linda acabou à porta do hospital? Ingrid foi a última pessoa a estar com ela, a única que falou com a Polícia.

— E por isso vamos deixar que a violem, é isso que queres dizer? — perguntou Vanja, indignada.

Em casos mais comuns, Sebastian teria feito tudo para a apoiar, mas, neste caso concreto, achou realmente que tinham a ganhar em esperar, saber mais, antes de falarem com ela.

— Prometo que não lhe acontece nada esta noite — garantiu com convicção. — Ela está segura até amanhã, provavelmente, por mais tempo.

— Ah, tu prometes? Então, pronto, está tudo resolvido, realmente — respondeu Vanja com sarcasmo e sem conseguir esconder como achava estúpida aquela ideia. Se os outros tinham alguma opinião sobre o que deveriam fazer a seguir, guardaram-na para si próprios.

A noite estava a transformar-se em manhã e ninguém tinha vontade de iniciar uma discussão sobre o melhor plano de acção, sobretudo tendo em conta que, de qualquer modo, a decisão final cabia a Anne-Lie.

Então, viraram-se para ela.

— Fazemos o que o Sebastian sugeriu — disse com um gesto de cabeça na sua direcção. Vanja levantou-se de imediato e deixou a sala de reuniões. Sebastian nem precisou de ver o olhar de raiva que ela lançou na sua direcção, antes de sair, para saber o que pensava dele naquele momento.

«Amanhã será melhor», consolou-se.

Valdemar de volta ao pedestal.

Ele próprio subiria uns pontos na escala.

Era apenas uma questão de horas.


Eram quase três e meia da manhã quando Billy introduziu a chave na porta.

Depois do ponto de situação, tinham discutido brevemente se deveriam ficar em Uppsala e ir para um hotel, mas nenhum deles trouxera roupa limpa. Depois do jantar em casa de Torkel e Lise-Lotte, estavam todos mais formais do que era costume. Além disso, encontrar um hotel, reservar quartos e organizar tudo demoraria quase o mesmo tempo que regressar a Estocolmo, pelo que optaram pela segunda hipótese.

Ao deixarem a sede da Polícia, Torkel deixara bem claro que a única pessoa que queria no seu carro era Vanja, por isso, Billy levara Sebastian e Ursula no seu. Tinham feito a viagem em silêncio. Uma vez que não havia trânsito, Billy pôde conduzir ainda mais depressa do que costumava e tinham feito oitenta e poucos quilómetros em pouco mais de meia hora. Ao chegarem a Estocolmo, Billy insistira em deixar Sebastian primeiro, de maneira a não ter de se sujeitar às suas perguntas, se ficassem os dois sozinhos no carro.

Sobre como tinha passado ultimamente.

Como estavam as coisas com My.

Se tinha tido alguma recaída.

Sebastian tinha a mania de que era muito esperto. Que, só por ter visto Billy fazer uma coisa estúpida, o conhecia bem. Que sabia quem realmente era.

Mas não sabia.

Ninguém sabia.

Uma vez em casa, Billy despiu o casaco e descalçou os sapatos, atirou as chaves para uma tigela que estava em cima da pequena cómoda no vestíbulo e continuou para a cozinha. Precisava de comer qualquer coisa, não comera nada desde o jantar em casa de Torkel e, mesmo tendo havido muita comida, já tinham passado quase nove horas. Abriu o frigorífico e pegou na manteiga, no queijo e num tubo de pasta de ovas, retirou duas fatias de pão do saco que estava em cima da bancada e preparou duas sanduíches. Quando voltou a colocar as coisas no frigorífico, retirou um pacote de sumo. Agitou-o e, como já estava quase vazio, nem se deu ao trabalho de ir buscar um copo. Sentou-se à mesa da cozinha, deu uma grande dentada numa das sandes e bebeu o sumo directamente do pacote. Em cima da mesa estava o último número do jornal da região; Billy puxou-o para si ao mesmo tempo que terminava a primeira sanduíche em poucas dentadas.

Debaixo do jornal estava um envelope branco com o seu nome e a sua morada, escritos à mão, em letras maiúsculas. Billy pegou nele, virou-o, não tinha remetente. Com uma pequena ruga de dúvida na testa, abriu-o. Tentou recordar-se da última vez que alguém lhe enviara uma carta escrita à mão, mas não conseguiu. Quem, no seu pleno juízo, escreveria alguma coisa à mão, a colocaria num envelope e pagaria para que outra pessoa a entregasse, um a três dias mais tarde?

Algo que parecia uma fotografia impressa caiu para cima da mesa quando Billy retirou um papel A4 dobrado de dentro do envelope e o abriu.

As mesmas letras maiúsculas escritas à mão.

Breve e conciso.

CINCO MIL COROAS, SENÃO A TUA MULHER FICA A SABER

Por baixo, o endereço de uma página digital copiada em letras muito mais pequenas. Pareceu-lhe uma espécie de fórum de jogos. Billy pegou na fotografia que caíra, já praticamente a adivinhar o que ia ver antes de a virar. E confirmou-se.

Era ele mesmo, a sair da rua Norrforsgatan.

Do quarto vermelho.

De Stella.

Billy permaneceu sentado, a olhar fixamente para a imagem, incapaz de definir qualquer tipo de sentimento. O natural seria estar preocupado ou enraivecido, ou uma mistura de ambos. Sentir um nó de nervosismo e ansiedade no estômago, uma fúria contra a pessoa anónima que acabava de tornar a sua vida, já de si descontrolada, ainda mais difícil. Mas era como se esses dois indicadores emocionais já tivessem atingido os valores máximos. Em vez disso, estudou a imagem ao pormenor. Não mostrava nada directamente comprometedor. Mas, claro, dependia do que se soubesse que havia naquela morada. Por outro lado, Billy tinha ali estado várias vezes em trabalho, não havia nada que provasse que aquela imagem não tivesse sido tirada numa dessas vezes.

Poderia facilmente ser explicado.

Se optasse por não fazer nada.

Porém, levantaria questões desnecessárias. Principalmente agora. Perguntou-se como o chantagista conseguira obter o seu endereço de casa e calculou que teria sido por ter usado o seu carro particular. Bastava pesquisar a matrícula, encontrá-lo, descobrir se era casado, escrever a carta. Mas talvez a pessoa em questão não soubesse que ele era polícia. Será que isso poderia jogar a seu favor?

Isto não era mesmo o que precisava naquele momento. Quando ia a caminho de casa naquela tarde, vindo de Uppsala e de uma sessão com Stella, Conny voltara a telefonar-lhe. Queria saber se Billy já conseguira encontrar provas suficientes que confirmassem as suas suspeitas. Certificar-se de que ele ainda acreditava que as fotografias tinham sido manipuladas. Billy acalmara-o, sim, estava absolutamente convencido disso, mas a investigação em Uppsala tinha tido um novo avanço e ele precisava de mais algum tempo para reunir as provas. Quanto tempo? Mais um dia, talvez dois, três, no máximo. Conny terminara a chamada dizendo que então esperava que Billy o contactasse em breve, para que pudesse fazer uma denúncia à Polícia antes do fim-de-semana.

O que significava que, na segunda-feira, haveria suspeitas de crime relacionadas com o desaparecimento de Jennifer. Haveria uma investigação a fundo e ele seria a pessoa que apresentaria as provas definitivas para dar início ao inquérito preliminar. Porém, não havia mais nada que pudesse fazer. Teria de ir apalpando terreno dali para a frente. A única coisa que representava uma ameaça para ele eram as fotografias que tinha publicado quando estivera em Bohuslän, e estava longe de estar certo de que essa ligação a si próprio alguma vez fosse estabelecida.

Passos silenciosos e descalços aproximaram-se da cozinha e Billy foi arrancado dos seus pensamentos; puxou bruscamente a carta, o envelope e a imagem para si, atirou-os para o meio das páginas do jornal, dobrou-o ao meio e empurrou-o para o lado. No segundo seguinte, My entrou na cozinha. Vinha a apertar o cinto do fino roupão, os olhos sonolentos entreabertos, o cabelo despenteado. «Tem um ar fantástico», pensou Billy. Era por isto que tinha mesmo de resolver os seus problemas, disse para consigo.

Para poder voltar para casa, para ela.

Todas as noites, para o resto da vida.

— Só chegaste agora? Coitadinho!

— Sim.

— Como correu em Uppsala?

— Mais duas violações e um suicídio.

My aproximou-se dele e abraçou-o. Billy enterrou a cara na barriga dela, sentiu o calor da cama ainda no seu corpo através do tecido fino. My acariciou-lhe suavemente o cabelo.

— Recebeste uma carta.

— Pois, já vi.

— O que era?

— Nada de especial, alguém a querer propor um crédito com juros ridículos.

My sentou-se ao colo do marido, abraçou-o, apoiou a cabeça no seu ombro. Billy sentiu a respiração calma contra o seu pescoço. Fechou os olhos. Permitiu-se desfrutar da proximidade, da ternura, do amor. Por momentos, pensou que ela tinha adormecido.

— A Vanja está a tentar engravidar — disse My, parecendo que estava meio adormecida. Billy podia jurar que, pelo menos, estava de olhos fechados.

— Está bem.

— Ela disse isso no jantar, que ela e o Jonathan estão a tentar.

«Estranho», pensou Billy. Vanja não costumava, de todo, partilhar detalhes privados da sua vida, mas, claro, My tinha jeito para fazer as pessoas falarem, abrirem-se com ela. Também tinha jeito para planear o futuro. Como viverem juntos, casarem-se, comprarem uma casa de férias...

— Eu não quero ter filhos. — Billy quis fechar essa porta rapidamente, não queria de modo algum ter aquela conversa.

Não agora. Não aquela noite.

— Nunca? — Sentiu My ficar com o corpo todo tenso e, mesmo continuando a não conseguir vê-la, soube que ela tinha aberto os olhos.

— Não sei, talvez. Mas agora não.

«Sobretudo agora», pensou.

— Okay.

Ficaram novamente em silêncio, mas Billy sentiu os seus olhos abertos, pressentiu a sua ligeira decepção confusa. Sentiu que precisava de se explicar melhor. O melhor que podia, pelo menos.

— Estamos à procura de uma casa de férias, casámo-nos há menos de seis meses, ainda nem nos conhecemos há dois anos. Não podemos limitar-nos a estar simplesmente juntos sem termos de ter sempre no horizonte um grande projecto de vida decisivo?

My endireitou-se, pousou as palmas das mãos nos seus ombros e olhou-o seriamente nos olhos.

— Arrependes-te de alguma coisa?

Billy inspirou profundamente, abanou um pouco a cabeça e conseguiu fazer um sorriso convincente e tranquilizador.

— Sabes bem que não, mas estamos a avançar muito depressa.

— Depressa demais?

— Às vezes, sim. Gostava que conseguisses estar apenas no presente. Estar no momento, e que isso fosse suficiente. Que noventa porcento de tudo o que fazemos ou falamos não diga respeito ao futuro e ao que vamos fazer a seguir.

Mesmo que, naquele momento, ele estivesse completamente obcecado com o «a seguir». Com o «depois», quando tudo aquilo em que agora estava envolvido tivesse terminado.

— Não sabia que te sentias assim.

— Agora já sabes.

— Gostava que me tivesses dito mais cedo, isto são coisas que tens de me comunicar, é importante.

— Vou melhorar.

— Tu já és o melhor — respondeu My, colocando as mãos em volta da sua cara e inclinando-se para a frente.

— Tu também — conseguiu Billy dizer antes de My o beijar. Desejou, e, ao mesmo tempo, não quis, que My tivesse vontade de fazer sexo. Sentiu que a proximidade e a intimidade lhes fariam bem, que precisava delas, mas, ao mesmo tempo, sabia que seria tão doce e aborrecido que acabaria por se sentir insatisfeito a seguir.

— Vou-me deitar, tenho de me levantar daqui a três horas — disse ela, e a decisão ficou assim tomada. Deu-lhe mais um beijo na boca. — Amanhã falamos. — Levantou-se e voltou para o quarto.

Billy aguardou até ter a certeza de que ela não voltaria para trás, antes de pegar novamente no jornal e retirar do seu interior a carta com a fotografia.

Pegou no telemóvel, abriu uma página da Internet e inseriu o endereço electrónico que vinha na carta. Era mesmo um fórum de jogos.

Entrou directamente numa conversa criada pelo utilizador WoLf232: «Será que Billy vai pagar?», era o título. Por baixo da pergunta inicial, alguns dos outros utilizadores do fórum tinham deixado comentários, maioritariamente uns «WTF» e pontos de interrogação. Alguém tentara ser prestável e perguntara a que jogo WoLf232 se referia. Billy compreendeu que devia escrever a sua resposta naquela conversa, que era assim que deveriam comunicar dali em diante. Mas não agora. Fechou a janela e apagou o histórico e a memória cache. Não conseguiria rastrear a carta, mas o utilizador WoLf232... possivelmente.

Mas não agora. Não naquela noite.

Estava exausto, e era quando se estava cansado que se cometia erros.

Não podia dar-se ao luxo de cometer erros.

Tinha todo o seu futuro em jogo.


Torkel suspirou de alívio quando, por fim, chegou a casa. Despiu o casaco e foi directamente para a casa de banho, passou a cara por água e olhou para o seu reflexo no espelho.

Cansado.

Um homem cansado.

Talvez devesse mesmo dar um passo para trás. Não estava a ficar mais novo e sentia isso ainda mais claramente em dias como aquele. Afastou os pensamentos, aquele tipo de decisão não era para ser tomada quase às quatro da madrugada, depois de ter trabalhado mais de vinte horas. Escovou os dentes durante um minuto e vinte e dois segundos, um pouco menos do que os dois minutos que, em criança, aprendera que devia demorar a escová-los. Urinou, lavou as mãos e entrou sorrateiramente no quarto.

Enfiou-se cuidadosamente na cama, ligou o despertador no telemóvel e suspirou quando viu que tocaria dali a quatro horas e onze minutos.

— Estou acordada — ouviu Lise-Lotte dizer, e virou-se para ela. Estava deitada de lado a olhar para ele. — Não sabia se ias ficar em Uppsala ou não. — Talvez estivesse apenas a imaginar um certo tom acusatório na sua voz.

— Desculpa não ter dito nada, foi uma loucura. Houve mais duas violações e um suicídio.

Lise-Lotte não respondeu. Apenas levantou o edredão e mudou-se para o seu lado da cama. Colocou o braço em cima do seu peito e encostou a testa ao seu rosto. Torkel conseguiu pôr um braço por baixo dela para que ficasse apoiada nele.

— Sobre a Ursula... — começou Torkel a dizer.

— Não temos de falar sobre isso agora.

— Não sei porque não te contei — continuou como se não tivesse ouvido o seu comentário. — Acho que pensei que, se te dissesse, tu não ias querer que eu trabalhasse com ela todos os dias...

— Pareço ciumenta?

— Mas eu não sabia isso, no início, e depois quando já sabia... Acho que nunca encontrei a altura certa e achei que também não tinha importância.

— E não tem.

Torkel virou a cabeça o máximo que conseguiu para poder olhar para ela. Seria realmente assim tão simples?

— Não tem importância que vocês tenham tido um caso ou que trabalhem juntos agora. Só queria que tivesses sido tu a contar-me.

Ela era realmente melhor do que ele merecia.

— Mas agora percebo o que dizias em relação ao Sebastian — acrescentou, e Torkel sentiu que ela sorria contra o seu ombro.

— Então, ficas a saber que, desta vez, ele estava mesmo a fazer um esforço para se portar bem.

— Dorme — disse Lise-Lotte, acariciando-lhe o rosto.

— Amo-te.

Pensava dizer-lhe aquilo muitas vezes. Todos os dias. Não apenas dizer-lhe, também mostrar-lhe. Em tudo o que fizesse. Para que ela nunca duvidasse.

— Eu sei e acho bem — respondeu Lise-Lotte em tom de brincadeira. Levantou a cabeça e deu-lhe um beijo no rosto, onde a barba já despontava. — Também te amo.

Mas Torkel já adormecera.


28 de Outubro

Três pessoas morreram.

Estarei mesmo a fazer o correcto? Valerá a pena?

Tudo está a acontecer, porque tu não querias que ninguém morresse.

Só tínhamos diferentes opiniões sobre o que significava estar vivo.

Não se pode tirar uma vida.

Em nenhuma circunstância.

Foi isso que disseste.

É isso que está escrito.

Assim são as coisas.

Isso às vezes consola-me, quando tenho dúvidas.

Porque também diz:

Quando alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito.

Fractura por fractura, olho por olho, dente por dente.

Então, talvez estejam a ter um castigo leve.

As outras.

As que sobrevivem.

Podíamos ter falado sobre isto.

Como fazíamos com tudo o resto.

Não estávamos sempre de acordo. Longe disso.

Mas respeitávamo-nos.

As diferentes opiniões de cada um.

Mesmo quando eram loucas. Perigosas.

O que eu não daria para poder voltar a esse tempo.

Penso muito nele. Em ti. Em nós.

Cada vez mais no passado.

Cada vez menos no futuro.

Talvez por achar que não tenho nenhum.


Valdemar já estava à porta, à espera, quando Sebastian chegou para o apanhar. Ficou surpreendido por estar tão magro, de ombros descaídos. Talvez não fosse assim tão estranho, passara por bastantes dificuldades nos últimos tempos.

Cancro. Duas vezes.

Uma tentativa de suicídio e uma investigação criminal que continuava a decorrer.

Sebastian tentou recordar-se de quando vira Valdemar pela última vez. Devia ter sido quando, durante o período imediatamente a seguir a ter descoberto que Vanja era sua filha, sentira um desejo obsessivo, muito pouco saudável, de estar perto dela. Quando, e disso não estava nada orgulhoso, a tinha praticamente vigiado. Nessa altura, vira Valdemar todas as quintas-feiras, quando ele acompanhava Vanja a casa, na rua Sandhamnsgatan, depois de ter jantado em casa deles.

Dele e de Anna. Os seus pais.

Quando ainda eram um casal. Uma família.

Antes de tudo desabar.

Antes de Sebastian Bergman entrar nas suas vidas.

Ainda conseguia lembrar-se de como desejara poder ser tão próximo dela como Valdemar era. Como podia ter dado tudo para ser ele a receber o abraço quando se separavam, para poder dar-lhe um beijo carinhoso na testa.

Os ciúmes que sentira.

A inveja.

Como fizera tudo para destruir a sua relação. Era difícil imaginar que isso fora há pouco mais de um ano e que agora ia dedicar a mesma energia, senão mais, a tentar repará-la outra vez.

Quando Valdemar apertou o cinto de segurança, Sebastian apontou para um saco no chão, no lado do passageiro, com café, sanduíches de queijo e dois bolos de canela, mas Valdemar apenas recusou com um abanar de cabeça. Estava claramente nervoso, esfregava as mãos uma na outra por cima das pernas, olhava pela janela. Sebastian ligou o rádio e continuaram a viagem em silêncio.

— Ela ainda não sabe que eu vou lá? — perguntou Valdemar quando entraram na rua de Jonathan, em Sundbyberg.

— Não.

— E o que vai acontecer se não quiser ver-me?

— Acho que ela vai querer.

— E se não quiser?

Sebastian compreendeu a sua preocupação. A falta de contacto que tinham no momento poderia ser atribuída ao facto de Vanja não ter muito tempo livre, estar outra vez numa relação, trabalhar noutra cidade, ter outras coisas com que se preocupar. Havia uma explicação. Mas uma recusa clara, uma rejeição, uma porta fechada na cara, isso seria outra coisa. E Sebastian sabia-o melhor do que ninguém.

— Ela sente a tua falta.

— Pois, já disseste.

Mais do que dizer, Sebastian esperava que fosse verdade. Muita coisa dependia de que fosse realmente verdade. Não apenas para Vanja e Valdemar. Para ser sincero, importava-se muito pouco com esse assunto, por muito que se esforçasse para que tudo corresse bem.

Estacionou em frente de um prédio amarelo, de quatro andares, com uma fachada de cimento afagado e varandas e caixilhos das janelas vermelho-vivo. O contraste entre o edifício e os apontamentos vermelhos dava a sensação de alguém ter achado que alguma cor poderia desviar a atenção do facto de se tratar de um edifício horrendo e com setenta e cinco anos. Sebastian olhou para o relógio. A equipa concordara em tirar a manhã, uma vez que tinham trabalhado até tão tarde na noite anterior. De repente, sentiu-se um pouco inseguro em relação ao plano. Ou melhor, à falta de um plano.

Estaria Vanja acordada?

Estaria sequer ali?

Quereria ser acordada pelos seus dois pais, de quem se afastara?

«Não sei», «não sei» e «não» eram as respostas a essas perguntas, mas agora era obrigado a prosseguir. Virou-se para Valdemar ao mesmo tempo que abria a porta do carro.

— Anda lá — disse-lhe, com o máximo de entusiasmo na voz que conseguiu reunir. — Vai correr bem, vais ver.

Saíram do carro e avançavam para a porta do prédio quando uma voz os deteve.

— O que raio estão a fazer?

Viraram-se os dois ao mesmo tempo e viram Vanja, transpirada no seu fato-de-treino, apesar do frio, sem fôlego, de pé atrás deles na rua. Lançou-lhes um olhar inquisidor, sem o menor sinal de que estava contente por ver qualquer um deles.

— Olá, Vanja — Sebastian ouviu Valdemar dizer, e só nessas duas pequenas palavras conseguiu expressar tanta alegria contida por a ver que até Sebastian ficou um pouco comovido. No entanto, as palavras não pareceram ter o mesmo efeito sobre Vanja.

— O que raio estão vocês aqui a fazer? — repetiu ela, mais devagar desta vez, como se achasse que não a tinham percebido à primeira.

— A ideia foi minha — respondeu Sebastian e aproximou-se dela alguns passos. Valdemar ficou onde estava, como se tivesse medo de que a filha virasse costas e saísse dali a correr se se aproximasse dela.

— Claro que foi.

— Ouve-me só dois minutos...

— Prefiro não o fazer.

— Por favor. Dois minutos, depois vamos embora.

Vanja olhou de relance para Valdemar, com os seus ombros encolhidos e um ar perdido, com o olhar fixo no chão. Vanja virou-se de novo para Sebastian e fez um gesto de aprovação com a cabeça.

— A culpa é minha. A culpa é toda minha — começou por dizer, e decidiu contar a verdade. Aquela era a sua última oportunidade, era um tudo ou nada. — Fui eu que destruí a tua família. Se eu não tivesse aparecido, vocês ainda estariam juntos. Compreendo que talvez não seja possível compor as coisas com a Anna, mas com o Valdemar... — Fez um gesto com a cabeça na direcção da figura miserável que estava no passeio. — Tu tens saudades dele, eu sei que sentes falta dele.

— Como é que sabes? Falaste com o Jonathan?

Merda, ela era mesmo boa. Rápida. Era provável que não tivesse conversado assim com tantas pessoas sobre o que lhe fazia falta, de quem sentia saudades, o que desejava. Não era propriamente um livro aberto em relação à sua vida emocional. Mas Sebastian não tinha intenções de puxar o tapete ao namorado, não queria agravar a sua irritação.

— Não precisei. Pensei no que disseste, que não quero saber dos teus desejos. Reflecti sobre o que poderias querer e sei como eras muito próxima de Valdemar.

Olhou-a com sinceridade e honestidade, uma expressão que dominava na perfeição, mas que, estranhamente, lhe estava a parecer mais difícil agora, que realmente o sentia.

— Esse tipo de proximidade. Esse tipo de amor. Sei que eu próprio sentiria falta disso.

Fez uma curta pausa. Deveria mesmo jogar a carta de Lily-e-Sabine? Porque não? Tinha de usar tudo o que estivesse ao seu alcance para conseguir levar a melhor.

E era verdade.

Tudo o que dissera até àquele momento era verdade.

Talvez fosse por isso que estava a funcionar relativamente bem.

— Aliás, sei que sinto. Todos os dias.

Ele próprio percebeu que aquilo soava como um filme romântico americano de má qualidade, quase esperando que se ouvisse uma banda sonora em fundo.

Vanja não respondeu de imediato, algo que Sebastian interpretou como um avanço. Ela olhou para Valdemar, que continuava no mesmo sítio onde Sebastian o deixara, inseguro com toda aquela situação.

— Nós temos de ir a Västerås — disse sem grande convicção quer na voz quer no argumento.

— Não temos propriamente um horário a cumprir.

Um novo olhar, uma breve reflexão que acabou num pequeno suspiro e num assentimento com a cabeça.

— Okay, está bem, de qualquer maneira, preciso de tomar o pequeno-almoço. Ele pode fazer-me companhia.

— Eu espero no carro.

Sebastian ficou a ver Vanja dirigir-se para Valdemar e a forma como este, depois de um abraço breve e desajeitado, a seguiu para dentro do prédio. Uma sensação de bem-estar invadiu todo o seu corpo. Tinha conseguido.

Tinha conseguido estar um passo mais próximo da aceitação, um passo mais próximo da filha.

Parecia que as coisas estavam a melhorar.

O seu acto altruísta dera resultados.


Começava a ficar frio no carro.

Sebastian estava precisamente a ponderar se deveria dar mais uma volta com o carro para o aquecer, e a si próprio, quando Vanja e Valdemar saíram juntos. O abraço que deram na despedida tornou claro para Sebastian que os últimos cinquenta e cinco minutos os tinham definitivamente aproximado. A questão agora era apenas quanto. Depois de umas breves frases de despedida, viu como Valdemar se afastou e Vanja veio para o carro, abriu a porta do passageiro e entrou.

— Não o vamos levar a casa? — perguntou-lhe Sebastian, olhando para Valdemar, que se afastava a passo lento.

—Quer ir de metro, eu disse-lhe que tínhamos de trabalhar.

— Okay.

Vanja pôs o cinto de segurança, Sebastian ligou o carro e começou a conduzir. Passaram por Valdemar, e Vanja acenou-lhe, com um sorriso. Mais um sinal de que o seu plano funcionara, mas mais valia certificar-se.

— Como correu? — perguntou-lhe no tom mais neutro possível.

— Bem. Mesmo bem.

— Fico feliz.

Vanja virou-se para ele com um olhar aberto e sincero.

— Obrigada — disse-lhe, simplesmente.

Sebastian limitou-se a assentir com a cabeça em resposta, mas, por dentro, estava em êxtase. Ia mudar de assunto. Por agora, não queria pressioná-la a contar mais do que ela própria queria, ou pedir-lhe pormenores. Aumentou a velocidade, aumentou um pouco o volume do rádio e continuaram a viagem em silêncio.

