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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR TEM SEU PREÇO / Patrícia Ryan
O AMOR TEM SEU PREÇO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Inglaterra, 1159 Enfeitiçados pela paixão!

Bela e impulsiva, Martine jura nunca se apaixonar depois que sua mãe morreu com o coração partido. Apesar disso, ela cede aos apelos do irmão e concorda em deixar Paris para ir ao encontro de um homem desconhecido... um possível pretendente... na enevoada costa da Inglaterra. Forte e bonito, Thorne Falconer também jurou nunca se apaixonar. Nascido na pobreza, a única coisa que lhe interessa é o que separa os ricos dos pobres: terras. Ao arranjar a união de Martine com um nobre inglês, ele receberá uma propriedade como recompensa. Ele, porém, não contava com a irresistível atração que sentiria por Martine - e com a fascinação dela por ele. E enquanto ambos lutam para negar o desejo mútuo, acabam sendo arrebatados por uma paixão tão avassaladora que passa por cima de tudo, menos do imenso amor que os consome.

 

 

 

 

Agosto de 1159, Costa da Normandia

Martine de Rouen observava uma gaivota sobrevoar o alvorecer através do canal. A ave passou por so­bre diversos navios no porto de Fécamp como se tentas­se escolher o melhor local para pousar. Por fim, escolha feita, desceu num gracioso espiral e pousou no gradil do Lady's Slipper bem ao seu lado enquanto trinta rema­dores moviam lentamente a embarcação mercante para longe da doca.

— É um bom presságio, milady — o capitão do barco disse e sorriu. — Uma bênção para seu casa­mento com o filho do barão Godfrey. — O inglês imen­so, praticamente desdentado, tinha o rosto coberto de furúnculos, e se comunicava em francês, num sotaque gutural desagradável.

Martine deixara de acreditar em augúrios aos dez anos, especialmente os bons. Por que tentar se enganar esperando pelo melhor quando a lógica predizia o pior? Estava indo à Inglaterra, para se casar com Edmond de Harford, um homem que nunca tinha visto. O fato a en­chia com tamanho terror que nenhum presságio seria capaz de atenuar.

Sentindo a presença reconfortante do irmão às cos­tas, virou-se e o encarou.

Rainulf a fitou e em seguida voltou-se para o inglês, retribuindo o sorriso.

— Um bom presságio? Por que diz isso?

O homem apontou para a pequena visitante na grade ao lado de Martine.

— Essa é uma ave inglesa, padre... milorde. — Ele franziu o cenho, desconcertado.

Martine sabia que o homem devia estar pesando a situação e tentando decidir qual a melhor forma de se dirigir a um padre que era filho de um barão normando, e parente da própria rainha Eleanor.

— Pode me chamar de padre — Rainulf prontificou. — Minha devoção a Deus suplanta até mesmo a que te­nho por minha prima. — Fez um gesto para a ave. — Então acredita que nossa amiguinha aqui, tenha voado desde a Inglaterra só por nossa causa?

— Sim, senhor... padre. É um bom sinal. — Ele sorriu para Martine. — A pobrezinha voou desde a Inglaterra para encontrá-la, milady, a fim de acompanhá-la até sir Edmond. Se a senhora oferecer migalhas de pão, é pos­sível que ela fique conosco até chegarmos ao porto ama­nhã. Isso fará com que seu casamento seja uma união de amor e garantirá muitos herdeiros.

União de amor? Martine estremeceu ante tal concei­to. Quando criança testemunhara uma união de amor reivindicar a vontade, a razão e, por fim, a vida da mãe. Tendo de escolher entre o convento e o casamento, opta­ra pelo último, mas não consentiria o amor. Jamais cede­ria, não importando quantos presságios houvessem.

O capitão a observava à espera de uma reação.

Todos os ingleses partilham de suas idéias primiti­vas. Se sir Edmond for assim, não vejo necessidade de uma gaivota me dizer que esse casamento está fadado ao fracasso.

Isso era o que queria dizer, uma vez que o medo cos­tumava soltar sua língua afiada. Aquele inglês, porém, a despeito de suas crendices infantis e maneiras rudes, não era mal-intencionado. Por esse motivo, e por causa dos apelos incessantes de Rainulf para que se portas­se de modo civilizado, permaneceu calada. Até mesmo tentou sorrir. Pedindo licença, deu meia-volta e des­ceu os poucos degraus até a cabina. O calor do pequeno compartimento a engolfou antes mesmo que fechasse a porta.

Aquela era a única cabina do navio mercante, e em­bora fosse pequena e estivesse abarrotada com a sua ba­gagem e a do irmão, era de uso exclusivo deles durante a travessia.

Abaixando a cabeça para não bater no teto baixo, de­samarrou o manto e jogou-o de lado. Depois retirou o véu que envolvia o rosto e libertou as longas madeixas.

Era impossível negar que ela e Rainulf fossem paren­tes, sendo os dois altos, cabelos castanho-claros e de es­trutura óssea proeminente, bem como todos os homens do norte dos quais descendiam. Apesar de serem filhos de mães diferentes, ambos eram muito parecidos com o pai, o falecido barão Jourdain de Rouen.

Pela escotilha na lateral da cabina, Martine viu a cos­ta da Normandia se afastar gradualmente. Assustou-se ao sentir algo resvalar em suas pernas, mas ao olhar para baixo, viu que se tratava somente de seu gato preto de patas brancas.

— Não se preocupe, Loki. — Sentou-se e abraçou-o. — Dizem que a Inglaterra é fria e úmida. — Estreme­cendo, enterrou o rosto nos pelos macios. — Deve haver muitos ratos por lá. Estou certa de que você será feliz.

As tábuas de carvalho que formavam o teto da cabina e o piso do tombadilho superior rangeram quando o capi­tão e Rainulf pararam bem acima dela. Quando o inglês falou, ela ouviu as palavras claramente.

— Sua irmã... Bem, ela não é de muita conversa, é?

Rainulf respondeu com um longo suspiro.

— Desculpe meu atrevimento, padre, mas o filho do barão já foi apresentado a milady?

— Ainda não — Rainulf respondeu depois de uma pausa.

O homem riu e comentou:

— Eu seria capaz de dar um mês do meu soldo para ver esse encontro.

Por que ela simplesmente não me pergunta onde está?, Rainulf pensou sentado no chão da cabina enquanto observava a meia-irmã vasculhar as malas. Abanando-se com o solidéu negro, pegou uma carta de dentro do casaco com a mão livre.

— Gyrth acredita que Edmond terá uma surpresa in­grata ao descobrir como você é fria e malcriada. Também acha que o que você precisa é da mão firme de um ho­mem para quebrar o seu gelo.

Martine se deteve antes de destrancar um pequeno baú de madeira.

— Quem é Gyrth?

— O capitão. O homem que ignorou por completo esta manhã.

Despejando o conteúdo do baú no chão, ela se abaixou para continuar sua busca.

— Como sabe o nome dele? Estranho como parece sa­ber sempre o nome das pessoas.

— Eu pergunto.

Depois de um instante, ela ergueu o olhar e enfrentou a crítica. Os profundos olhos azuis iluminados pela luz do meio-dia vinda da vigia se arregalaram quando ela viu o que ele segurava.

— Essa é a carta do saxão?

— O saxão tem um nome.

Ela resmungou e revirou os olhos.

— Rainulf, por favor! Sabe que não lembro...

— Não consegue se lembrar do nome de meu melhor amigo? — Afastou a mão para que ela não tomasse a carta.

— Seu melhor amigo? Faz dez anos que não o vê... Desde as Cruzadas, não?

— Ele é meu melhor amigo e tem um nome. Todos têm nomes, Martine, mesmo os saxões. E já que esse saxão em particular teve todo esse trabalho de lhe arranjar um marido, o filho do próprio senhor supremo, o mínimo que você poderia fazer é se lembrar do...

— Querido irmão, às vezes acho que me provoca só para se divertir. Isso não é um traço muito bom num padre, é? — Sorrindo, Martine se lançou sobre ele, le­vando-o ao chão.

A cabeça bateu num baú e ele gemeu de dor, mas ela nem se importou, apressando-se em pegar a carta com uma risada. Esfregando a cabeça e olhando ao redor à procura do solidéu, Rainulf disse:

— As freiras não lhe ensinaram que é pecado atacar os homens do clero?

Martine abriu a carta.

—Elas ensinaram muitas coisas. Eu retive somente as informações pertinentes.

Rainulf encontrou o solidéu, voltou a colocá-lo na cabeça e se sentou, pensando que para uma jovem de dezoito anos, criada num convento, Martine era bem pouco religiosa. Apesar de seus incessantes esforços para fortalecer a fé dela, nada mudava, e ele temia pela alma imortal da irmã. Talvez o fracasso em guiá-la se de­vesse à própria inabilidade de se autoguiar. Não seria o orgulho o responsável por minar sua própria fé? A bem da verdade, venerava o intelecto com mais afinco do que a Deus, portanto, o que seria de sua própria alma imortal?

— O calor está infernal aqui, mal consigo respirar — disse ao se levantar. — Vou até o convés.

Nem bem tinha chegado lá em cima quando Martine exclamou da cabina:

— Thorne Falconer! — exultou triunfante. — O nome do saxão é Thorne Falconer!

Primeiro foi a gaivota. Depois a tempestade.

Martine releu a carta de Thorne Falconer muitas vezes, aquela na qual ele descrevia seu futuro marido. Quando por fim levantou o olhar do pergaminho, notou que o céu tinha escurecido, mesmo sendo início de tarde. Do canto da cabina vinham os ganidos dos cachorrinhos numa gaiola e os guinchos de um falcão filhote. Loki, o gato, caminhava impaciente no recinto, e quando tentou afagá-lo, ele roufenhou enfurecido.

Ouviu gritos vindos do convés e passadas apressadas. Assim que pôs os pés no tombadilho, os cabelos ainda soltos esvoaçaram, açoitados pelo vento. Prendeu-os, apressada, e foi procurar Rainulf.

O tombadilho fervilhava com os marinheiros ocupa­dos e ela avançou com cautela por entre barris, baga­gens e equipamentos da embarcação.

A única vela se agitava com fúria enquanto quatro marinheiros lutavam para abaixá-la, gritando a plenos pulmões para se fazerem ouvir acima do uivo do vento. Os remadores dos dois lados do barco recolhiam os re­mos e fechavam as escotilhas contra as ondas furiosas.

Martine caminhava lentamente, tanto para não atra­palhar, como para se equilibrar. Quando o barco começou a inclinar com as ondas altas, viu o irmão conversando com Gyrth e mais dois marujos, um enorme e outro magérrimo. Estavam de costas no pequeno deque da proa, olhando para o céu.

— O vento mudou de direção — observou Gyrth.

— O que isso quer dizer? — Rainulf perguntou. Gyrth apontou para o céu onde nuvens negras se amontoavam.

— Tempestade.

— E isso é ruim? — Rainulf viu quando o capitão fez o sinal-da-cruz em resposta, sendo imitado pelos outros dois marujos.

Martine não repetiu o gesto, visto que deixava esses detalhes para quando era observada.

— Uma tempestade repentina como essa, que pega marinheiros experientes desprevenidos... É mau agouro, com certeza — Gyrth disse. — Se sua irmã tivesse dado as migalhas para a gaivota, nós ainda estaríamos vele­jando sem problemas. Mas ela voou, então as nuvens se aproximaram e agora...

As palavras seguintes ficaram presas na garganta dele quando um raio iluminou o céu. Ninguém disse nada. O vento cessou de repente, e Martine se agarrou à grade, aguardando. Quando o trovão veio, soou muito longe, como um sussurro horripilante.

Gyrth se virou para Rainulf.

— Estamos indo na direção dela. Isso só por causa de umas migalhas...

— Pare! — Martine exclamou.

Rainulf, Gyrth e os marinheiros se viraram. O irmão, do olhos arregalados numa advertência, colocou a mão sobre seu ombro.

— Martine...

Ela se desvencilhou e se virou para encarar o inglês. Se o silêncio a rotulava como malcriada, podia muito bem dizer o que se passava em sua mente.

— Não tem o direito de dizer essas coisas. — Apontou para os marujos e continuou: — Eles acreditam que fui eu quem provocou esta tempestade.

— Mas, senhora, o presságio...

— Basta com seus presságios! — Elevou a voz sem conseguir se controlar. — Estou farta de ouvir sobre gaivotas e tempestades! — Balançou a cabeça, em des­crença. — Acredite, se eu tivesse poderes para fazer tais coisas, eu os usaria para silenciar a sua língua, então nunca mais teria de ouvir sobre presságios!

Raios e trovões surgiram e a chuva desabou com for­ça, fazendo com que Martine e Rainulf se agarrassem um ao outro para conseguir ficar de pé. Os dois avan­çaram a escada e desceram para a cabina. Rainulf fe­chou a vigia, impedindo a entrada da água. O aposento que havia pouco parecia uma fornalha, deixava o vento entrar. Martine, tiritando de frio, abraçou-se a Loki e depois se sentou ao lado do irmão. Um raio iluminava a cabina de vez em quando, de resto estava tudo escuro como a noite.

Rainulf não se mexia, a não ser para dar tapinhas reconfortantes nas costas da irmã. Martine tentava con­trolar as batidas frenéticas do coração, mas a verdade é que temia ver a embarcação partir ao meio e morrer afogada. De todos os modos possíveis de se morrer, afogamento era o mais temido, era seu pesadelo recorrente. Apertou-se mais ao gato, fazendo-o protestar.

Os marujos gritavam ordens e os cachorrinhos ga­niam de medo, porém, todos esses sons eram pratica­mente engolidos pelo barulho ensurdecedor das ondas e do vento.

Muito mais tarde, a chuva diminuiu de intensidade, o barco passou a se movimentar num ritmo mais calmo e uma luz fraca entrou na cabina. Rainulf se levantou e espiou para fora da vigia. Martine estudou o perfil aris­tocrático do irmão enquanto ele observava o mar que quase os tinha engolido.

Aos trinta e quatro anos de idade, ele ainda era belo, com cabelos claros e olhos castanho-esverdeados que chamavam a atenção do sexo feminino, apesar de sua vocação, ou talvez por causa dela. Sabia que ele tinha aproveitado a companhia de mulheres na juventude antes de partir para as Cruzadas doze anos antes. Ao voltar, fizera os votos e, até onde ela sabia, mantinha o celibato. Era um homem casto, sábio e cheio de compai­xão. Todos acreditavam que ele fosse um perfeito homem de Deus. Somente ela sabia como o fardo do sacerdócio tinha se tornado pesado.

Ainda olhando pela vigia, Rainulf disse:

— Não foi muito prudente ameaçar Gyrth. Já vi mu­lheres simplórias açoitadas por rogar pragas sobre as colheitas de vizinhos.

— Já me disse isso centenas de vezes. Se eu jurar so­lenemente nunca mais dizer tal coisa, promete que não fazer sermão?

Ele virou os olhos sérios na direção dela e, endireitando-se até a cabeça tocar o teto, disse:

— Há muitas maneiras de fazer alguém odiá-la, Martine, nem todas tão evidentes. Existem punições horrendas as quais são consideradas como "pecado"; coisas que você jamais poderia imaginá-las como tal. Veja Abelardo, por exemplo, o melhor homem que tive o privilégio de conhecer. Pelo "pecado" de amar Heloísa, foi punido com a castração. Anos mais tarde quando ele voltou a lecionar, tentou aplicar a lógica ao estudo da teologia, um "pecado" que eu também pratico, embora com mais discrição. Por isso, além de ser excomunga­do, ele foi condenado ao silêncio perpétuo na Abadia de Cluny. A mente mais brilhante do mundo não podia mais falar! A imprudência é algo muito perigoso, Martine. Precisa aprender a medir suas palavras.

— Sim, mas se fico calada, sou considerada indiferen­te e arrogante.

— Martine... E o modo como fica calada. Você é tão... tão...

— Prefere que eu humildemente segure minha lín­gua, abaixe os olhos e fique corada? Esse era o jeito de minha mãe. Nunca será o meu.

Ele começou a dizer algo, mas simplesmente meneou a cabeça e abandonou a idéia de repreendê-la. Olhando para a túnica simples que Martine vestia, comentou:

— Sir Edmond provavelmente estará no cais para nos receber amanhã. Talvez prefira vestir algo mais...

— Por que eu haveria de me importar em agradar um homem que nunca vi? Não escolhi sir Edmond. Você o escolheu, assim como seu amigo Thorne Falconer. Tam­bém não escolhi me casar. Não se deixe enganar, o único motivo que me levou a concordar com isso foi para que você pudesse se livrar de mim.

Rainulf se ajoelhou diante dela e implorou com o olhar para que o fitasse.

— Não é o que eu quero, irmãzinha, é o que preciso. Tenho de recobrar minha fé e não posso fazer isso em Paris, rodeado por alunos que se atem às minhas palavras como se elas fizessem parte dos livros sagrados. Necessito dessa peregrinação. Minha alma precisa disso.

Ela respirou fundo para se acalmar e pousou a mão no ombro do irmão.

— Dizem que você é o professor mais amado em Paris desde Abelardo. Oxford aguarda ansiosamente por você. Acredita mesmo que Deus quer que desperdice seus ta­lentos, deixando seus pupilos e se prostrando em cada santuário entre Compostela e Jerusalém?

— Sim. Acredito que seja isso exatamente que Ele deseja que eu faça.

Martine suspirou. Seria inútil tentar dissuadi-lo.

— Ficará fora um ano inteiro?

— Talvez dois. — Ele cobriu a mão dela com a sua.

— Dois anos?

— Quando eu voltar, passarei a lecionar em Oxford, portanto ficaremos mais perto e...

— Rainulf, preciso de você! Não pode me deixar por tanto tempo!

— Não estará sozinha; terá um marido para tomar conta de você. — Com cautela, prosseguiu: — Quem sabe com o tempo vocês não acabam se apaixonan...

Ela cobriu os ouvidos com as mãos e se afastou dele.

— Martine, pelo amor de Deus! — Tentou tocá-la, mas ela o repeliu, envolvendo as pernas com os braços. Meneando a cabeça, ele completou: — Você age como se o amor fosse uma praga.

Ainda de costas, ela comentou:

— E não é? Veja o que fez com minha mãe. Dei­xou-a fraca e a destruiu. Mamãe idolatrava nosso pai. Acreditou que ele a desposaria quando a sua mãe mor­resse. Ele deixou que ela acreditasse nisso, mas barões não se casam com as amantes, não é mesmo?

— Não, eles não se casam — ele admitiu em tom baixo.

— Ela foi uma tola, acreditou no amor. — Martine virou o rosto para olhar o irmão. — Não sou como ela. Sei que o casamento é inevitável, mas o amor é uma ar­madilha na qual não pretendo cair.

— Não precisa ser uma armadilha. O amor liberta a alma...

Ela riu com escárnio.

— Nosso pai possuía a alma de minha mãe. Quando a abandonou para se casar com sua mãe, ele levou a alma dela. Mamãe ficou vazia depois que ele se foi.

Martine sentia a garganta apertada e tremia descontroladamente. Cerrou os olhos e esfregou-os, porém uma imagem se fez nítida em sua mente, a mesma imagem de seus pesadelos: o vestido verde adornado com cente­nas de vidrilhos flutuando na superfície do lago. O vesti­do que a mãe tinha bordado para as bodas e que acabou sendo usado no dia em que finalmente se rendeu, em desespero, para a morte. A dor daquela imagem tinha ganhado força com o passar dos anos, até ser maior do que a desolação, pior do que o luto.

Quando Martine abriu os olhos, viu que o irmão a en­carava com expressão triste e desolada. Respirou fundo e balançou a cabeça para se livrar da imagem. Tentando sorrir, disse:

— Ouvi dizer que quase não há verão na Inglaterra e isso deve ser verdade porque quanto mais nos apro­ximamos, maior o frio que sinto dentro de mim... — A voz ficou entrecortada e ela mordeu o lábio, tentando não chorar.

Rainulf se aproximou, passou o braço ao seu redor e a acarinhou com suavidade. Será que ele a conhe­cia? Fazia idéia do quanto ela temia esse casamento?

Ele sussurrou algo, e ela virou a cabeça para ouvi-lo.

— Eu sei. Eu sei, Martine.

O toque de trombetas no tombadilho superior anun­ciou que chegavam ao porto. Martine se levantou para espiar pela escotilha e Rainulf a imitou. A chuva que tinha caído incessantemente desde a tempestade dava sinais de enfraquecer. Conseguiram ver uma grande quantidade de outras embarcações que se aproximavam do porto em Hastings.

— Lembre-se, Martine, se alguém no castelo de Harford perguntar sobre sua família ou sobre o paren­tesco com a rainha...

— Tenho de manter segredo — ela recitou impacien­te. Era para ocultar sua ilegitimidade que Rainulf ti­nha procurado um pretendente tão longe de sua terra natal. Godfrey de Harford ficara tão entusiasmado com a perspectiva de casar o filho caçula com uma parenta da rainha que nem se importara em fazer perguntas. Ninguém em Harford sabia que ela não passava de uma prima bastarda de Eleanor de Aquitânia, a antiga rainha da França e atual rainha da Inglaterra. Mesmo Thorne, responsável pelo contrato de noivado, sabia somente que ela era meia-irmã de seu antigo amigo. Rainulf não ti­nha fornecido maiores informações sobre as circunstân­cias ao redor de seu nascimento.

— Lembre-se disso — ele disse. — Até o momento não precisei mentir diretamente porque eles simples­mente supuseram que você era filha legítima. Tivemos sorte. Contudo, se lorde Godfrey descobrir a verdade, o casamento jamais acontecerá. Sua reputação será des­truída, assim como a minha. A de Thorne também...

— Não se preocupe — ela o interrompeu. — Sei muito bem o que está em jogo.

Martine voltou a atenção para o porto. O barco ia na direção de um atracadouro vazio no qual um garoto aguardava. Ela o ouviu gritar:

— Senhor! É o Lady's Slipper! Chegaram, senhor!

E o garoto correu e se perdeu na névoa das docas. Então uma figura muito maior se aproximou. Um ho­mem coberto por um manto negro com capuz caminhou pelo atracadouro.

Martine sentiu o coração bater depressa no peito. Tudo o que sabia sobre Edmond era o que Thorne tinha escrito na carta: era o mais novo dos filhos, tinha sido sagrado cavaleiro há alguns meses, receberia uma resi­dência própria ao se casar, era bonito e gostava de caçar. Thorne tinha elaborado bastante sobre a caça, mas não mencionara nenhum outro passatempo ou atividade.

— As pessoas não podem só caçar — ela comentou. Rainulf, que olhava o homem no atracadouro, não prestou atenção.

— Ele deve fazer mais alguma coisa, não?

— Imagino que sim — ele respondeu distraído.

O homem com o manto negro parou antes do fim do atracadouro e aguardou debaixo da garoa enquanto ma­rinheiros desciam do barco para amarrá-lo. Ele era alto, quase uma cabeça a mais do que os marujos. Ela não via as feições por causa do capuz, mas conseguiu ver que ele não tinha barba. O manto caía com perfeição sobre os ombros largos e as calças e botas também eram negras.

— E ele? — Martine perguntou.

— Sim, é ele — Rainulf respondeu e Martine respirou fundo.

Atrás deles alguém pigarreou para chamar a atenção. Viraram-se e deram de frente com Gyrth, que cocava os furúnculos e olhava para o chão.

— Desculpe, padre, mas... Pensei que talvez o senhor tivesse o pagamento em mãos?

— E claro. Dezoito xelins, certo? — Rainulf pegou a bolsa de moedas enquanto o capitão estalava os lábios em antecipação.

Martine colocou o manto sobre os ombros e pegou a caixa de latão e o cesto de Loki, depois seguiu os homens para fora da cabina. A chuva tinha cessado, mas ain­da havia uma névoa fria envolvendo o porto. Enquanto Rainulf pagava, Martine se escondeu atrás de um esteio para espiar Edmond.

Ele olhava para as nuvens e, enquanto era observado, algo estranho aconteceu. Seu rosto foi gradualmente se iluminando até brilhar como um farol no meio da névoa. Hipnotizada, ela seguiu o olhar dele e descobriu que as nuvens tinham se dispersado e emolduravam o sol num círculo azul. Foram os raios do sol que o transformaram de modo tão mágico. Havia sempre uma explicação ra­cional, ela se lembrou. E, no entanto, a vontade de acre­ditar em presságios era tentadora no momento.

Ele retirou o capuz ao abaixar a cabeça. Os cabelos, da cor do conhaque com faíscas douradas, chegavam aos ombros. Para seu assombro, ele a encarou, e ela perce­beu que os olhos dele tinham roubado a cor azul do céu que se abria sobre eles.

As feições pareciam esculpidas tal qual as de um jo­vem imperador gravadas em uma moeda antiga. Era óbvio pela expressão de reconhecimento e prazer que ele sabia quem ela era. Sem dúvida Rainulf tinha feito uma descrição acurada a seu respeito.

Ele parecia olhar não só para ela, mas dentro dela. Os olhos límpidos e penetrantes se ligaram aos seus e vas­culhavam-na no interior onde seus segredos e anseios se escondiam. Era como se ela fosse transparente e sua alma estivesse à mercê de sua investigação. Martine sa­bia que devia desviar os olhos, que era indecente pren­der o olhar de um desconhecido. Contudo, aquele homem não era um total estranho. Era seu noivo. Em menos de dois meses, estaria nos braços dele. Que mal havia em olhar para o homem com quem passaria o resto de sua vida? Pela primeira vez, deixou de temer o casamento e passou a aguardá-lo em antecipação.

Esse é o homem que fará votos no altar ao meu lado, que me levará para a cama, que me dará filhos.

Então ele sorriu. Um sorriso que iluminou os olhos e fincou covinhas no rosto. Sem querer, ela retribuiu o sorriso, depois desviou o olhar. O pequeno flerte a deixou encabulada, entretanto as suas ações estavam além de sua vontade.

Quando voltou a olhá-lo, ele observava algo além dela, algo que o fez abrir ainda mais o sorriso. Martine se vi­rou e viu que Rainulf estava bem atrás, com as mãos em concha ao redor da boca.

— Thorne! É sempre frio assim nesta ilha ou só no mês de agosto?

Thorne? Thorne Falconer? Bom Deus...

Ela se virou de boca aberta para o homem do atracadouro enquanto o irmão a ultrapassava e descia pela prancha. Sentiu um calor subir pelo pescoço e se espa­lhar pelas faces quando Rainulf abraçou o homem com os olhos da cor do céu.

Aquele era Thorne! Não o seu noivo! Quando tinha perguntado a Rainulf se era ele, o irmão estava pensando no amigo que não via havia uma década e não no rapaz com quem ela se casaria. E Edmond era um rapaz, afinal só tinha dezenove anos. O homem que cumprimentava seu irmão devia ter ao menos uns dez anos mais.

— Martine! — Rainulf gritou. — Venha conhecer Thorne!

Respirando fundo, ela desceu e foi ao encontro do ir­mão. Quando ele fez as apresentações, Martine não con­seguiu encará-lo, pois ainda sentia o rosto acalorado.

— Logo ficará mais quente — Thorne garantiu. A voz era profunda e ressonante, seu francês tinha um sotaque que traía sua origem saxã. Vindo dele, porém, o sotaque, embora áspero, não era nada desagradável. Acenando na direção de Martine, completou: — Milady trouxe o sol da Normandia com ela... — E voltou a sorrir.

Ele tinha razão quanto a ficar mais quente. O frio ce­dia a vez conforme o céu se iluminava. O porto mudava, passando de sombrio para um lugar com contrastes de sombra e luz, de azuis e verdes, com o cantar de pássa­ros e... zombarias de gaivotas. Martine apertou os olhos contra a claridade do sol, envergonhada por ter conside­rado seu surgimento um bom augúrio. Não existiam tais coisas como presságios, ainda mais os bons.

O dia estava se mostrando cheio de surpresas. E Thorne não gostava de surpresas.

Primeiro foi o atraso do barco devido à tempestade. Visto que o castelo de Harford ficava a meio dia de via­gem de Hastings, era melhor se apressarem se queriam chegar antes do anoitecer. Por isso, chamou o pajem que se mantinha a uma distância respeitável.

— Fane, vá buscar Albin e os cavalos.

— Sim, senhor. Quer que eu chame seus homens tam­bém? Sei em qual taverna eles estão.

— Seus homens? — Rainulf comentou. — Acho que se tornou mais importante do que eu pensava.

Rainulf também tinha se mostrado uma surpresa com as roupas sérias e o solidéu. Sabia que o amigo tinha se tornado padre, mas sempre que pensava nele ao longo dos anos, lembrava-se do jovem maltrapilho com que partilhara a cela durante os longos meses de cativeiro.

— Fane se expressou mal. — Thorne sorriu. — Ele está falando dos homens de lorde Godfrey: Guy e Peter, cavaleiros como eu.

— E Albin?

— É meu escudeiro. Ele e o assistente da falcoaria são os únicos homens que posso considerar como meus.

Fane e Albin apareceram, trazendo cavalos e duas liteiras, uma para as bagagens e outra acortinada para Martine.

A irmã de Rainulf era a outra surpresa, em seu véu cor de açafrão e suas vestes simples. Thorne esperava ver sedas e adornos, afinal de contas, a jovem era prima da rainha, mesmo que distante.

A despeito das vestes modestas, reconhecera-a de imediato, pois Rainulf havia dito que se pareciam. Pelo pouco que podia ver, aquilo era verdade. Como o irmão, ela era alta. Ficou se perguntando se também teria o mesmo cabelo claro, mas pelos cílios e sobrancelhas cas­tanhos, parecia que não. Uma pena, aquela cor cairia mui­to bem numa mulher. Também tinha as mesmas feições aristocráticas, mas nela pareciam um tanto desarmônicas. Era como se um escultor tivesse deixado as maçãs do rosto propositadamente mais proeminentes, a boca grande demais. Ela poderia ser considerada comum, mas os olhos tinham um fulgor, um cintilar de inteli­gência que ele não podia deixar de considerar atraente.

— Thorne, desculpe, mas esqueci de mencionar que Martine detesta liteiras. Teria, por acaso um cavalo sobrando?

Detestava liteiras?

— Só o seu.

Thorne se virou para a dama a fim de discutir o as­sunto, mas ela se afastou indo em direção à liteira. Ficou contente em ver que ela se conformava com a situação e não causaria maiores transtornos. Essa satisfação du­rou pouco, visto que Martine só foi até lá para depositar uma caixa e o cesto do gato. Ele suspirou e olhou para Rainulf, que deu de ombros e sorriu.

Em sua opinião, lady Martine não era nada engra­çada. Primeiro a brusca mudança de atitude e agora a recusa em aceitar o meio de transporte. A frieza com que o tratara o pegara de surpresa, ainda mais depois do sorriso trocado minutos antes. Depois de um instante de reflexão, viu que esse era o tipo de comportamento que esperava de uma nobre normanda, muito embora ela não se vestisse como tal.

— Ela pode ficar com Solomon, sir Thorne — Albin ofereceu, sorrindo tímido para Martine e afagando o garanhão castanho. — Sei que preferiria uma égua, milady, mas se acha que consegue controlá-lo, ele é todo seu.

Ela não agradeceu, simplesmente tomou as rédeas nas mãos.

— O que usará então, Albin? — Thorne perguntou.

— Um dos cavalos de carga. Não me importo, senhor.

Em seguida vieram Peter e Guy. Fane e Albin cos­tumavam acompanhar Thorne quando ele precisava ir até Hastings, mas considerando-se os problemas mais recentes na Floresta Weald, pela qual eram obrigados a passar, ele achou melhor acompanhar a dama com maior proteção. E os homens sempre viam com bons olhos uma mudança de rotina quando não havia nenhuma batalha ou torneio em vista.

— Pensei que Edmond também estaria aqui — Rainulf disse.

— Acredito que ele tenha tido algum contratempo, mas estou certo de que está ansioso por encontrá-los, especialmente milady.

Ele se virou para Martine que o fitou por um instante além do recomendado. Os olhos dela procuraram os dele como se buscassem algo perdido. Thorne ficou estático, lembrando do primeiro vislumbre dela poucos minutos antes e da conexão que pensou ter sentido. Da sensação de reconhecimento mútuo.

Ele piscou, ela desviou os olhos, e o momento se per­deu. Quando ele voltou a respirar normalmente, ela já tinha montado Solomon, esquivando-se da ajuda ofereci­da por Albin. O restante do grupo também montou e eles iniciaram a viagem. Para sua surpresa, Martine coman­dava o garanhão com segurança como se o cavalo fosse a égua mais dócil.

Ele guiou o grupo rumo ao norte, saindo do vilarejo e entrando na floresta, onde passaram a cavalgar em fila dupla. Embora o céu tivesse clareado e o sol brilhasse, a floresta permitia a entrada de pouca luz e calor. Era agosto e a mata vicejava com plantas e flores. Abriu os ouvidos para receber os ruídos dos animais. Respirou fundo, deixando-se inebriar pelo perfume da natureza depois de ter passado pela vila.

Na frente dele, Martine e o irmão cavalgavam lado a lado. De tempos em tempos, Rainulf tocava na mão dela como se confortasse uma criança. Um fato curioso, já que ela lhe dava a impressão de uma mulher compos­ta e segura de si.

Estando alguns metros dentro da floresta densa, Thorne desembainhou a espada. Albin e Guy, que esta­vam ao seu lado, o imitaram. Peter, no pelotão da frente, ouviu o ruído do metal e fez o mesmo. Thorne viu quando Martine se virou para o irmão com ar questionador.

Rainulf vasculhou a folhagem que os cercava e depois perguntou a Thorne, por sobre o ombro:

— Está esperando encontrar problemas?

Thorne olhou para Martine e, hesitando deixá-la apreensiva, respondeu:

— Nada demais. Só a precaução de sempre.

Ainda olhando para o caminho que seguia, Martine disse num tom distante:

— Sir Thorne, já que me colocou numa situação de perigo, faça a gentileza de explicar o que podemos en­contrar para que eu me prepare, caso necessário. Não finja que o problema não existe.

Peter reprimiu uma risada e Rainulf se virou na sela para sorrir para o amigo.

— Então, milady tem língua, no fim das contas...

Martine se empertigou na sela.

Tinha conseguido eriçar os pelos da raposa. Muito bem. Como sinal de civilidade, agora os alisaria.

— Na verdade, o perigo não é tão grande quanto pos­sa imaginar. Houve um incidente há algum tempo, mas é improvável que os bandidos queiram atacar um grupo deste tamanho.

Isso deve satisfazê-la, ele pensou. Um instante depois, porém, Martine voltou a falar:

— Qual foi a natureza do incidente e quem foram as vítimas?

— Um barão e uma baronesa do noroeste daqui. Lorde Anseau e a esposa, Aiglentine.

— Foram roubados? Mulher persistente.

— Sim. — Thorne ficou pensando o que seria preciso para derreter o gelo dela. Decidiu tentar descobrir. — E foram decapitados.

Rainulf fez o sinal-da-cruz e Martine acenou com a cabeça, sem se virar.

— Estão todos indignados, é óbvio — ele completou. — Sir Olivier, nosso conde, jurou encontrar os respon­sáveis e torturá-los até descobrir quem foi o mandante antes de entregá-los ao carrasco.

A dama não reagiu.

— Os homens que eram vassalos de Anseau também estão armados. Ele era um lorde respeitado. Era pode­roso e tinha compaixão. Todos amavam lady Aiglentine. Na época do assassinato, ela estava grávida, portanto, foram três vítimas e não duas.

Martine se virou na sela e o encarou como se quises­se dizer alguma coisa, mas permaneceu calada. Tinha a expressão carregada, e no breve instante em que seus olhos se encontraram, Thorne viu tamanha tristeza que ficou sem fôlego.

Aquela filha de barão, vestida de modo tão simpló­rio, o surpreendia. Era distante e mal-humorada, mas os olhos... Os olhos profundos e enigmáticos o tragavam.

Tentou dispersar tais pensamentos. Não podia se dar o luxo de cultivar tais curiosidades a respeito de Martine de Rouen. Ela era só um meio para justificar um fim. Precisava dela somente para dá-la a Edmond de Harford.

Em seguida viria seu prêmio. Terras pelas quais lutara incessantemente por dez anos e que merecia ter... Terras que, se Deus permitisse, seriam finalmente suas.

Ao deixarem a floresta, Martine viu o cavaleiro da frente embainhar a espada e ouviu Thorne e os outros fazerem o mesmo. Percebeu, então, que vinha cavalgan­do tensa na sela.

— Pode relaxar agora — o irmão disse, sorrindo, e ela se viu retribuindo o gesto, relaxando de fato.

Na floresta o ar estava fresco, mas fora dela, Martine começou a se incomodar com o calor, então reduziu o passo do cavalo para retirar o manto e dobrá-lo sobre o braço. Aproveitando a oportunidade para ter uma con­versa reservada com o irmão, perguntou:

— Acha que sir Edmond sabe ler?

— Não, se assim fosse Thorne teria mencionado na carta. — Rainulf sorriu indulgente ante o resmungo da irmã. — Você passou o último ano na companhia de catedráticos em Paris e os sete anos anteriores em Santa Teresa, por isso considera o ato de ler algo comum. O fato é que a maioria dos homens não sabe fazer isso.

— Sir Thorne sabe ler. E ele é um saxão!

— Isso porque eu ensinei.

— Você? Quando?

— Durante o ano em que fomos companheiros de cela. Precisávamos fazer alguma coisa para passar o tempo. — Ele falava num tom leve, porém Martine viu uma sombra tomar conta dos olhos do irmão.

— Nunca me contou sobre essa época — ela disse.

— Sinto vergonha. — Ele olhou o horizonte.

— De ter sido capturado?

— Não, das coisas que fiz antes disso. Dos homens que matei.

— Eles eram o inimigo. Infiéis.

— Eram todos homens — ele rebateu. — Como eu. Acreditavam lutar por uma causa justa com o meu mes­mo fervor.

— Mas você lutava por Cristo — ela insistiu. Ele deu uma risada de escárnio.

— Era o que eu pensava então. Eu era ingênuo. Todos nós éramos. No fundo a nossa luta era para manter uma rota de comércio para os poderosos. A única coisa boa que me aconteceu foi conhecer Thorne.

— Eram só vocês dois os prisioneiros?

— Não. Havia dúzias no princípio. — Rainulf fez uma pausa e Martine sentiu que ele pesava o quanto pode­ria revelar sobre um período tão negro em sua vida. Por fim, continuou: — Havia camponeses franceses, alguns alemães, Thorne era o único inglês. Aquela não era uma Cruzada da Inglaterra e somente os homens mais pios se juntavam a nós. Ele era jovem, tinha uns dezessete anos... Era o melhor arqueiro que já vi. Acho que o tama­nho dele ajudava. Só homens grandes conseguem manu­sear o arco longo com destreza. Ele mal falava francês e eu não entendia uma palavra sequer de inglês, mas nos tornamos amigos mesmo assim. Foi bom ter um compa­nheiro naquele buraco, ainda mais um que sobrevivia. Muitos morriam e os corpos só eram removidos uma vez por semana, juntamente a todos os outros dejetos.

— Meu Deus — Martine sussurrou, começando a en­tender a relutância dele em tocar no assunto.

— Era o inferno na Terra. — A voz soou sem emoção. — Os que não morriam acabavam enlouquecendo. Uns choravam, outros riam continuamente. Era a mente de­les procurando uma fuga que ao corpo não era possível.

— Você não ficou assim, ficou?

— Não. Nem Thorne. Mantivemos a sanidade, ocu­pando nossas mentes. Ele me contou que era um saxão livre, filho de um lenhador. Seguiu as tropas, de Louis, mas logo acabou tão desiludido quanto eu. Pediu que lhe ensinasse o que eu tinha aprendido em Cluny e em Paris. Ensinei os fundamentos da lógica, as idéias dos filósofos gregos, geometria, aritmética e, claro, teologia. Ensinei-o a ler francês e latim, escrevendo as letras do alfabeto no chão com meu crucifixo.

— Como conseguiram sair de lá? Fugiram?

— A morte era a única saída. — Seus olhos esta­vam turvos. — Foi Eleanor. Ela me encontrou e pagou um resgate. Exigi que libertassem os outros prisionei­ros. Nossos captores deviam estar enfastiados, pois aquiesceram sem se importarem. Levei Thorne a Paris e o apresentei a Eleanor. Ele se adaptou muito bem à vida na corte, mas não tinha muita paciência para as intrigas dos lordes e das damas. Sendo saxão, ele era uma excentricidade, uma fera primitiva e exótica que entretia os curiosos.

Martine olhou para o saxão ao longe e imaginou-o destacando-se numa multidão de nobres esnobes.

— Ele também sentia falta da família e estava an­sioso por reencontrá-los. Pedi a Eleanor que escrevesse uma carta de apresentação para lorde Godfrey, a quem fui apresentado no ano anterior. Seis meses depois de sua chegada ao castelo de Harford, ele foi nomeado cavaleiro. Logo se tornou o mestre falcoeiro do castelo. Dizem que é o melhor destas partes da Inglaterra...

Martine se lembrou de como o sol o iluminara nas docas, e dos olhos azuis, sorrindo para ela. Respirando fundo, disse:

— Fiquei curiosa... Sir Thorne é um bom amigo seu, é um cavaleiro, nobre, mesmo que não seja de sangue azul. Eu me pergunto... quero dizer...

— Por que não decidi escolhê-lo como seu noivo? Martine se recompôs, constrangida.

— Não que quisesse isso, é só...

— Ele não tem propriedades. Há muitos outros como ele, cavaleiros solteiros que vivem no castelo do senhor supremo à espera de uma casa própria. Não podem se casar porque não têm um lar para a esposa. Não têm nada a oferecer a uma jovem nobre como dote.

— Quer dizer que mesmo que ele quisesse se casar, não poderia? Que horrível.

— De fato. Minha preocupação, entretanto, é você. Precisei arranjar um casamento com alguém de posses. Seria diferente se você tivesse algumas terras. Nesse caso, poderia se casar com quem bem entendesse. No entanto, dei todas as minhas propriedades para a Igreja, não tenho nada a lhe oferecer.

Martine assentiu com um gesto de cabeça.

Um dos camponeses pelos quais passavam gritou o nome de Thorne, que retribuiu o cumprimento e falou alguma coisa na língua desconhecida para ela. Martine já ouvira alemão e holandês, mas aquela língua, embo­ra semelhante, tinha uma cadência diferente. Não era tão musical quanto o holandês, nem tão gutural quanto o alemão.

— Para ser bem franco — Rainulf continuou —, du­vido que ele quisesse se casar com você mesmo que eu tivesse proposto isso. O seu valor como noiva deve-se ao seu status.

— Refere-se à minha suposta legitimidade perante a rainha.

— Exato. Para um homem de posses, você é um bom partido. Para Thorne, não significaria nada. Mesmo que um dia venha a ter a própria terra e possa se casar, ele buscará uma moça que agregue propriedades. Foi o que me disse em uma das cartas.

Ela entendia tudo perfeitamente agora.

— Seu amigo é ambicioso. Rainulf a encarou surpreso.

— Martine, sabe muito bem que os nobres se casam pelas terras, e não por amor.

— Essa foi uma lição que aprendi bem jovem...

— Thorne não é Jourdain — ele disse. — E só um homem que quer progredir.

— Às minhas custas.

— Como disse?

— Por que acha que ele está tão ansioso em me casar com o filho de seu senhor supremo? Só para agra­dar você?

— E que outro motivo haveria? Martine suspirou irritada.

— Você mesmo mencionou meu valor como noiva. O arranjo de sir Thorne o colocará nas boas graças de lorde Godfrey. Em troca, ele ficará mais próximo de pos­suir o próprio lar. A idéia de ser usada dessa maneira me faz sentir...

— Thorne é um homem de bem. Nunca usaria minha irmã para fins próprios.

— Vocês dois me usaram para atingir seus próprios objetivos. Meu noivado trará muitos benefícios a ambos. Só saberemos que benefício eu terei quando chegarmos a Harford e conhecermos Edmond.

Cavalgaram em silêncio até o sol da tarde tingir o céu azul de laranja. Se o céu podia ser tão esplendoroso na Inglaterra, talvez Martine conseguisse ser feliz no fim das contas.

A brisa que os refrescara começava agora a esfriar, então ela decidiu recolocar o manto. Diminuiu o passo de Solomon e chacoalhou o manto, mas o vento resolveu se intensificar nesse instante e o puxou de suas mãos. Martine praguejou mentalmente e teve esperanças de que o cavalo não se assustasse com o pano diante dele. K foi justamente o que aconteceu. Antes, porém que disparasse, ela o controlou com destreza, fazendo-o rodopiar. Pelo canto do olho, viu quando Thorne deteve Albin, o que foi muito perspicaz, visto que o escudeiro só teria atrapalhado a manobra.

Solomon relinchou em descontentamento, mas por fim se aquietou. Suspirando aliviada, ela se inclinou e deu uns tapinhas em seu pescoço a fim de demonstrar agradecimento. Thorne fez um gesto de apreciação com a cabeça.

O manto pousou no canto da estrada e Albin se adian­tou em buscá-lo antes que ela tivesse tempo de desmon­tar. O escudeiro caminhou com a peça nos braços como se fosse a mortalha de Cristo. Thorne, contudo, pegou-o nas mãos quando o jovem passava por ele.

— Obrigado, Albin. — Ele chacoalhou a peça para retirar o pó enquanto o escudeiro voltava desapontado para o cavalo.

Thorne aproximou o cavalo e, ignorando a mão esti­cada de Martine, colocou o manto sobre os ombros dela, resvalando os dedos no pescoço ao prender o broche.

Martine raramente corava, mas o saxão tinha conse­guido o feito duas vezes no mesmo dia. Nunca era toca­da por homens, porém Thorne desrespeitava o código de cavalheirismo, ainda que seu toque não fosse ofensivo. Ela ficou surpresa com a gentileza do cavaleiro depois da troca de farpas na floresta. Sabia que devia agrade­cer, mas temia que a voz lhe faltasse. Pelo visto, ele não esperava isso dela, pois apenas incitou o cavalo a voltar à linha de frente.

Pouco tempo depois, quando o céu se tingia em tons de violeta, Martine teve a primeira visão do cas­telo de Harford. O tamanho a impressionou. Ao se aproximarem, entretanto, ficou desapontada com a simplicidade da construção. Não passava de um bloco retangular com torres nos cantos, circundado com uma muralha massiva. Não havia nenhum ornamento ou torres decorativas, tampouco detalhes arquitetônicos interessantes.

Uma porta pequena ao lado dos portões de ferro per­mitia a passagem de uma pessoa de cada vez. Estava escuro quando entraram no pátio externo e Martine lamentou não poder enxergar melhor, pois tinha uma enorme curiosidade sobre castelos. Disporia, porém, de dois longos meses para explorar os recônditos da cons­trução antes de seu casamento marcado para primeiro de outubro.

Outra ponte levadiça dava acesso ao pátio interno. Além do castelo, a única construção que ela conseguia ver era um galpão com telhado de sapé, encostado ao muro de onde ela podia ouvir estranhos gritos.

Vendo o rosto surpreso da francesa, Peter comentou:

— Deve saber que esse é o gruído dos falcões, milady. — Peter tinha traços nórdicos mais acentuados que os de Rainulf, e Martine nunca tinha visto um homem com cabelos tão longos como os dele que chegavam à cintura.

— Ah, sim claro...

— Essa é a falcoaria de sir Thorne.

Thorne o corrigiu:

— É a falcoaria de lorde Godfrey.

— Ainda assim, os falcões sentiram sua falta e perceberam a sua chegada — Peter completou.

O grupo desmontou no pátio coberto de pedras diante da entrada do castelo e entregou as montarias os cavalariços. Um rapazola ruivo veio correndo da falcoaria.

— Sir Thorne! Azura está com uma pena quebrada, o Wniorilhão filhote está espirrando e Madness não quer Wmor!

— Esses problemas podem esperar até amanhã, Kipp. Há uma nova gerifalte naquele cesto. Leve-a até a falcoaria e deixe-a num lugar confortável no escuro. Não acenda nenhuma vela e fale com suavidade perto dela. Toque-a o mínimo possível. Esta noite ficarei de vigília.

— Sim, senhor.

Thorne se virou para o escudeiro.

— Albin, suba e avise lorde Godfrey e Edmond que os hóspedes chegaram.

Albin subiu as escadas, desaparecendo na escuridão.

Martine sentia o estômago dar voltas e a boca seca. Onde estava Loki? Ele também devia estar assustado.

Uma mão pousou em seu ombro. Ao se virar, perce­beu que Rainulf colocava o gato em seus braços.

— Imaginei que ele estivesse um pouco nervoso — disse, sorrindo.

— Ele está — ela concordou. — Um pouco.

Albin ressurgiu, segurando uma tocha numa mão e amparando um homem idoso com a outra.

Martine ouviu Thorne sibilar uma palavra irada em inglês por entre os dentes antes de se aproximar do ba­rão. O homem já devia ter passado dos sessenta anos de idade e era muito pesado. A barba e os cabelos na altura do queixo tinham um brilho prateado na luz da tocha de Albin, que também revelava o nariz e bochechas reple­tos de minúsculas veias. Ele se apoiava no escudeiro e exclamou ao ver Rainulf:

— Meu caro amigo é um sacerdote! — A voz era arrastada pelo álcool. — Quando o conheci em Paris, ti­nha o que... vinte anos?

— Dezessete, milorde — Rainulf o corrigiu.

— Bem, você parecia mais velho. Agia de modo ma­duro. Venha aqui!

Godfrey e Rainulf se abraçaram e se beijaram nas faces.

Rainulf acompanhou o idoso até Martine para as apresentações. O barão cambaleava a despeito do supor­te do padre e do escudeiro.

— Um gato! — ele exclamou ao ver Loki nos bra­ços de Martine. — Isso deve entreter os cachorros... — Apertando os olhos para ver Martine melhor, assim como tinha feito com Loki, comentou: — Então esta é lady Martine. Parece a virgem mãe de Cristo!

Os olhos de Thorne e de Martine se cruzaram, e ela notou divertimento nos olhos azuis e algo mais, indeci­frável. Para o barão ele disse:

— Onde está Edmond, senhor?

— Caçando com Bernard.

Martine sabia que Bernard era o irmão mais velho de Edmond.

— Ainda? O noivado será formalizado depois de amanhã.

— Tenho certeza de que ele voltará a tempo. Enquan­to isso, ainda sou o senhor deste castelo e sei receber meus convidados, que devem estar famintos.

Com a ajuda de Albin e Rainulf, ele se virou e os con­duziu para dentro do castelo, subindo as escadas circulares dentro de uma das torres.

Martine ouviu os rosnados ameaçadores vindos do alto que fizeram Loki arreganhar os dentes e mostrar as garras antes mesmo de entrar.

O salão era um aposento sombrio, muito maior do que o salão de palestras de Rainulf na universidade, porém menos majestoso. Do outro lado uma imensa lareira es­tiva acessa e dela emanava uma densa fumaça, a des­peito da coifa de pedras existente. Sobre a lareira havia um machado enorme ladeado por presas de javali e, nas paredes, tochas se intercalavam com cabeças de veados com enormes galhadas.

Uma galeria, o terceiro andar do castelo, dava toda a volta na metade do pé direito do salão. Em uma das aberturas em arco, uma mulher examinava Martine como se ela fosse um animal exótico. Para Martine, a mulher também lhe era peculiar; lembrava um passari­nho com plumas vermelhas, engaiolado.

Devia ter por volta de trinta anos, era muito ma­gra e pequena. A pele era pálida demais, talvez devido ao excesso de maquilagem. Usava muitas jóias e a tú­nica apertava-lhe o corpo diminuto. Além do véu e da faixa, ela trazia uma daquelas coleiras no pescoço que chamavam de barbete.

Uma jovem de rosto comum a acompanhava, porém esta não trazia um véu na cabeça, o que indicava que era solteira.

Ao lado da lareira, um padre, magro e careca, alimen­tava cães de caça com pedaços de vitela. A maioria pare­cia interessada, mas alguns deram mostras de sentir a presença de Loki.

— O espetáculo vai começar — disse o barão. Como se obedecessem a um comando, os cachorros deixaram o padre para trás e avançaram na direção de Martine, derrubando as mesas pelo caminho.

Os criados conseguiram deter os três, porém o maior deles conseguiu escapar e avançava com os dentes arreganhados.

Thorne imediatamente agarrou Martine e a impren­sou contra a parede, protegendo-a com o próprio corpo. O cachorro subiu nas costas dele, mas levou um safanão que o fez voar pelo salão. O saxão olhou por sobre o om­bro e viu que os outros animais estavam sob controle, mesmo assim não a soltou.

Sendo mais alta que a maioria dos homens, Martine não costumava se sentir ameaçada pela presença deles, mas o tamanho de Thorne a subjugava. Ele era alto e forte; os ombros, largos; e o peito parecia firme como uma rocha sob a túnica. Ao ser imprensada na parede, sentia os músculos sólidos das coxas flexionarem contra as suas, provocando um estremecimento em todo o seu corpo. Sentiu o impulso de passar os braços ao redor do corpo maciço, e teve a certeza de que se eles não estives­sem ocupados segurando Loki, era o que teria feito.

Contorceu-se, buscando se distanciar. Ele olhou para baixo e sorriu, depois se afastou, as mãos descendo pelos braços lentamente. Martine se afastou de imediato e viu que os cachorros estavam controlados, e que lor­de Godfrey estava sentado no chão, gargalhando com o espetáculo.

A mulher de vermelho havia descido as escadas e atravessava o salão na direção de Martine com um es­tranho bastão de madeira com punho de prata pendu­rado no pulso. Apesar de pequena, a mulher tinha uma presença marcante.

Um dos cachorros ainda se encontrava no caminho da mulher, que o encarou com uma expressão de repug­nância. Ao ouvir um rosnado, ela empunhou o bastão e o brandiu sobre a cabeça do animal. O cão enfiou o rabo entre as pernas e retrocedeu.

— Lady Martine, deixe-me apresentá-la a lady Estrude de Flandres — Thorne disse. — Ela é a esposa de Bernard, irmão de seu noivo.

Martine fez uma leve mesura enquanto a outra a ob­servava com divertimento franco. Por fim, ela se virou e falou para os que estavam no salão:

— Essa não pode ser a noiva de Edmond. Pela apa­rência, ela já é a noiva de Cristo!

Lorde Godfrey, o padre e a jovem no vestido cor-de-rosa riram com prazer; Thorne mostrou-se sério.

Estrude fez beicinho.

— Que cara mais azeda, sir Thorne! Não se preocupe. Prometi ser boazinha, não? Eu a tratarei como a uma irmã de verdade. — Ela estendeu os braços magros e sorriu com os lábios vermelhos demais. — Bem-vinda ao castelo de Harford, irmã Martine!

Logo depois de se acomodarem à mesa, um mensagei­ro surgiu com uma importante notícia: os três bandidos que haviam assassinado lorde Anseau e lady Aiglentine tinham sido capturados naquela manhã e agora eram mantidos prisioneiros no castelo de lorde Olivier. Logo seriam enforcados, mas somente depois de torturados e confessarem quem fora o mandante dos crimes.

— Que sejam afogados em água fervente!— excla­mou o barão.

Thorne olhou Martine, sentada à sua frente do ou­tro lado da mesa, que mal tinha tocado na comida. O gato, saciado, estava enroscado no colo dela e se lam­bia pacificamente, sendo observado pelos cachorros, inconformados.

A comida derrubada já tinha sido removida do chão e todas as outras mesas retiradas, à exceção daquela posta para os recém-chegados. Os residentes do caste­lo já tinham jantado, contudo sentaram-se à mesa para fazer-lhes companhia.

— Os francos têm excelentes métodos de confissão — Godfrey mencionou. — Frei Simon viajou pela França há dois anos, e me descreveu alguns em detalhes fasci­nantes. Simon, conte a ele o que presenciou em Autun sobre o chumbo derretido...

— Por certo acha o que vi em Toulouse mais interessante. Os dois hereges que foram amarrados aos postes e queimados vivos... Sem falar de Arnold de Brescia que...

— Queimados vivos? — Estrude indagou. O padre deu de ombros.

— Eram culpados por heresia. As chamas da pira não se comparam às do inferno.

O barão fez um gesto com a mão, esbarrando na cane­ca e derramando cerveja na palha que cobria o chão.

— Mas essa é uma forma de execução, não de tortura.

— Isso é discutível — Rainulf murmurou.

— Rainulf! — o barão exclamou. — Acaba de chegar de Paris. Sabe de algum novo método de... extrair uma confissão?

Rainulf tomou um gole de vinho antes de responder:

— Senhor, lamento dizer que tenho pouco interesse pelo assunto. A não ser, é claro, no que diz respeito a sua extinção. — Ignorando o esgar do padre, continuou falando com o barão: — Concordo com o papa Nicolau I que disse que as confissões têm de ser voluntárias e não forçadas.

— Padre Rainulf é um homem muito letrado — Simon disse. — Renomado em Paris, Tours e Lion pelos seus conhecimentos em lógica e teologia. É uma honra sentar-me à mesa com ele. — Fez uma pequena mesura com a cabeça. — Não é verdade, porém, que trezentos anos se passaram desde as palavras de Nicolau e que agora a Igreja aceita e encoraja tais tipos de tortura em seus próprios domínios eclesiásticos?

— As ações da Igreja nem sempre são os desígnios de Deus — Rainulf respondeu, esticando a mão para pegar a taça de vinho.

— Parece que a educação da universidade é o que bas­ta para deixar um homem a par dos desígnios de Deus.

— Não, mas nos torna menos suscetíveis aos desejos mundanos dos homens, tais como a vontade de infligir a dor.

Sem ter como rebater, Simon fingiu um bocejo, e Thorne notou que Martine sorria ao afagar o gato. Reparou, então, que o rosto dela não era desarmônico, no fim das contas. Os traços que a princípio lhe parece­ram em desacordo, tinham um charme indelével, algo que se acentuava quando ela sorria. Martine parecia contente ao ouvir o irmão se engajar naquela discussão pós-jantar.

Rainulf era partidário da forma inovadora de lecio­nar, o disputatio, no qual mestre e pupilos argumenta­vam em oposição ao tradicional lectio, no qual somente o mestre discursava. Por meio das cartas trocadas, soube que Rainulf educara a irmã da mesma maneira como o havia ensinado na prisão turca. Thorne ficou se per­guntando, então, se seria essa a origem da natureza litigiosa da moça.

De modo geral, ele apreciava as pessoas que gosta­vam de argumentar. Encarava o espírito contencioso como um sinal de inteligência e desejo de não aceitar as coisas como elas eram. Tratava-se do oposto da humil­dade, que ele desprezava em ambos os sexos como sinal de submissão.

Aquela era a primeira vez que a via sorrir desde q momento que a avistara no barco, antes de ela se retrair. Não se lembrava de ter dado motivos para que ela se sentisse ofendida, no entanto, mulheres da alta classe tendiam a ser suscetíveis.

O véu na cabeça intensificava o ar misterioso. Mulheres solteiras costumavam se cobrir apenas para esconder algum traço pouco atraente. Talvez seus cabelos fossem finos demais, ou ela tivesse na face, marcas de catapora. Quando ele tirava a roupa de uma mulher pela primeira vez, a questão não era se elas tinham marcas, mas quantas e onde.

Que pena um rosto tão bonito ser marcado! Quem sabe Edmond não a considerasse repulsiva e desfizesse o compromisso? Sentiu prazer ante essa idéia, mas se repreendeu em seguida. Estaria louco? Não poderia, de fato, querer aquilo.

Estrude, sentada à sua esquerda, deve ter percebido sua agitação, pois enquanto padre Simon discorria sobre os hereges, ela se inclinou e comentou baixo:

— Por que tanta melancolia, sir Thorne?

Thorne se deu conta de que ela tinha notado sua ins­peção. Disfarçando, pegou um pouco de pão e o mergu­lhou no vinho.

— Pareço melancólico, milady?

— Deveras. Ou estaria sob o efeito de algum encan­tamento? — Ela bebericou o vinho e passou os olhos de Thorne para Martine. — E isso. Está enfeitiçado. — Ela riu. — Estranho. Sempre pensei que as criadas saxãs e as rameiras de Hastings fossem mais do seu gosto.

Thorne placidamente continuou a comer o pão embebido.

— Sugiro cautela — ela prosseguiu. Pelo canto do olho, Thorne viu que ela sorria dissimuladamente. — Esse pêssego foi prometido a Edmond, que não verá com bons olhos se souber que andou provando antes dele.

Thorne olhou automaticamente para Martine e desco­briu que ela o observava. Corando, ela desviou os olhos.

— Fascinante. Parece que a jovem dama também está sob o efeito de algum encantamento — disse Estrude ao testemunhar o desconforto de Martine. — Concorda comigo, sir Thorne?

Era o que ele achava, mas de modo algum poderia confessar aquilo. Fingindo desinteresse, pegou a faca de comer e cortou uma fatia de carne de veado. Um dos cães se ouriçou ao ver o pedaço de carne e se aproximou.

Antes que Estrude o atingisse com o bastão, Thorne o pegou pelo cangote e o afastou, lançando a carne em sua direção.

— Não sabia que se importava com os cães de Bernard. Ou esse é um dos seus?

— Os meus ficam no canil, onde é o lugar deles — Thorne esclareceu. — Quanto aos de Bernard, gostaria de dá-los aos falcões, mas também adoraria jogar esse seu bastão na fogueira.

Estrude afastou a travessa e apoiou os braços na mesa, dirigindo-se a Martine.

