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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BAIRRO DA ESTRELA POLAR / Francisco Moita Flores
O BAIRRO DA ESTRELA POLAR / Francisco Moita Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

UM ESTRANHO NINHO DE BANDIDOS
Quem subir ao ponto mais alto de Monsanto, em noite de lua nova, encontra uma pequena e discreta vereda de terra batida, debruada de belos pinheiros e cedros de aspecto sisudo, que desemboca num miradouro natural, rodeado por urze, donde o céu se revela no seu maior esplendor. As luzes da cidade embaciam o firmamento, mas dali, daquele ponto alto, solitário, a Estrada de Santiago vale o tamanho da sua beleza, feita de luzinhas intensas, que são o empedrado do céu, e as constelações assumem, vaidosas, a sua identidade própria. De entre elas, anima-se a mais cobiçada: a Ursa Menor pontuada na cauda pela Estrela Polar, sinal brilhante e exacto, farol de peregrinos, marinheiros e viajantes que cruzaram os caminhos que a vida construiu ao longo de todos os tempos do Tempo. Indica o norte e não encontrá-la significa desnorte, destinos transtornados, sonhos sem sentido, passos errantes sem fome de infinito, necessitados do instante, sem memória e incapazes de orientar o futuro. Por tudo isto, só o excesso poético explica o nome que deram à comunidade que cresceu na perpendicular daquele astro, sobre aquela colina mais afastada, que se vê para além do Lumiar. Chamam-lhe o bairro da Estrela Polar. O caminho para lá chegar é escarpado e a cintura de canaviais selvagens torna-o discreto, escondido das ruas e avenidas de maior trânsito. Quando termina a estrada de alcatrão é necessário atacar o caminho térreo pela encosta acima e, de súbito, surge um pequeno aglomerado de casas tão abraçadas entre si que mais parece um fortim. Em vez de muralhas, há uma densa moldura de pinheiros-bravos que protege o casario velho, desconchavado, telhados remendados com latão e janelas baixas, onde estão armados estendais de roupa pendurada, ressequida e velha. Esta rua, famosa porque nela nascem os remoinhos de poeira mais vigorosos de toda a cidade, desemboca num amplo largo, que é vigiado, dia e noite, por um cão vadio, já velho, tremendo de frio, que aproveita todas as nesgas de sol para se enroscar, dormitando mas sempre vigilante, de orelha fitada, guardião solitário do Estrela Polar.
Não existem censos precisos, mas julga-se que lá residerão perto de mil almas. Gente pobre, encarquilhada de rugas, memórias magoadas e cabelos brancos, que em tempos teve sonhos. Agora rendeu-se. Sobrevive de magras reformas e cochicha à porta da vizinha, sendo que os homens preferem frequentar o Águias, o café do largo, com uma esplanada, sombreada por uma enorme parreira, que possui um jogo de matraquilhos e dois de chinquilho. Desistiram quando lhes faltaram as forças ou foram despedidos. O Estrela Polar converteu-se, então, no último esconderijo para escapar à fome e reencontrar pedaços de vida que se evocam como se fossem presente, memórias de confiança, que aparentavam convicções sobre outros caminhos por andar. Porém, ali chegados, não se encontram mais trilhos. Tudo acaba no limite da rua que do largo sai em direcção a poente, e a morte, sentada para lá dos canaviais, vigia dia e noite, carregando aqueles que a fome e a droga consumiram até ao fim.

 


 


A nossa história começa aqui. Nesta ilha desconhecida, cercada pela cidade, onde sobe uma carrinha que distribui pão fresco, queques e bolas-de-berlim; dia sim, dia não, surge o peixeiro numa motorizada com uma caixa de carapaus ou de sardinhas por acompanhante e o carteiro precisa de boa perna para que a bicicleta vença a rampa antes de entregar cartas registadas com pensões e reformas. Mas não são os únicos a subir a colina. Todos os dias uma multidão de toxicodependentes vai como pode, lá acima, buscar a sua dose de cocaína, de heroína ou comprimidos para speedar. Vão em magotes.

Às vezes, são aos pares. Os mais ressacados sobem sozinhos, cambaleantes, precisados de pedrar antes que as dores e o delírio os vença e os deixe desfalecidos, estendidos, desejosos de qualquer sinal, mesmo que não seja feliz.

Logo à entrada do casario, onde existe uma rocha enorme por detrás da qual corre um esgoto fedorento a céu aberto, os janados podem satisfazer as necessidades. Vulgarmente é o Tosta Mista e o Necas que por ali andam no negócio. Tosta Mista é negro, da cabeça não lhe saem os headphones do iPod, e raramente fala. Necas é alto, um rapaz bonito, com cabelos e olhos de azeviche. A malta que sobe para comprar gosta mais do produto de um do que do outro. Não sabem que é todo igual. Assim como os panfletos e os drunfos que, já no largo, são passados pela Manuela e pelo Zé Cigano.

Às vezes há sarilho. É um negócio no qual se corre o risco de levar banhadas. A malta vem ressacada e ressequida, implora e suplica por uma dose com promessa de pagamento, o vendedor recusa-se a fiar, os ânimos exaltam-se e, quando acontece uma situação mais delicada, por milagre o grupo junta-se e escorraça a pontapé ou a tiro quem tenta ser desonesto. Todos os janados sabiam duas coisas sobre o funcionamento daquele mercado: ali não se fiava, aceitando-se apenas ouro ou dinheiro, e, por outro lado, a garantia de que fosse qual fosse o produto, do taco de haxe às moonrocks, não havia moscambilha nem droga marada. Primavam pela qualidade. Não se admire, pois, o leitor, se lá for, de que, apesar da miséria extrema do casario e da atmosfera fétida, ser o centro comercial mais procurado da cidade. A estes quatro putos devemos ainda juntar a Clara, que é a mais nova, com catorze anos, o Francisquinho e, a comandar esta matilha, o verdadeiro capataz que controlava compras e vendas. Era rijo apesar do ar escanzelado. Depois de se ter chamado Superman, rebaptizara-se com o nome de um herói mais actual. Agora respondia por Batman e fará vinte e seis anos pelo Natal, se nenhuma bala perdida o encontrar distraído. Acima dele só existe Diana, cuja autoridade e caprichos ninguém discute. É a deusa maior, discreta e bela. Um ano mais velha do que Batman. E tem fama de comandar destinos devido aos poderes fabulosos que acumulou ao longo dos anos, de contactos privilegiados com encomendadores de crimes e receptadores de fortunas imensas.

Diana transformou-se na chefe da quadrilha no dia em que matou o Bifanas com a sua própria pistola. Propriedade assim afirmada, é apenas forma de dizer. Bifanas roubara-a a um polícia, durante uma refeição descuidada de uma patrulha num restaurante em Odivelas. Diana recebeu-a como herança no momento em que o rapaz caiu para o lado com a bala que ela lhe enfiou no peito. Tinha a idade de Clara quando conquistou o ceptro e, com o correr dos anos, foi refinando a equipa, afastando viciados e linguarudos, apurando a raça, como costumava dizer, até chegar ao grau de perfeição e competência com que agora trabalhavam.

Temos de abandonar, por agora, esta descrição introdutória. É que o Dragão e a sua equipa de ladrões, gente destemida, conhecida pela brutalidade dos seus assaltos, acaba de passar em direcção ao Águias e ainda ninguém esqueceu a última vez que visitaram o Estrela Polar. O confronto dos dois bandos obrigara a carga policial e à presença de bombeiros para apagar os vários incêndios que deflagraram em redor do largo. Ainda hoje lá se encontram as marcas disfarçadas com tábuas toscamente pregadas e longos panos de plástico cobrindo antigos telhados que o fogo dizimara.

Francisquinho largou a cerveja que bebia quando viu o bando do Dragão a subir a rua em direcção ao largo. Entre dentes sussurrou a Necas e a Manuela, que estavam à sua frente:

– Não olhem para trás, mas vem aí o bandalho do Dragão com a sua tropa. Vai haver caldeirada, meu. Caldeirada e da grossa, meu.

– Avisa a Diana. Depressa! – pediu o Necas em surdina.

Sorrateiramente escapou-se na direcção oposta, encostado à parede para não ser visto, passou pela Clara e pelo Zé Cigano, que vendiam doses num alpendre, e avisou-os:

– Dêem de frosques. O Dragão está aí – os dois despediram rapidamente os janados e correram atrás de Francisquinho.

O bando vestia blusões de ganga carregados de pins a enfeitar, cabeças rapadas, e o chefe mostrava os braços tatuados. Eram seis. Todos mais velhos e encorpados do que Necas e Manuela, que, entretanto, pagavam apressadamente e punham o dono do Águias em choque.

– Toma cuidado. O Dragão está a chegar.

Bazófias, burlão e carteirista reformado, agora gerente do mais frequentado café do Estrela Polar, sentiu que os queixos lhe tremiam.

– Vai haver merda. Quando esses bandidos vêm aqui há sempre merda e eu lixo-me sempre porque bebem que se fartam e não pagam. Já viram a minha vida? Mas já viram a minha vida? – lamentava-se, enquanto, com a velocidade dos seus dedos treinados para sacar carteiras, escondia as melhores garrafas de uísque e brande que tinha em exposição.

Necas e Manuela saíram no momento em que, com grande algazarra, o grupo se sentava na esplanada, e Dragão, com passadas pesadas e camisa aberta, expunha o peito encardido de pelugem a Bazófias. Mascava insistentemente uma pastilha elástica.

– Ó caramelo, tens cerveja ou a espelunca está falida? – perguntou, autoritário. O dono do café voltou-se e, quando o viu, abriu-se num imenso sorriso:

– Olha quem ele é. O Dragão! Há quanto tempo não te punha os clises em cima. Tu não envelheces, pá. É que não envelheces mesmo. Quando estivemos juntos a cumprir pena em Vale dos Judeus andavas em baixo. Lembro-me bem. Mesmo em baixo, mas agora, tantos anos depois, parece que, em vez de envelheceres, recuaste na idade.

O bandido puxou-o pelos colarinhos e contra o balcão. Bazófias ficou com os pés no ar, aflito para respirar, com o outro a mascar pastilha elástica junto ao seu nariz.

– Perguntei-te se tinhas cerveja. Estou-me nas tintas para as tuas milongas e tretas sobre os velhos tempos. Não somos amigos. Nunca fomos amigos. Nunca seremos amigos. Odeio os tretas como tu. Ouviste? E agora, respondes-me: tens ou não tens cerveja?