Vanja reclinou-se no assento enquanto deixavam Sundbyberg, em direcção à auto-estrada, para norte. As nuvens cobriam o céu que nunca chegava a ficar realmente luminoso, como costumava acontecer no final do Outono. As fachadas dos prédios pareciam mais sombrias do que o habitual. Ainda era demasiado cedo para acender a iluminação de Natal nas janelas, que as animariam dali a mais ou menos um mês. As árvores já tinham perdido todas as folhas com o frio antecipado, a neve ainda não cobria as ruas, as pessoas agasalhavam-se com roupas quentes, mas de cores escuras. Cinzento e sem cor, era a impressão geral do mundo lá fora.

Que manhã estranha aquela!

Valdemar fora com ela para cima, sentara-se na cozinha com Jonathan enquanto ela tomava banho e se despachava. Quando estava no quarto a vestir-se, ouvira-os conversar e Valdemar rir. Sentira-se bem ao ouvi-lo feliz. Fora à cozinha e Jonathan dissera-lhes que os deixaria sozinhos, ia para o trabalho. Apertara calorosamente a mão de Valdemar e dissera-lhe que era mesmo muito bom vê-lo novamente.

Valdemar concordou.

Vanja pôde ver que estavam ambos a ser sinceros.

Quando ficaram sozinhos, tornara-se novamente mais confrangedor. Vanja preparara o seu pequeno-almoço, perguntara a Valdemar se queria alguma coisa, mas ele recusara, bastava-lhe o café. Parecia que não tinha realmente coragem de tomar a iniciativa quando estavam apenas os dois.

Continuava desamparado, fraco, a desculpar-se.

Mas também continuava a ser completamente sincero.

Queria deixar claro que o motivo pelo qual não a contactara era porque não queria impor-se. Queria dar-lhe o tempo de que ela precisasse para chegar a uma decisão sobre o que queria fazer, e que ele respeitaria, fosse ela qual fosse.

Contara-lhe abertamente sobre o cancro, o inquérito judicial e a acusação, tudo o que acontecera com Vanja e Anna, que aquilo o fizera perder o norte por um momento, que não acreditara que houvesse volta a dar, nada por que continuar a lutar. Estava errado, sabia-o agora. E estava melhor. Ela não podia, em circunstância alguma, aceitá-lo de volta na sua vida por sentimentos de culpa, nem por medo do que ele pudesse fazer se não o aceitasse de novo na sua vida.

Se conseguissem reconstruir o que tinham perdido, deveria ser por ela realmente o querer.

Vanja perguntara-lhe sobre o processo criminal. Valdemar encolhera os ombros, o que havia para dizer sobre isso?

Tinha cometido erros.

Tinha tomado más decisões.

Tinha feito coisas ilegais.

Toda a história da Daktea era incompreensível. Maior e mais complicada do que o imbróglio com a Trustor. Várias empresas envolvidas. Empresas-fantasma, aquisições, falências, sociedades de fachada, encobrimentos. O inquérito preliminar já ia em milhares de páginas e ainda não estava terminado. Valdemar continuava a ser suspeito de envolvimento, mas não fora decretada prisão preventiva.

Para onde havia ele de ir?

Todos percebiam que ele não estava, de maneira nenhuma, no topo da pirâmide nem tinha milhões escondidos que pudesse utilizar se quisesse fugir. A possibilidade de destruição de provas também fora excluída. Por isso, continuava em liberdade.

Sem Anna. Sem a sua filha.

Sozinho.

Talvez fosse porque Vanja também começara a pensar em ter a sua própria família, em construir uma história comum, que o encontro com Valdemar a fizera reflectir mais naquilo. Sempre soubera que Valdemar fora a pessoa que cometera menos erros, quem menos a traíra, mas que também fora o mais afectado. Vanja tinha uma ideia bastante clara do que o reencontro daquela manhã traria, mas precisava de analisar o que sentia para ter a certeza de que tomaria a decisão acertada quando realmente a tomasse.

Uma manhã estranha. Mas sentia-se bem. Sentia-se positiva. Encontrar-se com Valdemar fizera-lhe bem. E fora graças a Sebastian. Nunca o esperara. Talvez ele tivesse mesmo mudado.

Acreditaria verdadeiramente nisso?

Fosse como fosse.

Sabia que Sebastian não falaria com ela, uma vez que lhe pedira para não o fazer, mas sentia que ele merecia uma pequena recompensa. Virou-se para ele.

— O que achaste da nova namorada do Torkel?

Sebastian pareceu-lhe genuinamente surpreendido, presumira que iriam continuar a seguir a regra de não falarem de nada que não tivesse que ver com o caso, mas apressou-se a baixar o volume do rádio.

— Gostei dela. Pareceu-me simpática... Foi mesmo sem querer aquilo com Ursula. Tinha a certeza de que ele já lhe contara. Torkel parece-me ser o tipo de pessoa que o faria.

— Pois — concordou Vanja.

— Espero não ter estragado nada — prosseguiu Sebastian, sincero. — Ele está feliz, dá para ver.

— Sim... E o que achaste da mulher do Billy?

— Não sei bem. O que é que ela disse que faz? É uma coach de estilo de vida?

— Coach pessoal e profissional — corrigiu-o Vanja com um pequeno sorriso que lhe aqueceu a alma mais do que o ar condicionado do carro, ligado nos vinte e quatro graus.

— E o que se faz quando se é isso? Lembro-me de que ela explicou, mas desliguei completamente.

— Ajuda-se as pessoas a sentirem-se melhor e a atingirem o seu potencial máximo. — Vanja olhou para ele e o seu sorriso abriu-se mais. — Tu és psicólogo, portanto, talvez tenham algumas coisas em comum.

Vanja estava a gozar com ele. E Sebastian adorou.

— Não, não temos — respondeu-lhe com ênfase.

Ele estudara na universidade durante cinco anos e fizera várias especializações depois disso. Imaginava que My conseguira o seu título ou diploma nalguma masterclass na Internet e que, na sua própria página, se tivesse alguma, tivesse escrito «acredito no seu potencial», «pode entrar em contacto com a sua força interior», «tem todas as respostas dentro de si» e, para camuflar a total ausência de validade científica, «se apercebe de que é pela sua própria viagem pela vida e pelas experiências que a vida lhe proporciona, que mais aprende».

— Mas Billy parece feliz com ela — acabou por dizer com um encolher de ombros.

— Não tenho tanta certeza disso.

Vanja calou-se, como se se tivesse apercebido de que falara demais. Ao mesmo tempo, Sebastian ficou com a sensação de que ela queria contar mais alguma coisa. Ficou à espera que o fizesse.

— Ele traiu-a — acabou Vanja por dizer.

— Quando?

— Este Verão. Quando andávamos atrás de Lagergren.

— Com quem?

— Não sei.

— E como sabes tu isso?

— Ele contou-me.

— E queria que tu me contasses a mim?

Uma pergunta perfeitamente legítima. A resposta era obviamente «não». Eles eram amigos, um dos poucos que Vanja realmente tinha. Então, por que razão estava sentada num carro, a caminho de Västerås, a falar sobre ele?

A culpa foi de My.

Em algum momento daquele jantar em casa de Torkel e Lise-Lotte, encontrara-se sozinha com My e, de repente, dera consigo a contar-lhe que estavam a tentar engravidar. Nada que dissesse respeito a alguém. Muito menos a My, que conseguira a proeza de parecer interessada e curiosa, ao mesmo tempo que lhe contou sobre Billy, o trabalho, o casamento, a procura de uma casa de férias, tudo tão perfeito e maravilhoso que Vanja agora sentia vontade de sujar um pouco aquela imagem perfeita. Se My tinha conseguido descobrir uma coisa que era suposto ninguém saber, então, Vanja também tinha o direito de contar segredos.

Um raciocínio completamente errado, obviamente.

Mesquinho, infantil, imaturo.

Mas estava feito.

— Não podes contar a ninguém — disse para Sebastian com ênfase, arrependida. — Muito menos ao Billy.

— Claro que não.

— Promete.

— Mas as minhas promessas não têm valor nenhum — respondeu com humilhação fingida na voz. Percebeu de imediato que a piada não caiu bem. — Prometo. Se falar com o Billy, tenho outros assuntos a tratar.

Deixou claro que não lhe ia dizer o que era e Vanja também não perguntou. Pegou no telemóvel quando começou a vibrar.

— O Billy e o Carlos enviaram o que descobriram sobre a Ingrid Drüber.

Vanja começou a ler e prosseguiram viagem num silêncio confortável. Uma das melhores viagens de carro que Sebastian se recordava de ter tido.

Nem sequer a placa que, pouco menos de uma hora depois, lhes indicou que estavam a entrar em Västerås lhe estragou a boa disposição.


Por vezes, uma pessoa era obrigada a desistir.

Por vezes, não era possível continuar.

A chamada de Ida, os dois ataques, aquele jornalista que a abordara no parque de estacionamento, conseguira aguentar e ultrapassar tudo isso, pois estava focada no objectivo, que era mais importante do que as coisas mundanas que a atingiam, e tinha Deus a apoiá-la, que lhe dava força a cada passo do seu caminho.

Naquele dia, acordara às seis da manhã. Andava a dormir relativamente bem outra vez. Tomava mais precauções quando chegava a casa sozinha, sentia um certo desconforto de todas as vezes, mas, em geral, sentia-se melhor a cada dia que passava. Como soubera que ia acontecer. Com a ajuda de Deus. Sentia-se outra vez forte. Depois de meia hora de oração, uma caminhada rápida, um duche e o pequeno-almoço, fora para a igreja.

Quando terminara a reunião matinal com o pessoal, dirigira-se ao seu pequeno e espartano escritório. Uma secretária, um pequeno sofá e uma única poltrona num canto para conversas privadas, uma estante numa das paredes com brochuras informativas e a mesma quantidade de livros. Pinturas com diferentes motivos cristãos nas paredes verde-escuras. Por trás da cadeira, a sua favorita, uma impressão em tela de Salvator Mundi, possivelmente pintada por Leonardo da Vinci. Tinha reservado toda a manhã para o trabalho administrativo e para poder preparar a missa de domingo; não tinha nada relacionado com as eleições nem nenhuma sessão de conversa espiritual nem planificações de baptizados, casamentos ou funerais. A sua caixa de correio electrónico estava cheia de mails por responder, tinha um plano de reabilitação para rever, um assunto sindical com um dos músicos da igreja de que precisava de se inteirar. Um dia normal, com tarefas normais.

Depois tinham chegado aqueles dois.

Da Polícia. Da Brigada de Homicídios.

Uma mulher mais nova e um homem mais velho. Vanja Lithner e Sebastian Bergman. Sabiam tanta coisa, mais do que o jornalista. Pareciam saber tudo.

Por vezes, uma pessoa era forçada a render-se.

Por vezes, não era possível continuar.

A mulher mais nova não a largava com o olhar, como se quisesse ler e interpretar cada sílaba que Ingrid pronunciava.

— Nós sabemos da existência da Ab Ovo — disse-lhe e, de imediato, ficou em silêncio, claramente à espera de que Ingrid os elucidasse.

Por um breve momento, considerou mentir ou, pelo menos, fazer-se desentendida, mas compreendeu que, se a Polícia chegara até ela, era porque Klara ou Ida tinham falado.

— Um grupo antiaborto em Uppsala que a senhora liderou — acrescentou Vanja quando a resposta demorou a chegar.

— Sim.

— Do qual a Linda Fors fazia parte.

A vontade de negar tudo surgiu-lhe novamente. Klara não estivera presente na noite em questão, por isso, não poderia contar nada de especial. Que teria Ida contado? Tudo, provavelmente. Ingrid percebera pela sua voz que Ida estava prestes a ceder.

Tinha sido há oito anos.

A memória desvanece-se.

As pessoas esquecem-se, acrescentam pontos, retiram detalhes.

Talvez conseguisse fazer aquilo desaparecer mais uma vez.

Porém, para isso, precisava de saber mais.

— Porque querem saber sobre esse assunto?

— Acreditamos que um número de ataques, violações e uma morte podem ter uma ligação a esse grupo e ao que aconteceu com a Linda Fors — respondeu Vanja, objectivamente, ainda com o olhar fixo na mulher sentada na poltrona.

— A sério?

— Sim. Também foi atacada? — perguntou Sebastian.

— Não.

Uma resposta rápida, uma mentira rápida. Sebastian percebeu-a logo e teve a certeza de que Vanja também pensara o mesmo.

— De certeza?

Ingrid depressa reflectiu sobre as diferentes alternativas. Ajudá-la-ia se também ela fosse uma vítima? Se já tivesse sido punida. Não do ponto de vista puramente jurídico, claro, mas do ponto de vista pessoal. Em todo o caso, não podia ser prejudicial.

— Não quero que ninguém saiba disto — quase sussurrou, e baixou os olhos.

— Não precisamos de dizer nada a ninguém.

Ingrid inspirou fundo, levantou a cabeça e, com os olhos fixos em Vanja, contou-lhes sobre os dois ataques. Como tinham ocorrido. A primeira vez, quando se dirigia para o carro, depois de uma reunião na igreja. A segunda vez, em casa.

A seringa.

O saco horrível.

Ao falar dos acontecimentos em voz alta, ao conversar com alguém sobre eles, de súbito, percebeu quão profundamente aquilo a afectara, como aquelas experiências terríveis se agarravam a ela, que se convencera de que se sentia melhor do que na realidade sentia, mas também estava grata por a sua fé lhe ter permitido superar aquele período e continuar a sua vida.

Queriam saber se ela tinha visto o agressor.

Mas não. Das duas vezes, ele aproximara-se furtivamente por trás dela. Ficaram a saber quando os ataques tinham ocorrido. No esquema temporal que os criminosos pareciam seguir, ambos tinham ocorrido imediatamente antes dos ataques a Ida. Ingrid era, portanto, a primeira vítima. Parecia lógico. Ela fora, apesar de tudo, a líder do grupo.

Contar-lhes o que acontecera abalou-a muito. Trouxe-lhe memórias que fizera os possíveis por reprimir. Teve de se desculpar, sair da sala para se recompor, beber um copo de água.

— Conte-nos sobre a Linda — pediu-lhe Vanja quando Ingrid regressou e voltou a sentar-se.

— Não sei o que hei-de dizer...

— Como chegou ela até vocês?

— Estava grávida, os médicos aconselharam-na a interromper a gravidez e ela precisava de apoio e amparo, tinha ouvido falar do grupo através de uma amiga.

— Porque lhe tinham recomendado que interrompesse a gravidez?

— Disseram que havia demasiados riscos para os dois, se prosseguisse.

— Então, vocês convenceram-na a ficar com o bebé, apesar de saberem que era perigoso para ela — resumiu Vanja, esforçando-se por manter o tom de voz neutro, profissional.

— Não a convencemos — corrigiu Ingrid. — Ela veio ter connosco, porque queria ficar com ele. E ninguém «sabia» se ia ser perigoso para ela. Ninguém, para além de Deus.

— Então, a opinião dos médicos não teve muita importância? — quis saber Sebastian, conseguindo dissimular a crítica no seu tom de voz, bastante mais acerado do que o de Vanja.

— Deus poderia ter querido que tanto ela como o bebé sobrevivessem, e aí isso teria acontecido — respondeu Ingrid de maneira simples e natural.

— Mas, pelos vistos, não quis — constatou Sebastian. — O velho barbudo lá no céu concordou com a ciência médica...

Ingrid já passara por aquilo tantas vezes. As críticas dos estudiosos liberais da Bíblia, dos que adaptavam a fé às ideias básicas da secularidade contemporânea e rebaixavam o significado das escrituras, eram uma coisa, com esses, ela conseguia manter uma troca de ideias. Mas com um ateu acérrimo, como estava convencida de que era Sebastian, nem tinha necessidade de se dignar a responder. Fez-lhe antes um olhar quase compassivo e permaneceu em silêncio.

— Então, Linda foi ter convosco... — repetiu Vanja, tentando dirigir a conversa para o motivo pelo qual ali estavam. Não seria a primeira vez que os pontos de vista pessoais de Sebastian e a forma como os expressava arriscavam levar uma testemunha ou um suspeito a decidir parar de falar com eles.

— Ela não tinha apoio nenhum em casa — assentiu Ingrid. — O companheiro, o pai da criança, retraiu-se. Afastou-se dela, segundo o que percebi.

— E a relação com os pais, irmãos, amigos?

— Os pais não sabiam o que os médicos lhe tinham dito. Ela não queria contar-lhes. Não iam perceber, disse. — Ingrid fez uma curta pausa, inclinou-se para a frente e fixou o olhar em Vanja, como se fosse particularmente importante que ela compreendesse. — Ela estava completamente sozinha. Só nos tinha a nós, numa situação muito, muito difícil.

— O que aconteceu no dia 22 de Junho de 2010?


Ela telefonou ao fim da tarde e queria encontrar-se connosco. Tinha tentado convencer o companheiro a falar com ela, sobre eles, sobre o bebé, sobre o futuro, se o pior acontecesse. Mas ele não queria, não podia, retraiu-se. Ela estava mais sozinha do que nunca, também não se sentia muito bem fisicamente.

Elas estavam lá para ela. Todas menos a Klara Wahlgren, que também tinha acabado de ter um bebé. Um filho. Falam sobre elas terem filhos tão próximos em idade, que talvez se tornem bons amigos. Os filhos da Klara e da Linda.

Quando ela chega, está mais pálida do que é costume, mas também não é estranho, está a passar por tanta coisa. Tanto física como psicologicamente. Quando lhe perguntamos como está, ela responde que não está muito bem, que, pela primeira vez, parece que alguma coisa está errada. Essa sensação deixa-a com medo, leva-a a duvidar, a questionar-se. O facto de o companheiro não conseguir apoiá-la também não ajuda. Não tem ninguém lá para ela. Tem uma amiga, a Therese, mas ela não é um verdadeiro apoio, não compreende completamente. Só diz que vai apoiar qualquer decisão que Linda tome, que é ela que tem de decidir, mas, ao mesmo tempo, sente que a amiga acha que aquela é a decisão errada.

Então, não tem ninguém.

Tirando a Ab Ovo.

Elas conversam sobre tudo, não apenas sobre a gravidez e a preocupação. Conseguem fazê-la relaxar, sentir-se bem, ficar mais calma. Tentam levá-la a libertar-se da ansiedade, ter confiança de que Deus faz sempre o que é melhor, sentir alegria por ter uma pequena vida dentro dela. Apreciar o milagre que cresce dentro de si. Depois da conversa, rezam juntas. Por ela, pelo seu filho que vai nascer, pelo seu companheiro. Rezam para que tudo corra bem, para que tenha força naquele período difícil da sua vida, para que a ansiedade diminua e ela consiga encontrar um caminho de regresso ao companheiro e a uma relação cheia de amor.

Ela parece sentir-se melhor, mais contente e mais calma. Agradece-lhes, não sabe o que faria sem elas. Sem a sua fé. Sem Deus. Preparam-se para se separar. Linda só precisa de ir à casa de banho primeiro. Elas ficam à sua espera, conversam, sobre Linda e o bebé, claro, mas também sobre outras coisas.

É a Ulrika a primeira a aperceber-se.

— Caramba, está a demorar tanto tempo!

Esperam mais um minuto. Depois, vão todas juntas ao andar de baixo, onde ficam as casas de banho. Só uma é que está ocupada e trancada. Batem à porta.

— Linda?

Não obtêm resposta.

— Linda, estás bem? Está tudo bem?

Silêncio. Alguns segundos de hesitação confusa antes de decidirem que têm de tentar arrombar a porta. Felizmente, é uma fechadura antiga, com uma ranhura do lado de fora, onde conseguem enfiar uma moeda ou qualquer coisa estreita e levantar o fecho pelo lado de fora. É o que fazem.

A Linda está deitada no chão. Não está consciente e há muito sangue. Ficam todas em choque, não sabem o que fazer. A Ida começa a rezar em voz baixa. A Ulrika entra na casa de banho, abana a Linda para ver se ela recupera os sentidos, tenta encontrar a pulsação. Consegue encontrá-la, irregular, mas forte. Ela precisa de cuidados médicos, tem de ir para o hospital.

— Chamem uma ambulância!

Uma reacção natural, a reacção certa, mas não podem. Não podem chamar uma ambulância. Estão nas instalações da igreja. Nas instalações da Igreja da Suécia. Que não pode, em circunstância alguma, ser ligada às actividades do grupo.


— Percebem quão errado aquilo é? — Ingrid interrompeu o relato, e tanto Sebastian como Vanja repararam como ela se endireitou na poltrona, aquilo era claramente algo que a transtornava. — Um grupo que defende que a palavra da Bíblia, a palavra de Deus, é indiscutível e irrefutável não pode mostrar que pertence à Igreja.

— Porque não? — perguntou Vanja. Apesar de ter a sensação de que já sabia a resposta, só queria ouvi-la de Ingrid.

— Porquê? Porque perderam completamente o rumo. Iam fazer tudo para se afastar de nós, para explicar que não estavam envolvidos, que não sabiam de nada e iam tomar medidas.

— Pôr os fundamentalistas na rua — sugeriu Sebastian.

— Tomar medidas, porque nós acreditamos e vivemos de acordo com a palavra de Deus — continuou Ingrid como se nem tivesse ouvido o comentário de Sebastian. Tanto ele como Vanja notaram como a sua cara estava a ficar vermelha. — Porque defendemos que a vida é sagrada. Desceram tão baixo que iam desfazer-se de nós, que defendemos aquilo que deviam ser eles a defender. É por isso que a Igreja da Suécia está em crise.

— Então, decidiu não chamar uma ambulância. Porque tinha medo de ser despedida?

Ingrid virou-se para Sebastian e Vanja ficou com a sensação de que a sua paciência estava mesmo no limite. Praguejou para si própria em silêncio. Precisavam do máximo de informação possível, e invectivas constantes raramente eram a melhor táctica.

— Não estou à espera de que compreenda — respondeu Ingrid com uma calma que pareceu imponente a Vanja.

— Ainda bem, porque não compreendo mesmo.

— Se, por algum motivo, a diocese não me afastasse, a opinião pública exigi-lo-ia. A ralé nas redes sociais. Naquela altura, não era tão mau como é hoje, em que o Twitter pode destruir uma vida inteira, mas já era suficiente.

— Tenho a certeza de que há alguma seita maluca algures que a aceitaria de braços abertos.

— Sebastian! — interrompeu Vanja com voz firme. — Cala-te!

E foi o que Sebastian fez. Compreendeu o que Vanja queria, o que estava prestes a sabotar. Vanja virou-se para Ingrid de novo.

— Peço desculpa pelo meu colega. Por favor, continue. Que aconteceu a seguir?

Unindo forças, conseguem levar a Linda até ao carro, sentá-la no banco de trás. Ela continua a sangrar, mas, por alguns breves momentos, recupera a consciência, aterrorizada, confusa. A Ingrid conduz. A Rebecca e a Ida vão atrás, uma de cada lado da Linda. Incapazes de fazer alguma coisa, na verdade. Em pânico. A Ulrika vai à frente, no lugar do passageiro. A Ingrid tenta concentrar-se na estrada, atravessar o mais rápido possível a cidade de Uppsala ainda iluminada pela noite clara de Verão. De vez em quando, lança um olhar pelo espelho retrovisor.

Do banco de trás, chega-lhe uma torrente de actualizações e perguntas constantes, com vozes meio histéricas.

«Ela está a sangrar!»

«Quanto tempo falta?»

«Ela está inconsciente!»

«Ela vai sobreviver?»

«Acho que não está a respirar!! Está a respirar?!»

Enervada, a Ingrid grita-lhes para que se calem, não sabe, não pode responder às suas perguntas. Outro olhar pelo retrovisor. A Linda está consciente durante mais um breve instante. O olhar aterrorizado e suplicante. Sabe que alguma coisa está seriamente errada e, em silêncio, apela com o olhar dilacerado para que a Ingrid a salve. Ainda assim, a Ingrid pára o carro quando só falta um minuto para chegarem à porta das urgências. De repente, apercebe-se. Acompanhar a Linda até ao interior do hospital vai ter consequências.

Perguntas vão ser feitas, respostas vão ser exigidas, associações vão ser estabelecidas.

Lentamente, aproximam-se do hospital enquanto tentam chegar a acordo sobre o que fazer. Por fim, encontram um local meio escondido perto das urgências e retiram a Linda do carro. Deitam-na cuidadosamente no chão, ao mesmo tempo que a Ulrika, a que parece mais composta de todas, se dirige para a entrada das urgências, entra e vai à recepção. Rapidamente explica que está uma mulher deitada no chão, lá fora, a sangrar, parece estar muito mal. Desaparece antes de alguém ter tempo de fazer qualquer pergunta, encontra-se com as restantes no local previamente combinado. Aguardam até verem a equipa médica encontrar a Linda e levá-la para dentro. Depois, vão-se embora em silêncio.

Regressam à igreja, limpam a casa de banho, arrumam tudo. Os acontecimentos daquela noite são limpos, até estarem apagados. Decidem uma história que todas vão contar, se for necessário. Tinham-se encontrado em casa da Ulrika. Jantaram e conversaram. A Ingrid e a Rebecca acompanharam a Linda no regresso. Decidiram um local onde se separar. A uma curta distância do hospital.

Fizeram tudo o que podiam pela Linda. Fosse qual fosse o desfecho, não havia nenhuma razão para envolver a Ab Ovo. Ninguém ganharia com isso. Com passos e consciências pesadas, separaram-se à porta da igreja. Nenhuma delas estava orgulhosa do que tinham feito, mas não tinham tido outra alternativa.

— O que tinham feito, se ela tivesse sobrevivido? — perguntou Sebastian com genuína curiosidade. O plano rapidamente elaborado teria implodido no mesmo momento em que Linda recuperasse a consciência.

— Não chegámos a pensar nisso — admitiu Ingrid sem hesitar, e virou-se novamente para Vanja. Mudou o foco, mudou o assunto. — Mas porque acham que o que aconteceu com Linda está ligado ao que nos aconteceu agora?

Vanja olhou para Sebastian, que claramente lhe deixou a responsabilidade de responder. Vanja hesitou um pouco, mas decidiu-se pela verdade.

— Achamos que o atacante está a tentar engravidar-vos. Para vos obrigar a fazer uma escolha impossível. Como castigo.

— Não cabe ao homem castigar, isso é um trabalho de Deus.

