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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ALFAGEME DE SANTARÉM / Almeida Garret
O ALFAGEME DE SANTARÉM / Almeida Garret

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Almeida Garrett

 

 

 

 

Quis-se pintar este quadro a face da sociedade em um dos grandes cataclismos por que ela tem passado em Portugal. O pintor isolou-se de todo o sentimento e simpatia – paixões políticas, não as tem – para ver e representar, como eles foram, são e hão de sempre ser os dois grandes elementos sociais, o popular e o aristocrático.
Tomou para primeira luz do quadro as principais figuras da interessante anedota da espada de Nuno Álvares Pereira e da profecia do alfageme de Santarém, tão sinceramente contada naquele ingênuo estilo patriarcal da primeira Crônica do Condestabre, donde passou depois para os historiadores e poetas que a repetiram.
O fundo e acessórios do quadro têm o mesmo caráter de desenho e de cores.
Em Fernão Vaz, o alfageme, e na sua gente, Gil Serrão, Brás Fogaça, etc., estão os populares com todos os sabidos defeitos e com todas as inquestionáveis virtudes da classe. Nuno Álvares Pereira é o belo ideal da nobreza. Mendo Pais o tipo de seu abastardamento. No último está a prosa torpe das revoluções, tios outros a poesia delas.
Froilão Dias é o homem sincero do passado, e o ministro da paz e da verdade, porque é verdadeiro ministro de Deus. Risonha com os pequenos, austera com os grandes, a sua voz clama sempre fio deserto; – que não há deserto mais surdo, nem mais cego também, do que a tumultuária praça da revolta.
O amor é essencial parte do drama, porque o drama é a vida, e o amor a essencial parte da vida. Em Alda está o amor puro, e estreme  de vaidade, muito menos raro na mulher que no homem, mas sempre raro. Em D. Guiomar o comum dos amores vulgares, cuja base de composição é a vaidade, e que segundo o temperamento ou o acaso deixam de preponderar mais ou menos o instinto sensual, assim se chamam depois criminosos ou virtuosos na estúpida e falsa linguagem do mundo convencional.
Delineou-se este drama em meados de 1839, e efetivamente se compôs agora.
Benfica, 1º de outubro de 1841.

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PESSOAS: O ALFAGEME (FERNÃO VAZ)
NUNO ÁLVARES
PEREIRA
FROILÃO DIAS
ALDA
MENDO PAIS
D. GUIOMAR
O ALCAIDE
JOANA SERAFINA
CORO DAS DONZELAS DO ALFAGEME
GIL SERRÃO
BRÁS FOGAÇA
CORO DOS SERRALHEIROS DO ALFAGEME
POVO Damas e cavalheiros de Santarém, cavaleiros, pajens e homens de armas de Nuno Álvares; aguazis do Alcaide.
Lugar da cena: A Ribeira de Santarém – 1383-1385.
CENÁRIO É no subúrbio de Santarém, dito A Ribeira. À esquerda uma casa antiga, apalaçada, com vestígios de grandeza senhorial, mas muito arruinada, com escada exterior de pedra, descoberta e praticável, e colocada de modo que os atores, quando descem, ficam com a face para o espectador. No alto da escada, patim com parapeito e coberto com uma parreira. – À direita uma casa abarracada mas vasta e bem reparada, em que estão os armazéns e serralharias do Alfageme, cujas forjas acesas e trabalhando são visíveis para o espectador; a parte mais posterior da casa é mais antiga e acanhada, com só duas janelinhas agudas e porta no meio. No fundo Marvila ou parte alta de Santarém. – Em baixo corre o Tejo. – Da esquerda vem a estrada de Lisboa, pela direita se sobe Para Santarém. – No meio da cena, entro as duas casas, alguma árvore. – É de inverno. – A mesma vista em todos os atos.
 
 
ATO I
CENA I Alda e Guiomar no patim, encostadas ao parapeito; o Alfageme às portadas de sua casa. Coro de serralheiros e donzelas do Alfageme dentro.
 
(Ao levantar do pano, continua a introdução na orquestra acompanhando o tinir das bigornas e o assoprar das forjas)
 
ALFAGEME (dando a última demão a uma espada, canta em estilo de romance popular antigo) Já lá vem o sol na serra, Já lá vem o claro dia, E inda o Conde de Alemanha Com a... (tosse) hum, hum, hum!... dormia. A trova diz: Alemanha; Eu digo: Galegaria... Onde chegou Portugal Mais a sua bizarria!
 
CORO Onde chegou Portugal Mais a sua bizarria!
 
ALFAGEME Mangas da minha camisa, Não nas chegue eu a romper, Se em vindo... Se em chegando o nosso infante, Não há aqui muito que ver!
 
CORO Deus nos traga o nosso infante Que tem muito que fazer!
 
ALFAGEME (falando) Muito que ver e muito que fazer! Há como nunca houve, Galegos, Castelhanos, cismáticos apossados de tudo... Estrangeiros senhores do reino... do reino e da rainha! E para nós, tributos não faltam. – Veremos, veremos, que isto não está para muito, e não tarda o dia de juízo. (Canta) Quem não deve, não deve, não teme; Espadas e lanças faz o Alfageme.
 
CORO Quem não deve, não deve, não teme; Espadas e lanças faz o Alfageme.
 
ALFAGEME E vamos a elas, rapazes; fazer bem espadas, bem lanças, bem achas, azevãs e partazanas, que hão de ser muito feiradas, e cedo. Ano de safra para o alfageme, meus amigos. Do modo que isto anda revolto! – É trabalhar, rapazes.
 
ALDA (à parte para Guiomar)
 
Também me adivinha o coração, que cedo havemos de ter grandes alterações nesta terra. Quanto há que el-rei faleceu, Sra. D. Guiomar?
 
GUIOMAR El-rei D. Fernando? Haverá... Estamos a 8 de dezembro. Ele morreu a 22 de outubro – e pouco mais de um mês. E já como esta gente anda solta e revolta! – A rainha D. Lionor por bocas do povo deste modo! Não há vilão ruim que se lhe não atreva. – Ah! Ah! quem pudera...
 
ALDA É vilania. Uma mulher, uma senhora – rainha que ela não fosse – andarem-lhe com a vida por trovas e motetes! E Deus sabe quantos aleives, quantos falsos testemunhos por aí não andam... 
 
(O Alfageme entra para a sua casa)
 
 
CENA II Alda, Guiomar.
 
GUIOMAR Lá isso!... Aquelas amizades com o conde Andeiro não há negá-las; e muito mal lhe fazem a ela e a todos nós que seguimos seu partido. Mas enfim ela é regente do reino, que lhe deixou el-rei no seu testamento, e o reino é de sua filha.
 
ALDA Nessas coisas me não meto eu, que não entendo... – Vamos para baixo que está a manhã tão bonita. Mas aflige-me ouvir difamar uma pobre mulher, talvez inocente. (Vão descendo e falando, e ficam em baixo) Há de ser inocente. – E ver andar revolvendo o Povo com estes aborrecidos cantares... E este nosso vizinho que me parecia homem sério e de outros pensamentos ajudando também... Não o esperava dele. Dizei-lhe alguma coisa, senhora; fazei-lhe vergonha com isso, que vos há de atender decerto; e homem que foi criado em vossa casa... que vos deve tanto...
 
GUIOMAR Aonde isso vai! – Aqui foi nado e criado certamente; aqui o teve meu pai como a filho, que por tal lhe queria; e com meu irmão se criou, que é seu colaço, e ao trato e usos de cavaleiro se acostumou. Ninguém teve mais altos espíritos. Mas desde que Deus levou meu pai, começou a enfadar-se da vida que levava e a dizer que não era para cavaleiro quem cavaleiro não nascera; que seu pai fora – alfageme, e ele alfageme havia de ser; que mais queria fazer armas para senhores e vender-lhes como mercador, do que vender-se ele a si, para lhes deixarem tratar como escudeiro e em dependência de senhores; – que era pobre e queria ser rico, para não comer o pão de ninguém, mas o seu. E um dito dele de todos os dias era que – vilão por vilão, antes em sua casa, que na de seu sogro não.
 
ALDA Nobres espíritos tem. – Que pena!
 
GUIOMAR Pena de quê? A sua fortuna foi essa teima em que persistiu. Foi-se as forjas e ferramentas do pai, deixou todo o uso e trato de cavaleiro, começou a trabalhar por seu ofício, e tanto lidou, que entrou a ganhar freguesia e crédito, e hoje é o mais perfeito, e também o mais rico alfageme de Portugal.
 
ALDA Inda assim!
 
GUIOMAR Vês aquelas casarias todas, com tanta forja a trabalhar, tanta gente ocupada, tantos armazéns cheios de armas de toda a sorte e valia? – Pois tudo isso tem ele feito. A casita do pai era só aquilo que se vê lá no canto, no fim, com a portinha baixa e duas janelas estreitas, que o filho não quis mudar, nem pôr à feição do resto da casa, por honra e memória do pai, diz ele. – É um homem muito fora do trilho dos outros; faz soberba e vaidade do que a mais gente se envergonha.
 
ALDA Já o veio com outros olhos. Parecia-me de um trato tão...
 
GUIOMAR Grosseiro... não? – É fingido. Diz ele que para viver com os da sua igualha assim precisa. Não sei. Mas quando ele queria, não tinha a corte de el-rei D. Fernando mais guapo cavaleiro; nem se assenta, nas almofadas do estrado da rainha D. Lionor, dama a quem seu galanteio não agradasse e desvanecesse.
 
ALDA Maravilhas me contais do alfageme. Cuidei que lhe queríeis mal: nunca lhe falais, e ele apenas vos saúda de longe.
 
GUIOMAR (estremecendo e corando) Eu!... Ele dantes vinha aqui mais vezes. Mas... e um homem muito às vessas dos outros; ia te disse. – Desde que meu irmão... a nossa casa entrou a cair de fortuna.
 
ALDA Por isso foge de vos?... E tão brioso o dizíeis?
 
GUIOMAR Como não conheço outro. – Meu irmão que está em Lisboa, como sabes, em requerimento de serviços de nosso pai há tantos anos, tem consumido, sem fruto, na dependência da corte o pouco resto de fazenda que nosso pai não perdera no serviço de el-rei... que assim o tem pago a seus filhos!... Entrou a valer-se dele meu irmão... hoje devemos-lhe muito, uma quantia que nem eu sei. De protegido passou a protetor. E se ainda moramos nesta casa e lhe chamamos nossa, é mercê do alfageme, Alda. Teu tio, quando para aqui veio para Santarém, que teu padrinho D. Álvaro lhe deu esta capelania de Santa Iria, por nos ajudar veio morar conosco. As rendas dessa pobre capelania (abençoadas são elas que para tanto chegam!) são quase o único rendimento de que hoje se sustenta esta casa, que já teve tanto e tanto deu. Tu estás aqui há poucas semanas, cuidavas talvez...
 
ALDA Não cuido nada senão em vos servir, em vos agradecer de todo o meu coração o amparo que achei nesta casa quando, por morte de meu senhor D. Álvaro Gonçalves, o meu santo padrinho que está em glória, fiquei tão sozinha, tão sem abrigo.
 
GUIOMAR Pois quê? Da Flor-da-Rosa, daquela casa tão benfazeja e tão rica, verdadeira casa de Hospitaleiros, te lançariam os filhos do Prior? Pedro Álvares Pereira, que é hoje o prior, em vez de seu pai, e todos eles, que são cavaleiros de tanto nome e de tão principal nobreza, te haviam de abandonar?
 
ALDA Naquela casa em que nasci, morreria contente e satisfeita de minha situação humilde, ali passaria toda a vida sem desejar mais nem mais pretender, se... se... mas como havia de eu ficar numa família de mancebos, gentis-homens, e que o mais velho não tem trinta, anos? Não os terá Pedro Álvares, o prior, não.
 
GUIOMAR O mais moço e D. Nuno: não é? que idade tem?
 
ALDA Dois anos mais que eu. – Bem vedes que não podia ficar naquela casa. Enquanto viveu o santo Prior, – eu era criada em casa, filha do seu mordomo, ninguém reparava em que vivesse ali entre os bons cavaleiros do Hospital uma pobre órfã a quem o mesmo D. Álvaro Gonçalves tratava por filha, e todos os seus filhos, todos os seus cavaleiros por irmã; mas depois que ele morreu, era outra coisa; se não fôsseis vós e meu tio, ficava sem abrigo a triste órfã desvalida e dependente...
 
GUIOMAR Dependente, filha! de quem? já te confessei, com toda a sinceridade, que aqui não há senão as paredes velhas desta casa, a que ainda chamamos nossa por mercê de Fernão Vaz o Alfageme, de quem já tudo é, Alda; de quem e dos seus populares em breve será tudo quanto era da gente nobre desta terra, que eles crescem e nós minguamos. Toda a riqueza vai passando a mãos de vilões...
 
ALDA Se eles trabalham tanto...
 
GUIOMAR E nós ficaremos a pedir. – Meu irmão custa-lhe a dever estas obrigações... pesa-lhe estar em dívida com um homem que já foi seu dependente. – Ele percebe-o, foge de o vexar, e por isso aqui não vem. – Eis aí está.
 
ALDA Honrado homem!
 
GUIOMAR Bem o podes dizer.
 
 
CENA III Alda, Guiomar, Alfageme.
 
(Coro de donzelas do Alfageme, dentro)
 
ALFAGEME (chegando porta da sua casa, vem cantando)  Quem não deve... hão deve... (Vê-as, para de cantar e tira o barrete com muito respeito) Deus vos salve, senhoras. 
 
(Guiomar corteja com a cabeça)
 
ALDA Bons dias, vizinho. – Muito ocupado estais hoje.
 
ALFAGEME Hoje e sempre: é o meu ofício, e a minha vida, é o para que vim a este mundo – para trabalhar. Já que é sina, quero cumpri-la alegremente.
 
ALDA Bem alegre, que tanto cantais.
 
ALFAGEME Cantar!... Música de alfageme, solfa de ferreiro: e acompanhar o tinir da bigorna. Que há de a gente fazer?
 
ALDA Bem me agrada a música e a toada; e singela e de folgar. – As letras que hoje cantastes é que...
 
ALFAGEME As letras! Nem eu sei o que foi: algum romance velho que já se não usará de cantar por saraus de senhores – coisas cá da gente do povo; é o que nós sabemos.
 
ALDA Quereis que vos diga o que tenho no coração?
 
ALFAGEME Para quê? – Bem o sei.
 
ALDA Como sabeis?
 
ALFAGEME Assim o não soubera!
 
CORO (dentro) Só se for o Conde Alarcos, E esse tem mulher e filha!
 
OUTRAS VOZES Ai rico pai da minha alma, Esse é o que eu queria!
 
ALDA (perturba-se e cora, disfarçando e encaminhando-se para a escada) É um descante contínuo nesta vizinhança... Não se pode.
 
ALFAGEME (em ação de voltar para dentro) Já as farei calar...
 
ALDA (com enfado e subindo a escada) Para quê? que me importa? – Mas valha-me Deus! meu tio sem chegar! Vou ver se...
 
ALFAGEME Aí vem ele descendo aquela encosta: não tardará aqui cinco minutos. Então não me dizeis o que tendes no coração?
 
ALDA (do meio da escada)  Se o sabeis...
 
ALFAGEME Dizei embora.
 
ALDA Outra vez será. – Meu pobre tio! Como ele há de vir tolhido com tanto frio que faz! Vou tratar de ter tudo pronto para o seu jantar. 
 
(Entra para casa; Guiomar a segue, mas fica no meio da escada)
 
 
CENA IV Guiomar, do meio da escada; Alfageme de baixo.
 
GUIOMAR Fernando?
 
ALFAGEME Senhora D. Guiomar?
 
GUIOMAR Sempre me haveis de falar assim?
 
ALFAGEME Trato-vos como quem sois, com o respeito que vos devo.
 
GUIOMAR Já me não deveis senão respeito?
 
ALFAGEME Tudo quanto sou vos devo e a vosso pai, senhora, e à vossa família, disso me não esqueço um instante.
 
GUIOMAR Dantes, Fernando, eram outras dívidas as que vos pesavam mais no coração.
 
ALFAGEME Dantes era outro tempo, senhora. – Aquele Fernão Vaz que se atrevia a levantar os olhos para... para onde não devia, aquele pobre escudeiro que tão mal cabido andava entre senhores tão altos e damas tão esquivas, morreu: – nem memória desse louco deve ficar. – Vós, que tanta vez vos esquecíeis dele em vida... para que vos lembra agora que está defunto? – Desse não sei nem eu já: agora só conheço o alfageme.
 
GUIOMAR Se tão esquecido quereis estar do que fostes e da criação que tivestes – e tanta gala fazeis do trato grosseiro em que só vos dais por feliz, como vos deixais tomar assim do amor de uma donzela que, se não é nobre, como tal foi criada e viveu sempre – rica só em prendas e donaires de senhora, feita para dama, e como tal havida e tratada sempre em uma das mais nobres e mais poderosas famílias do reino, que ainda hoje a protege e tem por sua? – Alda e...
 
ALFAGEME Alda e tudo o que dizeis, e muito mais ainda: e um anjo, um anjo de inocência, de singeleza e bondade... Foi criada, como dizeis, no meio dessas tentações da grandeza – e da vaidade; mas não a desvairaram. Alda é do povo como eu; o meu amor não pode envergonhá-la. Quem me há de impedir de a amar, de ser feliz em amá-la, de esperar, de procurar que ela aceite o meu amor? Um amor sem paixão para que dure – sem remorsos para que nunca amargue. – Quem me há de impedir?...
 
GUIOMAR Quem? – Se eu me quisera, vingar de vós e dela, com uma palavra podia.
 
ALFAGEME Dizei-a por vossa vida.
 
GUIOMAR Merecei-lo.
 
ALFAGEME Dai-me o que mereço.
 
GUIOMAR Não quero.
 
ALFAGEME Por quê?
 
GUIOMAR Porque ainda não é tempo. (Sobe e entra)
 
 
CENA V
ALFAGEME (só) Esta mulher e má. – Agora conheço que nunca a amei, nem ela a mim. – É má e vaidosa; queria-me para escravo de seus caprichos, detesta-me porque eu o não quis ser. – Quer-se vingar... de quê?... se foi ela a que... me desprezou, que antes quis a vergonha de... do que degradar-se a ser a mulher de um homem do povo... Não me acusa a consciência: adeus! – Oh! mas aí vem o santo velho do nosso capelão. Isto é que é um honrado clérigo. Uma virtude alegre que não pesa, que chama a gente. (Falando para dentro das oficinas) Raparigas, aí vem o nosso padre Froilão. – Morrem por ele todas. – Ele aí vem de dizer a sua missa, e de rezar o ofício da manhã. Coitado, como ele vem cansado! Estamos em dezembro, e o sol queima como de verão. Mas já ele vem a rir. E sempre aquela santa paz, aquela alegria do céu.
 
 
CENA VI Alfageme, Froilão Dias, Joana, Serafina e Coro de donzelas do Alfageme, que saem correndo de dentro das oficinas ao encontro do padre.
 
CORO (música simples imitando um estilo popular português) Padre capelão, Casai-me, meu padre, pela vossa mão, Que eu já não tenho nem pai nem irmão, E quero casar-me, padre capelão.
 
FROILÃO (arremedando-as) Casai-me, casai-me, padre capelão! Não há mais senão casai-me, casai-me. E com que elas sonham. Raparigada! – Então que queres tu, Joana? um noivo? – Há de se achar um noivo. E tu, Serafina? O mesmo, hem! Pois também Serafina há de ter. – E estas todas, Ana, Magana, Rebeca, Susana... Há de haver para todas. 
 
(Cercam-no as raparigas todas, dando as mãos e dançando à roda dele, cantam)
 
CORO Viva o nosso padre, padre capelão, Que é o nosso santo de mais devoção!
 
JOANA Que me há de casar.
 
SERAFINA E a mim por que não?
 
CORO A todas, a todas, quer queira, quer não.
 
FROILÃO (arremedando-as) A todas, a todas, quer queira, quer não? (Falando)  Quê! eu sou aqui São Gonçalo de Amarante, que é o santo casamenteiro?
 
JOANA São Gonçalo de Amarante, Bem lhe reza minha tia; Casamenteiro e de velhas, Vá para outra freguesia.
 
CORO Vá para outra freguesia.
 
FROILÃO (falando) Quê, quê! ai que eu excomungo isto tudo...
 
TODAS (falando) Excomungadas as velhas! As velhas! hu, hu hu surriada!
 
FROILÃO E os velhos também; não e assim? Então nesse caso...
 
CORO
E os velhos também, menos frei Froilão, Que é o velho das moças, velho de feição. As moças donzelas Casa Dom Froilão; Quer feias, quer belas...
 
FROILÃO Só as que são belas...
 
CORO A todas, a todas, que ele é de feição, E é o nosso santo de mais devoção.
 
FROILÃO (arremedando-as a dançar e a cantar) E eu aqui estou feito São Pascoal Bailão.
 
CORO É o nosso santo de mais devoção.
 
FROILÃO (do mesmo modo) É um fresco santo São Pascoal Bailão! (Falando) Apaje com elas, que dão cabo do pobre velho. Dá cá daí um banco, alfageme, que não me posso já ter nos pés. (Correm as raparigas todas a buscar um banco, trazem-lhe; senta-se; e elas, umas se sentam no chão aos pés do padre, outras ficam em pé) Toda a manhã no coro a rezar salmos, e a cantar antífonas... e esta raparigada agora sai-me com jaculatórias... para me descansar, não e assim? – Ora vão, minhas filhas, vão que bom e rir e folgar, e cantar e dançar, que não ofende a Deus nem ao próximo, alivia do trabalho e alegra a vida, que nos não fez Deus para tristes e pesarosos. Triste ande o pecado e as más tenções. Mas quem tem o coração folgado, folgue-lhe o rosto, que e de razão. O santo temor de Deus não mete medo, antes alegra e dá conforto. – Ora vão, vão trabalhar, filhas.
 
ALFAGEME (à parte)
 
Isto é que é padre. Não houvera mouro nem judeu, nem desses hereges que agora se diz que há, se todos os padres fossem como este.
 
JOANA A sua bênção, padre capelão!
 
SERAFINA A sua bênção!
 
TODAS (em chusma, e umas depois das outras, ajoelhando diante dele) A sua bênção, a sua bênção, a sua bênção!
 
FROILÃO (enternecido) Minhas filhas, Deus vos abençoe a todas, e vos faça mulheres honradas para serdes felizes, que não há uma coisa sem a outra. Coitadinhas! – Então o pobre do velho trôpego que mal serve para se zombar dele...
 
JOANA Não diga isso, padre capelão, não diga isso!
 
Todas Não diga isso!
 
FROILÃO O pobre clérigo, velho e brincalhão, pois que lhe quereis?
 
JOANA Que nos abençoeis, padre, que nos deis a vossa mão a beijar; tudo nos corre bem quando levamos a vossa bênção.
 
FROILÃO (estendendo as mãos sobre elas e com as lágrimas nos olhos) Em nome de Deus vos abençoo, filhas. – Minhas filhas, coitadinhas! (Beijam-lhe todas as mãos) Ora vão trabalhar, vão – fora daqui, pequenada, safa! (Bate as palmas, e todas as raparigas voltam pulando para dentro das oficinas)
 
CENA VII Froilão Dias, Alfageme.
 
ALFAGEME Que feitiço dais a estas moças, que assim morrem por vos, nem há mais alegria para elas do que ver-vos e folgar convosco? – Nem vos respeitam menos; que uma palavra que lhes digais, é Evangelho para elas... e para nós todos. Há três anos que aqui estais nesta capelania, e já todo o povo vos quer como a pai, a nós tendes a todos por filhos.
 
FROILÃO (levantando-se) Menos tu, que, se es filho, es mau filho.
 
ALFAGEME Eu!
 
FROILÃO Tu, sim. – Anda cá, anda cá, alfageme, que me não importam as tuas alfagemias... Anda, meu armeiro, meu espadeiro, que as tuas armas e as tuas espadas dou em todas com um trinco ao demo... Dize-me cá: tu não sabes que eu sou o pai destas raparigas todas?
 
ALFAGEME Sei.
 
FROILÃO Que há três anos, como ainda agora disseste, que estou nesta capelania que me deu o prior do Hospital, meu senhor, que Deus tem, e que já sou o tio Froilão, o mestre Froilão, o papa Froilão de toda esta pequenada? E que não sofro que ninguém mas desencaminhe – e ou me hão de casar honestamente com elas, ou ninguém mas há de endoidecer com tontarias, senão vai tudo com trezentos milheiros de belzebus?
 
ALFAGEME Sei. Mas que tendes que me dizer a num nesse ponto? Mais de vinte moças de todas as idades aí trabalham nessas serralherias, e em minha vida não tive uma palavra leviana que dizer a uma delas. Antes sou tão rigoroso e severo com os meus oficiais, como sabeis. Com vossa ajuda e conselho, estas minhas oficinas, cheias de gente rude e popular, podiam servir de exemplo... e de confusão a muita casa de senhoras presumidas que nos olham com desprezo... e upa, upa, ao mais alto!... E falam, que a quem as ouvir...
 