— Milady, fiquei curiosa sobre onde arranjou esse gato.

A expressão reservada de Martine não revelava ne­nhum traço de irritação com o tom de Estrude.

— No convento onde fui criada. Os gatos eram os úni­cos animais de estimação permitidos às freiras.

— Havia me esquecido de que foi criada num con­vento. Santa Teresa, não? — Martine assentiu. — Eu mesma não fui para a escola. — Estrude fez um ges­to para a moça que a acompanhava. — Assim como Claire, passei muitos anos na casa de um barão vizinho, servindo a dona do castelo. Meus pais agiram com sabedoria ao decidirem que esse tipo de educação me seria mais útil quando eu tivesse meu próprio castelo para administrar.

— Talvez lady Estrude tenha a oportunidade de testar essa teoria algum dia — Thorne comentou. — Quando o tempo de seu sogro na Terra tiver chegado ao fim. Lorde Godfrey, porém, é um homem robusto de mui­ta saúde e, se Deus permitir, continuará entre nós por muitos e muitos anos.

Pelo canto do olho, Martine viu que a mulher olhava para o sogro adormecido, e que roncava com o rosto so­bre a mesa.

Voltando a atenção para Martine, Estrude perguntou:

— Quanto tempo ficou em Santa Teresa?

— Sete anos, milady. Dos dez anos até me juntar ao meu irmão em Paris no ano passado.

— Visitou a família durante esse período?

Martine relanceou para o irmão, num pedido de ajuda. Rainulf, também parecendo pouco à vontade, respondeu:

— Não, milady. A distância era muito grande.

Estrude arregalou os olhos e comentou para a mesa toda ouvir:

— Quer dizer que ela passou sete anos sem ver a fa­mília? Não sentiu saudades?

Tranqüilamente, Rainulf rebateu:

— Tanto quanto a senhora sente falta de sua famí­lia em Flandres. Há quanto tempo vive na Inglaterra, milady? Dez, quinze anos? Deve ser muito difícil para a senhora.

Não era de se admirar que Martine confiasse tanto no irmão. Ele era seu protetor, seu salvador. Entretan­to, por que será que Rainulf sentiu a necessidade de protegê-la da curiosidade inofensiva de Estrude? Talvez a enigmática dama tivesse mais do que marcas de catapora a esconder. Thorne suspirou. Nunca apreciara surpresas, pois elas podiam ser problemáticas. Tinha muito a ganhar com a união de Edmond e Martine, mas se a dama tinha segredos, seria melhor descobri-los antes de qualquer outra pessoa, e antes da oficialização do noivado. Seria bom encontrá-la a sós no dia seguinte. Sem o amparo do irmão, ela poderia revelar o que tanto tentava esconder.

Levantou-se e foi para a cabeceira da mesa.

— Vou levar o barão até o quarto. — Suspendeu o homem ébrio e o guiou para o outro lado do salão onde ficavam seus aposentos.

— Deixe-me ajudá-lo. — Estrude se levantou. — Iluminarei o caminho. — Pegou um candelabro da mesa e, estando perto dele, sussurrou: — Adoraria mostrar-lhe o caminho, se me deixasse, sir Thorne.

A maquilagem estava mais carregada que o normal, mesmo assim, Thorne conseguiu enxergar os hemato­mas mais recentes provocados por Bernard. Seria por desprezo ao marido que a mulher se lançava nessa nova campanha de sedução depois de tantos anos de animo­sidade? Não, ela queria alguma coisa. Ele só não sabia ainda o que era, e nem queria descobrir.

— Se eu quisesse que alguém me mostrasse o cami­nho — respondeu baixo —, procuraria uma criada saxã ou uma das rameiras de Hastings. — Foi a vez de ela corar. Para enfatizar as palavras, ele a olhou de alto a baixo e completou: — Não precisa se incomodar, milady.

Martine observou o alto saxão disfarçadamente quan­do ele voltou dos aposentos do barão e cruzou o salão com passadas largas. Apesar da simplicidade das vestes e de sua origem humilde, ele era o homem de aparência mais nobre que ela jamais tinha visto.

Quando Thorne voltou a sentar diante dela, Rainulf se levantou dizendo:

— Peço licença. Preciso verificar minha bagagem e dar uma olhada nos filhotes.

— Filhotes? — Estrude inquiriu.

— Sim. Um dos presentes de noivado de Martine a Edmond é uma ninhada de sabujos.

— Mais cães... — Ela levou um pedaço de quei­jo aos lábios. Depois que Rainulf se afastou, pergun­tou a Martine: — Sua família virá para o casamento? Certamente haverão de querer presenciar as bodas...

Martine olhou para a porta, mas o irmão já tinha saído.

— Lamento dizer que não, milady.

Estrude pareceu perplexa. Pelo canto do olho, Martine viu que era observada atentamente por Thorne.

— Sei que seu pai já faleceu — Estrude insistiu —, mas sua mãe ainda é viva, não?

— M-minha mãe?

— A segunda esposa de lorde Jourdain não é a sua mãe?

Martine voltou a olhar para a porta. Quando se virou para a mesa, viu que todos os olhos pousavam sobre ela à espera de uma resposta.

Thorne se levantou e deu a volta na mesa.

— Milady — disse ele ao se sentar no lugar vazio de Rainulf—, estive pensando se seu gato tem um nome.

Loki roufenhou e Estrude dava sinais de que queria fazer o mesmo.

— Loki!

— Loki. — Ele sorriu. — Perfeito. Loki, o senhor dos truques, o que assume muitas formas.

— Conhece as lendas nórdicas?

— Minha mãe costumava contá-las para mim. — Thorne permitiu que o gato cheirasse o dorso de sua mão. Para surpresa de Martine, o felino começou a lam­ber a mão estendida.

— Minha mãe fazia o mesmo.

Thorne parecia não se importar em manter uma dis­tância adequada. O joelho esquerdo pressionava a coxa dela e quando ele se esticou para se aproximar de Loki, o braço musculoso a tocou de leve.

— Devemos ser primos, então, somos ambos descen­dentes dos nórdicos. São chamados de saxões, mas já não há mais sangue puro na Inglaterra ou no norte da França. — O olhar dele passou sobre o rosto dela, indo dos olhos aos lábios. Então ele se inclinou.

Deus, ele vai me beijar!

Ele se deteve, o rosto muito próximo ao dela.

— Que fragrância é essa?

Martine notou que tinha deixado de respirar. Engolindo em seco, respondeu:

— E um perfume que eu mesma faço. Uma mistura de aspérula e óleo de lavanda.

— Diferente... — ele murmurou, retrocedendo. — Adorável.

— Fico surpresa que ache isso — Estrude comentou. — Sempre considerei essas misturas herbais um tanto enfadonhas. Óleo de rosas é o meu preferido. Nenhuma outra flor é mais doce.

— Nem tão enjoativa — Thorne observou. — Ainda mais quando passadas no corpo.

Estrude se empertigou, o rosto mostrando indigna­ção. Thorne somente acenou para Loki que continuava a lambê-lo.

— A língua dos gatos é sempre assim?

— Um tanto áspera, não?

— Lorde Olivier poderia considerá-la útil juntamen­te a água salgada... — Ele riu.

Sem querer alarmar o animal, Thorne foi afastando a mão e passou a afagá-lo. Gradualmente o felino co­meçou a relaxar no colo de Martine e a ronronar. Ela moça sentia as vibrações no próprio corpo e o efeito era como se Thorne a estivesse acariciando. As mãos eram largas, mas bem formadas.

— Esse é um belo anel — comentou ao notar a jóia de rubi adornada por ouro em forma de garra de ave.

— Gosto muito dele. Lorde Godfrey me presenteou com ele quando me designou mestre falcoeiro. É o pre­sente que mais apreciei. Até hoje. — Encarou Martine, e os olhos azuis deixaram-na sem fôlego. — Um gerifalte branco é um presente extraordinário. E muito valioso. Seu irmão é muito generoso com os amigos. — Prendeu o olhar dela por mais um instante, depois, quase com timidez, passou a olhar o gato. — Preciso de um nome para a ave. Consegue se lembrar de alguma divindade nórdica que possa ser um falcão?

— Freya.

— Claro! — O sorriso cálido relaxou Martine. — Freya!

— Ela tinha a mágica pele de falcão, lembra? Assim ela podia voar pelo submundo e ver o futuro. Era a deusa da beleza e do amor — Martine acrescentou.

— E da morte — completou Thorne. — Beleza, amor e morte, exatamente como um falcão.

— Ouvi dizer que ficaria de vigília com Freya. O que isso significa?

— E assim que se acostuma um falcão ao novo dono. Fica-se acordado a noite toda, até que ele pense que você faz parte dele.

— Nunca tentei ficar acordada por tanto tempo — Martine disse. — Não é difícil?

Estrude se intrometeu.

— Nosso Thorne é conhecido pela sua extrema resis­tência. Todos sabem do orgulho que sente por seu autocontrole. — E lançou um olhar peculiar para ele. — Que bom que a jovem lady Martine tenha conquistado um amigo com tanta rapidez. Edmond saberá apreciar a sua gentileza.

Thorne reprimiu o desejo de rebater a insinuação da mulher, porém achou melhor deixar passar. A verdade é que considerava Martine desejável, embora não devesse. Ela era mal-humorada e aristocrática, duas caracterís­ticas que costumava abominar nas mulheres. Sem falar do fato de que ela estava comprometida, um arranjo fei­to por ele mesmo e do qual seu futuro dependia.

Então por que se sentia tão atraído? Ansiava por tocá-la. A resposta só podia ser uma: fazia semanas que não partilhava a cama e seu corpo clamava pelo toque de uma mulher, qualquer uma, sem levar em conta o bom senso. A castidade podia cair bem em homens como Rainulf, mas deixava-o desassossegado. Pior: deixava-o suscetível aos encantos da mulher errada.

Quando Rainulf voltou ao salão, Thorne se levan­tou de pronto e cedeu o lugar ao amigo. As criadas vol­tavam com a sobremesa e ele sorriu para a ruiva roliça no comando.

— Como vai, Felda?

— Como sempre, sir Thorne. — Ela depositou uma compota de laranja diante dele.

— Felda! — chamou Guy. — Qual o nome da nova garota?

Thorne seguiu o olhar dos outros e viu uma bela mu­lher trocando as jarras de cerveja e vinho por outras de conhaque. Felda sorriu para Guy enquanto a moça fazia de conta que o comentário não lhe dizia respeito.

— O nome dela é Zelma, mas ela só fala inglês, então pode economizar saliva.

— Não preciso de palavras para dizer o que sinto — Guy rebateu. — Zelma! — Quando ela se virou, ele soprou um beijo.

A bela morena se afastou com ar de fastio e continuou seu trabalho. O traço mais marcante, além dos seios generosos, era os volumosos cabelos negros que se soltavam em cachos rebeldes da fita de linho.

Thorne a observou por sobre a borda da taça e sorriu para si mesmo quando notou que até mesmo Rainulf não conseguia despregar os olhos do decote. Albin, Peter e Guy mais pareciam cães diante de um belo filé.

Martine olhou de Zelma para ele e depois abaixou o olhar, acariciando o gato com pretensa indiferença. Talvez Estrude tivesse razão ao sugerir que a moça tam­bém estava sob o efeito de algum encantamento.

Era um feitiço, então, que tinha sido lançado sobre eles dois. Com sorte, porém, esse feitiço teria uma cura fácil, pelo menos no caso dele. Se abstinência provocava luxúria irracional, bastava encontrar uma parceira dis­ponível, qualquer uma, menos Estrude de Flandres.

Padre Simon o trouxe de volta de seus devaneios ao se levantar e desejar boa-noite a todos.

Estrude voltou a puxar conversa:

— Lady Martine, não trouxe ninguém para servi-la?

— Eu não tinha nenhuma ajudante em Paris, milady.

— Então precisaremos encontrar uma. — Virou-se para a moça de rosa. — Clare, conhece alguém? Que tal uma de suas irmãs?

— Talvez lady Martine prefira escolher alguma das criadas do castelo — Thorne intercedeu.

— Uma das criadas? — Estrude disse incrédula. — Por certo a filha de um barão haveria de querer uma garota bem-nascida em vez...

— Por que não deixamos que ela decida? — Virando-se para Martine, ele completou: — Minha recomendação, caso se interesse, seria Felda. Ela é de confiança, tem um bom coração e é capaz de servi-la tão bem quanto qualquer garota nobre.

Felda se mostrou tão atordoada quanto Estrude. Martine olhou para o irmão em busca de orientação, mas ele só abriu as mãos num gesto que dizia que era ela quem deveria decidir.

— Felda — ela chamou —, estaria interessada nessa posição?

— Em ser a criada pessoal de uma dama? E claro que sim, milady!

— Então ficarei muito feliz com a sua ajuda — Martine concluiu.

— Que disparate! — Estrude comentou.

Felda emitiu um gritinho de contentamento, depois foi para junto de Thorne, tomou o belo rosto entre as mãos gorduchas e beijou-o nos lábios.

— Não quero me arrepender de ter sugerido tal idéia. — Ele sorriu.

— Não se preocupe, saberei me comportar. Milady, muito obrigada. Posso começar já?

— Acho que sim — Martine assentiu.

Felda chamou uns garotos que jogavam dados num dos cantos:

— Pitt! Sully! Brad! Aqueçam chaleiras de água e levem-nas para os aposentos de milady. Peguem a tina grande. Apressem-se! — E continuou a distribuir ordens quanto à bagagem e outros detalhes.

Todos se levantaram da mesa e os criados começaram a se ajeitar para dormir no grande salão. Aos poucos as tochas começaram a ser apagadas, sobrando algumas velas que logo se extinguiriam.

Thorne desejou boa-noite a todos e se virou para a nova criada que se afastava com dois imensos jarros. Antes de desaparecer pelo corredor, ela se virou e o fitou por um instante cheio de significados. Ele riu para si mesmo e se pôs em seu encalço.

— Zelma!

Ela se virou nos degraus e sorriu quando viu quem era.

— Seus laços estão desamarrados — ele disse em inglês.

A moça apenas o observou e mesmo quando as mãos dele se atreveram sobre os seios, ela nada disse. Estavam sozinhos no corredor e ele puxou os laços desfeitos da túnica, permitindo que os seios fartos aparecessem sob o tecido.

Pelo canto dos olhos, viu que ela abaixou ligeiramente as pálpebras. Sentindo-se incentivado, desenhou traços Sobre a lã áspera e ouviu um suspiro. Logo seu desejo se­ria satisfeito. O desejo era como uma necessidade física, como sede. E agora ele precisava saciar essa sede não importando qual a bebida. Naquela noite, seria Zelma. Passou o braço pela cintura dela.

— Venha para fora comigo.

— Sou casada — ela disse.

Ainda melhor. Mulheres casadas tendiam a ser rea­listas, não esperavam que o coração dele as venerasse como seu corpo.

— Onde está seu marido?

— Em Hastings.

Thorne sorriu e a beijou. Ela cedeu e deixou-se explo­rar. Ele fechou os olhos e o rosto da jovem se transfor­mou em outro, pálido e misterioso, coberto por um véu. Sentiu o coração acelerar ao imaginar que levantava o véu e deparava-se com os olhos de Martine a fitá-lo. Teve de interromper o contato, de repente, com a apro­ximação dos garotos que carregavam os baldes cheios de água quente.

— Está se arriscando muito — Zelma disse. — Meu marido é Ulf Stonecutter. Ele é bem grande.

Thorne a trouxe para perto do quadril e comentou:

— Como sabe que não sou maior?

Zelma pareceu apreciar a idéia de testar. Indicando os jarros nas mãos, perguntou:

— Poderia segurá-los para mim?

Ele os pegou e viu que estavam bem cheios e pesa­dos; ela era uma mulher forte. Casualmente, como quem estende uma toalha de mesa, Zelma levantou a túni­ca dele, desamarrou o laço da calça e enfiou uma mão dentro dela.

— Bom Deus, e como você é grande...

Se Thorne não segurasse os jarros com força acaba­ria derrubando todo o conteúdo pela escada, formando uma cascata que chegaria ao pátio. Não era uma boa idéia. Ouviu vozes se aproximando, mas a mulher não pareceu se importar e continuou a segurá-lo, deixando-o embaraçado. Antes que tivesse tempo de se afastar, Guy e Peter surgiram. Passaram por eles, rindo com suas taças cheias.

— Cuidado. Uma queda das escadas pode ser bem dolorosa... — Peter gracejou.

Em seguida outra criada apareceu e comentou:

— Cuidado, sir Falconer. O marido dela é enorme.

— Vejo que seu marido tem uma bela reputação — disse ele.

— Ele é maravilhoso e o amo muito. Acontece que te­nho um fraco com saxões altos e musculosos. Eu tento resistir... — Zelma respondeu sem parar de acariciá-lo.

Mais passos, e Thorne olhou para a escada com ir­ritação. Para sua surpresa, dessa vez era Martine, que arregalou os olhos quando percebeu o que se passava. Com as vestes sóbrias e as mãos unidas parecia a figura de uma santa que se deparava com dois pecadores.

Thorne se lembrou que, a despeito de sua frieza e intelecto, ela não passava de uma jovem inexperiente. Entenderia se ela saísse gritando horrorizada, mas ela simplesmente o fitou e ele não conseguiu desviar o olhar, mesmo com a criada que continuava a manipulá-lo.

Ver aquele belo rosto enquanto era estimulado o deixou à beira do descontrole. O que Martine pensava? O que diria se soubesse que tinha pensado nela enquan­to beijava a outra? Abaixou as pálpebras, desejando que ela não estivesse ali.

— Está tudo bem? — Zelma perguntou, detendo o mo­vimento das mãos. — Pareceu tonto por um momento.

Thorne abriu os olhos; Martine havia desaparecido. Fora apenas um instante. Ela tinha aparecido e sumido em dois segundos, mas que pareceram uma eternidade. Respirou fundo, tentando tirá-la da lembrança.

— Estou bem, venha comigo. — Estava no limite de seu controle, mas recusava-se a terminar ali de pé, como um garoto inexperiente. Tinha de levá-la até a falcoaria.

— Melhor não. — Zelma meneou a cabeça.

— Tomarei cuidado; não ficará grávida.

— Isso não importa. Sou seca como uma pedra. Melhor ainda. Não precisaria sair antes da hora.

Talvez ela temesse ser machucada, pelo comentário que fizera.

— Serei gentil, nem notará que passei por ali...

— Ah. Bem. — Abruptamente ela o soltou, fez o laço da calça e abaixou a túnica. — Para que começar, então?

— O que quer dizer?

— Se eu quisessse dormir de fastio, abriria minhas pernas para qualquer normando. Um saxão de verdade precisa fazer uma mulher gritar.

— Zelma...

Ela se virou e desceu as escadas dizendo:

— Tente de novo quando não estiver se sentindo tão gentil.

Ele a viu se afastar e fechou os olhos. A cabeça latejava tanto quanto a virilha. Segundos mais tarde, Guy reapareceu, riu e pediu:

— Thorne, importa-se em me servir um pouco mais? E Thorne percebeu que ainda segurava os jarros.

 

Martine, esticada na tina de água fumegante, tinha os olhos cerrados ao suspirar de contentamento. Um suspiro que a liberava de todas as angústias. Enquanto se deleitava no banho, tinha os cabelos penteados por Felda em movimentos que a relaxavam cada vez mais.

Aqueles luxos sensuais eram estranhos a Martine que logo se lembrou de Thorne com a criada de cabelos negros, agarrados, fazendo o que ela somente ouvira di­zer, sem jamais entender por que muitos ansiavam por aquilo. E então se imaginou no lugar dela.

A ânsia e o vazio pulsante que sentiu em seu âma­go a assolaram de surpresa. Ela o queria dentro de si, preenchendo esse vazio. Nunca em toda a sua existên­cia se sentira tão oca.

— Que banho perfumado — Felda comentou. — O que colocou na água?

— Ligústica e óleo de alecrim.

— Com tantos óleos e pós que a senhora trouxe, pode­ria abrir uma barraca no mercado.

Martine abriu os olhos. O quarto que lhe fora conce­dido era pequeno, mal cabiam a cama no qual Loki já dormia e uma cômoda. A tina do banho ocupava o pouco espaço restante. Tomou a barra de sabão de lavanda que a criada lhe oferecia e começou a se ensaboar.

— Algumas das minhas ervas eu trouxe do jardim do convento, outras recebi dos professores com quem tive aulas em Paris. Eu costumava me esgueirar para as salas de palestra. Um deles até me aceitou como auxi­liar com seus pacientes.

— Sente-se para que eu possa lavar seus cabelos agora — Felda pediu.

Depois de concluído o banho, a criada a enxugou numa enorme toalha de linho e depois entregou-lhe um roupão.

— Sir Edmond ficará tão contente ao vê-la na noite de núpcias que será capaz de tomá-la por duas vezes antes mesmo de chegarem ao leito.

— Felda! — Martine lamentou a reprimenda assim que as palavras escaparam de sua boca, porém o comen­tário fez as imagens de Thorne e da morena retornarem com força.

— Perdão, milady! E veja que prometi a Thorne que seria uma boa criada. Eu e a minha boca grande... Logo com a senhora que é uma moça de convento. — Felda chamou os rapazes para levarem a tina e começou a se­car os cabelos de Martine com a toalha. — Deve estar com fome, mal tocou no jantar! — Ofereceu pão e queijo antes de começar a penteá-la.

Felda causou uma boa impressão em Martine, parecia o tipo de pessoa com quem poderia conversar francamente.

— Sir Edmond... Como ele é?

— Ele gosta de caçar.

— Sei disso, e o que mais?

Felda escovou as madeixas em silêncio depois respondeu:

— Onze anos atrás a mãe dele faleceu, que Deus a conserve. — Parou sua tarefa para fazer o sinal-da-cruz.

— A rotina do castelo foi pelos ares. Lorde Godfrey nun­ca superou a perda, mas essa é outra história. Por mais que sir Edmond nunca pudesse ter usufruído da compa­nhia da mãe, que vinha adoentada há muito tempo, ela ainda estava por perto. Acabou deixando-o órfão aos oito anos apenas. Foi Bernard quem acabou criando o meni­no. Ele e seus homens.

— Seus homens?

— Os cavaleiros. Há quatro aqui no castelo, além de Bernard e Thorne. Dois para cada um.

— Não são todos cavaleiros do barão?

— Não estou lhe contando como as coisas deveriam ser, milady, mas como são de fato. Se preferir que eu me cale...

— Por favor. — Martine se virou e a fitou. — Gostaria que me contasse tudo.

Felda verteu conhaque numa taça e o ofereceu à Martine.

— Bernard tem seus homens e Thorne os dele. Nós os chamamos cães e falcões porque Bernard caça com os cachorros e Thorne com as aves. Não que essa seja a única diferença entre eles.

— Fale-me de Edmond.

— Como já disse, ele foi criado pelo irmão e pelos ho­mens dele. Bernard é bem mais velho, já tem trinta e seis anos. Eles levam Edmond a todos os lugares: para caçar, visitar prosti... quero dizer, Hastings. Sir Godfrey queria enviá-lo a um monastério ou talvez servir os ca­valeiros de lorde Olivier, mas Bernard se opôs. Disse que o menino precisava dele. Na verdade creio que era ele que precisava do irmão.

— Por que diz isso? — O conhaque, aliado às escova-delas, a deixava cada vez mais relaxada.

— Deixe isso para lá. Já está dormindo e falei demais para uma noite só. Deixe-me ajudá-la a ir para a cama.

Felda tentou colocar uma camisola depois de retirar o roupão, mas Martine preferia dormir sem nada. Adora­va a sensação do linho contra a pele nua.

Enquanto terminava de pendurar roupas e organizar o quarto, Felda cantarolava uma canção suave que indu­ziu Martine a cerrar as pálpebras.

Ao entrar no mundo dos sonhos, ela sentiu a melodia voar ao seu redor como um pássaro... Uma gaivota que se aproximava para conduzi-la ao seu amor. Ao subir no céu azul da Inglaterra, a ave agarrou o sol com suas garras e o puxou, produzindo uma faixa dourada. Era a faixa dos presságios... Da boa e má sorte... Do destino. A faixa virava e mexia ao som da melodia do amor, en-volvendo-a num casulo... Sem ver, sem se mexer, afun­dando, mergulhando, flutuando... Acabou presa nos la­ços do destino.

Martine acordou com a sensação de que dormira por muito tempo e, de fato, a luz do amanhecer se infiltrava pelo acortinado da cama. Onde estaria Loki?

Ouviu passos suaves indicando que havia alguém no quarto.

— Felda? — Ergueu-se na cama, segurando o lençol. Do outro lado da cortina, Loki miou.

— Shh!

O sussurro era fino como de uma criança. Com caute­la, Martine afastou uma parte da cortina e espiou.

Uma garotinha de cerca de cinco anos estava no meio do quarto com o gato nos braços. Estava com os cabelos despenteados, descalça e com o vestido colocado do avesso. Apesar da camada de sujeira no rosto, parecia bonita. Devia ser filha de uma das criadas da cozinha que escapara para o terceiro andar a fim de espiar o animal de estimação inusitado.

— Bom dia — Martine disse. — Qual o seu nome?

Ainda assim a menina ficou calada. Talvez ela não estendesse francês. Pelo visto muito dos saxões falavam pouco o idioma de seus governantes. Tentou se lembrar de algumas palavras anglo-saxãs que ouvira Thorne fa­lar com os camponeses durante a viagem.

— Boa tarde — disse ela em inglês; a menina pareceu confusa.

Martine se levantou e se aproximou o que fez a meni­na gritar e se encostar num dos cantos do quarto. Loki escapou dos braços e ela cobriu o rosto com as mãos.

A cortina de couro da entrada do quarto se abriu e Felda entrou, carregando uma bandeja, sem notar a me­nina no cômodo.

— Bom dia, milady. Esqueci de perguntar se toma desjejum ou prefere esperar até o meio-dia.

— Posso esperar — Martine respondeu e apontou para o canto do quarto.

— Lady Ailith! — Felda exclamou. — O que anda aprontando?

A menina murmurou algo abafado pelas mãos no rosto.

— O que disse, querida?

— Ela está nua.

Felda olhou para Martine e sorriu.

— Bem, milady, quando entramos num quarto às escondidas, podemos encontrar de tudo, não? A menina assentiu com a cabeça. Martine colocou o roupão e disse:

— Já me vesti, pode olhar.

Ailith espiou por entre os dedos e suspirou de alívio. Felda apresentou a menina como sobrinha de Edmond e Bernard, filha da irmã deles, Geneva, a condessa de Kirkley. Geneva e a filha estavam hospedadas no castelo de Harford.

— Vejo que a pequena dama gosta de se vestir sozinha — Martine comentou. — Sabe se banhar sozinha também?

Ailith franziu o cenho na mesma hora.

— Nossa pequena dama não gosta muito de banhos.

— Posso ver isso, mas a mãe deveria insistir para que o fizesse.

— Mamãe está com dor de cabeça — a pequena Ailith respondeu.

— A condessa apresenta esse mal-estar há algum tempo — Felda esclareceu. — Costuma ficar sempre em leus aposentos.

— Entendo. Mas a menina não pode ficar suja para sempre. Pegue a tina, sim, Felda?

— Já tentei isso, milady. Ela não deixará que a banhe.

— Não estou pedindo a permissão dela — Martine disse ao pegar o braço da menina que tentava escapulir do quarto. — Pegue a tina — murmurou com calma, ape­sar dos esforços de Ailith em se livrar. — E seja rápida. — Imobilizou-a com a experiência adquirida nos anos do convento em que ajudava as freiras com as meninas mais novas.

Quando o sol já estava alto no céu, Ailith estava mais limpa do que nunca.

— Não quero sair! — Ela se afundou na água, segu­rando a borda da tina com determinação.

— Por favor, milady, faça o favor, sim... — Felda insis­tia com a toalha nas mãos.

Martine arregaçou as mangas, enfiou os braços na água e puxou a menina para fora.

— Você me enxuga! — Ailith apontou para Martine.

— E assim que se pede?

— Pede o quê?

Martine balançou a cabeça e tomou a toalha das mãos de Felda para enxugar a menina.

— Segure-me como se eu fosse seu bebê — Ailith pediu. Martine aquiesceu e a segurou como se ela fosse um bebê. — Faça de conta que sou um menino; o mais adorado do mundo...

— Preferiria que você fosse minha menina.

— Uma menina? Quer ser enjeitada pelo seu marido? — Ailith esperneou.

Então era por isso que a menina e a mãe moravam em Harford. O conde de Kirkley tinha repudiado o ca­samento porque a esposa não conseguira lhe dar um filho varão.

Martine abraçou a menina e a confortou:

— Se você fosse a minha garotinha, eu não a trocaria por nenhum dos meninos do Reino. Posso apostar que sua mãe sente o mesmo.

— Não sente, não — Ailith murmurou ao pousar a cabeça no ombro de Martine.

Felda trouxe roupas limpas enquanto Martine pen­teava os cabelos da menina.

— Era assim que minha mãe arrumava meus cabelos.

— Que linda você está! — Felda elogiou.

— Thorne vai pensar assim também? — Ailith perguntou.

Felda piscou para uma surpresa Martine e explicou:

— Lady Ailith planeja se casar com sir Thorne quan­do crescer.

— Até lá ele deve conseguir as próprias terras — Ailith disse.

— Não recuse nenhuma boa oferta enquanto espera que isso aconteça. — Felda revirou os olhos.

— Por que diz isso? — Martine perguntou.

— Se lorde Godfrey quisesse dar terras a Thorne, te­ria feito isso há muito tempo. Ele está a serviço do barão há dez anos e está ficando impaciente, pois já provou seu valor diversas vezes. Sir Thorne acha que o barão não deseja perdê-lo como mestre falcoeiro e por isso não concede as merecidas terras.

— Você parece saber muito a respeito de sir Thorne — Martine apontou.

— Todos precisam de alguém para conversar, mesmo um homem como sir Thorne. Ele me conta coisas que não confiaria a mais ninguém.

— Então, você e ele...

Felda fez um gesto de dispensa com as mãos.

— Deus meu, não! Somos amigos, nos conhecemos há bastante tempo. Meu coração pertence a Fitch, o ferrei­ro da vila. Isto é, toda vez que ele consegue escapar da esposa...

— Ele é casado?

— Devia ver a mulher, milady. Os braços são mais grossos do que um pernil e as pernas...

— Agora que estou bonita, posso me casar — Ailith disse sem ter prestado atenção na conversa das duas. — Se não somos belas, temos de nos tornar freiras.

— Então é melhor me ajudar a ficar bonita. — Martine sorriu. — Seu tio Edmond volta para casa hoje. — Imaginou o noivo chegando num cavalo branco como o de Thorne. — Escolha um vestido bem bonito para mim. Algo que não me deixe com cara de freira.

A menina avaliou os vestidos perdurados e escolheu Um de algodão egípcio azul, presente de Rainulf.

— Azul é a minha cor favorita! Use este.

— Tem a cor de seus olhos, milady — Felda observou.

— Pensei em usá-lo na cerimônia de noivado — Martine disse.

— Lady Estrude encomendou roupas tanto para o noivado como para o casamento como presente para a senhora.

Martine passou os dedos pelo tecido e se lembrou dos comentários de Estrude. Com aquela roupa, não ficaria parecida com uma freira.

— Está bem. Vou usá-lo.

As meias, sapatilhas e cinta haviam sido tingidas para combinar com o vestido e Ailith trouxe cada item ajudando-a a se vestir. Assim que terminaram, a menina bateu palmas em apreciação.

Felda, depois de ajustar o cinto adornado na cintura fina, abriu a caixinha de jóias.

— Desculpe a observação, milady, mas não há muitas peças aqui... porém estas devem servir.

Martine pegou os brincos de pérolas e os anéis de ouro. Felda penteou e arrumou os longos cabelos platinados enquanto Ailith observava, quase que hipnotizada.

— Ele é capaz de desmaiar quando a vir — a criada disse.

— Quem?

— Seu noivo, oras.

Virando-se de costas, Martine deu de ombros. Se­gurando a caixa com suas ervas, pegou a mão de Ailith e partiu em direção à cozinha. Ela tinha algumas espe­ciarias do Oriente com que gostaria de presentear lorde Godfrey, mas precisava dar instruções às cozinheiras quanto ao seu preparo.

Todos os que se encontravam no salão se viraram para admirá-la quando ela saiu do quarto e parou diante da galeria. Estrude pareceu chocada e se pôs a observá-la de alto a baixo como alguém que tinha sido ludibriado.

Martine puxou Ailith e as duas seguiram para fora. No pátio interno, a menina, atrás dela, segurava as mangas da túnica com as mãos, esvoaçando-as como borboletas.

A caminho do pátio externo passaram diante da falcoaria, a única estrutura além do castelo naquela parte, onde dois garotos ajeitavam o feno para secá-lo na grama. Na janela, uma figura alta vestida de branco segurava um pássaro igualmente branco no pulso: Thorne e Freya.

Ele olhava fixamente na direção delas.

Martine apressou o passo e se afastou, consciente do olhar às suas costas. Sabia o que ele via: uma jovem alta de cabelos amarrados e um lindo vestido azul esvoaçante. Tinha quase chegado à ponte levadiça quando ouviu a voz grave, bem perto delas.

— Quase não a reconheci. Está muito bela hoje, milady.

Ela sorriu e ficou se perguntando como deveria res­ponder. Ao se virar, entretanto, viu que Ailith corria na direção dele.

— Obrigada! — ela exclamou.

Thorne as tinha seguido e agora estava a alguns me­tros, agachado para cumprimentar Ailith. Segurou-a no braço, porém, a manteve distante, pois ainda estava com Freya no pulso. O elogio fora dirigido a menina, e Martine tentou controlar o rubor na face ao se aproximar.

— O seu cabelo está molhado como o meu — Ailith disse a ele.

Thorne vestia uma camisa de linho branco sobre Calças pretas cruzadas por tiras de linho e botas curtas. Eram roupas de trabalho, muito diferentes das elegantes do dia anterior.

— Tomei banho, assim como você, pelo visto — ele respondeu.

— Sir Thorne toma banho no rio. Ele sabe nadar! — Ailith disse a Martine. — Ele aprendeu em Lisboa. Quando eu crescer também vou me banhar no rio.

— Talvez no verão, milady — Thorne observou. — No inverno também prefiro uma bela tina de água quente. — Afagou os cabelos da menina com carinho.

— Que bom que deixou Felda cuidar de você hoje.

— Não foi ela, foi tia Martine — Ailith corrigiu.

— Tia Martine? — Pela primeira vez naquela manhã, Thorne a olhou diretamente, por algum motivo o olhar se detendo na testa.

— Gostou do meu cabelo? Era assim que a mãe de tia Martine prendia o dela. Sabe o que descobri? — a menina tagarelava.

— O quê?

— Tia Martine não toma desjejum. E ela sabe inglês. E ela sabe tudo a respeito de ervas; elas estão ali naque­la caixa. E ela não me trocaria por nenhum menino em todo o Reino. Ela não chora quando leva uma dentada!

Thorne franziu o cenho e olhou para Martine, que levantou a mão mostrando o local em que a menina a mordera em protesto pelo banho.

— Ela nem ralhou comigo! Thorne suspirou.

— Imagino então que eu também não deva ralhar. Parece ter aprendido muito em pouco tempo. — Olhou para Martine. — O resto de nós não teve a mesma sorte.

— Quer saber qual a cor predileta dela?

— Se quiser me contar...

— Azul, como a túnica dela, que é da mesma cor dos olhos.

— Não é de se admirar que seja a cor favorita, então.

— Sabe o nome do gato dela?

— Loki. — Thorne sorriu. — Aquele que assume mui­tas formas. — Passeando os olhos pela figura feminina, acrescentou: — Como a dona, pelo visto.

— Você sabia! — Ailith fez beicinho. — Aposto como não sabe o que ela usa para dormir.

Martine pegou a menina pelo braço e começou a puxá-la na direção da ponte levadiça.

— Ailith...

— Nada! — a menina disse enquanto era pratica­mente arrastada. — Ela dorme nua!

Dois guardas apoiados nas torres do portão interno olharam para a cena e se puseram a rir.

Thorne não riu, Martine viu ao se virar para pegar a menina no colo em vez de arrastá-la. Só tinha um indício de sorriso no canto dos lábios, mas permaneceu muito imóvel, tentando não sobressaltar Freya.

Martine se apressou a sair enquanto a menina conti­nuava a dizer:

— Nua! Ela dorme nua!

A luz do dia, o pátio externo parecia uma pequena vila com casinhas de pedra e telhados de sapé. As pessoas iam e vinham atarefadas, todas cumprindo algum dever para com o barão. As únicas criaturas à vontade eram as crianças pequenas como Ailith que formavam grupos para brincar.

Martine deixou-a brincando com a filha de uma das cozinheiras e voltou para o pátio interno. Ao cruzar a ponte, notou o fosso e a água pútrida de lá de baixo, exa­lando um cheiro fétido, um verdadeiro criadouro para insetos. Havia outros sinais de que Harford era um cas­telo em péssimo estado de conservação. Notara na noite anterior que a palha do salão rescendia a mofo e esta­va cheia de detritos de alimentos. Os cachorros corriam soltos e os criados decidiam com que vontade executa­vam as tarefas. Não havia ninguém com mão firme para orientá-los.

Lorde Godfrey, por ter dois herdeiros, decerto não sentira a necessidade de se casar novamente depois de viúvo. Em vez de cuidar com adequação de suas pro­priedades, decidira se dedicar à bebedeira. Pelo relato de Felda, ele nem conseguia governar seus cavaleiros, que se viam divididos entre o primogênito e o mestre falcoeiro.

Ouviu Thorne chamar seu nome. Curiosa, ela parou ao passar pelos portões.

— Lady Martine — ele repetiu.

Ele estava apoiado na torre ao lado do portão com outra ave no braço. Teria ficado ali esperando por ela?

— Sim?

Ele se aproximou e indicou o pequeno falcão marrom de pescoço branco.

— Este esmerilhão está resfriado. Por acaso teria paparraz em sua caixa de ervas?

— Sim, eu tenho.

Ela abriu a caixa e começou a procurar a erva quando ele perguntou:

— Teria cardamomo também? Faz bem para o estô­mago das aves.

— Creio que sim — respondeu ela, vasculhando os diversos potes e jarros.

Thorne apanhou a caixa das mãos dela e marchou para a falcoaria.

— É melhor apoiar isto na minha mesa de trabalho.

Martine o seguiu, já que não tinha muita esco­lha. Thorne levara o que ela possuía de mais precioso. Aquelas ervas e especiarias tinham vindo dos recônditos do mundo e alguns itens eram tão raros quanto pedras preciosas. Não pretendia deixá-las longe de suas vistas. Ele a conduziu pela porta, abaixando a cabeça ao passar. Martine o imitou, ainda que a entrada fosse alta o bastante para ela. Estavam numa sala de estar. Ao ver a cama num dos cantos, ela se deu conta de que aquele também devia ser o cômodo particular do falcoeiro, além de uma sala de trabalho, visto a presença de uma mesa e uma seqüência de jarros, potes e ferra­mentas alinhados ao lado de pequenos capuzes de couro adornados com penas.

Thorne colocou a caixa de latão em cima da mesa e foi para dentro da falcoaria, desaparecendo atrás de uma cortina de couro. Martine aproveitou para examinar o cômodo com mais liberdade. Um braseiro, ora ex­tinto, tomava conta de um dos cantos. Sobre ele uma coleção de luvas perfiladas em ganchos na parede. Do lado oposto havia uma bela poltrona entalhada junto a uma mesinha na qual repousava um livro e uma tigela com tiras de carne crua. Sobre o livro, uma pena.

Levantou a pena, mas se assustou ao ouvir um gruído agudo. Era Freya, presa a um poleiro, que desa­provava a sua presença.

Thorne voltou, pegou a pena que caíra no chão e a resvalou com suavidade nas asas do falcão, murmuran­do palavras gentis em inglês.

— Por que em inglês? — Martine perguntou.

—As aves respondem melhor a esse idioma que é mais direto e simples, assim como elas, do que ao francês.

Ainda que Martine não conseguisse entender nenhuma das palavras, o modo como eram pronun­ciadas acabou acalmando-a também. Freya o encarava fixamente, mesmo quando ele alcançou a tigela e pegou um pedaço de carne.

Martine pensou que ele fosse oferecê-la diretamen­te no bico. Em vez disso, depositou na garra. Depois de alguns minutos, Freya bicou-a, apenas para jogá-la ao chão. O processo se repetiu inúmeras vezes, e Martine começou a se perguntar sobre a paciência do homem.

Thorne somente sorria como se estivesse diante de uma criança teimosa e malcriada. Por fim, o falcão se rendeu e comeu da própria pata. Depois de engolir, rece­beu elogios de Thorne e mais duas tiras diretamente no bico como recompensa.

Ele recolheu os pedaços espalhados e colocou-os de volta na tigela, depois seguiu para a mesa de trabalho.

Martine se juntou a ele e começou a procurar o que ele lhe pedira. Espalhou potes e jarros enquanto Thorne os abria e espiava o conteúdo, chegando mesmo a expe­rimentar alguns. Quando ele abriu um frasco azul de vidro, ela o deteve pelo pulso.

— Cicuta.

— Cicuta!

Os dedos delgados não conseguiam dar a vol­ta no pulso forte que parecia duro como o carvalho e quente ao toque. Ela o libertou de pronto, chegando a empurrá-lo sem querer, pegou o frasco e o fechou, explicando:

— É um ingrediente usado em procedimentos cirúrgicos. Em dose ínfima. Um pouco a mais pode ser letal. — Entregou o pote com paparraz que ele havia pedido. — Pegue o quanto precisar. Estou curiosa para saber como vai utilizá-lo.

Ele colocou uma pitada num pilão e esfarelou depois de juntar três grãos de pimenta do próprio estoque. Em seguida juntou algumas gotas de um líquido com cheiro de vinagre e disse:

— Vou deixar o preparo descansar por um tempo, de­pois aplico nas narinas e no palato do falcão. Isso e um pouco de galinha cozida devem dar conta do resfriado.

Thorne pegou mais um pouco da erva e um tanto de cardamomo e guardou em dois potes.

— Já segurou um falcão?

— Não.

— Nunca?

Martine percebeu que a verdade o surpreendia, já que a maioria das mulheres criadas em castelos tinha algum contato com aves de rapina, mesmo que de peque­no porte. Imaginou então se ele formulara a pergunta Com o propósito de pegá-la desprevenida. Teria ele sus­peitado de algo após a bisbilhotice de Estrude na noite anterior?

Thorne pegou uma luva pequena do gancho e entre­gou a ela.

— Siga-me. — Segurou a cortina para que ela passasse.

Diversas aves gruíram e bateram as asas ao vê-los entrar. Havia cerca de uma dúzia de diferentes tamanhos e espécies, todas empoleiradas sobre varas de ferro. O cômodo era fresco por causa da penumbra. O aroma de feno seco permeava o local, ainda que se percebesse o cheiro das aves.

Martine tentou calçar a luva na mão direita, mas Thorne a tomou e a colocou na esquerda, depois apoiou uma das mãos nas costas dela. Ela ficou tensa com o calor da palma que ultrapassava suas roupas. No entanto, depois que ele a colocou diante de um enorme perifalte cinza e retirou a mão, ela desejou que ele ainda a estivesse tocando.

— Esta é Azura, a favorita de lorde Godfrey. — Pas­sou a trela por um dos elos dos pios da ave e a amarrou de leve em torno do pulso de Martine.

— Tinha de pegar logo a maior?

— Ela é a mais mansa de todas. Pronto. — Pegou o pulso dela e pôs as patas do falcão. — Ela é bem treina­da, saberá o que fazer.

Martine arfou ao sentir o peso da ave e a pegada das garras poderosas.

— Se ficar nervosa, ela sentirá — Thorne explicou. — Um falcão nervoso é uma coisa bem perigosa de se ter por perto.

— Tem o talento de me colocar em situações perigo­sas, sir Thorne.

— Mas milady parece se sair muito bem delas. — Fitou-a nos olhos. Depressa, ela desviou a atenção para a ave.

— Qual é o problema com a cauda? — perguntou, apontando para uma parte que parecia danificada.

— Uma das penas está quebrada. Pretendia cuidar disso hoje, pois o barão está ansioso para caçar, mas meu assistente não está aqui para me ajudar.

— Como faria isso?

— Costuraria uma nova nessa quebrada. Quer ver como se faz?

— Mas e seu assistente?

— Você pode me ajudar. — Ele afastou a cortina para que ela entrasse no outro cômodo. Em seguida, levou a poltrona para perto da cama.

— O que terei de fazer? — O pássaro era tão pesado que Martine teve que sustentar o peso com a ajuda do braço direito. Percebeu, então, como Thorne deveria ser forte já que era capaz de ficar horas sustentando as aves enquanto caçava com o barão.

Ele pegou alguns itens da mesa de trabalho e os colo­cou junto com a própria luva sobre a cama.

— Apenas sente-se na poltrona.

Martine se sentou e Thorne colocou um pano de linho sobre o colo dela. Depois pegou Azura e a pousou sobre o pano, cobrindo-lhe a cabeça com um dos capuzes para deixá-la tranqüila. Amarrou os cabelos com uma tira de couro e se sentou na cama, diante de Martine, com uma perna de cada lado dela.

Ela não estava acostumada com tal proximidade. Embora não estivessem se tocando, sentia-se envolta por ele, sentia o calor que emanava do corpo másculo, bem como a fragrância do sabão usado no banho de rio. Azura recuou e ela percebeu que estivera segurando o pássaro com muita força.

— Apenas a ampare para que ela saiba que você está aí. — Ele pegou outra pena da mesma cor da ave. — Eu as guardo quando caem para casos como este. — Com uma faquinha cortou o tamanho desejado e aparou a ponta da que estava danificada. Depois pegou agulha e fio de seda de uma caixa, começando a costurar em seguida.

Martine nunca tinha visto um homem costurar an­tes. Esse era um trabalho predominantemente feminino, embora ela própria não tivesse a paciência necessária.

Thorne se inclinou sobre o pássaro, o cenho franzido em concentração, enquanto seguia com os pontos peque­nos e benfeitos.

— Como aprendeu tanto a respeito de falcões? — Martine perguntou.

— Como não sabe nada sobre eles? — Thorne devol­veu a pergunta. — Nunca vi moças de seu estofo social que não estivessem familiarizadas com essas aves.

Ela o encarou. As perguntas começavam a ser mais diretas. Com a ave no colo, não poderia simplesmente levantar-se e sair como desejava.

O silêncio começou a pesar. Thorne fez uma pau­sa para olhá-la; Martine tinha a expressão pensativa. Depois voltou ao trabalho, dizendo:

— Mantenho aves de rapina desde criança. Uma tarde acidentalmente atingi um pequeno gavião. Subi na árvore e recolhi os filhotes órfãos. Depois disso come­cei a criar todo tipo de ave, porém só tive a oportunidade de trabalhar com falcões maiores depois estar a serviço de lorde Godfrey.

— Dizem que é um excelente arqueiro. Isso é porque cresceu caçando? — Se ela continuasse a fazer pergun­tas, não teria de respondê-las.

— Se fazemos alguma coisa com bastante freqüên­cia, acabamos nos tornando bons. Quando eu era jovem, apenas caçava e cortava lenha. Éramos pobres e eu era o único filho sobrevivente. — Fitou-a e sorriu. — Tam­bém corto lenha muito bem, mas ninguém parece valo­rizar isso.

Martine não conseguiu evitar um sorriso.

— Não tinha nenhuma irmã?

— Uma. Louise.

— Não a vê nunca?

— Toda vez que estou com Ailith. — Inclinando-se, ele mordeu a linha e a partiu com os dentes. Colocou a luva e levantou Azura no pulso. — Seria melhor eu lhe emprestar uma luva na próxima vez em que for dar ba­nho na menina. — Apontou para a marca da arcada na mão da moça. Claramente, ele mudava de assunto.

— Ela não me morderá n próxima vez.

Ao seguir para o outro cômodo com Azura no braço, ele perguntou:

— Como uma filha única como você aprendeu tanto sobre crianças?

Aquela pergunta não parecia ter sido feita ao acaso. Martine esperou que ele voltasse para responder:

— Não sou filha única. Tenho dois irmãos e sabe mui­to bem disso.

Thorne voltou a guardar a luva no gancho e rebateu:

— Eles são bem mais velhos. Deve ter sido criada praticamente como filha única.

— Sabe muito bem que esse não é o caso.

Ele a encarou e levou um tempo maior para respon­der, escolhendo as palavras com cuidado.

— Milady, a verdade é que pouco sei a seu respeito. Só sei que Rainulf a chama de meia-irmã e que entra em pânico quando lhe perguntam a respeito de sua fa­mília. Fui eu quem a recomendou como noiva digna do filho do barão, e seu noivado será sacramentado ama­nhã. Pode me culpar por tentar descobrir se por acaso eu o informei mal?

Aquela era uma armadilha. Ele vasculhava informações disfarçadamente numa suposta conversa amigável. Na noite anterior a salvara das perguntas de Estrude para ele mesmo descobrir a verdade. Como interme­diário no noivado, queria saber de antemão se havia algum empecilho para a união e decidir o que fazer com a informação.

De súbito, passou a desconfiar dele. Se ela não era quem parecia ser, ele também não era. Dirigindo-se à porta, disse:

— Rainulf acha que você arranjou este casamento por amizade. Eu disse que devia ser por causa de algum outro motivo menos altruísta, mas ele não acredita em mim. Ele gosta de pensar que todos são tão bons quanto ele.

— Não nego nem me desculpo por minha ambição. Farei o que for preciso para sair da pobreza imposta pela minha condição social. Se um dia eu tiver filhos, não quero que passem pelo que passei. Seu casamento vem ao encontro de minhas ambições, mas também atende à minha amizade para com seu irmão, que significa para mim mais do que possa imaginar.

— Seu discurso é muito tocante. — Martine parou na soleira. — Deve ter refletido muito sobre o quanto meu casamento servirá aos seus propósitos. Imagino que nunca tenha considerado se ele servirá aos meus. — Bateu a porta e voltou para o castelo.

 

O almoço foi à base de torta de bacon e ervilhas. Godfrey, Thorne e Albin estavam fora, caçando com os falcões. Lady Geneva, mais uma vez, ausentara-se da mesa, e ninguém oferecera explicação alguma.

Martine passou a tarde explorando o castelo com Ailith. Depois de passarem pelo primeiro andar, onde havia um cômodo tão grande quanto o salão princi­pal repleto de armaduras e diversos tipos de armas, desceram ao porão com uma lamparina para iluminar o caminho.

O lugar, no qual fora cavado um poço, mais parecia uma caverna com as paredes de pedra, o ar frio e úmido. Em toda a volta viam-se pilhas de engradados e barris.

Ailith olhava ao redor fascinada.

— Tia Felda diz que há uma passagem secreta por aqui! Se eu me comportar bem, um dia ela me mostrará. — E correu para uma porta enferrujada. — E aqui que as pessoas más ficam. Se eu não parar de aborrecer mamãe, ela vai me mandar para cá.

Martine se aproximou da menina e empurrou a portinhola, que emperrou no meio do caminho, a fim de espiar dentro.

— Eu também quero ver. Me lavanta! — a menina pediu.

Martine a suspendeu nos braços e as duas olharam pela pequena abertura. A lamparina não ajudou muito, porém Martine conseguiu divisar as paredes de granito. O lugar não era maior do que uma latrina, e cheirava como tal. Uma gota caía de vez em quando quebrando o silêncio sepulcral.

Estremecendo, ela levou a menina até as escadas.

— Que tal irmos procurar meu irmão? Então você po­derá nos levar até sua mãe. Quanto mais ouço falar dela, mais ansiosa por conhecê-la eu fico.

— Deixe-me em paz! — Geneva gemeu. — Não quero mais remédios para dores de cabeça.

Rainulf tomou o cálice das mãos da irmã, pensando que normalmente aqueles que mais precisavam de aju­da eram os que a recusavam.

— Este não é um remédio para dor de cabeça, milady — ele disse, inclinando a taça para que ela visse o lí­quido âmbar.

— É um tônico para melancolia — Martine expli­cou. — E uma mistura de valeriana, visco e escutelária. É muito eficiente.

A condessa de Kirkley pegou a taça e a virou, der­ramando todo o conteúdo no chão. Depois a devolveu a Rainulf e se deitou, puxando as cobertas sobre o peito. Virou-se, então, para Martine, os olhos negros sem ex­pressão e apontou para a filha.

— Ailith! Andou falando alguma coisa sobre melan­colia para...

— Não, mamãe! — interrompeu a menina. — Só dis­se que a senhora sofria com dores de cabeça.

— Fui eu quem supôs isso — Martine intercedeu. — Disseram-me que a senhora nunca deixa seus apo­sentos e sei que foi... Isto é, que já não...

— Que fui rejeitada? Acredito que melancolia seja uma reação normal quando somos jogadas fora como restos para os cães, não acha?

Lá fora, no pátio, ouviu-se o barulho dos homens vol­tando da caçada e Martine se empertigou ao escutar a voz grave de Thorne. Para uma mulher de grande inte­lecto como ela, detestava enganar-se quanto às pessoas.

— Deveria ter aceitado o tônico, senhora — disse. — Precisa se trocar e se levantar. Continuar com a vida. Sua tristeza pode ser natural, porém não deixa de ser perniciosa. Não somente para a senhora, mas para sua filha também. Ela precisa de cuidados e não de ameaças sobre ser confinada no calabouço. Necessita de uma mãe de verdade. E se a senhora também refletisse, veria que também necessita dela.

— Precisar de Ailith? — Geneva sentou-se, trêmula de indignação. — Por que acredita que estou aqui?

Ailith se escondeu atrás de Martine. Rainulf a tomou nos braços e saiu do quarto, temendo pelas palavras que se seguiriam. No corredor deparou-se com Estrude e Clare que ouviam atrás da porta, divertindo-se. Ailith apertava as mãozinhas sobre os ouvidos para tentar abafar os gritos da mãe.

— Se ela fosse um menino, como deveria ser, eu ainda seria a dona de Kirkley, em vez daquela rameira que meu marido aceitou na cama! Desejo por tudo o que é mais sagrado que ela jamais tivesse nascido!

Uma corneta de caçada soou ao longe. Estrude e sua criada, Clare, pararam de rir. Clare mordeu o lábio e olhou em direção ao som com os olhos brilhantes, mas sua ama assumiu um ar de resignação.

Martine deixou Geneva aos gritos, e saiu do quarto, olhando para Rainulf quando o som se repetiu,

— Ah, que bom, os rapazes voltaram — Estrude co­mentou com enfado.

Logo vieram os latidos dos cachorros e os gritos dos caçadores. Martine, tentando adivinhar qual voz pertencia ao noivo, sentiu o estômago se contrair de apreensão.

Felda se aproximou e tomou Ailith dos braços de Rainulf.

— Conheceu os falcões, padre. Agora é a vez dos cães.

Martine seguiu o irmão até o primeiro andar, ouvindo a aproximação do grupo. Ao chegarem ao salão de armas, os caçadores já estavam lá. Para sua surpresa, tinham subido as escadas ainda montados. Pior ainda, ao que tudo indicava, a caçada ainda não tinha sido concluída: no meio do círculo formado pelos cavaleiros, um lindo veado com uma majestosa galhada se debatia ferido.

No fim da escadaria ao lado do irmão, ela ficou pa­ralisada ante o pandemônio que a aguardava: uns oito cavaleiros, uma dúzia de cães de caça agitados e o po­bre veado aterrorizado. Cinco flechas projetavam-se do animal ferido, e ela não entendeu como caçadores expe­rientes tinham falhado tanto em abater um único ani­mal. Percebeu, então, com uma onda de revolta, que o intuito deles não era matar e sim se divertir no processo. Sangue cobria boa parte da pele e os olhos do animalzinho estavam injetados devido à dor e ao medo.

— Parem com isso! — ela exigiu, mas suas palavras foram engolidas pelo caos que reinava no recinto.

Algo precisava ser feito. Olhou para o irmão em busca de orientação, no entanto ele somente balançou a cabe­ça, sabendo que a situação estava fora de seu controle. Rainulf era um homem sábio, conhecia a capacidade dos homens em infligir dor e sabia quando podia intervir ou não.

Martine estava horrorizada ante tal demonstração de crueldade. Qual deles seria Edmond e que parte teria naquela tortura? Olhou ao redor, mas todos pareciam iguais. Todos não! Um deles se destacava. Aquele cava­leiro estava imóvel diante do caos instalado e os outros homens o olhavam de instante e instante.

Ele era maduro demais para ser Edmond. A barba tinha faixas grisalhas e os olhos, pequenos e negros, bri­lhavam diante do sofrimento da presa. Havia um sorriso nos lábios, que não chegava aos olhos.

Aquele era Bernard. Assim que percebeu quem ele era, o homem a encarou pela primeira vez. Acenou em sua direção, com o sorriso morto ainda estampado nos lábios. Quando Martine não respondeu, o sorriso o abandonou de vez e os olhos frios como os de um réptil a avaliaram.

Bernard desviou a atenção quando um dos cães voou pelos ares ao ser atingido pela galhada do veado. Desmontou, e seus homens retrocederam para que os cavalos não o atingissem. Ele pegou uma das clavas da parede e a girou, esmagando o crânio do cão caído num único golpe. Deixando a arma de lado, pegou o cão e o atirou pelas escadas.

O veado ainda se debatia, esbarrando na fileira de bestas, armas que por sua periculosidade tinham sido proibidas pela Igreja de serem usadas contra cristãos. Pelo visto a proibição não era válida nas caçadas, pois Bernard ordenou que um de seus homens, um ruivo enorme, lhe desse uma.

Os homens firmaram as rédeas de suas montarias para observar Boyce carregar a arma. O alvo escorrega­va no próprio sangue e fezes.

— Atire no nariz! — alguém gritou.

— Sem querer ser desrespeitoso, Bernard — Boyce disse —, mas eu nem tentaria. O alvo é móvel. Thorne Falconer é o único homem capaz de acertar esse tiro.

— Acredito que dão valor demais a esse arqueiro — Bernard contrapôs. — Quando foi a última vez que ele nos demonstrou seus talentos? Talvez tenha perdido as habilidades ao deixar que seus preciosos falcões façam todo o trabalho.

Bernard mirou e atirou, mas a seta passou pelo veado e raspou no braço de Boyce.

O homem, de olhos arregalados, levou um instan­te para perceber o que tinha acontecido, depois se pôs a rir.

— Diabos, não é que você estava certo, Boyce? — Bernard comentou.

— Que bom que eu acertei, não? — Boyce gargalhou e bateu a mão na perna.

Martine mal podia acreditar que o homem conseguis­se falar depois de ser atingido pelo tiro da besta.

— O maldito não para quieto... Veja só. — O homem completou.

Martine ouviu passos às suas costas, depois mãos fortes em seus ombros, abrindo caminho. Era Thorne. Bernard deixou o sorriso de lado assim que o saxão pi­sou no salão.

— Ah! O falcoeiro. Bem a tempo de participar da di­versão. Boyce acredita que só você seja capaz de acertar o animal no focinho. Eu digo que sua reputação está su­perestimada. — Ele e Thorne se encararam com hostili­dade evidente. — Gostaria de provar que estou errado? — O sorriso cínico voltou a surgir.

— Alguém me passe uma flecha curta — Thorne pediu.

— Deus meu — Martine sussurrou, dando um pas­so na direção da sala. Ficou chocada ao ver que Thorne aceitava arco e flecha de um dos homens. Para sua sur­presa, Rainulf mostrava-se impassível diante da partici­pação do amigo naquele pesadelo.

Ela não conseguiria agir do mesmo modo. Quando Thorne começou a puxar a flecha, ela se adiantou e agar­rou-a, depois a jogou contra a parede com força suficien­te para parti-la.

— Você me dá nojo! — ela disparou.

O salão de armas caiu no silêncio, o único som sendo do animal agonizante. Em seguida vieram os assobios e comentários descrentes dos homens de Bernard. Martine encarou Thorne, pronta a lhe dizer o que pensava dele por aceitar o desafio de Bernard. O olhar dele, entretan­to, a desarmou. Em vez da raiva esperada, ela viu uma faísca de divertimento e... Admiração?

Thorne se virou para o salão e disse:

— Outra flecha.

Assim que ele a armou, Martine esticou o braço, mas foi detida pela mão firme de Thorne, que olhou para Rainulf num pedido mudo de ajuda. O irmão a segurou e a conduziu de volta para as escadas.

O veado saltitava em diversas direções. Thorne pu­xou a flecha e esperou pelo momento certo.

— E então, lenhador, consegue acertar o focinho? — Bernard o desafiou.

Quando o animal se virou na direção da voz, Thorne se apoiou num joelho, mirou e soltou a flecha. O vea­do ergueu a cabeça e perdeu o equilíbrio, caindo num baque no chão. Os olhos se reviraram e ele emitiu um último suspiro. A flecha não se projetava do nariz, mas do peito.

Thorne se levantou, a expressão neutra em resposta ao olhar mordaz de Bernard.

— Talvez.

A flecha acertara o coração do animal. Ao sentir que o irmão a soltava, Martine percebeu que a intenção de Thorne era dar um tiro de misericórdia o tempo todo. Rainulf logo percebera isso; ela não. Sentiu as faces coradas em vergonha por ter entendido o pior e, intima­mente, ficou agradecida por Thorne não se virar na sua direção.

— Acho que o falcoeiro desaprova nosso diverti­mento. — Bernard o encarou com antipatia.

