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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHER DE PEDRA / Tariq Ali
MULHER DE PEDRA / Tariq Ali

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Com uma narrativa lírica, Mulher de pedra confronta os estereótipos culturais sobre o Islã. Em 1899, o último grande império islâmico, o Império Otomano, está em sua fase terminal, enfrentando a crise geopolítica do ocaso do século XIX. O autor traça um painel da época por meio do retrato de uma aristocrática família turca perante o declínio de seu patriarca, Iskander Pasha. O livro enfoca o final da vida deste embaixador otomano em Paris, versado nas tradições dervixes, durante um de seus retiros no seu palácio de verão, diante do mar de Mármara. Lá ele reúne a nova geração, com o discurso de sua filha Nilofer marcando as conexões entre o velho e o novo mundo: "Muita coisa acontece no mundo lá fora. Rebeliões estão sendo tramadas. A resistência é preparada. Sultões e imperadores estão inquietos. A História está sendo construída (...)."
Os bastidores da família de Iskander Pasha espelham a degeneração do Império a que seus membros serviram nos últimos 50 anos. Personagens marcados por ciúmes, vinganças e decadência revelam uma geração hostil às meias-verdades e mitos dos "áureos tempos". Protagonizam uma saga envolvendo empregados e patrões, professores e oficiais do exército, alemães, gregos e turcos.
Mulher de pedra, a estátua de uma antiga deusa nos jardins da propriedade dos Pasha, "ouviu" os segredos femininos da família durante séculos. Por meio destas confissões, Tariq Ali oferece-nos outras perspectivas sobre as mulheres. Assim, revela-nos insuspeitas realidades, desfazendo mitos sobre muçulmanas e muçulmanos, a História e os costumes da civilização islâmica.

 

 

 


 

 

 


1

O verão de 1899;
Nilofer retorna ao lar após uma ausência forçada;
o exílio de Yusuf Pasha;
Iskander Pasha sofre um derrame

Os inimigos são sempre mais poderosos que a verdade nas histórias das famílias. Há dez dias perguntei a meu pai por que nosso grande antepassado, Yusuf Pasha, havia caído em desgraça e sido exilado pelo Sultão de Istambul quase duzentos anos atrás. Meu filho, Orhan, em nome de quem eu fiz essa pergunta, encontrava-se a meu lado, tímido, lançando olhares furtivos ao avô, que até então desconhecia.

Quando se chega aqui depois de uma longa ausência, tendo que passar por estradas serpenteantes e por colinas intensamente verdes, a mistura de aromas subjuga os sentidos e torna-se impossível não pensar em Yusuf Pasha. Este é o palácio de seu exílio, e sua beleza frágil e eterna deixa-me sempre abismada. Quando éramos crianças, costumávamos vir de Istambul para cá no calor sufocante e empoeirado do verão, mas bem antes de sentirmos a brisa refrescante em nossas peles, já a visão do mar à distância nos dava alma nova. Sabíamos que a viagem estava chegando ao fim.

Foi Yusuf Pasha quem deu instruções ao arquiteto para encontrar um lugar remoto porém não muito distante de Istambul. Queria sua casa construída à beira da solidão, mas ao alcance de seus amigos. A localização do prédio teria que refletir a punição que lhe era infligida. Seria ao mesmo tempo próxima e afastada do lugar que testemunhara seus triunfos na velha cidade. Essa foi a única exigência que ele fez ante as condições que lhe foram impostas pelo Sultão. A estrutura da casa é a de um palácio. Algumas concessões precisaram ser feitas, mas a casa era, essencialmente, um ato de desafio. Era a mensagem de Yusuf Pasha para o Sultão: posso ter sido banido da capital do Império, mas o estilo que escolhi para minha vida jamais será alterado. E quando seus amigos começaram a chegar para aqui passar algum tempo, a algazarra e as risadas eram ouvidas no palácio em Istambul.

Um exército de damasqueiros, nogueiras e amendoeiras foi plantado para montar guarda a seu exílio e proteger a casa das tempestades que anunciam a chegada do inverno.

Todos os verões, desde tempos imemoriais, nós havíamos brincado à sombra daquelas árvores; ali tínhamos rido e nos feito chorar uns aos outros como as crianças costumam fazer quando podem ficar sozinhas. O jardim atrás da casa era um refúgio tranqüilo cuja serenidade parecia ainda maior quando o mar, ao fundo, tornava-se revolto. Era para lá que íamos bem cedinho a fim de nos inebriarmos com a brisa perfumada da manhã, tão logo despertávamos já da primeira noite. O insuportável tédio do verão de Istambul era substituído pela magia do palácio de Yusuf Pasha. Eu ainda não havia completado três anos de idade quando vim pela primeira vez, mas ainda me recordo com clareza daquele dia. Chovia, e eu fiquei muito aborrecida porque a chuva estava molhando o mar.

São muitas as recordações. Lembranças carregadas de emoção. Lembranças cheias de angústia. O tormento e o prazer de momentos furtivos nos encontros às altas horas da noite. Os aromas da grama na alameda das laranjeiras à noite, que tanto aplacavam o coração. Foi lá que beijei pela primeira vez o pai de Orhan, "aquele tal de Dimitri, um inspetor de escola grego e magricela que veio de Konya", como se referia a ele minha mãe com uma expressão severa e inflexível que lhe endurecia o olhar. O fato de ele ser grego já seria suficientemente ruim, porém seu trabalho como inspetor de escolas piorava a situação. Era a combinação das duas condições que a deixava realmente transtornada. Ela não teria se importado em absoluto se Dimitri pertencesse a uma das famílias Phanariot da velha Constantinopla. Como podia sua única filha trazer tanta vergonha à casa de Iskander Pasha?

Essa não era uma atitude típica de minha mãe. Ela nunca deu atenção a árvores genealógicas. A questão era outra: ela simplesmente tinha em vista um outro pretendente para mim. Queria que eu me casasse com o filho mais velho do seu tio Sifrah. Eu havia sido prometida a meu primo logo que nasci. E aquela mulher extremamente delicada e tranqüila teve uma explosão de ódio e de frustração quando soube que eu queria me casar com um joão-ninguém.

Foi minha meia-irmã casada, Zeynep, quem lhe disse que o primo que ela queria para meu marido não se interessava absolutamente por mulher alguma, nem mesmo como mecanismo de procriação. Zeynep bordava e rebordava as histórias. Seu linguajar por fim já estava contaminado pela vulgaridade das coisas que ela contava, e minha mãe julgou que aqueles relatos eram impróprios para meus ouvidos de donzela. Ela pintou meu pobre primo com cores tão sombrias e devassas que fui solicitada a sair da sala.

Mais tarde, naquele mesmo dia, minha mãe lamentou-se muito comigo, beijando-me e abraçando-me. Zeynep a havia convencido de que o coitado do nosso primo era um monstro abominável e minha mãe chorava de arrependimento, culpando-se ante a possibilidade de ter tentado forçar sua filha a casarse com um animal depravado e assim tornar-se responsável pela minha infelicidade para sempre. Perdoei-a, é claro, e ficamos conversando e até rindo a respeito do que poderia ter acontecido. Não sei se algum dia ela descobriu que era tudo invenção de Zeynep. Quando meu primo tão caluniado adoeceu em uma epidemia de tifo e morreu pouco depois, Zeynep achou melhor esconder a verdade de minha mãe. Isso teve apenas uma conseqüência funesta. Nos funerais de seu sobrinho em Smyrna, para grande tristeza de meu tio Sifrah, minha mãe não deu sinais de tristeza e quando eu consegui produzir algumas lágrimas ela me olhou muito surpresa.

Essas são coisas do passado. O que de fato me importava naquele momento era estar de volta à casa depois de nove anos de exílio. Meu pai havia me perdoado por ter fugido e queria estar com meu filho. Eu queria estar com a Mulher de Pedra. Durante toda a nossa infância, minha irmã e eu costumávamos nos esconder nas cavernas junto a uma pedra muito antiga que deve ter sido uma estátua de uma deusa pagã. Ficava num lugar de destaque de onde se divisavam as amendoeiras do pomar atrás da casa. Vista de longe, parecia, de fato, uma figura de mulher dominando a pequena elevação onde ficava, cercada de ruínas e de pedras. Não era Afrodite nem Atenas.

Essas nós teríamos reconhecido. Aquela tinha resquícios de um misterioso véu que se tornava visível apenas quando o sol se punha. Tinha o rosto escondido. Talvez fosse uma deusa local, dizia Zeynep, esquecida havia muito tempo. Talvez os cristãos estivessem marchando para aquele lugar e o artista se visse forçado pelas circunstâncias a interromper seu trabalho. Talvez não fosse mesmo deusa alguma, e sim a primeira imagem esculpida de Maria, a mãe de Jesus. Jamais nos pusemos de acordo quanto à sua identidade, portanto ela ficou sendo a Mulher de Pedra. Quando crianças, confiávamos a ela nossos segredos, nossas dúvidas mais íntimas, e imaginávamos suas respostas.

Um dia descobrimos que nossas mães, nossas tias e as servas faziam o mesmo. Passamos então a nos esconder atrás das pedras para ouvir seus lamentos; só assim ficávamos sabendo do que se passava, de fato, naquela enorme casa. Foi desse modo que a Mulher de Pedra transformou-se no repositório de todas as nossas dores secretas. Segredos são coisas terríveis. Mesmo quando são necessários, eles começam a corroer nossas almas. É sempre melhor quando podemos nos livrar deles, e a Mulher de Pedra possibilitava às mulheres desta casa pôr para fora seus segredos e assim levar uma vida interior mais saudável.

— Mãe — sussurrou Orhan, agarrando-se a meu braço -, o Avô vai me dizer por que este palácio foi construído?

Há muitas versões para a história de Yusuf Pasha na nossa família, algumas das quais bem hostis a nosso ancestral, mas essas em geral foram preservadas na memória de tios-avós pertencentes a um lado da família deserdado pelo nosso. Sabíamos, todos nós, que Yusuf Pasha escreveu poemas eróticos e que, à exceção de alguns versos transmitidos oralmente de uma geração à seguinte, toda a sua obra havia sido queimada. Por que queimaram seus poemas? Quem fez isso? Eu fazia essas perguntas a meu pai pelo menos uma vez por ano antes do meu exílio. Ele simplesmente sorria e ignorava minhas indagações por completo. Sempre achei que meu pai talvez se sentisse constrangido em falar sobre isso com os filhos, principalmente com uma filha. Mas já não pensava assim. Talvez fosse pela presença de Orhan. Talvez meu pai desejasse transmitir aquela história a um jovem membro da família do sexo masculino. Ou talvez ele simplesmente estivesse relaxado naquele dia. Só mais tarde me dei conta de que ele deve ter tido uma premonição do desastre que estava por se abater sobre ele.

A tarde já terminava e ainda fazia calor. O sol já desaparecia no oeste e seus raios, de um vermelho dourado, banhavam todo o jardim, dando-lhe um aspecto mágico.

Nada havia mudado na rotina de verão daquela casa. Lá estavam as velhas árvores de magnólia com suas grandes folhas a brilhar aos últimos raios do sol. Meu pai acabava de acordar de um cochilo que lhe refizera o ânimo e tinha uma expressão tranqüila. Desde que começara a envelhecer, o sono tinha passado a funcionar como um elixir para ele. As linhas que lhe vincavam a fronte pareciam se evaporar. Olhando-o, dei-me conta do quanto sentira sua falta naqueles últimos anos. Beijei-lhe a mão e repeti minha pergunta. Ele sorriu, mas não se apressou em responder.

Esperou. Eu também esperei, lembrando-me das rotinas das tardes de verão. Sem dizer uma só palavra, meu pai tomou a mão de Orhan e puxou-o para perto de si. Pôs-se a acariciar a cabeça do menino. Orhan conhecia o avô de uma fotografia desbotada que eu havia sempre mantido ao lado da cama. À medida que ele foi crescendo, eu lhe contava histórias da minha infância e da velha casa com vista para o mar lá embaixo.

Chegou então o velho Petrossian, o mordomo da nossa casa, que estava com a família desde que nascera. Um menino, não muito mais velho que Orhan, veio atrás carregando uma bandeja. O velho Petrossian serviu café a meu pai exatamente da mesma maneira como o servira nos últimos trinta anos ou mais e que, provavelmente, era a mesma pela qual seu pai havia servido meu avô. Seus hábitos continuavam os mesmos. Ele me ignorou por completo, como sempre fazia na presença de meu pai. Quando eu era menina, isso me deixava bastante aborrecida. Eu lhe mostrava a língua ou fazia gestos rudes para chamar sua atenção, mas nada do que eu fizesse lograva alterar seu comportamento. Com o tempo aprendi a não me importar com sua presença. Ele se tornou invisível para mim. Teria sido impressão minha, ou ele havia mesmo sorrido dessa vez? Sorrira, sim, mas para registrar a presença de Orhan. Um novo personagem do sexo masculino entrara para a família e isso lhe dava alegria. Depois de indagar, inclinando respeitosamente a cabeça, se meu pai precisava de mais alguma coisa e de receber uma resposta negativa, Petrossian e o neto que ele estava treinando para substituí-lo deixaram-nos a sós. Passou-se um bom tempo sem que falássemos. Eu havia me esquecido do quanto esse lugar era calmo e de quão rapidamente aplacava meu espírito.

— Você quer saber por que Yusuf Pasha foi mandado para cá duzentos anos atrás? Confirmei a pergunta com um aceno de cabeça, incapaz de esconder meu grande interesse.

Agora que eu já era mãe de duas crianças podia ser considerada madura o suficiente para conhecer a versão oficial.

Meu pai começou a falar em um tom ao mesmo tempo íntimo e firme, como se os acontecimentos que descrevia tivessem se passado na semana anterior em sua presença, ao invés de terem se passado duzentos anos antes em um palácio ou às margens do Bósforo, em Istambul. Porém enquanto falava seus olhos evitavam encontrar-se com os meus. Mantinham-se fixos no rosto do pequeno Orhan, observando as reações do menino. Talvez estivesse se lembrando da sua própria infância e de quando ouvira aquela história pela primeira vez. Quanto a Orhan, este estava fascinado com o avô. Seus olhos brilhavam de interesse e excitação enquanto meu pai assumia o jeito solto e exagerado de falar de um contador de histórias de aldeia.

"Como de hábito o Sultão mandou chamar Yusuf Pasha à noite. Nosso grande ancestral chegou e fez as mesuras e praxe. Havia crescido com o Sultão. Conheciam-se muito bem. Uma serviçal colocou uma taça de vinho à sua frente. O Sultão pediu ao amigo que recitasse um novo poema. Naquela noite algo estranho se passou com Yusuf Pasha. Ninguém sabe o que foi. Ele era um cortesão muito respeitado que acatava qualquer pedido do seu soberano como se fosse uma ordem vinda do céu. Era de uma inteligência tão brilhante que podia inventar e recitar um poema a qualquer instante. Mas não naquela noite. Talvez tivesse sido forçado a deixar às pressas um leito de amor e isso o aborrecesse.

Talvez estivesse simplesmente cansado de ser cortesão. Talvez estivesse sofrendo de uma terrível indigestão. Ninguém ficou sabendo.

Quando o Sultão percebeu que o amigo continuava calado, ficou realmente preocupado. Indagou sobre sua saúde. Ofereceu-se para chamar seu próprio médico. Yusuf Pasha agradeceu, porém dispensou a gentileza. Pôs-se a olhar em volta e tudo que viu foram jovens escravas e eunucos. Nada daquilo era novidade, porém nesse dia, em especial, aquela cena deixou nosso antepassado aborrecido. Não se sabe por quê. Depois de um longo silêncio ele pediu ao Sultão permissão para falar e ela lhe foi dada.

— Ó grande soberano e fonte de toda sabedoria, Sultão do mundo civilizado e Califa de nossa fé, este vosso servo pede perdão. A musa volúvel e caprichosa abandonou-me e não há hoje um só verso nesta cabeça vazia. Com vossa permissão, tornar-me-ei um contador de histórias esta noite, mas rogo que vossa sublime majestade me ouça com atenção, pois as coisas de que vou falar são verdadeiras.

Àquela altura o Sultão estava genuinamente curioso e toda a corte se agitou, aproximando-se para ouvir as palavras de Yusuf Pasha.

"Quinhentos e oitenta e oito anos antes do nascimento do santo cristão, Jesus, existia um poderoso império na Pérsia. Em seu trono sentava-se um rei com o nome de Cyrus. Naquele auspicioso ano, Cyrus foi proclamado Rei dos Reis na Babilônia, região esta hoje governada pelo nosso grande e sábio Sultão. Naquele ano o grande Império Persa parecia invencível. Ele dominava o mundo. Era admirado por sua magnanimidade. Os persas aceitavam todas as crenças, respeitavam todos os costumes e, em seus novos territórios, adaptavam-se às diferentes formas de governo. Tudo parecia estar bem. O Império florescia e liquidava seus inimigos como se esmagam pulgas.

"Duzentos anos depois os herdeiros de Cyrus haviam se tornado joguetes de eunucos e de mulheres. Os sátrapas do Império haviam se tornado desleais. Seus funcionários, corruptos, insensíveis e ineficientes. As enormes riquezas da Mesopotâmia evitaram que o Império desmoronasse, porém quanto mais postergaram seu fim, mais avassalador este se tornou quando finalmente chegou. E assim foi que os gregos passaram a ganhar influência. Sua língua se espalhou. E assim foi que muito antes de Alexandre nascer a estrada para suas conquistas já havia sido construída.

"E então chegou o dia em que, sem qualquer aviso, dez mil soldados gregos assassinaram seu chefe persa, prenderam seus oficiais e partiram em marcha da cidade que hoje chamamos de Bagdá para Anatólia. Nada lhes barrava o caminho. E logo as pessoas começaram a perceber que se apenas dez mil soldados tinham sido capazes de realizar tal proeza, então não seriam necessários os soberanos e os seus líderes...'

Yusuf Pasha ainda não havia acabado sua história, mas ao ver a cara do Sultão, calou-se. Ficou no mais absoluto silêncio, sem ousar olhar o soberano nos olhos.

O Sultão encheu-se de ódio, pôs-se de pé e saiu da sala enfurecido. Yusuf Pasha temeu que o pior acontecesse. Ele queria apenas prevenir seu amigo de infância contra a indolência, a sensualidade e a influência nefasta dos eunucos. Queria lembrar ao soberano a eterna lei que nos ensina que nada é eterno. Porém o Sultão viu naquela história uma referência agourenta à dinastia otomana. A ele próprio. Qualquer outro que tivesse feito aquilo teria sido executado, mas devem ter sido as recordações da infância que impediram o Sultão de lhe dar esse fim. Yusuf Pasha teve uma punição muito leve. Foi exilado de Istambul. Para sempre. O Sultão não queria estar na mesma cidade onde ele estivesse. E assim foi que ele veio para cá com sua família, para este local ermo cercado de rochas antigas e decidiu que aqui construiria seu palácio no exílio. Sentia muitas saudades da velha cidade, porém nunca mais viu o Bósforo novamente.

Dizem que o Sultão também sentia falta de sua companhia e várias vezes dizia querer sua presença, porém os cortesãos, que sempre tinham tido inveja do prestígio de Yusuf Pasha, cuidaram de evitar que os dois amigos se encontrassem novamente. É esta a história. Está satisfeita, minha pombinha? E você, Orhan, vai se lembrar de tudo que eu disse e repetir tudo para seus filhos um dia, quando eu já não estiver mais aqui?"

Orhan sorriu e concordou em silêncio. Eu tentei não demonstrar o que estava pensando. Sabia que meu pai dissera apenas meias-verdades. Eu sabia de outras histórias de Yusuf Pasha contadas por tias e tios de um outro ramo da família, filhos de um tio-avô que meu pai odiava e cujos filhos nunca eram convidados a nos visitar aqui ou em Istambul.

As histórias que eles contavam eram muito mais emocionantes, muito mais reais e infinitamente mais convincentes. Contavam de como Yusuf Pasha havia se apaixonado por um dos escravos brancos favoritos do Sultão e de como haviam sido apanhados copulando. O escravo foi executado na hora e seus genitais foram atirados aos cães à porta da cozinha real. Yusuf Pasha, de acordo com essa versão, foi publicamente chicoteado e depois banido, tendo que viver em desonra até o fim de seus dias.

Talvez a versão de meu pai também fosse verdadeira. Talvez uma única história não desse conta da desgraça que se abateu sobre nosso ancestral. Ou talvez ninguém saiba mesmo o que aconteceu e todas as versões que se conhecem sejam falsas.

Talvez.

Eu não tinha a menor intenção de magoar meu pai depois de tanto tempo sem nos falarmos, portanto não lhe fiz mais perguntas. Durante todos aqueles anos ele vivera magoado comigo por ter me apaixonado por um inspetor itinerante de escolas, ter fugido com ele, ter me tornado sua esposa e mãe de seus filhos. E por gostar dos poemas que ele escrevia, que agora reconheço serem muito ruins, mas que então me pareciam lindos. Se dependesse de Dimitri, sua vida seria dedicada à poesia, porém, para sua tristeza, precisava trabalhar. Foi por isso que começou a dar aulas. Assim podia ganhar algum dinheiro e cuidar de sua mãe. Seu pai havia morrido na Bósnia, lutando por nosso Império. Foi a voz suave com que ele lia seus poemas que primeiro tocou meu coração.

Tudo isso aconteceu em Konya, onde eu passava algum tempo com a família da minha melhor amiga. Ela havia me mostrado as maravilhas de Konya. Tínhamos visitado os túmulos dos antigos reis de Seljuk e espiado o interior das casas dos sufis. Foi lá que conheci Dimitri. Eu tinha dezessete anos; e ele, quase trinta.

Eu queria fugir da atmosfera sufocante de minha casa. Dimitri e sua poesia surgiram como a estrada para a felicidade. Fui feliz por algum tempo, mas nunca o suficiente para esquecer a dor de ser banida de minha casa. Sentia saudades de minha mãe e logo comecei a sentir falta do conforto a que estava acostumada. Sentia falta, principalmente, dos verões passados aqui, nesta casa que dá para o mar.

Eu queria ter saído de casa por decisão própria. A atitude de meu pai excluindo-me, formalmente, da família foi um grande golpe para mim. Tive ódio dele. Tive ódio de sua intolerância. Tive ódio da maneira como ele tratava meus irmãos, principalmente Halil, que tinha uma alma de potro selvagem e se recusava a ser disciplinado.

Meu pai às vezes lhe dava surras de chicote diante de toda a família. Era nessas ocasiões que eu mais o odiava. Mas o espírito de Halil jamais se deixou alquebrar.

Meu pai o considerava um anarquista preguiçoso e desrespeitoso, portanto ficou perplexo quando Halil se alistou no exército e, ajudado pela história de nossa família, foi galgando postos rapidamente e acabou sendo designado para servir no palácio.

Iskander Pasha desconfiava das intenções do filho caçula e nisso ele não estava muito errado. Papai sabia ser uma figura altamente refinada e elegante nos salões parisienses que freqüentou como embaixador da Porta Sublime junto à República Francesa durante muitos anos. Era isso que nos dizia nosso irmão mais velho, Salman, que teve permissão para acompanhá-lo e recebeu sua educação superior na Academia de Paris, o que fez dele um amante de todas as coisas francesas, exceto os homens.

Sempre que meu pai retornava a Istambul com novas peças de mobiliário, tecidos e quadros de mulheres nuas para a ala européia de nossa casa, e perfumes para suas mulheres, ficávamos todos extasiados. Halil sussurrava: "Quem sabe se dessa vez ele se modernizou?' Ríamos baixinho, ansiosos com a chegada. Quem sabe não teríamos um baile de Ano Novo em nossa casa? As mulheres usariam vestidos, dançaríamos e beberíamos champanhe, como papai e Salman faziam em Paris e em Berlim. Doces ilusões.

A vida nunca mudava. De volta a seu ambiente familiar e à sua cidade, papai assumia o comportamento e os maneirismos de um aristocrata turco.

Era a primeira vez que me convidavam a visitar aquela casa desde minha fuga e meu casamento com Dimitri, mas só pude levar Orhan comigo. Dimitri e minha adorável Emineh ficaram em casa. Talvez no próximo ano, disse minha mãe. Talvez nunca, gritei com raiva. Minha mãe me visitou três vezes, mas sempre em segredo, levando roupas para as crianças e dinheiro para mim. Ela teve um papel conciliador e, aos poucos, as relações com meu pai foram se restabelecendo. Começamos a nos comunicar.

Depois de trocarmos cartas insuportavelmente delicadas e formais durante dois anos, ele me pediu que trouxesse Orhan à nossa casa de verão. Foi bom eu ter atendido a seu pedido. Estive a ponto de recusar o convite. Quis dizer que não iria se não pudesse levar minha filha também, mas Dimitri, meu marido, convenceu-me de que eu estava sendo tola e voluntariosa. Alegro-me, agora, por não ter deixado que o orgulho atrapalhasse. Se eu tivesse pedido perdão por minha rebeldia atirando-me a seus pés, já teria sido perdoada há muito tempo. Ao contrário da impressão que eu possa ter criado, Iskander Pasha não era cruel e vingativo. Era um homem da sua época, vigoroso e ortodoxo na sua maneira de se relacionar conosco.

Naquela primeira noite, quando Orhan adormeceu, saí de casa para caminhar pelos pomares e deixar que os aromas familiares de tomilho e de pimenta ressuscitassem minhas recordações antigas. A Mulher de Pedra ainda estava lá, e eu lhe falei, sussurrando:

— Estou de volta, Mulher de Pedra. Estou de volta com um menino. Senti sua falta, Mulher de Pedra. Houve muitas coisas que não pude dizer a meu marido. Nove anos é muito tempo para guardar o que está dentro da alma.

Três dias depois de meu pai haver contado a história de Yusuf Pasha a Orhan, ele teve um derrame. A porta de seu quarto de dormir estava entreaberta. As janelas que davam para a varanda estavam escancaradas e uma brisa suave perfumava o quarto com um leve odor de limão. Minha mãe sempre ia ao quarto dele de manhã bem cedo abrir as janelas para que ele pudesse sentir o cheiro do mar. Naquela manhã ao entrar no quarto ela o encontrou respirando de um modo estranho, deitado de lado.

Ela o virou. Seu rosto estava pálido e ele não disse uma só palavra. Seus olhos se fixavam em algum ponto distante e ela soube, instintivamente, que eles tentavam enxergar algo que já não era desta vida. Ele havia sentido o arrepio da morte e não desejava prolongar sua vida.

Ficou paralítico, impossibilitado de mover as pernas, impossibilitado de falar. A julgar por seus olhos nos momentos de consciência, rezava todo o tempo para que Alá pusesse um ponto final à sua existência nesse mundo. Alá ignorou suas súplicas e lentamente, muito lentamente, Iskander Pasha começou a recuperar-se. Suas pernas recobraram vida. Com o auxílio de Petrossian, ele começou a andar novamente, mas o dom da fala se foi para sempre. Jamais ouviríamos sua voz novamente. Seus pedidos e suas ordens a partir de então eram escritos em pedacinhos de papel que chegavam a nós em uma pequena bandeja de prata.

E foi assim que todas as noites, depois da refeição, um pequeno grupo passou a se reunir no antigo quarto de cuja varanda se via o mar lá embaixo. Quando todos já se haviam acomodado, papai sorvia um pouco de chá com o canto da boca — seu rosto foi cruelmente afetado pelo derrame — e enquanto Akim, neto de Petrossian, massageava gentilmente seus pés, ele se recostava e pedia que lhe contássemos histórias.

Nunca foi fácil sentir-se à vontade na presença de meu pai. Ele sempre fora um homem extremamente exigente. Não admitia sequer a mais leve crítica à sua própria conduta, passada ou presente, e estava sempre vendo defeitos nas dos outros.

Meus irmãos e minha irmã, convocados de diferentes partes do Império para ficar a seu lado, tinham certeza de que o sofrimento faria dele um homem mais tolerante.

Eu tinha certeza de que eles estavam enganados.


2

A família começa a se reunir;
o Barão faz uma entrada triunfal;
a melancolia de Salman

Eu estava deitada no quarto escurecido, com uma compressa fria cobrindo-me a face e a testa. Descansava para tentar me curar de uma dor de cabeça insistente. Foi nesse dia que Salman e Halil chegaram para ver nosso pai, que havia perdido a fala. Não estava, pois, no terraço com o resto da família e todos os empregados para vêlos descer da nossa velha carruagem que, escoltada por seis cavaleiros de cada lado, os havia trazido de Istambul. Mais tarde minha mãe me contou que a visão de meu pai, imóvel, sentado em uma grande cadeira havia deixado os dois muito perturbados. Eles caíram de joelhos, um de cada lado dele, e beijaram suas mãos. Foi Halil, em seu uniforme de general, o primeiro a se dar conta de que o silêncio se torna facilmente opressivo.

— Alegra-me que ainda esteja vivo, Ata. Somente os céus poderiam me socorrer se Alá houvesse decidido deixar-nos órfãos. Esse bruto irmão que tenho teria mandado Petrossian me estrangular com uma corda de seda.

Essa idéia era tão ridícula que fez aparecer um sorriso no rosto do velho, o que serviu de sinal para que todos que ali estavam explodissem em gargalhadas que me despertaram bruscamente. Mas a dor de cabeça havia passado. Pulei da cama, passei água no rosto e desci as escadas correndo para saudá-los. Cheguei bem no instante em que Halil tomava Orhan em seus braços. Fez cócegas no pescoço dele com o bigode e depois o atirou para o alto, abraçando-o carinhosamente quando ele caía. Em seguida apresentou Orhan a um tio que ele desconhecia. Orhan olhou para o novo tio com um sorriso tímido e Salman, sem saber o que fazer, deu-lhe uns tapinhas carinhosos na cabeça.

Havia quase quinze anos que eu não via Salman. Ele saíra de casa quando eu tinha treze anos. Lembrava-me dele como um homem alto e esbelto com uma vasta cabeleira negra e uma voz profunda, melodiosa. Fiquei espantada logo que vi sua silhueta no terraço. Por um rápido instante pensei que fosse papai. Salman havia envelhecido.

Ainda não chegara aos cinqüenta anos, mas seus cabelos estavam grisalhos e ralos. Parecia mais baixo que da última vez em que eu o tinha visto. Seu corpo parecia ter ficado mais largo, seu rosto estava gordo demais. Caminhava meio encurvado e seus olhos eram tristes. O Egito era cruel. Por que o havia envelhecido daquela maneira? Abraçamo-nos e beijamo-nos. Sua voz parecia vir de longe.

— Então agora você é mãe, Nilofer. Foram essas as únicas palavras que me dirigiu naquele dia. Seu tom de voz indicava surpresa, como se botar filho no mundo houvesse se tornado uma novidade. Por algum motivo o tom de voz de Salman e o que disse me irritou um pouco. Não sei por que isso aconteceu, mas lembro-me de ter ficado ligeiramente aborrecida. Talvez fosse por ele se recusar a me ver como uma mulher adulta. Para ele, eu ainda era uma criança. Antes que eu tivesse tempo de lhe dar uma resposta à altura, Petrossian já o havia levado para falar com papai a sós.

Depois foi a vez de Halil. Ele nunca havia perdido contato conosco e fazia questão de comunicar-se sempre com o pai de Orhan. Tinha nos ajudado muito nos momentos difíceis, assegurando-se de que não nos faltasse comida e roupas quando Dimitri, como a maioria dos gregos em Konya, foi privado de seus meios de subsistência como castigo. A última vez em que havia visto Halil foi quando ele chegou a Konya, sem avisar, numa linda tarde de primavera. Orhan tinha então três anos de idade, mas jamais havia se esquecido do tio, ou melhor, do bigode que lhe fazia cócegas. Olhei para Halil. Ele estava mais belo que nunca e sua farda lhe caía muito bem. Sempre me surpreendia que o membro mais rebelde da família aceitasse a disciplina e a rotina do exército. Ao me abraçar, sussurrou em meu ouvido:

— Estou contente que tenham vindo. Ele contou uma história a Orhan?

Assenti em silêncio.

— Yusuf Pasha?

— Que outra?

— Qual das versões? Rimo-nos juntos. Quando já íamos acompanhar o resto da família, que entrava em casa, Halil percebeu a poeira que se erguia na estrada distante que dava acesso à casa. Só poderia ser outra carruagem, mas quem viria nela? Iskander Pasha tinha fama de anti-social e mal-humorado em toda a família. Em conseqüência, pouquíssimas pessoas iam à nossa casa em Istambul sem serem convidadas e não me lembro de nenhuma que tivesse ido à casa de verão. A hospitalidade tradicional era algo que meu pai desconhecia quando se tratava do resto da família. Era hostil com os sobrinhos e os filhos destes, em especial, mas tampouco queria aproximação dos irmãos. Por esse motivo, as visitas inesperadas tinham sido sempre surpresas agradáveis para nós, quando crianças, principalmente as do Tio Kemal, que nunca chegava sem uma carruagem cheia de presentes para nós.

— Alguém mais está sendo esperado hoje? — Não.

Halil e eu permanecemos no terraço aguardando a chegada da carruagem. Olhamos um para o outro e rimos baixinho. Quem ousaria chegar à casa de nosso pai daquele jeito? Quando éramos bem pequenos, a casa pertencia a nosso avô e naquela época vivia cheia de visitas. Havia sempre três quartos preparados para os amigos de vovô, que chegavam e partiam quando bem lhes aprouvesse. Todos os criados da casa sabiam que eles poderiam chegar a qualquer momento, acompanhados de seus próprios valetes. Mas isso fora há muito tempo. Tão logo papai recebeu a casa, deixou claro para todo mundo que as visitas dos velhos amigos de vovô não seriam bem-vindas.

Aquilo foi um escândalo na família. Minha avó se revoltou contra aquela determinação, usando de um linguajar pesado que não lhe era peculiar, mas meu pai permaneceu inflexível. Seu estilo era outro e ele jamais gostara daqueles parasitas que estavam sempre na casa quando seu pai era vivo, tornando insuportável a vida das serviçais atraentes.

A carruagem parou e logo reconhecemos o cocheiro e o lacaio que estava a seu lado. Halil riu disfarçadamente enquanto descíamos a escada para receber o irmão mais velho de meu pai, Memed Pasha, e seu amigo, o Barão Jakob von Hassberg. Os dois, já na casa dos setenta, aparentavam boa saúde. Ambos, geralmente muito claros, tinham a pele colorida pelo sol. Vestiam ternos de verão na cor creme e usavam chapéus de palhinha, mas de feitios diferentes. Cada um fazia questão de afirmar a superioridade de seu alfaiate. Meu pai jamais conseguia disfarçar sua irritação quando aqueles dois homens discutiam por causa de suas roupas. Halil cumprimentou amavelmente o prussiano e beijou com respeito a mão do tio.

— Bem-vindo a sua casa, tio. E o senhor também, Barão. Que surpresa agradável. Não tínhamos a menor idéia de que os senhores estivessem no país.

— Nós tampouco, até chegarmos aqui — respondeu Memed Pasha.

— O trem de Berlim atrasou como sempre.

— Só atrasou depois que cruzou a fronteira otomana, Memed — interveio o Barão.

— É preciso ser justo. Ele chegou na hora certa à fronteira. Nós temos muito orgulho dos nossos trens.

Memed Pasha ignorou essa observação e voltou-se para Halil.

— É verdade que a seta da morte atingiu meu irmão e que ele se recusou a tombar? É verdade?

— Acho que não entendi sua pergunta, tio. Olhou para mim.

— Nosso pai perdeu a capacidade de falar, tio — murmurei.

— No mais, já recuperou-se, embora precise sempre da ajuda de alguém para caminhar.

— Não considero que isso seja de todo uma tragédia. Ele sempre falou demais. Você sabe nos dizer o que sua mãe mandou fazer para a ceia? Há champanhe nesta casa?

Achei que não, que certamente não haveria! Trouxemos algumas caixas da propriedade do Barão. Passei muitas noites melancólicas nesta casa maldita quando eu tinha sua idade. Basta! E gelo, tem?

Assenti com um movimento de cabeça.

— Ótimo. Mande que resfriem algumas garrafas para hoje à noite, crianças, e digam a Petrossian que prepare nossos quartos.

Com certeza não são arejados há trinta anos. E você aí, jovem, leve-me logo para ver meu irmão.

Papai nunca fora muito chegado a Memed Pasha, mas tampouco o tratava mal e tinha razões para isso. Quando meu avô morreu, Memed Pasha, sendo o filho mais velho, herdou a residência da família em Istambul e também aquela casa, que ele sempre detestara. Nunca entendemos o motivo daquela antipatia. Como era possível alguém ser infeliz num lugar daqueles? Mas também jamais procuramos saber dos detalhes, já que a atitude de Tio Memed resultara em grande benefício para nós. Nosso júbilo foi maior que nossa curiosidade. Nós adorávamos aquela casa. Adorávamos nossa Mulher de Pedra. Lembro-me da alegria que sentimos quando

papai nos contou que Tio Memed nos dera a casa de presente. Halil, Zeynep e eu batemos palmas e nos abraçamos. Salman havia permanecido sério e fizera uma pergunta estranha: "Ela reverterá para os filhos dele depois que o senhor morrer?"

Papai lançou-lhe um olhar irado mas seu silêncio parecia dizer "Imbecil, nós acabamos de ganhar esta casa e você já está pensando na minha morte". Minha mãe tentou esconder um sorriso. Nenhum de nós ficaria sabendo o motivo daquele sorriso se Zeynep, conhecedora da rotina de mamãe, não houvesse se escondido atrás de uma pedra logo que o sol se pôs naquele dia e não tivesse ouvido mamãe falar com a Mulher de Pedra.

"O que dizer às crianças hoje em dia, Mulher de Pedra? Até onde se pode chegar?

Pobre Salman. Ele só queria saber se algum dia esta casa seria dele. Meu marido olhou-o como se ele tivesse tentado matar alguém. Mesmo não sendo sua mãe, gosto muito do rapaz. Eu gostaria que o pai falasse com ele. Que lhe dissesse o quanto o ama. Ele não tem culpa alguma que a mãe tenha morrido para que ele nascesse.

Salman sente a indiferença do pai. Quase sempre que o pai olha para ele vê sua primeira esposa nas feições do rapaz, mas em certas ocasiões ele olha para Salman com ódio, como se ele tivesse matado a mãe de propósito. Certa vez perguntei a Iskander Pasha sobre sua primeira esposa. Ele ficou muito aborrecido comigo e disse que nunca mais fizesse perguntas sobre ela. Minha intenção era apenas consolálo, mas ele ficou muito estranho. Fiquei mesmo me perguntando se ele não estaria escondendo alguma coisa. O que acontece com os rapazes desta familia, Mulher de Pedra? Tão logo chegam à puberdade, parecem desligar-se de tudo e passam a olhar para suas mães e irmãs como se fossem seres inferiores. Espero que Halil nunca fique assim. Mesmo não sendo sua mãe verdadeira, vou fazer o possível para que isso não aconteça.

Quanto a Memed Pasha, o que fazer? Ninguém teria feito qualquer objeção se ele tivesse se casado e tido filhos, mas ele se recusou a isso e seu pai o puniu severamente por sua desobediência. Mantiveram-no sempre sob controle e contrataram tutores especiais para cuidar da educação dele. Quem poderia adivinhar que aquele jovem Barão que chegou aqui há mais de cinqüenta anos para ensinar alemão a Memed e a seus irmãos se afeiçoaria tanto a Memed e seria correspondido? Nem mesmo os empregados suspeitaram. O pai de Petrossian foi inquirido insistentemente quando a história foi descoberta, mas ele jurou em nome de Alá que não sabia.

Como seria bom se você pudesse falar, Mulher de Pedra. Você poderia dizer a Salman que seu tio Memed jamais terá filhos e que ele, Salman, algum dia herdará esta casa."

Zeynep me contou. Eu contei a Halil. Halil deu a notícia a Salman, que começou a rir e não conseguia parar. Até que tentava, olhava-nos com uma expressão séria, mas não conseguia manter a compostura por mais de alguns segundos. Caía na gargalhada novamente. Seu riso tornou-se incontrolável. A sala foi se enchendo de gente e até mesmo Petrossian e as empregadas, em geral muito discretas, foram contagiados por aquela estranha alegria que se espalhou por toda a casa como uma ventania de verão. Todos queriam saber do que estavam rindo, mas Salman não conseguia falar.

Halil, Zeynep e eu paramos de rir e ficamos um pouco assustados, principalmente quando Iskander Pasha desceu a escada. A princípio ele sorriu, mas Salman, ao ver o pai, pôs-se a rir ainda mais. O ambiente foi ficando tenso. Petrossian, sempre atento aos humores do patrão, conduziu o rebanho de empregados para fora da sala.

Somente depois de eles terem saído foi que Iskander Pasha perguntou, de um jeito apenas aparentemente tranqüilo: "De que você está rindo, Salman?"

Salman parou de rir no mesmo instante. Enxugou as lágrimas que lhe desciam pelo rosto e seus olhos se fixaram nos dos pai.

— Estou rindo, Ata, da minha própria estupidez e falta de percepção. Como pude ser tão tolo a ponto de lhe perguntar sobre os herdeiros de Tio Memed? Isto é, ainda não se ouviu dizer que barões, nem mesmo os da espécie prussiana, tenham dado à luz criança alguma.

Minha mãe prendeu a respiração. Iskander Pasha não conteve sua ira. Nunca vou me esquecer daquela sua face irada que vi de perfil quando ele deu um soco no rosto de Salman. Meu irmão, horrorizado, deu uns passos para trás, equilibrando-se.

— Se você se referir a seu tio de maneira desrespeitosa novamente na minha presença ou na de sua mãe, eu o deserdarei. Está entendido?

Salman, com os olhos cheios de lágrimas de rancor, de dor e de tristeza, concordou em silêncio. Iskander Pasha saiu da sala. Eu ainda não tinha nove anos, mas odiei meu pai naquela hora. Era a primeira vez que o via bater em alguém.

Peguei as mãos de Salman entre as minhas enquanto Zeynep foi buscar água, que ficou passando de leve na face que havia recebido o golpe. Halil empalideceu. Ele ficou ainda mais chocado do que eu. Creio que depois daquilo ele nunca mais respeitou nosso pai novamente. Eu era muito pequena, mas aquela tarde ficou gravada em minha memória.

Não foi simplesmente o ato de violência contra Salman que nos deixou tão transtornados, mas a explosão daquele rancor reprimido que mal se escondia e que veio à tona, rasgando a máscara e revelando um rosto deformado pelo ódio. Salman tinha completado vinte e seis anos. Todos nós, os quatro filhos de Iskander Pasha, saímos de casa juntos, profundamente perturbados. Caminhamos até uma rocha plana, pouco abaixo da Mulher de Pedra, escondida por um bosque de pinheiros.

Aquele era o lugar predileto de todos, porém era a primeira vez que nos reuníamos ali. A superfície da rocha era recortada, mas perfeitamente plana. A natureza nada tinha a ver com o processo que lhe dera aquela aparência. Petrossian afirmava que era ali onde Yusuf Pasha se sentava para compor seus poemas mais líricos, com o mar se espraiando diante dele. Vários pedreiros haviam aplainado e suavizado a superfície daquela rocha.

Ficamos sentados em silêncio olhando o mar, até que se aplacassem as ondas turbulentas que atormentavam nossos corações. Ficamos lá por muito tempo, esperando o pôr-do-sol. Halil foi o primeiro a falar. Repetiu exatamente as mesmas palavras sobre Tio Memed que haviam provocado a agressão. Depois foi Zeynep que as repetiu, mas quando era minha vez Salman tapou-me a boca com a mão para que eu não falasse.

— Princesinha, você nunca deve falar de coisas que não compreende.

Começamos então a rir novamente, a exorcizar a lembrança do que havia se passado naquele dia. Salman, comovido com nossa reação, confessou-nos que pretendia sair de casa para sempre. Nunca mais voltaria àquele lugar ou à casa de Istambul. Partiria para Aleppo ou para o Cairo ou, ainda, para mais longe, para terras onde não houvesse otomanos. Só assim se sentiria realmente livre.

Ficamos desolados. Pelo menos, case-se primeiro, pediu Zeynep. Por que não se alista no exército, sugeriu Halil. Puseram-se a falar do que esperavam da vida para si e para os filhos que viessem a ter. Conversaram a sério sobre suas vidas e tudo aquilo era novidade para mim. Eu ainda era pequena demais para participar da conversa e até mesmo para compreender muito do que diziam, porém a emoção que perpassava aquela conversa era tão intensa que a cena permanece vívida em minha memória.

Eu nunca os tinha visto daquele jeito. Seus rostos tinham expressões animadas e eles pareciam felizes. Lembro-me de que isso me fez sentir feliz também. Parecia

até que a tragédia daquela tarde havia assinalado uma grande mudança em suas vidas, enchendo-os de esperança no futuro. Até mesmo Zeynep, cujo temperamento plácido era motivo de piadas na família, demonstrou sua raiva e seu entusiasmo naquele dia. Nenhum de nós queria voltar para casa quando o sol se pôs. Estávamos totalmente revoltados contra Iskander Pasha e todo o seu mundo. Quando Petrossian, que sempre sabia onde nos encontrar, chegou para dizer que era hora do jantar, nós o ignoramos por completo. Então ele se sentou conosco e, com palavras doces de conciliação, convenceu-nos gentilmente a voltar. Salman foi à frente e nós o seguimos de volta, relutantes.

Não sei dizer quando foi, exatamente, que Salman nos deixou. Acho que não foi muito depois de ter apanhado de Iskander Pasha. Só me lembro do pânico que se instalou na família quando Salman anunciou, à mesa do café, que havia decidido deixar o trabalho e passar alguns anos conhecendo o mundo. Como ele trabalhava na firma de transportes marítimos de Tio Kemal, não haveria problema de partir e voltar quando quisesse.

A mãe de Zeynep e de Halil havia cuidado de Salman desde que ele nascera, porque sua mãe morrera de parto. Era uma prima afastada que também sempre me dispensara muito afeto. Seu casamento com Iskander Pasha foi arranjado às pressas. Ele estava desolado na época, mas cedeu à pressão da família para casarse com ela a fim de dar uma mãe a Salman. Ela cuidou muito bem dele e tornou-se praticamente sua mãe. Amava-o como se fosse mesmo seu filho e o defendia com unhas e dentes, mesmo depois que nasceram seus próprios filhos, Halil e Zeynep.

Raramente ficava na residência de verão e não havia presenciado a humilhação de Salman, mas a notícia chegou a ela em Istambul e minha mãe sabia que Iskander Pasha ouviria poucas e boas. Talvez ela tenha tentado convencer Salman a não partir. Se tentou, foi em vão. Ele havia tomado uma decisão e nada o demoveria. Ele nos disse que passaria algum tempo viajando e que nos mandaria notícias quando resolvesse se estabelecer em alguma cidade.

Um pai penitente ofereceu-lhe dinheiro para a viagem, mas Salman recusou. Ele havia economizado o suficiente do seu salário nos últimos quatro anos. Abraçou-nos e partiu. Durante muitos meses não tivemos notícias dele. Depois começaram a chegar algumas cartas esparsas. Decorrido um ano de sua partida, recebemos uma mensagem de Tio Kemal, que acabava de chegar de Alexandria. Ficamos sabendo que ele tinha estado com Salman, que se tornara um negociante de diamantes de bastante sucesso e que havia se casado por lá. Mandou uma carta para a mãe de Zeynep, mas não soubemos o que disse nela. Zeynep procurou em todos os lugares onde a mãe pudesse ter escondido a carta, mas não a encontrou. Certa vez, aflitos, perguntamos a Petrossian se ele sabia o que dizia a carta. Ele sacudiu a cabeça, triste.

— Quando se atiram pedras demais contra uma pessoa, ela passa a não mais temê-las.

Até hoje não sei o que Petrossian quis dizer com isso. Zeynep e eu concordamos em silêncio, mas quando ele saiu da sala nós não pudemos conter o riso.

Era estranho que houvessem todos chegado no mesmo dia. Que recordações não passariam pela mente de Iskander Pasha ao ver Salman, Tio Memed e o Barão entrarem juntos no quarto? Mais tarde Halil me contou que papai havia chorado ao ver Salman, que o havia abraçado carinhosamente e beijado suas faces. Salman ficou comovido, mas seus olhos permaneceram secos. Aquele gesto havia chegado tarde demais. O orgulho que os homens adultos demonstram é algo de que há muito me dei conta, mas que jamais consegui entender. Esse sentimento meu marido Dimitri conseguiu reprimir bastante, embora não se possa dizer que não o tivesse.

Com o passar dos dias, tive oportunidade de observar Salman. Meu irmão, que quando jovem havia sido o mais alegre e cheio de esperanças de todos nós, havia se tornado um homem amargurado. Creio que sua incapacidade de chegar onde queria ter chegado dava-lhe grande ansiedade. Parecia mesmo que seu sucesso no negócio de diamantes estava na raiz de sua infelicidade. Ele nunca estava satisfeito. Casara-se com uma egípcia em Alexandria, "uma bela copta", segundo Tio Kemal, mas não quis apresentá-la à família. Mesmo naquela ocasião, ao visitar o pai que tivera um derrame, Salman não levara os filhos para que o avô os visse, pelo menos uma única vez. Somente Halil teve o privilégio de ser convidado a ir ao Egito conhecer a mulher e os filhos dele. Certa vez, quando insisti em saber o motivo da indiferença de Salman, recebi de Halil uma resposta ríspida e surpreendente.

— Salman sente-se muito deprimido com a decadência irreversível do Império que já dura trezentos anos. Todos sabemos disso, mas para Salman esse fato teve conotações pessoais.

Rejeitei instintivamente essa resposta. Eu sabia da impaciência de Salman com os rituais de Istambul. Ele se sentia frustrado e queria modificá-los, porém, na melhor das hipóteses, isso só poderia ser uma parte da explicação. Eu não podia acreditar que meu irmão, que havia sido tão alegre e cheio de vida, se deixasse deprimir tão profundamente por essa sensação de impotência ante a história. Nossa família sempre fez história. Como poderíamos permitir que ela agora nos destruísse? Deveria haver uma outra explicação para a tristeza de Salman, e eu estava decidida a descobrir qual era.


3

O Barão lê um trecho do Qabus Nama sobre "A paixão romântica";
a história inacabada de Enver, o albanês;
Sabiha e a serva circassiana
para quem sair voando era a única maneira de fugir

Seu Império Otomano é como uma prostituta embriagada, deitada de pernas abertas, sem saber quem será o próximo a possuída e tampouco importando-se com isso. Estou exagerando, Memed?

O Barão e Tio Memed estavam na segunda garrafa de champanhe. — Como de costume, Barão, você expressa os conceitos mais complexos com a maior clareza — respondeu Memed — mas às vezes me pergunto se o grande mestre Hegel não ficaria um pouco decepcionado com sua pessoa. Pelo que dizem seus contemporâneos de escola em Berlim, você foi um aluno promissor...

O Barão o interrompeu com uma gargalhada que parecia a explosão em staccato de uma metralhadora: ha-ha-ha-ha-ha-ha-haha-ha-ha-ha e um último ha. Não era do tipo de risada que começa com um sorriso e vai adquirindo ritmo aos poucos. Aquela risada era parte de seu armamento pesado para humilhar, aniquilar, interromper ou confundir o inimigo.

— Sempre que visito esta família, sinto que perco o contato com o mundo real. Como já lhe disse inúmeras vezes, o mundo real é o mundo das formigas. A única maneira que os seres humanos têm para sobreviver é imitando as formigas. É o nosso futuro. Está aí, diante de nós, nos acenando, mas você resiste. Você finge que sua casa é que é o mundo real e dessa forma mantém os monstros à distância, mas por quanto tempo, Memed? Por quanto tempo? Seu Império está tão falido que já não pode sequer dar tempo ao tempo, como vem fazendo há quase trezentos anos.

Meu tio ficou em silêncio por algum tempo. Quando respondeu, foi numa voz suave:

— O que os seus filósofos chamam de progresso, meu caro Barão, desertificou os seres humanos por dentro. Eles não se importam mais uns com os outros. Veja o que acontece na França, um país que ambos amamos, para não falar da Inglaterra. Não há mais solidariedade entre os seres humanos. Não há mais qualquer crença em algo que compartilhem, a não ser para sobreviverem ou para enriquecerem a qualquer custo. Talvez seja mesmo este o destino do mundo. É lá que chegaremos algum dia, e quem poderá dizer que não morreremos felizes? Por que não devemos procurar prazer na companhia uns dos outros? Por que não devo gozar da minha vida, desta casa, da minha família...

O Barão explodiu numa gargalhada, mas dessa vez foi de verdade.

— De que está rindo?

— Acabo de me lembrar do Qabus Nama. Quando o traduzi para o alemão, achei-o incrivelmente enfadonho e trivial, algo que não merecia a mínima atenção. Lembro-me de ter pensado: se é este o código moral de um sultão e seus príncipes, não é de surpreender que tenham se degenerado tão rapidamente. Até mesmo as mentes mais ocas, cheias de fumaças imperiais, poderiam dispensar tranqüilamente tanta tolice. Lá encontrei, porém, uma passagem encantadora. O título era "Paixão romântica" e eu a recitei tantas vezes para uns tios e primos insuportáveis que tenho que jamais me esqueci das palavras. Lembrei-me dela quando você falou de pessoas que só estão interessadas em ficar ricas. Então ouça, velho Memed, a sabedoria do Qabus Nama: "No que lhe diz respeito, resista a apaixonar-se e evite tornar-se um amante, pois a vida de um amante é marcada pela infelicidade, principalmente quando lhe faltam recursos financeiros. O amante sem dinheiro jamais consegue o que deseja, principalmente se ele já for velho; o que deseja só poderá ser alcançado com o auxílio de dinheiro, e o amante que não o possui só conseguirá atormentar seu espírito."

Foi então a vez de Memed sorrir.

— Ser velho e sem dinheiro já é suficientemente mau e será pior ainda se a pessoa for atormentada por emoções irracionais. Suponho que isso seja bem verdadeiro. É verdade que estamos ficando velhos, meu caro Barão, mas não creio que essa passagem que você decorou tão bem tenha alguma coisa a ver conosco em absoluto. Ainda que não tivéssemos um único centavo, creio eu, sempre encontraríamos prazer na companhia um do outro. Talvez devêssemos abrir mais uma garrafa para bebermos à inutilidade do Qabus Nama.

A sala de visitas de papai, decorada e arrumada como um salão francês, estava repleta de gente. Antes de ele adoecer as mulheres otomanas eram impedidas de entrar naquele santuário. Às francesas, como observamos, era permitida a entrada, mas apenas se estivessem acompanhadas de seus pais ou de seus maridos. Quase sempre, porém, aquela sala, a mais bela e espaçosa da casa, era reservada para os amigos e visitantes do sexo masculino.

Certa vez, quando papai estava em Paris, Zeynep, eu e nossas mães entramos lá, mandamos que nos servissem chá de menta e água de rosas e sentamos para jogar cartas.

Achei lindo ficar vendo as mudanças de humor do mar dos três janelões com varandas pelos quais entrava a claridade. Passamos a usar aquela sala todos os dias em que ele esteve fora, e as empregadas acharam aquilo muito divertido. Elas também gostaram de ir lá na ausência de Petrossian.

Agora tudo estava diferente. Era lá que nos reuníamos todas as noites depois do jantar para conversar um pouco e ouvir uma história, antes de nos recolhermos aos nossos quartos. Papai franziu a testa demonstrando que a conversa entre Tio Memed e o Barão lhe desagradava. A referência a prostitutas na presença da mulher e das filhas deve tê-lo irritado. Orhan dormia profundamente em uma chaise-longue junto à janela e não ouviu nada daquilo.

Iskander Pasha ergueu o bastão que tinha sempre consigo e bateu-o com força no chão. Era o sinal para que todos parassem de conversar pois a história ia começar.

Tio Memed pigarreou. Salman sorriu. Halil mexia nervosamente o bigode. Minha mãe, Sara, ajeitou o xale. Zeynep e eu nos entreolhamos tentando nos manter sérias.

Se Tio Memed ia falar, qualquer coisa poderia acontecer.

Papai, aparentando estar um pouco tenso, fez sinal para que Petrossian se aproximasse e apontou na direção de Orhan. O gesto foi compreendido. Meu Orhan adormecido foi gentilmente carregado dali. Lamentei não ter levado minha filha Emineh também. Gostaria que ela fizesse parte de família. Tio Memed assumiu um ar de falsa humildade e começou a falar.

"Vou contar-lhes agora a história de Enver, nosso grande ancestral albanês, como foi transcrita a partir do relato de seu filho. O documento propriamente dito costumava ser lido a cada cinco anos por ocasião do aniversário do nosso Profeta, quando toda a família se reunia para celebrá-lo. O ritual era considerado necessário para que não nos esquecêssemos de nossas origens humildes. Infelizmente ele se perdeu há uns cinqüenta ou sessenta anos. Dizem alguns que nosso avô Mahmut Pasha destruiu o fino volume encadernado porque ele próprio estava reinventando a história de nossa famiia, e a verdade, ainda que tivesse quatrocentos anos, o deixava envergonhado. Mahmut Pasha de fato produziu um livro para substituir aquele. Encontra-se na biblioteca, sem ser lido ou apreciado, apesar de sua requintada caligrafia.

Aqueles de nós que tentaram lê-lo acabaram por desistir depois da segunda trama de mentiras, segundo a qual o fundador de nossa família tinha puro sangue árabe e descendia da tribo do Profeta, ao invés de ser um albanês cujo primeiro emprego foi o de limpar os montes de bosta de cavalo que se acumulavam em torno de um acampamento militar otomano daquela região. Ele retirava a bosta com tanta eficiência que suas proezas eram objeto de comentários. Foi levado de volta a Istambul pelo Aga que comandava aquela tropa e veio a tornar-se responsável pela limpeza e pela higiene no interior do palácio.

Mahmut Pasha inventou outra história porque pretendia casarse com a sobrinha do Sultão e achou que seria prudente melhorar sua linhagem. Creio que esse ato de falsidade foi cometido em vão. O Sultão provavelmente conhecia a verdadeira história e não se importava com ela. Mas eu gostaria que ele tivesse se oposto àquela união por outros motivos, poupando assim a nossa família de uma tragédia desnecessária.

Os Ertogrul sempre preferiram que seus ministros e cortesãos assumissem sua origem humilde. O Sultão cria e destrói seus vizires. É mais fácil manter-se o estilo quando não há nobreza. A certeza de serem a única família a herdar o poder dá aos nossos sultões uma sensação de estabilidade e de confiança em si, baseada na crença de serem os Ertogrul a única família imperial genuína a governar nosso grande Império. E isso — ai de nós! — é verdade. Aliás, é por causa disso que vemos este Império degradar-se diante de nossos olhos. A analogia assustadora que nos fez o Barão não está longe da verdade. O Sultão Abdul Hamid II sabe disso. Quando o acompanhei em sua viagem a Berlim no ano passado, ele me perguntou: "Você acha que serei eu o último califa do Islã?' Eu sorri, sem responder.

Meu avô Mahmut era vaidoso e presunçoso como um pavão, mas não era de todo imbecil. Deve ter percebido os pontos sensíveis dos Ertogrul. O Sultão se diz descendente de Osman, fundador da dinastia. Por que o idiota do nosso avô arrogou-se descendente do Profeta? Por que sentiu a necessidade de enfeitar a verdade? Por que criou um mundo imaginário do qual nossa família teria se originado? Nosso avô fez um papel de tolo. Seu livro é tolo e pretensioso, misturando fatos com invenções.

Nossa família, é claro, sabia da verdade, porém apesar de se rirem todos de Mahmut e acharem sua conduta vergonhosa, ninguém teve a coragem de enfrentá-lo. Se uma delegação de velhos sisudos da família tivesse ido até ele e insistido em que ele parasse com aquela mentira, talvez tivesse tido algum sucesso, ainda que temporário. Quem sabe? Talvez não adiantasse mesmo. Afinal de contas, apesar de saberem todos que Mahmut Pasha tinha o costume de sacrificar a verdade para que as coisas parecessem melhores do que eram, ele teve permissão para casarse com uma sobrinha do Sultão e ela deu à luz nosso pai e suas três irmãs. Isso não impediu, porém, que o Sultão e sua corte continuassem a rir de Mahmut.

Minha tia me contou que todas as vezes que Mahmut Pasha visitava a corte para prestar suas homenagens, o Sultão indagava sobre seu livro, obrigando-o a repetir algumas das suas invenções mais absurdas diante dos cortesãos ali reunidos. O Sultão, é claro, mantinha-se impávido durante a leitura, mas encorajava os aduladores a rirem à vontade. Foi assim que as leituras do livro de Mahmut Pasha tornaram-se motivo de chacota e algazarra.

Em que será que ele pensava enquanto isso acontecia? Como era possível que seu prodigioso orgulho sobrevivesse a esse ritual de humilhação? Ao voltar para casa ele dizia à mulher que o tio dela o havia honrado novamente e que o

Vizir o cumprimentara pela elaboração de um aide-mémoire secreto e da maior relevância que ele, Mahmut, havia redigido sobre a questão russa e que havia sido despachado, sem uma única alteração, para a Chancelaria em Berlim.

E a nossa bela avó Sabiha, cujo retrato a óleo dá as boasvindas às visitas que chegam à casa em Istambul, será que ela acreditava nessas tolices? Creio que não.

Ela havia se casado com ele não porque fosse atraente, rico ou mentiroso contumaz. Casou-se simplesmente porque seu pai decidiu que Mahmut Pasha seria um bom marido para a filha. Posso ver que a mãe de Orhan está sorrindo. Está se perguntando se sua bisavó poderia ter sido tão tola. E a resposta, minha adorável Nilofer, é simplesmente sim.

Sua bisavó Sabiha era realmente linda. O quadro é bem fiel quanto a isso, porém Bragadini, o pintor, infelizmente não tinha muito talento. Pintava apenas o que via. Faltaram-lhe a sensibilidade e o interesse que o teriam levado mais além, permitindo que percebesse onde se escondia seu verdadeiro caráter. Esquivou-se completamente ao tentar revelar seu interior. Ela tinha a pele clara, lábios sensuais, a testa bem feita, tranças escuras que lhe caíam pelos ombros, olhos azuis e, segundo aquele que pôde vê-la sem roupas, tinha um corpo de uma "riqueza desconcertante". A meu ver, essa expressão é horrível, porém Vovô Mahmut usava-a freqüentemente quando abusava da bebida, como forma de gabar-se e de explicar-se aos velhos amigos que não entendiam como ele suportava a futilidade daquela mulher.

Mahmut não era lá uma pessoa muito profunda. Optara por não se sobrecarregar de conhecimentos. Quanto às diversões, Alá seja louvado, como ele sabia gozar dos três passatempos que alegravam as vidas dos crentes desde os tempos do Profeta. Meu avô amava o vinho, a caça e a fornicação, nesta ordem. Não conseguia caçar sem antes ter bebido e não conseguia montar em minha avó sem antes ter matado algum infeliz animal. Quanto a isto, até mesmo um coelho ajudava-o em sua performance.

Infelizmente, para ele, Sabiha sentia a maior repugnância por essas três atividades. Havia crescido em um palácio. Desde os oito anos de idade observava os homens com seus copos de vinho e sempre dizia que vê-los assim dava-lhe náuseas. Nunca acrescentou maiores detalhes. Sabe-se lá o que ela não teria presenciado ou vivido quando criança no palácio onde os califas da nossa fé faziam o que bem entendiam? Sabe-se lá quão profundamente isso a afetou? Dizia-se que a decisão de seu pai de casarse com uma cortesã japonesa havia sido um choque para ela. Nos conflitos que passaram a ocorrer desde então, ele sempre ficou do lado da nova esposa, contra os filhos. Sabiha sentiu-se abandonada e isso teve grande influência na sua atitude em relação aos homens e ao poder que possuíam. Mas não era isso o que dizia aos seus amigos.

Esses ficaram sabendo, simplesmente, que Mahmut Pasha não era homem de verdade e que ela jamais tivera prazer algum ao copular com ele. Que ele era pior que um cão e que depois do nascimento dos filhos, Alá seja louvado, ele havia ficado impotente. Por mais que ela se esforçasse, aquele rabanetezinho dele recusava-se a dar sinais de vida. Que, na verdade, ela já não tentava mais. Que o proibira, definitivamente, de se deitar em sua cama.

Mahmut Pasha, vaidoso e amante dos prazeres como sempre, sentiu-se ofendido com aquelas calúnias contra sua virilidade. Sua reação nada teve de original: carregou para um quarto perto do seu uma serva circassiana que trabalhava na cozinha. Ela se tornou sua amante. O avô de Petrossian era o sultão de nossa cozinha nessa época. Ele também tinha uma certa queda por aquela mulher, mas curvou-se ante a vontade do senhor, mais importante que a sua.

A circassiana — até hoje nunca se soube qual seu nome verdadeiro — era analfabeta. Fora levada para lá quando menina por um negociante de Istambul para trabalhar na cozinha. Dizem que era dotada de uma inteligência inata. Dizem que fazia Mahmut Pasha rir-se muito e, mais importante que isso, ela o rejuvenescia entre suas pernas. Não demorou muito para que sua existência passasse a ser conhecida fora do círculo familiar.

Ela começou a acompanhar Mahmut em suas caçadas. Sua presença forçava-o a inverter a ordem de seus prazeres. Ele passou a não conseguir caçar se antes não tivesse tido prazer com sua circassiana, e depois do esporte da caça os dois comemoravam tomando vinho. Ele deveria ter se casado com ela, mas Mahmut Pasha era um covarde.