FROILÃO Deixemos lá essas contas: cada um faz o que deve, e deixa falar os outros. Má língua que muito fala, com sua vergonha por fim se cala. Não me caias, homem, no vício do tempo, que é andar a assoalhar as fraquezas do próximo... e sem se lembrarem que o sol que nelas da também dá em quem as põe ao soalheiro... Vamos a outro conto. – Pois sabeis que eu sou cá a meu modo cavaleiro andante de donzelas desvalidas... cavaleiro de garnacha sim – mas, por esta cruz de São João de Jerusalém que trago ao peito, que sou cavaleiro também! Por cima desta armadura negra visto, em lugar da sobreveste de paladim, uma sobrepeliz de clérigo; mas com ela vou destemido por esse mundo a endereçar tuertos de quanta dona dolorida e de humilde condição por mim chama.
 
ALFAGEME Sei que muita mulher de bem vos deve honra e estado, muito homem feliz o sossego e quietação da vida em que vive; que a rir e a folgar tendes ganho mais almas para Deus e desviado mais pecadores da má vida, e feito mais felizes neste mundo do que todos os pregadores de São Domingos e todos os...
 
FROILÃO Adeus, adeus! Deixemo-nos de comparações: cada um prega como sabe. Eu sou o padre Froilão, de meu natural folgazão, que não sei senão rir e brincar, e a rir e a brincar vou pregando. Se faço algum bem, e porque Deus me abençoa. E adiante. – Pois sabeis tudo isso, meu dom alfageme da má morte, e dizei-me cá, homem de grevas e arneses, ruim cabide de ruins armas, meu estafermo de não sei que diga, dizei-me cá, homem: que malito demo vos apertou o gorjel do pescoço, que vos fez arregalar os olhos para a minha Alda, a menina dos meus olhos, a filha do meu coração? – A minha Alda, sô alfageme remendão de más armas ferrugentas? (O Alfageme fica confundido e cabisbaixo) Anda cá, anda cá; que te hei de aqui correger e esfregar, como tu correges uma durindana emplastada de escudeiro velho.
 
ALFAGEME Eu, senhor, confesso que... Mas era...
 
FROILÃO Era o quê, sô Vulcano de aldeia? Não sabe que a minha Alda foi criada como senhora entre senhoras, com mais prendas que elas todas, com mais virtudes que nenhuma delas? Que é filha de pais honrados e limpos? já não falo em ser minha sobrinha. Que meu senhor D. Álvaro lhe queria como a filha, que com seus filhos se criou naquela honrada e virtuosa casa da Flor-da-Rosa? Que meu chorado amo só a morte o pôde apartar de sua querida afilhada? E que agora há umas semanas que veio para a minha companhia, depois que ele morreu, e aqui está comigo em casa destes nossos primos? primos arredados...
 
ALFAGEME Tão arredados dantes quando eram ricos, e tão chegados agora que não têm.
 
FROILÃO Quem lhe pergunta por isso? Vou-me eu agora casar com eles, para saber o grau de parentesco de que hei de tirar dispensa? Cale-se, e ouça. Sabe tudo isto, vê tudo isto, – vê como a trata meu senhor D. Pedro Álvares Pereira, seu irmão, D. Nuno, que aqui esteve ainda outro dia e aqui há de voltar cedo... D. Nuno, moço tão fidalgo e tão bizarro, não, vê como a trata? Como irmã sua...
 
ALFAGEME É o pior parentesco que lhe conheço.
 
FROILÃO (à parte) Meu Deus! Já aqui andara a calúnia! (Alto) Que dizeis, homem, que dizeis! D. Nuno Álvares Pereira!
 
ALFAGEME O senhor D. Nuno Álvares Pereira é o mais gentil e mais benquisto cavaleiro moço que tem hoje Portugal. Assim ele seja pela boa causa! Mas isto cá...
 
FROILÃO Que falais vós de boa causa e que sabeis vós de qual é a boa causa, homem dos meus pecados?
 
 
CENA VIII Froilão Dias, Alfageme e Alda que chega ao alto da escada, sem a pressentire.
 
ALFAGEME A boa causa é a do povo é a do seu legítimo rei.
 
FROILÃO Valha-te Deus por estadista, homem; que assim te perderás, alfageme, e as tuas alfagemias, se te meteres nesses dibuchos. Deixa isso para senhores.
 
ALFAGEME De mais lhe temos deixado; por isso tão arrastados andamos, e tão soberbos eles nos trazem o pé no pescoço.
 
FROILÃO Ai, meu Deus, meu Deus! Santa Maria da Alcáçova nos acuda, que deu em fazer política o alfageme em lugar de fazer espadas!
 
ALFAGEME Com espadas se faz ela, padre, a boa, a deveras. E se nós, que fazemos o que com ela se faz, nos desenganarmos a trabalhar por nossa conta...
 
FROILÃO Tem-te lá, Portugal; arreda, Castela, que aqui vai el-rei alfageme meu senhor! – Cerra, São Tiago!
 
ALFAGEME Tem-te Portugal, que te não calas em Castela: digo eu, que não sou rei alfageme: mas alfagemes e outros que tais, a poder que possam, hão de fazer rei a quem de direito é, e não a estrangeiros e cismáticos. Lá está o infante D. João em Toledo...
 
ALDA Desejais para rei esse mau infante que está coberto de sangue inocente! Por de melhor coração vos tinha, Fernão Vaz.
 
FROILÃO Oh! aí – estavas tu, minha Alda?
 
ALDA Agora cheguei para vos dizer que venhais a comer alguma coisa. Achei-vos a fazer tanta algazarra com essas questões de estado que não entendo, que me vou já muito depressa. – Mas não vireis comer alguma coisa, meu tio?
 
FROILÃO (tomando o alfageme pelo braço, e baixo para ele) Vede-me aquele anjo, alfageme. Sabeis que é um anjo, um anjo do paraíso?
 
ALFAGEME Por anjo o adoro.
 
FROILÃO Com fé?
 
ALFAGEME Fé viva e pura.
 
FROILÃO Ora pois, tende esperança.
 
ALFAGEME Com a fé e a esperança por minha parte haverão caridade comigo?
 
FROILÃO Tu és um homem honrado, que eu bem o sei, alfageme. Dá cá um abraço. (Abraça-o) Deixa-te de políticas, governa a tua vida e não queiras governar o mundo. Vai trabalhar, e falaremos. Falaremos: adeus! (Sobe pelas escadas e para em cima ao pé de Alda)
 
ALDA Parece-me que já eram horas, tio?
 
FROILÃO São horas e mais que horas de te eu dar um beijo, Alda, que ainda hoje não abracei a minha querida filha. (Abraça-a e beija-a; e tendo-a ainda abraçada, diz para baixo ao Alfageme que os está contemplando) Alfageme, alfageme, que estás tu aí a olhar? Vai-te para a forja. (Voltando-se para Alda) Alda, olha que aquilo trabalha em ferro, mas é ouro de lei... como uma dobra de D. Pedro.
 
 
CENA IX Froilão Dias, Alda.
 
ALDA Ai, meu querido tio!
 
FROILÃO (arremedando-a) Meu querido tio! Não sou o seu querido do; sou uma figa para você, se não tiver juízo.
 
ALDA Pelejais comigo?
 
FROILÃO Não pelejo, nem tu o mereces, filha. Mas olha, Alda; amores são amores... isto é, amores não são amores tal, quando... Sabes tu como diz a trova? (Canta por entre dentes) Flores que não dão frutos, flores, Não regues, jardineiro, não, Que perdes o tempo em vão Com essas flores.
 
ALDA Que quereis dizer!
 
FROILÃO Que leio em ti como em breviário aberto, Alda; sei o que tens nesse coração que o atormenta. Mas sei que, ao pé dessa desgraçada paixão que lá está, também está muita virtude e muita honra. E são as que hão de vencer. Não é assim, filha?
 
ALDA (com firmeza) Sim, meu tio; decerto.
 
FROILÃO Pois é ajudá-las com tempo, que são fortes batalhadoras ambas, mas querem-se auxiliadas com a firmeza da vontade e com... Sabes tu, Alda, como se diz entre o povo, que a mordedura do cão com o pelo do cão se cura? – Pois alegria, minha filha, que tristezas para nada aproveitam. Já tu reparaste como este nosso vizinho alfageme fez da sua forja uma capela de música, que até os foles lhe assopram o compasso, e a bigorna lhe afina em ut la sol re, como o hino de São João? Pois olha que é bonito. Adeus que eu já venho. (Vai para dentro entoando o hino latino) Ut queant laxis – resonnare fibris Mira gestorum – famuli tuorum, Solve polluti – labii reatum, Sancte Joannes! (Torna para fora e diz) Quer dizer, que o bem cantar Nas cordas do coração Tem a sua afinação.
 
 
CENA X Alda no patim, Alfageme em baixo, Coro de serralheiros e donzelas do Alfageme dentro.
 
ALFAGEME (saindo de sua casa e caminhando para junto do patim da escada) Por aquelas regras do breviário de D. Froilão, não vos pode agradar a minha música, que a não sei afinar por essa entoação... Não sei ou não me atrevo, que tenho medo.
 
ALDA De quê?
 
ALFAGEME De quebrar as cordas todas ao pobre instrumento, grosseiro e mal construído, tosco e sem harmonia. E por fim para quê?... para se rirem das minhas vãs pretensões.
 
ALDA Rir!... A mim nunca me faz rir a música. Nenhuma toada, por mais alegre, me causou nunca sendo tristeza.
 
UMA VOZ (dentro, o mesmo estilo antigo) Assomai-vos, minha mãe, A essa janela do mar, Vinde ver o conde Alarcos Que aí vai a degolar.
 
CORO (dentro) Conde Marcos... conde Andeiro,
 
Que aí vai a enforcar.
 
ALDA (descendo) Que feias letras! É pena, Fernão Vaz, que há por aí tão bonitas coplas, tão gentis vilancetes, e vós e vossa gente, há dias a esta parte, désseis em cantar esses mal agourentos romances que não rezam senão de feias mortes e feios pecados que as trouxeram!
 
ALFAGEME Que quereis, senhora! O cantar do povo anda com as ações de seus amos. O povo é como as crianças. Quando lhe cheira a guerra entre a gente grande, já vereis os rapazes pelas ruas a cavalo em canas e arrodelados de papei, gritando arma e guerra, e fingindo em seu folguedo os combates que deveras adivinham. O povo canta de mortes e castigos quando os espera da justiça de Deus, porque vê os grandes fazer por eles.
 
ALDA Dobra-se o mal assim a esperar por ele, a antecipá-lo.
 
ALFAGEME Quando o mal vem por castigo, é justiça.
 
ALDA Pois deixai a Deus fazê-la quando e como lhe prouver; não tomeis em vossa mão vingar agravos de que Ele vos não fez juiz. – Sabeis vós, Fernão Vaz, que há muitas aparências falsas neste mundo; que o maior inocente passa às vezes por criminoso; que um erro involuntário, uma fraqueza leve e muito perdoável nas mãos da calúnia se erige em crime atroz? Sobretudo conosco, pobres mulheres, a quem uma palavra basta para perder, que um volver de olhos difama, um dito inconsiderado pode desonrar!
 
ALFAGEME Sei, Alda. Mas sei também que a virtude e o mérito de uma mulher são a coisa mais difícil de ofuscar quando são verdadeiros. Queríeisme ainda agora dizer o que tínheis no coração. Vou dizer-vos eu o que tenho no meu. Vós sois um anjo, Alda, em quem eu creio como numa coisa do céu. Que me dissessem de vós quantas infâmias pode inventar a calúnia mais negra, não as cria.
 
ALDA Não?
 
ALFAGEME Não.
 
ALDA Olhai bem o que dizeis.
 
ALFAGEME Não.
 
ALDA Por quê?
 
ALFAGEME Porque vos tenho estudado e vos conheço.
 
ALDA Quem sabe?
 
ALFAGEME Sei eu. Eu que vos amo na singeleza de meu coração, que toda a minha ventura seria fazer a vossa; eu que, se não receasse, se não visse que o trato grosseiro e humilde de um homem do povo desdizia tanto das vossas prendas e costumes...
 
ALDA Tamanha senhora sou eu! Creio que zombais de mim, senhor Fernão Vaz: não vos mereço, que sou vossa amiga deveras. Basta o que meu tio Froilão vos quer e o bem que de vós diz, para vos eu estimar. – Eu sou uma pobre órfã desvalida que amparou a caridade de meu senhor e padrinho; em cuja casa me criei com mais mimo, é verdade, com mais regalo do que a minha condição cumpria... mas por caridade. Sabeis o que valem estas palavras?
 
ALFAGEME Não sei? Oxalá que o não soubera, e tão bem, e por mim!
 
ALDA E agora não tenho outra proteção senão este meu pobre tio velho e enfermo... – E dizeis-me vós que!...
 
ALFAGEME Digo-vos uma coisa só: podeis vós casar com um homem que não amais?
 
ALDA Que não amo?
 
ALFAGEME Que não amais.
 
ALDA Ama-me ele a mim?
 
ALFAGEME Como o entendeis?
 
ALDA Se me tem amor?
 
ALFAGEME Amor?... (hesita) não. Tem-vos amizade de pai, de irmão, tem por vós uma devoção, uma...
 
ALDA Posso...
 
ALFAGEME
 
Imaginais que podereis vir a amá-lo?
 
ALDA Crê ele que poderá chegar a amar-me?
 
ALFAGEME Se não tendes outro amor...
 
ALDA Eu!
 
ALFAGEME Vós.
 
 
CENA XI Alfageme, Alda, Nuno Álvares, cavaleiros.
 
NUNO ÁLVARES Alda!
 
ALDA Nuno! (Desmaia. Nuno corre a ela e a sustém nos braços)
 
ALFAGEME (fica pensativo e com os olhos cravados nos dois por algum tempo; depois, cruzando os braços e olhando para o céu, diz amargamente)  Meu Deus, meu Deus! Mais outra que me enganava!...
 
 
 
ATO II
 
CENA I Joana, Serafina, em coro com as outras donzelas do Alfageme que estão às portas e janelas da casa, mostrando as várias peças de armadura, espadas, montantes, etc.; aos cavaleiros em coro, que de fora as examinam e falam para dentro como quem apreça e quer comprar.
 
CORO DOS CAVALEIROS Oh que ricos arneses brilhantes, Oh que belas espadas cortantes! São lindas, lindas!
 
JOANA Meus nobres senhores, Feirai, feirai, feirai; São lindas, lindas, comprai.
 
CORO DAS DONZELAS Feirai, feirai, meus nobres senhores: São lindas armas.
 
CORO DOS CAVALEIROS Feiremos de amores, Que mais lindas são.
 
SERAFINA Pois este montante?
 
UM CAVALEIRO Cortante!
 
JOANA Este morrião?
 
OUTRO CAVALEIRO Brilhante!
 
CORO DOS CAVALEIROS Mais brilham, mais cortam no meu coração Armas desses olhos.
 
CORO DAS DONZELAS Feirai, meus senhores
 
CORO DOS CAVALEIROS Feiremos de amores.
 
CORO DAS DONZELAS Não há desse trato aqui, não, não, não.
 
JOANA Há lanças e espadas, Cotas e pavezes, Grevas e celadas E os peitos que temos...  (Tocando nos peitos de armas) Não têm coração; São de aço...
 
ALGUNS CAVALEIROS (querendo abraçá-las) Provemos!
 
ALGUMAS DONZELAS (repelindo-os) Provados estão.
 
CORO DOS CAVALEIROS Oh que ricos arneses brilhantes, Oh que belas espadas cortantes! São lindas, lindas!
 
CORO DAS DONZELAS Meus nobres senhores, Feirai, feirai!
 
CORO DOS CAVALEIROS Feiremos de amores.
 
JOANA e SERAFINA Lindas armas!
 
DOIS CAVALEIROS Lindos mercadores!
 
CORO DAS DONZELAS Pois feirai.
 
UM CAVALEIRO Feiremos de amores; Dar-vos-ei em troca o meu coração.
 
CORO DAS DONZELAS Não há desse trato aqui, não, não, não.
 
(As donzelas vão recolhendo as armas; alguns dos cavaleiros se vão dispersando, outros galanteiam ainda com as donzelas; mas estas desaparecem de todo, e os cavaleiros se dispersam e retiram por fim)
 
 
CENA II O Alfageme aparece à porta última da sua casa no alto da cena, Nuno Álvares vem descendo a escada da casa de Mendo; Froilão Dias atrás dele, mas fica no alto da escada; Coro das donzelas do Alfageme, dentro.
 
FROILÃO (ajoelhando) Senhor, meu senhor.
 
NUNO ÁLVARES (parando no meio da escada e voltando-se para trás) Que fazeis!
 
FROILÃO Estou de joelhos diante de vós, senhor, pedindo misericórdia. Tende dó destas cãs: lembrai-vos que ainda o outro dia as arrepeláveis ao pobre clérigo velho quando voz trazia ao colo. Lembrai-vos de vosso pai, D. Nuno! Lembrai-vos...
 
NUNO ÁLVARES
 
Não vos basta a minha palavra?
 
FROILÃO (erguendo-se)  Dai-me, e fico descansado.
 
NUNO ÁLVARES Dou... dou a minha palavra.   FROILÃO Fé e palavra de homem de bem?
 
NUNO ÁLVARES Fé e palavra de homem de bem.
 
FROILÃO De que nunca mais?...
 
NUNO ÁLVARES De que nunca mais.
 
FROILÃO Tomareis a falar-lhe?
 
NUNO ÁLVARES Falar-lhe, falar-lhe... Entendamo-nos, meu bom Froilão, meu velho amigo Froilão. A minha palavra, dei-a, está dada: sou filho de quem sou, hei de cumpri-la. Que me custe a vida... custe o que custar, hei de cumpri-la. De hoje em diante, Alda é minha irmã, minha irmã como se nascesse da mesma mãe, como se nos gerasse o mesmo pai.
 
FROILÃO (correndo pela escada abaixo com os braços abertos) Meu filho, meu querido filho, meu Nuno!... D. Nuno Álvares Pereira, filho daquele grande homem que... 
 
(No alvoroço em que vai, ao chegar a Nuno Álvares quase que o faz cair e ambos se precipitariam se Nuno Álvares se não firmasse de repente no guarda-mão da escada, segurando ao mesmo tempo a Froilão)
 
NUNO ÁLVARES Tomai tento, Froilão, que ambos íamos caindo. Estais louco?
 
(Descem de todo a escada e vêm para o meio da cena)
 
FROILÃO Louco! Doido, doido varrido de contente. Quero saltar, quero bailar, quero cair, e quebrar as pernas se for preciso... e a cabeça – e tudo... – Salta, Froilão, baila, Froilão. (Cantando e dançando) Que é um grande santo São Pascoal Bailão.
 
CORO DAS DONZELAS (dentro) É o nosso santo de mais devoção.
 
NUNO ÁLVARES Estais alvoroçando a vizinhança: vede.
 
FROILÃO Não é nada, não é nada. – As pequenas ali do alfageme. Isso é santa gente. (Falando para as janelas da casa do alfageme) Raparigas, logo; logo saltaremos e dançaremos e cantaremos. Agora quietas.
 
CORO DAS DONZELAS (dentro) Casai-me, meu padre, pela vossa mão Que eu já não tenho...
 
FROILÃO (para dentro) Então? Quietas. (Para Nuno Álvares) Mas como a trova diz bem: Que eu já não tenho nem pai nem irmão!
 
CORO DAS DONZELAS (dentro) E quero casar-me, padre capelão.
 
FROILÃO
 
Agora fui eu o culpado que lhes dei o alamiré. (Falando para dentro) Acabou-se; vejamos! (Para Nuno Álvares) Então, meu rico D. Nuno da minha alma?...
 
NUNO ÁLVARES Já vos disse: é minha irmã. Fé e honestidade de irmão lhe guardei sempre. Desonradas veja eu mulher e filhas, quando as tiver, se a honra e a fama de Alda me não foram sempre mais caras do que a própria vida!
 
FROILÃO (chorando) Nuno, meu querido Nuno! – Senhor D. Nuno, meu amo (ajoelha e beija-lhe as mãos muitas vezes), meu nobre amo!
 
NUNO ÁLVARES Basta, homem; catai respeito a essa loba que arrastais pelo chão. Estas mãos não são ungidas como as vossas.
 
FROILÃO (erguendo-se direito e com solenidade) D. Nuno Álvares Pereira, vosso pai foi meu amo e meu benfeitor. O pão que como, este hábito que visto, o alto ministério que tão indignamente exerço, tudo lhe devo; e sei que é muito. O pobre velho tonto e folgazão sabe o alto lugar a que, por auxílio de vosso pai e mercê de Deus, foi subido. – E quando está diante do altar na presença do Senhor, na cadeira do Evangelho, ou no tribunal da Penitência... que apareçam aí os grandes do mundo, os reis da terra... Hei de lhes dizer: “Ajoelhai-vos diante do sacerdote do Deus vivo, humilhai-vos, beijai estas mãos, onde desce o cordeiro imaculado”. (Com humildade) Mas fora daí, meu filho, o sacerdote de Cristo é o servo de seus servos, deve ser humilde, submisso e manso de coração como seu divino mestre. – Já vos disse que devi muito a vosso pai, senhor D. Nuno: desde hoje muito mais é o que vos devo a vós. Não quereis que vos agradeça?
 
NUNO ÁLVARES Não; faço o que manda a honra, não o que pede a vontade. – A honra!... Eu sei... mais honra seria...
 
FROILÃO (com ansiedade)  O quê, senhor?
 
NUNO ÁLVARES (com entusiasmo) Não deixar violentar de vãos respeitos humanos, de preconceitos ridículos e mesquinhos; buscar a felicidade onde o coração me diz que ela está, tomar nos braços a minha Alda, e dizer-lhe: Alda, vem, vem ser...
 
FROILÃO (com mais ansiedade) Vem ser?...
 
NUNO ÁLVARES (resoluto) Minha mulher.
 
FROILÃO (enternecido) Quereis matar-me. – Que mal vos fez este pobre velho, senhor? (Encosta-se a uma árvore, como não podendo com o sentimento que se apoderou dele)
 
NUNO ÁLVARES (acudindo-lhe) Meu amigo, meu bom Froilão... então, então! – Em que vos ofendi?
 
FROILÃO (rompendo a chorar) Oh senhor, senhor... Não sei se agora, se quando me ofendestes mais. – O filho de meu amo, o filho de D. Álvaro Gonçalves, as ricas esperanças de uma família tão nobre, para quem nada há tão alto, nesta terra, a que não possa aspirar, por sangue, por virtude, pelos altos espíritos que Deus lhe deu e que tanto medraram na boa criação que tiveram!... E eu havia de consentir?... Antes morrer, antes. – Mas vós não haveis de fazer tal, senhor: estais desposado com aquela rica-dona de Entre Douro e Minho com quem vosso pai tanto gosto tinha de vos ver casado; senhora tão formosa, tão fidalga, tão rica dos bens da fortuna... Oh, senhor D. Nuno, e destesme a vossa palavra.
 
NUNO ÁLVARES Dei-vos palavra que de hoje em diante Alda seria para mim uma irmã – querida e adorada sempre! – mas sagrada como irmã até para o meu pensamento. Esta palavra hei de cumpri-la se...
 
FROILÃO Se! – Condições ainda, D. Nuno?
 
NUNO ÁLVARES Uma só. – Se ela não quiser ser... minha mulher.
 
FROILÃO Aceito. A vossa mão.
 
NUNO ÁLVARES (dando-lhe a mão) Aqui está.
 
FROILÃO Vitória! – Sei quem tenho na minha Alda; há de recusar. O seu nascimento, a sua pobreza, o mesmo amor que... a generosidade da sua alma!... Há de recusar.
 
NUNO ÁLVARES Ela!
 
FROILÃO Ela.
 
NUNO ÁLVARES Veremos.
 
FROILÃO Não temos que ver: já vimos.
 
NUNO ÁLVARES Mas não haveis de usar da vossa autoridade.
 
FROILÃO Não.
 
NUNO ÁLVARES Não a haveis de prevenir, de lhe meter medos.
 
FROILÃO Nem uma palavra.
 
NUNO ÁLVARES Deixar-me-eis falar com ela à vontade.
 
FROILÃO Deixarei.
 
NUNO ÁLVARES Aqui neste lugar: eu aqui, Alda nessa escada.
 
FROILÃO E eu em cima no patim.
 
NUNO ÁLVARES Concedido.
 
FROILÃO Pudera não!
 
Nuno Álvares Se recusar... partirei só, esta mesma noite.
 
FROILÃO E ireis cumprir a vossa palavra, ireis ao Minho receber D. Leonor de Alvim que vos está esperando.
 