— Edmond voltou com vocês — Thorne varreu a sala com os olhos —, ou será que também foi atingi­do acidentalmente?

Somente Boyce riu, os outros permaneceram calados, mordendo os lábios.

— Sim, meu irmão regressou. E com um presente para a noiva. — Bernard voltou-se na direção de Martine. — Esta deve ser lady Martine, não?

Thorne fez as apresentações.

— Martine de Rouen e o irmão, padre Rainulf... Bernard de Harford.

— Foi o que imaginei — Martine disse num tom distante.

Um murmúrio se fez ouvir pelo salão, mas cessou em seguida. Martine seguiu o olhar dos demais para a en­trada. Um jovem estava lá, observando-a com interesse. Ela soube de imediato que aquele era Edmond.

O noivo era belo conforme o prometido: os olhos escu­ros e a pele bronzeada; os lábios cheios e o pescoço musculoso. Diferentemente do irmão, vestia-se com simpli­cidade, e os cabelos estavam escondidos debaixo de um chapéu azul puído. Ele apoiava o peso numa das pernas, e as mãos estavam ocupadas segurando a ponta de uma coberta que envolvia algo enorme aos seus pés.

Martine sentiu cheiro de caça e se perguntou o que havia naquela coberta.

Bernard deu a volta no veado abatido e retirou o cha­péu da cabeça do irmão, libertando o cabelo, longo até os ombros e encaracolado devido à umidade do confina-mento anterior. Suas feições trigueiras conferiam-lhe um ar de bárbaro; parecia um pagão.

— Lady Martine, tenho a honra de lhe apresentar meu irmão, seu noivo, sir Edmond de Harford.

O casal continuou a se encarar, sem dizer palavra al­guma, sem se mexer. A tensão mostrou-se demais para os homens de Bernard que começaram a fazer gracejos.

— Edmond — Thorne disse —, seu irmão nos contou que trouxe um presente para sua noiva.

Bernard empurrou Edmond, que deu um passo à frente, arrastando a coberta. Agora ela conseguia ver que a lã estava manchada de sangue e, quanto mais ele se aproximava, mais forte o odor, fazendo-a sentir náuseas.

Martine olhou para as mãos do rapaz. Estavam escu­ras, e de perto viu que não era sua cor natural, as man­chas eram de sangue seco.

Edmond abriu a coberta, espalhando um fedor ao que parecia imune.

— Para nosso jantar de noivado — disse ele.

Era um javali. Da boca aberta, uma língua roxa sal­tava para fora, infestada de insetos, assim como os olhos injetados.

Martine deu um passo para trás e esbarrou no pri­meiro degrau. Edmond, parecendo nervoso, revirava as mãos e olhava do irmão para ela, sem saber o que fazer.

Todos a encaram. O que ela deveria dizer?

Obrigada pelo veado, pelo cachorro, pelo javali. Mortos! Todos mortos!

As mãos dele estavam sujas de sangue e todos a encaravam.

Ela se virou e subiu as escadas, o coração acelerado ante um alerta que a razão negava: as mãos manchadas eram um presságio. Um presságio do mau. Da morte.

 

— Ele esteve caçando — Rainulf repetiu. — Por isso tinha sangue nas mãos. Tente se controlar.

Martine andava de um lado para o outro no quarto e a comida jazia intocada na travessa, ainda que tivesse insistido em jantar em seus aposentos.

— Ele já tomou banho — Rainulf informou, sentan­do-se na beira da cama.

— É tarde demais. Ele não pode mais me enganar, vi como ele é de verdade.

— Martine, eu não daria você em casamento a qual­quer um. Thorne o viu crescer e garante nunca ter visto nenhum indício de...

Ela parou de andar e o encarou.

— Ele teria dito qualquer coisa para que você concor­dasse com esse arranjo. Ele me disse que planejou essa união para se alavancar.

— Thorne me contou tudo antes do jantar. Temia que eu o odiasse por isso, como você.

Loki se enroscou nas pernas de Martine, e ela o to­mou nos braços.

— E não o odeia?

— Não! Ele nunca se fez de santo. É apenas um homem que busca o melhor para a própria vida. Ele sabe como é a pobreza. Não é um pecado tentar melhorar de vida.

— Ele me disse que faria o que fosse necessário para atingir seus objetivos. E se isso envolvesse algum peca­do: roubo, assassinato ou...

— Esse seria um excelente tópico para minhas dis­cussões com os alunos. — Ele riu. — Um objetivo nobre justifica um pecado ou...

— Chega, Rainulf. — O pedido calmo dela o atin­giu mais do que se ela tivesse vociferado imprecações. — Não faça pouco de meus temores e dúvidas, nunca fez isso antes. Sempre me entendeu, sem que eu precisasse dizer qualquer coisa.

Martine abriu as venezianas da janela, respirou fun­do o ar noturno e observou a escuridão.

— Martine. — Os olhos dela estavam cheios de tris­teza ao encará-lo. — Não precisa se casar com Edmond. Podemos partir ao amanhecer, antes da cerimônia de noivado. Pagarei uma soma a lorde God...

— Eu me casarei — ela respondeu seca.

— Entendo suas dúvidas. Postergarei minha peregri­nação até que esteja assentada e...

— Assentada. Isso quer dizer casamento ou con­vento. Nós dois sabemos que para que eu me tornasse freira, teria de acreditar piamente nas crendices e superstições...

— Martine!

— O que me deixa com o casamento. Posso muito bem me casar com ele, tanto faz. Se eu tiver sorte, meu marido logo me considerará desagradável como todos os outros homens e arranjará uma amante, deixando-me em paz.

Rainulf a encarou.

— Não dará nem uma chance para que ele...

— Eu não darei nada a ele! — ela rebateu, nervosa. — Se eu me propuser a dar qualquer coisa, ele só usu­fruirá e continuará assim para sempre!

— Martine, olhe para mim. Como sempre faz questão de ressaltar, você não é Adela!

A menção do nome da mãe, Martine voltou a atenção para a janela.

— Ela foi destruída pelo amor. Deu o coração para Jourdain e ele o tomou, sem dar nada em troca.

Ela estava se referindo ao pai deles pelo nome, como se assim pudesse negar o parentesco.

Rainulf se levantou e se aproximou da janela, perguntando-se o que prendia a atenção da irmã na escuri­dão. O pátio estava deserto, havia somente a luz de uma vela vindo da falcoaria.

— Milady? — Estrude chamou do corredor.

Rainulf enunciou um "comporte-se" silenciosamente e esperou a irmã concordar antes de abrir a porta.

— Boa noite, milady — disse ele.

Estrude entrou no quarto vestida num roupão escarlate e com o cabelo solto. Era evidente que acabara de tomar banho, mas estranhamente, voltara a aplicar a maquilagem.

— Interrompo? Posso voltar mais tarde.

— Na verdade...

— Na verdade, estamos encantados em vê-la — Rainulf terminou por Martine com um sorriso educado.

— Não tivemos a chance de conhecê-la melhor.

— Quanta gentileza — Estrude respondeu. — De fato, só passei para pedir um favor à sua irmã. — Voltando-se para Martine, disse: — Confesso que fiquei curiosa quanto ao seu perfume... Lavanda e...

— Aspérula — Martine completou.

— Thorne pareceu gostar — Rainulf comentou.

— É mesmo? Não havia notado... — O rosto de Estrude não mostrou reação alguma.

—Não? — Martine alfinetou. Nada passaria desper­cebido a uma mulher como aquela.

— Não, minha cara. Como disse, fiquei curiosa e me perguntei se não poderia me emprestar um pouco...

Emprestar o perfume que ela mesma tinha criado para aquela mulher? A ideia de que a outra pudesse usar sua fragrância, cheirar como ela, deixava-a perturbada.

— Somente esta noite — Estrude insistiu. — Para eu saber como é.

Antes que Martine negasse, Rainulf foi até a cômoda onde estavam os itens de perfumaria e pegou o frasco em questão, entregando-a a Estrude.

— É um elogio e tanto, não, minha irmã? Se desejar, estou certo de que Martine lhe dará a receita.

Estrude riu ao abrir o frasco.

— Não entendo muito de ervas, mas obrigada pela oferta. — E passou uma boa quantidade no pescoço e nos braços.

— Isso... me parece demais — Martine observou. — A fragrância é mais forte do que aparenta.

— Gosto de perfumes fortes. — Estrude fechou o frasco e o devolveu. Levou o pulso ao nariz e fungou. — Acho que não é de meu agrado no fim das contas. Mas agradeço a generosidade. — Despediu-se e partiu.

— O que foi isso? — Martine perguntou ao irmão.

— Ela simplesmente quis...

— Nada a respeito dessa mulher é simples.

— Está deixando seus nervos falarem mais alto. — Rainulf balançou a cabeça. — Precisa aprender a ser ci­vilizada mesmo quando está contrariada.

Martine cobriu os ouvidos.

— Chega de sermões!

— Está bem. Está passando por tempos difíceis e eu não tenho ajudado.

— Nada pode me ajudar.

— O sono pode. Ainda está cansada da viagem. Vou deixá-la agora, mas prometa que irá para a cama em vez de remoer os problemas. E nada de sonhos com lagos e vestidos flutuantes... Se o pesadelo voltar, pode me chamar.

— Ele vem quase todas as noites, não posso acordá-lo sempre.

— Pode e deve, sabe disso.

Sim, seu irmão a confortaria com palavras, mas elas só atenuariam seus medos mais superficiais. Em mo­mentos como aquele, em que seu coração doía de tanto terror, gostaria de braços confortadores ao seu redor.

— Durma bem, Martine — Rainulf disse, saindo do quarto.

Martine olhou para a escuridão do pátio. A luz tênue ainda brilhava na falcoaria. Ele a tinha tocado. De modo casual, como se tivesse todo o direito do mundo.

Uma silhueta passou pela janela. Como ele a confor­taria de seus temores se pudesse? A silhueta voltou e se deteve na janela. Conseguia vê-lo nitidamente agora. Tinha o peito nu e Freya no pulso. Quando Thorne olhou em sua direção, ela fechou a veneziana.

Thorne se debatia no sono, vendo uma vela tremular na brisa. Emitiu um gemido quando ela caiu e alastrou as chamas pelo feno no chão, subindo pelas paredes até o teto de sapé. Logo a fúria do fogo se propagou, diziman­do a vila inteira.

Louise.

— Onde você está? — ele arfou.

— Estou aqui. — Uma voz, que não a de Louise, respondeu.

Dedos frios massagearam seu cenho umedecido pelo suor. Ele parou de se debater e inalou uma fragrância sutil e misteriosa... Lavanda e aspérula.

Ele a viu se inclinar sobre a cama, os profundos olhos azuis, os cabelos pálidos em cascatas.

— Teve um pesadelo — ela murmurou.

Deus, era Martine. Ela estava ali. Tinha vindo procurá-lo.

Thorne tentou segurá-la, mas sentiu os braços pesados. Tentou se erguer, mas ela o tomou pelo rosto e sussurrou:

— Shhh. Fique deitado.

A boca quente e doce se fechou sobre a dele. A fra­grância o inebriava e seu coração bateu mais rápido.

Ela levantou o lençol, revelando o corpo nu, a excitação demonstrava a urgência que ele sentia. A mão dela se fechou em torno de seu membro, apalpando-o e ele gemeu.

Oh Deus, Martine...

Ela o cavalgou. Thorne prendeu o fôlego e a suspen­deu pela cintura, guiando-a. Ouviu-a arfar ao recebê-lo por inteiro. Ela parou por um instante, depois passou a se movimentar, para cima e para baixo em movimentos ritmados.

— Martine — ele sussurrou no limite. Gritou quando o clímax se aproximou, e um falcão reclamou com um pipiado. Freya.

Ela parou e procurou por algo ao lado deles na cama... o bastão de Estrude.

Thorne piscou e despertou de vez. Estrude, e não Martine, levantou o bastão, olhando ao redor, os olhos revelando pânico.

— Onde ele está? Onde está o maldito pássaro?

Com a mente ainda vacilando, ele apontou para o poleiro num canto. Vendo que a ave estava amarrada, Estrude abaixou o braço. Aves de rapina eram ainda piores do que cães, pois atacavam os olhos.

— Saia de cima de mim! — Thorne rosnou, jogando o bastão no chão e segurando-a pela cintura.

Ela antecipou a manobra dele e se agarrou ferrenhamente, movimentando-se com entusiasmo, como fazia quando queria que Bernard terminasse logo.

— Saia! — Mas era tarde demais. Ele estremeceu e enterrou os dedos nas carnes dela.

Estrude sentiu o jato quente inundando-a e aprovei­tou o momento de relaxamento pós-coito para apreciar o corpo másculo sem reservas.

Thorne tinha braços fortes e peito amplo que se estreitava até o quadril e pernas imensamente longas. A pele macia brilhava de suor. Ele era o homem mais belo que ela jamais tinha visto. Esse não era o motivo que a levara até ali, mas não deixava de ser uma razão a mais.

Quem sabe agora que ele sabia do que era capaz, não a aceitasse com freqüência em seu leito? Contudo, quan­do ele abriu os olhos, não viu afeição neles.

— Qual o seu problema? Quer engravidar?

— E por que você se oporia? Deve ter muitos filhos bastardos desde Bizâncio até aqui.

— Não sei de nenhum. E por certo não quero um com você!

— Pode ficar sossegado quanto a isso. Estou casada há catorze anos. Não acha que eu já devia ter um punha­do de filhos caso fosse fértil? — Depois que ele refletiu e relaxou, ela prosseguiu: — Assim está melhor. O pro­blema é que gosta de estar no controle, mas logo estará acostumado ao meu jeito de ser. Da próxima vez...

— Está louca? — Ele se sentou e a tirou de cima sem cerimônia. Saiu da cama e entregou-lhe o roupão. — Saia!

— Uma noite dessas quando pensar nela e entender que não pode tê-la...

Amarrando as ceroulas, ele rebateu:

— É para isso que servem os bordéis.

— Provei o meu valor. O que aquelas rameiras de Hastings podem oferecer que eu não posso?

— Um homem tem de ser capaz de respeitar a mulher que leva para a cama. Você tem o entusiasmo de uma prostituta, mas não o caráter. Elas costumam ser honestas; você tem o escrúpulo de uma cobra. — Dando-lhe as costas, ele se aproximou da mesa e tomou uma caneca de água.

— Seu... bastardo! Sou uma dama, quase uma baro­nesa! Você não passa de um porco saxão! Não faz a míni­ma idéia de como tratar uma dama na cama...

— Nunca a convidei para a minha.

— Qualquer nobre ficaria grato com meus favores, a despeito dos truques que eu usasse. Não teriam se satisfeito e me jogado de lado sem considerar minhas necessidades...

Ele pousou a caneca na mesa.

— Pode recorrer ao seu bastão...

Quando ela entendeu a mensagem implícita, ficou enraivecida. A humilhação a inflamou e, aprovei­tando-se do fato de que ele estava de costas, pegou o bas­tão e o desceu com força sobre a cabeça dele.

Thorne, ajoelhado com uma das mãos na cama, segu­rava a testa com a outra. Estrude viu o sangue na palha do chão e no bastão e ficou tonta.

Ele se levantou, o sangue escorrendo pelo corte na testa, e tomou o bastão das mãos dela. Estrude retrocedeu e se encolheu. Thorne apoiou a perna na cama e levantou o braço.

— Não! — ela gritou.

O impacto da madeira se fez ouvir, mas ela não sen­tiu dor. Abrindo os olhos, viu que Thorne tinha partido o bastão ao meio com a perna. Os olhos dele já não mos­travam raiva, mas piedade.

Ele pegou o roupão e voltou a estendê-lo, num gesto estranhamente cavalheiresco dadas as circunstâncias. Estrude preferia a ira à pena.

Enquanto ela se vestia, ele foi lavar o rosto na bacia num dos cantos do aposento. Confiante de que não apa­nharia, ela zombou:

— Fez por merecer isso.

— Digamos que sim. Agora saia. Não volte aqui e nunca mencione isto com ninguém, nem comigo. Finja que nunca aconteceu.

Estrude ainda hesitou, tentando formular um comen­tário que o colocasse no devido lugar, mas Thorne, sem se virar, ordenou:

— Saia!

E foi o que ela fez. Do lado de fora, depois de cobrir a cabeça com o capuz do manto, correu até o castelo.

— E eu o aceitarei como marido — disse Martine com a mão sobre um cofre adornado por esmeraldas que con­tinha um osso do dedo de São Bonifácio.

Edmond então lhe entregou uma luva branca, simbo­lizando o dote da noiva, parte das valiosas terras de seu pai, que teria de conceder em seis semanas, após as bo­das. Por fim o casal entrelaçou os dedos e recitou as ju­ras que formalizavam a anuência deles em se casarem.

Martine nunca entendeu a necessidade daquele ritual. A cerimônia de noivado, realizada na capela do baronato e oficializada por padre Simon, não passou de uma repetição de palavras e orações sem sentido. Graças aos céus chegara ao fim. Em muitos momentos pensou que iria desmaiar, se não por causa do tédio, pelo desconforto causado pela roupa. Fora obrigada a vestir o costume encomendado por Estrude e pensou que sufocaria dentro dele.

A saia era de seda rosada e lã vermelha com barra de pele de marta. Usava uma túnica tecida com fios pra­teados de seda muito bem presa nas costas, apertando de tal modo, que ela mal conseguia se inclinar.

Na verdade, apertava-a tanto, que assim que ter­minara de vestir o costume, decidiu trocá-lo por outro. Tentou desfazer o laço nas costas, mas sem sucesso, por mais que se contorcesse. Felda recusou-se em ajudá-la até que ela se olhasse no espelho. Assim que se mirou, não conseguiu mais tirá-lo. Por mais desconfortável que fosse, teve de admitir que era belo e deixava sua figura mais delgada, acentuando as curvas.

Estrude então apareceu com uma longa faixa pratea­da adornada com pérolas, que passou por sua cintura e um manto de brocado prata. Martine não teve coragem de tirar a vestimenta agora que ela estava completo. Poderia tolerar o desconforto por um único dia e se pare­cer com uma deusa cintilante, uma Valquíria.

Estrude ainda tentou convencê-la a usar o odioso barbete, porém Martine bateu o pé e se negou. Sabia que sua teimosia a tinha enraivecido; que assim fosse. A mulher não se importava com ela de verdade, estava apenas se entretendo como quem brincava de boneca.

Martine então pediu a Felda que arrumasse seu cabe­lo, A criada os penteou e dividiu-o em duas longas tranças, entrelaçando-as e cobrindo a cabeça com um véu transparente, circundado por um cordão de filigrana.

Da capela, o grupo seguiu para a margem do rio ao leste do castelo, onde comemorariam com um banquete e caça com falcões. Godfrey, Olivier, Thorne, Guy e Peter tinham levado os pássaros à capela, segurando-os nos pulsos durante toda a cerimônia. Martine sabia que era costume levar as aves a todos os lugares a fim de que se acostumassem com a companhia das pessoas; ainda assim, considerou uma visão peculiar dentro de uma igreja.

Todos do castelo presenciaram a cerimônia, até mes­mo Geneva, embora fosse a única mulher desarrumada e carregasse uma carranca o tempo inteiro, como se ti­vesse sido coagida a participar das festividades.

Ailith, alheia a tudo isso, estava esfuziante em ver a mãe fora dos aposentos e a rodeava, cercando-a de aten­ções. Chegou mesmo a segurá-la pelas longas mangas da túnica, como fizera com Martine em seu primeiro dia no castelo, apenas para ser repreendida pela mãe.

O dia estava claro e ensolarado e a campina na qual ti­nham sido dispostas mesas para o banquete, estava além do rio. Para atravessá-lo havia uma ponte de madeira estreita, mas Edmond decidiu não usá-la, descendo um pouco mais à margem, onde uma seqüência de pedras se elevava das águas caudalosas, demarcando o penhasco de uma cascata de cerca seis metros de altura.

Erguendo a túnica que lhe chegava aos calcanhares, ele pulou de pedra em pedra, algumas separadas por uma boa porção de água. Sem se importar com os riscos, ele seguia em frente, com o cabelo e o manto negros flu­tuando enquanto a sobrinha batia palmas.

Abaixo da cascata, uma represa natural havia sido formada por galhos caídos e espinheiros arrancados, criando uma piscina tão funda que parecia sem fim.

Martine franziu o cenho ao pensar no que poderia acon­tecer ao noivo caso ele caísse.

Agora ele não se parecia mais com o bárbaro do dia anterior: os cabelos penteados e a roupa elegante, deixavam-no belo e com um ar civilizado. Se ele não ti­vesse se remexido tanto durante a cerimônia, diria que tinha até mesmo dignidade. Ele parecia tomado por uma energia incontrolável. Martine conhecera jovens, alunos de Rainulf, com excesso de energia, mas não como o noi­vo. Talvez porque aqueles eram estudiosos concentrados e este mais parecia uma criatura da natureza, animal e caçador ao mesmo tempo.

Bernard gritou de prazer quando o irmão chegou à outra margem e Edmond sorriu para ele com adoração nos olhos. Nem uma vez olhou na direção dela. Contudo, Martine sentiu o peso de olhos curiosos sobre si.

Era Thorne, parado à distância, que a observava, olhando a proeza de Edmond, talvez interpretando a sua inspeção como sinal de admiração ou carinho, quiçá o início do amor. O que era ridículo. Edmond era interessante de se olhar, assim como tantas outras cria­turas selvagens pelas quais Martine jamais sentiria amor. Quando ele tinha segurado sua mão durante a ce­rimônia, ela não sentira emoção alguma, somente câimbras no pulso e o desejo irrefreável de que tudo termi­nasse logo.

— Não quer provar a carne de veado, minha cara? — Godfrey perguntou.

Martine olhou para a travessa com carne intoca­da que Edmond tinha cortado para ela e viu os olhos injetados do animal atormentado.

— Perdi o apetite, senhor.

— Quem sabe o próximo prato a agrade mais? — Ele indicou com a cabeça o buraco cavado a alguns metros no qual o javali era preparado no espeto.

Uma fumaça negra e gordurenta se elevava e Martine sentiu a bile na garganta, por isso rapidamente sorveu um gole de vinho do Reno. Estava num tablado eleva­do, dividindo a mesa com o noivo, que no momento se entretinha em jogos de lutas com os homens de seu irmão, com o futuro sogro e com o conde Olivier.

Ela nunca tinha visto um homem mais obeso do que Olivier, nem com um nariz tão vermelho. A esposa, rechonchuda e rosada, era a versão feminina do marido. Em mesas perpendiculares estavam muitos barões vizi­nhos, todos vassalos de Olivier, com suas famílias.

Rainulf se acomodou ao lado dela, no lugar vazio de Edmond e apontou para Ailith.

A menina havia subido em um banco vazio e equili­brava-se com os braçinhos estendidos.

— Mamãe! Olhe para mim! Sou uma dançarina!

Geneva meneou a cabeça em desgosto e desviou o olhar.

— Ela está desesperada pela atenção da mãe — Rainulf comentou. — É triste que a pobrezinha tente tanto por nada...

Thorne também estivera observando e, então, se aproximou e a tomou nos braços, dizendo:

— Poderia ter caído e acabar como eu. — Abaixou a cabeça para que a menina visse o corte feio na testa, cir­cundado por hematomas. — Não quer isso, quer?

Ailith parou de se debater para observar o machucado.

— Essa menina é incontrolável — Godfrey disse. — Espera-se isso em garotos. Os meus tinham sempre um arranhão. Minha Beatrix era a única que conseguia controlá-los. — Ele deu um sorriso saudoso, depois fixou os olhos sérios em Martine. — Quero netos. Já disse a Edmond que espero um menino dentro de um ano.

Martine o encarou sem fala. Thorne, tendo ouvido o comentário, fitou-a, pensativo.

— Um menino, ouviu? — O barão continuou. — Alguém para levar adiante o título. Para cada neto que você me der, receberá uma porção de terras. Em alguns anos, terá dobrado o seu dote.

Dificilmente a oferta a persuadiria, visto que qual­quer terra que tivesse estaria sob o controle de Edmond até que ele morresse. Uma vez que ele era jovem e sau­dável, a viuvez parecia uma coisa bem distante.

Tais considerações, entretanto, passaram despercebi­das a Estrude, que se inclinando, comentou:

— Essa é uma oferta muito atraente, meu senhor. Também receberei tal prêmio se eu tiver filhos?

Bernard, ao lado dela, grunhiu:

— Não entendeu ainda? Jamais vai me dar um her­deiro e todos já sabem disso. Essa era sua única obriga­ção e nem assim conseguiu cumpri-la.

Rubra, Estrude encostou-se no espaldar da cadeira.

— Meu querido pai, desesperado, está lançando mão de minha herança para subornar nossa lady Martine para que ela faça o trabalho pelo qual a trouxe de Flandres há catorze anos. — Bernard riu sem humor. — Se ela for muito fértil, posso acabar sem um baronato para herdar.

Thorne, pressentindo que as palavras de Bernard fossem inapropriadas aos ouvidos de uma criança, levou Ailith para a campina assim que ele começou seu discurso.

Martine viu a menina e o falcoeiro se afastarem de mãos dadas, colhendo flores pelo caminho. O carinho com que ele cuidava de Ailith a surpreendia, dada a natureza comedida do homem. Ao que parecia ele so­mente abaixava a guarda diante da menina que o fazia se lembrar da irmã, da qual se esquivava de comentar.

— Só tenho trinta anos — Estrude se defendeu.

— E é estéril e inútil! — Bernard esbravejou, fincan­do a faca na mesa. — Tem de se considerar sortuda por eu não tê-la mandado de volta. Pergunte a minha irmã como ela se sente. Se suborno pode produzir um filho, quem sabe medo também funcione?

Martine ficou chocada com o rompante na frente de tantas testemunhas, porém os outros convidados fingi­ram não ouvir os comentários ácidos de Bernard, talvez por estarem acostumados a eles.

Estrude, sentindo-se humilhada, desviou o olhar para longe. Em seguida, empertigou-se e perguntou:

— Quem convidou lorde Neville?

O barão gemeu e todos se viraram para o rio. Cruzan­do a ponte a cavalo, um homem alto e vestido com osten­tação, vinha acompanhado por uma mulher de aparência frágil. Desmontaram e aproximaram-se a fim de prestar deferência, primeiro a Oliver, depois a Godfrey.

Com um aceno para o povo reunido, disse ao barão:

— Se eu soubesse que estava recebendo convidados, senhor, teria vindo em outra hora.

Atrás dele, a esposa, entrelaçando os dedos trêmulos, parecia nervosa e não apenas envergonhada pela ines­perada intromissão.

Godfrey murmurou algo cortês e pediu que fossem servidos mais dois pratos. Os cozinheiros se aproxima­ram mostrando o javali que estava pronto para ser ser­vido. A maioria dos convidados, satisfeitos, levantou-se para caminhar pelo prado.

Thorne retornou, entregando um livro para Rainulf.

— Obrigado pelo empréstimo. É muito mais agra­dável fazer a vigília de um falcão na companhia de um bom livro. — Sentou-se na direção oposta de Martine, empertigado e elegante em sua roupa de cerimônia, com a espada embainhada, demonstrando sua posição de cavaleiro.

Ao observá-lo de soslaio, ela percebeu que ele tinha notado sua inspeção e desviou os olhos.

Padre Simon, espiou por sobre os ombros de Thorne.

— Cícero — disse com um sorriso afetado. — Filoso­fia grega. Diga-me uma coisa, padre Rainulf, não con­sideram inapropriado o ensino de escrituras pagãs em Paris?

Rainulf apoiou as costas no espaldar da cadeira e cru­zou as pernas.

— Esse foi um dos motivos que me levaram a decidir por Oxford, depois que regressar. E Cícero era romano.

Padre Simon desconsiderou a correção com um gesto de ombros e prosseguiu:

— Temos um monge nas proximidades que partilha de suas idéias pouco ortodoxas. Talvez o conheça.

— Sim, é frei Matthew, prior de St. Dunstan. Eu o conheço de Paris. Nós dois estudamos sob a tutela de Abelardo.

— Não posso dizer que estou surpreso — o outro pa­dre comentou.

— Frei Matthew me convidou a ficar em St. Dunstan por um período.

Bernard se inclinou e perguntou:

E quanto a sua irmã, ela também vai?

— Pensamos que seria uma ótima oportunidade para que ela se habituasse ao novo lar, conhecesse Edmond... Quem sabe ajudar a escolher a mobília da nova casa...

— Bem, ela é mais do que bem-vinda, porém duvido que prefira isso a ficar com o irmão. Certamente, ficará mais feliz ao seu lado do que junto a estranhos.

Martine ficou curiosa quanto à insistência de Bernard para que partisse com Rainulf. O que estaria tentando esconder? Olhou para a campina onde Edmond troca­va socos com um dos "cães", a expressão de um selva­gem determinado, e se perguntou se não seria o irmão que Bernard tentava manter longe dela. Talvez não qui­sesse que ela conhecesse o noivo e se sentisse tentada a romper o noivado por algum motivo.

— Quando vai partir para St. Dunstan? — Olivier perguntou.

— Amanhã, senhor.

Lorde Neville, agora sentado na mesa principal, perguntou:

— St. Dunstan fica a um dia de viagem, padre. Viagem feita em grande parte por entre a floresta. Acha pru­dente passar por ali enquanto os assassinos de lorde Anseau ainda estão à solta?

Depois de um instante de silêncio perplexo, Olivier inquiriu:

— Ainda não soube? Os bandidos foram capturados e agora se encontram em meu calabouço.

Martine notou que Neville empalideceu e a esposa o segurou pela manga.

— Capturados? Ninguém me disse nada. Afinal, eu sou o único parente vivo de Anseau.

O silêncio era absoluto. Godfrey e Olivier entreolharam-se, pois era notório que Anseau não tinha herdeiros. Godfrey deu de ombros, por fim, e Olivier comentou:

— Talvez haja alguma relação remota.

— Contudo sou o herdeiro de direito.

O silêncio cedeu a uma torrente de murmúrios.

Aquela era a razão da visita de Neville. Declarar-se herdeiro de Anseau e reclamar a posse do baronato. Depois de uma pausa pensativa, Olivier disse:

— Este não é o lugar nem a hora para discutirmos tais assuntos, lorde Neville. Pode ou não ser o herdei­ro legítimo de Anseau. — Neville tentou interrompê-lo, mas foi detido por um gesto. — Compreenda que o ba­ronato em questão é o maior e mais rico de meu feudo. A sua herança não é um assunto que se deva discutir com leviandade. Levando-se em conta que seja, de fato, o herdeiro, fique tranqüilo que o que é seu chegará às suas mãos no devido tempo. — Mudando de assunto, disse a Godfrey: — Não seria esta a melhor hora para a troca dos presentes entre os noivos?

Aproveitando a deixa, Godfrey chamou o filho caçula. Edmond presenteou Martine com peles de arminho, to­das de qualidade superior, um presente generoso e mui­to admirado.

O presente de Martine para o noivo, além dos filho­tes já entregues no dia anterior, era um jogo de xadrez que Rainulf comissionara a um artesão dinamarquês. As peças brancas tinham sido entalhadas em barbatana de baleia e as negras em ébano. O que tornava o conjun­to tão especial, era que em vez das peças de sempre, os reis e rainhas eram pequenos bustos. O rei negro tinha uma bela coroa e cabelos longos; a rainha, barbete e um Véu preso sob a coroa. Olivier notou a semelhança com Henry e Eleanor, e Rainulf confessou que a semelhança não era por acaso. O conde passou as peças pela mesa e todos fizeram cumprimentos pela genialidade da idéia e pela habilidade do artesão.

Boyce, com o braço apoiado numa tipóia, comentou após um gole de cerveja:

— O jovem Edmond vai ter de aprender xadrez agora! E nem sabe jogar damas direito!

Os homens de Bernard gargalharam. Edmond tam­bém riu, embora Martine percebesse que ele estava incerto sobre como tomar o comentário: ofensa ou sim­ples zombaria.

Ela concluiu então que não era à toa que o noivo passava o tempo caçando já que não sabia nem ler nem jogar xadrez.

Sem ser notado, exceto por Martine, Thorne segura­va as peças brancas e examinava-as com cuidado. O rei, ele logo passou adiante. Amparou a rainha na palma da mão e alisou-a com o dedão, resvalando os traços dis­tintos da peça: as maçãs do rosto altas, a boca larga, o nariz aristocrático. O cabelo estava escondido sob um véu enrolado, assim como Martine tinha posado para o escultor; Thorne sorriu com prazer ante o mistério reve­lado e Peter, ao seu lado, comentou:

— Parece apegado a essa peça.

Os olhos de Thorne encontraram os de Martine e os prenderam por um instante. Parecia um tanto embara­çado por ter sido pego em flagrante. Entregando a peça de xadrez para o outro cavaleiro, disse:

— Fiquei impressionado pelo belo trabalho do arte­são. Não a reconhece?

Intrigado, Peter avaliou o objeto e passou-o adian­te. Muitos se arriscaram sobre a identidade da dama. Alguns afirmaram se tratar da Virgem Maria. Thorne apenas riu.

— É outra dama de igual beleza e virtude. Trata-se de nossa Martine de Rouen!

Ouviram-se suspiros de encanto e muitas desculpas por não terem-na identificado. Martine ponderou que não deixava de ser curioso que somente Thorne a tivesse reconhecido na barbatana de baleia.

Com o passar das horas, nuvens pesadas começaram a se formar, escurecendo o céu. Martine, caminhando às margens do rio, viu ao longe um cavaleiro na estrada que levava ao castelo. Sem dar importância, continuou a procurar flores silvestres para fazer uma guirlanda para Ailith, que a seguia pegando flores para dar à mãe.

Martine ouviu a voz grave de Thorne ao longe e aper­tou os olhos para enxergá-lo em meio aos homens que treinavam os falcões. Tarefa fácil, já que ele era o mais alto. O mestre da falcoaria não levara Freya, mas um falcão peregrino mais treinado.

O som das tábuas de madeira da ponte a fez virar-se, surpresa. Era o cavaleiro de momentos antes que, assim que parou o cavalo visivelmente cansado, disse-lhe:

— Tenho uma mensagem para meu senhor, lorde Olivier!

Martine apontou para a clareira e o homem seguiu para lá de pronto.

Um movimento repentino na área do tablado cha­mou sua atenção. Eram lorde Neville e a esposa, apressando-se em direção aos cavalos. Muitos convidados puseram-se de pé ante a partida precipitada, ainda que Bernard e seus homens estivessem ocupados bebendo e contando histórias. Rainulf, parado no tablado, fixou o olhar sério no barão e na baronesa, depois seguiu para a campina.

O mensageiro desmontou e se curvou diante do con­de, depois se empertigou e comunicou a mensagem.

— Detenham Neville! Não o deixem fugir! — excla­mou o conde.

Martine foi para junto do irmão, que tinha a expres­são circunspecta.

— A esta altura não conseguiremos mais deter Neville. Nossos cavalos estão nos estábulos

— Não entendo. O que aconteceu? — Martine indagou. Olhando o casal que se distanciava, Rainulf disse:

— Neville foi o mandante do assassinato de Anseau e Aiglentine.

— O quê? — Martine arfou. — Como sabe disso?

— Os dois saíram como coelhos assustados assim que o mensageiro se aproximou procurando por Olivier. Meu palpite, e o de Neville pelo visto, é de que os bandi­dos cederam às torturas e denunciaram-no.

— Neville queria aquele baronato. — Martine enten­deu por fim.

— Aiglentine estava grávida. Se a criança nascesse, ele não teria a mínima chance de obtê-lo. Com Anseau e a esposa mortos...

A voz insistente de Ailith vinda das pedras do rio chamava:

— Mamãe! Olhe para mim!

Geneva relanceou para o rio, a expressão de enfado substituída pelo choque ao se pôr de pé.

— Ailith! — ela gritou.

Martine girou sobre os calcanhares. Ailith estava so­bre uma das rochas na beira da cascata, os braços es­tendidos a fim de se equilibrar. Assombrada, largou as flores e a guirlanda e correu na direção da menina, se­guida de Rainulf e Geneva, todos gritando o nome dela.

— Vou cruzar o rio como tio Edmond fez! — Ailith exclamou. — Olhe para mim, mamãe!

Ignorando os apelos para que ficasse onde estava, a menina levantou a barra da saia marfim e pulou.

A pedra que a menina tentava alcançar estava per­to o bastante, porém, seus pés descalços escorregaram e ela caiu sobre as mãos e os joelhos.

— Ailith! — Geneva gritou. — Pare com isso! Volte aqui!

Levantando-se um tanto desequilibrada, Ailith exclamou:

— Farei melhor da próxima vez, mamãe!

A pedra seguinte estava muito mais longe. Martine, no alto da cachoeira, tirou as sapatilhas e o manto. Atenta, pisou na primeira pedra, os olhos fixos na crian­ça, distante apenas alguns metros dela. A pedra estava escorregadia sob suas meias e o coração pulsava des­compassado na garganta.

Rainulf segurou a ponta de uma das longas mangas de sua túnica e tentou trazê-la de volta.

— Não! Eu sei nadar, você não. Solte-me ou perderei o equilíbrio.

Foi o que ele fez, e Martine esticou a mão, dizendo:

— Ailith, por favor, pegue minha mão...

— Não! Vá embora! Mamãe está olhando para mim. Quero que ela me veja!

— Ailith! Não vai conseguir! — Martine olhou para as águas turbulentas logo abaixo, quase opacas debaixo do céu que escurecia rapidamente.

Em pânico, virou-se para o irmão e Geneva, parados na margem. A mãe, em busca de apoio, segurava-se ao padre, que murmurava preces e fazia o sinal-da-cruz.

— Fale com ela, Rainulf! Você sempre sabe o que dizer!

Atrás deles, no meio da campina, alguém se distan­ciou do grupo e correu naquela direção. Thorne!

De súbito Rainulf e Geneva esticaram as mãos, gritando o nome da menina. Martine se virou a tempo de vê-la dar um impulso, os braços esticados, como um anjo voando no vestido marfim.

O tempo passou em câmera lenta. Martine ouviu o som do vestido batendo na superfície, depois um pé e o outro, desaparecendo dentro da água. Um grito inva­diu seus ouvidos e ela percebeu que era a própria voz enquanto via o anjo voar lentamente antes de cair nas águas misteriosas. Por um segundo, Ailith ficou acima da cascata, o vestido em ondas ao seu redor. Martine viu o pequeno rosto nitidamente, e então a menina não era mais um anjo, mas uma boneca de pano, batendo nas pedras, uma, duas vezes, antes de ser engolfada pelas águas inclementes do rio, engolindo-a por completo.

Com mãos dormentes, Martine arrancou o véu, agar­rou a túnica e tentou desatar o nó das costas, mas não conseguiu. Parada na beira do penhasco, olhou para bai­xo em pânico e pensou que não teria coragem suficiente para pular. Fechou os olhos e viu o rosto de Ailith antes de ela ser levada pelas águas.

Às cegas, ela pulou, esperando bater nas pedras logo abaixo, como tinha acontecido com a menina, mas, sen­do maior, o impulso a levou para além das águas tur­bulentas do fim da cachoeira. Aterrorizada, bateu as pernas, tentando subir à superfície. Ouviu seu nome e o de Ailith, gritado pelas pessoas que se aglomeravam à margem do rio. Procurando se acalmar, respirou fundo e mergulhou, nadando debaixo d'água com toda a força em direção à parte mais calma para onde a menina de­via ter sido carregada.

Martine se esforçava para enxergar na água turva pelas algas, as camadas de tecido de suas roupas pesan­do cada vez mais. Ignorava as batidas frenéticas do co­ração e o peso crescente nos pulmões.

As laterais do rio estavam lotadas por galhos, pedras e entulho. Um pouco mais adiante, arbustos de espinheiro e árvores caídas bloqueavam o rio, formando uma re­presa natural.

Um vislumbre branco captou seu olhar e ela seguiu naquela direção, apesar dos braços cansados.

Por favor, meu Deus, permita que seja Ailith!

E era. Mas ao vê-la, o coração de Martine perdeu o compasso. A menina estava suspensa, os braços acima da cabeça como se tivessem parados no meio de uma dança. Os olhos estavam fechados e a boca aberta. Havia um ralado no queixo e um corte na testa, do qual sangue fluía, tingindo a água num tom rosado.

A represa detera seu progresso corrente abaixo, mas o vestido tinha ficado preso nos espinhos. Com os pul­mões ardendo, Martine pegou os braços da menina e tentou puxá-la, mas o corpo da pequena não se mexia. Com um olhar mais atento, ela notou que havia cente­nas de agulhas do espinheiro embolando a lã do vestido da criança.

Com presteza, Martine subiu à superfície em bus­ca de ar. Havia muitas pessoas no barranco, inclusive Thorne, que já se desvencilhava da túnica.

— Sir Thorne! — ela chamou.

— Milady! Graças a Deus está bem! Encontrou...

— Sua espada! — ela o interrompeu impaciente. — Traga sua espada!

Ele desembainhou a espada ao mesmo tempo em que ela voltava a mergulhar.

Martine, desconsolada, viu que a menina parecia ain­da mais pálida. Implorou mentalmente a Deus para que ela ainda estivesse viva.

Em seguida sentiu uma mão forte no ombro: era o saxão empunhando a espada. Ela apontou para o espinheiro e, num único movimento, Thorne libertou o vestido da menina. Deixando a espada cair no fundo do rio, ele tomou Ailith nos braços e nadou para cima. Martine o teria seguido se também não tivesse se enroscado nos espinhos.

Não conseguia se mexer! Bateu pernas e braços com vigor, porém os movimentos só a fizeram ficar mais presa na armadilha da natureza. Acima, Thorne se afastava com rapidez. Abaixo, fora de alcance, jazia a espada caída.

Os pulmões, ardendo, clamavam por ar. Sempre sou­be que seu fim seria o afogamento. Seu pior pesadelo.

Tentando se livrar do pânico, mais uma vez le­vou as mãos às costas, para desfazer o laço da túnica. Ensandecida, debatia-se, tentando se soltar. Fechou os olhos e se ordenou a não respirar. Deixou o corpo imóvel. Não respire... A água a envolvia, a suspendia. Não respire...

Martine perdeu a noção do tempo e do espaço, toma­da pelo medo... Até que mãos fortes a pegaram pelos om­bros, quebrando o feitiço, e ela abriu os olhos. Thorne.

A expressão de terror nos olhos dele foi substituída por alívio e ele tomou o rosto dela entre as mãos, en­costando a testa na dela. Soltou-a em seguida e desceu para pegar a espada. Cortando o tecido enroscado com movimentos precisos, ele a libertou. Apesar da necessi­dade premente de respirar, ela se controlou, cerrando a boca com força.

Com um braço ao redor da cintura fina, Thorne a sus­pendeu até a superfície. Engolindo lufadas de ar, eles venceram a distância até a margem. Ali, Rainulf e Albiri aguardavam, o resto do grupo tendo se distanciado. Do tablado montado, Martine ouvia um lamento, como o de um animal ferido,

— Martine! Graças a Deus! — Rainulf exclamou.

As pernas estavam tão trêmulas que ela sabia que não teria conseguido ficar de pé não fosse o apoio de Thorne.

— Onde está Ailith? — ela perguntou.

O cavaleiro e o padre trocaram um olhar de compre­ensão mútua. Com a mão em seu ombro, Rainulf disse:

— Ela partiu.

Sem entender, Martine insistiu:

— Para onde? Levaram-na para o castelo?

Por um minuto nenhum dos homens disse nada, de­pois Thorne a tocou no ombro.

— Milady...

Ele não conseguiu concluir a frase. Não foi preciso. Martine conseguiu ver o pesar nos olhos azuis, e então ele olhou para o grupo reunido no tablado.

Formavam um círculo, nobres e criados, todos em si­lêncio. Somente um choro, um lamento.

— Não! — Tentando correr a despeito das pernas bambas, ela se libertou de Thorne que tentava detê-la. Ele a soltou, mas a seguiu de perto.

— Martine — Rainulf a chamou. — Fez tudo o que podia. Arriscou a vida por ela. Foi a vontade de Deus...

— Ao inferno a vontade de Deus! — ela praguejou, e alguns dos criados se afastaram fazendo o sinal-da-cruz ante a blasfêmia.

 

Ailith estava deitada sobre uma das toalhas de linho, as mãozinhas cruzadas no peito, enquanto padre Simon dava a extrema-unção. Diante do rosto pálido, dos lábios arroxeados, Martine emitiu um gemido de descrença.

Ela não pode estar morta.

Ajoelhada diante do corpo inerte da filha, Geneva ti­nha o rosto coberto pelas mãos.

— Meu bebê! Perdão, meu Deus... Devolva minha filha!...

Martine nunca tinha testemunhado tanto desespero. Rainulf, ajoelhando-se ao lado da mulher, amparou-a pelos ombros e murmurou palavras de conforto.

As pernas de Martine já não a sustentaram mais. Caindo de joelhos ao lado da menina, levou uma mão à face gélida.

— Não pode ser...

Descruzou os braços dela e colocou a mão no peito da criança, tentando encontrar qualquer sinal de movi­mento. Nada.

Padre Simon resmungou pela interrupção e Martine ouviu comentários sussurrados por causa de suas mãos. Na tentativa de se desvencilhar dos espinhos, acabara com dezenas de minúsculos cortes que agora vertiam sangue. Estranhamente, ela não sentia dor alguma.

Ante o rosto sem vida de Ailith, ela lembrou-se de um dia em Paris em que um médico salvara um recém-nascido, respirando na boca dele, depois de ter detec­tado o pulso.

Martine se inclinou sobre o peito da menina, mas só ouvia a própria respiração e os lamentos de Geneva. Pressionou, então, dois dedos na base do pescoço de Ailith, fechou os olhos e prendeu o fôlego. Logo sentiu uma pressão tênue sob os dedos. Uma pulsação! Contrário às aparências, a menina não estava morta ainda.

E agora? O médico tinha inflado ar soprando no na­riz e na boca da criança, mas a boca e o nariz de Ailith estavam muito distantes para que ela conseguisse co­bri-los ao mesmo tempo. Pensando rápido, tapou o nariz da menina com os dedos e cobriu a boca com a sua, assoprando. O peito de Ailith inflou e Martine ficou otimista. O otimismo, todavia, desvaneceu quando ela ouviu um borbulhar, indício de que havia água nos pulmões.

Padre Simon parou de rezar; um murmúrio se fez ou­vir, demonstrando surpresa e incompreensão. Geneva começou a socá-la, tentando afastá-la da menina.

— Deixe minha filha em paz!

Rainulf tomou a mãe dos braços e tentou apaziguá-la:

— Está tudo bem. Martine só precisa se certificar de que fez tudo o que estava ao seu alcance.

Martine continuou com a manobra, alheia aos comen­tários, concentrando-se somente na tarefa que tinha em mãos. Tinha de fazer Ailith respirar novamente. Não su­portava a idéia de falhar.

— O que está fazendo, milady? — o padre perguntou. — Isso é um ultraje! Alguém a detenha!

— Deixe-a em paz! — Thorne ordenou, posicionando-se entre Martine e o padre horrorizado.

— Não! — Simon gritou, esticando-se na intenção de puxar Martine.

— Afaste-se dela! — Thorne comandou, empurrando-o para longe.

Levantando a cabeça para respirar, Martine viu que Peter e Guy se adiantaram com armas em punho, pron­tos a apoiar Thorne no que fosse preciso.

— A criança está morta! — Simon disse, pondo-se de pé. Olhou para Bernard em busca de apoio, mas o homem olhava a cena passivelmente, com o eterno sorri­so de zombaria no rosto. — Tentar ressuscitar os mortos é uma profanação. É obra do demônio.

— Está errado, padre — Thorne disse. — Se o de­mônio está aqui hoje, é o senhor que está agindo como instrumento dele, não lady Martine. — A mão direita se fechou num punho. — Saia agora!

— Não se atreveria a bater num homem do clero. — Os lábios finos se curvaram num esgar.

Enquanto continuava a inflar ar na boca de Ailith, Martine viu pelo canto do olho quando o saxão acertou o padre no rosto, levando-o ao chão.

— Errado de novo, padre — Thorne anunciou seco, virando-se para proteger Martine e Ailith como uma muralha.

Bernard e seus homens riram quando o padre se le­vantou, limpando o sangue que escorria pelo nariz.

Fazendo uma pausa para recobrar o fôlego, Martine ouviu um som, como um borbulhar subindo pelo peito da menina. Ajoelhando-se ao seu lado, Thorne perguntou:

— O que foi?

— Acho que ela está tentando respirar — Martine sussurrou.

O corpo da menina começou a se retorcer convulsivamente. Martine a segurou e com a ajuda do saxão virou-a de lado. Um jato de água esverdeada saiu da boca da menina. Ela arfou e voltou a vomitar água.

—Ailith! — Geneva exclamou, tentando se aproxi­mar sendo, entretanto, contida por Rainulf.

Os olhos da menina se abriram de repente. Ela pis­cou como se a luz ferisse seus olhos e começou a tossir. As pessoas ao redor fizeram um coro de exclamações.

— Graças a Deus! — Rainulf disse e sorriu para a irmã.

Martine sentiu-se emocionada ante o orgulho nos olhos do irmão. Também viu algumas das testemunhas fazendo o sinal-da-cruz como ele, mas em vez de alegria, percebeu espanto e medo.

Deixe que se afoguem na própria ignorância. Ailith está viva e isso é tudo o que importa, pensou ela.

Thorne bateu a porta da falcoaria e se despiu. Trocou as roupas molhadas por calças confortáveis.

Fechou as venezianas e imaginou que horas seriam. O céu estava escuro por causa da chuva, mas ainda não tinha anoitecido e nem o jantar fora servido no salão do castelo. Não tinha apetite, estava apenas exausto por causa das emoções do longo dia.

Primeiro, a cerimônia de noivado. Lembrou-se do peso que sentiu no peito ao ver Martine receber a luva branca de Edmond, entrelaçar as mãos nas dele e repetir os vo­tos, oficializando o noivado. Devia ter sentido alívio por estar um passo mais próximo da realização de seu gran­de sonho, mas só conseguiu sentir arrependimento.

Como em apenas dois dias aquela mulher se tornara tão importante em sua vida, roubando-lhe cada pensa­mento? Era tolice, não só por seu futuro depender da­quele casamento, mas também por saber que era insen­sato importar-se com alguém. O afeto por outra pessoa o deixaria vulnerável. Amara sua irmãzinha e estivera à beira da loucura ao saber de sua morte. Aquilo lhe en­sinara uma lição valiosa: o amor tinha um preço. E ele não estava disposto a pagá-lo. Portanto, tinha aprendi­do, a conter suas emoções com o passar dos anos, a se distanciar das pessoas.

Entretanto, desejava Martine. Precisava dela como nunca precisara de uma mulher antes. Só podia rezar, es­perando que com o tempo seu desejo por ela diminuísse. Quem sabe quando recebesse as terras de lorde Godfrey se sentiria capaz de controlar seus sentimentos?

Depois do noivado, veio a notícia quanto ao mandante do crime contra Anseau. Ao retornarem ao castelo, o con­de e os barões haviam feito uma conferência a respeito do assunto e decidiram que seria imprudente caçar Neville, um nobre, sem provas concretas. Neville seria convocado a comparecer diante do conselho de seus pares e julgado. A punição mais leve poderia ser uma peregrinação obri­gatória até Jerusalém que levaria anos. A pior, execução. Mas possivelmente se decidiria pela decapitação.

Depois de cuidar dos falcões, Thorne se deitou e fechou os olhos. A imagem de Martine na água se formou de imediato. Gemendo, virou-se e fitou o telhado de sapé. Estremeceu ao lembrar o quão perto da morte a dama estivera. A morte dela significaria a de Ailith também, visto que somente ela não se abatera e tinha percebido o sopro de vida que ainda havia na menina.

Alguém bateu à porta. Ele não quis atender. Não que­ria companhia, apenas um sono reparador.

Cobriu o rosto com as mãos. Teria suportado a morte da criança? Tê-la ao seu lado era como ainda ter a irmã, a presença dela atenuava uma dor que insistia em não ir embora, mas que ao menos tinha se tornado suportável.

As batidas cessaram. Levantando-se, Thorne foi até a bacia e molhou as mãos e o rosto. Estava exausto e só desejava dormir.

O vento forte abriu as venezianas e, antes de voltar a se deitar, ele se aproximou para fechá-las. Viu na escuri­dão uma figura se afastar e sentiu remorso. Era a pessoa que tinha acabado de bater à sua porta. E se alguém estivesse precisando dele? Não sabia quem era.

Outra rajada de vento, e o capuz da pessoa caiu, re­velando cabelos pálidos. Reconheceu-os de imediato. Somente Martine tinha cabelo tão extraordinário.

Saiu pela porta antes mesmo de entender o que fazia e correu a fim de alcançá-la.

Thorne segurou Martine pelo ombro e ela se virou, surpresa. O capuz escorregou novamente e o falcoeiro o colocou de volta. Pegando-a pelo braço, guiou-a para a falcoaria, fechando a porta assim que a cruzaram.

Por um instante, encararam-se no ambiente pouco iluminado. A hesitação nos olhos dela o surpreendeu, pois ela sempre parecera segura de si. Ela via o motivo que a levara até ali, qualquer que fosse ele, como algo di­fícil de enfrentar. O rosto estava pálido, tão semelhante ao da rainha da peça de xadrez, porém os cabelos mos­travam-se em todo o seu esplendor. Martine era bela. Como pôde tê-la considerado apenas comum? Por fim, ela rompeu o silêncio:

— Pensei que não estivesse aqui.

— Eu estava deitado.

— Desculpe, não tive a intenção de...

— Não, não... Está tudo bem. — O manto dela estava ensopado. Dando um passo à frente, ele esticou os braços para desamarrá-lo. Ela se retesou e ele abaixou as mãos. — Eu só... Seu manto está molhado e eu pensei... — ga­guejou como um rapazola inexperiente.

— Oh! Sim, claro. — Ela tentou tirar o broche que prendia o manto, mas as mãos estavam enfaixadas, tor­nando a tarefa difícil.

— Permita-me — ele disse e, num gesto cavalheires­co, esperou que ela desse a permissão.

Thorne pendurou o manto no gancho atrás da porta e notou que ela tinha trocado o vestido de noivado arrui­nado por roupas simples.

Pelo canto do olho, notou que ela fitava seu torso nu com o rosto corado. Ele sorriu internamente. Sentia-se cada vez mais atraído pelos repentinos rubores de Martine, único indício de seus verdadeiros sentimentos. Mesmo assim, pegou uma camisa e a vestiu antes de acender duas velas.

Ela tremia. Thorne levou-a até a cadeira e depois ser­viu conhaque. Martine apenas bebericou com cautela.

— Posso pegar carvão para o braseiro — ele ofereceu.

— Não se preocupe. Ficarei bem.

Indicando as mãos enfaixadas com um gesto, ele perguntou:

— Estão doendo?

— Um pouco.

— E melhor terminar o conhaque logo, ajudará a dor a passar.

Martine tomou a bebida e quando ele ofereceu mais, ela respondeu:

— Melhor não, ou cairei no sono.

Ele a imaginou dormindo e se lembrou de que Ailith tinha lhe dito que ela dormia nua. Pigarreando, pergun­tou ao se sentar na beira da cama:

— Como está Ailith?

— Dormindo como um anjo nos braços da mãe. — Martine se permitiu um ligeiro sorriso.

— Ela estaria morta se não fosse por você. Raramente vi demonstrações de coragem como a de hoje. Ela signifi­ca muito para mim... Eu... Eu gostaria de agradecer.

Ela o encarou nos olhos e disse:

— Quero lhe contar algo. Sei o que pensa a meu res­peito. Considera-me mimada e cheia de vontades e...

— Não, milady.

— Por favor, não negue. É o que todos pensam. — Olhou para as mãos um instante. — Talvez eu seja as­sim. Para mim algumas coisas são difíceis de admitir. Em particular para... — Olhou para Thorne, embaraça­da, e depois desviou o olhar.

Em particular para mim? Para os homens?, Thorne se perguntou, mas ela não concluiu o pensamento.

— Não tenho sido justa com você. Na verdade, não gostava... Não confiava em você. Agora, porém, penso de outro modo. Espero que possa me perdoar por minhas grosserias passadas e que possamos ser amigos.

Thorne respirou fundo para garantir que a voz não falharia.

— Eu gostaria muito que isso acontecesse.

— Obrigada por salvar a minha vida. — Ela o enca­rou com olhos graves.

— Não foi nada...

Com pesar, Thorne pensou que ela logo iria embora, no entanto Martine permaneceu sentada, calada, mor­dendo os lábios como se procurasse coragem para dizer algo mais.

Depois de alguns minutos de silêncio, ele perguntou:

— Onde aprendeu a nadar?

Observando a chama da vela com olhar distante, ela respondeu:

— Fui criada perto de um lago.

— Próximo ao castelo de seu pai ou do convento?

Ela ficou tensa e Thorne imediatamente se arrepen­deu de suas palavras. Dessa vez iniciara a conversa como um modo de deixá-la à vontade e não com o intuito de questioná-la quanto ao seu passado. Mas ela não sa­bia disso.

— Em nenhum dos dois lugares. Ele se levantou.

— Não tive a intenção de...

— Há algo que eu gostaria de lhe contar.

— Não. — Ele diminuiu a distância entre eles em duas passadas e se ajoelhou diante dela, tomando-a pe­las mãos, os olhos suplicando para que ela o encarasse.

— Não precisa me dizer nada. Não me deve nada.

Martine arregalou os olhos em descrença.

— Salvou a minha vida!

Ele levou a mão aos cabelos sedosos, tirando-os do rosto e colocando-os atrás da orelha.

— Tem o direito de escolher o que revelar aos outros. — Afagou-a no rosto. — Eu nunca deveria ter tentado extrair informações suas. E não me deve nada. Mesmo.

O que aconteceu no rio não tem nada a ver com o que quer me contar.

— Não sabe o que quero dizer... — Ela desviou o olhar.

Segurando-a pelo queixo, ele a fez encará-lo novamente.

— Não é filha legítima de lorde Jourdain. — A tensão nas mãos dela e o arfar profundo confirmaram suas suspeitas.

— Você sabia?

Ele esfregou o polegar sobre as ataduras das mãos dela e disse:

— Não tinha certeza, mas parecia a resposta mais óbvia. Era isso o que queria me contar?

— Achei que você tinha o direito de saber. Era erra­do esconder essa informação, ainda mais depois do que fez por mim. Se isso fosse revelado depois do casamento, seria desastroso para sua reputação e uma maneira in­grata de lhe pagar depois de ter me salvado.

A menção do casamento iminente ressaltou a indis­crição que cometiam no momento, sozinhos de mãos dadas. Mesmo assim, Thorne não tentou soltá-la. Não conseguiria. Queria tocá-la e se convencia de que ela precisava de conforto.

Antes, ainda à margem do rio, enquanto carregava Ailith de volta ao castelo, viu que ela tremia visivelmen­te. Não por frio, mas pelo trauma pelo qual passara. A fachada de autossuficiência era mais frágil do que ela deixava transparecer.

Rainulf dissera-lhe palavras encorajadoras, mas es­tava ocupado amparando Geneva. O instinto de Thorne comandava para que corresse e a pegasse nos braços, acalmando seus tremores com seu calor e sua força. Esse instinto, entretanto, teve de ser deixado de lado.

Mesmo que não estivesse segurando Ailith, tal abraço seria inadequado, um escândalo.

Não tão vergonhoso quanto a ilegitimidade, caso fos­se descoberta. O fato de ela lhe confiar tal segredo, o emocionava profundamente.

— Rainulf sabe que resolveu me contar tudo?

— Sim, ele nunca quis esconder isso de você, embora não se importasse com as outras pessoas.

— Como assim?

— Era tudo mais fácil enquanto eu estava no conven­to. Quando fui a Paris, ele só dizia que eu era sua meia-irmã e todos supunham que eu era filha da segunda es­posa de Jourdain. Isso, contudo, seria impossível, pois lady Blanche só tem vinte e um anos.

— Três a mais do que você. — Thorne balançou a cabeça, sem acreditar que tivesse cometido o mesmo erro tosco.

— Rainulf teme que você se sinta enganado e que passe a odiá-lo.

Ele apertou as mãos dela.

— Não consigo vê-lo fazendo algo que me levasse a odiá-lo. E não me sinto enganado... Só iludido. Ele seria incapaz de enganar alguém de propósito. Só fez o que fez por amor a você.

— Você é tão clemente quanto ele!

— E isso a surpreende?

— Tudo a seu respeito me surpreende — ela respondeu rápido e, então, como se tivesse revelado demais, o rubor que a delatava voltou a tingir-lhe as faces. O olhar perturbado pousou sobre as mãos deles e Thorne retirou as suas a contragosto.

— Mais uma taça? Prometo não deixá-la dormir. — Ela assentiu e ele voltou a servi-los. — Sua mãe, en­tão... — Esperou que Martine completasse a frase como melhor lhe conviesse, o que levou algum tempo.

— Minha mãe era amante de Jourdain.

Thorne percebeu pela dificuldade com que ela dizia as palavras que aquela devia ser a primeira vez que ad­mitia o fato em voz alta.

— O nome dela era Adela. O pai, um comerciante de vinhos de Paris, a vendeu a Jourdain quando ela era ain­da muito jovem. — Ela tomou mais um gole. — Sei de tudo agora. Olho para os dez primeiros anos de minha infância e fico pensando como consegui ser tão ingênua, tão... — Levou a taça aos lábios, esvaziando-a. — Feliz. Eu fui feliz. A vida era tão simples... Até eu saber da verdade.

