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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR PAGÃO / Patrícia Ryan
O AMOR PAGÃO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Inglaterra, 1160 O invencível poder do amor... A jovem Constance era praticamente uma escrava, à espera de ser possuída pelo implacável sir Roger Foliot, lorde de um vilarejo inglês. Ele, porém, não contava com a capacidade de Constance de escapar ao seu jugo, sob a proteção de Rainulf Fairfax, padre e catedrático de Oxford. Apesar de levar a sério seu voto de celibato e castidade, Rainulf não ficou indiferente à beleza e à inteligência de Constance, desde o primeiro instante em que a viu. Antigo soldado das Cruzadas, ele tinha experiência com lutas e batalhas, mas não estava preparado para o intenso conflito de paixão prestes a eclodir entre ambos. Arrebatada por um amor proibido, Constance desejava o honrado e íntegro Rainulf bem mais do que apenas como seu professor. E então, os dois se depararam com uma nova lição sobre o sentimento do amor: sua força... suas consequências... e o indescritível e precioso êxtase de compartilhar um futuro... juntos!

 

 

 

 

Novembro de 1156, cidade de Cuxham, Oxfordshire, Inglaterra.

— Por que teve de morrer, Sully? — Constance murmurou, enquanto concluía a costura da mortalha ao redor do corpo sem vida. — Nem era tão velho!

Velho o suficiente, porém, para ser seu avô. Não obs­tante, tinha sido uma cruel surpresa acordar de manhã e descobrir o homem de sessenta anos morto na cama ao lado. Constance não conseguia imaginar que espécie de doença o havia levado, durante a noite. O mundo ainda abrigava muitas moléstias misteriosas.

Assim, sem compreender, ela pranteava não ape­nas Sully, mas também a si própria. Pacientemente, passava a agulha pelo tecido de linho, ponderando so­bre seu destino incerto. O que seria dela, agora que o marido falecera? Numa pausa, esticou as costas e ob­servou o interior do humilde chalé no qual vivera dois de seus dezoito anos, casada com o ferreiro da cidade.

Foi quando notou o movimento da pele de cervo, pre­gada como cortina na porta principal. Ela pestanejou ante a figura corpulenta que surgiu, silhuetada contra a luz do sol da tarde. Era a esposa de um empregado do lorde, uma amável mulher de meia-idade, que ofegava e exibia o rosto rubro de ansiedade.

— Fuja, Constance! Fuja!

— Mas Helen, por que você...

— Agora! — A visitante acercou-se e empurrou Constance na direção da porta. — Sir Roger está vindo buscá-la!

— Meu Deus. — A jovem viúva benzeu-se. — Já? Sully nem foi sepultado.

— O velho porco não perde tempo. Ele disse a meu Hugh que deixou você escapar-lhe das mãos por uma vez, mas isso não se repetiria.

— Está a pé ou a cavalo? — indagou Constance, ator­doada, sem saber o que fazer.

— A cavalo — informou Helen —, e com um rolo de corda para amarrar você, se resistir. Corra! Siga o curso do ribeirão e depois vire para o Norte, rumo a Oxford, entre as florestas.

— Não adianta. Mesmo se eu alcançar Oxford, ele me achará e trará de volta. Você viu o que acontece com quem tenta escapar. Viu como pareciam mortos-vivos.

Helen sentiu um arrepio e desviou a vista. Fugitivos sempre eram trazidos em meio às sombras da noite, sempre mutilados de um modo ou outro, especialmente as mulheres.

— Gosto de ter olhos e língua — argumentou Constance. — Não quero ficar sem eles.

— Bem, volta e meia você dizia preferir morrer a ser amante de sir Roger — Helen contrapôs. — Não está pensando em...

— Em me matar? Não. Isso daria ainda mais satis­fação ao lorde.

— Satisfação? Ele deseja deitar-se com você, não enterrá-la.

— Os sacerdotes asseguram que quem tira a pró­pria vida será condenado ao inferno. Sir Roger acredi­ta nisso como se fosse a voz de Deus.

— Bem... — Helen meneou a cabeça, concordando.

— E verdade, considerando-se como ele age com o pa­dre Osred. Creio que tem medo de morrer.

Ensimesmada, Constance percebeu uma idéia em formação na sua mente.

— Por favor — Helen a apressou. — Pode sair da­qui antes que o lorde chegue?

— Está bem. — Ela colheu as mãos da amiga e apontou, com a cabeça, o corpo do marido com a mor­talha costurada pela metade. — Desde que você fique com Sully e providencie o sepultamento.

— Claro. Apenas vá.

Constance beijou Helen no rosto e saiu do chalé, tomando propositadamente a direção sul.

— Não por aí! — gritou Helen, da soleira da porta.

— Para o Norte, pelos bosques. Rápido!

Ela obedeceu, correndo, mas não para longe. Com as pernas trêmulas, rumava à casa paroquial, rezando para que o padre Osred se achasse ali.

Do momento em que ela havia desabrochado como mulher, aos dezesseis anos, sir Roger Foliot não fizera segredo de sua intenção de seduzi-la. O gorducho ca­valeiro do reino via os inimigos como presas indignas de viver normalmente, destinando os homens a cavar suas próprias covas e as mulheres, quando atraentes, a servi-lo na cama e depois criar seus bastardos. Corria o boato de que ele era sádico, obtendo prazer em causar dor física aos outros. Pelos rostos machucados e expres­sões vazias das jovens que violentava, Constance não tinha por que duvidar.

Havia sido para escapar do assédio de sir Roger que ela se casara com Sully Smith, atendendo ao pedido de seu pai, agonizante.

— O lorde é uma criatura repugnante — dissera-lhe o moribundo —, porém respeita o matrimônio. Teme a Igreja e respeita os mandamentos. Case-se com Sully, e sir Roger a deixará em paz.

O plano havia funcionado, mas agora Sully estava morto e o repulsivo cavaleiro se pusera no seu encalço, a fim de reclamá-la para si.

Ao se aproximar da paróquia, uma construção de pedra atrás da igreja, Constance notou um distante som de patas. Voltou-se e divisou sir Roger, galopando em seu cavalo preto, cada vez mais próximo.

— Padre Osred! — ela bradou, batendo com os pu­nhos na porta. — Padre, deixe-me entrar. Ele está vin­do me buscar.

— Ele quem, filha? — O velho sacerdote abriu a pas­sagem e acolheu Constance em seus braços amigos.

— Sir Roger, padre. — Ela moveu-se e travou a porta com um sarrafo. — Nem esperou Sully ser enterrado.

— Ah, sim. — O padre parecia fazer esforço para entender.

— Ajude-me, por favor, padre. Não permita que me leve com ele. — Enfatizando a súplica, Constance agarrou o pároco pela gola da batina.

Osred balançou a cabeça, desalentado, enquanto se libertava dos dedos fortes da jovem.

— Sou um velho pároco, filha. Não tenho tanta in­fluência sobre sir Roger como o povo pensa. Mesmo que eu o despiste, agora, ele voltará.

— Então deixe-me ficar aqui.

— Aqui? — O religioso pestanejou.

— O lorde não ousará raptar-me debaixo do seu teto, padre. Posso cuidar da casa, como Maida fazia. — A ex-empregada do padre havia morrido poucos me­ses antes.

Neste instante, um golpe seco soou contra a madei­ra da porta.

— Quero entrar! — rugiu sir Roger do lado de fora.

— Ou saia você, Constance. Não me obrigue a amar­rá-la.

— Padre, por favor! — ela implorou outra vez.

O pároco recuou, mas Constance impediu que ele se retirasse, e se mantivesse neutro diante da situação que a aterrorizava.

— Não posso me indispor com sir Roger — alegou.

— Ele perceberá que eu estou tentando protegê-la. Mais pancadas na porta.

— Mas padre.... — ela o desafiou. — O lorde tem medo do senhor, na condição de sacerdote.

— Ele teme o inferno, filha. Preciso me acautelar quanto ao lorde, porque estou velho. O que será de mim se tiver de abandonar Cuxham?

— Constance! — elevou-se a voz do lado externo.

— Terei de arrombar a porta e levá-la à força?

— Aceite-me aqui, padre. Por favor — ela insis­tiu. — Prometo trabalhar bastante e farei tudo o que Maida fazia.

— Tudo? — Os olhos de Osred se iluminaram com repentino interesse.

— Claro, tudo. Deixe-me ficar, padre.

O religioso a examinou de cima a baixo, vagarosa­mente. Constance lamentou não ter escovado e trançado os cabelos negros, naquela manhã. Longos demais, eles se emaranhavam e causavam uma impressão de desma-zelo em quem poderia dar-lhe emprego e abrigo. Pior, ainda vestia a gasta e molhada saia que usara na hora de lavar o corpo de Sully, preparando-o para o enterro.

Ela afligiu-se quando notou a atenção de Osred fi­xar-se em suas curvas. Ficou confusa, mas o pároco logo focalizou seus olhos e disse:

— Sim, você pode ficar.

Constance tomou-lhe as mãos e beijou-as.

— Obrigada, padre. Obrigada.

— Abra, padre! — ordenou sir Roger. — Entregue-me a moça, ou terei de agir à minha maneira.

Osred posicionou-a atrás dele, no momento em que destravou e abriu a porta. Constance espiou sobre o om­bro do religioso, só para constatar como o lorde se tornara mais obeso. Trazia uma corda na mão e parecia furioso.

— Entregue-a, padre.

Osred empertigou-se e respondeu em tom glacial:

— Lamento não poder atendê-lo, sir Roger. A jovem Constance consentiu em limpar a casa e cozinhar para mim, agora que Maida partiu deste mundo. — Muito sério, ele persignou-se.

O fidalgo franziu o cenho e Constance estudou-lhe o rosto rosado, onde os pequenos olhos escuros quase se tornavam invisíveis sob camadas de gordura.

— Que plano é esse, padre? Eu a solicitei primeiro, e por Deus pretendo...

— É capaz de invocar o nome de Nosso Senhor em vão, mesmo quando quer transformar esta jovem em sua amante, contra a vontade dela?

A reação do pároco surpreendeu Constance e, mais ainda, sir Roger.

— Eu... considero injusto, padre. Ela deve ser mi­nha, a partir de hoje.

— A partir de hoje Constance servirá à Igreja, por meio de mim. Cuidará de minhas necessidades.

— Suas necessidades? — O cavaleiro sorriu, mali­cioso, deixando Constance apreensiva.

Para o espanto dela, o lorde recuou quando Osred deu um passo à frente, com ânimo desafiador.

— Essa especulação é inconcebível — disse. — Como já disse, Constance servirá à Igreja. Mas existe um lu­gar especial no inferno para quem obriga uma jovem a cometer os pecados da carne, em vez de ajudar um velho padre doente.

O rubor alastrou-se pela face rotunda de Roger. Quando recompôs as feições, Constance detectou nelas uma raiva contida.

— Você venceu. — Ele a fitou, furioso. — Por en­quanto.

Animada, ela saiu de seu refúgio às costas do pá­roco.

— Para sempre — rebateu ela. — Nunca serei sua amante, Roger Foliot. Só de pensar nisso, fico enojada.

— Nunca é tempo demais — o lorde comentou. — Especialmente se alguém se coloca sob a proteção de um homem idoso, que logo se reunirá a seu Criador. Então, não lhe restará escolha.

Constance ergueu o queixo, orgulhosa.

— Se pensa que eu me entregarei a você... Roger meneou a cabeça, sem mostrar-se atingido.

— Entregar-se a mim? Quem lhe disse que desejo isso? Alguns homens ainda preferem desfrutar o prazer que lhes é oferecido de bom grado, mas eu encontro maior satisfação em obtê-lo à força. Portanto, não se console com a idéia de que sua resistência irá me deter. Nossa história não terminou, mocinha. Recusou-me duas vezes. Não haverá uma terceira.

Ele olhou para Osred com ar ameaçador, antes de complementar:

— Em seu lugar, cara Constance, eu rezaria para que este bom homem viva muito. Quando ele se for, juro que nada a salvará de mim.

A jovem viúva deu graças ao ver o fidalgo sair e sal­tar, com inesperada agilidade, à sela do cavalo. Em se­guida, o padre Osred pediu que ela o seguisse, olhando-a de modo estranho.

Então Constance conheceu o quarto dele, tão som­brio e desprovido de enfeites quanto o resto da casa. Havia um grande crucifixo perto da janela e, abaixo dele, uma cômoda com gavetas, sobre a qual jaziam a jarra de água e a bacia para abluções. Roupas, in­cluindo batinas, estavam penduradas em ganchos na parede. No mais, somente cadeiras.

O sacerdote abriu as cortinas que isolavam a gran­de cama, dobrou a coberta e apertou o colchão com os dedos ossudos.

— É de penas — disse com um sorriso. — Acho que você nunca se deitou num leito tão macio.

— Nunca, padre. — Constance sentiu um leve ca­lafrio. Aquela era a única cama disponível no lugar. Alegre, Osred começou a desabotoar sua batina.

— Vai gostar, minha cara. Maida dizia que jamais se acostumaria de novo com um colchão de palha, de­pois de dormir aqui.

Espantada, Constance foi à janela e contemplou os fundos da igreja, enquanto o pároco seguia despindo-se.

— Padre, eu... — De repente, ela deu-se conta de que devia ser cautelosa com as palavras.

Tinha ouvido rumores sobre o padre Osred e Maida. Apesar do voto de celibato e abstinência sexual, mui­tos sacerdotes católicos conservavam amantes dentro de casa, disfarçadas de criadas, prática tolerada pelos paroquianos e funcionários das igrejas. Mas o padre Osred, além de idoso, parecia tão pio, tão devoto! Talvez os boatos fossem verdadeiros, e ela, uma tola.

Farei tudo o que Maida fazia. Ainda dera sua pa­lavra!

Ouviu o padre chamá-la e olhou por sobre o ombro, deparando com o padre vestido somente com o camisão de dormir.

— Pode pendurar suas roupas ali. — Ele apontou alguns ganchos vazios na parede.

Constance pesou suas opções. Se conseguisse fugir, Roger a caçaria até achá-la e a deixaria em condições deploráveis. Recordou-se da jovem Hildreth, que esca­para da casa do lorde no verão anterior e cujo corpo sem vida fora encontrado à beira do rio, com a cabeça imersa na água. Morte julgada acidental, mas Constance sus­peitava de que Hildreth havia se suicidado, por não suportar viver com o rosto completamente desfigurado por golpes de faca.

Sentiu a mão do pároco desfazendo o laço da saia em sua cintura. O toque era frio, como o de Sully. Todavia, em vez dos dedos rudes do ferreiro, os do religioso a apal­pavam com delicadeza, quase com constrangimento.

Pela vida inteira, ela havia sonhado com a liber­dade. Liberdade em relação a sir Roger, a Cuxham, à servidão imposta pela pobreza e pela condição de mu­lher. O sonho agora teria de esperar. Precisaria ser paciente e manter-se alerta a qualquer oportunidade de fugir sem ser notada. Talvez isso demandasse anos. Ou talvez, por sorte, o padre Osred morresse logo.

Ele removeu a veste dela pela cabeça e foi pendurá-la. Em seguida, estendeu as mãos para a roupa íntima de Constance, que então cruzou os braços à frente do corpo.

— Deixe-me ficar assim. Tenho frio.

— Claro. — O pároco pareceu decepcionado e le­vou-a até a beira da cama, insistindo para que ela se deitasse. — Quer a coberta?

— Sim, por favor.

Ele não é mau sujeito, pensou ela ao vê-lo deitar-se e estender a manta sobre os dois. Como era de por­te físico inferior ao de Sully, Constance sentiu menos desconforto quando Osred posicionou-se em cima dela e puxou-lhe o calção.

O ato em si terminou depressa, pelo que Constance silenciosamente agradeceu. Sully costumava demorar tanto que lhe causava dor. No fim, Osred rolou para o lado e, em poucos minutos, já roncava em sono profun­do. Também ela sentiu-se sonolenta, após um dia tão turbulento. E a maciez do colchão de penas colaborava para essa letargia.

Um segundo antes de adormecer, porém, ergueu-se e saiu da cama sem fazer ruído. Ajoelhou-se diante do crucifixo, pedindo a Deus que o padre Osred tivesse uma vida longa e saudável.

 

Oxford, março de 1161.

— Como tem passado, padre? Rainulf de Rouen, também conhecido como Rainulf Fairfax, doutor em Lógica e Teologia, mestre emérito na Universidade de Oxford e ordenado padre, levantou a cabeça e desviou-se de uma caneca de cer­veja arremessada em sua direção.

— Mas... o que se passa?

— É Victor, padre — disse Thomas. O estudante de cabelos claros apontou o fundo da taverna, onde Victor de Aeskirche subia ao tampo de uma mesa, incentiva­do por amigos desordeiros. — Ele não pretendia atin­gi-lo. Está discutindo com Burnell, o proprietário.

Rainulf voltou-se para o dono do bar, um brutamontes que no balcão, trajando um avental engordurado, servia bebidas e bolinhos de carne, e agora erguia na mão um grande porrete de madeira. Ele não se en­volveria numa altercação, ainda mais quando Burnell tinha a fama de ser uma pessoa cruel. Havia batido selvagemente em diversos estudantes, desde que se instalara em Oxford, alguns anos antes. Corriam ru­mores de que era ele o responsável pela morte de um aluno, encontrado agonizante numa viela. Apesar de seus defeitos, Victor não merecia igual destino.

— Abaixe isso, Burnell — pediu Rainulf amável -mente.

— Não é de sua conta, padre — o taverneiro grunhiu. — Já disse àquele rapaz para não vir mais aqui, mas ele me desafiou, junto com seus amigos beberrões. — Agora o homem segurava o bastão com ambas as mãos. — E só assim que vão me obedecer.

— Ele tem medo de nós — declarou Victor aos de­mais ocupantes da mesa. — E sabem por quê?

Rainulf cocou a cabeça, admitindo que Victor, com seu temperamento explosivo, exercia enorme influên­cia sobre os outros jovens. Melhor seria usá-la para aplainar a discórdia entre os estudantes de Oxford e o dono do bar, mas optara por enfrentar o homem.

Saindo do balcão, Burnell avançou um passo e brandiu o porrete no ar.

— Já falei que não queria mais vê-lo aqui — afir­mou. — Você é um baderneiro que não sabe calar-se.

Victor cruzou as mãos ao peito e exibiu um olhar despreocupado.

— Sei, sim. Mas só depois de contar a todos sobre a água suja que utiliza para fabricar cerveja.

Burnell franziu a testa, com raiva.

— Não tem prova disso, é apenas uma calúnia.

— E só Deus sabe o que você põe naqueles bolinhos de carne — Victor instigou o adversário. — Se cobras­se o preço justo, vá lá. Mas também é um ladrão.

— Você, seu pirralho... — Burnell balançou o porre­te, já perto da mesa dos estudantes. — Desça daí e me enfrente como homem.

Rainulf percebeu que Victor tirava do casaco uma faca brilhante, e então praguejou. Filho bastardo de um padre, o jovem tinha recebido treinamento como soldado voluntário, antes de chegar a Oxford, onde mais causava confusões do que estudava.

— Victor! — ralhou o sacerdote, colocando-se entre os dois litigantes. — Vamos todos conversar lá fora.

— Chega de conversa — o rapaz reagiu, elevando a voz para a platéia interessada. — É hora de agir. Que os alunos, professores e habitantes em geral de Oxford saibam que viemos aqui com o objetivo de estudar, não de receber esse tipo de tratamento. Exigimos bebida e comida decentes, pela quantia que pagamos.

Burnell apontou a lâmina que o rapaz segurava.

— E acha que esse é o caminho?

— O único que você entende — retrucou Victor, movendo-se um passo para a borda do tampo, enquanto o adversário também avançava. — Se tenho um cachor­ro que faz algo errado, tento discutir com ele? É claro que não. Seria perda de tempo.

— Saia da frente, padre — exortou o dono da taverna, em tom belicoso, mas Rainulf estendeu o braço a fim de desarmar Burnell, que se desviou, apanhou uma cadeira vazia e fez uma demonstração de força, destruindo-a a porretadas.

Por um momento, Victor ficou parado, confuso. Depois, pulou à frente de Burnell, com a faca em riste. Mas escorregou no chão e a arma branca caiu de seus dedos. Rainulf rapidamente a chutou para longe e en­costou-se na mesa.

— Acabou — ele disse com firmeza aos rapazes e demais consumidores, assustados. — Voltem todos a suas canecas.

Enquanto as pessoas se dispersavam, a mulher de Burnell o levou para o quarto dos fundos, atrás do bal­cão. O padre, por sua vez, levou Victor para a saída.

— Não espere que eu sempre vá protegê-lo de suas próprias tolices, rapaz. Aceite meu conselho e mante­nha distância de Burnell.

Victor cruzou a porta e desapareceu debaixo do sol forte. Thomas aproveitou para falar com Rainulf.

— Saiu-se bem, padre. Quase entrou em luta cor­poral com os contendores. Aprendeu a brigar nas Cruzadas rumo à Terra Santa?

— Não, na Universidade de Paris. Lutei numa cruzada, sim, mas é um tipo diferente de disputa. Pa­ra matar.

Thomas guardou alguns segundos a fim de digerir a informação, depois indicou a porta com um gesto de cabeça.

— Conhece aquele sujeito?

O homem parado na entrada da taverna tinha ca­belos acobreados e pele leitosa, marcada por muitas sardas. Trajava uma simples túnica e portava uma maleta de couro.

— Se conhecesse, me lembraria dessas sardas — Rainulf respondeu, calando-se ao perceber o olhar do forasteiro sobre sua figura.

Não se surpreendeu, porém, por chamar a atenção das pessoas. Era de estatura alta e ele aparentava os trinta e seis anos que tinha. Poderia parecer deslocado num bar de jovens estudantes, mas ali também havia homens mais velhos.

— O senhor é aquele a quem chamam de Rainulf Fairfax? — indagou o intruso, acercando-se, de olho na cabeleira clara do padre.

— Sim, sou. — Rainulf sentiu-se examinado. Sua capa preta, aberta na frente, não era o traje usual num clérigo.

— Disseram-me que o senhor era padre.

— Mais ou menos — ele falou, com a expressão neu­tra, embora alguns alunos nas mesas próximas rissem de sua resposta. — O que isso importa?

— Preciso de um sacerdote que tenha tido catapora — aduziu o estranho. — Indicaram-me o senhor.

— Quem indicou?

— Dois professores, seus colegas.

— Estão certos — declarou Rainulf —, mas qual o problema com a catapora?

— Existe um surto na cidade de Cuxham, que já dura semanas. Procuro um padre que possa viajar até lá e ministrar a extrema-unção a diversas pessoas, ago­nizantes.

— Sou professor. Faz anos que não realizo os ritos da Igreja. Mas não há nenhum sacerdote em Cuxham? — Rainulf mostrou-se apreensivo.

— Havia — rebateu o outro. — Foi contagiado e pas­sa mal. Por isso busco um clérigo que tenha imunidade à doença e concorde em celebrar os ritos finais aos en­fermos graves, especialmente ao padre Osred. Prometi isso a sir Roger Foliot, o principal fidalgo local.

O solicitante soava como um conhecedor de assun­tos de saúde.

— Você é médico? — Rainulf quis certificar-se.

— Médico itinerante. Sou Will Geary — apresen­tou-se. — O senhor aceita ir?

— Sim, irei — confirmou o professor, sem encontrar um bom motivo para esquivar-se.

Em sua casa na St. John Street, Rainulf trocou de roupa e separou o material que levaria na viagem a Cuxham, dentro do alforje a ser pendurado no cavalo. Um relicário de vidro, do qual não se separava, con­tinha um chumaço de cabelos outrora pertencentes a São Nicácio.

Apesar do calor excessivo para o mês de março e da missão incômoda que o esperava, ele apreciou galopar por atalhos que não conhecia. Passou por fazendas e bosques, até deparar com a pequena igreja da cidade, revestida de pedras. Também viu a casa paroquial e, perto dela, uma figura humana a cavar uma sepultura no pátio.

Era uma mulher, de idade indefinível, trajando rou­pa de trabalho e com cabelos negros dispostos em duas longas trancas que desciam por suas costas. Mais pró­ximo, ele constatou que havia dois sepulcros, não um só. Perto do primeiro, já completado, jazia um corpo enrolado em lençol. Pela lentidão dos movimentos, a mulher parecia cansada. Ele olhou em torno, porém não descobriu nenhum segundo cadáver depositado no chão. No entanto, outros túmulos já selados certamen­te continham vítimas da epidemia de catapora.

Rainulf parou a dez passos da mulher, que ao vê-lo, levantou a pá defensivamente, sem esconder o tremor nas mãos.

— Não chegue mais perto — ela disse, e o forasteiro ergueu os braços, submetendo-se ao exame visual da­quela estranha criatura.

— Sou o padre Rainulf Fairfax, de Oxford — ele foi logo dizendo.

— Não se parece com um sacerdote — contrapôs a mulher, fitando-o com curiosidade.

— É, de fato não trabalho como tal — ele rebateu secamente, julgando-se autorizado a avançar dois pas­sos. A mulher voltou a brandir a pá e ordenou que recuasse. — Também não pretendo machucá-la.

Para surpresa de Rainulf, ela esboçou um sorriso.

— Não pensei que pretendia. Mas contraí a doença e quero evitar que outros se contaminem, pelo toque.

Rainulf focalizou o rosto liso e bonito da mulher. Imaginava que, se o apalpasse, constataria o calor fe­bril que precedia o aparecimento das pústulas verme­lhas da enfermidade.

— Fique tranqüila — redarguiu. — Já tive essa doença e agora estou imune.

— Já teve? — Ela inspecionou-lhe a face em busca de marcas feias de bolhas.

— Sofri de várias moléstias, quando fui prisionei­ro dos turcos, anos atrás. Catapora, varicela ou praga amarela, como chamam, foi uma delas. — Ele apontou duas minúsculas manchas ao lado do queixo.

Depositando a pá no chão, a mulher se aproximou, devagar e incrédula.

— Isso é tudo que lhe restou da doença? — Inclinou a cabeça para ver melhor.

— Tive sorte.

— Sim, não há dúvida. — Ela voltou-se para o corpo embrulhado perto da cova. — Já o padre Osred...

Rainulf desmontou, agachou-se e descobriu o cadá­ver na região da cabeça. Além da visão deprimente da morte, sentiu o odor fétido que acompanhava os últimos estágios da praga amarela. Tal cheiro desper­tou-lhe lembranças de quando se achava na Turquia, preso numa cela subterrânea com outros vinte cruza­dos, todos a suportar sofrimentos atrozes pela causa de Cristo. A privação aumentou no instante em que a catapora se manifestou naquele buraco malcheiroso, levando embora um de cada quatro homens.

Rainulf sorveu um grande hausto de ar puro depois de fechar o lençol que servia de mortalha ao padre Osred. O rosto desfigurado pelas erupções da catapora e os ralos cabelos brancos o fizeram pensar que o corpo podia ser o de qualquer pessoa, que não o pároco de Cuxham.

— Melhor assim... — foi o comentário resignado da mulher, atrás dele. — No fim, o padre Osred ficou cego. Alguns ficam.

— Eu sei... — Rainulf exibiu tamanha tristeza que a mulher, inespera-damente, tocou-lhe o ombro, pena­lizada. Mas era ela quem sofria da enfermidade que matava, cegava e desfigurava!

Criatura indefinível, aquela. Fitando-a no fundo dos olhos, Rainulf viu curiosidade, humor e, sobretudo, sabedoria de vida.

— Quantos anos tem? — indagou.

Ela riu, descortinando dentes tão alvos e perfeitos que poderiam ombreá-la com a mais nobre dama da corte. Embora eventuais gotas de saliva fossem infectantes, o professor de Oxford sentiu-se tentado a rir também, o que não ocorria havia muito tempo.

— O que é tão engraçado? — ele perguntou em meio ao esforço para conter-se.

— Você! — Ela apontou o dedo. — Você é uma pes­soa esquisita.

— Eu?

— Perguntar minha idade antes de saber meu nome! Até se parece comigo, que costumo fazer indagações er­radas na hora errada. — A moça continuou a sorrir.

— Bem, mas sou professor e é parte de minha ativi­dade propor questões e debater as respostas.

— Disputatio — ela emendou, usando o termo em la­tim para debate acadêmico.

Isso deixou Rainulf pasmo, pois era óbvio que a jo­vem tinha origem humilde. Não obstante, expressava-se muito bem e parecia informada de coisas que normal­mente escapariam a uma camponesa de Oxfordshire.

— Tenho vinte e três anos, conheço francês, inglês e um pouco de latim. Meu nome é Constance.

— Constance... — ele repetiu, pensativo. — Vem do latim e significa constância, ou tudo o que é imutável.

— Por isso mesmo detesto meu nome. Sou mais favo­rável a mudanças do que à estagnação. Que bem podem trazer as coisas que nunca se alteram?

Admirado, Rainulf contemplou a figura frágil e exausta à sua frente. Os olhos brilhavam de febre, mas ela discutia o valor das transformações! Claro que tinha razão. A mudança constituía o próprio tecido da vida. E da morte. Com isso, ele lembrou-se de sua missão ali.

— Vim para prestar os últimos ritos ao padre Osred — comunicou.

— Tarde demais. — Constance cocou a cabeça.

— Sim, para um ritual completo. Mas ainda posso ministrar-lhe o sacramento da extrema-unção.

— Então, faça isso. Espere eu dar alguns retoques na cova.

— Na minha opinião, está perfeita. Você não devia ficar cavando sepulturas, doente assim. Talvez seu ma­rido pudesse...

— Sou viúva — ela atalhou.

— Ah, meus sentimentos. Foi a praga amarela? — Rainulf quis saber.

— Não, aconteceu há cinco anos. E não sobrou nin­guém mais para enterrar o padre Osred. As pessoas não infectadas temem contrair a doença, e as outras ainda estão muito fracas para fazer esforço físico.

— Eu enterrarei o padre Osred — Rainulf afirmou. — E acabarei de preparar a segunda cova, se me dis­ser a quem se destina.

— A mim — disse Constance. — Pensei que tivesse adivinhado.

— Como assim? — Ele ficou assombrado.

— Quem mais faria isso? Minha amiga Helen pro­meteu vir amanhã cedo e verificar meu estado. Caso me encontre morta, colocará meu corpo na cova e a fechará. Ela é idosa, não consegue cavar.

— Por que pensa que vai morrer tão cedo?

— Pelos outros exemplos. Vi homens falecerem an­tes que as marcas surgissem. A febre aumenta e eles perdem os sentidos. Às vezes, têm convulsões.

Nada disso era novidade para o padre e professor. Ele deslizou os dedos delgados pelos cabelos curtos e claros. Em contraste, as sobrancelhas eram negras, tal como os indícios de barba que lhe cobriam o queixo forte. Seu traço mais marcante, contudo, consistia nos olhos verdes levemente velados por um matiz castanho, que a Constance lembraram a água de um lago. Ela viu inteligência e bondade neles, características que de hábito não associava a homens de berço nobre. Aquele padre, a despeito dos modos simples, era sem dúvida um normando culto e bem-criado.

A julgar por sua reação, ele sabia mais do que dese­java admitir, sobre pestilências em geral e a catapora em particular. Empunhando a pá, Constance gesticu­lou para a sua própria cova.

— Entende agora por que tenho de terminar o tra­balho?

— Não. — Rainulf recolheu a pá das mãos dela. — Deixe comigo. Você será tratada e não deve se preo­cupar com a morte.

— Estou preparada — contrapôs a jovem viúva, reavendo a pá. Mas o cenário como um todo passou a girar e as pernas lhe faltaram.

— Constance? — O chamado pareceu distante.

Ela sentiu uma dor aguda no fundo dos olhos e se­gurou a cabeça com as mãos. O padre a amparou pelos ombros.

— Estou bem — conseguiu falar, lutando para per­manecer de pé. Em vão. Desabou nos braços de Rainulf, que de imediato se propôs a conduzi-la para casa.

— Não — ela protestou, pressionando o próprio cor­po contra o peito largo do padre.

Apenas estava fraca por causa da doença, teimou, e por sorte contava com a ajuda de um homem vigoroso. Rainulf a ergueu no colo como criança, e Constance pôde sentir os músculos dele sob a túnica.

— Onde mora? — ele insistiu.

— Por favor... Prometi a Helen deixar minha se­pultura pronta.

— Eu cuidarei disso.

Constance por fim acreditou nele e apontou a casa paroquial.

— Ali. Eu era a governanta do padre Osred.

Em passos decididos, Rainulf cruzou o pátio poste­rior da igreja e entrou na casa, onde não teve dificulda­de em achar o único quarto e colocar Constance sobre a cama macia. Ela notou que ele examinava o ambiente: as vestes penduradas nos ganchos, o crucifixo, a cômo­da, até concentrar-se no amplo colchão de penas, para casal. Uma súbita compreensão dos fatos atravessou-lhe a mente, mas procurou não demonstrar qualquer censura a Constance, por meio da expressão facial.

— É preciso tirar essa roupa suja de terra — ele disse. — Você tem outra?

Rainulf apanhou a camisola que ela apontara, pen­dente de um gancho na parede. Questionou se ela con­seguia trocar-se sozinha e, ante o gesto afirmativo de cabeça, deu-lhe as costas e saiu para o pátio, não sem antes ouvir o agradecimento de Constance.

Na verdade, ela sentiu-se divertida com o constran­gimento do professor. Considerava-se dona de um boni­to corpo, mas obviamente não iria franqueá-lo a quem mal conhecia. Deitada, ainda zonza, sentiu que o teto do quarto descia e subia. Fechou os olhos e, quando os abriu, a dança continuava. Decidiu erguer-se e ir à janela, a fim de combater o atordoamento. Então, viu Rainulf cavando o solo em golpes firmes. Ele havia tira­do sua túnica, que ficou pendurada numa árvore. Agora se mostrava de camisa branca de linho e ceroula gros­sa, amarrada por cordões em torno das longas pernas.

A imagem fez Constance reviver, motivada pela virilidade daquele homem. A despeito de sua formação aristocrática e do intelecto privilegiado, dificilmente Rainulf manteria o voto de castidade, ela pensou.

Perturbada, voltou a deitar-se e conseguiu dormir por algumas horas. Acordou com a vexatória sensação de que seu corpo queimava, não de febre, mas de excitação. Havia sonhado com Rainulf, desnudo e suado, fazendo-lhe as carícias que sempre almejara, mas ti­nham sido negadas pelos dois homens de sua vida.

Retornou à janela e, sob luz cadente do entardecer, viu Rainulf sacudindo no ar sua camisa úmida de transpiração. Mais uma vez, o torso largo e as pernas esguias compuseram uma cena inquietante. O monturo de ter­ra ao lado da segunda sepultura sinalizava que esta se achava pronta. Então, o padre vestiu a camisa, apanhou a túnica e saiu do campo de visão de Constance.

Ela foi até lá, enrolada num robe espesso, e depa­rou com Rainulf trazendo na mão o alforje de viagem. Imaginou que contivesse uma camisa limpa. Contudo, silenciosamente ele tirou do malote uma sobrepeliz de uso religioso, um solidéu para cobrir o alto da cabeça, e ainda uma estola clerical que, depois de desdobrar, beijou e colocou sobre os ombros.

— Até que enfim, Rainulf Fairfax, você se parece com um padre — murmurou Constance quando ele se acercou do corpo insepulto de Osred. Ela desejava ter tido tempo de costurar uma mortalha mais digna do homem que, afinal, a tratara bem e protegera da devassidão cruel de Roger Foliot.

Na verdade, o falecido pároco chegara a despertar nela alguma afeição, a despeito do medo onipresente de ser raptada pelo lorde. Agora, orava para que Deus a livrasse do antigo terror, levando-a deste mundo.

Ajoelhado, Rainulf deu início a uma prece aos mortos. Um arrepio percorreu o corpo de Constance e a visão do sacerdote rezando tornou-se borrada a seus olhos.

Por misericórdia, Deus, não me deixe ficar cega.

Agachou-se a fim de se apoiar com a mão no solo, o mesmo solo no qual, em seguida, seu corpo caiu desfalecido.

— Constance! — Ao lado da mulher desmaiada, Ranulf apalpou-lhe o pescoço, na região das carótidas, e sentiu a pulsação normal. Ela ardia de febre, porém. Pela segunda vez, ele a carregou até a cama, estendeu a coberta e ficou observando. Ela se debatia e murmu­rava palavras desconexas.

Era decididamente uma mulher estranha, ele refle­tiu. Falava tudo o que lhe vinha à mente, sem papas na língua. Rainulf, acostumado às obtusas maquina­ções verbais do mundo acadêmico, julgava essa candu­ra tão desconcertante quanto prazerosa.

Embora contaminada pela praga amarela, a jovem se mostrava cheia de energia. Mantinha o bom humor e o interesse por tudo o que a cercava. Mais admirável era o fato de aceitar a própria morte, como aconteci­mento normal no ciclo da natureza. Por anos engajado em debates sobre o fim da vida, ele chegava a invejar a atitude de Constance.

Quando ela por fim adormeceu em paz, ele fechou as cortinas que isolavam a cama e estudou o ambiente da casa paroquial, cuja sala era revestida de pedras foscas, sem cores vivazes ou ornatos de parede.

Quase todas as janelas achavam-se cobertas por fo­lhas de pergaminho, com pequenos desenhos de bichos da fauna local. Alguns eram grotescos, a seu ver, mas ele divertiu-se com as figuras de pássaros transpor­tando minhocas no bico. Também admirou anjos sor­ridentes, com feições de camponeses.

Seu olhar recaiu sobre a bela escrivaninha de ma­deira, na qual um rolo de pergaminho estava aberto, preso pelas laterais e pronto para uso. Na verdade, as páginas já continham elaboradas letras maiúscu­las, no que seria o início de um texto. Ao lado, con­venientemente arrumados, estavam várias penas de ganso e tinteiros. Muitos sacerdotes, lembrou Rainulf, dedicavam-se a copiar os manuscritos sagrados, a fim de divulgar as Santas Escrituras. O detalhe era que o padre Osred parecia tirar grande satisfação dessa atividade solitária.

Atrás da mesa de trabalho, via-se uma estante lar­ga, sem portas, mas coberta por uma cortina corrediça. Rainulf a abriu e deparou com surpreendente quantida­de de livros, entre os quais vários evangelhos, modelos de sermões em latim, manuais de comportamento reli­gioso. Retirou um missal encadernado, repleto de ilumi­nuras. Na última página, estava a assinatura do copista, acompanhada de uma frase: Constance me fecit.

O padre pestanejou e traduziu, em voz alta:

— Constance fez para mim...

O que significava tal declaração? Ele espiou na di­reção da cama na qual ela dormia, em torpor febril.

— Não pode ser.

Recolocou o volume na prateleira e puxou outro, um breviário escrito em letras miúdas. Incrédulo, consul­tou as palavras finais: Completado por Constance de Cuxham, em 18 de abril de 1159.

Igualmente inusitada foi a constatação de que di­versos livros, em vez de serem encadernados em cou­ro, eram protegidos por placas de madeira, forradas com graciosos trabalhos em linho bordado. Um deles portava o título Biblia Pauperum. Uma bíblia para os pobres? Da folha final, constava a legenda De una manu e, logo abaixo, a tradução: Por uma só mão, mais a data e a assinatura de Constance.

Claramente, ela tinha orgulho de sua tarefa de tradutora e encadernadora. Mas, quando Rainulf empu­nhou um bonito álbum ilustrado de histórias bíblicas, deduziu que ela o havia escrito sozinha. A simples concepção de um projeto dessa monta era algo prodi­gioso. Mas sua execução também demonstrava a inte­ligência e o capricho daquela mulher.

Um gemido procedente da cama cortou seus deva­neios. Rapidamente repôs seus achados no lugar e cor­reu até o leito de Constance, onde a viu emaranhada nos lençóis, de rosto ensopado de suor e olhos dilata­dos. Tocou o queixo dela, que se livrou do contato com rispidez, movendo a cabeça selvagemente. Ele, porém, teve tempo de constatar como a febre havia aumen­tado. Apressou-se em molhar um pano, na cômoda, e banhou a face e o pescoço de Constance. Só então sen­tou-se, à espera, no canto da cama.

Passada a agitação, ela se recompôs rapidamente, na plenitude de seus sentidos.

—Consigo enxergar! — exclamou ela, exibindo um sorriso de felicidade. — Padre?

— Sim, estou aqui.

— Pode me conceder os últimos ritos?

Rainulf segurou o pano sobre a bacia e torceu-o. Suspirou, em busca de coragem para responder.

— Claro. — Notou que os olhos de Constance se fechavam outra vez. — Vou apanhar o material ne­cessário.

Constance ouviu seu nome sussurrado. Com esfor­ço, reabriu as pálpebras e deparou com o padre Rainulf paramentado como homem de Deus, usando batina, sobrepeliz, solidéu e estola. Já era noite. Um lampião fixo no teto produzia a única luz existente no quar­to. Na mesa-de-cabeceira, jaziam um frasco de óleo bento e outros itens requeridos para o sacramento da extrema-unção.

Ela sentiu náusea e o coração acelerado. Pensava que jamais teria medo da morte, mas, agora que pare­cia próxima, já não estava tão segura. Rainulf pousou a mão sobre a dela, apertando-a levemente. O atrito agra­vava a sensação de ardência na pele, mas também era tão reconfortante que ela desistiu de recolher os dedos.

— Está pronta para confessar-se? — ele interpelou. Constance gesticulou afirmativamente e reuniu toda a sua força interior para relatar, em voz clara, sua liga­ção pecaminosa com o padre Osred. No entanto, sentiu-se obrigada a acrescentar:

— Eu não estava pecando tanto assim. Osred era um homem idoso. E homens idosos... — Ela deu de ombros.

— Compreendo — Rainulf murmurou.

— Quero dizer, passavam-se meses até que ele me procurasse na cama e... Dificilmente alguém chamaria isso de pecado, pois pecar significa ceder aos prazeres da carne, e em nosso caso...

— Está perdoada, Constance. Tudo bem. — Com ra­pidez e expressão grave, ele ungiu a testa, os lábios e as palmas dela com óleo consagrado.

— "Em tuas mãos, Senhor, entrego minha alma" — recitou Constance, enquanto Rainulf a amparava, sentada na cama, e lhe ministrava a comunhão.

— Agora, durma de novo — ele pediu, com a voz embargada de tristeza.

 

Pesaroso, Rainulf permaneceu ao lado da paciente adormecida. Não poderia deixá-la sozinha, presa de delírios durante o sono. Era quase meia-noite, ele de­duziu. Resolveu recostar-se na cama, com a intenção de descansar um pouco. As compressas úmidas que tinha aplicado em Constance, bem como suas palavras de conforto, não pareciam fazer efeito. A intervalos, ela recuperava os sentidos e dizia algo incompreensí­vel, mas tais episódios vinham rareando, e ele se afli­giu com a idéia de que, pela manhã, teria de enterrar a jovem viúva. Desfecho previsto por ela, ao preocu­par-se em cavar a própria sepultura.

No tempo que passara na Terra Santa, ele conhecera médicos muçulmanos mais versados em catapora e ou­tras doenças infecciosas do que seus colegas ocidentais. Segundo eles, o sangue tinha uma tendência natural a fermentar, produzindo resíduos que deviam passar pelos poros da epiderme até serem expulsos do orga­nismo afetado. Condições climáticas interferiam nesse processo, levando o paciente a transpirar intensamen­te, eliminando o excesso de fluidos fermentados.

Constance resmungou algo e ele espalmou a mão na testa dela, após retirar a compressa. Era depri­mente observar uma pessoa sofrendo assim. Talvez o tratamento por meio do suor fosse eficiente. Por que não tentar?

Levando uma lamparina, Rainulf recolheu gravetos secos no pátio e, com o machado, preparou achas de le­nha, tudo destinado ao fosso raso, aberto no chão da casa, que servia de braseiro. Na seqüência, juntou cobertores e colchas numa pilha, depois vedou com pergaminho as frestas da janela. Em minutos, o fogo ardia e Constance se acalorava sob a pilha de mantas.

Vigiando ora a enferma, ora as chamas, Rainulf também sentiu muito calor, o que o forçou a tirar a batina e a camisa. Adicionou mais lenha à rústica la­reira. O interior da casa se tornou um forno, enfuma­çando o ambiente e fazendo o padre suar.

Constance transpirava com maior intensidade e re­petia sons ininteligíveis, enquanto mexia os pés na ten­tativa de remover as mantas. Sem querer discutir ou forçá-la a nada, ele aguardou que se acalmasse. Então, arrumou as cobertas e deitou-se ao lado dela, aconchegando-se de suas costas.

— Sei que é desconfortável — murmurou, incerto de que ela podia escutá-lo. — Mas você tem de suar. Para isso é que fiz esses arranjos. Você precisa melhorar.

Ela estremeceu e resmungou. Além do peso quente que a recobria, agora havia o calor instalado atrás de seu corpo, ainda de causa indefinida. Mas a posição de intimidade o afligia. Fazia onze anos que ele não se dei­tava com uma mulher, desde que pronunciara o voto de castidade. A última tinha se empenhado em dissuadi-lo de ordenar-se padre, demonstrando com arte e técnica tudo o que ele perderia...

A recordação daquela noite e os movimentos de Constance na cama o perturbaram, tomando-o de excitação sexual. Ele mudou de posição e recriminou-se fortemente por ter tido pensamentos carnais, em cir­cunstâncias tão pesarosas.

Enquanto ainda recebia os favores de mulheres charmosas e desabusadas, sua decisão já estava toma­da. Por toda a vida, até então, ele soubera que se tor­naria padre. Possuía o dom, a vocação, além de uma fé pura. Agora...

Bem, agora a situação era diferente. Refletindo so­bre sua fé, recordou-se do pequeno relicário que in­cluíra no alforje de viagem. Ao ver Constance adorme­cida, ele ergueu-se e foi apanhá-lo, colocando-o junto à cabeça da enferma, no travesseiro. Antes, aproveitou que estava de pé e atiçou com óleo o fogo da lareira improvisada. Já deitado, a uma distância segura de Constance, fechou os olhos com a intenção de repou­sar, pelo menos um pouco.

— Está muito quente, aqui!

Rainulf assustou-se com a voz e permaneceu deso­rientado quando percebeu-se seminu no meio de um inferno sufocante. Viu que a jovem a seu lado tinha os olhos avermelhados pela fumaça.

— Sem dúvida — falou, em concordância com a queixa. Retirou o próprio suor que, da testa, descia até suas pálpebras e depois para a boca. — É como os médicos muçulmanos curam a catapora.

O olhar de Constance pousou no peito nu de Rainulf, mas logo ela desviou a vista e puxou o lençol para co­brir a cabeça. Com isso, as extremidades das cobertas saíram do lugar, proporcionando-lhe algum alívio.

— O que aqueles infiéis sabem a respeito de curar doenças? — A provocação soou firme, mesmo abafada pelo pano.

Ele sorriu, sem graça, depois articulou uma respos­ta elaborada.

— Sabem mais do que nós, ocidentais, e talvez por isso nos chamem de infiéis.

Constance pareceu divertir-se com o paradoxo. Riu brevemente, em timbre cansado, e tratou de sentar-se na cama, apoiada contra a cabeceira. Com isso, lençol e mantas caíram até sua cintura. Ela abanou o rosto com as mãos e notou um pequeno cubo de cristal entre os dois travesseiros.

— O que é isso? — indagou, enquanto erguia a peça nos dedos e a examinava, intrigada.

A luz do fogo delineava seu colo delicado, através do fino tecido da camisola, ensopado de suor. Seios altos e pequenos, de mamilos escuros, ficaram visíveis sob a roupa. Rainulf pigarreou, entre fascinado e esquivo, e penteou os cabelos molhados com os dedos.

— E uma relíquia antiga — respondeu, evitando espiar o corpo de Constance. — Supostamente, os fios de cabelo aí dentro eram de São Nicácio, o santo pa­droeiro dos doentes de catapora.

De modo reverente, ela correu os dedos pela emba­lagem de vidro, detendo-se na cruz lapidada na tampa.

— É a coisa mais bonita que já vi — ela murmurou. — E pensar que contém os cabelos de um santo... Você acredita?

— Falsas relíquias religiosas são abundantes. Eu diria que acreditar ou não é uma questão de escolha, através da fé. — Rainulf encolheu os ombros.

— Pois eu escolho acreditar. Acho que você também crê, no fundo do coração. Trouxe a peça para cá e a depositou no meu travesseiro, não?

Ele sentiu-se indefeso ante a ingênua, mas agu­da, percepção de Constance. Ainda admirando a re­líquia, ela perguntou onde ele a havia conseguido. Surpreendeu-se com a resposta:

— A rainha Eleanor me presenteou com ela, quan­do parti nas Cruzadas à Terra Santa. Havia um surto de varicela em Jerusalém e...

— A rainha da Inglaterra lhe deu essa relíquia?

— A intenção foi me proteger da catapora que gras­sava por lá. Na época, Eleanor também era a rainha da França. Depois que voltei da missão e fiz meus vo­tos, ela divorciou-se de Louis e casou-se com Henry.

— Parece que você a conhece bem — Constance reagiu com espanto.

— Somos primos distantes — Rainulf declarou, como se fosse pouca coisa.

— Verdade? — O assombro da jovem aumentou quando o padre assentiu com um meneio de cabeça. — Então, você pertence à realeza!

— Dificilmente. — Ele riu. — Quanto à relíquia, fico feliz por você tê-la considerado reconfortante, mas não tenho certeza de sua eficácia. Afinal, não evitou que eu contraísse catapora, enquanto era prisioneiro dos turcos, no Oriente.

— Você não ficou com marcas de bolhas nem per­deu a visão. A relíquia funcionou, no seu caso. — Ela beijou o objeto precioso. — Vai funcionar para mim também. Já me sinto melhor.

— Isso me alegra muito. — Rainulf foi arrebatado pelo sorriso encantador de Constance. Estendeu a mão a fim de tocar-lhe a testa. — Mas ainda arde de febre. Deve permanecer bem coberta até que ceda. — Ele a envolveu na manta, pelos ombros.

— Mas estou suando tanto! — Constance abaixou um pouco o cobertor.

— Precisa transpirar bastante. — Sentado ao lado dela, ele a agasalhou de novo, agora recobrindo-lhe também os braços. — Tente dormir mais.

— Impossível. Minha pele queima...

Rainulf reconstituiu na mente a sensação que tive­ra ao encostar-se nela. De fato, aquele corpo adorável parecia prestes a entrar em combustão, incendiando-o da mesma forma.

— Pelo menos tente. Deite-se e feche os olhos.

Dessa vez, coube a ela colar-se ao corpo dele, late­ralmente mas em toda a extensão corporal. A despeito do suor, a pele feminina era suave, e Constance se en­caixava à perfeição em sua musculatura. Fazia tempo que ele não abraçava ninguém dessa maneira. Havia até se esquecido da sensual proximidade proporciona­da pelo gesto.

— Acha que vou morrer? — ela perguntou. Rainulf desejava dizer um categórico "não", porém

Constance, com sua sabedoria juvenil, debocharia da afirmação.

— Não sei — manifestou-se. — Creio que não, mas é impossível prever a evolução da praga amarela. Se você for levada por Deus, tenho certeza de que os anjos vão recebê-la alegremente nos portais do paraíso.

Ele logo reconheceu o vazio dessas palavras de con­solo, mesmo porque fazia anos que, para ele, um céu habitado por espíritos puros e generosos perdera o sig­nificado.

— Sim, irei para o paraíso — Constance soou convic­ta. — Apesar de... o padre Osred e tudo o mais, sempre procurei ser boa, o que deve contar pontos junto a Deus. E mais, acabo de ser ungida, e morrerei em estado de graça. Minha alma estará livre e eu terei paz.

Com um sorriso discreto, Rainulf admirou aquela espécie de fé. Também pensava no paraíso como um lugar sem dores e incertezas, angústias e grilhões.

— Mas não gosto da idéia de ter de morrer para enfim me libertar — ela ajuntou.

— Existe alguém realmente livre? — ele indagou.

— Você.

Rainulf fez uma careta. Se ela soubesse como esta­va equivocada...

— Ainda há outros — Constance prosseguiu. — Nobres, clérigos, comerciantes são mais livres do que eu consegui ser. Tudo o que sempre quis foi a liberda­de de ir onde desejasse e de realizar alguns de meus sonhos. Apreciaria ter nascido homem e morar numa cidade grande. Assim poderia trabalhar e viver feliz. Ao contrário, sou mulher e me tornei propriedade do execrável lorde Roger Foliot.

Embora o quarto estivesse envolto pelo opressivo calor, Rainulf sentiu um calafrio.

— Sir Roger forçou você a...

— Ele tentou. Por isso me casei com Sully e depois me entendi com o padre Osred. Não tive escolha. Sir Roger é mais do que um selvagem, verdade seja dita. Espanca as mulheres com quem se deita e, se alguma foge, é caçada, reconduzida ao cativeiro e às vezes mu­tilada a faca. Ou morta.

Ele abraçou Constance com mais vigor.

— Só não veio atrás de mim, quando o padre Osred faleceu, porque contraí catapora e sir Roger teve medo de ser infectado. Ao menos, estou livre dele por en­quanto. E mais livre ainda, se morrer.

— Mas como irá proteger-se do lorde, se sobreviver? — Rainulf mostrou-se preocupado, disposto a elaborar um plano.

— Não sei. — Ela bocejou, visivelmente exausta.

— John Tanner, o curtidor de couros local, vem me cor­tejando desde que o padre Osred caiu doente. Acho que ele quer se casar comigo. — Acomodou-se melhor nos braços de Rainulf. — É menos idoso do que Osred, po­rém não vejo como suportar o cheiro dele, no dia a dia.

— E seu único pretendente? — Surpreso, ele viu que ela negava com um gesto.

— Existem outros dois... Provavelmente, poderei escolher.

Em seguida, a respiração de Constance tornou-se pesada, e Rainulf percebeu que ela adormecera. Em movimentos cuidadosos, ele a ajeitou no colchão e no travesseiro, cobrindo-a com menos mantas. Levantou-se a fim de apanhar a Bíblia Pauperum na estante e sentou-se perto do fogo, surpreendendo-se com a edi­ção e tentando decodificar o texto em inglês arcaico, que conhecia pouco em sua forma escrita. Assim, não pôde avaliar a qualidade da redação, mas as ilustra­ções eram extraordinárias.

— Onde aprendeu inglês? — soou a voz feminina. Ele olhou para o outro lado e deparou com Constance a estudá-lo, curiosa. Havia quanto tempo estava acor­dada? A passagem das horas parecia ter atropelado suas sensações, diante do livro. Avançando, tocou-a na face, ainda corada mas agora bem mais fria. Talvez a terapia do suor tivesse dado certo, afinal!

— Aprendi nas Cruzadas — esclareceu —, após ser capturado e detido. Um de meus companheiros de cela era inglês e me ensinou o idioma. Chamava-se Thorne Falconer, hoje é o barão de Blackburn e meu irmão por via de casamento.

— O nobre saxão... — ela comentou, tomando de volta o rumo da cama. — Ouvi falar dele. Por quantos meses você ficou encarcerado?

— Um ano inteiro. — Rainulf meneou a cabeça, in­capaz de descrever aqueles dias terríveis, sobretudo a uma pessoa que mal conhecia.

O olhar inteligente e compassivo de Constance fi­xou-se nele.

— E natural que não goste de recordar momentos tristes — ela como que o dispensou de responder.

— Minhas lembranças dos homens que matei, em batalhas, são muito piores que as da prisão. Pensava neles como infiéis, seres inferiores a nós, ocidentais e cristãos. Julgava ser vontade de Deus que fossem eli­minados. — Ele engoliu em seco, comovido. — Ganhei a liberdade e voltei a Paris, mas minha fé já estava aba­lada. A Igreja me havia compelido a atravessar meio mundo e matar pessoas de carne e osso como eu. Nunca mais pude confiar nos ensinamentos religiosos.

— E mesmo assim fez seus votos sacerdotais... — ela comentou.

— Fui educado para ser padre e imaginei que, com o passar do tempo, minha fé se fortaleceria. Ao contrário, enfraqueceu-se. A ponto de eu retornar a Jerusalém como peregrino, disposto a aprender a ciência dos mu­çulmanos.

— Se lutou pela retomada da Terra Santa, não acha que uma guerra justifica as mortes?

— Não. Não mais.

— Deve ser horrível conviver com esse tormento. É melancólico e tolo.

— Tolo? — Rainulf duvidou de que tivesse ouvido Constance falar assim.

— Você torna tudo muito complicado, problemático. Não consegue aceitar as coisas como realmente são.

— Desculpe-me, Constance, mas você não com­preende...

Ela riu e acenou com a mão, denotando que deseja­va dormir.

— Compreendo muito mais do que pensa. — Resposta firme e seca, mas antes de virar-se ela notou o livro no chão. — Como avalia esse trabalho?

— Extraordinário. Onde aprendeu a arte de enca­dernar?

— Com o padre Osred, claro. Ele copiava alguns textos para uso próprio ou para revender em Oxford. Quando vim morar aqui, as mãos dele já estavam fra­cas e pouco hábeis...

— Então Osred lhe ensinou a copiar, ilustrar e en­cadernar. Também aprendeu latim, suponho.

— Sim. Adoro elaborar livros, especialmente as fi­guras. — Ela apontou com o queixo a Bíblia Pauperum.

— Essa é minha obra-prima, e talvez meu último tra­balho, caso venha a morrer. Conforta-me saber que deixo algo especial.

— Muito especial — ele reforçou, movendo-se do lu­gar a fim de devolver o volume à estante. — Foi ótimo o padre Osred ter lhe ensinado a técnica. Mas a arte é toda sua.

Mais pensativa do que lisonjeada, Constance ob­servou Rainulf agachado perto do fogo, revivendo as chamas com um espeto de ferro.

— Provavelmente você pensa que... eu sou uma mulher vulgar... uma rameira.

Ele pôs o espeto de lado e enxugou as mãos num lenço.

— Não me cabe julgá-la, Constance. — No íntimo, ele felicitou-se por essa resposta.

— Certo, mas eu sei o que você pensa de mim. Rainulf acercou-se da cama, fitando Constance di­retamente nos olhos.

—Não, não sabe. — Num movimento amável, ele ajei­tou uma mecha de cabelos atrás da orelha da enferma.

— Nossos pensamentos são privados, secretos. E nossas ações, mesmo quando pecaminosas, raramente escon­dem sua causa. Deus entende isso. Os homens, não.

Constance procurou discernir a expressão facial do sacerdote.

— Você não fala como os outros padres.

— Não sou como os outros padres — ele disse com orgulho.

— E por acaso deseja ser?

— Oh, sim. Muito. Quero sua inquebrantável fé, sua fácil devoção. Mas, ao contrário deles, também vivo questionando as regras e atitudes da Igreja.

— Por quê? São tão erradas assim? — Ela pareceu menos inclinada a discutir do que a entender.

— Não são o que eu costumava pensar, antes de co­nhecer Abelardo. Sabe quem foi? — Ante a negativa da jovem doente, Rainulf prosseguiu: — O maior pensador e teólogo da Europa, um homem brilhante. Estudei no curso dele, em Paris. Encorajava os alunos a duvidar de tudo o que nos ensinavam. O motivo? "Não porque Deus disse alguma coisa que devemos acreditar nela, mas porque estamos convencidos de que é a verdade."

— Absurdo. — A reação de Constance fez Rainulf empalidecer. — Não admira que você seja infeliz, ten­do de lutar a todo momento para convencer-se de algu­ma coisa, antes de acreditar nela.

— Quem falou que sou infeliz? — ele murmurou defensivamente.

— Claro que é. Olhe para si mesmo. Nunca vi nin­guém tão amargo, que jamais ri. — Ela mordiscou o lábio inferior, antecipando um possível arrependimento por suas palavras. — É tão terrível ser um padre que questiona a Igreja?

— Sim, é. — Ele desviou a vista para o braseiro. — Seis meses atrás, no regresso de minha peregrina­ção ao Oriente, fui à diocese de Paris e registrei uma petição de renúncia aos votos.

— Podia fazer isso?

— É incomum e extremamente dificultoso — ele ex­plicou.

— Ah, não para um primo da rainha, imagino. Conseguiu a intercessão real em seu favor?

— Sim, mas ainda não é o bastante. — Naquela al­tura, Rainulf já se impressionava com a sagacidade de Constance. — Não faz idéia de como é malvisto um pe­dido de liberação do sacerdócio. Precisei recorrer a mo­tivos mais fortes do que meu parentesco com a rainha.

— Como assim? — Ela pareceu francamente inte­ressada.

Rainulf suspirou fundo, desanimado.

— Aleguei que o bispo que me ordenou era desqua­lificado, por ser um herege.

— E era mesmo? — Constance continuou curiosa.

— Foi excomungado por heresia, após atrever-se a apoiar Abelardo. Todos os seguidores desse mestre fo­ram desligados da Igreja e o próprio Abelardo sofreu condenação como herege pelo Concilio de Siena. Um de­les, Arnold de Brescia, acabou queimado na fogueira.

— Queimado!

— É a punição para as formas mais sérias de here­sia. Um ano atrás, minha irmã, Martine, foi senten­ciada ao empalamento, meramente por ter o dom de curar. Por milagre, conseguiu provar sua inocência.

— Meu Deus! — Constance estava escandalizada.

— O bispo que me sagrou como padre teve melhor sorte. Foi apenas banido. Eu hesitei em usar seu in­fortúnio em benefício de meu pleito, mas ele próprio me incentivou, dizendo que sua reputação já estava arruinada para sempre. De qualquer modo, senti cul­pa por alimentar um escândalo, com minha petição de renúncia. Eu lecionava em Paris, porém exigiram que não voltasse lá. Fui declarado pária. Sabia que isso iria acontecer, mas ainda assim segui em frente.

— Sinto muito por seus problemas. — Ela balançou a cabeça antes de dar mais um bocejo.

— E eu sinto pelos seus. — Ele pousou o dorso da mão na fronte dela e sorriu. — Bem melhor. Creio que você está fora de perigo.

Num rasgo de gratidão, ou outra emoção mais for­te, Constance tomou-lhe a palma e a beijou. O calor dos lábios produziu um delicioso arrepio em Rainulf.