NUNO ÁLVARES Irei... irei, se... – Primeiro me espera o Mestre de Avis em Lisboa, onde não falta que fazer, antes que... – Mas tudo isso é se eu for como dizeis. Mas sei que não hei de ir.
 
FROILÃO E eu sei que haveis de ir.
 
NUNO ÁLVARES Veremos.
 
FROILÃO Veremos.
 
NUNO ÁLVARES Pois veremos. Mas se Alda for fiel ao que... se ela não recusar, esta madrugada nos recebereis logo, aí nessa capela, e por noite partirei para Lisboa a servir meu amo, mas já esposo da minha Alda, já feliz e sossegado deste coração.
 
FROILÃO Prometo. Mas sei que não teremos dessas alvoradas.
 
NUNO ÁLVARES Ora muito me hei de eu rir do meu Froilão velho!
 
FROILÃO Dito e concluído. Até à noite, meu senhor.
 
NUNO ÁLVARES Dito e concluído. Até à noite.
 
(Froilão sobe a escada e vai para dentro da casa)
 
 
CENA III
 
Nuno Álvares encaminha-se para as janelas do alfageme em que estão os moradores com as armas; o Alfageme sai da sua porta do alto da cena, e vem à roda para o meio do proscênio.
 
ALFAGEME (à parte) Que animada prática tiveram!... e que estranha devia ser! – O padre ria e chorava, e foi-se tão contente! (Reparando em Nuno Álvares) E Nuno Álvares está triste! – Oh Alda, Alda!... Mas quê! Eu sou o alfageme. – À tua forja, alfageme. (Encaminha-se para sua casa)
 
NUNO ÁLVARES (vendo o alfageme) Belas espadas e bem corregidas, por Santa Maria! – Maravilhas tinha ouvido do alfageme de Santarém; mas vejo que ainda não diziam nada para o que é. – Quereis-me correger esta espada velha? Pôrme-eis tão guapa e tão bem guarnecida como essas que aí tendes?
 
ALFAGEME (olhando com atenção e lentamente, ora para a espada, ora para Nuno Álvares) Espada tão velha para cavaleiro tão moço!
 
NUNO ÁLVARES  Era de meu pai; não a trocara pelo melhor damasco.
 
ALFAGEME (provando-a no chão) E uma bela folha, da melhor têmpera. – Como um espelho vo-la porei, se quiserdes.
 
NUNO ÁLVARES Quando?
 
ALFAGEME Estais com pressa?
 
NUNO ÁLVARES Como quem tem de partir por horas.
 
ALFAGEME
 
Por horas?
 
NUNO ÁLVARES Esta madrugada irei para Lisboa.
 
ALFAGEME Tão depressa!
 
NUNO ÁLVARES Tão devagar é ele: já eu lá devia estar com meus cavaleiros e a minha gente a servir o Mestre de Avis.
 
ALFAGEME Boas novas me dais, cavaleiro: tereis de alvíssaras a mais bem guarnecida espada que ainda apareceu em batalha ou torneio. Darlhe-ei um fio!...– Não a poupeis, que tendes folha para muito; e com o fio que lhe eu hei de dar, cortará, sem fazer boca, por armaduras de ferro... quanto mais que... holandas e cetins são fáceis de cortar.
 
NUNO ÁLVARES Que dizeis? Não vos entendo.
 
ALFAGEME (olhando para a espada e como quem fala consigo) A espada do Prior do Crato, D. Álvaro Pais, o mais honrado fidalgo que teve esta terra, cingida por cima das armas do Mestre de Avis com que foi armado cavaleiro – aqui em Santarém, e foi um dia de prazer e de bom agouro! – D. Nuno Álvares Pereira em presença de el-rei D. Fernando, a quem Deus perdoe, e pelas próprias mãos... lindas mãos... Oh! lindas são elas – de certa rainha que...
 
NUNO ÁLVARES Sabeis a minha vida toda, pelo que vejo, senhor alfageme.
 
ALFAGEME E por tal sinal, que nenhumas armas serviram ao jovem escudeiro senão as do Mestre de Avis que a dita rainha lhe mandou pedir. Ora bem se vê que já andava fado nestas coisas, e que o que tem de ser, tem de ser. – E assim ides agora para o Mestre de Avis?
 
NUNO ÁLVARES E para quem havia de eu ir?
 
ALFAGEME E o Mestre, senhor cavaleiro, não há de ser por seu irmão, pelo filho de seu pai, o nosso rei verdadeiro, o infante D. João que está em Castela?
 
NUNO ÁLVARES Perguntais-me por coisas, senhor alfageme!... E matéria tão delicada que não sei, em verdade, o que vos responda.
 
ALFAGEME Não sabeis! (Com entusiasmo) Mas é que não podeis dar senão uma resposta: a que daria o mesmo Mestre, a que dá toda a gente honrada deste reino, a que há de dar todo o povo quando...
 
NUNO ÁLVARES Quando lhe perguntarem.
 
ALFAGEME Ou quando ele quiser falar sem que lhe perguntem.
 
NUNO ÁLVARES Bravo estais!
 
ALFAGEME Braveza chamais à justiça, a razão... de quem não quer ver em mãos de estrangeiros este reino que é nosso, que tanto sangue custou a nossos pais para o resgatar de mãos de mouros?
 
NUNO ÁLVARES (com lhaneza) Enganais-vos, meu amigo.
 
ALFAGEME (desabrido)  Não sou vosso amigo.
 
NUNO ÁLVARES Sereis, quando souberdes que o meu empenho é o vosso, que o mesmo ardor nos inflama.
 
ALFAGEME Talvez.
 
NUNO ÁLVARES Decerto. Que ambos temos o mesmo amor...
 
ALFAGEME Inda mal!
 
NUNO ÁLVARES Inda mal! – Estranho homem sois. Pois o mesmo amor à causa?...
 
ALFAGEME A causa! Ah! – a causa, a causa...
 
NUNO ÁLVARES Como assim? Estareis jogando comigo? Sabeis que me chamo Nuno Álvares Pereira?
 
ALFAGEME (tranquilamente)  Sei.
 
NUNO ÁLVARES Que sigo o Mestre de Avis?
 
ALFAGEME Agora o dissestes.
 
NUNO ÁLVARES Sereis do partido da rainha?
 
ALFAGEME  Eu!... de uma mulher que... que não tem nome para se dizer diante de gente?
 
NUNO ÁLVARES Então não vos entendo.
 
ALFAGEME Nem podeis entender. Vós sois D. Nuno Álvares Pereira, o homem do Mestre de Avis; eu sou Fernão Vaz, o alfageme, o homem do povo. A vossa causa é a do vosso príncipe cujo sois, a minha a da terra em que nasci. Bem vedes que diferentes andamos. – E contudo, por diversos que sejam nossos fins... Deus faça triunfar o mais justo!
 
NUNO ÁLVARES Amém!
 
ALFAGEME Amém! – Por diferentes que sejam em uma coisa nos entendemos e trabalharemos juntos: em castigar esse estrangeiro que nos oprime e nos desonra, em libertar o reino dessa insuportável tirania. – Contai com o povo, senhores cavaleiros. E pelo de Santarém vos respondo eu.
 
NUNO ÁLVARES Sois um homem de honra e de primor, Fernão Vaz. (Oferecendo-lhe a mão) – Dai-me a vossa mão.
 
ALFAGEME (fugindo com a sua) A minha mão, senhor D. Nuno! Já vos disse que não era vosso amigo.
 
NUNO ÁLVARES Mas sou eu vosso; e em penhor desta amizade sincera vos peço que aceiteis a minha mão. (Oferecendo-lhe outra vez)
 
ALFAGEME Não posso aceitá-la.
 
NUNO ÁLVARES Por quê?
 
ALFAGEME Porque não dou a um homem, em testemunho de amizade, esta mão que talvez, antes de muito, tenha de pegar numa espada para lhe atravessar o coração.
 
NUNO ÁLVARES Pois não são meus contrários os vossos? Na hora do combate não estaremos ambos do mesmo lado?
 
ALFAGEME Sim, contra o inimigo comum, e até que ele seja destruído; mas... Não me peçais mais explicações, senhor D. Nuno... A vossa espada estará pronta esta noite. E o alfageme estará pronto sempre, ele e os seus, todo este povo de Santarém, para defender a liberdade do reino. Que mais quereis? – Tendes os vossos segredos, e eu os meus: cada qual guarde o que é seu. – Olhai: (apontando para o fundo esquerdo) vedes aquele homem que aí vem correndo a toda a brida?
 
NUNO ÁLVARES (olhando para o mesmo lado) Vejo. E se me não engano, é, é...
 
ALFAGEME É Mendo Pais, meu colaço, que ainda antes de ontem daqui partiu.
 
NUNO ÁLVARES Como ele vem açodado!
 
ALFAGEME Mendo Pais, o irmão de D. Guiomar dali defronte? (Apontando para a casa defronte) E torna de Lisboa já. Grande caso deve de ser. – Lá dá volta, lá entra no pátio. Apeia-se. Ei-lo aqui vem,
 
 
 
CENA IV Nuno Álvares, o Alfageme e Mendo Pais.
 
MENDO Alvíssaras, alvíssaras! Ganho-as eu? dizei-me. Não sabeis ainda as novas?
 
NUNO ÁLVARES Quais?
 
MENDO Ah! Não sabeis; já vejo. – A rainha... o Mestre... (Reparando em Nuno Álvares) – Oh! senhor D. Nuno, perdoai que vos não conhecia com o alvoroço, perdoai. – O senhor D. João, vosso amo, aquele grande príncipe, verdadeiro filho de el-rei D. Pedro, sangue de Pedro Justiceiro!...
 
NUNO ÁLVARES Que lhe sucedeu? Dizei, por vossa alma.
 
MENDO Eu fui logo oferecer-me ao serviço do Mestre, que me deu esta carta para vós, senhor D. Nuno,
 
NUNO ÁLVARES Dai, dai depressa. (Toma a carta e abre)
 
MENDO Oh que grande príncipe! Aquele infame conde Andeiro...
 
ALFAGEME O conde Andeiro?...
 
MENDO (reparando no alfageme)
 
Oh! Fernão Vaz, meu colaço, também vos não tinha visto. Se eu ainda não estou em mim. Parabéns, homem. Tínheis razão, Fernando: eu é que... Mas, bem vos haveis de lembrar... não podia crer, parecia-me impossível. Enfim...
 
ALFAGEME Enfim explicai-vos. O conde Andeiro?
 
NUNO ÁLVARES (levantando os olhos da carta que está lendo) O Mestre?...
 
MENDO Morto, morto vilmente como...
 
NUNO ÁLVARES e ALFAGEME (a um tempo) Quem? quem?
 
MENDO João Fernandes Andeiro, o conde de Ourém.
 
ALFAGEME Vitória, vitória! A justiça de Deus que por fim começa.
 
NUNO ÁLVARES (tristemente) Começado está. Quando acabará agora?
 
 
CENA V Nuno Álvares, continuando a ler a carta; Alfageme, Mendo Pais, Froilão Dias, Joana e mais donzelas, Brás Fogaça, Gil Serrão e mais serralheiros do Alfageme que acodem aos brados deste.
 
ALFAGEME Vinde; vinde, acudi todos a ouvir a boa nova. Morreu o traidor. Viva Portugal! Morreu o conde Andeiro... (Voltando-se para Mendo) – E dizei, Mendo: às mãos do povo?
 
MENDO Às do Mestre de Avis, que no paço mesmo, e quase aos olhos da rainha, o cravou de punhaladas.
 
ALFAGEME (descontente) Paciência: foi só meia justiça. – Mas contai-me: que sucedeu depois? A rainha?...
 
NUNO ÁLVARES O Mestre?
 
MENDO Pouco mais sei do que isto. No instante que sucedeu o que vos contei, logo o Mestre me deu essa carta; saí de Lisboa e pouco descanso tomei no caminho, corri sempre até aqui chegar. Pelas mas que passei já andava tudo alvorotado. Esperavam-se grandes coisas.
 
ALFAGEME  E grandes coisas haverá: eu vos prometo.
 
NUNO ÁLVARES (aos cavaleiros que o rodeiam) Senhores, estai prestes que esta alvorada partimos para Lisboa.
 
ALFAGEME (com intenção)  E por que não já, D. Nuno Álvares Pereira?
 
NUNO ÁLVARES Porque... porque... (À parte a Froilão) – Esta madrugada parto; não vos esqueçais.
 
ALFAGEME (com intenção) Perdereis todo este tempo daqui até amanhã?
 
NUNO ÁLVARES São as ordens do Mestre, que saia daqui ao romper da alva amanhã, para estar em Lisboa, às portas de Santo Antão, a... (Pegando na carta como quem se afirma e lendo) – Eis aqui o que me diz o Mestre: “O honrado povo de Lisboa abraçou a nossa causa...”
 
ALFAGEME Porque o Mestre de Avis tomou a dele. E enquanto o Mestre nos for fiel...
 
NUNO ÁLVARES Pois quem é o Mestre de Avis, homem? De quem é a liberdade que ele defende, senão do povo?
 
ALFAGEME Todos juram pela liberdade do povo quando precisam dele.
 
NUNO ÁLVARES Sois desconfiado.
 
ALFAGEME Sou. – Não era; fizeram-me.
 
NUNO ÁLVARES Guardai para vós – ao menos por agora – essas desconfianças. A todo o tempo é tempo para ser ingrato.
 
ALFAGEME Ingrato! Já! Cedo começa a acusação do costume.
 
NUNO ÁLVARES Homem, por Deus, o que precisamos agora todos é de confiança e união para vencermos. Se nos desunimos já, vencerá o estrangeiro.
 
ALFAGEME Boa palavra dissestes. Venha donde vier a razão é sempre razão. (Para a sua gente) – Viva a nossa liberdade e o infante D. João!
 
SERRALHEIROS e DONZELAS Viva a nossa liberdade e o infante D. João!
 
NUNO ÁLVARES E viva o Mestre de Avis!
 
CAVALEIROS Viva o Mestre de Avis!
 
ALFAGEME (friamente) Viva! 
 
NUNO ÁLVARES (tornando a ler a carta) “O povo de Lisboa não deixou aclamar el-rei D. João de Castela. Investiu com a cavalgada que saiu dos paços do concelho para a aclamação, e o conde de Cea D. Henrique Manuel, que levava a bandeira, custou-lhe muito a escapar das mãos do povo amotinado.”
 
ALFAGEME O povo de Santarém não há de ficar atrás. Esta tarde querem aclamar aqui também o tal rei de Castela. Nós lhe diremos logo. – Agora cantar, raparigas, e folgar, que este é dia de grande alegria. – Jornal dobrado a todos. – Joana, Serafina, então, raparigas, vamos a isto.
 
JOANA Que trova quereis que cantemos?
 
ALFAGEME Dizei a canção do Alfageme.
 
TODOS A canção do Alfageme.
 
(Canção do Alfageme)
 
UMA VOZ Assopra, assopra, ó Alfageme, E não descanses de assoprar:
 
A quem tem alma, a quem não teme Não pode este fogo queimar.
 
CORO A quem tem alma, a quem não teme O nosso fogo não pode queimar.
 
VOZ É o fogo que a espada tempera Que tempera nosso coração: O Alfageme, se a pátria o espera, Se ela arvora seu nobre pendão, Deixa a forja – e à pátria, que espera, Leva a espada! – Leva o coração!
 
CORO Alfageme, a pátria te espera; Deixa a forja! – leva o coração!
 
VOZ O Alfageme, que faz a espada Com que a glória se vai ganhar, Também lhe pode a mão crestada Levá-la ao campo a triunfar.
 
CORO Oh! pode, pode a mão com a espada; Levemo-la ao campo a triunfar!
 
VOZ O Alfageme, que espadas tempera, Queima o braço, caleja-lhe a mão. Pela pátria que a vida lhe dera, Como a forja, lhe arde o coração; O Alfageme, se a pátria o espera, Deixa a forja! – leva o coração!
 
CORO Alfageme, a pátria te espera; Deixa a forja! – leva o coração!
 
GIL SERRÃO Viva o Alfageme!
 
TODOS Viva!
 
BRÁS FOGAÇA Morram os cismáticos!
 
TODOS Morram!
 
ALFAGEME Viva a nossa liberdade!
 
TODOS Viva!
 
ALFAGEME Os nossos vereadores estão vendidos; os nossos mesteres são uns covardes; hoje querem aclamar rei estrangeiro, querem-nos dar por senhor a el-rei D. João de Castela: havemos de sofrê-lo?
 
TODOS Não, não.
 
ALFAGEME Puseram as armas de Castela no pendão da nossa vila, e as de Portugal... as nossas Quinas, as santas Chagas de Cristo por baixo!
 
TODOS Traidores!
 
ALFAGEME Pois a eles, meus amigos que (ouve-se um sino ao longe) o bando não tarda a sair dos paços do concelho. Não ouvis o sino da torre das Cabaças? É o sino das Cabaças; é o bando que vai estrangeiro, um excomungado. A eles, e viva a nossa liberdade!
 
TODOS Viva! viva!
 
(Continua a dobrar o sino ao longe. O Alfageme toma de seu armazém uma enorme acha de armas; todos os trabalhadores se armam, cada um com a primeira coisa que acha; fica tudo em grande desordem, armas pelo chão, etc. Saem em tumulto, dando vivas e repetindo o estribilho da canção do Alfageme)
 
Alfageme, a pátria te espera; Deixa a forja! – leva o coração!
 
 
 
ATO III As forjas do alfageme estão apagadas
 
CENA I Froilão Dias encostado à varanda do patim no alto da escada, olhando tristemente para os serralheiros e donzelas do Alfageme que entram aos dois e aos três, e como que vêm muito cansados. Depois de algum espaço que dura esta cena muda, o Alfageme entrando com a sua acha de armas às costas.
 
ALFAGEME Tornem para cá a aclamar rei estrangeiro às barbas de portugueses! – Inda que o mais povo do reino se deixe quebrantar, aqui está o de Santarém para pôr pé atrás – pé de boi, português velho – que não há movê-lo! – Foi como em Lisboa, foi melhor que em Lisboa; não o aclamaram e fugiram com a cabeça quebrada alguns dos tais fidalguinhos!
 
FROILÃO Valha-me Deus!
 
ALFAGEME (reparando em Froilão) Que é isso? estais triste! Não vos alegrais de nos ver contentes, não tomais parte na nossa alegria?
 
FROILÃO Meu amigo, Deus vo-la conserve, – e as não faça mudar em tristezas essas alegrias! Em toda a sinceridade do meu coração lhe peço: mas quando elas vêm tão alvoroçadas, não duram.
 
ALFAGEME Pois quê! achais que fazemos mal em renegar dos estrangeiros e punir por nossos direitos?
 
FROILÃO Se fosse isso só!
 
ALFAGEME E meter medo aos traidores para que nos não vendam?
 
FROILÃO Andai, andai. Deus, que o permite, bem sabe porquê: altos são os seus juízos. Mas eu gosto de alegrias mais quietas e pacíficas. Há muito tinir de espadas nessa solfa: não me agrada, não sei afinar por ela. Sou homem de paz, filhos, sou muito de paz.
 
ALFAGEME A paz já não é possível. Sobre quem acendeu a guerra, caia todo o mal que dela vier, todo o sangue que se derramar! Nós somos inocentes.
 
FROILÃO Oh Fernão Vaz! Na guerra civil não há inocentes nem culpados. E um flagelo da ira divina que desafiam os pecados dos reis – e dos povos também. Todos são executores e todos são vítimas: os que vencem por fim, são às vezes os que perdem mais. Mas... seja feita a vontade de Deus. Já que as coisas chegaram a isto!... – Para mim... acabou o rir e o folgar.
 
JOANA Pois não! E nós que havemos de fazer, sem o nosso padre capelão, sem o nosso bom Froilão? Venha para baixo, venha o nosso... (Cantando) Venha o nosso padre, padre capelão.
 
CORO DAS DONZELAS (querendo dançar, mas tibiamente) Que é o nosso santo de mais devoção!
 
FROILÃO (tristemente e descendo a escada) Vou, filhas, vou, mas é rezar por vós, e pedir àquele Senhor em cuja mão está o coração dos reis – e o dos povos – que a todos o assossegue, e nos mande paz e quietação.
 
ALFAGEME E justiça.
 
FROILÃO (já em baixo) E justiça é justiça – que nunca andou senão abraçada com a paz. E verdade, é verdade.
 
ALFAGEME Bem, bem. Deus disporá como for sua vontade: nós ponhamos de nossa parte. Que bem sabeis. Quem se fia na Virgem c não corre... Enfim, tenho dito: o povo de Santarém não há de ficar atrás do de Lisboa!
 
 
CENA II
 
Froilão vai-se encaminhando para sair; o Alfageme como para entrar em casa; Nuno Álvares.
 
NUNO ÁLVARES Froilão, o dito, dito.
 
FROILÃO Ah! sois vós, senhor. D. Nuno?
 
NUNO ÁLVARES Venho de estar com meus irmãos. O prior – quem tal diria! – o prior, meu irmão Pedro, está por Castela! – Paciência, deixá-lo. Diz que tem medo do povo; que isto que não pode sair bem. Veremos. – Diogo Alvares não; meu irmão Diogo: lembras-te? que sempre foi muito meu amigo...
 
FROILÃO É guapo mancebo, é. E D. Pedro também, e vós todos, vós todos. – Oh, que vivesse eu para vos ver armados uns contra outros!
 
NUNO ÁLVARES (refletindo) E verdade. – Mas Diogo, resolvi-o: vai comigo para Lisboa. – Assim vede: parto ao romper de alva. – E antes de partir...
 
FROILÃO Justaremos as nossas contas: está dito.
 
NUNO ÁLVARES Eu vou ter com meu irmão Diogo, que está esperando por mim ali em baixo.
 
 
CENA III Froilão Dias, o Alfageme a porta da sua casa, com a espada de Nuno Álvares, depois Gil Serrão.
 
FROILÃO Uma palavra, Fernão Vaz.
 
ALFAGEME Já sou convosco: deixai-me dar ordem a esta espada que prometi de ter pronta esta noite, e já não sobra tempo. (Falando para dentro) Olá, Gil Serrão! (Aparece Gil Serrão à janela) Vós, que já não sois para rebuliços e que ficastes em casa; e não estais estropiado de saltar e gritar como essa gente toda que aí entrou agora, – vós ide-me trabalhar no corregimento desta espada, que daqui a duas horas tereis pronta de vosso trabalho. Eu por minha mão lhe virei depois dar o último fio: – que é obra de primor, e para quem... (como quem duvida e depois se resolve) para quem a merece; é verdade; merece.
 
FROILÃO (chegando-se e pegando na espada) Ou eu já estou tonto de todo, ou estou conhecendo esta espada.
 
ALFAGEME (dando-lhe) Vede lá, vede lá. 
 
FROILÃO A mesma: não há outra em todo o Portugal como esta. De Rodes a trouxe quando lá foi servir suas comendas meu senhor D. Álvaro que Deus tem em glória, com ela foi ao Salado quando em suas vitoriosas mãos levava hasteado o lenho da Vera Cruz, com ela voltou triunfante. – Oh espada de meu santo amo, raio de Deus que tanto brilhaste naquelas mãos bem-aventuradas! Deixa-me te beijar, espada invencível, símbolo de glória e de justiça que nunca defendeste senão a honra e a virtude, deixa-me beijar a tua santa cruz por cuja cansa triunfaste sempre! – Relíquia preciosa de meu santo amo! – E como veio às tuas mãos este tesouro, alfageme?
 
ALFAGEME Deram-me a correger e guarnecer.
 
FROILÃO D. Nuno?
 
ALFAGEME Esse foi.
 
FROILÃO Providência de Deus! A espada querida do pai tocou ao filho mais querido! – Honrados são todos e cavaleiros; mas o do coração era este. Inda bem que lhe caiu em partilha. – Meu Deus, meu Deus, tenho fé que com esta espada ninguém ferirá sem justiça, ninguém poderá defender uma causa má e reprovada de vós. (Para o alfageme) Ter-lhe-eis pronta logo?
 
ALFAGEME Para esta noite lhe prometi, e não faltarei. (Dá a espada ao oficial para dentro de casa)
 
 
CENA IV Froilão Dias, Alfageme, Guiomar e Mendo Pais chegando ao alto da escada.
 
FROILÃO Ora vinde cá.
 
ALFAGEME Dizei o que quereis. 
 
(Conversam em voz baixa para um lado)
 
GUIOMAR (a Mendo) Fica tu, Mendo; que eu vou ver a doente. Logo me explicarás tudo isso, e eu te acabarei também de informar do que por cá vai. – Mas apesar do pouco bem que lhe quero, não posso deixar de a ir ver.
 
MENDO A quem, a Alda? Pois tão mal está?
 
GUIOMAR Não: é coisa que logo lhe passa. É sujeita a esses estremecimentos que dizem – mal de coração. Na verdade o que é, é que está derrancada da boa vida em que a criaram para fidalga. – A filha do mordomo de Álvaro Gonçalves, com efeito!
 