No verão de seu décimo aniversário, Martine come­çou a notar um nome repetido nas orações da mãe.

— Mamãe, quem é Odelina? — perguntou por fim.

— Odelina é uma senhora que está muito doente — respondeu Adela após acender uma fileira de velas.

— Está rezando para que ela melhore?

— Rezo para que ela morra — disse a mãe. Martine ficou assombrada.

— Para que o sofrimento dela acabe?

— Não. Quero que ela morra para que eu me case com o marido dela. Lady Odelina é a esposa de seu pai.

Martine não compreendeu.

— A senhora é a esposa dele!

Adela encarou a menina com descrença nos olhos.

— Se eu fosse a esposa, não estaríamos vivendo nesta cabana no meio da floresta, minha querida. As barone­sas moram em castelos, não sabia disso?

Martine não acreditava nos próprios ouvidos. O pai era magnífico, um gigante em vestes de seda e peles, que chegava a galope no majestoso garanhão branco quando menos se esperava. Ela gritava de prazer quando ele a tomava nos braços e a rodopiava no ar, entregando pre­sentes em seguida. Adorava-o de corpo e alma.

Ele trazia riso e contentamento para suas vidas insípidas. A mãe se transformava quando ele chegava. Os olhos se iluminavam e ela flanava pela cabana, aten­dendo aos desejos dele. Retirava-lhe o manto e as botas, oferecia-lhe comida e depois atendia a outros tipos de necessidades enquanto Martine brincava fora da caba­na. Nos dias de chuva a menina subia para o andar de cima e conseguia ouvir gemidos, suspiros e outros rumo­res que a deixavam confusa e assustada. A mãe, contu­do, lhe assegurara de que o pai não a machucava. Dizia que ele a preenchia, a deixava completa.

Ao ouvir o nome de Odelina novamente, exclamou:

— Isso está errado, mamãe! É pecado. Deus a punirá por querer isso.

— Prefiro me arriscar às chamas do inferno se isso fizer com que meu desejo se realize. Eu passaria a eter­nidade em agonia em troca de somente um dia como es­posa legítima de Jourdain!

Ao ouvir aquilo, Martine correu da cabana e foi para o lago, onde nadou até a noite chegar.

Pouco tempo depois Adela encomendou tecido e or­namentos para fazer um vestido. Ela levou dias para costurar a túnica de mangas esvoaçantes e semanas até completar o bordado. Martine nunca tinha visto uma vestimenta tão extraordinária.

Na manhã em que a mãe concluiu a peça, os homens de Jourdain chegaram com suprimentos e lenha. Disseram que a baronesa tinha acabado de falecer.

— Eles chegaram quando eu pregava a última conta — Adela disse. — Isso é um bom presságio.

Disse que logo Jourdain chegaria para levá-las ao castelo, onde passariam a viver como uma família. Martine se banhou, se trocou e penteou os cabelos com esmero. Mas o dia passou e o seguinte também, e ele não apareceu. Seus servos deixaram de trazer suprimentos e lenha. As semanas se passaram. Martine se sentiu perdida, confusa. Não entendia como o adorado pai não tinha vindo ainda, nem ao menos enviado os alimentos como de hábito.

O outono chegou, mostrando-se uma estação úmida e fria. Elas logo ficaram sem lenha para se aquecer e a comida minguou. Martine ia para a floresta em busca de frutos e raízes que pudessem comer, mas Adela passava os dias sentada, numa prece silenciosa. A menina sabia sem que houvessem lhe contado, que as duas não sobre­viveriam ao inverno em tais circunstâncias.

Certa tarde, Adela voltou do vilarejo e se sentou à janela, olhando a floresta sem nada ver, porém.

— O que aconteceu, mamãe? — Martine pergun­tou sobressaltada. — E alguma coisa com papai? Ele morreu?

A mãe não respondeu e permaneceu na mesma posi­ção quando a menina subiu para dormir. Na manhã se­guinte, ela já não estava lá e nem o lindo vestido verde.

Martine procurou por ela em todas as partes. Chegou a ir até a vila, mas ninguém a tinha visto desde o dia anterior. Ao voltar, margeava o lago e notou algo verde flutuando na água. Por que a mãe tinha descartado o vestido? Ficaria arruinado.

Ela entrou na água e tentou puxá-lo, mas estava fra­ca demais devido à má nutrição. Viu um fazendeiro co­nhecido se aproximando, e se virou para pedir ajuda.

— Pode me ajudar? O vestido de casamento de ma­mãe está preso.

— Vestido de casamento? — O homem perguntou. — Com quem ela vai se casar?

— Meu pai. O barão Jourdain de Rouen. O fazendeiro riu e disse:

— Menina, o barão se casou na semana passada. O nome dela é Blanche e só tem treze anos. — Ele deu de ombros. — Alguns homens preferem as novinhas.

Martine ficou imóvel na água gelada, observando-o se afastar. Teria sido muito melhor saber que seu pai tinha morrido. Seria doloroso, mas ela não sentiria a apunha­lada da traição, o sentimento de abandono. Fora aquilo o que a mãe descobrira no dia anterior, por isso ficara desesperada e jogara fora o vestido.

Ela não deveria ter feito aquilo. A roupa era linda e ela se emprenhara muito costurando-o. Merecia guar­dá-lo e usá-lo, mesmo que não fosse para se casar com o barão.

Respirando fundo, Martine afundou no lago para ten­tar desvencilhar o tecido do que quer que fosse que o estivesse prendendo. A seda verde a envolveu na água gélida.

O que viu em seguida a assombraria pelo resto da vida. Era a face de um monstro, da morte, do terror.

Era o rosto da mãe, desfigurado, inchado e roxo, a boca aberta revelando a língua negra.

Martine se assustou e engasgou. Um grito mudo de descrença reverberando em seu cérebro. Tentou voltar a superfície, mas a seda a envolvia como num casulo. Debatendo-se, tentou se livrar de sua prisão e acabou Vendo uma corda amarrada ao pescoço da mãe, um saco de pedras na outra ponta. Percebeu então que ela tinha morrido por vontade própria, um pecado grave e imperdoável.

Aquela revelação foi seu último pensamento coerente por algum tempo. Quando voltou a si, se viu sentada num dos cantos da cabana, os braços ao redor das pernas, os cabelos e roupas molhados. Os olhos, porém, esta­vam secos, nunca fora uma menina de chorar muito. Ouviu um homem chamando do lado de fora.

Era o padre local, que ao entrar disse sem preâm­bulos:

— Não podemos enterrar o corpo, sabe disso. Não se­ria adequado, já que ela tirou a própria vida. Ela será levada para a floresta, deixada aos lobos.

Martine apenas o encarava, a garganta doía demais para que conseguisse falar.

— Não reze por ela, de nada adiantaria — disse o pa­dre. — A esta altura ela está ardendo no inferno sem sal­vação. Se quer rezar, reze por si própria, já que o sangue maligno dela corre em suas veias. — Como ela não res­pondeu, ele prosseguiu: — Não é seguro continuar aqui. Nem todos os homens são bons como eu. Há muitos ho­mens maus que se aproveitaria de uma menina ingênua como você, sabe disso, não? — Martine nem piscou. — E então você acabaria como sua mãe. Sabe que ela morreu uma rameira, não é?

Ele a inspecionou de alto a baixo e Martine se viu através dos olhos dele: magricela, desgrenhada, assus­tada. Pigarreando, ele continuou:

— Todas as coisas que o barão lhes deu através dos anos: jóias, roupas... — Olhou ao redor e viu um baú num dos cantos. — Sabe que há malfeitores que cortariam sua garganta só por essas ninharias? Não está segura aqui. Precisa ir embora.

Para onde? Aquele era seu lar. Não havia para onde ir.

— Guarde meu conselho, vá embora ou estará junto de sua mãe pela manhã...

Estando só novamente, Martine apoiou o rosto nas mãos e pensou que morrer degolada seria rápido e indolor. A fome demoraria mais, ela sabia, e muito mais do­loroso. Afogamento, entretanto, era inconcebível. Lutar para respirar e não conseguir seria horrível. A mãe devia ter sofrido demais e, apesar das palavras do padre, tentou rezar por ela. Mas as preces não saíam de sua boca. Pensou ouvir os gritos dos condenados ao fogo do inferno, e cobriu os ouvidos. Aos poucos, porém, percebeu que o barulho era o relinchar de cavalos. Depois ouviu passos se aproximando.

Rápida como um esquilo, subiu ao andar de cima, le­vando uma faca consigo.

Ouviu um homem entrar e o barulho de algo sendo depositado na mesa. A escada rangeu quando ele pisou no primeiro degrau e continuou subindo. Martine se en­colheu num canto.

Um solidéu preto surgiu, escondendo uma porção de cabelos castanhos. Ficou tensa, a faca trêmula na mão. Então viu o rosto dele. Não era o padre Tancred. Esse era muito mais jovem e bonito.

Ele parou na escada e a fitou. Primeiro a faca, depois seu rosto. Por fim, falou:

— Milady.

Ele zombava dela, por isso segurou o cabo da faca com mais força. Como se lesse seus pensamentos, ele disse:

— E a filha de um barão, certo? Só quis demonstrar respeito. — Ele desceu a escada. — Mas se preferir, posso chamá-la de Martine. — Ela o ouviu abrir um saco e Colocar coisas na mesa. — Pode me chamar de Rainulf.

Não padre Rainulf?, ela pensou.

— Só Rainulf — ele disse, mais uma vez como se sou­besse o que ela pensava. — Não há necessidade de for­malidades entre irmãos.

Por um instante, Martine ficou paralisada no can­to, depois se aproximou da abertura e olhou para bai­xo. Rainulf era alto e aristocrático. Estava parado com uma maçã na mão. Na mesa atrás dele, mais maçãs, pão, queijo, doces e frutas secas. Sentiu a boca aguar ante tanta comida e não conseguiu desviar os olhos.

— Quer se juntar a mim para uma refeição? Olhando para o padre, ela retrocedeu e meneou a ca­beça. Depois de um instante de silêncio, ele disse:

— Meu cavalo adora maçãs. Se não se importar, vou sair para levar uma a ele.

Ela não respondeu e ele simplesmente deu as costas e saiu.

Martine encarou a comida mais um minuto. Depois, com um olho na porta e a faca na mão, desceu a escada e foi até a janela. O padre, de costas, alimentava o cava­lo. Ao lado dele, havia uma pequena égua e um cavalo de carga atrelado a uma carroça. Sobre a carroça havia um fardo envolto num tecido branco de linho... Um corpo numa mortalha. Seria sua mãe? Ele devia ter buscado o corpo na floresta, mas por quê?

Embora tivesse a cabeça cheia de perguntas, o estômago falou mais alto. Aproximou-se da mesa e cor­tou uma fatia generosa de queijo. O sabor atentava seus sentidos. Mordeu mais um pedaço antes de engo­lir o primeiro. Em seguida foram os doces, uma maçã... Deixando cair a faca, arrancou um pedaço de pão e o enfiou na boca com avidez. Abriu o odre e sorveu a cidra adocicada. Engoliu apressada e esticou a mão para pegar mais queijo quando o estômago começou a reclamar. Estivera faminta por muito tempo e não deveria ter co­mido com tanta rapidez.

Mal conseguiu chegar ao penico embaixo da cama quando o estômago se revirou. Num segundo, ele estava ao seu lado, afastando os cabelos com uma das mãos e amparando-lhe a cabeça com a outra.

— Calma... — disse numa voz tranqüila.

Quando ela terminou de vomitar tudo o que tinha acabado de comer, ele passou um pano úmido por seu rosto.

— Vamos tirar essas roupas molhadas e depois você pode tentar comer alguma coisa. Mais devagar dessa vez. — Ele pegou uma túnica de um cabide e lhe ofereceu. Abaixou-se para ficar na mesma altura que ela e disse: — Sei que encontrou o corpo de sua mãe. Deve ter sido um choque. Se não quiser falar, não pre­cisa. Sou professor, portanto, capaz de manter uma con­versa, sozinho, por um bom tempo. — Sorriu e a afa­gou no ombro. Depois se levantou e deu as costas para que ela se trocasse. — Quando a vi há pouco, achei que teria de lhe dar a extrema-unção de tão magra que está. Então notei a faca e o brilho em seus olhos. Pensei que Deus talvez estivesse pronto para você, mas você ainda não está pronto para Ele.

Martine trocou de roupa se perguntando se aquele belo padre poderia ser mesmo seu irmão.

— Você tem dois irmãos. — Dessa vez ela não se im­portou com o fato de ele se infiltrar em seus pensamen­tos. — Dois meio-irmãos, claro. Somos filhos do barão Jourdain e da falecida esposa, Odelina. Etienne é o mais velho, e herdeiro de papai, obviamente. Ensino lógica e teologia na Universidade de Paris. Vim a Rouen para ficar junto de minha mãe em seus últimos dias.

Enquanto Martine se contorcia para amarrar a túnica, Rainulf explicava que, ao contrário da maioria das pessoas, sempre soubera da existência delas duas. Quando a notícia da morte de Adela chegou aos seus ouvidos, perguntou ao pai se proveria pela subsistência da irmã. O barão lhe dissera que como condição para se casar com Blanche, uma órfã herdeira de uma vastidão de terras, o tio-avô da moça exigira que ele abandonasse tanto Adela quanto a filha.

Rainulf se virou e completou, com os olhos tristes:

— Não vou fingir entender por que ele concordou com tais termos... Deus entende a fraqueza dos homens me­lhor do que eu...

Jourdain fraco? Ele se aproveitara da mãe dela... Rainulf a levou para a mesa e umedeceu um pedaço de pão na cidra.

— Sei que padre Tancred veio vê-la. — O que viu nos olhos da irmã, o fez assentir com a cabeça. — O que pre­cisa entender a respeito desse padre é que ele não passa de um cretino.

Martine engasgou com o pão e Rainulf deu-lhe tapinhas nas costas.

— Posso imaginar o que ele disse. Deve se esquecer de tudo isso. Nunca duvide de que sua mãe esteja no paraíso.

Martine franziu a testa. Era incompreensível como um padre poderia ir contra os dogmas da Igreja.

— Deus nos deu livre arbítrio para que questionásse­mos o que nos dizem. A razão, assim como a fé, são um presente de Deus. Aprendi isso com um grande homem chamado Abelardo. Ensino isso aos meus alunos e agora vou ensiná-la também. Um dia poderá ler os livros dele, sozinha.

Ele colocou mais uma fatia de pão na mão dela. Martine sabia que padres liam, mas meninas de dez anos de idade?

— Aprenderá a ler — ele disse. — Vou levá-la a um lugar onde todos sabem ler. É um convento em Bordeaux. Eu conheço a abadessa; acredito que você gostará dela. Meninas de famílias nobres são educadas lá. Aprendem a ler e a escrever. Acha que gostará disso?

Martine o encarou em silêncio e depois assentiu.

— S-sim. — Tossiu e limpou a garganta. — Eu adora­ria. — E sorriu para o irmão.

— Partimos para Santa Teresa naquela mesma tarde — Martine disse. — No caminho, Rainulf enterrou minha mãe num lindo cemitério ao sul de Rouen. — Ela fitava a chama da vela, como se estivesse hipnotizada.

Muito conhaque e muita tristeza, Thorne pensou. Uma mistura infeliz. Observou-a e questionou:

— Nunca fizeram perguntas? Ela respondeu com um ligeiro meneio de cabeça e uma lágrima solitária desceu por seu rosto.

Thorne, com cuidado, esticou a mão e enxugou as lá­grimas, agora abundantes, com os dedos. A pele estava fria, as lágrimas quentes. Seu toque pareceu trazê-la de volta à realidade. Quando seus olhos se encontraram e ele viu a dor e a confusão nos dela, ajoelhou-se e tomou-a pos braços.

Martine segurou a camisa dele nos punhos e apoiou a cabeça no peito largo enquanto chorava. Thorne a embalava e sussurrava palavras de conforto, como faria com fuma criança ou um falcão. Só quando ela se aquietou, percebeu que estivera falando em sua língua nativa.

— Que tolice — ele murmurou. — Não entendeu uma palavra do que eu disse...

— Entendi, sim... — ela sussurrou, levantando a cabeça para fitá-lo. Os lábios estavam muito próximos. Se ele se inclinasse um pouco... Virou a cabeça. —Talvez... talvez seja melhor eu ir. Já está escuro.

Ele suspirou em resignação. Ela tinha razão. Não era ajuizado estarem juntos sozinhos. Era loucura! Quase a beijara. O que tinha acontecido com seu auto-controle? Tinha de lembrar o que estava em jogo e man­ter distância.

Soltou a mão dela e se levantou.

— Está tarde. Talvez estejam à sua procura. Ajudou-a a se levantar, foi até o gancho pegar o manto e o colocou ao seu redor. Dessa vez, ela não se retraiu.

— Deseja que eu esconda as circunstâncias de seu nascimento de lorde Godfrey? É você quem decide.

Ela levou um segundo para responder.

— Faça isso, então, por favor. Este casamento signi­fica muito para Rainulf.

— E para você?

— Somente na medida em que liberta meu irmão para seguir em sua peregrinação.

Thorne tirou a cascata de cabelos de baixo do manto e os alisou pelas costas. Ela se virou para encará-lo, que­brando o contato.

— Seria um desastre se o barão descobrisse tudo depois do casamento. Não acha que lady Estrude...

— Estrude só faz perguntas porque é intrometida. Mesmo assim, aconselho-a a manter distância, espe­cialmente durante o próximo mês quando eu e seu ir­mão estivermos em St. Dunstan. Estou surpreso com o fato de que ele a deixe sozinha, levando-se em conta as circunstâncias.

— Ele queria saber como eu me sairia sozinha, mas mudou de idéia; prefere que eu vá para St. Dunstan. Disse-me há pouco que ouviu rumores sobre eu ser capaz de reviver os mortos e está preocupado em me deixar aqui.

— Ele está certo. As pessoas temem o desconheci­do. Precisam de tempo para entender que seu poder de cura, e não feitiçaria, é o que salvou Ailith. Quando vol­tarmos, tudo serão águas passadas.

— Ainda acho tolice, mas irei para deixá-lo contente. — Martine deu de ombros.

— Também ficarei contente ao saber que estará a salvo. — Abriu a porta e ofereceu: — Vou acompanhá-la até o castelo.

 

Rainulf sentiu a fome apertar. Diminuiu o passo do cavalo e viu, pela posição do sol, que devia ser quase meio-dia. Estavam viajando num bom ritmo e, por certo, chegariam a St. Dunstan antes do anoitecer. Virou-se na sela e viu Martine e Thorne cavalgando lado a lado um pouco mais atrás. O saxão sorriu e se inclinou na direção de Martine para dizer algo. Ela riu em resposta, depois, notando ser observada pelo irmão, acenou.

Nunca a vira tão contente em toda a vida. Pelo vis­to a companhia de Thorne a aprazia, agora que tinham deixado as diferenças de lado. Era uma pena que seu velho amigo não tivesse terras próprias, pois seria um marido excelente para Martine. Apesar dos passados tão distintos, eles se igualavam tanto no intelecto como em personalidade.

Sem querer interrompê-los, Rainulf se virou nova­mente e continuou pela estrada de terra batida. Podia esperar pela refeição, pois ficava feliz em ver Martine e Thorne rindo como velhos amigos depois do início atribulado.

Logo adiante havia uma curva acentuada no alto de um morro, do qual pendia uma árvore retorcida, as raízes formando um emaranhado para fora da terra.

Ali esperou que os dois companheiros de viagem o alcan­çassem. Se um estranho os visse, jamais desconfiaria da real posição social que tinham, pelo modo com que se vestiam. Martine, como sempre, usava um vestido solto e simples, porém hoje dispensara o véu, prendendo os ca­belos numa única trança que pendia pelo ombro. Thorne, com túnica e calças de couro, não deixava transparecer sua posição de cavaleiro de um nobre, parecendo-se mui­to mais com um lenhador, tal qual o pai.

Chegando perto, Martine, maravilhada ante a árvo­re que resistia à gravidade e ao tempo, tocou uma das raízes expostas.

— Há quanto tempo esta árvore deve estar aqui? — perguntou ela.

Thorne esticou a mão e tocou a árvore, encostando na mão na dela. Era a primeira vez que se tocavam naquele dia, e quando ela sentiu o calor e a aspereza da pele dele, um feixe de prazer se formou em seu âmago.

— Está aqui desde que me conheço por gente — ele respondeu pensativo. Olhou-a de esguelha e completou: — Era minha árvore predileta quando eu era garoto. Estava sempre pendurado nela.

— Cresceu nesta área? — Martine quis saber.

— Nosso chalé ficava a cinco ou seis milhas naquela direção. — Thorne apontou para o norte.

Martine notou, então que não sabia quase nada a respeito do passado dele, só o que tinha acontecido a partir das Cruzadas. Antes, isso não a teria incomodado, mas depois das confissões da noite anterior, ardia de curiosidade.

— A sua família ainda vive lá?

—Não. Eles... eles se foram. Ninguém mais mora lá, pois as terras foram confiscadas em nome da Lei da Floresta.

— Lei da Floresta? O que é isso?

Rainulf prendeu o olhar dela e meneou sutilmente a cabeça.

— Que tal encontrarmos um lugar para comermos? — Ele tentou mudar de assunto.

— Devia se envergonhar, Rainulf — ela o admoestou.

— Estou tentando aprender uma coisa nova e você só faz pensar em seu estômago...

Rainulf abriu a boca para repreendê-la, porém foi in­terrompido por Thorne.

— Está tudo bem, Rainulf. — Para Martine, disse: — A Lei da Floresta foi uma invenção dos normandos, um modo de roubar as florestas e os pastos dos saxões que ali moram e dali tiram seu sustento só para que o rei e seus súditos possam caçar como esporte sem a competi­ção com aqueles que caçam para sobreviver.

Martine olhou para a floresta verdejante que os cercava.

— Esta floresta é uma reserva de caça?

— Toda a terra pela qual passamos desde o meio da manhã, milady. Boa parte da Inglaterra hoje está sob a proteção da Lei da Floresta e mais é reclamada a cada ano que passa. Ninguém que mora ali pode matar um veado, sequer um coelho. Todos os animais ficam à dispo­sição dos nobres, homens como Bernard. Ninguém pode cortar lenha ou desmatar para o plantio. Portanto, tor­nou-se impossível viver numa floresta. Mesmo que haja um modo de encontrar comida sem caçar ou plantar, não há como prepará-la sem madeira para o fogo.

— Que horrível...

— Só eu estou com fome? — Rainulf tentou mudar de assunto mais uma vez. — Vamos parar para comer.

— Aqui? — Martine franziu o cenho. Tendo uma idéia, propôs: — Por que Thorne não nos leva para o chalé da família dele? Poderemos comer lá.

Rainulf lançou um olhar cheio de significados para ela.

— Não, irmã. Encontraremos uma clareira logo adiante. Thorne não tem desejo algum de...

— Claro que ele tem — Martine insistiu, perguntando-se por que o irmão a fazia discutir na frente do cava­leiro. — É o lar da infância dele.

— Martine, não! Estou certo de que...

Thorne levantou a mão, detendo-o. Depois de um ins­tante de silêncio, disse:

— Sigam-me. — Virou o cavalo e seguiu por uma tri­lha no meio da floresta.

Martine lançou um olhar triunfante para o irmão e voltou a calçar a luva, depois seguiu o cavaleiro, igno­rando a reprimenda.

Logo, porém, arrependeu-se da insistência. O cami­nho era cheio de raízes e mato alto, e eles tiveram de diminuir o passo, tornando a viagem mais cansativa. A área parecia abandonada, nem mesmo caçadores ha­viam passado por ali em anos.

Por fim, a floresta se abriu numa clareira, e mes­mo no mato alto, Martine viu um pequeno chalé do ou­tro lado, tomado por trepadeiras. Olhou na direção de Thorne, cuja expressão neutra nada revelava. Ele des­montou; Rainulf e ela o imitaram. O saxão então soltou as rédeas das montarias e as deixou descansar perto de um riacho.

Rainulf seguiu até o cavalo de carga, pegou um cesto com provisões e se afastou para montar uma área de piquenique. Martine pegou o cesto de Loki e o soltou. O gato, assim que se viu livre, disparou na direção do chalé.

— Loki! — Ela o seguiu.

O chalé tinha dois cômodos separados por uma corti­na, já gasta. A construção atrás do chalé, outrora devia ter sido um estábulo e Martine conseguia ouvir o ruído da palha sendo remexida. Não havia lugar melhor do que um estábulo abandonado, provavelmente infestado de roedores, para a diversão de um gato.

Ela avançou no primeiro cômodo e olhou ao redor. O lugar estava até que bem iluminado, pois as corti­nas, que um dia cobriam as janelas, já tinham sido pra­ticamente comidas pelas traças. Num dos lados havia uma mesa ladeada por dois bancos. Três camas cercadas por peles de lobo estavam do outro lado. Havia vários utensílios de cozinha dispersos perto de um antigo fogareiro de barro cavado no chão.

Separado de tudo isso, num outro canto, ela viu algo que chamou sua atenção. Aproximou-se para examinar melhor: um berço belamente entalhado em madeira es­cura. Sobre ele, um lençol antigo. Ela se abaixou para puxar o lençol, curiosa para ver o que o tecido escondia.

Um rosto a encarou e, depois de um segundo, ela no­tou que era somente uma boneca. De tão perfeita, pa­recia um bebê de verdade. Tinha olhos azuis, lábios ro­sados e fios de cabelos dourados, provavelmente reais, debaixo da touca. Embora simples, a roupa da boneca revelava o cuidado com que ela fora vestida. As mãos es­tavam descobertas, mas os pés rechonchudos calçavam sapatinhos de couro.

Martine tirou as luvas e pressionou o colchão no qual jazia a boneca. Era fofo. Fora recheado com plumas e não a costumeira palha. Acariciou as bochechas roliças da boneca e se inclinou para tomá-la nos braços.

— Não. — Thorne pediu. Ele estava parado na soleira da porta. Abaixou a cabeça para passar, a silhue­ta demarcada contra a luz de fora da casa. Soltou a cortina e avançou pelo cômodo. Ajoelhou ao seu lado e disse num tom mais gentil. — Isso é antigo. Não que­ro que se quebre. — Com cuidado, ajeitou a boneca no berço e voltou a cobri-la.

Ele manuseava o brinquedo com o carinho de quem tocava num bebê, e Martine ansiava por saber o que ele escondia debaixo de sua expressão controlada.

— É uma linda boneca. Pertencia à sua irmã? Fitando o rosto arredondado, ele revelou:

— Esta era minha irmã. Eu a entalhei tomando Louise como modelo, logo depois que ela nasceu.

— Você fez isso? O berço também?

— Sim. — Ele passou a mão pela madeira envelheci­da. — Era o berço de Louise, mas depois que ela cresceu passou a ser de Bathilda.

— Bathilda. — Martine sorriu. — Nunca vou me acostumar com esses nomes saxãos. Também costurou as roupas?

Ele ergueu uma sobrancelha, divertido.

— Meu talento com agulha e linha não chega a tan­to. Pedi à minha mãe que fizesse roupas dignas de uma princesa.

— O resultado ficou excelente. Você deve ter amado muito Louise para se dar a tanto trabalho.

Ele a encarou por um instante, depois voltou a aten­ção para a boneca.

— Eu tinha dez anos quando ela nasceu. Meus pais tiveram outros filhos nesse meio tempo, não nenhum viveu mais do que um ano. Louise era. diferente; já nas­ceu mais roliça e forte. Ela era muito vivaz, assim como Ailith. Meus pais não conseguiam controlá-la, mas ela me obedecia. Seguia-me como uma sombra. Todas as noites em minhas orações eu agradecia a Deus por tê-la enviado para nós. Jurei que tomaria conta dela se Ele permitisse que ela continuasse viva. Eu a protegeria e cuidaria dela. — Triste, balançou a cabeça. Quando vol­tou a falar, a voz soou embargada. — Quebrei minha promessa, porém. Por isso, Louise pagou com a própria vida, assim como meus pais.

Martine olhou para Thorne, ajoelhado ao lado do ber­ço, os olhos transbordando angústia.

— Não estou entendendo...

Ele acariciou a cabeça da boneca e continuou o relato, numa voz distante:

— Sabia que meus pais precisavam de mim, mas aos dezessete anos, eu estava cego pela fé. Em vez de con­tinuar em casa e ajudar meus pais a cuidar de Louise como eu havia jurado, segui um rei estrangeiro e parti para as malditas Cruzadas. Fui um tolo.

A tristeza dele assolou Martine.

— Estava tentando servir a Cristo. Você foi...

— Um tolo! Quando voltei dois anos mais tarde e procurei minha família, eles já não moravam aqui. Disseram-me que as terras tinham sido tomadas pela Lei da Floresta e que eles tinham se mudado para uma vila próxima. — A mandíbula travou numa linha dura. — Meus pais odiavam vilas. Se eu estivesse aqui, pode­ria ter construído um chalé em outra área da floresta, mas meu pai já tinha idade avançada e não conseguiria fazer tudo sozinho. Eu os abandonei e ao fazer isso, con­denei-os à morte.

— O que aconteceu?

— Um incêndio. Numa noite de vento, uma vela caiu e logo incendiou as casas do vilarejo em poucos minu­tos. A reconstrução começou no dia seguinte, segun­do me contaram. Era a sétima vez em dez anos que aquilo acontecia na mesma vila. Recolheram os corpos não reclamados e os enterraram numa vala comum. — Ele alisou a coberta do berço com carinho, como se ela estivesse cobrindo a adorada irmã.

Martine queria confortá-lo, mas o que dizer? A pro­fundidade do pesar dele a tocou. Thorne parecia sempre tão controlado, senhor de suas emoções o tempo inteiro. Ela percebeu, porém, que havia emoções sobre as quais ele ainda não tinha domínio absoluto.

— Encontrei Bathilda aqui — ele prosseguiu —, ajei­tada no berço.

— Por que a deixaram para trás? Ao que parece nada de valor ficou...

— Fiquei me perguntando isso também. A única ex­plicação possível seria que Louise tivesse achado que ela ficaria mais feliz aqui. Minha irmã a protegeu de um destino do qual ela mesma não pôde fugir.

— E você a deixou como encontrou. Ele deu de ombros.

— Louise tinha razão. Este é o lar de Bathilda. — Levantou-se e esticou a mão para ajudar Martine. Quando ela se pôs de pé, não a soltou. — Nunca men­cionei isso a ninguém. Não só ser uma história triste, mas pelo fato de eu sentir vergonha. Não sei por que lhe contei, espero que não tenha se importado.

Ela enxergou, além da incerteza, a dor do luto nos olhos dele. Uma dor que se originava na culpa.

— É claro que não me importo. Contudo, não precisa se sentir envergonhado. Não foi culpa sua.

— Foi, sim. Mentir de nada vai adiantar. Deixei mi­nha família à mercê dos normandos porque era jovem e tolo. Estou mais maduro agora e muito menos ingênuo. É a riqueza e a propriedade de terras que os possibilita manter os saxões sob os calcanhares. O único modo de lutar contra esse poder é ter um pouco dessas terras. É por isso que preciso das minhas...

Talvez esse fosse o motivo pelo qual ele mencionara Louise. Assim ela poderia entender o que movia a ambi­ção dele e por que seu casamento com Edmond lhe era tão importante.

Ele parecia cansado, como se a revelação o tivesse exaurido.

— Seu irmão deve estar à nossa espera.

Ele a levou pela mão até a porta, soltando-a abruptamente. Martine viu Rainulf ao longe, beben­do água do odre. Seria errado deixar-se tocar por ele? Consultou sua consciência e decidiu que não. Thorne nunca tinha tomado liberdades. Como reagiria se ele tentasse? Refletiu mais um instante; dessa vez a respos­ta não veio com facilidade. Nesse momento a consciência e o coração não chegavam a um acordo. Desejou nunca ter de escolher entre eles.

No momento em que Martine deixou a floresta para trás e viu St. Dunstan pela primeira vez, aninhado no meio do vale verdejante, sentiu um contentamento que não sentia desde que partira de Santa Teresa um ano antes. Observando a fileira bem organizada de constru­ções de pedra, maravilhou-se com a paz e a sensação de ser bem-vinda, diferentemente de como se sentiu no castelo de Harford, que mais parecia uma tumba.

O mosteiro era cercado por jardins, ao contrário da maioria dos castelos que eram protegidos por muros e fossos. Ao se aproximarem descendo o vale, viu al­guns freis trabalhando nos pastos e na lavoura. Um rio serpenteava como uma faixa azul caída do céu no meio do viçoso verde. St. Dunstan fora construído acima de suas margens. Ao longe, no topo de uma colina além do vale, via-se um estranho e belo castelo circular, que Thorne explicou ser o castelo que o jovem barão Anseau vinha construindo na época de sua morte. Suas terras, o baronato de Blackburn, cercavam o monastério.

Os conventos costumavam seguir uma planta previ­sível, então Martine não teria problemas para se locali­zar dentro da construção, ainda que, sendo mulher, teria acesso restrito. Poderia circular somente na ala oeste onde ficariam suas acomodações e outras áreas comuns. A igreja era acessível tanto à área pública quanto à par­te mais reservada, tendo duas entradas independentes.

St. Dunstan não era uma abadia, mas um priorado, um pequeno satélite de uma abadia beneditina ao sul dali. Frei Matthew, o prior de St. Dunstan, seria o segun­do no comando, porém ali era a autoridade máxima, o administrador do local, ainda que decisões mais impor­tantes devessem ser reportadas ao abade superior.

O tamanho modesto e a localização um tanto isolada do mosteiro estariam a favor de Martine. Num local mais proeminente, ela não poderia ser vista após o pôr-do-sol, não importando sua classe social. Matthew, porém, não parecia se importar em infringir certas regras e assegu­rara Rainulf que a irmã seria muito bem-vinda ali.

Ao passarem pela entrada principal, um canto hipnó­tico vindo da igreja os envolveu. Rainulf sorriu.

— E mais tarde do que eu acreditava se já estão recitando as vésperas.

— Vocês dois parecem contentes — Thorne comentou. — O que há de tão importante nas vésperas?

O padre repreendeu o amigo com indignação fingida:

— Todas as funções da Igreja são importantes, seu pagão!

Inclinando de modo conspiratório na direção de Thorne, Martine confidenciou:

— As vésperas são ainda mais especiais visto que o jantar se aproxima...

Rainulf bufou e Thorne riu. Seu riso era tão franco que, quando ele a fitou nos olhos, ela sentiu a mesma estranha sensação de quando se viram pela primei­ra vez nas docas de Hastings. Como se ele enxergasse dentro dela.

— Os dois são pagãos! Um pior do que o outro...

Na verdade, Martine sorria não por causa do jantar, mas de contentamento por um mês inteiro da paz que o monastério ofereceria. Por mais que não partilhasse do fervor religioso das freiras que a criaram, apreciava a harmonia e a estrutura da vida do convento.

Respirou fundo, absorvendo o canto etéreo. Embora as vozes fossem masculinas, o som lhe era reconfortante e familiar. Ela sentiu como se estivesse chegando em casa.

— Esteve lendo Orações para a Virgem esta tarde? — Martine perguntou, levando a taça aos lábios.

— Sim. — Thorne forçou um sorriso, sabendo que ela semeava as sementes de um novo debate pós-jantar. — Então a escolha de minhas leituras a surpreende?

Os dois tinham tomado a liberdade de pegar empres­tado volumes da biblioteca do priorado, lendo-os alternadamente e depois trocando idéias a respeito dos clás­sicos gregos e romanos.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Levando-se em conta que você mal vai à missa? Sim.

— A fé tem muitas formas, milady.

Os olhos cor de índigo brilhavam na luz das velas e, às vezes, Thorne achava extremamente difícil suportar tanta beleza.

— É de fato um homem de fé, sir Thorne?

— Segurei a cruz pela santa madre Igreja, não? — Ele deu de ombros.

Ela sorriu e, dessa vez, foram os lábios que chama­ram a atenção dele. Eram avermelhados e cheios, como se tivessem acabado de ser beijados. Tal pensamento re-ascendeu uma chama em sua virilha, e ele se admoestou por sua imaginação fértil.

— Lamento dizer que o fato de ter ido para as Cruzadas não signifique muito — ela disse. — Rainulf me contou que a escória da Europa carregou a cruz só pela possibilidade de recolher tesouros pelo caminho. Outros foram com o intuito de ter os pecados perdoados sem a menor intenção de resgatar Jerusalém.

Thorne assentiu e se recostou, permitindo que Cleva, a cozinheira de frei Matthew recolhesse os pratos.

— Sinto dizer que não fui em busca nem de redenção nem de pilhagem. Eu fazia parte do terceiro tipo: os po­bres de Deus, como Louis nos chamava, porque éramos ingênuos e tementes a Nosso Senhor. Eu queria mesmo retomar a terra sagrada e não me importava em sacrifi­car minha vida no processo.

Ele falava com tranqüilidade, contudo Martine cap­tou a inflexão na voz que traía um amargor profundo, um desespero que formara uma cicatriz grotesca.

Thorne suspirou e tomou um gole generoso de vinho.

— Pelo menos os que morreram pensaram que sería­mos bem-sucedidos, libertando Jerusalém e retornando para casa como heróis. Nunca souberam como falhamos em nossa empreitada e o modo como nos receberam no regresso.

 

Cleva colocou anis condimentado na mesa; Martine pegou um e mordiscou pensativa, refletindo sobre os primeiros anos de vida de Thorne: sua devoção inicial, o brutal confinamento durante o levante e a volta para casa, quando descobriu a triste sina da família.

— É um milagre que ainda lhe reste um pouco de fé — ela comentou.

— Ainda acredito na existência de um Deus miseri­cordioso, um Deus de amor. — Ele levantou-se e pegou o jogo de xadrez. — Hoje sei que Deus tem um certo tem­peramento e é melhor não deixá-lo zangado.

— Parece que define a fé como medo.

Ele colocou o tabuleiro na mesa e pegou um peão de cada cor escondendo-os atrás das costas.

— Talvez tenha uma definição melhor que a minha.

— Abelardo disse que a fé é uma opinião particular.

Thorne mostrou os punhos fechados para que Martine escolhesse uma das mãos. Ela hesitou diante da direita, sorriu e escolheu a esquerda. Ele a abriu e sorriu com ironia, o que ela entendia perfeitamente. Na maioria das noites, como naquela, ela escolhia a peça branca. Ela riu e, pegando as demais peças do saco, as dispôs no tabuleiro.

— Abelardo escreveu muitas coisas inteligentes. — Ele se sentou diante dela e começou a organizar as peças pretas. — Mas não escreveu o Evangelho. Tenho certeza de que os ensinamentos de Abelardo a satisfazem, mas não se adequam a mim.

— Ele era brilhante!

— Sim, excepcionalmente, porém era somente um homem e, como tal, cheio de defeitos.

Ela bateu o bispo com força no tabuleiro.

— Ele não era um herege. Seus supostos peca­dos foram perdoados pelos mesmos homens que o condenaram.

— Não estou me referindo às crenças dele. Estou falando de Heloísa.

— Ah! Bem, o amor é uma força poderosa. — Martine sentiu as faces corarem. — Pelo menos é o que dizem. Há os que defendem a idéia de que é irresistível.

— Pode-se resistir a ele se nos esforçarmos. Como membro do clero, Abelardo deveria ter se mantido casto, mas foi fraco, e sofreu como conseqüência disso. Amar Heloísa foi um erro, e ele deve ter percebido isso quan­do o tio dela os flagrou e... — Levantou o olhar para Martine, depois colocou a última peça no lugar — e o mandou emascular.

— Mandou castrá-lo — Martine o corrigiu. — Prefiro dar o nome certo aos bois. Parece aprovar uma punição tão dura por ele ter simplesmente se apaixonado.

Thorne se recostou e a observou com tanta intensi­dade que ela desviou os olhos para o tabuleiro, fingindo estudar seu primeiro movimento.

— Às vezes, apaixonar-se não é simples — ele disse baixinho. — Pode haver conseqüências. Abelardo sabia disso, mas não teve o autocontrole necessário. — Fez Uma pausa, depois completou. — Eu não teria cometido o mesmo erro.

Martine sentia as faces arderem. Respirou fundo, de­pois o encarou.

— Nem eu. — Com toda a compostura que conseguiu Juntar, moveu a rainha e depois acenou para o tabuleiro. — Sua vez, sir Thorne.

Num fim de tarde, quando o sol tingia o céu de laranja, Martine testemunhou a primeira caça de Freya. Thorne explicou que permitiria que ela comesse a vítima, uma pequena perdiz, nessa primeira vez, mas que ela logo seria treinada a entregar a caça.

— Veja, ela primeiro vai desemplumar e depois vai quebrá-la, a começar pela asa esquerda. — Vendo o olhar confuso de Martine, explicou melhor: — Vai tirar as asas e comer a carne.

Quando o falcão fez exatamente isso, Martine balan­çou a cabeça em descrença.

— Como sabia disso?

Rindo com boa vontade, o falcoeiro disse:

— Há poucas coisas a respeito das aves de rapina que eu desconheça, Martine.

Ele pareceu tão surpreso quanto ela ao chamá-la pelo nome de batismo em vez dizer "milady" como sempre. Ele raramente dizia o seu nome e ela gostava de ouvi-lo no sotaque inglês dele.

Thorne franzia o cenho ao observar Freya se refestelando com a perdiz. Tentando desfazer o mal-estar dele, Martine perguntou:

— Ela estará totalmente treinada quando voltarmos para casa?

— Casa? — Ele pareceu confuso. — Ah, refere-se a Harford... Até lá ela estará praticamente pronta.

— E claro que me referia a Harford. Não é a sua casa?

— É a de sir Godfrey. Não tenho um lar desde que eu era muito jovem.

— Nem eu.

— Em poucas semanas estará casada e terá um lar novamente.

Ela assentiu.

— E você logo depois disso.

Uma inquietação se fez ver antes que ele vestisse a máscara do controle novamente e desviasse a atenção para Freya. Os dois assistiram ao banquete do falcão num silêncio pesado.

 

Martine viu Thorne pelo canto do olho no meio de uma clareira ao lado de Rainulf. Freya estava no pulso dele com a cabeça coberta o que significava que o treino da manhã tinha chegado ao fim. No momento ele pare­cia entretido numa conversa com seu irmão, mas ela se sentia observada de tempos em tempos enquanto traba­lhava no herbário do monastério.

Abaixou-se perto de um arbusto. As freiras de Santa Teresa chamavam aquela erva de "ligadura de ossos". Esperava encontrar a planta ali e pegar algumas mudas para o herbário que pretendia montar em Harford. Um simples cataplasma quente daquela erva, segundo as irmãs, seria capaz de unir ossos fraturados deixando-os novos em folha.

Voltou a atenção para o canteiro e começou a cavar a terra, sentindo-se observada mais uma vez.

Toda vez que sentia os olhos de Thorne sobre si, um Calor a invadia, subindo da ponta dos pés até a cabe­ça. Um tremor estranho a consumia. O sentimento que nutria por ele era como uma febre. Não queria sentir tal adoração, e, paradoxalmente, ansiava por essa sensação. Nunca tinha se sentido mais viva, mais tomada de excitamento.

Obviamente, tudo isso era impossível. Pensar em Thorne daquela forma, além de insensato, era potencial-ente desastroso.

Voltando a atenção para a tarefa diante de si, começou a desbastar uma porção da erva para fazer a muda.

Estaria ele ainda observando-a? De maneira casual, levantou a cabeça e olhou por sobre o ombro na direção deles. Thorne a olhava abertamente e seus olhos se en­contraram por um instante a mais do que o recomenda­do e, então, ele desviou o rosto.

Ele olhou para Rainulf, abaixado ao lado de um cão de caça e perguntou:

— Como soube dela? — Ao ver o ar confuso do amigo, esclareceu: — Como tomou conhecimento da existência de Martine?

O padre se levantou e foi a vez de ele olhar para o herbário, onde a irmã trabalhava na terra.

— Eu tinha dezesseis anos e tinha voltado de Paris para as festividades de fim de ano. Uma tarde, fui a uma vila próxima ao castelo com meu irmão Etienne. Não me recordo por que estávamos lá, mas a certo ponto, ele apontou e me mostrou uma garota saindo da igreja com um bebê no colo. — Rainulf respirou fundo. — Perguntei se ele sabia quem era e ele disse que nunca a tinha visto, mas que o povo comentava que ela era a amante de um homem muito mais velho e aquele era o bastardo deles.

— Adela — Thorne murmurou. Rainulf assentiu.

— Só que nem eu, nem Etienne sabíamos da existên­cia de Adela. Ela devia ter uns quinze anos na época, parecia jovem demais para ser amante de qualquer ho­mem quanto mais mãe de um bebê. — Rainulf suspirou. — Etienne disse que já era hora que eu estivesse com uma mulher. Disse que papai pagara uma para ele aos catorze e que era a vez de ele retribuir, fazendo o mesmo por mim... Eu queria uma mulher, uma de verdade, mais velha, não uma menina como aquela.

— Então recusou.

— Sim, mas isso não fez diferença alguma para meu irmão. Ele a emboscou numa esquina e ofereceu um punhado de moedas para que me levasse a casa dela.

Foi horrível. O bebê começou a chorar e ela parecia aterrorizada. Mais tarde descobri que ela sabia quem nós éramos. Pode imaginar como a pobre se sentiu ao receber uma proposta ultrajante dos filhos do homem que ela amava? Ela fugiu e eu segurei meu irmão para que não a seguisse.

— Ele deve ter ficado enfurecido por ter os planos contrariados.

— Chegou até a reclamar com papai.

— Ele lhes disse quem era a moça?

— Não, mas na manhã seguinte pediu que o acom­panhássemos numa cavalgada. Fomos até um chalé nas proximidades da vila do dia anterior. Levou-nos para dentro e lá estava a garota com o bebê. Etienne ficou eufórico e, de pronto, tirou o manto e o cinto. Papai se aproximou da moça e passou o braço pelos ombros dela, dizendo que era hora de fazer as apresentações. Ele disse: "Esta é Adela." Pegando o bebê no colo, aproximou-se de nós e continuou: "E esta é a irmã de vocês, Martine."

Thorne ficou em silêncio ouvindo as memórias do amigo, que tinha o olhar distante.

— Por um instante permanecemos calados, mas quando entendemos o que aquilo significava, Etienne ficou enfurecido. Blasfemou e chamou Adela de rameira. Acusou nosso pai de envenenar nossa mãe, que na época já andava doente. Disse que teria sido melhor abandonar o bebê na floresta. Pegou o cinto e o manto e saiu batendo a porta.

— E você? O que fez?

— Eu estava... hipnotizado. Só conseguia olhar para a menina no colo de meu pai. Minha irmã! Ela era tão rosada e pequena... O rompante de Etienne a tinha assustado e ela chorava muito. Papai não sabia o que fazer e olhava suplicante para Adela. Era a primeira vez que o via tão impotente. Antes que a mãe a pegasse, eu me adiantei e peguei-a no colo. Embalei-a e sussurrei pala­vras de conforto e ela acabou dormindo em meus braços. Foi tão... É difícil por em palavras.

— Conheço esse sentimento. Também tive uma irmã... — disse Thorne com a voz embargada.

Martine pegou uma flor rosada e a colocou nos cabe­los. Thorne nunca a tinha visto se enfeitar e, por algum motivo, ficou feliz ao vê-la fazer isso.

— Foi a única vez que a vi em dez anos. Depois que voltei das Cruzadas, passei a lecionar em Paris, mas en­tão recebi uma mensagem de Rouen dizendo que minha mãe estava morrendo. Voltei para casa e você sabe do resto. Minha mãe morreu, meu pai se casou com lady Blanche e Adela... Adela amarrou um saco de pedras no pescoço e se afogou no lago.

— E Martine foi abandonada à própria sorte — Thorne completou.

Rainulf tinha a expressão carregada ao completar:

— Ela estava mais morta do que viva quando a en­contrei, mas a teria reconhecido em qualquer lugar, ta­manha a semelhança dela com nosso pai. Não era o que se podia chamar de bela, acho que ainda não é, porém algo nos olhos dela... Havia um brilho, uma faísca neles que... O que digo pode parecer piegas...

— Não. Entendo exatamente o que quer dizer — Thorne prontificou.

O que ele não disse, porém, era que o amigo esta­va completamente errado quanto a ela não ser bela. Observou-a caminhar pelo herbário, uma cesta numa mão, a outra segurando a saia. Cachos dos cabelos ha­viam escapado da trança e balançavam na brisa. As faces estavam coradas devido à exposição ao sol e ao esforço do trabalho, e os olhos tinham um brilho atraen­te, irresistível.

Ela não era só bela, era extraordinária. Era complica­da, imprevisível, única. Era tanto suave quanto mordaz, quente e fria... Possuía um fascínio sem fim.

E pertencia a Edmond.

Thorne saiu da escuridão do sono ao ouvir as bada­ladas da meia-noite que chamavam os frades para a entoação das matinas. Do cômodo ao lado, ouviu que Rainulf despertava, atendendo ao chamado.

Não entendia por que o amigo se importava em seguir a rotina sendo um mero hóspede do monastério. Ainda mais que o dia seguinte seria puxado. Pela manhã parti­riam para Harford e a viagem seria longa.

Ouviu frei Matthew se levantar, os dois trocarem um cumprimento e se afastarem. Tentou dormir nova­mente, mas para seu desgosto, como em muitas outras noites, não conseguiu. Tal fato nunca lhe acontecera antes. Sentia-se um fraco por seu corpo não atender ao seu comando.

Desistindo, levantou-se, acendeu uma lamparina e vestiu as calças. Foi até a cozinha, serviu-se de uma taça de vinho e sentou-se à mesa, onde estava o livro de Euclides que tinha terminado de ler. O mosteiro, a exceção dos freis que entoavam os cânticos na igreja, estava deserto. Abriu o livro, mas em vez das palavras nas páginas amareladas, viu os olhos azuis de Martine... Ouviu o riso musical... Sentiu a mão delicada na sua. Não conseguia tirar essas imagens da mente, nem pensar em outra coisa. Jamais se sentira tão impotente.

Como sentiria falta dela... Nunca mais poderia tê-la junto de si como no último mês. A cada dia ao se levan­tar, pensava nela, Ao lavar o rosto e se vestir, só conse­guia pensar em encontrá-la. Durante todo o dia procu­rava modos de estar perto, só pelo simples prazer que a proximidade física lhe proporcionava; o perfume dela o inebriava. E quando estava distante, como agora, sen­tia uma dor profunda, desejando estar com ela. Nunca tinha sentido essa dor, nem tanta necessidade de estar com alguém.

Aquela era uma brincadeira cruel de Deus. Pela pri­meira vez em seus vinte e nove anos de vida, conseguiu sentir o vazio de seu âmago preenchido por uma mu­lher... Só que essa mulher, ele não poderia ter. Voltaria para Harford ainda mais vazio, conhecendo o que nunca poderia ser seu.

Com um praguejar, bateu o livro na mesa. No si­lêncio que se seguiu, pensou ter ouvido um lamento... Um choro...

Aguçou os ouvidos e prestou atenção. O choro vinha de trás da cortina das acomodações de Martine.

Depois de um momento de hesitação, levantou-se le­vando a lamparina consigo e parou à soleira. Ouviu um novo lamento. Concluiu que ela estivesse sonhando.

— Milady? — Pigarreou e tentou novamente. — Milady?

Martine murmurava, mas ele não conseguia enten­der o que ela dizia.

Afastou a cortina para ver o que se passava no pe­queno cômodo. O catre estava apoiado na parede ao lado da porta. Poderia ter esticado a mão e tocado na cabeça dela, mas parou a meio caminho.

Ela estava deitada de barriga para baixo, o lençol emaranhado na cintura revelava as costas despidas, as curvas benfeitas, a cintura fina. A pele iluminada pela tênue luz da lamparina, tinha um brilho dourado suave. O impulso de afastar o lençol e tomá-la nos braços quase o subjugou.

Precisava se afastar. Contudo, ao se virar, ela falou novamente.

— O vestido de casamento de mamãe está no lago!

Parecia a voz de uma menina aterrorizada e não da mulher controlada que ele conhecia. A respiração estava acelerada e ela tinha a testa banhada de suor apesar da noite fria.

Thorne entrou no quarto e fechou a cortina. Pousou a lamparina no chão e pegou o lençol, subindo-o até os ombros.

— Acorde, milady. — Sentou-se na beira da cama e tocou-a no ombro. — Acorde...

Os olhos de Martine se abriram, revelando pânico.

— Mãe!

O rosto mostrava o terror que ela sentia, e, reagindo sem pensar em nada além de confortá-la, Thorne se dei­tou e a abraçou.

Martine tremeu com seu toque, como se fosse um passarinho recém-saído do ovo. Ainda assim, ele não a soltou. Segurou-a firme no casulo formado pelo lençol, murmurando palavras de conforto como sempre fazia com os falcões assustados.

— Shhh... Foi apenas um sonho...

— Thorne?...

— Sim. — Ele afastou uma mecha de cabelos da testa úmida. — Teve um pesadelo.

Ela gemeu e se afundou em seus braços. Sem pensar, beijou-a no cabelo, inalando a fragrância inebriante que ela tinha. O corpo quente e macio era um convite.

Queria se perder nela, mas com esforço, lembrou-se de que estava ali para oferecer somente conforto.

— Vou buscar o seu irmão na igreja.

— Não. — Ela meneou a cabeça. — Não posso incomodá-lo todas as noites.

— Isto acontece sempre?

— Nos últimos tempos. Quanto mais me aproximo do casamento...

Depois de uns instantes em silêncio, Thorne pediu:

— Conte-me o pesadelo. — Abraçou-a forte. Não poderia dividir a dor dela e, se ela permitisse, tentar atenuá-la.

— É sobre minha mãe... No lago. Ela era tão bonita e, de repente, se transformou...

— Oh, milady — ele sussurrou.

— Se não fosse por Rainulf eu também teria morri­do. Ele salvou minha vida, e mais importante, deu um sentido a ela, me educou. Tudo o que sou, devo a ele. Eu faria tudo por ele.

— Até casar com sir Edmond.

— Sim — ela concordou num sussurro.

— Mesmo que o casamento a aterrorize. Ela assentiu.

— Talvez... Quem sabe no fim das contas não acabe apreciando o matrimônio? Edmond não é um mau sujei­to, é apenas inexperiente. Pode acabar se apaixonando por ele. — As palavras pareciam sem nexo até mesmo para seus ouvidos.

— Deus, isso não! — A veemência na voz dela o surpreendeu.

— Prefere um casamento sem amor?

— Prefiro não me casar, mas já que minhas vontades não têm vez... Prefiro uma união civilizada. Os homens usam o amor das mulheres para controlá-las e depois destruí-las quando for conveniente.

— Fico surpreso então que tenha concordado com a união, mesmo que seja pelo bem de Rainulf.

— Ele me ajudou quando precisei, agora é a minha vez de retribuir.

— Está disposta a dispor do resto de sua vida por ele?

— Já tomei minha decisão. Não existe "resto de mi­nha vida". Vivi bem até então, graças a Rainulf, agora é a vez dele.

Thorne olhou para a mulher em seus braços, tão quente, tão doce. Contra o peito nu, sentia o contorno arredondado dos seios, as batidas do coração... Ela ainda tremia de medo.

Estar ali naquela situação era uma loucura. Sabia que devia se afastar, mas não conseguia, não poderia deixá-la tão atormentada.

Teria de acalmá-la. Depois que ela relaxasse o bas­tante e voltasse a dormir, poderia sair. Levantou a tran­ça pesada e desfez o laço, soltando as madeixas. Passou os dedos pelos fios em movimentos ritmados e em poucos minutos ela começou a se acalmar.

— Costuma pensar no destino? — Martine perguntou.

— No destino? — Ele parou os dedos nos cabelos longos.

— Eu penso — ela murmurou. — Imagino o destino como um laço, uma faixa dourada e longa. Ela passa pelas nossas vidas. A princípio nem percebemos que está lá, mas ela nos rodeia e se aproxima cada vez mais. Até que um dia nos vemos presos e incapazes de nos soltar. Ele riu ante a imaginação fértil de uma mulher tão racional.

— Rainulf não lhe falou do livre arbítrio? Foi uma das minhas primeiras aulas.

— Minha também. — Ela riu. — O livre arbítrio exis­te, não me leve a mal. O que torna ainda mais frustrante o fato de nos vermos prisioneiros do destino.

— Gosto de pensar que tenho o comando de minha vida. — Ele continuou com a carícia nos cabelos.

— Todos pensamos assim. Mas nunca se viu levado por forças que não conseguia controlar?

— Não — ele mentiu. Bem, talvez não fosse uma mentira completa. Era verdade que tinha sentimentos indesejados por Martine, mas conseguia controlá-los.

— Minha mãe foi vítima do destino. O amor que sentia por Jourdain a manteve cativa por muitos anos. Foi só no final que ela conseguiu se libertar. O afogamento foi o primeiro e último ato de independência que ela cometeu.

— Louva o suicídio dela como um ato de livre arbítrio?

— Não o louvo, mas compreendo. Chego até a admi­rá-la de certo modo. Era a única saída. Ela tomou uma decisão e agiu.

— Não há nada de admirável no que ela fez, Mart... milady. Sei que ela deve ter sido muito infeliz, mas você está errada ao interpretar o ato de fraqueza dela como de força. Ela desistiu e, ao fazer isso, condenou a filha à morte.

— Então o que ela fez não teria sido tão horrível se eu não existisse?

— Este não é um argumento acadêmico. O fato é que ela tinha uma filha e a desconsiderou por completo ao tirar a própria vida.

— Eu sobrevivi.

— Graças a Rainulf. Ainda assim, você carrega ci­catrizes emocionais, veja esse pesadelo... É um milagre que não tenha enlouquecido depois do ocorrido.

— A pior parte não é o corpo. Eu não o vejo sempre. O problema é a água. Ela se transforma em sangue. E um lago de sangue. — Martine estremeceu e passou o braço ao redor dele. — Sinto medo da água desde então.

— Nadou quando salvou Ailith.

— Eu não tive alternativa.

— Podia ter se deixado tomar pelo medo e permitir que ela se afogasse, mas não foi o que fez. Usou o livre arbítrio para vencer o medo. — Os dedos voltaram a se enroscar nos longos fios sedosos. — Devia voltar a nadar, só por prazer.

— Sinto medo — ela sussurrou.

— O medo existe para ser superado. — Ele massageou o couro cabeludo com as pontas dos dedos. — Precisa nadar.

— Não sei.

— Prometa que voltará a nadar logo. Isso é impor­tante. Depois que superar esse medo, poderá lidar com o resto. Prometa.

Ela murmurou algo que parecia um "sim" e ele Sorriu.

— Só está dizendo isso para me calar.

Ela não respondeu, apenas se aconchegou mais, sonolenta.

— Tudo bem. Contento-me com o que posso ter.

Martine abriu os olhos. Havia um homem em sua cama, envolvendo-a nos braços, uma perna sobre a sua.

Suspirou fundo e sentiu a fragrância familiar.

Thorne.

Do outro lado da cortina, ouviu vozes. Risos seguidos comentários abafados.

— O que... — ela começou a falar, mas Thorne tapou-lhe a boca com a mão.

Mesmo na penumbra, ela conseguiu ver os olhos de Thorne e leu um aviso neles. Assentiu e ele retirou a mão.

Aproximando a boca de seu ouvido, ele sussurrou:

— Rainulf e Matthew chegaram enquanto você dor­mia e estão conversando aí fora desde então. Eu não ti­nha como sair.

Mais uma vez ela assentiu. Ainda estava escuro lá fora e chovia com intensidade. Ela teve a impressão de que dormira por um bom tempo.

Estava aconchegada ao peito nu de Thorne, o braço envolvendo-o pela cintura e os cabelos soltos enroscados em uma das mãos fortes. Estavam colados como aman­tes e ela sentiu uma onda de pânico antes de se lembrar de que nada havia acontecido. Nem mesmo um beijo. Ele somente a ouvira e confortara. Depois a manteve nos braços até que adormecesse. Se algo tivesse aconte­cido, ela decerto, se lembraria.

Para ele teria sido muito fácil tentar alguma coisa. Era mais forte e não encontraria resistência. Se bem que Martine desconfiava de que ele fosse incapaz de usar a força para se impor na cama. Um homem como Thorne devia saber o que dizer para convencer uma mulher a lhe oferecer o que ele queria. Sentiu-se aquecer por den­tro ao imaginar o que poderia ter acontecido entre eles, as coisas que ela poderia querer que ele fizesse...

A respiração dele soprou seus cabelos. Estavam tão próximos que ela não sabia se as batidas aceleradas que sentia eram de seu coração ou do dele. Nunca tinha sen­tido a pele tão sensível, tão alerta. Cada parte de seu corpo que o tocava queimava com um prazer desconhecido e excitante.

Sentiu ele pressionar algo rígido, tenso contra seu ven­tre. Sentiu o próprio corpo retesar em resposta; precisava dele ali, entre as pernas, possuindo-a, preenchendo-a.

Ficou tensa de súbito quando ele se afastou, a mente num turbilhão. O que ela queria, jamais poderia ter. Se o controle dele falhasse, seria ela capaz de resistir?

Mais risos do outro lado da cortina. Thorne tirou o braço debaixo dela e se apoiou no cotovelo. Esticou a mão e, com cuidado, abriu um buraco no tecido e espiou para fora. Fechou a cortina novamente e se sentou na cama. Esfregou os braços, e os músculos das costas e dos ombros ondularam. Com um suspiro contrafeito, passou os dedos pelos cabelos.

