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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHER IMPERIAL / Pearl S. Buck
MULHER IMPERIAL / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Tzu Hsi, a última Imperatriz da China, era mulher de tão variados dons, tão contraditória em seu comportamento, com uma personalidade cheia de facetas tão significativas, que é difícil apreender e exprimir a totalidade do seu ser. Viveu num período crucial da história, quando a China lutava contra a usurpação estrangeira, muito embora fosse óbvia a necessidade de reforma dos velhos costumes. Nesse período, Tzu Hsi era conservadora e independente. Era inexorável quando preciso. Os que se lhe opunham, temiam-na e a odiavam e eram mais organizados do que os que a amavam. Escritores ocidentais, com raras exceções, descreveram-na de maneira desfavorável e até mesmo vingativa.
Tentei, neste livro, retratar Tzu Hsi com a maior fidelidade possível, baseando-me nas fontes disponíveis e nas minhas próprias recordações do que pensavam sobre ela os chineses que conheci quando menina. Para eles, era "a mulher imperial". O bem e o mal mesclavam-se nela, mas sempre numa dimensão heróica. Resistiu tanto quanto pôde às transformações modernas, pois acreditava que o velho era melhor que o novo. Quando verificou que a mudança era inevitável, aceitou-a com elegância, porém com o coração inabalado.
Seu povo amava-a - não todo o povo, pois os rebeldes, os impacientes, odiavam-na com todas as suas forças e ela também os odiava. Mas os camponeses e a gente das pequenas cidades reverenciavam-na. Dezenas de anos após a sua morte visitei aldeias no interior da China onde o povo pensava que ela ainda vivia e se assustava ao ter notícia de seu falecimento. "Quem cuidará de nós agora?" lamentavam-se muitos.
Talvez seja este o julgamento final de um governante.

 

 

 

 

Era abril na cidade de Pequim, quarto mês do ano solar de 1852, terceiro mês do ano lunar, ducentésimo oitavo ano de Manchu, a grande dinastia Ch'ing. A primavera estava atrasada e os ventos do norte, conduzindo sua carga de fina areia amarela do deserto de Gobi, sopravam sobre os telhados, frios como o inverno. A areia amontoava-se nas ruas, formava redemoinhos e se filtrava através de portas e janelas. Espessava-se nos cantos, espalhava-se sobre mesas e cadeiras, introduzia-se nas dobras das roupas, colava-se nas faces lacrimejantes das crianças e se depositava nas rugas dos velhos.
Na casa de Muyanga, porta-bandeira manchu, situada no Beco Pewter, a areia era ainda mais incômoda porque as janelas não se fechavam com justeza e as portas pendiam soltas sobre as charneiras de madeira. Nessa manhã particular, Orquídea, sua sobrinha e filha mais velha de seu falecido irmão, foi acordada pelos silvos do vento e o estalar de madeira. Sentou-se na larga cama chinesa que partilhava com a irmã mais moça e franziu o cenho ao ver a areia acumulada sobre a colcha vermelha, como se fosse neve manchada. Deslizou suavemente sob as cobertas, para fora do leito, a fim de não acordar a outra. Sentiu areia debaixo dos pés nus e suspirou. Fora apenas no dia anterior que varrera cuidadosamente a casa e agora teria que limpar tudo de novo quando o vento cessasse de soprar.
Moça bonita essa Orquídea. Parecia mais alta do que era porque tinha o corpo delgado e se mantinha sempre ereta. Suas feições eram firmes porém não grosseiras, o nariz reto, sobrancelhas nítidas, a boca bem conformada e não demasiado pequena. Sua grande beleza residia nos olhos - eram longos, grandes e extraordinariamente límpidos, o branco e o negro muito puros e distintos. No entanto essa beleza talvez não tivesse significação se não fosse o espírito e a inteligência que lhe iluminavam todo o ser, embora fosse ainda muito jovem. Possuía autodomínio e sua força se revelava na suavidade de seus movimentos e na calma de suas maneiras.
À luz cinzenta da manhã vestiu-se rápida e sem ruído. Afastando as cortinas azuis de algodão, que serviam de porta, dirigiu-se à sala
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principal e depois à pequena cozinha contígua. Do grande caldeirão de ferro posto sobre o fogão de barro erguia-se uma nuvem de vapor.
- Lu Ma, disse ela saudando a criada. - Levantou-se muito cedo esta manhã.
O autodomínio transparecia na extrema suavidade de sua bonita voz, mantida deliberadamente em tom baixo. Por trás do fogão respondeu uma voz áspera:
- Não pude dormir, Jovem Senhora. Que faremos quando nos deixar?
Orquídea sorriu.
- A Imperatriz Viúva Mãe talvez não me escolha... minha prima Sakota é muito mais bonita que eu.
Olhou por trás do fogão. Lu Ma ali estava encolhida, atirando mancheias de erva seca ao fogo, procurando aproveitar ao máximo cada fragmento do escasso combustível.
- Será escolhida.
O tom da velha era definitivo e triste. Emergindo naquele momento por trás do fogão, mostrou uma fisionomia desolada. Era uma pequena chinesa corcunda, com suas vestes de algodão azul desbotadas e remendadas, os pés comprimidos com ligaduras e transformados em tocos, o rosto encarquilhado numa rede de rugas marrons marcadas por fios de pálida areia. Havia areia em seus cabelos grisalhos, nas sobrancelhas e na borda do lábio superior.
- Esta casa não pode passar sem você, gemeu ela. - A Segunda Irmã mal saberá pregar um botão porque você sempre fêz tudo para ela. Os dois garotos, seus irmãos, gastam um par de sapatos em cada mês lunar. E o seu parente Jung Lu? Não está comprometida com êle desde a infância?
- De uma certa maneira estamos comprometidos, redargüiu Orquídea na mesma voz bonita.
Tomou uma bacia de sobre a mesa, uma concha da plataforma do fogão e tirou água quente da caldeira. Depois, pegando uma pequena toalha cinzenta que pendia da parede, molhou-a, torceu-a e em seguida esfregou o rosto, o pescoço, os pulsos e as mãos. Seu macio rosto oval enrubesceu com o calor úmido. Mirou-se num espelho minúsculo pendurado acima da mesa. Nele pôde ver apenas seus olhos negros, vivazes e extraordinários. Orgulhava-se de seus olhos, embora nunca se permitisse qualquer sinal exterior desse orgulho. Quando as vizinhas falavam de suas sobrancelhas perfeitas e de seus olhos amendoados, parecia não ouvi-las. Mas ouvia-as.
- Ah, exclamou a velha fitando-a. - Eu sempre disse que você tem um destino. Está em seus olhos. Devemos obedecer ao Imperador, o Filho do Céu. E quando você fôr Imperatriz, minha preciosa, lembrar-se-á de nós e nos mandará ajuda.
Orquídea riu o seu suave riso controlado.
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Serei apenas uma concubina; uma entre centenas!
Será o que o Céu determinar, declarou a velha.
Tirou a toalha da água e pendurou-a no prego. Tomou depois a bacia, foi até à porta e derramou cuidadosamente a água na terra.
Penteie seus cabelos, Jovem Senhora, falou ela. - Jung Lu virá cedo esta manhã. Disse que talvez seja hoje o portador da dourada convocação.
Orquídea não respondeu, mas caminhou com a graça costumeira para o seu quarto de dormir. Olhou para a cama. Sua irmã continuava dormindo - a forma do corpo delineava-se vagamente sob a colcha. Soltou os longos cabelos negros e penteou-os com um pente chinês de madeira, perfumado com o óleo fragrante da cássia. Em seguida arrumou os cabelos em dois rolos sobre as orelhas e em cada um deles colocou uma pequena flor de grãos perolinos rodeados de folhas de jade verde.
Antes que houvesse terminado ouviu os passos de seu parente Jung Lu na sala ao lado e depois sua voz, profunda mesmo para voz de homem, perguntando por ela. Pela primeira vez na vida não correu imediatamente ao seu encontro. Eram manchus e a antiga lei e costume chineses, que proibiam o encontro de homem e mulher com mais de sete anos de idade, não os haviam mantido separados. Ela e Jung Lu foram companheiros de folguedos na infância e bons amigos na adolescência. Êle era agora guarda dos portões da Cidade Proibida e os seus deveres impediam-no de visitar com freqüência a casa de Muyanga. Sempre comparecia, porém, nos dias de festa e aniversários, e na festa chinesa do Rompimento da Primavera, que se realizara dois meses antes, falara-lhe em casamento.
Não recusara nem aceitara. Sorrira o seu radiante sorriso e dissera:
- Não deve dirigir-se diretamente a mim, mas ao meu tio. - Somos primos, recordara-lhe êle.
- Do terceiro grau, aduzira Orquídea.
Assim respondera, nem sim nem não. Lembrando-se agora do que ocorrera nesse dia - na verdade vivia pensando sempre no episódio -, afastou a cortina. Ali, na sala principal, achava-se êle, alto e forte, os pés afastados e bem firmes no chão. Em outro dia qualquer teria tirado o seu gorro redondo de guarda, feito de pele de raposa vermelha, e até mesmo talvez a sua túnica, mas hoje comportava-se como se fosse um estranho, segurando na mão um pacote envolto em seda amarela.
Ela viu o embrulho e êle o percebeu. Adivinharam os pensamentos um do outro, como sempre. Disse Jung Lu:
- Você reconheceu a convocação imperial. Seria tolice não reconhecê-la, retrucou.
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Nunca se haviam falado de maneira formal, nem usavam tampouco as cortesias e mesuras habituais entre homem e mulher. Conheciam-se demasiado bem. Disse êle, com os olhos fixos nos dela:
- Muyanga, meu parente, está acordado? Ela respondeu, sem desviar os olhos:
- Sabe que não se levanta antes do meio-dia.
- Mas hoje deve levantar-se, redargüiu Jung Lu. - Necessito de sua assinatura de tutor no recibo, como substituto de seu pai.
Orquídea voltou a cabeça e chamou:
- Lu Ma, acorde meu tio! Jung Lu está aqui e necessita de sua assinatura antes de voltar para o palácio.
- Sim... sim... suspirou a velha. Orquídea estendeu a mão:
- Deixe-me ver o pacote. Jung Lu sacudiu a cabeça:
- É para Muyanga. Ela deixou cair a mão.
- No entanto sei o que diz. Devo ir ao palácio com minha prima Sakota daqui a nove dias.
Os olhos negros de Jung Lu reluziram sob as espessas sobrancelhas:
- Quem a informou antes de mim?
Ela desviou a cabeça, os olhos oblíquos meio ocultos sob os longos cílios.
- Os chineses sabem de tudo. Parei ontem na rua para olhar os atores ambulantes. Representavam A Concubina do Imperador" - aquela velha peça, mas modernizaram-na. Na sexta lua, no vigésimo dia, dizia a peça, as virgens manchus deverão comparecer perante a Viúva Mãe do Filho do Céu. Quantas somos, este ano?
- Sessenta, tornou êle.
Orquídea ergueu os longos cílios negros sobre seus olhos de ônix.
- Sou uma das sessenta?
- Não tenho dúvida de que no fim você será a primeira, replicou êle.
Sua voz, tão profunda, tão tranqüila, atingiu-lhe o coração com uma força profética.
- Onde eu estiver, você estará perto de mim, exclamou ela. - Insistirei nisso. Você não é meu parente?
Fitavam-se de novo, esquecidos de tudo naquele momento exceto de si mesmos. Jung Lu falou secamente, como se não a tivesse ouvido:
- Vim aqui com o propósito de pedir ao seu tutor que ma dê como mulher. Agora não sei o que êle fará.
- Pode recusar a convocação imperial? perguntou ela.
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Desviou o olhar do jovem guarda e então, acentuando a sua suave graciosidade, aproximou-se da longa mesa de pau-rosa que se achava contra a parede interna da sala. Entre dois altos candelabros de metal, sob um quadro que representava a montanha sagrada de Wu Tai, havia um jarro com orquídeas amarelas.
- Desabrocharam esta manhã... da côr imperial. É um presságio, murmurou ela.
- Tudo agora é presságio em sua cabeça, retrucou Jung Lu. Orquídea voltou-se com os negros olhos brilhantes e irados.
- Meu dever não é servir ao Imperador, se fôr escolhida? Desviou o olhar e sua voz baixou de novo ao costumeiro tom gentil:
- Se não fôr escolhida, serei certamente sua mulher. Lu Ma entrou, espreitando as duas fisionomias jovens.
- Seu tio está acordado agora, Jovem Senhora. Disse que comerá na cama. Entrementes seu parente deve entrar.
Ela se afastou e ouviram-na movendo-se na cozinha. A casa estava começando a movimentar-se. Os dois garotos discutiam no pátio, junto do portão da rua. Orquídea ouviu o chamado lamuriento de sua irmã.
- Orquídea... Irmã Mais Velha! Não estou bem! Dói-me a cabeça...
- Orquídea, repetiu Jung Lu. - É um nome muito infantil para você, agora.
Ela bateu o pé:
- Ainda é o meu nome! Por que está parado aí? Cumpra o seu dever que cumprirei o meu.
Afastou-se impetuosamente e êle ficou a observá-la enquanto puxava a cortina e deixava-a cair atrás de si.
Mas naquele breve acesso de cólera tomara a sua resolução. Iria à cidade imperial e seria - devia ser - escolhida. Assim, num instante, acabara com a hesitação de muitos dias. Ser mulher de Jung Lu, mãe de seus filhos - teriam muitos filhos, pois estavam apaixonados - ou ser uma concubina imperial? Mas êle apenas a amava e ela amava-o e a algo mais. A que mais? No dia da convocação imperial ela saberia.
No vigésimo primeiro dia do sexto mês lunar acordou no Palácio de Inverno da cidade imperial. Seu primeiro pensamento foi o que o sono interrompera na noite anterior.
- Estou entre as paredes da Cidade do Imperador!
Findara a noite, surgira o dia, o grande e momentoso dia pelo qual secretamente ansiara desde menina, quando vira a irmã mais velha de Sakota sair de casa para sempre a fim de ser Concubina Imperial. Essa irmã morrera antes de poder tornar-se Imperatriz e
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nenhuma pessoa da família a vira de novo. Mas ela, Orquídea, viveria...
- Mantenha-se à parte, dissera-lhe a mãe no dia anterior. - Entre as virgens você é apenas uma. Sakota é pequena, de beleza delicada e como é a irmã mais moça da Consorte morta deve certamente ser favorecida acima de você. Mas, seja qual fôr o lugar que lhe derem, poderá erguer-se acima dele.
Em vez de adeus, sua mãe, sempre severa, dirigira-lhe aquelas palavras simples que permaneciam vivas em seu cérebro. Não chorara quando à noite ouvira outras soluçando por temor de que o Imperador as escolhesse. Pois se fosse escolhida - e isto sua mãe lhe dissera francamente - talvez nunca mais tornasse a ver seu lar e sua família. Nem poderia mais visitar a sua casa enquanto não completasse vinte e um anos. Entre os dezessete e os vinte e um estendiam-se quatro anos solitários. Tinham de ser solitários? Pensando em Jung Lu seriam realmente solitários. Mas ela pensava também no Imperador.
Naquela última noite em casa a excitação fizera-a perder o sono. Sakota, também, estava acordada. Em determinado momento daquelas horas silentes ouvira passos e reconhecera-os.
- Sakota! exclamara.
A mão macia da prima tocou-lhe a face nas trevas.
- Orquídea, estou assustada! Deixe-me deitar na sua cama. Ela empurrara para o lado a irmã mais moça, mergulhada em sono profundo, e abriu lugar para a prima. Sakota deitou-se. Tinha frios os pés e as mãos. Tremia.
- Você não está com medo? murmurou ela, encostando-se sob as cobertas no corpo cálido da prima.
- Não, respondeu Orquídea. - Quem poderá fazer-me mal? E por que tem medo, se sua própria irmã mais velha foi escolhida pelo Imperador?
- Ela morreu no palácio, sussurrou Sakota. - Era infeliz... tinha saudades de casa. Eu também, posso morrer.
- Estarei ao seu lado, disse Orquídea.
Passou os braços fortes ao redor do corpo delgado da outra. Sakota era muito magra, muito débil, nunca sentia fome, nunca fora forte.
- E se não formos escolhidas na mesma classe? perguntou Sakota.
Foi o que aconteceu. Separaram-nas. Ontem, quando as virgens compareceram perante a Viúva Mãe do Filho do Céu, ela escolheu vinte e oito dentre as sessenta. Sakota, por ser irmã da princesa morta, foi colocada em F'ei, a primeira classe, e Orquídea em Kuei Jen, a terceira.
- É impetuosa, disse a velha e arguta Viúva, fitando Orquídea. - Se não fosse, eu a colocaria na segunda classe, de P'in, pois não
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é adequado colocá-la na primeira classe com sua prima e irmã de minha nora, que passou para as Fontes Amarelas. Que fique na terceira classe, pois será melhor que meu filho, o Imperador, não a note.
Orquídea ouvira com aparente modéstia e obediência. Agora, apenas uma virgem de terceira classe, lembrou-se das palavras que sua mãe lhe dissera ao se separarem. Sua mãe era uma mulher forte. Uma voz chamou através do dormitório, a voz da serva-chefe, cuja tarefa era preparar as virgens.
- Jovens, é tempo de se levantarem! É tempo de se fazerem belas! Este é o seu dia de boa sorte.
As outras levantaram-se imediatamente ao ouvi-la, mas Orquídea não. Tudo quanto as outras fizessem, ela não faria. Manter-se-ia separada, permaneceria isolada. Conservou-se imóvel, quase oculta sob a colcha de seda, e observou as outras estremecendo sob as mãos das servas que vieram atendê-las. O ar matinal era frio, o verão ainda era novo, e das rasas banheiras de madeira cheias de água quente erguia-se uma nuvem de vapor.
- Todas devem banhar-se, ordenou a serva-chefe.
Estava sentada numa ampla cadeira de bambu, gorda e severa, habituada a ser obedecida.
As jovens, agora nuas, entraram nas banheiras e as servas puseram-se a esfregá-las com sabonetes perfumados, enxugando-as depois com toalhas macias, enquanto a serva-chefe as examinava uma a uma. Súbito, falou:
- Vinte e oito foram escolhidas dentre as sessenta. Conto apenas vinte e sete.
Consultou a lista que tinha na mão e chamou os nomes das virgens. Cada uma respondeu do lugar em que se encontrava. Mas a última não respondeu.
- Yehonala! tornou a chamar a velha.
Era o nome de clã de Orquídea. Ontem, antes de sair de casa, Muyanga, seu tio-tutor, chamara-a à sua biblioteca a fim de aconselhá-la como pai.
Ela ficara de pé diante dele e o velho, sem erguer-se, o grande corpo envolto em cetim azul-celeste, transbordando do assento da espreguiçadeira, deu os seus conselhos. Ela sentia pelo tio uma cálida simpatia, pois era negligentemente bondoso, mas não o amava porque ele não amava a ninguém, indolente demais para o amor ou para o ódio.
- Agora que está prestes a entrar na Cidade do Imperador, disse ele com sua voz untuosa, deve abandonar o seu nomezinho, Orquídea. A partir de hoje será chamada Yehonala.
- Yehonala!
A serva-chefe tornou a gritar e ela ainda não respondeu. Fechou os olhos, simulando dormir.
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- Yehonala fugiu? indagou a velha. Uma serva informou:
- Senhora, está na cama.
A serva-chefe mostrou-se chocada.
- Ainda na cama? Dormindo?
A criada aproximou-se do leito e olhou.
- Sim, está dormindo.
- Que coração duro é esse! exclamou a velha. - Despertem-na! Afastem a colcha, belisquem-lhe os braços!
A serva obedeceu e Yehonala, fingindo acordar, abriu os olhos.
- Que é isso? perguntou com espanto. Sentou-se, levando rapidamente as mãos ao rosto. - Oh... oh... balbuciou numa voz tão macia quanto o arrulho de uma pomba. - Como pude esquecer-me?
- Sim, como? repetiu a serva-chefe, indignada. - Não conhece as ordens do Imperador? Dentro de duas horas todas devem estar prontas no Salão de Audiências, cada virgem com a sua melhor aparência - duas horas, digo-lhe eu, para banhar-se, perfumar-se e vestir-se, pentear os cabelos e quebrar o jejum.
Yehonala bocejou.
- Como dormi! O colchão é muito mais macio do que o de minha casa.
A velha escarneceu:
- Dificilmente se poderia imaginar que um colchão do palácio do Filho do Céu fosse tão duro quanto o da sua cama.
- Muito mais macio do que pensei, tornou Yehonala.
Pisou o assoalho reluzente com seus pés nus e fortes. As virgens eram todas manchus, não chinesas, e tinham os pés soltos e livres.
- Vamos, vamos, disse a serva-chefe. - Apresse-se, Yehonala! As outras já estão quase vestidas.
- Sim, Venerável, respondeu ela.
Mas não se apressou. Deixou que uma serva a despisse, sem esforçar-se por auxiliá-la, e quando se viu nua entrou numa banheira de água quente, sem erguer a mão para lavar-se.
- Você! resmungou a mulher enraivecida. - Não vai me ajudar a prepará-la?
Yehonala abriu seus grandes olhos negros e brilhantes.
- Que devo fazer? indagou desamparada.
Ninguém suspeitaria que em sua casa não havia outra criada além de Lu Ma na cozinha. Não apenas se banhava sempre sozinha como também dava banho em sua irmã e seus irmãos. Lavava as roupas deles junto com as suas e, quando eram pequeninos, carregara-os nas costas, amarrados em tiras de pano, enquanto andava de um lado para o outro ajudando sua mãe nos serviços caseiros e correndo freqüentemente à loja de óleo e ao mercado de vegetais. Seu único prazer consistia em parar na rua e olhar os grupos de atores ambulantes
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chineses. Contudo seu tio Muyanga, sempre bondoso, permitira que ela ouvisse com seus filhos as lições do preceptor da família, embora o dinheiro que desse à sua mãe fosse todo gasto em comida e roupa, não permitindo qualquer luxo.
Ali tudo era luxo. Circunvagou o olhar pela vasta sala. Os primeiros raios de sol subiam pelas paredes iluminando as janelas opacas gradeadas. O azul e vermelho das vigas pintadas do teto adquiriam vida e o escarlate e o verde dos trajes manchus das virgens também reluziam. Rubras cortinas de cetim pendiam nas portas e as almofadas das cadeiras de madeira esculpida estavam cobertas de lã escarlate. Nas paredes, rolos de pintura mostravam paisagens ou sábios dizeres traçados em tinta negra sobre seda branca. O ar estava impregnado do perfume de sabonetes e óleos. Descobriu, de repente, que amava o luxo.
A serva não respondera à pergunta de Yehonala. Não havia tempo. A serva-chefe insistia em que se apressassem.
- É melhor que comam primeiro, estava ela dizendo. - Depois, o tempo que sobrar será aproveitado para arrumar os cabelos. Só o penteado exige uma hora inteira.
Os alimentos foram trazidos pelas criadas de cozinha mas as virgens não podiam comer. Seus corações pulsavam violentamente em seus peitos e algumas estavam de novo soluçando.
A serva-chefe irritou-se. Sua cara gorda inchou.
- Como se atrevem a chorar? rugiu. - Pode haver sorte maior do que ser escolhida pelo Filho do Céu?
Mas o choro continuou.
- Eu preferiria viver em minha casa, soluçou uma delas.
- Não quero ser escolhida, gemeu outra.
- Vergonha, vergonha! gritou a velha, rangendo os dentes para as moças apavoradas.
Ouvindo tais lamentações, Yehonala mostrava-se cada vez mais calma. Movia-se com acurada graça e quando trouxeram o alimento sentou-se e comeu com avidez e prazer. Até mesmo a serva-chefe surpreendeu-se, não sabendo se devia chocar-se ou alegrar-se.
- Sou capaz de jurar que nunca vi um coração tão duro, disse ela em voz alta.
Yehonala sorriu, segurando os pauzinhos com a mão direita.
- Gosto desta comida, disse docemente, como uma criança. - É melhor do que a que comia em casa.
A serva-chefe resolveu alegrar-se.
Você é uma mulherzinha sensível, anunciou. Não obstante, após um momento voltou-se para murmurar a uma das criadas: - Veja esses olhos grandes! Tem um coração feroz, essa pequena...
A mulher riu:
Um coração de tigre, concordou ela. - Realmente, um coração de tigre...
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Ao meio-dia os eunucos foram buscá-las, conduzidos pelo Eunuco-Chefe, An Teh-hai. Êle era um tipo esbelto, ainda jovem, envolto num longo manto de cetim azul-pálido, cingido na cintura com uma faixa de seda vermelha. Seu rosto era macio, as feições largas, o nariz curvo, olhos negros e altivos.
Ordenou, com certa indiferença, que as virgens desfilassem diante dele e, como um imperador de fancaria, sentou-se numa grande cadeira de pau-rosa e examinou-as uma a uma, com ar de desprezo. Ao lado dele achava-se uma mesa de pau-rosa na qual estavam seu livro de notas, o pincel e o tinteiro.
Yehonala observava-o sob os longos cílios. Mantinha-se afastada das outras virgens, meio escondida atrás de uma cortina de cetim escarlate. O Eunuco-Chefe marcava com um sinal o nome de cada virgem que passava.
- Está faltando uma, anunciou êle.
- Aqui estou, exclamou Yehonala.
Aproximou-se timidamente, a cabeça curvada, o rosto voltado para o lado, a voz tão baixa que mal se podia ouvir.
- Essa atrasou-se o dia todo, disse a serva-chefe em voz alta. - Continuou dormindo quando as outras se levantaram. Não se lavou nem se vestiu sozinha e comeu tanto quanto uma camponesa... engoliu três pratos de milho miúdo! Agora está aí, entorpecida. Não sei se é idiota ou não.
- Yehonala, leu o Eunuco-Chefe em voz alta e áspera, filha mais velha do falecido Porta-bandeira Chão. Tutor, o Porta-bandeira Muyanga. Foi registrada no Palácio do Norte, há dois anos, com quinze de idade. Agora tem dezessete.
Ergueu a cabeça e fitou Yehonala que se achava de pé à sua frente, a cabeça modestamente inclinada, os olhos fixos no chão.
- É você? inquiriu êle.
- Sou eu.
- Passe! ordenou o Eunuco-Chefe. Mas seus olhos seguiram-na. Depois levantou-se e comandou aos eunucos inferiores: - Conduzam as virgens ao Salão de Espera. Quando o Filho do Céu estiver pronto para recebê-las, eu próprio as anunciarei, uma a uma, perante o Trono do Dragão.
As virgens esperaram quatro horas. As servas ficaram com elas, dirigindo-lhes admoestações quando viam um casaco de cetim amarrotado ou um cacho de cabelos solto. De quando em quando uma criada passava pó nas faces de uma virgem ou tornava a pintar-lhe os lábios. Permitiram, duas vezes, que as moças tomassem chá.
Ao meio-dia foram alertadas por uma agitação nos pátios distantes. Soaram cornetas, rufaram tambores e um gongo acompanhava o ritmo de passos que se aproximavam. An Teh-hai, o EunucoChefe, entrou de novo no Salão de Espera, acompanhado de eunucos
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menores, entre os quais se achava um jovem alto e magro. Embora seu rosto fosse feio, era tão escuro e tinha uma expressão tão aquüina que os olhos de Yehonala se fixaram involuntariamente nele. O eunuco sentiu no mesmo instante o olhar dela e retribuiu-o com insolência. Yehonala desviou a cabeça. Mas o Eunuco-Chefe tinha visto.
- Li Lien-ying, exclamou com aspereza, por que está aqui? Pedi-lhe que esperasse com as virgens da quarta classe, a Ch'ang Ts'ai!
Sem uma palavra o jovem e alto eunuco saiu da sala. Disse então o Eunuco-Chefe:
- Jovens, esperarão aqui até que a sua classe seja chamada. Primeiro a F'ei será apresentada ao Imperador pela Viúva Mãe, depois a P'in. Somente depois que o Imperador as tiver visto e feito a sua escolha, vocês, da terceira classe, que são apenas Kuei Jen, se aproximarão do Trono. Não devem olhar a face imperial. Êle é quem olhará para vocês.
Nenhuma respondeu. As virgens permaneceram em silêncio, mantendo as cabeças baixas enquanto êle falava. Yehonala postara-se em último lugar, como se fosse a mais modesta de todas, porém seu coração pulsava com violência. Breve, dentro de uma hora ou menos, dependendo do humor do Imperador, poderia alcançar o momento supremo de sua vida. Êle a olharia, avaliá-la-ia, apreciar lhe-ia as formas e a côr, e naquele rápido instante ela devia fazê-lo sentir seu poderoso encanto.
Pensava em sua prima Sakota, que agora desfilava diante dos olhos do Imperador. Sakota era docemente simples, gentil e infantil. Por ser irmã da princesa morta, que o Imperador amara quando era príncipe, não havia dúvida de que seria uma das escolhidas. Isto era bom. Ela e Sakota tinham vivido juntas desde os três anos de idade, quando, morto seu pai, sua mãe voltara à casa ancestral. Sakota vivera sempre apegada a ela, apoiando-se em sua pessoa e confiando em sua orientação. Sakota poderia mesmo dizer ao Imperador: "Minha prima Yehonala é bela e inteligente". Tais palavras chegaram-lhe à ponta da língua, na última noite em que dormiram juntas. Pensara em dizer-lhe: "Fale-lhe de mim..." mas o orgulho impedira-a de proferi-las. Sakota, apesar de gentil e infantil, tinha a dignidade pura de uma criança, que repelia propostas.
Um murmúrio percorreu o grupo das virgens expectantes. Alguém captara um sussurro provindo do Salão de Audiência. As F'ei ja haviam sido despedidas. Sakota fora escolhida dentre elas para ser a primeira concubina Imperial. As P'in eram poucas. Uma hora mais e...
Antes que a hora decorresse, o Eunuco-Chefe voltou.
- Agora é a vez das Kuei Jen, anunciou êle. - Preparem-se, jovens. O Imperador está ficando cansado.
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As virgens dispuseram-se em fila e as servas deram-lhes os últimos toques nos cabelos, lábios e sobrancelhas. Cessaram os risos e o silêncio caiu sobre elas. Uma das moças apoiava-se, desmaiada, numa das servas, que lhe beliscava os braços e o lóbulo das orelhas para reanimá-la. No interior do Salão de Audiência, o Eunuco-Chefe iniciara a chamada dos nomes e idades - cada uma deveria entrar ao ouvir proferido o seu nome e idade. Uma a uma passaram diante do Imperador e da Viúva Mãe. Mas Yehonala, a última, afastou-se de seu lugar, como que distraída, para acariciar um pequeno cãozinho palaciano que entrara correndo por uma porta aberta. Era um desses minúsculos animaizinhos que as damas da Corte mantêm meio mortos de fome, quando novos, ananicando-os de tal maneira que possam caber dentro de uma larga manga bordada. O Eunuco-Chefe esperava, na porta.
- Yehonala! chamou êle.
As servas já se haviam afastado e ela fora deixada sozinha, brincando com o cão. Ela própria quase se convencera de que tinha esquecido onde se encontrava e para quê. Puxava para trás as compridas orelhas do cachorrinho e ria-lhe na face enrugada, tão pequena quanto a palma de sua mão. Ouvira falar naqueles cãezinhos que tinham cara de leão, mas não era permitido que nenhum plebeu os criasse e essa era a primeira vez que via um deles.
- Yehonala!
A voz de An Teh-hai trovejou em seus ouvidos e ela levantou-se rapidamente.
O eunuco avançou e agarrou-a pelo braço.
- Esqueceu-se? Está louca? O Imperador espera! Êle está esperando, digo-lhe eu... Você merecia morrer por isso...
Yehonala livrou-se das mãos do eunuco, que correu para a porta e tornou a anunciá-la:
- Yehonala, filha do Porta-bandeira Chão, agora morto, sobrinha de Muyanga, do Beco Pewter! Idade, dezessete anos, três meses e dois dias...
Ela entrou sem ruído nem afetação, caminhou vagarosamente ao longo do imenso salão, seu longo casaco manchu de cetim vermelho-rosa tocando-lhe a ponta dos sapatos bordados, apoiados em altas solas brancas e saltos centrais. Tinha suas belas e pequenas mãos cruzadas sobre a cintura e não voltou a cabeça para o Trono ao passar lentamente por êle.
- Que torne a passar, disse o Imperador.
A Viúva Mãe contemplava Yehonala com involuntária admiração.
- Advirto-o de que essa moça tem um temperamento violento, disse ela. - Vejo-o em seu rosto. É forte demais para uma mulher.
- É bela, observou o Imperador.
Ainda dessa vez Yehonala não voltou a cabeça. As vozes atingiam-lhe, incorpóreas, os ouvidos.
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Que importa ser ela impetuosa? inquiriu o Imperador. - Não poderá encolerizar-se comigo.
Êle tinha uma voz jovem e petulante, fina e infantil. A voz de sua mãe era cheia e lenta, impregnada da prudência da idade.
É melhor não escolher uma mulher forte que também seja bela, disse. - Há aquela outra, P'ou Yu, que você viu na classe das P'in. Fisionomia sensível, boa aparência, mas...
- ...pele áspera, retrucou o Imperador com rebeldia. - Sem dúvida teve varíola quando menina. A despeito do pó que lhe puseram no rosto, vi as marcas.
Yehonala estava agora diretamente diante dele.
- Pare! ordenou-lhe.
Ela parou, rosto e corpo de perfil, a cabeça erguida, o olhar perdido na distância, como se seu coração estivesse em outra parte.
- Vire o rosto para mim, ordenou êle.
Lentamente, como que com indiferença, ela obedeceu. Por decência, por modéstia, por tudo quanto lhe fora ensinado, uma virgem não pode erguer seu olhar acima do peito do homem. Ao imperador ela não devia erguê-lo acima dos joelhos. Mas Yehonala fitou-o diretamente no rosto e com tamanha concentração que viu os olhos do Imperador, rasamente encaixados sob as sobrancelhas pouco espessas, e derramou neles o poder de sua vontade. Êle permaneceu imóvel durante um longo instante. Em seguida falou:
- Escolho essa.
- Se você fôr escolhida pelo Filho do Céu, havia-lhe dito sua mãe, sirva primeiro a Viúva Mãe. Faça-a crer que pensa nela dia e noite. Verifique as coisas de que gosta, proporcione-lhe conforto, nunca tente fugir dela. Não tem muitos anos de vida. Sobrarão muitos anos exclusivamente para você.
Yehonala recordou essas palavras. Naquela primeira noite depois de escolhida, deitou-se em seu quarto de dormir, que fazia parte dos três aposentos postos à sua disposição. Uma velha criada fora indicada pelo Eunuco-Chefe para sua serva. Ali deveria viver, só, com exceção das noites em que o Imperador a mandasse chamar. Isto poderia ocorrer freqüentemente ou nunca. Às vezes uma concubina vivia entre as quatro paredes da cidade imperial, virgem até morrer, esquecida pelo Imperador, a menos que tivesse meios de subornar os eunucos para que mencionassem seu nome diante dele. Mas, ela, Yehonala, não seria esquecida. Quando estivesse cansado de Sakota, para com a qual tinha, de fato, um dever a cumprir, poderia - deveria - pensar nela. Lembrar-se-ia, no entanto? estava habituado à beleza e embora os olhares de ambos se houvessem encontrado, poderia ter certeza de que o Filho do Céu se lembraria?
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Jazia na cama de tijolos, amaciada por três colchões, e refletia. Devia planejar sua vida dia a dia, sem desperdiçar nenhum, pois do contrário viveria sempre só... uma virgem esquecida. Devia ser inteligente, devia ser cuidadosa, e a Mãe Imperial devia ser o seu instrumento. Procuraria ser útil à Imperatriz Viúva, afetuosa, infalível em atenções pequenas e constantes. E além disso pediria para ser instruída por preceptores. Já sabia ler e escrever, graças à bondade de seu tio, mas sua sede de conhecimento autêntico nunca fora satisfeita. Livros de história e poesia, música e pintura, as artes dos olhos e dos ouvidos, essas pediria que lhe ensinassem. Pela primeira vez podia dispor de tempo para si mesma, de ócio para exercitar o espírito. Cuidaria também do corpo, comendo os melhores alimentos, amaciando as mãos com gordura de carneiro, perfumando-se com laranjas secas e almíscar, pedindo à sua serva que lhe escovasse os cabelos duas vezes por dia, após o banho. Isto faria pelo seu corpo, a fim de que o Imperador se alegrasse. Mas o espírito ela ilustraria para alegrar a si mesma e, para alegrar-se, aprenderia a traçar letras como os eruditos e a pintar paisagens como os artistas, e leria muitos livros.
O cetim da colcha prendeu-se na pele áspera de suas mãos e pensou: "Nunca mais lavarei roupas, nem apanharei água quente, nem moerei farinha. Não é isto a felicidade?"
Passara duas noites sem dormir. Na última noite em casa, ela e Sakota ficaram acordadas, conversando e sonhando, e ela confortara a virgem gentil - e depois, na última noite com as virgens expectantes, quem poderia dormir? Mas nesta noite todos os temores haviam terminado. Fora escolhida e ali, naqueles três aposentos, instalara o seu pequeno lar. Eram pequenos porém luxuosos, pergaminhos pendiam das paredes, os assentos das cadeiras estavam cobertos com almofadas de cetim vermelho, as mesas eram feitas de pau-rosa e as traves do teto ornadas de brilhantes desenhos. O assoalho reluzia e as janelas gradeadas abriam-se para um pátio no centro do qual havia um lago onde peixes dourados brilhavam ao sol. Sua serva dormia numa cama de bambu do lado de fora da porta. Nada tinha a temer.
Nada? A face estreita e perversa do jovem eunuco Li Lien-ying apareceu-lhe de súbito nas trevas. Ah, os eunucos, sua prudente mãe advertira-a contra os eunucos...
- Não são homens nem mulheres. Destroem-se a si mesmos como homens antes de lhes permitirem ingressar na Cidade Proibida. Sua masculinidade, sacrificada e renegada, torna-se maldade neles. Transforma-se em malícia, amargura, crueldade e em todas as coisas vis. Evite os eunucos, desde o mais altamente colocado ao mais baixo. Dê-lhes dinheiro quando tiver que dar, Nunca deixe perceberem que os teme.
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Não tenho medo de você, disse ela à face escura de Li-Lien-
E de súbito, porque estava com medo, pensou em seu parente, Jung Lu. Não tornara a vê-lo desde que entrara no palácio. Nessa ocasião, ousada como sempre, afastara a cortina da cadeira em que era conduzida, apenas uma ou duas polegadas, quando se aproximava dos grandes portões escarlates. Viu os guardas imperiais em suas túnicas amarelas, empunhando as largas espadas desembainhadas. À direita, perto do portão central, Jung Lu destacava-se, mais alto que todos. Olhava para a frente, para a multidão que enchia a rua, não revelando de maneira alguma que fazia qualquer distinção entre as cadeiras que conduziam as virgens. Ela também não podia fazer qualquer sinal para revelar sua presença. Meio magoada, afastara-o do pensamento. Também não queria pensar nele, agora. Nem ela nem êle podiam saber quando tornariam a encontrar-se. Entre as paredes da Cidade Proibida um homem e uma mulher podiam passar uma existência inteira sem se encontrarem.
No entanto, por que pensara nele, de súbito, ao lembrar-se da fisionomia perversa do eunuco? Suspirou e derramou algumas lágrimas, surpreendida por fazê-lo, e não quis interrogar-se sobre a causa de seu pranto. Depois, sendo jovem e estando cansada, adormeceu.
A vasta e velha biblioteca do palácio era fria mesmo no verão. Ao meio-dia as portas estavam fechadas para impedir a entrada do calor e o sol brilhava amortecido através das janelas gradeadas. Nenhum ruído perturbava a quietude ambiente, salvo a voz baixa de Yehonala que lia para o velho eunuco que era seu preceptor.
Estava lendo O Livro das Mudanças e, absorta na cadência dos versos, não percebeu que seu preceptor mantinha um silêncio demasiado prolongado. Então, erguendo a cabeça ao virar uma página, viu o velho erudito adormecido, a cabeça caída sobre o peito, o leque escapando-se por entre os dedos da mão direita. O canto de sua boca torceu-se num meio sorriso e ela continuou a ler para si. Um cãozinho dormia aos seus pés. Era seu, fôra-lhe dado pelo Despenseiro Imperial, quando mandara sua serva pedir-lhe um animalzinho que atenuasse sua solidão.
Estava no palácio há dois meses e não recebera ainda nenhum chamado do Imperador. Não vira sua família, nem mesmo a Sakota, nem tampouco Jung Lu se aproximara dela. Como nunca mais atravessara os portões da Cidade Proibida, não pudera tornar a vê-lo em seu posto. Nesse estranho isolamento ter-se-ia sentido infeliz se não tivesse o espírito cheio de sonhos dos dias futuros. Algum dia, algum dia, ela poderia ser Imperatriz! E quando fosse Imperatriz, faria o que lhe aprouvesse. Então, se o desejasse, poderia chamar
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o seu parente à sua presença, sob um pretexto, como por exemplo mandá-lo entregar uma carta à sua mãe.
- Entregue-lhe pessoalmente esta carta, diria ela, e traga-me pessoalmente a resposta.
E apenas os dois saberiam se a carta era ou não para sua mãe. Mas os seus sonhos dependiam do Imperador e entrementes só lhe restava preparar-se. Ali, na biblioteca, estudava cinco horas por dia com o preceptor, o eunuco que atingira os mais altos graus da erudição. Na época em que ainda era homem, fora um famoso escritor de ensaios em oito pés e de poemas no estilo de Tang. Depois, em virtude de sua fama, ordenaram-lhe que se tornasse eunuco a fim de poder instruir o jovem príncipe - o atual Imperador - e, depois dele, as damas que iriam tornar-se suas concubinas. Entre estas, algumas aprendiam e outras não porém nenhuma - declarou o velho preceptor - aprendia como Yehonala. Elogiava-a perante os outros eunucos e dava boas informações à Viúva Mãe, de modo que um dia, quando Yehonala a estava servindo, ela felicitou-a pela sua aplicação.
- Faz bem em aprender o que dizem os livros, observou. - Meu filho, o Imperador, cansa-se com facilidade e, quando êle estiver fatigado ou inquieto, você deverá estar apta para distraí-lo com poesia e com a sua pintura.
E Yehonala inclinou a cabeça em sinal de obediência.
Certo dia, enquanto meditava sobre uma página, sentiu um leve toque no ombro. Voltando a cabeça, viu a extremidade de um leque fechado e a mão que o segurava - macia e poderosa mão. Pertencia ao jovem eunuco Li Lien-ying. Ela percebera, havia várias semanas, que ele estava resolvido a tornar-se seu servo. Não era seu dever conservar-se perto dela, não passava de um dos muitos eunucos menores, mas vinha se mostrando útil de diversas pequenas maneiras. Quando sentia vontade de comer frutas ou doces, era êle quem lhos trazia e era também êle quem lhe comunicava as tagarelices das centenas de corredores da Cidade Proibida. Ela devia estar ciente das tagarelices, pois não lhe bastava ler livros, tinha também de conhecer todos os detalhes das intrigas, desgraças e paixões, que germinavam entre aquelas paredes. Saber significava adquirir poder.
Ergueu a cabeça, o dedo nos lábios, as sobrancelhas alçadas numa interrogação. Com um sinal do leque, indicou-lhe que a acompanhasse ao pavilhão situado do lado de fora da biblioteca. Em silêncio, deslizando sobre o assoalho com os seus sapatos de sola de pano, êle seguiu na frente e somente parou quando não havia perigo de despertarem o preceptor adormecido. O cãozinho, tendo acordado, seguiu-a sem latir.
- Tenho novidades, disse Li Lien-ying.
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Dominava-a com a sua altura, os ombros imensos, a cabeça grande e quadrada, feições rudes e ásperas, figura poderosa e brutal. Teria sentido medo dele se agora não estivesse determinada a não sentir medo de ninguém.
- Que novidades? perguntou.
- A jovem Imperatriz concebeu!
Sakota! Não tornara a ver a prima, depois que juntas atravessaram os portões imperiais. Sakota era a Consorte, em substituição à irmã morta, ao passo que ela, Yehonala, não passava de uma concubina. Sakota fora chamada à cama do Imperador e cumprira o seu dever. Se Sakota gerasse um filho êle seria o herdeiro do Trono do Dragão e ela se tornaria Imperatriz Mãe. E ela, Yehonala, continuaria sendo apenas uma concubina. Fora para tão pequena recompensa que destruíra seu amor e sua vida? O coração inchou-lhe no peito, quase tocando-lhe as costelas.
- Há prova da concepção? perguntou.
- Há, retrucou o eunuco. - A serva dela está subornada por mim. Este mês, pela segunda vez, não houve sinal de sangue.
- E então? inquiriu.
Seu antigo autodomínio prevaleceu. Ninguém poderia salvá-la, exceto ela mesma. Somente consigo própria poderia contar. Mas o destino talvez fosse o seu salvador. Sakota poderia dar à luz uma menina. E assim não haveria herdeiro, até que nascesse um menino, cuja mãe seria então a Imperatriz.
"E eu posso ser essa mãe", pensou. Tocada pelo raio da súbita esperança, seu cérebro se acalmou, aquietou-se seu coração.
- O Imperador cumpriu seu dever para com a senhora morta, continuou o eunuco. - Agora sua fantasia divagará.
Ela permaneceu em silêncio. A fantasia do Imperador poderia voltar-se para o seu lado!
- Deve estar pronta, continuou êle. - Minha opinião é que dentro de seis ou sete dias pensará numa concubina.
- Como sabe de tudo? inquiriu, meio temerosa a despeito da vontade de nada temer.
- Os eunucos sabem dessas coisas, tornou êle, fitando-a. Ela retrucou com dignidade:
- Esquece-se de que está diante de mim.
- Ofendi-a, disse rápido. - Errei. A senhora tem sempre razão. Sou seu servo, seu escravo.
Estava tão solitária que, apesar de êle ser aterrador, forçou-se a aceitar o seu conforto.
- Contudo, por que deseja servir-me? indagou. - Não tenho dinheiro para recompensá-lo.
Era verdade que não tinha dinheiro. Comia diariamente as mais delicadas iguarias, pois tudo quanto a Viúva Mãe deixava era dado as concubinas e havia abundância de todas as variedades de comida.
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As arcas, em seu quarto de dormir, estavam cheias de belos trajes. Dormia em colchas de seda e era atendida dia e noite por sua serva. No entanto não podia comprar sequer um lenço ou um pacote de doces. E não vira uma peça teatral desde que entrara na Cidade Proibida. A Viúva Mãe ainda estava de luto pelo Imperador morto, T'ao Kuang, pai de seu filho, e não permitia nem mesmo às concubinas que se divertissem com o teatro, e a falta desse prazer, mais que a perda de sua família, fazia com que Yehonala se sentisse solitária. Durante toda a vida, sempre que suas tarefas eram pesadas demais, ou sua mãe brigava, ou o dia era triste, fugia para ver os atores representando na rua ou no pátio de algum templo. Quando punha a mão em algum dinheiro, economizava-o para o teatro, e quando não tinha nenhum, fugia antes que se passasse a cesta por entre os assistentes.
- Acha que peço recompensa? disse Li Lien-ying. - Está me julgando mal. Sei qual é o seu destino. A senhora tem um poder que nenhuma das outras possui. Não o percebi logo que meus olhos caíram sobre a sua pessoa? Já lhe disse. Quando subir ao Trono do Dragão, subirei com a senhora, sempre seu servo e seu escravo.
Era suficientemente arguta para saber com que engenho êle utilizava sua beleza e sua ambição para servir aos seus próprios fins, enquanto tecia os laços que começavam a uni-los. Se algum dia alcançasse o trono, e certamente o alcançaria, êle lhe recordaria que a havia ajudado.
- Por que havia de servir-me gratuitamente? perguntou com indiferença. - Ninguém dá sem pensar em receber.
- Nós nos compreendemos, tornou êle, sorrindo. Ela desviou o olhar.
- Então só nos resta esperar, disse.
- Esperaremos, concordou o eunuco, curvando-se e se afastando.
Yehonala voltou à biblioteca muito pensativa. O cãozinho seguiu-a saltitando. O velho preceptor continuava adormecido e ela sentou-se na cadeira que havia deixado e retomou a leitura. Tudo estava como antes, exceto seu coração, que naquele curto espaço de tempo, não era mais o suave coração de uma virgem. Havia-se tornado mulher, atenta ao seu destino.
Como poderia agora penetrar o sentido da poesia antiga? Todo o seu pensamento estava concentrado no momento em que seria chamada. E como chegaria a convocação? Quem lhe traria a mensagem? Teria tempo de banhar-se e perfumar o corpo, ou teria que correr assim como estivesse? As concubinas imperiais tagarelavam freqüentemente entre si, e quando uma voltava depois de ter sido chamada, as outras interrogavam-na minuciosamente, para saber o que se passara entre ela e o Imperador. Yehonala não perguntara, mas ouvira. Era melhor saber!
- O Imperador não gosta que se fale, dissera uma concubina.
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Outrora fora a favorita, mas agora vivia olvidada, no Palácio das Concubinas Esquecidas, com outras que o Imperador não amara durante muito tempo, outras velhas que tinham sido concubinas de seu falecido pai. Embora não tivesse ainda completado vinte e quatro anos, essa concubina fora escolhida, abraçada e rejeitada. Para o resto de sua vida viveria daquela maneira, nem esposa nem viúva, e como não concebera não teria sequer o consolo de um filho. Era uma mulher bonita, ociosa e vazia, falando apenas no dia que passara no palácio do Imperador. Repetia interminàvelmente essa rápida história às novas concubinas que esperavam ser chamadas.
Mas Yehonala ouvia e não dizia nada. Ela distrairia o Imperador. Ela o divertiria, o irritaria, cantaria para êle, contar-lhe-ia histórias, ligando-se a êle por todos os laços do espírito e da carne. Fechou o Livro das Mudanças e pô-lo de lado. Havia outros livros, livros proibidos, Sonho do Quarto Vermelho, Flor de Ameixa em Vaso de Ouro, Serpente Branca - ela os leria a todos, ordenaria a Li Lien-ying que os trouxesse das livrarias da cidade, se não pudesse encontrá-los no palácio.
O preceptor acordou súbita e tranqüilamente, como os velhos acordam, pois para eles é muito tênue a diferença entre o sono e a vigília. Observou-a sem mover-se.
- Então? inquiriu. - Já terminou o seu trecho?
- Terminei, tornou ela. - E desejo outros livros, livros de contos, histórias de magia, algo que me divirta.
O velho assumiu uma expressão severa e se pôs a esfregar o queixo imberbe com a mão tão seca e enrugada como uma folha morta de palmeira.
- Tais livros envenenam o pensamento, sobretudo das mulheres, declarou. - Não os encontrará aqui na Biblioteca Imperial, não, não existe nenhum deles entre os trinta e seis mil que enchem essas estantes. Tais livros não devem sequer ser mencionados por uma jovem virtuosa.
- Então não os mencionarei, disse ela jocosamente.
E abaixando-se apanhou o cãozinho, enfiou-o na manga e partiu para os seus aposentos.
O que ela soubera na tarde de um dia era do conhecimento de todos no dia seguinte. A notícia, transmitida de boca em boca, percorreu todos os pátios e a excitação soprou como o vento. A despeito de sua Consorte e de suas muitas concubinas, o Imperador nunca tivera um filho e os grandes clãs manchus estavam inquietos. Se não houvesse herdeiro, teriam de escolhê-lo entre eles. Os príncipes observavam-se atentamente, prevenindo-se a si mesmos e aos seus filhos, ciumentos daquele sobre quem recairia a escolha. Agora, como Sakota, a nova Consorte, tivesse concebido, restava-lhes ape nas
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esperar. Se fosse uma menina em vez de um menino, a luta surda começaria de novo.
A própria Yehonala pertencia ao mais poderoso desses clãs, que já havia dado três Imperatrizes. Não seria ela a quarta? Ah, se fosse escolhida, se pudesse conceber imediatamente, se tivesse um filho, e Sakota apenas uma menina, o caminho do destino se tornaria nítido... demasiado nítido, talvez, pois seria muita sorte que a um fato feliz se sucedesse rapidamente outro. Mas tudo era possível.
Preparando-se, começou desde esse dia a ler os memoriais que vinham do Trono, estudando cada palavra dos editos que o Imperador expedia. Informava-se, assim, sobre o reino e estaria pronta caso os deuses resolvessem impeli-la para diante. Lentamente começou a compreender a vastidão do país e do seu povo. Seu mundo havia sido a cidade de Pequim, onde passara da infância à adolescência. Conhecia a sua raça, a manchu, cujos clãs ancestrais se haviam apoderado do poder de um povo poderoso como os chineses. Duzentos anos de dinastia nortista tinham construído seu coração ali na cidade imperial, suas paredes vermelhas formando um quadrado dentro da Capital. Era chamada a Cidade do Imperador, ou Cidade Proibida, pois êle era o seu rei, seu homem solitário, e somente êle podia dormir nela, à noite. Quando caía o crepúsculo, os tambores soavam por toda a parte, avisando a todos os homens que partissem. O Imperador ficava sozinho entre as suas mulheres e seus eunucos.
Mas essa Capital, essa cidade interior, compreendia ela agora, era apenas o centro dominante de um país eterno em suas montanhas, rios, lagos e praias, em seu infinito número de cidades e aldeias, nas centenas de milhões de seu variado povo, seus mercadores, lavradores, eruditos, seus tecelões, artesãos, ferreiros e hoteleiros, homens e mulheres de toda espécie, engenho e arte. Sua brilhante imaginação voava dos portões de sua real prisão e viajava por todas as regiões descortinadas pelos seus olhos nas páginas dos livros que lia. Através dos editos imperiais aprendia mais ainda. Aprendia que uma poderosa rebelião estava se erguendo no sul, odioso fruto de uma religião estrangeira. Esses chineses rebeldes denominavam-se a si mesmos T'ai P'ing e eram dirigidos por um cristão fanático chamado Hung, que se imaginava irmão encarnado daquele chamado Cristo, filho de um deus estrangeiro e de uma camponesa. Esse nascimento não era estranho, pois nos livros antigos havia muitas histórias semelhantes. Uma camponesa contava que um deus apareceu diante dela envolto numa nuvem, enquanto lavrava o campo, e por magia a emprenhara, de modo que em dez meses lunares dera à luz um menino divino. Ou a filha
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de um pescador, embora ainda virgem, contava como um deus lhe surgira no rio, enquanto estendia as redes de pesca de seu pai, e com a sua mágica a emprenhara. Mas, sob a bandeira cristã dos rebeldes T'ai P'ing aglomeravam-se os irrequietos e os descontentes e a menos que fossem contidos poderiam chegar a derrubar a dinastia manchu. T'ao Kuang fora um imperador débil e o mesmo ocorria agora com seu filho, Hsien Feng, a quem a Viúva Mãe dirigia como se fosse uma criança.
Yehonala, por conseguinte, devia conquistar acesso através da Viúva Mãe, e por isso fizera seu dever servir diariamente à velha senhora, procurando-a com uma flor escolhida ou uma fruta madura apanhada nos jardins imperiais.
Estavam agora perto da estação dos melões de verão e a Viúva Mãe adorava os doces melões de polpa amarela que crescem em montes de estrume, nos quais durante a primavera são semeadas as sementes. Yehonala percorria diariamente as filas de pés de meloeiro e procurava os primeiros melões doces, escondidos sob as folhas. Sobre os que estavam prestes a amadurecer, colava pedaços de papel com o nome da Viúva Mãe, de modo que nenhum eunuco ou nenhuma serva se atrevessem a roubá-los. Examinava todos os dias os melões com o polegar e o indicador e afinal, sete dias depois que Li Lien-ying lhe contara a novidade sobre Sakota, encontrou um melão cujo som era tão ôco quanto o de um tambor. Estava maduro. Arrancou-o e, carregando-o com ambas as mãos, dirigiu-se aos pátios da Viúva Mãe.
- Nossa Venerável Mãe está dormindo, disse uma serva.
Tinha ciúmes de Yehonala porque a Viúva Mãe a favorecia. Yehonala ergueu a voz:
- A Viúva Mãe está dormindo a esta hora? Então deve estar doente. Passa muito da hora em que costuma acordar...
Tinha, quando o desejava, uma voz clara e vibrante que atravessava diversas paredes. E de fato alcançou o ouvido da Viúva Mãe, que não estava dormindo, mas se achava em seus aposentos bordando um dragão dourado sobre um cinto negro, com que desejava presentear o filho. Não tinha necessidade de fazer semelhante trabalho, mas não sabia ler e gostava de bordar. Ouviu a voz de Yehonala e como já estivesse cansada da agulha, largou a sua tarefa e exclamou:
- Yehonala, venha cá! Quem disse que estou dormindo é uma mentirosa!
Yehonala lançou um sorriso zombeteiro à serva, que franziu o cenho.
- Ninguém disse que estava dormindo, Venerável, gritou ela em resposta. - Fui eu que ouvi mal.
Com essa mentira cortês, percorreu as salas do palácio segurando o melão, até alcançar o quarto da Viúva Mãe. A velha senhora trajava apenas a roupa de baixo, em virtude do calor. Yehonala apresentou-lhe o melão com ambas as mãos.
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- Ah, exclamou a Viúva Mãe, eu estava aqui pensando em melões doces, desejando comer um e... você chegou no momento exato!
- Deixe-me pedir a um eunuco que o mergulhe num dos poços da ala norte, para refrescá-lo, disse Yehonala.
Mas a Viúva Mãe não o permitiu.
- Não, não, objetou ela. - Se este melão cair nas mãos de um eunuco, êle o comerá em segredo e quando eu mandar buscá-lo me trará um verde, ou dirá que os ratos o devoraram, ou então que caiu no poço e não pôde mais retirá-lo. Conheço esses eunucos! Vou comê-lo aqui, imediatamente, para que fique em segurança no meu estômago!
Virou a cabeça e gritou à serva que estava mais próxima:
- Traga-me uma faca!
Três ou quatro mulheres correram em busca de facas. Num abrir e fechar de olhos estavam de volta. Yehonala cortou o melão delicadamente, em fatias, e a Viúva Mãe pôs-se a comê-las avidamente, como uma criança, o suco adocicado escorrendo-lhe pelo queixo.
- Uma toalha, disse Yehonala a uma das servas. Recebendo-a, atou-a ao redor do pescoço da velha, para impedir que se maculasse a sua combinação de seda.
- Guarde a metade, ordenou a Viúva Mãe depois de haver comido o máximo que podia. - Quando meu filho vier apresentar-se esta noite, como sempre faz antes de dormir, eu lha darei. Mas deve ficar aqui comigo, pois do contrário algum desses eunucos a roubará.
- Com a vossa licença... disse Yehonala.
E não deixou que nenhuma serva tocasse o melão. Pediu um prato, colocou-o nele, em seguida solicitou uma tigela de porcelana, pô-la sobre o melão e mergulhou tudo numa bacia com água fresca. Tomou todas essas precauções para que a Viúva Mãe mencionasse ao Imperador o fato quando êle viesse e desse modo seu nome chegasse aos ouvidos do Filho do Céu.
Enquanto trabalhava por esse lado, Li Lien-ying trabalhava por outro. Subornava os criados particulares do Imperador, a fim de que o observassem, e quando o monarca parecesse inquieto, tendo nos olhos a expressão de quem anseia por mulher, recomendara-lhes que lhe dissessem o nome de Yehonala.
Assim executavam eles o plano e no dia imediatamente posterior ao da apresentação do melão, Yehonala encontrou entre as páginas de seu livro, quando o abriu na biblioteca, uma folha de papel dobrada. Nela estavam escritas duas linhas, em letra grosseira. Diziam:
"O Dragão desperta de novo, O dia da Fênix chegou."
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Ela sabia quem escrevera essas palavras. No entanto, como Li Lien-ying o percebera? Não lhe perguntaria. O que o eunuco fazia para alcançar seus propósitos devia permanecer secreto mesmo para ela. Começou a ler tranqüilamente os seus livros, enquanto o velho preceptor adormecia, acordava, tornava a adormecer, à medida que as horas passavam. Mas esse era o dia em que recebia a sua costumeira lição de pintura, no meio da tarde, e alegrou-se, pois seu espírito divagava e não podia concentrar a atenção nas palavras serenas do sábio morto. Devia, porém, fixar a atenção na pintura, porque sua mestra era uma mulher, ainda moça, e muito exigente. Era a Dama Miao, viúva, chinesa, cujo marido morrera jovem. Embora não fosse habitual que damas chinesas vivessem na Corte Manchu, a ela permitiram que libertasse os pés, que usasse penteados altos como as damas manchus, e que vestisse trajes manchus. Tudo isso lhe permitiam porque era perfeita em sua arte. Provinha de uma família de artistas chineses, pois seu pai e seus irmãos eram artistas também, mas ela os superava a todos, especialmente na pintura de gaios e crisântemos. Encarregavam-na de ensinar sua arte às concubinas. Mas era tão talentosa e impaciente que não ensinava a uma concubina que não tivesse vontade de aprender ou carecesse de talento. Yehonala tinha tanta vontade quanto talento e, quando a Dama Miao o descobriu, devotou-se à orgulhosa jovem, embora continuasse insistente e severa como professora. Não permitiu, no início, que Yehonala fizesse cópias do natural. Compeliu-a a estudar as xilogravuras antigas e os desenhos dos mestres mortos, para que pudesse fixar no espírito as suas pinceladas, as linhas que traçavam, as cores que combinavam. Depois desse estudo, permitiu que Yehonala começasse a copiar, mas proibiu-a ainda de trabalhar sozinha.
Nesse dia a Dama Miao chegou, como de costume, às quatro horas em ponto. Havia muitos relógios na Biblioteca Imperial, presentes de enviados estrangeiros nos séculos passados, e tantos no palácio que três eunucos tinham por obrigação exclusiva dar-lhes corda diariamente. A Dama Miao, porém, não consultava esses relógios estrangeiros, mas sim o relógio d'água que ficava no extremo do salão. Não gostava de objetos estrangeiros - dizia que perturbavam a calma necessária à pintura.
Era uma mulher delgada e quase bela; seu único defeito residia nos olhos demasiado pequenos. Vestia nessa ocasião um manto côr de ameixa e nos cabelos, penteados para o alto, a travessa manchu, coberta de contas. Seguia-a um eunuco, que abriu uma grande caixa e dela retirou pincéis, tintas e tigelas de água. Entrementes Yehonala levantara-se
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e permanecera imóvel, diante de sua mestra.
- Sente-se, sente-se, ordenou a Dama Miao.
Sentou-se, para que Yehonala a imitasse. Yehonala viu agora, através de uma janela diferente, o vasto país e o seu povo, em cujo centro vivia, e a arte dos séculos desfilando diante de seus olhos à medida que a mestra falava, desde o mais famoso dos artistas chineses, Ku K'ai-chih, que passara pelo mundo quinze séculos antes. Amava especialmente os quadros do antiquíssimo artista porque êle pintara deusas em carros puxados por dragões, rodando sobre nuvens. E também retratara os palácios imperiais, num comprido rolo de seda, sobre o qual o imperial ancestral Ch'ien Lung apusera seu sinete particular, uma centena de anos antes, e escrevera com a própria mão essas palavras: "O quadro ainda não perdeu o seu frescor". O quadro tinha três metros e meio de comprimento, nove polegadas de largura, de côr marrom, e das nove cenas reais que retratava, a favorita de Yehonala era aquela em que um urso, libertando-se dos exibidores que entretinham a corte, avançou para o Imperador e uma dama postou-se diante da fera para salvar o Filho do Céu. Yehonala achava a dama parecida consigo. Alta, bela e ousada, mantinha-se de braços cruzados e ar destemido diante do animal, enquanto os guardas corriam brandindo suas lanças. Mas havia outra cena sobre a qual ela meditava: o Imperador, a Imperatriz, e seus dois filhos. Amas e preceptores achavam-se ao lado dos meninos, todos impregnados de um tépido ar de família e de vida; o menor, irrequieto, fazendo caretas, rebelde contra o barbeiro que lhe raspava o crânio - Yehonala riu ao contemplá-lo. Ela também teria um filho assim, se o Céu quisesse.
Mas a lição do dia era sobre Wang Wei, médico que nascera havia treze séculos e que renunciara ao seu talento ancestral para tornar-se poeta e artista.
- Hoje, dizia a Dama Miao com a sua aguda voz argentina, você estudará esses esboços de Wang Wei. Observe as folhas de bambu tão delicadamente traçadas contra as rochas escuras. Observe as flores de ameixa misturadas com crisântemos.
Não permitia conversa que não se referisse à pintura e Yehonala, sempre dócil diante de seus mestres, ouvia e observava. E então falou:
- Não é estranho que flores de ameixa e crisântemos se encontrem na mesma página? Isto não significa confundir as estações?
A Dama Miao não gostou.
- É prudente não proferir a palavra confusão quando se fala de Wang Wei, disse ela. - Se o mestre quis colocar flores de ameixa entre crisântemos foi porque deu um sentido ao quadro. Não se trata de equívoco. Considere que, entre os seus quadros mais famosos há um representando folhas de bananeira sob a neve. É possível que caia neve sobre folhas de bananeira? Se Wang Wei o pintou, tornou-se possível. Rogo-lhe que medite sobre a poesia de sua pintura. Muitos o consideram mais poeta que pintor. Eu digo que seus poemas são quadros,
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seus quadros poemas, e isto é arte. Representar um estado de espírito e não um fato... isto é a arte ideal.
Misturava tintas enquanto falava, escolhendo os pincéis, e Yehonala observava.
Poderá perguntar-me por que lhe peço que copie os trabalhos de Wang Wei, disse a dama. - Desejo que adquira precisão e delicadeza. Você tem força. Mas a força deve ser informada e controlada do interior. Só então se poderá falar em gênio.
Farei uma pergunta à minha mestra, disse Yehonala.
- Pergunte, tornou a Dama Miao.
Estava fazendo traços rápidos e finos em grande folha de papel esticada sobre uma mesa quadrada, que o eunuco havia posto ao seu lado.
- Quando poderei pintar um quadro meu? indagou Yehonala. A mão da mestra imobilizou-se por um instante e seus olhos estreitos lançaram um olhar oblíquo à discípula.
- Quando eu não puder mais dar-lhe ordens.
Yehonala não respondeu. O significado era claro. Quando fosse escolhida pelo Imperador, a Dama Miao não poderia mais dar-lhe ordens, pois somente o Imperador poderia fazê-lo. Ocuparia um lugar tão alto que não haveria ninguém acima dela. Tomou o pincel e começou a copiar cuidadosamente flores de ameixa entre crisântemos.
No meio da noite - não sabia que horas eram - foi acordada por duas mãos que lhe sacudiam os ombros. Não conseguira dormir cedo e quando seus olhos afinal se cerraram, mergulhara em sono profundo. Emergia agora de um poço de trevas e, lutando por abrir os olhos, ouviu a voz de sua serva.
- Acorde, acorde, Yehonala! Você foi chamada! O Filho do Céu chama-a...
Ela acordou instantaneamente. Seu espírito tornou-se alerta. Afastou a colcha de seda e pulou do alto leito.
- Seu banho já está pronto, murmurou a mulher. - Depressa... entre na banheira! Derramei perfume na água. Separei seu melhor vestido... o de cetim lilás...
- Lilás não, exclamou Yehonala. - Usarei o rosa-pêssego. Outras mulheres entraram no quarto. Haviam sido arrancadas do sono e ainda bocejavam - a serva-chefe, a cabeleireira e a guardiã das jóias. As jóias imperiais somente eram dadas às concubinas quando fossem chamadas.
Yehonala ajoelhou-se na banheira, a serva ensaboou-lhe bem o corpo e depois lavou-o.
Yehonala submeteu-se sem uma palavra. Pressa... pressa era a senha. O Imperador estava acordado, estava bebendo vinho e comendo pãezinhos quentes recheados de saborosas iguarias. De momento em momento Li Lien-ying aparecia à porta, trazendo notícias.
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- Não se demore, sussurrava em voz áspera através das cortinas. - Se a mulher que êle quer não estiver pronta, chamará outra. Sua cólera de dragão desperta com facilidade, digo-lhe eu.
- Ela já está pronta, exclamou a serva.
Colocou duas flores de jóias atrás das orelhas de Yehonala e empurrou-a para a porta.
- Vá, minha preciosa, minha boneca.
- Oh, meu cachorrinho, gritou Yehonala. O animalzinho estava nos seus calcanhares.
- Não, não, bradou Li Lien-ying. - Não pode levar o cão! Mas Yehonala, subitamente medrosa, abaixou-se e tomou nos braços o minúsculo animal.
- Eu o levarei! gritou, batendo com os pés.
- Não! tornou a berrar Li Lien-ying.
- Oh, Senhor do Inferno, atalhou a serva, em desespero. - Deixe-a levar o cão, seu remendão! Se a contraria, ela se recusará a ir, e como ficaremos todos nós, então?
Foi assim que Yehonala seguiu ao encontro do Imperador, à meia-noite, levando nos braços o leãozinho, seu cachorrinho de brinquedo, e a partir desse dia Li Lien-ying, que fora realmente aprendiz de sapateiro antes da mutilação pela qual se tornou eunuco, foi apelidado de Remendão, pelos que o temiam e o odiavam.
Na escura suavidade da noite de verão Yehonala seguiu Li Lienying através das estreitas passagens da cidade. Êle empunhava uma lanterna de papel oleado e a vela que ardia no seu interior projetava um fraco círculo de luz que guiava a jovem. Atrás dela caminhava sua serva. As pedras sobre as quais pisavam estavam úmidas de orvalho que também cobria, como geada branca, os pequenos arbustos que cresciam entre as frestas. Cercava-os completo silêncio, rompido de quando em quando pelo lamento de uma mulher.
Embora nunca tivesse estado no palácio do Imperador, Yehonala sabia, como o sabiam todas as concubinas, que era situado no coração da Cidade Proibida, em meio dos jardins imperiais, e à sombra a do tríplice altar, a Torre da Chuva e das Flores, cujos tetos eram sustentados por colunas de ouro, rodeadas de dragões. Nesse templo havia três altares onde o Imperador reverenciava sozinho os deuses, como os haviam reverenciado antes todos os Imperadores, desde o tempo do grande K'ang Hsi. E os deuses os protegiam.
Ela passou pelo altar e chegou ao portão de entrada do pátio do palácio particular do Imperador. Abriu-se silenciosamente diante dela e o eunuco conduziu-a através de um vasto pátio interno a um grande salão e depois a outros corredores, silenciosos e vazios, nos quais se vislumbravam apenas as figuras dos eunucos vigilantes, até alcançar dois altos portões duplos, esculpidos com dragões de ouro. Ali o Eunuco-Chefe, An Teh-hai, estava à sua espera, figura alta e esplêndida,
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a orgulhosa face imóvel, os braços cruzados. Seu longo manto purpurino de cetim brocado, debruado no meio com fios de ouro reluzia à claridade das velas acesas em altos candelabros de madeira polida e trabalhada. Não falou a Yehonala nem fêz qualquer sinal de reconhecimento, mas com um gesto da mão direita despediu Li Lien-ying, que logo recuou respeitosamente.
Súbito o Eunuco-Chefe viu a cabeça do cãozinho espreitando dentro da manga de Yehonala.
- Não pode levar o cão ao quarto do Imperador, disse ele secamente.
Yehonala ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos.
- Então eu também não entrarei, retrucou.
As palavras eram ousadas, mas ela as proferiu com uma voz macia e indiferente, como se pouco lhe importasse entrar ou não. An Teh-hai mostrou-se surpreso.
- Desafia o Filho do Céu? inquiriu.
Ela não lhe respondeu, limitando-se a acariciar a cabecinha do cão.
- Irmão Mais Velho, disse então Li Lien-ying, essa concubina é muito irritante. Fala como criança mas é mais feroz do que um tigre fêmea. Todos nós a tememos. Se não quer entrar, é melhor mandá-la de volta. Na verdade não vale a pena forçá-la, porque é mais teimosa do que uma pedra.
Nesse momento a cortina atrás de An Teh-hai foi afastada e surgiu a cabeça de um eunuco.
- Pergunta-se a razão da demora, exclamou. - Pergunta-se se êle próprio deve vir tomar as providências necessárias!
- Irmão Mais Velho, deixe-a entrar com o cão, urgiu Li Lienying. - Poderá escondê-lo na manga. Se o animal incomodar, poderá ser levado para fora e entregue à serva que permanecerá aqui junto à porta.
O Eunuco-Chefe protestou, porém Yehonala continuou a fitá-lo com seus grandes olhos inocentes, e que mais podia êle fazer senão ceder? Resmungou e invectivou em voz baixa, mas cedeu. Novamente atravessou outra sala, no extremo da qual pendiam espessas cortinas de cetim da imperial côr amarela, com dragões bordados em seda escarlate. Atrás delas havia pesadas portas de madeira esculpida. O Eunuco-Chefe puxou as cortinas, abriu as portas, e fêzlhe sinal que entrasse. Desta vez ela entrou sozinha. As cortinas caíram atrás dela e encontrou-se diante do Imperador.
Êle estava sentado na enorme cama imperial, erguida sobre uma plataforma. O leito era de bronze, de bronze as colunas pelas quais subiam dragões esculpidos. Do alto das colunas, presos por uma armação de bronze, pendiam redes de fios de ouro, tecidas em forma de flores e de frutos entre dragões de cinco garras, enrascados. O Imperador sentava-se sobre um colchão forrado de cetim amarelo e suas pernas achavam-se cobertas por uma colcha também de cetim
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amarelo, com dragões bordados, e atrás dele havia altas almofadas do mesmo cetim amarelo, nas quais se recostava. Vestia uma camisola de seda vermelha, com as mangas amarradas aos punhos, gola alta cerrando-se ao redor do pescoço, e suas mãos débeis e macias estavam cruzadas. Yehonala tinha-o visto apenas uma vez, quando escolhida por êle, e nessa ocasião usava sua cabeleira real. Agora tinha a cabeça nua - os cabelos eram negros e curtos. O rosto comprido e estreito parecia pender da testa demasiado ampla e protuberante. Olharam-se, o homem e a mulher, e êle fèz-lhe sinal para que se aproximasse. Yehonala avançou lentamente, os olhos fixos na face dele. Quando estava perto, tornou a parar.
- Você é a primeira mulher que entra neste quarto com a cabeça erguida, disse êle numa voz aguda e fina. - Todas têm sempre medo de olhar-me.
Sakota, pensou ela, Sakota certamente entrou de cabeça baixa. Onde estava Sakota? Em que quarto dormiria ela, perto dali? Sakota havia permanecido diante do Imperador submissa, assustada, sem fala.
- Não estou com medo, disse Yehonala de maneira suave e categórica. - Vede, trouxe o meu cachorrinho.
As concubinas esquecidas tinham-lhe dito como deveria dirigirse ao Filho do Céu. Não devia tratá-lo como se fosse apenas um mortal. "Senhor dos Dez Mil Anos", "Altíssimo", "Venerável", estas eram as palavras do tratamento. Mas Yehonala comportava-se perante o Imperador como se fosse um homem.
Acariciou de novo a cabeça macia do cão e olhou para baixo.
- Até chegar aqui, disse ela, nunca tive um cãozinho como este. Ouvia falar em cães-leões, e agora tenho um só para mim.
O Imperador encarou-a, sem saber o que responder àquela infantilidade.
- Venha, sente-se ao meu lado, ordenou-lhe. - Diga-me por que não tem medo de mim.
Ela galgou a plataforma e sentou-se na extremidade do leito, encarando-o e segurando o cachorrinho. O pequeno animal aspirou o ar perfumado, espirrou e ela riu.
- Que perfume é esse que faz o meu cão espirrar? inquiriu.
- É cânfora, tornou o Imperador. - Mas conte-me por que não tem medo.
Yehonala sentiu o seu olhar perscrutando-lhe a face, os lábios, as mãos que acariciavam o cãozinho e tremeu com um súbito calafrio, embora fosse verão e o vento da madrugada ainda não tivesse começado a soprar. Curvou de novo a cabeça, pretendendo olhar o cachorrinho, depois forçou-se a erguê-la e a falar docemente, timidamente, como se fosse ainda uma menina.
- Conheço o meu destino, disse ela.
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E como conhece o seu destino? perguntou êle, começando a divertir-se, os lábios finos curvados para cima, os olhos sombrios agora menos frios.
Quando fui chamada de minha casa, disse ela na mesma voz doce e tímida, entrei no pátio da residência do meu tio, que é meu tutor porque meu pai faleceu, dirigi-me ao altar que fica debaixo da romãzeira e orei à minha deusa Kuan Yin. Acendi o incenso e então...
Fêz uma pausa, seus lábios estremeceram, tentou sorrir.
E então? indagou o Imperador encantado com aquele rosto belo, macio, tão jovem.
-• Não havia vento nesse dia, disse ela. - A fumaça do incenso ardente elevou-se em linha reta de sobre o altar. Abriu-se numa nuvem fragrante e dentro da nuvem vi uma face...
- A face de um homem, repetiu êle.
Yehonala cabeceou afirmativamente, como costumam fazer as crianças tímidas.
Era o meu rosto? perguntou êle.
- Sim, Majestade. O vosso rosto imperial!
Passaram-se dois dias, duas noites, e ela continuava ainda no quarto real. Três vezes êle adormecera e cada vez Yehonala corria à porta e chamava a sua serva, que entrava na ponta dos pés até o boudoir. Os eunucos já tinham preparado um banho rápido, um caldeirão de água sobre carvões em brasa, de modo que à serva bastava derramar a água no grande jarro de porcelana e refrescar de novo a sua senhora. Trouxera roupas limpas e diferentes mantos, escovava os cabelos de Yehonala e enrolava-os suavemente. A jovem falava apenas para dar ordens e a serva não lhe fazia nenhuma pergunta. Cada vez, depois de terminada a sua tarefa, Yehonala tornava a entrar no quarto imperial e as pesadas portas cerravam-se atrás das cortinas amarelas.
No interior do vasto aposento ela sentava-se numa cadeira perto da janela, esperando até que o Imperador acordasse. O que fora feito estava feito. Sabia agora o que era aquele homem, um pobre ser caprichoso, possuído por uma paixão que não podia satisfazer, uma luxúria da mente mais terrível que a luxúria da carne. Quando se sentia derrotado, soluçava sobre o peito dela. Aquele era o Filho do Céu!
No entanto, quando acordava, Yehonala mostrava-se toda submissa e gentil. Êle estava faminto e ela chamou o Eunuco-Chefe, ordenou-lhe que trouxesse os pratos preferidos pelo soberano. E comeu com o Imperador, alimentou o cãozinho com pedacinhos de carne, soltando-o de vez em quando no pátio pela janela. Terminada a refeição, o monarca ordenou ao Eunuco-Chefe que uma vez mais cerrasse as cortinas da janela, interceptando a luz do sol. Pediu-lhe
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em seguida que o deixasse só e voltasse apenas quando fosse chamado. Acrescentou que não veria seus ministros nem naquele dia nem no seguinte, até sentir-se disposto. A expressão de An Teh-hai era grave:
- Majestade, chegaram más notícias do sul. Os rebeldes de Tai P'ing apoderaram-se da metade de outra província. Vossos ministros e príncipes estão impacientes por uma audiência.
- Não irei, retrucou o Filho do Céu teimosamente, recostando-se nas almofadas.
O Eunuco-Chefe não pôde fazer outra coisa senão retirar-se.
- Tranque as portas, ordenou o Imperador a Yehonala.
Ela trancou as portas e, ao voltar-se, viu-o de novo fitando-a com o seu terrível e insatisfeito desejo.
- Venha cá, sussurrou. - Agora estou forte. Os alimentos revigoraram-me.
Novamente ela teve de obedecer. Desta vez era verdade que estava forte e então Yehonala lembrou-se de algo que as damas que viviam no Palácio das Concubinas Esquecidas lhe haviam contado. Diziam elas que, se o Imperador permanecesse tempo demais em seu quarto de dormir, uma erva poderosa era misturada ao seu prato favorito, infundindo-lhe um vigor súbito e incomum. Essa erva, no entanto, era tão perigosa que a dose não devia ser grande pois do contrário seguia-se tamanha exaustão que podia terminar com a morte.
Na terceira manhã sobreveio a exaustão. O Imperador mergulhou nas almofadas quase desmaiado. Seus lábios estavam azuis, os olhos semi-cerrados, não podia mover-se, sua face estreita adquiria lentamente um tom esverdeado que, sobre a pele amarela, fazia-o parecer morto. Cheia de medo, Yehonala correu à porta para pedir socorro. Antes que pudesse gritar, viu An Teh-hai, o Eunuco-Chefe, aproximando-se à espera do chamado.
- Chame imediatamente os médicos da Corte, ordenou ela. Tinha um ar tão altivo e frio, seus grandes olhos estavam tão negros, que An Teh-hai obedeceu.
Yehonala voltou para o lado do leito. O Imperador havia adormecido. Examinou-lhe a fisionomia inconsciente e de súbito teve vontade de chorar. Ficou ali tremendo com o estranho frio que a tinha invadido diversas vezes naqueles dois dias e três noites. Correu à porta e abriu-a o suficiente para dar passagem ao seu corpo delgado. Do lado de fora estava sentada a serva, cabeceando sobre um tamborete de madeira, cansada de esperar. Yehonala pôs a mão no seu ombro e sacudiu-a suavemente.
- Onde está seu cãozinho? perguntou a mulher. Yehonala olhou-a sem vê-la.
- Pu-lo no pátio, à noite... esqueci-me!
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Não se importe, tornou a mulher, apiedada. - Venha, venha comigo... segure a mão da sua velha...
E Yehonala deixou-se conduzir através dos estreitos corredores. Era madrugada e o sol nascente subia sobre as paredes róseas. Assim chegou de novo ao seu solitário lar. E enquanto a serva se mexia de um lado para o outro, ocupada, falava para confortar a sua senhora.
Todos estão dizendo que nunca uma concubina ficou tanto tempo com o Filho do Céu. A própria Consorte só passou uma noite por vez com êle. Li Lien-ying, o eunuco, diz que a senhora é a favorita, agora. Não tem mais nada a temer.
Yehonala sorriu mas seus lábios tremiam.
- Dizem isso? observou, endireitando-se e movimentando-se com a sua suave graça habitual.
No entanto, depois de banhada, vestida em macias vestes de dormir de seda e deitada em sua cama, embora as cortinas estivessem fechadas, começou a tremer com um frio mortal. Devia permanecer silenciosa enquanto vivesse, pois não podia falar a ninguém. Oh, não tinha ninguém. Nem um amigo sequer? Estava só e nunca suspeitara que fosse possível tamanha solidão. Não tinha ninguém...
Ninguém? Jung Lu não era ainda seu parente? Era seu primo e os laços do sangue não podem ser rompidos. Sentou-se na cama, enxugou os olhos e bateu palmas chamando a serva.
- Que é? perguntou a mulher, na porta.
- Mande-me o eunuco Li Lien-ying, ordenou Yehonala.
A serva hesitou. Uma expressão de dúvida desenhou-se claramente em sua fisionomia.
- Boa senhora, tornou ela, não seja tão cordial com esse eunuco. Que pode êle fazer, agora?
Mas Yehonala era teimosa.
- Uma coisa que só êle pode fazer, retrucou.
A serva afastou-se, ainda em dúvida, para procurar o eunuco que veio rápido e ansioso.
- Que desejais, que desejais, minha senhora Fênix? indagou êle ao chegar à porta.
Yehonala afastou a cortina. Tinha vestido um manto escuro e sombrio e sua face estava pálida e grave. Havia sombras sob seus olhos, porém falou com alta dignidade:
- Traga aqui meu parente, meu primo-irmão, Jung Lu.
- O Capitão dos Porta-bandeiras Imperiais? perguntou Li Lienymg, surpreso.
Sim, respondeu ela altivamente.
Ele se afastou, enxugando com a manga o sorriso que lhe aflorara aos lábios.
Yehonala deixou cair a cortina e ficou ouvindo os passos do eunuco que se distanciava. Quando tivesse o poder, disse para si mesma,
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elevaria Jung Lu de maneira que ninguém, nem mesmo um eunuco, pudesse atrever-se a dizer "o guarda". Fá-lo-ia pelo menos duque, talvez Grande Conselheiro. Enquanto acariciava tais pensamentos no espírito, sentiu tamanho anseio no coração que ela própria se assustou. Que poderia querer de seu parente exceto a vista de sua fisionomia fiel, o som de sua voz firme, dizendo-lhe o que deveria fazer agora? Oh, mas errara em mandar chamá-lo, pois poderia acaso contar-lhe o que lhe sucedera naqueles dois dias e três noites e a transformação que sofrera? Poderia dizer-lhe que desejava nunca ter entrado na Cidade Proibida e suplicar-lhe que a ajudasse a fugir? Deixou-se cair no chão, reclinou a cabeça na parede e fechou os olhos. Uma estranha dor, nas profundezas de seu ser, subiu-lhe até ao peito. Desejou que êle não viesse.
Esperança vã, pois já lhe ouvia os passos. Êle viera instantaneamente, estava junto da porta e Li Lien-ying chamava-a através da cortina.
- Senhora, vosso parente está aqui!
Levantou-se então e sem pensar em mirar-se ao espelho. Jung Lu sabia como ela era. Não havia motivo para embelezar-se. Afastou a cortina e viu-se diante dele.
- Entre, primo, disse.
- Saia você, tornou êle. - Não devemos encontrar-nos dentro do seu quarto.
- Mas tenho de falar-lhe a sós, insistiu ela, pois Li Lien-ying esperava, as orelhas esticadas e sôfregas.
Porém Jung Lu não entrou e ela foi forçada a sair do quarto. Quando o Capitão lhe viu o rosto, a alvura do rosto, a palidez dos lábios, o negror dos olhos, ficou preocupado. Acompanhou-a ao pátio e Yehonala proibiu ao eunuco que os seguisse. Somente a serva permaneceu próxima deles, para que se não pudesse dizer que estivera sozinha com um homem, mesmo sendo seu primo.
Assim não podia tocar-lhe a mão nem permitir-lhe que tocasse a dela, por mais que ansiasse por esse contato. Distanciou-se o quanto pôde da porta e sentou-se num banco de porcelana do jardim, sob um grupo de tamareiras, no extremo do pátio.
- Sente-se, disse ela.
Mas Jung Lu não se sentou. Permaneceu diante dela tão rígido como se fosse apenas um guarda nos portões do Imperador.
- Não quer sentar-se? repetiu fitando-o com um olhar suplicante.
- Não, redargüiu êle. - Estou aqui apenas porque mandou chamar-me.
Ela cedeu.
- Soube? inquiriu tão suavemente que o pássaro que se encontrava sobre um galho acima dela não pôde ouvi-la.
- Soube, retrucou êle, sem olhá-la.
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- Sou a nova favorita.
- Também soube disso.
Nessas poucas palavras foi dito tudo, e que mais poderia dizer, se êle não queria falar? Yehonala continuou fitando-lhe o rosto, o rosto que conhecia tão bem, comparando-o com aquela face estreita e mórbida recostada na almofada imperial. A face que tinha diante de si era jovem e bela, os olhos grandes e poderosos, a boca cheia e firme sobre o queixo forte. Era uma face de homem.
- Fui uma louca, disse ela.
Jung Lu não respondeu. Que resposta poderia dar-lhe?
- Quero ir para casa, prosseguiu Yehonala.
Êle cruzou os braços e olhou meticulosamente, por sobre a cabeça dela, para as árvores.
- Sua casa é aqui, observou.
Ela mordeu a extremidade do lábio inferior.
- Quero que você me salve.
Êle não se moveu. Se alguém o estivesse observando diria que Jung Lu mantinha uma atitude de subordinado diante da mulher sentada sob as árvores. Mas êle pousou o olhar na adorável face erguida e nos seus olhos ela viu a resposta.
- Oh, meu coração, se eu pudesse salvá-la, salvá-la-ia. Mas não posso.
A dor aguda que lhe atormentava as profundezas do ser cessou de súbito.
- Então você não me esqueceu!
- Não me esqueço, nem de noite nem de dia.
- Que devo fazer?
- Conhece o seu destino. Você o escolheu.
Seu lábio inferior tremeu e lágrimas prateadas reluziram em seus olhos negros:
- Eu não sabia que seria assim... balbuciou.
- Não se anula o que foi feito, disse êle. - Não há recuo, nem retorno ao que você era.
Ela não podia falar. Curvou a cabeça para impedir que as lágrimas lhe deslizassem pelas faces e não se atreveu a enxugá-las por medo que o eunuco estivesse de atalaia bastante perto para percebê-lo.
- Você escolheu a grandeza, disse êle quebrando o silêncio. - Deve, por conseguinte, ser grande.
Yehonala engoliu suas lágrimas, mas não se atreveu ainda a erguer a cabeça.
À vista de sua promessa, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Que promessa?
A de que viria sempre que eu o mandasse chamar. Preciso ter esta certeza e este conforto. Não posso estar sempre só.
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Ela viu o suor inundar a testa de Jung Lu, à luz dos raios de sol que atravessavam a copa das árvores para iluminar-lhe o rosto.
- Virei, quando me chamar, disse êle sem mover-se. - Se precisar, mande chamar-me. Porém só quando precisar. Subornarei esse eunuco - coisa que não fiz antes: subornar um eunuco Isto me colocará à mercê dele. Mas fá-lo-ei.
Yehonala levantou-se:
- Tenho a sua promessa, disse.
Lançou-lhe um longo olhar e manteve as mãos firmemente cerradas, para impedi-las de tentarem tocá-lo.
- Compreende-me? perguntou.
- Sim, redargüiu Jung Lu.
- Isto me basta, disse ela e, passando diante do Capitão, encaminhou-se diretamente para o quarto. Atrás dela as cortinas tornaram a cair.
Durante sete dias e sete noites Yehonala não saiu da cama. Nos corredores do palácio murmurava-se que ela estava enferma, que estava encolerizada, que tentara engolir seus brincos de ouro, que não cederia mais ao Imperador. Pois tão logo os médicos da Corte declararam que o monarca se restabelecera dos efeitos das poderosas drogas, êle mandou chamá-la. Yehonala não obedeceu. Nunca antes, na história da dinastia, uma concubina imperial negara-se e ninguém sabia agora o que fazer com Yehonala. Jazia deitada em seu leito, sob a colcha de cetim côr-de-rosa e falava somente com a sua serva. O eunuco Li Lien-ying estava fora de si, ao ver por terra todos os seus planos e frustrado o seu objetivo. Não se atrevia, porém, a erguer a cortina da porta da jovem.
- Deixe-os pensar que desejo morrer, disse ela à sua serva. - Pelo menos é verdade que não quero viver aqui.
A velha transmitiu a mensagem ao eunuco e este rangeu os dentes.
- Se o Imperador não estivesse fora de si pela paixão, seria bastante fácil, escarneceu êle. - Ela poderia cair num poço, ou ser envenenada, mas êle a quer inteira e sã e... agora!
Veio finalmente o próprio Eunuco-Chefe, An Teh-hai, e também não foi bem sucedido. Yehonala recusou-se a vê-lo. Conservava os brincos na mesinha ao lado do leito, juntamente com a sua xícara de porcelana, para o chá, e o bule de barro ornado de prata.
- Se o Eunuco-Chefe atravessar a soleira da minha porta, engolirei meus brincos de ouro, declarou ela em voz alta para que fosse ouvida do lado de fora.
Assim decorreu um dia inteiro, e outro, e mais outro. O Imperador, irritado, passou a desconfiar que algum eunuco estivesse retardando a vinda dela, esperando ganhar uma propina.
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Ela foi muito obediente para comigo, insistia o monarca. - Fêz tudo quando lhe pedi.
Ninguém se atrevia a dizer que Sua Majestade era detestado pela formosa jovem e o cérebro imperial nunca imaginaria semelhante coisa. Sentia, pelo contrário, que era potente e capaz; não queria desgastar-se com outra concubina, uma vez que amava Yehonala. Na verdade nunca amara outra mulher como amava aquela agora, e sabendo que com as outras sua paixão morria cedo, alegrava-o o fato de que, passados sete dias, ansiava pela sua presença mais do que nunca e a demora tornava-o ainda mais impaciente.
Na noite do terceiro dia dos sete, An Teh-hai, também, estava fora de si. Dirigiu-se à Viúva Mãe, contou-lhe o que ocorria e como Yehonala, embora conhecesse o seu poder, não queria obedecer ao Imperador.
- Nunca ouvi falar de semelhante atitude em toda a nossa dinastia, exclamou energicamente a Viúva Mãe. - Que os eunucos a levem à força ao meu filho!
O Eunuco-Chefe hesitou.
- Venerável, disse êle, duvido da eficácia desse método. Ela deve ser conquistada e persuadida; asseguro-vos, Venerável, que não se pode forçá-la. É tão forte, sendo mais alta e mais pesada que o Filho do Céu, apesar de delgada como um salgueiro jovem, que não hesitará em mordê-lo ou arranhar-lhe o rosto quando estiverem sós.
- Que horror! exclamou a Viúva Mãe.
Era velha, sofria do fígado e passava muito tempo na cama. Nessa ocasião estava deitada no recesso de um leito tão grande que parecia olhar de dentro de um túmulo. Ponderou:
- Não há ninguém no palácio que possa persuadi-la?
- Venerável, a Consorte é sua prima, sugeriu o Eunuco-Chefe. A Viúva Mãe objetou:
- Não é muito razoável que a Consorte convença uma concubina a ir ao encontro de seu próprio senhor, o Imperador.
- Nem razoável nem decente, concordou o Eunuco-Chefe.
A velha senhora permaneceu em silêncio durante tanto tempo que êle chegou a pensar que tivesse adormecido. Mas de súbito ela ergueu as pálpebras intumescidas e disse:
- Bem, que essa Yehonala vá, então, ao palácio da Consorte.
- E se não quiser ir, Venerável? indagou o Eunuco-Chefe.
- Como... se não quiser ir?
- Recusou-se a ir ao encontro do próprio Filho do Céu, lembrou An Teh-hai.
A Viúva Mãe resmungou:
- Digo-lhe que nunca vi uma mulher tão feroz! Bem, a Consorte é gentil. Insinue-lhe que
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- Sim, Venerável, tornou o Eunuco-Chefe. Estas eram as instruções que desejava receber. - Dormi em paz, Venerável, acrescentou.
- Vá-se, retrucou a Viúva Mãe. - Estou velha demais para preocupar-me com histórias de homens e mulheres.
Êle saiu silenciosamente, enquanto ela adormecia, e dirigiu-se imediatamente ao palácio da Consorte. Encontrou Sakota bordando caras de tigre sobre um par de sapatos para a criança que esperava.
Depois de anunciado e introduzido, fêz um reparo sobre o seu trabalho:
- A Consorte Imperial não dispõe de mulheres suficientes para fazerem os seus bordados?
- Disponho, redargüiu Sakota. - Mas eu mesma não tenho nada que fazer. Não sou tão inteligente como minha prima Yehonala. Não desejo estudar os livros nem aprender a pintar.
- Ah, fêz êle.
Com um gesto de sua pequenina mão, convidou-o a sentar-se. No dedo anular dessa mão estava o seu dedal, um anel de ouro na segunda junta.
- Vim ver-vos a respeito de vossa prima, Senhora, prosseguiu êle, ainda de pé. - E por ordem da Viúva Mãe.
Ela ergueu os belos olhos:
- Oh?
O Eunuco-Chefe tossiu:
- Vossa prima está nos dando muito trabalho.
- De fato? disse Sakota.
- Não quer obedecer ao chamado imperial, continuou êle.
A cabecinha de Sakota caiu sobre o bordado e ela enrubesceu violentamente, tornando-se tão vermelha como uma flor de pessegueiro.
- Contudo eu soube... minhas mulheres contaram-me...
- Sim, conquistou o favor do Imperador, concordou êle. - Mas agora não quer voltar.
O rubor acentuou-se.
- Que tenho eu com isso? indagou.
- Pensou-se que talvez ouvisse a vós, a Consorte... sugeriu o eunuco.
Sakota refletiu, bordando lentamente e com a maior delicadeza o olho amarelo do minúsculo tigre no sapato.
- É um pedido decente esse que me fazem? inquiriu afinal. O Eunuco-Chefe foi brusco:
- Não, na verdade, Senhora. No entanto todos nós devemos lembrar-nos de que o Filho do Céu não é um homem comum. Ninguém deve recusar-lhe nada.
- Gosta tanto dela, assim? murmurou Sakota.
- Podemos culpá-la? indagou êle em resposta.
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A pequena criatura dobrou, com um suspiro, o seu bordado e colocou-o na mesa próxima. Em seguida juntou as mãos.
Sempre fomos irmãs, ela e eu, disse com sua voz docemente queixosa. - Se necessita de mim, irei a ela.
Obrigado, Senhora, tornou o Eunuco-Chefe. - Acompanhar-vos-ei eu próprio e esperarei a vossa volta.
E foi assim que Yehonala, deitada na cama, com os olhos secos e cheios de desespero, ergueu a cabeça e viu sua prima. Naquele instante sentia que odiava toda a sua vida e lamentava ter escolhido a grandeza, pois nunca a desejaria se soubesse o preço que teria de pagar por ela.
- Sakota exclamou estendendo os braços.
Sakota atirou-se imediatamente ao seu encontro, vencida por aquele grito. As duas jovens mulheres abraçaram-se chorando. Nenhuma delas se atrevia a falar do que ambas lembravam, e Sakota sabia que as suas recordações eram tão odiosas quanto as de Yehonala.
- Oh, pobre irmã, soluçou ela. - Três noites! Eu tive apenas uma.
- Não voltarei para ele, sussurrou Yehonala.
Quase estrangulava a prima, tão fortemente a abraçava ao redor do pescoço e Sakota caiu na cama.
- Oh irmã, mas você deve! exclamou ela. - Se não fôr, que será de você, querida? Não nos pertencemos mais.
Então Yehonala, sempre sussurrando para não ser ouvida pelos eunucos, abriu o coração:
- Sakota, para mim é pior do que para você. Você não ama nenhum homem, não é? Mas agora eu sei que amo. Esta é a minha miséria. Se eu não amasse, talvez não me importasse. Que é o corpo de uma mulher? É apenas uma coisa, para ser dada ou conservada. Não há orgulho nele, quando não se ama. Mas não tem preço quando se ama... e se é amada.
Não precisava dizer o nome. Sakota sabia que se tratava de Jung Lu.
- Agora é tarde, irmã, tornou Sakota. Acariciou a macia face de Yehonala: - Não há mais saída, irmã.
Yehonala afastou-lhe a mão.
- Então devo morrer, exclamou com a voz vacilante. - Pois de fato não poderei viver.
Pousou a cabeça no ombro da prima e recomeçou a chorar.
A pequena Sakota tinha o coração brando das mulheres que são todas suavidade e, assim, enquanto acariciava Yehonala com as mãos, alisando-lhe a testa e a face, tramava no íntimo a maneira de ajudá-la. Não era possível deixar o palácio nem tampouco a Cidade Proibida. Se uma concubina fugisse, não havia mais lugar para ela em todo o mundo conhecido. Se Yehonala voltasse à casa
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de seu tio, que era pai de Sakota, a família inteira poderia ser morta por causa dela. Porém onde mais poderia uma fugitiva esconder-se? Caso se mesclasse com estranhos, não lhe perguntariam quem era, pois a notícia de que uma concubina fugira dos palácios do Imperador Dragão não se propagava com ruído e comoção? Qualquer socorro, qualquer conforto, devia ser encontrado entre aquelas próprias paredes. Intriga havia muita, e embora nenhum homem pudesse dormir entre as paredes da cidade durante a noite, com exceção do Filho do Céu, as mulheres tinham, não obstante, seus amantes de dia.
Mas como poderia ela, a Consorte Imperial, rebaixar-se a tramar com eunucos, ficando assim à mercê deles? Não poderia fazê-lo. Não apenas o temor, mas também a sensibilidade o proibiam.
- Querida prima, disse ela ocultando seus pensamentos, você deve falar com Jung Lu. Peça-lhe que diga a meu pai que você não pode permanecer onde está. Talvez meu pai possa comprar a sua liberdade, ou trocá-la por alguma outra, ou também pode dizer que você enlouqueceu. Não agora, prima, você compreende, pois de fato ouvi dizer que nosso senhor está muito apaixonado por você. Porém mais tarde, prima, quando esse capricho terminar e outra a substituir, talvez isto possa ser feito.
Sakota falou inocentemente, pois não amava a nenhum homem e não era ciumenta, mas Yehonala sentiu-se ferida em seu orgulho. Quê? Seria então dispensada? Se Sakota o dizia era porque o ouvira sem dúvida murmurado entre as mulheres e os eunucos. Sentou-se na cama e afastou do rosto os cabelos revoltos.
- Não posso pedir a meu parente que venha a mim... você sabe disso, Sakota! Os boatos correrão de sala em sala. Mas você pode mandar chamá-lo, Sakota. É seu parente também. Chame-o e diga-lhe que eu certamente me matarei. Diga-lhe que não me importo com ninguém, que desejo apenas libertar-me. Aqui é uma prisão, Sakota... estamos todas numa prisão!
- Sinto-me bastante feliz, respondeu Sakota suavemente. - Aqui é agradável, creio eu!
Yehonala lançou um olhar oblíquo à prima.
- Você se sente feliz em qualquer parte... desde que possa sentar-se em paz e bordar pedaços de cetim!
As pálpebras de Sakota caíram e sua pequena boca curvou-se para baixo.
- Que mais se pode fazer, prima? perguntou ela tristemente. Yehonala atirou os cabelos para trás, segurou-os com uma das mãos e torceu-os, fazendo um grande coque.
- Ora... ora... ora... exclamou. - É o que estou dizendo! Não se pode fazer nada... não posso ir à rua, não posso nem mesmo meter a cabeça pelo portão para ver se há atores representando na esquina, nunca mais vi uma peça desde que vim para cá e você
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sabe como gosto do teatro. Meus livros, sim... minha pintura? Bem, eu pinto. Para quem? Para mim mesma! E isto não basta... ainda tem mais: à noite...
Estremeceu e, puxando para si as pernas, pousou sua orgulhosa cabeça sobre os joelhos.
Sakota permaneceu em silêncio durante um longo momento. Depois, verificando que não poderia confortar aquela jovem e tempestuosa mulher, a quem de fato não era capaz de compreender, pois nada pode fazer com que uma criatura seja diferente do que é, levantou-se.
- Prima querida, disse ela em tom lisonjeiro, retiro-me agora para que você possa ser banhada e vestida e comer alguma coisa, algo de que goste. Mandarei chamar nosso parente e você não deve recusar-se a vê-lo se a procurar, porque se isso ocorrer eu o terei decidido em seu benefício. E se houver tagarelice, direi que fui eu quem lhe pediu que viesse.
Pousou a mão tão levemente na cabeça de Yehonala, ainda curvada sobre os joelhos, que seu peso não era maior que de uma folha, e então se afastou.
Depois que ela saiu, Yehonala atirou-se de novo sobre os travesseiros. Ficou imóvel, com os olhos muito abertos, fitando o dossel acima dela. Em seu espírito começou a tecer-se uma fantasia, um sonho, um plano, uma trama, possível apenas se Sakota a protegesse, Sakota que era a Consorte Imperial e que ninguém poderia acusar.
Quando a serva espreitou, com receio de falar, Yehonala virou a cabeça.
- Tomarei meu banho agora, disse. - E quero vestir qualquer coisa nova... meu manto verde, verde-maçã. E depois comerei.
- Sim, sim, minha rainha, minha boneca, respondeu a mulher, alegre.
Deixou cair as cortinas e Yehonala ouviu seus passos rápidos no corredor, apressando-se em obedecer.
Na tarde desse mesmo dia, duas horas antes do toque de recolher, anunciando que todos os homens deviam sair da cidade do Imperador Yehonala ouviu os passos pelos quais ansiava. Passara o dia inteiro sozinha em seus aposentos, depois que Sakota a deixara, proibindo a entrada de quem quer que fosse. Apenas sua serva permanecera sentada junto da porta. A ela Yehonala dissera honestamente:
Estou terrivelmente perturbada. Minha prima, a Consorte, sabe o que me magoa. Ordenou ao nosso parente que viesse ver-me, a fim de ouvir-me e transmitir meu problema ao tutor meu tio. enquanto ele estiver aqui, você permanecerá junto da porta. Não
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Deve entrar nem tampouco permitir que alguém espreite para dentro. Você compreendeu que êle vem por ordem da Consorte.
- Compreendi, Senhora, retrucou a mulher.
Assim se haviam passado as horas - ela do lado de fora da porta e Yehonala do lado de dentro, com as cortinas caídas. Seu corpo estava ocioso, mas seu espírito achava-se extremamente ocupado e seu coração era um turbilhão. Poderia fazer com que Jung Lu esquecesse a sua retidão? Este era o seu propósito.
Êle chegou afinal, duas horas antes do toque de recolher. Ela ouviu seus passos, os firmes passos medidos. Ouviu-lhe a voz perguntando se Yehonala dormia e a resposta da serva dizendo que ela estava à sua espera.
Ouviu a porta abrir-se e fechar-se e viu a mão dele, aquela mão grande e macia que conhecia tão bem, segurar a cortina interna e hesitar. Ela permanecia rígida na cadeira de pau-rosa esculpida, imóvel e expectante. Então êle afastou a cortina e surgiu à sua frente. Yehonala fitou-o. Seu coração pulou no peito, como algo vivo e separado dela, lágrimas encheram-lhe os olhos e sua boca começou a tremer.
O que quer que pudesse fazer, isto que fêz abalou a vontade firme dele. Tinha-a visto chorar de dor e soluçar de raiva, mas nunca a vira assim, imóvel, chorando sem um som, desamparada, como se a sua própria vida tivesse sido partida.
Com um grande gemido Jung Lu estendeu os braços e avançou para ela. E Yehonala, vendo apenas aqueles braços estendidos, levantou-se cegamente da cadeira e correu ao seu encontro, deixando-se abraçar fortemente. Assim unidos, em silêncio e em terrível êxtase, ficaram eles. Por quanto tempo, nenhum dos dois saberia dizê-lo. Face contra face, até que seus lábios se encontraram por instinto. Então êle afastou a boca.
- Sabe que não pode deixar este palácio, sussurrou Jung Lu. - Deve encontrar sua liberdade dentro destas próprias paredes, pois não há outra liberdade para você, agora.
Ela escutava, ouvindo sua voz de muito longe, percebendo apenas que êle a mantinha entre seus braços.
- Quanto mais alto você subir, disse-lhe, maior será a sua liberdade. Suba, meu amor... o poder é seu. Somente uma Imperatriz pode dar ordens.
- Mas você me amará? perguntou ela com a voz estrangulada na garganta.
- Como poderei não amá-la? respondeu. - Minha vida consiste em amá-la. Toda vez que respiro, faço-lhe uma jura de amor.
- Então... sele o seu amor!
Estas foram as ousadas palavras que proferiu, mas num sussurro tão inaudível que êle poderia não ter ouvido, mas Yehonala sabia que a ouvira. Sentiu-o imóvel, depois suspirou. Sentiu seus ombros
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estremecerem e seus músculos se relaxarem e seus ossos se renderem...
Depois que eu fôr sua, disse ela corajosamente, até mesmo aqui poderei viver.
Nenhuma resposta, ainda! Ele não podia falar. Sua alma ainda não havia cedido.
Ela ergueu a cabeça e fitou-o no rosto.
- Que importa onde eu viva, se fôr sua? Sei que você disse a verdade. Não há fuga para mim, exceto na morte. Bem, posso escolher a morte. É fácil num palácio... ópio para engolir, meus brincos de ouro, uma pequena faca para abrir minhas veias... Podem vigiar-me noite e dia? Juro que morrerei a menos que você me faça sua! Se eu fôr sua, farei o que você disser... sempre, durante o resto de minha vida. Serei Imperatriz.
Sua voz era mágica, adorável na súplica, profunda, suave e gentil, cálida e doce como o mel ao sol de verão. Não era êle um homem? Era jovem e ardente, virgem ainda porque somente amava a mulher que agora tinha nos braços. Eram prisioneiros, apanhados na velha armadilha da vida, encarcerados dentro do palácio imperial. Êle não era mais livre do que ela. No entanto somente ela poderia fazer o que pretendia. Se dissesse que se tornaria Imperatriz, ninguém poderia impedi-la. E se escolhesse a morte, sem dúvida morreria. Êle a conhecia. E conhecendo-a não devotaria a sua vida à missão de ajudá-la a viver? A própria Sakota não imaginara uma cena como aquela ao pedir-lhe que fosse ver a prima? No último momento a Consorte pousara a mão em seu braço e rogara-lhe que fizesse tudo - "tudo que Yehonala pedir": estas foram as suas exatas palavras.
Emudeceu a voz de sua alma, sentiu a consciência desmaiar e então ergueu a bela jovem nos braços e levou-a para o leito.
...Os tambores do toque de recolher ressoaram através dos pátios e corredores da cidade do Filho do Céu. Era a hora do pôr do sol, quando todos os homens deviam retirar-se dos muros do palácio. A velha ordem atingiu os ouvidos dos amantes ocultos nos aposentos secretos. No quarto de Yehonala, Jung Lu ergueu-se e vestiu seu uniforme enquanto ela jazia semi-adormecida e sorridente.
Inclinou-se para ela:
- Estamos jurados? perguntou.
- Jurados, disse ela envolvendo-o nos braços e atraindo-lhe o rosto para junto do seu. - Para sempre, para sempre!
O som dos tambores cessou e êle apressou-se. Yehonala levantou-se rápida, alisou as vestes e escovou os cabelos. Quando a serva tossiu junto da porta, ela estava sentada em sua cadeira.
- Entre - disse, tomando o lenço e fingindo enxugar os olhos.
- Está chorando de novo, senhora? inquiriu a mulher. Yehonala sacudiu a cabeça:
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- Acabei de chorar, retrucou em voz baixa. - Sei o que devo fazer. Meu parente fêz-me compreender meu dever.
A mulher fitou-a, perscrutante, com a cabeça inclinada para o lado, como um pássaro.
- Seu dever, senhora? repetiu.
- Quando o Filho do Céu me chamar, tornou Yehonala, irei ao seu encontro. Devo fazer a sua vontade.
O calor do verão perdurava na Cidade Proibida. A um dia brilhante seguia-se outro, os palácios reverberavam à luz viva do sol nu e as chuvas não vinham. Eram tão quente a quietude do meio-dia que as princesas e damas da Corte, os eunucos e concubinas, se dirigiam às cavernas dos jardins imperiais e aí passavam as horas mais ardentes. Essas cavernas eram construídas em rochas de rio, trazidas do sul em barcos, pelo Grande Canal. As rochas eram modeladas por mãos humanas, mas com tanto engenho que pareciam haver sido trabalhadas pelos ventos e pelas águas. Pinheiros inclinados pendiam sobre as entradas das cavernas e em seu interior fontes ocultas regavam as paredes e formavam lagos onde peixinhos dourados brincavam. Naquele frescor as damas bordavam, ouviam música ou se divertiam com diversos jogos.
Mas Yehonala não ia para as cavernas. Estava agora sempre ocupada com seus livros, sempre sorridente, falando pouco enquanto estudava. Aparentemente, sua rebelião fora esquecida. Quando o Imperador a chamava, permitia que a banhassem e vestissem e ia ao seu encontro. A preferência imperial não arrefecera e isto aguçava a sua prudência, pois as concubinas que esperavam sua vez tornavam-se inquietas. Li Lien-ying brigava com os outros eunucos para conservar-se no posto de principal servidor de Yehonala. Mas ela, embora soubesse do que ocorria, nada deixava transparecer, mostrando-se impecàvelmente cortês para com todos e muito obediente à Viúva Mãe. Todos os dias, ao acordar, ia primeiro ver a Viúva Mãe, a fim de saber de sua saúde e bem-estar. A velha senhora vivia sempre doente e Yehonala misturava ervas em seu chá, para acalmá-la. Quando estava irrequieta, esfregava-lhe os pés engelhados e serenava-a escovando seus ralos cabelos brancos com escovadelas longas e ritmadas. Nenhuma tarefa era demasiado insignificante ou demasiado baixa, para Yehonala, quando se tratava da Viúva Mãe. Todos perceberam, pouco depois, que a bela jovem não era apenas a favorita do Filho do Céu - era a de sua mãe também.
E assim Yehonala sabia quão ansiosamente a Viúva Mãe aguardava o nascimento do filho de Sakota. Fazia parte dos seus deveres diários acompanhar a velha senhora ao templo budista e esperá-la enquanto ela fazia suas orações e queimava incenso diante dos deuses, suplicando ao Céu que a Consorte tivesse um menino. Somente
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depois disso voltava Yehonala às suas atividades pessoais, que exercia como sempre na biblioteca, lendo e estudando sob a orientação de velhos eunucos eruditos, ou aprendendo música. Esforçava-se por aprender a escrever com pincel de pêlo de camelo, no estilo dos grandes calígrafos do passado.
Entrementes ocultava um segredo, ou pensava ocultá-lo, até o dia em que sua serva o revelou. Era um dia comum, o ar estivera mais frio à noite e pela manhã, porém ainda quente ao meio-dia. Yehonala dormira tarde, pois havia sido chamada pelo Imperador na noite anterior, como havia sido chamada em várias noites, e sempre obedecera.
- Senhora, disse a mulher quando ela entrou no quarto, nesse dia, e fechou cuidadosamente a porta atrás de si. - Senhora, não reparou que a lua cheia chegou e partiu e não houve qualquer sinal vermelho?
- Sim? inquiriu Yehonala como se não lhe importasse. No entanto, como estava preocupada e com que atenção se observara!
- Sim, redargüiu a mulher com orgulho. - A semente do Dragão está em seu corpo, senhora. Posso levar a boa nova à Mãe do Filho do Céu?
- Espere, ordenou Yehonala. - Espere até que a Consorte dê à luz. Se fôr um menino, que importância terá o que trago no ventre?
- Mas se fôr uma menina? perguntou a serva, com agudeza. Yehonala lançou-lhe um longo olhar jocoso:
- Então eu mesma levarei a notícia à Viúva Mãe. E se você contar a alguém, mesmo ao meu eunuco - acrescentou dilatando os olhos que assumiram uma expressão feroz - mandarei esquartejá-la e pendurar sua carne em postes, para alimento dos cães.
A mulher tentou sorrir:
- Juro pela minha mãe que nada direi.
Mas quem, indagava a sua pálida face, poderia dizer quando aquela concubina, tão bela, tão orgulhosa, transformaria a pilhéria em verdade?
Enquanto a Corte esperava o parto da Consorte, cada concubina, ao acordar, perguntava se havia notícias. Os príncipes e o Grande Conselheiro Shun, antes de entrarem no Salão de Audiência, de madrugada, perguntavam aos eunucos se os trabalhos de parto haviam começado. E o filho de Sakota não nascia. O Imperador, ansioso, ordenou à Comissão de Astrólogos que tornasse a estudar as estréias e que verificasse, através das entranhas de aves recém-mortas, se a criança seria um menino. Mas os astrólogos viram apenas contusão Os sinais não eram claros. A criança poderia ser ou não ser um menino. Era mesmo possível que a Consorte tivesse gêmeos, menino e menina; caso esta desgraça ocorresse, a menina deveria ser morta, para não solapar a vida de seu real irmão.
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O outono acentuou-se e os médicos começaram a ficar preocupados com a saúde da Consorte. Ela estava debilitada pela espera, sua fraqueza aumentava porque a criança não nascia, não podia comer nem dormir. Yehonala foi vê-la uma vez, mas Sakota não a recebeu. Estava muito doente, disse o eunuco que a assistia. Não recebia ninguém. E Yehonala afastou-se, duvidando. Doente? Como poderia Sakota estar tão doente que não pudesse ver sua primairmã? Pela primeira vez desejou que Sakota não soubesse que Jung Lu a tinha visto a sós. Na verdade era só o que ela sabia, porém mesmo aquele pouco constituía uma arma na mão de Sakota - mão débil que poderia ser usada por outra forte e ainda desconhecida. Inteirara-se agora de que a intriga lavrava por todo o palácio - precisava ser suficientemente forte para romper suas maquinações. Nunca mais forneceria armas contra si a quem quer que fosse.
Os dias decorriam, intermináveis, e todos os augúrios eram medonhos. Más notícias chegavam de todas as regiões do Império. No sul, os rebeldes chineses de cabelos longos haviam-se apoderado de Nanking, a capital sulista, e muita gente fora morta. Tão ferozes eram os rebeldes que os soldados imperiais não lograram vencer uma só batalha. Como outro sinal aziago, estranhos ventos rápidos começaram a soprar sobre a cidade, cometas cruzavam os céus à noite e em muitos lugares surgiram rumores de que mulheres davam à luz gêmeos e monstros.
No último dia do oitavo mês lunar houve, ao meio-dia, uma tempestade que se transformou em tufão, mais próprio dos mares do sul que das secas planícies do norte, onde se achava situada a cidade. Nem mesmo os habitantes mais velhos lembravam-se de ter visto alguma vez relâmpagos tão brilhantes nem de ter ouvido trovões tão terríveis; ventos quentes sopraram do sul, como se demônios estivessem cavalgando sobre as nuvens. Quando afinal a chuva caiu, não foi num derrame gentil sobre os campos secos e as ruas empoeiradas, mas em torrentes violentas e furiosas que pareciam querer devorar a terra. Não se sabe se de medo ou de profundo desespero, Sakota sentiu, nesse dia, as primeiras dores do parto e mal havia dado o primeiro grito, a notícia espalhou-se por todos os palácios e todos interromperam o que faziam para esperar e ouvir.
Yehonala encontrava-se na biblioteca, ocupada com seus livros habituais. O céu estava tão escuro que os eunucos acenderam lâmpadas. À luz de uma delas a jovem escrevia, sob o olhar atento do preceptor, que lhe ditava um antigo texto sagrado. Assim lia êle:
"Chung Kung, ministro da Casa de Chi, pediu conselho sobre a arte de governar. O Mestre disse: "Aprenda, sobretudo, como usar seus subordinados. Releve suas fraquezas menores e estimule apenas os honestos e capazes."
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Nesse momento Li Lien-ying apareceu junto da cortina e, por trás do preceptor, fêz a Yehonala sinais cujo significado ela compreendeu imediatamente. Pousou o pincel e levantou-se.
- Senhor, disse, devo correr para junto da Viúva Mãe, que teve súbita necessidade de mim.
Havia muito que planejara o que faria quando Sakota estivesse em trabalhos de parto. Iria para junto da Viúva Mãe e ficaria com ela tranqüilizando-a e divertindo-a, até que se soubesse se havia nascido um menino ou uma menina. Antes que o preceptor pudesse responder, saiu da biblioteca e rumou para o palácio da Viúva Mãe, seguida pelo eunuco. Os relâmpagos brilhavam por cima da copa das árvores e os pátios iluminavam-se vivamente enquanto ela caminhava. Através das passagens cobertas penetrava a chuva soprada pelo vento enfurecido. Mas Yehonala apressava-se e o eunuco caminhava rápido atrás dela.
Quando chegou ao palácio, entrou sem falar com nenhuma das servas atendentes. A Viúva Mãe se havia deitado, como sempre fazia durante as tempestades, e agora se encontrava recostada em suas almofadas, as mãos cruzadas sobre um rosário budista, de pedras preciosas, o rosto pálido como jade branco. Ao ver Yehonala, não sorriu. Mas disse em voz solene:
- Como pode nascer uma criança sadia em semelhante tempo? O próprio Céu ruge, furioso, sobre nossas cabeças.
Yehonala correu a ajoelhar-se junto do leito.
- Tranqüilize-se, Mãe Imperial, sussurrou. - Não é por causa de nós que o Céu ruge. Homens maus rebelaram-se contra o Trono e a criança que vai nascer nos salvará a todos. O Céu está irado por causa dele e não contra êle ou contra nós.
- Crê que seja assim? inquiriu a velha.
- Creio, tornou Yehonala, continuando a proferir palavras tranqüilizadoras.
Levantou-se depois a fim de preparar um caldo quente para a Viúva Mãe retemperar-se. Depois pegou um livro de histórias agradáveis e leu algumas; em seguida tomou de um alaúde e cantou duas ou três canções; finalmente ajudou a velha senhora a dizer suas orações. Assim passaram as horas.
Ao pôr do sol o vento amainou e uma estranha luz amarela inundou os pátios e os palácios. Então Yehonala cerrou as cortinas, acendeu as velas e esperou, pois recebia notícias continuamente, que não transmitia à Viúva Mãe, de que o nascimento estava próximo. Depois da luz amarela sobrevieram as trevas subitamente e quando a noite caiu o Eunuco-Chefe, An Teh-hai chegou ao palácio da Viuva Mãe. Yehonala recebeu-o e, pela sua expressão, viu que as notícias eram más.
A criança morreu? indagou,
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- Não, tornou êle pesadamente. - Mas é uma menina... uma menina doentia...
Yehonala levou o lenço aos olhos:
- Oh, Céu cruel!
- Quer transmiti-lo à Venerável Mãe? perguntou. - Devo voltar para junto do Imperador, que está transtornado pela cólera.
- Eu lhe transmitirei, prometeu Yehonala.
- E a senhora, continuou o Eunuco-Chefe, prepare-se para ser chamada à noite. O Imperador necessitará sem dúvida da sua presença.
- Estou pronta, redargüiu ela.
Voltou vagarosamente para o quarto da Viúva e nada disse às servas que haviam adivinhado a notícia e se achavam de cabeça baixa, com os olhos cheios de lágrimas, quando ela passou. Tornou a entrar na grande alcova e quando a Viúva Mãe lhe viu a fisionomia, compreendeu tudo.
- Não é um menino, disse ela com voz cheia de fadiga de muitos anos de espera.
- É uma menina, sussurrou Yehonala docemente. Ajoelhou-se de novo ao lado da cama, tomou entre as suas as mãos da Viúva Mãe e se pôs a acariciá-las.
- Por que vivo? inquiriu a velha senhora doloridamente.
- Deveis viver, Venerável Mãe, respondeu Yehonala. Fêz a sua voz ainda mais terna: - Deveis viver... até que nasça meu filho.
Revelara sua esperança. Guardara o seu segredo e, como um presente, dava-o agora à Viúva Mãe. A velha face estremeceu e se abriu num sorriso enrugado:
- É verdade? Será a vontade do Céu? Sim, decerto! A criança nascerá do seu corpo forte, um filho! Buda me ouve! Assim será. E a chamei feroz, disse que você era forte demais. Oh, filha, como estão quentes suas mãos sobre as minhas!
Olhou ternamente o belo rosto tão próximo dela e Yehonala, erguendo a cabeça, viu adoração nos olhos da Viúva Mãe.
- Minhas mãos são sempre quentes, disse. - É verdade que sou forte. E posso ser feroz. E terei um menino.
Quando a Venerável ouviu as palavras de Yehonala levantou-se da cama com tamanha energia que todos ao seu redor ficaram assustados.
- Poupe-se, Imperial Mãe, exclamou Yehonala.
Correu para amparar a velha senhora, porém esta afastou-a.
- Mande eunucos ao meu filho, exclamou com a voz trêmula. - Digam-lhe que tenho boas notícias.
As damas de companhia escutaram tais palavras e se entreolharam. Entreolharam-se com dúvida e alegria, enquanto os eunucos, em grande agitação, eram chamados e despedidos.
- Meu banho! ordenou a Viúva Mãe às suas servas.
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Enquanto corriam a obedecer-lhe, voltou-se de novo para Yehonala. - E você, meu coração, você me é mais preciosa do que tudo, com exceção' de meu filho. Você é a predestinada. Vejo-o em seus olhos. Que olhos! Nenhum mal lhe deverá acontecer. Volte para os seus aposentos, minha filha, e repouse. Mandarei transferi-la para o paço interior do Palácio Ocidental, onde o sol cai sobre os terraços. E que os médicos sejam chamados sem tardança!
Mas não estou doente, Venerável, disse Yehonala rindo. - Olhai para mim!
Estendeu os braços, ergueu a cabeça - suas faces estavam rubras, seus olhos brilhantes. A Viúva Mãe encarou-a.
- Bela, bela, murmurou. - Olhos tão límpidos, sobrancelhas que parecem asas de borboleta, carne tão tenra como a de uma criança! Eu sabia que a Consorte só poderia gerar uma menina. Não lhes havia dito, mulheres? Lembram-se de que eu disse que uma criatura de ossos tão moles, de carnes tão flácidas, só poderia gerar uma menina?
- Venerável, vós o dissestes... de fato vós o dissestes, retrucaram as servas, uma após outra.
E Yehonala exclamou:
- Obedecer-vos-ei, Venerável, em todas as coisas.
Fêz uma reverência e retirou-se para os seus aposentos. Diante da porta aguardavam-na sua serva e Li Lien-ying. O alto eunuco esfregava as mãos e sorria, estalando as juntas dos dedos.
- Que a Fênix Imperatriz ordene, declarou êle. - Espero as vossas ordens.
- Fique quieto, tornou Yehonala. - Você está falando cedo demais.
- Não vi o destino sobre a vossa cabeça? exclamou êle. - Torno a vê-lo agora, a olho nu. Digo o que sempre soube.
- Deixe-me, retrucou Yehonala, afastando-se com graciosa rapidez, acompanhada da serva. Após alguns passos parou e voltou-se para o eunuco: - Pode fazer uma coisa, disse. - Procure o meu parente e conte-lhe o que ouviu.
O eunuco esticou o pescoço, rijo como o de uma tartaruga.
- Digo-lhe que venha ver-vos? indagou num sussurro.
Não, respondeu Yehonala em voz alta, para que todos a ouvissem. - Não é decente que eu fale agora com qualquer outro homem, além do meu imperial senhor.