MENDO Nossa prima ainda.
 
GUIOMAR Mas que prima! Já nem se lhe sabe o grau. Como é delicada aquela Senhora! Só de ver o mano... está forte mano! o mano Nuno... lhe deram aqueles enturvamentos de cabeça. – Boa mulher de casa para um homem de trabalho, que precisa de lidar!
 
MENDO Sim, que tu noutro tempo... Mas isso já lá vai. – Pois com efeito, Fernão Vaz?
 
GUIOMAR Logo te direi tudo; e avisaremos no que se há de fazer.
 
MENDO E Nuno Álvares?
 
GUIOMAR Chegou hoje do Alentejo, poucas horas antes que tu chegasses de Lisboa; encontrou-a em requebros com o alfageme – e daí é que foram aqueles desmaios. – O amor dos manos ainda é o mesmo de parte a parte. Mas aí há coisas. Froilão, Froilão é que anda tecendo isto. Vês? Eles ali estão a cochichar. (Apontando para onde está o alfageme com Froilão) – Olha se percebes alguma coisa, e logo falaremos.
 
 
CENA V Froilão Dias, Alfageme, Mendo Pais no patim da escada.
 
FROILÃO (como continuando a conversação e tomando calor)  É a vossa última palavra?
 
ALFAGEME A derradeira.
 
FROILÃO Estais determinado?
 
ALFAGEME É uma resolução firme, inalterável, como são todas as minhas.
 
FROILÃO Que esperais ganhar com isso?
 
ALFAGEME Nada – perder muito talvez.
 
FROILÃO É o certo.
 
ALFAGEME Embora. Resolvi, não mudo.
 
FROILÃO Paciência!... Perdi a mais doce, a mais querida esperança da minha vida.
 
ALFAGEME Pois que esperáveis de mim? Que chegado o ensejo de obrar, vinda a hora do perigo e do trabalho, eu desamparasse os do meu partido, os meus populares, e aqui me ficasse a amolar espadas, enquanto outros as vão dar ao vento das batalhas? – Nunca.
 
FROILÃO Um homem como vós, abastado, independente... lançar-se no remoinho da guerra civil, renunciar ao sossego, à paz da sua casa, à felicidade tranquila que podia gozar com uma esposa querida!
 
ALFAGEME Padre, essa ventura não a criou Deus para mim... Deixai-me: para infeliz basto eu, a minha negra sina hei de corrê-la eu só... (Prossegue como quem diz involuntariamente o que não queria dizer) E quem vos diz, homem, que não é o desespero que me arremessa na voragem? – que não é o ver-me fechadas para sempre as portas desse paraíso com que sonhei, o que me arroja ao terrível abismo?... abismo espantoso, mas em cuja tremenda agitação só pode haver sossego, vida para um coração desatinado, para uma alma perdida, como a minha! Quem sabe se o desejo, se a esperança de satisfazer a única paixão, o único prazer dos desesperados, a vingança?...
 
FROILÃO Vingança, Fernando! de quem?
 
ALFAGEME De quem!... de quem? – De um homem que sou obrigado a estimar, a respeitar, cujas qualidades e espírito superior me acovardam e humilham, de um homem que... Não me pergunteis quem é, Froilão; não vos direi. E nunca lhe perdoarei a ele, nem quando nas agonias do passamento, abraçado com a cruz do Redentor.
 
FROILÃO Calai-vos, calai-vos, Fernando; tende dó de vossa alma. – Oh meu Deus, meu Deus, e este era o homem que eu tinha escolhido para meu herdeiro, para lhe deixar o precioso tesouro que a nenhum outro confiara! Este era o homem virtuoso, sem ambição, e quebrado nas paixões do mundo, a quem eu queria entregar a minha Alda!...
 
ALFAGEME (com ironia amarga) Alda me dáveis vós a mim?
 
FROILÃO Dava sim, porque te não conhecia, homem de soberbas e vinganças, que em teu coração de repúblico tens mais requintados e violentos todos os vícios de que tanto acusas a esses que Deus pôs acima de ti na ordem do mundo. (Com tristeza e desconsolação) Ah Fernão, Fernão, Deus te perdoe o mal que me fazes – e Deus te pague o desengano que ainda me dás a tempo!
 
ALFAGEME (com violência crescente) Desengano-vos eu?... Será. – Mas quem, pelo sangue de Cristo, quem é que me enganava a mim?
 
(Nestas últimas palavras aperta com tanta força a mão de Froilão, que o faz desfalecer e curvar-se. – E logo, como caindo em si, o ampara e faz sentar no banco ao pé das árvores)
 
FROILÃO Quereis... matar-me?... Começais por mim vossas bizarrias de campeador?
 
ALFAGEME (meio ajoelhado) Oh perdoai-me, perdoai-me por quem sois. Estou louco, estou perdido. Perdoai-me, que não sei o que faço nem o que digo.
 
FROILÃO (sem olhar para ele, fazendo-lhe sinal com a mão) Pois sim, sim, estais perdoado; mas deixai-me por caridade, deixaime...
 
ALFAGEME (indo-se pelo fundo da cena) Agora sim, que sou um homem reprovado e maldito de Deus!
 
 
CENA VI Froilão Dias, Mendo Pais (que se vem chegando).
 
FROILÃO (sem ver Mendo)
 
Minha filha, minha rica filha, que há de ser de ti! – ou a vida ou a razão estão por pouco; bem o sinto. Mas antes seja aqui que se acabe (pondo a mão no coração) do que aqui, meu Deus! (Batendo na testa) – Oh! seja... seja feita a vossa vontade sobre tudo. (Silêncio longo: Froilão está todo absorto em seus tristes pensamentos)
 
MENDO (chegando-se a ele como quem o quer consolar) Não vos aflijais assim, meu velho Froilão: não há de ser nada. Alda está melhor: agora me disse minha irmã que já estava boa, que não é nada.
 
FROILÃO (sem olhar para ele) Não é nada?
 
MENDO Não, não é para vos afligirdes assim.
 
FROILÃO Não é para me afligir! (Levantando-se e olhando para ele) – Senhor Mendo Pais, vós sois moço, cheio de vida e de esperança: não sabeis o que isto é; não sabeis o que é ser velho, sentir-se com um pé já frio dentro da cova, e as mãos ainda apegadas a este mundo – e o coração a vaziar-se de esperanças e a encher-se de saudades... Deixai-me, deixai-me ir abraçar a minha filha, que preciso... preciso.
 
MENDO Se é Alda que vos dá cuidado, padre...
 
FROILÃO Pois que há de ser, homem! Que outro apego tenho eu a este mundo? Tão belo é ele?
 
MENDO Estou pasmado de vos ouvir. Vós tão alegre de vosso natural, que sempre nos pregais que a tristeza e a desconfiança em Deus é pecado, – que, seja qual for a nossa sorte, devemos estar contentes com ela e viver satisfeitos!... Vós, Froilão!
 
FROILÃO Eu, Froilão, eu, aquele velho alegre e descuidado que, zombando com eles, venci os trabalhos da existência, que, a rir e a folgar, passei, cantando, as ruas da amargura desta vida, e cheguei ao calvário da velhice, tremendo com os anos, mas sem penas nem remorsos... eu, neste derradeiro termo da decrepitude, onde cuidei adormecer sem sobressalto, expirar sem agonia, mais abraçado com a minha cruz do que pregado nela... oh! a minha esperança era uma esperança ímpia e descrida. Castigou-me Deus: tenho na boca a esponja do fel e do vinagre; – nem o justo passou sem ela, como passaria o pecador! – Oh meu Deus, meu Deus, pata que vivi eu até esta hora!
 
MENDO Sossegai. Pois é Alda que vos dá cuidado, aqui está com minha irmã, comigo...
 
FROILÃO (andando e sem olhar para ele) Sim, sim.
 
MENDO Que lhe queremos como parentes.
 
FROILÃO (do mesmo modo) Sim, sim.
 
MENDO Nunca lhe faltará abrigo nem proteção; e do que tivermos, repartiremos com ela sempre.
 
FROILÃO (parando e voltando-se para ele) Sim, sim. Deus vos pague, Mendo. – Deus vos pague. – Mas lá disse o Evangelho que nem só de pão vive o homem. E o maior desabrigo e desconforto de uma alma é não ter outra alma a que se encoste. E a minha Alda, a minha Alda quando eu não estiver cá para a amar, quem há de amá-la como ela merece, como aquele coração precisa, se não for um esposo... um esposo que saiba o que ela vale?
 
MENDO Também... se quereis que vos diga, meu amigo, não sei que amizade era aquela do prior do Crato, do vosso D. Álvaro Gonçalves, que nem um triste dote soube deixar à sua rica afilhada por quem tanto morria.
 
FROILÃO (com veemência) Não lhe deixou dote! Quê? As prendas, a criação que lhe deu, aquela inocência, aquele juízo, aquela virtude... Bem digo eu que me não entendeis, Mendo. Inda bem que ela não tem outro dote.
 
MENDO Por quê?
 
FROILÃO Por que não faltariam cobiçosos, e... quem sabe? Talvez vos caísse nas mãos. (Sobe pela escada acima depressa e entra)
 
 
CENA VII Mendo Pais.
 
E não se engana, que para eu morrer de amores por ela, para a eu preferir a todas as mulheres deste mundo, não lhe falta senão essa virtude que todas as outras realça: um dote honesto e decente. – Beleza, graças, donaire, tudo me arrebata na rica priminha. Mas casar... minha pobre Alda, isso agora!... Virtude... virtude tem ela de mais! e fraca esperança posso eu ter... – E daí, quem sabe? ela não tem dote... – Se a quererá mesmo assim o alfageme? – Quer, quer, que não é homem de reparar nessas coisas. E também, com o cabedal que ele tem, pode fazer o que quiser. – Um vilão rico como um senhor! E eu pobre, miserável, e devendo-lhe uma soma que nem eu já sei. – E preciso livrar-me dele e da dívida. Veremos: estes tempos de alterações são ótimos para a gente se arranjar. (Olhando para o fundo da cena) – Aí vem Nuno Álvares Pereira. Vou-me antes que me veja, que tenho medo dele. Não sei o que tem nos olhos aquele moço que parece ler no coração da gente. Desconfio que me conheça, que perceba que me finjo tão afeiçoado ao Mestre de Avis porque assim me faz jeito para servir melhor o meu partido. – O partido da rainha! Sou do partido da rainha, sou. Por quem havia de eu ser? Sou pela rainha, porque ela tem os exércitos de el-rei de Castela atrás de si, e por fim é quem há de vencer, deixá-los andar.
 
 
CENA VIII
GUIOMAR Mendo!
MENDO Quê?
GUIOMAR Vem cá, vem já, que tenho muito que te dizer com pressa.
 
 
CENA IX
 
NUNO ÁLVARES (embuçado na capa, e com o chapeirão caído sobre os olhos) É quase noite. São horas; é noite, noite quase fechada, escura já – e cada vez escurece mais – como a pede o meu desejo. – Oh Alda, vou desenganar-me do teu amor; vou-te dar tal prova do meu coração, que se tu... (Encosta-se a uma árvore e fica como absorvido em seus pensamentos)
 
 
CENA X O Alfageme e Nuno Álvares, sem se verem um ao outro.
 
ALFAGEME (entrando) Não é possível! Este alvoroto, estes tumultos que tanto excitei, já me não podem excitar a num. Este favor do povo, que por toda a parte me acolhe, que era o alvo de todos os meus desejos, já me não move, já me não satisfaz, não me distrai deste fatal, deste insuportável tormento que se me apossou da alma. – O povo que faça o que quiser, que sirva aos Castelhanos ou ao Mestre de Avis. Que me importa! Que reine D: João o legítimo ou D. João o bastardo, D. Leonor ou D. Beatriz, católicos ou cismáticos, que se me dá a mim! Quebrou-se-me o pulso para a espada, quebrou-se-me o coração para o ódio. – Mataram-te, alfageme... Pois mataram um homem! – Disputai entre vós esta pobre terra de Portugal... combatei à vontade, que o terreiro é vosso. – Por mim... já agora... (Entra para sua casa sem ver Nuno Álvares, e atira violentamente com a porta)
 
NUNO ÁLVARES (ouvindo bater a porta) Quem vai aí! quem é? – Enganei-me, não é ninguém. (Corre a cena observando) Está tudo só.
 
 
CENA XI Nuno Álvares, que voltou a encostar-se à árvore; Alda e Froilão Dias, aparecendo no alto da escada.
 
FROILÃO (baixo para Alda) Parece-me que é ele que ali está encostado àquela árvore.
 
ALDA (sem olhar)  É.
 
FROILÃO Vês bem?
 
ALDA Não vejo, sinto.
 
FROILÃO (à parte)
 
Coitadinha! (Alto) – Vai, desce até meia escada: eu aqui fico; não tenhas receio, se vier alguém, a minha presença aqui te salva de toda a calúnia. – Mas não virá ninguém; é tarde, em casa todos estão acomodados e aí defronte também não percebo... (Observando) Está tudo quieto e só. – Minha filha, sou eu que autorizo, fui eu que ordenei esta explicação entre vos: – era indispensável, mas deve ser a última.
 
ALDA Sim, meu tio.
 
FROILÃO Tenho plena confiança em ti, Alda. Tudo o que fizeres dou por bem feito e aprovo já. Tudo, menos continuar neste fatal galanteio.
 
ALDA Galanteio, meu tio!
 
FROILÃO Pois seja paixão, sejam esses requintados amores que imaginais.
 
ALDA Tão inocentes, tão puros!
 
FROILÃO E que por isso mesmo te desacreditam mais, porque não tens malícia para os encobrir. – Enfim vai, vai, e acabemos com isto. (Esconde-se)
 
ALDA (descendo lentamente a escada, e parando de degrau em degrau)  Meu Deus! tremo toda... Desço esta escada como quem... Creio que não custa mais a subir a do patíbulo! (Tomando resolução) Meu Deus, dai-me força; Virgem do Amparo, sede comigo. (Desce apressadamente uns poucos de degraus, para como quem ficou muito cansada, põe a mão no coração, e depois, olhando para onde está Nuno Álvares) – É ele que ali está decerto. (Chama) Nuno!
 
NUNO ÁLVARES (sobressaltado) 
 
Quem me chama?
 
ALDA (chamando outra vez)  Nuno!
 
NUNO ÁLVARES Es tu, Alda? (Correndo para ela) Oh! és: não há outra voz que soe assim.
 
ALDA Sou eu, Nuno; sou eu que venho falar-te... que te venho dizer... Ai, Nuno! não há remédio, é preciso. Isto havia de acabar. Bem me adivinhava o coração. Eu fechava os olhos para não ver a realidade, para não acordar deste sonho de crianças em que temos vivido... eu, ao menos, eu... e que se desvaneceu por fim. – Um sonho, um sonho, Nuno, mas em que eu era tão... tão feliz: para que o hei de negar? Não sabes tu?
 
NUNO ÁLVARES Sei, minha Alda, sei. Que tens, que podes ter tu nesse coração que eu não veja?
 
ALDA Inda bem, Nuno, que assim o crês: não duvidarás nunca de mim?
 
NUNO ÁLVARES Duvidar de ti!
 
ALDA E hás de acreditar tudo o que eu te disser?
 
NUNO ÁLVARES Tudo.
 
ALDA
 
Pois quero-te confessar uma coisa, quero-te dizer... – Faço mal nisto; não se deve dizer; uma donzela honesta, assim na cara de um homem... – Mas tu és meu irmão, Nuno.
 
NUNO ÁLVARES Sou, dize: que me queres confessar?
 
ALDA (depois de breve silêncio)  Lembras-te dos nossos primeiros anos, dos nossos inocentes brinquedos de crianças, na Flor-da-Rosa, quando tu, pouco mais velho do que eu, terias dez anos...
 
NUNO ÁLVARES E tu oito.
 
ALDA Te chamavas o meu cavaleiro e me sentavas ao pé da fonte da Moira no fim da quinta, debaixo daqueles castanheiros tão altos... E fazia uma calma! mas ali era tão fresco. – E eu era a Bela Infanta, dizias tu, no meu jardim assentada, e tu eras o cavaleiro que vinhas da Terra Santa perguntar-me pelo anel de sete pedras, de que me tinhas deixado metade...
 
NUNO ÁLVARES (mostrando-lhe a mão esquerda, e fazendo ação de tirar um anel) Pois a minha ei-la aqui.
 
ALDA Bem sei. – E vinha teu irmão Diogo disputar-te o direito... E brigáveis às lançadas... de cana; tu para defender a tua dama, que era eu, – e ele, mais velho que tu, ficava sempre vencido. E depois, tu vinhas a mim e... e...
 
NUNO ÁLVARES E beijava-te... (Quer abraçá-la)
 
ALDA (dando-lhe a mão)
 
A mão, cavaleiro.
 
NUNO ÁLVARES (tomando-lhe a mão e beijando-lhe) É verdade, era só a mão dessa vez.
 
ALDA E teu irmão, desesperado...
 
NUNO ÁLVARES Ah! assim é que era: quando ele se desesperava muito, muito, – então, para o fazer raivar ainda mais, o beijo era... (Quer beijá-la na face)
 
ALDA (evitando-o) Não está aqui teu irmão agora, Nuno...
 
NUNO ÁLVARES (resignando-se) É verdade.
 
ALDA E eu tinha oito anos! (Pausa) E lembras-te quando teu pai nos vinha achar nestes inocentes folguedos, como ele ria, e me tomava no colo, e dizia: – “Ora basta de brincadeira, que me parece que a bela infanta vai tomando o caso a sério.” – E eu daquela idade!... eu corava Nuno.
 
NUNO ÁLVARES Coravas, por quê?
 
ALDA Porque teu pai dizia... a verdade. – Já não tinha outro prazer senão estar contigo, já me aborrecia onde tu não estavas, já te amava... como agora te amo.
 
NUNO ÁLVARES E eu! Se os nossos corações nasceram assim, se já Deus nos criou um para o outro!
 
ALDA Deus, pode ser; não sei. Mas desde então até agora, e à proporção que fomos crescendo, se foi alargando – neste mundo em que temos de viver – a imensa distância que hoje nos separa. – Amo-te ainda, Nuno... Sabe a Virgem do céu com quantas lágrimas lhe tenho confessado, que lhe tenho pedido que me ampare, que me defenda.
 
NUNO ÁLVARES De quê, Alda? – O meu amor, com ser apaixonado e violento, deixou jamais, ao pé de ti, de ser tímido e recatado, inocente como o amor de um irmão? E tu pedias à Virgem que te defendesse!... de quem?
 
ALDA (abaixando os olhos) De mim, Nuno.
 
NUNO ÁLVARES (com entusiasmo) Oh Alda, esta noite é o primeiro dia da minha vida!
 
ALDA (tristemente) E o derradeiro da minha.
 
NUNO ÁLVARES Que disseste!
 
ALDA O que é verdade, o que há de ser, o que é tão certo e resoluto na minha alma, como é certa a crença, a confiança que tenho em Deus que me há de ajudar, que me há de salvar.
 
NUNO ÁLVARES Oh Alda!
 
ALDA Este amor nasceu antes da razão e tomou o lugar dela: quando a idade a trouxe, já não achou onde caber: mas também nasceu sem esperanças, ele! Inocente criancinha como eu era quando nasceu, bem vi que as não tinha. Nasceu... – cresceu sem elas, que é maior prodígio! – mas já vês que não podia ser vivedouro: traz a morte em si. E o termo fatal chegou; está na agonia, bem vês. Deixa-o morrer em paz, meu irmão.
 
NUNO ÁLVARES Morrer! Este amor que nasceu conosco, que é parte da nossa vida! Não o deixarei morrer; não eu, Alda, que ainda quero viver.
 
ALDA Também eu quero... Não queria, mas agora preciso viver. E Deus e a Virgem, e o sentimento de minhas obrigações, e a satisfação de as ter cumprido me hão de dar ânimo para afrontar com a vida e sofrê-la.
 
NUNO ÁLVARES (com despeito) Bem dizes que nasceu fraco o teu amor, Alda, que assim podes ser tão valente com ele. Eu não.
 
ALDA Tu não! Por quê? – Por que me tens mais amor do que eu a ti? – Oxalá que o acreditasses! Mas não o crês. Esta valentia por que me motejas, donde vem ela por fim senão do mesmo excesso do meu amor? – Nuno, eu sei quanto te amo; e tu também o sabes. Assim como sei todo o amor que me tens: com ele contei. Nuno, meu querido irmão, ajuda-me, salva-me de mim mesma. Tem dó de mim, meu irmão!
 
NUNO ÁLVARES (tristemente) Irmão! (Resoluto) Sou, Alda, sou teu irmão. Que queres tu que eu faça?
 
ALDA Que partas já.
 
NUNO ÁLVARES Jurei partir ao romper de alva...
 
ALDA (com sobressalto) Tão cedo!
 
NUNO ÁLVARES (enternecido e pegando-lhe na mão) Oh Alda!
 
ALDA Oh Nuno!
 
(Ficam algum tempo assim como em suspenso e caindo-lhe as lágrimas)
 
ALDA (esforçando-se para serenar o rosto) Bem: partirás ao romper de alva... e irás para muito longe, para muito longe... aonde te espera... (Quer tirar a sua mão da dele).
 
NUNO ÁLVARES Quem?
 
ALDA Meu Deus, que força é preciso!... onde te espera a tua esposa.
 
NUNO ÁLVARES (largando-lhe a mão) Nunca! Jamais... Nunca!
 
ALDA Prometeste.
 
NUNO ÁLVARES Prometi... fizeram-me prometer. Assinei, sim, uma escritura que está nula, nula.
 
ALDA Meu irmão, tu queres-me perder? De que me serve a minha inocência de que Deus e tu são testemunhas, se tu atiras assim com a minha fama, com a minha honra às esfaimadas bocas da calúnia! Que dirá o mundo, que dirá essa poderosa família que assim vais injuriar? A tua própria família o que há de dizer? – Que o criminoso amor de uma donzela que não pode ser tua mulher... e que tu fizeste... que tu abaixaste a tua... (Com grande aflição e desconsolo) Oh Nuno, Nuno! tua irmã, a tua Alda com semelhante nome pelo mundo! (Desata a chorar)
 
NUNO ÁLVARES (tomando-lhe as mãos) Por Deus que está no céu, Alda, pela alma de meu pai, pela sua espada que aqui... (Vai com a mão ao lado da espada e não a acha) Que é da minha espada?... Ah sim. – Mas pela santa cruz daquela santa espada te juro que tal esposa não tomarei por mulher se tu...
 
ALDA (cobrindo o rosto com as mãos) Se eu o quê?
 
NUNO ÁLVARES Se tu queres ser minha esposa, minha mulher.
 
ALDA (com entusiasmo e alegria) Meu Deus, meu Deus! – Que disseste, Nuno?
 
NUNO ÁLVARES (resoluto) O que hoje, hoje mesmo, agora, neste mesmo instante quero cumprir. Tenho a palavra de teu tio.
 
ALDA (incrédula) De meu tio?
 
NUNO ÁLVARES Sim, de teu tio, que logo, aqui, nessa capela nos receberá. Eu tenho de partir ao romper de alva, que me chama o Mestre a Lisboa; mas partirei teu esposo (com júbilo), teu marido, Alda, teu para sempre, teu à face do céu e da terra. (Quer abraçá-la)
 
ALDA (evitando-o) Ainda não, Nuno. (Fazendo esforço para se tranquilizar) Ouve. Tu vais para Lisboa a chamado do Mestre?
 
NUNO ÁLVARES Vou: que tem?
 
ALDA Não te apartarás de sua companhia, de sua casa, não o abandonarás nos perigos, nas arriscadas empresas que já começou...
 
NUNO ÁLVARES  Não por certo; nunca, antes morrer mil vezes.
 
ALDA Viverás na corte, no paço, com os teus iguais, com os teus parentes, entre essas damas tão nobres e tão desdenhosas... cercado de...
 
NUNO ÁLVARES Que importa, Alda? Na corte ou no campo, rico ou pobre, grande senhor ou obscuro cavaleiro, serei teu sempre, teu.
 
ALDA (vacilando) Não digas mais, Nuno, não digas mais. (Enternecida e tristemente) Deus te há de pagar a consolação que me deram as tuas palavras. Fizeram-me um bem... – Oh Nuno! eu unha vergonha, tinha remorsos do meu amor; já não tenho. – Eu, uma pobre órfã, sem nome e quase sem parentes... tu, D. Nuno Álvares Pereira... Como havia de eu aspirar?... Havia não sei quê neste amor, que me degradava, me envilecia a meus próprios olhos. Agora faço glória dele. – D. Nuno Álvares Pereira queria-me para sua esposa! (Com agradecimento) Oh meu Nuno!
 
NUNO ÁLVARES Não eras tu minha irmã, Alda? Tirando-te esse nome que te foi dado por meu pai, qual te havia de dar eu?
 