— Nem toda a gente acredita em Deus — bufou Sebastian. — Felizmente.

Levantou-se para se ir embora, já estava farto, tanto de Ingrid Drüber como de si próprio. Além disso, já tinham terminado, tinham conseguido o que queriam. Parou à porta e esperou por Vanja.

— Mas porque está a acontecer agora? — perguntou Ingrid, detendo Vanja no momento em que ela se levantava do sofá. — Isto foi há oito anos. Porquê agora?

Era uma pergunta que tinham feito a si próprios, desde que ficaram com a relativa certeza de que tudo estava ligado à morte de Linda. Não obstante, não tinham conseguido chegar a nenhuma resposta.

— Não sabemos. Não aconteceu mais nada, que a senhora saiba, nos últimos tempos, ninguém a contactou a propósito disto?

— Esteve aqui um jornalista. Ele tinha ouvido falar da Ab Ovo.

— O Axel Weber?

— Sim, era esse, esteve aqui, mas não aconteceu nada e ele não voltou.

— Quando foi isso?

— Há duas semanas, mais ou menos.

Depois de a Brigada de Homicídios ter sido chamada, depois da conferência de imprensa. O que Vanja quisera saber era se alguém tinha mostrado interesse pelos acontecimentos de Junho há oito anos. Antes dos ataques e das violações terem começado. Mas supôs que as investigações de Billy e Carlos sobre Linda iriam dar-lhes alguns nomes com que pudessem trabalhar. Homens do seu meio que tivessem perdido tudo com a sua morte, dissera Sebastian. Não poderia haver muitos que correspondessem a essa descrição.

Fez uma nova tentativa para se levantar. Desta vez, conseguiu, mas só teve tempo de chegar à porta, que Sebastian continuava a segurar, antes de Ingrid a deter outra vez.

— Estou a concorrer às eleições para o lugar de bispo.

— Nós sabemos.

— Isto não precisa de ser conhecido, de se tornar público, pois não? Eu fiz mesmo tudo o que pude para vos ajudar.

— A investigação à morte da Linda Fors vai provavelmente ser reaberta — respondeu Vanja. — Depende do que isso revelar.

Imaginou que acabaria por determinar que todas as pessoas envolvidas naquela noite, da qual Ingrid era a única sobrevivente, fossem consideradas culpadas de homicídio por negligência, e, nesse caso, o prazo de prescrição já fora ultrapassado. Que algum procurador tentasse avançar com homicídio involuntário pareceu-lhe pouco plausível. O que queria dizer que não era provável que aquilo chegasse ao conhecimento do público.

— Um grupo antiaborto dentro da Igreja da Suécia, que contribui para a morte de uma jovem e do seu filho ainda por nascer e depois tenta esconder os factos — ouviu Sebastian dizer. — É melhor esperar que o seu Deus queira que isso fique em segredo, senão, parece-me que está bastante lixada.

Escancarou a porta e deixou a sala. Antes de o seguir, Vanja dirigiu a Ingrid um olhar que encerrava um pedido de desculpas.Estugou o passo e alcançou-o a meio caminho da saída, já com o telemóvel encostado à orelha para informar Torkel e saber se os outros tinham feito algum avanço.

— Às vezes, não percebo minimamente o que estás a fazer — constatou enquanto esperava que Torkel atendesse.

— Pois, eu sei, sou uma incógnita.

— Não és uma incógnita, és um idiota — contrapôs Vanja antes de Torkel atender e deixarem o assunto e a igreja para trás.


Estava calor na sala de reuniões.

Foi a primeira coisa que Torkel pensou quando, já um pouco transpirado, entrou e se juntou aos restantes elementos do grupo, depois de regressar de Estocolmo. Lançou um olhar rápido ao termóstato, que estava junto à porta: vinte e seis graus. Depois, olhou para Carlos, sentado à mesa com o lado direito do corpo virado para os outros, uma vez que ainda não recuperara totalmente a audição do ouvido esquerdo depois do acidente de carro. Tinha vestida uma camisa, uma camisola e um colete de penas. Lá fora, a temperatura começava a ficar mais normal para finais de Outubro, estando até ligeiramente acima do habitual. Uma chuva miudinha mas densa começara a cair à hora de almoço e não mostrava sinais de parar. O céu e a cidade estavam igualmente cinzentos. Faltavam três dias para chegar a Novembro, mas o tempo típico daquele mês antecipara-se e envolvera o país no seu manto mais deprimente e sombrio, que combinava bastante bem com o sentimento geral da equipa. Tinham chegado a um possível, e muito provável, móbil, mas não estavam de todo mais perto de uma detenção do que quando tinham começado.

A menos que um dos homens cujas fotografias estavam coladas no quadro branco fosse aquele que procuravam. O primeiro, numa fotografia a cores, de uns trinta anos, olhos e cabelo castanhos, o rosto arredondado e sem barba, irradiava simpatia. Hampus Bogren, o companheiro de Linda e pai da criança que nunca tiveram.

Ao seu lado, outro homem da mesma idade. Fotografia a preto e branco retirada do registo de passaportes. Uns olhos escuros, sob a cabeça rapada, que fitavam a lente sem sequer insinuarem um sorriso. Um aspecto que faria que a maior parte das pessoas acreditasse logo que tinha de ser ele o culpado, se aquela fotografia fosse publicada numa primeira página ou num noticiário. Algo que, sem dúvida, partilhava com noventa por cento da população, já que eram muito poucas as pessoas que conseguiam a proeza de parecer simpáticas e de confiança nas suas fotografias tipo-passe.

O homem da idade de Torkel e Sebastian, que aparecia na terceira fotografia, não era excepção. Os mesmos olhos escuros que o homem mais novo, mas com cabelo escuro encaracolado e barba. Um grande brinco numa das orelhas.

Rodrigo e Daniél Valbuena.

O pai e o meio-irmão de Linda.

E ainda um último homem, que Torkel não vira antes. Aproximadamente da mesma idade de Hampus, uns trinta anos, entradas marcadas e o restante cabelo comprido, loiro, penteado para trás, que lhe dava pelos ombros, olhos pálidos atrás de um par de óculos, um nariz muito proeminente sobre uns lábios finos e, entre os dois, um bigode que teria feito inveja a qualquer actor de filmes pornográficos dos anos 70.

— Quem é o Boris Holt? — perguntou Torkel, indicando com um gesto de cabeça a nova edição acrescentada ao quadro, ao mesmo tempo que se virava e regulava o termóstato para uns suportáveis vinte e três graus. Depois despiu o casaco.

— Um amigo da Linda. O seu melhor amigo, segundo a Therese. Pelo menos, até 2010 — respondeu Anne-Lie enquanto Torkel se sentava numa das cadeiras vazias em volta da mesa de reuniões. — Estivemos todos ocupados hoje — continuou. — Mas posso começar por relatar a minha visita à rua Almqvistgatan.

Milan Pavic abriu a porta. Anne-Lie explicou o motivo da sua visita. Precisava de falar com Therese. Milan perguntou se era mesmo necessário. Sim, era mesmo necessário. Desviou-se da porta e fez-lhe sinal para que entrasse no apartamento. Gabriella, a irmã mais nova de Therese, estava sentada na sala. Era como entrar numa fotografia a preto e branco: um sofá cinzento encostado numa parede, com almofadas brancas e cinzentas em cima; uma poltrona de tecido branco com uma manta cinzenta nas costas; fotografias a preto e branco nas paredes; um tapete cinzento-claro por baixo da mesa de centro branca. Os candeeiros, os vasos e todos os elementos decorativos eram brancos ou cinzentos. A única coisa de cor diferente era o chão de madeira castanha.

Gabriella perguntou a Anne-Lie se queria tomar alguma coisa. Anne-Lie recusou, agradecendo, e sentou-se na poltrona, quase com cautela, como se receasse que o seu vestido vermelho desbotasse.

— Como está ela? — perguntou à irmã enquanto esperavam.

— Dorme muito.

«Não muito bem, portanto», pensou Anne-Lie. Logo em seguida, Therese entrou na sala e confirmou-o. Vestira um quimono por cima de uma camisa e das cuecas. Poder-se-ia pensar que nunca dormia. Parecia tão cansada, olheiras escuras e marcadas em volta dos olhos, a pele pálida e seca parecendo quase transparente, os olhos semicerrados, como se tivesse de fazer um esforço enorme para os manter abertos. Sentou-se no sofá, e Milan, ao seu lado, colocou-lhe com cuidado uma mão no ombro. Anne-Lie ficou com a sensação de que ele nunca mais tencionava perdê-la de vista.

— Como tem passado? — perguntou-lhe.

— Nada bem.

— Consegue responder a algumas perguntas? — continuou Anne-Lie com toda a compaixão na voz que conseguiu. Therese assentiu com a cabeça, apertou melhor o quimono e cruzou os braços sobre a barriga, como se estivesse a abraçar-se.

Anne-Lie inspirou fundo e contou-lhe o que sabiam e o que pensavam. Sobre a Ab Ovo, sobre a morte de Linda, sobre o facto de talvez alguém querer vingar-se dela, e, depois de alguma hesitação, acrescentou que o motivo pelo qual fora atacada duas vezes era a intenção de a engravidar.

— Por isso, é importante que no hospital lhe tenham dado uma pílula do dia seguinte. Deram?

Therese limitou-se a assentir com a cabeça. Anne-Lie viu como as lágrimas lhe inundaram os olhos. Como se os ataques, a violência contra o seu corpo, contra todo o seu ser, não fossem suficientemente maus, agora também tinha de lidar com o facto de se tratar de alguém com um objectivo, um plano abominável para destruir aquilo que deveria ser o resultado tão desejado de uma união de amor. Queriam torná-lo em algo horrendo e grotesco.

— Therese não fazia parte da Ab Ovo. — Mais valia continuar a insistir, ninguém sabia quanto tempo Therese aguentaria responder às suas perguntas.

— Não.

— Sabia dos riscos envolvidos na gravidez da Linda? — Um novo assentimento com a cabeça. — Mas não tentou convencê-la a interrompê-la. — Aquela era mais uma afirmação do que uma pergunta. Se não tivesse sido esse o caso, Therese não teria sido atacada.

— Ela não queria. Não queria mesmo — respondeu Therese com as lágrimas a correrem-lhe pela cara. Milan agarrou-a com mais força, como se quisesse envolvê-la, protegê-la de tudo. — Ela era a minha melhor amiga. Eu apoiei-a.

— Claro que apoiaste.

— Fora da igreja, não tinha ninguém.

— Como se dava com os pais e o meio-irmão?

— Eles não sabiam de nada. Estava sozinha. Eu dei-lhe apoio.

Não era dessa forma que os autores dos crimes viam a situação. As pessoas que não tinham feito tudo para impedir a gravidez eram cúmplices, aos seus olhos.

— Consegue lembrar-se de alguém que pudesse querer vingar-se da sua morte? Além do companheiro, do pai e do meio-irmão?

— Boris — respondeu Therese de imediato, sem precisar de reflectir.

— Quem é o Boris?

— Boris Holt. Eles eram vizinhos quando ela morava na rua Jumkilsgatan, sabe onde é? — Sim, a Anne-Lie sabia. — Estavam sempre juntos, eu até tinha alguns ciúmes, sabe, ela era a minha melhor amiga, mas eu não era a sua.

Isso era algo que Anne-Lie conseguia compreender. Também ela tinha tido algumas relações dessas, onde a outra parte significava mais para ela do que o contrário. Era sempre uma tomada de consciência difícil de assumir.

— Mas a Linda cortou relações com ele, quando ele não a apoiou na decisão de ficar com o bebé. Acho que estava apaixonado por ela.

— Aparentemente, costumavam sentar-se os dois no telhado, à noite, quando eram mais novos. A ver o nascer do Sol, a conversar sobre tudo. Ele era mais como um irmão para ela do que o meio-irmão. — Anne-Lie concluiu assim da sua visita a Therese.

— E que sabemos sobre o Boris Holt? — perguntou Torkel, virando-se para Carlos e Billy. Um homem que perdeu a pessoa que amava. Exactamente o que andavam à procura.

— Chefe de logística numa empresa que vende produtos de limpeza doméstica. Mora nos arredores de Norrtälje desde 2013, é casado e tem dois enteados desde 2015 — relatou Carlos.

— Já foi lá alguém?

— Não vale a pena, eles foram de férias para o Chipre ontem. Voltam no domingo.

Torkel percebeu que teriam de esperar. Envolver a Polícia cipriota para interrogar Holt no local onde estivesse não era viável, por vários motivos, e telefonar-lhe apenas o alertaria para o facto de estarem interessados nele, o que não era a melhor ideia quando o suspeito já se encontrava no estrangeiro. Por momentos, Torkel brincou com a ideia de mandar pessoal da Polícia Científica a casa de Holt, nos arredores de Norrtälje, para recolher ADN, de forma a terem já a certeza de que ele era realmente um dos suspeitos, quando regressasse das férias. Porém, Holt não poderia ser considerado como presumível suspeito com base na informação de que dispunham. Estivera apaixonado por Linda, era tudo o que tinham, pelo que dificilmente conseguiriam justificar a legitimidade de uma busca domiciliária.

— Só agora pensei nisso — disse Vanja, interrompendo os pensamentos de Torkel. — Se o plano deles é engravidar as mulheres... Estamos em 2018, basta tomar uma pílula do dia seguinte.

— Eu diria que isso só funciona com a Therese — contrapôs Sebastian. — Se faziam parte da Ab Ovo, de certeza que consideram isso a mesma coisa que fazer um aborto.

— A Therese apanhou um daqueles Carros Seguros para casa. Em que fase estamos com esses? — Anne-Lie conduziu a discussão noutro sentido e virou-se para Carlos, que se endireitou na cadeira e consultou o bloco de notas que tinha à sua frente, em cima da mesa.

— Começaram há cinco anos como um serviço para estudantes, têm crescido desde então, e agora têm cinco carros. O fundador, um tal Felix Hoekstra, ainda é o director.

— E o que é que ele disse?

— Não estava lá.

— Onde está?

— Linköping, Växjö e depois Borås, uma pequena tournée por outras cidades universitárias, onde os municípios se têm interessado pelo nosso conceito — explicou a jovem que abrira a porta dos escritórios dos Carros Seguros, no centro de Uppsala, quando Carlos tocara à campainha. Quando lhe mostrara a identificação e explicara o motivo da sua visita, Carlos ficou a saber que a jovem se chamava Samantha e era a única pessoa que estava no local naquele momento.

— Mas isto não é uma empresa municipal? — perguntou Carlos, seguindo Samantha para o interior do escritório, preferindo continuar com o casaco vestido.

— Não, mas as questões de segurança são muito actuais, há bastante interesse em parcerias com empresas privadas. Como no nosso caso. — Samantha fez um gesto largo para as instalações vazias que pretendia englobar toda a empresa. O que não era muito difícil: três secretárias e cinco computadores. Num dos cantos, uma pequena kitchenette. Um quadro informativo, alguns cartazes e um mapa de Uppsala nas paredes.

Samantha explicou que o escritório estaria vazio, à excepção dela própria, obviamente, até às quatro da tarde, quando começasse a escurecer. Era nessa altura que aqueles serviços eram mais procurados. Quase todos os que trabalhavam para eles tinham outros empregos e, habitualmente, não podiam vir antes do final do dia, e apenas algumas noites por semana.

— Quantas pessoas trabalham aqui? — perguntou Carlos.

— Umas vinte, mas, numa noite normal, estamos aqui uns três ou quatro, e os condutores, claro. Mais algumas pessoas aos fins-de-semana.

— Preciso de uma lista de todos os vossos empregados.

— Não são empregados, são voluntários, não recebem salário.

— Preciso de uma lista de todas as pessoas que trabalham aqui — reformulou Carlos sem qualquer sinal de irritação, embora Samantha devesse ter percebido o sentido do primeiro pedido e a sua correcção apenas a fizesse parecer ter preciosismos linguísticos.

— Toda a gente entregou registos criminais — explicou Samantha, como se isso, de alguma forma, tornasse o pedido de Carlos redundante.

— Acredito que sim, mas, seja como for, preciso de uma lista.

Na melhor das hipóteses, surgiria um nome que eles reconhecessem da investigação. Alguém que pudessem ligar a Linda Fors, ou a qualquer outra das vítimas. Coisas mais estranhas já tinham acontecido.

— Não sei bem onde está, é Felix que trata disso. Ou Remi. Ela trata de muitos assuntos administrativos, mas também não está cá.

— Telefone a um deles — sugeriu Carlos, e Samantha pareceu achar boa ideia. Pegou no seu telemóvel, marcou um número e conseguiu resposta ao fim de alguns segundos. Anunciou que era ela e explicou o que queria. Depois, foi sentar-se a um dos computadores, fez login, seguiu as instruções telefónicas sobre como deveria proceder, continuou com mais alguns cliques e em pouco tempo ouviu-se o ruído da impressora que havia a um canto, a imprimir uma página.

— Mais alguma coisa? — perguntou, afastando um pouco o telemóvel da orelha. — Já que a tenho aqui ao telefone...

— Os serviços guardam informações sobre os trajectos?

— Guardamos informações sobre o trajecto de cada serviço? — perguntou Samantha para o telefone. Alguns murmúrios, alguns «okay» e mais alguns cliques.

O que mais lhes interessava saber era quanto tempo passava entre o telefonema de alguém a pedir um serviço e o momento em que chegavam a sua casa. Não que Carlos acreditasse que aquilo desse grandes resultados; estava a pedir aqueles dados mais para poderem eliminar uma relação entre os ataques e os Carros Seguros. Que alguém recebesse uma chamada ali, descobrisse se a pessoa que ligava estava sozinha em casa, avisasse o cúmplice para ir à morada em questão, forçar a entrada e esperar que a cliente chegasse a casa parecia-lhe inegavelmente inverosímil...

— Em princípio, é completamente impossível que seja feito dentro da janela temporal que estamos a investigar. — Carlos concluiu o seu relato da visita aos Carros Seguros.

— Alguma das outras vítimas utilizou os serviços deles?

— A Klara nunca os chamou, isso sabemos nós. Eles não têm serviços em Gävle, onde a Rebecca morava. E a Ida. Confirmei as horas do recibo que encontrámos de quando foi às compras, no dia 21, a meio da tarde, e eles não tiveram nenhum serviço nesse período.

— Bom trabalho! — exclamou Torkel quando Carlos fechou o seu bloco de notas. Estava impressionado com o homem friorento. Comparar os percursos dos Carros Seguros com o recibo de compras de Ida fora muito bem pensado. Era o tipo de raciocínio que Torkel gostava de ouvir por parte da equipa. Se alguma vez Carlos quisesse mudar de emprego, recebê-lo-ia de braços abertos. Seria um óptimo reforço para a equipa, calmo, metódico e simpático. Além disso, o facto de conseguir ficar com o braço direito de Anne-Lie, se Carlos alguma vez fosse parar à Brigada de Homicídios, era apenas mais um bónus.

— Perguntaste se o Weber lá tinha estado? — perguntou-lhe com a certeza de que a resposta seria afirmativa. Em relação a Carlos ter perguntado, não a Weber também lá ter estado. O repórter parecia ter passado à clandestinidade, não atendera nenhuma das chamadas de Torkel nem nunca lhas devolvera.

— Perguntei, mas não tinha. Pelo menos, que a tal Remi, com quem a Samantha estava a falar ao telefone, soubesse, e ela parecia saber quase tudo o que acontecia ali.

— Ele tem dito alguma coisa? — questionou Ursula, que apenas o encontrara uma vez. Mas sabia que Torkel tinha um certo respeito profissional por Weber e que ele, uma vez ou outra, até os ajudara.

— Não.

— O que disseram no Expressen?

— Nada.

Torkel estava sentado à mesa de carvalho escuro e polido, na elegante sala de reuniões com as históricas capas de jornais emolduradas nas paredes. Recordava-se bem da última vez que ali estivera, quando ele e Sebastian tinham convencido o então editor-chefe do jornal, Lennart Källman, a fazer uma entrevista a Sebastian que, indirectamente, levara a que David Lagergren o assassinasse. A Källman, claro, não a Sebastian. «Infelizmente», deu Torkel por si a pensar automaticamente e a arrepender-se, envergonhado, logo de seguida.

Também se recordava de, naquele dia, ter estado tão irritado com Källman como agora estava com a sua sucessora.

— Não me pode dizer nada?

— Sobre o assunto em que ele estava a trabalhar, não.

Torkel não respondeu, apenas inspirou fundo. Estava ali porque tinham descoberto que Weber tinha contactado Ingrid Drüber e era provável que ele tivesse encontrado uma ligação entre Linda Fors e a Ab Ovo.

Weber era competente.

Relutante, Torkel tivera de admitir que havia uma pequena possibilidade de Weber ter conseguido chegar mais longe do que eles. O que sabiam até ali apontava para isso. Ou, pelo menos, que chegara ao mesmo ponto que eles, mas mais rapidamente.

Então, ficara a saber que ninguém via Weber há mais de uma semana, quase duas. Um colega, segundo a percepção de Torkel, muito apreciado há vários anos, que desaparecera enquanto investigava crimes violentos. Poder-se-ia imaginar que a direcção queria cooperar para descobrirem o que acontecera.

Aparentemente, não.

— Mas não acabou de dizer que não sabem nada dele há mais de uma semana? — insistiu Torkel, incrédulo, com a esperança de ter percebido mal algum pormenor.

— Doze dias — confirmou Sonia.

— E é costume... desaparecer assim?

— Não, nunca o fez antes, segundo os colegas.

— Ainda assim, não me quer dizer o que ele descobriu e que pode ser o motivo do seu desaparecimento?

— Talvez queira, mas não posso.

Torkel percebeu imediatamente o que ela queria dizer, já ouvira aquilo antes. Protecção das fontes. Uma lei fantástica que obrigava um jornalista a proteger a identidade dos informadores. Claro que um editor-chefe não podia arriscar infringir essa lei. Torkel também não esperara conseguir livre acesso ao computador de Weber, mas contara com alguém interessado em ajudá-lo.

— Conversa de merda — exclamou Torkel, exaltado, inclinando-se para a frente. — Se verificarem as notas dele, o histórico das pesquisas, podem perfeitamente dar-me informação sem infringir nenhuma lei.

A sensação de déjà-vu era inquestionável. Tivera a mesma discussão, sentira a mesma frustração, com Källman, mas, desta vez, estava ainda mais decidido a conseguir levar a sua vontade avante. Tinha um forte pressentimento de que o motivo pelo qual Weber estava desaparecido era porque se chegara demasiado perto dos perpetradores.

Perigosamente perto. Mortalmente perto.

Porém, não conseguiu avançar mais.

Sonia explicou-lhe, com calma, que compreendia a sua argumentação, que, se o desaparecimento de Weber ainda não tivesse sido reportado à Polícia, ela poderia pensar em fazê-lo, mas não podia ser conivente com o facto de o jornal fornecer informação à Polícia. Isso levantaria sérias questões de confiança, e, principalmente em tempos de fake news e de quebra de confiança das pessoas na imprensa tradicional, era particularmente importante não fornecer armas que pudessem afundá-los ainda mais.

Torkel tinha mais argumentos — éticos, morais, factuais —, mas percebeu que seriam ineficazes. Sonia já se decidira. Agradeceu-lhe o tempo despendido, atravessou a redacção em direcção aos elevadores e, dois minutos depois, após ter devolvido a sua identificação de visitante na recepção, estava na rua. Um vento frio envolveu-o quando saiu para o espaço aberto em frente ao edifício da imprensa. Parou para apertar o casaco.

— É polícia? — ouviu alguém atrás de si perguntar, e virou-se. Uma mulher na casa dos trinta anos aproximou-se dele. Apresentou-se logo como Kajsa Kronberg, e Torkel julgou reconhecê-la. Não a vira lá em cima, nos escritórios do jornal? — Conhece o Axel? — perguntou-lhe Kajsa, confirmando, assim, a sua suposição. — Foi por isso que veio aqui?

— Sim, também o conhece? — Torkel sentiu a esperança reacender. Ela seguira-o até à rua, algo mais do que curiosidade tinha de a ter motivado. — Sabe o que ele andava a investigar?

Kajsa olhou em volta como se estivesse num filme antigo de espiões, e Torkel, sem se aperceber, deu alguns passos na direcção oposta da entrada, para ficar mais próximo da esquina do edifício.

— Ele andava atrás de alguma coisa chamada Ab Ovo. — Kajsa fez uma pequena pausa entre o «B» e o «O», provavelmente para enfatizar que isso era o mais importante e para o ajudar a lembrar-se daquele nome. — Queria saber como se podia recuperar uma página da Internet que tinha sido eliminada, mas acho que ninguém o conseguiu ajudar.

Torkel apercebeu-se, pela reacção dela, que não conseguira esconder a sua desilusão.

— Já sabiam disso — constatou Kajsa.

— Sim. Ele não mencionou outros nomes ou onde ia ou algo assim?

— Não, infelizmente.

— Obrigado na mesma — terminou Torkel e começou a dirigir-se para o seu carro, para regressar a Uppsala.

— Eu gosto muito dele — ouviu Kajsa dizer atrás de si. — O que vão fazer agora?

— Vamos emitir um alerta sobre o carro dele, tentar localizar o telemóvel também — afirmou Torkel depois de resumir o resultado do encontro com a representante do quarto poder, em Estocolmo. — Podes tratar disso, Billy?

Billy levantou os olhos do seu computador portátil. Tinha acabado de estar na página do fórum de jogos a ver se havia desenvolvimentos. Naquela manhã bem cedo, entrara e respondera ao tópico, concordara em pagar. Não porque se tivesse decidido a fazê-lo, mas para conseguir comprar algum tempo. Parecia que isso era tudo o que fazia ultimamente, comprar tempo. Adiava as coisas para o futuro na esperança de que, de alguma forma milagrosa, se resolvessem sozinhas. Agora, estava à espera de uma resposta de WoLf232, mas, até àquele momento, o seu post era a última entrada no tópico. Dedicara uma parte da manhã a tentar rastrear o remetente que estava por detrás daquele nome de utilizador, mas não tivera sucesso, e outras coisas tinham-se interposto. Nomeadamente, o trabalho. Aquilo a que devia dedicar toda a sua atenção, mas onde notava que ia perdendo cada vez mais a concentração, já que ia passando cada vez mais coisas a Carlos.

Ficaria melhor se fosse ver Stella?