— O que acontece aqui? — soou uma voz feminina. Rainulf ergueu os olhos do alforje em que mexia, arrumando tudo o que trouxera na viagem. Viu en­tão, à luz da manhã, a mulher corpulenta na soleira da porta, com as mãos plantadas na cintura e ar de surpresa. As feições eram familiares ao padre, mas ele percebeu o contrassenso quando se lembrou onde as notara antes: na figura de um anjo, desenhado por Constance num dos pergaminhos da janela.

Sem timidez, ele fez um sinal de silêncio à visitan­te, após indicar a cama que abrigava a jovem profun­damente adormecida.

— Não a acorde — sussurrou. — Você é...

— Helen. E você?

— Rainulf Fairfax. Padre Rainulf Fairfax, por en­quanto.

A mulher inspecionou a túnica e a calça estreita dele com olhos de suspeita.

— Não se parece com um...

— Sacerdote — ele completou, sem prolongar a ex­plicação porque estava exausto, física e mentalmente.

Só desejava dormir, depois de passar toda a noite em vigília, velando o sono de Constance. Contudo, tinha de retornar depressa a Oxford, a fim de assistir a uma im­portante palestra.

A chegada de Helen tinha sido providencial, pois partiria tranqüilo, sabendo que Constance, já fora de perigo, receberia os cuidados da amiga. Ele aproveitou que arrumava seus pertences para exibir à recém-che­gada sua estola clerical, como prova de sua condição de religioso.

Helen mostrou-se confusa por um instante, mas deu de ombros, acercou-se da amiga inconsciente e sentou-se ao lado dela, analisando-lhe o semblante.

— A catapora eclodiu — falou em tom baixo.

— Sim — Ranulf confirmou, avistando de longe os minúsculos pontos vermelhos nas bochechas e na tes­ta de Constance. Logo, muitos outros se seguiriam.

Desolada, Helen fez um solene sinal-da-cruz.

— Que Deus poupe Constance das cicatrizes.

Automaticamente, Rainulf repetiu o gesto. Esperava de coração que ela não ficasse marcada e, muito menos, perdesse a visão. Aproximando-se, ele acariciou com os olhos aquele rosto no qual aprendera a admirar beleza e inteligência. Seria uma pena que a doença o arruinasse.

— Constance vai... — Helen vacilou.

— Sobreviver? — emendou Rainulf. — Não sou mé­dico, mas creio que sim. A febre cedeu durante a noite e sua amiga parece bem melhor.

— Graças a Deus. — O medo continuou presente na expressão da mulher.

O clérigo ergueu o alforje até o ombro, contemplou Constance e pediu a Helen:

Diga-lhe que...

Dizer-lhe o que, exatamente? Que é uma das pes­soas mais extraordinárias que conheceu? Que não su­porta a idéia de não vê-la nunca mais? Que voltará para acompanhar sua convalescença e partilhar mo­mentos felizes?

Não. Seria arriscado permitir-se um envolvimento de qualquer tipo com Constance de Cuxham. Ligações afetivas constituíam algo que ele evitava fazia tempo, refugiando-se no conforto emocional da vida acadêmi­ca. O apego a uma mulher, ainda que inocente, acaba­ria sendo perigoso, considerando-se a petição em an­damento e seus planos de abandonar a vida religiosa.

— Diga-lhe adeus por mim — ele resumiu, mar­chando até a porta.

Mas ali parou, como se lembrando de algo. Abriu o alforje e pescou o relicário. Ajoelhou-se ao lado de Constance, atritou o polegar no objeto, beijou a cruz ali incrustada e colocou-o na mão aberta de Constance, fechando-lhe os dedos firmemente em torno do cubo de vidro.

— Que Deus esteja com você, Constance — mur­murou antes de deixar a casa, sob o olhar atônito da amiga Helen.

De passagem pelo centro de Oxford, Rainulf avis­tou um rosto conhecido na janela superior de uma loja. Ou melhor, uma vasta, inconfundível cabeleira cor de cobre. Era o homem que o enviara a Cuxham duas se­manas antes. Qual o nome? Ele leu a placa e confir­mou: Will Geary, Cirurgião.

Desviou seus passos escada acima e entrou no con­sultório, sob o som de sininhos de alarme. O profis­sional olhou para Rainulf, acima do próprio ombro, enquanto aplicava ataduras no braço de um jovem, sentado na maça.

— Ora se não é o padre da catapora! — exclamou.

— O que o traz ao meu humilde consultório? Espero que não esteja ferido.

— Não, apenas passava pela rua e vi você pela ja­nela. Disse-me que era um médico itinerante...

— E sou, na maior parte do tempo. — Geary aper­tou a bandagem e o paciente gemeu. — Mas tenho este consultório faz muitos anos, e também presto serviços aqui. Além disso, moro no andar de cima. — Ele apon­tou uma estreita escada nos fundos do consultório.

— Gosto de manter a privacidade.

A cama hospitalar comportava uma pessoa deitada e possuía um tubo flexível que a ligava a um balde no chão. Para completar a estranha visão, algumas ur­nas mortuárias se alinhavam na parede oposta. Seria Geary também um médico-legista, perito em autóp­sias? Ou se tratava apenas de uma precaução que atestava a imprevisibilidade da arte da cirurgia?

Geary ajudou o rapaz a descer da maça e vestir a camisa.

— Mantenha esse braço limpo, meu jovem — reco­mendou.

O paciente pagou pelo atendimento e retirou-se.

— A propósito, mestre Geary — falou Rainulf —, não sou mais padre. Acabo de saber que o papa me liberou de meus votos.

— Ignorava que isso fosse possível. — O cirurgião franziu a testa.

— Eu também, até entrar com minha petição.

— Então, já planejava isso faz algum tempo.

— É verdade. — Rainulf esboçou um sorriso.

— Merece uma comemoração. Há um bar ao lado, e eu lhe pago uma cerveja, contanto que me prometa não me chamar de "mestre Geary". O nome é Will.

A taverna em questão calhava de ser a antessala de um bordel. Logo que os dois homens tomaram uma mesa, meia dúzia de sorridentes profissionais do sexo os cercaram, e a mais simpática delas plantou-se no colo de Rainulf, trazendo-lhe as mãos para cima de seus grandes seios.

— Está perdendo tempo, Hulda — disse outra. — Reconheço esse aí. Ele é padre.

— Ótimo — Hulda ronronou, enlaçando Rainulf pelo pescoço e aproximando os lábios pintados de seu ouvi­do. — Tenho alguns pensamentos impuros a confessar, padre... Pensamentos que surgiram quando você atra­vessou a porta. — Ela sussurrou alguma coisa cheia de malícia, provavelmente o rol de suas habilidades.

Will meneou a cabeça, divertido.

— Está ficando com as orelhas rubras, padre.

O corpo de Rainulf reagiu às sugestões de Hulda, embora ele procurasse um meio de livrar-se do as­sédio. A prostituta sentiu na carne a excitação dele. Levantou a saia e introduziu a mão dele entre suas coxas quentes.

— É disso que precisa — encorajou.

— Sim, é. — Rainulf desistiu de negar o óbvio, mas removeu a mão e baixou a roupa de Hulda. — Porém, sou obrigado a resistir. Talvez meu companheiro...

— Ele? — A mulher menosprezou a indicação. — Nunca se deita com nenhuma das garotas daqui.

— Todas têm doenças venéreas — Will justificou-se.

— Mentiroso! — acusou Hulda.

Ignorando-a, Will bebeu um gole da caneca que lhe fora servida por outra meretriz.

— Procuro diversão em lugares diferentes deste — o cirurgião dirigiu-se a Rainulf. — Se você preza sua saúde, aconselho-o a fazer o mesmo.

As mulheres se dispersaram, com ar ofendido, en­quanto Will se inclinava para confidenciar ao ex-padre:

— Se quer uma garota, eu lhe consigo uma limpa. Afogueado, Rainulf engoliu metade de sua cerveja.

— Obrigado, mas não será necessário. Resisti às ten­tações da carne por onze anos. Acho que suporto mais um pouco.

— Mas por quê? Está liberado de seu voto de castidade, não?

— Deve saber que mesmo professores laicos são, por costume, abstinentes ou celibatários.

— Ora — Will encolheu os ombros. — É mais uma questão de aparência do que de prática. Metade dos mestres mantém amantes, e muitos são até casados.

— Sim, porém isso constitui uma desvantagem em matéria de promoções — rebateu Rainulf, sorrindo.

— Ah, então você tem ambições no magistério!

— Fui falar com o bispo de Lincoln. Ele exerce juris­dição sobre Oxford e todos os estabelecimentos de ensino da região. Por enquanto, leciono num pequeno colégio, dirigido pelo bispo Chesney, em cargo inferior a minhas qualificações. Mas, segundo ele, algum dia o lugar será uma grande universidade. Os professores já estão se organizando para promover o crescimento da escola. Will focalizou o balcão e pediu mais bebida.

— E você recebeu a incumbência de chefiar o gru­po? — inquiriu em seguida.

— Ainda não — respondeu Rainulf, animado. — Mas sou o principal candidato. Parece que o bispo de Lincoln não se importou com minha renúncia aos votos sacerdotais. Ele quer um professor de respeito, e meu título de mestre serviria de aval para o cargo de reitor.

— Há quanto tempo está em Oxford, mestre?

— Seis meses. Contudo, trouxe certa reputação de Paris. — De fato, tinham-no como o mais amado profes­sor da capital francesa, um digno sucessor de Abelardo.

— Aparentemente, a fama me precedeu em Oxford. Todos os mestres e os funcionários da Igreja me conhe­ciam de nome.

— Estou impressionado. — Will meneou a cabeça.

— Mas o que tem tudo isso a ver com sua abstinência sexual?

— Como reitor em Oxford, serei um representante do bispo, o que exige castidade.

— Bem... — Will voltou a contestar. — Padres de pa­róquias simples sofrem a mesma exigência, porém todos sabem o que se passa em seus quartos, entre quatro pa­redes. O detalhe é que ninguém parece se incomodar.

— Tem razão. Porém, eu estarei mais exposto do que um clérigo do interior. Entendo que o bispo Chesney seja especialmente intransigente quanto à boa repu­tação de seus comandados. Meu comportamento será vigiado o tempo todo.

— Incrível! Você nem foi indicado para a reitoria, ainda.

— Não, nem serei pelos próximos cinco meses. O senhor bispo irá decidir no fim do verão.

— Ah! — Will rejubilou-se. — Então, até lá você pode...

— Até lá, devo comportar-me como merecedor da posição que almejo. Qualquer conduta imprópria, e minhas chances cairão por terra.

— Significa tanto para você?

— Mais do que imagina.

O médico olhou Rainulf com acesa curiosidade, mas desistiu de questioná-lo. O ex-padre não queria discutir nem seus hábitos castos nem o conflito interior que ha­via tornado tão doloroso o ato de ensinar, antiga alegria de sua vida. Ainda vibrava com o prazer do disputatio, a emoção de despertar mentes jovens para o conheci­mento. Mas o gosto por lecionar estava em baixa, pois ele sentia-se deslocado nessa função. Os estudantes o respeitavam e reverenciavam, assumindo que ele era um homem de inquestionável fé, seguro de suas con­vicções e mais do que capacitado a guiá-los pelos com­plexos caminhos da moral, lógica e teologia. E ele se julgava uma fraude.

Tudo o que pretendia era distanciar-se dos alunos — de todas as pessoas —, refugiando-se na segurança do cargo administrativo que o bispo Chesney parecia reservar para ele. Nesse meio tempo, não podia decep­cionar seu superior, deitando-se com uma prostituta de Oxford. Na verdade, deveria ter-se retirado do bor­del assim que reconhecesse a especialidade do lugar. Não o fizera porque esperava a chance de conversar Com Will Geary sobre o tema que o obcecava havia muitos dias: Constance de Cuxham.

— Voltou a Cuxham, depois que nos encontramos? — indagou a ele.

— Somente ontem. — Will hesitou, como que pe­lando o conteúdo da resposta. — E por pouco tempo. Sir Roger solicitou meus serviços.

— Como o conheceu?

— Oito ou nove anos atrás, eu viajava para casa, pas­sando por Cuxham, e parei numa grande mansão a fim de pedir um prato de comida. Sir Roger pareceu conten­te de me ver ali, depois que lhe revelei minha profissão. Afirmou que me ajudaria com prazer, se após a refeição eu cuidasse das pernas quebradas de um jovem campo­nês. Propus-me a tratar do rapaz imediatamente, pois essas coisas não podem esperar. O lorde levou-me a um adolescente em ferros, que, segundo ele, tinha tentado fugir. "Não há nada de errado com as pernas dele", eu disse. Sir Roger riu, apanhou uma marreta e fraturou ambas as pernas, uma após outra.

Rainulf exprimiu sua indignação batendo a caneca na mesa.

— Meu Deus! — exclamou.

— Sir Roger insistiu num bom trabalho com aque­las pernas quebradas, pois queria o rapaz de volta ao trabalho o quanto antes. Bem, entalei os membros, comi um lauto jantar e fui embora. Ao voltar lá, para retirar as talas, sir Roger tinha outro serviço para mim. — Will secou sua caneca de cerveja. — Alguém de seu meio familiar estava doente. Mais adiante, ele mandava me chamar sempre que necessário. Acho que sou o único médico e cirurgião em que confia.

— Por mim, eu não ficaria lisonjeado — Rainulf co­mentou. — O lorde parece ser um monstro de maldade.

Will deu risada e serviu-se de mais cerveja.

— Ele gostaria de ouvir isso, pois se esmera em ins­talar o terror em todos os que o cercam. Mas o fato é que todo homem tem sua fraqueza, seu medo secreto, que o torna vulnerável. No caso de sir Roger, é ir para o inferno. Não deixa de ser cruel, mas estremece ao pensar que, depois de morrer, vai queimar nas chamas do Diabo. Por isso, apesar de sua natureza malvada, ele se apega pateticamente à Igreja e aos padres. Em Cuxham, só respeitava o padre Osred, que já morreu.

— Que sua alma descanse em paz. — Rainulf persignou-se, mas omitiu sua participação no sepultamento de Osred. — Sabe que fim levou a empregada dele?

— Desconhecia que o padre tinha uma criada. La­mento.

— Uma jovem chamada Constance, que teve catapora — disse o professor.

— Constance? Creio que faleceu. — Will bebeu da caneca como se não tivesse falado nada de mais.

Rainulf sentiu um golpe no estômago e outro no co­ração.

— Mas não tem certeza.., — falou, paralisado na cadeira.

— Vi pessoalmente esse nome numa tumba, ao lado da do padre Osred. O que houve? Você ficou pálido.

— Não entendo — contrapôs o professor, meneando a cabeça. — A febre dela tinha cedido. Como é possível?

— A primeira febre — Will esclareceu — vem antes da erupção das bolhas. Se a vítima sobrevive, geral­mente sente-se bem. Mas aí surge a segunda febre, que costuma ser fatal. Eis, provavelmente, o que acon­teceu com Constance.

Abruptamente, Rainulf ergueu-se.

— Preciso ir — anunciou.

À sua maneira solene, Will também se levantou da cadeira.

— Desculpe-me. Não imaginava que vocês dois ha­viam se envolvido afetivamente.

— Eu não me envolvi — atalhou o ex-padre.

— Ela era bonita?

— Não muito — ele mentiu, lembrando-se nitida­mente dos olhos e do sorriso de Constance. — Bem... tenho de sair.

Will tentou atritar com a mão o braço de Rainulf, para consolá-lo ou retê-lo no bar. O professor fugiu do contato e correu rumo à porta.

— Não podem cavar mais rápido? — grunhiu Roger Foliot aos dois servos visíveis somente acima dos ombros, pois estavam dentro de uma cova, aprofundando-a.

— Estão quase terminando — disse-lhe Hugh Hest, o capataz de confiança que o acompanhava, seu auxi­liar na administração das terras.

O lorde obeso não se acalmou. Rodeou a sepultu­ra, batendo na perna o chicote de montaria, e fixou os olhos porcinos na lápide de pedra. Ali se achavam gravados uma cruz e um simples nome: Constance.

— Pequena rameira — ele murmurou.

Sua cadela de estimação dançava e saltava junto a seus pés. Latiu ante o comentário do dono.

— Não é você, Destinée. — Roger levantou o animal no colo. — É outra pequena rameira.

Nuvens em movimento recobriam a lua cheia, mer­gulhando em trevas o pátio da casa paroquial. Hugh pensou que, com um lampião, o trabalho andaria de­pressa. Também gostaria de que fizesse menos frio. Mas preferiria, sobretudo, estar longe daquele maldi­to túmulo, que era aberto com o objetivo de exumar o corpo da pobre Constance.

Para o empregado, a fixação de seu patrão naquela jo­vem morreria junto com ela. Enganara-se. Nas últimas semanas, Roger tomara-se obcecado com a hipótese de Constance não estar enterrada ali. Talvez continuas­se viva, contente com o truque que inventara a fim de despistar seu perseguidor. Como nada tinha a ver com o caso, Hugh só desejava ver o fim do serviço e ir para casa, ao encontro dos braços acolhedores de Helen.

— Sir Roger — chamou um dos trabalhadores, um gigante mal-encarado de nome Frick, após depor a pá. — Acho que encontramos...

— Afastem-se, afastem-se — gritou Roger, depois de colocar Destinée no chão. Aproximou-se do buraco, junto com Hugh, e desferiu chicotadas nas costas dos dois obreiros, a fim de apressá-los.

Frick era o mais obediente dos servos, mas o outro, o franzino Wiley, não cessava de causar problemas. Tanto que arrancou o chicote das mãos do lorde e bran­diu-o no ar, como se fosse usá-lo em represália. Sabendo do que Roger era capaz, em tal situação, Hugh adian­tou-se. Estendeu o braço a fim de ajudar Wiley a subir à superfície, bem como seu colega. O rapaz magro en­tregou o látego a Hugh, sem discutir, e distanciou-se no escuro, ao lado do corpulento Frick.

Já dentro da cova, Roger esqueceu a impertinência do servo ao empunhar um canivete e cortar as cordas que envolviam a mortalha de linho branco. Abriu o vo­lume, sentindo-o leve demais para conter um corpo.

— Aha! Eu sabia! Veja, Hugh.

O empregado inclinou-se e constatou: em vez do ca­dáver de Constance, ali só havia palha.

— Eu sabia! — o lorde repetiu, num frenesi de rai­va. — Ela me fez de idiota, a pequena prostituta!

— Mas como? — Hugh também fora surpreendido, porque Helen, sua esposa, havia dito que se encarregara de sepultar Constance. Não o fizera, evidentemente. No lugar da amiga, enterrara um saco de palha. Tinha men­tido, porém o plano era engenhoso e quase dera certo.

— Quem a ajudou? Quem fechou este túmulo? — Furioso, Roger lançava chumaços de palha no ar.

Jamais Hugh apontaria o dedo para a própria esposa.

— Não sei, milorde. Talvez um viajante que pa­rou aqui para pedir um copo d'água. Ou a própria Constance. — Ansioso por mudar o foco da conversa, Hugh perguntou: — O que levou o senhor a desconfiar de que a sepultura estava vazia?

— Você deve lembrar-se. Vimos uma mulher com o porte de Constance entrando na igreja de Bagley Wood. Disse-me que não era ela.

— Mantinha a cabeça coberta por um véu, e só a vimos de longe. Quando alcançamos a capela, tinha desaparecido.

— Ela nos reconheceu e fugiu. Isso quando todos pensavam que estava morta e enterrada! E uma vaga­bunda esperta, mas eu sou mais. Chame Pigot — or­denou o lorde.

— Pigot! Melhor não, sir Roger. — Os olhos de Hugh, arregalados, cintilavam na escuridão.

— Chame-o! — gritou o patrão, cuspindo gotículas de saliva. — Pigot encontrará Constance, esteja na Escócia ou em Gales. Ele sempre acha meus inimigos. Vai fazê-la sofrer por me humilhar.

— Sir Roger...— O funcionário ainda tentou demo­vê-lo.

— Prometa a Pigot o dobro do pagamento usual. Venderei Constance a um bordel, depois de recebida a lição. — Roger ergueu os braços para Hugh. — Ajude-me a sair daqui.

O empregado puxou o patrão da cova e aproveitou o momento para argumentar:

— Considero perigoso encarregar Pigot dessa mis­são. — Aquele renegado era famoso pela crueldade.

— Isto é, nenhum bordel vai querer Constance se ela estiver mutilada.

— Ele sabe usar suas facas... — rebateu o lorde, er­guendo a cadelinha no colo. Beijou-lhe o nariz bulboso e cocou o pescoço do animal. — Vou ordenar a Pigot que poupe o rosto de Constance.

— Mas ele é louco — Hugh objetou. — Não se con­trola. Basta lembrar de Hildreth. Também não deve­ria ser desfigurada, mas tanto foi que se matou, afogada no rio.

— Basta! — Irritado, Roger soltou a cachorrinha. — Cumpra minha ordem e traga Pigot aqui, amanhã, ou não sei onde encontrarão sua cabeça. Aliás, sua mulher era amiga de Constance, não?

— Minha mulher!?

— Helen. Talvez tenha uma pista do paradeiro de Constance. Traga-a também. Desejo interrogá-la.

— Bem... eu mesmo posso fazer isso — disse Hugh, apreensivo. — Mas avisarei Pigot e, por favor, não o chame assim, dessa vez. Ele se torna furioso, porque o apelido é alusivo a porco. Trate-o pelo nome verdadeiro.

Roger abanou as mãos gordas, desautorizando Hugh.

— Chamo como quiser. Afinal, quem manda aqui?

Na tarde seguinte, Roger, Hugh, Frick, Wiley e Pigot esconderam-se atrás das árvores que margeavam a trilha, da casa paroquial até o riacho. Mantinham os olhos fixos na figura alta, de cabelos fartos, emperti­gada diante do túmulo de Constance, já devidamente recoberto. Estava parada, com expressão solene, e pa­recia rezar. Hugh sentiu-se pouco à vontade, ao ver um estranho enlutado por uma mulher que, na verda­de, continuava viva em algum lugar.

— Alguém sabe quem é? — sussurrou Roger. Pigot assentiu, conservando os olhos cinzentos so­bre o homem.

— Todos o conhecem em Oxford — disse. — Chama-se Rainulf Fairfax e é professor, titulado como mestre em Educação. Já foi padre.

— Foi? — o lorde não entendeu. — Uma vez padre, sempre padre, por causa dos votos.

— Bem, parece que ele encontrou um meio de ser liberado. — Pigot assumiu um tom aborrecido. — É filho de um poderoso barão normando e primo da rai­nha, mas creio que isso não influiu.

Roger franziu a testa quando notou Rainulf ajoe­lhar-se diante da sepultura e fazer o sinal-da-cruz.

— A vagabunda era popular entre padres — comen­tou acidamente, provocando o riso dos outros, menos Pigot.

— Esse Rainulf era obviamente ligado à fugitiva — ele declarou, olhando feio para Frick e Wiley. — Fiquem quietos, senão não consigo pensar.

— Ligado de que maneira? — quis saber o lorde. Hugh seguiu vigiando o professor, que se benzeu de novo e avançou para tocar a lápide com o nome de Constance.

— Digamos que eram próximos um do outro — de­finiu Pigot.

Momentos depois, Rainulf saltou à sela de seu cavalo e partiu, com um último e melancólico olhar à sepultura.

— Bastante envolvidos, ao que parece — acrescen­tou o celerado. — É bonita, essa mulher?

Roger confirmou com um gesto de cabeça.

— Tem os dentes mais brancos que você já viu.

— Preciso de uma descrição da fugitiva, se deseja que eu a localize. Qual a cor dos cabelos?

— Negros. Muito longos, abaixo da cintura. Mas ela tem baixa estatura. — O lorde indicou a altura em seu peito, com a mão na horizontal. — Por aqui, mas pos­sui charme e corpo bem-feito.

Novamente, Will e Frick ensaiaram um riso mali­cioso.

— Quietos! — bradou Pigot, já no limite da paciên­cia com os dois servos, e levou os dedos ao embornal que trazia a tiracolo.

Frick empalideceu, ciente de que ali o renegado guardava suas facas e punhais. Wiley não se impor­tou, pois desconhecia o fato de que Pigot costumava ter acessos de loucura. Era imprevisível e, no cumpri­mento de uma missão, usava o dom de disfarçar-se de qualquer personagem. Julgava ser uma arte retalhar o rosto de uma mulher, como acontecera com Hildreth.

— Sugiro você manter vigilância sobre o professor e ex-padre — interveio Roger. — Constance pode vir a procurá-lo.

— Sim, isso me ocorreu — garantiu Pigot, mais atento ao embornal. — Você! — Ele apontou Frick.

— Eu?

Pigot apontou-lhe uma pequena faca curva, cuja lâ­mina brilhou ao sol. O homenzarrão recuou.

— Segure seu amigo, de cabeça baixa — ordenou o perigoso capanga.

Os dois servos se entreolharam, e Wiley balançava a cabeça, enquanto a tinha.

— Sir Roger? — Frick apelou ao patrão. — Não o deixe...

Hugh murmurou algo em defesa dos empregados.

— Ora, Pigot — falou o nobre cavalheiro —, você realmente não precisa...

— Não me chame assim! — rugiu Pigot, levantando a faca para Roger, que retrocedeu, tomado de medo e raiva. — Segure seu amigo! — repetiu a Frick.

O servo imobilizou o colega prendendo-lhe os bra­ços atrás das costas e, com uma rasteira, levou-o ao chão. Pigot acercou-se.

— Sir Roger! — suplicou Hugh. — Pelo amor de Deus!

Enquanto o fidalgo encolhia os ombros, indiferente, Pigot deu duas facadas em Wiley, uma em cada perna, e depois o forçou a abrir a boca a fim de cortar-lhe a língua.

A cadela Destinée apareceu no cenário, saltando ao redor do dono de modo a distrair os envolvidos. Menos Pigot, que executou seu desígnio sinistro. Logo depois, Wiley fugiu, manquitolando, mas seus gritos de dor puderam ser ouvidos desde o meio do bosque.

O atônito lorde viu a besta-fera aproximar-se dele e abrir a mão, mostrando um pedaço de carne humana ensangüentada.

— Aqui está — disse Pigot, visivelmente satisfeito. Contra a vontade do patrão, jogou o fragmento para Destinée, que assim comeu a língua de Wiley.

O bandido enxugou a faca num pano e devolveu-a ao embornal, enquanto Frick ia atrás do amigo e o ajudava a lavar-se na beira do riacho. Introduziu um lenço na boca que não parava de sangrar.

— Ele não precisa de uma língua — justificou-se Pigot. — Falava demais. E agora, milorde, posso rece­ber metade?

— Metade? Ah, o pagamento. — Com os dedos trê­mulos, Roger tirou do bolso um pequeno saco com moe­das de prata e passou-o ao celerado. — Terá outro igual quando me trouxer Constance. Com a face intacta.

Pigot encarou o fidalgo obeso com ar de desafio.

— Por favor — emendou Roger rapidamente.

— Sempre as trago de volta, não? Tenham um bom dia, senhores. — Com isso, Pigot girou o corpo e foi embora. Numa pausa, virou a cabeça de lado, como se contemplasse alguma coisa. Em seguida, continuou seu caminho.

— E quanto a Platão? — desafiou uma voz familiar entre a multidão de estudantes reunida no escuro in­terior da igreja de St. Mary.

Rainulf Fairfax, o conferencista do dia, apoiou os cotovelos no púlpito, enquanto Victor de Aeskirche, sempre dado a confrontações, ficava de pé no banco a fim de ser notado.

— Seu conceitualismo, mestre, essa noção dos ele­mentos universais como meras palavras, está em opo­sição direta às lições de Platão.

— Se tivesse prestado mais atenção — rebateu o professor —, saberia que o conceitualismo não é uma noção de minha lavra, mas de mestre Abelardo e, ouso dizer, de Aristóteles. O ponto que venho tentando des­tacar é que os universais não são realidades nem pa­lavras vazias, e sim conceitos. Aprecio debates, Victor, porém recomendo que, no futuro, você se atenha aos fatos antes de subir no banco.

Houve algumas risadas à custa de Victor, e muitos de seus colegas o instigaram a sentar-se, o que ele fez, mas carrancudo.

— É tudo por hoje — anunciou Rainulf, trocando o latim utilizado no disputatio pelo francês. — Quem quiser, está convidado a ir a minha casa, amanhã cedo, para uma discussão sobre o nominalismo e como se relaciona com a doutrina da Igreja a respeito da Santíssima Trindade.

A platéia, composta desde alunos de gramática até candidatos ao doutorado, em torno dos trinta anos, saiu ordeiramente da igreja para a chuvosa tarde de abril, deixando Rainulf sozinho no grande templo. Não total­mente sozinho. Ao apanhar seus livros e anotações, ele percebeu uma figura semiescondida atrás de um pilar. Era uma pessoa jovem, pelo que se podia ver sob o ca­puz do manto cinzento que lhe cobria a cabeça. Já a ha­via notado durante a preleção, imaginando por que não ocupava um dos muitos lugares vagos. Talvez se sentis­se como um estranho ali, sem a beca preta usada pelos estudantes de Oxford. Na verdade, diversos moradores locais, de boa cultura, freqüentavam as palestras de Rainulf, e nenhum deles vestia a capa tradicional.

— Um triunfo, como sempre — soou uma voz atrás dele, logo personificada no padre Gregory, que emer­gia detrás do altar.

— Esteve escutando o tempo todo? — indagou o mestre.

— Faço isso com freqüência. — Gregory inclinou-se sobre o púlpito e sorriu. — Você é o mais excepcional professor que conheço. Os estudantes o adoram.

— Seria melhor que dirigissem sua adoração a ou­tros fins.

Como amigo íntimo e confessor de Rainulf, o padre Gregory era a única pessoa em Oxford que havia priva­do da crise de fé que afastara o pupilo do sacerdócio.

— Você tem fraquezas e qualidades, Rainulf, como todo ser humano. Mas sua grande força reside no ensino. É um dom de Deus, que você não deveria desper­diçar num cargo administrativo.

— Fala da reitoria...

— Isso vai sufocá-lo — Gregory enunciou grave­mente. — E deixará os alunos de Oxford sem seu me­lhor professor.

— Outros poderão fazer o que faço.

— Mas não tão bem — o padre retrucou, desolado. Rainulf empunhou sua pasta e virou-se para sair.

— Duvido... — respondeu modestamente.

— Na verdade, duvida de si mesmo, meu amigo — Gregory contestou. — Tudo bem quanto a duvidar do que lhe foi ensinado. É compreensível, no caso de mentes brilhantes. Mas quando esses homens, como você, questionam a si próprios e se retiram do mundo, o brilhantismo se esvai... e o universo se apequena.

Rainulf correu os dedos pela vasta cabeleira e ba­lançou a mão no ar.

— Gregory, você não imagina como eu estava frus­trado e como precisava desesperadamente desta mudança de rumo.

— Talvez — disse o amigo padre, em tom sereno. — Mas me prometa uma coisa: dedicar algum tempo a pensar se a reitoria é de fato o que deseja. Tem todo o verão para meditar nisso, e voltar atrás não tem nada de mais. Promete?

—Não compreendo. Você é o representante do bis­po. Devia me incentivar a aceitar o cargo, não ficar contra mim.

— Também sou um representante de Deus. — O pa­dre sorriu, com ar de sabedoria, e pôs a mão no ombro de Rainulf. — Ele gostaria de que você continuasse a lecionar. Pense no assunto. É tudo o que lhe peço.

No íntimo, o ex-sacerdote não tinha no que pensar. Precisava da reitoria como de alimento. Por educação, porém, assentiu com um movimento de cabeça e to­mou a direção da porta. Quando passava pela nave da igreja, deparou com o encapuzado que declinara de sentar-se durante a conferência.

— Padre Rainulf? — chamou a criatura, saindo de trás do pilar.

— Não sou mais padre — foi a resposta seca.

— Perdão, quis dizer mestre Fairfax.

A voz rouca soou familiar, mas antes de lembrar-se de onde já a ouvira, a pessoa misteriosa colocou-lhe na mão um cubo de cristal transparente.

— Isto lhe pertence.

Era o relicário que continha os cabelos de São Nicácio.

— Deu certo. — Os dedos pequenos retiraram o ca­puz. — Eu melhorei.

— Por Deus! Constance! — Rainulf reviu os lumino­sos olhos castanhos, os dentes alvos que sorriam para ele. Entre assombrado e eufórico, deixou cair o relicá­rio, que feriu o chão pedregoso mas não se quebrou.

Ambos se agacharam simultaneamente a fim de re­colher a peça preciosa, e assim as mãos se tocaram. Ele sentiu a pele quente e suave, a pele de uma mulher.

— Constance! — repetiu.

— Agora sou Corliss. — Ela observou furtivamente os arredores. — Não me chame mais de Constance.

Ainda incrédulo, Rainulf examinou-lhe o rosto, livre de cicatrizes que poderiam denunciar a catapora. Com seu porte pequeno e o longo manto cinzento, ela parecia um rapazinho, embora delicado. Sem conter-se, trouxe Corliss para junto de si, segurando-a firmemente. Ela retribuiu o abraço, após passar para as costas a sacola que trazia a tiracolo. Por um precioso momento, Rainulf sentiu que o tempo havia parado, de modo a fruir o con­tato, digno de um par de amantes.

O lado racional do ex-padre, acostumado a dominar suas ações, censurou-o pela imprudência. Contudo, uma força nova latejava dentro dele e impunha a ne­cessidade e a urgência de relacionar-se afetivamente.

— Você é real. Está viva — murmurou, afagando com os dedos a cabeça da mulher e os cabelos agora curtos. Pela primeira vez em anos, riu de contenta­mento. — Meu Deus, Constance, pensei que...

— Não me chame de Constance. — Ela recuou, co­briu-se com o capuz e procurou o pilar para esconder-se. — Ninguém deve ouvir esse nome.

Com a perda do contato, frustrado, Rainulf guardou o relicário no bolso.

— De quem está fugindo? De sir Roger?

— Do homem que ele manda atrás das fugitivas. Não sei quem é, mas, pelos antecedentes, deve ser um carniceiro desalmado.

— Mas como conseguiu... Existe uma lápide com o seu nome.

— Helen me ajudou. Não foi difícil. Enchemos um saco de palha e o enterramos no meu túmulo. — Corliss, deu de ombros. — Ninguém desconfiou da minha amiga, e eu esperei o anoitecer para sair de Cuxham.

— Para onde foi?

— Tenho um primo em Bagley Wood, com quem fiquei por algumas semanas. Mas me dei conta de que estava muito perto de Cuxham, para viver sem um disfarce. Certo dia, fui à igreja local e vi sir Roger nas proximidades, junto com seu funcionário Hugh Hest, marido de Helen. Acho que também me viram.

Rainulf como que sentiu sobre si todo o perigo que Corliss enfrentara.

— Ganhei os fundos da igreja — ela prosseguiu — e corri sem parar. Acabei aqui em Oxford. — Retirou o capuz, a fim de confirmar que a longa cabeleira negra fora reduzida a um corte curto, masculino. — Além de mudar o penteado, troquei as saias ou vestidos por calças de homem e... — Sorrindo, ela estendeu uma perna e mostrou a bota. — O que achou?

— Nem sei o que pensar... — Rainulf balançou a cabeça, preocupado. — Por quanto tempo vai manter o disfarce?

— Até que sir Roger desista de me encontrar. Podem ser meses ou anos, mas finalmente ele se cansará de procurar. Se ficar em Oxford, posso ter notícias dos planos dele, através de Helen.

— Onde está hospedada? Tem algum dinheiro? — Ele voltou a se preocupar.

— Já não tenho mais nada. Venho dormindo num beco, perto da alameda Beelhall, até conseguir trabalho.

— Numa viela, ao relento! Pode ter sua garganta cortada durante o sono. E quando o tempo bom aca­bar, dando lugar ao frio e à chuva?

— Talvez a abadia de Osney possa me hospedar, durante a noite.

Rainulf desenhou na mente a desconcertante ima­gem de Constance, ou Corliss, deitada num dos beliches do conhecido abrigo da cidade, entre indigen­tes, todos homens, incluindo patifes da pior espécie.

Se descobrissem seu verdadeiro sexo, ela se tornaria um joguete nas mãos de estupradores. Enfim, era al­tamente perigoso e ela não sabia.

— Já vou andando, ver se consigo uma cama na abadia. Obrigada por tudo. E pelo relicário. — Ela fitou o vazio, e mesmo assim ficou corada. — Fiquei triste ao acordar e descobrir que você havia partido.

— Fiquei triste por ter de partir — ele falou em tom baixo, notando que a mulher arregalava os olhos, mirando-o diretamente, como se a declaração a sur­preendesse. Rainulf levou a mão ao bolso e resgatou o cubo de vidro. Devolveu-o. — Quero que conserve isto, como presente. É seu.

— Meu? Não posso. E uma peça fina demais, valiosa.

— Você merece coisas finas. Fique com o relicário. — Ele abriu-lhe os dedos e os fechou em seguida, em torno do cubo. Por favor.

Mesmo indecisa, ela concordou.

— Será uma lembrança sua... e de tudo o que fez por mim — declarou. — Talvez a relíquia continue a me dar sorte.

Rainulf observou as próprias mãos, que colhiam as de Corliss, cobrindo-as até os pulsos. Abominou a ideia de retirá-las, mas foi o que fez, antes de recuar dois passos. Ela também retrocedeu, arrumou a bolsa no ombro e, por um instante, ambos simplesmente trocaram um olhar.

— Adeus, mestre Fairfax. — Ajustando o capuz, ela saiu para a rua escura.

— Espere! — No intervalo de segundos, Rainulf atravessou a porta e reteve a jovem pelo braço.

— Algo errado? — ela interpelou.

— Não. Sim. É inseguro você pernoitar em Osney, precisa de um quarto apropriado.

— Isso custa dinheiro, e por enquanto...

— Venha para casa comigo — ele propôs sem hesi­tação. — Ao menos para uma refeição decente.

— Vou lhe causar problemas. — Ela pestanejou, ingênua.

— Nenhum. Enquanto jantamos, pensarei na solu­ção para seu alojamento.

Lentamente, ela meneou a cabeça, anuindo, e então abriu mais um de seus extraordinários sorrisos.

Corliss parou no meio da lamacenta St. John Street e estudou a fachada do prédio ao qual Rainulf a levara. Era uma sólida construção de dois pavimentos, que se destacava das casas de madeira adjacentes, não só pela altura como pelas janelas em arco existentes em toda a parede. Parecia um lugar quente e acolhedor, com duas portas dando para a rua e uma chaminé fumegando acima do telhado.

Rainulf abriu a entrada e levou Corliss casa aden­tro, diretamente para uma escada estreita.

— Onde dá a outra porta? — ela perguntou, prece­dendo seu anfitrião.

— Na minha biblioteca e sala de leitura. Ali tam­bém leciono para pequenos grupos.

A revelação a surpreendeu, mas o espanto maior a aguardava no segundo andar. Havia pensado na exis­tência de um longo corredor, com acesso a diversos quartos, um deles ocupado por Rainulf. Na verdade, deparou com um vasto salão retangular, de clarabóia alta e paredes brancas que impunham um ar majesto­so ao cenário. A direita, viu uma cortina de couro a se­parar determinado espaço, e portanto o local era ainda maior do que aparentava ser à primeira vista.

Um aroma delicioso alcançou as narinas de Corliss, que salivou de fome. Procurando a fonte daquela delícia, ela localizou a lareira acesa no canto oposto do salão e, sobre as brasas, uma grelha onde eram assadas postas de peixe. Imaginou que logo poderia comê-las com ba­tatas e bastante vinho. Mentalmente, formulou graças a Deus pelo abrigo agradável e pela boa refeição. Era o que Rainulf tinha proposto e dispunha-se a cumprir.

Na grande mesa perto do fogo, dois jovens estudantes, trajando becas pretas, tomavam cerveja e comiam pão.

— Olá, mestre Fairfax — cumprimentou um deles, de cabelos claros e sorriso contagiante. O outro, de ca­beça raspada, saudou o professor em francês.

Rainulf depôs sua pasta sobre a mesa e pigarreou.

— Corliss, estes mestiços beberrões são Thomas e Brad, dois de meus melhores alunos...

— Muito prazer — ela disse em tom velado.

— Creio que não conheci você de antes, Corliss — falou Brad, o mais moreno, com sotaque carregado. O que você estuda?

— Vim a Oxford para trabalhar, não estudar. — Ela também colocou sua bolsa de pano na mesa e dela retirou a Bíblia Pauperum, que mostrou a Brad. — Sou desenhista. Faço ilustrações e iluminuras.

Os rapazes folhearam o livro e exprimiram admiração, fazendo Corliss corar de orgulho.

— Você devia ir à Catte Street — disse Thomas. — Ali estão os livreiros da cidade, os escribas, os ilustradores.

— Eu sei. — Corliss recuperou e guardou o volume. — Hoje mesmo estive lá, em busca de serviço, mas não tive sorte. Talvez amanhã...

Rainulf balançou a cabeça, aborrecido, diante dos pratos usados que jaziam na mesa. Também se preo­cupava em ocultar a real identidade de Corliss.

— De novo vocês comeram meu jantar?

— Luella fez duas porções extras. Já se acostumou conosco — esclareceu Thomas.

— Onde ela está?

— No térreo — Brad explicou, sorrindo. Rainulf marchou até um vão próximo à lareira, e Corliss pôde ver ali o patamar de uma escada em espi­ral que levava ao andar de baixo.

— Estou em casa, Luella — bradou o professor, sem descer os degraus.

Além da fome, o estômago de Corliss acusou incômo­do pela presença de uma mulher na casa. Considerou a possibilidade de que o robusto ex-padre mantivesse uma amante dentro do próprio lar. Algo bastante con­veniente.

Como que adivinhando a especulação, Rainulf apressou-se em esclarecer:

— Luella é minha governanta e cozinheira.

Bem, Corliss havia sido tudo isso para o padre Osred, e mais alguma coisa. Sua desconfiança só ces­sou quando Luella surgiu, arfante por causa da subi­da. Era uma mulher gorda e idosa, de rosto vermelho e corpo maltratado pelos anos.

— Estava limpando a sala de leitura para a reunião de amanhã, senhor. Mas não sei se devia me incomo­dar, levando em conta o estado deplorável em que seus alunos a deixam. — Os olhos apertados pousaram em Corliss, confundida com um rapaz, graças à vista fra­ca da governanta. — Quem é você, meu jovem, e por que sorri tanto?

Ela rapidamente recompôs suas feições.

— Não pretendia ficar observando a senhora. Meu nome é Corliss.

Luella cruzou os braços e varreu com o olhar a figu­ra da visitante.

— Mais uma boca para alimentar, não é, padre? Ela recolheu os pratos e talheres usados, empilhou-os dentro de um cesto e foi mexer na grelha. Virou os filés de peixe e assim produziu mais um sopro de aroma apetitoso na sala. Pareceu lembrar-se de algo e voltou-se para Thomas e Brad.

— Não ficou combinado de vocês lavarem o que su­jaram? Eles são preguiçosos, padre.

— Pare de me chamar de padre, Luella. E saiba que realmente pretendo servir o jantar a Corliss, mas depois limparemos tudo. Se já quer ir para sua casa, Thomas e Brad poderão acompanhá-la. — Rainulf lançou um olhar severo aos dois. — Não é?

Sem graça, ambos assentiram, desprezaram o resto de cerveja nas canecas e se ergueram com duvidosa firmeza.

— Imagine se conseguirão me proteger nas ruas, nessas condições... — resmungou Luella, passando seu xale pelos ombros.

— Eu esperava que você é que os protegesse — ata­lhou o professor. A governanta riu, Thomas e Brad se apressaram em escoltá-la escada abaixo.

Com a saída dos três, o salão mergulhou na quietude. Corliss e Rainulf se achavam juntos e sozinhos. Calado, ele apenas recostou-se à mesa, cruzou os bra­ços e pôs-se a examiná-la, olhando-a como se inspecio­nasse alguma nova espécie de mamíferos. Corliss sen­tiu arrepios, mais por nervosismo do que pela roupa molhada do chuvisco que caíra no caminho. Umedeceu os lábios e, no afã de disfarçar a ansiedade, desviou a vista para as paredes brancas e nuas, o mobiliário mínimo, a amplidão da sala.

— A casa é sua? — ela perguntou.

— Sim — confirmou o mestre, sem tirar os olhos dela.

— Deve ter custado uma fortuna.

— Depende do que você considera uma fortuna... Corliss detectou uma leve tensão na atmosfera, uma sutil inquietação, e ponderou qual seria a causa.

— Isso não é resposta —comentou.

— Mas você não indagou, apenas fez uma afirmati­va. — Rainulf avaliou que se saíra bem.

— É assim que transcorre uma conversa entre acadê­micos? — Corliss ironizou. — Detesto isso. Por que sim­plesmente não me conta quanto pagou pelo imóvel?

— Não é coisa que se pergunte, mas... — ele sorriu estranhamente — custou trinta e oito libras esterlinas.

Admirada, Corliss deixou pender o queixo.

— E tinha tanto dinheiro? Perdão, é claro que ti­nha. Você é o primo da rainha. Padre ou não padre, deve ser muito rico.

— Não sou mais padre, e só — ele atalhou com uma ponta de irritação. Afastou-se da mesa, porém mante­ve o foco sobre a jovem, que recuou.

— Por que está me olhando desse jeito? Rainulf esboçou um sorriso.

— Você é como uma criança pequena, sempre fa­zendo perguntas.

— E então? — Ela projetou seu queixo para cima. Após momentânea vacilação, ele pronunciou-se com um tom de deslumbramento na voz:

— Todos pensaram que você era um rapazinho.

Verdade. Ele não conseguia crer que o disfarce de Constance, ou Corliss, havia funcionado.

— Este é o segredo — declarou ela, tocando a calça masculina pelo vão do manto, que deixara aberto.

— Não é só a roupa. Ninguém sequer imaginou que se tratava de uma mulher. Nem na igreja nem aqui.

Coube a Corliss sorrir de satisfação.

— Está vendo? Posso viver desta maneira por anos, sem provocar suspeitas.

Ainda preso em seus devaneios, Rainulf foi à larei­ra e conferiu, na grelha, se o peixe já estava pronto. Varada de fome, Corliss torceu para que sim.

O professor ergueu-se e coçou o queixo, agora pare­cendo distante e desconcentrado. Mas, o que quer que contemplasse, seguia absorto na mulher a quem dera abrigo.

— Rainulf? — ela arriscou. — Já vamos comer?

— Sim, claro. — No entanto, ele não se moveu no sentido de colocar os pratos na mesa. — Gostei de que me chamasse de Rainulf.

— Tem certeza? — Ela se congratulou pela inicia­tiva.

— Completamente. Não há necessidade de forma­lidades entre nós. Especialmente quando... eu estava pensando... já que não tem onde morar e se passa tão bem por um rapaz, pode viver aqui, comigo.

Ele suspirou. Ambos se entreolharam.

— Com você?

— Se quiser. Julgo que ficará mais segura comigo do que sozinha, e não só por causa de sir Roger. Como toda a cidade, Oxford é plena de bandidos e assaltan­tes. Claro, temos de ser cuidadosos. Já seria escândalo suficiente descobrirem que estou vivendo com uma mu­lher, mas, no seu caso, com esse disfarce de homem...

Ele analisou de novo a figura que lhe despertava dese­jo carnal. Precisaria de muito autocontrole para não lan­çar-se sobre ela. Felizmente, isso fizera parte dos anos em que cumprira os votos sacerdotais. Estava treinado.

Impaciente, tomou Corliss pela mão e conduziu-a até a cortina de couro, na qual abriu uma fresta que deu passagem aos dois. Aquele setor do salão, menor que o outro, era mobiliado como um quarto de dormir. Constance teve um pressentimento, indefinível se bom ou ruim, mas seu cansaço a fez sonhar com uma noite de sono reparador. A cama era tão grande que com­portaria uma família, não só um casal, e as cortinas adamascadas estavam presas nas colunas do dossel, revelando pilhas de travesseiros perfumados. O col­chão só podia ser de penas, ela refletiu.

— Tudo isso veio junto com a casa — informou o professor, ao perceber a direção do olhar de Corliss. — Sempre achei grande demais para mim, de modo que montei outro quarto. Talvez você aproveite este.

Instantaneamente, ocorreu a Corliss a imagem do padre Osred, despindo-se diante dela, ao lado da cama na casa paroquial. Acho que nunca se deitou num leito tão macio. E depois: Pode pendurar suas coisas ali. Será que todos os padres dormiam em meio a tanto luxo? Será que todos tinham amantes?

Bem, Rainulf Fairfax já não era padre. Libertara-se dos votos de celibato e abstinência. Caso tivesse permanecido casto, antes da renúncia ao sacerdócio, agora não precisava mais.

Ele agarrou-a pelo braço e ela desvencilhou-se com um gesto brusco.

— Não queria assustá-la, apenas ajudá-la a tirar isto — disse Rainulf, tocando as golas do manto com­prido, a sorrir de modo amistoso.

Corliss notou a seriedade dele ao lidar com os bo­tões ainda presos, antes de desvestir-lhe o casaco pe­los ombros e braços. O professor cheirava bem. Uma pequena veia lhe marcava a testa, pulsando em meio à pele clara. O calor das mãos, ao tocarem seu pes­coço, por não mais que um segundo, mexeu com sua sensibilidade. Ela teve de esforçar-se para manter a respiração no mesmo ritmo.

Rainulf pendurou o manto num cabideiro e remo­veu o capuz, abotoado na gola, para que secasse me­lhor. Também retirou sua beca acadêmica e a colocou no cabide. Em seguida, desfez-se do cinto, lançando-o a uma cadeira, e voltou a centrar-se por alguns segun­dos no corpo de Constance. Deu as costas a ela a fim de libertar-se da calça e da camisa, mais úmida do que ele imaginara. Ficou apenas de ceroula.

— Você pode pôr as botas perto da lareira, para se­carem mais rápido, e pendurar suas outras coisas ali na parede.

Paralisada, Constance apreciou a visão dos múscu­los das costas e ombros de Rainulf, que se flexionaram enquanto ele removia as próprias meias. Uma cena cativante, mas que não apagava a lembrança do pa­dre Osred, quando havia se preparado para possuí-la, sem pedir licença. Ela imaginou como seria deitar-se com um homem do porte de mestre Fairfax. Isso aconteceria cedo ou tarde, caso ela permanecesse ali. A fantasia revelou-se a um só tempo constrangedora e instigante.

Não se deixe tentar pela beleza dele ou pelos modos gentis. Senão, tudo se repetirá. Você se tornará nova­mente uma prostituta, barganhando seu corpo por pro­teção. Nunca conhecerá a liberdade.

Ele a deixaria em paz, caso se recusasse a ceder?

Por certo, Rainulf era uma boa pessoa. Mas os homens em geral se tornavam animais impiedosos quando ex­citados por uma mulher. Helen, mais experiente no assunto, costumava preveni-la. Ela, com sua vida se­xual limitada a Sully e Osred, não tinha por que duvi­dar disso. Aqueles dois, já com certa idade, possuíam fraco apetite erótico. Mas Rainulf era jovem, forte, e se quisesse tê-la na cama ela não conseguiria impedir.

Vendo-o deitado, reteve o fôlego, atravessou em pas­sos silenciosos o vão da cortina de couro, apanhou seu embornal e alcançou a escada, que desceu correndo. Rainulf ouviu o ruído e moveu a cabeça à procura dela.

— Corliss? O que está fazendo? — Ergueu-se ao es­cutar o barulho de botas nos degraus e, logo depois, o som seco da porta sendo fechada.

Assoberbado, ele recriou na mente os eventos ocorri­dos nos minutos precedentes, em busca de algum moti­vo para aquela súbita fuga. Observou o enorme, ridículo leito no qual nunca havia dormido. Havia mais: o cinto a balançar na cadeira... a capa e a camisa penduradas no cabideiro... as meias de lã soltas no chão... o manto cinzento que ela nem se preocupara em vestir, antes de enfrentar a noite úmida lá fora. Tomou total consciên­cia do que tinha acontecido. Ela fugira dele!

— Droga! — De botas calçadas e coberto somente com a beca, para não perder tempo, ele desembestou escada abaixo e viu-se em plena St. John Street. Garoava e fazia frio. Esquadrinhou o ambiente e logo percebeu, à distância, a figura que caminhava rumo ao centro da cidade.

— Corliss! — gritou, em meio ao trajeto. — Pare! Era provável que ela o tivesse ouvido, pois acelerou as passadas. Na esquina da Shidyerd Street, porém, ele alcançou-a e prendeu-a pelos braços, que juntou em suas costas.

— Fique quieta! — ordenou quando sentiu a luta de Corliss para libertar-se, agitando as pernas violen­tamente.

Ambos se enrodilharam na disputa, que já lembra­va uma briga entre homens, até que Rainulf conse­guiu segurar os pulsos de Corliss e erguê-los para as laterais da cabeça dela.

— Por que fez isso? — ele inquiriu com uma ponta de despeito. — Não vou machucá-la. Só queria conver­sar com você.

— Queria mais do que conversar, com certeza — ela devolveu, em tom veemente. — Mas asseguro-lhe, mes­tre Fairfax. Estou cansada do papel de prostituta.

Corliss debateu-se a fim de soltar os punhos, porém Rainulf a reteve com mais força. Ela tentou chutá-lo, mas ele se desviou, reequilibrando o próprio peso a fim de imobilizá-la. De encontro ao tórax do mestre, Corliss sentiu o batimento rápido do coração dele.

— Escute-me um pouco — pediu Rainulf, em vão.

— Se eu me dispusesse a trocar meu corpo por pro­teção, já teria aceitado a proposta de John Tanner. Ele quer se casar comigo. E você só quer...

— Ajudá-la.

— Ah! — Corliss aparentou não acreditar.

Rainulf inspirou profundamente e soltou o ar aos poucos, ganhando tempo e compostura. Esmerou-se na suavidade ao falar.

— Sei o que pensou de mim, naquele quarto. E que não lido bem com mulheres, por isso dei uma impres­são errada.

Ela o fitou nos olhos, procurando decifrar as reais intenções do mestre.

— Faz onze anos que não tenho uma mulher, Corliss. Fui um padre fiel aos votos.

— Não é mais, por isso pensei que... quando você começou a despir-se...

— Bem, não pense. Esse foi o problema. Acredite, a culpa é minha. — Ele suspirou e liberou os pulsos dela, experimentalmente. Viu que Corliss já não se debatia, encontrando amparo em seus braços. Então, acrescen­tou com convicção: — Desejava apenas tirar minha rou­pa úmida. Julguei que você gostaria de fazer o mesmo. Não quero vê-la julgando que eu pretendia...

— Seduzir-me — ela completou, com um brilho de­safiador nos olhos.

— Fique certa de que não tenho tais planos — foi a resposta de Rainulf, tão firme quanto a pressão que aplicou no braço dela ao caminharem de volta à casa.

Ela recebeu o gesto com expressão neutra, seguin­do ao lado dele. Rainulf deu-lhe um sorriso, o que era muito para um homem que raramente ria.

— Isso não significa que... que eu não julgue você muito... atraente.

Corliss explodiu numa risada franca, que contagiou o professor. Ele a enlaçou pelos ombros, desajeitada­mente, cadenciando os passos.

— Há uma tina em sua maravilhosa casa? — ela perguntou, já com as feições suavizadas.

— Sim. E das grandes, esperando por você.

— Prefiro jantar primeiro. Estou verde de fome.

— A esta altura, os peixes devem ter ficado torrados.

— Vou comê-los da mesma forma... — Naquele mo­mento, Corliss sentiu o toque da mão de Rainulf em seu braço, não mais no ombro, e percebeu que ele a es­tudava por inteiro. Qual seria a intenção, dessa vez?

 

Pigot vigiava o movimento da St. John Street, ocul­to na esquina de uma viela. Viu o ex-padre e um rapaz de cabelos negros e curtos entrando juntos no impo­nente sobrado.

Pois então, o mestre emérito de Oxford gosta de me­ninos, pensou ele. Sendo assim, por que tinha aparen­tado tanta tristeza à beira do túmulo da jovem amante do pároco de Cuxham? Talvez ele fosse um daqueles degenerados que nutriam interesse pelos dois sexos, indistintamente.

Apesar disso, ele concebeu, uma pessoa da estirpe de Rainulf Fairfax poderia conquistar alguém melhor do que uma rameira como Constance de Cuxham. Além de vadia, uma mulher ardilosa e falsa. Ele conhecia o tipo. Com suas facas, lhe daria uma boa lição.

Primeiro, porém, tinha de encontrá-la. Seus instin­tos recomendavam um olhar vigilante sobre Rainulf Fairfax. Cedo ou tarde, Constance viria até ele.

E seus instintos nunca lhe haviam faltado.

 

Corliss acordou lentamente, rodeada de maciez. Sentiu-se nas nuvens. Melhor ainda, no paraíso. O paraíso cheirava bem, com as fragrâncias trazidas pela brisa. E era musicado pelo canto mavioso dos pássaros. Ainda de pálpebras fechadas, ela pressentiu uma suave luz dourada que a cercava e aquecia.

Se eu abrir os olhos, tudo isso vai acabar. Por longos, pacíficos minutos, permaneceu sem mover-se na cama, encapsulada em seu nirvana dourado. Gradualmente, um acesso de inquietação, de realidade, roubou-lhe o sossego.

— Ah! — exclamou, descolando as pálpebras uni­das. Lembrou-se de onde se achava.

De fato, a luz do sol matinal banhava o aposento, a incidir sobre as cortinas adamascadas que isolavam seu leito. Esta é a minha cama, agora, ela pensou, ao mesmo tempo que dava um sorriso estranho, de puro contentamento. Minha cama! Só minha!

Corliss bocejou e espreguiçou-se como um gato. Re­cordou a noite anterior, quando tinha fugido do mestre Fairfax e ele a trouxera de volta. A primeira coisa que o professor fizera, graças a Deus, fora cortar pão para ela e um grosso pedaço de peixe grelhado. Havia co­mido muito e demorado mais do que ele para termi­nar. Enquanto isso, Rainulf tinha posicionado uma tina cheia perto da lareira, a fim de esquentar a água para o banho de sua hóspede. Logo trouxe mais uma, destinada a ele, e no devido tempo ambos se lavaram, separados por um biombo.

Depois disso, enrolados em roupões, haviam senta­do para conversar. Falaram sobre os planos de Corliss quanto a encontrar trabalho como ilustradora. Rainulf contou-lhe tudo sobre a Catte Street, onde a maioria dos livros eram produzidos, um a um, em processo to­talmente manual. Chamou a atenção dela para o rá­pido desenvolvimento de Oxford, por conta do influxo de estudantes e professores. Em acréscimo, discorreu sobre como a atividade de lecionar havia se tornado entediante, daí seu desespero por conseguir a nomea­ção para uma reitoria. Ressalvou que deveria manter-se casto, se quisesse garantir a indicação.

Veja, Corliss, ele tinha comentado. Você está perfei­tamente segura comigo. Eu nunca perderia essa opor­tunidade fazendo de você minha... amante.

Rainulf se mostrara constrangido ao pronunciar aquela palavra. Nem mesmo em segredo. O povo sempre descobre a verdade. Vi muitos homens da Igreja serem destituídos de suas posições, arruinados, por causa de uma mulher. Isso não acontecerá com minha pessoa.

O vago desconforto do professor havia divertido e intrigado Corliss. Como, ela ponderou, um homem como Rainulf guardara onze anos de abstinência se­xual, sem sucumbir às tentações da carne? Ela levou em conta sua estatura, seu corpo esguio e musculoso, a boa aparência, os penetrantes olhos verdes, no tom de um lago da montanha. Por certo, naquele prazo te­riam surgido mulheres determinadas a fazê-lo violar o voto de castidade. Contudo, segundo ele, nunca cedera ao apelo dos sentidos.

Onze anos eram tempo demais para um homem, Corliss refletiu, acomodando-se entre as cobertas ma­cias como seda. Tempo demais para permanecer sem sexo. Não era o caso dela, para quem o ato carnal ha­via sido mais uma obrigação do que um prazer. Mas os homens, mesmo os dois idosos a quem servira, ne­cessitavam se aliviar com regularidade, a fim de não ficarem nervosos.

Talvez, a despeito da aparente virilidade, Rainulf não ligasse para mulheres. Talvez, como Corliss tanto ouvira falar, ele e outros padres preferissem meninos e rapazes para satisfazer-se.

Observando a cortina que encimava a cama, ela analisou tal possibilidade. Rainulf a chamara de "atra­ente". E, enquanto conversavam após o banho da noite anterior, ele não havia despregado os olhos do corpo dela, como que buscando um vão no robe, pelo qual pudesse espiar uma nesga dos seios pouco volumosos. Ela sentiu-se amargurada ao cogitar de que, na verda­de, ele a julgara desinteressante.

No entanto, logo recuperou a confiança em seu magnetismo e firmou o conceito de que o bonito profes­sor reservava suas afeições a pessoas do mesmo sexo. Uma pena...

Ou não? A última coisa que deve desejar é que Rainulf Fairfax demonstre volúpia por você. Se ele o fizesse, ela conseguiria resistir? Onde iria parar seu precioso senso de liberdade?

De olhos cerrados, ela o reviu na casa paroquial de Cuxham, cuidando do fogo e cobrindo-a com pesadas mantas, com o objetivo de curá-la da praga amarela. Superstição, claro. O chumaço de cabelos de São Nicácio é que a haviam salvado, não o absurdo tratamento pelo suor abundante. De qualquer modo, tinha sido comoven­te a dedicação de Rainulf. Lembrou-se de como ele lhe parecera forte, indomável, quando se deitara a seu lado, de peito nu, transpirando junto com ela. Aparentemente, havia gostado de dividir a cama com uma mulher.

Pelo menos, ela pensara assim, na ocasião. Agora que sabia dos anos de inabalável castidade de Rainulf, estava convencida de que ele jamais tinha possuído uma parceira e, pior, nunca se preocupara com isso. Tal idéia lhe propiciou algum alívio, porque entendeu que poderia morar ali sem temer por sua... pureza.

É um pouco tarde para salvá-la, meditou com rea­lismo.

Após deslizar até a ponta da enorme cama, Corliss abriu o cortinado e, pelo vão da divisória de couro, apreciou o ambiente caseiro e agradável, cintilante de sol. Não fosse pelos pardais que piavam no parapeito da janela, o local estaria completamente silencioso. Agora vivo aqui! Tenho uma grande cama, só minha.