Eram três as origens de seu temor. Temia desagradar o Sultão. Temia por sua posição social. Temia o ódio de seu pai.

Entretanto ele frustrou todas as tentativas de Sabiha de tirar de cena a circassiana. Por que Sabiha se importava tanto com aquela concubina, especificamente?

Ter concubinas naquela época era tão comum quanto agora. Acho que foi a humilhação pública que a deixou aborrecida. Se meu avô tivesse sido discreto, ela não teria se sentido insultada, mas Mahmut Shah estava com raiva de Sabiha por pôr em dúvida sua virilidade. Por isso recusou-se a esconder sua rapariga de quantos pudessem vê-la. Gostava que ela se vestisse como uma dama para exibi-la a seus amigos. A mãe de Halil certa vez encontrou nesta casa uma caixa contendo um lindo vestido parisiense, cuidadosamente preservado apesar de já um pouco sem cor. Ele havia pertencido à circassiana.

Um belo dia ela desapareceu de nossa casa em Istambul. A princípio Sabiha ficou felicíssima, mas ao cabo de um mês percebeu que a ausência da rival, ao invés de fazer Mahmut Pasha infeliz, parecia havê-lo tornado ainda mais alegre. Sabiha se deu conta de que algo estava sendo escondido dela. Mandou chamar o avô de Petrossian, mas ele negou saber qualquer coisa acerca das paixões de seu senhor.

Creio que deva ter sido uma das criadas que, invejosa da ascensão social da circassiana, acabou contando à sua senhora a verdade. A circassiana estava esperando um filho de Mahmut Pasha e tinha ido passar algum tempo fora. Quem sabe se a criança não veio a nascer neste mesmo quarto, nesta mesma cama onde Iskander Pasha se encontra deitado, impossibilitado de falar, mas franzindo a testa para mim porque não aprova esta história? Perdoe-me, querido irmão. Mas tudo que começa precisa ter um final. Você não concorda?"

Meu pai escreveu um bilhete em seu bloco e eu o entreguei a meu tio, que sorriu.

— Iskander diz que não há final algum. Que tudo a partir daí são suposições. Que as línguas maldizentes das criadas inventaram histórias mentirosas. Ele está cansado e quer dormir. Sugere que continuemos amanhã. Devemos respeitar sua vontade, mas serei breve.

"A história teve um final e este foi trágico. A circassiana de Mahmut Pasha desapareceu com o filho no ventre. Nunca mais foi vista. Quando eu era pequeno, as criadas costumavam me assustar com histórias de um bebê fantasma cujos gritos podiam ser ouvidos desta varanda. Perguntem a Petrossian e ele lhes dirá que Sabiha mandou que a matassem. Diz ele que ouviu essa história do seu pai. Portanto houve um final, embora Mahmut Pasha, assim como seu descendente Iskander, prefira crer que ela tenha simplesmente fugido. Ele ofereceu uma grande recompensa a quem lhe trouxesse notícias dela, mas ninguém jamais se apresentou."

Ditas essas palavras, o Barão e o Tio Memed se ergueram, fizeram uma graciosa saudação curvando-se diante de meu pai — que havia fechado os olhos para mostrar seu desagrado — e saíram. Nós os seguimos em silêncio.


4

A circassiana revela sua verdade à Mulher de Pedra
e lastima-se de seu destino;
de como os ricos anulam o amor dos pobres

Você será capaz de ouvir também minha história triste, Mulher de Pedra, ou será que a seus ouvidos só se destinam as vozes do Pasha e de sua família? Há mais de três meses estou nesta casa. Cuidam de mim e alimentam-me bem. Fico feliz por estar longe de Istambul, mas na minha solidão sinto saudades de Hikmet mais que nunca. Desperto todos os dias bem antes dos pássaros. O céu ainda está escuro e as estrelas ainda não começaram a se apagar. Não consigo mais dormir. O rosto de Hikmet e sua voz invadem meus breves momentos de sono e sinto-me profundamente triste. Olhe só para mim. Estou grávida de oito meses do filho de Mahmut Pasha, mas meu coração pesa mais que meu ventre.

Nos sonhos Hikmet me aparece em sua farda de soldado. Olha-me e vejo muita tristeza em seus olhos cinzentos. São eles que me dizem: "Confiamos em você, mas você não soube esperar. Traiu nosso amor pelo conforto que lhe dá um homem rico.' Nos sonhos eu peço perdão, suplico que me perdoe, mas no fundo do coração sei que seus olhos dizem a verdade. Eu tinha um compromisso com ele. Estava mesmo me preparando para pedir à minha senhora permissão para casar-me com ele, quando naquele maldito dia nosso senhor, Mahmut Pasha, pôs os olhos em mim e começou a torcer a ponta do bigode. Era o sinal fatídico contra o qual já me haviam prevenido quando eu ainda tinha dez anos. Oito anos depois, aconteceu. Meu coração se apertou.

As criadas continuam a avisar a qualquer uma que chegue para trabalhar aqui sobre essa já antiga tradição da família. Quando o senhor olha para qualquer uma delas e começa a brincar com seus bigodes, este é um sinal de que ela será chamada à cama dele naquela mesma noite. Sempre foi assim, Mulher de Pedra. Sempre foi assim.

E não apenas com as criadas. Alguns cocheiros jovens também foram convocados. Um deles fugiu e nunca mais foi visto. As criadas comentam muito sobre os hábitos de Mahmut Pasha, mas a vulgaridade do que dizem ofende meus ouvidos. Prefiro não tomar conhecimento de suas histórias.

Afinal de contas, eu não passava de uma criada da cozinha, sem permissão sequer para chegar perto dos outros cômodos da casa. Minha tarefa era ajudar os cozinheiros e cuidar que tivessem à mão todos os ingredientes de que precisavam para seus pratos. Quando eu era mais jovem, jamais me ocorreu que algum senhor se apercebesse de minha existência, por isso nunca me preocupei como as outras, que andavam de um lado para o outro com os seios parecendo melões maduros.

Ele me viu pela janela um dia, quando eu estava sentada num banco da horta, lavando pepinos. Desviei meu olhar do dele, mas ele veio rapidamente e passou por mim.

Pus-me de pé e cobri a cabeça. Ele sorriu e acariciou o bigode. Ah, como o destino é cruel, Mulher de Pedra. Naquele mesmo instante tive certeza de que não havia como escapar. Pensei em fugir antes que a noite chegasse. Por um capricho do destino, porém, meu belo Hikmet, com seu rosto sem pêlos e seus cabelos ruivos, que guardava a casa todos os dias, justamente naquele havia ido à sua aldeia para o enterro da mãe. Eu estava só. Juro por Alá que se Hikmet estivesse lá naquele dia, eu teria fugido com ele. Mas não era assim que as coisas tinham que acontecer. A convocação me chegou pela criada mais antiga da casa. Ela, que se gabava de haver aquecido as camas de Mahmut Pasha, de seu pai e seu avô, já estava se aproximando dos cinqüenta anos. No passado, havia usado de sua posição privilegiada para dar ordens às outras criadas, que a desprezavam e temiam. Mas isso faz muito tempo. Ela foi reduzida à condição de alcoviteira, e isso abrandou seu coração. Acho que no fundo da alma, ela compreendia a humilhação. Para fazer com que nos sentíssemos melhor, ela costumava dizer: "Conheci três gerações desta família, e este senhor de agora é o mais gentil deles todos. Não será violento com vocês. Não as machucará como o avô costumava fazer quando estava excitado.'

Suas palavras de conforto foram de pouco uso para mim. Continuei deitada na minha caminha estreita, chorando sem parar. Mais tarde, quando a velha me levou para o quarto dele, caí de joelhos e beijei os pés de Mahmut Pasha. Supliquei que poupasse minha honra. Disse-lhe, num sussurro, que já estava prometida a outro. Confessei meu amor por Hikmet. Falei do meu desejo de ser mãe e de dar a meus filhos o amor que me havia sido negado. Na minha ignorância, pensava que minha honestidade pudesse impressioná-lo, mas o efeito foi completamente oposto. Ele entendeu minhas súplicas como resistência, e isso o deixou ainda mais excitado. Fez com que eu me despisse, empurroume para sua cama e se satisfez comigo. Quanto a mim, Mulher de Pedra, posso jurar que senti apenas ódio, tristeza e impotência. Não tive prazer algum, nem ao menos um prazer fugaz. O sangue que escorreu por minhas pernas deixou-me assustada. E ele não parava de arfar e agitar aquele seu corpo asqueroso, cheio de carnes, sobre o meu. Senti ódio de meus pais por terem morrido quando eu ainda tinha três anos, e de meu avô por me vender a um mercador que passava, como se eu fosse um pedaço de pano.

Ele percebeu minha indiferença. Aquilo o deixou com raiva. "Volte amanhã à noite', disse ele ao me mandar embora. Seu tom de voz era o de um senhor que repreende uma escrava ingrata.

Voltei na noite seguinte, na outra e na outra, em todas as noites depois daquela. Minha indiferença parecia só servir para excitá-lo ainda mais e fazer com que se decidisse a vencer-me. Ele queria que eu dissesse que me dava prazer. Olhava-me fixamente e perguntava se algum dia eu poderia amá-lo. Eu nunca respondia a essa pergunta, mas parei de oferecer resistência. Ele comprava roupas para mim, dava-me jóias caras e, certa vez, vestiu-me com trajes de dama européia e levou-me a uma recepção na embaixada da Alemanha, onde me apresentou como sua esposa européia, que havia perdido a fala depois da morte trágica do pai. Ele me instalou em um quarto especial de sua casa e deu-me uma criada só minha. Certo dia ele estava recebendo uns amigos em seus aposentos particulares. Eu estava sentada ao lado dele vendo os homens ficar cada vez mais bêbados. Alguns deles olhavam-me com desejo. De repente sua esposa, a princesa Sabiha, surgiu quarto adentro. Estava fora de si de tanto ódio. Ficou parada por alguns instantes, ignorando a reprovação nos olhos dele. Depois começou a lhe dizer ofensas aos gritos, informando aos amigos que ele era mais impotente que um eunuco. Quando ele se levantou para levá-la para fora do quarto, ela tirou as calças e ergueu a túnica para revelar suas partes mais íntimas. Como os homens desviassem os olhos, ela gritou para o marido: "Isso não basta para você? Responda, seu catador de bosta de cavalo!'

Pasha ficou paralisado de horror. Aquela performance teve um efeito mágico. Nunca vi homens embriagados ficarem sóbrios tão prontamente. Então, satisfeita com o que tinha feito, Sabiha saiu do quarto como um vendaval. Antes disso acontecer, eu não gostava dela. Desde bem antes mesmo de eu ser escolhida por Pasha. Ela era grosseira conosco e suas camareiras a odiavam. Depois daquela cena comecei a admirá-la. Tive vontade de ir falar com ela e explicar-lhe meu próprio desespero, mas não consegui juntar coragem para me pôr diante de seu ódio. Peço a Alá que perdoe minha covardia.

Jamais deixei de pensar em Hikmet. Os únicos momentos em que o forçava a sair de meus pensamentos era quando meu senhor estava se satisfazendo comigo. Nunca tive prazer nesses momentos. Disseram-me que a senhora havia enviado uma mensagem a Hikmet contando o que havia acontecido. Nunca mais ele foi visto. Eu queria que ele viesse até mim, Mulher de Pedra. Eu lavaria seus pés com minhas lágrimas, imploraria que me perdoasse e que me levasse consigo para longe daqui, mas ele nunca mais voltou a esta casa. Talvez não me amasse o bastante. Talvez tivesse medo de Pasha, ou talvez uma bolsa cheia de moedas tenha comprado seu desaparecimento.

E agora carrego em meu ventre o filho do homem que desprezo. Tenho certeza de que é um menino, e isso me dá ainda mais ódio. Não quero ter esse filho. Não quero pôr no mundo essa pobre criatura. Vou dar um salto para o céu e sair voando para longe daqui, Mulher de Pedra. Quando cansar de voar, vou cair no mar e quando me encontrarem estarei flutuando como um peixe morto e inchado. Mas meus olhos estarão fechados. Meu sono será tão profundo quanto o mar. Você entende por que vou fazer isso, Mulher de Pedra? Para castigá-lo. Esses malditos beis e paxás pensam que são deuses. Eles acreditam que não têm nada mais a dizer a uma pobre jovem que "Eu a amo e quero que tenha um filho meu'. E ainda que ela seja tão grata por seu afeto, por sua comida, por suas roupas, por seu dinheiro, que nada mais deseje neste mundo. Eu tinha horror de ser tocada por ele. O que eu mais temia era que algum dia ele colocasse em mim sua semente venenosa e que ela germinasse.

E no entanto quando isso aconteceu eu deixei de ter medo. Senti uma enorme calma. Eu sabia o que tinha que ser feito. Deixou de haver angústia em minha vida.

No dia em que perdi meu Hikmet, com sua pele macia e seus olhos sorridentes, o sol parou de brilhar para mim. Em Istambul, o Pasha evitava deixar-me sozinha. Achava que sua companhia alegrava-me a vida. Eu me sentia mais só quando ele estava Comigo do que em qualquer outra ocasião, principalmente quando ele estava cheio de desejo e gemia como um jumento no calor. Não se passou um só dia sem que eu perguntasse a mim mesma o que fazer de minha vida.

O que fazer, Mulher de Pedra? Você ouve, mas nunca responde. Se ao menos você pudesse falar! Uma única vez, que fosse. Você está vendo o céu esta noite? Há uma lua crescente que sempre viaja depressa como se à procura do seu amado, mas logo estará cheia como meu ventre e quando estiver, eu sei o que vou fazer. Subo ao alto da escarpa e saio voando para juntar-me a ela. Estarei rindo quando saltar. Já não haverá mais distâncias, somente a certeza de que nenhum outro homem voltará a entrar em minha vida. Vou rir ao pensar na cara gorda do Pasha, branca de ódio, quando lhe disserem que sua pequena escrava se libertou. Ele saberá por que fiz isso, e sofrerá ainda mais. Saberá que abandonei este mundo porque já não mais suportava ser tocada por ele e não queria ser tocada por um filho seu. Ele jamais conseguirá admitir essa verdade diante de outra pessoa, mas tenho fé que o segredo lhe devorará as entranhas. Quero que sua morte seja de pura agonia. Só lastimo não estar aqui para ver."


5

Petrossian fala dos dias de glória do Império Otomano;
Salman insiste em afirmar que os limites entre
a ficção e a história tornaram-se imperceptíveis;
Nilofer escreve uma carta de despedida a seu marido grego;
a circuncisão tardia de Orhan pelas mãos do jovem Selim.

O que me chamou a atenção, ainda de longe, foram os estranhos gestos que ele fazia. Sorri. Eu sabia exatamente o que o velho armênio estava fazendo. Como tudo mais nesta casa, seus gestos me traziam de volta lembranças da infância. As cenas do passado se repetiam, mas agora para meu filho. Aquilo me deixava alegre.

Petrossian ocupava-se de um ritual que se repetia toda semana e que ele não delegava a qualquer outra pessoa. Polia a velha baciazinha de prata que meu pai usava para barbear-se. Trouxera-a de uma viagem a Paris havia muitos anos. Tinha muito apreço por ela e, por esse motivo, Petrossian encarregara-se de jamais deixar que perdesse o brilho. De um modo geral, tarefas dessa natureza cabiam a empregados menos importantes, mas Petrossian, que sempre acompanhara Iskander Pasha em suas idas a Paris, sabia do valor que seu senhor dava àquele objeto específico.

Orhan e as crianças da ala dos empregados o observavam, como que hipnotizados, exatamente como o fazíamos quando éramos crianças. Caminhei lentamente em sua direção, mas eu já sabia que história estava sendo contada antes mesmo de poder ouvir suas palavras. Sentime alegre e irritada a um só tempo. Queria que Orhan fizesse parte daquele mundo, que fosse aceito por meu pai, mas também queria que as coisas fossem diferentes. Tinha-se a impressão de que ali nada mudava. Como a Mulher de Pedra.

— E você acha, meu jovem senhor Orhan, que Memed, o Conquistador, ficou ouvindo o choro e as lamúrias daquele vizir que mais parecia uma velha assustada? Não. Ele ergueu a mão e disse "Basta!" O Sultão não queria mais ouvir aquilo. O que ele queria era tomar a cidade que chamavam de Constantinopla. Queria postar-se, ereto, nas velhas muralhas do Bizâncio e olhar para a Europa. Memed sabia que para nos tornarmos uma potência na Europa, seria necessário tomar aquela cidade. Sem ela nosso Império ficaria caolho. Precisávamos de Constantinopla para podermos ver o que ficava além do Bósforo.

"Dizem que aquele dia de primavera estava radioso quando o Sultão Memed deu ordens para que as tropas se preparassem para atacar e sitiassem a cidade. "Construiremos uma fortaleza no outro lado para controlar todo o acesso à cidade. Ela se renderá.' Memed, o Grande, estava certo disso, e sua determinação contagiou todos os soldados. As mães diziam aos filhos que fossem lutar pela glória de sua fé. Imaginem a emoção que tomou conta de toda a tropa. O Sultão deu ordens para tomar a cidade. Sua Majestade determinou que os soldados fossem bem alimentados. Naquela noite, centenas de ovelhas foram cobertas de ervas frescas e assadas em espetos para os soldados. Um aroma delicioso de carne grelhada espalhou-se por todo o acampamento. Tenho certeza de que deve ter chegado aos inimigos em Constantinopla..."

Por que será que nada nesta casa se modifica? Só que quando ouvi essa mesma história contada pela mesma pessoa, estou certa de que eram cabras, não ovelhas que assaram para os soldados e talvez daqui a dez anos sejam pavões. Já não me importo mais. Não faz diferença alguma, entretanto não pude deixar de me emocionar ao ver no rosto de Orhan brilhar o entusiasmo. Seus olhos estavam grudados em Petrossian. Meu menininho havia entrado no mundo dos sultões e das guerras santas. Como era tão diferente aquilo tudo das histórias que Dimitri e eu lhe contávamos antes de dormir. Eu sempre lhe havia contado casos de nossa família, dos meus tios, tias e primos de diferentes partes do Império. Era uma forma de ensinarlhe a geografia do nosso mundo com suas cidades. Eram histórias felizes e cheias de aventura que se destinavam a familiarizá-lo com o mundo em que sua família vivia.

O pai de Orhan nunca lhe falava do nosso grande Império. Dessa forma eximia-se de ter que denegri-lo e exaltá-lo. Os vícios e as virtudes dos otomanos não eram caros a Dimitri. Sua própria família havia lutado para libertar-se do seu jugo havia apenas doze anos. Como era de se esperar, Dimitri tomava partido dos gregos, embora, como professor, tivesse que guardar para si suas opiniões. Até mesmo em casa ele raramente discutia esses assuntos. De fato, a bem da verdade, devo dizer que desde que nos casamos foram raras as vezes em que conversamos sobre algo importante. Em certas ocasiões cheguei a provocá-lo. Ele perdia a calma e amaldiçoava o dia em que havia se apaixonado por uma otomana. Coisas dessa natureza me faziam rir, o que era ruim, pois isso só servia para prolongar sua irritação. Ele achava difícil acreditar que meus dois irmãos eram mais críticos do que ele quando se tratava do Sultão e sua corte. Além do mais, como Dimitri insistia em dizer, eles nada tinham a temer.

Dimitri é um homem bom. Quanto a isso não tenho dúvidas. Mas há ocasiões em que a bondade se torna um pouco irritante. Depois que minha filha nasceu comecei a me perguntar se não havia cometido um erro. Será que eu o havia amado de verdade, ou teria a oposição de meu pai me levado a não enxergar outra alternativa? A importância de desafiar Iskander Pasha já tinha há muito perdido seu valor, deixando-me sozinha diante de minha existência. Eu estava cansada de Dimitri. Cansada das suas piadas. Cansada da sua poesia medíocre. Cansada de seus ressentimentos. Cansada de vê-lo usar o mesmo tipo de roupa todos os dias e, pior que tudo, eu estava cansada de seu corpo. Ele já não me dava prazer. Nada restava. Minha vida tornou-se um fardo pesado. Eu me sentia sufocada.

Ele percebeu aquela minha indiferença que crescia com o passar do tempo. Era difícil esconder meus sentimentos o tempo todo. Isso feriu seu orgulho. No fundo, ele deve ter começado a me odiar. Às vezes eu percebia uma expressão de seu rosto que revelava isso, mas ele tentava não demonstrar seu rancor. Tinha medo de que algum dia eu pegasse meus filhos e voltasse para a casa de meu pai. Deve ter sido por isso que ele suportou em silêncio a minha indiferença, e a situação piorou ainda mais. Ele jamais deixava que isso afetasse as aparências, o que fazia aumentar o meu rancor. Eu o teria respeitado mais se ele perdesse o controle e me cobrisse de ofensas, gritando comigo, porém mantinha-se em silêncio. E o pior de tudo era que estava sempre cuidando das crianças. Era isso que mais me chocava. Tanto aqui quanto em Istambul, os homens da nossa família não se envolviam com as crianças de maneira alguma. Isso sempre coube às mulheres, ajudadas por um exército de criadas. Tínhamos apenas uma empregada em Konya. É isso mesmo: uma só!

Dimitri costumava fazer Orhan dormir contando-lhe antigas histórias de deuses e deusas gregos. E Orhan sempre queria ser Hermes. Jamais quis ser Zeus ou Netuno, Apolo, Marte ou Cupido. Era sempre Hermes. Gostava da idéia de um deus mensageiro e às vezes voava do pai para mim com mensagens que ele mesmo criava. O que Orhan e eu gostávamos mesmo era quando Dimitri falava dos deuses como se fossem seres humanos. Brigavam uns com os outros. Tinham seus protegidos na terra. Disputavam entre si o afeto de Zeus. Era tudo muito real.

As histórias que o velho Petrossian contava sobre heróis otomanos poderiam ter sido assim também, mas o velho aprendeu seu ofício na escola dos escravos. Não tenho idéia de quantas gerações da família de Petrossian haviam trabalhado para a nossa, mas tanto ele como nós sabíamos que aquele relacionamento era muito antigo.

Havia Petrossians em nossa família há quase cento e cinqüenta anos. Portanto Memed, o Conquistador, estava imune a qualquer crítica, mesmo do tipo mais brando.

Quando éramos crianças, meu irmão Salman costumava inventar histórias escabrosas sobre Memed. Ele interrompia Petrossian em meio a um relato e perguntava, com uma expressão inocente: "Mas Petrossian, foi esse o mesmo Memed que mandou jogar no azeite fervente o irmão de sua mãe e depois deu de comer aos cães suas entranhas, simplesmente porque o infeliz não conseguia controlar seus gases na presença do Sultão?"

Os comentários desse tipo tinham por objetivo fazer-nos rir, e de fato faziam, mas também destinavam-se a desafiar e irritar o contador de histórias. Petrossian ficava impassível diante das provocações. Não demonstrava qualquer irritação e tampouco achava graça: a expressão de seu rosto não revelava o menor sinal de diversão ou reprovação. O que o deixava aborrecido era o fato de perder nossa atenção. Quando isso acontecia, ele parecia um pastor a quem roubaram o bastão e cujas ovelhas por isso se espalharam pelas colinas. Portanto, ao invés de ignorar as brincadeiras de Salman, Petrossian acabava levando-as a sério, porém sempre justificando aquelas atrocidades inventadas pelo meu irmão para denegrir os nomes dos sultões.

Somente uma vez Petrossian perdeu o controle e riu. Salman o havia interrompido em meio a uma história para perguntar o que ele achava de uma determinada questão importante.

— Você está se referindo ao Sultão Selim, o Beberrão. Na sua opinião, as histórias que contam sobre ele são verdadeiras, Petrossian? Dizem que ele bebia tanto que acabou ficando incapaz de realizar sua principal função como homem. E isso o deixava muito irritado, porque quanto mais álcool consumia, mais ardentes ficavam seus desejos. Começou a ficar desesperado, querendo que aquela coisinha que tinha pendurada entre as coxas ficasse intumescida e começasse a funcionar, mas — que lástima! — não era esse o desejo de Alá. Dizem que quando mandava vir uma das esposas a seu quarto, fazia-se erguer por cordas de seda e enquanto era assim mantido pelos eunucos, meninos com mãos delicadas acariciavam-no entre as coxas para que ele sentisse alguma coisa enquanto um janízaro da sua guarda, saudável, era trazido nu e de olhos vendados. O leal soldado punha-se então a deleitar e emprenhar a princesa, que também tinha os olhos bem vendados. Ela, que tinha o Sultão flutuando sobre si, esperando pelo pior, acabava deleitando-se com o vigor e a surpresa. E enquanto isso acontecia, o representante de Alá na terra, em estupor etílico, podia ver a felicidade estampada na face da esposa e ouvir-lhe os gemidos de prazer. Dessa forma, ao que se saiba, ficavam todos satisfeitos. Será que isso aconteceu mesmo? Se aconteceu, então a linhagem que nossos sultões dizem vir diretamente de Osman teria sido rompida. Responda-me, Petrossian!

Petrossian não conseguiu manter-se sério ao ouvir essa história. Na verdade, deu boas gargalhadas, o que deixou Salman exultante com aquela vitória inusitada. A partir daquele dia passamos a gostar muito mais de Petrossian, pois sabíamos que sua discrição era uma máscara.

— Deve ser o diabo em pessoa quem lhe conta essas histórias, Salman Pasha. Jamais ouvi falar disso.

Ao observá-lo agora, é possível dizer, pelos seus gestos e pela expressão facial, que Constantinopla tinha sido tomada. O Sultão Memed havia terminado a pilhagem e estava recebendo as autoridades das igrejas cristãs. A aventura chegara ao fim. O pequeno Orhan estava começando a ficar impaciente.

Estava na hora de ir em seu auxílio.

— Tudo aquilo que ele contou foi verdade? — perguntou-me enquanto nos afastávamos.

Assenti em silêncio. — Meu pai também diria que foi verdade? — Não sei, Orhan. Não sei. Você sente falta dele? Ele encolheu os ombros e virou o rosto para que eu não o visse. Ele sabia que Dimitri e eu já não nos dávamos bem. As crianças percebem essas coisas muito mais do que supomos. Meu filho sabia que o pai e eu não éramos mais felizes juntos. Entretanto, aqui nesta casa, longe do lugar desconfortável onde vivíamos em Konya, eu já não sentia mais rancor. Sentia-me mais generosa. Não tinha mais aquela vontade de punir Dimitri. Nem mesmo de vê-lo morto. Só não queria vê-lo novamente. A idéia de voltar a ser abraçada por ele fazia-me sentir um aperto no estômago.

Orhan afastou-se sozinho. Aos poucos estava começando a descobrir a casa e os mistérios das áreas que a circundavam. Via-o com freqüência caminhar em direção às rochas, falando consigo mesmo. Em que pensava? O que estaria achando de minha família? Às vezes percebia que ele olhava atentamente os meus irmãos e depois voltava-se rapidamente para outro lado a fim de que eu não o visse sorrindo e não notasse seu prazer. Ele estava feliz aqui. Podia ver isso em seu rosto, mas eu também sabia que ele sentia saudades do pai e da irmã. Minha mãe sugeriu que eu mandasse uma mensagem a Dimitri convidando-o a passar uns dias aqui com Emineh para que o filho pudesse vê-los. Não discuti com ela. Fiz o que ela pediu.

"Caro Dimitri", forcei-me a escrever. "Meu pai teve um derrame. A presença de Orhan é para ele um grande consolo. Planejo passar aqui o resto do verão. Depois irei para Istambul com minha família e farei planos para a educação e o futuro de nosso filho. Orhan sente muito a sua falta e a de Emineh. Minha mãe sugere que vocês dois venham nos visitar aqui. Acho que é uma boa idéia, desde que, é claro, você nada espere de mim. Nilofer."

O filho do jardineiro foi despachado para Konya com essa carta. Naquele mesmo dia minha mãe levantou outra questão. Era algo que eu já temia, mas em que evitava pensar na esperança de que ninguém se lembrasse.

— Nilofer — começou ela, disfarçando a voz como quem nada quer -, tenho uma pergunta a lhe fazer.

Assenti com a cabeça, aguardando. — Orhan é circuncidado? — Claro que sim. — Você está mentindo, minha filha. As empregadas que lhe dão banho juram que não é.

Os servos não falam de outra coisa.

Isso me aborreceu e fiquei em silêncio. Quando Orhan nasceu, eu quis que fosse circuncidado, mas Dimitri se opôs. "Esse é um costume bárbaro", argumentou ele, "e não desejo que tal castigo seja infligido a meu filho." Naquela ocasião eu estava tão apaixonada que não conseguia negar-lhe coisa alguma. Acabei concordando, apesar de me sentir desconfortável. A lembrança daquela minha fraqueza encheu-me de rancor enquanto eu olhava os belos olhos de minha mãe.

— Isso tem que ser feito, Nilofer. A fé de seu pai e a minha estão de acordo quanto à importância desse ritual. Quanto mais cedo, melhor. Mandei vir Hasan de Istambul.

— Não! — gritei.

— Ele já está com quase noventa anos. E se a mão dele escorregar? Ele já está a ponto de morrer. E se ele acabar privando meu Orhan de sua virilidade?

O menino já passou da idade, mãe. Não podemos poupar-lhe essa tortura?

Para minha surpresa, mamãe deu uma gargalhada.

— Você acha que eu deixaria aquele bode velho chegar perto de Orhan com uma navalha? É o neto dele, Selim, quem faz o trabalho agora. Hasan tem que vir porque sempre acompanhou a família. O pai dele já fazia a barba do avô de Iskander e Hasan circuncidou seu pai, seus tios e seus irmãos. Acompanhava seu pai a Paris na condição de barbeiro particular. Ficaria muito insultado e magoado se não o convidássemos para a cerimônia. E lembre-se de uma coisa, Nilofer: um homem nunca é velho demais para ser circuncidado. Quando eu era menina minha mãe contava-me muitas histórias de ancestrais nossos que não foram circuncidados na Espanha com medo de que os católicos os tomassem por judeus, mas tão logo chegaram a Istambul trataram de encontrar um barbeiro para realizar a cerimônia. Era uma questão de honra naquela época.

Sentime aliviada, mas não menos infeliz. As lágrimas rolaram por meu rosto. Õs dedos finos e longos de minha mãe, de unhas pintadas com hena, acariciaram-me a face gentilmente. Como eu gostaria que minha mãe fosse cristã em vez de judia! Ela teria ficado do meu lado. Poderíamos subornar o barbeiro para fingir que Orhan tinha sido circuncidado. Ele já tinha idade para banhar-se sozinho e não me agradava a idéia de que as empregadas inspecionassem seu corpo no banho todos os dias.

Aquilo não poderia continuar.

No dia seguinte Hasan e o neto chegaram de Istambul. Hasan havia perdido todo o cabelo. Andava encurvado com o auxílio de uma bengala cuja extremidade inferior era reforçada por um anel de metal enferrujado. Recebi-o na sala de visitas de minha mãe.

— Ora vejam só — resmungou ele. — Você produz um menino e deixa de circuncidá-lo! Foi o grego que não deixou?

— Claro que não, Hasan Baba — respondi com uma voz tão falsa que eu mesma estranhei.

— Como poderia mandar circuncidar Orhan sem você por perto? Estaria rompendo uma velha tradição familiar.

— Eu teria ido a Konya — disse ele rindo e revelando a boca, desdentada — e circuncidava o pai também.

Minha mãe tentou disfarçar o sorriso. Decidi mudar de assunto.

— Eu não sabia que meu pai o levava consigo a Paris todas as vezes que lá ia. Isso deve ter-lhe permitido descansar um pouco das circuncisões.

— Permitia-me descansar de tudo — murmurou ele. — Eu era levado apenas para demonstração de poder. Seu pai gostava dessas coisas. Achava que os franceses ficariam impressionados com o fato de ele levar seu próprio barbeiro. Em Paris quem cortava os cabelos de seu pai era um velho francês sodomita. De minha parte, posso afirmar que já vi melhores em Istambul. Minha tarefa limitava-se a aparar-lhe a barba e cortar-lhe as unhas uma vez por semana. Certa vez seu pai resolveu humilhar-me.

Um barbeiro francês quis ver como um barbeiro otomano trabalhava. Eu já estava preparando a tesoura para aparar o cabelo de Iskander Pasha quando ele sugeriu que, em vez disso, eu cortasse o cabelo do francês. A princípio fiquei com raiva, mas logo percebi que ali estava minha oportunidade de revidar o insulto. Fingi que a idéia me agradava e sentei o francês em uma cadeira. Fiz-lhe uma boa massagem de óleo na cabeça, deixando-o completamente relaxado. Ele fechou os olhos e se entregou ao prazer. Cortei-lhe o cabelo como a um soldado. Ele gritou de ódio ao ver seus cachos prateados caírem no chão, mas já era tarde demais. Ele me xingou e amaldiçoou, mas a vitória foi minha. Seu pai teve que lhe comprar uma peruca caríssima e darlhe um bom dinheiro. Depois desse incidente, o francês nunca mais dirigiu-me o olhar. Virava aquela cara empoada para o outro lado sempre que me via, mas eu sempre me aproximava dele e sussurrava: "Istambul couture. Très bien, eh, monsieur?" Hasan riu-se como uma galinha cacarejando ao lembrar-se dessa história.

Não resisti à tentação de provocá-lo. — E o que você fazia lá para passar o tempo, Hasan Baba? Ouvi dizer que você passou a se vestir como um parisiense e a freqüentar cabarés. Há até quem diga que você sustentava uma francesa.

— Que Alá arranque a língua de quem espalhou esse veneno — respondeu ele. — Eu passava o tempo todo em Paris estudando o Alcorão.

A mentira era tão deslavada que nós três nos pusemos a rir. Então ele pediu permissão para apresentar-nos seu neto, Selim.

— Ele abriu uma barbearia em Istambul e conta com três aprendizes, um dos quais é muito talentoso. Os ocidentais são seus principais fregueses. Ele relutou em me acompanhar aqui, mas eu lhe disse que era um privilégio circuncidar o neto de Iskander Pasha. Selim! Selim!

Um jovem que não deveria ter mais de vinte e cinco anos de idade entrou na sala e curvou-se polidamente em nossa direção. Minha mãe fez um gesto para que se sentasse, o que ele fez sem a menor timidez. Minha primeira impressão foi favorável. Seu rosto era o de uma pessoa inteligente. Tinha a face limpa e sem barba, vestia-se à moda ocidental e não ficou olhando para o chão em sinal de falsa humildade quando me dirigi a ele. Era diferente de Hasan: falava com uma voz suave e tranqüila.

— Orhan Bey já tem quase dez anos e imagino que esteja preocupada com a cerimônia, hanim effendi, mas ela não oferecerá perigo e será indolor. Ele certamente terá medo e isso fará com que grite, não a circuncisão em si. Já definiram a data?

— Dentro de três dias. Poderá ficar afastado de Istambul por tanto tempo?

Ele sorriu.

— Disselhes que estaria fora uma semana, hanim effendi. Minha mãe fez um leve movimento com a cabeça indicando que os dois homens estavam dispensados.

Quando se afastavam, Hasan lembrou-se de que não havia expressado seus sentimentos quanto à doença de meu pai.

— Vou prestar minhas homenagens a Iskander Pasha. Será a primeira vez em que serei eu a falar e ele a escutar. Talvez o choque seja de tal ordem que Alá lhe dê a língua de volta.

Depois que saíram, perguntei à minha mãe como deveríamos dar a notícia a Orhan. Para minha surpresa, ela me informou que já o havia feito e que o menino sentira um grande alívio.

— Ele me disse que na escola zombavam dele por ser diferente. Disse que saberá suportar a dor como um homem.

— De que outra forma poderia suportá-la, mãe? E foi assim que Orhan vestiu-se num lindo robe de seda bordada e, enquanto as mulheres cantavam no aposento ao lado, Selim, o barbeiro, retirou a tesouradas o pedaço de pele que precisava ser retirado. Orhan não gritou nem chorou. Sorriu. Meu pai, que fez questão de estar presente, aplaudiu e presenteou Orhan com uma bolsa, cheia de moedas de ouro que lhe havia sido dada no dia de sua própria circuncisão. O Barão e Tio Memed entraram na sala e beijaram Orhan. Minha mãe tinha ido, ela mesma, para a cozinha supervisionar a confecção do ure. Orhan ainda não havia provado desse doce.

— De que é feito? — perguntou ele à minha mãe depois de provar do doce que ela lhe serviu numa salva de prata.

— Dizem que foi feito pela primeira vez quando Noé percebeu que não haveria mais comida suficiente na Arca. Ele deu ordem às mulheres para que colocassem tudo que ainda restava em um caldeirão para que fosse feita sua última refeição. O grande caldeirão recebeu trigo, passas, damascos, tâmaras, figos e sementes secas e a mistura ferveu por muitas horas, até tomar esta aparência. Agora levante-se, Orhan, e venha comigo distribuir o ure aos empregados.

— Antes de fazer isso, posso oferecer um pouco a Selim?

— É claro — exclamei aliviada.

— Ele deve ser o primeiro.


6

Iskander Pasha pede a seus visitantes que expliquem o declínio do Império;
o Barão revela um erro básico no Círculo da Eqüidade;
o profundo cinismo de Salman.

A saúde de meu pai melhorava a cada dia. Ele já podia caminhar sem ajuda e, pelo que minha mãe me confidenciou, já se tornara um amante ativo novamente, mais amoroso ainda por ter passado um período de abstinência. Seu rosto também demonstrava a grande melhora. A palidez desaparecera e o sol lhe havia restituído a cor. Lia muito, principalmente romances franceses. De Balzac e de Stendhal de quem gostava muito, mas detestava Zola. Escrevia em seu caderno de anotações que Zola era um canalha e um anarquista. Sua expressão escrita, porém, nunca foi capaz de substituir a fala. Se pudesse falar, teria xingado Zola com palavras que não se sentia à vontade em escrever. Sabia que o dom da fala o havia abandonado para sempre e isso era-lhe difícil aceitar.

Meu pai já estava cada vez mais senhor de si, cada vez mais parecido com o que era antes, quando nos reuníamos em seu quarto para ouvir histórias. Estava decidido a evitar que se discutisse a história da família. Deveríamos falar sobre temas mais elevados. Certa noite escreveu com letras maiúsculas uma pergunta em seu caderno, que Petrossian exibiu a cada um de nós. Ali estava escrito:

ALGUÉM DE VOCÊS SERIA CAPAZ DE EXPLICAR O MOTIVO DO NOSSO DECLÍNIO TÃO RÁPIDO?

SE O CZAR DA RÚSSIA E O IMPERADOR DA ÁUSTRIA AINDA DETÊM TANTO PODER, POR QUE NÃO O NOSSO SULTÃO?

Estávamos todos presentes. Memed e o Barão entreolharam-se desanimados. Salman deu um sorriso irônico. Zeynep beijou as mãos de Iskander Pasha e pediu permissão para retirar-se. Apenas Hali demonstrou algum interesse.

— Nós erramos por não nos renovarmos, Ata. E esse é o preço que temos que pagar. Demos ao clero um poder excessivo para decidir o futuro desta terra. Istambul poderia ter sido a capital do saber e da modernidade, como Córdoba e Bagdá o foram antigamente, mas esses barbudos desgraçados que definiram as leis desta nossa terra temiam perder seu monopólio do poder e do saber. Já não me lembro do nome do idiota que disse ao Sultão que se o palácio relaxasse o controle nossa religião acabaria. No início do século XVI, todas as cidades importantes do Ocidente tinham sua própria imprensa, enquanto que o Sultão Selim ameaçava de morte quem demonstrasse o menor interesse por isso.

Iskander Pasha fazia sinais com a mão para interromper o filho. Halil parou de falar para que eu lesse o que meu pai escreveu.

"O temor não era de todo sem sentido, Halil. Os ministros do Sultão observavam atentamente o que se passava na Europa. O Grão-Vizir sabia que em apenas três anos decisivos, de 1517 a 1520, a imprensa destruiu o monopólio da Igreja Católica: trezentos mil exemplares da obra de Martinho Lutero foram impressos e distribuídos nesse período." — Com todo o respeito, Ata, estou perfeitamente ciente disso, mas o preço que pagamos por nos refugiarmos no passado foi alto demais. Nós isolamos o Império deixando de fora um avanço tecnológico da maior importância. Os ulema — que ardam para sempre no fogo do inferno — opuseram-se à modernização por princípio. A maioria dos sultões, dos eunucos e da tropa palaciana que os cercavam aceitaram suas idéias. O fato de não permitirmos a imprensa para impedirmos a divulgação do saber foi um ultraje. E mesmo que o senhor não concorde com essa questão da imprensa, embora eu não entenda como possa discordar, certamente há de convir que proibir a instalação de relógios em lugares públicos foi um absurdo. Aqueles barbudos desgraçados diziam que o tempo era sagrado e circular e que só podia ser determinado pelo chamado dos muezins para as orações. Eu acho que o nosso declínio foi bem merecido. Este Império está se dissolvendo diante dos nossos olhos enquanto o clero e o Sultão a tudo assistem em silêncio. Agora é tarde demais. Já não podem fazer coisa alguma. Os prussianos e os ingleses querem que nos mantenhamos vivos para atender a seus próprios interesses. Se não fosse isso, o Czar da Rússia já nos teria devorado vivos a esta altura. Estamos vivendo de dinheiro emprestado e de tempo também tomado ao futuro. Alguns de nós do exército já discutimos sobre o que está por vir. O Império acabou, Ata. Só nos interessa agora saber o que vai tomar o seu lugar.

O discurso de Halil deixou-nos todos pensativos. Tio Memed foi o primeiro a falar.

— Há muita sabedoria no que você disse, meu jovem, mas não creio que nossos problemas decorram apenas do fato de termos ignorado a imprensa. A meu ver o declínio do Império começou bem antes, antes mesmo do exílio de Yusuf Pasha. Nossos governantes exultavam tanto com o sucesso de suas tropas militares que se descuidaram de suas limitações. Há um elo faltando no Círculo da Eqüidade. Não estou certo, Barão?

O Barão balançou a cabeça concordando. — O Círculo foi importante, mas assim como o Qabus Nama, foi formulado inicialmente por um persa. Os persas, como bem sabemos, são bons poetas, porém maus políticos e sacerdotes ainda piores.

Meu pai fez sinal pedindo atenção. Li o que ele havia escrito. "Meu filho Halil me surpreende com sua perspicácia. Concordo que deixamos de nos modernizar no início deste século ao nos recusarmos a aceitar a imprensa e outras invenções da Inglaterra e da França. O Barão poderia nos explicar seu desapreço pelo Círculo da Eqüidade?

Ensinaram-nos a nos pautar por ele quando fomos educados na arte de governar. Nada vejo de errado na teoria política que orienta nosso Império há séculos. Ela é muito superior a toda essa democracia tolerada por Bismarck."

O Barão, que se ocupava mastigando amêndoas torradas e pistaches, pigarreou apressado, quase engasgando-se com isso. Tomou um gole d'água para limpar a garganta e aproximou sua cadeira da cama onde meu pai se sentara, com as pernas cruzadas.

— Deixemos a discussão de Bismarck para outra ocasião, Iskander Pasha, mas seria uma tolice de sua parte subestimar o gênio desse homem. Ele criou uma nova Alemanha.

Ao fazer isso, dinamitou as estruturas que sustentavam o Império Austríaco. Berlim é que importa agora, não Viena. Mas vou deixar Bismarck para um outro dia.

"Esse Círculo da Eqüidade que vocês otomanos tanto prezam foi erigido sobre fundações muito inconsistentes, Iskander Pasha. À primeira vista, impressiona muito bem. Foi criado para causar impacto, não para solucionar problemas. Ao ouvi-lo enunciado, parece que estamos ouvindo a artilharia de Memed, o Conquistador, do lado de fora de Constantinopla. Não haverá soberano sem exército. Não haverá exército sem riqueza. Não haverá riqueza sem súditos leais. Não haverá súditos leais sem justiça. Não haverá justiça sem harmonia na Terra. Não haverá harmonia sem Estado. Não haverá um Estado sem leis. Não serão obedecidas as leis sem uma autoridade soberana. Não haverá autoridade soberana sem um Sultão ou um Califa."

O Barão recitou o Círculo com tal autoridade, que os presentes puseram-se a aplaudi-lo.

— Eu lhes disse que causa impacto, mas que sempre conteve uma falha fatal. Baseia-se no devshirme. Vocês pegavam criancinhas de todo o Império e criavam uma casta de soldados e administradores ao longo de muitos anos de treino e educação. Elas tornavam-se propriedade do Estado. Era um plano ambicioso que seus governantes foram aperfeiçoando. Mas como bem alertou seu grande e incomparável historiador Ibn Khaldun há vários séculos, é perigoso esperar que um grupo sem laços comuns de parentesco, de solidariedade ou de classe que os una permaneça leal à autoridade soberana. Um treinamento comum pode ser suficiente para se prepararem chefes de cozinha franceses mas não para se criar um Estado forte.

"Esses soldados e esses burocratas não possuem propriedade alguma. Não lhes são dados os direitos de hereditariedade. É utópico esperar que permaneçam desprendidos, puros, sem se deixar afetar por riquezas e por privilégios. Naturalmente tentam adquirir bens e estabelecer laços estreitos com famílias ricas. Observam o clero.

Perguntam-se entre si como foi que a família Durrizade fez da ulema uma nobreza religiosa desde o século VII até os nossos dias. Sabem que isto não é justo e tentam remediar as discrepâncias. Sua ascensão, porém, foi rápida demais. Têm a consciência de haverem agido mal. Feriram a lei e isso pode ser usado contra eles por seus rivais ou quando o Sultão desejar a execução de algum deles. Isso os deixa permanentemente em estado de insegurança. Cria um ambiente de intrigas constantes.

É impossível, portanto, que esses homens constituam os pilares da estabilidade nos quais se apóia o Estado. E assim, meu caro Iskander Pasha, seu Círculo da Eqüidade transforma-se em um mergulho no caos, em um círculo de equívocos, um inferno. Sem solidariedade e sem instituições estáveis os velhos impérios desmoronam. Novos impérios tomarão seus lugares. Vocês perderam não apenas a guerra, mas também a batalha pela sobrevivência. Memed, o Conquistador, queria fazer de Istambul uma nova Roma. E acabou conseguindo fazê-lo bem demais. Os otomanos imitaram seu declínio e derrocada de maneira notável."

O Barão fez uma pausa para tomar fôlego e encheu novamente o copo.

— Já está terminando sua fala, Barão? — indagou Tio Memed, provocando-o.

O Barão lançou-lhe um olhar demolidor enquanto sorvia seu champanhe.

— Isso não é hora de brincadeiras, Memed. Estamos discutindo o futuro de seu Império.

— Mas eu pensei que não tivéssemos império algum. Nossa história, pelo que você diz, já chegou ao fim. O futuro pertence aos prussianos, sem sombra de dúvida, e é por isso que tanto me agrada ser seu amigo. Se as potências ocidentais mudarem o nome de Istambul e a entregarem aos gregos, mudar-me-ei para Berlim.

Ninguém sorriu. Todos estávamos chocados com a fala do Barão. Durante alguns minutos fez-se perfeito silêncio. Apenas o rugir das ondas lá embaixo ecoava na sala onde permanecemos pensativos. Foi então que meu irmão Halil, em geral muito calado, pôs-se a falar novamente.

— Duvido que as potências ocidentais se ponham de acordo sobre o futuro de Istambul. O Sr. Disraeli sabe que nós temos protegido os judeus há vários séculos. Ele não vai querer que a cidade volte a pertencer à Igreja Grega. Bismarck resistirá a qualquer mudança temendo que os gregos sejam fracos demais e a Grã-Bretanha ou a Rússia acabem donas de Istambul. O Papa em Roma fará tudo para evitar o ressurgimento da igreja rival. O resultado disso tudo nos ajudará a reconstruir nosso Império e a prosperar. Não consigo imaginar que tenhamos sido vencidos pela inércia. E permitam que eu informe o Barão que apesar de eu concordar com muito do que ele disse, inclusive com o fato de este Império estar acabado, há muitos oficiais no exército otomano, homens como eu, que pensam à frente do seu tempo. Não vamos permitir que tudo vá por água abaixo. Vamos construir um novo Estado a partir da ruína do velho. E se as potências ocidentais tentarem nos impedir, lutaremos com todas as nossas forças. Quanto a isso, não imitaremos o Império Romano. A Itália só agora foi capaz de emergir novamente como Estado unificado, muitos, muitos séculos depois da queda de Roma. Nós não vamos cometer o mesmo erro.

O Barão retrucou, mas dessa vez nada teve a acrescentar. Os dois se puseram a falar da Roma antiga e de Istambul. Comecei a perder o fio da meada quando eles foram se tornando repetitivos. No decorrer de toda essa conversa, Salman tinha me dado a impressão de estar completamente alheio ao que se dizia. Suas pálpebras pesadas e seus movimentos langorosos faziam-me pensar em um dervixe que tivesse fumado ópio demais. A certa altura pensei que ele estivesse dormindo profundamente. Talvez Halil o houvesse despertado.

— O que significa isso, Halil? Devo avisar os meus amigos que precisam partir de Alexandria com suas famílias e seus negócios? Que devem se mudar para Damasco, ou será que vamos perder tudo?

— Não sei ao certo. O Egito já está fora de controle, mas fico muito preocupado com seus amigos. Creio que o beduíno irá com quem lhe acenar com mais dinheiro. Estamos fracos demais para controlar aquela parte do mundo. O fato de compartilharmos todos da mesma fé é o que menos importa quando riqueza e poder estão em jogo. Os árabes nunca foram sentimentais quanto a isso. Quem pagar, leva. Volte para Istambul, Salman. As coisas estão a ponto de mudar.

Salman sorriu para o irmão. — Se alguém como você se deixa contagiar pelas novas ideologias que estão brotando por toda a Europa, talvez haja mesmo motivos para se ter esperança. Talvez a mudança chegue como um furacão ou um terremoto. Quando a ventania se aquietar e os tremores cessarem, voltarei a Istambul. Não irei um dia sequer antes disso. E espero que você me receba com todo o respeito que mereço. No momento, se vocês permitirem, vou retirar-me. Toda essa conversa de ascensão e queda de impérios me deixou com indigestão.

Halil riu e levantou-se para abraçar Salman. — Nem mesmo eu seria capaz de culpar a miopia política de nossos sultões por sua interminável flatulência. Você se move muito pouco e come demais. O Oriente não lhe tem feito muito bem. Quando você voltar, eu não recomendaria Istambul como seu lugar de residência. Lá você ficará cada vez mais gordo e mais indolente, como uma elefanta prestes a parir. A indigestão, como você delicadamente se refere ao problema, acabará piorando muito. A cidade que eu sugeriria a você seria Ancara. Lá o ar é limpo e os vícios são poucos.

Salman acariciou as faces do irmão ternamente. — Você pode me enterrar em Ancara se quiser, Halil, mas só depois que eu estiver morto. Vai lhe custar caro transportar essa carcaça de Istambul, mas você tem meu consentimento. O Barão é nossa testemunha.

Com a saída de Salman a reunião terminou. Iskander Pasha estava feliz consigo mesmo por ter conseguido conduzir a discussão como queria. Não se falou de questões pessoais da família, não se discutiu nosso passado e isso foi de seu agrado. Sua fala estava paralisada, mas a memória continuava perfeita e havia lembranças com as quais ele não queria mais contato. Sentime próxima a ele novamente. Certa vez ele nos disse que sempre que retornava a Istambul depois de uma temporada em Paris ou Berlim, gostava muito de sentir aquele odor da estultícia doméstica novamente, mas que aterrorizava-o a idéia de morrer sufocado por ele se, por alguma razão, não mais pudesse viajar. Decidi que lhe perguntaria sobre isso antes do fim do verão, mas não naquela noite, quando ele parecia tão feliz. Beijei-lhe a cabeça e saí.

Segui em silêncio o Barão e Tio Memed até o terraço inundado de luar. Sentamo-nos a uma mesa muito bem arrumada com salvas de prata cheias de amêndoas de três variedades diferentes, nozes e frutas. Petrossian abriu outra garrafa e serviu os dois homens. Memed disse-lhe que eles mesmos se serviriam e dispensou seus serviços naquela noite.

Fiquei apreciando as estrelas e pensando se algum dia eu seria realmente feliz e me sentiria contente com minha vida. Sempre achei que minha mãe havia sacrificado muito de sua vida para ter uma existência confortável. Tinha permitido que sua personalidade fosse sufocada pela família de Iskander Pasha. Se tivesse se casado com outro homem, sua biografia teria sido bem diferente. Certa vez ela me falou, um pouco encabulada, sobre um outro homem. Ela havia gostado muito dele, mas ele era pobre e quando o pai dela o rejeitou como pretendente, ele emigrou para Nova York, onde veio a se tornar um pintor famoso. Ela disse que sempre se perguntava como seria sua pintura. Fiquei pensando, ali no terraço, se ela no fundo não sentiria repulsa por meu pai, mas minhas divagações foram interrompidas.

Os dois homens haviam recomeçado sua conversa. É estranho, pensei, que minha presença nunca pareça incomodá-los. Eles confiam em mim. Talvez achem que sou como eles, nada convencional. Seja qual for o motivo, sinto-me lisonjeada com sua confiança.

— Às vezes eu tenho a impressão, Memed, que apesar de nos conhecermos tão bem você duvida de minha inteligência.

— A intimidade pode gerar dúvidas e desdém em porções iguais, Barão. — Então, em outras palavras, você não tinha dúvidas quanto à minha superioridade intelectual quando eu era seu tutor em Istambul.

— Nenhuma, em absoluto, mas você também não pode se esquecer de que aquele foi também o período em que começamos a namorar, um período muito intenso. Você rrie ensinava muitas coisas. Sua língua, poesia e filosofia alemãs, e o amor pelos livros. Ainda me recordo das palavras do poema de Heíne que você recitou e do prazer que lhe dei ao dizer que havia compreendido absolutamente tudo. Falávamos freqüentemente sobre Deus e religião e sobre a elasticidade de muitos dogmas. Você me mostrou Berlim e Paris. Comparava o desenvolvimento de sociedades cultas na Alemanha com a ausência de qualquer movimento intelectual no interior da França. Foi somente depois de penetrar profundamente naquele mundo que permiti que você me penetrasse.

Os dois homens caíram na gargalhada.


7

Nilofer conta à Mulher de Pedra que Selim acariciou seus seios à luz da lua
e que ela está se apaixonando por ele;
fica chocada ao descobrir que sua mãe a escuta às escondidas

Não sei por onde começar, Mulher de Pedra. Foi tudo tão súbito, quando eu menos esperava, e agora posso estar vivendo a situação mais complicada de minha vida.

Tudo aconteceu ontem, à luz da lua. Tive vontade de contar as estrelas na praia e queria estar só. Então segui pelo caminhozinho que vai da escarpa à entrada da caverna que se abre acima do mar. Quando éramos crianças, achávam os que aquela era nossa passagem secreta e que nenhum adulto a conhecia. Mesmo se conhecessem, teriam muita dificuldade em nos seguir, porque o caminho é bem estreito.

Ao ouvir o ruído suave da água acariciando a areia, senti uma profunda paz tomar conta de mim. Sempre que fico vendo o mar reluzir à luz da lua e depois olho para cima e vejo as estrelas, parece que tudo mais se coloca em outra perspectiva. Meus próprios problemas parecem ínfimos. Comparados à natureza, não passamos de minúsculos pontinhos na areia. Eu estava imersa em pensamentos quando ouvi uma voz conhecida vindo da escuridão.

— Perdoe-me, hanim effendi, mas achei que devia lhe avisar da minha presença, caso lhe dê um desejo irresistível de banhar-se nas águas de seda desse mar.

Era Selim, o neto de Hasan Baba. Eu havia falado com ele várias vezes desde a circuncisão. Ele tinha ido examinar o corte em Orhan para certificar-se de que estava cicatrizando como deveria. Orhan gostava do jovem e eu também devo admitir que achava sua companhia agradável. Gostava do fato de ele jamais desviar os olhos quando eu lhe falava. Tinha olhos melancólicos para alguém tão jovem, mas quando ele ria seus olhos brilhavam como diamantes. Sua presença me agradava.

Sei o que você está pensando, Mulher de Pedra. Já viu tantas coisas nesses séculos todos, que deve estar achando que foi meu desejo que o levou até lá, mas juro por tudo que mais amo que não estava pensando nele em absoluto. O abismo social que há entre nós é tão imenso que para mim ele não passava de um simpático barbeiro de Istambul que tinha viajado o dia inteiro para ir circuncidar meu filho. Sem dúvida alguma, era um homem inteligente e devo confessar que fiquei surpresa ao saber de sua paixão pelas óperas de Donizetti Pasha. Eu mesma não conhecia aquelas músicas, e a maneira como ele falou delas deu-me vontade de ouvi-las. Mas é claro que nada disso pode explicar o que aconteceu ontem, Mulher de Pedra.

"O que está fazendo aqui, Selim?' "Vim apreciar o céu.' "E pensar?' "Sim, hanim effendi, e pensar. No mundo em que vivo a solidão é um luxo precioso. Moro numa casa com mais seis pessoas. Não consigo sequer ouvir meus próprios pensamentos. Este lugar é como o paraíso. Você deve ter sentido muita falta daqui quando estava em Konya.'

"Senti. E por favor pare de chamar-me hanim effendi. Quando estivermos sozinhos, pode chamar-me de Nilofer.'

"Você é bonita, Nilofer.' "Não lhe dei permissão para falar dessa maneira. Controle sua língua, menino insolente.'

Ele ficou em silêncio. "Ouvi quando você fazia Orhan rir ontem. Conte-me uma história, Selim. Faça-me rir.'

Ele se levantou e começou a jogar pedrinhas no mar. Depois voltou e sentou-se diante de mim.

"Obedecerei a sua ordem, princesa. Escute, então, a história que vou contar. Era uma vez o reino de um sultão, de cujo nome não me lembro, onde vivia uma jovem e linda princesa. Era a irmã mais nova do Sultão e ele gostava muito dela, principalmente porque ela conhecia uma quantidade espantosa de histórias engraçadas.

A princesa tinha o dom de uma prodigiosa memória. Esse seu dom era muito invejado na corte. Ela jamais se esquecia de um rosto, de um nome ou de uma conversa.

Fazia o Sultão rir muito e ele a recompensava não a obrigando a casarse. Ela costumava se cobrir com véus e, acompanhada de seis eunucos armados, visitava tabernas e lugares de má reputação com o único propósito de ouvir as histórias libidinosas mais recentes.

"A princesa recusou muitas propostas de casamento de algumas das famílias mais ricas de Istambul. Costumava dizer a seus amigos que jamais ficaria satisfeita com um só homem. Não poderia comprometer-se a passar a vida como esposa de alguém, presa dentro de casa. Tinha as alternativas de ficar solteira ou de continuar em liberdade para escolher seus próprios homens. Se via algum homem que desejasse, mandava buscá-lo e erguia para ele seu véu. Como era extremamente atraente, a maioria dos homens sucumbia diante de seus encantos. Eram conduzidos por eunucos até seus aposentos particulares no palácio. Lá ela recostava-se em um canapé e os aguardava, cobrindo apenas com xales diáfanos o seu corpo nu.

"O amante que ela havia escolhido para aquela noite ficava extasiado com o que via. Quando ela removia os xales e ficava nua e o homem afortunado caía de joelhos diante dela, ouvia a princesa dizer exatamente as mesmas palavras que havia dito aos muitos que o precederam: "Você pode se fartar neste banquete até ficar saciado.

Goze-o bem, pois jamais poderá ver ou provar outro. Do paraíso seguirá diretamente para o inferno.'

"Àquela altura o amante estava excitado e aturdido demais pelo desejo para meditar sobre aquele aviso que ela dava. Somente depois de havê-la satisfeito era que começava a dar sinais de nervosismo, mas então já era tarde demais. Os eunucos entravam na alcova e escoltavam o desafortunado amante até um barco atracado ali por perto. Um dos eunucos então cantava uma canção sobre amantes perdidos para sempre, enquanto os outros passavam gentilmente uma corda ao redor de seu pescoço e estrangulavam o amante. Aquela fina iguaria do banquete da noite anterior era então atirada ao Bósforo para que os peixes com ela se alimentassem. A carne real de mulheres não casadas era proibida a homens comuns. Aquele que dela desfrutasse deveria ser aniquilado. Não lhe seria permitido viver para contar a história.

Mas a princesa havia criado uma exceção para essa regra.

"Se algum dia', recomendou ela aos eunucos, "algum deles desafiar a morte e disser que uma noite em meus braços vale o sacrifício, poupem-lhe a vida. Um espírito assim deve ser preservado ao invés de sufocado.'

"Todas as manhãs ela indagava, ansiosa, mas nenhum deles jamais disse tais palavras. Isso a deixava triste, e assim ela viveu muitos anos. Quando já estava velha, passou a dedicar muito do seu tempo a tekkes, onde o êxtase não depende do contato físico.'

Fiquei muito emocionada com essa história, Mulher de Pedra. Pelo menos foi isso que pensei. Agora acho que foi o contador da história que me emocionou.

"A princesa tinha um nome?', perguntei. "Chamava-se Nilofer.' Era uma noite morna e a lua talvez tivesse nos afetado a ambos, portanto quando Selim se aproximou e acariciou-me o rosto, não lhe opus resistência. Quando ele tocou meus seios, tentei vagamente resistir, mas na verdade queria que ele continuasse. Beijei-lhe os olhos e os lábios e o despi. Depois de fazer amor com ele, lavamo-nos no mar. Ele não tinha experiência, mas isso nada me importou. Não tinha contatos íntimos com um homem havia cerca de um ano e a ternura foi o suficiente para me saciar.

Ficamos um longo tempo sem falar. Eu acariciava seus cabelos enquanto ele repousava a cabeça no meu colo. Sua primeira frase foi um sussurro.

"Petrossian me levará num barco e me afogará esta noite?' Ri e apertei-o em meus braços. "Não. Para que ele fizesse isso, seria necessário castrá-lo antes. Somente eunucos podem realizar essa tarefa.'

"Pensei que ele fosse eunuco. Diz-se na cozinha que sua família castrou-lhe a alma ao invés da carne.'

Quando sugeri que já era hora de eu partir, Mulher de Pedra, ele me apertou em seus braços, despertando-me novamente a paixão. Dessa vez não nos lavamos, porque a noite já quase terminava e não teríamos tempo de nos secar. Será que estou perdida, Mulher de Pedra? E se ele deixou um filho dentro de mim? Será que a paixão que senti por ele se transformará em amor?"

As palavras congelaram em meus lábios quando ouvi o ruído de algo que se mexia por perto.

— Você tomou a estrada da infelicidade, minha filha.

— Quem está aí? Minha mãe surgiu de trás das pedras. Chorei ao gritar com ela.

— Isto aqui é um santuário, mãe. Você o profana com sua presença. Foi uma crueldade sua me ouvir às escondidas.

— Vim aqui falar com a Mulher de Pedra, filha, e ouvi sua voz. Como poderia ter me afastado sem ouvir sua história? Quando vocês eram crianças, escondiam-se para ouvir o que vínhamos dizer. Agora é a nossa vez. Vocês não podem se queixar. Os motivos não diferem muito. Você é uma jovem tão reservada! Nunca me falou sobre o professor grego — e veja agora a situação em que está. Sei que a vida com ele fez de você uma pessoa sotuma, você que era uma menina tão alegre. Dói-me saber tão pouco do que se passa com você, Nilofer. Foi bom ter ouvido sua história, embora tenha sido uma casualidade. Venha comigo, filha.

Ela passou o braço em volta dos meus ombros e levou-me para seus aposentos. Senteime no chão para que ela pudesse massagear minha cabeça como costumava fazer quando eu era criança. Nenhuma das duas falou muito. O som familiar de suas mãos massageando meu couro cabeludo teve o efeito calmante de um bálsamo. Quando comecei a recuperar a serenidade, percebi, surpresa, que ela não estava nem um pouco zangada comigo.

— Eu sempre desejei que você fosse feliz. Quando você fugiu com o professor, fiquei triste apenas porque queria comemorar o casamento da minha única filha. Senti falta da música, do banquete e da dança. Gostaria de tê-la entregue a seu marido em grande estilo. Foi uma frustração de mãe que senti. Tão logo me recuperei dela, nada mais importava para mim a não ser sua felicidade. Se você estava feliz, que direito tinha eu de estar triste? Mas você não estava feliz, estava, Nilofer?

Foi essa a impressão que Halil me trouxe depois do primeiro encontro com você e aquele estafermo, Dimitri.

Minha mãe desejava falar do passado. Meu pensamento estava concentrado no presente. Queria saber onde Selim estava naquele momento. Queria saber em que pensava. Se havia contado a alguém o que se passara entre nós. Estaria arrependido de sua ousadia? À medida que esses pensamentos tumultuavam minha cabeça, meu coração punha-se a bater mais depressa, porém a expressão impaciente do rosto de minha mãe estava começando a desfigurá-la. Eu não podia mais ignorar sua aflição. Ela não me deixaria sair dali enquanto eu não satisfizesse sua vontade de saber. Talvez fosse mais do que simples curiosidade. Talvez ela estivesse preocupada com o futuro de meus filhos e o meu. Talvez isso tivesse a ver com sua própria vida e suas esperanças frustradas.