Afastou esse pensamento. Não precisava disso. A falta que sentia do quarto vermelho não podia ser legitimada por assuntos de trabalho. Aquela não era das investigações mais técnicas em que já estivera envolvido, de modo que as suas competências de especialista não tinham sido particularmente necessárias. Analisara as filmagens das câmaras de vigilância várias vezes, verificara os telemóveis de Silas Franzén, rastreara as actividades de Dan Tillman na Internet o melhor que conseguira, fizera uma verificação dos antecedentes de Ingrid Drüber e, por último, a mesma coisa em relação aos quatro homens cujas fotografias estavam afixadas no quadro branco. Agora, aparentemente, tentaria encontrar Axel Weber através do telemóvel.

— Sim, sem problema — respondeu, e fechou o computador. — Mas, se ele não o utiliza há doze dias, é muito provável que esteja sem bateria — acrescentou, com a esperança de que todos compreendessem que, se fosse esse o caso, o telemóvel seria inútil.

— Também temos o computador e o tablet da Ulrika — recordou-lhe Ursula, e Billy assentiu com a cabeça.

— Já comecei a trabalhar neles.

— O que disse o viúvo? — perguntou Anne-Lie.

— Gösta? Quase nada. Ou muita coisa, mas quase nada que nos possa ser útil.


O homem grisalho saiu e foi ao encontro deles ainda antes de Ursula e Billy terem tempo de passar o portão. Tinham estacionado em frente à casa térrea de tijolo vermelho, na pacata rua de vivendas, com o nome muito apropriado de Lugnvägen[1]. O jardim ainda dava uma panorâmica verde, com três grandes abetos ao lado da casa, uma vedação de arbustos por trás da cerca castanha e uns quantos cedros de diferentes formas e tamanhos a crescer entre a relva e os canteiros de flores.

— Vieram para ver a casa? — perguntou o homem e fez um gesto com a cabeça para a pequena placa cor de laranja colocada mais à frente, junto a um buxo baixo, com o logótipo de uma agência imobiliária.

— Não.

— É uma boa casinha, mas agora demasiado grande para mim — continuou o homem, como se a resposta negativa lhe tivesse passado completamente despercebida. — O terreno também é grande e eu não gosto de jardinagem, era a Ulrika que tratava dele. Por mim, nem cortava a relva.

— Somos da Polícia — interrompeu-o Ursula e explicou que estavam ali porque queriam falar sobre Ulrika e uma morte ocorrida há oito anos.

— Da Linda? — constatou o homem num tom ligeiramente interrogativo e indicou-lhes que o seguissem para dentro de casa. — Querem um café? Ia preparar um para mim.

Ursula e Billy recusaram, mas ficaram ambos com a sensação de que, de qualquer modo, acabariam cada um com uma chávena na mão. Seguiram o homem de cabelos brancos, que, antes de abrir a porta de casa, se virou de novo para eles.

— Chamo-me Gösta, já agora.

Billy e Ursula apresentaram-se e entraram os três na casa.

— Não precisam de descalçar os sapatos — informou-os Gösta, e foram directamente para a cozinha, despindo os casacos no caminho. — Sentem-se, sentem-se. — Gösta apontou para as cadeiras que estavam à volta da mesa da cozinha enquanto ele próprio se virou para a bancada e para os armários pintados de branco, para começar a preparar o café.

Ursula e Billy penduraram os casacos nas costas das respectivas cadeiras e sentaram-se. Em cima da mesa estava um jornal diário aberto na página das palavras cruzadas; ao lado, um lápis, uma borracha e um par de óculos. Na extremidade da mesa mais próxima da janela da cozinha, no parapeito, onde havia dois vasos com flores vermelhas que até Billy foi capaz de reconhecer como gerânios, estava uma caixa com vários comprimidos, divididos por três compartimentos para cada altura do dia, alguns folhetos publicitários e uns quantos envelopes, dos quais pelo menos o de cima vinha do centro de saúde de Gottsunda.

— Sabemos que a sua esposa faleceu esta Primavera — começou Ursula por dizer, como para introduzir o motivo da visita. Gösta tinha terminado de preparar o café e acabava de abrir um dos armários por cima do lava-loiça e retirar três chávenas.

— Dia 18 de Abril. Depois, não aguentou mais... Acho que ninguém pensou que ia ser eu a ficar cá mais tempo, eu, que era mais velho do que ela vinte anos. Ela só tinha vinte e dois quando nos conhecemos, por isso, nem toda a gente ficou particularmente contente com a nossa relação, menos ainda os pais dela, suponho. Mas continuámos juntos. Vinte e nove anos, no total. Dois filhos... — Fez um gesto com a mão para o frigorífico, onde estavam duas fotografias, uma com um homem de uns vinte e cinco anos, com um bebé nos braços e uma criança de dois ou três anos agarrada à sua perna, e outra, com uma mulher mais nova, de cabelos escuros, que sorria para a câmara, que parecia ter sido tirada algures no Sudeste Asiático. — O Johannes e a Emelie, dois netos. A mais nova, que está aí, a Maya, nasceu em Março, e a Ulrika ainda teve tempo de a conhecer.

— Mencionou uma Linda quando lhe dissemos o assunto sobre o qual queríamos falar consigo. — Ursula fez uma nova tentativa de voltar a dirigir a conversa para o que os levara ali.

— Sim.

— O que nos pode dizer sobre ela?

Gösta abriu a porta do frigorífico e retirou um pacote aberto de bolachas com recheio, que colocou em cima da mesa.

— Era uma conhecida dela, da igreja. Era um pequeno grupo de mulheres. Encontravam-se de vez em quando. Querem leite?

— Não, obrigada. Sabe o que elas faziam?

— Não, encontravam-se, passavam algum tempo juntas — respondeu Gösta com um ligeiro encolher de ombros, ao mesmo tempo que fechava a porta do frigorífico. — Uma espécie de clube de costura, mas sem costureiras, presumo.

Portanto, não sabia nada sobre a Ab Ovo, nem o que o grupo delas defendia e o que as mantinha juntas. Ou então sabia, mas não sabia se eles sabiam e achava que também não precisavam de ser informados disso, se fosse esse caso. Na verdade, não importava realmente. Estava mais do que disponível para conversar com eles, e isso é que era importante.

— O que lhe contou ela sobre a Linda?

— Que morreu. Estava grávida e tanto ela como o bebé morreram. Ela tinha estado aqui nessa noite, tinham jantado com as outras do grupo. Eu não estava em casa, mas a Ulrika contou-me quando voltei. Trabalhei muitos anos para uma empresa de tecnologia e viajava bastante. Era bom, conheci muitas pessoas fantásticas, mas claro que também era difícil, principalmente quando os miúdos ainda eram pequenos, perdi muita coisa. Depois, quando fiquei mais velho, as viagens diminuíram, mas tornaram-se mais distantes. Trabalhávamos muito com a China, um país fascinante. Já lá estiveram?

— Não.

— Trabalhei até aos sessenta e nove anos, apesar de ter abrandado um bocado o ritmo. Não fazia sentido andar aqui por casa o dia todo, quando a Ulrika estava a trabalhar. Só pedi a reforma completa há cinco anos. Mas vou fazer setenta e cinco no próximo ano, por isso, está na hora de vender a casa e arranjar uma coisa mais pequena e mais simples. Ando a pensar se devo ir para mais perto dos miúdos, vivem os dois no Sul. O Johannes e a família estão em Kalmar, e a Emelie acabou de comprar um apartamento em Helsingborg.

— A Linda — disse Ursula, em tom de pergunta. Quase ficou com a consciência pesada, pareceu-lhe que há muito que o homem grisalho não tinha ninguém com quem falar.

— Sim, foi duro para a Ulrika, isso foi. Depois, havia sempre alguma coisa que... não sei, alguma coisa pesava sobre ela.

— Alguma vez conversaram sobre isso?

— Ela não queria, mas era uma coisa que lhe pesava, disso tenho a certeza.

— Sabe se ela falou sobre esse assunto com alguém?

Gösta virou-se de novo para a máquina de café, pegou na cafeteira e encheu as chávenas que estavam em cima da mesa.

— Ela manteve contacto com a igreja, depois veio outro padre de quem gostava. Um tal Cornelis Qualquer Coisa... Por isso, talvez com ele, com alguma diaconisa se calhar, não sei, na verdade.

Billy e Ursula trocaram olhares por cima da mesa. Pareciam estar a pensar a mesma coisa. Se a morte de Linda pesava sobre Ulrika, talvez tivesse querido fazer alguma coisa em relação a isso antes de morrer. Talvez tivesse contado a alguém.

Pedido perdão.

Obtido uma absolvição.

Com quem poderia ter falado?

Alguém da igreja, naturalmente, mas havia a possibilidade de a sua má consciência também a ter levado a estender uma mão à família e às pessoas próximas de Linda. Mas oito anos eram muito tempo e não parecia provável que tivesse mantido o contacto com alguém, se os tivesse chegado a conhecer.

Onde se encontravam pessoas mais facilmente, na actualidade?

Billy sabia a resposta.

— Ulrika tinha algum computador, um tablet ou um telemóvel? — perguntou e pôs uma bolacha na boca. Quando era mais novo e comia aquelas bolachas, retirava a parte de cima e raspava o recheio de chocolate do interior com os dentes, mas percebeu que era demasiado velho para fazer o mesmo ali.

— Sim, ela tinha essas coisas todas — confirmou Gösta. — Eu não uso nada disso. Quer dizer, tenho um telemóvel para os miúdos poderem ligar-me, mas, das outras coisas, não tenho nada. Até agora, ainda consigo pagar as contas no multibanco e comprar jornais e isso, mas é cada vez mais difícil. Na televisão e na rádio, toda a gente fala na Internet, nas apps e nos podcasts e essas coisas todas de que não sei os nomes.

«Toda a gente remete para a realidade», pensou Billy. Exigir que todos os serviços fornecessem os mesmos meios que há vinte ou trinta anos era a mesma coisa que exigir locomotivas a vapor ou poder comprar música em cassetes.

Outras opções, mais rápidas e melhores, tinham ocupado os seus lugares.

— Ainda tem aqui o computador dela e as outras coisas? — perguntou.

— Há umas semanas fui a um novo café — continuou Gösta sem qualquer sinal de que ouvira a pergunta de Billy. — Queria lanchar e eles não aceitavam pagamentos em dinheiro, já viram isto? Não aceitavam dinheiro!

— O computador dela e as outras coisas estão cá em casa? — repetiu Billy, e, desta vez, conseguiu uma resposta.

— Sim, sim, está tudo no escritório, querem ir lá ver?

Queriam mais do que isso. Queriam levar tudo, e não havia problema nenhum. A vantagem de Gösta não usar nada daquilo era que não tinha pressa nenhuma de que lhe devolvessem as máquinas da mulher, como lhes chamava.

— Por isso, vou dar-lhes uma vista de olhos assim que estivermos despachados aqui, a ver se encontro alguma coisa — acrescentou Billy ao relato de Ursula sobre a tarde passada com Gösta.

Parecia que mais uma peça do puzzle encaixava no lugar certo. Se Ulrika tivesse querido aliviar o seu coração, pedir perdão, isso poderia explicar a razão de os ataques estarem a acontecer agora e não anteriormente.

— Okay, o melhor amigo sabemos onde está. E os outros? — perguntou Anne-Lie, levantando-se, mostrando assim que se aproximavam do fim da longa reunião. Aproximou-se do quadro e apontou para as fotografias afixadas. — O ex-companheiro, o pai e o meio-irmão?

— O ex-companheiro é Hampus Bogren, mora em Hudiksvall, é professor do ensino especial, casado, uma filha. Não tem antecedentes criminais e nada que se destaque — confirmou Billy rapidamente e olhou para Carlos, para que o colega prosseguisse com os outros dois.

— Rodrigo e Daniél Valbuena. O Rodrigo veio para cá da Venezuela em 1977, casou-se com uma tal Gudrun Torsson e tiveram Daniél, em 1980. Divorciaram-se em 1983 e ele voltou a casar-se em 1986 com a Renata Fors. Tiveram a filha, a Linda, no ano seguinte. Divorciaram-se quando a Linda tinha quinze anos. O Rodrigo mudou-se para Gotemburgo, onde vivia o Daniél. Em 2013, mudaram-se os dois para a Venezuela e, em conjunto, abriram uma empresa de electrónica. Tentei entrar em contacto com eles, tenho um número de telefone que vai sempre parar a um atendedor de chamadas, e um email. Escrevi-lhes tanto em sueco como em espanhol, mas não me responderam. Basicamente, não sabemos onde estão. — Carlos terminou o seu relato, olhando para os restantes colegas.

— Pode ser um deles, mas não os dois — comentou Ursula.

— Porque não?

— Segundo o laboratório, as amostras de sémen não são de pessoas da mesma família.

Anne-Lie assentiu para consigo e olhou de novo para as quatro fotografias no quadro.

— O amigo, o Holt. Conhecia o pai ou o irmão?

— Devia conhecer — afirmou Torkel. — Pelo menos, o pai, se eram vizinhos.

— Ou o ex-companheiro.

— Se se tratar do pai, o seu ADN tem de corresponder ao da Linda. Já conseguimos alguma amostra do dela?

Anne-Lie virou-se para Sebastian e Vanja, que, por sua vez, olharam um para o outro. Qual dos dois iria relatar a visita que tinham feito naquela tarde? Vanja assentiu para Sebastian, que inspirou fundo.

— Não foi muito fácil.

Falavam disso quando Anne-Lie lhes telefonou a pedir que passassem em casa de Renata Fors, a mãe de Linda, uma vez que ela vivia perto do caminho de regresso de Västerås. Como poderiam obter uma amostra de ADN da sua filha morta sem lhe explicarem o motivo pelo qual precisavam dele e para que iriam utilizá-lo?

Era completamente impossível.

Ao mesmo tempo, a ideia de lhe explicarem as circunstâncias que envolviam a morte de Linda também não era particularmente apelativa. Uma mulher que, durante oito anos, acreditara que a sua filha se sentira mal quando regressava de um jantar com amigas, tentara ir ao hospital, mas não conseguira chegar a tempo. Será que queriam realmente refutar aquela explicação trágica e contar-lhe uma verdade ainda mais cruel? Decidiram tentar evitá-lo enquanto fosse possível.

Para bem de Renata.

Por pura consideração.

Conduziram até Örsundsbro. Nenhum deles sabia sequer da existência da pequena localidade antes de introduzirem a morada no GPS e, com a sua ajuda, encontrarem o caminho para a rua Skolvägen. Oito moradias de dois andares, idênticas e todas seguidas, com o mínimo possível de distância umas das outras. As casas pontiagudas eram todas vermelhas ou cinzentas. Renata morava numa das cinzentas, a terceira da rua. Estacionaram em frente à casa, passaram pela garagem, dirigiram-se à porta de entrada e tocaram à campainha. Depressa viram movimento atrás do vidro fosco e, no segundo seguinte, uma mulher de uns cinquenta anos abriu-lhes a porta. Sebastian não conhecera muitos irlandeses ao longo da vida, mas foi logo nisso que pensou quando viu os seus fartos cabelos ruivos e os olhos verdes. Usava umas calças de ganga coçadas e uma camisa branca larga, estava descalça e tinha um colar com um pingente em forma de flor-de-lis, suspenso logo abaixo dos seios. Explicaram quem eram, de onde vinham e que precisavam de falar com ela sobre a sua filha, Linda. Com uma expressão levemente surpreendida e confusa, Renata fez-lhes sinal para que entrassem. Ainda nem tinham tido tempo de se sentar na sala moderna e bem decorada quando Renata lhes perguntou o que queriam dizer com a necessidade de falar sobre Linda. Sebastian olhou para ela, parada à porta, visivelmente preocupada, as mãos à altura da barriga, uma a girar nervosamente um anel de ouro posto na outra.

— Por acaso, ainda tem alguma coisa que possa conter o seu ADN? — perguntou Vanja. Não havia nenhuma maneira subtil de apresentar o motivo da visita, nenhuma possibilidade de amenizar o assunto, mais valia dizer-lhe logo o que precisavam e esperar para ver quanto teriam de explicar.

— Não compreendo... — respondeu Renata, olhando, incapaz de compreender, de Vanja para Sebastian. Ele percebeu que não conseguiriam o que precisavam sem lhe contar o que sabiam. Aquilo que ela estaria agora a imaginar ser a explicação para aquela visita era, provavelmente, pior do que a verdade.

— Vocês são da Brigada de Homicídios, não foi o que disseram? — continuou Renata, confirmando, com essa simples frase, os receios de Sebastian.

— Sim... — respondeu Vanja, cautelosa.

— Ela foi assassinada? — perguntou a mulher num tom de voz débil, a partir da porta, ao mesmo tempo que levava a mão à boca e os olhos se enchiam de lágrimas. Sebastian e Vanja trocaram olhares. Não podiam esperar mais. Sebastian pediu-lhe que se sentasse. Renata fez o que lhe foi dito, ainda a girar o anel nervosamente à volta do dedo, vezes sem conta.

Sebastian começou a contar-lhe, calma e compassivamente.

— Ela sabia? — foi a sua primeira reacção quando Sebastian lhe explicou o que sucedera, todos os acontecimentos que tinham levado àquela visita e à pergunta sobre se havia algo em casa que pudesse conter o ADN de Linda. — A Linda sabia que podia morrer?

— Parece que sim — respondeu Sebastian. — Não lemos a sua ficha médica, por isso, não sabemos exactamente o que os médicos lhe disseram.

— E porque não me contou nada?

Que poderiam responder a isso?

Não havia nada que pudessem dizer-lhe.

Sebastian sabia que também não era uma pergunta para a qual Renata esperasse, de facto, uma resposta. Era uma frase que mostrava que se sentia obrigada a reavaliar a relação que tivera com a filha; que ela, como a maioria dos pais, contara que a filha fosse ter com ela numa situação daquelas; que a confiança entre as duas fosse tão grande, que procurasse o conforto e o apoio da mãe quando precisasse; que se conhecessem muito bem. Era doloroso e brutal perceber que, na verdade, nada disso tinha acontecido.

— E as pessoas daquele grupo? — perguntou Renata depois de alguns segundos a processar aquela informação e a organizar os pensamentos.

— Como dissemos, estamos a trabalhar com a hipótese de alguém estar a tentar vingar-se delas — respondeu Vanja.

Renata assentiu com a cabeça para si mesma, mas, de seguida, ficou paralisada quando fez a associação entre o que acabavam de lhe dizer e o motivo daquela visita.

— Porque querem o ADN da Linda? Estão a pensar que é o Rodrigo? — perguntou-lhes com um tom de voz que tornava evidente quão absurda aquela ideia lhe parecia.

— Não, de todo, mas temos de excluir o máximo de pessoas possível — respondeu Vanja de forma tão convincente que até Sebastian, por momentos, acreditou que era verdade.

— Ele está na Venezuela — informou-os Renata, deixando claro, ao mesmo tempo, que estavam a perder o seu tempo. — Toda a gente pensava que ele era católico, mas, afinal, era ateu. A Linda, sim, era crente. Mas eles respeitavam as crenças um do outro, ou a falta dela.

— Ainda não conseguimos contactá-lo. Nem ao filho.

— Eles adoravam-na, mas não... — Renata calou-se. A ideia de terem alguma coisa que ver com os ataques era tão impensável que nem conseguia expressá-la em palavras. Uma lágrima solitária correu-lhe pela face e Renata limpou-a com os dedos.

— A Ulrika Månsdotter contactou-a? — perguntou Vanja, tentando confirmar a teoria de algum tipo de confissão por parte de Ulrika.

— Quem é?

— Ela não entrou em contacto consigo?

— Não, quem é? Alguém que faz parte do grupo?

— Fazia. Já morreu.

— É uma de quem me falaram, das que morreram?

Vanja percebeu a que Renata se referia: uma das que morreram na sequência dos ataques, das violações. Não era o caso dela, mas não havia razão para entrar em pormenores sobre quem ou quando, por isso, Vanja apenas assentiu com a cabeça em concordância e prosseguiu, voltando atrás.

— Acha que ainda há alguma coisa aqui em casa com o ADN da Linda?

— Mas não havia nada — constatou Anne-Lie com uma certa desilusão.

— Não que ela conseguisse lembrar-se. Disse que ia pensar no assunto e nos contactaria se encontrasse alguma coisa.

— Okay, bom trabalho de todos — respondeu Anne-Lie, juntando as mãos num gesto que indicava o final do briefing sobre os resultados do dia. Todos se levantaram e começaram a arrumar as suas coisas. — Agora quero que façamos o seguinte — continuou Anne-Lie, chamando a atenção do grupo para si por mais uns minutos.

Torkel conteve-se. Era sempre «eu» com Anne-Lie, nunca «nós». A decisão de ele e a sua equipa não terem assumido a responsabilidade da investigação era uma coisa, mas o mínimo que podia esperar era ser informado do rumo que a investigação ia tomar, para poder acrescentar observações ou opiniões antes de se deparar com um facto consumado, para que o plano de acção fosse deles, não dela.

Contudo, aparentemente, não seria assim.

— Billy, ficas responsável pelo computador da Ulrika, o tablet e o telemóvel.

— Claro, isso vai ser bastante rápido. O Gösta deu-nos a palavra-passe.

— Carlos, continua a tentar encontrar o pai e o meio-irmão e vê se consegues contactar alguém que saiba como entrar em contacto com eles fora da empresa.

Carlos limitou-se a assentir com a cabeça e apertou o colete de penas ao mesmo tempo que lançava um olhar rápido ao termóstato.

— Torkel, investiga melhor as pessoas que trabalham para os Carros Seguros — prosseguiu Anne-Lie, mas foi interrompida por Torkel, que levantou uma mão.

— A Ursula trata disso, eu vou falar com a Kajsa Kronberg do Expressen.

Torkel tinha estado a pensar no breve encontro com ela. Ficara com a sensação de que ela tinha uma ideia do que Weber andara a investigar e preocupava-se com ele. Talvez conseguisse convencê-la a tentar descobrir o que o colega havia encontrado antes de desaparecer, sem ter de violar a lei da liberdade de imprensa. Por alguns instantes, Anne-Lie pareceu não ficar satisfeita, mas apercebeu-se sabiamente de que uma coisa era não o envolver antecipadamente nas decisões que tomava, outra era ordenar-lhe que as executasse.

Ainda não tinham chegado a esse ponto.

E também nunca lá chegariam.

— A única pessoa que nos falta interrogar é o ex-companheiro, que está em Hudiksvall — concluiu, com o olhar fixo em Torkel.

— Eu e o Sebastian falamos com ele — disse Vanja rapidamente, para grande surpresa de todos. Ainda por cima com Sebastian, que sentiu uma alegria calorosa e borbulhante crescer dentro de si. A iniciativa daquela manhã, o seu acto de altruísmo, dera realmente resultados. Vanja escolhera juntar-se a ele por iniciativa própria. Isso nunca acontecera antes, nem sequer nas alturas em que se tinham dado melhor.

— Precisamos de falar — afirmou ela, olhando-o com uma expressão séria, e Sebastian sentiu de imediato a tal alegria crescente a desvanecer. Com o risco de soar algo retirado de uma coluna de aconselhamento amoroso de alguma revista para adolescentes, para Sebastian, nunca nada de bom se seguia a essa frase.

«Precisamos de falar.»

Mas alguma vez tinha de ser a primeira.


Eles os dois no carro, novamente. Naquele dia, fariam algumas centenas de quilómetros. Duzentos e trinta até agora. Vanja levou-os para a saída de Uppsala, entrou na auto-estrada para norte e acelerou. Sebastian ia em silêncio no lugar do passageiro, a ver a paisagem ficar cada vez com menos casas, ao mesmo tempo que a luz do Sol desaparecia, até, por fim, ficar totalmente às escuras. E assim percorreram os restantes quilómetros na auto-estrada. Vanja ainda não dissera nada. Sebastian olhou para o seu próprio reflexo na janela do carro. Mais valia arrumar já o assunto. Virou-se para ela.

— Então, querias falar comigo sobre quê?

Vanja não respondeu, nem sequer olhou para ele, continuando simplesmente concentrada na condução, com as duas mãos no volante.

— Vanja...

Mais alguns segundos durante os quais ela parecia ponderar se devia dizer alguma coisa e, nesse caso, como havia de o fazer.

— Não vais gostar de ouvir — disse, por fim.

— Isso percebi eu quando disseste que precisávamos de falar — respondeu Sebastian numa tentativa de soar engraçado, mais para tentar esconder como estava, de facto, nervoso e ansioso para saber o que ia sair dali.

— Hoje de manhã, o que fizeste com o Valdemar, fiquei mesmo agradada.

— Ainda bem, era esse o objectivo.

— Pensei muito nisto e... ele é meu pai.

— Eu sei.

— Foi meu pai durante trinta anos, antes de tu apareceres — continuou Vanja como se Sebastian tivesse protestado contra o que dissera e ela precisasse de o convencer com mais argumentos. — Eu adorava-o. Ainda o adoro. E senti muito a sua falta.

Sebastian manteve-se em silêncio. Ela tinha razão, ele não ia mesmo gostar nada do que estava para vir.

— Como tu próprio disseste, destruíste a minha família e, se continuares a fazer parte da minha vida, vais voltar a fazer a mesma coisa.

Sebastian virou-se para o lado. Aquela conversa estava a dirigir-se rapidamente para uma catástrofe. Mal conseguia respirar.

— Não que o faças de propósito — ouviu Vanja dizer com a voz suave. — Ou porque queiras fazê-lo, mas porque não consegues evitar.

— Eu posso mudar, melhorar — esforçou-se Sebastian por dizer, em voz baixa.

— Podes mesmo? — perguntou Vanja e, de seguida, ficou em silêncio. Não porque estivesse à espera de que ele respondesse, mas mais para decidir se devia continuar, pôr em palavras o que pensava. Mas ele tinha mesmo de compreender.

— Eu sei que sentes falta delas. Da tua mulher e da tua filha. Da Sabine.

Vanja conseguiu ver como Sebastian ficou com todo o corpo tenso ao ouvir o nome da filha.

— Parece-me que estás a tentar que eu a substitua. Tal como fizeste com a Nicole e a sua mãe.

Sebastian não respondeu, não lhe pediu que se calasse, praticamente nem mostrou que tinha ouvido o que dissera, portanto, Vanja continuou.

— Eu não posso ocupar o seu lugar. Não quero ocupar o seu lugar. Eu não sou tua filha, Sebastian, sou filha do Valdemar.