Martine refletiu sobre o conhecido autocontrole que Thorne exercia naquela noite para o bem de ambos. Em parte sentiu-se desapontada, porém também sentiu alívio.

Ele tinha se tornado seu amigo. Não só naquela noi­te, mas no último mês. Não era uma amizade simples; de fato, era bem complexa, até mesmo perigosa. Ainda assim, eles partilhavam algo raro e precioso; algo que teriam de abrir mão ao chegarem a Harford.

Já sentia falta dessa intimidade, lamentava sua perda. Precisava agradecer, dizer o quanto sentiria falta do tempo deles juntos.

— Thorne... — Antes mesmo que ele se virasse e pousasse um dedo em seus lábios, ela percebeu que tinha falado alto demais. Ouviu a conversa do lado de fora cessar e o arrastar de uma cadeira.

Thorne abaixou a boca até seu ouvido, uma mão de cada lado de sua cabeça.

— Pelo amor de Deus, não o deixe entrar!

— R-rainulf?

— Martine? — Ela conseguia ouvir a preocupação na voz do irmão. — Está tudo bem? Teve outro pesade­lo? — Pela proximidade da voz, ele estava logo atrás da cortina.

Ela respirou fundo e tentou imprimir casualidade na voz:

— Está tudo bem. Acho que falei durante o sono... Thorne assentiu em aprovação e sorriu. Depois de um instante, Rainulf disse:

— Vou para a cama agora. Tente dormir também. A viagem será longa amanhã.

— Está bem. Boa noite.

Thorne e Martine ouviram os homens se afasta­rem. Quando o silêncio retornou, ela olhou no azul in­finito dos olhos de Thorne. Sentiu o coração apertar ao perceber que, em duas semanas, estaria casada com ou­tro homem. Seus sentimentos por Thorne não frutifica-riam. Ainda assim, sentiu-se compelida a dividir aquilo com ele, mesmo que fosse tolice, mesmo que houvesse conseqüências.

— Thorne — ela sussurrou.

Mais uma vez, ele a tocou nos lábios, mas os olhos não tinham mais um alerta, e sim pesar. O olhar dele se deteve em sua boca enquanto o dedo resvalava o lá­bio inferior.

Ela pensou que ele fosse dizer alguma coisa, mas em vez disso, Thorne abaixou-se para pegar a lamparina e se levantou da cama. Na soleira da porta, se deteve de costas, a mão na cortina. Por fim, relanceou por sobre o ombro e disse:

— Boa noite, milady. — E saiu.

Martine não conseguiu mais dormir, embora, sonolenta, chegou a imaginar uma faixa dourada e metros de tecido verde que a rodeavam enquanto vozes mur­muravam frases incoerentes sobre livre arbítrio, medo, coragem e destino. Viu o lago de sua infância, as águas azuis como os profundos olhos de Thorne. Pareciam tão convidativas...

A conversa com ele tinha sido inspiradora. Sabia o que tinha de fazer. Se não o fizesse, acabaria se arrependendo.

Decidida, ficou acordada o resto da madrugada à es­pera da aurora.

Esticado na cama, os pés cruzados e as mãos atrás da cabeça, Thorne viu os primeiros traços do amanhecer pela janela de seu quarto e pensou se um dia consegui­ria voltar a dormir.

Franziu o cenho ao ouvir o som abafado de alguém passando pelo salão principal. Era muito cedo, nem ti­nham tocado os sinos ainda. Esticou-se e afastou a cor­tina a tempo de ver uma figura vestida de preto desa­parecendo pela escadaria. Em seguida ouviu passos no jardim. Levantou-se e espiou pela janela.

Ainda estava bem escuro, mas a chuva havia cessa­do, portanto conseguiu ver claramente Martine, em seu manto com capuz, entrar no estábulo e sair em seguida, puxando uma égua selada. Montou e foi para a entrada principal, seguindo para o norte. Não havia nada além do rio naquela direção.

Vestiu as calças e se sentou na cama, cocando a barba crescida de um dia. Ela nunca fora até o rio desacompa­nhada. O que a levaria até lá logo agora que estavam de partida?

Era verdade que ela não estava ansiosa por partir. O casamento iminente a assustava. Era estranho que o es­tado civil tão almejado pela mãe, fosse considerado uma prisão e um castigo pela filha.

Não existe "resto de minha vida", ela dissera. Já tomei minha decisão.

Decisão. Ela tinha usado aquela palavra ao se referir à mãe também.

Ela tomou uma decisão e agiu. Chego até a admirá-la.

Um frio percorreu a espinha de Thorne e ele segurou a cabeça entre as mãos.

Era a única saída...

Ele se levantou.

— Jesus Cristo... — murmurou e apanhou a camisa do gancho na parede, saindo às pressas do quarto.

Thorne desmontou do garanhão branco, deixando-o solto perto da margem do rio e foi para perto da água. O dia começava a amanhecer, mas por causa da névoa densa não enxergava um palmo adiante do nariz.

— Milady! — chamou e esperou uma resposta. Teria chegado tarde demais? Sentiu o coração bater descom­passado dentro do peito. Tirou a camisa e entrou na água, olhando ao redor em desespero. — Milady! — Voltou a gritar.

Deus meu, não permita que isso aconteça, ele rezou. Já me castigou demais. Não leve Martine.

Imaginou encontrá-la flutuando, fria e imóvel, e um grito angustiado escapou-lhe da garganta:

— Martine!

Sentiu uma ondulação às costas e se virou. Viu-a no meio da névoa, pálida, luminosa e tão perto. Os olhos dela, azuis como o lago, encontraram os seus no meio da neblina. A água chegava em sua cintura, e ela tinha os braços cruzados sobre o peito, estando coberta somente pelos longos fios de cabelo.

— Martine! Graças a Deus! — Num piscar de olhos, diminuiu a distância entre eles e a tomou nos braços, o alívio assolando-o por completo. — Pensei que estivesse morta.

— Morta! — Ela o encarou confusa e depois compre­endeu o que ele dizia. — Pensou que eu...

O rosto dele mostrou o tormento pelo qual passara seu coração, então ela ergueu a mão e afagou a face ás­pera, num gesto de conforto. Thorne fechou os olhos, lu­tando para se recompor. Tanto medo, seguido por tanta alegria. Era muito mais do que ele conseguia suportar.

— Eu nadei — ela disse e ele abriu os olhos. — Disse que eu precisava voltar a nadar e foi o que eu fiz. Foi maravilhoso; eu me senti tão poderosa. — Abraçou-o pela cintura.

Ele riu aliviado e puxou-a para perto. Beijou-a na tes­ta, nas têmporas. Entrelaçou os dedos nos cabelos mo­lhados e, com a outra mão, afagou-a nas costas.

O cabelo a cobria como um manto, mas nas partes em que se dividia, Thorne sentia a pressão dos seios, quen­tes e macios, ao encontro de seu peito. Uma voz fraca e civilizada o aconselhava a se afastar.

Eu vou, ele pensou, só preciso senti-la um pouco. Amparando a cabeça dela em suas mãos largas, incli­nou-a e beijou-lhe as pálpebras, depois as maçãs do ros­to. Os olhos estavam fechados, mas a boca o convidava. Não, não a beijaria na boca, senão estaria perdido.

Não vou beijá-la, ele pensou ao abaixar os lábios. É só um toque... Resvalou os lábios nos dela e ouviu-a suspi­rar. São os lábios de Martine que tocam os meus, pensou entorpecido. Mais uma vez, uma carícia fugidia. Não era um beijo de verdade, apenas um toque e nada mais.

Fechou a boca sobre a dela... Não é um beijo. Sua língua entreabriu os lábios em busca do calor, do doce sa­bor. Percebeu os mamilos de Martine enrijecerem.

Precisava tocá-la. Sem afastar a boca, afastou os cabe­los dela e os colocou atrás da orelha. Espalmou os seios, fazendo-a arfar. Fartou-se com o peso deles, esfregando os mamilos, encantado com a aceleração do coração dela debaixo de suas palmas e com os gemidos que escapa­vam da garganta.

Seu corpo reagiu de pronto, a ereção se elevando de­baixo da calça. Thorne sabia que Martine havia notado, mas ela não se afastou. Por isso, pegou-a pelas nádegas e pressionou-a de encontro ao seu membro pulsante. Ela moldou o corpo ao dele, pressionando-o nas costas, a fim de aproximá-lo ainda mais.

Com uma das mãos enroscada nos cabelos e a outra ao redor da cintura dela, ele cedeu à necessidade de beijá-la, tomando-a de assalto com a boca esfomeada. Martine retribuiu o beijo.

Ele sentiu a sua paixão, o seu calor e soube sem som­bra de dúvida que ela estava tão perdida, tão tomada pelo desejo quanto ele.

Sem interromper o beijo, pegou-a no colo e avançou pela água na direção da margem, a cabeça reverberando com um urro selvagem que só ele conseguia ouvir.

Isso é um sonho, Martine pensou ao ser colocada sobre o musgo frio. Thorne se levantou e puxou o laço da calça em meio à nevoa. Ela fechou os olhos e pensou mais uma vez: é um sonho e logo vou acordar.

Então ele se deitou sobre ela e a tomou nos braços, e ela soube que não era sonho algum. Estava mesmo ali, na margem do rio ao amanhecer. Aqueles eram os lábios de Thorne sobre os seus, notou maravilhada. As faces ás­peras por barbear resvalavam as suas. As mãos indóceis explorando seu corpo eram as dele, a coluna de fogo que pressionava suas coxas pertencia a ele.

Thorne despertava lugares intocados, arrancando suspiros de prazer de sua garganta conforme as carícias se tornavam mais ousadas. Ele inclinou a cabeça até um seio e tomou-o no calor da boca, sugando-o e exci­tando o mamilo com os dentes. Seguiu o tormento com pequenos beijos e lambidas, descendo numa trilha pelo ventre reto.

Martine estremeceu ao sentir o hálito morno em meio às suas pernas, arfou diante da pressão dos lábios, a in­timidade quente da língua.

Segurando-a pelo quadril, Thorne inseriu um dedo na cavidade úmida, explorando-a por dentro. O que ele fa­zia com os dedos e com os lábios era um estranho feitiço. Era fogo incendiando-a por dentro. Delirando de desejo, ensurdecida pelo sangue que pulsava em seus ouvidos, ela o agarrou pelos cabelos.

— Por favor...

Thorne retirou o dedo e beijou o sexo pulsante com candor, depois encostou o corpo no dela. Martine se abriu para ele, segurando-o nos braços. Sabia o que viria em seguida e o recebia de bom grado; todavia, quando ele pressionou a ereção em sua intimidade, ficou tensa, o coração acelerado em pânico.

Ele a possuiria, a consumiria. Thorne a segurou pelo rosto e ela o fitou nos imensos olhos azuis. Ele sussurrava coisas que ela mal conseguia ouvir, mas sabia serem promessas... No fundo dos olhos dele, viu segurança, assim como a fome profunda que o consumia. Enxergou-se refletida neles, e viu sua própria sede, seu desejo. Estarem juntos daquela forma era inevitável. Soube disso desde o momento no barco quando se viram pela primeira vez. Ouviu-o dizer: se quiser que eu pare...

Ela riu e meneou a cabeça. Como ele podia pensar que ela não queria?

Ele a beijou com sofreguidão, um beijo de agradeci­mento e desejo. O beijo abafou o arfar que ela emitiu ao ser penetrada. Os músculos dos braços e ombros largos estavam tensos, revelando o quanto ele se continha.

Thorne parou a meio caminho e desceu uma das mãos entre eles, acariciando-a onde os corpos se uniam. Uma faísca se reascendeu, e ela ergueu o quadril, implorando desta vez com o corpo.

No átimo que foi tomada pelo fogo da paixão, Martine se agarrou aos ombros dele e gritou o seu nome. O calor a consumia e ela mal percebeu quando ele ergueu-lhe o quadril, grunhindo ao enterrar-se em seu corpo. Numa única investida ele a invadiu e depois a segurou firme nos braços até que os tremores dela cessassem.

— Você está bem? — perguntou ele, com suavidade. Martine respirou fundo e assentiu. O prazer tinha sido muito maior do que a dor. Thorne a acariciou nos cabelos e ela fechou os olhos.

Ele a completava em sua totalidade. Imaginou se es­taria dolorida no dia seguinte, então se lembrou de que estaria de volta a Harford, preparando-se para se casar com outro. Abriu os olhos e disse:

— Acho que estamos loucos. Ele a beijou na testa.

— Se estamos loucos — murmurou ao encontro da boca carnuda —, que assim seja.

Os beijos que se seguiram eram carregados de reve­rência, como se tocassem objetos preciosos. Ele adorava a boca, as faces, as pálpebras, o pescoço dela...

Martine notou um movimento quase imperceptível no baixo-ventre, estocadas lentas e gentis.

— Sente dor? — ele sussurrou com a voz rouca.

Ela o prendeu nos braços e negou. Sentia o coração acelerado dele, sabia que agora era a vez de Thorne se saciar.

O seu próprio prazer a surpreendera, e não imagi­nava que seria possível repeti-lo tão cedo. Entretanto, conforme ele se movimentava, sentiu as chamas se re-acenderem em seu íntimo. As estocadas cada vez mais profundas e rápidas inflamaram seu desejo e ela acom­panhou o ritmo dele, sem conseguir pensar em nada falem do fogo que a consumia. Quando o êxtase a tomou por completo, soluços escaparam de sua garganta.

Thorne arqueou sobre seu corpo, duro e trêmulo, o cabelo caindo em mechas úmidas sobre a testa. Quando o clímax de Martine arrefeceu, ele saiu de dentro dela e se deixou ficar sobre o corpo delgado, cobrindo-a como um pesado cobertor. Ouviam os ecos dos gemidos que ele emitia enquanto se movimentava sobre seu corpo. Logo ela sentiu o calor do sêmen em sua barriga, e ele caiu estremecendo e arfando.

Martine o segurou nos braços, afagando a cabeça aninhada em seu pescoço, saboreando o peso e o calor do corpo forte sobre o seu. Sabia o suficiente a respeito de reprodução para entender por que ele tinha saído de dentro dela e ficou agradecida por tamanha generosidade. Ao mesmo tempo, não podia deixar de desejar que ele ainda estivesse lá, preenchendo-a de modo tão íntimo.

Depois de recuperado, ele a beijou com doçura, nos lábios e nos seios.

— Você é linda... Perfeita. — Ajoelhando-se, tocou-a nas partes doloridas e disse: — Está sangrando. Venha.

Tomando-a pela mão, entrou no rio. A névoa começava a subir e o sol a surgir entre a folhagem. Ficaram abraçados em silêncio por um bom tempo, até que a água lavasse todo o sêmen de Thorne e o sangue da virgindade de Martine.

 

A viagem de volta a Harford pareceu interminável. Martine e Thorne trocaram apenas palavras inócuas, cientes da presença de Rainulf. Ao chegarem ao castelo no fim de tarde, ela se sentia exausta, não só física, mas emocionalmente.

O que foi que eu fiz?, ela não parava de se perguntar ao se lavar e se trocar. O que faremos agora?

Thorne a aguardava na escadaria quando ela desceu para o jantar. Martine arquejou quando ele a tomou nos braços, pressionando-a na parede, os lábios ávidos por um beijo roubado.

— Venha me ver hoje à noite — ele pediu com voz rouca. Os olhos imploravam enquanto as mãos explora­vam o quadril, a cintura, os seios.

— Thorne... — Ele pressionou o mamilo entre os de­dos sobre o vestido. — Nós temos que... — Ele pressionou o quadril contra o dela, mostrando o quanto a desejava. — Oh, Deus...

— Venha até mim... — Thorne mordiscou o lóbulo da orelha.

— Precisamos conversar — ela conseguiu dizer, abraçando-o.

— Preciso tanto de você. Nós vamos conversar, mas venha...

Passos se aproximaram. Thorne a soltou com pronti­dão, segundos antes que Bernard aparecesse.

— Milady — Bernard a cumprimentou com voz aveludada. — Thorne. — Ele acrescentou e olhou de um para outro. — O jantar está servido, se não se importam de se juntar anos.

— Basta de falar de Neville! — Godfrey exclamou, levantando-se cambaleante na cabeceira da mesa.

Ainda bem, pensou Martine. Toda a conversa durante o jantar fora acerca do barão assassino que desapare­cera de Sussex, junto com boa parte de seus homens, no dia do noivado. A esposa buscara refúgio num con­vento, mas não sabiam do paradeiro de Neville desde então. Fontes seguras garantiam que ele, em vez de fugir para o continente, tinha seguido para o norte a fim de contratar soldados. Sem saber das reais intenções do barão, Olivier ordenou que todos se preparassem para uma possível batalha.

— Quietos, todos! — Godfrey exclamou mais uma vez. — Thorne, levante-se! — O saxão, parecendo um tanto desconfortável, obedeceu. — Tenho algo a anunciar.

Deus, meu! Bernard nos viu e contou ao pai, Martine pensou. Thorne está perdido... Eu também!

As conversas paralelas cessaram e todos, à exceção de Edmond, abaixaram as facas e as taças. O barão fixou olhar em Thorne, sentado diante de Martine.

— Por dez anos me serviu, Thorne Falconer, e de maneira extraordinária. É um soldado destemido, como poucos, mas todos que me conhecem sabem que é a sua habilidade com as aves, mais até do que com o arco, que o tornou tão indispensável para mim.

— Bravo! — exclamaram Peter e Guy em coro. — Indispensável demais — Godfrey admitiu. — O que faço hoje, devia de ter feito há muitos anos. Porém, de modo egoísta, o mantive em Harford, treinando os meus pássaros em vez de liberá-lo para que treinasse os seus, longe daqui. — Suspirou. — Contudo, é chegada a hora. Ao arranjar o casamento de meu Edmond com a adorável lady Martine de Rouen — acenou para a moça que, aliviada com o rumo da conversa, retribuiu o cum­primento —, uniu minha família à da rainha Eleanor. Esse é um serviço que não posso deixar sem recompen­sa. — Fez um gesto para um criado que entregou um fardo embrulhado em seda púrpura. — Abra!

Thorne abriu o pacote que continha uma linda es­pada com o cabo adornado por pedras preciosas. Acima do murmúrio que correu o salão, Godfrey disse:

— Dentro desse cabo há uma tira das vestes sagra­das de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Os murmúrios se transformaram em exclamação, mas a expressão de Thorne continuava impassível.

— Agora, quanto à sua terra...

O silêncio caiu sobre o salão. Todos observavam Thorne, que, pacientemente, aguardava que o barão continuasse. Se não fosse pelos nós brancos dos dedos ao segurarem a espada com força, alguém o considera­ria imune à tensão do momento.

— Assim que possível após as bodas — Godfrey pros­seguiu — tenho a intenção de lhe conceder uma casa de meu feudo, junto a terras, mais especificamente aquelas da fronteira sul e oeste do rio Harford até o leste nos muros que cercam... — Os gritos dos homens de Thorne ecoaram pelo salão interrompendo a descrição da pro­priedade, pois todos sabiam a que porção de terras o ba­rão se referia.

Thorne, aparentemente surpreso, relanceou na dire­ção de Martine.

— E muito generoso de sua parte, milorde — ele disse ao se sentar.

— Você fez por merecer — Godfrey declarou. — A agora, se lady Estrude ficar de pé...

Uma sorridente Estrude se levantou, alisando o vestido.

— Meu segundo anúncio também é alegre, ainda que tardio, devo acrescentar. Amigos e parentes, é com gran­de prazer que anuncio que Estrude de Flandres, minha nora, está grávida.

Um grito de aprovação percorreu o salão. Estrude cintilava. Bernard recebeu diversos tapinhas nas costas.

— Um bebê, um bebê! — Ailith exclamava no colo da mãe. Curiosamente, Clare não parecia partilhar da felicidade geral. Enxugou uma lágrima ao olhar para Bernard.

— Thorne! — exclamou Rainulf, sentado ao lado de Martine.

Todas as cabeças se viraram para o saxão. Parado, com a espada na mão direita, a esquerda mostrava um corte na palma.

— Que desastrado que sou — ele disse de modo contido.

Martine estava para se levantar quando Felda se adiantou, retirando o avental.

— Fique quieto... — insistiu ela ao ver o rosto pálido do cavaleiro.

— Estou bem.

Martine o fitou, mas ele desviou o rosto, parecendo fazê-lo de modo deliberado.

Felda amarrou o avental na mão ensangüentada de Thorne e se pôs a correr atrás dele, dizendo:

— Deixe-me cuidar desse corte...

— Estou bem. Deixe-me em paz.

— Thorne...

— Felda! — A exclamação deixou-a surpresa. Arrependido, ele fechou os olhos em busca de controle. — Por favor, deixe-me ir.

Todos o observaram em silêncio quando ele desapare­ceu pelas escadas.

Da janela do quarto, Martine via a luz da falcoaria. O pátio estava escuro, e já havia algum tempo que nin­guém passava por ali. Seria cedo demais para ir até lá?

Atrás dela, Felda se ocupava, arrumando o quarto e tagarelando sobre a gravidez de Estrude.

— Que sorte a dela. Depois de catorze anos... E eu que pensava que ela estava entrando na menopausa.

A sombra de Thorne passou pela janela. Ele tinha uma ave no pulso.

— Ela só tem trinta anos...

— Sim, mas as regras dela têm falhado nos últimos meses.

— Como sabe disso?

— Não existem segredos na vida dentro do castelo, milady.

Martine esperava pelo seu bem e do de Thorne que aquilo não fosse verdade.

— Ela diz que já consegue sentir o bebê — Felda prosseguiu.

— Isso é tolice, já que ela diz estar no primeiro mês de gestação. Talvez não esteja grávida no fim das contas. Em Paris uma vez ajudei a cuidar de uma mulher que, de tão desesperada para ter um filho, chegou a ter todos os sintomas de uma gestação normal...

Uma mulher solitária coberta por um manto cruzava o pátio interno em direção à falcoaria, lançando olhares furtivos sobre o ombro. Estrude. Sem bater, ela entrou na construção, desaparecendo em seguida. Martine sentiu um frio percorrer sua espinha.

Felda, espiando por cima do ombro dela, exclamou al­guma coisa em inglês. Martine a encarou e viu que ela meneava a cabeça.

— O que foi?

— Não tenho certeza, mas acho que Thorne fez alguma tolice...

— Não entendo...

— O que quero dizer é que lady Estrude talvez não seja simplesmente sortuda. Ela é esperta, isso sim. Talvez o problema esses anos todos não tenha sido ela, mas Bernard.

Martine refletiu um instante.

— Acha que... Você está pensando que o bebê é de sir Thorne? — Felda deu de ombros e Martine tentou con­trolar o turbilhão de emoções que a assolava. — Ele e Estrude... Ele a ama?

— Amá-la? Deus, não! Thorne não precisa estar apaixonado para ir para a cama com uma mulher. Nem mesmo gostar, se ela estiver disponível. Thorne adora mulheres, mas nunca amou nenhuma. Ele já me disse que o amor é uma coisa inventada pelos trovadores.

— Entendo... — Martine começou a tremer.

— O mais estranho é que ele não costuma se misturar com damas nobres, embora vá se casar com uma delas um dia. A sua sede por terras é tão grande que ele ja­mais se contentará em ficar com uma moça sem posses. Para a cama, porém, sempre disse preferir as criadas ou as prostitutas por não exigirem nada em troca. Bem, ao que parece, houve uma exceção.

Havia duas sombras na janela da falcoaria agora, tão próximas que mais pareciam uma só.

Martine passou os braços pela cintura para tentar controlar os tremores que a acometiam.

Thorne cuidava de um dos falcões e, mesmo quando Estrude entrou e se aproximou, ele não desviou os olhos da ave.

— Fez um corte horrível na mão depois do jantar... — ela disse, acenando para a mão enfaixada.

— Horrível foi a surpresa que me fez. — Detestava surpresas. — Estou curioso, como soube que Bernard era o estéril e não você?

Ela desviou o rosto e começou a remexer nas ferra­mentas da mesa.

— Imagino que seja seguro contar a você. Quando eu tinha quinze anos, vivia na casa do senhor supremo de meu pai, servindo à esposa dele.

— Ficou grávida dele? — Thorne perguntou passan­do óleo do bico da ave.

— Sim, eu era uma tola. Adorava-o, assim como a po­bre Clare adora Bernard. — Ela riu ante o ar perplexo de Thorne. — Há tempos sei como ela se sente. E claro que nada acontecerá, pois ela é simples demais para o gosto de Bernard. Eu, por outro lado, era bela e estava disponível. Quando ele descobriu que eu tinha engra­vidado, levou-me até uma parteira e me fez tomar um tônico abortivo.

— Depois disso casou-se com Bernard...

— E ninguém nunca soube de nada.

— Por que me escolheu como pai de seu filho?

— Quer a verdade? Você parece um bom procriador. — Thorne praguejou desgostoso e ela continuou: — É forte, alto e saudável. Pelo que ouvi, seria um touro na cama. Francamente, fiquei desapontada pelo trabalho que tive por um pouco de sêmen saxão...

— Sou um homem simples, mas não burro. Há outro motivo por trás disso: você sabia que eu ficaria calado. Imagino que tenha vindo aqui para se certificar.

— Sim.

— Não tenho alternativa, tenho? Se eu disser qual­quer coisa, serei destruído junto com você. Sabia que eu me calaria. Você é uma mulher ardilosa.

— Obrigada.

— Não foi um elogio.

— Não? Que escolha temos nós, mulheres, senão ser­mos ardilosas e conseguirmos o que queremos por meio de manipulação? Sou boa nisso e aceito o comentário como elogio.

Ela era exasperante, mas estava certa. Ainda abor­recido, Thorne disse:

— Uma coisa me incomoda. Ficarei calado e saberei agüentar ter um filho que não me reconhecerá como pai, mas a idéia de que minha carne e meu sangue sejam criados por Bernard...

— Ele não o criará! — Estrude exclamou. — Não en­quanto eu estiver viva.

A explosão incomodou o falcão no pulso de Thorne, que antes de falar, depositou-o no poleiro.

— Está quase parecendo maternal.

— Sinto-me maternal. — Ela pôs a mão no abdômen arredondado. Thorne achou que a barriga estava grande demais para o estágio precoce da gestação. — A criança será enviada para alguma família nobre para concluir a educação. Uma boa família, bem longe daqui. Longe de Bernard.

— Está falando sério?

— Meu pai era muito parecido com Bernard. Não permitirei que meu filho fique sob o jugo de um homem como ele.

A imagem de uma jovem Estrude sofrendo nas mãos do pai encheu Thorne de compaixão, o que o surpreen­deu. O sentimento por certo ficou estampado em seu ros­to, pois ela comentou:

— Não quero sua piedade, somente seu silêncio.

— Você o tem.

Depois de ver Estrude regressar ao castelo, Martine esperou alguns minutos, vestiu o manto e saiu na ponta dos pés, refazendo o caminho da outra.

Thorne abriu a porta na primeira batida, puxando-a para dentro e comprimindo-a contra a porta. A boca se fechou sobre a sua, quente e exigente. A mão enfaixada lutava para soltar o broche ao mesmo tempo em que a outra a segurava pelo seio. Jogou o manto no chão e le­vantou a camisola, enroscando as pernas dela na sua cintura antes que ela o detivesse.

Ele a beijou no pescoço e, levantando-a, sugou um seio por sobre o tecido. Martine sentiu a excitação percorrê-la por inteiro. Arqueou as costas quando ele pressionou o peito forte contra o dela.

Não deixe que ele faça isso, sua voz interior coman­dou. Ela o empurrou nos ombros e Thorne a abaixou até o chão. Quando ela abriu a boca para falar, foi silenciada por um beijo ardente. Ele abriu a frente da camisola e acariciou os seios.

Martine desviou o rosto, interrompendo o beijo.

— Thorne...

Ele retomou a boca e depois levou a mão dela até sua ereção pulsante, gemendo. Guiou a mão em movimentos ritmados que o enlouqueciam. Seu membro parecia vivo, assustadoramente maravilhoso.

— Thorne, por favor!

— Sei que precisamos falar — ele murmurou rouco —, mas, Deus, como preciso disso! Pensei em você o dia inteiro. Estou sofrendo por sua causa...

Por minha causa ou por qualquer mulher?, refletiu Martine, certa de que sabia a resposta.

As palavras de Felda lhe deram a força de que preci­sava para se soltar.

— Sei que estou indo rápido demais. — Ele sus­pirou. — Mas preciso tê-la. — Pegou a bainha da camisola e começou a erguê-la. — Preciso de você agora. Conversaremos depois.

Segurando-o pelos ombros, ela o empurrou e pergun­tou de pronto:

— O bebê de Estrude é seu filho?

O mundo parou de girar. Thorne não se mexeu. Sob suas palmas, Martine o sentiu tenso.

Ela se desvencilhou dos braços dele e segurou a camisola contra o corpo. Thorne tentou tocá-la, mas a expres­são no rosto dela o deteve. Fechando os olhos, ele cerrou a mandíbula e passou os dedos pelos cabelos.

Martine encontrou o broche no meio da palha, cha­coalhou o manto e o colocou sobre os ombros. Teria o di­reito de sentir ciúmes de quem se deitara com ele antes? Isso não importava. A verdade era que ele não sentia nada mais por ela do que sentia pela odiosa Estrude, em quem, descuidadamente, fizera um filho. Pelo visto, seus sentimentos por ela eram ainda menores do que pelas prostitutas e criadas de sua preferência. Para Thorne Falconer as mulheres só serviam para seu prazer.

Não, aquilo não era inteiramente verdadeiro, pois ela mesma servira a um segundo propósito: tinha sido um meio para que ele conseguisse as almejadas terras. Aquilo já seria humilhação o bastante, mas o modo como cedera... Ela se encolheu ao pensar em como ele se diver­tira diante de sua ingenuidade.

Ele a tinha usado, como Jourdain usara sua mãe, e ela, como uma tola, permitira.

Não havia como voltar atrás, não tinha como apagar a dor e a humilhação, mas talvez conseguisse recuperar um pouco de dignidade. Forçando um tom de desinteres­se, disse:

— Existe alguma mulher no castelo com a qual não tenha se deitado? — Virou-se e tentou abrir a porta.

Com um baque, ouviu-a se fechar. Viu-se diante da porta, com uma mão forte de cada lado da cabeça, o peito arfante às suas costas.

— Martine — ele disse baixo, obviamente tentando se controlar. — A respeito de lady Estrude e... e o bebê. Não julgue sem saber o que aconteceu.

— Acho que consigo imaginar o que aconteceu.

Ela tocou a maçaneta, mas ele a segurou pelos om­bros e a obrigou a se virar. Fechando o manto com as mãos, ela se desviou dos intensos olhos azuis. Thorne cerrou-os por um instante e respirou fundo.

— Mais alguém sabe disso?

— Felda suspeita.

— Falarei com ela. Felda não pode comentar isso, nem você. Se Bernard descobrir...

— Ele o matará.

— Sei cuidar de mim, mas Estrude é indefesa. Deus sabe que não sinto afeição pela mulher, mas...

— Ah, sim, é mesmo — disse fria, encarando-o pela primeira vez. — Sei que não desperdiça sentimentos com suas parceiras de cama. Preocupa-se mais com suas aves do que com as mulheres que usa e depois descarta.

Ela desviou o rosto de novo, mas ele a segurou pelo queixo e forçou-a a fitá-lo. Parecia insultado. Era um excelente ator. Tinha de ser. Afinal, de que outro modo teria tanto sucesso com as mulheres?

— É isso o que pensa que aconteceu? Que usei e des­cartei você? — ele perguntou com amargura.

— Nega isso? — Ele abriu a boca para falar, mas ela o interrompeu com outra pergunta: — O que acha que aconteceria depois que nós... Depois desta manhã?

— Eu não sei. Foi tudo rápido demais e eu me senti tão... — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Quando descobri que tinha ido até o rio e pensei que se suicida­ria, entrei em pânico. Nada mais importava a não ser encontrá-la e...

— Se certificar de que eu ficasse viva por tempo sufi­ciente para me casar com sir Edmond a fim de que você recebesse seu prêmio!

Ele a sacudiu pelos ombros.

— Martine, não pode acreditar que é por isso que...

— Chega de mentiras! — ela gritou se soltando. — Estou farta! Você precisava de mim viva para seus pro­pósitos, por isso me seguiu.

— Então por que fiz amor com você? — ele perguntou.

— Por que eu... eu estava à disposição. Você leva para a cama qualquer uma que esteja à mão sem se importar com os danos. Não é melhor do que Jourdain!

Sério, ele disse:

— Martine, não é nada disso. Suas impressões estão manchadas pelas memórias que tem de seu pai, mas não pode transferir os pecados dele para mim. Eu tenho os meus próprios.

— Deus bem sabe o quanto isso é verdade!

Thorne a acariciou no rosto e ela fechou os olhos, lembrando-se de que tudo aquilo não passava de uma encenação.

— Sei que se sente usada — ele disse com candura. — Sei que está magoada...

Ela arregalou os olhos e se esquivou do toque dele.

— De maneira alguma — mentiu. Quanto menos ele soubesse de seu poder de feri-la, melhor seria para ela. — Está errado quando diz que eu não estava pensando quando eu... quando nós... Eu sabia exatamente o que estava fazendo. Eu o usei do mesmo modo como você me usou. Eu queria um amante antes de me casar, para ter experiência. Você estava à disposição. Foi só o que signi­ficou para mim.

Thorne vasculhou seu olhar, ela o sustentou o máxi­mo que pôde.

— Não acredito nisso — ele disse baixinho. Ela levantou o queixo.

— Acredite no que quiser. — Virou-se e segurou a maçaneta, mas a mão dele a deteve de novo. — Tem mais alguma coisa a dizer?

Alguns segundos se passaram antes que ele retirasse a mão.

— Foi o que pensei.

Thorne, em seu cavalo branco, observava a procissão do casamento se aproximar da capela do baronato, ova­cionada pelos aldeões reunidos. Na frente iam os músi­cos com suas flautas e tambores...

Depois vinha Martine, sentada de lado na sela de uma mula decorada, guiada por Rainulf. Na porta da igreja, o irmão a tirou da montaria e deixou-a diante de padre Simon. Edmond, a família e todos os cavaleiros e criados de Harford os seguiram e desmontaram, mas Thorne não os percebia; seu olhar estava fixo na noiva.

Ela parecia uma deusa nórdica em seu costume de brocado dourado com peles nas barras. O cabelo em duas longas trancas era parcialmente coberto por um véu fino preso por uma coroa de ouro. Era parecia regia, etérea e... assombrada.

Eram os olhos que conferiam essa aparência. Esta­vam carregados de melancolia, como se deles tivessem sido retiradas todas as alegrias da vida, e ela tivesse se resignado com as angústias.

Apenas quando Edmond a alcançou nos degraus da igreja e a tomou pela mão, foi que Thorne conseguiu despregar os olhos. Com um puxão raivoso nas rédeas, fez o cavalo se virar e começou a galopar para longe de Harford.

Iria para Hastings e se esqueceria de tudo.

As prostitutas da casa de Fat Nan se alegraram ao vê-lo. Até mesmo as que entretinham fregueses voaram como abelhas em direção ao mel.

— Afastem-se! Ele escolherá uma no tempo certo. Deixem o homem respirar! — Sorrindo para Thorne, Fat Nan ofereceu a mão roliça para um beijo. — Há quanto tempo, sir Falconer... Devo admitir que estou surpresa em vê-lo, já que há um casamento em Harford hoje.

— Casamentos são entediantes.

— Bem, nós não somos, não é mesmo, garotas? Houve um coro alegre no salão, em seguida oferece­ram-lhe cerveja.

— Onde está Emeline? — Um silêncio pesado caiu no bordel quando ele perguntou da prostituta que costuma­va servi-lo. — Nan?

— Quebrou o pescoço.

— O que aconteceu?

Mais silêncio até que Tilda, uma das moças, disse abruptamente:

— Foi um dos cachorros de Harford.

— Tilda! Calada! — Fat Nan exclamou.

— Foram ameaçadas se dissessem alguma coisa? — Thorne perguntou.

— Sim, ainda que tenham nos subornado, disse­ram que teríamos o mesmo fim de Emeline se não nos calássemos.

Só podia ser obra de Bernard. Houvera rumores de algo semelhante vinte anos antes e, apesar de lor­de Olivier ter abafado o caso por gostar muito de seu escudeiro na época, a reputação de Bernard o precede­ra e nenhum nobre se arriscara a conceder a mão da filha em casamento, motivo pelo qual ele tivera de buscar uma esposa em um local distante. Ainda assim, Thorne se perguntou por que ele caíra em tentação novamen­te depois de tanto tempo. Bernard era pernicioso, mas não estúpido.

Nan deu um tapinha em sua mão.

— Sei que gostava dela, mas estou certa de que encon­trará outra de seu agrado. Tenho uma garota nova, veja. — Chamou uma moça para perto. — Esta é Wilona.

Foram os cabelos loiros da jovem que fizeram Thorne se decidir.

— Está bem. Vamos subir.

Assim que entraram no quarto, a moça retirou o rou­pão e se deitou.

— Solte o cabelo...

Ela o atendeu e comentou:

— E assim que gosta? Estou parecida com ela? — Thorne somente a encarou. — Conheço os homens... Se quiser, pode me chamar pelo nome dela.

Ele seguiu para a janela e a abriu, respirando o ar fresco. Ao longe conseguia ver o cais, fervilhando de bar­cos, e se lembrou daquele primeiro dia, do sorriso miste­rioso. Atrás dele, Wilona insistiu:

— Qual o nome dela?

E Martine, ele pensou. E o cabelo dela não é nada pa­recido com o seu. Ela não se parece com nenhuma outra mulher neste mundo.

E não posso tê-la para mim. Ela nunca será minha... Que Deus me ajude a superar este dia, e o seguinte, sem enlouquecer por querê-la tanto. Sem morrer um pouco a cada dia por não tê-la ao meu lado. Deus me ajude e me dê forças para que eu não a roube e a leve para longe e... E o quê?

Apoiando os cotovelos no parapeito, ele escondeu o rosto nas mãos. Martine o tinha evitado nos últimos dias, pois estava magoada e furiosa. Ele sabia, porém, que ela se importava com ele, que aquela manhã no lago significara muito mais do que ela admitia. Um milhão de vezes nas últimas duas semanas, tentara pensar em um plano para levá-la dali e, em desespero, concluía que não havia saída.

— Deus me ajude...

— O que foi que disse, querido? — Wilona pergun­tou, impaciente.

Thorne chacoalhou a cabeça. Nunca devia ter se permitido importar-se tanto com Martine. Mas cedera, perdendo o controle e deixando-se levar pela loucura às margens do rio. Nunca tinha conhecido tal abandono, ou imaginado que ao unir seu corpo ao de uma mulher, também uniria a alma. Por um instante fugidio, fora feliz. Essa felicidade, é claro, viera com um preço. E agora, em sua angústia, ele estava pagando.

— Senhor? Custará o mesmo se se deitar comigo ou não. Seu tempo está se esgotando.

Thorne se afastou da janela e pegou a bolsa de di­nheiro. Viu o olhar magoado de rejeição da loira, mas tomou a mão dela e encheu de moedas.

— Você é muito bonita, tem lindos cabelos, mas hoje estou com sérios problemas para me deitar com você.

Com as mãos cheias, Wilona se retirou, dizendo ao sair:

— Não é de se admirar que seja popular entre as ga­rotas... Pode me procurar sempre que precisar.

Ao lado de Edmond, Martine observava o padre ter­minar o ritual de benção do leito matrimonial.

Seu novo lar se parecia muito com os alojamentos de St. Dunstan: uma grande casa de pedras com uma co­zinha e uma saleta no pavimento inferior e um quarto no superior. Ficava próximo do castelo e era circundado por um jardim e pela floresta. A imensa janela do quar­to oferecia uma bela vista do quintal e ela se aproxi­mou para observar o local no qual montaria o herbário. De fato, era só no que conseguia pensar.

Durante todo o dia imaginara as ervas que semearia na primavera; mesmo ao deixar a capela de mãos dadas com Edmond... Edmond com sua bela túnica e unhas su­jas... Edmond, belo e com mau hálito... Edmond, agora tonto de tanto vinho que tomara no banquete.

Rainulf a beijou no rosto e sussurrou:

— Tudo ficará bem. — E deixou a casa junto com Godfrey e o padre.

Felda a levou até o salão, onde a despiu de seus trajes de noiva e vestiu camisola e roupão. Quando Martine emitiu um suspiro nervoso, a criada disse:

— Não precisa ficar nervosa, milady. Não com um noivo tão assustado como aquele...

— Assustado?

— Por que acha que ele se embebedou? Ele tem medo da senhora. Vejo nos olhos dele...

— Por que isso, pelo amor de Deus? Felda deu de ombros.

— Acho que porque vocês são muito diferentes. A se­nhora sabe ler, jogar xadrez, falar de diversos assuntos, além de caça e prosti... Desculpe, milady, acho que está na hora de eu me retirar. — Ela beliscou as faces de Martine para que ficasse corada e se despediu.

Levou algum tempo até que Martine arranjasse co­ragem de seguir para o quarto, mas quando lá chegou, deparou-se com Edmond dormindo no chão com o rosto na palha. Aliviada, subiu na cama e dormiu enroscada nos lençóis.

— Acha que ele está morto, milady? — Felda pergun­tou na manhã seguinte diante de Edmond que se encon­trava na mesma posição.

— Provavelmente não — Martine suspirou.

Felda lançou-lhe um olhar curioso e se debruçou so­bre o jovem.

— Sir Edmond, acorde! Temos de voltar para o caste­lo. O irmão de minha senhora partirá logo após o almoço e ela quer se despedir.

Juntas rolaram o corpo e viram que a palha deixara marcas no belo rosto. Ainda assim, Edmond não emitiu reação alguma.

— Vamos embora, Felda.

— Mas senhora...

— Não poderemos arrastá-lo, podemos? Então vamos.

Por que eu sempre acabo sentada diante de Thorne?, Martine se perguntou, olhando para a travessa na qual jazia um coelho inteiro. Nunca tinha comido coelhos, e aquela não seria a primeira vez.

Godfrey, na cabeceira da mesa, balançou a cabeça e reclamou:

— Queria de Edmond estivesse aqui. Isso não me pa­rece certo.

— Não conseguiram acordá-lo, milorde — Rainulf o lembrou.

Os homens de Bernard deram risos maliciosos e Boyce, o grandalhão ruivo, comentou:

— Milorde pediu netos, o pobre rapaz deve ter se exaurido na tentativa de atendê-lo.

Martine, com as faces rubras, viu que Thorne repri­miu uma carranca. Então o saxão não gostava da idéia de saber que ela partilhava com Edmond os prazeres que ele lhe ensinara às margens do rio. Que direito ti­nha ele? Edmond era seu marido e Thorne Falconer não passava de um canalha.

Ainda assim, não suportava ser alvo de comentários maliciosos e, sem se importar com o olhar de alerta do irmão, disse em voz alta:

— Foi ao tentar esvaziar a caneca de vinho com mui­to empenho que meu marido ficou exausto.

Boyce, é claro, gargalhou, mas o resto do grupo trocou um olhar de reprovação. Todos, à exceção de Thorne, que pela primeira vez a fitava diretamente. Seus olhos se ligaram com intimidade surpreendente e o coração dela a traiu com uma batida descompassada de saudade e desejo.

— Aqui está ele! — exclamou Godfrey ao ver o caçula entrar, descabelado e sujo.

Boyce, de pronto gracejou:

— Sua esposa já nos contou que não esteve à altura de seus deveres de marido ontem à noite. Só não nos contou que o fez dormir no chão como castigo.

Edmond parou no meio do salão e ela se arrependeu das palavras tempestuosas. Não tinha sido sua intenção humilhá-lo. Esse sentimento se desfez quando ele a en­carou com um olhar de fúria.

Sem nada dizer, ele se virou e deixou o salão.

Um silêncio pesado se seguiu até Thorne mudar de assunto, fazendo perguntas a Rainulf sobre sua peregri­nação e todos relaxaram novamente. Martine, contudo, notou que Bernard não fez o mesmo. Comia e bebia em silêncio, encarando-a de vez em quando com seus olhos frios de serpente.

— Não vou suportar — Martine choramingou no om­bro de Rainulf ao se despedir na ponte levadiça. Tinha jurado que não choraria, mas seria impossível. — Não posso ficar sem vê-lo por dois anos.

— Você terá...

— Não, por favor! Não diga que terei Edmond para cuidar de mim! Ele mal consegue cuidar de si próprio.

O irmão a acariciou nos cabelos.

— Eu ia dizer que terá Thorne para cuidar de você.

Momentaneamente sem fala, Martine olhou para o saxão, que já tendo se despedido do amigo, aguardava junto à torre do portão.

— O que quer dizer com isso?

— Edmond é... — Rainulf titubeou — jovem. Estou certo de que amadurecerá com o tempo, mas enquan­to eu estiver longe, me sentirei melhor sabendo que alguém mais... capaz... olhará por você.

Ela deu um passo para trás e enxugou as lágrimas.

— Pediu a Thorne que cuidasse de mim?

— Sim, seu temperamento tempestuoso me preo­cupa. Está casada há um dia e já conseguiu humilhar seu marido...

— Eu fui humilhada primeiro! Tinha todo o direito de...

— Não estou falando de direitos, mas da realidade. Bernard não gostou nada do que aconteceu, caso não te­nha notado.

— Não me importo com o que Bernard...

— Não se importa com o que ninguém pensa, essa é a verdade! Mas as pessoas são capazes de encontrar modos que a façam se importar. Foi por isso que fiz Thorne jurar sobre a relíquia da espada que a protege­ria e defenderia enquanto eu estiver ausente, caso seja necessário.

— Ele jurou sobre a espada? — Martine riu com es­cárnio. — Isso não servirá de nada, pois ele, assim como eu, não acredita nessas bobagens...

Rainulf pareceu se zangar.

— Thorne é um homem honrado. Ele garantirá a sua segurança. Em todo caso, se você precisar... — Pegou uma bolsa das vestes e a entregou à irmã. — Dei todas as minhas terras à Igreja, mas guardei certo montante de... riqueza portátil. Acho que poderá lhe ser útil um dia. Esconda isso, não mostre a ninguém. Use caso ne­cessário.

Martine sabia que aquilo era preciso, já que não tinha nada na vida. As terras do dote, a bem da verdade, eram de Edmond, por isso escondeu a bolsinha.

Ao ver o irmão montar, novas lágrimas surgiram. Era como se revivesse o dia em que tinha sido deixada em Santa Teresa. Conhecendo a dor que se seguiria, o novo adeus se tornou ainda mais insuportável.

Rainulf se inclinou e a beijou no rosto.

— Você é teimosa e tola, minha irmãzinha, mas eu a amo muito.

— Também te amo. Por favor, tome cuidado.

— Tomarei. — Com um aceno para ela e outro para Thorne, virou o cavalo e partiu.

Martine ficou parada na ponte até que ele se trans­formasse num ponto no horizonte.

Estou só agora. Verdadeiramente só.

Edmond só voltou para casa muito tarde, quando Martine já estava na cama. Ainda que estivesse acor­dada, fingiu dormir. Ele mesmo, apesar de atrapalhado, parecia não ter intenção de acordá-la e, assim que se deitou, começou a roncar.

Martine sentiu seu cheiro, como se fosse o de uvas passadas e virou o rosto. Vendo que ele já ressonava, re­laxou e conseguiu dormir também.

Martine, parada no parapeito da janela, penteava os cabelos e observava Edmond treinar os filhotes que ela lhe dera. Embora a noite ainda não tivesse caído total­mente, ela já estava de camisola. Acostumara-se a se re­tirar logo após o jantar, a fim de parecer que já dormia quando o marido ia para a cama.

Uma semana havia se passado desde o casamento, mas Edmond, para seu alívio, ainda não a procurara na cama. Ela teria de fingir ser virgem e não sabia se era uma boa atriz. Sem falar que sentia mais e mais nojo do marido. Além de cheirar mal, seu temperamento pio­rava a cada dia. Era como se ele a temesse, como se os modos francos dela o intimidassem.

Ainda havia o fato de tê-lo humilhado após as núpcias. Não esclarecera que o comentário não tinha sido intencional, apenas um ato de autodefesa.

Os minutos se passavam e Edmond continuava a jo­gar gravetos para que os cachorrinhos apanhassem e os trouxessem de volta. Quando o menor deles pegou o gra­veto e o escondeu na floresta, Edmond ficou desgostoso.

— Vá, pegue! — Mas o bichinho continuou aos seus pés, abanando o rabo e gostando da brincadeira. Abaixando-se, ele disse: — Ei, garoto, venha cá. — Quando o cachorro se aproximou, pegou-o no colo. — Que uso tem você se não consegue nem trazer um galho de volta? — Com a casualidade que teria ao partir um graveto, ele quebrou o pescoço do bicho.

Martine arfou e colocou a mão na boca. Edmond se virou e a notou na janela. Seu olhar transfigurou-se instantaneamente. Estava surpreso. Levantou-se com o cão morto no braço e a encarou. Nunca a vira com medo. Olhou-a de cima a baixo e foi como se a visse pela pri­meira vez.

Martine sentiu-se nauseada, pois notou que era mais do que interesse que ele demonstrava. Era excitação. Ela se afastou e saiu do quarto. Desceu as escadas e, com dedos trêmulos, abriu a caixa de ervas.

— Milady, o que houve? — perguntou Felda.

— Por favor, me dê um jarro de vinho e uma taça, rápido! — Enquanto a criada pegava o vinho, Martine esmagava ervas sedativas no pilão.

— O que é isso? — Felda perguntou quando ela colo­cou as ervas no jarro de vinho.

— É para dormir. — Misturou o preparado e com os olhos arregalados fitou a criada. Depois subiu.

Edmond estava na janela, urinando para fora num arco. Nem se importou com o asco na expressão de Martine. Viu, porém, que as mãos dela tremiam ao depo­sitar o jarro sobre à cômoda. Sentiu-se um tolo por tê-la evitado na última semana.

— Tire a camisola — comandou, dando as costas para a janela.

— Não prefere um pouco de vinho antes?

— Você sabe o que eu quero. — Viu que ela tentava disfarçar, mas que sentia medo.

— Pensei que gostaria de relaxar um pouco...

— Estou relaxado. — E não queria que o vinho o atra­palhasse. Estava farto dos comentários de Boyce sobre ele não ser capaz de atuar como marido. Os homens zom­bavam, dizendo que ela tinha lançado um feitiço sobre ele. Depois do ocorrido com Ailith, às margens do rio, não conseguia deixar de acreditar nos boatos.

Naquela noite, contudo, não haveria mais feitiços. Ele lhe mostraria quem mandava naquela casa.

— Dispa-se! — ordenou.

Ela continuava parada e ele sabia que a mente dela trabalhava freneticamente, tentando encontrar uma saída. Deu um passo para frente e ela recuou. Martine tentou escapar pela porta, mas ele, rápido, agarrou-a pela camisola, rasgando-a ao meio. Lançou-a contra a parede e segurou-a pelos ombros. Ficou excitado ao ver as marcas de suas unhas na tez branca. Martine, em desafio, ergueu o queixo e o enfrentou:

— Você é um animal!

Ele não conseguiria mais se deter mesmo que quises­se. Esbofeteou-a, agarrou-a e jogou-a na cama. Martine bateu o rosto na coluna da cama de dossel, fazendo o sangue escorrer pelo nariz.

Edmond tirou o cinto e a túnica e os deixou de lado.

— Levante a camisola. Depois de um instante de hesitação, ela assentiu e segurou a barra. Edmond já se vangloriava, pensando que ela só precisava sentir o peso de sua mão para en­tender como as coisas tinham de funcionar, quando foi atingido por um chute no estômago. Ofegou e se dobrou ao meio.

— Maldita! — Arfando, esticou-se e a segurou antes que ela chegasse à porta, jogando-a na direção da cama, mas sem se importar em acertar o alvo.

Martine caiu no chão depois de bater a cabeça na ca­beceira da cama. Então ele viu o sangue na madeira.

Eu a matei. Estou livre!

Rolou-a de lado com o pé e afastou as pernas dela.

Que assim seja... Percebeu que ela ainda respirava. Tanto faz, pior para ela.

Seu sorriso arrefeceu ao ver o rosto maltratado da esposa. Lembrou-se que Emeline tinha rido dele e o cha­mara de animal da floresta.

Abaixou-se e afagou o pescoço de Martine, sentindo-lhe a fraca pulsação. Fechou os dedos sobre ele e o comprimiu, assim como tinha feito com Emeline.

Excitara-se ao senti-la se debatendo enquanto a invadia. Depois de terminado, ficara apavorado, mas Bernard cuidara de tudo. Dessa vez não seria diferente. Todas as mulheres eram iguais.

O rosto da cadela estava ficando azul como o da prostituta. Estaria livre dela... Logo.

— Sir Edmond? — Felda perguntou do outro lado da cortina. — Ouvi um barulho... Está tudo bem?

Edmond soltou Martine e se levantou.

— Sim, escorreguei e caí, mas estou bem. Pode descer. Ao ouvir os passos se afastando, enxugou o suor do rosto e foi até a cômoda. Serviu-se de vinho, sem se importar com seu desempenho; só de pensar em Emeline sentia-se excitado. Tomou mais vinho e colocou o jarro na cômoda. Sentiu-se zonzo. O vinho devia estar subindo mais rápi­do do que imaginava. Seria melhor se apressar.

Foi para perto de Martine e desfez o laço da calça. Os dedos estavam dormentes. Ajoelhou-se e se pôs entre as pernas da esposa. Fechando os olhos só por um mo mento, sentiu-se invadir por um torpor incontrolável, e então, foi envolvido pela escuridão.

 

Martine sentiu dor ao abrir os olhos. Estava escuro; não sabia onde estava. Só sentia um peso sobre si que quase a esmagava. Quando se acostumou com a luz do luar, entendeu que estava em seu quarto, que Edmond estava sobre seu corpo e se lembrou de tudo.

Gemendo pelo esforço desprendido, empurrou-o para longe. As calças dele estavam abaixadas, e a sua camisola levantada. Viu, então, o jarro de vinho no chão. Seu plano funcionara.

Quando conseguiu se levantar, sua cabeça latejava. Levou a mão ao rosto e sentiu a pele pegajosa. Estava ferida, precisava de ajuda. Estava confusa, mas sabia que precisava encontrar Thorne. Ele prometera ao seu irmão que a protegeria.

Tateando no escuro, desceu as escadas, um zumbi­do crescente no ouvido, deixando-a tonta. No gramado, olhou para a floresta. Para que lado ficava o castelo? Escolheu uma direção a esmo e entrou na floresta.

Uma voz de criança ao longe a despertou. Já era de manhã. Rolou sobre a barriga e viu um casal ao longe, plantando as sementes de um saco que uma menina segurava.

Tentou se movimentar, mas o corpo todo doía. A luz feria seus olhos, por isso os fechou. Onde estava sua mãe?

Ouviu a voz da menina de novo, mais perto dessa vez. Abriu os olhos e viu um par de pés descalços e sujos. A menina estava perto dela e gesticulava para que os pais se aproximassem.

— Diga a minha mãe que estou aqui — pediu, mas eles não ouviram o que ela dizia.

O casal conversava freneticamente. Por fim, o homem caminhou para junto da filha e apontou numa direção. A menina saiu em disparada.

Por favor, tragam minha mãe, Martine pensou antes de ficar inconsciente segundos depois.

Thorne cuidava de um dos falcões com o auxílio de seu ajudante quando ouviu uma batida à porta.

— Entre.

Era Peter acompanhado de uma menina da aldeia.

— Ela apareceu no salão enquanto tomávamos o desjejum, repetindo o seu nome.

Thorne não se surpreendia com o fato. Sendo o úni­co homem de mais importância a falar inglês, era comumente convocado para apaziguar disputas entre os aldeões.

— Qual o seu nome, menina?

— Hazel, senhor.

A menina estava sem fôlego, o que indicava que tinha corrido. Devia ser alguma urgência e não uma contenda.

— Quem a mandou vir me procurar?

— Meu pai, quero dizer, minha mãe. Meu pai queria chamar sir Edmond, mas mamãe disse que ele devia ser o culpado, que era melhor chamar o senhor, mas papai não concordou e eles discutiram, então...

— Devagar. Comece tudo de novo. Há alguém ferido?

— Ela está quase morta, mamãe diz. Nós a encon­tramos nos limites da floresta. Parece ter sido atacada por um lobo, mas mamãe disse que deve ter sido obra de sir Edmond.

Peter, que não entendia uma palavra, se aproximou.

— De quem está falando? Sua mãe disse o nome? — Thorne inquiriu.

— Não precisou dizer, sei quem ela é. Vi o casamento dela na semana passada...

Thorne já estava na porta da falcoaria antes de a me­nina terminar de falar. Peter o seguiu e o segurou.

— Thorne, o que houve?

— E Martine. Pegue a menina e venha comigo.

Hazel, cavalgando com Peter, mostrou onde ficava o chalé deles, dentro da propriedade de Edmond. Na por­ta, um homem os aguardava.

—Desculpe incomodá-lo, sir Falconer. Pensei que seria melhor chamar...

Thorne o afastou e entrou no chalé. Num dos cantos, havia uma cama, e nela estava Martine, pálida como a morte.

— Ela está viva — anunciou a mulher ao lado da cama.

Em duas longas passadas, Thorne se aproximou. Martine estava deitada de costas, o cabelo sujo e emara­nhado, o rosto esfolado, a camisola rasgada. O remorso o corroeu. Gentilmente afastando o tecido, viu os arra­nhões, os hematomas no pescoço.

— Oh, Martine... — Deus, o que ele fez com você?

— Limpei os ferimentos o melhor que pude — a mulher disse. — Os pés estão esfolados, ela deve ter passado a noite atravessando a floresta.

Thorne afastou o cabelo e viu o lábio rachado, a tes­ta esfolada. Graças a Deus não tinha sido nada mais grave.

— Do outro lado. —A mulher virou o rosto de Martine com suavidade, revelando a pele arroxeada e inchada e dois cortes profundos.

— Jesus! — A emoção comprimiu seu peito... Um misto de fúria, compaixão, culpa.

Edmond tinha provocado aquilo, sem sombra de dú­vida. O homem para quem a tinha entregado a destruí­ra como um animal selvagem. Pelas marcas no pescoço, tentara estrangulá-la.

Lembrou-se de Emeline. Pensara que tinha sido obra de Bernard, mas obviamente fora Edmond, que sempre idolatrara o irmão. E ele, cego pela ambição, não tinha enxergado que tipo de homem o outro era.

— Cristo Santo... — murmurou, afundando o rosto nas mãos. Tinha jurado que protegeria essa mulher que confiara nele, que se entregara a ele. Martine assombra­va seus sonhos... Era dona de seu coração. E ele a tinha decepcionado.

Ela gemeu. Ele descobriu o rosto e tomou-lhe a mão.

— Martine.

— Você veio... — As pálpebras se abriram. — Sabia que viria...

— Tomarei conta de você daqui por diante.

Martine sorriu e depois franziu o cenho.

— Minha cabeça dói. O que houve?

Thorne meneou a cabeça. Que bem faria contar que ela sofrerá abusos do marido, que quase morrera?

— Devo ter caído da cama... — ela murmurou e ele sentiu a garganta apertada. — Mamãe pode vir me dar um beijo?

Ele fitou o rosto maltratado, os olhos suplicantes de menina, e disse num sussurrou:

— Eu a beijarei. — Inclinando-se pressionou os lá­bios numa parte não machucada.

Ela pressionou a mão dele e suspirou.

— Sabia que viria, papai.

Papai. Thorne viu quando ela lutava para manter os olhos abertos. ,

— Descanse.

Se não fosse pelo peito que inflava a cada respiração, Thorne a daria como morta. Ainda bem que os machu­cados, por mais profundos que fossem, não tinham sido letais. Abriu os dedos dela e beijou a palma delicada. Fechou os olhos e viu Edmond surrando-a... Forçando-se sobre ela...

Não poderia deixar aquilo impune. Pela lei, um mari­do podia disciplinar a esposa como bem entendesse. Tais assuntos eram privados. Dessa forma, qualquer castigo teria também de ser particular. Aquele era um assunto que ele teria de resolver.

No momento, porém, Martine precisava dele. Tinha de levá-la a um lugar seguro e cuidar de seus ferimen­tos. Levantou-se e chamou Peter. Quando o amigo en­trou e viu Martine, arregalou os olhos.

— Edmond?

— Sim.

— Estou à sua disposição — disse, fechando um pu­nho contra a outra palma. Para qualquer outra pessoa, o gesto pouco diria. Thorne, contudo, sabia do poder do soco do amigo.

Peter estava disposto a enfrentar o filho de seu se­nhor supremo em nome da amizade deles, mas Thorne não permitiria tal coisa. Se não a vingasse pessoalmen­te, jamais se perdoaria.

— Deixe Edmond comigo. Busque Felda e peça que ela separe as roupas de Martine. Depois a leve até Harford. Se Edmond estiver por perto, não se aproxime. Se não estiver, descubra para onde ele foi.

— Vai levar lady Martine para Harford? Não é seguro.

— Vou levá-la para a falcoaria onde poderei cuidar dela.

Depois que Peter saiu, Thorne entregou algumas moedas à mulher como recompensa. Em seguida envol­veu Martine em seu manto e a pegou no colo. Com a aju­da do dono da casa, ele subiu na sela e depois a acomo­dou em seus braços. Incitando o cavalo com as pernas, seguiu em direção à Harford.