— Responda, Nilofer. O que deu errado? Essa era a pergunta que eu vinha me fazendo nos últimos cinco anos. Minha emoção irrompeu como uma cachoeira e quase tirei o fôlego de minha mãe. Disse-lhe que o que pensara ser amor não passara de fantasias românticas de uma menina imatura. Dimitri me oferecera a oportunidade de escapar do mundo fechado da nossa família e eu, tola, lancei-me com ele em uma aventura insensata. Faleilhe de como sentia minha mente ir se atrofiando em nossa casa em Istambul. Sentia-me prisioneira das rotinas, imobilizada pelas tradições, esmagada sob o peso da nossa história. Estava absolutamente tomada de um desejo de experimentar o mundo de verdade. Nossa casa de verão e o mar representavam a liberdade para mim. Desde os três anos de idade, sempre me fascinou estar aqui.

Dimitri foi simplesmente alguém que passou na hora certa. Poderia ter sido outro qualquer.

Disse à minha mãe que tudo isso já estava bem claro para mim antes mesmo de eu engravidar de Emineh. Seu nascimento assinalou o ponto de onde não 'havia mais retorno.

Desde então passei a achá-lo fisicamente repulsivo e intelectualmente insatisfatório. Ele começou à se ressentir do que chamava de meus ares de grandeza, e nossa relação se desintegrou. Cheguei a pensar que um período de afastamento pudesse me fazer mudar de idéia, mas uma semana aqui com Orhan foi suficiente para que eu soubesse que estava tudo terminado. Eu jamais poderia voltar para Konya e dormir naquela cama que eu odiava.

— E agora, mãe, você me forçou a convidá-lo a vir aqui para estar com Orhan e para que pudéssemos ver minha Emineh. Ele quis que ela ficasse para fazer dela refém.

Para assegurar-se de que eu voltaria. Talvez ele não venha, mas se vier, voltará sozinho. Meus filhos ficarão aqui conosco.

— O menino é apegado a ele, Nilofer. Ele tem sido um bom pai para ambos. Pobre homem. Sinto pena dele. Que falta de sorte ter se casado com você. O que ele precisa é de uma mulher submissa e que saiba cozinhar. Você, como eu, não tem nenhuma dessas características. Enquanto isso você satisfaz suas necessidades com o auxílio de um jovem barbeiro. Se Iskander Pasha descobrir terá outro derrame. Primeiro um mestre-escola e agora um barbeiro. O que será o próximo?

— Selim pode ser barbeiro porque seus antepassados foram barbeiros, mãe, mas sua inteligência transcende a da maioria dos membros de nossa família.

— Pare com isso. Você está dizendo exatamente as mesmas palavras, com a mesma expressão desafiadora de dez anos atrás, quando decidiu fugir com aquele mestre-escola.

Pelo menos aprenda com seus próprios erros, minha filha. Selim não representa problema algum. Um bom dinheiro de algum dos seus irmãos fechará sua boca para sempre.

Não quero que ele saia por aí se gabando ou mencionando seu nome pelos bares. Ele deve ser mandado de volta a Istambul imediatamente. E não ouse dizer que vai com ele. Agora você tem dois filhos em quem pensar.

— Não permitirei que Selim seja insultado por você ou por qualquer outra pessoa desta família, mãe! Só de pensar na idéia de lhe oferecerem dinheiro sinto náuseas.

— É mesmo? Certamente sente náuseas porque teme que ele aceite nossa oferta. Seja como for, prefiro que sinta náuseas a arrependimento, Nilofer.

Meu ódio já estava a ponto de explodir, mas consegui me conter.

— Não sou mais criança, minha mãe. Dez anos parecem-me toda uma vida. Concordo que estou confusa, mas não a ponto de tomar uma atitude tola ou impulsiva. Vamos manter a calma e pensar no futuro.

— Como é estranho ouvi-la falar assim. Parece-me estar ouvindo sua avó Beatrice. Ela sempre achou que a solução para tudo era manter a calma e pensar em um próspero futuro.

Olhei por cima do ombro de minha mãe e vi o quadro retratando minha avó Beatrice. Aquele rosto me era muito familiar. O quadro fora pintado um ano depois de ela ter se casado com meu avô, e se sua beleza não foi exagerada pelo pintor — o que costumava acontecer — ela deve ter sido uma mulher bem atraente. Bem mais do que sua filha Sara, minha mãe, que ali estava a me olhar fixamente enquanto eu pensava em seu passado.

Até aquele dia eu não tinha tido a oportunidade de conversar com minha mãe de igual para igual. Antes de eu fugir com Dimitri, quase nunca ficávamos sozinhas, e de qualquer forma, eu era jovem demais para ser levada a sério. Sabia, vagamente, que minha mãe era infeliz desde que se casara com Iskander Pasha, porém Zeynep sempre negava isso e dizia-me para não acreditar nas coisas que ouvia na cozinha.

Tudo havia mudado desde então, e agora, como mãe de duas crianças, tinha uma posição mais elevada, pelo menos no que concernia a minha mãe. Fiz-lhe uma pergunta que guardava dentro de mim havia mais de dez anos.

— Você foi forçada a casarse com ele? Para minha surpresa, ela me abraçou e pôs-se a chorar baixinho. Lágrimas que deviam estar represadas havia muito tempo desceram-lhe pelo rosto torrencialmente. Foi então a minha vez de abraçá-la e oferecer-lhe consolo.

— Eu contei tudo à Mulher de Pedra há muitos anos. Ninguém lhe contou?

Sacudi a cabeça para dizer-lhe que não.

— Talvez ninguém tenha escutado mesmo. Talvez não houvesse ninguém espreitando atrás das pedras.

— A senhora não precisa me falar disso agora, mãe. Haverá outras oportunidades.

Mas ela queria falar sobre si. Era como se o fato de ter me ouvido falar com a Mulher de Pedra houvesse libertado algo no fundo do seu coração.

"Minha vida teria seguido um curso bem diferente se meu pai não fosse médico da corte. Como ao pai dele e ao avô, antes dele, era-lhe confiada a saúde do Sultão e de sua família real. Por esse motivo, famílias menos nobres consideravam um sinal de prestígio usar os seus serviços. Creio também que ele era bom em seu ofício, embora costumasse dizer, como o avô, que o ofício de um bom médico não se limitava a curar o corpo, o que às vezes era difícil, que incluía também consolar a alma, o que sempre era possível fazer. Meu pai achava que esse lugarcomum continha uma profunda verdade e o repetia com tal freqüência quando tínhamos visitas, que minha mãe e eu, ao percebermos que ele ia dizer isso, nos entreolhávamos e enunciávamos as palavras em silêncio.

Iskander Pasha, que sempre deu muito valor às tradições, tinha contratado seu avô para ser o médico da família. Ainda assim, se não fosse por um acidente do destino, meu futuro poderia não ter sido determinado de maneira tão apressada. Certo dia o cocheiro de Iskander Pasha causou uma colisão com um outro coche. Seu pai saiu levemente ferido.

Creio que um pedaço de madeira arranhou-lhe a testa e ele começou a sangrar. Assustado, o cocheiro levou-o diretamente para nossa casa, procurando por meu pai, que estava fora cuidando de outro cliente. Minha mãe insistiu em que levassem Iskander Pasha para dentro de casa para que os assistentes de meu pai limpassem a ferida e lhe fizessem um curativo. Acidentes assim eram freqüentes naquela época. Eu estava com minha mãe quando seu pai entrou em nossa casa. Depois que lhe fizeram um curativo, minha mãe, sabendo que ele havia sido recentemente nomeado pelo Sultão embaixador em Paris, ofereceu-lhe algo para beber. Ele já ia recusando, quando seus olhos caíram sobre mim. Uma mulher sempre percebe quando um homem a olha com interesse. Acabou ficando e aceitando nossa hospitalidade. Ainda estava lá quando meu pai retornou uma hora mais tarde e foi convidado a ficar para jantar conosco. Para surpresa nossa, aceitou o convite. Estava alegre e cativante, procurando causar boa impressão. Volta e meia dizia algo em francês ou em alemão, dizendo-se grande conhecedor de Paris e de Berlim. Meu pai, a bem da verdade, sentia-se lisonjeado que alguém tão importante, de uma família tão distinta, passasse assim quatro horas em nossa casa.

Quando o café foi servido, papai estava a ponto de informar a Iskander Pasha sobre a responsabilidade que recai sobre um bom clínico quando, para nossa surpresa e alegria, Iskander Pasha roubou-lhe aquele momento de glória. Ele já sabia o que papai ia lhe dizer. Meu pai ficou boquiaberto até que Iskander Pasha lhe contou que fora o próprio Sultão quem lhe dissera aquelas palavras sábias. O rosto de meu pai se abriu em um sorriso. Era um sorriso tão subserviente, tão cheio de vontade de agradar, que senti náuseas, literalmente. Tive que deixar a mesa às pressas. Corri para o banheiro e vomitei tudo. Uma premonição muito forte pode causar coisas assim ao organismo.

Quando voltei, pálida e abatida, Iskander Pasha já havia se despedido e partido. Sentime aliviada, pois durante toda a refeição ele não havia deixado de me olhar daquele jeito, fazendo com que eu ficasse nervosa e assustada. Não senti a menor atração por ele e lembro-me de que naquela noite, já deitada, não parava de repetir baixinho para mim mesma: "Trate-o como se ele fosse uma porta fechada que jamais deverá ser aberta. Se você abrir uma fresta mínima para espiar o que há do outro lado, estará perdida.' E isso não seria difícil, já que ele não me provocava curiosidade alguma. Lembre-se de que eu ainda não tinha vinte anos e seu pai, com mais do dobro da minha idade, parecia-me um velho..."

A essa altura eu a interrompi. Estava irritada por sua total apatia por meu pai. Afinal de contas, ele não era um tolo nem um homem sem atrativos, e eu gostava dele apesar dos seus defeitos. Sentia-me impaciente e queria chegar logo às raízes do problema.

— Antes que você continue a falar sobre sua indiferença em relação a meu pai, diga-me uma coisa. Você amava um outro homem nessa ocasião?

— Amava — respondeu minha mãe com tal ímpeto que me deixou surpresa; eu amava Suleman. Ele tinha a minha idade. Compartilhávamos nossas emoções, nossos desejos, nossos sonhos. Havia uma grande harmonia entre nós. Era uma coisa tão profunda, tão profunda, que parecia ser a própria fonte da vida. Você quer que eu fale sobre ele, Nilofer, ou achará que não está sendo leal com seu pobre pai, que está aleijado e sem fala no quarto ao lado? Seja sincera.

Fiquei comovida com a intensidade de sua emoção, principalmente por ela se manifestar tão viva já se tendo passado trinta anos. Meus próprios sentimentos me pareceram bem pouco importantes quando comparados ao tanto que ela havia sofrido. Senti um grande amor por ela e beijei-lhe o rosto, enxugando uma única lágrima salgada que escorria pela face esquerda.

— Quero ouvir tudo, mãe. Tudo.

"Suleman era primo distante de minha mãe. Sua família, como a nossa, havia se mudado de Córdoba para Istambul no século XV, quando fomos expulsos pelos católicos.

Meu pai vinha de uma família de médicos que se dizia descendente de Maimonides. A família de minha mãe era de comerciantes. Foram bem-vindos aqui. Os otomanos nos deram acolhida e trabalho. Os ancestrais de Suleman mudaram-se para mais longe e se estabeleceram em Damasco, porém jamais perderam contato com a família em Istambul. Como eram negociantes, estavam sempre viajando e assim acabavam sempre se encontrando. O casamento de meus pais, que foi feliz, foi acertado por meio de troca de cartas.

Suleman queria ser médico. Estava cansado de viver em Damasco. Achava a cidade muito provinciana e queria estar mais perto da Europa. Seu pai escreveu ao meu e, naturalmente, Suleman foi convidado a morar conosco indefinidamente. Meu pai propôs-se a conseguir que ele entrasse para a escola de medicina de Istambul. Eu tinha dezoito anos então. Ele era um ano mais velho. Foi como se o sol tivesse entrado pela nossa casa.

Todos os meus amigos tinham irmãos e irmãs, e eu sempre me sentira diferente por ser filha única. Minha mãe não pôde mais conceber depois que nasci de um parto difícil. Ela dizia que se meu pai não estivesse presente, ela teria morrido, pois a parteira não conseguia estancar a hemorragia que se seguiu. É estranho também que eu só tenha conseguido gerar uma única flor, ainda que tão bela. Sentime muito aliviada quando você teve Orhan e Emineh. Achei que a maldição havia sido rompida.

Suleman foi para mimo irmão mais velho que eu não tinha tido e minha família o tratava como tal. Nenhuma restrição lhe era feita. Eu o levava a toda parte, de coche ou a pé. Mostrei-lhe as delícias secretas de nossa cidade. Os visitantes do Ocidente olham as mesquitas de Sinan com surpresa e admiração. Ficam fascinados com os palácios e os rituais da corte, mas são poucos os que penetram realmente na vida interior de nossa cidade. Nossas relações amorosas com a cidade são sempre secretas, são sonhos de adolescentes, principalmente quando se trata de uma cidade aberta como Istambul, mas eu não queria guardar segredo algum de Suleman, apesar de termos acabado de nos conhecer. As afinidades entre nós eram profundas, contudo havia também diferenças. Eu era decidida e teimosa. Ele era emotivo e gentil, mas também era inseguro, de certa forma.

Às vezes nos vestíamos como ocidentais e íamos tomar chá em um hotel, onde nos dirigíamos aos garçons em francês. Somente quando os ouvíamos conversar em turco, sem saber se éramos irmãos ou um casal em lua-de-mel, eu os surpreendia no mais puro stambouline, só para rirmos das caras de espanto que faziam. Foram os dias mais felizes de minha vida, Nilofer. A inocência que antecede o amor de verdade jamais se repete. Quando ela se esvai, é para sempre.

Parecia haver magia em tudo quando Suleman e eu estávamos juntos. Ficávamos sentados em um café na Europa, sorvendo lentamente a bebida de nossas xícaras, enquanto observávamos o pôr-do-sol na Ásia. Nós nos sentíamos à vontade para falar sobre qualquer assunto. Não havia tabus para nós. Nada era sagrado. E não se tratava apenas de trocar reminiscências ou discutir os episódios mais específicos da história de nossas famílias. Desde o início estabeleceu-se algo muito mais íntimo entre nós. Era como se jamais houvéssemos vivido um sem o outro. E ríamos muito, Nilofer. Nunca ri tanto em toda a minha vida, antes e depois daquela época.

Até que eu conhecesse Suleman, ninguém havia demonstrado qualquer interesse especial por mim. Eu era a filha que logo estaria casada e deixaria a família, e assim terminaria minha história. Meu pai, principalmente, estava sempre tão ocupado com seus pacientes mais ilustres, que nunca tinha tempo para mim.

Suleman foi a primeira e única pessoa a me perguntar o que eu queria da vida. Ele não riu quando confessei as minhas fantasias mais profundas. Ao contrário, estimulou-me a tentar quando lhe disse que gostaria de escrever livros como Balzac. Ele prestava toda a atenção ao que eu dizia. E nunca tentou impor sua vontade à minha - o que certamente não conseguiria fazer. Em momentos assim, é simples amar a vida. Tudo mais haveria de dar certo. Pelo menos era assim que eu imaginava. A vida continuaria a ser linda, indefinidamente. Mas as coisas não se deram dessa forma.

Certa noite Suleman e eu estávamos sozinhos em casa. Meus pais, vestidos com suas melhores roupas, haviam saído para um banquete de casamento no palácio. Os empregados estavam de folga naquela noite. A princípio nos divertimos tocando ao piano duetos da ópera Don Giovanni, de Mozart. Depois comemos. Só bem mais tarde, quando se deu uma pausa natural em nossa conversa, foi que me percebi um pouco tensa a seu lado. Meu coração começou a bater mais forte. Ele saiu da sala e voltou em seguida trazendo uns papéis. Foi naquela noite que ele me mostrou, pela primeira vez, os desenhos que havia feito. Se eu fechar os olhos agora poderei vê-los com absoluta nitidez.

"Eu não sabia que você era artista', foi só o que pude dizer, tentando disfarçar os sentimentos confusos que me dominavam e aparentar tranqüilidade.

"Nem eu sabia', disse ele. O primeiro esboço reproduzia meu rosto com linhas suaves. O segundo era também do meu rosto, dessa vez de perfil. Não gostei deste porque ele exagerou o meu nariz, que ficou parecendo um pepino, mas antes que eu pudesse expressar meu descontentamento, ele me mostrou o terceiro... Ah, o terceiro, Nilofer, o terceiro! Era como ele imaginava o meu corpo despido. Suas mãos tremiam quando ele o mostrou a mim. Fiquei absolutamente chocada com aquela audácia, mas também perplexa com a exatidão do desenho.

Vários meses mais tarde ele confessou que havia me espiado certa tarde enquanto eu tomava banho, mas àquela altura já havíamos alcançado outro nível de intimidade e nada mais importava."

Sara fez uma pausa. Aquelas recordações haviam avivado antigas emoções e ela estava perturbada. Serviu-se um copo d'água de um jarro que havia junto à sua cama.

Eu a vi como uma pessoa completamente diferente. Era difícil acreditar que ela tivesse permitido a Suleman fazer amor com ela. Se foi assim, por que não fugiram juntos? Ele poderia tê-la levado consigo. Mas como foi possível que a situação chegasse àquele ponto? Meus avós tinham proibido o casamento deles? Por quê?

— Posso ouvir todas essas perguntas que lhe tumultuam a mente, minha filha. Você quer saber até onde foi nossa intimidade. Quer saber por que nós não nos casamos ou não fugimos como você fez com aquele grego de olhos feios. Como você deve imaginar, jamais falei sobre isso com pessoa alguma. Não é fácil falar disso com a própria filha. Há sempre um impulso muito forte de esconder, mas agora desejo contar-lhe tudo. Já há segredos demais nessa nossa vida e as coisas escondidas acabam doendo mais que a verdade.

"Se algum dia, por acaso, depois que eu já estivesse morta, você viesse a saber dessa história por algum descendente de Suleman, talvez acreditasse, talvez não.

Mas certamente ficaria aborrecida por não ter sido eu a lhe contar. Poderia pensar coisas ruins a meu respeito. E você é o único tesouro que me resta neste mundo.

Quero que saiba para algum dia contar a Orhan e a Emineh a história de sua avó. Quem sabe se ela não os ajudará a viver melhor? Massageie meus pés, filha. Estou começando a me sentir tensa e cansada."

Era a primeira vez que eu massageava seus pés, mas eu sempre havia observado as criadas fazerem aquilo, às vezes por horas a fio, portanto a tarefa não tinha mistérios para mim. Comecei pressionando seus dedos, um de cada vez, e depois pus-me a pressionar as solas, amassando-as de leve com meus dedos curvados. Pouco a pouco Sara começou a sentir-se menos tensa novamente.

"Suleman e eu nos entregamos um ao outro naquela noite com tanta naturalidade que nem parecia que era a primeira vez. Foi como se estivéssemos desde sempre destinados a ser um do outro. A paixão que vínhamos escondendo de nós mesmos fluiu livremente. Fizemos amor naquela noite e muitas outras vezes depois. Às vezes nosso desejo um do outro era tão grande que saíamos às pressas de casa em busca de um lugar seguro, mas eles não eram fáceis de encontrar. Muitas vezes, à falta de alternativa, alugávamos um barco coberto e nos esquecíamos do mundo, enquanto o barqueiro, fingindo nada perceber, levava-nos de um continente a outro. Isso era arriscado, pois aqueles barcos eram usados com freqüência por pessoas de classes inferiores e eu sempre temia que alguma de nossas criadas, que me faziam confidências sobre suas aventuras em barcos, acabasse por nos ver. Aliás, foi por meio delas que soube da existência desses barcos do amor.

Minha mãe já estava começando a me olhar com suspeita. "Você está diferente, Sara. Não sei se é o seu jeito de andar. Alguma coisa está acontecendo. Este seu jeito confiante é quase o de uma mulher satisfeita em seus desejos.'

Contei isso a Suleman e no dia seguinte informamos minha mãe de que pretendíamos nos casar. Suleman já havia escrito a seus pais pondo-os a par dessa decisão. Eu julguei que minha mãe ficasse feliz por eu amar um homem de sua família. Achei que ela se sentiria lisonjeada.

Meu pai estava sempre se queixando de não ter dinheiro sequer para meu dote. Mesmo que isso não fosse verdade, sentime aliviada de não precisar impor-lhe essa despesa.

Os olhos de gazela de sua avó se apertaram e seus lábios se estreitaram quando ela ouviu a notícia. "Eu temia que isso acontecesse', disse ela, "mas tinha esperanças de que o afeto entre vocês fosse o de dois irmãos, principalmente pelo fato de você ser filha única. Foi por isso que concordei com tanto prazer que ele viesse viver conosco o tempo que quisesse. Que tola fui. E como fui cega a ponto de não perceber o que se passava diante dos meus olhos, em minha própria casa. Este casamento é impossível, Sara. Sei que posso parecer cruel, mas tanto você quanto ele precisam encarar a realidade.'

Ficamos absolutamente chocados. Olhamo-nos um ao outro sem acreditar no que estávamos ouvindo. Que realidade era aquela de que ela falava? Ela se recusou a falar sobre o assunto até que meu pai voltasse para casa depois de suas visitas aos clientes. Saiu da sala dizendo que os dois falariam conosco depois do jantar. Suleman e eu ficamos sentados, de mãos dadas, a nos olharmos perplexos. Ele achou que aquela hostilidade tivesse algo a ver com sua relativa pobreza; meus pais provavelmente queriam para mim uma vida mais luxuosa. Eu achava que não deveria ser por isso, pois Suleman estava aprendendo o ofício de meu pai e seria natural que ele desse continuidade àquela prática de que tanto a família se orgulhava havia mais de duzentos anos.

De fato, meu pai já havia começado a revelar-lhe alguns dos segredos da medicina trazidos da Espanha por seus antepassados. Eram fórmulas copiadas em grandes livros encadernados em couro negro que o uso havia feito desbotar. Lembro-me do entusiasmo de Suleman quando meu pai lhe mostrou um desses livros pela primeira vez. Já era tido como certo que Suleman o sucederia na prática da medicina, portanto não me ocorreu que a falta de dinheiro pudesse ser o problema.

Quando por fim ele chegou em casa naquela noite, ouvi mamãe sussurrar, ansiosa, puxando-o para seu quarto. O jantar foi consumido no mais absoluto silêncio. Eu sabia que eles não estavam zangados, porque de vez em quando nos lançavam olhares afetuosos, porém tristes. Foi meu pai quem rompeu o silêncio naquela noite e explicou o motivo de sua objeção.

O que ele disse não fazia o menor sentido para mim. Ele falou de uma misteriosa doença que se desenvolvera no ramo da família ao qual Suleman pertencia. Era resultado de vários casamentos consangüíneos. Como minha mãe pertencia àquela família, havia um sério perigo de nossos filhos nascerem com terríveis deformidades e de morrerem cedo. Isso já havia acontecido várias vezes e não se poderia correr o risco.

O rosto de Suleman ficou lívido quando ele ouviu o que meu pai dizia. Ele sabia que tal doença havia tirado a vida de um de seus primos alguns anos antes, mas, argumentou ele, os laços sangüíneos entre minha mãe e a família dele eram tão remotos, que certamente seria remota também a possibilidade de tal ocorrência. Meu pai se levantou e saiu da sala. Quando voltou, trazia um dos livros encadernados. Esse continha a nossa árvore genealógica. Mostrou-nos que as mães das tetravós de minha mãe e de Suleman tinham sido irmãs. A relação de parentesco era forte demais para que nos arriscássemos. Ele estava comovido com o nosso amor e tinha uma afeição genuína por Suleman, mas nossa união seria impossível. Papai sacudia a cabeça reforçando a negativa.

"Isso só lhe traria infelicidade, Sara. Por mais rancor que você sinta por sua mãe e por mim devido a essa nossa decisão, não posso, como seu pai e como médico, permitir que vocês dois destruam suas vidas.'

Comecei a chorar e deixei o aposento. Suleman continuou com eles, conversando por muito tempo. Eu não tinha a menor idéia do que estariam falando.

Nem ele nem eu conseguimos dormir naquela noite. Já bem tarde fui até seu quarto e encontrei-o sentado na cama, com as pernas cruzadas, chorando baixinho. Fizemos amor para nos acalmarmos. Disse-lhe, com firmeza, que estava pronta a correr o risco, e que se meus pais ainda se opusessem, poderíamos fugir. Mas aquela árvore genealógica não lhe saía da cabeça. Ele descreveu-me a morte de seu primo aos sete anos de idade. Não queria que um filho nosso morresse daquela maneira.

Eu implorei, Nilofer. Ameacei acabar com minha própria vida se ele ousasse me abandonar. Nada o demovia. No dia seguinte ele partiu.

Fiquei inconsolável. Saí à sua procura por toda parte. Fui a todos os cafés aonde costumávamos ir. Fui até falar com o homem do barco para perguntar se o havia visto, mas não encontrei o menor vestígio dele. Meus pais afirmavam desconhecer seu paradeiro. Passado algum tempo, porém, meu pai admitiu ter-lhe dado uma bolsa de dinheiro para ajudálo a partir dali. Eu sofria terrivelmente por Suleman. Tudo mais na vida perdeu importância para mim. Tanto fazia se ela continuasse ou acabasse. Era-me absolutamente indiferente.

Dez dias depois de Suleman haver me abandonado, meu pai chegou em casa, à noite, com uma proposta de casamento de Iskander Pasha. Eu seria sua segunda mulher.

Isso também não me importou. Lembro-me de ter dito a minha mãe: "Com esse casamento, pelo menos, ninguém precisa ficar aflito.' Disseram-me que eu teria que me converter à religião de meu marido e mudar de nome. Essa troca de identidade foi a única coisa que me pareceu divertida. Não seria Sara a ir para a cama de Iskander Pasha, mas Hatige. Deram-me o nome da primeira mulher do Profeta Memed, que Deus a tenha.

Casei-me na casa de Istambul. Não houve festas, pois eu era apenas sua terceira mulher. A primeira, como você sabe, morreu ao dar à luz Salman. Achei bom que não houvesse festas, pois eu não tinha mesmo nada a celebrar. Iskander Pasha foi muito gentil e, graças a Deus, partiu pouco depois para Paris com Petrossian e Hasan Baba, mas não me levou. Para mim foi melhor ficar mesmo. É claro que antes de partir ele veio para minha cama e deu-me provas de ser homem. A experiência não foi boa para mim, Nilofer. Não cheguei a sentir prazer. As feridas que a traição de Suleman haviam me causado ainda sangravam muito. Você nasceu oito meses e meio depois."

Algo no tom de voz de minha mãe dizia-me que a história não acabava aí. Um sorriso estranho iluminou-lhe o rosto quando ela mencionou meu nascimento.

— Sara! Você prometeu contar-me toda a verdade.

— Você não pode adivinhar? Fiz que não com a cabeça.

— Você foi a prova de que meus pais estavam errados. A covardia de Suleman não tinha justificativa. Aquilo fez crescer em mim um enorme rancor. Ele tinha sido um traidor. Meu amor por ele começou a se transformar em ódio. Você era a criança mais linda e saudável que eu já vira.

— O que é que você está dizendo, mãe? Você está louca! Enlouqueceu! Tudo isso é invenção sua. Você queria que tivesse sido assim. Iskander Pasha é meu pai!

Comecei a chorar. Ela tentou me abraçar, mas eu a afastei. Minha primeira reação foi de repulsa. Sentia que minha vida me estava sendo confiscada. Fiquei ali imóvel, olhando fixamente minha mãe. Quando falei, foi num sussurro:

— Tenho, minha filha. Se eu não estivesse grávida, não teria me casado com Iskander Pasha. Se tivesse contado a meus pais, eles tentariam acabar com sua vida. Não se esqueça da profissão de seu avô. Ele tinha experiência em remover filhos não desejados.

— Mas por que você não contou a Suleman?

— Só descobri que estava grávida uma semana depois que ele havia partido. Eu teria contado a ele, mas ele já não estava mais lá.

— Como pode ter certeza?

Ela foi até o armário e voltou com uma caixa que eu desconhecia. Tirou de dentro uma fotografia dos dois. Pareciam muito felizes. Minha mãe cobriu o nariz e os lábios de Suleman: os olhos eram idênticos aos meus.

— Você nunca disse isso a seus pais?

Ela abanou a cabeça em negativa. — Por quê? — Eles teriam sofrido muito com isso. Gostavam de Suleman. Eu era sua única filha e não quis que soubessem que, ao desejar o melhor para mim, haviam arruinado minha vida.

— E nunca contou a ele?

— Não. Quando ele me escreveu, você já tinha oito anos. Sua carta foi breve e ele me pareceu distante e frio. Tinha mesmo a intenção de dar um adeus cruel e definitivo. Deu-me conta de três coisas importantes. Era um pintor de sucesso. Tinha um casamento feliz. Tinha três filhos. Como eu poderia competir com tanta felicidade? O efeito da carta de Suleman foi acabar de vez com qualquer esperança que ainda me restasse. Desejei que o navio que o havia levado a Nova York tivesse afundado numa tempestade e que todos menos ele tivessem sido salvos. Que ele tivesse caído do convés e nunca mais o encontrassem. Preferia que ele tivesse morrido. Isso o impediria de escrever cartas como aquela.

"Eu vivia com a esperança de algum dia, antes de morrermos, ir visitá-lo em Nova York. Eu queria tanto vê-lo de novo, Nilofer! Ainda que fosse só uma vez. Mas depois daquela carta eu me senti uma tola. Sentime traída, também. Mas de tudo isso restava-me um consolo que ele jamais poderia tirar de mim. Eu tinha você, o fruto do nosso amor. Para conseguir sobreviver, ele teve que refazer toda a sua vida, construir uma parede inviolável para encerrar todas as recordações do amor que demos um ao outro. A mim bastava olhá-la nos olhos para lembrar que a felicidade existia. Tive pena dele."

Fez-se um profundo silêncio. Nem ela nem eu conseguíamos falar. Beijei-lhe as mãos. Ela acariciou-me o rosto e beijou meus olhos. Eu nunca havia me sentido tão próxima de minha mãe. Senti necessidade de ficar sozinha para pensar em tudo aquilo que acabava de ouvir. Precisava decidir o que fazer de minha vida. Não podia deixar que isso fosse decidido por essa família.

Despedi-me de Sara e fui para meu quarto. Era estranho pensar que nenhuma daquelas pessoas era mais parente minha. Salman e Halil não eram meus irmãos. Zeynep não era minha irmã. Iskander Pasha não era meu pai. Minha vida havia se tornado subitamente absurda. Senti as lágrimas transbordarem de meus olhos.

— Por que você está chorando?

— A voz de Orhan trouxe-me de volta à realidade.

— Sente saudades de Emineh?

Concordei em silêncio, grata por ele mesmo encontrar uma justificativa. Enxuguei as lágrimas. Orhan parecia muito alegre.

— Amanhã Hasan Baba vai cortar meu cabelo. Disse que não pode partir sem cortar meu cabelo. Só assim terá cortado o cabelo de quatro gerações da nossa família.

Sorri. Nossa família? Essas palavras tinham agora um novo significado para mim.

Orhan transbordava de alegria desde que conhecera os tios e o avô. Sentime subitamente assustada. Orhan e Iskander Pasha comunicavam-se diariamente por escrito. Ambos se sentiam muito úteis. Orhan achava que estava ajudando o avô e Iskander Pasha tinha começado a ensinar o alfabeto francês ao neto. Como dizer a meu filho que não tínhamos o direito de estar ali, que seu verdadeiro avô era um pintor em Nova York, que pertencíamos a um mundo diferente daquele? Olhei para o mar. Estava tranqüilo, reluzindo ao sol intenso da tarde de julho. Sua calma ajudou-me a encontrar a minha.

Deitei-me na cama e fechei os olhos. Achava bom que Mamãe tivesse me contado a verdade. A presença de Orhan me fazia perceber que a vida continuaria seu curso.

Eu podia não ter um parentesco de sangue, mas aquela era a minha família. Aquelas eram as pessoas que eu amava e que continuaria a amar — a despeito do passado, a despeito do futuro. Ouvi a risada de Orhan vindo lá de fora. Levantei-me para ver a causa de tanta alegria.

Era Selim. Só em vê-lo sentime excitada. Percebi, naquele instante, que o desejaria ainda por muito tempo.


8

A foto da família;
Iskander Pasha insiste em ser fotografado sozinho ao lado de uma cadeira vazia;
a história de Ahmet Pasha e de como ele se fez passar pelo Sultão

A manhã se arrastava languidamente. Não havia brisa e fazia calor. Estávamos sentados à sombra de uma nogueira no terraço em frente à casa. Hasan Baba acabara de cortar o cabelo de Orhan e uma empregada varria o que havia caído no chão. Hasan Baba havia escolhido um corte que estivera na moda cinqüenta anos atrás, um estilo usado por meu pai e meus tios quando estes eram ainda meninos. O cabelo de Orhan ficou curto demais, contra minha vontade, mas não era a mim que ele queria agradar. Hasan Baba sabia que Iskander Pasha ficaria satisfeito com seu trabalho.

Um fotógrafo que viria de Istambul estava sendo aguardado para fotografar a família reunida. Era um ritual que se repetia todos os anos, interrompido apenas quando Salman e Halil saíram de casa. Geralmente a fotografia era tirada em um dia festivo, no pátio de nossa casa em Istambul. Aquela era a primeira vez em que se permitia a um fotógrafo violar a intimidade de nosso santuário de verão. As cadeiras já estavam dispostas exatamente como ficavam em Istambul, com a diferença de que éramos ali um número menor de pessoas. A família de Tio Kemal não havia sido convidada, mas em Istambul era difícil excluí-la.

Petrossian, seguindo as instruções de Iskander Pasha, estava fazendo a arrumação, colocando os nomes das pessoas nos lugares certos, para que na hora cada um soubesse onde se sentar. A idéia de reunir a família assim me desagradava, mas Orhan não se continha de alegria. Aguardava ansioso que a hora chegasse e pela primeira vez obedeceu imediatamente quando minha mãe mandou que se banhasse, penteasse e vestisse a roupa nova feita especialmente para ele, combinando com o fez. Quiseram que se vestisse como um pequeno paxá. E ele não seria o único a vestir-se formalmente. Todos receberam instruções nesse sentido. Na refeição da manhã, Salman nos havia feito rir ao perguntar a Tio Memed se seria ele ou o Barão a usar o fez. Os dois lançaram-lhe um olhar de desagrado e nada responderam. No instante em que eu ia pedir a Hasan Baba que me falasse de suas idas a Paris com Iskander Pasha, fui surpreendida por uma voz grave e linda entoando um cântico sufista que parecia chegar a nós vindo do céu.

Inebriemo-nos com o vinho dos Seus lábios

Em homenagem aos amantes e ao amor.

Que os corações sofredores se embriaguem

E esqueçam a solidão e a dor.

Que o amor transborde como os sete mares,

Como o vinho dos Seus lábios — inebriemo-nos

Enquanto o luar cobre os amantes;

Em seu louvor brindemos a todo instante

Até que eles felizes, felizes, felizes, felizes,

Em êxtase sintam a presença de Alá! Alá, ó Alá, ó Alá!

 

A figura frágil e alquebrada de Hasan Baba assumiu uma atitude completamente distinta e seus olhos começaram a brilhar. Ele parecia estar em êxtase. Subitamente a voz silenciou. Tinha vindo do jardim abaixo do terraço de meu pai, que não se podia ver de onde estávamos sentados, gozando a brisa da manhã e o odor de pinho.

— Quem foi que cantou? Eu não sabia que tínhamos um dervixe aqui.

— Foi Selim, meu neto, hanim e f fendi. Fiquei surpresa. — Você tem certeza disso? Hasan Baba concordou prontamente. — Selim deve estar cansado hoje. Está cortando cabelos sem parar desde cedo. Primeiro foram seus irmãos, depois Memed Pasha e o Barão. Agora é o cabelo de seu pai que está sendo cortado. Tudo isso só por causa de uma estúpida fotografia.

— Mas ele estava cantando enquanto cortava o cabelo de meu pai? -Aquilo me deixava surpresa, pois qualquer ritual envolvendo Iskander Pasha sempre decorria com a máxima solenidade.

— Por que não? Há muitas coisas que você não sabe acerca de seu pai. Ele foi um sufi quando jovem. Freqüentava algumas casas de reputação meio duvidosa, onde o êxtase muito pouco tinha a ver com Má. Ele deve ter mandado Selim cantar esses versos. Talvez o faça lembrar da primeira vez em que viu Zakiye, a mãe de Salman Pasha.

"Conheço o seu pai desde o dia em que ele nasceu, mas nunca o vi naquele estado em que ficou no inverno em que a conheceu em um desses locais de reunião. Eles inalaram umas ervas muito potentes e entraram em transe juntos. Depois, num estado de exaustão e êxtase, caíram no chão e se deixaram ficar. Foi então que ela entoou o cântico que acabamos de ouvir agora na voz de meu neto. O coração de Iskander Pasha conheceu uma turbulência que até então desconhecia. A cada dia que passava ele ficava mais apaixonado, a ponto de eu às vezes temer que ele estivesse enlouquecendo. Nessa ocasião eu lhe fiz muita companhia. Tentava acalmá-lo. Ofereci-me para levá-lo a um festival em Konya. Sugeri que viéssemos passar uns tempos nesta casa para que ele pudesse refletir um pouco sobre seu estado de espírito longe do objeto de seu amor. Ele se recusou a deixar Istambul. Zakiye sentia-se comovida com a paixão de seu jovem admirador, mas não creio que fosse capaz de corresponder àquele amor. Ele não sossegaria enquanto não obtivesse a permissão de seus pais para casarse com ela."

Eu jamais havia ouvido essa história, nem mesmo de Zeynep, que geralmente sabia de tudo dessa natureza. Talvez a morte de Zakiye tivesse posto um ponto final naquela história.

— Por que era necessária a permissão dos pais dele, Hasan Baba? E por que não dos dela?

O velho deu um profundo suspiro. — Oh, minha filha, você pode ser mãe de duas crianças mas ainda não conhece as malícias do mundo. Zakiye era ligada à tal casa de encontros. Era um lugar de má fama. E não tinha pais.

Apesar de não querer demonstrar que estava chocada com aquela informação, não pude me conter.

— Hasan Baba, você está me dizendo que a mãe de Salman era prostituta?

— Quem foi o miserável que falou aqui em dinheiro ou em venda de corpos humanos? — perguntou ele erguendo a voz.

— Zakiye acreditava nos prazeres da união em êxtase.

Era essa sua maneira de comunicar-se com Alá. Você se surpreende com isso? Havia, e ainda há, muitas pessoas que pensam como ela, inclusive a mãe de Selim, e ela ainda está viva! Queira me fazer o favor de não interromper minha história com perguntas tolas. Já deve até ter se esquecido do que me perguntou, mas vou lhe responder.

"Agora, pelo menos, você já sabe por que Iskander Pasha precisou pedir o consentimento dos pais para casarse com Zakiye. Eles ficaram muito zangados com ele. Recusaram-se a levar aquilo a sério

Achavam que se tratava de desejo carnal, não de amor. Sugeriram que seu pai pegasse Petrossian e fosse para Paris e Florença passear. Então foi a vez dele dizer não.

"Certa noite Iskander Pasha decidiu sair de casa e tornar-se um dervixe. A mãe dele ficou abalada com a notícia. Não conseguiria suportar aquela perda. Ele sempre havia sido seu filho predileto. Ela foi a primeira a ceder e em seguida convenceu o marido. Iskander Pasha ficou imensamente feliz. Eu podia ver a felicidade dançando em seus olhos, mas nenhum de nós foi capaz de prever o problema que viria a seguir.

"Zakiye recusou sua proposta de casamento. Pior ainda: ofendeu-se com ela. Não tinha o menor desejo, disseme, de se tornar propriedade de um homem rico. Não via motivo algum para abandonar sua vida livre de restrições e ficar aprisionada o resto da vida na casa de sua família em Istambul. O que se seguiu, suponho eu, foi o inevitável: correu dinheiro. Os donos da casa de encontros foram subornados por Iskander Pasha. Eram pessoas que a haviam criado desde recém-nascida. Haviam cuidado de sua educação, ensinando-lhe a cantar e dançar e a atingir um estado de comunhão com seu Criador. Pois passaram então a convencê-la de que seria muito bom para sua seita se ela se casasse com Iskander Pasha e fizesse o que ele lhe pedia. "Ele é filho de uma família muito importante, de gente muito próxima ao Palácio.

Pense em como poderá nos ajudar sendo sua esposa. Você foi abandonada à porta de nossa casa no dia em que nasceu. Nós a criamos como se fosse da nossa família.

Agora é sua vez de nos servir. É um dever seu fazer o que estamos pedindo.' Ela não se convenceu, mas fez o que eles queriam, como sempre havia feito.

"E foi assim que se casaram. A festa não foi nada discreta. Durou três dias inteiros, com muita música e muita dança. Deve ter sido a última vez em que Zakiye dançou com outros homens e outras mulheres. Ela parecia feliz e é difícil imaginar como essa história terminaria se o destino não lhe tivesse dado o cruel castigo que deu. Poucos meses depois ela engravidou e o resto você já sabe. Foi uma tragédia. Ela morreu ao dar à luz Salman Pasha.

"Depois de sua morte, pude observar a total mudança que se deu no caráter de Iskander Pasha. Ele ficou arrasado. Parecia uma árvore atingida por um raio. Uma árvore não tem alternativa: morre. Iskander Pasha descobriu que só poderia continuar a viver se reinventasse a si mesmo. Ele reconstruiu-se à margem de seu pai. Tornou-se uma pessoa distante e indiferente, muito ciente de sua posição social, muito exigente com os filhos, principalmente com o pobre órfão Salman Pasha. Seu pai passou a ser a pessoa que você conhece. Foi a única maneira que encontrou para aceitar o fato de ela ter partido para sempre. Convenceu-se de que jamais poderia ser com outra pessoa como tinha sido com ela.

"Certa vez em Paris, enquanto eu fazia sua barba naquela casa luxuosa, ele estava pensando nela. Conhecendo-o como eu o conhecia, sempre sabia quando ele desejava ser barbeado em completo silêncio. Eu não havia dito uma só palavra naquele dia, quando subitamente ele puxou a toalha que eu tinha no ombro, limpou o resto da espuma do rosto e rompeu o silêncio. "Você sabe, Hasan, que o homem que amou Zakiye morreu com ela, não sabe? Eu desconheço aquele homem.'

"As lágrimas rolaram por meu rosto. Disse-lhe então: "Eu sei disso, Iskander Pasha. Sempre soube disso, mas não creio que o jovem que conheci esteja morto. Acho que ele está escondido bem no fundo de você e que reaparecerá algum dia.' O que ele havia me dito era apenas parte da verdade. Ela ainda vivia dentro dele, portanto o homem que a amava vivia também. Houve também um outro incidente em Paris do qual só agora estou me lembrando. A memória é um dom estranho, não é mesmo, Nilofer hanim? Certa noite ele voltou tarde de uma daquelas recepções oficiais que tanto o entediavam. Ele sempre detestou aquelas reuniões. Petrossian já havia ido dormir e Iskander Pasha despiu-se sozinho. Eu estava lendo no quarto ao lado quando o ouvi soluçar. Apressei-me em ir consolálo e o encontrei abraçado a um livro, apertando-o contra o coração. Ele nada disse, mas entregou-me o livro mostrando-me um poema que jamais esqueci. Era parte de um soneto de Michelângelo, aquele italiano que deveria ter construído uma ponte sobre o Bósforo. Quer que eu recite os versos? Vejamos se consigo me lembrar de tudo."

Hasan ficou em silêncio, concentrando-se. Depois sorriu. "Acho que me lembro, mas posso ter me esquecido de alguma coisa. Ele me deu o poema para ler e perguntou com um sorriso triste: "Hasan, você acha que Michelângelo era sufi?'

Quero de volta o tempo quando o amor

Corria livre, sem rédeas, pela vida.

Devolvam-me a pureza, ora perdida,

O rosto que desconhecia a dor.

Meu coração há muito já não ama,

Fez-se de espesso escudo, empedernido.

Lenho queimado não acende nova chama.

 

— Hoje ele pediu a Selim que cantasse a canção preferida de Zakiye. Ela ainda deve estar muito viva em seu coração neste momento.

Embora Iskander Pasha não fosse meu pai verdadeiro, o fato de ficar sabendo disso não alterou meus sentimentos por ele. Eu ainda o amava como pai. A história que Hasan Baba contou fez com que eu me sentisse ainda mais chegada àquele homem com quem minha mãe se casara às pressas tanto tempo atrás. Perguntei-me se mamãe sabia daquela história e como se sentiria a respeito dela. Ambos haviam amado profundamente e haviam perdido, em circunstâncias diferentes, o que tinham de mais precioso na vida.

Zakiye estava morta e, de certa forma, Suleman também. Por que esse sofrimento dos dois não os havia aproximado? Meu pensamento passou para Selim.

— Onde foi que ele aprendeu a cantar tão bem, Hasan Baba? O velho ficou feliz com o elogio. O que acharia se soubesse do que tínhamos feito? Eu tinha certeza de que sua reação, qualquer que fosse, não seria de surpresa.

— O pai de Selim, meu filho mais velho, é um bektashi. Foi ele quem o ensinou a cantar quando ainda menino. Meu filho, que Alá o amaldiçoe, não quis ser barbeiro.

— O velho se pôs a rir, mostrando as gengivas desdentadas. Não havia um único dente naquela boca e tive que desviar os olhos.

— Talvez — continuou ele — esse tenha sido o verdadeiro motivo que o levou a entrar para uma ordem sufista, que incentiva seus devotos a deixarem crescer os cabelos.

Ele queria que Selim seguisse seus passos, mas isso eu não permiti. Como ele não cuidava bem do menino, decidi criá-lo eu mesmo. Selim cresceu em minha casa e eu o treinei para ser barbeiro, mas o rapaz, como se pode notar, tem talento. Seria bom em qualquer ofício.

Foi então minha vez de sorrir. O avô de Selim era barbeiro, mas o pai era sufista.

— Você ficou surpreso quando seu filho não quis seguir sua profissão?

O velho acariciou aquela floresta de tufos brancos que lhe cobria o queixo e ficou pensativo.

— Fiquei decepcionado, mas não surpreso. Temos uma tradição na família tanto de barbeiros quanto de dervixes. Em épocas passadas, bem antes que os otomanos chegassem a Istambul, minha família vivia em Ancara. Era uma época em que não tínhamos príncipes nos governando. Tomávamos nossa próprias decisões. Naqueles tempos éramos artesãos: fazíamos espadas e facas. Pertencíamos à ordem dos kármatas. Já ouviu falar dela?

Eu nunca tinha ouvido falar. Disse-lhe que não tivera uma educação formal e que os tutores que ensinaram o que eu sabia jamais haviam mencionado os kármatas.

— Você seria ainda mais ignorante se tivesse freqüentado uma medresseh — disse ele. — Essa senhora honrada e gentil que é sua mãe provavelmente ensinou-lhe mais coisas do que todos aqueles barbudos teriam ensinado. Você acha que falariam a seus alunos sobre os kármatas? Seria mais provável engolirem suas próprias barbas que falarem de um passado que foi puro.

Sem que nos déssemos conta, Tio Memed e o Barão tinham ouvido essa parte da conversa.

— Eu não sabia que você é descendente dos kármatas, Hasan — disse Memed.

— Já ouviu falar deles, tio? — perguntei com a expressão mais inocente que pude arranjar.

— Sim, mas muito pouco. Esse tema me interessa. Podemos participar da conversa de vocês? Por favor, prossiga, Hasan.

— Eu já estou muito velho, Memed Pasha, portanto peço que perdoe meus disparates. Essas coisas de que falo passaram de geração a geração em nossa família. Não podem ser de grande interesse para homens cultos como o senhor e o Barão Pasha.

— Nada disso — disse o Barão prontamente.

— Nós é que somos ignorantes e queremos aprender.

Hasan Baba sentiu-se lisonjeado e seu tom de voz mudou. Até ali, na conversa comigo, ele havia falado de um jeito íntimo e tranqüilo. Na presença dos dois homens, tornou-se formal e afetado.

— A sociedade dos kármatas em Angora, que agora chamamos de Ancara, era tão poderosa que governava a cidade sozinha. Não tinha necessidade de um governante. A sociedade consistia em diferentes chis, ou associações de artesãos. Cada uma delas tinha seu próprio lugar para se reunir, mas tínhamos também locais centrais de reunião onde havia festas, onde se rezava e também se discutiam os problemas da cidade. Era lá que se decidiam como seriam tratados os doentes, alimentados os que tinham fome e punidos os bandidos que viviam fora dos limites da cidade e roubavam dinheiro e roupas dos viajantes. Os visitantes eram alojados nesses locais de reunião, que também serviam de hospedarias. Tínhamos um compromisso assumido em forma de juramento solene: viver de acordo com as sete virtudes, execrar os sete vícios, abrir sete portas e fechar sete portas.

O Barão estava profundamente interessado no assunto.

— Quais eram esses vícios e essas virtudes?

— Isso não sei dizer, Barão Pasha, mas sei que nós, kármatas, embora tolerássemos as mulheres, costumávamos permanecer solteiros. Sei também que açougueiros, cirurgiões, ateus, cobradores de impostos e agiotas não tinham permissão para freqüentar esses locais de reunião. Tinham todos algo a ver com os vícios a que me referi.

— E os astrólogos? — quis saber Memed.

— Esses também. Eram desprezados ainda mais que os ateus e os agiotas — disse o velho cheio de raiva, como se tivesse ele mesmo impedido um astrólogo de entrar em um daqueles locais. — Os astrólogos eram os algozes de todo pensamento racional e por esse motivo decidiu-se que alguns daqueles patifes, que desviavam os ignorantes do bom caminho, deveriam ser executados em praça pública em Ancara. Dizem que os kármatas os provocavam quando estavam sendo levados para cumprir seu destino. "E então, como foi isso?" zombavam eles. "Como foi que vocês não previram seus próprios destinos? Estavam consultando as estrelas erradas?"

— Eu não aprovo isso, Hasan — declarou o Barão. — Os inimigos do pensamento racional só podem ser derrotados pelo pensamento racional. A execução daqueles homens não mudou coisa alguma. Eles se multiplicaram como gafanhotos por todo o Império.

— Gostei muito da sua canção, rouxinol, mas não reconheci sua voz. Onde é que você a esconde durante a noite? Não fique aí parado fazendo papel de tolo. Vou ter com você esta noite no pomar, quando a sombra da lua cobrir a Mulher de Pedra.

— Qual pomar? — No das laranjeiras, seu tolo. — Lá é muito úmido à noite. Eu prefiro os campos de lavanda. — Não há proteção alguma nos campos de lavanda. Seus olhos brilharam travessos. — Por que não podemos experimentar a felicidade à vista de Alá?

Não pude deixar de rir.

— No pomar das laranjeiras. Há um córrego que o atravessa e a música da água me acalma. Faça o que eu digo e agora afaste-se daqui.

Ele curvou-se levemente em minha direção e se afastou levando a bandeja com as xícaras de chá usadas. Fingia a subserviência que a maioria dos empregados da casa havia aperfeiçoado. Dessa vez consegui controlar o sorriso.

Enquanto me encaminhava para a casa, percebi que Hasan Baba estava de pé junto à porta da frente. Ele havia visto tudo. Olhoume de modo estranho. Teria detectado algum sinal de intimidade na linguagem corporal de Selim? Teria lido seus lábios? Dei-lhe um sorriso sereno ao passar e fui diretamente para a sala de banhos, onde as empregadas aguardavam pacientemente para lavar meus cabelos, secá-los e trançá-los a tempo do almoço.

Três horas da tarde. Iskan der Pasha, acompanhado pelo fotógrafo Giulio Bragadini, que havia almoçado conosco, e seguido por Petrossian, dirigiu-se para fora da casa e lançou um olhar demorado e pensativo sobre a arrumação feita para a fotografia. A grande caixa de madeira coberta com um pano preto era o que eles chamavam de câmera.

Como sempre acontecia, Bragadini vestia-se com formalidade excessiva para o evento. Usava um stambouline negro com um luxuoso chapéu de seda combinando e sua cara gorducha exibia a expressão de alguém que quer passar por importante. Estava muito satisfeito consigo mesmo. Era de uma família de venezianos que se estabelecera em Istambul havia alguns séculos e que pintava retratos de princesas e nobres. Não do Sultão. Os Grão-Vizires, um após outro, julgavam que o trabalho da família Bragadini não era suficientemente bom para que pintassem o Sultão.

Em várias ocasiões foi dito mesmo em público que eles não tinham o talento de Leonardo, de Michelângelo ou mesmo de Bellini e que, na verdade, eram mercadores que haviam aprendido a arte da pintura e faziam dela um negócio. O avô de Giulio, Giovanni, o último dos pintores e primeiro dos fotógrafos, respondia a essas críticas à sua família, embora nunca em público, dizendo que o motivo pelo qual não pintavam o Sultão era que se recusavam a subornar os cortesãos aos quais cabia a escolha do pintor. Aquele era um caso, como comentou Tio Memed, em que ambas as partes falavam a verdade.

Apesar de tudo, os Bragadini prosperaram. Com a invenção da câmera sua batalha pela preferência imperial chegou ao fim. Eles obtiveram o imenso privilégio de fotografar o Sultão e foram nomeados fotógrafos oficiais da corte.

Quatro cadeiras estavam postas lado a lado. A primeira fotografia era só da família e a organização foi simples. Minha mãe sentou-se à esquerda de Iskander Pasha e Tio Memed à direita, com o Barão a seu lado. Zeynep, Halil, Salman e eu ficamos de pé, por trás deles e o pequeno Orhan, vestido de paxá, sentou-se entre os pés do avô e do tio-avô. Giulio comandava a operação. Por trás dele, a certa distância, postavam-se todos os empregados, sob as ordens de Petrossian, vestidos em seus uniformes de gala. Os jardineiros nos olhavam solenes e as empregadas tentavam controlar o riso enquanto murmuravam obscenidades. O Barão, por algum motivo, era sempre um alvo especial de seu veneno. As palavras rituais, sempre ditas em ocasiões dessa natureza quando a família e os empregados se reúnem, foram proferidas por Tio Memed que, encaminhando-se até onde os serviçais se encontravam, sorriu e disse: — Alá seja louvado. Parece que todos estamos com ar festivo. O Barão não disfarçou seu descontentamento ao ouvir aquela demonstração formal e sem sentido.

Tirada a primeira fotografia, sentamo-nos todos em cadeiras arrumadas, tendo Orhan ao centro. Por trás de nós, de pé, ficou Petrossian, com Rustem, o bósnio, que era o principal cozinheiro e chefe da cozinha, Luka, o albanês, que chefiava os jardineiros, e Hasan Baba. Essa fotografia também foi feita sem qualquer incidente.

Então alguns bancos compridos foram colocados por trás de Petrossian e todos os demais empregados aboletaram-se neles. A algazarra foi grande até o instante em que minha mãe ergueu a mão exigindo silêncio. Aquele sacrifício não poderia se prolongar muito.

Quando os participantes debandaram e voltaram para seus lugares, Iskander Pasha mandou que Giulio Bragadini se aproximasse e mostrou-lhe um bilhete. O fotógrafo pareceu ter ficado confuso. Petrossian e eu apressamo-nos a ajudar papai. Giulio mostrou-me o pedaço de papel. Nele estava escrito: "Agora queira tirar uma fotografia só minha e de Zakiye." Fiz um sinal para que Hasan Baba se aproximasse. Ele compreendeu imediatamente. Retirou todas as cadeiras, menos duas e disse a Giulio que não fizesse perguntas desnecessárias. Bastava tirar a fotografia. Petrossian arrebanhou os empregados levando-os dali. Papai pareceu ter ficado satisfeito, mas apressou-se em entrar em casa, indicando que logo estaria de volta. Não deveria ser para aliviar a bexiga, pois costumava fazer isso no jardim.

Passados uns quinze minutos, todos deram um suspiro de espanto. Iskander Pasha voltou vestido de dervixe. Ninguém disse uma só palavra. Giulio ficou maravilhado.

Sentou Iskander Pasha na cadeira e tentou retirar a outra, que estava vazia a seu lado, mas a reação de Iskander Pasha foi tão feroz que o remeteu, quase voando, para trás de sua câmera. Iskander Pasha recusou-se a olhar para a câmera. Ao invés disso, ficou sorrindo para a ocupante invisível da cadeira vazia ao lado da sua e foi assim que Giulio Bragadini o fotografou.

E não se falou mais nisso. Agimos, todos, como se aquilo fosse absolutamente normal. Nossa reação foi sábia. Passado algum tempo, aquela estranha fotografia, produto de um nostálgico misticismo que tomou conta de Iskander Pasha naquele dia, acabaria viajando mundo afora, publicada na maioria dos livros sobre os primórdios da fotografia. Resultou também em uma foto que deu muita alegria à família: imortalizou o nome de Giulio Bragadini. A fama negada a seus antepassados pelos velhos sultões foi obtida finalmente graças a um capricho súbito de um velho triste que perdera a fala. Fiquei sabendo que Giulio fizera uma palestra concorrida em Paris sobre aquela fotografia, falando a um público admirado das muitas horas de planejamento que antecederam àquela foto, para que fossem obtidas a textura e a composição perfeitas. As seções de arte dos jornais europeus noticiam com freqüência seus trabalhos recentes, mas não quero perder o fio desta história. As fantasias dos Bragadini não cabem aqui e não devo me antecipar ao tempo. O passado já é bastante difícil.

Feitas as fotografias, tudo voltou a seu lugar novamente. Os acontecimentos da tarde já pareciam distantes, mas a mudança que se dera em Iskander Pasha não podia ser ignorada. Ele decidiu que não desejava nossa visita a seus aposentos depois da refeição da noite.

"Não desejo a atenção de vocês", disse ele no bilhete que foi passado a cada um de nós. "Tenho vontade de estar só. Sintam-se livres para permanecer aqui ou para retornar a suas casas."

Tio Memed propôs um conclave familiar para discutir a questão. Todos os participantes da foto da família compareceram, à exceção de Orhan e de Iskander Pasha. Convidamos Hasan Baba para tomar um café conosco. Quem seria o primeiro a falar? Entreolhamo-nos em silêncio, na esperança de que alguém se propusesse a começar. O Barão foi o primeiro, o que não foi surpresa alguma.

— A pior reação de nossa parte seria tomar alguma atitude extrema. Conhecendo a história da família, julguei seu comportamento excêntrico, mas não a ponto de nos deixar preocupados. Ele foi tomado por suas saudades de Zakiye hanim e decidiu prestarlhe uma homenagem em nossa presença. Achei aquilo bem comovente.

Enquanto o Barão falava, Hasan Baba concordava balançando vigorosamente a cabeça.

— Não desejo ofender qualquer um dos presentes, mas para mim o comportamento de Iskander Pasha deve ser motivo de júbilo. Ele amou Zakiye hanim acima de qualquer coisa neste mundo. Nunca deixou de pensar nela. Salman Pasha sofreu em decorrência disso, já que lhe foi atribuída a causa da morte dela. Meu conselho é que sejam pacientes. A meu ver, ao contrário de ter enlouquecido, ele decidiu que vai se curar.

Minha mãe, que costumava manter-se em silêncio nessas ocasiões, falou:

— No passado ele falava sempre da mãe de Salman. Dizia-me que jamais poderia amar novamente. Madeira carbonizada, dizia ele, não acende fogo novo. Eu o compreendi perfeitamente. Entretanto, como sabemos todos, ele sempre foi uma pessoa muito reservada. O que me preocupa não são seus sentimentos, mas sim o desejo de exibi-los daquela maneira. Como acabará tudo isso?

Salman pigarreou para começar a falar.

— Concordo com minha tia Hatige. A hostilidade que ele me dedicou já não tem mais importância. É claro que eu também gostaria de ter tido minha mãe, embora, pelo que ouvi a seu respeito, era bem provável que tivesse me enrolado numa trouxa e fugido de Istambul. Hasan Baba sabe do que estou falando. Minha mãe tinha o instinto nômade dos antigos otomanos. Nunca ficava feliz presa a um lugar. Mas não faz sentido agora especular sobre essas coisas. O que me preocupa é esse veio de insanidade mental que perpassa nossa família. Tio Memed, quando nós éramos crianças você costumava falar de uns tios-bisavós e tetravós cuja loucura era lendária. O mesmo sangue corre em nossas veias.

Memed deu uma risada.

— O tio-trisavô Ahmet. Bem, ele era uma pessoa especial. Até mesmo o Sultão se ria das loucuras que ele fazia. Quantos de vocês aqui conhecem essa história? Somente Salman? É estranho, isso. Talvez o resto de vocês tenha sido protegido dela para seu próprio bem.

"Ahmet Pasha era um guerreiro. Tinha participado de inúmeras guerras e era famoso pelas loucuras que fazia, geralmente tomadas por atos de bravura. Quando cansou-se de lutar, começou a escrever poesia. Ainda deve ser possível encontrar alguns de seus poemas. Estes nada tinham a ver com guerras. Ele escrevia apenas sobre a beleza natural de animais. Pássaros, veados, peixes, gansos, cães, gatos, tartarugas, cavalos, elefantes e formigas compunham sua antologia. Ele louvava a inocência dos animais e mostrava sempre o quanto o homem dependia deles. Contam que certa vez o Sultão pôs-se a rir enquanto Ahmet Pasha lia sua ode a uma lesma. Riu-se tanto que os cortesãos acharam por bem afastar-se dele. Nosso grande antepassado encheu-se de raiva com o que estava acontecendo. Como sabemos bem, nossa família tende a levar-se muito a sério. Podemos produzir pinturas abomináveis, poesia que dói no ouvido, cartas de amor que destroem paixões, mas ai de quem ousar criticar um trabalho nosso. Suponho que essa atitude reflete a do palácio, onde o Sultão está sempre acima de qualquer crítica. Essa insensibilidade e essa inércia são responsáveis pela decadência do Império e foram elas a razão de nosso atraso. E fazemos o mesmo em nossa família. Nós também temos presenciado a nossa decadência há alguns séculos. Queiram perdoar-me, crianças, pois estou começando a falar como o Barão."

Achamos graça desse comentário, porque sempre considerávamos aqueles dois homens como intercambiáveis. Era muito raro que discordassem realmente de alguma coisa.

O Barão, como que para comprovar essa impressão nossa, cofiou os bigodes e assumiu o restante do relato.

— Ficaremos aqui a noite toda se Memed continuar nesse ritmo. Ahmet Pasha sentiu tanta raiva que nunca mais voltou lá para cumprimentar o Sultão novamente. Ao invés disso chamou uns vinte e poucos sipahis veteranos que tinham servido na guerra com ele e ordenou-lhes que se preparassem para uma nova guerra. Todos acharam aquilo muito engraçado, porém gostavam muito dele. O restante das dúvidas que ainda tivessem foi dirimido quando ele enviou uma bolsa de dinheiro para a família de cada um deles. Ele os armou e os vestiu com o uniforme especial da escolta do Sultão. Vestiu-se também como o Sultão e mandou fazer uma carruagem nova idêntica à do governante. Partiu então em viagem por todo o Império e por onde passava o povo pensava que ali ia o Sultão. Seguiam-no em multidões quando ele ia rezar na mesquita local às sextas-feiras, porque acreditavam ser mais provável que Alá os ouvisse se eles rezassem com o Califa do islã. Quando Ahmet Pasha pregava para seus súditos, atacava sempre a hipocrisia e a corrupção. Contam que em três aldeias mandou que os sipahis executassem os coletores de impostos. Ao tomar conhecimento disso, o Grão Vizir entrou em pânico. Até então o Sultão estava se divertindo muito com as façanhas de Ahmet Pasha e dizia ao Vizir que o deixasse em paz. Quando, porém, a notícia das execuções se espalhou, criou-se uma onda de expectativa em todo o Império. O Sultão mandou uma mensagem para Ahmet Pasha ordenando-lhe que se apresentasse no palácio.

"O antepassado de vocês respondeu em grande estilo. Disse ao mensageiro que aguardasse um instante enquanto ele escrevia uma carta para o Sultão. Depois disso, dispensou seu séquito e despediu-se de seus sipahis. Quando ficou sozinho, ele se enforcou. A carta foi lida pelo Vizir e logo destruída. Não chegou ao destinatário.

Foi uma pena. Teria sido a primeira vez que alguém diria a verdade ao Sultão. O resumo que fiz está correto, Hasan Baba?"

O velho concordou.

— Até hoje Ahmet Pasha é lembrado naquelas aldeias. Quando ficaram sabendo que ele não era o Sultão, alguns começaram a perguntar "e por que não?", enquanto outros chegaram a questionar a necessidade de um Sultão. Portanto, até mesmo no caso de Ahmet Pasha, a loucura não deixou de ter seu propósito.

Uma versão da tal carta começou a circular em muitas cidades. As pessoas se referiam ao sacrifício de Ahmet Pasha para falar de suas próprias aflições. Se ele era louco, precisamos de muitos outros como ele. E agora, quando tudo à nossa volta parece desabar, temos a impressão de estar caminhando para o abismo. Precisamos de um Bismarck Pasha!

Satisfeito com sua piada e com seu conhecimento do mundo lá fora, o velho caiu na gargalhada. Nós prendemos o riso.

Halil achou que já era hora de encerrarmos aquele dia. — Agora chega dessa conversa. Você poderia ser preso e executado por traição, Hasan Baba. Não estou em absoluto convencido de que meu pai esteja demente, nem a ponto de ficar. Algo novo está acontecendo. Ele partiu para uma nova etapa de sua vida. Seu mundo interior está profundamente perturbado. Só nos cabe ajudálo até onde ele permitir que o ajudemos. O importante é que ele viva em paz.