Sebastian continuou a fitar a janela com o olhar vazio. A paisagem do lado de fora do carro combinava na perfeição com o sentimento que agora experimentava. Uma escuridão absoluta.

— Podemos ser amigos — ouviu-se dizer, finalmente, em voz baixa e ainda com a cara virada para a janela, para que Vanja não pudesse ver a lágrima solitária que lhe corria pelo rosto. Sebastian não se mexeu, não queria limpá-la, não queria que ela visse que estava a chorar.

— Sebastian...

— Colegas de trabalho — tentou, mais uma vez.

— Tu nunca te contentarias só com isso.

Verdade. Era mesmo verdade. Era isso. Colegas de trabalho. Ele fizera tudo para que essa situação se alterasse. Fizera demais, mostrava-se agora.

— Hoje de manhã, fizeste-o por mim ou por ti?

Sebastian esquecia-se constantemente de quão perspicaz ela era. Obviamente, tinha olhado para os acontecimentos daquela manhã e analisado tudo, não apenas o que acontecera mas também porque acontecera. Se não estivesse tão destroçado naquele momento, ficaria impressionado.

— Não pode ter sido pelos dois? — perguntou-lhe com um nó na garganta.

Vanja olhou para o seu perfil. Estava na hora de terminar aquela conversa. Não havia nenhuma boa forma de o fazer, mas não podia dar-se ao luxo de ter em consideração os seus sentimentos. Tomara uma decisão e tinha de o fazer compreender que era assim. Que seria assim.

— Tive uma família durante trinta anos. Depois, apareceste e atiraste tudo ao ar — disse-lhe com voz firme. — Estou finalmente a aterrar outra vez. A encontrar-me a mim própria, a recuperar a minha vida. E nem tu nem a Anna vão fazer parte dela.

Mais claro do que aquilo era impossível.

Também não havia mais nada a acrescentar.

Aparentemente, Sebastian compreendeu-o. Depois de mais um minuto virado para a janela, endireitou-se. Passou a mão pelo rosto, como para limpar algo. Vanja lançou-lhe um olhar rápido. A sua expressão estava completamente impassível. Inclinou-se para a frente e ligou o rádio.

Happier, de Ed Sheeran.

Não disseram mais nada durante o resto da viagem.


— Prefiro não falar da Linda.

Hampus Bogren expeliu o fumo do cigarro e estremeceu levemente, metido no seu blusão demasiado fino. Todo ele parecia fino, projectava uma imagem quase transparente, ali onde estavam, por baixo do único candeeiro de rua. Cabelo loiro, quase branco, um pouco comprido e mal tratado, com a franja a cair-lhe por cima de um dos olhos azul-claros, algo aquosos. Nariz recto e pontiagudo, maçãs-do-rosto bem definidas por baixo de uma barba de três dias, lábios finos que continuavam a sugar o cigarro. Pernas magras dentro das calças de ganga pretas, que terminavam num par de ténis Converse, de pele, também pretos. Sebastian achou que lhe lembrava um dos miúdos durões que tinham andado consigo no liceu há muitos anos. Daqueles que faltavam às aulas para ficar a fumar cigarros no espaço para fumadores.

Como estavam agora a fazer, onde ele e Vanja estavam sentados num banco de madeira desgastado e rabiscado, com Hampus à sua frente a ocupar um banco igual. À esquerda, havia um cilindro de cimento com um tubo metálico enfiado no meio e, na parte superior do tubo, uma placa onde se lia «Pode fumar aqui» com a imagem de um cigarro aceso.

Era tudo o que havia.

Dois bancos de jardim, um em frente ao outro, e uma placa, tudo colocado a seguir ao parque de estacionamento, fora da zona residencial. Nenhuma protecção contra chuva ou vento. Inóspito e de difícil acesso, como se a gestão do condomínio tivesse assumido a responsabilidade pela saúde pública.

Sebastian ainda não conseguira processar o que ouvira no carro. Sabia que acabaria por ter algum tipo de reacção dentro em pouco, que a conversa não cairia bem enquanto as palavras não estivessem cimentadas, isso ele sabia, mas conseguiu não se focar nisso. Tinha de se concentrar em Hampus.

— Porque não? — perguntou-lhe. — Porque não quer falar dela?

— Porque demorei muito tempo até conseguir ultrapassar isso. Consegui recomeçar, tenho uma nova vida — respondeu Hampus, olhando para as janelas iluminadas no prédio de três andares ao longe, onde tinha a companheira e uma filha à espera.

Antes de chegarem aos prédios amarelos de três andares, na zona oeste da cidade, Vanja explicara a Sebastian como queria conduzir a conversa. A situação era diferente de quando tinham conversado com Renata; aquele era um homem que podia perfeitamente ser um suspeito, um presumível criminoso. Vanja queria começar por lhe dizer que tinham reaberto a investigação relativa à morte de Linda, que novos dados apontavam para que as coisas não se tinham passado exactamente da maneira como a primeira investigação policial concluíra.

Não iam dizer nada sobre vingança.

Nada sobre as violações.

Iam aguardar para ver o que Hampus dizia.

— Fazemos como quiseres — respondera Sebastian, e, depois disso, não dissera praticamente mais nada, tirando respostas breves a perguntas directas.

Tinham tocado à porta do terceiro andar e, depois de se apresentarem, Hampus pedira-lhes para o acompanharem até à rua para fumar. Até à deprimente zona de fumadores, onde agora se encontravam sentados. Não podia fumar dentro de casa para não expor a filha à inalação passiva, e a administração do condomínio decidira que o jardim comum aos prédios também devia ser completamente livre de fumo.

— Foi aquela, a Ulrika, que vos contactou? — perguntou Hampus a olhar para os dois. Vanja pareceu surpreendida. Não esperava que a teoria deles fosse confirmada tão facilmente, a de que os que tentavam vingar a morte de Linda tinham conseguido a informação do membro da Ab Ovo que agora morrera.

— A Ulrika? — repetiu Vanja como se não fizesse a menor ideia de quem ele estava a falar.

— Ela telefonou-me este Inverno, uma Ulrika Qualquer Coisa. Disse que precisava de me contar uma coisa sobre a Linda. — Hampus atirou o cigarro para o chão e pisou-o com um dos pés ao mesmo tempo que retirava o maço do bolso do casaco para pegar noutro cigarro. — Eu não queria falar sobre aquilo, por isso, desliguei.

— Não está interessado em saber o que lhe aconteceu?

— Ela morreu — constatou, encolhendo os ombros. Pôs um novo cigarro na boca e acendeu-o. Sugou-o longamente e expeliu o fumo. — Demorei vários anos a conseguir aceitá-lo.

Levantou-se, deu alguns passos e ficou de costas para Vanja e Sebastian, a olhar para o edifício onde agora vivia, onde tinha a sua nova vida. Vanja e Sebastian esperaram que voltasse a falar. Observaram o fumo branco em volta da sua cabeça sob a luz fria.

—Não consegui lidar com aquilo, afastei-me. Pensei que, se me distanciasse da situação, não ficaria tão afectado. Deixei-a decidir. Tinha a certeza de que íamos perder o bebé, mas sempre pensei que ela sobrevivesse.

Parou de falar e voltou-se para eles. Os olhos tristes, destroçados. Sebastian reconhecia bem aquele olhar, já o vira muitas vezes no seu próprio reflexo no espelho.

— Demorei anos a conseguir lidar com o sentimento de culpa. Por não os ter conseguido salvar, por não a ter tentado convencer... Percebem?

Sebastian percebia perfeitamente.

A sensação de não ter conseguido salvar alguém.

Viver com isso.

Todos os pensamentos sobre o que se poderia ter feito de forma diferente, o que se deveria ter feito, o que se poderia ter feito mais. Sebastian tivera apenas alguns segundos para reagir e, ainda assim, voltava sempre àqueles pensamentos. Hampus tinha tido quanto tempo? Semanas? Meses? Tantas oportunidades em que poderia ter agido de outra forma, tantas oportunidades de mudar o futuro.

— Pedi à Therese, a sua melhor amiga, para tentar falar com ela, porque a mim não ouvia, mas... — Abanou a cabeça, um gesto que deixava completamente claro que a amiga também não conseguira chegar a Linda. Apagou o segundo cigarro e enfiou as mãos nos bolsos do casaco. — Agora sei que não podíamos ter feito nada. Ela estava completamente decidida, o corpo era dela. Eu não podia arrastá-la para um hospital e exigir que lhe fizessem um aborto.

Vanja observou-o. Era boa em muitas coisas, mas era a melhor quando se tratava de perceber se alguém estava a mentir ou não. Hampus Bogren não sabia das circunstâncias em torno da morte de Linda, disso ela tinha a certeza. E a Brigada de Homicídios estava convencida de que essa informação, provavelmente revelada por Ulrika, era o móbil que estava por detrás dos crimes que agora investigavam.

O que significava que Bogren não era um dos culpados.

Ainda assim, parecia-lhe demasiado leviano irem embora apenas com base numa convicção sua. Mas também não podiam pedir-lhe um álibi para as datas e horas em questão sem revelarem demasiado. Não tinham um nível de suspeita suficiente para o deterem para interrogatório, e, se ele suspeitasse da verdadeira razão para ali estarem, poderia destruir provas quando se fossem embora. Contudo, não precisavam de sair dali de mãos a abanar, pensou Vanja.

— Acha que nos poderia fornecer uma amostra do seu ADN? — perguntou-lhe no tom de voz mais neutro possível.

— Porquê?

— Como lhe disse, estamos a rever a investigação sobre a sua morte, e quantas mais pessoas pudermos excluir, melhor.

— Ela foi assassinada? — perguntou Hampus, estranhamente, com uma certa esperança na voz. Sebastian compreendeu na perfeição o caminho que os seus pensamentos estavam a tomar. Aparentemente, conseguira aceitar que não tinha podido evitar a morte de Linda, mas havia sempre uma réstia de dúvida corrosiva num qualquer recanto da mente. A devorá-lo por dentro. Se a morte dela se devesse a factores completamente fora do seu controlo, como ter-se cruzado com um assassino no caminho para casa, então, a última réstia de sentimento de culpa poderia ser apagada. Poderia ficar livre.

— Não — respondeu Vanja imediatamente, asfixiando-lhe a esperança. — Mas as circunstâncias da sua morte podem ser diferentes do que se julgou na altura, e estamos a rever as perícias técnicas.

— Mas foi a gravidez que a matou, ou não?

— Sim, que nós saibamos, foi — disse Vanja, honestamente. Teria preferido afirmar que Linda podia ter sido assassinada.Assim, ele teria provavelmente oferecido a amostra de ADN para se ilibar, mas era uma mentira demasiado grande, afectá-lo-ia demasiado. Não podia mentir sobre a causa da morte, sobretudo se pudesse vir a descobrir a verdade.

— Então, não estou a perceber... — Hampus pareceu francamente perplexo, ali parado à frente deles.

A neve começara a cair devagar. Alguns flocos pairavam em volta do halo de luz do candeeiro de rua solitário, ao qual Hampus estava encostado. A imagem de calma e harmonia contrastava fortemente com a confusão que emanava do homem que estava à frente deles.

— Eu não estava lá. Ela tinha ido jantar com umas amigas da igreja e tentou ir ao hospital. Eles só me telefonaram de manhã, quando ela já estava morta.

— De qualquer forma — insistiu Vanja —, o seu ADN seria uma grande ajuda.

Hampus observou-a e Sebastian quase conseguiu visualizar a sua convicção de que havia algo por detrás do pedido, que ela tinha um motivo secreto.

— Não.

— Porque não?

— Porque não quero. Não quero que vocês tenham o meu ADN. Não quero que o Estado tenha esse tipo de informação sobre mim nos registos.

Hampus olhou para ambos. Se tinham conseguido criar algum tipo de confiança até àquele momento, agora desaparecera. Puxou o casaco com mais força em volta do corpo, recuou um passo e deu a entender, com o corpo todo, que, do lado dele, a conversa estava terminada.

A conversa era voluntária. Portanto, terminaram.


Quase não havia trânsito e, com os máximos a cortar a escuridão agora cerrada, Vanja acelerou a fundo e atingiu uma velocidade à la Billy no caminho de regresso a Uppsala. Não queria passar mais tempo do que o necessário no carro com Sebastian.

Olhou-o de relance.

Estava de novo sentado meio virado para a janela.

Com a cabeça apoiada na mão, era difícil dizer se dormia.

Pelo menos, não estava a falar. Não falava desde que tinham deixado Hudiksvall e rapidamente constatara que Hampus Bogren, muito provavelmente, não era um dos homens que procuravam, apesar da relutância em fornecer uma amostra de ADN. Talvez se tratasse realmente de uma questão de integridade pessoal, talvez fosse culpado de alguma coisa, mas não daquilo que estavam a investigar, nisso estavam ambos de acordo.

O rádio estava ligado. Um programa em que o apresentador, com um tom de voz empático e, segundo Vanja presumiu, um interesse fingido, guiava os ouvintes que telefonavam através de histórias sem sentido sobre o tema «Elevar-se». Podia ser de uma depressão ou subir uma montanha ou numa promoção ou ficar na cama de manhã ou recuperar de uma doença ou até algo tão literal como ter caído de um barco. Era o ouvinte que decidia e Vanja não conseguia, de modo nenhum, compreender quem poderia achar interessantes aquelas histórias mais ou menos pessoais, aborrecidas e completamente sem sentido.

— Posso desligar isto? — perguntou em voz baixa.

— Claro — ouviu Sebastian responder.

Então, não estava a dormir.

Vanja desligou o rádio, mas arrependeu-se quase de imediato. Agora fizera-se mesmo silêncio total no carro. Considerou voltar a ligar o rádio, mudar o canal, procurar algo com música. Mas deteve-se.

Se estava muito silêncio, azar.

Aquilo que antes lhe dissera no carro, a caminho do encontro com Hampus Bogren, era o que precisava mesmo de ter dito. Recordou-se de como, há apenas algumas semanas, não suportava Sebastian. O jantar em casa de Torkel, o encontro com Valdemar (um acto que provava que ele era capaz de fazer algo que não o beneficiava apenas a si próprio) e o facto de parecer que, em geral, estava a fazer um esforço não era suficiente.

Não era o seu estado natural.

O prato da balança pesava muito mais para o lado insuportável, arrogante e antipático. O facto de ela se importar, de alguma maneira, com o que ele sentia, de não o querer magoar, na verdade, mostrava apenas como ele era incrivelmente manipulador. Não que tivesse mudado ou que alguma vez viesse a ser melhor. Ele era uma força destrutiva numa constante espiral descendente e, mais cedo ou mais tarde, acabaria por puxá-la para baixo com ele.

Mais do que já fizera.

Tanto, que ela não conseguiria voltar à superfície.

Por isso, sim, o que lhe tinha dito era algo que tivera de dizer.

Se se fizera um silêncio no carro por causa disso, azar.

Não obstante, deixou escapar um ligeiro suspiro de alívio quando o seu telemóvel tocou e ela atendeu a chamada em alta voz.

— Fala a Vanja, estás em alta voz — respondeu.

— É a Ursula — ouviu-se das colunas nas portas do carro. — Como correram as coisas na bela cidade de Hudiksvall?

— Não conseguimos ADN, mas tanto eu como o Sebastian estamos bastante convencidos de que não é ele — disse Vanja com um rápido olhar de confirmação para o lugar do passageiro.

— E devem ter razão — constatou Ursula. — O Billy já analisou o computador da Ulrika Månsdotter. Ela fez uma pesquisa pela Cosas Útiles em Março e enviou-lhes um mail.

— E Cosas Útiles é o quê?

— A empresa de Rodrigo e Daniél Valbuena, na Venezuela.

— O que lhes escreveu? — perguntou Sebastian, interessado, e endireitou-se no assento. — Olá, já agora.

— Olá. Escreveu que tinha mesmo de falar com eles e que tinha que ver com Linda.

— O que lhe responderam?

— Não responderam. Mas ela também deixou um número de telemóvel. Podem ter-lhe telefonado, ainda não temos as suas listas de chamadas.

Vanja e Sebastian processaram aquela nova informação sob um tipo de silêncio diferente daquele que reinara no carro apenas um minuto antes. Era um grande passo na direcção certa, mas, pelos vistos, iam dar outro ainda maior.

— E não é tudo — ouviram Ursula continuar a falar. — Os dois Valbuena entraram na Suécia por Gotemburgo há pouco mais de dois meses.

— Estão cá?! — Surpresa total na voz. — Na Suécia?

— Mas ninguém sabe onde. Não indicaram nenhuma morada. — Era impossível não ouvir a satisfação na voz de Ursula. Quatro homens suspeitos tinham, em apenas algumas horas, sido reduzidos a dois suspeitos principais. — Emitimos um mandato de captura em seu nome — informou-os Ursula desnecessariamente. Vanja lançou um olhar rápido para o relógio no painel de instrumentos.

— Falta-nos mais ou menos uma hora para chegarmos a Uppsala. Querem que vamos aí?

— Não, não há muito para fazer hoje à noite. A Anne-Lie quer começar amanhã às oito da manhã.

— Okay, então, eu vou para o apartamento e o Sebastian... — Virou-se depressa para ele. Queria ir para Estocolmo ou ficar em Uppsala?

— Eu vou para o hotel.

— Então, se calhar, vemo-nos lá logo — disse Ursula.

— Estás lá agora?

— Não, ainda estou no trabalho, hoje vou jantar fora.

— Com a Bella?

— Não... Conduzam com cuidado.

Ursula desligou a chamada e fez-se novamente silêncio.


Um guardanapo.

Um guardanapo branco, quadrado, de linho.

Não totalmente limpo, algumas nódoas aqui e ali mostravam claramente que alguém o utilizara. Ursula estava sentada na beira da cama do seu quarto de hotel a observar o pedaço de tecido quadrangular.

Isto não fazia sentido nenhum.

Ele conseguira convencê-la, desta vez. Era tarde, a cozinha estava aberta até às dez, era conveniente, estaria perto do seu quarto, já que tinha tido um longo dia de trabalho. Muito boas razões para se encontrarem no hotel.

Petros esperara por ela à porta e pareceu genuinamente feliz quando a viu, e ela própria sentiu como se fizesse um sorriso rasgado. Depois de um breve abraço, entraram na sala meio cheia. Ursula esperou que os sentassem numa mesa que fosse difícil de ver da rua, da entrada do hotel ou se alguém entrasse no bar e ficou satisfeita quando lhes indicaram uma por trás de uma estante cheia de livros e utensílios de cozinha que tornavam difícil ver através deles. Sentaram-se nas cadeiras amarelas, viram os menus e pediram. Ursula sentia-se dividida, pois não comia nada substancial desde o almoço, mas também não devia comer muito àquela hora. Decidiu-se por uma hippie bowl vegetariana e um copo de vinho. Depois dos primeiros tragos (e depois de, ocasionalmente, ter lançado alguns olhares inquietos para a entrada, confirmando que Sebastian não os conseguiria ver), relaxou. Petros também ajudou. Era muito melhor naquilo do que ela. Assegurou-se de que a conversa fluía sem problemas entre diferentes assuntos, ouviu-a atentamente, fez-lhe perguntas e também fez que a noite parecesse a continuação mais natural do último encontro que tinham tido.

A comida chegou e Ursula pediu mais um copo de vinho.

Contou-lhe, em poucas palavras, que a investigação estava a avançar e Petros, em tom de brincadeira, respondeu que era uma pena, pois isso significava que ela deixaria Uppsala em breve. Ambos concordaram que, apesar de tudo, Estocolmo não ficava assim tão longe. Ele acabava de lhe perguntar como estavam as coisas com Bella quando aquele pensamento lhe surgiu.

Da última vez que tinham estado juntos, no restaurante tailandês. Ele estivera em Västerås. Na noite anterior.

Na mesma noite em que Ingrid Drüber fora violada em sua casa. Em Västerås. Sabia-o agora.

Demorara menos de um segundo a aperceber-se de quão ridículo aquilo era. Estúpido mesmo. Um incontável número de pessoas tinha estado em Västerås naquela noite. Habitantes de Västerås, principalmente. De todas essas pessoas, uma era o suspeito deles. Mas não Petros. Obviamente que não. Eram os Valbuena, acreditavam agora. Até estavam bastante certos disso.

Rodrigo e Daniél Valbuena. Pai e filho.

Contudo, os suspeitos deles não partilhavam ADN um com o outro.

E Petros Samaras não partilhava ADN com os Valbuena.

Forçou-se a parar com aquilo, a afastar aqueles pensamentos. Tinha trabalhado demais, o seu cérebro estava a ferver. Aquele caso fora mais duro do que ela pensara ou quisera admitir. Era por isso que aqueles pensamentos parvos, ridículos e impossíveis lhe ocorriam. Tinha de ser isso, uma dessas opções, pelo menos. Ou outra coisa qualquer.

Concentrara-se em Petros, em tentar divertir-se outra vez, como tinham feito até então. Conseguira.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, despediram-se. Petros abraçou-a, Ursula disse-lhe que se tinha divertido muito e concordaram voltar a encontrar-se. De seguida, Petros abriu as portas do átrio de entrada do hotel, desapareceu na noite e Ursula dirigiu-se para os elevadores. Deteve-se. Hesitou. Regressou à sala do restaurante, onde o empregado estava a levantar as últimas coisas da mesa. Ursula desculpou-se e agarrou no guardanapo de Petros.

Com que ele limpara ao de leve a boca.

E que, por isso, continha amostras do seu ADN.

Depois, voltou para o átrio e apanhou o elevador até ao seu quarto. Onde estava agora sentada. Na beira da cama. Com o guardanapo à sua frente.

Não fazia sentido nenhum.

No fundo, sabia bem o que tinha acontecido e porquê. Não acreditava nada que Petros fosse um dos culpados. Não verdadeiramente. Mas permitira-se pensá-lo.

Para estragar as coisas para si própria.

Para arranjar uma razão para não confiar nele, para não poder confiar nele. Quase se sentia surpreendida por não se ter deixado apanhar por ele, não ter criado barreiras suficientes logo no início, para que nem chegasse a ser um encontro simples, agradável e normal.

Ela não conseguia lidar com o «normal», o «simples» nem o «agradável».

Não funcionava assim.

Tentara-o com Micke durante demasiados anos. Tivera esperança de conseguir fazê-lo, porque tudo seria muito mais fácil assim.

O casamento, a maternidade, a vida.

Se ela apenas se contentasse, se simplesmente ficasse satisfeita.

Tentara o mesmo com Torkel depois disso, afastara-se e terminara quando houvera uma oportunidade, ou um risco, de se tornar aquilo que ele queria.

Normal, simples, agradável.

Ela não era assim.

Então, qual era o objectivo de tentar a mesma coisa com Petros? Resultaria tão pouco com ele como resultara com Micke e Torkel.

Só conhecia uma pessoa com quem funcionara.

Uma pessoa com quem ela funcionara.

Uma pessoa que, tal como ela, nunca estava completamente satisfeita, nunca estava realmente estável. Que escolhia uma distância, um certo afastamento do centro da vida. Tal como ela. Uma alma gémea. Se é que existia algo assim.

Sebastian Bergman.

Jurara a si mesma que nunca, nunca mais, não com ele, mas mais valia admitir. Ela era impossível de aturar, tal como ele, e com Sebastian as coisas nunca seriam normais, simples e agradáveis.

Seria outra coisa.

Algo que apenas eles os dois podiam compreender e valorizar.

O comportamento lunático daquela noite fora o seu modo de se alertar para o facto de estar prestes a cometer um erro, se pensasse que era capaz de ser como todos os outros.

Conhecer alguém através de um site de encontros.

Ir a jantares, conviver, conversar e deixar a relação evoluir.

Aproximar-se e crescer com alguém.

Quem estava ela a tentar enganar, na verdade? Se iniciasse algo com Sebastian baseado em expectativas realistas, poderiam ter algo de especial. Apesar de tudo, amara-o em tempos.

Levantou-se da cama, dobrou o guardanapo e deixou-o em cima da secretária. A empregada da limpeza levá-lo-ia na manhã seguinte. Deixou o quarto, subiu um andar e bateu à porta. Com força. Ele talvez estivesse a dormir. Bateu outra vez. Com mais força, de maneira que fosse impossível alguém continuar a dormir do outro lado da porta. Mas continuou fechada.

Sebastian não estava ali.


Mas tinha estado.

Por um breve momento, menos de uma hora antes. Vanja deixara-o à porta do hotel. Parecera-lhe ter visto Ursula no restaurante, mas não prestara muita atenção e continuara a dirigir-se para o seu quarto.

Começava a aperceber-se.

A perda de uma segunda filha.

A forma como ela o dissera. Nem tu nem Anna vão fazer parte da minha vida. Pensar que Vanja, em algum momento futuro, perdoaria a mãe e a aceitaria de volta era algo que Sebastian via como altamente improvável. Ser metido no mesmo saco com ela não augurava nada de bom. De todo. Mais valia aceitar. Perdera-a.

Desta vez, para sempre.

Deambulou pelo quarto durante um bocado. Literalmente. Para a frente e para trás. Se bebesse ou usasse drogas, aquela seria a ocasião em que teria tido uma recaída. O seu acto altruísta, aquele que a faria dar o primeiro passo na reavaliação que fizesse dele (e que, por isso, objectivamente, talvez não tivesse sido puramente altruísta) fracassara, virara-se contra ele de uma forma que não conseguira prever. Deixara-o sem nenhuma esperança no futuro, remetido para as memórias do passado.

Era evidente que ela era, de certa maneira, uma substituição de Sabine. E isso não era de estranhar. Quando se perdia uma filha, era normal querer a outra próxima. Se se tivesse dois pais, não era tão certo que se quisesse ter ambos próximo.

Não era incompreensível.

Apenas insuportável.

Aquela fora a sua última oportunidade. Aproveitara-a e falhara. Estava na hora de aceitar que acabava ali. Estava na altura de seguir em frente. Só era pena que isso fosse o que ele fazia pior.

«Mas há males que vêm por bem», pensou enquanto vagueava pelo seu limbo de inquietação. Controlara-se por causa de Vanja, para poder continuar a fazer parte da investigação, próximo dela. Se ela, de qualquer maneira, não queria saber dele, não importava o que ele fizesse agora.

Nem com quem.

Ela pareceu-lhe surpreendida.

Por alguém estar a tocar à porta àquela hora da noite, mas ainda mais pela pessoa que estava do outro lado.

— Foi uma tarde angustiante, achei que devia vir saber como se está a aguentar — explicou Sebastian quando ela lhe perguntou o que estava ali a fazer, o que queria.