ALDA Obrigada, Nuno; Deus te pague! Deus te há de pagar. – Até aqui tive eu forças, mas agora...
 
NUNO ÁLVARES Agora o quê?
 
ALDA (resoluta) Agora que medi toda a generosidade desse coração, agora que te devo mais que a vida, mais que a honra – porque a meus próprios olhos me elevaste e enobreceste – agora que vejo, Nuno, que sou obrigada a confessar que o teu amor ainda excede o meu... Excede? – Excede, sim: eu não tinha senão a minha honra, e não te dava... não; prezava mais o meu nome que a tua felicidade.– E tu! tu sacrificavas-me nome, grandeza, esperanças do mundo... quem sabe se a honra também? – Pois quê, Nuno! Reflete bem: que haviam de eles dizer? – “D. Nuno Álvares Pereira, coitado!... aquilo foram escrúpulos de consciência... era uma pobre de Cristo, teve dó dela... Ele também não é rico; e depois já não havia outro remédio...” E hão de te apontar ao dedo, e hão de sorrir quando tu passares...
 
NUNO ÁLVARES E tu não sabes que com três polegadas de ferro da minha espada cravo, na boca do infame, a língua que se atrevesse a... e calo para sempre os faladores todos?... se tais houvesse, que não há; enganaste, Alda: fazes-te injúria a ti própria.
 
ALDA Bem sei que o fadas como dizes, que os havias de calar. Mas a fama de tua mulher... de tua mulher, Nuno! A tua fama, a tua honra seria feita a ponta da espada. E ela, a mal-agourada, em contínuos transes, em sustos sempre pela vida de quem lhe dava a honra! (Com resolução) Tal não será, Nuno! não hás de ser mais generoso do que eu; não me amas mais do que eu te amo.
 
NUNO ÁLVARES (enternecido) Alda!
 
ALDA Não posso, não devo, não hei de ser tua mulher.
 
FROILÃO (aparecendo) Bem, minha filha, bem! – Que vos disse eu, Nuno? (Desce)
 
NUNO ÁLVARES (olhando para cima) Oh! Froilão... Já me não lembrava; agora entendo porque... (Para Alda, com veemência) Isso não vem do teu coração, Alda; não pode ser. Foi ele. – Pois juro o sangue de Cristo que...
 
FROILÃO Não jureis, D. Nuno, que é falso.
 
ALDA (com brandura) Nuno, em tão pouco me estimas que me não julgas capaz de uma ação boa por mim?
 
NUNO ÁLVARES (perdendo a cabeça)  Não sei, não sei. Já não creio em ninguém, já não creio em nada... – E que farás tu, Alda? Que fareis vós dela, Froilão? Vós, no fim da vida, ela que mal a começa agora!... Já vejo. – Oh Alda, Alda! Uma prisão perpétua... tal será o prêmio do meu amor, e da tua virtude... um mosteiro!
 
FROILÃO Não por certo.
 
NUNO ÁLVARES Então o quê? – Ousareis?...
 
FROILÃO Casá-la com um homem honrado, da sua igualha, que tenha um coração para avaliar o que lhe dou, e fazenda para a poder estimar.
 
NUNO ÁLVARES Alda, Alda casada com um vilão! A minha Alda! Aquela flor, tão mimosa de outro trato, criada em jardins de senhores, hão de lançála na courela de um labrego... Oh Alda! (Passeia agitado pela cena; para no meio, como ferido de uma ideia súbita, e diz à parte) Disfarcemos para saber. (Alto e voltando-se para os dois) Não consinto, não há de ser... Só se... – Bem, Alda, bem eu, pelo menos, sou teu irmão, e tenho direito de saber quem é o meu... o esposo que me preferes.
 
ALDA Disseste bem, Nuno: que te prefiro.
 
NUNO ÁLVARES A mim!
 
ALDA A ti, meu irmão: porque tu não podes ser... senão meu irmão.
 
NUNO ÁLVARES E é?
 
FROILÃO Este honrado vizinho que aqui mora defronte, homem de...
 
NUNO ÁLVARES O alfageme?
 
FROILÃO Esse.
 
NUNO ÁLVARES Um homem grosseiro.
 
ALDA Não é, Nuno.
 
NUNO ÁLVARES Com que olhos o vês já!
 
ALDA Com os da razão: bem vês que o não amo.
 
NUNO ÁLVARES (para Froilão) Um cabeça de motim!
 
FROILÃO Cabeça, não, D. Nuno: este motim, todos os motins começam por mais alto. Mas descansai, que ou ele há de assossegar e deixar-se desses bandos, ou Alda não há de ser sua mulher.
 
NUNO ÁLVARES E tu queres, e tu consentes, Alda?
 
ALDA Quero, sim, meu irmão. S um homem de bem, de bom coração, honrado, generoso; teve uma criação muito acima do seu estado... como eu, Nuno; para cavaleiro estava, mas teve a nobre resolução de voltar a seu estado natural... como eu hei de ter, meu irmão.
 
FROILÃO Tem dos bens da fortuna, é laborioso e honesto, adora-a...
 
NUNO ÁLVARES (inquieto) Adora-te?
 
ALDA Não.
 
NUNO ÁLVARES  E tu queres casar com um homem que te não ama?
 
ALDA E eu tenho-lhe amor?
 
NUNO ÁLVARES Mas se... se ele te vier a amar? – E há de, oh! há de, há de amar-te, Alda! Um vilão há de amar a minha Alda? – Há de amar-te, ele há de amar-te... e tu... tu?
 
ALDA (com firmeza) Meu irmão, eu hei de fazer a minha obrigação; hei de...
 
NUNO ÁLVARES (interrompendo-a) Hás de o quê, Alda?
 
ALDA (com serenidade) Hei de amar a meu marido.
 
NUNO ÁLVARES Voto a Satanás...
 
ALDA Nuno!
 
NUNO ÁLVARES Que tal não será. – Tu, Alda, tu amarás outro homem, vivo eu! Santo Lenho da Vera Cruz que... (Desvairado e resoluto) Para amante não me queres... nem eu queria. Por esposo não me aceitaste... Pois será o que escolheres; mas uma das duas coisas há de ser. (Toma-a de repente nos braços e vai fugir com ela. Alda desmaia)
 
FROILÃO Nuno, D. Nuno! – Acudam, acudam. (Gritando a brados) Aqui de!...
 
NUNO ÁLVARES (arrojando Froilão de si) Deixai-me, eu juro pela espada de meu pai...
 
 
CENA XII O Alfageme, saindo de sua casa com a espada na mão; Nuno Álvares; Froilão Dias, caindo como desmaiado; Alda.
 
ALFAGEME (tomando-lhe o passo) Não jureis em vão, Sr. D. Nuno. A espada de vosso pai, tenho-a eu aqui: (brandindo-a) tomai-a primeiro, depois jurareis.
 
NUNO ÁLVARES Quem és tu? (Recuando e reparando nele) Oh! o alfageme. (Vai depor Alda ao pé do tio, e volta com ira concentrada) Obrigado, meu amigo! A ponto vindes. Hoje é dia de bom agouro. (Deita a mão ao lado da espada, e não a achando, diz amargamente e por entre os dentes) Oh fatalidade, sina má, não tenho espada!
 
ALFAGEME (abatendo a espada e tranquilamente) Entrai naquele armazém e escolhei.
 
NUNO ÁLVARES Vai tu mesmo; e dá-me essa que é minha.
 
ALFAGEME Era de vosso pai. Está para ver se sois digno dela.
 
NUNO ÁLVARES (enfurecido) A mim, a mim, alfageme! Caro pagarás tudo. (Corre a casa do Alfageme e volta com uma espada) Não dou esta honra a todos. Mas contigo...
 
ALFAGEME (tranquilamente e com dignidade) Por ora tenho na mão esta espada, e sou mais digno de lhe pegar do que vós. – Brigais com a espada de vosso pai, senhor D. Nuno, não com o vilão que a tem no punho.
 
NUNO ÁLVARES (mais enfurecido) Defende-te, homem, por Cristo, que já me pesa a tua vida mais que a minha. (Investe furioso com o Alfageme, que se defende com todo o sanguefrio, e procura desarmá-lo sem lhe fazer mal).
 
ALDA (acordando com o tinir das espadas) Nuno, Nuno, meu irmão, meu!...
 
(Nuno cai)
 
ALDA Ai! (Acode-lhe e abraça-se com ele)
 
FROILÃO (levantando-se) Que fizeste, homem! – Oh meu querido amo! (Vai-lhe acudir também)
 
ALDA (erguendo a cabeça, sem olhar para o Alfageme, mas levantando a mão para ele)  Fernão Vaz, que vos não tornem a ver os meus olhos.
 
ALFAGEME (com um sorriso amarelo) Não é nada, senhor; vede. Foi um leve bote no ombro, que lhe não pude evitar por mais que fiz.
 
NUNO ÁLVARES (tornando a si e sentando-se) Alda! – Foi a espada de meu pai: a justiça era por ela. (Levantando-se em pé) Não estou ferido: o poder daquela espada me derribou e me fez cair em mim. Sois um homem honrado, alfageme. – Alda, perdoa-me, perdoa a teu irmão, a teu irmão... que não é já... que há de vir a não ser... mais que teu irmão. – A minha espada, Fernão Vaz.
 
ALFAGEME Ei-la aqui, senhor cavaleiro.
 
NUNO ÁLVARES (beijando-a muitas vezes) Espada de meu pai, que tão bem começas a servir-me! tu serás na minha mão...
 
ALFAGEME (com entusiasmo) Um ralo de glória!
 
ALDA (do mesmo modo) Um símbolo de honra.
 
ALFAGEME A defensão de Portugal!
 
FROILÃO A vitória de Cristo!
 
ALFAGEME (como em êxtase) Sereis o primeiro homem de Portugal, D. Nuno Álvares Pereira! Não vos pese, não vos pejeis de ser vencido do pobre alfageme. Foi essa espada que tem o condão de dar sempre a vitória a quem a empunhar pela virtude. Essa espada é de encanto. Nunca vi lâmina assim. Boas fadas a fadaram; ou antes, no rio Jordão por mãos de anjos foi temperada. Tenho feito, tenho corregido muita espada, nunca vi faiscar centelhas como de fogo do céu, quais essa deita. Essa espada vos fará grande, vos dará títulos, honras, vos fará... conde, Condestável do reino... e digno de tudo isso!
 
NUNO ÁLVARES (olhando a espada com complacência) Que brilhante está! (Torna a beijá-la; depois, ao alfageme) Ainda vos devo o preço...
 
ALFAGEME (sorrindo) Não me paguei já por minhas mãos?
 
FROILÃO (sorrindo) Fez de moleiro o alfageme.
 
NUNO ÁLVARES (com bondade) Embora. – Esta bolsa contém mil dobras: será o dote de minha irmã (entregando a bolsa a Froilão, e depois sorrindo para o alfageme), e o preço da correção... da espada.
 
ALFAGEME (tomando a bolsa das mãos de Froilão e tornando a pô-la nas de Nuno Álvares). O dote de Alda é aquele coração. Alda, eu ouvi tudo o que dissestes.
 
FROILÃO Ouvistes!
 
ALFAGEME Ouvi, e fiquei sabendo o tesouro que me dais. – Sr. D. Nuno, o preço da correção... da espada dar-me-eis quando fordes Condestável do reino.
 
NUNO ÁLVARES (rindo) Quereis zombar. Eu Condestável!
 
ALFAGEME E uma inspiração que Deus me deu, uma visão que tive quando a estava afiando. Vê-la-eis cumprir, decerto; e então me pagareis. – Agora (apontando para Alda) que mais me quereis dar?
 
NUNO ÁLVARES Tendes razão. – Alda, a tua mão. (Toma a mão de Alda e lhe põe na do Alfageme) Alfageme, esta mulher é minha irmã; dou-te eu.
 
FROILÃO (estendendo as mãos sobre eles) E eu vos abençoo.
 
NUNO ÁLVARES (com um suspiro) Adeus, Alda... Adeus!
 
ALDA Nuno!
 
ALFAGEME Não abraçais vosso irmão, Alda? 
 
(Alda olha para o Alfageme como quem o admira, Nuno faz outro tanto; abraçam-se)
 
NUNO ÁLVARES  Adeus, Alda!
 
ALDA Adeus, meu irmão!
 
CENA XIII Nuno Álvares, Alda, Froilão Dias, Alfageme, Coro dos cavaleiros.
 
NUNO ÁLVARES (para os cavaleiros) A cavalo, meus senhores, e para Lisboa! (Para o Alfageme) Por Deus, que sois o vilão mais cavaleiro!...
 
ALFAGEME Se há tanto cavaleiro vilão...
 
(Os Cavaleiros rodeiam Nuno Álvares e se dispõem para partir)
 
CORO DOS CAVALEIROS (música guerreira) Partamos! Corramos! Partamos que a espada Corramos! Na ponta da lança Flameja a esperança Da glória! A vitória Nos quer coroar. Partamos! Corramos! Galopa, galopa a bom galopar, Que a glória, A vitória Nos quer coroar!
 
ATO IV
 
É muito de madrugada: tudo fechado em casa do Alfageme; a de Metido Pais está iluminada, e ouve-se dentro música festiva: há toda a aparência possível de um sarau suntuoso que se prolongou até de manhã.
 
CENA I D. Guiomar, damas e cavalheiros.
 
UM CAVALHEIRO (dentro) Por despedida, a canção de el-rei Artur e da sua Távola Redonda.
 
UMA DAMA (dentro) Já rompe a manhã.
 
GUIOMAR (chegando à varanda) É dia, dia já claro, e esse infernal festim sem acabar! E meu irmão que ainda não voltou? Que terá sucedido!
 
UM CAVALHEIRO (dentro) Traição! A bela Guiomar que nos deixa, a rainha da festa que nos desampara, a nossa rainha Ginebra!
 
VOZES (dentro) A rainha para o seu trono! Saem vários cavalheiros e damas ao patim, que levam D. Guiomar para dentro.
 
TODOS A rainha da festa, e vamos à canção. Alguns cavalheiros e damas ficam de fora no patim.
 
UMA VOZ (canta)
 
COPLAS
 
(Copla I) El-rei Artur – o coitado! El-rei Artur de Inglaterra, Cos seus doze cavaleiros,
Vede-lo, vai para a guerra. Vão pajens, vão escudeiros, Tudo vai por seu mandado; Que el-rei Artur de Inglaterra Vai para a guerra – coitado!
 
CORO El-rei Artur de Inglaterra, Deixá-lo ir para a guerra!
 
(Copla II) Fica a rainha Ginebra, Fica a Távola Redonda... Deixá-lo ir com seu primor! Lá de sangue espuma a onda, Aqui ferve almo licor. Suas glórias ele celebra, Nós a Távola Redonda E a rainha Ginebra.
 
CORO Suas glórias ele celebra, Nós a rainha Ginebra.
 
UM CAVALHEIRO Guapa canção! E a propósito: o Mestre de Avis e os seus valentões que o têm a ele pelo rei Artur e a si por outros tantos Galaazes e Lancelotes! Pois que batalhem eles, e nós fiaremos com a Távola Redonda e...
 
TODOS (cantando) E a rainha Ginebra.
 
OUTRO CAVALHEIRO (saindo ao patim com o copo na mão) À bela rainha Ginebra! E a virar.
 
TODOS (bebendo)
 
À bela rainha Ginebra!
 
ALGUNS Outra copia, outra copia.
 
(Copla III) Pela Távola Redonda Também vai rija a batalha, Rija, rija de matar. Nem capacete, nem malha Valem neste pelejar: Que a taça que gira â ronda E quem traz esta batalha Pela Távola Redonda.
 
CORO Gire, gire a taça à ronda Pela Távola Redonda!
 
(Copla IV) Pela rainha Ginebra Aqui só se há de justar; E el-rei Artur – o coitado! Por lá que ande a brigar. Cada qual tem o seu fado: Enquanto ele escudos quebra, Nós os copos – e a justar Pela rainha Ginebra.
 
CORO Lança e copo aqui se quebra Pela rainha Ginebra.
 
(Entram para dentro os que estavam de fora e ouve-se música festiva e tinir de copos, etc.)
 
CENA II Mendo Pais ricamente vestido; depois D. Guiomar, damas e cavalheiros.
 
MENDO Ainda por cá dura a festa! – É mister que acabe agora para começar a outra. Estão furiosos os populares contra ele, e não tardarão aqui. (Vai a subir a escada)
 
GUIOMAR (saindo ao patim) És tu, Mendo? Inda bem! Que há?
 
MENDO Que está a entrar el-rei de Castela, o meu, o nosso rei.
 
GUIOMAR (descendo a meia escada) Ao menos, graças a Deus, acabou isto. Deixas-me aqui com esta gente há mais de três horas. E dia e ainda se não vão; eu já não posso...
 
MENDO Agora se irão, espera: em Lhe dando a notícia. Que queres? Não havia remédio sendo festejar este grande dia com os amigos, os bons, os nossos.
 
GUIOMAR Bons, nossos! Serão...
 
MENDO Pois não são? Os principais cavalheiros de Santarém. – Espeta que já te livro deles. E temos que falar. (Sobe e diz para dentro da porta) Meus cavalheiros, el-rei D. João que chega. El-rei D. João de Castela e Portugal.
 
VOZES (dentro) Vamos-lhe ao encontro. Vamos.
 
MENDO Ide, que eu já vou.
 
(Saem damas e cavalheiros)
 
 
CENA III Mendo Pais torna a descer; D. Guiomar o segue.
 
MENDO Estamos salvos, Guiomar. Custou. Dois anos de lidas e perigos. Dois anos quase. Vejamos. Em 6 de dezembro foi a morte do conde de Ourém. A oito cheguei eu aqui, e foi...
 
GUIOMAR Aquela famosa aventura da espada do Condestável.
 
MENDO Já tu lhe chamas também Condestável.
 
GUIOMAR Se todos lhe chamam!
 
MENDO Mas nós não, que é reconhecer um título ilegítimo. Quem deu ao Mestre de Avis o direito de fazer Nuno Álvares Pereira Condestável dum reino que não é seu?
 
GUIOMAR Pois sim: que me importa a mim com isso.
 
MENDO Oh! importa-me a mim. – Mas vamos: 8 de dezembro... passou todo o ano seguinte; estamos a 8 de agosto deste ano. Há justamente vinte meses – inda não há dois anos; é verdade. Mas o que se tem passado! Ora vence o Mestre, ora el-rei de Castela. E um homem de bem sem saber por quem se há de resolver. Enfim, agora estou seguro.
 
GUIOMAR Por quê? Estás certo que vencem os castelhanos?
 
MENDO Creio que sim; mas nunca fiando. Para descargo de consciência e pelo que pode suceder, tenho servido a um e a outro, e com ambos tenho ganho. E quanto cá ao nosso alfageme e enorme dívida que lhe devemos, que é o mais importante – aqui estão os alvarás ambos. (Mostra dois pergaminhos com selos pendentes, um de fita azul, outro encarnada) Provavelmente há de servir este, o vermelhinho. Mas se não servir, cá está o outro que também não é feio. É azul: linda cor, boa cor igualmente! Todas as cores são boas, a falar a verdade.
 
GUIOMAR Oh Mendo, Mendo, que não sei que te diga!
 
MENDO Pois não digas nada, que é melhor. Agora o caso é resolver o alfageme a partir. Ele detesta os castelhanos – e isso bom é para nós; – mas está irresoluto na causa do Mestre, e é preciso decidi-lo. – Nuno Álvares e D. João estão em Abrantes: e se ele se resolver a ir para lá... tudo está feito. Tenho arranjado cá uma coisa que me parece que não falha. Deixa estar.
 
GUIOMAR Coitado!
 
MENDO Isso! vê agora se te chega a compaixão; a boas horas. Mulheres! Já te não lembra a injúria que sofreste de um vilão, Guiomar! Já te não lembra que a presença dele aqui, a sua vida, seja onde for, é um insulto, uma afronta para ti, para teu irmão... obrigado a devorá-la em silêncio por não difamar o nobre sangue da nossa família!
 
GUIOMAR (corando)
 
É verdade, meu irmão... Mas por que não mataste tu esse homem antes... antes de ele casar?
 
MENDO Mulher, mulher!... ciúmes! O nome, a fama, a honra da sua gente, a sua, nada a moveu... e o ciúme, esse...
 
GUIOMAR Que te importa o motivo, se eu consinto na infâmia de tão baixa vingança? – que é o que tu queres. – O indigno, o hipócrita, tenholhe ódio; a ela, à presumida da mulher, aborreço-a quase tanto como ao marido... parece-me que mais. E há dois anos que aí estão casados e vivendo felizes... – Feliz ele! oh não, que eu bem conheço Fernando. Ralam-no os ciúmes como a mim... Inda bem... Mas não basta: preciso mais solene vingança.– Dizes tu que por esse modo, e partindo ele para o Mestre de Avis?...
 
MENDO Ficarás vingada.
 
GUIOMAR Vilãmente.
 
MENDO Com vilão, vilão e meio. Querias tu casar com ele?
 
GUIOMAR (hesitando) Eu!... Bem sabes que não quis. Um homem que se desonrou, que se fez mecânico, podendo ser...
 
MENDO Um cavalheiro pobretão. Pois bem, não quiseste. Que lhe havia de eu fazer? Matá-lo, sabendo todos quanto lhe devo? Como ficava eu? Perdido no conceito público e sem me livrar da dívida. Assim é patriotismo, é lealdade; foi um sacrifício que fiz das minhas mais caras afeições no altar da pátria. – O partido que vencer o meu partido há de me aclamar um herói, que é o costume.
 
GUIOMAR Podias tê-lo provocado a um duelo por qualquer pretexto – e matálo honrada e lealmente.
 
MENDO Um vilão! Um duelo com um baixo mecânico! Metido Pais reptando a Fernão Vaz; cruzar a sua espada com a do alfageme!
 
GUIOMAR Não teve esse escrúpulo o Condestável.
 
MENDO Nuno Álvares Pereira? E achas que fez muito bem? Não sabes como Fernando joga a espada? – O que lhe valeu a Nuno Álvares foi que ele o não queria matar.
 
GUIOMAR Ah!... entendo.
 
MENDO Nada; isto assim é melhor. – E a minha bela Alda, a minha desdenhosa priminha... Ela é a nossa prima, arredada sim, mas... E agora é preciso valer-lhe, ampará-la.
 
GUIOMAR Metido, esqueces-te que eu sou uma senhora e tua irmã?
 
MENDO Não: nem de que essa senhora me deu o direito de a expulsar de minha casa, e declarar a todo o mundo...
 
GUIOMAR Mendo, és um covarde.
 
MENDO Sou.
 
GUIOMAR Um espia, traidor...
 
MENDO Sou.
 
GUIOMAR (desatando a soluçar e a chorar de repente) Meu irmão, perdoa-me pelo amor de Deus – , deixa-me ir, deixa-me ir já para um convento... o das Claras.
 
MENDO E o dote?
 
GUIOMAR Oh meu irmão, por alma do nosso pai; serei freira conversa, serei tudo... Mas vamos e já, já, senão morro... (Está de joelhos)
 
MENDO Guiomar!... (D. Guiomar levanta-se) – Vamos. Um dia hei de fazer uma ação boa. Irás para as Caras. Está resolvido; mas primeiro, havemos de resolver este outro arrependido a partir para melhor destino. – Oh ei-los aí vêm por fim. 
 
(Ouve-se tumulto dentro)
 
GUIOMAR Quem?
 
MENDO Agora verás. Vêm ótimos; bons tostões e boas canadas de vinho me custou.
 
(Sobem ambos a escada)
 
 
CENA IV
 
D. Guiomar e Mendo Pais no alto da escada. O povo entra em magotes e amotinado; entre eles como es Gil Serrão, Brás Fogaça e mais serralheiros do Alfageme. Joana, Serafina e outras mulheres com eles.
 
CORO DO POVO Traição, traição, traição!
 
GIL SERRÃO Quem nos perdeu!
 
BRÁS FOGAÇA Quem nos vendeu!
 
CORO Traição, traição, traição!
 
GIL SERRÃO É não ter alma.
 
BRÁS FOGAÇA Não ter coração.
 
CORO Traição, traição, traição!
 
GUIOMAR (para Mendo)  São capazes de o matar, Mendo.
 
MENDO E se fossem, a perca! – Mas não, não é nada; deixa estar.
 
GUIOMAR Então o que é, que tem esta gente?
 
MENDO Tem o que ainda agora te disse; que está el-rei de Castela perto da vila, que aí vai subindo a calçada da Atamarma; e agora estão com medo do castigo que merecem. E o costume: chega-lhe tarde, mas chega-lhe deveras. Até aqui, o Alfageme era o seu homem, o seu capitão; agora hão de querer pendurar o caudilho à porta do Sol para ver se lhes escapa a garganta deles, e hão de gritar que ainda bem que se livraram do Alfageme, que era quem os obrigava a fazer as maldades e as cruezas que fizeram.
 