E seguiu o seu caminho, apoiando-se no ombro da serva.
Ficou em seus aposentos à espera do chamado do Imperador, quando soubesse da novidade. A serva banhou-a, vestiu-lhe roupas interiores limpas, penteou-lhe os cabelos e prendeu-o com preciosas
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- Que vestido usará agora, Venerável? inquiriu a mulher, afetuosamente.
- Traga-me o vestido azul-pálido, bordado com flores de ameixeira, côr-de-rosa, e o amarelo bordado de verde-bambu, retrucou Yehonala.
Foram trazidos os dois vestidos, mas antes que pudesse resolver qual a côr mais adequada ao dia, ouviu ruídos no pátio exterior. Vozes gritavam e gemiam.
- Que mal aconteceu? inquiriu a serva.
Correu para fora, deixando a sua senhora com os vestidos estendidos sobre a cama. No portão do palácio chocou-se com o eunuco Li Lien-ying, que tinha o rosto esverdeado como um pêssego azedo e aberta a boca áspera.
- A Viúva Mãe morreu, balbuciou êle em voz seca.
- Morta! gritou a mulher. - Mas minha senhora estava com ela, há duas horas apenas!
- Morta, repetiu Li Lien-ying. - Chegou cambaleando ao Salão de Audiência, suportada por suas servas, e quando o Imperador correu ao seu encontro, ela abriu a boca para respirar, como se tivesse a garganta cortada. Então gritou que êle teria um filho, e estas foram suas últimas palavras. Em seguida caiu morta nos braços de suas damas. Sua alma partiu para as eternas Fontes Amarelas.
- Oh, Senhor do Inferno, gemeu a serva, como pode você trazer tão más notícias?
Voltou correndo para junto de sua senhora, mas Yehonala, que havia saído, ouvira tudo.
- Proporcionei alegria demais à Mãe Imperial, disse.
- Não, a alegria substituiu muito depressa a dor e sua alma se dividiu, observou a serva.
Yehonala não respondeu. Voltou para o seu quarto e se pôs a examinar os dois vestidos estendidos à sua frente.
- Leve-os, disse afinal. - Agora somente serei chamada depois que terminarem os dias de luto do Imperador.
E a velha, soluçando e gemendo diante de tamanha má sorte, dobrou os ricos vestidos e tornou a guardá-los nas arcas laqueadas de vermelho, das quais os havia retirado.
Os meses fluíram tranqüilamente para a Estação do Primeiro Frio. A Cidade Proibida estava aquietada pelo luto da Viúva Mãe, e o Filho do Céu, trajando as roupas brancas da morte, vivia sem mulheres. Yehonala sentia falta da amizade da falecida Viúva, mas sabia que não fora esquecida. Era livre e, por ordem do Imperador, era também vigiada. Tinha tudo quanto pedia, mas devia obedecer às ordens que lhe transmitiam. Foi encorajada a comer as mais delicadas e deliciosas iguarias, peixes dos rios distantes, conservados em gelo e neve, a carpa amarela, as enguias de pele macia. Havia
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peixes em todas as suas refeições e tomava a sopa feita com as espinhas partidas. Além disso pedia para comer os doces simples da sua infância, que costumava comprar na loja da esquina de sua rua, bolos de açúcar vermelho, caramelos de gergelim, pudim de farinha de arroz recheado de pasta adocicada de feijão, que os camponeses comiam. Porco gordo, carneiro assado, pato tostado e outros pratos palacianos não lhe agradavam. Porém o mais difícil de engolir eram as ervas e os remédios que os médicos reais preparavam diariamente para que ela tomasse, pois viviam continuamente receosos de que a criança nascesse antes do tempo ou deformada, e seriam culpados desse desastre, como bem sabiam.
Todas as manhãs, depois que Yehonala era banhada e vestida, antes de ela comer vinham os médicos examiná-la - tomavam-lhe o pulso, espreitavam por baixo das pálpebras, examinavam-lhe a língua e cheiravam-lhe o hálito. Em seguida passavam duas horas conferenciando sobre o seu estado naquele dia e, depois de concordarem, receitavam e eles próprios manipulavam as drogas escolhidas. Como eram horríveis aquelas tigelas de misturas esverdeadas e negras beberagens! Mas Yehonala engolia as poções porque sabia muito bem que não tinha no ventre uma criança ordinária e sim uma criatura que pertencia a todo o povo como seu governante. Nunca duvidou, por um momento sequer, que daria à luz um menino. Comia com vontade, dormia bem, esforçava-se por tomar os remédios e seu jovem corpo irradiava saúde. A alegria inundava os palácios, como uma música serena que, transbordando, cobria o país inteiro. As pessoas diziam, umas às outras, que os tempos haviam mudado, que o mal pertencia ao passado e que o bem tinha voltado ao Império.
Entrementes a própria Yehonala se transformava. Até o dia em que soubera que havia concebido, vivera como menina, voluntariosa e travessa, mutável e impetuosa, apesar de seu amor pelos livros e sua ambição de conhecimento. Agora, à medida que lia os livros antigos e traçava os velhos caracteres, tecia o seu saber ao redor de si mesma e da criança que esperava. Assim, quando chegou às palavras de Lao Tzu, que diziam - "De todos os perigos, o maior é subestimar o inimigo" - ficou abalada com o seu significado atual. O sábio vivera centenas de anos antes dela e no entanto suas palavras permaneciam tão frescas como se tivessem sido dirigidas a ela naquele mesmo dia. O inimigo? O reino que seu filho um dia governaria, estava atualmente assolado por inimigos. Pensara que eles não lhe interessavam, mas agora sabia que eram inimigos de seu filho e, por conseguinte, dela própria. Ergueu a cabeça.
Diga-me, falou ao preceptor, quem são nossos atuais inimigos? O velho eunuco sacudiu a cabeça:
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- Senhora, nada sei dos negócios de Estado. Conheço apenas os sábios antigos.
Yehonala fechou o livro.
- Mande-me alguém que possa ensinar-me quais são os nossos atuais inimigos, disse ela.
O velho eunuco mostrou-se confuso, mas preferiu não discutir e transmitiu sua ordem a An Teh-hai, o Eunuco-Chefe, que por sua vez se dirigiu ao Príncipe Kung, sexto filho do último Imperador. Sua mãe fora uma concubina e portanto era meio-irmão, pelo sangue, do atual Imperador, Hsien Feng. Os dois meio-irmãos tinham crescido juntos estudando os mesmos livros e aprendendo a esgrimir com os mesmos preceptores. O espírito do Príncipe Kung era bom, sua fisionomia máscula e de agradável aspecto. Na verdade sua inteligência e sabedoria eram tão elevadas e serenas que os ministros, príncipes e eunucos o procuravam secretamente, ao invés de ao Imperador, pois não traía ninguém e todos confiavam nele. O Eunuco-Chefe, An Teh-hai, dirigiu-se portanto ao palácio desse príncipe, que ficava fora da Cidade Proibida, falou-lhe da visita de Yehonala e pediu-lhe que êle próprio instruísse a jovem Favorita.
- Pois é tão forte, aduziu, tão cheia de saúde, seu espírito tão arguto quanto o de um homem, que não temos dúvida de que dará à luz um menino, que será nosso próximo Imperador.
O Príncipe Kung refletiu durante alguns momentos. Era jovem e não parecia decente aproximar-se êle de uma concubina. Mas era também sua parenta, através de seu imperial irmão, e o costume podia ser posto de lado. Ademais não eram chineses e sim manchus, e os costumes manchus eram mais liberais que os chineses. Lembrou-se ainda dos tempos terríveis que estavam atravessando. Seu irmão mais velho, o Imperador, era dissoluto e fraco, a Corte corrupta e ociosa, os ministros e príncipes apáticos, conformados, impotentes - parecia - para deter o desmoronamento do Império. O tesouro estava vazio, as colheitas escassas e a fome atormentava freqüentemente o povo. A miséria explodia em revoltas. Bandos secretos de rebeldes tramavam por toda parte contra o Trono do Dragão. Os chineses declaravam que agora era chegado o tempo de derrubar os imperadores manchus que os governavam havia duzentos anos. Derrubar os manchus! Restaurar a antiga dinastia chinesa de Ming! Esses rebeldes já se tinham juntado numa horda sob a direção de Hung, o louco de cabelos compridos, que se dizia o Cristo Chinês, como se não bastasse que os estrangeiros fossem cristãos e em nome desse mesmo Cristo seduzissem os jovens nas escolas e igrejas, fazendo-os abandonar os deuses familiares! Que outra esperança, portanto, senão manter rigidamente os remanescentes do Império até que nascesse um herdeiro, filho forte de uma mãe forte?
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Eu próprio instruirei a Favorita, disse êle, mas peça ao seu velho preceptor que esteja presente durante as lições.
No dia seguinte, quando Yehonala se dirigiu como de costume à Biblioteca Imperial, encontrou um homem, alto, jovem e de fisionomia enérgica e simpática, ao lado de seu preceptor. Com êle estava também An Teh-hai, que apresentou o Príncipe Kung, dizendo o motivo por que ali se achava.
Yehonala cobriu o rosto com a manga e curvou-se. O Príncipe Kung permaneceu de lado, com o rosto voltado.
- Sente-se Irmão Mais Velho, disse Yehonala com sua bonita voz, e ela própria sentou-se em sua cadeira habitual, enquanto o velho preceptor tomava assento na extremidade da mesa. O EunucoChefe ficou atrás do Príncipe e as quatro damas de Yehonala atrás de sua senhora.
Dessa maneira começou o Príncipe Kung a instruir a Concubina Imperial. Sem olhar para ela e com a face voltada, iniciou as lições que, uma em cada sete dias, se sucederam durante vários meses. Falou-lhe da situação do país, descreveu-lhe como a fraqueza do Trono estimulava a rebelião dos súditos e a invasão dos inimigos que viviam além das planícies do norte e dos mares orientais. Contou-lhe como esses invasores, trezentos anos antes, eram primeiro homens de Portugal, procurando comerciar em especiarias. Seus grandes lucros ilegais induziram outros homens da Europa a fazer o mesmo, e chegaram conquistadores espanhóis, holandeses com seus navios, e depois os ingleses, fazendo guerra pelo comércio do ópio, e depois deles os franceses, os alemães.
Os olhos de Yehonala tornavam-se maiores e mais negros. Seu rosto empalidecia e ruborizava-se alternadamente e suas mãos crispavam-se sobre os joelhos.
- E nós nada fizemos? exclamou.
- Que podíamos fazer? retorquiu o Príncipe Kung. - Não somos um povo marítimo, como os ingleses. Eles vivem em pequenas terras cercadas pelo mar, estéreis e exíguas, por conseguinte é no mar que têm de procurar sua subsistência.
- Não obstante, penso...
O Príncipe Kung ergueu a mão, interrompendo-a.
- Espere... ainda há mais.
E contou-lhe como os ingleses faziam guerras contínuas, saindo sempre vitoriosos.
- Por quê? indagou ela.
Gastam sua fortuna em armas de guerra, replicou o Príncipe Kung.
E narrou-lhe como chegara ainda outro inimigo, desta vez vindo do norte.
Há muito que conhecemos os russos, disse-lhe. - Há quinhentos anos, Favoritíssima, o grande Kublai Khan, que aqui reinou,
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empregou russos para serem sua guarda de corpo e o mesmo fizeram todos os imperadores da sua dinastia. Duzentos anos depois dele, um certo Yermak, russo e pirata terrestre, aventureiro com a cabeça posta a prêmio, conduziu seu bando através dos Montes Urais em busca de peles para os que o haviam contratado. Combateu as tribos do norte, que viviam no vale do grande rio Ob, e tomou a cidade real, chamada Siber, e reivindicou-a em nome do soberano da Rússia, que é o Czar, e por conseguinte toda aquela região foi chamada Sibéria. E por esse feito de conquista seus pecados foram perdoados e seu povo denomina-o "grande" até hoje.
- Já ouvi o suficiente, exclamou ela de súbito.
- Ainda não, Favoritíssima, tornou o Príncipe Kung cortêsmente. - Os ingleses não nos deixaram em paz. No tempo de Chia-Ch'ing, filho do poderoso Ch'ien Lung, os britânicos mandaram um embaixador, chamado Amherst. Esse homem, quando convidado ao Salão de Audiência, à costumeira hora da madrugada, recusou-se a comparecer, dizendo que suas vestes oficiais não haviam chegado e que estava enfermo. O Filho do Sol então reinante mandou seus próprios médicos examinarem o estrangeiro e eles voltaram dizendo que a enfermidade de Amherst era simulada. O Filho do Céu então reinante zangou-se e ordenou que o inglês voltasse para a sua pátria. Os homens brancos são teimosos, Favoritíssima. Não se curvam nem se ajoelham diante dos nossos Filhos do Céu. Dizem que somente se ajoelham perante os deuses e... as mulheres.
- As mulheres? repetiu Yehonala.
Divertiu-a a idéia de homens brancos ajoelhando-se diante de mulheres e levantou o braço para esconder o riso atrás da manga. Mas o som do riso escapou-lhe da garganta e o Príncipe Kung, voltando-se ligeiramente, viu a malícia em seus olhos e êle próprio se pôs a rir silenciosamente. Assim encorajado, o Eunuco-Chefe também riu e as damas da Corte riram, cobrindo o rosto com as suas mangas de seda.
- E os homens brancos ainda não se ajoelham perante o Filho do Céu? inquiriu Yehonala depois de dominar o riso.
- Não se ajoelham, redargüiu o Príncipe Kung.
Ela permaneceu em silêncio por um momento. Mas quando meu filho reinar, pensava, se ajoelharão diante dele. Se não se ajoelharem, baixando as cabeças até ao chão, mandarei decapitá-los.
- E agora? perguntou. - Continuamos indefesos?
- Devemos resistir, disse o Príncipe Kung, embora não pelas armas nem pela guerra, pois não dispomos de tais meios. Podemos porém resistir através de obstruções e protelações. Devemos negar satisfação aos desejos dos estrangeiros. Agora que esses americanos, recém-chegados e seguidores dos ingleses, insistem, também, em usufruir os benefícios dos tratados que fomos obrigados a assinar
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com outros povos ocidentais, pedimos ao governo deles que não proteja os americanos que comerciam com ópio. E fomos atendidos.
- Com que objetivo? indagou Yehonala
- Quem sabe? tornou o Príncipe Kung. Suspirou pesadamente e seu rosto assumiu uma expressão sombria. Sua fisionomia cobriu-se de uma máscara amarga e triste, apesar da harmonia de seus traços, linhas fundas cavaram-se ao redor da boca fina e entre as negras sobrancelhas. Levantou-se e se inclinou: - Basta, por hoje, penso eu. Tracei-lhe algumas linhas de história, Favoritíssima. Agora, se deseja, passarei a preenchê-las até que a verdade se revele
Rogo-lhe que o faça, respondeu Yehonala, erguendo-se também e curvando-se
Assim o dia chegou ao fim e naquela noite ela não pôde dormir. Que destino era o seu? Seu filho deveria reconquistar o Império e expulsar os estrangeiros de volta ao mar.
Agora Yehonala não se sentia mais prisioneira dentro do palácio. Constituía o centro da esperança do povo. O que comia, se dormia bem, se sofria dores ou langor, sua côr, seu riso, suas vontades e caprichos. Tudo era matéria de interesse. À luz de tamanha importância, os meses de inverno chegaram e passaram, dia após dia, e o sol claro e brilhante no céu sem nuvens encheu de vida a cidade inteira. O povo estava alegre de esperança e os negócios corriam bem. No sul, os rebeldes de cabelos longos continuavam instalados na cidade de Nanking. Corriam rumores de que o seu chefe tomara muitas mulheres e se estava corrompendo com vinhos e iguarias finas. Mas Yehonala recebeu essas boas notícias com um prazer moderado, porque os rebeldes chineses não eram os seus verdadeiros inimigos. Os estrangeiros, os brancos, é que eram seus inimigos. E contudo, por quê? Que voltassem às suas pátrias e a inimizade cessaria de existir. Queremos apenas o que é nosso, disse Yehonala consigo mesma
Na verdade um suave estado de espírito impregnava-a naqueles dias e nunca sentira seu corpo desenvolver-se tão sadio e forte, como então. Não sabia se era conseqüência dos caldos de ervas que ingeria ou se era o florescimento de sua própria energia vital estimulada pelas exigências da maternidade. Mais estranho que tudo: ja não odiava o Filho do Céu. É certo que também não o amava, porem sentia piedade dele - uma casca de homem, envolta em dourados trajes reais. Acolhia-o em seus braços durante a noite e de dia demonstrava-lhe um extravagante respeito. Pois não era o pai de seu filho? Era pai de seu filho? Pergunta de sentido duplo, que ocultava em seu coração. Seu filho devia ter o Imperador como pai Mas no segredo de seu coração jazia o pensamento vivo de Jung Lu e da hora em que êle acudira ao seu desejo.
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Duas correntes alimentavam-lhe a vida. A primeira, o contínuo e crescente orgulho de trazer no ventre o Herdeiro do Trono; e a segunda, o seu secreto amor. Por uma estudava zelosamente a história do povo que seu filho governaria, manuseando livros antigos e fazendo perguntas ao Príncipe Kung. Pela outra, redescobria a beleza do mundo, para a qual um dia traria seu filho. Às vezes, à tarde, ao invés de encerrar-se nas bibliotecas, passava horas caminhando com suas damas, acompanhada por Li Lien-ying, seu eunuco-guardião. Nunca iam além dos muros da cidade do Imperador, mas entre esses muros havia muito que ver, tanto que necessitariam de anos inteiros para conhecer tudo. Quando o sol estava alto e não sopravam ventos frios, ela caminhava pelos pátios, pelos corredores e entre as altas paredes róseas de ruas estreitas que ligavam os diversos paços entre si. Circundando a cidade sagrada havia tríplices muralhas e nas muralhas foram cavadas quatro portas, correspondentes aos quatro pontos cardeais. Dentro da primeira porta havia três portas internas que conduziam a pontes e jardins que davam para os palácios e salões do trono, sendo que esses salões estavam sempre de frente para o sul e suas cores eram símbolos dos elementos. Mesmo agora, no inverno, os jardins eram belos, o verde bambu do norte sob a neve e o bambu indiano com suas bagas escarlates. Na Porta da Paz Celestial achavam-se duas colunas aladas de mármore branco, cercadas de dragões esculpidos - Yehonala ia vê-las sempre, sem saber porque, sentindo apenas que seu espírito se elevava à nobre vista das alvas colunas aladas.
Palácio por palácio, muitas salas do trono, aprendeu a conhecer a sagrada cidade polar, centro da terra assim como a estrela do norte é o centro do céu, e em esplêndida solidão caminhava entre as suas damas. Ah, escolhera acertadamente ao fazer daquela cidade o lugar de nascimento de seu filho e seu lar!
Na terceira lua da primavera do novo ano, num dia indicado não sabia por que celeste decisão, Yehonala deu à luz o seu filho. Na presença das damas mais velhas da Corte, que tomaram o lugar da falecida Viúva Mãe, seu filho nasceu, indisputàvelmente o herdeiro, e as parteiras assim o declararam. Enquanto Yehonala se encolhia sobre um tamborete, uma parteira segurou a criança e ergueu-a diante das damas.
- Vede, Veneráveis, anunciou ela. - Um menino, cheio de saúde e de vigor!
E Yehonala, quase desmaiada, ergueu a cabeça e viu seu filho. Estava entre as mãos da parteira, movia os braços e as pernas e, abrindo a boca, chorou alto.
Quando a noite caiu, suave noite primaveril, o pátio fronteiro ao seu pequeno palácio particular foi iluminado pela luz das lanternas colocadas no altar do sacrifício. De sua cama Yehonala olhou através das baixas janelas gradeadas para a assembléia de príncipes,
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damas e eunucos que se achavam de pé junto da mesa. A luz das velas tremeluzia sobre os seus rostos e sobre seus multicoloridos trajes de cetim, bordados com ouro e prata. Era a hora do sacrifício do nascimento ao Céu, e o Imperador achava-se de pé diante do altar, para dar graças e proclamar o seu herdeiro. Sobre o altar havia três oferendas - a cabeça cozida de um porco, branca e sem pêlos, um galo cozido, nu de penas, com exceção da cabeça e do rabo, e entre o porco e o galo um peixe vivo, debatendo-se numa rede de seda escarlate.
O rito era difícil. Mas ninguém podia executá-lo exceto o próprio Filho do Céu, pois o peixe fora tirado vivo de um lago de lótus e devia ser reposto vivo na mesma água, senão o Herdeiro não viveria até alcançar a idade adulta. Tampouco podia o imperial pai apressar-se ou violar a solene dignidade do que fazia, pois o Céu ficaria ofendido Em profundo silêncio. êle ergueu os braços, em silêncio ajoelhou-se perante o Céu, ao qual exclusivamente devia obediência, e cantou suas preces. Terminou no momento exato e segurando com ambas as mãos o peixe ainda vivo deu-o ao EunucoChefe que correu ao lago e atirou-o, esperando para ver se nadaria. Se não nadasse, o Herdeiro morreria menino. Espreitou para dentro da água, com a lanterna levantada, e em silêncio a Corte esperou e o Imperador se manteve imóvel diante do altar.
A luz caiu sobre um rastro prateado na água.
- O peixe vive, Majestade, gritou o eunuco.
Ouvindo essas alegres palavras a assembléia começou a rir e a falar. Foram acesos fogos, pássaros engaiolados foram soltos em todos os palácios, foguetes inundaram de luz o céu. Reclinada sobre o cotovelo, Yehonala contemplava os fogos de artifício quando o céu pareceu fender-se diante de seus olhos e viu uma gigantesca orquídea dourada, com as pétalas salpicadas de vermelho, pairando contra as trevas cintilantes.
- Senhora, isto é em vossa honra! exclamou sua serva.
Um clamor ergueu-se da cidade quando o povo viu o espetáculo. Yehonala riu e atirou-se sobre as almofadas. Quantas vezes desejara ser homem, mas agora alegrava-se por ser mulher! Que homem poderia experimentar um triunfo como o dela - e o de ter feito um filho para o Imperador?
- Minha prima, a Consorte, também está no pátio? perguntou.
A velha espreitou as luzes e as trevas do pátio.
- Vejo-a entre as damas, respondeu.
- Vá ao seu encontro, ordenou Yehonala. - Convide-a a entrar. Diga-lhe que desejo vê-la.
A mulher saiu e aproximando-se orgulhosamente pediu à Consorte que fosse até o leito de sua senhora.
- Ela considera a Consorte do Dragão como irmã mais velha, disse a mulher, lisonjeando.
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Mas Sakota sacudiu a cabeça.
- Ergui-me da cama para comparecer ao sacrifício e para minha cama devo retornar, disse. - Na verdade não me sinto bem.
Voltou-se e, apoiando-se em duas damas, afastou-se precedida por um eunuco que iluminava o caminho com a sua lanterna.
Todos se surpreenderam com essa recusa. A serva voltou para informar a Yehonala:
- Senhora, a Consorte não quis vir. Disse que está doente, mas eu não o creio.
- Então por que não veio? inquiriu Yehonala.
- Quem pode saber o que há no coração da Consorte? retrucou a mulher. - Ela tem uma filha. O filho é vosso.
- Sakota não tem o coração mesquinho, insistiu Yehonala e não obstante, ao falar, lembrou-se de que a prima mantinha sobre a sua cabeça a espada de um segredo.
- Quem conhece o coração humano? repetiu a serva e desta vez Yehonala não lhe deu resposta.
O pátio agora estava vazio. O Imperador e seus convidados afastaram-se para as festas. Por toda parte, naquela noite, o povo festejava o acontecimento com alegria. De norte a sul, de este a oeste, as portas das prisões foram abertas e todos libertados, fosse qual fosse o seu crime. Nas cidades e aldeias as lojas permaneceriam cerradas durante sete dias, nenhum animal seria morto, nenhum peixe pescado em rio ou lago, e caso já tivessem sido apanhados e se encontrassem ainda vivos em tanques nos mercados, deviam ser novamente atirados à água de que provieram. Os pássaros engaiolados foram soltos, nas casas como nos palácios, e pessoas de categoria exiladas podiam voltar e retomar seus títulos e suas terras. E tudo isto era feito em honra da criança recém-nascida.
No entanto, em seu leito, Yehonala sentia-se estranhamente solitária. Sakota não viera vê-la, nem ao seu filho. Sakota que era sempre gentil, sempre bondosa. E daí? Os eunucos certamente haviam transmitido boatos, fazendo com que Sakota pensasse mal dela, agora que seu filho havia nascido. O adventício Grande Conselheiro Su Shun, ou o seu amigo Príncipe Yi, sobrinho do Imperador, esses dois talvez fossem os responsáveis, pois tinham ciúmes dela. Até ela chegar - contara-lhe Li Lien-ying - era neles que o Imperador confiava, conservando-os sempre junto de si, porém depois o seu insaciável amor fizera de Yehonala a criatura mais íntima de sua celestial pessoa.
Nunca lhes fiz mal, pensou ela, e tenho sido mais cortês do que deveria.
O Grande Conselheiro era altivo e ambicioso, apesar de sua origem humilde, e no entanto Yehonala tomara sua filha Mei, jovem de dezesseis anos, para ser dama de sua Corte. Seu amigo, porém, era o Príncipe Kung. Lembrou-se de sua fisionomia simpática e
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resolveu fazê-lo seu aliado. Ao abrigo da grande cama cortinada, seu filho encolhia-se na dobra de seu braço direito. Yehonala meditava sobre o seu destino e o dele. Estavam sós contra o mundo, ela e o filho. O homem que amava nunca poderia ser seu marido. Ela poderia ter fugido pelo caminho da morte, senão pelo da vida, mas agora a morte não estava mais ao seu alcance. Gerara um filho que somente com ela contava para manter-se em segurança no meio das intrigas palacianas. Os tempos eram maus, ominosos os sinais do Céu, o Imperador era fraco e somente ela poderia manter o trono firme para seu filho.
Naquela noite e em muitas noites posteriores, na verdade tantas quantas tinha para viver, sobrevinham as horas sombrias em que encarava o seu destino a olho nu e com o coração assustado, sabendo que somente nela havia força suficiente para aguardar de novo a chegada da aurora. Tinha de desafiá-los, a amigos e inimigos, até mesmo a Sakota, que conhecia seu segredo. Aquele menino, seu filho, ali em seus braços, devia para sempre ser o filho do Imperador Hsien Feng. Não permitiria nenhum outro nome. Filho do Imperador e herdeiro do Trono do Dragão! Assim começou ela a longa batalha do seu destino.
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II - TZU HSI

Durante o primeiro mês, por antiga tradição, o filho foi somente seu. Nem mesmo nos braços de uma ama poderia sair do palácio de sua mãe. Ali, naquele grupo de aposentos, ao redor do pátio brilhante de peônias, Yehonala passava as horas do dia e da noite. Foi um mês de alegria e prazer, mês em que, mimada e louvada como a Favorita do Imperador, denominaram-na Mãe Afortunada. Todos vinham ver o menino e fazer observações sobre seu tamanho, sua côr sadia, seu rosto bonito, suas mãos e pés fortes. Todos vieram exceto Sakota - e esta era uma mácula na alegria da jovem mãe. A Consorte deveria ter sido a primeira a ver o menino e a reconhecê-lo como o herdeiro, no entanto não viera. Mandara desculpar-se dizendo que seu próprio mês de nascimento, pelas estrelas, era inimigo do mês de nascimento do menino. Como se atreveria, portanto, a entrar no palácio em que êle se abrigava?
Yehonala ouviu sem responder. Ocultou sua cólera no coração, onde continuou crescendo nos dias restantes do mês de nascimento. Porém três dias antes de terminar o mês mandou a Sakota o eunuco Li Lien-ying, com esta mensagem:
"Como você, Prima, não veio visitar-me, irei eu visitá-la para pedir seu favor e sua proteção para meu filho, pois êle pertence a nós ambas, segundo a lei e a tradição."
Ora, era verdade que a Consorte devia proteção ao Herdeiro como se fora seu próprio filho, mas Yehonala ainda temia que algum ciúme secreto ou boato maledicente, veiculado por eunucos e príncipes que brigavam entre si, tivesse envenenado o coração simples de Sakota. Tais intrigas infestavam a Cidade Proibida e quando cortesãos menores faziam guerra, procuravam também dividir os que se encontravam acima deles, esperando que esses tomassem parte na luta interminável pelo poder. Yehonala, porém, no interesse de seu filho, deliberou não permitir que Sakota se separasse dela. Forçaria a aliança, caso não se realizasse espontaneamente.
Preparou-se, por conseguinte, para sair de seu palácio e ir ao de Sakota. Tomou antes todas as precauções necessárias à segurança de seu filho. Ordenou a Li Lien-ying que comprasse ao melhor ourives da cidade uma pequena porém forte corrente de ouro, que
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colocou ao pescoço do menino, prendendo as duas extremidades com uma fechadura de ouro, cuja chave colocou numa outra finíssima corrente de ouro que trazia no próprio pescoço e da qual não se separava nem de noite nem de dia. Embora seu filho estivesse, assim, simbolicamente encadeado à Terra, isto não era bastante. Devia oferecer o menino, como filho adotivo, também simbolicamente, a outras poderosas famílias do seu clã. Mas que amigos tinha ela? Pensou, refletiu e esboçou seu plano. Ao chefe de cada uma das' cem famílias mais nobres do Império, pediu um rolo de seda finíssima. Ordenou em seguida aos costureiros do palácio que de cada uma dessas peças de seda fizessem um traje para seu menino. Assim passou êle a pertencer, simbolicamente, a cem famílias nobres e fortes, e sob a sua proteção os deuses receariam feri-lo. Pois todos sabem que os deuses têm ciúmes dos meninos belos nascidos de mulheres humanas e enviam doenças e acidentes para destruí-los antes que cheguem à idade divina.
No terceiro dia anterior ao fim do primeiro mês lunar de seu filho, Yehonala foi ao palácio de Sakota. Trajava um vestido novo de cetim amarelo-imperial, bordado com pequenas flores vermelhas de romã, e na cabeça um adorno de cetim negro cravejado de pérolas. Seu rosto fora primeiro lavado com gordura de carneiro derretida e depois com água perfumada, e em seguida empoado e pintado. Suas finas sobrancelhas foram traçadas com um pincel mergulhado em tinta oleosa. Sua boca, sempre adorável, foi pintada de vermelho suave, revelando-lhe o coração cálido e cheio de ternura. Nas mãos ostentava anéis cravejados de pedras e no polegar um anel de sólido jade. Para proteger suas longas unhas polidas, usava capas de ouro finíssimo, ornadas de pequenas gemas. De suas orelhas pendiam brincos de jade e pérolas. Os sapatos de solas altas e o penteado elevado tornavam sua estatura maior do que era. Depois de pronta, até mesmo suas damas bateram palmas ao ver sua beleza.
Tomou o filho nos braços. O menino estava vestido de cetim escarlate da cabeça aos pés, bordado com pequenos dragões de ouro. Sentou-se com êle no palanquim e foram levados, mãe e filho, ao palácio da Consorte. Os eunucos caminhavam na frente para anunciar-lhes a chegada, e as damas seguiam atrás. Ao alcançarem seu destino, Yehonala desceu do palanquim e avançou para a entrada. No salão de recepção viu Sakota. Pálida e amarela Sakota sempre fora, mas agora estava mais do que nunca, pois não se restabelecera ainda do nascimento de sua filha. A pele estava enrugada e tinha as mãos mirradas como as de uma criança inválida.
Diante daquela pequena e tímida criatura, Yehonala surgiu forte e bela como um cedro jovem.
- Vim procurá-la Prima, disse ela depois das saudações, pelo nosso filho. É verdade que lhe dei nascimento, porém seu dever,
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Prima, é ainda maior do que o meu, pois o pai dele não é o Filho do Céu, o qual é seu senhor antes de ser o meu? Peço-lhe proteção para o nosso filho.
Sakota ergueu-se de sua cadeira e permaneceu meio curvada, apoiada em seus braços.
- Sente-se, Prima, falou ela com voz queixosa. - É a primeira vez que sai de seus aposentos, depois de um mês. Sente-se e repouse.
- Não repousarei enquanto não tiver a sua promessa a respeito de nosso filho, tornou Yehonala.
Continuava de pé e olhava com firmeza para Sakota, enquanto seus olhos se enegreciam ainda mais e suas pupilas se dilatavam e reluziam.
Sakota sentou-se de novo.
- Mas... por quê? balbuciou. - Por que me fala assim? Não somos parentes? O Imperador não é nosso mútuo senhor?
- É para meu filho que peço o seu favor, disse Yehonala, e não para mim. Não necessito de ninguém. Contudo devo ter certeza de que você é a favor de nosso filho e não contra êle.
Cada uma delas sabia o que a outra queria significar. Em meio às contínuas intrigas de príncipes e eunucos, dizia Yehonala, queria ter certeza de que Sakota não aceitaria a liderança daqueles que poderiam tramar para destruir o Herdeiro e colocar um outro no Trono do Dragão. Pelo seu silêncio Sakota confirmava que de fato existia semelhante intriga e que não desejava fazer promessa alguma.
Yehonala adiantou-se, dando seu filho a uma dama, para que o segurasse.
- Dê-me suas mãos, prima. Sua voz era suave e resoluta. - Prometa-me que ninguém poderá dividir-nos. Devemos viver juntas as nossas vidas, aqui entre estas paredes. Sejamos amigas e não inimigas.
Esperou, enquanto Sakota hesitava e não lhe estendia as mãos. Então, de súbito, com os olhos cheios de fúria, Yehonala inclinou-se, segurou as duas mãozinhas moles da outra e apertou-as tão violentamente que os olhos de Sakota se encheram de lágrimas. Assim costumava Yehonala fazer quando eram crianças. Sempre que Sakota se enfadava e se rebelava, Yehonala apertava-lhe as mãos até magoá-las.
- Eu... eu prometo, disse Sakota em voz sumida.
- E eu também prometo, retrucou Yehonala com firmeza. Largou as mãos de Sakota e viu o que todas as damas viram - que as finas capas de ouro de suas unhas haviam produzido estrias vermelhas na carne tenra de Sakota. Esta juntou as mãos e lágrimas de dor correram-lhe pelas faces.
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Mas Yehonala não proferiu nenhuma palavra de desculpa pelo que fizera. Curvou-se, afastou o bule de chá que uma dama lhe oferecia.
- Não ficarei, prima, disse em sua costumeira voz adorável. - Vim apenas em busca da sua promessa e agora já a tenho. É minha, enquanto durar minha vida e enquanto durar a vida de meu filho. Tampouco esquecerei que eu também lhe fiz a mesma promessa.
Com insuperável orgulho, aquela orgulhosa mulher circunvagou o olhar pelos presentes. Depois voltou-se e envolvendo-se em suas vestes douradas tomou o filho nos braços e se afastou.
Naquela noite, depois de ver o menino alimentado e adormecido nos braços da ama, mandou chamar Li Lien-ying. Êle nunca se achava longe dela. Ao chegar, ordenou-lhe que fosse buscar o Eunuco-Chefe An Teh-hai.
- Diga-lhe que tenho um problema que me preocupa.
Li Lien-ying partiu e uma ou duas horas depois trouxe o Eunuco-Chefe que, curvando-se, disse após saudá-la:
- Perdoai-me a demora, Venerável. Estava ocupado no quarto do Imperador.
- Perdôo-o, tornou Yehonala.
Indicou uma cadeira para que se sentasse e ela própria acomodou-se em sua cadeira, semelhante a um trono, junto da comprida mesa esculpida colocada contra a parede interior do aposento. Dispensou suas damas e somente Li Lien-ying e a velha serva permaneceram em sua companhia.
Li Lien-ying fêz menção de retirar-se também, mas Yehonala pediu-lhe que ficasse.
- O que tenho a dizer interessa a ambos, pois preciso contar com vocês como se fossem minhas mãos, esquerda e direita.
Prosseguindo, indagou sobre as intrigas que suas damas lhe haviam sussurrado aos ouvidos.
- É verdade? perguntou ao Eunuco-Chefe. - Há realmente quem trame para tirar o Trono de meu filho, se... (Fêz uma pausa porque referindo-se ao Imperador ninguém podia proferir a palavra "morte").
- Senhora, é verdade, retrucou o Eunuco-Chefe fazendo um sinal afirmativo com a sua pesada e bonita cabeça.
- Continue, ordenou ela.
Venerável, deveis saber que ninguém, entre os poderosos clãs, acreditava que o Imperador pudesse gerar um filho sadio. Quando a Consorte deu à luz uma menina enferma, alguns príncipes se encorajaram e tramaram como, quando o Imperador partisse para as Fontes Amarelas, roubariam o selo imperial. Ora... ora... - tornou a sacudir a cabeça - não devemos esperar um longo reinado. O imperador é jovem na idade, mas a Viúva Mãe amava-o demais e alimentou-o com doces quando era menino e quando sentia dores
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de barriga mandava dar-lhe ópio. Antes de chegar aos doze anos, foi pervertido pelos eunucos e aos dezesseis já se encontrava esgotado pelas mulheres. Com a vossa permissão, falo a verdade.
O Eunuco-Chefe pousou suas grandes mãos macias sobre os joelhos e baixou a voz a tal ponto que Li Lien-ying teve de inclinar-se para poder ouvi-lo.
- A prudência ordena que devemos agora contar nossos amigos e inimigos, disse An Teh-hai com expressão solene.
Yehonala ouvia-o imóvel. Tinha a graciosa faculdade de poder permanecer imóvel durante horas, à vontade. Encarou-o sem o menor sinal de medo.
- Quem são os nossos inimigos? perguntou.
- Primeiro, o Grande Conselheiro Su Shun, sussurrou o EunucoChefe.
- Êle! E eu tomei sua filha como dama de corte e minha favorita!
- Êle mesmo, confirmou gravemente o Eunuco-Chefe. - E com êle o próprio sobrinho do Imperador, Príncipe Yi, e mais o Príncipe Cheng. Esses três, Venerável, são vossos principais inimigos, porque vós nos deste um herdeiro.
Ela curvou a cabeça. O perigo era tão grande quanto imaginara. Tratava-se de príncipes poderosos, unidos pelo sangue ao clã do próprio Imperador. E ela era apenas uma mulher.
Levantou orgulhosamente a cabeça:
- E quem são os meus amigos?
O Eunuco-Chefe limpou a garganta:
- Acima de todos, Venerável, o Príncipe Kung, o irmão mais moço do Filho do Céu.
- É realmente meu amigo? exclamou ela. - Então vale mais que todo o resto.
Era ainda tão jovem que qualquer esperança lhe bastava e o sangue rubro coloriu-lhe as faces.
- Quando o Príncipe Kung vos viu, declarou o Eunuco-Chefe, disse a um homem do clã, que mo transmitiu, que vós éreis uma mulher tão inteligente e tão bela que ou traríeis boa sorte ao reino ou destruiríeis o Trono do Dragão.
Yehonala guardou essas palavras em seu espírito meditativo. Refletiu nelas e permaneceu em silêncio durante algum tempo. Depois deu um longo suspiro.
- Para dar boa sorte ao reino, devo ter minhas armas, disse afinal.
- Decerto, Venerável, retrucou o Eunuco, ficando à espera.
- Minha primeira arma deve ser o poder da condição.
- Decerto, Venerável, disse o Eunuco-Chefe outra vez e ficou esperando.
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Volte ao Imperador, ordenou Yehonala. - Ponha-lhe na cabeça que o Herdeiro está em perigo. Ponha-lhe na cabeça que somente eu poderei proteger nosso filho. Ponha-lhe na cabeça que deve elevar-me a uma condição igual à da Consorte, de maneira que ela não disponha de nenhum poder sobre o Herdeiro, nem possa ser usada pelos que dispõem de tal poder.
O Eunuco-Chefe sorriu diante de tanta argúcia e Li Lien-ymg riu, estalando as juntas dos dedos, uma após outra, para demonstrar seu prazer.
Senhora, disse o Eunuco-Chefe, porei na cabeça do Imperador que assim a recompense no dia em que o Herdeiro completará um mês de nascido. Que outro dia poderia ser mais auspicioso?
- Nenhum, concordou ela.
Fitou-lhe os olhos pequenos e negros, fundos nas órbitas, sob a testa alta, e subitamente sorriu e seus grandes olhos reluziram de malícia, alegria e triunfo.
Completou-se o primeiro mês de vida de seu filho. A lua estava cheia quando êle nascera e agora era novamente cheia. Certos perigos haviam passado - o perigo da loucura dos dez dias, pela qual as crianças morrem antes de decorrido esse período; o perigo do fluxo, pelo qual as tripas do infante correm para fora, como água; o perigo dos vômitos contínuos; o perigo da tosse, do resfriado e da febre. No fim do primeiro mês o Herdeiro estava gordo e sadio, já com a vontade imperiosa, fome constante, de modo que sua ama-de-leite tinha de estar pronta dia e noite para atender às suas exigências. Yehonala escolhera pessoalmente a ama-de-leite, uma jovem e forte camponesa, uma chinesa, cujo filho era também o primeiro e cujo leite, por conseguinte, era adequado à alimentação real. Mas Yehonala não se contentara com a opinião dos médicos sobre a boa saúde da ama. Não, ela própria quis examinar o corpo da mulher e provar o sabor de seu leite e cheirar seu hálito para verificar a inexistência de qualquer azedume nele. E ela própria prescreveu a dieta da mulher e providenciava para que só lhe fossem servidos os melhores e mais substanciosos alimentos. Com esse leite, o principezinho se desenvolvia como qualquer filho de camponês.
No primeiro mês do nascimento de seu herdeiro, por conseguinte, o Imperador decretou que se realizassem festas em toda a nação. Na Cidade Proibida o dia inteiro devia ser passado em festejos, com música, e quando mandou o Eunuco-Chefe perguntar a Yehonala que gostaria ela de ter, para seu próprio prazer, nesse auspicioso dia, ela transformou em palavras o seu anseio particular. Estou com muita saudade de uma boa peça teatral, disse a An lenhai. - Desde que vim viver sob estes tetos dourados não vi mais uma peça. A Viúva Mãe não gostava de atores e eu não me atrevi a pedir enquanto ela vivia, como também não pude pedir
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durante os meses de luto. Mas agora... poderia o Filho do Céu satisfazer-me?
An Teh-hai não pôde senão sorrir à vista de sua fisionomia, ruborizada e ardente como a de uma menina, os grandes olhos cheios de esperança.
- O Filho do Céu nada vos recusará agora, senhora, respondeulhe, piscando e cabeceando diversas vezes, para significar que ela de fato receberia recompensa muito maior que uma simples peça teatral. Partiu em seguida, rápido, para transmitir o desejo de Yehonala.
Foi assim que, no dia da festa, Yehonala teve satisfeito seu desejo menor, enquanto esperava pelo maior - o prazer do teatro bem como a elevação de sua condição. Mas primeiro deveriam ser apresentados e recebidos os presentes. Para esses ritos o Imperador escolheu a sala do trono, denominada Palácio do Brilho Insuperável. Ali, desde a madrugada, esperavam homens de todas as partes do reino e entre eles passavam os eunucos cuidando das grandes lanternas penduradas nas vigas e nas quais estavam pintados dragões imperiais de cinco garras. Essas lanternas eram feitas de chifre e projetavam tanta luz que, caindo sobre os mantos dos eunucos e dos convidados, realçava os bordados de ouro e as jóias cravejadas no trono. Todas as cores e matizes brilhavam ao mesmo tempo, o carmesim e o purpurino escuros e fortes, o escarlate e o azul brilhante acentuando-se, o ouro e a prata reluzindo intensamente.
Em silêncio todos esperavam a chegada do Filho do Céu e quando a aurora irrompeu no firmamento surgiu a procissão imperial, suas bandeiras ondulando na brisa da manhã, carregadas pelos guardas em suas túnicas escarlates. Depois vinham os príncipes, em seguida os eunucos, marchando lentamente dois a dois, envoltos em mantos purpurinos salpicados de ouro. No meio, doze carregadores conduziam o sagrado palanquim amarelo do dragão, no qual estava sentado o próprio Filho do Céu. Dentro do Salão do Trono todos caíram de joelhos e bateram com a cabeça nove vezes no chão e gritaram sua saudação:
- Dez mil anos... dez mil anos... dez mil anos!
O Imperador desceu do palanquim e com a mão direita pousada no ombro de seu irmão e a esquerda sobre o braço do Grande Conselheiro Su Shun, subiu para o trono dourado. Sentou-se com rigorosa dignidade, as palmas das mãos sobre os joelhos, e recebeu pela ordem os príncipes e os ministros que ofereceram presentes imperiais para o Herdeiro. Suas mãos não tocavam os presentes, pois estes eram colocados em salvas e bandejas de prata trazidas por servos, mas o Príncipe Kung lia as listas dos presentes e de onde provinham, de que províncias, de que portos e cidades, de que regiões do interior, e o Eunuco-Chefe, munido de pincel e caderno, marcava o nome do doador, a natureza do presente, quanto valia e,
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para que a sua avaliação fosse alta, haviam-no antes subornado com ofertas de bens e dinheiro.
Havia como de costume, um biombo atrás do trono, um biombo de madeira perfumada, com excelentes esculturas de dragões de cinco garras. Atrás do biombo achavam-se Yehonala e a Consorte, com suas respectivas damas. Depois que todos os presentes foram aceitos o Imperador chamou Yehonala para que também recebesse sua recompensa. O Eunuco-Chefe transmitiu o chamado e trouxe-a para junto do Trono do Dragão. Ali permaneceu ela por um instante, alta e ereta, a cabeça erguida, não olhando nem para a direita nem para a esquerda. Então, lentamente, caiu de joelhos, em sinal de obediência, e pousou as mãos, uma sobre a outra, no assoalho ladrilhado, apoiando em seguida a cabeça sobre elas.
O Imperador esperou que a reverência fosse efetuada e em seguida começou a falar:
- Decreto, a partir deste dia, que a mãe do Herdeiro Imperial, aqui ajoelhada, seja elevada à condição de Consorte, em perfeita igualdade com a atual Consorte. Para que não haja confusão, a atual Consorte será conhecida como Tzu An, Imperatriz do Palácio Oriental, e a Mãe Afortunada será conhecida como Tzu Hsi, Imperatriz do Palácio Ocidental. Esta é a minha vontade, que deverá ser proclamada por todo o reino, para que todo o povo a conheça.
Yehonala ouviu essas palavras e o sangue afluiu forte e alegre ao seu coração. Quem poderia feri-la agora? Fora elevada pela mão do Imperador. Tocou a cabeça nas mãos três vezes, mais três vezes e ainda mais três vezes. Depois, pondo-se de pé, assim ficou até que o Eunuco-Chefe estendeu o braço direito. Então ela, apoiando-se nele, voltou ao seu lugar, atrás do Biombo do Dragão. Mas, ao sentar-se, não virou a cabeça para olhar Sakota e Sakota nada disse.
Enquanto Yehonala permanecera de pé diante do Trono do Dragão, a vasta multidão que se achava no Salão de Banquete ficara em silêncio. Nenhuma voz se ouviu, exceto a do Imperador, e nenhuma mão se moveu. E a partir desse dia ela não foi mais chamada Yehonala. Tzu Hsi, a Mãe Sagrada, passou a ser seu nome imperial.
Naquela mesma noite, Tzu Hsi foi chamada pelo Imperador. Fazia três meses que a não chamava - dois meses antes do nascimento de seu filho e um depois. Mas agora o tempo chegara. Recebeu com alegria o chamado, pois era prova de que a preferência imperial ainda lhe pertencia, não apenas por causa de seu filho, mas por ela mesma. Sabia muito bem que durante aqueles meses o Imperador fizera uso de uma e outra concubina e cada uma destas esperara desbancar a favorita. Nessa noite saberia se alguma fora bem sucedida. Preparou-se ansiosamente para seguir o Eunuco-Chefe que a esperava na entrada do palácio.
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Ah, mas agora como era duro sair! O berço do menino achava-se junto de sua cama. Seus aposentos próprios haviam sido preparados antes do nascimento, mas ela não permitia que o afastassem de si, nem mesmo por uma noite, nem sequer nessa noite. Pronta, trajando suave cetim róseo, coberta de jóias e perfumada, não conseguia afastar-se do menino adormecido, repleto de leite humano, sobre o colchão de seda. Duas mulheres sentavam-se ao lado dele - uma, a ama-de-leite; a outra, sua própria serva.
- Não o deixem por um segundo sequer, advertiu-as. - Se, quando eu voltar, mesmo que seja de madrugada, ouçam bem, êle estiver magoado ou chorando, ou se houver alguma mancha em sua carne, mandarei espancar as duas. E se tiver algum ferimento, ambas pagarão com a cabeça.
As duas mulheres sobressaltaram-se com a sua expressão feroz - a ama-de-leite aterrorizada, e a serva espantada, ao ver a transformação sofrida pela cortês senhora que pensavam conhecer.
- Depois que a Imperatriz do Palácio Ocidental teve um filho, disse ela em voz suave, transformou-se num tigre fêmea. Tranqüilizai-vos, Venerável, tomaremos conta dele melhor do que nos poderíeis ensinar.
Mas Tzu Hsi tinha mais ordens a dar:
- E Li Lien-ying deve ficar sentado do lado de fora, e minhas damas não devem dormir profundamente.
- Assim será, prometeu a serva.
Tzu Hsi ainda não se decidia a partir. Curvou-se sobre a criança adormecida, viu-lhe as faces rosadas, os lábios macios e rubros, os olhos cheios e grandes, as orelhas junto da cabeça, com longos lóbulos e todos eram sinais de alta inteligência. De quem recebera o menino tanta beleza? A dela somente não bastava para tanta perfeição. Seu pai...
Interrompeu o pensamento e buscou-lhe a mão, primeiro a direita, depois a esquerda, e abrindo gentilmente os dedinhos, cheirou-lhe as tenras palmas, como as mães costumam fazer. Oh, que tesouro possuía agora!
- Venerável!
Ouviu a voz de An Teh-hai, vinda do aposento contíguo. O Eunuco-Chefe tornava-se impaciente, preocupado não consigo, mas com ela. Yehonala agora sabia que êle era seu aliado, na guerra secreta do palácio, e devia tratá-lo bem. Demorou-se somente para executar mais uma tarefa. Escolheu dois presentes em sua penteadeira - um anel de ouro e um fino bracelete cravejado de aljôfares. Deu-os às duas mulheres, o anel para a serva e o bracelete para a ama-de-leite, e assim reforçou-lhes a fidelidade. Em seguida saiu rápida, para onde se encontrava Li Lien-ying, seu eunuco, esperando com An Teh-hai. Ao seu eunuco deu uma peça de ouro,
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sem dizer-lhe palavra; sabia o que significava e quando ela se afastou com An Teh-hai, êle ficou para guardar-lhe o filho.
Dentro do decote da sua veste escondia um pacote de ouro para o Eunuco-Chefe, também, mas somente lho daria depois de ver como seria recebida pelo Imperador. Se a noite corresse bem, êle ganharia o prêmio. O Eunuco-Chefe compreendeu-o e conduziu-a pelas estreitas passagens conhecidas que levavam ao centro imperial da Cidade Proibida.
Venha para perto de mim, disse o Imperador.
Ela permaneceu na soleira da vasta alcova, para que êle a pudesse ver em toda a sua vigorosa beleza. Obedecendo à sua ordem, avançou lentamente, em movimentos ondulatórios cheios da graça que ela tão bem sabia usar. Não era humilde, mas fingia timidez, demonstrava um doce constrangimento que era meio simulado, meio real. Pois essa mulher tinha o poder de quase tornar-se o que fingia ou pretendia ser, a qualquer momento e em qualquer lugar. Não era falsa porque se enganava a si mesma tanto quanto à pessoa perante a qual aparecia.
Assim, aproximou-se do leito imperial, tão largo e comprido como se fosse um aposento entre as cortinas amarelas e o dossel de ouro. Assaltou-a súbita piedade. O homem que esperava por ela estava sem dúvida condenado à morte. Embora jovem, gastara todas as suas forças cedo demais.
Galgou correndo os últimos degraus que a separavam dele:
- Ah, exclamou, estais doente e ninguém mo disse, Senhor do Céu!
Na verdade, à luz das grandes velas dos candelabros de ouro, sua pele amarela esticava-se sobre os ossos finos da face e do corpo, de tal maneira que parecia um esqueleto vivo armado sobre as almofadas de cetim amarelo. Suas duas mãos, com as palmas para cima, jaziam sem vida sobre a colcha. Ela sentou-se na cama e seguroulhe as mãos, sentindo-as secas e frias.
- Sentis alguma dor? perguntou com ansiedade.
- Dor não, respondeu êle. - Uma fraqueza...
-- Mas esta mão, insistiu ela. Tomou-lhe a mão esquerda. - Está diferente da outra... mais fria, mais rígida.
- Não posso usá-la como antes, disse êle a contragosto. Puxou-lhe a manga e viu seu braço nu, magro e amarelo como marfim velho, sob o traje de cetim.
Ah! gemeu ela, ah, por que não me disseram?
- Que havia para dizer? tornou êle. - Apenas que sinto um ligeiro frio deste lado.
Retirou a mão, dizendo:
- Venha, venha para minha cama. Nenhuma delas me satisfez. Somente você... somente você...
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Ela viu surgir a antiga luz ardente em seus olhos fundos e dispôs-se a obedecer. Contudo, à medida que as horas passavam, aproximando-se da meia-noite, sentiu uma tristeza que nunca experimentara antes. Profunda, profunda era a mágoa daquele pobre homem que era o Imperador de um poderoso reino. O frio da morte atingira-lhe a vida interior e já não era mais homem. Tão impotente como qualquer eunuco, lutava por representar o seu papel e não conseguia.
- Ajude-me, suplicou êle pela décima vez. - Ajude-me... ajude-me, senão morrerei deste ardente desejo insatisfeito.
Mas ela não podia ajudá-lo. Quando compreendeu que também ela nada podia, levantou-se da cama, sentou-se junto de sua almofada, tomou-o nos braços como se fosse uma criança e como uma criança êle soluçou em seu colo, sabendo que o que sempre fora o seu maior prazer nunca mais poderia repetir-se. Apesar de jovem em anos, pois na verdade ainda não alcançara a terceira década, era velho no corpo, enfraquecido pela sua própria luxúria. Cedera demasiado cedo aos seus desejos, com demasiada freqüência os eunucos os alimentaram, demasiado humildemente os médicos da Corte espicaçaram-lhe o sangue com ervas e medicamentos. Estava exaurido e somente a morte lhe restava.
Essa certeza esmagou a mulher que mantinha o homem contra o peito. Tranqüilizou-o com palavras agradáveis, ela parecia tão calma, tão forte, que êle afinal se deixou persuadir.
- Estais cansado, disse ela, estais sobrecarregado de preocupações. Conheço nossos vários inimigos e como os homens do Ocidente, com todos os seus navios e exércitos, nos ameaçam. Enquanto eu vivia minha vida de mulher, essas preocupações ocultavam-se em vosso espírito e solapavam vossa força. Enquanto eu gestava meu filho, vós vos curváveis sob a carga do Estado. Permiti que vos ajude, meu senhor. Alijai metade da vossa carga sobre mim. Deixai que eu me sente sempre atrás do biombo da Sala do Trono, de madrugada, e ouça o que dizem vossos ministros. Sei entender o sentido íntimo de suas queixas e depois que partirem vos direi o que penso, deixando porém a decisão ao meu senhor, como é meu dever.
Distraiu-o, assim, do seu desejo insatisfeito, afastando-o do amor e conduzindo-o para os negócios de Estado, as ameaças dos inimigos e o fortalecimento do próprio Trono, agora que tinha um Herdeiro. E viu quão cansado estava aquele homem, com todas essas cargas, pois dava grandes suspiros. Levantou-se de seu colo e tornou a reclinar-se nas almofadas. Segurando-lhe a mão, êle tentou transmitir-lhe suas perplexidades.
- Meus problemas nunca têm fim, queixou-se. - Nos tempos dos meus antepassados o inimigo vinha sempre do norte e a Grande Muralha obstruía a passagem de homens e de cavalos. Mas agora a
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muralha nos é completamente inútil. Os homens brancos chegam aos bandos do mar - ingleses e franceses, holandeses, alemães e belgas. Digo-lhe que não sei quantas nações existem alem das montanhas fronteiriças de K'un Lun! Fazem-nos guerra para venderem seu ópio e nunca estão satisfeitas. Agora vieram os americanos também De onde vêm eles? Onde é a América? Ouvi dizer que são um pouco melhores que os outros, no entanto, quando cedo aos outros os americanos exigem os mesmos benefícios. É neste ano que desejam renovar seu tratado conosco. Mas eu não quero renovar nenhum tratado com os brancos.
Então não o renoveis, exclamou Tzu Hsi impetuosamente. - Por que faríeis o que não desejais fazer? Dizei aos vossos ministros que recusem.
- As armas dos brancos são muito temíveis, gemeu êle.
- Protelai... protelai. Não respondei aos seus rogos, ignorai suas mensagens, recusai-vos a receber seus enviados. Isto nos dará tempo. Não nos atacarão enquanto tiverem esperança de que renovaremos o tratado. Por conseguinte não lhes digais sim nem não.
O Imperador ficou impressionado com tanta sabedoria.
- Para mim você vale mais que qualquer homem, declarou êle. - Mais do que meu próprio irmão. É êle quem insiste para que eu receba os brancos e faça novos tratados com eles. Procura atemorizar-me falando-me de seus grandes navios e seus compridos canhões. Negocie, diz êle...
Tzu Hsi riu.
- Não vos deixeis dominar pelo medo, meu senhor, mesmo que seja transmitido pelo Príncipe Kung. O mar é muito longe daqui e poderá haver um canhão suficientemente comprido para atingir a altura das muralhas de nossa cidade?
Ela acreditava no que dizia, e êle queria acreditar, e o seu coração apegou-se a ela mais do que nunca. Adormeceu finalmente sobre as almofadas e ela ficou ao seu lado até o amanhecer, quando o Eunuco-Chefe veio acordá-lo porque os ministros esperavam pela audiência usualmente dada cedo. Quando êle entrou, Tzu Hsi levantou-se para dar-lhe ordens, enquanto o Imperador ainda dormia.
- A partir de hoje, disse ela, permanecerei atrás do Biombo do Dragão, no Salão do Trono. O Filho do Céu o determinou.
An Teh-hai curvou-se até o chão, diante dela, e bateu com a cabeça nos ladrilhos.
- Venerável, exclamou. - Agora sinto-me feliz.
A partir desse dia, Tzu Hsi passou a levantar-se de madrugada, pouco antes do amanhecer. À luz das velas suas mulheres banhavam-na e vestiam-lhe os trajes estatais, depois entrava em sua cadeira cortinada e Li Lien-ying ia na frente com a lanterna acesa, até o balão do Trono, onde ela se sentava atrás do grande biombo esculpido, diante do qual se achava o trono do Dragão. Li Lien-ying
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era seu guarda. Permanecia sempre junto dela, com a mão sobre o punho da adaga.
A partir desse dia, também, o Herdeiro deixou de dormir no quarto de sua mãe. Foi transferido para o seu próprio palácio e o Eunuco-Chefe passou a ser seu servo. O Príncipe Kung, irmão do Imperador, assumiu o posto de guardião do Herdeiro.
O frio chegou cedo nesse ano. Não chovia há várias semanas e no meio do outono os ventos secos e ásperos começaram a soprar do noroeste, trazendo sua carga de areia pálida do deserto distante. A cidade cobriu-se com um manto dourado de areia e o sol brilhava sobre os tetos das casas onde a areia penetrava nas frestas das goteiras. Somente as telhas de porcelana dos tetos da Cidade Proibida, de côr azul real e amarelo imperial, repeliam a areia e reluziam limpos à clara luz do céu.
Ao meio-dia, quando o sol ainda proporcionava um calor suave, os velhos, envoltos em roupas de acolchoado, saíam de suas casas e se sentavam em recantos entre paredes. As crianças corriam para as ruas e brincavam até que o suor começasse a escorrer pelas suas faces escuras. Mas quando o sol se punha e a noite tornava a cair, o frio seco congelava o sangue de moços e de velhos, sem distinção. Através da noite o frio acentuava-se, até alcançar a sua culminância depois da meia-noite e antes do alvorecer. Na rua, os mendigos que não tinham onde abrigar-se, corriam de um lado para o outro, para se conservarem vivos, até que o sol surgisse de novo. Nem mesmo os cães selvagens conseguiam dormir.
Foi numa dessas horas frias e silentes, em dia determinado pelo Corpo de Astrônomos Imperiais, que Tzu Hsi se levantou para tomar o seu lugar no Salão do Trono. Sua fiel serva dormia perto dela. Quando o gongo de latão do vigia soou três vezes através das ruas, a mulher levantou-se de sua enxerga, pôs carvões novos no braseiro e sobre êle colocou uma caçarola de água. Preparou chá, num bule de prata e barro, e aproximando-se do vasto leito em que Tzu Hsi dormia, afastou as cortinas e tocou o ombro da senhora. Bastou apenas um ligeiro toque, pois embora Tzu Hsi dormisse profundamente, seu sono era sempre leve. Seus grandes olhos negros abriram-se, inteiramente despertos, e ela sentou-se na cama.
- Estou acordada, disse.
A mulher derramou o chá numa taça e apresentou-lha com ambas as mãos. Tzu Hsi bebeu-o devagar, mas não muito lentamente, calculando com exatidão a medida do tempo que passava. Esvaziada a taça, entregou-a à serva. Na sala de banho a água já fumegava na banheira de porcelana. Tzu Hsi levantou-se, cada um de seus movimentos gracioso e preciso, pois a graça e a precisão eram um hábito seu. Minutos depois estava no banho. Sua serva lavou-a gentilmente, depois enxugou-a e vestiu-lhe os trajes adequados à
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audiência imperial. Suas roupas de baixo eram de seda perfumada e sobre elas um longo vestido de cetim rosa-vermelho, forrado de pele de marta e abotoado até o pescoço. Sobre o vestido, um manto de gaze amarelo-pálido bordado com pequenos medalhões azuis em desenhos de fênix. Nos pés Tzu Hsi trazia meias de macia seda branca e os seus sapatos manchus, de altos saltos duplos no meio da sola. Na cabeça, depois de penteada, a serva colocou um pente feito de figuras e flores de cetim, com pedras preciosas e pequenas pérolas.
Moviam-se em silêncio - a mulher porque ainda estava cansada e Tzu Hsi porque tinha a mente cheia de pensamentos sombrios. Os tempos estavam cada vez mais difíceis. Ontem apenas, em audiência privada, o Príncipe Kung dissera-lhe:
- O povo de qualquer nação não se preocupa com quem o governa, quando há paz e ordem no reino e quando lhe é permitido rir e assistir a espetáculos. Mas se não há paz e a ordem se encontra perturbada, então o povo censura seus governantes. Temos a desgraça de governar numa época destas. Meu imperial irmão é tão fraco! Hoje, nem os brancos nem os rebeldes chineses temem o Trono.
- Se esses estrangeiros de pele branca não tivessem vindo através dos mares, disse Tzu Hsi, poderíamos dominar os rebeldes chineses.
Êle concordou, triste e meditativo.
- Mas... que faremos? inquiriu. - Eles estão aqui. A culpa é da nossa dinastia, dos nossos ancestrais que não compreenderam, cem anos antes, que os estrangeiros do Ocidente são homens diferentes de todos os outros. Nossos ancestrais, a princípio, ficaram encantados com a sua inteligência, seus engenhosos brinquedos e relógios, e, de boa fé, permitiram-lhes que nos visitassem, esperando que deixassem depois, cortêsmente, nosso litoral. Sabemos agora que deveríamos tê-los expulsado para o mar, do primeiro ao último, pois onde chega um chegam cem e ninguém se vai.
- É realmente estranho, observou Tzu Hsi, que o Venerável Ancestral Ch'ien Lung, tão grande e tão sábio e tendo governado tantas décadas, não houvesse percebido a natureza dos homens do Ocidente.
O Príncipe Kung, sacudindo a cabeça, disse com desalento:
- Ch'ien Lung foi enganado pelo seu poder e pela bondade de seu coração. Nunca pensou que alguém pudesse ser seu inimigo. comparava-se, na verdade, com o americano George Washington, então vivo, e gostava de dizer que êle aqui e Washington na América, eram irmãos, embora nunca se tivessem encontrado face a face. É verdade que seus reinados foram contemporâneos.
Tal era o assunto de sua conversa com o Príncipe Kung, e êle esforçava-se por instruí-la freqüentemente. Ouvindo-o e fitando
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aquela simpática fisionomia, apesar de triste e cansada para homem tão jovem, ela pensava como seria muito melhor se êle fosse o irmão mais velho e, por conseguinte, o Imperador, em lugar do seu fraco senhor Hsien Feng.
- Estais pronta, Venerável, disse-lhe a serva. - Desejo que comais algo de quente antes de irdes sentar-vos atrás do Biombo do Dragão. Uma tigela de sopa de milho miúdo...
- Comerei quando voltar, redargüiu Tzu Hsi - Preciso estar vazia e com a mente clara.
Levantou-se e caminhou para a porta, passos medidos, corpo ereto. Suas damas deveriam acompanhá-la, porém ela, que sabia ser severa e dura quando o desejava, era sempre bondosa para com as suas obedientes damas e não exigia que se levantassem cedo. Bastava-lhe o cuidado de sua serva e a proteção de Li Lien-ying, seu eunuco. No entanto uma das damas levantava-se freqüentemente - era a Dama Mei, jovem filha de Su Shun, príncipe e Grande Conselheiro. Nessa manhã, quando a serva abriu a porta para Tzu Hsi passar, a Dama Mei já ali se encontrava, um tanto pálida por se ter erguido tão cedo, mas viçosa como uma gardênia branca. Tinha nessa época apenas dezoito anos de idade, de pequena estatura e primorosas formas, terna criatura tão apaixonada e tão apegada que Tzu Hsi a amava muito, apesar de saber que Su Shun era seu inimigo secreto. Era uma sorte que Tzu Hsi fosse de espírito elevado e extremamente justa, de modo que não lançava sobre a terna filha as culpas do pai cruel. Sorriu para a jovem:
- De pé, tão cedo?
- Venerável, estava tão frio que não pude dormir, confessou a Dama Mei.
- Qualquer dia lhe arranjarei um marido para aquecer sua cama, disse Tzu Hsi, ainda sorrindo.
Proferiu essas palavras com descuidosa bondade, sem saber por que as dizia, mas ao saírem de seus lábios compreendeu instantaneamente que lhe haviam sido ditadas por um instinto ainda vago. Ah sim, ah sim, a tagarelice das mulheres da corte, que tão pouco tinham que fazer além de tagarelar, passando de boca em boca, desde a festa do primeiro mês do Herdeiro Imperial, chegara-lhe aos ouvidos - disseram-lhe que a Dama Mei fora vista olhando mais de uma vez para Jung Lu, o elegante Chefe da Guarda Imperial e parente da Mãe Afortunada. Tzu Hsi ouviu a informação como ouvia tudo, sempre com o espírito atento, os olhos perscrutadores, os ouvidos atilados, quer estivesse dormindo ou acordada. Quem poderia imaginar tudo quanto ela sabia, quem a não fazia de confidente?
- Venerável, por favor, não quero marido, murmurou a Dama Mei com as faces subitamente rubras.
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Tzu Hsi beliscou-lhe o rosto bonito.
- Não quer marido?
- Deixai-me ficar sempre convosco, Venerável, rogou a dama.
Por que não? redarguiu Tzu Hsi. - Mas isto não quer dizer que você não deve ter marido.
A Dama Mei empalideceu, ruborizou-se, tornou a empalidecer. Infeliz infeliz conversa sobre casamento. À Imperatriz do Palácio Ocidental bastava apenas ordenar o seu casamento com um homem e ela teria de obedecer, embora seu coração pertencesse inteiro a...
O vulto magro de Li Lien-ying surgiu diante delas, grande e feio, a luz da lanterna que sustinha na mão, caindo sobre as suas feições grosseiras.
- Está ficando tarde, Venerável, disse com a sua aguda voz de eunuco.
Tzu Hsi despertou:
- Ah, sim, e eu preciso ver meu filho.
Pois era seu hábito, todas as manhãs, ver o menino antes de partir para a audiência. Entrou em seu palanquim, as cortinas caíram, e os seis carregadores puseram os varais nos ombros e marcharam em ritmo acelerado até o palácio do Herdeiro. Sua dama seguiu-a numa cadeirinha menor.
Na entrada do palácio particular do Herdeiro os carregadores baixaram a cadeirinha, por hábito, e Tzu Hsi desceu e correu a ver o menino, enquanto a sua dama esperava. Os eunucos que estavam de guarda curvaram-se quando ela passou rumo ao quarto imperial. Grossas velas vermelhas de gordura de vaca ardiam em candelabros de ouro sobre uma mesa, e à luz trêmula de suas chamas ela viu o seu filho. Estava dormindo com a ama-de-leite. Tzu Hsi demorou-se junto da cama de acolchoados erguida sobre uma plataforma de tijolos aquecidos. Êle se achava deitado no braço da ama, a face encostada no seio nu da mulher. Devia ter acordado no meio da noite e a ama, para silenciar-lhe o choro, dera-lhe de mamar - depois ambos adormeceram.
Tzu Hsi fitou-os com estranha e dolorosa ânsia. Ela é quem deveria tê-lo ouvido chorar à noite e ela é quem o devia ter amamentado, para depois dormir em paz. Ah, ao escolher o seu destino não pensara em pagar preço tão alto!
Forçou seu coração a acalmar-se. Fôra-se o momento da escolha. Pelo seu próprio nascimento, seu filho confirmara-lhe o destino. Era mãe não de uma criança mas do Herdeiro do Império e ela devia dedicar toda a sua força ao dia em que êle se tornaria Imperador de quatrocentos milhões de súditos. Exclusivamente sobre seus ombros repousava o peso da dinastia manchu. Hsien Feng era fraco mas seu filho tinha de ser forte. Ela o faria forte. Para esse fim orientaria toda a sua vida. Mesmo as longas e agradáveis horas de estudo nas bibliotecas do palácio eram poucas agora e poucas,
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também, as lições de pintura com a Dama Miao. Algum dia talvez ela viesse a ter tempo de pintar os quadros que sua mestra, Dama Miao, nunca lhe permitira pintar, mas agora não.
Viu-se de novo em sua cadeirinha, as cortinas cerradas para protegê-la do vento da madrugada, a visão do menino adormecido aquecendo-lhe o coração. Outrora ambicionara tornar-se imperatriz. Quão poderosa era sua ambição agora - a de preservar um império inteiro para seu filho!
Através das frestas das cortinas podia ver a luz bruxuleante da lanterna do eunuco iluminando as pedras do caminho. Pelas passagens e pátios foi conduzida ao Salão de Audiência. Ali, diante de uma porta lateral, a cadeirinha foi baixada e erguidas as cortinas. O Príncipe Kung esperava-a.
- Venerável, estais atrasada, exclamou êle.
- Demorei-me demais com meu filho, confessou ela. Seu ar deixou transparecer a censura.
- Espero, Venerável, que não tenhais acordado o Herdeiro. É necessário que êle cresça forte e cheio de saúde. Seu reinado será muitíssimo árduo.
- Não o acordei, tornou ela com dignidade.
Nada mais disseram. O Príncipe Kung curvou-se e conduziu-a, por uma passagem interior, para o espaço situado atrás do Trono do Dragão. Ali, abrigada pelo imenso biombo esculpido com ousados dragões, cujas escamas e garras brilhavam à luz das grandes lanternas pendentes das vigas pintadas do alto teto, Tzu Hsi tomou seu lugar. À sua direita achava-se a Dama Mei e à esquerda o eunuco Li Lien-ying.
Através dos interstícios do biombo ela via agora o amplo terraço fronteiro ao Salão de Audiência, mergulhado nas trevas, cheio de príncipes e ministros que tinham chegado antes da meia-noite em seus carros sem molas e forrados de peles para trazerem petições e memoriais ao Imperador em pessoa. Enquanto esperavam no pátio pela sua chegada, separavam-se, de acordo com as categorias respectivas, em grupos, cada grupo sob sua própria bandeira de seda brilhante e veludo negro. As trevas ainda eram densas em cima e ao redor, mas o terraço estava iluminado pelas lanternas do pátio inferior. Nos quatro cantos deste havia elefantes de bronze cheios de óleo e esse óleo alimentava as tochas que os elefantes mantinham em suas trombas erguidas. O fogo, saltando para o céu, lançava uma luz selvagem e irrequieta sobre a cena.
No Salão de Audiência uma centena de eunucos movia-se de um lado para o outro, abastecendo as enormes lanternas de chifre, compondo seus mantos de cores vivas e ornados de jóias, murmurando enquanto esperavam. Ninguém falava alto. Pairava sobre tudo um estranho silêncio e quando se aproximou a hora, fixada pela Comissão de Astrólogos, de acordo com as estrelas, o silêncio aprofundou-se
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transformando-se quase numa espécie de transe. Ninguém se movia, todas as faces rígidas e graves, todos os olhos fitando para a frente. No último instante antes de romper a aurora, um mensageiro tocou a sua trombeta de latão - era o sinal. O Imperador tinha saído de seu palácio e a procissão imperial estava a caminho movendo-se vagarosamente através dos amplos salões menores do trono, transpondo sucessivas entradas que conduziam aos salões mais altos, a fim de chegar na hora exata do amanhecer. Agora os mensageiros gritavam, juntos:
- Contemplai o Senhor dos Dez Mil Anos!
A esse grito o cortejo imperial apareceu na entrada do pátio menor. Bandeiras douradas tremulavam sopradas pela brisa matinal, enquanto os mensageiros avançavam. Atrás deles vinha a Guarda Imperial, em túnicas vermelhas e douradas, e à sua frente Jung Lu caminhava sozinho. Em seguida, cem carregadores de uniforme amarelo conduziam o palanquim do Imperador, feito de ouro pesado, e atrás seguiam os Porta-bandeiras.
Todos, nobres e eunucos, caíram de joelhos gritando a saudação sagrada:
- Dez Mil Anos... Dez Mil Anos!
Todos curvaram a cabeça sobre as mãos cruzadas e assim ajoelhados permaneceram enquanto os carregadores levaram o palanquim pelos degraus de mármore até o Terraço do Dragão, diante do Salão de Audiência. Ali desceu o Imperador, envolto em seu manto de ouro bordado com dragões. Passando por entre as colunas vermelhas e douradas, caminhou lentamente para a plataforma. Galgou os poucos degraus e sentou-se no Trono do Dragão, as magras mãos sobre os joelhos, o olhar fixo num ponto situado à sua frente.
Fêz-se de novo silêncio. A multidão ajoelhada, as cabeças curvadas sobre as mãos, permaneceu imóvel enquanto o Príncipe Kung tomava seu lugar à direita do Trono e, de pé, passou a ler os nomes dos príncipes e ministros, pela ordem de sua classe, determinando a hora em que cada um deveria aparecer. A audiência começara.
Tzu Hsi, atrás do biombo, inclinava-se para a frente a fim de não perder uma palavra do que era dito. Assim inclinada, via apenas a cabeça e os ombros do Imperador, acima do espaldar baixo do trono em que êle estava sentado. Esse homem, cujo aspecto era tão pálido e altivo, era agora traído. Sob o chapéu imperial ornado de borlas, surgia a sua nuca magra e amarela - o pescoço de um jovem doente e não de um homem; e esse pescoço estava plantado entre dois ombros finos e estreitos, projetando-se sob as ricas vestes. Tzu Hsi olhava-o com um misto de piedade e repulsa, seguindo com os olhos do espírito a curva dos ombros magros até o corpo delgado e doentio. E como poderia ela impedir que seus olhos vivos
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enxergassem além do Trono? Lá estava Jung Lu, em plena força de sua juventude e masculinidade. Contudo estavam tão separados, ela dele, como o norte do sul. Ah, mas não chegara ameia a hora em que poderia elevá-lo! Também êle não podia sequer estender lhe a mão. A mão dela é que se deveria mover primeiro, mas quando sobreviria o instante e a oportunidade Somente - ela o sabia - quando possuísse um poder suficientemente firme que inspirasse temor a todos os homens. Devia estar situada tão alto que ninguém se atrevesse a acusá-la ou a conspurcar-lhe o nome. E de súbito, guiada por um instinto que não queria reconhecer, seus olhos desviaram-se e caíram sobre a Dama Mei. A moça, com o rosto colado ao biombo, olhava para...
- Recue!
Segurando a Dama Mei pelo pulso, puxou-a, torcendo-lhe o braço súbita e cruelmente, antes de largá-lo.
A moça voltou a cabeça aterrorizada e seus olhos encontraram-se com aqueles olhos grandes, negros, e enfurecidos.
Tzu Hsi não tornou a falar, mas continuou fitando a moça com tamanha intensidade, que esta não pôde mais suportar o seu olhar. Sua cabeça tombou, lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e foi somente então que Tzu Hsi desviou o olhar. Mas sua vontade rebelou-se duramente contra si mesma. Não permitiria que seu coração perturbasse a sua mente. Aquele era o momento de aprender a governar. Não ansiaria por amor.
Nesse mesmo instante, Yeh, Vice-rei das províncias de Kwang, achava-se diante do Trono. Viera do sul, em barco e a cavalo. Era o governador daquelas províncias. Ajoelhando-se, leu em voz alta um pergaminho que segurava com as duas mãos. Tinha uma voz aguda, não forte porém penetrante, e como fosse um erudito famoso, escrevera suas palavras em versos de quatro pés, no antigo estilo clássico. Somente os instruídos podiam entender o que êle dizia e Tzu Hsi, ouvindo com muita atenção, não o teria compreendido se não houvesse gasto tanto tempo estudando os livros antigos. Sua inteligência iluminava as palavras e ela deduzia o que não sabia.
A questão era a seguinte. Mercadores do Ocidente estavam fazendo de novo pressão no sul, dirigidos pelos brancos ingleses que estavam encolerizados por um assunto tão insignificante que êle, o Vice-rei, envergonhava-se de mencioná-lo perante o Trono do Dragão. No entanto, por questões igualmente insignificantes, no passado, guerras tinham sido travadas e perdidas. Êle, nomeado pelo Filho do Céu, não podia correr o risco de uma nova guerra. Sempre que os brancos não viam satisfeitas suas pretensões, ameaçavam imediatamente com a guerra. Era inútil raciocinar com eles, pois não passavam de bárbaros, não civilizados. O conflito, por estranho que fosse, era sobre um pendão.
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O Imperador murmurou algo e o Príncipe Kung falou por êle. O Filho do Céu pergunta o significado da palavra pendão, disse em voz alta e clara.
- Um pendão, Altíssimo, redargüiu o Vice-Rei sem erguer os olhos, é apenas uma bandeira.
O Imperador tornou a murmurar e novamente o Príncipe Kung repetiu suas palavras com a mesma voz alta e clara.
Por que se irritariam os ingleses pelo que, afinal de contas, não passa de um pedaço de pano facilmente substituível?
Altíssimo, explicou o Vice-rei ainda sem erguer a cabeça, os ingleses são um povo supersticioso. Não são homens instruídos e por conseguinte atribuem qualidades mágicas a um pano oblongo, pintado de vermelho, branco e azul. Para eles é um símbolo, consagrado a algum deus que adoram. Não toleram a menor falta de reverência a esse pedaço de pano. Sempre que o colocam em algum lugar, é para indicar a posse do mesmo. No caso presente, foi posto no mastro de um pequeno navio mercante que conduzia piratas chineses. Ora, esses piratas chineses têm sido a maldição de gerações passadas em nossas províncias do sul. Dormem de dia e à noite atacam os navios ancorados e até mesmo nossas aldeias litorâneas. O capitão desse pequeno navio pagara uma soma de dinheiro aos ingleses, para que lhes permitissem hastear a bandeira, pensando que eu, o Vice-rei, em virtude disso não me atreveria a ordenar-lhes que cessassem suas perniciosas atividades. Mas eu, o Vice-rei, indigno servidor do Altíssimo, não me intimidei. Confisquei o navio e pus o capitão a ferros. Ordenei em seguida que a bandeira fosse retirada. Quando o inglês John Bowring, Comissário do Comércio para os ingleses em Cantão, soube do fato, declarou que eu havia insultado o símbolo sagrado e exigiu que lhe apresentasse desculpas em nome do Trono.
Um murmúrio de horror percorreu a assembléia. Até mesmo o Imperador se exaltou. Soerguendo-se no Trono falou diretamente:
- Pedir desculpas? Por quê?
- Altíssimo, tornou o Vice-rei, estas foram as minhas palavras.
- Levante-se, ordenou o Imperador.
- Levante-se, o Imperador Dragão ordena, repetiu o Príncipe Kung.
Era incomum, mas o Vice-rei obedeceu. Era um homem idoso e alto, natural das províncias do norte e chinês, porém leal, como todos os eruditos, ao Trono Manchu, pois o Trono protegia os eruditos chineses. Quando estes eram aprovados com honra nos exames imperiais, empregava-os como administradores do governo. Dessa forma os interesses desses chineses ficavam cimentados à dinastia dominante e assim era havia muitos séculos.
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- Pediu desculpas? inquiriu o Imperador, falando de novo diretamente, sem se valer de seu irmão, para significar seu profundo interesse.
O "Vice-rei respondeu:
- Altíssimo, como poderia pedir desculpas se eu, apesar de pequeno, sou o representante do Trono do Dragão? Mandei que o capitão pirata e sua tripulação pedissem desculpas aos ingleses. Mas isto não satisfez o altivo e ignorante Bowring. Enviou-me os chineses de volta, declarando que era a mim e não a eles que desejava. Daí, extremamente vexado, mandei decapitar a todos por causarem confusão.
- E isto não satisfez o inglês Bowring? indagou o Imperador.
- Não, Altíssimo. Nada o satisfará. Deseja conflitos, a fim de que tenha pretexto para fazer outra guerra e apoderar-se de outros territórios nossos e de nosso tesouro. Esse Bowring amplia qualquer motivo de discussão. Assim, embora seja contra a lei trazer ópio da índia através das nossas fronteiras, encoraja o contrabando, dizendo que enquanto os chineses contrabandearem, os ingleses, os indianos e até mesmo os americanos devem ter permissão de contrabandear a vil erva que desmoraliza e enfraquece o nosso povo. Mais que isso: armas também estão sendo contrabandeadas para serem vendidas aos rebeldes chineses do sul e quando os homens brancos de Portugal raptaram chineses para vendê-los como escravos, Bowring declarou que apoiaria os portugueses. Continua, ademais, a insistir em que os ingleses não estão satisfeitos com a terra em que lhes permitimos construir suas casas. Não, Altíssimo. Agora insistem, esses ingleses, que as próprias portas de Cantão devem ser abertas a eles e às suas famílias, de maneira que possam caminhar pelas nossas ruas e misturar-se ao nosso povo, os homens brancos olhando para as nossas mulheres, e as brancas, que não têm modéstia, indo e vindo tão livremente quanto os homens. E o que fôr concedido a uma tribo branca será exigido por todas as outras, como ocorreu no passado. Isto não é destruir nossas tradições e corromper o povo?
O Imperador concordou:
- Realmente não podemos permitir a estrangeiros de outros países a liberdade em nossas ruas.
- Altíssimo, eu o proibi, mas receio que o inglês se utilize de minha proibição como pretexto para iniciar outra guerra e, insignificante como sou, não posso assumir tal responsabilidade.
Foi o que Tzu Hsi ouviu atrás do biombo e ela ansiava por gritar contra os intrusos. Mas era mulher e devia manter-se em silêncio.
O Imperador falou:
- Representou nossa opinião a esse inglês Bowring?
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Estava agora tão excitado que sua voz foi um grito fraco. O Vice-rei ficou alarmado, pois nunca ouvira antes a voz imperial elevada, e voltou a cabeça para o Príncipe Kung, sem levantar a face para o Trono.
- Altíssimo, disse êle, não posso receber Bowring porque ele insiste em que deve tratar-me como igual. No entanto, como pode êle ser igual a mim se sou o representante do Trono do Dragão? Isto seria um insulto ao próprio Trono. Respondi que somente o receberia como recebo os outros, dos Estados tributários. Deve falar-me de joelhos, como os outros o fazem. E isto êle não quer fazer.
- Tem razão, tornou o Imperador num débil acesso de cólera. Assim encorajado, o Vice-rei prosseguiu com outras revelações:
- Ademais, Altíssimo esse Bowring insiste para que eu proíba ao povo de Cantão que imprima cartazes denunciando os estrangeiros brancos. Esses cartazes, Altíssimo, os chineses colam nos muros e nas portas da cidade e Bowring está irado porque chamam sua tribo de bárbara e porque exigem que todos os invasores abandonem nossas praias.
- Têm razão, exclamou o Imperador.
- Toda razão, Altíssimo, concordou o Vice-rei. - E como posso eu proibir o povo? Sempre foi seu antigo privilégio e costume dizer o que pensa e tornar conhecidos seus desejos aos seus governantes, através de protestos públicos. Eu é que direi que o povo não pode falar? Não seria provocar novas rebeliões? Todos ficaram amedrontados, o ano passado, quando ordenei aos exércitos provinciais que matassem todos os rebeldes. Nessa ocasião foram mortos oitenta mil rebeldes, como informei ao Trono do Dragão, mas se um deles permanece vivo, brotam outros dez mil, como praga. Isto não significa pôr o poder nas mãos dos chineses rebeldes que pensam continuamente que devem ser governados por chineses e não por manchus?
O Vice-rei atingira o alvo. O Imperador levou a mão direita à boca para esconder o tremor dos lábios. Temia os chineses ainda mais que os brancos que lhe faziam pressão. Sua voz desmaiou.
Certamente o povo não deve ser constrangido, murmurou.
Instantaneamente o Príncipe Kung repetiu-lhe as palavras, como era seu dever:
- Certamente o povo não deve ser constrangido, disse em voz alta e clara. Um sussurro de aprovação percorreu a multidão de príncipes e ministros ajoelhados.
Darei minha decisão amanhã, disse o Imperador ao Vice-rei, quando se fêz silêncio de novo.
O Vice-rei curvou a cabeça nove vezes até o chão e cedeu lugar a outro ministro. Mas todos sabiam o motivo por que o Imperador Protelara sua decisão.
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Naquela noite, quando foi chamada, Tzu Hsi sabia o que devia dizer. Ficara o dia inteiro sozinha, pensando, e nem mesmo mandara buscar seu filho. Lutava com a sua própria cólera. Se pudesse ceder à sua raiva, faria com que o Imperador mandasse seus exércitos atacar os estrangeiros e forçá-los a abandonar as praias da China, até a última criança, para nunca mais voltarem. Mas sua hora ainda não tinha chegado. Compreendia muito bem que precisava primeiro governar-se a si mesma, se queria governar os outros, pois não lera nos Analectos essas palavras?: "Quando a conduta de um governante é correta, seu governo é eficiente sem expedição de ordens. Se sua conduta pessoal não é correta, pode expedir ordens, mas estas não serão obedecidas". Se essas palavras eram verdadeiras para um governante masculino, quão verdadeiras deveriam ser para uma mulher! Tinha de ser duplamente rigorosa! Ah, se tivesse nascido homem! Ela própria comandaria os Exércitos Imperiais contra os invasores. Que pecados cometera, em alguma vida passada, para ter nascido mulher numa época em que eram necessários homens fortes? Meditou sobre a eterna questão, fazendo com que o espírito e a memória mergulhassem nas profundezas de seu ser. Não conseguia enxergar além do ventre. Era o que nascera e devia agir com o que tinha - um cérebro de homem num corpo de mulher. Combinaria o cérebro masculino com o corpo feminino para fazer o que devia ser feito.
Naquela noite, quando o Imperador a recebeu, encontrou-o demasiado amedrontado para sua luxúria habitual, um desejo tornado feroz porque seu corpo já não podia obedecer ao seu espírito. Recebeu-a ansiosamente e em sua ansiedade ela decifrou o seu medo. Segurando-lhe a mão direita, acariciou-lhe a palma e fêz-lhe a pergunta que guardara durante o dia todo:
- Que faremos com esse inglês Bowring? Não merece morrer?
- Merece, disse ela gentilmente, como merece morrer todo aquele que insulta o Filho do Céu. Mas vós sabeis, meu senhor, que quando se golpeia uma víbora é necessário cortar-lhe a cabeça com o primeiro golpe, pois do contrário o réptil tornará a atacar. Dessa forma nossa arma deve ser afiada e segura. Não sabemos que arma será essa, mas sabemos que a serpente é astuta e forte. Suplico-vos, portanto, que proteleis, sem ceder mas também sem recusar, até que o caminho se torne claro.
Êle ouvia, a face macilenta tremendo de ansiedade, e recebia cada palavra que ela proferia como se proviesse do Céu. Quando terminou, disse com fervor:
- Você é a própria Kuan Yin, Deusa da Misericórdia, enviada a mim pelo Céu, neste momento terrível, para guiar-me e proteger-me.
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Havia-lhe dito muitas palavras de amor, tinha-a chamado seu coração e seu fígado, mas o que dizia agora alegrou-a mais do que tudo quanto ouvira antes.
- Kuan Yin é a minha favorita entre os seres celestiais, redargüiu ela e sua voz, doce e poderosa como era por natureza, nesse momento foi também terna.
O Imperador sentou-se na cama com súbita energia:
- Peça ao Eunuco-Chefe que chame meu irmão, exclamou. Como todos os fracos, mostrava-se impaciente depois de tomar uma decisão e precipitado no agir.
Tzu Hsi obedeceu, não obstante. Poucos minutos depois entrava o Príncipe Kung e ela, fitando o seu rosto grave e belo, sentiu que aquele era um homem no qual se podia confiar. Ambos tinham um destino comum.
- Sente-se... sente-se, disse impacientemente o Imperador ao seu irmão mais moço.
- Permiti que permaneça de pé, respondeu cortêsmente o Príncipe Kung. Ouviu em seguida as palavras do Imperador, proferidas na sua característica voz aguda, nervosa, balbuciante.
- Nós... eu... decidi não atacar os estrangeiros brancos de um só golpe. Eles merecem morte imediata. Mas quando se pisa numa víbora... isto é, uma víbora deve ser morta instantaneamente, você compreende, esmagando-lhe a cabeça, ou decepando-a... porque a questão é...
- Compreendo, Altíssimo, tornou o Príncipe Kung. - É melhor não atacar, a menos que tenhamos certeza de destruir o inimigo instantaneamente e para sempre.
- É o que estou dizendo, atalhou o Imperador mal-humorado. - Algum dia, naturalmente, será isto que faremos. Entrementes protele, você compreende, sem ceder, mas também sem recusar.
- Ignorando os homens brancos? inquiriu o Príncipe Kung.
- Exatamente, tornou o Imperador com cansaço. Reclinou-se de novo nas almofadas de cetim amarelo.
O Príncipe Kung refletiu. Se seu irmão tivesse tomado aquelas decisões sozinho, acreditaria que fossem conseqüência de seu costumeiro medo de complicações, de sua constante letargia que o incapacitava para a ação. Mas sabia que se tratava de um conselho de Tzu Hsi. Ouvira-o, conhecendo muito bem a inteligência poderosa e arguta que se ocultava naquela bonita cabeça feminina. No entanto ela era muito jovem e... mulher! Seria aquilo sabedoria?
- Altíssimo, começou pacientemente.
Mas o Imperador recusou-se a ouvi-lo.
--Já falei! gritou em voz aguda e irritada.
O Príncipe Kung curvou-se:
- Assim seja, Altíssimo. Eu próprio transmitirei vossas ordens ao Vice-rei Yeh.
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A frágil paz continuou. Numa certa manhã de inverno do último mês do velho ano lunar e primeiro mês do novo ano solar, quando seu filho estava com nove meses de idade, Tzu Hsi acordou e, ao acordar, deu um profundo suspiro. Repetidas vezes, durante a noite, sua mente vigilante lutara por alcançar a consciência. Sentia uma solidão tão pesada que lhe parecia como que um monstruoso e invisível perigo do qual não podia fugir. Não mais despertava pela manhã como acordava em sua casa do Beco Pewter, abrindo os olhos ao calmo sol matinal que entrava através da janela gradeada. Sua cama, que partilhava com a irmã, era um refúgio ao qual nunca mais poderia voltar, sua mãe um abrigo que já não lhe pertencia. Quem, naquele vasto emaranhado de passagens emparedadas, pátios e palácios, se importava com o fato de ela estar viva ou morta? Até mesmo o Imperador tinha suas numerosas concubinas.
- Ah, minha mãe, gemeu ela docemente sobre seus travesseiros de cetim.
Nenhuma voz respondeu. Ela ergueu a cabeça e viu a cinzenta claridade da madrugada deslizando sobre as altas paredes do pátio, fora da sua janela. Nevara durante a noite e a neve jazia espessa sobre as paredes e sobre o jardim coberto. O lago redondo estava oculto sob a neve e os pinheiros curvavam-se sob o seu peso.
Estou demasiado triste, pensou ela. Sinto a própria medula de meus ossos fria de tristeza.
Contudo não estava enferma. Seus braços, sob a colcha, estavam quentes e fortes. O sangue fluía, o espírito estava claro. Apenas o coração doía.
Se eu pudesse ver minha mãe, pensou. Se pudesse ver aquela que me gerou...
Lembrou-se do rosto de sua mãe, sensível e bom, alegre e perspicaz, e sentiu uma vontade intensa de voltar para ela, dizer-lhe que tinha medo da solidão dos palácios. Na casa de seu tio, no Beco Pewter, não havia medo nem pressentimentos, nem ominoso futuro. O dia amanhecia apenas para as necessidades simples de alimentação e de trabalho. Não havia esplendor nem exigência de grandeza.
- Ah, minha mãe, suspirou ela de novo, sentindo uma necessidade infantil de amparo. Oh, se pudesse voltar à fonte de onde saíra!
A saudade dominou-a, levantou-se com ela no coração e passou o dia todo triste. Dia triste, de fato, a luz cinzenta para atravessar a cortina de neve, a tal ponto que ao meio-dia as lanternas ainda continuavam acesas nos aposentos. Não foi a parte alguma, exceto à sua própria biblioteca, lugar que ela preparara num pequeno palácio contíguo, há muito abandonado. Ordenara aos eunucos que ali pusessem os livros de que mais gostava e os pergaminhos que lhe aprazia ler e meditar. Mas os livros nada lhe disseram nesse.
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dia e ela permaneceu durante horas enrolando e desenrolando seus rolos até que encontrou o que buscava, um manuscrito de dezessete pés de comprimento, pintado pelo artista Chão Meng-fu, na dinastia mongol de Yuan. Esse rolo, de quinhentos anos ou mais de idade fora inspirado pelo seu favorito, o grande Wang Wei, mestre da arte paisagística, que pintara as cenas vistas de sua própria casa, onde vivera durante trinta anos, antes de morrer. Agora, entre as paredes do palácio, naquele dia de inverno, de onde só podia ver o céu e a neve caindo, Tzu Hsi contemplou as paisagens verdes de eterna primavera. Uma paisagem fundia-se na outra, à medida que lentamente desenrolava o rolo, de modo que pudesse demorar-se em cada detalhe de árvore, de riacho ou de colina distante. Assim, em imaginação, ela atravessava as altas paredes que a encarceravam e viajava através de uma região deliciosa, ao lado de arroios velozes e grandes lagos, e seguindo o rio eternamente vivo cruzava pontes de madeira e subia ladeiras de pedra que conduziam a elevados montes e lá de cima olhava um desfiladeiro pelo qual caía uma torrente alimentada por fontes ainda mais altas, rompendo em cascatas antes de alcançar a planície. Descia de novo a montanha, passava por aldeias escondidas entre florestas de pinheiro e chegava aos vales tépidos, entre touças de bambu; parava num pavilhão de poeta e chegava finalmente à praia onde o rio se perdia numa baía. Aí, entre os juncos, um barco de pescador subia e descia sobre a maré cheia. Aí terminava o rio, seu horizonte era o mar aberto e as nubladas montanhas do infinito. Aquele rolo, dissera-lhe certa vez a Dama Miao, era a pintura que o artista fizera da alma humana, passando através de agradáveis cenários da terra, até a última vista de um futuro desconhecido, situado muito além.
- E por que, perguntou-lhe o Imperador naquela noite, depois que o longo e solitário dia passara, por que seu espírito está tão longe de mim? Você não me engana. Seu corpo está aqui, mas sem vida.
Tomou-lhe a mão, suave e bela mão, pois suas últimas asperezas haviam desaparecido, os dedos delicados, a palma forte.
- Veja esta mão, disse êle. - Seguro-a, segura a minha, mas podia ser a mão de qualquer mulher.
Ela confessou o que ocorria.
- Senti-me triste todo o dia de hoje. Não falei com ninguém. Nem mesmo mandei buscar o menino.
Êle continuou a acariciar-lhe a mão.
- Por que, tendo tudo, sente-se triste? inquiriu êle.
Ela ansiava por contar-lhe seus estranhos receios, mas não se atrevia. O Imperador, acima de tudo, nunca deveria perceber nela, sobre quem se apoiava, qualquer indício de medo. Oh que pesada
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carga a necessidade de ser forte! E de quem extrairia ela sua própria força? Acima de si não havia ninguém. Estava realmente só. Lágrimas encheram-lhe os olhos, contra a vontade. O Imperador viu-as reluzir à luz das velas que ardiam ao lado de sua cama e assustou-se.
- Que é isto? gritou. - Nunca a vi chorar.
Ela retirou a mão e enxugou graciosamente os olhos na sua manga de cetim.
- Passei o dia inteiro com saudade de minha mãe, respondeu. - E não sei porquê. Será que fui, de algum modo, pouco filial? Não tornei a vê-la desde que vim viver entre estas paredes e não sei como está. Talvez esteja morrendo e é por isso que choro.
O Imperador estava todo ansioso por agradá-la.
- Deve visitá-la, insistiu. Por que não me falou? Vá, vá, meu coração e meu fígado, vá amanhã! Dou-lhe permissão. Mas é necessário que volte ao anoitecer. Não posso tê-la longe de mim uma noite sequer.
E foi assim que Tzu Hsi, uma vez mais, voltou à casa de sua mãe, por um dia, e o preço que agora pagava ao Imperador era a sua gratidão. No entanto não poderia ir no dia seguinte, pois a visita tinha de ser anunciada a fim de que a casa de seu tio fosse preparada para recebê-la. Mas no dia posterior ao seguinte, dois eunucos foram avisar que ela chegaria ao meio-dia. Que excitação no Beco Pewter! Tzu Hsi, também, estava aquecida pela sua própria ansiedade e levantou-se na manhã escolhida com um entusiasmo que não experimentava desde que chegara ao palácio. Passou uma hora decidindo e anulando suas decisões sobre o que vestiria.
- Não quero aparecer esplêndida, explicou à sua serva, pois pensarão que me tornei orgulhosa.
- Venerável, tornou a mulher, deveis aparecer um pouco esplêndida porque do contrário pensarão que não quereis honrá-los.
- Um esplendor moderado, concordou Tzu Hsi.
Examinou todos os seus vestidos, escolhendo este e aquele até que separou um cetim de um púrpura delicado, debruado com pele cinza. Era um belo vestido, beleza que se revelava na perfeição das mangas bordadas e da bainha, não na ousadia do seu desenho. Alegrou-se quando o vestiu e escolheu para ornamento seu jade favorito.
Depois de pronta e tendo comido um pouco, a rogo de suas damas, entrou em sua cadeirinha, que estava à espera no pátio, os carregadores fecharam as cortinas de cetim e começou a viagem. A primeira milha estendia-se dentro dos muros da Cidade Proibida e ela contemplava as cortes através das quais era conduzida, os salões pelos quais passava, sempre em direção ao sul, pois o Imperador, num excesso de amor, assegurara-lhe o privilégio de usar a porta principal, denominada Meridiana, pela qual, habitualmente,
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só êle próprio entrava e saía da cidade. Do lado de fora da porta ouviu o Comandante da Guarda Imperial ordenar sentido aos soldados enquanto ela passava. Como conhecia bem aquela voz! Inclinou-se na cadeirinha, afastou as cortinas meia polegada e, olhando através da fresta, viu Jung Lu a menos de dez pés de distancia, o rosto virado, a espada erguida diante dele, o corpo firme e ereto. Não olhou nem para a esquerda nem para a direita, quando ela passou mas Tzu Hsi compreendeu, pelo rubor de suas faces, que ele ouvira, que êle sabia que era ela. Deixou cair a cortina.
Era meio-dia quando Tzu Hsi alcançou a entrada do Beco Pewter, e escondida atrás das cortinas da cadeirinha sabia que estava perto da casa de sua infância. Sentiu os odores familiares de bolos salgados fritos em óleo de soja, a fragrância da cânfora, o cheiro de urina das crianças e o odor sufocante da poeira. O dia era seco e frio e sob os pés dos carregadores a terra estava gelada e dura como pedra. Sobre a terra pálida e seca as sombras das casas de cada lado do beco projetavam-se pequenas e negras nas paredes e Tzu Hsi, espreitando para baixo, por entre sua cadeirinha e as cortinas, calculou a hora. Tão freqüentemente correra de um lado para o outro naquele beco que podia, num segundo, dizer que horas eram. As sombras pendendo para o ocidente, pela manhã, e para o oriente, à tarde. Agora, à luz do sol a pino, sua cadeirinha aproximava-se do velho portão e ela espreitou de novo pela fresta da cortina e viu o portão aberto e toda a família reunida diante dele, para esperá-la. À direita achavam-se seu tio e sua mãe; junto deles os primos da geração mais velha e suas esposas; à esquerda viu uma jovem alta e magra que era certamente sua irmã - com ela, os dois irmãos, que haviam crescido e, atrás deles, Lu Ma. Encostados às paredes, de cada lado, achavam-se seus vizinhos e amigos do Beco Pewter.
Quando lhes viu as fisionomias graves e receptivas, lágrimas inundaram-lhe os olhos. Oh, era a mesma para eles e devia fazer com que o compreendessem! Dentro de seu peito batia o mesmo coração que eles conheciam tão bem! No entanto não podia abrir as cortinas e chamá-los pelo nome, pois, fosse qual fosse seu coração, era agora Tzu Hsi, a Imperatriz do Palácio Ocidental, mãe do Herdeiro Imperial, e deveria comportar-se à altura de seus títulos, onde quer que estivesse. Não fêz qualquer sinal e os eunucos seguiram até o portão. Na frente ia o Eunuco-Chefe, pois o Imperador lhe ordenara que acompanhasse o seu tesouro e nunca a perdesse de vista. Os seis carregadores subiram os degraus, transpuseram o portão aberto, atravessaram a entrada do pátio e finalmente depuseram a cadeirinha diante da casa. O próprio Eunuco-chefe afastou as cortinas de cetim e Tzu Hsi saltou, vendo à sua frente as portas abertas de seu velho lar. Lá estava a sala familiar,
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o vestíbulo principal, suas mesas e cadeiras polidas e limpas, o assoalho ladrilhado varrido. Antigamente competia a ela varrer, limpar e arrumar as cadeiras, sacudir o pó dos móveis, e agora tudo estava feito sem a sua interferência. Um vaso de flores de papel vermelho achava-se sobre a comprida mesa encostada à parede e velas novas nos candelabros de estanho. Em frente à mesa quadrada, entre as cadeiras cerimoniais, havia pequenos pratos cobertos de doces, um bule de chá e xícaras.
Pousou a mão no braço erguido do Eunuco-Chefe e êle a conduziu à cadeira mais alta da mesa quadrada. Tzu Hsi sentou-se e pôs os pés sobre o tamborete. Êle ajeitou-lhe as saias e ela cruzou as mãos sobre o colo. Então o Eunuco-Chefe voltou ao portão e declarou que agora a família poderia aproximar-se da Imperatriz do Palácio Ocidental. Um a um vieram eles, seu tio em primeiro lugar, depois sua mãe, em seguida os primos mais velhos da mesma geração, com suas esposas, e depois seus irmãos, sua irmã e os primos mais moços de sua geração, e cada um deles curvou-se à sua frente, enquanto atrás dela se achavam os eunucos e à sua direita o Eunuco-Chefe.
A princípio Tzu Hsi comportou-se, de fato, como competia a uma Imperatriz. Recebeu as reverências de sua família com ar grave e digno, mas quando seu tio e sua mãe se curvaram, fêz sinal ao Eunuco-Chefe para que os erguesse e os convidasse a sentarem-se. Terminada a cerimônia, ninguém sabia o que dizer. Todos tinham de esperar que a Imperatriz falasse e Tzu Hsi corria os olhos de um rosto ao outro. Ansiava por descer do alto lugar em que a haviam posto e falar como costumava fazê-lo antes. Ansiava por correr pela casa e ser livre como o fora outrora. Mas o EunucoChefe ali estava, observando tudo quanto ela fazia. Por um instante refletiu na maneira de fazer o que desejava. Tudo fora disposto pela ordem das gerações, os mais velhos sentados e os jovens de pé, e esperavam que ela falasse primeiro - mas como poderia falar do modo que seu coração ansiava? Súbito bateu com as unhas encapadas sobre a mesa polida à sua direita e fêz sinal ao EunucoChefe, significando-lhe que tinha algo a dizer-lhe. Êle se aproximou, curvou a cabeça e ela falou-lhe junto da orelha.
- Fiquem afastados, você e esses eunucos! Como posso expandir-me se vocês vão ouvir todas as palavras que eu disser e ver todos os gestos que eu fizer?
O Eunuco-Chefe preocupou-se ao ouvir semelhante ordem.
- Venerável, o Filho do Céu ordenou-me que não saísse de perto de vós, tornou êle num sussurro.
Tzu Hsi ficou subitamente irritada. Bateu com os pés no chão, tamborilou com as unhas douradas sobre a mesa e sacudiu a cabeça para o Eunuco-Chefe com tanto vigor que as pérolas de sua travessa tremeram. Seu próprio eunuco, Li Lien-ying, que se achava
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perto para segurar seu leque e a caixa de toilette, viu a sua fúria e, conhecendo muito bem o que prenunciava, puxou a manga do Eunuco-Chefe.
- Irmão Mais Velho, é melhor fazer-lhe a vontade, murmurou. Por que não descansa? Ficarei aqui por perto, para vigiá-la.
O fato era que o Eunuco-Chefe estava cansado de permanecer de pé e, não sabendo se devia obedecer a Tzu Hsi ou ao Imperador, aproveitou a oportunidade para passar a outro aposento. Vendo-o partir, Tzu Hsi sentiu-se mais à vontade, pois para ela Li Lien-ymg não passava de um móvel cuja função era segurar os objetos de que ela pudesse necessitar. Desceu então de sua alta cadeira, aproximou-se de seu tio, curvou-se, abraçou sua mãe e repousou a cabeça nos velhos ombros e chorou.
- Oh, como me sinto solitária no palácio! murmurou.
Todos ficaram consternados com essa queixa. Nem sua mãe sabia o que dizer, limitando-se a manter a filha apertada nos braços. E nesse longo momento Tzu Hsi compreendeu, pelo silêncio deles, que até mesmo os entes amados não poderiam socorrê-la. Ergueu então a cabeça, orgulhosa, e com os olhos ainda úmidos riu, exclamando para a sua irmã:
- Venha, tire essa coisa pesada da minha cabeça!
A irmã aproximou-se, retirou a travessa e Li Lien-ying tomou-a, colocando-a cuidadosamente sobre uma mesa. Sem esse ornamento de dignidade, todos viram agora que Tzu Hsi, a despeito de seus trajes imperiais e das jóias que tinha nas mãos e nos punhos, era a mesma moça alegre que sempre fora. Começou então a conversa e as mulheres aproximaram-se, acariciaram-lhe as mãos, examinaram-lhe os anéis e braceletes e puseram-se a comentar sua beleza.
- Sua pele é branca e macia, diziam. - Que é que passa na pele?
- Um ungüento da índia, feito de creme fresco e casca de laranja moída, respondia-lhes ela.
- E onde obtém o creme?
- É tirado de leite de jumenta.
Faziam essas pequenas perguntas, mas ninguém se atrevia a interrogá-la sobre sua vida na Cidade Proibida, ou como se comportava o seu senhor com ela, ou sobre o Herdeiro, com medo de proferirem uma palavra que, por acaso ou inadvertência, trouxesse ma sorte, como, por exemplo, se alguém dissesse a palavra "amarelo que sendo imperial parece inofensiva, mas faz parte de Fontes Amarelas, o que significa morte e o vocábulo morte não podia ser mencionado perto do Filho do Céu ou do Herdeiro. Mas Tzu Hsi não podia ocultar a alegria que sentia pelo seu filho. Embora os outros não falassem, falava ela, dizendo cheia de felicidade:
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- Eu desejava muito trazer meu filhinho para mostrá-lo a vocês, mas quando pedi ao Altíssimo, meu senhor, respondeu-me que não, que não podia ser, pois um vento mau ou a sombra de algum espírito cruel poderiam prejudicá-lo. Mas asseguro-lhe, minha mãe, que a criança encantaria sua alma e você deve ir visitá-la, desde que não posso trazê-la aqui. Os olhos dele são grandes assim... fêz dois círculos com os polegares e os indicadores - ...e é tão gordo, sua carne tão tenra... nunca chora, garanto-lhe, e está sempre com vontade de comer, seus dentes são mais brancos que pérolas, e embora ainda seja tão pequeno, quer ficar de pé, sobre as pernas, que são como dois postes debaixo de seu corpo forte.
- Psiu! fêz sua mãe. Psiu... psiu... e se os deuses a ouvirem, sua imoderada? Não procurarão destruir um menino assim?
Sua mãe olhou para cima e para baixo, para todos os lados e depois exclamou em voz bem alta:
- Não é nada disso! Ouvi dizer que é magro, fraco e... e... Tzu Hsi riu e tapou a boca de sua mãe com a mão:
- Não tenho medo!
- Não diga isso, insistiu a mãe.
Mas Tzu Hsi ria. Não tardou que se pusesse a andar por toda parte, olhando os quartos que tão bem conhecia e gracejando com a irmã, que agora tinha a cama inteira só para si, dormindo sozinha com a sua mãe num quarto. Perguntou sobre os planos de casamento da irmã e se prontificou a procurar um bom marido para ela, entre os jovens nobres.
- Descobrirei um, jovem e bonito, e lhe pedirei que se case com minha irmã.
A mãe mostrou-se grata:
- Se pode, será um ato filial, muito piedoso.
Assim passaram as horas e a família estava muito alegre porque Tzu Hsi era alegre. À tarde preparou-se um banquete. Lu Ma, muito ocupada, gritava para os cozinheiros contratados, e quando o dia chegava ao fim e a noite se aproximava, o Eunuco-Chefe voltou ao seu dever. Aproximou-se de Tzu Hsi e pediu-lhe que se preparasse para a partida.
- Já é tempo, Venerável. Tenho ordem do Altíssimo. Meu dever é obedecer.
Ela sabia que não havia remédio e concordou graciosamente. Uma vez mais voltava a ser a Imperatriz. Li Lien-ying tornou a colocar-lhe a travessa, ela tomou assento na cadeira alta da sala principal e se arrumou. Imediatamente os parentes transformaram-se em seus súditos. Adiantaram-se um a um, fazendo suas reverências e despedindo-se. A cada um deles ela dirigiu as palavras adequadas, deixando-lhes presentes. A Lu Ma deu dinheiro. Feitas as despedidas, permaneceu alguns minutos em silêncio, fitando uma coisa e outra. Aquele fora um dia de profunda felicidade e uma
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renovação das afeições simples de sua infância. E contudo sabia, de uma maneira vaga, que era a última vez que voltava aquela casa. Tudo parecia o mesmo, porém apesar de seu coração fiel ela sabia que nada era o mesmo. Ainda a amavam, mas esse amor estava mesclado de esperanças e desejos sobre o que ela poderia fazer por eles. Seu tio fizera insinuações sobre dívidas ainda não pagas, seu irmão ansiava por divertimentos e sua mãe pedira-lhe que não se esquecesse da promessa feita à irmã. De maneira mais velada, os demais parentes referiram-se a dificuldades. Ela se compadeceu e, generosa, fêz promessas a todos e as cumpriria porque poderia fazê-lo, porém sua solidão voltava-lhe dez vezes mais pesada ao coração, pois agora sabia que não era mais amada por si mesma. Era amada pelo que podia fazer e dar - seu coração estremeceu. Embora seu corpo houvesse voltado e durante aquelas poucas horas seu espírito se tivesse unido ao dos outros da casa, a separação era para sempre. O Destino impelia-a para diante e devia deixar os seus para trás. Não poderia haver regresso.
Ao adquirir consciência desse fato, desapareceu-lhe a alegria. A passos firmes atravessou a sala e entrou em sua cadeirinha. O Eunuco-Chefe cerrou pessoalmente as cortinas.
E assim Tzu Hsi voltou à Cidade Proibida. Quando se aproximou da grande porta Meridiana, a Guarda Imperial anunciava o fim do dia. Atrás do grande tambor, o guarda batia nele em ritmo rápido, de modo que os golpes caíam rudes e pesados, um após outro, e o ruído era como o pulsar de um gigantesco coração. Os corneteiros, em seus trajes vistosos, apareciam ao crepúsculo tendo cada um sua corneta nos lábios. Elevavam-nas todas simultaneamente e baixando-as a seguir ao mesmo nível, produziam um som comprido e trêmulo, que começava suave e adquiria vigor, acompanhando os golpes dos poderosos tambores até que, tornando a cair, silenciava por completo. Essa música era repetida continuamente, até por fim os corneteiros deixarem-na esmorecer tão lentamente, que se perdeu na distância. O homem do tambor, por sua vez, foi diminuindo a força das batidas, até terminar com três golpes lentos e medidos. Seguiu-se uma pausa e depois um sino de bronze ressoou três vezes, tocado por Jung Lu.
E a noite caiu como sempre. Os vigias iniciaram sua tarefa e Tzu Hsi, em sua cadeirinha, transpôs as grandes portas e ouviu-as cerrarem-se atrás de si.
O inverno terminou tarde e a primavera foi ainda mais retardada pelos maus ventos que sopravam do norte. Tempestades de areia torturavam a cidade e embora o povo fechasse as portas e calafetasse as janelas, o vento introduzia a areia fina e pálida através de todas as frestas. Tampouco eram boas as notícias do sul. O vice-rei Yeh cumprira as ordens do Trono do Dragão. Negociara
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e protelara, não respondera às diversas mensagens do inglês Sir John Bowring, e quando lhe comunicaram que um padre francês fora morto em certo lugar, nada disse nem respondeu à exigência do ministro francês, que pedia indenização. Mas agora o Vice-rei informava ao Trono do Dragão que, ao invés de se acalmarem com essa indiferença, os brancos mostravam-se mais inquietos que antes, e êle, Vice-rei, solicitava novas instruções ao Filho do Céu. E se a guerra rebentasse de novo? Além disso havia o pequeno problema das famílias dos decapitados, os tripulantes do navio A Seta. Estavam encolerizados, seus filhos e sobrinhos se haviam juntado aos chineses rebeldes, por vingança contra o Vice-rei, representante do longínquo Imperador. Pior que tudo: dizia-se que o inglês Elgin, um nobre muito poderoso, ameaçava preparar navios ingleses e penetrar na baía de Tientsin para atacar os fortes de Taku, que protegiam a própria capital.
Ao ler esse memorial o Imperador caiu doente, foi para a cama e não quis mais comer. Passou o documento, em silêncio, ao seu irmão Príncipe Kung, que havia chamado, e ordenou que Tzu Hsi também o lesse, devendo os dois apresentarem mais tarde sua opinião. Ora, pela primeira vez Tzu Hsi discordou abertamente do Príncipe Kung. Discutiram na Biblioteca Imperial, lugar onde habitualmente se encontravam, na presença do Eunuco-Chefe e de Li Lien-ying, os quais ouviram tudo quanto foi dito.
- Venerável, disse sensatamente o Príncipe Kung, torno a dizer-vos que não é prudente despertar a cólera desses homens brancos. Possuem armas e navios de guerra e no íntimo são bárbaros.
- Que voltem para as suas terras. Experimentamos tratá-los com paciência e fracassamos, exclamou Tzu Hsi.
Sua beleza acentuava-se quando se mostrava altiva. O Príncipe Kung suspirou ao ver tanta formosura e tanto orgulho. Admitiu porém, no íntimo, que aquela mulher tinha uma energia que nem êle nem seu irmão possuíam - e na verdade a época necessitava de energia.
- Não dispomos de meios para obrigá-los a voltar, lembrou-lhe.
- Teremos os meios se tivermos a vontade, redargüiu ela. - Poderemos matá-los enquanto forem poucos e atirar seus cadáveres ao mar. Os mortos voltam?
O Príncipe objetou:
- A morte acabará com eles? Quando suas nações o souberem, mandarão mil homens brancos substituir cada morto e eles virão em numerosos navios de guerra, conduzindo suas armas mágicas contra nós.
- Não os temo, declarou Tzu Hsi.
- Temo-os eu, respondeu o Príncipe Kung. - Temo-os muito. Não é apenas de suas armas que tenho medo - é deles próprios. Quando são atacados, respondem cada golpe com dez. Não, não,
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Venerável o melhor caminho é a negociação, compromissos e protelações como vós sabiamente aconselhastes antes. Estas devem ser nossas armas. Devemos ainda confundi-los com protelações e promessas não cumpridas, afastando o dia aziago de seu ataque. Devemos cansá-los e desencorajá-los, falando-lhes sempre cortesmente, parecendo ceder e nunca cedendo. Esta é a nossa firme sabedoria.
Assim, foi decidido, ao cabo, e para que Tzu Hsi se distraísse, pois continuava rebelde, o Príncipe Kung aconselhou a seu irmão mais velho, o Imperador, que lhe permitisse passar a estação quente no Palácio de Verão, fora da cidade de Pequim. Lá, entre lagos e jardins, ela poderia brincar com o Herdeiro e com suas damas, esquecendo-se dos problemas da nação.
- A Imperatriz do Palácio Ocidental gosta do teatro, sugeriu êle - Ordenai que se construa um palco no Palácio de Verão e que sejam contratados atores para diverti-la. Entrementes, estudarei com os conselheiros a resposta que deverá ser dada ao sul. Devo ainda lembrar que quando chegar a verde primavera, celebraremos o primeiro aniversário do Herdeiro e que será conveniente anunciar o acontecimento com antecedência, a fim de que o povo possa preparar seus presentes. Assim todos se distrairão, enquanto refletimos sobre os perigos que nos esperam.
Dessa forma esperava o Príncipe Kung acalmar a cólera de Tzu Hsi e fazer com que seus pensamentos se voltassem para o prazer, afastando-os da orgulhosa vingança contra os homens brancos. Em seu íntimo estava muito temeroso e desejava aconselhar-se com os príncipes, ministros e com todos aqueles em cuja sabedoria pudesse confiar. Pois via no futuro, e não muito distante, a crescente ameaça dos homens do Ocidente. Tinham descoberto os tesouros da velha Ásia e, sendo habitantes de nações jovens e pobres, como se poderia pedir-lhes que abandonassem o que tinham encontrado? Deviam ser serenados, embora não soubesse como, até que se pudesse planejar a defesa. Sentia-se realmente perturbado, insone, sem apetite, pois suas preocupações ultrapassavam o seu discernimento. Os velhos costumes civilizados de paz e prudência estavam ameaçados por uma força nova e bruta. Qual delas prevaleceria e em qual delas residia o poder maior, na violência ou na paz?
Tão graves eram esses tempos que o Imperador, no quinto mês, renovou um antigo rito que seus ancestrais raramente observaram depois do fim da dinastia anterior de Ming. Na Festa da Primavera dos Mortos, naquele ano lunar, o Imperador, perturbado e atemorizado, anunciou que oraria no Templo Supremo dos Imperiais Ancestrais. Era esse um antiqüíssimo templo situado num vasto parque onde grandes pinheiros impediam que seus tetos fossem banhados pela luz do sol. Tais pinheiros, sendo mais velhos que a memória de qualquer homem, estavam cheios de nós e torcidos
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pelo vento e pela areia - debaixo deles o musgo era mais espesso que veludo felpado. No interior do Templo acham-se os altares sagrados dos imperadores mortos, com seus nomes esculpidos em tabuletas de madeira preciosa, cada uma delas sobre uma almofada de cetim amarelo. Somente sacerdotes de mantos amarelos perambulavam pelo parque e cuidavam do Templo. Por toda parte reinava um silêncio tão pesado como os séculos passados. Nenhum pássaro cantava naquele lugar quieto, porém grous brancos vinham na primavera fazer seus ninhos nos galhos dos pinheiros, chocando seus ovos e indo-se embora de novo no outono.
A esse lugar portanto, na Festa dos Mortos, o Imperador se dirigiu com seus príncipes e duques, conselheiros e altos ministros. Era a hora antes do amanhecer e a neblina, incomum naquele clima seco do norte, erguia-se da terra para o céu, de modo que irmão olhando para irmão não podia reconhecer a fisionomia um do outro. Dois dias antes da festa as tabuletas ancestrais dos falecidos governantes manchus tinham sido trazidas de seu salão particular, próximo à Biblioteca Imperial, e à luz de lanternas de chifre - tão densas eram as sombras sob os pinheiros - o Eunuco-Chefe e seus eunucos dispuseram-nas sobre os onze altares no interior do templo.
Tudo agora estava pronto para a chegada do Filho do Céu. Êle passara a noite no Salão da Abstinência, sem comer nem beber nem dormir. O povo de toda a nação não comera carne durante três dias, nem provara alho ou azeite, nem bebera vinho nem ouvira música, nem assistira a espetáculos, nem convidara hóspedes. Os tribunais permaneceram fechados durante esses três dias e nenhuma ação foi movida contra ninguém.
À sombria hora antes do amanhecer, o Açougueiro da Corte comunicou que matara os animais para o sacrifício e derramara o sangue fresco em tigelas, enterrando os ossos e a pele. Os príncipes e duques informaram que a prece sagrada estava escrita - a prece que o Filho do Céu deveria recitar perante os Ancestrais cujas tabuletas se achavam erguidas sobre as almofadas de amarelo-imperial, em cima dos altares.
O Imperador recebeu esses comunicados e levantou-se para permitir que o Eunuco-Chefe lhe vestisse os solenes trajes do sacrifício, púrpura escura ornada de ouro. Apoiando-se em dois parentes próximos, seus primos do primeiro grau, entrou no Templo Supremo. O Príncipe Kung, seu irmão mais moço, esperava para recebê-lo. Nenhum estranho estava perto. Até mesmo os eunucos do Templo se afastaram antes de o Filho do Céu entrar - ficaram na porta exclusivamente os seus parentes. Então os príncipes imperiais adiantaram-se ao encontro do Imperador e após reverenciá-lo começaram a conduzi-lo de um para outro dos onze altares. A cada um êle fazia nove reverências e oferecia tigelas de alimento e vinho
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e diante de cada altar fazia a mesma oração. A prece era pela paz e pela segurança contra os novos inimigos que haviam chegado do Ocidente. Era uma prece longa. O Imperador leu-a nove vezes, lentamente e na voz mais alta de que era capaz.
Contou aos Espíritos dos Grandes Mortos o que os homens do Ocidente haviam feito, como tinham feito guerra e se apoderado de territórios, como chegaram qual tribos bárbaras, em navios que vomitavam fogo para assustar o povo. Contou ainda como esses homens insistiam em manter um comércio indesejável.
Temos nossos próprios bens, ó Veneráveis Ancestrais, declarou o Imperador em sua prece. - Não necessitamos dos brinquedos ocidentais. Que nos pode faltar, se estamos sob a proteção do Céu e dos Nossos Guardiães Ancestrais? Rogamos aos Nossos Ancestrais que nos protejam agora. Que os estrangeiros sejam expulsos para o mar! Enviai pestes para destruí-los! Enviai insetos venenosos para mordê-los e víboras para os fulminarem! ó Guardiães do nosso povo, devolvei-nos nossa terra e dai-nos paz.
Quando a prece terminou estava prestes a amanhecer e à luz do alvorecer, bandos de pombos, que dormiam sob os amplos beirais do telhado do Templo, despertaram, abriram as asas e puseram-se a voar ao redor dos velhos pinheiros. As chamas das velas desmaiaram dentro das lanternas e partículas de pó dançavam nos pálidos raios de sol que se insinuavam através dos largos portões do Templo. O sacrifício terminara e o Imperador deixou-se novamente conduzir ao seu palanquim, que o levou de volta aos seus palácios. O povo, em toda a nação, retomou a sua vida costumeira, confortado e encorajado porque o Filho do Céu em pessoa se havia curvado perante os Guardiães Ancestrais, fizera-lhes seu relatório e orara em benefício de todos.
Esses ritos, na Festa da Primavera dos Mortos, reconfortaram o Imperador de tal maneira que, ao aproximar-se o sexto mês do ano lunar e ao aumentar o calor do verão, êle próprio decidiu ir ao Palácio de Verão com suas duas Consortes, levando o Herdeiro e a Corte. Até então, embora ansiasse por ir, não o fizera por sentir-se inquieto com os problemas do governo. E se os rebeldes chineses avançassem enquanto êle se achava longe da capital, ou se os ocidentais se irritassem de súbito e rumassem com os seus navios ao longo das costas ao norte, como há tanto ameaçavam fazer? No entanto nenhum desses maus acontecimentos ocorrera, embora tudo continuasse sombrio - as protelações e evasivas tinham contido tanto os rebeldes quanto os ocidentais.
Zu Hsi, numa certa noite em que a lua estava cheia, com seu sorriso fascinante, disse ao Imperador:
Meu Senhor, vinde comigo ao Palácio de Verão. O frescor das montanhas restaurará vossa saúde.