– Claro, claro. Por amor de Deus, Dragão, pá. Nunca te fiz mal, até tenho admiração por ti, pá. Por amor de Deus!

– Cervejas. Há ou não há? – e apertou-lhe o pescoço com mais força.

– Quantas? – gemeu com voz rouca.

– Trazes seis e voltas logo a seguir com mais seis.

Quando o largou, Bazófias desequilibrou-se, indo estatelar-se contra as pipas de vinho tinto. Porém, rapidamente se recompôs, procurando as seis minis que tinham sido pedidas com a gentileza habitual do chefe dos Dragões da Brandoa. Um bando que impunha respeito, capaz de cometer golpes com tanta audácia e valentia que afugentaria uma manada de elefantes. Há muito que andava de olho naquele bairro. Diana dispunha de um grande negócio de pó, drunfos e comprimidos tão variados que corria, entre a malta do gardanho, estar rica de tanto vender. O Dragão queria ser mais rico do que ela, tomando conta do mercado feito de maços de notas, de sacos e saquetas de pó, onde o fisco não entra, não existem acções, nem cheques, nem prestações de contas, estas últimas a não ser pela força das armas, mercado esse tão livre que se esconde nos rios subterrâneos da economia, movimentando milhões de euros discretos.

Ao distribuir as cervejas pelas mesas, Bazófias foi motivo de gargalhada geral do grupo. As mãos tremiam-lhe tanto que as garrafas dançavam em cima da bandeja.

– Estás a tremer porquê? É tudo medo?

– O pintas está todo a abanar. Olhem só!

– É carteira. Quando era novo, trabalhava com as mãos nos bolsos dos man. É medroso por natureza. Tá no sangue.

A zombaria terminou no segundo a seguir quando se ouviu uma voz feminina que lhes falava do largo.

– Quando é preciso um grupo de seis vadios para gozarem com um homem de cinquenta anos, fica bem claro onde mora a vossa coragem. Talvez no olho do cu.

Dragão voltou-se, sem se levantar da cadeira, e olhou-a com um sorriso de escárnio.

– Olha, a Diana. Continuas boa como o milho.

– É possível, mas, como não gostas de milho, dispenso o cumprimento. Já te disse que não te quero aqui, muito menos com essa corja de porcalhões com quem estás. Paga as cervejas e desanda.

O Dragão soltou uma gargalhada bem-disposta e voltou-se para os seus homens:

– Estão a ouvir a chavala? Buuuuuh, que medo!

As gargalhadas replicaram-se e, de súbito, emudeceram. Diana apontava-lhes uma pistola com mão firme.

– Conheces-me, Dragão. A esta distância meto uma bala no meio da testa de qualquer um. Paga as cervejas e sai daqui.

O bandido mudou de atitude. Estava a ser humilhado à frente dos restantes dragões e a cólera arrebatou-o, fazendo com que atirasse com a cadeira para longe.

– Ouve lá, ó minha grande puta...

Não teve tempo para dizer mais nada. Diana disparou e o Dragão tombou, uivando, abraçado à perna. Voltou-se para outro, com cara de macaco, orelhas carregadas de brincos, e que levava a mão ao cinto, e tornou a disparar. Desamparado caiu com fragor sobre o Dragão, contorcendo-se e gritando dores, enquanto o sangue lhe manchava a perna. Depois, ela passeou a mira da pistola pelo peito dos restantes.

– Pagam as cervejas e desaparecem daqui ou preciso de continuar? Agora não disparo para as pernas.

O mais jovem do grupo, que transpirava abundantemente da cabeça rapada, balbuciou quase a chorar:

– Eu pago, eu pago e vamos já embora. Não dispare pela sua rica saúde.

Atirou uma nota para cima da mesa e o grupo precipitou-se sobre os feridos, ajudando-os a fugir. Não conseguiu deixar de sorrir quando os viu trôpegos do esforço para arrastarem o Dragão e o outro, que gritava desesperadamente, sempre de olhos postos nela, tão assustados como cães em dia de fogo-de-artifício.

Algumas pessoas que, no largo, observaram a cena, respiraram de alívio e saudaram Diana com acenos e sorrisos cúmplices. Guardou a pistola e gritou para o interior do café:

– Bazófias, já podes sair. Deixaram-te vinte euros e não beberam as cervejas. Salvei-te o negócio.

O homem espreitou, ainda com medo.

– Foram-se mesmo embora? – e depois espantado perguntou-lhe: – Como conseguiste sozinha? Ouvi os tiros e pensei que te tinham matado, afinal, foste tu que... és do cacete. És mesmo uma mulher do catano, pá!

– Guarda o teu dinheirinho. Tão cedo não voltam aqui.

– Salvaste-me. Ouve o que eu te digo, tu salvaste-me. Tens de mim o que quiseres. Tudo.

Parou de falar e, de repente, sorriu, velhaco, e rematou:

– Bem, quase tudo, senão a minha Almerinda corria comigo.

Riram os dois, bem-dispostos. Era uma mulher bonita. Alta, de formas esbeltas, e o busto rijo, arredondado, forçando os botões da camisa. Os olhos pareciam duas avelãs esverdeadas e, quando sorria, o rosto iluminava-se. Vestia calças de ganga, que lhe realçavam as formas das pernas bem torneadas, e no cabelo castanho, doirado, uma fita verde acentuava o seu aspecto jovial. Tão perfeita que mais parecia uma personagem de um conto de fadas despropositadamente caída no meio daquele casario arruinado e apodrecido.

– Sabes como me deves pagar – respondeu. – Como tens pago sempre. Com lealdade.

Era respeitada pela audácia. Uma cabeça capaz de pensar e planear um assalto de grande risco, transformando-o num gesto simples. E pela dedicação à gente do Estrela Polar, que a conhecia desde menina, capitaneando, nesse tempo, um bando de meninos ladrões. Crescera na rua desde que o pai se suicidara e a mãe acabara por desistir de viver, precocemente arruinada por um cancro que lhe abrasou as entranhas. Diana era irmã intensa de cada pedra, cada rua e cada rosto, todos os sinais de tristeza e qualquer sinal de pranto, pois sabia ler nos olhos, coisa sobrenatural, diziam alguns, que a menina desenvolvera depois da brutal perda dos pais. Embora aparecesse pouco em público, reservada, deixava o caminho aberto à imaginação da curiosidade popular que a endeusava. Sabia tudo o que ali se passava. Discretamente montara uma rede de miúdos pagos com chupa-chupas, berlindes, bolos e visitas ao Kingburguer de Benfica, que viviam em alerta vadio, radares em torno da colina, vigiando a polícia e inimigos.

Francisquinho estava de regresso. A matilha recolhera à casa abandonada nas traseiras do Águias, um enorme casarão de paredes rombas, vidros partidos e um telhado que não resistira aos temporais, com enormes rasgões por onde entrava claridade. Era o quartel-general dos ladrões devido ao labirinto de salas e corredores penumbrosos. O rapaz vinha entusiasmado e, quando assim era a sua disposição, não conseguia falar sem gesticular e saltar, numa euforia desabrida.

– Levaram para contar, man. Iam todos rotos pela estrada abaixo e o Dragão com o milengue nas lonas. Marchavam na ganga da moina e berravam uns com os outros. Foi de mais, man. Dá gosto vê-los a ganir. Melhor só um bófia com as tripas ao sol. Levaram para contar mesmo.

– A nossa gente onde está? – quis saber Diana.

– Tudo recuado. Demos o sinal e o maralhal abafou o pó e os drunfos antes que o Dragão se lembrasse de ir gamar. Mas aviaste o pintas. Marchava com a pata no ar, minha. Assim, aos saltinhos, até parecia aqui o je quando está nervoso.

Diana não fez qualquer comentário e afastou-se tranquilamente como se não tivesse acabado de balear dois homens. Era-lhe indiferente. Nenhuma testemunha deporia contra ela e o Dragão iria curar as feridas bem longe de qualquer esquadra ou de pensar em queixar-se. Sabia que, se entrasse numa delas como ofendido, dificilmente sairia de lá sem responder a todos os pecados que cometera com o seu gangue por essa cidade dentro. Bazófias, de braços cruzados, observou durante algum tempo Diana a caminhar e exclamou:

– Abençoada criatura! Sozinha deu conta de seis camelos.

O prato forte de Francisquinho, quando não vendia droga ou não roubava, era picar o carteirista reformado.

– Sozinha, meu. E já se comenta por aí que te meteste debaixo de uma mesa, borradinho até aos sapatos, com medo dos men. Não tens vergonha?

Bazófias, senhor de si e orgulhoso das suas viris virtudes, caía sempre no engodo, berrando inocências.

– Debaixo de uma mesa, eu? Quem anda a dizer isso, pá? Rebento o gajo que ande a mandar faroladas a meu respeito. Juro que o rebento. Eu tenho lá medo do Dragão e da corja dele. Medo, zero! Nem tive tempo de servir as minis, pá. Estava a pôr as garrafas nas mesas e aparece a Diana, armada em John Wayne, distribuindo balas nos presuntos deles. Estava ali mesmo. Vi tudo. Só vim para dentro quando os pintas começaram a cair e eu convenci-me de que ela ia despachá-los todos. Afastei-me, é verdade, mas não fugi. Sabia lá se, no meio da confusão, a Diana não se enganava a contar e também me servia um balázio no espinhaço. Faço parte do grupo dos bons, pá. Sou dos vossos. Não mereço um balázio no presunto. Mas debaixo da mesa, nunca!

– Levaram para tabaco. Passa aí uma mini para celebrar, meu – pediu o rapaz.