E onde Rainulf dormia? No chão, num colchão de pa­lha, em frente à lareira do salão. Como sempre fizera, ele havia explicado. Era estranho que o professor desprezas­se a deliciosa cama grande e macia, mas... Sorte dela!

Marchando até a janela a fim de aspirar o ar fresco da manhã, ela observou os telhados de Oxford, muitos deles feitos de pranchas de madeira, como no caso do sobrado de Rainulf, e alguns pintados em cores vivas.

Estou longe de Cuxham, ela pensou enquanto fechava as cortinas. Até as maiores mansões de sua terra natal, a exemplo da de Roger, tinham cobertura mais modesta.

Felizmente, ela encontrou água na jarra da cômoda. Lavou o rosto e depois utilizou, em outro canto, a bacia sanitária. Havia também uma fossa no quintal, mas ela não se aventurou a usá-la, porque teria de sair à luz do dia trajando apenas a camisola que seu anfitrião lhe emprestara. Da bolsa, retirou um pente de osso com o qual alisou os cabelos curtos. Era ótimo não ter de fazer trancas ou escovar as madeixas. Removeu a camisola e separou calça e camisa limpas.

Naquele momento, o painel de couro que separava o quarto do salão começou a ser aberto.

— Tem alguém aí?

Luella! Apertando a roupa contra o corpo nu, Corliss abrigou-se sob as cobertas.

— Sim, é Corliss! — ela falou em voz baixa, ciente de que a governanta já invadira seu espaço.

— Quem? Mostre o rosto!

Corliss acatou o pedido, forçando-se a sorrir para a impertinente empregada de Rainulf.

— Corliss? Da noite passada? — Luella quis saber. Ela empunhava uma vassoura. — O padre deixou você dormir aqui? — A mulher balançou a cabeça, pare­cendo inconformada, e solicitou ao suposto rapaz para sair, de modo a permitir-lhe limpar o quarto.

— Estou sem roupa — Corliss avisou, enquanto tentava, semideitada, vestir-se apressadamente.

— Criei sete filhos, meu rapaz. Não ficarei chocada, pode ter certeza.

Duvido, ela pensou. A situação poderia até ter sua graça, mas redundaria em grave perigo para ela e seu protetor. Inspirada, Corliss contrapôs:

— Dê-me alguns minutos para me trocar, e depois sairei do quarto deixando você à vontade.

— Tudo bem — Luella concordou, após rir e fechar a cortina de couro. — Mas que seja depressa.

Com mais ligeireza do que se julgava capaz, Corliss vestiu-se, tendo o cuidado de apertar os seios com uma faixa de pano. Mal havia terminado, Luella apareceu de novo e avançou para a beira da cama, batendo ruidosa­mente os lençóis e mantas com uma espécie de raquete.

— Trouxe pão e vinho, se lhe apetece.

— Obrigada. Rain... Mestre Fairfax está em casa?

— O padre se encontra na sala de baixo, palestran­do a seus mal-educados alunos...

— Por toda a manhã? — Corliss então percebeu que nunca dormira tanto na vida, exceto durante a fase da catapora. — Que horas são?

— É tarde para um jovem saudável como você le­vantar-se. O padre deve estar imaginando por que não compareceu à conferência de hoje, junto com os outros.

— E que não sou estudante — informou Corliss. — Procuro trabalho.

— Melhor assim — resmungou Luella. — A maioria dos alunos do padre se comporta como pedintes. Logo mais, estarão aqui em cima, atrás de comida e bebida. Como aqueles dois preguiçosos, Thomas e Brad, que não servem para nada.

— Por que continua chamando seu patrão de pa­dre? Ele não é mais.

— Humph! — Luella afofou os travesseiros que acabara de bater. — Não se pode desfazer algo já feito, por sua mera vontade. Uma vez padre, sempre padre.

Sem querer discutir, Corliss cruzou o painel de couro e foi à cômoda, onde deparou com uma jarra de vinho misturado com água, um cesto de pão e uma tábua de queijos variados. Alimentou-se tão apressadamente como antes, sentindo-se uma impostora, o que de fato era. Se Luella ou qualquer outra pessoa descobrisse seu verdadeiro sexo, Rainulf estaria arruinado.

Vozes vindas do térreo fizeram-na apurar os ouvi­dos. Não obstante, falhou na tentativa de decifrar as palavras. Assim, desceu a escada em espiral na ponta dos pés. Deparou com um salão semelhante ao de cima, mas as janelas eram menores e mais altas, e não ha­via lareira. Ela já concluíra que Rainulf vivia de modo austero, porém a sala de conferências era ainda mais espartana, dotada de apenas um móvel: a tribuna em que o professor se apresentava. Cerca de duas dúzias de alunos preenchiam o resto do espaço, sentados no chão, sobre esteiras de palha.

— Portanto — discorria Rainulf, em latim —, cabe ao nominalismo aplicar o teste da razão aos mistérios da fé, incluindo o da Santíssima Trindade...

O mestre notou Corliss junto à porta e seu com­portamento mudou, ainda que sutilmente. Parecia ter ficado mais ereto, mais alerta, mais presente ali.

— Corliss! — ele exclamou, e todas as cabeças se vol­taram para onde ela estava. Embaraçada, ela procurou ganhar a saída. — Não se vá. Já terminamos. — Rainulf falou em francês e desceu do púlpito. — Os que estive­rem interessados, podem ouvir mais sobre este assunto na reunião de amanhã. E hoje à noite, em St. Mary, va­mos debater a relação entre lógica, física e metafísica.

Trocando impressões, os estudantes demoraram um pouco a dispersar-se. Mas o professor atropelou alguns grupos, em seu caminho até Corliss. Como de hábito, era seguido de perto por Thomas e Brad.

— Pena que perdeu a palestra — ele disse a sua hóspede disfarçada. — Creio que gostaria.

— Acha que eu entenderia uma preleção em latim? — Corliss riu de leve e adotou uma expressão inocente. Rainulf inclinou-se para sussurrar no ouvido dela:

— Melhor do que muitos aqui. — O hálito quente do ex-padre provocou em Corliss um arrepio de ines­perado prazer.

Sou uma idiota, ela puniu-se. Se Rainulf soubesse de sua reação, certamente iria rir, alheio como era ao charme feminino.

— Quais os seus planos para o resto do dia? — per­guntou-lhe Thomas.

— Mais uma visita à Catte Street — ela declarou.

— Ontem, alguém me disse que uma viúva, chamada Enid Clark e dona de uma livraria, estava precisando de ilustradores, para um trabalho grande.

— Brad e eu vamos naquela direção — emendou Thomas. — Podemos acompanhá-la até a igreja de St. Mary.

Corliss ia aceitar a oferta quando Rainulf franziu o cenho e disse que ele próprio a acompanharia.

— Por que vocês dois não sobem e tomam o desjejum? — incentivou.

Sem esconder a avidez, Thomas e Brad sumiram da sala. Corliss esvaziou seu alforje, exceto pela Bíblia Pauperum, e transferiu o relicário para sua pequena bolsa presa ao cinto. Era uma maneira de invocar a boa sorte.

Na rua, ao lado de Rainulf, ela constatou que o tem­po havia clareado, mas as calçadas ainda retinham um pouco de lama trazida pela chuva. Já a High Street confundia-se com uma avenida de detritos, apesar do intenso movimento de pedestres. Muitos deles, não so­mente acadêmicos, acenaram a Rainulf em saudação, mencionando-lhe o nome. Todos em Oxford pareciam conhecer e gostar do mestre emérito.

Corliss adorou a agitação típica de Oxford, a atmos­fera de curiosidade intelectual, a propensão ao estudo, ao saber. A oeste, acima do conjunto de lojas e residên­cias, alteava-se a grande torre quadrada do Castelo de Oxford, um símbolo da cidade. Na mesma direção, sucediam-se barracas de feira, em sua maioria con­centradas em torno da igreja de St. Martin, sempre cheia de devotos.

Ela havia notado, em oposição à popularidade de Rainulf, certo desprezo aos estudantes. Era um fato curioso, já que muitos moradores locais alugavam quar­tos aos alunos de Oxford. Outros lucravam com a venda de comida e bebida a eles. O antagonismo, assim, tor­nava-se inexplicável. Os estudantes, com a devida res­salva a alguns baderneiros, é que davam a Oxford uma qualidade especial, e portanto deveriam ser recebidos de braços abertos.

Perdida em seus devaneios, Corliss nem perce­beu que Rainulf havia adotado um meditativo silên­cio, desde que saíra de casa. Viu-o atirar uma moeda no chapéu de um mendigo, na frente da igreja de St. Mary. Decidiu falar:

— Por que você não quis que Thomas e Brad vies­sem comigo?

— Seria temerário. Eles são espertos demais para ficarem muito tempo a seu lado.

— Se você teve medo, eu adorei passear. Não creio que, com isso, vá de algum modo revelar meu segredo.

Na confluência de outra rua, ele parou e fixou o olhar em sua hóspede.

— É exaustivo viver escondendo sua verdadeira identidade, Corliss. Eu sei. Um dia qualquer, você pode escorregar. Pode dizer ou fazer algo sem querer e... Não deve correr nenhum risco de ser descoberta. Nenhum, pois isso seria desastroso para mim.

— E para mim, não? — ela retrucou, com certa pe­tulância. — Adotei este disfarce para me proteger. Se falhar, estarei à mercê de Roger Foliot.

— Por favor, seja cuidadosa — Rainulf pediu, to­cando levemente o braço dela.

Mais uma vez, o toque despertou tensão sensual em Corliss. Idiota!, ela repreendeu-se.

— Serei. — Impossível alegar qualquer outra coisa, diante das circunstâncias.

Mais uma esquina, e chegaram à Catte Street. Rainulf indicou com a mão a variedade de lojas, lado a lado: manipuladores de pergaminho, escribas, encadernadores, negociantes de livros prontos.

— Tempos atrás — ele disse — a produção de livros era restrita aos conventos. Agora, a maioria dos que são usados na Universidade de Oxford é feita aqui. Há um bairro semelhante em Paris...

Enquanto caminhava, Rainulf seguiu descrevendo a ascensão dos centros de ensino e da demanda por livros, de todos os gêneros. Além de romances, obras de teologia, filosofia e astronomia. Literatura jurídica vinha de Bolonha; livros médicos, de Salerno. Muitos deles, antes considerados pagãos ou heréticos, agora eram exibidos livremente nas livrarias daquela rua.

Ele havia assumido por inteiro o papel de professor, refletiu Corliss. Assentava-lhe tão bem que nem tinha consciência disso. Como ela havia testemunhado, os olhos dele brilhavam enquanto apresentava uma preleção.

Difundia, além de ensinamentos, certa luz interior. Corliss sorriu tristemente. Se ensinar estava no sangue de Rainulf, como ele podia pensar em desistir da car­reira e tornar-se administrador de escolas?

Entraram em uma loja de livros usados. Os proprie­tários conheciam o professor e tinham lhe reservado di­versos volumes, chegados depois de sua última visita. Rainulf ocupou a mesa de consultas e folheou alguns. Fez duas aquisições: uma, a cópia manual do Antidotarium, da lavra de um certo Nicola de Salerno, pela qual pagou elevada soma; e outra, menos cara, A Arte da Medicina, pelo misterioso Constantino, o Africano.

— São para minha irmã, Martine — ele explicou a Corliss. — Tem forte interesse pelo uso medicinal de ervas. Mas está grávida, agora, e prometi visitá-la logo, e ao marido Thorne. Desde que cheguei de minha peregrinação, devemos um ao outro uma longa visita.

Corliss não perguntou quanto tempo Rainulf pas­saria fora, nem se poderia permanecer na casa da St. John Street durante a ausência dele. Nada tinha do que se queixar, ciente de que sua vida, sua liberdade, estavam nas mãos do mestre Fairfax.

— Ali. — Ela apontou uma construção de dois an­dares, com a placa "Clark Escribas" pintada em gra­ciosas letras vermelhas. De um canto da porta, pendia um cartaz em pergaminho, anunciando oito diferentes trabalhos de copiagem.

Entraram e, no interior da loja, viram dois homens jovens e uma moça, todos sentados a suas mesas. Em­punhavam ou penas ou estiletes que, molhados em tinteiros, desenhavam letras, copiadas de livros exis­tentes sobre o tampo e mantidos abertos graças a pe­sos de chumbo.

Os três copistas olharam para Corliss, interrom­pendo o serviço, mas apenas a moça demorou-se mais. Distraiu-se e acabou produzindo um borrão de tinta na página que elaborava.

— Felice! — gritou uma mulher do fundo da loja. A moça devolveu o estilete ao tinteiro, praguejando enquanto se acomodava melhor na cadeira.

— Sinto muito, mamãe. Penso que arruinei o tra­balho.

— Tente apagar a mancha. Você levou a manhã in­teira para fazer essa página. — A corpulenta senhora então dirigiu-se aos clientes recém-chegados. — Em que posso ajudar, senhores? Ah, o mestre Rainulf em pessoa. Às suas ordens.

— Se puder dedicar alguns minutos a meu ami­go aqui... — Guiando Corliss com a mão nas costas, Rainulf a conduziu até perto da proprietária, que usa­va na cabeça o véu típico das viúvas. O verde vivido da saia combinava com os olhos cor de esmeralda. Era uma versão mais velha de Felice.

Assim como os outros três, ela reproduzia um exem­plar antigo, cuidadosamente depositado em sua mesa, a maior e mais enfeitada da loja. Corliss respirou fun­do antes de exprimir-se:

— ÉE a senhora Clark?

— Sim, ninguém mais.

Corliss retirou do alforje a Bíblia Pauperum e mos­trou-a à proprietária do lugar, aproveitando o canto da mesa. Enid Clark depôs seus instrumentos de tra­balho e avançou a mão a fim de manusear o volume. Branca de susto, Corliss percebeu que os dedos da mu­lher estavam sujos de tinta.

— Já secou — assegurou-lhe a sra. Clark, ao notar a aflição de quem a visitava. Estudou minuciosamente a obra, observando de perto cada intrincada ilustração.

— Escrita em inglês! — exclamou Enid, admirada.

— Dou-lhe cem xelins por ela.

— O quê?

— Cento e vinte, então. — A mulher fechou a obra e correu os dedos pela capa bordada. O sorriso que exi­biu tornou-a muito menos intimidativa, aos olhos de Corliss. — Normalmente, não negocio livros usados, mas abrirei uma exceção para este.

— Senhora, eu realmente não poderia...

— Não poderia aceitar menos que oito libras ester­linas — interveio Rainulf, sem saber se Corliss pre­tendia vender aquela bíblia ou não.

Na verdade, ela se aborreceu com a intromissão do professor, equivalente a dizer que era incapaz de cui­dar dos próprios negócios.

— Sete libras e meia — Enid barganhou. Rainulf meneou a cabeça, recusando a oferta, antes que Corliss gritasse:

— Parem! — Ela ganhou o silêncio e a atenção dos outros dois. Foi guardando o livro. — Não está à ven­da, pois é muito...

— Muito especial — completou Enid, comum olhar compreensivo. — Eu invejo você. Onde adquiriu essa maravilha?

— Eu a fiz! — Corliss sorriu, gratificada.

— Quer dizer que copiou o texto? De qual fonte? — quis saber a escriba.

— Eu escrevi. E também ilustrei.

— Quem encadernou?

— Eu — disse Corliss, ciente de que a sra. Clark não acreditaria.

De fato, a dona da loja balançou a cabeça e mos­trou-se desconfiada.

— Matou o cordeiro e produziu o pergaminho, igual­mente?

— Não, mas sei como fazer.

— Já não duvido de mais nada — confessou a sra. Clark, sinceramente admirada. — Vejo que você é um jovem de muito talento. O que o trouxe à minha loja?

Rainulf deu um passo à frente e, dessa vez, sua in­tervenção foi positiva.

— Meu amigo procura trabalho como ilustrador. Mesmo assim, Corliss tocou-lhe o braço e soprou em seu ouvido:

— Seu amigo ainda tem língua... — Corliss errou o tom e a sra. Clark captou a frase, passando a rir.

— Disseram-me que a senhora está precisando de ilustradores.

— É verdade — Enid confirmou, reprimindo o riso.

— Um cliente muito importante encomendou um pro­jeto ambicioso, qual seja, todos os livros da Bíblia num só volume. Os evangelhos, os salmos, os profetas, tudo o que compõe as Sagradas Escrituras e normalmen­te enchem vinte volumes, será encadernado num só enorme tomo.

— E isso é possível? — Rainulf duvidou, após ini­ciar um assovio.

— Veremos. Estamos usando pergaminho tão fino que se torna quase transparente. Se for possível rea­lizar o projeto, nós o faremos. Mas, além de contratar mais copistas, preciso do trabalho de todos os ilustra­dores que conseguir, desde que sejam bons.

— Eu sou bom — disse Corliss, sem falsa modéstia e, felizmente, utilizando na frase o gênero masculino.

A sra. Clark sorriu diante do aparente excesso de confiança.

— É mais do que bom — ela elogiou. — Mas preciso de alguém que saiba aplicar ouro. Percebi que em sua bíblia não há nenhuma aplicação.

— Apenas porque é caro — Corliss retrucou. — Sei usar ouro num livro.

— Em folha ou em pó?

— Ambos.

A sra. Clark pareceu feliz com o achado de um prestimoso colaborador.

— Tem algum lugar para trabalhar? Posso forne­cer-lhe todo o material, mas não há mais espaço aqui, desde que contratei novos copistas.

— Eu... — Corliss hesitou.

— Sim — emendou Rainulf. — Ele tem condições de trabalhar em casa.

Em casa. Corliss apreciou o som daquelas palavras. Era como se a magnífica residência do professor, com colchão de penas e tudo o mais, fosse sua também.

— Estamos de acordo, então — concluiu a proprie­tária. — Pago quatro pence por cada inicial grande e dourada. As letras menores, um penny por cada três. Dez sinais de parágrafo também valem um penny. Enfim, você ganhará um xelim por página com ilumi­nuras, e seis pence por meia página. Só espero que trabalhe com rapidez.

Erguendo-se, Enid Clark gesticulou para que Corliss a seguisse até os fundos da loja. Ali, numa mesa imen­sa, jaziam dezenas de folhas de pergaminho prontas para serem ilustradas. Conjuntos de páginas duplas estavam totalmente escritas, porém soltas e numera­das a fim de receberem costura e encadernação.

— Os copistas deixaram espaço para desenhos e, além disso, anotaram a lápis, na margem, sugestões para o trabalho do ilustrador. — Enid envolveu uma folha de pergaminho em capa de couro e passou-a para Corliss, que a guardou no alforje.

Mas não era tudo. A sra. Clark também lhe deu um manual de iniciais decorativas, em tamanhos crescen­tes. Ali existiam ainda amostras de figuras de anjos, pássaros, estrelas, seres mitológicos como o unicórnio.

— Esse livro facilitará as coisas para você — ela afirmou.

— Mas... pensei que poderia criar minhas próprias imagens. — Vendo que soara pretensiosa, Corliss op­tou por uma tática diferente. — Uma obra tão impor­tante deveria apresentar figuras originais, não acha? Desenho bem.

— Então, pode fazer como quiser, com a folha que lhe dei. Servirá de teste. Mas prefiro não ter o desprazer de reprovar o trabalho. Além de recopiar tudo, de graça, você terá de me reembolsar oito pence pelo pergaminho desperdiçado.

Corliss sorriu, aprovando o acordo, e guardou o ma­nual, entre agradecimentos à sra. Clark.

— Não terá motivos para reprovar, senhora. Isso eu garanto.

Rainulf acompanhava a conversa, os gestos de Corliss quando abria e fechava o alforje.

— Quanto tempo a senhora acha que levará para completar essa bíblia?

— Em torno de quatro meses — informou Enid, en­quanto separava para Corliss diversos vidros de pigmentos, incluindo o precioso lápis-lazúli, também co­nhecido como ultramarino, e algumas folhas finas de ouro. — Mas seria melhor pensarmos em meio ano. Claro que o mestre Becket está pagando bem pelo esforço.

— Mestre Becket? — Rainulf admirou-se. — Thomas Becket, o chanceler do rei? Foi ele que encomendou o trabalho?

— Sim, e a encomenda não poderia ter vindo em me­lhor hora. Estou cansada de morar no espaço apertado da parte superior da loja. Pretendo mudar-me de Oxford para o campo e criar cabras e galinhas. É meu sonho desde que perdi meu marido, dois anos atrás. Agora, o valor pago por esta bíblia me permitirá realizá-lo.

— Sinto orgulho em trabalhar para Thomas Becket — confessou Corliss, enquanto ajeitava ao ombro o já pesado alforje. — Agradeço pela oportunidade.

Rainulf também fez seus agradecimentos e tomou o rumo da saída. Ao segui-lo, Corliss notou sobre si o olhar tristonho de Felice, a filha de Enid. Um dos jovens copistas, de cabelos cacheados, sorriu para ela e apertou entre os dedos, simbolicamente, a pena de ganso que manuseava.

— Felice! Bertram! Voltem ao trabalho — repreen­deu a sra. Clark.

Pouco haviam caminhado, descendo a Catte Street, quando Rainulf estacou, com a expressão alerta e apreensiva.

— Você viu isso? — Ele apontou a esquina próxima. — Alguém estava nos espionando e se escondeu atrás de um pilar.

— Quem? Você o conhece? — Corliss indagou, ino­centemente.

— Não deu para ver bem. Parece que não queria ser identificado.

— Muita preocupação por nada — ela falou, com crescente ingenuidade.

— Penso que não. Fique aqui e me espere. — Rainulf gerou um protesto por parte de Corliss, mas garantiu que voltava logo e desapareceu na viela.

Depois de um minuto, parada e impaciente, ela sentiu uma mão forte agarrar-lhe o ombro e girá-la. Era Bertram, o copista de cabelos cacheados.

— Fique longe de Felice — ele ordenou. — Percebi como você olhava para ela.

— Calma — rebateu Corliss, admitindo que o ciú­me de Bertram fazia sentido, já que ela se vestia e se comportava como homem. — Você está enganado.

— Apenas mantenha distância! — O tom de voz cresceu. — Vamos nos casar no ano que vem. Tudo certo quanto à sra. Clark.

— E Felice sabe disso?

— Não é de sua conta. Eu a amo e o casamento vai se realizar. Fique longe, entendido?

Um início de pânico inquietou Corliss. Era evidente que Bertram amava a filha de Enid Clark, evidente também que esse amor possessivo poderia torná-lo violento.

— Não tenho nenhum interesse por ela — Corliss assegurou, vendo Bertram dar meia-volta e partir, resmungando ameaças. Afastou-se segundos antes de Rainulf ressurgir. Parecia ter testemunhado o final do encontro com o copista.

Ele postou-se à frente de Corliss, de braços cruzados.

— Quem diria! Você vem se saindo bem demais como homem!

— Achou seu espião misterioso? — ela indagou, aborrecida com o comentário.

— Não. Fugiu. Mas sei que estava à espreita.

— Sei...! — A expressão de dúvida despertou em Rainulf um olhar recriminador.

Andaram em silêncio até a High Street, onde o pro­fessor trocou a frustração pela curiosidade.

— Por que não vendeu o livro? A sra. Clark lhe ofe­receu quase oito libras, o suficiente para viver com fol­ga por um bom tempo.

— Fiquei tentada, sim — Corliss confessou. — Mas não suportaria ser despojada de algo no qual coloquei tanto amor e esforço. Dispenso uma vida ociosa. Quero trabalhar! Descobri hoje que sou qualificada para isso e, mais ainda, que posso vender minha Bíblia se pre­cisar de recursos.

— Não consigo imaginá-la sem recursos, Corliss. É simplesmente a pessoa mais talentosa que conheci, a mais admirável, a mais...

Ele parou em plena calçada, abarrotada de gente, e mediu a figura dela — ou dele — de cima a baixo. De repente, pareceu pouco à vontade. Dirigiu a Corliss um sorriso forçado e perguntou:

— Já esteve numa cervejaria, numa taverna?

— Claro que não! — Ela estranhou, mas não se ofendeu.

— Existe uma muito boa, eu diria impecável, na alameda Blue Boar. Ofereço-lhe uma caneca de chope. Depois, podemos ir comprar uma mesa de trabalho para você.

 

— "Primoroso." — Corliss falou em voz alta, no per­curso da Catte Street para a casa da St. John Street. Aquele tinha sido o termo empregado por Enid Clark ao receber dela a primeira das páginas, inteiramente ilus­trada. É um trabalho primoroso. E você gastou menos de uma semana! Estou feliz por ter encontrado você.

Então, a sra. Clark havia lhe enchido a mão de dinheiro e lhe dado outra folha de pergaminho para desenhar iluminuras. Ela guardara as moedas de pra­ta na bolsa da cintura, onde também transportava o pequeno relicário, que mais uma vez não falhara com ela. Ainda emocionada, ela galgou os degraus da casa de Rainulf. Sentia, por fim, um gosto de liberdade.

Thomas ocupava a grande mesa do salão, portando uma caneca de cerveja. Achava-se mais desgrenhado do que o habitual. Os cabelos claros estavam despenteados e sua camisa pendia solta sobre a calça.

— Corliss! — Ele levantou-se com rapidez e surpre­sa. — Já de volta? Ainda não é meio-dia!

Becas e túnicas, cintos e botas jaziam no chão, es­palhados.

— Este lugar está um caos — comentou ela. — Luella já viu isso?

— Ela saiu para fazer compras. Então, Corliss?

— Boas notícias, Thomas — anunciou, abrindo um vão na cortina de couro que isolava seu quarto. — A sra. Clark adorou meu trabalho e me...

— Espere, Corliss!

Alguém gemeu. Ela ficou paralisada onde estava, a ouvir murmúrios baixos, masculinos. A voz de uma mulher, vinda do interior do dossel fechado, soou ma­liciosa:

— Você gosta disso?

— Sim, sim — sussurrou o homem, e Corliss reco­nheceu o sotaque de Brad.

Começou então um balanço ritmado na cama, e a cortina adamascada oscilou no mesmo compasso. Corliss voltou-se e deparou com Thomas atrás dela, a sorrir provocativamente.

— Não fique brava. Deixaremos você aproveitar também.

— Aproveitar o quê?

O rangido cessou, e uma roliça mão feminina apartou os panos da cortina, revelando o casal refugiado dentro do aposento. A mulher, uma loira de má aparência, es­tava por cima, com a saia aberta. Brad jazia sob ela, a estender as mãos a fim de empalmar os enormes seios. Ele recitou uma praga ao ver-se flagrado por Corliss, enquanto sua parceira a media de cima a baixo.

— Terá de esperar sua vez, amor. E lhe custará al­gumas moedas. — Com isso, a loira cerrou a cortina e o balanço da cama recomeçou.

— Não acredito! — queixou-se Corliss a Thomas, depois de fechar o vão na divisória de couro e tomar um lugar no salão principal. — É a minha cama! Minha!

Thomas franziu o cenho e ajeitou a camisa dentro da calça.

— Não podemos trazer garotas para nosso quarto alugado. A proprietária proíbe isso.

— E Raunulf permitiu que as recebesse aqui?

— Não. Jamais daria permissão.

Mesmo a certa distância, Corliss escutou os ruídos da batalha sensual que se desenvolvia ali perto. Thomas mostrou-se pálido, arrependido da transgressão.

— Claro que não permitiria — ela comentou. — Seria ultrajante para ele. Rainulf tem uma reputação a manter, Thomas. Ficaria arruinado, inclusive em sua carreira, se alguém soubesse que esse tipo de mu­lher freqüenta a casa dele.

— Discordo de você — falou Thomas, com a voz so­breposta ao que parecia ser o gemido final de Brad.

— Impossível discordar — ela insistiu.

— Sem discussão — pediu o rapaz. — E por favor não conte nada ao mestre Fairfax. Seja camarada, cer­to? Você pode ter essa mulher de graça. Eu pago.

— Quem disse que eu a quero? — retorquiu Corliss, forçando um tom masculino na voz.

— Não seja tão exigente. — Thomas sorriu. — Alfreda possui muitos... talentos.

— Mantenho meu desinteresse. — Corliss precisou esmerar-se em seu papel de homem, enquanto Thomas adotava um ar conspiratório.

— Por exemplo, Alfreda tem uma boca muito esper­ta, se entende o que digo.

Corliss não fazia idéia do que se tratava.

— Você já se deitou com uma mulher? — o rapaz desafiou.

— Claro. — O calor avermelhou o rosto dela.

— Acho que não — Thomas rebateu, olhando-a fixa­mente. — Situação triste, mas de fácil remédio. Veja, Brad está saindo. Alfreda espera por você.

— Vai esperar muito — disse Corliss. Ao recuar, viu Brad tentando abotoar a calça.

— Venha! — Thomas a tomou pelo braço e a condu­ziu rumo ao quarto. — A despesa é minha. Aproveite.

— Ao cruzar com Brad, ainda acrescentou: — Ele está nervoso. É a primeira vez...

— Verdade? — Brad riu e colheu o outro braço de Corliss. — Você não poderia desejar nada melhor do que perder a virgindade para Alfreda. Ela conhece todos os truques...

— Não quero! — Corliss teve de gritar, mas foi em­purrada para perto da cama.

O cortinado estava aberto e Alfreda se achava reclinada contra uma pilha de travesseiros, com os seios expostos e a saia erguida até a cintura, acima das coxas muito brancas. Mantinha uma das mãos espalmada no ar, até que Thomas se acercou e pôs duas moedas ali.

— Venha para Alfreda, amor — a meretriz falou em tom cansado, mas abriu os braços a fim de receber o novo cliente: Corliss!

Thomas e Brad a pressionaram de novo, pelas costas, e fecharam a cortina. Um odor misto de perfume barato, suor e corpos sem banho invadiu as narinas dela. Corliss fugiu do abraço de Alfreda e, com um gesto decidido, re­abriu o tecido adamascado que compunha o dossel.

— Tirem-na daqui agora, senão vou contar tudo a Rainulf! — ameaçou.

Os dois jovens trocaram um olhar espantado.

— Corliss fala sério... — concluiu Brad.

— Saiam vocês também, e nunca tragam outra mu­lher aqui. Só assim guardarei segredo. Do contrário, Rainulf saberá de tudo.

— Melhor ir embora, Alfreda — concitou Thomas. — Este rapaz parece determinado a permanecer vir­gem, apesar de nossos esforços para corrompê-lo.

— Muito bem, mas não vou devolver as moedas.

— Que seja. — Thomas suspirou. — Manteremos contato.

Quando todos partiram, Corliss sacudiu as cober­tas vigorosamente e puxou os lençóis e fronhas para fora do leito, a fim de que Luella os lavasse assim que retornasse à casa. Tentava amarrar a roupa numa trouxa, quando uma batida soou na porta principal. Ela murmurou uma praga, coisa que nunca fizera en­quanto usava saias. Chutou os panos até um canto do quarto, desceu a escada correndo e abriu a entrada.

Ali estava um homem grande, vergado ao peso do embornal em suas costas, trajando vestes ordinárias e casaco curto com capuz de frade. A cabeça inclinada e o capuz pontudo impediam que Corliss visse plena­mente seu semblante, embora fosse dia e fizesse sol.

— Sim? — ela experimentou dizer.

— Bom... — O homem balançou a cabeça, sem tirá-la do chão. Parecia hesitar. — B-Bom dia, m-madame.

— Madame? — Os músculos dela se tensionaram. — Por que chama assim?

— V-Você se parece com... isto é... — Nervoso, o es­tranho gaguejava um pouco, mas nem havia olhado diretamente para Corliss.

— Levante o rosto e repare em meus trajes. Pareço-me com uma mulher?

O homem vacilou outra vez. Subiu a cabeça lenta­mente, como se carregasse um fardo. Corliss reprimiu um grito de surpresa e horror. A face larga estava toda salpicada de marcas deixadas pela varíola, as piores que Corliss já havia visto. O visitante lembra­va, de fato, uma figura do manual de ilustrações da sra. Clark, um ser fictício, inspirado nos corredores de um leprosário. Talvez o intruso fosse uma vítima da lepra, mais que da varíola, por causa das cicatrizes mais fundas e irregulares.

Corliss contraiu os lábios. Caso os cabelos de São Nicácio não a tivessem protegido, durante a evolução da praga amarela, ela também estaria inteiramente desfi­gurada, como aquele homem. Tirando isso, porém, trata­va-se de uma pessoa igual às outras, um vendedor am­bulante, a julgar pelo saco que transportava às costas.

— Desculpe-me por ter sido rude. Estava nervoso por outros motivos — ela declarou, vendo surpresa nos olhos do vendedor, como se suas palavras fossem raras aos ouvidos dele. — Como se chama?

— Meu nome verdadeiro é... — o homem meneou a cabeça, exasperado por sua própria indecisão. — Quer saber como me chamo?

Deus sabia quantos apelidos vis o povo de Oxford havia dado à pobre criatura.

— Sim, seu nome real.

— É R-Rad — ele disse.

— Rad? Prazer em conhecê-lo, Rad. Eu me chamo Corliss. O que traz de bom para me mostrar?

O mascate desceu o grande pacote e o abriu, ti­rando um pano azul que estendeu no chão, aos pés da eventual cliente. Havia ali uma estonteante varie­dade de produtos, alguns novos e outros claramente de segunda mão: potes e panelas, talheres e espetos para lareira ou grelha, sapatos infantis, luvas, cortes de seda colorida.

Uma escova de cabelos prendeu a atenção de Corliss, que se agachou a fim de examiná-la. As cerdas eram firmes, o cabo de marfim apresentava entalhes elaborados.

— É novo — esclareceu Rad.

— Quanto quer pela escova e aquelas fitas? Ah, e um pedaço de renda.

O vendedor pensou um pouco, a encarar Corliss.

— Quatro pence pelo lote.

— Vale pelo menos seis — retrucou ela. — Está sendo gentil comigo. O que mais tem no saco?

— Nada tão fino quanto o que escolheu.

Ela espiou dentro da embalagem e viu o brilho de aço.

— Facas! Deve haver uma porção delas aí.

— Você precisa de facas? — ele perguntou, exibindo algumas unidades.

— Não, Rad. Obrigado. Mas não tenho uma cozinha própria e sou apenas um hóspede do mestre Fairfax.

— O que está havendo? — A voz de Rainulf ecoou perto dela. Intrigado, ele focalizou a coleção de facas. Deduziu o resto, depois que Corliss lhe mostrou a escova.

— Veja, não é bonita?

O professor olhou brevemente e se concentrou no mascate, que já recolhia as mercadorias espalhadas no pavimento.

— Em quanto importa a compra?

— Quatro pence — repetiu Rad.

— Aqui estão. — Ele apanhou as moedas no bolso, porém Corliss segurou-lhe o pulso.

— São objetos meus — ela afirmou. — Eu pagarei por eles. — Tirou o dinheiro de seu cinto e colocou-o na mão do vendedor, que o guardou e fechou o saco, erguendo-o até um dos ombros sem olhar para ninguém.

— Tome seu caminho — Rainulf exigiu. De braços cruzados, Corliss gostaria de ver os olhos do mascate, mas ele partiu calado e desapareceu rua abaixo.

— O que deu em você? — ela interpelou o mestre Fairfax.

— O mesmo pergunto eu. — Ele enrugou a testa ao inspecionar as compras. — Fitas? Rendas? Uma es­cova feminina? Deseja ser desmascarada? — Girou o corpo para subir rapidamente os degraus.

Ele tinha razão. Ela atritou o cabo trabalhado da es­cova, depois sentiu a maciez das fitas de seda. Havia sido imprudente. O que Rainulf diria se soubesse que o ven­dedor ambulante a chamara de "madame"? Ponderou a situação e concluiu que o professor podia ter razão quan­to às compras, porém fora rude com o mascate. Ela não esperava tal descortesia de Rainulf Fairfax. Talvez o co­nhecesse menos bem do que pensava.

O mestre havia se postado à janela, contemplando os verdes pastos que se espraiavam ao norte da mu­ralha de Oxford. Não esperava que Corliss entrasse diretamente em seu quarto, presumivelmente para arrumar os objetos adquiridos. Em minutos, porém, mostrou-se diante dele.

—Você não tinha o direito de falar com Rad daque­la maneira — queixou-se. — Ele é inofensivo, apenas um mascate procurando ganhar a vida.

— Como sabe? — Rainulf desafiou, analisando a tú­nica e a calça que ela trajava, com os pés apartados e mãos crispadas nas laterais do corpo.

Parecia-se muito com o rapaz que fingia ser. Apenas Rainulf conhecia a verdade e, claro, o padre Gregory, a quem ele confidenciava tudo. Agora, talvez mais uma pessoa: Rad.

— Francamente. Primeiro, sombras misteriosas na viela. Depois, qualquer criatura de quem eu me aproxi­me, para fazer amizade, torna-se suspeita para você.

— Não é o caso de fazer amizade com um mascate — ele contrapôs.

— Por quê? Por causa da aparência? Não acredito que você se incline a julgar um homem com base na...

— Devia me conhecer melhor, Corliss. A aparência dele nada significa para mim, como para você. Mas, na realidade, você assume uma atitude inata de bondade para com os desafortunados. A vida não é assim. Pessoas que sofreram também podem ser malvadas, perversas.

— Por Deus, Rainulf. O vendedor é inofensivo.

— Ninguém do tamanho dele é.

— Um homem simples, sem maus pensamentos...

— Contudo, você não tem certeza. — Ele adiantou-se e tocou os ombros de Corliss. — Tudo o que sabe é que sir Roger Foliot mandou alguém atrás de você. Alguém que não só quer levá-la de volta a Cuxham como pode machucá-la seriamente. E preciso ter mais bom senso e não se expor tanto a estranhos. Você está visível demais, brinca com fogo em todos os lugares e horas. O padre Gregory me contou que você confrater­nizou com um grupo de estudantes que ouvia aquele desmiolado Victor, no pátio da igreja de St. Mary.

Ela cocou os braços, a fim de desautorizar a aflição de Rainulf.

— Acho que Victor apresentou questões importantes.

— Isso é fácil. Fazer a coisa certa é difícil. Victor atrai problemas, onde quer que esteja. Creio que ele deseja morrer, porque foi um mercenário cruel e pensa em pagar seus pecados com a própria morte.

— Isso é mera suposição de sua parte — rebateu Corliss, inconformada.

— Talvez, mas você não deve integrar-se ao grupo dele, nem a qualquer outro. Também não deve sair à noite, falar com estranhos, confiar em alguém. Entenda que as pessoas raramente são o que parecem.

Emburrada, ela mostrou-se avessa aos conselhos paternais de Rainulf.

— Ninguém presta atenção a mim. Sou apenas um adolescente de Oxford, entre tantos outros. Entenda. Pela primeira vez na vida, tenho a liberdade de ir aonde quiser, sem que alguém me impeça. Exceto você.

Preocupado, ele deslizou a mão pelos próprios ca­belos.

— Apenas não quero vê-la ferida, esfaqueada...

— O que não deseja é perder a reitoria. Tem medo do que pode acontecer se o povo descobrir que está vivendo com...

— Não é isso, Corliss. Estou apreensivo com você, com sua segurança. Se algo de ruim a atingir... — Ele suspirou fundo. — Tenho de proibi-la de continuar se expondo ao perigo dessa maneira.

— O que isso quer dizer? — Ela ergueu o queixo com altivez.

— Não permitirei que saia à noite. A menos que eu esteja junto. E vou limitar seus movimentos e contatos.

— Inacreditável! — Corliss reagiu, envergando uma máscara de descrença. — Diga-me que não está falando sério.

— Infelizmente, estou.

— Não vim a Oxford para ser tutelada quanto ao que faço, com quem converso ou deixo de conversar.

— É para o seu bem, Corliss. — O tom de Rainulf já soava menos firme.

— Pensei que você fosse diferente — ela redarguiu com a voz trêmula. — No entanto, é igual a todos os homens que conheci. Acha que tem o direito de me in­dicar o que fazer, só por causa do penduricalho entre suas pernas.

— Corliss! — ele a admoestou.

Em represália, ela refugiou-se no quarto e cerrou a cortina de couro. Rainulf encostou-se ali, à espera de algum sinal. Corliss circulava sem destino dentro do aposento isolado.

— Corliss? Por favor...

Sem resposta, ele abriu o vão e entrou. O alforje dela jazia aberto na cama desfeita. Era possível ver, em seu interior, algumas roupas e a Bíblia Pauperum. Corliss se achava junto à cômoda com espelho, pen­teando os cabelos com a nova escova. Jogou-a para trás, sobre o ombro, em desafio à intromissão de Rainulf.

— Não é que eu não aprecie tudo o que fez por mim — disse ela, buscando soar serena. — Não sou uma in­grata. Mas não consigo viver do modo como você quer. Não mais. Virei buscar minhas tintas e penas assim que encontrar onde morar.

Corliss levantou-se da banqueta e tentou ultrapas­sar Rainulf, porém ele bloqueou o caminho.

— Não descobrirá um lugar decente, Corliss. Não por enquanto.

— Prefiro morar numa pocilga a perder minha li­berdade.

— Cheguei a pensar que gostava de viver aqui, co­migo — rebateu ele calmamente, ajeitando uma me­dia de cabelos caída na testa de Corliss.

— Adoro. — A resposta também foi suave. — Nunca imaginei ficar numa casa tão grande. E você tem sido... bondoso demais. — Ela baixou a vista para o chão. — Porém, se o preço for desistir de ser livre, en­tão vou me sentir como um pássaro na gaiola. Adeus, Rainulf.

De novo ela procurou escapar do alcance dele, e de novo ele a segurou pelos ombros.

— Por favor, não.

— Rainulf, deixe-me ir. — Ela se sacudia a fim de escapar.

— Não. — Rainulf a prendeu com mais força.

— Por que não? — Corliss exigiu explicação.

— Porque não quero. — Cingindo-a pela cintura, e com a outra mão trazendo a cabeça dela até seu peito, ele murmurou: — Não quero que você se vá.

— Também não quero ir — ela confessou com a voz embargada, acomodando-se no tórax forte que a pro­tegia. Uma tempestade sentimental assolou o coração de Rainulf.

— Então, fique. — Ele fechou os olhos e atritou sua face nos cabelos brilhantes da hóspede. — Prometo não lhe impor o que fazer ou onde passear.

— Preciso me mudar daqui — ela se contradisse. Os braços, porém, envolveram Rainulf, que de início nem notou o afago, mas sentiu a respiração arfante de Corliss contra seu rosto.

— Pelo menos, jure que será cuidadosa. — Ele a pressionou contra si. Admirou as pequenas rugas que se formaram entre as sobrancelhas dela.

— Eu me recuso a tomar cuidado. — Ela riu, en­quanto Rainulf pestanejava, sem entender. — Você é sério demais, professor. Tentarei curá-lo de tanta so­briedade.

— Então, vai ficar? — Ele atou aos lábios um sorriso de felicidade. Beijou depois o alto da cabeça de Corliss.

O olhar dele viajou pelo rosto bonito de Corliss e parou nos lábios ligeiramente entreabertos. Sentiu-se leve, mas sem fôlego.

Eu poderia baixar meus lábios, ele pensou, até tocar os dela. Enfim, poderia beijá-la na boca. Seria o gesto mais natural do mundo. E igualmente o mais tolo.

Ele a soltou, com certa rispidez, e retrocedeu.

— Bem, você estará segura aqui. — Não lhe foi fácil encontrar as palavras.

Um esvoaçante traço de tristeza passou pelos olhos de Rainulf. Contudo, reagiu sorrindo e meneando a ca­beça aprovadoramente para Corliss.

Então, do lado de fora da cortina e vindo da escada, soou a voz de Luella.

— Padre Rainulf? Corliss? Alguém em casa?

Os corpos dos dois se afastaram pouco antes de a go­vernanta ganhar o quarto.

— Ah, aí estão vocês. — A mulher aparentava ale­gria. — Fiz boas compras. Pão fresco para o jantar e excelentes salsichas. Se têm fome, posso prepará-las agora mesmo.

Rainulf suspirou, contrariado.

— Pare de me chamar de padre, já lhe pedi. Mas sim, Luella, sirva alguma comida. Estou terrivelmen­te faminto.

— Posso começar? — inquiriu Rainulf enquanto puxava uma cadeira para perto da mesa de trabalho de Corliss e desfazia o rolo de pergaminho.

— Vá em frente — ela disse. — Mas afaste um pou­co a cadeira, para que sua respiração não espalhe o pó de ouro.

Ele acatou o pedido. Na verdade, havia pouco risco em sua proximidade, exceto pela tensão dela. Durante o mês em que estavam morando juntos, a tola atração que Corliss sentia pelo professor não havia diminuído. Ao contrário, tinha aumentado, mais intensa a cada dia. Aplicar pó de ouro na letra inicial de uma página e na iluminura, com Rainulf a centímetros de distân­cia, tornava-se um desafio maior do que ela se sentia apta a enfrentar.

Após clarear a garganta, ele passou a ler a carta de consolação de Abelardo a um amigo.

— "Há momentos em que o exemplo é melhor do que o preceito de estimular ou amenizar as paixões humanas. Assim, proponho seguir as palavras de con­forto que lhe falei pessoalmente, narrando a história de meus infortúnios, esperando propiciar consolo em minha ausência."

— Consolo? — ela ecoou, arrumando instrumentos e materiais na mesa, para fácil acesso. — O que fez Abelardo pensar que seus problemas confortariam al­guém?

— Bem...

— É uma carta autêntica? — Corliss continuou contestando. — Não parece uma carta para um amigo. Soa mais como desculpa para mencionar os próprios dramas e lamentar-se.

Surpreso, Rainulf emitiu um riso de deboche.

— Abelardo não se lamenta. Foi o maior...

— O maior pensador da Europa — Corliss comple­tou, zombando do ar superior do mestre Fairfax. — Um homem de extraordinário brilhantismo. E, pelas aparências, um reclamante incorrigível.

Evitando o olhar crítico de Rainulf, ela encenou um pequeno espetáculo ao se debruçar sobre a página de pergaminho, fixada à mesa, e examinar a imagem que se preparava para dourar. Não deixou de sorrir, porém. Rainulf tomava tudo extremamente a sério. Sabia que não o havia provocado tanto assim, mas ele pratica­mente a forçara a agir dessa maneira. Numa olhadela, viu que ele também sorria. Já era um avanço!

— Acontece que você tem razão sobre isto ser mais do que uma simples carta — ele enfatizou. — É opi­nião geral que Abelardo tencionava tornar públicos seus dramas pessoais, registrando a suposta heresia e o caso de amor com Heloísa. As cartas dele estiveram em circulação por várias décadas, embora esta seja a primeira vez que vejo uma. Estou curioso por desco­brir como ele se justificou com Heloísa. Na condição de mestre, Abelardo deveria manter-se celibatário e casto. — Rainulf localizou o ponto do documento em que havia parado. — Devo prosseguir?

— Por favor.

— "Nasci nas fronteiras da Bretanha, a cerca de dez quilômetros a leste de Nantes..."

Corliss centrou-se em seu trabalho: a figura de São Lucas, sentado à escrivaninha, com um anjo a espiá-lo a partir de uma nuvem. Ficou envaidecida consigo mesma, pela qualidade do desenho, ainda não colorido. As linhas eram fluidas e naturais, as dobras da batina do santo simplesmente as melhores que ela já havia traçado. O rosto de expressão pensativa também re­sultará excelente: queixo forte, nariz reto e aristocrá­tico, olhos bondosos e inteligentes.

Ela seguira as instruções para dar ao santo longos cabelos e barba grande. Exceto por tais detalhes, a fi­gura que emergia do pergaminho espelhava ninguém menos do que Rainulf Fairfax. Relanceou o olhar do retrato ao modelo, agora absorto na leitura de um li­vro de Abelardo, Historia Calamitatum.

A face de Rainulf brilhava de transpiração. Estava quente demais para um mês de maio, e Corliss havia vedado a janela perto da mesa com pergaminho, a fim de impedir que a brisa calorenta afetasse o delicado tra­balho com pó de ouro. Ele vestia uma impecável camisa branca, solta sobre a cintura e aberta no alto, permitin­do a visão de caracóis de cabelos escuros. Não como os de Sully, crespos, porém macios e sedosos, francamente convidativos. Ela ansiou por tocar-lhe o tórax, sentindo um comichão de urgência nos dedos. Desejou repousar a cabeça naquele tronco másculo, experimentando seu calor, e ouvir o batimento do coração de Rainulf.

Corliss, você é uma idiota! Ela reteve a respiração e afastou a fantasia empunhando seu material de tra­balho. Utilizou uma escova fina para espalhar o pó dourado em torno da figura desenhada, mas teve de soprar o excesso a fim de limpar a folha.

— "Assim, as aulas começaram e minha reputação com a dialética se espraiou" — prosseguiu Rainulf, alheio à atividade de Corliss.

Ela raspou o ouro de uma placa, a fim de obter mais pó e completar o halo em torno da cabeça de São Lucas. Era uma idiota, considerou, por desenvolver atração por Rainulf Fairfax. De um lado, não havia dúvida de que seus sentimentos não seriam retribuídos, dado o desinteresse do professor por mulheres. De outro, no momento em que quisera partir dali, Rainulf a havia retido, abraçado, beijado seus cabelos. Apenas não su­plicara para ela ficar...

Teria julgado mal o mestre Fairfax? Exultou com a possibilidade de que ele gostasse dela como mulher. Mas não. Tão logo ela concordara em permanecer na casa, o professor voltara a assumir o distanciamento polido com o qual tratava todas as mulheres. Estava claro que qualquer afeição que Rainulf pudesse ter por ela restringia-se ao tipo de relacionamento entre ir­mão e irmã. Ela sentia-se decepcionada, e ao mesmo tempo com vergonha dessa decepção.

Um caso de amor verdadeiro com Rainulf compro­meteria sua liberdade. Era a última coisa que almeja­va. No entanto, paradoxalmente, admitia que era tu­do em que pensava, quando não estava trabalhando. Diante da imagem familiar de São Lucas, no pergaminho, ela sorriu sardonicamente: parecia que o bo­nito professor dominava seus pensamentos também enquanto trabalhava...

Enxugou a testa com a manga da túnica, para evitar que gotas de suor caíssem sobre a página, e então incli­nou-se sobre o desenho e examinou meticulosamente a área em que aplicara o acabamento dourado. Havia coberto de gesso mole o halo do santo, no dia anterior, e agora tinha de assoprar os resíduos endurecidos, a fim de reforçar a camada de ouro em pó. Pressionou-a sobre o pergaminho com um quadrado de seda, com o que a obra estava praticamente concluída.

— "Mas o sucesso sempre enche os tolos de orgulho" — Rainulf leu — "e a segurança mundana enfraquece o espírito é o destrói por meio de tentações carnais..."

Empunhando seu estilete, feito de dente de cachor­ro encravado em haste de metal, Corliss deu os reto­ques finais no trabalho, corrigindo cuidadosamente as curvas do halo circular. O brilho até então opaco do ouro começou a ganhar cintilância, e ela sorriu de sa­tisfação com o próprio esforço.

— "Havia em Paris, naquele tempo, uma jovem cha­mada Heloísa, sobrinha do cônego Fulbert, tão adora­da por ele que fez tudo a seu alcance para dar-lhe uma avançada educação em Letras." — Rainulf pôs de lado o livro e ergueu o olhar. — Você sabe, Corliss, Heloísa era uma mulher admirável por si própria, mesmo an­tes de conhecer Abelardo. Aos dezessete anos, já tinha fama pela dedicação aos estudos. Dizem que sabia gre­go, latim e hebraico.

Ele caiu em silêncio. Quando Corliss deu-se conta, Rainulf contemplava o halo brilhante de São Lucas, no pergaminho, com expressão de arrebatamento.  

— Então, é assim que é feito.

Posicionou-se de pé atrás de Corliss, com uma das mãos apoiada na cadeira e a outra na mesa dela. Ela seguia polindo a fina camada de ouro, escovando-a sua­vemente, olhos fixos no trabalho, mente roubada por Rainulf.

A camisa solta dele atritou de leve suas costas. Cada hausto de ar representava um toque do macio tecido de linho.

— É extraordinário — comentou ele. — Existe algo que você não consiga fazer com tintas, pós e pincéis?

Não consigo parar de pensar em você, era o que Corliss desejava dizer. Todavia, encolheu os ombros e seguiu polindo o círculo de ouro, embora esteja tivesse atingido seu máximo brilho.

— Você é excepcionalmente talentosa — Rainulf re­forçou o elogio. — E muito inteligente. Vi quando veio a minha palestra, permanecendo no fundo da sala como se tivesse medo de sentar-se. Acompanhou tudo o que eu dizia. Notei em seus olhos a luz da compreensão, da curiosidade intelectual. Mais do que na maioria dos estudantes, garanto. Também é culta para uma mu­lher, especialmente com seu histórico de vida. Sabe ler e escrever. Tem fluência em três diferentes idiomas...

— Meu francês é abominável — ela retrucou. — Falo essa língua como uma camponesa de Oxfordshire.

— Mas você é uma camponesa de Oxfordshire. — Ele sentou-se de novo e sorriu.

— Não mais — rebateu Corliss com veemência.

— Não quis dizer...

— Apenas não gosto de soar como um dos servos de Roger Foliot, cada vez que abro a boca para falar. Todos aqui em Oxford falam francês com elegância e sem sotaque.

Rainulf a observou pensativo por um momento.

— Pode perder o seu sotaque — emendou depois. — Não será difícil.

— Verdade?

— É somente uma questão de treinamento pessoal. Você possui uma das mentes mais rápidas que já vi. Vou ajudá-la. Você poderia ler em voz alta obras da lite­ratura e da história francesas, e eu iria corrigindo sua pronúncia. Com isso, você ainda aprende coisas novas.

— Gostaria mesmo de aprender um pouco de His­tória. — Ela girou entre os dedos o estilete, já sem uso. Mas, apesar do ar ausente, estava fortemente interes­sada na proposta do mestre Fairfax.

Com o corpo vergado na cadeira, ele quase debruçou-se na mesa dela. Seus olhos faiscavam de ansiedade.

—Pode aprender outras matérias também. Serei seu tutor em Gramática, Retórica, Lógica, Geometria, tudo o que quiser. Vai se tornar uma mulher culta, uma mulher de Letras, como Heloísa.

É possível eu rivalizar com a grande e educada Heloísa?, Corliss pensou, com uma dose de temor. Rainulf pousou a mão no ombro dela.

— Eu adoraria ensinar você. Diga-me que aceita. Preocupada, ela reservou um instante para mordiscar o lábio.

— Você quer me refabricar, criar uma nova pessoa — acusou-o.

Rainulf retirou a mão, ligeiramente chocado.

— Não, gosto da pessoa que você já é. Apenas me permitiria... polir um pouco seus conhecimentos. Como você poliu o halo de ouro no pergaminho. Não foi para isso que veio a Oxford? Para ser mais livre e refinada?

— Tudo bem. Concordo. — Ela meneou a cabeça .afirmativamente, porém poupou-se de sorrir. — Com uma condição: deixe-me decorar esta sala.

— Gosto assim como está, sem anjos, unicórnios e outros enfeites de marfim para onde quer que eu olhe.

— Não farei nada de extravagante. Você ficará sa­tisfeito.

— Mas é desnecessário, Corliss. Estou feliz com mi­nha casa da maneira atual.

— Feliz? Rainulf, nas cinco semanas em que mora­mos juntos, vi você sorrir meia dúzia de vezes. Escutei sua risada apenas duas vezes. Você não sabe o que sig­nifica felicidade. — Ela inclinou o corpo no sentido dele, a fim de sugerir aproximação. — Deixe-me pintar uma roda de macacos dançarinos, em volta da janela.

Pela reação de Rainulf, o número de risadas cres­ceu para três.

— Macacos dançarinos? Isso não é extravagante? — Ele seguiu rindo.

— Está vendo? Sentiu-se feliz só de pensar nesses macacos. Se você os visse toda vez que olhar para a janela, seu humor se elevaria.

— Corliss... — Ele balançou a cabeça incisivamente. — Às vezes você parece tão inocente e ingênua... Procura um motivo de deslumbramento em tudo. Em outras ocasiões, é esperta a ponto de causar medo. Vá adiante. Pinte todos os macacos e unicórnios que quiser.

Ela saltou da cadeira, contente como nunca.

— Sério?

— De verdade. — Rainulf apontou á mesa. — Já terminou o trabalho?

— Resta fazer os halos dos anjos — Corliss disse. Ele acomodou-se na cadeira e cruzou as longas per­nas.

— Então, continuarei a ler... a não ser que o texto a aborreça.

— Nem um pouco — ela mentiu. — É fascinante.

— Era a companhia de Rainulf que Corliss desejava, não ouvir as lamentações de Abelardo. O calor reinan­te a enervava, mais do que o tom queixoso da Historia Calamitatum.

Por que sofrer? Se Rainulf ficava à vontade em casa, em calça e camisa, por que não ela também?

Erguendo-se, desatou o cinto e removeu pela cabeça sua túnica grossa. Também afrouxou a faixa de pano que lhe espremia os seios. Rainulf acompanhou tudo com o olhar, mas nada disse nem fez.

— Ah. — Ela mostrou-se aliviada. — Assim é me­lhor. — Acomodou-se à mesa e começou a preparar o pó de ouro para o acabamento das figuras de anjos.

Rainulf pigarreou e leu o relato de Abelardo sobre a decisão de morar com o cônego Fulbert e servir de tutor à sobrinha dele, por quem, confessadamente, sentia ardente desejo.

— "Preciso dizer mais? Estávamos unidos, primeiro sob o mesmo teto, depois em nossos corações. As aulas se tornaram pretexto para nos abandonarmos ao amor, pois nos garantiam a privacidade que o amor exige, e com os livros abertos diante de nós passaram a exis­tir mais beijos do que ensino. Minhas mãos se perdiam mais nos seios dela do que nas páginas das obras."

Numa pausa, Rainulf enrugou a testa diante do ma­nuscrito de Abelardo, com as orelhas um tanto rubras.

— Continue — solicitou Corliss, agora bastante inte­ressada, mas sem parar de trabalhar no pergaminho.

— "Em resumo, nossos desejos não davam margem a reprimir o amor físico, e se este pudesse nos trazer algo de novo nós o saudamos. Conhecemos alegrias que nossa prévia inexperiência nos negava, e ficamos saciados." — Ele fechou o volume. — Basta por enquanto.

— Mas estou curiosa. Por favor, prossiga.

Rainulf estudou Corliss enquanto ela voltava a empunhar o estilete de dente de cachorro. Estaria se divertindo com o constrangimento dele? Seu olhar foi atraído pela pele rosada do vão dos seios de Corliss, visível sob a camisa semiaberta. Não eram grandes, mas bonitos, perfeitamente redondos, como se podia pressentir através do fino tecido. Aqueles seios se mol­dariam bem a suas palmas.

Minhas mãos se perdiam mais nos seios dela do que nas páginas das obras, havia escrito Abelardo. Se os encantos de Heloísa se comparassem aos de Corliss, Rainulf podia compreender que o grande pensador perdesse a cabeça por ela, e em conseqüência sofresse mutilação e desgraça.

Ele secou as mãos suadas no pano da própria calça. Talvez tivesse se precipitado ao propor sua tutela quan­to aos estudos de Corliss. Parecia imprudente manter os rostos próximos, debruçados sobre um livro, perigo­samente próximos por horas e horas. Imprudente mas motivador. Ele gostava de vê-la em casa, quando volta­va de uma palestra. Apreciava a companhia dela, que lhe elevava o humor tal como já fora sugerido. Diante do sorriso encantador da jovem, seu espírito se aquecia. As cores se tornavam mais vividas, os objetos diferen­tes ao toque. A presença de Corliss lhe intensificava os sentidos, a ponto de sentir-se embriagado por ela.

— Então? — foi cobrado.

Ele achou o trecho em que havia parado e leu um pouco para si mesmo, sem encontrar novas descrições da relação íntima entre Abelardo e Heloísa.

— "Agora que eu estava transportado por aqueles prazeres, menos tempo dedicava à filosofia e menos atenção a minhas aulas."

Enquanto Corliss retocava a iluminura, Rainulf voltou a falar em voz alta. Deparou com o horror da descoberta dos amantes "em pleno ato", pelo cônego Fulbert. Seguiam-se o nascimento do filho do casal, o matrimônio secreto e a vingança do clérigo, com a ajuda de amigos e parentes.

— "Eles cortaram as partes de meu corpo por meio das quais eu cometi o erro que me imputavam."

Corliss segurou o estilete no ar, interrompendo a feitura do halo dourado de um anjo.

— Quando ele diz "as partes de meu corpo..."

— Foi castrado, emasculado — esclareceu Rainulf. — O grupo subornou os criados para abrirem a porta durante a noite.

— Meu Deus! Estava pelo menos dormindo?

— No início, talvez. Mas ninguém dorme enquanto sofre castração.

— Abelardo era corpulento?

— Sim. Alto e musculoso. Por que pergunta?

—Bem, se estava desperto e era forte, se o grupo não era tão numeroso...

— Acha que ele poderia ter se defendido? — Rainulf inquiriu. — Lutado contra seus agressores?

— Claro. De sua posição na cama, Abelardo seria capaz de bater no estômago de um ou dois, talvez dar um soco no outro... Por que está balançando a cabeça?

— Você sabe pouco sobre luta corporal, Corliss.

— Conheço o suficiente.

— Perdão, você sabe quase tudo — ele sorriu. — Na verdade, Abelardo foi atacado de surpresa e por mais de uma pessoa. Ainda que estivesse à luz do dia, numa luta justa de um contra um, não podemos esquecer que, apesar de forte, ele era um acadêmico, um intelectual, voltado às coisas da mente e do espírito.

— Só que também era o filho mais velho de um ca­valeiro do reino.

— Exato, mas renunciou à herança e nunca recebeu treinamento como soldado. Sem isso, ou sem alguma experiência prática, ninguém consegue enfrentar um oponente, ainda que mais fraco fisicamente. Vi muitos exemplos disso nas Cruzadas, colegas que encontra­ram morte rápida.

— Mas não você...

Rainulf relutou, como sempre avesso a comentar essa parte de seu passado.

— Aprendi a lutar — anunciou. — Mesmo sendo o segundo filho, e destinado ao clero, meu pai insistiu em me treinar à maneira de um soldado, para matar ou morrer.