— Então, veio aqui para saber como eu estou? — Um cepticismo saudável na voz. Os olhos verdes fixos nos dele. — Desde quando é que a Polícia mostra esse tipo de preocupação?

— Eu não sou polícia, sou psicólogo. Psicólogo criminal. Assumo isso como parte das minhas responsabilidades quando trabalho com a equipa da Brigada de Homicídios — respondeu Sebastian, mentindo descaradamente. Se não fosse uma mulher, na opinião dele atraente e da idade certa, e ele não estivesse ansioso, desiludido e excitado, não se teria interessado minimamente pelo seu bem-estar. — Mas talvez esteja a incomodar?

— Não, não está, de todo — respondeu Renata e, sem demonstrar que ia deixá-lo entrar, permaneceu parada com a porta entreaberta, a olhá-lo como se tentasse decidir se teria outros motivos para aquela visita tardia. Sebastian dirigiu-lhe um olhar que sabia, por experiências anteriores, ser impossível de desmascarar. Depois de mais alguns segundos, Renata deu um passo para o lado e deixou-o entrar.

— Quer tomar alguma coisa? — perguntou enquanto ele descalçava os sapatos e despia o casaco. — Café, um chá?

— Não, obrigado, estou bem.

Renata levou-o para a sala de estar. Iluminação ténue, à excepção de uma lâmpada forte de leitura junto a uma das poltronas. Em cima de uma pequena mesa de apoio, junto a um copo de vinho praticamente vazio, havia um bordado. Aquilo surpreendeu-o. Por algum motivo, não a imaginara como alguém que fizesse trabalhos manuais. Renata fez um gesto com a cabeça para o sofá, acendeu as luzes embutidas no tecto e foi buscar o seu copo de vinho.

— Vinho? — perguntou-lhe.

— Não, não bebo.

— Porquê?

Segundo o que Sebastian sabia, era apenas na Suécia que alguém perguntava, directamente e sem constrangimentos, a razão pela qual outra pessoa não consumia álcool. Beber era a norma nos momentos de socialização, e não o fazer, de acordo com a maioria das pessoas, podia ser justamente questionado.

— Tenho uma personalidade dependente — respondeu Sebastian, e foi honesto, pela primeira vez, desde que ali chegara. Era uma maneira mais agradável de dizer que tinha tendência para os vícios. Em relação a um dos quais esperava, sinceramente, ter uma recaída dentro da próxima hora, ou fosse qual fosse o tempo necessário para a levar para a cama.

Sebastian sentou-se no sofá. Olhou em volta enquanto ouvia Renata na cozinha. A sala era branca, luminosa e parecia-lhe moderna e bem planeada. Grandes áreas, poucos móveis e, os que havia, pareciam escolhidos criteriosamente. Não fazia ideia se eram móveis de design ou do IKEA, mas era tudo elegante e com um cunho muito pessoal. Renata voltou com uma pequena bandeja. Um copo de vinho branco, uma cola light para ele e uma pequena taça com cajus.

— Trouxe uma cola para si — disse ao pousar a bandeja em cima da mesa, e sentou-se no sofá, ao lado de Sebastian, com o seu copo de vinho.

— Obrigado.

Sebastian esticou-se para a lata, abriu-a e serviu o copo. Bebeu um pequeno gole antes de se inclinar de novo para trás. Não valia a pena fazer conversa de circunstância, elogiar a casa e a decoração ou perguntar há quanto tempo lá vivia, nem falar sobre trabalho ou interesses. Estava ali na qualidade de profissional atencioso.

— Como já disse, a nossa visita esta tarde pode ter mexido com algumas emoções, por isso, queria vir ver como está.

— Pensei muito naquilo — assentiu Renata e bebeu um pouco de vinho. Sebastian sentiu a esperança aumentar. Era evidente que ela queria falar. Uma conversa aproximá-los-ia, abriria portas, dar-lhe-ia oportunidade de fazer o seu jogo. E ganhar. — Mais no que poderíamos ter feito de forma diferente — continuou Renata. — Não em relação à gravidez em si, mas antes disso. Para que ela tivesse sentido que podia confiar em nós. Que podia contar-nos.

Sebastian assentiu com a cabeça, concordante. Tinha dois caminhos à escolha. Concordar que houvera uma cisão, uma falta de confiança, e tentar aliviar a sensação de ter feito algo errado, diminuir o arrependimento dela.

Ou então...

Fornecer outra explicação para o que acontecera e retirar-lhe toda responsabilidade.

Tratava-se de consolo ou de agradecimento.

O sexo costumava ser melhor depois do consolo, mas o agradecimento era a forma mais segura de alcançar o sucesso. Naquela noite, não precisava de nada especial, satisfação pura e simples seria suficiente. Por isso, teria de seguir a via do agradecimento.

— Não quer necessariamente dizer que ela não confiava em vocês. Pode ter querido poupar-vos a uma situação muito difícil — disse Sebastian devagar, como se escolhesse as palavras com cuidado. — Ela sabia o que queria e também sabia o que vocês quereriam. Dessa forma, poupou-vos a um certo sofrimento. Em retrospectiva, acontecesse o que acontecesse, vocês não poderiam ter feito nada de diferente, porque não sabiam de nada.

— Então, o que está a dizer? Que foi por consideração que não nos contou?

— Pode ter sido. Eu não a conhecia, não sei nada sobre a vossa relação, só estou a dizer que não tem de ser por ela não ter confiado em vocês.

Percebeu que Renata tentava assimilar aquelas palavras, que era uma ideia nova, um pensamento bem-vindo.

— O que teriam feito? — continuou Sebastian, inclinando-se, interessado, para a frente. — Se tivessem sabido?

Renata bebeu mais um pouco de vinho, afastou uma madeixa do cabelo ruivo que caíra para a frente dos olhos e fixou Sebastian.

— Teríamos tentado convencê-la. Salvá-la.

— Ela não queria ser salva. Era adulta, maior. E tinha tomado uma decisão, o corpo era dela. Vocês não podiam arrastá-la para um hospital e exigir que lhe fizessem um aborto.

Plagiou as palavras de Hampus Bogren. Tinha a certeza de que ele não se importaria, era por uma boa causa. Ia conseguir levar alguém para a cama.

— Podíamos ter tentado. Talvez tivéssemos conseguido chegar a ela, fazê-la mudar de ideias. Talvez nos tivesse odiado por isso a seguir, talvez nunca mais nos falasse, mas pelo menos estaria viva.

— Pensar no que se podia ter feito de forma diferente é normal, mas, neste caso, vocês não podiam ter feito nada. Só se pode agir de acordo com a informação que se tem.

— Que ela não nos deu.

— Exactamente. Para vos proteger. Proteger a vossa relação. Assim, ela podia evitar a sensação de vos ter desiludido e vocês podiam evitar a sensação de impotência. Ou até talvez afastarem-se dela.

Sebastian viu como Renata reflectia sobre o que acabava de lhe dizer, as suas palavras a ocuparem um determinado lugar. Talvez estivesse apenas a imaginar, mas achou que algo na sua expressão corporal mostrava um certo alívio. Talvez não fosse exactamente agradecimento, mas alívio também servia.

Renata mudou de posição no sofá, sentou-se em cima das pernas dobradas, inclinou-se para o encosto. Apesar de restar muito pouco no copo, o vinho esteve perigosamente perto de transbordar. Uma madeixa de cabelo caiu de novo para a frente dos seus olhos, Renata prendeu-a atrás da orelha e olhou para Sebastian.

— Sabe, antes disto, quando lia sobre pessoas que publicavam anúncios in Memoriam e continuavam de luto depois de cinco, dez, quinze anos, pensava: «Get over it. Esqueçam o assunto, sigam em frente.» — Bebeu o resto do vinho e pousou o copo em cima da mesa. Quando ela se inclinou para a frente, Sebastian aproveitou para lançar um olhar rápido ao seu decote, mas com o cuidado de olhá-la nos olhos quando ela se endireitou outra vez. — Mas o que é que se faz quando isso é impossível? Quando tudo continua a ser saudade, um vazio?

— Percebo o que quer dizer — respondeu Sebastian. — O equilíbrio entre o luto e a memória e tentar seguir em frente... Pode ser muito difícil.

Teve esperança de que algo na sua voz indicasse a Renata que não estava a falar de um ponto de vista exclusivamente profissional, mas também pessoal. Que ele era alguém que realmente sabia do que estava a falar quando disse:

— Eu compreendo o que está a sentir.

— Quem é que perdeu? Se posso perguntar.

Sebastian hesitou. Não como parte do jogo, desta vez. Era verdadeira incerteza. Seria este o caminho que queria seguir? Utilizar a memória de Sabine para alcançar os seus objectivos? Queria abrir essa porta? Depois de uma breve reflexão, chegou à conclusão de que era difícil sentir-se ainda pior.

— A minha mulher e a minha filha. Na Tailândia, no dia a seguir ao dia de Natal, em 2004.

— No tsunami?

Sebastian assentiu com a cabeça e começou a contar-lhe. Vinte e cinco minutos depois, Renata inclinou-se para a frente e beijou-o.


Os colegas já estavam na sala de reuniões quando Sebastian entrou.

Fora um início de dia bastante invulgar, em todos os sentidos. Em vez de acordar a meio da noite, como era costume, com a mão direita fortemente apertada e a ansiedade provocada pelo sonho ainda a pairar sobre ele, como uma fina teia de aranha pegajosa, fora despertado por Renata, por volta das seis e meia da manhã. Ainda estava escuro lá fora, mas já era manhã. A sensação de vazio e tristeza que costumava sentir a seguir a uma conquista não estava lá. O alívio da noite desaparecera, mas ao menos não se sentia pior do que era habitual, constatou ao levantar-se da cama e vestir-se. Deu por si a não sentir necessidade de sair dali imediatamente, e, para seu próprio espanto, fez companhia a Renata na cozinha durante o pequeno-almoço. Já se deparara com aquilo antes. As mulheres que lhe davam algo mais do que apenas sexo. Aquelas a quem se podia ligar e começar a imaginar que queria voltar a estar com elas. Sobretudo quando se sentia ligeiramente em baixo de forma. Sebastian até tinha um nome para elas.

Cultivadoras.

Renata era uma cultivadora.

Sentia-se relaxado e descontraído na companhia dela. Não que aquilo fosse, de forma alguma, tornar-se duradouro. Se dependesse de Sebastian, nem nunca mais precisavam de se encontrar, mas era uma experiência agradável, que não acontecia com muita frequência.

— Desculpem o ligeiro atraso — disse Sebastian, olhando na direcção de Vanja. Deveria contar-lhes o motivo do atraso? O que tinha feito? Mostrar-lhe que, se ela não queria saber dele, ele também não queria saber dela? Não tinha nada a perder com isso, mas também muito pouco a ganhar, principalmente com os outros do grupo. Então, decidiu não dizer nada. Passou por trás de Carlos e Billy, a caminho de uma cadeira livre. Billy parecia estar a consultar uma página de jogos, reparou Sebastian ao olhar de relance para o seu monitor. Portanto, aparentemente, ainda não tinham começado o dia de trabalho.

— Então, o que se passa aqui? — perguntou enquanto puxava uma das cadeiras e se sentava.

— Estávamos a falar sobre as vítimas, a ordem... — respondeu Anne-Lie, apontando para o quadro onde, no canto esquerdo, estava agora uma folha de um bloco com uma lista dos nomes já muito familiares.

Ingrid. Ida. Therese. Rebecca. Klara. Ingrid. Ida. Therese.

— Rebecca está morta, por isso, se eles seguirem o mesmo esquema, a próxima é a Klara — explicou, embora não fosse necessário. Sebastian sabia perfeitamente qual fora atacada e quando. — Ainda não temos todos os pormenores — continuou Anne-Lie. — Mas delineámos um plano para os apanhar.

— E podem partilhar?

A primeira coisa que iam fazer era convocar uma nova conferência de imprensa. Informar que ocorrera outra violação, que a segunda vítima fora novamente atacada. Depois admitiriam, com alguma relutância, que não tinham nenhuma pista nova, que ainda não tinham presumíveis suspeitos e que, naquele momento, não sabiam explicar por que motivo aquela mulher especificamente fora agredida duas vezes ou se havia alguma ligação entre as vítimas. Ia parecer que não tinham avançado nada na investigação, e Sebastian adivinhou que seria Torkel quem desta vez assumiria um papel mais relevante.

— E acham que eles vão acreditar nisso, que não encontrámos nenhuma ligação? — perguntou com cepticismo.

— Pensamos que sim — respondeu Anne-Lie, séria. — Eles não sabem que contactámos a Ingrid Drüber, e o suicídio da Ida não foi publicado e, muito menos, relacionado connosco.

— Por isso, pensam que achamos que a segunda vítima foi a Therese, e ela nem sequer fazia parte da Ab Ovo — acrescentou Torkel.

— Mas, mesmo que não digamos nada sobre a Ida, não acham que eles estão a partir do princípio de que ela fez uma denúncia?

— Talvez sim, no pior dos cenários. Mas a questão é sabermos se isso os deteria, mesmo sendo esse o caso?

Sebastian reflectiu sobre o que acabava de ouvir e, em seguida, abanou a cabeça.

— Não, isso não vai resultar em nada. — Levantou-se da cadeira e ignorou os suspiros dos outros e o olhar irado de Anne-Lie. — Mesmo que consigamos levá-los a acreditar que não estamos a procurar alguém que tenha que ver com a Ab Ovo ou com a Linda Fors... — virou-se para a lista com os nomes no quadro — ... têm de ter percebido que já descobrimos a ordem. Que sabemos que a Klara é a próxima.

— Mais uma vez, talvez sim — respondeu Anne-Lie. — Mas parece-me que estamos a lidar com pessoas dispostas a correr riscos.

Era verdade, Sebastian tinha de o admitir. Talvez fossem atrás de Klara, mesmo sendo arriscado e podendo ser a última coisa que faziam. Pelo menos, para um deles. Sebastian encolheu os ombros.

— E então?

— Klara e o marido publicaram no Facebook e no Instagram que ele e o filho vão para casa dos avós paternos por alguns dias. Por isso, ela vai estar sozinha em casa, não pode ir com eles por causa do trabalho.

— E nós vamos mantê-la sob vigilância?

— Não exactamente, não só isso.

— Eu vou trocar de lugar com ela — disse Vanja, e Sebastian sentiu imediatamente um calafrio desagradável percorrer-lhe o corpo. O ligeiro bem-estar que sentira logo pela manhã desapareceu num milésimo de segundo e foi substituído pela inquietação. — A Ingrid, a Ida e a Therese foram atacadas em casa, das últimas vezes, por isso, é lá que vou estar.

— Não estou a perceber — admitiu Sebastian, e explicaram-lhe o plano.

A ideia era Vanja ficar em casa de Klara durante a noite. Sair de manhã e encontrar-se com Klara no seu próprio apartamento. Klara iria para o trabalho, certificando-se de que nunca ficava sozinha durante o dia; e, quando fosse hora de ir para casa ao final do dia, trocava outra vez com Vanja, que conduziria até «casa», entraria pela garagem, seguiria para o apartamento e passaria lá a noite.

— E se alguém estiver à espera dela? — perguntou Sebastian, reparando que a sua preocupação se traduzia em irritação e frustração na voz.

— Não podemos revistar a casa todos os dias antes de ela chegar — explicou Anne-Lie. — No caso de eles estarem a vigiá-la.

— Mas o Billy vai instalar câmaras com sensores de movimento — acrescentou Torkel antes de Sebastian ter tempo de protestar. — Saberemos se alguém lá entrar.

Sebastian limitou-se a abanar a cabeça. Aquilo não lhe agradava nada, mas sabia que a sua opinião não faria diferença absolutamente nenhuma. Era o que iam fazer e, se ele colocasse de lado a relutância instintiva em ter a sua própria filha infiltrada e exposta a perigos, o plano não era assim tão absurdo.

Poderia funcionar.

Teria de funcionar.

Sebastian nunca perdoaria nenhum deles se não funcionasse.


1 de Novembro

Therese fez uma nova denúncia, mas Ida não.

Parece-me inverosímil, mas talvez não seja.

Disseram que não tinham estabelecido nenhuma ligação.

Na conferência de imprensa, na segunda-feira.

Mas não precisam de ter feito para poderem perceber quem é a próxima.

Portanto, estão a vigiar Klara.

Ela está sozinha em casa.

Segura de que a podem proteger.

Já lá estive. Já os vi.

Isso dificulta. Fica mais perigoso.

Mas vou conseguir.

A qualquer preço.

Elas vão sofrer.

Como eu sofri.

Como tu sofreste.

Pensei fazê-lo no fim-de-semana.

No dia de Todos os Santos. Dia de Finados.

Quando homenageamos os mortos.

Mas mudei de planos.

Tem de ser amanhã.

Sexta-feira.

Vou preparar-me.


Sexta-feira de manhã.

Antes de o despertador tocar, Vanja acordou com uma sensação nervosa de expectativa no peito. Ficou na cama a inspirar e expirar profundamente, antes de pegar na pistola que tinha debaixo da almofada de Zacharias e a colocar em cima da mesa-de-cabeceira.

Penúltimo dia em que poderia acontecer alguma coisa.

Nesse dia ou no seguinte.

De resto, começava a sentir-se estranhamente habituada a acordar na cama de casal do quarto de Klara e Zacharias e ver a sua fotografia de casamento em cima da cómoda branca, ao lado do roupeiro, e as fotografias de Victor em diferentes idades, na parede ao lado.

Passara as primeiras noites completamente tensa. Não dormira praticamente nada, ficara acordada no escuro, a escutar e a reagir a cada som. À noite, havia sempre muitos barulhos, dentro e fora das casas, mas, como todos os sons ali eram seus desconhecidos, não sabia de onde vinham, se eram habituais ou não.

Se significavam que alguém estava dentro de casa.

Com ela.

Alguém que lhe queria fazer mal.

Por vezes, telefonava a Billy. A meio da noite. Pedia-lhe que confirmasse as câmaras mais uma vez. Só por precaução. Pegava no walkie-talkie e assegurava-se de que a equipa de apoio na rua estava a postos. Que estavam acordados. Que estavam perto. Verificava a arma, certificava-se de que a tinha sempre ao seu alcance.

Mas nada acontecera.

Durante a semana inteira.

Levantou-se da cama e foi para a casa de banho. Não havia nenhuma janela nesse percurso, por isso, não precisava de se preocupar em manter a cabeça ligeiramente virada, ou, de outra forma, tornar mais difícil alguém ver o seu rosto. Trancou a porta e entrou na banheira. Sentia-se mais segura, mas ligeiramente ridícula, quando colocava a pistola no cesto metálico onde estavam os champôs, amaciadores e o gel de banho. Era quando estava nua no duche que se sentia mais vulnerável e experienciava algo que apenas se poderia comparar ao medo.

Durante a semana, certificara-se de que, de vez em quando, pudesse ser vislumbrada através de alguma das janelas. Era da mesma altura que Klara e tinham a mesma constituição física. A única coisa que precisava era de uma peruca, para que os cortes de cabelo parecessem iguais. O facto de Klara ter uma franja comprida ajudara-os: bastava mexer um pouco a cabeça, mantê-la ligeiramente voltada e deixar uma mão brincar com a franja para que fosse muito difícil ver que ela não era Klara. A uma certa distância, tornava-se praticamente impossível.

Depois de se vestir, foi para a cozinha. Ali havia uma janela, mas, como apanhava o sol da manhã, era completamente natural se fechasse as cortinas. Uma chávena de café e uma sanduíche, depois sairia de casa. Tinham passado a semana toda a fazer as trocas com o apartamento de Vanja. Tinham ficado um pouco preocupados por, no caso de alguém andar a segui-la, poder estranhar o facto de, todas as manhãs e tardes, ela ir à rua Norbyvägen, mas Vanja garantira que nunca ninguém a seguiria. Tinha sempre percorrido caminhos diferentes até lá e controlara constantemente os carros à sua volta.

E assim passara o tempo.

Dia após dia.

Ou melhor, noite após noite.

Dormir em casa de Klara, sair de manhã, encontrar-se com ela, que seguia para o trabalho; de tarde, a mesma coisa, mas o inverso: ir para «casa», estacionar na garagem, entrar no apartamento e passar mais uma noite.

Repetir. Uma e outra vez.

Quatro dias, desde a conferência de imprensa.

Tudo tinha estado calmo.

Demasiado calmo. No dia anterior, Anne-Lie fartara-se. Vanja estivera prestes a ir deitar-se um bocado enquanto Klara estava no trabalho, quando foi chamada à sede da Polícia.

— O que aconteceu? — perguntou ao juntar-se aos restantes colegas que estavam reunidos no escritório.

— Não aconteceu nada, é esse o problema — respondeu Anne-Lie, claramente insatisfeita com a falta de resultados dos últimos dias. — Não fazemos a mínima ideia de onde estão os Valbuenas — continuou no mesmo tom de voz alto e irritado. — Tanto quanto sabemos, o ex-companheiro continua em Hudiksvall e a merda do Boris Holt volta do Chipre no fim-de-semana.

— Sabemos que o Hampus está mesmo em Hudiksvall? — perguntou Ursula a olhar para Carlos e Billy como se, por alguma razão, depreendesse que eles saberiam se ele se tivesse deslocado.

— Bem, mas não está aqui a atacar Vanja, ou está?! — disse Anne-Lie, quase cuspindo. — Ainda não encontrámos o carro do tal Weber e não sabemos mais merda nenhuma do que o matou.

— A Kajsa Kronberg, a sua colega, não nos pode ajudar — informara Torkel, calmamente, os restantes. — A sua chefe deu instruções ao departamento técnico para que a informassem se alguém tentasse aceder ao computador do Weber, por isso... — acrescentara com um encolher de ombros a indicar que era uma via sem saída. E não era a primeira, infelizmente. — Além disso, não temos a certeza se ele está morto — concluíra à laia de correcção, virado para Anne-Lie.

— Pois não, não sabemos merda nenhuma. Não temos nada, é inaceitável!

Torkel presumira que tinham sido chamados porque algum chefe superior teria perguntado a Anne-Lie «como está a correr?» num tom que, na verdade, queria dizer «vê lá se resolves isto, e depressa, senão...». A pressão sobre ela tinha aumentado depois da última conferência de imprensa, na segunda-feira, onde tinham revelado a segunda violação de Therese e onde, seguindo o plano deles, tinham dado a ideia de serem bastante incompetentes. Agora, os jornais escreviam artigos diários. Dois deles tinham enviado repórteres que, todos os dias, faziam reportagens a partir da «Uppsala em pânico». Os telejornais, os diferentes programas informativos e de debate, todos falavam das violações e, em nenhuma das peças, a Polícia era apresentada de forma particularmente positiva. O que também resultava do próprio plano, mas, ainda assim, Anne-Lie não tinha intenções de deixar que fossem vistos como incompetentes se o plano não resultasse. Torkel depreendeu que ela tentara falar com Rosmarie, mas que a amiga também não fora grande ajuda. Uma vez que Anne-Lie recusara passar a responsabilidade da investigação para a Brigada de Homicídios, nenhuma sombra poderia recair oficialmente sobre eles, nem, pela mesma razão, sobre Rosmarie. Portanto, aquele era um problema que cabia exclusivamente a Anne-Lie resolver. O que ela parecia completamente determinada a fazer.

— Vamos dar-lhes uma janela temporal, um prazo, obrigá-los a agir.

— Como? — perguntou Sebastian, deixando de imediato claro que achava que a ideia era má, mesmo antes de ouvir o seu desenvolvimento.

— A Klara há-de publicar nas redes sociais que vai estar fora durante algum tempo. Por tempo indeterminado. Vai-se embora no sábado à noite. — Anne-Lie pegara em algumas cópias que tinha na mesa à sua frente, distribuíra um exemplar a cada um e todos começaram a ler.

Só queria partilhar convosco que vamos deixar Uppsala no sábado ao final do dia. Eu, o Zach e o Victor vamos passar uma temporada fora. Logo vemos durante quanto tempo e onde vamos. O Zach e o Victor já estão em casa dos avós e eu vou lá ter no fim-de-semana. Tirámos algum tempo para podermos estar juntos, em família. Tem sido um Outono difícil e precisamos de estar sozinhos, os três. Só para saberem, se ficarmos em silêncio por aqui. Fiquem bem. Beijinhos, Klara.

— Ela sabe disto? — perguntou Vanja ao passar os olhos pelo texto.

— Claro que sabe, foi ela que o escreveu.

— Não — Sebastian fez-se ouvir quando acabou de ler e pousou o papel. — Não façam isto.

— Porquê?

— Não forcem uma reacção, não os provoquem, é assim que as coisas correm mal. Temos de ter paciência. Mais cedo ou mais tarde, eles vão atacar outra vez. Talvez não seja esta semana, talvez não seja na próxima, mas vamos apanhá-los.

— Esta semana já é demasiado tarde.

Sebastian olhou em volta em busca de apoio. Torkel pousara o papel e levantara os óculos para a cabeça.

— Mas isto é assim tão diferente daquilo que já estamos a fazer? — perguntou, virando-se para Sebastian.

— Sim, é.

— De que maneira?

Sebastian levantou-se da cadeira e começou a andar pela sala.

— Disseste que se tratava de um predador, quando vieste ter comigo a Sala, lembras-te? — perguntou, virando-se directamente para Anne-Lie.

— Lembro.

— Imagina um verdadeiro predador, um... um leão que ataca pessoas. Queres apanhá-lo e, para isso, deixas uma cabra à solta e certificas-te de que há sempre pessoas prontas a intervir se o leão vier apanhá-la ou matá-la.

— Acabaste de me comparar a uma cabra? — comentou Vanja com um pequeno sorriso. Sebastian ignorou-a por completo.

— Ficam à espera, o leão aproxima-se quando se sente seguro, ataca e vocês conseguem apanhá-lo.

— Okay...

— Agora, o mesmo cenário, mas, desta vez, são vocês que vão à caça do leão. Forçam-no na direcção da cabra com fogo e aquelas coisas de choques eléctricos que se usa nas vacas... O que achas que acontece? — Antes de Anne-Lie ter sequer tempo de tomar fôlego para responder, Sebastian continuou: — Ele ataca, mas não necessariamente a cabra. E depois foge. O mais certo é matar mais alguém pelo caminho.

— Sou eu a cabra, não é?