Francisquinho era chefe de família desde os treze anos. O pai começara nesse tempo a viver numa cadeira de rodas, paralisado, pernas encarquilhadas e inutilizadas. A mãe desempregara-se e era o resto do corpo do marido. Nos dias em que sobrava tempo, ia ao papel pelos contentores do lixo. Diana tivera compaixão da família, desvalida perante a desgraça que lhe entrara em casa, e achara graça à vivacidade do rapaz. Deu-lhe uma carreira e, desde então, já ia para cinco anos, tornou-se no mais dedicado passador de pó, um ladrão competente e um puto sério. Todo o dinheiro que arrecadava era passado religiosamente para as mãos de sua mãe, que, depois de contar todos os trocos e dividir por despesas, lhe entregava a mesada. Chamava-se Francisquinho porque, quando começou a roubar, o nome próprio era demasiado adulto para o tamanho. Depois, foi crescendo, surgiram-lhe os primeiros pêlos de barba no rosto bolachudo, simpático, que ria e se remexia como se os nervos fossem uma máquina trepidante que lhe sacudiam o corpo. E o cabelo, louro esbranquiçado, enrolado em caracóis, agitava-se em cada gargalhada com que gozava com Bazófias ou nos balanços de assaltos bem-sucedidos. Francisquinho era um prodigioso aviário de ideias. Adorava roubar e discutir política. Repetia amiudadamente a ideia de que, se não fosse ladrão, gostaria de ser político, embora preferisse andar de sapatilhas e calças de ganga, como aquelas que usava e gamara numa loja da Baixa, do que vestir fato e gravata. Aliás, era sua convicção de que o país chegara à miséria onde se instalara por andar engravatado.

Diana chegou a casa e Nicha, sua companheira desde os primeiros dias de rua e agora uma espécie de governanta que cuidava da roupa e da cozinha, apenas reforçando a quadrilha em horas de maior aflição, perguntou-lhe, ansiosa:

– Não te fizeram mal? Esse Dragão é um bandido. Quer roubar-nos o Estrela Polar. Há muito tempo que deveria ter morrido.

– Um dia. Hoje não estava no sítio certo e não dá jeito termos por aqui a bófia a cheirar cadáveres. Chegará o seu dia. Era o que faltava, um bando de valdevinos levar-nos o que tanto custou a ganhar. Ele não vai desistir. No fundo, não passa de um cobardolas, que para se armar em homem tem de se embebedar. Aliás, coisa muito normal entre os bêbados que andam à nossa volta. Um bando de cobardes que mata e espanca quando se encharcam de vinho. Não prestam. Foram cobardes assim que destruíram a minha vida quando deram cabo da minha família – concluiu Diana com desprezo.

Um dia, já há uns anos, num impulso de fé tivera necessidade de se confessar ao padre Ganhão, o simpático sacerdote que cuidava da paróquia a que pertencia o Estrela Polar. Não lhe contou metade do seu passado. Nem a impetuosa necessidade de se confessar, coisa que nunca tinha experimentado, mas resultava da urgência de falar, de soltar nas palavras os tormentos e negritudes de que eram feitos os seus pesadelos. Por vezes, passava noites em vigília, lutando com monstros disformes, alucinações extraordinárias, onde a morte tinha rosto e lhe sorria, como se a seduzisse, para dela ser instrumento, decidindo vidas e destinos conforme as vontades de serva e senhora. Entrou na casa de Deus para falar de ódio. Contra os homens que haviam despedido o pai, fechando-lhe caminhos de esperança que o haveriam de conduzir ao suicídio, impotente e vencido, esvaído de forças, de tanto lutar contra a adversidade. Fora Diana quem o encontrara pendurado de uma viga do quarto, olhos esbugalhados, língua de fora, azul, inchada, careta medonha que lhe ficara retida na memória, fotografia epigrafada que persistia em se mostrar em cada hora da sua vida. Nesse dia, ainda menina, jurara a morte de quem o matara. Que, como ele poderia ver, andava sempre armada, não fosse dar-se o caso de os descobrir por acaso e não estar preparada para executar a sentença. Jurara com tanta força e tanta fome de morte que nunca mais se libertara dessa necessidade que comandava todos os passos da sua vida. Cada assalto, cada panfleto de coca, cada arrombamento, era um passo desta jurada vingança contra a injustiça dos soberbos. Confessou ela que só não acontecera ainda porque lhes perdera o rasto, embora nunca a tivesse abandonado a vontade de os encontrar, e que estava ali para pedir a Deus que a ajudasse nessa faina, descobrindo-os, para lhes pôr termo definitivo, pois não é filho d’Ele quem tanta desumanidade semeia, destruindo quem trabalha, sem poder nem ambição que não seja trabalhar, feliz com as migalhas que lhe matam a fome. E porque sentia que a sua dor era a de todas as pessoas simples com sonhos desfeitos, pedia-lhe a absolvição dos pecados.

O padre levou tempo a reagir à extraordinária confissão e, por fim, quando ganhou alento, respondeu:

– Minha filha, depois do que me contou, não posso abençoá-la. Deus não cauciona assassínios.

– É um acto de justiça! – gritou, desvairada, e duas velhas, que rezavam, olharam, surpreendidas, para o confessionário.

– Não matarás. Foi a ordem que nos foi dada por Ele.

Ficou em silêncio à espera da resposta dela. Ouvira falar das aventuras clandestinas que Diana dirigia, mas sempre dera desconto à coscuvilhice. Até tinha boa impressão da rapariga. Sempre pronta a ajudar no centro social da paróquia, visitava os doentes, sabia que ela repartia com os mais necessitados e conhecia o profundo afecto que as pessoas nutriam por ela. Jamais lhe passara pela cabeça que aquela cara de anjo – podia ser modelo para o rosto de uma das imagens dos santos que ladeavam a nave central da igreja – escondesse tão terríveis segredos.

– Você já pensou em falar com um médico?– perguntou a medo.

Diana ficou surpresa com a pergunta.

– Um médico, porquê? Não estou doente.

– Não sei, minha filha. Já li sobre casos de pessoas, e até vi filmes, que são mais do que uma no mesmo corpo. Gente que faz coisas horríveis e, de repente, pratica actos muito do agrado de Deus Nosso Senhor. Conheço-a há tanto tempo a fazer coisas tão bonitas pelos outros que esta confissão me deixou perplexo.

Ficou silenciosa. Mordia nervosamente o lábio e o olhar estava preso no crucifixo que adornava o altar. Por fim, respondeu-lhe com amargura:

– Nem o senhor percebe como é velha a minha solidão. Ninguém perceberá. Nenhum médico me pode curar. Não existem comprimidos para este mal.

O tempo passou. A matilha de ladrões ganhou experiência e amadureceu. Agora comandava os destinos do Estrela Polar e dos milhares de janados que a procuravam suplicando a dose. Nem a fúria policial que, por vezes, assolava as ruas e o largo, verdadeira tempestade de sopapos, gritos, prisões efémeras e pedidos de identificação, conseguia pôr termo ao crescente domínio do grupo e ao prazer de decidir destinos como se das suas próprias vidas se tratasse.

O projecto de vingança de Diana contra aqueles que considerava os carrascos do seu pai caíra-lhe nas mãos por um mero acaso, como se Deus, não ligando aos conselhos do bom padre, tivesse escutado as suas preces. Um Deus que falava com os ladrões e ignorava os seus representantes na Terra.

Certa noite, fizeram um serviço para as bandas do Beato. Um enorme armazém atulhado de electrodomésticos fora o alvo. Batman tratara do transporte e, em menos de quinze minutos, encheram a carrinha de televisores e frigoríficos. As coisas até chegaram a azedar porque na hora de carregar, Francisquinho dirigiu a sua atenção para um monte de livros que estava arrumado a um canto, folheando-os a eito.

Zé Cigano, que ajudava Necas a levar uma enorme arca congeladora, quebrou o protocolo de silêncio e berrou furioso:

– Vieste estudar, foi? Um tipo aqui a alombar e tu armado ao pingarelho?

– O que é, meu? Qual é o teu problema? É proibido ler livros, é?

– Porra, pá, estamos a alombar com a chausa e tu numa de intelectual. Isto pesa.

O Necas gozou com a situação.

– O Francisquinho quando for grande vai ser intelectual.

– Quando for grande quero ser um bom gatuno, meu. Um profissional. Não é como certos tarantas que conheço que não podem gamar para além do normal porque são ignorantes. Quando for grande quero ser como o Arséne Lupin. Já ouviste falar, Zé? O Arséne Lupin. Claro que não ouviste. És uma abécula, meu. Serás sempre ladrão de cantantes e de esticão.

– Deixa-te de tretas e carrega o televisor– ordenou o Batman.

– Eu carrego, mas vou levar os livros. Há aqui coisas que até o Bazófias vai gostar. Sabes quem são os impressionistas, meu?

– Sei lá. Devem ser chantras que gostam de dar boa impressão – respondeu o cigano, enquanto ajudava Diana a fechar as portas da viatura, Francisquinho soltou uma gargalhada.

– É o que eu digo, meu. Nunca serás o Arséne Lupin. São pintores, man. Pintores. Um quadro desses camones vale mais dinheiro do que dez carrinhas como esta carregadas de monos. Um quadrinho, meu.

– Chega de conversas. O serviço acabou – disse Diana.

Esconderam a carrinha na velha garagem onde o Necas trabalhava num antigo Datsun, reparação infinita que prometia terminar quando a ferrugem tivesse vencido a batalha contra a pintura. No dia seguinte, iam levar o material ao intruja que comprava por atacado. Francisquinho retirou os livros, que ficaram pelo chão, à espera de um novo impulso cultural do rapaz. Coisa que ficou adiada, porque outros entusiasmos se apoderaram dele.

Foi Necas que uma tarde, depois de algumas horas em volta do sistema eléctrico do carro, passou os olhos pelos livros, e um deles chamou-lhe a atenção. Não era igual aos outros. Estava fechado numa caixa de papelão com um rótulo que dizia: Ferral. O nome não lhe era estranho. Já o ouvira ou vira em qualquer sítio. Começou a passar lentamente as páginas. Eram actas de reuniões e deu-lhe um baque. Lembrara-se subitamente de quem era aquele nome. Fechou-o e correu a casa de Diana.

– Tenho uma coisa para ti que procuras há muito tempo – disse-lhe.

– O que é?

– É um livro com as actas da empresa onde o teu pai trabalhava.

Sufocou um grito de surpresa. Não conseguia acreditar.

– Mas a fábrica fechou há muito tempo. Onde encontraste isto? – e folheava-o como se passasse as mãos por um livro sagrado.

– Veio no maço de livros que o Francisquinho gamou naquela noite em que sonhava ser um ladrão famoso. Estão aí os nomes dos homens que procuras.

Diana abraçou-o com ímpeto cobrindo-lhe o rosto de beijos.

– Necas, és o rapaz mais lindo que existe à face da Terra!

Respondeu-lhe com um largo sorriso:

– Eu sei, eu sei – fez uma saudação e regressou à oficina.

Diana fechou a porta à chave. Gritou para Nicha:

– Não quero que ninguém me incomode até eu dizer – e trancou-se no quarto.