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O Imperador estava agudamente necessitado de restauração. A lenta paralisia que o vinha enfraquecendo há cinco anos, invadiralhe as pernas. Em certos dias não podia caminhar e era obrigado a apoiar-se sobre dois eunucos, que lhe serviam de muletas. Noutras ocasiões era impotente para levantar as mãos até a altura da cabeça. O lado esquerdo, praticamente morto, era sua constante aflição e sentia seu peso pelo corpo inteiro. Cedeu, portanto, à bela mulher que o animava e fortalecia como nenhuma outra criatura o conseguia e decidiu-se, um mês depois, a empreender a viagem ao Palácio de Verão, situado cerca de nove milhas além dos muros da cidade.
Tzu Hsi, embora tivesse ares de Imperatriz em plena majestade, ainda era muito jovem e a idéia de umas férias inflamou-lhe o coração como vinho quente. Ainda não aprendera a amar os severos e nobres palácios em que estava destinada a viver, embora entre eles houvesse preparado pequenos recantos separados para si, jardins secretos em velhos pátios esquecidos e terraços que ninguém freqüentava, e onde às vezes podia refugiar-se do fardo do Estado que era obrigada a carregar. Em seu próprio palácio tinha seus animais de estimação, uma cachorrinha, que a divertia com os seus filhotes, e conservava em gaiolas pássaros de muitas cores e grilos. Mas os bichos de que mais gostava não eram esses e sim os selvagens que se instalavam às vezes nas árvores e sobre os lagos. Sabia imitar tão bem o cricri de um grilo que atraía o inseto, fazendo-o sentar-se em seu dedo, enquanto lhe acariciava as asas delgadas. Com muita paciência aprendeu a reproduzir o canto do rouxinol, ao crepúsculo, de maneira que a pequenina criatura alada voava embriagada ao redor de sua cabeça. Quando isso acontecia ela experimentava uma felicidade infantil por ser amada exclusivamente por si mesma e não pelos favores que pudesse conceder. Muitas vezes, com o filho nos joelhos, esquecia-se de que êle era o Herdeiro e juntos contemplavam um bando de patinhos novos ou cachorrinhos correndo e brincando, e ela ria tão alto que as damas se maravilhavam e sorriam atrás de seus leques. Mas Tzu Hsi não tinha medo de sorrisos nem de reprovações. Era ela mesma e, assim como era, continuava a ser, uma criatura tão livre quanto aquelas com as quais brincava. No entanto, apesar das quatro milhas quadradas da Cidade Proibida, sentia-se encarcerada entre os seus muros e ansiava por sair, por visitar aquele lugar de que tanto lhe haviam falado mas que nunca tinha visto.
O Palácio de Verão fora inicialmente construído, muitos séculos antes, pelos imperadores então reinantes, exclusivamente para o prazer. Escolheram para sua localização um sítio próximo a uma fonte eterna que corria tão límpida e pura, suas águas sempre tão claras e frescas, que foi denominada Fonte de Jade. O primeiro Palácio de Verão fora destruído por ocasião de uma guerra e novamente
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reconstruído, dois séculos antes, pelo Imperial Ancestral K'ang Hsi, então reinante. Mas o Imperial Ancestral Ch'ien Lung, seu filho, então reinante, juntou todos os edifícios separados, unindo-os num vasto parque semeado de lagos e rios e cruzado por montes de mármore ou de pau-ferro, pintadas e esculpidas por artesãos mestres. Ch'ien Lung apaixonou-se de fato pelo que tinha feito e quando soube que o Rei de França, então reinante, também possuía palácios de prazer em sua terra distante, perguntou aos ministros franceses e aos padres jesuítas que tinha o seu rei que êle não tivesse, pois os Imperadores daquela época gostavam dos ocidentais e recebiam-nos com satisfação, sem suspeitarem que mais tarde alimentariam intenções perniciosas. Quando Ch'ien Lung soube das coisas belas que o rei francês fizera, desejou possuí-las também e acrescentou a beleza ocidental ao Palácio de Verão. Os padres jesuítas, por sua vez, pensando em conquistar os favores do grande Ch'ien Lung, trouxeram-lhe de França e da Itália quadros dos palácios da Europa, os quais êle estudou atentamente e mandou reproduzir as coisas que mais lhe haviam agradado. Mas depois do tempo de Ch'ien Lung, o Palácio de Verão ficou fechado, porque seu Herdeiro, Chia Ch'ing, gostava mais do Palácio do Norte, em Jehol, e lá foi atingido por um raio, num dia de verão, quando se achava em companhia de sua concubina favorita. E T'ao Kuang, seu filho, pai do Imperador Hsien Feng, agora reinante, era miserável e não permitia que a Corte saísse, nem mesmo durante o calor, para o Palácio de Verão, porque temia as despesas.
Com muita alegria, por conseguinte, a Corte se pôs a caminho, ao alvorecer de um dia de verão - o orvalho cobria as folhas dos arbustos e uma neblina cálida envolvia todas as coisas. Tzu Hsi levantara-se muito cedo e ordenara às suas mulheres que lhe vestissem trajes simples, adequados ao campo. E assim puseram-lhe um vestido de seda fina, feita de fibra de ananás, importada das ilhas do sul, de côr verde-pálido. Não usou jóias, exceto suas pérolas. Com a sua pressa, aprontou-se muitas horas antes de o Imperador acordar, vestir-se e comer sua refeição matinal. O sol já estava alto quando o cortejo imperial se pôs a caminho, os Portabandeiras na frente, depois os príncipes e suas famílias, por último os Guardas Imperiais a cavalo, com Jung Lu na frente, montado num enorme garanhão branco. Atrás deles e antes do palanquim de cortinas amarelas do Imperador, seguia Tzu Hsi em seu próprio palanquim, com o filho e a ama, e ao lado de Tzu Hsi, em outro Palanquim, ia Sakota, a Imperatriz do Palácio Oriental. Havia meses que as duas damas não se encontravam. Vendo a face pálida da prima nessa manhã, Tzu Hsi censurou-se e resolveu que, quando lhe sobrasse tempo, reforçaria os laços de parentesco com sua irmã Consorte.
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As ruas através das quais passava o cortejo imperial estavam vazias e silenciosas. Bandeiras amarelas triangulares tinham sido colocadas antes do amanhecer ao longo da estrada escolhida pelo Filho do Céu, avisando ao povo que nem homem nem mulher nem criança deviam permanecer nas ruas àquela hora. As portas de todas as casas estavam cerradas, as janelas com as cortinas fechadas, e onde quer que houvesse uma rua transversal, cortinas de seda amarela impediam a passagem de qualquer cidadão. Quando o Filho do Céu transpôs a porta Meridiana, soaram tambores e gongos, advertindo o povo para que cada um entrasse em sua casa e ocultasse o rosto. Os tambores e gongos tornaram a soar e os homens que amaciavam a estrada com areia amarela também se retiraram. Quando soou o terceiro aviso dos tambores e gongos, os nobres dos clãs manchus, todos em seus melhores trajes, ajoelharam-se de cada lado da estrada, à passagem do Filho do Céu, cercado por seus mil guardas. Nos velhos tempos os Imperadores saíam sempre montados em grandes cavalos árabes, com arreios de ouro, as selas cobertas de veludo recamado de jóias. Mas Hsien Feng, agora reinante, não sabia montar e por conseguinte tinha de viajar em seu palanquim. Era tímido, também, porque se sabia magro e pálido, por isso não permitia que os eunucos afastassem as cortinas. Escondido e em silêncio era transportado através da estrada coberta de areia amarela, e os nobres ajoelhados não o viam nem lhe ouviam a voz.
Na aldeia de Haí T'ien, fora dos muros da cidade, a estrada voltava-se para este. Os palanquins do Imperador e das duas Consortes, bem como toda a Corte, atravessaram essa aldeia. Ela fervilhava de negócios, pois nela viveriam os Guardas Imperiais e nas proximidades rurais príncipes, duques e outros nobres possuíam palácios e propriedades, de modo que podiam mais facilmente transportar-se ao Palácio de Verão quando o Imperador lá se encontrava. Os habitantes achavam-se todos alegres, pois quando a corte se instalava no Palácio de Verão de Yuan Ming Yuan todos ficavam ricos.
Ao pôr do sol, o cortejo imperial aproximou-se dos portões do Palácio de Verão. Olhando através das frestas das cortinas, Tzu Hsi viu o elevado portão de mármore branco esculpido, guardado por dois leões de ouro. Estava aberto, à espera, e quando o atravessou encontrou-se num tranqüilo e vasto parque. Não pôde conter-se e abriu as cortinas para ver uma paisagem de sonho. Pagodes pareciam suspensos nas colinas verdes, riachos corriam suavemente por entre caminhos sinuosos pavimentados de mármore, pontes esculpidas de mármore branco conduziam a centenas de pavilhões, cada qual diferente do outro, com seus dourados e telhas coloridas. Uma vida inteira não bastaria para conhecer tudo aquilo. E por mais que visse, muito restava ainda a ver; os grandes palácios
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construídos havia tanto tempo e enriquecidos por cada novo operador. O famoso relógio de água, cujos doze animais esguichavam água 'da Fonte de Jade, cada um durante duas horas. E cada Palácio assim ouvira dizer - estava cheio de tesouros não somente do Oriente mas da Europa e do Ocidente. Sua alma amante de prazeres regozijou-se e sentiu-se impaciente por andar livremente por aqueles recantos.
Ao pôr do sol seu palanquim parou, as cortinas foram afastadas por Li Líen-ying, e ela se levantou com a sensação de haver chegado a um país de fadas, encantado e desconhecido. Olhou ao seu redor e, por um estranho acaso, seu olhar caiu, naquele exato momento, involuntário e desprevenido, sobre Jung Lu. Êle se achava só - Seus homens atrás do Imperador, cujo palanquim já se encontrava no grande Salão de Entrada. Sem esperá-lo, êle ergueu a cabeça e deu com os olhos que conhecia tão bem. Ela captou-lhe o olhar, êle o dela, e por um instante seus corações se entrelaçaram. Viraram rápidos as cabeças, passado o momento. Tzu Hsi entrou no palácio que lhe fora reservado, seguida de suas damas. Mas sentiu-se invadida por súbita felicidade. Transbordava de alegria por tudo quanto via, ao passar de um aposento a outro. Esse palácio, agora seu, era denominado Palácio do Contentamento. Era velho e a sua própria velhice a encantava. Imperadores e suas cortes tinham-no freqüentado em busca de prazer e para fugir das preocupações oficiais e ali tinham encontrado paz e alegria. Depois de ter visto tudo quanto pôde naquele dia, voltou à entrada e, de pé na soleira das largas portas, abertas ao sol poente, estendeu os braços para a paisagem, bela e clara na luminosa claridade do crepúsculo.
- O próprio ar é melífluo, disse às suas damas. - Aspirem-no e sintam como é leve aos pulmões! Comparem-no com o ar pesado que respiramos entre os muros da cidade!
As damas aspiraram como ela ordenara e exclamaram sua concordância. De fato o ar era puro e fresco, porém não frio.
- Desejaria passar toda a minha vida aqui, exclamou Tzu Hsi. - Ah, pudesse eu nunca voltar à Cidade Proibida!
As damas protestaram ruidosamente. Como poderia faltar ao centro da vida da nação? perguntaram.
- Pelo menos não falemos de nada que não seja alegre, insistiu Tzu Hsi. - Devemos esquecer tudo quanto seja triste, desperte a cólera ou inflija dor.
As damas concordaram em coro de suaves murmúrios e suspiros, e Tzu Hsi, ansiosa por continuar suas descobertas da multivariegada quantidade de palácios e jardins, demorou-se na porta. O dia chegava ao fim, o sol escondia-se atrás das torres dos pagodes, a claridade do arrebol desvanecia-se dos lagos e dos rios. Breve, as
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sombras das pontes de mármore não mais dançariam sobre as águas e o dia teria terminado.
- Dormirei cedo, disse Tzu Hsi, e me levantarei de madrugada. Por mais amanhãs que nos esperem neste adorável lugar, não serão suficientes para que vejamos tudo quanto merece ser visto e para que nos saturemos de prazer.
As damas concordaram e a lua mal se havia erguido quando Tzu Hsi se retirou para os seus aposentos. Serviram-lhe uma refeição leve de doces e gulodices, tomou seu favorito chá verde, e depois, banhada e com roupas limpas de seda, deitou-se para dormir. A princípio disse que não podia dormir, tão suave era o ar da noite, e por duas vezes, depois que suas fatigadas mulheres adormeceram, levantou-se da cama para olhar pelas janelas abertas. O palácio erguia-se alto acima das baixas muralhas circundantes e ela podia ver, além, as montanhas distantes, pálidas ao luar. A paz penetroulhe o espírito, uma paz tão profunda que parecia o prelúdio do próprio sono, e contudo ela permanecia desperta em todos os sentidos. Diante dela estendia-se a dourada paisagem enluarada. Aspirou a fragrância dos lírios noturnos, ouviu o grito nítido dos pássaros. Sua solidão atenuou-se, o medo de guerras e conflitos desvaneceu-se, seu coração impetuoso aquietou-se e seus pensamentos encheram-se de bondade. Além do terraço, à direita, erguia-se o Palácio da Nuvem Flutuante, reservado para Sakota. Amanhã... não, amanhã não, mas algum dia, quando sua felicidade fosse plena, reataria a fraternal amizade com Sakota. Como era estranho pensar que haviam crescido juntas, sob o mesmo teto, no Beco Pewter, e agora viviam lado a lado, em seus dois palácios, tendo como senhor mútuo o Imperador!
E então, porque seu espírito nunca permanecesse tranqüilo por muito tempo, pensou em Jung Lu, seu parente, e como o vira por um rápido momento naquele dia, como seus olhares se haviam encontrado involuntariamente e depois se separaram contra a vontade. De súbito ansiou violentamente por ouvir sua voz e sabê-lo perto. E por que não o chamaria, sendo seu parente... para - digamos - pedir-lhe um conselho? De que conselho necessitava? Seu espírito começou a trabalhar, buscando um pretexto. A promessa que fizera à sua mãe, de casar a irmã com um príncipe, e que ainda não cumprira... era um assunto para o qual podia aconselhar-se com o seu parente. E ao seu eunuco, ao seu fiel servo Li Lien-ying, diria honestamente:
- Tenho uma questão de família, uma promessa que fiz à minha mãe, e desejo aconselhar-me com o meu parente, o Comandante da Guarda Imperial...
O luar tornou-se mais belo, o ar mais fragrante, e ela suspirou de felicidade. Ali, naquele lugar mágico, os prodígios não podiam realizar-se? Sorriu para si mesma, com secreta zombaria. Havia
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uma lâmina em sua alegria, uma fina e afiada lâmina de velho desejo, uma perturbadora lembrança que despertava e clamava por se renovar. Bem, que não mais se repetisse, pensou ela. A retidão dele a protegeria, a fechadura da qual êle guardava a chave. Nele podia confiar, pois êle estava situado acima da corrupção.
De súbito sentiu vontade de dormir e deslizando para a sua cama, caminhou cautelosamente por entre as mulheres adormecidas sobre as esteiras. Afastou as cortinas e deitou-se.
O dia amanheceu novamente claro e tranqüilo, dia sem vento, no entanto refrescado por alguma longínqua tempestade do norte, e ela deixou o dia passar, esquecida de tudo exceto do prazer infantil que lhe proporcionavam as coisas ao seu redor. Muitos dias deveriam passar antes que pudesse ver tudo quanto havia para ser visto. Depois que visitasse os palácios, lagos e pátios, os terraços, jardins e pavilhões, restariam ainda as casas dos tesouros, anexos ao Yuan Ming Yuan, onde se achavam guardados presentes oferecidos aos imperadores da dinastia atual durante duzentos anos. Seda aos lotes de mil peças, peles trazidas de regiões além do rio Siber, curiosidades de todos os países da Europa e das Ilhas Britânicas, tributos do Tibet e do Turquestão, presentes da Coréia e do Japão, bem como de todas as nações menores que, apesar de livres, reconheciam que seu guia e líder era o Filho do Céu; móveis finos e mercadorias preciosas das províncias do sul, jades e bibelôs de prata, caixas, vasos de ouro e gemas da índia e dos mares do sul, tudo isso esperava por seus olhos sôfregos e por suas mãos vivazes para avaliar-lhes o peso, a forma e a contextura.
E ao anoitecer de cada dia, por ordem do Imperador, era apresentada uma peça teatral à Corte, pelos Atores Imperiais, e pela primeira vez Tzu Hsi podia satisfazer plenamente o seu desejo e o seu amor pelo teatro. Lera livros sobre o passado, estudara com atenção os antigos quadros e escritos, mas nas peças teatrais via os homens e as mulheres da História ressuscitarem perante seus olhos. Passava a viver com outras consortes e imperatrizes e se via a si mesma, nascida numa época anterior, vivendo e morrendo. E à noite, pensativa, ia para a cama quando a peça convidava à meditação, alegre se a obra era alegre, mas sempre com prazer.
Um dos tesouros que mais a atraía era a biblioteca que o próprio Ancestral Ch'ien Lung mandara formar com os livros célebres dos últimos quatro mil anos. Por sua ordem esses livros tinham sido copiados pelos eruditos do seu reino, constituindo um vasto e inestimável tesouro. Os escribas prepararam duas coleções de manuscritos - uma para ficar na Cidade Proibida e a outra ali, a fim de que não se perdessem caso o fogo ou os inimigos invasores destruíssem uma delas. Tzu Hsi ainda não havia posto a mão sobre esses livros, pois na cidade a coleção se encontrava no Salão da
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Glória Literária, trancado à chave durante o ano inteiro, exceto por ocasião da Festa dos Clássicos, quando era dever dos maiores eruditos retirarem os antigos livros e exporem seu significado ao Imperador reinante. Desde que o Primeiro Imperador, oitocentos anos antes, queimara os livros e enterrara os eruditos para pôr fim à sabedoria antiga, tornando-se assim a autoridade suprema, os sábios posteriores preocuparam-se em preservar os livros ensinando a todos que deviam ser reverenciados, em primeiro lugar pelo próprio Imperador e depois pelos súditos. A fim de que as palavras do sábio Confúcio não pudessem ser destruídas por governantes voluntariosos, os Quatro Livros e os Cinco Clássicos foram mesmo esculpidos em pedra e esses monumentos achavam-se no Salão dos Clássicos, cujos portões eram providos de grades. Mas ali, em Yuan Ming Yuan, Tzu Hsi, apesar de mulher, podia ler os escritos antigos. Deliberou por conseguinte fazê-lo, ou num dia de chuva ou num dia em que se sentisse saciada pela paisagem.
Mas, fosse qual fosse a sua distração durante os primeiros vinte dias; quer comparecesse às festas ao ar livre, nas casas flutuantes imperiais da Corte; quer passeasse por entre os jardins floridos ou brincasse com seu imperial filho, que desabrochava exuberante naquele ar puro; quer, finalmente, quando era chamada à alcova do Imperador, não esquecia, por um momento sequer, o seu desejo de falar novamente com Jung Lu, seu parente. O pensamento jazia enroscado em seu cérebro, o seu plano feiticeiro, germe dentro da semente, pronto a voltar à vida a qualquer momento que ela assim o desejasse.
Um dia, inquieta pela demasiada liberdade e incessante prazer, decidiu-se de súbito. Chamou Li Lien-ying, acenando-lhe com os dedos cobertos de jóias. Êle estava sempre perto e sempre vigilante. Quando a viu erguer a mão, correu imediatamente e ajoelhou-se, cabeça baixa, para ouvir a ordem.
- Estou com o espírito perturbado, disse ela em sua voz clara e imperiosa. - Não posso esquecer a promessa que fiz à minha mãe sobre o casamento de minha irmã mais moça. Contudo os meses passam e ainda nada fiz. Entrementes, na casa em que nasci, todos esperam cheios de ansiedade. Mas a quem posso pedir um bom conselho? Lembrei-me ontem de que o Comandante da Guarda Imperial é nosso parente. Somente êle poderá auxiliar-me nessa questão familiar. Diga-lhe que venha ver-me.
Falou propositalmente diante de suas damas, pois estava tão altamente colocada que não podia ter segredos. Que todos soubessem o que fazia. Depois que terminou sentou-se tranqüilamente em seu pequeno trono, uma poltrona delicadamente esculpida e tauxiada de marfim das presas dos elefantes de Burma. As damas, ao seu redor, ouviram-na e nenhum sinal fizeram que revelasse algum pensamento menos inocente.
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Quanto a Li Lien-ying, conhecia agora muito bem a sua sobeana e se apressava a obedecer às suas ordens, pois nada a enfurecia mais do que a demora em obter o que desejava. Ninguém sabia que pensamentos atravessavam aquele negro coração, nem ninguém perguntava, mas êle decerto se lembrava de um outro dia em que obedecera a uma ordem semelhante e levara Jung Lu até à porta de Yehonala. No pátio, do lado de fora da porta fechada, impedindo a entrada de quem quer que fosse, êle vira, naquele dia, as horas se escoarem monòtonamente. Somente êle e a serva sabiam que Jung Lu estava lá dentro. Ao pôr do sol, quando o alto guarda saiu com a fisionomia orgulhosa e perturbada, não trocaram nenhuma palavra, nem Jung Lu atirou sequer um olhar ao eunuco. No dia seguinte Yehonala obedecera ao chamado do Imperador. Dez meses lunares depois, nascera o Herdeiro. Quem poderia dizer... quem poderia dizer? Afastou-se, rindo e estalando os dedos, à procura do Comandante da Guarda Imperial.
Antes recebera seu parente em segredo, mas agora Tzu Hsi recebia-o abertamente, entre suas damas. Sentada no trono, no grande salão de seu palácio, esperou por Jung Lu. Era a encarnação da magnificência, como sempre. Das paredes pendiam tiras pintadas, atrás do trono achava-se um biombo de alabastro e potes de porcelanas, com flores, achavam-se à sua esquerda e direita. Seus cãezinhos brincavam no chão com quatro gatos brancos. A mulher revelava-se na Imperatriz. Tzu Hsi, cercada de esplendor, riu tanto com os seus animaizinhos que finalmente desceu do trono, dominada pela alegria e pela jovialidade. Enquanto andava de um lado para o outro, elogiava a uma dama o frescor de sua aparência, a outra o bonito pente, arrastando o lenço de seda para que os gatinhos a seguissem, e somente quando ouviu os passos do eunuco acompanhados de um certo ritmo firme e seguro, foi que tornou a sentar-se rápida no trono, cruzando as mãos cobertas de jóias e assumindo um ar altivo e solene. As damas sorriram atrás dos leques.
Sua fisionomia estava grave, os lábios sérios, porém seus grandes olhos faiscavam quando Jung Lu atravessou a soleira, trajando sua túnica de cetim escarlate e calças de veludo preto. Avançou nove passos e não levantou o rosto para ela até ficar ajoelhado. Então, antes de curvar a cabeça, lançou um olhar à mulher que amava.
- Seja bem-vindo, primo, disse Tzu Hsi com sua encantadora voz - Faz muito tempo que não nos encontramos.
- Muito tempo, Venerável, retrucou êle e esperou, ajoelhado. Ela olhava-o do alto do trono, os cantos da boca torcendo-se num sorriso.
Preciso de um conselho, por isso mandei chamá-lo.
- Ordenai, Venerável.
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- Minha irmã mais moça está em idade de casar, continuou ela. - Lembra-se dessa menina? Era uma garotinha chorona, lembra-se? Sempre agarrada a mim e querendo tudo que eu tinha?
- Venerável, nada esqueci, disse êle ainda com a cabeça baixa. Tzu Hsi aprendeu o sentido secreto dessas palavras e guardou esse tesouro no coração.
- Bem, agora minha irmã precisa de um marido. Deixou de ser menina chorona e tornou-se mulher, ou quase, linda e esbelta. Sempre teve sobrancelhas bonitas... como as minhas!
Fêz uma pausa para erguer os dois dedos indicadores e alisar as sobrancelhas, conformadas como folhas de salgueiro.
- Prometi-lhe um príncipe, mas que príncipe, primo? Nomeie os príncipes!
- Venerável, retrucou Jung Lu cautelosamente, como posso conhecer os príncipes tão bem quanto vós?
- Você os conhece, insistiu ela, pois conhece tudo. Tudo é comentado nos portões do palácio, creio eu.
Fêz outra pausa para deixá-lo responder, mas nada ouvindo voltou-se ligeiramente irritada para as suas damas:
- Saiam... todas vocês, ordenou. - Bem vêem que meu primo não falará diante de vocês. Sabe que repetirão suas palavras pelos corredores. Retirem-se... retirem-se, suas tagarelas, deixem-me com meu primo!
Elas fugiram como borboletas assustadas. Então Tzu Hsi riu e desceu do trono. Êle não se moveu. Ela abaixou-se e tocou-lhe o ombro.
- Levante-se, primo! Ninguém nos vê, exceto meu eunuco... e que é êle? Não é mais do que uma mesa ou uma cadeira!
Jung Lu ergueu-se a contragosto, conservando-se afastado.
- Temo qualquer eunuco, sussurrou.
- Não o meu, tornou ela impiedosamente. - Se me trair, por uma palavra que seja, mandarei cortar-lhe a cabeça como se fosse uma mosca.
Juntou o polegar e o indicador, ilustrando as palavras.
- Sente-se naquela cadeira de mármore, ordenou. - Eu me sentarei aqui... a distância é suficiente, não é? Não precisa ter medo de mim, primo. Sei que devo comportar-me bem. Por que não? Tenho o que quero... meu filho, o Herdeiro!
- Cale-se! exclamou êle em voz baixa e zangada. Ela ergueu os longos cílios negros, com ar inocente.
- Que príncipe escolherei para minha irmã? tornou a perguntar. Sentado rigidamente na extremidade da cadeira que ela lhe indicara, Jung Lu refletiu na resposta.
- Dos sete irmãos de meu senhor, a qual darei minha irmãzinha? disse ela pensativa.
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Não é decente que ela se torne uma concubina, falou Jung Lu com firmeza.
Ela abriu os olhos, espantada.
- Por que não, se me faz o favor? Não fui concubina, até o nascimento de meu filho?
- ... Do Imperador, lembrou-lhe êle, e agora é a Imperatriz. A irmã de uma imperatriz não pode ser concubina, nem mesmo de um príncipe.
- Então devo escolher o Sétimo Príncipe, retrucou ela. - É o único que não tem mulher. Ah, é o menos belo de todos... boca pesada, olhos baços e pequenos, fisionomia altiva e solene! Espero que minha irmã não ame os rostos bonitos tanto quanto eu!
Fitou-o obliquamente, sob os longos cílios, e êle desviou o olhar.
- A fisionomia do Príncipe Chun não é má, observou êle. - É uma sorte que um príncipe não seja, pelo menos, mau.
- Oh, tornou ela zombeteiramente. - Acha isso importante? Num príncipe? Não basta que seja príncipe?
Êle ignorou-lhe a zombaria:
- Creio que não basta. Tzu Hsi ergueu os ombros:
- Bem, parente, se indica o Príncipe Ch'un, eu o escolherei e mandarei uma carta à minha mãe.
Irritou-se de súbito com a dureza com que êle a tratava e levantou-se para significar que a audiência terminara, mas interrompeu-se.
- E você... disse descuidadamente. - Suponho que já esteja casado?
Jung Lu também se havia levantado e achava-se diante dela, alto e tranqüilo.
- Sabe que não estou casado.
- Ah, mas deve casar-se, insistiu ela. Uma súbita felicidade iluminou-lhe o rosto jovem e belo, ao lembrar-se. - Desejo que você se case, disse ansiosamente apertando as mãos.
- Não é possível, respondeu êle e, sem despedir-se, afastou-se rapidamente sem olhar para trás.
Ela ficou só, surpreendida com a sua partida repentina, antes que o houvesse despedido. Então seu olhar rápido captou o leve ondular da cortina da porta. Uma espiã? Avançando, puxou a cortina e viu uma figura encolhida. Era a Dama Mei, sua favorita, a filha mais jovem de Su Shun.
- Você? Por quê? indagou Tzu Hsi.
A moça baixou a cabeça e levou o indicador aos lábios.
- Vamos, vamos, insistiu Tzu Hsi. - Por que me espiona?
- Venerável, não é a vós que espiono, sussurrou a moça de maneira quase inaudível.
A quem, então?
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Nenhuma resposta.
- Não responde?
Tzu Hsi fitou a figura infantil e então, sem outra palavra, segurou-a pelas orelhas e sacudiu-a com veemência.
- A êle, então! sussurrou ferozmente. - Ah, êle... você o considera bonito? Ama-o, sem dúvida...
Preso entre as mãos cobertas de jóias, o rostinho olhava-a, desamparado. A jovem não podia falar.
Tzu Hsi tornou a sacudi-la com toda a força:
- Atreve-se a amá-lo!
A moça prorrompeu em soluços e Tzu Hsi largou-lhe as orelhas. Tão fortemente a havia agarrado que os brincos romperam a carne e saía sangue.
- Acha que êle a ama? perguntou Tzu Hsi escarnecedoramente.
- Sei que não, Venerável, soluçou a jovem. - Êle ama somente a vós... todas nós sabemos... somente a vós...
Diante disso, Tzu Hsi hesitou, sem saber o que fazer. Devia punir a dama, pelas suas palavras, mas o que acabara de ouvir alegrou-a tanto que não sabia se esbofeteava a pequena ou lhe sorria. Fêz as duas coisas. Sorriu e, vendo as cabeças das outras damas espreitando nas portas, atraídas pelo ruído, bateu nas faces da moça, mas sem magoá-la.
- Tome... tome... exclamou veementemente. - Saia de minha frente antes que a mate de vergonha! Não me apareça durante sete dias!
Voltou-se e, caminhando com insuperável graça, sentou-se de novo no trono, meio sorridente, escutando os passos ligeiros da jovem através dos corredores.
A partir desse dia o rosto e a figura de Jung Lu gravaram-se de maneira nova no espírito e na memória de Tzu Hsi. Embora não pudesse tornar a chamá-lo, pôs-se a planejar e a tramar uma maneira de encontrar-se com êle, não às escondidas e raramente, porém livre e freqüentemente. Êle estava presente em seus pensamentos, onde quer que fosse durante o dia, e sempre que acordava, à noite. Quando assistia a uma peça, êle era o herói. Quando escutava música, ouvia a voz dele. À medida que passavam os dias de verão e ela se habituava ao seu palácio de prazer, começou a entregar-se a pensamentos de amor. Na verdade ela era uma mulher compelida a amar e no entanto não havia um homem a quem pudesse amar. O Imperador recebia os excedentes dessa necessidade e considerava-se amado, mas não era mais do que a imagem sobre a qual ela estendia os seus sonhos.
Essa mulher, porém, não era das que se contentam com sonhos. Ansiava por sangue e carne que combinassem com os seus. E começou a agir nesse sentido. Elevaria Jung Lu a uma posição tão alta que pudesse conservá-lo junto a si, mantendo sempre o seu
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parentesco acima de qualquer dúvida, mas utilizando-o para o que desejava. Como poderia elevá-lo sem atrair as atenções de todos para a sua pessoa? Dentro das paredes fechadas dos palácios os escândalos germinam com espantosa facilidade. E lembrou-se de seus inimigos - Su Shun, o Grande Conselheiro, que a odiava porque se achava acima dele, os Príncipes Cheng e Yi, amigos de Su Shun. Tinha um aliado em An Teh-hai, o Eunuco-Chefe, e devia conservá-lo leal. Franziu o cenho ao lembrar-se dos boatos que corriam de que êle não era um eunuco autêntico e andava perseguindo as damas da corte, em segredo.
Isto levou-a a pensar de novo na Dama Mei que, não devia esquecer, era filha de Su Shun. Bem, não deixaria que a moça a odiasse também. Não, não, conservá-la-ia como amiga e submetida ao seu poder, de modo que o pai não a pudesse utilizar como espiã. Bem, não era útil, então, saber que a moça amava Jung Lu? Por que demonstrara seu colérico ciúme? Devia desfazer o que fizera. Chamaria a Dama Mei e a reanimaria, dizendo que ela, Imperatriz do Palácio Ocidental, falaria pessoalmente ao Comandante da Guarda Imperial, logo que tivesse oportunidade. Esse casamento serviria a uma dupla finalidade, pois lhe forneceria pretexto para elevar Jung Lu a um alto posto. Sim, ali estava - compreendeu-o imediatamente - o meio de elevar o seu bem-amado.
Fêz uma pausa, prudente após o instante da decisão, e passados os sete dias punitivos, mandou que Li Lien-ymg trouxesse a Dama Mei à sua presença. Uma hora depois ela chegou e caiu imediatamente de joelhos perante a sua soberana. Tzu Hsi achava-se, nesse dia, sentada em seu trono de fêmx, no Pavilhão da Favorita, um pequeno palácio secundário que ela reclamou também para si.
Após deixar a moça ajoelhada durante algum tempo, em silêncio, Tzu Hsi levantou-se, desceu do trono e ergueu-a.
- Você emagreceu nesses sete dias, disse-lhe bondosamente.
- Venerável, tornou a Dama Mei com um olhar magoado, quando vos enfureceis comigo, não posso comer nem dormir.
- Agora não estou zangada, retrucou Tzu Hsi. - Sente-se, pobre menina. Deixe-me ver como está.
Indicou-lhe uma cadeira e ela mesma sentou-se em outra próxima. Tomou entre as suas a mãozinha da jovem e acariciou-a enquanto falava:
- Menina, pouco me importa a quem você ame. Por que não se casaria com o Comandante da Guarda Imperial? Um homem simpático, jovem...
A moça não podia crer no que ouvia. Enrubesceu, lágrimas encheram-lhe os olhos e apertou as mãos que a acariciavam.
- Venerável, eu vos adoro...
- Psiu... não sou nenhuma deusa...
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- Venerável (a voz da jovem tremia), para mim sois a própria Deusa da Misericórdia...
Tzu Hsi sorriu serenamente e largou a mãozinha que segurava.
- Ora... ora... nada de lisonjas, menina. Mas tenho um plano.
- Um plano?
- Precisamos ter um plano, não precisamos?
- Tudo quanto quiserdes, Venerável.
- Bem, então... e aqui Tzu Hsi revelou o seu plano. - Quando o Herdeiro completar o seu primeiro ano de vida, haverá uma grande festa. Nessa ocasião, menina, eu própria convidarei meu parente, de modo que todos compreendam a minha intenção de elevá-lo. Compreendido isso, um passo se seguirá a outro e quem ousará deter meu parente? É por sua causa que o elevarei, de maneira que a posição dele se iguale à sua.
- Mas Venerável... Tzu Hsi ergueu a mão:
- Nada de dúvidas, menina! Êle fará o que digo.
- Não tenho dúvidas, Venerável, mas...
Tzu Hsi examinou-lhe o bonito rosto, ainda ruborizado.
- Acha demasiado longa a espera de tantos meses?
A jovem escondeu o rosto atrás da manga. Tzu Hsi riu:
- Antes de se ir a um novo lugar é preciso abrir a estrada! Beliscou as faces da moça, tornando-as ainda mais rubras, e despediu-a.
- Durante duzentos anos, disse o Príncipe Kung, o comércio desses mercadores estrangeiros permaneceu confinado à cidade sulista de Cantão. Ainda mais: esse comércio somente podia realizar-se através dos negociantes chineses licenciados.
O verão terminara, o outono estava no meio, e Tzu Hsi, ouvindo a lição, olhava pensativamente através das largas portas abertas para o sol da tarde. Potes de porcelana com crisântemos tardios floresciam em vermelho dourado e bronzeado. Ela escutava e não ouvia, as palavras caíam-lhe nos ouvidos e flutuavam em seu cérebro como folhas secas sobre a superfície de um lago. O Príncipe Kung elevou a voz para arrancá-la do devaneio.
- Estais ouvindo, Imperatriz?
- Ouço, retrucou ela.
Êle a olhou com expressão duvidosa e prosseguiu:
- Lembrai-vos então, Imperatriz, que as duas Guerras do ópio deixaram nossa nação derrotada. Essa derrota ensinou-nos uma lição amarga - a de que não podemos considerar as nações Ocidentais como nossas tributárias. Seus homens cobiçosos e rudes, apesar de não serem nossos iguais, podem tornar-se nossos senhores através da força bruta produzida pelos maléficos engenhos de guerra que inventaram.
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Tais palavras, proferidas com a sua poderosa voz profunda, sobressaltaram-na. Despertou de seus sonhos de verão, de um verão que terminara. Como era odioso voltar novamente para aquelas altas muralhas e portões trancados!
Nossos senhores? repetiu.
Sim, nossos senhores, a menos que nos conservemos alerta, tornou com firmeza o Príncipe. - Temos cedido a todas as exigências... pagamos enormes indenizações, fomos forçados a abrir muitos portos novos ao odioso comércio estrangeiro. E o que uma nação estrangeira obtém, as demais julgam-se com o direito de obter também. A força... a força é o seu talismã.
Seu belo rosto estava severo, sua alta figura envolta em cetim cinza encolhia-se na cadeira esculpida, abaixo do trono de fênix do qual Tzu Hsi fizera seu assento preferido na Biblioteca Imperial. Perto deles, Li Lien-ying achava-se recostado numa maciça coluna de madeira esmaltada de vermelho como todas as colunas do palácio.
- Em que consiste a nossa fraqueza? indagou Tzu Hsi.
A indignação exaltara-a. Erguera o busto, suas mãos crisparam-se nos braços do trono. A face de Jung Lu, tão nítida em seu espírito um momento antes, turvou-se de súbito.
O Príncipe Kung olhou-a de lado, seus melancólicos olhos vendo como sempre a poderosa beleza daquela mulher, impregnada do vigor de um cérebro ágil. De que maneira poderia modelá-la, tornando-a apta a salvar a dinastia? Ela ainda era demasiado jovem e, infelizmente, seria sempre apenas uma mulher. Contudo ninguém a igualava.
- Os chineses são demasiado civilizados para a nossa época, disse êle. - Seus sábios ensinam que a força é má, que o soldado deve ser desprezado porque sua função consiste em destruir. Mas esses sábios viveram em épocas antigas, nada sabiam a respeito do soerguimento das novas tribos selvagens do Ocidente. Nossos súditos têm vivido sem saber como são os outros povos. Têm vivido como se este fosse o único país da terra. Mesmo agora, ao se revoltarem contra a dinastia manchu, não compreendem que seus inimigos não somos nós e sim os homens do Ocidente.
Tzu Hsi ouviu essas terríveis palavras e imediatamente captoulhes o sentido.
O Vice-rei Yeh permitiu que esses homens brancos entrassem na cidade de Cantão?
- Ainda não, Imperatriz, e nós devemos impedi-lo. Lembrai-vos de que eu vos disse que, há nove anos, eles dispararam seus canhões contra nossas fortalezas, na embocadura do Rio da Pérola, a cujas margens se acha situada a cidade, e dessa maneira nos obrigaram a ceder-lhes uma grande faixa de terra na margem sul, onde instalaram seus estabelecimentos comerciais e suas casas.
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Nessa ocasião exigiram também que, dois anos depois, lhes fossem abertas as portas de Cantão. Mas, decorrido o prazo, o Vice-rei recusou-se a cumprir o acordo e os britânicos não insistiram. No entanto, não há paz. Se os estrangeiros parecem conformados, é apenas porque planejam obter uma vitória maior.
- Temos de expulsá-los, insistiu Tzu Hsi. - Devemos ignorálos até que nos tornemos fortes.
- Falais com excessiva simplicidade, Imperatriz, retrucou o Príncipe Kung, tornando a suspirar profundamente, como era seu hábito desde algum tempo. - Não se trata apenas dos homens brancos. O conhecimento das armas estrangeiras, o espetáculo da força cruel ao invés da engenhosa razão, estão transformando, de maneira sutil, até mesmo o povo chinês. Temos procedido erroneamente, dizem os chineses, porque só as armas podem fazer de nós um povo livre. É isto, Imperatriz do Palácio Ocidental, que devemos compreender em toda a sua extensão e profundidade, pois vos asseguro que, nesse único conceito, oculta-se uma transformação tão poderosa em nossa nação que, se não nos transformarmos com ela, nós, os que governamos, manchus e não chineses, nossa dinastia findará antes que o Herdeiro possa sentar-se no Trono do Dragão.
- Dê-lhes armas, então, redargüiu Tzu Hsi.
- Ah, suspirou o Príncipe Kung, se dermos aos chineses armas para repelirem o inimigo do Ocidente, voltar-se-ão primeiro contra nós, que ainda chamam de estrangeiros embora nossos ancestrais tenham descido do norte há duzentos longos anos. Imperatriz, o Trono treme em seus alicerces.
Poderia ela compreender o perigo da época? Seus olhos perscrutaram ansiosamente a bela face da mulher. Não pôde ler a resposta que buscava, pois sabia que a mente feminina não é um instrumento separado do resto do ser. Não se divide, como o homem, ora em carne, ora em espírito, ora em coração. É três em uma, trindade completa e unificada. Assim, enquanto o Príncipe Kung apenas podia supor a maneira com que a mente de Tzu Hsi recebia o que êle lhe ensinava, na verdade o espírito dela trabalhava ativamente em todos os sentidos. Não era apenas a dinastia que os homens brancos ameaçavam, era a ela e ao seu filho, o Herdeiro Imperial, imperial não somente porque devesse sentar-se no Trono do Dragão, mas imperial porque ela o havia feito, a energia dela o concebera e o criara. E agora seu instinto aguçava-se para salvá-lo.
Nesse dia, quando o Príncipe Kung a deixou e ela voltou ao seu palácio, mandou buscar o menino. Brincando com êle, segurando-o nos braços, rindo, cantando as canções que ouvira sua mãe cantar, contando-lhe os dedinhos dos pés e das mãos, estimulando-o a ficar de pé e agarrando-o quando caía, como todas as mães,
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mas seu cérebro continuava ativo, planejando a maneira de destruir seus inimigos. A nação, sim, mas... primeiro seu filho! Terminados os folguedos, tornou a entregá-lo à ama e se dispôs a estudar, com redobrado vigor, os memoriais apresentados ao Trono nelas' diferentes províncias, mas especialmente os daquela região onde os brancos querelavam para obter permissão de comerciar, a cidade sulista de Cantão. Lá, embora tanto os chineses como os brancos enriquecessem no comércio, nem uns nem outros estavam satisfeitos. Ela desejava arriscar uma guerra, porém era cedo demais. A agitação de uma guerra estrangeira somada à rebelião chinesa poderia realmente destruir o Trono do Dragão e forçar o Imperador a abdicar, diante da cólera do povo. Não, tinha de contemporizar até que seu filho crescesse e então, homem feito, pudesse dirigir a guerra. Ano a ano...
Mas quando as primeiras neves caíram sobre os palácios, chegaram mensageiros do Vice-rei das províncias de Kwang com a notícia de que novos navios de guerra haviam ancorado na baía próxima de Cantão, trazendo não somente armas de maior poder que as anteriores, mas também enviados de alta categoria da Inglaterra. Estes os fatos que o Vice-rei, cheio de terror e cólera, comunicava ao Trono. Não se atrevia - dizia êle - a abandonar a cidade, pois do contrário viria pessoalmente ao Filho do Céu chorar a sua vergonha de não haver sido capaz de impedir que esses inimigos atravessassem os negros mares. Quais eram, por conseguinte, as ordens do Altíssimo? Aguardava-as por mensageiro especial e obedeceria.
O Imperador, desolado, pôde apenas convocar os membros do governo para uma conferência. Dia após dia, ao amanhecer, reuniam-se no Salão de Audiência - o Grande Secretariado, cujos quatro Primeiros Chanceleres, dois manchus e dois chineses, dois chanceleres-assistentes, um manchu e um chinês, e quatro subchanceleres, dois manchus e dois chineses, encontravam-se com o Conselho de Estado, composto de príncipes de sangue azul, e os grandes secretários, presidentes e vice-presidentes dos seis Conselhos: o Conselho de Rendas, o Conselho Civil, o Conselho de Ritos, o Conselho de Guerra, o Conselho de Punições e o Conselho do Trabalho. Esses principais corpos administrativos ouviram a leitura do memorial, feita pelo Príncipe Kung, perante o Trono do Dragão. Após muitas discussões, cada órgão afastou-se para decidir, em separado, qual o parecer que devia dar ao Filho do Céu. Esse parecer devia ser escrito e apresentado ao Imperador que, no dia seguinte, devia devolvê-lo com seu próprio despacho, escrito em tinta vermelhaimperial.
Já então todos sabiam que não era o Imperador que usava a tinta vermelha, mas sim a Imperatriz do Palácio Ocidental. Todos sabiam pois Li Lien-ying jactava-se por toda parte que, à noite,
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Tzu Hsi era chamada à alcova imperial e não para fins amorosos. Não - enquanto o Imperador se achava deitado em sua cama, semi-adormecido num sonho de ópio, ela examinava sozinha as páginas escritas, estudando cada palavra e meditando em seu sentido. E depois de tomar a sua decisão, segurava o pincel e riscava as palavras daqueles que recomendavam ação ou guerra ou represália contra os intrusos. "Protele", ordenava ela ainda. "Não ceda, mas não resista... não ainda. Prometa e quebre as promessas. Nossa terra não é vasta e poderosa? Devemos destruir o corpo porque um mosquito nos morde o dedo do pé?"
Ninguém se atrevia a desobedecer, pois sob a sua letra estampava o selo imperial e somente ela, além do Imperador, podia tirá-lo do cofre da alcova imperial. Tudo quanto ela ordenava era impresso no Diário da Corte, como decretos imperiais, como era feito diariamente havia oitocentos anos. O Diário era remetido, por mensageiros, a cada província e ao seu vice-rei, a cada cidade e ao seu magistrado, de modo que todo o povo tomasse conhecimento da vontade real. E essa vontade agora era a vontade de uma mulher, jovem e bela, que trabalhava sozinha na alcova imperial enquanto o Filho do Céu dormia.
O Príncipe Kung, lendo as palavras vermelhas, sentiu-se invadido pelo medo.
-- Imperatriz, disse-lhe quando, no dia seguinte, se encontraram nas sombras da Biblioteca Imperial. - Devo advertir-vos uma vez mais que o gênio desses homens brancos é brusco e selvagem. Não viveram os séculos que o nosso povo viveu. São crianças. Quando vêem o que querem, estendem logo a mão para agarrá-lo. Protelações e promessas não cumpridas servirão apenas para encolerizá-los. Devemos negociar com eles, persuadi-los, até mesmo suborná-los, para que deixem nossas plagas.
Tzu Hsi atirou-lhe um esplêndido olhar faiscante:
- Que podem fazer? Podem os seus navios navegar mil milhas ao longo da nossa costa? Deixemo-los devastar uma cidade do sul. Isto significa, acaso, que possam ameaçar o próprio Filho do Céu?
- Creio que sim, tornou êle gravemente.
- Deixemos que o tempo diga, retrucou Tzu Hsi.
- Espero que então não seja tarde demais, suspirou o Príncipe. Ela apiedou-se de sua fisionomia fatigada, demasiado séria para um homem ainda jovem e bonito, e lisonjeou-o com palavras agradáveis.
- Está tornando pesada a sua própria carga. Sua melancolia o denuncia. Deveria divertir-se, como os outros. Nunca o vejo no teatro.
O Príncipe Kung não respondeu, limitando-se a apresentar suas despedidas. Desde que voltara do Palácio de Verão, Tzu Hsi conservava junto de si os atores da Corte, sustentando-os com os fundos
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imperiais. Tinham boa comida e um pavilhão para morar, fora dos muros da Cidade Proibida, além do teatro, no interior. Em todos os dias de festa Tzu Hsi ordenava-lhes que representassem uma peça que era assistida pela Corte, às vezes pelo Imperador, sempre pelas damas e concubinas reais, eunucos, príncipes menores e suas famílias. Ao pôr do sol todos partiam, homens e suas famílias, mas a peça durava duas horas ou três e com essa diversão o inverno passou, chegou a primavera, e a paz não foi abalada.
Com o desabrochar das primeiras peônias arbóreas, a Corte preparou-se para festejar o aniversário do Herdeiro. A primavera era favorável. As chuvas caíram cedo e dissolveram a poeira, o ar estava puro e tão cálido que miragens pendiam sobre a paisagem, como quadros de regiões distantes. A nação, informada pelos jornais, recebeu com alvoroço a oportunidade de divertir-se e o povo preparou seus presentes. Uma paz entorpecente invadira todas as províncias e o Príncipe Kung pôs-se a pensar se a Imperatriz do Palácio Ocidental não possuiria uma sabedoria própria e peculiar. Os navios dos brancos demoravam-se no porto de Cantão, querelando diariamente, mas sem qualquer atitude mais agressiva. O Vice-rei ainda governava a cidade e não recebera o enviado da Inglaterra, um certo Elgin, lorde de alta categoria. Pois esse lorde ainda se recusava a curvar-se até o chão, em reconhecimento de sua inferioridade, e o Vice-rei Yeh, altivo e cônscio de sua posição, não recebia um emissário que não se curvava diante dele, representante do Imperador. Nenhum dos dois cedia, cada qual mantendo o seu lugar em respeito ao respectivo governante.
Em meio a essa vaga e macilenta paz, o povo atirou-se à oportunidade de fazer uma festa e divertir-se um pouco, ao mesmo tempo que a Corte se aprontava para o aniversário do Herdeiro. Os homens olhavam uns para os outros, concordando em pensar apenas no dia que passava, deixando o futuro por conta da festa. Para Tzu Hsi, o festivo aniversário tinha outra significação, também. Durante todo o inverno, fora paciente com o tempo e severa com seu próprio coração. Ao mesmo tempo que estudava resolutamente os seus livros, lembrava-se de Jung Lu e de sua intenção de elevá-lo. Um dia antes do aniversário aconteceu-lhe ver a Dama Mei muito pensativa. Estendeu a mão e acariciou a macia face da jovem.
- Está pensando que esqueci, menina?
Examinou os bonitos olhos que a fitavam sobressaltados e percebeu que aquela mulher a quem chamava "menina", compreendera suas intenções. Constituía a força secreta de Tzu Hsi a peculiaridade de, refletindo sobre as grandes questões do Estado até altas oras da noite e enxergando muito além do que o Príncipe Kung poderia supor, lembrar-se ao mesmo tempo de seus próprios desejos ocultos. Assim, algumas noites antes do aniversário, quando se encontrava
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nos braços do Imperador, parecendo semi-adormecida, murmurou estas palavras...
- Quase esqueci...
- Esqueceu o quê, meu coração e meu fígado? inquiriu êle. Estava de bom humor porque nessa noite se satisfizera o suficiente para considerar-se ainda um homem.
- Sabeis, meu senhor, que o Comandante da Guarda Imperial é meu parente? falou ela, parecendo ainda semi-adormecida.
- Sei... isto é, ouvi dizer.
- Há muito tempo fiz ao meu tio Muyanga uma promessa referente a êle e nunca a cumpri... oh, só mesmo eu!
- Sim?
- Se o convidardes à festa de nosso filho, meu senhor, minha consciência não me aguilhoará mais.
O Imperador mostrou-se lânguidamente surpreso.
- O quê? Um guarda? Isso não despertará ciúmes entre os príncipes menores e suas famílias?
- Há sempre ciúmes entre os pequenos, meu senhor. Mas fazei o que quiserdes, meu senhor, murmurou ela.
Pouco depois fêz pequenos movimentos para afastar-se dele. Bocejou e disse que estava cansada.
- Meu dente está doendo, falou em seguida, mentindo, pois todos os seus dentes eram brancos e sólidos como puro marfim.
Desceu da cama, calçou os sapatos de cetim e disse:
- Não me chameis amanhã à noite, meu senhor, pois não me agradaria dizer ao Eunuco-Chefe que não quero vir, se mandardes buscar-me.
O Imperador ficou alarmado, conhecendo-lhe a vontade inflexível e sabendo que ela não o amava. Não o amando, tinha de suplicar a sua condescendência e negociá-la. Deixou-a ir, apesar de perturbado, e assim se passaram duas noites. Ela não veio e êle não se atreveu a mandar chamá-la, para não tornar-se objeto de riso do palácio, caso os eunucos viessem a saber que ela se havia recusado novamente. Conheciam os seus truques e sabiam quão freqüentemente o Imperador fora obrigado a mandar-lhe presentes para persuadi-la a voltar. A última vez tinha sido vexatória, pois ela somente obedecera depois que êle mandara um eunuco ao sul, cinco províncias além, para encontrar um certo marfim de bucero, estranha e rara substância do bico do bucero, que vive exclusivamente nas florestas de Malaia, Bórneo e Sumatra. Tzu Hsi ouvira falar nesse pássaro e queria um ornamento feito do marfim amarelo do seu grande bico, coberto de uma pele escarlate. Esse marfim chegara pela primeira vez à Corte Imperial como tributo de Bórneo, séculos antes, e era tão raro que somente os imperadores o usavam em forma de botões, fivelas, anéis do polegar, e sua pele escarlate era usada para cobrir seus cintos de cerimônia. Na atual
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dinastia os príncipes da casa imperial ainda amavam esse marfim de tal maneira que nenhuma mulher tinha permissão de usá-lo, e foi por isso que Tzu Hsi queria possuí-lo e estava decidida a tê-lo. Quando o Imperador lhe explicou pacientemente que não poderia satisfazê-la, mostrando-lhe como os príncipes se zangariam se êle cedesse, ela respondeu-lhe que o queria de qualquer maneira e se afastou' durante semanas até que êle, desesperado, acabou cedendo, tão inflexível e decidida ela era, quando se tratava de satisfazer um desejo.
Desejaria não amar uma mulher tão complicada, resmungou êle para o Eunuco-Chefe, no dia seguinte.
An Teh-hai resmungou também, para mostrar respeito:
Todos o desejaríamos, Altíssimo, porém todos a amamos... exceto alguns que a odeiam!
O Imperador cedeu de novo. Mandou dizer-lhe que satisfaria o seu desejo e, na terceira noite, a última antes da festa de aniversário, chamou Tzu Hsi. Ela veio, muito altiva, bela e alegre. Sendo generosa e justa quando obtinha o que desejava, recompensou-o plenamente. Nessa mesma noite Jung Lu recebeu o convite imperial para a festa.
O dia da festa amanheceu radiante e belo, o ar purificado pelas tempestades de areia, e Tzu Hsi despertou para o ruído e a música. Em todos os pátios, as famílias da cidade soltaram foguetes quando o sol apareceu, bateram gongos e tambores e sopraram trombetas. O mesmo aconteceu em todas as cidades do reino e em todas as aldeias. Durante três dias ninguém trabalhou.
Ela se levantou cedo da cama, mais imperiosa do que nunca, tendo porém o cuidado de mostrar-se cortês para com todas as mulheres de seu palácio, como era seu hábito, tão cortês para com a sua serva como para com a mais altamente colocada de suas damas. Foi banhada, deixou que a vestissem, comeu seus doces matinais. O Herdeiro foi-lhe em seguida apresentado em seus trajes reais de cetim escarlate, tendo na cabeça o chapéu imperial. Ela tomou-o nos braços, o coração quase explodindo de amor e de orgulho. Cheirou-lhe as faces perfumadas, as perfumadas palmas de suas mãozinhas, gordas e firmes, e murmurou-lhe:
- Sou a mais feliz das mulheres que nasceram nesta terra.
Êle respondeu-lhe com seu sorriso infantil e lágrimas encheram os olhos de Tzu Hsi. Não, ela não teria medo, nem mesmo dos deuses ciumentos. Era forte e ninguém poderia atingi-la, nem do céu nem da terra. Seu destino era o seu escudo e seu broquel.
Chegada a hora, chamou as damas e, precedendo o Herdeiro em seu palanquim, seguiu para o Supremo Salão do Trono, centro da Cidade Proibida e lugar que o Imperador escolhera para receber os presentes de aniversário. Esse salão central e sacratíssimo tinha sessenta metros de comprimento e trinta de largura, trinta e três
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de altura, e era o maior de todos os palácios. Flanqueado por dois salões menores, erguia-se sobre um largo terraço de mármore conhecido como o Pavimento do Dragão. Davam acesso ao terraço cinco lanços de degraus de mármore, com dragões esculpidos. Sobre o terraço havia cisternas douradas, queimadores de incenso, relógios de sol e medidas de grãos, símbolos do Céu e da Terra. Era cercado de balaustradas de mármore cujas colunas repetiam os sagrados números dos deuses. O teto do salão brilhava, dourado, ao sol. Nenhuma erva ou grama maculava sua perfeição, pois quando as telhas foram postas, nos antigos tempos, misturaram à argamassa um certo veneno que matava todas as sementes atiradas pelo vento.
Tão sagrado era o Supremo Salão do Trono que nenhuma mulher nele havia penetrado e nem mesmo a altivez e a beleza de Tzu Hsi poderiam abrir-lhe caminho nesse dia. Ela olhou o teto dourado, as portas esculpidas, os beirais pintados, e retirou-se para um salão menor, que escolhera, o Salão da Harmonia Central, preferindo-o ao outro, o Salão da Harmonia Exaltada.
O Imperador, no entanto, lembrou-se dela. Depois de haver recebido, no Trono do Dragão, os presentes da nação, com o Herdeiro ao seu lado, nos braços do Príncipe Kung, mandou que tudo fosse levado pelos eunucos ao Salão da Harmonia Central. Assim Tzu Hsi viu e examinou os presentes, elogiando-os. Embora não expressasse o seu prazer pela magnificência dos mesmos, pois nenhum podia ser demasiado esplêndido para seu filho, todos quantos observavam sua fisionomia viram seus olhos iluminarem-se de satisfação, pois de fato o tributo era rico e valioso.
O dia foi curto para receber os presentes. Quando o sol se pôs, os presentes que ainda não tinham sido vistos, todos de príncipes menores e de pessoas de pequena categoria, foram postos de lado. A lua surgiu, indicando a hora da festa no Imperial Salão de Banquetes, onde somente se realizavam as grandiosas solenidades. O Imperador e suas duas Consortes entraram na frente, sentaram-se a uma mesa separada e noutra mesa próxima instalou-se o Herdeiro, sobre os joelhos de seu tio, o Príncipe Kung. O Imperador não desviava o olhar do menino e realmente o garoto estava num dos seus dias mais alegres. Seus olhos grandes, tão parecidos aos da mãe, passavam de uma vela à outra, nas lanternas oscilantes acima das mesas; apontava, batia palmas e ria. Trajava uma roupa de cetim amarelo, que ia do pescoço aos sapatos de veludo, com pequenos dragões bordados em seda escarlate. Na cabeça trazia um chapéu de cetim escarlate, com uma pequena pena de pavão e ao redor do pescoço a corrente de ouro que Tzu Hsi lhe pusera no dia em que nascera, para protegê-lo contra os maus espíritos que poderiam desejar-lhe a morte. Todos admiravam o Herdeiro, mas ninguém o elogiava em voz alta, nem mencionava a sua boa saúde e
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desenvolvimento, para que os demônios cruéis não viessem adejar por perto.
Somente Sakota, a Imperatriz do Palácio Oriental, o olhava com tristeza. Gentil como era, não pôde no entanto impedir-se de dizer uma ou duas palavras impertinentes. Quando o Imperador, por cortesia, a convidava a provar alguma iguaria, ela balançava a cabeça dizendo que não tinha vontade, e quando Tzu Hsi se dirigia à ela, simulava não ouvir. Estava sentada à mesa festiva, magra como um pássaro, as mãos pequeninas pesadas de jóias demasiado grandes, e sob o alto penteado o rosto mostrava-se pálido e fatigado. Quem poderia censurar o Imperador por voltar-se dessa Consorte para a outra? Nunca Tzu Hsi estivera tão bonita e cheia de graça. Às impertinências de Sakota ela respondia com a maior paciência e todos quantos a observavam sentiam a grandeza de seu espírito.
Por entre as mesas baixas postas para mil convivas, que se achavam sentados sobre almofadas escarlates, circulavam eunucos em trajes brilhantes, silenciosos e rápidos, servindo a todos. Na extremidade do salão achavam-se as damas da Corte, as esposas de príncipes, ministros e nobres; na outra extremidade, estes dignitários. Perto de Tzu Hsi, ao seu lado direito, estava sentada a Dama Mei - Tzu Hsi olhou-a e sorriu. Ambas sabiam onde Jung Lu estava sentado - a uma mesa distante. Os convivas perguntavam-se, sem dúvida, o motivo por que o Comandante da Guarda fora honrado daquela maneira, mas quando a pergunta era feita ao ouvido de algum eunuco que passava, este tinha a resposta pronta:
- É parente da Imperatriz do Palácio Ocidental e está aqui por ordem dela.
Diante disso, nenhuma outra pergunta se tornava possível.
A festa prosseguia. Músicos da Corte tocaram suas harpas antigas, flautas e tambores, e no teatro representava-se para os que quisessem ver. O palco fora erguido numa altura suficiente para o Imperador e as Consortes, mas não acima deles. O Herdeiro adormeceu afinal, o Eunuco-Chefe levou-o, as velas estavam prestes a acabar e a festa aproximava-se do fim.
Chá para os nobres, ordenou o Príncipe Kung ao EunucoChefe, quando este voltou.
Serviram chá a todos os nobres, mas não ao Comandante da guarda, que não o era. Tzu Hsi, fingindo não reparar, vira tudo. Acenou com a mão coberta de jóias e Li Lien-ying, sempre vigilante, aproximou-se rápido.
Leve esta xícara de chá ao meu parente, de minha parte, ordenou Tzu Hsi em voz nítida e vibrante.
Pôs a tampa de porcelana sobre a sua própria xícara, que ainda ao Provara e depositou-a com ambas as mãos nas mãos do eunuco E Li Lien-ying, orgulhoso de ser o portador, levou-a a Jung
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Lu que se levantou para recebê-la também com as duas mãos. Depô-la e, voltando-se para a Imperatriz do Palácio Ocidental, curvou a cabeça nove vezes para significar o seu agradecimento.
As conversas cessaram por completo e todos se entreolharam. Mas Tzu Hsi parecia não perceber. Olhou para a Dama Mei e tornou a sorrir. Esse momento também passou. O Eunuco-Chefe fêz sinal aos músicos que imediatamente se puseram a tocar. Os últimos pratos foram servidos.
A lua estava alta, a hora avançada. Todos esperavam que o Imperador se levantasse e se dirigisse ao terraço, onde o aguardava seu palanquim. Mas êle não se levantou. Bateu palmas e o EunucoChefe ordenou que cessasse a música.
- Que há? perguntou Tzu Hsi ao Príncipe Kung.
- Imperatriz, não sei.
Fêz-se de novo silêncio e os olhares voltaram-se para as portas, pelas quais eunucos entravam e saíam. O Filho do Céu inclinou-se para a sua bem-amada.
- Meu coração, sussurrou, olhe para as grandes portas!
Tzu Hsi olhou e viu seis eunucos transportando uma bandeja de ouro tão pesada que mal podiam sustentá-la sobre as cabeças. Em cima da bandeja achava-se um enorme pêssego, dourado de um lado, vermelho do outro. Um pêssego? Era o símbolo de vida longa.
- Anuncie meu presente à Afortunada Mãe do Herdeiro, ordenou o Imperador ao seu irmão.
O Príncipe Kung levantou-se:
- O presente do Filho do Céu à Afortunada Mãe do Herdeiro!
Todos levantaram-se e se curvaram, enquanto os eunucos levavam a bandeja a Tzu Hsi e permaneciam de pé, segurando-a diante dela.
- Tome o pêssego com suas mãos, ordenou-lhe o Filho do Céu.
Ela segurou a gigantesca fruta, que logo se abriu ao meio. Dentro do pêssego viu um par de sapatos feitos de cetim róseo bordados com flores de ouro e de prata, tendo presas nos fios gemas de todos os matizes. Os saltos, altos e dispostos à moda manchu no meio das solas, eram de pérolas róseas da índia, tão juntas umas das outras que o cetim não se via.
Tzu Hsi ergueu os olhos brilhantes para o Filho do Céu.
- Para mim, meu senhor?
- Somente para você, disse êle.
Era um presente ousado, símbolo do amor luxurioso do homem pela mulher.
Não tardaram a chegar más notícias do sul. Já datavam de algum tempo, mas Yeh, o Vice-rei das províncias de Kwang, as retivera, esperando que passassem os festejos. Agora, porém, não podia esconder os últimos desastres. Mandou mensageiros à capital,
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informando que o inglês, Lorde Elgin, ameaçara novamente atacar a cidade de Cantão, desta vez com seis mil guerreiros que estavam nos navios de guerra ancorados na embocadura do Rio da Pérola.
Mesmo que não houvesse rebeldes chineses escondidos na cidade, Exércitos Imperiais não poderiam defender as portas. Mas a cidade estava cheia desses rebeldes que se diziam cristãos, sob a liderança do louco Hung, homem ignorante e poderoso que se declarava continuamente enviado de um deus estrangeiro chamado Jesus para derrubar os manchus do trono.
Quando essas desesperadas notícias chegaram à cidade imperial, o Príncipe Kung foi o primeiro a recebê-las e não se atreveu a apresentá-las ao Imperador. Desde a festa de aniversário do Herdeiro o Imperador não se levantara da cama. Comera e bebera demais e depois, para aplacar suas dores, fumara ópio de tal maneira que não distmguia mais o dia da noite. O Príncipe Kung, por conseguinte, mandou pedir a Tzu Hsi que lhe concedesse uma audiência imediatamente. Nesse mesmo dia, a uma hora da tarde, Tzu Hsi dirigiu-se a Biblioteca Imperial e sentou-se atrás de um biombo, pois o Príncipe Kung não viria sozinho. Com êle chegou o Grande Conselheiro Su Shun e seu aliado, o Príncipe Ts'ai, acompanhado do Príncipe Yi, irmão mais moço do Filho do Céu, jovem condescendente, sem espírito e sem saber, mas dado à inveja e à ímpertnência. Esses quatro, cercados à distância por eunucos que os seguiram para servi-los, ouviram agora as notícias que o Príncipe Kung leu do rolo escrito pelo próprio Vice-rei.
- Muito grave... muito grave, murmurou Su Shun.
Era um homem alto, fisionomia poderosa e grosseira. Tzu Hsi espantava-se como podia ser pai de uma beldade tão delicada como a sua favorita, Dama Mei.
- Muito grave, concordou o Príncipe Yi numa voz fina e aguda
- Tão grave, tornou o Príncipe Kung, que devemos examinar se esse Elgin, tendo-se apoderado da cidade de Cantão e nela se entrincheirado, não se atreverá a pedir para ser recebido aqui, na Corte Imperial.
Tzu Hsi bateu com a mão:
- Nunca!
- Venerável, retrucou tristemente o Príncipe Kung, arrisco-me a sugerir que não podemos responder negativamente a um inimigo tão forte.
Devemos usar a inteligência, redarguiu ela. - Devemos continuar a prometer e protelar.
- Não poderemos prevalecer, declarou o Príncipe Kung. Mas o Grande Conselheiro Su Shun adiantou-se:
Acabamos vencendo, há dois anos, quando o inglês Seymour entrou na cidade de Cantão. Deve lembrar-se, Príncipe, que foi expulso. Nessa ocasião oferecemos um prêmio de trinta peças de
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prata para cada inglês morto e quando suas cabeças foram apresentadas ao Vice-rei, este ordenou que a exibissem pelas ruas da cidade. Ordenou também que os armazéns estrangeiros fossem incendiados. Depois disso os ingleses retiraram-se.
- De fato, concordou o Príncipe Yi.
Mas o Príncipe Kung recusou-se, ainda, a concordar. Alto, belo e forte, jovem demais para falar tão ousadamente como o fêz perante aqueles homens. Mas falou:
- Os ingleses retiraram-se apenas para mandar pedir reforços. Agora esses reforços chegaram. Ainda mais: desta vez os franceses desejando apoderar-se da Indo-China, nossa possessão, prometeram ajudar os ingleses contra nós e uma vez mais usaram o pretexto de que um padre francês foi torturado e morto em Kwangsi. Mais ainda: diz-se que esse Lorde Elgin recebeu instruções de seu soberano, a Rainha da Inglaterra, para solicitar residência aqui, em nossa capital, para um ministro de sua corte, na ocasião em que assim o desejar.
Tzu Hsi não mudara de opinião, mas tal era o seu respeito pelo Príncipe Kung e seu desejo de conservar a sua fidelidade, que falou cortêsmente:
- Não duvido de que tenha razão e contudo hesito. Decerto minha irmã-rainha, do ocidente, não sabe o que esse lorde pede em seu nome. Pois do contrário por que tudo isso não nos aconteceu antes, quando os expulsamos?
O Príncipe Kung explicou, ainda pacientemente:
- A demora, Imperatriz, foi devida apenas à rebelião indiana de que vos falei alguns meses atrás. Lembrai-vos de que a índia inteira está, agora, dominada pela Inglaterra e quando, recentemente, se verificou uma rebelião e muitos homens e mulheres ingleses foram mortos, os exércitos britânicos esmagaram-na com terrível força. Agora vieram continuar suas conquistas aqui. Receio... receio... que tenham a intenção de possuir o nosso país, algum dia, como hoje possuem a índia. Quem pode saber até onde vai a cobiça deles? Um povo ilhéu é sempre cobiçoso, porque quando se multiplica não tem para onde ir. Se cairmos, todo o nosso mundo cairá conosco. É isto que devemos impedir a qualquer custo.
- Devemos, realmente, concordou Tzu Hsi.
Mas ainda estava cética. Sua voz não era grave nem sua maneira preocupada, ao prosseguir:
- Contudo as distâncias são grandes, nossas muralhas fortes, e creio que a catástrofe não pode ocorrer em breve nem facilmente. Ademais o Filho do Céu está demasiado enfermo para ser perturbado. Dentro em pouco teremos de deixar a cidade, para o veraneio. Que qualquer decisão seja protelada para depois do calor, quando tivermos voltado do Palácio de Verão. Mande dizer ao Vice-rei
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que prometa escrever ao Trono, apresentando as exigências dêles. Quando recebermos o memorial, mandaremos dizer que o Filho do Céu está doente e que somos obrigados a esperar até que chegue a estação fria, quando então estará suficientemente bom para tomar decisões.
Sabedoria' exclamou o Grande Conselheiro
Sabedoria, de fato, secundou o Príncipe Tsai. O Príncipe Yi acenou com a cabeça, para cima e para baixo. O Príncipe Kung manteve-se em silêncio, suspirando profundamente.
Mas Tzu Hsi não queria dar ouvidos a estes suspiros e declarou finda a audiência. Saindo da Biblioteca Imperial, dirigiu-se ao palácio em que seu filho vivia com suas amas e eunucos, e ficou com êle durante horas, observando-o enquanto dormia e pondo-o nos joelhos quando acordava, e quando queria caminhar segurava-lhe a mãozinha. No menino estava a fonte de sua força e decisão. Quando sentia medo, ia procurá-lo para renovar sua coragem. Êle era seu pequeno deus, sua jóia, e o adorava com a força de todo o seu ser. Seu coração estava pleno de amor, abraçava-se ao menino e desejava mantê-lo sempre junto dela, em segurança, como outrora estivera, dentro de seu corpo.
Depois de estar com o menino, Tzu Hsi voltava aos seus palácios retemperada e se atirava à sua interminável tarefa de estudar todas as cartas e memoriais que chegavam ao Trono, elaborando os despachos do Imperador.
Nesses meses anteriores ao verão, providenciou o casamento de sua irmã com o Sétimo Príncipe, cujo sobrenome era Ch'un e prenome I-huan. Teve uma audiência privada com esse Príncipe, a fim de observá-lo pessoalmente, e embora fosse feio e tivesse a cabeça grande demais para o corpo, achou-o honesto e simples, homem sem ambições e grato por ter sido escolhido para esposo de sua irmã. O casamento realizou-se antes da partida da Corte para Yuan Mmg Yuan, mas não houve festa em sinal de respeito à doença do Imperador. A própria Tzu Hsi soube apenas que, no dia indicado, sua irmã dirigiu-se, com a cerimônia de estilo, ao palácio do Príncipe Ch'un, que ficava fora dos muros da Cidade Proibida.
O verão passou tristemente, mesmo em Yuan Mmg Yuan, pois estando o Imperador doente não havia música, nem teatro, nem divertimentos de nenhuma espécie. Os dias gloriosos sucediam-se uns após outros mas Tzu Hsi, ciente de sua dignidade, não ordenou nem mesmo uma festa de barcos no Lago Lótus, e vivia muito só. Tampouco se atreveu a reconhecer mais amplamente seu parente Jung Lu, pois logo após a festa de aniversário correram boatos pela corte e agora todos sabiam que outrora ela fora sua noiva
Até que seu poder a tornasse inatingível, nada mais podia fazer Por Jung Lu, senão o que fizesse poderia ser usado contra ela junto
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ao Imperador, ou, se êle morresse, contra seu filho. Apesar de jovem e apaixonada, era senhora de si mesma, e quando o desejava era de uma paciência inabalável.
A Corte voltou no começo do outono daquele ano à Cidade Proibida, as festas da colheita foram realizadas tranqüilamente e, à medida que decorriam serenamente os meses, Tzu Hsi chegou a pensar que havia decidido com sabedoria, não permitindo que se fizesse guerra aos estrangeiros. Pois o Vice-rei Yeh mandara notícias melhores. Informava que os ingleses, apesar de irados com as protelações, nada podiam fazer e que seu líder, Lorde Elgin, "passava os dias em Hong-Kong batendo com os pés e suspirando".
- Prova, declarou Tzu Hsi triunfalmente, que a Rainha do Ocidente é minha aliada.
Somente a má saúde do Imperador entristecia Tzu Hsi. Ela não pretendia amar a imóvel e pálida figura que jazia muda sobre as almofadas de cetim amarelo, mas temia que a sua morte desencadeasse a tempestade da sucessão. O Herdeiro ainda era pequeno demais para receber o Trono do Dragão e haveria rixas terríveis para a escolha do Regente. Ela e somente ela devia ser a Regente, mas seria capaz de apoderar-se do Trono e conservá-lo para o filho? Homens fortes dos clãs manchus apresentariam suas reivindicações. O Herdeiro poderia mesmo ser posto de lado e um novo governante tomar o seu lugar. Ah, havia conspirações por toda parte. Ela sabia, pois Li Lien-ying trazia-lhe informações de que Su Shun estava tramando e persuadindo o Príncipe Yi a tramar com êle, sendo que o Príncipe Cheng completava o trio sinistro. Havia tramas menores e conspiradores mais fracos. Quem podia conhecê-los a todos? Sua sorte era que seu conselheiro, o Príncipe Kung, era homem honrado e não conspirava, e que o Eunuco-Chefe, An Teh-hai, com todo o seu poder nos palácios e sobre os outros eunucos, conservava-se fiel a ela porque era a bem-amada de seu senhor, o Imperador. Por hábito e porque recebera muitos benefícios de seu senhor, o Eunuco-Chefe amava aquele débil governante e permanecia sempre ao lado do grande leito esculpido em que êle jazia, imóvel e raramente falando. Era o Eunuco-Chefe quem ouvia quando o Imperador sussurrava e se inclinava para escutar o que queria. Às vezes, à noite, quando os outros dormiam, o Eunuco-Chefe ia procurar Tzu Hsi para dizer-lhe que o Imperador estava com medo e desejava tocar-lhe a mão e ver-lhe o rosto. Então, envolta em escuro manto, acompanhava o Eunuco-Chefe ao longo das silenciosas passagens e entrava na câmara sombria onde as velas ardiam ininterruptamente. Sentava-se ao lado da grande cama, segurava as mãos do Imperador, tão frias e inanimadas, entre as dela, deixava-se olhar e fitava-o ternamente, para confortá-lo. Assim permanecia até que êle adormecesse e ela pudesse voltar. O EunucoChefe, observando de longe, percebia a sua paciência perfeita, a
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gentileza, a sua cuidadosa bondade, e a partir dessa época passou a dedicar-lhe a mesma afeição e lealdade que dedicava ao Imperador desde que atravessara os portões da Cidade Proibida, menino de doze anos, castrado pelo seu próprio pai para poder servir o Filho do Céu. Às vezes era ladrão esse eunuco, tirava para si o que gostava, das vastas despensas de seu senhor, e todos sabiam que tinha acumulado um grande tesouro. Sabia ser cruel, também, e muitos morriam pela corda e pela faca, quando êle voltava o polegar para baixo, fazendo o sinal da morte. Mas naquele seu solitário coração, oculto sob as dobras da carne gorda, amava a seu soberano é somente a êle. Quando via o Imperador aproximar-se dia a dia da morte, começou a transferir a sua estranha e vigorosa devoção à jovem, bela e forte mulher que o Imperador amava acima de todas as outras e que continuaria a amar até o último suspiro.
Ninguém estava preparado, por conseguinte, para as terríveis notícias que chegaram aos portões do palácio, certo dia, ao crepúsculo, no começo do inverno daquele ano. Era um dia como os outros, dia cinzento, frio e ameaçando nevar. A cidade estava tranqüila, foram feitos alguns negócios, mas sem animação. Dentro do palácio houvera pouco movimento, nenhuma audiência, pois as questões de importância eram apresentadas ao Príncipe Kung, que protelava as decisões.
Tzu Hsi passara o dia pintando. A Dama Miao, sua mestra, estava ao seu lado, não mais instruindo ou proibindo, mas observando enquanto sua imperial discípula pintava um ramo de pessegueiros em flor. Não era fácil agradar a mestra e Tzu Hsi esforçava-se penosamente, trabalhando em silêncio. Primeiro devia molhar o pincel de tal maneira que, com um só traço, pintasse o contorno do ramo e também sombreado - e isto ela fazia, com cuidado e perfeição.
A Dama Miao elogiou-a:
- Muito bem, Venerável.
- Ainda não terminei, redargüiu Tzu Hsi.
Com igual cuidado pintou outro ramo, entrelaçando-o ao primeiro. A Dama Miao permaneceu em silêncio. Tzu Hsi franziu o cenho.
- Não gosta do que fiz?
- Não se trata de que eu goste ou não, Venerável, tornou a dama. - Deveis perguntar a vós mesma se os mestres pintores de ramos de pessegueiro teriam entrelaçado dois ramos dessa maneira.
- E por que não? indagou Tzu Hsi.
O instinto, e não a razão, governa os domínios da arte, disse a dama. - Eles não o teriam feito, simplesmente.
Tzu Hsi escancarou os olhos, apertou os lábios e preparou-se Para discutir, mas a Dama Miao evitou o debate.
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- Se vós, Venerável, desejais entrelaçar os ramos dessa maneira então fazei-o. Já chegou o tempo em que podeis pintar como desejais.
Fêz uma pausa e em seguida disse pensativamente, erguendo a delicada cabeça para fitar a discípula:
- Sois uma amadora, Venerável, e não é necessário que sejais profissional, como eu devo ser, pois sou uma artista e todos da minha família foram artistas. Contudo, fósseis vós livre para ser artista, sem a carga das preocupações do Estado, vós, Venerável estaríeis entre os maiores de todos os artistas. Vejo poder e precisão em vosso pincel, e isto é gênio, que necessita apenas de exercício para realizar-se. Mas em vossa vida não há espaço para acrescentar essa grandeza às demais grandezas que possuis.
Não pôde terminar. Enquanto Tzu Hsi ouvia, seus grandes olhos fixos sobre o rosto da mestra, o Eunuco-Chefe irrompeu no pavilhão onde as damas se encontravam. Ambas voltaram-se para êle, espantadas e sobressaltadas, pois de fato seu aspecto era medonho. Chegara correndo, seus olhos rolavam nas órbitas, ofegava, estava pálido e coberto de suor. Tinha as faces encharcadas, apesar do frio.
- Venerável, balbuciou êle. - Venerável... preparai-vos...
Tzu Hsi levantou-se bruscamente para ouvir uma notícia de morte... morte de quem?
- Venerável, gemeu o Eunuco-Chefe, um mensageiro de Cantão... a cidade está perdida... os estrangeiros a tomaram... o Vice-rei foi preso! Estava escalando o muro da cidade para fugir...
Ela tornou a sentar-se. Tratava-se de um desastre, mas não de morte.
- Recomponha-se, disse severamente ao trêmulo eunuco. - Pensei, pela sua atitude, que o inimigo tivesse atravessado os portões do palácio.
Não obstante, largou os pincéis e a Dama Miao retirou-se em silêncio. O Eunuco-Chefe esperava, enxugando o suor com a manga.
-- Peça ao Príncipe Kung que venha até aqui, ordenou Tzu Hsi. - Depois retome o seu lugar, junto do Imperador.
- Sim, Venerável, disse humildemente o Eunuco-Chefe, afastando-se rapidamente.
Minutos depois o Príncipe Kung entrava sozinho, sem trazer um conselheiro nem outro príncipe. Sabia de tudo, pois êle próprio recebera do mensageiro exausto a comunicação escrita por mão desconhecida, mas com o selo do Vice-rei. Trazia-a agora consigo.
- Leia-a, disse Tzu Hsi, depois de receber a sua reverência. Êle a leu devagar e ela ouviu, sentada em seu pequeno trono, na sua própria biblioteca, o olhar pensativo sobre o vaso de orquídeas amarelas. Ouviu tudo quanto o mensageiro dissera ao Eunuco-Chefe e muito mais. Seis mil guerreiros ocidentais haviam desembarcado e marchado para as portas de Cantão, que atacaram.
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forças imperiais fizeram uma demonstração de barulho e brasa e em seguida fugiram. Os rebeldes chineses, escondidos no ulterior da cidade, abriram as portas e deixaram que os inimigos estrangeiros entrassem. O Vice-rei, ouvindo as más notícias, correu do seu palácio até o alto do muro da cidade e seus funcionários baixaram-no com uma corda. Mas quando estava a meio caminho os chineses viram-no balançando e avisaram aos inimigos que correram para cima do muro, cortaram a corda e fizeram-no prisioneiro. Todos os altos funcionários foram aprisionados e o Vice-rei deportado para Calcutá, na índia distante. Então os ocidentais, arrogantes e sem respeito a ninguém, instalaram um novo governo, todo chinês, desafiando assim a dinastia manchu. Pior ainda, continuava o memorial: os ingleses declararam que tinham novas exigências a fazer, por ordem da própria Rainha Imperatriz, mas não queriam dizer quais eram. Insistiam em que precisavam ir à presença do Imperador, em Pequim, e apresentá-las pessoalmente.
Naquele lugar tranqüilo onde Tzu Hsi, uma hora antes, pintava flores de pessegueiros, desabavam agora sobre ela as terríveis notícias. Ouviu-as e não proferiu palavra. Ficou sentada absorta, e o Príncipe Kung, olhando-a de lado, apiedou-se da bela e solitária mulher, esperando que falasse.
- Não podemos receber odiosos estrangeiros em nossa corte, disse ela afinal. - Mas ainda creio que usam o nome de Vitória sem o seu conhecimento. Contudo não posso atingir o seu distante trono, nem revelar ao nosso povo a doença mortal do Imperador. O Herdeiro ainda é muito pequeno, a sucessão não está clara. Devemos negar entrada aos estrangeiros. A todo custo devemos continuar ainda protelando e prometendo e tornando a protelar, fazendo do inverno a nossa desculpa.
O Príncipe sentiu muita pena dela e, profundamente alarmado, falou gentilmente:
- Imperatriz, repito o que já disse. Vós não compreendeis a natureza desses homens. É tarde demais. A paciência deles está esgotada.
- Veremos, disse ela e nada mais falou. Aos seus rogos e conselhos limitava-se a sacudir a cabeça, o rosto pálido, sombras escuras sob os seus olhos trágicos. - Veremos, repetia, veremos.
O Céu me socorre, disse Tzu Hsi para si mesma, e na verdade aquele inverno foi mais frio do que nunca. Dia após dia, ao levantar-se e olhar pela janela, via a neve mais alta que na véspera. Os mensageiros imperiais que iam ao sul, levavam três vezes mais tempo para alcançar a capital e passaram-se meses antes que sua resposta chegasse a Cantão. O velho Vice-rei Yeh estava agora detido numa prisão de Calcutá, para onde os ingleses o haviam transportado, mas ela não se apiedava dele. Falhara ao Trono e nenhuma
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desculpa era suficientemente forte para perdoá-lo do fracasso. Que morresse. Piedade e misericórdia ela as guardaria para os que pudessem servi-la.
O inverno passou lentamente e a primavera chegou de novo, uma primavera amarga e inquieta. Ela ansiava por ver brotar as primeiras folhas das tamareiras e os brotos de bambu romper a terra. No interior dos palácios os lírios sagrados desabrochavam, aquecidos por brasas cobertas de cinza na qual se achavam colocados os vasos. Ameixeiras anãs, aquecidas, por estufas, floresciam em jarros de porcelana. Ela fazia uma primavera artificial com essas flores em seus salões, e mandava pendurar nos galhos das árvores em vasos, pássaros engaiolados, para ouvi-los cantar. Quando pensava no perigo que a nação corria, confortava-a abrir as gaiolas e deixar que os passarinhos voassem, pousando em seus ombros e em suas mãos, alimentando-se em sua boca. Brincava também com os seus cães. Nessas criaturas derramava o seu amor, porque eram inocentes.
Inocente, também, era o seu filhinho, e ela sabia e esta era a sua mais profunda alegria - que êle a amava e somente a ela. Quando entrava no quarto em que êle se achava, embora passasse um dia ou dois sem vê-la, o menino esquecia tudo e corria para os seus braços. Ela sabia ser cruel, e todos quantos tentavam enfrentá-la sentiam instantaneamente a sua impiedosa crueldade; contudo sua ternura jorrava para todos os fracos, as criaturas inocentes e, sem dúvida, para todos quantos a amavam. Suportava o mal do eunuco Li Lien-ying, porque êle a adorava. Fingia não ver os seus furtos, a sua velhacaria, as suas exigências de gorjeta aos que a procuravam para que intercedesse junto ao Imperador. Da mesma maneira perdoava ao Imperador sua fraqueza, sua decadência e sua loucura pelas mulheres. Pois êle tinha consigo mulheres todas as noites, porque com ela era impotente, mas nem sempre com mulheres jovens. Contudo amava a ela e não às outras. Podia perdoá-lo porque não o amava e mostrava-se terna porque êle a amava.
Tudo isto o Príncipe Kung sabia. Tzu Hsi não ignorava que êle o sabia e que nunca expressaria em palavras esse conhecimento, pois em seus olhos via a compreensão e ouvia-a na suavidade de sua voz. Mas sentia-se solitária, como só os altamente colocados podem sentir-se. Como nunca falara de sua solidão, êle era cada vez mais firme em sua lealdade, não como homem, pois tinha sua própria e bem-amada esposa, uma mulher tranqüila, de coração suave, que satisfazia todas as suas necessidades. Era filha de um velho e honrado mandarim, chamado Kwei Liang, homem de bom senso que sempre fora fiel ao Trono e que sempre dera conselhos sábios ao Imperador Hsien Feng, ora reinante, como havia dado também a T'ao Kuang, o pai do Imperador, ora morto.
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A primavera decorria lentamente. Chegou o verão e Tzu Hsi ainda não decidira se seria seguro ir para o Palácio de Verão. Ansiava pela paz daquele lugar. Passara o inverno todo entre os muros da Cidade Proibida e sentia saudades dos lagos e das montanhas de Yuan Ming Yuan. Nunca sentira tanta falta da beleza como agora, quando tudo era incerto ao seu redor, e ansiava pela beleza natural do céu, da água e da terra. Quando dormia não tinha sonhos de amor, mas de jardins abertos, da tranqüilidade do luar sobre as colinas distantes. Passava horas contemplando paisagens pintadas, imaginando-se caminhando pelas margens dos rios e do mar, e dormindo à noite em florestas de pinheiros ou num templo escondido entre um espesso bambual. Quando acordava punha-se a chorar, pois esses sonhos eram tão reais quanto lembranças, nítidos e inesquecíveis, mas que não podia ver na realidade.
Um dia, repentinas como a tempestade, irromperam as más notícias pelas quais estava esperando e ela teve de afastar toda a esperança de ir para Yuan Ming Yuan. Os ocidentais aproximavam-se ao longo da costa, em seus navios de guerra. Mensageiros imperiais correram noite e dia para trazer as notícias antes que os navios alcançassem os fortes de Taku, em Tientsin, cidade esta que ficava a apenas oitenta milhas da própria Capital. A consternação invadiu a todos, nobres e plebeus. O Imperador mexeu-se, ordenando aos seus Grandes Conselheiros, ministros e príncipes que se reunissem no Salão de Audiência, pedindo também às duas Consortes que se sentassem atrás do Biombo do Dragão. Para lá foi Tzu Hsi, apoiando-se no braço do seu eunuco, e sentou-se no mais alto dos dois pequenos tronos. Pouco depois Tzu An, a Imperatriz do Palácio Oriental, chegou também. Tzu Hsi, sempre cortês, levantou-se e esperou até que ela se sentasse no outro trono. Essa Imperatriz estava envelhecendo prematuramente, pois ainda não completara trinta e dois anos. A melancolia alongara e emagrecera o seu rosto. Sorriu tristemente quando Tzu Hsi lhe apertou a mão.
Mas quem podia pensar em si mesmo, quando todos estavam ameaçados? Em silêncio a nobre assembléia ouviu o Príncipe Kung fazer o relatório dos funestos acontecimentos. O Imperador, sentado no Trono do Dragão em seus trajes dourados, tinha a cabeça baixa, o rosto meio oculto por um leque de seda que segurava na mão direita. Após as saudações de praxe, o Príncipe Kung procedeu ao relato da dura verdade:
A despeito de tudo quanto o Trono fêz para impedi-los, os estrangeiros não permaneceram no sul. Acham-se agora a caminho ao longo de nossa costa, em navios armados e cheios de guerreiros. Esperamos que se detenham nos fortes de Taku e não entrem na cidade de Tientsin, de onde poderiam rapidamente chegar a este sagrado lugar.
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Um rugido percorreu a assembléia ajoelhada. O Príncipe Kung fêz uma pausa e em seguida continuou:
- Assim é cedo para que eu fale. Receio, contudo, que esses bárbaros não obedeçam nem às nossas leis nem aos nossos princípios! À menor hesitação de nossa parte, virão até os portões dos palácios imperiais, a menos que sejam subornados e persuadidos a voltar para o sul. Encaremos o pior, deixemos de sonhar. A hora derradeira chegou. Espera-nos somente a dor.
Depois de lido e apresentado o texto completo do memorial que o Príncipe Kung escrevera, o Imperador deu por finda a audiência, ordenando à assembléia que se retirasse e preparasse sua opinião e parecer. Levantou-se e, amparado por dois príncipes, seus irmãos, estava prestes a descer do Trono quando se ouviu de súbito a voz clara de Tzu Hsi, por trás do Biombo do Dragão.
- Eu, que não devia falar, preciso, não obstante, romper o meu silêncio!
O Imperador hesitou, voltando a cabeça para a direita e para a esquerda. Diante dele os membros da assembléia continuavam ajoelhados, com as cabeças encostadas ao chão, inteiramente imóveis. Ninguém falou.
A voz de Tzu Hsi ouviu-se de novo, em meio ao silêncio:
- Fui eu que aconselhei paciência para com esses bárbaros ocidentais. Fui eu que recomendei protelações e esperas, e agora sou eu que digo que errei. Mudo de idéia, declaro-me contra a paciência, a protelação e a espera. Quero guerra contra o inimigo ocidental, guerra de morte a todos, homens, mulheres e crianças!
Se a sua voz fosse a de um homem, eles teriam gritado "sim" ou "não". Mas era a voz de uma mulher, apesar de Imperatriz. Ninguém falou, ninguém se moveu. O Imperador esperou, de cabeça baixa, e então, ainda amparado pelos irmãos, desceu do Trono. Enquanto todas as cabeças estavam curvadas no chão, entrou no palanquim amarelo e, cercado por Porta-bandeiras e guardas, voltou ao seu palácio.
As Consortes também se retiraram logo depois, trocando apenas as palavras necessárias da cortesia, mas Tzu Hsi percebeu que Tzu An a evitava. Tzu Hsi voltou aos seus aposentos e ficou à espera do chamado do Imperador, mas nada recebeu. Folheou dístraidamente os seus livros, com o espírito absorto. Ao anoitecer, vendo que não era chamada, perguntou a Li Lien-ying, o seu eunuco e este informou-a de que o Imperador passara o dia inteiro distraindo-se com uma e outra das concubinas menores e não mencionara o seu nome. Soubera disso pelo Eunuco-Chefe, que fora forçado a permanecer ao lado de seu senhor e suportar os seus caprichos.
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Venerável, disse Li Lien-ying, o Filho do Céu não vos esqeceu, mas receia agora o que possa acontecer. Espera o parecer de seus ministros.
Então estou derrotada! exclamou Tzu Hsi.
Eram palavras demasiado claras contra o Imperador e Li Lien- ying fingiu não ter ouvido. Apalpou o bule de chá e disse que estava frio. Afastou-se em seguida com o bule nas mãos, o feio rosto pálido e grave.
No dia seguinte Tzu Hsi recebeu as notícias que previra. Não haveria resistência, nem mesmo agora, contra os invasores do Ocidente. Atendendo ao parecer de seus conselheiros e ministros, o Imperador indicara três nobres para que fossem a Tientsin e negociassem com o inglês, Lorde Elgin. O chefe desses homens era Kwei Liang, o pai da esposa do Príncipe Kung, conhecido pelo seu bom senso e prudência.
- Ah, exclamou Tzu Hsi ao ouvir-lhe o nome. - Esse excelente homem nunca se oporá ao inimigo. É muito velho, muito cauteloso e muito condescendente.
Tinha realmente razão. No quarto dia do sétimo mês, Kwei Liang assinou um tratado com os guerreiros ocidentais, que deveria ser ratificado dentro de um ano, a contar daquele dia, pelo próprio Imperador. Voltaram em seguida os três nobres com o seu tratado. À ponta de espada, os ingleses e os franceses, apoiados por seus amigos - os americanos e os russos - obtiveram tudo quanto queriam. Seus governos teriam permissão de manter ministros residentes em Pequim, seus sacerdotes e comerciantes poderiam viajar através do reino sem submeter-se às suas leis, o ópio seria considerado mercadoria legal, e o grande porto fluvial de Hankow, no coração do Império, a mil milhas do mar, passaria a porto de tratado, onde os brancos poderiam viver com suas famílias.
Quando Tzu Hsi tomou conhecimento de tais condições retirou-se para a sua alcova e passou três dias sem lavar-se, sem comer e sem mudar de roupa. Não recebeu tampouco nenhuma de suas damas. Sua serva assustou-se e seu eunuco procurou secretamente o Príncipe Kung para informá-lo de que a Imperatriz do Palácio Ocidental jazia no leito como se estivesse morta, exausta de fraqueza e de tanto chorar.
O Príncipe Kung recebeu a comunicação em seu próprio palácio, fora da Cidade Proibida, e foi pedir-lhe audiência. Tzu Hsi então levantou-se, foi banhada, vestiu-se, tomou o caldo que a serva lhe ofereceu, e apoiando-se no braço do eunuco recebeu o Príncipe na Biblioteca Imperial. Aí, sentada em seu trono, ouviu suas sensatas palavras.
" Imperatriz, achais que um homem tão honrado como o meu sogro cederia ao inimigo se houvesse podido resistir? Não tivemos
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alternativa. Se nos tivéssemos oposto às suas exigências, teriam avançado contra esta própria cidade imperial. Tzu Hsi esticou o seu rubro lábio inferior:
- Uma ameaça!
- Não é ameaça, retrucou com firmeza o Príncipe Kung.
Aprendi uma coisa a respeito dos ingleses: o que eles dizem, fazem.
Tivesse ou não razão o bom Príncipe, Tzu Hsi sabia-o leal, veraz e prudente, acima de sua idade, e não podia discutir, agora que o tratado fora assinado. Sentia-se, de fato, muito triste. Estariam perdidas as suas esperanças, por ser o seu filho demasiado pequeno para lutar por si mesmo? Fêz um gesto impaciente despedindo o Príncipe e voltou aos seus aposentos. Sozinha, pôs-se a planejar, durante os dias e noites subseqüentes, as providências secretas que tomaria. Ocultaria o que lhe ia no coração e no cérebro, tornar-se-ia amiga de todos, submeter-se-ia por completo ao Imperador, poupando-o de toda e qualquer reprovação, e esperaria. E com isto tornou a sua vontade tão dura quanto o ferro, tão fria quanto a pedra.
Entrementes, satisfeitos com a vitória obtida através do tratado, os Ocidentais cessaram de avançar. O ano passou, como os anos anteriores, e o verão seguinte trouxe o dia determinado para a assinatura do acordo. Tzu Hsi deliberara vencer a batalha contra a assinatura. E venceu-a, não com argumentos ou ameaças, mas seduzindo o homem fraco que era o Imperador. Ao verificar durante aquele ano, que ela continuava sempre gentil, sempre bem disposta, sentiu-se de novo cativo, de corpo e de espírito. A conselho dela, dado de mil modos sutis, enviou ministros aos brancos que governavam a cidade de Cantão através dos governadores chineses por eles nomeados, e esses ministros deviam lisonjear e subornar os brancos, a fim de que não tornassem a rumar para o norte porque o tratado ainda não havia sido assinado.
- Que se contentem com o comércio do sul, ordenou o Imperador. - Digam-lhes que continuaremos amigos se permanecerem onde estão. Não vieram aqui em busca de comércio?
- E se recusarem? inquiriu o Príncipe Kung. Lembrando-se do que Tzu Hsi dissera, na longa noite que passaram juntos, o Imperador redargüiu:
- Diga-lhes, se fôr necessário, que os procuraremos mais tarde em Shangai, para selar o tratado. Isto significará que percorremos a metade do caminho para ir ao encontro deles. Poderão queixar-se de que não somos generosos?
Pois Tzu Hsi dissera, fingindo indiferença pelos negócios de Estado:
- Por que assinar o tratado? Deixemo-los esperar, e, caso se mostrem impacientes, dir-lhes-emos que será assinado em Shangai,
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meio caminho da costa. Se forem para lá, então decidiremos o que fazer.
Isto dissera ela, guardando secretamente a guerra como ultimo recurso. Se os invasores fossem a Shangai, não ficaria provado que somente a morte poderia deter o seu avanço?
Os nobres partiram no começo do ano, levando essas ordens, e naquela mesma primavera, tão logo a terra se libertou do gelo, o Imperador determinou que os fortes de Taku, nas proximidades de Tientsin fossem reforçados e guarnecidos de armas e canhões comprados aos americanos. Tais providências deveriam ser tomadas secretamente, de maneira que os ingleses de nada soubessem. Essas idéias tinham sido plantadas em seu cérebro por Tzu Hsi, nas horas de ócio em que o divertia e lhe dava o seu amor obrigatório, excitando-o com a leitura de histórias e versos dos livros proibidos que encontrara nas bibliotecas dos eunucos.
Que tristeza, por conseguinte, quando, no começo do verão, os mensageiros trouxeram a notícia, enviada pelos ministros do Imperador, de que os ocidentais não transigiriam e que seus navios uma vez mais rumavam para o norte, muito além de Shangai, desta vez sob o comando do Almirante inglês Hope! Mas a Corte e os habitantes da cidade mostraram-se destemidos. Os fortes de Taku estavam reforçados e aos soldados imperiais foi prometida boa recompensa pela sua bravura. Com calma e coragem, dispuseram-se a esperar o ataque.
Dessa vez, com auxílio do Céu, conseguiram de fato repelir o inimigo e com tamanho vigor que destruíram três navios de guerra e mais de trezentos homens. O Imperador entusiasmou-se, elogiou Tzu Hsi que, ouvindo o seu louvor, encorajou-o a recusar tudo aos invasores. O tratado não foi selado.
Os brancos recuaram, proclamou-se a paz. A nação inteira demonstrou sua surpresa pela sabedoria do Filho do Céu que - dizia-se - soube muito bem quando protelar e quando fazer guerra. Observem - exclamavam - quão facilmente os invasores foram derrotados! Mas não seriam vencidos se o estratagema das protelações e transigências não os tivessem induzido a falsos cálculos sobre a nossa fraqueza e sobre a sua própria força. O Imperador foi declarado mestre de inteligência e de sabedoria.
Contudo todos sabiam quem era o conselheiro do Imperador. A Imperatriz do Palácio Ocidental era chamada poderosa e mágica, sua beleza era engrandecida em particular, pois não seria decente falar dela em público, e nos palácios todos os eunucos e cortesãos esforçavam-se por satisfazer-lhe os menores desejos. Só o Príncipe Kung continuava ainda receoso. Dizia êle:
Os ocidentais são tigres que recuam ao serem feridos e depois voltam ao ataque.
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Parecia que estava errado, pois um ano inteiro se passou, estranhamente tranqüilo. Tzu Hsi aprofundou seus conhecimentos nos livros, o Herdeiro crescia forte e voluntarioso. Aprendia a cavalgar no seu negro cavalo árabe, gostava de cantar e de rir e estava sempre de bom humor, pois em toda parte só via fisionomias cordiais. Serena no seu atual poder, Tzu Hsi não sentia medo ao ver a crescente beleza de seu filho. A primavera chegou ao fim, veio de novo o verão, e ela planejou ir para o Palácio de Verão com suas damas e seu filho. Aquele ano decorrera em paz e ela podia entregar-se às delícias de umas férias.
Quem poderia prever o que estava para acontecer? Mal a Corte acabava de chegar a Yuan Ming Yuan, os guerreiros ingleses, sem aviso e auxiliados e apoiados por outros guerreiros de França, aproximaram-se violentamente ao longo da costa, clamando furiosos por vingança. No sétimo mês daquele ano, duzentos navios de guerra, como se tivessem caído do céu, transportando vinte mil homens armados, ancoraram no porto de Chefoo, na província de Chihli, e sem se deterem para parlamentar ou negociar, prepararam-se imediatamente para invadir a Capital.
Mensageiros correram noite e dia a fim de levarem as más notícias. Na Cidade Proibida não havia tempo para censuras nem protelações. Kwei Liang, o velho e prudente sábio, acompanhado por outros nobres, foi incumbido de persuadir os invasores a parar.
- Faça promessas, ordenou o apavorado Imperador ao recebêlos para as despedidas. - Conceda e ceda! Estamos liquidados!
Tzu Hsi estava ao lado do Imperador, no salão de audiências privadas.
- Não, não, meu senhor, exclamou ela. - É vergonhoso! Estais esquecido da vossa vitória? Mais soldados, meu senhor, mais força - é tempo de lutar, agora, meu senhor!
Êle não a quis ouvir. Estendeu o braço direito, subitamente fortalecido, e empurrou-a.
- Já ouviu o que eu disse, exclamou para Kwei Liang.
- Ouvi e obedeço, Altíssimo, respondeu o velho.
Recebida a ordem, êle e sua escolta entraram em seus carros puxados por mulas e partiram rápidos para Tientsin, pois os invasores já se haviam novamente apoderado dos fortes de Taku. Mas depois que Kwei Liang se foi, Tzu Hsi, cheia de ansiedade por seu filho, começou a usar em segredo suas poderosas armas - seus lábios fascinantes, seus olhares ternos - e fêz com que o Imperador se tornasse hesitante de novo.
- E se os brancos não forem persuadidos? argumentava ela, à noite, no quarto do Imperador. - É prudente que nos aprontemos para salvar nossas vidas.
E convenceu o Imperador a ordenar a Seng-ko-lin-chin, seu general mongol, a comandar os Exércitos Imperiais numa emboscada
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contra os brancos. Esse general pertencia à casa dos príncipes Korhiu da Mongólia Interior, favorecidos pelos imperadores manchus em virtude de sua lealdade; chamava-se Príncipe Seng. Homem bravo, graças à sua coragem e argúcia impedira que os rebeldes sulistas invadissem as províncias do norte e por duas vezes os derrotara em batalha - da primeira vez quando se encontravam a vinte e quatro milhas de Tientsin; capturou-os depois em sua retirada de Lien-chin, e perseguiu os remanescentes que fugiram para a província de Shantung.
Tzu Hsi voltava-se agora para esse homem invencível. O Imperador cedeu, não se atrevendo a dizê-lo nem mesmo ao seu irmão. E o Príncipe Seng, recebendo essas ordens secretas, conduziu seus homens a uma emboscada perto dos fortes Taku, resolvido a expulsar os brancos para o mar, como havia expulsado os rebeldes. Entrementes, os emissários ingleses e franceses, nada sabendo da emboscada, avançavam certos de se encontrarem com a Comissão Imperial chefiada por Kwei Liang. Seu chefe levava uma bandeira branca, de paz. Mas o Príncipe Seng tomou-a por sinal de capitulação e chamou seus homens, que logo correram gritando e caíram sobre o contingente ocidental, aprisionando os dois líderes e todos quantos com eles se encontravam. A bandeira foi rasgada e pisada, os cativos torturados pelo atrevimento de invadirem o país.
Essa notícia foi levada com grande alegria à Capital. Uma vez mais os Ocidentais eram derrotados. O Imperador louvou com entusiasmo Tzu Hsi e deu-lhe um cofre de ouro cheio de jóias. Anunciou em seguida sete dias de festa em toda a nação. Nos palácios foram instalados palcos especiais para a alegria e divertimento da Corte, ao mesmo tempo que altas honrarias e ricas recompensas eram anunciadas para o Príncipe Seng, quando voltasse à Capital. A alegria começou cedo demais - as festas e os divertimentos nunca chegariam ao fim. Quando os ocidentais souberam da traição feita a seus camaradas, reuniram-se num sólido esquadrão e atacaram com tamanha violência o general mongol e seus homens, que estes, confusos e apavorados, fugiram, caindo mortos durante a fuga, pois não possuíam armas estrangeiras. Os invasores marcharam triunfalmente para a Capital e ninguém se lhes opôs até chegarem a uma certa ponte de mármore denominada Palikao, sobre o Rio Peiho, perto da pequena cidade de Tungchow, a apenas dez milhas de Pequim. Nessa ponte encontraram soldados imperiais, mandados as pressas pelo Imperador, que havia sabido, por um mensageiro do Príncipe Seng, do lamentável desastre. Travou-se uma batalha, triste batalha na qual os soldados imperiais foram totalmente derrotados. Fugiram correndo para a Capital, chorando sua própria destruição; a eles se reuniram os habitantes da cidade, formando uma multidão que se abrigou entre os muros da cidade, esperando que trancadas as portas, ficariam a salvo da ferocidade do inimigo
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estrangeiro. A cidade inteira transformou-se logo num turbilhão gente correndo para toda parte, sem saber o que fazer para salvar a pele. Mulheres e crianças soluçavam alto, homens gritavam e praguejavam, apelando para o Céu. Mercadores cerravam suas portas a fim de que os invasores não lhes roubassem as mercadorias, e todos os cidadãos que tinham mulheres jovens e bonitas, concubinas e filhas, apressavam-se em deixar a cidade, fugindo com elas para as aldeias e campos.
No Palácio de Verão a confusão era exatamente a mesma. Os príncipes reuniram-se às pressas para decidir como salvar o Trono e o Herdeiro e como proteger a Imperatriz e as concubinas imperiais. Nada conseguiam decidir, pois nenhum concordava com o outro, enquanto o Imperador tremia, chorava e declarava que engoliria ópio.
Somente o Príncipe Kung conservava a calma. Dirigiu-se aos aposentos privados do Imperador e lá encontrou Tzu Hsi com o Herdeiro, cercados por eunucos e cortesãos, todos protestando contra a decisão que o Imperador tomara, de matar-se.
- Ah, o senhor chegou, exclamou Tzu Hsi ao ver o Príncipe. Que conforto, realmente, ver aquele homem, fisionomia composta, trajes em ordem, gestos tranqüilos!
O Príncipe Kung fêz sua reverência ao Imperador e falou-lhe, não como a um irmão mais velho, mas como ao soberano.
- Atrevo-me a dar um conselho ao Filho do Céu, disse.
- Fale... fale, resmungou o Imperador. O Príncipe Kung continuou:
- Com a vossa permissão, rogo autorização para escrever uma carta ao chefe do inimigo que se aproxima, pedindo um armistício. A essa carta aporei o selo imperial.
Tzu Hsi ouviu e não pôde falar. Tudo quanto o Príncipe previra, estava acontecendo. O tigre voltara para vingar-se. Ela permaneceu em silêncio, com o filho nos braços, a face apoiada em sua cabecinha.
- E vós, Senhor, prosseguiu o Príncipe Kung, deveis retirar-vos para Jehol, levando o Herdeiro, as duas Imperatrizes e a Corte.
- Sim... sim, concordou o Imperador demasiado sôfregamente. As damas e eunucos sussurraram sua aprovação. Mas Tzu Hsi levantou-se de sua cadeira, ainda mantendo o filho nos braços, e exclamou:
- O Imperador nunca deveria abandonar a sua Capital! Que dirá o povo se êle o abandonar agora? Todos se entregarão ao inimigo e serão completamente destruídos. Que o Herdeiro seja levado para longe e escondido, mas o Filho do Céu deve ficar e eu ficarei ao seu lado para servi-lo.
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Todos se haviam voltado para fitá-la, enquanto falava. Ninguém podia negar o ardor e a majestade de sua beleza. O próprio Príncipe Kung não fêz mais que apiedar-se dela.
Imperatriz, redargüiu em sua voz mais gentil, devo protegervos contra a vossa própria coragem. Diga-se ao povo que o Imperador vai para o norte numa viagem de caça, em seus palácios de Jehol. Que a partida se verifique dentro de alguns dias, sem pressa, da maneira habitual. Entrementes conterei os invasores com o meu pedido de armistício e com a promessa de punir o general mongol.
Ela estava derrotada e sabia-o. Todos estavam contra ela, desde o Imperador ao menor dos eunucos. Que poderia dizer? Entregou em silêncio o menino à ama e, fazendo uma profunda reverência, afastou-se do salão imperial seguida por suas damas.
Cinco dias depois a Corte partiu, tomando a estrada noroeste, rumo à Mongólia. As portas da cidade estavam trancadas contra o inimigo e, carregando suas pesadas cargas, a longa procissão de cadeirinhas e carros de mula, iniciou a viagem de cem milhas - eram mil almas ao todo. Na frente do palanquim imperial marchavam os Porta-bandeiras, conduzindo seus estandartes de variadas cores; atrás seguia a Guarda Imperial, a cavalo, conduzida pelo seu comandante, Jung Lu. O Imperador ia em seu palanquim cortinado, amarelo e com armação de ouro. Atrás dele seguia a Imperatriz do Palácio Oriental em seu carro de mula, e atrás dela o Herdeiro, com suas amas, em seu carro. Atrás do Herdeiro ia Tzu Hsi, sozinha, pois não quisera a companhia de ninguém. Queria liberdade para chorar, durante horas se o desejasse, de modo que pudesse esvaziar o coração. Ah, que perda fora a sua! Seu espírito era bravo mas nem mesmo a coragem fora suficiente para aquele transe. Que aconteceria agora? Quando poderia voltar? Estava tudo realmente perdido?
Quem saberia responder? Nem mesmo o Príncipe Kung, do qual a nação dependia. Êle ficara, mas não dentro da cidade de portas trancadas, pois devia encontrar-se com o inimigo do lado de fora, se acontecesse o pior, a fim de que a cidade fosse poupada. Esperava por conseguinte, em seu próprio palácio de verão, perto de Yuan Ming Yuan.
- Consiga o que puder, murmurara-lhe o Imperador ao subir para o seu palanquim almofadado. Estava doente e cansado; o Eunuco-Chefe erguera-o nos braços, naquela manhã, como se fosse uma criança, para pô-lo no carro.
- Confiai em mim, Senhor, respondera o Príncipe Kung. Mas Tzu Hsi não podia chorar eternamente. Suas lágrimas secaram-se afinal, sentiu-se indiferente e forçou-se a aceitar seu destino atual. As horas fluíam muito lentas, pois a estrada era calçada com pedras rudes, o carro sem molas atirava-a de um lado para o outro e as almofadas de cetim não a livravam de freqüentes contusÕes.
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O cortejo parou para a refeição do meio-dia, preparada pelos mensageiros que haviam partido mais cedo.
Tzu Hsi ainda era tão jovem que, depois de chorar, ao saltar do carro de mula e ao olhar ao seu redor, vendo os verdes campos, o milho alto, as árvores frutíferas, não se pôde conter. Estava viva, seu filho chamava por ela, estendeu os braços para acolhê-lo. Tudo não estava perdido, enquanto ela vivesse e êle estivesse em seus braços. Nunca vira, também, os palácios de Jehol. Seu espírito, sempre vivo e pronto para novas aventuras, reanimou-se de súbito.
Nesse momento seu olhar caiu sobre a Dama Mei, que estava perto. Sorriram e a dama aventurou-se a encetar uma conversa mais alegre.
- Venerável, ouvi dizer que os palácios do Norte são os mais belos de todos os palácios imperiais.
- Eu também ouvi isso, redargüiu Tzu Hsi. - Tratemos de gozá-los, uma vez que temos de ir para lá.
Porém mais tarde, quando estava prestes a entrar em seu carro de mula, para reiniciar a viagem, olhou em direção da cidade, seguindo o impulso do coração. Ao longe, na linha do horizonte, viu uma grande massa de fumaça escura. Exclamou, alarmada, para os que a cercavam:
- Será a nossa cidade em chamas?
Todos olharam e todos viram as negras nuvens subindo para o céu de verão, profundamente azul. A cidade estava em chamas.
- Depressa... depressa! gritou o Imperador, de seu palanquim. Todos se apressaram em subir para os carros e o cortejo seguiu com maior velocidade. Nessa noite a Corte repousou em um acampamento adrede preparado, mas em sua tenda Tzu Hsi não podia descansar. Chamava repetidamente Li Lien-ying para saber se havia chegado alguma notícia da cidade bem-amada. Finalmente, perto da meia-noite, um mensageiro chegou correndo e Li Lien-ying, vigilante, agarrou-o pelo pescoço e levou-o perante sua imperial senhora. Tzu Hsi ainda estava à espera, pois proibira às suas mulheres que a preparassem para dormir, embora estivessem deitadas junto dela, no tapete estendido sobre o chão. Ao ver o eunuco e o pálido mensageiro, levou o indicador aos lábios.
- Venerável, sussurrou o eunuco, trouxe-o para cá porque sei que o Filho do Céu está dormindo. O Eunuco-Chefe disse-me que êle tomou uma dose dupla de ópio.
Ela fitou o assustado mensageiro com seus grandes olhos.
- Que notícias traz?
- Venerável, balbuciou o homem, enquanto o eunuco o fazia cair de joelhos, o inimigo avançou com toda a violência, logo depois do amanhecer. O armistício termina esta noite. Mas os bárbaros passaram o dia inteiro fazendo perversidades a fim de - disseram
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Eles - de punir o Príncipe Seng que torturara os prisioneiros e porque rasgara a bandeira branca de pano.
O sangue de Tzu Hsi esfriou e o ritmo de seu coração arrefeceu.
Solte esse homem, disse ela ao eunuco.
Quando Li Lien-ying o soltou, o homem tombou no tapete como um saco vazio e ali ficou, com o rosto oculto. Ela olhou-o.
As portas da cidade não resistiram? perguntou ela. Sua boca estava tão seca, tão seca a sua língua que mal pôde proferir as palavras. -
O homem bateu com a cabeça no chão, a seus pés.
- Venerável, eles não entraram pelas portas.
Que fumaça era essa que vi no céu, tão alta como nuvens de tempestade?
- Venerável, tornou êle, Yuan Ming Yuan não existe mais.
O Palácio de Verão? gritou ela. Levou as mãos aos olhos. -
Eu pensei que a cidade tivesse sido incendiada!
- Não, Majestade, balbuciou o homem. - O Palácio de Verão. Os bárbaros saquearam todos os seus tesouros. Depois queimaram os palácios. O Príncipe Kung correu para impedi-los, mas mal pôde conservar a própria vida, fugindo pelo pequeno portão do pátio dos eunucos.
Ela ouviu um terrível estalo no interior de seu crânio. Sua mente turvou-se, viu chamas e fumaça, torres de porcelana e tetos de ouro, ruindo fragorosamente. Fitou o homem agachado.
- Nada escapou? inquiriu num sussurro. O homem não levantou a cabeça:
- Cinzas... somente cinzas.
- Feche as janelas, ordenou Tzu Hsi.
O vento seco e quente soprava do noroeste sobre Jehol, um vento que ela não podia suportar. As flores do pátio estavam mortas e as folhas das tamareiras se haviam transformado em farrapos. Até mesmo as agulhas dos pinheiros amareleciam em sua base. E o Imperador não mandara chamá-la desde que haviam chegado ao palácio-fortaleza.
A serva fechou as janelas.
-- Abane-me, ordenou Tzu Hsi.
Li Lien-ying saiu de trás de uma coluna e, postando-se junto dela, começou a abaná-la com um grande leque de seda. Ela se recostou na grande cadeira esculpida e cerrou os olhos. Estava exilada, estrangeira, com as raízes arrancadas. Por que o Imperador não a chamara? Quem lhe havia tomado o lugar? No último aniversário do Imperador, quinto dia da sexta lua, um mês atrás, êle recebera felicitações e presentes de toda a Corte. Somente ela não fora chamada. Esperara em seus aposentos, vestida de cetim e trazendo suas melhores jóias, porém êle não a mandara chamar. Esperara
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horas seguidas até que o dia findara, e então, cheia de medo e de cólera, arrancara o vestido e passara a noite inteira insone em sua cama.
Ouvira dizer que êle, desde esse dia, estava doente, cada vez mais fraco, porém ela nem assim fora chamada. E a doença dele agravava-se, apesar dos bons presságios proclamados no aniversário imperial pelo Corpo de Astrólogos, uma feliz conjunção de estrelas, um cometa atravessando os céus do noroeste. Agora estava agonizante, soubera Tzu Hsi, e ainda não a chamara.
- Pare de abanar-me, ordenou.
O braço de Li Lien-ying caiu e êle permaneceu imóvel.
Tzu Hsi sentou-se ereta e, abrindo os grandes olhos, fitou o vácuo. Precisava saber o que estava ocorrendo na alcova do Imperador. Mas lá não podia ir sem ser chamada. Se o Príncipe Kung estivesse presente, poderia pedir-lhe conselho, mas achava-se longe, ainda na Capital. A cidade estava agora nas mãos dos bárbaros, enquanto êle continuava a rogar e a negociar um armistício. Mas esses eram boatos de eunucos, pois ela não sabia que mensagens o Príncipe mandara ao Imperador, uma vez que não era chamada. Vivia só numa das alas do palácio. Dois dias antes, quando, inquieta, mandara dizer a Sakota que desejava visitá-la, a Consorte escusara-se dizendo que estava com dor de cabeça.
- Venha cá, ordenou Tzu Hsi.
Li Lien-ying colocou-se diante dela e baixou a cabeça.
- Chame o Eunuco-Chefe, ordenou.
- Venerável, êle não tem permissão de sair do quarto.
- Quem o proíbe?
- Venerável, os Três...
Os Três: Príncipe Yi, Príncipe Cheng e o Grande Conselheiro Su Shun, seus inimigos, agora no poder porque ela estava só e os bárbaros governavam a Capital!
- Abane-me!
Recostou-se, cerrou os olhos e o eunuco começou novamente a abaná-la devagar. Seus pensamentos corriam de um lado para o outro, sem que os pudesse controlar. Estava mais do que só: estava despejada. Yuan Ming Yuan desaparecera, o lar de seu coração estava transformado em ruínas. Os estrangeiros, bárbaros como eram, saquearam seu tesouro, incendiaram suas preciosas paredes esculpidas. Histórias monstruosas tinham sido espalhadas no palácio pelo mensageiro enviado para contá-las, e ela mandara chamá-lo de novo para ouvi-las sozinha.
Mal a família imperial deixara o Palácio de Verão - contara êle - os guerreiros estrangeiros chegaram. O inglês Lorde Elgin, impressionado com a beleza do Palácio de Verão, de fato proibira a sua destruição, mas não pudera controlar suas hordas de bárbaros. Quando o Príncipe Kung protestou de um templo próximo, onde se
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abrigara, Lorde Elgin respondeu que seus homens estavam enraivecidos pela tortura e assassinato de seus camaradas, nas mãos do Príncipe Seng. Ela ouvira isso e permanecera em silêncio. Fora ela quem mandara o guerreiro mongol atacar os homens brancos.
- Minha cabeça está encostada no pó, dissera o mensageiro. - Ainda assim devo informar que tudo quanto se podia transportar foi saqueado. Os tetos foram despojados das chapas de ouro e os altares, das imagens de ouro. As gemas engastadas nos tronos imperiais'foram arrancadas e levados também os biombos cravejados de pedras preciosas. Porcelanas finas eram quebradas no chão, exceto quando um assaltante mais inteligente percebia seu valor. Peças de jade foram roubadas ou partidas. Mas apesar de todo esse roubo, menos de um décimo de nossos tesouros foram salvos, embora para serem usufruídos pelos nossos inimigos. O resto de nossas preciosas e delicadas coisas, o legado dos nossos Imperiais Ancestrais, foi transformado em pedaços pelas coronhas das armas bárbaras, ou atirado ao ar pelos brancos em jogos selvagens. Finalmente o palácio inteiro foi incendiado. Durante dois dias e duas noites as chamas iluminaram o céu, e as nuvens negras de fumaça o escureceram. Ainda não satisfeitos, os bárbaros invadiram até os mais profundos recessos dos montes e destruíram todos os pagodes, altares e pavilhões, sendo que atrás deles seguiam os ladrões e assaltantes nativos.
Lágrimas jorravam por entre as pálpebras cerradas de Tzu Hsi, ao lembrar-se agora do que o mensageiro lhe dissera. A serva, que a observava, enxugou-as com um lenço.
- Não choreis, Venerável, disse ternamente.
- Choro pelo que não existe mais, tornou Tzu Hsi.
- Venerável, este palácio também é belo, exclamou Li Lienying, para confortá-la.
Ela não respondeu. Não achava que Jehol fosse belo. Séculos antes, o Imperador Ancestral Ch'ien Lung construíra aquele palácio-fortaleza, cem milhas ao norte de Pequim; amava a paisagem selvagem em que estava situado, os quilômetros de areia e rocha, as montanhas nuas, de terra e de pedra, erguendo-se contra o céu infinitamente azul. Para contrastar com a aridez circundante, Ch'ien Lung fizera o palácio o mais luxuriante possível. Das paredes pendiam brocados, sedas bordadas de muitas cores, o teto era apainelado de escarlate e ouro e coberto de dragões cravejados de pedras. A mesa, cadeiras e vastos leitos, trazidos do sul, eram esculpidos e ornados de gemas preciosas.
Ah, mas ela sentia falta dos jardins e dos lagos, das fontes e dos bosques! Ali a água era mais preciosa que o jade. Era trazida nas costas de carregadores, que a tiravam de pequenos poços, cavados no deserto, e, quando estavam secos, iam buscá-la num oásis distante. Em seu íntimo ardia noite e dia uma febre colérica gerada
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pela idéia de que Yuan Ming Yuan fora transformado em cinzas, de que o Príncipe Kung mantinha uma atitude suplicante perante os bárbaros, de que naquele longínquo e remoto palácio, obstada por seus inimigos, não podia aproximar-se do Imperador. Estava cheia de raiva e de ansiedade e o comedimento que se impunha para ocultar o que sentia, minava-lhe as forças.
De que maneira poderia vencer seus inimigos, se ali não tinha amigos? Os Três haviam-se declarado contra ela na noite em que a Corte fugira do Palácio de Verão. Pois Tzu Hsi não cessara de opor-se à fuga, mesmo enquanto era forçada a fugir. Mas eles, seus inimigos, persuadiram o homem fraco e tolo que era o Imperador, de que sua vida corria perigo. Lembrava-se de quão facilmente êle cedera e de como partira tão precipitadamente que deixara seu cachimbo, seu chapéu, seus papéis, sobre a mesa da alcova. Sentia-se humilhada ao pensar que os bárbaros, quando entraram no aposento imperial, deviam ter visto aqueles objetos e rido grosseiramente ao verificar como estava assustado o Filho do Céu. Por que essa mágoa se tudo o mais se perdera?
Levantou-se abruptamente da cadeira, afastando com a mão o leque que Li Líen-ying abanava pacientemente. Pôs-se a caminhar de um lado para o outro, irrequieta, enquanto do lado de fora rugia o vento quente.
Bem sabia qual era a trama. Su Shun, seus aliados e seus subordinados, tinham fugido com o Imperador mas tomaram as providências necessárias para que os ministros e conselheiros que poderiam ajudá-la fossem deixados para trás. Percebera a conspiração demasiado tarde e agora nada podia fazer.
Não; ainda tinha um aliado, um só, pois até mesmo Su Shun não poderia impedir a Guarda Imperial de proteger o Imperador como era de seu dever.
Voltou-se imperativamente para Li Lien-ying.
- Chame meu parente, o Comandante da Guarda Imperial. Pedirei seu conselho.
Li Lien-ying nunca deixara de cumprir imediatamente as ordens que lhe dava. Mas agora, cheia de surpresa, viu-o hesitar, com o leque na mão imóvel.
- Vamos, vamos, insistiu. Êle caiu de joelhos:
- Venerável, balbuciou, não me obrigueis a obedecer a essa ordem.
- Por que não? redargüiu ela severamente. Decerto não podia ser que Jung Lu também estivesse contra ela.
- Venerável, não me atrevo a falar, gaguejou Li Lien-ying. - Mandareis cortar minha língua, se eu falar.
- Não mandarei, prometeu ela.
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O eunuco continuava com medo e Tzu Hsi não conseguia arrancar-lhe as palavras reveladoras até que, invadida por violenta cólera ameaçou mandar decapitá-lo se não falasse imediatamente. Assim dominado, balbuciou que o Imperador não a chamava porque seus inimigos tinham-lhe dito que... que... ela e Jung Lu...
- Dizem que somos amantes? inquiriu.
Acenou afirmativamente, escondendo o rosto nas mãos.