Quando nos dispersamos, acompanhei minha mãe até o quarto.

— Você alguma vez lhe falou de Suleman?

— Muitas vezes. Fiquei surpresa. — E então ...?

— Ele sempre foi muito compreensivo. Tinha sua história triste também.

— Então ele lhe falava sobre a mãe de Salman.

— Sim, mas com menos freqüência. Só o fazia quando a dor de sua perda tornava-se insuportável. Então ele me procurava e eu lhe acariciava a cabeça, deixando que ele falasse sobre ela até que a calma retornasse. Tanto ele quanto eu sabíamos que jamais seríamos capazes de amar daquela maneira novamente e isso nos aproximava.

— Você acha que ele sabe que eu... Minha mãe colocou sua mão sobre minha boca. — Shh. Ele nunca perguntou. Eu nunca lhe disse. Isso não significa que ele ignore o fato. Eu simplesmente não sei. E mesmo que ele soubesse, o afeto que sente por você em nada mudaria. Ele nunca foi possessivo em relação a mim. O que você pretende fazer com Selim? Parece-me que ele não é barbeiro e sim cantor.

— Falarei sobre ele em outra ocasião, mãe. Já tivemos surpresas demais para um dia só.


9

Nilofer e Selim aprendem a se conhecer
e ela se dá conta de que suas emoções são incontroláveis

Entrei em pânico quando cheguei à janela e olhei para fora. Já passava da meia-noite. Horríveis nuvens escuras haviam desfigurado o céu. Por trás delas pude ver o contorno quase imperceptível da lua cheia. A brisa de verão que vinha do mar talvez ainda limpasse o céu. O carrilhão do velho relógio do vestíbulo tinha me acordado meia hora antes. Como Selim acertaria a hora de nosso encontro?

Meu quarto ficava numa ala do casarão antigo onde costumavam se hospedar príncipes e nobres. Dava para as montanhas e para a estrada que chegava até nossa porta.

Quando éramos crianças, Zeynep e eu brigávamos por esse quarto porque Salman dizia que quando o Grão-Vizir nos visitava, era lá que se hospedava o capitão da guarda para poder controlar quem chegava e quem partia. Passado algum tempo, Salman confessou que tinha inventado aquela história para se rir de nós, mas o quarto continuou a ser investido de autoridade militar. A brincadeira deu certo.

O Barão e Tio Memed ocupavam a antiga suíte real que ficava logo abaixo do meu quarto, mas naquele último andar não havia mais ninguém. Orhan, numa deferência especial, dormia no quarto de vestir de sua avó. Eu tremia um pouco ao me enrolar em um xale e sair do quarto. A última vez em que saíra às escondidas dali foi para me encontrar com Dimitri no pomar das laranjeiras. Por que eu havia insistido em encontrar Selim no mesmo lugar? Teria sido para exorcizar o passado, ou para fazer pouco do presente?

Saí da casa por uma porta lateral. Selim tinha ficado preocupado com a ausência de luar e decidiu esperar-me no jardim. Caminhamos de mãos dadas no mais completo silêncio em direção ao pomar das laranjeiras. Aos poucos meus olhos foram se acostumando com a escuridão. Selim sorria. Era aquele seu jeito inocente que me cativava.

Já não queria levá-lo para o pomar das laranjeiras. Pensei em ir para a caverna que dá para a Mulher de Pedra. Se ela visse tudo, eu não precisaria repetir a história para ela. Mas naquela caverna havia lagartos e cobras e o medo deles certamente perturbaria minha paixão. Ele percebeu minha indecisão.

— Qual é o problema? — perguntou ele num sussurro que me pareceu alto demais.

— Nenhum — respondi.

— A brisa esfriou o ar, e sinto um pouco de frio. Pensei que estivesse mais quente.

Subitamente me dei conta do que tinha que ser feito. — Venha comigo — disse-lhe, voltando em direção à casa. Foi então sua vez de ficar assustado.

— Nilofer — disse ele — isso é uma loucura. Não respondi. Chegamos à porta por onde eu havia saído e ele parou, recusando-se a continuar. Dei-lhe um forte beliscão na nádega que o fez rir, e empurrei-o porta adentro. Subimos as escadas contendo o riso, embora a situação não fosse engraçada. Entrei no meu quarto e o puxei para dentro.

— E agora, meu rouxinol — disse eu tranqüilamente -, recolhamo-nos ao leito, ou o medo acabou com o seu entusiasmo?

— Quero casar-me com você.

— Não seja tolo. Eu já sou casada com outro.

— Quero que você tenha filhos meus.

— Já tenho dois que me bastam.

— Então só mais um... eu lhe peço. Lá fora a brisa havia feito seu serviço. O céu estava limpo e o quarto, banhado de luar. Tirei minhas roupas e despi Selim. Começamos a explorar o corpo um do outro.

— Isso você aprendeu com os dervixes? — sussurrei-lhe ao ouvido.

— Não. Mas quer saber o que eles me ensinaram?

— Quero. Ele se sentou na cama sem se importar com sua nudez. Sem parar de acariciar meu corpo, pôs-se a mover-se levemente de um lado para o outro e a murmurar uma invocação sufista.

— Se lhe perguntarem o que há na sua cabeça, na sua sobrancelha, no seu nariz, nos seus seios, a resposta deve ser: na minha cabeça está a coroa do poder, na minha sobrancelha, a pena com que se assinam as decisões, no meu nariz encontra-se a fragrância do paraíso e nos meus seios o Alcorão da sabedoria.

— Eu não poderia mentir, Selim. Minha resposta seria diferente. Teria que dizer: na minha cabeça está o peso de ser uma mulher, quanto à sobrancelha, talvez nos puséssemos de acordo, mas no meu nariz há o cheiro da pobreza e nos meus seios, as mãos de Selim.

Depois de nos saciarmos um com o outro, perguntei-lhe sobre sua mãe. Ele se surpreendeu com meu interesse.

— Ela vive conosco na casa do meu avô. Meu pai, como Hasan Baba lhe disse, não participa do nosso mundo. Ele vive de acordo com o que prega e só raramente o vemos.

Minha mãe fazia parte do mundo dele. A ordem à qual meu pai pertence não permite que as mulheres rodopiem e dancem. Seu papel é apenas o de preparar a comida e cuidar das necessidades do dervixe. Minha mãe teve permissão para sair ao concordar em se casar com meu pai. você deveria ouvi-los cantar quando entram em transe. Posso lhe fazer uma pergunta?

— Pode. — Dizem que seu casamento terminou.

— Dizem? E quem diz?

— As empregadas que servem sua mãe.

— Elas não estão muito longe da verdade, mas falam do que não é da conta delas e não sabem de tudo. Além do mais, também têm preconceito contra os gregos. Ouça então, Selim: meu marido tem sido um bom pai para as crianças e por esse motivo estou decidida a não o humilhar. Agora estamos separados e quando o verão terminar, irei para Istambul. Orhan e Emineh precisam ser educados em boas escolas. Permitirei que meu marido veja seus filhos quando quiser e ele sempre terá uma cama em nossa casa. Nunca mais, porém, se deitará na minha cama. Acho que ele aceitará essas condições. Um mensageiro foi a Konya levando-lhe uma carta minha e deverá estar de volta dentro em breve. — Mudei de assunto, perguntando-lhe sobre seu futuro. Ele se riu.

— Quando Hasan Baba partir deste mundo, vou vender minha barbearia. Eu poderia fazer isso agora mesmo, mas o velho sofreria muito. Afinal, há vários séculos minha família corta os cabelos da sua. Como poderíamos deixar de cortar agora? Hasan Baba ainda não perdoou meu pai por trair nossa profissão. Vou esperar.

— Você poderia ser um cantor famoso. Poderia cantar as óperas de Donizetti Pasha. Poderia...

— Não! Não tenho a menor intenção de vender a minha voz. Quero que ela seja apenas uma fonte de prazer para todos. Vou continuar cantando em nossos festivais e na rua, quando estiver a fim disso, mas o que eu gostaria mesmo de ser era fotógrafo, como o Signor Bragadini.

— Deixei você surpresa, não? Surpreendi Nilofer, a moça de olhos verdes e mamilos bonitos. Por quê? Diga-me a verdade. É porque você não pode imaginar um futuro para mim que não seja o que meu passado e minha origem determinam? Ou acha que só italianos podem ser fotógrafos? Essa nova arte estaria fora do alcance de um menino pobre de Anatólia?

— Você está zangado? Ele deu uma risada e me beijou os lábios pela primeira vez. Eu admirei sua autoconfiança, seu desprezo pelas dificuldades que teria diante de si, principalmente em um mundo como o nosso, ainda fechado para pessoas de sua origem. Talvez tivesse herdado o otimismo de sua mãe. Talvez tivesse sido ela quem lhe inculcara a crença de que tudo é possível quando se tem determinação e força interior. Como que para comprovar o que eu estava pensando, ele continuou a falar.

— Sei que algum dia viveremos juntos. Sinto isso como se a certeza corresse em meu próprio sangue. Seu Tio Memed já me recomendou ao Signor Bragadini para ser seu assistente. Disse que é assim que devo dirigir-me a ele. Algum dia serei famoso e então você virá para mim. Acha isso impossível?

— Não — menti.

— Por que seria impossível?

 — Porque eu sou de uma família pobre e você é filha de um Pasha. Ah, se ele soubesse a verdade! Talvez algum dia eu lhe contasse. Resolvi mudar de assunto.

— Eu tenho três anos mais que você.

— Não é o suficiente para ser minha mãe — disse ele, rindo.

— Tenho certeza de que encontrará muitas jovens bonitas, prontas para cair em seus braços quando o ouvirem cantar.

— Essa experiência não seria novidade para mim. Ele disse isso com uma voz tão compenetrada, que ambos caímos na risada. Mesmo naquela noite em que fizemos amor na praia, ele não tinha me dado a impressão de ser inexperiente. O que me surpreendia era o grau de sofisticação que ele havia atingido.

— Você aprendeu a ler em casa ou numa medresseh?

— Por que quer saber isso, princesa? Está surpresa por eu não ser um bobalhão?

— Não. A inteligência nada tem a ver com a educação formal. Mas tenho a sensação de que ao mesmo tempo em que você pertence à nossa cultura, está fora dela.

— Agora você me diz que não sou apenas um cantor de versos sufistas, mas alguém que tem uma imaginação própria. Talvez alguém que possa mesmo, algum dia, tornar-se um fotógrafo de maior talento que o Signor Bragadini.

— Por que você é assim tão sensível a qualquer coisa que eu diga?

— Porque ainda durmo na ala dos empregados e isso faz com que você me veja de uma certa maneira.

— Esta noite você está dormindo nesta casa. Na minha cama.

— Engana-se novamente, princesa. Agora é tarde demais para dormir.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

— Aprendi a ler sua língua numa medresseh, mas aprendi a ler francês com meu avô e a falar essa língua com um diplomata cujo cabelo corto regularmente e que, como eu, aprecia a obra de Monsieur Balzac.

— Meu romance preferido é Ilusões perdidas. Ele pegou suas roupas e vestiu-se rapidamente.

— Às vezes os romances franceses distraem-nos além da conta. Eu recomendaria a obra de um filósofo. Auguste Comte. Suas idéias seriam de grande valia para este país. Poderiam evitar que continuássemos a cair nesse poço sem fundo.

— Selim saiu sorrateiramente sem se permitir o sentimentalismo de um abraço de despedida.

Cobri-me como pude e corri para a janela. As primeiras luzes do amanhecer, ainda incertas, já haviam começado a mudar a coloração do céu. Selim atravessava o jardim.

Deve ter sentido meu olhar sobre ele, pois voltou-se subitamente e olhou em minha direção. Joguei-lhe um beijo. Ele sorriu e continuou andando.

Eu receava que Selim perdesse o controle de suas emoções e fizesse alguma tolice como cantar embaixo de minha janela, deixando-me encabulada diante da família.

Sua serenidade surpreendeu-me. Percebi que era eu quem estava em estado de agitação. A visão de seu corpo nu me passou pela mente e comecei a sentir-me enfraquecer, tomada de desejo.


10

Uma tragédia grega em Konya;
a chegada de Emineh;
Nilofer encanta-se com Iskander Pasha

Acordei com o barulho de mulheres chorando. A princípio pensei que aquilo fizesse parte de meu sonho, mas os gritos foram ficando cada vez mais altos e no meu sonho não havia lugar para eles. Que catástrofe teria ocorrido? Teria morrido alguém? Dei um salto da cama e enfiei as roupas da véspera, ainda meio dormindo. A primeira coisa que me ocorreu foi que algo terrível tivesse acontecido a Iskander Pasha.

Desci correndo as escadas e cheguei ao enorme salão de visitas, que quase não tinha móveis e era raramente usado, encontrando-o cheio de rostos tristes. Minha mãe chorava abraçada a Emineh e a Orhan. Algo tinha acontecido a Dimitri.

Emineh correu em minha direção. Ergui-a do chão. Ela não disse uma só palavra; passou os braços pelo meu pescoço e começou a soluçar. Aproximei-me de Orhan. Seu rosto também estava coberto de lágrimas, mas ele se esquivou dando um passo atrás quando tentei abarcá-lo em meu abraço. Olhoume com rancor.

— Talvez — disse ele com a voz embargada — se você tivesse ficado em Konya eles não ousassem matar meu pai.

— Mas o que foi que aconteceu? — perguntei, sem me dirigir especificamente a uma pessoa. As lágrimas começaram a rolar em meu rosto. Minha mãe levou um dedo aos lábios para que eu não perguntasse mais. Não era o momento de perguntar.

Emineh apertou-me ainda mais. Subi com ela para meu quarto. Ela havia viajado a noite toda e estava exausta. Acariciei-lhe os cabelos e beijei seu rosto, em seguida deitei-a em minha cama.

— Quer um pouco d'água?

Emineh indicou que sim, mas o tempo que levei para erguer o jarro, encher o copo e voltar até a cama foi o suficiente para que ela caísse num sono profundo. Com todo o cuidado, retirei seu sapatos empoeirados e suas meias. Coloquei uma coberta leve sobre ela e sentei-me a seu lado para melhor poder apreciá-la. Seu rosto estava tranqüilo e eu pensava em descer quando minha mãe apareceu à porta do quarto. Ao ver que Emineh dormia, fez um sinal para que eu a acompanhasse.

Fomos para o quarto ao lado, que não era usado nem limpo havia um século. Afastamos as cobertas e sentamo-nos na cama.

— Onde está Orhan?

— Seu amigo Selim levou-o para caminhar na praia. O menino gosta dele. Suponho que isso seja bom.

— Mamãe! — exclamei, quase gritando com ela.

— Isso não é hora para falar dessas coisas. Afinal, o que aconteceu? Será que alguém vai me dizer o que aconteceu ao pobre Dimitri?

Foi uma história triste. Tinha havido um tumulto em Konya. O objetivo era expulsar da cidade os gregos que ainda lá viviam. A turba de instigadores era influenciada por um grupo que se chamava de Jovens Turcos e que considerava todos os gregos agentes da Inglaterra, da Rússia e da França. Os Jovens Turcos queriam recriar um império puro e moderno.

Os gregos que viviam em Konya eram em número bem pequeno, se comparados aos de Smyrna ou de Istambul, mas os partidários dos Jovens Turcos queriam mostrar serviço. Despacharam mensageiros para todas as casas onde havia gregos com o aviso de que se não pegassem seus pertences deixassem a cidade, suas casas seriam invadidas e suas propriedades, confiscadas. Todos deixaram a cidade, menos Dimitri. Ele se recusou a se separar de seus livros.

No dia seguinte, o mensageiro chegou lá com minha carta. Ele a leu cuidadosamente e em seguida levou Emineh para a casa de um vizinho turco. Abraçou-a e beijou-lhe os olhos e a testa. Depois sentou-se e escreveu uma resposta. Entregou-a ao mensageiro, dizendo-lhe que esperasse até o dia seguinte e levasse Emineh consigo. Os vizinhos pediram insistentemente que ele viesse trazer a menina, mas ele se recusou.

Naquela mesma noite um grupo entrou silenciosamente na nossa casa e cortou-lhe a garganta. Não tocaram em seus livros. Só foram matar Dimitri. Minha mãe me entregou sua carta. Chorei novamente enquanto rompia o selo. Era difícil acreditar que ele havia partido para sempre. Meu amor por ele, se é que existiu, nunca havia sido profundo, mas ele era um homem bom e eu não me cansava de dizer à família que era um pai carinhosa Ao pensar nas crianças, chorei novamente. Minha mãe abraçou-me contra o peito e ficou acariciando minha cabeça até que eu me acalmasse. Bebi um pouco d'água e li a carta que chegara de Konya.

Minha Querida Esposa,

Cheguei ao fim do caminho. O futuro é uma ameaça e o passado já nada tem para mim. Os desocupados desta cidade, que agora se denominam Jovens Turcos, dizem-se também ser os baluartes da reforma e das idéias modernas. Na verdade não passam de criminosos que querem ocupar nossas casas e melhorar de vida. Como você sabe, esta é uma casa modesta, mas minha família tem vivido aqui há mais de cem anos. Sinto-me ligado a esta cidade e a este lugar. Recuso-me a ser varrido daqui como se fosse um punhado de lixo. Se eles de fato tentarem cumprir suas ameaças, olharei meus assassinos bem dentro dos olhos para que se lembrem do rosto de pelo menos uma de suas vítimas. Temo pelo futuro, Nilofer. Os presságios não são bons. Esses que agora nos expulsam daqui acabarão por destruir o que ainda há de bom no Império.

Não quero em absoluto que você se sinta culpada por minha decisão. Há muito tempo já sabia que não fomos feitos um para o outro. Eu fui o sapo que continuou a ser sapo e você sempre foi a princesa. Sempre achei que se você não tivesse tanto orgulho, teria voltado para casa bem antes de Orhan nascer. Creio que você percebeu logo de início que nosso casamento foi um erro, mas não queria admitir isso para seus pais. O orgulho a condenou a viver comigo, o que deve ter sido insuportável.

Sempre achei que a situação era essa, mas não conseguia dizer-lhe a verdade. A dor era muito grande.

Sei que você, como eu, orgulha-se dos filhos que fizemos. Entristece-me profundamente a idéia de que não acompanharei a história de suas vidas, de que não os verei crescer, de não vir a segurar seus próprios filhos em meus braços. Mas sei que ficarão bem com você. Se não é pedir muito, fale com eles do pai de vez em quando, e logo que tiverem idade bastante para compreender, diga-lhes, por favor, que seu pai morreu com a dignidade intacta, que se recusou a viver à sombra do medo.

Certa vez comecei a contar a Orhan a história de Galileu, mas parei porque ele era jovem demais para compreender o dilema. Galileu considerava muito importantes as verdades que descobriu. Mas tão logo elas puseram sua vida em perigo, ele as negou com a maior facilidade. Achava que se a Terra girava em torno do Sol, ou o Sol em torno da Terra, isso não era tão importante quanto sua vida. É possível, também, que ele tivesse preferido viver para continuar a ensinar a verdade a seus discípulos. Talvez sua escolha tenha sido acertada. Mas eu sou um simples mestre-escola. Minha recusa em me submeter a eles é um ato político. Diga a Orhan e a Emineh que sinto muito, mas que eu não tinha outro caminho a seguir.

Dimitri

Quando me afastei para lavar o rosto, minha mãe começou a ler a carta. Foi um ato de nobreza da parte dele eximir-me de qualquer responsabilidade, mas eu sabia que se o amasse, ele não teria desistido da vida assim tão facilmente. O rancor de Orhan justificava-se. Se eu tivesse permanecido em Konya, nada daquilo teria acontecido. Ele decidira morrer sem consultar qualquer outra pessoa. Foi uma decisão silenciosa, nascida do coração. A mente não teve como interferir. Se sua vida afetiva, isto é, se a dor que sentia por eu ter decidido não mais viver com ele não se tivesse tornado insuportável, ele ainda estaria vivo. Ele não quis admitir isso para si mesmo nem para as crianças, mas eu sabia que era verdade. A dor de continuar vivendo tinha se tornado grande demais, pois não havia mais esperança. Nada que ele pudesse fazer me levaria de volta. Subitamente ocorreu-me uma idéia terrível e gritei, o que fez com que minha mãe acorresse.

— E se foi a minha carta que o levou a tomar essa decisão? — Não pense uma coisa dessas, Nilofer. Pela carta que ele escreveu, pode-se ver claramente que ele agiu em defesa de seus princípios.

— A senhora não chegou a conhecê-lo, mãe. A senhora se engana. Ele decidiu morrer porque a vida sem mim não valeria a pena.

— Não fique se atormentando, minha filha. Pense em seus filhos. Eles precisam acreditar no que esta carta diz. Foi o desejo dele e demonstra uma nobreza de caráter que admiro muito.

— A senhora sempre se referiu a ele como professorzinho grego, magricela e feio, mãe.

— E ele era isso tudo, mas as pessoas feias também podem ter nobreza de caráter.

Apesar da tristeza que sentia, não pude deixar de rir. Mas parei ao ouvir baterem à porta. Receei que pudesse ser uma das crianças e que ela tivesse me ouvido rir. Mas era Petrossian.

— Iskander Pasha deseja vê-la, hanim effendi. Fui até o quarto dele, mas não o encontrei lá. Ele estava na velha biblioteca, sentado à sua escrivaninha. Era um belo salão antigo, com lambris de madeira e estantes que quase chegavam ao teto alto. A maior parte dos livros era em turco, árabe, alemão e francês. As obras clássicas de nossa cultura misturavam-se a enciclopédias do Iluminismo francês. Quando trabalhou ali como tutor, o Barão modernizou bastante o acervo. Romances franceses, poesia e filosofia alemãs encheram as duas prateleiras vazias no alto, já quase chegando ao teto.

Hasan Baba costumava nos dizer que três exemplares do Alcorão ali existentes datavam do século IX e eram de valor inestimável. Era à biblioteca que nos chamavam, quando éramos crianças, para nos aplicarem nossos castigos. É possível que isso tenha desestimulado em nós o hábito de ir lá por prazer. Encontrei a biblioteca inundada de sol, acolhedora e bela.

Iskander Pasha escrevia em um livro grosso com capa de couro. Era um diário no qual escrevia todos os dias e ao qual ele passara a dedicar mais tempo desde que nossas sessões de histórias à noite haviam sido interrompidas. Aquilo se tornara parte de uma nova rotina para ele depois do derrame. Papai não precisava mais de bengala para caminhar e seu corpo já não revelava sinais da doença. Ele se voltou quando entrei e levantou-se. Abriu os braços para receber-me e eu o abracei, pondo-me a chorar novamente. Ele acariciou meu rosto e beijoume a cabeça. Não consegui me lembrar de quando ele me havia tratado com tanto carinho. O temor por sua sanidade mental pareceu-me totalmente absurdo. Se algo resultou do episódio da fotografia, foi ter permitido que seus sentimentos, sempre reprimidos, aflorassem.

Seu caderno da fala, como Petrossian o chamava, estava no bolso do paletó. Papai deu-me o braço e caminhamos para seu quarto. Quando nos sentamos juntos no sofá, ele pegou o caderninho. Nele já estava escrito: "Minha pequena Nilofer, que ficou viúva, quero que saiba que sempre a amei muito. Nada me impediu de amá-la."

— O senhor sempre soube? Ele sorriu e concordou. — Mas como? Ele então escreveu: "Nem sua mãe nem ninguém de nossa família tem olhos verdes e cabelos ruivos.

Eu tinha certeza sempre que você ria, quando criança. Era um riso bonito que deixava sua mãe muito feliz. Eu tinha certeza de que ela se lembrava de alguém. Isso não me incomodava. Você era uma menina bonita e eu ficava orgulhoso em passar por seu pai. Você só cometeu um grande erro em sua vida até agora, porém, apesar da opinião que eu tinha a respeito dele, sinto muito que o professor Dimitri tenha morrido dessa maneira. A civilização otomana está em total decadência. Os que tentam preencher o vácuo julgam que podem compensar pela violência o que lhes falta de cultura. Converse com Halil sobre isso algum dia. Acho que ele subestima o problema."

Iskander Pasha e eu ficamos conversando por várias horas e pela primeira vez senti que ele me tratava de igual para igual. Disse-lhe que havia ficado desorientada quando mamãe me revelou a verdadeira identidade de meu pai, mas que depois de alguns dias aquilo deixara de ter importância para mim. Ele escreveu em resposta que a importância atribuída a laços de sangue tinha muito a ver com as leis envolvendo herança e pouco a ver com o afeto verdadeiro. Quanto a isso, zombou ele, nossos Sultões têm sido bem pouco sentimentais ao dar ordens para que seus filhos do sexo masculino, exceto o que é escolhido para seu sucessor, sejam estrangulados com um cordão de seda. O detalhe do cordão de seda, brincou ele, é muito importante, pois seus pescocinhos reais não poderiam ser maculados por material ordinário ao se partirem e também para que nenhum sangue real fosse derramado por carrascos comuns.

Perguntei-lhe se todos os membros da família sabiam de minha origem. Ele encolheu os ombros, indiferente, e escreveu que nunca havia falado sobre aquele assunto com qualquer outra pessoa e que quando a mãe de Halil e Zeynep levantou essa suspeita em seu leito de morte, ele nem se dera ao trabalho de responder. Dito isso, informou-me que já havia esgotado o assunto do meu nascimento e que jamais desejaria retornar a ele. Eu era sua filha e nada mais importava.

Decidida também a mudar de assunto, fiz-lhe uma pergunta que nada tinha a ver com ele.

— O senhor já leu algum livro de Auguste Comte?

A pergunta deixou-o visivelmente chocado. Rapidamente ele escreveu: "Por quê? Por que me pergunta isso?"

— Alguém me perguntou se eu já havia lido. "Quem?" escreveu ele.

— Creio que deve ter sido Selim. A expressão de seus olhos suavizou-se imediatamente.

"Já li alguma coisa escrita por ele, mas foi Hasan Baba quem se tornou fervoroso adepto de suas idéias por algum tempo, quando estávamos em Paris. Ele se esqueceu dos sufis e abraçou o racionalismo. Chegou mesmo a vestir-se no estilo de um plebeu francês. Mas isso tudo acabou esquecido quando voltamos para Istambul. Esse Império tem o estranho poder de espanar todas as idéias refinadas que se instalam em nossas cabeças, como se fossem apenas teias de aranha. O clero conseguiu fazer com que a ignorância floresça em Istambul. Vamos conversar sobre ele amanhã. O Barão certamente terá muito a dizer. Organize um conclave para depois do jantar. Vamos discutir sério, para variar. E diga a Petrossian que faço questão da presença de Hasan e de seu neto. Sinto-me muito orgulhoso com a maneira como você assumiu a condução desta casa. Deve ser um alívio para sua mãe."

Fui tomada de um grande amor por ele, de um amor que eu jamais sentira antes. Aquela figura distante que eu havia conhecido toda a minha vida, e que temera com freqüência, havia desaparecido. Em seu lugar estava um homem generoso e cheio de afeto, com uma profunda compaixão que certamente sempre esteve lá. Todos nós podemos usar nossas máscaras, mas por baixo delas continuamos a ser o que somos, ainda que não queiramos que outros descubram a realidade. Eu estava certa de que Iskander Pasha havia voltado a ser ele mesmo. Talvez só então tivesse atingido a paz interior de que necessitava. Deixei-me ficar ali sentada mais um pouco, olhando-o em silêncio. Depois beijei suas mãos e saí do quarto.

Fui procurar meus filhos, que haviam ficado órfãos. Já ia sair da casa para procurá-los no jardim, quando ouvi a risada de Emineh. Estavam, ambos, no quarto de minha mãe. A criada ensinava a Emineh uma brincadeira que se faz com as mãos e um pedaço de fio. Sara tinha os cabelos presos atrás da cabeça, cobertos com pasta de hena. Eu já me havia acostumado a vê-la assim. Orhan olhava pela janela.

— Acho que devemos deixar sua avó em paz para que ela consiga ficar com os cabelos da cor dos meus. Venham comigo.

Os dois me acompanharam sem reclamar. Emineh segurou firmemente minha mão quando saímos de casa. Levei-os para o pequeno terraço sombreado que ficava abaixo do quarto de Iskander Pasha. O sol estava escaldante. Nenhuma brisa vinha daquele mar parado e silencioso como se fosse uma pintura, ofuscado por uma névoa causada pelo calor. Os gritos estridentes das gaivotas são os únicos sons que me ficaram na memória daquele fim de tarde estático.

Meus filhos e eu, ainda desorientados, sentamo-nos em um banco. O rancor de Orhan já se havia dissipado. Ele deixou que eu passasse um braço sobre seu ombro e beijasse seu rosto. Passou-se um longo tempo sem que falássemos. Bastava estarmos juntos. Ficamos simplesmente ali sentados, olhando o mar.

Era difícil aquele silêncio. Crianças pequenas reagem à morte de alguém próximo de maneira diferente. A morte para elas é algo tão remoto, que têm dificuldade em compreendê-la. Lembro-me de quando a mãe de Zeynep e Halil morreu. Ela sempre fora gentil comigo, tratando-me da mesma forma que a seus filhos. Ficamos todos muito tristes com sua morte súbita, mas não me lembro de termos chorado. Tudo parecia irreal. Sei que teria sido bom se Iskander Pasha, Sara, Petrossian, ou qualquer um dos adultos tivesse conversado conosco, tivesse nos explicado o que acontecera e por quê. Mas ninguém falou conosco, talvez porque julgassem que como os sentimentos das crianças ainda não são desenvolvidos, elas podem sarar suas feridas por conta própria.

Comecei a falar com meus filhos. Disselhes que Dimitri havia sido um pai amoroso e que por isso eu pensaria sempre nele com carinho. Faleilhes da carta que ele me havia escrito e disselhes que poderiam lê-la quando quisessem, mas que se deixassem passar alguns anos seriam capazes de compreendê-la melhor. Não menti nem exagerei. Não queria ser insincera, nem mesmo de leve. Não é fácil falar da morte do pai com duas crianças. Orhan percebeu que eu estava a ponto de chorar e tentou desviar um pouco minha atenção.

— Selim diz que os homens que mataram papai são bandidos, piores que animais. Diz que logo serão apanhados e castigados. É verdade, mamãe?

— Não sei, filho. Não sei o que vai acontecer com eles. Esta época que estamos vivendo é cheia de incertezas. A antiga ordem que sempre conhecemos está morrendo.

O Sultão já não é poderoso e o Império de que Petrossian tanto fala já se transformou em um conto de fadas. Tudo está sendo destruído e nada há ainda para substituir o que era. É isso que faz com que muitas pessoas comuns se transformem em loucos e assassinos. Não sabem o que o futuro trará e preferem culpar todo mundo, menos aqueles que devem ser culpados, pois não podem fazer coisa alguma contra o Sultão ou as grandes forças que estão desmantelando nosso país. Diante do verdadeiro inimigo, sentem-se impotentes. O fato de matar alguns gregos faz com que se sintam melhor. O que quer que aconteça com os que mataram seu pai, não o trará de volta. Você compreende isso, Orhan?

— É claro que compreendo. Eu não sou burro. E o que vai acontecer com os livros de papai? Os bandidos vão queimar tudo?

— Sabemos que nada aconteceu aos livros, inclusive àqueles cadernos nos quais ele escrevia tanto e às cópias dos relatórios de suas inspeções às escolas. Tudo está intacto e será guardado para você.

— Onde é que a gente vai morar agora? — quis saber Emineh.

— Em Istambul, numa casa que nenhum dos dois conhece. Foi lá que eu cresci.

— É tão grande quanto esta? — Não, Emineh!

— Apertei-a contra mim.

— É bem menor, mas é grande o suficiente para que cada um de vocês tenha seu próprio quarto.

Hasan Baba aproximava-se e Orhan ficou rindo baixinho. — Emineh. — Olhou para a irmã com um sorriso moleque. — Veja bem o que vou fazer. Vou fazer este velho rir para você ver que ele não tem um só dente na boca.

— E como é que ele come? — perguntou Emineh. Hasan Baba vestia calças limpas e uma camisa frouxa, recém-passada. Havia se barbeado e sua careca estava coberta por um gorro de tecido que ele não costumava usar. Eu me lembrava vagamente daquele gorro, mas não nele. Ao vê-lo assim, as crianças sorriram.

— Parece com o gorro daquele macaco engraçado que vimos se apresentar em Konya. Você se lembra, Emineh?

De fato parecia. As crianças deram uma risada. Eu mesma tive dificuldade em controlar o riso.

— Que Alá os abençoe, netos e filha de Iskander Pasha — foi logo falando o velho, em tom de lamúria.

— Alá os protegerá. Que tragédia caiu sobre este lar! Esses bandidos e desordeiros estão se juntando em todas as nossas cidades. Como acabará tudo isso?

Ao terminar suas condolências, acariciou as cabeças das crianças. — Hasan Baba — disse Orhan muito compenetrado.

— Conte-nos a história do Grão-Vizir que tinha testículos quadrados.

Fingi não ter ouvido aquilo, mas o velho deu uma risada e Emineh abriu a boca em espanto ao ver as gengivas nuas de Hasan Baba. As duas crianças saíram correndo para rir escondidas.

Achei bom ter ficado sozinha com o velho. Disse-lhe que havia conversado muito com Iskander Pasha e que ficara surpresa com seu carinho e sua receptividade. É claro que não mencionei o assunto do meu pai verdadeiro. Hasan Baba sorriu e balançou a cabeça como se já esperasse aquela informação.

— Ele sempre foi gentil assim quando era criança e quando jovem. A morte de Zakiye hanim mudou tudo. Nas terras dos otomanos, representou bem seu papel de nobre forte e severo. Agia também com extremo rigor com os filhos, tornando-se intolerante e inflexível. O que não compreendo é como ele conseguiu representar esse papel por tanto tempo. Sei que com freqüência ele se cansava. Às vezes, enquanto eu o barbeava — sempre de manhã, como você deve se lembrar — ele me olhava bem e piscava um olho. Só isso. Não sorria nem nada. Não dizia coisa alguma que eu pudesse repetir na cozinha ou contar para alguém da família. Aquela era sua única mensagem para o mundo exterior.

"Quando estávamos em Paris, era diferente. Lá ele quase voltava a ser como antes. Mesmo quando precisava vestir-se com suas roupas formais, turbante e tudo, em ocasiões oficiais, por baixo de todos aqueles panos ele era o mesmo dervixe, sempre zombando da ignorância dos outros, mas bebendo de sua sabedoria. Nós todos fazíamos isso — e não era só sabedoria que bebíamos. A adega da embaixada otomana em Paris era considerada a melhor da Europa.

Aquelas francesas se alvoroçavam com ele como se ele fosse um belo cavalo garanhão. Fingiam-se de inocentes e perguntavam pelo Sultão: "Excelência, é verdade que o Grande Senhor ainda tem um harém com vinte esposas?' Iskander Pasha empertigava-se, cruzava os braços e respondia com voz grave: "Vinte, madame! Isso é menos do que meu próprio harém. O Sultão, que seu reinado seja longo e que Alá lhe dê forças para fornicar todos os dias, tem trezentas e vinte e seis mulheres para delas se servir. Uma para cada dia, exceto no mês de abstinência, quando ele prefere meninos que manda vir do Iêmen.' Elas gritavam e fingiam desmaios, mas tudo aquilo era turbulência para disfarçar a excitação que sentiam por baixo de seus vestidos longos. Desculpe-me, Nilofer hanim. Eu me deixei levar pelas lembranças."

Sorri.

— Hasan Baba, você já atingiu tal idade e tal sabedoria, que deve sempre dizer o que quiser na minha presença ou na de qualquer outra pessoa desta família.

Eu não aprecio formalidades e cerimônias, não mais do que o verdadeiro Iskander Pasha. O que você está dizendo é que ele só era ele mesmo quando estava em outro país, e que se transformava em uma pessoa totalmente diferente quando estava em casa. Isso não lhe teria causado algum desequilíbrio mental?

O velho ficou pensativo. — Nunca havia pensado nisso antes, mas é possível que sim e talvez aquele incidente da fotografia tenha sido a primeira manifestação desse desequilíbrio. Que Má nos ajude. Que Má nos proteja. Todas as coisas estão chegando ao fim.


11

Sara conta seu sonho à Mulher de Pedra,
reavivando outras lembranças e algumas tristezas

Ontem à noite vi Suleman em um sonho. Não sonhava com ele há quase vinte anos, Mulher de Pedra. Você se lembra quando vim aqui pela primeira vez? Eu ainda era jovem. Trazia no peito uma grande dor e uma filha que me sugava o leite. Nilofer tinha uns sete ou oito meses. Lembro-me de ter vindo aqui chorar a seus pés.

Sei que você não tem pés, mas, se algum dia eles tivessem existido, teria sido aí que chorei naquele dia. Pensei tê-la ouvido falar. Uma voz me perguntou por que chorava e lembro-me de ter dito: "O homem que eu amo partiu para muito longe.' E então ouvi sua voz dizer uma coisa muito triste e muito bonita: "O amor é a saudade que a flauta sente do juncal de onde foi arrancada. Tente esquecer.' Eu tentei, mas jamais consegui esquecê-lo. Acabei, contudo, acostumando-me com a ausência dele. O tempo não é capaz de curar nossas feridas mais profundas, mas consegue amenizar a dor.

Canalizei todo o meu amor para nossa filha, Nilofer. Quando ela começou a crescer, seu riso foi ficando exatamente igual ao de Suleman quando estávamos juntos, só nós dois. Um jeito de rir um pouco rouco, espontâneo e cativante. Não posso crer que ele se ria assim com outra pessoa, mas devo estar me enganando. As pessoas que foram traídas no amor costumam enganar-se a si mesmas.

O sonho que tive ontem à noite não foi bom, Mulher de Pedra, e parecia interminável. Durou quase toda a noite, ou pelo menos foi esta a impressão que tive. Quando finalmente acordei, estava terrivelmente agitada. Meu corpo estava banhado de suor. Minha garganta estava tão seca, que bebi um jarro inteiro de água.

Meu Suleman estava tão diferente no sonho, Mulher de Pedra, que eu não podia suportar vê-lo. Seus cabelos haviam ficado brancos e seu corpo esguio, com uma suavidade feminina que eu tanto amava, era um corpo embrutecido. Estava balofo e feio. Esse foi o primeiro choque. Ele estava nu em uma cama com uma mulher muito jovem.

Não deveria ter mais que vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Ela deveria ser modelo de seus quadros, pois havia uma tela não muito longe da cama e notei que os seios eram iguais. Não achei ruim que ele estivesse com a modelo. Preferia vê-lo com qualquer outra que não sua esposa.

Depois disso entraram duas outras mulheres onde eles estavam. Acho que a mulher gorda e feia era a mulher dele e a outra era uma irmã ou amiga dela. Elas começaram a gritar com o casal nu. A mulher dele pegou um pincel e pôs-se a bater em Suleman com ele. A amiga pegou uma garrafa e derramou um líquido sobre a modelo. A pobre moça gritava, aflita. Lembro-me bem de seu rosto desfigurado. Ela ficou cega de um olho e saiu correndo nua da sala. Enquanto tudo isso acontecia, Suleman continuava deitado, incapaz de reagir. Ele não tentou ajudar a jovem nem impedir que as outras duas lhe fizessem mal. Foi somente quando as duas se encaminharam na direção dele com facas nas mãos que ele gritou meu nome três vezes: "Sara! Sara! Sara!' Foi assim que acordei, já sentada na cama, tremendo. O dia ainda não havia raiado.

Nunca fui uma pessoa supersticiosa e jamais acreditei em sinais ou presságios, Mulher de Pedra, mas tudo isso foi tão real! Você me conhece bem. Já muitas vezes conversamos desde aquele primeiro dia, embora deva confessar que a tenho evitado nestes últimos anos. Mas este sonho está pesando muito em meu coração. É uma premonição. Sinto que ele está em dificuldades ou talvez até mesmo aproxime-se da morte. Como você sabe, eu jamais me esqueci de Suleman, mas fiquei profundamente magoada com ele e, no fundo do coração, não consigo me livrar da suspeita de que meu pai lhe deu uma grande quantidade de dinheiro para que ele se estabelecesse em Nova York e desistisse de mim.

Pobre Suleman. Ele sempre foi um homem profundamente inseguro. Seus próprios pais o haviam abandonado, de certa forma. Ele desejava muito fazer parte de uma família e procurava agradar as pessoas, pois tinha necessidade de aprovação. Comigo ele jamais agiu assim, mas essa necessidade de ser aceito pelos outros fazia parte de seu caráter.

Se ele tivesse ficado em Istambul mais um ano e não tivesse se apressado em ir para Nova York, casando-se com a primeira mulher que olhou para ele, eu teria lhe contado que tínhamos uma linda menina e que todos os temores quanto a saúde de nossos filhos eram infundados. Se ele ainda me amasse, eu teria pedido a Iskander Pasha que me liberasse e fugiria com Suleman para Damasco ou para qualquer outro lugar onde pudéssemos começar uma vida nova. Meus pais achariam esse escândalo insuportável e papai talvez perdesse alguns pacientes abastados, mas nada disso afetaria minha decisão de forma alguma.

Eu o amava muito, mas ele preferiu fugir. Disse que não suportaria viver em Istambul sem mim, que preferia morrer a me ver em público com outro homem, mas tudo isso prova que as raízes de seu amor não eram muito profundas.

Disse que tampouco poderia ficar em outra cidade otomana, pois onde quer que estivesse neste império decadente, sempre sonharia em ir para Istambul. Com a ajuda generosa de meu pai, decidiu ir para Nova York.

Temos família lá mas nossos parentes estão tão bem integrados que nos olham com desprezo. Somos muito retrógrados para eles, mas não pensam o mesmo das letras de crédito da firma do meu tio. Nosso dinheiro é perfeitamente aceitável. Quanto terá meu pai dado a Suleman? Na ocasião, e por muito tempo, eu não quis saber, mas agora essa pergunta volta e meia me perturba. Não quer sair da minha cabeça. Os papéis dele ainda estão na casa de meus pais. Durante muito tempo evitei voltar lá. A dor era grande demais, Mulher de Pedra. Eu vivia chorando e rezando para que Alá me desse forças e me ajudasse a esquecer, mas toda vez que voltava à casa de meus pais, ouvia sua voz sussurrando: "Sara, nós estamos sós? Saíram todos? Vamos para o seu quarto ou para o meu?' Estive lá pela última vez quando meu pai morreu. Foi a primeira vez em que não ouvi a voz de Suleman sussurrando em meus ouvidos.

Passados vários meses minha mãe mostrou-me a carta que havia recebido dele. Não fazia a menor menção a mim, nem mesmo por cortesia. Talvez sua consciência lhe pesasse muito. A culpa, como disse minha filha Nilofer, pode transformar-se numa forma de a pessoa proteger-se e de enganar a si mesma. Incapaz de se referir a mim, ele escreveu sobre seu profundo afeto por meu pai, de cuja generosidade ele jamais se esqueceria. Generosidade. Senti náuseas. Já quase no fim da carta ele disse que mamãe certamente gostaria de saber que sua mulher estava grávida novamente. É bem possível que tivesse gostado, mesmo. Ela nunca se conformou com o fato de eu ser filha única e de ela não ter conseguido produzir um filho que pudesse dar continuidade à profissão de meu pai. Como você pode imaginar, Mulher de pedra, meu sentimento ao ler isso nada tinha de ternura. Aquela porca!, pensei eu. Quantos porquinhos mais ainda vai parir antes de morrer? A minha Nilofer, sozinha, vale dez vezes mais que todos eles juntos.

Quando este estranho verão tiver acabado, vou voltar à minha antiga casa, Mulher de Pedra. Vou ler todas as cartas. Quero saber a quantidade exata de moedas de prata que ele recebeu para me esquecer. Teria dado um recibo a meu pai por aquela generosidade? Minha mãe já está velha demais para se lembrar de qualquer coisa.

Sua memória praticamente acabou. Às vezes nem mesmo me reconhece. Que devo fazer, Mulher de Pedra? Preciso saber se ele está bem. Não vou ter tranqüilidade enquanto não souber. Vou escrever para Tio Sifrah, em Istambul, para ver se ele pode mandar um telegrama imediatamente. Algum tempo atrás Suleman fez alguns trabalhos para a filial da firma dele em Nova York. Meu tio poderá saber se ele está bem, ou se meus temores têm razão de ser.

Sonhos são coisas engraçadas. Por que um sonho desses entraria em minha cabeça? Por que sonhamos o que — sonhamos? Haverá uma resposta simples para isso, ou será um desses problemas insolúveis de que meu pai falava? Lembro-me de tê-lo ouvido dizer a alguns convidados de um jantar em nossa casa que havia um médico em Paris e outro em Viena, se me lembro bem, que estavam se dedicando muito ao estudo dos sonhos. Você já ouviu falar desse tal médico vienense, Mulher de Pedra? Não me lembro do seu nome.

Esse meu sonho pode ter causado uma mudança maior do que eu possa imaginar.

Durante muito tempo, quando Iskander Pasha me procurava à noite, eu fechava os olhos e pensava que ainda era Suleman quem estava ali. Não conseguia fazer isso o tempo todo, pois Iskander Pasha era um homem corpulento e o peso que eu tinha que suportar era bem outro. Mas no ponto em que a união se dissolve em puro prazer, a imagem em minha mente era a do meu amor perdido que me viera de Damasco. Só assim eu conseguia ter prazer, sem deixar de amar o meu Suleman. As visitas de Iskander Pasha a meu quarto passaram a ser cada vez mais espaçadas, até algumas semanas atrás. A imagem de Suleman voltou a ocupar minha mente, mas agora eu estou com um problema enorme. Esse sonho estragou tudo. Não consigo mais pensar nele como ele era antes. É essa figura horrível do sonho que não me sai da cabeça. Será que daqui por diante vou ter que pensar em Iskander Pasha o tempo todo? Na verdade, isso não me desagrada tanto quanto teria me desagradado antes. Alguma coisa nele também mudou."


12

Memed e o Barão têm uma discussão
sobre a história islâmica na qual Memed sai perdendo;
Iskander Pasha recupera o dom da fala,
mas prefere agradecer pelo milagre a Auguste Comte que a Alá

Fico realmente surpreso com sua falta de conhecimentos desse aspecto tão importante da história da sua religião e da sua cultura.

O Barão parecia furioso. Estávamos os três na biblioteca, aguardando a chegada dos demais. Iskander Pasha, que havia convocado o conclave, decidira dar uma volta depois do jantar. Lá fora a noite estava linda e as janelas escancaradas da biblioteca deixavam entrar perfumes inebriantes.

Quando entrei na biblioteca, Tio Memed e o Barão estavam gritando um com o outro. Eles ignoraram minha chegada, mas baixaram o tom das vozes. Vestiam naquela noite camisas de cor creme e calças brancas, embora Tio Memed, diferentemente do amigo, tivesse se sensibilizado com o clima e dispensado a echarpe de seda.

— E então? — continuou o Barão. — Você insiste em dizer que os Omíadas e os Abássidas não passavam de facções rivais em luta pelo poder?

— Insisto — replicou Memed com rispidez.

— O seu conhecimento sobre o Islã foi aprendido em livros, Barão. O meu é de primeira mão.

— Então agora eu compreendo. Tudo ficou muito claro — disse o Barão com ironia.

— Você estava lá em Damasco em pleno século VIII. Parece até que o estou vendo com sua pena e seu pergaminho a anotar tudo que diziam os chefes das facções rivais e a contar meticulosamente o número de cadáveres nas ruas.

— Reductio ad absurdum não vai funcionar neste caso, Barão. Pode zombar, se quiser, mas não vai conseguir promover os Omíadas e os Abássidas à categoria de lideranças espirituais. Feuerbach aplicar-lhe-ia uma boa surra por lançar mão do sarcasmo quando a argumentação já falhou.

O Barão bateu insistentemente com sua bengala no chão, irritado.

— Não é a sua narveté que me espanta, Memed, mas sim sua teimosia e sua arrogância. Quando o conhecimento de um determinado assunto lhe escapa e um velho amigo, que merece consideração, tenta dissipar as nuvens da ignorância que se formam nessas suas sobrancelhas erguidas, o mínimo que você deveria fazer, por cortesia, seria ouvir até o fim o que ele tem a dizer. Isso lhe faria bem. Depois que fosse esclarecido, é claro, poderia discordar à vontade.

Foi então a vez de 'fio Memed ficar emburrado.

— Faça como quiser, Barão. Aliás, é sempre assim. O Barão ignorou o tom petulante do meu tio.

— Ouça bem, Menied.

Eles eram, de fato, facções rivais. Claro que eram, mas o que havia realmente na base de toda aquela hostilidade entre eles? Poder? Sim, mas para quê? Mas não nos esqueçamos que milhares de vidas se perderam naquela guerra civil. Vejo tudo isso como uma luta entre as forças decadentes dos árabes, que haviam monopolizado o Islã desde a morte do profeta, e as forças — como direi? — as forças mais cosmopolitas do Islã. Por que a dinastia Omíada foi extinta tão barbaramente? Todas as pessoas do sexo masculino, à exceção de uma, foram eliminadas. Estou certo de que a fuga de Abderrahman foi um milagre da imaginação. Ele foi um líder político extremamente brilhante que demonstrou ter grande visão ao fugir para a Espanha. Uma vez a salvo em Córdoba, o povo o aclamou Califa. Mas foi a aclamação dos soldados a decisiva e eles lhe foram fiéis porque eram árabes. Estamos de acordo? Ótimo. Então continuo.

"A batalha pelo califado no coração do mundo árabe travou-se entre uma oligarquia árabe com base em Damasco, representada pelos Omíadas e os Abássidas, que eram apoiados pelos persas, pelos turcos — inclusive seus próprios ancestrais, meu caro amigo — pelos curdos, caucasianos, armênios, aramênios e tantos outros. Esses todos eram recém-convertidos, mas eram em grande número, e a recusa arrogante dos Omíadas em reconhecer essa superioridade numérica e compartilhar com eles o poder no interesse do Islã só poderia ter um resultado: eles seriam varridos do mapa. Havia necessidade de uma nova legitimação porque o islamismo tinha se tornado uma religião mundialmente difundida. A vaidade dos árabes não tolerava acordos."

O nariz de Tio Memed franziu um pouco quando ele brindou o Barão com um sorriso condescendente.

— Mas é curioso, não, que o califado de Córdoba, dominado por esses árabes míopes, fosse muito mais avançado, de várias maneiras, do que seus Abássidas cosmopolitas?

Os Omíadas na Espanha eram muito mais tolerantes e bem menos susceptíveis às tolices do clero. Os filósofos andaluzes estavam sempre sendo acusados de hereges em Bagdá. Lá os estudiosos eram desestimulados a ler seus livros.

— Isto é a pura verdade — replicou o Barão -, mas as condições em al-Andalus eram muito diferentes. Os Omíadas confrontavam-se com os cristãos. Lutavam na fronteira das duas civilizações. Precisavam de seus filósofos para conseguir novas conversões ao islamismo. Lá isso não podia simplesmente ser feito à sombra da espada. A situação exigia vitórias intelectuais. Você sabe bem das minhas preferências pelos filósofos andaluzes. Sem eles o renascimento na Europa certamente teria tomado um outro rumo. Mas compreendo que eles só puderam desenvolver suas mentes brilhantes porque tinham que enfrentar um poderoso inimigo intelectual que era a igreja católica. Quando os bispos chegaram à conclusão de que seus opositores não seriam vencidos pela razão, apelaram para a Guerra Santa e o Papa deu à Europa a Inquisição. Tudo isso prova, Memed, que as novas idéias se desenvolvem melhor quando estão engajadas em luta contra a ortodoxia. A síntese costuma ser original e intrigante.

"Os intelectuais católicos foram cuidadosos quando sujeitaram a cultura islâmica ao auto-de-fé em Granada no século XV. Retiraram da pilha da fogueira os manuais de medicina e outros livros científicos de que necessitavam para sua própria sobrevivência. Será que consegui convencê-lo, meu caro velho?"

Tio Memed olhou para seu amigo e ergueu uma sobrancelha. Eu sempre havia invejado sua capacidade de fazer isso. Era uma arte, explicava ele, que não podia ser ensinada.

— Você pode não ter me convencido totalmente, Barão, mas asseguro-lhe de que me deixou pensativo.

— São essas pequenas vitórias que enriquecem nossas vidas — murmurou o Barão, enquanto meu pai, flanqueado por Halil e Salman, entrava na sala.

Pai e filhos vinham seguidos por avô e neto. Hasan Baba e Selim deviam ter ficado esperando do lado de fora até que meu pai chegasse para entrar na biblioteca.

Hasan Baba não conseguia deixar os velhos hábitos e mantinha ainda a atitude de um serviçal. Selim não tinha essas inibições. Entrou na biblioteca com a cabeça erguida naturalmente. Meu coração se acelerou quando o vi. Ele sorriu. Meus olhos devem ter me traído. Olhei em volta, disfarçando, para ver se alguém havia percebido.

Meu pai assumiu seu lugar de sempre no sofá junto à janela. Petrossian entrou com um grande jarro cheio de suco de laranja recém-preparado. O Barão e Memed trocaram olhares incrédulos: seriam privados de bebida alcoólica naquela noite? Suas aflições foram prematuras. O neto de Petrossian entrou na sala trazendo o champanhe e umas taças de vinho que eu nunca tinha visto naquela casa. Aquela aparição deixou os dois amigos animados.

— Bem, Iskan der — começou Tio Memed a falar -, qual o motivo de termos sido convocados aqui esta noite? Que prazeres nos aguardam hoje?

Meu pai não respondeu, mas apontou com a bengala na direção de Halil.

— A idéia desta reunião foi minha. O tom suave da voz de Halil forçou Hasan Baba, que estava ficando mais surdo com o passar do tempo, a se aproximar dele. Com a mão em forma de concha segurando a orelha, preparou-se para ouvi-lo.

— Nestes últimos dias tenho discutido com meu pai e meu irmão alguns assuntos da maior importância que dizem respeito ao futuro do nosso Império.

— Que futuro? — interrompeu o Barão.

— Se vamos falar com franqueza, encaremos a realidade.

Halil deu um sorriso.

— Barão Pasha! O senhor roubou as palavras da minha boca. É justamente porque o Império não tem futuro que precisamos falar — e não só falar, como agir. Eu sou um simples soldado. Não sou um filósofo da história, tampouco um pensador político, mas até eu já percebi que se nada fizermos, se apenas ficarmos sentados apreciando o nosso país ser devorado, tudo estará perdido. Nosso povo acordará num dia qualquer e descobrirá que ele, como nosso Sultão, tornaram-se escravos da Inglaterra, da França, da Rússia e da nova Alemanha. Por sorte nossa, essas potências não estão de acordo entre si. Cada uma delas precisa que permaneçamos vivos para impedir que suas rivais nos devorem por inteiro. Há uma grande agitação no exército. Os oficiais jovens querem ação imediata. Querem depor o Sultão e implantar a república. Halil fez uma pausa para verificar a reação dos presentes. Memed aplaudiu entusiasmado.

— Isso tem que ser feito, Halil, mas já estamos um século atrasados. Deveríamos ter aprendido a lição dos franceses há muito tempo.

Hasan Baba franziu o cenho e sacudiu a cabeça. — Isso não nos trará bem algum. Uma mosca não consegue erguer uma águia e arremessá-la ao chão.

Selim discordou. Foi a única vez em que falou naquela noite. — Halil Pasha tem razão. A águia somos nós, Hasan Baba. O Sultão e sua corte corrupta são a mosca.

São eles os parasitas que sempre cortam nossas asas e vivem à nossa custa há séculos. Agora queremos nossas asas de volta e não há altura que não possamos atingir.

Meus irmãos sorriram. Tive vontade de beijar seus lábios.

— Concordo com o jovem Selim — disse Salman, com um entusiasmo que ainda não havia demonstrado desde a chegada naquele verão.

— Tio Memed está certo ao dizer que deveríamos ter agido um século atrás. Mas não nos esqueçamos que os franceses, também, têm feito a dança das cadeiras com sua história. Executam o Rei e coroam Napoleão. Os ingleses e austríacos derrubam Napoleão e os franceses restauram a monarquia. Uma nova revolução resulta em uma nova república, essa com uma imitação do Napoleão que se chama de Terceiro. E o circo continua. Quando agirmos — e precisamos agir -, terá que ser de uma forma que não permita retrocessos. Esses malditos sultões já nos deixaram apodrecer demais. Que peguem suas caixas de jóias e se mudem para a Riviera Francesa.

Iskander Pasha seguia atentamente toda a discussão. A essa altura, deu algumas leves pancadas com a bengala no chão para pedir atenção e então, para espanto de todos os presentes, começou a falar. Sua voz era baixa e ele gaguejava um pouco. Mas falava! Havia recuperado a fala. Todos nos pusemos de pé, espontaneamente, com a surpresa e a felicidade estampadas em nossos rostos, e nos aproximamos dele. As lágrimas brilhavam nos olhos de Hasan Baba quando ele abraçou efusivamente Iskander Pasha.

— Que Má seja louvado! Isto é um verdadeiro milagre. De que outra maneira uma coisa dessas poderia acontecer?

— O corpo humano continua a ser um mistério — disse o Barão.

— Se ele foi capaz de andar novamente, nós não deveríamos nos surpreender com o fato de ele voltar a falar. Isso requer uma comemoração de verdade.

Iskander Pasha pediu que nos sentássemos. Ouvi-lo novamente falar parecia um sonho. Foi difícil conter minha felicidade. A primeira coisa que farei amanhã, disse a mim mesma, será trazer Emineh para ouvir o avô falar.

— Por favor — disse ele com uma voz ligeiramente rouca — cheguei a pensar em continuar em silêncio esta noite e anunciar a recuperação da fala amanhã, pois o assunto de que tratamos hoje é muito mais importante que nossas vidas individuais. Continuemos. A verdadeira questão que temos diante de nós não é o Sultão ou o califado.

Isso já chegou ao fim. Mas o que colocaremos em seu lugar? Haverá um lugar para nós na nova ordem, ou seremos cortados em pedacinhos e espalhados por aí? Minha fala voltou há uns dois dias, quando Nilofer perguntou se eu já havia ouvido falar de Auguste Comte. Fiquei feliz ao saber que ela havia ouvido falar dele pelo jovem Selim, que certamente teria ouvido de Hasan. Depois que Nilofer saiu, meus lábios ficaram repetindo o nome de Auguste Comte e, para meu espanto, percebi que conseguia falar. Então foi Comte, vejam bem, e não Alá. Portanto, meu caro Hasan, daqui por diante quero que você diga "Que Comte seja louvado!" ou então "Só existe um Comte e ele é Comte e somos seus profetas."

Todos riram, inclusive Hasan Baba, embora ele não fosse capaz de conter uma reprimenda:

— A primeira coisa que o senhor faz ao recuperar o uso da língua é dizer blasfêmias. Cuidado para que o dom da fala não lhe seja retirado novamente.

— Por falar em línguas, papai — disse Salman com um brilho matreiro nos olhos -, o senhor se lembra do que disse sobre a língua Yusuf Pasha, o glorioso construtor desta bela casa?

Iskander Pasha não se lembrava.

— Certa vez ele recebeu a visita de um grupo de cortesãos de Istambul. Chegaram cheios de presentes e de palavras doces. Yusuf Pasha sabia que eles tinham vindo espioná-lo a mando do Sultão. O Governante Supremo queria saber se seu velho amigo havia mesmo se arrependido e se o exílio poderia terminar. Os cortesãos que temiam a influência de nosso antepassado queriam evitar tal calamidade. A princípio, Yusuf Pasha recusou-se a recebê-los, mas depois de muita súplica, concordou em deixá-los entrar em sua biblioteca, nesta mesma biblioteca em que estamos reunidos agora. Ele lhes lançou um olhar severo e disse que se arrependeriam amargamente se não repetissem para o Sultão exatamente as palavras que ele lhes diria. Os cortesãos, assustados, concordaram solicitamente. Então ele lhes disse: "Sua visita hoje é muito bem-vinda, mas eu tenho um importante conselho a lhes dar. Se os senhores prezam a vida de nosso Sultão e califa, sigam o que lhes digo tão logo retornem. Como os senhores bem sabem, eu tenho o mais profundo respeito e o mais profundo amor pelo Sultão, desde quando éramos crianças e crescemos juntos. Estou seriamente preocupado com a saúde dele. Como as línguas dos senhores passam tanto tempo lambendo o traseiro do Sultão, preocupa-me que possam infectá-lo com alguma doença contagiosa. Tenho discutido essa questão com meu médico e ele insiste em recomendar que cortesãos em cargos tão importantes como os dos senhores devem mandar circuncidar suas línguas com a máxima urgência.

Nunca vi Iskander Pasha dar uma gargalhada tão gostosa como naquela noite ao ouvir a piada de Salman. Até mesmo o Barão esqueceu-se de sua pose por alguns instantes.

Salman também havia passado por uma mudança. Assim como o pai, ele parecia uma pessoa bem diferente da que era alguns dias antes. Logo que chegou aqui, dava a impressão de estar sofrendo com uma terrível angústia. Parecia estar tomado de um cinismo da pior espécie. O sofrimento e a recuperação do pai talvez tivessem despertado nele algum sentimento adormecido, ou talvez o motivo tivesse sido suas longas conversas com Halil. É possível, ainda, que tenha sido a conjugação dos dois fatores. Fosse o que fosse, o resultado era maravilhoso. Ele havia passado a tarde inteira, na véspera, brincando com meus filhos.

O Barão pigarreou e a sala ficou em silêncio novamente.

Iskander levantou uma questão importante para seus oficiais, Halil. Depois do Sultão, o que será? Temo que vocês acabem perdendo tudo. Vocês podem acabar reduzidos a Istambul e Anatólia. Concordam com isso? Estão preparados para aceitar um país truncado porém compacto?

— Não! — exclamou Halil. — Não vamos perder o Hijaz ou a Síria. O Egito já se foi. Nosso Vice-Rei albanês, Moham-med Ali, cuidou disso e seus beis controlam as cidades, mas a marinha britânica controla o mar e quem controlar o comércio terá o controle dos novos estados. Precisamos ficar com Damasco a qualquer custo.

— A história não quer saber do que "precisamos", meu caro retorquiu o Barão.

— Muito do que está por acontecer dependerá dos britânicos. Eu acho que eles querem ficar com tudo. Toda essa região está na rota de sua possessão mais valiosa, que é a Índia. Lá, também, os malditos imperadores deixaram de estabelecer bases sólidas. Sua história não é assim tão diferente da situação aqui quanto se poderia supor. Essa incompetência para organizar o estado situa-se no âmago da sua religião. Veremos se vocês serão capazes de manter o Hijaz e Damasco. As tribos ficarão com quem lhes acenar com mais dinheiro e menos complicações. O grande problema de vocês está em Istambul, no centro do que resta do Império. Se a história não avança no lugar onde se está, esquece-se do que a história é. Perde-se por completo o sentido de direção. Veja o que aconteceu com a Itália e a Alemanha no longo período que antecedeu seus processos de unificação. É isso que antevejo para o Império Otomano, a não ser que vocês façam alguma coisa.

— A única forma de se salvar algo é por meio do progresso e da ordem — disse Halil.

— É por isso que os escritos de Comte são de interesse para nós. Ele propugnou uma sociedade racional, na qual a religião não desempenhe papel algum nas funções do Estado.

— É verdade — disse Tio Memed -, mas se me lembro bem, ele queria criar uma religião secular, o que a meu ver é um paradoxo. É bem verdade que ele a chamava de religião da humanidade, mas bem que ele queria uma igreja com rituais e um clero de cientistas. Os ancestrais kármatas de Hasan Baba estavam mais avançados que ele em certos aspectos, apesar de seu apego à nossa religião. Comte, teve, de fato, algumas boas idéias, mas era também um pouco louco.

O Barão riu baixinho, aprovando o comentário.

- Os três santos seculares da predileção de Comte para sua nova igreja eram Júlio César, Joana d'Arc e Dante: o primeiro foi um tirano, a segunda foi uma camponesa equivocada que queria ser soldado e o terceiro, um grande poeta. Acho bom que Comte fosse capaz de apreciar a Commedia, mas não se pode esperar que alguém leve esse sujeito a sério. Como todos os charlatões talentosos, ele atraiu uma legião de seguidores, mas a maior parte do que escreveu não passa de um monte de tolices bem-intencionadas.

— Ele também disse que algum dia a sociedade seria governada por bancos e que toda a Europa se uniria em uma só república que seria governada por banqueiros — acrescentou Memed com desdém.

— Onde estaria ele com a cabeça quando escreveu essa tolice?

— Vocês dois estão exagerando em seu desdém — disse Iskander Pasha.

— Quando eu estava em Paris, Hasan e eu costumávamos nos disfarçar e freqüentar reuniões de radicais.

Comte estava na moda. Era visto como um continuador genuíno do Iluminismo. Têm surgido muitas idéias para se prover a humanidade de uma alternativa à religião.

Robespierre fez sua tentativa, não fez? O Rei Mughal também, e logo na Índia! Muito antes disso, no século XIV, nosso próprio Sultão Bayezid I quis fundir o islamismo, o catolicismo e o cristianismo. Seus filhos chamaram-se Musa, Isa e Memed. Quando ele tentou convencer o Papa Nicolau dessa idéia, eles tentaram convertê-lo ao cristianismo. Aí ele chegou à conclusão de que seu sonho era impossível e desistiu de vez da idéia.