Durante dois dias não deu sinal de vida. Apenas ia à cozinha buscar iogurte e bolachas e tornava a encerrar-se, lendo devagar, tirando apontamentos, voltando a ler. Quando estava cansada, caía na cama e dormia um punhado de horas, para regressar à leitura daquelas letras miudinhas que iam assinalando a vida da empresa. A loucura de Francisquinho ao gamar livros que nunca iria ler foram o primeiro grande passo do caminho que a sua obsessão lhe traçara e que Diana, tão precocemente, jurara seguir. Aquele enorme livro de actas haveria de dizer-lhe quem eram os homens que despedaçaram a vida do pai, destruindo a sua própria vida. O segundo passo era encontrá-los e lembrou-se do Gusmão, velho burlão que deixara a vida dos pobres e vivia entre a aristocracia mais fina de Lisboa. Conseguira realizar o sonho de Francisquinho e tornara-se num Arséne Lupin. E pela primeira vez, ao fim de catorze anos, dormiu de uma só vez e sem um único pesadelo.


2
A RUSGA E BAZÓFIAS AFLITO

Os carros da polícia encostaram sorrateiramente nas ruas da entrada do largo. Discretos. Vinham atulhados de agentes taciturnos, que se mantiveram nos lugares. Parados e atentos na mesma posição dos perdigueiros quando avistam caça. Esperavam as carrinhas que haveriam de carregar aqueles que a rusga entendesse. Uma operação deste tipo tinha sempre um objectivo especial. Desta vez, procuravam uma traficante de droga que se evadira do tribunal, durante o seu próprio julgamento, deixando juízes e pasmas de boca aberta e sem perceberem como tinham sido ludibriados, com as televisões a gozarem o prato em directo. A reacção foi um conjunto de rusgas para encontrar a foragida, da qual não sabiam paradeiro. Espalharam-se em grupos pelos cantos mais sinistros da cidade, tacteando possibilidades de uma prisão rápida, e o Estrela Polar foi um dos alvos escolhidos. Era bem conhecido e uma das dores de cabeça que a bófia arrastava, por saber Diana e o seu bando à solta, sem ponta por onde se lhes pudesse pegar para os enfiar a todos na prisão. Talvez nesse dia tivessem sorte, admitiu o oficial que coordenava as operações de captura da evadida. As rusgas eram sempre lotarias. A polícia lançava a rede como se fosse uma pescaria. Quem caísse nas malhas e tivesse algum assunto pendente com a justiça ia na leva, além de que era um pretexto para entrar de surpresa na casa de Diana, descobrir algum indício de um outro qualquer crime e, por aí, puxarem o cordel que a amarraria de vez. O inspetor Augusto olhou o relógio e fez um gesto de irritação.

– As carrinhas estão atrasadas e, se continuarmos aqui, não faltará muito para que comece o passa-palavra. Não ficará nem um bandido à nossa espera. Será que já ninguém sabe cumprir horários?

O seu colega Carlos sorriu. A impaciência do outro era conhecida de todos. Pêlo na venta e sempre pronto a um bom confronto com bandidos, e refreou-lhe os ânimos.

– Não foram eles que se atrasaram. Nós é que chegámos antes da hora marcada.

Conforme o dia despertava, a vida crescia no largo do Estrela Polar. Homens e mulheres que ainda tinham trabalho, apressados a caminho dos autocarros e dos empregos e o cão vadio espreguiçava-se, depois de uma noite de sono. Cheirava comida nos enormes montões de lixo em torno de contentores que adornavam as entradas do terreiro, indiferente ao cerco policial.

O inspetor tornou a olhar o relógio. Eram quase sete horas. As carrinhas deviam estar a chegar. Àquela hora, o único estabelecimento aberto era o Águias.

Augusto conhecia os hábitos e as manhas de Bazófias. Às seis da manhã escancarava as portas, arrecadando os trocos dos cafés e bagaços da madrugada – o mata-bicho – de quem disfarçava a fome aquecendo o estômago, e, por outro lado, servia os gatunos que, depois de uma noite de copos ou de assaltos, recolhiam a casa. Os polícias reconheceram na esplanada do Águias três bandidos e o Bazófias, já alerta, estudando as viaturas da polícia. Augusto comentou:

– O Bazófias já nos topou. Daqui por dez minutos todo o bairro vai saber da rusga.

– Daqui por dez minutos já estamos a trabalhar. Tem calma! – serenou-o Carlos, e acrescentou: – O Bazófias não pode saber quem nós procuramos e, se for apertado, vai abrir-se sobre o pintas que ontem andou aqui aos tiros e lixou a pata do Dragão.

– Quem chibou o caso não disse nomes?

– Não. Nem se identificou. Mas deve ser verdade porque a nossa malta da Brandoa dá o Dragão e o grupinho de piratas que o segue como desaparecido da circulação.

Os inspectores enganavam-se. O velho carteirista conhecia todos os sinais da polícia e não falhava nenhuma notícia sobre crimes e criminosos e, por isso, ditava instruções aos clientes, como se estivesse a falar de banalidades.

– Não olhem. Façam de conta que estão distraídos, mas isto vai ser duro.

Francisquinho trincou a torrada e perguntou:

– Distraído, porquê? Estou cheio de sono, não sei fazer esse papel.

– Come e escuta-me! – ordenou entre dentes, em tom ameaçador.

Tosta Mista e Necas olharam surpreendidos para Bazófias, que esfregava o tampo de uma das mesas da esplanada.

– Estamos cercados pela chibaria. Andam à procura de uma traficante de droga. Fugiu do tribunal. A televisão tem falado toda a manhã do caso. Estão quatro carros, vinte e tal pasmas prontos a atacar o bairro.

Francisco exaltou-se. Engoliu a torrada e voltou-se para Necas:

– É bófia a mais, meu. Isto é bófia a mais! E se déssemos corda aos sapatos, meu?

Necas hesitou e respondeu, descontraído:

– Andam à procura da mulher, não se interessam por nós – de repente estremeceu e perguntou com inquietação ao Bazófias: – Será que vieram por causa do tratamento que o Dragão levou?

– Filho, estas mulas quando vêm para as rusgas querem tudo. Aquilo que sabem, aquilo que ouviram dizer e ainda aquilo de que desconfiam. É aguentar a pé firme e apostar tudo que andam a procurar a tal traficante.

Porém, Tosta Mista nem o ouviu. Levantou-se rápido, apertou o blusão e decidiu:

– Vou dar de frosques. Diz à malta que não apareço hoje.

Necas chamou-o com firmeza:

– Não faças disparates. Fica aqui.

– Não. A mim não me agarram.

Tosta Mista afastou-se, apressado, enfiando-se pela ruela que fazia esquina com o café. Bazófias comentou com desprezo.

– O Tosta Mista está acagaçado.

– É pirado! – respondeu Necas, encolhendo os ombros, e o carteirista resmungou.

– É bruto. Outro dia meteu-se com a minha Almerinda que... enfim... Não sei bem onde isto vai acabar. Ou é ele ou eu. Dois galos no mesmo poleiro não dá.

– Meteu-se, como? Tu tens a mania de que toda a gente se mete com a tua Almerinda. Diz lá, meteu-se como, meu? Apalpou-a? Beijou-a?

– Se fosse isso, havia mortes. Estavam aos segredinhos no balcão. Fiquei de olho nele.

– Não sejas parvo, meu. És um ciumento de merda. Falavam baixo, queres tu dizer. Nessa cabeçorra cheia de ciumeira são logo segredinhos e coisas de cama. És uma nódoa, meu. Nem sei como a Almerinda atura um emplastro do teu tamanho.

– Eu é que sei – resmungou o outro, roído por desconfianças que nem sabia bem explicar donde nasciam para lhe atormentar a cabeça.

Francisquinho ia fazer mais um comentário sobre o sinistro desaguisado entre Tosta Mista e Bazófias por causa da mulher quando tudo se precipitou. A conversa distraíra-os e a polícia avançou, rápida, pelo largo, trancando saídas e entradas, ao mesmo tempo que abordava quem passava, pedindo documentos, e batia às portas das residências, cumprindo mandados de busca, levantando o alvoroço a quem ainda dormia.

O sobressalto dos primeiros gritos de protesto fez surgir Almerinda à porta do café. Olhou a agitação no largo e perguntou, curiosa:

– É a bófia? Quem vão levar?

Necas brincou:

– Se eles fossem espertos, com esse par de pernas ao léu, só te levavam a ti.

– És um estúpido. Visto-me como quiser.

Bazófias olhou para ela a contragosto. A rapariga, com o vestido curto e decotado, que mostrava generosamente as pernas bem torneadas e as mamas redondas e rijas, parecia um belo manequim enxertado na imundície da esplanada.

– Vai para dentro – ralhou Bazófias, despeitado. – Isso não são preparos para te apresentares às pessoas. Sobretudo a certo tipo de pessoas! – acrescentou com azedume irónico.

A discussão foi interrompida por um polícia que se dirigiu à esplanada e, autoritário, interpelou Almerinda:

– Ei, a senhora aí!

– Quem? Ela? – interrogou Bazófias, surpreendido.

– Eu? – perguntou Almerinda, enquanto compunha um sorriso e passava a mão pelo cabelo.

– Sim, a senhora. A sua identificação...!

Bazófias, indignado, afrontou-o.

– É a minha mulher, senhor guarda. Pela sua rica saúde!

O polícia era jovem, bem-parecido. Olhou o taberneiro de alto a baixo, avaliando-lhe a decrepitude, e, surpreendido, não se conteve. A pergunta escapou-se-lhe:

– Sua mulher? Isto?

Bazófias perdeu a cabeça. A desconfiança sarcástica do polícia picou-lhe o amor-próprio e desatou aos berros:

– Isto? Isto é a minha Almerinda. Ou acha que não sou homem para ela? Ou acha que agora é proibido gostar de mulheres?!

Almerinda acudiu:

– Ernestinho, olha o teu coração. Eu vou buscar a minha identificação, senhor guarda. É só ir lá dentro, não demoro, não demoro.

Porém, o comandante do Águias estava de cabeça perdida e gritou, ciumento:

– Não vais nada. Ele estava a olhar para as tuas pernas. Quer lá saber da tua identificação...

O jovem polícia cambaleou, desorientado com a investida, e tentou desculpar-se.

– O senhor está louco. Eu não olhei...

Bazófias contra-atacou, ainda mais indignado:

– Olhou, que eu vi! Agora estou proibido de ter mulher? Foge, Almerinda!! Aquelas pernas pertencem-me, ouviu? Foge, Almerinda!