— Pronto, está bem, se calhar não foi a melhor metáfora do mundo — respondeu Sebastian depois de se deter um momento e reparar nos olhares cépticos e um tanto divertidos dos colegas. — Mas o cerne da questão mantém-se: é uma péssima ideia forçar uma reacção desesperada.

— A mim, parece-me uma óptima ideia — disse Vanja, endireitando-se na cadeira. — Porque havíamos de esperar mais do que o necessário?

— Acabei de explicar porquê!

— Eu sei que queres proteger-me, deve ser um qualquer tipo de complexo de pai, mas eu não preciso de ser protegida, principalmente por ti.

— Não tem que ver com isso, não tem que ver comigo.

— Tudo o que fazes tem que ver contigo. Mas eu sei cuidar de mim.

Sebastian abriu os braços num gesto que tanto podia dizer que desistia como que lavava dali as suas mãos.

Anne-Lie tivera a ideia.

Torkel não se opusera.

Vanja queria fazê-lo.

Sebastian nem sempre era muito perspicaz, mas até ele percebera que aquela era uma batalha que não podia vencer.


Isso fora no dia anterior. Vanja passara todo o final de dia e noite no apartamento de Klara. Tentara ler um pouco, ver um filme, mas não conseguira parar de pensar no que Sebastian dissera. Seria estúpido forçar uma acção? Ficariam, assim, os suspeitos mais desesperados e, portanto, mais perigosos? Tinha comunicado mais algumas vezes com a equipa que estava na rua e também telefonara a Billy, mas ficara com a sensação de que estava a incomodá-lo, de que ele tinha outras coisas, mais importantes, em que pensar. Como lhe parecera distraído e nervoso, Vanja terminara a chamada e telefonara a Jonathan, ficando a falar até altas horas da noite. Sentia-se mais nervosa, inquieta e exposta do que estivera toda a semana.

Porém, quando acordara, aqueles sentimentos tinham desaparecido por completo e tinham sido substituídos por uma excitação nervosa e expectante.

Seria naquele dia ou no dia seguinte.

Iam apanhá-los.

Finalmente, iam apanhá-los.

O que a deixava mais contente era aquilo estar a chegar ao fim, era poder voltar para Jonathan. Não se tinham visto a semana inteira. Sentia saudades dele. De todo ele. Da sua companhia, do seu corpo. Queria ir para a cama com ele, conceber um filho com ele.

Bebeu rapidamente o que restava na chávena de café e colocou-a no lava-loiça; saiu para o corredor e vestiu o casaco verde-escuro com capuz. Colocou-o na cabeça e viu-se ao espelho, endireitou a franja. Preferira poder usar também uns óculos de sol, mas, tendo em conta que mal estava de dia lá fora, e definitivamente sem sol, podia levantar suspeitas. Em vez disso, baixou ligeiramente a cabeça quando abriu a porta da rua, fechou-a atrás de si, trancou-a e continuou para a garagem. Sabia que os polícias que estavam no carro, mais acima na rua, conseguiam vê-la, mas não olhou sequer para eles quando virou à esquerda. Accionou o portão da garagem, que se abriu com um gemido queixoso. De todas as vezes que pegara no carro durante aquela semana, pensara que devia oleá-lo. Mas como se fazia isso e com quê? Não tinha a mais pequena ideia e agora também já não valia a pena. Se tinha ouvido aquele barulho todas as manhãs durante uma semana, podia bem suportá-lo mais um dia.

Entrou na garagem e os olhos demoraram alguns segundos a habituar-se à escuridão. Tirou o capuz da cabeça quando se dirigiu para o lugar do condutor do lado esquerdo do Polo azul. Estava prestes a estender a mão para o puxador da porta quando ficou gelada. Era mais uma sensação do que ter de facto registado alguma coisa.

De já não estar ali sozinha.

De que alguém tinha estado à sua espera.

No canto escuro à esquerda do portão da garagem, onde não tinham nenhuma câmara.

De que alguém se aproximava sorrateiramente dela por trás.

Em silêncio e com um par de ténis Vans, tamanho quarenta e dois e meio, calçados.

Instintivamente, decidiu nem tentar sacar a arma e experimentar antes a luta corpo a corpo. Todavia, não teve tempo de se baixar nem virar antes de a garagem sombria ficar completamente às escuras e sentir uma picada aguda no pescoço. Ainda conseguiu levantar um dos braços para tentar arrancar o saco da cabeça, mas o atacante desviou-a com facilidade. Pensou que tinha de tentar outra vez, tinha de conseguir tirá-lo, tentar ver o homem que a atacava, mas o braço já não obedeceu. No segundo seguinte, também as pernas deixaram de a suster e caiu, inconsciente, no chão sujo da garagem.

Berg e Yadav estavam sentados no carro, a uma distância razoável da casa de Klara Wahlgren. Mantê-la sob vigilância constante, mas sem serem vistos, essa era a ordem. Ambos desejaram não ser vistos, para não comprometerem, de forma alguma, o sucesso daquela missão. Precisavam de se redimir. Nunca falavam daquilo, mas ambos sabiam que cada um pensava frequentemente na falha durante a operação no bordel da rua Norrforsgatan. Agora, sabiam que não que tinham afugentado a pessoa certa, por isso, não constituíra grande dano, mas, ainda assim, não se podiam dar ao luxo de cometer mais um erro. Já tinham ouvido, depois da operação fracassada, como aquele psicólogo com algum excesso de peso, que Anne-Lie tinha arranjado, se referia a eles constantemente como Dupond e Dupont no refeitório. Dupond e Dupont. Se não tivessem cuidado, esse era o tipo de alcunha que podia pegar. Que os colegas iam usar e lhes chamariam em jeito de «gozo amigável», se Berg e Yadav dissessem alguma coisa.

Viram movimento junto à casa. Vanja saiu com o capuz do casaco verde por cima da cabeça. Trancou a porta, de costas para eles, e viram-na dirigir-se para a garagem, virar à esquerda e desaparecer de vista. Seguiram-na ambos com o olhar e Berg pegou num pequeno bloco de notas que estava entre os assentos, olhou para o relógio e anotou as horas a que ela saiu de casa. Ninguém lhes pedira para fazer aquilo, mas faziam-no. Registavam tudo. Quando saíam do carro, quando davam uma volta à casa (sempre a uma distância apropriada, claro), quando contactavam com Vanja, quando a viam pela última vez à noite, pela primeira vez de manhã. Daquela vez, nada poderia correr mal.

Berg voltou a pousar o bloco e a caneta e estava prestes a comentar com o colega que Vanja estava a demorar mais tempo do que o habitual a sair com o carro quando o Polo azul saiu da garagem em marcha atrás até à rua, virou à direita e ficou de frente para eles. Ficaram os dois sentados a observar Vanja, ainda com o casaco verde vestido e o capuz forrado a pele por cima da cabeça quando passou por eles. Berg levantou discretamente a mão, num aceno. Vanja levantou dois dedos do volante, mas não olhou para eles. Yadav pegou no rádio e reportou, através do canal que utilizavam para o efeito, que ela deixara a casa e estava em circulação, que os dois iam continuar a manter a casa sob vigilância e reportariam se vissem algo estranho ou se alguém se aproximasse dela.

Sebastian também ouviu a mensagem de Dupond e Dupont, sentado no seu próprio carro, numa das transversais, escondido, afastado. Não queria que Vanja soubesse que ele a vigiava, que se mantinha nas proximidades como reforço. Se ela ainda não tivesse cortado com ele, não teria ido para ali. Nesse caso, teria ficado aterrorizado se ela o descobrisse, se ficasse com a ideia de que ele não confiava nela, se achasse que pensava que ela precisava da protecção de um homem, todas as coisas que expressara no dia anterior. Mas, agora, já nada poderia realmente piorar, não havia mais nada a perder, por isso, podia pelo menos acalmar a sua própria aflição e fazer tudo o que pudesse para garantir que não lhe acontecia nada.

Assim que viu Vanja passar, ligou o motor do carro e avançou devagar. Virou à direita, sempre à mesma velocidade, e seguiu-a a uma distância segura. Sabia que ela controlava constantemente os carros atrás de si. Vanja acabara de chegar ao cruzamento onde deveria virar à esquerda. Sebastian abrandou até quase parar. O Polo ligou os piscas.

Para a direita. Virou à direita.

Sebastian ergueu uma sobrancelha confusa.

«Mas que raio...?»

Acelerou até ao cruzamento, virou também à direita, aumentou um pouco mais a velocidade e ainda teve tempo de ver o carro de Klara virar à esquerda, um pouco mais adiante, onde havia uma placa com o desenho de uma criança, uma mulher e um homem com uma mochila às costas: uma zona de recreio. Algo não estava bem. Havia alguma coisa errada. Sebastian seguiu atrás do carro, mas teve de parar por causa do trânsito em sentido contrário. Com uma sensação crescente de preocupação, pegou no walkie talkie que tinha em cima do assento do passageiro.

— Olá, Dupond e Dupont, é o Sebastian Bergman, estou atrás da Vanja e há qualquer coisa que não está bem.

— O que é que não está bem? — ouviu-se rapidamente em resposta.

— Ela foi por outro caminho, foi na direcção de uma zona de recreio qualquer, aqui ao pé.

O trânsito em sentido contrário finalmente abrandou e Sebastian conseguiu mudar de direcção e entrar no caminho mais estreito. Rapidamente ficou cercado de árvores.

— Se calhar decidiu ir por outro caminho para confundir possíveis perseguidores — respondeu Dupond ou Dupont, experimentando dar uma explicação.

— Não, não decidiu — gritou Sebastian, preocupado. — Passa-se alguma coisa. Mexam esses cus inúteis e venham para aqui imediatamente!

— Mas onde é que está?

Sebastian olhou em volta. Pois, onde estava? Não fazia a menor ideia. As tranquilas ruas de vivendas tinham sido rapidamente substituídas por campos abertos.

— Ela virou na primeira à direita e depois à esquerda... para uma espécie de zona de recreio ao ar livre. — Sebastian olhou pela janela, do lado direito. — Acabei de passar por um campo de futebol.

— Já sabemos onde é. Estamos a caminho.

— Despachem-se! — insistiu Sebastian, sentindo a respiração ficar mais pesada e o coração bater depressa no peito.

Estava com medo. Aterrorizado.

Continuou pelo caminho, passou por uma espécie de cabana junto a um estacionamento. Não viu nenhum Polo. O caminho ficou mais estreito, mas Sebastian acelerou. Após algumas centenas de metros, chegou a uma bifurcação. Parou o carro a praguejar, desapertou o cinto de segurança e saiu do veículo. Avançou até à bifurcação, como se fosse o raio de um batedor capaz de seguir marcas de pneus. Deu umas voltas sobre si próprio, a passar nervosamente as mãos pelo cabelo, soltou um gemido entredentes, olhou em volta. Ambos os caminhos seguiam pelo bosque.

Estava prestes a voltar para o carro para arriscar, escolher um deles ao acaso, quando ouviu a porta de um carro fechar-se, um pouco mais adiante no bosque, do lado esquerdo. Começou imediatamente a correr pelo pequeno caminho de gravilha. Depois de uns trinta segundos, viu o Polo azul parado na beira do caminho. Havia uma figura inclinada para o interior do carro, através da porta traseira aberta. Sebastian apenas conseguiu ver a base das costas, as pernas e os sapatos, mas percebeu de imediato que não era Vanja. Pareceu-lhe que o carro abafava o som dos seus passos de corrida, pois a figura apenas reagiu quando Sebastian já estava junto dela. Agarrou no casaco com força e puxou a pessoa para fora do carro, praticamente atirando-a para o lado. Lançou um olhar rápido para o assento traseiro. Vanja, a mulher com o saco por cima da cabeça só podia ser Vanja. Estava deitada de barriga para baixo, imóvel, com as calças e as cuecas puxadas para baixo. Sebastian olhou para trás, com a expectativa de ser atacado, de que precisaria de se defender, mas nada aconteceu. Virou-se ao contrário, surpreendido e confuso. Durante os poucos segundos que levara a compreender a situação dentro do carro, o perpetrador fugira. Sebastian viu-o correr na mesma direcção de onde ele próprio viera. Deixou-o fugir, não estava em condições de o alcançar e tinha coisas mais importantes para fazer.

Virou-se de novo para o carro; estava prestes a inclinar-se para o seu interior quando se deteve, ficando completamente paralisado. Entre as pernas de Vanja, estava uma seringa. Com uma substância.

Tê-la-ia anestesiado ali?

Mas, então, como teria conseguido enfiá-la no carro?

Vanja teria oferecido resistência. Nunca a teria conseguido levar até ali se ela não estivesse já neutralizada. O que queria dizer que a seringa não continha um soporífero, e, além disso, as outras vítimas tinham sido injectadas no pescoço...

Aos poucos, as peças do puzzle começaram a encaixar. Ocorreu-lhe o que estava, afinal, a observar. Mas, ao mesmo tempo, não percebeu. Era como se o seu cérebro se opusesse veementemente à conclusão a que queria chegar. Apercebeu-se do que era aquela substância branco-acinzentada dentro da seringa que estava à sua frente. Mas por que motivo precisaria um homem de ter esperma numa seringa?

Os pensamentos continuaram a cruzar-se uns com os outros, difíceis de apanhar, evasivos. O que significava aquilo que estava a ver? Algures dentro de si, sabia a resposta, mas era tão improvável, tão impensável, que a sua mente tentava forçá-lo a pensar noutra coisa. Demasiado estranho. Demasiado doente. Com um último olhar para Vanja no banco de trás, conseguiu finalmente chegar à única explicação possível. Correu o mais depressa que conseguiu, de volta para o seu carro estacionado, abriu a porta violentamente, pegou no walkie talkie e gritou para ele enquanto corria desenfreadamente de volta para o Polo azul e para Vanja.

— Uma mulher, temos de procurar uma mulher!!

Berg e Yadav tinham passado pela pequena cabana de madeira que pertencia ao clube de orientação e dirigiam-se para o estreito caminho de gravilha quando ouviram a voz de Sebastian via rádio. Yadav deteve-se e virou-se para o colega, que viu que estava a pensar a mesma coisa. Tinham acabado de passar por uma mulher, a andar apressadamente, no sentido contrário ao deles, na direcção da estrada principal. Era a única pessoa que tinham visto ali e Berg recordava-se que reparara nela porque estava sem casaco.

— Mas são violações, não são? — perguntou Yadav, deixando claro que estava com dificuldades em conciliar aquela última informação com o que sabiam sobre o caso em que estavam a trabalhar.

— Sim.

— Então, como é que pode ser uma mulher?

Berg não sabia o que responder e continuou a olhar fixamente para o colega. As mulheres também podiam cometer violações, mas não dessa forma, não como fizera o suspeito que procuravam. Não que ele soubesse.

— Não sei.

— Era uma mulher, aquela por quem passámos... — comentou Yadav com um gesto da cabeça para o vidro traseiro e o caminho de onde vinham.

— Pois era, mas... — Berg não terminou a frase. O que deveriam fazer? O psicólogo balofo tinha dito que era uma mulher, mas estavam à procura de um violador. Tratava-se de violações por ataque, com ejaculação. Em mulheres. Se voltassem para trás e prendessem uma mulher por esses crimes, seriam novamente humilhados. Ficariam cimentados como Dupond e Dupont. Mas, por outro lado... Tinham recebido uma ordem directa. De um homem mais próximo da investigação e que, provavelmente, também era testemunha ocular. E se se verificasse realmente que algo estava errado no carro, o que era provável, tendo em conta o sítio onde se encontravam? Por que motivo haveria Vanja de ter ido para ali, em vez da rua Norbyvägen?

— Pode ser uma cúmplice, de alguma forma? — tentou Yadav, interrompendo os pensamentos de Berg.

— Pois pode — assentiu Berg. — Pode mesmo ser uma cúmplice.

Trocaram um olhar rápido e decidiram-se. Yadav engatou a marcha atrás, virou o carro e foram atrás da mulher que passara por eles momentos antes.

Estavam ambos sentados no banco de trás quando Vanja acordou. Sebastian conseguira levantá-la até ficar sentada, estava encostada a ele e a porta do carro aberta. Tinha enfiado o saco e a seringa no porta-luvas. Sem se preocupar com o facto de, provavelmente, estar a destruir provas. Vanja não teria de ver nada daquilo quando acordasse, nem haveria a mínima hipótese disso. Durante pouco mais de um minuto, mexeu-se ligeiramente antes de abrir os olhos, como se o seu corpo acordasse antes do cérebro. Olhou fixamente para a frente durante alguns segundos e Sebastian pôde ver como ela tentava perceber onde estava, com quem e como chegara ali. Quando o fez, endireitou-se imediatamente e a respiração ficou pesada.

— Está tudo bem — disse Sebastian carinhosamente, mas percebeu que ela não se sentia nada bem quando olhou para ele com pânico no olhar.

— Está tudo bem. Não aconteceu nada — continuou em voz baixa, tranquilizador. — Garanto.

Aos poucos, Vanja apercebeu-se do que ele estava a dizer, do que poderia ter acontecido. Olhou para as suas pernas. As calças estavam vestidas, o fecho apertado, tudo no lugar. Olhou de novo para Sebastian com ar inquisitivo, para que lhe confirmasse que tinha percebido bem.

— Não aconteceu nada. Consegui chegar a tempo.

Não havia motivos para a fazer passar por mais traumas do que o necessário. Já era suficientemente mau, o facto de ter estado tão perto. Por que motivo havia de lhe contar como a encontrara? Seminua. O perpetrador inclinado sobre ela. A seringa entre as pernas. Que ele próprio a vestira. Quem ganharia com isso? Ninguém. Não havia razão nenhuma para a expor a um sofrimento desnecessário. A seringa estava cheia, não estava? Sim, estava. Era melhor deixá-la continuar a viver na ilusão de que o máximo que lhe acontecera fora ser drogada e sequestrada. Isso já lhe acontecera antes. Com Edwad Hinde. Daquela vez em que Billy os salvara aos dois. Desta vez, fora ele.

— Não aconteceu nada — repetiu, em voz baixa. Para a convencer a ela mas também porque uma pequena, ínfima, parte de si próprio também precisava de ser convencida.

Vanja assentiu com a cabeça, ainda precisava de algum tempo para assimilar a informação. Encostou-se novamente a ele, a cabeça no seu ombro, e Sebastian sentiu como a grande tensão do seu corpo começava a dissipar-se, ficava mais descontraído. De seguida, começou a chorar. Apertou-a contra si.

Continuavam sentados no banco de trás quando Sebastian ouviu outros carros aproximar-se, vozes por entre as árvores do bosque, e viu Torkel a correr direito a eles. A ansiedade quase criava um halo incandescente em torno dele.

— Ela está bem, não aconteceu nada. Consegui chegar a tempo.


O Sol brilhava no céu azul-claro, mas não aquecia. Estava tanto frio como no pino do Inverno, e isso deixava Sebastian ainda mais irritado e tenso. Com os dentes bem cerrados, atravessou a recepção, passou o seu cartão de acesso, avançou para os elevadores e subiu até ao oitavo andar.

Tinha acompanhado Vanja ao hospital, para uma observação rotineira. Sobretudo para confirmarem que o soporífero não provocara outros efeitos. Tinha a cabeça dorida, do lado onde pensava que teria batido ao cair no chão da garagem. Aconselharam-na a estar atenta a sinais de traumatismo craniano. Fora isso, estava tudo bem e normal. Sebastian deixara o hospital quando Jonathan aparecera.

Agora saía do elevador e dirigia-se, com passos determinados, para os escritórios comuns, onde viu Anne-Lie a falar com Billy. Sebastian abriu bruscamente a porta. Anne-Lie virou-se e deu um passo na sua direcção quando viu quem era.

— Como está a Vanja?

— Está bem, mas não graças a ti!

Anne-Lie deteve-se, claramente apanhada de surpresa pela reacção rancorosa.

— Não aconteceu nada, mas só porque eu estava lá — continuou Sebastian com raiva contida na voz. — O teu plano de merda para conseguir resultados rápidos não funcionou e puseste o teu pessoal em perigo.

— Foi um azar que...

— Não foi azar nenhum! — interrompeu-a Sebastian. — Foi irresponsável e precipitado!

— Podes achar o que tu quiseres — respondeu Anne-Lie, recuperando alguma da sua autoridade, agora que a surpresa inicial ante aquela reacção já passara.

— Não é o que eu acho. A Vanja está nas urgências por tua causa!

— Como já disse, podes achar o que quiseres — repetiu Anne-Lie com uma calma forçada. — Mas estás errado numa coisa.

— Ai estou?

— Funcionou. Apanhámo-la.

— Quem? Onde?

Sebastian inspirou fundo e, com alguma hesitação, abriu a porta da sala de interrogatórios número dois. Carlos e Torkel viraram-se para ele quando entrou na pequena sala impessoal. Torkel tornou a virar-se para a mesa e, para que constasse na gravação, anunciou que Sebastian Bergman acabava de se juntar a eles. Sebastian sentou-se em silêncio numa cadeira um pouco afastada dos outros quatro. Torkel, Carlos, uma defensora pública e a mulher ruiva que olhou na sua direcção com um leve sorriso quase sedutor.

Renata Fors.

A sua cultivadora.

Quando descobriu quem tinham prendido, hesitara se deveria estar presente no interrogatório. E se ela lhes contasse? Sobre como ele a procurara. Como ela o procurara. Sobre o dia anterior. Quando ela fora ao hotel e ele, sem a mínima hesitação, a deixara entrar no seu quarto. Apesar de tudo, ela era uma cultivadora. Já todos lhe tinham caído em cima por ele dormir com pessoas ligadas às investigações. Vanja até gozara um pouco com isso certa vez, dizendo que só precisavam de esperar para ver com quem Sebastian acabava na cama para depois a prender. Isso fora quando uma das suas conquistas ocasionais, em Värmland, também fora, por momentos, suspeita.

Não tinha sido ela.

Nunca tinha ido para a cama com uma assassina.

Até àquele momento.

Mas que mal poderia fazer, perguntou-se a si próprio, se Renata dissesse alguma coisa, se eles ficassem a saber? Vanja já se afastara dele, ele nunca mais voltaria a trabalhar com a Brigada de Homicídios e, quanto a Anne-Lie, realmente prometera-lhe que manteria a pila sob controlo, mas isso fora antes de ela comprometer a segurança da sua filha. As probabilidades de ela querer voltar a contratar os seus serviços eram elevadíssimas e não tinha feito nada ilegal. Estúpido, imoral, injustificável, talvez, mas nada que fosse punível por lei.

Enfrentou o olhar de Renata. Todas as emoções positivas que sentira por ela tinham-se desvanecido por completo. Porque fizera aquilo. As coisas a que expusera Vanja e as outras mulheres... Sebastian nunca tinha ouvido falar de nada semelhante, e não havia dúvidas de que ela lhe interessava do ponto de vista profissional, mas tinha a sensação de que aquela era a última vez que a via. Ela voltou a sorrir-lhe e Sebastian apercebeu-se de que aquilo que inicialmente interpretara como um flirt era, antes, o sinal de um pacto silencioso. Tinham um segredo em comum.

Torkel chamou novamente a atenção de Renata.

— Estava a contar-nos sobre a Ulrika — recordou-lhe.

— Sim — assentiu Renata, desviando o olhar de Sebastian e olhando para Torkel. — Ela chamou-me ao hospital, poucos dias antes de morrer. Contou-me o que tinha acontecido naquela noite.

— Quando deixaram a sua filha à porta do hospital.

— Vocês acham que é por isso, não é? — constatou. — Porque deixaram a Linda à porta do hospital. — Renata abanou ligeiramente a cabeça e voltou a sorrir, desta vez mais para si própria, como se se apercebesse de um mal-entendido divertido. — Ela teve cuidados médicos quase imediatos, não teria feito diferença nenhuma se a tivessem levado até lá dentro.

Fixou os olhos verdes em Torkel, era importante que ele compreendesse.

— Elas condenaram a Linda à morte muito antes disso. Quando a convenceram a continuar com a gravidez. Quando a ameaçaram com uma espécie de condenação eterna se ela fizesse um aborto.

— Então, a senhora queria que elas engravidassem, queria forçá-las a escolher.

— Exactamente.

Uma constatação breve. Sem nenhum sinal de triunfo. Renata não tinha, como muitos outros que Sebastian conhecera na sua profissão, um ego inflamado que precisava de lhes mostrar quão esperta fora, que precisava da sua admiração por ter conseguido enganá-los durante meses.

— E o Weber? — perguntou Torkel, e quase se percebeu na sua voz que, na verdade, não queria saber a resposta.

— O jornalista? Morreu. Mas não foi intencional. — Pela primeira vez, ouviu-se um laivo de arrependimento na sua voz. — Nunca foi minha intenção matar ninguém. Dei-lhe a injecção com o soporífero para ganhar algum tempo, mas ele... deixou de respirar.

Torkel olhou para as suas notas. Tinham uma confissão, estava bastante seguro de que Ursula encontraria provas de perícia técnica na residência de Renata, e o motivo estava estabelecido. Não tinham muito mais que fazer em Uppsala.

— Trabalha nos Carros Seguros — disse Carlos, parecendo ser de outra opinião.

— Há vários anos. E isso não tem nada que ver com nada. É uma óptima organização. Felix é um bom homem, uma boa pessoa.

— A senhora é que é «Remi»?

— Sim, o meu segundo nome é Mimmi — assentiu Renata.

Carlos tomou nota e depois deteve-se com a caneta ainda encostada ao papel. Pelos vistos, havia mais uma coisa que queria saber.

— Como é que arranjou o esperma?

— Como? De preservativos. Os homens não querem saber o que lhes acontece depois de se despacharem. De quem são é que não tenciono dizer.

— Sabemos que é de mais de um homem, encontrámos ADN diferente em Gävle.

— Sim, tive de mudar antes da Rebecca — assentiu Renata. — O que costumava utilizar não estava disponível nessa altura.

Desviou o olhar de Carlos e olhou novamente para Sebastian, sentado em silêncio, a acompanhar o interrogatório sem intervir.

— Às vezes acontece. Então, é preciso usar o que se tem à mão...

A revelação atingiu-o como um comboio de carga. Ficou petrificado.

Foda-se!

Recordou os acontecimentos.

Até àquela noite. Àquele momento. O sucesso. Tê-lo-ia alcançado com demasiada facilidade? Tentava sempre proporcionar às mulheres a sensação de que tinham sido elas a seduzi-lo, mas, naquele caso, poderia muito bem ter sido verdade, de facto. Que consolo e apoio não tivessem sido nada daquilo que ela precisara da sua parte, mas algo completamente diferente. E a mesma coisa na noite anterior. Ela fora clara em relação ao que queria. E ele fizera-lhe a vontade com um agradecimento.