— É verdade — disse o Barão -, e não era o Sultão Bayezid que se dizia descendente do Rei Príamo de Tróia?

— Barão — disse Iskander Pasha rindo-se -, antes de continuarmos discutindo as extravagâncias dos homens que nos governaram ao longo dos séculos, quero fazer-lhe duas perguntas. Se nós realmente instituirmos uma república, a Prússia será nossa aliada ou nossa inimiga?

— O senhor se refere à Alemanha, não? Creio que seja sua aliada, ainda que pelo único motivo de impedir que seu país se torne uma cabeça-de-ponte para seus amigos ingleses, cada vez mais ambiciosos, que fazem de tudo para reduzir nossa participação no comércio mundial. Eles acham que o mundo lhes pertence, o que é um engano fatal que todos os impérios acabam descobrindo, mais cedo ou mais tarde. Há um outro fator que lhe é favorável. O nosso jovem kaiser, Guilherme II, é um místico neurótico. Isso já seria motivo bastante para ele se inclinar a favor de Istambul, mas além disso ele também tem grande entusiasmo pela obsessão de um tal de Wagner com os temas de guerra e religião em suas óperas. Esse indivíduo, além de compor uma música abominável, veste-se igualmente mal, não dispensando uma ridícula boina e uma jaqueta de veludo. Nosso jovem imperador tem uma mente febril que lhe causa muitas noites de insônia. Ele então imagina que é Parsifal.

Creio que acabe declarando guerra a algum país. A escolha do inimigo não é ilimitada. Escolherá primeiro seu primo russo ou seu primo inglês? Quando declarar guerra, precisará de aliados. Isso responde a sua pergunta? Então ótimo.

Memed pôs-se a rir baixinho.

— Eu não compartilho da opinião do Barão sobre a música de Wagner. Sua estrutura me agrada, embora eu concorde que ela exija muito mais esforço por parte do ouvinte do que as músicas simples e bem-intencionadas porém não muito inteligentes dos italianos. Puccini, Verdi e o nosso querido Donizetti Pasha são bem agradáveis de ouvir, mas a estrutura da música de Wagner faz com que a pessoa pense. Se o Barão fosse, de fato, coerente, ele deveria...

O Barão lançou um olhar fulminante ao amigo e ergueu a mão para que parasse de falar.

— Deixemos isso para uma outra ocasião, Memed. Agora, gostaria de ouvir sua segunda pergunta, Iskander Pasha.

— Você tem zombado da nossa apreciação por Comte e admiro muito o seu ceticismo. Todos temos nossas fraquezas, meu caro Barão. O que nos atrai em Comte não é sua lista de santos seculares, mas sim seu racionalismo inflexível. Foi o clero que assegurou a nossos sultões o poder moral de impedir o progresso por tanto tempo.

Não faz sentido decapitar uma única cabeça, quando o monstro contra o qual lutamos tem duas cabeças. Halil, como se vê, tem um problema concreto nas mãos. Alguns de seus subordinados têm a cabeça muito quente.

A situação requer que se lhes ensine a arte da paciência. Mas para acalmá los é necessário que se tenha um plano-mestre com alguma possibilidade de sucesso. Ele está pedindo nossa ajuda porque na próxima semana receberá a visita de seis desses jovens agitadores. já uao podemos nos dar ao luxo de um debate intelectual circunscriro a esta biblioteca. As vidas de outras pessoas dependerão do conselho que possamos dar a meu filho. Ele ficou muito feliz ao ser promovido a general, mas jamais lhe ocorreu que algum dia seus próprios comandados o pressionassem para combater uru inimigo dentro de casa, inclusive as próprias pessoas que o fizeramgeneral.

Meu pai o teria aconselhado a entregar os traidores ou a renunciar ao posto e descansar alguns meses em Alexandria. Alguns anos atrás, em meu papel de pai responsável e de pilar do Estado eu também teria dito algo assim, mas esses tempos já se foram, Barão. O senhor entende agora o que está em jogo?

O Barão ficou pensativo. Acabava de se dar conta de que aquela não seria mais uma noite de conversa erudita quando sua inteligência sagaz superava-nos a todos. Halil reforçou o que o pai acabara de dizer. — Se não foi Comte, quem então? Hegel?

— Não, não. Definitivamente não seria legel.

— Seu tom de voz já era outro. Ele já não estava mais tentando impressionar-nos. Pensava.

— Creio que o homem da hora para Seus oficiais é alguém de quem jamais ouviram falar. Estou pensando em um italiano chamado Nicolau Maquiavel. Ele é o grande pensador das questões políticas e da organização do Estado. Vocês precisam muito dele neste momento.

— Como você é ridículo, Barão — disse Memed.

— É claro que já ouvimos falar de Maquiavel. Houve u grande intercâmbio de idéias entre os otomanos e a Itália renascentista. Você sabia que' o Sultão pediu a Leonardo e a Michelângelo para projetar uma ponte sobre o Bósforo?

— Estamos discutindo assuntos sérios, Memed.

— A voz do Barão tinha um tom gélido.

— Vamos deixar as brincadeiras, por mais divertidas que sejam, para outro dia.

Se não houver logo uma mudança por aqui, vocês podem acabar perdendo até seu querido Bósforo. Muita gente pode ter ouvido falar de Maquiavel, mas quantos o leram, quantos de fato compreenderam o que ele escreveu tanto tempo atrás? Há alguma outra pessoa aqui além de mim? Não? Foi o que pensei. Isso não me surpreende. Eu estaria na situação de vocês se não tivesse sido aluno dos sucessores de Hegel. Só li Maquiavel porque Hegel escreveu sobre ele com grande respeito no seu famoso texto de 1802, "Da Constituição Alemã". Foi esse ensaio de Hegel que me despertou o interesse pela leitura de alguém que mereceu tal admiração.

— Estudaremos com afinco tudo que precisarmos estudar, Barão — disse Halil com impaciência.

— Mas o senhor precisa nos dizer por que devemos ler este italiano e por que agora.

— Esta conversa está ficando pesada demais para mim — disse Memed.

— Não sei se conseguirei permanecer acordado para ouvir a preleção que o Barão se prepara para fazer. Os comandados de Halil estão preparando uma revolução e tudo que temos a lhes oferecer são idéias.

O Barão olhou para ele furioso.

— Talvez você deva mesmo recolher-se ao leito em seu pijama de seda carmim e sonhar com Michelângelo flanando sobre o Bósforo, Memed. Enquanto isso eu fico aqui com Halil para ajudálo a salvar seu país. Sem um objetivo baseado em idéias, toda ação radical é destituída de sentido.

Ninguém se ausentou da sala. Eu troquei olhares com Selim, que estava profundamente interessado naquela discussão.

— Tenho certeza de haver feito Memed e Iskander ler esse ensaio de Hegel quando eu ainda era um jovem tutor em sua casa em Istambul, centenas de anos atrás. Algum dos dois se lembrará da frase inicial?

Memed olhou para o outro lado, aborrecido. Iskander Pasha ergueu a mão, como se estivesse numa sala de aula.

— Muito bem — disse o Barão. — Iskander? — Deutschland ist kein Staat mehr.

— Excelente — disse o Barão, como se fosse novamente tutor.

— Correto. Deutschland ist kein Staat mehr. A Alemanha não é mais um Estado. O Império Otomano não é mais um Estado. A Itália não é mais um Estado. Um novo Estado se fazia necessário.

O príncipe de Maquiavel é o Estado. Esse grande filósofo político italiano, incrivelmente original, observa a Itália como ela realmente é, não como alguns a imaginam.

O que ele vê é um país rachado e dividido, permanentemente vulnerável aos ataques de potências estrangeiras. A situação não é idêntica, mas tampouco difere muito da deste Império, rachado e dividido, ameaçado de ataques por parte de outros Estados. A grandeza de Maquiavel reside no seguinte: ele não vai buscar no passado, na antiguidade, os elementos para planejar um novo futuro. Ele toma por base o presente e compreende que algo novo se faz necessário...

E por aí foi o Barão, falando durante uma hora. Quando o debate terminou, já era quase meia-noite. Todos estavam extasiados, exceto Hasan Baba, que havia pegado no sono, e eu. Eu sabia que precisava ficar acordada porque aquele era um momento importante. A história estava sendo feita diante de mim. Mas havia uma outra coisa que me impedia de fechar os olhos: se eu os fechasse, não poderia ver Selim.

Aquela casa, tão isolada e tão linda, havia se tornado subitamente, inesperadamente, parte de um mundo maior. Já não podíamos mais nos esconder ali da feia realidade que nos desafiava lá fora. Uma frase de Maquiavel que o Barão repetiu várias vezes ficou ecoando em minha cabeça a noite toda: "é um mal não chamar o mal de mal". Às vezes, quando o Barão passava para um nível mais abstrato de idéias, essa pequena frase me voltava à mente. Aquilo se aplicaria a tudo, não apenas ao mundo da política.

Mais tarde, quando eu já começava a dormir, ouvi a porta de meu quarto se abrindo. Sem saber ao certo se estava sonhando ou não, vi uma figura conhecida despir-se e deslizar suavemente sob minha coberta. A princípio pensei que fosse um sonho, mas algo concreto demais para ser sonho pôs-se a abrir caminho entre minhas coxas.

Ao me penetrar, Selim transformou um sonho difuso numa realidade de puro prazer.


13

Salman medita sobre o amor e fala da tragédia que lhe marcou a vida;
a cruel traição infringida por Mariam, filha de Hamid Bey,
o copta mercador de diamantes em Alexandria

Serei eu, de fato, o primeiro homem que vem se postar diante de você, Mulher de Pedra? Quando eu disse a minha irmã Zeynep que precisava vir lhe falar, ela reagiu de maneira hostil e agressiva: "Por que você deseja profanar o que há tanto tempo vem sendo um santuário para as mulheres desta casa?'

Precisei lembrar-lhe que, quando crianças, não eram apenas as meninas que se escondiam atrás das pedras para ouvir as confissões de nossas mães, tias e criadas.

Halil e eu estávamos sempre aqui também. Ao ouvir isso ela sorriu e abrandou-se um pouco e agora aqui estou novamente, quase vinte e cinco anos depois, com a permissão relutante de minha irmã.

Se você está pensando que voltei aqui com o mesmo coração leve que tinha quando menino, engana-se. Sou um homem atormentado, Mulher de Pedra. Nos últimos cinco anos minha alma tem passado por muitas noites sombrias.

Hasan Baba sempre nos ensinou que sem a experiência das sombras não se saberia dar valor à luz, mas pode-se levar esse pensamento mais adiante e perguntar o que acontece quando as sombras não se dissipam e a luz se torna uma memória distante? Ouvi falar de partes deste mundo onde o sol praticamente desaparece durante o inverno e que muitas pessoas desses lugares, não conseguindo suportar a escuridão, põem fim às próprias vidas.

O mesmo acontece com a escuridão interior que às vezes sufoca a alma.

Já que você nunca ouviu a minha história, creio que deva começar do início. Não falarei muito sobre minha mãe, que morreu ao me dar à luz. Outras pessoas devem ter lhe falado dela e de como sua morte transformou meu pai completamente. Para conseguir não pensar nela todo o tempo, ele se transformou em um homem totalmente diferente, um homem que jamais teria amado uma mulher como ela. Todos nós temos um instinto de autotransformação, uma capacidade para simular ser o que não somos.

Temos até um certo prazer em provar a nós mesmos que somos capazes disso e assim conseguirmos nos proteger um pouco dos olhares curiosos. Meu pai, infelizmente, tomou essa impostura tão a sério que esteve a ponto de fazer dela sua identidade. Fui eu quem mais sofreu com tudo isso. Para Iskander Pasha eu devo ter sido uma constante recordação dela e a causa de sua morte. O que meus irmãos não sabem é que muitas vezes, quando ele me via sozinho, carregava-me no colo e beijava meu rosto com grande emoção. Eu sempre soube que ele me amava, mas um outro lado dele queria punir-me, e à medida que fui crescendo comecei a me rebelar contra os pequenos atos de tirania praticados nesta casa. Nossas relações, então, foram se deteriorando. A partir dos catorze anos de idade, meu maior desejo era fugir de casa para nunca mais voltar. Eu invejava minha mãe, que foi criada sem uma família e cujo espírito era mais livre que o de qualquer um de nós.

Tão logo surgiu uma oportunidade, deixei Istambul e depois de viajar durante um ano inteiro, fui parar em Alexandria. Eu havia passado vários meses em Jerusalém, Damasco, Cairo, mas em nenhum desses lugares tive vontade de fixar residência. Jerusalém tinha um ambiente excessivamente religioso e as outras duas cidades, apesar de seus encantos, eram barulhentas demais e ficavam longe do mar. Certa vez eu me queixava da falta que sentia do mar quando um jovem bei muito arrogante me disse: "Se nossa florzinha delicada de Istambul fenece longe da brisa do mar, por que não se muda para Iskanderiya? Quanto a mim, não suporto passar lá mais de uma semana no verão, mas o gosto dos otomanos é sempre surpreendente. Pode ficar morando na casa que temos lá pelo tempo que quiser, Salman Pasha, e se gostar da cidade procure depois um lugar para onde se mudar.'

Foi assim que acabei me estabelecendo na cidade que tem o nome de meu pai. Você acha possível alguém se apaixonar por um lugar, Mulher de Pedra? Pois saiba que é. Eu me apaixonei por Alexandria. Costumava caminhar por horas a fio todos os dias, até que fiquei conhecendo cada canto da cidade. Para fugir do burburinho da manhã, eu caminhava até o mar e me refugiava. Encontrei uma pequena enseada em um dos meus passeios e ela passou a ser meu local de retiro um lugar especial, só meu. Era para lá que eu ia bem cedo, antes que o sol tornasse impossível olhar para o céu. Minha única companhia, nessas ocasiões, era um livro de Verlaine.

Eu ficava olhando o mar, sonhando com a felicidade, pensando na vida e, vez por outra, escrevendo versos ruins só para me distrair. Uma das coisas mais fáceis deste mundo, Mulher de Pedra, é escrever poesia de má qualidade. Alguém já lhe disse isso?

O que importava era o fato de eu haver encontrado o que tanto procurava. Ali eu podia estar sozinho. A solidão, como descobri, é essencial para que a mente aquilate suas próprias forças. É verdade que viver sozinho tem suas desvantagens. A satisfação que sentimos de não sermos magoados em contato com outras pessoas às vezes se dissolve na tristeza da solidão. Mas isso é muito diferente da solidão que me foi imposta alguns anos mais tarde. O sentimento de perda que se apossou de mim transformou minha vida em permanente agonia de solidão. Até mesmo na companhia de amigos eu me sentia completamente só.

O dinheiro de que eu dispunha começou a escassear. Como sempre, meu tio Kemal respondeu com generosidade. Antes de sair de casa tive que prometer a ele que sempre que estivesse em dificuldades financeiras o procuraria e não incomodaria meu pai. Aquilo me pareceu bem conveniente. Agradeci aos céus o fato de o Império haver concordado em instalar um sistema de telégrafo e mandei um telegrama a tio Kemal. Passadas algumas semanas, um de seus navios aportou em Alexandria. O comandante foi me procurar levando um pequeno embrulho selado. Agradeci-lhe a gentileza e ofereci-lhe café. Na conversa perguntei se ele sabia quais eram os planos de meu tio para seus negócios e fiquei surpreso ao saber que Tio Kemal preparava-se para visitar o Japão e montar um escritório em Tóquio.

Mal ele saiu, abri rapidamente o pacote e descobri, feliz, uma pedra bruta, de tamanho médio, aninhada em um chumaço de algodão. Fiquei me perguntando por que Tio Kemal gostava tanto de mim. Eu nunca me esforcei por conquistar seu afeto. Ele tinha três filhas, cada uma mais feia e mais estúpida que a outra. Talvez eu fosse o filho que ele gostaria de ter tido. Tive algumas indicações nesse sentido, mas logo deixei bem claro para minha tia que não tinha o menor interesse em casar-me com qualquer uma de suas filhas. Soube que meu tio deu uma boa gargalhada ao ouvir isso.

Havia também uma carta de crédito para o banco de meu tio no Cairo e um bilhete para mim recomendando que eu só usasse o diamante como caução e que em hipótese alguma o vendesse sem antes consultá-lo. Mandou-me também o nome de um "pequeno, porém confiável' comerciante de diamantes em Alexandria, com quem já havia feito vários negócios. "Ele é copta, muito honesto e um velho amigo da família. Se algum dia você estiver em dificuldades, procure-o.' Ele já havia me falado dessa pessoa antes que eu partisse de Istambul, mas como naquela ocasião eu não planejava ir para Alexandria, não me interessei.

Quando fui para lá, lembrei-me do tal homem, porém já havia me esquecido de seu nome. Se procurasse saber, poderia me ver obrigado a fazer-lhe uma visita de cortesia e o que eu mais desejava então era estar só. Nada seria capaz de interromper minha solidão voluntária. Nada, a não ser a escassez de fundos.

A ida à casa dele já não podia mais ser postergada. Fui lá um dia, diretamente da praia, e uma princesa de contos de fada abriu-me a porta. Ao ver-me, deu uma gargalhada. Eu tinha areia nas roupas e nos cabelos, calçava sandálias e levava na mão um velho livro de poesias de Verlaine. "Será que estou na casa certa?', gaguejei, incapaz de impedir meus olhos de viajar por todo o seu corpo. "Hamid Bey mora aqui?'

Ela disse que sim e convidou-me a entrar. Tinha cabelos profundamente negros, a pele morena e olhos pequenos, que me fizeram pensar que talvez sua mãe fosse japonesa.

Usava um vestido de estilo europeu que revelava a parte inferior de suas pernas, mas o que mais me cativou foi sua risada e o fato de ter os pés descalços.

"Você nos pegou de surpresa', disse ela. "Meu pai está tomando banho neste momento. Você é Salman Pasha? Esperávamos que viesse aqui por esses dias. Aceita alguma coisa para beber? Espero que possa ficar para almoçar conosco. Se me der licença, preciso trocar de roupa. Por favor, sinta-se em casa.'

Aí fui eu quem deu uma risada. Ela desapareceu sem pedir que eu explicasse o motivo do meu riso. Quer saber do que eu ria, Mulher de Pedra? É que ela disse para eu me sentir em casa e aquele lugar em nada se assemelhava à minha casa. Em Istambul nós vivíamos no século XVIII e nesta casa, no palácio de verão de Yusuf Pasha junto ao mar, o tempo havia deixado de existir. Aquela residência em Alexandria era uma casa do futuro. Eu jamais havia visto mobiliário tão elegante em Istambul, nem mesmo na casa dos Bragadini, que também gostavam de viver no passado. Mas ali estavam os móveis mais arrojados da Itália. No saguão havia uma grande arca chinesa. Tudo era novo. Quando eu estava admirando a decoração das paredes, Hamid Bey desceu a escada vestido num terno de seda branca e cumprimentou-me efusivamente.

Devia ter quase sessenta anos, mas era extremamente bem conservado e surpreendentemente magro, o que fazia dele um homem muito diferente de meu pai e meus tios, que eram do tipo corpulento.

Achei que talvez fosse melhor tratar de negócios antes do almoço. Mostrei-lhe o presente que meu tio me havia enviado. Ele o levou para sua escrivaninha e o inspecionou com um microscópio. "É uma bela pedra. Imagino que queira usá-la como caução para financiar algum projeto que tenha em mente, não?' O único projeto que eu tinha em mente era gozar a vida o quanto pudesse e era para isso que eu precisava do dinheiro, portanto concordei com um sorriso. "Confio em Kemal Pasha mais do que em meu próprio irmão. Você não precisava ter me mostrado a pedra. De quanto é o empréstimo de que você precisa?'

Sem mesmo pensar, disse-lhe a primeira quantia que me veio à cabeça. Ele me disse para voltar no dia seguinte, que o dinheiro estaria lá.

Quando sua filha desceu para o almoço, havia passado por uma transformação completa. Tinha um jeito recatado, bem menos espontâneo do que antes. Vestia uma túnica amarela que ia até o chão e usava sandálias de couro que, para minha tristeza, lhe escondiam os pés. A expressão de seu rosto, se é que tinha alguma, era severa. Tive esperanças de que fosse apenas a presença do pai a causa daquela mudança.

"Esta é minha filha Mariam. É ela quem cuida da casa desde que a mãe se foi.'

Nada mais foi dito a respeito da mãe e somente vários meses depois foi que Mariam me contou toda a história. Nossa conversa durante o almoço foi cerimoniosa. Como meu conhecimento de árabe não era tão bom quanto o de Hamid Bey e Mariam e eles simplesmente não falavam turco, passei para o francês. A alegria no rosto dela foi visível. Ela nunca tinha oportunidade de praticar e aperfeiçoar seu francês e ficou feliz por eu falar muito bem.

Mulher de Pedra, eu sei que nada a deixa surpresa ou é capaz de chocá-la. É por isso que tantas pessoas, ao longo dos séculos, vêm aqui abrir seus corações.

Já naquele primeiro dia, enquanto eu almoçava à mesa do pai dela como visita de cerimônia, apaixonei-me por aquela criatura. O amor nunca pode ser planejado como se fosse um livro de contabilidade. Você nunca pode dizer para si mesmo: essa pessoa preenche todos os requisitos que defini para me apaixonar por alguém. Não se pode dizer, por exemplo: ela fala bem, mas sabe quando lhe cabe falar; ela tem um dote razoável; ela poderá me dar filhos saudáveis, portanto vou me apaixonar por ela. Não é assim.

Já soube de comerciantes que tratam do amor como se fosse um negócio; de médicos que tomam seu próprio pulso para ter certeza de que estão amando; de filósofos que vivem questionando seu próprio amor; de jardineiros que pensam no amor como se fosse uma planta e de pretensiosos que só conseguem amar a si mesmos. Não me entenda mal, Mulher de Pedra. Não estou negando que o amor cresça, deite raízes e se torne mais pujante com o passar do tempo. Isso é verdade, mas para que tal aconteça é importante que comece certo. Para mim só existe um jeito certo de começar e todos os outros são falsos. O amor deve cair como um raio sobre a pessoa. Foi isso que aconteceu comigo oito anos atrás naquela agradável tarde de verão quando a brisa do mar atravessava a casa do mercador copta, Hamid Bey. Mariam mal havia feito dezoito anos. Eu já estava chegando aos trinta e dois.

Voltei no dia seguinte para pegar o dinheiro. Uma velha com uma cruz no pescoço todo enrugado abriu-me a porta e informou-me, em um tom de voz muito formal, que Hamid Bey havia partido para o Cairo a negócios. Estaria fora vários dias. Havia deixado um envelope, que ela me entregaria, e pediu que eu voltasse dez dias depois, quando o patrão já estaria de volta. A velha deve ter percebido minha decepção, e pareceu bem feliz com isso. Eu continuei parado diante dela, absolutamente desapontado.

Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa para dizer, Mariam veio correndo do terraço e entrou em casa, um pouco sem ar pelo esforço de correr, mas, graças aos céus, descalça. Meu coração se derreteu quando vi os pés dela.

Ela repreendeu a velha: "Eu lhe disse para me chamar quando Salman Pasha chegasse.' A empregada encolheu os ombros, mal-humorada, e saiu da sala.

Mariam voltou-se para mim. "Não ligue para ela, Salman Pasha. Ela quer me proteger demais e não tem educação. Está na família de meu pai há séculos e tem realmente prazer em ser descortês. Ela detestava minha mãe. Que tal nos sentarmos no terraço? Aceita uma limonada? Trouxe algum livro em francês hoje? De que você está rindo?'

Não tenho forças para reviver tudo que se passou comigo, nem mesmo para contar a você, Mulher de Pedra. Algumas das recordações são tão puras e doces que me fariam chorar. Eu seria capaz de ter uma recaída e amá-la novamente e todo o meu esforço seria posto a perder. Seria como cair num abismo sem fim — o pior pesadelo que se possa imaginar. Estou decidido a evitar essa calamidade a qualquer custo. Por esse motivo, e nenhum outro, vou apressar o ritmo desta narrativa.

A permanência de Hamid Bey no Cairo atrasou mais de uma semana. Mariam e eu nos encontrávamos todos os dias, mas nunca depois do pôr-do-sol. A velha da cruz no pescoço proibiu isso expressamente e Mariam achou que não deveria contestá-la. Aonde quer que fôssemos naquela casa enorme eu sentia que estava sendo observado e Mariam começou a sentir o mesmo. Estávamos sendo sufocados. Faleilhe do meu local secreto na praia. Seus olhos se arregalaram ante a possibilidade de uma aventura.

Ela mandaria que Maria — era esse seu nome de batismo — fizesse café para nós e enquanto a velha estivesse na cozinha nós fugiríamos da casa como ladrões, com nossos livros de francês debaixo do braço. Mariam também se apaixonou por minha minúscula enseada, onde ficamos completamente a sós.

Declaramos nosso amor um pelo outro naquele mesmo dia. Ela também confessou que era amor à primeira vista e que sentiu uma enorme emoção ao ver-me diante dela com areia nos cabelos, embora ela achasse que o efeito do raio tivesse sido causado pelo livro de Verlaine que eu carregava. Nós nos beijamos e nos acariciamos.

Tiramos nossas roupas e nadamos no mar. Depois nos secamos e lemos poesia um para o outro. Eu me deliciei com cada parte de seu corpo descrita nesse trecho de um poema de amor de Verlaine cujo título é "Primavera':

Pernas torneadas, seios estonteantes

Dorso, cintura, um só deleite enfim

Para meus olhos, minhas mãos errantes,

Para meus lábios

— Ah, que será de mim?

 

O poema nos deixou ainda mais excitados, mas eu não a possuí, apesar de ela estar pronta a sacrificar sua virgindade e eu estar no auge da paixão. Todo o meu corpo doía de desejo. Meus testículos doíam, desesperados para aliviar-se do fluido, mas eu resisti.

Por quê? Porque fazer amor com ela seria violar a hospitalidade de seu pai. É estranho, Mulher de Pedra, como antigas tradições e hábitos encontram-se tão enraizados em nós que não conseguimos nos livrar deles. Ela ficou com muita raiva quando lhe confessei isso e começou a amaldiçoar toda a família Pasha, declarando-se uma cidade livre da República do Amor. Ela tornou-se cruel com sua ironia. Mas também me fez rir muito. Eu jamais havia visto alguém como ela.

Quando Hamid Bey voltou a Alexandria e antes que Maria enchesse seus ouvidos de veneno, pedi a mão de Mariam em casamento. Disse a Hamid Bey que era só o que eu queria. Não estava interessado em seu dote. Nós nos casaríamos e não dependeríamos de pessoa alguma. Eu pensava que ele fosse pedir que eu esperasse um ano ou, pelo menos, uns seis meses em outra cidade para certificar-se de que meu afeto era verdadeiro, e não transitório. Mas ele não demonstrou ter dúvida alguma.

"Desde o primeiro dia, quando você almoçou aqui, senti que você e Mariam foram feitos um para o outro. Têm minha bênção. Como você sabe, eu sou copta. Gostaria que o casamento fosse na igreja. Quando você a levar para Istambul, pode fazer outra cerimônia.'

Meu coração estava tão cheio de alegria que eu ri quando ele disse aquilo. "Hamid Bey, eu me casaria com ela em qualquer lugar. Como o senhor sabe, não sou um homem religioso. A cerimônia, em si, não faz a menor diferença para mim.'

Hamid Bey não quis que se perdesse tempo. Eu não tinha o menor desejo de comunicar meu casamento a qualquer membro da família a não ser Tio Kemal-O telegrama que mandei para seu escritório continha uma recomendação muito firme: aquela informação era só para ele. Eu não queria receber mensagens de pessoa alguma de Istambul. Ele me mandou um telegrama de congratulações e disse que aceitava meu pedido de sigilo, mas em troca queria que a casa que eu estava comprando fosse um presente de casamento dele e de Hamid Bey. Aceitei a generosidade deles, Mulher de Pedra. Afinal de contas, era uma casa que me ofereciam, não uma cáfila. Mas recusei a oferta de levar Maria como nossa governanta. Certos sacrifícios são inaceitáveis.

Duas semanas depois, Mariam e eu já estávamos juntos. Foram tempos de felicidade verdadeira para nós dois, mas agora, quando me recordo até daqueles primeiros tempos, lembro-me de episódios que então me pareceram sem importância e que não foram.

Todos temos certas contradições dentro de nós, Mulher de Pedra. É normal que sejamos assim, mas Mariam era uma mulher profundamente contraditória. De certa forma, ela teria preferido que Hamid Bey tivesse nos negado sua permissão para o casamento. A seu ver, isso teria sido um belo teste para o meu amor. Eu teria fugido com ela para outra parte do mundo? Minhas respostas afirmativas não a convenciam, pois tratava-se de algo que não poderia ser provado. Em outras ocasiões, ela dizia: "Odeio quando você fica feliz demais comigo. Gosto mais de você quando está triste.' Eu nunca entendia por que ela dizia essas coisas e quando, mais tarde, perguntava-lhe a razão, ela negava que tivesse dito qualquer coisa nesse sentido.

Só muito tempo depois da cerimônia do casamento foi que ela me explicou por que Hamid Bey estava com tanta pressa. Ele sabia que se houvesse um noivado longo, teria sido difícil, impossível talvez, impedir que a mãe comparecesse.

Sua mãe, Arabella, era filha de um fazendeiro inglês e sua concubina chinesa, que viviam na colônia britânica da Malásia. O pai dela, que era solteiro, reconheceu a paternidade e levou-a para sua casa na fazenda, mas sem a mãe, que a via duas ou três vezes por semana. Depois ele a mandou estudar na Inglaterra. Mariam amava e odiava a mãe. As palavras que usou para contar essa história revelavam essa dualidade. Ao retornar para casa vindo de Londres, Arabella teve um desejo irresistível de conhecer as pirâmides em Gizé. O comandante do navio telegrafou para Cingapura e o pai dela concordou. Ela desembarcou em Alexandria. Seu pai tinha amigos lá e os havia informado de que sua filha voluntariosa estava a caminho. Um velho casal foi ao cais do porto recebê-la. Ela sempre havia sido uma menina mimada e achava que tudo lhe era devido. Na fotografia, parece ser uma inglesa. Na vida real, sua pele era ligeiramente escura, mas ela não queria ser considerada mestiça.

Foi por isso que o que aconteceu no Egito surpreendeu todo mundo.

Hamid Bey conheceu-a num jantar, quando ela lhe falou de seu desejo de ver a Esfinge. Ele se ofereceu para organizar sua excursão e conseguir-lhe um guia. Mas ficou encantado com ela e a seguia por toda parte. Hamid Bey é ainda um homem atraente. Vinte anos antes, deve ter sido irresistível. Ela se sentia lisonjeada com sua atenção, divertia-se com suas brincadeiras, estava impressionada com sua riqueza e sentia-se fisicamente atraída por ele. Ele lhe propôs casamento. Ela aceitou. O pai dela mandou muitos telegramas proibindo aquela união, mas ela tinha idade e petulância suficientes para desafiá-lo. Seus anfitriões disseram-lhe que ela não poderia casarse com um egípcio. Ela deixou a casa deles dizendo que era metade chinesa e se orgulhava muito disso. Todos já sabiam, é claro, mas ninguém mencionava o assunto, porque ela aparentava ser inglesa.

Surgiu um outro probleminha. Hamid Bey descende de uma família copta cuja ascendência conta mais de mil anos. Seus parentes ficaram muito aborrecidos com o fato de ele conspurcar a pureza da linhagem casando-se com uma inglesa, mas sua mãe quase chorou quando Hamid Bey lhe disse, orgulhosamente, que ele também teria suas dúvidas quanto a casarse com Arabella se ela fosse cem por cento inglesa, mas o fato de ela ser metade chinesa o havia tranqüilizado.

Para essa avó de Mariam, chineses não existiam, a não ser como figurinhas de telas que ela às vezes comprava nas lojas italianas de móveis. Ela provavelmente achava que a raça chinesa era algo inventado, um tanto cômico. Hamid Bey ficou muito zangado. Gritou com a mãe. Depois acalmou-se e fez uma preleção sobre a civilização chinesa. Foram eles que inventaram a bússola, a pólvora, a imprensa...

Casaram-se logo. Mariam nasceu. Sua mãe ficou entediada. Hamid Bey viajava muito naquela época. A vida dela era sem graça. Ela lia um pouco, mas não tinha real interesse pelo Egito ou por sua história e logo começou a ressentir-se de não ser convidada a freqüentar as casas dos europeus. Em pouco tempo, fez um novo grupo de amigos. Eram europeus que lá estavam extra-oficialmente e que se reuniam em determinado clube ou nas casas uns dos outros para beber gim e jogar cartas. Um belo dia ela conheceu um inglês que estava a caminho da Índia. Foi-se com ele, deixando o marido e a filha sem se dar o trabalho de escrever um bilhete. Mariam tinha onze anos nessa época. A mãe lhe escreveu certa vez dizendo que jamais amara Hamid de fato e que a verdadeira paixão era uma experiência maravilhosa. Ela esperava que Mariam a tivesse algum dia. Mariam nunca mais a viu de novo, mas as duas se escreviam e Arabella enviava-lhe dinheiro todos os meses. Teve dois outros filhos, cujas fotografias Mariam nunca pediu para ver, com receio de desagradar Hamid Bey.

Era-lhe insuportável presenciar a decadência do pai. Ele passou a ser uma simples sombra do que tinha sido. Os dois faziam juntos as refeições, conversavam sobre livros e encontravam-se com amigos, porém a alegria o havia abandonado. O quarto de Arabella permanecia intacto, exatamente como estava no dia em que ela partiu.

Suas roupas permaneceram no armário por muitos anos. O vestido que Mariam usava na primeira vez em que nos vimos, e de que tanto eu havia gostado, pertencia a Arabella. Passado muito tempo, Mariam tirou tudo do quarto, doou a maior parte do que pertencera à mãe, guardando alguns objetos para si, transformou o cômodo em uma biblioteca. Disse ao pai que livros seriam a última coisa que o fariam lembrar-se de sua mãe. Ele apenas sorriu. Depois disso ele fez uma longa viagem ao Japão com Tio Kemal Pasha. Ao voltar era um homem diferente. Mariam não tinha a menor idéia do que tinha acontecido lá, ou do tipo de transformação por que ele passara. Só sabia que ele voltara bem parecido com o que era antes da partida da mulher. Começaram a receber amigos em sua casa novamente. Certa ocasião ela tentou conversar com ele sobre a mãe. Seu rosto assumiu uma expressão de grande sofrimento e ele disse, num sussurro, que ela morrera havia muito tempo. Mariam nunca mais tocou no assunto.

O que me pareceu estranho em toda essa história, Mulher de Pedra, não tinha a ver com Hamid Bey. Suas reações foram naturais. A única surpresa, no caso dele, foi não ter se casado novamente. O que me deixava intrigado eram os sentimentos de Mariam em relação à mãe. Quando falava dela, era sempre com um misto de rancor e admiração. Ela havia sido abandonada. Isso era motivo de rancor. Mas a mãe havia posto o amor e a paixão acima de tudo o mais em sua vida, e Mariam não podia deixar de admirar esse lado da mãe. Creio que essa era sua única maneira de aceitar a rejeição.

A idéia de que uma mulher capaz de fazer o que ela fez com sua única filha seria alguém tão egoísta a ponto de não merecer perdão às vezes lhe passava pela cabeça, mas ela logo a afastava. O resultado disso era uma profunda ambivalência no caráter de Mariam. Ela passou a temer todo e qualquer compromisso. A experiência de ter sido abandonada quando ainda tão criança havia deixado cicatrizes indeléveis. Para mim, que não havia conhecido minha mãe, parecia incrível o fato de ela, em todo o tempo que passamos juntos, jamais haver demonstrado a menor vontade de ver a mãe novamente. Minha curiosidade era maior que a dela e ofereci-me para levá-la à Índia, mas essa minha sugestão deixou-a aborrecida. Disseme que seria um ato de traição ao pai e que ele já havia sofrido demais por causa de tudo aquilo.

Passou-se um ano e meio sem que ela conseguisse conceber e isso a deixava profundamente infeliz. Tinha mais motivos para querer ter filhos do que as outras mulheres em sua situação. Seus próprios filhos poderiam ajudá-la a esquecer o que a mãe lhe havia feito e ela foi ficando tão ansiosa que isso começou a afetar nosso relacionamento.

Certo dia ela me disse: "Talvez o defeito esteja no seu próprio sêmen. Preciso encontrar outro homem para mim.' Depois de dizer coisas assim, ela sempre começava a chorar, abraçava-me com força e pedia perdão. Eu não ficava com raiva, Mulher de Pedra. Ficava apenas triste. Encontrar uma pessoa a quem se ame tão intensamente que ela se torne parte de seu próprio ser, alguém com quem você passe a compartilhar tudo — alegrias, tristezas, vitórias, derrotas, bons e maus tempos -, isso não é algo raro tanto para homens quanto para mulheres?

Ela engravidou no terceiro ano de nosso casamento e voltou a engravidar no ano seguinte. Raras vezes a vi tão feliz. Ela se dedicava muito às crianças e as levava para visitar Hamid Bey toda semana, às vezes passando o dia inteiro lá.

Seu interesse por mim, a essa altura, havia diminuído consideravelmente. Lembro-me de certa vez em que Tio Kemal, de passagem por Alexandria, ficou alguns dias em nossa casa. Quando ele beijou as crianças e deu a cada uma delas uma moedinha de ouro, Mariam teve uma atitude extremamente irracional. Foi quando ele começou a lhes falar, com muito carinho, como tio-avô, que percebi algo estranho na expressão do rosto dela. Quando Tio Kemal disse: "Seu avô Iskander Pasha ficará muito feliz em conhecê-los algum dia', vi o rosto dela se encher de ódio e ela saiu da sala. Eu fiquei absolutamente perplexo. Aquilo era inexplicável.

Depois que Tio Kemal partiu, tentei conversar com ela sobre seu comportamento, mas só consegui levá-la a ofender minha família. Disse que não queria que seus filhos fossem levados a Istambul pela família Pasha; que na minha família havia loucos e degenerados, e saiu inventando muitas outras acusações. Achei aquela sua conduta patética e irracional, principalmente considerando-se que eu estava tão afastado da família.

Mas a essa altura eu ainda encontrava desculpas para sua irracionalidade. Convenci-me de que ela estava apenas sendo excessivamente possessiva porque, tendo perdido a mãe, ela agora temia perder os filhos. Quem sabe por quanto tempo eu ainda continuaria a me iludir, Mulher de Pedra? Mas o destino teve pena de mim.

Certo dia, enquanto eu fazia minha caminhada pela praia, aproximou-se de mim uma mulher européia vestida de negro e usando um chapéu com um véu que lhe cobria o rosto. Estava visivelmente aflita ao perguntar se eu era o "Signor Salman Pasha, genro de Hamid Bey; Disse que sim e ela insistiu em falar comigo urgentemente.

Pedi-lhe que me acompanhasse até um lugar menos movimentado. Logo que nos sentamos, ela se pôs a soluçar. A lembrança desse incidente ainda me deixa perturbado, portanto não vou me alongar sobre ele. Ela me revelou a verdade, Mulher de Pedra, apesar de, na hora, eu não acreditar realmente no que ela me dizia. Posso parecer calmo ao lhe falar disso agora, mas na hora em que ela me revelou os fatos, tive vontade de morrer. Tive a impressão de que o céu e o ar escureceram, subitamente. As pessoas que passavam por ali transformavam-se em meras sombras. Minha mente ficou estarrecida. Aquela senhora italiana disseme que eu não era pai de meus filhos. O marido dela era o pai verdadeiro. Fiquei sabendo que ela era casada com o filho de um fabricante de móveis cuja clientela eram as famílias ricas do Cairo e de Alexandria.

Os móveis da casa de Hamid Bey foram feitos pela firma deles e na hora eu me lembrei de um jovem, Marco, que havia feito as medições em nossa casa e que lá ia freqüentemente até que tudo ficasse pronto.

A mulher contou-me, com todos os pormenores, como foi que Mariam seduziu e tomou o marido dela. Ela ficara sabendo disso porque tinha ido falar de suas suspeitas ao sogro e ele mandou que um velho carpinteiro os observasse discretamente. Costumavam encontrar-se no início da tarde no meu lugar secreto, onde Mariam e eu havíamos tido nossa primeira experiência amorosa. Lembro-me de ter dado um grito de dor ao ouvir esse detalhe. Ela devia estar muito perdida em sua depravação para arriscar-se daquela maneira, sabendo que eu ia lá com freqüência para ler e escrever. Será que esperava que eu a visse?

O pai de Marco o obrigou a confessar tudo. Depois mandou que fosse procurar um padre para confessar-se e, para castigá-lo, despachou-o para Gênova, onde foi trabalhar na oficina do tio. Sua esposa me disse que ela e as duas filhas pequenas estavam se preparando para ir juntar-se a ele dentro de um mês. Ele dizia que estava arrependido e acusava Mariam de o haver seduzido. Disse também que não tinha estado com ela depois daquilo tudo, mas revelou ao pai que ela queria ter outro filho dele. A mulher de Marco referiu-se a Mariam como uma tresloucada sem princípios morais e disse que havia me procurado para revelar a verdade porque tinha ouvido dizer que eu também estava sofrendo. Não acreditei que aquele tivesse sido o motivo, mas me despedi desejando-lhe que fosse feliz no futuro.

Não tenho a menor lembrança do que fiz depois daquele encontro. Quando cheguei em casa, já passava da meia-noite. Fui para meu quarto e afundei na cama. Ela estava em seu quarto, mas não dormia. Você ficará chocada, Mulher de Pedra, se eu lhe disser que meu amor por ela era tão forte que mesmo então eu estava pronto para perdoá-la? Afinal de contas, foi minha semente que não germinou. Disse a mim mesmo que se ela estava tão desesperada para ter filhos, que mais poderia ter feito?

Ela entrou no meu quarto vestindo meu velho robe de seda cinza e perguntou por que eu tinha voltado tão tarde. Olhei para o rosto dela e senti um ódio enorme.

Tive vontade de espancá-la, mas controlei-me.

"Mariam, eu sabia que tínhamos contratado o serviço do melhor fabricante de móveis da cidade para nos suprir de mesas, cadeiras e camas, mas não tinha menor idéia de que você usava o serviço do carpinteiro Marco para supri-la de filhos também.'

Ela ficou abalada, Mulher de Pedra. Empalideceu e começou a tremer. Continuei a falar. "Se ao menos você pudesse ver essa sua cara hipócrita de mentirosa no espelho!

Você está tremendo de medo ou de culpa? Ótimo! Antes que eu acabe com você...'

Parei de falar porque ela começou a chorar baixinho. Suas lágrimas sempre me emocionaram profundamente. Aproximei-me dela e pus-me a acariciar seu rosto. Ela reagiu como se estivesse sendo tocada por um leproso. Seu rosto estava completamente transformado. Aquele não era o rosto da mulher que eu amava. Um sorriso estranho e debochado transfigurava-lhe a expressão — era um sorriso de triunfo. Ela estava realmente feliz por me ver tão infeliz, alegre por eu ter sido humilhado e traído.

Lançou-me um olhar cheio de desdém e disse: "Há muito tempo que só sinto desprezo e nojo por você. Não apenas sua semente é infértil, seu amor tem sido um castigo para mim. Eu precisava me libertar de você e dessa vidinha que estávamos levando.'

Não dormi naquela noite. Sua crueldade extrema não me deixava alternativas. Pensei nas duas crianças lindas que eu tanto adorava. Era difícil acreditar que não eram minhas. Sentime tentado a ver aqueles rostinhos confiantes ainda uma vez, mas resisti ao impulso. Preparei uma pequena mala e saí de casa aos primeiros sinais da madrugada.

As ruas estavam desertas. Ouviam-se apenas os sons das gaivotas procurando alimento. O céu estava lindo: vermelho na base, transformando-se sutilmente em rosa.

Não pude deixar de contrastar toda aquela beleza com o horror em que Mariam havia transformado minha vida. Caminhei até a casa de Hamid Bey. A velha Maria abriu a porta apertando o rosário de encontro ao peito. Pela primeira vez ela me dirigiu um olhar afetuoso e tocou-me levemente as costas quando entrei. Talvez a dor que meu rosto revelava houvesse provocado nela um sentimento de solidariedade. Talvez ela soubesse. Hamid Bey desceu a escada e bastou me ver para saber o que havia acontecido. Abraçou-me carinhosamente e pediu a Maria que nos servisse café.

Senteime em um grande sofá, cuja armação devia ter sido feita por Marco, e contei toda a história a Hamid Bey, exatamente como estou lhe contando, Mulher de Pedra.

Não omiti coisa alguma. Não o poupei de coisa alguma. Não me importava que ela fosse sua filha. Eu estava cheio de amargura e de rancor. Ele me ouviu no mais absoluto silêncio e depois disse: "Ela saiu exatamente igual à mãe. Parta de Alexandria hoje mesmo, meu filho, e pense em Mariam como alguém que já morreu. Serão necessários alguns anos, mas você se recuperará. Deixe que eu cuide de suas coisas aqui. Não sei o que será de Mariam, mas ela não deixa de ser minha filha e cuidarei que nada lhe falte. Talvez ela se mude novamente para cá com as crianças. Não se preocupe com isso. Considere-se livre de qualquer responsabilidade e recomece sua vida em algum outro lugar, Salman Pasha.' Ao dizer essas palavras, ele me abraçou novamente. Havia tristeza nos seus olhos ao nos despedirmos e ele murmurou baixinho, como se falasse consigo mesmo: "Quem já foi esposa de um príncipe passou a ser rapariga de um carpinteiro.'

Deixei Alexandria no dia seguinte, a bordo de um navio que partiu para o Oriente. Passei um ano em Tóquio, um lugar tão diferente do nosso mundo que me distraiu da dor que eu levava comigo. A mente tem a capacidade de acabar colocando as bagagens não desejadas em seus compartimentos mais recônditos. Nunca me curei totalmente.

As lembranças felizes dos primeiros tempos às vezes me inundavam o coração, sem mais nem menos, e eu fazia o possível para lutar contra elas tentando substituí-las pelas terríveis recordações daqueles últimos dias e das palavras cruéis que ela havia usado para matar de vez o nosso amor.

Tio Kemal também estava naquela parte do mundo, expandindo sua frota de navios mercantes, abrindo novos escritórios em Tóquio e em Xangai e buscando consolo nos braços de suas muitas amantes. Conheci uma delas em Tóquio. Ele achava que não deveria haver segredos entre nós e apresentou-me a ela. Era uma mulher bonita e aparentava ser submissa em seu quimono de seda vermelha lindamente bordado.

Ela preparou uma refeição para nós, e eu fiquei chocado quando ela se sentou no chão conosco mas não tocou na sua comida até que tivesse acabado de alimentar Tio Kemal. Fez isso com muita delicadeza. Os pedaços de peixe nem uma vez caíram dos pauzinhos com os quais ela os pegava, mergulhava num molho delicioso e colocava na boca de meu tio. Só então pude compreender por que ele passava tanto tempo no Oriente. Ele jamais havia sido feliz com sua esposa. Como foi que um homem tão atraente, apaixonado por coisas refinadas e com enorme sensualidade pôde casarse com uma mulher tão desprovida de atrativos? Ele jamais compreendeu o meu espanto e dizia, com certa impaciência: "Você acha que eu teria concordado em casar-me com ela se seu dote não fosse suficiente para financiar meus navios mercantes? Sempre fui um apaixonado por barcos e pelo mar e cheguei à conclusão de que para casar-me com aquela anã e fertilizá-la com meu esperma, seria necessário ter sempre à mão os meios de fuga. Há ocasiões, Salman, em que a pessoa se vê forçada a sacrificar uma felicidade de longo prazo em troca de algum ganho imediato. O que me incomoda é que todas as minhas filhas herdaram as formas, o tamanho e a burrice da mãe. Serão necessários três dotes muito generosos para que as levem lá de casa. Veja bem, você consegue imaginar alguém, qualquer homem, apaixonando-se por alguma delas? A lástima é que eu amo Istambul mais que seu outro tio e seu pai. Iskander ama Paris. Memed fica apalermado com Berlim. Eu permaneço fiel à minha Istambul, mas a beleza da cidade está associada, em minha mente, à feiúra que me saúda quando eu chego em casa. Por isso fujo e, como você pode ver, fico feliz aqui. Prefiro Tóquio a Xangai. Aqui posso mergulhar na beleza da paisagem. Xangai é muito barulhenta e suja. Nunca me sinto seguro nas ruas de lá.'

Eu estava desejoso de conhecer a China, Mulher de Pedra, e tinha muitos motivos para isso, mas Tio Kemal sugeriu que eu voltasse a Istambul. "Estão preocupados com você', disse ele. "Pensam que você ainda está no Egito. Creio que você agora precisa um pouco deles. A solidão não lhe fará bem. Mais tarde poderá voltar para junto de mim. Você sempre foi como um filho para mim, mas agora nos tornamos amigos e este é um prazer raro a esta altura da vida.'

Segui seu conselho e voltei para Istambul. Estava lá quando meu pai teve o derrame e vim às pressas para cá com Halil. Lembra-se de Halil quando era pequeno? Um menino travesso. Quem pensaria que viria a ser general?

Quando cheguei aqui sentia-me muito deprimido e não conseguia me interessar por coisa alguma, mas as nuvens escuras se afastaram finalmente, Mulher de Pedra. Meu pai e eu nunca nos demos tão bem quanto agora. Afeiçoei-me aos filhos de Nilofer e logo contarei a ela minha história para que ela entenda por que nunca falo de "meus filhos'. E quanto ao General Halil Pasha, que posso dizer? Foi logo ele quem reacendeu em mim meu antigo interesse pela política e pela história. Estamos às vésperas de grandes mudanças, Mulher de Pedra. Tudo poderia ser diferente. Nossas vidas, sempre marcadas pela inércia, podem ser arrastadas por uma enorme onda de reforma. É em épocas assim que se percebe a existência de outras alegrias da vida que não as do amor e da união com a pessoa amada.

Tudo vai mudar, Mulher de Pedra, e não vai demorar muito, mas espero que você esteja sempre aqui para consolar aqueles que acham difícil suportar a dor em silêncio."


14

Nilofer é vencida pelo desejo e decide casarse com Selim;
o Barão recusa-se a discutir o que Stendhal tem a dizer sobre o amor

A notícia de que a fala de Iskander Pasha havia sido milagrosamente recuperada e de que ele já se expressava normalmente chegou a Istambul. Logo começaram a chegar cartas e mensagens de seus amigos e de autoridades governamentais, em grande quantidade. Alguns viam naquela cura a presença invisível porém onipotente de Alá.

Outros achavam que era um importante sinal.

O Grão Vizir despachou pessoalmente um mensageiro com uma carta de congratulações a Iskander Pasha por sua recuperação, convidando-o, em nome do Sultão, a comparecer a uma audiência no palácio tão logo voltasse à capital. A carta terminava com a seguinte frase: "O senhor certamente gostará de saber sobre os sérios problemas que os austríacos estão tendo na Sérvia. Quando informei sua Majestade, ele sorriu e disse: "Que Alá dê uma ajudinha àqueles sérvios sem deus para que eles forcem os soldados do Imperador a voltar para Viena.' Eu disse a ele que o senhor apreciaria esse seu comentário e ele, gentilmente, permitiu que eu o repetisse aqui."

Quando acabamos de ler todas as cartas, Salman levantou-se e começou a imitar o jeito servil do Vizir, com gestos exagerados e terrivelmente vulgares, comuns aos bajuladores em toda parte, enquanto repetia sem parar aquela última frase. Todos os presentes puseram-se a rir, menos a pobre Zeynep. Seu marido trabalhava no palácio e era, supunha-se, fiel a seus superiores. Ainda que se sentisse secretamente revoltado com o que estava acontecendo, nada dissera à mulher. Zeynep estava ficando cada vez mais aflita com o que se passava em nossa casa. Acho que foi por isso que decidiu partir imediatamente para Istambul — ou então é possível que sentisse saudades dos filhos e achasse que, como Iskander Pasha havia se recuperado totalmente, não havia mais necessidade de sua presença.

Partiu no dia seguinte, depois de despedidas emotivas. Ela deu em Halil um abraço muito apertado, sussurrando em seu ouvido pedidos de cautela, qualquer que fosse o caminho que decidisse tomar. De todos nós, Zeynep era a menos complicada. Estava feliz com o marido, cuja calvície prematura fazia meu pai rir. Estava satisfeita com seus filhos e sua casa e até mesmo tolerava a sogra, considerada por muitos como a mulher mais venenosa de Istambul. As intrigas cruéis da sogra eram tão conhecidas que seu nome havia se transformado em sinônimo de falsidade. Os vendedores das lojas a detestavam, porque ela não parava de barganhar, mesmo quando eles já haviam chegado ao preço mínimo possível. Até mesmo meu irmão Halil, o mais gentil dos homens, disse certa vez que daria uma generosa contribuição em dinheiro para ajudar a contratar alguns bandidos que a seqüestrassem e a largassem na Albânia. Ele levou um grande susto — e meu pai divertiu-se muito — quando esse seu comentário se espalhou pela cidade e ele recebeu cartas dos três maiores lojistas de Istambul oferecendo-se para contribuir com o que fosse necessário se ele assumisse a tarefa de organizar o tal seqüestro. Zeynep soube de tudo isso, mas preferiu manter-se em discreto silêncio, ligeiramente triste. Ela sabia que se ficasse do nosso lado, sua vida em casa tornar-se-ia insuportável. Tinha que conviver com aquela mulher todos os dias de sua vida.

Eu estava preocupada com meus próprios problemas. Enquanto as crianças começavam a se recuperar do trauma da morte do pai, no que foram ajudadas pelo amor de minha mãe, de Halil e, principalmente, do meu adorável Salman, eu me envolvia cada vez mais com Selim. Eu jamais havia vivido uma experiência assim e em certos momentos chegava a me assustar com a intensidade do que se passava conosco. Assustava-me não com ele, mas comigo mesma e com o grau de dependência que passara a ter dele.

Desejava intensamente sua presença. Pensava o dia todo em sua paixão. Houve dias em que não foi possível estarmos juntos e ele não me saía da cabeça. Às vezes só para ter certeza de que eu ainda tinha algum controle sobre a situação, eu me fazia de desatenta de maneira ostensiva e ele reclamava. Ficava muito aborrecido e a angústia se refletia em seu rosto. Pode parecer maldade minha, mas às vezes preferia vê-lo assim triste do que feliz. Era minha única maneira de demonstrar a mim mesma que tinha poder sobre ele. Ele jamais compreendeu que aquele meu comportamento era um teste para mim mesma, não para ele. Era realmente amor, ou era simplesmente desejo o que sua presença sensual despertava em mim? Eu tinha certeza de que seu amor por mim era verdadeiro, embora eu não fizesse a menor idéia de onde aquilo pudesse nos levar, ou de como acabaria. Era a primeira vez que eu nadava num mar de amor tão imenso, e temia acabar me afogando.

Somente as crianças conseguiam distrair-me a atenção. Precisavam ser amadas, cuidadas, preparadas para dormir todas as noites. Nessas horas nada mais tinha importância.

Orhan e Emineh eram o que havia de mais importante em minha vida. Mas bastava sair de perto deles para que Selim se instalasse em meus pensamentos e eu me pusesse a desejá-lo.

Selim já estava lá havia três semanas, e Hasan Baba tinha começado a resmungar e reclamar com ele por abandonar sua barbearia por tanto tempo. Ele argumentava, dizendo que as crianças tinham acabado de perder o pai e que sua companhia lhes fazia bem, principalmente a Orhan. Isso era verdade. Orhan havia se apegado muito a Selim e os dois faziam longas caminhadas diárias enquanto mini mãe e suas empregadas ocupavam-se de Emineh, fazendo-lhe e refazendo-lhe penteados e mostrando-lhe o espelho para que ela os aprovasse. Mas Hasan Baba não se convenceu e ameaçou pedir a Iskander Pasha que mandasse Selim voltar para Istambul.

Ele me contou tudo isso certa noite. Não tinha o menor receio de que nos descobrissem. Isso não o incomodava em absoluto. Ria-se quando eu falava dessa possibilidade e dizia que se fôssemos apanhados em fragrante, eu não teria alternativa a casar-me com ele. Eu ainda não estava convencida de que aquela era a melhor solução.

Orhan e Emineh podiam reagir mal. Minha mãe podia negar sua permissão. O romantismo de uma fuga começa a perder a graça quando há crianças envolvidas.

Que fazer naquela situação? Eu sabia, por experiência própria com o pobre Dimitri, bem como pelo que havia ocorrido a várias amigas minhas, que uma paixão muito intensa costuma consumirse rapidamente e o casal que a tomava por amor profundo e duradouro descobre, um belo dia, que ambos nada mais têm a dizer um ao outro depois de uma relação sexual apressada. Essa descoberta deixa-os desorientados, porque eles supunham que seu amor fosse algo especial. Pensavam que não eram como as outras pessoas. Quando por fim admitem que nada restou, afastam-se rapidamente um do outro e do lugar onde haviam se amado, o mais depressa possível. Todas as cartas escritas em noites insones são destruídas às pressas. Se, passados alguns anos, eles se encontrarem por acaso em um casamento, um enterro, ou numa loja comprando presentes para os filhos ou para seu novo amor, a única emoção que sentem é a do constrangimento.

Digo todas essas coisas para convencer-me de que desta vez não devo agir apressadamente, porém eu sei que com Dimitri foi tudo muito diferente, e que se eu quisesse afastar Selim de mim estaria punindo a mim mesma, mais do que a ele. Duvido que eu possa sentir um amor tão intenso por outra pessoa futuramente. Às vezes fico realmente espantada com a calma que ele exibe na presente situação. Há outras coisas que para ele são mais importantes que nosso amor e, por estranho que pareça, isso me faz sentir mais segura.

Na última vez em que fizemos amor, ele continuou deitado na minha cama depois, falando sobre os perigos de uma sublevação militar contra o Sultão se o povo não se mobilizasse também para defender seus interesses. Eu não sabia do que ele estava falando. A expressão de surpresa que ele viu em meu rosto fez com que se calasse.

Ele me abraçou carinhosamente e explicou: "Nilofer, neste mundo há ricos e pobres. Os pobres são muitos e os ricos são poucos. Seus interesses jamais coincidiram.

Tanto os ricos quanto os pobres precisam livrar-se do Sultão, mas o que acontecerá quando conseguirem isso? Encontraremos um outro Sultão a quem chamaremos de Presidente, mas que usará farda? Ou vamos fundar um partido, como há na Alemanha e na França, que lutará pelos interesses dos pobres?"

Eu nunca havia pensado nisso até então e achava o assunto desinteressante, mas para ele essas coisas eram dínamos secretos que enchiam de energia cada fibra de seu ser.

Fiquei sentada mais de uma hora no terraço observando a mudança de cores no céu, enquanto as idéias rodopiavam em minha cabeça. Quando Zeynep partiu de manhã, a chuva estava começando. Apesar da hora e do céu ainda nublado, uma estreita faixa azul no horizonte ficava cada vez mais larga. Eu havia observado o céu várias vezes durante o dia. As nuvens começaram a dispersar-se tomando formas estranhas, e o sol poente, já chegando ao mar, as tingia de diferentes tons de rosa, vermelho e púrpura. O resultado era sensacional. Subitamente toda aquela beleza natural me deu vontade de compartilhar a vida com Selim. Essa vontade foi ficando cada vez mais intensa e decidi ir procurar Salman. Encontrei-o passeando na parte inferior do jardim, onde há degraus que levam até a praia. Ele também estivera admirando o pôr-do-sol. Não parei para refletir. Contei-lhe a história do meu amor enquanto caminhávamos de um lado para o outro do jardim. Ele não me interrompeu uma única vez. Esperou que eu chegasse ao fim e lhe houvesse contado tudo. Eu contei tudo.

Contei até que Selim entrava em nossa casa à noite, dirigindo-se a meu quarto e a meu corpo.

Salman passou um braço sobre meus ombros, sorrindo.

— Acho que é perigoso continuar a fazer as coisas dessa maneira. Vou conversar com Halil para ver se nosso jovem amigo pode ser recrutado pelo exército como oficial ainda esta semana. Depois falarei com papai e você precisa falar com sua mãe na mesma ocasião. Ceio que se fizermos uma operação combinada teremos sucesso. Mas diga-me uma coisa, irmãzinha. Desta vez você tem certeza do que quer?

Assenti em silêncio.

— Quando estivemos juntos pela primeira vez, foi como se um raio atravessasse os nossos corpos ao mesmo tempo.

Ele riu.

— Eu sei como são esses raios. Cuide-se para que eles não a queimem. Lembre-se de que seus efeitos não duram para sempre. Os raios são sempre diferentes uns dos outros e é possível que deixem de atingi-la também.

— Eu sei disso — retruquei.

— Mas conosco eles vão ficando cada dia mais intensos. Não se trata de uma simples paixão, Salman. Há muitas coisas que nos unem e ele sente um carinho verdadeiro por Orhan. Há uma afinidade natural entre nós. Isso não é uma coisa rara?

— É, mas como pode haver essa afinidade natural se você nunca tinha ouvido falar de Auguste Comte? — disse ele, provocando-me.

— Talvez você tenha que mudar seus hábitos de leitura.

Então foi a vez de meu irmão me contar a sua história. Quando terminou e viu as lágrimas que me escorriam pelo rosto, Salman me abraçou.

— Eu já parei de chorar há muito tempo, Nilofer. Você não deve chorar por isso agora. A vida é cheia de dor e sofrimento, mas há sempre uma saída. Sempre. Se você deixar de acreditar nisso, será seu fim. Eu estive à beira da autodestruição. Tudo me parecia fora de foco e eu não conseguia mais ver o contorno do meu futuro.

Foram Hamid Bey e Tio Kemal que salvaram minha vida. Jamais poderei pagar-lhes pelo que fizeram por mim. Agora estou em paz comigo mesmo e aguardo impacientemente uma transformação no mundo.

— Você nunca pensa nela?

— Não.

— Isso me assusta, Salman. Como é possível que tudo deixe de existir se você a amou tanto? Se o amor é tão efêmero e transitório, que esperança há para nós?

— Ele não deixou de existir sem mais nem menos. Ela enfiou uma adaga em meu coração. O amor simplesmente sangrou até morrer. As feridas permaneceram abertas por muito tempo, mas agora estão curadas. Quando penso nesse episódio de minha vida, tenho raiva de mim, não dela. Fui eu que me enganei com ela. Quer saber de uma coisa? Acho que ela teria feito aquilo comigo mesmo se os filhos fossem meus. Havia em seu caráter um veio de puro masoquismo. Não desejo mal algum a ela ou àquelas pobres crianças. A única pessoa de Alexandria de quem sinto saudades é Hamid Bey. Ele é um ser humano muito bom e espero que tenha encontrado paz, finalmente. Por que há tanta infelicidade em nossas vidas?

Quando se está feliz, não é possível responder a uma pergunta dessas. Mudei o rumo daquela conversa.

— Salman, há uma outra coisa que eu queria lhe perguntar.

Ele me olhou e sorriu.

— Hoje foi declarado o dia em que os segredos da família foram abolidos. Pergunte o que quiser saber e a verdade lhe será dita. — Você conhece a história de Sara, minha mãe? Ele se mostrou preocupado com minha pergunta.

— Eu conheço a história de Hatige, sua mãe.

— É a mesma história.

— Discordo. — Por quê?

— Sara amava um outro homem, que a abandonou. Hatige sua mãe e esposa de meu pai.

— Você se engana, Salman. Sara é minha mãe e Hatige é esposa de seu pai.

— Ouvimos tudo isso muitos anos atrás, mas papai a amava tanto quando você era criança que essa história morreu aí.

Uma empregada que servia à mãe de Halil foi mandada embora porque insistia em falar no assunto. Se Iskander Pasha fosse infeliz com sua mãe, todo mundo nesta casa falaria dela e de seu pai verdadeiro e a vida de sua mãe seria insuportável. Isso nunca aconteceu. Nós sempre nos sentimos felizes com aquela menina tão linda e tão diferente da nossa família. O que todos mais apreciávamos era a força de seu caráter. Às vezes gostaria que Zeynep fosse um pouco como você. Ela aprendeu a sofrer em silêncio, o que não é bom para pessoa alguma. Agora, basta de conversa sobre a família por hoje. Vou procurar o General para falar com ele sobre o seu futuro. E você deveria ir diretamente para a biblioteca estudar Comte.

Isso só poderá fazê-la ainda mais feliz!

Nós ríamos ao tomar o caminho de casa. Havia escurecido subitamente, mas as nuvens tinham desaparecido e as estrelas começavam a encher o céu. Paramos junto à porta para apreciá-las por alguns instantes.

Salman deu um suspiro.

— Há uma lembrança que ficará comigo para sempre. Quando eu estava fugindo de Alexandria, a caminho do Japão, nosso navio atingiu a linha do Equador. Era uma noite de verão, porém já era bem tarde e todos estávamos em nossos camarotes. O comandante certamente já havia passado por aquela experiência muitas vezes, mas naquele momento deveria haver alguma poesia em sua alma. Ele mandou baixar a âncora e convocou-nos ao convés. Nunca vi o céu como estava naquela noite. Era como se estivéssemos na extremidade do mundo. O céu parecia um mar de estrelas que se fechava sobre o mar onde estávamos. Naquele instante tive a certeza de que me recuperaria. Quando comparadas à grandiosidade do universo, nossas emoções são ínfimas, são quase nada.