A rapariga, colhida de surpresa pela rebelião de Bazófias, perguntou, desnorteada:

– Fujo? Mas porquê? Eu não fiz mal a ninguém.

Ao que Bazófias respondeu, agressivo:

– Porque este cavalheiro não é polícia. É um comilão.

Entretanto, a algazarra chamou a atenção de outro guarda, que se aproximou rapidamente do Águias. Ia intervir quando o interlocutor de Bazófias decretou:

– O senhor está preso! – e, acto contínuo, agarrou-o pelo braço, procurando as algemas com a outra mão.

Bazófias, transtornado, ainda tentou reagir, mas era tarde. O segundo polícia já o dominava. Ainda berrou:

– Largue-me. O senhor não me toca, está a ouvir? Eu não lhe fiz mal nenhum. Foge, Almerinda, ele quer mas é comer-te!

O guarda estava indignado e apertou as algemas com força.

– Eu? O senhor é doido – e, dirigindo-se à rapariga, ordenou em voz firme: – Mostre-me a identificação imediatamente ou também vai presa!

Almerinda correu para o interior do café.

– Eu vou buscar. Vou buscar. Faço tudo o que o senhor mandar.

O polícia voltou-se finalmente para os dois rapazes e interpelou o Necas:

– Importa-se de ser minha testemunha? Ele insultou a autoridade.

Necas olhou-o com indiferença e respondeu:

– O Bazófias? Eu não vi nada.

Francisquinho aproveitou a deixa e, curvando o corpo num gesto de submissão, acrescentou:

– Nem eu. Nem eu. Não leve a mal, estava distraído a ver aquele seu colega a malhar na Sónia. Já lhe deu quatro ou cinco bordoadas valentes, mas ela não se cala.

E Francisquinho apontava para outra zona do largo, onde um polícia empurrava à força uma prostituta para a ramona, sem conseguir que a mulher parasse de protestar.

A tensão abrandou graças ao regresso de Almerinda, que trazia o cartão de cidadão, um sorriso sedutor e, reparou o Necas, o decote mais aberto. Entregou-o ao agente.

– Aqui está. Não quer mais nada de mim...?

A pergunta era insinuante, mas o homem fez que não percebeu. Olhou o documento de identificação, depois comparou-a com a fotografia e perguntou:

– A senhora vive aqui?

– O café é nosso. Não quer tomar qualquer coisinha? Eu ofereço. O senhor guarda é tão bem-parecido...

– Não quero nada, obrigado – respondeu serenamente, começando a afastar-se.

Porém, Almerinda, rapariga sabida, investiu com doçura sensual:

– Se vão levar o meu Ernestinho preso, como me governo? Diga-me. Por favor, venha cá. Oiça...

O polícia já não a ouvia. Afastava-se na direcção de outra mulher, pedindo-lhe a identificação, enquanto Bazófias desapareceu, levado para uma das carrinhas da polícia. Francisquinho, tremendo, perguntou a Necas:

– O que fazemos?

– Está quietinho. Eles procuram uma mulher. Deve ser aquela que fugiu do tribunal – respondeu entre dentes.

– Quem te disse?

– Não tás a ver? Pediram a identificação a todas as mulheres que passam e não nos ligaram nenhuma.

– Mas levaram o Ernestinho! – protestou Almerinda, desesperada.

– Porque o teu Ernestinho é parvo. Só o Bazófias é que faz uma cena de ciúmes durante uma rusga.

– Devíamos avisar a Diana e a Manuela – sussurrou Francisquinho.

– Eu avisei-as por mensagem – tranquilizou-o Necas. – Enquanto o Bazófias fazia o número, eu avisei a nossa malta. Até acho que foi para me dar tempo que ele fez a fita.

Almerinda olhou-o, estupefacta.

– Tu achas? Eu julguei que era por minha causa.

– O teu Ernestinho é esperto e parvo. É uma espécie de detergente naquela fórmula dos dois em um. Limpa e faz merda ao mesmo tempo. Um manhoso! Levou o filme longe de mais e lixou-se.

– E agora?

– Agora, aguenta. Não podem prendê-lo sem testemunhas e aqui ninguém viu, nem ouviu nada. Ou é mentira?

Francisquinho mostrou um sorriso velhaco.

– Eu sou surdo e cego, meu. Toda a gente sabe. Só oiço e vejo bem ao longe.

Não restavam dúvidas. A rusga procurava uma mulher. Talvez o Bazófias tivesse razão e a polícia em peso cercava Lisboa à procura da tal traficante de droga que fugira do tribunal. E havia que reconhecer que desta vez, com excepção do conflito com o Ernestinho da Almerinda, nem tinha havido grandes confusões. As mulheres do bando conseguiram fugir com o alerta do Necas. Diana levara Nicha, Manuela e Clara a tomar o pequeno-almoço bem longe e os polícias deram largas à sua falta de originalidade, prendendo as suspeitas do costume. Atulharam as carrinhas com o grupo da Carla e da Sónia, que atacavam no Campo de Santana, e mais meia dúzia de prostitutas que esfolavam cabritos na estrada de Águas de Moura. «Duas carrinhas cheias de sida e hepatite», como ironizou o Francisquinho.

Ainda não eram nove horas quando o circo desmontou. Necas espreguiçou-se e disse:

– Vou dormir. O espectáculo terminou.

– Levam sempre as prostitutas. A prostituição é crime? – Francisquinho monologava. – Nunca percebi esta mania da bófia. Como não percebo a embirração dos cães com os gatos. Não se comem, mas é só verem-se uns aos outros, os gatos fogem e os cães vão atrás deles. Com a bófia e as putas é a mesma coisa.

– Quando andava na vida, fui parar ao Governo Civil mais de dez vezes – observou Almerinda.

– Mas porquê? – insistia o Francisco. – Vão aliviar os pasmas? A chibaria não tem graveto para pagar e levam-nas para se servirem à borla?

– De mim, nunca nenhum tira se serviu sem pagar. Era o que faltava. Este corpinho não foi feito para borlas – replicou ela.

Francisco ficou pensativo, olhos fixos na chávena do café. Necas, entretanto, afastou-se, desinteressado das preocupações sociais do amigo.

– Só pode ser porque são gémeas – disse, por fim.

– O quê? – perguntou Almerinda sem perceber, enquanto recolhia loiça das mesas da esplanada.

– Quer a bófia, quer as miúdas trabalham na merda e com a merda. É isso. São profissões gémeas. Daí que não se larguem uns aos outros. Putas e polícias são a mesma coisa! – rematou filosoficamente Francisquinho.

Quem atravessasse os corredores do segundo piso da Gomes Freire tendia a concordar com Francisquinho. As rusgas realizadas naquela madrugada, em vários pontos da cidade, tinham carregado dezenas de mulheres que atafulhavam os corredores à espera de ser identificadas e as conversas com a autoridade mais pareciam de gente do mesmo ofício.

– Que merda é esta, Manel? Foste acordar-me para quê? Tenho sido mais do que uma mãe para ti.

– Mãe, o caraças. A minha mãe não é puta.

– Porra para isto, Manel. Estive a esfolar cabritos até às quatro da manhã com um frio que me mordia as canelas. Tu achas que tenho vida para vir aturar a bófia a esta hora da manhã? E quanto à tua mãe pode não ser puta, mas não te deu à morte tantos pintas como eu já dei.

– Fugiu-nos uma garina do tribunal que estava a ser julgada por tráfico e tem caroço. Não é uma ranhosa qualquer. Põe aí a cabecinha a trabalhar para saberes quem nos pode ajudar a encontrá-la e não só te mando embora como te ponho um carro à disposição para te levar a casa.

– Não sei nada disso. Eu consumo, não vendo.

– Deixa-te de merdas e o teu chulo que comece a trabalhar e que tire o o cu da cama antes da hora de almoço. Vá, telefona-lhe.

Enquanto discussões desta natureza se multiplicavam pelos corredores e pelas brigadas, numa sala mais afastada, Bazófias era confrontado com o seu maior medo: regressar à prisão e, desta vez, apenas por ser tanso.

O inspector Augusto investia:

– És um tonto, Bazófias. Mais uma vez tive de meter o pescoço no cepo por tua causa.

Visivelmente assustado, perguntou, inquieto:

– Mas estou preso ou não estou preso?

– Ainda estás, até o subintendente falar comigo.

O burlão desabafou o desespero:

– Pelas alminhas, senhor chefe. Pelas alminhas, salve-me desta confusão. Já não tenho idade para voltar à pildra! É a minha morte se isso acontecer.

Puxou do lenço para evitar as lágrimas e assoou-se com estrondo. Bazófias estava tão assustado que metia dó.

– O que te passou pela cabeça para tratares mal o guarda? Ele estava a cumprir o seu papel. Logo tu, que já passaste por não sei quantas rusgas e sabes como é. Quem se arma ao pingarelho é arrecadado e depois logo se vê.

– Eu sei. Foi uma coisa aqui de dentro quando o vi olhar para as pernas da minha Almerinda.

– E qual era o mal? Olhou? Olhou.

– Perdi a cabeça, sou um palerma. Uma besta!

– Com o teu cadastro, se ele te levar ao juiz, vais arrecadado pelo menos seis meses.

As lágrimas dançavam, aterrorizadas, nos seus olhos. Na cadeia aprendera o suficiente de direito penal para saber que o inspector não o enganava. Suplicou aflito:

– Pela sua rica saúde, senhor chefe. Eu não aguento mais seis meses de cadeia. Passei anos e anos a entrar numa e a sair de outra. Ao todo, estive engomado catorze anos e desisti. Juro-lhe por tudo que desisti.

O telemóvel de Augusto tocou. Atendeu, fazendo-lhe um sinal de silêncio.

– Estou? Meu caro subintendente, como vai? Já sabe do favor que lhe pedi? O Bazófias é um velho amigo, está direitinho e nem ele sabe o que lhe deu. Ele está aqui a pedir desculpa e acredite. É velhaco e ciumento, mas bom rapaz.

A ansiedade não lhe permitiu respeitar o silêncio e reforçou:

– Sim, sim. Diga-lhe que lhe peço mesmo muita desculpa.

O inspector acenou afirmativamente e corroborou:

– Ele pede mesmo muita desculpa pelo incómodo. Sim... Eu assumo essa responsabilidade, fique descansado. Um abraço. Obrigado.