Em sua memória aflorou a imagem de um menino franzino, de cabeça raspada, e a do homem enorme que o ensinara a brigar. Derrubado pelo pai, nas aulas, ele vivia com escoriações pelas pernas e todo o corpo.

— Então — ele continuou —, ganhei prática na Universidade de Paris. Sempre eu tinha um arranhão ou outro.

— Você? — Corliss demonstrou descrença. — Por que motivo brigava e sofria ferimentos?

Por mulheres, principalmente.

— Isto e aquilo — o professor esquivou-se, levantan­do o livro de Abelardo. — Quer que eu continue a ler?

— Não, já terminei aqui. — Ela colocou seu mate­rial de trabalho sobre a mesa. — Você estaria disposto a me ensinar a lutar?

— Mas você é mulher. — Ele pestanejou.

— Mais uma razão para aprender a me defender. Rainulf devia ter hesitado demais, porque Corliss deu de ombros e voltou-se, afirmando:

— Se não quiser, tudo bem. Não pretendo cortejar o perigo.

— Você já corteja o perigo, Corliss. Cada vez que se integra ao grupo de Victor, ou toma cerveja com um de seus seguidores, está chamando excessiva atenção sobre você.

— Apenas gosto de ouvir o que ele tem a dizer, o que não faz de mim uma fanática.

— Porém é o que parece, para os que não a conhe­cem bem. E ainda há a história daquele mascate des­figurado.

— Rad é inofensivo — ela repetiu, não pela primei­ra vez. — É como uma criança.

— Ele continua vindo aqui, à sua procura, mesmo sem nada de novo para vender. E olha você de um modo estranho. Por que o encoraja a voltar?

— Gosto dele e tenho pena. Todos o tratam como a um animal. Rad me procura porque sou gentil com ele.

— Entenda, Corliss. Tento não me preocupar, mas não adianta. Você me aflige.

— Exagero seu. Ainda que algo me aconteça, creio piamente que sou capaz de me safar sozinha. Decidi comprar um punhal.

— Oh, não! — A aflição de Rainulf já não parecia exagerada.

Ela ergueu as sobrancelhas e o encarou.

— Por que é impróprio a uma mulher portar uma arma, ou mesmo aprender a lutar? Isso lembra uma conspiração masculina para nos manter fracas e sub­missas.

— Nada tem a ver com a condição feminina. Você sabe usar um punhal?

— Não, mas...

— Exige prática, como todo o resto. O que ocorreria se você balançasse a arma diante de um agressor? As chances são de que ele a tome e use contra você. — Ele suspirou de frustração. — Seria mais seguro eu ensi­ná-la a defender-se com os punhos e pés. Existem um ou dois movimentos que...

— Não vai ser preciso — Corliss descartou a idéia, passando a arrumar a mesa.

— Eu insisto. — Rainulf levantou-se da cadeira, notando que ela reprimia um sorriso. — Como conse­gue fazer isso?

— Isso o quê? — Corliss evitou o olhar dele.

— Distorcer os fatos. Fazer com que eu me preocu­pe com você.

— Mas eu fiz isso? — ela indagou em tom ingênuo. Ele a segurou pelo braço e a ergueu.

— Venha comigo antes que eu mude de idéia — im­pôs o professor. — Podemos utilizar o pátio nos fundos do estábulo. Talvez sua empáfia amenize suas quedas no solo.

— E as suas... — ela acrescentou, sorrindo.

— Tudo bem, agora me mostre. — No pátio grama­do, Rainulf levantou a barra da camisa e enxugou o suor do rosto. — Como eu ensinei.

Corliss meneou a cabeça e retirou da face alguns fios de cabelo molhados pela transpiração. Abanou a barra da própria camisa solta contra o rosto, a fim de refres­car-se. Havia se mostrado cordata e despretensiosa du­rante a aula de luta corporal, surpreendendo Rainulf.

Antes de fazer os votos clericais, o professor tinha se relacionado com mulheres sofisticadas, de beleza artificial. Mulheres que se maquiavam e trajavam roupas justas, que aspergiam perfume por toda a pele e se adornavam com jóias. Naquela época, ele ficava excitado só de pensar que uma parceira sofrer para enfeitar-se, apenas para agradá-lo.

Com certeza, nenhuma dessas antigas namoradas jamais lhe pediria lições de luta. Em relação a Corliss, era diferente. No final da tarde, ela já aprendera como quebrar o nariz e os dedos de um adversário, como chu­tar-lhe os joelhos. Havia provado ser uma aluna aten­ta e rápida no aprendizado, além de ser fisicamente mais forte do que dava a parecer. Rainulf percebeu seu cansaço e passou à última demonstração do dia.

De costas para ele, Corliss afastou os pés e deixou os braços pendentes ao lado do tronco. Disse a Rainulf que podia atacá-la, por trás. Sem demora, o mestre a tingiu pelo tórax, com força. Ela cerrou os punhos e empurrou o agressor, fazendo meia-volta e livrando-se do abraço firme.

— Você não agiu do modo correto — ele comentou após soltá-la. — Veja de novo como se deve fazer.

Ele cruzou os braços ao peito, depois ergueu-os no ar, livres.

— Quer tentar?

Ofegante, ela colocou-se mais uma vez na posição combinada. De novo Rainulf a paralisou com os bra­ços em torno dela. Mas Corliss executou à perfeição a manobra de escape. Anulou a firmeza do agarrão e girou o corpo, a fim de encarar o professor de frente. Riu deliciosamente.

— Faça o melhor, isto é, o pior que consegue, e va­mos ver o que acontece — ela desafiou. — Venha!

— Ah, está se julgando invencível, não? — comentou ele. A perspectiva de agarrar Corliss por trás, sentir sua pele macia, era mais do que atraente. Toda luta corporal implicava um contato físico excitante com ela. Mas ele desistiu. — Prosseguiremos amanhã. Estamos ambos cansados.

Alegre, Corliss desprezou o argumento. Avançou, prendeu os braços de Rainulf e enganchou uma das per­nas na dele. Ele procurou manter o equilíbrio, em vão. Os dois foram ao chão, braços e pernas entrelaçados, os corpos pousados juntos na grama esbranquiçada. Rindo a mais não poder, Corliss armou um soco e mirou o na­riz de Rainulf, porém não completou o gesto.

— Venci! — ela exclamou.

— Não é verdade. Mesmo um homem de nariz fra­turado é capaz de fazer isto. Repare. — Ele a imobili­zou pelos pulsos, segurou-lhe os braços nas laterais do corpo e soltou seu peso em cima dela.

Corliss debateu-se furiosamente, tentando livrar pelo menos uma das mãos para bater com força no ombro de Rainulf. Não teve êxito.

— Eu é que venci! — ele alardeou, mantendo Corliss no chão, debaixo dele, e presa pelos punhos porque ela era imprevisível. — Você aprende rápido, mas ainda falta muito.

Corliss fechou os olhos e aspirou o ar. Os cabelos continuavam úmidos, o rosto gotejante. Um rosto ex­traordinário, Rainulf pensou, enquanto se valia da­quela oportunidade para examiná-la de perto. A pele, podia-se dizer, era translúcida, a revelar algumas veias inchadas pelo esforço. Também os lábios esta­vam avermelhados do sangue que circulava.

O olhar dele correu para o tronco de Corliss. Em si­lêncio, admirou a compleição um pouco franzina, mas bela, de sua prisioneira. Esta piscou, denotando con­fusão, e reagiu em busca de liberdade. Graças aos mo­vimentos, a camisa dela abriu-se para os lados, desve­lando o busto sedutor mas delicado. Corliss sabia que estava sendo olhada na intimidade. Nada podia fazer, no entanto. Ciente da excitação de Rainulf, também ela deixou-se vencer pela tensão sensual. Os bicos dos seios se tornaram rijos.

Uma onda de poderosa vontade apossou-se de mes­tre Fairfax, mesmo a contragosto. Foi como se o seu corpo ganhasse vida própria e a mente racional calas­se. Por cima de Corliss, sua virilha procurou um ninho entre as coxas dela, a quente junção que lhe traria alí­vio para sua chocante necessidade.

Tal qual uma fera a marcar o domínio de um terri­tório, ele desejava tocar e arranhar a parceira, porém tinha as mãos ocupadas, talvez já sem motivo. Com o pouco que lhe restava de raciocínio, combateu a urgên­cia de possuir Corliss. Ali mesmo e naquele instante.

Atônita, Corliss sentiu a pressão do membro rígido contra o tecido de sua calça. Quando Rainulf se mexia, ela acompanhava o movimento, ajustando suas náde­gas a ele com naturalidade, como se fosse uma amante experiente. Durante o tempo todo, ela admirou-se com a descoberta do poder que tinha de excitar o professor. Preferiria evitar tal privilégio, mas o desejava deses-peradamente, e por semanas a fio.

Fitando Rainulf, ela identificou um apetite cru nos olhos dele. O rosto se achava ruborizado, e uma pe­quena veia pulsava na fronte, em harmonia com o ca­lor entre as pernas. As dele e as dela também. Era estranha a sensação daquele calor molhado, que ela nunca havia experimentado antes, pelo menos não com tamanha intensidade. Parecia um comichão que precisava ser tocado, esfregado num contato mais ín­timo. Por isso ela se arqueava sob Rainulf, atritando os quadris na calça dele.

Ele fechou os olhos, de corpo esticado e braços exaustos por segurá-la.

— Corliss... — sussurrou ao reabrir as pálpebras e deparar com ela.

Rainulf então soltou-a e trouxe a mão para dentro da camisa dela, de modo a empalmar um dos seios. Tensionou o maxilar e temeu o louco descontrole que o fez remover a peça inteira de roupa e contemplar o tronco nu, abrasador da parceira.

Parceira? Ele ergueu-se e afagou os cabelos de Corliss, que sentou-se na grama. Com as mãos trêmu­las, vestiu e abotoou a camisa caída no solo. Depois examinou os próprios pulsos, ainda avermelhados.

Agachando-se, ele lhe tomou as mãos entre as suas, lamentando em silêncio que tivesse produzido tais marcas. De repente, olhou para os lados e para a dire­ção do estábulo. Corliss sentiu seu desassossego.

— O que houve? — indagou.

— Alguém estava ali — foi a resposta. — Agora mesmo, nos espiando.

— Rainulf... — Para Corliss, ele via fantasmas, plasmados por sua paranóia.

— Vá para casa. — Ele deu alguns passos, em dife­rentes sentidos, fiscalizando o terreno.

— Rainulf, não havia ninguém...

— Vá! — Após o grito por cima do ombro, ele saiu às carreiras.

 

Rainulf correu pelas redondezas, incluindo o quintal do vizinho, e esquadrinhou a área em busca do intruso. Deparou com uma figura sinistra, que desaparecia de vista pelo estreito espaço entre duas residências.

— Pare! — bradou.

Ele disparou pela viela e caiu ao tropeçar num grande saco preto, do qual tinham emergido dezenas de facas sortidas.

— Rad, seu canalha! — Rainulf retomou a perse­guição ao mascate. — Volte já aqui!

Saiu na Kibald Street, defronte a uma carroça repleta de barris de vinho. O condutor retesou as rédeas, a fim de conter a parelha de cavalos, assustados com a passa­gem apressada de Rainulf. Um barril rolou para a rua, onde se espatifou, espalhando seu conteúdo rubro.

— Volte aqui! — berrou também o carroceiro. — Tem de pagar pelo prejuízo.

Naquele instante, a figura sombria ia desaparecen­do outra vez, na esquina próxima, e Rainulf a seguiu, ignorando o dono da carroça.

A alameda Grope era mais movimentada do que a Kibald, porém ele distinguiu à distância a forma incon­fundível de Rad, que corria no meio das pessoas, com surpreendente agilidade. No entanto, mestre Fairfax era igualmente veloz com os pés. Logo alcançou o mas­cate e segurou-o pela capa. Rad baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.

— N-não me m-machuque — gaguejou.

— Por que você estava nos espiando? —Mas eu não... Rainulf sacudiu o vendedor ambulante com força.

— Fale! O que fazia, escondido em minha proprie­dade?

— Não ia m-machucar n-ninguém.

Pela gola, ele empurrou o mascate contra a porta de uma loja, mas não desferiu o soco já armado.

— Fale!

Baixando as mãos, Rad mostrou sua face grotesca.

— Pensei que você p-poderia m-machucá-la.

— Quem?

— Corliss.

Ela! Deus do céu! Rainulf recolheu o braço esticado, rememorando a imagem de Corliss, de seios expostos. Qualquer dúvida que Rad pudesse ter sobre o verda­deiro sexo dela já estaria, a essa altura, totalmente superada.

— Desejava proteger Corliss? — Viu que o vende­dor confirmava com um gesto de cabeça. — De mim? Eu não estava machucando Corliss, apenas ensinando golpes de defesa pessoal.

Mesmo com o recuo de Rainulf, Rad manteve-se en­costado à porta. O professor era quem agora estreme­cia, nervosamente.

— Já suspeitava que ela era uma mulher, antes de hoje?

Rad confirmou com um gesto de cabeça.

— Eu sabia.

— Desde quando? — Rainulf inquiriu, aflito.

— S-sempre. Antes de ver o rosto dela, percebi a luz. E-então, eu soube.

— A luz?

— Como p-prata. A luz de uma mulher. Tudo brilha em torno dela, cintilando em ondas prateadas.

— Entendo — disse Rainulf, sem mentir. Simples­mente, o desfigurado vendedor era maluco. Ele acreditava em sua intenção de proteger Corliss, por quem parecia ter um especial fascínio, mas aquela conversa sobre o brilho de prata beirava a demência.

Em seus dias de prisioneiro dos turcos, conhecera no fétido cárcere, detentos que sofriam acessos de loucura. Choravam e riam sucessivamente, feriam-se sozinhos, mostravam-se distantes da razão e dos sentidos. Talvez Rad se enquadrasse nesse tipo de comportamento.

— P-posso ir? — perguntou o vendedor. O problema era que, mesmo sem querer, a patética criatura poderia tornar-se violenta e causar ferimen­tos em Corliss. Tal possibilidade levou Rainulf a redo­brar a precaução.

— Vá andando — ele autorizou. — Mas nunca volte à casa. Compreendeu?

Rad apenas olhou fixo, com ar triste.

— Nunca mais deve ver Corliss ou falar com ela. Senão... — Como era odioso falar assim! — Terei de bater em você. Diga-me que compreendeu.

O mascate vasculhou a viela, com os olhos úmidos.

Finalmente, porém, assegurou que compreendia, meneando a cabeça com vigor. Em seguida, baixou o olhar até o chão, e Rainulf começou a afastar-se, sentindo-se um patife.

— Seu saco de mercadorias ficou na viela da Kibald Street — ele quis amenizar as coisas. — Pegue-o e suma. Jamais se aproxime de minha casa de novo.

Quando Rainulf contornou a esquina, alguém gri­lou na direção dele.

— Aí está você! — Era o carroceiro cujos cavalos ele havia assustado, causando a perda de um barril de vinho. Um grupo de indigentes espalmava as mãos no solo, molhando-as com a bebida, que lambiam freneticamente. — Deve-me quatro xelins pelo bom vinho que perdi por sua causa.

Era uma soma ultrajante, mas Rainulf não tinha mais paciência de discutir. Resignado, entregou as moedas ao admirado carroceiro e lentamente retornou para casa.

Ela se enganara a respeito dele, refletiu Corliss en­quanto observava Rainulf e cerca de vinte outros, entre cidadãos, professores e estudantes, todos sem camisa e debaixo do sol, alinhados para a corrida. O ponto de partida era na High Street, em frente ao East Gate. O de chegada, no portão do Castelo de Oxford, a quase mil metros dali. As bordas do trajeto estavam coalha­das de pessoas que, impacientes, aguardavam o início da competição.

Ela se enganara muito, efetivamente. Três sema­nas tinham se escoado desde o incidente que a colocara em contato com o corpo de Rainulf, durante a lição de luta. Então, sentira a resposta dele a seu calor sensual e percebera que ele era um homem como qualquer ou­tro, com as mesmas demandas físicas, o mesmo desejo pelo toque de uma mulher.

Após aquele momento, nenhum dos dois tinha co­mentado o fato, como que fingindo que nada aconte­cera. Provavelmente, era melhor assim. Ele não lhe oferecera novas lições, e ela cumprira seu plano de adquirir um punhal. A fim de esquivar-se da desapro­vação de Rainulf, ela nada lhe contara e mantinha a arma oculta dentro de sua bota, o tempo inteiro.

Apertando os olhos contra o sol forte, ela viu o pro­fessor plantar a bota na linha de largada, e depois in­clinar-se a fim de ganhar impulso. Seus músculos ri­jos estavam bem definidos sob a calça justa de malha. Admirou o relevo das costas e dos braços, as nádegas estreitas, a flexão das pernas na expectativa da parti­da. Para ela, tratava-se da imagem da perfeição mas­culina. Como pudera duvidar da opção sexual dele?

Em sua mente, eclodiu o contraste entre o bonito e viril professor de Oxford e os dois homens idosos que ela havia enterrado. Estes possuíam mãos geladas, além de se tornarem vagamente irritantes quando lhe davam alguma atenção. Já os dedos de Rainulf, no breve tempo em que os desfrutara, tinham marcado seu corpo com calor desconhecido, que se transmitiu a todo o seu san­gue e despertou a febre do desejo. Nem Sully nem Osred chegaram a provocar tão estranha sensação, mesmo quando a tomavam na cama, como sua mulher. Focando no corpo flexionado de Rainulf, ela imaginou que com ele seria bem diferente. Até fantasiou uma cena erótica, capaz de perturbá-la até o fundo de seu ser.

Thomas apareceu ao lado dela, com hálito de cerve­ja, e a provocou.

— Aposto seis pence que mestre Fairfax vai ser o último.

— O último! — ela exclamou, ofendida. — Como você é desleal!

No mesmo instante, Brad surgiu do outro lado de Corliss.

— E o que falei a ele — declarou Brad em tom de censura. — O professor terminará no meio do pelotão, aposto.

— Vergonhoso! — ela contra-atacou, ultrajada.

— Ele é o mestre de vocês. Deviam pôr seu dinheiro na vitória, só na vitória. Os dois rapazes riram.

— Rainulf tem trinta e seis anos, Corliss — disse Brad. — O dobro da idade de muitos competidores. É impossível que ganhe a corrida.

Usando a mão como cortina para os olhos, ela estudou o professor durante os exercícios de aquecimento que ele fazia, esticando os braços para a frente e para trás.

— Eu não teria tanta certeza — comentou, bem no instante em que Rainulf esquadrinhou a multidão de espectadores, até se deparar com ela. Fixou a vista nela, cessou os movimentos e aparentou ter encontra­do o alvo que, no íntimo, mais almejava.

Mesmo à distância, Corliss viu o lago verde dos olhos de Rainulf, acesos por uma alma insondável. O esboço de um sorriso brincou nos lábios dele. Mas alguém veio falar com ele, que girou o corpo, pouco à vontade.

Ela ponderou se o olhar enviado tinha a ver com ela ou com a corrida. Rainulf e o padre Gregory haviam organizado a competição, como forma de envolver tan­to o povo como os estudantes de Oxford numa ativi­dade social. No último minuto, porém, Victor tinha se apresentado para competir, e todos os cidadãos parti­cipantes deixaram o evento, em sinal de protesto. Com isso, restaram doze fundistas, incluindo Rainulf.

De início, ele não quisera correr, temendo por sua dignidade pessoal. Felizmente, porém, Corliss e o pa­dre Gregory o haviam convencido a disputar a prova. Ela gostava do sacerdote, um dos poucos a conhecer seu verdadeiro sexo, e que por isso mesmo a tratava com cerimônia. Provavelmente, Gregory suspeitava de que ela e Rainulf eram amantes em segredo, a despeito da alegação do mestre de que aquele relacionamento era inocente. Até os religiosos sabiam, talvez melhor do que os leigos, que a carne é fraca e impulsiona desvios de conduta.

Sim, Rainulf padecia com suas urgências sexuais, que se direcionavam a mulheres, não a garotos, mas parecia ter pouca experiência no ramo. Era até possível que fosse virgem, por ter optado pela abstinência, algo que raros homens, incluindo clérigos, seguiam à risca.

— Corliss! — Thomas cambaleou, embriagado, e segurou-se na túnica dela.

Brad, menos bêbado, perguntou se o amigo estava lúcido. Thomas quis saber se Corliss possuía seis pence para bancar sua aposta no mestre Fairfax.

— Tenho doze — ela informou. — Portanto, aposto um xelim como Rainulf chega em primeiro.

Exibiu a moeda, que brilhou ao sol, mas a manteve fora do alcance de Thomas, empenhado em apanhá-la. Brad descambou numa risada.

— Vocês dois ganharão este dinheiro caso Rainulf perca — ela completou. — Mas, se vencer, cada um me deve seis pence.

Thomas espanou com a mão sua capa e aceitou o acordo, seguido por Brad.

— Atenção! — Era o padre Gregory, ao lado da li­nha de largada. — Prontos? Já!

Os corredores partiram como flechas, levantando poeira na rua, seguidos com dificuldade pelos fiscais da prova. Corliss tossiu e protegeu os olhos, e quando os desvelou, os competidores já estavam fora de seu campo de visão.

— Venha conosco! — Descartando as respectivas garrafas de cerveja, Brad e Thomas seguraram Corliss pelas mangas da túnica, cada um de um lado, e saíram velozmente atrás da multidão que se deslocava pelo percurso, a fim de não perder o desfecho. Arfante, ela desistiu de correr.

— Vocês vão na frente — disse, enquanto se livrava, com um safanão, dos dedos pousados em sua túnica.

Os rapazes estacaram. Brad moveu a cabeça em si­nal de negação.

— O mestre Fairfax nos encarregou de ficar perto de você.

— Apenas para me fazer companhia — ela mentiu. Apreensivo desde que Rad os espionara, o professor freqüentemente pedia aos dois alunos que "fizessem companhia" a Corliss. Se ainda não perceberam que você é mulher, então nunca perceberão, justificara ele. — Agradeço, mas não consigo seguir seus passos. Podem adiantar-se, sem preocupação.

Thomas e Brad trocaram um olhar e deram de om­bros.

— Está bem — o primeiro concordou, já ensaiando uma disparada. — Veremos você mais tarde.

Eles sumiram de vista, no ponto em que a High Street infletia defronte à igreja de St. Mary. Corliss e outros pedestres caminhavam por ali em passadas nor­mais. Ela ouviu seu nome ser chamado e avistou Felice Clark, com sua mãe e Bertram. A jovem copista acenou e sorriu, debaixo do olhar surpreso da mãe. Já Bertram exibia um ar de raiva diante do suposto rival.

— Virá à loja hoje? — indagou Felice, depois que o trio acercou-se.

— Não, hoje não — foi a resposta de Corliss.

— Oh. — A jovem pareceu decepcionada, mas a mãe a apressou.

— Tenha um bom dia, Corliss.

— A senhora também.

Antes de escoltar as duas mulheres rua acima, Bertram lançou a Corliss um olhar ameaçador. Da di­reção do Castelo de Oxford ecoou um som de aclama­ção, entoado por centenas de vozes. A corrida havia terminado e o vencedor recebia aplausos.

Ela pensou na quantia que tinha apostado e no fato de que, dois meses antes, nunca imaginaria dispor de um xelim inteiro! Sentiu-se abençoada por ganhar a vida fazendo o que gostava. Vinha gastando demais com roupas e suprimentos de trabalho, mas já conse­guia poupar alguma coisa, guardada num velho pote de sal, debaixo de sua cama. Sorriu, feliz, ao devanear que logo teria de adotar um recipiente maior.

Notou uma figura familiar à sua esquerda: Rad. Já o havia reconhecido no meio do ajuntamento, mas julgou ser apenas mais uma pessoa a assistir à com­petição. Agora, era inegável que ele a vinha seguindo, rente às paredes dos prédios, em passos sincronizados com os seus.

Na esquina seguinte, ela o esperou e surpreendeu:

— Vi você, Rad. Não devia fazer isso, pois Rainulf ficará zangado. Ele lhe exigiu que mantivesse distân­cia de mim.

O vendedor meneou a cabeça, exprimindo desolação.

— S-só queria g-garantir sua s-segurança.

— Contra quem?

— Pessoas malvadas. Existem muitas — o mascate enfatizou, gaguejando menos. Corliss tinha certe­za que sim. Pensou nos desaforos e ofensas que ele aprendera a aceitar como normais.

— Ninguém quer me machucar, Rad. — Não era a plena verdade, mas por que intrigar o pobre vendedor com a existência de Roger Foliot e seus planos abjetos para ela?

— Alguns homens magoam e ferem mulheres desprevenidas.

— Todos pensam que sou um rapaz, Rad — ela ar­gumentou.

— M-mas eu logo soube que não era...

Rainulf havia lhe contado sobre a luz prateada que o vendedor dissera ver nela.

— Ninguém sabe, Rad, exceto você, Rainulf e o pa­dre Gregory. Estou em segurança. Você precisa parar de me espionar o tempo todo. Já o vi perto da casa e, certas vezes, na hora em que vou à Catte Street ou à igreja de St. Mary para uma conferência.

O mascate pestanejou, surpreso e confuso.

— Tudo bem — completou Corliss —, pois sei que deseja me proteger, mas não deve persistir nisso. Se Rainulf descobrir... não imagino o que fará. Prometa-me parar.

Ele elevou os ombros, meneando a cabeça em desa­cordo.

— Preciso zelar por você...

— Não, não precisa. Conto com Rainulf para me guardar, e quando ele sai sempre deixa alguém encar­regado da vigilância, como Brad e Thomas.

Espertamente, Rad olhou em torno e não viu nin­guém acompanhando Corliss.

— Certo — ela admitiu. — Os dois não estão aqui agora, porém eu mesma os dispensei. Isso não signifi­ca que você...

Um alarido os alcançou. Uma pequena e barulhen­ta multidão voltava do pátio do castelo. Corliss buscou refúgio na entrada de uma casa de vinhos.

— Vá embora, Rad. Rainulf deve estar vindo junto com a horda.

O mascate colocou seu capuz e espremeu-se entre dois prédios, no exato instante em que o grupo de pes­soas apareceu. Thomas e Brad as lideravam, rindo e ovacionando. O detalhe incrível era que carregavam nos ombros o ganhador da prova: Rainulf.

Ele tinha vencido! Sorridente, trajava um manto enfeitado e exibia na cabeça uma coroa de louros. Em outro homem qualquer, o manto e a coroa pareceriam ridículos, mas em Rainulf tais atavios enfatizavam sua aparência aristocrática. Ele lembrava um heróico guerreiro, sendo honrado por seu povo após gloriosa vitória numa batalha.

Os ornamentos, na verdade, faziam as pessoas re­cordarem seu sangue nobre, o do filho de um barão normando e primo da rainha. Achava-se no topo da escala social, enquanto Corliss tinha origem humilde. Para ela, tornara-se impossível negar a si própria os sentimentos pelo professor, mas precisava ter o cuida­do de mantê-los no devido lugar.

A hora mais difícil para isso era durante as aulas que Rainulf lhe dava, falando em francês e guiando-a por várias disciplinas, sete ao todo. Sempre consti­tuía um desafio conservar a atenção nos estudos, com aquele homem tão perto dela, observando-a com olhos perspicazes, transmitindo conhecimentos sem parar. Lecionar era um dom e uma paixão de Rainulf, e ele não se cansava de refinar-lhe os modos nem de comba­ter-lhe o sotaque. Se vai exprimir-se como uma dama, Corliss, também deve sentar-se como tal. Endireite a coluna. Levante um pouco o queixo. Ah, muito bem. Ficou adorável!

Esses elogios ocasionais é que sustentavam sua vontade de aprender. Caso Rainulf pensasse em to­mar uma amante, ao risco de seu cargo na reitoria, ele não escolheria uma simples camponesa como Corliss, ainda que bem treinada na fala e no comportamento social. Isso, não obstante o delírio erótico vivido pelos dois no estábulo.

De qualquer modo, refletiu ela, se fosse escolhida, o que seria de sua independência? A melhor maneira de proteger sua preciosa liberdade era evitar envolvi­mentos com homens, nobres ou não.

Mais uma vez, Rainulf focalizou o rosto de Corliss e, para o espanto dela, o sorriso se ampliou. Alguém pôs na mão do vencedor uma caneca de cerveja, incitando-o a beber.

— Beba! Beba! — clamou a multidão.

O professor esvaziou o recipiente e de imediato re­cebeu outro, cheio.

— Olhe para ele. Creio que está realmente feliz. — Corliss voltou-se e viu o padre Gregory atrás dela, apontando na direção de Rainulf. — Influência sua. De algum modo, você rompeu o escudo protetor do mestre Fairfax. Apesar de tentar e de conhecê-lo bem, eu nunca consegui.

— Não acho que o conheça nem um pouco — ela arguiu. Naquele instante, com os ombros doloridos pelo peso que carregavam, Brad e Thomas depuseram Rainulf no chão e o conduziram à taverna Burnell, muito próxima. — E um mistério para mim.

— Talvez para si próprio também. — Gregory a guiou na travessia da rua, rumo ao bar. — Venha. Ele gostará de tê-la por perto num momento de glória.

 

A esposa de Burnell inclinou a jarra de cerveja so­bre o copo de Rainulf, mas este o cobriu com a mão, alegando ter bebido demais para um só dia.

— Esse é o seu problema — interveio Walter Kent, o jovem professor de Dialética que havia terminado a corrida em segundo lugar e agora partilhava a mesa. — Deveria beber bem mais hoje, pois se trata de um dia especial.

— Verdade! — gritaram os outros, todos à beira da embriaguez, com exceção de Corliss e do padre Gregory. — Beba!

Rainulf não havia experimentado tal condição des­de seus tempos de estudante. Chegou a odiar sua falta de controle, o desequilíbrio que o levara a exceder-se no álcool. Isso o fizera temer o mundo instável e ardi­loso que substituíra seu universo normal, constante e ordenado, além da possibilidade de, embriagado, tra­zer à tona seus conceitos e sentimentos mais ocultos.

Ele relanceou o olhar para Corliss, que de bom grado aceitava o xelim de Thomas e Brad, perdido na aposta feita. Em público, ela encenava as caracterís­ticas de um amável rapaz, mas na área privada vinha se tornando cada vez mais uma dama. Seus gestos possuíam uma graça natural, mesmo antes da tutela de Rainulf. Agora, desenvolvia uma elegância que ele julgava encantadora. O sotaque rural se desvanecera em pouco tempo, e Corliss já se exprimia nos tons cul­tivados de uma representante da nobreza.

— Não, obrigado. — Descartou a bebedeira, bem como o manto e a coroa de louros que o constrangiriam se saísse da taverna. — Preciso ir.

Ele trocou o traje ritual por uma camisa comum e a túnica. Não podia acreditar que Corliss e Gregory o tivessem convencido a competir. Havia apreciado correr, sim, apenas considerava deprimente passar a tarde numa cervejaria, a celebrar seu triunfo.

Um momento desagradável foi protagonizado por Victor, que saltou sobre uma mesa, enfurecendo Burnell. Três homens tiveram de segurar o dono da taverna atrás do balcão, porém o estudante não voltou a criticar os pre­ços e a qualidade do material ali servido. Ao contrário, fez uma mesura dramática para Rainulf e surpreendeu a todos com um gracioso discurso de congratulações pela vitória. Após inclinar-se também para Burnell, Victor rapidamente deixou o bar.

Corliss ergueu-se, seguindo o exemplo de Rainulf.

— Quero caminhar junto com você — disse.

Ouviu-se o suspiro de alívio do professor. Ele abo­minava a idéia de Corliss voltar sozinha para casa, mesmo à luz do dia. Gostaria, na verdade, de ter con­tinuado com as lições de luta, embora isso parecesse insensato depois do que havia ocorrido no estábulo. Uma vez que Corliss não estava equipada para defen­der-se por si só, Rainulf julgava-se obrigado a escoltá-la, sempre que possível.

Já na calçada, ele impulsivamente colocou a coroa de louros na cabeça de Corliss. O resultado foi jocoso. Ela ficou parecida com um espírito da floresta, uma fada juvenil dotada de extraordinários poderes.

— Caiu bem em você — ele avaliou o professor, a sorrir para ela. A risada musical de Corliss soou gratificante.

Um cumprimento os interrompeu. Will Geary, o ci­rurgião que havia enviado Rainulf a Cuxham, estava apoiado na parede próxima do bar, como se esperasse pela saída do professor.

— Will! Como me encontrou?

— Perguntei aqui e ali, e descobri onde estava. Tem um momento?

—Claro — Rainulf concedeu. Ao ser apresentada a Will, Corliss removeu a coroa na qual o médico fixava o olhar, assombrado.

— Então andarei a seu lado — ele propôs.

— Como quiser. Pode falar livremente na presença de Corliss.

— Penso que você deve saber dos comentários de Roger Foliot a seu respeito — começou Will.

— Sério? — Rainulf escondeu sua repentina aflição. — Nem mesmo conheço o homem.

— Mas ele conhece você. Ou sobre você, de qualquer modo. Roger acha que esteve envolvido com aquela mulher chamada Constance, que morava na casa pa­roquial, onde prestava serviços ao padre Osred. — Will ergueu as sobrancelhas. — Serviços extras também, pelo que se diz.

Rainulf sentiu frustração e raiva, enquanto Corliss baixava o olhar.

— É verdade? — Will quis saber. — Ela era amante do padre?

— Não me pareceu uma prostituta — respondeu o professor, de punhos cerrados.

— Bem... — O cirurgião deu de ombros. — Roger julga que Constance deixava o padre... e você igual­mente...

— Mera suposição. — Rainulf parou e encarou o ami­go, que elevou as mãos no ar, isentando-se de culpa.

— Estou apenas transmitindo o que ouvi. Avaliei que era importante você saber.

Corliss praticamente se ocultou atrás das costas de Rainulf.

— Sem dúvida — ele afirmou. — Agradeço por sua preocupação. Algo mais?

O que o professor mais desejava era livrar-se logo do amigo inoportuno, mas Will o instigou a retomar a caminhada, após um olhar furtivo para Corliss.

— Aparentemente — prosseguiu —, a moça fin­giu estar morta e escapou. Quem me contou foi Hugh Hest, funcionário de sir Roger e um homem decente. Disse que seu patrão espumou pela boca, de ódio, e ainda quer para si um pedaço da jovem fugitiva. O lorde acredita que Constance pode vir a procurar você, como amparo.

Maldição! Rainulf manteve um silêncio de pedra durante o acesso à St. John Street. Roger sabia que Constance tentaria localizá-lo. Mas como chegara a tal conclusão? Corliss sentiu um calafrio percorrer seu corpo.

— Se isso é viável — Will continuou —, então você precisa tomar muito cuidado. Segundo Hugh, o lorde enviou um capanga atrás da moça, um louco sangui­nário. Ele deve estar espionando você, com o objetivo de encontrar a fugitiva.

Por Deus, eu estava certo o tempo todo! Alguém nos, vigia! Ainda calado, Rainulf abriu a porta de sua casa. Agradeceu a Will pelo relato.

— É minha obrigação — falou o médico —, já que eu o mandei a Cuxham e o envolvi em toda essa con­fusão.

— Não se culpe. Era impossível imaginar os desdo­bramentos da viagem. Entre conosco e coma alguma coisa.

— Obrigado, um paciente me espera. — Will ace­nou em despedida, deu alguns passos, mas voltou-se para o amigo. — Seja cauteloso, Rainulf. Não confie em ninguém.

Corliss estudou a expressão do professor, enquanto ele preparava o jantar. Nada falou enquanto comiam, até que pôs o garfo de lado e olhou com apreensão para ela. Respirou fundo.

— Quero que venha a Sussex comigo — declarou por fim. — Ao Castelo Blackburn.

— Ah, Blackburn... — Corliss lembrou-se de ele ter planejado uma visita a sua irmã, que não via havia tempos. — Quando? Vamos demorar?

— Na próxima semana — ele informou, servindo conhaque aos dois. — Ficaremos lá por quinze dias, talvez mais. Desejo estar com Martine até o nascimen­to de seu bebê.

Corliss quase engasgou com o líquido âmbar que se confundia com fogo a descer por sua garganta. Nunca tinha estado dentro de um castelo de verdade, nunca co­nhecera gente da estirpe de Thorne e Martine Falconer.

— Devo manter meu disfarce? — ela interpelou Rainulf.

— Somente enquanto viajamos. São dois dias de estrada. Quando chegarmos a Blackburn, você não correrá mais perigo e poderá usar saia de novo. O que acha disso?

— Já não tenho nenhuma saia — ela protestou.

— Martine lhe dará uma.

— Sua irmã e o marido dela sabem de mim?

— Não.

— Não ficarão chocados ao me ver chegando com você? — Corliss persistiu.

Ele sorriu, e como sempre a fascinou com sua bele­za viril.

— Não se preocupe com o que possam pensar. Meus parentes não ficam chocados à toa.

Desconcertada, ela mordiscou o lábio.

— E quanto aos meus compromissos com a sra. Clark?

— A sra. Clark não é sua dona. Simplesmente terá de se arranjar sem os seus serviços, por uma quinze­na. — Rainulf soergueu as sobrancelhas, deduzindo algo: — Você não quer ir?

— Serei uma hóspede ou... — Corliss tinha as faces escaldadas de calor. Desistiu de tomar mais conhaque.

— Ou o quê? — Rainulf riu, divertido. — Dormir no estábulo? Varrer o chão? É claro que será uma hóspe­de, pois estará comigo, e todos tratarão você como tal.

Ele foi examinar as chamas da lareira e ficou de costas para Corliss.

— É impossível deixá-la aqui, por ser perigoso. Ouviu o que Will Geary contou. Sir Roger sabe que você viria até mim, não entendo como, mas... — Balançou a cabeça. — Não posso deixá-la sozinha em Oxford. E preciso ir a Blackburn ver minha irmã. — Ele voltou-se para Corliss, denotando ansiedade. — Por favor, venha comigo. É a sua vida que está em risco. Se algo lhe acontecer...

Ela pensou por um minuto, porém a resposta já era sabida muito antes:

— Tudo bem. Irei com você.

 

Partiram na madrugada do dia primeiro de julho. Era frio para a época, o que agradou a Corliss, pela perspectiva de uma boa viagem. O céu estava nu­blado, mas felizmente não choveu até de noite, quan­do já tinham se instalado num mosteiro que fornecia hospedagem. Rainulf havia reservado dois quartos se­parados, porém eles foram cedidos a um bispo e sua comitiva, de passagem por ali.

— Não é tão ruim — comentou ele, desenrolando seu cobertor sobre a palha que recobria o chão da sala da abadia.

Corliss lançou um olhar rápido para o ajuntamento de indigentes, viajantes e desvalidos que dividiam aque­le espaço, dormindo apertados um contra o outro. O odor reinante não constituía surpresa. Os abrigados recen­diam como o que eram: pessoas que viviam e dormiam com as mesmas roupas por meses, sem tomar banho.

— Estenda sua coberta aqui — orientou Rainulf, indicando um estreito canto entre ele e a parede de pedras. Não precisou fitar Corliss para saber o que ela pensava: melhor deitar-se entre Rainulf e a parede do que entre homens estranhos, talvez perigosos.

Assim que terminou os preparativos, alguém apa­gou o único lampião pendente do teto. Corliss fechou os olhos e tentou pôr-se confortável. Permaneceu des­perta, e seus sentidos se concentraram na proximida­de de Rainulf: o calor de seu corpo, o murmúrio de sua respiração, sua presença...

Insone, ela procurou pensar em qualquer coisa, menos em Rainulf, deitado a meros centímetros dela. Acompanhou o som da chuva no telhado, depois a sin­fonia de roncos e tosses no salão.

A chuva cessou, e outro som a substituiu: um majes­toso canto que se mesclava à brisa da noite e invadia a sala através da pequena janela acima da cabeça de Corliss. Ela não tinha visto Rainulf levantar-se para contemplar sonhadoramente o espaço de onde vinha o som. Os olhos dele brilhavam com certa emoção que ela não pôde identificar: remorso, saudade, lembranças...

— Não consegui dormir — falou Rainulf ao vê-la de pé. — Isso é a prece da meia-noite, uma saudação ao novo dia, chamada de primícias.

— Canto admirável — ela opinou.

— Venha comigo. — Ele estendeu a mão e guiou-a por entre os corpos adormecidos, rumo à porta princi­pal. — Por aqui.

No momento em que alcançaram o pátio público do mosteiro, ela relembrou como Rainulf passara o dia relaxado, descontraído. O padre Gregory insinuara que ela era a responsável pela redução da melanco­lia do professor, mas ela achava que não tinha tanto poder. Simplesmente, o fato de sair de Oxford havia operado aquele pequeno milagre.

Ele a conduziu à enorme igreja e fechou a porta atrás deles. O cântico vicejou em torno de Corliss, as­sombrada com sua força. Também impressionou-se com a majestosa beleza do templo, repleto de monges encapuzados, iluminado por dezenas de velas ocultas atrás dos pilares.

Etéreo como um véu de seda, o canto ressoava em todos os vãos da igreja. Corliss nunca tinha ouvido nada igual: Rainulf soltou sua mão e passou o braço por seus ombros.

— Feche os olhos — murmurou. — Deixe que o som entre em você.

Ela obedeceu. Abriu seu mundo interior às dezenas de vozes que agora se uniam, cantando em uníssono, num coro celestial. Seu coração bateu mais forte, como que reverberando a música. Sentiu-se plena, elevada a um patamar de serenidade, êxtase e perfeição.

Logo acabou a cerimônia, e os monges saíram em fila para a sacristia.

— O que achou? — ele inquiriu, calorosamente.

— Foi... maravilhoso. Como o próprio céu.

Sem aviso, ele empurrou-a suavemente contra um pilar e pressionou seu próprio corpo no dela.

— O que você está... — A mão dele selou sua boca.

— Fale baixo — sussurrou. — O abade.

De fato, Corliss escutou passos abafados avançan­do na direção deles. Tão lentos que só poderiam vir de uma pessoa idosa. Ela mal conseguia respirar, com as costas apoiadas no mármore frio do pilar e a frente do corpo aquecida pelo atrito leve, mas constante, do pro­fessor. Sentiu-se mal e produziu um som de queixa.

Rainulf cobriu-lhe de novo a boca, porém seu pró­prio peito parecia indomável, subindo e descendo no curso de uma respiração ansiosa. Percebeu que tam­bém ele necessitava lutar para reaver a compostura. Um suspiro escapou, e Corliss de imediato levou a mão aos lábios dele. O absurdo da situação — cada qual tampando a boca do outro — produziu um riso incontrolável.

Ambos espiaram ao redor do pilar e viram o abade cruzando a nave da igreja no sentido da saída, aparen­temente alheio à presença ruidosa dos dois.

— Deve estar quase surdo — comentou Rainulf.

— Ainda bem — Corliss aduziu.

De mãos dadas, tomaram o mesmo caminho, aguar­daram o abade recolher-se a seus aposentos, e corre­ram pelo pátio, a rir como crianças travessas. A porta da hospedaria, Rainulf fitou o rosto de Corliss e des­cansou a cabeça no ombro dela. Faltava-lhe o fôlego, mas não o sorriso. Continuava de bom humor.

— Deveria envergonhar-se, Corliss — ele enun­ciou.

— O quê?

— Você exerce má influência sobre mim.

— Fale só por você — ela rebateu, ofendida.

— Nunca faria o que fiz com ninguém mais, salvo você. — Erguendo a cabeça, Rainulf acariciou-a na face com o dorso da mão. Passeou o olhar desde a vista até os lábios sedutores, visivelmente desejoso de beijá-la.

Ele moveu-se alguns centímetros para mais perto dela, entreabriu os próprios lábios e apagou o sorriso esperançoso. Então, recuou.

— Melhor tentarmos dormir um pouco. Amanhã te­mos outra longa cavalgada.

Ela apoiou a idéia, seguindo-o para dentro, porém calada.

 

No final da tarde seguinte, Corliss foi a primeira a avistar o castelo circular que se elevava à distância, acima dos bosques e campinas pelos quais viajava ao lado de Rainulf. Uma muralha de pedra, com torres de vigia e defesa, rodeava a construção, e, na mais alta, fora desfraldada uma bandeira.

— É Blackburn? — ela perguntou.

— Sim, é — Rainulf confirmou. — Teremos só mais uma parada antes de chegarmos.

— Outro mosteiro?

— Chama-se St. Dunstan — ele disse, sem saber se ela pretendia ou não ironizar. — O superior de lá, ir­mão Matthew, foi meu colega de escola. Vamos apenas cumprimentá-lo e seguiremos viagem.

Pouco depois, cruzaram o portal do mosteiro, onde um monge de cabelos negros os esperava.

— Como vai, Matthew? — Rainulf saltou do cavalo e deu um abraço no amigo.

— Estou bem. E feliz por revê-lo.

Corliss desmontou e quis passar despercebida, mas os olhos astutos do prior rapidamente se fixaram nela.

— Esse rapaz está com você? Mestres famosos ago­ra têm pajens?

— O nome é Corliss — explicou Rainulf, caindo em hesitação diante dos religiosos e servos que se reu­niam ali, curiosos. — E uma história complicada, mas Corliss é realmente...

Ele pretendia confidenciar tudo a Matthew e seu gru­po, quando um jovem monge gritou e apontou a estrada que ligava o Castelo Blackburn ao mosteiro. Um cavalei­ro vinha em disparada naquela direção, fazendo poeira atrás das patas de seu portentoso animal branco.

Matthew sorriu e balançou a cabeça.

— Thorne deve ter visto vocês e não pôde aguardar a chegada ao castelo. Ele é uma pessoa bastante im­paciente.

— Sim — Rainulf concordou. — Adiaremos a visita para outra ocasião, Matthew. — Ele caminhou até o portal e, com as mãos na cintura, esperou o cunhado.

O grande cavalo branco resfolegou e dançou um pouco, ao sentir o aperto nas rédeas. Por fim parou e Thorne Falconer pulou da sela, para envolver Rainulf num abraço entusiástico. Corliss ficou admirada com o tamanho de Thorne, ainda mais alto do que o professor e de ombros mais largos. Os longos cabelos castanho-claros e a túnica simples, quase humilde, sugeriam a imagem de um chefe de tribos bárbaras.

Tudo era bastante estranho nele, mas quando se dirigiu a Rainulf em inglês, perguntando se a viagem tinha sido boa, Corliss deixou cair o queixo. Raros no­bres falavam em sua língua nativa, dada a precedên­cia do francês, utilizado pelas classes governantes e também na corte.

— Martine está ansiosa por vê-lo, Rainulf, e prome­ti trazê-lo ao castelo imediatamente. Importa-se?

O professor trocou um sorriso com o prior do mos­teiro.

— Não vou desapontar Martine. — Ele montou e Corliss repetiu o gesto.

Os olhos azuis do barão pousaram curiosos em Corliss, enquanto os três trotavam lado a lado na es­trada para o castelo.

— Ouça, Rainulf— ele disse. —Surpreendeu-me o fato de você viajar com um pajem. O que aconteceu com sua famosa humildade?

O mestre Fairfax suspirou e relanceou um olhar tranquilizador para Corliss.

— Corliss é... um amigo, não um criado.

— Corliss? — Thorne a observou com ceticismo.

— Não é nome de mulher?

— Nem sempre, milorde — ela rebateu, serena. — Pode ser tanto masculino como feminino.

— Dispense o tratamento cerimonioso, rapaz. Ami­gos de Rainulf devem me chamar de Thorne.

— Obrigado. — Ela vinha torcendo para que Rainulf contasse a verdade, o que garantiria uma visita sem percalços. Mas o nobre saxão inclinou-se na sela e deu um leve murro no braço do professor.

— Quem diria! Você não é mais um padre! Não estou totalmente convencido de que se libertou dos votos.

— Eu também não — retrucou o professor.

— Talvez seja porque todos gostam tanto de você. — Thorne voltou-se para Corliss: — Ele é capaz de resolver problemas inimagináveis. E seu encanto lhe propiciou favores especiais na vida. — A voz dele ga­nhou um tom conspiratório. — Especialmente com o belo sexo.

Corliss empertigou-se sobre o cavalo.

— É verdade?

— Sim. — Thorne riu mansamente. — Tinha a re­putação de ser um grande espadachim, no tempo da universidade.

— Espadachim? — Corliss franziu a testa.

— Na cama... — A risada do barão se avolumou.

— Thorne! — recriminou Rainulf.

— Bem, não soube dele desde então. Reencontrei-o quando foi acorrentado perto de mim, numa prisão do Oriente. Depois de um ano, a rainha Eleanor pagou resgate e nos libertou. Voltamos para casa por terra, pelo vale do Reno, e então Rainulf me confidenciou suas aventuras amorosas...

— Thorne! — ele enfatizou seu mal-estar. — Existe algo sobre Corliss que você precisa saber...

— Mais tarde! — ela atalhou, ciente de que jamais ouviria as histórias picantes sobre Rainulf se o barão descobrisse nela uma mulher. — O que ocorreu na re­gião do Reno?

Thorne aceitou responder, com um sorriso nos lá­bios.

— Existia uma camponesa que nos permitiu dormir em sua casa. Não me recordo do nome... — Ele obser­vou o cunhado por cima do ombro. — Você se lembra?

— Sigfreda — Rainulf declarou, mantendo o olhar à frente.

— Sim, é isso. Adorável. Cabelos louros da cor do trigo. Tínhamos aprendido na cela a falar alemão, o suficiente para nos comunicarmos com Sigfreda. Acontece que seu marido havia morrido numa cruza­da. Estava solitária e carente. — Thorne encolheu os ombros. — Ficamos lá por duas noites. Na primeira, dormi no sótão e Rainulf dividiu a cama de casal com Sigfreda. Já na segunda, invertemos: ele ocupou o só­tão e eu dormi com Sigfreda.

— Ah! — Corliss exclamou, ante o inusitado relato.

— O principal detalhe é que, na primeira noite, ouvi sons assombrosos vindos do aposento de baixo.

— Thorne! — Rainulf voltou a protestar.

— Mais assombrosos ainda por causa de minha inexperiência no assunto. Fui um jovem pio e casto até empunhar a cruz contra os infiéis. Dois anos de batalhas e de prisão me curaram de minha piedade, mas a castidade permaneceu intacta. Fiquei acorda­do por longos minutos, escutando suspiros e gemidos. Depois, os gritos altos de Sigfreda.

— Gritos? — Corliss olhou de relance para Rainulf, cujas orelhas estavam rubras.

— Repetidamente — Thorne explicou. — Sigfreda reagia de maneira alarmante. Pensei que Rainulf ti­nha enlouquecido e tentava matar a parceira. Depois, dei-me conta de que ela apenas desfrutava o prazer. Com uma intensidade que me impressionou.

Dirigindo-se ao cunhado, reclamou de que Rainulf havia estragado aquela mulher, acostumando-a mal.

— Na noite seguinte, na minha vez, ela só falava de você, de seu vigor, de suas mãos feiticeiras...

Um vago ar de surpresa derrubou as defesas do professor.

— Eu sabia que logo iria fazer o voto de castidade, então aproveitei a ocasião. Estava inspirado.

— Bem, sua inspiração foi minha ruína — Thorne pontificou. — Nunca havia estado com uma mulher, e me julguei incompetente por não fazer Sigfreda gri­tar como você conseguiu. Ela me assegurou que meu desempenho era correto, mas não tão correto quanto o seu. Quando lhe contei que você tomaria os votos clericais, ela caiu em pranto. — Para Corliss, ele acres­centou: — Reação compreensível, entende? Soube que várias damas de Paris usaram luto quando Rainulf se tornou padre.

Entre os dois homens, Corliss teve dificuldade em conciliar seus pensamentos. Certos aspectos da ane­dota lasciva a confundiram. Não fazia sentido, para ela, uma mulher gritar durante o ato sexual, mas uma coisa se tornara clara: a imagem de um Rainulf virginal estava apagada em definitivo.

— Não imaginava que o mestre Fairfax constituís­se uma lenda — ela falou com forçada malícia.

— Perfeito. Lenda é a palavra certa — comentou Thorne. — Agora que ele renunciou aos votos, talvez a lenda possa ganhar continuidade. O que diz, Rainulf? Está pronto a escravizar as damas de Oxford, como fez com as de Paris?

— Escravizar? — Ele estranhou o termo.

— Você lhes escravizou os corações, só para parti-los tornando-se padre.

— Ridículo. — Foi a reação do professor.

— Nem tanto — retomou Thorne. — Ouvi muito so­bre você na corte da rainha em Paris, antes de voltar à Inglaterra. As mulheres falavam de seu poder de se­dução, de sua paixão oculta sob as vestes acadêmicas. Confessavam que haviam se entregado a você mesmo sabendo que não as amava. E perguntavam-me por que um homem assim desejava ser padre. Então, choravam.

— Espero que as tenha confortado. — Rainulf iro­nizou.

— O que mais eu poderia ter feito? — Thorne res­pondeu à altura, e ambos riram deliciados, despertan­do em Corliss uma reflexão:

— Não conheço Rainulf. Ou o conheço muito mal.

As patas dos cavalos ressoaram sobre a ponte leva-dica, e Corliss engoliu em seco, deslumbrada pela suntuosidade do Castelo Blakburn. O pátio externo, antes da muralha, lembrou-lhe Cuxham, pelas estruturas de pedra. Já no lado interno revezavam-se canteiros dotados de árvores frutíferas, plantas comestíveis e ornamentais. No limite dos jardins, via-se um enorme ninho, também feito de pedras, que Thorne identificou como sendo a casa de seus falcões.

— Aves de rapina vivem ali dentro? — Corliss in­dagou, descrente. A construção era tão ampla quanto o quarto de uma mansão.

Rainulf riu e esclareceu:

— Os falcões de Thorne são como bebês para ele. Daria a vida pelas aves.

— Não, eu vivo para Martine — o cunhado refutou em timbre caloroso, íntimo demais para suscitar res­posta. — Crio falcões somente como diversão.

Assim que desmontaram, após passarem pela gua­rita, Rainulf reteve Thorne pelo braço.

— Existe algo sobre Corliss que ainda não tive a chance de lhe contar.

— Algo sobre Corliss? — o cunhado alarmou-se. — O rapaz é virgem? Delicado demais para ouvir his­tórias a respeito de Sigfreda?

— Ele... o rapaz, na verdade, é ela, uma jovem mu­lher. Delicada por natureza.

O gigante saxão, incrédulo, examinou Corliss da cabeça aos pés. Ao encontrar o olhar dele, ela sorriu com largueza e deu de ombros.

— É verdade, milor... quero dizer, Thorne.

— Por que não me contou antes? — Ele se aborre­ceu com o cunhado.

— Tentei, mas você estava empolgado, relatando os gritos de êxtase de Sigfreda.

— Rainulf! — Thorne horrorizou-se com a imprevis­ta presença de uma mulher ali. — Devo me desculpar?

— Ela já escutou tudo — rebateu o professor. — De sua própria boca. Agora é tarde para se preocupar com a sensibilidade feminina de Corliss.

— Sensibilidade feminina de quem? — Todos se voltaram na direção da voz suave, que pertencia à mu­lher no topo dos degraus da entrada.

Era Martine Falconer, Corliss concluiu. Tinha a es­tatura do irmão, cabelos claros e excelente aparência. Usava uma tiara de prata, mas nenhum véu, e as duas trancas desciam até o ventre crescido, uma de cada lado.

Corliss nunca havia visto uma grávida. Principal­mente alguém que, como Martine, segurasse um gato preto na curva do braço. A volumosa túnica de seda azul teve a barra erguida por delicados dedos, de modo a per­mitir-lhe a descida da escada com graça e elegância.

Thorne correu a fim de tomar o braço da esposa, seguido de perto por Rainulf, que a beijou nas duas bochechas.

— Está maravilhosa — ele opinou. — Cheia de saú­de. — De fato, os profundos olhos azuis faiscavam, o rosto brilhava de felicidade.

— Pareço uma matrona que engordou demais — disse Martine, rindo, em idioma inglês, mas com forte sotaque normando-francês.

Rainulf estudou a barriga da irmã com óbvio deslumbramento.

— Não, você parece...

Ela riu de novo e afagou o gato.

— Gorda. Pode falar.

— Está linda, mais bonita do que nunca — ele re­bateu com convicção.

Corliss sentiu uma irracional pontada de ciúme, a despeito do fato de Martine ser a irmã de Rainulf.

Talvez fosse a feminilidade, a gravidez, e a reação dele que tivessem desnorteado Corliss. Ela observou sua roupa empoeirada e tomou consciência da tolice que tinha sido adotar trajes masculinos e tosar os cabelos que antes chegavam à cintura.

— Então, qual sensibilidade meu marido feriu? — Lady Falconer sorriu ao perguntar. — Quem ele insultou agora?

— Corliss. — Mas Rainulf exprimiu-se com ambigüi­dade e chamou a jovem para perto de si, com a intenção de apresentá-la formalmente. — Espero que você não se importe com uma pessoa a mais, como visitante.

— Claro que não.

— Agradeço muito, milady. — Corliss mostrou-se alvo de timidez.

— Apenas Martine — corrigiu a jovem baronesa grávida, parecendo um tanto confusa. — Creio que ouvi mal. Pensei que Rainulf tivesse falado algo sobre sensibilidade feminina.

Thorne inclinou-se e sussurrou no ouvido de Martine, após o que, ela arregalou os olhos no sentido de Corliss. O gato preto saltou do braço dela, sem cau­sar-lhe reação.

— É verdade — emendou Corliss. — Talvez Rainulf devesse ter lhe escrito com antecedência.

— Absurdo. — Martine esticou as mãos para ela, que subiu os degraus a fim de tomá-las. — Estou feliz por ter você aqui, apenas um pouco desacostu­mada... — Ela fitou o irmão com ar provocativo. — Desacostumada de ver Rainulf com uma mulher por companhia.

— Não julgue pelas aparências — pediu ele.

— Certamente. — Martine analisou, divertida, as feições e as curvas de Corliss.

— Quero dizer, nós não estamos... — Rainulf omi­tiu o resto da frase. — Corliss mora comigo em Oxford, é tudo.

Thorne e Martine trocaram olhares e sorrisos. O saxão moveu-se e veio bater nas costas de Rainulf.

— Não consigo me expressar direito — lamentou-se o professor.

— Terá tempo suficiente para explicar-se após o jantar — ponderou sua irmã. — Por enquanto, você e Corliss descansem da viagem. Vou lhes mostrar os quartos. Separados. — Ela riu interiormente.

Uma vez sozinho, Rainulf despiu-se por completo e deitou-se na grande cama que lhe coubera. Recobriu a face com um braço, porque a imagem de Corliss havia se materializado diante dele: a Corliss transportada pelo cântico dos monges, de olhos cerrados, os lábios levemente entreabertos, a cabeça inclinada para trás. Ele a imaginou jazendo debaixo de seu corpo, que rea­giu com uma ereção. A suspirar, ele levantou-se, ver­teu água fria numa tina, apanhou uma barra de sabão e lavou-se vigorosamente da poeira da estrada.

Enquanto se secava, ouviu vozes abafadas, não no corredor, mas procedentes de outra porta, que ele su­pôs pertencer a um quarto de vestir ou uma alcova. Recolocou sua calça e foi abrir o aposento adjacente, para tirar a dúvida.

— Qual deles? — Pela fresta, Rainulf viu um brilho de seda púrpura, e outra verde, que Martine levanta­va nas mãos, indecisa sobre qual roupa recomendar.

Então, ele escutou o chapinhar de água e abriu a porta um pouco mais, com o coração acelerado. A pálida fração de um corpo feminino — o de Corliss — tornou-se visível. Ela permanecia de pé dentro da tina, enquanto alguém derramava água sobre sua pele. Rainulf viu, estremecido, Corliss erguer o braço e esfregar a parte de trás do pescoço. Viu ainda o suave contorno de um seio, a curva dos quadris...

Outra mulher falou algo, e ele reconheceu a voz da criada pessoal da irmã, chamada Felda.

— Escolha o vestido púrpura, lady Corliss. Ele lhe cairá muito bem, e posso ajustar o que for necessário.

Em cauteloso e silente movimento, Rainulf fechou a porta e reclinou a cabeça contra a fria madeira po­lida. Liberou o ar que só então percebeu que vinha retendo nos pulmões.

Corliss recebera um quarto interligado ao dele. Não podia ser coincidência. Martine e Thorne tinham de­duzido que eram amantes. Quiseram agradá-lo com um arranjo discreto: quartos separados, mas adjacen­tes, em nome da respeitabilidade.

Ele ouviu a risada gentil de Martine e outra, mais escandalosa, de Felda. Sem dúvida, pensavam que Corliss freqüentava a cama dele e tinha de estar bo­nita. Mais do que bonita. A visão parcial de seu corpo molhado, a pele luminosa e quente de vapor, a força de sua graça, levaram-no a desejá-la intensamente, transformando em verdade uma simples suposição.

Idiota!

Em seu próprio aposento, Rainulf terminou de ves­tir-se, calçou as botas e partiu para os estábulos do castelo, a fim de escolher um cavalo entre os enormes garanhões que Thorne criava. Cavalgaria até que seus ossos, músculos e mente ficassem cansados demais para ele pensar em outra coisa que não fosse o jantar e uma noite de sono.

 

Pigot sabia que algo andava errado. Ele não via Rainulf Fairfax nem seu hóspede já fazia dois dias, e isso o punha nervoso.

A criada ainda cozinhava e limpava a grande casa da St. John Street. Os dois estudantes que a freqüen­tavam, como se fosse deles, continuavam indo e vin­do, embora tivessem cessado de levar prostitutas ali. Fairfax devia ter descoberto a prática e colocado nela um ponto final. Mas tanto ele como Corliss haviam sumido de vista.

Teria Fairfax descoberto que ele estava à esprei­ta? E se sua presa, Constance de Cuxham, já viajasse de navio rumo à Normandia, ou fosse escoltada até a Escócia?

De qualquer modo, encontrará seu fim, vaticinou Pigot com maldade explícita. Ele observou que, pela porta aberta da casa, a velha criada emergia. Recolocou no rosto sua máscara de leproso: um saco de linho cru com buracos para um olho e a boca. Seguiram-se as lu­vas encardidas, nas mãos que seguravam uma caneca de lata, destinada a mendigar moedas.