Primeiro cuidaria de Martine. Depois seria a vez de Edmond.

Martine gemia no sono e Thorne, sentado na pol­trona ao lado da cama, pegou um pano úmido e colocou em sua testa.

Tinha passado a manhã junto dela, depois de Felda tê-la limpado e trocado, velando por ela, rezando e fa­zendo planos. Em boa parte do tempo ela simplesmente dormira, mas às vezes, como agora, ficara agitada como se estivesse tendo um pesadelo.

Ele a acarinhou nos cabelos para tentar acalmá-la.

— Não! Não me toque! — Ela se debateu, chegando a atingi-lo no nariz.

A dor repentina o cegou por um instante, mas ele a prendeu nos braços, procurando acalmá-la.

— Martine. Sou eu, Thorne. — Ela se debatia e ele a beijou nos cabelos, sussurrando: — Sou eu, não vou machucá-la. — Embalou-a com suavidade até que ela se acalmasse. — Está tudo bem. — Deitou-a novamen­te. — Descanse agora.

—Thorne...

Ele molhou o pano novamente e umedeceu a testa dela.

— Estou aqui para cuidar de você. Não se preocupe, ninguém a machucará.

— Edmond... Oh, meu Deus!

Thorne se aproximou do rosto dela e fitou-a nos olhos.

— Edmond não poderá mais tocar em você, não en­quanto eu estiver por perto. — Beijou-a na testa e nas pálpebras. — Fique tranqüila.

Ela assentiu e murmurou algo desconexo. Thorne passou o pano pelo rosto dela. Abriu a camisa e examinou as marcas, pareciam marcas de garra, deixadas por uma fera. Edmond não passava disso: uma fera imprevi­sível e perigosa. Sabia disso agora, mas por que demora­ra tanto a enxergar?

Porque estava cego pela ambição. Por isso merecia não receber a recompensa de lorde Godfrey. Por certo o barão a negaria agora que o casamento estava fadado. Verdade fosse dita, era um castigo menor do que o mere­cido por ter posto Martine em perigo. Cheio de vergonha e remorso, jurou vingança. Tinha prometido a Rainulf que a protegeria e, dali em diante, era o que preten­dia fazer.

Depois do almoço, Thorne, Peter e Guy se reuniram do lado de fora da falcoaria enquanto Felda cuidava de Martine.

— O rapaz do estábulo me contou que Edmond foi para Hastings hoje cedo. — Mais uma vez Peter cerrou o punho. — Deixe-me cuidar disso.

— Não, essa responsabilidade é minha. Vocês preci­sam ficar para proteger lady Martine. Ela não pode ficar sozinha um segundo sequer.

Os dois cavaleiros assentiram, mas quando Thorne se virou para partir, foi detido por Peter.

— Não o mate.

— Por que não?

— Ele merece morrer, não há dúvidas, mas se o ma­tar, Bernard irá atrás de você.

— Sei me cuidar.

— Lady Martine não sabe. Jurou protegê-la e, para isso, precisa estar vivo.

A lógica era simples, porém brutal, Thorne tinha de reconhecer.

— Assegure-se de que nenhum mal atinja lady Martine e eu cuidarei para que o castigo certo chegue a Edmond.

Ao chegar a Hastings, Thorne foi a três tavernas antes de encontrar alguém que tivesse visto Edmond. Descobriu então que, como nenhuma prostituta o queria mais, Edmond teve de se contentar com a filha do ven­dedor de enguias.

Decidido, ele foi até o endereço indicado e perguntou a um homem careca e rechonchudo onde estava Edmond.

— Nunca ouvi esse nome... — Thorne o ignorou e en­trou na loja. — Ei, volte aqui! — O homem correu atrás dele.

— Onde está Edmond de Harford? — perguntou a um adolescente nos fundos da loja.

— Está lá em cima com Udele — o rapaz disse, con­trariando o pai.

Thorne foi para a escada, mim o homem tentou detê-lo pela camisa.

— Não incomode sir Edmond. Ele paga bem pelos serviços de Udele.

O rapaz se aproximou e soltou a manga de Thorne.

— Deixe-o ir, pai. O senhor não deveria vendê-la desse modo...

Em duas passadas Thorne alcançou o topo das emen­das. O segundo andar era um cômodo escuro com um amontoado de caixas e um catre no qual uma moça roliça estava de quatro com o rosto manchado por lágrimas e o nariz sujo de sangue. Atrás dela Edmond, ajoelhado, levantava-lhe a saia.

— O quê? — Edmond gaguejou ao ser erguido pela túnica por Thorne. — Ei! — Thorne o empurrou até a parede. — Udele, desça e chame seu pai!

A garota se levantou e gritou em francês:

— Espero que ele o mate, seu porco! Não o suporto mais! Espero que arda no fogo do inferno!

Edmond tentou acertá-la, mas ela girou e o atingiu no rosto. Ao tentar acertá-lo novamente, foi detida por Thorne.

— Se acabar com ele, não sobra nada para mim. Por­que não vai lá para baixo?

— Promete fazer o serviço direito?

— Sim.

Depois que ela desceu, Thorne soltou Edmond e reti­rou o manto e a espada, deixando-a perto da espada do rapaz num dos cantos.

— Isso é por causa da bruxa com quem me fez casar?

— Bruxa? — Thorne atirou a adaga para junto da espada.

— Ela lançou um feitiço em mim.

Assim que Thorne se perguntou onde Edmond tinha guardado a adaga, viu pelo canto do olho que o outro tentava investir contra ele. Desviou da lâmina e torceu o pulso do rapaz, fazendo a arma cair e chutando-a para longe.

Edmond ainda tentou acertá-lo com o joelho, mas Thorne se desviou e desferiu-lhe um soco no estômago.

— Estou surpreso, garoto. Luta como uma criada... E verdade que seu instrumento é pequeno como...

Furioso, Edmond investiu contra ele. Dando um pas­so para o lado, Thorne o agarrou e, aproveitando o movi­mento, girou-o e lançou-o contra a parede. O rapaz caiu, amparando o rosto.

— Quebrou meu nariz, seu saxão bastardo! Não fiz nada para merecer isso.

— Brutalizou uma mulher inocente.

— Inocente? Ela lançou um feitiço em mim! Tirou minha masculinidade!

— Você nunca foi um homem de verdade, portanto não a culpe.

— Ela lançou um feitiço e eu... Eu não consegui cum­prir minhas obrigações de marido. Todos riem de mim, mas a culpa não é minha!

Thorne se lembrou do rosto machucado de Martine. Sentiu a fúria tomar conta de seu corpo.

— Por isso forçou suas vontades.

Edmond limpou o sangue do nariz com a manga da túnica.

— Bem que eu tentei — confessou como se aquilo fosse uma coisa aceitável. — Mas ela aprontou comi­go. Quando me dei conta, já era de manhã e ela tinha sumido.

— O que está dizendo? Não consumou o casamento?

— Não tive culpa. Já disse, eu tentei... Ei, qual é a graça?

O casamento não tinha sido consumado. Thorne não conseguia deixar de sorrir de alívio com a revelação. Desse modo, ela era ainda um pouco sua.

Sentindo-se provocado, Edmond tentou atingi-lo. Thorne levou um soco no rosto, porém rebateu com um golpe atrás do outro. Edmond lutava, mas faltava-lhe a concentração necessária, assim, mais apanhava do que batia.

Thorne era maior, mais forte e sabia lutar. Em sua mente, só enxergava Martine maltratada. Algo podero­so tomou conta dele. Aquilo não era uma simples com­petição ou luta num campo de batalha. Era vingança, justiça, ódio!

Lembrou-se a tempo das palavras de Peter e se es­forçou para atendê-lo, pelo bem de Martine. Chutou Edmond uma última vez, depois pegou a espada e a ada­ga e forçou o rapaz a ficar de joelhos, segurando-o pelos cabelos.

— Meu irmão o fará pagar por isso, falcoeiro.

— Seu irmão nunca saberá o que aconteceu aqui. Se souber, você morrerá.

— Não se ele o matar antes — Edmond escarneceu.

— Se isso acontecer, um de meus homens acabará com você. — Levou a mão ao cabo da espada. — Juro sobre esta relíquia que você será punido, caso conte a alguém que estive aqui.

Edmond arregalou os olhos. A superstição nascia da ignorância e ele não podia ser mais supersticioso.

— O que direi? Olhe para mim?

— Diga que foi atacado e assaltado. — Thorne apa­nhou a bolsa de moedas do rapaz.

— Seu ladrão maldito! — Edmond vociferou. Thorne o soltou e pegou o manto. Antes de partir, disse:

— Mais uma coisa. Também morrerá de modo doloroso e lento se voltar a tocar num fio de cabelo de lady Martine. Nunca mais falará com ela. Se ela entrar num cômodo, você sairá no mesmo instante. Entendeu o que eu disse?

— Ela é minha mulher! Tenho de passar o resto de minha maldita vida ao lado dela!

— É o que veremos. — Virou-se e partiu. Ao passar pelo dono da loja, jogou o saco de moedas de Edmond e disse: — Nunca estive aqui.

Martine despertou e viu que Thorne estava ao seu lado. Ele olhava através da janela. Tinha o rosto pálido em contraste com a barba por fazer e um hematoma no lado esquerdo. Os olhos, transparentes na luz da manhã, estavam tristes e distantes. Tinha a espada no colo, e ela se lembrou da promessa feita a Rainulf. Era um homem honrado, no fim das contas, pelo menos no que se referia a acordos com outros homens.

— Onde está Felda? — perguntou rouca ao se lem­brar que a criada também cuidara dela.

Thorne se levantou e se sentou na beirada da cama.

— Ela voltará logo — disse, pousando a mão em sua face. — Lembra-se do que aconteceu?

Martine assentiu e sussurrou:

— Edmond.

— Ele não voltará a incomodá-la. — Thorne a segu­rou pela mão.

Ela abriu os olhos e observou o hematoma no rosto dele.

— O que fez coro ele?

— Menos do que ele merecia. Edmond ainda está vivo.

Martine o encarou.

— Acho que devo agradecer.

— Não mereço isso. Se não fosse por mim, jamais te­ria se casado. O que fiz foi pouco e tardio. — Apertou a mão dela. — Há algo, porém, que ainda posso tentar fazer para protegê-la, libertá-la permanentemente.

O coração dela falhou uma batida.

— Isso seria possível?

— Não sei. Talvez. É verdade que... que o casamento não foi consumado?

Ela viu a esperança nos olhos azuis.

— Sim.

Thorne respirou fundo, seus olhos se iluminaram e ele até mesmo sorriu um pouco.

— Se eu conseguisse fazer com que o casamento fosse anulado, você...

— Anulado! — Ela tentou se levantar, mas a dor foi grande demais.

— Devagar. — Ajeitou-a nos travesseiros de novo. — Gostaria disso se fosse possível?

— E preciso perguntar? Ele riu.

— Só precisava ter certeza antes de fazer perguntas por aí. Frei Matthew é conhecedor das leis canônicas. Falaremos com ele esta tarde.

— Vamos para St. Dunstan?

— Não está segura aqui. Edmond ainda está em Hastings, com certeza, pois não está em condições de cavalgar, mas Bernard e seus homens estão aqui. Já mandei Felda e Peter buscar seus pertences...

— E Loki e minha caixa de ervas?

— Tudo. Assim que eles voltarem, nós partiremos.

 

— Lamento muito — disse Matthew —, mas não se pode anular um casamento baseado somente na não consumação. Isso não funcionará.

— Isso é um ultraje! — Thorne se pôs de pé.

— Ultraje ou não, é a lei canônica.

Matthew e Martine, sentados à mesa do gabinete do prior, observaram Thorne meneando a cabeça diante da janela que mostrava a noite estrelada.

Martine pegou Loki no colo e se abraçou a ele. Mal tinha falado desde que chegara a St. Dunstan. Estava exausta pela viagem, ainda que, por causa de sua con­dição, tivesse viajado de liteira. Estava contente por ter Thorne falando em seu nome.

O saxão socou o parapeito da janela e se virou.

— E uma obscenidade que ela esteja presa a um ca­samento com esse... animal só porque a Igreja é obtusa demais para...

— A Igreja tem seus caminhos — Matthew o inter­rompeu. — Há outras brechas, muitas desconhecidas pelos leigos, que podem ser usadas para a anulação. — Fez uma pausa significativa. — A melhor delas, im­potência. Em minha opinião, é o único modo de garantir que lady Martine obtenha a anulação.

Matthew e Thorne se encararam por um instante, de­pois se viraram para Martine, como se esperassem sua permissão para dar início ao processo.

Impotência. Era uma palavra pesada e provoca­ria comentários e escárnio. Estava exausta. Fechou os olhos. Viu em sua mente o riso amarelado de Edmond, sentiu seu cheiro nauseante, lembrou a dor da surra. Estremecendo, abriu os olhos e encontrou os de Thorne.

— Façam o que for necessário.

 

Sentada num banco ao lado de Thorne num canto do gabinete de frei Matthew, Martine viu quando o prior entregava a petição ao padre Simon.

O padre aproximou o pergaminho do rosto e leu o documento. Do lado oposto, Bernard cochichava com o irmão. Tendo terminado de ler, Simon aproximou-se dos dois e murmurou algo no ouvido do lorde.

— Impotência? — Bernard inquiriu.

— O quê?! — Edmond se levantou indignado. Bernard o pegou pelo braço e forçou-o a se sentar...

— Fique quieto! Deixe que eu cuido disso. — Virando-se para os outros, disse: — Não consentimos com a anulação. Edmond e lady Martine devem perma­necer casados.

Edmond afundou o rosto nas mãos.

— Oh, Deus! — murmurou Martine.

Thorne deu um tapinha em seu braço, desejando con­fortá-la em seus braços, mas para não comprometê-la, evitava sequer olhá-la, temeroso que seus sentimentos fossem revelados.

Matthew se levantou e se dirigiu a Bernard.

— Se Edmond cooperar com a anulação, o assunto será tratado com a maior discrição. A acusação de im­potência jamais virá a público. Todavia, se ele se opuser, lady Martine não hesitará em perseguir sua causa até que o papa Alexandre tome conhecimento. Asseguro-lhes de que desse modo, não há como manter segredo das circunstâncias.

— Suas ameaças não mudam nada, frei — Bernard bradou. — Nós nos recusamos a cooperar com a dissolu­ção desse casamento.

— Sabe que as terras concedidas a lady Martine por ocasião das bodas retornarão a seu pai, não?

— Claro.

— Então por que se opõe?

Thorne caminhou até o meio do cômodo.

— Eu lhe digo o motivo. — Apontou para Edmond que o olhava assombrado. — Por que essa criatura nun­ca poderá se casar novamente depois do que fez a lady Martine. Todos no castelo testemunharam o estado em que ela ficou. Ela parecia ter sofrido o ataque de uma matilha de cães. Toda a região deve estar a par do acon­tecido a esta altura.

Padre Simon deu um passo à frente.

— Como sir Edmond escolhe disciplinar a esposa não é da conta de ninguém. Esse casamento não pode ser dissolvido porque foi sacramentado diante de Deus e só chegará ao fim quando um dos dois morrer.

— Desde quando Edmond se importa com a vontade de Deus? — Thorne riu sem humor algum.

— Estamos dispostos a oferecer um acordo se a dama em questão estiver pronta a ouvir. — Bernard cruzou os braços.

Todos os olhos se voltaram para Martine, que assentiu em resposta.

— A anulação está fora de questão, como já disse. Entenda, minha senhora, que sem nossa cooperação, sua busca será longa e provavelmente infrutífera. Sem falar que nesse processo, olhos curiosos vasculharão sua vida, o que pode ser muito desagradável para a senhora.

— E qual é sua proposta? — Thorne o incitou, impaciente.

— Desde que cesse suas tentativas de anulação, poderá ficar aqui, em St. Dunstan, e voltar para Edmond quando desejar. Ele a receberá de braços abertos, perdoando-a por sua falta de humildade e obediência.

— Voltar? Nunca!— Martine exclamou.

— Esta é nossa única oferta — Bernard sentenciou.

— Prosseguirei com a anulação. — Martine se levantou.

— Eu aviso, minha senhora, que seremos oponentes formidáveis. Meu irmão negará todas as acusações.

— Ela afirma que o casamento nunca foi consumado — Matthew observou.

— Edmond negará isso. Será a palavra dela contra a dele.

— Não necessariamente. Lady Martine poderá provar nunca ter se envolvido num relacionamento conjugal se aceitar se submeter a um exame físico. — Matthew se virou para Martine. — Imagino que não se oponha a isso.

Martine olhou para Thorne, que meneou a cabeça ligeiramente.

— Milady?

— Posso lhe falar reservadamente, frei?

Matthew e Martine deixaram o gabinete um instan­te. Quando retornaram, o prior lançou um olhar signifi­cativo a Thorne e disse a Bernard:

— Na verdade, a sensibilidade exacerbada de lady Martine não permite que ela se exponha a tal exame. Sendo uma dama bem-nascida e educada, ela não vê com bons olhos essa invasão de privacidade.

Thorne suspirou pesadamente e meneou a cabeça. Detestava o sabor da derrota. Bernard sorriu e disse:

— Posso supor que ela tenha aceitado nossa oferta, então?

— Sim, desde que entenda que ela será hóspede de St. Dunstan por tempo indeterminado e não poderá ser abduzida...

— Obviamente — Bernard disse.

— Nem forçada de modo algum a voltar para o marido.

— Tem a minha palavra — Bernard concordou. — E a de meu irmão, é claro.

 

Martine aguardou no estábulo escuro e frio enquan­to Thorne selava o garanhão branco para retornar a Harford. Ficou estabelecido que ela permaneceria no mosteiro até Rainulf voltar da peregrinação. Então, o acompanharia a Oxford.

O abade superior não gostou de ter a presença cons­tante de uma mulher no local, mas acabou cedendo depois de uma generosa contribuição feita com o dinheiro que Rainulf lhe deixara e com a promessa de que cum­priria certas normas: deveria se vestir como uma frei­ra, comparecer à missa todos os dias e portar-se com a máxima discrição, podendo circular somente na área pública.

Quando Thorne terminou os preparos para a partida, aproximou-se e tomou-lhe ambas as mãos. Por um longo instante, ele apenas a fitou com olhos tristes. Martine permaneceu calada, temerosa que a voz traísse sua tris­teza. Ele virou as mãos dela e acariciou as palmas com os polegares.

— Virei visitá-la na primavera.

Martine engoliu em seco e assentiu. Aquilo era tempo demais. Levaria mais de meio ano para voltar a vê-lo.

— Estará a salvo aqui, quem sabe até feliz. Terá Felda para lhe fazer companhia e você gosta de St. Dunstan.

— Sim — ela sussurrou.

Ele acariciou o rosto e o lábio recém-cicatrizado.

— Ainda sente dor?

— Um pouco.

— Logo estará melhor e ainda mais bela. — Ela dei­xou transparecer seu ceticismo. Ele riu e acrescentou: — O sofrimento enriquece a alma, e somente aqueles com as almas mais complexas são verdadeiramente belos.

Thorne levou a mão direita dela aos lábios e a beijou, depois a pressionou contra sua face, fechando os olhos.

— Não quero partir.

Sem pensar, ela afagou os lábios dele, como ele tinha feito com os seus. Thorne capturou-lhe os dedos e abai­xou a mão, inclinando a cabeça. Ela apoiou as mãos no peito largo e se esquivou, temendo sentir dor.

— Tomarei cuidado — ele disse e a abraçou.

Martine fechou os olhos e ele pousou os lábios sobre os dela. O beijo foi suave, um ligeiro resvalar de lábios. Outro se seguiu e mais um. E então ele fechou a boca sobre seu lábio inferior.

— Martine — ele sussurrou, estreitando o abraço. Assim que ela se moveu para mais perto, ouviram a porta do estábulo se abrir e se afastaram, ofegantes.

— Vim me despedir, mas não queria interromper — Frei Matthew disse.

— De maneira alguma, frei — Martine disse, afas­tando-se de Thorne. Matthew sabia sobre eles, é claro. Precisou contar quando saíram do gabinete. Ela, porém, concordara com as regras de decoro e sabia que tinha de se comportar como a mulher casada que ainda era. Mal tinha prometido tal coisa e já traía a confiança do sacerdote. — Eu só... Nós...

— Estávamos nos despedindo — Thorne intercedeu. Ela assentiu, sentindo estar à beira das lágrimas.

— Bem, nos veremos na primavera, então.

Thorne deu um sorriso triste e Martine se virou, lá­grimas rolando pelas faces ao sair do estábulo.

 

Martine molhou a pena com tinta e se inclinou sobre o pergaminho no qual escrevia uma receita de elixir de alecrim, parte de seu Herbarium Medica, uma coletânea sobre o uso de ervas que a mantinha ocupada e deixava os longos meses de inverno menos solitários durante sua estada em St. Dunstan.

Embora sentisse os dedos enregelados, procurava deixar a mesa emprestada pelos freis próxima à janela a fim de aproveitar a claridade e se concentrar em sua tarefa.

Pousou a pena um instante para aquecer as mãos no braseiro e se lembrou de um calor diferente que a consu­miu no verão, na margem do rio não muito longe dali.

O que a fez pensar em Thorne. Fazia três meses des­de a última vez que o vira, mas nada apagava a memória dos olhos azuis intensos, da voz profunda, da covinha no rosto quando ele sorria.

Levou as mãos ao rosto, ora completamente cicatriza­do, e fechou os olhos. Estaria Thorne entre os guerreiros no cerco ao castelo? Óbvio que sim. Depois que Neville voltara no dia de Todos os Santos com seus guerreiros mercenários, reclamando aquelas terras para si, Olivier convocara todos os seus vassalos para lutarem contra o malfeitor. Thorne, estando a serviço de Godfrey, só podia estar lá. De acordo com frei Matthew, muito provavel­mente à frente dos arqueiros.

O cerco já durava semanas e sem saber nada sobre guerras, só lhe restava ouvir os gritos que chegavam com o vento e as notícias trazidas por frei Paul, chefe da enfermaria. Por causa da proximidade com o castelo, o mosteiro abrigava os feridos e os freis cuidavam deles.

Sabendo que a experiência dos monges era restrita quanto a ferimentos, Martine se prontificou a ajudá-los com seu conhecimento adquirido em Paris. Frei Matthew, entretanto, ciente das restrições a ela impostas, pediu que os ajudasse somente com orações.

Contudo, por meio de frei Paul, Martine descobriu que os soldados consideravam aquela empreitada de­safiadora sobremaneira. Ainda que o castelo estivesse inacabado, mostrava-se uma fortaleza praticamente im­penetrável por causa dos muros excepcionalmente es­pessos. Sem falar nas centenas de homens contratados por Neville, bárbaros que não se importavam em utilizar bestas como armas.

Se o cerco continuasse por muito tempo, era possível que Olivier desistisse e acabasse reconhecendo Neville como o barão de Blackburn.

Depois de escrever o dia inteiro, Martine já se prepa­rava para a noite quando sentiu cheiro de algo estranho queimando. Colocou o manto e foi para o portão diantei­ro, onde encontrou frei Matthew olhando na direção do castelo de onde se viam somente as luzes das tochas.

— O que está acontecendo? Que cheiro é esse?

— Não sei. — O sacerdote pôs a mão no cotovelo dela. — Vamos entrar. Amanhã cedo saberemos se houve al­guma coisa; por enquanto, não adianta nada ficarmos neste frio.

Martine mal tinha pegado no sono quando foi chama­da por frei Matthew.

— Sir Peter está aqui, milady — ele disse do lado de fora da cortina. — Ele quer vê-la.

Ela vestiu o manto sobre a camisola e encontrou Peter, em armadura completa, no salão.

— E Thorne — ele disse sério. — Pensei que talvez a senhora tivesse algo para a dor.

— Onde ele está?

— Na enfermaria.

— Frei Paul não permite que eu entre lá. — Ela se virou com olhos suplicantes para frei Matthew.

O prior pareceu ler sua alma com os penetrantes olhos castanhos.

— Frei Paul está dormindo. Não há motivo para acordá-lo se milady cuidar dele. Isto é, se a senhora não se importar.

— Oh, obrigada! — Levando a caixa de ervas, ela se­guiu os dois homens até a enfermaria do outro lado do mosteiro.

Lá dentro havia fileiras de camas de feridos, a maio­ria já adormecidos. Um monge muito jovem os recebeu e ficou surpreso ao ver Martine, ainda mais sem o véu.

— Está tudo bem, frei Luke — Matthew disse. — Estamos aqui para ver o cavaleiro que acabou de ser trazido.

Frei Luke apontou para um canto cercado por uma cortina, perto de um fogareiro.

— Nós o colocamos ali onde está mais quente.

— Mãe de Deus — Martine murmurou quando afas­taram a cortina.

Ainda com a armadura inteira, inclusive o elmo, Thorne estava pálido e suado, a respiração entrecortada, o olhar turvo. Havia duas flechas de besta saindo da cota de malha do ombro e braço direitos e a perna estava dobrada num ângulo estranho.

— Thorne — ela disse baixinho.

Ele focou o olhar nela e seu rosto relaxou um se­gundo. A boca formou seu nome, mas nenhum som foi emitido. Quando tentou levantar um braço na direção dela, seu rosto de transformou numa expressão de ago­nia e ele gemeu, apertando os olhos.

Frei Luke entrou com uma bacia de água, sabão, bandagens de linho, uma série de instrumentos cirúrgicos e conhaque. Afastando Martine, rapidamente começou a retirar as várias partes que compunham a armadura.

Depositando a caixa de ervas numa mesinha, ela pe­gou o pilão e começou a misturar alguns ingredientes muito mais eficazes que o conhaque para aliviar a dor.

— O cerco foi bem-sucedido — Peter disse, os olhos pregados no amigo em sofrimento. — Retomamos o castelo.

— Como conseguiram? — Matthew perguntou. — Pensei que o castelo fosse impenetrável.

— E é. Quando percebemos que nunca conseguiría­mos atravessar os muros, Olivier começou a falar sobre trégua, mas Thorne achava tal coisa imperdoável depois do ocorrido a Anseau e Aiglentine. Por isso, armou um plano que foi aprovado pelo conde. — Enquanto despiam o amigo, Peter prosseguiu: — A primeira parte do pla­no era estratégia de cerco clássica: armamos uma ten­da num dos cantos da fortaleza e cavamos um túnel. Enchemos o buraco com porcos mortos e madeira embebida em sebo e ateamos fogo. Nunca vi uma fogueira tão grande. Não podem imaginar o cheiro!

— Não precisamos imaginar, nós o sentimos daqui — Matthew disse. — Tudo isso para que o muro caísse?

— Thorne não acreditava que o muro fosse cair... — Matthew franziu o cenho sem entender, e o outro continuou: — Era somente uma distração. Enquanto os mercenários se agrupavam naquele ponto para apagar o fogo, Thorne, Guy e eu apoiamos uma escada para subir a muralha do lado oposto, deixada sem guardas. Thorne argumentou que o castelo era muito bem construído e jamais seria transposto à força. Tínhamos de encontrar o elo fraco no plano de Neville, no caso, os guerreiros galeses. Como soldados pagos, não tinham lealdade ao barão, somente ao bolso dele. Se não recebessem pagamento, desistiram de lutar. O plano, então, era nos infiltrarmos no castelo e pegar Neville como refém.

— E serem mortos no processo — Matthew comen­tou. — Como acreditaram que passariam despercebi­dos num castelo tomado por galeses? Era suicídio, não perceberam?

— Claro que sim. Confessamos-nos e fomos absol­vidos de nossos pecados esta tarde. Thorne não queria que o acompanhássemos, mas não conseguiu nos dis­suadir. Quando apoiamos a escada, ele insistiu em ir à frente para se certificar de que o caminho estaria livre. Chegando ao topo, porém, puxou a escada e nos impediu de segui-lo. — Peter balançou a cabeça, os olhos luzentes. — E sorriu para nós, como se nos tivesse vencido num jogo de dardos e não se sentenciado à morte.

— Ele salvou a vida de vocês — Matthew concluiu. Peter exalou fundo e prosseguiu:

— Então ele desapareceu. Os galeses apagaram o fogo e nós ficamos à espera. Depois de um tempo, ouvimos gri­tos e uma grande comoção. Por fim a bandeira de Neville foi abaixada e os galeses gritaram da torre que estavam prontos a se render se não fossem mortos. Olivier con­cordou e eles abaixaram a ponte levadiça. Tomamos as armas deles e os agrupamos num canto. Neville estava morto e Thorne, assim como o vêem agora. Nosso cape­lão lhe concedeu os ritos finais imediatamente. Os ga­leses nos contaram que ele invadiu o castelo, recebendo essas duas flechas nesse ínterim, e encontrou Neville. Arrastou-o até o pátio e o obrigou a confessar que não tinha o dinheiro necessário para pagá-los.

— Isso era verdade? — Matthew perguntou.

— Não creio. Neville não era estúpido, jamais se mis­turaria àquele bando se não pudesse pagar o preço.

— Como ele morreu?

— Eles caíram em cima dele e o desmembraram. Quando o encontramos... Jamais esquecerei cena tão grotesca. — Olhou para Martine que misturava um pó ao conhaque. — Quebraram a perna de Thorne na con­fusão. Meu palpite é de que não queriam atingi-lo, esta­vam apenas descontrolados. Eles estavam tão atônitos que Thorne conseguisse permanecer de pé, mesmo de­pois de ser atingido por setas de besta duas vezes, que até inventaram um nome em galés para ele. Algo como "o gigante inglês imortal".

— Qual o destino de Blackburn agora? — o prior perguntou.

— Ninguém sabe ainda. — O cavaleiro deu de om­bros. — O certo é que Olivier não vai dar chance ao azar novamente. Até saber o que fazer, vai se mudar para lá.

Martine cerrou os olhos quando Thorne estremeceu ao ser tocado na canela ferida por frei Luke.

— Lamento, mas creio que teremos de cortar a perna — o frei disse a Thorne.

Martine seguiu o olhar de Thorne na direção do equi­pamento cirúrgico do frei. A expressão permaneceu inal­terada, mas ela notou quando ele engoliu em seco.

Virando-se para Matthew, Luke disse:

— Vou chamar frei Paul e mais alguns homens. Precisaremos de mãos fortes para segurá-lo.

Antes que Matthew pudesse concordar, Martine disse:

— Deixe-me tentar primeiro. Sei que posso realinhar os ossos.

— Já fez isso antes? — o prior perguntou.

— Ajudei muitas vezes. Por favor. Com uma tala forte e cataplasma de "ligadura de ossos", sei que conseguirei salvar a perna.

— E se ela ulcerar? — Matthew perguntou. — Ele ficará em situação pior do que se tivéssemos amputado.

— Há muitos meios de evitar isso — Martine asse­gurou. — Posso cuidar dos ferimentos à flecha também. Por favor, deixe-me tentar.

— Precisará de ajuda para alinhar os ossos e puxar as setas.

— Eu faço isso. — Prontificou-se Peter, já soltando a armadura.

Matthew se inclinou sobre Thorne.

— Sir Thorne, permite que lady Martine cuide de seus ferimentos?

Thorne a encarou, e a confiança que ela viu a encheu tanto de orgulho como de medo.

— Sim — ele concordou com voz fraca. — Ela pode cuidar de mim.

— Ainda precisaremos de mais homens para se­gurá-lo — frei Luke disse.

Martine segurou a taça de conhaque com ervas per­to dos lábios de Thorne e passou um braço ao redor do pescoço dele.

— Beba isto e não precisaremos de ninguém.

— O que há aí? — Ele a fitou nos olhos.

— Além de cicuta? — Deu um ligeiro sorriso. Thorne riu e rapidamente bebeu o conteúdo da taça.

Quando Martine o soltou, ele a segurou, a mão se fe­chando sobre algum objeto, e passou os nós dos dedos no rosto dela com extrema gentileza, o olhar fixo, como se gravasse suas feições na memória.

Por um breve instante, ela deixou as diferenças entre eles de lado, a dor por ter sido usada e se sentiu comple­ta pela primeira vez em muitos meses.

Pousando a mão na testa úmida e quente dele, ela murmurou:

— Feche os olhos.

— Ainda não. — Thorne fez um ligeiro aceno com a cabeça, mas as pálpebras começavam a pesar.

— Você é muito teimoso.

— É o que dizem... — Ele acabou perdendo a batalha, deixando a mão pensa ao lado da cama. Algo caiu e ro­lou pelo chão.

Peter se abaixou e recuperou o objeto. Segurando a peça na palma, lembrou-se de como Thorne ape­gara-se ao objeto nos últimos meses. O saxão se recusa­va a mostrar o que carregava consigo. Às vezes o tocava por sobre o bolso, outras, retirava-o e passava os dedos com cuidado sobre a peça, escondendo-a em seguida para que ninguém a visse. Ao encontrá-lo no castelo, caído, ele segurava o objeto com força na palma.

Era a rainha branca do jogo de xadrez que Martine havia ofertado a Edmond. Pouco depois do noivado a peça tinha desaparecido, não que Edmond fosse dar falta.

— O que é isso? — Martine perguntou, ao afundar as mãos na bacia e começar a ensaboá-las.

Peter hesitou. Era a imagem de Martine de Rouen que Thorne idolatrava, mantendo-a junto ao coração. Era uma pobre substituição para a dama em questão, mas uma que ele considerava boa o bastante. Duvidou que a moça soubesse dos sentimentos do saxão e, por isso, decidiu que não seria ele quem os revelaria.

— E só uma pedra — disse ao guardar a peça de xadrez no bolso.

Martine indicou a bacia.

— Se não se incomodar em lavar bem as mãos — afas­tou uma mecha do cabelo castanho de Thorne da testa e avaliou os estragos —, poderemos começar.

No meio da noite, Thorne abriu os olhos. Além do acortinado que separava seu leito dos demais conseguia ver o brilho de um fogareiro, mas do seu lado esquerdo algo também iluminava o recinto. Sabendo que não conseguiria se sentar sozinho devido às talas do bra­ço e da perna, simplesmente virou o rosto naquela dire­ção, rezando para que ela ainda estivesse ali.

Martine estava lá, adormecida toda enroscada na grande poltrona que tinham levado até ali especialmen­te para ela. O brilho vinha da lamparina na mesinha-de-cabeceira, ao lado de uma coleção de frascos de ervas e elixires. Ela não saía do seu lado, trocando cataplasmas e fazendo-lhe companhia, fosse de noite ou de dia... Por quanto tempo ela estava ali?

Sua memória andava enevoada acerca de seus pri­meiros dias em St. Dunstan, porém imaginava que já havia se passado uns cinco dias. Aquela era a quinta noite, e ela deixava sua cabeceira somente para breves descansos. Frei Matthew tentara dissuadi-la, afirmando que a enfermaria do mosteiro não era lugar para uma mulher, mas ela rebatera incessantemente, dizendo que Thorne precisava de seus cuidados.

Claro que precisava, de mais maneiras do que podiam imaginar. Naquele instante, por exemplo, contentava-se em simplesmente observá-la, mesmo que os lindos ca­belos estivessem sob o confinamento do véu obrigatório. Tinha a mão descansando sobre um livro aberto, e quan­do ele tentou levantar a cabeça para ver que livro era, a dor o trespassou pelo lado direito. Deixando-se cair, des­cansou para se recuperar e tentou novamente, dessa vez com a mão esquerda. O livro acabou caindo num baque surdo, acordando Martine.

— Thorne... Está se sentindo bem? — ela murmurou, piscando ainda confusa pelo sono.

— Não tive a intenção de acordá-la. Só queria saber o que estava lendo.

— Amores de Ovídio. — Ela mostrou a capa.

— Poderia ler para mim?

— Tem certeza de que não prefere Heroides? Há uma cópia na biblioteca... — disse sorrindo.

— Não. — Ele riu. — Hoje estou mais para Amores...

Martine leu página após página dos versos e Thorne a observava sob cílios semicerrados, refestelando-se com a voz melodiosa, a presença reconfortante. Ao terminar um poema, ela fez uma pausa para tomar água.

— Posso beber um pouco também? — pediu ele.

— Claro. — Martine encheu outra caneca e passou um braço debaixo dos ombros dele, tomando cuidado com os ferimentos. Ele agarrou o ombro dela e prendeu o fôlego, sendo auxiliado a se sentar.

— Desculpe — disse ao perceber que, na dor, enterra­ra os dedos na pele macia. — Acabará com hematomas.

— Já estou cheia deles. — Ela sorriu. — Este é um dos pontos negativos de cuidar do "gigante inglês imortal".

— Um? Há muitos outros?

Thorne notou que ela relanceou para seu peito nu e desviou o olhar rapidamente.

— Não. — Ela levou a taça aos seus lábios e Thorne notou que ela tremia. Se por esforço ao ajudá-lo ou ner­vosismo, não teria como saber.

— Obrigado — ele agradeceu após terminar. Martine depositou a caneca na mesa e ele pensou que ela voltaria a se sentar. Surpreendeu-se, porém, ao sentir o toque suave dos dedos em sua barba crescida. Fechou os olhos e saboreou o toque. — Precisa se barbear.

— Não saberei com a mão esquerda. — Um pensa­mento agradável cruzou sua mente. — Não quer fazer isso por mim?

Martine abaixou a mão e refletiu.

— Muito bem, amanhã cedo, então.

Thorne ficou radiante em antecipação, mas viu que ela ficou quieta, olhando para as mãos no colo.

— Gostaria de lhe fazer uma pergunta pessoal — disse ela.

— Há uma coisa que gostaria de lhe pedir. Responde­rei sua pergunta se retribuir com esse favor.

— Que favor? — Martine franziu o cenho.

— Não poderá saber antes. Que graça haveria? — Ele sorriu.

Ela revirou os olhos, mas aquiesceu. Respirando fun­do, perguntou:

— Naquela noite no castelo Blackburn, quando você, Peter e Guy se preparavam para invadir, você sabia que poderia morrer. Quero dizer, era quase certo. Foi um mi­lagre ter sobrevivido.

Thorne fechou a mão sobre a dela.

— E essa a sua pergunta? Ela balançou a cabeça.

— Por quê? Por que se dispôs a fazer aquilo? Estava disposto a morrer?

— Alguém tinha de...

— Não. — Ela o cortou e encontrou seu olhar com fir­meza. — Por que você? Por que sozinho? Teria sido mais seguro deixar Peter e Guy acompanhá-lo. Acho que... — A voz falhou de emoção. — Acho que queria morrer.

— Há uma diferença entre querer morrer e não se importar em viver.

— Todos querem viver.

Ele abaixou o olhar para as mãos dadas.

— Não, se não há nada de importante para se viver. Não, se o que mais se quer na vida lhe é negado para sempre.

Seus olhares se encontraram num momento de comu­nhão íntima, mas o momento se foi quando ela pensou entender o significado por trás das palavras.

— Suas terras. Terras?

— Não! Eu me referia a... — Ao quê? O que ele esta­va pensando ao fazer tais declarações? O amor era uma dívida a qual ele não podia arcar.

Naquela tarde, quando Peter viera se despedir antes de retornar a Harford, entregara-lhe a peça de xadrez entalhada com as feições de Martine.

— Deixou isto cair.

Thorne a pegou calado, escondendo-a debaixo do col­chão num lugar onde Martine não a encontraria.

— Você a ama? — o amigo perguntara.

— Não — Thorne respondera rápido demais. — Preciso dela; o que é diferente.

O amigo havia partido sem acreditar nele.

— Não se preocupe — Martine o trouxe de volta ao presente —, acabará recebendo suas terras um dia.

Thorne desviou o olhar e assentiu.

— Poderia me ajudar a deitar?

Ela o segurou novamente, e Thorne tentava deixar a dor de lado para apreciar o toque e a proximidade de Martine. Quando a dor se foi e ele abriu os olhos, encon­trou os olhos azuis safira fixos nele.

— Devo-lhe um favor...

As palavras inocentes fizeram um tremor de excitação percorrer sua espinha. Poderia pedir qualquer coisa, pois ela dera sua palavra. Engoliu em seco e tentou se lembrar que ela passara os últimos dias e noites cuidan­do de sua recuperação. Seria injusto tirar vantagem da bondade de Martine, por isso se ateve ao seu pedido ori­ginal. Erguendo a mão e tocando o linho do véu, pediu:

— Tire isto.

Se o pedido a surpreendeu, ela não demonstrou. Depois de um instante de hesitação, arrancou o véu, dei­xando-o sobre a poltrona. Thorne prendeu a respiração quando os cabelos, livres do confinamento, tocaram-no no peito como numa suave carícia. O perfume dela per­meou o ar, envolvendo-o, fustigando seus sentidos. Ele pegou uma mecha e levou-a ao rosto, inalando a fragrância tão característica.

Martine se inclinou, uma mão de cada lado da cabeça dele, e os cabelos se fecharam sobre eles, separando-os do resto do mundo.

A sensação de estar completamente envolvido por ela era inebriante. Thorne sentiu o coração acelerar dentro do peito e o simples ato de respirar era doloroso.

A despeito de suas boas intenções, ele não conseguiu deixar de tocá-la. Espalmou o rosto dela e Martine fe­chou os olhos, como se tentasse resistir. Por fim, suspi­rando, ela virou o rosto e beijou sua palma.

— Martine... — Thorne levou a mão até a nuca e a trouxe para perto.

Ela parou a centímetros de distância, os olhos reve­lando apreensão, mas, então, cerrou as pálpebras e o beijou com tanta paixão e intensidade que arrancou um gemido do fundo da garganta dele.

Thorne enroscou os dedos nos fios sedosos e aprofun­dou o beijo, deliciando-se no calor e no sabor daquela mulher. Sem conseguir se deter, desceu a mão pelo pes­coço até cobrir um seio sobre a lã da túnica, provocando um gemido de prazer em Martine. Nunca ele se excitara com tanta rapidez.

— Deite-se ao meu lado — ele murmurou. Martine chutou as sapatilhas para longe e se deitou, meio que em cima dele, e voltou a procurar seus lábios.

Acariciou os cabelos, o peito...

Com a urgência do desejo premente, ele puxou a saia e escondeu a mão no meio das coxas dela. Com suavida­de, testou a intimidade, encontrando-a úmida. Martine gemeu. Thorne aprofundou o toque. Ela o queria, estava pronta para ele.

Thorne a explorou maravilhado com a passagem es­treita, com o calor convidativo. Afastou o dedo e procurou o ponto mais escondido, mais ansioso pela sua carícia.

— Oh! Oh, Deus... — Martine escondeu o rosto na curva do pescoço dele e Thorne beijou-a na cabeça, esfre­gando o nariz nos cabelos perfumados.

— Isso — ele incentivou quando ela passou a mover o quadril no ritmo da mão dele. A respiração de Martine passou a ser rápida e superficial e, então, ela estreme­ceu, os dedos cravados no peito largo, os gritos suaves abafados pelo travesseiro.

Ele a segurou até que ela se recompusesse, depois guiou a mão dela até sua ereção pulsante.

— Diga o que devo fazer — ela pediu.

— Terá de ficar sobre mim.

Martine arregalou os olhos, até entender o que ele di­zia. Então, relanceou para as cortinas para se certificar de que estavam fechadas e abaixou o lençol, deixando-o nu. Mudou de posição, mas o leve toque de seu joelho sobre a tala provocou tamanha dor, que ele retesou o corpo.

— Thorne! — Ela se ajoelhou ao seu lado, embalando-o enquanto ele gemia como um lobo ferido. — Desculpe...

— Não é sua culpa — ele disse por entre os dentes. Ela o acariciou nos cabelos.

— Que tolice a nossa... Não podemos fazer isso. Você se machucará.

— Algumas coisas valem a dor que provocam. — Ele riu. — Mas não tanta dor assim... — Ficou quieto ouvindo o som ritmado dos demais que dormiam. —Acho que não acordamos ninguém, mas se eu der mais um grito...

Ela olhou para baixo.

— Não ficará... frustrado?

— Não tenho a mínima intenção de ficar frustrado. — Pegou a mão dela e a posou sobre o membro ereto.

— Há outras maneiras.

Martine observou por um instante enquanto ele mo­vimentava a mão dela para cima e para baixo. Quando ele a soltou, ela continuou com os movimentos.

— E só isso o que quer? Quero dizer... Não há nada mais que queira de mim? — Encarou-o tímida.

O olhar dele pousou sobre seus lábios. Desejava outra coisa... Era um serviço que as rameiras faziam por ele, mas cobrando extra. A despeito do intelecto avançado de Martine, ela era ainda muito inocente e tal coisa poderia ser repulsiva. Ela poderia se sentir violada.

Obviamente ela notou a direção de seu olhar, pois umedeceu os lábios de modo inocente e inconsciente. Thorne fechou os olhos, em busca de autocontrole.

— No verão passado — ela disse — na margem do rio quando nós... quando nós estávamos juntos, você me beijou. — Ele soube sem maiores explicações a que beijo ela se referia. — Há algo semelhante que uma mulher possa fazer para um homem?

Ele engoliu em seco.

— Sim.

Martine olhou para a mão pousada no membro e perguntou:

— Gostaria que eu fizesse isso com você?

Ela soou tão sincera que ele não conseguiu reprimir um sorriso.

— Eu adoraria.

— Mostre o que devo fazer. Ele traçou os lábios dela com o dedo.

— Faça o que sentir vontade. Nada do que fizer esta­rá errado.

Parecendo incerta quanto a isso, ela abaixou a cabe­ça, o cabelo bloqueado a visão de Thorne. O objetivo tal­vez sendo o de se proteger de seus olhares.

Thorne fechou os olhos e, por um instante que pare­ceu uma eternidade, esperou. Então ela o tocou de leve com a boca. Ele mordeu o lábio, tentando se controlar e sentiu a pressão suave dos lábios e, em seguida, a umi­dade da língua. A natureza inexperiente do toque dela somente intensificou o estímulo.

— Oh, Deus... — ele murmurou, apanhando uma mecha dos cabelos de Martine.

Ele havia dito que nada do que ela fizesse pode­ria sair errado e estava certo. Nem a mais experiente cortesã teria feito melhor. O que lhe faltava em expe­riência, ela compensava em vontade de agradá-lo. A generosidade de Martine em satisfazê-lo daquela ma­neira o tocava profundamente, e ele não pôde deixar de acreditar que, no fundo, ela ainda nutrisse sentimentos em relação a ele.

Quando ela o tomou por completo na boca, ele gemeu, enroscando os dedos nos cabelos.

— Martine... — O clímax se aproximava e ele soltou Os cabelos. — Estou perto, Martine. — Ela não enten­deu e não mostrou sinais de substituir a boca pela mão. Dada a inexperiência dela, seria melhor que o fizesse, ele pensou. Puxou-a pelo ombro.

— Fiz alguma coisa errada?

— Não... — Abraçou-a e a reteve perto de seu corpo. — Só me toque... Assim... — O coração pareceu inflar dentro do peito até um ponto em que ele não suportou mais. Agarrou-se a ela, a cabeça inclinada para trás. Espasmos de prazer o fizeram estremecer. Ele explodiu nas mãos dela, perdendo todo senso de realidade, tem­po e espaço. Nada além daquele momento existia. Nada além de Martine e dele.

Martine correu pelo mosteiro, dando a volta no claustro, seguindo por uma passagem até o jardim externo. Corria levantando a barra da túnica, os cabelos voando ao vento. Logo amanheceria e os freis se levantariam para a missa, e ela tinha prometido se manter afasta­da. Não viu viva alma até entrar nos alojamentos do priorado e correu escada acima, porém na entrada do salão central se deteve, mordendo os lábios para conter uma imprecação.

Frei Matthew lia sentado á uma mesa. Ergueu os olhos da Bíblia e a estudou por um instante. O olhar plácido se deteve nos cabelos soltos, na túnica amassada e no rosto corado.

— Bom dia, milady.

— Bom dia, frei.

Ela se virou e seguiu para seus aposentos, tentando recuperar o fôlego e imaginando o que o clérigo pensava de sua aparência e de seu rubor revelador.

— Lady Martine, posso entrar para conversar? — o frei perguntou do lado de fora.

Martine respirou fundo e arrumou o cabelo.

— Sim, pode entrar.

Ele se sentou ao lado dela na cama e tomou as mãos nas suas. Por algum motivo, cansaço talvez, ela sentiu os olhos arderem.

— Por favor, não me leve a mal, Martine — ele disse com suavidade. — Tenho muito respeito por Thorne e por você. Eu os considero amigos. Bons amigos.

Ela assentiu em silêncio, a garganta apertada demais para emitir qualquer som.

— Não sou um homem impiedoso. — Respirou fundo. — Só porque renunciei aos prazeres da carne, não quer dizer que eu não os compreenda; até os apre­cio, afinal, fazem parte dos planos de Deus. — Apertou as mãos dela e as soltou. — Não me cabe julgar seu relacionamento com Thorne, mas é minha responsabili­dade governar este mosteiro.

— Nenhum dos freis me viu. Eu corri...

— Minha preocupação não é quanto aos freis, é quan­to a você.

— A mim?

Ele franziu o cenho.

— Seu envolvimento com Thorne é mais perigoso para você do que para ele. Você é casada, independente­mente do que seu coração possa dizer. Quando o abade concordou que morasse aqui, ordenou que se comportas­se com a máxima discrição.

Martine assentiu mais uma vez, a visão borrada pe­las lágrimas presas nos olhos.

— Se ele suspeitar, por um instante sequer, ordenará que eu a expulse. Você não terá para onde ir e ficará desprotegida. Só Deus sabe o que Bernard seria capaz de fazer depois disso.

Ela fechou os olhos, desejando que ele estivesse erra­do. Mas não estava.

— Martine, você ama Thorne? Ela arregalou os olhos.

— Eu... — Meneou a cabeça. — Não, eu... — Suprimiu o choro e abaixou o olhar para as mãos. — Eu não sei. Ele segurou o queixo dela e forçou-a a encará-lo.

— Ele disse que a ama? Martine meneou a cabeça.

— Ele é incapaz de amar.

— Ninguém é incapaz de amar, minha querida, nem mesmo Thorne Falconer. Quaisquer que sejam os sentimentos dele, Thorne lhe fez um desserviço ao encorajá-la a... — Os olhos do frei percorreram sua figu­ra desarrumada.

— Tive tanta culpa quanto ele. — Martine se sentiu obrigada a defendê-lo.

— Bem...

— É verdade. Fui fraca. Assim como minha mãe... — Descontrolou-se e caiu em prantos. Frei Matthew, de­sajeitado, guiou a cabeça dela até seu ombro. Quando parou de chorar, Martine enxugou o rosto com o véu.

— Não foi fraca, apenas humana. E Thorne, bem... Digamos que ele esteja acostumado a conseguir o que quer das mulheres. Alguns homens são muito habi­lidosos na arte de sedução, Thorne Falconer é um deles.

— Oh, Deus... Eu sei. Sou tão...

— Não deve se julgar tão severamente, milady. Para seu próprio bem, entretanto, não devem continuar a se relacionar.

— Está certo. Fui uma tola em me arriscar. Isso não se repetirá.

— Francamente, milady, não tenho a intenção de facilitar. — O frei levantou-se. — De hoje em diante está proibida de voltar à enfermaria.

— Mas Thorne precisa de meus remédios. Talvez mais um dia somente, só para...

— Não, milady. Frei Paul e frei Luke cuidarão dele. Pode enviar os remédios e instruí-los se quiser, mas não voltará para lá.

— Thorne ficará se perguntando por que não voltei.

— Eu explicarei a ele.

— Ele não gostará.

— Ficará furioso — o sacerdote concordou. — Dirá que não tenho nada a ver com isso e que não tem a in­tenção de lhe fazer mal. E claro que não tem, mas o mal virá... Para você, não para ele. — Deu de ombros. — No fim das contas, não importa o que ele disser; está confi­nado à cama, não?

Martine assentiu e Matthew colocou a mão sobre a dela.

— Deve tentar ser forte e fazer a coisa certa. Precisa tirar Thorne da cabeça. É o que Rainulf gostaria que fizesse.

Aquilo era verdade. Rainulf, como de hábito, lhe aconselharia discrição.

— O senhor é um homem sábio, frei Matthew. Sei que tem razão e tentarei fazer o que me aconselha. — Respirou fundo e sentenciou: — De hoje em diante, tirarei Thorne Falconer de meus pensamentos.

 

— Thorne tem feito excelentes progressos — frei Matthew contou a Martine a caminho da capela, onde assistiriam a primeira missa.

— Fiquei sabendo que consegue ficar de pé — ela disse num tom distante. Nas três semanas desde que fora proibida de voltar à enfermaria, recebera notícias esporádicas quanto à recuperação de Thorne. Embora tivesse prometido não pensar mais nele, saber tão pouco a frustrava depois de ter se empenhado tanto nos primeiros dias.

— Frei Paul me contou que nunca viu ninguém mais determinado a voltar a andar. Thorne insistiu em ficar de pé muito antes do recomendado e ninguém acreditava que ele fosse conseguir suportar tanta dor. — Matthew meneou a cabeça. — Ele sabe ser teimoso quando quer.

— Então agora ele consegue caminhar?

— Pequenas distâncias e de muletas. Paul disse que ele já consegue cruzar a enfermaria. Nada mal, le­vando-se em conta que quase perdeu a perna.

— Obrigada por me contar isso, frei.

Ele sorriu e afagou o braço dela.

— Não percamos a missa...

Ela o seguiu até a capela, sentando-se ao lado de Felda e de Cleva.

— Bom dia, senhoras — disse uma voz familiar às suas costas.

Ela e as companheiras viraram-se e viram Thorne apoiado no banco de trás.

— Thorne! É mesmo você!? — Felda exclamou.

Ele não parecia o Thorne de sempre. Uma barba espessa cobria o rosto, as feições estavam muito mais magras e o corpo forte estava coberto por uma túnica simples, muito provavelmente emprestada de um dos freis mais altos. O braço direito estava imobilizado numa tipóia, e o esquerdo segurava a muleta na qual ele se sustentava. Sentou-se com vagar, a mandíbula trava­da indicando o esforço a que se submetia.

— Caminhou da enfermaria até aqui? — Martine perguntou. — No meio da neve? Está louco?

Ele sorriu. Inclinando-se em sua direção, murmurou:

— Se estou louco, que assim seja. Pelo que sei alguns loucos são felizes.

Os freis começaram a entoar os cânticos e ela lhe deu as costas, o rosto rubro. As palavras aparentemen­te inocentes carregavam significados escondidos que só eles compreendiam. Eram as mesmas palavras proferidas à margem do rio após terem feito amor pela primeira vez.

Por que ele tinha ido até ali? Para vê-la? Aquilo era cruel, levando-se em consideração o quanto era difícil não pensar nele, não se sentir aquecer só de se lembrar da paixão entre eles.

Durante toda a interminável missa, ela sentiu os olhos presos às suas costas. Bom Deus, quando se li­vraria daquele desejo, do vazio dentro de si que clamava por Thorne?

Quando a missa terminou, ela se levantou para sair com os demais, porém Thorne a deteve pelo ombro, fazendo-a se sentar de novo. Ele retirou a mão quan­do todos saíram e eles permaneceram sentados em si­lêncio, ainda que a distância entre eles vibrasse com as palavras não ditas.

— Não assiste à missa na capela da enfermaria? — Martine perguntou ao se virar?

— Normalmente, mas queria vir a esta missa, por isso tenho praticado com a muleta. — Emitiu um suspi­ro pesado. — Eu precisava vê-la. Não consigo pensar em outra coisa.

Martine se virou de frente para o altar, tentando se afastar emocionalmente do homem que tinha tanto poder sobre ela.

Thorne esticou a mão e passou um dedo debaixo do queixo dela. Martine não entendia como um simples gesto fosse capaz de acelerar o sangue de suas veias, de apertar seu coração até que fosse difícil respirar.

Ela o queria. Não. Precisava dele com tanta intensi­dade que teve de fechar os olhos e respirar o ar gélido com profundidade para retomar a compostura.

— Estará aqui amanhã cedo? — ele perguntou, resvalando o pescoço dela numa carícia suave da ponta os dedos.

— Eu não estarei aqui, Thorne.

A luz nos olhos brilhantes azuis diminuiu. Ele assentiu, a boca numa linha fina.

— Estou contente em ver que está se recuperando, mas ainda tem semanas, ou melhor, meses antes de sarar por completo. Devia ficar na cama por mais tempo. Por certo não deveria caminhar da enfermaria até aqui.

Dessa vez ele não tentou detê-la quando ela se levan­tou. De costas, ela concluiu:

— Será melhor voltar a assistir à missa na capela da enfermaria. — E seguiu para a porta, mesmo quando pensou ouvi-lo dizer seu nome.

Bernard sabia que logo ficaria viúvo. Por mais que não acreditasse num demônio na barriga de Estrude, como o padre Simon já havia aventado, também não pensava que ela estivesse grávida. Pálida, encovada, magra em demasia, a aparência era a de uma enferma à beira da morte e não de uma mulher em plena ges­tação. Até mesmo a parteira dissera que, nem que ela esperasse gêmeos, o ventre estaria tão distendido. Poderia acabar com o sofrimento dela, mas preferia não sujar as mãos. Logo estaria livre para procurar outra esposa, e se essa não se mostrasse fértil no espaço de um ano, se livraria dela também. O sofrimento de Estrude, que agora se debatia na cama, gemendo com dores cada vez maiores não o afetava. Porém, restava o fato de que ainda não tinha um herdeiro.

E por causa disso, o pai enviara Edmond a St. Dunstan, rompendo o acordo feito, a fim de que retomasse o casamento com lady Martine.

Edmond, enquanto isso, se embebedava pelo cami­nho, alheio ao perigo da estrada coberta de neve. Res­sentia-se com a ordem do pai e descarregava a ira no lombo do cavalo, que por fim, se rebelou jogando-o longe.

Rolando ribanceira abaixo, Edmond bateu a cabeça e, antes de desfalecer, pensou o quão poderosa Martine era. Afinal, matara-o antes mesmo de vê-lo novamente...

Parada diante da janela do salão do alojamento, Martine releu a carta em que recebia a notícia da morte do marido e do estado da cunhada.

— Martine.

Ela se virou ao ouvir a voz de Thorne. Parado perto da escadaria, vestia-se do mesmo modo modesto como o tinha visto na igreja duas semanas antes. Desta vez, porém, a barba estava feita e o braço livre da tipóia.

— Frei Matthew me contou sobre Edmond. Ela assentiu e olhou para a carta.

— Matthew me contou que você pretende ir a Harford para o funeral. — Ele franziu o cenho.

— Acabei de empacotar meus pertences. — Ela apon­tou para uma sacola na qual levava um odre de vinho com ervas que esperava atenuassem o sofrimento de Estrude. — Ficarei fora por um ou dois dias apenas. Vou deixar Loki aqui.

— Não acho que seja uma boa idéia. — Ele se aproximou.

— Edmond está morto. — Ela retrocedeu. — Não preciso mais me esconder atrás dos muros de St. Dunstan. Felda vai comigo.

— Sem um acompanhante?

— Não há perigo. Ele suspirou.

— Se insiste em ir, vou com vocês.

— Não está em condições de cavalgar. E, por certo, não há necessidade para tal.

— Não importam as minhas condições e, sim, há necessidade.

— Não entende? — Ela colocou as mãos nos quadris. — Não quero que vá!

— Entendo sim. — Ele disse gravemente. — Sei que quer que eu a deixe em paz. Que considera minha compa­nhia... penosa, e que frei Matthew a incentivou a manter distância. O fato é que a viagem a Harford é perigosa, bem como sua estada no castelo. — Pousou a mão no cabo da espada. — Jurei protegê-la e, quer queira quer não, é o que farei.

 

Ele é um bom ator, Thorne pensou ao ver Bernard recebê-los com ar grave na entrada do castelo.

Martine dispensou Felda e pediu para ver a cunha­da imediatamente. Bernard a conduziu pelas escadas. Thorne os seguiu, mas extenuado pelo esforço da via­gem, logo ficou para trás. No meio do caminho afagou a rainha do xadrez em seu bolso. Ao chegar aos aposentos, Martine já concluía o exame. Vendo a expressão séria da moça, ele fez o sinal-da-cruz. Não via Estrude havia qua­tro meses, desde que partira para o cerco a Blackburn. Nunca tinha visto uma pessoa tão devastada por uma doença. Agarrada às cobertas, a mulher estava em fran­ca agonia. Estava à beira da morte e acabaria levando seu filho com ela.

Martine umedeceu um pano e passou na fronte dela.

Pegou a sacola de viagem e retirou o odre. A moribunda arregalou os olhos, e encarou sua benfeitora, sem perce­ber a presença do marido e do falcoeiro.

— O que é isso?

— Um vinho com ervas que trouxe de St. Dunstan. Isso a ajudará a dormir — Martine respondeu, tomando os dedos crispados nos seus.

— Não mereço tal coisa. Deus quer que eu sofra; está me punindo.

— Isso não é verdade. — Martine se inclinou sobre a enferma.

— E sim. Fui gananciosa, quis um filho a todo custo. Martine olhou para Bernard, que franzia o cenho num canto do aposento.

— Sir Bernard. Poderia fazer a gentileza de chamar padre Simon?

— Ela já recebeu os ritos finais.

— Bem, talvez então possa pegar uma taça para que eu lhe dê o vinho...

Bernard mostrou surpresa ao ser ordenado a exe­cutar tarefas corriqueiras, porém decidiu que não cus­tava muito fazer o papel de marido devotado por mais um pouco.

Thorne respirou fundo assim que ele saiu do quarto.

— Deus não a está punindo — Martine disse.