Desligou o telemóvel e ficou em silêncio. Pensativo. Bazófias, desesperado de impaciência, perguntou:

– Senhor chefe... senhor chefe? Ainda estou preso?

Augusto olhou-o nos olhos com uma expressão grave e questionou:

– Como vais agradecer o favor que te acabo de fazer?

Bazófias desfez-se.

– Como quiser, senhor chefe. Eu faço tudo. Tudo! Até mando a minha Almerinda para os quintos dos infernos, se for caso disso...

As palavras do outro saíram metálicas.

– Esquece a Almerinda. Quero a Diana. Foi ela, ou alguém do grupo dela, quem ontem disparou contra o Dragão e um bandido do seu bando.

O ex-carteirista ficou surpreendido com o volte-face da conversa. Afinal a bófia sabia do que se passara, mas desconhecia os pormenores, pelo que procurou iludir a conversa:

– Mas vocês não procuravam uma tipa que fugiu do tribunal? Eu vi na televisão e pensei que...

– Procuramos tudo o que é bandido e hoje a Diana escapou-se à rusga. Não estava ninguém em casa quando os meus colegas lhe bateram à porta.

– Pois, pode ser – concordou como se estivesse preocupado com o paradeiro da chefe da matilha e acrescentou: – Ela também não é mulher de andar muito por ali. Passo temporadas sem a ver. Eu não sei bem, mas vai aí para umas duas semanas que não lhe ponho a vista em cima – mentiu com a maior naturalidade do mundo.

– E o Dragão?

– Isso é bicho ruim. De vez em quando, aparece mas não dá mão. Um bandido, senhor chefe. Não me admira nada que lhe tivessem enfiado um tiraço no lombo, mas no Estrela Polar não foi de certeza. É pintas da Brandoa, é mais de frequentar a Musgueira e esses lados. Não, posso garantir-lhe que ali não houve tiros.

– Tens medo dela, não é verdade?

– Eu? De quem? – perguntou, inquieto.

– Ainda hoje tinhas na tua tasca pelo menos dois dos manhosos que andam a gamar e a vender pó para a Diana. O Francisquinho e o Necas. São dois filhos da puta do piorio.

Bazófia soltou uma risada nervosa.

– O Francisquinho? O Necas e o Francisquinho trabalham para quem? Oh, senhor chefe, nem um nem outro fazem puto. Nada, nadinha! Zangaram-se com o trabalho. Logo esses dois. Passam a vida esticados, senhor chefe. Dois cações estendidos sem fazer nenhum. Mas tem razão, são uns filhos da puta, lá isso.

– Vestem-se, alimentam-se, bebem copos. De algum lado o dinheiro lhes vem...

Bazófias estendeu os braços e abriu as mãos em trejeitos explicativos. Labutava como um náufrago que procura bóia de salvação.

– Uns tesos, senhor chefe! Vendem uma ou outra dose de coca, mas coisa pouca, e vão logo gastar em drunfos e cerveja. Uns ranhosos, senhor chefe...

O inspector Augusto tornou a atacar sem piedade.

– Vais dar-me um deles à morte. Nem que seja com dez gramas de coca. Quero um deles!

Bazófias estava deveras aflito. O polícia não comera a sua conversa mole sobre a natureza dos dois patifes e denunciá-los seria uma afronta que o bando não lhe perdoaria.

– E eu morto. Não vou para a cadeia, mas saio daqui para comprar o caixão. É a mesma coisa. Pela sua rica saúde, o que me está a pedir é a minha morte.

– Bazófias, é pegar ou largar...

Suspirou profundamente e respondeu, conformado:

– Estou morto, é isso. Lá vai ficar a minha Almerinda ao deus-dará.

– Não comeces com os teus lamentos. Conheço essas fitas todas. Como é?

Tornou a suspirar. Agora parecia vencido. A frieza insensível do inspector era uma barreira intransponível e precisava de sair daquele aperto para pensar.

– Pronto, pronto! Dê-me uma semana. Posso ir?

– Ao menos podias agradecer de te safar da prisão.

Bazófias sorriu, desalentado. Meneando a cabeça, respondeu:

– Agradecer? Com amigos como o senhor chefe, um homem não precisa de inimigos.

Quando o proprietário do Águias saiu, Augusto não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. O plano que desenhava, estava a funcionar. Conhecia o Bazófias há muitos anos e sabia dos seus medos mais profundos. Passara boa parte da vida a entrar e a sair da cadeia por crimes de pequena monta e condenações com penas leves. Dez sentenças juntaram-lhe, nesse vaivém, catorze anos de clausura, até que desistira e se refugiara no Estrela Polar. Deixara as carteiras. Dedicava-se a vender minis e a defender a honra do Benfica. Quando conheceu Almerinda, uma noite em que fora às putas na Rua das Pretas, recolhendo-a como amante e companheira, perdoados os pecados mútuos, confrontou-se com a possibilidade de cumprir o resto da pena de vida com alguma tranquilidade. Augusto sabia que ele trabalhava para Diana. Por omissão. Ele cobrava pelo silêncio e permitia que a quadrilha usasse o seu café para vender droga e produtos roubados. Agora filara-o. Jamais daria Diana à morte, mas, para salvar a pele, seria capaz de vender quase todos os amigos dela. Sobretudo os mais novos, pois para burlão entalado tudo tem um preço e a liberdade o custo que por ela lhe for pedido. Não ficar preso era um preço razoável para as colunas do deve e do haver da sua contabilidade moral.

O guarda que provocara a situação em torno das pernas de Almerinda espreitou. Mostrava um sorriso divertido.

– A história da prisão pegou?

– Foi em cheio, Hilário. Fico a dever-te uma – respondeu Augusto, cumprimentando o guarda da PSP. Não conteve uma gargalhada quando disse: – Ficou convencido de que eu estava a falar com o teu subintendente.

Riram-se.

– Um tipo quando está aflito até acredita que os burros têm asas. Mas é mesmo ciumento. Adora a mulher.

– Mais ou menos – ripostou o inspector. – Ainda há pouco estava disposto a livrar-se dela para não ir preso.

– Filho da mãe!

– É isso. Um artista de grande nível técnico.

Ninguém sabe o que vai no coração, nem o que sente, um homem acossado, receoso de que os seus mistérios sejam descobertos e o atirem para um pesadelo do qual procura perpetuamente afastar-se. Bazófias decidira que jamais tornaria a uma prisão. Possuía um segredo terrível, que guardava, da sua última detenção, o qual fizera jurar perante o deus dos burlões e carteiristas que poderiam chover as pragas do Apocalipse, inundar-se a Terra com dilúvios bíblicos, mas jamais voltaria a pisar o chão de uma cadeia. Para tal não acontecer, e para não perder o reconhecimento público que gozava entre os bandidos do bairro, estava disponível para todos os trabalhos e desprendimentos. Por mais dolorosos que fossem.

Foi cumprimentando com exuberância as pessoas com quem se cruzava quando atravessava o largo em direcção do Águias. Passo vagaroso, para ser visto. Não eram necessárias palavras. A sua presença era prova do seu poder contra a injustiça. Vencera a contenda com a polícia e o seu prestígio sairia reforçado. Levaram-no à força, foram obrigados a mandá-lo em paz. Fizera-se justiça e era importante que todos o vissem, observassem Bazófias, que, de cabeça levantada, caminhava, tranquilo e seguro, para o seu café.

Atravessou com passo firme a esplanada e foi contrariado que percebeu que Almerinda encerrara o estabelecimento durante a sua ausência. Tinha medo de se enganar nos trocos, dizia ela, e Bazófias era obrigado a reconhecer que, entre ser roubado e ter o Águias fechado, preferia ver a rapariga longe da caixa registadora. Meteu a chave à porta e nem teve tempo de reparar na habitual desarrumação. Queria orgulhosamente mostrar-se a Almerinda, regressando do inferno, vencedor da batalha policial, e ouviu guinchos. Talvez fossem gemidos abafados. Intrigado, chamou em voz alta:

– Almerinda?

Os gemidos vinham do quarto e a sua reforçada auto-estima de herói recente convenceu-o de que a mulher chorava por ele e pela sua ausência. O coração de Bazófias enterneceu-se e, com um sorriso nos lábios, caminhou na direcção do pranto. O abraço que iriam trocar secaria todas as lágrimas.

Porém, ao abrir a porta do quarto, o coração deu-lhe um coice no peito. Almerinda contorcia-se em espasmos debaixo do Tosta Mista, que a possuía com a fúria de um cavalo com cio. As longas pernas dela baixavam e levantavam, descontroladas pelo prazer, e os seios rijos, inchados, estremeciam a cada estocada do jovem assassino. A ira explodiu num berro indignado.

– Mas o que é isto?! Tu e o Tosta Mista... O que é isto?

A este formidável grito, Tosta Mista reagiu saltando de cima dela e cobrindo o corpo nu com o lençol. Almerinda ainda arfava de emoção e foi ele quem respondeu a Bazófias.

– Tem calma, não é nada do que estás a pensar!

Contudo, Bazófias não se acalmou e, de cabeça perdida, procurou pelo quarto algo que o ajudasse a despejar a cólera numa precipitação frenética. Empunhou uma tesoura e gritou:

– Eu mato os dois. Vocês vão ver. És uma cadela. Cadela!... Eu mato-os...

Não chegou a dar um passo na direcção do homicídio passional. O sangue gelou quando, ao enfrentar Tosta Mista, percebeu que era olhado pelo buraco negro do cano de uma pistola. A tesoura desprendeu-se das mãos e a voz saiu num sussurro assustado:

– Tosta Mista! Espera...

– Queres brincar, é? – perguntou-lhe o assassino, pressionando levemente o gatilho.

A ira levara sumiço e Bazófias balbuciou:

– Calma... Vamos lá ter calma...

Almerinda estava, finalmente, recomposta para falar e gritou:

– Ernestinho, pela tua rica saúde, ele mata-te. É um assassino. Por todos os santos do céu e por todas as virgens da Terra, não faças nada!

Tosta Mista vestia-se sem largar a arma e o olhar fixado nos olhos de Bazófias. A morte rondava e o carteirista resolveu dar-lhe um pontapé para longe.

– Vamos lá ter calma. Então, Tosta Mista? Nós até somos amigos. Eu percebo, eu percebo. Vocês são novos, deu-vos a vontade e pronto! Divertiram-se. É natural. A minha Almerinda é valente para a função, não é verdade? Portanto, isto está esquecido, eu não vi nada e todos amigos na graça de Deus.