Calçando botas desconfortáveis, maiores que seus pés, ele saiu da viela, a seguir a governanta de Rainulf pela St. John Street. Na esquina da Shidyerd Street ele emparelhou-se com ela e a abordou.

— Senhora, por favor. — A entonação soou grave, cavernosa.

Luella o fitou e levou a mão ao peito, assustada.

— Sim?

— Uma esmola para uma alma amaldiçoada? — Pigot apresentou a caneca.

Com um esgar, ela pescou um penny dentro da bol­sa e jogou a moeda dentro do recipiente, produzindo um som metálico.

— O mestre Fairfax costuma me dar dois — Pigot protestou.

— O padre lhe dá dinheiro? — Luella franziu a testa. Padre?

— Todos os dias.

— Então — ela plantou as mãos na cintura —, como não o vi antes por aqui?

— Usualmente, fico na porta da igreja de St. Mary, onde encontro o padre Rainulf. Mas ele não tem pas­sado mais por lá, e vim procurá-lo. — O homem fez tilintar a moeda dentro da caneca.

— Bem, o padre é generoso demais, o que lhe será útil um dia, quando ficar velho e doente. Agora, vá andando.

Ela virou-se para se afastar. Pigot tomou-lhe o bra­ço e Luella gritou, recuando para forçar sua liberação. Examinou o ponto de contato, com um misto de medo e fúria.

— Não podia me tocar! Agora terei de queimar esta blusa!

— O padre Rainulf sempre me dá dois pence — in­sistiu Pigot.

— Ele não está aqui, mas eu, sim. Dou um penny aos pedintes, quando muito. Suma!

— Preciso da esmola do mestre Fairfax. Vou espe­rá-lo nesta esquina.

— Será uma longa espera. Ele foi visitar a irmã em Sussex e só voltará em quinze dias.

— Em que lugar de Sussex?

— Não é possível! — Luella zombou, aflita. — Por que quer saber? Suma antes que eu ponha a polícia atrás de você.

Pigot deixou-a seguir caminho, intimamente orgu­lhoso de sua inteligência. Na primeira viela, remove­ria seu disfarce de leproso.

Era crível que Rainulf visitasse a família, mas tam­bém podia estar escondendo em Sussex ninguém me­nos do que Constance de Cuxham. Restava-lhe pesqui­sar onde moravam os parentes de Fairfax, mas caso ele se achasse ali, desacompanhado, a viagem seria inútil, além de expô-lo ao perigo. Caso não estivesse, prova­velmente teria tomado um navio para o exterior, junto com sua amante. Ainda assim, o deslocamento até ou­tra região representaria perda de tempo. Ele não fica­ria mais perto de seu alvo. Por isso, desistiu da jornada. O passo mais prudente, agora, seria aguardar o retorno do professor. Se a desprezível meretriz voltasse junto com Rainulf, ele agiria no momento em que ela ficas­se sozinha. Caso contrário, ele a encontraria de algum modo. Para isso servia sua persistente vigilância.

Guardou no bolso a moeda que ganhara. Aquela tarde não tinha sido infrutífera, mesmo que em grau reduzido. Ele pouparia duas semanas de espionagem desnecessária e... havia obtido um penny. Pensou em gastá-lo com bebida, porém mudou de idéia e introdu­ziu a moeda em sua bota. Talvez lhe desse sorte.

 

Peter fitou Rainulf como se este tivesse enlouque­cido.

— Você saiu para cavalgar?

— Acaba de passar dois dias sobre um cavalo — ar­gumentou Guy.

O professor encolheu os ombros e secou o copo de conhaque que precedia suas refeições, enquanto os dois cavaleiros do reino trocavam olhares significati­vos. Estavam todos sentados no pátio externo, sob um toldo, defronte ao salão principal do castelo.

Na aparência, os ilustres hóspedes eram opostos en­tre si. Peter, alto e de traços nórdicos, tinha madeixas louras que resvalavam em suas costas. Já Guy, de bai­xa estatura, usava seus cabelos negros em corte curto, com a cabeça quase raspada no estilo normando.

No que realmente importava, mostravam-se bas­tante parecidos. Ambos partilhavam uma consumada maestria nas artes da guerra e uma lealdade férrea a seu amigo e senhor, Thorne Falconer. Este insistia para que eles, como todos os seus servos e vassalos, falassem em francês, ainda que com sotaque.

A direita de Rainulf, o barão pediu-lhe que enches­se seu copo. O professor pensou em negar a bebida forte, pois Thorne estava de estômago vazio. Acabou cedendo e completou o copo dele até a borda.

— Rainulf é um intelectual — aduziu o barão. — Ele não sobe a uma sela da mesma maneira que nós. Alguma questão filosófica o levou a cavalgar, sem preo­cupação com o traseiro dolorido.

Peter e Guy riram. Rainulf sorriu polidamente e molhou a garganta com nova dose de conhaque. Em seguida, Guy deu uma cotovelada em Peter e os dois olharam por sobre o ombro do professor, entre maravilhados e respeitosos. Thorne seguiu a mesma linha de visão e deparou com a causa da agitação: Martine estava parada à beira da cisterna, na companhia de outra mulher, luxuosamente vestida, e de um pajem.

— Bem, mestre, você tem excelente gosto, afinal — Thorne elogiou o cunhado. — O que eu pensava ser uma pedra bruta tornou-se uma gema preciosa.

Quando Rainulf deu-se conta de que a segunda mulher era Corliss, o copo vazio caiu de suas mãos e rolou no chão. Sem tirar os olhos da jovem luminosa, vestida de púrpura, ele agachou-se a fim de recolher o recipiente. O casquete que encimava os cabelos dela tinha filigranas douradas, e a faixa na cintura seguia os últimos ditames da moda de Paris.

Aquele laço apertado realçava as curvas de Corliss, curvas que raramente ele pudera admirar. O corpete sob o vestido revelava muito da forma de seus seios, altos e firmes. Do busto feminino, sua vista desceu para a região das nádegas, acentuadas pela fita ab­surdamente justa.

Era inquestionável que se tratava de uma bela fê­mea. Não pela primeira vez, ele assombrou-se com a ha­bilidade de Corliss em fazer-se passar por um homem.

Martine lavou as mãos numa bacia disponível na borda da cisterna. Rainulf notou que Corliss observa­va intencionalmente tudo o que sua irmã fazia, até mesmo a maneira como arregaçava as mangas da roupa e girava nos dedos a barra de sabão. Por um único momento, quando viu água correr da torneira, reabastecendo a bacia, ela perdeu a compostura. Os olhos dela se arregalaram e um sorriso deliciado mar­cou-lhe a face. Água corrente, fornecida por uma caixa no telhado e um complexo encanamento, era algo que ela nunca havia visto, uma extraordinária inovação adotada no Castelo Blackburn.

Imitando Martine, Corliss dobrou suas mangas e quis experimentar a água da torneira, que caía direta­mente na pia de pedra, esculpida com cabeças de leão.

Agiu com a naturalidade de quem fingia conhecer bem o sistema. Ao se debruçar sobre a fonte, seus seios des­tacaram-se contra a fina seda do vestido, como que li­bertos do confinamento. Ou era a ilusão de um homem, fortemente erotizado? Rodando nos dedos o copo recu­perado, Rainulf refletiu se tinha sido uma boa idéia trazer Corliss a Blackburn.

— Quem é ela? — perguntou Peter, interessado. Péssima idéia. Mas foi Thorne quem adiantou-se e respondeu:

— Ela é Corliss de Oxford. Veio com Rainulf.

Guy voltou-se para o amigo, com um comentário ácido:

— Parece-se muito com lady Magdalen. A reação de Peter foi inesperada.

— Já lhe pedi para não falar dela — ele disse rispidamente.

Thorne julgou-se devedor de uma explicação ao cunhado.

— Foi uma grande tragédia. Eram noivos prometi­dos desde a infância, e ele a amava com loucura. Em março, ela morreu de catapora.

— Santo Deus! — exclamou o ex-padre. Parecia que Cuxham não fora o único lugar da Inglaterra afetado pela maldita doença, na última primavera. Rainulf re­cordou-se da devastadora tristeza que sentira ao saber da suposta morte de Corliss, então Constance, ainda que na época a conhecesse superficialmente. Imaginou a grandeza da perda de Peter.

— Ele não tem sido o mesmo, desde então — falou Thorne em tom confidencial.

Peter aparentava melancolia, Rainulf admitiu, até o instante de pousar a vista em Corliss, quando seu desgosto pareceu ir embora. O professor buscou com os olhos a jovem que havia cativado o triste cavaleiro. Naquele momento, ela aceitava a toalha entregue pelo pajem e, enquanto secava as mãos, examinava o am­biente em torno de si.

Rainulf observou sua conduta. Ela focalizava o gran­de saguão do castelo, a partir do pátio em que se encon­trava, como se o visse pela primeira vez. Era um sa­lão magnífico, circular como o restante da construção, lindamente rebocado com cal e dotado de teto bastante alto. Incluía uma espécie de galeria, da qual partiam escadas para o pavimento superior. O pavimento esta­va recoberto com magníficos tapetes, alguns deles de origem sarracena, fortemente coloridos, presentes da rainha Eleanor quando sagrara Thorne como barão.

Mas o principal atrativo do salão consistia nas ja­nelas arqueadas, em tamanho e número incontáveis. Corliss ficou boquiaberta pelo fato de todas as jane­las serem envidraçadas, algo que ela aparentemente jamais vira fora de uma catedral. Cada qual contava com cortinas brocadas, em tom verde-claro, no painel de madeira. E, ainda mais extraordinário, tais janelas podiam ser abertas, como acontecia naquele momen­to, revelando o brilhante crepúsculo alaranjado que se formava no horizonte.

Sem alarde, quase mecanicamente, ela entrou e foi seguida pelos outros. Rainulf instalou-se à frente da lareira, a maior que ela já conhecera. Um fogo baixo ali crepitava. Na sala anexa ao aposento, havia mesas já arrumadas para o jantar dos serviçais, que comiam antes de seus amos, a fim de ficarem livres para aten­dê-los durante a refeição.

Ela percebeu a expressão de diversão de Rainulf, diante de seu assombro com todo aquele luxo. Antes de abordá-lo, porém, ouviu a voz de Martine.

— Ela veio com você, Rainulf? — perguntou sua irmã, sem necessidade, pois já conhecia a história.

O mestre Fairfax confirmou, enquanto mantinha o olhar em Peter, pressentindo seu desapontamento. O cavaleiro então o inquiriu, em tom baixo:

— Corliss é sua aman...

— Não — ele cortou. — Estou lhe dando prote­ção contra alguém que deseja machucá-la. É apenas uma... amiga.

— Claro, uma amiga — Thorne ironizou, com os olhos faiscantes.

No retorno da cavalgada, Rainulf havia se reunido com Thorne e Martine, sozinho, e explicado a situação. Mas pedira que guardassem sigilo sobre os detalhes. Por essa razão, somente sua irmã e o cunhado esta­vam a par da origem humilde de Corliss e do acordo para um convívio casto em Oxford. A despeito disso, Thorne e Martine continuavam pensando que Corliss era amante de Rainulf.

Ele a viu a entreter conversas com alguns criados e, depois, com os convidados de alta linhagem. Escutou seu riso franco e sentiu orgulho dela, bem como um vago desconforto pela sociabilidade de Corliss.

— Ela é livre para se casar? — Peter acercou-se do professor.

Livre! Rainulf estudou o bonito cavaleiro que, a jul­gar por sua expressão, era completamente sério.

— Não possui nenhum dote — ele informou a Peter.

— Mas não preciso de dote. Thorne garantiu-me um bom futuro. O que desejo saber é se ela tem mari­do em algum lugar.

— É viúva — Rainulf acrescentou.

— E não está prometida a outro?

— Não. — Ele exibiu um esgar e balançou a cabe­ça enquanto o pajem enchia seu copo com conhaque. — Não que eu saiba.

Martine, Corliss e mais algumas senhoras, con­vidadas para o jantar, aproximaram-se da mesa. As recém-chegadas eram seguidas por seus respectivos acompanhantes. Peter sorriu e fixou o olhar em Corliss, procurando transmitir alegria. Ele e os outros, já senta­dos, levantaram-se em sinal de respeito às damas, até que elas se acomodassem.

Martine apresentou formalmente "lady Corliss" aos cavalheiros e providenciou para que ela ficasse ao lado de Rainulf. Este notou, feliz, o sorriso aliviado dela ao aceitar sua proximidade como fonte de conforto na­quele lugar estranho.

Ela ajeitou o vestido de seda e ergueu o queixo alti­vamente, como Rainulf lhe havia ensinado. Um aroma quente, evocativo, perfumava sua pele. Era uma fragrância exótica, talvez preparada com ervas raras, e o resultado se tornava instigante, enigmático, lembran­do a Rainulf as terras do Oriente.

Martine parecia satisfeita, fitando o irmão como se perguntasse: Bem, o que achou de minha obra? Claro, ela havia vestido e adornado Corliss especialmente para ele. O perfume inebriante devia ser uma das obs­curas preparações herbais de Martine. Havia mais: as safiras que rodeavam o pescoço de Corliss, os finos anéis de ouro que brilhavam em seus dedos, um aro prateado que lhe enfeitava o alto da cabeça.

Sorrindo polidamente, Rainulf levantou de leve seu copo em saudação à irmã, reconhecendo-lhe a habili­dade de transformar — como Thorne dissera mesmo? — uma pedra bruta em gema preciosa.

— Milady? Lady Corliss? — Peter chamou após cla­rear a garganta, no momento em que o pajem servia vinho a ela.

Corliss abaixou sua taça devagar, com ar de sur­presa.

— Desculpe-me, sir Peter. Não percebi que falava comigo.

Ele devolveu o sorriso que Corliss exibia como pe­dido de perdão.

— Em toda esta mesa — falou Peter —, só consigo ver você, pois sua beleza ofusca qualquer outra pessoa.

Ao escutar isso, Rainulf tomou sua bebida de um só gole.

Corliss viu Rainulf entregar dois livros à irmã e, depois, circundar a mesa a fim de retomar sua cadei­ra. Fingiu interesse quando Martine vibrou de alegria com os presentes, porém conservou o canto do olho em Rainulf.

Ele estava bêbado. Mal tocara na comida e, agora, desprezava também o bolo da sobremesa, trocando o conhaque por vinho. Com freqüência, Corliss vira ho­mens beber em excesso, mas nunca Rainulf Fairfax, Conhecido crítico da embriaguez alheia. Ele havia passado o jantar inteiro equilibrando-se no lugar, dando a impressão de que se embebedava de propósito. Estranhamente, ela parecia ser a única pessoa à mesa que se apercebera da condição do professor, cala­do enquanto se desenvolvia uma viva conversação entre os demais convidados. Seus movimentos eram lentos, à procura de uma precisão que enganasse os outros.

Mas não Corliss. Talvez por sentar-se ao lado do mestre Fairfax, ela notava seus gestos deliberados para parecer normal. Ou talvez começasse a conhe­cê-lo bem, tornando-se incapaz de ser iludida por sua falsa sobriedade.

— Com licença, milady? — Peter a encarou. — Sei que está fatigada pela viagem, mas permita-me con­vidá-la para me acompanhar num treinamento de falcoaria, amanhã à tarde.

— Falcoaria? — Ela viu os nós dos dedos de Rainulf ficarem brancos, por causa da força com que apertou a taça de vinho. — Nunca fiz... não sei como lidar com falcões.

— Ah, eu lhe ensinarei tudo que necessita saber. E o barão fornecerá uma luva comprida, estofada, e uma boa ave. O que me diz, Thorne? Você dispõe de um pe­queno falcão para milady aprender a caçar?

O olhar divertido do saxão recaiu sobre Rainulf an­tes de focar em Corliss.

— Tenho um adorável filhote que lhe servirá bem, milady — falou Thorne. — E manso, até farejar uma presa. Então, mostra sua verdadeira natureza. Falcões precisam de carne como de ar para respirar...

Thorne engoliu seu último bocado de bolo e limpou as mãos. Suas novas palavras visavam Rainulf, obvia­mente, embora este já não olhasse para aquele.

— Ninguém consegue domar suas necessidades para sempre. É possível simular, por algum tempo, que elas não existem. Mas a natureza humana des­carta o fingimento e, no fim, impõe a satisfação dos desejos mais prementes. Inviável resistir.

Rainulf inquietou-se, enquanto Thorne se dirigia a Corliss:

— O filhote chama-se Guinevere, o nome da rainha de Arthur. Vou apresentá-lo a você amanhã.

Ao murmurar um pedido de licença, Rainulf levan­tou-se e, por um momento, teve de segurar-se na borda da mesa. Ele circulou o olhar por todos, até pousá-lo em Corliss. Deu a impressão de querer falar algo, mas calou-se. Sob a névoa que cobria os olhos dele, devida ao excesso de vinho, ela viu um traço de ansiedade, até de horror.

Sim, o professor detestava ficar bêbado. Causava-lhe temor. Em passos lentos, ele deixou o salão. Corliss optou por não segui-lo.

— Joga xadrez, milady? — Peter perguntou-lhe.

— Não, nunca aprendi. — Ela concentrou a atenção em Rainulf, que, cambaleante, subia os degraus.

— Nesse caso, ficarei honrado se me permitir ensi­nar-lhe.

— Esta noite? — Distraída, ela constatou que, na curva da escada, o mestre Fairfax havia sumido do alcance de sua vista. Só então prestou mais atenção a Peter.

— Bem, poderia ser hoje mesmo, caso não esteja exausta da viagem — disse o cavaleiro.

— Infelizmente, estou. — Ela ergueu-se da cadeira e todos os homens presentes se levantaram, em gesto de apreço. — Mais cansada do que imaginei. Sinto retirar-me tão cedo, mas...

— Claro — Peter apoiou. — Deixe-me acompanhá-la na escadaria.

— Não se incomode, ficarei bem.

— Mas...

— A que hora nos veremos amanhã, sir Peter?

— Ah. — Ele ficou satisfeito com seu progresso. — Após o almoço? Na casa dos falcões?

— Estarei lá.

Depois de um apressado cumprimento geral, Corliss alcançou os degraus iluminados por tochas. A meio ca­minho, na curva, deparou com Rainulf sentado na pe­dra fria, recostado na parede.

— Oh, Rainulf. — Ela ouviu um grunhido da parte dele. — Vou ajudá-lo. — Tentou erguê-lo pelas axilas, porém o professor safou-se e colheu suas mãos.

— Estou bem — disse em voz rouca. — Apenas não me levante.

— Você está bêbado e não pode ficar aqui, exposto a um vexame. — Corliss repetiu a tentativa de socor­rê-lo, mas ele resistiu e empurrou-a para baixo, pelos ombros, até vê-la de joelhos sobre o degrau inferior, encurralada entre as pernas dele.

— Posso ficar onde quiser — protestou.

— Vamos, vou levá-lo até o...

— Pare com isso! — Nunca ela o ouvira tão mal-hu­morado nem o avistara tão sem esperança. A pressão manual nos ombros continuou.

— Rainulf, por favor... — Corliss modulou a voz num timbre gentil.

— Não! — Com os movimentos rudes do professor, a alça direita do vestido dela saiu do lugar e o ombro ficou exposto.

Lentamente, a mão de Rainulf moveu-se até a pele nua de Corliss e acariciou-a, porém ele conservou um ar de mistificação, como se outra pessoa a tocasse. O polegar deslizou pelo pescoço esguio, repetidas vezes, roubando o fôlego dela. Corliss sentiu-se atordoada.

Fez o corpo oscilar em sincronia com o balanço do cor­po de Rainulf.

Então, a expressão dele tornou-se sóbria e a mão que a afagava recolocou a alça do vestido no lugar, ajei­tando a manga cuidadosamente. Afinal, o que Rainulf pretendia?

A resposta não tardou. Ele cerrou as pálpebras e utilizou as mãos para estreitá-la contra si, num con­tato vigoroso. Acomodou o queixo sobre a cabeça de Corliss. Ela julgou escutar seu próprio nome e, depois, algo como "sou um idiota", enquanto os braços dele a enlaçavam com sutil desespero.

Ela então o abraçou também e pousou o ouvido no peito dele, escutando o errático batimento do coração, sob a túnica de lã.

— Calma... — sussurrou. — Você está apenas em­briagado.

— Foi bobagem eu me embebedar — Rainulf con­trapôs.

— Não é pecado mortal. Todos se excedem, algum dia.

— Mas é odioso, detestável — ele condenou-se.

— Sim, eu sei. — Corliss moveu a cabeça para cima e o encarou. — Mas você se sentirá melhor se deitar na sua cama. Feche os olhos enquanto eu o ajudo. Aposto como vai funcionar.

Rainulf esboçou uma negativa, porém Corliss ocluiu as pálpebras dele com os dedos e forçou-o a levantar, puxando-o novamente sob os braços. Ele apoiou a cabe­ça no ombro amigo e obedeceu às instruções para ven­cer os degraus restantes. Uma lamparina permanecera acesa no quarto, o que facilitou o acesso. Usando o pé, Corliss fechou a porta atrás dos dois.

— Por aqui. — Ela agora o conduzia até a grande cama, onde o fez deitar-se de costas. — Você precisa ficar confortável.

Sentada perto dele, ela removeu-lhe as botas e de­pois alcançou o cinto da calça. Hesitou. Rainulf seguia de olhos fechados, a cabeça caída de lado no travesseiro. Mordiscando o lábio, ela tentou abrir a fivela do cinto grosso de couro, em vão. Parecia fabricada de um modo estranho, com o qual não conseguia atinar. Naquele instante, sentiu o olhar de Rainulf sobre ela e corou. Com um leve sorriso, ele empalmou as mãos dela.

— Deixe comigo.

Corliss recolheu os dedos e Rainulf, além de des­prender a fivela sem dificuldade, puxou o cinto para fora dos passadores, soltando-o no chão. Em seguida, sentou-se na cama, parecendo envergonhado.

— Pode me ajudar com a túnica?

Em sintonia, ambos lidaram para tirar a pesada veste, pela cabeça do professor. A camisa de baixo veio junto, deixando-o sem nada além da calça.

— Sente-se melhor? — ela quis saber, desviando a vista do peito nu. — Um pouco de água?

Ele grunhiu, ainda ensimesmado, porém articulou uma frase:

— Por Deus, gostaria que tudo à minha volta pa­rasse de girar.

—Também sei — Corliss retrucou, procurando er­guer-se, porém Rainulf a trouxe consigo para a cama, ao deitar-se de novo.

— Fique — pediu, enquanto a forçava com o braço a permanecer ao lado dele. — Apenas alguns minutos, até que tudo pare.

Ele pôs a cabeça dela em seu ombro. Ela, julgando que a tiara prateada pudesse espetá-lo, removeu o or­namento e lançou-o ao chão. Assim encostou no vasto leito, quieta, acessível ao abraço forte do professor, mesmo que fosse somente para conforto. Ela estava contente por servir-lhe de lenitivo, enquanto a visão de Rainulf se firmava e ele viesse a adormecer.

Corliss bocejou. Seria melhor retornar a seu quarto antes de sucumbir ao cansaço e à sonolência. Não teve forças para isso.

Apenas alguns minutos. Ela fechou os olhos e ado­tou a posição mais cômoda junto a Rainulf. Sentiu o calor do corpo dele através do vestido púrpura.

Rainulf olhou do púlpito de St. Mary para as cen­tenas de rostos dos jovens estudantes, paramentados com suas becas pretas, ansiosos pelo início da confe­rência. Pareciam-se, segundo ele, com pequenos pás­saros negros, de bico aberto à espera de alimento.

Eles confiavam no mestre Fairfax, que adorava nutrir os alunos de conhecimento, mas como ensinar algo quando se está consumido por dúvidas? No fun­do, a incerteza conceituai o tornava uma pessoa inútil. Corria o risco de decepcionar os estudantes, ali reuni­dos graças a falsos pretextos.

— Não posso. — Ele surpreendeu a platéia com a voz aguda e distante. — Gostaria de poder ensinar alguma coisa a vocês, mas não posso. Nada tenho a transmitir.

Ao suave murmúrio inicial seguiu-se um tumulto de asas e penas escuras, que esvoaçavam em torno dele, a solicitar alimento e bicá-lo na carne.

— Não! — Ele esquivou-se e lutou contra os pássa­ros pretos, ponderando se tinha o direito de feri-los...

— Shhh... Calma. — Era Corliss que, preocupada, viu-o dando socos no ar. — Rainulf, acorde!

Com esforço, ele descerrou as pálpebras. Estava es­curo, mas um anjo viera salvá-lo. Um anjo de olhos dilatados e faces rubras, porém meigo e real: Corliss.

— Está tudo bem — ela sussurrou. — Volte a dor­mir.

Ela tocou-lhe a testa, induzindo Rainulf a fechar os olhos. Em seguida, afagou-o no tórax e soltou os bra­ços sobre o tronco dele. Rainulf sentiu o adorável peso, a pele sedosa, e relembrou seu sonho. Ainda bem que Corliss se achava ali, para socorrê-lo. A última coisa que ouviu, antes de cair na inconsciência, foi a porta do quarto adjacente sendo fechada.

Fazia sol quando Rainulf despertou e observou a ja­nela. Ergueu a cabeça do travesseiro, mas ela tombou novamente. Ele cerrou os olhos e praguejou debaixo de um cegante espasmo de dor.

A boca estava amarga, o estômago, revirado. Recor­dou-se de ter tomado muito conhaque e vinho duran­te o jantar, em vez de alimentar-se decentemente. Aquela era sua primeira ressaca desde os dias de uni­versitário.

Cobriu a face com as mãos e respirou fundo, sentin­do nos dedos, ombros e braços o perfume de essências orientais que nele se impregnara.

Corliss.

Ele sentiu a falta dela, mas como a exótica fragrância viera parar em seu corpo? Conseguiu sentar-se na cama e, intrigado, examinou os lençóis e travesseiros, cheirando-os. Tinham o odor de Corliss.

A saudade se intensificou, impondo o desejo de revê-la. Ele imaginou o corpo quente de Corliss junto ao seu, substituindo a dor rígida da necessidade pelo prazer sensual.

Desabotoou a calça e tocou-se no ponto mais sensível de seu ser. O alívio jorrou rapidamente, mas também trouxe uma real solidão. Além de inútil, ele sentiu-se vazio. Mas ainda ponderava como o odor excitante de Corliss havia permeado sua cama, sua pele.

Ele lavou-se e pôs roupa limpa, em deferência à fan­tasia de cunho sexual que ocupava sua mente. Vozes do lado externo do castelo prenderam-lhe a atenção, levando-o até a janela. Avistou Martine a inspecionar seus geométricos canteiros. Perto dela, Corliss esta­va agachada, fazendo algo que foi impossível identi­ficar. Logo depois, Rainulf percebeu: a irmã plantava sementes, enquanto Corliss riscava algum desenho em tablete de cera. As duas usavam aventais sobre as respectivas saias e chapéus de palha no estilo rural, de abas largas.

Apesar do desânimo e do vazio, ele sorriu. Ninguém pensaria que aquelas mulheres, executando um tra­balho manual e modestamente vestidas, eram uma baronesa é sua hóspede.

Martine olhou para cima e viu o irmão à janela. Exibiu um sorriso e apontou a presença dele para Corliss, que o contemplou com uma expressão inde­cifrável. Rainulf acenou, depois ficou gelado ao notar uma mancha escura no queixo da jovem, uma escoria­ção. Ela percebeu o espanto dele, pois tocou rapida­mente o machucado e, mais rapidamente ainda, des­viou a vista para outro lugar.

Desconcertado, ele pressionou as mãos contra a esquadria de madeira. Teria sido ele o responsável por aquilo? Improvável. Jamais machucaria Corliss. No entanto, rastreou a memória, buscando alguma coisa que pudesse ter feito enquanto embriagado. Ela de fato havia deitado em sua cama? Ou o perfume re­manescente era produto de sua imaginação? Fechando os olhos, lembrou-se de ter empurrado a cabeça de Corliss, nos degraus da casa, e depois forçado-a a deitar-se com ele, mas sem conseqüências ulteriores. Recordava-se bem do atrito da seda em sua pele, do calor do rosto de Corliss em seu ombro, da suave pres­são dos seios dela em seu peito.

Ele voltou-se e verificou a cama. Alguma coisa brilha­va no chão próximo, quase escondida pela extremidade da colcha. Cruzou o quarto e apanhou o objeto: a tiara prateada que Corliss tinha usado na noite anterior.

Não! O que ele tinha feito? Lutou para lembrar-se, no trajeto de volta à janela. Corliss relanceou o olhar para ele, mas logo concentrou-se no trabalho. Como ela havia se machucado no queixo? Existira uma ten­tativa de forçá-la a ceder-lhe o corpo? Em caso positi­vo, tivera êxito? Certamente não. Após onze anos de abstinência, ele se lembraria de ter possuído uma mu­lher, sobretudo Corliss, a despeito da bebedeira.

Mas, havia realmente tentado?

Nunca ele fizera amor com uma mulher que não o desejasse. Nem sequer isso lhe passara pela cabeça, pois repelia tal idéia e, na verdade, jamais surgira a ocasião. Como jovem estudante em Paris, as amantes é que vinham até ele, mesmo as de berço dourado e noivas de outros homens. Em curto tempo, os flertes se convertiam em calorosos encontros secretos.

Rainulf também nunca mentira a elas, simulando sentimentos que não existiam. Ainda assim, as mu­lheres de sua juventude se despiam para ele, levavam suas mãos aos seios, provocavam-no. O que lhe era oferecido, ele pegava.

Em todos os casos, porém, ele esperava pelo ofere­cimento. Nunca obrigara ninguém a nada. Por outro lado, nunca houvera necessidade disso. Julgava-se uma pessoa correta.

Teria mudado tanto? A ponto de comportar-se como um selvagem, e justamente com Corliss? Desgostoso, ele balançou a cabeça. Via a si próprio como um ho­mem melhor do que os outros, mais piedoso, em pleno domínio de sua natureza animal. O pecado do orgulho então pesou-lhe na alma. Aceitou a idéia de que era apenas um homem, com todas as fraquezas inerentes a essa condição. Mas quão fraco havia sido na noite anterior? Maldição. Ele não conseguia lembrar-se.

Fechou a vidraça e ali encostou a testa. A solução seria manter distância de Corliss. Precisava domar seu desejo por ela. Desejo que crescera até fugir de seu controle. Devia pensar nela não como mulher seduto­ra, mas como o rapaz que se habituara a ver. Daria sa­tisfação a suas necessidades carnais imaginando que Corliss era quem tomava a iniciativa, quem o tocava, quem o introduzia dentro dela.

Terrível dilema. Corliss sempre estava em sua men­te, a despertar idéias e vontades longamente adorme­cidas. Ainda que não tivesse se aproveitado dela, ele temia ser capaz de fazê-lo, o que desenhava um qua­dro aterrador.

Ele sentia-se esgotado, e ansiava por ser indicado como reitor de Oxford, para viver o resto de seus dias numa espécie de nuvem de discrição e renúncia. Até o aparecimento de Corliss, ele nunca havia questionado esse objetivo. Agora, corpo e alma se achavam exigi­dos pelo amor, o que não era bom, por significar uma radical mudança de planos.

Ele foi passar o dia em St. Dunstan. Talvez voltasse ali na jornada seguinte. Que Peter ensinasse Corliss a adestrar falcões. Que a cortejasse. Que a seduzisse. Ele não podia permitir-se tanta bem-aventurança.

Corliss viu Rainulf afastar-se da janela e desapare­cer, depois de fitá-la insistentemente. Quando baixou o olhar, deparou com Martine intrigada com o feri­mento em seu queixo.

— Como isso aconteceu?

Com expressão neutra, Corliss esboçou mais uma flor no desenho que traçava, de plantas que, segundo Martine, constituíam uma variedade de crisântemos e serviam como fortificante para o útero. Corliss pro­metera à jovem baronesa registrar em pergaminho os destaques de seu novo herbário, destinados a curar transtornos da saúde feminina. Ela aspirou o ar com vontade, antes de responder:

— Sou desajeitada, é tudo.

Incrédula, Martine conservou-se quieta, até falar serenamente:

— Por favor, diga-me que Rainulf não fez isso com você. — A baronesa empalideceu.

— Ele teve um pesadelo — explicou Corliss. — Não sabia o que estava fazendo. Nunca me machucaria de propósito.

— Graças a Deus. — Martine suspirou. — Rainulf é o último homem no mundo capaz de bater numa mulher, mas, por um momento, pensei que... — Claramente aliviada, ela cocou a nuca e depois colheu do solo alguns ramos, que guardou em seu cesto, para o preparo de chá.

— Isto é muito eficiente na prevenção de pesadelos — disse. — Ele os tem com muita freqüência?

Em movimentos caprichosos, Corliss tentava re­produzir com perfeição as bordas denteadas.

— Eu não poderia saber — respondeu sucinta­mente, enquanto mais dois ramos iam para o cesto de Martine.

— Mas Rainulf não se debate e vira o corpo durante o sono?

O estilete de Corliss resvalou e o desenho de uma folha foi arruinado.

— Tenho meu próprio quarto. Nós não... Enfim, nada acontece entre nós.

Sorrindo, a baronesa bateu de leve nas costas de Corliss.

— Você não precisa manter as aparências, no que se refere a mim. Só quero ver Rainulf feliz. Gostei de que ele a tenha encontrado.

Corliss procurou reparar seu erro, limpando o tablete de cera.

— Está equivocada. Rainulf e eu não somos... Nós não dormimos juntos.

As sobrancelhas de Martine, escuras como as do ir-mão, ergueram-se dramaticamente.

— Mas você dormiu com ele ontem à noite. Ou não?

— Por um par de horas somente. — Corliss viu a baronesa balançar a cabeça, inconformada. — Rainulf estava embriagado e precisou de minha ajuda para sentar-se. Depois, fui até o meu próprio...

— É desnecessário explicar — Martine cortou, sem deixar de sorrir. — Não estou julgando você. Obviamente, tornou-se importante para meu irmão. Desde o instante em que o revi, ontem, tive a clara noção de que Rainulf mudou. Parece mais contente, mais...

— Mas não sou amante dele! — Corliss elevou a voz, impaciente. — Somos apenas amigos, nada mais. Eu não quero me acorrentar a nenhum homem, e Rainulf anseia ser o reitor da Universidade de Oxford. Isso significa... — ela fixou o olhar no tablete de cera — sig­nifica que vai manter o celibato. Ainda que mude de idéia, não escolheria uma... Arranjaria outra mulher, alguém mais...

Só depois de falar, Corliss deu-se conta da expres­são compreensiva e triste de Martine.

— Entendo. Sinto muito. — Ela enlaçou Corliss pela cintura. — Não pretendi ser leviana. Agradou-me pen­sar que Rainulf tinha finalmente encontrado uma pessoa tão maravilhosa. Ele pareceu-me mais alegre, daí eu ter deduzido que isso se devia a você.

Corliss deu de ombros, lembrando as palavras do padre Gregory: De algum modo, você rompeu o escudo protetor do mestre Fairfax.

Abruptamente, Martine soltou o cesto e, com as duas mãos, massageou a nuca, despertando certa apreensão em Corliss.

— Tudo bem, Martine? Tem certeza de que não lhe faz mal trabalhar tanto, aqui fora?

— Minhas costas doem, só isso. Acordei no meio da noite e não pude mais dormir, por causa do incômodo. Mas tenho de recolher estas ervas antes que o bebê nasça. Sei que parece tolo...

— De modo algum. Para quando espera seu filho?

— Para qualquer momento, a partir de agora.

— Deve ser grande, pelo tamanho de sua barriga. A grávida tocou o próprio ventre, sorrindo de feli­cidade.

— E pelo tamanho do pai, claro. A parteira me deu certeza de que será um bebê enorme. — Outra pontada de dor colheu Martine, e dessa vez ela deixou esca­par um suspiro de contrariedade.

— Vou levar você para dentro — disse Corliss. — Basta por hoje.

— Acho que tem razão — concedeu a baronesa, num fio de voz. — Estou sentindo...

Corliss ergueu-se e amparou Martine na breve ca­minhada até a porta principal do castelo. Ambas escu­taram um som cavo, como algo úmido caindo no solo, e pararam. Corliss pensou que a água do pote havia se derramado, porém Martine levantou a túnica e exami­nou a mancha no chão sob ela.

— Oh! — exclamou, alarmada, ao pressionar as mãos na barriga e debruçar-se.

Corliss passou o braço em torno da nova amiga e olhou ansiosamente pára os lados. Avistou Thorne e Rainulf conversando, no portão de saída, e acenou com a mão livre.

— Socorro! — gritou.

Ainda segurando o próprio ventre, Martine riu.

— Isso é tudo o que nós, mulheres, podemos falar num momento como este?

Corliss também ensaiou uma risada, mas de puro nervosismo. Os homens chegaram, correndo, e depa­raram com as duas rindo. Sem nada entender, Thorne e Rainulf trocaram um olhar de perplexidade.

— O que há de errado? — indagou o professor. — Chegamos a pensar que, talvez...

— Martine está em trabalho de parto. A bolsa...

Thorne ficou pálido, o que intensificou o riso das duas. Mesmo assim, o barão agiu prontamente e le­vantou Martine em seus braços fortes.

— Thorne, acho que o bebê está vindo — murmurou Martine.

— Eu sei. Vou mandar Peter buscar a parteira.

— Não adianta — ela declarou, com os dentes rilhados de dor. — Está vindo agora.

— Oh, meu Deus — Corliss murmurou, repentina­mente séria. — Começou na noite passada, e ela não percebeu...

— Você pode ajudar? — Thorne perguntou. — Sabe alguma coisa sobre...

— Eu? Não. Mas vou permanecer ao lado dela o tem­po todo. — Como demonstração, já durante o percurso, ela colheu entre as suas as mãos da parturiente.

— Temos de encontrar alguém que possa ajudar — afirmou o barão.

— Felda — sussurrou Martine, em tom choroso.

— Chame Felda. Depressa!

 

— Você conseguiu, Martine! — Corliss recebeu o bebê das mãos de Felda e estreitou-o junto ao peito. Em seguida, o passou aos braços da pálida e trêmula mãe.

— Foi você que conseguiu. — Martine exibiu um olhar afetuoso que encheu Corliss de orgulho. — E você também, Felda.

— Pouco fiz, milady. — A criada meneou a cabeça.

— A srta. Corliss é que salvou o bebê. A parteira não faria melhor, mesmo se tivesse chegado em tempo.

Recuperando-se do esforço com rapidez, Martine limpou a boca de seu rebento e depois atritou carinho­samente os pezinhos da criança.

— Acho que a clavícula dele está fraturada, mas vai sarar sozinha — opinou, após massagear as costas e a nuca do bebê. — Então, rapazinho, não vai dizer nada sobre sua façanha?

Só então o recém-nascido chorou com força. A por­ta do quarto se abriu e deu passagem a Thorne, com os olhos úmidos de emoção pousados em seu filho. Rainulf, que permanecera no corredor, maravilhado com aquele som, decidiu entrar. Atrás dele, diversos serviçais do castelo espichavam o pescoço a fim de ve­rem a cena no interior do aposento.

— Milorde! Mestre Fairfax! — Com pressa, Felda cobriu Martine, toda exposta, com o lençol. — Saiam daqui e esperem até que eu tenha a chance de lavar e trocar a mãe e a criança.

— Já esperei muito — Thorne refutou, sentando-se na beirada da cama. Ele abraçou a mulher e o filho, balançando-os amorosamente enquanto balbuciava algumas palavras em francês.

Corliss surpreendeu-se. Mais, ficou comovida por Thorne confortar a esposa na língua nativa dela. Notou Rainulf com as costas apoiadas na parede, como se não pudesse suportar o próprio peso. Parecia esgo­tado, mas feliz com o nascimento do sobrinho. Sorriu para ela, e uma doce onda de calor se espraiou por ela, causando um sorriso de retribuição... até que Rainulf percebeu seu queixo machucado e fechou a expressão. Ela fez o mesmo.

— Preciso dar banho no bebê — Felda anunciou.

— Mais tarde — instruiu Thorne, contando os de­dos do filho e vibrando com sua pele rosada e saudável.

O recém-nascido piscou os olhos enrugados e fez uma ca­reta, que o credenciou como um pequeno ser zangado.

Felda adiantou-se para enrolar a criança numa toa­lha de linho.

— Não quero que ele se resfrie, poucos minutos de­pois de nascer — explicou.

— Wulfric é robusto demais para adoecer — disse Martine.

— Nome saxão? — interveio Corliss. — Idéia sua, Thorne?

— Era o nome de meu pai — ele confirmou.

Martine manuseou sua roupa até expor um seio, alheia à presença de Rainulf. Gentilmente titilou as bochechas de Wulfric, que por instinto abriu a boca e procurou o mamilo que lhe era oferecido. A mãe o ajei­tou melhor no colo e ao pai coube apenas afastar-se, mas sem privar-se de observar a cena com encanta­mento. O menino sugou com vigor, até cerrar as pálpebras completamente.

— O garoto sabe o que quer — comentou Thorne, cobrindo com um xale o ombro e o peito desnudo da esposa.

Corliss auxiliou Felda na busca do sabão e na esco­lha das roupinhas, trazidas para perto da bacia com água morna, já colocada sobre a penteadeira. Ouviu-se uma batida na porta e Peter ingressou no quarto, esbaforido.

— Trouxe a parteira — avisou com urgência.

— Pode trazê-la para cá — Thorne autorizou.

Peter guiou uma mulher pequena, de idade, quar­to adentro. Quando viu o bebê mamando no peito de Martine, pediu desculpas e saiu, fechando a porta.

— Milady! — grasnou a velha parteira, chamada Hazel. — O que está fazendo? Devia deixar a ama-de-leite alimentar o bebê. Assim, seu leite vai demorar mais para secar.

— Não quero que seque, Hazel — contestou a mãe. — Pretendo amamentar meu filho. Já lhe disse isso.

— Sim, mas julguei que mudaria de idéia. Uma ba­ronesa dando de mamar a sua cria, como uma vaca no pasto! Não é natural.

Martine trocou com Thorne um sorriso complacen­te, enquanto a parteira abria sua grande bolsa e ar­rumava frascos, pequenos instrumentos e misteriosos embrulhos na mesa-de-cabeceira.

— O bebê veio facilmente? — Hazel quis saber.

— Ao contrário, o parto foi difícil. Wulfric tem om­bros largos, como o pai, e eles ficaram entalados den­tro de mim. Corliss manobrou para livrá-los, mas uma clavícula da criança deslocou-se. Não fosse por Corliss, nós dois teríamos morrido, creio eu.

— Cristo! — Thorne perdeu a cor da face. Rainulf fitou Corliss como se ela acabasse de desen­volver asas e um halo de anjo.

—Uma atadura firme consertará o osso quebrado — Hazel garantiu.

— Não irei enfaixar o menino. — Martine aconche­gou Wulfric ainda mais contra si.

— Será apenas num dos braços, a fim de imobili­zá-lo enquanto o osso se solda — insistiu a parteira, vendo Martine concordar, embora de má vontade.

Rainulf não desviava os olhos de Corliss, como se acabasse de conhecê-la.

— Agora, milady... — Hazel verteu no copo um lí­quido parecido com vinho e jogou um pó branco sobre ele. — A senhora percebeu que não deve mais ter filhos, porque o parto será sempre brutal. Obviamente, tem canal estreito. Aqui está um remédio para sua boa re­cuperação. Quando alcançá-la, posso misturar um pou­co de cevada ao líquido, e a senhora ficará estéril como uma pedra.

— De modo algum! — Martine já perdia a paciência com Hazel.

— Querida — Thorne interveio delicadamente —, não seria bom pensar no assunto? Sem usar cevada, mas algo que realmente funcione?

A temperamental parteira indignou-se.

— Minha fórmula funciona! Talvez não sempre, mas na maioria das vezes.

— Existe alguma coisa que não falhe? — inquiriu Thorne, sob o olhar furioso de Martine.

— Sim. O método mais eficaz consiste em cortar os testículos de um macho de doninha, o que não mata o animal, e embrulhá-los em pele de ganso, bem aper­tados. Se a baronesa usar isso no pescoço, dia e noite, estará livre de outra gravidez. Costuma dar certo.

Thorne fitou Hazel, com ar sinistro. Martine incli­nou-se cautelosamente, a fim de não perturbar o sono do bebê em seu colo, e beijou-lhe a testa com ruído. Em seguida, falou em ritmo compassado:

— Eu o amo, Thorne Falconer, e desejo encher este castelo de filhos fortes como você. Nada pode fazer para me impedir.

— Mas, Martine... — ele suplicou. — Você correrá riscos em seus partos, e será culpa minha se vier a morrer. Eu mesmo não suportarei mais viver, sabendo que gerei uma criança grande demais para você dar à luz. — Baixou o tom de voz, mas Corliss estava perto o bastante para ouvir: — Não precisamos confiar nos métodos de Hazel, porém quero ter a certeza de que isto não se repetirá. Farei tudo o que for necessário, qualquer sacrifício...

— Bem, eu não farei! — ela disse para todos escu­tarem. — Sou sua esposa, e não apenas de fachada. Isso significa dividir a cama com você e dar-lhe uma porção de filhos.

— Mas é perigoso...

— Muito menos do que parece. — Martine mirou na direção de Corliss. — Principalmente se contarmos com ela, sempre que eu for dar à luz.

Thorne fitou Corliss com ternura.

— Esta é a segunda vez que quase perco Martine. — A voz dele transmitia pura emoção. — Sou seu eter­no devedor.

Seguiu-se um pesado silêncio no quarto. Rainulf, Thorne e Martine, todos olhavam para Corliss.

— Não sei o que dizer — ela murmurou.

— Bem, eu sei. — Hazel passou o copo a Martine e voltou-se para os outros. — Todos fora! Todos, exceto Felda. Precisamos limpar milady e o bebê.

— Eu vou ficar — Thorne se impôs.

Nova expressão de ofensa cruzou o rosto da parteira.

— Sinto muito, milorde, mas terá de sair. Nunca vi nada parecido. Deixem-me fazer o meu trabalho.

Da porta, Corliss e Rainulf notaram Thorne er­guer-se e avaliar a mulher, cuja altura mal chegava ao peito dele.

— Não sairei — disse calmamente. — Mostre-me como posso ajudar.

— Ajudará muito se sair. — A parteira era dura na queda.

— Não adianta insistir, Hazel — declarou Felda. — Se Thorne Falconer não quer uma coisa, ele não faz. Dê-lhe alguma tarefa e assim ficará fora de nosso ca­minho.

Hazel resmungou e revirou os olhos, depois desco­briu o bebê e pinçou o cordão umbilical.

— Logo que eu cortar o elo entre Wulfric e sua mãe, o senhor pode ajudar Felda a dar-lhe o primeiro banho.

Rainulf conduziu Corliss ao patamar da escada. Está sozinho com ela, agora, ele pensou. Pergunte-lhe. Apenas pergunte-lhe, pelo amor de Deus!

Ela principiava a descer os degraus quando ele a chamou. Ao voltar-se, ela percebeu que ele tinha os olhos fixos em seu queixo machucado. Rainulf expri­miu-se em tom formal, prudente.

— Não me lembro de tudo o que aconteceu na noi­te passada, mas lamento muito se eu... se fiz alguma coisa...

— É desnecessária qualquer desculpa.

— Mas o que realmente fiz? Conte-me a verdade. O que fiz com você, Corliss?

— Comigo?

— Você esteve em minha cama, isso eu sei, mas é só. Como a machuquei?

Os olhos dela se dilataram. No rosto do professor, estampava-se toda a sua angústia.

— Oh, Rainulf. — Ela sorriu tristemente.

Ele não sabia o que dizer, o que pensar. Ela subiu um degrau a fim de acercar-se mais. Tomou-lhe as mãos, forçando a abertura dos dedos, e acariciou as palmas dele suavemente.

— Você teve um pesadelo, ontem à noite. Começou a dar socos no ar, e calhou de o meu queixo estar no caminho. Somente isso. Você nunca me machucaria do modo consciente, Rainulf. Nunca me forçaria a uma entrega, bêbado ou não, se é o que imaginou.

— Graças a Deus! — Ele estreitou as mãos de Corliss.

— Devia saber, caso se conhecesse melhor. O padre Gregory tinha razão. Certa vez contei a ele que você era um mistério para mim, e o que ouvi? Que você era um mistério para si próprio.

Rainulf levou a mão ao rosto de Corliss. Fechou os olhos, saboreando o toque.

— Se você desse atenção a seus instintos — ela o repreendeu de leve —, em vez de tornar tudo tão com­plicado, jamais cultivaria conclusões idiotas.

Quando abriu as pálpebras, ele deparou com o contagiante sorriso de Corliss, e sorriu de volta.

— Você avalia tudo — prosseguiu ela. — Questiona tudo, cava problemas, em busca de respostas. Mas você consegue parar, se quiser. Não oriente todas as incer­tezas do mundo contra você. Exceto nas palestras, às quais elas pertencem, e você também pertence.

— Sério?

— Como pode ter dúvida? Quando eu o vejo no púlpito, dissertando e nutrindo o seu disputatio, é quando você se torna vivo, como se tivesse nascido para fazer isso. — Ela colheu o rosto dele entre as mãos. — Tente aceitar-se como você é. Qualquer pessoa tem esse direito.

Em contraste com sua eloqüência nas aulas, Rainulf continuou sem achar o que dizer. Enlaçou Corliss pela cintura e trouxe-a para perto de seu corpo. Enterrou a face nos cabelos perfumados dela. O abraço silencioso foi como um momento de cura. Ela estava quente sob a lã fina da saia. Quente e humana. Deus, como ele precisava daquela mulher!

Ele empertigou-se, dando fim ao delicioso atrito. No fundo, não aceitava sentir tanta necessidade dela. Por que estimulava a tensão sensual entre os dois?

Ao evitar o olhar de Corliss, ele a liberou inteira­mente, e ela sorriu de maneira enigmática.

— Você vai se acostumar — disse.

— Com o quê?

— Com as reações de sua pele, com suas sensações e... — Corliss encolheu os ombros — aceitá-las sem tantas reservas.

— Acho que estou velho para me habituar com coisas novas — retorquiu Rainulf. Novas como a atração por você, como a minha dependência emocional de você.

Ela sustentou o olhar por um momento.

— Basta não lutar contra elas, talvez. — Corliss retomou a descida da escada e o professor a seguiu até o grande salão, onde os demais hóspedes do castelo finalizavam o almoço.

Antes que chegasse à mesa principal, Corliss foi re­tida pelo ombro.

— Thorne não é seu único devedor — disse-lhe Rainulf. — Eu também sou. Para sempre. O que você desejar, peça-me. Não suportaria a perda de Martine, que constitui toda a família que tenho.

— E seu irmão de Rouen, o barão?

— Etienne? Acho que nunca mais o verei, e assim é melhor. Nós dois somos muito diferentes. Já Martine é especial, sempre perto de meu coração. — Houve uma pausa, durante à qual Rainulf esforçou-se para encon­trar as palavras certas. — Não sei como lhe agradecer, Corliss.

— Deixou-me morar na sua casa — ela observou. — E me mantém segura com relação a Roger Foliot. Já agradeceu demais.

— Nunca conseguirei isso — retrucou ele.

— Aí estão vocês! — A saudação de Peter os inter­rompeu. — Deve estar faminta, milady. Venha sentar-se à mesa. — Ele mudou de expressão. — Ou talvez prefira levar queijo e vinho ao treinamento dos falcões.

— Ah... — Corliss olhou rapidamente para Rainulf. — Sinto muito, sir Peter. Eu me esqueci do compro­misso.

— Sem surpresa — ele falou. — Teve uma manhã conturbada. Mas espero que não tenha desistido. Um pouco de ar fresco lhe fará bem.

— Sim, acho que irei, depois de almoçar.

— Gostaria de juntar-se a nós? — Peter convidou o professor.

Rainulf meneou a cabeça negando, ciente de que o convite era um ato de gentileza, não de vontade.

— Planejei ir a St. Dunstan, esta tarde. — Ele per­maneceu no patamar inferior da escada e completou:

— Estarei de volta para o jantar.

O dia terminava quando Corliss retornou da falcoaria com Peter. Lavou-se depressa e trocou a saia poeirenta por uma túnica brocada, cor de esmeralda, bastante apropriada para o jantar.

Rainulf estava certo. Peter era boa companhia, charmoso, de raciocínio rápido e excelente conversador. Curiosamente, falava pouco de si mesmo, prefe­rindo arrancar de Corliss respostas sobre sua família e seu passado. Ela esquivou-se como pôde das inda­gações, tendo em mente o conselho de Rainulf sobro omitir seus problemas, até que Roger Foliot não constituísse mais uma ameaça.

Ela percebeu que Peter a cortejava, embora sem tomar liberdades nem falar frases de duplo sentido, Grata a tal conduta cavalheiresca e inclinada a gostar de Peter, ela no entanto afastou a idéia de um envolvi­mento romântico. Seus sentimentos por Rainulf, ain­da que mal resolvidos, anulavam uma atração séria por outro homem.

Mesmo que não fosse o caso, a atração por Peter se­ria fora de propósito. Ela e o jovem cavaleiro estavam tão distantes, na escala social, quanto ela e Rainulf. Se o atencioso Peter soubesse que lady Corliss de Oxford era, na verdade, a filha de um camponês de Cuxham, seguramente não perderia tempo com aquele flerte. No máximo, a derrubaria na palha de um estábulo va­zio, levantaria sua saia e faria o esperado. Porque, a despeito de sua afabilidade, ele era um bem-nascido homem normando. Com exceção de Rainulf, todos se aproveitavam de mulheres de classe inferior para a satisfação dos sentidos, poupando seu afeto para da­mas do mesmo estofo social.

Felda entrou no quarto a fim de ajudá-la a vestir-se e pentear-se.

— Milady e o bebê estão dormindo — informou. — Convenci milorde a descer e se alimentar. — Ajeitou a tiara prateada na cabeça de Corliss, mostrando contrariedade. — Nunca vi um barão dar banho no próprio filho. Inacreditável como ele foi gentil e caprichoso. Vou me lembrar da cena até o dia da minha morte.

Após aplicar um pouco de pó facial nas bochechas de Corliss, Felda a declarou "deslumbrante" e saiu. Atrasada, a hóspede preferiria não jantar sozinha, mas tomou coragem e desceu lentamente a escada. Próxima ao salão, ouviu homens conversando, e parou para escutar.

Rainulf, Peter e Guy estavam congratulando Thorne pelo nascimento de Wulfric.

— Um filho! — Thorne exclamou, orgulhoso. — Um machinho!

— Você verificou bem? — indagou o professor, num repente de bom humor que despertou risos gerais.

— Do tamanho de seu polegar — retrucou o barão, igualmente divertido.

Corliss imaginou Rainulf e os dois cavaleiros do rei­no examinando os próprios dedos. Ao silêncio, seguiu-se um coro de interjeições. Foi quando ela decidiu in­gressar na sala. Peter recompôs-se e veio conduzi-la pelo braço.

— Concede-me a honra de sentar a seu lado, milady? Mais uma vez, Corliss consultou a expressão de

Rainulf. Ele tinha a testa franzida, e por um instante pareceu que iria falar. Talvez, ela refletiu, esperanço­sa, lhe pedisse para sentar ao lado dele, no que teria precedência. Mas ele alterou o semblante e, com relu­tância, girou para o outro lado.

— Será um prazer, sir Peter. — Corliss forçou um sorriso.

— Gostaríamos que você fosse a madrinha de Wulfric — disse Martine, sentada na cama com o bebê adormecido em seus braços. Thorne, ao lado dela, es­ticou a mão a fim de afagar o pequeno tufo dourado de cabelos do filho e enxugar a gota de leite materno que havia escorrido de sua boca.

— Eu? — Corliss fingiu surpresa.

— Se não fosse por você, não haveria bebê algum para batizarmos amanhã. — Martine lançou um olhar para seu irmão, de pé junto à porta do quarto. — Rainulf será o padrinho.

— Fico muito honrada — disse Corliss, e o profes­sor assentiu.

O padre John, capelão das terras do baronato, cla­reou a garganta rouca:

— Existe algo que sou obrigado a mencionar, antes que vocês dois aceitem. — Seu olhar vagou de Corliss para Rainulf. — O sacramento do batismo liga espiri­tualmente os padrinhos, não só à criança como entre si. Sob a lei canônica, segurar o mesmo bebê na pia batismal é um impedimento ao matrimônio.

— Não tínhamos pensado... — Thorne contrapôs, aflito.

— Ah — prosseguiu o sacerdote —, então é melhor escolherem outra madrinha.

Um denso silêncio caiu sobre o aposento, até que Rainulf contestou o padre.

— Ela pode servir de madrinha — disse firmemente. — Ambos podemos aceitar. Não haverá problemas.

Thorne e Martine trocaram olhares neutros, não comparáveis à tristeza que velou o rosto de Corliss a ponto de refletir-se na expressão resignada de Rainulf.

— Está certo — ela balbuciou. — Nada nos impe­de de servir como padrinhos. Obrigada pelo convite. Sinceramente.

Rainulf recebeu da irmã o bebê nu e manteve-o aci­ma da pia batismal de mármore. Corliss o colheu pe­los pés. O sol da tarde coloria os vidros da capela, ba­nhando sua face de luz. Tal visão transfixou o coração de Rainulf por um longo e irrespirável momento.

— Podem imergir a criança — murmurou o padre John, com a mão no ombro do padrinho.

Conjuntamente, Rainulf e Corliss mergulharam Wulfric na água, depois o ergueram. O sacerdote un­giu a testa do bebê e o enrolou num pano branco, antes de tomá-lo nos próprios braços.

Os padrinhos hesitaram, mas sorriram um ao outro.

Então, é assim que tem de ser. Continuarei vivendo como se meu corpo não ardesse de desejo por ela, como se não me ferisse qualquer simples olhar. Agimos sem nos importar com nosso futuro.

Tem de ser. Se ela pode, eu posso.

Deitada, Corliss notou, pelo vão inferior da porta, a lamparina acesa no quarto de Rainulf. No dia seguin­te, começariam a viagem de volta para Oxford. Ela an­siava por essa jornada, porque significava que ambos teriam dois dias juntos e sozinhos.

Sentira a falta dele durante a visita ao Castelo Blackburn. Na verdade, tinha visto Rainulf quase que só na hora das refeições, pois ele passava os dias em St. Dunstan e as noites, fechado em seu quarto, lendo obras emprestadas pelo pároco local.

Quando acordava em altas horas, como naquele instante, e via a luz sob a fresta, ela imaginava poder ouvir o farfalhar das páginas sendo viradas, o ranger da cadeira dele.

Desde a chegada, ela tivera poucas oportunidades de falar com Rainulf, e nenhuma de lhe apresentar a questão que a obcecava. Era uma pergunta que não de­via ser feita a qualquer pessoa, apenas a um confidente fidedigno, incapaz de rir de sua ignorância ou olhar es­tranhamente para ela, por indagar tais coisas.

Somente Rainulf. Ele era o único em quem podia fiar-se, porém não haviam tido um momento de pri­vacidade e sua dúvida não cabia na hora do jantar, enquanto todos comiam carne assada.

Ela estudou o fino feixe de luz sob a porta dele. Já passava da meia-noite, boa ocasião para enfim perguntar. Poderia levantar-se da cama, cobrir-se com um robe e bater na entrada do quarto adjacente ao seu. Ambos estariam sozinhos, sem ninguém por perto para zombar dela ou considerá-la imoral. Mordiscando o lábio, ela decidiu-se.

Rainulf pensou ter ouvido algo como duas batidas leves à porta. Fechou o livro que lia e prestou atenção ao ruído, porém nada mais escutou. Assim, retomou a leitura de uma obra sobre as leis canônicas. A proi­bição do casamento entre padrinhos soara como algo novo para ele. Curioso, tentava confirmar o decreto, procurando o texto original no volume emprestado. Não que duvidasse dos conhecimentos de padre John mas, em todo caso...

Repetiram-se as pancadas, um pouco mais fortes. Corliss?

Vestiu a camisa e abriu a porta. Praticamente es­queceu-se de respirar ao deparar com ela, de camisola de seda e robe, cabelos despenteados, a própria ima­gem da inocência sedutora. O perfume dela o envol­veu, numa inalação prazerosa.

Um forte impulso sexual o sacudiu. Afastou-se de imediato, ponderando o que Corliss viera fazer em seu quarto no meio da noite. Para disfarçar sua ansieda­de, ele sentou-se de novo e reabriu o livro.

— Não consegue dormir? — perguntou, com a voz mais embargada do que gostaria.

— Tenho algo importante para lhe perguntar — ela apressou-se em dizer.

Desconfortavelmente cioso da forma dos seios e quadris de Corliss, marcados pela roupa, ele vacilou.

— Se prefere me atender em outra hora...

— Não. Sente-se. — Ele pôs de lado o volume. Seguiu o olhar de Corliss pelo aposento. Ela percebia, enfim, que a cama era o único lugar restante para al­guém sentar. Então, ergueu-se e apontou a própria cadeira. — Pode acomodar-se aqui.

— Não, tudo bem. — Ela abriu um pouco mais o cortinado que protegia o leito e ocupou o canto do am­plo colchão.

Com freqüência, muita freqüência, Rainulf havia visualizado Corliss em sua cama, em roupa de dormir, ou nenhuma roupa. No decurso daquela quinzena, lu­tara para barrar tais fantasias, daí ter mergulhado no isolamento e em exaustivas leituras. Tivera sucesso, ao menos durante as horas de vigília. À noite, Corliss voltava a povoar seus sonhos. Sonhos em que ambos se entregavam um ao outro, de coração, alma e carne...

Tornava-se cada vez mais difícil domar seu desejo por ela. Quando havia chegado a Oxford, tinha sido menos penoso, pois ele passava por um longo período de abstinência, baseado em sua autonegação. Você vi­via orgulhoso disso, idiota. Orgulhoso, complacente e presunçoso. Julgava-se melhor que todos, porque podia resistir às necessidades humanas e mantê-las cativas.

Em que momento começara a mudança? Corliss é que o mudara, fazendo com que sorrisse, desejasse, fi­casse excitado.

Fosse como fosse, ela parecia constrangida em per­guntar o que planejara. Torcia a gola do robe nervosa­mente, com o dedo, e guardava um silêncio reflexivo. Sem dúvida, a vida de Rainulf seria mais simples se não a houvesse conhecido. Agora, apreciava estar com ela acima de todas as coisas. Sonhava em falar com ela, tocá-la, fazer amor com ela. Mas a necessidade de mo­deração ainda se impunha. Ele queria obter a reitoria, não? Mas o esforço que a castidade lhe exigia, havia atingido um nível insuportável.