— Está sim. Este bebê não é de Bernard. Eu pequei para engravidar, então Deus me mandou este bebê para sugar a minha vida. Logo morrerei e arderei no fogo do inferno.

— Deus é misericordioso. Ele não a puniria por adultério.

— Não é só pelo adultério — Estrude sussurrou, sem forças nem para abrir os olhos. — Usei trapaças. Sir Thorne não me queria, então o ludibriei.

Martine olhou para Thorne, que assentiu com a cabeça.

— Usei seu perfume e fui até ele no meio da noite, deixei-o pensar que eu era você. — Estrude se debateu.

— Eu o forcei; ele ficou furioso. Deus permitiu que o fi­lho de Thorne crescesse em meu ventre para me matar. — A voz enfraquecida foi se tornando inaudível. Martine pousou as mãos nos ombros da mulher.

— Milady, abra os olhos. Olhe para mim e me ouça. A senhora não está grávida.

— Mas minha barriga... — As palavras de Estrude ecoaram os pensamentos de Thorne.

— Eu a examinei e lhe asseguro de que não há bebê algum. Nunca esteve grávida. Sofre de uma doença que vi uma vez em Paris. Há uma bola que cresce sem parar dentro de seu corpo. Deve estar doente há mais de um ano, sem saber...

— Estou morrendo?

Martine hesitou, depois assentiu.

— Vai demorar muito para que isso aconteça?

— Não.

— Graças a Deus...

— E então estará diante dos anjos — Martine garantiu.

— Com os anjos — Estrude repetiu, e Thorne viu lágrimas nos olhos semicerrados.

Bernard retornou com a taça e Martine serviu o vi­nho com ervas. Ajudou a mulher a beber e, em instan­tes, ela relaxou o corpo, fechou os olhos, e a respiração se acalmou. Uma hora mais tarde, quando o sol che­gou ao horizonte, os movimentos do peito cessaram. A Morte, que esperara pacientemente por Estrude de Flandres, finalmente a levou.

Pouco depois, Bernard sentava em conferência com padre Simon e o barão.

— Mas ela é sua irmã pelo casamento — Godfrey observou enquanto o filho enchia sua taça novamente.

— Não há laços de sangue nesse relacionamento. Garanto que a Igreja não se oporá — disse o padre.

— Por que amanhã? — Godfrey segurou a taça junto aos lábios. — O corpo de Estrude nem esfriou.

O corpo dela nunca foi quente, refletiu Bernard.

— Quer netos ou não? — Bernard perdeu a paciência.

— Mais do que tudo na vida. Mas por que Martine? Há dezenas de moças...

— Teríamos de procurar no estrangeiro! Lembra-se por quê?

— Ah, sim... A pobre moça...

— Isso leva tempo. Além disso, com a morte de Edmond, lady Martine herdou as terras do dote. Essas terras pertencem à família há séculos. Não prefere que voltem a nos pertencer em vez de ficarem com uma moça que mal conhecemos?

— Não me importo com as terras. Quero netos! Bernard se inclinou sobre o pai e cochichou:

— E eu quero providenciá-los. Ela é jovem, saudável. Poderá encher este castelo com crianças.

— Meninos... — Os olhos do idoso brilharam.

— Muitos. Basta que consinta. Padre Simon nos ca­sará ao amanhecer.

— Se for por ordem sua, ninguém questionará — o padre disse.

Bernard lançou um aviso com os olhos para o sacerdote.

— Pense apenas nos herdeiros, pai. O que me diz?

— Que assim seja, então — o barão suspirou. — Tenho de admitir, entretanto, que estou surpreso com sua escolha. Sempre disse que achava a moça voluntario­sa e insolente. Sei que a culpa pela morte de Edmond.

— Eu estava perturbado. Quanto ao gênio dela, ela só precisa de uma mão firme. — Ele se virou para sair do salão. — Não se preocupe com isso. Só pense nos ne­tos que terá.

— Não estou gostando de não ter nenhum de meus homens por perto — Thorne disse depois do funeral en­quanto ele e Martine aqueciam as mãos na lareira do salão. — Sir Godfrey enviou Peter, Guy e Albin para a França para ajudar o rei numa disputa territorial. Eu não desconfiaria de nada se não tivesse sido idéia de Bernard.

Martine notou que ele já não olhava mais para ela quando conversavam. Sem poder seduzi-la, passara a tratá-la de modo indiferente.

— Talvez não seja nada. Quem sabe eles não estives­sem se sentindo entediados sem a sua presença?

— Talvez seja isso — ele murmurou. Olhando por cima do ombro dela, ficou sério. — Talvez não.

Quando Martine se virou, viu Bernard se aproximan­do com um contingente de homens. Bernard carregava o sorriso sardônico de sempre, mas os homens tinham a expressão de quem vinha a trabalho.

Martine olhou para Thorne e viu que ele tinha a mão na espada. Era a mão direita, aquela que ainda não es­tava curada.

Bernard parou diante dela, inspecionado-a com olhos cobiçosos.

— O que quer, Bernard? — Thorne perguntou

— Quero me casar. O mais rápido possível.

— Sugiro que faça as malas então. Pode tentar a Itália ou o Reno. Talvez sua reputação não tenha chegado até lá.

Bernard estreitou os olhos, a mão pousada no cabo da espada.

— Isso não será necessário. Meu pai escolheu uma noiva para mim que, por sinal, está bem perto.

Isso não pode estar acontecendo, Martine pensou e ouviu o som metálico da espada de Thorne sendo desembainhada. Num segundo, quatro lâminas apontavam para a garganta do saxão.

Thorne estava certo. Caí numa emboscada... Não conseguia nem pensar o que seria dela caso se casasse com Bernard.

— Eu não aceito — disse ela.

— Ninguém está pedindo sua permissão — Bernard informou, friamente. — Nosso senhor supremo deu você para mim. O assunto está decidido.

Ela engoliu o medo, a indignação e escondeu as mãos trêmulas que denunciariam seu pavor. Pelo canto do olho, viu as espadas tocando o pescoço de Thorne.

— Vou voltar para St. Dunstan.

— Isso seria possível se eu lhe desse tempo para pensar. Por isso arranjei a cerimônia para amanhã de manhã.

— Amanhã! — Ela se virou para o saxão e disse: — Sir Thorne! Faça alguma coisa, por favor!

Ele nada disse, apenas relanceou para as espadas.

— Diga alguma coisa! Prometeu me proteger!

— E verdade... — Bernard zombou. — Ouvi dizer de sua promessa a padre Rainulf. Não fingirei me im­portar com seus sentimentos, mas deve ter se sentido diminuído... Um cavaleiro de seu calibre reduzido a dama de companhia de uma moça insolente. Uma tarefa um tanto irritante, não?

— E se for? Isso não é problema seu. Bernard sorriu.

— Não tenha tanta certeza. Talvez eu lhe ofereça uma alternativa. No momento você é uma pedra em meu sapato. Contudo, seria uma vergonha destruir tanta força e habilidade... Sejamos francos. Você quer terras. Eu quero as minhas de volta. Se renunciar à promes­sa feita a Rainulf e for leal a mim, dou minha palavra que lhe concederei uma porção das terras do dote de lady Martine.

Para horror de Martine, Thorne pareceu considerar a proposta.

— Não — disse ele por fim. — Quero as terras que lorde Godfrey me prometeu. Aquelas são muito melho­res do que as que você oferece.

Martine olhou para Thorne, que se recusou a encará-la.

— É um homem ambicioso. Eu o admiro por isso. Feito, então. As terras serão suas a partir de amanhã. — Bernard acenou para os homens que abaixaram as espadas. — Agora, como prova de lealdade, acom­panhará lady Martine aos aposentos. Boyce montará guarda até amanhã quando nos uniremos diante dos olhos de Deus.

— Prefiro a morte a me casar com você! — ela retrucou.

— Obrigado pelo aviso. — Ele se aproximou e pegou a faquinha de comer do cinto dela e a entregou a um sol­dado. — Boyce, vasculhe o quarto e certifique-se de que não haja facas, cordas ou...

— Não seria mais seguro levá-la ao calabouço? — Thorne interrompeu.

A ira deixou Martine sem fala. Bernard se virou para o saxão parecendo admirado.

— Excelente idéia! Tinha minhas dúvidas quanto a você, mas acabou de provar sua lealdade.

Esforçando-se para controlar a voz, Martine sibilou:

— Sir Thorne nunca teve dificuldade em mostrar onde jazem seus interesses. Não é mesmo?

— Não. — Ele a segurou pelo cotovelo, mas ela se desvencilhou. Num tom baixo, porém firme, Thorne disse:

— Não me faça usar a espada, milady. Eu não titubearei.

— Fechou a mão fraca em seu braço, mas ela o atingiu sem piedade com o cotovelo. Reprimindo um gemido, pôs-se atrás dela, desembainhou a espada e encostou-a em suas costas.

Movida pela pressão, Martine seguiu para as escadas.

Na primeira hora de seu encarceramento Martine fi­cou parada no meio da cela fétida, segurando a barra da túnica. Pensou em rezar, mas nunca fora boa nisso e logo desviou os pensamentos para seu herbário, sabendo que se acalmaria tal como no dia do casamento. Isso logo a lembrou de Thorne e, mais serena, viu que o saxão não tivera alternativa: era aceitar a proposta de Bernard ou morrer. Não, não tentaria encontrar desculpas para o comportamento dele. Sua traição era dolorosa e indes­culpável. Agora estava por conta própria. Se quisesse sair daquela situação, teria de se virar sozinha.

Do lado de fora da cela, Boyce cantarolava canções de taverna.

— Boyce! — ela chamou.

O ruivo enfiou a cara na portinhola.

— Estou com a garganta seca. Poderia ir buscar vinho, por favor?

— Não posso sair daqui. Mas posso pedir que alguém o traga. Também estou com sede.

Martine contava com isso, afinal nunca o tinha visto sem uma caneca nas mãos.

— Trouxe um vinho tinto maravilhoso de St. Dunstan. Felda sabe onde está.

Minutos depois, Felda descia trazendo o vinho e, olhando a ama com ar conspiratório, reclamava da situação em que a patroa se encontrava.

Logo Boyce engoliu o conteúdo de uma taça e Martine fingiu que bebericava.

— Hum... diferente esse vinho.

— Não mencionei que ele é condimentado?

— Não. O que tem aqui? Não é canela... — Tomou mais uma taça. — Nem cravo... — Sentindo os primei­ros sinais de tontura, ele arregalou os olhos e exclamou: — Ei! A senhora é muito engenhosa! — balbuciou, agarrando-se à portinhola. — Feiticeira! — E caiu num ba­que no chão.

— Rápido, Felda! As chaves!

Felda conseguiu abrir a porta na terceira tentativa.

— Obrigada, sabia que podia contar com você.

— E agora, milady?

— Ailith me contou que há uma passagem secreta aqui embaixo.

— Isso não é segredo. A maioria dos castelos tem passagens secretas para o caso de um cerco.

Levou mais tempo do que Martine esperava para ar­rastar os barris que escondiam uma porta.

— Atrás dessa porta há um túnel que vai dar na igreja. Siga-me.

Era uma passagem estreita sustentada por vigas de madeira, e elas tinham de andar encurvadas. Vários mi­nutos depois, Martine já se perguntava se a igreja ficava tão longe assim do castelo, quando o túnel começou a se elevar e chegaram a um lance de escadas que aca­bava num painel de carvalho. Felda o forçou para cima, abrindo uma portinhola e as duas mulheres saíram atrás do altar da capela. Ao deixarem a igreja, Felda apagou a tocha.

— Ainda bem que estamos em pleno inverno. A neve ilumina o caminho como se fosse dia.

Martine estremeceu e se abraçou em busca de calor.

— Não chegarei muito longe sem um cavalo e um manto.

— Fitch tem um cavalo e pode emprestar um manto da esposa. Espere aqui.

Poucos minutos depois, Felda ressurgiu com um cava­lo selado e um manto.

— Para onde a senhora irá agora? O primeiro lugar em que vão procurá-la será St. Dunstan.

— Sei disso. Preciso ir para algum lugar por um ou dois dias enquanto penso no que fazer... Há um chalé abandonado no meio do caminho, talvez seja uma boa idéia ir para lá.

— Posso fazer mais alguma coisa para ajudá-la?

— Já fez o bastante, não quero que se meta em apu­ros. Se lhe perguntarem alguma coisa, diga apenas que levou vinho para Boyce, mas que não sabia que estava drogado. Diga também que subiu assim que o serviu.

Felda suspirou e tomou as mãos de Martine.

— Tome cuidado, milady.

O luar refletido na neve tornou fácil enxergar o cami­nho e avistar a árvore retorcida. Dali bastaria seguir o rio ao norte até chegar à clareira do chalé da família de Thorne.

Já passava da meia-noite quando Martine lá chegou. Entrou e antes de se deitar na cama de palha, chutou-a e dois ratos saíram correndo. Tirou a coberta de pelo de lobo cheia de pó do topo de uma pilha, deitou-se sobre as demais e se cobriu com o manto.

Mesmo exausta, encontrou dificuldade para dormir. A traição de Thorne a atormentava mais do que o ar gélido da noite. Quando, por fim, cedeu à exaustão, teve sonhos acerca da mãe.

Acordou no meio da noite com a sensação de que não estava mais sozinha. Gritou e se ergueu, os punhos em riste diante do vulto negro diante de si.

— Calma.

Thorne... Ele a tinha encontrado!

— Não vou deixar que me leve de volta — ela murmurou.

Ele parou no meio do ato de cobri-la com seu próprio manto e se sentou na beira da cama, os olhos revelando surpresa.

— Levá-la de volta! Deus meu, está falando sério...

— Você se mancomunou com Bernard! Me traiu! — Ele tentou tocá-la, mas ela o afastou com as mãos.

— Saia de perto de mim! — Tentou se levantar, mas foi deitada pelas mãos fortes em seus ombros. Quando tentou golpeá-lo, ele segurou seu punho e o prendeu ao colchão.

— Preste atenção! A única forma pela qual consegui­ria ajudá-la seria fingir concordar com Bernard, assim ele não me mataria de pronto e eu poderia arranjar um modo de tirá-la de lá.

— Mais mentiras? Basta! — Ela virou o rosto, indignada.

— Martine, olhe para mim. — Ele apertou as mãos dela. — Olhe para mim, maldição! — Ela obedeceu, olhando fundo nos olhos. — Não posso empunhar uma espada, nem um arco. Nem mesmo consigo andar sem aquela maldita muleta. Eu não conseguiria defendê-la assim. E Bernard sabia disso.

— Você disse a ele que se ressentia pelo fato de ter de me proteger...

— Acreditou nisso?

— Barganhou com ele sobre qual terra receberia.

— Ele suspeitaria se eu concordasse de pronto. Ao que parece minha estratégia foi tão bem-sucedida que até mesmo você acreditou nela. — Ela viu uma cen­telha nos olhos dele que podia ser de mágoa. — Acredita tão pouco em mim?

Ela desviou os olhos.

— Trancou-me naquela cela imunda... Nem me deixou ir para meu quarto.

Ele soltou uma das mãos para virar o rosto dela, fazendo-a encará-lo novamente.

— O túnel parte do porão, Martine. Se passasse a noi­te no terceiro andar, você jamais conseguiria escapar.

Ela refletiu um instante.

— Trancou-me no calabouço porque sabia que seria mais fácil eu escapar de lá?

— Na verdade, pensei que seria mais fácil eu ajudá-la a escapar de lá. Nunca pensei que já teria par­tido quando eu chegasse. Fiquei impressionado... — Ele riu. — Boyce inconsciente ao lado de uma taça caída, a porta escancarada... Logo concluí que teve ajuda. Felda era a cúmplice óbvia. Acordei-a para que me dissesse onde você tinha ido.

— Mas eu não disse a ela!

— Mencionou um chalé abandonado... Esta seria sua única opção. — Acariciou-lhe a face, e ela respirou fun­do a fragrância reconfortante. Os dedos resvalaram os lábios numa carícia sutil. — Martine...

Mais uma vez ela virou o rosto, quebrando o encanto. Respirando fundo, ele se levantou.

— Vou pegar madeira para fazer fogo. Quem sabe, então, não conseguimos algumas horas de sono antes do amanhecer? — Pegando a muleta e o machado com cabo quebrado, foi para fora.

Martine se virou para a parede, ouvindo os sons da lenha sendo cortada, imaginando como ele conseguia cortá-la com seus ferimentos ainda não completamen­te cicatrizados. Ao entrar, ele acendeu uma fogueira no antigo fogão de barro no chão, depois endireitou os dois mantos que a cobriam.

Martine sobressaltou-se ao senti-lo se deitar às suas costas.

— O que está fazendo?

— Assim poderemos nos aquecer — ele respondeu, passando o braço ao redor dela e trazendo-a para jun­to do peito. Ela já ia protestar, quando ele completou: — Boa noite, milady.

Martine sentiu-se aquecida e protegida, pois o abra­ço dele era inocente. Em seguida, ouviu a respiração às suas costas se tornar ritmada e profunda e soube que ele adormecera. Fechando os olhos, logo o imitou.

Horas mais tarde, Martine despertou, sentindo frio. O fogo tinha se apagado e Thorne se levantara para acendê-lo novamente. Quando ele voltou a se acomodar às suas costas, ela sentiu o peito dele aquecido pelo fogo e se aninhou. Não percebeu que mão dele pousou em seu braço e que ele prendeu a respiração. Só notou a mudança ao senti-lo enrijecer contra suas nádegas.

Ficou parada, sabendo conscientemente que devia se afastar, mas não encontrou forças para tal. O movimento do peito largo às suas costas acelerou seu coração. Por um instante ficaram os dois imóveis, como estátuas, então, muito lentamente, ele deslizou a mão pelo braço dela.

O toque era lento, como se ele estivesse à espera de sua objeção. Martine sabia que tinha de se opor, mas o desejo e a saudade eram mais fortes que suas reservas, e ela se viu paralisada, sem poder se mexer.

Thorne acariciou a curva do quadril, o côncavo da cin­tura e abriu a mão no ventre. Deteve-se ali, enquanto a beijava no pescoço e atrás da orelha. Todos os gestos eram delicados, experimentais, como se ele testasse a sua aceitação.

A mão subiu mais um pouco, parando logo abaixo dos seios que se enrijeceram em antecipação. Gradualmente foi subindo, até espalmar o monte arredondado que se moldava à perfeição à palma.

Quando ele esfregou o mamilo, Martine sentiu o de­sejo pulsar em seu ventre e o membro enrijecido às suas costas vibrar.

Com vagar quase hipnótico, ele formou trilhas de fogo em sua pele, ainda que não tivesse tentado despi-la. A exploração a levou à beira de uma excitação enlouquecedora. Com toques casuais e íntimos, Thorne provocava sensações nunca vividas e inimagináveis.

Por fim, ele levantou a túnica até a cintura, expondo as coxas cobertas pelas meias e permitindo que o qua­dril fosse acariciado pela pele do forro do manto que os cobria. A mão em sua barriga era áspera e quente e quando ele a abaixou, Martine prendeu o fôlego. Ao sen­tir os dedos explorando seus pelos, um gemido de prazer escapou de seus lábios.

Thorne explorou seu sexo com a mesma paciência com que tinha explorado o resto do corpo, investigando com uma curiosidade delicada e tocante. Ela estremeceu e arqueou ao encontro dele, pensando que seria capaz de morrer se ele não pusesse um fim àquele tormento extraordinário. Quando ele o fez, encontrando o ponto onde se aglomerava a excitação, um desejo convulsivo a estremeceu da cabeça aos pés. Os próprios gritos a ensurdeceram e, por instantes efêmeros, ela se perdeu em sensações.

Enfim, voltou à realidade, saciada nos braços de Thorne. Ele se ergueu sobre o cotovelo para beijá-la no rosto e nos lábios ao mesmo tempo em que desfazia o nó da calça. Martine tentou se deitar de costas, mas ele a deteve.

— Fique assim — ele disse rouco, colocando-a de lado de novo.

Ela percebeu que assim talvez ele não sentisse dor no braço e na perna machucados.

Fechando a mão no quadril dela, ele guiou o mem­bro, preenchendo-a pouco a pouco, permitindo que ela se alargasse, moldando-se ao seu redor. Depois de estar inteiramente envolto, Thorne a circundou com os braços, espalmando os seios. Devagar ele retrocedeu, em segui­da investiu de novo e, em movimentos contínuos, entrou e saiu de seu calor. Martine sentia o peito ofegante ao encontro de suas costas, o coração acelerado em compas­so com o seu. Aos poucos ele aumentou o ritmo e a força das estocadas até parecer ter perdido o controle de seus sentidos, como se o corpo estivesse dissociado da mente. Ele a firmava pelos ombros, fazendo-a recebê-lo em todo o seu esplendor.

Ele a sobrepujava, a possuía. Martine ansiava por essa posse, queria que ele a tomasse por completo, que se perdesse dentro dela. Desejava aquilo desesperadamente.

Thorne percebeu que algo a atormentava mesmo perdido em seu próprio delírio. Estava tão perto... Perto demais para parar. Ela estava exausta, só podia ser isso. O dia tinha sido longo e angustiante.

— Está tudo bem — disse, tentando acalmá-la. Abaixou os dedos até seu ponto mais sensível.

Diminuindo o ritmo para conter a própria paixão, ele a tocou do modo que sabia a transportaria a outro lugar. Queria que ela tivesse prazer e se sentisse bem, deixan­do as aflições e as lembranças de lado. Logo ela relaxou e gemeu como se estivesse se rendendo ao inevitável.

Martine estremeceu em seus braços e ele lutou para se controlar. Ela estava tão apertada, tão quente, à beira do descontrole... E ele também.

Com um gemido gutural, ele investiu mais fundo, trê­mulo com a força de sua libertação. Tudo era tão perfeito e certo, que, por uns instantes, ele se esqueceu de que tinha de ter saído de dentro de Martine. Permitiu-se sa­borear o êxtase primitivo.

Com um gemido satisfeito, deixou-se cair sobre as pe­les da cama, trazendo Martine para seu abraço. Ainda estavam unidos, e ele queria que aquele momento du­rasse para sempre. Sem ar, beijou-a.

— Martine, eu... Eu não queria ter terminado dentro de você. Sinto muito. — Afagou-a no rosto e descobriu que ele estava úmido. — Martine? — Erguendo-se sobre o cotovelo, tentou fitá-la, mas ela escondeu o rosto no colchão. — Está tudo bem, não chore. — Abraçando-a com força, sussurrou em seu ouvido: — Está tudo bem agora. Descanse...

 

Martine acordou no meio da manhã sozinha na cama. O sol entrava pela janela, o fogo ainda queimava no chalé e do lado de fora vinha o som de Thorne cortan­do mais lenha. Levantando-se, aprumou-se o melhor que pôde e foi até a janela para espiá-lo.

De costas e sem a túnica, ele cortava lenha com o ma­chado de cabo quebrado. O exercício obviamente o man­tinha aquecido e, pela pilha de madeira cortada ao seu lado, ele se entretinha na tarefa havia algum tempo.

Refestelou-se ante a visão dos músculos estenden­do-se debaixo da camisa, depois se afastou, meneando a cabeça desgostosa consigo mesma. Ali estava ela, exa­tamente como a mãe, olhando à janela de um decrépito chalé para o homem que possuía sua alma. Era tão tola è fraca quanto Adela. Quando aprenderia a lição? Quando encontraria forças para fechar seu coração?

Enterrando o machado no toco de cortar lenha, Thorne apanhou algumas peças da pilha, entrou no chalé e au­mentou o fogo.

— Vamos ficar aqui por muito tempo? — ela perguntou.

— Não. Temos de partir ainda esta manhã. — Ele apanhou a túnica e a vestiu. — Enquanto cortava a lenha, estava tentando chegar a uma conclusão

— Quanto a o quê?

Ele desviou o olhar e respirou fundo, depois a encarou de novo.

— Sobre qual seria o melhor modo de pedi-la em casamento.

Ela o fitou, sem saber se tinha ouvido direito. Thorne Falconer queria se casar com ela!

— Sei que não tenho terras e não tenho direito de lhe propor isso, mas é o que estou fazendo de qualquer modo.

Martine sentiu o mesmo zumbido de antecipação que sentira ao por os olhos sobre ele no porto ao chegar à Inglaterra.

— Por que quer se casar comigo? — perguntou, te­mendo a resposta, mas precisando ouvi-la.

— Por que um homem pede a mão de uma mulher em casamento?

— Alguns o fazem por amor.

Ele se virou para o berço de Bathilda.

— Não vou fingir que esse seja o seu motivo, entre­tanto — ela continuou, fria. — Você é incapaz de amar. — Crispou as mãos ao lado do corpo. — E claro que tam­bém nunca manteve segredo da intenção de se casar para adquirir propriedades. Se nos casarmos, minhas terras serão suas, no fim.

Os olhos dele chisparam.

— O único motivo que me leva a lhe propor casamento é a promessa que fiz a seu irmão. — Fez um gesto amplo com as mãos, revelando exasperação. — Cristo, Martine! Não percebe o perigo que a rodeia? Lorde Godfrey ordenou que se casasse com Bernard! — Ele a sacudiu pelos ombros. — Ele é tão selvagem quanto o irmão, porém muito mais inteligente, portanto mais perigoso. Você quer cair nessa armadilha?

— Claro que não!

— Pois é isso que vai acontecer se estiver solteira quando ele a encontrar.

— Talvez ele não me ache. Posso ir para longe e...

— Martine, pelo amor de Deus! — Soltou-a abrupta­mente e se virou, correndo os dedos pelos cabelos. — Não importa para onde vá, Bernard a encontrará. Depois dis­so, ele a forçará a se casar... — Encarando-a novamente, completou de modo mais suave: — A menos que já esteja casada. Pense bem, Martine. A única maneira de se sal­var é casar com outro homem. Estou me oferecendo. Não por cobiçar suas terras, mas por querer protegê-la.

— Mas as terras seriam um belo bônus...

Ele deu de ombros num gesto que demonstrava frustração.

— Se estivesse interessado em terras, eu teria aceita­do a oferta de Bernard.

— Seu plano era mais astuto. Planejou me afastar de Harford para me manipular...

— Manipular!

— Tirou vantagem de mim ontem à noite quando eu estava fraca e vulnerável. Hoje entendo por que me seduziu. Você queria que eu acreditasse que se impor­tava comigo para que eu concordasse com o casamen­to. Desse modo, poderia controlar minhas propriedades, não só aquela oferecida por Bernard.

Ele deu um passo na direção dela.

— Acredita mesmo que sou tão frio e calculista...

— Absolutamente!

Ele se deixou cair num dos banquinhos e enterrou o rosto nas mãos. Observando-o Martine chegou a duvi­dar de suas convicções. Ele parecia tão sincero ao alegar que se casaria pelo bem dela, que não tinha levado em consideração as propriedades... O que era um absurdo. A fome dele por bens sobrepunha-se a todas as outras fomes. Não permitiria que ele a explorasse. Ele queria as terras, não ela. Nem mesmo tentara convencê-la de que a amava...

Thorne abaixou as mãos e a fitou com a derrota estampada nos olhos.

— Então não aceita minha oferta.

Não é que não quisesse se casar com ele. Mesmo sa­bendo de seus reais motivos não conseguia negar que a possibilidade de estar casada com Thorne a intriga­va, até mesmo excitava. Sem falar que estaria livre de Bernard. Não podia, entretanto, permitir que ele a tomasse pela menina ingênua que tinha seduzido.

— Não disse que não aceitava. — Surpresa e depois alívio surgiram no belo rosto másculo. — Não tenho nada contra um casamento arranjado... Desde que reco­nheçamos essa união pelo que de fato ela é: um arranjo de conveniência mútuo. Você consegue suas preciosas terras, e eu, proteção contra Bernard. Tudo o que peço é que não haja mentiras entre nós... Não finja sentir o que não sente. Isso só nos transformaria em tolos.

Os olhos dele mostravam tristeza.

— Martine...

— Essas são minhas condições para aceitar sua oferta.

Ele emitiu um longo e perturbado suspiro.

— Muito bem. Mas seria melhor resolvermos isso logo. Antes que Bernard nos encontre. Podemos ir a St. Dunstan. Acho que frei Matthew tem autoridade para realizar casamentos. — Ele hesitou como se qui­sesse dizer algo mais, porém só balançou a cabeça e se dirigiu para a porta. — Vou preparar os cavalos.

Pela janela, Martine o viu selando os cavalos. Casaria com Thorne, mas fecharia o coração para ele. Manteria distância, pelo menos emocional. Não precisava ser fra­ca como a mãe que vivera em função de Jourdain.

 

— Vocês têm um anel? — frei Matthew perguntou ao casal ajoelhado diante dele na capela vazia à exceção de dois sacerdotes escolhidos como testemunhas.

Isso está de fato acontecendo!, pensou Thorne mara­vilhado. Estou me casando com Martine! Tirou o anel de rubi do dedo e pegou a mão esquerda dela. Apertou-a de leve, mas ela se recusou a encará-lo.

Matthew pigarreou e completou:

— Em nome do Pai... — O saxão colocou o anel até metade do dedo indicador da moça. — Do filho... — Fez o mesmo no dedo médio. — E do Espírito Santo... — O anel foi até o final do dedo anular, mas obviamente ficou lar­go demais, por isso ela o transferiu para o polegar onde cabia à perfeição. — Eu os declaro marido e mulher.

— Este quarto possui a maior cama — o frei explicou, afastando a cortina do melhor quarto do alojamento.

Thorne notou que a cama em questão era pouca coisa maior do que as outras, mas deixou de lado a oferta de dormir no chão. Ao concordar em ser sua esposa, Martine implicitamente concordara em dividir a cama com ele.

— Obrigada por permitir a nossa estada — Martine disse, afagando Loki. — Vamos procurar outro arranjo o mais breve possível.

— Não precisam se apressar — o frei respondeu com cortesia. — Aprecio a companhia de vocês.

Naquela noite, depois de partilharem a ceia em si­lêncio e se banharem alternadamente no cômodo a eles destinado, viram-se a sós com a retirada dos criados, e Thorne quebrou o silêncio:

— Martine, temos de discutir algumas coisas.

— Hoje não. — Ela se levantou. — Estou cansada de­mais para pensar, quanto mais decidir sobre qualquer coisa. Vou para a cama. Nos veremos de manhã.

Isso dito, virou-se e desapareceu pelo corredor. Thorne permaneceu sentado, observando as chamas da lareira com um copo de conhaque nas mãos.

Martine afirmara naquela manhã que ele era inca­paz de amar. Havia escolhido não se expor ao tormento que os outros chamavam de amor, que talvez tivesse se tornado realmente incapaz.

Por muitos anos acreditara que casar por amor seria um erro. Os sábios casavam-se por causa das terras. O amor sempre morria, de um jeito ou de outro, mas as terras eram eternas. Agora tinha o que mais cobiçava; deveria estar contente. Estava de certo modo. Afinal ti­nha se casado com Martine.

Ela, todavia, não confiava nele e acreditava que ele usava o ato de amor deles como forma de manipulação. Contudo, ela concordara em se casar, o que deixava im­plícito aceitá-lo em sua cama. No entanto como poderia fazer amor agora que sabia que ela se sentia fraca e explorada? Lembrou das lágrimas da noite anterior. Sexo deveria ser um simples ato de alegria, mas para ela significava submissão, a renúncia de sua vontade própria e os afastaria cada vez mais.

Precisava curar aquela ferida e o único modo de conseguir isso seria fazê-la voltar a confiar nele, aceitar o fato de que ele não era como Jourdain. A crueldade do pai a ferira profundamente, deixando cicatrizes em sua alma. Deitar-se com ela, só abriria essas feridas.

Portanto, tinha de resistir à tentação, pelo menos no início. Gradualmente voltaria a tocá-la a fim de readqui­rir a confiança dela.

Frei Matthew apareceu e, se achou estranho ver um recém-casado só, nada comentou. Em vez disso, apenas o desafiou a uma partida de xadrez.

— Recebi uma mensagem interessante de Olivier esta tarde. A rainha está planejando visitá-lo em Blackburn em poucos dias.

— Pensei que ela estivesse na França com o rei. Eles começaram a montar o tabuleiro.

— De acordo com Olivier, ela se interessou pelo caso de Blackburn e lhe escreveu, dizendo querer conhecer o castelo impenetrável que se opôs a todas as ar­mas exceto Thorne Falconer. Não sabia que vocês se conheciam.

— Rainulf nos apresentou em Paris após as Cru­zadas. Por algum motivo ela pareceu gostar de mim.

— Ela pediu a Olivier que organizasse um ban­quete em sua homenagem. — Matthew iniciou a partida e Thorne o encarou surpreso.

— Você é um herói. O salvador de Blackburn.

— Deus meu — Thorne murmurou.

Matthew riu e apontou o tabuleiro, indicando que era a vez de o outro jogar.

Thorne não conseguiu se concentrar, e Matthew o venceu com facilidade. Ao lhe pedir uma revanche, o frei se desculpou, dizendo precisar dormir um pouco antes da oração das Matinas.

A fim de não acordar Martine, Thorne se despiu no corredor e, com cuidado, afastou a cortina ao entrar no quarto. Observou-a por um instante, dormindo placidamente como uma menina.

Sentiu o corpo retesar ao se lembrar do peso dos seios redondos nas palmas das mãos, do sabor dos mamilos.

Deitou-se, juntando todo o autocontrole de que dispunha. O lençol estava frio, porém Martine estava deliciosamente quente. Ela estava de costas, e ele tocou a linha acima da camisola com a ponta dos dedos, sen­tindo o calor se espalhar das mãos, pelo braço e seguindo pelo corpo. Assustou-se ao sentir um nó na garganta e fechou os olhos para refrear as lágrimas. A última vez em que chorara tinha sido ao descobrir o destino fatal da irmã. Antes disso, somente quando criança. Respirando fundo, admoestou-se pela fraqueza. Era isso o que con­seguia por se afeiçoar. Suas reações se reduziam àque­las de um menino.

Afastando-se, fechou os olhos, mas demorou a dormir.

Bernard tremia de frustração e raiva ao olhar pela janela e ver o pai sair da falcoaria com Azura no punho. Quem haveria de acreditar que aquele saxão te­ria a audácia de se casar com Martine de Rouen, a pri­ma da rainha, a sua prometida? A ousadia do falcoeiro não conhecia limites, e agora ele devia estar rindo às suas custas.

Acabou tendo uma idéia. Brilhante, estupenda... Um modo de vingar a humilhação sofrida nas mãos dos dois malditos. Seu plano, porém, teria de esperar até que a rainha partisse de Blackburn. Não só pelo parentes­co com Martine, mas porque corriam rumores de que Eleanor simpatizava com o saxão. Caso a monarca to­masse o partido deles, seu plano fracassaria.

Sua idéia tomou nova forma ao ver Clare, a eterna apaixonada que não deixara o castelo nem mesmo de­pois da morte de Estrude, se aproximando.

Numa manhã gélida de março, a comitiva real se apro­ximou de Blackburn, muitos parando em St. Dunstan para se refrescar. Naquele mesmo dia um criado pessoal da rainha foi até o mosteiro e entregou uma mensagem a Thorne na qual Eleanor convidava formalmente o ca­valeiro, sua esposa e o prior para o jantar na noite se­guinte em sua homenagem.

— Não tenho nada para vestir — Martine se preocupou.

— Use o vestido de seu primeiro dia em Harford. Aquele da cor de seus olhos — Thorne sugeriu sorrindo.

No dia seguinte, enquanto ajustava o vestido, Martine refletia sobre seu estranho relacionamento com o mari­do. Nenhuma vez desde as bodas na semana anterior ele tentara seduzi-la. Era como no início de seu casamento com Edmond, mas ela sabia que a hesitação dele se de­via a outros motivos. Edmond a temia no início, Thorne lhe era indiferente.

Ele a tratava bem e de vez em quando a tocava de modo que parecia sugerir que a desejava, para, em se­guida, se retrair parecendo perturbado. Pelo visto, ele resolvera atendê-la. Por não sentir nada por ela, não ti­nha mais vontade de levá-la para a cama. Sem dúvida ele logo retomaria o hábito de se deitar com criadas e prostitutas.

Sentiu o ciúme queimar as entranhas e se admoestou mentalmente. Não podia se importar. O casamento deles era de conveniência. Sabia daquilo, mas sentiu uma tris­teza enorme quando suas regras vieram, confirmando que a semente de Thorne não tinha sido plantada em seu ventre, como vinha desejando desde a noite do chalé.

Suspirou e continuou a se arrumar, torcendo o cabelo numa trança. Não fazia bem desejar o que não se podia ter. O destino a amarrara em seus laços dourados. Seria inútil lutar.

Martine sentiu a boca secar diante da grandiosida­de que os aguardava ao chegar ao majestoso castelo de Blackburn. Assim que passavam pela ponte levadiça, um dos criados os acompanhou até o salão principal. O local fervilhava de pessoas: acrobatas, músicos, crianças, servos... O que faltava a Harford em esplendor, Blackburn mais do que compensava. A estrutura circular prosse­guia no interior do castelo, e na metade do pé direito viam-se balcões entalhados em toda a circunferência.

Adiante, do outro lado do salão, uma enorme lareira irradiava calor. Ao lado, numa poltrona de espaldar alto, a rainha ria das graças de uma criança em seu colo. Ela não parecia nada com o que Martine havia imaginado: era mais bela e parecia mais jovem do que seus trinta e oito anos. Ao avistá-los a rainha sorriu e acenou para que eles se aproximassem.

Entorpecida pelo pânico ante as apresentações, Martine mal conseguiu fazer uma mesura, esperando não se atrapalhar. Thorne se apoiou sobre um joelho, prestando reverência a despeito de seus ferimentos, e beijou a mão da monarca. Martine considerou então que, apesar da origem humilde do marido, ele parecia mais à vontade do que ela no ambiente sofisticado. Mesmo em sua túnica simples, ele se destacava entre os nobres empoados.

Eleanor entregou o bebê a uma criada e pediu que as demais crianças fossem retiradas, pois passava da hora de se recolherem. Levantando-se, estendeu a mão para Martine, tocando-a suavemente no rosto.

— Então esta é a garotinha de Jourdain... — A re­ferência aberta a seu pai surpreendeu Martine, dada a sua ilegitimidade, mas a rainha, embora ciente dessa condição, nada mencionou. — Estou encantada por fi­nalmente conhecê-la, querida.

— Faço de suas palavras as minhas, Alteza. — Martine sentiu a mão de Thorne às suas costas e ficou contente por seu apoio apesar de tudo.

O jantar foi servido. Thorne, Matthew e Martine sen­taram-se na mesa central junto à rainha, a Olivier, à condessa e a alguns outros cavaleiros favorecidos. As demais mesas, em vez de enfileiradas como de costume, estavam dispostas de modo circular, permitindo a atuação dos músicos e artistas no centro do salão.

Depois da sobremesa, Eleanor dispensou os músicos e acenou para Olivier, que se pôs de pé para homenagear Thorne, narrando o heroísmo demonstrado no cerco ao castelo.

Em seguida a rainha se ergueu e elogiou não somente os feitos heróicos do cavaleiro, como também sua reputação como falcoeiro e homem letrado...

— Aves de rapina e erudição são ambos interesses do rei — ela disse. — Muitas vezes ele me disse que a motivação de um nobre é saber se pode treinar o próprio cérebro como treina seu falcão.

Refletindo sobre aquelas palavras mais tarde, Martine entendeu que a rainha não estava simplesmente elogiando Thorne. Ao elevá-lo ao ideal de um nobre de verdade segundo o rei, ela impedia qualquer objeção posterior à declaração que se seguiria.

Pedindo que o saxão se levantasse, ela disse, então:

— Eu tinha outro motivo ao pedir que se juntasse a nós. Naturalmente merece mais do que um jantar e música pelo fato de ter retomado sozinho o castelo.

Sua coragem salvou incontáveis vidas e por isso o rei Henry e lorde Olivier serão eternamente gratos. O baronato de Blackburn é precioso e não há herdeiros para reclamá-lo. Lorde Olivier buscou o aconselha­mento do rei que, sabiamente, colocou a decisão em minhas mãos. Após profunda reflexão é meu prazer recompensar com este feudo, junto ao título de barão, o homem que libertou o castelo de Blackburn... Thorne Falconer.

Um rugido ecoou pelo salão. Thorne olhou para Martine, que estupefata, apenas retribuiu o olhar. Quando o clamor cessou, Thorne disse simplesmente:

— Estou muito grato, minha soberana.

— Meus homens já prepararam a documentação. Se puder retornar aqui ao meio-dia amanhã com minha querida prima — ela acenou para Martine —, conclui­remos as cerimônias formais e quem sabe festejar um pouco mais?

Thorne inclinou a cabeça.

— É claro, milady. Obrigado. — Encontrando os olhos da esposa, ele sorriu.

Martine retribuiu o sorriso, pensando nas voltas misteriosas que o destino dava.

— Senhor, eu me torno seu súdito — disse Thorne ajoelhado no pátio arborizado de Blackburn com as mãos entre as do conde. — Juro-lhe fidelidade e respeito e prometo defendê-lo ante qualquer outro homem em honra ao meu rei Henry e seus herdeiros.

O saxão se levantou e deu o beijo de deferência a Olivier, transformando-se então de sir Thorne, um cavaleiro da realeza, em lorde Falconer, o barão de Blackburn.

 

A rainha Eleanor e o séquito deixaram o castelo uma semana mais tarde, seguidos por Olivier e seus homens. Na manhã seguinte à Páscoa, Martine e Thorne chega­ram para tomar posse da residência e encontraram uma dúzia de criados. Homens, mulheres, jovens, idosos... O único traço em comum era que pareciam extremamente nervosos. Menos do que Martine, certamente. Lá estava ela, uma moça de dezoito anos sem experiência alguma de vida em castelo, transformada repentinamente em dona de um dos mais ricos feudos da Inglaterra.

Um dos criados, um senhor de aparência nobre, se adiantou e se apresentou:

— Bem-vindos a Blackburn. Meu nome é John Burgess. Fui o administrador de lorde Anseau. Se o se­nhor quiser, posso servi-lo igualmente.

Thorne assentiu e respondeu em inglês, surpreen­dendo o administrador. Martine viu os demais criados trocarem olhares curiosos. Certamente sabiam que o novo barão era saxão, contudo o uso da língua nativa os pegou desprevenidos. A conversa amigável entre os dois homens acabou por deixar a todos à vontade, pois logo se puseram a sorrir e a acompanhá-los para dentro da construção. Thorne, sentindo a tensão da esposa, pegou-a pelo braço e reconfortou-a com seu toque.

Nos últimos dias vinha se mostrando mais afetuoso, não que ele a tivesse procurado na cama, mas com pe­quenos gestos, principalmente quando estavam a sós. A verdade era que ela ansiava por esses momentos, saboreava-os, mesmo sentindo-se envergonhada por ele ter tamanho poder para desarmá-la.

Martine não deixava de se perguntar o moti­vo da mudança depois do desinteresse inicial após o casamento. Talvez fosse simplesmente pelo fato de ele ser um homem com necessidades normais. As vezes, tar­de da noite na cama, sentia o olhar dele sobre si, o calor que irradiava do corpo másculo, a necessidade eletrizante entre eles. Uma noite dessas, ele a procuraria. Pela lei, ela não poderia se negar; ele tinha seus direitos de marido. Teria de concordar, porém não precisaria gostar. Thorne adorava fazê-la perder o controle, conseguira tal feito três vezes. A lembrança do modo como se entrega­va, gemendo e agarrando-se a ele a enchia de vergonha. Nunca mais isso aconteceria. Cederia, mas sem paixão. Deixaria claro que o receberia não por querer, mas por Ser obrigada.

Ao entrarem no salão principal sentiu-se tal qual um rato numa catedral. Sem as pessoas e os ornamentos do dia do jantar, o cômodo parecia imenso e vazio. A luz entrava pelas janelas, em forma de arco, iluminando os tapetes sarracenos que ainda decoravam as paredes.

— Pensei que os tapetes pertencessem à rainha — Martine comentou, soltando Loki.

— A rainha Eleanor os deixou de presente aos novos barão e baronesa de Blackburn com os melhores votos de felicidade. Devo retirá-los ou deixá-los onde estão?

— Retire toda a palha — disse Thorne — e ponha-os no chão.

Martine se virou para ele boquiaberta.

— No chão? Está louco? Thorne sorriu maliciosamente.

— Já lhe disse antes... Se sou louco, que assim seja. O rosto dela enrubesceu ante as palavras de significado íntimo.

— Francamente, sir Th...

— Não me chame de "sir" Thorne, sou seu mari...

— "Senhor meu marido" seria mais adequado?

Thorne fez uma careta.

— Os tapetes, minha esposa, ficarão no chão. Quando estive em Portugal e na Espanha apreciei o costume de­les de colocá-los no chão. Podemos colocar outra coisa na parede se sua preocupação forem as correntes de ar.

O ancião aguardou hesitante, como se avaliasse a sa­nidade do novo senhor do castelo, depois se curvou.

— Como quiser, senhor barão. — Pegou um pergaminho. — Sou responsável pelas contas do castelo. Estou preparado para revisá-las com o senhor quando quiser.

— Obrigado, Burgess, por enquanto gostaria de co­nhecer a propriedade.

— Sim, senhor. Sigam-me, por favor.

Martine logo descobriu que Blackburn era muito maior e de estrutura mais complexa do que Harford, representando o que havia de mais moderno em cons­trução. Tinham água corrente que chegava a cada an­dar por meio de um sistema de tubos, partindo de uma cisterna colocada no teto. Os quartos se conectavam por meios de diversos corredores e escadas. O principal era, de fato, uma suíte, tendo além do cômodo maior com sua própria lareira, dois aposentos de vestir e um banheiro privado com uma tina fixa. Havia diversos outros quar­tos e depósitos, um salão menor, uma sala de vigia e di­versos aposentos para o uso dos criados. Martine estava maravilhada. O fato de que podia vir a se perder em seu próprio castelo a excitava ao mesmo tempo em que assustava.

Depois seguiram para fora da construção. O pátio interno estava preparado para receber um jardim. O centro do pátio externo, cercado pela cozinha, o aviário, o estábulo, o canil e demais construções, abrigava um lago de peixes bem fornido. Cruzando a ponte levadiça, Burgess mostrou St. Dunstan, aninhado no vale logo abaixo, bem como o vinhedo, o pomar e os pastos que cercavam o castelo.

As casas e vilas que pertenciam ao feudo de lorde Falconer eram vastos e numerosos, ele explicou, e an­gariavam renda considerável. Com a morte de lorde Anseau, ele continuara a receber os impostos, taxas e aluguéis que formavam a fonte de renda do baronato.

Burgess estendeu o pergaminho para o jovem barão e disse:

— Esta é a soma recebida desde a morte de lorde Anseau, que está ao seu dispor. E esta é a soma do que esperamos receber até setembro.

Martine observou Thorne avaliar os números placidamente.

— Este dinheiro vem na hora certa. — Devolveu o papel. — Há muito a ser feito no castelo e na propriedade de forma geral. Por enquanto é só. Obrigado, Burgess.

Burgess voltou a cruzar a ponte, e quando Martine se pôs a segui-lo, foi impedida por Thorne.

— Vamos caminhar... Pegou-a pela mão e seguiu em direção ao pomar, que assim como os pastos, pareciam estar bem cuidados a despeito da batalha que ali acontecera.

— Está rico, então? — Martine perguntou ao entra­rem no corredor formado por frondosas pereiras.

— Não. — Ele sorriu e apertou a mão dela. — Nós estamos ricos.

Martine não pôde deixar de retribuir o sorriso. Andaram em silêncio de mãos dadas, apreciando o can­tar dos pássaros e a brisa que soprava entre as árvores. Aos poucos começou a relaxar, a se sentir confortável por caminharem daquela forma.

É como se fôssemos amantes, pensou. Marido e mulher de verdade, e não duas pessoas presas a um casamento fictício...

Lembrou-se então de que o marido era um homem esperto. O silêncio agradável começou a lhe parecer insidioso.

— Precisa mesmo falar em inglês? Não entendo nada.

Ele riu.

— Vejo que precisarei ensinar-lhe a língua de meus antepassados.

— Não pode simplesmente falar francês? É o que todos fazem.

A expressão dele se anuviou um instante.

— É o que a nobreza fala. Por enquanto.

— Por enquanto?

— Os normandos insistem em falar francês, mas o povo não aceita. São pobres e sem terras, mas tremenda­mente teimosos quando o assunto é a língua deles. Vejo a possibilidade de a nobreza ter de se render num futuro próximo e começar a falar inglês.

Martine riu.

— Você está lou... — ela se interrompeu, mas já era tarde demais.

Sorrindo, ele a pegou pelos ombros e a apoiou numa árvore, balançando um dedo numa reprimenda fingida.

— Terá de parar de dizer isso... A menos que queira que eu faça isto. — Segurou o rosto dela, inclinando-o para trás.

— Thorne...

As objeções foram abruptamente silenciadas quando ele fechou a boca sobre a dela. Martine ficou rígida, as mãos cerradas ao longo do corpo, mesmo quando os lábios macios e experientes aqueciam os seus. Era o primeiro beijo depois do cumprimento obrigatório após a cerimô­nia de casamento. Thorne a beijava com uma pressão firme, mas gentil, como se soubesse que ela resistiria. A língua traçou o contorno dos lábios, que ela mantinha cerrados. Ele se afastou um centímetro apenas.

— Entregue-e a mim, Martine — sussurrou ao encon­tro dos lábios cheios. — Por favor, preciso disso. Só isso. Não farei nada mais. — Implorou com olhos translúci­dos ao resvalar os lábios com o polegar áspero.

Martine entreabriu os lábios. Thorne intensificou o beijo, a mão amparando-a pela cabeça, a língua e os lá­bios acariciando os dela num ardor sem fim.

O mundo deixou de existir, pois ela só conseguia dis­tinguir o sabor e o calor insistente da boca dele sobre a sua. Sem pensar, buscou esse calor e instintivamente retribuiu o beijo. No fim, viu que estava enroscada a ele, segurando-o com firmeza. Em seu peito, sentiu a batida frenética de dois corações.

Thorne se afastou devagar, não sem relutância apa­rente, como se precisasse de todas as forças para fazer isso. Martine abaixou os braços, lamentando o fato de o beijo ter terminado, de ele ter conseguido manter a promessa de não fazer nada além de beijá-la. Claro que querer mais seria idiotice.

— Podemos voltar agora? — perguntou ela.

O olhar dele pairou sobre os lábios rosados. Pensativo, Thorne estendeu a mão e tocou-a no lábio superior, de­pois no inferior.

— Como quiser — murmurou e a pegou pela mão mais uma vez, guiando-a para fora da sombra das pereiras.

— O que acha, milady? — perguntou o vidraceiro do outro lado do salão, indicando a janela na qual tinha acabado de trabalhar.

Martine caminhou com cuidado entre os diversos ma­teriais que entulhavam o salão.

— Acho que meu marido está louco... — murmurou ao tocar o vidro verde que fechava uma das janelas.

Thorne tinha ordenado que fechassem todas as jane­las do castelo com vidro. Os da igreja seriam coloridos, formando desenhos elaborados.

— Isso vai mesmo nos amparar dos ventos no inver­no? — perguntou.

— Sim, mas permitirá a troca de ar nos dias mais quentes, pois pode ser aberto, veja. — Ele puxou uma alavanca e demonstrou o que dizia.

Durante o mês em que haviam passado em Blackburn, o inverno tinha cedido a vez à primavera. Do amanhecer até o anoitecer, Martine se ocupava em plantar: ervas, temperos, até mesmo flores, pedindo a ajuda daqueles que não estavam ocupados com as tarefas infindáveis de Thorne. Havia muito trabalho ainda a fazer e, embo­ra muita mão-de-obra estivesse disponível, havia pouca supervisão.

Peter, Guy e Albin ainda estavam na França a serviço do rei. Thorne tinha enviado uma mensagem por meio da rainha, pedindo que eles voltassem, porém podia le­var muito tempo até que a recebessem, caso estivessem no campo de batalha.

E ainda havia Felda. Desde que escapara de Bernard, Martine ainda não a tinha visto. No dia anterior, Thorne enviara dois aldeões fortes para buscá-la em Harford e também sua preciosa Freya, instruindo que evitassem Bernard. Eles, porém, ainda não haviam regressado.

Ela se inclinou na janela para apreciar o abençoado calor primaveril. No canto mais distante do pátio inter­no o pedreiro cortava pedras a fim de fazer a fundação da falcoaria. Pelas marcas no chão ela seria enorme.

Thorne lhe dissera que queria uma construção grande o suficiente para que os falcões pudessem voar den­tro dela.

No quintal, Thorne se apoiava numa das árvores com os braços cruzados, observando Burgess presidir uma contenda. Doze homens ouviam enquanto outro defen­dia seu caso num inglês corrido.

— O que ele está dizendo? — Martine perguntou ao vidraceiro. Ainda que tivesse começado a aprender in­glês e conseguisse se comunicar de modo simples, aque­le homem estava muito exaltado, tomando impossível a sua compreensão.

— Ele é o moleiro, milady, e está se defendendo das acusações de falsificação de pesos. — Depois de alguns minutos, ele completou: — O júri o considerou culpado e agora ele terá de pagar uma multa ao barão.

Thorne disse algo, o júri e os demais observadores aclamaram.

— O que houve agora? — Martine quis saber.

— Seu marido deve ser louco mesmo, senhora. Ele acaba de dizer que a multa deve ser revertida para aqueles que foram lesados e, se a infração se repetir, o moleiro perderá o moinho.

Martine sabia que, apesar de seus defeitos, Thorne era um homem extraordinário. Assim que concluiu tal pensamento, o objeto de suas observações ergueu os olhos e sorriu em sua direção. Mesmo àquela distância ela via o azul do céu em seu olhar, as covinhas enta­lhadas nas faces ao sorrir. Ele tinha recuperado o peso perdido durante a convalescença e, assim, recobrado a impressão de força e vigor. Como senhor de Blackburn, estava inteiramente em seu elemento. Era um homem forte, honrado, cheio de compaixão... Mas também de ambição desmedida. Se tivesse de escolher entre ela e sua amada Blackburn, Martine não duvidava qual seria a escolhida.

Um movimento no canto do olho chamou sua aten­ção. Dois cavaleiros aproximavam-se ao longe, trazendo Felda na garupa... e Clare? O que fazia a dama de com­panhia de Estrude ali em sua propriedade?

Depois de atravessar o salão e o pátio, ela foi ao en­contro de Felda, recebendo-a com carinho, assim como Thorne, também já pegando o cesto de Freya.

— Lady Clare — Martine perguntou —, o que faz aqui?

A moça escondeu o rosto coberto por lágrimas.

— Milady, precisa me ajudar! Não tenho para onde ir... — Caiu de joelhos aos seus pés.

— E quanto à sua família?

Clare olhou de esguelha para Thorne.

Pressentindo o desconforto da moça, ele saiu para cuidar de Freya, ordenando antes que servissem conhaque para acalmá-la.

— Estou arruinada. Sou uma tola...

— O que houve? — perguntou Martine.

— Ele me maculou... Não sou mais pura! — Vendo a confusão nos olhos de Martine, explicou: — Bernard... Eu me ofereci a ele.

— Oh, Clare, não é sua culpa. Os homens têm modos de conseguir o que querem.

— Meu pai não concordaria com a senhora. Ele é capaz de me matar. — E começou a soluçar novamente.

Martine olhou para Felda que franzia o cenho. A cria­da não gostava da. moça assim como ela própria. Não podia, porém, permitir que sua antipatia a impedisse de sentir compaixão por um ser humano em sofrimento. Por isso, colocou a mão na cabeça da moça.

— Gostaria de ficar aqui?

— Oh, milady! Por favor! É só o que lhe peço, farei qualquer coisa, basta pedir!

— Isso não será necessário. Esse arranjo será tem­porário — acrescentou. — Estou feliz em poder ajudar — contemporizou Martine a despeito do aviso no olhar de Felda.

— Sabe que dia é hoje? — Thorne perguntou em in­glês, sentando-se na cama e afastando as cortinas.

Martine, que já tinha se levantado, sentava-se ao toucador, escovando os cabelos. Estava glamourosa no roupão de seda encomendado por ele. Penduradas no quarto de vestir, uma fileira de belas túnicas nos tons de gemas preciosas aguardavam pela dona. Thorne se lembrou do dia em que insistira para que ela parasse por um tempo com os trabalhos do jardim a fim de que a costureira tirasse suas medidas. Queria dar-lhe algo pessoal e belo, algo que qualquer mulher sonharia em possuir. Ela, entretanto, cedera a contragosto somente depois de muita insistência.

Viu então que ela parava de escovar as madeixas, tentando formular uma resposta. Por fim disse, num so­taque francês que o deliciava. — Primeiro de maio?

— Sim. E o primeiro dia de verão. — Ele se levantou e espreguiçou, depois afastou os cabelos do rosto.

Martine espiou por sobre os ombros e, corando, viu que ele estava somente de ceroulas. Virando-se nova­mente na direção da janela, retomou a escovação.

Thorne foi buscar a camisa, mas parou no meio do caminho. Tinha sido paciente com ela. Estavam casados havia quase dois meses e nem uma vez a tinha pressio­nado para que cumprisse os deveres de esposa. Tinha esperado que o aceitasse, que recobrasse a confiança de antes, talvez até mesmo um pouco do afeto, para que quando a procurasse, ela o quisesse tanto quanto ele a queria. Martine, entretanto, nada revelava de seus sen­timentos e ele não fazia a mínima idéia se tinha progre­dido na tentativa de reaproximá-los. Talvez aquela fosse uma bela manhã para descobrir isso.

— Sabe o que os saxões celebram neste dia? — per­guntou ao entrar no quarto de vestir. Tirou o gato do lado da dona e se sentou, tomando a escova na mão e pondo-se a escovar as longas madeixas ele mesmo.

— Como disse? — ela balbuciou trêmula. Em francês, ele repetiu a pergunta:

— Não — ela respondeu, deixando a cabeça pender para trás enquanto ele continuava com os movimentos lentos. Com a mão livre, ele lhe massageava a nuca.

— Eles passam a noite na floresta. — A mão livre pas­sou da nuca para a frente do corpo. — Fazendo amor.

Martine suspendeu a cabeça. Thorne pousou a escova e passou o outro braço ao redor dela, num abraço solto, e beijou-a no topo da cabeça. Ela ficou imóvel, sem ofe­recer resistência, tampouco encorajamento. Ele a beijou na têmpora, inalando o perfume dos cabelos e da pele sedosa, o corpo reagindo devido aos meses de abstinência. Apertou a mão esquerda ao redor da cintura e a direita subiu até o vale entre os seios, sentindo as batidas rápi­das do coração dela. Descendo a mão debaixo do roupão, mas sobre a camisola, resvalou o polegar sobre o mamilo, intumescendo-o.

— Martine...

Ela se levantou, se virou e seguiu até o quarto.

— Gostaria que isso não demorasse muito — disse secamente, tirando o roupão e sentando-se na cama. — Tenho muito o que fazer ainda de manhã.

Ele simplesmente a encarou por um instante. O que significava aquilo? Que ela o receberia, mas de malgra­do? Que não tinha alternativa senão cumprir seus deveres de esposa, mas queria que ele fosse breve? Aquilo o feriu. A sua paciência, pelo visto, de nada adiantara. Talvez tivesse sido paciente demais. Não podia tomá-la à força; aquilo era o que animais como Edmond faziam, contudo podia fazer com que ela o desejasse. Ela reagia ao seu toque com a mesma paixão que o arrebatava.

Levantou-se e foi para o quarto, percebendo que ela olhou disfarçadamente para sua ereção evidente debai­xo da ceroula de linho. Martine se deitou e já ia subir a camisola quando ele a deteve com a mão.

— Ainda não — disse, deitando-se ao seu lado. Afas­tou os cabelos do belo rosto, depois trilhou os dedos pelo pescoço macio. — Deixe-me olhá-la primeiro. — E viu que ela engolia em seco.

— Já disse que...

— Quer que eu me apresse, entendi. Esperei muito tempo por isso e agora vou demorar o quanto eu quiser. — Resvalou o mamilo com a unha e viu a reação ime­diata dela. — Posso mantê-la nesta cama o dia intei­ro, a noite também, quem sabe até mesmo amanhã?...

— Sorriu e pousou a palma na barriga lisa, descendo até seu montículo de pelos. — E primeiro de maio, Martine, e vou celebrá-lo, mostrando-lhe o que pode acontecer en­tre nós. Deixe que eu mostre. Diga que quer...

Ela fechou os olhos e os punhos.

— Tudo o que quero é que termine logo.

Thorne a cobriu com seu corpo, apoiando-se nos cotovelos.

— Terminarei em um ou dois dias — sussurrou. — Prometo que se sentirá maravilhosa no fim. Feliz e sa­tisfeita, nem um pouco manipulada. — Fechou a boca sobre a dela, refestelando-se no calor e na maciez dos lábios carnudos. Tocou-a com a ponta da língua para sa­boreá-la, retraindo-se em seguida, sabendo que ela pre­cisava de tempo.

Beijou-a no pescoço, as mãos enroscando-se nos lon­gos cabelos. Aos poucos baixou o peso do corpo, moldando-se às curvas. Os seios, ainda escondidos debaixo do cetim, pressionavam seu peito e excitavam-no a ponto de sentir dor. Separou as coxas com o joelho, pressionou o sexo intumescido contra o dela e sentiu-a estremecer. Seus músculos o traíam e ele passou a se movimentar contra a própria vontade, movido pelo instinto primitivo que não conseguia controlar.