GUIOMAR Mas todos nós vimos o contrário; e a ti mesmo por duas vezes te salvou ele a vida, escondendo-te do povo e defendendo-te quando esses amotinados gritavam por esta escada acima: “Morra o castelhano, o cismático, o traidor, o espia!”
 
MENDO E verdade: e é a mesma coisa agora, a mesma gente, agora queremno matar a ele por não ser castelhano nem cismático.
 
GUIOMAR Pois sim; mas acode-lhe tu, e salva-lhe a vida ao menos, que bem sabes quanto lhe devemos.
 
MENDO Devemos, devemos; e para lhe não dever é que...
 
GUIOMAR Anda, vai.
 
MENDO Se eles estiverem pelo que lhes eu disser... (Começa a descer lentamente a escada)
 
CORO Traição, traição!
 
JOANA Meu pai!
 
GIL SERRÃO Minha filha!
 
SERAFINA E tu, meu irmão!
 
CORO De nós que será?
 
GIL SERRÃO Ai quem nos perdeu!
 
BRÁS FOGAÇA Ai quem nos vendeu!
 
GIL SERRÃO Foi ele.
 
CORO Foi ele, foi ele.
 
BRÁS FOGAÇA Pois já, pois hoje por todos aqui pagara.
 
CORO Pois hoje por todos aqui pagará.
 
 
CENA V Gil Serrão, Brás Fogaça, Joana, Serafina e mais amotinados; o Alfageme abrindo a porta de casa e saindo; atrás dele Alda, Froilão Dias e Mendo Pais; D. Guiomar no patim da escada.
 
ALFAGEME Quem é que há de pagar por todos? Se sou eu, aqui estou. Em que moeda quereis que vos pague?
 
ALDA (abraçando-se com o Alfageme) Fernando, Fernando, lembra-te de teu filho!
 
ALFAGEME (desembaraçando-se dela) Deixa-me, Alda: estas coisas não são para mulheres. Vai para ao pé de teu filho, deixa-me.
 
GUIOMAR (para Mendo) Então vai, olha que... (Impaciente e levantando a voz) Foge, Fernando, que te matam.
 
(Rumor entre os amotinados, que todos se voltam para onde está Guiomar)
 
ALDA  Ela tem razão, foge, Fernando.
 
MENDO (chegando-se ao pé dele) E o mais prudente, Fernando. Essa gente está furiosa e com medo; por consequência capazes de tudo. Sai pela porta de trás da tua casa que deita para o rio. Eu terei mão neles por aqui. Nuno Álvares... a quem chamam o Condestável, lá entre a gente do Mestre – está em Abrantes.
 
ALDA Em Abrantes, tão perto daqui! Vai para ele, vai que te há de acolher bem. Oh! decerto! E escaparás desta má gente... Maus! coitados, estão loucos.
 
FROILÃO E espicaçados de más moscas anzoneiras, de ruins agulhas ferrugentas que aqui andam tecendo mentiras e desgraças. (Olha para Atendo; depois querendo afastar o Alfageme) Deixai-me falar com eles.
 
ALFAGEME (segurando-o)
 
Com estes aqui? Que quereis fazer? Pedir-lhes que me perdoem! A mim! Pelo Santo Milagre de Santarém que ajustarei minhas contas com eles, eu em própria pessoa e sem mais ninguém.
 
ALDA Fernando!
 
ALFAGEME Deixa-me, já te disse. (Adiantando-se para os amotinados) Que me quereis vós, que vos devo eu? Falai. Apelidastes-me de traidor: em que vos atraiçoei, quando, por quem? Que vos vendi... Eu, Fernão Vaz, til; o Alfageme de Santarém! Por que preço? Dizei. – Olhai para essas oficinas! Abandonadas, desertas. Essas forjas!... há dois anos apagadas! Esses armazéns!... vazios. A minha fazenda!... gasta, consumida. Em quê? Em vos sustentar com essas armas na mão. Essas armas que eu vos dei... para quê? Para defenderdes a vossa própria causa. A vossa causa que vós desertastes... que nunca defendestes; porque é ruim sina do povo que nunca a sua causa soube defender – precisa de um homem, de um nome, de um fantasma – da sombra de qualquer coisa, contanto que não seja a sua, para tomar calor por ela. Qual foi o meu crime? Pretender tirarvos dessa cegueira! – Não queríeis a rainha para não servir a estrangeiros; tínheis razão. Mas é foiça servir alguém?
 
GIL SERRÃO O Mestre de Avis é pelo povo, é-nos leal.
 
ALFAGEME É leal o Mestre de Avis! E passeou pelas ruas de Lisboa com aquele pendão em que estavam pintados seus dois infelizes irmãos, o infante D. João e o infante D. Dinis, os verdadeiros, legítimos herdeiros de el-rei D. Pedro e da coroa destes remos, para depois...
 
BRÁS FOGAÇA As cortes já decidiram o contrário.
 
ALFAGEME (com escárnio)
 
As cortes... as cortes... Meia dúzia de homens que lá mandou o seu bando deles!
 
GIL SERRÃO Traição! traição!
 
TODOS Traição, traição!
 
(Mendo Pais anda por entre os grupos dos amotinados, fingindo que os acomoda, e excitando-os mais)
 
ALFAGEME (levantando a voz) Traição é para traidores. Eu sou o Alfageme de Santarém. Digo-vos eu que o Mestre de Avis não foi leal com o povo, não foi leal com seus irmãos. Fizemo-lo Defensor do reino, ele fez-se rei a si. Protestou guardar a coroa para seu irmão, e guardou-lhe... pondo-a na cabeça. – O mais povo de Portugal que faça o que quiser: o de Santarém... não aclamou o Mestre, e enquanto eu for vivo não o há de aclamar.
 
BRÁS FOGAÇA O Mestre foi aclamado nas cortes de Coimbra: é o rei de Portugal. – Viva el-rei D. João! Viva o Mestre de Avis!
 
MENDO (a um grupo de amotinados) Lembrai-vos que a vanguarda de el-rei de Castela está já às portas de Santarém.
 
GIL SERRÃO El-rei D. João de Castela que vem aí, e todo o poder do seu reino com ele.
 
BRÁS FOGAÇA Está um forte rei! Eu quero o nosso rei natural. Viva o Mestre de Avis!
 
GIL SERRÃO Pois esse é que está um fresco rei! Não o quero para mim.
 
ALGUNS Nem para mim.
 
Outros Nem para mim.
 
GIL SERRÃO Ninguém o quer. Tem razão o Alfageme.
 
TODOS Tem razão o Alfageme.
 
ALFAGEME Ah! ele é isso? – Pois agora o tomaria eu para meu se me ele quisesse, homens sem coração, maus portugueses! O Mestre de Avis enganou o povo e foi mau irmão. Enganou o povo, menos a mim, que sempre vos disse. Gritáveis-me que ele era pela nossa liberdade, que era pelo reino. É por si: dizia eu, e acertei. A coroa era do infante D. João, ou do infante D. Dinis. Não faltou quem lhe dissesse até lá em Coimbra. E o que vos eu dizia aqui: “O nosso rei natural é o infante D. João; a bandeira dó mestre é falsa”. – Mas agora que o poder todo de Castela vem sobre ele, e sobre nós... – rei ou não rei, antes Seguir o pendão de Avis e morrer com ele... mil vezes!
 
MENDO (aproximando-se do Alfageme com hipocrisia) Mas, a falar a verdade, alguma razão dou às queixas desta gente, Fernando. Por que não aclamastes vós o Mestre de Avis direitamente, como fez Afonso Eanes, o tanoeiro de Lisboa?
 
ALFAGEME Bom pago teve.
 
FROILÃO
 
O pago que sempre têm todos os sinceros defensores de qualquer causa.
 
ALFAGEME Os que se metem com príncipes.
 
FROILÃO Com os povos não. É ver!
 
MENDO Mas enfim era uma coisa que se entendia, era um partido, um bando declarado.
 
TODOS E verdade, é verdade.
 
GIL SERRÃO Nem por Castela, nem pelo Mestre de Avis, nem por ninguém.
 
ALFAGEME Eu era só por vós: dizeis bem que não era por ninguém.
 
GIL SERRÃO Trouxe-nos sempre em suspensão; que esperássemos, que ainda não era tempo, que viria o infante D. João...
 
TODOS E verdade, é verdade.
 
MENDO (baixo a Gil Serrão) Foi traição.
 
GIL SERRÃO Foi traição.
 
ALGUNS Foi traição.
 
ALFAGEME Quem falou outra vez aqui em traição? Sois vós, senhor Mendo Pais!
 
MENDO Eu!
 
ALFAGEME Pareceu-me... Mas não podíeis ser vós; é impossível.
 
ALDA Oh Fernando, meu Fernando!
 
GIL SERRÃO A verdade é que, desde que casastes, sois outro do que dantes éreis.
 
BRÁS FOGAÇA Dantes andava com a gente; era um popular deveras; um bom matalote, o verdadeiro rei dos Alfagemes. Daí para cá, e mal que se casou com essa tal senhora que é tão fidalga e tão prendada... marido e mulher era o mesmo, só nos davam conselhos.
 
FROILÃO E quanto tinham de seu, que ninguém mais vos sustentou, há dois anos que não trabalhais.
 
GIL SERRÃO Isso é verdade, lá isso!... 
 
ALFAGEME Aconselhei-vos que trabalhásseis: não quisestes nunca. Já não queríeis fazer espadas, senão trazê-las à cinta... E eu...
 
BRÁS FOGAÇA E vos... vos é que sois a culpa. Se tomamos este ofício e deixamos o outro, quem nos ensinou senão vós?
 
ALFAGEME (convencido) Tendes razão, meus amigos; aí, tendes razão. – Soltei da mão a pedra e quando a quis parar, não pude. Foi pior, foi pior querê-la parar. E verdade, é verdade. (Humilhando-se diante dos amotinados) Perdoai-me, meus amigos.
 
FROILÃO Boa razão, Alfageme; és um homem de bem e de verdade. – Ora pois, tende paciência, que não sois o primeiro, nem sereis o último a quem tal sucede. Com a melhor fé e a melhor vontade se começam quase sempre, quanto pelo povo, estas alterações: rara vez os que sopram a labareda desejam que se ateie o incêndio destruidor que depois vem. – Pois bem, meus amigos todos, não falemos mais nisso: o que lá vai, lá vai. Ide para vossas casas, para vossas famílias, e assossegai. – Dizeis que está entrando na vossa vila el-rei
 
ALFAGEME (acudindo) De Castela.
 
FROILÃO De Castela, sim. – E que o outro... o outro está em...
 
MENDO Em Abrantes. Cedo teremos uma batalha decisiva.
 
FROILÃO Pois bem. Deus é grande, e dará a vitória a quem for de razão. – Vós não tendes feito mal a ninguém... graças ao Alfageme; não haveis que recear de um ou de outro. Sossegai e aguardaremos que Deus decida entre ambos.
 
MENDO A decisão é fácil de antever: el-rei D. João... (para o Alfageme) de Castela, como vós dizeis... traz vinte e tantos mil homens de peleja, a mais luzida gente de toda a Castela e Leão, afora tantos senhores portugueses que com ele andam... (para Alda) entre os quais o prior de Rodes, D. Pedro Alvares Pereira, irmão de Nuno Álvares, meu senhor. (Inclinando-se com reverência irônica) São dois irmãos um tanto diferentes!
 
ALDA São. Mas ambos honrados, ambos Seguiram um partido só. (Arrastando estas últimas palavras)
 
MENDO (à parte) Cuida que me faz mossa! (Alto) Toda esta gente vem com el-rei... de Castela. Sem falar nesses engenhos de fogo, nessas novas máquinas de guerra que pela primeira vez agora nos vêm a Portugal aterrar com seu espantoso bramido.
 
GIL SERRÃO O que será aquilo? Alguma diabólica invenção dos cismáticos.
 
MENDO Católicos ou cismáticos, é uma coisa terrível a tal invenção dos trons de fogo, que estoiram como bramido de trovoada e ferem como raio.
 
BRÁS FOGAÇA Senhor Deus, misericórdia!
 
MENDO E D. João, o mestre de Avis, o que tem? Seis mil e quinhentos homens, gente bisonha, feita de ontem, sem armas – gente de chuço e varapau a mor parte deles.
 
BRÁS FOGAÇA Vamos esperar el-rei de Castela.
 
ALGUNS Vamos.
 
FROILÃO E a espada do Condestável, não a contais também? Quantos mil homens vale essa, gente sem fé?
 
GIL SERRÃO Eu vou para Abrantes, que lá está o Condestável.
 
FROILÃO  Ide para vossas casas; tomai o meu conselho, filhos; deixai-vos de mais alterações e desordens. Não estais ainda ensinados – não aprendestes já bem à vossa custa? – Pobres, estragados de saúde e de fazenda!
 
MENDO El-rei D. João está entrando: deixai-vos de mais conselhos. Não faltará quem vos denuncie por seus inimigos se lhe não ides ao encontro. Ide se quereis escapar.
 
BRÁS FOGAÇA (friamente) Pois viva el-rei D. João de Castela!
 
MENDO E de Portugal.
 
ALGUNS (friamente)  Viva!
 
(Brás Fogaça e mais alguns trabalhadores saem, dando vivas frouxamente. – Gil Serrão e os outros olham para o Alfageme, que está com os braços cruzados encostado à sua porta e como quem não vê nem ouve o que se passa, com os olhos fitos em Alda, que também imóvel o contempla. O Alfageme não repara neles que, fazendo sinais uns aos outros, por fim se retiram e seguem os primeiros)
 
 
CENA VI O Alfageme, Alda, Froilão Dias, Mendo Pais, ao pé da casa do Alfageme. D. Guiomar no alto da sua escada.
 
ALFAGEME (depois de considerável silêncio) 
 
Aqui está o que é o povo! Fiai-vos em seu favor: tomai a peito suas coisas: fazei-vos caudilho, defensor da multidão, metei-vos a guiála!
 
MENDO  Que vos dizia eu, Fernando? Vilões pagam como quem são.
 
ALFAGEME Que me importa a mim como eles pagam! Servi-os eu para que me pagassem? – A causa do povo é a causa dos pobres. Mendo: que recompensa há de esperar quem a serve?
 
MENDO Oh homem! Vós não viveis neste mundo. Aí andam com o Mestre de Avis tantos servidores do povo que o outro dia não tinham um saio velho com que se cobrir, e hoje são senhores grandes e poderosos.
 
ALFAGEME Bem sei; esses não serviam o povo, serviam-se dele.
 
MENDO Mas são esses os que o povo segue e em quem se fia; e vós, com toda a vossa independência e devoção desinteressada, ficais pobre, estragado de saúde, malquisto de todos os partidos, e pelos vossos próprios alcunhado de...
 
ALFAGEME De traidor, de corrupto, de vendido, de cismático. – Que se me dá a mim de estar mal com todos, se estou bem comigo? – Fico pobre? Trabalharemos; não é assim, Alda? Mal me querem os meus? Terras tem esse mundo de Cristo para onde ir viver. E para quem vive do trabalho de suas mãos, toda a terra é pátria.
 
ALDA (deitando-lhe os braços) Sim, meu Fernando, vamos para multo longe daqui, para onde não haja destes alvorotos, destes sustos.
 
FROILÃO Desterrar-vos, homem! Queres deixar a terra em que nasceste, ir mendigar o pão do estrangeiro! Homem, tu sabes o que é sentar-se um foragido nas ribeiras da terra estranha, a olhar para aqueles campos que não são seus, a ver aqueles rostos que não conhece, a ouvir aquelas falas que não entende, e sentir-se... sentir-se cair o coração de desapego e desconforto? – Oh! antes morrer; morrer só, abandonado... desamparado de seus próprios filhos, como eu aqui morrerei... (Rebentam-lhe as lágrimas. Alda e o Alfageme o abraçam; ele rompe a soluçar)
 
ALDA  Não, meu tio, não vos deixaremos, não, nunca.
 
MENDO (fingindo-se comovido) Ora pois, isso não é vosso, Froilão: estais agravando o mal sem o remediar. A necessidade aperta, e é preciso tomar uma resolução. El-rei de Castela está perto da vila. Um poder imenso – e não exagero – todo o poder de Castela vem com ele. (Olhando para o fundo) Vedes além aquela gente que passa? – São os nossos sete vereadores com a bandeira da Câmara, e a Casa dos Vinte-e-Quatro com os seus balsões, que o vão esperar e entregar-lhe as chaves da vila. (Ouve-se dobrar o mesmo sino do terceiro ato) Oh! lá toca o sino da nossa torre das Cabaças. O poder torre daquela em Santarém é invencível; bem sabeis. E maior é o da torre Albarran, que também soou por nós nas consciências patrióticas dos bons santarenos. Ora, uns por ocos, como as cabaças de barro de uma torre, outros por cheios, como as arcas da outra; em conclusão, temos por Castela clero, nobreza e povo. 
 
(Ouvem-se vivas e vozearia)
 
ALFAGEME O povo, o povo!
 
MENDO Que há de ser, se ele traz um exército de vinte mil homens! Não há nada que faça um rei amado e querido como um bom exército; todos o adoram. – Daqui a pouco vereis como triunfam por aí os mais tímidos e indecisos, os que mais duvidam da legitimidade da tainha D. Beatriz. Vereis os vossos populares submissos e leais... – E não faltará entre eles, principalmente nos que mais violentos foram e mais atrocidades cometeram, quem, para se salvar a si, vos vá denunciar como o mais perigoso cabeça de motim.
 
ALDA Ele, que se opôs sempre a essas violências, que, por sua moderação, perdeu todo o ascendente que tinha no povo!
 
MENDO Por isso mesmo. Conheceis bem mal os homens, minha bela Alda.
 
ALDA Nãos os conheço, não: inda bem! nem desejo.
 
ALFAGEME E assim o que ele diz: moderações me perderam. Meti-me a querer ordenar o que não tem ordenação; destruí a minha própria força... E agora todos zombam de mim, escarnecem-me e detestam-me!
 
MENDO Eu bem te dizia.
 
FROILÃO Eu bem te dizia, eu bem te dizia!... De que serve agora o que vós lhe dizíeis ou o que eu lhe dizia? – Bom é dar conselhos antes do malsucedido. Eu também dei os meus e não me louvo deles, que não foram os melhores. – Em verdade, em verdade, se formos a ajuizar pelo que está sucedendo, o maior culpado aqui sou eu que sempre preguei: “Nada de partidos, nada de bandos; deixa averiguar isso a quem toca, e não te metas a fundo nessas coisas”. – Muito bom, muito bom, excelente... mas impossível. Em as coisas chegando a estes pontos, é forçoso ser por alguém para não ficar sem ninguém...
e ver todos contra si! – Mas enfim o que passou não tem remédio. O que é preciso agora é salvar dos Castelhanos... e dos maus Portugueses que ainda são piores. – Mendo Pais, vós deveis a vida a este homem que duas vezes vos tirou das mãos do povo amotinado. Não falo nas mais obrigações em que lhe estais...
 
ALFAGEME Froilão; Froilão, calai-vos: nem mais uma palavra, se não quereis que eu me vá já entregar a el-rei de Castela.
 
FROILÃO  Pois bem, não digo mais nada. Mendo sabe que...
 
MENDO Sei... E se eu pudesse mostrar...
 
FROILÃO Não podeis!... Vós, homem de el-rei de Castela, vós hoje rico e poderoso!...
 
MENDO Rico! Tu sabes, Fernando, como eu sou rico. – O meu valimento é muito menor do que supondes. Para vos eu esconder em minha casa, bem vedes que...
 
ALDA Ai, isso não, Fernando, não!
 
MENDO Eu por mim... Mas não tardavam a descobri-lo...
 
ALFAGEME  Não vos canseis com desculpas: não irei para vossa casa.
 
MENDO Tomai o meu conselho. Já sabeis que Nuno Álvares Pereira está em Abrantes: ide para ele. Tomai um dos meus cavalos. Por acaso... foi mero acaso... (confundindo-se) alcancei por um homem do Mestre que aqui passou aforrado, um salvo-conduto para entrar em Abrantes; dar-vos-ei: tomai. (Tira um papel da bolsa e dá-lhe) Aqui estamos fora de portas, ainda podeis ir sem perigo; eu tomarei cuidado que vos não embaracem. – Bem vedes que sou generoso: mando um soldado como vós aos meus... aos meus contrários.
 
ALFAGEME Obrigado, Mendo, agradeço-vos a boa tenção.
 
FROILÃO Sois cavaleiro, D. Mendo: perdoai-me que vos não fazia justiça.
 
MENDO E vós, Alda, se vós me não dizeis uma palavra de...
 
ALDA De agradecimento, senhor Mendo Pais?
 
MENDO Não digo tanto, mas de...
 
ALDA De quê?
 
MENDO De... de... – Ao menos pela boa vontade.
 
ALDA A vontade! Oh! essa ficai certo que a conheço, e que a não hei de esquecer nunca.
 
MENDO (retirando-se confuso, e indo ao pé da escada onde está D. Guiomar) Esta conhece-me, mas não me descobre; tem vergonha.
 
GUIOMAR (para o irmão)
 
Então já se resolveu?
 
MENDO (para Guiomar) Ainda não. Mas há de partir: digo-te eu. Deixemo-los agora. (Sobe)
 
 
CENA VII Alfageme, Alda, Froilão Dias.
 
ALFAGEME (falando consigo) Eu soldado do Mestre de Avis! Eu servir o príncipe ingrato que enganou o povo! Eu apresentar-me diante do... do seu Condestável, e dizer-lhe... o quê?
 
ALDA O quê, Fernando! – O que te pede o coração, o que eu nele estou lendo, porque o conheço, Fernando; o que uma falsa, uma viciosa vergonha te não deixa vir aos lábios.
 
ALFAGEME Que dizes tu, mulher?
 
ALDA O que é verdade, Fernando. – Cuidas que eu sou ainda uma criança, aquela donzela fraca e tímida que, só de ouvir falar nestas coisas, se assustava? – Já sou mãe, Fernando, e já sou tua mulher há dois anos; e de dia a dia aprendo cada vez mais a estimar-te como devo, a amar-te como me pede o coração. – Agora amo-te, Fernando, ouveme, amo-te como nunca amei.
 
ALFAGEME (abraçando-a) Bem-vinda sejas, desgraça, que tamanha felicidade me trouxeste.
 
FROILÃO Ora pois, chorem aí um bocado; despeçam-se à vontade, que eu vou ver o pequeno e já venho.
 
 
CENA VIII Alda, Alfageme.
 
ALFAGEME Oh! Alda, se tu soubesses como essas palavras, essa voz do coração com que as disseste, me entraram aqui na alma, e o bem que me fizeram! – Oh! venha a pobreza agora, venha a morte, a ignomínia.
 
ALDA Pois quê, Fernando! tu duvidavas de mim?
 
ALFAGEME De ti, não, Alda. De ti, da tua virtude, nem um momento. Mas o teu amor... oh! se eu o soubera, se eu o adivinhasse... – Di-lo-ei?... Digo. – Alda, esta aversão, esta repugnância invencível que eu tinha ao Mestre de Avis, não adivinhas o que me inspirava?
 
ALDA Não.
 
ALFAGEME Era o ciúme; ciúme que me ralava as entranhas, que me consumia a vida, que me seguia por toda a parte como a minha sombra, que era uma voz de agouro que nos instantes mais felizes, quando te abraçava – ainda quando te via tão alegre e satisfeita a cuidar da tua casa, a tratar do nosso querido filho... a funesta voz me dizia: “E resignação, é virtude, mas não te ama!” – Se um instante te via triste, logo eu dizia: “Suspira por ele”. – Se falavas na tua vida passada: “Eram saudades!” – Se não falavas: “Era disfarce, era por me não afligir!” – Oh que tormento, Alda!
 
ALDA Por que não me dizias tu, por que me não abrias o teu coração, esposo? Há muito viverias sossegado. – Mas ainda bem que o não fizeste! A tua confiança, a firmeza que cm mim punhas, a mesma ignorância em que eu estava do teu funesto duvidar, plantaram em meu coração este amor fervoroso com que agora te amo, e que apagou até a derradeira imagem dessa inclinação de infância que todos nos comprazemos a exagerar tanto, que tu mesmo cuidavas que ainda podia reverdecer no coração de tua mulher... Ah Fernando, tinha vontade de te não perdoar. – Eu amei a D. Nuno, e amei-o muito...
 
ALFAGEME (com ânsia) Amaste?
 
ALDA (com serenidade) Amei; e cuidei que me fosse impossível amar outro homem. Cuideio sempre até àquele momento – lembras-te? – que me disseste: “Alda, não abraças a teu irmão?” Foram palavras mágicas, de encanto, reviraram-me o coração. Não sabes o poder que tem numa mulher a generosidade e a confiança.
 
ALFAGEME Basta, Alda: vou para o Mestre de Avis. Já sei o que hei de dizer ao Condestável.
 
ALDA (com gentileza) A ver se eu adivinho?
 