- Mentirosos, sussurrou ela. Mentirosos... mentirosos...
Tinha de dar vazão à sua cólera de qualquer modo e desferiu um pontapé contra o eunuco, que se estirou imóvel no chão, enquanto ela se punha a caminhar pelo grande salão, indo e voltando, como se estivesse escalando montanhas.
Súbito parou diante do eunuco silencioso.
- Levante-se, ordenou. - Suponho que você não me disse tudo. Que mais sabe?
Êle encolheu-se aos seus pés, enxugou com a manga o suor do rosto.
- Venerável... não durmo desde que soube o que esses três estão conspirando.
Tzu Hsi lançou-lhe um olhar terrível:
- Que conspiram eles?
- Venerável, gaguejou o eunuco, não posso repetir as traiçoeiras palavras. Tramam... tramam... tomar a Regência... e depois... e depois...
- Matar meu filho! gritou ela.
- Venerável, asseguro-vos que... não ouvi isso. Suplico-vos, acalmai-vos...
- Quando veio a sabê-lo?
Tornou a sentar-se na grande cadeira e aplacou o calor das faces com as mãos.
- Ouvi o primeiro boato há muitos meses, Venerável... um pequeno boato, um sussurro...
- E nada me disse! exclamou ela.
- Venerável, retrucou o eunuco, suplicante, se eu vos contasse todos os boatos que ouço, vós me atiraríeis numa prisão para calar-me. Todos que estão altamente colocados acham-se sempre cercados pelos insultos dos maledicentes. E vós, Venerável, estais mais altamente situada que todos os outros. Quem poderia pensar que o Filho do Céu daria ouvidos a esses tipos?
Você deveria ter usado esse seu cérebro estúpido, retorquiu ela. - Deveria ter-se lembrado de que, antes do meu aparecimento, era Su Shun o bem-amado do Imperador. Eram dois rapazes e como o imperador fosse fraco e gentil, amava o jovem forte e selvagem, que caçava, bebia, jogava e vivia como um bárbaro. Lembre-se de que esse mesmo Su Shun passou de um cargo insignificante no Conselho de Rendas para tornar-se Grande Secretário Assistente, e que
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provocou a morte de Po Ch'un, aquele homem bom e honrado, para que pudesse tomar o poder!
Assim fora, realmente. Antes do nascimento de seu filho, quando ela já havia conquistado o amor do Imperador, procurara-a certo dia um príncipe idoso, o Grande Secretário Po Ch'un. Nessa época Tzu Hsi era demasiado jovem, novata nas tramas palacianas, para compreender os meandros da intriga. E ouvira sem grande atenção o velho que pedia a sua intercessão junto ao Imperador.
- Não me ouve mais, senhora, disse-lhe êle tristemente, acariciando as barbas ralas, já brancas.
- De que o acusa Su Shun? perguntou.
- Senhora, sou acusado de enriquecer à custa do Trono. Esse homem, esse Su Shun, sussurrou ao ouvido do Imperador que eu subtraio dinheiro do Tesouro Imperial.
- E por que disse isso?
- Êle é que é o ladrão e sabe que eu sei disso, tornou o velho Príncipe.
Ela não duvidara da aparência honesta e simples. Inocentemente, prometeu falar ao Imperador e assim o fêz. Mas naquela época o Imperador ainda favorecia Su Shun e acreditava nele, de modo que o velho foi decapitado e Su Shun tomou o seu lugar. Sua cólera inflamou-se de novo ao lembrar-se de como Su Shun começara a odiá-la. Somente o crescente amor do Imperador salvara-a da ira de Su Shun. Ah, confiara demais em seu poder... E agora?
Súbito, incapaz de suportar o calor que lhe abrasava o peito, levantou-se, ergueu a mão direita e esbofeteou Li Lien-ying nas duas faces, até que seus olhos se encheram de água e êle perdeu a respiração. O eunuco nada disse, pois era seu dever suportar a cólera da Imperatriz.
- Tome, gritava ela, tome e tome... por não me ter falado imediatamente! Oh, silêncio perverso!
Em seguida tornou a sentar-se e, com o rosto entre as mãos, suspirou cinco vezes. Li Lien-ying continuava ajoelhado diante dela, como uma estátua de pedra, pois nunca a vira tão encolerizada.
Cinco minutos depois, a mente de Tzu Hsi desanuviou-se. Levantou-se e caminhou com impetuosa graça para a sua escrivaninha. Sentou-se, preparou a tinta, umedeceu o pincel e, tomando um pequeno pedaço de pergaminho de seda, escreveu uma carta ao Príncipe Kung, contando-lhe o que ocorria e pedindo a sua ajuda imediata. Dobrou-a, apôs-lhe seu sinete e chamou Li Lien-ying.
- Parta agora mesmo para a Capital, ordenou. - Entregue esta carta nas mãos do Príncipe Kung e traga-me a resposta. Não demore mais de quatro dias.
- Venerável, protestou êle, como posso eu... Tzu Hsi interrompeu-o:
- Pode porque deve.
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O eunuco olhou-a magoado, bateu no peito e gemeu, porém ela não se comoveu - restava-lhe apenas obedecer.
Depois que êle partiu, Tzu Hsi recomeçou a caminhar pelo salão até que a serva se cansou de olhá-la e as suas damas vieram espreitar através das cortinas, afastando-se em seguida, sem se atreverem a falar nem a deixar perceber sua presença.
Ao cabo de quatro dias chegou o próprio Príncipe Kung, coberto de poeira e fatigadíssimo. Correu logo à ala do palácio em que Tzu Hsi vivia. Nunca saíra de seus aposentos, comia pouco e dormia ainda menos, com toda a sua esperança dependendo da palavra do príncipe. Qual a sua alegria, portanto, quando foi anunciado por Li Lien-ying que, sujo e esfarrapado, não se havia detido nem para tomar uma tigela de alimento.
Mas ela não deu atenção ao fiel eunuco. Correu à sala contígua, onde a esperava o Príncipe Kung, saudou-o, agradeceu aos deuses e chorou. Nunca uma fisionomia lhe parecera tão cheia de bondade como a dele, nesse momento, e nunca um homem lhe parecera tão poderoso e digno de confiança. Sentiu o coração tranqüilizar-se na presença dele.
- Vim, disse o Príncipe, mas em segredo, pois devia dirigir-me primeiro ao meu irmão mais velho, o Imperador. Contudo eu já tinha recebido notícias por um mensageiro do Eunuco-Chefe, um eunuco menor, de sua confiança, que, disfarçado em mendigo, comunicou-me que os Três infames tinham ousado denunciar-me ao Trono do Dragão. Disseram ao meu irmão mais velho que estou tramando contra êle, que fiz uma aliança secreta com o inimigo, em Pequim, que fui subornado pelas promessas dos estrangeiros, de me entregarem o governo. Quando recebi vossa carta, Venerável, pus-me imediatamente a caminho para desfazer essa poderosa intriga.
Antes que êle pudesse proferir outra palavra, a serva de Tzu Hsi surgiu correndo, do pátio externo.
- Venerável, soluçou ela, oh senhora, minha senhora, vosso filho, senhora, o Herdeiro...
- Que houve com êle? gritou Tzu Hsi. - Que lhe fizeram? Agarrou os ombros da mulher e sacudiu-os para arrancar-lhe as palavras.
Fale, mulher! exclamou o Príncipe Kung para a criatura semienlouquecida. - Pare de gaguejar!
Foi raptado, soluçou a serva. - Foi entregue à esposa do Príncipe Yi! Ela foi chamada hoje de manhã ao Palácio de Caça, e todas as outras damas foram dispensadas. Ela e suas servas estão com o menino... Tzu Hsi caiu desamparada na cadeira. Mas o Príncipe não a deixou sentir-se dominada pelo terror.
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- Venerável, observou com firmeza, não podeis permitir-vos o luxo de ter medo.
Ela mordeu os lábios, torceu as mãos.
- Precisamos agir primeiro! exclamou. - O sinete... precisamos encontrar o grande sinete imperial... e teremos o poder.
O Príncipe não conteve a sua admiração:
- Que inteligência! Curvo-me perante vós.
Tzu Hsi levantou-se, sem ouvir. Mas o Príncipe ergueu a mão.
- Não abandoneis estes aposentos, suplico-vos. Necessito apurar primeiro, o perigo real que o Herdeiro corre. A conspiração adquiriu um vulto que desconhecíamos. Esperai, Venerável, pela minha volta.
Curvou-se e se afastou a passos rápidos.
Como podia ela esperar? No entanto era necessário, pois se saísse poderiam assassiná-la em algum corredor deserto, e então quem salvaria seu filho, o Herdeiro? Pobre menino... oh, pobre e infeliz Herdeiro do Trono do Dragão!
Permaneceu imóvel, depois que o Príncipe Kung saiu. Ouvia o vento sibilar por entre as numerosas torres do palácio e voltava a cabeça para olhar através da janela. As rajadas atiravam a areia contra os muros de pedra e ela depois escorria pelas paredes até o fosso. As águas do fosso tinham secado, as próprias nuvens no céu estavam ressecadas pelo vento impiedoso. Era o vento, sem dúvida, que consumira a pouca vida que ainda havia no corpo do Imperador, quando fora trazido em seu palanquim através do deserto. Como poderia salvar seu filho?
Hesitou por um instante. Depois, rápida, enquanto a serva e o eunuco a observavam, dirigiu-se à sua escrivaninha e preparou-se para escrever. Derramou água sobre a pedra, esfregou nela o bastão de tinta, fêz uma fina pasta e umedeceu o seu pincel de pêlo de camelo, até torná-lo tão fino quanto a ponta de uma agulha. Em seguida pôs-se a escrever em traços ousados um decreto sobre a sucessão imperial.
"Eu, Hsien Feng", escreveu Tzu Hsi, "Eu, Imperador do Reino do Meio e da Coréia e Tibet, da Indo-China e das ilhas do sul, fui hoje chamado para reunir-me aos Meus Imperiais Ancestrais. Eu, Hsien Feng, em plena posse de Minhas faculdades mentais e de Minha vontade, decreto que o Herdeiro é a criança do sexo masculino, Meu filho e de Tzu Hsi, Imperatriz do Palácio Ocidental, e que será reconhecido por todos como o novo Imperador e se sentará no Trono do Dragão depois de Mim. Como Regentes, até que atinja a idade de dezesseis anos, designo Minhas duas Consortes, a Imperatriz do Palácio Ocidental e a do Palácio Oriental, neste dia da Minha morte..."
Tzu Hsi deixou um espaço em branco e acrescentou depois as seguintes palavras:
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"Aponho o meu nome e o selo dinástico imperial a este Meu testamento e Meu decreto".
Tornou a deixar um espaço em branco.
Enrolou o pergaminho e enfiou-o na manga. Sim, faria de Sakota outra Regente, obrigando-a a ser sua aliada e evitando que se tornasse sua inimiga. Tzu Hsi teve uma sombra de sorriso, em louvor da própria argúcia.
Entrementes a serva e Li Lien-ying continuavam a observá-la, esperando suas ordens. Apesar de cansado, o eunuco não se atrevia a pedir-lhe licença para repousar.
Súbito a serva voltou a cabeça para a porta fechada. Tinha ouvidos aguçados, essa mulher, graças à longa prática de estar sempre à escuta, aguardando o chamado de sua soberana.
- Ouço passos, sussurrou.
- Passos de quem? inquiriu o eunuco.
Colheu o traje com a mão direita e aproximou-se da porta. Retirou a tranca e, abrindo uma fresta, esgueirou-se através dela. A serva correu e tornou a fechar. Logo em seguida ouviu uma pancada surda. Tornou a abrir uma fresta e espreitou. Voltou-se para a sua senhora.
- Venerável, disse em tom abafado, é o seu parente. Tzu Hsi, ainda sentada à escrivaninha, virou-se vivamente.
- Deixe-o entrar.
Levantou-se ao mesmo tempo que falara. A mulher alargou a fresta e Jung Lu entrou. A serva recolocou a tranca, enquanto o eunuco permanecia vigilante do lado de fora.
- Bem-vindo parente, disse Tzu Hsi em voz doce e suave. Jung Lu não falou. Aproximou-se e fêz uma rápida reverência.
- Parente, acrescentou ela, não se ajoelhe. Sente-se naquela cadeira e deixe que as coisas sejam como sempre foram.
Mas Jung Lu não se sentou. Ergueu-se e, aproximando-se ainda mais dela, com os olhos fixos no chão, começou a falar:
- Venerável, não temos tempo para cortesias. O Imperador está agonizante e o Eunuco-Chefe pediu-me que viesse falar-lhe. Su Shun esteve no quarto do enfermo há menos de uma hora, acompanhado dos Príncipes Yi e Cheng. Urdiram um plano - têm pronto um decreto para o Imperador assinar, designando-os como Regentes! Êle não quis assinar e caiu inconsciente quando tentaram forÇa-lo, mas os Três voltarão.
Ela não perdeu tempo. Passou voando por Jung Lu, que a seguiu
rápido, acompanhado por Li Lien-ying. Tzu Hsi deu suas ordens ao eunuco, por cima do ombro, ao passar.
Anuncie-me... diga ao Filho do Céu que trago o Herdeiro comigo.
Como se o vento a impelisse, rumou para o Pavilhão de Caça. Abriu violentamente a porta e ninguém ousou detê-la Ouviu um
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choro de criança, parou para escutar, reconheceu a voz de seu filho. Oh, choro feliz, que a havia conduzido a êle! Afastou as servas assustadas, atravessou correndo os aposentos até encontrar o quarto onde o menino chorava. Entrou, viu uma mulher ninando o menino mas sem conseguir acalmá-lo. Tomou-o nos braços e partiu correndo. O menino rodeara-lhe o pescoço com ambos os braços, emudecido pelo espanto, mas sem medo. Atravessou passagens e corredores, galgou degraus de pedra, passou por salões e quartos até alcançar o mais recôndito de todos e aí, sem se deter, transpôs a porta que o Eunuco-Chefe tinha aberto para ela.
- O Filho do Céu ainda vive? perguntou.
- Respira, disse o Eunuco-Chefe.
Sua voz estava transtornada pelo pranto. Ao redor da enorme cama, elevada como uma tumba, os eunucos estavam ajoelhados, chorando com o rosto oculto nas mãos. Passou por eles como se fossem árvores curvadas numa floresta. Aproximou-se do Imperador e ali parou, com o menino nos braços.
- Meu Senhor! exclamou em voz clara e alta. Êle não respondeu. - Meu Senhor! tornou a chamar. Ah, a velha mágica daria resultado?
O Imperador ouviu, suas pesadas pálpebras ergueram-se. Voltou a cabeça, os olhos agonizantes procuraram-na e viram-na. - Meu Senhor, repetiu ela, aqui está o seu herdeiro. O menino olhava-o com seus grandes olhos negros.
- Meu Senhor, continuou ela, deveis declará-lo vosso herdeiro. Se me ouvis, levantai a mão direita.
Todos observaram a mão agonizante. Jazia imóvel, pedaço amarelo de pele e osso. Súbito moveu-se, com tamanho esforço que os que a fitavam gemeram.
- Meu Senhor, aduziu ela imperiosamente, eu devo ser a Regente do menino. Somente eu poderei proteger sua vida contra os que o destruiriam. Movei a mão direita, uma vez mais, para significar vossa concordância.
Novamente todos viram o lento movimento da mão. Ela correu para a cama e ergueu a mão amarelada.
- Meu Senhor, clamou, meu senhor, volte a si por um só instante, pelo menos!
Com gigantesco esforço êle recuperou a consciência, ao influxo mágico da voz da mulher amada. Pousou o olhar apagado na face de Tzu Hsi. Ela tirou o pergaminho da manga e Jung Lu, rápido, apanhou o pincel com tinta vermelha, na mesa próxima, e colocou-o na mão dela. Depois, tirou-lhe o menino dos braços.
- Deveis assinar vosso decreto, meu senhor, disse ela distintamente ao Imperador agonizante. - Segurarei vossa mão... assim. Firmai os dedos no pincel, assim...
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Os dedos moveram-se, ou pareceram mover-se, assinando o seu nome.
Obrigada, meu senhor, disse ela guardando o pergaminho no seio. - Descansai agora, querido senhor.
Fêz um gesto para que todos se retirassem. Jung Lu saiu com o menino nos braços e os eunucos postaram-se na outra extremidade do aposento, esperando, com os rostos ocultos atrás de suas mangas. Ela sentou-se na cama e, erguendo a cabeça do Imperador, pousou-a sobre o seu braço. Ainda viveria? Ouviu-lhe a respiração débil. Êle abriu os olhos e aspirou:
- Seu perfume... encantador!
Prendeu a respiração por um instante e depois, com um tremor na garganta, deu um grande suspiro e morreu.
Ela colocou-lhe delicadamente a cabeça na almofada, inclinou-se e gemeu duas vezes. "Ah..." e "Ah..." - chorou um pouco, lágrimas de pura piedade pelo homem que morria tão jovem e nunca fora amado. Oh, se pudesse tê-lo amado por um instante sequer... sentiu-se triste, por não o ter conseguido.
Em seguida levantou-se e se afastou do aposento imperial, lentamente, como devem fazê-lo as Imperatrizes viúvas.
Mais rápida que o vento, a notícia da morte espalhou-se pelo palácio. O corpo do Imperador foi colocado no Salão de Audiência, cujas portas foram trancadas para impedir a entrada de todos os viventes. Diante de cada porta do grande prédio postaram-se cem homens da Guarda Imperial, designados por Jung Lu. Somente os pássaros tinham liberdade de entrar e sair de seus ninhos, instalados entre os dragões empinados nos tetos sobrepostos. Reinava um pesado silêncio nos corredores, mas não havia paz nesse silêncio. As paredes do palácio ocultavam a luta pelo poder que entre elas se travava, mas ninguém sabia onde se realizaria a última batalha.
Tzu Hsi era agora a Imperatriz Mãe, a mãe do Herdeiro. Ainda era jovem, não completara trinta anos de idade. Cercavam-na príncipes de sangue e chefes dos fortes e ciumentos clãs manchus. Venceria, mesmo sendo Imperatriz Mãe? Todos sabiam que Su Shun era seu inimigo e que tinha por aliados dois príncipes, ambos irmãos do Imperador morto. O Príncipe Kung ainda era seu aliado? A Corte aguardava irresoluta, sem saber a quem protestar lealdade; cada cortesão mantinha-se reservado, esforçando-se por não demonstrar qualquer sinal de amizade ou de hostilidade a nenhum dos dois grupos.
Entrementes Su Shun, Grande Conselheiro que era, chamou o Eunuco-Chefe tão logo seus espiões lhe comunicaram a morte do Imperador, e pediu-lhe que levasse uma mensagem à Imperatriz Mãe
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- Diga-lhe, falou arrogantemente Su Shun, que eu e o Príncipe Yi fomos designados Regentes pelo próprio Filho do Céu, antes que seu espírito o deixasse. Diga-lhe que iremos nos apresentar pessoalmente a ela.
O Eunuco-Chefe curvou-se, sem responder, e correu a fazer o que lhe ordenaram. Mas no meio do caminho parou para informar a Jung Lu, que esperava, vigilante. Jung Lu agiu imediatamente:
- Procure levar os Três à presença da Imperatriz Mãe o mais depressa possível. Eu me esconderei atrás da porta e, assim que eles saírem, entrarei.
Tzu Hsi achava-se no salão de seu palácio, vestida de branco, em sinal de luto pelo Imperador - ornato de cabeça branco, sapatos brancos, tudo branco. Assim se vestira desde que fora anunciada a morte do Filho do Céu. Não comeu nem bebeu. Tinha as mãos cruzadas no colo, os grandes olhos fixos na distância. Suas damas, que estavam perto, soluçavam e enxugavam os olhos em seus lenços de seda. Mas ela não chorava.
Quando o Eunuco-Chefe se aproximou, ouviu-o ainda com o olhar perdido ao longe, como se um dever a cumprir a absorvesse, impacientando-a para cumpri-lo o quanto antes.
- Traga o Conselheiro Su Shun e os Príncipes Cheng e Yi à minha presença. Diga a esses três grandes que meu senhor, agora habitando as Fontes Amarelas, deve ser obedecido.
Êle se afastou e, num abrir e fechar de olhos, o Grande Conselheiro entrou, acompanhado dos dois Príncipes. Ela voltou-se e falou docemente à Dama Mei, que era filha de Su Shun.
- Deixe-nos, minha filha. Não é conveniente que você fique aqui perto de mim, na presença de seu pai.
Esperou até que a jovem saísse. Em seguida aceitou as reverências dos Príncipes e, para demonstrar que não era orgulhosa, agora que seu senhor estava morto, levantou-se, curvou-se também diante deles, e tornou a sentar-se.
Mas Su Shun era suficientemente orgulhoso pelos dois. Afagou a barba curta, ergueu a cabeça para fitá-la nos olhos, atrevido e arrogante. Ela notou muito bem aquele ar de proprietário, mas nada disse para desfazê-lo.
- Senhora, disse êle, vim anunciar o Decreto da Regência. Nesta última hora o Filho do Céu...
Aqui Tzu Hsi o interrompeu:
- Espere, bom Príncipe. Se o senhor tem um pergaminho com a assinatura imperial, obedecerei como é meu dever.
- Não tenho pergaminho, tornou Su Shun, mas tenho testemunhas. O Príncipe Yi...
Ela interrompeu-o de novo:
- Mas eu tenho um pergaminho, assinado em minha presença e na de numerosos eunucos,
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Circunvagou o olhar em busca do Eunuco-Chefe, mas esse prudente servo permanecera do lado de fora, não querendo presenciar o encontro dos tigres. Ela não se perturbou. Retirou do seio o pergaminho que a mão do Imperador agonizante assinara. Em voz calma e suave, pronunciando distintamente cada palavra, leu o decreto do começo ao fim. Su Shun puxou a barba:
Deixe-me ver a assinatura, rosnou.
Ela mostrou-lhe a assinatura, de longe.
Não tem o selo, exclamou êle. - Um decreto sem o selo imperial não tem valor.
E sem esperar para ver a expressão consternada da Imperatriz, afastou-se rápido, acompanhado dos dois príncipes. Ela sabia por que se apressavam. O selo imperial estava trancado dentro do cofre, na câmara mortuária. Quem o apanhasse primeiro seria vitorioso. Ela rangeu os dentes, enraivecida contra si mesma, por não haver esperado o selo. Arrancou o diadema da cabeça e atirou-o ao chão, puxou as orelhas com toda a força, desorientada pela cólera.
- Estúpida! gritou para si própria. - Oh, mulher estúpida, eu, e mais estúpido o Príncipe, que não me advertiu a tempo, e estúpido o meu parente e os traiçoeiros eunucos que não me auxiliaram antes! Onde está o selo?
Correu para a porta e abriu-a de par em par, mas não viu ninguém, nem o Eunuco-Chefe, nem mesmo Li Lien-ying. Não havia ninguém para suportar a sua ira. Jogou-se ao chão e chorou. Perdera tudo, fora traída.
Nesse momento, a Dama Mei, insinuando-se por entre as cortinas, viu a sua senhora caída como morta e correu a ajoelhar-se junto dela.
- Oh, Venerável, gemeu. - Está ferida? Alguém a magoou? Tentou levantá-la mas não o conseguiu. Rumou para a porta ainda aberta e viu Jung Lu e Li Lien-ying, que tinham acabado de chegar.
- Oh, exclamou ela, recuando, cheia de intenso rubor. Mas Jung Lu não a fitou. Trazia algo nas mãos: um objeto envolto em seda amarela.
Largou-o ao ver a graciosa figura estendida sobre as pedras. Baixou-se, ergueu a Imperatriz em seus braços e olhou-a no rosto.
- Trouxe o selo, disse.
Ela se pôs imediatamente de pé e Jung Lu permaneceu ao seu lado, com a fisionomia grave, que o caracterizava. Evitando o olhar dela, tomou o selo com ambas as mãos, um sólido pedaço de jade no qual estava profundamente gravado o símbolo imperial do Filho do Céu. Era o selo do Trono do Dragão há mais de oitocentos anos, desenhado por ordem de Ch'in Shih-huang, então reinante. Ouvi as palavras de Su Shun, disse êle, enquanto me achava junto da porta, para protegê-la. Ouvi-o gritar que o pergaminho
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não estava selado. Corri por um lado e mandei o seu eunuco pelo outro, a fim de detê-lo caso alcançasse a câmara mortuária em primeiro lugar.
Li Lien-ying, sempre ansioso por fazer valer os seus atos, interrompeu-o:
- Levei comigo outro eunuco, Venerável, e entrei na câmara fúnebre através de um respiradouro, pois bem sabeis que a porta grande está trancada por temor aos ladrões desta região selvagem. Enquanto o pequeno eunuco vigiava, quebrei o cofre de madeira com um vaso de jade e apanhei o selo. O pequeno eunuco puxou-me para fora no momento exato em que ouvi os príncipes forçando a fechadura. Gostaria de ter ficado para ver a cara deles quando encontrassem o cofre vazio!
- O momento não é para pilhérias, observou Jung Lu. - Imperatriz, eles tentarão tirar-vos a vida, agora que compreenderam que não destruíram o vosso poder.
- Não me deixe, implorou-lhe ela.
A serva de Tzu Hsi permanecera todo esse tempo junto da porta, com a orelha encostada na madeira, à escuta. Súbito abriu-a. O Príncipe Kung entrou, pálido, com o manto suspenso para movimentar-se com maior rapidez.
- Venerável, exclamou, o selo desapareceu! Fui eu próprio à câmara mortuária e ordenei que os guardas abrissem as portas, a fim de que pudesse entrar. Mas as portas já tinham sido abertas por ordem de Su Shun e, quando entrei, o cofre estava vazio.
Parou de súbito. Seus olhos tinham caído sobre o selo imperial, envolto em seda amarela. Abriu a boca, seus olhos esbugalharam-se, a ponta da língua tocou o lábio superior, num sorriso estranho.
- Agora compreendo, disse. - Agora sei por que motivo Su Shun afirmou que uma mulher como vós deve ser morta pois do contrário dominará o mundo.
Olharam um para o outro - Imperatriz, Príncipe e eunuco e prorromperam em risos triunfantes.
O selo imperial foi escondido debaixo da cama de Tzu Hsi e as róseas cortinas de cetim cobriram-no. No palácio inteiro somente ela, a serva e o eunuco sabiam onde se encontrava o precioso objeto.
- Não me digais onde está escondido, pedira o Príncipe Kung. - Devo poder dizer que não sei.
Com o selo imperial a salvo, ela podia fazer o que desejasse. Sua febre cessou, dando a inquietação lugar à paz. Ignorou a fermentação que ia pelo palácio, quando se soube que o selo desaparecera e que ninguém sabia onde estava. Todos adivinhavam que estava em poder dela e imediatamente a cortesia e a reverência substituíram a impudência velada e a arrogância crescente com que antes a tratavam. Seus três inimigos conservavam-se afastados, pois não
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podíam continuar com a conspiração. Em meio à confusão e à consternação ela se movimentava suave e tranqüilamente. Seu primeiro ato foi mandar seu eunuco agradecer à Dama Yi por haver cuidado de seu filho, assegurando-lhe que agora ela própria poderia cuidar do menino, pois, tendo morrido o Imperador, estava liberta dos seus deveres de Consorte. Fora devolvida inteiramente ao Herdeiro.
Seu ato seguinte foi procurar chorando a sua prima, sentar-se ao seu lado e contar-lhe como o Imperador decretara que as duas fossem regentes juntas, enquanto o Herdeiro não adquirisse a maioridade.
Você e eu, querida prima, seremos agora irmãs. Nosso senhor quis que nos uníssemos por amor a êle e juro-lhe meu amor e minha lealdade enquanto estivermos vivas.
Segurou a mãozinha de Sakota, sorriu-lhe ternamente e como se atreveria a outra a reagir? Respondeu-lhe também com um sorriso meio agradecido e, com algo de sua antiga honestidade infantil, disse:
- Para lhe dizer a verdade, prima, alegro-me que sejamos amigas.
- Irmãs, corrigiu Tzu Hsi.
- Irmãs, então, concordou Sakota, pois sempre tive medo desse Su Shun. Seus olhos são ferozes e astutos, e embora me tivesse prometido muito, eu nunca soube...
- Êle prometeu? inquiriu Tzu Hsi gentilmente. Sakota ruborizou-se:
- Disse que, quando fosse Regente, eu seria chamada Imperatriz Viúva.
- E eu deveria ser assassinada, não é? perguntou Tzu Hsi na mesma voz tranqüila.
- Jamais concordei com isso, retrucou Sakota com exagerada vivacidade.
Tzu Hsi manteve a sua habitual cortesia:
- Tenho certeza. Agora tudo pode ser esquecido.
- Exceto... hesitou Sakota.
- Exceto? indagou Tzu Hsi.
- Já que sabe tanto, prosseguiu Sakota contra a vontade, deve saber também que pretendiam matar todos os estrangeiros que estão no país e matar, também, os irmãos do Imperador que não tomassem parte na conspiração. Esses decretos já estão escritos, aguardando apenas o selo.
- Realmente? murmurou Tzu Hsi, sorrindo, mas com o coração angustiado. Quantas vidas salvara, além da sua! Apertou as mãos de Sakota entre as suas. - Não tenhamos segredos, Irmã. E nada tema pois esses conspiradores não possuem o selo imperial e os decretos que elaboraram não têm, por conseguinte, nenhum valor. Somente quem estiver de posse do velho selo, que chegou até nós
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desde a época do ancestral Ch'in Shih-huang, e sobre o qual estão gravadas as palavras "Autoridade Legalmente Transmitida", poderá reclamar a sucessão ao Trono do Dragão.
Parecia tão altiva, pura e calma que Sakota não se atreveu a perguntar-lhe se possuía o selo e onde se encontrava. Curvou a cabeça e murmurou em voz débil:
- Sim, irmã.
Levou o lenço aos lábios e tocou as pálpebras, exclamando "Ah... Ah...", para significar a sua dor pela morte de seu senhor. Tzu Hsi então despediu-se e tudo era amizade.
Enquanto esperava o momento de voltar à Capital, apenas tinha de aguardar as novas revelações de seus inimigos, e isso ela fêz com o espírito calmo, animado de secreta alegria. Mas nada demonstrava a ninguém. Exteriormente conduzia-se de maneira grave, como convinha a uma boa viúva, trajava roupas brancas e guardara todas as suas jóias.
Entrementes o Príncipe Kung voltara à Capital para preparar um armistício especial e obter que o inimigo permitisse o regresso do Imperador Morto, para o funeral imperial.
- Tenho apenas uma advertência a fazer, disse o Príncipe Kung ao despedir-se. - Majestade, não vos encontreis em hipótese alguma com o vosso parente, o Comandante da Guarda Imperial. Quem pode avaliar a sua lealdade e a sua coragem mais do que eu? Contudo, os inimigos a observarão agora para descobrir se há algo de verdadeiro nos velhos boatos. Depositai vossa confiança no Eunuco-Chefe An Teh-hai, que é inteiramente dedicado a vós e ao Herdeiro.
Tzu Hsi olhou o príncipe com uma expressão de censura nos olhos:
- Considera-me estúpida?
- Perdoai-me, tornou êle, e estas foram as suas palavras de despedida.
Embora não o necessitasse, seu conselho fora útil, para protegê-la da tentação. Pois era mulher, tinha o coração ardente, e agora que o Imperador estava morto, de noite seus pensamentos, freqüentemente, corriam através dos corredores escuros e dos salões solitários até alcançarem os alojamentos da Guarda Imperial. E lá encontravam aquele a quem amava e cercavam-no como pombas arrulhantes, recordando cenas da infância, êle sempre alto e ereto, inclinado à teimosia, era verdade, nunca cedendo, a menos que quisesse ceder, mais forte do que ela, embora ela também fosse forte, bonito como agora, porém másculo, jamais delicado ou efeminado, como o fora o pobre Imperador. Contra tais pensamentos e lembranças, fora boa a advertência do Príncipe Kung - escudo que a protegeria contra seu próprio desejo. Tornou invencível a sua calma exterior, enquanto um incêndio lavrava em seu íntimo.
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E de fato não podia ceder ao impulso do coração. Sua tarefa ainda não terminara. Não devia dar conforto aos seus inimigos, nem liberdade a si mesma, até que o Trono fosse seu, guardado para seu filho. Devia exercer todos os seus encantos, dignidade e cortesia, sobre cada pessoa, e tão bem o fêz que todos, com exceção de seus'inimigos, ficaram fascinados por ela, especialmente os soldados da Guarda Imperial, aos quais dispensava presentes e bondade, sem jamais deixar transparecer o menor sinal de preferência entre esses homens e o seu Comandante. Mandava diariamente agradecer-lhes a proteção ao cadáver imperial.
Tornou seu aliado direto o Eunuco-Chefe An Teh-hai, que se achava sempre perto dela, como antes estivera do Imperador. Através dele soube das preocupações de seus inimigos e de como os Três se sentiam desesperados, juntamente com seus adeptos. Pois no dia posterior à morte imperial, despacharam decretos declarando-se Regentes designados pelo Imperador, em seu leito de agonizante, e afirmando que ela fora proibida de tomar qualquer parte no governo. No dia seguinte, porém, como não tivessem podido encontrar o selo, apressaram-se em aplacá-la e enviaram outro decreto declarando Imperatrizes Viúvas a ambas as Consortes.
- Isto, Venerável, contou-lhe o Eunuco-Chefe rindo-se, não é tanto porque sois a mãe do novo Imperador, mas porque conquistásteis a simpatia dos soldados manchus que guardam este palácio.
As macias faces de Tzu Hsi encovaram-se:
- Ainda pretendem matar-me? inquiriu inocentemente.
- Não, enquanto não tiverem certeza de sua posição na Capital.
Riram-se e separaram-se - êle para fazer seu relatório ao Príncipe Kung, levado diariamente por um mensageiro, e ela para representar o seu papel de mulher adorável. Quando por acaso se encontrava com algum dos Três, sua cortesia era tão perfeita, suas maneiras tão indiferentes ao risco que corria, que o Príncipe Yi, ao cabo, não podia crer que ela ainda os considerasse conspiradores.
No segundo dia do nono mês lunar, assinado o armistício com os invasores, o Conselho da Regência declarou que o cortejo do Imperador Morto devia iniciar a viagem de retorno à Capital. Era costume, naquela época, quando um imperador morria longe de seu túmulo, que as Consortes viajassem na frente, de modo que estivessem prontas para dar as boas-vindas ao Imperial Morto à sua última morada. Com o devido luto e gravidade, Tzu Hsi preparou-se e ao seu filho. O velho costume dava uma vantagem a Tzu Hsi e ela ocultou a alegria decorrente desse fato. Pois os Três, que ainda eram seus inimigos, eram forçados, por dever, a viajar com o féretro imperial, e seu grande peso, suportado por cento e vinte homens, compelia-os a caminhar tão vagarosamente que levariam dez dias para chegar à Capital, descansando de quinze em quinze milhas. Mas em seu simples carro de mula a Imperatriz Mãe
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podia alcançar a cidade na metade do tempo e lá estabelecer a sua posição e poder antes que Su Shun conseguisse impedi-la.
- Venerável, vossos inimigos estão desesperados, disse-lhe o Eunuco-Chefe na véspera da partida. - Precisamos vigiar os seus atos com o maior cuidado.
- Confio em suas orelhas, retrucou ela.
- A trama deles é a seguinte, prosseguiu o Eunuco-Chefe.
Ao invés de nossos leais guardas manchus, Su Shun ordenou que seus próprios soldados vos acompanhem, Venerável, sob o pretexto de que os Guardas Imperiais são necessários para proteger o Imperador Morto. E até mesmo a mim ordenaram que ajudasse a levar o féretro, juntamente com o vosso eunuco, Li-Lien-ying.
- Ah! exclamou ela,
- Mas ainda há pior, disse o Eunuco-Chefe erguendo sua mão enorme: - Jung Lu recebeu ordens para permanecer aqui, guardando este palácio de Jehol.
Tzu Hsi torceu as mãos:
- Para sempre?
O Eunuco-Chefe fêz um aceno afirmativo com a sua enorme cabeça:
- Foi o que me disse.
- Que farei? inquiriu ela em desespero. - Isto significa que vão me matar. Em algum solitário passo da montanha, quem ouvirá quando eu gritar por socorro?
- Venerável, tende certeza de que vosso parente também tem o seu plano. Disse-me que deveis confiar nele. Estará perto de vós.
Munida apenas da fé em Jung Lu, partiu ao amanhecer do dia seguinte. O carro de seu filho ia na frente, depois o dela e o de Sakota, cercados pela guarda estranha. Todos viam-na calma e sem temor, falou cortêsmente a todos, dando ordens a um e a outro e finalmente pedindo, como se tivesse esquecido, que a sua grande caixa de toilette fosse posta sob o assento de seu carro, para o caso de necessitar de um lenço ou de perfume. Na caixa de toilette estava escondido o selo imperial, mas, com exceção de sua fiel serva, ninguém o sabia.
Depois de tudo pronto, sentou-se entre as cortinas e assim começou a triste viagem. Aguardara ansiosamente o momento de abandonar o sombrio palácio, mas agora que não sabia o que a esperava, nem mesmo onde dormiria naquela noite, parecia-lhe abandonar um refúgio seguro. Chovia fortemente, uma chuva clara e dura, que penetrava no solo arenoso, engrossava as torrentes da montanha e inundava as estreitas estradas entre os morros. Ao cair da noite, atrasados, estavam longe ainda de qualquer lugar de repouso e os rios tinham subido de tal maneira que se viram forçados a parar numa garganta da Montanha Comprida, abrigando-se como podiam em tendas que foram armadas.
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Ali nas trevas, enquanto eram levantadas as tendas, verificou-se outro fato duvidoso. O capitão da guarda hostil declarou que a Imperatriz Viúva e o Herdeiro deviam ter suas tendas bem afastadas das demais, em virtude de sua alta posição.
Eu próprio vos guardarei, Venerável, disse êle.
Postou-se à sua frente, com todo o garbo militar, a mão direita no punho da espada que chegava até os calcanhares, fazendo espetacular reverência.
Ela conservou o olhar baixo, de modo que lhe aconteceu ver a mão direita do homem. No polegar, reluzindo à luz da lanterna, reparou no anel de puro jade vermelho, que trazia. Aquele jade não era comum e sua côr impressionou-a.
- Agradeço-lhe, redargüiu calmamente, e quando nossa viagem terminar, recompensá-lo-ei bem.
- Cumpro meu dever, Venerável... apenas cumpro meu dever. Assim falando, afastou-se.
Adensou-se a noite. O vento e a chuva rugiam através da estreita garganta. No fundo, o rio crescia descendo a montanha. Pedras desabavam da encosta do morro, passando por cima da tenda em que Tzu Hsi se encontrava com seu filho. A ama dormia, a serva também dormiu, e o menino adormeceu segurando a mão de sua mãe. Mas Tzu Hsi não podia dormir. Sentada em silêncio, observava a vela gotejando na lanterna de chifre, montando guarda ao selo imperial escondido na sua caixa de toilette. O selo era o tesouro e por êle poderia perder a vida. Sabia o perigo que corria. Aquela era a hora do seu inimigo. Sozinha, com as mulheres indefesas e a criança, achava-se longe demais para ser ouvida, se gritasse. E quem a ouviria? Durante o dia inteiro não recebera nenhum sinal que indicasse a proximidade de Jung Lu. Perscrutava rochas e montanhas, ao passar, mas não o viu. Tampouco se misturara aos guardas, disfarçado em soldado comum. Se gritasse por socorro, estaria êle perto para ouvi-la? Restava-lhe apenas esperar a passagem das horas, cada momento uma tortura separada.
À meia-noite o guarda bateu as horas num tambor de latão, significando que tudo estava bem. Ela tentou censurar-se pela sua ansiedade. Por que motivo seus inimigos escolheriam aquele lugar, aquela noite, em vez de outra qualquer, para matá-la? Não seria mais fácil subornar um cozinheiro do palácio para pôr veneno em seu alimento, ou um eunuco-assassino para esconder-se atrás de alguma porta pela qual deveria passar? Esmiuçava cada pensamento, procurando libertar-se do medo, dizendo que realmente seria um grande incômodo ter o corpo de uma imperatriz morta para esconder. E seus súditos não perguntariam o que lhe acontecera? Arriscar-se-iam seus inimigos a enfrentar a cólera do povo?
A hora seguinte passou mais rápida e agora ela apenas temia que a vela se apagasse. Caso se movesse o menino acordaria, e êle estava
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dormindo tão profundamente, com a mãozinha segurando a sua. Precisava chamar a serva, em voz baixa, para que se levantasse e pusesse uma vela nova na lanterna. Ergueu a cabeça para chamar e seu olhar, que estivera fixo na face adormecida do filho, percebeu nesse instante um movimento da cortina de couro da tenda. Era o vento, sem dúvida, ou a chuva, mas ela não conseguiu desviar o olhar nem chamar a serva. E enquanto observava, a lâmina de uma adaga curta cortou silenciosamente o couro e então viu a mão de um homem, em cujo polegar brilhava um anel de jade vermelho.
Sem o menor ruído, agarrou o menino e correu através da tenda, mas no mesmo instante outra mão segurou a mão que empunhava a adaga, forçou-a a recuar e a abertura do couro tornou a fechar-se. Ah, conhecia bem aquela mão salvadora! Ouviu o rumor de um combate e viu um dos lados da tenda tremer, quando caíram contra ela. Ouviu um gemido, depois silêncio.
- Que este seja o seu fim, ouviu a voz de Jung Lu murmurar. Um alívio tão grande invadiu-lhe o ser que foi sacudida até o âmago. Depositou no tapete a criança adormecida e abriu a porta da tenda, olhando a noite tempestuosa. Jung Lu estava ali. Aproximou-se dela e os dois se fitaram intensamente.
- Eu sabia que você viria, disse ela.
- Não a abandonarei, tornou êle.
- O homem está morto?
- Morto. Atirei o cadáver ao abismo.
- Não o saberão?
- Quem se atreverá a proferir seu nome, quando me virem em seu lugar?
Ali ficaram, olhos nos olhos, mas nenhum dos dois se atreveu a tocar o outro.
- Quando eu souber que espécie de recompensa é suficientemente grande, então a darei a você, disse ela.
- Você vive; estou recompensado, redargüiu êle.
Seguiu-se outro momento de silêncio e depois êle falou inquieto:
- Venerável, não vos deveis demorar. Estamos cercados de inimigos por toda parte. Deveis retirar-vos.
- Está sozinho? indagou ela.
- Não. Tenho vinte homens comigo. Adiantei-me, meu cavalo é o mais veloz! Tendes o selo?
- Aqui...
Êle recuou, voltou-se e desapareceu nas trevas. Tzu Hsi deixou a cortina cair e tornou a deitar-se. Agora podia dormir. Não tinha mais medo. Do lado de fora da tenda êle montava guarda. Ela o sabia, embora a noite o ocultasse, e pela primeira vez em muitas semanas dormiu em profunda paz.
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Ao amanhecer a chuva cessou e as nuvens se dissiparam. Pela orla aberta da tenda ela viu o céu azul e os verdes vales entre as rochosas montanhas. Como se a noite anterior não houvesse existido falou cortêsmente à ama e à sua serva. Tomando a mão do menino, conduziu-o para fora da tenda e procurou na areia pequeninas pedras brilhantes para diverti-lo.
Vou amarrá-las no meu lenço, para que você possa brincar durante a viagem, disse-lhe.
Nunca estivera mais calma do que agora. Os que a viam reparavam na sua tranqüila resignação. Não ria nem sorria, pois isto seria inadequado numa procissão fúnebre, mas ela parecia confortada e resoluta. Nada também pôde ser dito quando todos viram que o lugar do capitão fora tomado por Jung Lu e que êle estava cercado por vinte homens seus. Naqueles tempos incertos não se podia fazer perguntas, porém todos sabiam que ela vencera e cada qual se pôs a caminhar com maior rapidez, para cumprir seu dever.
Depois que ela comeu, as tendas foram dobradas e aprontados os carros. Recomeçou a viagem. Ao lado do Herdeiro e de sua imperial mãe, seguia Jung Lu num alto cavalo branco, e seus homens cavalgavam com êle, dez de cada lado. Ainda nenhuma pergunta podia ser feita, nem Tzu Hsi tomou conhecimento da mudança da guarda. Permanecia sentada em seu assento almofadado, as cortinas abertas o suficiente para contemplar a paisagem, e se alguém a observava não a viu olhar uma vez sequer para o Comandante da Guarda. Quem poderia imaginar o que pensava ela?
Na verdade quase não pensava, seu espírito inquieto estava pela primeira vez em repouso. Aqueles poucos dias de viagem pertenciam-lhe, pois estava em segurança. O clímax de sua luta, a batalha final pela conquista do Trono do Dragão, se travaria quando ela recebesse o cadafalço imperial. Viajando agora a uma velocidade regular, entraria na Cidade Proibida cinco dias antes do cortejo. Tão logo alcançasse o palácio, chamaria os homens de seu clã e os irmãos do Imperador, planejando juntos a maneira de desmascarar os traidores, não pela força - que poderia despertar o protesto do povo - mas com ordem e decoro, provando-lhes a deslealdade e o direito dela como Regente. Na orla de sua mente essas questões de Estado pairavam negras e ameaçadoras, mas ela possuía a faculdade de comprazer-se quando podia e por conseguinte estaria reanimada e forte quando chegasse o momento cruciante.
Era certamente um prazer viajar pelo campo em pleno outono, as perigosas montanhas cada vez mais distantes e Jung Lu cavalgando ao seu lado, silencioso, era verdade, e altivo, de tal maneira que não podiam falar-se nem mesmo trocarem um olhar. Porém ele estava ali e a vida dela sob a sua guarda. Assim passaram-se os dias. Tzu Hsi dormia tranqüila durante a noite e acordava faminta pela manhã, pois o ar fresco do norte infundia-lhe vida.
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No vigésimo nono dia do nono mês do ano lunar, ela viu os muros da Capital erguerem-se sobre a planície. As portas estavam abertas. No interior da cidade não havia ninguém nas ruas, porém Tzu Hsi cerrou as cortinas a fim de não ver, por acaso, algum inimigo estrangeiro. Não havia nenhum. A cidade jazia silenciosa, em ansiosa expectativa pois as notícias correram mais velozes que os pés humanos e o mais pobre dos cidadãos sabia que os tigres estavam em guerra e a vitória não era clara. Em ocasiões assim, o povo espera.
Tzu Hsi planejara o seu procedimento. Entrou no palácio em luto profundo, trajada de roupas de serapilheira branca e sem jóias. Sem olhar para a esquerda ou para a direita, desceu do carro, enquanto eunucos se ajoelhavam de cada lado. Então, com perfeita cortesia, dirigiu-se ao carro de Sakota e ajudou-a a descer. Segurando-lhe a mão esquerda, conduziu-a aos palácios que tão bem conheciam. Ainda cortês, escoltou a sua co-Regente ao Palácio Oriental, antes de encaminhar-se para o seu.
Ainda não se havia passado uma hora quando recebeu, por um eunuco, a seguinte mensagem do Príncipe Kung.
- O Irmão Mais Moço Príncipe Kung pede perdão, pois sabe que a Imperatriz Mãe está fatigada pela mágoa e pela viagem. Contudo os negócios de Estado são tão urgentes que não se atreve a adiar e pede-me que vos diga que está à vossa espera na Biblioteca Imperial, juntamente com seus príncipes-irmãos e os nobres chefes dos clãs manchus.
- Diga ao Príncipe que irei sem demora, retrucou ela.
E sem mudar de roupa ou comer, dirigiu-se de novo ao palácio de Sakota e entrou sem cerimônia. A prima estava deitada, rodeada de suas servas, uma das quais lhe escovava os cabelos, outra lhe oferecia chá e uma terceira estendia-lhe seu perfume favorito. Tzu Hsi afastou-as, dizendo:
- Irmã, levante-se por favor. Não podemos repousar. Temos de dar audiência.
Sakota enfadou-se, mas a expressão daquela fisionomia altiva e bela impediu-a de queixar-se. Suspirou e se levantou. Suas servas vestiram-na e, apoiando-se em dois eunucos, seguiu Tzu Hsi ao pátio, onde duas cadeirinhas as esperavam. As duas damas foram transportadas rapidamente à Biblioteca Imperial e Tzu Hsi, descendo primeiro, tomou a mão de Sakota e assim entraram, lado a lado, no salão. Todos se ergueram para as saudarem com profundas reverências. Depois o Príncipe Kung adiantou-se gravemente, como convinha ao seu traje de luto de serapilheira branca, e conduziu as damas aos seus tronos, postando-se do lado direito de Tzu Hsi.
A conferência secreta durou horas. As portas estavam vigiadas e os eunucos, colocados nas extremidades do vasto salão, nada podiam ouvir.
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Nosso problema é sério, disse inicialmente o Príncipe Kung.
Não obstante, dispomos de uma grande força. O selo imperial acha-se em poder da Imperatriz Mãe, que o guarda secretamente, e apenas esse selo vale por um poderoso exército. A sucessão legítima é, por conseguinte, dela, em nome de seu filho, juntamente com a Imperatriz Viúva do Palácio Oriental, como sua Irmã-Recrente. Devemos, no entanto, agir com muito cuidado e correção, com todo o decoro e propriedade. De que maneira, então, puniremos os traidores? Devemos usar de violência quando o Imperador, agora morto, chega para o seu funeral? Não existe precedente de semelhante fato. Combater inimigos na presença de um sagrado Ancestral é de fato demasiado ímpio. O povo não aceitaria governantes de tal espécie e o reinado do Herdeiro começaria sob um mau presságio.
Todos concordaram com o Príncipe Kung e afinal, após muitas ponderações e argumentos, ficou decidido que cada passo seria dado devagar, com cautela e dignidade, de acordo com a alta tradição da dinastia. Tzu Hsi concordou, como mãe do Herdeiro e nova Imperatriz reinante, e Sakota curvou a cabeça e não ergueu a voz para falar contra ou a favor do que fora dito.
Passaram-se três dias e finalmente chegou a hora pela qual todos esperavam. Tzu Hsi passara esses dias em meditação, planejando cada momento e cada movimento relativos à maneira por que apareceria e o que faria quando o cortejo imperial chegasse às portas da Capital. Não deveria demonstrar o menor indício de fraqueza e, no entanto, sua cortesia deveria ser impecável. Devia combinar ousadia com dignidade e inflexibilidade com justiça.
De hora em hora, durante aqueles dias, vinham mensageiros para anunciar o momento em que o cadafalço chegaria, até que, naquela manhã do segundo dia do duodécimo mês do ano lunar o último mensageiro declarou que o cortejo chegaria à Porta Oriental-Florida da Cidade Proibida. Tzu Hsi estava preparada. No dia anterior, por ordem sua, o Príncipe Kung postara um exército de soldados leais junto dessa porta, para evitar que os Três traidores utilizassem a chegada do Imperador Morto para se proclamarem Regentes do novo Imperador. O palácio achava-se mergulhado em lutuosa paz. Ao receberem a notícia de que o cortejo imperial se aproximava, as Imperatrizes Viúvas se adiantaram ao encontro de seu senhor morto e com elas seguiu também o Herdeiro. Atravessaram as silenciosas ruas vazias em suas cadeirinhas cobertas de serapilheira branca, seguidas pelos guardas também de branco. Atrás delas, a cavalo, iam os príncipes e os chefes dos clãs reais, todos de luto. A procissão avançava lentamente, todos com expressões pesarosas e em silêncio, exceto os sacerdotes budistas que, sendo músicos de funeral, tocavam tristemente suas flautas, abrindo o caminho da enlutada família imperial.
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Pararam na majestosa porta da cidade e desceram de suas cadeirinhas e de seus cavalos para se ajoelharem quando o enorme féretro apareceu, transportado pelos seus cem carregadores. Primeiro e na frente dos outros, ajoelhou-se o Herdeiro, vestido de serapilheira branca. Lágrimas de assustada mágoa corriam-lhe pelas faces róseas. Atrás dele ajoelhou-se Tzu Hsi com Sakota, Viúvas Imperiais. Atrás delas ajoelharam-se, por sua vez, os príncipes e os chefes dos clãs e funcionários, cada qual na fila correspondente à sua posição. Lamentos agudos, soluços e suspiros encheram o ar. O povo, escutando atrás das portas e janelas fechadas, ouvia as vozes daqueles que o governavam.
Os três traidores, Príncipe Yi, Príncipe Cheng e o Grande Conselheiro Su Shun, havendo cumprido o dever de trazer o Imperador morto, em segurança, para a sua Capital, deviam concluir fazendo um relatório completo ao Herdeiro. Para essa cerimônia fora construído um grande pavilhão, dentro da porta. Para lá se encaminhou Tzu Hsi com seu filho, e Sakota, silenciosa, encolhida porém obediente apesar de tudo, acompanhou-os. Os príncipes e os funcionários da Corte, conduzidos por dois Grandes Secretários, agruparam-se ao seu redor. Tzu Hsi sentou-se à direita do Herdeiro e Sakota à esquerda. Sem demora, com suas maneiras calmas e graciosas, como se fosse o seu direito, Tzu Hsi começou a falar aos traidores:
- Agradecemos-lhes, Príncipe Yi, Príncipe Cheng e Grande Conselheiro Su Shun, pelo cuidado fiel que demonstraram para quem nos é mais caro que tudo. Em nome do nosso novo Imperador, o Filho do Céu agora reinante, apresentamos-lhes nossos agradecimentos, uma vez que nós, as duas Consortes do falecido Imperador, fomos devidamente designadas Regentes, por decreto assinado pelo próprio Imperador falecido. Seus deveres foram cumpridos e é nossa vontade que sejam dispensados de maiores preocupações.
Este o sentido das palavras de Tzu Hsi e ela as proferiu com impecável graça e delicadeza, mas todos compreenderam a inflexível vontade que se revelava sob as buriladas frases.
O Príncipe Yi, ouvindo-a, ficou imediatamente transtornado. Acima dele via o belo menino sentado no trono e ao seu lado a impotente Imperatriz Tzu An. À direita do jovem Imperador sentava-se a verdadeira governante, a bela e poderosa mulher que não temia a ninguém e a cujo encanto e vigor todos se submetiam. Atrás achavam-se os príncipes e chefes dos reais clãs manchus, protegidos pela Guarda Imperial. O Príncipe olhou para Jung Lu, figura formidável e severa - seu coração tremeu. Que esperança lhe restava?
Nesse momento Su Shun inclinou-se para sussurrar-lhe:
- Se essa víbora tivesse sido morta, como aconselhei, estaríamos vitoriosos nesta hora! Mas não, você, seu moleirão, você não se
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atreveu, você preferiu um plano intermediário, e agora nossas cabeças estão em perigo! Você é o chefe, agora, e se falhar morreremos.
O Príncipe Yi reuniu a sua pouca coragem e, aproximando-se do jovem Imperador, procurando mostrar-se ousado, embora seus lábios tremessem, assim se dirigiu ao Trono:
- Nós, Altíssimo, é que fomos designados Regentes. Nosso Imperial Ancestral, vosso pai, designou a mim, ao Príncipe Cheng e ao Grande Conselheiro Su Shun, a nós três, para agirmos em vosso nome. Somos vossos fiéis servos e aqui lhe juramos lealdade. Como Regentes, devidamente designados, decretamos que as duas Consortes não têm autoridade superior à que lhes é inerente e que não podem comparecer às audiências a não ser por nossa permissão, como Regentes governantes.
Enquanto proferia essas corajosas palavras em voz trêmula, o pequeno Imperador olhava de um lado para o outro, bocejava e brincava com o cordão que lhe prendia os trajes de serapilheira na cintura. Em determinado instante estendeu a mão à procura de sua mãe, porém esta colocou-lhe com firmeza a mão sobre o joelho; êle obedeceu e continuou sentado com as mãozinhas sobre os joelhos, esperando que o velho parasse de falar.
Quando o Príncipe Yi recuou, Tzu Hsi não hesitou. Ergueu a mão direita e, voltando o polegar para baixo, ordenou em voz clara:
- Prendam os três traidores!
Jung Lu avançou imediatamente, seguido de seus guardas. Prenderam os três e amarraram-nos com cordas. Os traidores não resistiram. Quem se atreveria a socorrê-los agora? Ninguém falou. Em ordem e dignidade o cortejo funéreo tornou a formar-se, o jovem Imperador seguindo o grande cadafalço, as Imperatrizes Viúvas à sua direita e esquerda, e atrás deles os nobres e os príncipes. Em último lugar vinham os traidores, caminhando no pó, rostos baixos. Para eles não havia esperança. As ruas estavam cheias de soldados leais e todos os olhares vigiavam-nos.
Foi assim que o Imperador Hsien Feng voltou ao seu palácio e foi assim que se reuniu aos seus Ancestrais. Seu féretro permaneceu no salão sagrado, guardado dia e noite pelos seus guardas Imperiais, e velas ardiam sem cessar enquanto sacerdotes budistas oravam ao Céu pelas suas três almas e aplacavam seus sete espíritos terrenos queimando incenso e entoando diversos salmos.
Tzu Hsi, lembrada de que cada ato devia ser confirmado na devida ordem e de acordo com os antigos precedentes, expediu um edito do seguinte teor: o reino, declarava ela, fora demasiado perturbado pelos inimigos, e isto era culpa do Príncipe Yi e de seus aliados, que haviam lançado a vergonha sobre o país, enganando os omens brancos. Estes se enraiveceram e, por vingança, queimaram o Palácio de Verão. No entanto os traidores persistiram em seus
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maus propósitos, pretendendo que o falecido Imperador, antes de morrer, designara-os Regentes; valendo-se da extrema juventude do atual Imperador, haviam tentado apoderar-se do poder, contrariando o desejo expresso do Imperador, não mais reinante, de que as duas Consortes, ora Imperatrizes Viúvas, fossem as Regentes.
Que o Príncipe Kung, concluía o edito, em conferência com os Grandes Secretários, os Seis Conselhos e os Nove Ministérios, estudem e comuniquem ao Trono qual a punição adequada a ser aplicada aos traidores, proporcionalmente ao seu crime. Que pensem e aconselhem, ademais, a maneira pela qual as Imperatrizes Viúvas deverão agir como Regentes e que se prepare um memorial para esse fim.
Nesse edito a Imperatriz Mãe apôs o selo imperial. Depois de expedido ao povo, ela preparou um segundo edito, que recebeu a sua assinatura e a da co-Regente, como Imperatrizes Viúvas, decretando que os traidores deviam ser privados de todas as suas honrarias e de seus títulos. Expediu em seguida outro edito, assinado desta vez somente por ela, o qual dizia:
"Su Shun é culpado de alta traição. Tentou usurpar a autoridade. Aceitou propinas e cometeu muitos crimes. Proferiu blasfêmias contra Nós, esquecendo a relação sagrada entre Soberano e súdito. Levou, em sua companhia, esposa e concubinas, enquanto escoltava o Imperial Cadafalço de Jehol, e isto sob a sua própria responsabilidade, embora todos soubessem que conceder a mulheres o privilégio de acompanhar o Imperial Cadafalço é crime punível com a morte. Nós, por conseguinte, decretamos que Su Shun morra esquartejado, sendo a sua carne cortada em mil pedaços. Serão confiscadas as suas propriedades na Capital e em Jehol e nenhuma misericórdia será dispensada à sua família".
Esse decreto era realmente ousado, pois Su Shun era o homem mais rico da história da dinastia, com exceção de Ho Sh'en, que vivera durante o reinado do Ancestral Ch'ien Lung, que o mandara matar por haver enriquecido pelo roubo e pela usura.
Por esse edito, a grande fortuna de Su Shun devia ser entregue ao Trono, como sucedera com a de Ho Sh'en. Ninguém sabia quão grande era, mas, por ordem de Tzu Hsi, as bibliotecas de Su Shun foram apreendidas, juntamente com os registros de todos os seus bens. Entre esses registros encontrou-se um que revelou uma coisa estranha e confortadora - a Dama Mei não era filha verdadeira de Su Shun. Quando esse fato foi comunicado a Tzu Hsi, esta ordenou que lhe trouxessem o registro. Leu, com seus próprios olhos, uma nota particular, escrita por algum secretário desconhecido que certamente detestava Su Shun, seu patrão. Estas eram as palavras, numa caligrafia miúda, rabiscadas embaixo de uma relação de terras e casas;
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"Estas propriedades pertenciam a um nobre do clã da Bandeira Branca. Su Shun, quando se apoderou destes bens, encontrou na casa do nobre, cuja morte êle provocara acusando-o falsamente, uma criança, uma menina. Levou-a para a sua própria casa. Ela cresceu, tornando-se a Dama Mei, agora servindo à Imperatriz do Palácio Ocidental".
Tzu Hsi mandou chamar imediatamente a jovem Mei e mostroulhe a nota. A moça chorou um pouco, em seguida enxugou os olhos com seu lenço de seda branca e disse:
- Muitas vezes perguntei a mim mesma por que não podia amar Su Shun como pai. Sentia-me culpada! Agora posso aliviar o coração.
Ajoelhou-se perante Tzu Hsi, agradeceu-lhe e disse que a partir daquele dia amaria ainda mais fielmente a sua senhora.
- Pois estou órfã, e vós, Venerável, sois minha mãe e meu pai. Apesar de toda a sua vingança contra Su Shun, Tzu Hsi ainda não estava satisfeita. Prosseguindo na sua vingança, mostrou seus decretos a príncipes, ministros e membros dos Conselhos, e todos curvavam a cabeça. Somente o Príncipe Kung se atreveu a erguer a voz:
- Majestade, disse êle, seria conveniente que as Imperatrizes Viúvas demonstrassem alguma misericórdia no que se refere à maneira pela qual Su Shun deve morrer. Que seja decapitado, em vez de esquartejado.
Ninguém se atreveu a levantar os olhos para fitar o rosto de Tzu Hsi, severo e belo, quando ela ouviu essas palavras. Ouvira-as contra a sua vontade, todos sabiam, pois decorreram minutos antes que respondesse.
- Sejamos misericordiosas, então, disse afinal. - Mas a decapitação deve ser pública.
E foi assim que a cabeça de Su Shun caiu num mercado da cidade. Era uma ensolarada e bela manhã. O povo fêz feriado e foi vê-lo morrer. Su Shun caminhou bravamente diante da multidão, vil embora como era, a cabeça erguida e impassível a face ousada. Altivo até o fim, pousou a cabeça sobre o cepo, o carrasco ergueu o espadão e descarregou-o. Com esse único golpe a cabeça de Su Shun desligou-se do corpo. Ao rolar no pó, o povo urrou de alegria, pois êle de fato fizera mal a muitos.
A Imperatriz Mãe ordenara que os Príncipes Jui e Liang presenciassem a queda da cabeça e em seguida informassem ao Trono que Su Shun estava realmente morto.
Como os Príncipes Yi e Cheng pertencessem à Casa Imperial, não foram decapitados, porém colocados na Câmara Vazia, que era a prisão da Corte Imperial, e lá lhes disseram que se enforcassem. Jung Lu deu a cada um uma corda de seda, permanecendo à espera. Enforcaram-se os dois numa trave - um no extremo sul da
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Câmara, outro no extremo norte. O Príncipe Cheng morreu resolutamente e desde logo, mas o Príncipe Yi demorou a adquirir coragem, até que, chorando e soluçando, se deixou cair.
Assim morreram os três e os que tinham esperanças de subir com eles foram exilados. A partir desse dia Tzu Hsi assumiu publicamente o título de Imperatriz Mãe, que o agonizante Imperador lhe concedera em Jehol. E assim começou o reinado do jovem Imperador, mas todos sabiam que, apesar de sua gentileza e cortesia para com todos, quem reinava de maneira suprema era a Imperatriz Mãe.
III - A IMPERATRIZ MÃE

O inverno veio se arrastando do norte e a cidade de Pequim estremeceu de frio. As árvores nos pátios, tão verdes e floridas no verão que formavam um vasto jardim tropical, agora deixavam cair as folhas e seus esqueletos, cinzentos de geada, sobressaíam acima dos telhados. O gelo orlava os lagos e se formava nas goteiras. A gente, nas ruas, tremia e baixava a cabeça para proteger-se do vento. Os vendedores de batatas doces fritas faziam bom negócio, pois esse fruto da terra aquecia as mãos e punha calor no estômago dos pobres. Quando alguém abria a boca para falar, seu hálito subia no ar como fumaça e as mães pediam às crianças que não chorassem para não perderem o calor interno.
Era um inverno mais frio que todos os anteriores e era um frio que atingia muito além da carne. Invadia os ossos e os corações de todos. Agora que o corpo do Imperador morto repousava no templo, à espera do funeral, agora que a sucessão estava decidida, os anos vindouros estendiam-se sombriamente diante da nação e os espíritos sensíveis não se enganavam. O tratado que o Príncipe Kung assinara com os invasores brancos era um tratado que reconhecia a vitória do inimigo.
Num desses dias de inverno, a Imperatriz Mãe achava-se sentada sozinha no seu salão particular do trono, com o pergaminho desse tratado aberto diante de si sobre uma mesa. Estava só e contudo nunca estava só, pois ao alcance de sua voz, pronto para acudir, permanecia o seu eunuco Li-Lien-ying. A vida dele consistia em esperar que ela se movesse ou falasse. Nos intervalos, ela esquecia-se dele, como se não existisse.
Nessa fria manhã Tzu Hsi leu, releu e tornou a ler o tratado, meticulosamente e sem pressa, pesando cada palavra, enquanto sua imaginação animava cada uma de suas significações. A partir de então, para todo o sempre, haveria em Pequim homens da Inglaterra, da França e de outros países, representantes permanentes de governos estrangeiros. Isto significava que lá estariam também suas mulheres e filhos, os criados com suas famílias, guardas e mensageiros. Os selvagens homens brancos sempre achariam meios de
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deitar-se com as adoráveis mulheres chinesas e assim estabeleceriam a confusão sob o Céu.
Dizia, mais, o tratado, que a Imperatriz Mãe e Regente devia entregar milhares de libras de ouro aos estrangeiros, como recompensa pela guerra que eles próprios forçaram. Era justo que uma guerra, que seu povo não desejara, fosse paga pelos seus súditos em vez de pelos que a haviam originado?
Além disso, estipulava o tratado, deviam ser abertos novos portos aos homens brancos do Ocidente, inclusive o porto de Tientsin, que ficava a menos de cem milhas da própria Capital. Queria isso dizer que, não apenas homens, mas também mercadorias seriam trazidas para o país. Quando o povo visse os artigos estrangeiros não sentiria falsos desejos despertarem em seus corações pouco esclarecidos? Esse fato aumentaria a confusão.
E sacerdotes estrangeiros, acrescentava o tratado, trazendo suas próprias religiões, teriam permissão de percorrer o país com inteira liberdade, instalando-se onde lhes aprouvesse e convencendo a gente a adorar os novos deuses. Esta era uma concessão que já havia provocado desastres à nação.
A Imperatriz Mãe leu esses e muitos outros males durante aquele escuro dia, em seu palácio solitário. Nada falou a ninguém. Quando lhe trouxeram alimento, não comeu. A noite caiu e ela nem a percebeu. Ninguém se atrevia a falar-lhe ou a suplicar-lhe que dormisse. O eunuco pôs um bule de seu favorito chá verde sobre a mesa e encheu uma taça, deixando-a ao alcance de sua mão, mas ela nem sequer a olhou.
Ia alta a madrugada quando afastou o pergaminho para um lado. Porém não se levantou da cadeira para dirigir-se ao seu quarto. As grandes velas vermelhas estavam quase consumidas nos candelabros dourados e suas chamas, alongando-se para o alto, projetavam estranhas sombras nas vigas pintadas do elevado teto. O eunuco, sempre vigilante, adiantou-se, colocou velas novas e se afastou. Ela permanecia sentada, o queixo apoiado na mão direita, meditando profundamente. O jovem Imperador, seu filho, tinha apenas cinco anos de idade - faltava ainda meio ano para o seu sexto aniversário. Ela, a mãe, contava vinte e seis anos de idade. Êle não poderia sentar-se no Trono do Dragão antes de completar dezesseis anos. A ela caberia governar, em lugar de seu filho, durante mais dez anos. E que era o seu reino? Um país mais vasto do que ela poderia imaginar, uma nação mais antiga do que a história, uma população cuja quantidade nunca fora contada, um povo ao qual ela própria era estranha. Se estivesse em paz, esse reino seria uma carga monstruosa, porém não havia paz. A revolta lavrava, o país estava dividido, pois o rebelde Hung assumira o título de Imperador em Nanking, capital sulista da última dinastia chinesa Ming. Os Exércitos Imperiais combatiam-no incessantemente
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mas o seu poder se mantinha e entre os exércitos o povo esfarrapado morria de fome. Os exércitos dela, como bem sabia, eram pouco melhores que os dos rebeldes, pois, raramente recebendo paga comiam do povo para não morrerem de fome, roubando-o enquanto combatiam, até que os camponeses, vendo suas aldeias incendiadas e suas colheitas devastadas, passavam a odiar com o mesmo ímpeto tanto os soldados imperiais como os rebeldes.
Esta era a sua carga.
Ao mesmo tempo uma nova revolta estourara entre os moslins, na província sulista de Yünnan. Esses moslins eram rebentos de tribos do oriente médio, árabes que em séculos anteriores tinham chegado como mercadores e permaneceram no país, casando-se com chinesas e gerando filhos mestiços. Continuavam fiéis aos seus próprios deuses e, à medida que aumentava o número de descendentes, os adoradores desses deuses estrangeiros tornavam-se atrevidos. Quando os Vice-reis chineses, designados pelo Trono do Dragão, porém vivendo longe deles, passaram a governá-los com ganância e dureza, os moslins, rebelando-se, declararam que se separariam do reino e instalariam um governo próprio.
Esta era a sua carga.
Além dessas cargas havia ainda outra. Era mulher. Os chineses não tinham confiança em uma mulher para governá-los. As mulheres, diziam eles, eram más governantes. A Imperatriz Mãe reconhecia uma certa verdade em tal afirmação. Lera com atenção a História, em suas longas horas solitárias, e sabia que no século VIII, na dinastia de T'ang a Imperatriz Wu, esposa do grande Imperador Kao Tsung, usurpara o trono de seu próprio filho e sua perversidade maculara o nome de todas as mulheres. Os homens levantaram-se contra ela, libertaram o jovem Imperador da prisão em que sua mãe o atirara. Porém êle não ficou em segurança, pois sua esposa, a Imperatriz Wei, cobiçava por sua vez o Trono e ouvindo conversas atrás de cortinas espalhou boatos e confusão de tal maneira que somente a morte pôde aquietá-la. Mal fora posta no túmulo, com uma pesada pedra por cima para mantê-la sossegada, quando a Princesa T'ai-p'ing, sua inimiga, tramou envenenar o filho do Imperador, o Herdeiro, e ela também teve de ser morta. Mas esse mesmo Herdeiro, quando se tornou o Imperador Hsüan Tsung, caiu sob o poder de sua bela concubina Kuei-fei, que de tal modo o enfeitiçou com a sua beleza e brilhante inteligência, arruinando-o com o seu amor pelas pedras preciosas, sedas e perfumes, que o povo novamente se revoltou e o seu chefe obrigou Kuei-fei a enforcar-se diante dos reais olhos de seu amante. Mas com ela morreu a glória de T'ang, pois o Imperador recusou-se a continuar governando e se recolheu a um luto perpétuo. A história dessas mulheres era má e elas ainda eram suas inimigas, apesar de mortas há
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tanto tempo. Acreditaria o povo, agora, que uma mulher pudesse governá-lo com justiça e sabedoria?
Esta era a sua carga.
Porém maior que todas as cargas era a carga de si mesma. Embora fosse mais culta que muitos eruditos, conhecia suas falhas e perigos e sabia que, jovem ainda e de coração apaixonado, poderia ser traída pelos seus próprios desejos. Bem sabia que não era feita de uma só peça, que não era uma mulher inteiriça. Várias mulheres escondiam-se em seu corpo e nem todas eram fortes e calmas. Tinha suas doçuras, seus receios, sua ânsia por alguém mais forte que ela, um homem no qual pudesse confiar. Onde estaria êle agora?
Com essa pergunta pôs fim à sua meditação. Levantou-se, enregelada até o coração, e Li Lien-ying avançou:
- Venerável, descansareis agora, certamente.
Assim dizendo, estendeu o braço no qual ela apoiou a mão, deixando-o conduzi-la até à porta fechada de sua alcova Êle a abriu e a serva, que a esperava, recebeu-a do eunuco e fechou a porta.
Acordou-a o penetrante sol de inverno. Ela permaneceu deitada, rememorando os pensamentos da noite anterior. Tinha suas cargas, mas não dispunha também dos meios de suportá-las? Era jovem, mas ser jovem significava ser forte. Era mulher, mas gerara um filho que era agora o Imperador. Não seguiria o mau caminho daquelas mulheres mortas que se haviam colocado acima de todos, até mesmo de seus filhos, a fim de governarem sozinhas. Pensaria exclusivamente em seu filho. Durante os dez anos em que seria Regente, falaria com suavidade, seria cortês para com todos, nunca pensaria em benefício próprio, encolerizar-se-ia somente quando visse seu filho esquecido e se mostraria sempre zelosa pelo seu futuro poder. Construiria um Império forte e são para êle e quando ascendesse ao Trono ela se retiraria, pois ninguém seria seu rival, nem mesmo ela. Provaria que uma mulher pode ser boa. Contaria com o auxílio da sua juventude, da sua saúde e da sua vontade. Levantou-se da cama reanimada pela sua própria energia.
A partir desse dia, todos viram uma nova Imperatriz, forte, gentil, de maneiras corteses, que não encarava nenhum homem, que virava a cabeça aos eunucos e falava da mesma maneira a todos, quer nobres quer plebeus. Mantinha-se distante, acima de todos. Ninguém era seu íntimo e ninguém conhecia seus pensamentos e sonhos. Vivia sozinha, a Imperatriz, entre as paredes invioláveis e impermeáveis de sua cortesia, e nessas paredes não havia porta alguma.
Como para desligar-se por completo do passado, mudou-se dos palácios em que vivera tantos anos, passando para um outro, distante, chamado Palácio de Inverno, na parte da cidade imperial denominada Estrada Oriental, cujos seis salões e vários jardins foram
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construídos e mobilados pelo Ancestral Ch'ien Lung. Perto havia uma grande biblioteca, também construída por êle, composta de trinta e seis mil livros antiquíssimos, nos quais estavam entesouradas as memórias e a inteligência de todos os grandes eruditos. Na entrada dos palácios havia um biombo sobre o qual apareciam nove dragões imperiais em porcelana de várias cores. Atrás desse biombo, o maior salão era o de Audiência, que dava para um largo terraço de mármore. Em seguida havia outros salões, cada um com seu pátio. Foi um desses que Tzu Hsi escolheu para seu salão particular do trono, onde os príncipes e ministros que desejavam conferenciar a sós ajoelhavam-se diante dela. O seguinte era o seu aposento de estar. Atrás dele ficava o seu quarto de dormir, pequeno e tranqüilo, a cama embutida na parede, o colchão de cetim amarelo, as cortinas de gaze amarela com bordados de flores vermelhas de romã, que ela adorava. O salão seguinte era o seu santuário secreto, onde, sobre o altar de mármore, achava-se um Buda de ouro, tendo à direita uma pequena Kuan Yin de ouro e, à esquerda, um Lohan dourado, que era o espírito orientador da sabedoria. Atrás do altar havia um aposento comprido onde ficavam os eunucos de guarda, ocultos de todos os olhares e ouvidos, porém sempre perto e atentos.
Esses aposentos, em que a Imperatriz agora vivia, eram mobilados com o luxo que ela amava, providos de mesas marchetadas, cadeiras e sofás com almofadas de cetim escarlate. Ali estavam os seus numerosos relógios, flores e pássaros, enxergas bordadas para seus cães, seus livros e escrivaninha, seus armários de rolos manuscritos. Portas pintadas de vermelho separavam os aposentos. Uma porta lateral dava para um jardim muito amado pelo Ancestral Ch'ien Lung. Ali costumava êle sentar-se quando estava velho, ficando a sonhar à luz do sol que se filtrava por entre as folhas de bambu. As portas que davam para esse jardim tinham forma de lua e eram emolduradas por um friso de mármore delicadamente esculpido; as paredes eram de mármore colorido, formando mosaicos. Sob os velhos pinheiros, que a idade curvara para a terra, o musgo se espessava, e quando o sol brilhava o cheiro das agulhas dos pinheiros perfumava o ar. Num recanto afastado, onde o sol batia em cheio, havia um pavilhão trancado, do qual somente a Imperatriz possuía a chave. Fora ali que o Grande Ancestral Ch'ien Lung permanecera em seu féretro, aguardando o dia propício para o seu funeral.
Naquele antigo e silencioso sítio a jovem Imperatriz Mãe costumava passear com freqüência, e sempre só, carregando sobre os ombros as suas cargas e sentindo-lhes o crescente peso. Só os fortes poderiam suportar a vida que ela agora se impusera. Erguia-se diariamente de madrugada, na fria e áspera madrugada, e depois de vestida dirigia-se ao Salão de Audiência em sua cadeirinha amarelo-imperial.
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Mas não ia só, porque, fiel à sua firme vontade de ser sempre modesta e invencível na cortesia, ordenara que sua irmã-Regente se sentasse com ela, num segundo trono, atrás de uma cortina. E a Imperatriz Mãe não se sentava sem essa cortina. O Trono do Dragão estava vazio e permaneceria vazio, declarou ela, até que o jovem Imperador pudesse governar a nação por si mesmo. Atrás da cortina de seda, por conseguinte, as duas Imperatrizes Viúvas sentavam-se lado a lado, cercadas por suas damas e eunucos. À direita do trono vazio ficava o Príncipe Kung, ouvindo os memoriais de príncipes e ministros e as petições dos demais.
Em certo dia de inverno, dentre os suplicantes apresentaram-se alguns para pedir às Regentes que pusessem termo ao governo do rebelde Hung, na cidade sulista de Nanking. Os Vice-reis dessas províncias tinham sido afastados e agora vinham pedir reparação.
O Vice-rei, que por muitos anos governara a província de Kiangsu, estava velho e gordo. Uma pequena barbicha pendia-lhe do queixo e duas longas pontas de cabelo grisalho caíam-lhe dos cantos da boca. Ajoelhou-se com dificuldade, sentindo-se invadido pelo frio do mármore, através da almofada de pêlo de cavalo. Mas tinha de ajoelhar-se perante o trono vazio e a cortina de seda.
- O rebelde Hung, declarou êle, começou sua má carreira como cristão. Isto é, engoliu uma religião estrangeira. Tampouco é um autêntico chinês. Seu pai era lavrador, homem ignorante e sem instrução, tipo de pele escura da tribo Hakka, dos montanheses do sul. Mas esse Hung, cujo nome é Hsiu Tsuan, desejava progredir; estudou e se submeteu aos exames imperiais, esperando tornar-se governador. Fracassou, tentou de novo e tornou a fracassar. Três vezes fracassou, mas nessas idas e vindas conheceu um cristão que lhe falou da vinda à terra do deus estrangeiro Jesus e de sua aparição como ser humano, de modo que quando foi morto pelos inimigos ressuscitou e subiu de novo para o Alto. Hung, portanto, abatido pelo fracasso, invejou o deus e começou a ter sonhos e visões, acabando por declarar que era a reencarnação de Jesus. Chamou todos os descontentes e rebeldes para que o seguissem, a fim de que, com o auxílio deles, derrubasse a dinastia e instalasse um novo reino, sob a sua direção, que seria chamado o Reinado da Grande Paz. Jurou que todos os ricos se tornariam pobres e que todos os pobres se tornariam ricos, os que estavam no alto seriam rebaixados, e os rebaixados seriam elevados. Com tais promessas não lhe faltaram seguidores, cujo número agora sobe a milhões. Pelo roubo e pelo assassínio, tomou terras e ouro, comprou armas aos brancos. Bandidos e pessoas desclassificadas reúnem-se diariamente a êle, chamando-o Rei Celestial. Sob a influência de seus poderes mágicos, caem em transe e têm visões. Diz-se que esse Rei Celestial corta soldados de papel e, soprando-os, transforma-os em homens. A boa gente está por toda parte, dominada pelo terror.
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Na verdade perderemos o país inteiro se esse demônio não fôr destruído. Mas quem se atreve a aproximar-se dele? Sem consciência, sem temor, sem fazer distinção entre o bem e o mal, confunde todos os homens corretos.
Atrás da cortina de seda amarela, a Imperatriz Mãe ouviu esse relatório com ira crescente. A nação seria destruída por um só homem, enquanto seu filho ainda era um menino? Os Exércitos Imperiais tinham de ser reorganizados. Precisavam ser nomeados novos generais. Podia mostrar-se branda quando convinha ser branda, porém não toleraria por mais tempo aquele rebelde, senão devoraria o reino e depois quem o expulsaria?
Terminada a audiência, quando o Príncipe Kung, como de costume, foi conferenciar com ela em seu salão particular do trono, encontrou uma mulher fria, altiva, resoluta. Esse era o seu outro ser. Pois tinha dois seres, entre os muitos, e esses dois tão diferentes quanto um homem e uma mulher. Sabia mostrar-se branda a tal ponto que o povo a chamava Nossa Benevolente e Sagrada Mãe, bem como Kuan Yin da Benigna Fisionomia, mas sabia ser dura e cruel como um carrasco diante do cepo. Nesse dia o Príncipe Kung não encontrou a Benevolente Mãe nem a Benigna Fisionomia, mas uma rainha forte e irada, disposta a não tolerar fraquezas em seus ministros.
- Onde está o general que comanda nossos Exércitos Imperiais? inquiriu ela do alto do trono. - Onde está esse Tseng Kuo-fan?
Tseng Kuo-fan, Comandante dos Exércitos Imperiais contra os rebeldes chineses, era filho de uma grande família da província de Hunan. Seu avô transmitira-lhe sabedoria e cultura. Inspirado por esse ancestral, o jovem estudara e se submetera aos exames imperiais, conquistando altas honras. Foi logo recebido na Capital e deram-lhe um posto no governo. Quando estourou a rebelião, Tseng Kuo-fan, já experimentado nos negócios de Estado, foi designado pelo Trono para ir ao sul, e lá organizar os exércitos imperiais que estavam sendo derrotados pelo rebelde Hung. Tseng Kuo-fan, então, treinou o nobre exército denominado Bravos de Hunan e, antes de fazê-los enfrentar os rebeldes, exercitou-os na guerra contra os bandidos locais. Na verdade demorou-se tanto treinando esses guerreiros-camponeses que os outros generais se irritaram, pois o rebelde Hung já havia conquistado a metade do sul. Queixaram-se de Tseng Kuo-fan. A Imperatriz Mãe reforçou as queixas dos militares.
- Como se atreve esse Tseng Kuo-fan a conservar na retaguarda o exército dos Bravos, quando dia a dia os rebeldes se apoderam de mais províncias do sul? Quando o reino desaparecer, que valor terão os seus bravos? inquiriu ela ao Príncipe Kung.
- Altíssima, retrucou o Príncipe, os Bravos não poderão estar em toda parte ao mesmo tempo, inclusive quando atacarem.
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- Devem estar em toda parte imediatamente, declarou a Imperatriz Mãe. - O dever de seu chefe é mandá-los para toda parte atacando os pontos em que os rebeldes se concentrarem, onde pretenderem atacar e onde quer que ameacem romper as nossas fileiras. Homem teimoso, esse Tseng Kuo-fan, fazendo planos por conta própria!
- Altíssima, tornou o Príncipe, atrevo-me a propor uma atitude estratégica. Os ingleses, com os quais estamos atualmente em paz, insistem em que aceitemos um guerreiro inglês para organizar a nossa resistência aos rebeldes. A princípio os brancos apoiaram o rebelde Hung porque êle se dizia cristão, mas agora encaram-no como louco e a vantagem é nossa.
A Imperatriz refletiu no que lhe dizia o Príncipe Kung. Suas tenras mãos repousavam sobre os braços esculpidos do trono, tão pacíficas quanto pássaros recamados de jóias. Súbito seus dedos puseram-se a tamborilar inquietos, as áureas capas de suas unhas batendo contra a madeira dura.
- Tseng Kuo-fan sabe que os ingleses fizeram esse oferecimento? inquiriu.
- Sabe e não quer ouvir falar no assunto. Creio que o general é demasiado teimoso e que prefere perder o reino para um rebelde nosso, do que reconquistá-lo com a ajuda de um estrangeiro.
Ela começou, de súbito, a gostar de Tseng Kuo-fan.
- Suas razões? perguntou.
- Diz que, se aceitarmos o auxílio dos ingleses, eles decerto cobrarão um preço.
As mãos cobertas de jóias crisparam-se na cadeira:
- Sim, sim, exclamou. - Reclamarão a terra que reconquistarem para nós. Ah, começo a confiar nesse Tseng Kuo-fan! Porém não quero maiores demoras. Deve cessar seus preparativos e iniciar o ataque. Que cerque a cidade de Nanking, que reúna todas as suas forças num círculo fechado ao redor do lugar. Se o chefe Hung fôr morto, seus seguidores se dispersarão.
- Altíssima, observou friamente o Príncipe, atrevo-me a dizer que duvido que seja prudente que aconselheis Tseng Kuo-fan em assuntos de guerra.
A Imperatriz lançou-lhe um rápido olhar oblíquo:
- Não lhe pedi conselho, Príncipe.
Sua voz era gentil, mas êle viu-a empalidecer e estremecer de raiva. Curvou-se, controlando sua própria cólera, e retirou-se imediatamente de sua presença. Tzu Hsi desceu do trono e se dirigiu à escrivaninha, onde se pôs a escrever o seu edito ao distante general.
"Já é tempo", dizia ela após as saudações, "de lançar para a frente todas as suas forças. Chame o seu irmão mais moço, Tseng Kuo-ch'uan, para junto de si. Chame-o de Kiangsi, a fim de avançar
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sobre a província de Anhuei em sua companhia. Tome Anking, a capital da província, como providência inicial para o plano maior de tomar a própria Nanking. Sabemos que Nanking está há nove anos em poder dos rebeldes e sem dúvida consideram-na seu lar. Desaloje-os, a fim de que saibam o que é ser expulso do entrincheiramento. Em seguida, retire de suas atividades guerrilheiras o general Pao Ch'ao. Esse homem é destemido, bravo no ataque e leal ao Trono. Lembramo-nos agora de que derrotou os rebeldes em Yochow e Wuchang, apesar de ferido. Conserve esse general em condições de flexibilidade, pronto a movimentar-se rapidamente com seus exércitos, de modo que, quando o senhor cercar a cidade central de Nanking, apertando o círculo dia a dia, Pao Chao possa ser mandado atacar a retaguarda dos rebeldes, caso estes se levantem novamente pelas costas, em Kiangsi. Pois a sua tarefa é dupla: matar o líder Hung e, enquanto se esforça para isso, sufocar qualquer ameaça que possa surgir por trás de seu cerco. Entrementes, não relate dificuldades ao Trono. Não se queixe O que deve ser feito, será feito, se não pelo senhor, por outro. A recompensa será generosa quando o rebelde Hung estiver morto".
Em tais palavras, interpoladas de freqüentes cortesias e cumprimentos, a Imperatriz Mãe elaborou o seu edito e com as próprias mãos apôs o selo imperial no pergaminho. Chamando o EunucoChefe, enviou o edito ao Príncipe Kung, para que fosse copiado nos registros e levado ao sul, por um mensageiro, a Tseng Kuo-fan.
O Eunuco-Chefe voltou com o emblema de jade que era a resposta do Príncipe Kung, para provar que recebera o edito e que obedeceria. A Imperatriz Mãe sorriu, seus olhos pareciam gemas escuras sob os cílios negros.
- Disse alguma coisa? indagou.
- Benevolente, redargüiu o Eunuco-Chefe, o Príncipe leu o edito, linha por linha, e depois disse: "Há um imperador dentro do cérebro dessa mulher".
A Imperatriz Mãe riu suavemente atrás da manga bordada.
- Êle disse... realmente!
O Eunuco-Chefe, sabendo quão lisonjeada se sentia ela com esse louvor, acrescentou:
- Altíssima, o Príncipe disse a verdade. É o que todos nós dizemos.
Êle tocou os seus bonitos lábios com a ponta da língua, sorriu e afastou-se antes que ela o pudesse censurar.
Sorrindo ainda, Tzu Hsi começou a meditar. Qual seria o nome de seu filho, quando assumisse o governo? Os três traidores haviam escolhido o nome Chi Hsiang, que significava "Auspiciosa Felicidade". Não gostava dessas palavras vazias, sem sentido. Não, ela almejava uma paz sadia e forte, fundada na unidade interna da ação, o povo espontaneamente submisso e o Trono benevolente.
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Paz e benevolência - amava as boas palavras adequadamente empregadas, de acordo com a sua época, exatas em sua significação. Seu gosto pelas palavras fora modelado pelos mestres da prosa e da poesia. E então, após muito pensar, escolheu duas palavras para comporem o nome de seu filho como Imperador. Essas palavras eram T'ung, significando penetrar, e Chih, que significa paz, uma paz tranqüila, profundamente enraizada no coração e no espírito, escolheu ela. Era uma escolha ousada, pois os tempos estavam perturbados e a nação cercada de inimigos. No entanto, com esse nome anunciava a sua vontade de paz e, para ela, vontade era também ação.
Conquistara a fé do povo. Levavam-lhe diariamente questões grandes e pequenas, de todo o reino, ao Salão de Audiência. Assuntos de pouca importância como a repressão de um magistrado distante que oprimia cruelmente a sua região, ou a alta do preço do arroz em determinada cidade em virtude de haver sido comprado por alguns homens o excesso da produção do ano anterior; ou um decreto estabelecendo que, como não houvesse nevado no fim do inverno, quando as plantações de trigo mais necessitavam da neve como fertilizante, os deuses deviam ser persuadidos através de três dias de reprovação pública, retirando-os os sacerdotes de seus agradáveis templos para percorrerem os campos secos e gelados; a Imperatriz Mãe munia-se de paciência para resolver essas pequenas questões e também as grandes, como a defesa do litoral contra os navios dos inimigos estrangeiros e a regulamentação do odioso comércio de ópio com os homens brancos.
Mas não se esquecia dos complexos negócios domésticos de seus palácios. Cuidava zelosamente de seu filho, conservando-o junto de si o mais tempo possível. O menino corria pelo Salão de Audiência ou pela sua biblioteca particular, onde ela lia os memoriais e redigia seus despachos, erguendo de quando em quando os olhos para observá-lo e às vezes apalpando-o, para verificar se sua carne continuava sólida e fria, a pele úmida porém não pegajosa. Examinava-lhe a côr dos olhos, o negro escuro e luminoso, o branco muito puro; olhava-lhe o interior da boca a fim de comprovar o estado de seus dentes e se a língua estava rubra e o hálito normal, ouvia-lhe a voz e escutava o seu riso. E assim fazendo, pensava ao mesmo tempo nas necessidades de todos os demais. Esquadrinhava as contas domésticas, os registros dos alimentos recebidos como tributo, os gêneros comprados, as sedas e cetins recebidos e armazenados, e nenhuma peça de seda era retirada dos armazéns sem o seu selo particular impresso na ordem. Sabia muito bem como o roubo no interior dum palácio acaba por contagiar todo o país e fazia com que todos os servos, servas, príncipes e ministros sentissem a frieza de seus olhos vigilantes.
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Mas recompensava rica e freqüentemente. Um eunuco, que a houvesse servido bem, ganhava prata; uma serva fiel ganhava uma jaqueta de cetim. Nem todos os presentes eram caros. Após satisfazer-se com as iguarias da mesa imperial, chamava uma das damas que mais lhe agradava e fazia-a comer de seu prato favorito, distinguindo assim a mulher que, a partir desse momento, era servida atentamente por todos os demais, pois conseguira o favor da Imperatriz Mãe.
Somente ela sabia das grandes recompensas que planejava para duas pessoas: Jung Lu e o Príncipe Kung. Protelara a revelação até decidir quem seria o primeiro. Jung Lu salvara-lhe a vida e a do Imperador, merecendo por isso tudo quanto ela quisesse dar-lhe. Mas o Príncipe Kung salvara a Capital, não pelas armas, porém pelo seu talento em transacionar com o inimigo. Muito se perdera, era verdade. O tratado pesava sobre o Trono e ela não esquecia que, entre as paredes da Capital, viviam brancos com seus criados e famílias. No entanto a cidade não fora destruída, como o inimigo ameaçara fazê-lo. Esquecera-se deliberadamente do Palácio de Verão, até que, contra a vontade, voltaram-lhe à lembrança seus lagos e jardins, rochas e grutas, os belos pagodes suspensos nas colinas, os depósitos de tesouros abrigando os tributos provenientes das terras circunvizinhas dos quatro mares, as bibliotecas, os livros e quadros, o jade, os móveis esplêndidos. Nessas ocasiões seu coração endurecia-se contra o Príncipe Kung. Não poderia êle, de algum modo, ter impedido a terrível perda? Não fora apenas ela, que amava o Palácio de Verão, quem perdera; não fora apenas uma nação, pois aquelas coisas belas pertenciam a todos - eram um tesouro sagrado em qualquer parte. Jung Lu, então, salientava-se como o primeiro. Êle, pelo menos, não permitira destruição alguma. Contudo, seu coração endurecido fazia-a prudente e a prudência aconselhava-a a chamar o Príncipe Kung e a pretender pedir-lhe opinião.
Esperou, por conseguinte, um dia propício, e este chegou, após forte queda de neve, pois os deuses, rogados, premidos e censurados, tinham afinal visto os campos secos e os camponeses famintos e haviam mandado uma forte nevada sobre a cidade e a campina, tão espessa que três semanas se passaram antes de desvanecer-se o último amontoado branco. Os campos antes ressequidos estavam agora cobertos de um verde suave sob a neve e quando o sol começou a brilhar timidamente, o trigo do inverno espalhou-se tão extensamente quanto o olhar podia abranger. Por isso o povo apresentou profundos agradecimentos à Imperatriz Mãe e todos disseram que fora a sua graça e poder que compeliram os deuses.
Aquele, portanto, era o dia propício - um dos últimos dias do inverno e tão próximo da primavera que uma cálida neblina pairava sobre a cidade, quando o sol quente brilhou sobre a terra fria. A Imperatriz Mãe mandou o Eunuco-Chefe chamar o Príncipe
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Kung ao seu Salão Particular de Audiência. Êle não se demorou esplêndido em seus trajes oficiais, brocado azul do pescoço aos tornozelos, de matiz escuro, pois a corte ainda estava de luto e assim deveria continuar durante três anos após a morte do Imperador. Tinha o ar tão altivo, tão majestoso, ao aproximar-se do trono, que ela se sentiu desgostosa. Curvou-se - imaginou ela - um tanto ligeiramente, como se estivesse se tornando familiar. Um surto de cólera íntima sacudiu-lhe o coração, porém ela afastou-o. Precisava conquistá-lo para algo que desejava. A ocasião não era oportuna para reprovar-lhe o orgulho.
- Rogo-lhe que não se mantenha em atitude cerimoniosa, disse com sua voz musical. - Conferenciemos. O Príncipe é o irmão de meu senhor, o qual me pediu que sempre dele me valesse, quando precisasse.
Assim convidado, êle sentou-se do lado direito do salão e ela não gostou da rapidez com que atendera ao seu convite. É verdade que fizera um sinal de protesto, mas apenas proferindo uma ou duas palavras, antes de sentar-se.
- Penso, disse ela, em recompensar o Comandante da Guarda Imperial. Não olvidei que me salvou a vida, quando os traidores tinham deliberado tirar-ma. Sua lealdade ao Trono do Dragão é como o Monte de Ornei, inabalável, firme diante de todas as tempestades. Não dou muito valor à minha vida, mas, se tivesse morrido, os traidores teriam tomado o trono para si mesmos e o Herdeiro nunca se tornaria Imperador. A recompensa não é por mim, mas pelo meu filho, o Imperador, e, através dele, pelo povo, pois se os traidores houvessem vencido, o Trono teria caído.
Enquanto ela falava o Príncipe Kung não a fitava na face, mas a sua arguta inteligência percebia o significado íntimo do que estava ouvindo.
- Altíssima, respondeu êle, que recompensa imaginastes?
Ela aproveitou ousadamente o instante. Não tinha o hábito de evitar as crises.
- O posto de Grande Conselheiro permanece vago desde a morte de Su Shun. É minha vontade que Jung Lu o preencha.
A Imperatriz ergueu a cabeça, para encarar o Príncipe, mas este, ao sentir seu poderoso olhar, não desviou o rosto.
- É impossível.
Tais foram as suas palavras, quando seus olhares se encontraram.
- Nada é impossível, quando eu o quero.
Estas foram as palavras dela, e seu olhar relampejou nos olhos dele. Mas o Príncipe foi franco.
- Conhece os boatos que correm pela Corte. Sabe como os sussurros se espalham, de eunuco a eunuco. Nego os boatos, como sempre faço, pela honra do Trono e do meu clã, contudo não posso matá-los.
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Ela fitou-o com expressão inocente:
- Que boatos?
O Príncipe não se convenceu da sua ingenuidade, mas, como fosse tão jovem, era possível que continuasse inocente. Êle devia falar, já tendo dito tanto, e de fato falou:
- Há quem duvide da paternidade do jovem Imperador.
Ela desviou o rosto, suas pálpebras bateram, seus lábios tremeram, levou o lenço de seda à boca.
Oh, gemeu, e eu pensei que meus inimigos estivessem mortos!
Falo para o vosso bem. Não sou vosso inimigo.
Lágrimas pendiam-lhe dos cílios, secadas pela cólera.
- Devia, no entanto, ter determinado a morte para os que proferiram tamanha infâmia contra mim! Não devia tê-los deixado com vida uma hora sequer. Se não se atreveu, deveria ter-me falado e eu própria os mandaria matar!
Era ela inocente? Êle não sabia, nunca saberia. Permaneceu em silêncio.
A Imperatriz enrijeceu-se no trono.
- Já não peço a sua opinião. Hoje, tão logo o senhor se retirar, proclamarei Jung Lu meu Grande Conselheiro. E se alguém ousar falar contra êle...
- Que farei? inquiriu o Príncipe. - Que poderei fazer se a corte inteira está invadida pelos boatos?
Ela inclinou-se, esquecida da sua cortesia:
- Eu os silenciarei! E peço-lhe, Príncipe, que permaneça calado! Nunca, durante todos os anos anteriores, os dois se haviam encolerizado abertamente um contra o outro. Súbito lembraram-se da necessidade mútua de serem leais. O Príncipe foi o primeiro a falar:
- Perdoai-me, Altíssima.
Levantou-se e fêz uma reverência. Ela respondeu no seu tom mais gentil:
- Não sei por que lhe falei dessa maneira, ao senhor que me ensinou tudo quanto sei. Eu é que devo pedir-lhe que me perdoe.
O Príncipe quis protestar, mas ela ergueu a mão para impedi-lo.
- Não, não fale... ainda não. Pois há muito venho pensando em dar-lhe a maior de todas as recompensas. Receberá o título de Príncipe Conselheiro do Trono, com plenos emolumentos. E por decreto especial meu - isto é, por decreto nosso, as duas Regentes, minha irmã Consorte e eu - o título de Duque de Ch'in, que meu falecido senhor lhe concedeu como gratidão à sua lealdade, que será tornado hereditário.
Estas eram altas honrarias e o Príncipe Kung ficou confundido pela maneira súbita como foram concedidas. Fêz outra reverência e disse com a sua habitual maneira branda:
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- Altíssima, não desejo recompensa por haver cumprido o meu dever. Primeiro meu dever era para com meu irmão mais velho depois para com o meu Imperador que, por acaso de nascimento' era meu irmão mais velho. Meu dever agora é para com seu filho e, então, para este mesmo filho como jovem Imperador. Em seguida meu dever é para convosco, a Imperatriz Mãe, e para com ambas vós, as duas Imperatrizes, que sois as Regentes. Vede agora quão múltiplo é o meu dever e por nenhum de seus aspectos devo ser recompensado.
- Deve realmente aceitar, retrucou a Imperatriz Mãe, e assim começou uma cortês batalha entre os dois, ela insistindo e êle recusando, até que afinal chegaram a um gracioso acordo.
- Suplico-vos que pelo menos me seja permitido recusar um título que meu filho pode herdar, disse finalmente o Príncipe Kung. - Não é de nossa tradição que os filhos herdem o que seus pais conquistaram. Meu filho conquistará suas próprias honrarias.
A Imperatriz Mãe não pôde senão concordar:
- Protelemos então o assunto até uma ocasião mais propícia. Mas também lhe peço uma coisa, honradíssimo Príncipe.
- Está dada, prometeu o Príncipe Kung.
- Deixe-me adotar sua filha, Jung-chun, como princesa real. Conceda-me essa felicidade para confortar-me e deixe-me sentir que recebeu uma pequena recompensa pela sua sincera e leal ajuda contra os traidores de Jehol. Não atendeu imediatamente ao meu chamado? Não me recordo da menor demora.
Foi a vez do Príncipe ceder e êle o fêz com magnanimidade. A partir desse dia sua filha tornou-se princesa real e tão lealmente serviu ela à sua soberana que a Imperatriz Mãe lhe deu um palanquim com cortinas de amarelo-imperial, com o direito de usá-lo enquanto vivesse, como se fosse de fato uma princesa de nascimento.
Esses os planos da Imperatriz Mãe. Nada fazia descuidadamente ou às pressas. Um plano começava com a semente de um desejo, uma ânsia, uma vontade. A semente, plantada, podia ficar inerte um ano, dois anos, dez anos, até que chegasse a hora de crescer, mas afinal florescia.
Era verão de novo, estação aprazível quando os ventos vieram do sul e do este, trazendo neblinas e chuva suave e até mesmo o cheiro dos mares salgados dos quais a Imperatriz Mãe ouvira falar e nunca vira, embora amasse a água dos repuxos, das fontes e dos lagos. À medida que o intenso e entorpecedor calor do verão transpunha os altos muros da Cidade Proibida, aumentavam suas saudades dos palácios de Yuan Ming Yuan, que não existiam mais. Nunca lhe vira as ruínas nem lhes contemplara as cinzas, pois seria uma cena que não poderia suportar. Contudo - dizia para si mesma:
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ainda restavam os famosos Palácios do Mar. Por que não
encontraria neles um lugar de repouso e de prazer?
Assim pensando, consolidou sua resolução. E no dia marcado suas damas e eunucos acompanharam seu palanquim em cadeirinhas, carros de mulas e a cavalo, cada qual de acordo com o costume. Embora a viagem aos Palácios do Mar fosse curta - menos de meia milha de distância - o rebuliço e a comoção do cortejo foram tais que a Guarda Imperial limpou as ruas, para que nenhum perverso se sentisse tentado a levantar a mão. Os parques de prazer dos Três Palácios do Mar não eram novos à Imperatriz Mãe, pois visitara-os diversas vezes para fazer sacrifícios, na primavera, perante o Altar dos Bichos da Seda, ao Deus das Amoreiras, e depois, entrando no Salão dos Bichos da Seda, para oferecer novamente sacrifícios à Deusa dos Bichos da Seda. Era um dever anual, mas ia também, às vezes, passear em botes num dos três lagos chamados mares, ou no inverno ia ver a Corte patinando no lago chamado Mar do Norte - gostava de ver os eunucos, em seus trajes coloridos, patinando habilmente sobre o gelo espesso, amaciado antes da festa com ferros quentes. Esses lagos eram antigos. Haviam sido feitos pelos imperadores dos tártaros Nurchen, quinhentos anos antes. Mas esses imperadores não poderiam imaginar a beleza que Yung Lo, o primeiro imperador da dinastia chinesa de Ming, mais tarde lhes acrescentaria. Mandara aprofundá-los e construir pontes que conduziam a pequenas ilhas onde foram erguidos pavilhões, cada qual esculpido e pintado de maneira diferente dos outros. Rochas poderosas, curiosamente modeladas pelas águas dos rios, foram trazidas do sul e do noroeste, para compor jardins, nos quais foram construídos palácios. Velhas árvores torcidas foram plantadas, cuidando-se delas com tanto desvelo como se fossem humanas e na verdade títulos humanos foram dados a algumas delas, como duque ou rei. No Salão Fulgurante havia um grande Buda, chamado Buda de Jade, embora a imagem não fosse de jade e sim esculpida numa pedra branca do Tibet. O Ancestral Ch'ien Lung amava os Palácios do Mar e entre eles instalara uma biblioteca denominada Monte do Pinheiro, dando aos seus três salões os nomes de Salão das Águas de Cristal, Varanda da Lavagem de Orquídeas - o rito da lavagem de orquídeas realizava-se no quinto dia do quinto mês do ano lunar - e o Salão da Neve Alegre, título extraído do poema de Wang Shi-chih que, escrevendo em certo dia de inverno, sentiu-se cheio de alegria por uma repentina queda de neve. Os versos que fizera, apesar de esculpidos em mármore, permaneceram perdidos durante séculos até que um operário comum encontrou a pedra entre ruínas e deu-a ao Ancestral Chien Lung, então reinante, que a colocou nesse salão.
Cada recanto dos Palácios do Mar estava enriquecido por lendas semelhantes e a Imperatriz Mãe conhecia-as todas, graças à sua
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leitura de muitos livros. O que mais lhe agradava, porém, era o pavilhão junto do Mar do Sul, chamado Pavilhão dos Pensamentos do Lar. Esse pavilhão tinha dois pavimentos, mandados construir por Ch'ien Lung, de modo que sua favorita, a Fragrante Concubina, cujo nome era Hsiang Fei, porque o suor de seu delicado corpo era doce como o perfume, pudesse olhar para a sua terra perdida. Essa Fragrante Concubina fora tirada de seu marido e de seu lar, no Turquestão, onde era a princesa de Kashgaria. Ch'ien Lung, ouvindo falar de sua mágica beleza e especialmente da maciez de sua pele branca, ordenara a seus generais que lha trouxessem, pela força se fosse necessário. Mas ela era fiel ao seu marido e não queria deixá-lo de maneira alguma, de modo que começou uma guerra por sua causa. Quando o marido foi derrotado e se suicidou, a princesa não teve outro recurso senão seguir para junto do Imperador da China. Mas não se entregou e êle, embora a tivesse amado à primeira vista, não quis tomá-la pela força, desejando o pleno e sutil prazer de sua espontânea entrega. Construiu, por conseguinte, o pavilhão de cuja torre ela podia contemplar o seu lar perdido e esperou pacientemente que ela o quisesse, e assim fêz contra o conselho da Imperatriz Viúva, sua mãe, que, irada, pediu ao filho que mandasse a invencível mulher de volta ao Turquestão. Pois a Fragrante Concubina não tolerava nem mesmo a proximidade do Imperador, dizendo que, se êle a tocasse, se mataria e o mataria.
Num dia de inverno, quando tinha o dever de orar perante o Altar do Céu em favor do seu povo, sua mãe, a Imperatriz Viúva, mandou chamar a Fragrante Concubina e ordenou-lhe que se entregasse ao Imperador ou se suicidasse. A princesa escolheu o suicídio e a Imperatriz Viúva, ao ouvir-lhe a decisão, ordenou que a conduzissem a um prédio vazio e lhe dessem uma corda de seda - e lá, sozinha, ela se enforcou. Um eunuco fiel levou a notícia, em segredo, ao Imperador que, embora estivesse jejuando no Salão da Abstinência, a fim de purificar-se para o sagrado sacrifício, esqueceu o seu dever e correu ao palácio. Era tarde demais. Sua bem-amada fugira-lhe para sempre. Esta era a lenda.
A Imperatriz Mãe escolheu, para seu uso, os numerosos salões e pátios, lagos e jardins do Palácio da Compaixão, que ficava perto do Mar do Meio. Amava particularmente os jardins rochosos e, embora não se permitisse festas e reuniões alegres, como costumava fazer no Palácio de Verão de Yuan Ming Yuan, onde ela e suas damas vestiam trajes de deusas e fadas, de acordo com o seu temperamento jovial, agora, pela primeira vez depois da morte do Imperador, seu falecido senhor, permitiu-se assistir a peças teatrais, não peças longas ou alegres, mas peças tranqüilas e tristes, retratando a sabedoria da alma. Para esse fim, mandou abrir uma porta de comunicação entre os seus jardins rochosos e um pátio fora de
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uso junto de um salão fechado, e ordenou aos eunucos carpinteiros, pintores e pedreiros, que fizessem um grande palco perto de um agradável recanto, onde ela e suas damas pudessem sentar-se em isolado conforto, para contemplarem os atores. Seu camarote real era tão amplo quanto um quarto - fizera-o construir junto de um estreito arroio que corria através do pátio, de modo que a água corrente amortecia as vozes dos atores e as tornava musicais. Uma ponte de mármore, não mais larga que uma vereda, ligava as margens do riacho.
Certo dia, quando sentiu que seus planos secretos estavam maduros, a Imperatriz Mãe ordenou que Jung Lu fosse vê-la nesse lugar. Tinha sempre o cuidado de não praticar dois atos muito próximos um do outro, a fim de que ninguém pudesse dizer: "Primeiro ela fêz isso, em seguida aquilo", e assim compreender, por acaso, suas intenções particulares. Não - deixara que se passassem dois meses após haver adotado a filha do Príncipe Kung, para dar o passo seguinte e chamar Jung Lu, como se obedecesse a um capricho momentâneo, ela, que era sábia demais para ceder a caprichos.
A peça desenrolava-se diante de seus olhos. Os atores eram todos eunucos, pois desde os tempos do Ancestral Ch'ien Lung, nenhuma mulher podia tomar parte em representações teatrais, porque sua própria mãe fora atriz e, para honrá-la, não permitia que nenhuma mulher a igualasse. A peça desse dia era muito conhecida - A Órfã do Clã de Ch'ao - e a Imperatriz tinha-a visto muitas vezes, de modo que os versos ressoavam desprovidos de encanto aos seus ouvidos. Mas não queria magoar os atores e conservava-se em atitude atenta, comendo doces delicadamente, enquanto o cérebro se ocupava de seus segredos. Por que não chamar Jung Lu aqui, pensou ela, onde estão todos reunidos e enquanto a peça se desenrola, para fazê-lo conhecer sua vontade? Deveria primeiro obter a concordância dele, em assumir o lugar de Su Shun, antes de tornar pública a recompensa.
Chamou Li Lien-ying.
- Diga ao meu parente que venha cá. Tenho uma ordem a dar-lhe.
Êle sorriu, fêz uma reverência e se afastou estalando os dedos. A Imperatriz Mãe voltou a cabeça para o palco e pareceu novamente absorta na peça. As damas sentavam-se em seus lugares, ao redor dela. Quando alguma delas se sentia olhada pela Imperatriz, levantava-se imediatamente. Minutos depois, a Dama Mei, sempre atenta à sua soberana, viu que a Imperatriz Mãe a contemplava com um olhar longo e pensativo. Ergueu-se imediatamente e se curvou. A Imperatriz chamou-a com um gesto delicado e a adorável donzela, um tanto timidamente, se aproximou.
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- Aproxime a sua orelha de minha boca, ordenou a Imperatriz Mãe. As canções, no palco, abafavam-lhe a voz, de modo que somente a jovem podia ouvi-la. Inclinou a cabeça e escutou as seguintes palavras de sua soberana: - Não esqueci a promessa que lhe fiz, minha filha. Vou cumpri-la hoje.
A Dama Mei continuou de pé, a cabeça baixa para esconder o rubor de suas faces. A Imperatriz Mãe sorriu.
- Vejo que sabe qual é a promessa.
- Poderia eu esquecer uma promessa feita por Vossa Majestade? foi a resposta da Dama Mei.
A Imperatriz Mãe tocou-lhe de leve a face:
- Muito bem dito, menina! Bem, você verá...
Nessa altura Jung Lu já estava caminhando em direção ao camarote real. O sol da tarde iluminava-lhe a alta figura e a cabeça ereta. Trajava uniforme azul escuro, em sinal de luto pelo Imperador morto. Do cinto pendia-lhe uma espada larga, cuja bainha de prata reluzia. Aproximou-se a passos firmes da plataforma e fêz uma reverência. A Imperatriz Mãe inclinou a cabeça e indicou-lhe um lugar perto de seu trono. Êle hesitou por um instante, depois sentou-se.
Por um momento ela não pareceu perceber-lhe a presença. O astro da peça entrou no palco para entoar sua mais famosa canção e todos os olhares estavam fixos nele. Ela também o olhava. Súbito começou a falar, sem desviar os olhos do palco.
- Parente, tenho pensado constantemente numa boa recompensa pelos serviços que prestou a mim e ao jovem Imperador.
- Majestade, tornou Jung Lu, na verdade não fiz mais que o meu dever.
- Sabe que salvou nossas vidas, disse ela.
- Era meu dever, insistiu Jung Lu.
- Pensa que esqueci? inquiriu ela em resposta. - Nada esqueço do passado e do presente. Recompensá-lo-ei, quer queira quer não, e é minha vontade que preencha a vaga deixada pelo traidor Su Shun.
- Majestade... começou êle impetuosamente, porém ela ergueu a mão para silenciá-lo.
- Deve aceitar, disse, ainda olhando para o palco. - Preciso de você perto de mim. Em quem posso confiar? No Príncipe Kung, sim... sei que o nome dele está em seus lábios. Bem, confio nele! Mas êle me ama?... Ou... eu o amo?
- Não deveis falar assim... sussurrou Jung Lu.
A voz no palco era aguda, os tambores soavam, as damas exclamavam seus louvores e atiravam flores e doces ao eunuco-cantor.
- Amo-o sempre, disse ela. Êle não voltou a cabeça.
- Você sabe que me ama, disse ela.
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Jung Lu permaneceu em silêncio. Ela então voltou-se para fitá-lo:
- Não me ama? indagou claramente.
Êle murmurou, olhando para o palco:
Não quero que, por minha causa, desçais do lugar a que subistes.
Ela sorriu e, embora houvesse novamente virado a cabeça para o palco, seus grandes olhos brilhavam.
Quando você fôr Grande Conselheiro, poderei chamá-lo quantas vezes houver necessidade, pois a carga do reino cairá também sobre os seus ombros. Os Regentes apóiam-se nos Príncipes, nos Grandes Conselheiros e nos ministros.
Não obedecerei a tais chamados, salvo em companhia de todos os conselheiros.
- Sim, obedecerá, tornou ela caprichosamente.
- E manchar vosso nome?
- Preservarei o meu nome pela seguinte maneira... você desposará uma dama da minha escolha. Se tiver uma esposa jovem e bela, quem poderá falar?
- Não me casarei com ninguém! retrucou Jung Lu, áspero, entre os dentes.
No palco, o famoso ator fêz a sua última curvatura e sentou-se. O criado correu a trazer uma xícara de chá. O ator tirou seu pesado e multicolorido capacete e enxugou o suor com um lenço de seda. No pequeno teatro, os eunucos retiraram toalhas macias de bacias com água quente e perfumada, pondo-as nas mãos que se estendiam para apanhá-las. O eunuco Li Lien-ying levou, numa salva de ouro, uma toalha perfumada para a Imperatriz Mãe. Ela tomou-a e tocou, delicadamente, as têmporas e as palmas. Quando o eunuco se afastou, disse em voz severa e baixa:
- Ordeno-lhe que se case com a Dama Mei. Não, não responda. É a mais bela jovem da Corte, alma fiel e ama-o.
- Podeis mandar em meu coração? exclamou êle, num sopro.
- Você não precisa amá-la, retrucou ela cruelmente.
- Se ela é o que dizeis, eu cometeria uma injustiça tamanha que não condiz com o meu temperamento, retrucou Jung Lu.
- Não, se ela, sabendo que você não a ama, anseia por ser sua esposa.
Êle meditou um instante nessas palavras. Um novo ator assomara no palco e cantava da melhor maneira de que era capaz, enquanto eunucos traziam bandejas com doces, quentes e frios, para alimentar os espectadores. Como o ator fosse desconhecido, não o aplaudiam e todos os olhares se voltavam para a Imperatriz Mãe. Ela os sentiu e compreendeu que devia dispensar Jung Lu. Falou entre os dentes cerrados:
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- Não me desobedeça. Está resolvido que aceitará esse casamento e no mesmo dia tomará assento entre os Conselheiros. E agora, retire-se!
Êle se levantou e fêz uma profunda reverência. Seu silêncio significava que concordara. Ela inclinou a cabeça. Com meticulosa graça tornou a levantar a cabeça e pareceu absorver-se na contemplação da peça.
À noite, ao ver-se sozinha, recordou a cena. Não se lembrava da obra que os atores representavam no palco, depois que êle partira, nem que canções haviam entoado. Ficara se abanando lentamente, o palco transformado num borrão diante de seus olhos, e então, o corpo inteiro tenso de agonia, fechara o leque e permanecera imóvel, fitando o palco enquanto uma dor intensa lhe penetrava todo o ser. Ela amava apenas um homem e o amaria até a morte. Era êle o amante por quem ansiava, o marido que negara a si mesma.
E enquanto seus pensamentos adejavam de um lado para outro, como um pássaro engaiolado, pensou numa rainha, a rainha inglesa, Vitória, a respeito da qual o Príncipe Kung lhe havia falado. Ah, afortunada rainha, que pudera casar-se com o homem que amava! Mas Vitória não era concubina nem viúva de um imperador. Nascera para o trono e pudera elevar o homem que amava, fazendo-o sentar-se ao seu lado. Mas nenhuma mulher podia sentar-se, por nascimento, no Trono do Dragão - ela pudera apenas tomá-lo para si.
E aqui estou eu, disse a Imperatriz Mãe consigo mesma, mais forte do que a Rainha Inglesa. Eu tomei o meu trono...
Mas a força constitui conforto para uma mulher?
Estava deitada no grande leito, ainda acordada, embora o vigia houvesse tocado duas vezes o seu gongo de bronze, para anunciar que já haviam passado duas horas além da meia-noite. Ela permanecia imóvel enquanto o sofrimento corria através de seu sangue e a respiração tornava-se penosa em seu peito. E por que não era toda mulher? Por que não se resignaria a deixar o trono e ser a esposa de quem tanto amava? Que orgulho a possuía para fazê-la desejar um poder ainda mais alto? Que importaria a ela - uma mulher - que a dinastia se mantivesse ou caísse?
Viu-se, afinal, mulher com suas necessidades e ânsias secretas, mas não mulher em seu desejo de algo mais que amor. Posição e poder, o orgulho de estar situada acima de todos - também eram uma necessidade para ela. Mas decerto era mulher no amor que nutria pelo seu filho? Seu ser inexorável respondeu-lhe que embora fosse seu filho, embora fosse mãe dele, além dessa intimidade dos laços de sangue, havia um outro laço. Êle era o Imperador e ela a Imperatriz Mãe. Os laços comuns da maternidade não bastavam.
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Oh amaldiçoada mulher que nascera com cérebro e coração de tal natureza!
Virou-se no travesseiro e chorou de piedade por si mesma. Não posso amar, pensou. Não posso amar o suficiente para entregar-me por completo ao amor. E por quê? Porque me conheço demasiado bem. Se me entregasse inteiramente ao amor, meu coração feneceria, e tendo dado tudo, nada me restaria senão o ódio por êle. E contudo eu o amo!
O vigia tornou a bater no gongo de bronze e gritou:
Três horas depois da meia-noite!
Meditou um pouco sobre o amor, chorando quando seus pensamentos se tornavam demasiado pungentes. Imagine que, quando Jung Lu estivesse casado com a Dama Mei, ela o persuadisse a encontrar-se consigo no aposento secreto de algum palácio escondido. Seu eunuco poderia ficar vigiando, ela o pagaria bem e se suspeitasse de sua lealdade, uma palavra bastaria para que uma adaga lhe atravessasse o coração. Se, uma ou duas vezes - algumas poucas vezes - em todos os seus anos de vida, ela se encontrasse com o seu amor apenas como mulher, sentir-se-ia feliz, contentar-se-ia com esse pouco. O coração dele não lhe pertencia?
Ah, mas poderia ela manter o seu coração? Enquanto estivesse sentada em seu trono, uma outra mulher se deitaria no leito dele. Sendo homem, lembrar-se-ia sempre de que amava a Imperatriz e não a mulher que tinha nos braços?
Súbito ciúme fêz com que suas lágrimas secassem. Levantou-se da cama, afastou a colcha de seda e, erguendo os joelhos, apoiou neles a cabeça, mordeu os lábios e ficou chorando silenciosamente, para que a serva não a ouvisse.
O vigia tornou a bater no gongo e gritou:
- Quatro horas depois da meia-noite!
Fatigada do seu amargo pranto, deitou-se de novo, exausta. Nascera o que era - mulher e mais do que mulher. O próprio peso do gênio era a sua destruição. Lágrimas tremiam-lhe novamente na ponta dos cílios.
E então, de alguma parte de seu ser, uma energia estranha sacudiu-a. Destruição? Se permitisse que seu próprio amor a destruísse, bem como o ciúme, então sim, seria destruição autêntica, porque não fora suficientemente grande para utilizar a verdadeira dimensão de sua natureza.
Contudo, quão forte sou eu, murmurou. Sim, faria da força o seu conforto. As lágrimas secaram-se-lhe nos olhos e através de suas veias começou a circular a velha e poderosa fé no que era. Recolheu seus pensamentos e separou os verdadeiros dos falsos. Loucura, tolice, sonho vão, imaginar um aposento secreto num palácio esquecido! Êle jamais aceitaria tal condescendência. Se ela não pudesse abandonar tudo pelo amor, êle era orgulhoso demais para
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tornar-se seu amante secreto. Uma vez... sim, mas apenas uma vez quando ainda era um rapaz, naqueles dias idos... e ela encontrara-ó virgem. Bem, o primeiro fruto fora dela, uma lembrança a guardar, mas não para meditar nela e sim para pô-la de lado para sempre inesquecida. Êle não tornaria a ceder.
Ocorreu-lhe então uma idéia, tão nova que a impressionou com violência. Era certo que não podia amar nenhum homem ao ponto de abandonar tudo e entregar-se exclusivamente ao seu amor. Que assim fosse, por conseguinte, uma vez que assim nascera. No entanto não constituía um privilégio, para êle, que ela o deixasse amá-la com todo o seu coração e dedicar esse amor ao seu serviço?
Talvez a melhor maneira de eu amá-lo, pensou, é aceitar o seu amor e fazer dele o meu refúgio.
Com esse sábio pensamento, uma estranha paz invadiu-lhe gentilmente as veias, tranqüilizando seu inquieto coração. Cerrou os olhos.
O gongo do vigia tornou a soar. Ouviu o seu grito matinal.
- Amanhece e tudo está bem! exclamou êle.
Marcou para logo o dia do casamento. Que se realizasse com brevidade, para que fosse o quanto antes irrevogável! A Dama Mei, porém, não podia casar-se nos palácios imperiais, embora não tivesse outro lar.
- Chame o Eunuco-Chefe, ordenou a Imperatriz Mãe.
Li Lien-ying, silencioso em seu lugar costumeiro, junto da porta da Biblioteca Imperial, onde a Imperatriz havia acabado de passar quatro dias sem falar com ninguém exceto para dar ordens, correu a obedecer. O Eunuco-Chefe encontrava-se em seus próprios aposentos, tomando a sua refeição matinal, iguaria preparada com várias carnes, que êle comia sem pressa e com satisfação. Desde a morte de seu falecido soberano, confortava-se com diversos prazeres, mas naquele instante apressou-se em obedecer ao chamado.
A Imperatriz Mãe ergueu a cabeça do livro, quando êle surgiu à sua frente, e falou-lhe com muito desgosto.
- Você, An Teh-hai, como se atreve a engordar dessa maneira? Sou capaz de jurar que se está excedendo na alimentação, apesar do luto em que nos encontramos.
Êle tentou afivelar uma expressão de tristeza.
- Venerável, estou cheio de água. Apertai-me e jorrará líquido. Estou doente, Majestade, não gordo.
Ela o ouviu com o seu habitual ar severo, quando sentia a necessidade de repreender algum subordinado. Nada lhe escapava, e embora seu espírito e coração estivessem preocupados com suas próprias mágoas secretas, podia, como de costume, desviar o pensamento para assuntos de tão pequena monta quanto a gordura do Eunuco-Chefe.
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- Sei como você come e bebe, retrucou ela. - Está enriquecendo, sabe que está. Tome cuidado para não enriquecer demais. Lembre-se de que não o perco de vista.
O Eunuco-Chefe respondeu com humildade:
Majestade, todos nós sabemos que vedes tudo ao mesmo tempo.
Ela continuou a encará-lo severamente por um instante, seus grandes olhos ardendo sobre êle, e embora não fosse permitido ao eunuco encará-la, sentiu, não obstante, o olhar dela e começou a suar. Então a Imperatriz sorriu.
Você é bonito demais para engordar, disse. - E como poderá fazer o papel de herói no palco, se já não tem cintura para colocar o cinto?
Êle riu. Era verdade que gostava de fazer o papel de herói nas peças da Corte.
- Majestade, jejuarei para agradar-vos, prometeu. Já de bom humor, ela disse:
- Não o chamei para conversar a seu respeito, mas para dizerlhe que tome as providências necessárias para o casamento da Dama Mei com Jung Lu, o Comandante da Guarda. Sabia que estão comprometidos?
- Sabia, Majestade, tornou o Eunuco-Chefe.
Sabia do casamento, como sabia de tudo quanto se passava entre as paredes do palácio. Li Lien-ying contava-lhe tudo que ouvia e o mesmo faziam todos os demais eunucos e servas. A Imperatriz Mãe não o ignorava.