Pouco depois, já sozinha, fiquei pensando no drama de Salman. Alguns aspectos da sua história não saíram da minha cabeça por muito tempo. Tudo tinha dado errado na vida dele, mas, mesmo assim, apesar de tanta tristeza, ele a havia refeito. Voltara a ser a pessoa gentil e generosa que eu conhecia quando criança. Sua mãe morreu ao pô-lo no mundo. Ele não fora capaz de dar filhos à esposa. Sua semente seria mesmo infértil, ou algo mais profundo em sua alma o havia impedido de fazer um filho? Não seria por medo de que a mulher amada também morresse ao dar à luz uma criança? Aquilo me deixou muito aflita. Desejei que ele encontrasse uma mulher que o fizesse realmente feliz. Desejei que ele tivesse ao menos um filho seu. Não me agradava a idéia de ver meu irmão mais querido envelhecer sozinho. Há limites para a solidão. Mas talvez eu estivesse equivocada. Talvez ele não precisasse de uma companheira estável. Talvez ele seguisse os passos de Tio Kemal e passasse o resto da vida viajando, livre, encontrando algum conforto onde pudesse, sem pensar muito no passado ou no futuro.

Depois de pôr as crianças para dormir, dirigi-me ao quarto de minha mãe. Faleilhe de minha decisão de casar-me com Selim. A notícia não abalou sua serenidade.

— Eu sabia que isso ia acontecer. Espero que este casamento dê mais certo para você, apesar de você ser muito jovem e poder ter ainda uma terceira oportunidade.

Quando percebi que ela falava a sério, dei uma gargalhada.

— Compreendo que sua confiança na minha capacidade de escolher esteja abalada, mãe, mas gostaria que me desse um pouco mais de crédito. Eu não cometeria o mesmo erro duas vezes. Tenho pensado muito sobre o assunto e me feito as perguntas mais escrutadoras. Não estou sendo levada por um sonho. Sei exatamente onde estou pisando. Sei que vou ser feliz com Selim. Tenho certeza disso, mãe. Desta vez tenho certeza. — Espero que sim, filha. Desta vez você não está sozinha. Há duas crianças cujas vidas estão ligadas à sua decisão. Não quero que você seja como o camelo que foi pedir para ter chifres e acabou perdendo as orelhas.

Eu nunca tinha ouvido Sara falar daquela maneira.

— Onde é que você foi arranjar essa história, mãe?

— Meu avô costumava dizer isso quando minha mãe era pequena.

Ele era um estudioso do Talmud e tinha o hábito de falar desse jeito. Esse camelo sempre era lembrado quando meu tio queria arriscar nos negócios. Mas a história dele foi muito diferente da do camelo. Tio Sifrah é um dos banqueiros mais ricos da Europa. O Sultão está sempre tomando empréstimos com ele.

— Então ele não ficará rico por muito tempo, mãe. É melhor avisá-lo para pegar seu dinheiro de volta e ir para Paris ou para Nova York.

— Por que você está falando essas coisas? Isso não é assunto meu. Agora me diga uma coisa, Nilofer, é você quem irá falar com Iskander Pasha sobre Selim, ou sou eu?

— Iskander Pasha já foi informado e veio dar sua bênção.

— Meu pai, com um belo sorriso no rosto, acabava de entrar no quarto. Abraçou-me e beijou meu rosto.

— Desta vez você fez uma boa escolha.

— Tem certeza disso, Iskander? — perguntou minha mãe.

— O grego, pelo menos, era mestre-escola. Iskander Pasha deu uma risada.

— Este jovem vai longe se aprender a controlar a língua e não esperar que a lua lhe caia no colo quando ele bem quiser. Fico, de fato, feliz. Hasan Baba é praticamente membro da família e, como você sabe, somos amigos íntimos há muitos anos. Essa notícia fez com que ele chorasse de alegria. Agora quero que você desça, Nilofer. Seus irmãos estão tomando informações sobre Selim e o Barão e Memed já estão celebrando com uma garrafa de champanhe e esperando para lhe dar os parabéns. Preciso ter uma conversa a sós com sua mãe.

A conversa estava animada quando entrei na biblioteca, mas minha chegada fez com que todos se calassem. O Barão se pôs de pé e propôs um brinde a Selim e a mim.

Hasan Baba veio e beijoume a cabeça. Halil passou os braços em volta de mim e sussurrou:

— Pelo menos estaremos todos presentes desta vez. Salman acenou-me de um canto da sala. Selim parecia estar encabulado e desviou os olhos dos meus. Aquele seu jeito extremamente confiante tinha desaparecido. Eu o havia surpreendido. Ele não acreditava que eu fosse tão longe tão depressa e tinha que lidar com a minha decisão. O Barão foi o primeiro a falar:

— Minha querida Nilofer, estávamos aqui discutindo quando vocês dois devem se casar. Há uma grande diferença de opiniões nesse sentido e discutíamos calorosamente quando você surgiu como uma deusa grega. Memed é de opinião que deva ser em outubro que, segundo ele, é um belo mês. Nisso eu concordo com ele. Istambul fica linda em outubro. Para Salman, tanto faz. Halil prefere setembro, já que estará em manobras militares em outubro e supõe, naturalmente, que seu novo ajudante-de-ordens Selim esteja com ele. Você tem alguma preferência?

Achei que aquela história ia render muito e não tinha pensado em uma data. Decidi surpreender a todos, inclusive a mim.

— Por que não amanhã à tarde nesta sala mesmo? De manhã eu falo com as crianças.

O Barão bradou:

— A menina é corajosa. Nisso temos que concordar! Tio Memed sorriu.

— Ótimo. Assim, pelo menos, não serei perturbado a altas horas toda noite por um jovem matreiro subindo a escada na ponta dos pés a caminho de seu quarto. Que esta seja uma noite de descanso para que amanhã possamos dançar e cantar.

Senti meu rosto enrubescer e olhei no grande espelho para confirmar. O Barão e Memed sabiam de tudo desde o início. Apesar do seu tamanho, aquela casa não guardava segredos. Selim estava de pé junto à janela. Aproximei-me dele. Olhamo-nos e começamos a rir. A voz de Tio Memed rompeu aquele nosso instante de privacidade.

— Você já leu o que Stendhal disse sobre o amor, Barão?

— Não — disse o Barão.

— E não tenho a menor intenção de fazê-lo. Fico estupefato por você desperdiçar seu tempo com Stendhal. Ele escreveu coisas demais, rápido demais. Seus livros não entravam em nossa casa em Berlim. Os únicos romancistas franceses permitidos em nossa biblioteca eram Balzac e Flaubert e apenas Flaubert foi realmente um gênio.

— E o que nos diz de Rimbaud e Verlaine, Barão? — perguntou Salman.

— Esses eram permitidos em sua biblioteca?

— Eu me referia a romancistas, Salman Pasha.

— O tom de voz do Barão revelava que ele não estava a fim de brincadeiras naquela noite.

— É claro que os poetas que você menciona estavam lá, mas acho Verlaine exuberante demais para meu gosto. Os românticos ingleses, Shelley e Keats, produziram poesia de qualidade bem superior.

Desculpe um velho por seus preconceitos, Salman, mas nós, alemães, somos terrivelmente exigentes. Depois de Goethe, Shiller, Holderlin e Heine, temos dificuldades em levar a sério os fazedores de versos franceses. Há que considerar Pushkin, é claro, mas isso é outra história, embora eu me pergunte às vezes quanto da música em seus versos foi herdado de seu antepassado africano e quanto foi inspirado por aquelas malditas terras bárbaras que chamam de Rússia.

Antes que pudéssemos discutir a exclusão de Stendhal da biblioteca do Barão em Berlim, Iskander Pasha entrou na sala para perguntar se já havíamos decidido qual seria a data do casamento. Ele achou muita graça da sugestão de que fosse no dia seguinte. Quando percebeu que não se tratava de uma brincadeira não perdeu a pose e voltou-se para Hasan Baba. — Precisamos de um barbudo para oficiar o casamento, ou você mesmo dá conta disso, Hasan? Duvido que mais alguém aqui conheça as palavras da oração para essas ocasiões.

O rosto de Hasan Baba se contorceu num sorriso.

— O senhor sabe tão bem quanto eu que nossa religião não foi feita para padres ou monges. Na verdade, podia-se casar sem essa oração, que só foi instituída de uns tempos para cá. Essas coisas foram inventadas para que pudéssemos nos comparar aos cristãos. Se eles tinham padres, nós também precisaríamos ter os nossos. Na nossa fé não há divisão entre o espiritual e o temporal.

— Isso tem sido um grande problema para nós — disse Halil.

— Não quero saber de detalhes teológicos esta noite — interveio Iskander Pasha para guilhotinar a discussão.

— Só quero saber quem vai oficiar o casamento amanhã. Esta é uma questão de ordem prática. Se um barbudo for necessário, precisamos mandar um mensageiro ainda esta noite.

— Eu casarei estas crianças — disse Hasan Baba.

— Se tivermos duas testemunhas confiáveis, não precisarei de mais nada. Sugiro que Iskander Pasha e o General Halil Pasha sejam as testemunhas. Isso basta.

Corri para dizer a Sara que já tínhamos dia e hora para o casamento, mas ela já dormia profundamente, ressonando de leve. Fui para meu quarto sentindo que algo perturbava minha alegria. Eu me sentia segura quanto a Selim, mas alguma coisa ainda me incomodava. Por quê? Eu deveria estar exultante, entoando canções de alegria infinita como o famoso pássaro do poema sufista. Tudo estava sendo feito como eu desejava.

Eu estava intrigada por nenhum deles ter feito qualquer objeção ao pedigree de Selim. Dez anos antes, teriam feito um estardalhaço. Teriam me olhado com desprezo à mesa do café, acusando-me de manchar o nome da família ao me casar com um barbeiro cuja família trabalhava para a nossa havia séculos. O que os havia feito mudar tanto? Teriam sido suas próprias experiências de vida associadas à passagem do tempo que os tornaram mais razoáveis? Ou seria algo muito mais profundo, algo bem maior que qualquer indivíduo? Seria o iminente colapso do Império e da civilização otomanos dos quais éramos parte?

Dei-me conta, então, de que a causa do meu desconforto foi a facilidade com que minha família havia concordado com o casamento. Mas qualquer que fosse o motivo, eu estava feliz. Já não me importava mais. Estava olhando pela janela, pensativa, quando senti duas mãos segurarem meus seios ternamente. O susto fez com que eu gritasse e logo uma das mãos me cobriu a boca.

— Selim!

— Você pensou que eu fosse ficar tão emocionado que realmente não viesse esta noite?

— Pensei.

— Bem, então se enganou. Gostou de ter se enganado?

— Gostei. Mas antes que você tire a roupa, quero saber por que concordou em entrar para o exército.

— Para tornar tudo mais fácil para todos. Poderão dizer que Nilofer está casada com um jovem oficial que serve sob as ordens de Halil. Soa melhor do que dizerem: "Nilofer casou-se com o neto de um barbeiro. Pois é, ele é barbeiro também. Isso é ótimo, pois assim não precisaremos chamar alguém de fora da família para fazer as circuncisões."

Não pude deixar de rir, porque ele disse isso imitando à perfeição o jeito de minha mãe falar. Mas eu sabia que aquela brincadeira escondia a verdade. Ele jamais teria concordado em entrar para o exército a fim de preservar o orgulho de nossa família. Ao contrário, ele mesmo diria aquelas palavras, que fez parecerem de minha mãe, sempre que tivéssemos visitas. Só para vê-las chocadas.

— Não acredito nisso, Selim. Quero a verdade.

— Os oficiais estão planejando livrar-se do Sultão, de sua corte e do clero, com seus privilégios, e sabe-se lá quem mais vai de roldão quando os empurrarmos lá do alto. Não temos um partido político em nosso país como o Social Democrata da Alemanha ou o Partido Social Francês.

Talvez nem cheguemos a ter um partido desses, mas enquanto não o temos, o exército é um bom lugar para mim.

— Mas Selim — argumentei, elevando a voz -, e se houver uma guerra? Você pode ser morto!

— Nós somos pobres e fracos demais para entrarmos numa guerra — disse ele rindo. — Não vamos lutar contra nossos inimigos externos. Se eles atacarem, nos renderemos rapidamente, sem qualquer resistência. A guerra para a qual estamos nos preparando é contra a tradição e o obscurantismo em nosso próprio país. Se nos livrarmos deles, poderemos voltar a ser fortes.

Sentime aliviada. Se ele tivesse concordado com a proposta de Halil apenas para agradar-me e ficar bem com a família, mais cedo ou mais tarde o rancor haveria de vir à tona. A decisão foi dele, por suas próprias razões.

— Agora você pode se despir e vir para a cama. Ele fez o que pedi.

— Nilofer — sussurrou ao me envolver em seus braços -, amanhã será um dia importante de nossa vidas e acho que devemos controlar nossa paixão esta noite. Vamos ficar só assim, deitados juntos, e sonhar. Depois vou-me embora para que possamos dormir bem esta noite. O que acha disso?

Coloquei minha mão entre suas pernas e senti que um velho amigo estava intumescido.

— Lamento dizer, Selim, que sua mente é incapaz de controlar seu corpo. Para um jovem oficial, isso não é nada bom.

Ele se pôs a rir, com os lábios a procurar meus mamilos, e eu me deitei por cima dele.


15

Nilofer manda Selim desanuviar os pensamentos
indo falar com a Mulher de Pedra;
a experiência o surpreende

Meu nome é Selim, Mulher de Pedra. Sou o novo marido de Nilofer e foi ela quem me mandou aqui. Falou-me a seu respeito, sobre os segredos que você guarda e do bem que você proporciona às pessoas, inclusive àquelas cujos problemas são tão íntimos que nem mesmo elas se dão conta. É verdade mesmo que durante séculos somente as mulheres vinham ter com você aqui? Por que seria assim?

O que sei é que vivemos numa época em que todos se sentem inseguros quanto ao futuro e que os homens também sentem necessidade de discutir seus problemas e suas preocupações. Isso acontecia na aldeia onde meu pai nasceu. Hasan Baba costuma me falar sobre aqueles tempos na nossa aldeia e de como, nas tardes de inverno, os homens se reuniam uma vez por semana. Sentavam-se em círculos com suas cobertas enroladas nos ombros e aqueciam suas mãos junto à fogueira enquanto falavam de seus problemas na esperança de ouvir um conselho sábio. Nessas ocasiões raramente falavam sobre suas lavouras ou sobre a escassez de água na aldeia. Tampouco falavam do coletor de impostos inescrupuloso que, em lugar de dinheiro, insistia em receber outros bens, inclusive jovens mulheres. Esses problemas eram especiais. Eram parte de suas vidas.

Os círculos de inverno eram organizados para que se discutissem problemas do coração, e os homens mais jovens, geralmente tímidos demais para falar num determinado inverno, já alguns anos depois participavam ativamente. Hasan Baba diz que as inibições eram raras.

Era uma aldeia onde conviviam armênios e curdos, embora nós, turcos, constituíssemos a maioria. Os armênios possuíam algumas das melhores terras e num determinado ano os curdos atearam fogo às suas casas e os expulsaram de lá. Por sorte ninguém morreu. Depois da expulsão dos armênios acabaram-se as reuniões de inverno. Meu avô diz que aquilo rompeu a solidariedade da aldeia e os que ficaram não conseguiam mais olhar os outros nos olhos. Haviam cometido algo tão terrível contra outros seres humanos que já não podiam julgar-se capazes de solucionar os problemas uns dos outros.

Acho surpreendente que alguém venha procurá-la aqui, Mulher de Pedra. Vista de longe, você parece uma estátua em ruínas de deusa pagã, mas de onde estou agora você não passa de uma pedra muito grande, e é bem desconfortável estar sentado aqui. Entretanto, centenas de nádegas bem almofadadas vêm se sentando nesse mesmo lugar há muitos anos. Já deveriam ter transformado esta pedra num assento liso e confortável. Não estou achando nada fácil falar com uma pedra. Na verdade, não acho que isso seja necessário, mas Nilofer insistiu em que eu partilhasse desta experiência. O único assunto que eu não discutiria com um amigo íntimo ou com meu avô é a relação íntima que tenho com Nilofer. Esse é um segredo precioso que só a nós pertence. É uma coisa tão linda que conversamos sobre ela todos os dias. Se, por algum motivo, surgir algo de que eu não possa falar com ela, talvez faça sentido vir até você. Mas até agora isso não aconteceu.

Há um pequeno problema. O menino Orhan ficou um pouco desapontado quando Nilofer lhe falou sobre nós. Nos dias seguintes à cerimônia do casamento ele se afastou consideravelmente. Recusava-se a falar comigo e a fazer nossa caminhada diária pelas colinas. Ele agora já está se recuperando e tenho certeza de que voltará ao que era. Seu comportamento é natural. Nenhuma criança deseja que seu pai seja substituído, ainda que o pai esteja morto. Quando o pai está vivo, mesmo atormentando a mulher e os filhos, é difícil ficar contra ele. Quando eu tinha a idade de Orhan, às vezes ouvia meu pai bater em minha mãe. Enfiava os dedos nos ouvidos para não ouvir os gritos dela.

Um belo dia cheguei em casa inesperadamente e encontrei minha mãe copulando com um estranho. Mesmo sabendo que meu pai era cruel, não pude aceitar a presença daquele homem. Quando ele se foi, briguei muito com minha mãe. Ofendi-a e chorei muito de raiva. Minha mãe ficou aterrorizada. Pensava que eu fosse contar tudo a meu pai.

Disseme que se eu contasse a meu pai o que tinha visto, ele a mataria sem piedade. Ela me silenciou pelo medo.

Eu acreditei no que ela disse, Mulher de Pedra. Meu pai se dizia sufista e certamente sabia intoxicar-se, cantar suas canções e dançar a noite inteira, mas a filosofia nunca chegou a afetá-lo internamente. Ele pode ter sido dervixe, mas era também um homem ignorante e cruel. Fiquei perturbado ao ver minha mãe com outro homem, mas esse fato não fez com que eu amasse meu pai. É claro que nada disse a ele nem a ninguém sobre o incidente. Por que será que o contei a você?

Foi nessa ocasião que meu avô, com o consentimento dos dois, levou-me para longe de meus pais a fim de cuidar da minha educação. Aprendi a ler e a escrever e depois passei a freqüentar o medresseh. Nunca mais os vi. Já se passaram dezoito anos e eles não demonstraram o menor interesse por mim. Considero Hasan Baba meu pai e minha mãe.

Mas uma coisa me preocupa, Mulher de Pedra. Quando meu pai ficar sabendo do meu casamento com a filha de Iskander Pasha, pode querer tirar alguma vantagem disso.

Pode surgir de repente com o pretexto de nos visitar e conhecer sua nova nora, mas na verdade virá atrás de dinheiro. Não falei disso com Nilofer. Ela acharia graça e não daria importância a isso. Quero que você entenda que não é da pobreza de meu pai que me envergonho. É de seu caráter. Ele é uma criatura repugnante e ruim e não quero que ele nos visite nesta casa ou em Istambul. Falei disso com Hasan Baba. Essa possibilidade também o incomoda, mas ele já está velho e nada pode fazer para evitar que aconteça. Não tem conselhos a me dar e apenas balança a cabeça e olha para o céu, suplicante.

Acho que vou falar de meu pai com Nilofer e com a mãe dela, para o caso de aquele pilantra aparecer quando eu estiver fora, a serviço do General Halil. Quando está sóbrio, ele parece normal e até mesmo simpático, mas elas precisam estar em guarda.

Agora vou deixá-la, Mulher de Pedra. Parto surpreso com o resultado desta visita. Acabei mesmo revelando um segredo e isso vai me ajudar. Nilofer vai gostar de saber."


16

O Comitê em prol da União e do Progresso reúne-se
para conspirar contra o Sultão;
o Barão revela a presença de um espião;
Nilofer prefere ser otomana a ser turca

Já estávamos tão acostumados à convivência só daquele nosso grupo nas últimas semanas, que até me assustei um pouco ao perceber a nuvem de poeira que se erguia ao longe. Mas os cavaleiros que vinham em nossa direção não chegavam de surpresa. Halil e Selim esperavam aquela chegada com um misto de excitação e curiosidade.

Corri para informá-los de que suas visitas estavam por chegar e fomos, os três, esperá-los no terraço à frente da casa.

O coche trazia dois generais, sendo um deles bem baixinho. Os quatro jovens oficiais, um dos quais bem mais moço que Selim, vinham a cavalo. Desmontaram rapidamente e prestaram continência a Halil. Em seguida meu irmão desceu a escada para receber seus colegas generais. Eles se saudaram, alegres, porém até eu, que nada entendo de política, pude perceber a tensão que havia no ar. Selim foi apresentado aos recém-chegados, mas notei que não se mencionaram nomes. Levei-os para dentro de casa e fomos para a sala de jantar, onde seria servida a refeição da manhã. Halil fez questão de manter absolutamente secreta aquela reunião, portanto apenas Petrossian pôde servir a refeição. Meu irmão não quis sequer que a identidade dos oficiais ali presentes fosse conhecida por pessoa alguma. O Barão e Memed ficaram aborrecidos por sere deixados de fora, mas tiveram que acatar a decisão.

Eu também já estava de saída quando um dos oficiais, o jovem deles, fez com que eu parasse.

— Esta é sua irmã, General Halil? Meu irmão disse que sim, acrescentando:

— É também esposa do nosso novo companheiro.

— Ela está do nosso lado? — perguntou o mesmo oficial. Olhei-o bem nos olhos.

— Sim — respondi eu mesma.

— Ótimo — disse ele com uma voz grave.

— Neste caso, deve ficar conosco. Queremos acabar com essa mentalidade segundo a qual as mulheres só servem para as coisas do coração e do lar ou para fins de procriação. Nós também queremos que elas participem dos assuntos de Estado. Queremos deixar de incentivá-las a se restringir a essas atividades triviais que inventaram para ocupar o tempo enquanto nós trabalhamos. O único motivo de eu não ter trazido minha esposa comigo é o fato de o pai dela estar gravemente enfermo. Estamos de acordo?

Os outros sorriram e concordaram em silêncio. Que estranho, pensei comigo mesma, que este jovem agradável e de bigodinho fino possa falar com tanta autoridade na presença de três generais. De onde virá tanta confiança?

A conversa durante a refeição foi muito reveladora. A todo instante eles se referiam ao Comitê. A princípio pensei que se tratasse do codinome de seu líder, mas logo ficou claro que o Comitê era uma sociedade secreta à qual pertenciam. Fiquei sentida com o fato de Selim não me haver feito qualquer referência a ela antes, e como o jovem oficial havia insistido para que eu ficasse ali, achei que minha voz poderia ser ouvida novamente.

— Perdão, cavalheiros, mas que Comitê é esse de que falam?

O jovem oficial olhou para Selim e para Halil espantado.

— Nenhum dos dois falou a ela do Comitê? Os dois ficaram encabulados e evitaram meu olhar.

— O Comitê, minha senhora — disse o oficial — é o nome da maior sociedade secreta já criada em toda a história do Império. É o Comitê em prol da União e do Progresso ao qual todos nós pertencemos. É secreto, mas eles sabem da nossa existência e há espiões por toda parte. Não é restrito a militares, embora formemos o maior contingente em suas fileiras. Há muitos escritores e funcionários civis que também pertencem a ele. Alguns dos nossos melhores quadros atuam a partir de Paris e de Salônica.

Namik Kemal, cuja peça Vatan a senhora já deve ter visto ou ouvido comentários a respeito, é um dos nossos inspiradores. A partir de hoje, se a senhora concordar com nossos objetivos, estará convidada a participar do Comitê. Minha esposa é membro atuante em Istambul. Ela leciona no lycée Galatsaray e está organizando um grupo de mulheres que comungam dos mesmos ideais.

Disselhes que me sentia honrada com o convite e que lhes daria uma resposta até a noite. Foi o mais velho dos dois generais quem falou então com uma voz tão suave e feminina que cheguei a pensar que ele talvez tivesse sido castrado em um acidente. Não era, com toda a certeza, um general imponente. Era baixo, tinha a cabeça raspada e uma barriga que chamava a atenção. Como era tão diferente dos demais oficiais, simpatizei com ele. Mas algo de errado deve ter ocorrido em alguma época de sua vida, pensei. Ele falava com uma voz esganiçada de menina e o efeito era desconcertante. Achei muito difícil manter-me séria enquanto ele falava.

— Temos um enorme prazer em conhecê-la. Agora precisamos ter uma reunião particular para discutirmos certos pormenores logísticos. No caso de ocorrer alguma emergência, precisamos ser capazes de entrar em ação sem contar com o luxo de uma consulta ampla a outros membros. Infelizmente essa discussão é restrita a oficiais, mas já deveremos tê-la concluído depois do almoço e teremos um enorme prazer se a senhora puder juntar-se a nós na parte da tarde. Sorri e deixei a sala.

Quando cheguei ao jardim, dei um suspiro de alívio, sentei-me em um banco e comecei a rir. Estava tão absorta no que acabara de ocorrer, que nem percebi a presença de Tio Memed, confortavelmente sentado em sua cadeira predileta sob a nogueira. Estava concentrado na leitura de um livro e franziu a testa ao ser perturbado por minhas risadas, mas logo sorriu ao perceber que era eu quem estava ali. Fez um gesto solene com o indicador convocando-me para junto de si. O Barão, que nunca se encontrava muito longe de Tio Memed, surgiu do outro lado da árvore ajustando seu pince-nez.

— Venha contar o que há de tão engraçado a seu tio predileto. Expliquei o motivo do meu riso e Memed, que tem uma risada contagiante, pôs-se a rir também, o que me fez rir ainda mais. Olhei para o Barão esperando ouvir dele uma preleção sobre a voz humana e as circunstâncias que a afetam, mas ele subitamente tornou-se alheio a tudo, pensativo.

— Barão? — exclamou Memed, preocupado com a expressão do amigo.

— Um pensamento horrível me passou pela cabeça ao ouvir a história de Nilofer, mas não precisam se preocupar comigo. E você, jovem senhora, está sabendo que seus filhos foram passear de barco a vela com Salman?

— Não. Ninguém me pediu permissão. E nenhum dos dois sabe nadar.

— Não vão precisar nadar. Veja o mar como está. Está bem calmo hoje. Já há algum tempo que os observo com meus binóculos, e eles parecem estar bastante felizes.

Tome aqui, veja você mesma.

Peguei os seus binóculos e caminhei até o fim do jardim para poder ver melhor. Ele tinha razão. O barco não tinha se afastado da praia, o mar parecia estar tranqüilo e tudo estava bem. Ainda assim fiquei aflita com a idéia de eles terem ido para o mar na minha ausência. A morte jamais havia me passado pela cabeça até o assassinato de Dimitri. Agora vivo assustada. E se eu morrer?

Quem cuidará das crianças e as amará como eu? Às vezes tenho pesadelos angustiantes nos quais as crianças estão em perigo e eu não consigo chegar a elas a tempo.

Esses sonhos são tão carregados de emoção que sempre acordo e corro para junto deles a fim de ver se estão dormindo tranqüilamente.

Repreendi Salman quando eles voltaram, mas as crianças lançaram-se em sua defesa. Ultimamente ele vinha passando mais tempo com elas do que nós e eu tinha certeza de que ele lhes falava de Selim e de como era bom que eu tivesse me casado novamente e fosse feliz. Percebi que Orhan havia voltado a ser como antes.

Eu achava estranho, porém, que Emineh, sempre mais chegada ao pai do que Orhan, não tivesse manifestado qualquer sinal de ressentimento ou de hostilidade. De fato, seu relacionamento com Selim, praticamente nulo de início, havia se tornado carinhoso e ela estava perdendo a timidez que sentia diante dele. Dei-lhes os binóculos para que eles vissem o veleiro onde tinham estado afastar-se mar adentro. Salman me deu o braço e caminhamos em direção ao jardim.

— A conspiração está se saindo bem, Nilofer? Quando poderemos contar com nossa libertação?

— Hoje à noite vou ter mais informações, mas você, que é uma pessoa bem informada e viajada, deveria entrar para o Comitê.

Ele sacudiu a cabeça negativamente e com firmeza.

— Quanto a isso, concordo com meu pai. Aliás, essa identidade de pontos de vista nos aproximou. Nós achamos que o Comitê é excessivamente dominado pelos militares. Se nos livrarmos do labirinto do clero e dos eunucos da corte, teremos dado um grande passo à frente, mas se os substituirmos pelos homens de farda não chegaremos onde precisamos chegar e onde nossos inimigos já chegaram.

— Quem mais poderia levar avante a mudança? Os poetas?

— Pelo amor de Deus, Nilofer — disse, rindo -, você já se tornou uma deles?

— Estou pensando seriamente nisso. Ele me falou de seus outros temores. O último período de reforma havia sido construtivo.

— Substituir a túnica e o turbante pelo stambouline e o fez pode ter sido simbólico, mas foi um começo. Mais importante que isso foi a natureza igualitária do edito de 1839 que anunciava as reformas. Foi também generoso, visto que ofereceu as mesmas oportunidades a todos os súditos do Império. Agora a disposição é outra.

Há pessoas no seu comitê que acreditam em pureza da raça, e essas pessoas, minha querida irmã, me causam medo. Acho que toda essa conversa de pureza é muito perigosa.

— Por quê? — perguntei, para dar continuidade à discussão.

— Ninguém acusa os gregos de terem sido perigosos quando desejaram sua pureza e para isso quiseram isolar-se de todos os demais. Na verdade, a maior parte da Europa ficou a favor deles.

— A pergunta é a seguinte — disse Salman -: vamos cortar o pescoço de todos os gregos que desejam permanecer aqui? Fazer o que fizeram com o seu falecido marido?

E todos os armênios serão expulsos de suas casas? A família de Petrossian mora em sua aldeia há mais de quinhentos anos, o mesmo tempo que os otomanos governam esta terra. Vamos purificar a aldeia de Petrossian? São perguntas deste tipo que precisam ser respondidas. Pergunte a seus novos amigos o que pretendem fazer depois que puserem o Sultão Abdul Hamid num barco e o mandarem para a Inglaterra.

Salman me fez pensar seriamente em tudo aquilo. Eu era a favor de uma mudança radical, mas não concordava com aquela idéia de pureza da raça, principalmente se aquilo significasse expulsar do Império todos os súditos cristãos. Salman tinha toda a razão quanto a isso, mas a verdade é que sempre se instala o caos quando um império está desmoronando.

O Profeta Memed teria sido capaz de conseguir sucesso tão rapidamente se o Império Romano não estivesse em estágio terminal de declínio? Os exércitos muçulmanos tomaram a Espanha com uns poucos milhares de soldados. Isso jamais teria sido possível se Roma ainda fosse poderosa. E o nosso próprio Osman? Teria obtido sucesso se o Império do Ocidente já não estivesse entrando em decadência? Tudo que havíamos conquistado no passado começou a ser tomado de nós quando nossa decadência teve início. É assim que as coisas acontecem no mundo. A Inglaterra e a França estão à nossa frente, como nós já estivemos à frente dos romanos e dos bizantinos.

Quando o Sultão for deposto, haverá o caos. Eu não precisava ser uma grande pensadora para chegar a esta conclusão. Qualquer um podia ver isso. O Comitê era importante porque poderia ser capaz de controlar o caos e minimizar a confusão que estava por vir.

Eu já ia me juntar a meus novos amigos na biblioteca quando percebi o Barão e Tio Memed conversando seriamente com Halil, que parecia muito agitado com algo que o Barão acabava de lhe dizer. Vi que ele concordava sacudindo a cabeça e que em seguida saiu apressado em direção à casa.

Uma hora mais tarde o Comitê dava início à sessão na biblioteca. Halil parecia haver recuperado a calma. O general que não havia falado antes pigarreou e todos ficamos em silêncio.

— Não podemos mais deixar de encarar a nossa história presente. Nossa tendência é sempre a do ufanismo. Estamos sempre a olhar para o passado e a dizer para nós mesmos: nós, que partimos do nada, fomos capazes de construir um grande Império para a glória do islamismo. Nossos filhos ouvem falar constantemente de nossas vitórias, e não se pode negar que foram muitas no passado, mas nossa incapacidade de reconhecer nosso declínio foi o que nos trouxe a este impasse. Não desejo alongar-me nesta fala, mas permitam-me mapear a nossa decadência rapidamente. Há dois séculos estamos batendo em retirada.

"O fracasso em tomarmos Viena em 1683 foi o momento decisivo de nosso destino. Foi ali a grande reversão. O resultado dessa derrota foi o Tratado de Karlowitz, que assinamos há exatamente duzentos anos, em 1699, abrindo mão da Hungria para os Habsburgos e recuando para Belgrado. Em 1774 foi a imbecilidade otomana que deu à Rússia o poder para proteger os interesses de nossos súditos cristãos. Por que o Sultão ou o seu Vizir não reivindicaram o direito de proteger os sérvios russos, já que a maneira como eram tratados era uma afronta a toda a nossa população?

"Novas derrotas vieram em 1792, quando os franceses se preparavam para executar seu rei, e novamente em 1799, 1812, 1829 e vinte anos atrás, quando perdemos a Sérvia, a Romênia e Montenegro, além da Bósnia e da Herzegovina, que nos foram tomadas pelos austríacos. As armadas francesa e inglesa mandam seus navios até os limites de Istambul e ameaçam punir-nos caso não obedeçamos a seus ditames. Chegamos ao fim deste Império. Precisamos agir agora para limitar a escala do prejuízo. Isto é tudo que tenho a dizer no momento."

O general falou com uma voz clara e forte. O que ele disse, nós todos já sabíamos, mas aquela foi a primeira vez que eu ouvia falar de nossa decadência assim tão duramente. Uma pergunta me incomodava havia muito tempo.

— Perdoe minha ignorância, general, mas por que não fomos capazes de tomar Viena?

Todos deram um suspiro de exasperação, como se tivessem passado a vida inteira discutindo aquilo e de repente uma mulher quisesse saber a resposta. Foi o jovem oficial de Salônica quem respondeu.

— Como a senhora pode imaginar, isto é algo que nossos historiadores militares vêm discutindo há muito tempo, sem conseguir chegar a um acordo. A derrota de nosso exército fora dos limites de Viena em 1683 foi compreensível. Os Habsburgos e os poloneses dispunham das técnicas bélicas ocidentais. Nossos soldados estavam de moral baixo e descontentes. Acho que naquela ocasião não tínhamos mesmo condições de vencer. Mas a pergunta que precisa ser respondida é o que aconteceu quando estávamos no auge de nossas forças e as tropas do Sultão Suleman arrasavam tudo que estivesse à sua frente, tendo tomado Belgrado, Rhodes, a Hungria e a Transilvânia, mas pararam à entrada de Viena em 1529. Por que desmobilizamos o cerco quando a cidade já era praticamente nossa? Este é o verdadeiro mistério, porque naquela época nós tínhamos a hegemonia militar e politicamente tínhamos como aliados os melhores povos da Europa: os protestantes alemães e holandeses, bem como os judeus e os povos da nossa própria religião que haviam sido expulsos da Espanha. Se tivéssemos tomado Viena, poderíamos ter derrotado os católicos de uma vez por todas e modificado a face da Europa. Pense no que teria acontecido se revertêssemos os acontecimentos na Espanha. A vitória poderia ter nos forçado a nos modernizarmos duzentos anos atrás, acompanhando o resto da Europa. Na minha opinião, o momento decisivo foi quando Suleman não conseguiu tomar Viena. E cada pessoa aqui presente lhe dará um motivo diferente para essa derrota. Poderíamos levar semanas discutindo o assunto sem chegar a um acordo. Se a senhora está mesmo interessada na história militar otomana, programaremos uma noite em Istambul, quando poderemos reunir todos os especialistas no assunto. A meu ver...

Meu irmão Halil interrompeu a discussão.

— Sempre o passado. Sempre o passado. É o que costumamos acusar nossos inimigos de fazer. Vamos discutir o futuro. Antes de continuarmos, porém, tenho algo importante a dizer-lhes.

Há um velho amigo da família hospedado conosco. Ele era preceptor alemão, mas quando o irmão morreu ele herdou as terras da família na Prússia e tornou-se barão.

Ele diz que há nesta sala um espião a serviço do palácio. O Barão sabe disso porque estava presente em Berlim quando essa mesma pessoa negociou um tratado secreto entre o Sultão e a Prússia pelo qual nos comprometíamos a apoiá-los em qualquer conflito futuro na Europa. Em contrapartida, eles ajudariam a manter o Sultão no poder. Isso é uma traição dupla. A primeira delas é contra os interesses de nosso país. A segunda é contra o Comitê diretamente. Se tal pessoa se encontra de fato aqui, seria conveniente, a esta altura, que se identificasse.

Essas palavras causaram grande agitação. Os jovens oficiais puseram-se de pé, furiosos. O general de fala estridente começou a tremer. Ele olhava para o chão, mas todos olhavam para ele. Sua voz soou ainda mais esganiçada.

— Está havendo um completo mal-entendido. É verdade que eu estive em Berlim a pedido do Sultão, mas como poderia ter me recusado a ir sem trair nossa causa? Fiz o que o Grão-Vizir mandou que eu fizesse. Isso é crime?

Um longo silêncio seguiu-se à fala do general. O outro general ficou olhando para seu colega com uma expressão triste.

— Ordens precisam ser cumpridas. Nós sabemos bem disso. Mas por que você não me disse nada a respeito disso na ocasião? Eu era seu superior. E por que, quando você fez contato com o Comitê em Istambul, não informou seus membros, tampouco? Creio que seria melhor se nos dissesse a verdade, general.

O jovem oficial tomou a palavra novamente.

— O senhor deu nossos nomes a alguém?

— Como poderia fazer uma coisa dessas? O tom ameaçador da voz de Halil era novidade para mim.

— Você ele não conhecia, mas ele poderia ter dado os nomes

dos dois generais que propuseram a ele entrar para o Comitê. O senhor fez isso?

Comecei a sentir pena daquele homem com voz de mulher. Ele não parava de sacudir a cabeça, sem querer acreditar no que estava acontecendo. Foi se encolhendo como se quisesse desaparecer naquela enorme poltrona de couro verde desbotado de Iskander Pasha. Creio que estava perplexo com a coincidência de encontrar-se presente um junker prussiano com ligações com os líderes militares de Berlim e que, ainda por cima, o havia reconhecido. Sua perplexidade era compreensível. Bem poucas pessoas, inclusive algumas bastante íntimas da família, sabiam que Tio Memed e o Barão eram amantes havia trinta anos. Nem mesmo o mais brilhante dos espiões poderia ter previsto aquele desastre. Um espião mais brilhante, porém, teria se saído melhor daquela situação constrangedora inventando uma história qualquer para confundir os presentes. Mas não aquele homem.

Nunca, em toda a minha vida, vi alguém desintegrar-se tão completamente como o tal general eunuco naquele dia na biblioteca de nossa casa de veraneio em agosto de 1899. Todos olhavam para ele. Ninguém falava. Ele se encolhia, apavorado. Aos poucos um cheiro desagradável foi se espalhando pela sala. As pessoas começaram a fazer caretas. Então eu me dei conta de que o pobre-diabo havia sujado as calças. Acho que isso foi pior para seus colegas empertigados do que o próprio ato de traição. Halil saiu às pressas da sala e voltou com Petrossian, que deu alguns passos atrás ao ter suas narinas atacadas pelo cheiro.

— O que a pessoa é, a pessoa faz — disse o outro general em tom do mais absoluto desprezo.

O general eunuco começou a chorar. Suplicou misericórdia. Pediu que o perdoassem. Jurou pelo Alcorão que nos contaria tudo, inclusive os nomes dos outros espiões, desde que lhe poupassem a vida.

— Vá primeiro trocar sua roupa, infeliz — disse o jovem oficial.

— Só pelo que fez agora, já merecia ser executado. Quando voltar, nós decidiremos que destino lhe dar. Sua presença é um ultraje ao exército.

Petrossian o carregou dali. Saímos todos apressadamente para respirar o ar fresco e perfumado do jardim. Costumo achar o perfume do jasmim intenso demais, mas como gostei de cheirálo naquele dia! Halil e o outro general caminhavam juntos, decidindo o que fazer com o colega. Os demais oficiais, inclusive Selim, agruparam-se junto à casa. Fiquei olhando o mar, sem conseguir assimilar completamente todos os acontecimentos daquela tarde. Ainda que o general eunuco nos desse uma relação dos espiões, nada poderia garantir que ele dissesse a verdade. Ele poderia nos confundir propositalmente a fim de nos criar problemas dentro do Comitê. Era difícil imaginar que ele fosse fazer algo inteligente, dada a intensidade do abalo que havia sofrido, mas enquanto se lavava no banheiro poderia estar planejando alguma coisa.

Os generais fizeram sinal para que os oficiais fossem ter com eles. O destino do general eunuco já havia sido decidido e os oficiais mais jovens deveriam opinar.

Eu não queria que o executassem. Sabia que o que ele tinha feito era terrível, porém matá-lo não seria bom para ninguém. Eles devem ter lido meus pensamentos, pois Selim e Halil vieram falar comigo.

— É a vida dele ou a nossa — disse Halil.

— Se o deixarmos vivo, teremos que ir todos para o exílio e isso deixaria o Comitê de Istambul sem liderança do exército.

Não podemos permitir que isso aconteça. É uma decisão militar, Nilofer.

Eu não me convenceria tão facilmente.

— E se vocês o matarem e enterrarem em um lugar qualquer, o que pensará a pessoa que está esperando pelo relato dele? Imagino que suspeitará de alguma coisa. Afinal de contas, ele não é um

qualquer. É um general, e generais não desaparecem sem mais nem menos, nem mesmo em um império que está desmoronando.

Halil concordou em silêncio.

— Os outros não lhe disseram que viriam aqui. Ele não sabia sequer que nos encontraria. Foi-lhe dito apenas que haveria uma reunião com dois oficiais vindos de Salônica e que talvez estivesse presente um membro do Comitê que viria de Paris. Nada mais lhe foi dito. Portanto só poderia ter dito isso a seu superior que, lembre-se bem, é o Grão Vizir, um homem que tem muitos outros problemas em suas mãos. É bem possível que não tenha dito coisa alguma e tenha decidido esperar até saber quem eram os oficiais. Ainda que tenha informado ao Vizir da existência de dois generais interessados no Comitê, isso é algo que poderemos negar a vida toda. Não podemos correr o risco de expor esses jovens oficiais a uma altura destas, Nilofer. Seria o mesmo que destruir nosso futuro. Não se esqueça de que o espião esteve presente a nossas reuniões de hoje de manhã. Nós avaliamos nossas forças nas diferentes unidades do exército em sua presença.

Esse é o tipo de informação pelo qual o palácio seria capaz de sacrificar dezenas de vidas sem se importar. Nós estamos sacrificando apenas uma. Você precisa compreender isto.

— Então vão mesmo matá-lo? Halil e Selim ficaram me olhando, depois se olharam e finalmente desviaram os olhos para o mar. Soube então que o infeliz general não veria o sol nascer novamente. Menos de uma hora depois eles já haviam selado seus cavalos, chamado o cocheiro e partido de nossa casa para sempre. Eu sabia que nunca mais veria o general eunuco e aquilo me deixou triste. Uma vida humana estava a ponto de ser ceifada. Eu entendia por que deveriam fazer aquilo com ele.

Sabia que às vezes é necessário fazer coisas ruins por uma boa causa, mas aquele homem estava tão patético, que eu desejava que encontrassem outra saída. Selim não concordou comigo. Admitiu que ele também não estava feliz com aquilo, mas que não havia outra solução. Vi quando partiram. O condenado havia recuperado um pouco de sua dignidade. Encaminhou-se para o coche de cabeça erguida, o que, de certa forma, fez com que eu me sentisse pior. Na refeição daquela noite só se falou dos acontecimentos do dia. O Barão acabou se tornando o herói inesperado de tudo aquilo. Foi assim que Halil se referiu a ele brindando-o com o champanhe do próprio Barão. Depois que tomamos alguns goles daquele líquido borbulhante, não me contive e falei:

— Herói, talvez — disse eu, surpresa comigo mesma.

— Certamente algoz seria a palavra mais apropriada.

Fez-se silêncio. Selim me lançou um olhar feroz. O Barão se recuperou rapidamente e sorriu.

— Você tem razão, Nilofer, mas tente ver a situação por outro ângulo.

Se o eunuco fosse poupado, seu irmão, seu marido e todos aqueles bons oficiais que estavam aqui hoje poderiam ter perdido suas vidas.

— Barão — prossegui -, não tive a intenção de ofendê-lo. Aceito o que o senhor diz. Talvez o que esteja sendo cometido neste mesmo instante em que comemos e bebemos aqui seja inevitável. Mas isso não torna o ato menos repugnante. Posso fazer-lhe uma pergunta?

Ele concordou em silêncio.

— O homem que está sendo executado participou ativamente de algo que interessava tanto ao Sultão quanto ao seu Kaiser Wilhelm. Foi ele quem assinou o protocolo secreto entre Istambul e Berlim. Nossos oficiais podem considerar isso um ato de traição, mas o senhor é certamente favorável a esse protocolo, não?

O Barão empertigou-se na cadeira. — Eu seria, mas para mim as antigas lealdades de família são mais importantes que a política. Os laços entre nossas famílias datam de muitos e muitos anos. Você sabia que meu bisavô esteve nesta casa como hóspede do avô de Memed? Foi por isso que aceitei vir para cá como preceptor. Então saiba, querida jovem, que para mim há coisas muito mais importantes na vida, como a amizade, por exemplo, e que estas coisas estão muito acima de qualquer filiação política.

— Suas palavras são as de um verdadeiro junker e de um bom amigo, meu caro — disse Memed em um tom de voz surpreendentemente emocionado. — Proponho outro brinde.

Um brinde à lealdade e à amizade. E que amaldiçoadas sejam todas as mesquinharias da política. Dessa vez não ergui minha taça para brindar quando os outros ergueram as suas.

Durante aquele dia eu não tinha estado um só instante a sós com Selim e comecei a sentir uma incontrolável ternura por ele. Pena que a refeição ainda estivesse longe de acabar. Memed estava agitadíssimo. Eu havia me referido ao espião como general eunuco sem saber que ele o era de verdade. Foi Memed quem confirmou isso.

— Ele foi castrado quando criança para servir no palácio como eunuco, mas logo surgiram as possibilidades de reforma e seus pais se deram conta de que haviam cometido um erro. Essa história chegou aos ouvidos do Grão Vizir, que teve pena da família da criança. O pai era um carregador de água albanês que tinha seis filhos. O menino foi enviado para uma medresseh muito boa, daquelas onde os professores ensinavam coisas às crianças, não se limitando a espancá-las para que ficassem submissas.

Era para lá que mandavam os filhos dos funcionários do palácio, portanto os professores tinham que ser cuidadosos. Quando o menino completou dezesseis anos, o Vizir o empregou como atendente em seu gabinete e passou a acompanhar de perto seu amadurecimento. O rapaz tinha uma memória prodigiosa e não se esquecia de um rosto ou um documento que tivesse visto. Bastava-lhe ler um texto uma só vez para memorizar o que nele havia de importante. Foi então transferido para o palácio, onde tornou-se um elemento-chave na rede de espionagem do Estado. Levará muitos segredos para o túmulo.

Meu pai ficou surpreso.

— Como foi que você soube de tudo isso, Memed? Memed e o Barão entreolharam-se rapidamente.

— Fui eu quem lhe contou — disse o Barão.

— O eunuco tomou-se de encantos por mim e certa noite em Berlim, depois de umas taças de vinho, contou-me a história de sua vida. Foi por isso que me assustei quando percebi sua presença aqui hoje. Foi aquele seu dom que o tornou perigoso. Pobre homem. Como poderia saber que eu estava aqui? Sinto muita pena dele.

Fomos para a biblioteca depois da ceia. O lugar tinha sido o cenário da ignomínia do general e havia um claro no exato lugar onde ele estivera sentado. Papai ficou sabendo que sua poltrona predileta teve que ser levada dali para que a limpassem e que precisaria ser arejada ao sol por no mínimo um dia inteiro para que dela saísse o mau cheiro. Ele ficou muito aborrecido.

— Quero que aquele eunuco queime no inferno!

— Ele vai, papai — disse Halil friamente.

— Ele vai. Quando já estávamos a ponto de sair, o Barão decidiu nos brindar com uma de suas declarações formais.

— Falei rapidamente com os jovens oficiais que estiveram aqui hoje. Um deles me parece ser um dos líderes fortes de que necessitaremos um dia, quando precisarmos recriar uma nação a partir dos escombros deste Império. Recomendei-lhe a leitura de Maquiavel e o jovem oficial me disse algo muito interessante. Disseme que não era bem preparado no que concerne a línguas estrangeiras e que precisaria esperar, portanto, que a obra em italiano fosse traduzida para o turco. Foi então que disse algo notável, algo que encheu de esperanças meu coração. "Creio", disse ele com firmeza, "que teremos muitas mudanças a fazer a fim de progredirmos rapidamente, inclusive na nossa escrita ultrapassada. Vamos latinizar o alfabeto turco dentro de um ano ao assumirmos o poder. Isso facilitará a todos nós o aprendizado das línguas européias. Talvez então muitas pessoas possam ler o seu Maquiavel." Pensei comigo mesmo, então, que gostaria de ver aquele jovem levar avante com sucesso sua missão. É desse tipo de visão que se precisa para progredir.

Selim e eu fizemos amor em silêncio naquela noite. Havíamos passado o dia todo afastados um do outro e palavras não bastariam para expressar o que sentíamos. Só depois falamos, e por muito tempo.

Os acontecimentos do dia deixaram-no agitado. Ele falou sobre aquele jovem oficial que fez parecer possível o que antes parecia tão difícil, ou seja, que idéias progressistas fossem viáveis. Tantas vezes, no passado, idéias grandiosas haviam se transformado exatamente em seu oposto quando aqueles que as proclamavam chegaram ao poder. Isso havia acontecido na França, depois da Revolução, mas aqui também aconteceu. Quando os que tinham propostas tornavam-se vizires, suas idéias desapareciam e eles passavam a governar o Império da única forma que conheciam, isto é, como antes.

Dessa vez Selim sentia que seria diferente. Eles se propunham a transformar nossa escrita árabe em latina, acabar com os poderes do clero, tornar obrigatória a educação de meninas e remover para sempre os véus que cobriam os rostos das mulheres. Ele também me fez um relato minucioso da discussão de um único ponto importante sobre o qual não chegaram a um acordo. Foi algo relativo ao passado, não ao futuro. Os três generais disseram que havia sido necessário reprimir a revolta dos janízaros de 1826. Os oficiais mais jovens tendiam a ficar do lado dos janízaros, já que se viam em si tuação semelhante à da coorte derrotada ao planejarem sua própria insurgência contra o Sultão.

— Halil ficou aborrecido conosco por isso — disse Selim rindo. — Disse que nada tínhamos em comum com aquela ralé derrotada em 1826. Insistiu em que eram degenerados que oprimiam o povo e que haviam se corrompido por completo. Disse ainda que eles deveriam ter sido eliminados há muitos séculos e substituídos por um exército moderno, semelhante ao modelo europeu e que tínhamos muito a aprender com os ingleses e franceses. Segundo Halil, se os janízaros chegassem ao poder, teriam apenas substituído o Sultão por outro que fosse mais leniente com seus crimes. O jovem oficial de Salônica, que parece ter causado tanto impacto no Barão, não estava disposto a chegar a um acordo sobre isso. Ele concordava que os janízaros tinham mesmo um poder excessivo no Estado otomano, mas dizia que aquela era a única maneira de se manter o núcleo de um exército permanente. Ou se tem, como no modelo europeu, duques e lordes, cuja responsabilidade é assegurar um exército para o rei, ou se tem janízaros. As únicas alternativas existiram durante revoluções populares, como foi o caso dos ingleses, que criaram seu Novo Exército, e dos franceses, com sua própria versão depois de 1789. No fim seus argumentos nos convenceram. Foi um debate interessante. O que você achou do oficial de Salônica?

— Pensei que ele fosse de Istambul. É lá que sua esposa leciona.

— Sim, mas ele nasceu em Salônica e é lá que se encontra seu .maior apoio.

— Ele me causou boa impressão.

— Foi exatamente isso que ele quis.

— Você está com ciúmes?

— Estou. Eu não estava pronta para dormir, por isso voltei à questão que Salman havia levantado ao conversar comigo antes do almoço.

— Vocês discutiram a questão da pureza racial do novo Estado?

— Como assim?

— Há pessoas no Comitê que afirmam, abertamente, que pre-Mulher de Pedra precisamos defender nossas características turcas. Dizem que a cultura otomana é excessivamente cosmopolita e que as influências que adquirimos dos árabes, dos persas e dos europeus são comparáveis a flores criadas em estufas. Desejam que apenas as plantas nativas sejam cuidadas. Como pode ser isso, Selim? Em nossas cidades e nossas aldeias as diferentes comunidades convivem há muitos séculos. São turcos, armênios, gregos, curdos, judeus e sabe-se lá quantos outros grupos menores.

Selim concordou comigo e me garantiu que essa questão não havia sido discutida em absoluto por eles, embora certamente ainda viesse a sê-lo no futuro.

— Como serei considerada na nova república, Selim? Minha origem é judaica. Como você sabe, não tenho a fé judaica, mas tampouco quero ser considerada turca. Prefiro ser otomana. Sei que você vai pensar que estou infectada com misticismo, mas a alma otomana é um tesouro de sentimentos. Já os turcos me parecem um pouco sem alma.

— Isso é de fato um problema — concordou ele. — Somos otomanos porque fazemos parte de um Império. Os gregos quiseram deixar de ser otomanos e agora são apenas gregos. O mesmo se aplica aos sérvios, e as potências ocidentais têm incentivado os armênios a seguir o mesmo caminho. Nesta nova situação, talvez não nos reste outra alternativa a não ser nos considerarmos turcos.

— E os judeus de Istambul e de Salônica? — Continuarão a ser judeus. Por que haveria algum conflito? — E o que será dos gregos que não desejam partir de Istambul ou de Izmir? Eles preferem continuar a ser otomanos, mas vocês os forçarão a ser turcos ou os empurrarão para o mar. É isso que meu irmão Salman teme que vá acontecer.

Selim não respondeu. Suas mãos começaram a vagar pelo meu corpo. Era uma forma de terminar aquela discussão. Uma forma muito agradável. Não ofereci qualquer resistência.

Meu Selim jamais seria um general eunuco.


17

Uma francesa misteriosa e de temperamento instável
chega inesperadamente e pede para encontrar-se com Iskander Pasha,
que depois revela como costumava espiar uma mulher casada nos banhos

Está aqui uma senhora francesa querendo falar com seu pai, porém Iskander Pasha não está em casa. Foi fazer uma caminhada com Selim e as crianças. Você poderia descer para recebê-la?

Petrossian havia subido a escada às pressas e estava ofegante. Eu jamais o havia visto perder a calma com a chegada de uma visita, por mais inesperada que fosse.

— Você já a levou para a sala de visitas? Ofereça-lhe algun refresco. Estarei lá dentro de um minuto.

Escovei meus cabelos rapidamente, olhei-me no espelho para ver se estava apresentável e desci sem pressa para receber a tal francesa. No saguão junto à sala de visitas encontrei Petrossian e HasaI Baba confabulando avidamente. Calaram-se quando me aproximei. Eu só havia entrado naquela sala duas vezes desde a minha chegada e em ambas as ocasiões o motivo tinha sido o mesmo: fazer a vontade de Orhan e de Emineh, que queriam conhecer a casa toda.

Aquele salão era tão grande, que minha família raramente o usava, mesmo quando havia visitas. As pessoas se reuniam no jardim ou na biblioteca. Yusuf Pasha fez questão que a sala fosse enorme, apesar das objeções do arquiteto. Nosso antepassado queria um salão de baile em estilo europeu para receber com grande pompa seus amigos, vários deles embaixadores de nações européias. Muitas orquestras tinham vindo de Istambul para tocar ali em ocasiões especiais, mas isso fora em outros tempos. O salão era decorado em um estilo francês opulento, mas o sol de muitos verões havia desbotado as cores vivas. Iskander Pasha dizia que nem as forrações tinham sofrido qualquer modificação desde que a casa fora construída.

A francesa estava de pé junto a uma janela aberta, apreciando a vista do mar. Esforcei-me para saudá-la em meu melhor francês.

— Bonjour, madame. Ela se voltou e sorriu. — Você deve ser Nilofer. Seu pai sempre falava de você e costumava descrever seus olhos verdes. Você é mesmo muito bonita.

— Obrigada, madame, mas não sei quem a senhora é ou o que a traz aqui. Seja qual for a razão de sua presença, seja bem-vinda à nossa casa.

Ela deu uma risada sincera. — Meu nome é Yvette Montmorency. Meu marido... ou devo dizer meu segundo marido... é o Visconde Paul-Henri de Montmorency. É o novo embaixador da França em Istambul. Nós conhecemos bem seu pai quando ele foi embaixador de Sua Majestade em Paris. Fiquei sabendo que estavam na residência de verão e tive a idéia de vir fazer-lhes uma surpresa.

Sorri delicadamente. Algo instintivo fez com que eu não gostasse dela. Ela usava um vestido vermelho vivo e as camadas de maquiagem em seu rosto não conseguiam esconder sua idade. Já devia estar perto dos sessenta anos. Seu corpete parecia estar muito apertado, porque seus seios se elevavam de maneira nada natural. O resultado de tantos esforços não era convincente. Como seria possível suportar aquele desconforto?

Era uma mulher de estatura mediana e, a bem da verdade, devo reconhecer que estava conservada para a idade que tinha. A camada de gordura abaixo do pescoço ainda estava sob controle, porém notava-se que os fiapinhos de pêlo que lhe surgiram acima dos lábios haviam sido arrancados. Havia algo de falso naquele rosto.

— Bem, a senhora realmente me surpreendeu, madame. Meu pai, que saiu com os netos, nunca me falou da senhora ou do Visconde. O único nome parecido com conde ao qual ele se refere nesta casa é Auguste Comte. A senhora por acaso conhece a obra dele?

Ela sacudiu a cabeça horrorizada. — Este não era um conde de verdade! Você sabe disso, é claro. Era um radical perigoso e o tio do Visconde, o falecido Bispo de Chartres, fez uma forte campanha contra ele na igreja. Que horror!

Para minha alegria, naquele mesmo instante aconteceu algo que eu queria que acontecesse. O Barão e Tio Memed entraram na sala e nos cumprimentaram curvando-se exageradamente, de maneira bastante cômica. Fiz as apresentações citando o nome todo do Barão e dando ênfase a seu título. Yvette ficou extasiada. Percebi uma leve irritação no Barão e saí da sala com o pretexto de ir providenciar os refrescos.

Minha pose desapareceu no instante em que saí da sala. Fui tomada por um acesso de riso que não conseguia controlar. Senteime na escada e tentei parar de rir, mas não consegui. Hasan Baba chegou e sentou-se no degrau em que eu estava. Abracei-o e continuei a rir. Ele sorriu.

— Por que ela a faz rir tanto?

— Quem é ela, Hasan Baba? Quem é ela? Ele olhou ao redor para certificar-se de que estávamos mesmo sozinhos.

— Escute, não sou eu quem está lhe dizendo isso. Você nunca ouviu isso da minha boca! Ponha a culpa em Petrossian, se tiver que acusar alguém. Por favor, ponha a culpa nele. Ele é tão discreto! Seria bom acabar com essa sua fama. Quem é ela? Eu lhe digo. Muitos anos atrás, em Paris, ela se tornou esposa de seu pai. Mas foi só por algumas semanas.

Aquela informação conseguiu fazer com que eu parasse de rir imediatamente.

— O quê? Não acredito!

— Não foi nada sério. Ela compareceu a uma recepção da nossa embaixada e ficou absolutamente fascinada com a maneira otomana de ser. Iskander Pasha fazia tudo em grande estilo. Lembro-me que certa vez ele nos disse a todos que nos vestíssemos de dervixes e entoássemos cânticos sufistas na presença do embaixador britânico só para evitar que fossem discutidos assuntos sérios. Ele anunciou que aquele era um dia especial, em que não se podia fazer coisa alguma a não ser cantar versos sufistas e que os convidados só poderiam se retirar depois do último cântico. Se os "dervixes" vissem alguém saindo da sala, levá-lo-iam de volta. O embaixador britânico só pôde sair depois de uma hora.

— Isso é engraçado, Hasan Baba. Mas eu quero saber sobre aquela mulher que está aí.

O velho começou a rir ao se recordar.

— Ela se recusou a ir para a cama com ele a não ser que se casassem. Ele mandou que Petrossian e eu fôssemos até o quarto e me ordenou, piscando um olho, que os casasse. Petrossian assinou numa folha de papel como testemunha. Eu balbuciei algumas tolices e segurei suas mãos juntas.

Iskander Pasha disse a ela que estavam casados e pediu-nos que saíssemos do quarto, não sem antes me recomendar que levasse o papel. Depois de se divertir com ela umas três ou quatro semanas, cansou-se dela. Divorciaram-se no mesmo quarto, também diante de nós, mas a separação foi amigável.

Continuaram bons amigos. Acho que ela desconfiou que a cerimônia do casamento tinha sido uma brincadeira. Se quiséssemos, porém, ela poderia ter sido válida. Poucos meses depois ele foi convidado para o casamento de um aristocrata. Ela era noiva dele havia muito tempo.

— E o turco libidinoso foi ao casamento?

— É claro que sim. Ele era muito formal nessas ocasiões. Vestiu-se com toda a pompa otomana, portando inclusive a espada de gala. Petrossian acompanhou-o, fardado de janízaro, apesar de não haver mais janízaros em nosso exército.

— Por que será que ela veio aqui? O velho encolheu os ombros. Nesse instante Orhan e Emineh entraram ruidosamente, trazendo conchas coloridas, e suas faces estavam esfogueadas. Pouco depois chegaram meu pai e Selim.

— Há uma visita esperando por você no salão, papai.

— Por que no salão?

— Petrossian achou que seria mais apropriado e concordei com ele.

Papai tirou o chapéu e encaminhou-se para o salão. Fui atrás dele. Ela deu um gritinho de prazer ao vê-lo.

— Iskander — ronronou ela -, você continua atraente como sempre, seu demônio! Está surpreso?

Surpresa fiquei eu com a tranqüilidade de Iskander Pasha ao aproximar-se dela e beijar a mão que ela lhe estendeu. Foi impressão minha, ou ele parecia mesmo ter um jeito parisiense? O Barão, Memed e eu nos entreolhamos, mas logo desviamos nossos olhares com receio de perdermos o autocontrole e nos desmancharmos em risadas ali mesmo.

— Bem-vinda à minha casa, Yvette. Espero que meu irmão e Nilofer tenham feito com que você se sinta à vontade. A surpresa não foi tão grande porque eu já havia lido que o Visconde seria o novo embaixador da França. Ele já apresentou as credenciais no palácio?

Ela sorriu.

— Ah, sim, e foi maravilhoso. Como você sabe, sempre fui apaixonada por embaixadores e por suas maneiras de vestir-se. A cerimônia parecia uma das nuits arabiennes. Foi pura magia. Sentime como uma princesa.

O Barão interrompeu a conversa.

— Pouco antes de você chegar, Iskander, Madame de Montmorency estava nos dizendo que no momento o que precisamos é de umas guerras de curta duração na Europa. Não captei bem o significado do que a senhora estava dizendo, madame, mas se entendi corretamente, a senhora acha que essa seria uma forma de seleção genética a partir dos que sobrevivessem. Será que a compreendi mal? Teria a bondade de repetir para nós a base filosófica de sua tese? A ironia do Barão foi desperdiçada com a francesa. — É claro que sim, Monsieur le Baron, e desta vez seja um bom menino e preste atenção. A meu juízo, se não tivermos mais guerras teremos que enfrentar alguns problemas muito sérios. Faltará trabalho para um número excessivo de homens. Eles se tornarão criminosos e começarão a fazer coisas perigosas. Sempre serão incentivados por esses socialistas agitadores que estão a criar confusões, como aquele mestiço de Cuba. Acho que o nome dele é Lafargue.

Se houver muita gente desempregada, será perigoso. As pessoas de nossa condição social não estarão mais seguras. Nessas condições, será bom, vocês não concordam, se grandes quantidades de jovens das classes pobres se alistarem no exército e se matarem uns aos outros? Os que sobreviverem serão os melhores e depois dessa experiência trabalharão melhor. Qualquer coisa é melhor do que ser morto. Eles se aliarão àqueles que lhes darão emprego e assim teremos um surto de progresso em todos os nossos países.

Antigamente os médicos usavam sanguessugas para sugar o sangue ruim de seus pacientes. A guerra fará isso muito melhor. No cômputo geral, será uma boa coisa. Alguns tiros na rue Fontaine não me deixarão assustada. Simples, não?

Três dos seus quatro interlocutores concordaram balançando veementemente as cabeças.

— Exatamente — disse Memed.

— Muito simples. E agora, com sua permissão, o Barão, Nilofer e eu precisamos nos retirar a fim de programar um piquenique para as crianças amanhã.

Sentamo-nos em silêncio num banco do jardim. Contei-lhe o que Hasan Baba havia me dito e o Barão riu com desdém.

— Pensei que ele fosse um homem de gosto mais refinado. Ora, uma prostituta de Montmartre teria sido melhor!

— Iskander sempre foi um pouco suscetível a seios grandes — disse Tio Memed, tentando achar uma justificativa para as maluquices do irmão. — Mas concordo com vocês.

Essa mulher não tem absolutamente coisa alguma a seu favor. Nosso Comitê de Segurança Nacional deveria entrar em ação rapidamente e dar um sumiço nela!