ALFAGEME (sorrindo) Dize.
 
ALDA (com solenidade) O alfageme de Santarém tem coração de português: não queria servir o rei estrangeiro, nem o natural que não era legítimo. A sua causa não era... não e a vossa, senhores cavaleiros. Ele queria os foros e as liberdades do povo; vós quereis sim a liberdade do reino, mas com a grandeza e o poder, o poder todo para vós. O alfageme não vos queria ajudar. – Hoje porém que os estrangeiros vêm com tanta arrogância sobre vós, que a vossa causa parece desesperada, a vossa causa é a minha, é a do alfageme, é a do povo. Sede grandes embora; nós vimos ajudar-vos a vencer, ajudar-vos a morrer... – E morrer sabemos nós, podemos nós melhor, que menos temos porque estimar a vida... Morreremos por vós, que ao menos sois portugueses. (Mudando de tom e graciosamente) Adivinhei, Fernando? (Com seriedade e paixão) Conheço o teu coração; amo-te eu deveras que assim leio nele?
 
ALFAGEME Sim, Alda; sim, minha mulher, minha esposa adorada!
 
ALDA Parte, Fernando: não tenhas cuidado em mim. Já vês que a minha alma está temperada pela tua. – O nosso querido filho, o nosso bom tio ficam com a minha proteção... A minha proteção! pois? Não sou eu a mulher do Alfageme? – Vai que hás de vencer: diz-me o coração. Outros te aconselham que partas porque nisso veem a tua perdição: mas Deus confundirá os projetos dos maus. Vai e vence.
 
 
CENA IX Alda, Alfageme, Gil Serrão, Brás Fogaça e os mais serralheiros que voltam.
 
GIL SERRÃO (lagrimejando) Mestre, os castelhanos estão entrando pela porta de Atamarma. – Partiu-se-me a alma, mestre, de os ver entrar tão senhores de si pela nossa vila dentro. – Estes rapazes todos foi o mesmo. Sem dizermos nada uns aos outros, voltamos todos a cara para não ver tanta vergonha. – Mas até aqui vá, inda vá... Mas quando a gente viu entregar as chaves ao rei cismático, as chaves da nossa terra, onde está aquele Santo Milagre da hóstia de Cristo com o seu puríssimo sangue derramado por nós – que este foi só pelo povo católico de Santarém, não é para todos como o outro... Oh mestre! quando a gente viu tal, não houve mais que falar, saltaram-nos as lágrimas pelos olhos fora, e viemos muito depressa correndo. Já está tudo de um concerto: vamos para Abrantes ter com o Condestável; e acabouse. – Quereis vós vir conosco? Sois o nosso mestre, sereis o nosso capitão. – Se desta vez tem de acabar Portugal, acabemos nós também com de. Mas já agora quem começou a obra tem obrigação de a rematar, ou de acabar em cima dela. E, salvas as más palavras, vós, mestre, que nos metestes nisto, não vos fica bem...
 
ALFAGEME (enternecido) Meus amigos, meus honrados amigos! (Para Alda) Fui injusto para com eles, assim como fui contigo, Alda! – E eles perdoam-me como tu me perdoaste: voltam para mim! – Alda, as minhas armas. (Aos trabalhadores) Vamos para Abrantes, amigos. (Alda vai buscar as armas, volta com elas e ajuda-o a armar-se) Alda, vou pedir ao Condestável de Portugal a dívida de Nuno Álvares Pereira.
 
ALDA Qual?
 
ALFAGEME A da espada. E há de pagar-me...
 
ALDA Como?
 
ALFAGEME Quero um emprego, um lugar.
 
ALDA Tu! Qual? Aonde?
 
ALFAGEME Na vanguarda do exército de D. João I de Portugal.
 
ALDA Oh meu Fernando!
 
ALFAGEME Adeus, Alda! – Um abraço derradeiro, e adeus. – Este beijo ao nosso filho... ao nosso Álvaro... (enternecido) Então, Alfageme! E o nosso velho Froilão! – Psiu! que não ouça ele: está muito velho para estes transes de despedida. – Dar-lhe-ás um abraço por mim, Alda. 
 
ALDA Que é dele o abraço?
 
ALFAGEME (abraçando-a) Aqui está... E adeus, adeus! (Sai cantando) Alfageme, a pátria te espera, Deixa a forja! – leva o coração!
 
TODOS OS SERRALHEIROS (seguindo o Alfageme) Vamos! (Cantam) Alfageme, a pátria te espera, Deixa a forja! – leva o coração!
 
 
CENA X Alda, Froilão Dias.
 
FROILÃO (sai, entoando, com o breviário na mão) Nunc dimittis servum tuum in pace; quia viderunt oculi mei... (Repara na falta do Alfageme) Que é do Alfageme?
 
ALDA (tristemente e apontando para o fundo) Vede-o: ele acolá vai com a sua gente toda que lhe voltou, que lhe veio pedir perdão, que o leva em triunfo.
 
FROILÃO E onde vai ele, onde é que vão agora?
 
ALDA Para o Condestável, meu tio, para o exército do mestre de Avis.
 
FROILÃO Foi, resolveu-se? – Ele é verdade que já agora... Mas, ih Jesus! Não sei o que me diz o coração. Ai filha, filha!
 
ALDA Receais que vençam os castelhanos?
 
FROILÃO Espero em Deus que não. – Mas eles parece que são tantos!
 
ALDA Que importa; não hão de vencer: tenho fé.
 
FROILÃO Também eu. Mas o pior agora e que tu estás aqui só – porque eu... eu sinto-me... (Cai tomado de paralisia, nos braços de Alda, que o senta em um banco e lhe fica amparando o corpo)
 
ALDA Meu querido tio! tomai a vós. – Não me ouve. – Ouvis? (Froilão acena que ouve) Não se pode mover. – Oh! Virgem bendita! que mal o tomou de repente! E eu só... só... – Fernando que partiu sem lhe tomar a bênção! – Ai Jesus! e ninguém que me ajude, ninguém que me acuda!
 
CORO (ouve-se ao longe o estribilho da canção do Alfageme) Alfageme, a pátria te espera, Deixa a forja! – leva o coração!
 
ALDA A pátria, a pátria... Ah! (Ajoelha diante de Froilão que lhe põe a mão sobre a fronte: ela abraça o tio)
 
 
ATO V
 
CENA I Froilão Dias está sentado em uma cadeira de braços antiga, com os pés sobre um banquinho; Alda concertando-o e arranjando-o com muito carinho; Joana e Serafina sentadas no chão aos pés do padre, fiando em rocas; Coro de donzelas do Alfageme que fazem o mesmo; algumas estão ainda em pé, outras vêm chegando.
 
JOANA (canta) Padre capelão! Casai-me, meu padre, pela vossa...
 
(Froilão faz sinal de que o aflige esse cantar)
 
ALDA Aflige-vos? – Coitado, lembra-se de...
 
JOANA Então não, não: cantaremos outra coisa pata o divertir. (Canta) Quem não deve, não deve, não teme; Espadas e lanças...
 
(Sinal mais expressivo ainda de impaciência em Froilão)
 
ALDA Também a mim me aflige essa canção; faz-me saudades. (Froilão acena que sim) Cantai outra coisa.
 
JOANA Outra coisa! Que há de ser? – Ah sim; desta haveis de gostar. A xácara do Conde Arcos.
 
ALDA Como é essa?
 
JOANA E a do rei que mandou chamar o conde, que matasse a mulher e casasse com sua filha; e que depois...
 
ALDA Ai, credo, que feia coisa!
 
SERAFINA Então a da Bela Infanta. Sim? (Froilão faz sinal de que aprova) Pois vá a da Bela Infanta.
 
ALDA (para Froilão) Também me lembra saudades do outro tempo, mas que estão bem apagadas por estas mais vivas e que entraram mais fundas na alma. Não me importa avivá-las: já não tem perigo. (Para as Donzelas) Deixai-me ir buscar o meu Álvaro, e as minhas coisas todas. (Entra em casa, traz um berço com uma criança, depois uma roda de fiar, senta-se em um banquinho ao pé de Froilão e diz à parte) Estou numa inquietação, num desassossego! Não sei como hei de encobrir. (Para Froilão) Já sabeis que ontem veio um homem das bandas de Aljubarrota, que dá os dois exércitos a encontrar-se um com o outro? No dia treze deste mês de agosto; foi antes de ontem... véspera de Nossa Senhora, estavam em termos de dar batalha.
 
(Froilão levanta as mãos para o céu e como que diz: O que Deus quiser – Alda em sua roda e embala o berço)
 
SERAFINA A cantiga da Bela Infanta é como a nossa gente que foi para a guerra. E quando eles voltarem que lhe havemos de perguntar: (Entoando) Dize-me é cavaleiro...
 
JOANA Tal e qual. E a pela Infanta no seu jardim assentada que é esta; e nós, como quem diz, as suas donzelas que estão à roda. – Vês como te eu dizia: “Ela está só, a nossa patroa que é tão boa para nós: vamos lhe fazer companhia a fiar para ao pé dela, e cantaremos”. – Então vês como é bonito?
 
SERAFINA Isso é. – E mais vamos aprendendo para quando eles voltarem. Diz que há na nossa gente, no exército do nosso rei, uns senhores – não sei se é companhia se é terço, mas são muitos... que se chama a Ala dos Namorados e outros da Madressilva... Que lindos nomes tomaram! – E diz que cantam e concertam eles mesmos as mais lindas cantigas de aventuras e de amores e de princesas encantadas, que é um feitiço ouvi-los. (Para Alda) É verdade, senhora?
 
ALDA É sim.
 
JOANA Ó senhora, então aqui a senhora D. Guiomar que está no convento das Claras? Que foi aquilo, senhora?
 
ALDA Foi servir a Deus, filha: mais sossegada estará que nós. – Canta a tua canção.
 
JOANA Então vamos. (Froilão esfrega as mãos como quem é contente de ouvir e amima Joana no rosto como para lhe agradecer) Gostais? Inda bem, coitado! (Para Serafina) Vamos: quando chegar às falas da infanta com o cavaleiro, eu sou a infanta e tu és o cavaleiro.
 
SERAFINA Pois sim.
 
JOANA Toada popular bem conhecida Estava a bela Infanta No seu jardim assentada, Com o pente de ouro fino Seus cabelos penteava. Deitou os olhos ao mar, Viu vir uma nobre armada; Capitão que nela vinha Muito bem que a guiava.
 
CORO Capitão que nela vinha Muito bem que a guiava.
 
JOANA Dize-me, ó cavaleiro, Pela cruz da tua espada, Se encontraste meu marido Na terra que Deus pisava?
 
CORO Encontraste meu marido Na terra que Deus pisava?
 
SERAFINA Anda tanto cavaleiro Naquela terra sagrada! Mas dize-me tu, senhora, Os sinais que ele levava...
 
CORO Dize-me tu, ó senhora, Os sinais que ele levava.
 
JOANA Levava cavalo branco, Selim de prata doirada, No seu peito de aço fino A cruz de Cristo levava.
 
CORO No seu peito de aço fino A cruz de Cristo levava.
 
SERAFINA Pelos sinais que me deste Lá o vi numa estacada... Morrer morte de valente;
 
Eu sua morte vingava.
 
ALDA (estremecendo) Boas novas vieram à pobre da infanta.
 
JOANA Esperai, tende paciência, que ouvireis agora o resto: nem sempre o pior é certo.
 
ALDA (suspirando) Mas do susto já ninguém a livra.
 
JOANA Esse teve ela muito grande; e entrou-se a carpir e a lastimar que fazia dó ouvi-la, e vê-la arrancar seus loiros cabelos, e magoar suas lindas faces, e dizia com muitas lágrimas: (Canta) Ai triste de mim coitada, Triste que tudo perdi! Três filhas que me deixaste, Como as casarei sem ti! Ai, esposo da minha alma, Ai triste de mim sem ti!
 
CORO Ai, esposo da minha alma, Ai triste de mim sem ti!
 
SERAFINA (falando) E então o cavaleiro da armada, meio sorrindo, meio com dó dela, lhe tornou: (Canta) Que darias tu, senhora, A quem no trouxera aqui?
 
JOANA Dera-lhe ouro e prata fina, Quanta riqueza há por aí.
 
SERAFINA Não quero ouro nem prata, Não no quero pata mim. Que darias mais, senhora, A quem te trouxera aqui?
 
JOANA De três moinhos que eu tenho, Um mói cravo e gergelim, outro...
 
SERAFINA Os teus moinhos Não nos quero para mim.
 
CORO Que darias mais, senhora, A quem no trouxera aqui?
 
JOANA As telhas do meu telhado Que são de ouro e marfim...
 
SERAFINA As telhas do teu telhado Não as quero para mim. Que darias mais, senhora, A quem lhe trouxera aqui?
 
JOANA De três filhas que eu tenho, Escolherás para ti: Uma é loira como o sol, Outra alva como o al-héli; Tem quinze anos a mais velha, Corada como um rubi'.
 
SERAFINA
 
Não é assim, não é assim. A Eiria Martins do pé do rio, que sabia essa xácara como ninguém, sempre lhe ouvi cantar doutro modo. E reza assim: De três filhas que eu tenho, Todas três te dera a ti; Uma para te calçar, Outra para te vestir, E a mais formosa de todas Para contigo...
 
JOANA As cachopas do rio cantam como tu dizes; mas a trova verdadeira é como a eu cantei, que me ensinou Mestre Froilão: e é como ela se canta entre senhores, e é mais bonita assim. – Não é, padre capelão?
 
(Froilão faz sinal que sim e bate com mimo na face de Joana)
 
ALDA Tens razão, Joana; é como tu dizes. E que não fosse, era mais bonito: assim se deve dizer. – Como foi a resposta do cavaleiro, Serafina? Se ele recusa também essa oferta!...
 
SERAFINA Oh se recusa! – Não que ele... Ora escutai: (Canta) As tuas filhas, infanta, Não são damas para mim: Dá-me outra coisa, senhora, Se queres que o traga aqui.
 
JOANA Não tenho mais que te dar, Quanto tinha ofereci...
 
SERAFINA Tudo, não, senhora minha, Que inda te não deste a ti.
 
JOANA Cavaleiro que tal pede, Que tão vilão é de si... Por meus vilões arrastado O farei andar aí À cauda do meu cavalo, À roda do meu jardim.
 
CORO Por meus vilões arrastado A roda do meu jardim.
 
SERAFINA Olha lá os teus vassalos Se estão bem certos por ti, Que eu, erguendo esta viseira, Me não obedeçam a mim.
 
CORO Se eu tirar esta viseira, Hão de obedecer-me a mim.
 
SERAFINA Este anel de sete pedras Que contigo reparti... Que é dela a outra metade, Pois a minha está aqui?
 
CORO Do anel de sete pedras Minha metade está aqui.
 
JOANA Tantos anos que chorei, Tantos sustos que tremi... Deus te perdoe, marido, Que me ias matando aqui!
 
JOANA e SERAFINA Tive mais medo à ventura, Não sei como não morri.
 
CORO Assustou-se com a ventura Que a ia matando aqui!
 
ALDA Linda xácara!
 
JOANA Oh senhora, o Condestável diz que gosta tanto de romances, que está sempre a ler num livro que trata dos Cavaleiros da Távola Redonda. Se nós lhe cantarmos este romance quando ele por aqui vier depois da batalha?
 
ALDA Pois há de vir, Joana?
 
JOANA Há de sim, senhora; tenho fé que há de vir triunfante e com toda a nossa gente.
 
ALDA Deus te ouça, filha! – Podes-lhe cantar a tua xácara que é linda. E que linda acaba!
 
 
CENA II Froilão Dias, Alda, Joana, Serafina e as outras Donzelas; Mendo Pais entrando; depois povo dentro.
 
MENDO Se eles acabassem todos assim os romances, bem bonitos eram!
 
ALDA (assustada) Que quereis dizer, senhor? Mendo, que é o que sucedeu? – Vindes com cara de caso... e de mau caso! – Que novas há do exército de?... – Por vossa vida, dizei... seja o que for. – Más novas?
 
MENDO Más... más! Más para uns, boas para outros; que é a volta do mundo.
 
ALDA Santa Maria da Amieira nos acuda, que venceram os castelhanos! – Se eles eram tantos, e os nossos...
 
MENDO Cada um para dez castelhanos: é verdade.
 
ALDA Ai meu Deus, meu Deus! que será feito de...
 
MENDO De quem?
 
ALDA De meu marido, senhor.
 
MENDO Vosso marido... vosso marido. – Bem se trata agora de vosso marido. – Ocaso é que eles não venceram, o caso é que os ensinamos, que lhes demos uma lição mestra. – Ah bons portugueses, ah gente leal e destemida, que nunca me enganei convosco! Só aquela Ala dos Namorados! Só aquela companhia da Madressilva! Pois com gente daquela, por força havia de ser. – Eu sempre o disse, sempre o esperei. Que vitória, que vitória! Não tornam cá.
 
ALDA (suspensa) Não tornam cá! – Em nome de Deus, explicai-vos. Quem? – Vencemos! Quem são os que venceram?
 
MENDO (com grande entusiasmo) Os nossos, Alda, os nossos.
 
ALDA Mas quem são os vossos? – Há tempos a esta parte que não sei.
 
MENDO (picado) Não sabeis, Alda... minha senhora D. Alda! Não sabeis quem são os meus! Com que eu sou como certa pessoa que não queria os Castelhanos, porque eram Castelhanos, não queria o Mestre de Avis... porque era... nem sei eu o quê... Não queria nada! Eu quero, quis e hei de querer sempre o que...
 
ALDA O que vencer.
 
MENDO O que vencer, sim, o que tiver justiça para vencer, porque a justiça é a força, isto é, a força é que dá a justiça... Não é assim: quero dizer que a justiça é que dá a força.
 
ALDA Por caridade, Mendo, que me digais... Vós?...
 
MENDO Eu sou um Português leal e honrado, graças a Deus! Não quero ser escravo de estrangeiros, não quero...
 
ALDA (ajoelhando e pondo as mãos) Louvado seja Deus que venceram os Portugueses!
 
MENDO Assim foi. A bandeira do Campo de Ourique, a sagrada bandeira do Campo de Ourique. (Fazendo por se excitar) O pendão da honra e da lealdade!...
 
POVO (que grita dentro)
 
Vitória, vitória!
 
ALDA (erguendo-se) O meu Fernando! Inda bem que o resolvemos!
 
MENDO Inda bem! E custou. (À parte) Mal sabes tu porque eu digo ainda bem.
 
ALDA Mas dizei, contai...
 
MENDO Contar o quê? Dizer o quê? – Foi uma coisa como nunca se viu. Castelhanos, ficou tudo em postas. El-rei D. João de Castela... o tal rei cismático – veio correndo a bom correr toda a noite, e esta madrugada entrou em Santarém; aí esteve em Marvila metido. Deus sabe com que medo; e logo de madrugada... (Olhando para o rio) Olhai para acolá; vedes aquelas galeotas sem pendão nem bandeira? É ele que vai pelo rio abaixo, com vento e maré de feição, meter-se na sua armada que está à foz do Tejo, para se pôr a bom recato em terras de Castela, que estes ares de Portugal não se dão bem com ele.
 
ALDA (afirmando-se) E verdade: são as galeotas castelhanas. – Oh meu Deus, que alegria! – E onde foi a batalha?
 
MENDO Entre Aljubarrota e Leiria, nos campos ao pé de Aljubarrota... (À parte) E o alcaide sem chegar, e a minha gente!... Oh! ei-los aí vêm.
 
POVO (de dentro) Vitória, vitória pelo nosso rei D. João!... – Morram os Castelhanos! Fora os Castelhanos!
 
MENDO Fora os Castelhanos!
 
ALDA (à parte) Que vil homem! Faz-me corar. (Para Mendo) Pois vós, senhor Mendo Pais, não éreis?...
 
MENDO Era o quê? – Esperai que já vos digo o que eu era. – Graças a Deus que já se pode falar; (bradando) que já temos a nossa liberdade!
 
 
CENA III Alda, Froilão, Joana, Serafina E as outras donzelas e aguazis, Mendo Pais, o alcaide, povo.
 
UM DO POVO Viva o Mestre de Avis!
 
POVO Viva!
 
UM DO POVO O nosso rei D. João I, que o fizemos nós; não queremos outro.
 
POVO Viva!
 
MENDO Viva, viva! – E estes perros destes estrangeiros que nos têm avexado, que nos têm oprimido... fora com eles!
 
UM DO POVO E os estrangeirados que ainda são piores, muito piores.
 
POVO Muito piores.
 
MENDO Fora também.
 
POVO Fora!
 
MENDO (à parte) Está a opinião preparada, a opinião pública! (Alto) Senhor Alcaide, tende a bondade de me ler este alvará. (Tira das pregas do saio um rolo de pergaminho e o entrega ao Alcaide, que o desenrola, e ao abrir cai-lhe o selo pendente com uma grande fita encarnada. Mendo deita-lhe a mão de repente, e diz à parte) Olha o que eu ia fazendo! E o de el-rei de Castela, este. (Alto, escondendo o pergaminho no saio donde tira outro) Enganei-me, não era aquele. (Abrindo o segundo pergaminho de que pende uma fita azul com selo) Este é: é este, senhor Alcaide. Lede alto e bom som, para todos ouvirem. E desde já, e na melhor forma de direito – parece-me que assim é que se diz – vos requeiro e demando execução plena e inteira de todo o conteúdo nesse alvará de el-rei nosso senhor.
 
ALCAIDE (lendo) “Eu el-rei (descobre-se) faço saber a todos os que o presente virem como, havendo respeito ao que me representou Mendo Pais da vila de Santarém e fidalgo da minha casa e aos muitos serviços que nessa vila se têm feito, dentro e fora dela, e durante o vexame e ocupação da dita vila pelas gentes de D. João que se chama rei de Castela, dando-me secretamente aviso e parte de muitas coisas que eram do meu serviço e que...”
 
MENDO (corrido, interrompendo-o) Passai adiante, passai adiante. Também não sei para que era preciso porem aí tudo tão explicado no alvará! – Vamos à conclusão.
 
ALCAIDE (continuando a ler) “E por quanto sou informado que é de justiça e razão direita, me praz fazer-lhe mercê e doação, para todo o sempre e sem reserva alguma, de todos os haveres e alfaias, bens móveis e imóveis que na referida vila possuía um dos mais encarniçados inimigos da minha Real pessoa, o qual por este alvará, com força de sentença, como se na mesma casa do Cível da dita vila de Santarém fora passado, hei por bem declarar traidor e revel, e que por nome não perca, Fernão Vaz...”
 
ALDA Meu Deus, que perfídia, que aleivosia infame – Senhor Alcaide, ouvi-me, ouvi-me, por quem sois. Isso é falso, isso e...
 
ALCAIDE (impassível e continuando a ler) “Mais conhecido pelo nome de Alfageme de Santarém.”
 
FROILÃO (pondo-se de repente em pé e como soltando-se-lhe a voz pela grande paixão) Mente!
 
TODOS Oh! oh! oh!
 
ALCAIDE (gravemente) Padre Froilão, isto é um alvará de el-rei.
 
FROILÃO Rei!... Rei que faz desses papéis...
 
ALDA (com exaltação) Não merece ser rei.
 
(Froilão faz sinal de aprovar com violência, quer continuar a falar e não pode. Senta-se)
 
MENDO (contente) Ora ainda bem que os ouvis, senhor Alcaide. E gente deste lote.
 
ALDA Oh Mendo, Mendo! Vós, vós, Mendo?... – Traidor meu marido, Fernão Vaz traidor!
 
ALCAIDE (continuando tranquilamente) “Portanto, mando, etc., etc.”. As mais palavras do estilo. Está em boa e devida forma, não lhe falta nada.
 
MENDO Em nome de el-rei nosso senhor (descobre-se o alcaide) e em virtude do alvará que tendes na mão, vos requeiro que imediatamente me deis posse do que é meu, de tudo o que foi do traidor. (Para o povo) Morram os traidores! Não fique nada dos traidores!
 
(O povo investe com a casa do Alfageme e começa a quebrar portas e janelas com grande fúria. Alda e Joana tomam o berço e se juntam a o pé de Froilão com as outras donzelas do Alfageme, como amparando-os)
 
ALDA Meu filho! meu tio!
 
MENDO (ao povo) Não é isso, meus amigos. Tomais tudo ao pé da letra. Quando era dele, podia ser; agora é meu.
 
UM DO POVO Destruir tudo! Há de tudo ficar arrasado.
 
MENDO Alto lá! (Para o Alcaide) Senhor Alcaide, acudi pela minha fazenda, restabelecei a ordem. – Onde está a autoridade pública?
 
(O Alcaide consegue fazer cessar os amotinados)
 
ALDA Oh senhor Alcaide, meu marido, meu marido traidor! E viver eu para ouvir esta palavra... e escrita num alvará de el-rei D. João I!... Não pode ser.
 
ALCAIDE (mostrando-lhe o pergaminho)
 
Lede.
 