Corliss deslizou a mão pelo robe, a fim de desamassá-lo. Só que não existiam rugas, apenas o nervosismo que prendia seus olhos ao chão.

— O que queria perguntar é um pouco embaraçoso — falou em tom baixo.

— Você não precisa ficar embaraçada, comigo — Rainulf tentou tranquilizá-la.

— Tem a ver com a história que Thorne contou, no dia da chegada. — Ela suspirou fundo. — A história da viúva germânica. Como era o nome?

— Sigfreda. — Ele passou a temer o rumo que a conversa tomava.

— Sim, é isso. Pensei bastante a esse respeito, e há uma parte do relato que não compreendo. A parte em que ela... gritou.

Rainulf ganhou certeza de que o rumo da conversa era temerário.

— O que você não compreende?

Ela subiu o olhar, mas logo o desviou do professor.

— Por que aconteceu, por que ela gritou?

— Você não sabe? — Ele estranhou, ansiando por uma dose de conhaque. — Sigfreda estava gostando da... situação. Gostando muito, apreciando as sensações.

— Apreciando? Ainda não entendo.

Por piedade, pensou Rainulf, resolvido a esclarecer tudo de uma vez.

— Estava no clímax da relação, tendo um orgasmo. Corliss arregalou os olhos, com um ar de indignação.

— As mulheres não... Está brincando comigo, em vez de me contar a verdade.

— Brincando? Você nunca... — Inútil perguntar, pois era evidente que ela desconhecia a existência do orgasmo feminino. — Não sabe que as mulheres tam­bém podem alcançar esse tipo de prazer?

— Não. — Ela lançou um olhar cético a Rainulf. — Nunca ouvi falar. E certamente nunca experimen­tei. — Um rubor quente lhe coloriu as faces.

A revelação surpreendeu o professor. Afinal, Corliss parecia ter os pés no chão e lidar de modo confortável com os impulsos humanos. Não obstante, faltava-lhe experiência. Havia se casado aos dezesseis anos com um homem idoso, ele lembrou-se. Depois, fora amante de outra pessoa, também pouco jovem. Parceiros que, claramente, nunca tinham se preocupado em satisfazê-la no terreno sexual.

Como eram tolos e ignorantes! Dispor de alguém como Corliss em suas camas — jovem, bonita e pas­sional — e usá-la como seu exclusivo objeto de pra­zer! Quantas vezes ele não a imaginara vibrando de êxtase, debaixo dele, e gritando enquanto cravava as unhas em suas costas? Esticou a camisa a fim de es­conder sua repentina, firme ereção.

— Está me dizendo a verdade? — Ela o encarou com candura.

— Claro.

— Qual é a sensação?

— Corliss... — Ele umedeceu os lábios ressequidos.

— Lamento, mas não posso discutir isso com você.

— Por quê?

— Pergunte a Martine. Como mulher, ela saberá explicar-lhe.

— Só que a conheço faz pouco tempo. E com você sempre tive a liberdade de perguntar tudo.

— Pergunte a Martine — ele insistiu.

— Quero sua resposta. Diga-me qual é a sensação, apenas isso. Sinto-me tola e ignorante, sem uma expli­cação.

— Não consigo... Além disso, acho que o clímax eró­tico não pode ser descrito em palavras. Talvez, se ca­sar de novo, seu marido se empenhe em mostrar-lhe como funciona.

— Nunca me casarei de novo! — Corliss exaltou-se, a ponto de seus olhos marejarem. — Devo ficar sem saber o que as outras mulheres sentem?

— Não chore — pediu Rainulf.

— Jamais choro. — Era verdade. Geralmente li­bertária com suas emoções, ela nunca havia derra­mado uma só lágrima, o que reforçava seu orgulho. — Também não vou chorar por causa disto. Queria descobrir as sensações das mulheres que levam uma vida normal, junto a maridos amorosos. Como reagem na hora do... clímax.

— Não posso saber o que uma mulher realmente sente nessa hora.

— Mas, como é para um homem?

— Já falei. Impossível descrever, Não tenho como ajudar você.

Na realidade, tinha. E ambos estavam cientes disso.

— Acho que pode fazê-lo, mas não quer. Tem medo.

— Não posso e não quero — Rainulf rebateu, saltan­do da cadeira e rumando até a porta, que segurou aber­ta. — Creio que deve voltar para sua cama, Corliss.

Ela levantou-se, porém não fez menção de afastar-se dali. Respirou fundo.

— Você se cansou das minhas incessantes pergun­tas? Gostaria que eu nunca tivesse vindo a Oxford?

Rainulf desviou a vista a fim de obliterar uma tor­rente de imagens perturbadoras: os seios dela a espe­tar um vestido de seda, a fina faixa de pele nua que vira através de uma porta, os quadris encapsulados em calça justa... O tormento residia no efeito que tais visões exerciam sobre seus desejos inconfessos, com­plicando sua vida regrada.

Gostaria que Corliss não viesse a Oxford?

— Por vezes, sim. Freqüentemente.

Em passos rápidos, ela encaminhou-se à porta di­visória dos dois quartos e estremeceu ante a reverbe­ração que produziu ao batê-la com força atrás de si. Rainulf viu-se no vazio do próprio aposento, experi­mentando um súbito, incontrolável senso de perda.

Sem pensar, ele correu e desferiu um murro na por­ta, com o punho fechado. Foi dolorido, e ele praguejou.

Movendo-se até a cômoda, mergulhou a mão ma­chucada na bacia, deixando a água fria envolvê-la. De novo imprecou. Maldição! Depois, de olhos cerrados, encheu os pulmões de ar e soltou-o com a maior lenti­dão possível.

Repetiu essa respiração especial, que parecia acal­má-lo. Mas relembrou as coisas que Corliss havia dito e feito na escada, após o nascimento de Wulfric. Recordou a pressão da palma dela contra sua face, bem como a singela sabedoria que demonstrava: Vai se acostumar com as reações de sua pele, com suas sen­sações. Basta não lutar contra elas.

Tirando os dedos da água, Rainulf os secou e flexio­nou. Retornou à porta, vacilante, e contestou a filoso­fia simplória de Corliss. Você avalia tudo, questiona tudo. Se desse atenção a seus instintos...

Pois seus instintos lhe diziam para girar a maçane­ta e invadir o quarto dela. Foi o que fez.

 

Corliss localizou o ruído que vinha da porta. Estava escondida pelo cortinado ornamental da cama. Exceto pela luz procedente do rodapé, o quarto se achava totalmente às escuras.

Ela segurou o fôlego por alguns instantes, a fim de escutar melhor as passadas de Rainulf rumo ao dos­sel. Desviou o rosto para a parede, puxando a coberta sobre si à medida que ele se aproximava.

Vá embora. Apenas vá embora. Se Rainulf lhe diri­gisse a palavra, ela receava explodir em pranto. Não queria chorar. Detestava isso.

Então ouviu o rumor das cortinas sendo abertas, e por um longo momento nada mais ocorreu. Ela sentiu a manta escorregar de seu corpo, por obra do visitan­te. Também experimentou o peso dele sobre o colchão e pensou, com insensatez, que Rainulf se deitaria a seu lado, debaixo do lençol. Mas esse gesto não exis­tiu. Ele sentou-se na beira da cama, aguardou que ela se acostumasse com sua presença, e esticou os dedos para tocá-la nos cabelos.

Os dedos deslizaram pelo lóbulo de sua orelha e escorregaram de leve em seu rosto, como se ele pro­curasse algo. Lágrimas, ela deduziu. Rainulf queria comprovar se ela havia chorado, apesar de sua insis­tência em negá-lo. Por sorte, pensou, conseguira man­ter-se de olhos secos.

Rainulf introduziu a mão sob sua camisola, para acariciá-la nos ombros e, em seguida, massagear-lhe as costas. Parecia óbvio que ele desejava confortá-la. O toque dele valia mais do que palavras. O que sur­preendia Corliss era a maneira que ele escolhera para aproximar-se, para revelar seus sentimentos, atritando-lhe a pele em vez de utilizar infindáveis palavras, nas quais confiava tanto. Teria seguido o conselho de limitar a eloqüência às salas de aula?

Mais um toque no ombro, e Rainulf fez com que ela se deitasse de costas. Estava escuro demais para que distinguisse bem as formas masculinas. Mas sentiu os dedos dele a deslizar por seu braço, sob o lençol. Seu coração disparou quando a mão desceu até o qua­dril, aninhando-se em sua coxa. Aqueles dedos suaves levantaram a camisola até que ela ficasse de pernas nuas, mas ainda cobertas pelo lençol.

Isso não constituiu nenhum obstáculo para Rainulf correr a mão por seu ventre até encontrar a trilha dos pelos pubianos.

Corliss engoliu em seco, paralisada, e murmurou:

— Rainulf...

Ele a calou graças ao contato mais intenso com seu baixo-ventre. Continuou roçando suavemente o triân­gulo de pelos, enquanto Corliss seguia com o coração disparado e a mente repleta de emoções tempestuo­sas. O que fazia ele, tocando-a daquela maneira?

Estava mostrando a ela as insubstanciais carícias que precediam o ato de amor? Estava lhe ensinando o que havia suplicado para saber? Segundo ele, sensações indescritíveis.

Oh, meu Deus! Antecipar as sensações do sexo tam­bém causava-lhe fortes emoções, principalmente quan­do ele alcançou com os dedos a fenda úmida de sua feminilidade. Ninguém a havia tocado assim antes, e de início ela ficara aturdida com aquela crua intimida­de, a ponto de sentir incômodo. Gradualmente, porém, relaxou e percebeu seus sentidos focados apenas na carícia que lhe desbalanceava todas as reações.

Um e depois dois dedos bastaram para ela sentir um calor excitante, um delicioso comichão nas partes íntimas. Com vagar e paciência, ele a massageava de modo a potencializar sua sensibilidade.

Já ofegante, ela fechou os olhos e vislumbrou uma flor em botão, que crescia e desabrochava, abrindo lindas pétalas. Era assim, grata, que recebia os ensinamentos do parceiro. O calor intenso entre as pernas, o batimen­to cardíaco irregular a deixaram alarmada, mas quando Rainulf introduziu os dedos em sua intimidade, a rea­ção foi não só de prazer, mas também de constrangi­mento. Rilhou os dentes e teve vontade de gritar, como Sigfreda, numa atitude que antes abominava.

Mãos feiticeiras. Tinha sido assim, segundo Thorne, que a viúva germânica se referira ao professor. Era verdade. Ele utilizava os dedos de maneira maravilho­sa, até aterradora pelo conteúdo de prazer que trans­mitiam.

Rainulf impôs uma pausa e recuou alguns centíme­tros. Motivada, Corliss arqueou os quadris, em busca de contato. Nada de diferente poderia fazer. Perdera o controle racional de seus atos, mas sabia que ele gos­taria de vê-la ativa, não somente receptora.

Tangida por uma força irresistível, ela sentiu-se no portal do paraíso. As carícias de Rainulf arrastavam-na para um prazer desconhecido. Mesmo assim ela ex­perimentava um vazio dentro de si, uma necessidade de entrega total.

Ela necessitava dele.

Rainulf pressionou os dedos no local mais sensível de seu corpo. Ela experimentou agradáveis espasmos, como ondas pulsantes, que a aproximaram do frenesi espera­do. A respiração dos dois estava sincronizada, nervosa, e Rainulf segurou-a no momento em que os tremores dela se intensificaram, no primeiro êxtase de sua vida. Teve de admitir: a sensação era de fato indescritível.

Um tanto atordoada, ela cobriu o rosto com as mãos, percebendo-o molhado de suor. Rainulf removeu de sua testa uma mecha de cabelos. Abrindo os olhos já habituados à escuridão, ela notou a expressão ávida de Rainulf, que toda mulher conhecia: era um olhar de lobo faminto, a tradução universal dos desejos de um macho. E ele a desejava!

Mas, e então? Rainulf parecia ter optado por não possuí-la integralmente. Não se tratava de um ma­cho comum, mas do mestre Fairfax. Apesar da tensão reinante, aquilo não fora um ato sexual, ela concluiu, mas sim uma espécie de demonstração amistosa., Por que ele se privava do prazer, lutando contra a respos­ta natural de um ser sexualmente excitado?

Ela o queria com desespero, ansiava por vê-lo em cima dela, penetrando-a. Sonhava viver o resto da exis­tência em união com ele, uma união de corpos e almas. Martine havia acertado: ela estava apaixonada. O que faria agora?

Nada. Provocar Rainulf até o limite seria injusto para com ele. A reitoria da universidade constituía o que ele mais almejava na vida, mais do que o amor dela. Em função disso, ele respeitava o celibato e a abstinência. Para ela, forçá-lo, como chegara a pensar, seria imperdoável.

Melhor aceitar aquela noite como ele a havia con­ceituado: uma aula de prazeres inéditos para ela, um aceno às delícias do orgasmo.

— Foi isso o que você fez com a viúva germânica? — Sua voz soou rouca.

— Sim, e um pouco além. — Ele sorriu.

— Mais de uma vez?

— Várias vezes, que eu me lembre. — O sorriso am­pliou-se.

— Não admira que as damas de Paris usassem luto quando você fez seus votos sacerdotais.

Rainulf recuou, cobriu-a com a manta e deu-lhe um beijo casto na face. Ela notou a ansiedade que o engol­fava. Deduziu que ele não estava nem um pouco calmo ou alheio ao que acabara de acontecer.

— Boa noite, Corliss — disse, aparentando tristeza. Ergueu-se da cama e fechou o cortinado. Ao sair do quarto dela, deixou ver, no aposento vizinho, a luz da lamparina acesa. Depois, tudo voltou ao silêncio e à escuridão.

Rainulf e Corliss deixaram o castelo de madrugada. Cavalgaram cerca de cem metros quando ouviram o som de patas atrás deles. Puxaram as rédeas e olha­ram. O que era aquilo? Thorne e Martine continua­vam na ponte levadiça, acenando adeuses. Na trilha, porém, avançava a galope um cavaleiro solitário.

Peter.

Ele saltou de sua montaria, inclinou-se em sauda­ção a Rainulf, e logo foi para perto de Corliss, tomando-lhe a mão.

—Não imaginei que sairia tão cedo. Gostaria de... — Seu olhar acanhado recaiu sobre o professor.

— Vou esperar na estrada, mais para cima — avi­sou Rainulf, instigando o cavalo para um trote.

Claro, Peter queria despedir-se em particular de Corliss. Haviam se tornado inseparáveis durante a es­tadia em Blackburn, e ela exercera uma notável influên­cia nele. A criatura sombria e triste que ali chegara fora substituída pelo Peter de antes, o charmoso e descontraí­do rapaz que as mulheres reputavam irresistível.

O amargor do ciúme invadiu a boca de Rainulf. Ele ponderou até que ponto Corliss correspondia às aten­ções de Peter. Por certo, estava lisonjeada. Além de jovem e bonito, ele tinha sangue nobre. Era o cava­leiro perfeito, o leal soldado cujas proezas beiravam o legendário. Com freqüência, ginetes e mercenários de toda a Inglaterra demandavam Blackburn a fim de desafiá-lo a uma corrida ou peleja.

— Muito bom! — Rainulf estapeou de leve o pescoço de seu cavalo baio, fazendo-o parar. Girou o corpo e viu que Corliss tinha desmontado para falar com Peter. Daquela distância, pareciam dois rapazes, porque ela havia retomado seu disfarce masculino, embora os al­forjes e sacos suplementares estivessem repletos de saias, vestidos e túnicas presenteados por Martine.

Peter segurava as mãos de Corliss junto a seu pei­to e falava alguma coisa, enquanto ela olhava para o chão. Logo ele ergueu-lhe o queixo, baixando a própria cabeça até o nível da boca da jovem.

O ciúme pareceu queimar dentro de Rainulf quando viu o beijo. Corliss o focalizou de longe, após apartar-se de Peter, que montou depressa e esporeou seu cava­lo na direção da estrada que levava ao Norte. Assim, desapareceu de vista.

A incerteza, maldição de Rainulf, curvou as garras em torno dele. Que espécie de homem era? Como po­dia ficar apenas olhando o beijo de Peter em Corliss, depois do que acontecera entre eles na noite anterior?

Nada aconteceu, ele tentou iludir-se. Havia satis­feito a curiosidade dela a respeito dos mistérios do sexo, apenas isso. Era nada.

Nada? No mínimo, tinha sido a primeira vez em onze anos que ele tocava uma mulher tão intimamen­te. E a experiência se revelara...

Ele suspirou, à falta de uma definição para o que sentira. Tivera mais do que pretendia, ao invadir o quarto de Corliss. Ficara excitado ao acariciá-la e vê-la reagir com prazer, rumo à plenitude. Percebera, então, como sentia falta da mágica de um corpo fe­minino, das quentes e ocultas mucosas que, ao toque, lembravam seda.

Era gratificante ter sido o primeiro homem a fazer Corliss vibrar como mulher, sem reservas, e beirar o orgasmo após acolher os dedos dele em sua intimida­de. Com esforço, ele é que se controlara para não pos­suí-la por completo, abrindo mão do próprio clímax.

Por quê? Caso ele tivesse cruzado a linha com Corliss, nada seria como antes. Ela era diferente das mulheres de Paris, com as quais havia se divertido e saciado.

A força dê vontade envolvida nesse processo foi pro­funda e o esgotou. Sozinho em seu quarto, despira a calça com mãos trêmulas e amaldiçoara a si mesmo, batendo o punho em sua carne torturada. A dor no coração, porém, persistira.

Agora, via Corliss cavalgar a seu encontro, olhando uma ou duas vezes para trás, a fim de acenar para Peter. O que pensaria o jovem enamorado se soubesse das ousadias ocorridas num quarto escuro do castelo?

Quando ela o alcançou, retomaram juntos a estra­da, sem trocar uma só palavra. O balanço do cava­lo e as lembranças da noite finda conspiraram para manter Rainulf em estado de ereção por quase toda a manhã. Ele sentiu-se grato por poder ocultá-la sob a túnica grossa.

Ao meio-dia, a dupla estendeu uma toalha na cla­reira do bosque que atravessavam. Comeram pão e queijo em silêncio, e depois Corliss deitou-se de costas a fim de observar a cúpula da floresta acima deles. Raios de sol dançaram na pele translúcida de seu ros­to. Um rosto singular, único.

Deus, ela é fascinante!

— Parecem diamantes — murmurou Corliss.

Ele acomodou-se ao lado dela. Escudou os olhos com a mão para examinar o sol brilhando entre as folhas das árvores, algo que não fazia desde criança. Seu lado in­fantil achava-se adormecido desde que Corliss chegara a Oxford. Lembranças anteriores ao fato eram vagas. Na companhia dela, cores, aromas e sons se tornaram mais agudos, vivos e reais. Ela o havia redespertado para a vida, transformando-o radicalmente.

— Tem razão. Parecem diamantes.

— Peter me pediu em casamento — ela disparou sem preâmbulos. — Foi nesta manhã, enquanto está­vamos nos despedindo.

Profundamente chocado, Rainulf sentou-se no chão, envolveu os joelhos com os braços e ali repousou a cabe­ça. Por minutos, nenhum dos dois moveu-se ou falou.

Eu a perdi! Deus do céu, eu a perdi! Tal reconhe­cimento o abateu até o limiar da depressão. Sentiu-se vazio, tardou a pensar claramente e formular uma resposta a si próprio. Ao dar-se conta de qual seria ela — qual teria de ser —, sua melancolia apenas se aprofundou.

— É uma boa proposta, um bom casamento — disse como se ecoasse a voz de outra pessoa. Depois, ouviu Corliss ajeitar-se ao lado dele, sentada.

— Rejeitei o pedido — ela informou, em tom neutro.

Graças a Deus! Rainulf voltou o rosto a fim de en­cará-la. Tinha vontade de rir, de lançar os braços em torno dela, de rasgar-lhe as vestes e exigir seu corpo, sua alma, sussurrando promessas de amor...

Promessas que não poderia cumprir.

— Por que recusou? — quis saber.

— Oh, Rainulf. Há muitos motivos. Peter tem pro­blemas que não percebe. Deixou-me confusa com a história de sua lady Magdalen.

— Estava imaginando se ele lhe falou sobre ela.

— Demorou um pouco. Ele não gosta de tratar des­se assunto. — Ela mostrou-se entristecida. — Acha que não chorou o suficiente por ela, como se evitasse admitir que a noiva morreu. Peter me quer como subs­tituta dela, o que considero injusto.

— Ele vai superar a perda — disse Rainulf. — E en­tão aprenderá a apreciar você pelo que realmente é.

— Mas, se Peter descobrir quem realmente sou, fi­cará melindrado. Talvez me odeie por decepcioná-lo. Ele pensa... que sou uma espécie de nobre da Saxônia, por isso me chama de lady Corliss desde o início.

— Você é mesmo a mais nobre e gentil mulher que conheço. A mais completa. — Rainulf meneou a cabe­ça em sinal de frustração. — Peter está obviamente apaixonado por você. E é um homem bom, para quem seu passado não fará diferença. Você se tornou uma pessoa única, encantadora, por isso transita bem por qualquer meio social.

Ele lembrou-se da devoção que Corliss havia susci­tado no esfarrapado mascate Rad.

— Ainda não mencionei a razão mais importante — ela atalhou. — Odeio o casamento. Odeio ficar ata­da a um homem. Você sabe disso.

— Acho que deve reconsiderar. Casar-se é a melhor proteção que pode obter contra Roger Foliot. Não de­seja sentir-se segura?

— Desejo me sentir livre. — Ela o fitou com emoção.

— Estou cansada de ser uma prostituta, uma prosti­tuta segura, desde que tinha dezesseis anos.

— Foi casada, em parte desse tempo.

— Apenas a meretriz preferida de Sully, e depois a do padre Osred. Troquei meu corpo por proteção, mas nunca farei isso de novo!

— O casamento não significa, necessariamente, a perda de sua liberdade — argumentou Rainulf.

— Existem homens que valorizam as esposas como iguais. Pense na história de Abelardo e Heloísa.

Ela empertigou-se, balançando a cabeça e mostran­do um sorriso de incredulidade.

— Quantos homens são tão iluminados?

— Eu sou — gabou-se ele. — Mas há outros.

— Cite um.

— O irmão Matthew, por exemplo.

— Não conhece quem não seja celibatário?

— Thorne.

— Ou casado?

Rainulf tentou lembrar-se de mais alguém, em vão.

— Esqueça, caso queira se livrar de mim por meio de um casamento. — Ela tornou-se agressiva. — Se preferir me ver longe, posso me mudar de sua casa.

— Não. — Ele contemporizou.

— Mas na noite passada — Corliss mordiscou o lá­bio e fitou o solo —, quando perguntei se você queria que eu nunca tivesse vindo a Oxford, você disse...

— A noite passada nunca aconteceu — ele cortou, meigo mas firme. — Nada houve. Vamos viver em Oxford como a deixamos. Nada mudou.

— Compreendo. — Ela levou alguns segundos para assimilar a idéia e erguer a cabeça. Seus olhos tinham perdido a luz quando quebrou o silêncio. — Peter falou que vai escrever para mim. Acredita que ainda pode me convencer.

— Quais razões você lhe deu para descartar o ca­samento?

Corliss recolheu os restos da refeição, bateu e enro­lou a toalha, e só depois respondeu:

— Confessei a Peter que eu não estava apaixonada por ele.

A declaração serenou o íntimo de Rainulf.

— Vai escrever para você também — ela acrescentou.

— Para mim?— Ele saltou à sela enquanto Corliss guardava a toalha no alforje. — Por quê?

— Quer pedir-lhe permissão para insistir na pro­posta, já que não tenho família. E mobilizar você para me persuadir a dizer "sim".

— Peter não se importa de não ser amado pela so­nhada noiva?

— Ele afirma que me ama e não consegue mais vi­ver sem mim. Diz que, se o amor de uma pessoa por outra é muito forte, o resto não conta. — Corliss mano­brou as rédeas a fim de reconduzir seu cavalo à trilha. — Pode imaginar isso?

— Qual é o tema da palestra de hoje? — Corliss in­dagou a Rainulf durante a subida da St. John Street. A tarde de agosto estava quente e o céu, alaranjado por causa do crepúsculo.

— Vou argumentar contra a noção de um Deus todo-poderoso.

— Contra o que a maioria das pessoas pensam? Ele sorriu com indulgência e ia defender-se, quan­do estacou e apontou a esquina da primeira viela.

— Alguém nos espreitava daquele ponto. Você viu?

— Não — ela mentiu. A sombra em movimento pro­vavelmente era Rad, que volta e meia se materiali­zava em seu campo de visão.

Corliss tinha julgado que a ausência de Oxford, por uma quinzena, curaria o mascate do hábito de segui-la, insistindo em que ela precisava de proteção. Por duas vezes havia se dirigido a Rad, suplicando para acabar com aquilo. Nada contara a Rainulf, que já fi­zera o estigmatizado vendedor quase beijar o chão e não acreditava que ele era inofensivo.

Rainulf deu um passo para dentro do beco, mas Corliss o deteve com um toque no braço. Desde o retor­no de Blackburn, não haviam mais se tocado. Evitar o contato físico representava a imposição de que ele ja­mais entraria no quarto dela, a fim de possuí-la como os amantes se possuem.

— Você não deve se atrasar na chegada a St. Mary. Terá menos tempo para apresentar sua heresia — ela comentou.

— Não é uma heresia — respondeu ele automati­camente.

Continuaram andando e, a intervalos, Corliss con­seguia ver que Rainulf vinha sorrindo demais, com ex­cesso de confiança.

— Os padres católicos poderão divergir — ela con­testou.

— Alguns. — As passadas dele eram firmes e igual­mente confiantes. — Outros compreendem meu méto­do de discussão acadêmica.

— Está dizendo que há homens de batina capazes de justificar um ataque aos dogmas da Igreja? — Corliss passou à frente, a fim de apressar o conferencista.

— Não se trata de ataque, e sim de um debate para fins acadêmicos. É o método aristotélico: confrontar opiniões divergentes até chegar a uma solução. No caso, duvidar da onipotência de Deus pode resultar em afirmá-la de fato.

Corliss deu de ombros. Estavam no cruzamento com a alameda Grope, e ela ponderou se Rainulf não se cansava daquelas discussões intelectuais. Talvez ele tivesse nascido para discutir e lecionar, tanto que ela própria absorvia os ensinamentos dele.

— Você é brilhante — elogiou.

— Exagero seu — ele contrapôs.

— Se não fosse brilhante, como é que você, em ape­nas um verão, me fez falar francês tão bem quanto uma princesa da corte?

— Você tem facilidade para aprender idiomas.

— Não seja modesto. Quantas camponesas de Oxfordshire sabem, como eu, calcular a velocidade de um objeto em movimento?

— Seu raciocínio é rápido — Rainulf declarou, an­tes de cumprimentar um grupo de estudantes reuni­dos na esquina. — O mérito é seu, não meu.

— Tolice. Todos os novos conhecimentos que ga­nhei, foram propiciados por você.

Rainulf deu de ombros, afetando modéstia.

— A maioria deles pode ser aprendida com a sim­ples abertura de um livro.

— Simples para você. Acho que eu não consegui­ria...

— Está se subestimando. Também aprendi muito com você, Corliss.

— Por exemplo?

— Diversas coisas importantes. — Ele sorriu. — Mais importantes do que dominar os números ou falar sem sotaque. Morar com você me mudou, para melhor. E... e desfrutei sua companhia.

— O que está tentando dizer, Rainulf?

— Recebi uma carta de Peter, hoje.

Corliss emitiu uma exclamação. Peter havia escrito para ela duas vezes, desde que deixara Blackburn, im­plorando a aceitação de sua proposta de casamento. As duas respostas foram semelhantes: ela se preocupava com o bem-estar dele, tinha afeição por ele, mas como se fosse sua irmã, e portanto devia declinar do convite.

— Peter possui uma grande propriedade e renda maior do que eu imaginava. — A voz de Rainulf, como sua expressão facial, achava-se tensa.

— Já discutimos isso, Rainulf. Não tente me doutri­nar para me casar com mais um... Para me casar.

— Também detesto a situação — ele disse com certa aspereza. — Mas é para o seu próprio bem. Peter é um bom sujeito. Pelo menos pense no assunto.

— Já pensei. — Corliss soou firme, definitiva. — Tenho boas razões para recusar, e as expliquei a você.

Houve uma pausa. Ela sentiu que a tensão do pro­fessor arrefecia gradualmente, como se estivesse ali­viado por suas palavras.

— Peter alega — Rainulf falou devagar — que está loucamente apaixonado por você.

— A paixão dele foi por lady Magdalen. Apenas me pareço com ela.

— Ele insiste em que a ama, e fará tudo para torná-la feliz.

— Minha definição de felicidade é liberdade. O amor de um homem constitui o pior inimigo de uma mulher que almeja ser livre.

A exceção seria o seu amor, ela refletiu. Caso Rainulf a tomasse como mulher, fosse como esposa ou amante, ela continuaria sendo livre. Corliss agora conhecia tal deta­lhe, mas a maioria dos homens não era como Rainulf.

Calados, cruzaram a High Street. Nos degraus da igreja de St. Mary, ele parou e fitou Corliss pensativamente. Um grupo de estudantes aplaudiu o mestre quando, ao lado de sua jovem hóspede, ele entrou na nave do templo e rumou para o púlpito. Alguns alunos ainda disputavam os melhores lugares.

— Só quero ver você segura — ele disse, a caminho. — Se alguma coisa acontecer com você...

— Estou segura com esta roupa. — Com as mãos, ela apontou seu traje masculino. Pensou, mas não dis­se, que tinha um punhal escondido na bota. — Segura e livre. Nunca me senti tão liberada.

Ostentando um sorriso misterioso, Rainulf ainda teve tempo de responder que uma roupa de homem, por si só, não tornava ninguém livre ou segura.

— Ser homem também comporta riscos — finali­zou. — Você tem um falso senso de liberdade.

Ela sorriu igualmente, com a contestação já pronta:

— Eu aceito qualquer tipo de liberdade que possa obter.

Naquela noite, Rainulf e Corliss saíram da igreja cercados por uma multidão de estudantes. Ela havia considerado as teses dele envolventes, mas heréticas. Isso não afetava a condição de o mais dotado professor em Oxford, ser idolatrado pelos alunos.

— Novo triunfo, mestre! — exclamou um estudan­te de capa negra que descia os degraus, às costas de Rainulf. — Gostaria de se juntar a nós no Nightingale, para uma cerveja?

— Não esta noite, rapazes — ele recusou o convite.

— Mestre Fairfax! — O chamado soou atrás deles. Vinha de Thomas, que se aproximava, como sempre se­guido de Brad. — Há um detalhe que não entendi. Por que Deus não pode mover os céus em movimento ret...

— Retilíneo, ou seja, reto — interveio Corliss, para orgulho do professor. — Não pode porque restaria um vácuo.

— E o que há de errado nisso? — indagou Thomas.

— Nunca foi estabelecido — ela continuou, sob a aprovação de Rainulf— que algo como um vácuo pos­sa existir. Caso existisse, a natureza se encarregaria de preenchê-lo...

— Talvez seja melhor — Rainulf a interrompeu, evitando um longo debate — perseguirmos essas ques­tões em minha casa.

Os dois rapazes prontamente aderiram à idéia, mas Corliss hesitou. Com o olhar, procurou Victor, que espe­rava por ela no meio da rua, junto com seus seguidores.

— Tenho um encontro em St. Frideswide.

— Não! De modo algum! — protestou Rainulf. Corliss arfou de indignação. Não estava tão ansiosa assim para participar do encontro, destinado a discu­tir os preços vigentes nas tavernas de Oxford, e temia que o fanatismo de Victor a contagiasse. Mas a arro­gância de Rainulf ao proibi-la de ir a aborreceu.

— Eu vou — disse, e afastou-se até o grupo. Ouviu o professor pedir que os estudantes o aguardassem. Ele avançou e segurou-a pelo braço.

— Quem pensa que é? — Ela livrou-se do agarrão. — Não lhe cabe me dar ordens.

— Tem razão — Rainulf admitiu. — Foi uma rea­ção impensada de minha parte, devida à preocupação com você. Fico aflito com sua associação com Victor e a turma dele. Além disso, é tarde e você teria de voltar sozinha para casa, no escuro.

— Victor mora na zona leste, por isso poderá me acompanhar. Estarei segura.

Rainulf enrugou a testa, exprimindo dúvida.

— Ele é ex-mercenário. Saberá me proteger e che­garei ilesa.

— Está bem. — Deslizou os dedos por seus cabelos. — Apenas volte o mais depressa possível. Ficarei à espera.

Sentada nos fundos da capela de Frideswide, Corliss bocejou durante a reunião inteira, arrependendo-se de ter comparecido ali, em função de uma simples desfei­ta a Rainulf. Em vez de prestar atenção aos discursos, ponderou que tipo de pintura decorativa ela faria ao redor da lareira da sala, a fim de complementar os ma­cacos dançantes que circundariam as janelas.

Desenharia leões, talvez. Neles havia inspirado a iluminura em torno da assinatura do chanceler Thomas Becket, na última página de sua bíblia. Teria tempo de começar outra série de leões na parede nua da sala de Rainulf, enfileirados como se andassem nas bordas da lareira. Imaginou o fogo crepitando e...

— Corliss, acorde! — A mão de Victor sacudiu-lhe um dos ombros. — Foi entediante para você?

— Sim — ela confessou.

— Vamos. — Ele balançou a cabeça. — Posso escol­tar você até a casa do professor.

Nas ruas estreitas, banhadas pela lua, Victor procu­rou justificar o uso de força para alcançar seus objeti­vos, e Corliss fingiu prestar atenção. Perto da St. John Street, ela julgou ouvir passos pesados atrás de si.

Deve ser Rad. Brincou com a idéia de confrontar o mascate, mas não seria sábio fazer isso na presença de Victor. Este, ainda enlevado com a própria retórica, nem havia percebido a aproximação de alguém.

As passadas se aceleraram. Era estranho, pois Rad nunca a havia abordado intempestivamente, preferin­do aguardá-la entre as sombras. Ela voltou-se para olhar, no exato instante em que uma ripa de madeira descia sobre a cabeça de Victor. Ele não emitiu som al­gum, apenas foi ao chão, em rápido colapso. Quem en­saiou um grito foi ela, mas a garganta não obedeceu. Ela lembrou-se das recomendações de Rainulf quanto a fugir de um agressor, em vez de enfrentá-lo numa luta. Não seria o caso. Porém, e se não fosse Rad? O homem era grande como o vendedor, mas usava uma máscara de pano sobre a cabeça e o rosto.

Um espasmo de dor atingiu seu ventre, lançando-a no pavimento, depois de um soco desferido por quem a atacava. Ela aterrissou pesadamente, ao impacto, e enquanto respirava com esforço viu o amigo Victor de rosto contra o chão, desacordado. O agressor vascu­lhou os bolsos e o cinto dele, evidentemente em busca de dinheiro. Ou não? Ele alcançou a bota de Victor e retirou dali uma lâmina brilhante.

Um punhal. A faca de Victor.

— Quer sentir o gosto de sua própria arma? — rosnou o mascarado para o insconsciente Victor e encos­tou a lâmina no pescoço dele. — Você merece isto, seu baderneiro.

Com enorme dificuldade, Corliss aspirou e soltou o ar. Pelo menos, estou respirando. O atacante então jun­tou um chumaço de cabelos de Victor e os cortou, para depois jogá-los no ar. O estudante despertou e prague­jou, sentindo um filete de sangue a sair da boca.

— Burnell! — Victor reconheceu o agressor. — Canalha!

— Sou eu mesmo. — Ele arrancou a máscara, de­pois vibrou o punhal no ar. — Temos a canalhice em comum, concorda?

O brutal taverneiro permaneceu de costas para Corliss.

Meu punhal!, ela lembrou-se. Se agisse silenciosa­mente...

Desceu a mão até a bota, fechou os dedos em torno do cabo da arma e a removeu do esconderijo. Depois, rastejou até os dois homens, enquanto Burnell voltava a encostar a lâmina no pescoço do estudante.

— Acha que vou passar um tempo adicional no pur­gatório, se matar o filho bastardo de um padre?

— Vai arder no inferno, seu filho de uma vadia! — Victor exclamou.

— Só se for para encontrá-lo lá!

Ao acercar-se de Burnell, Corliss ressentiu-se do odor acre do sujo taverneiro. Ergueu-se com cuidado, às costas do homem, puxou-o pela gola da túnica e po­sicionou seu punhal na nuca dele.

— Solte a faca! — ordenou.

— Já! — reforçou Victor.

Burnell largou o punhal, mas agarrou o pulso de Corliss e torceu-o com força. Ainda levou-o à boca e o mordeu, enquanto ela gemia, agachada. A lâmina caiu dos dedos dela. Tentou recuperá-la, porém o tavernei­ro foi mais rápido e a brandiu na penumbra.

Enquanto Corliss e Victor procuravam erguer-se, Burnell, ria, de pé, com um punhal em cada mão. Mediu a distância e chutou a cabeça de Victor. O estu­dante tornou a desabar, e em seguida desfaleceu.

Burnell voltou-se para Corliss e de novo esmurrou-lhe o ventre, cuidando para não feri-la com a faca. Ela também caiu, dobrada sobre si mesma, gemendo de dor. A forma sinistra do taverneiro cresceu acima dela.

— Vocês dois, e os outros, estão me custando di­nheiro. — Ajoelhado, ele quis arrancar a pequena bolsa dela, presa ao cinto da túnica. Não conseguiu, mas enfiou os dedos ali dentro. — Você me deve algu­mas moedas de prata. Que diabo é isto? — perguntou o brutamontes, ao empunhar o pequeno relicário de vidro. — Onde guarda o seu dinheiro?

— Deixei em casa — Corliss balbuciou. Era verda­de, contudo o problema consistia em Burnell acreditar nisso.

Ele veio para mais perto dela, causando-lhe náusea com seu cheiro. Mantendo as duas lâminas numa só mão, o taverneiro usou a outra para erguer a túnica de Corliss e explorar a cintura e as pernas da calça, em busca de uma segunda bolsa, eventualmente oculta.

A sensação da mão que a tateava a encheu de re­pulsa... e medo. Caso procurasse bem, Burnell daria pela falta de algo mais importante do que uma bolsa de moedas. Ela tentou escapulir, e o taverneiro en­costou as lâminas em seu pescoço, fazendo-a sentir as pontas aguçadas.

— Da próxima vez, vou cortá-la inteira — ameaçou o agressor, correndo a mão livre pelo ventre dela.

Corliss moveu-se a fim de barrar a invasão de seu cor­po, mas isso resultou no atrito dos dedos de Burnell dire­tamente no vão das pernas. Ele esbugalhou os olhos.

— O que temos aqui? — A virilha dela foi apalpada. — Ou melhor, o que não temos aqui?

O riso baixo e sinistro de Burnell, ante sua descober­ta, lacerou Corliss por dentro. Ele passou a mão pelo peito dela, investigou o busto e ergueu as sobrancelhas, surpreso com a aparente falta de seios. Conservando uma das facas a centímetros de seu pescoço, ele utilizou a outra para cortar sua túnica. Um segundo golpe abriu a camisa dela, pela frente. Um terceiro desfez a massa de ataduras apertadas que ela usava.

A mão usurpadora tocou-lhe os seios, apertou-os com força. Frustrada pela impossibilidade de reagir, ela socou os dedos que a invadiam. Burnell deu-lhe uma pancada na testa com o cabo do punhal.

Lampejos de luz se sucederam em sua visão, en­quanto a mente ficava anuviada, o que ela considerou uma bênção. Contudo, o atordoamento não foi completo.

Ela ouviu as lascivas exclamações do taverneiro du­rante sua exploração física. Por meio dos olhos tolda­dos, ela o viu prender uma das facas ao cinto e enfiar a outra na terra, entre duas pedras do pavimento.

Então, sentiu o corpo de Burnell sobre o seu.

Não! Não! Inerme, no chão, ela escutou mais uma risada de seu algoz.

— Você existe? — ele perguntou, deslumbrado. Usando os braços, o taverneiro a fez levantar-se e puxou-a para o espaço existente entre dois prédios. Ela novamente procurou esquivar-se, mas ele continuava firme e obrigou-a a deitar-se. Colocou-se ao lado dela, preparando o estupro. Graças a uma nesga de luar, Corliss o viu desabotoando a própria calça.

Não! Por Deus, não!

Foi uma disputa desigual, entre ela que se esfor­çava por manter os joelhos juntos e o homem grande e forte que queria apartar-lhe as pernas. Não entre em pânico, ela recordou a lição de Rainulf durante as aulas de luta corporal. Feche o punho e mire o nariz de seu inimigo.

Ela desferiu o golpe, que redundou numa pancada fraca, mas Burnell uivou mesmo assim, machucado.

— Desgraçada! — Atingiu-lhe a face com a mão es­palmada. — Vou ensinar você. — Respirando sonora­mente, ele ergueu a túnica cortada e desatou o cordão que segurava o calção íntimo da jovem rebelde.

Também pode quebrar um dedo do desafeto, Rainulf havia instruído, mostrando como fazer isso.

Quase sem enxergar, Corliss apanhou uma das mãos de Burnell, localizou pelo tato o dedo mindinho e torceu-o para trás, com decisão. O berro de dor do taverneiro preencheu a viela. Entretanto, faltava a ela espaço para fugir. Não conseguia fazer nenhuma manobra, espremida entre a parede e o agressor. Era impossível. Não obstante, enquanto o inimigo esfre­gava a mão machucada, ela deslizou o corpo ao longo do muro de pedra, mas apenas para defrontar-se com outro obstáculo. Na viela sem saída, havia paredes em três dos lados. No quarto, estava Burnell.

Ela pôde ao menos levantar-se do chão.

Com um grito de raiva, o taverneiro a atacou a so­cos. Corliss desviou a cabeça e imobilizou o homem pela cintura. Sentiu o largo cinto de couro, a bainha destinada a uma arma... o punhal! Sua mão puxou a lâmina pelo cabo um segundo antes de Burnell tentar fazer o mesmo. Ela a exibiu diante dele.

O que faço agora? Onde aponto? O taverneiro va­leu-se desse instante de indecisão e alcançou o pulso de Corliss, que apertou até vê-la abrir os dedos.

Com um grito gutural de triunfo, Burnell tomou posse do punhal. Apontou-o sem demora para o tórax desnudo dela.

— Você parece uma menina travessa. Pensa que é invencível?

Ah, está se julgando invencível, não? O comentá­rio de Rainulf, derrotando-a num exercício após sabo­rear a vitória antes da hora, voltou-lhe à memória. Mas também lembrou-se das instruções e enganchou sua perna na de Burnell, derrubando-o com uma rastei­ra. Na queda, ela também foi levada ao solo. Lutaram selvagemente no espaço confinado e escuro. Às apalpadelas, ela procurava a faca. Burnell a viu primeiro, conseguiu paralisá-la com seu peso e ergueu o punhal sobre a cabeça dela.

Então, ele emitiu um brado de vitória que ecoou pe­las paredes do beco.

Agachado sobre o corpo de Corliss, prendendo-o en­tre as pernas, ele aproximou do pescoço dela a ponta da lâmina fatal.

Valha-me, Deus!

Um segundo depois, com o olhar assustado, Burnell soltou a arma que sustentava nas mãos. Algo quente e úmido se derramou sobre Corliss. Ele desabou em cima dela, a sofrer espasmos enquanto seu sangue fluía.

— Não! — Ela o empurrou para o lado, sem suces­so. O peso do corpo que se debatia e os gemidos que es­cutava a congelaram no lugar. Na boca, experimentou o gosto de sangue derramado pelo agressor.

Corliss fechou os olhos e gritou de pavor, sem en­tender o que havia ocorrido. Subitamente, sentiu o corpo de Burnell ser arrancado de cima dela. Abriu as pálpebras e...

Lá estava Rainulf.

Ele poderia ter colhido o punhal espetado no solo e esfaqueado o taverneiro nas costas, não para matar, mas para libertá-la. No entanto, a lâmina continua­va no mesmo lugar. E Victor estava fora de combate. Teria Burnell se cortado sozinho, com o próprio pu­nhal, enquanto manobrava a fim de possuí-la?

— Corliss! — Ele ajoelhou-se e a tocou. — Você está ferida! O que foi que...

As mãos de Rainulf viajaram do rosto ao peito dela, descobrindo as roupas cortadas, a pele nua ensopada de sangue. Seus dedos ainda avaliaram o corte no pescoço.

— Oh, Jesus! — ele invocou, colhendo Corliss em seus braços.

Um som estranho fez com que ambos voltassem o rosto. Burnell cambaleava na saída do beco, contorcido de dor e raiva, segurando a calça arriada com uma das mãos e pressionando a outra contra seu pes­coço. Ele escapou para o meio da rua movimentada. Despertando, Victor fez menção de ir atrás dele, em­bora um pouco zonzo.

— Esqueça o canalha! — bradou o professor. — Já teve o que merecia!

Victor acatou o pedido.

— Oh, não. Corliss?—ele murmurou, examinando-a na penumbra.

— Ela está ferida — avisou Rainulf. — E pode ser grave.

— Ela? — Victor esbugalhou os olhos, ao mesmo tempo que Corliss juntava as duas metades de sua ca­misa, apesar do tremor nas mãos.

— Não é tão sério — ela falou, sem saber se o as­sombro do estudante se devia ao ferimento visível ou à revelação de seu verdadeiro sexo.

— Isto aconteceu por sua culpa — Rainulf acusou Victor, numa imprevista mudança de ânimo.

Por um instante, Corliss pensou que Victor iria ar­gumentar e rebelar-se, mas ele baixou a cabeça e acei­tou a acusação.

— Agora, faça alguma coisa de útil — Rainulf o ins­tigou. — Traga um cirurgião.

— Qual? — perguntou o rapaz.

— Will Geary. — O mestre não titubeou na escolha. Acomodou Corliss melhor em seu colo. — Tem consul­tório na Pennyfarthing Street. Verá a placa. Leve-o para a minha casa, o mais rápido possível!

Com energia inabalável, depois de vencer o trajeto, Rainulf chegou à frente da casa, carregando Corliss no colo.

— Está tudo bem — ele a animou. Não estava. Corliss tinha sido ferida e ele desconhecia a gravida­de do corte no pescoço. Temia conhecê-la. — Thomas! Brad! Abram a porta!

Ouviu passos na escada e dispensou a ajuda dos dois rapazes, a despeito dos músculos doloridos. Por vezes, Corliss gemia de modo assustador.

— O que aconteceu, mestre? — indagou Thomas.

— Burnell a atacou.

O uso do pronome feminino confundiu os estudantes.

— Ela? — Brad espantou-se.

Ante a hesitação dos dois, Rainulf condenou-se por ter perdido a presença de espírito não uma, mas duas vezes naquela noite. No entanto, como poderia poli­ciar suas palavras quando a mulher que amava tinha sido agredida?

A mulher que amava! Que Deus o ajudasse!

No salão, ele fez uma pausa a fim de verificar o esta­do de Corliss. Ela se achava coberta de sangue, espe­cialmente na parte superior do tronco. Alguns fiapos da roupa cortada estavam empapados com o líquido, que parecia ter parado de fluir, mas deixara manchas vermelhas no rosto e cabelos dela.

Com mais fé do que sentira em anos, ele pediu a Deus que a salvasse.

— Abram a colcha — ordenou aos alunos, já no quar­to. — Tragam-me um jarro de água e panos limpos.

Ele depositou o corpo de Corliss na cama, sussur­rou algo a ela e beijou-lhe a testa, depois os olhos fe­chados.

— Não me sinto tão mal — ela murmurou, esboçan­do um sorriso, sobretudo ao experimentar novos beijos em seus cabelos e faces.

— Fique calada e descanse — ele solicitou.

Os rapazes voltaram ao aposento, com o material pedido, e suas expressões eram um misto de espanto e preocupação.

— Vão lá fora e esperem Victor e o cirurgião chega­rem, para indicar a casa.

Tarefa dispensável, mas Rainulf queria ficar a sós com Corliss, inclinado sobre seu corpo numa vigilân­cia atenta. Ela o reteve com as mãos fracas quando tentou recuar e pôr-se de pé.

— Não vou a lugar nenhum — ele afirmou. — Mantenha-se deitada.

Ele então umedeceu um pano e passou-o pelo rosto dela, cuidadosamente. Emitiu um suspiro de alívio ao constatar que não havia ferimentos ali, exceto por um calombo na testa. De novo, em silêncio, agradeceu a Deus por ter poupado aquele rosto singular, extraordinário.

Molhou outro pano e banhou-lhe a nuca e o pescoço, descobrindo o talho na base. Imaginou o terror vivido por Corliss nas mãos de um verdadeiro animal.

— Burnell tinha uma faca?

— O punhal de Victor. E o meu.

— O seu? Você andava armada? — Evidente que sim, e Rainulf moveu a cabeça, contrariado.

— Você tinha razão. Fui tola em comprar aquela faca — ela se exprimiu em tom angustiado, mas quase inaudível. — Não sabia o que fazer com ela, apenas a carregava escondida na bota, e Burnell a tomou de minha mão. Sinto muito, Rainulf.

Ele somente pediu-lhe calma e silêncio, mas Corliss balançou a cabeça vigorosamente, enquanto seu corpo estremecia.

— Foi tudo minha culpa. Deveria tê-lo ouvido, em vez de sair com Victor. Deveria evitar os riscos de ficar à noite na rua.

— Esqueça. — Tomou-lhe o rosto entre as mãos e forçou-a a olhar para ele. — Nada disso é culpa sua, e sim daquele monstro, Burnell. — Rainulf não, o havia apunhalado profundamente, mas existia a chance de o taverneiro ter morrido, exangue, no lugar a que per­tencia: uma sarjeta imunda.

Novamente ele mergulhou um pano na água, tor­ceu-o e passou a limpar o peito ensangüentado de Corliss, após separar as partes de sua camisa. Ela suspirou.

— Calma. Serei cauteloso.

Delicadamente, ele se debruçou e removeu o san­gue ressecado da pele dela. Revelou-se então um longo corte que abrangia metade do tronco. Ele praguejou.

— Ele sabia que eu era mulher — disse Corliss. — Tentou...

— Mas não conseguiu, certo?

— Não, porque você chegou em tempo. Eu lutei, po­rém Burnell era forte demais para mim. Mesmo as­sim, quebrei-lhe o nariz e um dedo.

— Estou orgulhoso de você. — Ele a abraçou sobre a cama, ponderando se haveria mais cortes escondidos de sua vista. — Preciso tirar essa túnica.

Ele desatou o cinto e jogou-o no chão. Depois, abriu para os lados a peça arruinada, antes branca como a neve, agora tisnada de nódoas de sangue seco. Rasgou a roupa nas partes ainda não cortadas, descartando depois os pedaços de bandagem que ainda lhe cobriam os seios.

O peito de Corliss ficou exposto. Rainulf, no entanto, não pareceu preocupado em admirá-lo, e sim em limpar o sangue restante, sentindo alívio por não encontrar novos ferimentos. Ela teve um arrepio, em contato com a água, e vedou os olhos com um dos braços.

— Ele a cortou em outro ponto qualquer? — Rodeava Corliss, apalpando sua pele, e ela fez um gesto negati­vo com a cabeça.

Graças a Deus, ele pensou, ao dar-se conta de que os ferimentos eram em número e gravidade menor do que ele supunha. O maior volume de sangue em Corliss tinha vindo do próprio Burnell.

— Mas... — ela começou, desviando o rosto com ver­gonha. — Ele me tocou... na virilha.

— Oh, querida. — Rainulf largou o pano na bacia e pegou-a em seus braços. — Acabou. Acabou. Burnell não irá machucá-la mais. Provavelmente, está morto. — Nisso residia sua consolação. A única coisa que o conservava calmo.

Todavia, como alegrar-se com a morte de um ser humano? A formação humanista do professor logo sombreou de dúvida seu espírito. Então, o conselho de Corliss lhe veio à mente: Você questiona tudo. Deixe as incertezas do mundo para suas palestras. Palavras sá­bias, ele definiu. Mais sábias do que as dele, em mui­tos sentidos.

Ele afagou a cabeça de Corliss e beijou as madeixas negras, acetinadas. O tremor havia cedido um pouco, e ele massageou-lhe os braços, recitando uma litania de frases confortadoras.

Parou quando ouviu vozes procedentes da rua. A porta se abriu.

— Will está aqui — anunciou Thomas. Retido por Corliss, Rainulf abortou sua vontade de ir receber o cirurgião. Mas este, seguido dos três rapazes, já se apresentava no vão da cortina de couro do quarto. Will correu até a cama, empunhando sua maleta.

— Corliss? O que aconteceu, rapaz? Disseram-me que estava ferido.

Ela olhou, ansiosa e contrafeita, para Rainulf, de­pois para o médico.

— Posso confiar em seu sigilo para algo importan­te?—indagou.

— Claro.

— A jovem que desapareceu de Cuxham, a governan­ta do padre Osred, a mulher chamada Constance...

Will compreendeu tudo e balançou a cabeça enfatica­mente, enquanto o professor tomava a mão de Corliss. Ele pestanejou, em seguida riu de espanto e ironizou a situação.

— Bem, eu achava que nosso mestre preferia meni­nos, e ele mantinha escondida sua amante, na própria casa, em roupas masculinas...

— Ela não é minha amante — Rainulf corrigiu. — Hospedei-a aqui para protegê-la.

— De Pigot? — perguntou Will.

— E esse o nome do louco que procura as fugitivas de sir Roger? — Corliss interveio.

— E como o chamam. — Will contornou a cama a fim de sentar-se do lado oposto de Rainulf. — Mas nin­guém sabe seu verdadeiro nome. Agora, permita-me examiná-la.

Will aproximou a lamparina que jazia na mesa-de-cabeceira e abriu a maleta. A primeira coisa em que repa­rou foi o calção íntimo de Corliss, de corte masculino.

— Muito esperta, minha jovem.

— Obrigada. — Ela sentiu-se bem por ser assistida por um profissional.

O médico esquadrinhou o rosto de Corliss, tocando le­vemente o calombo na fronte. Logo dirigiu-se a Rainulf.

— Você tem um pouco de manjerona em casa?

— Creio que sim.

— Misture com mel até formar uma papa e utilize como cataplasma, neste ou em qualquer outro feri­mento desse tipo que encontrar.

Corliss já não tremia, porém estava pálida e triste.

— E este é o único corte? — Will indicou com o dedo o talho no pescoço da paciente.

— Não — ela mesma disse, abrindo a camisa o su­ficiente para que o médico pudesse ver o longo corte a faca em seu tronco.

—Canalha miserável! — reagiu o cirurgião. — Perdoe minha linguagem, Corliss. Ainda não me acos­tumei com você como mulher.

— Tudo bem — ela sussurrou. Rainulf não vinha gostando da falta de brilho nos olhos dela e da apatia na expressão facial. Até quando tinha sido vítima da catapora, não perdera o humor e o ânimo, como agora.

Ele meneou a cabeça, inconformado, ao mesmo tempo que Will preparava a limpeza dos cortes com um líquido contido num frasco.

— Vai arder — preveniu.

Ela imediatamente agarrou a mão do professor.

— Por sorte, são somente arranhões — Will asse­gurou. — Com certeza, doem, mas não é preciso co­bri-los. Basta limpar, e vão cicatrizar logo, sem deixar marcas. — Ele depositou o frasco na mesinha, para uso da paciente. — Isso é tudo.

Will arrumou a maleta para sair. Tocou afetuosa­mente a face de Corliss.

— Tome cuidado lá fora — recomendou. — Já vi o trabalho de Pigot com as facas.

— Eu também — ela disse, desalentada.

— Quanto lhe devo? — Rainulf empunhou sua car­teira.

O cirurgião abanou a mão em discordância.

— Não seja tolo. Dispenso seu dinheiro. Pode me pagar tomando conta de Corliss. — Ele cruzou a corti­na e deparou com os três estudantes à espera, senta­dos em torno da mesa.

— Tenha certeza disso — Rainulf respondeu, já diante dos alunos. Will Geary sabia que o professor alimentava algum ciúme dele.

— Vocês, rapazes, devem me procurar assim que for necessário. Virei como um raio! — O médico desa­pareceu nos degraus, permitindo-se um desafio zombeteiro a Rainulf: — Faço tudo por Corliss!

O mestre Fairfax então fez Thomas, Brad e Victor jurarem segredo sobre o sexo dela, e mandou-os embo­ra. Retornou depressa ao quarto, onde Corliss contem­plava o teto, sem expressão.

— Ele me tocou — disse tristemente.

— Quem? Will? — Rainulf sentou-se na cama outra vez.

— Burnell. — Ela abraçou-se como se buscasse am­paro. — Posso sentir as mãos dele em mim.

— Ele deve estar morto, Corliss. Esqueça-o.

— Impossível. Fiquei com o cheiro dele, e o sangue nunca vai sair de minha pele. — Ela estremeceu de novo, a olhar com horror para o próprio corpo. Sem de­mora, Rainulf a acolheu em seus braços, firmemente.

— O cheiro, o sangue vão sair com água e sabão. Vou preparar um bom banho para você, e verá como isso funciona.

Ele arrastou a tina até o aposento e dispôs várias cha­leiras com água para esquentar na grelha da lareira.

— Thomas, Brad e Victor vão me denunciar como mulher?

— Juraram que não. Confio neles, mas... Novamente ele acercou-se e colheu as mãos de Corliss entre as suas. Sentiu-as como que sem vida.

— Mas?... — ela ecoou.

— Não posso garantir que ninguém venha a desco­brir. Pela minha experiência, segredos são frágeis, a verdade é mais forte. Cedo ou tarde...

— Todos saberão que sou mulher — Corliss emen­dou.

— Mas não saberão que é Constance de Cuxham, entende?

— Devo sair de sua casa?

— Não! — Ele foi taxativo.

— E a reitoria? O bispo jamais indicará você se sou­ber que vive com uma mulher. Caso descubra após a posse, tem o poder de destituí-lo. Você sofrerá alguma punição, e sua fama...

— Deixe que eu me preocupe com minha reputação. Você precisa de proteção mais do que nunca.

— Se o preço da proteção for a reitoria...

— Não é hora de pensar nisso nem numa mudança de endereço. Foi ferida por Burnell, e Pigot está à sua procura. — Erguendo as mãos, Rainulf apertou os de­dos nos ombros de Corliss e deu-lhe uma sacudidela. — Prometa que ficará aqui.

— Minha presença o prejudica...

— No momento, não. Ninguém sabe de você. Pare de me exasperar com essa história da reitoria.

— Prometo.

— Ainda bem! — ele festejou, para logo constatar que havia se precipitado.

— Ficarei até a hora certa de me mudar.

— Por que não me permite decidir o que é melhor para você?

— Porque é generoso demais. Se ouvir boatos sobre mim, é capaz de ignorá-los, só para me poupar.

— Não. Não agiria assim. — Rainulf pôs-se impa­ciente, ansiando pelo fim da discussão.

— Você me pediria para sair daqui, se eu me tornar um peso para você, para sua carreira?

— Sim, claro.

Seria verdade? Rainulf conseguiria contrariar seu coração? Talvez, sair da casa não significasse sair da vida dele, ao menos enquanto Corliss permanecesse em Oxford. Ela já conquistara prestígio profissional na Catte Street, a Bíblia de Becket estava quase pron­ta e, além de lucrativas encomendas, ela contava com a admiração geral por seu trabalho. Teria condições, enfim, de pagar por um lugar agradável onde morar.

— Tem certeza? — ela voltou à carga.

— Absoluta. No devido tempo, eu lhe avisarei para sair.

A palidez no rosto dela aumentou. Os olhos se mos­travam embaciados.

— Bom — finalizou. — Acho que a água já está quente. Vou encher a tina.

— Não, você continua descansando, eu preparo seu banho.

Depois de fechar a cortina de couro atrás de si, Rainulf serviu-se de conhaque na sala principal. Es­cutou o chapinhar da água e julgou prudente ver se tudo corria em ordem. Abriu uma fresta na cortina e viu Corliss, com a pele doentiamente alva, acabar de sentar-se dentro da tina, portando sabão e esponja. A cena lembrou-lhe o momento em que a espiara ba­nhar-se, no Castelo Blackburn, e sentira uma robusta ereção. Agora, era um pouco diferente. Seu desejo por ela continuava inegável, mas Corliss, machucada no corpo e na alma, tinha menos vivacidade, menos poder de fascinação do que antes.

Ele trocou a camisa manchada de sangue por outra, limpa, e contemplou a bebida enquanto girava o copo. Seus pensamentos dispararam. Como seria assumir a reitoria da Universidade de Oxford, abrindo mão de le­cionar por tarefas administrativas? Rotina estéril, sem paixão. Refletiu sobre Corliss e sua façanha: deixá-lo apaixonado. Ela o havia tornado humano, despertando a criatura hibernada que ele fora por muitos anos.

Ouviu o som suave de uma respiração. Depôs o copo de conhaque e cruzou a divisória de couro.

— Corliss? Você está bem?

Ela não respondeu, porque a tomada de ar agora se mostrava difícil, entre soluços contidos. Havia sen­tado dentro da tina, dobrando e cingindo os joelhos, a pele arrepiada de tremor. Rainulf pressentiu que ela lutava contra o pranto.

Ele circundou a tina de madeira até ajoelhar-se na frente dela. Podia ver, fora da água, a cabeça e os om­bros de Corliss, tensos graças à tentativa de evitar as lágrimas. Com os dedos, ele afagou-lhe os cabelos mo­lhados. A nudez, por menos que ele pudesse enxergá-la, gerava uma aura de vulnerabilidade.

— Solte-se, Corliss — ele aconselhou. — Vá em frente e chore.

— Sim — concordou ela, ao mesmo tempo que sentia as mãos de Rainulf atritando seus ombros e costas. Após inclinar-se, ele a beijou no alto da cabeça. Esse simples gesto de afeição desencadeou um pranto sofrido, entre­meado de soluços.

— Tudo bem. — Ele a segurou como pôde, naque­las circunstâncias. — É assim mesmo. Você se sentirá melhor.

Corliss meneou a cabeça, aparentemente concor­dando, mas logo chamou a si mesma de idiota.