- A dama não tem parentes, continuou ela. - Devo, portanto, substituir os seus parentes. No entanto, como Regente, estou também no lugar do jovem Imperador e não seria adequado que a tratasse como princesa, comparecendo ao seu casamento. Você a levará à casa de meu sobrinho, o Duque de Hui. Que seja acompanhada com todas as honras e cerimônias. Nessa casa, meu parente, o Comandante, a receberá.
- Majestade, em que dia será? indagou êle.
- Amanhã ela deverá dirigir-se à casa do Duque. Você irá hoje e pedirá que preparem a casa. Êle tem duas velhas tias, que farão companhia a ela. Em seguida dirija-se ao Comandante e anuncie-lhe que nós decidimos que o casamento se realize dentro de dois dias. Terminada a sua missão, venha falar-me. Enquanto ela não fôr esposa dele, não me venha aborrecer.
- Majestade, às vossas ordens.
Curvou-se e saiu. Mas a Imperatriz já havia retomado a leitura de seu livro e não deu a menor atenção ao cumprimento do eunuco.
Pareceu absorta nos livros durante dois dias inteiros. Alta noite, enquanto os eunucos substituíam velas, escondendo os bocejos atrás de suas mangas, a Imperatriz lia lenta e meticulosamente livro após livro. Eram livros de medicina, de que nada sabia, mas estava
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resolvida a saber de tudo, sobretudo das coisas que mais ignorava. Não se tratava apenas de sua natural vontade de saber e de sua curiosidade pelo universo, mas também a determinação de saber mais do que qualquer pessoa com quem falava. Assim, nesses dois dias, enquanto se realizava o casamento que ela ordenara, fechara rigorosamente as portas de sua imaginação e compelira seu cérebro a ocupar-se de uma antiga obra de jurisprudência médica. Essa obra, em vários volumes, era muito conhecida em todos os tribunais, e até mesmo os magistrados locais, de pequenas cortes através de toda a nação, estudavam os seus preceitos antes de julgarem o caso de alguém que houvesse morrido por causas desconhecidas. O Conselho de Punições baseava a sua atuação nessa obra e, cerca de dezoito anos antes, o Imperador T"ao Haung, então reinante, aborrecido com a desordem dos primeiros volumes, determinara que o famoso juiz Sung Tz'u consolidasse todas as versões passadas numa única edição. A Imperatriz estudava também, agora, esse grande livro, fechando seu espírito a tudo o mais.
Obrigou-se, assim, a aprender que o corpo humano tem trezentos e sessenta e cinco ossos, número este igual ao número de dias em que o sol nasce e se põe dentro do ano solar; que os homens têm doze costelas de cada lado, oito compridas e quatro curtas, ao passo que as mulheres têm quatorze de cada lado. Leu que, se pai e filho, ou marido e mulher, se cortassem e deixassem o sangue fluir numa bacia d'água, os dois sangues se misturariam formando um só, porém o sangue de dois estranhos, sem parentesco, nunca se misturaria. Aprendeu também o segredo de muitos venenos, de que maneira usá-los nas doenças e para matar, bem como o modo de ocultar o seu uso.
Durante esses dois dias, não saíra da Biblioteca Imperial a não ser para comer e dormir em seu palácio. Na manhã do terceiro dia, o eunuco Li Lien-ying tossiu de longe para anunciar a sua presença. Ela ergueu o olhar da página que estivera lendo - tratava do poder da mandrágora como veneno.
- E então? inquiriu ela.
- Majestade, o Eunuco-Chefe voltou.
A Imperatriz fechou o livro, pegou a ponta do lenço de seda preso ao botão de jade do seu ombro, e tocou os lábios.
- Que se aproxime, redargüiu.
O Eunuco-Chefe entrou e fêz uma reverência.
- Coloque-se atrás de mim para dizer o que tem a dizer, ordenou ela.
Enquanto o ouvia, contemplava, além das portas abertas, o grande pátio onde crisântemos escarlates e dourados reluziam ao sol brilhante daquele dia de outono.
- Majestade, começou êle, tudo foi feito com as devidas honras e propriedade. O Comandante mandou o vermelho palanquim
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nupcial ao palácio do Duque de Hui e os carregadores retiraram-se. As duas velhas tias do Duque, como as instruí por ordem de Vossa Majestade, escoltaram a noiva e conduziram-na ao palanquim, cerrando em seguida as cortinas e trancando a porta. Os carregadores foram novamente chamados, ergueram o palanquim e levaram-no ao palácio do Comandante, sendo que as duas tias acompanharam-na em suas próprias cadeirinhas. No palácio do Comandante, duas outras velhas damas, que eram primas de seu pai, foram ao encontro do palanquim nupcial, e as quatro senhoras juntas conduziram a noiva ao palácio. Lá o Comandante estava à espera, juntamente com os de sua geração, pois seus pais já estão mortos.
As mais velhas não cobriram a face da noiva com pó de arroz? inquiriu a Imperatriz Mãe.
O Eunuco-Chefe apressou-se a corrigir a sua memória.
- Majestade, assim fizeram, e atiraram sobre ela o véu da virgindade de seda vermelha para cobri-la. Então ela passou por cima da sela, como o rito exige - era a própria sela mongol do Comandante, que êle herdou dos seus ancestrais - depois passou sobre carvões acesos e entrou no palácio, cercada pelas senhoras mais velhas. Lá esperava-os um velho cantor nupcial, que pediu ao casal que se ajoelhasse duas vezes e agradecesse ao Céu e à Terra. Então as velhas senhoras conduziram a noiva e o noivo ao quarto nupcial e disseram-lhes que se sentassem juntos no leito nupcial.
- De quem era o traje mais imponente? perguntou a Imperatriz Mãe.
- O dele, retrucou o Eunuco-Chefe com um riso curto. - Êle, Majestade, mandará em sua casa.
- Sei muito bem disso, tornou ela. - Sempre foi teimoso, desde pequeno. Continue!
- Então, prosseguiu o Eunuco-Chefe, os dois beberam vinho de duas tigelas envoltas em cetim vermelho, depois trocaram as tigelas e tornaram a beber, comendo juntos bolos de arroz, da mesma maneira adequada. Em seguida realizou-se a festa de casamento.
- Foi uma grande festa? perguntou a Imperatriz Mãe.
- Uma festa adequada, disse cautelosamente o Eunuco-Chefe. - Nem demais, nem de menos.
- E terminou, sem dúvida, com cordões de massa de farinha em caldo de galinha, observou ela.
- Significando vida longa, confirmou o Eunuco-Chefe.
Fêz uma pausa, esperando a última pergunta, a mais importante, que devia ser feita na manhã seguinte a todas as noites nupciais, em toda a nação. Após uma longa pausa, veio a pergunta.
- O casamento... se consumou?
Sua voz era débil e estranha.
Consumou-se, tornou o Eunuco-Chefe. - Permaneci durante a noite e, ao amanhecer, a serva da noiva chamou-me. O Comadante
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ergueu o véu nupcial da noiva à meia-noite, usando o fulcro de uma balança de pesos, de maneira ritual. A serva então afastou-se até a hora antes do amanhecer, quando então foi chamada. As velhas primas entregaram-lhe a roupa. A noiva era virgem.
A Imperatriz Mãe permaneceu em silêncio, até que o EunucoChefe, não recebendo ordem para retirar-se, tossiu de leve para indicar que ainda estava ali. Ela sobressaltou-se, como se o tivesse esquecido.
- Vá, disse. - Cumpriu bem a sua missão. Recompensá-lo-ei amanhã.
- Majestade, sois demasiado bondosa, tornou êle afastando-se. Ela continuou na mesma posição, observando os raios de sol sobre as flores brilhantes. Uma borboleta tardia adejou ao redor de uma flor carmesim - uma borboleta amarelo-imperial. Um presságio? Devia lembrar-se de perguntar à Comissão de Astrólogos, para saber o significado daquele presságio, sinal de sorte, sem dúvida, aparecendo no momento exato em que seu coração se despedaçava. Mas não o deixaria despedaçar-se. Dela era a mão que cuidava da ferida e dela era o coração.
Levantou-se e fechou o livro. Seguida de longe pelo feio e fiel eunuco, voltou ao seu palácio.
A partir desse dia a Imperatriz Mãe mudou o centro de sua vida, passando a dedicar-se ao filho. Êle era a causa de tudo quanto fazia, a razão de tudo quanto fizera, e ao redor dele giravam todas as suas preocupações e pensamentos. Êle era a sua cura e o seu consolo. Em suas numerosas noites de insônia, quando a imaginação lhe apresentava cenas das quais não podia partilhar, erguia-se, solitária, e corria em busca do seu menino. Sentava-se ao seu lado, segurava-lhe a mãozinha cálida, e, caso se mexesse, aproveitava o pretexto para tomá-lo nos braços e fazê-lo adormecer de novo junto de seu peito.
O menino era forte e belo, de pele tão suave que as damas diziam que era pena que não fosse mulher. Era, no entanto, mais do que belo, pois tinha um espírito que a Imperatriz sabia, desde já, brilhante e arguto. Quando completara quatro anos, escolhera preceptores para êle. Aos cinco sabia ler não apenas os livros manchus, mas também os chineses. Sua mão segurava o pincel instintivamente, como os artistas, e em seus traços infantis ela reconhecia a ousadia e a firmeza que um dia o tornariam calígrafo de força e de estilo. Sua memória era prodigiosa - bastava-lhe ouvir uma página lida uma ou duas vezes, para sabê-la de cor. Ela porém não permitia que os preceptores o estragassem com louvores.
- Não devem compará-lo com nenhuma outra criança, dizia ela. - Comparem apenas o que faz com o que pode fazer. Digam-lhe
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que seu Ancestral Ch'ien Lung fazia muito mais que êle, aos cinco anos de idade.
Enquanto assim instruía os preceptores, ela própria instilava no menino um orgulho tão forte quanto o seu. Nem mesmo seus professores podiam sentar-se diante dele - a única que o fazia era sua mãe. Se não gostasse de um preceptor, quer por suas maneiras ou aparência, o homem era imediatamente despedido, e ela não permitia a menor queixa ou pergunta.
É a vontade do Imperador, dizia ela.
Se o menino fosse de natureza mesquinha, certamente teria sido estragado pelo poder que lhe fora conferido tão cedo, mas o gênio do garoto era desses que não se podem estragar. Consciente de sua posição, aceitava-a como aceitava o sol e a chuva. Era terno, também, de modo que se um eunuco fosse vergastado por alguma falta, o pequeno Imperador corria a socorrê-lo. A Imperatriz não podia sequer puxar as orelhas de sua serva, pois o pequeno Imperador se punha logo a chorar.
Às vezes ela duvidava que o menino fosse suficientemente forte para tornar-se governante de um vasto povo; outras vezes, porém, êle mostrava tamanho ardor e fúria, comportava-se de maneira tão autoritária, que ela se consolava. Tivera, na verdade, de intervir certa vez porque seu eunuco desagradara à Sua Majestade, que o mandara trazer uma caixa de música de uma loja estrangeira da cidade. Como era de seu dever, o eunuco perguntara primeiro à Imperatriz Mãe se podia obedecer ao pequeno Imperador. Ouvindo o que seu filho desejava, ela proibiu-o com as seguintes palavras:
- Êle não terá nenhum brinquedo estrangeiro. Mas não devemos contrariar-lhe a vontade. Vá ao mercado e traga-lhe tigres e outros animais de brinquedo, para diverti-lo. Esquecer-se-á da caixa de música.
Li Lien-ying obedeceu e voltou para junto do pequeno Imperador com uma cesta desses brinquedos, dizendo que não conseguira encontrar a loja estrangeira, mas que, no caminho, deparara com aquelas feras de madeira e marfim, com olhos de gemas preciosas.
O pequeno Imperador, sentindo-se enganado, transformou-se num tirano em miniatura. Afastou os brinquedos, levantou-se de seu tronozinho e se pôs a caminhar pelo quarto, braços cruzados e os olhos - grandes como os de sua mãe - reluzentes de raiva.
- Jogue-os fora! gritou. - Sou alguma criança para brincar com bichos de madeira? Como se atreve, Li Lien-ying, a desafiar o seu soberano? Mandarei esquartejá-lo por causa disso. Chamem os meus guardas!
ordenou que o eunuco fosse, realmente, esquartejado, arrancando-lhe a carne dos ossos, por insubordinação ao Trono. Ninguém se atreveu a desobedecer. Os guardas entraram e permaneceram
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hesitantes, relutando, até que um eunuco correu a avisar a Imperatriz Mãe, que veio imediatamente.
- Meu filho, exclamou ela, meu filho, você não pode condenar um homem à morte... ainda não, meu filho!
- Mãe, tornou o menino majestosamente, seu eunuco não desobedeceu a mim, mas ao Imperador da China.
Ficou tão impressionada com a distinção que êle fazia entre a sua pessoa e o seu destino, que permaneceu sem fala por um instante, evitando afirmar o seu próprio poder.
- Meu filho, disse persuasivamente, pense no que está fazendo! Esse eunuco é Li Lien-ying, que o serve de cem maneiras. Esqueceu-se?
O pequeno monarca não cedeu - o eunuco tinha de ser esquartejado. Então a Imperatriz Mãe proibiu diretamente que a ordem fosse cumprida.
Esse episódio, no entanto, forçou-a a compreender que o menino precisava de um homem verdadeiro para tomar o lugar do pai que nunca tivera.
E mandou resolutamente chamar Jung Lu, agora Grande Conselheiro por decreto seu. Não o tinha visto ainda face a face, depois de seu casamento, e, para proteger-se de seu próprio coração, vestiu seus trajes oficiais e sentou-se em seu salão particular do trono, cercada de suas damas. Era certo que as damas se mantinham afastadas, mas estavam lá com seus vestidos de cores vivas, como irrequietas borboletas.
Jung Lu entrou, não mais usando seu uniforme de Comandante, mas togado como conselheiro, manto de cetim bordado a ouro caindo-lhe até as botas de veludo, um cordão de jóias pendendo-lhe do pescoço à cintura. Na cabeça usava um chapéu ornado com um botão de jade vermelho. Soubera-o sempre de aparência majestosa, mas ao vê-lo agora, imponente e belo, seu coração tremeu como um pássaro preso na mão. Mais uma razão para controlar o coração, o único que sabia seu segredo. Deixou-o ajoelhar-se e não lhe disse que se levantasse. Quando falou, fê-lo meio descuidadamente, com o olhar imperioso e fatigado.
- Meu filho está suficientemente crescido para montar a cavalo e esticar um arco, disse após saudá-lo. - Lembro-me de que você monta bem e sabe dominar o animal. Quanto ao arco, creio que certa vez ouvi dizer que você é um dos melhores caçadores do país. Ordeno-lhe, por conseguinte, que comece a cumprir um novo dever. Ensine meu filho, o Imperador, a atirar um dardo certeiramente no alvo.
- Ensinarei, Majestade, respondeu êle sem erguer os olhos. Quão altivo e frio é êle, pensou a Imperatriz, e agora vejo a sua vingança. Amor ou ódio, nunca me deixará saber o que há
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entre êle e sua mulher... oh, eu, solitária! Mas sua expressão não mudou:
Comece amanhã, ordenou. - Que não haja demora. Leve-o consigo ao campo dos arqueiros. Todos os meses, a partir de hoje, irei verificar pessoalmente os seus progressos e julgar da sua capacidade como mestre.
Obedeço, Majestade, tornou êle ainda de joelhos.
A partir daquele dia, após suas lições com os preceptores, o pequeno Imperador passava a tarde com Jung Lu. Com ternos cuidados, o homem alto e forte instruía o menino, ansioso quando o ousado garoto fazia galopar o seu negro cavalo árabe sem contudo externar sua apreensão, pois o menino nunca deveria sentir medo. E orgulhava-se de encontrar no pequeno príncipe um olho certeiro para a seta e mão firme para o arco. Quando, cada mês, a Imperatriz Mãe se dirigia ao campo dos arqueiros, cercada de suas damas, com que confiança êle lhe exibia o menino!
E ela, vendo o homem e o menino tornando-se dia a dia mais íntimos, proferia apenas algumas poucas palavras de frio louvor:
- Meu filho vai bem, mas devia mesmo ir bem.
Nada deixava transparecer de seu ansioso coração. Que ardesse dentro do peito, de dor e de alegria, ao ver as duas criaturas, que amava, tão íntimas como pai e filho.
- Majestade, disse-lhe o Príncipe Kung certo dia, chamei à Capital nossos dois grandes generais, Tseng Kuo-fan e Li Hung-chang.
A Imperatriz Mãe, prestes a dirigir-se ao campo dos arqueiros, como se tornara seu hábito diário, deteve-se na soleira do seu salão particular do trono. Suas damas cercaram-na imediatamente, formando um círculo multicolorido. O Príncipe Kung era o único homem com o qual falava face a face e por lei era seu parente, irmão do falecido Imperador - não violava, por conseguinte, nenhum costume ao falar-lhe assim, apesar de ser jovem e belo. Não obstante estava aborrecida. Fora vê-la sem ser chamado, e isto constituía uma ofensa. Ninguém podia atrever-se a tanto.
Sentiu-se trêmula de raiva, por um instante. Depois, com a sua habitual dignidade, voltou-se e se dirigiu para o pequeno trono instalado no meio do salão. Sentou-se e assumiu a pose costumeira de Imperatriz - mãos juntas sobre o colo, pendentes as largas mangas do manto. Esperou que o Príncipe se pusesse diante dela e não gostou quando êle, após fazer a reverência de praxe, sentou-se sem ser convidado numa cadeira à direita do estrado baixo sobre o qual se achava o trono. Não disse uma palavra para demonstrar o seu desagrado, mas atirou-lhe um olhar penetrante, sem fitá-lo nos olhos, o que teria parecido inconveniente, mas fixando o botão de jade verde que prendia o manto dele ao pescoço.
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O Príncipe, no entanto, não esperou que ela falasse primeiro. Começou, pelo contrário, a dizer, na sua maneira franca, o motivo pelo qual a procurara.
- Majestade, não vos tenho incomodado, deliberadamente, com as pequenas questões de Estado, que eu mesmo posso resolver. Tenho recebido, diariamente, mensageiros do sul, que me trazem notícias da guerra contínua movida pelos Exércitos Imperiais contra os rebeldes.
- Estou ciente dessa guerra, disse ela, com frieza. - Eu própria não ordenei, há um mês, a esse mesmo Tseng Kuo-fan, que atacasse os rebeldes por todos os lados?
- E êle o fêz, tornou o Príncipe Kung, sem perceber-lhe a cólera. - Mas os rebeldes repeliram-no. Há quinze dias, anunciaram que iam atacar a própria Shangai. Essa notícia agitou os ricos mercadores daquela cidade, não apenas chineses mas também os brancos, e eles estão formando seu próprio exército, com o receio de que nossos soldados não sejam capazes de defender a cidade. Mandei chamar, portanto, os nossos dois generais a fim de tomarmos conhecimento da sua estratégia.
- O senhor está se sobrecarregando demais, observou a Imperatriz com desprazer.
A reprovação espantou o Príncipe Kung. Até então, a Imperatriz Mãe sempre o tratara com gentileza, aprovava com presteza tudo quanto êle fazia. Era verdade que, com o seu zelo de servir ao Trono, fora assumindo gradativamente maiores responsabilidades. Era mulher, apesar de tudo, e o Príncipe não cria que mulher alguma podia dirigir os negócios do Estado e conduzir uma guerra feroz como a que estava sendo travada, a qual de fato sacudia as próprias bases da nação. Os rebeldes haviam-se espalhado ainda mais sobre as províncias do sul, destruindo cidades e povoados, incendiando aldeias e colheitas, e o povo debandava em completa confusão. Milhões tinham sido mortos e, a despeito de estarem lutando há anos, os soldados imperiais não conseguiam sufocar a rebelião, que, agora, irrompia por toda parte, como um incêndio na floresta. Êle soubera que o pequeno exército de voluntários de Shangai, que era dirigido por um homem branco chamado Ward, seria fortalecido e melhorado por um novo líder, um certo Gordon, inglês, pois Ward morrera em combate. Até aí estava tudo claro, mas acontecia que um outro branco, um americano chamado Bourgevine, invejoso de Gordon, desejava assumir a liderança e contava com o apoio dos demais americanos. Dizia-se, porém, que esse Bourgevine era um aventureiro e um velhaco, ao passo que Gordon era homem bom e soldado experimentado. Mas, se Gordon lograsse derrotar os rebeldes, não diriam os ingleses que a vitória era deles e, por conseguinte, mereciam ser recompensados? Não era uma simples questão de guerra. Preocupado, o Príncipe Kung mandara chamar os dois generais
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imperiais - Tseng Kuo-fan e Li Hung-chang - e somente depois que eles chegaram refletira que o que fizera talvez não agradasse à altiva Imperatriz Mãe. Tampouco queria reconhecer que estava enciumado porque soubera que a Imperatriz Mãe ouvia, acima da de todos, a opinião de Jung Lu. Ouvira esse boato, mas não se atrevera a interrogar o Eunuco-Chefe, pois todos sabiam que An Teh-hai era aliado da Imperatriz Mãe e tudo quanto ela fizesse estava certo aos olhos dele.
- Majestade, disse tentando mostrar-se humilde, peço-vos perdão se exorbitei e minha desculpa é que tudo quanto fiz foi por vossa causa.
Ela não gostou dessa altiva justificação:
- Não o desculpo, tornou em sua bela e fria voz. - Pouco importa, por conseguinte, que o senhor se desculpe a si mesmo.
O Príncipe sentiu-se confuso e, enfrentando orgulho com orgulho, levantou-se e fêz a sua reverência.
- Majestade, retiro-me de vossa presença. Perdoai-me o ter vindo sem ser chamado.
Afastou-se, com a nobre cabeça erguida, e ela o observou pensativamente. Deixava-o ir, pois sempre poderia chamá-lo. Entrementes verificaria pessoalmente quais eram as notícias do sul e se prepararia, com conhecimento próprio, a aceitar ou recusar o seu conselho. Enquanto não soubesse tudo não poderia julgar. Mandou o seu eunuco chamar o Eunuco-Chefe, que chegou minutos depois, os olhos ainda sonolentos, pois estava dormindo. Ajoelhou-se e pousou a cabeça nas mãos, para ocultar seus bocejos.
- Convoque os generais Tseng e Li ao Salão de Audiência, amanhã. Informe ao Príncipe Kung e ao Grande Conselheiro Jung Lu que necessitarei da presença de ambos. Convide a Imperatriz Viúva do Palácio Oriental para que venha uma hora antes que de costume. Temos assuntos graves a tratar.
Voltou-se para Li Lien-ying:
- Diga ao Grande Conselheiro que não irei hoje ao campo dos arqueiros e que êle cuide para que o cavalo negro que meu filho monta não coma cereais, a fim de não se tornar indócil.
- Sim, Majestade, respondeu o eunuco, afastando-se para cumprir seu dever. Minutos depois estava de volta, enquanto ela ainda se achava sentada no trono, refletindo no que o Príncipe Kung lhe havia dito. Curvou-se numa reverência.
E agora? indagou ela. - Por que torna a perturbar-me?
Majestade, o jovem Imperador está chorando porque não o fostes ver sobre a sua nova sela. O Grande Conselheiro suplica-vos que o vejais.
Ela levantou-se imediatamente, pois não podia suportar a notícia de que o filho chorava. Seguida de suas damas, dirigiu-se ao campo dos arqueiros, onde o jovem Imperador se achava montado em
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seu cavalo. Jung Lu, ao seu lado, esperava junto de seu próprio cavalo árabe, cinza prateado, que um eunuco mantinha pelas rédeas. Quão majestoso e belo era o seu filho! A Imperatriz Mãe parou para contemplá-lo, antes que êle a visse. Estava montado na nova sela, de couro côr de areia, posta sobre uma manta de feltro negro bordado de várias cores. Suas pernas curtas, escarranchadas, mal conseguiam abarcar as largas costas do cavalo e apenas as pontas de suas botas de veludo tocavam os estribos de ouro. Puxara o manto escarlate para cima do cinto cravado de pedras preciosas e seus calções amarelos apareciam até a cintura. Tirara o chapéu imperial e seus cabelos, arrumados em duas tranças e amarrados com um cordel duro de seda vermelha, proeminavam da cabeça. Jung Lu, com a fisionomia risonha e afetiva erguida para o menino, ouvia-lhe a voz jovial. Súbito o pequeno Imperador viu sua mãe.
- Minha mãe! exclamou êle. - Veja a sela que Jung Lu me deu! Ela teve, pois, de aproximar-se, examinar a sela, inspecionar as suas maravilhas, e então seu olhar encontrou-se com o de Jung Lu, com uma expressão de mútuo orgulho e alegria. Obedecendo a um súbito impulso, disse em voz baixa, enquanto o menino brandia o seu chicote:
- Sabe que os dois generais chegaram do sul?
- Soube, tornou êle.
- Dispõem-se a permitir que os mercadores de Shangai formem um forte exército, sob a direção de um novo líder estrangeiro. É prudente?
- A primeira tarefa, redargüiu êle, é pôr fim à rebelião. Assim como está, temos duas guerras ao mesmo tempo. Uma com os rebeldes e outra com os brancos. Ficaremos de tal maneira esmagados entre os dois que não poderemos sobreviver. Devemos primeiro derrotar os rebeldes, usando quaisquer meios ao nosso alcance, e depois nos esforçaremos por expulsar os brancos.
Ela, cabeceando e sorrindo todo esse tempo como se estivesse pensando apenas no menino, observava-o galopar através do campo. Jung Lu montou no seu cavalo, para acompanhá-lo, e ela permaneceu no mesmo lugar, as damas a certa distância, seu comprido manto de cetim azul flutuando ao vento, pois ainda estava de luto pelo falecido Imperador. Contemplava os dois homens que amava, o menino tão pequeno e galante, o outro tão esbelto e alto, eretos sobre os cavalos galopantes. O homem estava atento ao menino, pronto a aconselhá-lo, pronto a socorrê-lo se caísse. Mas o menino olhava para a frente, cabeça erguida, mãos firmes segurando as rédeas com uma destreza digna de se ver.
"Um imperador nato", pensou ela, "e é meu filho!" Quando detiveram os cavalos no extremo oposto do campo, ela acenou-lhes com o lenço e, seguida de suas damas, voltou ao palácio.
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Na cinzenta madrugada do dia seguinte, as duas Imperatrizes Viúvas sentaram-se em seus tronos erguidos sobre um estrado. Era a hora da Audiência do Grande Conselho e diante das duas Imperatrizes pendia a fina cortina de seda amarela através da qual podiam ver difusamente, sem serem vistas, as figuras dos Conselheiros à medida que entravam, um a um, pela ordem de suas posições. O Príncipe Kung entrou em primeiro lugar, de acordo com a sua condição. Competia ao Eunuco-Chefe anunciar cada Conselheiro e até mesmo o Príncipe Kung tinha de esperar o chamado, mas nesse dia êle não o fêz. Li Lien-ying curvou-se para sussurrar à Imperatriz Mãe:
- Majestade, não é da minha conta, mas, cioso da vossa dignidade, verifico que o Príncipe Kung entrou sem esperar que seu nome fosse chamado.
Esse eunuco estava de tal maneira sintonizado com o temperamento e o pensamento de sua soberana que de algum modo captara o odor de seu desagrado pelo Príncipe Kung.
A Imperatriz Mãe pareceu não ouvir, mas êle sabia que fora ouvido e que ela gravara no inexorável arquivo de sua memória aquela segunda descortesia do Príncipe. Era demasiado prudente para agir com precipitação, antes de saber de tudo. Êle decerto não podia ser seu inimigo. No entanto não podia confiar em ninguém a não ser em Jung Lu e até mesmo êle, agora, estava casado com outra mulher.
Afastou esses pensamentos. Devia estar sempre atenta às intrigas, para sua própria segurança, mas não naquele momento. O Príncipe Kung, não obstante, vivendo fora da Cidade Proibida, podia ir e vir como lhe aprouvesse, ao passo que ela tinha de permanecer sempre trancada entre aquelas paredes e por que não tramaria êle como quisesse, sem o seu conhecimento? Que garantia tinha de sua honra, exceto a sua palavra? Suspirou, sabendo-se para sempre só. Tinha também de aceitar aquilo - era o seu destino.
Ao seu lado Sakota estava absorta, sem nada ver nem ouvir. Odiava aquelas audiências da madrugada, pois era das que só acordam depois do meio-dia e agora, semi-adormecida, esperava o momento de voltar para a cama. Entrementes reunira-se o Grande Conselho. Todos se ajoelharam perante o Trono do Dragão, faces postas no chão, e o Príncipe Kung iniciou a leitura do memorial que segurava com ambas as mãos. Lia bem, em voz profunda e sonora, pronunciando cada palavra como se fossem gemas separadas umas das outras e presas numa corrente de ouro.
No quarto mês deste ano lunar, leu êle, e quinto mês deste ano solar, os rebeldes chineses, denominados T'ai P'ing, tornaramse extremamente incômodos na região que circunda a cidade de Shangai. Não contentes em estabelecer seu próprio reino na capital sulista de Nanking, aproximaram-se de Shangai e, através de surtidas,
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aventuraram-se até o seu interior e incendiaram diversas casas. O exército local de Shangai, chamado Sempre-Vitorioso, perseguiu-os porém não matou muitos, pois os rebeldes, conhecedores de todos os acidentes do terreno, conseguiram fugir com facilidade. Os camponeses se acham aterrorizados e mais de quinze mil deles se refugiaram na cidade, gerando a desordem. Os mercadores estrangeiros estão irritados, pois viram que, entre esses camponeses, há muitos homens jovens e fortes que deviam estar lutando contra os rebeldes, ao invés de se refugiarem com as mulheres, velhos e crianças. A fim de persuadir os jovens a resistir, propõem-se agora a chamar o inglês Gordon, conhecido pela sua coragem e grande correção, para dirigir o Sempre-Vitorioso. Este o memorial que os dois generais Tseng e Li apresentaram ao Trono.
Atrás da cortina de seda a Imperatriz Mãe mordeu os lábios. Não gostara que o Príncipe Kung houvesse apresentado o memorial. Disse, em voz clara e firme:
- Ouçamos o que os dois generais desejam, por si mesmos, declarar ao Trono do Dragão.
O Príncipe Kung, assim censurado, pôde apenas chamar o primeiro, General Tseng, o mais velho, que, prostrando-se perante o Trono do Dragão, falou após as saudações:
- Suplico que meu camarada, General Li Hung-chang, fale por nós ambos, uma vez que é o governador em exercício da província de Kiangsu e seu quartel-general está instalado em Shangai. Embora conte apenas trinta e nove anos de idade, Li Hung-chang é o mais capaz dos meus generais mais jovens e apresento-o ao Trono do Dragão com as melhores recomendações.
O Príncipe Kung, novamente sem esperar as ordens da Imperatriz Mãe, disse:
- Que Li Hung-chang se aproxime.
Atrás do biombo, a Imperatriz Mãe nada disse, mas sua cólera aumentou. Controlou-a, porém, até que os negócios do Estado fossem resolvidos. Li Hung-chang, avançando, prosternou-se diante do Trono do Dragão vazio e disse, após saudar:
- No terceiro mês deste ano lunar, ou, como dizem os estrangeiros, no quarto mês do ano solar, conduzi meu exército à cidade de Shangai, por ordem de meu superior, o General Tseng Kuo-fan. Encontrei a cidade, não protegida pelos Exércitos Imperiais, que na verdade se encontravam empenhados noutras frentes, pois quase toda a província se acha nas mãos dos rebeldes, mas pelo SempreVitorioso, composto de mercenários pagos pelos comerciantes da cidade e chefiado por um mercenário americano chamado Ward. Esse Ward era um bom soldado, mas infelizmente morreu num ataque dos rebeldes, no nono mês deste ano solar, que é o oitavo mês do ano lunar. Um outro americano, de nome Bourgevine, tomou o seu lugar, mas trata-se de um aventureiro. Embora os mercenários o
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apreciem, pois divide com eles todas as presas de guerra, não se submete ao nosso comando. Considera-se um rei e considera os mercenários do Sempre-Vitorioso como seu exército particular; contando com a sua lealdade, combate apenas onde e quando lhe apraz. Assim, quando lhe ordenei que avançasse para Nanking, pois meu oficial superior notificara-me que lá a situação estava crítica, pedindo-me que mandasse reforços imediatamente, Bourgevine recusou-se a obedecer. Por esse motivo, demiti-o de seu posto e censurei-o. Em resposta, Bourgevine atacou as casas do tesouro da Corporação de Mercadores, a qual recolhe dinheiro para o Exército Sempre-Vitorioso. Esbofeteou os guardas com a mão direita e ordenou aos soldados que tirassem quarenta mil taels de prata dos cofres - importância esta que de fato lhe era devida - e distribuiu-os entre os mercenários, conquistando lhes assim uma lealdade ainda mais sólida. Exonerei-o, por conseguinte, e ameacei dissolver o Exército Sempre-Vitorioso, sabendo que, a menos que o líder estivesse sob as minhas ordens, como estou sob as ordens de meu oficial superior, os soldados se tornariam núcleo de uma nova rebelião.
- Isto deixa o Exército Sempre-Vitorioso sem chefe, observou o Príncipe Kung.
- De fato, Alteza, redargüiu Li Hung-chang.
A Imperatriz Mãe ouvira o memorial com a maior atenção e embora não pudesse ver com clareza Li Hung-chang, discernira através da cortina de seda um homem alto e lhe ouvira a voz, decisiva e profunda e tudo quanto êle dissera fora simples e bem dito. Ali estava um homem que lhe poderia ser útil - registrou-o em seu cérebro. Mas nada falou, pois desgostara-a de novo que o Príncipe Kung se houvesse pronunciado sem esperar primeiro a sua resposta. Não podia censurar Li Hung-chang por haver respondido ao Príncipe Kung, que era seu superior hierárquico, mas podia censurar o Príncipe. Foi o que fèz:
- Ainda deseja dissolver os mercenários? inquiriu após um silêncio. Sua voz, argentinamente clara, emergindo assim por trás da cortina de seda, sobressaltou os dois homens. Ambos olharam na direção dela, sem poder vê-la.
- Majestade, replicou Li, esses soldados estão bem treinados e embora sejam arrogantes até certo ponto, não podemos desprezar as suas qualidades na luta contra os rebeldes. Proponho que se convide o inglês chamado Gordon para assumir a chefia do Exército Sempre-Vitorioso e prosseguir na guerra.
- Algum dos senhores conhece esse Gordon? indagou a Imperatriz Mãe.
O Príncipe Kung, curvando-se, disse:
Majestade, por acaso, conheço-o um pouco.
- Que acaso? inquiriu ela.
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Todos perceberam o desagrado em sua voz fria, mas o Príncipe Kung, irrefletidamente, respondeu sem demora:
- Majestade, quando os invasores destruíram os palácios de Yuan Ming Yuan, não pude conter-me e corri até lá a ver se conseguia, de algum modo, salvar o nosso tesouro nacional. Ah, as labaredas já subiam para o Céu e nada mais era possível fazer. Enquanto eu contemplava, impotente, a medonha destruição, com o coração partido, percebi junto de mim um homem alto e pálido. Trajava uniforme de oficial inglês e, quando lhe examinei a fisionomia, vi, para espanto meu, que também estava triste. Quando êle por sua vez me viu, aproximou-se ainda mais e falando num chinês sofrível, disse-me que estava envergonhado ao contemplar seus compatriotas e os outros europeus tão cobiçosos e destruindo o que não podiam carregar. Os espelhos, os relógios, os biombos esculpidos, os biombos de marfim esculpido, os biombos de coral, os montes de seda, os tesouros...
- Silêncio! a voz da Imperatriz Mãe ressoou estranha e estrangulada por trás da cortina.
- Majestade, insistiu o Príncipe Kung, vi um soldado francês pagar a um saqueador um punhado de pequenas moedas por um colar de pérolas imperiais que no dia seguinte vendeu por milhares de dólares de prata. Ornamentos de ouro foram queimados como se fossem de latão e o ébano que guarnecia o Salão do Trono...
- Silêncio! tornou a ordenar a voz da Imperatriz Mãe.
O Príncipe Kung, demasiado altivo ainda para ceder, retrucou em voz severa:
- Majestade, reclamo o direito de falar. Perguntei então a Gordon: "Não pode deter os seus soldados?" Respondeu-me: "Por que motivo o seu Imperador permitiu que fossem torturados os homens e oficiais que, de boa fé, sob bandeira branca, mandamos para elaborar o armistício? Quatorze deles morreram!" Majestade, que poderia eu dizer-lhe?
- Cale-se! insistiu a voz da Imperatriz Mãe atrás da cortina. Estava cega de fúria, pois sabia que o Príncipe Kung a estava reprovando publicamente por haver persuadido o Imperador, ora morto, a mandar o Príncipe Seng, o general mongol, aprisionar a comissão estrangeira do armistício. Mordeu os lábios e permaneceu em silêncio durante um longo minuto. Entrementes o Príncipe Kung, curvando-se diante do Trono do Dragão, recuou para o seu lugar. Todos aguardavam que a voz atrás da cortina amarela desse as suas ordens.
- Damos a nossa permissão para que esse inglês nos sirva, disse afinal a Imperatriz Mãe em voz calma e resoluta. Fêz nova pausa e todos esperaram de novo, até que ela tornou a falar: - Parece que devemos aceitar até mesmo os serviços do inimigo.
E assim dizendo, deu por terminada a audiência.
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Mas ao voltar, naquela noite, para o seu palácio, ficou longas horas meditando e ninguém se atreveu a perguntar quais eram os seus pensamentos. Estava alarmada com o fato de que o Príncipe Kung, em quem confiava, pudesse colocar-se acima dela. Seria um sinal de que o seu poder estava decaindo? Seu espírito pôs-se a examinar os fatos do último ano, à procura de presságios bons ou maus. Lembrou-se então de que no vigésimo sexto dia do quarto mês do ano solar, uma estranha tempestade de areia caíra, fora de época, sobre a região campestre, tão pesada que escurecera a luz do sol. O céu ficara negro e enormes colunas de poeira surgiram carregadas por um vento de furacão. O canal entre Pequim e Tientsin, de oitenta quilômetros de comprimento, cinco metros e meio de largura e dois de profundidade, enchera-se de pó, os barcos encalharam em montes de areia e as águas foram absorvidas pela terra. A tempestade durou dezesseis horas e muitos viajantes se perderam. Alguns foram arrastados para dentro de valas, pela força do vento, e ali jazendo foram sufocados pelo pó. Dos que lutavam através das trevas, em busca de algum abrigo, muitos ficaram para sempre cegos e outros enlouqueceram. Nos palácios acenderam-se as lanternas às três horas da tarde. Estranho detalhe da tempestade: depois que passava uma coluna de pó, o céu azul aparecia claro e límpido por um momento até que surgia a nuvem seguinte de poeira.
Terminada a tempestade e retirados os bancos de areia, - tarefa que demorou muitos dias - o Corpo de Astrólogos informara ao Trono que o cataclismo fora um grande presságio e, em conjunção com as estrelas, significava que estava prestes a ocorrer uma vasta luta no país; embora muitos morressem, um estrangeiro do Ocidente surgiria como o poderoso vento e daria a vitória aos Exércitos Imperiais.
Desses fatos lembrava-se ela e seu espírito tranqüilizou-se e seu ânimo ressurgiu. Não, ela não fracassaria. A vitória estava prevista e que vitória seria essa senão sobre os rebeldes do sul? E não era Gordon o estrangeiro do Ocidente? De quem precisaria ter medo? Agiria imediatamente, para provar ao Príncipe Kung que ela - e não êle - era a Regente, até que seu filho se sentasse no Trono. Milhares de anos antes, o Visconde Kê aconselhara o Imperador Wu, então reinante, da seguinte maneira:
"Em épocas de desordem, o governo deve ser forte. Em épocas de boa ordem, deve ser suave. Mas, seja em que época fôr, não permitais que um príncipe ou ministro usurpe as prerrogativas reais".
E enquanto sua vontade operava de novo como um tônico em suas veias, ocorreu-lhe uma idéia, como se as nuvens se houvessem separado diante dela e o olho do Céu brilhasse num raio de sol. Faria mais do que rebaixar um príncipe orgulhoso. Poria seu filho,
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imediatamente, naquele mesmo dia, sobre o Trono do Dragão. Êle se sentaria ali, como Imperador, e ela, atrás do Trono, lhe sussurraria as ordens para que o menino as proferisse em voz alta, como suas.
Dispôs-se a agir de maneira rápida para executar o seu plano, porque dias depois o Eunuco-Chefe procurou-a em segredo para informar-lhe que o Príncipe Kung apresentara-se por duas vezes a Sakota, sua co-Regente, e os outros eunucos disseram-lhe que êle reprovara a Imperatriz Viúva pela sua fraqueza, acrescentando que ela não deveria permitir que a Imperatriz Mãe fizesse sempre o que lhe desse na cabeça.
O Eunuco-Chefe, amante da intriga, simulava estar muito ofendido com o que era obrigado a contar.
- E então, Majestade, o Príncipe Kung disse que, desde que vós passastes a dar ouvidos diariamente a Jung Lu, a quem, Majestade, disse êle, permitis que proceda quase como pai do jovem Imperador, êle, muito lamentavelmente, começou a dar algum crédito à história na qual antes se recusara a crer...
- Basta! exclamou a Imperatriz Mãe.
Ergueu-se, vestes esvoaçantes, e expulsou de sua presença o Eunuco-Chefe, com a fúria de seus olhos negros. Êle se retirou, contente, apesar de tudo, com a semente que lançara, pois conhecia a imaginação viva da soberana, capaz de reconstituir toda uma história através de um punhado de palavras.
A Imperatriz Mãe procurou naquela mesma tarde sua prima Sakota, Imperatriz Viúva, e, falando-lhe docemente, sem demonstrar o que sabia, entreteve-a com uma conversação graciosa e lisonjeadora. Depois, mudando de voz e maneiras, disse:
- Irmã, meu verdadeiro propósito, ao vir vê-la hoje, foi pedirlhe que me ajude a abater o orgulho do Príncipe Kung, que se tem excedido. Está ultrapassando suas atribuições, está usurpando o seu poder, prima. Não falo apenas por mim.
Percebeu imediatamente que a Imperatriz Viúva compreendera sua intenção. Ainda havia algo da Sakota infantil no invólucro gasto. Um rubor doentio manchou-lhe a face magra.
- Vejo que sente o mesmo que eu, tornou a Imperatriz Mãe. - Deve ter observado como o Príncipe falou antes de mim, em nossa última audiência. E agora que penso no assunto, lembro-me de muitas outras coisas. Chegou a entrar no Salão do Trono sem esperar que o Eunuco-Chefe o anunciasse.
A Imperatriz Viúva tentou uma débil defesa:
- Êle decerto tem provado sua fidelidade.
- Não lhe perdôo o fato de ousar ser arrogante por achar que me salvou a vida, redargüiu a Imperatriz Mãe.
A Imperatriz Viúva fêz uma fraca exibição de coragem:
- E não lhe salvou a vida?
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Não deveria lembrar-se se de fato a salvou, tornou a Imperatriz Mãe e seus lábios rubros torceram-se num esgar de desprezo.
- Um homem de espírito largo jacta-se quando cumpre seu dever?
Penso que não. E como, pergunto-lhe, salvou êle minha vida? Indo a Jehol quando assim lhe ordenei? Penso que não.
Fêz uma pausa e acrescentou com atrevimento:
Foi o nosso parente, Jung Lu, quem afastou a adaga assasssina.
A Imperatriz Viúva nada disse e a Imperatriz Mãe, não parecendo notar seu silêncio, prosseguiu, o olhar chamejante de luminoso triunfo, as adoráveis mãos em gestos eloqüentes:
E você ouviu como o Príncipe Kung ergue a voz quando nos fala? Como se fôssemos mulheres estúpidas!
A Imperatriz Viúva sorriu debilmente.
Eu sei que sou estúpida.
Eu não sou, contrapôs a Imperatriz Mãe. - Nem você é...
não quero que seja. E mesmo que fôssemos estúpidas, pois os homens consideram todas as mulheres estúpidas, embora sejam tolos os que assim pensam, o Príncipe Kung deveria tratar-nos com humilde cortesia, pois somos as Regentes, Imperatrizes de fato e de direito, muito mais do que mulheres, por conseguinte. Digo-lhe, Irmã Mais Velha, que, se não controlarmos esse Príncipe, êle algum dia usurpará a Regência e nós seremos aprisionadas em aposentos secretos, entre estas paredes. E então quem nos socorrerá? Os homens aderirão a um homem e nosso fim será uma incógnita. Não, deve agir comigo, Sakota.
Proferiu o nome da infância e franziu o cenho para a prima. Sakota encolheu-se, como sempre fazia, apressando-se em concordar.
- Faça como achar melhor, Irmã, disse ela.
Obtida essa tímida permissão, a Imperatriz Mãe levantou-se, fêz uma reverência e despediu-se, enquanto todas as damas observavam de longe, mas sem poder ouvir.
Mas aquela ousada e bela mulher sabia esperar até que seu plano estivesse perfeito. Esperava, amadurecendo o plano no espírito. Esperou que os rebeldes fossem repelidos no sul, enquanto o ano passava. Pois o inglês Gordon não atirou seus soldados à batalha. Não, êle não correria o risco de sofrer a menor derrota. Com orgulhosa modéstia pediu que lhe fosse permitido fazer uma inspeção militar da região circunvizinha de Shangai, antes de assumir a chefia do Sempre-Vitorioso, a fim de que pudesse conhecer as condições que teria de enfrentar. Apesar de impaciente, a Imperatriz Mãe concedeu-lhe a permissão solicitada. Enquanto Gordon se preparava lentamente, um branco de qualidades inferiores foi posto em seu lugar, um pomposo homenzmho que buscava a glória para si. Com aquele misturado exército de mercenários, homens de todas
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as nações, o Sempre-Vitorioso, dois mil e quinhentos ao todo, e uma brigada imperial composta do dobro de soldados, sitiou a cidade murada de Taitan, próxima de Shangai, com a esperança de que, conquistando essa cidade, pudesse atacar a própria Nanking. Mas, tamanha era a sua estupidez, que não foi verificar as condições de Taitan, limitando-se a crer no que os mandarins chineses lhe haviam dito, isto é, que o fosso que circundava os muros da cidade não passava de uma vala seca. Mas na manhã em que levou os seus homens para atravessá-lo, estes encontraram um fosso de dez metros de largura, transbordando água, e sem qualquer bote à vista. Ordenou, porém, que os soldados o atravessassem sobre as escadas de bambu que tinham trazido para galgar os muros, mas as escadas se quebraram, muitos caíram na água e se afogaram, ao passo que os rebeldes, colocados sobre os muros, disparavam as suas armas, causando grande morticínio.
- Óh, como nos rimos! jactaram-se os rebeldes após a vitória. - Observamos o Exército Sempre-Vitorioso aproximar-se do fosso, sem pontes para atravessá-lo. Como nos rimos ao ver as escadas se partirem sob o peso dos soldados! Nosso Rei Celestial ria mais alto que todos! "Que general é esse", exclamava êle, "que manda seus homens tomar uma cidade sem verificar primeiro se há água no fosso?" Zangou-se depois ao ver o pequeno número de soldados inimigos que tinham vindo conquistar-nos. "Pensam que somos covardes?" perguntou. "Vamos", gritou-nos, "expulsem esses demônios daqui!" Levantamo-nos e começamos a gritar a uma só voz: "Sangue... Sangue... Sangue!" E avançamos sobre os idiotas do Sempre-Vitorioso e os perseguimos até matá-los ou fazê-los fugir, inclusive os oficiais ingleses. Esses ingleses fizeram mal em atravessar a fronteira que eles próprios haviam traçado entre nós, e deixamolos sofrer as conseqüências. Na verdade agradecemos ao capitão inglês as armas que deixou para nós e os canhões de balas de trinta e duas libras que colocamos em nossos muros como prova da vitória. A tolice dele é incrível, pois levou as armas pequenas antes de remover as grandes e assim não dispunha de meios para cobrir sua fuga. Os Exércitos Imperiais, entretanto, não devem pensar que somente eles contam com a ajuda dos estrangeiros. Em nossos exércitos também há muitos brancos e foi um francês quem dirigiu nossa artilharia em Taitan. Quanto a nós, não queremos invadir a linha fronteiriça, mas estamos dispostos a conservar a região que possuímos e destruiremos por completo os demônios que se levantarem contra nós.
Quando essa monstruosa fanfarronice chegou ao conhecimento do Trono do Dragão, a Imperatriz Mãe levantou-se cheia de cólera e mandou emissários a Gordon ordenando-lhe que assumisse imediatamente o comando do Sempre-Vitorioso e dos Exércitos Imperiais, para vingar o Trono da derrota sofrida em T'aitan. Gordon obedeCeu
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mas não queria vingar apenas a cidade. Na verdade não obedeceu a ninguém, mas, ainda protelando o tempo que julgava necessário, travou pequenas batalhas a fim de sondar o próprio cerne da rebelião. Treinando assim os seus homens em rápidas escaramuças, onde não eram esperadas, mudando de terreno com vigor e rapidez, vencendo sempre, até que forçou os rebeldes a se colocarem na defensiva. Agia em íntima união com Li Hung-chang, fazendo convergir todas as forças sobre as cidades-chave de Chanzu e Quinzan, perto de Shangai, e daí começou a avançar firmemente para a vitória.
Nesse meio tempo, embalado pela cordura da Imperatriz Mãe durante essa crise, o Príncipe Kung esquecera-se das censuras anteriores e, fatigado pelas preocupações, familiarizado com as maneiras da soberana, passou a omitir mais freqüentemente do que nunca pequenas cortesias na presença dela. A Imperatriz observava e nada dizia, até que um dia, quando êle estava absorto com os negócios de Estado, levantou-se, sem ter recebido ordem, da posição ajoelhada em que se encontrava, durante uma audiência com ela. Ligeira como um tigre fêmea, ela atirou-se sobre êle. O cenho franzido, a voz majestosa, disse:
- Esqueceu-se, Príncipe! Não é lei e costume, declarados por nossos ancestrais, que todos devem ajoelhar-se perante o Trono do Dragão? O propósito dessa lei é proteger o Trono contra um ataque súbito. Atreve-se a levantar-se quando todos devem estar ajoelhados? Trama alguma traição contra as Regentes!
Voltou-se para os eunucos:
- Chame os guardas e ordene-lhes que prendam o Príncipe Kung!
O Príncipe Kung ficou tão confuso que se limitou a sorrir, pensando que a Imperatriz Mãe estivesse pilheriando. Mas os eunucos ouviram a ordem e apressaram-se a chamar os Guardas Imperiais que imediatamente seguraram o Príncipe, forçando-o a afastar-se.
Êle protestou:
- Como... depois de todos esses anos? Ela proibiu-lhe qualquer queixa.
- Ninguém, sejam quantos forem os anos, nem mesmo um parente, ninguém, absolutamente ninguém, pode violar a segurança do Trono do Dragão.
O Príncipe lançou-lhe um longo olhar e depois deixou que o conduzissem para fora. E ela, naquele mesmo dia, expediu um edito selado com o selo imperial, assinado com o seu nome e o da Imperatriz Viúva, como Regentes, nos seguintes termos: "Tendo o Príncipe Kung se revelado indigno da Nossa confiança e demonstrado favoritismo indevido para com seus próprios sobrinhos, nomeando-os para altos postos, foi dispensado de seus deveres de grande Conselheiro e de todos os outros altos cargos com que tem
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sido recompensado. Por esse Ato, Nós, neutralizamos severamente seu espírito rebelde e sua usurpadora ambição".
Ninguém se atreveu a defender a causa do Príncipe, embora muitos procurassem secretamente Jung Lu para pedir-lhe que intercedesse em favor do nobre dignitário em cuja deslealdade ninguém podia crer. Mas Jung Lu não intercederia... ainda não.
- Deixemos que o povo diga o que pensa, respondeu-lhes. Quando ela verificar que o povo não aprovou seu ato, reconsiderá-lo-á. Ela é demasiado prudente para opor a sua vontade à da nação.
Durante um mês todos esperaram e por toda parte o povo se queixava, de maneira unânime, que a Imperatriz Mãe, como Regente, fora injusta com o irmão do falecido Imperador e seu leal súdito. Lembravam-se todos de como o Príncipe Kung arriscara a vida, permanecendo na Capital, enquanto o falecido Imperador fugia, e como êle, com Kwei Liang, assinara o tratado do qual resultará a paz, e de como por diversas vezes negociara com os estrangeiros a fim de evitar que reiniciassem a guerra.
A Imperatriz Mãe ouvia essas queixas aparentemente sem preocupar-se. Ouvia, o belo rosto calmo como uma flor de lótus. No entanto, intimamente, media o exato alcance de seu poder e quando verificou que o Príncipe Kung se havia submetido à sua sentença e nenhum esforço fizera para opor-se a ela, significando assim que aceitava a reprovação; quando soube que o povo murmurava contra ela, expediu mais dois editos, ambos assinados pelas Imperatrizes Regentes. O primeiro edito explicava ao povo que tinha o dever de punir com igual severidade todos quantos não demonstrassem humildade perante o Trono. No segundo edito, dizia:
"O Príncipe Kung arrependeu-se do mal que fêz e reconheceu suas faltas. Nenhuma prevenção temos contra êle; fomos compelidas a agir apenas por mero sentimento de justiça. Não é Nosso desejo tratar com dureza um Conselheiro tão capaz nem negar a Nós mesmas a ajuda de um tal Príncipe. Reconduzimo-lo agora ao Grande Conselho, porém não no seu cargo de conselheiro do Trono. Recomendamos-lhe que desta data em diante retribua Nossa clemência com uma maior fidelidade aos seus deveres e aconselhamo-lo a purificar-se de maus pensamentos e invejas."
Dessa forma o Príncipe Kung voltou, passando a executar suas funções com altiva dignidade e correta humildade.
A Imperatriz Mãe não mais permitiu que o Trono do Dragão permanecesse vazio diante da cortina amarela, no Salão de Audiência. Instalou nele o seu filho e ensinou-o a manter a cabeça erguida e as mãos sobre os joelhos, ouvindo os ministros quando liam seus memoriais perante o Trono. Ali sentava-se o menino, vestido da cabeça aos pés em trajes de cerimônia de cetim amarelo, bordados com dragões de cinco garras, um botão de rubi no ombro e na cabeça
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o chapéu imperial. Bem cedo nas manhãs de inverno e antes do amanhecer no verão, ela mandava acordar o menino Imperador. Quando fazia bom tempo os dois iam juntos a pé, pois ela gostava de caminhar, ou nos seus palanquins quando o tempo não era bom. No Salão de Audiência tomavam seus assentos - êle, no trono; ela atrás da cortina amarela, porém tão perto um do outro que os lábios da mãe podiam tocar a orelha do filho.
Depois que um príncipe pomposo apresentava a sua argumentação, ou um velho ministro terminava a leitura de um longo memorial, o pequeno Imperador virava a cabeça para murmurar:
- Que digo agora, Mãe?
Ela instruía-o do que devia dizer e êle repetia tudo, palavra por palavra.
Assim passavam-se as horas e o menino, muitas vezes cansado, sempre disposto a torcer o seu botão ou a retraçar com o dedo os contornos dos dragões bordados, esquecia-se às vezes de onde se encontrava. Nesses momentos a voz da mãe ressoava-lhe áspera aos ouvidos.
- Fique sentado ereto! Esquece-se de que é o Imperador? Não se comporte como se fosse uma criança comum!
Ela era sempre tão terna que êle se assustava e se endireitava, atemorizado por aquele poder que desconhecia.
- Que digo agora, Mãe?
Era a sua pergunta constante, e quantas vezes a fizesse, tantas ela respondia.
Sôfregamente, como se fossem cartas de amor, a Imperatriz Mãe lia os memoriais que seu poderoso general Tseng Kuo-fan lhe mandava do sul. Encarnação da grandeza ela mesma, como a pedra-ímã procurava a grandeza nos outros e avaliava melhor agora esse general. Êle não era apenas uma massa de fanfarronice e espalhafato, como são em geral os soldados, mas um erudito, como seu avô e seu pai haviam sido, e assim ao seu engenho somava a sabedoria. Mas ela não sentia nenhuma cordialidade para com o general. Interessava-se apenas pelo que êle fazia - a excitação das batalhas, o perigo da derrota, o orgulho da vitória.
Ao se aproximarem do fim os anos de luto pelo Imperador morto, para que a paz fosse assegurada antes do grande dia de seu funeral, a Imperatriz Mãe devotava-se inteiramente à tarefa de esmagar os rebeldes do sul. Seus mensageiros corriam diariamente entre a cidade imperial e Nanking, em mudas tão rápidas que num único dia eram cobertas a pé quatrocentas milhas. Todos os dias, à meia-noite, o Eunuco-Chefe An Teh-hai entregava-lhe um pacote contendo notícias de Tseng Kuo-fan e ela, sozinha em seu quarto, lia as páginas, à luz de grandes candelabros gêmeos junto do travesseiro. Dessa forma, durante os frios meses de inverno, tomou conhecimento
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da magistral estratégia do militar e da maneira por que, com a ajuda de dois outros generais sob o seu alto comando - P'eng Yu-lin e seu irmão mais moço Tseng Kuo-ch'uan - atacara os rebeldes por terra e pela água, recuperando, num só inverno, mais de cem cidades nas quatro províncias de Kiangsu, Kiangsi, Anhui e Chekiang. Mais de cem mil rebeldes haviam sido mortos e lentamente todos eles recuavam para a sua fortaleza de Nanking.
Todos os dias, antes do amanhecer, à hora da audiência, a Imperatriz Mãe caminhava através dos corredores do palácio para o templo do Grande Buda Branco - o de mil cabeças e mãos - e perante essa imagem da Fonte Desconhecida se ajoelhava e agradecia, pedindo ajuda para Tseng Kuo-fan. Os sacerdotes prostravam-se enquanto ela orava e permaneciam imóveis enquanto ela queimava incenso na urna de ouro. Buda ouvia suas preces, pois no verão daquele mesmo ano, no sexto mês lunar e sétimo mês solar, no décimo sexto dia, Tseng Kuo-fan, tendo tomado os baluartes exteriores de Nanking, ordenou que fossem preparadas grandes bombas de pólvora, mandando-as colocar sob os muros da cidade, abrindo assim brechas através das quais seus homens, aos milhares, entraram na cidade. Seu objetivo último era o palácio do Rei Celestial, mas este achava-se cercado por desesperados defensores. Não obstante, foi atirada uma bomba de ferro cheia de pólvora no centro dos edifícios, para incendiá-los, e à uma hora da tarde desse dia as chamas irromperam violentamente. Os habitantes do palácio fugiram como ratos numa casa incendiada. Foram todos capturados e mortos, exceto o líder, um certo Li Wan-ts'ai, que foi conservado vivo. Esse homem, quando interrogado, confessou que o Rei Celestial se havia suicidado com veneno, cerca de trinta dias antes, e que sua morte fora conservada em segredo pelos seus adeptos, até que seu filho pudesse ser proclamado rei, em seu lugar. Esse filho também foi morto.
Ao receber de Tseng Kuo-fan a comunicação desses fatos, a Imperatriz Mãe mandou divulgá-los por todo o reino, a fim de que o povo soubesse que os rebeldes estavam liquidados, e proclamou um mês de festa. Ordenou em seguida que o corpo do Rei Celestial fosse desenterrado do seu túmulo, a cabeça cortada e exibida em todas as províncias, de maneira que todos os seus súditos a vissem e conhecessem o destino dos rebeldes. Os chefes rebeldes que haviam sobrevivido deviam ser trazidos à cidade imperial, interrogados e depois esquartejados. Quanto a ela, declarou que acompanharia o jovem Imperador a todos os altares imperiais e templos para dar graças aos deuses pela sua afortunada ajuda, bem como aos Imperiais Ancestrais pela sua sempiterna proteção.
Quando Tseng Kuo-fan chegou para informar pessoalmente ao Trono, narrou os estranhos e lamentáveis atos do Rei Celestial.
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que lhe haviam sido transmitidos pelos prisioneiros, antes de serem executados. Esse Rei Celestial, na verdade apenas um homem comum cujo espírito se havia desequilibrado, continuara a jactar-se mesmo depois de saber que a sua causa estava perdida. Sentara-se em seu trono e dissera aos seus já escassos adeptos: "O Altíssimo confiou-me uma sagrada missão. Deus, o Pai, e meu divino Irmão Mais Velho, Jesus Cristo, ordenaram-me que descesse a este mundo de carne e me tornasse o único Senhor verdadeiro de todas as nações e raças da terra. Que motivo tenho, portanto, para temer? Permaneçam comigo ou abandonem-me, como quiserem; este império será protegido por outros, se vocês não o protegerem, pois tenho um milhão de anjos ao meu lado - uma hoste celestial. Como poderiam apenas cem mil desses amaldiçoados soldados imperiais tomar a minha cidade?"
Apesar de tudo, em meados do quinto mês lunar, o Rei Celestial sabia que estava perdido e misturou um veneno mortal ao vinho e bebeu-o em três goles. Em seguida exclamou: "Não foi Deus, o Pai, quem me enganou, mas eu é que desobedeci a Deus, o Pai!" E assim morreu. Seu corpo foi envolvido numa colcha de cetim amarelo, bordado com dragões, e enterraram-no sem féretro, secretamente e à noite, a um canto do terreno de seu próprio palácio. Seus seguidores tramaram pôr no trono seu filho de dezesseis anos, porém os rebeldes souberam de sua morte também e, perdendo a esperança, entregaram a cidade.
Tseng Kuo-fan relatou todos esses fatos no Salão Imperial de Audiência, perante o Trono do Dragão, no qual estava agora sentado o jovem Imperador, e atrás da cortina de seda amarela a Imperatriz Mãe ouvia cada palavra, enquanto Sakota permanecia imóvel ao seu lado.
- O corpo desse rei rebelde já não estava deteriorado? inquiriu a Imperatriz Mãe.
- Estava estranhamente conservado, retrucou Tseng Kuo-fan. - A seda que envolvia o corpo inteiro, até mesmo os pés, era de fina e forte qualidade, de modo que protegeu a carne.
- Que espécie de aparência tinha esse rei rebelde? tornou a perguntar a Imperatriz Mãe.
- Era grande e alto, redargüiu Tseng Kuo-fan. - Tinha a cabeça redonda, a face maciça, e era calvo. Usava barba, já grisalha. Sua cabeça foi cortada, de acordo com a ordem imperial, a fim de ser levada de província a província. Quanto ao corpo, ordenei que o queimassem e eu próprio o vi reduzir-se a cinzas. Os dois irmãos mais velhos do Rei Celestial foram capturados vivos, mas tinham Perdido a razão, também, e só sabiam murmurar, incessantemente,
Deus o Pai... Deus o Pai"... De modo que ordenei que ambos fossem decapitados.
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Então a Imperatriz Mãe disse que desejava ver a cabeça do rebelde antes que começassem a exibi-la ao povo.
- Durante todos esses anos, declarou ela, combati contra o rei rebelde, mas agora estou vitoriosa. Quero pousar o olhar sobre o meu inimigo vencido.
A cabeça foi trazida por um cavalariço, num cesto que pendia da sela do cavalo. Li Lien-ying recebeu-a, envolta em cetim amarelo, manchado e sujo. Apresentou-a, com suas próprias mãos, no salão particular do trono da Imperatriz Mãe.
Sentada em seu trono, ordenou a Li Lien-ying que pusesse a cabeça no chão, diante dela, e a desembrulhasse. Foi o que o eunuco fêz, firmemente observado pela Imperatriz Mãe. O cetim abriu-se, deixando ver o fantasmagórico rosto. A Imperatriz Mãe enrijeceu-se, seus olhos imobilizados pelos olhos do morto, que ninguém se dera ao trabalho de cerrar. Os olhos mortos fitavam-na, negros e amargos na face sem sangue. A boca era pálida, mais pálida ainda em virtude da barba negra que a circundava, salpicada de fios brancos, e os lábios afastados punham à mostra os dentes fortes e alvos.
As damas que se achavam junto do trono ocultaram o rosto atrás de suas mangas, para fugir da terrível visão, e uma delas, sempre tímida, teve um acesso de vômito e gritou que iria desmaiar. Até mesmo Li Lien-ying não pôde conter um gemido.
- Vilão, murmurou êle, vilão até mesmo na morte. Mas a Imperatriz Mãe ergueu a mão, impondo silêncio.
- Estranha face selvagem, observou ela. - Face desesperada, triste de se ver. Mas não é uma face de vilão. Você não tem sentimentos, eunuco! Esta não é a face de um criminoso. É a face de um poeta, que enlouqueceu porque sua fé era vã. Ah, é a face de um homem que se sabia perdido desde o momento em que nasceu.
Suspirou, reclinou a cabeça no espaldar do trono e cobriu os olhos com a mão, por um momento. Então suas mãos caíram e ela ergueu a cabeça.
- Leve a cabeça do meu inimigo, ordenou a Li Lien-ying, para que seja mostrada por toda parte ao meu povo.
Li Lien-ying tornou a levar a cabeça, o cavalariço colocou-a no cesto e iniciou a longa viagem. Em todas as cidades de cada província a cabeça era posta no alto de um poste para que todos a vissem, até que, finalmente, a carne secou e desmanchou-se, ficando apenas a caveira. E onde quer que a cabeça era mostrada, a paz passava a reinar.
Assim terminou a rebelião T'ai P'ing, no ano solar de 1865. Durante quinze anos aquela cruel guerra havia assolado nove províncias do reino e vinte milhões de pessoas perderam a vida. Em parte alguma se fixara o Rei Celestial para construir o seu reino, mas ia a toda parte com seus adeptos, matando primeiro e depois
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saqueando, e entre esses adeptos havia muitos homens brancos sem raízes, degenerados que haviam renegado suas pátrias. Mas alguns poucos - acreditavam no Rei Celestial porque eram cristãos e
êle usava o nome de Cristo. Estes também foram mortos.
Terminada a grande rebelião, os Exércitos Imperiais, encorajados pelo que Gordon lhes havia ensinado sobre a arte militar, puseram fim a duas rebeliões menores, uma na província sulista de Yünnan, de onde vinha o mármore como tributo ao Trono do Dragão, e a outra a rebelião moslim, na província de Shensi. Eram revoltas pequenas, comparadas com a grande rebelião, e logo terminaram. A Imperatriz Mãe, passando em revista o reino, via agora apenas paz e prosperidade; o povo louvava-a porque fora ela quem conduzira, com seus conselhos, a derrota dos rebeldes. Seu poder erguia-se cada vez mais alto, ela o sabia, e agiu com rapidez para consolidá-lo no interior da Corte, assegurando assim o porvir da dinastia.
Não se esqueceu, no entanto, do inglês Gordon. Enquanto Tseng Kuo-fan conduzia o Exército Imperial contra Nanking, Gordon conduzia o Sempre-Vitorioso contra os mesmos rebeldes na região do baixo Yangtse, onde Li Hung-chang comandava os soldados imperiais. Se não fossem as vitórias de Gordon, Nanking talvez não houvesse caído tão facilmente, e Tseng Kuo-fan era suficientemente nobre para declará-lo perante o Trono.
A Imperatriz Mãe desejou ardentemente conhecer o inglês, mas não podia satisfazer esse desejo pessoal, pois nunca um estrangeiro fora recebido na Corte Imperial. Lia, porém, todos os seus relatórios e ouvia tudo quanto era dito a seu respeito, pelos que o conheciam.
"A força de Gordon", escrevia Li Hung-chang num memorial, "reside em sua retidão. Êle declara que considera seu dever derrotar os rebeldes em benefício do nosso povo. Na verdade nunca vi um homem como Gordon. Gasta seu próprio dinheiro para dar conforto aos seus homens e às pessoas que foram roubadas e feridas pelos rebeldes. Até mesmo os nossos inimigos chamam-no "grande alma" e afirmam que se sentem honrados por terem sido vencidos por semelhante homem".
Ao receber esse memorial, a Imperatriz Mãe ordenou que fosse concedida a Gordon a Ordem do Mérito do Primeiro Grau e que lhe dessem um presente de dez mil taels, como sua parte nas honras da vitória. Mas quando os carregadores dos tesouros imperiais foram à presença dele, levando o dinheiro em grandes vasos sobre a cabeça, Gordon recusou o presente e quando os carregadores, sem acreditar, não quiseram retirar-se, êle ergueu a bengala e afugentou-os.
A notícia dessa recusa correu toda a nação e ninguém acreditava que um homem pudesse recusar tamanha quantia. Então Gordon comunicou que não receberia nenhum presente. O motivo era o
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seguinte: Li Hung-chang, embriagado pelo triunfo, quando fora tomada a grande cidade de Soochow, ordenara a matança de inúmeros chefes inimigos, que já se haviam rendido. Gordon, porém, tinha prometido que a vida desses chefes seria preservada caso eles se entregassem. Ao verificar que fora traído, que Li Hung-chang não respeitara sua promessa, tomou-se de tamanha cólera que até mesmo Li se assustou e retirou-se, por algum tempo, para a sua casa de Shangai.
- Não lhe perdoarei enquanto você viver, bradara Gordon.
E Li, fitando aquela severa face branca, não viu de fato a menor intenção de perdão nos glaciais olhos azuis do estrangeiro. Gordon, inflexível, mandou a seguinte altiva carta ao Trono do Dragão:
"O major Gordon recebeu a aprovação de Sua Majestade com o maior apreço, mas lamenta sinceramente que, devido às circunstâncias que ocorreram após a tomada de Soochow, está impossibilitado de aceitar qualquer penhor de reconhecimento de Sua Majestade o Imperador, suplicando respeitosamente, por conseguinte, à Sua Majestade que receba seus agradecimentos pelas gentilezas com que tencionava contemplá-lo, permitindo-lhe que delas decline".
A Imperatriz Mãe leu esse documento alguns dias depois, quando se achava em seu jardim de inverno, no Palácio do Mar do Meio. Leu-o duas vezes. Tomava conhecimento, pela primeira vez, de que até mesmo entre os bárbaros do Ocidente havia homens que não eram selvagens, nem cruéis, nem venais. Ali, no tranqüilo jardim, esse pensamento abalou-lhe a alma. Se era verdade que havia homens bons entre os inimigos, então realmente devia continuar a ter medo. Se corretos, esses brancos eram mais fortes do que ela supusera. E manteve o medo oculto em seu íntimo, durante todos os anos subseqüentes de sua vida.
A Imperatriz Mãe conservou Tseng Kuo-fan na cidade por muitos dias, enquanto meditava na recompensa que lhe daria pela sua bravura e vitórias, pois agora a imperiosa mulher não pedia mais conselhos a príncipes ou ministros. Finalmente ordenou que êle fosse nomeado Vice-rei da grande província do Norte, Chihli, e que a partir de então passasse a viver na cidade de Tientsin. No décimo sexto dia da primeira lua do novo ano, ela presidiu ao banquete da Corte, cujas iguarias eram extraordinárias. Enquanto todos festejavam o sucesso, Tseng Kuo-fan estava sentado no lugar de honra mais alto e os atores da Corte representaram seis peças famosas. Somente depois da festa foi que a Imperatriz Mãe pediu a Tseng Kuo-fan que partisse para Tientsin e lá encontrasse a paz.
Mas êle não teve paz, pois uma súbita rebelião irrompeu na cidade contra certas freiras francesas. Essas religiosas, que mantinham um orfanato, ofereceram uma recompensa em dinheiro a quem quer que lhes levasse uma criança. As conseqüências foram
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funestas, pois meliantes começaram a raptar crianças para vendê-las às freiras, que as recebiam sem perguntar de quem eram e se recusavam a devolvê-las quando os pais iam reclamá-las, pois as haviam pago.
A Imperatriz Mãe mandou novamente chamar Tseng Kuo-fan.
E para que essas estrangeiras querem as crianças chinesas? inquiriu ela.
Majestade, retrucou o erudito general, creio que desejam convertê-las à sua religião, mas o povo ignorante das ruas é cheio de superstições e declara que os remédios mágicos dos estrangeiros são feitos de olhos, corações e fígados de seres humanos, e que é para isso que as freiras querem as crianças.
Ela exclamou, cheia de horror:
- Não pode ser!
Mas o general tranqüilizou-a:
- Creio que não pode, de fato. As freiras, em geral, tomam as crianças de mendigos quase mortos nas ruas ou buscam os recémnascidos femininos de gente muito pobre, cujos pais os colocam à margem das estradas para morrerem. É certo que a maioria dessas crianças não pode ser salva, no entanto as freiras levam-nas, batizam-nas e contam-nas como convertidas. As que morrem são enterradas em seus cemitérios cristãos e é considerado meritório que tenham batizado tantas delas.
A Imperatriz Mãe não sabia se Tseng Kuo-fan estava certo ou errado, pois era homem tolerante, de boa fé até mesmo para com os inimigos. Não obstante, no quinto mês daquele mesmo ano, uma maldição dos deuses caíra sobre as freiras da cidade de Tientsin, de maneira que muitas crianças do orfanato francês morreram e uma horda de desordeiros e malandros, que a si mesmo se denominavam Túrgidas Estrelas, puseram-se a espalhar que as religiosas estavam matando as crianças entregues aos seus cuidados. O povo irritou-se e as freiras, cheias de medo, concordaram que alguns homens selecionados entrassem para ver com seus próprios olhos que o orfanato era um lugar de caridade e não de morte. Mas o Cônsul francês também se irritou com semelhante inspeção e, comparecendo ao local, expulsou os tais homens selecionados. Embora Chung Hou, Superintendente dos Costumes de Tientsin, o advertisse de que sua atitude era perigosa, o estrangeiro, demasiado orgulhoso para dar-lhe ouvidos, pediu que um oficial de alto posto fosse mandado ao Consulado. Então, apesar dos esforços do magistrado da cidade para aplacar o povo, este continuou enraivecido e, rumando para a igreja e o orfanato das freiras estrangeiras, ameaçou-as com fogo e armas, enquanto o tolo Cônsul francês corria pela rua empunhando uma pistola para socorrer as religiosas. Mas foi agarrado pelo povo e assassinado de maneira ignorada, pois ninguém tornou a vê-lo.
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O Príncipe Kung correu então em auxílio de Tseng Kuo-fan e, com todo o seu engenho, iniciou negociações. Por sorte e por acaso nesse momento a França empenhava-se numa guerra com a Prússia e se prontificou a encerrar o incidente. Mas a Imperatriz Mãe fora obrigada a pagar aos franceses quatro mil taels de prata, do Tesouro Imperial, como indenização da morte do francês e do susto causado às freiras. Chung Hou, Superintendente dos Costumes em Tientsin, recebeu ordem de ir pessoalmente à França pedir desculpas em nome do Trono.
Antes que Tseng Kuo-fan pudesse levar a bom termo o incidente, a Imperatriz Mãe mandou chamá-lo de novo, pois recebera graves notícias do sul. Embora o Rei Celestial estivesse morto, a cidade de Nanking e as quatro províncias ainda não se achavam pacificadas - o povo continuava tão desordenado e inquieto, após todos aqueles anos de rebelião, que acabara por assassinar o Vice-rei. Por esse motivo mandara apressadamente chamar Tseng Kuo-fan e ordenou-lhe que assumisse o lugar do governador morto, em Nanking. O velho e fatigado general foi obrigado a abandonar o seu posto e vir para a Capital. Ao amanhecer ajoelhou-se uma vez mais no Salão Imperial de Audiência, sobre a almofada em frente ao Trono no qual estava sentado o jovem Imperador. Atrás da cortina de seda amarela, as duas Imperatrizes achavam-se em seus tronos, a Imperatriz Mãe à direita e a sua eo-Regente à esquerda.
Quando o general ajoelhado ouviu a voz da Imperatriz Mãe ordenando-lhe que voltasse ao sul e assumisse novos deveres, em Nanking, como Vice-rei, respondeu-lhe que não estava se sentindo bem, que enxergava pouco, suplicando, por conseguinte, que o dispensasse da pesada tarefa. Ela interrompeu-o por trás da cortina.
- Embora esteja enxergando pouco, ainda pode dirigir os seus subordinados.
E recusou-se a ouvir os seus argumentos. Êle recordou-lhe que ainda não resolvera o incidente da província de Chihli, onde um oficial francês fora assassinado por desordeiros chineses em Tientsin, enquanto tentava proteger as freiras, suas compatriotas.
- Não executou esses criminosos? inquiriu ela.
- Majestade, tornou Tseng Kuo-fan, o Ministro francês e seu amigo, o Ministro russo, insistem em mandar seus representantes observarem as execuções, mas estes ainda não chegaram. Deixei o meu general substituto, Li Hung-chang, incumbido de terminar a tarefa. As execuções devem ter sido realizadas ontem.
- Oh, esses missionários e sacerdotes estrangeiros! exclamou a Imperatriz Mãe. - Gostaria que pudéssemos proibir-lhes a entrada no reino! Quando assumir seu cargo em Nanking, deverá manter um grande e disciplinado exército para controlar o povo, que odeia todos os estrangeiros.
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- Majestade, pretendo construir fortificações ao longo de todo o rio Yangtse, redargüiu Tseng Kuo-fan.
- Esses tratados que o Príncipe Kung assinou com os estrangeiros são demasiado incômodos, prosseguiu a Imperatriz Mãe. - Particularmente incômodos são os cristãos, que andam por toda parte como se o país fosse deles.
É verdade, Majestade, replicou Tseng Kuo-fan.
Continuava de joelhos e como o costume da Corte o obrigava a permanecer ajoelhado sem chapéu na cabeça, sentia o frio da madrugada enregelar-lhe os ossos. Não obstante, continuava a concordar cortêsmente com a Imperatriz.
- É verdade, disse êle, que os missionários provocam complicações em toda parte. Seus convertidos oprimem os que não querem aceitar a religião estrangeira, os missionários sempre protegem os convertidos e os cônsules protegem os missionários. No próximo ano, quando chegar a ocasião de revisar o tratado com a França, devemos reexaminar cuidadosamente toda a questão da permissão de propaganda religiosa entre o nosso povo.
A Imperatriz Mãe observou ainda mais irritada:
- Não compreendo por que devamos ter uma religião estrangeira aqui, quando temos três ótimas religiões nossas.
- Nem eu, Majestade, redargüiu o velho general.
Após um momento de silêncio a audiência terminou. Como aquele fosse o ano do sexagésimo aniversário de Tseng Kuo-fan, a Imperatriz Mãe mandou fazer novamente uma grande festa em sua homenagem e deu-lhe ricos presentes. Compôs um poema com a sua própria letra vigorosa, louvando-o pela sua idade e realizações, e com os versos mandou-lhe uma tabuleta esculpida com as seguintes palavras: "Àquele que é nossa elevada coluna e nosso rochedo de defesa". Mandou-lhe também uma imagem de ouro de Buda, um cetro feito de sândalo com incrustações de jade, um manto com dragões bordados a ouro, dez rolos de seda imperial e outros dez rolos de crepe de seda.
Tão poderosa era a influência de Tseng Kuo-fan que a inquietação do povo serenou quando êle entrou no palácio vice-real de Nanking. Seu primeiro dever era descobrir o assassino do Vice-rei anterior e condená-lo à morte por esquartejamento. Ordenou que a execução fosse pública, achando proveitoso que todos vissem, com os próprios olhos, o que acontecia a semelhante criminoso. A multidão observou em silêncio a lâmina fina do facão do carrasco cortar fatias de carne e fragmentos de ossos do corpo vivo do homem.
Depois desse dia o povo voltou ao seu trabalho diário e às suas diversões costumeiras. Novamente os barcos floridos sulcavam as águas do Lago de Lótus e gentis cortesãs entoavam suas canções, tocando flautas, enquanto seus clientes ouviam e se deleitavam. Tseng Kuo-fan alegrou-se ao verificar o retorno da velha vida pacífica
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e comunicou ao Trono que o sul voltara a ser o que fora antes da grande rebelião Tai P'ing.
Mas, a despeito de suas honrarias, seu alto posto e sua retidão, Tseng Kuo-fan não tinha muitos anos de vida. No começo da primavera do ano seguinte foi golpeado pelos deuses quando se achava sentado em sua cadeirinha, rumando ao encontro de um ministro que a Imperatriz Mãe lhe enviara com mensagens de Pequim. Como era seu hábito, quando só, recitava em voz alta passagens dos clássicos confucianos. De repente sentiu a língua entorpecida. Fêz sinal aos servos para que o levassem de volta ao palácio. Estava tonto e confuso, manchas flutuavam-se diante dos olhos. Permaneceu calado, em seu leito durante três dias.
Sofreu mais dois ataques e então chamou seu filho e com dificuldade transmitiu-lhe as seguintes ordens:
- Estou prestes a partir para as Fontes Amarelas. Sou um inútil, pois deixo atrás de mim numerosos problemas e tarefas inacabadas. Ordeno-lhe que recomende à Imperatriz Mãe meu colega Li Hungchang. Quanto a mim, sou como o orvalho da manhã que rápido se desvanece. Quando chegar o fim e eu estiver em meu féretro, que a cerimônia funerária seja celebrada com os velhos ritos e cantos budistas.
- Pai, não fale de morte, exclamou o filho com os olhos cheios de lágrimas, que lhe rolaram pelas faces.
Tseng Kuo-fan pareceu concordar e pediu que o levassem ao jardim, para ver as ameixeiras em flor. Sofreu então novo ataque, porém desta vez não quis ser levado para a cama. Fêz sinal para que o conduzissem ao Salão Vice-real de Audiência, onde o puseram sobre o trono do Vice-rei, e lá sentou-se, como se estivesse presidindo a uma audiência. E nessa posição morreu.
No momento de sua morte um grande grito ecoou pela cidade, pois todos viram uma estrela cadente no céu e temeram uma catástrofe. Ao saberem que o Vice-rei estava morto, todos sentiram que haviam perdido um parente.
A Imperatriz Mãe, recebendo a má notícia dois dias depois, baixou a cabeça e chorou em silêncio. Em seguida falou:
- Não haverá festas, nem divertimentos, nem representações. Decreto três dias de luto.
E expediu um decreto a toda a nação ordenando que fosse construído um templo em cada província em honra desse grande e bom homem, que havia trazido a paz ao reino.
Na noite do terceiro dia ela mandou chamar Jung Lu, que foi ao seu encontro no salão particular de audiência e se ajoelhou.
- Que pensa desse Li Hung-chang, que Tseng Kuo-fan recomendou para substituí-lo? indagou ela.
- Majestade, redargüiu Jung Lu, deveis confiar em Li Hungchang acima de todos os outros chineses. É bravo e esclarecido e
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quanto mais exigirdes dele, mais leal será ao Trono. Não obstante, recompensai-o generosamente e com freqüência.
Ela ouviu-lhe as palavras, fitando-o com seus grandes olhos pensativos, e disse:
Somente você não visa a recompensas, por tudo quanto faz por mim.
Quando percebeu que êle não responderia a isso, continuando ajoelhado em silêncio, tocou-lhe o ombro com o leque fechado e disse-lhe:
- Rogo-lhe que cuide bem da sua saúde, parente. Depois de você, eu estimava Tseng Kuo-fan, e agora que êle desapareceu tremo ao pensar que os deuses, tomados de cólera, me arrebatem todos os meus sustentáculos.
- Majestade, tornou êle, sois para mim o que sempre fôstes, desde os tempos da nossa infância comum.
- Levante-se, disse ela. - Levante-se e deixe-me ver o seu rosto.
Êle então se levantou, majestoso e forte. Por um instante seus olhares encontraram-se, intensos e profundos.
No outono do ano seguinte, o Corpo de Astrólogos Imperiais proclamou o dia do funeral do falecido Imperador. Durante esses numerosos dias que medearam entre a morte e o enterro, seu riquíssimo féretro ficara num templo, numa parte distante do palácio, mas agora faziam-se soleníssimos preparativos para o funeral imperial. A construção do novo túmulo durara cinco anos e, como sinal de sua renovada confiança no Príncipe Kung, a Imperatriz Mãe determinara que coubesse a êle a responsabilidade do recolhimento das grandes quantias em dinheiro necessárias à obra. Sem queixar-se, o Príncipe Kung cumprira o seu dever, embora a tarefa fosse de fato penosa, pois as províncias do sul, as mais ricas do Império, de onde deveriam provir os maiores tributos, achavam-se empobrecidas pelas guerras e rebeliões. Recolheu êle, pela força e pela persuasão, dez milhões de taels de prata, cobrando impostos em cada província. Destas somas teve que dar comissões a funcionários de alta e baixa categoria, desde ministros a príncipes menores, vice-reis, eunucos e cobradores. O esforço de cada um teve de ser recompensado e, na intimidade de seu palácio, o Príncipe Kung queixou-se à sua gentil esposa, na presença de quem podia, exclusivamente, dizer o que pensava:
- Devo, contudo, obedecer ao dragão fêmea, suspirou êle. - Pois se a ofender de novo, nos destruirá a todos.
- Desejaria que fôssemos pobres, meu senhor, para podermos viver em paz, respondeu sua mulher.
Mas êle nascera príncipe e como príncipe tinha de conduzir-se e foi o que fêz.
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Quatro anos gastou o Príncipe Kung na construção do túmulo, porquanto era necessário tempo não só para coletar os fundos como também para esculpir os grandes animais e guerreiros de mármore postos aos pares para guardar a entrada do mausoléu. Blocos de mármore, pesando de cinqüenta a oitenta toneladas, foram trazidos de pedreiras distantes. Cada bloco era transportado num carro de seis rodas, puxado por seiscentos cavalos e mulas. Tais blocos eram de forma oblonga, mas os que serviriam para esculpir os elefantes gêmeos tinham quatro metros e meio de comprimento, três e meio de largura e três e meio de espessura. Os cavalos e as mulas eram emparelhados entre duas cordas de cânhamo, trançadas com arame e tinham o comprimento de um terço de milha. Em cada carro ia um porta-bandeira imperial, segurando a bandeira da dinastia, acompanhado de quatro eunucos. Paravam de meia em meia hora para descansar e cada pausa ou partida era anunciada por um dos eunucos que fazia soar um grande gongo. Na frente dos cavalos e das mulas caminhava um guarda com uma bandeira de sinalização e Assim foi transportado cada um dos cinqüenta enormes blocos de mármore. Ao chegarem ao local do túmulo eram imediatamente trabalhados pelos melhores escultores que, munidos de martelo e cinzel, modelavam feras e homens.
O túmulo era de mármore e abobadado. Em seu centro havia um grande pedestal de ouro incrustado de jóias, sobre o qual deveria repousar o féretro imperial. Para lá foi levado o Imperador morto, num frio dia de outono. Na presença da Imperatriz Mãe e da Imperatriz Viúva, como Regentes, do jovem Imperador, príncipes e ministros da Corte, enquanto velas ardiam e incenso era queimado, o grande féretro, feito de madeira de catalpa, cuidadosamente alisada e polida, foi colocado sobre o pedestal e, antes de o selarem, puseram sobre o corpo murcho do Imperador pedras preciosas. Rubis, jade, esmeraldas da índia e um colar de perfeitas pérolas amarelas, foram colocados sobre o cadáver. Selaram em seguida a tampa do caixão com alcatrão e uma cola feita de tamargueira, que depois de seca se torna tão dura como a pedra. Em cima do féretro foram esculpidos sutras de Buda e ao seu redor os eunucos colocaram figuras ajoelhadas feitas de seda e papel, sobre armações de bambu, simbolizando aqueles que, nos tempos antigos e menos civilizados, haviam sido criaturas de carne e sangue, destinadas a serem enterradas com o seu senhor, de modo que êle não estivesse só ao chegar às Fontes Amarelas. Com o Imperador morto foi enterrada a sua primeira Consorte, irmã mais velha da Imperatriz Viúva, cujo nome era também Sakota. Durante quinze anos o corpo dessa Consorte repousara num templo tranqüilo de uma aldeia situada a sete milhas da cidade, esperando a morte do Imperador. Agora ela se reunia ao seu senhor e seu féretro foi posto num pedestal baixo e simples, aos pés dele.
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Após os sacerdotes cantarem as suas preces e as Regentes e o jovem Imperador se prostrarem diante dos mortos, todos se retiraram do mausoléu. Permaneceram apenas as velas ardendo - as chamas bruxuleavam sobre os ornamentos e sobre as tabuletas pintadas que cobriam as paredes do túmulo. Foram fechadas as grandes portas de bronze e seladas. O cortejo imperial regressou aos palácios.
No dia posterior ao funeral, a Imperatriz Mãe expediu o seguinte edito de completo perdão ao Príncipe Kung:
"O Príncipe Kung ocupou-se, durante os últimos cinco anos, por Nossa Ordem, dos preparativos para o funeral do falecido Imperador. Revelou decoro e diligência e Nossa dor foi de certo modo atenuada pelo esplendor do Túmulo Imperial e pela solenidade das cerimônias funerárias. Assim, para que o jade branco do belo nome do Príncipe Kung não fique maculado nos registros do Nosso reino, decretamos que as anotações de sua demissão anterior sejam anuladas e que ele seja reintegrado em toda a sua honra. Assim recompensamos Nosso bom servo e que seu nome permaneça para sempre limpo."
No fim desse dia, a Imperatriz Mãe foi passear sozinha em seu jardim favorito. Era uma suave tarde de outono, o céu de um cinza leve e o ocaso um débil clarão róseo no firmamento. Ela estava melancólica, mas não triste, pois não sentia nenhuma pena. Seu espírito estava solitário, mas já se acostumara a isso. Era o preço da grandeza - pagava-o dia a dia, noite após noite. No entanto ainda era mulher e agora, por um momento, iluminada por sua imaginação demasiado viva, viu uma casa, um lar, onde viviam um homem com sua mulher, e onde gerava filhos. Pois naquele dia de luto seu eunuco dissera-lhe que nascera um filho a Jung Lu. Às três horas, antes do amanhecer, a Dama Mei dera à luz um sadio menino. Repetidas vezes, durante aquele dia de mágoa, a Imperatriz Mãe pensara nesse menino. Mas Jung Lu estava entre os membros do cortejo e ela não vira nenhum sinal de alegria em sua face. Tinha o dever de não demonstrar alegria, porém, agora, naquela noite, ao voltar para sua casa, poderia conter a alegria? Ela nunca o saberia.
Caminhava devagar no jardim, entre os crisântemos floridos, acompanhada de seus cães fiéis, fortes feras mongóis que a guardavam dia e noite, e minúsculos cãezinhos de manga para o seu divertimento. Então, como tantas vezes fizera antes, valendo-se de sua força de vontade, cerrou as portas da imaginação e obrigou o cérebro a encarar as grandes tarefas que seu poder lhe impunha.
Certo dia, dois verões depois, quando a Imperatriz Mãe se encontrava, com a sua Corte, no Palácio do Mar, a fim de usufruir o Prazer de seus jardins, assistia a uma peça representada pelo Teatro
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Imperial. Não era uma peça antiga. Fora escrita por um engenhoso erudito havia apenas duzentos anos. O vilão era um homem da Europa, de nariz comprido, um capitão português, de cujo cinto pendia uma longa espada e de cujo lábio superior se projetava um hirsuto bigode. O herói era o Primeiro Ministro da Corte chinesa papel representado pelo Eunuco-Chefe An Teh-hai, que era ator talentoso.
Súbito, o eunuco Li Lien-ying, que estivera rindo ruidosamente, emudeceu, levantou-se de seu tamborete perto da sua imperial senhora, e procurou retirar-se sub-repticiamente. A Imperatriz Mãe, no entanto, sempre vigilante, fêz-lhe sinal que voltasse. Êle obedeceu meio envergonhado.
- Onde vai? inquiriu ela. - Que falta de respeito é essa que o faz retirar-se quando o seu superior está no palco?
- Majestade, sussurrou Li Lien-ying, a visão desse patife estrangeiro lembrou-me a promessa que ontem fiz ao jovem Imperador
- Que é?
- Êle ouviu falar num carro estrangeiro que anda sem auxílio de cavalos ou homens, e pediu-me que comprasse um. Mas onde posso encontrar esse carro? Perguntei ao Eunuco-Chefe, o qual me informou que talvez o encontrasse na loja de um estrangeiro, na Rua das Legações. Era para lá que eu ia.
A Imperatriz Mãe franziu o cenho:
- Proíbo-o.
- Majestade, suplicou o eunuco, rogo-vos que vos lembreis de que o jovem Imperador é impetuoso e que serei espancado.
- Eu lhe direi que não permito a compra de brinquedos estrangeiros, declarou a Imperatriz. - Brinquedo... francamente! Êle não é mais uma criança.
- Majestade, pediu o eunuco, fui eu que falei em brinquedo, vendo que não tinha esperança de encontrar um carro a álcool autêntico em todo nosso país.
- Brinquedo ou não, é um objeto estrangeiro, insistiu a Imperatriz Mãe. - E eu o proíbo. Torne a sentar-se.
Li Lien-ying não podia fazer outra coisa senão obedecer. Sentou-se, portanto, e não riu mais, embora An Teh-hai, no palco, se esmerasse em fazer a Imperatriz Mãe rir. Mas ela também não ria. Uma hora depois, ainda com uma grave expressão no rosto, indicou às suas damas que se retiraria e assim fêz dirigindo-se ao seu palácio, onde, após refletir, mandou chamar o Eunuco-Chefe.
Êle veio - alto e simpático, apesar de sua crescente gordura. Tinha ousados olhos negros, mas baixava a cabeça diante de sua imperial senhora, que não gostava menos dele por saber que noutras circunstâncias aqueles seus olhos sabiam ser bastante impudentes. Dizia-se, com freqüência, que An Teh-hai não era um eunuco autêntico e que até mesmo gerara filhos dentro das paredes
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imperiais, mas a Imperatriz Mãe aprendera a não fazer perguntas quando não desejava saber. Olhou-o severamente.
- Como se atreve a conspirar com Li Lien-ying? inquiriu.
Majestade... gaguejou êle. - Eu? Conspirar, Majestade?
Para trazer um carro estrangeiro a álcool para mostrar ao meu filho!
Êle tentou rir:
Majestade, isso é conspiração? Pensei apenas em diverti-lo.
- Sabe muito bem que não desejo que êle tenha objetos estrangeiros, disse ela no mesmo tom severo. - Deve a alma dele ser desviada de seu próprio povo?
- Majestade, balbuciou o Eunuco-Chefe, juro-vos que não tive semelhante intenção. Todos nós fazemos o que o Imperador deseja. Não é esse o nosso dever?
- Não, se êle deseja coisas erradas, tornou ela, implacável. - Já lhe disse que não quero que êle adquira os mesmos vícios do pai. Se você cometeu a tolice de ceder a esse desejo, a quantas coisas mais não cedeu?
- Majestade... começou êle.
Mas a Imperatriz Mãe franziu o cenho:
- Saia da minha presença, servo infiel!
Ao ouvir essas palavras o Eunuco-Chefe apavorou-se. Havia muito tempo que era o seu favorito, no entanto todos os eunucos sabiam que o favor de um governante é menos estável que a luz do sol no começo da primavera. A qualquer momento pode ser retirado e num abrir e fechar de olhos a cabeça de um eunuco pode cair de seus ombros.
Atirou-se aos pés da Imperatriz e soluçou:
- Majestade, sabeis que minha vida inteira é vossa! Vossas ordens estão acima de tudo, para mim!
Mas ela empurrou-o com o pé:
- Fora da minha presença... fora!
Arrastando-se, então, de quatro, para a porta, fugiu para junto da única pessoa que poderia salvá-lo da cólera imperial - foi procurar Jung Lu, cujo palácio, a uma milha de distância, alcançou correndo sem cessar.
Àquela hora do dia Jung Lu tinha o hábito de estudar os memoriais que seriam apresentados ao Trono no dia seguinte. Outrora essa tarefa competia ao Príncipe Kung, mas agora, como Grande Conselheiro, Jung Lu era quem a realizava. Achava-se sozinho em sua biblioteca, sentado diante de uma grande escrivaninha, a cabeça mergulhada nas páginas que lia.
Aproximou-se dele um servo, anunciando-lhe que o EunucoChefe insistia em falar-lhe.
Que deseja? inquiriu Jung Lu.
Em poucas palavras An Teh-hai contou-lhe o que se passava.
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- Suplico-lhe que me salve da cólera imperial.
Jung Lu nada prometeu de imediato. Convidou o Eunuco-Chefe a sentar-se e, após um momento, disse:
- Nos últimos dois anos tenho andado preocupado com o que vejo no palácio do Imperador.
- Que vê o senhor, Venerável? perguntou o Eunuco-Chefe, pálido à luz das velas.
Jung Lu assumiu uma expressão severa:
- O pai do jovem Imperador, Hsien Feng, foi arruinado pelos seus eunucos, entre os quais você, An Teh-hai. É verdade que naquela época você não era Eunuco-Chefe, mas poderia ter incutido no Imperador então reinante idéias claras e atos corretos. Ao invés disso, você o alcovitava e êle apreciava-o porque você era jovem e elegante. Ao invés de guiá-lo para o caminho reto, você o desviou, satisfazendo-lhe a fraqueza e a luxúria, de modo que êle morreu velho, embora ainda não houvesse completado quarenta anos. Agora você age com o filho...
Sua voz fraquejou, a fisionomia transtornou-se-lhe, levou a mão à boca - mão forte, boca forte.
An Teh-hai tremeu de medo. Viera em busca de auxílio e em vez de recebê-lo sofria novo ataque.
- Venerável, disse êle, é duro ser eunuco e desobedecer a quem é nosso senhor.
- No entanto pode-se fazê-lo, tornou Jung Lu. - E ao cabo você seria honrado. Pois há em todos os homens, até mesmo num Imperador, tanto o bem quanto o mal. Na infância um deles é destruído e o outro se mantém vivo. Você escolheu o mal.
- Venerável, balbuciou o eunuco, não fiz semelhante escolha... não me foi dado escolher.
- Sabe o que quero dizer, redargüiu Jung Lu com maior severidade. - Sabe que o Imperador, agora morto, quando sentia dores, você o alimentava com ópio. Quando estava irritado, você o aplacava com recursos perniciosos. Você lhe ensinou a procurar refúgio no vício, sempre que estava preocupado ou doente. Antes de chegar à idade adulta, já estava com a sua virilidade destruída.
An Teh-hai não era covarde, nem estúpido tampouco. Chegara o momento de usar uma arma perigosa.
- Venerável, disse êle, se a virilidade do Imperador estava destruída, como explica que tenha gerado um filho tão robusto como o jovem Imperador?
A expressão de Jung Lu não se alterou. Encarou com firmeza o eunuco.
- Se esta casa imperial cair, disse êle, você cairá com ela, assim como eu, e conosco a dinastia. Devemos então destruir esse jovem, que é a nossa única esperança?
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Foi assim que Jung Lu desviou a lâmina com que o EunucoChefe pretendera feri-lo. E o Eunuco-Chefe compreendeu que deviam ser aliados e não inimigos. Simulando estar envergonhado, balbuciou
- Vim aqui apenas para pedir-lhe que me salve da cólera da Imperatriz Mãe. Não sei por que tanta perturbação, pois tudo começou com um brinquedo, um trem de brinquedo, que o Remendão Li se esqueceu de comprar para o jovem Imperador. Não sei como, entre estas paredes, uma coisa tão pequena pode abalar uma coisa tão grande como a vida de um homem.
Jung Lu passou, com ar fatigado, a mão pelos olhos:
Intercederei por você, prometeu.
- Venerável, é tudo quanto peço, disse o Eunuco-Chefe. Fazendo uma reverência, retirou-se rápido. Estava contente. Sua cruel pergunta servira-lhe melhor que uma espada - Jung Lu limitara-se apenas a aparar o golpe.
Em sua biblioteca, Jung Lu continuou sentado sozinho por tanto tempo que sua gentil esposa, entreabrindo as cortinas, fitou-o e tornou a afastar-se, sem se atrever a falar-lhe, ao ver-lhe a grave expressão fisionômica. Ela sabia muito bem que nunca poderia ter o verdadeiro amor do marido, mas amava-o tanto que se contentava com o que êle lhe dava - uma afeição suave, uma ternura sempre cortês e paciente. Nunca se haviam tornado íntimos, nem mesmo quando êle se deitava em sua cama e a tomava nos braços. Ela não o temia, pois sua bondade era imutável, porém não podia atravessar a distância que os separava um do outro.
Tarde da noite, a ansiedade compeliu-a a aproximar-se dele, em suas silenciosas chinelas de cetim. Pousou a mão em seu ombro tão de leve que êle não a sentiu.
- Está quase amanhecendo, disse ela, e você ainda não veio para a cama?
Jung Lu sobressaltou-se e, voltando o rosto, desarmado, exibiu uma fisionomia tão cheia de sofrimento que ela atirou os braços ao redor do seu pescoço.
- Oh, amor, que se passa? exclamou ela.
Êle se recompôs e no instante seguinte soltou-lhe os braços.
- Velhas complicações, sussurrou, velhos problemas que nunca terão solução! Sou um tolo em preocupar-me. Venha, vamos dormir.
E lado a lado atravessaram os corredores rumo aos seus quartos. Diante da porta do seu, êle se despediu, dizendo como se lhe houvesse ocorrido naquele momento:
- Sente-se melhor com esse filho que está esperando, do que com o primeiro?
Pois ela estava gorda pela segunda vez.
Estou bem, obrigada, respondeu-lhe.
Êle sorriu, acrescentando:
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- Então teremos uma filha, se é que me lembro das histórias que ouvi na infância. São os meninos que esperneiam dentro do ventre.
- Importar-se-á, se eu lhe der uma filha?
- Não, se fôr parecida com você, redargüiu êle cortêsmente, curvando-se e deixando-a onde se encontrava.
No dia seguinte, quando o relógio d'água marcava três horas da tarde, o eunuco Li Lien-ying, ansioso por agradar à sua real senhora, anunciou que o Grande Conselheiro Jung Lu pedia uma audiência para quando lhe fosse conveniente.
- Todas as horas são convenientes para receber o meu parente, redargüiu ela. - Peça-lhe que venha agora.
Logo em seguida Jung Lu comparecia ao salão privado de audiência, onde ela se sentara em seu trono para recebê-lo. Depois dos cumprimentos formais, fêz sinal ao eunuco para que se mantivesse à distância e pediu a Jung Lu que se levantasse e se sentasse aos pés do trono.
- Rogo-lhe que falemos francamente, disse-lhe. - Ponha de lado a cortesia e diga o que tem no espírito. Sabe que sob a Imperatriz estou sempre Eu, aquela que você conheceu quando menina e quando moça.
Falava livremente e êle se sentia alarmado ao recordar-se do golpe do Eunuco-Chefe. Virou a cabeça para ver se alguma cortina se movia ou se Li Lien-ying estava com o ouvido atento. Mas não. Este último folheava um que outro livro e a cortina não se movia. Tão grande era o salão que, se não estivesse perto do trono, não poderia ouvir o que sua bem-amada dizia, pois ela falava em voz baixa e suave. Contudo êle não se permitia mais que um longo olhar. Com a mão direita cobria a sua boca forte.
- Tire a mão da boca, disse ela.
Êle tirou-a e a Imperatriz viu-o morder o lábio inferior.
- Esses seus dentes, disse ela, são brancos e fortes como os de um tigre. Poupe-se, rogo-lhe... não morda seu lábio tão cruelmente.
Êle obrigou-se a desviar o olhar.
- Vim falar sobre o Imperador.
Utilizava o seu ardil, pois sabia que somente o filho poderia desviar aqueles olhos negros de seu rosto.
- Que há com êle? Alguma coisa má?
Jung Lu estava livre de novo, soltara-se o laço que o prendia, o laço que nunca se poderia romper.
- Não estou satisfeito, disse êle. - Esses eunucos alcoviteiros pervertem um rapaz com a sua própria perversão. Sabeis o que quero dizer, Majestade. Vistes como arruinaram a saúde do falecido Imperador, mergulhando-o na corrupção. Vosso filho deve ser salvo antes que seja demasiado tarde.
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Ela enrubesceu e, por um momento, não lhe deu resposta. Em seguida observou calmamente:
- Alegro-me ao ouvi-lo falar como um pai, de meu filho sem pai. Eu, também, estou muito preocupada, mas sendo apenas mulher que posso fazer? Posso falar de coisas que eu nem deveria conhecer? Esses são assuntos de homens.
Por isso estou aqui, tornou êle. - E aconselho-vos a que caseis cedo o vosso filho. Deixai-o escolher a mulher de quem gosta, com o vosso consentimento, e embora seja muito jovem para casar-se, pelo menos nos dois próximos anos, pois não deve casar-se antes dos dezesseis, no entanto a imagem daquela que escolher o conservará limpo.
- Como pode saber disso? inquiriu a Imperatriz.
- Sei disso, tornou êle abruptamente e nada mais falou. Quando ela lhe procurou o olhar, êle desviou a cabeça.
A Imperatriz Mãe suspirou afinal, cedendo à sua teimosa resistência.
- Bem, farei como me aconselha. Que as virgens sejam chamadas o quanto antes, que sejam preparadas... como eu o fui. Oh, Céu, como passaram rápidos os anos... Agora sou eu que estou sentada aqui, como a Viúva Mãe outrora se sentou ao lado do Imperador, para ajudá-lo na escolha! Lembra-se de que ela não gostou de mim?
- Vós a conquistastes depois, como conquistastes a todos, sussurrou êle sem voltar a cabeça.
Ela riu suavemente, a boca rubra trêmula, como se fosse proferir alguma malícia, mas conteve-se e se levantou, novamente Imperatriz.
- Bem, assim seja, parente! Agradeço-lhe o conselho.
Falou tão nitidamente que Li Lien-ying, ainda distante, ouviu e guardou o livro no manto, adiantando-se para escoltar o Grande Conselheiro até a porta. Jung Lu curvou-se numa profunda reverência, a Imperatriz Mãe inclinou a cabeça e tornaram a separar-se uma vez mais.
Entrementes o Eunuco-Chefe estava inquieto. Considerara o seu lugar tão firme quanto o próprio Trono. Os Imperadores entravam e saíam, mas os eunucos permaneciam e acima de todos os eunucos situava-se o Eunuco-Chefe. A Imperatriz Mãe, no entanto, podia encolerizar-se até mesmo com êle! Estava abalado, sentia-se inseguro, e ansiava por escapar por algum tempo das paredes da Cidade Proibida, entre as quais passara toda a sua existência.
- Sempre vivi aqui, murmurou para si mesmo, e não conheci nunca o que fica mais além.
Fêz emergir da memória um velho sonho esquecido e com êle procurou a Imperatriz Mãe.
- Majestade, disse, sei que é contra a lei da Corte que um eunuco saia da Capital. Mas há muitos anos anseio por velejar no
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Grande Canal, rumo ao sul, e ver as maravilhas da nossa terra. Rogo-vos que me concedais a licença para esse prazer e eu sem dúvida voltarei.
Ao ouvir semelhante pedido, a Imperatriz Mãe permaneceu em silêncio por alguns instantes. Sabia que príncipes, ministros e damas da Corte censuravam-na freqüentemente por conceder honrarias e atenções aos eunucos. Só uma vez, na dinastia, semelhantes atenções e honrarias foram concedidas a eunucos. Isto sucedera duzentos e cinqüenta anos antes, quando o Imperador Fu Lin, então reinante, permitira que os eunucos controlassem os negócios dos palácios. Esse Imperador, sendo amante da leitura e da meditação, desejando muitíssimo fazer-se monge, foi enganado pelos cobiçosos e poderosos eunucos, que se tornaram senhores do palácio, corrompendo tudo quanto tocavam. Um dia, o Príncipe Kung, sem dizer nada, pusera diante da Imperatriz Mãe um livro que contava a história do reinado dos eunucos da Imperatriz Fu Lien, o qual foi chamado período de Shun Chih. Ela o leu, rubra de cólera. Ao terminar, fechou o livro e devolveu-o em silêncio ao Príncipe Kung e embora o encarasse severamente, êle não ergueu a cabeça para fitá-la.
Meditou, porém, no atual poder dos eunucos. Usava-os, por toda parte, como espiões, recompensando-os pròdigamente quando lhe traziam os últimos boatos e tagarelices. Acima de todos, cobrira An Teh-hai de honrarias, porque não apenas lhe era fiel, mas era também elegante e talentoso ator no Teatro Imperial, bem como um músico que sabia consolar as suas tristezas. Refletindo nessas particularidades, desculpou-se a si mesma por apoiar-se nos eunucos, dizendo-se que não passava afinal de contas, de uma mulher e quando uma mulher governa não pode confiar em ninguém, pois embora um homem instalado no trono tenha inimigos, tem também os que lhe são leais por interesse próprio, ao passo que uma mulher não conta com semelhante lealdade. Tinha necessidade de espiões, a fim de saber o suficiente para agir antes que o inimigo suspeitasse do seu conhecimento.
- Que problema você me está criando, respondeu então a An Teh-hai. - Se o deixo ir, todos me censurarão por infringir a lei e a tradição.
Êle suspirou com tristeza:
- Foi na verdade um grande sacrifício que fiz, renunciando à virilidade, a uma esposa e filhos. Além do mais, parece que devo contentar-me em viver entre os muros de uma só cidade, até o fim de meus dias.
Era uma criatura ainda jovem, de boa aparência, nobre altura, fisionomia brava e altiva. A corrupção marcara-o de fato, acentuando-lhe as linhas sensuais da boca quadrada, obliterando-lhe os contornos das faces e da testa, e na gordura excessiva. Mas tinha uma
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voz melodiosa, não fina como em geral são as vozes dos eunucos, e falava com perfeição clássica, proferindo as palavras no tom adequado e dando-lhes a ênfase própria, de modo que tudo quanto dizia era música. A essas graças acrescentava a do movimento, superiormente harmônico, até mesmo nos gestos de suas grandes e belas mãos.
A Imperatriz Mãe não negava que essa beleza era um argumento em seu favor e lembrando-se agora de sua constante lealdade, não apenas em obedecer-lhe mas em diverti-la e confortá-la, cedeu.
- Posso, disse ela pensatívamente, examinando a capa de ouro da unha do dedo mínimo da mão esquerda, posso mandá-lo à cidade sulista de Nanking, a fim de inspecionar as tapeçarias imperiais que lá estão sendo tecidas. Encomendei padrões especiais para o meu filho, o Imperador, destinados ao seu casamento e ascensão ao Trono, pois essas coisas precisam de tempo para serem tecidas. E embora eu tenha mandado instruções exatas, não desconheço quão facilmente se cometem os equívocos. Lembro-me de que, no tempo dos nossos ancestrais, os tecelões de Nanking mandaram peças de seda de um amarelo demasiado pálido para ser imperial. Sim, vá até lá e certifique-se de que o amarelo é realmente ouro e que o azul não é pálido, pois você sabe que o azul claro é minha côr favorita.
Assim decidido, a Imperatriz Mãe, como de costume, não permitiu qualquer possibilidade de crítica, mantendo a cabeça erguida contra todos que pudessem falar contra o que fizera. Dias depois o Eunuco-Chefe partiu para Nanking, levando seu cortejo em seis grandes barcos, cada qual ostentando a bandeira imperial, e no barco em que êle próprio viajava, ordenou que içassem a própria insígnia do Dragão. Quando os barcos passavam pelas cidades ao longo do Grande Canal, os magistrados viam as bandeiras e a insígnia e se apressavam em levar presentes a An Teh-hai, curvando-se diante dele como se fosse o Imperador. Assim encorajado, o altivo eunuco pedia não apenas dinheiro como também bonitas virgens, pois embora fosse eunuco, usava-as contudo à sua odiosa maneira. Dessa forma os barcos tornavam-se antros do mal, porquanto os eunucos que o acompanhavam sentiam-se autorizados à licenciosidade pelo exemplo de seu chefe.
A notícia desses fatos alcançou os ouvidos do Príncipe Kung, Pois os magistrados mandavam-lhe memoriais secretos, sabendo agora que a Imperatriz Mãe favorecia eunucos. Ao mesmo tempo, os eunucos que odiavam An Teh-hai, por alguma crueldade passada ou secreta injustiça, transmitiam a Sakota o que êle estava fazendo, de modo que a Imperatriz do Palácio Oriental mandou chamar o Príncipe Kung e lhe disse, suspirando:
Não costumo opor-me ao que minha irmã faz. Ela é um sol forte e brilhante, eu não passo de uma pálida lua diante dela.
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Contudo sempre desejei que ela não favorecesse os eunucos como o faz, e especialmente a An Teh-hai.
O Príncipe Kung logo percebeu que ela soubera dos atos do Eunuco-Chefe e retrucou ousadamente:
- É tempo, Majestade, que a Imperatriz Mãe aprenda a lição que tentastes ensinar-lhe. Com a vossa permissão, mandarei prender esse infame An Teh-hai e ordenarei que seja decapitado. Nada mais haverá para ser dito quando a sua cabeça rolar no pó.
A Imperatriz Viúva deu um pequeno grito e levou as mãos à boca.
- Não gosto de ver ninguém morto, balbuciou.
- É a única maneira de livrar a Corte de um favorito e assim tem sido sempre na História, redargüiu o Príncipe Kung. Tinha os gestos calmos e a voz firme. - Ademais, prosseguiu, esse An Tehhai corrompeu duas gerações de imperadores. Nosso falecido Imperador foi levado ao deboche, quando era criança, por esse mesmo eunuco. E agora ouço dizer - vi-o, aliás, com meus próprios olhos - que nosso jovem Imperador está sendo conduzido pelo mesmo caminho. Tem sido levado, à noite, sob disfarce, aos bordéis e a teatros licenciosos da cidade.
A Imperatriz Viúva suspirou e murmurou que não sabia o que fazer. O Príncipe Kung formulou então uma pergunta audaciosa:
- Se eu preparar um decreto, Majestade, vós o assinareis com o vosso próprio selo imperial?
Ela estremeceu toda:
- E... desafiar a Outra?
- Que vos poderá fazer, Majestade? insistiu o Príncipe Kung.
- A Corte inteira, até mesmo a nação, a condenarão se ela vos tocar ou pretender fazer-vos mal.
Assim persuadida, ela assinou o decreto, depois que o Príncipe o preparou, despachando-o em seguida rapidamente por um mensageiro.
Já então An Teh-hai havia passado por Nanking e alcançara a cidade celestial de Hangchow. Aí apoderou-se da grande casa de um rico mercador e começou a exigir tributo da população, pedindo presentes em dinheiro, valores e belas virgens. Os cidadãos não tardaram a sentir-se tomados de fúria e desejo de vingança, mas nenhum se atrevia a recusar o que lhe era pedido, pois êle contava com seus eunucos e uma guarda de seiscentos homens armados. Somente o magistrado da cidade teve coragem de queixar-se e mandou memoriais secretos ao Príncipe Kung, descrevendo as orgias e as perversidades do arrogante e bem apessoado eunuco. O Príncipe Kung mandou a esse magistrado, por conseguinte, o decreto que ordenava a morte de An Teh-hai. Imediatamente o magistrado convidou o Eunuco-Chefe para um grande banquete, onde, dizia êle, as mais belas virgens da cidade seriam vistas. Muito
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alegre, An Teh-hai preparou-se para a festa. Mas ao entrar no salão do palácio do magistrado, foi agarrado e posto de joelhos, enquanto seus eunucos e guardas eram mantidos no pátio exterior. O magistrado mostrou-lhe o decreto, declarando que seria cumprido naquele mesmo instante. An Teh-hai gritou que estava selado com o selo da Imperatriz Viúva e não com o da Imperatriz Mãe, que era governante e sua senhora. Mas o magistrado redargüiu:
- Pela lei as duas são uma só e eu não reconheço a ascendência de nenhuma sobre a outra.
Assim dizendo, ergueu a mão e voltou o polegar para baixo, indicando ao carrasco que avançasse e cortasse a cabeça de An Tehhai, o que êle fêz de um só golpe de seu espadão. E a cabeça caiu no chão de ladrilhos tão pesadamente que o crânio se partiu e saltaram os miolos.
Quando a Imperatriz Mãe soube da morte de seu favorito e leal servo, tomou-se de tamanha cólera que ficou doente durante quatro dias. Não comeu nem dormiu, cheia de raiva contra sua irmãRegente, porém ainda mais contra o Príncipe Kung.
- Somente êle poderia ter feito uma leoa daquela ratazana! gritou. Teria ordenado que o próprio Príncipe Kung fosse decapitado se Li Lien-ying, aterrorizado por semelhante loucura, não procurasse secretamente Jung Lu.
Novamente Jung Lu se dirigiu ao palácio e sem demora ou cerimônia aproximou-se da porta em que a Imperatriz Mãe jazia irrequieta sobre a cama. Separado apenas pela cortina, disse em voz fria e tranqüila, com triste paciência:
- Se amais vossa posição, permanecei serena. Levantai-vos de vossa cama como de costume. Pois é verdade que o Eunuco-Chefe era um homem extremamente perverso e vós o favorecíeis. É verdade também que infringistes a lei e a tradição, dando-lhe permissão de sair da Capital.
Ela ouviu-lhe a voz julgadora e por um momento nada disse. Depois falou, suplicando seu perdão:
- Você sabe por que motivo suborno esses eunucos. Estou só, neste palácio... sou uma mulher solitária.
Êle respondeu apenas com uma palavra:
- Majestade...
Ela esperou, porém nada mais ouviu. Êle havia partido. Levantou-se, afinal, deixou que a banhassem e vestissem e tomou algum alimento. Todas as suas damas estavam caladas, nenhuma se atrevia a falar, mas ela não parecia perceber-lhes a atitude. Dirigiu-se a sua biblioteca, em passos lentos e fatigados, e passou várias horas lendo os memoriais que se haviam acumulado à sua espera. Findo o dia, mandou chamar Li Lien-ying e disse-lhe:
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- A partir de hoje, você é o Eunuco-Chefe. Mas sua vida depende de sua lealdade a mim, exclusivamente a mim.
O eunuco, inundado de alegria, ergueu a cabeça do chão, onde estivera ajoelhado, e jurou lealdade.
A partir desse dia, a Imperatriz Mãe permitiu-se odiar o Príncipe Kung. Continuou a aceitar seus serviços, porém odiava-o e ficou à espera do momento em que poderia esmagar para sempre o seu orgulho.
Em meio a todas essas complicações, a Imperatriz Mãe não esquecera o conselho de Jung Lu, de casar em breve o jovem Imperador. Quanto mais refletia no conselho de seu parente, mais o apreciava, e isto por uma certa razão que somente ela conhecia. Seu filho, muito parecido com ela na aparência e no altivo coração, tinha uma maneira de magoá-la e tão profundamente que ela não podia falar abertamente desse fato nem a êle mesmo, mas procurava impedi-lo de mil pequenas formas, para não confirmar, falando, aquilo que temia traduzir em palavras. Desde a infância, êle preferia o palácio de Sakota, a Imperatriz Viúva, ao de sua mãe. Quando era criança, ela ia muitas vezes procurá-lo e, não o encontrando em seu palácio, perguntava onde estava - respondiam-lhe sempre que estava com a Imperatriz Viúva. E agora, mais freqüentemente do que antes, quando o mandava chamar ou ia procurá-lo, êle estava lá.
Demasiado orgulhosa para demonstrar a sua mágoa, a Imperatriz Mãe nunca o censurou, mas perguntava-se dolorosamente por que motivo seu filho preferia a outra. Amava-o com feroz sentimento de posse e não se atrevia a dirigir-lhe a pergunta, pois poderia ouvir a resposta que temia. Tampouco se humilharia em falar nem mesmo ao Príncipe Kung ou a Jung Lu, do ferimento profundo que tinha no peito. Na verdade, não precisava perguntar. Sabia o motivo por que seu filho ia tão freqüentemente ao outro palácio e lá se demorava tanto tempo, ao passo que só a procurava quando era chamado e apressava-se em deixá-la. A crueldade de uma criança! Ela, sua mãe, era com freqüência obrigada a contrariar-lhe a vontade, pois tinha de instruí-lo e treiná-lo para o seu futuro. Tinha de fazer daquele rapaz inexperiente um Imperador e um homem, mas êle resistia aos seus esforços. Porém sua mãe substituta, a coRegente, a suave Sakota, não sentia o dever de censurá-lo ou de instruí-lo e com ela êle podia ser o que era, um menino alegre, um rapaz sôfrego, um garoto brincalhão, e ela se limitava a rir. Quando se mostrava caprichoso, ela sempre cedia, pois não tinha nenhuma responsabilidade.
Uma raiva ciumenta invadia a Imperatriz Mãe. Podia muito bem ser que Sakota houvesse comprado aquele brinquedo para êle, aquele brinquedo estrangeiro, escondendo-o em seus aposentos, para
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que êle pudesse brincar em segredo. Seria realmente assim? Sem dúvida, pois naquela manhã, após a audiência, seu filho estava demasiado ansioso por deixá-la, com pressa de terminar seus deveres, porém ela obrigara-o a permanecer em sua companhia, levando-o à biblioteca, a fim de perscrutar-lhe o espírito e verificar se tinha ouvido os memoriais apresentados pouco antes. Êle nada ouvira e às suas perguntas reprovadoras respondera em tom petulante:
- Tenho de lembrar-me, todos os dias, do que algum velho me murmura através de suas barbas?
Encolerizara-se tanto com essa insolência, para com a pessoa que era sua mãe, que, apesar de ser Imperador, ergueu a mão e esbofeteou-o na face. Êle não falou nem se mexeu, mas fitou-a com um olhar irado e ela viu o seu rosto manchar-se de vermelho no ponto em que o golpeara. Então, ainda sem dizer palavra, êle curvou-se rigidamente e, voltando-se, saiu. Fora diretamente, sem dúvida, para junto de sua mãe substituta. Sakota, decerto, acariciara-o e confortara-o dizendo-lhe que sua mãe era sempre muito irritadiça, e que ela própria, a gentil, apanhara da mesma forma muitas vezes, quando ambas eram crianças e viviam sob o mesmo teto.
A Imperatriz Mãe pôs-se de súbito a soluçar. Se não possuía o coração de seu filho, então nada possuía. Quão pequeno conforto representa um filho! E ela havia renunciado a tudo por êle, passara a vida trabalhando por êle, salvara a nação para êle, mantivera o Trono para êle.
Chorou durante algum tempo, depois enxugou as lágrimas no lenço preso ao botão precioso de seu manto e em seguida começou a pensar em como agir, inclusive com o filho. Sakota precisava ser suplantada por outra mulher, alguma que fosse jovem e adorável, uma esposa que encantasse o homem que já desabrochava nele. Sim, o conselho de Jung Lu era sábio e bom. Casaria seu filho, não para defendê-lo dos eunucos, que eram apenas meios-homens, mas para protegê-lo da doce e silenciosa mulher que dispensava suave sentimento maternal a um filho que não era seu.
Não permitirei que Sakota se comporte como mãe de meu filho, disse. Sakota, que não pôde dar à luz outra coisa senão uma menina retardada!
E, revigorada como sempre pela cólera, bateu palmas chamando seu eunuco e mandando-o buscar Li Lien-ying, o Eunuco-Chefe. No espaço de uma hora ordenara a convocação das virgens, marcara o dia, o local e os testes para a admissão de cada uma. Não seria convocada nenhuma virgem fora dos imperiais clãs manchus, nenhuma de rosto vulgar e nenhuma que fosse além de dois anos mais velha que o Imperador. Um ano e pouco, sim, era prudente, pois a esposa poderia conduzir e guiar, mas não tão velha que algum dos seus encantos estivesse perdido.
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O Eunuco-Chefe ouviu e respondeu "sim", "sim", êle sabia o que o jovem Imperador gostava, e pediu o prazo de seis meses para executar da melhor maneira a sua missão. Mas a Imperatriz Mãe recusou um prazo tão longo, dando-lhe apenas três e despedindo-o.
Tendo tomado essas decisões a respeito de seu filho, pôs-se a pensar de novo nos negócios do reino, que não a deixavam em paz. Eram ambos grandes e pequenos, sendo que os mais perturbadores referiam-se à inalterável teimosia dos invasores ocidentais, que exigiam o direito de mandar emissários ao Trono do Dragão, mas recusavam-se a obedecer às leis de cortesia e submissão, segundo as quais deveriam prostrar-se diante do Imperador. Ela impacientava-se ao receber essas repetidas exigências que lhe eram apresentadas como Regente.
- Como poderei receber emissários que não se ajoelham? inquiria. - Degradaremos o Trono do Dragão, permitindo que inferiores permaneçam de pé diante de nós?
Como de costume, ignorava o que não podia resolver, e quando um certo membro do Conselho de Censores, de nome Wu K'o-tu, pediu para encaminhar uma petição ao Trono em favor dos enviados estrangeiros, ela recusou-se a aceitar o seu memorial dizendo que o assunto não era novo e não podia ser solucionado no momento. Lendo a História, verificara que duzentos anos antes um enviado da Rússia reclamara o direito de permanecer de pé diante do Trono do Dragão, ao invés de ajoelhar-se, e esse pedido fora recusado, tendo o enviado regressado à Rússia sem ver, face a face, o Imperador então reinante. Era verdade que um enviado da Holanda submetera-se certa vez ao costume imperial e se ajoelhara ao dirigir-se ao Trono, porém os outros enviados ocidentais ainda se recusavam a seguir esse precedente. Era também verdade que a missão inglesa, sob a direção do Lorde McCartney, com profundas reverências ao invés de se ajoelhar pondo a cabeça no chão, obtivera permissão de comparecer perante o Ancestral Ch'ien Lung, mas esse encontro se realizara numa tenda do parque imperial, em Jehol, e não no palácio adequado. E somente vinte e três anos depois, outro lorde inglês, Amherst, fracassara em sua missão porque o Imperador Chia Ch'ing, então reinante, insistira em receber a submissão própria ao Trono. Pela mesma razão, salientou a Imperatriz Mãe em resposta ao Censor Wu, o Imperador T'ao Kuang e o falecido Imperador Hsien Feng nunca haviam recebido um emissário ocidental. E como poderia ela, por conseguinte, atrever-se a fazer o que eles não haviam considerado correto fazer? Apenas quinze anos antes, lembrou ela ainda ao Censor, que estava sempre disposto a conceder privilégios aos estrangeiros, o próprio sogro do Príncipe Kung, o honrado e nobre Kwei Liang, argumentara com o ministro americano Ward que êle mesmo, se fosse emissário da China aos Estados Unidos, estaria pronto a queimar incenso perante
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o Presidente dos Estados Unidos, porquanto a qualquer governante de um grande povo devia ser demonstrado o mesmo respeito que se dispensa aos próprios deuses. Mas o americano não concordou e por conseguinte não foi recebido.