ALDA (depois de ler) É verdade; cá está “Traidor... revel...” (Lendo) É verdade. – “O Alfageme de Santarém!” – E esta é a justiça que temos que esperar do nosso rei natural por quem tanto padecemos! Para isto combatemos, e sangramos tanto sangue e choramos tanta lágrima!
 
ALCAIDE A falar a verdade, vosso marido... nunca se soube bem... Fernão Vaz era um tanto... Não se sabia... – E agora onde está ele? A sua ausência confirma...
 
MENDO Confirma: está claro.
 
ALDA Confirma o quê, Mendo! – Que está no exército de Portugal, que há oito dias daqui se foi para Abrantes, para o Condestável. – Não se sabia, senhor Alcaide! Não. – Meu marido é verdade que duvidou da justiça do Mestre de Avis.
 
ALCAIDE Então confessais?
 
MENDO Que remédio senão confessar.
 
ALDA Que vergonha me fazeis, Mendo Pais! – Confesso, confesso que duvidou enquanto não viu o poder de Castela prestes a destruí-lo a ele e ao povo: – então fez como verdadeiro português; tomou o partido do mais fraco, declarou-se pela liberdade do reino.
 
ALCAIDE Mas por onde consta isso, que documento, que prova?
 
ALDA  Prova! Digo-vos eu.
 
ALCAIDE (sorrindo) Ah, ah! Não basta; é preciso outras testemunhas...
 
 
CENA IV O Alfageme todo coberto de poeira e com a sua acha de armas; Alda, Froilão, Mendo Pais, Alcaide e aguazis; Joana, Serafina e as outras donzelas, povo
 
ALFAGEME E eu serei bastante?
 
MENDO (à parte) Estou perdido.
 
ALDA Fernando!
 
FROILÃO (erguendo-se e balbuciando) Meu...
 
ALFAGEME Alda, Froilão... (Mal os abraça, arredando-os) Quem me acusa aqui? Qual é o meu crime? Onde estão os meus juízes? E o meu acusador, o meu acusador quem é? (Silêncio geral) Ninguém responde! Eu sou o réu e todos se calam diante de mim! (Murmúrios entre o povo) Quem murmura lá? Quem é o covarde que só se atreve a murmurar baixo, a caluniar pelas costas? – Levante a voz e olhe bem para mim; levante a voz e diga: “Sou eu que acuso o alfageme de Santarém”.
 
ALDA (estendendo-lhe os braços)  Oh meu esposo, meu querido esposo! Não imaginas o que esta gente...
 
ALFAGEME Alda, minha adorada Alda!... – Oh! e o nosso filho? (Alda mostra-lhe o berço, ele abaixa-se e beija o filho) Deixa-me primeiro... (Repara em Froilão) Oh meu bom Froilão, dai-me a vossa bênção. (Toma-lhe a bênção, depois repara no Alcaide) Vós aqui, senhor Alcaide! E de vara na mão! Vindes em diligência do vosso ofício?
 
ALCAIDE (confuso) Fui requerido; é minha obrigação... E muito me custa...
 
ALFAGEME Custa-vos fazer vossa obrigação! Como assim, senhor Alcaide?
 
ALCAIDE O senhor Mendo Pais apresenta aqui...
 
ALFAGEME Mendo! – Senhor Mendo Pais, vós – pois vós é quê?...
 
MENDO (fazendo por mostrar resolução) Sou eu que vos acuso, é verdade. (Levantando a voz) O vosso procedimento duvidoso tem escandalizado todos os leais habitantes desta vila. Desde o princípio destas alterações fostes aqui o cabeça de motim; alvorotastes o povo contra os nobres e fidalgos, favorecendo assim a causa de Castela de que vos dizíeis contrário – e não seguistes as partes do Mestre de Avis (levantando a voz), do nosso legítimo e vitorioso rei, o senhor D. João I! Privaste-lo do auxílio dos honrados homens desta vila que, por sugestões vossas, se não reuniram à sua sagrada bandeira. – Acuso-vos disto eu e todo o povo de Santarém. (Para o povo) Não é assim, meus amigos?
 
POVO E assim, é assim.
 
UM DO POVO Podíamos estar ricos e fidalgos como todos os mesteres e homens de ofício de Lisboa e do Porto.
 
POVO É verdade, é verdade.
 
ALFAGEME (que tem estado com os braços cruzados deixando-os dizer, e olhando ora para Mendo, ora para o povo) E se o Mestre não vencesse?... Enforcados.
 
UM DO POVO Lá isso também é verdade.
 
ALFAGEME Calai-vos vós outros do povo, e deixai ouvir este fidalgo... o meu nobre acusador!
 
MENDO Não tenho mais que dizer.
 
ALFAGEME E não dissestes já pouco por certo. – Vós, Mendo, meu colaço!... Ia quase dizendo meu irmão! Meu senhor D. Mendo Pais, o filho do meu nobre protetor, o companheiro da minha infância... Ah! – E vós todos, o senhor Alcaide também! – Estáveis-me aqui julgando à revelia pela mera acusação deste fidalgo?
 
ALCAIDE (confuso)  Ausentastes-vos da vila numa ocasião...
 
ALFAGEME E verdade; saí de Santarém na própria hora em que vós, senhor Alcaide, com os vereadores e mesteres, estáveis à porta da Atamarma entregando as chaves da nossa vila a el-rei de Castela.
 
ALCAIDE (confuso) Estávamos coactos.
 
ALFAGEME
 
E eu, para o não estar, fui com a minha gente – com todos esses que arredei do serviço do Mestre, senhor Mendo Pais – apresentar-me em Abrantes ao Condestável do reino. – Não o sabíeis vós, Mendo? Não será verdade isto?
 
MENDO E. Mas assim que lá chegastes, logo vos levaram, por espia, para o castelo de Abrantes, e...
 
ALFAGEME Ah! Sabíeis vós isso! (À parte) Já sei quem fez a denúncia falsa para Abrantes. E o empenho que ele punha em que eu fosse!
 
ALDA É verdade, aquilo, Fernando?
 
ALFAGEME E verdade.
 
ALDA Prenderam-te a ti por espia, a ti?
 
ALFAGEME Por espia, a mim: não há dúvida. (Amargamente) E não quiseram atender aos meus rogos, insultaram as minhas lágrimas!... De joelhos e com as mãos postas os supliquei, pedi-lhes que me deixassem ir morrer o primeiro na vanguarda das batalhas portuguesas... – Chamaram-me castelhano, cismático, traidor, rebelde... espia!... – E eu não morri, Alda! e tive força para os ouvir, tive ânimo para suportar tantas injúrias... e para esperar ainda em Deus e na Justiça!
 
ALDA Justiça?... Oh Fernando, justiça não torna a haver nesta terra.
 
ALFAGEME
 
Quando a houve entre os homens, filha? Mas Deus ainda está no céu. – E se homens me julgassem...
 
MENDO Já estais julgado, e sem apelação. Agravai-vos para Deus, se quiserdes; que da sentença que aqui está (tocando no pergaminho que está na mão do Alcaide) para outro tribunal não podereis. – Senhor Alcaide!
 
ALCAIDE O senhor Mendo Pais tem razão: nem eu nem justiça alguma do reino tem poder para...
 
ALFAGEME Para quê, senhor Alcaide?
 
ALCAIDE Para embargar a execução deste alvará.
 
ALFAGEME (arrebata o papel das mãos do alcaide, lê com grande comoção, ora baixo ora alto, algumas palavras truncadas)  O zelo... os serviços... de Mendo Pais... fidalgo de minha casa... – revel, traidor... o Alfageme... (Falando) Eu!... Sou eu. – Este alvará é de...
 
ALCAIDE (tirando a gorra) De el-rei nosso senhor.
 
ALFAGEME Do Mestre de Avis? De el-rei D. João?... – El-rei... mandou passar este alvará!... E assinou Rei neste papel infame... que o desonra!... O Mestre de Avis por quem eu, eu... – Mentes, Alfageme, que não foi por ele. – Não foi, é verdade; mas nem por isso me deve ele menos.– El-rei assinar esta vilania... – Eu desagravo assim a honra de el-rei. (Rasga o alvará e o calca aos pés)
 
ALDA Que fizeste, Fernando!
 
POVO Oh! Oh!
 
MENDO Traição, nova traição! O alvará de el-rei!... Traição!
 
POVO Traição!
 
ALCAIDE Fernão Vaz; este crime foi público, e cometido na minha presença, diante de todo este povo. Entregai-vos às justiças de el-rei.
 
MENDO (à parte) Estou salvo.
 
ALCAIDE Entregai as vossas armas.
 
ALFAGEME As minhas armas! – Esta que ainda está tinta no sangue de... A vós, a nenhum dos que aqui estão! – Não sois vós que lhes poreis as sujas mãos. – Esta arma (quebra nas mãos a acha e a atira com grande arremessão para longe) ficará de troféu no fundo do Tejo sobre a sepultura da nossa Santa protetora. Caluniada como ela, mártir, pura e imaculada como ela, também não há de cair em mãos de infiéis.
 
ALCAIDE (para os aguazis) Prendei esse homem.
 
(Os aguazis não se atrevem)
 
ALFAGEME Fazei o que vos mandam. Não me vedes desarmado? Nem assim vos atreveis!
 
ALCAIDE Levai-o ao Castelo, para Marvila; que o metam na torre de menagem.
 
ALFAGEME A mim me levarão eles? – Nobre e justiceiro Alcaide, o Alfageme de Santarém não se leva assim. Vai ele quando quer e porque... quer.
 
ALDA Oh Fernando, Fernando!– E eu, eu é que sou a culpada, a causadora de tudo isto! Se te eu não resolvesse a ir... Antes tu não foras.
 
ALFAGEME Tal não digas, Alda; tu foste o anjo da minha guarda: ainda bem que segui a tua inspiração,, que fui, que adquiri o direito de os desprezar, de lhes chamar ingratos, de...
 
ALDA Pois tu foste, alcançaste por fim?... Não ficaste no castelo de Abrantes?... o Condestável?...
 
ALFAGEME O Condestável...
 
MENDO (ao povo) E este homem há de estar aqui a zombar de nós todos, do povo?
 
UM DO POVO Prendam o traidor. Viva o nosso rei D. João. Povo – Viva!
 
ALFAGEME Qual deles é hoje, meus bons amigos – o de Portugal ou o de Castela?
 
MENDO Insultou o povo.
 
UM DO POVO Insultou o povo, o traidor! Morra.
 
(Querem apedrejá-lo: Alda abraça-se com o marido)
 
POVO Morra!
 
 
CENA V Os mesmos; Nuno Álvares e Cavaleiros entrando.
 
ALCAIDE O Condestável!
 
POVO Viva o Condestável, viva!
 
ALDA Nuno!
 
MENDO (à parte) Estou perdido!
 
NUNO ÁLVARES Alda, Fernando! (Com os braços abertos) Falta-me aqui... ah!... vós, Froilão. (Observando a expressão dos circunstantes) Que é isto? Voltaisme o rosto! Ninguém me fala, ninguém me vem abraçar!... Alda, minha irmã... e tu, meu velho Froilão, tu também! – Triunfos, aclamações por toda a parte, e só aqui esta frieza, este...
 
MENDO Senhor Condestável, senhor conde de Ourém, dignai-vos aceitar os sinceros emboras, os parabéns do coração...
 
NUNO ÁLVARES Ah, ah! Vós aqui, Mendo! E só vós me recebeis com...
 
MENDO (com entusiasmo) Bem sabeis que...
 
NUNO ÁLVARES Oh sei, sei... – Parece-me que começo a perceber isto. Fernando, vós estais?...
 
ALFAGEME Preso.
 
NUNO ÁLVARES Preso! Vós! Quem vos prendeu?
 
ALCAIDE Fui eu, senhor... Nuno Álvares – Um samarra preta, um alcaide, um homem de vara atrever-se a um dos meus! Como foi isto, dizei-me. – Porque o prenderam, por...
 
FROILÃO (fazendo um grande esforço) Por traidor...
 
ALDA Meu tio, sossegai, por quem sois, lembrai-vos do estado em que estais.
 
FROILÃO Deixa-me, já estou bom, já estou bom. Soltou-me o despeito a fala... o despeito, a vergonha... (Andando desembaraçadamente para Nuno Álvares, e pegando-lhe na mão com força) – Ouvis bem, Nuno Álvares Pereira? – Por traidor o Alfageme de Santarém, o marido de tua irmã!... E por ordem desse rei, que vós fizestes rei para nos libertar, para nos catar nossos foros, para nos guardar justiça! – Ouves isto, Nuno Álvares Pereira! – Ouvis, senhor Condestável do reino, senhor Conde de Ourém?... Quantos mais títulos e honras e senhorios e mercês e grandezas tendes, para vos eu chamar por eles todos, e voz dizer... para te envergonhar com eles todos, Nuno, e te dizer: “És tudo isso, Nuno; D. Nuno; olha agora o Alfageme, o homem do povo, e vê o que lhe fizeste”.
 
NUNO ÁLVARES O que eu fiz?
 
FROILÃO Tu ou os teus, tu ou teu rei: que importa?
 
NUNO ÁLVARES Froilão, meu velho Froilão, tu abusas do direito que te dá...
 
FROILÃO O quê, senhor Condestável? Este hábito, esta cruz (apontando para a cruz da Ordem que traz no peito), esta idade? – Não vos prendais com isso, valentes cavaleiros de D. João I. O que é isso para os vencedores, para os libertadores da pátria. – Eu não fui a Aljubarrota; não tinha pés que lá me levassem, nem mãos que pudessem com uma partazana... hei de ser traidor como este. (Apontando para o Alfageme) – Este Fernando?
 
FROILÃO O marido de tua irmã, o homem que...
 
NUNO ÁLVARES O Alfageme que me temperou esta espada, que lhe deu este fio que nunca embotou.
 
FROILÃO E lembrais-vos disso, senhor! E nem sequer é esquecimento!
 
NUNO ÁLVARES Esquecer-me eu! – de uma dívida que ainda não paguei! (Indo para o Alfageme com os braços abertos) Fernando, meu Fernando... meu irmão... nos meus braços..
 
ALCAIDE Um traidor!
 
POVO Um traidor! Nuno Álvares (levantando a voz) – traidor! O Alfageme de Santarém! – Quem se manchou com essa vil calúnia?
 
FROILÃO O teu rei.
 
NUNO ÁLVARES Mentes.
 
FROILÃO (sentido) A mim, D. Nuno, a mim essa palavra!
 
NUNO ÁLVARES (com deferência) Perdoa-me, meu velho amigo... Oh, perdoa-me: bem sabes como te estimo, como respeito essas cãs tão honradas. – Mas dizes tais coisas... – Foste enganado. – El-rei, el-rei D. João I!... – Mas tu não sabes, Froilão, que este homem (pegando na mão do Alfageme), teu marido, Alda... o marido da tua escolha – este homem foi o nosso triunfo, a nossa glória? Estava preso, sem o eu saber, no castelo de Abrantes, por falsas informações que daqui mandaram traidores: (olha significativamente para Mendo Pais) mas conseguiu evadir-se da prisão...
 
ALDA Oh meu Fernando! (Abraça-o)
 
NUNO ÁLVARES E chegando a Aljubarrota, quando o exército castelhano já tinha rompido o centro da nossa linha, ele com os seus homens, com esta gente daqui das suas oficinas, de repente caíram sobre o inimigo e o aterraram, e o fizeram retroceder.
 
FROILÃO (rindo e chorando) Fernão Vaz, Fernão Vaz, deixa-me te abraçar, quero-te abraçar, quero chorar, quero rir, quero morrer de contente. – Deixa-os agora; que te prendam, que te confisquem, que te infamem se quiserem... – Despreza-os, meu Alfageme, que é o que eles merecem.
 
NUNO ÁLVARES  Mereciam, se não confessassem o que lhe devem. Mas...
 
FROILÃO Mereciam? – Bem, muito bem. – Ora... (Começa ajuntar os bocados rasgados do alvará que estão pelo chão) Ajuda-me, Joana, Serafina; ajudai-me a apanhar... (Ajudam-no elas, e Froilão vai dando os bocados a Nuno Álvares) Ide lendo, ide lendo.
 
NUNO ÁLVARES (lendo-os, como lhes dão)  “Traidor, cismático, revel...”
 
FROILÃO (afirmando-se em um dos pedaços que não pode ler e dando-o a Alda)  Toma, toma, lê aqui, Alda.
 
ALDA (lendo) “Todos os seus bens e haveres...”
 
FROILÃO (repetindo) Todos os seus bens e haveres. (Tira o pedaço de pergaminho das mãos de Alda e o dá a Nuno Álvares) Lede vós. – Pagam assim os reis?
 
ALFAGEME Sempre.
 
NUNO ÁLVARES Fernando!
 
ALFAGEME Sempre.
 
NUNO ÁLVARES Aqui há mistério que eu não entendo. – Esperai, deixai-me ver.
 
FROILÃO Não tem que ver, é como os príncipes pagam as suas dívidas.
 
NUNO ÁLVARES Nem todos.
 
FROILÃO Nem a todos: quereis dizer; aos senhores, aos fidalgos é noutra moeda; bem sabemos; mas aos credores que são do povo...
 
ALFAGEME Não lhes devem nada a esses.
 
NUNO ÁLVARES Não digas isso, homem, porque a vos...
 
ALFAGEME A mim não me devem nada.
 
NUNO ÁLVARES A vós, a quem el-rei deve!...
 
ALFAGEME  Nada.
 
NUNO ÁLVARES Por quem fizestes!...
 
ALFAGEME Por ele, nada. O que fiz – se alguma coisa é... quatro golpes de cimitarra, puxados de alma, nesses estrangeiros que vinham devassar a minha terra... Se eu nasci aqui!
 
NUNO ÁLVARES Homem, dá-me um abraço, e vai descansar. Depois averiguaremos o que isto é; e ficai certo que havereis satisfação e reparo. – Alda, este homem foi quem tomou o estandarte real de Castela, e escondeu-se da ação como de uma vergonha – e foi pôr o estandarte onde o achou Antão Vasques que o trouxe a el-rei...
 
FROILÃO (sorrindo com desprezo) Dizendo que fora ele que o tomara?
 
NUNO ÁLVARES Não, homem descrido, não disse tal; disse que não sabia, e disse a verdade. Sabia-o eu, mas não o pude dizer a el-rei, porque Fernando exigiu de mim...
 
ALFAGEME (atalhando-o com veemência)  E exijo.
 
NUNO ÁLVARES Basta.
 
ALCAIDE Senhor Condestável, permiti que vos diga.
 
NUNO ÁLVARES (secamente) Dizei.
 
ALCAIDE (tossindo e com importância) As formalidades da justiça são a mais segura fiança das liberdades...
 
NUNO ÁLVARES (interrompendo-o secamente) Basta, senhor Alcaide; sabemos essas coisas. Vamos ao que eu não sei. – Por que autoridade prendestes a Fernão Vaz?
 
ALCAIDE Primeiramente apresentaram-me um alvará de el-rei nosso senhor, em que o declarava traidor e revel e mandava confiscar seus bens; eu ia dar-lhe devida execução, quando...
 
NUNO ÁLVARES Onde está esse alvará? Vejamos.
 
ALCAIDE Onde está, meu senhor? – Aí é que vai o crime maior, o crime de lesa-majestade de primeira cabeça. – Acreditareis, senhor, que teve a ousadia?...
 
NUNO ÁLVARES  Quem?
 
ALCAIDE O Alfageme.
 
NUNO ÁLVARES De quê?
 
ALCAIDE De me rasgar na cara.
 
NUNO ÁLVARES Vós, Fernando!
 
ALFAGEME (com serenidade) Eu. – Estamos quites. – Serviço e desserviço de parte a parte – ofensa contra ofensa. – Agora já lhe não fica mal: pode-me mandar enforcar cada vez que quiser.
 
NUNO ÁLVARES Vós... rasgastes esse papel?
 
ALFAGEME Eu. – Como quereis que vos diga?
 
(Silêncio longo e geral)
 
NUNO ÁLVARES (depois de meditar, alçando a voz) Fez muito bem o Alfageme.
 
TODOS (com grande espanto) Muito bem!
 
MENDO Um alvará de el-rei!
 
NUNO ÁLVARES (firme) Era falso
 
ALFAGEME Falso!
 
ALDA (baixo a Nuno Álvares) Tu és o que mentes, Nuno.
 
NUNO ÁLVARES (baixo a Alda) Minto: mas que ninguém o saiba senão tu. (À parte) Ah príncipes, príncipes! Nunca te fiz tamanho sacrifício, rei D. João: pela primeira vez na sua vida mentiu Nuno Álvares Pereira para te não desonrar! (Alto) Era falso: eu conheço a rubrica de el-rei. (Para Mendo, significativamente) Mendo Pais, vós... vós... O alvará é falso, Mendo: disse-o eu e basta. (Mendo vai a falar) Nem mais uma palavra. – Levai-o já preso para a Alcáçova. (Mais baixo a Mendo) Já vedes que sei tudo: amanhã verei se vos posso castigar sem infâmia. (Vai preso Mendo Pais) (Para o povo) O alvará era falso: tão falso que eu trago plenos poderes de el-rei. Meu senhor para declarar solenemente a Fernão Vaz de Santarém benemérito da pátria, e digno de toda a sua real contemplação. – E como a tal, eu, em seu nome (tira a espada) com esta espada... É aquela, Fernando – é a que está por pagar,
Froilão – é a de meu pai, Alda! – com esta espada... Ajoelhai, Fernão Vaz, escudeiro.
 
ALFAGEME Ajoelhar para quê?
 
NUNO ÁLVARES Para te eu armar cavaleiro, D. Fernando.
 
UM DO POVO (murmurando para os outros) E o que ele queria. Não verão o senhor D. Fernando! São todos o mesmo, não há que ver.
 
ALFAGEME (sem afetação) Cavaleiro eu, senhor!... um alfageme!
 
NUNO ÁLVARES O Alfageme de Santarém. Quantas casas nobilíssimas começaram por mais baixo?
 
ALFAGEME  Muitas. – E muitas mais ainda são as que mais baixo vieram cair. – Senhor D. Nuno, vós sois um honrado e digno fidalgo, não descereis do que nascestes; não vós. – Eu sou filho de alfageme... dum alfageme honrado... e também não subirei, porque não quero descer.
 
UM DO POVO O homem é capaz. Nunca cuidei. Este sim, isto é que é homem.
 
OUTRO DO POVO Viva o Alfageme!
 
POVO Viva!
 
NUNO ÁLVARES (comovido)
 
Meu irmão! Alfageme. (Enternecido e correndo a abraçá-lo) – Irmão! Oh senhor! Esse título sim: está-vos bem dar-me, e não me peja a mim aceitá-lo. – Quanto ao mais fiquemos como estamos, que estamos bem, senhor.
 
NUNO ÁLVARES Recusar o que tantos ambicionam! – Aí anda também muito orgulho, meu alfageme.
 
ALFAGEME Há algum! confesso. – Não vedes que eu assim sou o primeiro dos meus... e que ficava o derradeiro dos vossos?
 
NUNO ÁLVARES Ah populares, populares!
 
ALFAGEME Temos as nossas vaidades. E vós! Não tendes as vossas? – Desculpemo-nos, respeitemo-nos uns aos outros e poderemos viver em paz.
 
VOZES (fora) Viva El-rei D. João I! viva o Alfageme!
 
(Ouve-se dentro marcha guerreira)
 
NUNO ÁLVARES E a tua gente que entra.
 
ALFAGEME Os meus companheiros, os meus bravos companheiros! – Alda, vamos abraçá-los.
 
 
CENA ÚLTIMA Os mesmos e Coro de serralheiros do Alfageme.
 
Os cavaleiros de Nuno Álvares formam, e vão ao encontro dos serralheiros que entram em forma militar, com seus aventais de coiro e machados às costas. Por uma evolução rápida, cada um dos corpos fica a seu lado da cena. Tudo isto deve ser feito em um momento.
 
CORO FINAL (marcha guerreira)
 
CAVALEIROS Erguei essas Quinas, o pendão da glória, Que aí vem a vitória! Já foge o inimigo, de raiva já freme, Que aí vem o Alfageme! Cavaleiro, avante, Com a espada – cansada! Avante, segura a espada, o montante, Firmeza na sela, no estribo que geme, Que aí vem o Alfageme!
 
SERRALHEIROS Foi o Alfageme; foi e não tremia, Que a morrer só ia. Mas ao cavaleiro de nobre pujança Renasce a esperança. Nobre cavaleiro, Avante – o montante! Avante com a espada, meu nobre guerreiro: Já morrer não quero, que vejo a esperança Brilhar nessa lança.
 
TODOS Alcemos as Quinas, o pendão da glória, Que é nossa a vitória. Já foge o inimigo, de raiva já freme.
 
SERRALHEIROS Viva o cavaleiro!
CAVALEIROS Viva o Alfageme!

 

 

                                                                  Almeida Garrett

 

 

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