Rimos os três. Sugeri uma justificativa melhor para a falta de percepção de Iskander Pasha.

— Não creio que eles falassem muito quando estavam juntos. O Barão não ficaria sem a última palavra.

— Você tem razão. Iskander Pasha certamente a poupava de um esforço intelectual.

Continuamos a rir muito. Foi a nossa maneira de não nos aborrecermos com a esposa do embaixador. Os dois achavam que ela tinha vindo procurá-lo para exibir-se na condição de embaixatriz, mas eu tinha minhas dúvidas quanto a isso. Sentia que havia algo mais e torci para que não fosse alguma coisa que aborrecesse Iskander Pasha. Ele havia se recuperado plenamente dos problemas de saúde, mas os médicos recomendaram que ele repousasse por um ano. Disseram-nos para poupá-lo de más notícias sempre que possível. Meus instintos me diziam que aquela mulher era perigosa. Sua chegada era uma má notícia.

Por sorte, ela não se demorou. Menos de uma hora havia se passado e já seus cocheiros se apressavam em levá-la. Acenamos para ela da escada do terraço. Iskander Pasha parecia estar de bom humor. Tinha nas mãos um caderno de anotações e algumas cartas antigas amarradas com uma fita.

— Bem — disse Memed -, o que é que ela queria?

— Nada — respondeu papai.

— Absolutamente nada. Apenas devolveu umas cartas e um diário que escrevi durante alguns meses em Paris.

— Só isso? — insisti.

— Falou-me também de uma outra coisa sem maior importância. Mostrou-me uma fotografia do filho mais velho. Receio que o próximo Visconde de Montmorency tenha compleição otomana.

Eu sabia que ela não tinha ido lá à toa. Mal pude esperar para contar a Salman e a Halil que eles tinham um meio-irmão francês.

— O rapaz está aqui? — quis saber Memed.

— Não — respondeu seu irmão.

— Está na Academia Militar de St Cyr.

— E ela tem outros filhos? — perguntou o Barão.

— Sim, duas filhas, que parecem réplicas da mãe.

— Coitadinhas! — exclamou Memed.

— As suas cartas para ela e o seu diário estarão disponíveis para o público? — provoquei.

— Irão para a biblioteca como documentos de importância histórica?

— Recordações da juventude como essas devem sempre ser destruídas — respondeu ele.

— O diário, se me lembro bem, nada tem de pessoal. Espere um pouco, Nilofer.

Vou relê-lo para decidir se ele vai ou não para a biblioteca.

Eu estava um pouco desconcertada com a serenidade com que ele recebera a revelação de Yvette. Aquela indiferença seria mesmo tão verdadeira quanto parecia ser?

Retomei o assunto.

— Não gostaria de encontrar-se com ele, uma vez que fosse?

— Não, minha querida. Não.

— Abraçou-me e beijou minha testa.

— Você já se esqueceu do que lhe disse poucas semanas atrás? As relações de sangue não têm a menor importância para mim.

— Em seguida afastou-se comigo e caminhamos os dois em silêncio até o fim do jardim.

— Diga-me uma coisa, Nilofer. Você às vezes não se sente curiosa em relação a seu pai verdadeiro? Gostaria de estar com ele uma vez, pelo menos? Seja sincera comigo.

— Gostaria — respondi sem pensar.

— Sim, gostaria, mas nem tanto por mim. Eu queria ver o que tanto atraiu minha mãe quando era jovem.

— Se você quiser, minha filha, poderemos facilmente providenciar uma ida sua a Nova York. Meu irmão Kemal tem navios que partem para lá regularmente. Poderíamos obter passagens para todos vocês sem qualquer dificuldade.

Dei-lhe um abraço bem apertado.

— Ouça bem. Não tenho a menor vontade de passar dois meses viajando só para ver a cara daquele homem. Você é meu pai. O que eu quis dizer foi que se algum dia ele passasse por Istambul eu teria a curiosidade de vê-lo. Não ia querer nem falar com ele, apenas vê-lo. Trata-se de curiosidade feminina, nada mais.

Ele sorriu e depois começou a rir. Eu quis saber por que, mas ele simplesmente sacudia a cabeça e fazia um gesto com a mão para indicar que não tinha importância.

Insisti em saber e senti um alívio por já não estarmos mais falando de pais e filhos de verdade.

— Quando você falou em "curiosidade feminina" lembrei-me de um incidente de minha juventude. Eu tinha uns dezesseis ou dezessete anos e me apaixonei por uma mulher casada que costumava nos visitar com seu marido. Eram amigos da família. Ela era muito bonita, ou pelo menos era o que eu achava. Seu rosto era verdadeiramente bizantino. Creio que ela pertencia a uma das famílias mais antigas da cidade. Passei a olhar para ela com muita insistência e minha mãe me chamou a um canto para me repreender.

Eu a seguia quando ela ia às compras. Alguns dos meus colegas de escola vigiavam sua casa para mim. Aliás, ela morava perto de nós. Ela se queixou à minha mãe e meu pai ameaçou punir-me severamente se eu não parasse com aquilo. As ameaças não surtiram efeito algum.

"Certo dia meu melhor amigo chegou com uma informação valiosa. Havia descoberto que ela freqüentava os banhos coletivos das mulheres todas as quintas-feiras. Essa informação deixou-me muito excitado e minha imaginação se soltou. Fui tomado de um desejo irresistível de vê-la nua e por esse motivo subornei as atendentes do banho. Você parece chocada com isso, mas tratava-se de uma coisa normal naquela época. Não era normal para meninos da minha idade, é claro, mas jovens que queriam saber como eram suas amadas sem roupas pagavam para espiá-las sem serem vistos. Dizia-se que algumas mulheres faziam o mesmo em relação aos namorados, mas isso era menos comum. Todas essas casas de banho têm suas passagens secretas. Nem sei bem como foi, mas acabei chegando lá e fiquei maravilhado com o que vi. Não vou descrevêla em detalhes para poupar-nos, aos dois, o constrangimento. Mas a partir de então as quintas-feiras passaram a ser meus dias santos, dias de pura felicidade, e as tardes eram sacrossantas. A vida seguia às mil maravilhas até que alguém contou isso à minha mãe — até hoje não sei quem foi. Provavelmente foi uma das empregadas.

Certa tarde, depois de apreciar aquele corpo sendo massageado por duas mulheres ao mesmo tempo, manipulando cada pedacinho daquela carne delicada com todo o cuidado, voltei para casa em estado de graça. Eu teria fugido com ela para a Albânia, se ela aceitasse. Ao chegar em casa e entrar pela porta da frente, deparei-me com meu pai, que me aguardava no saguão. Seu rosto era puro ódio e desprezo. Esse foi meu primeiro choque.

'Onde foi que você esteve? Quero saber a verdade!' O segundo choque fui eu mesmo que me dei. Assustei-me com o tamanho da mentira que saiu da minha boca para evitar o castigo. "Eu estava em frente ao palácio, Ata. O Sultão acaba de morrer.' Meu pai acreditou e transformou-se completamente. Correu para o andar de cima a fim de banhar-se e vestir-se para ir orar na Mesquita Azul. Você está rindo, minha filha, mas pense na minha aflição naquela idade. Eu estava petrificado. Escondi-me em meu quarto pensando no que aconteceria quando meu pai voltasse. Ouvi quando ele voltou e comecei a tremer. Eu esperava pelo pior, mas ele veio me acalmar.

Disse que tinha sido um alarme falso. O Sultão, de fato, adoecera subitamente na véspera, mas não estava morto. Eu mal conseguia acreditar na minha sorte. Talvez tenha sido esse incidente o que me levou, anos mais tarde, a me interessar por coisas místicas. Meu delito foi esquecido. Como se pode ver, Nilofer, a curiosidade não é só das mulheres!"


18

A morte de Hasan Baba, a quem é dado um enterro sufista;
a volta de Kemal Pasha;
o ressentimento de Sara

Bateram de leve à porta. Selim dormia profundamente. Nada era capaz de acordá-lo quando ele dormia assim. Nada. Eu tinha certeza de que ele continuaria dormindo ainda que houvesse um terremoto. Achei que poderia ser uma das crianças e pulei da cama rapidamente, cobri-me com um robe e abri a porta. Era minha mãe.

— Você precisa acordá-lo — sussurrou ela.

— As empregadas acabam de me dizer que foram levar o café da manhã para Hasan Baba e o pobre homem estava morto. Vou agora contar a seu pai. Ele vai ficar muito abalado.

Tive que sacudir Selim com muita força para acordá-lo. Ele ficou chocado com a notícia e começou a chorar.

— A vida dele foi feliz, Nilofer. Ele costumava dizer que sua vida era longa porque era feliz. Fez noventa e um anos poucos meses atrás. Eu sei que ele era velho e tinha que morrer, mas eu não queria que ele morresse. Ele sempre agiu de acordo com a própria consciência. Quando eu era pequeno, ele costumava perguntar qual era o meu animal predileto e eu sempre respondia que era a águia. Então ele dizia: "Selim, quando eu morrer, vou me transformar em uma águia." A tekke sufista da qual ele fazia parte acredita que quando uma pessoa atinge a perfeição nesta vida, pode escolher a forma física com a qual retornará na próxima. Vou sentir a falta dele, Nilofer. Vou sentir a falta dele.

Deixamos a casa e atravessamos o jardim. Seu corpo encontrava-se em um pequeno quarto do outro lado. Iskander Pasha pôs-se de pé ao nos ver chegar e abraçou Selim.

Os dois homens começaram a chorar.

— Você perdeu um pai e um avô, Selim. Ele é insubstituível. Sei disso melhor que qualquer pessoa. Mas quero que você se lembre sempre que pode contar comigo quando precisar.

Hasan Baba havia pedido para ser enterrado em uma pequena elevação a pouca distância de onde se erguia a Mulher de Pedra. Poucas semanas antes ele havia orientado o chefe dos jardineiros quanto à localização e à profundidade exatas da cova e desde a hora de sua morte, naquela manhã, suas instruções estavam sendo seguidas.

Petrossian os observava, com lágrimas rolando pelo rosto. Tinha muitas lembranças de momentos que viveram juntos. Haviam crescido juntos servindo a nossa família e, nos bons tempos, viajavam para toda parte com Iskander Pasha. Sabiam mais sobre nossa família do que qualquer um de nós. Hasan Baba levava para o túmulo muitos segredos. Petrossian era o único que restava e jamais falava a nosso respeito a pessoa alguma.

Pouco antes do pôr-do-sol foi a hora escolhida por Hasan Baba para ser enterrado. Todas as pessoas da casa, homens e mulheres, patrões e empregados, estavam presentes quando seu corpo baixou à cova recém-aberta. A terra estava úmida e o perfume das árvores e flores silvestres lhe teria dado prazer. Algumas pessoas vieram da aldeia mais próxima, distante poucos quilômetros de nossa casa. De mãos postas, repetimos, todos nós, os versos do Alcorão próprios para funerais. Selim foi o único a se manter afastado do grupo. Não tinha as mãos postas e não rezava. Quando terminamos, porém, a voz de Selim ergueu-se como uma águia enquanto ele cantava um hino sufista para liberar a alma daquele que havia sido um pai e um mestre para ele.

— Entôo este cântico para você, Hasan Baba.

— A voz triste de Selim me fez chorar.

— Canto para você, minha águia.

Ó Sufi, para ti a mesquita e a taberna Eram uma só, Como uma só, a voz do ébrio e a do devoto. A verdade de Deus e a do vinho Eram uma só. Para ti não existiu a falsidade Porque o trono e o banco do mendigo Eram uma coisa só. Na chama do amor te consumiste Pois para ti a chama e a mariposa Eram uma só. Em luz te transformaste para ascender aos céus. Ascende, pois, aos céus, águia de luz, Porque o Sufi e a águia são um só.

Quando Selim terminou todos nós tínhamos lágrimas nos olhos. Petrossian e Iskander Pasha abraçaram e beijaram Selim. Cada um se colocou a um lado dele e, de braços dados, encaminharam-se para casa. Segui-os até o saguão, onde Selim sentou-se num degrau e chorou muito. Foi um pranto silencioso. Ele batia compassadamente a cabeça contra a grade da escada. Depois chorou alto, dirigindo-se a Hasan Baba, a quem chamava de "Homem Perfeito". Senteime a seu lado e forcei-o, com ternura, a deitar a cabeça em meu colo e fiquei acariciando seus cabelos e sua testa. Não tenho a menor idéia do tempo que permanecemos assim, mas foi retrossiaii quem nos avisou de que o banquete do funeral estava sendo servido no jardim. Selim pôs-se de pé imediatamente, enxugou as lágrimas e ajudou-me a levantar. Estava sorrindo.

— Agora vamos celebrar a vida dele. Estava escuro lá fora, porém as lamparinas a óleo haviam transformado o jardim. Iskander Pasha tinha mandado um coche buscar os músicos em uma aldeia distante vinte quilômetros. Eram os dervixes, que tocavam seus instrumentos como se estivessem em um transe místico. Fiquei sabendo, por Selim, que eram levados àquele transe não pelo Criador, e sim pelo haxixe. Três cordeiros estavam sendo assados em espetos. Um arroz especial havia sido preparado em caldeirões e as bandejas de frutas espalhavam-se pelas mesas. As pessoas falavam das virtudes do falecido.

Sem qualquer aviso, os músicos puseram-se de pé. Bateram palmas para atrair a atenção e fizeram sinais para que todos se aproximassem. Aproximamo-nos, e eles começaram a girar, levando-nos a girar também até ficarmos tontos e cairmos no chão. Àquela altura já se havia consumido muito vinho. Os músicos continuaram a girar até caírem também. Mas ao invés de descansarem, como nós, começaram a tocar novamente com um vigor renovado.

A festa ia alta quando um coche se aproximou e dela saiu um homem de altura mediana e uma vasta cabeleira branca. Parou e encheu os pulmões com a cálida brisa do mar. Petrossian, sempre atento, tinha ouvido o ruído das rodas no chão de brita. Correu para receber quem chegava.

— Que bom vê-lo aqui, Petrossian. A voz daquele homem não era a de um estranho.

— Em nome de Alá, o que está acontecendo aqui? É um casamento ou um funeral?

— Um funeral, Kemal Aga. O velho Hasan Baba morreu enquanto dormia ontem à noite.

Desde quando Tio Kemal havia retornado a Istambul? Corri para chamar Salman e fomos juntos recebê-lo.

— Sinto muito saber disso, Petrossian — disse Tio Kemal.

— Vou sentir falta daquele velho, apesar de ele sempre ter cortado meus cabelos curtos demais quando eu era menino. Ele dizia cumprir ordens de nossas mães, mas tenho minhas dúvidas. Salman! Que bom revê-lo, meu jovem. Vejo que voltou a sorrir novamente.

Os dois homens se abraçaram e se beijaram no rosto.

— E você? — disse ele, inspecionando-me cuidadosamente.

— Qual delas é você? Ri-me de sua franqueza.

— Nilofer.

— É claro! Não posso ver seus olhos verdes. Pena que não brilhem no escuro. Onde estão seus filhos? Sinto muito pelo que aconteceu ao professor grego. Essa foi uma notícia muito ruim.

— Ela casou-se novamente — informou Salman.

— Ótimo — disse Tio Kemal.

— Detesto as longas esperas. E aqui estão os meus irmãos!

Depois de se abraçarem e rirem, Tio Kemal pediu que lhe preparassem um quarto, um banho e uma refeição.

— Ora, eu vim aqui para não ouvir você falar, Iskander. Seria a primeira vez na vida. Que azar o meu. Chego aqui e descubro que você recuperou a fala! Durante toda a viagem de volta no navio vim pensando em como seria bom contar-lhe uma porção de histórias sem ser interrompido por seus comentários. Mas não tinha que ser assim. Era bom demais para ser verdade. Não dava para você ter esperado mais uma semana?

Os irmãos riram e acompanharam Tio Kemal até o quarto. Ele estava exausto e não desceu mais naquela noite. Petrossian levoulhe comida e vinho e certamente deve ter respondido a todas as suas perguntas acerca da família. Só depois que Petrossian desceu foi que minha mãe perguntou quando Kemal havia chegado a Istambul.

— Seu navio atracou no cais por volta do meio-dia, haszfm effendz — disse Petrossian.

— Ele foi para casa e pegou um coche para trazê-lo aqui. Sequer trocou de roupas.

Minha mãe deu uma risada.

— Que homem estranho este seu tio tornou-se! Se ele não suporta vê-las sequer, por que não toma uma atitude?

— Ele toma, Mãe Hatige.

— Salman havia se juntado a nós na biblioteca e estava fechando as janelas para que a algazarra dos músicos não nos atrapalhasse a conversa. — Ele viaja ao redor do mundo para evitar a companhia delas. Creio que esteja feliz com a vida que leva. Poderia divorciar-se da mulher, teria que continuar mantendo-a e às duas filhas horríveis, Por que se incomodar com isso, então? Acho que essa situação é cômoda para todos.

— Ele é mesmo feliz, Salman? — perguntou minha mãe.

— Quem de nós é mesmo feliz, Mãe atige? Não creio que exista uma felicidade verdadeira. Isso é uma invenção dos poetas. Nossas vidas passam por diferentes estágios e um deles é o da felicidade. Pode-se dizer, porém, que existe uma felicidade permanente? Creio que não. Há em nossas vidas um estado de desordem permanente que impede que a felicidade se instale. Nilofer, você discorda da minha teoria?

Selim e eu estamos muito felizes juntos, Salman!

— E que continuem assim por muito tempo, minha bela Nilofer. Eu jamais negaria que há exceções à regra, mas longe de contradizer minha tese, elas a reforçam. Tio Kemal parece estar bem alegre, o que não é um bom sinal. Isto significa que começará a contar suas histórias no café da manhã e que ainda as estaremos escutando quando a refeição da noite for servida. Vou me deitar agora para amanhã contar com as energias de que precisarei para sobreviver. Deixo-lhes a minha paz. Só mais uma coisa, Nilofer, antes que eu me esqueça. Por favor diga a Selim que seu cântico me deixou profundamente comovido. Chorei, como todos os demais. A voz dele é muito bonita. Será desperdiçada no Exército.

Eu já estava de saída para encontrar Selim no jardim, mas minha mãe aconselhou-me a deixá-lo sozinho naquela noite. Achava que seria melhor para ele despedir-se de Hasan Baba à sua maneira, sem quaisquer restrições. Eu tinha prometido a ele voltar para tomarmos vinho com os músicos, mas ela me convenceu a não ir.

— É provável que ele passe a noite em claro e que volte a cantar junto ao túmulo quando o sol surgir. Deixe-o à vontade. Esta é uma bela noite. Venha tomar um chá de menta comigo.

Eu estava exausta. Minha mãe massageou meu pescoço suavemente enquanto eu bebericava o chá. Ficamos em silêncio um longo tempo. Fazia tanto tempo que ela não me massageava daquele jeito, que o toque de suas mãos catalisou as emoções daquele dia. Sentime fraca e impotente, e as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto.

Minha mãe continuou em silêncio enquanto secava minhas lágrimas e me beijava. Falei então da oferta que Iskander Pasha me havia feito, de uma viagem a Nova York para conhecer meu verdadeiro pai. Isso deixou Sara surpresa e contente, mas ela concordou totalmente com a opinião dele acerca de relações de consangüinidade.

— Saiba de uma coisa, Nilofer: se Suleman a visse agora, ficaria muito constrangido. Sua presença seria a lembrança permanente de uma atitude covarde. Ainda que ele quisesse, seria incapaz de amá-la e de apreciá-la tanto quanto Iskander Pasha.

Concordei com ela, mas nesse caso o mesmo se daria se fosse ela. Por que ela não havia sequer tentado apaixonar-se pelo marido?

— Você sabe causar impacto com as palavras, Nilofer. Mas veja o que aconteceu quando tentou amar aquele pobre grego magricela. Você se convenceu de que o amava e pobre dele! Veja no que deu. Você acabou deixando-o e ele se deixou matar. As crianças ficaram órfãs, e você se apaixonou novamente. Eu sei, eu sei. Desta vez é para valer. Muito bem, então. Pois eu tive um amor para valer e o resultado você conhece. Sabe que ainda penso na traição dele? Fico pensando que ainda que não pudéssemos ter um filho, deveríamos viver juntos. Ele não podia ter se dobrado diante dos conhecimentos superiores de meu pai — que, afinal, eram equivocados — ou do dinheiro dele. Talvez não servíssemos mesmo um para o outro. Minha mãe deve ter repetido isso umas cem vezes por dia. Meu Tio Sifrah dizia a mesma coisa uma vez por semana, quando almoçava conosco. Todas as minhas amigas passaram a repetir isso depois que ele fugiu para Nova York. Nunca haviam dito isso quando estávamos felizes juntos. Nunca quando eu lhes falava das minhas aventuras com Suleman. Nunca nas raras ocasiões em que nos viam juntos e percebiam como éramos apegados um ao outro e como era espontâneo nosso relacionamento. Foi só depois de tudo terminado, depois de ele me ter abandonado como um rato assustado, que todo mundo descobriu subitamente que não tínhamos sido feitos um para o outro. Eu sabia que aquilo era uma tolice, porém na ocasião acreditei neles. Eu queria acreditar naquilo. Eu queria acreditar neles. Só assim poderia seguir adiante com minha vida.

Fiquei sentada diante dela com as pernas cruzadas e olhando-a diretamente nos olhos.

— Não faça isso, Nilofer. Você está igualzinha a ele. Ela estava difícil de lidar, mas persisti.

— Ouça bem, eu sei o que você sentiu por ele e por que ainda lhe guarda rancor, depois de quase trinta anos, mas não é isso que eu quero saber. Você ainda fala como se tudo tivesse acontecido ontem. Não é possível que ainda doa tanto, mamãe. O que lhe perguntei foi outra coisa. Cinco, ou dez, ou vinte anos depois que eu nasci você poderia ter tentado fazer com que Iskander Pasha a amasse. Ele é uma pessoa tão adorável e...

— Cale-se, Nilofer! Cansei-me de ouvir tolices. Meu marido é um homem bom e generoso e eu gosto dele. Não há qualquer tensão entre nós, mas tampouco existe paixão. Nem ele nem eu queremos que as coisas sejam diferentes do que são. Então poupe-me desse seu ímpeto de cupido e preocupe-se com sua própria felicidade. Às vezes acho que você romanceia as coisas demais e que é impulsiva demais. Você age por instinto. Não pensa antes de agir.

Não pude deixar de rir.

— E de quem você acha que eu herdei essa maneira de ser? Não foi dele, certamente! Não poderia ter sido dele, porque ele aceitou as moedas de ouro do meu avô... só podem ter sido de ouro... e abandonou você e tudo que sentia. Não tenho razão, mamãe? A quem você acha que puxei? A você ou àquele rato assustado?

Ela não riu. Eu sabia que ela não ia rir. Sorriu, apenas.

— Vá deitar-se agora, minha filha. Você está muito cansada.


19

Fragmentos da vida de Kemal Pasha
e seu sonho de criar a maior companhia marítima do mundo;
Nilofer medita sobre a felicidade e sobre o sentido da vida;
a morte de Mariam

Ainda estávamos sentados à mesa do desjejum e os três irmãos, que não se reuniam desde a morte do pai havia mais de trinta anos, monopolizavam a conversa. Petrossian permanecia de pé a um canto, atento a cada palavra, com o rosto iluminado por aquele seu sorriso enigmático.

Meu pai tinha acabado de dizer que Tio Kemal era tão autosuficiente e solitário quando menino que seu pai achava que ele seria um grande pensador ou filósofo. Kemal Pasha discordou.

— Suponho que essa seja uma interpretação possível, mas a verdade era outra. Aprendi a contar comigo mesmo desde cedo não porque fosse taciturno ou preferisse minha própria companhia à dos outros, mas porque Memed e você exigiam sempre tanta atenção de todos. Lembro-me de certa ocasião quando mamãe me disse que gostaria que eu tivesse nascido menina, para que ela me cobrisse de belas roupas e jóias. Foi sua maneira de dizer que gostaria de ter me dado mais atenção.

Memed sorriu afetuosamente.

— Pois minha lembrança é bem diferente. Lembro-me de ser severamente repreendido por não lhe dar a devida atenção. Certa vez papai perguntou se eu tinha ciúmes de você, que nasceu depois. Achei aquela pergunta engraçada e ele deve ter visto isso no meu rosto. Então explicou-me que, a não ser esta casa, que, por decisão de Yusuf Pasha, seria herdada sempre pelo primogênito, tudo que ele possuía seria dividido por três. Acho que papai não acreditou quando eu disse que jamais havia pensado naquilo. Suponho que quando ele era criança essas questões tinham grande relevância na família e a chegada de um novo filho era considerada uma catástrofe pelos mais velhos.

— Tudo isso pode ser verdade, Memed — disse Kemal -, mas o fato é que você e Iskander não me davam outra opção que não a de me distrair sozinho. O que me aborrecia mesmo era o fato de aquele ar de superioridade de vocês ter contagiado os empregados também. Petrossian dedicava-se a Iskander e o acompanhava por toda parte.

Não estou dizendo a verdade, Petrossian? Bem, responda, homem. Todos os olhares se voltaram para o velho de barbas vermelhas de pé junto à porta. Ele não respondeu.

— Por favor, responda a ele, Petrossian — pediu meu pai.

— Caso contrário, seu silêncio contará contra nós nesse dossiê que ele está preparando há vinte anos.

Petrossian sorriu.

— Recebi ordens do patrão para cuidar que Iskander Pasha não se metesse em confusões. Estavam sempre preocupados com ele. Era considerado muito impulsivo. Por isso eu o acompanhava aonde quer que ele fosse. Kemal não se mostrou surpreso.

— Ele só respondeu porque Iskander pediu que o fizesse. Vocês todos são testemunhas disso. Nada mudou. Não duvido que papai lhe tenha recomendado isso, mas, e daí? Não muda coisa alguma, a meu ver. Hasan Baba, que Deus o abençoe, barbeava e cortava os cabelos de Memed com tal delicadeza que parecia estar pintando um quadro. Comigo era sempre apressado.

Eu era sempre o que ficava por último nesta família.

Meu pai deu uma gargalhada.

— Eu estou tão feliz que você esteja aqui, Kemal. Ficamos sabendo de sua vida maravilhosa por pessoas que o encontram por acaso nos lugares mais estranhos do mundo. Bem-vindo ao lar.

Kemal Pasha arrefeceu.

— É muito bom estar aqui, mas deixem que eu acabe de esvaziar meu peito com uma última queixa. Há muito tempo ela me incomoda. Tenho sua permissão para fazê-la, Irmã Hatige?

Minha mãe sorriu.

— Você não precisa de minha permissão, Kemal. Esta é sua casa e você deve considerá-la como tal.

Petrossian aproximou-se para servir-nos mais vinho e embora sempre se dirigisse a Iskander Pasha em primeiro lugar, dessa vez serviu a Tio Kemal antes, com uma expressão de exagerada subserviência. Os três irmãos se entreolharam e sorriram.

— Vou fazer minha última queixa — avisou Kemal -, e depois passaremos a assuntos mais agradáveis. Quando se tratou de nossas vidas futuras, o que foi que aconteceu?

Memed teve permissão de se estabelecer em Berlim com o Barão. Fiquei feliz por ele. Iskander entrou naquela sua fase sufista e casou-se com a adorável Zakiye.

Fiquei feliz por ele.

Todos já sabiam o que estava por vir e as risadas começaram a espocar aqui e ali, antes mesmo que ele terminasse.

— Pois é, vocês acham isso muito engraçado. Eu fui forçado por papai a fazer um casamento de conveniência. Ele não me deu opção. O dote era fabuloso. Não me permitiram sequer ver a mulher antes do casamento. Mas também não foi à toa que me impediram de...

— Kemal — interrompeu meu pai.

— Você poderia ter ido espiá-la nos banhos.

— Eu tentei. Ela nunca ia àqueles malditos banhos públicos. Vocês acham que as mulheres não sabiam que as espiávamos? Sabiam. Não creio que Leila gostasse dos banhos!

Assim fui forçado a casar-me com ela às cegas. E Alá é minha testemunha. Eu apertava bem os olhos e cumpria com minhas obrigações. Três filhas. Só meninas. Mamãe ficou muito feliz até que elas começaram a ficar crescidinhas. Quando a mais jovem das minhas três graças completou seis anos, nossa mãe percebeu que o jogo havia terminado. Por azar, todas elas herdaram os traços da mãe, mas não era isso que me incomodava. Teria relevado tudo se ao menos uma delas fosse inteligente ou, pelo menos, se não fosse totalmente burra. Não é correto falar assim das próprias filhas, mas pior ainda é tentar enganar a si mesmo. Ter a aparência bovina e a mente também é demais para uma pessoa. Eu já lhes falei sobre o que mamãe me disse poucos meses antes de morrer? Ela acabara de jogar cartas com nossa tia e havia ganhado algum dinheiro. Sentia-se, portanto, generosa naquele dia. Beijoume as faces e pediu desculpas por tudo aquilo. Ela foi a única pessoa a reconhecer o peso que foi posto sobre meus ombros. Ela me disse: "Sinto muito, meu pardalzinho. Nós sabíamos que sua esposa não era atraente, mas seu pai e eu esperávamos que seus filhos puxassem ao nosso lado da família. Nós nos enganamos. O destino foi cruel com você. Que cartas horríveis você tem na mão." Decidi que de nada adiantava ficar me lastimando da sorte. Decidi partir para o mar. Ao contrário do que possam imaginar, raramente estou só. Cada navio tem uma tripulação de uns cinqüenta marinheiros, das mais variadas nacionalidades. Falam muitas línguas diferentes. Usam diferentes gestos para expressar as mesmas coisas. Alguns balançam a cabeça para cima e para baixo quando querem dizer "não", e sacodem-na de um lado para o outro quando a resposta é "sim". Seus costumes nunca são os mesmos. E há os vários tipos de comandante: os silenciosos, que só abrem a boca para dar um comando, e os loquazes, que chegam a irritar. Estes falam sem cessar de suas aventuras e contam com a delicadeza dos ouvintes para não ser interrompidos. Às vezes chegamos a ter uns quinze passageiros.

Podem ser aventureiros em busca de fortuna, comerciantes, mulheres fugindo de reveses da vida, filhos mais jovens de famílias ricas cujos pais morreram deixando tudo para os primogênitos. Pessoas que vão procurar o anonimato no outro lado do mundo. Sempre tenho companhia a bordo. Aprendi muitas coisas dessa maneira. Algumas das conversas que tive foram preciosas. No mar não é necessário cultivar a hipocrisia, como fazemos em Istambul, Berlim, Londres ou Paris. Meus navios fizeram de mim um verdadeiro cosmopolita. Aprendi a fluir como uma onda e às vezes, quando tenho sorte, encontro no comandante ou no imediato um irmão. Fico feliz por estar aqui com vocês. Mas de uma coisa tenho certeza: jamais poderia viver em Istambul novamente. Agora, se me permitem, vou fazer a barba, evacuar meus intestinos e tomar um banho. São rotinas universais. Somente a hora de fazê-las varia. Já lhes disse que os japoneses acham estranho alguém não evacuar pelo menos três vezes ao dia? Jamais consegui mais de duas.

Já no final da tarde ele se encontrava mais tranqüilo. Havia pintado com cores bem dramáticas sua infância, sua juventude e sua miserável vida conjugal. Decidiu encerrar aqueles capítulos infelizes de sua vida. Passou então a falar sobre terras distantes e de como elas haviam modificado sua visão do mundo. Aprendera a interpretar o céu e o mar. Sabia por que os navios evitavam o Mar Vermelho e por que eram os ventos e as correntes que determinavam a duração de cada viagem, não as distâncias. Explicou-nos por que às vezes é mais rápido viajar o dobro da distância para pegar a brisa certa do que seguir pelo caminho mais curto. À exceção de Salman, cuja expressão facial permaneceu impassível, nenhum de nós tinha qualquer conhecimento desses assuntos e era como se entrássemos num mundo encantado.

Foi quando falou do céu à noite que seu rosto se transformou, como se a simples recordação fosse suficiente para devolver a paz e a harmonia de sua vida. Ele havia aprendido a ler o céu, a reconhecer as estrelas e seus lugares no firmamento e, com o tempo, tornara-se capaz de fazer isso a partir de qualquer lugar do mundo.

Ao ouvi-lo falar naquele dia, compreendi por que ele achava difícil imaginar para si uma existência sedentária. Ele havia superado a necessidade do conforto e das outras conveniências que o mundo previsível das grandes cidades tinha a oferecer. A vida de cada um de nós é uma viagem. Ao chegarmos próximos à metade do caminho, já podemos apreciar sua singularidade, em todos os aspectos. Paramos de nos fazer muitas perguntas e passamos a aceitar melhor nossos fracassos e nossos sucessos.

Já nos vemos de uma forma mais definitiva. Às vezes pensamos que se tivéssemos feito uma escolha diferente em um determinado ponto, estaríamos em uma estrada diferente. Mas aceitamos o fato de ser bem reduzida a possibilidade de mudanças. Na verdade, começamos a olhar para trás. Como o tempo e a biologia já se encarregaram de definir em grande parte nosso futuro, simplesmente deixamos de pensar nele.

Sei que Selim discorda profundamente de mim nesses assuntos. Acusa-me de adotar uma visão conservadora da vida. Afirma que assim como grandes acontecimentos podem transformar radicalmente a sociedade como um todo, podem também transformar nossas vidas, qualquer que seja nossa idade. Talvez possam e até venham mesmo a produzir tais transformações, mas será sempre para melhor? Sei que nosso Império está desmoronando e isso é positivo, mas o resultado final será positivo? Não sou como Selim. Não tenho certeza disso. Ele insiste em dizer que a história caminha sempre para a frente, que não pode andar para trás. Ma ele se engana quanto a isso, e Salman e eu costumamos divergir dele, citando exemplos na Europa e na história de nossa própria religião. Estamos retrocedendo há quase duzentos e cinqüenta anos.

Tio Kemal pode não ter encontrado a verdadeira felicidade, no sentido que minha mãe dá a esse conceito, mas certamente não é um homem infeliz. Não passou pela experiência de amar e perder alguém, como Sara e Iskander Pasha passaram. Para eles as recordações nunca deixaram de perturbar o presente. Não era esse o problema de Tio Kemal. Ele fugia do presente e nessa fuga olhava sempre para o futuro. Salman me falou sobre a mulher de Kemal em Tóquio e pareceu-me que, em termos de companhia, nada lhe faltava na vida. O problema, talvez, fosse haver gente demais. Comentei com o Barão sobre essa última observação e ele deu uma boa risada.

— Bem pensado, Nilofer. Se ele conseguisse se livrar da turma de Istambul, ficaria ainda mais feliz. A maneira como vivemos não depende exclusivamente de nós, infelizmente. As circunstâncias, boas ou más, intervêm constantemente. Alguém próximo a nós morre. Alguém não tão próximo continua vivendo. Todas essas coisas afetam nossas vidas. Se o pai de Memed, por exemplo, tivesse vivido mais vinte anos, será que Memed teria decidido mudar-se para Berlim? Isso é uma coisa que não sei dizer. Às vezes, quando nos sentimos apenas razoavelmente felizes, é melhor não nos fazermos muitas perguntas. Estaríamos nos atormentando desnecessariamente.

Quando a refeição da noite terminou, o Barão surgiu com uma garrafa que dizia ser de um excelente conhaque francês bem antigo. Em assuntos dessa natureza, aprendi a aceitar o que ele dizia. Kemal cheirou o copo, tomou um pequeno gole e disse que aquele era simplesmente o melhor conhaque que já havia provado. Esse veredicto deixou o Barão muito feliz. Ele sorriu, alegre, para o cunhado.

— Diga-me uma coisa, Kemal — perguntou meu pai -, como vai sua companhia? O novo canal no Egito encurtará suas viagens para o Extremo Oriente?

Kemal franziu a testa.

— Preferia que você não tivesse mencionado aquele maldito canal. O que você diz é verdade, mas o canal se destina a favorecer o comércio inglês. Ele não foi projetado para embarcações comuns. Como eu lhe disse esta manhã, o Mar Vermelho é perigoso demais para nós. É preciso ter rotas fixas e navios a vapor. Só assim o canal será útil.

— E por que não comprar alguns barcos a vapor? — perguntou Memed.

Kemal olhou para seus irmãos e suspirou.

— Quem haveria de dizer que em todo esse tempo em que eu estava no mar, um gênio da navegação estava enrustido na família?

Talvez eu devesse surpreender a todos escrevendo um manual sobre problemas conjugais. Por que diabo vocês pensam que voltei aqui? Estou a caminho de Londres para buscar meu primeiro navio a vapor! Cobraram-me uma pequena fortuna, mas conseguirei vingar-me antes mesmo do que eles imaginam. Vou levá-lo para Yokohama e veremos se os japoneses conseguem construir para mim dez iguais, pela metade do preço. Se conseguirem, vou montar uma companhia de barcos a vapor que dominará os oceanos.

De Londres para Nova York na Ottoman Line! De Istambul a Tóquio, via Alexandria! Tudo se tornará possível. Já levantei todo o capital necessário, parte dele com o tio-avô de Nilofer, Sifrah. Tudo está a ponto de mudar, e diferentemente dos nossos Sultões, não vou ficar aguardando que as coisas aconteçam. Isto responde a suas perguntas?

Todos ficaram entusiasmados. A conversa foi ficando animadíssima e até minha mãe achou de dar palpites. O fato de nenhum dos presentes, a não ser Kemal e Salman, ter sequer a mais vaga

idéia sobre o assunto não fazia a menor diferença. Era o tipo de discussão que não levava a lugar algum, mas que fez com que Tio Kemal se sentisse no centro das atenções, como a única pessoa ali que estava fazendo algo muito importante. Halil não contava, já que não se tinha noção de que o Comitê estava tão perto de tomar o poder. De fato, Halil e Selim haviam passado o dia quase todo a cavalo e chegaram bem na hora do jantar. Fingiram que tinham ido caçar perdizes e patos selvagens, e uma sacola de couro contendo muitos pássaros mortos fora deixada na cozinha. Mas eu sabia que o motivo era outro e que aquilo era um disfarce. Tinham ido encontrar-se com o jovem oficial de Salônica em uma aldeia próxima para saber sobre a execução do general eunuco, sobre a reação do palácio a seu desaparecimento e sobre os planos de ação mais recentes.

— Pois é, Kemal — disse Iskander Pasha -, eu já estava quase acreditando que você tinha vindo visitar seu irmão doente. Mas veio mesmo falar sobre seus planos de riqueza!

— Se você tiver problemas em Yokohama — sugeriu o Barão -, traga seu navio a vapor para Kiel. Talvez possamos oferecer-lhe melhores condições que os ingleses.

Kemal ficou subitamente pensativo. — Obrigado, Barão. Mas o que creio precisar mesmo é que Salman volte a trabalhar para minha companhia e comece a ajudar o velho tio novamente. O escritório em Istambul precisa de alguém de mão firme. Talvez possamos discutir isso, os dois, mais tarde. Preciso voltar a Istambul amanhã e embarcar para Londres.

Essa observação foi entendida como uma sugestão de que deixássemos os dois a sós. Já íamos saindo quando Salman me chamou de volta.

— Fique conosco, Nilofer. Não temos segredos para você. A não ser que esteja desesperada para encontrar-se com seu marido.

Fiquei.

— E então, Salman? — perguntou meu tio.

— Está pronto para voltar ao trabalho?

— Estou, mas uma coisa me preocupa.

— O quê?

— A situação aqui, como Nilofer poderá confirmar, está muito instável. Os gregos estão deixando bem claro que Istambul pertence a eles e os russos os apóiam abertamente. Os ingleses jogam dos dois lados. Os alemães estão do nosso lado. Não querem que o Império seja dividido. No que concerne aos negócios, tio, eu estava pensando que seria mais seguro transferir a sede da sua companhia para algum outro lugar.

— Para onde?

— Não sei. Liverpool? Nova York? Kemal sorriu.

— Você não deve confundir o prédio onde temos nossa sede com o lugar onde guardamos nosso dinheiro.

Concordo que seria desastroso manter o dinheiro em Istambul neste momento. Sifrah aconselhou-me a transferir parte para Londres alguns anos atrás e segui seu conselho. Se o Império cair, estaremos a salvo.

Perguntei-lhe sob que bandeira seus navios viajavam.

— A nossa, é claro. As bandeiras de nossos navios são otomanas. Isso não é problema. Eu poderia usar a japonesa, se quisesse. Quando começamos a trabalhar?

— Quando voltarmos para Istambul, tio. Estou aproveitando este interlúdio.

Salman temia fazer qualquer referência a Alexandria, mas sabia ser inevitável.

— Encontrei-me com Hamid Bey há poucas semanas. Mandoulhe muitas lembranças.

— Como está ele? Hamid Bey merece todo o meu respeito. Foi muito bom para mim.

— Ele vai bem. Os netos estão crescendo e são uma fonte de felicidade para ele. Dão-lhe razão para viver. Eu os vi na casa dele. São crianças educadas, inteligentes e bonitas. Que mais se poderia desejar? Salman deu um sorriso sem jeito. Não pôde deixar de perguntar. — E a mãe delas? Foi então a vez de Tio Kemal ficar sem jeito. — Então você não sabe? — Não sei de quê? Tio Kemal empalideceu. Fez uma longa pausa antes de dizer: — Encontraram-na morta no ano passado, Salman. Eu estava certo de que Hamid Bey lhe havia escrito contando isso.

O rosto de Salman se contraiu num espasmo de dor.

— O que foi que aconteceu?

— Ninguém soube, realmente. Ela foi nadar naquela enseada que dizem ter sido descoberta por você. Levou livros, toalhas, deixou tudo em frente à pequena caverna que há por lá e foi nadar. Como não voltou para casa ao final do dia, Hamid Bey mandou que os empregados a procurassem. Sua empregada sabia que ela costumava ir àquele lugar e logo retornaram com as coisas que ela havia deixado. Havia um livro de poesia de Verlaine.

"No dia seguinte um pescador encontrou seu corpo. Dizem que uma corrente deve tê-la apanhado de surpresa. Com certeza estava nadando longe demais e não teve forças para voltar. Sinto muito, Salman. Pensei que você soubesse mas não quisesse falar sobre isso."

Meu irmão começou a chorar, repetindo o nome dela e dizendo que a havia perdoado. Meu tio e eu tentamos consolálo como podíamos, mas a notícia tinha sido absolutamente inesperada e ele estava em estado de choque. Não conseguia acreditar que tivesse sido um acidente. Repetia, sem parar, que ela era excelente nadadora e que conhecia aquele mar muito bem. Ele estava convencido de que tinha sido um ato proposital. Certamente nadou mar adentro até onde já não desse mais para voltar. Foi essa a maneira que ela planejou para deixar o mundo.

Quando acalmou-se um pouco, Salman se lembrou de que logo no início do namoro deles ela lhe dissera que se não pudessem ser um do outro ela se suicidaria. Ele não a levou a sério e tinha até brincado com ela perguntando qual seria o método escolhido. Ela respondeu que não faria uso de arma alguma e que não desejaria ser descoberta. Disse que nadaria sem parar na direção do horizonte.

— Hamid Bey lhe falou sobre o que a havia deixado tão infeliz? Kemal segurou a mão de Salman entre as suas e acariciou-a gentilmente.

— Hamid disse que ela jamais se perdoou pela maneira como havia tratado você. Disse-lhe várias vezes que o marceneiro nunca havia significado coisa alguma para ela. Apenas lhe dera filhos. À medida que as crianças foram crescendo e se apegando ao avô, ela foi se tornando cada vez mais distante de tudo e de todos. Perguntava sempre ao pai se ele sabia onde você estava e ele, para protegê-lo, dizia que não. Dizia-lhe também que ela o havia feito sofrer demais e que se estivesse se sentindo só, escolhesse outra vítima. Hamid Bey sempre esteve do seu lado, Salman. Ele não tinha pena dela e o relacionamento deles foi se deteriorando com o passar do tempo. Ela não encontrou outro homem, ou se encontrou ninguém ficou sabendo.

— Pobre Mariam — disse Salman -, ela deve ter se sentido muito angustiada para tirar assim sua própria vida. Mas o que há com você, Tio Kemal? Tenho a impressão de que está escondendo alguma coisa de mim. O que é?

Tio Kemal suspirou.

— Às vezes penso que tive muita sorte de não ter amado intensamente como você ou como seu pai.

— Ou como minha mãe — disse eu.

— Ou como eu.

Ele sorriu.

— Exatamente. Mas você me parece bem feliz, menininha dos olhos verdes. Os outros, porém, ficaram com uma cicatriz para o resto da vida. Sou grato a Má por ter me poupado dessa agonia.

Salman insistiu em sua pergunta.

— Há mais alguma coisa que não tenha me dito, Tio KemalP Eu já me controlei. Pode dizer.

— Hamid Bey me disse que toda semana ela escrevia uma carta para você, que não mandava, é claro. Ele as descobriu depois da morte dela e as queimou. Não queria que fossem vistas pelos netos.

— E o que ela escrevia?

— Ele não quis me dizer e eu não insisti. Se você o vir nova' mente, pergunte a ele. Isso é algo que eu não posso fazer em seu nome. E quem sabe? Talvez as cartas não fossem apenas os gritos de um coração sofredor, mas fossem cheias de rancor, principalmente contra o pai. Agora preciso ir dormir.

Nós nos encontraremos quando eu voltar de Londres e então discutiremos os planos para a companhia.

Salman e eu permanecemos na biblioteca por várias horas ainda. Fiquei sabendo que Alexandria se tornara um lugar de tristes recordações para ele. Fiquei sabendo que a crueldade da mulher havia sido excessiva. Ele a teria perdoado tudo, inclusive o marceneiro, mas o prazer que ela demonstrava ao vê-lo sofrer, isso ele não conseguia perdoar. Foi isso que matou seu amor por ela. Toda a emoção que ela lhe havia despertado esvanecera-se. Será que airr da restava alguma?

— Não, não creio que haja restado coisa alguma. O processo foi lento, não posso negar. Durante muitas e muitas semanas ela não saía de minha cabeça, dominando meus pensamentos como um gigantesco polvo com seus tentáculos. Eu lutava contra ela dirigindo-lhe todas as ofensas que não lhe havia dito quando nos separamos.

Não é fácil livrar-se de todo o entulho emocional de uma situação como aquela. Leva algum tempo, mas a pessoa acaba se livrando. Quando já fazia quase cinco meses que eu estava embarcado, àquela altura viajando pelo Japão, parei de pensar nela. Tudo se acabou. Lembro-me do sentimento de alívio que tomou conta de mim. Eu tinha conseguido expulsar a fera que se encontrava no meu peito e que comia meu coração. Cheguei a chorar de alegria quando me dei conta de que estava livre dela. Já se havia passado tanto tempo, que eu fui apanhado de surpresa.

"Quando soube agora há pouco que ela afastou-se a nado da enseada, muitas recordações ternas tomaram conta de mim, mas logo foram substituídas por lembranças de outras coisas que se passaram naquele exato lugar. Ela não era uma mulher ruim, Nilofer. Acho que ela nunca superou o fato de ter sido abandonada pela mãe. Quando me abandonou, não suportou que o pai ficasse contra ela. Duvido que a mãe sequer tenha escrito a Hamid Bey apresentando suas condolências. É possível que ele nem a tenha informado da morte de Mariam. Quem saberá dessas coisas? E que diferença faz? Tudo isso já faz parte do passado. Mas ainda não me acostumei com a idéia de que ela não está mais neste mundo. Durante muitos meses, a única forma que eu tinha de recuperar a sanidade mental era pensar que ela estava morta. Agora que ela se foi de verdade, tenho uma sensação estranha.

"Venha comigo, irmãzinha Nilofer. Vamos deixar que o sono espere um pouco esta noite. Deixemos que seu amado marido leia Auguste Comte enquanto aguarda seu retorno.

Não quero estar sozinho olhando para as estrelas."

Deixamos para trás a bela biblioteca, elegantemente iluminada por suas seis luminárias, e entramos na escuridão do jardim. Não havia lua e levamos algum tempo até que nossos olhos se acostumassem ao escuro. O céu estava claro e as estrelas faiscavam. Um pouco adiante, o mar, tranqüilo, parecia uma colcha negra.

Lá fora, no mundo, muitas coisas estavam acontecendo. Planejavam-se rebeliões. Preparavam-se resistências. Sultões e imperadores sentiam-se aflitos. A história estava sendo feita. Ali, naquele belo e perfumado jardim nascido de um capricho de Yusuf Pasha, tudo aquilo parecia muito remoto.

Meu irmão Salman e eu ficamos sentados num banco contando as estrelas, como fazíamos nos tempos de criança.


20

As confissões de Petrossian;
o assassinato do tio-bisavô fMurat Pasha;
a agonia da família Petrossian

Será que um velho empregado desta casa tem permissão para se dirigir a você, Mulher de Pedra? Sei que em tempos passados as criadas costumavam vir aqui chorar suas mágoas quando tinham a honra violada por seus patrões. E não eram só as criadas que vinham procurá-la. Na época do avô de Iskander Pasha havia muitos jovens — jardineiros, vigias, pajens das mais diversas origens. Eram curdos, albaneses, armênios, sérvios, árabes, bósnios, turcos — que para aqui eram trazidos contra sua vontade. Será que eles vinham despejar suas lágrimas a seus pés também, Mulher de Pedra? Ou será que o orgulho os obrigava a apagar tudo da memória?

E o homem que, há sessenta anos, assassinou o terrível tio-avô, Murat Pasha? Esse veio confessar seu crime? Nunca descobriram sua identidade, não é mesmo?

Alguns dos empregados certamente sabiam, mas ninguém revelou quem foi o assassino. Meu avô costumava dizer que, no fundo do coração, todos rezavam para que o corajoso assassino nunca fosse descoberto. Quem quer que tivesse sido, teria continuado a trabalhar aqui, porque naqueles tempos ninguém saía sem ser demitido. Meu avô costumava dizer a meu pai que se alguma vez lhe fora dado ver a face do mal, essa face era a de Murat Pasha. E note que nem precisava ter sido num daqueles dias quando ele bebia vinho demais e era tomado pela lascívia. Murat Pasha era uma pessoa desagradável em qualquer situação. Até seus filhos o detestavam e temiam.

Dizem, Mulher de Pedra, que ele deflorou a própria filha de dezessete anos. Contam que quando fez isso estava completamente bêbado, como se essa fosse uma desculpa para o crime. E a pobre menina, veio contar-lhe sua história? Veio lhe mostrar sua túnica manchada de sangue antes que a casassem às pressas com um beduíno da Síria? Nunca mais se ouviu falar dela. Ela jamais voltou a Istambul. Espero que tenha encontrado consolo em sua nova vida e que seus filhos a tenham ajudado a esquecer esta parte do mundo.

Pois saiba, Mulher de Pedra, que tenho uma revelação a lhe fazer. Eu sei quem matou Murat Pasha. Foi ele mesmo quem me contou e estava muito orgulhoso com o que havia feito. Foi meu amigo, Hasan Baba. Por isso que o talho na garganta foi tão perfeito e o pênis e os testículos foram retirados com precisão cirúrgica. Quem mais teria conseguido fazer aquilo se não alguém com as mãos bem treinadas de um jovem barbeiro? Por sorte o dedo da suspeição jamais se voltou para ele, que costumava ajudar seu velho pai a raspar a cabeça de Murat Pasha e a aparar sua barba. Os dois eram freqüentemente vistos no pátio, rindo das piadas de Murat Pasha e, aparentemente, não havia inimizade alguma.

Hasan Baba contou que a ele, pessoalmente, Murat tratava muito bem, até mesmo quando, na ausência do pai, ele teve que fazer sua barba e ficou tão nervoso que lhe deu um talho na face. Hasan temeu pelo pior, mas Murat Pasha apenas riu e murmurou: "Com o tempo você vai aprender, filhote de barbeiro. Basta prestar atenção ao que seu pai faz.'

Então, por que ele o matou? Ele me disse que não suportava mais ver o sofrimento daqueles homens e mulheres que tinham em seus corpos as marcas da brutalidade de Murat Pasha. Eu jamais acreditei que essa fosse toda a verdade. Eu sei, Mulher de Pedra, que Hasan Baba era um homem perfeito, mas ninguém se arriscaria a matar Murat Pasha a não ser que tivesse motivos pessoais para tanto. Depois de muita insistência minha, Hasan acabou revelando que Murat Pasha havia forçado uma jovem lavadeira curda a ter relações sexuais com ele.

Hasan amava secretamente a tal menina. Ficava sentado de longe vendo-a carregar trouxas de roupa suja até o riacho. Apreciava o movimento do seu corpo a lavar as peças de roupa, esfregando, batendo, torcendo e esticando-se nas pontas dos pés para pendurá-las no varal. Ele ainda não tinha a coragem suficiente para revelar-lhe seus sentimentos, mas tinha a certeza de que ela sabia. Quando a mãe não estava por perto, ela sorria para ele. Eu ainda não tinha nascido nessa época, mas Hasan Baba aos dezoito anos deve ter sido um belo espécime de homem. Antes que ele pudesse ter qualquer reação, Murat Pasha passou a cavalo um dia, carregou a menina consigo e a estuprou. Quando ela voltou para casa, a mãe a abraçou e chorou muito, mas suplicou que nada dissesse a pessoa alguma, pois poderiam ser despedidas.

A filha ouviu as súplicas da mãe e chorou em silêncio. As duas procuraram consolo entre si e a menina prometeu que guardaria em segredo aquele crime.

Durante a noite ela decidiu qual a melhor maneira de manter seu silêncio para sempre. Bem cedinho, antes que o sol aparecesse, ela preparou o desjejum da mãe, beijou-a carinhosamente e saiu, dizendo que queria ver o dia nascer. Jogou-se do alto da escarpa, Mulher de Pedra. Encontraram seu corpo estraçalhado algumas horas depois. Como as pessoas conseguem ter coragem para pôr fim à própria vida é algo que jamais poderei entender. Chorou-se muito a morte da menina nas dependências dos empregados naquele dia. Ela era muito querida por sua altivez e sua beleza.

Foi naquele mesmo dia que Hasan Baba decidiu matar Murat Pasha. Ele sabia que não poderia confiar em outra pessoa para fazer aquilo. Planejou tudo sozinho. Três semanas depois Murat foi encontrado morto. Seu pênis havia sido cortado e estava enfiado em sua boca.

Não perguntei a Hasan Baba pelos detalhes, Mulher de Pedra. Fazer o que ele fez já foi o suficiente. Creio que toda a família ficou aliviada. Nem uma só lágrima foi derramada pelo monstro, certamente. Ele foi enterrado no cemitério da família, porém bem poucos compareceram para a homenagem final a ele. Seus próprios filhos e suas mulheres não foram.

Alguns meses antes de morrer Hasan Baba pensou em contar tudo a Selim. Não sei se contou ou não. Eu já guardei esse segredo por muito tempo, Mulher de Pedra. Durante muitos anos ouvi o pai de Iskander Pasha perguntar quem poderia ter matado seu tio. Memed disse certa vez que quem quer que tivesse feito aquele ato de bravura era um herói moderno, que deveria ser encontrado e condecorado. Eu me pergunto o que eles teriam feito se ficassem sabendo que foi Hasan Baba. Acho que Iskander Pasha teria ficado orgulhoso.

Não vim aqui falar do passado, Mulher de Pedra, mas sua presença acaba sempre extraindo velhos segredos de nós. Vim foi para lhe contar o que está acontecendo em minha aldeia. Há mais de duzentos anos esta família nos deu dinheiro para comprar terras na aldeia, próximas a um lugar onde eles mesmos tinham grandes propriedades.

Como era costume naqueles tempos, outras famílias armênias começaram a se mudar para lá a fim de ficarem próximas de nós e de viverem sob a proteção desta família.

Foi o avô de Iskander Pasha que não suportou mais ter que compartilhar o que quer que fosse com seu irmão Murat e por isso começou a vender suas terras. Cinqüenta anos atrás a família acabou de vender todas as terras que tinha por lá e comprou propriedades em Istambul, em Damasco e sabe-se lá onde mais. Muitos comerciantes armênios que queriam empregar seu dinheiro compraram parte da terra, mas foram os curdos que lá chegaram para trabalhar como lavradores sazonais. Alguns deles se estabeleceram por lá.

Quatro anos atrás os curdos avisaram meus irmãos e outros parentes nossos de que se não saíssem de lá por iniciativa própria, suas casas seriam queimadas e suas famílias seriam mortas. Um aviso dessa natureza não precisa ser dado duas vezes, por isso muitos armênios pegaram o que podiam carregar de seus pertences e partiram.

Minha irmã e seu marido recusaram-se a ir. Ela sempre foi muito teimosa. Pois ela disse que poderiam matá-la, mas que não sairia de lá. Contei a Halil Pasha o que estava acontecendo. Ele ficou tão indignado que nem mandou um subordinado resolver a situação: reuniu alguns soldados e foi, ele mesmo. Ele ameaçou os curdos de expulsá-los de lá se perseguissem mais uma única pessoa. Disse que eles haviam invadido aquelas terras e que mereciam ser punidos. Disselhes, mais especificamente, que se tocassem em minha irmã ou em sua família, a punição seria imediata. Halil estava muito indignado, Mulher de Pedra. Os curdos acreditaram no que ele disse.

Nada mais aconteceu.

Mas na semana passada incendiaram a casa da minha irmã no meio da noite. Quando os filhos dela e suas esposas tentaram fugir do fogo, foram apanhados de emboscada e mortos ali mesmo. O mesmo aconteceu com todas as outras famílias armênias da aldeia. Disse isso a Halil Pasha ontem à noite. Ele ficou sentado à mesa, com a cabeça entre as mãos, e disse como num gemido: "O Império está se esfacelando, Petrossian, e todo mundo está tentando salvar alguma coisa para si antes que a nova ordem se estabeleça novamente. Sinto muito mesmo, mas não posso fazer coisa alguma neste momento.' Quando Halil Pasha, que é general, diz que nada pode fazer para impedir que minha gente seja assassinada, que esperança podemos ter? Eu já estou velho e logo morrerei, mas meus filhos e meus netos querem viver suas vidas.

Todos começam agora a fazer política de maneira equivocada. Agora meus próprios filhos querem se engajar na política. Dizem que é a única solução. De que adianta?

Meu menino mais velho acaba de entrar para um grupo recémformado que luta pela criação de um país para nós. Ele diz que os armênios espalhados pelo mundo nos ajudarão.

Seu irmão já fugiu, atravessando a fronteira da Rússia.

Meu genro diz que devemos lutar para permanecer em terras otomanas, lutar para que nossa vilayets em Anatólia consiga o status de província autônoma, com governo próprio. Segundo ele, uma total separação entre a Armênia e o território otomano seria impossível. Nosso povo e nossa terra estão por toda parte.

Ele quer que nos tornemos Dashnaks. Diz que precisamos entrar para o Dashnakzouthion e apoiar o Comitê que quer depor o Sultão. Na Rússia, diz ele, os Dashnaks estão do lado de uns tais de social-democratas que se opõem ao Czar. Nunca tinha ouvido falar dessa gente. Se minha própria família está se envolvendo com política, alguma coisa deve estar mesmo mudando.

O que está acontecendo, Mulher de Pedra? O mundo todo parece estar desabando.

Minha vida inteira passei nesta casa. Sempre me trataram bem. Meus filhos recusaram-se a ficar aqui. Já nem sei quantas vezes pediram que eu deixasse esta família e fosse viver com eles. Diziam que o mundo agora está diferente e que ganham o suficiente para que eu possa viver em paz o resto dos meus dias. Disselhes que me sinto bem aqui. Sinto-me seguro. Se eu estivesse naquela aldeia com minhas irmãs, teria morrido também. Agora meus filhos querem que eu saia de Istambul. Um deles vende tapetes no Cairo. Quer que eu vá morar com ele e sua família, Mulher de Pedra. A família desta casa aqui é a única que conheço de fato. Não desejo deixar Iskander Pasha. Estou errado?"


21

Selim fica tão impressionado com o diário
de Iskander Pasha de Paris que o lê duas vezes;
o Barão explica por que as pessoas em Paris são diferentes das de Istambul;
a vida agitada do General Halil Pasha

Selim estava absolutamente concentrado. Já estava havia mais de uma hora lendo e relendo o diário que a francesa devolvera a Iskander Pasha. Meu pai o havia colocado na biblioteca. Peguei-o rapidamente e o levei para nosso quarto a fim de o lermos juntos na cama. Selim não esperou que eu chegasse. Tinha começado a lêlo enquanto eu punha as crianças para dormir e já estava na metade da segunda leitura quando cheguei. Mesmo assim, não quis compartilhá-lo comigo. Quando ele terminou, tomei o diário de suas mãos. Ele estava deslumbrado.

— Não fique zangada comigo, princesa. Eu estava imerso na leitura porque Hasan Baba encontrava-se também em Paris nessa época e falava muito sobre ela. Você sabe quando foi que seu pai escreveu isso?

Eu não sabia.

— Em 1871. Paris estava sitiada pelos prussianos. Napoleão III, que tinha se proclamado Imperador da França, foi deposto. A república foi proclamada e então algo absolutamente inesperado aconteceu: os pobres da cidade insurgiram-se contra aquela situação. Entre terem que se submeter aos ricos de Paris ou aos prussianos que estavam às portas da cidade, não tinham alternativa. Hasan Baba sempre dizia que havia ajudado a construir uma barricada para os pobres. Eu nunca acreditei naquilo. Achava que era invenção.

Eu achava que era algo que ele gostaria de ter feito, mas não teria como. O diário de seu pai confirma essa história. Sinto-me muito orgulhoso de Hasan Baba, Nilofer.

Leia você mesma, por favor.

Ele ficou muito aborrecido porque eu não quis mais ler o diário naquela noite. Preferi dormir. Na manhã seguinte fui despertada pelo canto dos pássaros. O mar estava agitado e as gaivotas voavam sobre a terra. Vesti-me e desci para o desjejum levando o diário. Um vento cada vez mais forte fazia voarem as cortinas. Os empregados apressavam-se em fechar as janelas e travar as portas.

Eu estava só. Ninguém mais havia descido ainda. Como não tinha muita fome, servi-me apenas de uma xícara de café com leite quente. Li o diário sentada à mesa e tive uma sensação estranha: lá fora uma tempestade se formava sobre o mar e ali estava eu, confortavelmente sentada, lendo sobre uma outra tempestade a respeito da qual eu nada sabia.

3 de Setembro de 1870

Nunca pensei que meus afazeres e a vida que levo como embaixador me permitissem tempo para escrever um diário, mas estamos vivendo dias espantosos. Hoje essa figura patética e gabola que se fez "Imperador da França" foi capturado e derrotado pelo exército da Prússia. Mais um triunfo para Bismarck Pasha!

Fui dar um passeio pelas ruas a fim de aquilatar a reação das pessoas. Todas pareciam desoladas e os vendedores de jornal eram praticamente saqueados, tão grande era a aflição das pessoas para se informar dos acontecimentos. Ouvi muitas que criticavam com mais rancor seus próprios conterrâneos do que os prussianos. Algumas lojas ostentavam cartazes onde se lia "Vive Trochu!". Trochu é o governador militar de Paris e o homem de quem agora muita coisa passará a depender. À tarde uma enorme multidão marchou pelas ruas exigindo a instauração de uma república. Os franceses nunca desistem de ter sua república. Poderíamos aprender algo com eles a esse respeito.

Não tenho qualquer possibilidade de comunicar-me com Istambul e devo confessar que a sensação é boa.

4 de Setembro de 1870

Ontem mesmo estavam exigindo uma república e já hoje a proclamaram em frente à Câmara, onde uma grande multidão estava reunida aguardando.

Eu não estive lá, mas Hasan, meu barbeiro, esteve e me fez um relato minucioso. Esse místico sufista está se tornando um revolucionário. Já que é a embaixada que atualmente lhe paga o salário, pergunto-me se esse crescente envolvimento com a política local não poderá criar um problema diplomático mais adiante. Ele me disse que a multidão reunida na Place de la Concorde aplaudiu calorosamente a notícia. As pessoas começaram a rasgar o branco e o azul das bandeiras tricolores, deixando apenas o vermelho. As letras N em dourado que enfeitavam as grades das Tuileries estavam sendo escondidas com tinta e cobertas com coroas de flores, cujo suprimento nesta cidade, ao contrário do que ocorre com a comida, nunca é insuficiente. Hasan juntou-se à multidão que invadia o palácio e presenciou a criação da "Guarda dos Cidadãos". Ele disse que as pessoas ficaram tão sensibilizadas com sua solidariedade que quiseram elegê-lo membro da Guarda, mas ele não aceitou, temendo prejudicar-me.

Entusiasmado com esses relatos, aventurei-me incógnito pelas ruas, vestindo modestas roupas francesas. Paris está muito quente e úmida hoje. Em frente ao Hôtel de Ville havia muita gente reunida. De maneira absolutamente espontânea, as pessoas começaram a cantar a Marseillaise. Deve ter sido assim em 1789. É estranho como a gente daqui tem um sentimento intuitivo de sua história; isso parece estar nos seus próprios ossos. Os vendedores de flores engajaram-se nesta revolução com seus botões de rosas vermelhos para serem colocados nas lapelas. E os prussianos estão a apenas quatro dias de marcha desta cidade. Somente os franceses seriam capazes de destituir seu rei nestas circunstâncias. Como invejo essa sua capacidade.

Mais tarde fui a um jantar na residência dos Montmorency. Yvette nunca esteve tão exuberante, mas o clima por lá era bem diferente do que eu presenciara nas ruas.