— Não é verdade — Rainulf atalhou. — Já lhe disse que não foi culpa sua. Não se atormente à toa. — Seguiu murmurando palavras de consolo até que as lágrimas diminuíram e a respiração voltou ao normal.

Haviam invertido as posições, pensou o mestre Fairfax. Antes, era ela quem tentava alegrá-lo, encorajando-o a abrir o coração em vez de analisar e ques­tionar tudo. Agora, mesmo com o choro estancado, ela parecia infeliz, devastada. O ato de esfregar o rosto não lhe devolveu a cor habitual.

Rainulf desdobrou a toalha disponível ali e exibiu-a à frente dela, mantendo-se de cabeça baixa atrás do tecido de linho.

— Pode levantar-se e sair — estimulou-a.

Corliss vacilou um pouco, mas percebeu que a toa­lha a protegeria da visão de Rainulf. Ele a enrolou na peça branca, amparou-a pelos ombros, com o braço ro­deando sua cintura.

— Pronto, não é preciso chorar mais. — Virou-se de costas para que ela removesse a toalha e vestisse seu robe de seda sobre a pele nua. Então, examinou o talho no pescoço, semiencoberto pela gola da roupa. — Quer que eu aplique mais um pouco do unguento que Will deixou?

— Sim — Corliss murmurou.

— Deite-se — ele solicitou, apanhando o frasco na mesinha e um pano limpo.

Molhou-o com o líquido e desfez o laço do robe. No­tou que ela fechava os olhos durante o procedimento no pescoço e no tórax. Ele sabia que o remédio causava ardência, mas Corliss não se queixou. Apenas a respi­ração se mostrou um pouco arfante.

Impulsivamente, o que era raro, ele vergou-se so­bre a cama e alcançou o pescoço dela com os lábios.

A sensação foi intensa, erótica. Deslizou a boca sobre a pele macia, beijou o lugar vezes e mais vezes. Sentiu seu membro se enrijecer na virilha. Colheu o rosto de Corliss entre as mãos, levou os lábios ao queixo dela e abaixo. Foi indescritível o prazer que sentiu. Do quei­xo, ele passou à curva suave de um ombro e, depois, ao lóbulo da orelha. Ouviu o suspiro de Corliss.

Ele a acariciou nos cabelos. Ela ofereceu-lhe todos os lados da cabeça, girando-a, em resposta às suas gentis atenções. Mas, quando ele a beijou na face, experimen­tou um gosto de sal. Sem hesitar, secou com a língua as lágrimas restantes. O instinto agora o dominava. Nunca havia se sentido tão livre e solto, tão focado em prazeres que não fossem os intelectuais. O calor que o consumia não estava restrito à área genital. Seu corpo inteiro latejava com energia e poder que iam além da volúpia, pois prometia infinitas possibilidades.

Ele pressionou os lábios nas pálpebras inchadas de Corliss, e depois na ponta do nariz. Sua boca pairou sobre a dela, e pela primeira vez naquela noite ele a fitou diretamente nos olhos. Deparou com dois poços negros circundados por sardas douradas e cor de bron­ze. As íris brilhavam, maravilhadas com o que viam.

Rainulf sentiu o mesmo deslumbramento, a mesma incredulidade.

Ambos trocaram um sorriso, como prova de um igual desejo, uma igual propensão a fundir os dois cor­pos num só. Ele jamais havia vivenciado tanta intimi­dade, com ninguém.

A boca de Corliss o atraiu, o contato entre os lábios já não podia ser adiado. A perspectiva de beijá-la, após meses de espera, potencializou sua excitação, fazendo de seus sentidos um turbilhão incontrolável. Ela o fo­calizou, cheia de intenções, e a respiração se acelerou conforme ele baixava a boca para o contato com a dela. Um segundo antes, ambos cerraram os olhos.

Os lábios de Corliss eram seda cálida sob os seus. Ainda tinham um gosto levemente salgado. De início, ele a beijou com vagar e ternura, mal roçando-lhe a boca, porém percebendo nela sinais de rendição e de prazer, promessas de amor sem palavras. Ele aprofun­dou o beijo, devorando-a como se cobiçasse vivamente as delícias que poderia usufruir e que havia reprimido por tanto tempo.

Reabrindo os olhos, ele notou a expressão de encan­tamento na parceira. Seria possível que Corliss nun­ca tivesse acolhido na boca a língua de um homem? Bastante provável, assim como não havia sido possuí­da devidamente e nem beijada com paixão. A despeito de sua experiência sexual, existia um vazio, uma ino­cência peculiar nela. Mas o mesmo podia ser dito dele, após onze anos de abstinência. Corliss tinha muito a aprender. Ele, a recordar. Um ensinaria ao outro, numa união abençoada pelos deuses do amor.

Voltou a provar da boca da parceira, agora tocando-a com a ponta da língua. Ela ficou toda arrepiada.

Apartou os lábios e projetou sua própria língua para o encontro com a dele. Sim, era bom, muito bom.

Corliss o segurava pela nuca enquanto explorava aquele inédito prazer. De Rainulf ouviu suspiros de satisfação. Apenas uma vez ele vibrou a própria lín­gua contra a dela. Posicionou-se sobre ela, deixando uma perna no meio de suas coxas, para que ela sentis­se no ventre o poder do membro rígido.

Cedo demais. Você está próximo de terminar, ele ra­pidamente cogitou.

Interrompendo o contato, ele soltou seu peso e com isso os lábios retomaram a linha da nuca de Corliss. Afastou a gola do robe e deu-lhe beijos que traçaram uma trilha na base da cabeça. Deitou-se de lado, bus­cando com a boca o centro do colo dela, respirando a doçura da pele, mesclada ao aroma do unguento.

Sentiu o seio sedoso de encontro a seu rosto, identi­ficou a rigidez do mamilo conforme atritava o robe. A excitação o engolfou. Os braços se apertaram em tor­no dela. Quando percebeu o toque das delicadas mãos em seus cabelos, escutou um suspiro entrecortado de emoção. Levou alguns segundos até dar-se conta de que o som vinha dele próprio.

Imersa em sensações novas, Corliss fechou as pálpebras. Sentiu a maciez dos cabelos de Rainulf entre seus dedos, o calor da respiração dele através do fino tecido que a cobria. A sufocante melancolia anterior havia praticamente evaporado, como o nevoeiro da madrugada sob o sol intenso da manhã.

Outra vez ela experimentou, no centro do colo des­protegido, o leve arranhar da barba de Rainulf, sempre crescida ao anoitecer. Agora tinha certeza de que tal contato era deliberado. Ele se aninhava ali, roçando o queixo em sua pele. A fricção contra seu mamilo pro­duziu arrepios de prazer, que se espraiaram pelo corpo todo, sobretudo entre as pernas.

Seguiu-se um calor por seu corpo, quando ele des­velou os seios e os beijou sucessivamente, fazendo com que ela arqueasse as costas. A sucção dos mamilos pelos lábios dele gerou mais tensão sensual e impaciência.

A boca que a sugava era quente e úmida. À primei­ra carícia com a língua, ela gemeu. Rainulf colocou a perna sobre a dela, de modo a permitir que a firme ereção descansasse sobre sua coxa. Assim permanece­ram por um longo interlúdio.

Ofegante, ela sentiu umidade nas partes íntimas. Espantou-se com isso e com as pulsações prazerosas que experimentava. A última vez que as sentira fora naquela noite em Blackburn, quando Rainulf introdu­zira a mão debaixo de sua saia. Ela considerou uma revelação o fato de excitar-se com tal tipo de toque.

Entregou-se sem reservas à boca e às mãos que ex­ploravam seu corpo. Mãos feiticeiras.

Rainulf então pressionou o ventre dela contra si, e Corliss balançou os quadris intuitivamente. Ele rea­giu à óbvia necessidade dela, levando os dedos até o ardente centro de sua feminilidade. Ela pensou que iria enlouquecer de prazer. O robe foi retirado por com­pleto e ela, desnuda, agarrou os cabelos de Rainulf en­quanto, de cabeça enterrada entre as pernas dela, ele prodigalizava carícias íntimas com a boca e a língua, sondando as dobras úmidas. Para Corliss, uma sensa­ção alentadora e, ao mesmo tempo, um tormento.

— Rainulf... Rainulf — sussurrou.

Ele ergueu a cabeça e a contemplou com o mesmo olhar voraz, selvagem, que exibira certa vez, ao afas­tar-se dela após lhe proporcionar igual prazer. Agora, por certo ele ficaria ali, a fim de consumar o ato de amor. Era o que ambos queriam.

Ao lado de Corliss, Rainulf tirou a camisa e remo­veu a calça, que chutou para longe. Céus, ele é mag­nífico, ela avaliou, atenta às formas que compunham o belo exemplar de homem. Pondo-se de pé a fim de abraçá-lo, ela também surgiu em toda a sua formo­sura. Por alguns instantes, os dois somente trocaram olhares, nus e juntos pela primeira vez.

O corpo esguio de Rainulf concentrava imensa ener­gia, como provava o membro ereto que se destacava de seus pelos pubianos. Ela examinava o órgão masculi­no com interesse, mostrando que ainda tinha muito a aprender sobre os homens.

Transportado pela beleza de Corliss, Rainulf des­lizou os dedos por seu rosto, pescoço, ombros, seios, ventre e nádegas, tão excitado quanto envaidecido.

— Você é incrível. Mal posso acreditar em como é bonita.

— Você também — ela retrucou, sentindo que era sua vez de explorar o corpo de Rainulf.

Correu as mãos pelo peito firme, pelos braços musculosos, pelos glúteos estreitos, até atingir o sexo dele, que empalmou com vontade. Rainulf gemeu de satisfação e procurou seus lábios, para um beijo fervoroso, enquan­to lhe segurava os punhos interesseiros. Novamente as línguas trabalharam numa invasão compassada das bocas. Na seqüência, ele a cingiu pelas nádegas, e ela o abraçou pelo pescoço, num contato total que represen­tava o prelúdio da posse e da entrega.

De repente, ele a largou e retrocedeu.

— Por Deus, Corliss! O que estou fazendo?

— Pensei que tínhamos um acordo tácito para...

— Não posso. Vou machucar você!

Ela riu alto, descrente do que ouvira, e tentou reto­mar o abraço.

— Se não terminar o que começou, Rainulf, eu é que vou machucar você!

Mas Corliss ficou gratificada por ouvir a risada dele. Foi erguida no colo de Rainulf e levada à cama, vendo que ele estava quente, rígido e pronto para pos­suí-la. Trêmula de tensão, ela também se mostrava pronta, tanto que se apoiou nos ombros dele e arqueou as pernas.

— Não — ele recalcitrou, posicionado para o ato, mas sem movimentar-se para consumá-lo. Os ombros acusaram a pressão feita por ela.

— Rainulf... Oh, Deus! — A frustração abateu-se sobre ela, os olhos marejaram. Teria ele mudado de idéia, após anos de castidade?

— Corliss, não posso...

— Inacreditável — ela protestou.

— Não posso fazer isto sem lhe dizer que a amo. Estou apaixonado por você, Corliss.

Rainulf flexionou as nádegas e a penetrou.

— Oh... — Ela ria e gritava a um só tempo, à mercê de uma deliciosa intrusão. — Também te amo. Amo e sempre amei.

Os olhos dela, semicerrados de êxtase, derrama­ram lágrimas. Rainulf estava feliz com a declaração de amor que recebera. Sorrisos semelhantes os apro­ximaram ainda mais, numa fusão de sentimentos e sensações que beirava o deslumbramento.

Ela o amava!

Preocupado em não machucá-la, dosou as estoca­das, depois de presumir que ele chegaria ao auge com extrema rapidez. Mas Corliss meneava as nádegas, fruindo o delirante contato, e ele, vendo que o clímax dela se aproximava, decidiu ir devagar, ao preço da própria urgência.

A mudança de ritmo frustrou-se no momento em que Corliss avançou as mãos até os glúteos dele e pressio­nou-os contra si, firme e compassada-mente. Era um silencioso, porém eloqüente, apelo ao desfecho da re­lação. Ele saiu de dentro dela e voltou a arremeter, em maior profundidade.

Ainda não, ainda não... Entre gritos e movimen­tos, Corliss tentou adiar o fim, mas os espasmos se multiplicaram em suas entranhas, e ela abandonou-se à intensidade do prazer, o corpo inteiro tomado pela volúpia. Rainulf também não era indiferente às sen­sações que praticamente tinha esquecido.

Assim, gemeram em uníssono e atingiram o clímax.

Para Rainulf, foi incrível como Corliss, uma cria­tura virginal, pôde fazê-lo olvidar todas as mulheres com que havia se deitado. Seria o caso de dizer que, tal como para ela, tinha sido sua primeira vez.

— Gostaria que ficasse dentro de mim para sempre — ela murmurou.

— Eu lhe daria tudo isso, se fosse possível.

Por um momento, ele tornou-se sóbrio, como se a realidade se intrometesse em seu prazer. Agora, eram amantes, ele e Corliss. Amantes num sentido mais do que físico. Rainulf a amava. Necessitava dela.

Também queria a nomeação para a reitoria da uni­versidade, dali a no máximo duas semanas. O homem que tivesse uma amante poderia lecionar, caso des­cartasse cargos administrativos, porém não poderia sonhar com uma alta posição em Oxford. Seria inútil manter uma companheira secreta, dentro ou fora de casa. Ele havia visto colegas arruinados por causa de al­guma mulher que não imaginavam ser descoberta.

Os dedos de Corliss em sua testa afastaram essas sombrias divagações.

— Não deve ficar triste — ela o instigou.

— As coisas mudaram entre nós — ele rebateu, após um longo e exaltado suspiro. Encostou a fronte na de Corliss e acariciou-lhe os cabelos.

— Sim, vamos nos amar pelo tempo que durar — ela disse, mais realista.

— Tomara que dure para sempre.

— Também quero. — Uma ponta de desespero lancetou Corliss, por saber que seria impossível. Não suportava essa dura verdade, sobretudo quando os braços de Rainulf a envolviam e os dois corpos conti­nuavam colados. — Prometa-me não pensar em sua carreira quando estivermos juntos. Temos até o fim do verão para sermos felizes, fazendo amor.

Ele sorriu e apertou-a contra si, renovando o conta­to íntimo entre as virilhas.

— Você é perita em mudar de assunto.

As pernas dela o envolveram, com os pés em suas costas, e Corliss riu deliciosamente, por não ter imagi­nado que um casal pudesse juntar-se naquela posição.

— Quero possuir você de novo — ele murmurou, agarrando-lhe as nádegas a fim de reforçar o contato físico. Sua ereção havia se desvanecido, mas não por completo, e a fricção contra a intimidade de Corliss era incrivelmente estimulante.

Logo, ela se posicionou, pendeu no pescoço e nos om­bros do amante, arqueou as costas. Era como sabia fa­zer, e vibrou com as novas arremetidas de Rainulf, ago­ra combinando os próprios movimentos com os dele.

— Céus, como você é bonita! — ele elogiou, ouvindo alguns rangidos do colchão.

Suada, ela o tocou em todos os pontos acessíveis, e a conexão lasciva cresceu em urgência e qualidade. Rainulf lançou a cabeça para trás e, com uma expres­são de excruciante prazer, cravou os dedos nos qua­dris dela e emitiu um grito gutural, símbolo do clímax que atingia. Corliss sentiu o jorro da semente mascu­lina dentro de si, e em seguida também explodiu de satisfação.

Oh, sim!, ela refletiu, molhada de transpiração e de volúpia. Estremeceu quando Rainulf desabou para o lado, arfante. Pouco depois, os beijos mútuos na boca e por todo o corpo os reuniram na fruição plena daquele momento inolvidável.

Eu o desejo dentro de mim, hoje e sempre.

Rainulf acordou e piscou ante a luz brilhante, que não respeitava a cortina de couro. Passara quase a noite toda em vigília, só queria ficar deitado e dormir, mas a luz do sol era forte.

Sorriu ao se deparar com Corliss, estirada de costas e adormecida. Recebia no rosto e nos braços a difusa cor dourada do dia. Como criança, dormia com ele­gância, a mão pousada na face, as pernas em ângulos estranhos. Respirava devagar e firme, com os lábios levemente abertos a mostrar seus dentes perfeitos. Na fronte, uma mecha de cabelos completava a imagem de sensual abandono. Cheirava bem, deliciosamente sedutora.

A noite anterior havia sido um festim de paixão, dig­no de compensar anos de abstinência. Ávido, ele tinha se comportado como um adolescente no auge da potên­cia. Possuíra Corliss diversas vezes, numa variedade de posições que espantara a parceira, porém ela estava igualmente sedenta de aprender, disposta a agradar. E o havia agradado muito, sem nenhum senão.

Ele não tivera de esforçar-se para levá-la aos pináculos do êxtase sensual, ao contrário do que lhe su­cedera com diversas conquistas amorosas de sua ju­ventude. Corliss era participativa, maravilhosamente desinibida, livre para assumir suas reações e não aba­far seus gritos de prazer.

O único instante que a chocara, em meio ao en­contro íntimo, dera-se quando ele levara a boca ao úmido ninho abaixo dos pelos pubianos, para sugá-la. Inicialmente calada, ela havia afastado a cabeça dele com decisão. Paciente, ele tivera de persuadi-la a per­mitir aquele tipo de contato, acenando com a chance de uma nova e marcante sensação. Por fim, a resistên­cia dela foi substituída por suspiros de gratificação.

O êxtase dela tornou-se seu também. Corliss assi­milava tão rapidamente as lições, que logo o assom­brou, retribuindo-lhe a carícia especial. Ele já perdera a conta de quantas vezes tinha alcançado o auge, mas seu sonho se convertera em realidade: ambos podiam unir-se para sempre, em sensual arrebatamento.

Após os excessos da noite, ele sentia-se drenado de energia vital, porém ainda palpitava com a ne­cessidade de reclamar seu território, de dominá-lo. Reclinando-se, introduziu os dedos sob a camisa que recobria Corliss. Muito lentamente, espalmou a mão em cima de um seio, depois do outro. Apreciou o calor ali concentrado, o enrijecimento dos bicos. Era mara­vilhoso apalpá-la daquele modo, quando ela dormia alheia ao mundo.

Não se julgou invasivo nem desleal. Movido por nada além do que o amor, foi descendo os dedos e fruiu o curioso dobramento do umbigo. Dali, sem pressa, ex­plorou as pernas semiabertas, com a leveza de uma pena. E mesmo assim, mesmo adormecida, ela mexeu-se na cama como se percebesse e apreciasse o afago. Sua respiração pareceu acelerar-se.

Com movimento cauteloso, ele explorou a virilha de Corliss, ousando projetar um dedo para dentro de sua feminilidade. A reação dela foi uma contida exalação de ar. E ainda estava dormindo, admirou-se ele.

— Rainulf... — ela sussurrou em estado semicons-ciente. Despertou de vez e deparou com o amado pra­ticamente sobre seu corpo, pronto para penetrá-la. — Sim, sim... — aprovou.

Ele pressionou o ponto mais sensível de Corliss, na intenção de deixá-la louca de desejo, antes da posse inadiável. Deu certo. Ela serpenteou debaixo dele, suspirando de vontade, até posicionar-se para a nova entrega.

Mas a porta se abriu. Soaram passos na escada.

— Luella! — Corliss exclamou.

Ouviu Rainulf rosnar, enfurecido. Por dois segun­dos, os amantes ficaram petrificados. Suspenderam a relação, já perto do fim.

— Padre Rainulf? — chamou a governanta, da sala principal. — Está em casa?

Ele não conseguiria parar. Não naquele momento.

Agarrando as nádegas de Corliss, acelerou o ritmo das estocadas, fazendo a cama balançar. A mulher em seus braços tremia violentamente, mas não podia gri­tar ou gemer.

— Corliss? — A divisória de couro foi aberta e Luella entrou, em passos pesados. Agora estava no quarto, separada deles apenas pelo cortinado da cama.

De boca aberta, mas sem qualquer palavra, Corliss sentiu suas contrações íntimas apertarem Rainulf, e então ele descarregou seu sêmen dentro dela. Na me­dida em que o orgasmo sucedeu, ele soltou-se no leito, suspirando. Abraçaram-se em afetuoso silêncio, en­quanto Luella saía do aposento e fechava a cortina.

— Acha que ela escutou? — Corliss inquiriu.

— Não sei. — Rainulf lembrou-se do que ela havia dito na noite anterior, sobre abandonar a casa se al­guém mais descobrisse seu verdadeiro sexo. — Não. Luella nada ouviu. Essas cortinas são grossas.

Corliss relanceou o olhar ao pano do dossel, como que verificando se era realmente pesado. Enquanto isso, ele prendeu a respiração, retomando-a apenas quando ela sinalizou sua confirmação.

Luella desceu a escada devagar, abriu e fechou a porta de entrada. Sua voz ressoou da calçada, ao cum­primentar um vizinho e contar que ia às compras. Os amantes se separaram fisicamente. Rainulf sentou-se na cama.

— Você deve estar dolorida, não? — ele perguntou.

— Um pouco, mas valeu a pena. — Ela exibiu um sorriso, porém havia tristeza nos olhos. — Você sabe que, agora, preciso deixar a casa e alugar meu próprio...

— Não! — cortou o professor, impaciente. — Luella desconhece o segredo e, se formos discretos...

— Sei disso.

— Então, por que sair daqui? Você disse que ficaria até outras pessoas suspeitarem.

— Isso foi antes de... — Ela contemplou os lençóis desfeitos, os travesseiros amarfanhados. Assumiu um ar pesaroso. — Era perigoso antes disso, mas agora...

— Não me fale de perigo. Pigot continua espionan­do, procurando você. Precisa de minha proteção.

— Meu disfarce como homem é a minha proteção.

— Ainda acredita nisso? — Rainulf mostrou-se frustrado. — Você, Corliss, tem o mau hábito de con­fundir suas intenções com a realidade. Corre um sé­rio risco. Deve permanecer aqui até eu encontrar aco­modações seguras para você, em algum outro lugar. — Ele colheu o rosto dela entre as mãos. — Você disse que tínhamos prazo até o fim do verão. Vou cobrar sua palavra, e serei um maldito covarde se permitir que mude de idéia.

Rainulf pareceu disposto a falar mais, porém ela o cortou.

— Ficarei até que você seja formalmente indicado para a reitoria. Mas terei de me afastar de você e de­sistir de encontros sigilosos. Odeio essa situação, mas, ante o perigo, é o único meio.

Ele fechou as pálpebras, na tentativa de assimilar a imutabilidade dos fatos.

— Por suposição, não devíamos nem tocar no as­sunto. Vamos apenas nos amar sem restrições, sem conversas.

Uma hora depois, Corliss tomava o desjejum ao lado de Rainulf. Foram interrompidos por um violento golpe na porta. O que seria aquilo?

— Mestre Fairfax! Mestre Fairfax. Venha depressa!

— É Thomas. — Ele reconheceu a voz e partiu es­cada abaixo. Corliss o seguiu. Na calçada, depararam com Thomas e Brad, ofegantes e aflitos.

— É Victor, mestre — disse Thomas.

— Um grupo de pessoas o arrancou da cama e ele está sendo linchado — relatou o outro.

— Droga! — Rainulf e os dois estudantes saíram correndo. Corliss teve dificuldade em acompanhá-los, mas correu também.

Vozes em fúria se elevavam no ar quando chega­ram. Um círculo se formara em torno da figura ensan­güentada que jazia no chão. Era Burnell. Dois homens seguravam Victor pelos braços, obrigando-o a ver o cadáver do taverneiro. O estudante já sofrera socos e talhos a faca. Em volta do pescoço, o laço de uma corda para enforcamento.

Victor ainda teve forças para inclinar-se e saudar Rainulf.

— Incomoda-se de limpar meus ferimentos, antes de quebrarem meu pescoço?

— Onde está o delegado? — Rainulf abriu passa­gem no meio do círculo.

O homem que empunhava a ponta da corda, dono de feições vagamente familiares, apontou-lhe um dedo ameaçador.

—Maldito delegado! — gritou. — Maldito Victor de Aeskirche! Malditos todos vocês! — Uma turma de estudantes, em suas becas negras, xingavam o algoz e gesticulavam obscenidades.

Rainulf rodeou Victor, atentando para o pescoço arranhado.

— Por que pretendem enforcá-lo?

O detentor da corda indicou o corpo sem vida no solo.

— Ele matou meu irmão! — bradou um senhor ro­busto.

— Matou o irmão de Pyt! — alguém acrescentou.

— Bastardo! Merece morrer! — Pyt tomou posse da corda, puxando o estudante para fora do alcance dos outros.

— Na noite passada, este filho de uma rameira ata­cou meu irmão e cortou-lhe o pescoço.

Inquieta, Corliss avançou na direção do irmão de Burnell. Rainulf a deteve pelo braço e disparou um olhar de alerta. Ela compreendeu perfeitamente. A multidão estava reunida para um enforcamento, que também poderia ser o dela. Não desejava ser sacrificada, claro, mas igualmente não queria ver Victor pagar por algo que não havia feito. Se alguém podia responder pela morte do taverneiro, era ela, ou o acaso. Embora poucos aceitariam uma alegação de legítima defesa.

— O que o leva a pensar que Victor é o responsável por isto? — falou Rainulf em tom autoritário.

O grandalhão socou Victor no abdômen, depois en­tregou ao professor um punhal. Acercando-se, Corliss viu gravada, no cabo de osso, a inicial "V".

— Encontramos esta arma na St. John Street, no fim de uma trilha de sangue — declarou Pyt. — Todos sabem que pertence a Victor. Ele já chegou a brandi-la contra Burnell, na taverna.

— Alguém aqui se preocupou em interrogar Victor? — Rainulf desafiou. — O que ele diz? — Talvez se abrissem alternativas no episódio.

Pyt resmungou, exprimindo contrariedade:

— Ele tem pouco a declarar. Alega que não sangrou Burnell, mas não revela quem o fez. Um homem culto como o senhor perceberá que Victor está mentindo.

Oh, não! Corliss concluiu que Victor a protegia! Poderia tê-la citado como participante da horrível cena na viela, porém tinha preferido suportar sozinho o espancamento e a perspectiva da morte iminente. Ela não iria deixar isso acontecer. Tinha de alterar o rumo dos acontecimentos.

— Enforquem o bastardo! — alguém bradou, e logo se estabeleceu um coro sinistro: — Enforquem o bas­tardo!

Assim que Victor começou a ser empurrado do lu­gar, uma platéia de estudantes, amigos dele, passou a juntar pedras e atirá-las contra Pyt e os outros. Alguns possuíam punhais sob as capas negras, porém evitavam exibi-los.

— Esperem! — Rainulf reteve Pyt pelo braço. — Vocês não têm o direito de decretar a morte de um homem sem julgamento.

Pyt encarou o professor de frente.

— Mas ele tinha o direito de fazer o que fez com meu irmão? — Apontou o cadáver. — Veja o que res­tou dele!

Foi Corliss quem olhou, dessa vez com maior aten­ção. Os olhos estreitos de Burnell estavam semiabertos; sua pele, doentiamente incolor; a túnica grossa, salpi­cada de sangue coagulado, a calça que lhe recobria as pernas, igualmente tisnada de borrões vermelhos.

A calça!

Ela solicitou a atenção de Rainulf para o detalhe.

— A calça! — Agarrou o braço dele. — Alguém a colocou no lugar.

Absorto na descoberta feita, logo o professor se ma­nifestou:

— Quem achou o corpo? — perguntou a Pyt.

— Marley, o carroceiro. Venha cá, amigo.

Um homem forte adiantou-se, com ar de descon­fiança.

— Eu vinha dirigindo minha carroça por aqui, de madrugada, e vi o corpo de Burnell estirado na rua. — Fez uma pausa e trocou olhares com Pyt. — Chamei Pyt para que visse o que tinha sido feito com seu irmão.

— Você tocou o cadáver? — Rainulf quis saber. — Mudou alguma coisa de lugar?

— Não, de modo algum. — Apesar de inculto, o car­roceiro parecia conhecer as regras. — Fiquei longe do corpo.

— E você, Pyt? Mexeu no cenário do... crime? Corliss entendeu a estratégia de Rainulf. Caso ele afirmasse que Burnell tinha a calça baixada, na noite anterior, todos se perguntariam como ele sabia disso. Poderia ficar claro que ele — e ela — estavam na viela quando o taverneiro encostara o punhal em seu pesco­ço, na tentativa de estuprá-la.

— Não percebo onde quer chegar — Pyt protestou. — Também não é de sua conta se toquei em Burnell.

— Talvez não — contestou Rainulf. — Mas o de­legado por certo vai julgar que é da conta dele. Não vai gostar de que a cena do crime tenha sido alterada. Agora, pense bem. — Ele falava com Pyt, mas olhava para Victor, que mantinha a testa enrugada de sur­presa. — Ajeitou a roupa de seu irmão?

— A calça estava arriada até os joelhos, ontem à noite — disse Victor. — Foi assim que vi Burnell pela última vez, correndo e segurando a calça.

Um murmúrio de comoção borbulhou entre a pla­téia.

— Você suspendeu e prendeu a calça na cintura de seu irmão? — O tom do professor foi atemorizante.

— Não! Não fiz nada disso! — Pyt retraiu-se, abati­do pela insinuação.

Corliss notou o ar cético de Rainulf. Ele, em vez de confrontar o adversário, voltou-se para o carroceiro.

— Então, deve ter sido você. O delegado vai ficar contente em saber. Você terá sorte se escapar sem ne­nhuma penalidade.

— Não fui eu — o carroceiro choramingou. — Foi Pyt.

— Seu porco imundo! — Pyt reagiu, denunciando-se.

— É verdade — Marley prosseguiu. — Juro pela alma de minha mãe. Eu vi Pyt arrumar a calça de Burnell.

— E daí? — O grandalhão esbravejou contra Rainulf. — Cabia a mim vestir o falecido, para dar-lhe alguma dignidade. Qual o problema?

— O problema — explicou mestre Fairfax, em tim­bre alto para todos ouvirem — é que você modificou as provas. Se Burnell tinha a calça arriada, isso poderia indicar que a suposta briga ocorrida foi de natureza inteiramente diferente da que você está supondo.

Houve novas exclamações de espanto.

— Recomendo palavras mais simples — Victor su­geriu, secamente. Recebeu mais um soco no estômago pela insolência, mas dessa vez pareceu a Corliss que, por ser fraco, não causara danos.

— Em outros termos — Rainulf continuou, adotan­do a sugestão —, se é verdade que Victor derrubou Burnell e cortou-lhe a garganta, por que seu irmão estava de calça abaixada? É possível que Burnell esti­vesse fazendo algo obsceno, quando Victor apareceu.

Pyt assumiu uma expressão de ofendido.

— Está tentando dizer que meu irmão tinha o hábi­to de urinar na rua?

— Não é bem isso... — Rainulf opinou.

— Ele era casado! — retrucou Pyt, após refletir nas implicações do comentário.

Novamente a pequena multidão manifestou-se, so­bretudo os estudantes, conhecedores da baixa moral do falecido e de sua propensão a conquistas amorosas.

— Burnell — arrematou o professor — tinha uma reputação de infidelidade conjugal. Creio que tentava forçar alguma mulher, quando tudo aconteceu.

A troca de olhares entre os homens foi completada por uma negativa categórica de Pyt, com a cabeça.

— Não pode falar isso de meu irmão! — Pyt fra­cassou na intenção de mostrar-se insultado ou feroz, porque os murmúrios contra ele e Burnell cresceram.

— Calem-se! — alguém gritou. — Deixem-nos ouvir o professor.

— Minha hipótese — ele não se fez de rogado —, é que na noite passada Burnell atacou uma mulher e ela defendeu-se. Acidentalmente, ele se feriu gravemen­te no pescoço, com o próprio punhal. Victor apareceu quando Burnell já corria pela rua, tentando estancar o sangue. Preferiu deixá-lo fugir e socorreu a vítima, que implorou para que o episódio fosse omitido.

Impressionado, Victor meneou a cabeça.

— Excelente hipótese, mestre — comentou.

— Então prove! — atalhou um dos homens que o seguravam. — Leve-nos até essa mulher.

— Não posso fazer isso sem violar a confiança que ela depositou em mim. E, nessas questões, considero-me um cavalheiro. Tenho razão, mestre Fairfax?

Rainulf pareceu aborrecido com as interrupções.

— Falei apenas de um dos cenários possíveis. O mais provável, aliás, devido à calça arriada de Burnell. Victor não cometeu um crime a sangue-frio. Proponho que soltem-no e deixem o delegado cuidar do caso.

Ele procurou a ponta da corda, mas Pyt a manteve fora de seu alcance.

— Não! Você fala bem, professor, e talvez consiga iludir seus alunos, não a mim. Estou prevenido contra sua lábia. Por certo, vai se negar a depor contra um de seus mais estimados estudantes.

Pyt acercou-se de Victor, pelas costas, e apertou o laço em seu pescoço. Depois, arrastou-o retesando a corda.

— Chega de conversa! É hora de enforcar este bas­tardo!

Rainulf avançou, enquanto diversos homens ladea­ram Pyt e o empurraram, tomando posse da corda. O nó no pescoço de Victor foi afrouxado,

— Desista, Pyt — disse um deles. — Fairfax está certo. Ainda não sabemos a verdade. Poderíamos en­forcar um inocente.

— Inocente? — O irmão de Burnell enfatizou sua surpresa. — Victor de Aeskirche já nasceu culpado!

Pyt foi contido e afastado da cena por amigos, enquan­to Victor, nervoso e febril, liberava-se do autocontrole que vinha mantendo e sofria um repentino desmaio.

 

— Pensei em você durante todo o debate desta noite — disse Rainulf, lançando uma moe­da ao boné estendido de um mendigo, na esquina da Grope com a St. John. Baixando o tom, ele acrescen­tou: — Pensei no que desejo fazer com você quando chegarmos em casa.

Um calor interno envolveu Corliss, que sorriu.

— Você bem que me pareceu um pouco distraído...

— Distraído? — Ele gesticulou, negando. — Na verdade, estava excitado, debaixo de minha calça, o tempo inteiro. Em definitivo, não estamos fazendo sexo o suficiente.

Corliss riu abertamente. Sabia que Rainulf grace­java. Desde a antevéspera, quando pela primeira vez dividiram a cama com colchão de penas, vinham fornicando como um casal de coelhos. Nenhum momento de privacidade escapava de uma intensa união íntima, como se eles estivessem cônscios do limitado prazo que ainda pudessem ter juntos.

Quando não faziam amor, dedicavam-se a tarefas sé­rias, a exemplo da tentativa de abrandar a hostilidade entre estudantes e cidadãos comuns de Oxford. O espan­camento e quase enforcamento de Victor havia exaspe­rado seus colegas de escola, mesmo aqueles moderados, que formalmente declararam sua militância e se arma­ram de facas. Diversas lojas da High Street haviam sido saqueadas, e outros locais, como o bar de Burnell e seu irmão Pyt, vandalizados, mas sem um grau de violência que os impedisse de continuar funcionando.

Por ironia, Victor de Aeskirche, o homem que se tornara o instrumento dessas tensões, de nada parti­cipou. Não saíra de seu quarto na universidade, após ser quase sacrificado, e enviara cartas à comunidade acadêmica, suplicando tolerância e conciliação. Seu argumento consistia em julgar que as coisas tinham ido longe demais, criando riscos para pessoas inocen­tes como Corliss. Publicamente, ele pedia desculpas por sua participação nos problemas.

Corliss empregou sua influência sobre os segui­dores de Victor, a fim de persuadi-los a esquecer os planos de vingança. Seu sucesso foi parcial. Enquanto isso, Rainulf assumia o papel de mediador entre os grupos, e repetia suas teses pacifistas para uma e ou­tra turma, já que os litigantes nunca concordariam em conversarem face a face.

O mais importante, em tudo isso, era que Rainulf escoltava Corliss o tempo todo, nunca deixando-a sozi­nha. Lembrava a ela que Pigot se achava em Oxford, atrás da fugitiva de Roger Foliot. Ela não se incomo­dava com tanta proteção. Na verdade, gostava da com­panhia quase permanente do professor. Com a ressal­va de que, ao lado dele, sempre sentia uma inebriante compulsão sensual: a maneira como Rainulf a fitava, as palavras doces murmuradas em seu ouvido, os beijos roubados em esquinas sombrias. Isso a deixava prati­camente sem respirar, a conviver com a expectativa de renovados prazeres. Céus, como ela o desejava!

— É tarde — ele observou —, e Luella já deve ter ido embora quando alcançarmos a casa.

— Então, sua residência estará tranqüila — Corlis comentou sugestivamente, mas sem pensar em sexo. Ela tirou do embornal uma página da Bíblia de Becket. — Talvez eu trabalhe nisto. Completei as iluminuras das folhas finais, porém falta adornar a assinatura de encerramento.

Satisfeita, refletiu que, em um ou dois dias, a sra. Clark poderia encadernar a obra e enviá-la ao chance­ler que a encomendara.

— Quero lhe dar algo, antes — confessou o profes­sor. — Algo que possamos terminar ao mesmo tempo...

Ela bocejou, encobrindo a boca com a mão.

— A sra. Clark pintou uma placa de "Vende-se", na fachada da loja.

Alguns estudantes de passagem cumprimentaram Rainulf, que só depois se manifestou.

— Mulher esperta. — Ele riu. — Vi a placa esta manhã. A sra. Clark decidiu, por fim, fechar a oficina para criar ovelhas numa fazenda do interior.

— Ovelhas e galinhas — Corliss corrigiu. — Agora ela já pode. Ignoro quanto ela pede pela loja, mas deve ser uma pequena fortuna. É o maior centro de copistas da Catte Street. E, claro, o chanceler Becket pagou bem por aquela bíblia. Quarenta libras!

— É bastante dinheiro por um livro. Especialmente nesta cidade.

— Eu sei. Uma pessoa de talento pode ficar rica em Oxford, se souber trabalhar direito.

— Você acha que Enid Clark não fez o que devia? Parece-me uma excelente profissional.

— Poderia ter feito melhor. A loja é grande e a sra. Clark utiliza somente uma parte do espaço. Há dois quartos vazios, no pavimento superior, e creio que tam­bém não usa o celeiro. — Ela tomou fôlego e prosseguiu: — Se fosse minha, eu não me limitaria a copiar manus­critos e alugar a área restante. Adotaria uma produção contínua, da cópia à encadernação. Contrataria mais copistas, escribas, desenhistas e peritos em pergaminhos.

— Seria mais eficiente e lucrativo trabalhar com dezenas de livros a um só tempo, mas Enid prefere produzir três ou quatro, com seu método lento, passo a passo. Ah, e não aceitaria encomendas. Transformaria parte do lu­gar numa seção de livros usados, a melhor de Oxford. O que é melhor, poderia morar no andar de cima.

— É um projeto ambicioso — comentou Rainulf, admirado. — Não existem lojas desse tipo em Oxford nem em Paris, pelo que eu saiba.

Lisonjeada, Corliss falou até da nova placa que co­locaria, anunciando uma livraria, em latim.

— No que você trabalharia, ali, se mobilizar tantos ajudantes? — o professor a instigou.

— Bem, eu administraria o negócio. Sem abrir mão das iluminuras, que gosto de fazer. Reservaria as mais finas ilustrações para mim.

— Claro.

Corliss olhou para Rainulf, subitamente consciente de que havia falado demais. Ele sorria de modo estranho.

— Você deve pensar que tudo o que disse é um so­nho idiota — ela reagiu.

— Acho você ainda mais adorável, quando cheia de entusiasmo. Mas também acredito que tem uma per­versa habilidade para mudar de assunto, quando tudo o que desejo é seduzir você. Gosta de me atormentar?

— É um modo de passar o tempo. — Ela deu de ombros.

O sorriso de Rainulf converteu-se num esgar, numa aparência de animal no cio.

— Conheço uma maneira melhor de passar o tem­po. Chegando em casa, vou tirar toda a sua roupa e lhe dar isto. — Ele estava perto o bastante para encostar sua virilha na anca de Corliss, provando seu estado de excitação. O corpo dela respondeu de imediato ao estímulo, deixando sua intimidade umedecida.

— Tenho um ótimo refúgio para abrigar seu...

— Aposto que sim.

— Talvez esteja um pouco apertado. E úmido. — Ela provocou.

— Darei um jeito. Vamos para casa — insistiu o professor.

— Não gostaria de tomar uma cerveja antes? — Corliss propôs engenhosamente.

— Não. Tenho pressa. — Após um olhar furtivo, Rainulf levou a mão dela até a abertura da beca, pressionando-a entre suas pernas. Ali se destacava um vo­lume pulsante e rijo.

— Impressionante! — Corliss apertou o órgão viril sobre a roupa. — Mas realmente preciso trabalhar no livro para a sra. Clark. É pena. — Ela recomeçou a an­dar, e Rainulf a seguiu, esperançoso. — Imagino que você ficará frustrado.

— Imagina? Vou deitá-la no chão assim que entrar­mos em casa e...

— Não se eu conseguir trancar a porta, com você do lado de fora.

Corliss riu e acelerou as passadas, distanciando-se do professor, que não se cansava de repetir seu nome. Chegou na frente e cumpriu a ameaça, batendo a por­ta. Diante dos degraus, sentiu uma pontada de medo. Desistiu de subi-los. Tudo estava escuro, exceto por uma nesga de luz procedente do salão superior.

Ponderou se havia deixado uma lamparina acesa, antes de sair com Rainulf. Houve um ruído forte na porta, como se alguém forçasse a fechadura. Ela de­senhou na mente a expressão do professor, ao ver-se trancado do lado de fora. Riu, e nesse momento a fo­lha de madeira grossa foi aberta pela metade. Claro, Rainulf possuía a chave.

Avançando com seus músculos pela fresta, ele fe­chou a porta com um pontapé e prendeu Corliss pelos ombros, retendo-a contra a parede. Ela procurou liber­tar-se, mas agora Rainulf a segurava pelos pulsos, elevando-os acima da cabeça. Beijou-a com intensidade e atritou seu corpo no dela.

Corliss tremia de expectativa. Quando ele soltou-lhe os punhos, as pernas fraquejaram e ela agachou-se ali mesmo, no piso do corredor de entrada. Com mãos determinadas, Rainulf a obrigou a deitar-se. Colocou-se ao lado dela e recobriu ambos com sua beca. Fez pressão com a virilha contra as nádegas de Corliss.

Tudo foi um pouco violento, mas excitante. Ela nunca se sentira tão molhada, tão pronta a acolher o amante.

— Agora... — acabou por pedir.

— Tem certeza? — ele falou em tom rouco. — E o seu trabalho?

Em resposta, Corliss desceu a calça e conduziu a mão dele até o meio de suas pernas. Ambos gemeram. Rainulf baixou o calção feminino. Logo ela sentiu o atrito dos dedos dele em sua pele nua. Rainulf tirou a própria roupa e proporcionou-lhe um contato quente, libidinoso, com seu membro, que friccionava nas bor­das da área mais sensível de Corliss.

De repente, um rangido no piso de tábuas do pavi­mento superior alcançou-lhes os ouvidos. Em suspense, ainda com a respiração arfante, eles elevaram os olhares ao topo da escada.

— Você largou alguma luz acesa lá em cima? — Rainulf sussurrou a Corliss.

— Não.

Logo escutaram mais um passo, e outro. Quem quer que fosse o intruso, ele vinha descendo os degraus. O medo paralisou Corliss, cujo coração bateu acelerado dentro do peito.

— Rainulf? Corliss? — chamou uma voz familiar.

— Peter? — ela perguntou, perplexa, enquanto re­colocava as roupas.

— Santo Deus! — O professor também se recompôs, vestindo a calça.

— Pensei ter ouvido vocês entrarem — disse Peter no instante em que deparou com os dois, deitados próximos da porta. No vestíbulo sombrio, ele constatou a pressa com que se arrumavam. O sorriso apagou-se, conforme ele se dava conta da situação. Olhou severamente para Rainulf. — Seu canalha, filho de uma égua!

— Peter... — O professor levantou-se.

— Que espécie de homem é você? — Os punhos de Peter se fecharam nas laterais do corpo.

— Escute-me. — Corliss também se ergueu. — Sei o que isto parece. Sei que você deve estar nos odiando neste momento, mas...

— Não você. Nunca poderia odiá-la — Peter pro­nunciou-se em voz baixa, exibindo um olhar rancoro­so. — Não é culpa sua... mas dele.

— Peter, vamos conversar... — Rainulf elevou as mãos, de maneira apaziguadora.

O rapaz riu zombeteiramente.

— Você é bom de conversa, professor. Sempre muito convincente. — Ele observou Corliss esticar sua túni­ca e ajeitar os cabelos com os dedos. — Por certo, usou sua habilidade verbal para tirar proveito dela. Violou a mulher com quem vou me casar.

— Por favor, Peter — atalhou Corliss. — Não posso me casar com você.

— Ainda a amo e quero desposá-la — ele disse. — Isto foi culpa dele, não sua.

— Ouça, rapaz. Ela não deseja se casar com você — comentou Rainulf.

Peter avançou um passo, brandindo os punhos cerra­dos, cujo poder destrutivo tinha fama na Inglaterra.

— Cale-se! — ele ordenou.

— Ela tentou lhe contar, mas você parece que...

— Cale-se! — repetiu Peter, adiantando-se a fim de segurar o professor pela gola da vestimenta e espre­mê-lo contra a parede. Em seguida, tomou a distância suficiente para socá-lo com força na barriga.

— Parem! — Corliss suplicou, assustada.

— Eu não quero lutar com você, Peter — Rainulf murmurou, quase sem ar.

— Claro que não. — O jovem cavaleiro do reino pa­recia seguro de seu maior vigor.

— Não porque você venceria — disse Rainulf, conse­guindo aprumar-se. — Mas porque você é meu amigo.

— Nossa amizade acabou. — Peter armou um mur­ro contra a cabeça do mestre, que se desviou em tempo. Os dedos do agressor se feriram de encontro à parede de pedra. No entanto, após gemer de dor, ele ergueu a outra mão e atingiu em cheio o rosto de Rainulf.

— Parem! — O grito de Corliss soou dramático. Atordoado, Rainulf sentiu dois filetes de sangue va­zarem do nariz e do lábio superior.

— Maldição, Peter! — Ele balançou a cabeça, cho­cado, porém não se moveu do lugar. Havia pouco es­paço para manobras no estreito vestíbulo da casa. — Não faça isso! — Rainulf recebeu mais um golpe no estômago, porém bloqueou outro, destinado a suas costelas.

Corliss agarrou o braço direito de Peter, quando ele preparou o soco.

— Não é culpa dele! — bradou. — Pare com isso!

— Vá para cima, Corliss — solicitou o professor, mas ela desobedeceu.

Peter livrou o braço e mirou a face de Rainulf, que fez uma careta mas não reagiu, optando por massagear o queixo dolorido.

— Maldito seja você! — Peter berrou. — O que hou­ve? Lute!

— Não, obrigado. Decidi evitar uma disputa de força.

— Por quê? — O rosto do rapaz era uma máscara de angústia; a voz soava trêmula. — Sei que é bom de luta. O que está pretendendo? Ficar aí parado e per­mitir que eu bata à vontade?

— Você seria incapaz dessa covardia — Rainulf dis­se serenamente.

— Não esteja tão certo. Você comprometeu a honra de minha noiva. Eu a amo, e você...

— Você amava Magdalen — o professor enxugou o sangue do rosto —, e ela morreu.

— Cale-se! Nem mencione o nome dela.

— Sinto muito, Peter, de verdade. Mas...

— Não fale mais nada.

— Se prefere assim, terá de me espancar até a mor­te. Existem fatos que você precisa enfrentar. Não sabe o que fazer de seu amor por Magdalen, por isso tenta repassá-lo a Corliss. É injusto para ambos. — O mes­tre examinou a mancha de sangue que restara em sua mão. — Para mim também.

— Engano seu — Peter insistiu. — É Corliss que eu amo.

— Por qual motivo? O que você ama nela?

— A beleza, a cultura... — O rapaz pareceu sobres-saltado pelo desafio.

— Ama o modo como ela mordisca o lábio inferior, quando nervosa? — Antes de Peter formular uma res­posta, Rainulf prosseguiu: — Ama o modo como se pode ver veias finas em sua pele, quase tão transpa­rente quanto o mais suave pergaminho? Ama o modo como Corliss não para de fazer perguntas? O modo como ri de qualquer coisa engraçada? O modo como revela o íntimo de um homem, apontando detalhes verdadei­ros, mas que não eram aceitos?

Agora era Rainulf quem aparentava procurar com­postura. Corliss mal o escutou quando disse em débil murmúrio:

— Ela me revelou meu íntimo, Peter. Pôs-me do avesso e desnudou meu coração, minha alma, quali­dades e defeitos cuja existência eu desconhecia. Amo Corliss com todo o meu ser, Peter. E sempre a amarei, pois ela tornou-se parte de mim.

Corliss encontrou o olhar dele através de um véu de lágrimas. Peter a focalizou, apreensivo com seu tremor, seu silêncio.

— Lamento muito, Peter — ela conseguiu dizer se­gundos depois.

Ele fechou os olhos, demonstrando enorme dor.

— Não, eu é que devo lamentar. — A vista foi des­viada para Rainulf. — Veja o que fiz com você...

O professor encolheu os ombros, com ar magnânimo.

— Havia um demônio dentro de você, Peter. Ele necessitava ser expulso, e aconteceu de eu estar no caminho. — Sorrindo, Rainulf abraçou o cavaleiro e bateu em suas costas, como se o tivesse reencontrado na rua, e não levado uma surra. — Precisamos de um conhaque. Você também, Corliss. Pensando melhor, precisamos de dois.

— Teve muitas amantes antes de fazer seus votos sacerdotais? — Corliss jazia de lado no meio da grande cama, arrancando uvas de um cacho e estourando-as com os dentes. As uvas faziam parte de uma bande­ja na qual também estavam pedaços de pão, fatias de queijo, biscoitos doces e um pote de mel. Refeição tar­dia para uma dupla de parceiros nus e saciados.

A pergunta sobre antigas amantes representava um atalho na conversação que vinha mantendo com Rainulf, sobre a intempestiva visita de Peter naquela mesma noite, mais cedo.

— Muitas mulheres se ofereciam a mim — ele dis­se. — Nunca pensei nelas como amantes. Na realida­de, raramente dormi com uma mulher mais de duas ou três vezes.

— Por que não? — Curiosa como sempre, Corliss molhou uma uva no mel e experimentou o resultado com a ponta da língua. Bastou essa visão para reestimular os hormônios de Rainulf.

— Porque não eram você — ele respondeu, emocio­nado.

Corliss rolou os olhos e suspirou ao morder mais um bago com mel. Rindo, ele veio para mais perto dela, respirando o exótico perfume que Martine havia lhe dado e ela pusera naquela noite, somente para ele.

Mais cedo, quando Peter retornara a seu alojamento, na igreja de St. Frideswide, Rainulf o acompanhara por­ta afora e conversara com ele na rua, por alguns minu­tos. No retorno ao quarto de Corliss, havia deparado com a jovem de camisola, escovando os cabelos e recendendo àquela capitosa fragrância oriental. Rapidamente, ele a pusera na cama e a possuíra, com fervor.

Agora, deslizava os dedos pelas costas dela, até a reentrância inicial dos quadris.

— Sou sua primeira amante, então? — Corliss in­dagou, descrente.

— Sim, é. A primeira verdadeira amante. Por algu­ma razão, não penso em você como simples parceira sexual.

Ela pesou o argumento, enquanto inseria um dedo no pote de mel e fechava os lábios sobre ele. Mais uma vez, o calor da excitação apossou-se de Rainulf. Era exasperante vê-la sugar, deliciada, a carne revestida de líquido viscoso.

— O que a levou a perguntar isso, sobre uma cole­ção de amantes e tudo o mais?

Ligeiramente ruborizada, ela evitou o olhar direto do professor.

—Estava imaginando onde você aprendeu... tantas coisas — disse.

Rainulf sorriu e traçou com os dedos padrões circu­lar sobre as nádegas femininas.

— Que coisas? — ele perguntou desnecessariamente.

— As que desfrutamos juntos. As que você faz co­migo. Você sabe, as posições, os toques certeiros, os requintes como aquele de hoje, quando pingou mel em mim e lambeu... Quem lhe ensinou isso?

Ele seguiu explorando as curvas discretas de Corliss. Alcançou o vão das pernas, úmido do recente ato de amor e do mel residual.

— Sou autodidata — murmurou, sem convencer nin­guém, nem mesmo a si próprio. — Você me inspira.

Ela gostou da última frase e abriu-se para ele, no ritmo das carícias manuais que ele lhe dispensava, até agarrar o lençol, calada e disponível. Rainulf se colo­cou em cima dela, e dentro dela, provocando um breve grito ao arremeter com certa violência. Logo cadenciou os golpes na fenda úmida de Corliss, que parecia espe­cialmente erotizada naquele momento, tanto que aba­fava seus gemidos apertando o lençol sobre a boca.

Quando o auge da paixão eclodiu e a respiração de ambos se tornou estável, Rainulf passou a beijá-la por todo o corpo. Ele sentiu a ereção esvair-se e, como sempre, suspirou em resignação.

Como seria quando não tivesse mais Corliss, ou me­lhor, quando ela o deixasse? Como seria vê-la partir de sua casa para não mais voltar?

— Não! — Ele teve um assomo de medo.

— O que foi? — Corliss assustou-se. — O que há de errado?

— Nada. — Tudo. Ela não poderia abandoná-lo. Ele não suportaria.

Mais do que amargar-lhe a vida, isso o esvaziaria de qualquer impulso vital, jogando-o no vazio enlouquecedor de seu inferno particular.

— Quer dizer que aquelas mulheres de Paris sedu­ziram você...

— Ainda pensa nelas? — Ele riu com gosto.

— Você está rindo muito esta noite — ela comen­tou, enquanto ele lhe afagava os cabelos e, depois, o ferimento quase cicatrizado no tórax.

— É um mau hábito que adquiri de você — Rainulf pontificou. — Deseja saber algo mais sobre as mulhe­res que não foram minhas amantes?

— Depois de terminar com as tais parisienses, con­tinuaram amigos?

— Na maioria dos casos, a amizade nem começou. Pouco sabia da vida delas. E diferente de mim e você juntos.

Corliss aconchegou-se a ele, feliz por ser considera­da uma amiga, ao menos.

— Então, você lhes dizia adeus? E obrigado por satisfazê-lo na cama?

Nova risada.

— Eu fazia algo mais elegante. Comprava presen­tes para elas.

— Presentes? — Ela se pôs intranquila.

— Presentes de despedida, em geral um broche, um colar, às vezes um livro quando a mulher sabia e gos­tava de ler. Houve uma, caçadora, a quem dei bonecos de cães rastreadores.

Qual seria o presente dela, Corliss pensou, quando chegasse a hora? A tensão em Rainulf era visível, e ela percebeu que aquela conversa o desagradava, como se não quisesse reduzi-la a mais uma amante sem rosto.

Noção absurda, claro, mas a menção a presentes plan­tou em Corliss uma idéia.

— Acha-me ridícula, e por isso ri de mim? — ela o interpelou.

— Adoro seu questionamento incessante — Rainulf garantiu.

—Só perguntei de suas antigas mulheres porque tais casos são estranhos para mim. Como é possível dormir com um quase desconhecido, e depois ganhar bibelôs ou jóias? — Mesmo colada ao peito de Rainulf, Corliss balançou a cabeça. — Talvez me julgue pouco sofisti­cada, mas nada posso fazer contra minha ignorância ou estranheza em relação ao assunto. Nunca estive em Paris. Sou uma simples camponesa de Oxfordshire.

Ele apertou os braços em torno dela.

— Nada é simples no que tange a você, meu amor.

— Fale de novo — ela pediu, lisonjeada.

— Meu amor — Rainulf repetiu suavemente, beijan­do o rosto de Corliss, para em seguida atacar o restante do corpo. — Meu amor... — sussurrou sem parar.

Entre sombras, Pigot espreitava o movimento na St. John Street, a partir de uma viela da qual podia observar a janela do quarto de Corliss, até que este ficou escuro, pouco depois da meia-noite.

Era verdade. Corliss ou Constance de Cuxham, residia e se escondia ali, em troca de sexo com o mestre Fairfax. Ele só a identificara após o verão passar. Entregava-se ao professor porque não sabia fazer outra coisa.

Era Constance quem saíra a passeio com Rainulf, ao longo de quatro meses, para todos verem. Ela traja­va roupas masculinas e ria muito a seu benfeitor.

Agora, Constance pagaria pelo ardil com a perda de seus encantos femininos. Como sempre, Pigot começa­ria marcando-lhe o rosto. Não, primeiro cortaria a lín­gua dela, pois assim não poderia gritar quando tivesse o corpo esfaqueado. Ele descobrira que os gritos das mulheres justiçadas lhe causavam dor de cabeça.

A longa espera, também. Era frustrante, após iden­tificar sua presa, não ser capaz de capturá-la, sim­plesmente porque ela estava sempre acompanhada de alguém, sobretudo Fairfax. A lição que aprendera, durante anos a serviço de Roger Foliot, consistia em aguardar que a vítima ficasse sozinha. Desse modo, não haveria testemunhas capazes de denunciá-lo. Mas nunca havia esperado tanto, e isso o exasperava. A mão dele formigava com a vontade de manejar um punhal.

Com um suspiro, saiu do beco e caminhou para sua hospedaria. Cruzou com uma prostituta de cabe­los oxigenados, que lhe lembrou Fabienne, a primei­ra mulher que ele havia punido com suas facas, tem­pos atrás. Ela tinha debochado dele, e recebera uma aula de humildade. As lâminas haviam transformado Fabienne, de beldade em monstro. O capanga de Roger sentia-se poderoso e feliz ao recordar tais fatos.

Ele cogitou de oferecer dinheiro à rameira, por seus serviços. Então, quando ela o conduzisse ao próprio quarto alugado, ele poderia aplacar o tremor na mão e erguer a faca...

Não. Era arriscado. E muito insatisfatório, pois a falsa loura não era a mulher que gostaria de possuir. Logo ele teria Constance de Cuxham debaixo de si, bo­nita, desejável e íntegra antes de sofrer seu castigo.

Reforçou na mente o objetivo de apreendê-la. Vol­taria à St. John Street ao amanhecer e seguiria cada movimento de Corliss. No instante em que a visse sozi­nha, agiria sem relutância.

O rosto de Felice iluminou-se de contentamento quando ela viu Corliss entrar na loja da Catte Street, escoltada por Thomas e Brad. A jovem copista, filha da sra. Clark, nem notou os dois estudantes, que se ocuparam de folhear alguns livros expostos. Ela deu à visitante um sorriso significativo.

— Sua mãe está? — indagou Corliss.

— Não! — bradou uma voz vinda dos fundos. Corliss voltou-se para deparar com Bertram, que a fitava abor­recido, enquanto pregava uma tábua na ampla janela do estabelecimento.

Aquela não era a única fachada, nas imediações, a ser blindada. Ao longo da rua, ao longo de Oxford, comerciantes buscavam dar mais segurança a seus negócios, a fim de escaparem da onda de vandalismo que se espalhava pela cidade.

Nos dias precedentes, estudantes armados de porre­tes e facas haviam saqueado e posto fogo em diversas lo­jas, não se contentando mais em espancar alguns cida­dãos. Poucos se aventuravam a sair à rua sem uma beca acadêmica, como disfarce. A situação lembrou a Corliss um caldeirão de água fervente sobre uma grelha, que no limite passava a espirrar gotas escaldantes.

Prudente, Rainulf pedira a Thomas e Brad que a acompanhassem, enquanto trabalhava para impedir os motins. Brigas de rua eclodiam a intervalos regulares. O caldeirão fervia.

Bertram fixou mais um prego na tábua, sem deixar de olhar a Corliss.

— A sra. Clark não está — informou, raivoso. — Melhor você voltar depois.

— Trouxe a última página, com assinatura, da Bíblia de Becket. Preciso entregá-la e receber meu di­nheiro.

— Já terminou? — Felice admirou-se. — Teve ape­nas três dias!

— Mas trabalhei nas letras iniciais e marcas de pa­rágrafo. Isso não leva muito tempo.

— É porque você é bom no que faz. — Felice reno­vou o sorriso. — Mamãe diz que é o mais talentoso ilustrador que ela...

— Sua mãe — Bertram interrompeu — é muito ge­nerosa.

— Mas é verdade e você sabe — a jovem reagiu — Está enciumado porque só consegue copiar.

— Não estou!

Corliss deixou os supostos noivos discutindo e, per­cebendo Thomas e Brad distraídos, marchou até a sala dos fundos. Conhecia a prateleira onde a encomenda do chanceler repousava, em várias pilhas. Examinou a ordem das folhas e colocou no lugar a página que havia trazido, devidamente forrada.

Escutou passos e logo identificou Felice, de olhos dilatados por causa da penumbra, esticando a saia com os dedos.

— Mamãe encontrou um comprador para a loja. Nós nos mudaremos de Oxford assim que o chanceler Becket retirar sua obra. Dentro de duas semanas, tal­vez, que é o prazo para encadernação.

— Para onde vão?

— Para perto de Wolvercot — respondeu Felice era tom triste. — Criar ovelhas e galinhas, imagine!

— Sim... Pensei que você ficaria feliz — Corliss a animou.

— Destruída, isto sim. De coração partido — mur­murou Felice em voz rouca.

Corliss retrocedeu, até suas pernas tocarem uma mesa.

— Lamento muito.

— Não quer saber por quê? — A jovem copista mos­trou-se trêmula de emoção.

Corliss suspeitava dos motivos, porém preferia não ouvi-los.

— Porque você estará longe de lá, e duvido que possa suportar. — Felice acercou-se e enlaçou Corliss pela cintura, ficando face a face com ela. — Talvez não veja você nunca mais, o que é insustentável...

— Felice... — Corliss tentou esquivar-se, mas a ou­tra a segurava com força.

— Eu amo você! — Felice exclamou.

— Não, não ama — disse Corliss suavemente. — Mal me conhece, Felice. Você ama a pessoa que pensa que sou, porém nunca poderei satisfazer seus anseios de felicidade.

Felice necessitava de alguém para amar, Corliss concluiu, exatamente como Peter. Ambos haviam de­senvolvido a paixão por uma criatura inexistente.

— Você fala como mamãe. Ela quer que eu despose Bertram.