Tinha ficado tempo demais sem ela. A mente dizia que devia se conter, mas já estava perto do ápice. Caso se segurasse por muito tempo mais, acabaria terminan­do sem nem mesmo começar, uma maneira vergonhosa de começar a prometida maratona passional.

Tomando a boca macia em outro beijo ávido, passeou as mãos com abandono pelo corpo delgado, acariciando-a nos lugares que sabia a excitariam. Martine, entretan­to, permanecia imóvel, com o rosto de lado, agarrando o lençol com os punhos.

— Relaxe — instigou com suavidade. — Dê-se uma chance.

— Sinto-me numa armadilha — ela confessou com voz trêmula. — Não tenho escolha. Sinto-me impotente...

— Impotente! — Ele pegou a mão dela e a pressio­nou contra o sexo pungente. O toque quase o lançou aos céus, mas ele cerrou os dentes em busca de autocontrole. — Você tem o poder de fazer isso comigo. — Ela tentou se desvencilhar, mas insistente, ele a fez segurar toda a extensão de sua ereção. — Sinta! Veja o que faz comigo. Sinta como estou pronto para você. Tanto que chega a doer. Sei que também me quer.

— Não!

— Não acredito nisso. — Deixou que ela se soltasse. Então, levantou a barra da camisola e a tocou entre as pernas. Martine se debateu, mas ele segurou seus pu­nhos acima da cabeça enquanto inspecionava a umidade que trairia sua excitação. — Seu corpo diz que me quer.

— Só meu corpo, não meu coração. Você faz com que me sinta pior do que manipulada. Sinto-me violada!

— Violada?

— Olhe para nós! — ela exigiu, a voz entrecortada pela emoção. — Como posso me sentir de outro modo?

Thorne olhou para a mulher embaixo de si, os braços presos acima da cabeça, o corpo trêmulo, os olhos mare­jados. Tinha tentado ser gentil, em vez disso, perdera o controle e a afastara ainda mais. Soltou-a, sentou-se e pegou a camisa.

— Eu não queria que fosse assim, Martine. Eu queria...

— Me seduzir — ela o acusou, sentando-se e esfre­gando os pulsos. — Não devia ter se dado a esse traba­lho. Pela lei não posso me recusar. Tudo seria mais fácil se fosse direto ao ponto e me deixasse em paz!

— Eu não queria que fosse rápido. Queria fazer amor com você.

— Por que eu? Por que não uma das criadas? Elas são seu tipo, não?

Martine o fitou com expressão pensativa e Thorne acreditou que finalmente ela tinha entendido, mas logo ela estreitou os olhos.

— Quer que eu engravide! Esse foi o seu objetivo o tempo inteiro. Sua atenção, os beijos... Tudo era parte de uma lenta sedução. Mais manipulação!

— Martine, o que você está...

— Hoje você é um barão e barões precisam de filhos legítimos. Qualquer mulher pode lhe dar prazer, mas so­mente sua esposa pode lhe dar herdeiros!

— Herdeiros? — Ele pegou as calças usadas no dia anterior. — E nisso que acredita? Deus, Martine, tenho andado tão ocupado que nem pensei em filhos. Eu só queria você! — Calçou as botas.

Martine abraçou-se aos joelhos dobrados.

— Se não quer herdeiros, seu problema é satisfação sexual. Qualquer mulher servirá.

— Se isso fosse verdade, teria ido até Fat Nan. — Diante do ar confuso da esposa, explicou: — Ela é a dona de um bordel em Hastings. Nenhuma prostituta jamais me acusou de manipulação.

— Vá, então — disse ela num tom de estudada in­diferença. Levantou-se e colocou o roupão. — Sei que tem... necessidades. Se foi só por isso que me procurou... Então vá!

— Eu não disse isso! — Que mulher exasperadora.

— Sei muito bem que...

— Você não sabe de nada! — Deu um passo à fren­te e tomou-a nos braços. Ela lutou e se desvencilhou. Thorne se descontrolou e, girando o corpo, viu o painel de vidro verde e, sem pensar, acertou-o com o punho cerra­do, partindo a janela em centenas de pedaços e cortando a mão.

Martine suspirou e correu para o quarto de vestir. Pegou uma camisa e envolveu a mão ensangüentada do marido. Thorne sentiu a cabeça leve, a mente tão dor­mente quanto a mão lacerada. Por alguns instantes, per­maneceu em silêncio, depois disse:

— Talvez esteja certa e eu deva ir a Hastings. Permanecer aqui não está fazendo bem nem a mim, nem a você.

Martine abriu a boca e ele pensou, pela expressão em seu rosto, que ela imploraria para que não fosse. Em vez, disso, ela mordeu o lábio e passou os braços pelo corpo.

— Estarei de volta amanhã à tarde. —- Thorne pegou o manto e a espada.

De costas, ela assentiu. Ele escancarou a porta e deu de frente com Clare que segurava uma bandeja de vinho.

— Milorde! Mil perdões! — exclamou, ajoelhando-se para limpar o chão.

Aquela moça estava sempre à espreita, levando comi­da e bebida sem que ninguém lhe pedisse. Sem confiar em si mesmo para dar uma resposta civilizada, Thorne virou-se e partiu apressado.

Martine acordou no meio da noite com uma batida furiosa à porta. Virou-se para o lado antes de se lembrar de que Thorne tinha ido a Hastings.

— Milady! — Felda invadiu o quarto somente de camisola e carregando uma lamparina. — Milady, é Bernard!

— Bernard? — Martine afastou as cobertas e seguiu para a janela. Olhou para fora. Dezenas de homens ar­mados cercavam o castelo; alguns desmontaram e cor­reram para dentro. Logo identificou a voz do homem odioso.

— O que ele quer? — Felda gritou conforme os passos se aproximavam.

— Eu, provavelmente.

— Santa mãe de Deus! — Felda murmurou. — Que­ria que Thorne estivesse aqui. — Viram a maçaneta girar. — Milady, o que faremos?

— Eles querem a mim. — Martine sentiu um gelo subir pela espinha. — Você deve escapar sem chamar a atenção.

— Não vou fugir! — Felda exclamou ao ouvir as bati­das na porta. — A senhora precisa de mim.

— Preciso que vá até Hastings e encontre Thorne.

O som se intensificou, demonstrando que os homens de Bernard tinham se unido a ele para derrubar a porta.

Martine agarrou Felda pelos ombros.

— Pegue um cavalo e vá até Hastings o mais rápido que puder. Vá até o porto. Há uma pessoa de nome... Nan!

— Fat Nan? — Felda perguntou boquiaberta. — Ele a deixou aqui para...

Martine chacoalhou a criada pouco antes de a porta ser partida ao meio.

— Encontre Thorne! Conte o que aconteceu... Mais um chute, e a porta veio a baixo.

Martine gritou quando homens em armaduras e elmos a pegaram e jogaram de cara na cama.

Amarraram-lhe os pulsos e os tornozelos, e ela lutava para não chorar. Não queria lhes dar o prazer de se ver derrotada. Dois homens a puseram de pé e viraram-na de frente para Bernard, que parado serenamente, pare­cia alheio ao caos que semeava ao seu redor.

— Lady Falconer — cumprimentou-a com o eterno sorriso cínico.

— O que você quer? — perguntou ela, esforçando-se para firmar a voz.

— Pensei que isso fosse óbvio, milady. Você!

— Está atrasado. Sou uma mulher casada.

Bernard riu e os homens o imitaram.

— Não estou aqui para propor casamento. — Fez um gesto na direção de uma figura na porta, padre Simon, e ordenou: — Leia!

O padre abriu um pergaminho e começou a recitar:

— A menos que seja provado o contrário, que seja de conhecimento público que Martine de Rouen, ou também conhecida como Martine Falconer, baronesa de Blackburn, executou malefícios por meio de encan­tamento e poções como segue: primeiro, respirou na boca da falecida menina Ailith de Kirkley, reavivando o corpo.

— O quê? — Martine indagou, incrédula.

— Segundo — o padre prosseguiu como se não a ti­vesse ouvido —, tornou impotentes tanto o primeiro quanto o segundo marido, usando veneno e outros mé­todos. Terceiro, envenenou lady Estrude de Flandres, tomando-lhe a vida.

— Isso é um absurdo!

O sacerdote a encarou e pigarreou.

— Fiquem sabendo que tais atos foram executa­dos em nome daquele conhecido como Satã, Lúcifer ou Belzebu; que a feiticeira Martine Falconer submeteu-se aos serviços do príncipe dos demônios, e em sua união a ele, renunciou Deus, Jesus Cristo, os santos, a Igreja Católica e todos os sacramentos.

Horrorizada, Martine encarou o padre, Bernard e os soldados, todos com expressão sóbria.

— Quero meu marido — disse, trêmula.

— Pelo que sei, seu marido partiu para Hastings esta manhã — Bernard escarneceu.

— É claro... — Martine então entendeu tudo. — Sabia que ele não estaria aqui, ou não teria se atrevido a invadir o castelo. Como...

— Estou bem informado a respeito das idas e vindas do saxão. Minha cara lady Clare providenciou isso.

Ela devia ter desconfiado. Apontando para o pergaminho, perguntou:

— O que isso quer dizer? O que me acontecerá?

— Será encorajada a confessar — padre Simon disse.

— Serei torturada... — Ela engoliu em seco.

— Deus, não! Os métodos mais eficientes são usados no continente, porém proibidos na Inglaterra. Será in­terrogada, contudo. Depois será julgada e considerada culpada.

Julgada e considerada culpada. Simples assim...

— Qual a punição para feitiçaria?

— Nada de mais. Multa e algumas chibatadas. Talvez o banimento.

Martine sentiu-se tomada de alívio.

— Mas obviamente não está sendo acusada de feiti­çaria. Feitiçaria herege é a acusação. Feitiçaria a serviço do demônio. A punição nesse caso é a morte.

— Serei enforcada — ela sussurrou.

O padre deu um passo à frente e sorriu, bem como Bernard. Os dois pareciam se divertir com a situação.

— Não necessariamente — Bernard anunciou. — Pode ter sorte e ser mandada para a forca, mas há al­guns homens na Inglaterra, como nosso prezado padre Simon, que defendem que os hereges sejam queimados.

Martine balançou a cabeça lentamente. Bernard se aproximou e segurou-a pelo cotovelo.

— Não gostou muito da idéia de se casar comigo... Você e aquele falcoeiro pensaram que conseguiriam me passar a perna? Pois saiba que estou em posição de re­tribuir o favor. Pedirei ao bispo Lambert que faça de você um exemplo. Não se iluda, será condenada e morrerá na pira, gritando e implorando enquanto é consumida pelas chamas. Não há agonia que se compare a tal morte.

— Exceto casar-se com você. — Martine se contorceu para se soltar.

Bernard mirou a ponta da espada para o pescoço de Martine.

— Parece esquecer de quem está em vantagem aqui. Segurem a cabeça dela!

Martine sentiu-se tomada pelo pânico quando ele er­gueu a espada, a ponta para cima. Por fim, viu quando ele mirou o cabo com força em sua têmpora segundo an­tes de sentir uma pancada.

— Amordacem-na! — Bernard comandou e a últi­ma coisa que ela sentiu antes de desmaiar, foram mãos fedorentas empurrando um pano para dentro de sua boca.

— Acorde, milorde.

Thorne sentiu-se chacoalhar o que provocou uma onda de náusea.

— Vá embora... — Virou-se na cama de palha, uma jarra debaixo do corpo totalmente vestido.

Ouviu mulheres sussurrando, e sentiu mãos virando-o de costas.

— Milorde, acorde. Sou eu, Nan...

— Nan? — Então Thorne percebeu onde estava e por que tinha ido até ali. — Deixe-me em paz!

— Depois dos prazeres que me propiciou ontem à noite? As meninas sempre elogiaram seu desempenho, mas nunca imaginei que...

— O quê? — ele gritou e abriu os olhos a despeito do sol que o feria. Fat Nan e as espectadoras em estado de seminudez pairavam sobre seu corpo. Nan se virou para as garotas.

— Isso o despertou!

Todas riram e Thorne ficou aliviado por aquilo não passar de uma brincadeira. Olhou para as moças, ten­tando se lembrar com qual se deitara.

— Passou por todas elas, milorde — Nan informou. As garotas riram e ele não sabia se devia se sentir orgu­lhoso ou envergonhado. — "Mande-as para mim" era o que me pedia ontem. Tentou chegar até a quarta — ela chutou a jarra que tinha caído no chão —, mas depois de um gole desmaiou.

Thorne sentiu a cabeça latejar com as gargalhadas das moças.

— Quer dizer que tudo o que fiz...

— Não se lembra? Bebeu até cair. Precisamos de sete para carregá-lo aqui para cima. Eu o deixaria dormir por mais tempo, mas há uma mulher lá embaixo, espe­rando por milorde.

Martine? Pôs-se de pé, esquivando-se da ajuda de Tilda, cocou a barba e tentou pentear os cabelos com a mão, mas ela ainda estava amarrada com a camisa de Martine. As prostitutas abriram caminho enquanto ele se escorava na parede para descer, imaginando o que diria à esposa. Parou no pé da escada quando viu uma ruiva roliça.

— Felda?

Ela se aproximou e o esbofeteou.

— Seu bastardo! — Ela tinha lágrimas nos olhos. — Você a deixou para vir para esta pocilga para...

— Ele não fez nada além de beber — Nan disse do alto das escadas. — E tudo que lhe resta é uma bela res­saca, então por que não o poupa e...

— Ótimo! Estou feliz em saber que está sofrendo. Você a deixou! — Começou a esmurrá-lo no peito, mas Thorne a segurou pelos punhos.

— O que aconteceu? — Ela soluçava demais para conseguir responder. — Aconteceu alguma coisa com Martine? — Felda assentiu. — O quê? Fale!

Nan apertou o ombro dele e entregou uma taça a Felda. Depois que a criada se acalmou, contou o ocorrido.

Thorne sentou-se num dos bancos, segurando o estômago. Alguém aproximou uma bacia e ele vomitou. Depois de se recompor, pagou Nan e se arrastou para fora do bordel.

— Tenho de ir para Harford. Preciso de alguns homens e...

Felda o segurou pelo braço.

— Ela não foi levada para o castelo. Ouvi os homens de Bernard comentando que ela seria levada para a Abadia Battle, aqui em Hastings, até o julgamento.

— Que julgamento? — perguntou mesmo sabendo a resposta. Tudo se encaixava. Devia ter desconfiado que isso aconteceria.

— Bernard a denunciou por heresia. Oh, Thorne, di­zem que ela será queimada viva!

— Fui vê-la, mas não me deixaram entrar — Thorne contou a Matthew naquela tarde.

— Claro que não — Matthew disse placidamente. — Só poderá vê-la no julgamento, daqui a várias semanas. Sente-se, por favor.

Thorne continuava a andar de um lado para o outro. Ainda sentia os efeitos do excesso de álcool e achava que ao caminhar se sentiria melhor.

— Pode imaginar como ela está se sentindo? Estão ameaçando queimá-la! Podem fazer isso?

— Queimam hereges na França e na Itália há mais de cem anos. Não só isso, como também confiscam todos os bens dos acusados. É isso o que torna o con­ceito de feitiçaria herege tão perigoso. Se homens cobiçosos como padre Simon tiverem as rédeas para fa­zer tais acusações, quem sabe quantas vidas inocentes serão destruídas.

Thorne parou e apoiou as mãos na mesa.

— A única vida inocente que me importa no momen­to é a de Martine. Precisamos de uma estratégia para esse julgamento. Não podemos deixar que a considerem culpada.

— Eles já a consideram culpada — o prior disse sério. — Temos de provar que ela é inocente.

— Isso não é possível. Nas disputas em meu feudo...

— As suas disputas são resolvidas de acordo com a tradição anglo-saxã onde o acusado é inocente até que se prove o contrário. Na corte eclesiástica, parte-se do princípio que o acusado é culpado.

— E os normandos acreditam que estão civilizando a Inglaterra. — Thorne suspirou pesadamente.

— A acusação de feitiçaria herege é recente. Há pou­cos julgamentos a serem usados como modelos, o que significa que há poucas regras.

— Isso é bom ou ruim? — Thorne perguntou, sentando-se.

— Ruim, provavelmente. — Matthew franziu o cenho. — O bispo Lambert criará as leis conforme o julga­mento se desenrolar. Isso conta a favor deles.

— Qual o interesse dele nesse assunto? — Thorne sentia como se as paredes estivessem se fechando ao seu redor.

— Se Martine não conseguir provar sua inocência e for...

— Queimada — Thorne completou de pronto.

Matthew assentiu.

— As propriedades dela serão confiscadas. Caberá a Olivier decidir como dividi-las. Não tenho dúvidas de que ele as entregará a Bernard, dada a amizade entre eles. Uma parte menor certamente irá para o bispo. Pelo que conheço dele, a renda será revertida para seu pró­prio bolso, não para a Igreja. Portanto, é do interesse dele que Martine seja condenada.

— Está tentando me dizer que não há esperanças? Matthew não respondeu de pronto e Thorne se sentiu sufocar. Levantou-se e foi para a janela.

— Eu nunca deveria ter ido a Hastings, deixando-a só. Eu devia saber... Se estivesse em casa, nada disso teria acontecido.

Matthew se aproximou e apoiou a mão no ombro do amigo.

— Não se atormente. Isso só o enfraquecerá e você precisa de todas as suas forças para agüentar o que está por vir. Vá para casa e reze. Prepare-se para o pior.

— Se Martine... — A garganta de Thorne estava tão apertada que ele engasgou nas palavras. — Se tirarem Martine de mim, ficarei sem alma.

— Sei o quanto a ama.

— Não. — Automaticamente ele balançou a cabeça. — Eu deveria ter amado, mas não me permiti.

— Thorne, o amor não dá a mínima se você permi­te ou não. Essa é a única coisa que nem você consegue controlar. Do momento em que os vi pela primeira vez no verão passado, soube que estavam profundamente apaixonados um pelo outro. Era evidente em cada palavra trocada, em cada gesto e olhar. Havia uma força, um poder que os unia irrevogavelmente.

Thorne fechou os olhos e viu o laço do destino se formando ao redor deles quando se tinham de abraçado na água fria do rio Blackburn.

— Preciso ir — Matthew disse ao ouvir os primeiros cânticos vindos da igreja. — Vá para casa e reze, meu amigo.

De madrugada, sabendo o que precisava fazer, Thorne se levantou do chão de mármore de sua capela e claudicou até o estábulo onde pediu a um dos cavalariços que aprontasse seu cavalo.

Já passava do meio-dia quando desmontou diante do portão do castelo de Harford, entregando a espada e a adaga a Boyce antes mesmo que ele as pedisse.

— Leve-me até o canalha — pediu.

Boyce o conduziu até o salão principal e, lá chegando, foi recebido com alegria por Ailith.

— Thorne!

Ele a ergueu e abraçou com carinho, depois deixou que a menina o conduzisse até o avô. O barão, sentado na poltrona, estava ao lado da filha.

— Milady, milorde. — O barão parecia ter uma car­ranca, mas de perto, Thorne notou que somente um lado do rosto estava esticado. — O que houve?

Meneando a cabeça, Geneva aproximou uma colher de mingau da boca do pai e disse:

— Ele está assim há uma semana. Sangraram-no duas vezes, mas de nada adiantou.

— E de revirar o estômago, não? — Bernard grasnou atrás dele.

Geneva automaticamente pediu que a filha se retiras­se. Bernard sentou-se à mesa e pediu conhaque. Clare se aproximou, apoiou um jarro na mesa e abaixou a cabeça quando Bernard a pôs no colo.

— Ela não é lá uma beleza, mas basta. — Apertou um seio com força a ponto de provocar lágrimas nos olhos da moça. — Incrível o que ela consegue suportar só para me agradar... Mas acredito que você já saiba da devoção dela. não?

— Muito bem, aliás — Thorne rebateu. Bernard sorriu e empurrou-a, levando-a ao chão.

— Ela diz me amar. Já ouviu algo mais ridículo?

— Acredito que sim.

— Por que veio me procurar, falcoeiro. — O sorriso dele se desfez. — Ou devo dizer, lorde falcoeiro?

Do modo mais reservado que pôde, Thorne disse:

— Vim lhe entregar Blackburn.

Geneva suspirou. Todos os presentes se viraram para o saxão.

— Em troca da retirada da denúncia de sua dama cadela, presumo.

— Sim.

Bernard se recostou no espaldar da cadeira e sorriu.

— Essa é uma oferta vã. Você é o detentor de Blackburn a mando de Olivier, não pode dá-lo a ninguém.

— Posso abandoná-lo, porém. Já que não há herdei­ros, Olivier pode muito bem decidir concedê-lo a você. Pelo que sei, ele é a única pessoa na Inglaterra que sim­patiza com você. — Ignorando o escárnio de Bernard, continuou: — O que ofereço é muito mais do que recebe­rá com a execução de Martine.

— E se eu quiser os dois: Blackburn e o dote dela?

— Pode ficar com tudo. Só quero que garanta que Martine sairá ilesa. Juro por Deus e todos os Santos que sairemos do país e nunca mais ouvirá a nosso respeito.

— Ficarei com tudo... E você? Não vejo como esse ar­ranjo possa beneficiá-lo.

Geneva interveio:

— Ele terá Martine. — Sorriu para Thorne. Ele nunca a tinha visto sorrir antes.

— Querida irmã, não conhece Thorne Falconer tão bem quanto eu. O amor não tem lugar na vida dele. Não, ele está aprontando alguma...

— Não há segundas intenções por trás de minha oferta. Sua irmã tem razão; o que faço é para o bem de Martine.

— Já me enganou antes, saxão. — Bernard ba­lançou a cabeça. — O amor é para os tolos como essa pobre criatura. — Apontou para Clare. — Eu o conheço muito bem.

— O amor que sinto por minha esposa não é nada parecido com o que você já viveu, pois um animal como você jamais compreenderia. E um ato de submissão, assim como nos ajoelhar diante do altar. Com ele nos sentimos parte de uma coisa muito maior e indescrití­vel. É o amor que separa os homens dos selvagens, e é por isso que você jamais entenderia. Um dia eu também acreditei ser incapaz de amar, mas graças a Deus, eu estava errado.

— Lindo discurso, mas por que gastá-lo comigo já que sou irracional demais para compreendê-lo?

Thorne foi até a mesa e apoiou as mãos no tampo, ignorando a ponta da espada de Boyce.

— Para convencê-lo de que não tenho a intenção de enganá-lo, que meus motivos são simples e honestos. Amo Martine com todo o meu coração e o único motivo por trás de minhas ações é libertá-la. Juro solenemente. Retire as acusações e o que é meu será seu.

— Ama-a tanto assim?

— Sim. — Ele se endireitou e Boyce abaixou a espada.

— Parece que ela o enfeitiçou.

— Diga o que quiser, mas, assim como eu, não acredita de fato que ela seja feiticeira. Não é tão ignorante assim.

— Não sou. Tampouco sou tolo em deixar passar uma oportunidade de obter Blackburn.

— Aceita minha oferta, então?

—-Não, mas foi divertido ouvi-lo... Especialmente aquele trecho sobre fazer parte de algo maior... — Bernard riu.

— Mas disse que...

— Falcoeiro! — Bernard grunhiu. — Não preciso de sua proposta patética para tomar Blackburn, nem de sua permissão para retomar as terras de minha família. Você abandonará Blackburn, não pela libertação de sua esposa, mas porque não terá escolha. Se ficar no país até o final do julgamento, juro que também será preso sob a alegação de heresia...

— Eu? Isso é um absurdo!

— Absurdo e simples. Se eu o denunciar, terá de provar sua inocência, o que pode ser uma tarefa um tan­to difícil já que critica a Igreja, nunca vai à missa, lê livros pagãos... Certamente será considerado herege e, então, seu fim será a fogueira. Pode imaginar a agonia? Não há como salvar sua mulher, mas ainda pode tentar se salvar.

— Muito inteligente de sua parte. Se eu fugir, rece­berá Blackburn por meio de Olivier; se eu ficar, me acu­sará de heresia e acabará com o castelo.

— Só há um caminho lógico a seguir.

— O amor tem pouco a ver com lógica — Thorne disse e Bernard revirou os olhos. — Por que está fazendo isso? Por que quer que ela morra?

Bernard se levantou num salto, derrubando a cadeira.

— Pelo simples prazer de vê-la gritar atormentada enquanto o fogo a consome viva! — Thorne tentou agar­rá-lo, mas foi impedido por Boyce e mais dois homens. — Pela excitação de ouvi-la gemer e implorar! É por isso, falcoeiro! — Bernard gargalhou histericamente. Thorne se debatia.

— Ela zombou de mim, assim como você. — Num tom mais controlado, Bernard completou: — Espero que de­cida não fugir. Quero vê-lo queimar na fogueira também. Boyce! Leve-o para fora e só devolva as armas depois que ele tiver cruzado a ponte.

— Está na hora, milady — disse o guarda na porta da cela sem janelas.

— Só um instante, por favor. — Martine terminou. de fazer a trança deixando-a cair pelas costas e alisou a túnica cinza simples e larga demais que haviam lhe dado, deixando evidente o mês que passara a pão e água. Sabia que fazia um mês porque o guarda informara que o primeiro dia do julgamento seria em dois de junho.

Estava vestida do mesmo modo simples com que as noviças em Santa Teresa se vestiam, o que era bom. As vestes aumentariam a impressão de religiosidade que outrora seria pura ficção, mas que naquele dia se apro­ximava muito da verdade. Isso porque durante o mês em que fora questionada, privada de sono e alimento, ameaçada não só pelas chamas do inferno como as da fogueira, tinha aprendido a rezar. Não era mais o ato automático de juntar as mãos porque sabia estar sendo observada. Não. Tinha conseguido encontrar a fé dentro do coração e, por mais inadequado que parecesse, implo­rar a Deus que lhe mostrasse o caminho da salvação.

— Isso é mesmo necessário? — perguntou quando o guarda amarrou seus pulsos.

— São ordens, milady — ele respondeu, levando-n para fora da cela. Três outros guardas a acompanharam pelas passagens da abadia até a sala onde aconteceria o julgamento.

A sala era enorme e uma multidão enchia os ban­cos encostados à parede. Foi tudo o que ela conseguiu ver, quase cega pela luz do sol que entrava pelas janelas. Perguntou-se se Thorne estaria ali, mas não teve como averiguar, visto que um guarda a sentou num banquinho no centro da sala de costas para a audiência.

As acusações foram proferidas em voz alta para que todos ouvissem enquanto ela tentava acostumar os olhos a tanta claridade.

O bispo Lambert estava num altar diante de seu banquinho e enquanto ele falava, gesticulava com as mãos repletas de jóias. Do lado direito, um escrivão tomava nota; do esquerdo, uma fileira de padres vestidos de pre­to. Um deles se levantou e se aproximou.

— Lady Falconer — começou padre Simon —, não falará a menos que lhe perguntem algo e as respostas devem ser simples e diretas. Compreendeu?

— Sim, senhor. — Se a submissão a salvaria do fogo, então submissa ela seria.

— Milady, quando aceitou o seu companheiro demô­nio, que com freqüência toma a forma de um gato?

— O meu o quê? — Martine perguntou, surpresa.

— Acho que me entendeu. — Ele pressionou os lábios. — Quando recebeu a criatura que chama Loki?

— Três anos atrás.

— E que forma seu senhor tomou ao lhe entregar seu companheiro?

Martine respirou fundo e refletiu quanto à resposta.

— Um homem chamado Beal me deu Loki. Ele era um dos ajudantes do estábulo de Santa Teresa.

Simon se virou para o escrivão.

— Tome nota que Loki é um demônio que muda de forma e que ele foi entregue pelo seu senhor. "Beal" é um dos apelidos de Belzebu.

Alguém gritou atrás dela:

— Pelo amor de Deus!

Thorne! Ela se virou e o viu sentado num banco ao lado de frei Matthew, Felda e Geneva. Ele tentou se le­vantar, mas Matthew o segurou pelo ombro e sussurrou algo em seu ouvido.

— Lady Falconer, vire-se — o bispo ordenou, mas Thorne olhava diretamente para ela, e Martine não con­seguia desviar o olhar. — Lorde Falconer, será expulso do recinto se interromper novamente. Entendeu?

Ela viu a expressão de ultraje do marido, mas quando Matthew lhe disse algo, ele se recompôs e aquiesceu com humildade.

O bispo acenou para o guarda ao lado dela, que a segurou pelo ombro e forçou-a a olhar adiante. Antes, porém, viu Bernard com o costumeiro sorriso sardônico ao lado de Clare.

— Quando copula com seu senhor, ele ainda man­tém a forma do ajudante de estábulo ou assume outra forma?

— Copular?

— Responda!

— Como posso responder se não sei o que quer dizer? Não tenho nenhum senhor!

— Herege! — Simon apontou para ela. — Todos nós temos um senhor, Deus-Todo-Poderoso! Como ousa questionar a autoridade dele?

— Não fiz isso! Está me confundindo!

— Silêncio! — comandou o bispo. — Lady Falconer, deve cooperar com o interrogatório ou será levada imediatamente à fogueira. Entendeu?

Aflita e confusa, Martine se virou para Thorne, que parecia furioso. Matthew fez um gesto encorajador com a cabeça e ela se virou para o bispo.

— Sim, senhor. Entendi.

— A rejeição da autoridade de Deus por par­te de lady Falconer é notória. Guardas, tragam as testemunhas.

Houve uma procissão de criados de Harford que afir­maram diante do bispo que, por ocasião do afogamento de Ailith, Martine tivesse gritado: "ao inferno a vonta­de de Deus". Testemunharam também que, por meio de feitiçaria, ela soprara vida no corpo da menina e que padre Simon fora atacado por Thorne ao tentar evitar tal feito.

Depois do recesso do meio-dia, diversos soldados de Bernard atestaram que Edmond tinha sido incapaz de consumar o casamento. O próprio Bernard falou do jarro caído no quarto do irmão e do veneno que ela induzira Estrude a tomar pouco antes de morrer.

A última testemunha foi Clare.

— Milady, durante o tempo em que serviu lady Falconer em Blackburn, notou algo de anormal no rela­cionamento dela com o marido?

— Havia rumores — ela disse depois de uma pausa. — Diziam que não havia amor entre eles e que, apesar de casados, eles nunca... Lorde Falconer não exercia seus deveres de esposo.

— Qual seria a causa, a seu ver?

Eu sabia que ela era feiticeira. Todos em Harford sabiam. Presumi que ela tivesse feito alguma coisa para mantê-lo longe, assim como fez com o falecido sir Edmond, que Deus o tenha. — Fez o sinal-da-cruz.

— Obrigado pelo seu testemunho — disse o padre.

No segundo dia de julgamento, Martine procu­rou por Thorne assim que entrou na sala. Ele sorria, tentando encorajá-la. Com um gesto da cabeça indicou frei Matthew junto a um homem desconhecido diante do bispo.

— O senhor é John Rankin, médico de Oxford? — O frei deu início ao interrogatório.

— Sim, senhor.

Virando-se para o escrivão, ele pediu:

— Por favor, escreva que o sr. Rankin é médico e professor de medicina, tendo estudado em Salerno e Paris, e que possui reputação notória entre os colegas em Oxford. Ele já tratou do rei Louis da França e do rei Henry da Inglaterra, bem como de outros membros da monarquia. — Para Rankin, disse: — Minha primei­ra questão refere-se às ervas ministradas a sir Edmond e lady Estrude. Lady Falconer alega que as ervas eram preparados que induzem ao sono. Conhece esse tipo de bebida?

— Há muitas receitas para tais tônicos. Basicamente é uma mistura de diversas ervas que podem induzir a um sono profundo se ministrados na quantidade correta.

— Há algo demoníaco ou sobrenatural nesses preparados?

— Não, frei. — O médico riu. — São tônicos comuns. A comunidade médica em Paris os conhece e, sem dúvi­da, foi lá que lady Martine tomou conhecimento deles.

Um murmúrio correu o salão; padre Simon fechou o rosto.

— Mais uma coisa. O senhor conhece algum modo do reviver uma menina afogada?

— Não — ele disse para assombro de Martine — Sei a criança estiver de fato morta. Entretanto se houve pul­sação, e pelo que sei foi o que aconteceu com a menina em questão, ela não estava morta, apenas parecia estar. Então alguém pode tentar soprar em sua boca... — A voz foi abafada pelo clamor do público e o bispo ordenou silêncio, dispensando a testemunha.

Em seguida, padre Simon se levantou para argumentar:

— Senhor bispo, o conhecimento de lady Falconer a respeito de ervas não escusa a acusação de impotên­cia contra o atual marido, lorde Falconer, visto que tal feitiçaria não foi executada por envenenamento.

— Como ela induziu essa impotência, então? — O de­safio do bispo se perdeu no tom entediado da pergunta. Martine sabia que o bispo e o padre tinham ensaiado o que dizer no julgamento.

— E sabido que demônios, mesmo os menores como o companheiro de lady Falconer, podem instilar aversão num homem em relação a uma mulher de maneira tão pungente a ponto de impedir a relação sexual do casal.

Martine viu por sobre o ombro que Matthew estava concentrado numa conversa com Thorne e Geneva.

— E por que isso acontece? — o bispo perguntou.

— Porque de acordo com a opinião geral o casamento em questão é uma união artificial, destituída de afeto ou qualquer tipo de...

— Opinião geral? — Matthew se levantou e apon­tou para Clare. — De acordo com uma opinião somen­te! Deixe que lorde Falconer diga se sente algum afeto em relação...

— Não! — Simon interrompeu. — Ela poderia influenciá-lo com seu olhar maligno. Isso não pode ser autorizado.

Padre Simon está certo. Não podemos considerar o testemunho do marido — o bispo decidiu.

— Então me deixe interrogar lady Geneva, condessa de Kirkley — Matthew pediu.

— Não! — Simon disse mais uma vez. — Ela não sabe nada sobre este assunto.

— Talvez o bispo queira decidir quanto a isso — Matthew sugeriu.

O bispo lançou um olhar mortífero ao padre.

— Seja breve — disse a Matthew.

— Condessa — Matthew começou quando Geneva se levantou —, estava presente no salão do castelo de Harford na tarde seguinte à prisão de lady Falconer quando lorde Falconer chegou para discutir um assunto com seu irmão?

— Sim.

— Poderia descrever essa conversa?

— Lorde Falconer ofereceu seu baronato a meu ir­mão se ele retirasse as acusações que pairam sobre lady Falconer.

A sala se encheu de burburinhos. Perplexa, Martine se virou. Thorne sustentou seu olhar e ela viu sinceri­dade nos olhos azuis. Ele estava disposto a desistir de Blackburn por ela!

— Silêncio! Lady Falconer, vire-se! — comandou o bispo.

— Lorde Falconer disse por que se dispunha a sacri­ficar tanto para salvar a vida da esposa?

Geneva tinha os olhos brilhantes de lágrimas.

— Ele disse que a amava. — Virou-se para Martine. — Do fundo do coração.

Mais uma vez um tumulto se fez na sala, porém Martine estava alheia a tudo. Só notava o brilho intenso nos olhos de Thorne. Sentiu mãos tirarem-na do banco.

— Acabou? — ela perguntou ao guarda que a levava de volta à cela.

— Só falta o veredicto, milady. O bispo quer que todos estejam aqui pela manhã. — Ele sorriu. — Não se preocupe, pelo andar da carruagem, eles não têm muito contra a senhora. Será uma mulher livre pela ma­nhã, tenho certeza.

Assim que Martine se sentou na manhã seguinte, o bispo apontou em sua direção e comandou:

— Venha até aqui, lady Falconer.

Ela caminhou com as pernas trêmulas até o trono. O bispo parecia irritadiço e descontente.

— Quanto às acusações de impotência, ressuscitação dos mortos e envenenamento, é meu parecer que o en­volvimento demoníaco seja inadequado, portanto, declaro-a inocente nas acusações de heresia.

Martine fechou os olhos e fez uma oração silenciosa de agradecimento. Virou-se e viu que Thorne sorria en­quanto Matthew lhe dava tapinhas nas costas. Uma voz se elevou entre todas as outras, entretanto:

— Senhor bispo — padre Simon entrava apressado. Atrás dele, Bernard o seguiu num passo mais indolente; ele prendeu o olhar de Martine, que sentiu um frio su­bir pela espinha. — Por favor, senhor bispo, tenho mais testemunhas!

— Chegou atrasado, acabei de dar o veredicto.

— Mas há uma nova acusação e esta testemunha...

— Isso é um ultraje! — Thorne exclamou.

— Nova acusação? Não fomos avisados de que ha­veria... — Matthew tentou protestar.

— Silêncio! — o bispo rugiu. — Frei, volte ao seu lugar e acalme lorde Falconer. Sir Bernard, padre Simon, aproximem-se, por favor.

Conversaram baixo por alguns minutos, depois padre Simon saiu, retornando acompanhado de três homens. Martine reconheceu o maior deles imediatamente.

— Este homem se chama Gyrth, ele é o capitão do Lady's Slipper, o barco que trouxe lady Falconer da Normandia em agosto passado.

— Prossiga com o interrogatório — o bispo ordenou.

— Ele não poderá responder minhas perguntas dire­tamente, senhor, apenas com acenos da cabeça.

— Muito bem, continue.

— O senhor é mudo? — o bispo perguntou a Gyrth que assentiu. — Foi sempre assim? — O capitão meneou a cabeça. — É verdade que o senhor emudeceu pouco depois que ter transportado lady Falconer pelo canal no verão passado? — Outro aceno. — Também é verdade que durante a travessia do canal, ela lhe rogou uma praga quando o senhor objetou contra a tempesta­de que ela provocara? Que ela o ameaçou dizendo que silenciaria sua língua com seus poderes? — De novo, o homem assentiu.

Padre Simon convocou os outros dois homens, e Martine levou um segundo para reconhecê-los como os marujos que testemunharam seu desafortunado rompante no navio. O padre questionou um, depois o outro. Ambos pareceram hesitantes, mas, por fim, concorda­ram com as acusações.

O mais alto olhou para Martine, olhou para o outro e disse:

— Padre, se eu puder, gostaria de falar uma coisa...

— Não pode! — gritou o bispo. — Só lhe é permitido responder às perguntas.

— Mas eu...

— O desrespeito às regras leva a castigos. Se não quer perder a língua, sugiro que se cale — O bispo ameaçou.

O marujo abaixou a cabeça e aquiesceu

— Senhor bispo — Matthew se levantou —, gostaria de fazer algumas perguntas às testemunhas.

— Estou certo de que gostaria disso, frei, mas este julgamento está terminado. Já cheguei a uma decisão. Sentem-se todos. Lady Falconer... — Vir ando-se para o escrivão, prosseguiu: — A meu ver, esse homem conhe­cido como Gyrth ficou mudo por meio de feitiçaria pela qual a senhora é responsável, e mais, que essa feitiçaria é herege. Portanto, como o fogo do inferno é o destino dos hereges, eu a condeno à morte na fogueira, amanhã cedo, dia quatro de junho do ano de...

O zumbido nos ouvidos de Martine ecoou o grito do público presente. Guardas a circundaram e a guiaram para a porta. Outros guardas abriam o caminho em meio a multidão. Matthew, em cima do banco, gritava:

— Isso é inconcebível! Não pode fazer isso! Ela preci­sa ter a oportunidade de apelar para o Papa!

— Martine!

Ela se virou e viu Thorne gritando seu nome ao ser levado para fora, os braços esticados tentando al­cançá-la. Alguém bloqueou seu caminho. Era Bernard.

— A pira já foi montada nos pântanos do lado de fora da cidade. Nosso querido padre Simon fez questão de se certificar de que a madeira fosse verde. — A boca sorria, mas os olhos continuavam mortos. — O fogo da madeira verde arde lentamente. Levará a manhã inteira para você morrer. Pense nisso quando tentar dormir esta noite.

Em seu íntimo Martine conseguiu forças para levan­tar o queixo e enfrentar Bernard.

— Qualquer que seja meu sofrimento, ele durará al­gumas horas e depois tudo estará terminado. Um dia, você também morrerá, e só então seu sofrimento come­çará, pois queimará não só por algumas horas, mas por toda a eternidade. — Até conseguiu sorrir ao concluir, para espanto do outro. — Pense nisso, enquanto você tenta dormir.

Naquela noite Martine não sorriu ao se ajoelhar no catre de sua cela enquanto aguardava a chegada do pa­dre por quem pedira.

Teve orgulho de sua atuação diante de Bernard, mas tudo aquilo não passara de bravata. Não se sentia nem um pouco calma, muito menos corajosa. Estava comple­tamente apavorada. A única coisa que a mantinha sã era pensar em outras coisas. Rainulf, seu amado irmão, tão longe em busca de sua fé. Pensou em seu único e verda­deiro lar que jamais voltaria a ver. E pensou em Thorne, cujos braços não a abraçariam mais, cujos ouvidos não escutariam as palavras que devia ter pronunciado e que agora não teria mais a oportunidade de dizer.

Por fim, ouviu o ruído da chave na porta da cela, que estava escura a não ser pela luz de uma lamparina. O corredor, contudo, estava bem iluminado por tochas, por isso conseguiu ver a silhueta do guarda parrudo e de um clérigo alto, cujo rosto estava escondido pelo capuz. Curiosamente o padre pegou algumas moedas de ouro o as depositou na mão estendida.

— Lembre-se — o guarda sibilou antes de fechar a porta —, isto só lhe garante uma hora.

O padre abaixou o capuz e Martine viu o rosto do marido. Ela tentou dizer seu nome, mas só conseguiu exclamar de alegria. As mãos deixaram a posição de oração se esticaram quando ele se ajoelhou diante dela no chão, pegando-a nos braços.

— Thorne! Thorne! — As palavras foram abafadas no ombro forte. Ele a abraçava e a beijava nos cabelos.

— Graças a Deus você está aqui! Oh, eu preciso tanto lhe dizer...

— Não. Sei o que está em seu coração. Não é preciso...

— E sim. — Ela afastou o rosto e o encarou. — Preciso lhe dizer, esta é a minha última chance e eu devia ter dito isso há tanto tempo, mas... Eu te amo. Eu te amo tanto! Sempre amei, mas agi como uma tola. Perdão...

— Sou eu quem deve implorar por seu perdão. Naquela manhã eu a deixei... Se não tivesse feito isso, eles não a teriam levado.

— Eu o repudiei. Fui tão fria... Fui eu quem o man­dou para... aquele lugar.

Thorne sorriu ligeiramente.

— Só dormi com um jarro de bebida. Desde que a conheci, não estive com nenhuma outra mulher. Nunca quis outra depois que ficamos juntos. Nunca vou querer. — Inclinou-se e beijou-a.

Um beijo de grande paixão e carinho, e Martine re­tribuiu de livre e espontânea vontade, atraindo-o para perto com as mãos.

— Não me importo em morrer, agora que contei o que sinto...

— Você não vai morrer — ele disse. — Não posso perdê-la, Martine. Amo você demais, não posso permitir que morra.

A esperança se acendeu no peito dela.

— Há um modo de fugir daqui? Triste, ele meneou a cabeça.

— Os corredores estão abarrotados de guardas. Bernard contou às autoridades sobre sua fuga de Hartford e eles não querem se arriscar.

— Então não há saída... Por favor, agradeça a Frei Matthew pela ajuda. Se ao menos ele tivesse conse­guido interrogar aqueles marinheiros.

— Eles me pareceram testemunhas um tanto relutantes.

— Mais do que isso. Eles queriam dizer alguma coisa, mas o bispo não permitiu. Eles sabem de alguma coisa que me inocentaria...

— Percebi isso. Infelizmente, o bispo também. Foi por isso que os ameaçou caso abrissem a boca.

— O silêncio deles significa a minha morte. Thorne a segurou firme pelos ombros.

— Não! Não pode pensar assim. Eu encontrarei uma saída!

— Como?

— Amanhã quando a levarem daqui para trans­portá-la para a fo... — Thorne não conseguiu pronun­ciar a palavra. — Você estará a céu aberto. Será mais fácil. Só preciso descobrir a rota que tomarão e quantos guardas a acompanharão...

— Não. Eu estarei cercada, sabe disso. Não pode me salvar, Thorne. Não se arrisque. Saia da Inglaterra ago­ra, antes que eles o prendam também...

— Não pode achar que eu fugiria no meio da noite abandonando você aqui.

— Vá para o porto, pegue um barco. Não posso me salvar, mas você...

— Não! — ele exclamou e a silenciou com os dedos sobre os lábios quando ela tentou protestar. — Não, amor, não vou abandoná-la. — Beijou-a na testa.

— Há algo que você pode fazer por mim — ela disse baixinho. — Amanhã quando eles... Quando me amar­rarem e... — Ele tentou interrompê-la. — Thorne, por favor, deixe-me pedir isso. — Ele assentiu. — Sou uma covarde. Não quero morrer... queimada.

Thorne fechou os olhos e Martine sabia que ele pen­sava no destino da querida irmã.

— Não me deixe queimar, é só o que peço. Você pode fazer com que seja rápido. — Ele pareceu confuso ante aquelas palavras. — Com uma flecha.

— Oh, Martine... — ele lamentou ao entender.

— Por favor — ela implorou, segurando-o pelo rosto.

— Faça comigo o que fez com o veado na sala de armas de Harford. Mate-me antes que eu sinta as chamas. Será um ato de misericórdia.

— Isso não será preciso.

— Se for, prometa, por favor.

— Martine, eu te amo. Não posso...

— Se me ama, tenha piedade. Seja forte, por mim! Prometa que não me deixará morrer queimada.

Ele abaixou a cabeça e fechou os olhos, por fim sussurrou:

— Eu prometo — e acrescentou —, mas não será pre­ciso. Eu a salvarei. Gostaria de poder fazer algo antes, de tirá-la daqui.

— Você pode... — ela murmurou, deitando-se e levando-o junto consigo. — Por um instante, pelo menos. — Beijou-o demoradamente.

A princípio, Thorne pareceu surpreso, depois devol­veu o beijo com um gemido profundo. Ela se arqueou ao seu encontro e ele se afastou, dizendo rouco:

— Tem certeza de que é isso o que quer?

— Sim. Faça-me esquecer onde estou e todo o resto. Quero sentir só nós dois.

As mãos fortes moveram-se com suavidade, acariciando-a sobre a saia enquanto ele murmurava pala­vras de amor. Tirou a fita que amarrava os cabelos de Martine e os libertou. Despiram-se em silêncio, depois se deitaram de lado, os olhos fixos um no outro num silêncio carregado de significados. Os dedos de Thorne a tocaram no rosto, no pescoço, nos seios; os de Martine passearam pelos ombros largos, ela sentiu o coração pul­sar contra sua palma, o amor emanar dele, unindo-os.

Quando ela desceu a mão e acariciou intimamente, ele prendeu o fôlego. Martine se maravilhou em notar como o membro de Thorne crescia em suas mãos. Thorne também a acariciou e sorriu ao senti-la pronta para re­cebê-lo. Ainda de lado, pegou ajoelho dela, levantando-o até que a perna o circundasse pela cintura.

Segurou-a pelo quadril e entrou em seu calor num único movimento. Martine gemeu com a doce invasão. Ele saiu e voltou a entrar, capturando o segundo gemido com a boca... E o terceiro e o quarto... E todos que se seguiram. Moviam-se em perfeita sincronia, como um único ser. Rompendo o beijo, ele pediu:

— Olhe para mim — sussurrou rouco. — Por favor, amor, olhe para mim.

Martine o atendeu e viu os olhos azuis brilhantes e febris.

Ele está dentro de mim... É parte de mim...

Ela se retorceu perto do clímax chegando quase a gri­tar. Quando o prazer dela aumentou, Thorne a deitou de costas, segurando-a pelo quadril e penetrando fundo. As estocadas preenchiam não só o ventre de Martine, mas seu corpo inteiro, sua alma.

Perto do ápice, ela o agarrou pelos ombros, a cabeça inclinada para trás. Um soluço desesperado se formou em sua garganta, lágrimas quentes verteram de seus olhos. Thorne estremeceu.

— Eu te amo — ele arfou quando os dois chegaram ao topo, arfando e pronunciando palavras inarticuladas.

Quando as labaredas de prazer arrefeceram, Thorne se deixou cair sobre Martine, o rosto escondido na curva do pescoço delicado, molhando-a com suas pró­prias lágrimas. Os ombros fortes chacoalharam, mas ele não emitiu som algum.

Quando Thorne deixou a abadia naquela noite, se­guiu direto para o porto, largando a batina no caminho. Por baixo vestia uma túnica escura simples. O que era bom. Talvez assim ninguém o reconhecesse.

Deixar Martine naquela cela foi a pior coisa que teve de fazer na vida, porém o mais difícil ainda estava por vir. Tinha de salvá-la.

Tentou a maior taverna primeiro. Pediu uma cane­ca de cerveja e se recostou para avaliar os fregueses: a maioria era de pescadores, alguns marinheiros e um pu­nhado de malfeitores. Deixando a bebida intocada, pa­gou e saiu para a taverna vizinha. Ali havia o mesmo tipo de público. No oitavo estabelecimento já estava im­paciente e cada vez mais desanimado. Ali acabou beben­do a cerveja, engolindo-a em uma tragada só e pedindo nova caneca. Só restavam três ou quatro tavernas. O que faria ao chegar à ultima, recomeçaria ou seria melhor procurar nos bordéis? Talvez fosse melhor se embebedar, quebrar as mesas do bar, socar uns dois ou três que se colocassem em seu caminho...

Foi então que viu os dois marujos entrarem.

Obrigado, Deus, pensou ao se levantar e caminhar na direção da mesa deles. Ao se aproximar, viu que não o reconheceram. Cumprimentou-os em inglês e eles res­ponderam do mesmo modo, mas desconfiados. Thorne ergueu três dedos para a proprietária que se aproximou com três canecas.

— Obrigado, amigo — o maior disse, pegando a ca­neca. — Mas se deseja alguma coisa de nós, é melhor ir direto ao ponto.

Thorne deu de ombros e se sentou.

— Reconheci vocês do julgamento lady Falconer...

— Esteve lá? — o magrelo perguntou.

— Sim — Thorne assentiu. — Não achei muito bom o modo como foram tratados. Sinto muito por vocês...

O grandalhão arrotou.

— Eu sinto pela jovem baronesa que vai morrer amanhã.

O outro resmungou e concordou com um gesto de cabeça.

— Mas se ela é uma herege... — Thorne sugeriu com cautela.

— Nem um pouco. Ela não tem culpa do que a acusa­ram — o magrelo disse.

Thorne observou-os esvaziar as canecas.

— É mesmo? — disse e ergueu dois dedos, chamando a proprietária para mais duas canecas. Respirando fun­do, controlou seu tom de voz. — Por que diz isso?

 

— Está pronta, milady? — o guarda perguntou na en­trada da cela com uma corda na mão.

Como alguém pode estar pronto para queimar até morrer?

Em vez de formular essa pergunta, Martine só se le­vantou e estendeu as mãos.

— Nas costas hoje, milady — o homem anunciou encabulado.

Martine hesitou, mas obedeceu, cruzando as mãos às costas.

Outros guardas se aproximaram quando ela surgiu no corredor e, quando saiu da abadia, estava cercada. Mal havia amanhecido e muitas das pessoas que a aguardavam seguravam tochas. Os guardas a suspenderam na carroça, o xerife e seus homens puxaram o cortejo montados à frente, com mais outra dúzia na retaguarda. Alguns padres, inclusive Simon, a acompanhavam.

Apesar da hora, muitas pessoas tinham se levanta­do cedo para vê-la ser conduzida. Martine já esperava por isso. Em vez de gritarias e exaltações, comuns em execuções públicas, as pessoas mantiveram-se silencio­sas. Alguns ainda tentaram confortá-la, exclamando: "Que Deus a abençoe, lady Falconer!". Pelo visto o povo de Hastings não acreditava em sua culpa e mostrava-se chocado com a execução. Enforcamentos eram comuns, decapitação entre os nobres também. Mas a pira...

Não pense nisso, ela repetiu mentalmente. Talvez Thorne a salvasse; ele havia prometido a flecha da mise­ricórdia. Tinha de acreditar nessa promessa ou perderia a compostura.

Na periferia da cidade a estrada começava a subir. No alto de um morro, tinham erguido o pilar e a foguei­ra. Uma multidão estava agrupada, mas assim como as do caminho, as pessoas se mantiveram em silêncio. Com o coração pesado, Martine notou que Thorne não estava ali. Se ele não chegasse a tempo...

Não pense nisso!

Os guardas a, tiraram da carroça e a conduziram até a pira, as pessoas abrindo caminho para a sua passa­gem. Felda estava lá, soluçando, mas um guarda impe­diu sua aproximação. Frei Matthew surgiu em meio ao povo e quando um guarda tentou detê-lo, ele levantou um crucifixo de madeira. O guarda retrocedeu e permi­tiu a aproximação do monge.

O prior colocou o crucifixo nas mãos de Martine, bei­jou-a no rosto e sussurrou:

— Que Deus a acompanhe.

O xerife se postou diante da pira e leu o documento preparado pelo bispo no qual estava escrito que a Igreja a condenara à morte pelo crime de heresia e a tinha en­tregado às mãos das autoridades para a execução. Ele olhou de esguelha para Martine, parecendo triste, até mesmo arrependido. Ainda assim, fez um gesto para o carrasco que a pegou pelo braço e a colocou sobre um barril no meio da pira.

O carrasco passou uma corda pelo seu pescoço e a fir­mou contra o pilar. Ela não tinha pensado que ficaria tão amarrada. Não conseguia se mexer, tampouco engolir a bile que subia à boca.

— O pescoço não, por favor...

— Lamento, milady — ele sussurrou. — Só estou se­guindo as ordens de padre Simon. Desculpe.

Martine sentiu o coração acelerar e olhou ao redor.

Thorne, onde você está?

O homem passou a corda ao redor de seu corpo e Simon se aproximou, segurando uma tocha, ladeado por Bernard e Gyrth.

Martine fechou os olhos e procurou rezar.

O carrasco tentou tirar a tocha das mãos do padre, mas ele se esquivou.

— O bispo Lambert considera que seja mais adequa­do que o acendimento da pira seja feito pela vítima da feitiçaria. — E passou a tocha para Gyrth.

— E eu acho melhor a Igreja se manter afastada dos assuntos da justiça, padre — o xerife disse. — Lady Falconer não é mais responsabilidade do bispo e será executada como qualquer outra pessoa.

— A responsabilidade do bispo supera a de qualquer um. — O padre o enfrentou. — Ainda mais quando o as­sunto é a excomunhão, uma punição que ele não hesita em pronunciar quando é contrariado.

O xerife pareceu desgostoso. Martine sabia que ele não queria ter a autoridade questionada, mas também não apreciava a ameaça de excomunhão. O carrasco fa­cilitou as coisas ao dizer:

— Se me permite, xerife, acender essa pira é uma ta­refa que não me agrada. Deixe que os malditos façam o trabalho sujo, se é isso o que querem. — E enfatizou as palavras cuspindo no chão.

O xerife suspirou e deu um passo para trás.

Bernard sorriu maliciosamente para Martine e disse:

— Parece que chegou a hora. Vá em frente, Gyrth.

Sentindo o calor da tocha que se aproximava, Martine vasculhou a multidão com os olhos mais uma vez. Um movimento rápido chamou sua atenção. Alguém tinha subido na carroça.

Thorne!

Ele segurava um arco curto e tinha uma aljava de fle­chas às costas. Martine encontrou seus olhos e pronun­ciou: "por favor" silenciosamente com os lábios. Thorne pegou uma flecha e posicionou-a com determinação nos olhos. Quando ele mirou, ela fechou os olhos.

Será rápido. Graças a Thorne, não sofrerei.

O calor se aproximou e ela ouviu o sibilo da flecha no ar.

Gritos de surpresa emergiram da multidão. Levou um instante para ela notar que não tinha sido atingida, en­tão o desespero a assolou. Ele tinha errado! Mas como? Os gritos de alegria fizeram-na abrir os olhos. Gyrth ti­nha a boca aberta, as mãos vazias e olhava fixamente para algo atrás da pira. Bernard saiu de seu campo de visão, retornando em seguida com a tocha trespassada pela flecha.

— Gyrth! — gritou Thorne da carroça. — Exijo que fale!

— Isso é um absurdo! — padre Simon exclamou. — Ele é mudo.

— Não é, não. Fale, maldito! Gyrth ergueu o queixo em desafio.

Thorne chamou dois homens, que subiram ao seu lado. Eram os marujos que tinham testemunhado no julgamento.

— Estes são seus homens?

— O julgamento está encerrado e a sentença foi pro­ferida — disse o padre. — Xerife, eu ordeno que mande prender lorde Falconer e esses dois...

— Não tem autoridade para mandar em mim, padre — o xerife rebateu e se virou para Gyrth. — Responda. Esses são seus homens?

Gyrth assentiu.

— Eles alegam que você só deixou de falar no dia de seu testemunho. Levou dez meses para que a praga de minha esposa tenha surtido efeito? Responda!

Gyrth meneou a cabeça.

— Qual seria a punição por falso testemunho numa corte eclesiástica, em sua opinião? — Thorne inquiriu.

— Se eu provar que mentiu, e acredite, sou capaz disso, o que acha que farão com você? Cortarão sua língua? Talvez você seja amarrado a essa pira! Acredito que isso seja justiça!

Ainda assim, Gyrth permaneceu calado. Martine se surpreendeu que ele mantivesse a mentira mesmo com tais ameaças.

Firmando a voz, Martine murmurou:

— Eu gostaria de dizer uma coisa antes que você...

— Relanceou para a tocha e depois o encarou. — Acho que sei por que me odeia tanto, Gyrth. Uma parte talvez seja pelo fato de eu ser normanda. Meu marido é saxão e ele me disse muitas coisas... Ele me contou o que meu povo tem feito ao seu, por isso entendo um pouco seu ódio. — Olhou para Thorne que a incentivou a con­tinuar: — Mas também sei que há mais por trás dessa história. Durante a travessia, eu fui... arrogante e in­sensível. As coisas que eu disse e o modo como o tratei... Ridicularizei-o diante de seus homens. Isso foi imper­doável. Acreditava que suas crenças eram ignorantes e primitivas; meu marido, porém, me ensinou muito a respeito dos costumes do povo dele e hoje sei que eu fui a ignorante. Só quero dizer que lamento e que entendo... o motivo de estar fazendo isso. Eu o perdôo. Contudo eu lhe peço, do fundo do coração, que me perdoe também.

Ninguém disse nada. Gyrth, de cabeça baixa, tinha os punhos cerrados. Quando ele levantou a cabeça, os olhos estavam marejados.

— Que Deus me perdoe pelo que eu ia fazer. — Balançando a cabeça, disse: — Foi um erro. — Tirou umas moedas do bolso e as entregou a Bernard. — Estou lhe devolvendo seus seis xelins. Não quero seu dinheiro.

— Ele lhe pagou por seu falso testemunho? — Thorne perguntou.

— Sim, milorde. Que Deus me perdoe. — E se virou para se afastar.

— Bernard de Harford — o xerife anunciou —, eu o prendo em...

— Ainda não! — Bernard arrancou a flecha da tocha. — Vim até aqui para me divertir e isso ainda não acon­teceu. — Mirou a tocha para a saia de Martine. Ela sa­bia que pegaria fogo antes que alguém pudesse salvá-la. Rindo, ele se virou para Thorne. — Foi um belo truque, falcoeiro, mas acha que consegue acertar a tocha uma segunda vez?

Thorne apanhou uma flecha da aljava, mirou e atirou, tudo isso numa única respiração de Martine. A multidão festejou antes mesmo que ela entendesse o que tinha acontecido. Olhou para baixo e viu Bernard estendido no chão, com a flecha no peito.

— Acho que não — foi a resposta de Thorne. Bernard olhou furioso para Martine antes de dar seu último suspiro.

Martine sentiu-se tonta quando o sangue lhe fugiu da cabeça. Tudo ficou escuro e ela não sentiu mais nada...

 

Os sentidos voltaram na forma de um sussurro:

— Beba isto. Vamos, meu amor... — Ela sorveu um gole de vinho do odre que estava encostado em sua boca. — Muito bem.

O vinho era doce, porém os braços de Thorne ao seu redor, o calor do peito ao encontro de suas costas, e o om­bro sob sua cabeça, eram infinitamente mais doces. Ele a segurava nos braços, apoiado no tronco de uma árvore. Seu toque era tão quente, confortador e perfeito, que ela desejou nunca mais se soltar.

Viu a pira ao longe e as pessoas ainda reunidas, mas não as ouvia. Mal conseguia vê-las, ainda que o sol já tivesse nascido.

Isso é passado, pensou e recostou a cabeça no mari­do, respirando fundo a essência confortadora e familiar. Pressionou o ouvido no peito largo só para ouvir melhor as batidas fortes do amado coração. A cada batida, a dor e o medo que atormentaram sua alma se perdiam no passado. Fechou os olhos e ouviu o suave ruído da faixa de seda que se enrolava em torno deles, num laço aper­tado para todo o sempre.

Thorne a beijou nos cabelos, na têmpora, no rosto. Acarinhou-a com o nariz e murmurou:

— Acha que consegue andar?

— Provavelmente não... — Martine sorriu.

Ele a tomou nos braços e se levantou num movimento gracioso.

— Posso carregá-la nos braços até Blackburn se for preciso. Não consigo mais esperar. Vamos para casa.

Martine passou os braços pelo pescoço dele e fitou os olhos azuis da cor do céu.

— Sim, meu amor, eu adoraria isso. Me leve para casa.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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