O rapaz não respondeu. Saiu apressado, fechando com estrondo a porta do quarto, e foi então que a cólera de Bazófias regressou quando Almerinda se vestia.

– Cabra. Minha grande cabra! Eu vou dar cabo de ti.

– Tocas-me num cabelo que seja e eu fujo daqui! – respondeu, firme, e o corno vacilou:

– Foges?

A rapariga fora contagiada pela ira de Bazófias e respondeu com rispidez.

– Ou julgas que eu não estou farta de te aturar e de viver neste bairro imundo? Bates-me e nunca mais me vês. Se não tivesses embirrado com o polícia, nada disto tinha acontecido. És um estafermo sempre armado em bom, mas és só língua.

– Agora a culpa é minha? Abres as pernas ao Tosta Mista e agora a culpa é minha!? Cabra! Ainda por cima é preto.

– Preto ou branco faz aquilo que tu não sabes fazer. Sabe tratar de uma mulher, enquanto tu só sabes tratar de ti – e enfatizou a tirada espetando-lhe o dedo no peito: – Tu és o grande amor da tua vida!

– Não sejas injusta comigo, Almerinda!

– Não me imponhas a tua lábia de burlão. Queres-me porque sou o teu esfregão e eu aceito porque, ao menos, como todos os dias. Mas começo a ficar farta de estar aqui como se tudo não passasse de uma esmola que me dás.

– Farta, como? O que fiz eu?

Bazófias começava a recuar ao perceber a determinação da mulher. De um momento para o outro descobriu que estava na iminência de perder a pessoa que lhe tratava da roupa e limpava a casa e ficou assustado.

– Tretas como tu, conheci dezenas. O grande amor da tua vida é o dinheiro e eu respeito a devoção. Portanto, vai abrir o café para os clientes começarem a largar notas. Eu vou estender a roupa que lavei toda a manhã enquanto estavas na treta com a bófia.

Almerinda saiu e Bazófias, que abria e fechava os lábios sem conseguir articular palavra, sentou-se na cama adúltera, sem força, esmagado pela humilhação, mas também aliviado porque ela ia estender roupa e não partia. Afinal, a sua marcha para a vitória terminara num precipício de despeito e rancor. Foi então que uma primeira ideia lhe iluminou o cérebro esfomeado de vingança. Pegou no telemóvel e digitou um número. Enquanto o aparelho chamava, respirou para sossegar o turbilhão de ódios que ia dentro de si. Atenderam. Bazófias falou pausado:

– Senhor chefe? Sou eu. Estive a pensar no seu pedido. O Necas e o Francisquinho não valem nada. É como lhe disse. São uns tinhosos. Lembrei-me de peixe maior para lhe pagar o favor. Bem graúdo, por sinal. Estava interessado em quem andou aos tiros no Águias, não era? Sim. Já ouviu falar do Tosta Mista?

A polícia não demorou em arrecadar o negro. Queriam saber tudo sobre o seu conflito com o Dragão e qual a razão para o expulsar, assim como ao seu grupo, à força de bala. Às primeiras perguntas já estava a levar no focinho.

– Conta aí, ó preto de merda. Onde foste buscar a armar para lixares a pata do Dragão?

Saíra a lotaria ao Tosta Mista. Nesse dia, não estava no Estrela Polar e tinha testemunhas. Uma coisa rara para um solitário mostrar como prova de inocência.

– Não fiz nada. Nesse dia de manhã estive na Loja do Cidadão a tratar do meu cartão do cidadão. Até tenho aqui o papel que me passaram. Veja, está aí a data e a hora em que estive a fazer as coisas. Fui logo de manhãzinha por causa das filas e passei mais de duas horas à espera. O vosso colega que estava lá de serviço até falou comigo por causa dos headphones. Pensava que eu os gamara. Perguntem-lhe. Nem sei quem é o Dragão.

– Temos informações de fonte certa que foste tu! – insistiu Augusto, embora com pouca segurança. Temia pela língua do bufo que tão repentinamente lhe dera à morte o Tosta Mista. Este encolheu os ombros, e desvalorizou a bufadela:

– Deve ter sido o Bazófias. Está lixado comigo porque a mulher dele gosta de abrir as pernas para mim. É corno e mal-agradecido.

Augusto percebeu finalmente o que levara o ex-burlão a ser tão recalcitrante em denunciar tipos da matilha de Diana e, de repente, dava-lhe à morte o Tosta Mista. Ao fim do dia, o rapaz regressara ao largo e à convivência com os amigos. Bazófias, ao vê-lo, compreendeu que a artimanha não tivera sucesso e, decidindo entrar em prevenção rigorosa, propôs um negócio ao velho Jeremias, que passava o dia sentado no Águias bebericando um cálice de bagaço.

– Amigo Jeremias, o meu amigo tem um bagaço à borla, oferecido por mim todos os dias. Só preciso de que me avise se o filho da puta do Tosta Mista vem ou não vem ter com a minha Almerinda.

– Está descansado. Venha o bagaço e sou o polícia mais cauteloso da rata da tua mulher.

Confiou nas barbas brancas do ancião e ajustou o acordo, oferecendo-lhe uma especialidade que tinha guardada para as grandes ocasiões. Escapou-lhe um pormenor. Jeremias era míope. Os velhos óculos partiram-se de tanto uso e ele não via mais do que um palmo à frente do nariz. A pensão não lhe permitia o luxo de comprar lunetas novas, mas sobre essas preocupações não contou a Bazófias. Até porque o velhote gostava do negro. O Tosta Mista era o único dos clientes, daquela alcateia de bandidos, que o ajudava a ir até casa quando, já noite, desequilibrado com a bebida, se retirava tacteando as paredes do casario. E avisou-o:

– Tosta Mista, olha que o Bazófias anda de olho em ti. Quando tu e a Almerinda se quiserem encontrar, avisa-me para eu lhe garantir que não lhe comeste a miúda. Eu vi tudo. Vejo sempre tudo, embora não veja a ponta de um corno. Contem comigo. Gosto de gente atrevida e o Bazófias é ruim como as cobras. Só pensa nele e não deixa mais ninguém divertir-se – e foi assim que o velho Jeremias, já no fim da vida, se transformou em agente duplo.


3
A DROGA MATA E A POLÍCA CHEIRA

Os janados conheciam os caminhos do pó. O largo do café do Bazófias era um imenso mercado, onde em cada esquina das ruas mais próximas a quadrilha de Diana vendia panfletos e comprimidos a preços decentes e qualidade garantida, embora cada um procurasse um vendedor particular. A Manuela recebia um grupo que vinha de Benfica e o Zé Cigano tinha clientes antigos, marados, quase podres, sonâmbulos corroídos pela droga, que invariavelmente o procuravam, suplicando a dose que lhes amainasse a ressaca. Porém, o mais activo era Francisquinho. Calcorreava o bairro, batia os centros comerciais, as estações de comboios e regressava muitas horas depois sem mercadoria e as algibeiras a abarrotar de notas de cinco euros.

Nesse fim de tarde, voltava para a companhia dos amigos, quando reparou em dois janados que atacavam Manuela. Era vulgar. Surgiam desesperados até ao tutano dos ossos, corpos ressequidos e o que restava das suas almas pronto a ser trocado por uma dose. Custasse aquilo que custasse. Nem que fosse uma facada nas entranhas de quem podia salvá-los daquele mal que alucinava de desejo. O mais alto dos dois agarrava a rapariga pelo pescoço, enquanto ela abraçava o pó e o dinheiro contra o peito, tentando evitar o roubo, como se protegesse um filho, e gritava em aflição:

– Larga-me. Larga-me, cabrão.

– Dá-me o saco ou morres.

O janado procurava abrir com alguma precipitação uma navalha de ponta e mola, sem largar Manuela.

– Larga-me! – gritou ela novamente, fazendo um enorme esforço para se libertar do abraço com que o rapaz lhe garrotava o pescoço.

Caíram os dois no calor da refrega. Manuela contorcia-se, de joelhos. Dobrada, ferozmente protectora dos seus pertences. Aquele que a sacudia e pontapeava gritou para o outro:

– China a gaja. Ela não dá. China-a já! – e, de imediato, passou-lhe a ponta e mola.

O mais novo abriu a navalha com um sorriso velhaco e avançou para eles. Manuela evitou o golpe no ventre, encolhendo-se bruscamente e a navalha enterrou-se na coxa. A rapariga soltou um uivo de dor e, ao mesmo tempo, ouviu-se um tiro e um berro enorme. A seguir outro disparo e gritos desesperados.

Francisquinho acabara de alvejar os dois janados gatunos e, apontando-lhes a arma, transfigurado da excitação, gritava, espumando de raiva:

– Saiam daqui, filhos da puta! Saiam ou rebento os dois. Rebento, mesmo, man. Saiam, filhos da puta!

Rebolavam-se pelo chão, ganindo. Um deles abraçado ao joelho e o mais alto procurando estancar o sangue que saltava abundantemente do ombro.

– Mataste-me. Vou morrer e tu mataste-me.

Francisquinho não queria saber. A sua aflição era a Manuela.

– Tás bem miúda? Diz-me que estás bem ou eu chino estes dois merdas.

– É apenas um golpe. Queriam roubar-me – respondeu ela, enquanto procurava estancar a hemorragia, pressionando a ferida com a mão.

– Levaram para tabaco, minha. Agarra-te a mim que eu ajudo-te.

Francisquinho afastou-se, arrastando Manuela, enquanto os dois contendores se afastavam com dificuldade, ameaçando rija vingança.

No largo soube-se logo do tiroteio e Bazófias, apressado, deixou cair a cortina de fitinhas que evitava a entrada de moscas no café e correu para detrás do balcão.

Almerinda, assustada, precipitou-se sobre ele.

– O que foi, Ernestinho? Pareceu-me ouvir um tiro.

Bazófias conhecia os procedimentos regulamentares em situações críticas e respondeu categórico:

– Vai para dentro depressa. Não foi tiro nenhum, foi um foguete.

– Um foguete? Há festa? Mas eu queria ver.

– Não há nada para ver! Não aconteceu nada. Vá, vai para dentro e caladinha. Depressa, que a chibaria está aí não tarda nada.

– A polícia? Mas não foi um foguete!? Eu ia jurar que...