Tive certa dificuldade em controlar-me. Os demais estavam desolados. Um velho cavalheiro francês falava dos alemães com respeito, dizendo que "somente Bismarck pode livrar-nos dessa corja". Yvette, sentindo necessidade de falar, sugeriu que talvez fosse melhor se os próprios generais franceses se encarregassem da multidão desvairada; que se Thiers, que era um velho amigo da família, fosse encarregado disso, certamente haveria sangue correndo pelas ruas, mas se trataria de uma limpeza.

Então "estaríamos todos prontos para enfrentar os prussianos". Aventei a possibilidade de o inimigo resistir ao exército francês, mas que se dessem o encargo a Yvette, ela os conquistaria a todos. A não ser ela, ninguém mais sorriu ao ouvir meu comentário. Meu anfitrião, o Visconde de Montmorency, disse que aquela turba só sabia criar desordem.

Ele se declarou a favor da república, mas apenas se Gambetta ficar à frente e isolar os agitadores da extrema esquerda. Um outro conviva, cujo nome não me lembro, teve um ataque de nervos à mesa, exclamando que tinha tido uma visão aterradora. Todos pararam de falar a fim de escutar o que ele estava dizendo. Ele falou de uma grande quantidade de óleo junto aos portões de Paris, e do medo que ele tinha que os prussianos o jogassem no Sena e incendiassem suas margens, exatamente como o almirante otomano Barba Ruiva ameaçara fazer em Veneza. Todos os olhares se voltaram para mim, aguardando a confirmação dessa história. Eu apenas sorri.

Comecei a me sentir sufocado naquele ambiente e despedi-me para sair. Montmorency sussurrou-me: "Não fale muito mal de nós em seus despachos para Istambul. É tudo culpa do Imperador." Eu sorri e nada disse.

23 de Setembro de 1870

Há uma terrível falta de comida na cidade. Enquanto o fogo de artilharia dos prussianos atinge Pans, as pessoas se queixam da falta de vegetais frescos e carne. Alguns restaurantes estão fechando. Outros estão começando a servir carne de cavalo como se fosse filé. Ontem fui informado de que já não há ostras. É a revolução.

21 de Outubro de 1870

Um estranho entregou um pacote muito grande na embaixada. Petrossian ficou nervoso, mas o trouxe para meu escritório com a carta que veio junto. Não consegui acreditar que ele tivesse conseguido fazer aquilo. A carta tinha a inconfundível caligrafia do Barão. Ele tinha se lembrado do meu aniversário e o pacote continha o seguinte: 2 garrafas de champanhe, uma dúzia de ostras, uma garrafa de claret, uma peça grande de filé de boi, cogumelos, trufas, batatas e uma inacreditável alface fresca. O cozinheiro, que não conhece o Barão, ficou ainda mais surpreso que eu. Todos comeram e beberam comigo, mas Hasan garantiu que o vinho que ele tinha tomado quando invadiu o palácio com a multidão era ainda bem melhor que aquele — e a companhia também. Fiz um brinde ao Barão e me pergunto se ele não estará na entrada de Paris com o exército prussiano.

31 de Outubro de 1870

Por todo lado ouço gritos de "Vive la Commune!". Fui dar um passeio com Petrossian (que levou uma arma para nos defender em caso de ataque) e com Hasan Baba até o Hôtel de Ville, onde os que assumiram o governo se dão conta do seu isolamento. Receio que a França esteja à beira de uma guerra civil.

Paris é a favor da Commune, porém será isolada e será massacrada. Não desejo que isso aconteça, mas parece ser inevitável.

7 de Novembro de 1870

Os prussianos rejeitaram a proposta de armistício dos franceses.

O memorando de Bismarck mostra claramente a vontade de ferro do líder alemão. A França não tem um estadista de sua estatura. Este governo, que tão pouco fez para se defender do inimigo externo, está preparando uma séria ofensiva contra seus próprios cidadãos. Um ovo fresco, informa-me o cozinheiro, está custando 25 sous.

 

— O que está lendo, menina?

O Barão havia chegado para o desjejum, e eu interrompi a leitura.

— O diário de Iskander Pasha de 1870 em Paris. Você é citado nele.

Ele riu.

— O pacote de alimentos no aniversário dele?

— É. Como conseguiu fazer aquilo? Você estava mesmo lá, lutando do outro lado?

— Estava, é claro. Você há de concordar que Bismarck era mais progressista do que aquele presunçoso Napoleão centésimo terceiro, seja lá como se designava. Um pilantra da pior qualidade. Desonrou o nome dos seus grandes antepassados. Memed ficou felicíssimo por eu ter conseguido fazer chegar aquele pacote a Iskander Pasha no seu aniversário.

— É verdade. Fiquei mesmo — disse Tio Memed chegando à mesa e ainda bocejando.

Ele quis saber por que falávamos sobre aquilo. Quando contei, ele pegou imediatamente o diário de minha mão.

— Hum. Vou ler isso depois. Você sabia que o avô do seu Selim teve um papel heróico naqueles malfadados acontecimentos?

— Sim, mas eu ainda não havia chegado a essa parte, e... — Logo que voltou de Paris, Hasan estava decidido a organizar uma comuna em Istambul. Creio que o Barão lhe mostrou que seria uma tolice imitar algo que havia fracassado. Você se lembra como ele ficou zangado, Barão?

— Sim, sim. Eu me lembro. O problema não seria tanto o de imitar algo fracassado, mas o fato é que o povo de Istambul ainda se apegava profundamente às malditas mesquitas. Os parisienses, graças a 1789, já haviam se curado dessa doença e eram ferozmente anticlericais.

— Você tem razão, Barão — disse meu pai que acabava de chegar e de inspecionar a mesa, dando por falta dos ovos, sem os quais seu desjejum ficava incompleto. -

Petrossian! Estou aqui. Meus ovos, por favor. Por que estamos falando sobre a França, Barão?

Repeti a explicação pela terceira vez. — Aliás, Barão, foi a dificuldade de encontrar ovos durante aquele cerco a Paris que me fez tomar a decisão de nunca mais ficar sem os meus ovos. A culpa é toda sua.

Memed riu baixinho. O Barão estava satisfeito por ocupar o centro das atenções.

— Papai — perguntei -, Hasan Baba envolveu-se mesmo com o que se passava na França?

— Sim, nós todos nos envolvemos. Petrossian ficou muito entusiasmado também, mas a execução dos membros das comunas por Thiers e seus soldados fez com que ele mudasse de idéia. Creio que se deu conta da força do Estado e assustou-se. Thiers era um carniceiro com sede de sangue. Mas Hasan não se deixou abalar. Concordo com o Barão quanto a Istambul. Nunca tivemos nosso 1789, nem mesmo um 1793. Se tivéssemos tido, tudo seria diferente agora.

Os ovos mexidos de meu pai chegaram, salpicados de coentro e pimenta negra. Enquanto ele se ocupava com a comida, o Barão retomou a conversa.

— Pois é, Iskander, mas o problema é que aquilo não poderia mesmo acontecer aqui. Na França havia uma aristocracia que sugava o sangue do homem do campo. Aqui, o estado otomano era tudo: a mesquita, o Sultão, o proprietário das terras e o comandante do exército. Nisso consistia sua força, segundo Maquiavel, mas também sua fraqueza. Sua família recebeu feudos e poder em troca de serviços prestados, mas Yusuf Pasha, de grande memória, não teve poder ou terras para organizar seu próprio exército. Na Inglaterra e na França os nobres eram como reis em escala menor. Aqui, nunca foram.

— Barão — suplicou Memed -, por favor! Vamos tomar nosso desjejum. Você sabe como me sinto fraco nesta parte do dia.

Tive vontade de beijar meu tio. Eu sabia exatamente como ele se sentia.

— Alguém desta casa sabe informar onde Halil se meteu há dois dias? Você sabe, Nilofer? Você toma parte desta conspiração, não é mesmo?

Preferi ignorar a provocação. Iskander Pasha não tinha se deixado envolver pelo Comitê e havia ficado abalado com o caso do general eunuco. Tinha dito a Halil que tomasse muito cuidado e não pensasse que o eunuco seria a primeira ou a última pessoa a espioná-los e a delatá-los. Era a preocupação de um pai com a segurança do filho, porém senti que havia algo mais em questão. Seu diário de Paris havia revelado um lado dele que tinha me passado despercebido. Eu não havia pensado nisso antes, mas dada a duplicidade de seu caráter emocional, não se poderia também esperar uma dicotomia em outros aspectos de sua vida?

Havia o Iskander Pasha urbano de Istambul que, vestido de maneira formal, se encontrava com o Vizir uma vez por semana e discutia banalidades acerca do Império ou da saúde do Sultão. Seu rosto mantinha-se inexpressivo quando recebia a visita de dignitários em nossa casa em Istambul. Mas os sorrisos cativantes e a demonstração superficial de calma eram puros disfarces. Aquele era o mesmo homem cujas mãos se contraíam de dor e de ódio. O diário era uma prova cabal disso, embora ele fosse ainda jovem naquela época.

Era evidente que ele se preocupava com a possibilidade de Halil acabar na prisão ou coisa pior, mas também sentia-se irritado por não estar a par dos assuntos do Comitê, principalmente porque sabia que eu estava envolvida. Meu interesse pela política tinha sido pequeno até a chegada de Selim à nossa casa. O redemoinho de emoções que ele provocou em mim abalou minha vida em sua própria essência. Tive que repensar muitas coisas que antes não me pareciam importantes, tanto em relação à minha própria vida quanto ao mundo exterior. Eram coisas que eu tinha como inquestionáveis, como, por exemplo, a certeza de que eu podia controlar minhas emoções, ou a idéia do Império como algo eterno. Iskander Pasha olhava-me, impaciente.

— Não sei mesmo dizer, pai. Ele disse a Petrossian que talvez passasse uma semana ou dez dias em Istambul.

— Política ou diversão?

— Nem uma nem outra — respondi.

— Família. Ele achou graça.

— Os meninos e a mãe já voltaram de Damasco? Eles haviam voltado, e Halil, que havia vários meses não via os gêmeos, estava ansioso por estar com eles. Sempre fui muito mais chegada a Salman em termos afetivos, e ainda sou. Desde pequenos, Salman e eu sabíamos que poderíamos conversar sobre qualquer assunto sem a menor vergonha ou timidez. Apesar da longa separação, foi com enorme prazer que descobrimos, naquele verão, que nada havia mudado quanto a isso. Certos relacionamentos são tão profundos que podem sobreviver a qualquer coisa. Eu sentia que o nosso era desse tipo.

Já meu relacionamento com Halil, apesar de afetuoso, sempre havia sido um pouco formal. Desde os tempos de criança, Zeynep e ele sempre foram mais próximos. E isso nada tinha a ver com o fato de terem a mesma mãe. Eles sempre trocaram confidências e tinham também afinidade de temperamento. Eram bem mais introvertidos do que Salman e eu. Halil, principalmente, sempre foi muito misterioso. Seu casamento é um exemplo disso.

Ele conheceu Catherine há quase vinte anos em um chá em Istambul. A Condessa Galfalvy, já na casa dos oitenta, era uma velha amiga da família. Era de uma tradicional família grega e tinha fugido de casa quando jovem com um conde húngaro arruinado. Os dois passaram a viver na propriedade da família dele, onde ocupavam três aposentos.

As refeições eram feitas com a família. Seu falecido marido, Gyorgy, era pintor. Deve ter pintado mais de cem retratos dela em todas as poses possíveis.

Quando jovem, era tida como uma das mulheres mais lindas de Istambul e diz-se que até o Sultão interessou-se por ela. Talvez esse tenha sido o motivo de sua fuga inesperada com o Conde Galvalfy. Não tiveram filhos, e quando o Conde morreu ela passou a achar insuportável viver confinada àqueles três cômodos e voltou para Istambul com todas as suas telas. Para surpresa sua, um negociante de quadros que tinha ouvido falar da pintura do Conde pediu para vê-la. Ficou horas e horas examinando cada um dos quadros. Deve ter sido um negociante honesto, pois ofereceu-lhe uma fortuna por eles. Ela ficou com alguns de que gostava mais e aceitou a oferta.

Lembro-me de ter ido visitá-la com minha mãe umas poucas vezes. Ela morava em uma casa grande que ficava a uns quinze minutos da nossa. Mesmo no inverno, quando o sol era agradável, as pesadas cortinas de sua casa estavam sempre fechadas. Talvez ela quisesse recriar o ambiente fechado em que tinha vivido com o conde por mais de cinqüenta anos. Mas ela se sentia só. Tinha saudades do cheiro de óleo sobre tela. Passou então a freqüentar a escola de artes e a convidar jovens pintores para tomar chá com ela. Quando conhecia artistas de famílias pobres, ajudava-os financeiramente, e quando eram de outras regiões do Império, convidava-os para ficar morando com ela. Catherine Alhadeff era uma estudante de arte vinda do Cairo. Quando conheceu a velha senhora na escola, estava morando com uns amigos do pai de quem não gostava muito. Uma semana depois, já estava instalada em um quarto espaçoso no último andar da casa. Lá não havia cortinas e a luminosidade era perfeita.

O sol entrava pelas janelas na maior parte do ano. Catherine ficou muito feliz.

Halil a viu pela primeira vez quando ele e a mãe foram tomar chá com a Condessa. Ele ficou muito interessado por ela e provavelmente anotou seu nome no seu caderno como possível noiva. Salman certa vez conseguiu ler o tal caderninho e jurou para mim que a lista existia mesmo. Mas Halil dizia que era tudo brincadeira. Fiquei sem saber, mas acho que a tal lista, escrita ou não, sempre esteve em sua cabeça. Catherine chegou ao topo da lista, ainda que para isso não tivesse feito o menor esforço.

Halil sempre foi do tipo de pessoa que não gosta de correr riscos, mas nunca soube avaliar bem as pessoas. Certa vez ele me disse que não confiava em sua intuição, pois ela sempre o levava a decisões erradas. Quando fui mais a fundo na conversa, ele me contou que três jovens oficiais em quem havia confiado o traíram.

Zeynep foi quem primeiro ficou sabendo de Catherine. Halil achava que ela seria a esposa ideal para ele. Não queria viver com uma mulher que passasse o dia inteiro sem fazer coisa alguma. Achava que aquilo o enlouqueceria. Quando contou à mãe, ela expressou sua irritação com o fato de ele querer se casar com uma cristã. Isso deixou Halil aborrecido. Ele disse à mãe que, se quisesse, casarse-ia com uma macaca.

Depois, para grande decepção nossa, descobriu-se que Catherine pertencia a uma família ortodoxa xiita. Seu nome devia-se ao amor que o pai tinha por um retrato de Catherine de Medici, do século XVI, que ele havia comprado muitos anos antes em Istambul. A pintura não estava assinada e o pai de Catherine pagou por ela um preço bem razoável. A confusão toda começou quando ele mostrou o quadro a um visitante vindo de Veneza. O veneziano estava convencido de que se tratava de autêntico Ticiano. Tal era sua certeza, que ofereceu uma quantia altíssima por ele. O pai de Catherine recusou-se a vender o quadro. A possibilidade de ser mesmo um Ticiano só fez aumentar seu apego à obra. Passou a ter verdadeira obsessão por ela e quando, depois de quatro filhos homens, foi abençoado com o nascimento de uma filha, deu-lhe o nome de Catherine, apesar dos protestos da esposa.

A Condessa Galfalvy viu com bons olhos a corte de Halil à moça e recomendou-o muito bem aos pais dela. Catherine, ao que tudo indica, continuava indiferente. Dizem que perguntou a Halil se precisaria parar de pintar depois de casada, e que ao saber que sua arte era uma razões para querê-la como esposa, aceitou casarse com ele. Nunca chegou a perguntar quais eram as outras razões. O proprietário da pintura renascentista e sua família foram a Istambul a convite da Condessa. A cerimônia, em si, foi bem modesta. Apenas as duas famílias e os amigos mais íntimos foram convidados.

Catherine era uma mulher muito atraente, alta e esguia, de pele morena e cabelos escuros até os ombros. Seus lábios finos e seus olhos pequenos davam-lhe um quê de menina. Lembro-me de que quando a vi pela primeira vez pensei, com uma ponta de inveja, que aquela mulher nunca pareceria velha.

Um ano e meio depois, Catherine deu à luz um par de gêmeos saudáveis. Foi o primeiro caso de gêmeos tanto na família dela quanto na nossa. A princípio isso causou algumas dúvidas, mas essas se dissiparam quando os meninos foram crescendo. Foram ficando parecidíssimos com Halil e nós nos afeiçoamos muito a eles. Iam com freqüência à nossa casa, e no verão vinham sempre passar algumas semanas aqui. Catherine amava esta casa e a pintava de todos os ângulos. Depois levava suas telas e suas tintas para o despenhadeiro e pintava o mar. Uma dessas telas, na qual as gaivotas parecem pedras de granizo pairando sobre um mar verde-escuro ainda pode ser vista na biblioteca. Eu costumava puxar conversa com ela, mas ela era sempre fria e distante. O mesmo se dava com todos os demais. Como Halil passava muito tempo fora a serviço do exército, todos nos esforçávamos para ser gentis com ela. À exceção de minha mãe, porém, éramos todos delicadamente mantidos à distância.

Por alguma razão que desconheço, Catherine gostava de minha mãe. Ela pintou dois belos retratos seus, um dos quais está no meu antigo quarto na casa de Istambul.

Somente poucos anos atrás, depois que os gêmeos completaram quinze anos, percebemos que algo ia muito mal. Minha fonte de informação sobre essas coisas, como sempre, foi Zeynep.

"Foi terrível, Nilo. Foi terrível para o pobre Halil. Terrível para o pobre Halil. Eu jurei que não contaria a ninguém, mas o que ela está fazendo é muito cruel. É cruel demais!"

Sempre que tem alguma notícia importante a dar, Zeynep tem o hábito de repetir as frases, talvez supondo que assim dobre o impacto. Em mim esse seu hábito sempre surte o efeito oposto. Fico tão irritada com essa sua maneira de falar que não consigo prestar atenção no que ela está dizendo. Já lhe falei sobre isso várias vezes, mas ela não se contém. A história que ela me contou foi muito desagradável.

Alguns meses depois do nascimento dos gêmeos, Catherine informou a Halil que não queria ter outros filhos. Ele ficou aborrecido, mas aceitou a decisão dela. Nunca a forçou ou insistiu para que mudasse de idéia. O passo seguinte foi recusar-se a ir para a cama com ele. Dizia que o parto dos gêmeos tinha sido um trauma muito grande para ela e que o processo reprodutivo passara a lhe dar náuseas. Aconselhou-o a arranjar outra esposa ou uma concubina, ou o que quisesse. Ela aceitaria qualquer coisa, desde que não houvesse mais nada entre eles. A essa altura, interrompi o relato de Zeynep. "Me diga uma coisa", perguntei, "ele não abriu seu caderninho para consultar sua lista?"

Zeynep não achou graça. "Não. Por favor. Não tente fazer graça. Não tente fazer graça. Isso é terrível."

O que ela chamou de terrível foi a decisão de Catherine de se mudar para o Cairo e levar os filhos consigo. Halil queria que os filhos ficassem com ele. Achava que seus estudos no lycée seriam prejudicados, mas Catherine recusou-se a ter bom senso. Era contra a educação formal e dizia que os meninos aprenderiam muito mais viajando com ela. Ela os levou consigo para o Cairo e já estavam lá há um ano, mas os meninos queriam voltar para junto do pai e dos amigos. Ela prometeu que os deixaria voltar a Istambul no verão e que poderiam ficar com o pai. A volta, porém, foi protelada, o que deixou Halil muito aborrecido. Mal soube que eles estavam de volta, ele foi às pressas para Istambul. Agora tinha os meninos consigo.

Ainda tinha mais uma coisa. Zeynep havia preparado uma lista para ele e queria que ele avaliasse os três primeiros nomes a fim de escolher uma nova mulher para si.


22

O que Catherine disse à Mulher de Pedra dez anos atrás

Nilofer foi gentil ao sugerir que eu viesse falar com você. Trouxe meus cavaletes e minhas tintas. Vou pintá-la enquanto conversamos. Espero que não se importe.

Não vai ser fácil acertar as cores. Você deve ter percebido que estou aqui há uma hora tentando misturá-las corretamente. Você fica tão diferente com o sol batendo em cheio! Quando Halil me falou de você pela primeira vez, ele a descreveu como uma deusa, mas você é apenas uma pedra grande. Nem tenho mesmo certeza de que você foi entalhada alguma vez. Talvez tenha sido. Há algumas marcas aqui e ali. Será que isto aqui é o que restou de um seio? É possível que sim. Isso a torna mais interessante. Acho que vou pintá-la como a vejo. A cor não está exata, mas vou começar assim mesmo.

Qual é sua opinião sobre esta família, Mulher de Pedra? Será que não conseguem ser sinceros? Estou começando a me perguntar por que me casei. Halil é um bom homem e me compreende. Não tenho queixas dele, porém não consigo mais suportar que toque em mim. Na verdade, nunca tive mesmo prazer com ele e acho que já cumpri com minha obrigação gerando dois meninos saudáveis.

Sofri muito quando eles nasceram, Mulher de Pedra. Parecia que aquela agonia não teria fim. Perdi tanto sangue, que as parteiras comentavam em voz baixa, entre si, que eu não resistiria. Nunca senti essas emoções da maternidade de que tanto falam. Na verdade, não senti emoção alguma. Eu era apenas uma menina assustada que se assustou mais ainda quando lhe colocaram uma criança em cada seio. A sensação foi estranha. Eu me senti como um animal. Se não tivessem conseguido duas mulheres para amamentar os meninos, não sei o que seria de mim. Mas graças aos céus consegui livrar-me de muitas coisas.

Acho que não nasci para ser mãe, Mulher de Pedra. Tenho afeição pelos meninos, mas nunca morri de amores por eles, não mais do que pelo pai.

Você disse alguma coisa, Mulher de Pedra? Tive a impressão de ouvi-la perguntar por que me casei com ele. O dilema que se punha à minha frente era simples. Ou eu encontrava alguém que eu mesma escolhesse em Istambul, ou teria que voltar para o Cairo e enfrentar a humilhação de ter que me casar com alguém que me seria imposto por minha mãe. Foi isso o que aconteceu com todas as minhas amigas de infância. Eu preferia a morte a isso. Minha mãe opunha-se ferozmente à idéia de eu ser artista. Foi meu pai quem me estimulou. Aprendi alemão para ir estudar história da arte em Viena, mas minha mãe ameaçou suicidar-se se eu fosse, e meu pai foi tolo o suficiente para acreditar. Na verdade, ela nunca se importou muito comigo. Seus quatro filhos homens já estavam todos "estabelecidos na vida", como ela costumava dizer. Estavam todos casados e suas mulheres já haviam gerado filhos. Por que ela não podia ter me deixado em paz? O máximo que permitiu foi deixar-me estudar em Istambul, porque o Califa do Islã residia aqui. Uma das minhas cunhadas, que, como as demais, é muito gorda mas que difere delas por não ser tão estúpida, escreveu prevenindo-me de que minha mãe já estava organizando uma relação de possíveis maridos para mim. Mulher de Pedra, entrei em pânico.

Discuti o problema francamente com minha amiga Maria, a Condessa de Galfalvy. Ela me aconselhou a aceitar a proposta de Halil. Conhecia a família há muito e disse que eram pessoas bem pouco convencionais que jamais se oporiam à minha carreira. Eu era jovem e Maria havia se tornado uma mãe para mim. Por isso aceitei seu conselho. Ele me pareceu ser um bom homem. Quando olhei atentamente para ver que parte dele pintaria, foram seus olhos expressivos que me agradaram. Ele era diferente da maioria dos homens de minhas relações, pois falava pouco. Não posso dizer que fosse o homem que eu estava procurando, porque não estava procurando homem algum.

O que eu queria mesmo era pintar. Quando eu ainda vivia no Cairo, minhas amigas estavam sempre atentas aos rapazes atraentes. A mim, nunca interessaram.

Depois de casada achei que as intimidades sexuais invadiam excessivamente minha privacidade. Eu sabia que aquilo tinha que ser feito. Eu tinha que me deitar e deixar que ele botasse o bastãozinho dele dentro de mim. Mas, Mulher de Pedra, posso assegurar-lhe que nunca tive prazer com aquilo. Nunca. Quando falei sobre isso com algumas amigas, elas acharam que havia algo errado comigo. Isso me fez ficar ainda mais tensa e infeliz. Da parte dele, nunca faltou paixão, mas seu toque me deixava fria. Quando eu sentia necessidade de ser tocada entre as pernas, preferia cuidar disso eu mesma. Era bem menos sujo e uito mais prazeroso. Confessei isso à minha amiga mais íntima em Istambul, que é pintora também, e ela me disse que era como preferir um primeiro esboço de um quadro à tela a óleo acabada.

Pensei muito sobre esse comentário e quase parei de fazer quadros a óleo.

Há três anos não tenho relações íntimas com Halil, desde que as crianças nasceram. Tampouco sinto necessidade de encontrar outro homem. Na verdade, não sinto necessidade de coisa alguma que requeira outra pessoa para sua realização. Meu trabalho me satisfaz.

Um dia falei dessas coisas com Maria, achando que ela ficaria horrorizada, mas para minha surpresa ela compreendeu perfeitamente. Disseme que algumas mulheres são ardorosas e outras não; que quanto a ela, tinha sido uma amante apaixonada para o Conde Galfalvy, mas que isso fora sorte. Assegurou-me também que eu não tinha por que me envergonhar dessa situação. Depois olhoume atentamente e fez uma pergunta que, acredite, me chocou muito, Mulher de Pedra, fiquei profundamente chocada. Maria perguntou se eu preferia contatos físicos com outras mulheres à intimidade com homens. Devo ter ficado ruborizada, porque ela deu uma gargalhada e disseme para não me preocupar se esse fosse o caso. Istambul estava cheia de mulheres que se preferiam e que isso não era um grande problema.

Fiquei tão abalada com a pergunta dela que a evitei durante algumas semanas. Meu ateliê ainda era no andar superior de sua casa, portanto não poderia esquivar-me para sempre. Um dia, quando cheguei para pintar, encontrei uma jovem que me esperava. Vinha também do Cairo e trazia uma carta de meu pai. Ela era filha de um dos principais clientes de meu pai (meu pai, Mulher de Pedra, é mercador de antiguidades) e queria também ser pintora. Passaria alguns meses com o tio em Istambul antes de seguir para Florença.

Rachel, que era um pouco mais nova do que eu, merecia mesmo ir para Florença. Tinha um rosto lindo emoldurado por pesados cachos de um louro avermelhado, o rosto mais adorável que eu já tinha visto. Naquele instante fiquei sabendo qual era o meu maior desejo nesta vida. Eu queria pintar Rachel. Queria pintar aquele rosto em seus mínimos detalhes, sem omitir um só pontinho de sarda. E queria pintá-la toda, Mulher de Pedra, vestida e nua.

Levei-a para conhecer Istambul. Visitamos toda a parte antiga da cidade. Ficávamos sentadas à beira-mar apreciando a luz da lua a tremular sobre as ondas enquanto sorvíamos lentamente os mais deliciosos cafés de Istambul.

Levei-a à minha casa. Ela gostou dos gêmeos e carregou-os nos braços. Conheceu Halil, que gostou dela e ficou feliz por eu ter encontrado uma amiga. Pedi que posasse para mim e ela disse sentir-se honrada com o convite. Aceitou. Ficou um mês inteiro em Istambul e eu pintei cada curva de seu corpo, cada linha, cada nuance. Ela não concordou em despir-se para mim, mas eu imaginei o que se escondia por baixo das dobras de suas roupas e ela ficou muito surpresa com a precisão.

E então ela partiu para Florença. Passamos a trocar cartas regularmente. Ela descrevia as colinas que cercavam Fiesole, a luminosidade nos minutos que antecediam o pôr-do-sol ou o raiar do dia, me falava do trabalho que estava fazendo e das saudades que sentia de mim. Falou-me de uma pintura que havia passado quase uma hora analisando, tentando descobrir quantas vezes o pintor havia mudado de idéia e quantas camadas de tinta tinha usado. Ao final, voltou-se para falar comigo e ficou triste porque eu não estava lá, vendo o quadro com ela. Muitas e muitas vezes tive uma vontade súbita de largar tudo e ir ter com ela em Florença, mas Maria Galfalvy aconselhou-me prudência e curvei-me ante sua experiência. Em vez de partir, então, eu desaparecia com meu caderno de esboços e ficava desenhando Rachel como eu a imaginava em diferentes locais de Istambul. Ela ficou três anos em Florença.

Agora, voltou para o Cairo e as sanguessugas ficaram excitadas. Todas queriam Rachel para seus filhos, o que não foi surpresa alguma. O pai dela é um judeu muito rico e ela é linda. Há algo inescapável em seu destino que me enche de melancolia. Estou cansada de viver sem ela, Mulher de Pedra. Decidi voltar para o Cairo com meus filhos. Rachel já terá alguns também. Nós nos consolaremos uma à outra e nos pintaremos uma à outra. Encontraremos um ateliê em Alexandria para os meses de verão, quando o Cairo se torna insuportável.

E o que será de Halil? Ele sobreviverá. Acabará encontrando outra esposa, alguém que o ame e que lhe dê o prazer que nunca lhe dei. Eu dei a ele dois filhos. Acho que fiz a minha parte.

Eu gostaria que você pudesse ver esta tela, Mulher de Pedra. Pintei-a como um enorme bloco de rocha, mas só agora me dou conta do quanto seus olhos se parecem com os de Rachel."


23

Chega de Nova York um mensageiro com uma carta para Sara;
Memed trama o casamento de Jo, o Feio, com uma das filhas de Kemal Pasha

Quem é o jumento que está zurrando desta maneira?

Emineh pensou que a reclamação se dirigisse a Orhan e pôs-se a rir baixinho, mas não eram as crianças que estavam perturbando meu tio. O dia estava muito quente e Tio Memed, sabiamente, havia decidido fazer sua siesta ao ar livre, na parte sombreada do jardim onde a brisa do mar ameniza o calor. Eu estava sentada ao lado dele tentando entender Auguste Comte. As crianças divertiam-se com uma brincadeira tola de tentar acertar amêndoas verdes uma na outra.

O que acordou Tio Memed foi o barulho de um coche e de vozes estranhas no terraço da frente. Um dos jardineiros veio em nossa direção seguido por um estranho.

Um homem, aliás, muito estranho mesmo. Tio Memed ergueu-se e olhou aborrecido para os dois.

O jardineiro apontou em minha direção e afastou-se. O estranho curvou-se desajeitado, cumprimentando-nos, e começou a falar no pior francês que já ouvi em minha vida.

— Cheguei de Nova York há poucas semanas. Trago um envelope para Madame Sara, esposa de Iskander Pasha, mas tenho ordens expressas de só entregá-lo a ela, pessoalmente.

Petrossian surgiu inesperadamente, aborrecido com o fato de um estranho ter perturbado nossa privacidade. Eu pedi que ele preparasse refrescos para o visitante.

Decidi caprichar no meu francês, falando de maneira afetada.

— Informarei minha mãe de sua chegada e verei se será possível que ela o receba dentro em breve. A quem devo anunciar, senhor?

— Bem, Joseph Solomon, mas basta dizer Jo. Todos me chamam de Jo.

— Petrossian, queira encaminhar Monsieur Jo ao salão de visitas.

Quando eles se afastaram, Memed deu uma gargalhada.

— Bem feito que ele vá tomar um suadouro naquela sala de castigo.

O nome que o Barão tinha dado ao salão depois da visita de Yvette havia se tornado uma piada na família.

— Você notou como o sujeito é feio? — continuou meu tio.

- É feio de verdade. Faria um par perfeito com uma das filhas de Kemal. Pensando bem, que tal, Nilofer, se bancássemos Cupido? Só uma pequena travessura, que tal?

Podemos dizer à esposa de Kemal que um novo Sultão, um Sultão do dinheiro, acaba de chegar de Nova York e que o nome dele é Jo, o Feio.

Dei uma risada. Memed estava sendo cruel, mas dizia a verdade. O fato era que Jo não se mostrava apenas desajeitado. O terno que usava era apertado demais e o paletó estava encharcado nas axilas. Só isso já fazia dele uma figura grotesca. Mas o pior era o fato de ele ser muito grande e gordo, com uma cara rechonchuda e plácida, cheia de marcas de varíola, na qual se sobressaía um nariz bulboso parecido com um dos pepinos estragados que o responsável pela nossa horta jogava no mar. Será que Jo, o Feio, precisava de um dote? Era esta a pergunta que se apresentava no momento.

Se a resposta fosse afirmativa, poderíamos mandá-lo de volta para Nova York com uma noiva.

A princípio pensei tratar-se de um joalheiro trazendo um presente de Tio Kemal para minha mãe. O Tio estava sempre nos enviando presentes. Mas me dei conta de que se vestia muito mal para um joalheiro. Foi então que adivinhei. Ele deveria ser filho de Suleman.

O que haveria no envelope? Esqueci-me de minha pose e saí correndo em direção à casa, entrando bem no instante em que minha mãe descia tranqüilamente a escada.

Antes que eu pudesse preveni-la da possibilidade de o visitante ser meu meio-irmão, Petrossian abriu subitamente a porta da sala do castigo e surpreendeu-me ao anunciar, com voz solene e perfeito sotaque francês:

— Madame Iskander Pasha et Madame Nilofer Selim Pasha. Achamos graça daquela sua ousadia, mas entramos no espírito da comédia e, de braços dados, adentramos pomposamente o salão. Jo Solomon ficou impressionado. Petrossian havia logo percebido o jeito daquele homem.

Jo, o Feio, curvou-se para minha mãe.

— Fico muito feliz que tenha podido receber-me, madame. Que salão fantástico! Que palácio maravilhoso têm aqui! Sou Joseph Solomon, madame, e trago um envelope que meu falecido pai pediu que lhe entregasse pessoalmente. Sara empalideceu.

— Seu falecido pai?

— Sim, madame. Suleman, de Damasco, que a senhora conheceu.

Ele sempre falava da generosidade de sua família.

Minha mãe sentou-se no sofá e pediu um copo d'água. Depois olhou atentamente para Jo, o Feio. Era óbvio que sua presença ali não a agradava.

— Sinto muito em saber que Suleman morreu. O senhor não se parece com ele.

Jo, o Feio, entregou o envelope a minha mãe.

— Ele me repetiu isso a vida toda, madame. Ela foi sentar-se perto da janela enquanto eu dava a Jo o sorriso mais sem graça que já dei. Ele sorriu para mim também e foi horrível. Sua boca parecia infectada por alguma doença e seus dentes, manchados de um marrom amarelado, eram todos estragados. Nunca vi coisa igual. Foi um alívio para mim quando Salman entrou na sala, por sugestão de Tio Memed, para ver aquela criatura, como me disse depois. Pedi licença e fui sentar-me com minha mãe no outro lado da sala.

Ela estava de costas para Salman e Jo, o Feio, e chorava em silêncio. Abracei-a. Sem uma só palavra, ela entregou-me a carta que acabara de ler.

Minha Querida Sara,

A capacidade que temos de enganar a nós mesmos é infinita e sofri a vida inteira em conseqüência disso. Esta é uma carta de explicação, Sara.

Vou escrever a verdade. Mentir de nada valeria a um homem à beira da morte.

Morro lentamente há seis meses. Os médicos não têm como me curar porque não conhecem esse monstro que me devora as entranhas. É tarde demais para lamentar ter sido pintor em vez de médico. Quem sabe se não conseguiria curar-me? Talvez o que esteja me devorando seja o enorme remorso que carrego comigo desde aquela infeliz manhã quando tomei um navio que partia para Liverpool e Nova York.

Quando você receber esta carta, já terei morrido. Faz mais de trinta anos que deixei Istambul. Você se lembra do que me disse naquela manhã, quando lhe falei da minha tristeza? Você me lançou um olhar frio e um sorriso indescritível e disse: "Você vai com o coração partido mas a bolsa pesada de dinheiro, Suleman. Tenho certeza de que a bolsa saberá cuidar do coração." Nunca mais me esqueci dessas palavras. Como pôde ser tão cruel, Sara? E tão precisa.

Seu pai foi generoso. Você estava magoada. Eu sabia que você queria que eu dissesse que se havia perigo de nossos filhos nascerem doentes, simplesmente não os teríamos. Mas tive medo de que, com o passar do tempo, você acabasse por ter raiva de mim, que ficasse frustrada por não ser mãe. Essa última frase só me ocorreu agora, Sara. Não é verdade. Quando se adquire o hábito da mentira, é difícil livrar-se dele, até mesmo a um moribundo. Mas estou decidido a romper com a mentira aqui e agora.

Depois de todos esses anos, ainda acho difícil aceitar que eu tenha me deixado levar tão facilmente pela generosidade de seu pai. Você me acusou de covarde e traidor por trair o amor que me dera tão sinceramente. Você tinha razão.

Seus pais não inventaram a história da doença para impedir que nos casássemos. Meu próprio pai confirmou que havia um problema sério, embora minha mãe insistisse em dizer que vários outros casamentos naquelas circunstâncias haviam resultado em crianças saudáveis. Mas nem ela pôde negar que havia risco.

Sei que a esta altura não é consolo para você ou para mim dizer isto, mas quero que saiba que me arrependi a vida inteira de ter deixado Istambul. Eu gostaria de ter ficado e corrido o risco, Sara. Eu gostaria. Eu gostaria. Seu tio Sifrah me diz que você tem uma filha linda. Isso me deixa muito feliz. Não tive a mesma sorte. Sei o que deve estar pensando. O que começa errado, vai errado até o fim. Como você deve ter notado, o portador desta carta pode até ter algumas qualidades, mas certamente é uma triste figura. Ele saiu aos irmãos da mãe, cuja feiúra não se limita à aparência física e estende-se também ao caráter: são pessoas desqualificadas, capazes de roubar sua própria gente.

Em Damasco e em Istambul nós nos ajudávamos uns aos outros. Não é assim neste inferno em que vivo. Logo que cheguei aqui "com o coração partido e a bolsa pesada", aconselharam-me a morar com uma família de judeus poloneses que havia vindo para cá dez anos antes para fugir dos pogroms. Acreditei de boa-fé na bondade que essa família demonstrava ter. Mas praticamente forçaram-me a casar com a filha mais velha, Tamara, e quando sucumbi (por conveniência, solidão, desespero, Sara, nada mais; isso nunca afetou meu amor por você) descobri que estava quase sem dinheiro. Aluguei um ateliê e comecei a pintar retratos. Aos poucos minha fama foi se espalhando e quando o Sr. Rockefeller me pediu que o retratasse, soube que poderia viver confortavelmente de minha arte o resto da vida. Mas de que vale o conforto material, Sara, quando a alma está vazia?

Passei a vida sofrendo por tê-la perdido, mas sempre desejei que você fosse feliz. Meus prazeres na vida foram esporádicos, geralmente em meu ateliê com algumas mulheres que gostavam de posar para mim. Somente as mulheres muito jovens me atraíam.

Tive que encontrar um outro lugar para minhas escapadas depois que minha esposa e seus irmãos entraram subitamente um dia e me surpreenderam com uma mulher. Nada fizeram a mim, pessoalmente, mas marcaram a pobre jovem para o resto da vida com um talho no rosto feito a faca. Pensei muito em você depois desse incidente, no que você diria se soubesse até que ponto eu havia afundado na lama.

Escrevo-lhe tudo isso para que você saiba que a vida me puniu pelo erro de trinta anos atrás. Este envelope contém também uns esboços que fiz de você em Istambul e que guardei como a um tesouro. Eu os olhava com freqüência para aliviar meus sofrimentos lembrando-me do tempo que passamos juntos. Foi um tempo curto, porém o mais feliz de minha vida. Lembra-se daquele dia na biblioteca de seu pai, quando você descobriu a história do Profeta Bilan e os moabitas e nos pusemos a rir sem conseguirmos parar? Essa é uma outra coisa que desapareceu da minha vida. O riso.

Estou enviando também uma miniatura a óleo que fiz de memória. Sua filha ou seus netos podem gostar de tê-la como lembrança. Estes são meus últimos presentes para você, Sara. Espero que me perdoe.

Suleman

Olhei os esboços e o retrato a óleo de minha mãe. Os esboços eram cheios de vida e em um deles via-se um seio nu. O retrato em miniatura foi pintado sobre um fundo de vermelho intenso e nele os olhos de minha mãe eram muito tristes. Deve ter sido assim que ele os viu pela última vez.

— Deixe-os comigo, filha. Você pode ficar com eles depois que eu morrer. Pobre Suleman! Não conseguiu escapar de sua própria armadilha. Sinto muita pena dele, mas foi ele quem arruinou sua vida e a minha.

— Você teve a mim, mamãe. Será que não valho nada? Ela me abraçou cheia de emoção.

— Você é tudo que eu tive, filha. Tudo. Se não fosse por você, eu também já estaria morta. Mas agora, preste atenção: essa gente nunca deverá saber que você é filha dele. A idéia de você ter algum parentesco com aquele rapaz faz com que eu me sinta mal.

— Ele ainda pode acabar entrando para a nossa família. Memed, Salman, eu ... e acho que agora o Barão também... vamos fazer o possível para casá-lo com uma das filhas de Tio Kemal!

Minha mãe não conseguiu prender o riso e depois já não podia parar. Dei-lhe água para beber e juntamo-nos ao grupo.

— Monsieur Jo, fico-lhe muito grata por ter me trazido algo tão importante de tão longe. O senhor tem consigo uma fotografia de sua mãe ou de sua família?

Jo sacudiu a cabeça.

— Eu viajo com pouca bagagem, madame, principalmente no verão.

A voz do Barão nunca me pareceu tão falsa.

— Bem pensado. Faz sentido. Eu estava aqui dizendo ao jovem Jo que na volta de Damasco ele deveria parar em Istambul para conhecer Kemal Pasha. Jo é advogado, Sara, e poderia ser de grande valia para Kemal, que está organizando sua linha de navios a vapor.

Jo ficou entusiasmado.

— Minha especialidade é exatamente o comércio. Posso ajudar bastante, principalmente do lado de Nova York. Terei muito prazer em conhecer Kemal Pasha quando voltar. Na verdade, não tenho desejo algum de visitar Damasco. Ouvi dizer que lá é muito poeirento e abafado no verão, mas a família de meu pai ainda está em Damasco e preciso fazer-lhes uma visita de cortesia.

— Oh, sim — disse Salman.

— E eles ficarão muito felizes em vê-lo. Será uma boa surpresa para eles, principalmente porque você é bem diferente de todos.

— Por que não fica para jantar? — convidou Memed. Aquilo era ir longe demais e todos lhe dirigimos olhares de repreensão. Por sorte Jo tinha outros planos e o condutor do coche precisava estar na cidade à noite.

Depois que ele saiu, rimos muito. Minha mãe estava um pouco abalada, mas não tanto quanto temi que ficasse. Ela se voltou para o cunhado.

— Você acha que consegue, Memed?

— Se todos vocês me ajudarem, acho que pode ser feito. O gorducho não tem religião alguma e isso facilita tudo. Podemos convertê-lo à nossa fé por meio de suborno ou de adulação. Quem sabe conseguimos um eunuco para vestir-se de sultão ou de califa e transformar Jo, o Feio em Ibrahim, o Virtuoso?

Estamos de acordo, então? Ótimo. Precisamos convencer Iskander esta noite. Kemal vai gostar do nosso plano. Jo, o Feio estará de volta a Istambul em janeiro. Faremos o casamento do século. É possível que os próximos cem anos sejam de pessoas como Jo, o Feio. Alegra-me que estejamos de acordo. Este está sendo um dia bem produtivo para mim, Barão.

— Folgo em sabê-lo, Memed. Às vezes me preocupa o fato de seu intelecto não estar recebendo uma quantidade suficiente de estímulo.

Mais tarde, quando entrei no quarto de minha mãe, encontreia sentada no chão olhando seu retrato pintado a óleo.

— Você prefere que eu saia?

— Não, minha querida Nilofer. Prefiro que você esteja comigo. Ela me falou do sonho que havia feito com que ela corresse para a Mulher de Pedra.

— Como é que essas coisas assim podem acontecer, Nilofer? Não sou supersticiosa. Não acredito no que os astrólogos dizem, mas isso me deixa pensativa. Será possível ter intuições assim tão fortes acerca de alguém de quem fomos ou somos muito próximos? Creio que essa é a única explicação possível. O mais estranho disso tudo é que já fazia muito tempo que eu não pensava em Suleman quando aquele sonho veio me perturbar o sono.

Segurei suas mãos entre as minhas e as beijei. — A notícia da morte dele deixou-a muito triste?

— Não — sussurrou ela.

— Eu soube que ele estava morrendo quando tive o sonho, e como estava preparada para sua morte pude controlar minhas emoções. Foi a carta que me deixou perturbada. Nunca pensei que ele admitisse a verdade.

Conhecia-me tão bem aquele rapaz! Sabia que eu estaria me perguntando sobre os verdadeiros motivos por trás da decisão de me deixar. Foi delicadeza dele me escrever, apesar de ser terrível ler que meu pai o comprou com dinheiro. Que tolo ele foi!

— Agora isso tudo chegou ao fim, Mãe? Está tudo terminado?

— Sim, minha filha. Agora estou em paz comigo mesma. Estaria mais feliz se ele tivesse visto e conhecido você. Pobre Suleman! Ele apreciava muito as pessoas e as coisas bonitas. Deve ter sido uma tortura para ele ver Jo todos os dias. Não, Nilofer, não faça esta cara.

O problema é que o caráter do rapaz não difere de sua aparência. Todos nós percebemos isso instintivamente. O pai dele também.

— Como é a tal história sobre Bilan que os fez rir tanto? Sara sorriu e encaminhou-se rapidamente para um pequeno armário que havia em seu quarto de vestir. Voltou com um pequeno volume do Talmude.

— Em nossa religião, Nilofer, os rabinos jamais deram guarida a seus adversários. Isso era assim antigamente e ainda o é. E se achassem que alguém havia traído os judeus ou, mais especificamente, os Anciãos, não haveria perdão. A vítima tinha que sofrer tantas mortes quantas fossem possíveis, das mais diferentes maneiras, e seu nome era enlameado diante da congregação. Bilan foi um desses. Foi acusado de realizar atos de feitiçaria com seu próprio órgão masculino. Agora leia a história.

Peguei o livro de suas mãos e li a página que ela me indicou:

A conversa de Bilan com os moabitas Quando lhe perguntaram por que não estava a cavalo, ele respondeu:

— Geralmente ando a cavalo. Hoje, porém, estou montando um jumento.

Então a jumenta disse a Bilan, diante dos moabitas:

— Eu sou sua jumenta, não sou?

— Apenas para levar minhas cargas — disse Bilan tentando fazer com que ela se calasse.

— Uma jumenta na qual você pode trepar — continuou o animal, contrariando a afirmação de Bilan de que ela era uma jumenta de carga.

— Apenas ocasionalmente — disse Bilan, deixando implícito que não costumava cavalgá-la.

— Só se é a partir de hoje — continuou a jumenta a contradizê-lo quanto ao fato de cavalgá-la esporadicamente.

— E não é só isso — continuou ela -, pois à noite realizamos atos maritais um com o outro.

Foi assim que a jumenta levou a melhor na disputa verbal com Bilan. Como seria possível, então, que Bilan continuasse a se dizer "conhecedor da mente do Ser Supremo"

— e que Ele lhe dava permissão para ofender os judeus, quando ficou evidente que não tinha poderes sequer sobre a mente de um animal?

Ri ao ler essa história e depois foi Sara quem riu, mas seu riso foi temperado pela lembrança de um dia maravilhoso de muito tempo atrás.

— É uma história tão tola, Mãe. Você não acha?

— Todas as religiões têm seu lado tolo, Nilofer.


24

O século se prepara para o túmulo;
Selim e Halil conversam sobre o futuro;
Dante e Verlaine;
Orhan faz uma pergunta a Iskander Pasha

O século está à beira da morte.

— A voz de Selim estava agitada.

— Os Sultões e o Império seguirão para o túmulo com ele porque seu tempo chegou ao fim. Mas quando começa o nosso, Irmão Halil? Quando chegará a nossa vez? Vamos morrer também? As notícias que você traz não me agradam.

Os dois estavam sentados na biblioteca sozinhos quando entrei. Voltaram-se para mim e sorriram.

— Aconteceu alguma coisa? Nenhum dos dois respondeu.

— É algum segredo militar? Halil deu um suspiro.

— Não. É que o Comitê decidiu, após várias reuniões com o palácio...

— E mais ainda com o embaixador da Alemanha... — interrompeu Selim.

— Bem, eles decidiram — prosseguiu Halil calmamente -adia indefinidamente nosso plano de tomar o poder.

— Por quê?

— Porque, Nilofer, fizeram-nos promessas de reformas de tal magnitude que nossa ação se tornou desnecessária. Seria um crime causar um derramamento de sangue sem necessidade. Além do mais, o Vizir concordou em nomear os líderes do Comitê para altos cargos governamentais no próximo ano, a fim de que possam supervisionar as reformas pessoalmente.

— Alá seja louvado! Esta é uma notícia maravilhosa. Vencemos sem precisar dar um único tiro.

— Sim — disse Halil -, mas eles sabem muito bem que se não fizerem as mudanças necessárias, haverá tiros, e não serão poucos. Sabem perfeitamente o que aconteceu com o general eunuco. Tiveram que aceitar seu desaparecimento. Não perguntaram coisa alguma. Esse silêncio é muito revelador do estado de espírito em que se encontram.

Selim parecia inconsolável.

— Vocês dois confiam demais na capacidade do Vizir de cumprir o que promete. Ele deve estar pensando: nomeio os cabeças para cargos do poder e os corrompo com isso. Deixo passar uma ou outra reforma, mas resisto a qualquer tentativa de derrubar o Sultão ou reduzir o poder do clero.

— Selim — disse Halil -, se isso acontecer, começa a luta armada. Nossos jovens amigos de Salônica compartilham dessas suas dúvidas e de sua impaciência. Não sou tão radical quanto você ou eles, mas de uma coisa estou certo: se não nos modernizarmos dentro dos próximos anos, estaremos acabados. E não me refiro apenas ao Império. Refiro-me a nós enquanto Estado moderno. É por isso que pessoas como eu, moderadas, prudentes, nos aliamos àqueles esquentados de Salônica: para termos a certeza de que as reformas serão feitas. Já esperamos duzentos anos. Alguns meses a mais, ou mesmo um ano, não farão muita diferença.

Selim relaxou um pouco e sorriu. Perguntei a Halil sobre os gêmeos.

— As crianças estão de volta?

— Sim, graças a Alá. Estão muito bem. Propus que viessem para cá comigo, mas eles estavam ansiosos para se encontrar com os amigos em Istambul. Deixei-os com Zeynep.

— E ficarão de vez com você a partir de agora?

— Ficarão. Isso me deixa muito feliz. Disse à mãe deles que ela poderá vê-los quando quiser, mas concordei em dar-lhe o divórcio que ela tanto queria. Agora que o palácio nos deu uma trégua, posso até começar a procurar uma mãe para meus gêmeos. Você tem alguma sugestão a me dar, Nilofer? Viu alguma bela mulher ultimamente?

— Sempre pensei que você tivesse uma lista delas, com as prioridades bem assinaladas.

Ele se pôs a rir. A volta dos filhos o deixava muito alegre e era bom vê-lo daquele jeito, sem profundas rugas na testa.

— Parei de fazer listas há muito tempo. E deixe de zombar das minhas listas, menina. Às vezes elas são bem úteis para refrescar a memória.

— Não é de surpreender que as mulheres o achem romântico, Halil. Você sabe como mantê-las interessadas.

Meu irmão sorriu.

— Uma vez selecionadas, elas recebem uma carga de paixão cuja potência de início as surpreende e em seguida as delicia.

Nossa conversa terminou abruptamente com a biblioteca sendo invadida por todos os lados. Iskander Pasha e Sara entraram com meus filhos por um lado enquanto o Barão e Memed chegaram pelo outro, vindo tranqüilamente do jardim. Logo em seguida chegou Salman, cujo rosto, bronzeado pelo sol, fazia um belo contraste com os cabelos brancos. Sua fisionomia estava muito mais tranqüila e ele parecia feliz. Trazia consigo seu velho exemplar dos poemas de Verlaine, o mesmo que me lembro de o ter visto ler desde que eu tinha oito anos. Sua capa estava completamente desbotada pela exposição ao sol do Mediterrâneo e, quem sabe, pelas lágrimas do dono. Sua chegada alegrou-nos a todos, principalmente a Orhan e Emineh, que já sabiam detectar suas variações de ânimo. As crianças percebem nossos problemas muito mais do que imaginamos.

O Barão estava em um de seus dias de temperamento jovial, mas nem por isso deixava de lado seu espírito competitivo.

— Por que você não recita para nós seu poema de Verlaine predileto para vermos se consigo dizer um à altura do meu poeta preferido?

Salman colocou o livro sobre a mesa.

— Este se chama "Mon rêve familier", da série dos Poèmes saturniens de Verlaine. Eu mesmo o traduzi, embora, como sempre ocorre com poesia, ele fique melhor em sua língua original. Então vejamos "Um sonho meu conhecido":

Volta-me sempre um sonho estranho e penetrante

De uma mulher a quem amo e que me ama

E que se nunca é exatamente a mesma dama,

Tampouco é outra — mas é sempre amada e amante.

Meu coração para ela é transparente,

Só por ela — ai de mim! — ele reclama.

Minha fronte febril só ela acalma,

Só ela, com seu pranto refrescante.

Morena, loura, ruiva? — isso ignoro.

Seu nome? Algo assim doce e sonoro

Como os daqueles que nos levou a Vida.

Seu olhar? Com os das estátuas parecido,

Sua voz faz-me lembrar — grave e distante

— Seres amados para sempre emudecidos.*

* Para o original em francês, ver Apêndice 1

Fez-se silêncio. Halil olhou para seu irmão com carinho. Talvez Verlaine tenha feito vibrar algumas cordas no coração do meu irmão soldado. O efeito só poderia ser positivo. Salman sorriu para o Barão.

— Vejamos se pode competir com este, Barão. O Barão levantou-se e foi até a estante onde se encontravam os livros de poesia em latim e em italiano, uma das coleções menos usadas de nossa biblioteca. Subiu em um banquinho e, tendo encontrado de imediato o que procurava, deu um pequeno grunhido de alegria e desceu do novamente.

— Os livros ficam um pouco empoeirados ali, principalmente quando não são muito usados. Nenhum de vocês, a não ser Memed e Salman, consegue compreender esses idiomas.

Bem, quanto a mim, não opto por uma tradução. O resultado seria como um travesti e não há ainda boas traduções para o alemão ou o francês. É a terza rima que os deixa aturdidos. Trata-se do Canto V da Commedia, quando nosso poeta encontra-se com os amantes Francesca e Paolo no Segundo Círculo do Inferno. Ouça atentamente, Salman, e depois me diga, com toda a honestidade, se os versos de seda de seu amado Verlaine podem competir com esta jóia do renascimento florentino:

Quand' io intesi quell' anime offense, china'il viso, e tanto il tenni basso, fin che ' poeta mi disse:

"Che pense?"

Quando rispuosi, cominciai:

"Oh lasso Quanti dolci pensier, quanto disio menà costoro al doloroso passo!"

Poi me rivolsi a loro e paria' io, E cominciai:

"Francesca, i tuoi martiri A lagrimar mi fanno tristo e pio.

Ma dimmi:

al tempo d'i dolci sospiri a che e come concedetti amore che conosceste i dubbiosi disiri?"

E quella a me:

"Nessun maggior dolore Che ricordarsi del tempo felice Ne la miseria; e ciò sa ' tuo dottore.

Ma s'a conoscer la prima radice Del nostro amor tu hai cotanto a f fetto,

Dirò come colui che plange e dice.

Noi leggiavamo un giorno per diletto Di Lancialotto come amor lo strinse;

Soli eravamo e sanza alcun sospetto.

Per pià fiate liocchi ci sospinse quella lettura, e scolorocci il viso; ma solo un punto fu quel che ci vinse.

Quando leggemmo il disïato riso

Esser basciato da cotanto amante,

Questi, che mai da me non fia diviso,

La bocca mi basciò tutto tremante.

Galeotto fu ' libro e chi lo scrisse: quel giorno pià non vi leggemmo avante."

Mentre che l'uno spirto questo disse, l'altro piangëa; si che di pietade io venni men cosi com' io morisse.

E caddi come corpo morto cade.*

* Para a tradução em português, ver Apêndice 2

A performance deixou o Barão exausto e ele afundou em sua poltrona com a mão estendida como a procurar uma taça inexistente de champanhe. Como não entendi uma só palavra, fiquei apenas apreciando as reações de quem entendia. Enquanto Salman ouvia tudo muito sério e concentrado, o rosto de Tio Memed foi se enchendo de ternura durante a leitura. Terminada essa, ele se dirigiu ao amigo com a voz embargada.

— Fui eu quem primeiro leu essa passagem para você, Jacob. Lembra-se? Veneza?

Era a primeira vez em que alguém da nossa família se dirigia ao Barão pelo seu nome.

O Barão se recuperou. Ele não apreciava demonstrações públicas de afeto e ignorou a pergunta de Tio Memed.

— E então, Salman? Meu irmão olhou para o prussiano erguendo uma das sobrancelhas.

— Meu caro Barão, estou certo de que concordará que seria impertinente compararmos esses dois poetas. Cada um escreveu em sua própria época e possui suas virtudes específicas. O senhor seria capaz de comparar Maquiavel a Hegel?

— Que idéia ridícula. — Exatamente. Não faria sentido. O mesmo ocorre com Dante e Verlaine.

— Discordo. — O Barão começava a dar sinais de irritação.

— O florentino foi um gênio. O francês escreveu poemas de boa qualidade.

Foi então Salman que começou a dar sinais de irritação. Encolheu os ombros, mas ficou em silêncio. Já começávamos a pensar que a discussão havia terminado quando Salman voltou a falar.

— Uma coisa me deixa intrigado, Barão. Conheço bem esse trecho do Canto V que você leu. O que não consigo entender é por que Dante teve que estragar o efeito dessa passagem, de emoção realmente tão profunda, insistindo em dizer que o livro que estava sendo lido era a história de Lancelot, uma lenda que só costuma agradar aos tolos. Você acha que o poeta fez isso deliberadamente? Seria uma forma de prevenir o leitor, talvez, de que o amor pode tornar a pessoa pouco exigente?

O Barão ficou lívido.

— A pergunta que você propõe é tão profunda, que precisarei meditar sobre ela esta noite para dar-lhe a resposta amanhã.

Salman e eu tentamos prender o riso, e meu pai interveio.

— Já chega de poesia por esta noite. Orhan me fez uma pergunta hoje para a qual não tive resposta. Disse-lhe que a fizesse a Selim e a Halil diretamente. Chegue aqui, Orhan.

Orhan aproximou-se de onde Iskander Pasha estava sentado.

— Perguntei a meu avô: quando o Sultão já tiver partido e meu Tio Halil e Selim e os homens que nos visitaram estiverem mandando no Império, os malvados que mataram meu pai serão castigados?

Selim cobriu o rosto com as mãos. Halil ficou sério e pensativo, balançando levemente a cabeça. Foi Salman quem respondeu.

— Ambos gostariam de dizer "sim" a você, Orhan, porque o amam muito, mas também porque o amam muito não querem mentir para você. Alguns dos homens que mataram seu pai por ele ser grego são os mesmos que desejam derrubar o Sultão. Portanto a resposta é "não", Orhan. Provavelmente eles nunca serão punidos.

Os olhos de Orhan encheram-se de lágrimas e Emineh desviou os dela para a janela aberta. Meus pais os levaram para fora da sala sem fazer qualquer comentário.

Memed também ergueu-se.

— Precisamos ver se já está tudo preparado para a viagem, Barão. Partimos cedo amanhã de manhã.

Eu não sabia que a partida deles era tão iminente.

— Vocês estão nos deixando quando mais precisamos de sua presença, Barão.

— Os velhos impérios caem e são substituídos por novos, Nilofer. Vocês têm sorte. Contam com amigos em ambos os lados.

Memed sentou-se novamente.

— Berlim estaria no centro do novo império, Barão? Não creio que os ingleses, os franceses e os russos permitam o surgimento de tal império.

— Eles não são invencíveis, Memed.

— Isso veremos.

— Deixe-me dizer de outra maneira, Memed. Qualquer potência que tenha força necessária para derrotar a Alemanha algum dia dominará o mundo.

— Depois de uma declaração tão wagneriana, Barão, só nos resta nos recolhermos.

— Ótimo — disse o Barão -, mas não sem antes convidarmos Salman, Nilofer e Selim para o baile de Ano Novo de minha família em Berlim. Será uma festa grandiosa este ano. Se você quiser, Selim, posso pedir a meu amigo Urning para conseguir entradas para o baile dos social-democratas alemães. Estão planejando tudo com muita antecedência. É da natureza deles fazer isso.

— Isso me animaria ainda mais a visitar Berlim — respondeu Selim.

— Perfeito. Então estamos combinados. Serão todos meus convidados.

Selim acompanhou-os, deixando-me a sós com Salman.

— Você está gostando da idéia de trabalhar com Tio Kemal novamente?

Ele me olhou e acariciou meu rosto.

— Sim, minha Nilofer. Estou pronto para algo novo. Já tentei o Oriente e não deu certo. Agora gostaria de visitar a América e conhecer Chicago e Nova York. É um país tão grande que a gente pode se perder naquela imensidão. Estou querendo me perder novamente. Essa companhia de navios a vapor vai ter que se estabelecer por todos os cantos do mundo.

— Papai vai sentir muito a sua falta agora. Você sabe disso, não? Acho que de todos nós é ele que está mais apegado a você. Você precisaria ter visto a expressão do rosto dele quando você estava recitando Verlaine. Ele o ama muito, Salman. Quando nós éramos crianças, tínhamos muita mágoa dele por ser tão duro com você, mas estou certa de que ele já o amava muito então. Nós éramos jovens demais para entender isso.

— É verdade, e eu também nunca me senti tão próximo a ele quanto agora. Mas não se preocupe. Eu não estava mesmo pensando em partir logo, irmã. Vou passar bastante tempo com ele.

Deitada na cama, eu esperava que Selim se despisse para juntar-se a mim. Todos estavam de partida, mas ele ficaria comigo, com aquele seu jeito sempre decidido e orgulhoso. Ele havia surgido de repente em minha vida, livrando-me da solidão em que eu me encontrava e da infelicidade que eu sentia por meu casamento com Dimitri haver chegado ao fim.

Selim veio para a cama, olhoume e sorriu.

— Esta noite não quero conversar sobre o amor que sentimos um pelo outro. Não quero saber se está maior, ou mais profundo, ou qual de nós sente mais amor. Esta noite, não.

Comecei a rir. — Por que fazemos sempre isso, Selim? Seja como for, não é do nosso amor que quero falar, mas das nossas fraquezas. É o conhecimento das fraquezas um do outro que nos possibilita o que o Barão chama de equilíbrio emocional.

Ele já estava começando a esfregar seu corpo contra o meu.

— Nada de palavras esta noite, princesa. Apenas paixão. Paixão. Paixão. Paixão.


25

A lua cheia se põe e nasce um novo sol

Acordei muito cedo esta manhã. Queria estar absolutamente só. Vesti-me em silêncio e saí de casa por uma porta lateral. Lá fora o gramado ainda estava imerso na luz da lua cheia.

Caminhei até o alto de uma pequena colina que fica logo atrás da Mulher de Pedra, perto de onde havíamos enterrado Hasan Baba. Eu já tinha feito isso uma vez quando tinha dezesseis anos e sonhava com um príncipe que surgiria de repente e me levaria para sempre em seu cavalo.

Ali estava novamente a lua cheia. Não a via assim tão grande e tão próxima a brilhar sobre o mar fazia muitos anos. Abri os braços como que para abraçá-la e senti uma força misteriosa invadir-me.

Eu estava ali para vê-la desaparecer no ocidente enquanto o sol do novo dia surgia no oriente. Era uma lua enorme e lânguida da qual me despedi emocionada do alto da colina junto à casa de verão de Yusuf Pasha. Quantos sonhos teriam nascido ali. Quantos outros não estariam ali depositados há centenas de verões para renascerem novamente.

Voltei-me para o oriente. Umas poucas nuvens esgarçadas surgiam no horizonte. Antes mesmo de nascer, o sol as incendiava com uma luz rosada e gloriosa que aos poucos foi se tornando vermelha. Toda aquela beleza duraria pouco. Eu sabia que a qualquer instante o sol dilaceraria as nuvens e eu não poderia mais olhar. Voltei-me nesse exato instante e ao me afastar pude ver algo de que ouvira falar muitas vezes, mas que nunca tínhamos visto.

No instante exato em que os primeiros raios de sol atingiram a Mulher de Pedra, projetou-se uma sombra no feitio de uma gigantesca baleia pré-histórica. A visão não durou mais que um minuto. Mal tive tempo de balbuciar uma exclamação e já a visão havia se desfeito. Fiquei parada ainda alguns instantes olhando maravilhada a pedra e depois despedi-me dela, como costumava fazer quando criança. Meus seios têm estado muito sensíveis nestas duas últimas semanas e já há dois meses não menstruo. Estou grávida novamente. O filho de Selim nascerá daqui a sete meses. Nascerá com o novo século.

O verão terminou. Amanhã voltaremos para Istambul.

 

 

                                                   Tariq Ali         

 

 

 

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