Não permitirei que ninguém se aproxime do Trono do Dragão sem o devido respeito, declarou ela com firmeza, pois se assim o fizesse encorajaria os rebeldes.
No íntimo, deliberara nunca permitir que um estrangeiro transpusesse a soleira da Cidade Proibida, pois na verdade esses estrangeiros estavam, dia a dia, perturbando cada vez mais a vida do reino. Lembrou-se de que seu grande general Tseng Kuo-fan, ora morto, lhe havia contado como o povo de Yangchow, do Rio Yangtse, se levantara contra os sacerdotes estrangeiros, destruindo suas casas e templos e expulsando-os da cidade, porque haviam ensinado que os jovens não deviam obedecer a seus pais ou aos deuses, mas sim exclusivamente ao deus estrangeiro que eles pregavam. Lembrou-se, ainda, de quão profundamente ofendido ficara o povo de Tientsin quando emissários franceses construíram um consulado dentro de um templo, retirando os deuses e jogando-os num monturo como se fossem mero refugo.
Esses assuntos, que na ocasião a Imperatriz Mãe considerara insignificantes e dignos apenas da atenção de um dia, pareciam-lhe agora sinais do maior perigo que seu reino corria - a invasão dos cristãos, esses homens que iam para onde queriam, ensinando, pregando e proclamando que seu deus era o único deus verdadeiro. E as mulheres cristãs eram tão perigosas quanto os homens, pois não permaneciam dentro das portas de suas casas, mas caminhavam livremente pelas ruas, até mesmo na presença de homens, comportando-se como só as mulheres de má reputação se comportam. Nunca antes houvera pessoas como essas, que declaravam que sua religião era a única. Durante centenas de anos os adeptos de Confúcio, de Buda e de Lao Tse tinham vivido juntos, em paz e cortesia, cada qual honrando os deuses e os ensinamentos do outro. Mas assim não sucedia com os cristãos, que repeliam todos os deuses exceto os seus. E agora já todos sabiam que, onde fossem os cristãos primeiro, vinham logo depois os mercadores e os navios de guerra.
Ao Príncipe Kung, quando tais rumores chegaram ao Trono, a Imperatriz Mãe, certo dia, revelou seu pensamento com as seguintes palavras:
- Mais cedo ou mais tarde teremos de livrar-nos dos estrangeiros, principalmente desses cristãos.
Mas o Príncipe Kung, que se alarmava com facilidade quando ela falava em livrar o reino dos estrangeiros, tornou a aconselhar-lhe cautela, dizendo:
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- Majestade, lembrai-vos, por favor, de que eles possuem armas a respeito das quais nada sabemos. Deixai-me, com a vossa permissão, traçar algumas normas que regulem o comportamento desses cristãos, de maneira que nosso povo não seja perturbado.
Concedida a permissão, pouco depois êle apresentou-lhe um memorial contendo oito normas. Encontraram-se no salão particular da audiência, ela sentada em seu trono, e após receber sua reverência e ouvir o que fizera, disse:
- Dói-me a cabeça hoje. Diga-me o que escreveu e poupe meus olhos.
Assim dizendo, ela fechou os olhos para ouvir e êle começou:
- Majestade, desde o levante dos chineses de Tientsin contra as freiras francesas, digo que os cristãos não devem levar para os seus orfanatos nenhuma criança, salvo as dos seus próprios adeptos.
Ela cabeceou, concordando, os olhos ainda cerrados.
- Recomendo também, prosseguiu o Príncipe Kung com a cabeça baixa perante a Imperatriz Mãe, que não seja permitido às mulheres chinesas sentarem-se nos templos estrangeiros na presença de homens. Isto é contrário ao nosso costume e tradição.
- É decência, observou a Imperatriz Mãe.
- Ademais, continuou o Príncipe Kung, os missionários estrangeiros não devem ultrapassar os limites de suas funções, isto é, não deverão proteger seus adeptos contra as leis de nossa terra, se esses adeptos cometerem um crime. Isto é, os sacerdotes estrangeiros não deverão interferir, como fazem agora, nas questões de seus adeptos, quando estes forem conduzidos à presença dos magistrados.
- Inteiramente razoável, aprovou a Imperatriz Mãe.
- Reclamo, continuou o Príncipe Kung, que os missionários não sejam investidos dos privilégios de funcionários e emissários de suas respectivas nações.
- Certamente que não, concordou a Imperatriz Mãe.
- E os meliantes, prosseguiu o Príncipe Kung, não devem ser abrigados em suas igrejas para escapar à punição.
- A justiça deve ter liberdade para agir, declarou a Imperatriz Mãe.
- Essas foram as exigências que enderecei aos emissários estrangeiros residentes em nossa Capital, concluiu o Príncipe Kung.
- São decerto exigências suaves, observou a Imperatriz.
- Majestade, redargüiu o Príncipe, com a grave fisionomia ainda mais grave, lamento dizer que os enviados estrangeiros não as aceitaram. Insistem em que todos os estrangeiros tenham inteira liberdade de movimentos, sem estarem sujeitos a censura ou prisão. Pior que isso: recusaram-se a ler o meu documento, embora eu o tivesse remetido às suas legações com a devida cortesia. Houve uma exceção - o ministro dos Estados Unidos respondeu, cortêsmente embora sem concordar.
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A Imperatriz Mãe não pôde conter-se diante de tão monstruosa ofensa. Abriu seus grandes olhos, juntou as mãos e, erguendo-se do trono, começou a caminhar de um lado para o outro, murmurando palavras coléricas.
Súbito parou e olhou por cima do ombro para o Príncipe Kung.
- Disse-lhes que construíram um Estado estrangeiro dentro do nosso Estado? Sim, construíram muitos Estados, pois cada seita de suas várias religiões tem leis próprias em nossa terra, sem a menor consideração pelas nossas leis.
O Príncipe Kung respondeu com resignada paciência:
- Majestade, eu o disse a todos os ministros das nações aqui residentes.
- E perguntou-lhes, gritou a Imperatriz Mãe, o que nos fariam se fôssemos aos seus países e nos conduzíssemos dessa maneira, recusando-nos a obedecer às suas leis e insistindo em manter inteira liberdade, como se tudo nos pertencesse?
- Perguntei-lhes, redargüiu o Príncipe Kung.
- E qual foi a resposta? inquiriu ela, com os olhos chamejantes e as faces rubras.
- Responderam-me que não há comparação entre a civilização deles e a nossa, que nossas leis são inferiores às deles e por conseguinte devem proteger seus concidadãos.
Ela rangeu seus dentes brancos.
- Contudo vivem aqui, insistem em permanecer aqui, não querem deixar-nos!
- Não, Majestade, tornou o Príncipe Kung. Ela deixou-se cair no trono:
- Vejo que não se satisfarão enquanto não tomarem posse de nossa terra, como fizeram com outras terras - índia e Burma, as Filipinas e Java, as ilhas do mar.
A isso o Príncipe não respondeu, pois de fato não podia. Êle, também, temia que fosse verdade. Ela ergueu a cabeça, o belo rosto pálido e severo.
- Digo-lhe que precisamos livrar-nos desses estrangeiros!
- Mas como? indagou êle.
- De qualquer maneira! tornou ela. - De qualquer maneira! E a essa tarefa consagrarei todo o meu espírito e coração até a hora de minha morte.
Aprumou-se, rija e fria, permanecendo calada durante alguns minutos. Êle compreendeu que estava dispensado.
Daí por diante, em tudo quanto a Imperatriz Mãe fazia, fosse trabalho ou prazer, tinha no cérebro e no coração esta única pergunta: de que modo poderia livrar o seu reino dos estrangeiros?
No outono do décimo sexto ano do jovem Imperador T'ung Chih, a Imperatriz Mãe decidiu que êle tomaria consorte. Consultou o
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Grande Conselho, os membros dos clãs e príncipes cuja opinião tinha de ouvir. No dia fixado pelo Corpo de Astrólogos foram convocadas seiscentas belas virgens, das quais Li Lien-ymg o EunucoChefe, escolheu cento e uma para desfilarem diante do jovem Imperador e de sua imperial mãe.
Era outono, dia de sol brilhante, os pátios e terraços cobertos de crisântemos. A Imperatriz e sua co-Regente instalaram-se no Palácio da Eterna Primavera, para examinar as virgens. Esse salão era o favorito da Imperatriz Mãe, pois as pinturas murais das varandas que circundavam o pátio haviam sido extraídas de O Sonho do Quarto Vermelho, livro que ela gostava de ler. Tão engenhosamente executara o artista a sua obra que as paredes pareciam desaparecer, transformadas em paisagens e cenas.
No centro desse palácio do belo estavam instalados três tronos e no central, mais alto que os demais, sentava-se o Imperador, ao passo que sua mãe e a mãe substituta, como Regentes, sentavam-se uma de cada lado. O jovem Imperador trajava seu manto amareloimperial, chapéu redondo na cabeça e fixada nele a sagrada pena de pavão, presa por um botão de jade vermelho. Mantinha os ombros retos e a cabeça erguida, porém sua mãe sabia que êle estava excitado e satisfeito. Tinha as faces rubras e reluzentes os seus grandes olhos negros. Decerto era o mais belo jovem que respirava debaixo do Céu, pensou ela, orgulhosa por sabê-lo seu. Contudo sentia-se dividida entre o orgulho e o amor, ciumenta de que uma das virgens fosse demasiado bela e o tomasse para si, mas ansiando por fazê-lo feliz dando-lhe apesar de tudo a mais bela.
Uma trombeta de ouro ressoou três vezes para significar que o desfile estava prestes a começar. O Eunuco-Chefe preparou-se para ler os nomes das virgens, à medida que passassem, devendo cada uma parar um instante diante do Trono, curvar-se profundamente e em seguida erguer o rosto. Uma a uma penetraram na extremidade do salão, demasiado distantes ainda para serem vistas, distinguindo-se apenas as suas multicoloridas vestes, seus diademas e travessas reluzindo e piscando à luz do sol matinal que jorrava através das grandes portas abertas de par em par.
Novamente a trombeta emitiu suas notas douradas e, ouvindo-a, sem voltar a cabeça, o olhar fixo nas flores do amplo terraço adjacente ao salão, a Imperatriz Mãe lembrou-se daquele dia, tão distante embora ainda não houvessem decorrido vinte anos, quando ela própria era uma das virgens que se postaram diante do Imperador.
Ah, mas que diferença entre aquele Imperador e o seu formoso filho! Como seu coração se encolhera, desconsolado, ao olhar a figura murcha, as faces pálidas daquele Imperador, mas que virgem poderia deixar de amar seu filho? Seus olhos procuraram-no, mas êle estava lançando olhares oblíquos para a extremidade do salão.
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As virgens aproximavam-se uma a uma, deslizando sobre o assoalho reluzente, linha fulgurante e móvel de beldades. E ali estava a primeira, seu nome... era impossível lembrar-lhes os nomes. A Imperatriz Mãe examinou a lista que um eunuco pusera ao seu lado, sobre uma mesinha - o nome, a idade, a filiação... não, essa não! A moça passou, cabeça baixa.
Uma a uma chegavam elas, algumas altas, outras demasiado pequenas, algumas orgulhosas, outras infantis, algumas delicadas e frágeis, outras tão esbeltas como se fossem rapazes. O jovem Imperador fitava-as sem fazer qualquer sinal. A manhã fluía, o sol elevava-se e as largas faixas de luz sobre o assoalho estreitaram-se e desapareceram. Uma suave luz cinza encheu o salão e os crisântemos, ainda iluminados pelo sol, reluziam como labaredas fugidias ao longo dos terraços. A última virgem passou no fim da tarde e a trombeta tornou a soar, emitindo três notas de encerramento. A Imperatriz Mãe falou:
- Gostou de alguma, meu filho?
O Imperador virou as listas que tinha nas mãos e apontou um nome:
- Desta.
Sua mãe leu a descrição da virgem.
- Alute, dezesseis anos, filha do Duque Chung Yi, que é um dos primeiros Porta-bandeiras e erudito de alto conhecimento. Embora êle seja manchu, de família manchu sem mistura, sua história recuando a trezentos e sessenta anos, esse Duque estudou os clássicos chineses e alcançou o nobre grau escolástico de Han Lin. A virgem possui os puros requisitos da absoluta beleza. Suas medidas são corretas, seu corpo sadio, doce o seu hálito. Ademais, também é instruída nos livros e nas artes. É de boa reputação, sendo o seu nome desconhecido fora do círculo familiar. De temperamento suave, inclina-se mais ao silêncio do que à palavra. Isto é resultado de sua modéstia natural.
A Imperatriz Mãe leu essas palavras favoráveis. - Não me lembro de haver reparado nela, quando passou. Que seja novamente trazida perante nós. O Imperador voltou-se para a Imperatriz Viúva, à sua esquerda:
- Lembra-se dela, Mãe?
Para surpresa de todos, a Viúva redargüiu:
- Lembro-me, sim. Tem uma fisionomia bondosa, sem orgulho.
A Imperatriz Mãe sentiu-se intimamente contrariada, ao pensar que falhara ao passo que a outra não, mas denotou apenas cortesia em sua resposta:
- Tem olhos muito melhores que os meus, Irmã! Então sou eu que preciso ver a virgem de novo.
Assim dizendo, falou com um eunuco que transmitiu sua ordem ao Eunuco-Chefe. Alute voltou ao salão. O Imperial Trio examinou-a
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enquanto ela atravessava a longa distância entre a porta e o Trono. Caminhava graciosamente, jovem delgada, parecendo deslizar para perto deles, cabeça baixa e mãos semi-ocultas nas mangas.
- Aproxime-se de mim, filha, ordenou a Imperatriz Mãe.
Sem acanhamento mas com singular modéstia, a jovem obedeceu. A Imperatriz Mãe estendeu a mão e tocou a mão da virgem, apertando-a gentilmente. Era macia porém firme, fria sem ser gélida. A palma estava seca, as unhas suaves e claras. Segurando ainda a pequena mão, a Imperatriz Mãe examinou em seguida o rosto da moça. Era oval, de linhas suaves, olhos grandes, longos cílios negros e retos. Era pálida, mas de uma palidez saudável e a pele evidenciava saúde. A boca não era demasiado pequena, os lábios delicadamente conformados, de cantos profundos e suaves. Testa ampla, nem demasiado alta, nem demasiado estreita. A cabeça posta sobre o pescoço um tanto longo porém gracioso e não demasiado fino. A proporção fazia a sua beleza, cada traço proporcional aos demais, não sendo de estatura elevada nem baixa, delgada porém não magra.
- Será uma escolha adequada? inquiriu a Imperatriz Mãe, em dúvida.
Continuou a olhar para a moça. Haveria um indício de firmeza no queixo? Os lábios eram adoráveis, mas não infantis. Na verdade a fisionomia era mais experiente do que deveria ser a de uma jovem de apenas dezesseis anos.
- Se decifro com exatidão essa fisionomia, prosseguiu ela, denota um temperamento obstinado. Gosto de ver uma jovem de traços suaves, mas não tão finos quanto os desta. Mesmo para um homem comum, uma mulher obediente é melhor, e a consorte de um Imperador deve ser, acima de tudo, submissa.
Alute continuava de pé, cabeça erguida, olhos baixos.
- Parece inteligente, Irmã, aventurou a co-Regente.
- Não desejo a meu filho a maldição de uma mulher inteligente, tornou a Imperatriz Mãe.
- Mas você é suficientemente inteligente por todos nós, redargüiu o jovem Imperador, rindo.
A Imperatriz Mãe não pôde deixar de sorrir daquela resposta, e desejando mostrar-se bem-humorada e mesmo generosa, num dia como aquele, disse:
- Bem, escolha essa virgem, então, meu filho, e não me censure se ela for voluntariosa.
A virgem tornou a ajoelhar-se, pousando a cabeça nas mãos cruzadas sobre o chão. Curvou-se três vezes diante da Imperatriz Mãe, três vezes diante do Imperador, agora seu senhor, e três vezes diante da Imperatriz co-Regente. Erguendo-se em seguida, afastou-se como viera, com a mesma graça deslizante e leve, desaparecendo através da porta.
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- Alute, murmurou a Imperatriz Mãe. - É um nome agradável... Voltou-se para o filho: - E quanto a concubinas?
Pois era costume que as quatro moças mais belas, depois da escolhida, fossem reservadas como concubinas imperiais.
Rogo-lhe que as escolha para mim, Mãe, respondeu o Imperador com indiferença.
Isto agradou à Imperatriz Mãe, pois se desejasse alguma vez enfraquecer o laço entre seu filho e a Consorte, ordenaria a uma concubina, escolhida por ela e por conseguinte grata à sua generosidade, que se intrometesse entre o real par.
- Amanhã, prometeu ela. - Hoje estou saturada de tanta beleza juvenil.
Assim dizendo, levantou-se, sorriu para o filho, dando por encerrado o dia da escolha.
Depois que a Imperatriz Mãe, no dia seguinte, escolheu as concubinas, restava apenas que o Corpo de Astrônomos consultasse os céus e examinasse as estrelas para a fixação da data propícia ao casamento. Foi o que fizeram, estabelecendo o décimo sexto dia do décimo mês solar daquele mesmo ano, exatamente à meia-noite. No dia e hora marcados, um membro desse Corpo, atento ao momento preciso, postou-se diante do palanquim nupcial, onde Alute se achava sentada atrás das cortinas escarlates, a fim de ser conduzida da casa de seu pai ao palácio do Imperador. Esse membro do Corpo segurava na mão uma grossa vela vermelha, na qual eram marcadas as horas, de modo que não podia passar um só minuto da meia-noite, sem o seu conhecimento. Na hora, minuto e segundos exatos, o Imperador, esperando com seus cortesãos, a Imperatriz Mãe e a Imperatriz Viúva, aceitou Alute por esposa. Ela desceu do palanquim nupcial, com duas matronas ao lado, e mais duas outras matronas, intituladas as quatro Mestras do Leito Nupcial, e que avançaram para recebê-la e apresentá-la ao Imperador. Seguiram-se trinta dias de festa. Tardes e noites de representações e música, o povo do país proibido de trabalhar ou de preocupar-se, tendo cada cidadão ordem de divertir-se à vontade. Terminados esses dias, o jovem Imperador e a Imperatriz estavam prontos para serem declarados cabeças da nação, mas antes as Regentes deviam abandonar o posto através do qual tinham governado durante doze anos. Embora a Imperatriz Mãe falasse de si como de apenas uma das duas, todos sabiam que era ela a única governante. Novamente o Corpo de Astrônomos teve de escolher o dia propício e, após estudar as estrelas e presságios, foi fixado o vigésimo sexto dia do primeiro mês lunar. No vigésimo terceiro dia daquele mesmo mês, a Imperatriz Mãe expediu um edito, assinado pelo Imperador e selado com o grande selo que sempre estivera em seu poder, declarando que as Regentes lhe pediam que tomasse o Trono, pois desejavam pôr fim à Regência. A esse pedido
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o Imperador respondeu com um edito próprio, dizendo que, por sentimento filial, recebia-o como uma ordem da geração mais velha, terminando com as seguintes palavras: "Em respeitosa obediência às ordens de Suas Majestades, Nós, em pessoa, no vigésimo sexto dia do primeiro mês lunar do duodécimo ano do reinado de T'ung Chih, assumimos o importante dever que Nos foi determinado".
Depois disso, a Imperatriz Mãe anunciou que se retiraria para gozar os anos acumulados de sua vida, e assim fêz, deixando seu filho governar sozinho, daí por diante, declarando que ela atingira seu objetivo, cumprira seu dever, pois entregara o reino intacto ao seu filho, o Imperador.
Esses foram os seus dias de paz e prazer. Não mais se levantava no escuro, antes do amanhecer, para conceder audiência aos que vinham de longe e de perto a fim de apelar para o Trono. Não tinha mais de estudar os negócios de Estado, julgar, decidir punições e conceder recompensas.
Dormia até tarde, levantando-se quando tinha vontade, permanecendo deitada na cama depois de acordar, pensando no dia que a esperava, adorável dia vazio, sem outros deveres senão os para consigo mesma. Sobrecarregada como estivera, durante todos aqueles anos, com as preocupações do reino, hoje, quando despertava, podia pensar na sua montanha de peônias. Ordenara que erguessem um monte no maior de seus pátios e nele fizessem terraços com canteiros de peônias. As folhas jovens estavam cheias e os botões desabrochavam em grandes flores, côr-de-rosa, carmesins e de puríssimo branco. Todas as manhãs, centenas de novos botões esperavam a sua chegada, e mais ansiosamente do que antes corria para o Salão do Trono, levantava-se agora para contemplá-los. Havia dormido, como de costume, com as suas compridas calças amarradas no tornozelo e macia túnica de seda de mangas largas. Depois de banhar-se, vestiu outras calças e túnica de seda rosa, um manto curto de seda azul, que lhe caía apenas até os tornozelos, pois pretendia passar o dia inteiro com suas flores e pássaros, e não queria tolher seus movimentos com um manto comprido. Enquanto um velho eunuco lhe penteava os cabelos, ela observava as damas da corte fazerem a sua vasta cama, porquanto não permitia que criadas, eunucos ou velhas tocassem o seu leito, dizendo que eram sujas, que tinham mau hálito ou qualquer outro defeito. Assim, somente as jovens e sadias damas arrumavam a sua cama e ela observava tudo quanto faziam, a fim de não se descuidarem do menor detalhe. Em primeiro lugar, as colchas e os três colchões deviam ser levados para o pátio a fim de serem arejados e ficarem expostos ao sol o dia todo - abria uma exceção nesse particular, permitindo que os eunucos carregassem os colchões. Em seguida as damas removiam o feltro que cobria o fundo tecido da cama, limpando este com uma pequena vassoura feita de pêlos de cavalo
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trançados. Tinham também de tirar o pó de todas as reentrâncias do profundo entalho dos lados de madeira da grande cama, bem como da armação que suportava as cortinas de cetim. Finalmente colocavam sobre o feltro os três colchões que haviam sido arejados e banhados pelo sol no dia anterior, cobrindo-os de cetim brocado. Eram então estendidos os lençóis de seda, delicadamente colorida, muito suave e macia, e em cima deles eram então postas seis colchas de púrpura pálida, azul, verde, rosa, cinza e marfim. Para cobrir estas últimas, as damas estendiam uma coberta de cetim amarelo, bordada com dragões dourados e nuvens azuis. Nas cortinas da cama eram presos saquinhos contendo flores secas com almíscar, que eram substituídos quando o perfume começava a enfraquecer.
Depois que o eunuco lhe penteou os cabelos, dividindo-os no meio, trançando-os e em seguida fazendo um coque no topo da cabeça, colocou-lhe o alto diadema manchu que ela sempre usava, prendendo-o no coque com dois longos alfinetes. A própria Imperatriz Mãe dispôs no diadema as flores frescas que adorava e para esse dia escolhera orquídeas perfumadas, recém-colhidas. Posto o diadema com as orquídeas, tornou a lavar o rosto, desta vez sozinha, esfregando sua pele alva com espuma de sabão perfumado. Retirou a espuma com água bem quente, amaciando em seguida a pele com uma loção feita de mel, leite de jumenta e óleo de casca de laranja. Absorvido esse preparado, passou no rosto um pó rosa-pálido, fino, suave e perfumado.
Faltava-lhe apenas escolher as jóias para o dia. Para isso mandara buscar suas listas e leu o número de uma caixa de jóias. Uma dama, cujo dever consistia em cuidar das jóias, dirigiu-se ao aposento contíguo à alcova, onde eram guardadas. Nas prateleiras que revestiam as paredes havia caixas de ébano, todas numeradas, cada qual com sua fechadura e chave de ouro, havendo na tampa de cada caixa dizeres indicando as jóias que continha. Havia cerca de três mil caixas ao todo, mas essas jóias eram apenas para o uso diário. Além desse aposento existia outro, fortemente fechado, onde eram guardadas as jóias oficiais, que a Imperatriz Mãe somente usava por ocasião das cerimônias imperiais. Naquele dia, como seu manto fosse azul, escolheu safiras e aljôfres engastados em brincos, anéis, braceletes e um longo colar.
Colocadas as jóias em seu corpo, tinha de escolher o lenço. Era o último toque da sua toilette, a ser decidido depois de terminado tudo o mais; escolheu então uma gaze da índia, branca com bordados de flores amarelas e azuis, que prendeu no botão de safira do manto. Com isto estava pronta para a refeição matinal, cujos pratos a esperavam em seu pavilhão. Debaixo de cada prato ardia uma pequena lâmpada para conservar quente a comida. Beliscou de um e outro prato, provando daqui e dacolá, enquanto as damas Permaneciam à distância. Provou de cerca de vinte pratos, tomando
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em seguida uma tigela de caldo de milho miúdo. Somente depois disso é que suas damas tinham permissão de se aproximarem para escolher o que ela houvesse rejeitado, e assim fizeram, um tanto timidamente, cuidando em não tocar nos pratos que ela havia escolhido.
Mas nesse dia a Imperatriz Mãe estava num estado de espírito alegre. Não dirigiu censuras a nenhuma, foi amável com seus cães, esperando cortêsmente que suas damas terminassem a refeição, antes de alimentá-los. Nem sempre era assim tão amável, pois quando, por algum motivo, se encolerizava, alimentava seus cães antes das damas, dizendo que somente em seus cães podia confiar como amigos, sempre afetuosos, sempre leais.
Depois que todos comeram, encaminhou-se para os seus jardins, a fim de contemplar sua montanha de peônias. Era a estação da volta dos pássaros e a Imperatriz, enquanto caminhava, ouvia a doce e silvestre música que tanto amava. Quando um pássaro chamava, ela respondia, apertando os lábios e replicando com tanta perfeição que, momentos depois, permanecendo imóvel no meio do jardim, suas damas à distância, os cães presos, surgia por entre os bambus um tentilhão de peito amarelo e a Imperatriz Mãe, emitindo sons persuasivos, atraía-o para junto de si, até fazê-lo pousar em sua mão estendida. Ali ficava êle, meio alarmado, meio enfeitiçado, enquanto a Imperatriz Mãe assumia uma expressão tão terna, tão encantadora, que suas damas se comoviam, maravilhando-se de que aquele mesmo rosto pudesse mostrar-se às vezes tão duro e cruel. Depois que o pássaro tornava a voar, a Imperatriz Mãe dizia às damas que se aproximassem e, como gostava de fazer, instruía-as dizendo:
- Viram como a bondade afetuosa domina o medo, até mesmo dos animais. Que esta lição fique gravada em seus corações.
- Sim, Majestade, murmuravam elas, maravilhando-se de novo porque aquela mulher imperial podia ser tão variada, generosa e bondosa, de fato, sabendo ser também, como o sabiam no íntimo, vingativa e impiedosa.
Mas aquele era um bom dia, seu estado de espírito alegre continuava, e as damas prepararam-se para divertir-se com ela. Era o terceiro dia do terceiro mês do ano lunar e a Imperatriz Mãe lembrou-se duma peça que escrevera, pois agora que o peso dos negócios públicos se achava sobre os ombros de seu filho, o Imperador, ela gozava o seu ócio não apenas pintando, mas também escrevendo peças teatrais. Essa mulher imperial, de gênio tão rico e diverso, poderia ter escolhido sua própria grandeza, se fosse capaz de sobrepor um dos seus dons a outro, mas não sabia de que gostava mais e assim dedicava-se um pouco a cada um e em todos se salientava. Quanto aos negócios do Estado, que a haviam absorvido até o momento em que seu filho se sentou no Trono do Dragão,
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pareciam agora esquecidos ou ignorados, porém os eunucos eram seus espiões e, através deles, ela sabia de tudo.
Após passear pelos seus jardins durante uma hora, e depois de ter descansado e comido de novo, dirigiu-se amàvelmente às suas damas:
- Hoje está fazendo um lindo dia, não há vento, o sol aquece, e seria um bom passatempo vermos os atores da Corte representarem minha peça A Deusa da Misericórdia. Que lhes parece?
Todas as damas bateram palmas de contentamento, mas o Eunuco-Chefe, Li Lien-ying, curvou-se dizendo:
- Majestade, atrevo-me a recear que os atores ainda não decoraram seus papéis. A peça é muito sutil, as falas devem ser proferidas com segurança e clareza, de modo que não se percam o humor e a fantasia da obra.
A Imperatriz Mãe não aprovou o que êle disse.
- Os atores tiveram muito tempo, tiveram tempo até demais, declarou ela. - Vá dizer-lhes imediatamente que esperarei ver a cortina erguer-se antes do período seguinte do relógio d'água. Entrementes farei minhas preces diárias.
Assim dizendo, a Imperatriz Mãe caminhou com a sua graça habitual através de um pavilhão que conduzia ao seu templo particular, onde um Buda de jade branco se achava sentado sobre uma grande folha de lótus de jade verde, segurando na mão direita uma flor de lótus de jade vermelho-rosa. À sua direita achava-se o delgado Kuan Yin e, à sua esquerda, o Deus da Longa Vida. A Imperatriz Mãe postou-se diante do Buda, sem ajoelhar-se, mas baixando a sua altiva cabeça enquanto rezava desfiando as contas de um rosário de sândalo, que retirara do altar.
O mit t'o fu" murmurava ela para cada conta que desfiava, até chegar à centésima oitava, que era a última. Em seguida colocou o rosário no lugar de onde o retirara, queimou um bastão de incenso na urna sobre o altar e baixou de novo a cabeça enquanto a fragrante fumaça se erguia em espirais. Tinha o cuidado de rezar todos os dias. Embora rezasse primeiro ao Buda, que era Senhor do Céu, nunca saía do templo sem curvar-se também perante a Deusa da Misericórdia. Amava extravagantemente a essa deusa, imaginando, em seus pensamentos secretos, que as duas eram irmãs• - uma, Rainha do Céu, e outra, Rainha da Terra. Às vezes, no meio da noite, chegava a dirigir-se à deusa, murmurando-lhe atrás das cortinas do leito:
- Irmã do Céu, considere meus problemas. Esses eunucos... mas há também eunucos no céu, Irmã? Duvido que eunuco seja apto para o céu! Mas quem serve a você e aos seus anjos, Irmã Celestial? Decerto que nenhum homem, mesmo no céu, pode ser suficientemente puro para estar perto de Você.
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E, às vezes, agora que dispunha de tempo para recordar, perguntava à deusa se era possível que no Céu se recebesse pelo menos um amante fiel. Nem só isso, ela até lhe mencionava o nome.
"Irmã no Céu, você conhece meu parente Jung Lu e sabe que seríamos marido e mulher se não fosse o meu destino. Diga-me, será que nos poderemos casar em alguma outra encarnação, ou eu continuarei sendo demasiado grande? Eu, sentada à sua mão direita, no Céu, Irmã, rogo-lhe que o eleve até mim, de modo que afinal possamos ser iguais, da mesma maneira que minha irmã, a rainha inglesa, Vitória, conseguiu elevar o seu Consorte".
Dizia quase a verdade à deusa, e agora, fitando-lhe o puro rosto pensativo, perguntava-se se a Irmã Celestial sabia toda a verdade, dita ou não, naqueles pensamentos da meia-noite.
Ao sair do templo, conduziu suas damas e seus cães através de um amplo pátio no qual havia dois grandes cestos feitos com achas de cedro, dentro dos quais cresciam velhos sarmentos de glicínia púrpura. Estavam em flor, perfumando o ar com a sua fragrância que se difundia através dos pavilhões e corredores dos palácios. Era a sua época e a Imperatriz Mãe ia todos os dias ver as glicínias em flor. Atravessou esse pátio, após admirar as flores, seguida de seu cortejo, e depois encaminhou-se, por um corredor, construído na encosta de um monte, chegando assim ao seu teatro.
O teatro era diferente de qualquer outro do reino e também - acreditava ela - do mundo inteiro. Ao redor dum grande pátio aberto erguia-se uma construção de cinco pavimentos, aberta na frente, dando para o pátio. Os três andares mais altos eram depósitos de roupas e cenários. Os dois andares inferiores eram palcos, um sobre o outro, o superior em formato de templo para as peças sacras relativas a deusas e deuses, que a Imperatriz Mãe preferia, pois tinha uma constante curiosidade pelas vidas dos Seres Celestiais. No interior do palácio havia dois compridos prédios providos de salas de estar, onde a Corte se instalava quando era convidada pela Imperatriz Mãe. Esses prédios elevavam-se três metros acima do solo, no nível do palco inferior, revestidos de vidro, de modo que nem o vento nem o frio pudessem impedir a Imperatriz Mãe de assistir aos espetáculos. No verão as vidraças eram afastadas e substituídas por cortinas de gaze, podendo-se ver nitidamente através delas, contudo suficientemente fortes para vedar a passagem de moscas e mosquitos, mas principalmente moscas, cuja proximidade a Imperatriz Mãe não suportava. E se uma mosca se sentava numa tigela de comida, ela recusava-a mesmo para os seus cães. Nesses prédios havia três aposentos que somente ela podia usar, dois para sentar-se, um dos quais uma biblioteca, a fim de que pudesse abrir um livro quando a peça fosse insípida, e o terceiro para dormir quando tivesse vontade, acordando de novo quando a peça se tornasse mais animada.
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Nesse dia, como já passasse das doze horas, escolheu a sala de estar e sentou-se no trono almofadado, cercada de suas damas, para assistir à peça que escrevera. Não era a primeira vez que a veria representada, mas não ficara satisfeita com a interpretação dos atores e determinara algumas modificações. Em segredo eles queixavam-se de que ela esperava alguma mágica de sua parte, mas não havia maneira de fugir e nesse dia realizaram milagres, inclusive fazendo com que uma grande flor de lótus se erguesse no meio do palco, sobre a qual estava sentada a Deusa da Misericórdia viva, que era um jovem e delicado eunuco, de rosto tão suave e belo que parecia uma formosa moça. Quando a deusa se levantou do centro do lótus, surgiu à sua direita um rapaz e à sua esquerda uma jovem, os quais eram seus assistentes. A moça segurava um jarro de jade no qual havia um ramo de salgueiro, pois diz a lenda que se a deusa coloca um ramo de salgueiro num jarro de jade e o ergue sobre um cadáver, restitui a vida ao morto. A Imperatriz Mãe introduzia muitos episódios mágicos em suas peças, pois encantavam-na as magias de toda espécie e ouvia com sofreguidão as histórias e lendas contadas pelos eunucos que eram sacerdotes budistas no templo imperial. E preferia as histórias de magia oriundas da índia, trazidas pelos sacerdotes budistas peregrinos, mil anos antes, as quais falam de runas e rimas sagradas, de talismãs e de palavras secretas que, quando cantadas, faladas ou pronunciadas, podem tornar um homem inviolável a um golpe de lança ou a uma pancada. Chegava quase a acreditar nessas histórias apesar de sua argúcia e desconfiança naturais, porquanto sentia-se forte demais para morrer e vivia pensando que talvez houvesse uma mágica que anulasse a morte e a fizesse eterna. Todas essas imaginações e esperanças e a ânsia de crer no poder celestial, metade fantasia metade fé, ela transpunha para as suas peças, desenvolvendo um talento quase mágico para compô-las, porque as dirigia pessoalmente, orientando inclusive os cenários, inventando cortinas, alas inclinadas e recursos outros dos quais nunca ouvira falar, mas que extraíra de sua fértil imaginação.
Terminada a peça, bateu palmas - fora de fato bem representada e ela se sentiu lisonjeada como autora. Como de costume, quando estava alegre, declarou que tinha fome. Os eunucos-servos acorreram a preparar as mesas para a refeição. Era hábito da Imperatriz Mãe tomar suas refeições onde quer que estivesse e agora, enquanto estava esperando, conversava com suas damas e lhes fazia perguntas sobre a peça, desejando saber o que pensavam, e encorajava-as a apontar suas falhas, pois tinha um espírito suficientemente superior para não temer seu julgamento, ansiosa apenas por aperfeiçoar os seus trabalhos. Postas as mesas, os eunucos-servos formaram duas longas filas até as cozinhas situadas muitos pátios além, passando os pratos de alimento quente de mão em mão, com
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grande rapidez, até entregá-los aos quatro eunucos copeiros que os depositavam sobre as mesas. Então as damas recuaram para que a Imperatriz Mãe escolhesse o que lhe agradasse e ela de fato comeu com grande apetite. Como estivesse de bom humor, apiedou-se das damas famintas e disse a um eunuco que tomaria o chá na biblioteca, retirando-se em seguida. Acompanharam-na dois eunucos, um levando sua taça de jade branco, num pires de puro ouro, coberto com um coador de ouro, e o outro levando uma bandeja de prata com duas tigelas de jade, uma cheia de flores de madressilva e a outra com pétalas de rosa, juntamente com um par de pauzinhos de marfim, com pontas de ouro. A Imperatriz gostava de misturar essas flores ao chá, em tão delicada proporção que ela preferia fazê-lo pessoalmente.
Foi quando sorvia seu chá que a atual sombra de sua vida caiu pesadamente sobre ela. Sentada no seu almofadado sofá, ouviu uma tosse seca junto da porta e reconheceu a voz do Eunuco-Chefe Li Lien-ying.
- Entre, ordenou ela.
Êle entrou, curvou-se, ao passo que os eunucos ao redor dela esperavam.
- Por que sou incomodada? inquiriu a Imperatriz Mãe. Li Lien-ying ergueu a cabeça.
- Majestade, peço para falar-vos a sós.
Ela afastou a taça de chá e fêz um gesto com a mão direita. Todos se afastaram, um eunuco fechou a porta.
- Levante-se, disse ela ao Eunuco-Chefe. - Sente-se ali. Que fêz o Imperador?
O alto e fantasmagórico eunuco ergueu-se e sentou-se na extremidade de uma cadeira, desviando sua face hedionda e enrugada, de sua soberana.
- Roubei este memorial dos arquivos, disse êle. - Tenho de repô-lo dentro de uma hora.
Tornando a levantar-se, tirou de seu traje um papel dobrado num comprido e estreito envelope e, ajoelhando-se diante dela, entregou-o com ambas as mãos, permanecendo de joelhos enquanto ela o lia rapidamente. Conhecia a letra. Era de Wu K'o-tu, o mesmo membro do Conselho de Censores Imperiais que outrora desejara apresentar ao Trono um memorial sobre o recebimento dos estrangeiros e que ela rejeitara. Esta vez o memorial era dirigido ao Imperador, seu filho.
"Eu, humilde escravo, apresento agora este memorial secreto suplicando ao Trono que ponha fim ao conflito oficial, concedendo permissão aos ministros dos governos estrangeiros para que permaneçam de pé, ao invés de se ajoelharem, perante o Trono do Dragão, demonstrando com esta permissão a magnanimidade imperial e o
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prestígio do Homem Superior. Até agora nada foi realizado por apego à tradição e os ministros estrangeiros são apenas estranhos."
A Imperatriz Mãe sentiu a velha fúria rugir-lhe no peito. Seria a sua vontade novamente discutida? Seu próprio filho se ergueria contra ela? Se o Trono do Dragão não fosse mais venerado, que honra respeitaria?
Seus olhos percorreram rápidos as linhas manuscritas e detiveram-se numa citação de um sábio antigo. "Como escreveu Mencius, "Por que se empenharia o Homem Superior em luta com as espécies inferiores dos pássaros e das bestas?"
Ela exclamou, apaixonadamente:
- Esse maldito Censor deforma até mesmo as antigas palavras de um grande sábio, para atingir os seus fins!
Não obstante, continuou a leitura para descobrir a íntegra do pensamento de Wu K'o-tu.
"Ouvi dizer que os governantes de nações estrangeiras são depostos pelos seus súditos como se fossem bonecos. A razão desse fato consistirá em que esses governantes sejam meros homens e não haja entre eles um Filho do Céu? Vi, com meus próprios olhos, estrangeiros caminhando nas ruas de Pequim como se fossem servos e sem vergonha, suas mulheres caminhando na frente ou em palanquins. Em todos os tratados que esses estrangeiros fizeram conosco, não há uma só palavra relativa à reverência aos pais e mais velhos, nem respeito pelos nove cânones de virtude. Não há qualquer menção aos quatro princípios, isto é, observância da cerimônia, o dever individual para com os outros seres humanos, a integridade de caráter e o senso de vergonha. Ao invés disso, falam apenas e sempre de proveitos comerciais. Tais homens não conhecem o significado do dever, da cerimônia, da sabedoria e da boa fé. Esperamos, contudo, que se comportem como criaturas civilizadas. Não conhecem o sentido das cinco relações, a primeira das quais é a do soberano com o súdito, contudo esperamos que se comportem como se o conhecessem. Seria o mesmo se levássemos porcos e cães ao Salão de Audiência e esperássemos que se prostrassem diante do Trono do Dragão. Se insistimos em que tais homens se ajoelhem, de que modo poderá isso acentuar o brilho do Trono?
"Ademais, esses estrangeiros se atrevem mesmo a dizer que os seus absurdos governantes, aos quais têm a presunção de chamar imperadores, estão situados no mesmo nível que Sua Sagrada Majestade. Se não damos importância a uma vergonha desse porte, por que nos incomodarmos com o fato de que seus enviados se recusam a ajoelhar-se? Quando, dois anos antes, os bárbaros russos atacaram a China, por Ili e todo o noroeste, apoderando-se de trechos de nossas terras, praticando uma agressão nunca dantes conhecida na História, nossos estadistas não demonstraram a menor vergonha.
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Por que então qualificamos de humilhação a recusa dos estrangeiros em se ajoelharem perante o Trono do Dragão? E, na verdade, como poderemos forçá-los a se ajoelharem, se não querem fazê-lo? Temos exércitos e armamentos para obrigá-los? Devemos pensar, também, nesse ponto. O sábio mestre Confúcio, quando perguntado em que consistia a arte de governar, redargüiu que eram necessários três requisitos: abundância de alimentos, abundância de soldados e confiança do povo. Perguntado se algum desses requisitos podia ser dispensado em caso de necessidade, o mestre respondeu: "Dispense primeiro as tropas, depois o suprimento de alimentos". Se, por conseguinte, nosso governo imperial não é capaz de obrigar os estrangeiros a obedecer, é melhor que represente o papel de generoso, do que despertar as dúvidas do povo.
"Parece, portanto, que o Trono deva expedir um decreto dispensando os enviados estrangeiros das cerimônias da Corte e se, no futuro, esses estrangeiros praticarem atos ofensivos por ignorância, tais atos não deverão ser tomados em consideração, pois é inútil discutir com eles. Ao mesmo tempo, deve-se explicar aos estrangeiros e ao povo que esse decreto é um ato de clemência e de modo algum um precedente. Entrementes continuemos a reforçar nossos exércitos, à espera do momento oportuno.
"Eu, autor deste desvalioso memorial, não passo de um habitante ignorante de um selvagem e remoto distrito e nada sei dos negócios de Estado. Demasiado ousado e temerário, apresento esta petição, sabendo que, ao fazê-lo, me torno passível de pena de morte."
Naturalmente colérica contra a audácia dos enviados estrangeiros, cólera esta intensificada agora pelos conselhos do Censor, as mãos da Imperatriz Mãe contraíram-se para rasgar o memorial em mil pedaços e atirá-los fora, porém era demasiado prudente para ceder aos próprios impulsos. Aquele Wu K'o-tu era homem sábio, idoso e de alta nobreza. Fazia mais do que pregar deveres e cerimônias - praticava-as com o máximo rigor, sem subtrair-se a nenhuma. Quando a Corte fugira para Jehol e os estrangeiros tomaram a Capital, Wu K'o-tu permanecera na cidade com sua velha mãe que estava gravemente enferma. Arriscando a vida, ficara ao lado dela, ordenando a fabricação do melhor féretro que se poderia obter naquele transe. Quando ela morreu, cerrou-lhe os olhos e esperou que a colocassem confortàvelmente no caixão. Mesmo depois disso não queria deixá-la; alugou um carro por alto preço e acompanhou-a ao templo de outra cidade, onde ela podia repousar em paz e segurança até o dia em que fosse possível realizar o funeral.
A Imperatriz Mãe sabia que uma tal retidão era de fato rara e conteve a raiva, dobrando o memorial e devolvendo-o ao EunucoChefe.
- Torne a pô-lo onde o encontrou, disse sem dignar-se a revelar-lhe o que pensava, dispensando-o de sua presença.
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Mas o seu alegre estado de espírito desaparecera. Não pôde mais divertir-se no teatro aquele dia. Ficou meditando enquanto os atores representavam seus papéis e não ergueu a cabeça para ver o que faziam nem ouviu as suas mais sedutoras canções. Em meio à última cena, uma gloriosa exibição de todo o elenco, vestidos todos como Seres Celestiais, cantando reunidos ao redor da Rainha do Céu, enquanto a seus pés se agachavam vários pequenos macacos, vivos porém treinados para representar o papel de diabos que haviam sido dominados pelo bondoso poder da deusa, a Imperatriz Mãe levantou-se sem uma palavra e se afastou tão rapidamente que as damas, embevecidas pela peça, só perceberam a sua saída quando ela já não estava mais presente. Então, apressadas e confusas, partiram à sua procura. Não obstante, ela conservou-as à distância com um gesto imperioso e voltou sozinha ao seu palácio.
Só então foi que falou, para mandar um eunuco chamar Li Lienying de novo.
O Eunuco-Chefe veio a passos gigantescos e encontrou-a sentada - em sua grande cadeira esculpida, na biblioteca, mas não lendo - ela estava imóvel como uma deusa. Tinha a face pálida e seus grandes olhos reluzentes estavam frios.
- Peça a meu filho que venha verme, disse ela ao ver o eunuco. A voz era fria, tão fria como a prata.
Êle curvou-se e ela ficou esperando. Quando uma dama abriu a porta, afastou-a com um gesto e a porta tornou a fechar-se. Passavam-se os minutos e o Eunuco-Chefe não voltava. Decorreu uma hora e êle ainda não tinha chegado, nem aparecera qualquer mensagem do Imperador. A Imperatriz Mãe continuava sentada enquanto a luz da tarde se apagava nos pátios e o crepúsculo invadia a ampla biblioteca. Ela ainda esperava. Os eunucos-servos, caminhando sem ruído, acenderam as velas nas lanternas pendentes e ela deixou-os fazer, sem falar até que a última fosse acesa. Então disse, na sua fria voz argentina:
- Onde está o Eunuco-Chefe?
- Majestade, redargüiu um eunuco, curvando-se, êle está do lado de fora, no Pavilhão de Espera.
- Por que não entra?
- Majestade, êle está com medo. (A voz do eunuco tremia).
- Mande-o a mim, ordenou ela.
Um instante depois entrava Li Lien-ying, emergindo como uma alta sombra, do jardim escuro. Atirou-se aos seus pés e ela examinou a sua figura encolhida.
- Onde está meu filho? perguntou sem cólera aparente, apenas com a frieza argentina de sua voz.
- Majestade, não me atrevo... balbuciou êle interrompendo-se.
- Não se atreve a transmitir-me a resposta dele?
- Majestade, mandou dizer que está indisposto.
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A voz do eunuco saiu abafada, pois tinha o rosto colado nas suas grandes mãos.
- E êle está mesmo indisposto? perguntou em tom negligente.
- Majestade... Majestade...
- Não está indisposto, concluiu ela. Ergueu-se, atitude graciosa e controlada.
- Se não quer vir a mim, irei eu a êle, disse afastando-se tão rápida que o eunuco teve de pular para segui-la. Não lhe deu atenção, não olhou para trás, e como ordenara às damas que a deixassem, ninguém sabia que ela saíra, exceto o Eunuco-Chefe e os eunucos-servos que se achavam em seus postos no pavilhão, corredor e portão. No entanto nenhum se atreveu a mexer-se, embora se entreolhassem à passagem da Imperatriz. Pois a Imperatriz Mãe caminhava como se tivesse asas, olhando para a frente, os negros olhos ardendo na face pálida. E atrás dela seguia Li Lien-ying, sem atrever-se a parar para explicar a ninguém o que sucedia, porquanto até mesmo os seus largos passos não bastavam para mantê-lo perto da veloz figura imperial de brilhante manto azul e ouro.
Ela encaminhou-se diretamente ao palácio do Imperador e, alcançando o esplêndido pátio, galgou os degraus de mármore que conduziam ao terraço de mármore. As portas estavam fechadas, mas filtrava-se luz através das cortinas de gaze e ela olhou para dentro. Lá estava seu filho, reclinado num grande sofá almofadado, e inclinada sobre êle estava Alute. A jovem Consorte segurava um cacho de cerejas e levava-o aos lábios do Imperador, cerejas têmporas que tinham vindo do sul, tais como êle gostava. Procurava alcançá-las com a boca, a cabeça atirada para trás, rindo tão alegremente como a Imperatriz Mãe nunca o tinha visto rir. Ao seu redor achavam-se os eunucos e as damas da jovem Imperatriz e todos riam como crianças.
Ela abriu a porta de par em par e ali ficou, luminosa como uma deusa, contra as trevas da noite. A luz de centenas de velas caiu sobre os seus trajes reluzentes e o diadema que coroava a sua bela e furiosa face. Relanceou seus olhos, enormes e brilhantes, sobre todos à direita e à esquerda até se deterem sobre seu filho e Alute.
- Meu filho, soube que você estava doente e vim vê-lo, disse em sua voz doce e cruel.
Êle se pôs imediatamente de pé, enquanto Alute permanecia como uma estátua, imóvel, as cerejas ainda pendendo de sua mão.
- Vejo que está de fato doente, disse a Imperatriz Mãe sem desviar os olhos da face do filho. - Ordenarei aos médicos da Corte que o examinem imediatamente.
Êle não podia falar. Olhava a mãe com uma expressão doentia de medo.
- E você, Alute, continuou a Imperatriz Mãe, proferindo cada palavra com fria e clara distinção, espanta-me que não considere
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a saúde de seu senhor. Êle não deve comer frutas frescas quando está doente. Descuida-se muito dos seus deveres para com o Filho do Céu. Mandarei puni-la.
O Imperador fechou a boca, que estava aberta, e engoliu em seco.
- Mãe... gaguejou, suplico-lhe, não é culpa de Alute. Eu estava cansado... a audiência durou quase o dia inteiro. Senti-me realmente mal.
A Imperatriz Mãe lançou-lhe de novo o seu olhar terrível. Avançou três passos.
- Ponha-se de joelhos! exclamou. - Pensa que, por ser Imperador, não é meu filho?
Durante todo esse tempo Alute não se movera. Continuava ereta, fisionomia altiva e sem temor no olhar. Agora deixou cair as cerejas que se esquecera de largar e segurou o braço do Imperador.
- Não, exclamou em voz baixa e suave. - Não, você não se ajoelhará.
A Imperatriz Mãe avançou mais dois passos. Esticou a mão direita, o indicador apontando o chão.
- Ajoelhe-se! ordenou.
Por um longo instante o Imperador hesitou. Então libertou-se da mão de Alute.
- É meu dever, disse, caindo de joelhos.
A Imperatriz Mãe pousou nele o olhar, em meio a terrível silêncio. Sua mão direita voltou lentamente à posição normal.
- É bom que se lembre de seus deveres para com os mais velhos. Até mesmo o Imperador não é mais do que uma criança diante de sua mãe, enquanto ela estiver viva.
Ergueu então a cabeça e lançou um olhar perscrutador aos eunucos e damas.
- Saiam todos! ordenou. - Deixem-me só com meu filho. Um a um saíram todos, ficando apenas Alute.
- Você também, insistiu a Imperatriz inflexível.
Alute hesitou, depois, com um ar triste, ela também se afastou a passos silenciosos, nos seus sapatos de cetim.
Quando todos saíram, a Imperatriz Mãe mudou subitamente como um dia de primavera. Sorriu, aproximou-se do filho e passou-lhe na face a sua macia e perfumada mão.
- Levante-se, meu filho, disse gentilmente. - Sentemo-nos e raciocinemos juntos.
Mas ela sentou-se na cadeira tipo trono, que era dele, e êle sentou-se na cadeira baixa de Alute. Estava trêmulo, seus lábios tremiam, suas mãos torciam-se nervosamente.
- Até mesmo num palácio deve haver ordem, disse ela. Falava em tom calmo e cordial. - Fui obrigada a restabelecer a ordem das gerações diante dos eunucos e da Consorte. Para mim, ela é apenas a mulher de meu filho.
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Êle não respondeu, mas a ponta de sua língua emergiu por entre os dentes para umedecer os lábios secos.
- Agora, meu filho, continuou ela, fui informada de que você planeja em segredo, desafiar minha vontade. É verdade que receberá os enviados estrangeiros sem exigir-lhes reverência?
Êle reuniu todo o seu orgulho:
- Assim fui aconselhado, até mesmo pelo meu tio, Príncipe Kung, disse êle.
- E vai fazê-lo? inquiriu ela. Quem melhor que êle poderia sentir a lâmina cortante de sua adorável voz, argentina e perigosa.
- Vou fazê-lo, retrucou.
- Sou sua mãe. Proíbo-lhe.
O coração da Imperatriz Mãe enterneceu-se contra a vontade, ao fitar aquele rosto jovem e belo, a boca tão tenra, os olhos grandes e líquidos, e a despeito de toda a obstinação e voluntariosidade que êle demonstrava, discernia agora, como quando era menino, o medo secreto que tinha dela. Uma pontada de tristeza atravessou-lhe o coração. Queria-o tão forte que nem a ela própria temesse, pois qualquer medo é fraqueza. Se tinha medo dela, teria medo também de Alute, cedendo-lhe, de modo que algum dia ela, a mulher, poderia ser a mais forte. Não procurara freqüentemente Sakota, para confortar-se, em segredo? Agora talvez escapasse para Alute porque tinha medo de sua mãe, que o amava melhor do que uma jovem sabia amar. Renunciara a tudo, inclusive à sua feminilidade, por êle, fizera do destino dele o seu próprio.
As pálpebras dele baixaram de novo diante do olhar perscrutador de sua mãe. Aquelas pálpebras tinham cílios demasiado longos para um rosto de homem, mas fora ela quem lhos dera, eram iguais aos seus, e se uma mulher podia transmitir sua beleza ao filho, por que não podia também transmitir-lhe a sua força?
Suspirou, mordeu o lábio inferior e pareceu ceder.
- Que importa a mim se os estrangeiros se ajoelham ou não perante o Trono do Dragão? Penso apenas em você, meu filho.
- Eu sei, tornou êle. - Sei disso, Mãe. Tudo quanto você faz é por mim. Desejaria fazer algo por você, também. Não em questões de Estado, Mãe, mas algo de que você goste. Que gostaria de ter? Algo que a fizesse feliz... um jardim, ou uma montanha dentro de um jardim. Eu poderia mandar transportar uma montanha...
Ela ergueu os ombros:
- Tenho jardins e montanhas.
Mas comoveu-a o desejo dele em agradar-lhe. Então disse, lentamente:
- O que desejo não pode ser restaurado.
- Diga-me o que é, insistiu êle. Estava ansioso por sentir de novo a sua aprovação, saber-se protegido de sua cólera.
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- Para quê? redargüiu ela pensativamente. - Pode você extrair a vida dentre as cinzas?
Percebeu o que ela queria significar. Estava pensando no Palácio de Verão destruído. Falara-lhe muitas vezes de seus pagodes e pavilhões, de suas rochas e jardins. Ah, ela nunca perdoaria os estrangeiros por aquela destruição.
- Podemos construir um novo Palácio de Verão, Mãe, tornou êle vagarosamente, um como o antigo, de acordo com as suas recordações. Pedirei um tributo especial às províncias. Não devemos usar o dinheiro do Tesouro.
- Ah, observou ela argutamente, você está me subornando para fazer o que quer... você e seus conselheiros!
- Talvez, disse êle, erguendo as sobrancelhas e olhando-a de lado.
Súbito ela riu:
- Bem... Para que preocupar-me? Um palácio de verão? Por que não?
Ergueu-se, êle também se pôs de pé, e ela, estendendo as mãos, tornou a acariciar-lhe as faces com as suas mãos perfumadas. Depois partiu. Emergindo das sombras, Li Lien-ying seguiu-a.
Não têm fim os sofrimentos que os filhos provocam nos pais, quer vivam em palácios ou choupanas. A Imperatriz Mãe, informada freqüentemente por Li Lien-ying, seu principal espião, soube dias depois que o Imperador mentira ao dizer que o Príncipe Kung o aconselhara a receber os enviados estrangeiros sem exigir-lhes reverência. Na verdade o Príncipe Kung lembrara ao Imperador como os seus ancestrais se haviam recusado a conceder aos estrangeiros um privilégio que recusavam aos seus próprios súditos. No tempo do Venerável Ancestral Ch'ien Lung, exigira-se que o inglês Lorde McCartney se curvasse até o chão perante o Trono do Dragão, mesmo que, em compensação, um príncipe manchu tivesse de curvar-se da mesma maneira perante um retrato do monarca inglês, Rei George. O Príncipe Kung protelava sempre quando os enviados estrangeiros insistiam em ser recebidos na Corte, alegando a enfermidade do Secretário Imperial de Relações Estrangeiras. Essa doença prolongou-se durante quatro meses até que o próprio Imperador acabou com ela, ordenando que os enviados ocidentais se apresentassem perante o Trono do Dragão, provando assim que êle, e somente êle, era demasiado transigente e demasiado fraco.
Tais as informações que a Imperatriz Mãe ouviu certo dia em que se achava no seu jardim de orquídeas. Os dias de primavera tinham passado, estava-se no começo do verão, a estação mais bela, e ela não estava disposta a ocupar-se de negócios do Estado. Incitada pelo dia luminoso e encantador, dirigiu-se à sua biblioteca e, sobre uma ampla mesa, pôs-se a traçar um mapa do novo Palácio
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de Verão, antes de chamar arquitetos e construtores para transformarem seus sonhos em tijolos e mármore. Li Lien-ying aproximou-se.
- Traga-me o Príncipe Kung, ordenou ela após ouvir as suas informações. Pôs de lado os pincéis, para esperar a chegada do Príncipe.
Este encontrou-a caminhando para cima e para baixo diante das largas portas abertas para o pátio. As romãzeiras estavam floridas, suas flores vermelhas matizando as folhas verdes das árvores de copa mais espessa. A Imperatriz Mãe gostava das romãzeiras, tanto das flores como dos frutos. Amava o vermelho alaranjado de suas flores e o suco agridoce da polpa que cercava os milhares de caroços da fruta. O Príncipe Kung sabia dessa preferência e, ao chegar, depois de fazer a reverência de praxe, falou-lhe primeiro de romãs.
- Majestade, vossas árvores estão belas. Não tenho visto outras como essas. Tudo quanto está perto de vós adquire vida nova.
Já então havia aprendido a falar-lhe com submissão e graça.
Ela inclinou a cabeça, pois os louvores sempre lhe agradavam, disposta a mostrar-se generosa para com êle por não haver aprovado a vontade do Imperador.
- Conversemos aqui, no pátio, disse ela.
Sentaram-se, a Imperatriz num assento de porcelana e êle, após um esboço de recusa, num banco de bambu.
- Para que tomaria o seu tempo? começou ela. - Mas soube que o Imperador, meu filho, deseja receber os enviados estrangeiros sem exigir-lhes reverência. Isto me preocupa muito.
- Majestade, êle é curioso como uma criança, redargüiu o Príncipe Kung. - Está ansioso por olhar um rosto estrangeiro.
- Serão os homens sempre crianças? exclamou ela. Estendeu a mão, tirou uma flor de romã, despedaçou-a e deixou-a cair. Êle não respondeu, permanecendo em silêncio até que ela perdeu a paciência. - Bem, bem, e o senhor não lho proibiu? O senhor é da geração mais velha.
O Príncipe Kung ergueu as sobrancelhas:
- Majestade, como posso contrariar o Imperador se êle tem o poder de cortar-me a cabeça?
- Sabe que eu não permitiria semelhante coisa, atalhou ela.
- Majestade, agradeço-vos, replicou o Príncipe Kung. - No entanto creio que sabe que a Consorte exerce sobre êle uma influência cada vez maior. Boa influência, se me permitis, porquanto o mantém afastado da companhia de eunucos e as casas de flores de baixa espécie, onde costumavam levá-lo, disfarçado.
- Ah, mas quem influencia a Consorte? inquiriu a Imperatriz Mãe asperamente. - Ela não me procura, exceto quando o dever
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a compele a demonstrar-me respeito. Está sempre calada quando nos encontramos.
- Majestade, eu não sei.
Ela sacudiu as pétalas de seu regaço de cetim.
- O senhor sabe. É a Imperatriz Viúva... minha prima Sakota. Êle curvou a cabeça, permanecendo em silêncio por um instante.
Depois disse, conciliador:
- Majestade, pelo menos os enviados estrangeiros não deviam ser recebidos no Salão Imperial de Audiência.
- Certamente que não, concordou ela, com o pensamento desviado, como êle pretendera. Refletiu um momento, o sol iluminando-lhe a cabeça através dos galhos da romãzeira, e as mãos tranqüilamente cruzadas sobre o colo. Súbito sorriu.
- Achei! Que sejam recebidos no Pavilhão da Luz Purpurina. Não saberão que não é o palácio adequado. Assim nos ateremos à realidade e lhes daremos ilusão.
Êle não pôde resistir à sua malícia, embora relutando em concordar. Pois o Pavilhão da Luz Purpurina ficava no extremo mais distante do Lago do Meio, que fazia parte da fronteira ocidental da Cidade Proibida, e nele o Imperador, por tradição, recebia apenas os enviados das tribos exteriores, e isto apenas no primeiro dia do ano novo.
- Majestade, disse o Príncipe Kung, sois tão inteligente quanto o mais inteligente dos homens. Admiro vosso talento e vosso engenho. Ordenarei que assim se faça.
Ela ficou de bom humor, lisonjeada pelo seu aplauso e convidou-o a ver seus planos para o Palácio de Verão.
Ali ficou êle durante uma hora, examinando o rolo estendido sobre a mesa, onde ela havia traçado seus sonhos. O Príncipe ouvia sua conversa fluente, falando de rios serpenteando por entre rochas e alargando-se em lagos, de montanhas transportadas das províncias ocidentais e ornadas de árvores, fontes e palácios de tetos de ouro, pagodes dourados erguidos nas encostas da montanha e das praias de um grande lago. Não disse palavra, tão grande era a sua tristeza, não se atrevendo a abrir a boca a fim de exprimir a sua cólera contra tanto dinheiro desperdiçado, para não fazer com que ela o condenasse à morte. Afinal obrigou-se a murmurar entre os dentes:
- Quem, senão vós, Majestade, poderia conceber um palácio tão magnificente?
Pediu então desculpas e afastou-se rápido. Dirigiu-se imediatamente ao Grande Conselheiro Jung Lu, ardil que a Imperatriz Mãe adivinhou imediatamente quando, ao anoitecer daquele mesmo dia, antes do toque de recolher, seu eunuco anunciou-lhe que Jung Lu desejava uma audiência.
Naquele instante ela estava de novo debruçada sobre o mapa, o pincel desenhando um pagode alto e fino.
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- Que entre o Grande Conselheiro, disse ela sem erguer a cabeça, sabendo que Jung Lu não aprovaria o que estava fazendo e deixando-o permanecer atrás por um instante, antes de falar-lhe.
- Quem está aí? perguntou após uns momentos.
- Majestade, vós sabeis.
O som de sua voz profunda atingiu-lhe diretamente o coração, mas ela simulou indiferença.
- Ah... e para que veio? Não vê que estou ocupada?
- É esse o motivo da minha vinda. Suplico-vos, Majestade, que me ouçais pois dentro em pouco as portas serão fechadas.
Ela reconheceu o seu velho poder. Somente aquele homem, no mundo inteiro, ela temia porque êle a amava e não cederia à sua vontade. No entanto continuava tão voluntariosa agora como quando era menina, prometida a êle, e deixou-o esperar enquanto punha a tampa de jade na pedra de tinta e lavava o pincel num pequeno pote com água, empenhando-se em executar essas tarefas que, noutras circunstâncias, deixava a cargo de um eunuco. E êle esperava, sabendo muito bem o que ela fazia, e que ela sabia que êle sabia.
Finalmente atravessou a passos vagarosos o vasto salão, em direção ao seu trono, e sentou-se. Êle se aproximou, ajoelhou-se à sua frente como o costume exigia, e ela deixou-o ajoelhar-se, tendo nos olhos uma expressão cruel, risonha e terna ao mesmo tempo.
- Está com os joelhos doendo? indagou após um instante.
- Não tem importância, Majestade, tornou êle calmo.
- Levante-se. Não gosto de vê-lo ajoelhado diante de mim. Êle se levantou com dignidade, permanecendo de pé, enquanto ela o examinava dos pés à cabeça. Quando seu olhar alcançou os olhos dele, parou. Estavam sós e seus olhares podiam encontrar-se sem que houvesse uma testemunha para censurá-los. Seu eunuco achava-se longe, na entrada do salão, de guarda.
- Que fiz de errado? disse ela num tom suave como o de uma criança suplicante.
- Sabeis o que estais fazendo, redargüiu êle. Ela ergueu seus ombros de cetim.
- Não lhe falei ainda sobre o novo Palácio de Verão, porque sabia que outra pessoa lhe falaria... o Príncipe Kung, sem dúvida. Mas recebo o novo Palácio de Verão como um presente de meu filho. É vontade dele.
A isso Jung Lu respondeu com gravidade:
- Sabeis que não há dinheiro no tesouro, para um palácio de prazer, nos tempos atuais. O povo está sobrecarregado de impostos. Contudo novos impostos deverão ser cobrados em todas as províncias, caso esse palácio seja construído.
Ela tornou a erguer os ombros;
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- Não é necessário que seja dinheiro. Poderão pagar em pedras, madeira, rochas, jade e operários. Isto se encontra em toda parte.
- Os homens devem ser pagos, tornou êle.
- Não é necessário, redargüiu indiferentemente. O Primeiro Imperador não pagou aos camponeses que construíram a Grande Muralha. Quando morriam, êle mandava pôr seus ossos entre os tijolos e não havia necessidade de dinheiro nem mesmo para o enterro.
- Naquela época, observou êle no mesmo tom grave, a dinastia era forte. O povo não se atrevia a rebelar-se. O Imperador era chinês, não manchu, como nós, e a muralha destinava-se a proteger o próprio povo contra os inimigos invasores do norte. Mas estará o povo disposto, agora, a entregar bens e homens apenas para construir um Palácio de Verão para vós? E encontrar eis prazer num palácio cujas paredes estiverem cheias de ossos de homens que morreram por nada? Creio que nem mesmo vós podeis ser tão dura.
Êle e somente êle, em todo o mundo, poderia provocar-lhe lágrimas. Virou a cabeça, para escondê-las.
- Não sou dura... (sua voz era um sussurro) Eu estou... só. Tomou a ponta de seu lenço de gaze florida, preso no botão de jade do manto, e enxugou os olhos. Os fios entre o homem e a mulher esticaram-se, tensos. Ela ansiava por vê-lo avançar para si, a mão dele tocar a sua.
Jung Lu não se moveu. Falou de novo, em voz grave:
- Devíeis ter dito ao vosso filho, o Imperador, que não lhe fica bem presentear-vos com palácios quando a nação está ameaçada pela guerra, pela pobreza e pelas enchentes das províncias centrais. Era vosso dever adverti-lo.
Ela voltou a cabeça, lágrimas reluzindo entre os longos cílios e brilhando em seus olhos trágicos.
- Oh, este reino, exclamou ela, sempre houve miséria! Seus lábios tremeram e ela torceu as mãos. - E por que não lhe fala? Você é um pai para êle...
- Psiu... sibilou Jung Lu entre os dentes. Estamos falando do Imperador.
Ela abaixou a cabeça e lágrimas caíram sobre o cetim côr-de-rosa de suas vestes.
- Que vos dói? perguntou êle. Tendes tudo quanto desejastes. Que mais quereis? Existe no mundo mulher mais altamente situada que vós?
Ela não respondeu. Suas lágrimas continuaram a cair, enquanto êle prosseguia:
- A dinastia está salva, pelo menos enquanto viverdes. Fizestes um imperador, destes-lhe uma consorte. Êle a ama, e ela, sendo jovem e amando-o, dar-lhe-á um herdeiro.
Ela ergueu a cabeça, surpresa:
- Já?
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- Não sei, mas sem dúvida assim será, pois conheço o amor que os une.
Fitou-a nos olhos, apiedado.
- Vi-os há poucos dias, por acaso, sem saber que estavam perto. Era tarde e eu estava a caminho do portão grande, antes do toque de recolher. Achavam-se no Pavilhão dos Ventos Favoráveis.
- Perto demais do palácio da Imperatriz Viúva... murmurou ela.
- A porta estava aberta, prosseguiu Jung Lu, olhei irrefletidamente para dentro e vi-os ao crepúsculo, caminhando como duas crianças, de braços dados.
Ela mordeu o lábio, seu queixo redondo tremeu e as lágrimas jorraram de novo. Vendo-lhe a face, ainda mais bela no sofrimento, êle não se pôde conter.
Avançou três passos, em seguida mais dois, chegando tão perto dela como nunca estivera havia anos.
- Meu coração... disse em voz tão baixa que ninguém mais poderia ouvi-lo, eles têm o que eu e você nunca pudemos ter. Ajude-os a conservá-lo. Guie-os no caminho reto. Ponha toda a sua força e poder nesse novo reinado, pois está baseado no amor.
Porém ela não podia suportar mais. Levou as mãos ao rosto e soluçou alto.
- Oh, vá-se... soluçou. - Deixe-me... deixe-me só como sempre estive!
Tão violenta e profundamente soluçava que êle foi forçado a obedecer-lhe, para que outros não a ouvissem e ficassem a conjeturar por que motivo chorava. Hesitou, suspirou e recuou um passo, a fim de deixá-la, como ela pedia que fizesse.
Mas ela o observava através dos dedos e, ao ver que se iria sem confortá-la, retirou as mãos do rosto numa cólera tão súbita que as lágrimas se lhe secaram instantaneamente.
- Suponho... suponho... que você agora não ama a ninguém, exceto a seus filhos! Quantos filhos tem com... com...
Êle parou, cruzando os braços.
- Majestade, tenho três.
- Filhos? inquiriu ela.
- Não tenho filhos verdadeiros, disse êle.
Durante um longo momento seus olhares se encontraram numa dor e saudade recíprocas. Em seguida êle se afastou e ela ficou sozinha.
O Imperador T'ung Chih recebeu os enviados ocidentais antes do fim do sexto mês solar. A Imperatriz Mãe soubera-o através de Li Lien-ying e nada comentou quando êle lhe falou como era de seu dever.
A audiência realizou-se às seis horas, informou êle, logo depois do nascer do sol, no Pavilhão da Luz Purpurina. O Imperador sentara-se
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de pernas cruzadas, diante de uma mesa baixa posta sobre um estrado. Contemplara as estranhas faces brancas dos homens altos, ministros da Inglaterra, França, Rússia, Holanda e Estados Unidos. Todos, exceto os russos, vestiam trajes negros de tecido de lã, as pernas envoltas em calças apertadas e o busto em casacos curtos, como se fossem operários, e não usavam trajes de cerimônia. Cada um saíra de seu lugar, em fila, curvando-se diante do Imperador mas sem fazer reverência, não se ajoelhando nem encostando a cabeça no chão, e entregando ao Príncipe Kung um papel escrito para ser lido em voz alta. Esse papel estava escrito em chinês e seu sentido era sempre o mesmo - saudação da nação ocidental ao Imperador, felicitando-o pelo acesso ao Trono e desejando-lhe um reinado próspero e pacífico.
A cada qual o Imperador respondia de igual maneira. O Príncipe Kung subia ao estrado, caía de joelhos com a maior cerimônia, encostava a cabeça no chão e tomava das mãos de seu imperial sobrinho a resposta já preparada. Quando descia do estrado diante daqueles estrangeiros tinha o cuidado de observar com rigor todas as leis de conduta expostas séculos antes pelo sábio Confúcio. Parecia estar com pressa de cumprir seu dever, abria os braços como asas, suas vestes esvoaçantes, e mantinha a expressão preocupada para mostrar-se ansioso em servir ao seu soberano. Entregava a cada enviado estrangeiro a resposta escrita. Em seguida os enviados colocavam suas credenciais sobre uma mesa e, recuando, retiravam-se da Imperial Presença, satisfeitos, sem dúvida, pensando que haviam vencido, mas sem saberem que não se achavam no palácio e sim num simples pavilhão.
Tudo isso a Imperatriz Mãe ouviu, calada, os lábios curvados para baixo, uma expressão de escárnio nos olhos, o coração endurecido no peito. Como se atrevera seu filho a desafiá-la daquela maneira? Fora decerto encorajado por Alute, à qual agora amava mais do que à sua própria mãe. Pensava nos dois como Jung Lu os vira, de braços dados, e sentia o coração novamente apunhalado. Ferido, tornava-se ainda mais duro. E por que não teria ela, também, o que queria? perguntava a Imperatriz Mãe ao seu coração enrijecido. Teria o seu Palácio de Verão e o faria ainda mais magnificente porque... seu filho amava Alute.
Como uma seta disparada do céu, um pensamento terrível atravessou-lhe o cérebro. Se Alute desse à luz um filho varão, e Jung Lu afirmava que ela sem dúvida daria, pois de um forte amor nascem sempre filhos varões, então ela, Alute, se tornaria a Imperatriz Mãe!
- ó, estúpida que sou, murmurou para si mesma. - Como não pensei antes que Alute pretende realmente depor-me? Que serei eu, então, senão uma velha no palácio?
- Saia da minha frente! exclamou em voz alta para o eunuco.
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Êle obedeceu instantaneamente, zunindo-lhe nos ouvidos o grito agudo da soberana. Ela continuou sentada, imóvel como uma imagem de pedra, tramando de novo, em toda a sua solidão, a maneira de manter o poder.
Tinha de destruir o amor que Jung Lu lhe pedira que salvasse. Mas como?
Lembrou-se, de súbito, das quatro concubinas que escolhera para o Imperador, no dia do casamento. Viviam juntas no Palácio da Elegância Acumulada, esperando serem chamadas. Porém nenhuma fora chamada e nada indicava que o fossem, uma vez que Alute conquistara o coração do Imperador. No entanto uma dessas concubinas - lembrava-se agora a Imperatriz Mãe - era muito bonita. Três haviam sido escolhidas pelo nascimento e bom senso, mas a quarta era tão bela que até mesmo ela se sentira encantada por aquela juventude fascinante e plena de vida. Por que não reuniria essas jovens concubinas ao seu redor? Era o que iria fazer, instruindo-as pessoalmente e procurando introduzi-las, de alguma maneira, na alcova do Imperador, sob o pretexto de que êle necessitava de variação e divertimento, dizendo-lhe que Alute era demasiado séria, demasiado ansiosa em forçá-lo a trabalhar para o Estado, possuindo uma consciência demasiado forte para um homem tão jovem e amante dos prazeres. Esta quarta concubina não era de alta origem. Na verdade provinha de uma casa bastante humilde, mesmo para uma concubina, e somente a sua beleza persuadira os príncipes e ministros a incluir seu nome entre as virgens manchus. Aquele encanto poderia ser útil. A moça poderia enfeitiçar o Imperador fazendo-o voltar às suas aventuras fora dos muros do palácio. Alute perdê-lo-ia.
Enquanto a Imperatriz Mãe ruminava tais pensamentos, elaborando a sua trama, sabia que estava fazendo mal, porém resolvera fazê-lo. Não era uma criatura solitária, dentro do mundo? Ninguém se atrevia a amá-la, o medo era a sua única arma e se ninguém a temesse não tardaria a tornar-se uma velha no palácio, o negro véu dos anos cobrindo-a pouco a pouco, escondendo-lhe o espírito e o coração sob o corpo enrugado. Agora, enquanto era ainda bela, ainda forte, tinha de conquistar novamente o Trono, se assim fosse necessário, para salvar-se da morte em vida.
Sua memória recuou através dos anos. Viu-se de novo menina, trabalhando sempre além de suas forças na grande casa de seu tio Muyanga onde sua mãe não passava de uma cunhada viúva e ela própria não era mais que uma escrava. Onde quer que fosse, aquela menina que ela era, carregava nas costas a irmã mais jovem ou um irmão, e nunca tivera liberdade de correr e brincar, até estes chegarem à idade em que podiam andar sozinhos. E então porque era rápida e inteligente, ajudava na cozinha e nos quartos, sempre com uma vassoura na mão, ou cozinhando e costurando, ou indo ao
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mercado comprar peixes ou aves. À noite, ao deitar-se na cama que partilhava com sua irmã, adormecia imediatamente. Nem mesmo Jung Lu fora capaz de aliviar sua carga diária, pois era um rapaz que se transformara em homem e nada podia fazer por ela. Se se houvesse casado com êle, Jung Lu continuaria sendo guarda e na casa de ambos ela teria novamente trabalhado no pátio e na cozinha, gerando filhos e discutindo com criado e escravo, vigilante contra seus furtos mesquinhos. Quantos benefícios trouxera ao seu amado, tornando-se sua soberana ao invés de sua mulher! Contudo êle não lhe era grato, usando de seu poder apenas para reprová-la.
E seu filho, que sempre deveria amá-la, por direito e por gratidão, agora amava mais a sua esposa do que a sua mãe. Lembrava-se, todos os dias, de que êle chegava a amar Sakota, sua mãe substituta, mais do que a ela, sua verdadeira mãe, que passara horas infindáveis com aquele Imperador infantil que nunca fora um marido para ela, com a única preocupação de conquistar o trono para êle, seu filho. Oh, aquelas infindáveis e terríveis horas! Lembrou-se da pálida face amarela e das mãos quentes e doentias que lhe corriam o corpo e a náusea tornou a invadi-la.
E quão firmemente mantivera o Trono durante os doze anos de sua Regência, de modo que seu filho, quando se tornasse Imperador, fosse poupado dos perigos da rebelião e da conquista! Ela, e somente ela, atalhara os brancos e forçara ao pagamento de tributos até mesmo as tribos selvagens da Mongólia! Derrubara os levantes moslins em Yünnan e nas províncias de Shen-kan. Em paz e em segurança seu filho governava agora e apesar de reconhecer a sabedoria materna, não lhe vinha pedir orientação - a ela, que era a única pessoa capaz de guiá-lo.
Tais pensamentos infundiram uma negra energia solitária em sua mente. Seu sangue fluiu forte para o coração e todo o seu ser revigorou-se para lutar contra o seu destino atual. Magoada como estava, tão ferida e deprimida, esqueceu por completo o amor e consolidou sua vontade, estreita e aguda como uma espada, disposta a abrir de novo seu caminho para o poder.
Era, no entanto, demasiado justa, por natureza, para ceder apenas ao desejo de vingança. Precisava encontrar outros motivos que justificassem a sua retomada do poder. Quando seu filho começara seu reinado, um ano antes, o Império estava em paz, pela primeira vez, desde muitos anos. Agora, de súbito, surgiam novas perturbações. À distante ilha de Taiwan, povoada de tribos selvagens, tinham aportado alguns marinheiros salvos de um naufrágio. Os selvagens, ao verem aqueles estrangeiros, caíram sobre eles e mataram-nos. Eram marinheiros japoneses e quando o Imperador do Japão soube do assassinato de seus súditos, ordenou aos seus navios de guerra que transportassem soldados para aquela ilha. Estes reclamaram a ilha em seu nome, bem como outras ilhas próximas. Quando o Príncipe
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Kung, que era o Chefe da Secretaria de Relações Exteriores em Pequim, protestou contra semelhante invasão, o Imperador do Japão respondeu que declararia guerra à China.
Mas isto não era tudo. Durante quinze séculos os Imperadores da China haviam governado a região interior de Aname como suseranos. O povo da região era grato pela proteção recebida, porquanto tinha liberdade para escolher seus próprios chefes e estava garantido contra pilhagens. Tão poderoso era o Império Chinês que ninguém se atrevia a atacar seus povos tributários. Ninguém, exceto os brancos! Pois os franceses se haviam introduzido em Aname nos últimos cem anos e nos últimos vinte estabeleceram núcleos religiosos e comerciais de modo que a França compelira o Rei de Aname a assinar um tratado pelo qual cedia àquele país a província de Tonquim, que os bandidos chineses e os fora-da-lei atravessavam diariamente de um lado para o outro, a fim de realizarem o seu trabalho ilegal.
A Imperatriz Mãe sabia disso, mas não desejara preocupar-se com tais problemas, para poder dedicar-se ao seu novo palácio. Agora, de súbito, decidiu preocupar-se com eles. Declararia que seu filho nada fizera, que os príncipes estavam entregues aos prazeres e, a menos que se pusesse fim a essa apatia, o Império ruiria antes que a sua vida chegasse ao termo. Era seu dever, por conseguinte, tomar de novo nas mãos as rédeas do governo.
Certo dia, no começo do verão, por ordem sua, as jovens concubinas acorreram jovialmente ao seu palácio, como pássaros libertados da gaiola. Haviam perdido a esperança de serem chamadas pelo Imperador e agora acabavam de recuperá-la, de modo que, cheias de devoção, cercaram a Imperatriz Mãe como anjos rodeando uma deusa. A Imperatriz Mãe não pôde senão sorrir e aceitar aquela adoração, embora soubesse muito bem que tudo aquilo não era por amor a ela, mas pelo que esperavam para si mesmas. Ela e somente ela poderia levá-las à alcova imperial. Apiedou-se das moças e, ordenando que se aproximassem, disse-lhes:
- Meus pássaros, vocês sabem que não posso levar todas, de uma só vez, à presença do Imperador. A Consorte ficaria zangada e êle as mandaria de novo embora. Assim, deixem que as mande a êle uma de cada vez e é razoável que a primeira seja a mais bela de todas.
Encheu-se imediatamente de afeto por aquelas jovens agrupadas ao seu redor. Ela também fora assim, quando viera viver entre os muros daqueles palácios. Correu os olhos de uma face para a outra, examinando aqueles olhos brilhantes que a fitavam cheios de confiança e de esperança. Não teve coragem de magoar a nenhuma.
- Como posso escolher a mais bela? indagou. - Vocês mesmas é que devem escolher.
Elas riram, quatro vozes joviais e alegres em uníssono.
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- Nossa Venerável Ancestral, exclamou a mais alta e a menos bonita, como podemos crer que não saibais? Jasmine é a mais bela.
Todas voltaram-se para fitar Jasmine, que enrubesceu e sacudiu negativamente a cabeça, levando o lenço ao rosto, para ocultá-lo.
- Você é a mais bela? perguntou a Imperatriz Mãe sorrindo. Gostava de brincar com as criaturas jovens, fossem humanas ou animais.
Jasmine tornou a sacudir a cabeça negativamente, cobrindo o rosto com as mãos, enquanto as outras riam em voz alta.
- Bem, bem, disse afinal a Imperatriz Mãe. - Retire as mãos do rosto, menina, para que eu possa vê-la.
As moças puxaram as mãos de Jasmine e a Imperatriz Mãe examinou aquela fisionomia rosada. Era menos tímida que maliciosa, ou talvez simplesmente alegre. Tampouco era uma face gentil. Na verdade havia ousadia nos lábios cheios e curvos, nos olhos grandes, nas narinas levemente arfantes do nariz pequeno e arrebitado. Alute era como seu pai, que fora assistente do Imperial Tutor do Imperador, homem de rosto e corpo elegantes. Jasmine era o oposto de Alute. Ao invés do corpo delgado e gracioso de Alute, alto para uma mulher, Jasmine era pequena e cheia, sua maior beleza residia na pele imaculada e perfeita. Era uma pele de criança, alvíssima com exceção das faces rosadas e da boca rubra.
Satisfeita, a Imperatriz Mãe mudou de súbito. Fêz um gesto afastando as concubinas e bocejou atrás da mão coberta de jóias.
- Mandarei chamá-la quando chegar o dia, disse com semiindiferença a Jasmine. As concubinas não puderam fazer outra coisa senão retirar-se, as bordadas mangas dobradas como asas brilhantes.
Restava apenas ao Eunuco-Chefe indagar à serva de Alute quais os poucos dias do mês em que a Consorte não podia entrar na alcova real. Faltavam sete dias para essa ocasião e a Imperatriz Mãe mandou dizer a Jasmine que estivesse pronta no oitavo dia. Seu manto, recomendou ela, devia ser rosa-pêssego e que não usasse perfume, pois ela própria lhe cederia os perfumes dos seus frascos.
No dia indicado Jasmine apareceu vestida como lhe fora indicado. A Imperatriz Mãe examinou-a meticulosamente da cabeça aos pés. Ordenou em primeiro lugar que lhe retirassem as jóias baratas que trazia.
- Tragam a minha caixa de jóias número trinta e dois, disse às suas damas. Recebendo a caixa, tirou dela duas flores do formato de peônias, feitas de pérolas e rubis, e deu-as a Jasmine para prendê-las às orelhas. Deu-lhe também seus braceletes e anéis. A moça transbordava de júbilo, mordendo os lábios e lançando fagulhas de alegria através dos seus brilhantes olhos negros.
Feito isso, a Imperatriz Mãe pediu um pesado frasco de perfume de almíscar e mandou que Jasmine se perfumasse.
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- Muito bem, disse afinal a Imperatriz Mãe. - Venha agora comigo e minhas damas. Iremos ao meu filho, o Imperador.
Mal proferira essas palavras, pensou: "por que irei eu ao Imperador?" Alute saberia de sua presença, pois Alute tinha seus espiões, sem dúvida, e apareceria sob o pretexto de cumprimentá-la. Mas não se atreveria a comparecer, sem ser chamada, ao palácio da Imperatriz Mãe.
- Fique... disse a Imperatriz Mãe erguendo a mão. - Como sei que meu filho hoje está sozinho, convidá-lo-ei a vir aqui. E ordenarei aos meus cozinheiros que preparem um banquete com os pratos favoritos do Imperador. Meu filho jantará comigo. O dia está belo. Que as mesas sejam postas sob as árvores do pátio e que os músicos da Corte também compareçam. Depois do jantar os atores da Corte nos brindarão com uma peça.
Expediu suas ordens e os eunucos correram a obedecer, enquanto suas damas se movimentavam de um lado para o outro.
- E você, Jasmine, disse em seguida, permanecerá junto de mim e cuidará do meu bule de chá. Não fale enquanto eu não lhe ordenar.
- Sim, Venerável Ancestral, retrucou a moça com os olhos reluzentes e as faces escarlates.
Cerca de duas horas depois, os toques de trombeta anunciaram a chegada do Imperador. Logo em seguida o seu palanquim entrou no vasto pátio onde os eunucos estavam atarefados preparando as mesas e os músicos afinando seus instrumentos.
A Imperatriz Mãe achava-se sentada em seu salão particular de audiência, no pequeno trono, e perto dela estava Jasmine, brincando, de cabeça baixa, com um leque. Atrás dela achavam-se as damas, fazendo meio círculo.
O Imperador entrou, trajando um manto azul-celeste bordado com dragões dourados, chapéu de borlas na cabeça e na mão um pedaço de jade para refrescar-lhe as palmas. Curvou-se diante de sua mãe, sem fazer reverência, pois era o Imperador, e ela recebeu sua saudação sem levantar-se. Era uma atitude simbólica, pois todos deviam levantar-se diante do Imperador, e as damas entreolharam-se, perguntando-se por que motivo a Imperatriz Mãe se mantivera sentada. Mas o Imperador pareceu não perceber e sentou-se no pequeno trono à direita de sua mãe, ao passo que seus eunucos e guardas se retiravam para o pátio.
- Soube que está só, hoje, disse a Imperatriz Mãe. E para defendê-lo da melancolia, até que a Consorte volte, pensei em conservá-lo um pouco aqui. O sol não está muito quente, de modo que poderemos jantar debaixo das árvores do pátio e os músicos nos divertirão enquanto comemos. Escolha uma peça, meu filho, para os atores representarem depois. Até então o sol se terá posto e mais um dia haverá passado.
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Falou em voz suave e terna, fitando-o com um olhar cálido, tocando com a sua bela mão a dele, pousada no joelho.
O Imperador sorriu e mostrou-se espantado, como todos puderam ver, pois sua imperial mãe não se mostrava bondosa para com êle nos últimos tempos. Na verdade censurava-o com muita freqüência e êle teria recusado comparecer nesse dia, se não fosse a sua pouca disposição de suportar sozinho a cólera materna. Quando Alute estava com êle, sentia-se mais forte.
- Agradeço-vos, minha mãe, disse, contente por ver que ela não estava zangada. - É verdade que me sentia só e também é verdade que não sabia como passar o dia.
A Imperatriz Mãe falou a Jasmine:
- Sirva o chá ao seu senhor, minha filha.
O Imperador ergueu a cabeça, ao ouvir essas palavras, e fitou Jasmine. E não desviou mais o olhar enquanto ela, com meticulosa graça, tomava a taça de chá das mãos de um eunuco e apresentoulha com ambas as mãos.
- Quem é essa dama? inquiriu o Imperador como se ela não estivesse presente.
- Quê! exclamou a Imperatriz Mãe com fingida surpresa. - Não reconhece então a sua própria concubina? É uma das quatro que escolhi para você. É possível que não saiba quem são?
Um tanto confuso, o Imperador sacudiu a cabeça e sorriu de novo, porém tristemente.
- Não as chamei. Ainda não chegou o momento... A Imperatriz Mãe apertou os lábios.
- Deveria tê-las chamado, por cortesia, pelo menos uma vez cada uma, disse ela. - Alute deve ser muito egoísta para deixar que suas jovens irmãs gastem a vida esperando.
O Imperador não respondeu. Ergueu a taça e esperou que sua mãe tomasse primeiro o seu chá. Em seguida bebeu e Jasmine, ajoelhando-se, tomou de suas mãos a chávena vazia. Ao fazê-lo, ergueu o olhar para fitá-lo e nesse instante êle também a olhou, vendo aquele rosto tão vivo e alegre, tão infantil em sua coloração alva e rosada, sob os cabelos macios e negros, que não pôde desviar o olhar com a rapidez que desejara.
Assim começou o dia e à medida que passava a Imperatriz Mãe chamava, de quando em quando, Jasmine para servir ao Imperador - para abaná-lo com o leque, para manter longe uma mosca incômoda, para servir-lhe o almoço sob as árvores, para trazer-lhe chá e escolher doces enquanto a peça era representada, para pôr um tamborete perto de seus pés e almofadas junto de seus cotovelos, e assim por diante, até o anoitecer. Ao cabo o Imperador já sorria abertamente para Jasmine e quando ela se aproximou dele, sorriu-lhe, não tímida ou atrevidamente, mas como um garoto sorri para um companheiro.
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A Imperatriz Mãe alegrou-se ao ver esses sorrisos e quando a noite caiu, disse ao Imperador:
- Antes que me deixe, meu filho, tenho um desejo a transmitir-lhe.
- Fale, mãe.
Estava de bom humor, o estômago cheio de suas iguarias favoritas, o coração leve e a imaginação acesa pela bonita moça que lhe pertencia, que era dele no momento em que a quisesse.
- Sabe como anseio deixar a cidade, quando chegar a primavera, disse a Imperatriz Mãe. - Há muitos meses que não saio dentre estas paredes. Por que não iríamos juntos, você e eu, adorar as tumbas dos nossos Ancestrais? A distância é apenas de oitenta milhas e quero pedir ao nosso Vice-rei provincial, Li Hung-chang, que mande sua própria guarda para proteger-nos. Somente você e eu, meu filho, podemos representar nossas duas gerações, pois não seria conveniente que levasse a Consorte numa viagem tão triste.
Ela já havia planejado, secretamente, levar Jasmine consigo, sob o pretexto de que necessitava de seus serviços, e seria fácil mandar Jasmine à tenda de seu filho, durante a noite.
O Imperador refletiu, levando o dedo ao lábio inferior.
- Quando partiríamos? inquiriu.
- Dentro de um mês, a contar de hoje, redargüiu a Imperatriz Mãe. - Você estará de novo só, como agora, e nesses dias em que a Consorte não pode estar com você, faremos a viagem. Ela o receberá com maior sofreguidão, quando você voltar.
O Imperador tornou a espantar-se com a transformação de sua imperial mãe - nunca a ouvira falar de Alute daquela maneira. Mas quem podia saber as suas razões? E era verdade que, embora ela se mostrasse cruel e odiosa muitas vezes, sabia também ser boa e terna para com êle. E entre aquelas duas metades de sua mãe êle oscilara, incerto, a vida inteira.
- Iremos, minha mãe, disse afinal, e é de fato meu dever reverenciar as tumbas.
- Quem pode dizer o contrário? redargüiu a Imperatriz Mãe satisfeita uma vez mais com sua própria inteligência.
Tudo ocorreu como planejara. Certa noite, longe dos muros de Pequim, à sombra das Tumbas Ancestrais, o Imperador mandou um eunuco trazer-lhe Jasmine. Passara o dia em adoração perante as tumbas, sua mãe sempre ao seu lado, instruindo-o nas reverências e nas orações. O dia começara ensolarado, mas à tarde sobreveio uma tempestade e caiu uma chuva forte que se prolongou durante a noite. Sob o teto de couro de sua tenda, o jovem Imperador jazia insone e solitário. Não era decente que pedisse ao seu eunuco que tocasse violino ou cantasse, pois aqueles eram dias de luto e respeito pelos oito Imperadores Ancestrais que o rodeavam em suas tumbas. Ficou ouvindo a chuva cair e se pôs a pensar nos mortos e
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na certeza de que êle seria o nono a ser posto lá fora, debaixo da chuva. Enquanto assim pensava, invadiu-o uma terrível melancolia, um pavor de que não viveria sua vida, de que poderia morrer jovem. Começou a tremer e ansiou pela presença de sua jovem esposa, tão longe naquele momento. Havia-lhe prometido manter-se fiel e fora essa promessa que o impedira de chamar uma concubina à sua alcova, até agora. Mas não renovara a promessa para os dias que passaria junto das tumbas, pois nem êle nem Alute puderam adivinhar que sua imperial mãe levaria Jasmine como companheira. Tampouco sua mãe lhe falara dela. Nem êle fizera qualquer sinal no decorrer do dia solene em que vira Jasmine. Mas tinha-a visto mover-se de um lado para o outro na tenda de sua mãe, onde tomara a ceia, após o jejum cerimonial. Pensou nela agora e não pôde mais afastá-la do pensamento.
Ao seu eunuco disse apenas que estava com frio:
- Estou enregelado até a medula. Nunca senti tanto frio, um frio estranho como o da morte.
Os eunucos do Imperador tinham sido subornados por Li Lienying e portanto aquele, a quem êle se dirigia, respondeu prontamente:
- Senhor, por que não mandais chamar a Primeira Concubina? Ela aquecerá vossa cama e logo expulsará o frio do vosso sangue.
O Imperador simulou não estar disposto.
- Quê?... quando me encontro na sombra das tumbas de meus Ancestrais?
- Simplesmente uma concubina, insistiu o eunuco. - Uma concubina não é ninguém.
- Bem... bem... concordou o Imperador, parecendo ainda pouco inclinado a aceitar a sugestão.
Ficou tremendo enquanto o eunuco corria através da chuva. Pouco depois percebeu a luz de uma lanterna e a porta da tenda abriu-se. Ali estava Jasmine, envolta num pedaço de seda oleada, para protegê-la da chuva. Mas a chuva empapara-lhe os cabelos e a água escorria-lhe pelas faces, pendia-lhe dos cílios. Tinha os lábios e as faces rubros.
- Mandei chamá-la porque estou com frio, sussurrou o Imperador.
- Aqui estou, meu senhor, redargüiu ela.
Tirou o manto oleado, depois todas as suas roupas, uma a uma, e deitou-se ao seu lado. Seu corpo quente, da cabeça aos pés, encostou-se à carne fria do Imperador.
Em sua própria tenda, a Imperatriz Mãe jazia acordada, nas trevas, escutando a chuva cair, ruído tranqüilizador e pacífico. Uma grande e profunda paz penetrou-lhe o coração e o espírito. O eunuco relatara-lhe o que fizera e ela lhe deu uma onça de ouro.
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Agora nada mais tinha a fazer. Jasmine e Alute travariam a guerra do amor e, conhecendo seu filho, sabia que Jasmine já era a vitoriosa.
O verão passou, a Imperatriz Mãe suspirou dizendo que estava ficando velha e que quando o Palácio de Verão estivesse pronto se retiraria para nele passar seus últimos anos. Dizia que lhe doíam os ossos e que seus dentes estavam bambos e que havia manhãs em que não podia levantar-se da cama. Suas damas não sabiam o que fazer diante daquela doença fingida e daquela pretensa velhice, pois a verdade era que a Imperatriz Mãe parecia rejuvenescida e forte. Deitada na cama, queixando-se de dor de cabeça, ostentava uma fisionomia tão jovem e bela, olhos tão brilhantes, pele tão clara, que as damas se entreolhavam perguntando-se o que estaria se passando dentro daquele formoso crânio. Nunca a Imperatriz Mãe comera tão bem, não apenas as refeições, mas entre estas também se regalando de doces. Quando se movia, não era lentamente e arrastando os pés, mas com uma graça renovada e cheia de vida.
No entanto insistia em dizer que não se sentia bem. Quando Jung Lu veio pedir-lhe uma audiência, ela negou. Quando o Príncipe Kung insistiu em ser recebido, ela não cedeu. Ao invés disso, chamou o Eunuco-Chefe e perguntou-lhe:
- Que quer de mim, agora, esse príncipe tirano?
O Eunuco-Chefe sorriu. Sabia que, por algum motivo, a soberana se fingia de doente e que aguardava um momento propício para algo que êle próprio ignorava.
- Majestade, retrucou, o Príncipe Kung está muito preocupado com o atual comportamento do Imperador.
- E por quê? inquiriu, embora soubesse muito bem.
- Majestade, respondeu o Eunuco-Chefe, todos dizem que o Imperador está mudado. Passa os dias divertindo-se e dormindo, e quando a noite vai alta sai para as ruas da cidade, em trajes comuns, levando consigo apenas dois eunucos e a Primeira Concubina.
A Imperatriz Mãe fêz um largo gesto de horror.
- A Primeira Concubina? Não é possível!
Soergueu-se na cama, deixou-se cair nas almofadas de novo, fechou os olhos e gemeu.
- Ó, estou doente... muito doente! Diga ao Príncipe que essas más notícias apressarão a minha morte. Diga-lhe que nada mais posso fazer. Meu filho agora é o Imperador e somente os príncipes poderão aconselhá-lo. Êle não me ouve. Onde está o Conselho de Censores Imperiais? Eles decerto o aconselharão.
E não concedeu audiência ao Príncipe Kung.
Quanto ao Príncipe, recebeu a resposta da soberana como uma ordem e atacou o Imperador frente a frente, de tal maneira que encheu de fúria o seu imperial sobrinho. No décimo dia do nono
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mês solar daquele mesmo ano, o Imperador expediu um decreto, assinado com o seu próprio nome e carimbado com o selo imperial, declarando que o Príncipe Kung e seu filho, Ts'ai Ch'ing, ficavam privados de todos os seus títulos e assim degradados porque o primeiro usara linguagem imprópria perante o Trono do Dragão.
Isto fêz com que a Imperatriz Mãe reagisse. No dia seguinte ela expediu outro edito, assinado por ela e Sakota, como co-Regente, decretando fossem restaurados todos os títulos do Príncipe Kung e de seu filho, Ts'ai Ch'ing. Fê-lo sem o conhecimento de Sakota, sabendo que sua pusilânime irmã-Imperial Viúva não se atreveria a proferir uma só palavra de protesto, mesmo contra o uso de seu nome. E, tal era a dignidade de sua posição como Imperatriz Mãe, que ninguém ousou discutir esse edito. A firmeza dessa atitude fê-la recuperar uma considerável parcela do poder, pela aparente proteção dispensada ao Príncipe Kung, que era da geração mais velha e devia ser respeitado por todos.
Quanto ao Imperador, antes de poder decidir que providência tomaria, caiu doente com um ataque de varíola, apanhado em alguma parte da cidade onde, disfarçado, fora divertir-se. No décimo mês, após muitos dias de febre, enquanto sua pele se abria em pústulas, avizinhou-se da morte. A Imperatriz Mãe corria freqüentemente para a sua cabeceira, pois havia muitos anos, quando menina, apanhara varíola e restabelecera-se, imune, sem a menor cicatriz na pele impecável. Agora era toda mãe, integralmente, atormentada por singular e intenso sofrimento. Ansiava por sofrer de todo o coração, como sofrem as mães, aliviando na dor a sua secreta agonia. Mas mesmo naquele momento não podia ser exclusivamente mãe. Como nunca fora exclusivamente esposa, agora também não podia ser apenas mãe. Seu destino ainda era a sua carga.
No vigésimo quarto dia daquele mesmo mês, o Imperador melhorou, a febre caiu, sua pele torturada esfriou e a Imperatriz Mãe expediu um edito informando ao povo que podia ter esperança. No mesmo dia, também, o Imperador mandou chamar a Consorte, que até então fora proibida de entrar na alcova real porque esperava criança. Agora que a pele do Imperador estava limpa e a febre cedera, o médico imperial declarou que o perigo havia cessado e ela correu para o seu lado a toda pressa, pois de fato estava com o coração desolado por tantas semanas de separação. A Consorte passava os dias orando no templo e as noites, insone, sem alimentar-se. Ao entrar na alcova real estava pálida e magra, sua delicada beleza, tão acentuadamente condicionada pelo estado de espírito e saúde, havia desaparecido transitoriamente. Tampouco se detivera para mudar o vestido cinza e inadequado, que usava. Entrou impaciente, pensando em abraçar seu amor, mas foi detida na soleira. Junto da grande cama onde estava deitado o seu senhor, achava-se sentada a Imperatriz Mãe.
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- Ah... murmurou Alute, levando as mãos trêmulas ao coração.
- Por que "ah..."? inquiriu asperamente a Imperatriz Mãe. Não vejo motivo para tais exclamações, quando êle está muito melhor. Você é que merece exclamações, pois está tão pálida e amarela como uma velha. E isso não me parece bom, uma vez que carrega um filho no ventre. Juro que estou zangada com você.
- Mãe, suplicou o Imperador dèbilmente. - Rogo-lhe que a poupe...
Mas Alute não pôde conter a explosão de sua própria cólera. Após todos aqueles dias de espera e de ansiedade, sua natural paciência esgotou-se. De fato não era paciente, pois tinha temperamento forte, cérebro lúcido e disciplinado, um senso da verdade muito aguçado para o uso comum.
- Não me poupeis, retrucou, ereta e magra na soleira da porta. - Não peço nenhum favor à Imperatriz Mãe. Que sua cólera caia sobre mim ao invés de sobre vós, meu senhor, já que tem de cair, pois não podemos agradá-la.
Essas palavras jorraram de seus lábios estreitos, cada qual separada e distinta.
A Imperatriz Mãe pôs-se de pé e avançou para a infeliz moça com as duas mãos estendidas. Ao chegar perto, esbofeteou repetidas vezes as faces de Alute, até que as capas metálicas de suas unhas fizeram brotar sangue da carne da Consorte.
O Imperador soluçou alto na cama, de fraqueza e desespero.
- Oh, deixem-me morrer, vocês duas, balbuciou. - Para que viver se estou esmagado entre vocês, como um rato entre duas mós?
Virou o rosto para a parede e não pôde parar de soluçar. Embora as duas mulheres corressem para junto dele e os eunucos entrassem no quarto, embora a Imperatriz Mãe tivesse mandado chamar os médicos da Corte, ninguém conseguiu aplacar os seus soluços. Continuou a soluçar até que perdeu a razão e não sabia mais por que soluçava, a não ser que não podia mais parar. Súbito, extremamente fraco, seu pulso cessou de bater. Então o Médico-Chefe curvou-se diante da Imperatriz Mãe que esperava, sentada, ao lado da cama.
- Majestade, disse êle tristemente, receio que nenhum talento humano possa ser útil agora. O mal apoderou-se do destino do Filho do Céu e não é dado a nós conhecer os meios de impedir a sua partida. Nós, os médicos da Corte, temíamos esse desenlace, pois no nono dia do décimo mês solar, apenas há dois dias, dois estrangeiros americanos chegaram à nossa cidade. Trouxeram com eles um grande instrumento e, fixando-o no solo, procuravam olhar para o céu através de um longo tubo. Nesse mesmo instante, Majestade, a estrela vespertina brilhava em todo o seu fulgor e sobre a sua superfície brilhante discernimos uma mancha escura, algo mais pesado que uma sombra. Diante disso, expulsamos os estrangeiros. Mas - ah! - era tarde demais. Sua perniciosa mágica estava já
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sobre a estrela e nós, os médicos da Corte, entreolhamo-nos com o coração cheio de medo. Dessa forma, o desenlace de hoje fora previsto.
Ao ouvir esse relato a Imperatriz Mãe gritou que não podia acreditar e chamou Li Lien-ying, ordenando-lhe, aos gritos, que averiguasse se a história era verdadeira. O Eunuco-Chefe não pôde senão confirmá-la, batendo com a cabeça no chão.
Assim terminou a curta vida do Imperador. Quando cessou de respirar e sua carne se gelou, a Imperatriz Mãe ordenou que todos se retirassem, os príncipes e ministros que tinham vindo testemunhar a morte, os eunucos e os servos. Não quis nem a presença de Alute.
- Vá, disse à jovem viúva. - Deixe-me com meu filho.
O olhar que lançou à jovem viúva não foi cruel, porém desolado e frio, como se a mágoa materna fosse muitíssimo mais profunda que a mágoa da esposa.
Que podia fazer Alute senão obedecer? A mãe de seu senhor morto era agora sua soberana.
Depois que todos saíram, a Imperatriz ficou sentada ao lado de seu filho, pensando na sua vida e na sua morte. Não tinha lágrimas - ainda não - pois sua mágoa tinha de ser preenchida. Pensou primeiro em si mesma e como, uma vez mais, adquiria o poder supremo. Estava só na terra, transcendendo a feminilidade, numa altura até então desconhecida de qualquer ser humano. Solitária, fitou a face do filho que dera à luz, uma face jovem e bonita, altiva na morte, e calma. E enquanto olhava aquele rosto, viu-o pequeno de novo, apagou os traços atuais até ver um menino, o garoto que ela adorara. As lágrimas jorraram quentes como fogo e seu coração, que até aquele momento permanecera impassível, amaciou-se e tremeu - coração de carne afinal. Soluçou, lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e caíram sobre a coberta de cetim. Tomou a mão morta entre as suas, acariciou-a, levou-a ao seu rosto, como costumava fazer quando êle era pequeno. Estranhas palavras jorraram como sangue de seu coração.
- Oh, filho, soluçou ela, por que não te dei aquele trenzinho... aquele trem estrangeiro... o brinquedo que você queria e nunca teve!
Seu sofrimento centralizou-se, de súbito e sem motivo, naquele brinquedo que lhe havia recusado anos antes e continuou a chorar, esquecendo-se de tudo quanto era, exceto da condição de mãe cujo filho acabava de morrer.
Durante a noite, alta noite, esquecidas as horas, a porta abriu-se e um homem entrou. Ela estava debruçada sobre o leito, ainda chorando mas agora silenciosamente, e não ouviu o ruído dos passos. Então sentiu que lhe seguravam os ombros e a levantavam vigorosamente. Voltou a cabeça e viu o rosto dele.
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- Você... sussurrou.
- Eu, respondeu Jung Lu. - Fiquei à espera, do lado de fora, durante três horas. Por que se demora? Os clãs estão agitados, pretendendo pôr um herdeiro no Trono ao amanhecer, antes do povo saber que o Imperador está morto. Você precisa agir primeiro.
Num instante ela dominou o coração e recuperou a lucidez de espírito para lembrar-se de um plano que preparara há muito para um momento como aquele.
- O filho mais velho de minha irmã tem três anos de idade, disse ela. É o herdeiro que escolho. Seu pai é o sétimo irmão de meu falecido senhor.
Êle fitou-lhe os olhos. Estavam intensamente negros contra a face pálida, porém impávidos. Os lábios não tremiam.
- Esta noite a sua beleza é terrível, disse êle numa voz estranha e cismadora. - Você fica mais bela no perigo. Há em você uma magia...
Ela ouviu e ergueu a cabeça, os lábios tristes entreabriram-se, os olhos trágicos suavizaram-se.
- Continue, murmurou. - Oh, amor, continue!
Êle sacudiu a cabeça e tomou-lhe gentilmente a mão. Lado a lado fitaram a grande cama onde jazia o Imperador. Através da mão que segurava a sua, ela sentiu-o tremer, o corpo vacilante contra a vontade, e voltou-se para êle.
- Oh, amor, sussurrou. - Êle é nosso...
- Psiu... Não devemos proferir uma só palavra sobre o que passou. As paredes do palácio têm ouvidos...
Não deviam falar, nunca poderiam falar. Após um longo momento de silêncio largaram-se as mãos, êle recuou e fêz uma profunda reverência. Ela era de novo a Imperatriz e êle seu súdito.
- Majestade, disse em voz baixa, defendendo-se contra as paredes atentas, ide imediatamente buscar o menino. Entrementes, prevendo este momento, chamei em vosso nome o Vice-rei Li Hungchang. Seus exércitos já estão perto das portas da cidade. Ninguém o sabe. As patas dos cavalos estão envoltas em panos e têm freios de madeira na boca para impedir qualquer som denunciador. Ao nascer do sol devereis estar com o menino aqui no palácio e vossos leais soldados encherão as ruas. Quem se atreverá, então, a disputar vosso poder?
Coração forte encontrou-se com coração forte. Aqueles dois, num acordo que o amor oculto tornava perfeito, separaram-se uma vez mais para um propósito comum. Jung Lu se afastou e no mesmo instante a Imperatriz saiu do quarto do morto. O Eunuco-Chefe esperava-a e seguiu-a acompanhado dos eunucos menores e das damas que eram fiéis a ela. Ninguém perguntou de que maneira Jung Lu havia transposto os portões da Cidade Proibida, que depois
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do anoitecer nenhum homem podia atravessar. Naquela estranha noite ninguém fazia perguntas.
A Imperatriz caminhava rápida, para executar seu plano.
- Traga-me meu palanquim, ordenou a Li Lien-ying. - Que ninguém fale nem murmure e que os carregadores envolvam os pés em panos.
Minutos depois, embrulhada num casaco, sem dizer palavra à sua serva ou às damas, passou por elas e entrou em seu palanquim, arriando as cortinas. Atrás do palácio um portão secreto estava aberto à sua espera e o Eunuco-Chefe ia na frente, ganhando as ruas escuras e solitárias. Nevara o dia todo, formando uma espessa camada nas ruas, que abafava os passos dos carregadores. Ao lado do palanquim, a figura fantasmagórica do gigantesco Eunuco-Chefe corria em silêncio, através da neve. Assim chegaram ao palácio do Príncipe Ch'un. Os carregadores depuseram o palanquim, Li Lienying bateu no portão e, quando este se abriu, forçou a entrada, sufocando o grito do porteiro com a mão em sua boca. Atrás dele entrou a Imperatriz Mãe, o casaco esvoaçando. Atravessaram os diversos pátios e entraram na casa. Todos estavam dormindo exceto o vigia, que se afastou para deixar a Imperatriz Mãe passar.
Correndo na frente, o Eunuco-Chefe acordou o Príncipe e depois sua esposa. Saíram os dois, com fisionomia assustada, vestidos às pressas, e caíram diante dela, em sinal de reverência.
Disse a Imperatriz Mãe:
- Irmã, não tenho tempo para dizer-lhe nada, exceto que meu filho está morto... dê-me seu filho para ser seu herdeiro...
O Príncipe Ch'un exclamou:
- Oh, Majestade, suplico-vos que não leveis o menino a tal destino...
- Como se atreve a falar dessa maneira? gritou a Imperatriz. - Há destino maior do que ser Imperador?
- Desgraçado de mim, redargüiu o Príncipe Ch'un. - Eu, o pai, deverei curvar-me, em reverência, todos os dias, diante de meu próprio filho! As gerações ficarão confusas, por minha causa, e o Céu punirá toda a minha família.
Chorou, bateu com a cabeça no chão ladrilhado tão diligentemente que o sangue jorrou de sua testa e êle desmaiou.
Mas a Imperatriz Mãe não esperaria por êle nem por qualquer outro homem. Afastou-o e à sua irmã, dirigiu-se rápida ao quarto do menino, parou junto do leito, ergueu-o nos braços, envolto em seus lençóis. Estava adormecido e, embora resmungasse, não acordou. Levou-o consigo.
Mas a irmã correu e segurou-lhe a ponta da manga esvoaçante.
- O menino chorará quando acordar num lugar estranho, suplicou ela. - Deixe-me ir com êle, pelo menos por alguns dias.
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- Siga-me, respondeu a Imperatriz Mãe por cima do ombro. - Mas não me detenha. Preciso dele, em segurança, dentro do palácio, antes do nascer do sol.
E assim fêz. A noite passou. Quando o sol se ergueu e os sacerdotes do templo fizeram soar seus gongos para a prece matinal, os arautos da Corte espalharam-se pelas ruas anunciando a morte do Imperador Mu Tsung, que era o nome dinástico de T'ung Chih, proclamando logo em seguida que um novo Imperador já estava sentado no Trono do Dragão.
Em seu quarto estranho o pequeno Imperador chorava de medo. Nem mesmo sua mãe conseguia acalmá-lo, embora o mantivesse continuamente nos braços. Pois toda vez que o menino erguia a cabeça via os dourados dragões esculpidos no teto e gritava de terror, mas não podia impedir-se de olhar de novo. Afinal, dois dias depois, sua mãe mandou um eunuco à Imperatriz Mãe para dizer-lhe que o menino chorara tanto que adoecera.
- Deixem-no chorar, foi a resposta da soberana. Estava na biblioteca, trabalhando nos planos de seu palácio, e não voltou a cabeça. - Deixem-no aprender desde cedo que nada obterá chorando, embora seja o Imperador.
Continuou a trabalhar sem levantar a cabeça até que a luz branca daquele dia de inverno chegou ao fim. Quando não pôde mais enxergar, depositou o pincel e ficou meditando por longo tempo. Depois chamou um eunuco.
- Traga-me a Consorte, ordenou. - E diga-lhe que venha só. O eunuco partiu correndo, para demonstrar o seu zelo, e minutos depois Alute entrava, fazendo reverência. A Imperatriz Mãe despediu o eunuco com um gesto e pediu à jovem viúva que se levantasse e sentasse num tamborete esculpido. Contemplou por alguns instantes a jovem figura, encolhida em seus trajes de luto de serapilheira branca.
- Não se tem alimentado, disse afinal.
- Não posso comer, Venerável Ancestral, tornou Alute.
- Nada lhe resta na vida, disse a Imperatriz.
- Nada, Venerável Ancestral.
- Nem lhe restará, continuou a Imperatriz Mãe. - Por conseguinte, se eu fosse você, iria encontrar-me com o meu senhor, onde êle está.
Alute ergueu a cabeça e fitou a bela e severa mulher tão tranqüilamente sentada em sua cadeira de formato de trono. Levantou-se lentamente, permaneceu de pé um momento, depois tornou a cair de joelhos.
- Suplico-vos... dai-me licença de morrer, sussurrou.
- Tem a minha licença, replicou a Imperatriz Mãe.
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As duas mulheres trocaram um longo olhar e então Alute se levantou e caminhou para a porta aberta - triste fantasma jovem. O eunuco fechou a porta atrás dela.
A Imperatriz Mãe permaneceu imóvel como uma estátua de mármore, por alguns instantes, depois bateu palmas chamando um eunuco.
- Acenda as lanternas. Tenho trabalho a executar.
E empunhou de novo o seu pincel. Enquanto as trevas da noite se adensavam, ela mergulhou-o nas tintas espalhadas à sua frente, completando o seu plano. Finalmente largou o pincel e contemplou o grande rolo. Os palácios de sonho erguiam-se ao redor de um grande lago, jardins floriam entre eles, pontes de mármore atravessavam os riachos que alimentavam o lago. Ela sorriu ao ver um quadro tão belo e, após contemplá-lo longamente, retomou o pincel. Mergulhou-o nos potes de tintas brilhantes e na encosta da montanha, atrás dos palácios, pintou um pagode, alto e delgado, cujos lados eram de porcelana azul-celeste e os tetos de ouro.
Naquela noite, à meia-noite o Eunuco-Chefe tossiu na porta. Ela ergueu-se da cama e foi abri-la, em silêncio. Disse êle:
- Alute não vive mais.
- Como morreu? inquiriu a Imperatriz.
- Engoliu ópio.
Eles trocaram um longo olhar de secreto entendimento.
- Alegra-me que não tenha sofrido, disse a Imperatriz Mãe.
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IV - A IMPERATRIZ

No quarto mês lunar a glicínia floresce. O Jardineiro-Chefe da Corte tinha o dever de comunicar à Imperatriz o dia exato em que as trepadeiras floresciam e assim o fizera. A Imperatriz decretou então que nesse dia não compareceria ao Salão de Audiência nem tomaria conhecimento de qualquer assunto oficial. Passaria o dia nos jardins de glicínias, com suas damas, apreciando a côr e a fragrância das flores. Convidou também, com a devida cortesia, sua prima a Imperatriz Viúva, pois ela e Sakota eram de novo coRegentes.
Na manhã desse dia, sentou-se no pavilhão de glicínias, à vontade numa grande cadeira esculpida, instalada sobre um estrado, como um trono. Agora não procurava mais aparentar que outra pessoa podia ser sua igual. Compreendera, afinal, que seu poder dependia dela e de sua força interior. As damas tinham-se postado ao seu redor.
- Divirtam-se, meninas, disse ela. - Andem por onde quiserem, contemplem os peixes dourados nos tanques, conversem à vontade, em sussurros ou em voz alta. Lembrem-se apenas de que estamos aqui para apreciar as glicínias e não mencionem fatos desagradáveis.
Elas agradeceram em murmúrios - jovens e belas mulheres trajando vestes coloridas de todos os matizes, o sol iluminando-lhes a pele imaculada, as bonitas mãos, e refletindo-se em seus olhos negros e brilhando sobre seus pentes floridos.
Obedeceram, mas com cautela, tomando a precaução de que ficassem sempre algumas junto da soberana. Enquanto vinte se afastavam, vinte permaneciam. Mas a Imperatriz não parecia vê-las. Seus olhos estavam fixos no pequeno Imperador, seu sobrinho, que se divertia com seus brinquedos num terraço próximo. Em sua companhia achavam-se dois jovens eunucos, que ela ignorava. Súbito ergueu a mão direita e chamou o menino.
- Venha cá, meu filho, disse.
Não era seu filho e, ao proferir essas palavras, seu coração voltou-se contra a criança. No entanto proferira-as, pois escolhera-o para sentar-se no lugar de seu filho, sobre o Trono do Dragão.
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O menino fitou-a e depois aproximou-se vagarosamente, empurrado pelo mais velho dos dois eunucos.
- Não o toque, ordenou asperamente a Imperatriz. - Deve vir a mim por sua própria vontade.
Mas o menino não se aproximava de bom grado. Levara o dedo à boca e fitava-a, tendo deixado cair o brinquedo no chão.
- Apanhe-o, disse ela. - Deixe-me ver que brinquedo é esse que você tem.
A expressão dela não mudou. Bela e calma, nem sorria nem estava zangada. Esperou até que, compelido pela sua poderosa quietude, o menino abaixou-se, apanhou o brinquedo e se aproximou. Apesar de criança, ajoelhou-se diante dela enquanto lhe mostrava o brinquedo.
- Que é isso? inquiriu ela.
- Uma máquina, respondeu êle em voz tão baixa que mal pôde ouvi-lo.
- Essas máquinas... murmurou ela sem estender a mão para segurar o brinquedo. - E quem lhe deu essa máquina?
- Ninguém, respondeu o menino.
- Tolice. Cresceu na sua mão? e fêz sinal ao jovem eunuco para que falasse por êle.
- Alta Majestade, o pequeno Imperador está sempre sozinho. Aqui nos palácios não há crianças para lhe fazerem companhia. E para que não chore até adoecer, damos-lhe muitos brinquedos. Êle prefere os brinquedos da loja estrangeira do Bairro das Legações.
- Brinquedos estrangeiros? perguntou ela na mesma voz áspera.
- A loja é de um dinamarquês, Alta Majestade, explicou o eunuco, e esse dinamarquês manda procurar em toda a Europa brinquedos para o nosso pequeno Imperador.
- Uma máquina, repetiu ela. Estendeu a mão e segurou o brinquedo. Era feito de ferro, pequeno porém pesado. Tinha rodas e uma chaminé.
- Como é que você brinca com isso? perguntou ao pequeno Imperador.
Êle esqueceu o medo e se pôs de pé.
- É assim, Velha Mãe! (segurou-o e abriu uma portinha). Aqui dentro acendo fogo com pedacinhos de madeira. E aqui ponho água. Quando a água ferve, produz vapor e então as rodas começam a girar. Ligo alguns carros atrás dele e a máquina puxa-os. Chama-se trem, Velha Mãe!
- De fato, murmurou ela.
Fitou pensativamente o menino. Demasiado pálido, demasiado magro, fisionomia débil, uma sombra de menino...
- Que mais tem você? perguntou.
- Mais trens, respondeu o garoto animadamente. - Alguns de corda e tenho um exército de soldados.
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- Que soldados?
- De muitas espécies, Mãe.
Esqueceu-se por completo do medo que tinha dela e aproximou-se tanto que se encostou em seus joelhos. Ela sentiu uma dor estranha no ponto em que o braço do menino a tocara e no coração a saudade de algo que perdera.
- Meus soldados levam armas, estava êle dizendo, e vestem uniformes, pintados, naturalmente, porque são soldados de brinquedo, não de verdade.
- Tem soldados chineses?
- Soldados chineses não, mas tenho ingleses, franceses, alemães, russos e americanos. Os russos vestem...
- E sabe distinguir uns dos outros? Êle riu alto:
- Claro, Mãe! Os russos têm barbas... compridas... assim... (levou a mão ao peito). E os franceses têm barba só aqui... (tocou o lábio superior com o dedo). E os americanos...
- Todos, todos têm faces brancas, disse ela na mesma voz estranha.
- Como é que sabe? perguntou o menino, surpreso.
- Eu sei, tornou ela.
Afastou-o, empurrando-lhe o cotovelo, e êle recuou, desaparecendo instantaneamente o brilho de seus olhos. Nesse momento, Sakota, a Imperatriz Viúva, entrou acompanhada de quatro de suas damas, caminhando vagarosamente, o corpo dobrado sob o peso do diadema que lhe tornava o rosto tão pequeno.
O pequeno Imperador correu ao encontro dela.
- M... ma! exclamou. -- Pensei que você não viesse mais!
Suas mãozinhas procuraram as dela e levou-as ao seu rosto. Olhando por cima de sua cabeça, Sakota encontrou o olhar imperial fixo em seu rosto.
- Largue-me, meu filho, murmurou.
Mas êle não queria largá-la. Enquanto a Imperatriz os observava, o menino agarrava-se a Sakota, caminhando ao seu lado, segurando-lhe o vestido de seda cinzento.
- Venha e sente-se próximo de mim, Irmã, disse a Imperatriz. Apontou com o polegar para uma cadeira esculpida perto da sua, e Sakota aproximou-se e após fazer uma mesura se sentou.
O pequeno Imperador continuava perto dela, segurando-lhe a mão. A Imperatriz reparou, como reparava tudo, mas sem dar a perceber. Seus olhos tranqüilos pousaram sobre a criança e em seguida desviaram-se para os sarmentos de glicínia. Os sarmentos machos, grandes e velhos, tinham sido plantados perto dos femininos, a fim de que as flores se desenvolvessem ao máximo. Entrelaçavam-se os dois ao redor dos pagodes gêmeos espalhando-se com suas cores púrpura e branca por sobre os tetos de telhas de porcelana
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amarela. O sol estava quente e as abelhas, enlouquecidas pelo perfume, zumbiam em volta das flores.
- Essas abelhas, observou a Imperatriz. - Vêm de todas as partes da cidade, para cá.
- De fato, Irmã, replicou Sakota, mas não olhou para as flores. Ao invés disso, acariciava a mãozinha infantil, mão magra, de veias demasiado claras sob a pele macia.
- Este pequeno Filho do Céu não come bastante, murmurou ela.
- Come o que não deve, disse a Imperatriz.
Era uma velha discussão entre as duas. A Imperatriz acreditava que bons para a saúde eram os alimentos simples, vegetais levemente cozidos, carnes sem gordura, poucos doces. Esses os pratos que recomendava para o pequeno Imperador. No entanto sabia muito bem que o menino os recusava assim que ela voltava as costas e que corria em seguida para junto de Sakota, que lhe dava bolos e carne de porco assada, coberta com açúcar. Quando êle tinha dores de barriga, a Imperatriz sabia que Sakota, em seu amor cego, lhe havia dado pitadas de ópio de seu próprio cachimbo. Esta era outra coisa que a indispunha contra a prima - o fato de Sakota haver adquirido o hábito estrangeiro do ópio, fumando em segredo a droga vil que vinha da índia sob bandeiras estrangeiras. Contudo, Sakota, mulher triste e tola, acreditava ser a única que amava realmente o pequeno Imperador!
A luminosidade da manhã obscureceu-se com tais pensamentos e Sakota, vendo a bela face imperial adquirir uma expressão severa, assustou-se. Chamou um eunuco:
- Leve o pequeno Imperador para brincar em outro lugar, sussurrou.