— Aí está. Ele a ama.

— Mas eu amo você!

Antes de qualquer iniciativa de Corliss, Felice pres­sionou as mãos em concha atrás do pescoço dela e bei­jou-a na boca, rápida e ardorosamente.

Corliss empurrou a jovem, que perdeu o equilíbrio e caiu no chão, levando-a com ela. Pousaram juntas, uma por cima da outra, numa cena que lembraria um casal de namorados em ação.

— Case-se comigo — suplicou Felice, segurando Corliss pela nuca, preparando mais um beijo.

— Pare com isso! — Corliss começou a irritar-se. Prendeu as mãos de Felice contra o pavimento.

Foi quando Bertram, afoito, invadiu a sala.

— O que está acontecendo? — Parecia não acredi­tar no que via.

— Oh, inferno! — Corliss praguejou. Enfurecido, Bertram arrancou Corliss de cima da namorada e jogou-a de encontro à parede.

— Pagará por isso — ele ameaçou. — Vou matá-lo. Felice pôs-se de pé. Se Corliss esperava que ela iria interceder em seu favor, decepcionou-se. A jovem copista pestanejou qual uma coruja e sorriu a Bertram com estudada feminilidade.

— Realmente? Fará isso por mim? — perguntou.

E agora?, refletiu Corliss diante da pose de vitória de seu provável algoz. Tentou correr, mas Bertram a dominou e prendeu-a de novo contra a parede.

— Sim, farei. Apenas fique olhando.

— Corliss? — Thomas e Brad irromperam na sala dos fundos. — Ah, aí está você.

— Bem em tempo — ela retrucou. Meus protetores! Brad franziu a testa ao dar-se conta da cena.

— Qual o problema? — quis saber.

— Ele estava atacando Felice — esclareceu Bertram.

— Isso não é possível — Thomas interveio, com um sorriso irônico.

— Por que não?

— Simplesmente não é possível — reiterou Thomas, sem mais explicações.

Corliss valeu-se do fato de Bertram ter-lhe dado as costas, a fim de discutir com os rapazes, para escapulir até a sala da frente. Sem parar, apanhou seu alforje e correu porta afora.

— Volte aqui! — Com algum atraso, Bertram apres­sou-se pela Catte Street, atrás de Corliss. Ela não ti­nha ido longe e sentiu o agarrão do rapaz em sua túni­ca, fazendo-a girar o corpo.

Recebeu um soco no ventre, que a vergou como bor­racha. Caiu no solo com as mãos pousadas na barriga. Então, Bertram mirou a face de Corliss, com o punho ainda fechado. Ela chutou os calcanhares dele, antes que pudesse desferir o novo golpe. O apoio lhe faltou e ele foi ao chão, mas por pouco tempo. Assim como Corliss forçou-se a levantar, ele também ficou de pé.

— Deixe-a em paz! — alguém gritou. Era Thomas, que numa chave de braço imobilizou Bertram. Já se formava um grupo de curiosos na rua.

— Não a machuque! — Brad amparou Corliss. — Você está bem?

Alguns dos que assistiam a tudo olharam com es­tranheza para a vítima, que tinha sido chamada cla­ramente de ela. Corliss meneou a cabeça com vigor, na tentativa de desautorizar Thomas e Brad em públi­co. Mas sentia náusea e apertava a barriga dolorida. Parecia prestes a vomitar.

— Está passando mal? — Brad trocou um olhar compadecido com Thomas. — O mestre Fairfax nos pediu para tomar conta de você e, desgraçadamente, falhamos.

— Calado! — ela se impôs. — Pelo amor de Deus...

Atônito, Bertram já a examinava, da cabeça aos pés. Atrás dele, surgiu Felice, embasbacada.

— Agora entendo — disse o copista calmamente.

— A suavidade do rosto, da pele... É uma mulher, sim. — Ele sorriu devido à descoberta. Afinal, seu rival não era rival algum.

— Não pode ser. — Sem negar o fato, Felice mos­trou-se desiludida.

Os espectadores emitiram murmúrios e assovios. "Uma mulher em roupas de homem... Vai ver que..." Corliss não se importou com o falatório, e sim com uma questão bem mais importante: quanto tempo le­varia para alguém conectá-la com Rainulf Fairfax? O que diria o bispo Chesney ao descobrir que ela estava vivendo com o ex-padre. Seria sua ruína profissional?

Thomas e Brad resmungaram, contrafeitos, quando perceberam o que haviam feito, embora tivessem salva­do Corliss das garras de Bertram. Este acolheu Felice em seus braços depois que ela fitou a outra com olhos fi­xos, glaciais. O copista a confortou, alisando-lhe as cos­tas, e a guiou de volta à loja, livrando-se da multidão.

Nem todos os espectadores haviam se dispersado. Alguns ainda comentavam e riam, porém não se mos­travam hostis, apenas surpresos. O detalhe era que, naquele instante, dezenas de pessoas conheciam o segredo de Corliss. À noite, a cidade inteira saberia. A verdade tinha emergido das sombras, exatamente como Rainulf previra.

Thomas e Brad, inconsoláveis, pediram desculpas a Corliss pelo descuido com as palavras. Além disso, quem poderia jurar que Bertram de fato perpetraria uma agressão?

— O que deseja fazer agora? — Thomas lhe per­guntou.

— Levem-me até Rainulf. Preciso falar com ele, ur­gentemente.

A dupla de estudantes, um de cada lado, a conduziu do tumulto da Catte Street à esquina da High Street, onde uma horda de universitários, paramentados de preto, se aglomerava em torno de uma figura alta, na es­cadaria da igreja de St. Mary. Tratava-se de Rainulf.

— Temos de conciliar nossas diferenças como seres civilizados — dizia ele em tom elevado.

— O que existe de civilizado neles? — uma voz se destacou do grupo. — Depois do que fizeram com Victor, devíamos incendiar a cidade inteira!

Rainulf gesticulou para que alguém viesse até o seu lado: Victor de Aeskirche. Corliss não o havia visto des­de que, cinco dias antes, Pyt e amigos tinham batido nele e passado um laço em seu pescoço. O rosto outrora bonito achava-se ferido e inchado, o que despertou um coro de exclamações indignadas na assembléia.

— Ninguém sabe melhor do que eu — ele declarou — o que fizeram comigo. — Fez uma pausa dramática, pois era tão bom orador quanto Rainulf. — E ninguém sabe melhor do que eu como era merecido.

— Não! Não! — Vozes se ergueram contra a argu­mentação. — Você não merecia nada. São selvagens!

— E nós não somos? — rebateu o mestre, encaran­do a platéia. Seu olhar pousou em Corliss, e por um momento ele se concentrou nela, esquecendo a mas­sa decaída em sombras. Depois, como que despertou e prosseguiu em seu pedido por ordem e reconciliação.

O que direi a ele? Como posso contar que tudo aca­bou, num piscar de olhos? O disfarce de Corliss tinha sido revelado. Ela precisava abandonar o mestre, e não somente sua casa. Deveria sair de Oxford, a cida­de de Rainulf, onde ele fincaria raízes como reitor da universidade. Faltava-lhe a esperança de esquecê-lo, ou pelo menos aprender a viver sem ele, caso perma­necesse na comunidade. Além disso, sua presença por certo causaria constrangimento ao novo reitor, nas relações dele com o bispo Chesney. Imaginava que o alto prelado da Igreja o perdoaria por uma pequena transgressão, porém nunca iria tolerar que Rainulf seguisse vivendo com uma mulher. Ela não admitia destruir o homem que amava.

A agonia de dizer adeus seria seu próximo passo. Ele a beijaria, em despedida? Chamaria ela, uma últi­ma vez, de "meu amor"? Suplicaria para que ela ficas­se, em vez de dar-lhe um berloque de presente, como fizera com as amantes parisienses?

A dor não poderá ser amenizada. Será insuportá­vel. Eu dificilmente a agüentarei.

Melhor seria partir sem nenhum adeus, pois ela jul­gava impossível despedir-se face a face com Ranulf.

— Estamos respondendo à raiva com mais raiva — dizia o professor aos alunos na escadaria. — Violência com mais violência. Medo com mais medo. Deveríamos ser mais sensatos e pacifistas, já que vivemos num dos maiores centros de ensino do mundo, e numa época de grandes avanços na humanidade...

Gradativamente, os estudantes rebelados se cala­ram. Não seguiram interrompendo o mestre, que pôde falar com calma, mas com fervor e convicção. As pa­lavras de Rainulf agora destacavam a necessidade de abortar o ciclo de violência que ameaçava destruir a cidade e, com isso, arruinar também a grande univer­sidade que ali florescia.

Rainulf estava em seu elemento. Irradiava luz e sa­bedoria. Corliss absorveu cada nuance de sua voz de comando, cada tique nervoso em sua face e, sobretudo, a maneira como movia as mãos.

Vou memorizá-lo assim, ela decidiu. Vou inseri-lo em minha mente e queimar sua imagem dentro de mi­nha alma. Desse modo, ele estará sempre comigo.

— Conversei com representantes dos cidadãos de Oxford — o professor continuou. — Na maioria, eles desejam relações pacíficas com a comunidade aca­dêmica. Estão dispostos a firmar um compromisso a respeito das pendências que geraram toda esta confu­são. Vou encontrá-los agora, no pátio da igreja de St. Martin. Victor virá comigo, e conclamo vocês a faze­rem o mesmo, como um gesto de apoio. Livrem-se de qualquer arma e venham! O diálogo pode curar o que a violência não conseguiu.

Ao descer os degraus, Rainulf mirou Corliss e ace­nou para que ela e seus amigos o acompanhassem.

— Vamos com ele — Thomas propôs, enquanto a massa de estudantes começava a seguir o mestre até o local indicado.

— Não — Corliss esquivou-se. — Preciso passar em casa. Vocês vão na frente.

— Impossível. — Brad balançou a cabeça. — Prome­temos ao mestre Fairfax tomar conta de você.

Ela disparou-lhe um olhar ferino. Brad corou, re­conhecendo a inaptidão que ele e Thomas haviam de­monstrado ao "tomar conta" dela.

— Então, basta me escoltarem até lá. Estarei em segurança, e vocês poderão ir onde quiserem.

Sozinha na ampla casa, porque Luella havia deser­tado de Oxford, como tantas outras, até que os motins esfriassem, Corliss empacotou as roupas, pertences e suprimentos que coubessem no alforge e no embornal. Resgatou o vidro de moedas que guardava debaixo da cama e verteu todas na pequena bolsa de cintura. Fechou as cortinas grossas do dossel, não sem um último olhar à cama com colchão de penas, na qual vivera doces e vo­luptuosos momentos na companhia de Rainulf.

Trouxe sua preciosa Bíblia Pauperum para a sala e posicionou-a bem no meio da mesa, rolando os dedos pela derradeira vez sobre a delicada capa bordada. O único pergaminho que lhe restava era uma folha esbu­racada, em que testava pigmentos, rascunhava idéias e desenhava as primeiras versões dos macacos e an­jos, iluminuras e margens em processo de elaboração. Existia no material uma discreta área livre, circunda­da por figuras de leões, que constituíam um esboço da sonhada decoração da lareira. Ela lixou um estilete de dente de cachorro, molhou-o no tinteiro e mordiscou o lábio enquanto escrevia:

Meu amor,

Neste momento, você já terá compreendido o que ocorreu. Já saberá que eu não poderia ficar nem mais um minuto. Devo partir de sua casa e desta cidade. Quando estiver lendo esta mensagem, estarei longe de Oxford, e duvido que um dia possa retornar.

Perdoe-me por não ter tido a coragem de dizer adeus pessoalmente. Sou fraca, mas amo você acima de todas as coisas.

Por favor, guarde com você minha Bíblia Pauperum. Dê-lhe uma espiada de vez em quando e pense em mim. Conservarei sempre comigo seu relicário contendo os cabelos de São Nicácio. Eu tinha razão: ele me deu sor­te, me deu você.

Eu o amarei para sempre.

Com lágrimas nos olhos, Corliss encerrou o recado.

 

Após descer os degraus e trancar a porta, Corliss contemplou a grande casa de pedra de Rainulf Fairfax. Chegara a adorar a residência, a cidade e o professor mui­to mais do que de início havia previsto. Abandonar tudo isso era mais doloroso do que poderia ter imaginado.

Não pense. Apenas vá embora.

Ir para onde? Subindo a St. John Street, com a ba­gagem pesando em seus ombros, ela enfrentou um pro­blema novo: seu destino. Londres era a única cidade inglesa, além de Oxford, onde poderia encontrar tra­balho como ilustradora. Talvez houvesse oportunida­des no continente europeu — Paris, Bolonha, Salerno —, mas a perspectiva de viajar tão longe, por conta própria, era desanimador para uma ex-camponesa que pouco havia se distanciado de seu vilarejo natal.

Por conta própria. Sozinha no mundo. Corliss deu-se conta de que, pela primeira vez em semanas, cru­zava as ruas de Oxford desacompanhada. Rainulf não gostaria nada de saber disso, pois ela corria riscos com Pigot em seu encalço. Ela também não gostava da si­tuação, mas, que opção tinha?

As calçadas se mostravam cheias de gente e caó­ticas. O fato de ainda vestir-se de homem talvez aju­dasse na manutenção de sua integridade, de sua sede de liberdade. No entanto, como agir? Onde achar uma saída? O mais urgente era conseguir transporte para Londres, talvez num navio mercante. Poderia pagar alguma coisa para que a levassem, mas não viajar em barco de passageiros.

Imersa em tais reflexões, rumou para a Shidyerd Street, ao norte. Ao dobrar uma esquina, pareceu-lhe ver uma forma escura a ocultar-se entre os prédios. Manteve o passo, a despeito dos maus pressentimentos.

Alerta e temerosa, ela ingressou numa via barulhen­ta e movimentada. Ali estava a sombra de novo. Dessa vez, ela voltou-se rapidamente e captou um lampejo da pessoa que a seguia, antes que desaparecesse no vão entre duas lojas. Pôde ver o corpo grande, o capuz des­cido sobre um rosto grotescamente manchado.

Rad. Era apenas Rad, o mascate.

Isso significava que ela podia continuar andando em paz. De qualquer modo, ser seguida constituía algo enervante. Ao desembocar na High Street, estava de­cidida a despistar Rad. Virou à esquerda e alguém es­barrou nela. Preparou um xingamento, mas tratava-se de um jovem estudante distraído, que andava em ziguezague anunciando, aos berros, o fim dos conflitos em Oxford.

— Todos depuseram as armas! — gritava a todos e a ninguém.

Com o canto dos olhos, Corliss viu Rad outra vez, agora mais perto. Ela retomou as passadas largas e ele a imitou, vencendo-a na velocidade. O homem em­purrou um universitário que lhe barrou a passagem e começou a correr.

Oh, Deus! Só lhe restava disparar também pela rua repleta, desviando-se dos pedestres. Saiam do meu ca­minho.

— Saiam do meu... — Quando falou alto, Corliss sentiu a mão de um homem fechar-se sobre seu ombro.

— Aonde vai com tanta pressa? Não entre em pânico.

Ela girou na direção da voz, vibrando seu alforje como um chicote. O perseguidor soltou-lhe o ombro e caiu para trás, com o impacto sofrido na cabeça. Ela já ia fugir quando notou os cabelos acobreados, a ausên­cia de capuz, a face marcada não por nódoas, mas por simples sardas.

— O quê? — Com a mão estendida, Corliss auxi­liou a pessoa a levantar-se. — Will? Will Geary? Meu Deus! Pensei que...

Ela olhou para trás, porém não viu mais Rad. Um grupo de estudantes servia de biombo.

— Sinto muito. Veja, não posso me demorar aqui. Preciso ir.

— Por que a pressa? — indagou o cirurgião que a havia assistido.

— Eu estava sendo seguida. — Espiou de novo, para além da massa de becas pretas. — Um mascate. Acho que ele pode ser o capanga de sir Roger Foliot, a quem chamam de Pigot.

— Pigot vinha atrás de você? — Will conhecia bem a fama que recaía sobre aquele nome. — Não deveria es­tar na rua, especialmente no meio deste pandemônio.

Ovações se sucediam na High Street. Os estudantes comemoravam a conquista de reduções nos aluguéis e nos preços da cerveja.

— Concordo, Will. Mas tenho de sair de Oxford. Thomas e Brad deixaram escapar que sou mulher. Rainulf terá a vida arruinada se eu permanecer aqui. Quero chegar a Londres.

Ele animou-se de maneira insuspeita.

— Estou justamente a caminho de Wallingford, para ver alguns pacientes. Fica perto de Londres. Posso escoltá-la, se quiser.

— Faria isso? Serei eternamente grata.

— Claro. É um prazer contar com sua companhia.

Will possuía dois bons cavalos, guardados num estábulo atrás do terreno de seu consultório. Para lá a dupla se dirigiu, vencendo a distância rapidamente. Corliss achava-se apreensiva com a possibilidade de que Rad, ou Pigot, estivesse à espreita.

A frente do prédio de Will, como outros pontos de Pennyfarthing, fervilhava de gente que festejava a paz entre estudantes e moradores. O cirurgião destrancou a porta de entrada, fechando-a logo que os dois pas­saram. A única luz vinha de uma porta dos fundos, aberta, e de uma ampla janela lateral que dava para um beco.

— Nunca estive numa clínica cirúrgica — disse Corliss a fim de justificar sua curiosidade em relação ao equipamento existente ali: cama de ferro com um vão central, encimada por tubos de vidro e sacos de couro que pendiam de anéis metálicos, um armário transparente com frascos misteriosos, rolos de bandagens e material de trabalho.

O mais impressionante, porém, era a fileira de ur­nas funerárias contra a parede. Corliss ficou arrepia­da, mas reuniu coragem para perguntar:

— Como você suporta? Quero dizer, a dor, a deca­dência, a morte.

Ele travou a porta dos fundos, correu a cortina da janela lateral para reduzir o ruído ambiente. Sorriu ao responder:

— Uma pessoa se acostuma com a dor. — Manipulou seu saco de viagem, que jazia numa mesinha. — E com a morte.

Logo que o sol se pôs, Corliss sentiu frio, apesar do dia quente. Viu o cirurgião acender um lampião a óleo e suspendê-lo até um gancho em posição central no teto. Conforme ele tentava pendurar a peça, esta ba­lançou um pouco, mergulhando seu pálido e sardento rosto ora na luz, ora na sombra.

A claridade revelou um detalhe que passara desper­cebido a Corliss: um tubo retorcido saía debaixo do vão da cama hospitalar e desembocava num balde, cuidado­samente posicionado. Havia manchas no piso, que ela identificou como sendo de sangue. O dispositivo confir­mava que Will Geary também fazia autópsias.

— Está na hora de sairmos? — indagou, impaciente por livrar-se daquela sinistra visão.

Sem dar-lhe atenção, Will abriu sua maleta e dela retirou uma pequena faca de brilho prateado: um bisturi. Outra lâmina, pontuda, foi colocada ao lado da pri­meira, caprichosamente alinhada sobre a mesa. Novos instrumentos cirúrgicos emergiram e foram arrumados com esmero. Talvez ele fosse limpá-los e ajeitá-los den­tro da bagagem.

Em vez disso, Corliss constatou, trêmula, que Will vestia um avental de couro, manchado de vermelho, e o afivelava por trás, sobre sua camisa.

Com a boca seca, ela foi até a porta e procurou abri-la. Em vão, pois estava trancada.

— Eu gostaria de sair imediatamente — disse, trê­mula.

O cirurgião marchou na direção dela e disse suave­mente:

— Por certo que sim.

Rainulf escalou apressadamente os degraus de sua casa.

— Corliss? — chamou, ansioso.

Thomas e Brad o cercavam, com os braços carre­gados de pão fresco, carne assada, acompanhamentos quentes e pudins doces — provisões para uma celebra­ção. A comida havia sido presenteada por comercian­tes que tinham reaberto suas lojas e queriam premiar Rainulf Fairfax pela decisiva participação na trégua entre os estudantes e os cidadãos de Oxford.

Os dois jovens alunos receberam com surpresa o convite do mestre para irem até sua casa. Julgavam que o professor estava furioso com eles, por terem ex­posto o segredo de Corliss em plena rua. A reação dele os confundiu.

— Corliss! — Novo chamado, pois Rainulf queria festejar com ela sua vitória, e depois beijá-la e tocá-la em particular.

Ele inspecionou o quarto e percebeu a cama vazia e limpa. Não havia roupas jogadas nas cadeiras nem escovas sobre a penteadeira. Simplesmente, não havia mais Corliss.

Rainulf voltou à sala grande, ignorou a dupla de alu­nos que bebia cerveja e vasculhou a mesa de trabalho de Corliss. Também se achava inusitadamente arrumada. A Biblia Pauperum estava bem no meio do móvel, ao lado de um pergaminho manuscrito. Ele sorriu ao ver os desenhos decorativos, ergueu a folha e apagou o sor­riso ao deparar com as palavras "Meu amor".

Empalideceu, sentindo o sangue fugir-lhe da face. Um imenso vazio o tomou, marcado pelo atordoamento. Apoiou-se na borda da mesa. Os alunos perceberam o que ocorria e o ajudaram a sentar-se na cadeira. Então, Rainulf pôde ler o restante da parte escrita da folha.

Neste momento, você já terá compreendido o que ocorreu... Quando estiver lendo esta mensagem, estarei longe de Oxford, e duvido que um dia possa retornar.

— O que há de errado, mestre?

— Tenho sede. Dêem-me conhaque. — Ele disfar­çou o mal-estar.

Thomas e Brad concluíram que não era hora de insistirem. Forneceram a bebida ao professor e conti­nuaram a refeição, tomando cerveja. Rainulf utilizou a mão livre para erguer da mesa o fino pergaminho, produzido pela própria Corliss a partir de pele de cordeiro. Correu os dedos ao longo da folha, como se quisesse comprovar que era autêntica. Concentrado, notou a tinta fresca e cheirou o material, inalando os vestígios de um enigmático aroma: o dela.

Alguém bateu à porta e Brad foi atender. Rainulf escutou uma conversa murmurada no vestíbulo. Em seguida, dois pares de passos subiram a escada.

— Peter?

— Vim me despedir de você. Vou retornar ao Castelo Blackburn.

Peter arrastou uma cadeira para sentar-se ao lado de Rainulf. Não parecia ter vindo para uma mera des­pedida.

— Fui informado a respeito de Corliss. Você ficará bem?

— Claro, assim que reencontrá-la.

— Ela o deixou por uma razão, mestre. Uma boa razão. Sacrificou-se por você. Deve ter sido duro para Corliss, mas ela resolveu assim. Não é melhor aceitar os fatos, em vez de sair atrás dela?

— Você não compreende, Peter. Nem ela. Tenho de encontrá-la. Acho que está a caminho de Londres, onde pode sobreviver de seu trabalho com iluminuras.

Peter suspirou. Releu o texto que tirou das mãos de Rainulf.

— Há quanto tempo Corliss foi embora?

— Não tenho certeza. Alguns minutos ou várias ho­ras. Talvez já esteja longe de Oxford, numa das diver­sas estradas disponíveis.

— Se sair para Londres de manhã — comentou Peter — chegará à capital mais ou menos às...

— Não, partirei agora mesmo. — O professor esbo­çou o movimento de erguer-se da cadeira, mas Peter, pelo braço, o manteve sentado.

— É insensato. Você mesmo disse não ter idéia de qual estrada Corliss tomou. Daí ser mais fácil achá-la depois que ela estiver em Londres. Uma visita à rua das livrarias e dos copistas lhe dará a pista certa. Espere até amanhã.

 

— Deixe-me ir, Will.

— Deixá-la ir? — O cirurgião sorriu. — Depois de todo o trabalho que tive para localizá-la? Muito im­provável.

Corliss espiou a maior faca de todas, na mesa. Se conseguisse apanhá-la...

Ela afastou-se da porta, mas Will a agarrou pela túnica e a imobilizou com a força de seus músculos.

— Poupe sua energia, minha cara. Vai precisar dela, depois de eu terminar o que devo fazer com você.

— Era você o tempo todo! — Corliss desabafou. — Não Rad. Você é Pigot.

O bandido a estapeou com vigor, porém segurou-a antes que caísse.

— Meu nome — disse em tom ameaçador — é William Geary. O apelido de Pigot é insultante. Se me chamar assim de novo, eu mato você.

Corliss sentiu a respiração dele em seu rosto, ta­manha a proximidade. Nunca havia notado como os olhos, quase escondidos pelas sardas, eram sem cor e glaciais. Na verdade, até as sardas de Pigot pareciam anormais, confundindo-se com gotas de tinta verme­lha. Ou de sangue.

— Minha aparência desgosta você? — ele inquiriu.

— Não. — Ela disfarçou o tremor e negou com fir­meza.

— Mentirosa! — Pigot a sacudiu de tal modo que a cabeça raspou na porta. — Espere até que eu abra algu­mas trilhas em sua face. — Ele então focalizou a mesa e o esmerado arranjo dos instrumentos cortantes.

Grite! Corliss aspirou bastante ar e pôs toda a ener­gia na voz:

— Socorro! Alguém me ajude! Will sorriu com indulgência.

— Vá em frente. Só o que conseguirá é uma gargan­ta dolorida. — Ele girou a cabeça no sentido da janela vedada, através da qual se ouviam sons dos festejos na rua. — Ninguém escutará você e poderei fazer o que quiser, sem ser interrompido.

— Pense, Will. Nada fiz para magoar você. Por que imagina que tem de me...

— Porque você é uma rameira mentirosa! — ele berrou diretamente no rosto dela. Mais calmo, apenas murmurou: — Sua punição terá de ser exemplar, le­vando em conta o esforço que despendi em sua caça. Você riu de mim e...

— Não, nem sabia que você era Pi... — Ela engoliu com dificuldade. — Não tinha idéia de que trabalhava para sir Roger como... Julgava que era somente seu médico e cirurgião.

— As duas coisas. Descobri que era lucrativo encon­trar jovens fugitivas para sir Roger. Acho que tenho uma aptidão natural para essa missão. Ninguém chega a suspeitar de mim, a não ser quando é tarde demais.

Nem ela nem Rainulf haviam desconfiado. Will tive­ra o desplante de preveni-los quanto ao fato de Roger ter enviado um capanga atrás dela, quando ainda era Constance de Cuxham.

— Meu plano consistia em fazer Fairfax admitir que você era a amante dele. Mas ele negou, claro, o mentiroso padreco.

— Eu realmente não era... — Corliss arriscou.

— Chega de balelas! — Will fechou os olhos num ato de contenção e, ao abri-los, estava calmo de novo. — Planejei um pequeno incêndio na casa dele, porque pessoas assustadas se expõem com mais facilidade. Não funcionou, claro. Mas, pelo menos, Fairfax não suspeitou de mim, e sim de um pobre mascate, a quem eu deveria agradecer pela ajuda prestada...

— Rad queria me proteger — ela declarou, comovi­da com a figura do vendedor.

— Sei disso muito bem. Ele me viu, hoje, porque eu estava tão empenhado em pegá-la sozinha que a segui abertamente, sem maiores cuidados. Seu guardião le­proso, apesar de idiota, parece ter deduzido minhas intenções e tentou abordá-la primeiro. Mas ele é lerdo e desastrado, enquanto eu, depois que apanho minha presa, nunca a deixo escapar.

O olhar glacial de Will paralisava Corliss, devassando-lhe o corpo com claro interesse sexual.

— Mesmo assim, gosto de me divertir com minhas vítimas — ele completou.

— Você é louco!

— De modo algum. É melhor me tratar bem. Sugiro que pare de resistir e aceite os castigos que eu julgar merecidos.

Encostou-se nela, e Corliss sentiu sua ereção debai­xo do avental de couro.

— Não! — Ela o empurrou, mas em troca Will pren­deu-lhe os punhos, imobilizando-a de encontro à pa­rede. As pernas continuaram livres, porém, e Corliss usou o joelho contra a virilha dele. O avental propor­cionou uma espécie de escudo ao ataque eventualmen­te doloroso.

— Ardil típico de uma prostituta — ele rosnou. Ela levantou a perna de novo, dessa vez chutando o tornozelo do oponente. Will gemeu de dor e largou os braços dela. Corliss tentou deslizar junto à parede, para fora do alcance dele. Mas a reação foi rápida. Ele colheu a cabeça dela nas mãos largas e bateu-a contra a porta.

A dor reverberou por sua cabeça. Uma luz branca toldou-lhe a visão e depois se dissolveu, deixando um torpor e um vazio.

A consciência só lhe voltou quando seu pulso es­querdo foi retorcido, causando desconforto. Alguma coisa lhe atritava a pele. Ela ouviu o som do avental de couro sendo desafivelado.

Não! O que o execrável Pigot tentava fazer? De olhos abertos, Corliss teve de fechá-los diante da luz forte que vinha do teto. Percebeu então que se achava deitada de costas, no chão, e seus pés e a mão esquer­da estavam atados por uma corda à base da mesa.

Will permanecia ali perto. Ela armou a mão livre a fim de acertar um soco no abdômen dele. Novamente ele atinou com a intenção e segurou-a pelo pulso do­lorosamente. Dobrou-lhe o braço acima da cabeça e o envolveu numa tira de couro. Inútil resistir, pois ele era forte e baldava qualquer iniciativa de Corliss. O nó a apertava, e Will ainda lhe deu mais um puxão, como se o testasse.

Aparentemente satisfeito, ele voltou-se para a mesa e avaliou a variedade de facas. Com um sorriso malé­volo, escolheu o bisturi e o exibiu a ela. A peça curva­da na extremidade brilhava. O pânico tomou conta de Corliss, que se debateu vigorosamente, na tentativa de livrar-se dos nós. Ele a ignorou por completo, mo­vendo o polegar sobre o fio da lâmina.

Não se desespere! Ela forçou-se a ficar quieta, em­bora o coração estivesse acelerado e o fôlego, irregular. Ocorreu-lhe uma idéia.

— Escute, Will. Tenho bastante dinheiro. Eu o da­rei a você, se me libertar.

Ele inclinou-se sobre ela.

— De qualquer modo ficarei com ele. Parece que você não entende. Não pretendo deixá-la partir. Obrigou-me a uma caçada incessante, durante todo o verão, e mereço uma recompensa melhor do que dinheiro, agora que a busca terminou. Mereço vingar-me com alguns talhos nesse rosto bonito.

— Isso não fará sir Roger feliz — ela contrapôs, fal­samente confiante em seu poder de persuasão.

— Talvez não, mas ele vai pagar o que deve. Sempre paga, o porco obeso. E então, depois de receber o saldo, vou lhe dar uma morte bastante plausível. Quem sabe, um aparente suicídio, como sucedeu com Hildreth.

Corliss recordou-se da jovem frágil que surgira afo­gada num riacho, mutilada quase além da possibilida­de de identificação.

— Você matou Hildreth? — A voz soou trêmula de pavor.

— Claro, ela poderia me reconhecer.

— Com a língua cortada?

— Não seja ingênua. Ela era capaz de ler e escre­ver, não muito bem, mas o suficiente para me incrimi­nar. — Will bateu o cabo do bisturi na testa de Corliss. — Você também, e em três idiomas diferentes, se não estou enganado. Fique certa: você tem de morrer. Mas não — a lâmina deslizou pelo nariz, lábios e pescoço dela — antes de eu desfrutar algum prazer com você.

Era assim que seria. Corliss estava condenada a morrer, depois de torturas inomináveis e abuso se­xual. Avaliando a situação, ela chegou a uma conclu­são prática: se a morte era inevitável, melhor antes do que depois de aquele maníaco violentá-la e desfigurar-lhe o rosto. No entanto, atada como se encontrava, o que poderia fazer a fim de apressar o próprio fim?

Fechando as pálpebras brevemente, ela fez uma oração silenciosa, um pedido de perdão a Deus por seu ato de suicídio. Respirou fundo e disse:

— Você é um canalha, um bastardo assassino, Pigot. Como previa, ele teve um acesso de fúria.

— Não me chame...

— Do quê? De Pigot? Porque o apelido lembra o suí­no filho da mãe que você é?

Com um esgar, ele pressionou a lâmina contra o pescoço dela.

— Está me tentando a...

— Pigot era como chamávamos o porquinho que mi­nha família possuía, quando eu não passava de uma criança. Devia tê-lo visto, chafurdado, remexendo o lixo... — Ela gemeu de terror quando o bisturi cortou-lhe a pele, mas sem afundar em sua carne. Sentiu o sangue descer do pescoço até o colo.

Will exprimiu-se, rouco de raiva:

— Já disse que a mataria se me chamasse pelo ape­lido.

Recobrando a firmeza, ela rebateu:

— Faça isso, então. Qual o problema, Pigot? Não tem coragem de terminar o que começou?

Ele ficou confuso por um momento, a lâmina tan­gendo a nuca de Corliss. Depois, passou a rir. O que estará tramando?

— Você é admirável — disse enquanto recuava e enxugava o instrumento no avental. — Realmente ad­mirável. A maioria das outras cairia em pranto e sú­plica, neste ponto, mas você ainda procura controlar a situação e tenta me iludir. E bem inteligente, não? — O sorriso dele evaporou-se. — Só que odeio mulheres inteligentes. Descobri que a esperteza, como um vene­no qualquer, pode ser extirpada. — Apontou o bisturi sucessivamente diante dos olhos de Corliss, com o devido cuidado para não atingi-los. Ela estremeceu. — É preciso saber onde cortar. — A lâmina circundou o nariz dela e, em seguida, as orelhas. — Geralmente, é uma questão de tentativa e erro. Por isso, leva al­gum tempo. Mas sou um homem paciente.

— Quero mais que você se castre! — Corliss o pro­vocou, depois de suspirar.

Will balançou a cabeça e aproximou o bisturi dos lábios dela.

— Tem uma língua afiada também. Acho que já sei o que fazer com ela.

Pressentindo que Will iria introduzir a lâmina em sua boca, Corliss desviou a cabeça para o lado. Ele a se­gurou pelos cabelos e restaurou a posição anterior. Ela rilhou os dentes e apertou os lábios numa linha estreita.

Will torceu-lhe o pulso livre e forçou a abertura da boca. Corliss sentiu o aço frio sobre a língua. Ele brincava com o medo dela.

Um barulho de madeira sendo quebrada ganhou a atenção dos dois. Will retirou a lâmina e voltou-se para a fonte do ruído. A tábua que recobria a janela do beco estava em pedaços, e uma marreta de pedra tornou-se visível, caída no chão do consultório. A ferramenta rústica apenas precedeu uma figura bem-vinda: Rad!

Ele continuara seguindo Corliss, mesmo quando abor­dada e conduzida por Will Geary até a Pennyfarthing Street. Entrou pela janela com surpreendente agilida­de. Examinou a cena, horrorizado, e seus olhos encon­traram os da vítima prestes a ser sacrificada. Junto à mesa, Will trocou o bisturi por uma faca grande.

— Você cometeu um grave erro, mascate.

Era verdade, ela concluiu. Will poderia matar Rad tão facilmente quanto a uma ovelha.

— Vá embora, Rad — ela implorou. — Avise Rainulf que Pigot me seqüestrou.

— Cale-se! — Num avanço rápido, Will bateu na testa dela com o cabo da faca. Através da dor, Corliss ouviu Rad rosnar de raiva e, em seguida, os sons de um confronto físico.

Logo terminou. Quando ela conseguiu focalizar o cenário com nitidez, Rad vinha retrocedendo, tangido pela faca de Will em seu estômago.

— Não! — Restou a Corliss tentar livrar-se das amarras, em vão.

Encarando Rad olho no olho, Will o ergueu pelo colari­nho, empurrou-o até a janela quebrada e afastou a faca. De volta ao chão, o mascate ajoelhou-se perante seu al­goz, que agora empunhava a lâmina contra seu pescoço.

— Eu disse que cometeu um erro, infeliz — falou Will.

— Pare! — pediu Corliss, temendo um talho fatal em Rad. — Não faça nada!

— Melhor calar-se! — Will voltou-se a fim de ob­servá-la.

Ao lado de Rad, no chão, jazia a marreta de pedra. Ele a levantou com ambas as mãos. Atingiu o inimi­go na lateral da cabeça. Will revidou espetando o ab­dômen do mascate antes de cair. Rad vergou-se, com a mão na barriga, de onde o sangue brotava intenso. Corliss sabia que ele tinha poucas chances. Mesmo sem levar em conta a destreza de Will, Rad se debili­tava gradualmente, graças ao sangramento.

— Esqueça, Rad. Saia daqui — ela o estimulou.

— Mas eu preciso... — Rad lutou para ficar de pé.

— Apenas vá embora!

Por respeito a Corliss ou instinto de sobrevivência, ele atravessou a janela para o lado de fora, deixando a esquadria respingada de sangue.

— Maldito! — praguejou Will, ao levantar-se com uma das mãos na cabeça e a outra na faca. Foi espiar pela janela, a fim de certificar-se da retirada de Rad. Viu apenas uma sombra encapuzada, cujos passos fo­ram rapidamente absorvidos pelo barulho dos mani­festantes na rua.

Com o fôlego recobrado, Will pôs-se a pensar no que fazer.

— Não podemos mais ficar aqui — afirmou. — Vou levá-la até Cuxham. Detesto viajar à luz do dia.

Enraivecido, ele atirou a faca contra a parede dos fundos. Caprichosa-mente, a arma espetou-se num dos caixões de defunto. Andou até o local, meneando a ca­beça e sorrindo satisfeito com a idéia que tivera.

— Acabo de achar a maneira de tirá-la daqui sem chamar a atenção.

 

— Chega — disse Rainulf a Thomas quando este tentou encher-lhe o copo com mais conhaque. — Não pretendo ficar bêbado.

Uma batida descompassada na porta se fez ouvir no vestíbulo.

— Também chega de visitantes — murmurou ele.

— Vou mandar embora — afirmou Brad, oferecendo-se para descer. Então, Rainulf escutou uma exclama­ção de perplexidade: — Mestre! Venha cá, depressa.

Thomas seguiu Rainulf escada abaixo, até a calça­da. Havia uma massa de trapos caída ali, mas o pro­fessor notou o sangue e o capuz. Agachou-se para des­cobrir a cabeça e viu um rosto familiar, marcado por feias manchas.

— Rad?

O vendedor ambulante abriu as pálpebras e focou em Rainulf. O olhar foi estranho. O murmúrio, inin­teligível.

— O que ele está dizendo? — Thomas perguntou.

— Não faço idéia, mas estou preocupado — respon­deu o mestre Fairfax. — Esse coitado vivia seguindo Corliss, na intenção de protegê-la.

O que teria ocorrido com ela? Fora capturada por Pigot? Cortada até a morte? Nesse caso, por que Rad viera procurá-lo? Talvez tivesse enlouquecido, mas es­tava obviamente ferido com gravidade.

Caído no chão, Rad agitou-se na tentativa de trans­mitir uma mensagem. Rainulf o sacudiu pela gola do manto.

— O que houve com Corliss? Onde ela está? Vou matá-lo se você a machucou.

— P-Pigot — o mascate articulou um sussurro.

— Quem é esse? — Brad interrogou o professor. Rad moveu a cabeça violentamente, e depois revirou os olhos, quase desfalecido. Seu sangue escorria em abundância, mas o peito mantinha o movimento de subir e descer. Ainda não estava morto.

— Pigot, em saxão, é o apelido pejorativo para quem vive sujo como um porco, ou tem o rosto muito man­chado por sardas.

Após a explicação, Rainulf refletiu rapidamente. Uma face se materializou na mente dele, branca como leite e salpicada de pontos vermelhos. Também viu os olhos perspicazes, mas com pouco brilho, e o sorriso insidioso.

— Will Geary! O cirurgião que conhece Corliss!

Rainulf ergueu-se e deslizou os dedos por seus ca­belos. Seria possível? Relembrou a primeira vez que vira Will, parado à porta da taverna de Burnell, com a maleta de médico na mão. Eu o mandei a Cuxham e o envolvi em toda essa confusão, ele lhe dissera mais tarde, parecendo desculpar-se.

A verdade era que, não fosse por Will, Rainulf nunca tomaria conhecimento do vilarejo nem de Constance. No entanto, julgava perturbador o fato de que Will prestasse serviços a tiranos como Roger Foliot, capaz de quebrar as pernas de um garoto do campo, de pro­pósito, e depois pedir a intervenção do médico.

Ele manda me chamar sempre que necessário.

— Deus do céu! — o mestre exclamou, perplexo. — Vocês dois fiquem aqui e providenciem atendimento para Rad.

— Aonde o senhor vai?

— À Pennyfarthing Street. Se eu não voltar até o anoitecer, alertem o delegado.

Corliss captou lampejos de Will através da porta dos fundos, enquanto ele atrelava dois cavalos a uma car­roça. Retornando, o médico substituiu sua túnica pelo avental de couro e transportou nas costas uma urna fu­nerária, que depôs na carroceria do veículo, juntamen­te com um rolo de ataduras tirado do armário.

— Não faça isso, Will — ela implorou, antevendo-se deitada e atada dentro do caixão.

— Ah, agora me chama de Will! — Ele apanhou uma tira de pano e amordaçou-a. Mais um minuto, e ela teve a cabeça coberta, as cordas nas mãos e nos pés trocadas por outras mais grossas.

Durante o procedimento, ela conseguiu folgar os dedos e acessou a pequena bolsa presa ao cinto da tú­nica. Dali pescou o pequeno relicário que se tornara seu amuleto da sorte.

— Vamos — ordenou Will, empurrando-a pela por­ta dos fundos, sem notar que o cubo de cristal escapa­ra da mão dela, para cair no piso de madeira.

Debateu-se quando foi colocada dentro da urna fune­rária, mas isso não comoveu Will. Ele fechou o caixão e ainda utilizou martelo e pregos, fixando bem a tampa.

O pavor do confinamento sufocou Corliss, que já transpirava muito entre os limites escuros da urna. Quando ouviu os cavalos em movimento, puxando a carroça que balançava sobre o pavimento irregular, ela passou a tremer incontrolavelmente.

 

Rainulf irrompeu no consultório pela porta dos fun­dos, que permanecera aberta. O lampião continuava ace­so. Horrorizado, observou a mesa, examinando o sinistro arranjo de facas e instrumentos cirúrgicos cortantes. Havia ali um bisturi manchado de sangue e respingos vermelhos por toda a superfície. Devia ser naquela mesa que Will Geary apoiava cabeças humanas arrancadas dos corpos, além de outros órgãos humanos. O professor respirou fundo para combater a ansiedade.

Não, aquele não podia ser o sangue de Corliss. Talvez ela nunca tivesse pisado dentro do consultório.

Girando, ele esquadrinhou o restante da sala, mas nada percebeu de significativo, até ver algo que bri­lhava sobre o chão. Ajoelhou-se e resgatou o relicário, não sem antes benzer-se.

Com o cristal apertado na mão, sentiu mais energia e vibrou com a determinação de encontrar Corliss. A pista por ela deixada comprovava que estivera ali, sob a tirania de Will Geary. E o mais importante, conti­nuava viva!

Corliss sentiu-se banhada em suor na hora em que a carroça parou. Escutou Will saltar ao solo e, depois, uma série de ruídos. A tampa do caixão estava sendo aberta, mas ela teve de fechar os olhos diante da re­pentina claridade. Era de manhã, e Will, sem cerimô­nia, puxou-a para que ficasse de pé e também pulasse da carroça.

— Fique assim — ele instruiu.

As pernas dela pareciam faltar-lhe. Um toque de dor foi sentido abaixo do queixo. Ela abriu os olhos e viu uma faca encostada no local.

— Agora ande. — Ele passou a arma para as costas dela e moveu-a na direção de um prédio revestido de pedras, em forma de "L", no qual entraram por uma galeria subterrânea.

Era a mansão de Roger Foliot, a maior constru­ção existente em Cuxham. Quando vivia no vilarejo, Corliss admirava o tamanho daquela estrutura. Agora, à mercê de Will Geary, tudo parecia ameaçador.

Uma vez no saguão, ela procurou orientar-se. Uma parte do "L" constituía a área social da casa, enquanto o verdadeiro solar de Roger estava na outra, separada por uma pesada porta. O povo de Cuxham especulava sobre o motivo de o proprietário manter seu quarto sob tanta privacidade. Os rostos esfaqueados e o mar­tírio de suas parceiras de cama explicavam tudo.

Hugh Hest veio receber os recém-chegados. O capataz de Roger e marido de Helen, permitiu que Will conservasse a faca na mão e que sua prisioneira con­tinuasse manietada. Esta só se acalmou quando viu uma mesa posta com cestas de ovos cozidos, queijos di­versos, carnes defumadas, entre numerosos castiçais, garrafas de vinho e pequenos pacotes embrulhados em linho, de conteúdo desconhecido.

— Sir Roger está? — Will olhou para a porta ma­ciça.

— Não, foi ao moinho, falar com...

— E você tem a chave dessa porta?

Hugh hesitou, diante do olhar suplicante de Corliss.

Não abra. Você é um homem decente.

— Sim, tenho. — O capataz percebera que Will pressionava a lâmina contra a garganta da vítima. — Mas prometa não machucá-la.

A resposta foi uma risada de Pigot, seguida de um empurrão para que Corliss ingressasse na área priva­da do solar.

— Agora pode trancar de novo — ele ordenou a Hugh, e Corliss ouviu a chave girar na fechadura. — Vá buscar sir Roger, depressa!

Sem tardança, ela deparou com um quarto mergu­lhado em sombras, de janela fechada, onde ficou. Com as mãos atadas, era-lhe penoso permanecer em pé. Examinou a cortina de brocado que isolava a enorme cama. Nas tapeçarias, detectou indescritíveis cenas de depravação sexual.

Uma única vela iluminava um livro aberto sobre a mesinha. Ela se aproximou para ver, com curiosidade mórbida. Encontrou desenhos de homens e mulheres nus, sendo torturados por demônios de chifre, das ma­neiras mais brutais e imaginativas que um ser huma­no poderia conceber. Talvez se tratasse de uma obra sobre os tormentos do inferno.

Algo bateu com um ruído seco na janela.

Corliss foi verificar o que era, mas um segundo ruí­do a paralisou. Acercando-se, abriu uma das folhas de madeira e viu Hugh Hest, no jardim logo abaixo, mimetizando o lançamento de um pedregulho. Com a outra mão, ele mostrava o molho de chaves preso ao cinto.

Estaria fornecendo a ela a chave do solar? Era de fato um homem decente.

Ela recuou para receber o presente salvador, que descreveu um arco perfeito e caiu a seus pés. Olhou de novo para fora. Hugh se afastava em busca de Roger Foliot. A situação ainda era de risco, mas alguma aju­da valia mais do que nenhuma.

Livrar-se das cordas que lhe prendiam os pulsos foi mais difícil do que Corliss tinha imaginado, pois os de­dos se achavam adormecidos. No entanto, após inces­santes giros e repuxos, os nós cederam. Primeiro, ela esfregou os pulsos doloridos. Depois, libertou os pés, recolheu a chave e guardou-a na bolsa de cintura que estava intacta na parte de trás da túnica. Trouxe-a para a frente do corpo.

Ansiosa, a mordiscar o lábio, ela venceu o corredor até a porta maciça e experimentou a chave no trinco. O clique metálico soou alto demais, aparentemente. Mas, quando não escutou nada do outro lado, ela abriu a passagem com exasperante lentidão.

Na verdade, apenas uma fresta, pela qual introduziu a cabeça e avistou Will à mesa, de costas para ela, comen­do e bebendo com óbvio prazer. Por infortúnio, a fuga não seria tão fácil. Ele escutaria se ela ousasse passar.

Naquele momento, Will cravou uma faca num dos pacotes misteriosos, e uma chuva de feijões secos in­cidiu no tampo da mesa e no chão. O cirurgião balan­çou a cabeça, frustrado, e preparou um segundo golpe. Quando a lâmina rasgou o linho, Corliss aproveitou para fugir, fechando a porta atrás de si. Contudo, pre­cisava ainda correr até a saída do saguão. Caso a per­cebesse, Will rasgaria o corpo dela!

Uma pilha de sacos com grãos podia ser vista no canto do aposento. Novo pacote, nova facada, e Corliss deslizou rapidamente junto à parede, refugiando-se atrás da sacaria. Bem na hora, pois Will se levantara da mesa e andava pelo salão, impaciente, batendo a arma branca numa das coxas.

Por misericórdia, Deus, não permita que ele me veja.

 

— Cabelos curtos e calça de homem? — Subindo os degraus externos da mansão, Roger Foliot ainda não se conformara com o relato de Hugh. Trazia a cadelinha Destinée no colo. Deslocava-se depressa demais para seu peso. A perspectiva de pôr as mãos gordas em Constance de Cuxham o animava.

— Foi o disfarce que adotou para evitar sua captu­ra — disse Hugh.

— Bem pensado. Ela sempre foi esperta. — O fi­dalgo baixou a voz ao se acercar da porta. — Pigot poupou-lhe o rosto, afinal. Fez como pedi, porque me teme e respeita...

— Por Deus — Hugh murmurou —, não o chame de Pigot na frente dele.

— Não tenho medo — Roger rebateu. Teria, se contasse com algum bom senso.

No saguão, Will emergiu das sombras, segurando a enorme faca. Ouviu elogios do chefe e cobrou sua conta.

— Receberá o dinheiro — falou o lorde —, depois de eu vê-la.

Ele adiantou-se e pôs a própria chave na porta in­terna para o solar. Descobriu-a destrancada.

— Você me disse que fechou Constance aqui. — Roger olhou feio para Hugh.

— Foi o que fiz — o capataz assegurou. — Não ima­gino como...

Ela conseguira! Havia escapado! Secretamente feliz, Hugh seguiu o patrão pelo cor­redor da área privativa. Will esperou do lado de fora.

— Constance? — chamou o lorde, abatido com a possibilidade de ter perdido sua vítima. No quarto, chegou a olhar debaixo da cama, mas ergueu-se cheio de frustração e repreendeu Hugh. — Maldição! Não fique aí parado! Ajude-me a encontrá-la!

Com as mãos na cintura obesa, Roger foi interpelar Will.

— Onde ela está? Não vou repetir.

— Não sei — respondeu o cirurgião, assimilando a ameaça.

— Compreendo. Você a libertou porque a deseja para si próprio. Mas Constance não é sua, é minha! Paguei para você trazê-la. Portanto, entregue a moça.

— Ainda não me pagou tudo.

— Ah! — Roger focalizou Hugh, com ar ultrajado. — Você ouviu? Ele quer receber por um serviço incom­pleto...

— Você a terá de volta. Não pode estar longe daqui. Mas me deve dinheiro. Seu capataz é testemunha do acordo.

— Não, Pigot. Nada lhe pagarei até ter Constance em minhas mãos.

— Como me chamou? De Pigot? — Will mostrou-se rubro de raiva. Brandiu a faca diante do rosto de Roger, que empalideceu. Ele dissimulou o tremor e procurou Hugh com os olhos pequenos, enterrados em camadas de gordura.

— Ajude-me. Tire esse maníaco daqui, por favor! Um estranho senso de tranqüilidade tomou conta do capataz.

— Creio ser impossível ajudar, sir Roger. Não te­nho nenhuma arma à mão.

— Então, fale com ele e o convença a me soltar. Naquela altura, Will Geary tinha encostado a pon­ta da faca no pescoço de Roger Foliot.

— Por nove anos — ele disse —, executei serviços odiosos para você. Meu único motivo era o dinheiro. Se ele faltar agora, sua existência não vale mais nada.

— Não! — suplicou Roger. — Preciso me confessar! Senão, irei para o inferno!

— Provavelmente — zombou Will, disposto a espe­tar o lorde.

A intuição sinistra do médico o levou a olhar para a sacaria empilhada na extremidade do salão. Baixou a faca e foi até lá. Escolheu um dos sacos, que estava sa­liente, e deu um chute, prensando-o contra a parede. Um grito de mulher cruzou o ar.

Oh, não.

— O que temos aqui? — Puxando alguns sacos para o lado, Will revelou Constance, dobrada e espremida de encontro à parede. — Agora, sim, vamos nos divertir.

Ela não se entregou. Golpeou o tornozelo do inimigo e ele caiu. Constance tentou fugir às carreiras, mas Will, mesmo no chão, conseguiu segurá-la pela perna. Ela também tombou, porém deu chutes e unhadas a fim de livrar-se, até que o cirurgião encostou a faca no peito dela.

— Vamos levantar, bem devagar.

Ela obedeceu e escutou Will prometer castigá-la se tentasse mais alguma coisa.

— Mas quero descer com você, pois lá embaixo tere­mos mais privacidade. Ande.

Diante de um Roger mudo, Hugh recitou uma pre­ce enquanto os outros dois desapareciam pela escada que levava à galeria subterrânea. No silêncio que se seguiu, ele pensou ouvir o som de cascos à distância.

O que Will reputava como inteligência, por ter re­cuperado sua valiosa presa, Constance, ou Corliss, considerava insanidade. Não havia outro nome para a atitude do cirurgião, que cadenciava seus passos, de­graus abaixo, apenas com o fim de manter a faca junto à nuca de quem descia à frente.

Ele a conduziu até uma espécie de cela, na galeria subterrânea, dotada de grilhões de ferro forjados e posi­cionados para envolver as mãos e os pés dos eventuais prisioneiros. Imobilizada, ela notou uma longa marre­ta, deixada num canto do cárcere. Mas Will também percebeu, e retirou-a do lugar, avaliando seu peso.

— Da primeira vez em que estive aqui — ele con­tou —, sir Roger me obrigou a vê-lo quebrar as pernas de um jovem camponês, com esta marreta, alegando puni-lo por tentativa de fuga da fazenda. Coube-me socorrer o rapaz e para isso o lorde me pagou bem.

Ele sorriu e encenou seguidos golpes com a ferra­menta.

— Com você, primeiro serão as pernas, só para dar-lhe uma amostra. Depois, virá o resto...

 

Após uma viagem sem pausa desde Oxford, o cavalo de Rainulf estava exausto. O professor desmontou de­fronte à mansão de Roger Foliot. Um homem apareceu no alto da escadaria. Era um estranho para Rainulf, mas parecia reconhecê-lo.

— Estão lá dentro — Hugh avisou. — Descendo a escada rumo à galeria. Venha por aqui.

Rainulf correu, em atenção à ajuda inesperada.

— Tome. — O homem passou-lhe um punhal. — É tudo o que tenho em matéria de armamento, mas es­pero que lhe seja útil.

Segurando a arma branca, Rainulf foi sensato o bastante para vencer os degraus sem fazer barulho, pensando no elemento surpresa. Parou perto de uma cela, ao escutar a voz de Will Geary:

— Podemos começar?

Espreitou o ambiente e decidiu aguardar que Will lhe desse as costas, o que não aconteceu. Doeu-lhe ver Corliss imprensada na parede, presa por grilhões, en­quanto o cirurgião vibrava a marreta no ar, experimentando-a. Era uma arma muito mais poderosa do que seu modesto punhal.

Vá embora, Rainulf! Corliss acabara de vê-lo. Ele o matará.

— Afaste-se dela! — ele gritou, invadindo o cárcere.

— Senão... — Will debochou.

— Senão isto! — Rainulf fez mira com o punhal e arremessou-o com toda a força possível contra o peito de Will. Talvez a loucura gerasse reflexos superiores à média, pois o cirurgião desviou-se em tempo e a lâmina cravou-se em seu ombro esquerdo. Com um gemido, ele arrancou o punhal de sua carne e principiou a rir.

— Parabéns. Você ficou desarmado, e a dor me pro­vocou fúria — disse, escandindo as palavras. Atirou o punhal para longe e empunhou a marreta, com a qual visou Rainulf na cabeça.

Corliss gritou. Confiante em seus treinamentos com lutas corporais, o mestre Fairfax recorreu a uma ras­teira na perna de Will. A marreta desabou e foi chu­tada para longe, sob novos gritos de Corliss. De pé, Rainulf paralisou pela gola o cirurgião e aplicou um soco forte na cabeça dele.

Atordoado, Will desferiu murros frágeis no abdô­men do professor, que o levantou pela roupa e acertou outro murro potente em seu rosto.

Mais uma vez, o cirurgião recuperou-se rapidamen­te e mobilizou os punhos contra a ofensiva de Rainulf.

Corliss fechou os olhos, escutando os insuportáveis golpes e xingamentos que se sucediam. Quando focou na briga de novo, Rainulf e Will rodeavam um ao ou­tro. A perigosa marreta se achava a poucos centíme­tros deles. O cirurgião foi mais rápido e empunhou a arma em primeiro lugar. Com um golpe no estômago, conseguiu que Rainulf recuasse, vergado de dor.

— A única maneira de acabar comigo, mestre, é me matar. Mas duvido que tenha a coragem necessária para isso. — Will circundou Corliss, preparando um golpe fatal.

Rainulf pressionou a mão no abdômen dolorido e desafiou o oponente.

— Matei muitos infiéis na Cruzada. — E atormentou-se durante toda a vida com tal conduta, Corliss sabia.

— Foi há muito tempo, mestre. — Will sorriu como se estivesse ante uma criança que superestimasse suas habilidades. — Já se esqueceu de como se faz.

Rainulf deslocou-se agilmente do alcance da mar­reta e saltou contra o adversário. Pressionou as mãos em torno da cabeça dele e a torceu vigorosamente, quebrando-lhe o pescoço. A ferramenta foi ao chão. O corpo de Will tornou-se frouxo e desabou. Logo ficou rígido, de olhos cerrados, e Corliss deduziu que ele es­tava morto.

O alívio a consumiu, fazendo-a chorar. Rainulf co­lheu seu rosto e baixou a testa até que tocasse a dela.

— Oh, meu Deus... Corliss... — balbuciou.

Ele livrou dos grilhões as mãos e os pés da amada, constatando que suas pernas tremiam.

— Se você puder cavalgar, vamos já para casa — propôs.

— Não posso voltar a Oxford — ela contestou, entre lágrimas.

— Por quê? Por causa da reitoria que o bispado pre­tende me entregar?

— Sim, embora seja penoso dizer.

— Comprei a loja da sra. Clark para você — Rainulf informou, com uma ponta de alegria que, ali na cela, era descabida.

— Vai me dar esse presente, como se eu fosse uma de suas...

— Acredite, Corliss. Nunca presenteei uma mulher com um negócio próprio. Pensei que ficaria contente. Até já contratei um pintor para fazer a nova placa do lugar, com o seu nome.

— Mas... — Ela tentou discutir.

— Não é um presente de despedida, tolinha, e sim de casamento. — O sorriso que ele exibiu logo se dis­sipou. — Você me aceita como marido? Acho que lhe causei mais problemas do que merecia, porém resolvi acatar seu conselho e limitar as questões acadêmicas às salas de aula.

— Agora é você que está sendo tolo. Como eu pode­ria recusar um marido assim? No entanto...

— Fale logo.

— Por favor, Rainulf. Você sabe que nosso casa­mento é inviável.

— Por quê? O problema da reitoria?

— Sim, para começo de conversa. — Muito emocio­nada, Corliss ainda conseguia raciocinar.

— Pensei no assunto, ultimamente. E quanto a le­cionar. E também quanto a você, a nós dois. — Ele bei­jou-lhe a fronte. — Quero ser eu mesmo, assumir meus sentimentos e, acima de tudo, me casar com você.

Rainulf colou a boca nos lábios de Corliss, num lon­go e doce beijo, repleto de esperanças e promessas.

— Darei aulas — ele esclareceu —, mas o bispo Chesney terá de encontrar outro reitor para a univer­sidade que pretende desenvolver.

— Ninguém é tão qualificado quanto você. Ele deu de ombros.

— Você nasceu para ensinar. Fico contente por querer continuar. Mas resta o problema do batismo de Wulfric. O padre John disse que, como padrinhos do menino, estaríamos espiritualmente ligados, porém a Igreja não permitiria nosso matrimônio.

— Já somos ligados espiritualmente, desde o prin­cípio. — Ele beijou-lhe a ponta do nariz. — E as regras da Igreja existem para serem contornadas. Já coloquei o padre Gregory para trabalhar num pedido especial de licença.

— Você pensa em tudo, não? — Corliss soltou-se languidamente nos braços dele.

— Minha querida, você sempre será o meu amor. Sempre.

 

Dentro da nave repleta da igreja de St. Mary, o mascate Rad se escondia da multidão atrás de um pi­lar. O respeitoso silêncio reinante era devido à cerimô­nia de casamento entre Rainulf Fairfax e Constance de Cuxham.

Ajoelhados diante do altar, eles repetiram os votos nupciais enunciados pelo padre Gregory. Depois, uma missa especial foi celebrada. Rad ficara contente com o convite de Rainulf para comparecer, mas como sem­pre evitou mostrar-se ao público, fugindo do lugar a ele reservado na primeira fila, ao lado de Thorne, o nobre saxão, e de sua esposa, Martine.

De seu refúgio, Rad podia ver o que mais lhe interes­sava: Corliss, coberta de seda e esmeraldas. E, claro, em nada parecida com um rapaz. Ele havia desconfia­do de que se tratava de uma mulher desde o primeiro encontro. Corliss possuía uma aura de luz prateada em torno de si. Ele não poderia ter se enganado.

Agora, ela pertencia a mestre Fairfax. Ele já não precisaria protegê-la, mas, esperto, engendraria al­gum plano para vê-la de vez em quando, sem que ela notasse.

O choro de um bebê, no colo de Martine, plantou um sorriso no rosto do vendedor ambulante. Ele gosta­va de crianças, tanto que preferia ouvir o pranto delas a escutar o barulho das ruas e das massas humanas.

Erguendo o véu de Corliss, Rainulf deu-lhe mais do que um rápido beijo cerimonial. Demorou-se nos lábios dela, e Rad pressentiu que a noiva chorava.

Estudantes saudaram ruidosamente o novo ca­sal, durante o retorno à entrada da igreja. Rainulf e Corliss estacaram no pilar em que se abrigava Rad. Os dois o abraçaram sucessivamente, e a noiva ainda o presenteou com um beijo na face.

Na escadaria externa, Rainulf levantou a esposa no colo, a fim de levá-la até a carruagem que os condu­ziria à lua-de-mel no Castelo Blackburn. Beijaram-se fervorosamente mais uma vez, sob a ovação dos estu­dantes.

A luz prateada que parecia vir de Corliss quase ofuscou o céu azul daquele glorioso dia. Tudo era per­feito e bonito no mundo que o amor transformara em paraíso.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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