Ela tivera-o na mão.

Claro que havia a possibilidade de ela ter ido para a cama com outro homem depois dele, mas algo nos olhos verdes que estavam fixos nos dele lhe diziam que isso não tinha acontecido.

Sem dizer uma única palavra, levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta. Torkel olhou-o com ar inquisitivo, mas Sebastian não quis saber. Aquela era uma nova experiência, o chão vacilava debaixo dos seus pés quando deixou a sala de interrogatório.

Já no corredor, encostou-se pesadamente à porta, teve de fazer um esforço para se manter de pé. Tentou aplacar os pensamentos que disparavam em todas as direcções, em que ele não queria de todo ir, mas, por fim, conseguiu compreender a razão pela qual tivera aquela reacção tão intensa ali dentro: ficara surpreendido e chocado, mas aquela informação, na verdade, não alterava nada.

Ele chegara a tempo.

A seringa estava cheia.

Nada acontecera.

Se mudasse de ideias agora, teria de explicar muita coisa. Por exemplo, por que motivo dissera que tinha encontrado Vanja completamente vestida. Inspirou profundamente algumas vezes e sentiu que, lenta mas seguramente, voltava a si. Era nisso que tinha de se concentrar, pensou. O porquê de ter feito o que fez.

Para a proteger.

Para a poupar a um sofrimento desnecessário.

Aquilo que acabara de saber, que podia ser o seu esperma dentro da seringa, apenas tornava a ideia do que poderia ter acontecido ainda mais doentia e repugnante. De certa forma, tomar conhecimento daquela informação seria provavelmente mais prejudicial para Vanja do que o ataque em si.

Ele chegara a tempo.

A seringa estava cheia.

Nada acontecera.

Logo, também não havia nada que contar.


Estavam os sete sentados num canto do refeitório.

Um bolo no meio da mesa e, à frente deles, chávenas de café mais ou menos cheias e latas de refrigerantes. Para ser uma celebração, era bastante fraca, por outro lado, também não haveria nenhum problema em apresentar as despesas ao departamento financeiro.

Anne-Lie fez um pequeno discurso improvisado.

Reconheceu que não fora uma investigação completamente livre de conflitos, mas o principal era que o caso estivesse resolvido, e tinham-no feito em conjunto.

Estava satisfeita.

Muito satisfeita, até.

Mas Vanja tinha uma certa dificuldade em acreditar.

Dois homicídios, de Weber e de Rebecca Alm; um procurador ambicioso tentaria conseguir um homicídio por negligência em relação a Ida; sete violações e duas tentativas de violação. Anne-Lie tivera esperança de conseguir fechar a investigação antes de o caso se transformar num «Homem de Haga», mas aquele fora maior e pior.

Era impossível estar satisfeita.

Tinham finalmente conseguido localizar o pai e o filho Valbuena. Renata sabia que tinham regressado à Suécia, para ver se conseguiam abrir um novo negócio, já que a situação na Venezuela era insustentável e ambos tinham nacionalidade sueca. Indicara-lhes alguns sítios onde poderiam encontrar-se. Nada apontava para que Ulrika alguma vez tivesse conseguido comunicar com eles, depois do seu mail inicial, ou que eles estivessem de alguma forma implicados na vingança de Renata, mas Rodrigo dera-lhes uma amostra do seu ADN, sem qualquer resistência, quando lho pediram. Queriam excluir a possibilidade de Renata ter feito sexo com o seu ex-marido, de ele poder saber o que ela ia fazer com o esperma e, assim, ser cúmplice dos seus crimes, mas nada apontava para que fosse esse o caso. Fora isso, tinham desistido de tentar descobrir com quem Renata tinha ido para a cama. Ela respondera a todas as perguntas, tirando precisamente essa, e não era importante. A questão era se seria positivo para alguém descobrir que, inconscientemente, tinha contribuído para crimes graves.

— Vou voltar para Estocolmo — disse Torkel, e levantou-se. — Até logo, ainda nos vemos, temos várias coisas para concluir.

Tinha estado desanimado toda a tarde. Renata dissera-lhes onde poderiam encontrar Weber. Também tinham encontrado o seu carro. Não achavam que ela estivesse a encobrir outra pessoa ou que assumisse crimes que não cometera, mas, ainda assim, Billy verificara o GPS de Weber e confirmara que o último endereço introduzido fora o da casa de Renata Fors. Sebastian desejou que o tivessem encontrado mais cedo. Como no fim-de-semana anterior.

A interrupção de Torkel funcionou como o sinal de partida para todos se irem embora. Regressaram ao escritório e arrumaram as coisas. Billy despachou-se depressa, porque o casaco e o computador eram basicamente as únicas coisas que precisava de levar consigo. Vanja interpelou-o à saída.

— Importas-te de me dar boleia para Estocolmo?

— Não me importava nada, mas tenho uma coisa para fazer primeiro.

— Está bem, então vemo-nos depois.

— Sim, até logo.

Sem se despedir de nenhum dos outros colegas, Billy saiu do escritório, passou pelos elevadores, abriu a porta sinalizada como saída de emergência e desceu as escadas praticamente a correr.

Vanja pegou no casaco que estava nas costas da cadeira e na mala que estava em cima da secretária. Já tinha arrumado tudo o que precisava de levar consigo, antes de se reunirem no refeitório. Deu uma volta para se despedir de Carlos e Anne-Lie e ficou diante de Sebastian.

— Obrigada — disse, simplesmente.

— Não tens nada que agradecer. Só fico contente por ter estado lá.

Fez-se um silêncio entre os dois. Vanja sentiu que devia dizer algo mais, algo que fosse mais como uma despedida.

— Agora não nos vamos ver durante algum tempo — acabou por dizer.

— Algum tempo? — perguntou Sebastian com as sobrancelhas erguidas e uma nova esperança na voz.

Vanja suspirou, já deveria saber. Não podia dar-lhe a mínima abertura, ele era o exemplo clássico do «dá-se um dedo, fica com o braço todo».

— Foi uma maneira de dizer, achei que «nunca mais» seria duro.

— É duro.

— Pois é, mas tem de ser assim.

Sebastian assentiu com a cabeça. Não era nada de novo. Não tinha esperança de que a sua intervenção no bosque fosse mudar alguma coisa. Ela estava agradecida, mas não tão grata que pensasse reavaliar tudo.

— Tem cuidado contigo — disse Sebastian e tossiu ligeiramente quando percebeu que tinha a voz trémula.

— Obrigada, tu também.

Achou que um abraço seria apropriado, mas Vanja apenas se virou e deixou-o. Como ele soubera que ela faria, mas, ainda assim, foi uma sensação insuportavelmente dolorosa. Não poder fazer mais nada, além de vê-la ir-se embora. Ursula aproximou-se e parou ao seu lado, pondo-lhe uma mão no braço num gesto de reconforto.

— Estás pronto?

Sebastian olhou em volta. Vanja partira. A Brigada de Homicídios era um capítulo encerrado. Tinha um livro para escrever. Dias solitários de um Novembro cinzento e frio pela frente. Inspirou fundo, soltou um suspiro sonoro e assentiu com a cabeça. Estava pronto.

— Óptimo, precisamos de falar um bocado.

— Sobre quê?

— Sobre uma coisa de que me apercebi no outro dia. Podes dar-me boleira até casa.

Juntos, deixaram o escritório, a sede da Polícia e a cidade de Uppsala.


Billy estava sentado no carro, à espera.

No meio do nada, numa floresta chamada Fiby Urskog, de acordo com o Google Maps. A satisfação de terem apanhado um assassino e encerrado um caso já desvanecera, reduzida por outros problemas mais urgentes, que tinham de ser resolvidos. A investigação fora uma das três coisas que lhe tinham ocupado os pensamentos nos últimos tempos, mas fora aquela a que dedicara menos tempo e atenção. Fizera o necessário, aquilo que se esperava dele, nem mais nem menos, seguira a rotina. Trabalhara quase em piloto automático, sem inspiração e, frequentemente, com a cabeça noutro sítio.

Em Conny, por exemplo.

O insistente pai de Jennifer.

Tinham-se encontrado uns dias antes, Billy não conseguira continuar a adiar uma reunião. Combinaram no café onde se tinham encontrado da primeira vez e Billy entregara-lhe as provas que tinha de que as imagens eram manipuladas. Conny não lhe pudera agradecer o suficiente. Graças a Billy, a Polícia teria de levar o desaparecimento de Jennifer e as suspeitas de Conny a sério. Exactamente o que Billy receara, mas, ao mesmo tempo, quanto mais pensava nisso, mais sentia que o facto de ter ajudado Conny poderia jogar a seu favor.

Afinal de contas, trabalhava na Brigada de Homicídios, um dos mais conceituados departamentos da Polícia da Suécia, e fora ele quem se certificara de que haveria uma investigação, era um colega preocupado, que pretendia descobrir a verdade. Desde que ninguém fizesse a ligação entre a sua estada em Bohuslän e as actualizações daquela semana das redes sociais de Jennifer, estaria a salvo.

Ia resolver o assunto.

Quando se levantaram para ir embora, Conny abraçou-o. Forte e sentidamente, estava muito feliz por Jennifer ter tido um amigo tão leal e dedicado como Billy. Aquilo levara-o, por momentos, a sentir-se miserável, mas, para além disso, a reunião deixara-o surpreendentemente positivo.

Agora só restava um assunto para resolver. Lançou um rápido olhar para o envelope almofadado, ao seu lado, em cima do assento do passageiro. Pronto para pagar, se se mostrasse necessário. Se recebesse mais ameaças depois daquilo, negaria tudo, diria que a fotografia fora tirada quando ele estivera lá em trabalho, num assunto policial. Claro que isso chamaria atenções indesejáveis sobre si próprio, mas não podia continuar a pagar para sempre.

Tinham combinado o local e a hora do encontro no fórum de jogos. A localização fora-lhe dada em forma de coordenadas GPS. Todo o esquema de comunicação através de um sítio de jogos, envio de coordenadas, até à módica quantia que o chantagista lhe exigia levaram Billy, talvez numa generalização ligeiramente preconceituosa, a esperar encontrar-se com um tipo relativamente jovem.

Embora não assim tão jovem.

Poucos minutos depois da hora marcada, um rapaz macilento de dezasseis ou dezassete anos apareceu a pedalar e parou a uma dezena de metros do carro de Billy. Saltou da bicicleta e deixou-a cair para o chão enquanto olhava furtivamente para o carro. Vinha de calças de ganga pretas, um corta-vento preto e botas, tinha uma barbicha adolescente, um piercing numa sobrancelha e outro no lábio inferior. Quando retirou o capacete de bicicleta, revelou um cabelo despenteado demasiado preto para não ser pintado. «Alguém fez um curso de introdução ao gótico», pensou Billy quando o jovem se aproximou do carro com passos confiantes. Billy abriu a porta do carro e saiu.

— Billy? — perguntou o adolescente com uma voz mais grave do que Billy antecipara.

— Sabes que sim, enviaste-me uma fotografia minha.

— Tens o dinheiro?

— Tenho, mas como sei que isto não volta a acontecer?

— Eu já não tenho a fotografia.

— Claro — bufou Billy e inseriu naquela única palavra a pergunta de quão estúpido o jovem à sua frente pensava que ele era.

— Porque é que achas que a enviei por correio normal? Porque tudo o que é digital dá para rastrear. Não sou estúpido.

«Ligeiramente estúpido é», pensou Billy. Pelo menos, inexperiente.

— Há quanto tempo fazes isto? — perguntou-lhe com curiosidade sincera.

— Não há muito — respondeu a figura de preto, para surpresa de Billy. — Quando percebi o que se passa naquele local, pensei que podia ganhar uns trocos à conta dos porcos que abusam das mulheres.

— Ela faz aquilo porque quer, segundo as regras dela, mas tudo bem...

— Tens o dinheiro? — ouviu-se de novo, com uma ligeira tensão na voz.

Billy ficou em silêncio e estudou o jovem chantagista. Tinha as pernas afastadas, balançava continuamente o peso entre o pé esquerdo e o direito. Talvez conscientemente, para projectar tenacidade, mas mais provavelmente por nervosismo inconsciente. O facto de ele responder às perguntas, explicar, continuar a falar, dava a Billy a impressão de que não era tão duro nem tão confiante como queria fazer passar.

Não ia precisar de pagar.

Conseguiria assustá-lo facilmente.

Billy puxou a pistola.

O jovem rapaz ficou petrificado. A sua expressão era de puro terror pela súbita reviravolta da situação. Fora um impulso, um arrebatamento instantâneo. Billy recordou-se que pensara ser melhor ir armado, apesar de ser contra todas as regras relativas ao transporte de armas quando não estava em serviço.

Assim que se viu com a pistola na mão, a serpente despertou, começou a mexer-se.

«Dispara», gritava-lhe. «Mata-o.»

— Dá-me o telefone.

— Já não está lá! — exclamou com pânico na voz. — Imprimi-a e apaguei-a. Não está em lado nenhum, juro!

«Não é bem assim», pensou Billy. Era possível recuperar ficheiros apagados com bastante facilidade, mas era preciso ter o telemóvel para o poder fazer.

— Dá-me o telefone — repetiu e aproximou-se um passo. O jovem tirou-o do bolso com as mãos a tremer, enquanto, de forma incoerente, tentava levar Billy a baixar a arma, perceber que era apenas uma brincadeira, convencê-lo a não fazer nada estúpido, a pedir desculpa e a prometer que nunca mais teria de o ver outra vez.

«Dispara. Mata-o.»

A cobra movia-se loucamente no seu estômago. Virava-se e retorcia-se, apanhara o rasto, sentia a oportunidade de ficar saciada e satisfeita por muito, muito tempo.

«Não podes», respondeu uma voz interior. «A bala pode ser rastreada. Demasiadas provas técnicas numa bala.»

Billy guardou a pistola, avançou e, com uma mão, arrancou-lhe o telemóvel. Com a outra, agarrou-o pelo pulso e puxou-o bruscamente para si, ao mesmo tempo que levantava o joelho contra a barriga do rapaz. Não fazia diferença se o atingia no estômago ou entre as pernas, mas a surpresa e a força combinadas foram o suficiente para o rapaz ficar sem ar e se dobrar ao meio. Billy atirou o telemóvel para o lado, agarrou-o pela gola do casaco e empurrou-o contra o carro.

— A fotografia só está no telefone? — perguntou-lhe por entre os maxilares cerrados, com a cara colada à dele.

— Já não está lá... — a voz agora consideravelmente mais aguda e assustada.

— Mas estava. Foi só ali ou também a gravaste noutro lado?

O jovem abanou a cabeça, lágrimas de dor e terror corriam-lhe pelo rosto.

— Quem é que sabe disto? Que vinhas ter comigo?

— Ninguém, juro, não contei a ninguém!

Billy largou-o e o rapaz caiu, novamente dobrado em dois, a tentar controlar as dores e, a tossir e a soluçar, gemendo.

Billy deu um passo para trás e observou-o. A cobra continuava a revirar-se. Segredava-lhe. Provocava-o.

«Não precisas da pistola.»

Billy avançou, passou-lhe uma rasteira e o rapaz vestido de preto caiu de cabeça no chão. No segundo seguinte, sentou-se sobre o seu peito, imobilizou-lhe os braços com as pernas, pôs-lhe as mãos no pescoço e apertou-as. O jovem percebeu o que estava a acontecer e tentou resistir. Inutilmente. Passados alguns momentos, Billy sentiu os pontapés nas suas costas tornarem-se cada vez mais fracos, até cessarem por completo. Inclinou-se para a frente, aproximando-se da cara do rapaz. Ainda conseguia sentir a respiração quente sibilar por entre os seus lábios ligeiramente entreabertos. Apertou com mais força. Olhou-o nos olhos. Não podia perdê-lo, o momento mágico quando a vida se apagava. Deixou-se inundar pelo poder inebriante, abriu-se à satisfação que era mais forte do que qualquer coisa que alguma vez tivesse experimentado. Soltou um grito gutural triunfante quando a respiração cessou e os olhos escuros se apagaram.

Depois daquilo, o corpo morto do rapaz jazia ao lado do carro.

Billy permaneceu sentado no banco do condutor, com a porta aberta.

Tinha sido descuidado, deixara provas técnicas. Fibras da roupa, pele debaixo das unhas, suor ou saliva no rosto. Contudo, já fizera um corpo desaparecer anteriormente. Com êxito. Aquele seria mais fácil. Aquele rapaz não precisava de ser mantido vivo durante semanas, podia simplesmente desaparecer. Como os adolescentes, de vez em quando, faziam. Desaparecido sem deixar rasto. Nunca seria encontrado.

Pegou no seu telemóvel e telefonou a My. Fechou os olhos, inclinou a cabeça para o encosto, pousou a mão no pénis erecto por baixo das calças de ganga e acalmou a respiração enquanto os sinais de chamada se faziam ouvir. A adrenalina e as endorfinas fluíam pelo seu corpo e proporcionavam-lhe uma nitidez, uma calma e uma satisfação que, estranhamente, também eram extremamente excitantes. Quando My respondeu, disse-lhe que estaria em casa dali a uma hora ou duas, que a amava e que queria muito fazer sexo com ela quando chegasse a casa.

O marido afectuoso que ela merecia.

Aquele que mantinha a serpente satisfeita.

Sentado no carro, no meio da floresta Fiby Urskog, apercebeu-se. Foi como uma revelação, num segundo de clareza repentina.

Não algo que tivesse de escolher.

Podia ser as duas coisas.


EPÍLOGO

Sebastian estava de pé, imóvel, a observar a estrela-do-natal num vaso em cima do parapeito da janela do escritório. Não a regava desde o dia 23 de Dezembro, mas a planta continuava vermelha e aparentemente viçosa, parecia ser completamente impossível matá-la. Fora Ursula quem lha dera. Um duende gordo e vermelho, com uma vareta de plantas enfiada no cu, estava enterrado ao lado da flor e sorria-lhe alegremente.

«Ri-te à vontade», pensou Sebastian, «depois de amanhã é Dia de Reis e vais para o olho da rua.» A estrela-do-natal e o duende eram as únicas coisas na casa que recordavam a grande quadra festiva que passara.

Odiava o Natal.

Normalmente, o seu vício sexual costumava culminar durante a época natalícia.

Tudo para evitar ficar sozinho. Tudo para evitar ter de pensar. Recordar.

O dia 26 de Dezembro era o pior. Aí, mal conseguia aguentar-se. A tristeza e a saudade manifestavam-se fisicamente. Ficava com dores, sentia dificuldade em respirar, tinha de encontrar algo, alguém, que conseguisse dissipar-lhe os pensamentos por algumas horas.

Aquele Natal, tinha sido Ursula.

Em Novembro, quando regressavam de carro de Uppsala, ela dissera-lhe que Petros já não fazia parte da sua vida e que gostaria que pudessem ver-se com mais frequência. Se ele quisesse.

Ele queria e assim o fizeram. Viram-se mais. Encontraram-se frequentemente.

Passaram juntos a maior parte da época natalícia, e, pela primeira vez desde o ano 2004, fora suportável. Ursula até o aturara no dia 26, tornara-o mais fácil, pelo que ele lhe estava profundamente agradecido. Também tinham celebrado a passagem de ano juntos. Celebrado era uma maneira de dizer. Jantaram juntos, Ursula embebedara-se com champanhe e vinho branco, e quando, à meia-noite, Sebastian pensara sugerir irem até à água ver o fogo-de-artifício, ela já dormia.

Divertiam-se juntos. Ela mantinha o apartamento dela, ele mantinha o seu. Encontravam-se quando ambos tinham vontade. Como naquela noite, quando ela lhe telefonara a perguntar o que estava a fazer («nada»), se queria jantar com ela («porque não?»), sugerira ir buscar comida a algum lado a seguir ao trabalho («que não fosse sushi, de preferência») e que passava lá em casa dali a uma hora.

Simples. Espontâneo. Fácil.

Ele próprio estivera no centro psiquiátrico de Lövhaga, a falar com Ralph Svensson para o seu livro. Era a segunda vez que se encontravam. Tinha sido uma boa conversa. Da primeira vez, Ralph mostrara-se muito contrariado e insistira constantemente que Sebastian o trancara no escuro. Que tinha sido maldoso e o magoara. Desta vez, correra melhor. Tinham falado sobre a sua infância, sobre o marido da avó e pessoas com máscaras de animais, numa cabana na floresta, que abusaram sexualmente dele. Sebastian tencionava tentar encontrar a cabana. Talvez estivesse prestes a descobrir algo maior do que um livro sobre um imitador.

Fosse como fosse, seria um bom livro.

Tinha esse pressentimento.

Sentia falta de Vanja quando pensava nela, o que tentava não fazer. Apercebia-se agora da tamanha energia que dedicara a tentar reaproximar-se dela, energia que agora dedicava ao seu livro, à escrita, a tentar voltar às suas palestras. Portanto, de certa forma, era bom que ela já não fizesse parte da sua vida. Mas sabia que não teria conseguido ultrapassar aquilo sem Ursula.

A campainha da porta tocou, Ursula ainda não tinha uma chave própria. Sebastian deixou o escritório e foi abrir. Ela entrou, Sebastian pegou nos sacos que trazia e levou-os para a cozinha. Ursula seguiu-o depois de descalçar os sapatos e despir o casaco.

— O que é? — perguntou Sebastian, olhando para o conteúdo dos sacos de plástico brancos que ela trouxera.

— Libanês — respondeu Ursula, que pegou neles e os levou para a bancada. — Abres uma garrafa de vinho, por favor?

Sebastian foi ao frigorífico e retirou uma garrafa de vinho branco. Agora tinha sempre uma garrafa em casa. Ocasionalmente, dava por si a perguntar-se se ela não bebia um pouco demais ou, pelo menos, com demasiada frequência, todos os dias, mas punha logo esse assunto de parte. Chatear uma companheira sobre hábitos de consumo de álcool era algo que imaginava Torkel a fazer.

Ele não, eles não.

— Já ouviste aquilo sobre a Jennifer? — perguntou Ursula enquanto colocava os rolos de massa folhada recheados, as espetadas de borrego, o falafel, as asas de frango e o pão em diferentes pratos.

— Qual Jennifer?

— Holmgren. Aquela que trabalhou connosco no caso de Jämtland e que foi a Kiruna com o Billy.

— Ah, sim, essa. O que é que lhe aconteceu?

Ursula virou-se para ele com um ligeiro sorriso divertido, como se achasse que a sua incapacidade de se lembrar da colega fosse fingida, que havia uma razão para ele não querer admitir que se recordava dela.

— Foste para a cama com ela?

— Não, credo, ela era demasiado nova para mim!

No entanto, pensara nela, mesmo não conseguindo recordar-se do seu nome, assim que Vanja lhe dissera que Billy tinha sido infiel. Não sabia bem porquê, mas tinha que ver com a forma como ele se comportara perto dela quando trabalhavam juntos. Como falara sobre ela. E por ter sido ela, de todas as pessoas, que ele levara consigo para Kiruna quando precisara de que alguém o acompanhasse.

— O que é que lhe aconteceu? — perguntou novamente e serviu um copo de vinho.

— Desapareceu no Verão passado. Encontraram as coisas dela num sítio de mergulho, em França, em Outubro, e pensou-se que se tinha afogado, mas agora abriram uma investigação por homicídio.

— Porquê?

— É uma loucura — disse Ursula, colocando os frascos com baba ganoush e húmus em cima da mesa. — Ninguém a vê desde meados de Junho e parece que alguém a manteve activa nas redes sociais depois disso.

— O que queres dizer com «manteve activa»?

— Então, fizeram posts nas redes sociais, com fotografias e actualizações e «histórias» ou lá como se chama.

A comida estava na mesa. Sebastian tirou uma cerveja sem álcool do frigorífico e abriu-a. Não tivera nenhuma relação especial com Jennifer, recordava-a como sendo ambiciosa e simpática, mas, ainda assim, ficou imediatamente interessado. Do pouco que ficara a saber, parecia-lhe um agressor ao seu gosto. Talvez pudesse oferecer os seus serviços ao departamento que estava a liderar a investigação.

— Ela aparecia nas fotografias? — perguntou, sentando-se e começando a servir-se da comida.

— Sim, mas foram falsificadas. O pai dela andava desconfiado e o Billy concordou em ajudá-lo e conseguiu provar que ele tinha razão, que algumas das fotografias eram manipuladas, por isso, iniciaram uma investigação preliminar. Agora vieram ter connosco a perguntar se queríamos ajudar.

— E vocês querem? — perguntou-lhe, com esperança de que não. Se a investigação fosse entregue à Brigada de Homicídios, ele não tinha hipótese nenhuma.

— Torkel vai esperar para ver.

— E como é que ela foi para França?

— Talvez não tenha ido. Há actualizações da viagem para lá, mas ninguém a encontrou.

Sebastian começou a comer. Estava tudo delicioso. Apanhou um pouco do húmus com um pedaço de pão e mastigou, pensativo. O que tinha Ursula dito?

— Quando é que disseste que ela desapareceu?

— Na semana a seguir ao feriado do solstício de Verão.

Fora isso que o levara a reagir. Tinham falado da semana a seguir ao solstício de Verão recentemente. No jantar em casa de Torkel e Lise-Lotte. Era essa a semana que Torkel pensava que Billy estivera de férias e My que ele estivera a trabalhar...

— Mas, olha, tenho uma novidade ainda maior! — Sebastian foi arrancado aos seus pensamentos. Levantou o olhar da comida. Ursula tinha um brilho nos olhos e batia palmas de excitação. — Vanja está grávida!

Por momentos, Sebastian ficou petrificado, mas conseguiu fingir felicidade e surpresa logo de seguida.

— A sério? Uau, fantástico! Está de quantas semanas?

— Doze.

Fez rapidamente as contas de cabeça. Se bem se recordava da gravidez de Lily, as datas específicas não eram uma ciência muito exacta. Doze semanas antes. Isso levava-os ao final de Outubro, início de Novembro. A um Polo azul, na floresta.

— Parabéns, vais ser avô! — disse Ursula e levantou o seu copo com um sorriso.

— Obrigado.

Sebastian conseguiu esboçar um sorriso antes de engolir em seco, fechar os olhos e desejar por tudo que fosse realmente «avô».

 

 

                                                   Michael Hjort e Hans Rosenfeldt         

 

 

 

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