A Imperatriz ouviu, como ouvia quaisquer sussurros.
- Não levem o menino, ordenou. E voltando a cabeça: - Você sabe, Irmã, que não gosto que êle fique sozinho com esses eunucos jovens. Não há nenhum deles que seja puro. A vontade do Imperador será corrompida antes de êle crescer. Quantos imperadores foram estragados da mesma maneira!
Ouvindo tais palavras, o eunuco, um jovem de quinze ou dezesseis anos, afastou-se envergonhado.
- Irmã, murmurou Sakota inteiramente ruborizada.
- Que foi? inquiriu a Imperatriz.
- Falar dessa maneira diante de qualquer um, observou Sakota numa débil censura.
- Falo a verdade, retrucou com firmeza a Imperatriz. - Sei que você pensa que não amo o real menino. No entanto quem o ama? Você, que lhe satisfaz todos os desejos, ou eu que lhe vigio a saúde, recomendando-lhe bons alimentos e brinquedos sadios? Você, que lhe dá esses pequenos diabos, que são os eunucos, para companheiros, ou eu que procuro resguardá-lo da impureza deles?
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Sakota começou a chorar silenciosamente, atrás da manga do vestido. Suas damas correram para junto dela, mas a Imperatriz afastou-as com um gesto e, levantando-se, tomou Sakota pela mão e conduziu-a ao salão situado à direita do pátio. Sentou-se num sofá dourado e fêz com que Sakota se acomodasse ao seu lado.
- Agora estamos sozinhas, disse ela. - Diga-me por que está sempre zangada comigo.
Mas Sakota, que possuía uma teimosia peculiar, não falou. Continuou a soluçar enquanto a Imperatriz aguardava, até que, perdendo a paciência, exclamou:
- Chore. Chore até sentir-se feliz de novo. Creio que você só se sente feliz quando as lágrimas jorram de seus olhos. Espanta-me que a sua vista já não esteja completamente gasta.
Com isso, ergueu-se, saiu do pavilhão e, atravessando o jardim, entrou em sua biblioteca. Aí, proibindo a entrada de qualquer pessoa, passou o resto do belo dia de primavera, diante de seus livros, aspirando a fragrância das glicínias, que penetrava através das largas portas abertas.
Mas não era o conteúdo dos livros que ocupava seu pensamento. Embora se mantivesse imóvel como uma imagem de marfim esculpida, os pensamentos agitavam-se inquietos dentro de seu belo crânio. Nunca seria amada por ninguém? Esta a pergunta que freqüentemente surgia no caminho de sua existência. Milhões de pessoas dependiam de sua sabedoria. Ali no palácio ninguém podia viver senão com o seu consentimento. Era justa, era cautelosa, recompensava os que se mostravam fiéis e somente castigava os maus. No entanto não discernia amor em nenhum rosto que via, nem mesmo no rosto do menino, embora fosse seu sobrinho, de seu próprio sangue, e agora seu filho adotivo. Mesmo aquele homem solitário que ela amara e continuava a amar nas profundezas de seu ser, mesmo Jung Lu, fazia dois anos que não lhe falava, três aliás, a não ser como um cortesão fala à sua soberana. Não vinha procurá-la como antes, não lhe solicitava audiência e, quando o chamava, entrava altivamente como qualquer príncipe e mantinha distância, executando escrupulosamente o seu dever e não concedendo nada mais. E contudo era um homem tão impecável que as virgens da cidade - dizia-se - declaravam que somente aceitariam por marido quem fosse tão elegante quanto o Príncipe Jung Lu. A Imperatriz, agora, tinha-o feito príncipe, mas apesar de sua posição não diminuíra a distância que os separava. Continuava leal a ela, sabia-o leal, mas isto não bastava. Seu coração nunca se curaria da saudade?
Suspirou e cerrou seus livros. De todos os seres humanos, era ela o que menos sabia de si mesma. Conhecendo-se tão pouco, como podia saber por que motivo se mostrara naquele dia novamente cruel para com Sakota? Permanecia imóvel, demasiado honesta
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para contornar sua própria pergunta e assim, impiedosa consigo mesma, percebeu que se tratava de ciúme do amor do menino, um estranho e velho ciúme que remontava ao passado, quando seu filho morto era rapaz e, como o menino vivo, fugia dela por amor a Sakota, ao invés de amar sua verdadeira mãe.
No entanto era eu quem o amava, pensou, e meu era o dever de instruí-lo e adestrá-lo. Se tivesse vivido mais tempo, êle compreenderia...
Mas êle não vivera. Levantou-se irrequieta, incapaz de suportar o pensamento de seu filho morto, na tumba. Pôs-se a perambular de novo por entre os jardins de glicínias e parecia não ver suas pacientes damas, que esperavam havia horas atrás de sua porta. O ar estava frio ao pôr do sol e o perfume das flores se desvanecera. Estremeceu e ficou por um momento contemplando à sua volta o esplendor do crepúsculo, os lagos iridescentes, as trepadeiras purpurinas salpicadas de branco, os telhados brilhantes de ouro e as feras esculpidas em suas criptas, os caminhos pavimentados e as paredes carmesins. Tudo aquilo era dela e... não lhe bastava? Devia bastar-lhe, pois que mais podia ser dela? Tinha um herdeiro, seu escolhido. O menino Imperador estava em seu nono ano, alto e delgado como um bambu novo. Tinha a pele pálida, translúcida e muito delicada, mas sua vontade era forte e não fazia segredo de que amava Sakota mais que sua imperial tia e mãe substituta. A única pessoa mais orgulhosa que êle era a própria Imperatriz. Ela não se rebaixaria a requestar o garoto, nem mesmo podia ocultar o seu crescente desgosto por êle, resultante do desapontamento de seu coração. A luta nascente entre a bela e idosa Imperatriz e o jovem Imperador impregnara a Corte inteira, dividindo cortesãos e eunucos, uns contra os outros, e nessa divisão a louca mulher que era Sakota começou a sonhar vagos sonhos de poder. Ela, que sempre fora a criatura mais fraca e mais tímida do palácio, começava a alimentar tais sonhos. Através de Li Lien-ying, a Imperatriz soube que sua prima-Imperatriz planejara tomar o lugar que por direito lhe cabia, como Consorte do Imperador Hsien Feng, lugar este que - declarara ela particularmente - lhe fora usurpado pela sua prima.
A Imperatriz rira-se da história. Ainda sabia rir jovialmente, quando se via diante de uma pretensão absurda.
- Sem dúvida é um gato contra um tigre, disse ela, sem a menor preocupação, nem censurou o seu eunuco quando este se pôs a rir também.
Não obstante, naquele mesmo ano Sakota desferiu um tímido golpe. Foi no dia sagrado em que toda a Corte devia reverenciar as Imperiais Tumbas do Oriente. Quando chegou, ao meio dia, com seu cortejo, a Imperatriz espantou-se ao verificar que Sakota deliberara ser a primeira a oferecer sacrifício perante o falecido Imperador
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Hsien Feng e conquistar, assim, precedência em todas as cerimônias do dia. A Imperatriz chegara com o cérebro e o espírito plenamente preparados. Jejuara no dia anterior, não tomando alimento nem água, levantara-se ao amanhecer e, fora do salão em que passara meditando a longa e solitária noite, Jung Lu aguardara com os outros príncipes e ministros para escoltá-la às tumbas. A Imperatriz foi transportada em seu palanquim através da profunda floresta que circundava as Tumbas dos Oito Imperadores. Viajavam todos em silêncio e nenhum canto de pássaro lhe feriu os ouvidos, na escura madrugada. Chegou solene e grave, cônscia do peso de sua posição, seus muitos povos sujeitos exclusivamente a ela, exclusivamente sobre ela repousando o pesado dever de conservá-los em segurança contra os inimigos estrangeiros que os ameaçavam agora com seu poder sempre crescente. Ela, que raramente orava ao Céu, rezara naquele dia de todo o coração, suplicando que lhe desse prudência e energia, e pediu aos Imperiais Ancestrais que, como deuses, guiassem seus pensamentos e planos, desfiando as contas de jade do seu rosário budista, uma para cada prece.
Que choque ao verificar, no solene estado de espírito em que se encontrava, que aquela tola, Sakota, persuadida pelo Príncipe Kung - agora sempre com ciúmes de Jung Lu - já se encontrava diante das Tumbas, antes dela! Na verdade, Sakota achava-se pronta diante do altar de mármore, no lugar central, e quando a Imperatriz desceu do palanquim, ela lhe dirigiu um sorrizinho mau, indicando-lhe um lugar à sua direita, ao passo que o da esquerda estava vazio.
A Imperatriz lançou-lhe um olhar altivo, com seus negros olhos fulgurantes, e então, ignorando o convite de Sakota, dirigiu-se sem o menor sinal de pressa, para o pavilhão próximo. Sentou-se e mandou chamar Jung Lu.
- Não me digno de interrogar ninguém, disse ela quando êle se ajoelhou à sua frente. - Ordeno-lhe apenas que leve esta mensagem à minha co-Regente: se ela não sair imediatamente de seu lugar, ordenarei à Guarda Imperial que a leve, carregada, para a prisão.
Jung Lu curvou-se até o chão. Depois, a bela fisionomia envelhecida fria e altiva como sempre naqueles últimos tempos, levantou-se e foi transmitir a mensagem a Sakota. Voltou logo em seguida, curvou-se perante a Imperatriz e disse:
- A co-Regente recebeu vossa mensagem, Altíssima, e respondeu que está no lugar que lhe cabe, por direito, porquanto vós sois apenas a Primeira Concubina. O lugar vazio, à sua esquerda, é para a falecida Consorte, sua irmã mais velha, que, após a sua morte, foi elevada à categoria de Imperatriz Primeira.
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A Imperatriz ouviu tais palavras, ergueu a cabeça e fitou, ao longe, os pinheiros escuros e as estátuas de mármore representando animais. Disse, em voz muito calma:
- Volte à co-Regente e repita-lhe a mensagem que mandei. Se não ceder, ordene à Guarda Imperial que a prenda, e também ao Príncipe Kung, com o qual tenho sido muito transigente. Daqui por diante não terei misericórdia com ninguém.
Jung Lu levantou-se e, chamando os guardas que o seguiram em seus uniformes azuis, as espadas desembainhadas reluzindo na mão direita, tornou a aproximar-se de Sakota. Minutos depois voltou para anunciar que ela havia cedido.
- Altíssima, disse êle em voz serena e fria, o lugar está à vossa espera. A co-Regente passou para a direita.
A Imperatriz desceu de sua alta cadeira e caminhou majestosamente para a Tumba. Sem olhar para a esquerda nem para a direita, executou as cerimônias com graça e majestade. Quando terminou, regressou em silêncio para os palácios, sem dar nem receber nenhuma saudação.
Os dias subseqüentes decorreram em aparente paz, sem alusões ao incidente. Contudo todos sabiam que não poderia haver paz entre as duas mulheres, cada uma delas contando com seus adeptos - Jung Lu ao lado da Imperatriz, tendo consigo o Eunuco-Chefe, e ao lado de Sakota o Príncipe Kung, agora velho, mas ainda altivo e destemido.
O desfecho era certo, mas quem sabe se teria ocorrido como ocorreu se Jung Lu não houvesse cometido uma loucura, incomum e imprevista? Pois no outono daquele mesmo ano correu o boato, como um pestilento miasma, de que Jung Lu, o fiel, o de nobre coração, digno de toda a confiança, estava cedendo às investidas amorosas de uma jovem concubina do falecido Imperador T'ung Chih, a qual permanecera virgem porque seu senhor amava somente a Alute. Quando a Imperatriz ouviu, pela primeira vez, essa imunda informação a respeito de Jung Lu, saída dos lábios espessos de seu eunuco, não quis acreditar.
- Que... meu parente? exclamou ela. - Seria mais fácil dizer que era eu!
- Venerável, sussurrou Li Lien-ying sorrindo medonhamente, juro que é verdade. A Imperial Concubina lança-lhe olhares, nas reuniões da Corte. Não vos esqueçais de que ela é bela e ainda jovem, na verdade suficientemente jovem para ser sua filha, e êle está na idade em que os homens gostam de mulheres jovens como suas próprias filhas. Lembrai-vos, também, de que êle nunca amou a dama que vós lhe destes, Majestade. Não, três e três ainda são seis e cinco e cinco são sempre dez.
Mas a Imperatriz continuou rindo e sacudindo a cabeça, enquanto escolhia um doce da bandeja de porcelana posta sobre a mesa junto
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de seu cotovelo. Mas, quando o eunuco, meses depois, lhe trouxe a prova, não pôde mais rir. O próprio eunuco-servo dele, contou-lhe agora Li Lien-ying, havia surpreendido uma serva que colocara um papel dobrado em certo altar de um aposento interno do imperial templo budista. Recebeu-o um sacerdote que, mediante pagamento, atirou-o numa urna de incenso, onde um pequeno eunuco tornou a encontrá-lo e, de novo mediante pagamento, levou-o ao portão onde o criado de Jung Lu o recebeu - todos tinham sido subornados pela concubina, que, louca de amor, se expunha daquela maneira.
- Majestade, lede vós mesma, pediu o eunuco.
A Imperatriz tomou a folha perfumada. Era, de fato, um bilhete marcando encontro.
"Procure-me à uma hora depois da meia-noite. O vigia está subornado e lhe abrirá o terceiro portão da lua. Minha criada o ocultará atrás da cássia e o trará até mim. Sou uma flor esperando a chuva."
A Imperatriz leu, tornou a dobrar o papel e guardou-o na manga. Li Lien-ying esperava, de joelhos, enquanto ela cismava. E por que protelar - perguntava a si mesma - se a prova estava nas suas mãos? Sentia-se tão íntima, na carne e no coração, do homem Jung Lu, que cada palavra que um deles proferia ia direta ao outro como uma seta disparada pelo arco. O que quer que interviesse, fosse tempo ou circunstância, ruía quando o coração dela falava ao dele. Não podia perdoá-lo agora.
- Traga aqui o Grande Conselheiro, ordenou ao eunuco. - E quando êle chegar, feche as portas e cerre as cortinas e proíba a entrada de quem quer que seja, até ouvir-me tocar este tímpano de bronze.
Êle ergueu-se. Sempre pronto a fazer o mal, pôs-se a correr tão depressa, que seu manto esvoaçava atrás dele, como asas. Em menos tempo do que ela necessitava para dominar sua cólera, Jung Lu entrou, trajando seu longo manto azul, no peito um bordado de ouro de forma quadrada, na cabeça um gorro alto do mesmo ouro e nas mãos um pedaço de jade esculpido que mantinha diante do rosto ao aproximar-se da Imperatriz. Mas ela não quis ver a sua esplêndida beleza. Sentada em seu trono privado, na grande biblioteca, seu manto de cetim escarlate bordado com dragões caindo-lhe aos pés, a travessa ornada de jasmins recém-colhidos, exalando suave perfume, ela o encarou como inimigo. Até êle!
Jung Lu preparava-se para se ajoelhar, como seu cortesão, mas a Imperatriz proibiu-o.
- Sente-se, Príncipe, disse ela em voz metálica. - Largue o jade, peço-lhe. Esta não é uma entrevista formal. Chamei-o em particular para interrogá-lo a respeito desta carta, posta nas minhas mãos há uma hora, pelos meus espiões do palácio, que, como sabe, estão em toda parte.
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Êle não se sentou, nem mesmo por ordem dela, mas também não se ajoelhou. Permaneceu de pé, diante dela, e quando a Imperatriz tirou do interior da manga a carta perfumada, não estendeu a mão para tomá-la.
- Sabe o que é isto? perguntou ela.
- Vejo o que é, disse êle com a expressão impassível.
- Não sente vergonha?
- Nenhuma, tornou êle.
Ela deixou a carta cair no chão e cruzou as mãos sobre o regaço de cetim.
- Não se sente desleal para comigo? indagou.
- Não, porque não sou desleal, redargüiu êle, acrescentando: - O que me pedis, dou. O que não me pedis nem precisais, fica para mim mesmo.
Essas palavras confundiram de tal maneira a Imperatriz que ela não pôde responder. Jung Lu esperou em silêncio, depois curvou-se e saiu, sem pedir-lhe permissão, nem ela proferiu seu nome para detê-lo. Ficando sozinha, permaneceu imóvel como uma estátua, meditando no que êle havia dito. Estava tão habituada a ser justa que, mesmo naquele momento, seu cérebro pesava as palavras dele contra seu coração. Não dissera êle a verdade? Ela não devia ter dado ouvidos tão prontamente a um eunuco. Não havia uma mulher em todo o reino cujo coração não palpitasse ao nome de Jung Lu. Era culpa dele? Não, sem dúvida êle estava acima dos mesquinhos amores e ódios das pessoas dos palácios. Fizera-lhe grande injustiça acreditando com tanta facilidade na sua deslealdade para com ela, sua soberana. E poderia, com justiça, censurá-lo por ser homem? Pôs-se a pensar na maneira de recompensá-lo com alguma nova honraria, consolidando a sua fidelidade.
Durante alguns dias mostrou-se dura com Li Lien-ying, lacônica no que lhe dizia. Êle era prudente e se afastou, planejando uma nova maneira de fazer-se ouvido. Assim, semanas depois, um dia depois que a Imperatriz concedera sua audiência habitual aos príncipes e ministros, um eunuco - não Li Lien-ying - levou-lhe um memorial privado do preceptor do Imperador, Weng T'ung-ho, o qual lhe dizia que se sentia no dever de comunicar-lhe um assunto secreto. Ela suspeitou imediatamente de que se tratava da jovem concubina, pois esse preceptor odiava Jung Lu, que escarnecera dele por ocasião de um torneio de arqueiros, quando o preceptor pretendera realizar proesas mas fracassara miseravelmente, pois era um erudito e tinha o físico débil de um erudito, não sendo, ademais, arqueiro.
Não obstante a Imperatriz recebeu o memorial que o preceptor lhe mandara em segredo. Dizia simplesmente que, se ela fosse, a uma certa hora, ao quarto de uma certa concubina, veria uma cena que a surpreenderia. Êle, Weng T'ung-ho, não arriscaria a cabeça
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revelando um segredo, se não fosse o seu sentimento de dever, pois se o escândalo passasse desapercebido nos palácios imperiais, que ocorreria então no país, entre o povo, para o qual a Imperatriz era uma deusa?
Ao concluir a leitura desse memorial, a Imperatriz despediu o eunuco com um gesto e, acompanhada de suas servas, dirigiu-se rápida ao Palácio das Concubinas Esquecidas, encaminhando-se ao quarto em que vivia a moça, concubina que ela escolhera para seu filho e que êle nunca havia chamado.
Abriu lentamente a porta, com as próprias mãos, enquanto ao seu redor os criados e eunucos, surpreendidos pela sua inesperada presença, puderam apenas cair de joelhos e esconder os rostos atrás das mangas. Abrindo de par em par a porta, ela de súbito viu a terrível cena que temia. Jung Lu estava ali, sentado numa grande cadeira, ao lado de uma mesa, na qual havia bandejas de doces e um jarro de vinho. Junto dele achava-se ajoelhada a concubina, as mãos apoiadas nos joelhos de Jung Lu, que, sorridente, fitava a sua adorável face.
Esta foi a cena que a Imperatriz viu. Sentiu no peito uma dor tão forte que levou as mãos ao coração, para salvá-lo. Jung Lu, erguendo a cabeça, viu-a. Encarou-a por um instante, depois tirou as mãos da moça de cima de seus joelhos, levantou-se e ficou esperando, com os braços cruzados, que a cólera imperial desabasse sobre êle.
A Imperatriz não pôde falar. Ficou parada, e os dois se entreolharam, homem e mulher, e naquele momento ela compreendeu que ambos se amavam com um amor tão desesperado, tão eterno e tão forte que nada poderia destruir o sentimento que os unia. Viu o espírito dele impassível e altivo, seu amor ainda imaculado, e o que êle fazia naquele quarto não tinha a menor significação. Fechou a porta tão suavemente quanto a abrira, e voltou para o seu palácio.
- Deixem-me só, pediu ela aos eunucos e às servas. E, sozinha, ficou meditando na cena que descobrira. Não, não duvidava do amor e da lealdade de Jung Lu, mas a ferida subsistia: êle era, numa certa medida, um homem vulgar, tanto pela carne como pelo espírito. A carne fizera suas exigências e êle cedera. Até mesmo êle - murmurou a Imperatriz - não era suficientemente grande para a solidão que ela estava condenada a suportar.
As têmporas doíam-lhe. Sentiu o peso do diadema na cabeça e tirou-o, pondo-o sobre a mesa e esfregando a testa com as mãos.
Seria doce saber que, por causa dela, êle pudesse renegar a carne vulgar dos homens vulgares! Sua solidão ficaria atenuada, ao saber que embora êle estivesse situado abaixo dela, igualava-a na grandeza.
Seus pensamentos giraram ao redor do mundo até encontrar Vitória, a Rainha inglesa, a qual, embora nunca tivesse visto, considerava
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como soberana irmã, e dirigiu-se a ela, em secreta comunicação, da seguinte maneira: "Mesmo como viúva, Irmã Imperatriz, és mais feliz do que tenho sido. A Morte levou o teu amor intacto e puro. Não fôste preterida por uma mulher tola".
Mas Vitória não podia ouvir. A Imperatriz suspirou, lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e caíram como jóias em seu peito. O amor transbordou-lhe do coração.
"Eu pensava, antes, que estava só", disse sombriamente para si mesma. "Mas agora aceito a profundeza total da solidão".
O tempo fluía enquanto ela meditava. E, a cada momento, a negra consciência da sua integral solitude lhe impregnava a alma, até enchê-la de amargura. Tornou a suspirar, enxugou as lágrimas e, como se despertasse de um transe, levantou-se do trono e se pôs a caminhar pelo majestoso salão. Podia agora pensar no seu dever e na punição que Jung Lu tinha de aceitar, se ela fosse justa. E justa ela era e sempre seria, igual para todos.
No dia seguinte, à hora da audiência matinal, antes do nascer do sol, anunciou, por edito imperial, que o Grande Conselheiro Jung Lu ficava, a partir daquele momento, dispensado de todos os seus cargos, devendo por conseguinte afastar-se por completo da Corte Imperial. Não lhe foi feita nenhuma acusação, nem era necessário, pois já se havia espalhado a notícia do flagrante.
Ao alvorecer, ela estava sentada no Trono do Dragão, que tomara para si desde a morte de seu filho, tendo à sua frente os ministros e os príncipes, cada qual em seu lugar. Todos ouviram a condenação de seu colega e nenhum falou. Suas fisionomias estavam graves, pois se uma pessoa, tão altamente colocada como Jung Lu, podia cair tão baixo, nenhum deles tinha o direito de considerar-se em segurança.
A Imperatriz viu suas fisionomias e nada disse. Se o amor não era o seu guardião, o medo devia ser a sua arma. Reinava solitária, ninguém se aproximava dela e todos lhe tinham medo.
Mas o medo não era suficiente. Na segunda lua do ano seguinte, o Príncipe Kung assumiu uma tarefa odiosa, mas para a qual dizia ter sido compelido. Num frio dia de primavera, após a audiência, o Príncipe Kung solicitou uma audiência privada - favor que há muito não pedia. A Imperatriz estava ansiosa por sair do Salão de Audiência e voltar ao seu palácio, pois planejava passar o dia em seus jardins, onde as flores das ameixeiras estavam começando a encher-se com o calor da primavera. Não obstante, foi forçada a receber o Príncipe, que era o seu principal conselheiro e seu intermediário junto aos homens brancos, cada vez mais exigentes. Os estrangeiros gostavam do Príncipe Kung e confiavam nele, razão por que a Imperatriz se utilizava dessa circunstância em seu benefício. Esperou, portanto, e quando os outros príncipes e ministros
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saíram, o Príncipe Kung adiantou-se, fêz a sua reverência e começou:
- Majestade, não vim pedir-vos nada para mim, pois me considero suficientemente recompensado pela vossa generosidade passada. É a vossa grandeza que eu agora invoco em favor da Imperatriz Viúva e vossa co-Regente.
- Ela está doente? perguntou a Imperatriz com suave interesse.
- De fato, Majestade, dizem que está doente em virtude de grande sofrimento do espírito, redargüíu o Príncipe Kung.
- E que sofrimento é esse? inquiriu a Imperatriz, ainda distante.
- Majestade, não sei se chegou aos vossos ouvidos que o eunuco Li Lien-ying se tornou insuportavelmente arrogante. Chega mesmo a intitular-se Senhor dos Nove Mil Anos, título que pela primeira vez foi concedido ao perverso eunuco do Imperador Chu Yu-chiao, na Dinastia Ming. Majestade, sabeis que semelhante título significa que o eunuco Li Lien-ying só tem acima de si o Imperador, que é o senhor dos Dez Mil Anos.
A Imperatriz sorriu o seu sorriso frio.
- Devo ser censurada pelo nome com que a gente menor do palácio chama aquele que a governa? Esse eunuco dirige essa gente, por mim. É dever dele, pois como posso ocupar-me de questões miúdas da minha casa real, quando suporto nos ombros a carga da minha nação e do meu povo? Quem governa bem é sempre odiado.
O Príncipe Kung cruzou os braços e manteve o olhar na altura do tamborete imperial, mas sua expressão era amarga.
- Majestade, disse êle, se fosse a gente menor que se rebela, eu não compareceria perante o Trono do Dragão. Mas a pessoa com a qual esse eunuco se mostra mais rude, mais cruel e de fato mais arrogante, é a própria co-Regente, a Imperatriz Viúva.
- Sim? observou a Imperatriz. - E por que minha irmã-Regente não se queixa diretamente a mim? Não sou generosa para com ela, de todas as maneiras? Deixei alguma vez de cumprir o meu dever para com ela? Penso que não! Se não pode executar as cerimônias e os ritos é porque tem a saúde débil, o corpo fraco, o espírito deprimido. Tenho sido obrigada a fazer o que ela não pode. Se tem queixas a fazer, que as faça a mim.
E com isso despediu o príncipe com um gesto da mão direita. Êle não pôde fazer outra coisa senão partir, cônscio de a haver desagradado.
Para a Imperatriz, entretanto, o dia estava estragado. Perdera a disposição de passear nos jardins, embora o ar estivesse refrescado pelas recentes tempestades de areia e o sol brilhasse num céu sem nuvens. Dirigiu-se para um palácio afastado e lá se isolou, envolta no manto de sua grande solidão. Não sonhava mais com o amor - contava apenas com o medo. Porém o medo tinha de ser absoluto, pois do contrário não seria suficiente. Ninguém devia atrever-se
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a se queixar dos que a serviam. Silenciaria todas as línguas que não a louvassem. No entanto ainda preferia a misericórdia, se a misericórdia bastasse.
Encaminhou-se então, com suas damas, para o templo budista situado no palácio e queimou incenso diante de sua favorita Kuan Yin. Ali, no silêncio de seu próprio coração, suplicou à deusa que a iluminasse e lhe ensinasse a misericórdia, suplicou que Sakota despertasse para a misericórdia a ela demonstrada, de maneira que sua vida pudesse ser salva.
Fortalecida pelas suas orações, a Imperatriz mandou mensageiros anunciarem a sua ida ao Palácio Oriental. Para lá se dirigiu ao crepúsculo e encontrou Sakota deitada na cama, debaixo de uma colcha de cetim ambarino.
- Eu me levantaria, Irmã, disse Sakota em sua voz alta e lamurienta, se minhas pernas hoje não estivessem fracas demais. Sinto tamanhas dores nas juntas que não tenho coragem de mexer-me.
A Imperatriz sentou-se numa grande cadeira que ali havia sido colocada para ela e despediu as suas damas, a fim de poder ficar a sós com aquela fraca mulher. Falou-lhe então bruscamente, como costumava fazer quando eram crianças e viviam sob o mesmo teto.
- Sakota, disse ela, não aceitarei queixas feitas a outros. Se não está satisfeita, diga-me pessoalmente o que deseja. Farei o que puder, mas não permitirei que você destrua meu palácio por dentro.
Quem pode dizer se fora o Príncipe Kung quem infundira um pouco de energia naquela criatura tola, ou se era instigada pelo seu próprio desespero? O certo é que, ao ouvir tais palavras, soergueu-se no cotovelo e encarou a Imperatriz com olhar irado, dizendo:
- Esquece-se, Orquídea, de que estou situada acima de você, por direito e por lei. Você é a usurpadora e há muitos que o afirmam. Tenho meus amigos e adeptos, embora você pense que não!
Se um gato tivesse avançado contra um tigre, a Imperatriz não teria ficado mais surpreendida do que estava agora. Levantou-se da cadeira, correu para Sakota, agarrou-a pelas orelhas e sacudiu-a.
- Você, você... verme pusilânime! gritou rangendo os dentes. - Você, sua tola ingrata e indigna, com quem fui boa demais...
Mas Sakota, assim espicaçada, esticou o pescoço e mordeu a parte inferior do polegar da Imperatriz. Seus dentes cerraram-se na carne até que a Imperatriz foi obrigada a abrir-lhe os maxilares à força, enquanto o sangue jorrava de sua mão, manchando-lhe o manto amarelo-imperial.
- Não lamento, balbuciou Sakota. - Estou alegre. Agora você sabe que sei me defender.
A Imperatriz não respondeu uma palavra. Tirou o lenço de seda preso no botão de jade do seu ombro, enrolou com êle a mão ferida. Então, ainda sem dizer palavra, voltou-se e saiu majestosamente
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do aposento. Do lado de fora, os eunucos e as servas estavam aglomerados, orelhas coladas às portas. Agora todos recuaram e as damas da Imperatriz, que estavam próximas, com a fisionomia grave, os olhos esbugalhados, curvaram-se em silêncio à sua passagem e seguiram-na passivamente, pois quem se atreve a desrespeitar um real tigre fêmea que vai para a luta?
Quanto à Imperatriz, voltou para o seu palácio. Às horas mortas daquela noite, após longas e solitárias reflexões, a mão ferida encostada no peito, fêz soar o gongo de prata com o qual chamava Li Lien-ymg. Èle entrou e postou-se à sua frente. Tão unidos eram os dois que êle estava sempre por perto e já sabia, através dos seus espiões, o que sucedera.
- Majestade, vossa mão incomoda-vos, disse êle.
- Sim. Os dentes daquela mulher têm o veneno das víboras.
- Deixai-me pensar o ferimento. Aprendi a fazer curativos com um velho tio, agora morto, que era médico.
Ela deixou-o retirar o lenço de seda e êle o fêz ternamente, derramando água quente numa bacia e misturando-a com água fria, de modo que a tornasse da temperatura do corpo. Lavou-lhe cuidadosamente a mão, tirando o sangue coagulado, depois enxugou-a com uma toalha.
- Sois capaz de sentir mais dor, Majestade? perguntou êle.
- Precisa perguntar?
- Não, concordou êle. E, tirando um carvão aceso do braseiro, com o polegar e o indicador, comprimiu-o contra o ferimento, cauterizando-o. Ela não se encolheu nem gemeu. O eunuco então tirou o carvão, apanhou outro lenço numa caixa que ela lhe indicou e tornou a amarrar-lhe a mão.
- Um pouco de ópio esta noite, Majestade, e amanhã não sentireis mais dor.
- Sim, retrucou ela com indiferença.
Êle ficou à espera, enquanto a Imperatriz parecia meditar, como se tivesse esquecido a mão queimada. Afinal falou:
- Quando há uma erva perniciosa num jardim, que mais se pode fazer senão arrancá-la pela raiz?
- De fato, que mais? concordou êle.
- Ah, mas eu só posso confiar naquele que me é mais leal, disse ela.
- E esse sou eu, vosso servo.
Trocaram um olhar, um longo olhar, e Li Lien-ying curvou-se e saiu.
A Imperatriz chamou então sua serva, que preparou um cachimbo de ópio e ajudou-a a deitar-se. Sugando a fumaça adocicada, a Imperatriz entregou-se a um sono sem sonhos.
No décimo dia daquele mesmo mês, Sakota, a Imperatriz Viúva, caiu doente de uma estranha e súbita enfermidade, que a dedicação
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de todos os médicos da Corte não conseguiu curar. Antes que ós remédios alcançassem seus órgãos vitais, ela morreu, contorcendo-se em agonia. Uma hora antes de sua morte, quando já sabia que não escaparia, ergueu-se, chamou um escriba e ditou o seguinte edito, a ser expedido depois que houvesse partido:
"Embora eu tenha boa constituição e esperasse alcançar, sem dúvida, uma idade avançada, ontem fui atacada de uma enfermidade desconhecida, extremamente dolorosa, e agora parece que devo separar-me deste mundo. A noite se aproxima, toda esperança se foi. Tenho quarenta e cinco anos de idade. Durante vinte anos ocupei a alta posição de Regente do Império. Muitos títulos e recompensas me foram concedidos, pela minha virtude e pela minha graça. Por que, então, teria medo de morrer? Peço apenas que os vinte e sete meses habituais de luto sejam reduzidos para vinte e sete dias, de modo que a parcimônia e a sobriedade em que vivi marquem também o meu fim. Nunca desejei a pompa e a vã ostentação durante a minha vida, nem as desejo no meu funeral".
Esse edito foi expedido pelo Príncipe Kung, em nome da morta, e a Imperatriz nada disse, embora soubesse que aquelas últimas palavras constituíam uma censura à sua extravagância e ao seu amor ao belo. Guardou, porém, mais esta amargura no íntimo do coração e quando, um ano depois, novo desastre caiu sobre a nação, aproveitou uma vez mais a oportunidade de censurar o Príncipe Kung. Eis o fato. Os franceses reclamaram a província de Tonquim como presa de guerra, e quando a Imperatriz mandou uma frota de juncos chineses ao Rio Min para expulsá-los, destruíram-na por completo. Cheia de raiva, a Imperatriz redigiu um edito com as próprias mãos, acusando o Príncipe Kung de incompetência, senão de traição, e embora suas palavras fossem suaves e cheias de misericórdia, o golpe desferido foi severo. Assim escreveu ela:
"Reconhecemos os méritos passados do Príncipe Kung e por isso queremos, por clemência, permitir que o príncipe conserve seu principado hereditário, bem como todos os seus emolumentos, mas destituímo-lo, a partir desta data, de todos os seus cargos e dos seus vencimentos duplos".
E com o Príncipe Kung a Imperatriz demitiu também os seus colegas. Para o seu lugar designou o Príncipe Ch'un, marido de sua irmã e pai do pequeno Imperador, e com êle os príncipes que ela própria escolheu. Os homens do seu clã ficaram irritados, pois dessa forma o Príncipe Ch'un se tornava chefe do Estado por ordem dela. Temiam que êle iniciasse uma dinastia própria, usurpando a de T'ung Chih. Mas a Imperatriz não temia a ninguém - nem na terra nem no céu. Seus inimigos estavam anulados e, em seu solitário orgulho, silenciava todos quantos se lhe opunham. Mas era demasiado prudente para parecer tirana sem motivo e quando o Censor Erhhshun apresentou um memorial declarando que,
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se fosse dado tamanho poder ao Príncipe Ch'un, o Grande Conselho se tornaria inútil, ela se lembrou de que esse censor era um homem bom e correto, experimentado como ex-Vice-rei da Manchúria e mais tarde como Vice-rei da província de Szechuen - respondeu-lhe, por conseguinte, com cautela. Num edito que ordenou fosse mandado a todas as partes do reino, observou que, pela lei e pelo costume, um príncipe de sangue nunca devia ser investido de tanto poder quanto o que ela dera ao Príncipe Kung. Fora, no entanto, obrigada a convocar todo o auxílio possível para a tarefa de reconstruir a nação, restituindo-lhe toda a força e glória passadas. Ademais, dizia ela, a atual designação do Príncipe Ch'un era apenas temporária. E concluía com as seguintes palavras:
"Vós, Príncipes e Ministros, não imaginais quão grandes e numerosos são os problemas que temos de enfrentar. Quanto ao Grande Conselho, que os Conselheiros se precavenham de fazer da posição do Príncipe Ch'un um pretexto para se subtraírem às suas responsabilidades. Em conclusão, desejamos que, no futuro, Nossos Ministros demonstrem maior respeito pelos motivos que determinam os atos de sua Soberana, e se abstenham de perturbar-Nos com suas plangentes queixas. Os pedidos do memorialista ficam, por conseguinte, indeferidos".
Era seu hábito escrever em linguagem firme e simples, sem inúteis palavras cerimoniosas. Quando seus ministros e príncipes receberam esse edito, permaneceram mudos. E nesse silêncio a Imperatriz governou durante sete anos, como tirana absoluta e graciosa.
Foram bons anos esses. A Imperatriz, cercada pelo silêncio dos príncipes e ministros, dava poucas audiências. Mas observava meticulosamente as cerimônias e considerava os desejos do seu povo. Proclamava festas e concedia muitos feriados. O Céu aprovou o seu reinado, pois durante todos esses anos não houve enchentes nem secas e as colheitas foram abundantes. Tampouco houve guerra em qualquer parte do reino. Seus inimigos estrangeiros mantinham-se em regiões distantes, mas não provocaram nenhuma luta. Ademais, como governava pelo medo, seus súditos não lhe traziam boatos e seus conselheiros abstinham-se de exteriorizar suas dúvidas.
Em tal tranqüilidade, a Imperatriz pôde devotar-se à realização de seu sonho. Consistia em completar a edificação do novo Palácio de Verão. Fêz divulgar o seu desejo e, quando o povo o soube, começou a mandar-lhe presentes de ouro e de prata e as províncias duplicaram seu tributo. Não permitiu, também, que pensassem que esse sonho era apenas para ela. Em editos, que escrevia em forma de cartas aos seus súditos, agradecia-lhes e declarava que o Palácio de Verão seria o seu retiro quando entregasse o Trono ao seu herdeiro, Kwang Hsu, o jovem Imperador, seu sobrinho e filho ado tivo,
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O que faria - prometia ela - tão logo êle completasse seu décimo sétimo ano de idade.
Assim a Imperatriz fêz com que até mesmo o seu sonho parecesse correto aos olhos do povo, e assim parecia também a ela. Cumprindo um agradável dever, por conseguinte, passava o tempo desenhando e orientando a construção de vastos salões de magnificência e beleza para satisfazer a sua alma, e para isso escolheu o lugar do Imperador Ch'ien Lung. Esse Imperador, que fora o filho forte de uma mãe forte, construíra seu palácio de prazer de acordo com o desejo materno. A dama visitara certa vez Hangchow, cidade de pura beleza, e admirara as grandes casas de prazer lá existentes, até que seu filho, Ch'ien Lung, declarou que construiria uma igual para ela, fora dos muros de Pequim. E assim ergueu o seu Palácio de Verão, edificando-o com toda a graça e conveniência, enchendo-o de tesouros do mundo inteiro. Mas tudo fora destruído por ordem do inglês Lorde Elgin e agora só restavam as invencíveis ruínas.
Esse foi o local que a Imperatriz escolheu, realizando assim, não apenas o seu sonho, mas reconstruindo os sonhos dos Imperiais Ancestrais. Com impecável gosto, incluiu em seus planos o Templo dos Dez Mil Budas, que Chien Lung edificara e que os estrangeiros não haviam destruído, e os pavilhões de bronze que os incêndios não haviam queimado, bem como seu formoso e plácido lago. Porém outras ruínas ela não reconstruiria nem mandaria remover. Que permanecessem, dizia ela, como lembrança, a fim de que os homens meditassem sobre o fim da vida e soubessem como os palácios podem ser destruídos pelo tempo e pelos inimigos.
Perto da região sul do lago, projetava e orientava a construção de seus palácios, onde ela e o Imperador pudessem viver separados, porém não muito distantes um do outro. Aí situou, também, um grande teatro onde, na velhice, pudesse entregar-se ao seu divertimento favorito. Perto dos portões de mármore, coberto de telhas azuis, instalou o Salão de Audiência, pois mesmo nos feriados, dizia ela, o governante deve estar pronto a ouvir as vozes dos ministros e dos príncipes. Esse Salão de Audiência era majestoso e muito amplo, decorado com madeiras esculpidas, preciosos móveis antigos laqueados, e ornamentos. Em suas portas de vidro estava pintado o grande sinal da longevidade. Diante do salão estendia-se um terraço de mármore, do qual degraus de mármore conduziam ao lago. No terraço foram colocados pássaros e animais de bronze. No verão, toldos de seda davam sombra às varandas compridas.
No lado oeste a imperial mulher construiu seu lar - salão após salão, cercados por compridas varandas ornadas de colunas, onde ela gostava de meditar, caminhando. Quando chovia, punha-se a andar de um lado para o outro, contemplando a atmosfera nublada e os ciprestes gotejantes. No verão ordenava que estendessem tapêtes
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de grama cheirosa nos seus pátios, cheios de penedias e flores; entre todas as suas flores ainda preferia as pequenas orquídeas verdes, que lhe haviam dado o nome que usara quando menina. Ao longo do lago construiu um comprido corredor de colunas de mármore, de uma milha de comprimento, no qual também gostava de passear, contemplando uma montanha de peônias, macieiras silvestres, loendros e romãzeiras. Com crescente paixão, amava a beleza pela beleza e - dizia a si mesma - somente a beleza era pura e boa e digna do seu amor.
Encorajada pela boa vontade de seu povo, a Imperatriz tornou-se insaciável de magnificência. Sua cama real foi guarnecida de cortinas de cetim amarelo-imperial, nas quais mandou que fosse bordada, pelas melhores bordadeiras, uma nuvem de fênix voantes. Mandou trazer de todas as partes do mundo ocidental relógios para o seu divertimento, relógios de ouro cravejados de pedras preciosas. Alguns eram providos de engenhosos pássaros que cantavam, outros de gaios que cucuricavam, outros ainda centrados sobre fios de água corrente que lhes movia as engrenagens internas. No entanto, apesar desses brinquedos, reuniu uma biblioteca que os maiores eruditos invejavam e nunca deixou de ler os seus livros.
E sempre, para onde quer que olhasse, via as águas azuis do lago. No centro dele achava-se a ilha na qual se erguia o templo do Rei Dragão, ao qual conduzia uma ponte de mármore com dezessete arcos. Nessa ilha havia, também, um pequeno banco arenoso e, semi-enterrada na areia, a vaca de bronze, colocada por Ch'ien Lung, secular guardiã contra as enchentes. A Imperatriz mandou construir muitas pontes, de modo que pudesse ir para onde quisesse, mas havia uma que ela amava sobre todas as outras, uma ponte corcunda, cujo dorso se erguia a uma altura de dez metros. Gostava de permanecer, lá no alto, contemplando a água, acima dos tetos, dos pagodes e dos terraços de sua vasta propriedade.
Embalada pela beleza, deixava os anos fluírem, até que um dia, seu eunuco, que tinha o dever de lembrar-lhe as coisas que ela esquecia, pediu-lhe que se recordasse de que o jovem Imperador, Kwang Hsu, seu sobrinho, aproximava-se agora do fim de seu décimo sétimo ano e por conseguinte ela deveria escolher uma consorte para êle. Nesse dia a Imperatriz estava observando o acabamento de um novo pagode que ela desenhara para alongar o cume pontiagudo de uma montanha, atrás do Palácio de Verão. Percebeu, contudo, que Li Lien-ying tinha razão e que ela não devia protelar por mais tempo o casamento do Herdeiro. Quantas cautelas tivera na escolha da Consorte de seu verdadeiro filho! Não sentia a mesma preocupação agora, limitando-se à deliberação de escolher uma mulher que lhe fosse sempre fiel e, sobretudo, que fosse diferente de Alute a qual amara demais o seu senhor.
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- Desejo apenas paz, disse a Imperatriz a Li Lien-ying. - Dême o nome de algumas virgens que você conheça e que não amem meu sobrinho como Alute amava meu filho. Não posso mais suportar uma luta. Não me deixarei perturbar nem pelo amor nem pelo ódio.
Vendo então que Li Lien-ying, que agora estava engordando, parecia pouco à vontade ao ajoelhar-se diante dela, pediu-lhe que se sentasse e descansasse, enquanto pensava nos nomes a sugerir. O enorme eunuco obedeceu alegremente, bufando, suspirando e abanando-se, pois o tempo estava muito quente para um dia de primavera, e por toda parte as árvores e arbustos floresciam prematuramente.
- Majestade, disse êle após refletir, por que não essa virgem simples e boa que é a filha de seu irmão, o Duque Kwei Hsiang?
A Imperatriz bateu palmas, suavemente, em sinal de aprovação, lançando um olhar afetuoso à medonha face de seu escravo.
- Por que não pensei nela? redargüiu. - É a melhor entre as damas jovens da minha Corte, calada e prestativa, modesta e sempre devotada a mim. É a minha favorita porque... esqueço-me de que ela vive!
- E quanto a concubinas imperiais? inquiriu Li Lien-ying
- Indique-me algumas moças bonitas, disse ela com indiferença, olhando a alta agulha do pagode, elevando-se por cima dos pinheiros.
- Cuide apenas que sejam estúpidas, aduziu. Ao que o Eunuco respondeu:
- O Vice-rei de Cantão merece recompensa, Majestade, por haver mantido afastados os rebeldes sempre inquietos nas províncias do sul. Tem duas filhas, uma bonita e outra gorda, ambas estúpidas.
- Indicá-las-ei, tornou a Imperatriz ainda com indiferença. - Prepare o decreto, concluiu.
Li Lien-ying levantou-se com grande esforço, suspirando, enquanto ela ria dele. Satisfeito, o eunuco murmurou que o seu Velho Buda não precisava incomodar-se, pois cuidaria de tudo e bastaria que ela aparecesse apenas no dia do casamento.
- Você! disse ela carrancuda, apontando-lhe o dedo mínimo cuja unha estava guarnecida de uma capa de ouro cravejada de rubis. - Você se atreve a chamar-me de Velho Buda!
- Majestade, respondeu êle, ofegando e gemendo, é como vos chama o povo por toda parte, desde que fizestes chover com orações, no último verão.
Era verdade que no último inverno não havia nevado e que os céus continuaram de um duro azul-safira através da primavera e mesmo no verão as chuvas não caíram. A Imperatriz decretou orações e jejuns e ela própria orou e jejuou e ordenou que toda a Corte fizesse o mesmo. No terceiro dia Buda cedeu, os céus fundiram-se
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e as chuvas jorraram. O povo, feliz, correu para as ruas e bebeu a chuva abençoada, lavando as mãos, banhando o rosto e louvando a Imperatriz pelo seu poder que atingia até mesmo aos deuses. E todos gritavam:
- Ela é o nosso Velho Buda!
Desde então, o Eunuco-Chefe sempre a chamava Velho Buda. Era lisonja rude, ela sabia disso, no entanto agradava-lhe. Velho Buda! Era a denominação mais alta que um povo podia dar ao seu governante, pois significava que o consideravam um deus. Já nessa época ela esquecera que era mulher. Aos cinqüenta e cinco anos de idade, distanciava-se dos homens e das mulheres, situando-se acima de todos, como Buda.
- Saia da minha frente, disse ela, rindo. - Que mais dirá você de mim, monstruosa criatura!
Depois que êle saiu, pôs-se a caminhar de um lado para o outro, solitária em meio aos fabulosos jardins que idealizara, o sol iluminando-lhe a bonita fisionomia envelhecida e refletindo-se nos mantos brilhantes que ela gostava de usar. À distância que ela agora exigia, suas damas seguiam-na, como de costume, qual um bando de adejantes borboletas.
Aproximou-se o dia do casamento, dia malfadado, que o Céu não abençoara. Os presságios não eram bons. Na noite anterior soprou do norte um vento poderoso arrancando os tetos de esteira que os eunucos tinham preparado para cobrir o grande pátio de entrada da Cidade Proibida, local que a Imperatriz determinara para as cerimônias nupciais. O dia amanheceu sombrio, a chuva caiu cedo e o céu estava inquieto. As vermelhas velas nupciais não se acendiam, os doces estavam amolecidos pela umidade. Quando a noiva entrou no vasto pátio e tomou o seu lugar ao lado do noivo, este virou a cabeça para demonstrar o seu desagrado. A Imperatriz, vendo ofendida daquela maneira a virgem que escolhera, teve que fazer um esforço tão violento para conter a sua raiva que o sangue lhe ferveu nas veias e lhe insuflou no coração um ódio mortal contra o sobrinho que assim a desafiava. Ali estava êle - um jovem alto, pálido, magro, fraco, imberbe, de mãos delicadas e sempre trêmulas, mas teimoso! Aquele era o herdeiro que escolhera para o Trono! Sua fraqueza era uma censura, sua teimosia, um inimigo! Sufocou a sua cólera, enquanto lágrimas deslizavam das faces pálidas da jovem noiva.
Os ritos continuaram, a Imperatriz parecia indiferente, e quando o dia terminou ela saiu da Cidade Proibida e voltou ao seu Palácio de Verão que doravante seria o seu lar.
No primeiro mês de seu quinquagésimo sexto ano, ela declarou por edito à nação que mais uma vez se retirava da Regência e que o Imperador agora se sentava sozinho no Trono do Dragão. Quanto a ela, aduzia, retirava-se também da Cidade Proibida. E assim fêz,
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naquele mesmo mês, transportando todos os seus tesouros para o Palácio de Verão, resolvida a lá viver e morrer, contra a vontade de muitos de seus príncipes e ministros. Estes queriam que ela conservasse pelo menos uma das mãos nas rédeas do império, pois o Imperador - diziam - era teimoso e de vontade fraca, perigosa combinação de obstinação e condescendência.
- Submisso demais aos seus tutores K'ang Yu-wei e Liang Ch'iCh'ao, diziam.
- E, Majestade, êle gosta demais desses brinquedos estrangeiros, observou o CensorChefe. - Até hoje o jovem Imperador, embora já um homem e casado, senta-se diante de seus trens, dá-lhes corda ou acende fogo para vê-los correr ao longo dos trilhos. Duvidamos de que se trate apenas de um divertimento. Receamos que pretenda construir essas estradas de ferro estrangeiras em nosso venerável solo.
Ela riu, contente com o pensamento de que se libertara de suas preocupações e deveres.
- Isso agora é convosco, meus senhores e príncipes. Fazei o que quiserdes com o vosso jovem soberano e deixai-me descansar.
Eles estavam desolados, sobretudo porque o Príncipe Kung e Jung Lu haviam sido banidos da Corte.
- Mas poderemos procurar-vos se o jovem Imperador não nos ouvir? inquiriram. - Lembrai-vos, Majestade, de que êle só teme a vós.
- Não estou em outro país, disse ela ainda jocosamente. - Estou a apenas nove milhas de distância. Tenho meus eunucos, meus espiões e meus cortesãos. Não permitirei que o Imperador vos corte as cabeças, enquanto eu souber que continuais leais a mim.
Seus grandes olhos reluziam e faiscavam enquanto falava, e seus lábios, ainda rubros e jovens, curvaram-se, sorriram e zombaram. Vendo o seu bom humor, eles despediram-se tranqüilizados.
Ela deixou uma vez mais que os anos fluíssem, conservando, porém, secretamente o seu poder, através dos espiões que mantinha em todos os palácios. Soube assim que o jovem Imperador não amava a sua Consorte, que os dois discutiam e que êle se voltara para as duas concubinas - a Pérola e a Lustrosa.
- Mas elas são estúpidas, dizia-lhe Li Lien-ying em suas comunicações diárias. - Não precisamos temê-las.
- Elas o corromperão, tornava a Imperatriz com indiferença.•. - Não tenho esperanças nele nem em qualquer homem.
Parecia não importar-se, mas por um instante seus grandes olhos ficaram sombrios e foscos.
- Ah, bem, disse, levantando-se e virando a cabeça para outro lado.
No entanto ela sabia ser tão áspera em suas ordens como nenhum outro governante. Quando os príncipes do seu próprio Clã
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Yehonala solicitaram, por memorial, elevação do título do Príncipe Ch'un, pai do Imperador, dando a este a oportunidade de demonstrar piedade filial colocando seu pai acima dele próprio na lei das gerações, ela não o permitiu. Não, a imperial linha sucessória continuaria através dela e não de qualquer outro. Kwang Hsü era seu filho adotivo e ela era a Imperial Ancestral. Contudo, com a sua velha graça, recusou de maneira tão gentil que não magoou o Príncipe Ch'un, ao qual muitos anos antes escolhera para marido de sua irmã. Louvou o Príncipe, falou de sua inflexível lealdade e depois disse que êle próprio não aceitaria aquela honra, tão modesto era.
"Sempre que desejei conceder uma honraria especial a esse Príncipe, disse ela em seu edito real, êle recusou-a com lágrimas nos olhos. Dei-lhe, há muito tempo, licença para locomover-se num palanquim de cortinas de seda amarela, da classe imperial, mas nunca se aventurou a fazê-lo. Provou assim sua lealdade e altruística modéstia, tanto ao Meu povo como a Mim."
Poucos anos depois da expedição desse edito, o digno príncipe caiu mortalmente enfermo. A Imperatriz havia mergulhado tão profundamente na paz e no repouso que se mostrou indiferente e nem sequer o visitou, embora fosse o seu imperial cunhado. Os Censores lembraram-lhe então o seu dever, o que de tal maneira a irritou que lhes pediu que tratassem de seus próprios assuntos, pois sabia muito bem o que devia e não devia fazer. Não obstante, movida pela cólera, visitou o Príncipe Chun freqüentes vezes, até o dia de sua morte, no verão seguinte. Em seu Decreto Sobre a Morte do Príncipe Ch'un, louvou-o pelo perfeito cumprimento de seus deveres como Chanceler do Palácio, Chefe da Marinha e Comandante das Forças de Campo Manchus, cargos para os quais ela o designara. E examinou pessoalmente os detalhes do funeral, presenteou o cadáver com uma coberta sagrada para ser posta no interior do féretro, e na coberta pediu que sua serva bordasse várias preces budistas em intenção à sua alma. Depois que o puseram no túmulo, expediu mais uma ordem relativa ao Príncipe morto. Determinou que seu palácio fosse dividido em duas partes, uma das quais passaria a ser o salão ancestral do seu clã familiar e a outra, onde o jovem imperador nascera e da qual ela o retirara às pressas, anos antes, se tornaria um altar imperial.
Assim decorreram os anos até a memorável madrugada em que a Imperatriz celebraria seu sexagésimo aniversário. Com inabalável energia, completara agora o Palácio de Verão, templo de beleza e de paz para a sua velhice. Por ordem sua, a que nem mesmo o jovem Imperador se atrevia a desobedecer, retirara dinheiro de todos os Departamentos do Governo, e afinal, depois que tudo estava feito, teve o capricho de construir um grande barco de mármore, que ficaria no meio do lago, ligado à terra por uma ponte também
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de mármore. De onde sairia o dinheiro para isso? O Imperador suspirou e sacudiu sua preocupada cabeça ao receber as mensagens da Imperatriz.
Desta vez atreveu-se a manifestar-lhe suas dúvidas, expressas em palavras delicadas e filiais. Mas ela tomou-se de um dos seus violentos acessos de cólera, rasgou as folhas de papel de seda e atirou-as ao ar e quando os pedaços caíram no chão pediu a um eunuco que os juntasse e os lançasse ao fogo.
- Meu ocioso sobrinho sabe onde está o dinheiro, gritou ela, pois agora, na velhice, quando lhe negavam alguma coisa ou quando demoravam a cumprir suas ordens, gritava e sapateava de um modo que só fizera na infância. Todos espantaram-se ao vê-la comportar-se daquela maneira. Nesses momentos só Li Lien-ying conseguia acalmá-la.
- Dizei onde está o dinheiro, Majestade, falou êle com a respiração opressa pela asma. - Dizei onde está e o tereis.
- Você, seu saco de vento! exclamou ela. - Há uma grande quantidade de dinheiro nos cofres do Tesouro Naval.
Era verdade que milhões de dólares em barras de prata jaziam no Tesouro Naval e eis a razão: naquela época, os homens pequenos das ilhas dos Mares Orientais também ameaçavam as costas chinesas. Esses ilhéus eram homens habituados aos navios e às águas, ao passo que os chineses eram um povo terrestre e tinham poucos navios, com exceção dos velhos e pesados juncos nos quais viviam famílias de pescadores e comerciantes de água, e os juncos navegavam apenas perto da terra. Mas os anões, como os chineses chamavam os japoneses, aprenderam a construir navios a vapor, de ferro, como os ocidentais, guarnecidos de canhões. Alarmados, chineses ricos de todas as partes do país coletaram dinheiro e entregaram uma grande soma ao seu governante, primeiro à Imperatriz, quando era Regente, e agora ao Imperador, dizendo que esse dinheiro era para a construção de uma nova esquadra, cujos navios deviam ser todos de ferro e guarnecidos de canhões estrangeiros, de modo que se pudesse repelir os ilhéus, quando atacassem.
- E por que temeríamos nós esses anões? dissera a Imperatriz com altivo desprezo. - Não poderão fazer mais do que devastar nossas praias, pois o nosso povo nunca permitirá que avancem para o interior. É loucura gastar ouro em navios estrangeiros que não terão maior utilidade do que esses brinquedos com os quais meu sobrinho gostava de brincar quando era criança... e ainda gosta, segundo me disseram.
Depois de ler a mensagem do Imperador, rasgá-la e atirar os fragmentos para longe, disse:
- Meu sobrinho, provavelmente, quer esses navios para brincar, de novo, mas desta vez no mar. Eis como deseja gastar o tesouro imperial.
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Tão persistente se mostrou ela que o Imperador afinal cedeu, contra o conselho de seus tutores. E foi assim que a Imperatriz teve o seu barco de mármore. Planejou realizar nesse barco as cerimônias do seu sexagésimo aniversário. No décimo mês lunar daquele ano, tudo estava arranjado - os trinta dias de festa, feriado para a nação inteira, muitos prêmios e honrarias a serem concedidos aos seus súditos leais. Para custear tão vasta comemoração, os funcionários foram convidados a dar à Imperatriz um quarto de seus salários anuais e ela declarou também que estava pronta a receber presentes em dinheiro, antes de seu aniversário, a fim de que todos pudessem gozar das festas e representações.
No íntimo do coração a Imperatriz planejava um prazer particular, para si mesma. Durante todos aqueles anos em que Jung Lu estivera banido porque aceitara, uma vez, o amor de uma concubina solitária, ela não o tinha visto mais. Agora a concubina estava morta, a cólera da Imperatriz também morrera e fora enterrada com aquela mulher e não havia mais motivos para que se punisse, punindo o homem que amava acima de tudo. Ela passara da idade dos amantes. Ela e Jung Lu podiam ser novamente amigos, parente e parenta. Permitiu que o sentimento tornasse a invadir-lhe o coração. Uma chama débil subiu por entre as cinzas e foi doce pensar que tornaria a ver o seu rosto, que poderiam tornar a sentar-se lado a lado, esquecendo cada qual as loucuras do outro, falarem do que eram agora, ela prestes a completar sessenta anos, êle já os tendo ultrapassado. Mandou-lhe uma carta e não um decreto.
"Não digo que isto é um decreto", escreveu ela em sua bonita letra, cobrindo a página com traços firmes e delicados. "Receba-o como uma saudação e um convite, uma esperança de que possamos encontrar-nos de novo, com os corações tranqüilos e a mente serena. Venha, então, antes das cerimônias do meu sexagésimo aniversário. Passemos uma hora juntos, antes de nos misturarmos com a corte".
Marcou o encontro para a véspera de seu aniversário, à tarde, em sua biblioteca. E como soubesse que Jung Lu desprezava os eunucos, mandou Li Lien-ying cumprir uma missão na cidade, pedindo-lhe que examinasse uns jades novos que tinham chegado do Turquestão. A tarde estava agradável, era no fim do outono, dia cálido sem vento. O sol derramava-se nos pátios do palácio e brilhava sobre os milhares de crisântemos em flor. Já se estava no décimo mês do ano, mas os jardineiros da corte continham os botões, de modo que as flores desabrochassem por completo no dia do aniversário imperial. A Imperatriz estava sentada tranqüilamente em sua biblioteca, trajando manto de cetim amarelo bordado com fênix azuis, as mãos cruzadas sobre os joelhos.
Na terceira hora ouviu ruído de passos. Suas damas abriram as portas de par em par e, olhando para o fundo do corredor, viu a
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figura alta de Jung Lu. Para tristeza sua, seu velho coração readquiriu vida.
•'Oh, fique quieto, coração", murmurou ela enquanto o via aproximar-se. Ainda o mais belo de todos os homens! exclamou seu coração. Mas êle tinha a expressão grave, ela reparou, e vestira roupas sombrias, um longo manto azul de cetim escuro e chapéu de cetim negro. No peito trazia um ornamento de jade rubro e nas mãos um cetro de príncipe que erguia uma parede entre êle e ela. A Imperatriz permaneceu imóvel, quando êle se postou à sua frente. Seus olhares encontraram-se e então êle fêz um esforço para ajoelhar-se, em sinal de velha reverência. Mas ela ergueu a mão direita para impedi-lo e, indicando duas cadeiras próximas, desceu do trono e segurando-lhe levemente a manga entre o polegar e o indicador, conduziu-o para junto delas e sentaram-se.
- Largue o seu pedaço de jade, disse imperiosamente.
Êle depositou-o sobre a pequena mesa que se achava entre ambos, como se fosse uma espada, e esperou que ela tornasse a falar.
- Como tem passado? indagou ela, fitando-o docemente, seus olhos brilhantes suavizados e ternos de súbito.
- Majestade, começou êle.
- Não me chame Majestade.
Êle curvou a cabeça e começou de novo:
- Compete a mim perguntar como estais, disse. - Mas vejo-o com meus próprios olhos. Não mudastes. Vossa face é a mesma face que durante todos esses anos tenho guardado em meu coração.
Nenhum deles falou dos anos idos. Não havia necessidade, agora, de falar do passado. Nenhuma outra alma podia intrometer-se entre as suas duas almas. Ninguém mais existia quando os dois estavam juntos. Sim, pensou ela, fitando-o francamente com os seus olhos velhos-jovens, êle ainda era dela, seu amor, o único homem cuja carne era igual à sua e a sua igual à dele. Era estranho amá-lo tanto de novo, mas agora sem ânsia, um amor confortador e confortável. Suspirou e sentiu uma suave felicidade invadi-la.
- Por que suspirais? inquiriu êle.
- Pensei que teria muito a dizer-lhe. Mas agora, face a face como estamos, sinto que você já sabe tudo de mim.
- E a meu respeito vós sabeis tudo quanto há a saber. Não mudei... continuo o mesmo desde o primeiro dia em que soubemos o que significávamos um para o outro, eu para vós, vós para mim.
Ela não respondeu. Fora dito o suficiente. Os anos que passara entre as paredes atentas do palácio tinham feito com que seus lábios adquirissem o hábito do silêncio. Permaneceram sentados por algum tempo, serenamente, sem se moverem, sentindo suas almas renovadas por aquela comunhão. Quando ela abriu a boca para fazer uma pergunta, sua voz soou doce e humilde.
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- Tem algum conselho a dar-me? Durante todos esses anos não ouvi conselho de nenhum príncipe, pois me faltava o seu.
Êle sacudiu a cabeça:
- Agistes sempre bem.
No entanto ela percebeu uma certa reserva, palavras que êle não quis proferir.
- Vamos, insistiu ela, você e eu... não falamos sempre com sinceridade? Que fiz eu que você não aprova?
- Nada, tornou êle, nada! Não estragarei vosso aniversário. O menor de vossos súditos tem o privilégio de comemorar seu sexagésimo aniversário. Por que não vós?
Seu aniversário? Isso alertou-a.
- Vamos, insistiu. - A verdade, a verdade!
- Confio em vosso senso de prudência, redargüiu êle contra a vontade. - Se, por acaso, nossas forças forem derrotadas pelos inimigos japoneses, agora entrincheirados no fraco Estado da Coréia, após a invasão do verão passado, então é possível que, em meio ao sofrimento da nação, vós não vos divertireis.
Ela refletiu por um momento. Suspirou, imóvel e pensativa, os olhos baixos. Em seguida levantou-se e caminhou lentamente através do salão, para o seu trono, onde se sentou. Êle também se levantou, esperou que ela se sentasse no trono e depois adiantou-se e, ajoelhando-se, fêz a sua antiga reverência. Desta vez ela não o impediu. Fitou-lhe as largas costas curvadas e disse:
- Prevejo, às vezes, tantas perturbações à nossa frente que não sei para onde voltar-me em busca de auxílio. Acordo, na escuridão de minhas noites, e olhando para o futuro vejo, como se estivessem ao alcance da minha mão, nuvens tempestuosas. Que acontecerá ao meu reino? Tinha resolvido, logo que passasse o meu aniversário, chamar os adivinhos e tomar conhecimento do mal, por mais monstruoso que seja, que sinto aproximar-se.
Êle retrucou em sua voz forte e profunda:
- Melhor que os adivinhos, Majestade, é estar preparado.
- Então assuma o comando de minhas forças aqui na capital, insistiu ela. - Fique perto de mim e proteja-me como costumava fazer. Nunca esquecerei a noite em que você veio à minha tenda, quando estávamos nas selvagens montanhas de Jehol. Sua espada, naquela noite, salvou-me a vida... e a de meu filho.
Uma ânsia fria e amarga de proferir em voz alta as palavras que pensava, invadiu-lhe o coração. "Foi o nosso filho que você salvou." Mas não as proferiria. Êle estava morto, aquele filho, enterrado como Imperador e filho de Imperador - que assim continuasse em seu imperial túmulo.
- Aceito o cargo, respondeu Jung Lu e, erguendo-se, segurou com ambas as mãos o seu cetro de príncipe e retirou-se.
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Ah, o aniversário nunca seria comemorado! O povo dera grande quantidade de dinheiro para os arcos triunfais a serem erguidos nas estradas que conduziam da cidade imperial ao Palácio de Verão. Foram construídos elevados altares nos quais os abades dos templos budistas recitariam sutras. A nação inteira, povos de todas as províncias e territórios vizinhos, preparavam-se para um mês de regozijo pelo dia mais memorável de sua soberana. Mas, de súbito, antes que começassem os festejos, os inimigos das ilhas do Japão caíram sobre a frota chinesa de juncos e destruíram-na por completo. O povo da Coréia, sob a suserania do Trono do Dragão, clamou por socorro, pois agora os guerreiros japoneses devastavam também a sua terra e, a menos que fosse auxiliado, desapareceria como nação.
A Imperatriz, recebendo as notícias desse desastre, por mensageiros que chegavam de hera em hora, poucos dias antes de seu aniversário, sentiu-se tomada de cólera. No íntimo sabia-se culpada - gastara no Palácio de Verão o dinheiro do Imperial Tesouro Naval, que teria servido para construir navios capazes de destruírem os do inimigo. Mas, embora conhecesse sua culpa, não permitiria que esse conhecimento a influenciasse aos olhos dos outros, se isso enfraquecesse o seu imperial poder. Era uma característica da sua natureza. O Trono devia ser mantido inviolável, supremo. Preparou-se, por conseguinte, para um acesso de cólera contra os inimigos. Primeiro, recusou-se a comer durante um dia inteiro. Em seguida, não dormiu nem quis descansar. Passou todo o dia de jejum caminhando de um lado para outro no seu palácio. Tampouco permitiu que seus cães favoritos a distraíssem, nem as flores nem o canto dos pássaros engaiolados. Não abriu um livro nem desenrolou um pergaminho, nem se entregou a qualquer dos seus passatempos habituais. Caminhou de um lado para o outro, primeiro na sua vasta biblioteca, depois nos corredores, até que, na Cidade Proibida, se espalhou a notícia de que a Imperatriz estava furiosa e ninguém sabia onde sua cólera explodiria, mas o certo era que iria explodir.
Com os pensamentos girando em torno do verdadeiro culpado, escolheu dois para censurar - ela não era nenhum deles. Primeiro, chamaria o menor dos dois - o general em que tanto confiara, Li Hung-chang, e sobre êle descarregaria sua cólera. Tendo assim decidido, mandou o Eunuco-Chefe chamá-lo. À hora indicada, ficou esperando no seu salão particular de audiência, mas ordenou que todas as portas permanecessem abertas, de modo que todos ouvissem o rugir de sua cólera e levassem a notícia ao palácio, de onde se espalharia para a cidade e para a nação.
- O senhor! gritou ela para o alto general, quando se postou à sua frente. Não se dignou usar os indicadores para apontá-lo, mas fê-lo com os mínimos, as mãos estendidas. - Atreve-se a perder
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os nossos barcos, até mesmo aquele bom transporte de tropas, o Kowshing Jaz agora no fundo do mar. Onde acharemos dinheiro para pagá-lo? Veja o que a sua estupidez fêz ao reino!
O general sabia muito bem que não devia dizer palavra. Permaneceu ajoelhado, seus esplêndidos trajes espalhados no chão. E ela sabia que êle não se atreveria a responder, portanto permitiu-se uma nova explosão colérica.
- O senhor! gritou de novo, proferindo a palavra como uma maldição e apontando-lhe os dois dedos mínimos, como se o apunhalasse. - Por onde andava seu cérebro durante todos esses anos e de que se ocupava seu coração? Negligenciou o bem-estar da nação! Suas preocupações giraram apenas em torno dos navios mercantes a vapor que fêz navegarem em nossos rios e dessas ferrovias estrangeiras que construiu, embora soubesse muito bem como odeio as coisas estrangeiras. Soube também que o senhor construiu uma fábrica de tecelagem estrangeira, em Shangai, cujos lucros embolsa! Não sabe que a dedicação ao Trono do Dragão exige todo o seu tempo e pensamento? Como se atreve a pensar apenas em si mesmo?
Êle ainda não queria responder, embora a Imperatriz continuasse a apontá-lo com os dois dedos mínimos. E ela recomeçou, apunhalando o ar com seus dois dedos.
- Durante esses dez anos, quanta coisa se perdeu em virtude da sua cobiça e do seu egoísmo! A França apoderou-se de Aname e atacou Taiwan, e somente com grande dificuldade conseguimos livrar-nos de uma guerra com essa nação, e isto na mesma época em que estávamos enfraquecidos pela guerra na Coréia, contra o Japão. E por que foi que todos esses povos estrangeiros se atreveram a ameaçar-nos e a atacar-nos? Foi porque nosso exército e nossa armada são fracos, e quem é o culpado dessa fraqueza senão o senhor? Permanecerá no seu posto, seu traidor ocioso, pois o que não fêz até hoje vai fazer agora, embora destituído de todas as honrarias. Como um escravo, não terá mais descanso; e como um escravo será punido.
Baixou as mãos, respirou ruidosamente diversas vezes e em seguida ordenou-lhe que se retirasse.
- Levante-se, disse ela. - Vá cumprir o seu dever. Por todos os meios de que dispuser, corrija o que fêz. Precisamos de paz, com a dignidade que puder salvaguardar para a sua Soberana.
O general levantou-se, sacudiu o pó dos joelhos e afastou-se recuando, curvando-se à medida que se distanciava. Em sua fisionomia ela vislumbrou uma expressão de paciência que lhe tocou o coração. Pois aquele homem a tinha salvo mais de uma vez, obedecera sempre às suas ordens e ela sabia que continuava leal. Algum dia se mostraria complacente para com êle, mas não nesse dia. Não permitiria que seu coração se enternecesse e sua maior cólera ainda
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estava por explodir. Em seguida chamou o Imperador, através de uma carta do próprio punho, na qual apôs o selo imperial.
Mas nesse dia, ao expedir a carta, uma estranha e alucinada confusão sacudiu o Palácio de Verão. Pouco antes do anoitecer, quando a Imperatriz descansava no Pavilhão das Orquídeas, uma de suas damas surgiu correndo através do redondo portão de mármore, o manto esvoaçando e os cabelos desgrenhados. A serva que estava ajoelhada ao lado da Imperatriz para espantar os insetos com o leque, ergueu a mão pedindo silêncio, pois ela dormia. Mas a dama estava demasiado assustada para obedecer e gritou em voz aguda:
- Majestade, Majestade... eu vi... eu vi...
A Imperatriz despertou imediatamente, lúcida, como sempre fazia. Endireitou-se no assento e fitou a dama com um olhar penetrante.
- Viu o quê? inquiriu.
- Um homem raspado como um sacerdote, gaguejou a dama. Apertou o peito e começou a chorar de medo.
- Bem, bem, atalhou a Imperatriz. - Um sacerdote, suponho...
- Não, Majestade, não era um sacerdote, insistiu a dama. - Apenas calvo como um sacerdote. Talvez seja um monje tibetano... ah, mas não trajava roupas amarelas! Não, estava de negro do pescoço aos pés e era mais alto do que qualquer homem que já vi. Tinha mãos enormes! Contudo, Majestade, os portões estão trancados, não há ninguém aqui dentro além dos eunucos!
A Imperatriz voltou os olhos para o céu. O sol se havia posto e a suave luz vermelha do crepúsculo derramava-se no pátio do pavilhão. Na verdade nenhum homem podia estar no interior do palácio àquela hora.
- Você está sonhando, retrucou ela à dama. - Os eunucos estão de guarda. Nenhum homem pode entrar.
- Eu o vi, Majestade. Eu o vi, insistiu a moça.
- Então eu própria vou verificar, redargüiu com firmeza a Imperatriz.
E assim dizendo mandou a serva chamar o Eunuco-Chefe. Quando êle ouviu a história, convocou vinte eunucos menores e, acendendo lanternas e desembainhando suas espadas, cercaram a intrépida Imperatriz e deram uma busca no palácio. Não encontraram ninguém.
- Somos tolos, exclamou afinal a Imperatriz. - Essa dama teve um pesadelo ou estava bêbeda. Diga aos eunucos que continuem a busca, Li Lien-ying, enquanto você me ilumina o caminho.
Os dois voltaram. Êle, na frente, com a lanterna acesa, até chegarem ao salão da biblioteca. Mal havia atravessado o umbral, ela ergueu a cabeça e viu, sobre a escrivaninha, uma folha comprida de papel vermelho, na qual estavam escritas, em grandes traços
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atrevidos, as seguintes palavras: "Tenho a sua vida na palma da minha mão".
A Imperatriz tomou o papel, leu-o duas vezes e passou-o ao eunuco.
- Veja isto! gritou. - Está escondido aqui... um assassino! Vá continuar a busca.
As damas cercaram-na e, enquanto Li Lien-ying se afastava, rápido, consolavam-na com muitas palavras e suspiros.
- Tranqüilizai-vos, Majestade, os eunucos o encontrarão, diziam elas, declarando que, agora que se sabia que o homem sem cabelos era real e não um sonho, seria rapidamente descoberto.
Acenderam velas e conduziram a Imperatriz ao seu quarto de dormir, observando que ela não devia adoecer de cansaço. Ficariam de guarda a noite inteira. Mas, ao entrarem no quarto, viram uma folha de papel vermelho presa com um alfinete na almofada de cetim amarelo, tendo escritas, no mesmo traço atrevido, as seguintes palavras:
"Quando chegar a hora, empunharei minha espada. Adormecida ou acordada, você morrerá."
As damas gritaram, mas a Imperatriz apenas se irritou. Então, de súbito, pegou o papel vermelho, amassou-o fazendo uma bola e atirou-o no chão. Riu, os olhos negros reluzentes:
- Vamos, ordenou. - Calem-se, meninas. Trata-se de algum palhaço que gosta de pilheriar. Vão para a cama e durmam, como eu farei.
Protestaram todas em coro:
- Não, Majestade, não... não, Majestade, não vos deixaremos. Ainda sorridente, ela cedeu e, com a sua graça costumeira, deixou que a despissem e a pusessem na cama. Seis damas deitaram-se nos colchões que as servas trouxeram e puseram no chão, ao passo que as demais se dirigiram aos seus quartos para dormirem até à meianoite, quando outras seis viriam substituir as primeiras, até o amanhecer. Entrementes Li Lien-ying chamara os eunucos que cercaram a alcova imperial com as espadas desembainhadas, permanecendo de guarda a noite inteira.
Ao amanhecer, a Imperatriz despertou, bocejou satisfeita, atrás da mão aberta. Sorriu e disse que se sentia melhor do choque provocado pelo homem sem cabelos.
- Estou viva, declarou ela. - Temos andado muito indolentes neste palácio cheio de coisas belas.
Saiu do quarto, banhou-se e vestiu-se, enfeitou o cabelo com flores frescas e se preparou para tomar a sua refeição matinal, olhando para todos os lados, a fim de verificar se tudo se encontrava, como de hábito, em ordem. Súbito viu, posta debaixo dos pratos, a folha de papel vermelho com os mesmos fortes traços negros.
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"Enquanto você dormia, eu esperava", diziam as palavras negras. As damas tornaram a gritar, algumas choraram alto, as servas entraram correndo e batendo no rosto com as mãos.
- Mas foi somente agora que colocamos os pratos e não vimos nenhum homem aqui dentro!
- Êle será encontrado, disse a Imperatriz com despreocupação e, fazendo de novo uma bola com o papel, atirou-o no chão. Não permitiu que os pratos de comida fossem retirados, embora as damas lhe implorassem que o fizesse, dizendo que o alimento podia estar envenenado. Não. Ela comeu como de costume, não sentiu qualquer dor, e durante o resto do dia a busca prosseguiu. Nenhum homem foi descoberto, mas aqui e acolá encontraram mais quatro folhas ameaçadoras.
A busca continuou durante dois meses inteiros, de dia e de noite, busca meticulosa, pois de quando em quando uma dama ou um eunuco viam de relance o homem sem cabelos, vestido de negro do pescoço aos pés, rosto e cabeça da mesma côr pálida. Uma dama chegou a ficar com o espírito perturbado - disse que, ao acordar certa manhã, deu com o rosto do homem olhando-a, mas de cima para baixo, como se estivesse pendurado do teto. Quando ela gritou, a cabeça voltou à posição normal e desapareceu.
Apesar de tudo a Imperatriz não estava amedrontada, embora dia e noite os eunucos permanecessem de guarda. Ninguém, fora dos muros do palácio, sabia da história, pois a Imperatriz proibira que se dissesse uma palavra a respeito, a fim de que a cidade não se agitasse e os velhacos aproveitassem a oportunidade para estabelecer a confusão entre o povo.
Uma noite, enquanto a Imperatriz dormia em seu quarto, os eunucos montavam guarda, como de costume, nos salões externos e nos pátios. Nas horas mortas entre a meia-noite e o alvorecer, ouviram uma porta ranger lentamente e à débil luz da lua viram surgir um pé, uma perna e uma coxa, através da estreita abertura. Os eunucos correram para agarrar a misteriosa criatura. Êle fugiu, porém havia eunucos atentos por toda parte, e num jardim, atrás de uma grande rocha que a Imperatriz mandara trazer de uma província distante, apanharam o homem sem cabelos.
A Imperatriz foi acordada pelos gritos dos eunucos. Levantou-se rápida da cama, pois havia ordenado que, fosse qual fosse a hora em que prendessem o homem, o conduzissem imediatamente perante ela. Suas mulheres envolveram-na em seu manto, pôs seu diadema na cabeça e, um momento depois, estava sentada no trono do Salão de Audiência. Os eunucos trouxeram-lhe o homem, todo amarrado com cordas.
Êle ficou de pé diante da Imperatriz, sem curvar-se, embora os eunucos o agarrassem pelo pescoço para obrigá-lo a dobrar a espinha.
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- Deixem-no de pé, disse a Imperatriz em voz suave e fria.
Examinou a figura alta e ousada. Era um jovem, a cabeça raspada, com uma estranha face de tigre, testa inclinada, lábios apertados, olhos oblíquos. Um traje negro colava-lhe ao corpo como se fosse uma pele.
- Quem é você? perguntou ela.
- Não sou ninguém, não tenho nome, não tenho importtância.
- Quem o mandou aqui?
- Mate-me, tornou o homem com indiferença. - Não lhe direi nada.
Diante de tamanha impudência os eunucos gritaram e teriam caído sobre êle a golpes de espada, se a Imperatriz não os detivesse.
- Vejam o que traz consigo, ordenou ela.
Rebuscaram-lhe a roupa, enquanto êle permanecia à vontade, indiferente. Nada encontraram.
- Majestade, disse então Li Lien-yíng, rogo-vos que me entregueis esse homem. Sob tortura, falará. Mandarei que o açoitem lentamente com finas e cortantes lascas de bambu. Não se poderá mover, pois estará no chão, braços e pernas estendidos e amarrados com arame em estacas fixas no chão. Deixai-o comigo, Majestade.
Todos sabiam como Li Lien-ying torturava e aprovaram com exclamações e gritos.
- Leve-o e faça o que quiser, disse a Imperatriz.
Ao falar, encarou o tipo nos olhos e viu que os dele não eram negros, como os das pessoas, porém amarelos e tão impudentes como os olhos dos animais selvagens que não temem o homem. Não conseguiu desviar o olhar, tão repugnantes e contudo tão estranhamente belos eram aqueles olhos amarelos.
- Façam bem o seu trabalho, disse ela aos eunucos. Dois dias depois, Li Lien-ying voltou para informar.
- Quais os nomes que êle revelou? inquiriu a Imperatriz.
- Nenhum, Majestade.
- Então continue a tortura, mais devagar ainda.
Esta era a ordem, porém Li Lien-ying sacudiu a cabeça.
- Majestade, é tarde demais. Êle morreu, como se assim o desejasse, e não falou.
Pela primeira vez na vida a Imperatriz teve medo. Parecia-lhe que os estranhos olhos amarelos ainda a observavam. No entanto, quando se permitira ela ter medo? Estendeu a mão direita, colheu um jasmim da árvore florida posta num vaso de porcelana e aspirou a sua fragrância, para confortar-se.
- Esqueçamo-nos dele, disse.
Mas era ela quem não se podia esquecer do homem calvo. Deixara atrás de si a sombra de uma dúvida negra e suspeita. Toldara-se a beleza do palácio e embora passeasse todos os dias nos seus jardins e demonstrasse o mesmo zelo por todas as flores e frutos, embora
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ordenasse que diariamente os atores da Corte representassem alguma peça alegre, sua jovialidade desaparecera. Não tinha medo da morte, mas o que sentia era uma pesada tristeza, pois agora sabia que, em alguma parte, havia pessoas que desejavam a sua morte. Se pudesse descobrir esses inimigos, matá-los-ia, porém onde encontrá-los? Ninguém sabia e estavam todos perturbados.
Um dia, ao entardecer, sentada entre suas damas no grande bote de mármore, viu Li Lien-ying aproximar-se. Passara o dia todo divertindo-se com jogos, a xícara de chá numa das mãos enquanto com a outra movia as peças do tabuleiro para ganhar a partida.
- Majestade, vosso chá está frio, disse o eunuco. Tirou-lhe a xícara da mão e deixou que um eunuco-servo a enchesse. Ao tornar a pô-la na mesa, murmurou-lhe que tinha notícias a dar.
Ela pareceu não ouvir. Terminou a partida, depois levantou-se e, com um olhar, indicou-lhe que a seguisse.
Quando ficaram a sós no palácio, as damas à distância, pois perceberam que o eunuco tinha informações a transmitir, ela acenou com o leque, significando que êle não precisava ajoelhar-se, convidando-o ao mesmo tempo a começar.
- Majestade, começou êle num sussurro sibilante junto de sua orelha.
Ela bateu-lhe de leve com o leque.
- Afaste-se, exclamou imperiosamente. - Seu hálito está estragado como carne deteriorada.
Êle levou a mão à boca e recomeçou:
- Majestade, há uma conspiração.
A Imperatriz desviou o rosto, pondo o leque diante do nariz. Maldita sensibilidade, pensou, que lhe dava um olfato tão aguçado! Se aquele eunuco não a servisse com tamanha fidelidade, não o conservaria junto de si.
- Majestade, recomeçou êle uma vez mais, revelando a conspiração, da seguinte forma.
O jovem Imperador ouvia agora os conselhos de seu tutor Weng T'ung-ho, o qual insistia em que a nação devia tornar-se forte para não cair nas mãos dos inimigos, que se encontravam com a boca aberta e a saliva pingando, sôfregos por devorar o povo chinês. O Imperador, prosseguiu Li Lien-ying, perguntara o que se devia fazer e o tutor replicara que o grande erudito K'ang Yu-wei devia ser chamado a dar parecer, pois era versado não só em História como também nos métodos ocidentais. Somente êle poderia opinar sobre a maneira de construir navios, estradas de ferro e escolas para jovens que renovariam a nação. O Imperador mandara, então, chamar K'ang Yu-wei.
A Imperatriz voltou um pouco a cabeça, protegendo-se ainda com o leque.
- E esse K'ang já se encontra na Cidade Proibida? inquiriu.
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- Majestade, tornou o eunuco, êle se encontra diariamente com o Imperador. Passam horas juntos e soube que êle declara que os chineses devem cortar os seus rabichos, como primeiro passo para a reforma.
A Imperatriz deixou cair o leque.
- Mas os rabichos são o sinal de submissão à nossa dinastia manchu, durante os últimos duzentos anos!
Li Lien-ying acenou três vezes com a sua pesada cabeça.
- Majestade, K'ang Yu-wei é um revolucionário chinês, de Cantão. Conspira contra Vossa Majestade! Mas tenho coisa pior a revelar. Pediu que o Imperador chamasse Yuan Shih-k'ai, o general que comanda nossos exércitos sob as ordens de Li Hung-chang, como sabeis, Majestade. Esse Yuan recebeu ordem imperial de vos deter à força, Majestade, e de manter-vos prisioneira.
O eunuco suspirou profundamente, exalando um hálito tão peçonhento que a Imperatriz ergueu rápida o leque, para defender-se.
- Meu sobrinho, sem dúvida, conspira para matar-me, disse com extrema suavidade.
- Não, não, retrucou o eunuco. - Nosso Imperador não é tão mau. É possível que K'ang Yu-wei assim o tenha aconselhado, porém meus espiões contaram-me que o Imperador proibiu que se fizesse qualquer mal à vossa sagrada pessoa, Majestade. Não, êle quer apenas que fiqueis presa aqui no vosso Palácio de Verão. Ser-vos-ão permitidos todos os vossos prazeres, mas vos será retirada qualquer parcela de poder.
-- Será possível? disse ela, sentindo uma energia doce e estranha invadir-lhe o sangue. Lutar ainda era o seu maior prazer e a vitória seria novamente sua.
- Bem, bem, exclamou rindo.
Li Lien-ying, aturdido a princípio com o seu bom humor, também riu silenciosamente, o feio rosto ainda mais hediondo pela alegria.
- Não há ninguém como vós debaixo do Céu, disse êle ternamente. - Não sois homem nem mulher, Majestade, porém mais do que qualquer dos dois, maior que ambos.
Trocaram um olhar de mútua malícia. Ela bateu-lhe jovialmente no rosto com o leque fechado e mandou que se retirasse.
- Feche a boca e conserve-a fechada, pois juro que esse seu hálito vil o circunda quando você caminha.
- Sim, Majestade, disse êle jovialmente, levantando a grossa mão de urso para tapar a boca sorridente.
Não era de seus imperiais hábitos apressar-se para coisa alguma. Meditou muito sobre o que seu espião lhe havia contado. Não demonstrou qualquer temor, enquanto deixava que os dias decorressem ociosamente. Passou o verão, longos dias aprazíveis uns após outros, ela continuava em suas costumeiras atividades, divertindo-se
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com um grande cão do norte, de pêlo branco como neve, rosnando para todos, exceto para sua dona. Mostrava-se devotado exclusivamente a ela e dormia ao lado de sua cama à noite. Seus cãezinhos de manga, côr de canela, tinham ciúmes e ela ria muito ao vê-los rodear o grande cachorro, como anões irritados. Mas, enquanto passeava em seus jardins, ou fazia piqueniques no lago, ou se sentava no teatro para assistir às suas peças preferidas, pensava profundamente no mundo lá de fora e no preço que deveria pagar para conservar a paz e a beleza da vida. Por duas vezes tinha preservado o país da guerra contra os inimigos ilhéus, os homens do Japão, - uma por meio de ouro e a outra cedendo-lhes o direito de cobrarem tributo do povo da Coréia. Aquilo fora fraqueza do seu fiel Vice-rei Li Hung-chang. Se êle não a tivesse persuadido a ceder, por duas vezes, os anões morenos das ilhas não estariam agora sonhando em conquistar todo o seu vasto reino. Guerra, guerra aberta contra o inimigo, ataque violento, senão no mar, na terra, deveria ser a sua defesa. E Yuan Shih-k'ai devia começar a guerra, não em solo chinês, mas na Coréia e de lá expulsar os japoneses para o mar, até às suas ásperas ilhas rochosas. Que morressem de fome, nas suas ilhas!
Numa bela tarde de verão concluiu os seus planos, enquanto ouvia uma canção de amor cantada por um eunuco vestido de moça, na antiga peça intitulada A História do Pavilhão Ocidental. A Imperatriz ouvia sorrindo, cantarolando baixinho a canção de amor, ao mesmo tempo que seu coração e seu cérebro planejavam a guerra. Naquela noite chamou Li Hung-chang e transmitiu-lhe suas ordens. Não deu atenção aos seus gemidos e suspiros, às suas queixas de que o exército era demasiado fraco e os navios escassos.
- Não necessita de grandes exércitos nem de vasta frota, tornou ela. - Mesmo que, na pior das hipóteses, o inimigo atacasse solo chinês, o povo se levantaria e o expulsaria para o mar e as ondas o devorariam.
- Ah, Majestade, lamentou-se êle, vós não conheceis os maus tempos que correm. Aqui, em vossos palácios, viveis isolada, sonhando.
E afastou-se suspirando e sacudindo sua perturbada cabeça.
Antes que o ano chegasse ao fim, a guerra fora travada e perdida. O inimigo avançou rapidamente e, num punhado de dias, seus navios atravessaram os mares. O general Yuan Shih-k'ai foi expulso da Coréia e o inimigo entrou em solo chinês. A Imperatriz desta vez errara. Seu povo cedeu. Os habitantes das aldeias permaneceram imóveis vendo os homens fortes do Japão marcharem pelas ruas em direção à Capital. Levavam armas de fogo esses homens, e o povo das aldeias, estando desarmado, e sendo prudente, não lhes mostrou suas facas e foices, que não passavam de meros brinquedos.
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Quando o inimigo pedia comida e bebida, a gente da aldeia, ainda calada, dava-lhe vinho e chá e pratos de alimentos.
Ante aquelas más notícias a Imperatriz agiu com rapidez. Era uma boa jogadora, que jogava para ganhar mas sabia reconhecer quando não era possível fazê-lo. Mandou dizer a Li Hung-chang que se rendesse antes que o reino fosse perdido e aceitasse as condições impostas. Assinou-se então um tratado cujos termos abalaram até mesmo o altivo coração da Imperatriz, de tal modo que ela se isolou durante três dias e três noites, sem comer nem dormir. O próprio Li Hung-chang foi ao Palácio de Verão para confortá-la. Disse-lhe que o tratado era realmente duro mas que o trono tinha um novo amigo no norte, o Czar da Rússia, que por conveniência própria não permitiria que o Japão se tornasse forte.
A Imperatriz ouviu-o e reanimou-se.
- Então expulsemos de nossas costas esses estrangeiros amarelos, disse ela. - Devemos expulsá-los a qualquer preço. A partir deste momento empregarei toda a minha energia na elaboração de um plano que me liberte de todos os estrangeiros, brancos ou amarelos, e nenhum deles terá mais permissão de pôr o pé em nosso solo. Até o fim dos tempos! Quanto aos chineses que nós, manchus, governamos, reconquistá-los-ei, com exceção desses jovens que aspiraram os ventos estrangeiros e beberam de águas exóticas. Meu Grande Conselheiro Kang Yi disse-me há poucos dias que nunca deveríamos ter permitido que os cristãos instalassem escolas e colégios, pois encorajaram os chineses a ambicionarem governar-se a si mesmos. Os chineses jovens mostram-se agora rebeldes e pomposos, exibindo o falso saber dos estrangeiros.
Bateu palmas e pisou com força.
- Juro que não morrerei nem envelhecerei enquanto não destruir todo o poder estrangeiro sobre o meu solo, restituindo ao reino a sua verdadeira posição histórica!
O general não pôde senão admirar a mulher e a soberana. A Imperatriz ainda era bela, ainda forte, seus cabelos continuavam negros, seus olhos tão grandes e luminosos como haviam sido na juventude. Sua vontade, também, não se abalara.
- Se há alguém capaz de fazer isso, sois vós Majestade, disse êle, proferindo um juramento, simples, de servi-la sempre.
E assim o tempo passou. Durante dias e meses a Imperatriz parecia novamente entregue ao ócio, ora pintando paisagens de sonho, ora escrevendo poesia, brincando com suas jóias, desenhando novos engastes para suas esmeraldas e pérolas, comprando diamantes dos mercadores árabes. No entanto, por trás de tudo isso, continuava tecendo seus planos. Parecia indiferente ao Imperador e aos seus tutores. Mas à noite, quando todos os palácios estavam escuros e silenciosos, ouvia as histórias que os seus espiões lhe traziam, mantendo-se em dia com a conspiração do Imperador e dos seus conselheiros.
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Preparava-se, então, para enfrentar essa trama. Primeiro tornou a elevar Jung Lu, fazendo-o desta vez Vice-rei da província, o que foi facilitado pela morte do Príncipe Kung, o qual, embora não sendo seu inimigo, havia muito que deixara de ser seu amigo. No décimo dia da quarta lua daquele ano severo, êle morreu de uma enfermidade dos pulmões e do coração.
Enquanto esperava, soube que o Imperador convidara Yuan Shih-k'ai para ser seu general. Hesitou ao receber essa notícia. Deveria esperar um pouco mais antes de retomar o trono, ou deveria agir imediatamente? Decidiu esperar, pois gostava de aparecer em cena como Buda, quando tudo estivesse preparado para o julgamento. Nesse meio tempo seus espiões contaram-lhe que Yuan Shih-k'ai deixara a cidade em segredo e ninguém sabia que direção tomara.
Esperarei, pensou ela. Minha sabedoria sempre residiu em esperar. O verão cedeu lugar ao outono. Os dias eram cálidos porém as noites frias. As flores outonais desabrocharam tardiamente, as últimas flores de lótus ainda vicejavam sobre o lago, os pássaros relutavam em partir para o sul e os grilos do outono tocavam sua frágil música por entre os pinheiros.
Certo dia, após a morte e os funerais do Príncipe Kung, realizados com toda a honra, a Imperatriz instalara-se na biblioteca para compor um poema. O ar estava puro e, ao misturar suas tintas, aconteceu-lhe olhar para o pátio banhado pelo sol. No quadrado luminoso formado pelo sol, ela viu, flutuando no ar, uma libélula azul, com as asas estendidas. Quão estranho, pensou ela, pois nunca tinha visto uma libélula tão azul e com as asas diáfanas tão serenas. Era um presságio, decerto, mas de quê? Desejara que a côr não fosse azul, um azul real, pois era o matiz da morte. Levantou-se, rápida, e se encaminhou para a porta, a fim de afugentar o inseto. Mas êle não se assustou. Evitando suas mãos, voou para mais alto. Quando as damas, que esperavam nos cantos distantes da biblioteca, viram o que se passava, adiantaram-se sacudindo os seus leques e gritando, mas o inseto continuou a pairar alto sobre elas. A Imperatriz pediulhes então que chamassem um eunuco com um comprido bambu, mas antes que pudessem obedecer-lhe ouviram barulho no portão e de súbito o Eunuco-Chefe apareceu, sem ser chamado, para dizer que acabara de chegar um mensageiro anunciando a próxima vinda do Vice-rei Jung Lu, de Tientsin.
Não foram muitas as vezes em que Jung Lu, após receber da Imperatriz a ordem de casar-se com a Dama Mei, se aproximara de seu trono por vontade própria. Esperava ser chamado e certa vez ela o censurara por isso. Ao que Jung Lu redargüira que ela devia saber que êle continuava sempre seu fiel servo, bastando-lhe pôr o seu símbolo de jade na mão de um eunuco e mandar-lho, para que viesse, estivesse onde estivesse e fosse qual fosse a hora.
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A Imperatriz pediu aos eunucos-servos que fizessem os preparativos para recebê-lo e voltou ao seu lugar. Mas não pôde terminar o poema, pois quando levantou a cabeça para procurar a libélula esta já havia desaparecido. Seu aparecimento, portanto, fora um presságio que ela não podia sequer comunicar aos adivinhos da Corte, porquanto Jung Lu só viria por um motivo grave e ela não incomodaria a Corte antes de saber do que se tratava. Ocultando sua impaciência sob um aspecto calmo, depositou os seus pincéis e se pôs a passear pelos jardins até o meio-dia, sem descansar nem comer, antes de saber o motivo pelo qual Jung Lu a procurava.
Ao anoitecer êle chegou. Seu palanquim foi depositado nos grandes pátios exteriores e os eunucos trouxeram-lhe a notícia. A Imperatriz esperou-o no pátio central, que naqueles meses de verão se transformava numa vasta sala de estar, ao ar livre, coberta por esteiras de palha trançada colocadas sobre armações de bambu. Mesas eram postas, cadeiras e, ao redor das inúmeras varandas que circundavam o pátio, vasos com árvores floridas. A Imperatriz sentou-se numa cadeira esculpida colocada entre seus dois ciprestes favoritos, que os jardineiros imperiais modelavam segundo a forma delgada de velhos sábios, isto porque a Imperatriz desejava lembrar-se sempre dos hábitos de seus ancestrais, que procuravam combinar a beleza com uma dignidade simples.
O calor do verão retornara naquele dia e agora o vento sul espalhava a fragrância das últimas flores de lótus do lago, que se fechavam lentamente à chegada da noite. O seu perfume impregnava o ar e a Imperatriz aspirava-o, sentindo a velha dor aguda do contraste entre a calma da beleza imorredoura e a agitação dos conflitos humanos. Ah, se Jung Lu a estivesse procurando agora como seu velho e bem-amado marido, e se pudesse esperá-lo como sua velha e apaixonada esposa! Não eram mais jovens, sua paixão gastara-se sem uso, mas a lembrança do amor permanecia eterna. Na verdade seu coração estava agora mais terno do que nunca e nada havia que ela não pudesse perdoar-lhe.
Ao anoitecer, à luz de grandes velas bruxuleantes, em suportes de bronze, viu-o chegar. Caminhava só e ela esperava-o imóvel. Ao aproximar-se, êle fêz menção de ajoelhar-se, porém ela segurou-lhe o braço.
- Aqui está sua cadeira, disse-lhe, indicando um assento vazio à esquerda.
Êle então sentou-se ao seu lado, à doce luz crepuscular, e através do portão contemplaram as tochas que iluminavam o lago.
- Desejo, disse êle afinal, que possais passar vossa vida aqui, sem qualquer perturbação. Vossos palácios são belos e a eles pertenceis. Contudo devo dizer-vos toda a verdade. A conspiração contra vós, Majestade, aproxima-se de seu ponto crítico.
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Crispou as mãos sobre os joelhos e os olhos dela fitaram aquelas mãos grandes e fortes. Eram ainda as mãos de um jovem. Êle nunca envelheceria?
- Impossível crer, murmurou ela, no entanto sei que devo crer, porque é você quem me fala.
Jung Lu continuou:
- O próprio Yuan Shih-k'ai procurou-me há quatro noites, em segredo, e deixei meu posto, às pressas, para falar-vos. O Imperador mandou chamá-lo há cerca de doze dias. Encontraram-se à meianoite no pequeno salão à direita do Salão Imperial de Audiência.
- Quem mais estava lá? inquiriu ela.
- O preceptor imperial Weng T'ung-ho.
- Seu inimigo, murmurou ela, mas por que me lembra outra mulher agora? Já a esqueci.
- Como amais a crueldade, redargüiu Jung Lu. - Eu o perdoei, Majestade, e vós não. O pálido e mesquinho amor que invadiu o coração de uma mulher solitária nada significa para mim. Serviu-me apenas para aprender uma lição.
- E que lição precisava você aprender? indagou ela.
- Que vós e eu estamos situados à parte das outras criaturas humanas e, embora sejamos solitários como duas estrelas no Céu, devemos suportar nossa solidão, porque ela não pode ser atenuada. Sinto às vezes que nossa própria solidão nos tem mantido unidos.
Ela moveu-se, inquieta:
- Não sei por que me fala assim, quando vem revelar-me uma conspiração!
- Falo assim porque aproveito este momento para entregar-me de novo a vós, disse êle.
Ela ocultou a face com o leque; um resguardo entre os dois.
- Havia mais alguém no salão? inquiriu.
- A Concubina Pérola, Favorita do Imperador. Sabeis, pois sabeis tudo quanto se passa, que o Imperador não recebeu a Consorte que escolhestes. Ela ainda é virgem. Seu coração, por conseguinte, está cheio de ódio. É vossa aliada.
- Sei.
- Devemos contar com todos os aliados, prosseguiu êle, pois a Corte está dividida. Até mesmo o povo das ruas sabe disso. Um partido intitula-se Venerável Mãe e o outro Garoto.
- Desgraça, sussurrou ela. - Deveríamos manter em segredo nossas dissenções familiares.
- Não podemos, redargüiu Jung Lu. - Os chineses são como gatos. Insinuam-se silenciosos por todas as frestas, farejando o caminho. O país está agitado e os rebeldes chineses, sempre à espera de destruir nossa dinastia manchu, estão de novo prontos a tomar o poder. Deveis dar o primeiro golpe, uma vez mais.
- Sei que meu sobrinho é um tolo, disse ela com tristeza.
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- Mas os que o rodeiam não são tolos. Esses editos que tem expedido todos os dias, como pombos, uma centena de editos em menos de uma centena de dias... já os lestes?
- Deixei-o agir.
- Quando vos procura de sete em sete dias, não lhe perguntais nada?
- Nada, tornou ela. - Tenho meus espiões.
- Um dos motivos por que vos odeia, atalhou Jung Lu ousadamente, é que vosso eunuco o força a esperar de joelhos atrás de vossa porta. Exigis que o Imperador se ajoelhe?
- Êle se ajoelha, tornou a Imperatriz com indiferença. - É seu dever para com os Mais Velhos.
Mas ela sabia que era verdade que Li Lien-ying, em sua impudente autoconfiança, conservava o Imperador ajoelhado. E ela era culpada, também, porque fingia não sabê-lo. Sua grandeza estava mesclada dessas mesquinharias e ela conhecia sua pequenez tão bem quanto sua grandeza, mas não mudava, aceitando-se tal como era.
Jung Lu prosseguiu:
- Sei, também, que vossos eunucos obrigaram o Filho do Céu a dar-lhes propinas para trazê-lo a vós, como se não passasse de um funcionário do palácio. Isto não é decente, como sabeis.
- Sei, tornou ela, com um meio sorriso. - Mas êle é tão tímido, tem tanto medo de mim que me sinto tentada a torturá-lo.
- Não tem tanto medo quanto supondes, redargüiu Jung Lu. - Os cem editos não são obra de um homem fraco. Lembrai-vos de que é vosso sobrinho, seu sangue é o mesmo sangue de Yehonala.
O olhar grave de Jung Lu, sua voz solene, obrigaram-na a ceder à sua parte mais nobre. Virou a cabeça e não mais o fitou. Aquele, aquele era o homem que temia. Seu coração estremeceu, o estranho impulso da juventude perdida invadiu-lhe o sangue. Seus lábios secaram-se, suas pálpebras arderam. Desacertara a própria vida? E agora estava demasiado velha, mesmo para a lembrança do amor. O que perdera estava perdido sem esperança.
- A conspiração, murmurou ela, você disse que a conspiração...
- Cercarão este palácio e vos obrigarão a que vos imoleis, prometendo nunca mais expedir um decreto, prometendo afastar vossos espiões, entregar o grande selo imperial e dedicar-vos daqui por diante às flores, pássaros canoros engaiolados e aos vossos cães prediletos...
- Mas por quê? exclamou ela. O leque caiu, as mãos tombaram inertes sobre os joelhos.
- Vós sois o obstáculo, disse Jung Lu. - Se não fósseis vós, poderiam construir uma nova nação, uma nação modelada pelas do Ocidente...
- Estradas de ferro, suponho, atalhou ela, canhões, esquadras, guerras, exércitos, ataques a outros povos, conquista de terras e
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bens... (Pulou da cadeira esculpida, ergueu as mãos e arrancou o diadema). Não... não verei nosso reino destruído! É a herança de glória de nossos ancestrais. Amo este povo que governo. São todos meus súditos e eu não lhes sou estrangeira. Há duzentos anos que o Trono do Dragão é nosso e agora é meu. Meu sobrinho traiu-me e, através de mim, a todos os nossos ancestrais. Jung Lu ergueu-se.
- Ordenai, Majestade...
Suas palavras tranqüilizaram-na:
- Ouça-me, então. Convoque imediatamente o meu Grande Conselho. Tudo deve ser feito em segredo. Que venham também os chefes do nosso imperial clã. Pedir-me-ão que deponha meu sobrinho, implorar-me-ão que reassuma o Trono do Dragão. Dirão que meu sobrinho entregou o país aos nossos inimigos. Desta vez eu os ouvirei e me disporei a fazer o que pedem. Seu exército deverá substituir a Guarda Imperial na Cidade Proibida. Quando o Imperador entrar amanhã no Salão Chung Ho, ao amanhecer, para os sacrifícios outonais aos nossos deuses tutelares, deverá ser preso, trazido aqui e posto na pequena ilha do meio do lago, chamada Terraço do Oceano. Lá esperará, preso, a minha chegada.
Era de novo ela mesma, o vigoroso cérebro em ação, a imaginação figurando todas as cenas, como se planejasse uma peça teatral. Jung Lu falou por trás da mão, os olhos reluzentes sobre ela.
- Maravilhosa, Imperatriz do Universo! exclamou. - Que cérebro de homem poderia correr como o vosso, de ontem para além do amanhã? Nada preciso perguntar. O plano é perfeito.
Entreolharam-se por um longo momento, depois êle partiu.
Duas horas depois chegavam os Grandes Conselheiros. Os carregadores correram através da noite para trazê-los à Imperatriz. Sentada em seu trono, trajando suas vestes imperiais, de cetim bordado com fênix, diadema de pedras preciosas, como uma coroa em sua cabeça. Atrás dela, duas altas tochas iluminavam os fios dourados de seu traje, reluziam em suas jóias e em seus olhos. Cada príncipe postou-se dentro do círculo de seus homens e a um sinal dos eunucos todos caíram de joelhos diante dela. Disse-lhes então por que os convocara.
- Grandes príncipes, parentes, ministros e conselheiros. Há uma conspiração contra mim, na cidade imperial. Meu sobrinho, a quem fiz Imperador, pretende atirar-me numa prisão e matar-me. Quando eu estiver morta, planeja afastar todos vós e reunir outros homens, que obedeçam à sua vontade. Nossos velhos costumes devem chegar ao fim, nossa sabedoria será escarnecida, nossas escolas destruídas. Novas escolas, novos hábitos, novas idéias as substituirão. Nossos inimigos, os estrangeiros, serão nossos guias. Não é isto traição?
- Traição, traição! gritaram todos.
Ela ergueu as mãos, com a sua velha graça.
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- Levantai-vos, rogo-vos. Sentai-vos como se fósseis meus irmãos, e raciocinemos juntos para fazer malograr essa odiosa trama. Não temo a minha morte, mas sim a morte da nossa nação, a escravização do nosso povo. Quem o protegerá quando eu não mais existir?
Nesse momento Jung Lu ergueu-se para falar.
- Majestade, disse êle, vosso general, Yuan Shih-k'ai, está aqui. Achei conveniente convocá-lo e agora peço que êle próprio revele a conspiração.
A Imperatriz inclinou a cabeça, em sinal de assentimento, e Yuan Shih-k'ai adiantou-se, trajando suas vestes de guerreiro, a espada larga pendendo do cinto. Curvou-se em reverência.
- Na manhã do quinto dia desta lua, disse êle em voz alta, fui chamado pela última vez à presença do Filho do Céu. Antes fora chamado três vezes, para tomar conhecimento da conspiração, mas essa foi a última audiência, antes do golpe. Era cedo. O Imperador estava sentado no Trono do Dragão, às escuras, pois a luz da manhã ainda não havia alcançado o Salão do Trono. Pediu que me aproximasse e o ouvisse sussurrar suas ordens. Disse-me que corresse a Tientsin e ordenasse a morte do Vice-rei Jung Lu. Feito isto, eu devia voltar rapidamente a Pequim e, trazendo comigo todos os soldados, prender-vos, Majestade e Sagrada Mãe, trancando-vos no vosso palácio. Procuraria em seguida o selo imperial e o levaria em pessoa ao Filho do Céu. O selo, disse êle, deveria ter-lhe sido entregue, quando ascendeu ao Trono, e não podia perdoar-vos, Majestade, disse êle, por o haverdes guardado convosco, obrigando-o a expedir os seus editos apenas com o seu selo particular, provando dessa maneira a toda a nação que vós não confiáveis nele. Para indicar que essas ordens eram absolutas, deu-me uma pequena seta de ouro como penhor da minha autoridade.
E Yuan Shih-k'ai tirou da túnica uma pequena seta de ouro e exibiu-a a todos, que rugiram de indignação.
- E que recompensa lhe prometeu? inquiriu a Imperatriz, em voz suave, os olhos muito brilhantes.
- Nomear-me-ia Vice-rei desta província, Majestade.
- Recompensa pequena para feitos tão grandes, tornou ela. - Esteja certo de que a minha será muito maior.
Enquanto o General falava, os Grandes Conselheiros ouviam e rugiam ante tamanha perfídia. Quando êle terminou, caíram todos de joelhos e suplicaram à Imperatriz que retomasse o Trono do Dragão e salvasse a nação dos bárbaros dos mares ocidentais.
- Juro que atenderei ao vosso pedido, respondeu ela graciosamente.
Tornaram todos a levantar-se, reuniram-se em conferência e decidiram, com a aprovação real, que Jung Lu deveria regressar secretamente ao seu posto tão logo tivesse substituído os guardas da
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Cidade Proibida por seus próprios homens. Quando o Imperador, ao amanhecer, fosse receber a litania que o Conselho de ritos preparara para o sacrifício aos deuses tutelares, os guardas e eunucos deveriam agarrá-lo e conduzi-lo à Ilha do Terraço do Oceano, pedindo-lhe que ali esperasse a chegada da sua venerável mãe.
Era meia-noite quando tudo ficou aprovado. Os Conselheiros voltaram à cidade e Jung Lu, sem outra despedida, rumou para o seu posto. A Imperatriz desceu então do trono e, apoiando-se no braço do seu eunuco, dirigiu-se ao seu quarto de dormir onde, como se fosse uma noite comum, deixou que a banhassem e perfumassem, lhe escovassem e trançassem os cabelos, e deitou-se em suas roupas de noite. Estava amanhecendo - era a hora em que o Imperador devia ser preso, mas ela cerrou os olhos e dormiu com a maior tranqüilidade.
Acordou em meio ao silêncio do palácio. O sol estava alto, o ar suave e frio. A despeito dos receios e cautelas dos médicos da Corte, os quais declaravam que os ventos da noite eram nocivos, a Imperatriz dormia sempre com as janelas abertas, não cerrando nem mesmo as cortinas do leito. Duas damas estavam sentadas junto dela, para vigiá-la, e do lado de fora um grupo de vinte eunucos permanecia de guarda - nem mais nem menos do que de hábito. Ela acordou, como de costume, e como de costume deixou que sua serva lhe fizesse a toilette, demorando-se talvez um pouco mais, na escolha das jóias e optando afinal por ametistas, uma gema escura e sombria que não usava com freqüência. Seus trajes, também, eram escuros, de cetim cinza, e quando suas mulheres lhe trouxeram orquídeas para adorno de cabeça, recusou-as, pois naquele dia queria mostrar-se majestosa.
Mas comeu como de costume a sua opulenta refeição matinal, brincou com os cãezinhos e provocou um pássaro, imitando-lhe o canto, até que êle se pôs a cantar alucinadamente. Entrementes Li Lien-ying esperava no salão contíguo. Ela chamou-o afinal.
- Tudo bem? perguntou.
- Majestade, vossas ordens foram cumpridas, tornou êle.
- Nosso hóspede está na Ilha do Terraço do Oceano? inquiriu com os lábios trêmulos, como que num riso secreto.
- Majestade, dois hóspedes. A Concubina Pérola correu atrás de nós e agarrou-se ao seu senhor com os dois braços, cerrando as mãos de tal maneira que não nos atrevemos a separá-los, como também não podíamos tomar a liberdade de matá-la, sem a vossa ordem.
- Tenha vergonha, disse ela. - Quando foi que eu ordenei... ah, bem, se êle está na ilha, ela pouco importa. Irei enfrentá-lo com a sua traição. Somente você me acompanhará. Não necessito de guardas. Êle é... inofensivo.
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Estalou o polegar e o indicador para o seu cão favorito e o grande animal, enorme e branco como um urso do norte, correu para o seu lado e acertou o passo para segui-la. Atrás deles caminhava Li Lien-ying. Rumaram em silêncio para o lago, atravessaram a ponte de mármore, mas, enquanto caminhava, ela observava toda a beleza que construíra, os bordos altivos nas encostas dos montes, as flores de lótus no lago, os tetos dourados e os pagodes esbeltos, os terraços ajardinados e os bosques de pinheiros. Tudo, tudo era dela, criado pelo seu espírito e coração. No entanto tudo perderia o sentido se ela fosse aprisionada ali. Sim, nem mesmo a beleza seria bastante se ela perdesse o poder e a liberdade. Não queria ter um prisioneiro sob a sua guarda, mas era obrigada a tê-lo, não apenas por sua causa, mas pelo seu povo. Sua sabedoria - cria-o na verdade - devia agora salvar a nação da loucura de seu sobrinho.
Afirmando assim a própria vontade, chegou à ilha e, com o grande cão ao lado, seguida pelo alto eunuco, entrou no pavilhão.
O Imperador achava-se vestido com seus trajes sacerdotais e ergueu-se para recebê-la. Sua face estreita estava pálida, seus grandes olhos tristes, sua boca - delicada boca de mulher - de lábios suavemente modelados, estava aberta e trêmula.
- De joelhos! exclamou ela, sentando-se na cadeira central. Em todos os salões, pavilhões, quartos ou salas de estar, a cadeira central era sempre dela.
Êle caiu de joelhos e apoiou a testa no chão. O canzarrão farejou-o cuidadosamente da cabeça aos pés, depois sentou-se aos pés de sua dona, para protegê-la.
- Você! disse a Imperatriz amargamente, olhando para o homem ajoelhado. - Você devia ser estrangulado, esquartejado e atirado às feras
Êle não falou nem se moveu.
- Quem o pôs no Trono do Dragão? inquiriu ela. Não ergueu a voz, não era necessário, pois caía fria como aço nos ouvidos do jovem. - Quem o tirou da cama, à noite, quando você não passava de uma criança lamurienta, e fêz de você Imperador?
Êle murmurou alguma coisa... palavras que ela não pôde entender. Empurrou-o com o pé.
- Que está dizendo? Levante a cabeça, se se atreve a deixar-me ouvi-lo.
Êle ergueu a cabeça:
- Eu disse... que gostaria que não tivésseis tirado aquela criança da cama.
- Seu pusilânime, redargüiu ela. - Dei-lhe o lugar mais alto do mundo! Como se regozijaria um homem forte, como me seria grato, como seria digno do meu orgulho! Mas você, com seus brinquedos estrangeiros, corrompido pelos seus eunucos, com medo de
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sua Consorte, preferindo concubinas mesquinhas a ela, que é sua Imperatriz! Digo-lhe eu: não há um príncipe manchu nem um cidadão comum que não me peçam que retome o trono! Suplicam-me que o faça, dia e noite. E quem sustenta você? Quem, seu tolo, senão os rebeldes chineses? Faz parte dos métodos deles lisonjear e persuadi-lo a escutá-los, e quando o tiverem em seu poder o deporão, marcando o fim da nossa dinastia. Você traiu não apenas a mim, mas a todos os nossos Sagrados Ancestrais. Você estava pronto a sacrificar os poderosos que governaram antes de nós. Reformas! Cuspo sobre as reformas! Os rebeldes serão mortos... e você... e você...
Perdeu de súbito o fôlego. Levou a mão ao coração, que parecia prestes a arrebentar. Seu cão fitou-a, grunhiu e ela tentou sorrir.
- Um animal é fiel, mas um homem não, disse ela. - Mas eu não o matarei, sobrinho. Permitirei mesmo que conserve o título de Imperador. Mas será um prisioneiro, vigiado, desgraçado. Implorará que eu tome o seu lugar e governe. E eu cederei, embora contra a vontade - realmente contra a vontade - pois como me sentiria orgulhosa se você fosse forte e governasse como deve fazê-lo um governante. No entanto você é fraco, incapaz de governar, e eu me vejo obrigada a tomar o seu lugar. A partir de hoje, até a sua morte...
Nesse momento as cortinas abriram-se e surgiu a Concubina Pérola, que correu e se atirou ao lado dele, soluçando alto e suplicando à Imperatriz que parasse de censurá-lo.
- Asseguro-vos, Santa Mãe, soluçou ela, que êle lamenta tervos preocupado. Êle deseja apenas o que é bom, asseguro-vos. Nunca houve homem mais bondoso e gentil que êle. É incapaz de fazer mal a um rato. Asseguro-vos, Imperial Mãe, meu gato pegou um rato no outro dia e êle, com suas próprias mãos, abriu a boca do gato, tirou o rato e esfregou-o tentando restituir-lhe a vida!
- Cale-se, menina tola! disse a Imperatriz.
Mas a Concubina Pérola não se calou. Ergueu a cabeça, sentou-se nos calcanhares e enquanto as lágrimas lhe deslizavam pelas bonitas faces, gritou para a altiva Imperatriz.
- Não me calarei, pode matar-me se quiser! Não tem o direito de tirá-lo do Trono. Êle é o Imperador por vontade do Céu e a senhora não passa de um instrumento do destino.
- Basta! exclamou a Imperatriz. Tinha a fisionomia severa como a de um homem. - Você ultrapassou os limites. Nunca mais tornará a ver o seu senhor.
O Imperador pôs-se de pé.
- Oh, Mãe Sagrada, exclamou êle. - Não mate essa inocente, a única criatura que me ama, sem lisonja nem simulação, que não tem malícia...
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A Concubina levantou-se, segurou-lhe o braço e encostou nele o rosto.
- Quem fará a sua sopa como você gosta? soluçou ela. - E quem o aquecerá quando a cama estiver fria...
- Minha sobrinha, sua Consorte, virá viver aqui, tornou a Imperatriz. - Não haverá necessidade de você.
Voltou-se imperativamente para Li Lien-ying e êle aproximou-se para receber a ordem.
- Remova a Concubina Pérola. Leve-a para a parte mais distante do palácio. No Palácio das Concubinas Esquecidas há dois pequenos aposentos internos. Lá será a sua prisão, até morrer. Só receberá roupas novas quando as que veste estiverem reduzidas a trapos. Sua comida será arroz e sopa de mendigo. Seu nome nunca deverá ser mencionado na minha presença. Quando ela morrer, não me informem.
Mas, pela sua face pálida e voz sufocada, o eunuco demonstrava que nem mesmo êle podia aprovar a crueldade da tarefa, embora não tivesse outro remédio senão executá-la. Segurou a mulher pelo pulso e arrastou-a para fora. Quando ela saiu, o Imperador caiu desmaiado aos pés da soberana. Sobre o seu corpo o enorme cão branco rugia e a Imperatriz permaneceu sentada imóvel, em silêncio, os olhos fixos na paisagem que se descortinava através das portas abertas.
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V - VELHO BUDA

A Imperatriz começou a governar uma vez mais e agora, por estar velha - dizia ela - e porque não lhe restasse mais nenhum sinal de feminilidade, afastou todos os biombos e leques que a ocultavam dos olhares dos homens. Sentava-se no Trono do Dragão como se fosse um homem, à luz das tochas ou do sol, envolta em magnificência e orgulho. Desde que realizara o que havia planejado, podia mostrar-se misericordiosa e por isso permitia de quando em quando que o sobrinho aparecesse em seu lugar. Assim, quando se aproximou a Festa do Outono, permitiu que êle fizesse os sacrifícios imperiais perante o Altar da Lua. Desse modo, no oitavo dia do oitavo mês lunar, na Festa do Outono, recebeu-o no Salão de Audiência, sob uma guarda indicada por Jung Lu e ali, perante o Conselho das Comissões Imperiais, aceitou dele as nove reverências que significavam a sua submissão. Mais tarde, naquele mesmo dia, por permissão dela e sob a mesma guarda, fêz os sacrifícios imperiais diante do Altar da Lua e agradeceu ao Céu as boas colheitas e a paz. "Que lide com os deuses enquanto eu lido com os homens", disse a Imperatriz.
E tinha muito que lidar com os homens. Primeiro ordenou a morte dos seis rebeldes chineses cujos conselhos haviam desviado o Imperador. Muito se encolerizou e sofreu porque o chefe de todos os rebeldes, K'ang Yu-wei, conseguira fugir com a ajuda de ingleses, num navio estrangeiro, e fora levado para a Inglaterra, onde vivia em segurança. Não poupou também os membros do seu clã familiar. O Príncipe Ts'ai, amigo e aliado do Imperador, foi posto na prisão do clã. A Imperatriz soube da traição desse homem porque sua mulher era outra de suas sobrinhas e como êle odiava essa mulher, em sua raiva ela contara histórias à sua real tia. Mas, depois que foram mortos todos quantos deviam morrer e a Imperatriz não tinha mais nenhum inimigo vivo dentro da Corte, dedicou-se a uma outra tarefa que consistia em fazer com que parecessem corretos, aos olhos do povo, todos os atos que praticara. Pois sabia que o povo estava dividido, que alguns tomavam o partido do Imperador e diziam que a nação devia adaptar-se aos novos tempos e adquirir navios, armas e estradas de ferro, instruindo-se mesmo com os seus
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inimigos, os brancos do Ocidente, ao passo que outros se declaravam partidários do sábio Confúcio e de todos os antigos hábitos e costumes - estes ansiavam por libertar-se dos novos homens e dos novos tempos, retornando aos velhos usos.
Ambos deviam ser persuadidos e a Imperatriz entregou-se a essa tarefa. Através de editos e de engenhosas conversas que extravasavam da Corte através de eunucos e ministros, o povo foi informado dos graves pecados do Imperador, sendo os principais os seguintes: primeiro, êle tramara contra a sua velha tia, planejando mesmo matá-la, a fim de estar livre para obedecer aos seus novos conselheiros; segundo, era sustentado e apoiado pelos estrangeiros e era demasiado simplório para perceber que desejavam transformá-lo num fantoche e se apoderarem do país inteiro. Esses dois pecados convenceram a todos de que a Imperatriz fizera bem em retomar o posto imperial, pois enquanto os que reverenciavam Confúcio e a tradição não podiam aplaudir um jovem que tramara a destruição de um Mais Velho, ninguém podia perdoar um governante que se fazia amigo dos brancos ou dos chineses rebeldes. Poucos meses depois o povo aprovou integralmente a Imperatriz como sua soberana e até mesmo os estrangeiros disseram que era melhor lidar com uma mulher forte do que com um governante fraco, pois se podia confiar na força e a fraqueza era sempre duvidosa.
E esse era o talento e a manha do Velho Buda. Ela conhecia o poder de uma mulher e, a fim de persuadir os homens, deu uma festa e convidou todas as esposas dos brancos que eram embaixadores e ministros dos países ocidentais e que viviam na Capital como representantes de seus governos. Durante todos aqueles anos a Imperatriz nunca fitara um rosto branco, mas agora preparava-se para fazê-lo, muito embora a simples idéia desse fato a revoltasse. Se, porém, conquistasse as mulheres - dizia-se ela - os homens as seguiriam automaticamente. Escolheu o dia do seu aniversário para a reunião, não um grande aniversário, mas um pequeno - o seu sexagésimo quarto - e convidou sete damas, esposas de sete enviados estrangeiros, para comparecerem à audiência.
A corte inteira agitou-se. As damas estavam curiosas, as servas ocupadas, os eunucos correndo para aqui e para acolá, pois nenhum deles tinha visto jamais um estrangeiro. Somente a Imperatriz estava calma. Foi ela que pensou em ordenar pratos de que os hóspedes gostavam e mandou os eunucos indagar se podiam comer carne ou se os seus deuses o proibiam, se preferiam o suave chá chinês, ou o negro chá das índias, se gostavam de doces feitos com gordura de porco ou com óleos vegetais. Na verdade era indiferente às suas respostas, e ordenou aquilo que queria, mas a cortesia fora feita.
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Planejou, assim, todas as gentilezas. Pela manhã, mandou seus guardas chineses, em uniforme completo, amarelo e vermelho, a cavalo, para anunciarem os palanquins. Uma hora depois, esses palanquins, cada qual transportado por cinco carregadores e escoltado por dois cavaleiros, estavam esperando diante dos portões da legação britânica. Quando as damas saíram, as cadeirinhas foram baixadas e as cortinas abertas, para que entrassem. Como se esta não fosse cortesia bastante, a Imperatriz ordenou que o Chefe do seu Serviço Diplomático levasse consigo quatro intérpretes, todos em palanquins e acompanhados por dezoito cavalariços e sessenta guardas montadas para receber as damas. Cada homem trajava suas vestes oficiais e se conduzia com alta dignidade, fazendo todas as cortesias às convidadas estrangeiras.
O cortejo parou no primeiro portão do Palácio do Inverno e as damas foram convidadas a entrar a pé. No interior do portão, esperavam-nas sete palanquins da corte, todos almofadados com cetim vermelho, cada qual carregado por seis eunucos vestidos de cetim amarelo com faixas carmesins na cintura. Escoltadas, as damas foram transportadas até o segundo portão, onde tornaram a descer.
A Imperatriz ordenara que fossem instaladas num pequeno trem, puxado por uma máquina a vapor, que o Imperador comprara alguns anos antes, para divertir-se e para estudar. O trem levou-as através da Cidade Proibida até o salão de entrada do palácio principal. Ali as convidadas desceram do trem, sentaram-se em sete cadeiras, tomaram chá e descansaram. Os mais altos príncipes convidaram-nas então a passar ao Salão de Audiência, onde o Imperador e sua Consorte se achavam sentados nos respectivos tronos. A Imperatriz, grande diplomata, determinara que nesse dia o sobrinho se sentasse à sua direita, de modo que parecessem unidos aos olhos de todos.
De acordo com o tempo de sua permanência em Pequim, as convidadas dispuseram-se em fila perante os tronos e o intérprete apresentou uma de cada vez ao Príncipe Ch'ing que a seguir as apresentou à Imperatriz.
A Imperatriz fitou cada rosto e, apesar de muito espantada pelo que via, inclinava-se no trono, estendia as duas mãos e apertava a destra de cada dama, colocando no indicador de cada uma um anel de puro e pesado ouro chinês, ornado com uma grande pérola redonda.
Elas agradeceram e a Imperatriz inclinou a cabeça para cada uma delas. Depois, seguida de seu sobrinho, levantou-se e saiu do salão, os eunucos correndo atrás dela para ocultá-la.
Fora das portas virou à esquerda para seu palácio e, sem falarlhe, fêz um gesto para que o Imperador seguisse para a direita.
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Os quatro eunucos que o vigiavam noite e dia, tornaram a levá-lo para a prisão.
Em seu salão de jantar, a Imperatriz tomou a sua costumeira refeição do meio-dia, cercada de suas damas favoritas, enquanto as convidadas estrangeiras almoçavam no salão de banquete com as damas menores, tendo os eunucos e os intérpretes permanecido junto delas por cortesia. A Imperatriz, comendo com o apetite habitual, estava de bom humor, rindo muito dos estranhos rostos das estrangeiras. Os olhos delas eram a coisa mais curiosa que já vira, dizia. Alguns, cinza pálido, outros ligeiramente amarelos ou azuis como os dos gatos selvagens. Declarou as estrangeiras de constituição rude, embora a pele fosse excelente, branca e rosada, com exceção das japonesas, cuja pele era áspera e morena. A dama inglesa era a mais elegante, disse a Imperatriz, porém o vestido da dama alemã era o mais belo - uma jaqueta curta sobre rendado e uma comprida saia de rico cetim brocado. Riu do alto cocar que a dama russa usava na cabeça e a dama americana, disse ela, parecia uma monja de fisionomia dura. Suas damas riam e aplaudiam tudo quanto ela dizia e afirmavam que nunca a tinham visto de melhor humor. Em meio à maior jovialidade terminou a refeição. A Imperatriz mudou de roupa e voltou ao salão de banquete. As convidadas tinham sido levadas a outro salão, enquanto as mesas eram tiradas, e quando voltaram encontraram a Imperatriz de novo sentada no trono para recebê-las. Entrementes ela mandara chamar sua sobrinha, a jovem Imperatriz, que agora se achava ao seu lado. Quando as convidadas entraram, a Imperatriz apresentou sua sobrinha a cada uma delas e ficou muito contente ao ver os olhares de admiração que lançavam à jovem, elogiando seu vestido carmesim e suas jóias e ornatos. Até àquele momento a Imperatriz não havia vestido os seus melhores trajes, mas vendo os olhares das damas estrangeiras percebeu que elas, embora fossem de outros países, sabiam discernir a qualidade dos cetins e das jóias. Decidiu, no íntimo, que quando as recebesse pela terceira e última vez naquele dia, as espantaria com suas magnificentes vestes. Sentiu-se contente com as convidadas e, estendendo-lhes as mãos ao se aproximarem, uma a uma levava-as ao seu peito, e depois ao peito delas, repetindo muitas vezes as palavras do antigo sábio: "Todos, sob o Céu, são uma só família" e pediu aos intérpretes que traduzissem para o inglês e o francês o que estava dizendo. Feito isso, despediu as convidadas, mandando-as ao seu teatro e dizendo que escolhera a sua peça favorita para que se divertissem e que os intérpretes lhes traduziriam as palavras dos atores.
Retirou-se de novo e desta vez foi para os seus aposentos. Estando um tanto fatigada, permitiu que a banhassem em água quente e perfumada, vestindo roupas limpas. Escolheu seu vestido mais caro, de cetim bordado a ouro com desenhos de fênix em todas as
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formas e matizes. Colocou ao pescoço seu famoso colar de pérolas iguais e chegou a trocar as capas das unhas, de ouro cravejado com pérolas e jade, por outras de ouro com rubis de Burma e safiras da índia. Na cabeça pôs um alto diadema de pérolas e rubis intercalados com diamantes da África. Suas damas disseram que nunca a tinham visto mais bela. Na verdade, o frescor da sua pele de marfim, o rubro de seus lábios sem rugas, o negror de seus fabulosos olhos e nítidas sobrancelhas, eram os de uma mulher em plena juventude.
Uma vez mais a Imperatriz voltou ao salão de banquete, onde suas convidadas agora estavam tomando chá e comendo doces. Ela entrou majestosamente, carregada em sua cadeirinha palaciana e os eunucos a ergueram até o trono. As damas estrangeiras levantaram-se, com a admiração estampada nas fisionomias, e ela sorriu para todas. Erguendo a xícara de chá, bebeu de um dos lados e, chamando uma dama de cada vez, deu-lhes de beber do outro lado da xícara, dizendo de novo: "Todos uma só família... debaixo do Céu, todos são um só". Sentindo-se ousada e livre e cheia de triunfo, ordenou que fossem trazidos presentes e entregues às damas - um leque, um pergaminho pintado por ela própria, um pedaço de jade. Feito isto e vendo que as damas estavam cheias de gratidão, despediu-se de todas, dando por terminado o dia.
Nos dias subseqüentes seus espiões informaram-na de que as damas estrangeiras haviam-na louvado muito aos seus senhores, dizendo que nenhuma criatura tão gentil, bela e generosa, como ela se mostrara, podia ser ao mesmo tempo má e cruel. A Imperatriz alegrou-se e sentiu que era de fato o que diziam que ela era. Agora, tendo conquistado a aprovação de todos, encetou a tarefa de eliminar os rebeldes e os reformadores entre os chineses que ela governava, submetendo de novo o povo inteiro ao poder de sua mão e de seu coração. Quanto mais meditava nessa tarefa, mais se convencia de que não poderia levá-la a bom termo enquanto o Imperador, seu sobrinho, vivesse. A melancolia do moço, suas atitudes pensativas, sua própria submissão, tinham conquistado os que o cercavam, embora todos obedecessem a ela. E uma vez mais obrigou-se a fazer o que devia ser feito, quando Li Lien-ying lhe sussurrou ao ouvido:
- Majestade, enquanto êle viver a nação permanecerá dividida. O povo aproveitará o pretexto para dividir-se entre vós, Sagrada Mãe, e êle. Nasceram para dividir-se, esses chineses. Gostam de discordar e só se sentem felizes quando tramam e conspiram contra seus governantes. Os líderes rebeldes germinam continuamente sob as águas. Lembram ao povo, dia e noite, que é um manchu e não um chinês, quem está no trono. Somente vós podeis manter a paz,
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porque o povo vos conhece e confia no vosso engenho e sabedoria, embora sejais manchu.
- Se meu sobrinho fosse um homem forte... suspirou ela. - Quão alegremente eu lhe confiaria o destino do meu povo!
- Mas êle não é um homem forte, Majestade, sussurrou o eunuco. - É fraco e voluntarioso. Ouve os principais rebeldes chineses e recusa-se a reconhecer suas tramas. Destrói a dinastia sem saber o que está fazendo.
Ela teve de concordar com a veracidade dessas afirmações, no entanto não pôde dar a ordem secreta pela qual o sôfrego eunuco esperava.
Naquele dia passeou pelo terraço do palácio e contemplou, além das águas cheias de lótus, a ilha em que seu sobrinho estava aprisionado. Mas como podia um palácio ser chamado prisão, pois embora tivesse apenas quatro aposentos, eram todos amplos, e confortàvelmente mobiliados e a atmosfera circundante era calma e aprazível? Podia ver o sobrinho mesmo agora, enquanto êle passeava pela estreita ilha, e com êle, à distância, estavam os vigilantes eunucos que o guardavam.
Era tempo de mudar aqueles eunucos e substituí-los por outros, pois se ficassem mais um mês ou dois suas simpatias poderiam voltar-se para o jovem que vigiavam. Até então haviam sido fiéis a ela e todas as noites, um ou outro deles copiava o diário que seu sobrinho escrevia todos os dias. À noite a Imperatriz lia o que êle escrevera e conhecia assim as pulsações mais íntimas de seu coração, seus pensamentos mais secretos, tudo quanto sentia. Duvidava apenas de um eunuco, denominado Huang, porque lhe dava sempre informações demasiado boas.
- O Imperador passa o tempo lendo seus livros, dizia sempre Huang. - Quando se cansa, pinta ou compõe poesia.
Caminhando pelo terraço, meditava no que Li Lien-ying lhe dissera naquele dia. Então, abruptamente, repeliu o pensamento. Não, ainda não era tempo de seu sobrinho morrer. A responsabilidade de sua morte não deveria recair sobre ela, que o havia escolhido. Era verdade que o queria morto, mas apenas querer não era crime. Que sua morte ficasse dependendo da vontade do Céu.
Quando, mais tarde, Li Lien-ying compareceu à sua presença, ela mostrou-se fria e com frieza lhe disse:
- Não torne a falar-me na viagem do Imperador às Fontes Amarelas. O que o Céu deseja, o Céu fará.
Proferiu tais palavras em voz tão severa que o eunuco se curvou profundamente, para indicar que obedeceria.
Mas quem teria sonhado que os chineses rebeldes conseguiriam abrir um caminho secreto até os ouvidos do jovem e solitário Imperador? Foi o que fizeram, através do eunuco Huang. Certa manhã,
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no décimo mês lunar daquele ano, o jovem Imperador escapou da vigilância dos eunucos e fugiu através dos bosques de pinheiros para o lado norte da ilha onde, numa pequena enseada, esperava-o um barco. Um eunuco, porém, viu suas vestes esvoaçantes por entre as árvores e gritou. Os demais eunucos correram e conseguindo agarrar o Imperador quando estava prestes a entrar no bote, pediram-lhe que não fugisse.
- Se fugirdes, Filho do Céu, disseram-lhe eles, o Velho Buda mandará decapitar-nos.
Nenhum argumento seria mais forte. O Imperador possuía um coração terno e hesitou enquanto o barqueiro, que era um rebelde disfarçado, lhe gritava que não devia demorar-se, que as vidas dos eunucos de nada valiam. Mas o Imperador fitou as faces suplicantes dos eunucos, entre os quais havia um muito jovem, quase uma criança, gentil e bondoso, que nunca se afastava de junto de seu real senhor, pronto sempre a servi-lo. E olhando o menino choroso o Imperador não teve ânimo de entrar no bote. Sacudiu a cabeça para o barqueiro que, não se atrevendo a demorar-se por mais tempo, impeliu o barco para o meio da neblina da madrugada, onde desapareceu.
A triste história foi levada aos ouvidos da Imperatriz. Ela escutou e nada fêz parecendo que nada iria fazer, mas guardou a história no coração, para lembrar-se dela contra o Imperador. Entrementes permitiu que fossem condenados à morte todos os rebeldes, príncipes e ministros que haviam apoiado o Imperador. Mas deixou-o vivo, pois possuía armas contra êle. Tão profundamente seus súditos reverenciavam a antiga sabedoria de Confúcio, que lhe bastaria lembrar a eles que o Imperador havia tramado a sua morte, para que todos o chamassem traidor. E ela sabia que o jovem Imperador não ignorava que esta era a sua arma, arma com que podia atravessar-lhe o coração, pois êle tinha uma consciência tenra e também reverenciava o Sábio.
Jung Lu apelou para a sua misericórdia. Pediu de novo uma audiência particular e disse-lhe:
- Embora seja verdade, Majestade, que o povo jamais apoiará uma conspiração contra vós, sua reverência por vós diminuiria se permitísseis que a vida do Imperador fosse tirada, mesmo por acidente. Êle deve permanecer preso, reconheço, pois do contrário se transformará em instrumento dos vossos inimigos, porém concedeilhe toda a cortesia. Deixai que apareça ao vosso lado quando receberdes o enviado do Japão, dentro de dez dias, e permiti que êle apareça quando chegarem enviados dos territórios fronteiriços. Vós, Altíssima, podeis permitir-vos qualquer ato de graça e bondade. Deixai-me sugerir mesmo que a Concubina Pérola...
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Mas ela ergueu as mãos para indicar silêncio. As palavras "Concubina Pérola" não podiam ser proferidas em sua presença. Olhou-o friamente e êle nada mais disse. Ela às vezes era Imperatriz, às vezes mulher - nesse dia Jung Lu viu apenas a Imperatriz.
- Falarei de outros assuntos, disse êle. E prosseguiu da seguinte maneira: - Embora atualmente haja paz no reino, o povo está inquieto. Há movimentos de irritação aqui e acolá, principalmente contra os homens brancos. Um sacerdote inglês foi assassinado pela populaça, na província de Kweichow. Isto trará os zangões ingleses novamente contra o trono. Exigirão indenizações e concessões.
A Imperatriz tomou-se de súbita cólera. Cerrou as mãos e bateu três vezes nos joelhos.
- Novamente esses padres estrangeiros! gritou. - Por que não ficam em suas terras? Nós mandamos nossos sacerdotes perambular pelos outros países, para destruírem os deuses dos outros povos?
- Estes são frutos da derrota que sofremos nos campos de batalha contra os homens brancos, recordou-lhe Jung Lu. - Fomos forçados a permitir que seus sacerdotes e comerciantes entrassem em nossos portos.
- Juro que não admitirei mais essas pessoas, declarou a Imperatriz. E ficou meditando, os belos olhos escurecidos e a boca taciturna. Esqueceu-se de que Jung Lu se achava diante dela, ou fingiu esquecer. Êle então fêz uma reverência e se afastou, sem que ela sequer erguesse a cabeça.
No último mês daquele ano, outro sacerdote estrangeiro foi assassinado, desta vez na província de Hupeh. Não foi morto limpa e rapidamente, mas por meio de pancadas, torceduras dos ossos e esfolamento. No mesmo mês, multidões de habitantes de aldeias e cidades levantaram-se contra os padres estrangeiros da província de Szechuen e isto em virtude dos velhos boatos de que os sacerdotes eram também feiticeiros, que roubavam crianças e faziam remédios com os seus olhos e bebidas mágicas com seus ossos triturados.
A Imperatriz ficou fora de si, pois quando seus cidadãos eram mortos os enviados estrangeiros tornavam-se arrogantes e ameaçadores, declarando que seus governos declarariam guerra se não recebessem integral indenização. Na verdade o mundo inteiro pareceu agitar-se contra ela. Rússia, Inglaterra, França e Alemanha, resmungavam descontentes. A França, cujos sacerdotes haviam sido várias vezes assassinados, mandou dizer pelos seus enviados que atacaria o país com seus navios de guerra caso não lhe fosse assegurado um pedaço de terra, como concessão, em Shangai. Portugal, também, exigiu mais terra em redor de Macau, e a Bélgica insistiu que o preço dos dois padres belgas assassinados devia ser uma concessão de território em Hankow, o grande porto do Rio Yangtse. O Japão, entrementes, conspirava para se apoderar da fértil província de Fukien e a Espanha ameaçava tempestade no horizonte
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porque entre os assassinados havia um sacerdote espanhol. A Itália era a mais encolerizada de todas - seus enviados reclamavam a concessão da baía de Samoon, na província de Chekiang, o melhor território chinês.
Em face de tamanho desastre, a Imperatriz convocou seus ministros e príncipes para uma audiência especial e mandou vir seu General Li Hung-chang, do Rio Amarelo, onde o havia enviado para reconstruir os diques destruídos pela enchente.
O dia da audiência estava quente e do noroeste soprava uma tempestade de areia. O ar estava impregnado de areia fina e enquanto os príncipes e ministros esperavam pela Imperatriz, mantinham os lenços no rosto e cerravam os olhos para proteger-se. Mas quando ela apareceu, parecia não perceber o vendaval. Vestida em seus mais ricos trajes, ela desceu do palanquim imperial e encaminhou-se para o Trono do Dragão, apoiada no braço de Li Lienying. Obrigou a todos, pela sua altiva indiferença, a retirarem os lenços do rosto e a caírem em reverência diante dela. Só Jung Lu não estava presente e ela logo o notou.
- Onde está o Grande Conselheiro, meu parente? indagou a Li Lien-ying.
- Majestade, mandou dizer que está doente. Penso que adoeceu porque mandastes chamar Li Hung-chang.
Plantada esta seta venenosa no espírito da soberana, êle recuou e ela, com majestosa graça, abriu a audiência. Chamou os príncipes e ministros, um por um, a fim de que dessem sua opinião sobre a crise, dedicando a cada qual a maior atenção. Em último lugar chamou o velho general Li Hung-chang, que avançou com passos inseguros e se ajoelhou com dificuldade. Ela observava-o enquanto dois eunucos o ajudavam a dobrar as pernas, mas não lhe deu permissão para sentar-se. Nesse dia ela exigia todos os sinais de submissão.
- Que tem a dizer, honrado protetor de nosso Trono? inquiriu em voz agradável.
Ao que Li Hung-chang replicou, sem erguer a cabeça do chão:
- Altíssima, é um assunto sobre o qual venho meditando há muitos meses. Estamos cercados de inimigos encolerizados, homens estranhos a nós e aos nossos hábitos. Contudo devemos a todo custo evitar a guerra, pois se nos empenharmos em luta contra tantos, seria o mesmo que montar num tigre. É prudente, por conseguinte, procurarmos fazer de um dos inimigos nosso aliado. Seria um inimigo do norte, a Rússia. Entre todos, a Rússia é o mais asiático, como nós; povo estrangeiro, é verdade, porém asiático.
- E por que preço faremos desse inimigo um amigo? perguntou ela.
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O velho estremeceu ante a voz fria da soberana. Ela viu os ombros decrépitos tremerem e as mãos crispadas se sacudirem. Êle não podia falar.
- Não! exclamou a Imperatriz com energia. - Eu responderei à minha própria pergunta. O preço é demasiado alto. Que vantagem haveria em derrotarmos nossos inimigos para nos tornarmos vassalos de outro? Haverá alguma nação que dê algo, seja o que fôr, por nada? Até hoje não encontrei um homem que fizesse semelhante coisa. Nós repeliremos os inimigos. Não descansarei enquanto os últimos homens brancos, mulheres e crianças não forem expulsos de nossas plagas. Não cederei. Retomaremos o que nos pertence.
Levantara-se do trono enquanto falava. Os príncipes e ministros fitaram-na, e pareceu-lhes que sua estatura aumentara. Seus olhos despediam uma luz negra, suas faces ardiam. Estendeu as duas mãos, os dez dedos esticados, as unhas encapadas pareciam garras de ouro. Jorrava poder de sua figura, o próprio ar tornou-se áspero de cólera. Caíram todos com os rostos no chão e ela fitou aqueles corpos curvados, sentindo o êxtase fluir através de suas veias como chamas ardentes.
Nesse mesmo instante pensou em Jung Lu e no fato de não ter vindo apoiá-la. Percorreu as figuras curvadas com o olhar, os trajes brilhantes espalhados no chão nos mais variados matizes e cores, e escolheu o Grande Conselheiro Kang Yi, que já não era jovem, mas que dedicara a vida inteira à tarefa de preservar o que era antigo e tradicional.
- O senhor, meu Grande Conselheiro Kang Yi, disse ela em voz clara e vibrante, ficareis para uma audiência particular. Vós, meus senhores e príncipes, estais dispensados.
Assim dizendo, desceu do trono e Li Lien-ying avançou oferecendo-lhe o braço. Apoiada no eunuco, passou majestosamente por entre as filas de homens curvados, até o seu palanquim. Sua resolução fora tomada, seu espírito estava firme. Não tornaria a ceder aos brancos.
Uma hora depois o Grande Conselheiro Kang Yi estava pronto a ouvir suas ordens. Era no meio da tarde, a Hora do Macaco, no seu salão particular de audiência. O Eunuco-Chefe achava-se próximo, parecendo não ouvir mas ouvindo tudo, a propina que Kang Yi lhe dera, ainda quente no bolso interno de seu manto. Enquanto falava, a Imperatriz olhava, através do grande salão, as portas abertas para os seus jardins. Cessara o vento da noite e a tempestade de areia purificara a atmosfera.
- Não vacilo mais, disse a Imperatriz. - Estou impaciente com os nossos inimigos. Reclamarei nossos territórios. Retomá-los-ei, palmo a palmo, custe o que custar.
- Majestade, redargüiu Kang Yi, tenho esperança pela primeira vez.
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Era um homem alto e em pleno vigor, um erudito e confuciano.
- Qual é o seu conselho? inquiriu a Imperatriz.
- Majestade, o Príncipe Tuan e eu temos conversado com freqüência sobre o conselho que deveríamos dar-vos se fôssemos perguntados. Concordamos, êle e eu, que devemos utilizar a cólera dos chineses contra os homens do Ocidente. Os chineses estão loucos de fúria pelas terras que lhes foram roubadas, pelas guerras que lhes foram movidas, pelo ouro que pagaram como indenização dos sacerdotes assassinados pela populaça. Organizaram bandos secretos, jurando destruir esses inimigos. Este é o meu conselho, humildemente oferecido, Majestade. Não proclamo sabedoria. Mas, desde que os bandos existem, por que não utilizá-los, Majestade? Que a vossa aprovação seja secretamente transmitida a eles. Quando todos esses bandos forem incorporados aos exércitos de cinco pontas que Jung Lu preparou, quem poderá resistir a nós? E os chineses não serão vossos adeptos ferventes, Sagrada Mãe, quando souberem que estais com eles contra os estrangeiros?
A Imperatriz ouviu e meditou. O plano pareceu-lhe bom. Fêz mais algumas perguntas, louvou-o uma ou duas vezes, e depois despediu-o. Tão satisfeita estava com aquela nova esperança que, quando Li Lienying se adiantou para dar sua opinião, ela não o reprovou.
- Pode haver um plano melhor? disse êle. - Esse Grande Conselheiro é um homem sábio e prudente.
- De fato, concordou a Imperatriz.
Surpreendeu-o fitando-a de lado, os olhos estreitos e manhosos na fisionomia grosseira.
- Bem? inquiriu. Conheciam-se profundamente, aqueles dois.
- Aviso-vos, Majestade. Creio que Jung Lu não aprovará o plano.
Tocou o lábio superior com a língua e curvou para baixo os cantos da boca. Ela sorriu da sua careta.
- Nesse caso não considerarei a opinião dele, disse.
Não obstante, dias depois mandou chamar Jung Lu, disposta a censurá-lo pelo que seus espiões haviam dito que êle fizera.
- E então? perguntou-lhe quando o viu diante de si. Era tarde e ela não permitira que êle tomasse a sua refeição vespertina. "Comerá mais tarde", dissera.
- Que fiz eu, Majestade?
Pela primeira vez achou-o com o aspecto velho e cansado.
- Soube que permitiu que os ministros estrangeiros reforçassem sua guarda.
- Fui obrigado, tornou êle. - Parece que eles também têm espiões que o avisaram de que vós, Majestade, destes ouvidos a Kang Yi e pretendeis apoiar os bandos secretos dos chineses rebeldes cujo propósito, como todos sabem, consiste em destruir os estrangeiros
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que se encontram entre nós, até a última criança. Majestade, eu disse que não acreditava que vós pudésseis aprovar semelhante loucura. Pensais que podeis, mesmo vós, lutar contra o mundo inteiro? Devemos negociar, transigir, até que nossos exércitos sejam suficientemente fortes para dar-nos a vitória.
- Soube que o povo profere maldições quando passam as tropas estrangeiras, disse ela. - Kang Yi esteve em Chu-chou e disse que a província agora está organizada para combater o inimigo. Disse que, em Chu-chou, encontrou-se com o magistrado que havia prendido alguns rebeldes secretos, pertencentes à ordem dos Boxers, mas êle, Kang Yi, ordenou que fossem postos em liberdade e trazidos a mim, para mostrarem as forças de que dispunham. Disse que têm recursos mágicos que impedem sua morte. Mesmo quando disparam armas de fogo contra eles, seus corpos não são feridos.
Jung Lu exclamou cheio de angústia:
- Oh, Majestade, como podeis crer em semelhante tolice?
- Você que é tolo, redargüiu ela. - Não se esqueça de que no fim da dinastia Han, há mais de mil anos, Chang Chou chefiou os Rebeldes do Turbante Amarelo contra o Trono e tomou muitas cidades, embora dispusesse de menos de meio milhão de homens! Eles, também, possuíam recursos mágicos contra os ferimentos e a morte. E Kang Yi diz que tem amigos que, há muitos anos, viram a mesma mágica na província de Shensi. Digo-lhe eu: existem espíritos que apoiam os justos.
Jung Lu estava agora fora de si. Tirou o chapéu da cabeça e jogou-o ao chão diante dela e segurando os cabelos com ambas as mãos, arrancou-os aos punhados.
- Não me esquecerei de vossa posição, disse entre os dentes. - Mas ainda sois minha parenta, aquela a quem há tantos anos dedico minha vida. Sem dúvida mereço o direito de dizer que sois uma tola. Apesar de toda a vossa beleza e vosso poder, vós, até mesmo vós, podeis ser tola. Advirto-vos: se derdes ouvidos a esse cabeça-dura, Kang Yi, que nada sabe do presente, mas vive nos séculos passados; se derdes ouvidos ao vosso Eunuco-Chefe e aos de sua espécie, ou mesmo ao Príncipe Tuan, que é também um alucinado, então vós vos destruireis e a toda a dinastia. Oh, ouvime... ouvi-me...
Ergueu as duas mãos, implorando, e fitou o rosto que ainda adorava. Seus olhares encontraram-se, êle viu-a hesitar e não se atreveu a falar para não desfazer o que fizera.
Ela disse em voz baixa:
- Perguntei ao Príncipe Ch'ing o que pensava e êle respondeu que, sem dúvida, os bandos dos Boxers poderiam ser úteis.
- Somente eu me atrevo a dizer-vos a verdade, tornou êle. (Avançou mais um passo, com as mãos enfiadas na túnica, para não estendê-las para ela). Na vossa presença o Príncipe Ch'ing não
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se atreve a dizer o que diz a mim, em particular - que esses Boxers são impostores e simuladores, assaltantes ignorantes que procuram atingir o poder através da vossa aprovação. Mas que homem vos adora como eu?
Sua voz desfaleceu e as últimas palavras saíram num sussurro seco e relutante. Ela deixou cair a cabeça. O velho poder ainda agia. O amor dele atravessara toda a existência de ambos.
- Prometei, pelo menos, que nada fareis sem consultar-me, disse êle. - É uma promessa pequena. (Como a Imperatriz não falasse, insistiu). Uma recompensa... a única que peço.
Esperou a resposta, com os olhos fixos na cabeça baixa. E ela conservou a cabeça baixa e viu os dois pés plantados no chão, pés fortes em botas de veludo, meio ocultas pelo comprido manto de cetim azul. Fiéis ao seu serviço aqueles dois pés... obstinados, bravos e fortes.
Ergueu a cabeça:
- Prometo.
- Majestade, disse Kang Yi, fazeis mal. Vosso coração está se enternecendo com a idade. Não permitis que os estrangeiros sejam liquidados. No entanto, bastaria uma palavra vossa e eles seriam postos para fora, com seus cães e aves, e de suas casas não restaria de pé um só tijolo.
Os espiões dele haviam-lhe dito que Jung Lu era seu inimigo e por isso se apressara em pedir audiência. Ela virou a cabeça.
- Estou cansada de todos vocês, disse.
-- Mas, Majestade, esta não é ocasião para cansaço. É a hora da vitória. E precisais fazer um gesto? Não, falai apenas, e outros farão o trabalho. Meu filho compareceu ontem ao teatro de Chi Shou-cheng e disse que todos falavam da tolice de Jung Lu, que permitiu a entrada de tropas estrangeiras na cidade. E o sogro de Chi, Yu Hsien, escreveu o mês passado de Shansi, dizendo que, embora não haja muitos Boxers em suas províncias, está encorajando o povo a reunir-se a eles, de modo que sua região possa ligar-se às outras quando chegar o momento de desferir o golpe contra o inimigo Ocidental. Esperamos a vossa palavra... somente a vossa palavra, Majestade.
Ela sacudiu a cabeça:
- Não posso dá-la.
- Majestade, disse Tung Fu-hsiang, dai-me vossa licença e demolirei os prédios estrangeiros da nossa cidade em cinco dias.
A Imperatriz achava-se no salão de audiência do Palácio de Inverno. Voltara à Cidade Proibida no dia anterior, deixando atrás de si a beleza outonal do Palácio de Verão. Os Boxers, sem permissão, tinham incendiado a ferrovia de Tientsin.
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Seriam eles invulneráveis? Quem podia saber? No calor do verão, mandara que seus carregadores a transportassem para cá, abanando-se durante toda a viagem.
- Majestade, disse Kang Yi, suplico-vos que desculpeis Tung. Êle tem as maneiras rudes de um soldado, mas está do nosso lado, apesar de chinês.
- Este braço direito, jactou-se Tung, mostrando-o.
A Imperatriz virou a cabeça. Relanceou o olhar pelo Conselho reunido. Jung Lu não estava presente. Havia pedido licença, dois dias antes, porém ela não respondera. Não obstante, êle partira.
- Majestade, disse o Grande Conselheiro Ch'i Hsiu, deixai-me preparar um decreto para vossa assinatura. Rompamos, pelo menos, nossas relações com esses estrangeiros. Isto os assustará.
- Pode prepará-lo, tornou a Imperatriz, mas não prometo que o assinarei.
- Majestade, falou de novo Kang Yi, estive ontem na festa de aniversário da primeira dama da casa do Duque Lan. Mais de cem Boxers vivem em seu pátio exterior, sob as ordens de seu comandante. Possuem o dom de invocar espíritos mágicos que entram em seus corpos. Vi rapazes de menos de quatorze ou quinze anos de idade, caírem em transe e falarem línguas estranhas. O Duque Lan diz que, quando chegar o momento, esses espíritos conduzirão os Boxers às casas dos cristãos, para destruí-los.
- Não vi isso com meus próprios olhos, declarou a Imperatriz, erguendo a mão e dando por terminada a audiência.
- Majestade, disse Li Lien-ying ao crepúsculo, muitos cidadãos estão dando abrigo aos Boxers. (Hesitou e em seguida murmurou). Se não vos zangardes, Majestade... vossa própria filha adotiva, a Princesa Imperial, está pagando o alojamento de duzentos e cinqüenta Boxers fora do portão dos fundos da cidade, e seu irmão, o Príncipe Ts'ai Ying, está aprendendo a mágica deles. Os Boxers de Kansu preparam-se para entrar na cidade. Muita gente está fugindo, com medo da guerra. Todos esperam uma palavra vossa, Majestade.
- Não posso dá-la, respondeu a Imperatriz.
No décimo sexto dia daquela lua, mandou Li Lien-ying procurar Jung Lu e trazê-lo à sua presença. Tinha que revogar sua promessa. Naquela mesma manhã, seus espiões informaram-na de que mais soldados estrangeiros estavam marchando terra adentro, vindos do litoral. Pretendiam vingar a morte de outro estrangeiro, morto por chineses encolerizados, na província de Kansu.
Era meio-dia quando Jung Lu chegou, vestido como se tivesse vindo de um jardim ou de uma montanha. Mas ela não prestou atenção à sua aparência
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- Devo continuar calada enquanto a cidade se enche de soldados estrangeiros? perguntou ela. - O povo se levantará contra o trono e a dinastia cairá.
- Majestade, concordo que não devemos permitir a entrada de mais soldados estrangeiros na cidade, replicou Jung Lu. - Afirmo no entanto que nos desgraçaremos se atacarmos os enviados das nações estrangeiras. Considerar-nos-ão selvagens e ignorantes das leis de hospitalidade. Ninguém envenena seus convidados dentro de casa.
- Que quer que eu faça? inquiriu com expressão amarga.
- Convide os ministros estrangeiros a saírem da cidade com suas famílias e amigos, disse Jung Lu. - Quando tiverem partido, suas tropas os seguirão.
- E se não concordarem?
- Talvez concordem, redargüiu êle calmamente. - Se não concordarem, então não podereis ser censurada.
- Libera-me de minha promessa?
- Amanhã, tornou êle. - Amanhã... amanhã.
Nas trevas profundas da noite ela foi subitamente acordada por uma luz brilhante. Como sempre, dormia com as cortinas do leito afastadas e agora a claridade brilhava através das janelas. Não provinha de uma lanterna nem da lua, mas do próprio céu, rubro e em chamas. Soergueu-se e chamou as mulheres que dormiam em esteiras postas no chão, junto de sua cama. Elas acordaram e correram à janela.
- Ai, gritaram. - Ai, ai, ai...
A porta abriu-se e, com o rosto cuidadosamente virado para um lado, Li Lien-ying gritou que um templo estrangeiro estava em chamas. O fogo fora ateado por mãos desconhecidas.
A Imperatriz levantou-se da cama e gritou que a vestissem imediatamente. As mulheres vestiram-na com rapidez e então, acompanhada de seus eunucos, dirigiu-se ao pátio mais distante e, lá, subiu a sua montanha de peônias, da qual podia ver a cidade, por cima dos muros. Fumaça misturava-se com as chamas ocultando a cena, mas logo depois um cheiro medonho de carne queimada encheu o ar. Por trás de seu lenço, a Imperatriz perguntou que cheiro era aquele e Li Lien-ying contou-lhe. Os Boxers haviam incendiado a igreja francesa, em cujo interior havia centenas de chineses cristãos, homens, mulheres e crianças.
- Que horror! exclamou a Imperatriz. - Oh, se eu tivesse proibido a entrada dos estrangeiros desde o começo! Devia tê-lo feito há muitos anos e o povo não se desviaria para os deuses estranhos!
- Tranqüilize-se, Majestade, atalhou Li Lien-ying. - Foram os estrangeiros que atiraram primeiro contra uma multidão aglomerada no portão da igreja e os bravos Boxers vingaram-se.
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- A História conta-nos que quando lavra o fogo na cidade imperial os objetos comuns e o jade precioso se consomem de igual maneira, lamentou-se ela.
Afastou-se não querendo continuar olhando e passou o resto do dia meditando no que tinha visto, enquanto a atmosfera permanecia impregnada do cheiro da morte. Ordenou ao eunuco que transferisse seus bens e seus livros para o Palácio da Serena Longevidade, onde não pudesse ver nem ouvir o que se passava na cidade e onde o ar estava purificado pela distância.
- Majestade, insistiam, se não quiserdes ver tudo perdido, deveis usar a magia dos Boxers. Os soldados estrangeiros enchem as ruas como águas transbordantes jorrando através das portas da cidade.
- Já, Majestade, já, sem demora...
- Majestade, Majestade...
Clamavam diante dela. A Imperatriz examinava uma face após outra, no pequeno salão do trono. Kang Yi, Príncipe Tuan, Yuan Shih-kai, e seus mais altos príncipes e ministros. Tinham vindo às pressas, atendendo ao seu chamado, antes da audiência, e ali estavam, desordenados. Não havia tempo para reverências nem cerimônias.
À sua direita o Imperador estava sentado numa pequena cadeira esculpida, a cabeça baixa, o rosto pálido, as compridas mãos apoiadas indiferentemente nos joelhos.
- Filho do Céu, disse-lhe ela, devemos usar as hordas dos Boxers contra nossos inimigos?
Se êle dissesse "sim", a responsabilidade não seria dele?
- O que vós quiserdes, Sagrada Mãe, redargüiu o moço sem erguer a cabeça.
Ela olhou para Jung Lu, que estava à parte, a cabeça baixa, os braços cruzados.
- Majestade, Majestade! gritavam as vozes dos homens, ecoando no elevado teto.
Ela pôs-se de pé e levantou as mãos pedindo silêncio, à luz dúbia da madrugada. Nada comera nem dormira enquanto o fogo ardia e os soldados estrangeiros marchavam através da porta... não de uma porta, mas das quatro, convergindo, dos quatro cantos da terra, para a sua cidade. Que restaria fazer senão a guerra?
- Chegou o momento! exclamou ela. - Devemos destruir os estrangeiros em suas legações! gritou em meio a súbito silêncio. - Não deve ficar pedra sobre pedra e não deve ser poupada a vida de ninguém!
Reinou silêncio de novo. Quebrara a promessa a Jung Lu. Êle adiantou-se e caiu aos seus pés, em reverência.
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- Majestade, exclamou enquanto lágrimas lhe rolavam pelas faces. - Majestade, embora esses estrangeiros sejam de fato nossos inimigos, embora sejam os únicos culpados de sua própria destruição, suplico-vos que mediteis no que ides fazer. Se destruirmos esses poucos prédios, esse punhado de estrangeiros, seus governos nos denunciarão cheios de cólera e seus exércitos, seus navios, atravessarão os mares para atacar-nos. Nossos altares ancestrais serão transformados em pó, nossos deuses tutelares e os do povo serão reduzidos a um montão de ruínas!
Ela estremeceu no íntimo do coração e o sangue esfriou-lhe nas veias. Contudo ocultou o seu terror. Nunca se mostrara amedrontada e o velho hábito a susteve, embora o medo fosse monstruoso e tocasse as raias do desespero. Seu belo rosto permaneceu impassível e nem sequer suas pálpebras tremeram.
- Não posso conter o povo, declarou ela. - Está enlouquecido pelo desejo de vingança. Se não destruírem nossos inimigos, destruirão a mim. Não tenho alternativa. Quanto ao senhor, Grande Conselheiro, se não tem conselho melhor a dar ao Trono, deixe-nos. Está dispensado de qualquer colaboração.
Jung Lu ergueu-se imediatamente, secas as lágrimas das faces e, sem palavra ou gesto, retirou-se de sua presença.
Depois que êle partiu, o Conselheiro Ch'i Hsiu tirou de sua comprida bota de veludo uma folha de papel dobrada. Abriu-a lentamente e, com grande dignidade, aproximou-se do trono e, curvando-se, apresentou-a à Imperatriz.
- Majestade, disse êle, tomei a liberdade de sugerir um decreto. Se me permitis, vou lê-lo em voz alta.
- Leia, ordenou a Imperatriz. Seus lábios estavam rígidos e frios, porém mantinha-se em atitude majestosa.
O Conselheiro começou a ler e todos ouviram o que escrevera. Era uma declaração de guerra aos estrangeiros, a ser assinada, se aprovada pela Imperatriz e selada com o selo imperial. Leu até o fim, enquanto todos ouviam, num silêncio tão profundo que sua voz ecoava no teto. Ao terminar esperou o pronunciamento da soberana e todos esperaram com êle.
- Excelente, disse a Imperatriz em voz fria e calma. - Que seja expedido como decreto do Trono.
Todos aprovaram, não aos gritos, mas em exclamações solenes. E Ch'i Hsiu dobrou o papel, tornou a guardá-lo na bota de veludo e, curvando-se, voltou ao seu lugar.
Amanhecia. Era a hora costumeira da audiência geral. Li Lienying, avançando, ofereceu o braço e a Imperatriz, apoiando-se nele, desceu do trono e entrou no palanquim que a esperava no terraço. Foi transportada ao seu palácio, para tomar chá e comer alguns doces, mas logo em seguida tornou a entrar no palanquim e foi levada ao Salão do Governo Diligente. O Imperador esperava em seu
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próprio palanquim e quando ela chegou saltou para recebê-la, ajoelhando-se.
- Benevolente Mãe! saudou-a êle.
A Imperatriz fêz um leve aceno, mas sem responder-lhe, e caminhou lentamente para a entrada do Salão, apoiando-se à direita em Li Lien-ying e à esquerda noutro eunuco. À entrada estavam ajoelhados os chefes de seu clã, os príncipes, os Grandes Conselheiros com exceção de Jung Lu, os Presidentes dos seis Conselhos e dos nove Ministérios, os vinte e quatro Tenentes-Generais das vinte e quatro Divisões, e os Mordomos dos Palácios.
O jovem Imperador caminhava lentamente atrás da Imperatriz, o rosto muito pálido, seus grandes olhos postos no chão e as mãos cruzadas sobre o cinto. A Imperatriz sentou-se no Trono do Dragão e êle ocupou o trono mais baixo, à sua direita.
Cumpridas todas as cerimônias, cada grupo de funcionários postou-se em seu respectivo lugar e a Imperatriz começou a falar. A princípio a voz saiu-lhe mais fraca do que desejara, mas à medida que pensava no que seus inimigos tinham feito, a cólera fortalecia-lhe a voz e iluminava seus olhos insones.
- Nossa resolução foi tomada, nosso espírito está firme. Não podemos tolerar por mais tempo, com decência e orgulho, as ultrajantes exigências dos estrangeiros. Era nossa intenção, de fato, suprimir, se possível, os Boxers chineses. Agora isto não é mais possível. Ouviram as ameaças dos nossos inimigos, que se estendem até a minha pessoa, pois ontem mandaram seus enviados declarar que eu me retirasse do Trono e deixasse o governo ao meu sobrinho, embora todos saibam quão lamentavelmente êle fracassou como governante! E por que desejam que eu me retire? É porque me temem. Sabem que eu não posso ser mudada, ao passo que, se meu sobrinho tomar o meu lugar, poderão modelá-lo como lhes aprouver. A insolência desses estrangeiros está caracterizada na atitude do Cônsul francês em Tientsin, que exigiu os fortes de Taku como parte do preço da morte de um mero sacerdote.
Fêz uma pausa e circunvagou o olhar altivo pelo grande Salão. A luz das tochas caía sobre as faces perturbadas voltadas para ela e sobre a cabeça baixa do Imperador ao seu lado.
- Não fala? perguntou ela ao jovem.
O Imperador não levantou a cabeça. Umedeceu os lábios, abriu e cerrou suas longas mãos magras. Por um momento pareceu que não iria falar. Ela esperava, os grandes olhos fixos nele, e afinal ouviu a sua voz trêmula.
- Sagrada Mãe, disse êle umedecendo os lábios a cada duas palavras. - Posso apenas dizer... talvez não devesse fazê-lo, mas como me perguntais... parece-me que o que Jung Lu disse é o mais prudente. Isto é... a fim de evitar uma carnificina... isto é, e desde que nos é impossível lutar contra o mundo... pois não temos navios de
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guerra nem armas ocidentais... é melhor permitir que os ministros estrangeiros e suas famílias abandonem a cidade pacificamente. Mas não sou eu... naturalmente que não... quem pode tomar semelhante decisão. Tudo deve ser feito de acordo com a vontade de minha Benigna Mãe.
Imediatamente um membro do Conselho dirigiu-se à Imperatriz.
- Suplico-vos, Majestade, que continueis com vosso plano. Que todos os estrangeiros sejam mortos e sua espécie exterminada. Depois que isto fôr feito, o Trono terá tempo e energia para esmagar os chineses rebeldes que estão novamente agitando o sul.
A Imperatriz recebeu com satisfação o apoio e disse:
- Ouvi o conselho de Jung Lu e não era necessário que me fosse repetido. Prepare-se o edito declarando a guerra.
Levantou-se, como para dar por terminada a audiência, porém ouviu-se um tumulto de vozes discordantes. Enquanto alguns sustentavam e aprovavam o que ela decretara, outros pediam-lhe para ser ouvidos. A Imperatriz tornou a sentar-se e ouviu-os um por um. Disseram-lhe os discordantes que uma guerra representaria o fim da dinastia, pois a China seria sem dúvida derrotada e os chineses tomariam o trono. O Ministro das Relações Estrangeiras chegou mesmo a afirmar que achava os estrangeiros perfeitamente razoáveis em suas negociações e de sua parte não acreditava que houvessem mandado um documento pedindo a sua retirada do Trono. As damas estrangeiras não a haviam louvado? Na verdade êle próprio notara que os ministros estrangeiros tornaram-se mais corteses e gentis depois que ela recebera as damas.
O Príncipe Tuan levantou-se cheio de cólera e a Imperatriz pediu ao ministro que se retirasse para evitar uma briga. Então o Duque Lan, protetor dos Boxers, levantou-se por sua vez para dizer que tivera um sonho na noite anterior, no qual vira Yü Huang, o deus Imperador de Jade, cercado por uma vasta horda de Boxers realizando exercícios patrióticos. E o deus os aprovara.
A Imperatriz ouviu com o coração aberto o relato do sonho, sorriu seu adorável sorriso e retrucou que se lembrava de haver lido que o Imperador de Jade aparecera a uma Imperatriz, nos tempos antigos.
- É um bom presságio, concluiu ela, e significa que os deuses estão conosco, contra os bárbaros inimigos.
Mas não prometeu, ainda desta vez, usar a magia dos Boxers. Quem saberia se era verdadeira ou falsa?
Despediu-os, voltou ao seu palácio e não falou mais com o Imperador nem pareceu vê-lo. Agora que sua vontade fora feita, seus receios diminuíram, sentia-se cansada e ansiava por dormir.
- Quero dormir este dia todo, disse às suas damas enquanto a preparavam para a cama. Que ninguém me acorde.
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Era uma hora da tarde, a Hora do Carneiro, quando foi acordada de súbito pela voz de Li Lien-ying.
- Majestade, chamava êle, o Príncipe Ch'ing espera-vos com Kang Yi.
A Imperatriz não podia furtar-se a esse chamado e, tornando a vestir-se, saiu para a antecâmara onde os dois a esperavam cheios de impaciência.
- Majestade, exclamou Kang Yi depois de curvar-se, a guerra já começou. En Hai, um sargento manchu, matou esta manhã dois estrangeiros, sendo um o ministro alemão que estava em seu palanquim na rua, com o objetivo de solicitar-vos uma audiência especial. En Hai matou os dois e correu à procura do Príncipe Ch'ing, para receber sua recompensa.
A Imperatriz sentiu o medo apertar-lhe o coração.
- Mas de que modo o nosso edito chegou tão rapidamente ao povo? perguntou ela. - Providencie para que o sargento não seja recompensado, se matou sem ordem.
O Príncipe Ch'ing hesitou e clareou a garganta.
- Majestade, disse êle, em face da crise, o Príncipe Tuan e Ch'i Hsui expediram ordens imediatas, após a audiência, no sentido de que todos os estrangeiros fossem mortos, onde quer que se encontrassem.
Os dois homens entreolharam-se.
- Majestade, insistiu Kang Yi, nossos inimigos provocaram sua própria destruição. Disse o sargento que os guardas brancos atiraram primeiro, matando três chineses.
- Oh, horror! exclamou a Imperatriz. Seu medo tornou-se sofrimento e torceu as mãos. - Onde está Jung Lu? gritou, desesperada. - Corram... tragam-no aqui... a guerra começou demasiado cedo... não estamos preparados.
Assim falando, correu de novo para o seu quarto. E ali, recusando alimento e consolo, ficou à espera de Jung Lu. Duas horas depois chegava êle, com expressão sombria e grave.
- Deixem-me, disse ela às suas damas. - E não permita a entrada de ninguém, aduziu dirigindo-se ao eunuco.
Depois que todos saíram, fitou Jung Lu e êle também a encarou.
- Fale, disse ela dèbilmente. - Diga-me o que devo fazer.
- Eu tinha os guardas prontos para escoltarem os estrangeiros até o litoral, disse êle em sua voz profunda e triste. - Por que não me obedecestes?
Ela desviou a cabeça e enxugou o canto dos olhos com a ponta do lenço preso ao botão de jade.
- Depois que me desobedeceu, prosseguiu êle, pergunta-me o que deve fazer.
A Imperatriz soluçou mansamente
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- Onde encontrará dinheiro para pagar a esses Boxers? indagou Jung Lu. - Pensa que trabalham de graça?
Ela virou-se de novo para olhá-lo e suplicar-lhe que a aconselhasse, a ajudasse, a salvasse uma vez mais, porém erguendo o olhar para o seu rosto viu-o de súbito empalidecer profundamente, levar as mãos para a esquerda e cair pesadamente no chão.
Correu para êle, segurou-lhe as mãos, porém estavam inertes e frias. As pálpebras estavam semicerradas, as pupilas fixas e respirava com dificuldade.
- Acudam! acudam! gritou ela e as damas acorreram. Vendo a Imperatriz ajoelhada ao lado do corpo do Grande Conselheiro também se puseram a gritar. Entraram os eunucos.
- Levantem-no, ordenou a Imperatriz. - Ponham-no no sofá de ópio.
Ergueram Jung Lu e colocaram-no sobre um duplo sofá de ópio, no extremo do salão, pondo-lhe sob a cabeça um travesseiro duro. A Imperatriz mandou um pequeno eunuco chamar os Médicos da Corte, que vieram imediatamente. Durante todo esse tempo, Jung Lu não se mexeu nem cessou de respirar dificultosamente.
- Majestade, disse o Médico-Chefe. - O Grande Conselheiro levantou-se de seu leito de doente para falar-vos.
A Imperatriz voltou-se para Li Lien-ying com um olhar terrível.
- Por que não me informou?
- Altíssima, respondeu Li Lien-ying, o Grande Conselheiro proibiu-me.
Que podia ela dizer? Estava confusa com o amor inabalável daquele homem, que renunciara a tudo por causa dela. Controlou a agitação de seu coração, pois devia ocultar tanto o amor quanto o medo, e falou em voz calma:
- Levem-no ao seu palácio e vós, médicos imperiais, ficai ao seu lado noite e dia. Informai-me de seu estado de hora em hora, durante o dia e durante a noite. Quanto a mim, irei orar no templo.
Os eunucos avançaram para obedecer e os médicos, após se curvarem em reverência, seguiram-nos. A Imperatriz levantou-se e, sem falar com as damas que a rodeavam, encaminhou-se para o seu templo particular. Era agora a Hora do Cão, depois do dia e antes da noite, a luz do crepúsculo inundava os pátios. A atmosfera estava triste e serena, o calor do sol perdurava ainda e os ventos da noite não sopravam todavia. Ela caminhava vagarosamente, como se suportasse um peso enorme, e ao chegar ao templo dirigiu-se à sua bem-amada deusa, a Kuan Yin. Erguendo três pedaços de sândalo, acendeu-os na chama bruxuleante de uma vela e atirou-os dentro das cinzas de urna de jade sobre o altar. Em seguida tomou o rosário de contas de jade que se achava no altar, sempre à espera de sua mão, e, desfiando as contas, recitou a prece da mulher solitária.
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"Tu que também és solitária", orava ela à deusa, "ouve a oração de Tua irmã mais moça. Livra-me de meus inimigos, que querem tomar esta gloriosa terra que é minha herança, e cortá-la em pedaços como a um melão que se come. Livra-me... livra-me dos meus inimigos! Esta ainda é a minha primeira prece. Oro depois pelo homem sem nome que amo. Êle caiu diante de mim, hoje. Pode ser que tenha chegado a hora da sua morte. Sustenta-me! Mas intercede, rogo-te, Irmã Mais Velha, junto do Velho no céu, para que a hora seja protelada. Sou tua Irmã mais moça! Se a hora não pode ser protelada, então integra-te em mim, para que eu possa em qualquer circunstância, mesmo na solidão e na derrota, comportarme altivamente. Tu, Irmã Mais Velha, encaras toda a humanidade com a face impassível, Tua beleza inatingível, Tua graça inabalável. Dá-me força para fazer o mesmo".
Desfiou as contas uma após outra, até chegar a última. E sentiu que sua última prece fora atendida. Embora seus inimigos vencessem, embora seu amor morresse, sua face não mudaria, sua beleza não feneceria, sua graça não se perturbaria. Seria forte.
Sozinha agora, a Imperatriz continuava a sua vida, enquanto a guerra rugia ao seu redor, cada dia longo como um mês, e em sua medonha solidão poucas eram as vozes que penetravam. Ouviu a voz do Príncipe Tuan.
- Majestade, implorava êle, esses Boxers têm um talismã secreto, um círculo de papel amarelo, que cada um deles traz no corpo quando vai para a batalha. Nesse papel há uma criatura pintada em tinta vermelha, uma criatura que não é homem nem demônio. Tem pés mas não tem cabeça, seu rosto é pontiagudo e cercado de quatro halos. Os olhos e sobrancelhas são negros e ardentes. Em todo esse estranho corpo estão escritas essas palavras mágicas: "Eu sou Buda da Nuvem Fria. À minha frente o negro Deus do Fogo abre o caminho. Atrás de mim, o próprio Lao Tzu me suporta". No canto superior esquerdo desse papel estão as palavras: "Invoque primeiro o Guardião do Céu", e no canto inferior direito está escrito: "Invoque depois os Negros Deuses da Pestilência". Quem aprende essas palavras místicas destrói, com cada invocação, uma vida estrangeira em alguma parte do nosso país. Não faz mal algum, Majestade, aprender as palavras mágicas.
- Não faz mal, concordou a Imperatriz e decorou as palavras místicas, repetindo-as setenta vezes por dia e Li Lien-ying louvava-a cada vez, contando quantos demônios estrangeiros tinham sido destruídos. E dizia-lhe que, onde quer que a espada de um Boxer tocasse, fosse carne ou madeira, saía fogo, e falou-lhe que sempre que os Boxers capturavam um inimigo vivo, consultavam a vontade do Céu da seguinte maneira: faziam uma bola de papel amarelo e punham-lhe fogo; se as cinzas subissem, o inimigo devia ser
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morto, mas se caíssem sua vida era poupada. Muitas histórias semelhantes contava o eunuco à Imperatriz e ela, embora duvidasse, estava tão constrangida que chegava a crer, ansiosa por acreditar na possibilidade de ajuda de alguma parte.
No entanto que ajuda poderia ter? Como se os irados estrangeiros não fossem bastantes, o país estava cheio de queixas e lamentações contra grandes enchentes, fome nas aldeias, colheitas perdidas e sementes não semeadas. O povo, em desespero, erguia-se por toda parte do reino, atacando os ricos e roubando os que possuíam algum alimento. Entre os assaltados havia também padres estrangeiros que sempre dispunham de comida e de dinheiro. Entre os milhares de saqueados houve também alguns padres brancos, mas os ministros estrangeiros protestavam contra a morte de qualquer padre compatriota e declaravam que, se o povo não fosse dominado, os seus governos mandariam mais exércitos e navios de guerra. No mundo inteiro não havia um só país ou um só homem para o qual a Imperatriz pudesse apelar, enquanto Jung Lu jazia imobilizado em seu leito, surdo e sem fala. Quando ela perguntava ao General Yuan Shih-k'ai o que devia fazer, este respondia apenas que os Boxers eram tolos, que ordenara a vinte deles que se postassem à sua frente para serem fuzilados e vira-os morrer como homens vulgares. Pediu à Imperatriz que não confiasse naqueles charlatães, mas não lhe disse em quem devia confiar. E ela continuou desamparada.
Entrementes o Príncipe Tuan não a deixava um só instante, jactando-se de que poderia expulsar os bárbaros para o mar, suplicando-lhe que lhe desse permissão para fazê-lo. Mas ela protelava, esperando ainda pela paz. Enquanto protelava, o Príncipe Tuan começou a forçá-la em segredo, permitindo que homens irritados, um aqui outro acolá, atacassem os estrangeiros em suas legações. Seu velho e leal Vice-rei da província sulista de Nanking mandou-lhe um memorial suplicando que ela não permitisse tais ataques e que protegesse os ministros estrangeiros, suas famílias e seguidores, bem como os padres que viviam nas províncias exteriores.
"A guerra atual", escrevia êle, "é feita por bandidos que destroem vidas e bens sob o pretexto de lutarem contra o cristianismo. Estamos diante de uma crise muito séria. Os governos estrangeiros já se estão unindo para mandarem suas tropas atacar a China, sob a alegação de que necessitam proteger seus súditos e sufocar a revolta. Nossa posição é crítica e fiz os preparativos necessários, na minha província, para resistir com todas as minhas forças.
"Não obstante, Majestade, fazei com que a benevolência e o poder se movam juntos. Sugiro, respeitosamente, que apliqueis uma punição exemplar e severa aos rebeldes que atacam funcionários e missionários, que são inocentes. Fazei assim com que a benevolência
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e a justa cólera sejam dispensadas simultaneamente, claras e brilhantes como o sol e a lua."
Ao receber esse memorial, a Imperatriz pensou no seu autor, o Vice-rei, homem bom e fiel, e respondeu-lhe por mensageiros especiais que percorreram, revezados, mais de duzentas milhas por dia. Eis a sua resposta, escrita do próprio punho, em traços seguros e elegantes:
"Não seremos agressores por vontade própria. Informe às várias legações estrangeiras que nutrimos apenas sentimentos calmos e bondosos para com eles e insista para que elaborem algum plano segundo o qual possamos estabelecer um tratado de paz, no interesse de todos."
Após ter enviado esse despacho, refletiu e expediu um edito público, assim redigido:
"Temos suportado uma sucessão de acontecimentos infelizes, um seguido do outro em rápida confusão, e perdemos a perspectiva da situação que provocou as atuais hostilidades entre a China e as potências Ocidentais. Nossos enviados no exterior estão separados de Nós pelos vastos mares e não podem, por conseguinte, explicar às potências Ocidentais Nossos verdadeiros sentimentos."
Descrevia em seguida a guerra atual, a maneira pela qual os chineses rebeldes e pessoas desordenadas, em cada província, se haviam combinado para provocar distúrbios e como, se ela não houvesse interferido para deter essas pessoas, todos os missionários estrangeiros teriam sido mortos. Ocorrera então a suprema infelicidade com o Ministro Alemão e a insistência dos guerreiros estrangeiros em tomar os fortes de Tientsin, o que o Comandante Chinês não podia aceitar, motivo pelo qual aqueles bombardearam os fortes.
Assim concluía:
"Criou-se assim um estado de guerra, mas não por Nossa vontade. Como poderia a China ser tão leviana, consciente que é da sua fraqueza, ao ponto de declarar guerra ao mundo inteiro, de uma só vez? Como poderia esperar a vitória, usando bandidos pouco treinados, para semelhante fim? Isto deve parecer evidente a todos. Esta é a verdadeira síntese da Nossa situação, explicando as medidas que fomos forçados a tomar. Nossos enviados no exterior devem explicar o significado deste edito aos governos junto aos quais estão acreditados. Desejamos e ordenamos aos nossos comandantes militares que protejam as legações estrangeiras. Podemos fazer apenas o que está ao Nosso alcance. Entrementes, Nossos Ministros devem cumprir seus deveres com renovado cuidado. Ninguém pode ser espectador desinteressado numa hora como a atual."
Mas a Imperatriz ainda não achava que tivesse feito tudo quanto podia e, com a sua própria letra, mandou telegramas aos mais poderosos soberanos do mundo. Ao Imperador da Rússia mandou suas saudações, dizendo:
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"Por mais de dois séculos e meio Nossos impérios vizinhos têm mantido uma amizade sólida, mais cordial do que a que existe entre outras potências. Não obstante, recente mal-estar entre convertidos ao cristianismo e o resto do Nosso povo tem dado oportunidade a pessoas más de fomentarem a rebelião, até que as próprias potências estrangeiras se persuadiram de que o Trono se opõe ao cristianismo." Descrevia então o que fora feito e terminava com as seguintes palavras: "E agora que a China atraiu a inimizade do mundo Ocidental, por circunstâncias alheias ao Nosso controle, contamos apenas com o seu país para agir como intermediário e pacificador em Nosso favor. Faço este ansioso e sincero apelo a Vossa Majestade, a fim de que assuma o papel de árbitro e nos salve a todos. Esperamos sua graciosa resposta".
E à Rainha da Inglaterra, a Imperatriz enviou suas saudações fraternais, lembrando-lhe que a maior parte do comércio da China era feito com a Inglaterra, e concluía dessa forma:
"Pedimos-lhe, por conseguinte, que considere que, se por alguma circunstância, Nosso Império perder a independência, os interesses de seu país serão prejudicados. Estamos trabalhando com ansiedade e rapidez para formar um exército que Nos defenda e nesse meio tempo contamos com Vossa Majestade, como Nossa mediadora, e esperaremos ansiosamente a Sua decisão."
E usando o nome do Imperador ao lado do seu, escreveu finalmente ao Imperador do Japão, mandando-lhe a carta por intermédio de seu ministro em Tóquio, nos seguintes termos:
"Saudações a Vossa Majestade! Os Impérios da China e do Japão estão unidos como os lábios e os dentes. Por conseguinte, quando a Europa e Ásia se enfrentam numa guerra, Nossas duas nações asiáticas devem permanecer juntas. As nações do Ocidente sôfregas de terra, cujos olhos tigrinos estão fixos, cheios de cobiça, sobre Nós, se dirigirão um dia, sem dúvida, para o Seu país. Devemos esquecer nossas discordâncias e pensar em Nós como povos irmãos. Encaramo-lo como Nosso árbitro, diante dos inimigos que Nos cercam".
A Imperatriz não recebeu nenhuma resposta a essas mensagens. Esperava noite e dia, sem crer, e noite e dia o Príncipe Tuan e seus adeptos insistiam com ela:
- Amigos ou inimigos do Trono, ministros ou rebeldes, dizia o Príncipe Tuan, todos estão unidos no ódio aos cristãos estrangeiros que aqui vieram, contra a nossa vontade, para comerciar e pregar.
Quão monstruosa era agora a sua solidão, cobrindo a terra inteira e alcançando o próprio Céu! Nenhuma voz humana a atingia, nenhum deus falava. A Imperatriz permanecia em seu Salão do Trono dia após dia. Os ministros e príncipes ficavam calados quando o Príncipe Tuan e seus adeptos falavam. Silenciosas continuavam as majestades de além-mar e calado estava Jung Lu em sua cama. Passaram os dias de verão, um após outro, iguais na luminosidade,
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e a chuva não caiu. Enquanto o povo se agitava, lutava e se queixava, os céus continuavam impiedosamente claros, sem a menor sombra de nuvem. No último ano houvera enchentes e agora havia seca. O povo gritava que os tempos eram maus e que o Céu estava irado. E enquanto ela meditava, exteriormente calma e serena como a deusa Kuan Yin, por dentro estava cheia de confusão e desespero. A cidade enchia-se de rebeldes e Boxers, todos os bons cidadãos escondiam-se no interior de suas casas. As legações estrangeiras preparavam-se contra o ataque, trancavam seus portões, e os guardas esperavam com as armas na mão.
No vigésimo dia do quinto mês lunar, a Imperatriz compreendeu que a espera era inútil. Nada agora poderia impedir a destruição. Ao amanhecer a cidade ardeu. Mais de mil lojas foram incendiadas pelos rebeldes e Boxers. Os mercadores ricos fugiram com suas famílias. Agora a guerra não era mais contra os estrangeiros, mas contra o Trono e contra ela.
Nesse dia recebeu dois memoriais dos ministros Yuan e Hsu, ambos das Relações Estrangeiras. Informavam que tinham visto pessoalmente os corpos dos Boxers mortos na rua das Legações, onde os guardas estrangeiros os haviam matado. Mas, acrescentavam, esses guardas não deviam ser censurados, pois os enviados Ocidentais tinham comunicado previamente que manteriam uma guarda mais numerosa que de costume apenas para defesa, e quando a crise passasse, tornariam a reduzi-la. O Imperador, poucos dias antes, após a audiência, perguntara ao ministro Hsu se a China poderia resistir a um ataque do exterior, agarrando-lhe a manga cheio de ansiedade, e chorara ao receber a resposta de que a China seria derrotada. E o ministro Yuan disse que o ataque às legações representava uma grave ofensa à lei internacional.
Mas a Imperatriz ainda não se moveu. Para onde se voltaria? perguntava ao Céu silencioso. Amontoavam-se memoriais insolentes, censurando-a.
Os dias continuaram a passar. Os estrangeiros trancaram-se no interior de suas legações, transformadas em fortalezas. Soubera que os estrangeiros sofriam fome e, ansiosa por eles, mandou-lhes comida, porém devolveram-na, receosos de que estivesse envenenada. Soube que as crianças estavam doentes e febris por falta de água, mas também lhe foram devolvidos os barris de água pura que lhes mandou.
No décimo quinto dia do sexto mês lunar o último golpe foi desferido pela mão do Céu. Os Boxers assassinaram centenas de chineses cristãos, do lado de fora dos portões do palácio de um príncipe, e a Imperatriz, ao saber da morte de tantos inocentes, levou as mãos à cabeça, tremendo.
- Oh, se os cristãos renegassem seu credo, gemeu ela, eu não teria sido obrigada a fazer esta guerra terrível.
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Mas eles não abjuravam e isto enfurecia os Boxers ainda mais. Certa manhã, a Imperatriz estava tomando o seu chá. O sol não brilhava ainda sobre a parede e o orvalho tremulava frio nos lírios do pátio. Em meio à confusão e à luta que agitava a cidade, ela sentiu-se grata por um momento como aquele. Súbito ouviu gritos e passos fortes nas pedras dos terraços externos. Levantou-se e correu para o portão, onde viu um bando de homens bêbedos, de faces rubras e espadas desembainhadas. À frente deles, meio assustado, meio insolente, viu a alta figura do próprio Príncipe Tuan. Êle bateu palmas ao vê-la, ordenando silêncio aos seus seguidores, e dirigiu-se arrogantemente à Imperatriz.
- Majestade! Não posso conter esses autênticos patriotas. Ouviram dizer que estais ocultando os discípulos do demônio, os cristãos conversos. Mais que isso: disseram-lhes que o próprio Imperador é cristão. Não posso responsabilizar-me, Majestade... não posso responsabilizar-me...
A Imperatriz ainda tinha nas mãos a xícara de jade. Ergueu-a acima da cabeça e deixou-a cair, espatifando-se nas pedras. Seus grandes olhos faiscaram e reluziram como fogo frio.
- Você, traidor! Afaste-se. Como se atreve a entrar aqui, ao amanhecer, quando estou tomando chá, fazendo tal barulho? Pensa que é o Imperador? Como se atreve a comportar-se dessa maneira insolente? Sua cabeça não está mais firme em seus ombros do que a cabeça de qualquer plebeu! Sou eu e somente eu quem governa! Pensa que pode aproximar-se do Trono do Dragão, sem minha ordem?
- Majestade... Majestade... balbuciou o Príncipe Tuan.
Mas ela não deteve o jorro de sua cólera:
- Pensa que, por estarem confusos os tempos, pode entrar aqui e armar um motim? Volte para o seu palácio! Durante um ano, a partir de hoje, não receberá salário. Quanto a esses vagabundos, - esses velhacos que o seguem, mandarei decapitá-los! Tal era o poder de sua presença, a nitidez metálica de sua voz, a beleza que ainda possuía, que os homens, dominados, se retiraram um a um. Ela então ordenou aos Guardas Imperiais que decapitassem aqueles homens e suas cabeças fossem penduradas nos portões da cidade, porque se haviam atrevido a comparecer à sua presença sem haverem sido chamados.
Nesse mesmo dia chegaram más notícias de Tientsin. Os soldados estrangeiros tinham capturado- aquela cidade e estavam marchando agora para a Capital, a fim de libertarem seus compatriotas sitiados nas legações. Quanto ao Exército Imperial, batia em retirada. Que podia ela fazer senão esperar e orar?
No décimo dia do sétimo mês do ano lunar, em resposta às preces diárias que dirigia à sua deusa, a Imperatriz foi informada de que Jung Lu havia despertado de seu estupor. Voltou ao templo para
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agradecer e depois mandou cestas de alimentos especiais para restituir-lhe as forças. Não obstante, passaram-se quatro dias antes que êle pudesse ser levado à sua presença, num palanquim. Ao ver a sua palidez e a fraqueza de suas pernas, gritou-lhe que não se levantasse. Ela desceu do trono e sentou-se ao seu lado, numa cadeira.
- Onde esteve, parente? perguntou-lhe com a mais terna das vozes. - Seu corpo permaneceu inerte em sua cama, enquanto sua alma e seu espírito perambulavam longe.
- Não posso lembrar-me agora onde estive, respondeu êle em voz aguda e fraca. - Porém voltei, não sei por vontade de quem, a não ser que suas preces me tenham trazido de volta.
- Foram as minhas preces, disse ela, pois de fato tenho estado muito só. Diga-me o que devo fazer. Sabe que a guerra lavra na cidade e que Tientsin caiu? O inimigo aproxima-se da cidade...
- Sei de tudo, tornou êle. - Não há tempo a perder. Atente bem para as minhas palavras. Prenda o Príncipe Tuan, a quem os estrangeiros culpam por tudo quanto ocorreu, e ordene que seja decapitado. Isto provará a sua inocência e o seu desejo de paz.
- Quê? E ceder ao inimigo? exclamou ela, ultrajada. - Decapitar o Príncipe Tuan é questão sem importância, mas ceder ao inimigo... não, isto é demais, isto eu não posso fazer! Representaria a derrota de toda a minha vida!
- Oh, teimosa mulher, suspirou Jung Lu. - Quando aprenderá que não pode deter as marés do futuro?
Fêz sinal aos carregadores do palanquim que o levassem. A Imperatriz, com o coração despedaçado, não lhe pediu que ficasse.
Os dias sucediam-se e ela se apegava a cada um deles, tentando crer que a magia dos Boxers ainda surtiria efeito. A metade da cidade estava reduzida a cinzas e os estrangeiros, dentro de suas legações, não cediam. Que significava isso senão que tinham esperança nos exércitos libertadores que se aproximavam? Cinco vezes, no terceiro dia, chamara seus príncipes e ministros ao Salão da Serena Longevidade. Jung Lu compareceu e, fazendo um esforço gigantesco, saiu de seu palanquim e tomou o seu lugar. Mas não tinha outro conselho a dar, além do que ela se recusara a aceitar. Quanto aos ministros e príncipes, permaneciam calados, as faces pálidas e perturbadas pelo medo e pelo cansaço.
Em meio a esse silêncio o Príncipe Tuan tornou a falar em voz alta, jactando-se muito, declarando que os Boxers tinham preparado seus encantamentos secretos e que quando as tropas estrangeiras chegassem ao fosso dos muros da cidade, não conseguiriam atravessá-lo. Cairiam na água e morreriam afogadas.
Jung Lu atalhou em voz subitamente forte:
- Os Boxers não passam de penugem de cardo e quando os inimigos estrangeiros se aproximarem como penugem de cardo voarão.
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Sua profecia realizou-se. À Hora do Macaco, no quinto dia, o Duque Lan entrou na biblioteca em que a Imperatriz consultava os livros dos sábios, e exclamou sem qualquer preâmbulo.
- Velho Buda, eles estão aqui... os demônios estrangeiros irromperam pelos portões da cidade, como o fogo por entre a cera!
Ela ergueu a cabeça e o sangue fugiu-lhe do coração.
- Então meu parente estava certo, disse em voz baixa e cismadora. Fechou o livro, levantou-se e ficou meditando, com o lábio inferior entre o indicador e o polegar.
- Deveis fugir, Majestade, gritou o velho duque. - Vós e o Filho do Céu, juntos! Deveis fugir para o norte.
Ela sacudiu a cabeça, ainda refletindo. Vendo que a soberana não se movia, o duque correu em busca de Jung Lu, o único capaz de persuadi-la. Em menos de uma hora Jung Lu entrou, caminhando agora com o apoio de uma bengala, ainda inseguro mas fortalecido pela necessidade de agir.
Ela havia tornado a sentar-se, mas o livro não estava aberto e tinha as mãos tão crispadas sobre os joelhos que os nós dos dedos estavam brancos. Ergueu a cabeça quando êle entrou, seus grandes olhos opacos, as pupilas perdidas na escuridão.
Jung Lu aproximou-se e falou-lhe em voz baixa e terna:
- Meu amor, ouça-me. Não pode permanecer aqui. Você ainda é o símbolo do Trono. Onde você estiver, estará o coração da nação. Hoje, depois da meia-noite, à Hora do Tigre, quando a lua estiver baixa e as estrelas ainda não brilharem, você deve fugir.
- De novo, murmurou ela. - De novo, de novo...
- De novo, concordou Jung Lu. - Conhece o caminho e não irá só.
- Você...
- Não, eu não. Devo ficar, para reorganizar nossas forças. Pois você voltará, como voltou antes, e eu devo salvar o Trono para você.
- Como o conseguirá, sem exércitos? murmurou ela. Deixou cair a cabeça e êle viu grandes lágrimas pendendo de seus longos cílios retos. Caíram uma a uma, rolando pelo cetim macio de seu manto cinza prateado.
- O que eu não puder fazer pela força, farei pela sabedoria, disse Jung Lu. - O Trono estará aqui, para você. Prometo-o.
Ela ergueu o rosto e êle compreendeu que tinha cedido. Cedera ao terror, ao medo, senão a êle, e com apiedado amor Jung Lu segurou-lhe a mão e manteve-a entre as suas por um momento. Levou-lhe a mão ao rosto e apertou-a, depois largou-a suavemente e recuou.
- Majestade, disse, não há tempo a perder. Devo preparar vosso disfarce e escolher aqueles que a protegerão em meu lugar. Vossas mulheres deverão tingir-vos a face e pentear vossos cabelos como
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os das aldeãs chinesas. Deveis sair do palácio pelo portão secreto. Em companhia de duas damas apenas... O Imperador irá convosco, também vestido de camponês. As concubinas ficarão...
Ela ouvia, sem dizer palavra. Depois que Jung Lu partiu, sentou-se, abriu o livro e seus olhos caíram sobre estranhas palavras, escritas séculos antes pelo sábio Confúcio: "Por falta de espírito largo e compreensão autêntica, um grande propósito se perdeu".
Leu as palavras e ouviu-as como se uma voz as tivesse proferido. Emergindo do passado, atingiam-lhe o coração e o espírito. Recebeu-as com humildade. Seu espírito não era suficientemente largo, não compreendera a época, seu propósito se perdera... seu propósito de salvar o país. O inimigo vencera. Cerrou o livro lentamente e desarmou o espírito. A partir daquele momento, não modelaria a época - seria modelada por ela.
Todos se maravilharam ante a sua altiva serenidade. Deu ordens referentes aos seus livros, suas pinturas, seus pergaminhos, suas jóias. Para esconderijo de seu tesouro, seus lingotes de prata e de ouro, ordenou que Li Lien-ymg construísse uma parede falsa em certo aposento e, atrás dessa parede, seu tesouro foi oculto. Feito tudo isso, rapidamente mas em ordem, à Hora do Tigre ela chamou primeiro o Imperador, depois as concubinas e disse a estas o motivo por que não poderia levá-las consigo.
- Devo preservar o Imperador e a mim mesma, não pelo que valemos, pois na verdade nada somos, mas porque devemos proteger o Trono. Levo comigo o selo imperial e onde eu estiver estará também o Estado. Vocês ficarão aqui e não precisam ter medo, pois o Grande Conselheiro Jung Lu, miraculosamente restabelecido, reorganizará nossos exércitos. Não creio, ademais, que o inimigo penetre nestes palácios. Continuem a viver como até agora. Os eunucos as servirão, exceto Li Lien-ymg, que virá comigo.
As concubinas choraram suavemente e enxugaram as lágrimas com suas mangas. Ninguém falou, exceto a Concubina Pérola, que os eunucos se atreveram a tirar da prisão. Ali estava ela, com as faces pálidas, desolada, perdida a sua beleza, o corpo envolto em farrapos. Mas ainda rebelde. Seus olhos de ônix, engastados nas órbitas, ainda chamejavam. Exclamou para a Imperatriz:
- Eu não ficarei, Imperial Mãe! Reclamo o direito de ir com o meu senhor, para servi-lo.
A Imperatriz levantou-se, como uma fênix irada:
- Você! gritou, apunhalando o ar com os dedos mínimos. - Atreve-se a falar, você, responsável pela metade desta catástrofe! Poderia êle ter pensado em tanto mal se você não lho houvesse sussurrado aos ouvidos?
Voltou-se para Li Lien-ymg e, inflamada pela cólera, ordenou:
- Leve essa mulher e atire-a no poço da Porta Oriental!
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O Imperador caiu de joelhos, ao ouvir semelhante ordem, mas a Imperatriz não lhe permitiu que falasse. Aquela imperial mulher, que sabia ser toda suavidade e encanto, quando se encontrava na serena presença da beleza, nos momentos de perigo era impiedosa.
- Nem uma palavra! gritou sacudindo os dedos sobre a cabeça do Imperador. - Esta concubina saiu do ovo de uma coruja. Trouxe-a para cá, alimentei-a e, em troca, revoltou-se contra mim.
Olhou para Li Lien-ying e este imediatamente chamou um eunuco e os dois seguraram a moça e levaram-na, silenciosa e pálida como uma pedra.
- Entre em seu carro, disse a Imperatriz ao Imperador ajoelhado, e feche as cortinas, para que não o vejam. O Príncipe P'u Lun guiará o seu carro e eu irei na frente no meu. A mula é para Li Lien-ying. Deverá seguir-nos da melhor maneira que puder, embora seja o pior dos cavaleiros. E se alguém nos interromper, diga que somos gente pobre, fugindo para as montanhas. Ah, mas vá primeiro ao Palácio de Verão.
Assim disse e assim foi feito. Atrás de suas cortinas, a Imperatriz sentou-se na almofada do carro, direita como um Buda, a fisionomia imóvel, o ouvido alerta, o olhar resoluto. Somente quando, horas depois, os carros passaram pelo Palácio de Verão, deu novas ordens.
- Parem, disse quando surgiram as bem-amadas torres. - Ficaremos aqui um pouco.
Desceu do carro, embora não permitisse que ninguém mais descesse, e acompanhada apenas do eunuco, percorreu os corredores de mármore, os palácios vazios e a margem do lago. Ali estava o âmago de seu coração. Ali sonhara viver uma velhice tranqüila, entre um povo pacífico e próspero. Podia ser que nunca mais voltasse àquele lugar. E se os inimigos estrangeiros destruíssem o Palácio, como fizeram outrora? Ah, mas ela voltara, reconstruíra-o e nessa reconstrução fortalecera e glorificara o passado. Mas então era jovem e agora era velha. A idade, também, a havia derrotado.
Lançou um longo e derradeiro olhar, depois voltou-se - figura delgada e elegante, nos grosseiros trajes de algodão azul de uma aldeã chinesa - e entrou no carro.
- Para o oeste, ordenou, para o oeste, rumo à cidade de Sian.
A viagem continuou durante noventa dias e a Imperatriz conservava a fisionomia resoluta e calma, fosse qual fosse o estado de seu coração. Não esquecia, um momento sequer, que a Corte a olhava como ao sol, embora estivesse fugindo. Quando deixaram uma província e entraram na seguinte, não foi mais necessário manter o disfarce e a Imperatriz, após banhar-se, tornou a vestir seus trajes reais. Sentiu-se então reanimada, sua coragem voltou. Na província de Shansi o povo não tinha medo da guerra, mas estava atormentado por uma terrível fome. Não obstante, naquela mesma
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noite, seu general favorito, que viera ao norte com suas tropas, ofereceu à Imperatriz uma cesta de ovos frescos, um cinto ornado de jóias e uma bolsa de cetim para o seu cachimbo e fumo. Isto a alegrou, também, e era um bom indício do amor que os seus súditos ainda sentiam por ela. Na verdade, nos dias subseqüentes, apesar de famintos, os habitantes trouxeram-lhe cestas de trigo e milho miúdo e frangos esqueléticos. A Imperatriz sentiu-se confortada por esse amor e começou a apreciar a paisagem bela que a circundava.
Num desfiladeiro entre as montanhas, denominado Desfiladeiro dos Gansos Fugitivos, ordenou uma parada, a fim de que pudesse admirar o espetáculo. Ao longe as montanhas nuas erguiam-se contra um céu purpurino. Nos vales as sombras eram negras. Seu general favorito, agora viajando ao seu lado como guarda, afastou-se a alguma distância e descobriu um prado onde cresciam flores amarelas. Colheu um punhado e levou-as à Imperatriz, dizendo que os deuses as haviam posto ali para dar-lhe as boas-vindas. Ela se comoveu com o cumprimento e disse a um eunuco que desse ao general uma xícara de chá de leitelho, para restaurar-lhe as forças. Graças a esses pequenos episódios agradáveis, sentiu o coração um tanto aliviado do peso que o oprimia. Dormia bem à noite e comia com apetite a sua frugal refeição.
No oitavo dia do nono mês alcançou a capital da província e aí o Vice-rei Yü Hsien a esperava com toda a reverência. Esse Vice-rei era aquele que, crendo na magia dos Boxers, os apoiara e permitira que todos os estrangeiros de sua província - homens, mulheres e crianças - fossem assassinados. A Imperatriz aceitou suas reverências e presentes, quando a recebeu nas portas da cidade, e louvou-o dizendo que fizera bem em limpar a província dos inimigos e que sabia ser êle honesto e leal.
- Mas, acrescentou, estamos derrotados e pode ser que o inimigo estrangeiro, agora vitorioso, exija sua punição e se tal acontecer deverei aparentemente puni-lo, mas recompensá-lo-ei em segredo. Devemos ter confiança numa vitória futura, a despeito da derrota atual.
Diante disso, Yü Hsien curvou-se nove vezes, no pó, diante dela.
- Majestade, disse, estou pronto a aceitar a demissão e a punição, de vossas mãos.
Mas ela apontou-lhe o indicador:
- Errou, porém, ao afirmar-me que os Boxers não podiam ser mortos, porque dispunham de recursos mágicos. Morreram em grande quantidade. As balas estrangeiras atravessaram-lhes os corpos, como se fossem de cera.
- Majestade, redargüiu Yü Hsien com toda seriedade, sua magia falhou porque não observaram as regras de sua ordem. Mataram, para roubar, pessoas inocentes que não eram cristãs e assim foram destruídos pela sua própria cobiça. Só os puros podem usar a magia.
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Ela cabeceou, concordando, e dirigiu-se ao palácio vice-real, preparado à sua espera. Ao chegar, alegrou-se vendo baixelas de ouro e de prata, que haviam sido retiradas dos depósitos e polidas para o seu uso pessoal. Essas baixelas tinham sido feitas duzentos anos antes para uso do Imperial Ancestral Ch'ien Lung, quando passara por aquela cidade, rumo à Montanha de Cinco Picos, onde ia em peregrinação.
Nunca o outono fora mais esplêndido que agora. Dia após dia o sol brilhava sobre a terra e o povo. As colheitas eram de novo abundantes e as fazendas estavam cheias de alimentos e de combustível. A guerra estava longe e os cidadãos quase não haviam tomado conhecimento do ocorrido. Homenagearam-na em meio à paz e à abundância, declarando que ela era de fato seu Velho Buda e a ela renderam graças. O seu espírito reanimou-se e o coração fortaleceu-se-lhe pela coragem e pelo prazer, sobretudo porque muitos dos seus príncipes e ministros agora tinham vindo para junto dela e pouco a pouco a Corte se reconstituía.
Mas essa alegria toldou-se de súbito por uma carta, escrita por Jung Lu em forma de memorial, comunicando-lhe que a causa estava perdida e que seu bom auxiliar, Chung Chi, desesperado, enforcara-se. A Imperatriz respondeu imediatamente, concedendo primeiro honrarias ao morto, pela sua lealdade e coragem, e depois ordenando a Jung Lu que viesse dar-lhe pessoalmente informações completas. Quando êle chegou, por conseguinte, não estava preparada para receber notícias melhores. Sua esposa, que encetara viagem com êle, adoecera de súbito e morrera numa cidade estranha. Soubera desse fato antes, por mensageiros, e resolvera confortá-lo e animá-lo com a sua saúde restaurada.
Quando lhe anunciaram Jung Lu, no dia posterior à sua chegada à cidade de T'ai Yuan, respondeu que êle descansasse uma hora e depois fosse vê-la.
Recebeu-o num pequeno salão antigo. Estava sentada, com as mãos cruzadas, numa grande cadeira esculpida posta numa plataforma, imitando um trono. Não permitiu a presença de ninguém quando se encontrou com Jung Lu. Mandou suas damas tomar ar fresco e sol e a Li Lien-ying ordenou que esperasse na ante-sala.
A porta abriu-se e Jung Lu entrou, alto e esgotado pelo cansaço e pela fadiga mas, sempre cuidadoso, aproveitara a hora de descanso para banhar-se e mudar de roupa. Como de hábito fêz um simulacro de reverência e como de hábito ela estendeu a mão para impedi-lo. A Imperatriz ergueu-se e trocaram um longo olhar.
- Lamento que sua mulher o tenha deixado pelas Fontes Amarelas, disse em voz baixa.
Êle agradeceu curvando ligeiramente a cabeça.
- Majestade, era uma boa mulher e serviu-me fielmente.
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Esperaram, um pelo outro, mas que podia ser dito entre eles, agora?
- Elevarei outra ao lugar dela, disse afinal a Imperatriz.
- Como quiserdes, Majestade.
- Você está cansado. Não se porte cerimoniosamente. Sentemo-nos juntos. Preciso de sua sabedoria.
Desceu da plataforma, atravessou a sala com a velha graça controlada, delgada e esbelta figura real, e sentou-se numa das duas cadeiras de madeira postas ao lado de uma pequena mesa. A um gesto dela, Jung Lu também se sentou, esperando que falasse.
A Imperatriz abanava-se com um leque de seda no qual, durante um momento de ócio, pintara uma paisagem daquela província.
- Está tudo perdido? perguntou afinal, olhando-o de lado.
- Tudo perdido, retrucou êle com firmeza.
Pousara suas grandes e belas mãos sobre os joelhos e nelas a Imperatriz fixou os olhos. Eram mãos descarnadas, mas extremamente fortes - ela bem conhecia sua força.
- Qual o seu conselho? inquiriu.
- Majestade, há apenas um rumo a seguir. Deveis voltar à Capital e ceder às exigências do inimigo, salvando novamente o Trono. Incumbi Li Hung-chang de negociar a paz. Mas, antes de voltardes, deveis ordenar a decapitação do Príncipe Tuan, como penhor do vosso arrependimento.
- Nunca! exclamou ela, fechando o leque com um estalido seco de suas varetas de marfim.
- Então nunca podereis voltar. Tão grande é o ódio dos estrangeiros ao Príncipe Tuan, que consideram o principal instigador da perseguição que lhes foi movida, que preferirão destruir a cidade imperial a deixar-vos voltar a ela.
A Imperatriz sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. O leque caiu de sua mão. Pensou no seu tesouro escondido naquela cidade e, mais do que no tesouro, na herança de seus imperiais ancestrais, na glória e no poder. Se tudo aquilo se perdesse, que lhe restaria?
- Você é sempre demasiado abrupto, observou ela indicando-lhe o leque com o dedo mínimo. Jung Lu abaixou-se, apanhou-o e depositou-o na mesa. Ela percebeu que não lho entregara para que suas mãos não se tocassem.
- Majestade, disse em sua voz profunda e paciente, os estrangeiros vos perseguirão até aqui, se não demonstrardes vossa submissão.
- Posso seguir para o oeste, insistiu ela. - E onde eu ficar, aí será a minha Capital. Nossos Imperiais Ancestrais fizeram o mesmo antes de mim. Sigo apenas os passos deles.
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- Como quiserdes, tornou êle. - No entanto sabeis, e eu também sei, e o mundo inteiro saberá, que enquanto não voltardes à vossa antiga e imperial cidade, sois uma fugitiva.
Mas ela não queria ceder, não imediatamente, nem mesmo a êle. Erguendo-se, pediu-lhe que se retirasse e fosse descansar. Ordenou iguarias especiais para êle e assim se separaram. Não, instantaneamente ela não cederia. No dia seguinte ordenou que a Corte se preparasse para seguir rumo ao oeste, para a distante cidade de Sian, na província de Shensi. Lá seria a sua Capital, declarou ela, não porque estivesse fugindo, mas porque houvera fome na província em que se encontrava e não havia recursos para prover às necessidades da Corte. A fome passara, contudo todos aceitaram sua ordem e, tão logo prepararam os veículos, a Corte rumou para o oeste.
Por sua ordem, Jung Lu cavalgava ao lado do palanquim imperial, porém êle não falou mais no regresso a Pequim e ela não lhe pediu conselho. Ao invés disso, a Imperatriz falava da beleza da paisagem deserta, interessava-se pelas cenas que desfilavam ao seu lado, citava poemas, tudo para ocultar seu desespero secreto. Pois não tinha dúvida de que êle estava com a razão. De algum modo, algum dia, ela voltaria à cidade imperial, a qualquer custo. Escondia porém essa certeza interior e continuava alegre e firmemente para o oeste, aumentando, dia a dia, as milhas de distância que a separavam do Trono do Dragão. Quando chegaram à cidade de Sian, instalou-se com a Corte no palácio do Vice-rei, que fora todo lavado e mobiliado para recebê-la, as paredes pintadas de vermelho, os pátios exteriores cercados de paliçadas, e no salão principal fora construído um trono estofado de seda amarela. Seus aposentos particulares ficavam atrás da sala do trono e no lado oeste achavam-se os aposentos do Imperador e de sua Consorte. A este havia um quarto para Li Lien-ying, ao lado de sua imperial senhora, pronto para obedecer aos seus chamados.
A Imperatriz insistiu em que lhe dessem alimentos simples, para evitar grandes despesas. Embora lhe apresentassem uma lista de cem pratos diferentes, das mais deliciosas iguarias do sul, ela escolhia apenas seis para a sua refeição. Ordenou que reservassem apenas seis vacas para o leite que gostava de tomar quando acordava, pela manhã e à noite, antes de dormir. A despeito da longa viagem, a Imperatriz sentia-se bem. Sofria apenas de insônia e, quando se sentia inquieta, à noite, um eunuco fazia-lhe massagens até ela adormecer.
Agora que estava instalada em sua Capital do exílio, tornou a dar audiências e diariamente chegavam da distante cidade imperial mensageiros com notícias. Suportou tudo até o dia em que lhe disseram que o Palácio de Verão fora outra vez profanado. Soldados de várias nações ocidentais tinham-se divertido em seus sagrados
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palácios. Seu trono fora transportado para o lago e atirado ao fundo das águas. Roubaram suas vestes e pinturas pessoais, e nas paredes dos salões e dos quartos, até mesmo nas de sua alcova, tinham feito desenhos indecorosos e escrito palavras grosseiras. Ao receber essas informações adoeceu de raiva e vomitou o alimento. Cheia de fraqueza, nos dias subseqüentes, compreendeu que devia voltar à Capital e antes de fazê-lo tinha de ceder às exigências do inimigo, condenando à morte todos quantos haviam apoiado os Boxers. O General Li Hung-chang havia deixado bem claro esse ponto, nos memoriais diários que lhe mandava. Mas como poderia ceder a semelhante preço? E durante todos esses dias Jung Lu continuava ao seu lado, impassível, silencioso, pálido, esperando o inevitável desfecho.
- Não há outra saída, senão ceder? inquiriu-lhe um dia.
- Nenhuma, Majestade.
Não fêz outra pergunta. Calada, fitou-o e êle sorriu tristemente, sem responder. Uma tarde, quando se achava sozinha no seu pátio, ao crepúsculo, êle apareceu de súbito e disse:
- Vim procurá-la como seu parente. Por que não cede ao seu destino? Quer passar a vida inteira aqui, num exílio eterno?
A Imperatriz tinha sobre os joelhos um cãozinho, nascido no exílio, e pôs-se a brincar com as suas compridas orelhas, enquanto respondia lentamente, fazendo longas pausas.
- Não estou disposta a matar os que me foram leais. Não falarei dos pequenos... Mas considere, por favor, como posso matar meu bom ministro Chão Shu-ch'iao? Não penso que êle acreditava no poder mágico dos Boxers. Sua falta foi acreditar na força deles como soldados. No entanto esses estrangeiros insistem em que deva ser decapitado... Considere também que me disseram que devo ordenar a morte do Príncipe Chia. E como poderei mencionar os nomes de Ying Nien e de Yu Hsien? Resta ainda Ch'i Hsiu. E recuso-me a ordenar a execução do Príncipe Tuan... Não posso mencionar outros nomes. Todos me foram leais, muitos seguiram-me no exílio. Devo voltar-me contra eles e destruí-los?
Jung Lu era todo ternura e paciência. Seu rosto, magro de velhice e de sofrimento, era mais gentil que a face de qualquer homem.
- Sabe que não pode ser feliz aqui, disse.
- Renunciei à felicidade há muito tempo.
- Então pense no seu reino, argumentou êle com infinita paciência. - Como poderá o reino ser salvo e o povo unido, se permanece no exílio? Os rebeldes se apoderarão da cidade, se os estrangeiros não a mantiverem. O país será dividido como se divide o produto de um roubo. O povo viverá aterrorizado e em perigo e a amaldiçoará dez mil vezes porque, em consideração à vida de aiguns,
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não quis voltar ao Trono para retomar os fios partidos de sua existência e tecer de novo o conjunto.
Proferiu palavras graves e ela teve de aceitá-las. Como sempre, quando lhe recordavam a grandeza, ela se tornava grande. Enquanto o cãozinho se mexia sobre os seus joelhos, para sentir o contato de sua mão, ela meditava, acariciando-lhe a cabeça minúscula e as compridas orelhas. Afinal depositou-o no chão e levantou-se, fitando Jung Lu.
- Tenho pensado apenas em mim mesma, disse. - Agora pensarei apenas no meu povo. Voltarei ao Trono.
No vigésimo quarto dia do oitavo mês lunar, que é o décimo mês do ano solar, as estradas, após as chuvas do verão, estavam secas e a terra firme. A Imperatriz encetou a longa viagem de volta, com aparato imperial. Voltaria, disse, não humildemente, mas altivamente esquecida... Fêz uma pausa na porta da cidade, onde havia um templo, e ofereceu um sacrifício ao Deus da Guerra. Em seguida ordenou marcha regular, ao passo de vinte e cinco milhas por dia, pois tinha pena até dos carregadores dos palanquins, das mulas e dos cavalos mongóis que transportavam os presentes e tributos que recebera no exílio.
O tempo mantinha-se firme - belos dias outonais - sem chuva nem vento. Um fato triste marcava a volta - fora a notícia da morte de seu fiel General Li Hung-chang, de velhice e fraqueza. Aborrecera-se algumas vezes com esse General, pois somente êle entre todos os seus generais se atrevia a dizer-lhe a verdade. Quando era Vice-rei em Chihli, permanecera acima da corrupção e construíra um exército incorruptível. Já velho, mandara-o, contra a vontade dele, ao sul distante para controlar os rebeldes cantoneses e êle para lá fora, a fim de servi-la de novo com paciência e engenho. Quando o chamara ao norte uma vez mais, êle já estava bem velho e protelara a sua vinda até saber que ela estava disposta a renunciar à horda dos Boxers. Então viera à cidade imperial e, juntamente com o Príncipe Ch'ing, celebrara a paz com os inimigos estrangeiros, uma paz triste, mas que salvaria o país se ela cedesse. Agora que estava morto, a Imperatriz Mãe reconhecia o seu valor e anunciou que mandaria construir um altar dentro da própria cidade imperial, além dos outros altares erguidos nas províncias onde êle a servira. Era sempre inconstante e, quando estava aborrecida com Li Hung-chang, dizia-lhe que não entendia o seu dialeto, que êle não falava um chinês puro. Mas o terror e as perdas haviam-na agora purificado de todos os caprichos.
Não tardou a verificar que Jung Lu tinha razão. A volta à Capital foi uma volta real. Por toda a parte o povo recebia a Imperatriz com louvores e festas, crendo, agora que o exílio terminara, que o país estava salvo e tudo correria como dantes. Em K'ai-feng, Capital da província de Honan, esperavam-na esplêndidas representações
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teatrais. Ordenou à Corte que descansasse, a fim de poder apreciar o seu passatempo favorito, que negara a si mesma enquanto o país estava em guerra. Desta vez, publicamente, embora com gentileza, reprovou o Vice-rei por lhe haver antes aconselhado que não voltasse à Capital e que permanecesse no exílio. Quando o Vice-rei, chamado Wen Ti, se prontificou a engolir ouro como expiação, ela foi misericordiosa e recusou o seu pedido. O povo louvou-a também por esse gesto.
Ao chegar ao Rio Amarelo, tornou a parar. O céu outonal estava azul-violeta, sem nuvens e claro, o ar seco era quente durante o dia e frio à noite.
- Oferecerei sacrifícios ao Deus Rio, declarou ela, e darei graças.
E fê-lo com muita pompa e magnificência. O brilhante sol do meio-dia reluzia sobre as cores esplêndidas do seu manto e nas vestes dos cortesãos. E enquanto orava, a Imperatriz alegrou-se ao ver, entre a multidão que se aglomerava às margens do rio, algumas pessoas de pele branca, não sabia de que nação, mas agora que decidira mostrar-se misericordiosa e cortês para com seus inimigos mandou dois eunucos levarem vinho, frutas secas e melões aos brancos, ordenando também aos seus ministros e príncipes que dessem permissão aos brancos para assistirem à sua entrada na capital. Depois disto, entrou num grande barco que seus leais magistrados haviam construído para que ela e a Corte atravessassem o rio. Esse barco tinha a forma de um dragão, com escamas de ouro, olhos de rubis vermelhos e brilhantes.
Mas a prova de sua disposição de mostrar-se cortês para com os que haviam sido seus inimigos ocorreu quando, em certo lugar, desceu de seu palanquim e entrou no vagão de um trem de ferro. Esse trem corria sobre trilhos de ferro, e a ferrovia era um brinquedo do Imperador, cujo uso ela nunca permitira. Agora, porém, usava-o para mostrar aos estrangeiros o quanto mudara, como se renovara, quão moderna se tornara, quão capaz de compreender seus costumes. Mas - declarou - não atravessaria os muros sagrados da cidade nas entranhas daquele monstro de ferro. Em sinal de respeito aos Imperiais Ancestrais, ordenou que o trem parasse fora da cidade, a fim de que pudesse ser transportada através do portão imperial em seu palanquim real. Para isso foi construída uma estação provisória, do lado de fora da cidade, e grandes pavilhões foram erguidos junto da estação, para descanso da Imperatriz e da Corte. Ali deveria ser recebida pelos funcionários e pelos estrangeiros. Os pavilhões estavam providos de finos tapetes, delicados vasos de porcelana, árvores em potes, crisântemos e orquídeas. No pavilhão central foram instalados tronos, um para a Imperatriz, de laque dourado, e outro menor para o Imperador, de madeira pintada de vermelho e ouro.
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Trinta vagões de ferro eram necessários para transportar a Corte e seus pertences. O longo comboio passava por entre as colinas e parava na estação. A Imperatriz olhava pela sua janela e sentiu-se confortada ao ver a grande multidão de súditos que a esperava, estando na frente os príncipes, generais e funcionários da cidade, em trajes oficiais. Viu também os diplomatas estrangeiros, em seus estranhos casacos e calças escuras. Examinou-lhes as fisionomias severas, cuja palidez e largueza de feições lhe repugnava, mas obrigou-se a dirigir-lhes um sorriso cortês.
Tudo foi feito com honra e ordem. Quando os príncipes, generais e outros manchus e chineses viram o rosto da Imperatriz na janela, caíram de joelhos. O Funcionário-Chefe do palácio imperial gritou aos estrangeiros que tirassem os chapéus, embora já o tivessem feito. O primeiro a descer do trem, com muito orgulho e solenidade, foi o Eunuco-Chefe Li Lien-ying. Não deu atenção a ninguém, ocupando-se imediatamente em examinar o número de caixas de tributo e de tesouro que os carregadores retiravam dos vagões de carga. Em seguida o Imperador saltou, mas a Imperatriz fêz-lhe um sinal e êle correu para o palanquim que o esperava, sem receber nenhuma saudação. Somente de'pois de tudo pronto, foi que ela desceu do trem. Suportada por seus príncipes, desceu os degraus e se deteve, iluminada pelo sol brilhante, para ver a cena e ser vista, enquanto os seus súditos se curvaram, tocando o chão com a testa.
Os estrangeiros permaneciam à sua esquerda, agrupados, cabeças descobertas, mas nenhum se curvou. Ela espantou-se com o seu número.
- Quantos estrangeiros estão aqui? perguntou em voz clara e nítida que chegou aos ouvidos dos próprios diplomatas. Quando eles pareceram compreender o que ela dissera, sorriu-lhes graciosamente e se pôs a conversar animadamente com diversos administradores de sua imperial casa. Todos a louvaram, dizendo que parecia estar bem de saúde e jovem para a sua idade. De fato, sua pele continuava imaculada, mesmo debaixo daquele sol implacável, e seus cabelos ainda eram abundantes e negros. Quando Li Lienying terminou sua tarefa, levou-lhe a lista dos tesouros, cada caixa examinada e reexaminada. A Imperatriz tomou o pergaminho, percorreu-o detidamente e devolveu-lho com um sinal de aprovação.
O Vice-rei Yuan Shih-k'ai pediu então permissão para apresentar-lhe o chefe e o maquinista do trem, ambos estrangeiros, e ela com perfeita graça concordou em recebê-los. Quando os dois brancos se postaram diante dela, agradeceu-lhes a gentileza com que obedeceram à sua ordem, de que o trem não corresse a mais de quinze milhas por hora, de modo que ela pudesse chegar em segurança. Em seguida entrou no seu palanquim de ouro e os carregadores levaram-na para dentro da cidade. Decretara que sua entrada se verificaria pela Porta Sul da cidade chinesa e daí se dirigiu
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à grande porta de entrada da cidade imperial interna. Tornou a parar para reverenciar o Deus da Guerra, diante do qual se ajoelhou para queimar incenso e dar-lhe graças, enquanto os sacerdotes cantavam seus rituais. Ergueu-se depois e, olhando por acaso para o alto dos muros, viu centenas de estrangeiros, homens e mulheres, que tinham vindo vê-la. Irritou-se a princípio e esteve prestes a gritar aos seus eunucos que os afastassem. Mas então recordou-se. Era de fato a governante, mas por misericórdia daquele mesmo inimigo. Dominou a cólera e, violentando-se, embora exteriormente fosse toda cortesia e graça, acenou para os estrangeiros, à direita e à esquerda, e sorriu-lhes. Feito isto, tornou a entrar no seu palanquim e foi conduzida uma vez mais ao seu palácio.
Quão belo lhe parecia agora aquele palácio ancestral, deixado incólume pelo inimigo, salvo pela sua rendição! Percorreu aposento por aposento, até o grande Salão do Trono, construído por Chien Lung.
"Instalar-me-ei neste Salão e daqui governarei..." pensou ela.
Atrás do Salão do Trono achavam-se os seus pátios, todos como os deixara, os jardins indenes, os lagos calmos e limpos. Além deles ficava o seu pequeno salão particular do trono e, mais além, seu quarto de dormir. Tudo estava como o havia deixado, ilesas as portas esplêndidas, sua pintura vermelha sem manchas, os tetos de ouro intactos. E intacto também o seu Buda de Ouro, no altar.
"Aqui, como o meu Sagrado Ancestral, viverei e morrerei em paz", pensou ela...
Mas era cedo para pensar em morte tranqüila. Seu primeiro cuidado, depois de descansar e tomar sua refeição, foi verificar se seu tesouro também estava intacto. Dirigiu-se ao esconderijo, acompanhada pelo seu eunuco, e examinou cuidadosamente a parede.
- Nenhum tijolo foi removido, disse muito contente. Em seguida riu, um riso alegre e malicioso, como havia muito não ria. - Aposto que esses demônios estrangeiros passaram diversas vezes por aqui, mas não tiveram argúcia nem sabedoria para descobrir o que está escondido atrás desta parede.
Ordenou então que Li Lien-ying mandasse demolir a parede e verificasse se todos os pacotes e caixas estavam em ordem.
- Examine cuidadosamente, recomendou. - Não perderei para eunucos ladrões o que não perdi para os demônios estrangeiros.
- Não confia em mim, Majestade? perguntou o eunuco, revirando os olhos e fingindo estar magoado.
- Bem, bem, tornou ela rumando para o seu quarto. Ah, a paz, a alegria do regresso! O preço tinha sido alto e ainda não fora todo pago, tampouco poderia sê-lo pois o débito não tinha fim e enquanto vivesse deveria mostrar-se gentil para com os inimigos e fingir que os amava. Entregou-se a essa tarefa naquele mesmo dia, antes do pôr do sol, anunciando que convidaria as esposas dos diplomatas
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estrangeiros a visitá-la de novo. E ela própria escreveu os convites, dizendo que, cheia de gratas recordações, queria reatar a amizade. Então, a fim de libertar-se de qualquer mácula, ordenou homenagens à Concubina Pérola, expedindo um edito no qual dizia que essa dama tardara demais a juntar-se ao Imperador no exílio e porque não quisera testemunhar a profanação dos altares imperiais e dos palácios, pelos inimigos estrangeiros, se atirara a um poço profundo.
A noite caiu e a Imperatriz perguntou a Li Lien-ying se Jung Lu ainda não tinha chegado. Caso tivesse, que comparecesse à sua presença.
- Irei, Majestade, tornou o eunuco. Voltou logo depois para dizer que Jung Lu havia chegado à cidade imperial pouco antes e que estava se aproximando do palácio.
Ela ficou à espera no seu salão particular do trono. As cortinas não tardaram a ser abertas por Li Lien-ying e Jung Lu entrou. Apoiava-se pesadamente sobre dois jovens eunucos e entre eles parecia tão velho, tão vacilante, que a alegria do regresso fugiu do coração da Imperatriz.
- Entre, parente, disse ela. E dirigindo-se aos eunucos acrescentou: - Tragam-no a este sofá. Não deve curvar-se nem fatigar-se. E você, Li Lien-ying, traga uma tijela de caldo quente e um jarro de vinho quente e um pouco de pão. Meu parente cansou-se demais ao meu serviço.
Os eunucos correram a obedecer. A Imperatriz levantou-se, foi para o lado de Jung Lu e, verificando que não havia ninguém perto, acariciou-lhe o rosto e as mãos. Como estavam magras aquelas mãos, descarnadas aquelas faces, a pele tão quente!
- Rogo-lhe que se afaste de mim, sussurrou êle. - As cortinas têm olhos, as paredes têm ouvidos.
- Nunca poderei confortá-lo? indagou ela.
Mas êle estava tão inquieto, tão receoso de que a honra dela pudesse ser atingida, que voltou ao seu trono e sentou-se. Então êle tirou do bolso um pergaminho e começou a lê-lo vagarosamente, com dificuldade, pois seus olhos pareciam obscurecidos. Fêz um relato de tudo quanto ocorrera depois que ela saltara do trem. Supervisionara primeiro a descida das damas da corte. Na frente saltaram a Consorte e a Princesa Imperial, que êle escoltara até os seus palanquins de cortinas amarelas. Depois as quatro concubinas imperiais, que se instalaram em suas quatro cadeirinhas, de cortinas verdes e apenas bordadas de cetim amarelo. Foram levadas pelos carregadores à cidade imperial. Depois desceram as damas da corte e êle as conduzira aos carros oficiais, duas damas em cada carro.
- Como de costume, disse êle erguendo o olhar do pergaminho, as damas mais velhas tinham muito de que se queixar e falar, cada
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qual contando à outra a terrível viagem de trem, falando da fumaça, dos vômitos que tiveram. Mas a conversa terminou afinal e eu próprio supervisionei a remoção das caixas de tributo, cada uma marcada com o nome da província e da cidade que a enviou - tarefa difícil, Majestade, pois deveis estar lembrada de que, antes de tomarmos o trem, a bagagem ocupava três mil carros. Mas isto não é tudo. Receio a cólera do povo, quando souber quanto custou essa longa viagem de volta. A Rodovia Imperial, Majestade, e as esplêndidas casas de descanso, a cada dez milhas, se transformarão em pesados impostos...
A Imperatriz interrompeu-o ternamente.
- Você está muito cansado. Descanse agora. Estamos em casa de novo.
- Ai de mim, restam mil fardos a serem carregados, murmurou êle.
- Mas não por você. Outros se encarregarão disso. Examinou-lhe o belo rosto envelhecido, com meticuloso amor, e êle se submeteu ao exame. Eram mais íntimos agora, do que se fossem casados. Recusando-se a comunhão da carne, seus espíritos se haviam entrelaçado, seus corações se haviam unificado e conheciam-se completamente um ao outro. Ela estendeu a mão e acariciou suavemente a dele, sentindo-a fria. Assim passaram um rápido momento. Então, mudos, trocaram um longo olhar e êle partiu.
Como poderia ela adivinhar que era a última vez que lhe tocava o rosto vivo? Jung Lu adoeceu naquela mesma noite, de sua velha enfermidade. Caiu de cama, inconsciente, durante vários dias. A Imperatriz mandou os médicos da Corte examiná-lo e como nenhum o pudesse curar, enviou-lhe outro médico, em parte adivinho, que seu irmão Kuei Hsiang dizia praticar curas prodigiosas. Mas o destino se opôs e a vida de Jung Lu chegou ao fim. Morreu, calado e inconsciente, antes do amanhecer, no terceiro mês lunar, quarto mês solar do ano novo seguinte. A Imperatriz decretou luto completo para a corte e ela própria passou um ano sem usar cores vivas nem jóias.
Ninguém podia iluminar as trevas interiores de seu coração. Se houvesse sido apenas mulher, poderia agora postar-se ao lado do caixão e ela própria estender a colcha de cetim púrpura sobre os seus ombros. Poderia sentar-se ao lado de seu corpo, durante a noite, vestida de branco para indicar a perda que sofrera. Poderia chorar e gemer para tranqüilizar o coração. Mas era a mulher imperial e não podia sair do palácio, nem chorar alto nem mostrar-se comovida além do que permitia a mágoa real pela morte de um dedicado servo do Trono. Seu único conforto consistia em permanecer sozinha e ansiava pelas horas que podia roubar às suas tarefas diárias de um novo governo de uma nação perturbada.
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Certa noite, depois de pedir às suas mulheres que cerrassem as cortinas, a fim de que pudesse chorar sem ser vista, deitou-se sem sono, lágrimas silenciosas jorrando-lhe do coração, até que o vigia deu o toque da meia-noite. Ela continuava insone e estava tão desesperada com o pesado sofrimento que a esmagava, que teve um sonho, uma alucinação, e sentiu que a alma lhe saía do corpo. Viu Jung Lu, em alguma parte, novamente jovem, só que falava com sabedoria de velho. Sonhou que êle a tomava nos braços e a apertava durante tanto tempo que a mágoa desapareceu e ela se sentiu de novo leve e livre. E então pareceu-lhe ouvi-lo falar.
- Estarei sempre com você. Era a voz dele. Quando você se mostrar mais gentil e mais prudente, estarei com você, meu espírito no seu, meu ser no seu ser.
Memória... memória! Não seria, porém, mais do que memória? O calor da certeza penetrou-lhe a alma e o corpo. Quando acordou, o cansaço havia desaparecido de suas pernas e de sua carne. Ela, que fora amada, nunca poderia estar só. Este o significado do sonho.
Tamanha foi a transformação que se verificou na vida da Imperatriz, depois desse dia, que ninguém pôde compreendê-la. Somente ela sabia e conservava o segredo. Possuída de antiga sabedoria, transformara a derrota em vitória. Não combatia mais, porém cedia, com graça e espírito vivo. Assim, para espanto de todos, chegou a encorajar os jovens chineses a viajarem para o exterior e a aprenderem a ciência e o engenho dos Ocidentais.
"Os jovens entre quinze e vinte e cinco anos", decretou ela, "os que têm boa inteligência e boa saúde, podem atravessar os Quatro Mares, se assim o desejam. Custearemos as despesas".
Chamou o Ministro Yuan Shih-k'ai e o rebelde erudito chinês Chang Chih-tung, e após ouvi-los durante vários dias, decretou que os velhos exames imperiais pertenciam ao passado. A seguir expediu um edito dizendo que, dois mil e quinhentos anos antes, no tempo do bom e esclarecido Regente Duque Chou, as universidades sem dúvida não diferiam dos atuais estabelecimentos escolares do Ocidente. E por meio dos livros de História provou que o ensaio clássico de oito pés não provinha da antigüidade, mas era um artifício dos eruditos Ming, de apenas cerca de quinhentos anos antes, de modo que a juventude moderna devia ir não apenas ao Japão, mas também à Europa e à América, porquanto debaixo do Céu e ao redor dos Quatro Mares todos os povos constituíam uma só família.
Isto fêz ela um ano após a morte do corpo de Jung Lu.
Antes que outro ano passasse, expediu um decreto contra o uso do ópio, não de súbito, pois pensava com ternura nos velhos e velhas que tomavam uma ou duas cachimbadas à noite, para poderem dormir. Não, dizia ela, no período de dez anos, ano a ano, a importação e a manufatura do ópio deviam ser interrompidas.
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E naquele mesmo ano, durante o qual meditara muito, verificou que os estrangeiros, aos quais não queria chamar inimigos mas que também não podia chamar amigos, pois lhe eram estranhos, nunca abririam mão dos direitos especiais e dos privilégios que asseguravam a todos os brancos, bons ou maus, a mesma proteção, a menos que ela decretasse a abolição das torturas por qualquer crime cometido, e decretasse que a lei e não a força julgaria o crime. Esquartejamento e corte em fatias deixavam de vigorar, ordenou ela. As queimaduras e o chicoteamento bem como a punição de parentes inocentes ficavam abolidos. Certa vez, havia muito tempo, Jung Lu aconselhara-a a que o fizesse, porém ela não quisera ouvi-lo. Agora, lembrava-se.
E quem, perguntou a si mesma, tomaria o seu lugar quando morresse? Nunca deixaria o reino ao jovem e fraco Imperador, seu prisioneiro perpétuo. Não, mãos jovens e fortes deviam empunhar as rédeas do governo, mas onde estava o menino? E quem, na verdade, era suficientemente forte para enfrentar os séculos vindouros? Sentia a magia do futuro. A Humanidade, disse ela aos príncipes, atingiria a estatura dos deuses. Tornou-se curiosa a respeito das coisas do Ocidente, de onde jorrava o poder moderno, e dizia freqüentemente que, se fosse mais jovem, ela própria viajaria para ver o que se passava além mar.
- Ah, disse com queixosa graça, estou muito velha. Meu fim aproxima-se.
Quando falava assim, suas damas protestavam muito, afirmando que ela era a mais bela que qualquer mulher, sua pele ainda fresca e lisa, seus olhos negros e brilhantes, seus lábios sem rugas. Tudo isto era verdade, concordava ela com uma modéstia iluminada pelo fantasma de sua velha jovialidade, contudo nem mesmo ela poderia viver para sempre.
- Dez mil vezes Mil Anos, Velho Buda, redargüiam as damas. - Dez Milhões de Anos!
Mas ela não se deixava enganar e seu decreto seguinte determinava que seus melhores ministros, em comissão chefiada pelo Duque Tsai Tse, percorressem os países do Ocidente. E essas eram as suas instruções:
"Ide a todos os países e verificai quais são os mais afortunados, os mais prósperos, os mais felizes, em paz e contentes com os seus governantes. Escolhei os quatro melhores e ficai um ano em cada. Estudai a maneira pela qual seus governantes governam e que significam constituição e governo do povo, trazendo-nos completas informações sobre esses assuntos".
Tinha inimigos, entre seus próprios súditos. Diziam eles que a Imperatriz se curvava perante os conquistadores, que perdera seu orgulho, que a nação estava humilhada pela sua humildade.
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- Nós, chineses, escrevia um certo erudito, somos desprezados como rústicos quando nos mostramos servis aos estrangeiros, mas que diremos quando nossa própria Imperatriz se compromete pela sua excessiva amizade às esposas dos ministros estrangeiros? Seus sorrisos, seus acenos de lenço quando vê uma mulher estrangeira, na rua, a caminho do Altar do Céu? Soubemos que até mesmo alimentos estrangeiros já são usados nos palácios e os salões de jantar estão providos de cadeiras e mesas estrangeiras. E isto ocorre enquanto as Legações rugem contra nós no Ministério das Relações Exteriores!
E outro escrevia: "Na idade dela, a Imperatriz não pode mudar seus hábitos nem seus ódios. Sem dúvida os próprios estrangeiros estão se perguntando que planos secretos arquiteta contra eles".
A Imperatriz limitava-se a sorrir.
- Sei o que faço, dizia. - Sei bem o que faço e nada agora me é estranho. Ouvi essas coisas outrora, mas somente hoje as compreendo. Falaram-me... mas somente agora creio.
Os que a ouviam não a compreendiam, porém ela sabia disso e não mudava.
Terminados os dias de luto por Jung Lu, a Imperatriz expediu editos convidando todos os enviados estrangeiros, suas esposas e filhos para uma grande festa no primeiro dia do ano novo. Reunir se-iam todos os homens no grande salão de banquete, as damas num outro salão, e as concubinas imperiais receberiam as crianças em seus apartamentos, com as servas e os eunucos necessários para atendê-las.
Nunca antes a Imperatriz preparara uma festa tão grande. O Imperador faria companhia aos diplomatas e ela apareceria depois da festa. Os pratos seriam tanto orientais como ocidentais. Foram contratados trezentos cozinheiros, os músicos da Corte foram instruídos e os Atores Imperiais prepararam um programa de quatro peças, cada uma com três horas de duração.
A Imperatriz em pessoa planejara um detalhe sensacional. Pedira à filha de seu ministro plenipotenciário na Europa, bela jovem cuja permanência na Corte era compulsória por dois anos, que lhe ensinasse a saudar em inglês os diplomatas. A França, declarou a Imperatriz após estudar os mapas, era muito pequena para que aprendesse a sua língua. A América era muito nova. Mas a Inglaterra também era governada por uma grande mulher, pela qual sempre sentira grande amizade. Escolhia, por conseguinte, a linguagem da Rainha Inglesa. Na verdade ordenara que um retrato da Rainha Vitória fosse posto em seu quarto e estudou-o com atenção, declarando depois que em seu rosto discernira as mesmas linhas de longevidade que caracterizavam o seu.
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Quão espantados, por conseguinte, ficaram os diplomatas estrangeiros quando a Imperatriz os saudou em inglês! Fora levada ao grande salão em sua cadeirinha imperial, transportada por doze carregadores em uniforme amarelo, e o Imperador adiantou-se para ajudá-la. Ela desceu, apoiando em seu braço a mão coberta de jóias, e, reluzindo dos pés à cabeça, em traje de ouro bordado com dragões azuis, trazendo ao colo seu grande colar de pérolas, o diadema enfeitado de flores de rubis e de jade, inclinou a cabeça para a direita e para a esquerda, enquanto caminhava para o Trono com a sua velha graça juvenil. Que estava ela dizendo? Um diplomata após outro, curvando-se diante dela, mas nunca até o chão, ouviram palavras que a princípio não reconheceram, mas que, repetidas, tornaram-se claras.
- Hao ti diu... dizia ela. - Ha-p'i niu yerh! Te'rin-ko t'i! Compreenderam, um após outro, que a Imperatriz perguntava
como passavam, desejava-lhes um feliz ano novo e convidava-os a tomar chá. Esses diplomatas estrangeiros, homens altos e duros, em trajes rígidos, ficaram tão sensibilizados que prorromperam em palmas, o que a princípio surpreendeu e até mesmo confundiu a Imperatriz, que nunca tinha visto em sua vida homens batendo palmas. Mas, examinando os angulares rostos estrangeiros, viu apenas aprovação ao seu esforço e riu gentilmente, muito satisfeita. Quando se sentou no trono, observou aos seus ministros e príncipes, em sua língua:
- Viram como é fácil fazer amizade até mesmo com os bárbaros. Basta apenas um pequeno esforço, da parte das pessoas civilizadas.
A festa terminou nesse estado de espírito. Depois de distribuídos presentes às damas estrangeiras e às crianças, além de dinheiro envolto em papel vermelho aos seus criados, a Imperatriz retirou-se para os seus aposentos. Como agora era hábito, passou em revista os seus dias e anos, pensando na sua longa vida e planejando o futuro de seu povo. Fizera tudo bem naquele dia, refletiu. Lançara as bases do acordo e da amizade com as potências estrangeiras, que podiam ser amigas ou inimigas. E pensou em Vitória, a Rainha Ocidental, e desejou que as duas pudessem encontrar-se e conversar sobre a maneira de unificar seus povos.
Todos debaixo do Céu são uma só família, diria ela a Vitória...
Mas antes que esses sonhos tomassem forma, recebeu, através dos mares, a notícia de que Vitória tinha morrido. A Imperatriz ficou aterrada.
- Como morreu minha irmã? exclamou.
Ao saber que Vitória, embora amada pelo seu povo, morrera de velhice, como qualquer mortal comum, a verdade golpeou-a como uma espada que atravessasse o seu imperial coração.
- Todos temos de morrer, murmurou a Imperatriz, fitando os rostos que a cercavam.
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Mas todos viram que, até então, ela não havia sentido a proximidade da morte. A Imperatriz murmurou para si mesma que precisava descobrir um herdeiro, um herdeiro autêntico, pois se Vitória morrera todos podiam morrer, embora ela se sentisse forte, capaz de viver mais um punhado de anos, o tempo suficiente para ver um menino tornar-se jovem, ou, se o Céu tivesse boa vontade, poderia vê-lo homem, antes de entrar em seu caixão imperial. Era de fato seu dever, uma vez mais, descobrir um herdeiro, um menino, em nome do qual governaria enquanto êle seria instruído para as altas funções de Imperador. Mas desta vez permitiria que ensinassem ao Herdeiro o que era o mundo. Convidaria mestres do Ocidente, para educá-lo. Sim, permitiria que êle tivesse trens de ferro, navios de guerra, fuzis e canhões. Aprenderia a fazer a guerra ocidental e, no seu reinado, quando ela tivesse morrido, como Vitória morrera, êle faria o que ela não pudera fazer. Expulsaria o inimigo para o mar.
Que menino, que menino? A pergunta era um tormento até que, de súbito, uma hora depois, lembrou-se de que nascera um menino no palácio de Jung Lu. A filha de Jung Lu, casada com o Príncipe Ch'un, dera à luz um menino, poucos dias antes, Esse menino era neto de Jung Lu. Curvou a cabeça para esconder do Céu o sorriso que lhe aflorara aos lábios. Seu ato elevaria o bem-amado até o Trono do Dragão! Era a vontade dela e o Céu a aprovaria.
Contudo não anunciaria a sua escolha demasiado cedo. Aplacaria primeiro os deuses e preservaria a vida do menino, mantendo seu plano em segredo até que o Imperador estivesse em seu leito de morte... o que não tardaria, sem dúvida, pois dores e enfermidades lhe consumiam a carne. Êle não tivera forças para oferecer pessoalmente os sacrifícios do outono, e como se queixara de que seria obrigado a ajoelhar-se muitas vezes e não se sentia capaz de fazer tantas genuflexões, tinha-as feito ela em seu lugar. Dizia uma antiga lei que o Herdeiro não devia ser proclamado enquanto o rosto do Imperador não se voltasse para as Fontes Amarelas e a morte estivesse próxima. Ou, se demorasse muito, seu eunuco poderia, muito delicadamente, envenen...
Ouviu um sopro de vento e levantou a cabeça.
- Ah! exclamou para as damas que se achavam à costumeira distância do trono. - O vento traz chuva?
Pois nos últimos dois meses o país estava assolado por um frio seco que atingia as próprias raízes das árvores e o trigo do inverno. Não nevava e nos últimos dezessete dias um calor fora de época invadira a cidade, vindo do sul. Até as peônias, confusas, haviam lançado brotos. O povo afluíra aos templos para recriminar os deuses, e sete dias antes ela ordenara aos sacerdotes budistas que levassem diariamente os deuses em procissão, obrigando-os a ver com os próprios olhos a devastação da terra.
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- Que vento é esse e de que ponto da terra sopra? indagou ela agora.
Suas damas interrogaram os eunucos que correram aos pátios e levantaram as mãos e viraram os rostos para este e aquele lado, voltando depois para gritar que o vento vinha dos mares orientais e estava cheio de umidade. Enquanto falavam, ouviu-se o estalo de um trovão, fora de época e inesperado, porém bastante claro. Um rugido ergueu-se das ruas, o povo saindo de suas casas para olhar o céu.
O vento soprou mais forte. Uivou através dos palácios e grandes rajadas sacudiram as portas e janelas. Mas esse vento era limpo, um vento limpo do mar, puro e sem poeira. A Imperatriz levantou-se do trono, dirigiu-se para o pátio e também ergueu a cabeça para o céu, cheirando o vento. No mesmo instante o céu abriu-se e a chuva caiu, uma chuva fria e forte, estranha no inverno mas bem-vinda!
- Um bom presságio, murmurou ela.
Suas damas correram a escoltá-la, porém a Imperatriz as afastou por um momento, enquanto a chuva caía sobre o seu corpo. E enquanto ali estava um grande grito se ouviu muito além dos muros, o grito de uma grande multidão:
- Velho Buda... Velho Buda... mandou a chuva! Velho Buda... era ela, seu povo a chamava deusa.
Voltou-se, galgou os poucos degraus que conduziam ao seu salão particular do trono e parou no umbral, as roupas de cetim gotejando. Enquanto as damas a enxugavam com os seus lenços, ela ria de suas suaves reprovações.
- Nunca fui tão feliz, desde os meus tempos de menina, disse-lhes. - Lembro-me agora de que, quando menina, eu gostava de correr na chuva...
- Velho Buda, murmuraram ternamente as damas.
A Imperatriz voltou-se para censurá-las com toda a sua graça e gentileza.
- Foi o Céu que mandou a chuva, disse ela. - Como posso eu, uma mortal, dar ordens às nuvens?
Mas as damas insistiram e ela viu que desejavam ansiosamente louvá-la.
- Foi por vossa causa, Velho Buda, que a chuva caiu, a chuva afortunada, abençoando-nos a todos, por vossa causa.
- Bem, bem, disse ela e riu para agradá-las. - Talvez... talvez..

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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