Bazófias interrompeu-a:

– Não juras nada. Aqui ninguém jura coisa nenhuma. Foi um foguete! Acho eu que foi um foguete, eu não ouvi nada – e dirigindo-se aos clientes: – Vocês ouviram alguma coisa? Tás a ver? Ninguém ouviu nada.

Empurrou Almerinda para os fundos do estabelecimento, enquanto, com o comando, aumentava o som da televisão que servia o estabelecimento. Na casa abandonada, onde o bando se reunia, Clara e Francisquinho tratavam do ferimento da amiga e ele explicava a Batman o que acontecera.

– Furei-o! O janado não desistia e tive de o furar. Atirei à perna. Era ali mesmo que queria acertar. Na jambe. Foi um bom tiro, não foi, Manuela? Cambada de ladrões! O país está cheio de ladrões e o Governo não faz nada. O outro levou o balázio nos costados. A pistola saltou. A merda da pistola salta quando dispara e pimba! Foi com a asa em baixo.

– Queriam roubar dinheiro ou o pó? – perguntou Clara.

– Era o saco. Tinha tudo no saco! – explicou Manuela e Francisquinho continuou:

– Nunca os tinha visto. Nem sei se são janados ou só ladrões. Levaram pra tabaco. O balázio na jambe foi mesmo um bom tiro. Era ali mesmo. Um bom tiro. Era ali mesmo que queria acertar. Agora o outro, a puta da pistola saltou e pronto. Salta sempre.

Batman estava furioso e, farto das repetidas explicações do rapaz, deu-lhe um safanão.

– Endoideceste, Francisquinho? Chamaste a bófia. O teu trabalho foi chamar a bófia. Porra, pá. Mil vezes porra!

Francisquinho protestava justificações para o caso. Sentia-se injustiçado com a fúria do amigo.

– Tu não tás a ver, meu. Eles queriam chinar a Manuela. Eram dois. Bateram-lhe e tudo. Olha como ela ficou: estavam a bater-te, não estavam, Manuela? Tive de a salvar. A ela, aos panfletos e ao caroço! Quinze panfletos e cento e cinquenta euros.

Batman respirou profundamente, procurando recuperar o sangue-frio. Uma sarrafusca daquele tamanho só podia trazer sarilhos. Perguntou a Manuela:

– Tu estás bem?

– Estou. Tenho algumas dores, mas estou bem – rematou com um sorriso: – E não deixei que me gamassem. O Francisquinho foi baril.

Batman ordenou:

– Escondam-se! Não demora muito está aí a polícia a fazer perguntas, se não for ainda pior. Francisquinho, não te mostres sem sabermos no que isto vai dar.

– Tinha de abrir fogo, man! Salvar a Manuela e o pó. Quinze panfletos! Tás a ver? Guerra é guerra – protestou o rapaz.

– Já ouvi. Não vale a pena explicares outra vez. Clara, vai tu passar os panfletos e vocês desaparecem.

Batman afastou-se, carrancudo, acompanhado de Clara. Amuado com a descompostura, Francisquinho perguntou a Manuela:

– O que quis ele dizer de poder vir aí coisa pior do que a polícia? Não há coisa mais ruim no mundo do que a chibaria.

– Pois. Não sei.

– Não há nada pior do que a bófia. Eu sei do que falo. Não há pior bicho. Nem os rinocerontes são tão ruins. Eu sei do que falo, minha. Sei mesmo. Mas, se vierem, tá mal. Os janados é que te atacaram. Dois bandidos a quererem fazer maldades a quem trabalha. Estavas a fazer mal? Não estavas. A malta não vende pó a quem não quer, ou não é? O Governo trocou as voltas a isto tudo. Manda a chibaria atrás de quem não merece e protege os ladrões. Tá tudo ao contrário, digo-te eu.

O ódio de Francisquinho era velho. Vinha de uma madrugada já velha – Francisquinho ainda ia à escola –, quando uma rusga gigante virou das avessas casas e pessoas, prendendo a eito, revolvendo as entranhas de toda a gente. Parecia que o Diabo se instalara no largo e dava ordens loucas a polícias enfurecidos. Procuravam armas e droga, diziam eles, mas, para Francisquinho, queriam vomitar ódio sobre o bairro. Só assim percebia o que fizeram ao seu pai quando este se atirou a um pasma que apalpava as mamas e as coxas da mãe. O mestre Chico não aceitara que humilhassem a mulher e desfez a fronha do farda. Responderam-lhe à traição com um tiro na espinha, mesmo nas cruzes, e mestre Chico foi condenado a cadeira de rodas perpétua. Ainda houvera algum ruído no mundo das políticas, mas a coisa ficou clara porque o tiro fora disparado em legítima defesa, e nesse dia Francisquinho abandonou a escola. Era ele quem ganhava para o sustento da família, e continuava a sustentar, ainda, o ódio à bófia, que lhe apalpara as mamas da mãe e desfizera a espinha do mestre Chico até que a morte o levasse.

Só conhecera um pasma decente. O Pardal Oliveira, da Brigada de Costumes. Tratava das garinas, era amigo de intrujas e comia milho das mãos de Diana. Às vezes falava grosso com a malta, sobretudo com o Bazófias, porém, bastava invocar o nome da chefe e logo o Oliveira ficava pianinho, unhas encolhidas, ronronando como os gatos.

Foi o primeiro a aparecer, acompanhado de mais dois rafeiros, e entrou com o Bazófias.

– Tiros? Venda de droga? Aqui no bairro? Ó amigo Oliveira, deve haver por aí alguma confusão.

– Pronto, Bazófias, já sei! É a conversa do costume. Aqui ninguém viu, nem ouviu nada.

– É a pura da verdade. Não se ouviu nada. E quem é que levou o tiro?

– Não sabemos. Não entrou ninguém com ferimento de balas em nenhum hospital – respondeu o pasma, enquanto bebia a mini que o burlão lhe servira.

– Tá a ver? Têm a certeza de que essa história é verdadeira? Aqui é mais a fama do que o proveito. Alguém dá um peido em Alcântara ou um arroto nos Olivais, e temos aí visita da polícia.

– A chamada telefónica foi anónima, mas deu pormenores. A Manuela estava a vender pó, tentaram roubá-la e o Francisco disparou. Tu estavas perto e viste tudo! – contra-atacou Oliveira sem ligar à treta.

Porém, Bazófias reagiu com firmeza. Mula velha percebe quando um pasma está pouco seguro e anda a apalpar o terreno.

– Tudo, ponto e vírgula! Não vi nada. Hoje nem vi o Francisquinho nem a Manuela. Não sou pai deles, amigo Oliveira. Quem telefonou, telefonou mal. Aliás, nunca percebi porque são sempre anónimos os telefonemas que a polícia recebe daqui. Ninguém diz: daqui fala o Alfredo ou o Jaquim. Não! Tudo anónimo com medo do que a bófia lhes pode fazer. Nem para bufos têm categoria. Um bufo é um merdas, eu sei. Mas é um bufo. Dá a cara, diz o nome. Daqui nada! Nada se aproveita. Nem bufos temos de jeito.

Oliveira olhou-o com atenção. Era difícil perceber quando aquele manhoso mentia. Muitos anos nas vidas, muitos anos de prisão, dono e conhecedor de todos os truques. Bazófias era catedrático. O polícia ainda atirou uma casca de banana.

– A verdade é que há sangue no chão, no sítio onde aconteceu o caso.

– Sangue? Não será sangue de uma galinha? Às vezes matam umas galinhas para os petiscos. Até eu, mas faço isso no quintal. Não sou porcalhão e não quero que a ASAE me apanhe.

Riu, bem-disposto. Oliveira respondeu com desprezo.

– És um bom cabrão, é aquilo que tu és.

Bazófias ficou melindrado. Dir-se-ia que ia chorar no seu lamento.

– Ó amigo Oliveira, o senhor quer que eu veja à força o que não vi. Deram um tiro num tipo que nem vocês sabem quem é. Não acha que a conversa vai mal jeitosa? E se, em vez destas tretas, bebêssemos mais uma cervejola?

– Só se for das pequenas – aceitou o outro, vencido.

Tornara-se conversa de empalhar. Ruminante. Oliveira sabia que Manuela e Francisquinho eram ladrões e passadores de droga de Diana. Tocar-lhes seria uma perdição. E não eram apenas os presentes que ela lhe oferecia que chegariam ao fim. Diana ganhara a fama de proteger os seus até à morte, e esta era sempre de quem os ameaçava. Fosse como fosse, iria visitá-la. Gostaria de saber que era Oliveira quem investigava o telefonema anónimo denunciando o Francisquinho.

Esvaziou a cerveja e perguntou a Bazófias:

– Quanto devemos?

– É por conta da casa. Era o que faltava os meus amigos virem visitar-me e eu receber dinheiro de meia dúzia de minis.

A fanfarronada foi tão bem simulada que Oliveira e os colegas se despediram cumprimentando afectuosamente o taberneiro. Mal saíram, este fez um esgar de raiva e comentou para o velho Jeremias:

– Já viu esta corja de chulos? Empanturram-se de cerveja à minha custa e lá vão cantando e rindo.

– Filhos da puta – rosnou o velho, e cuspiu no chão em sinal de nojo. – Se eu mandasse, estavam todos mortos. São mais chulos do que tu.

– Eu não sou chulo.

– Mas já foste. És o único chulo que é chulado pelos chibos. Quanto mais te abaixas a esses animais mais te aparece o cu. Vê como eu faço. Nem lhes falo. Moram todos no inferno!

Bazófias até concordava com o velho Jeremias, mas não podia mostrar. A sua vida corria sobre uma corda bamba. Era um jogo de lerpa onde tinha de ir a jogo apenas com a manilha nas mãos. Não podia afrontar a bófia, nem dar à morte os ladrões que eram a alma do seu negócio. Deus dera-lhe aquele caminho como penitência. Ou era assim e o negócio dava para bucha e amealhava algum caroço ou, então, tinha de regressar às carteiras e ao conto-do-vigário sempre com o pesadelo da cadeia como uma ameaça. E ele jurara que jamais voltaria a viver atrás das grades. Somara tantos anos de prisão que ficara devidamente tratado. Sobretudo depois da humilhação que sofrera na última vez que estivera em Vale de Judeus. Descuidara-se com o tempo que demorou no duche e, de súbito, um gigante negro, preso por tráfico, abraçou-o pelas costas. O primeiro impulso foi resistir, mas o braço do animal era um garrote armado contra o pescoço de Bazófias, enquanto na outra mão empunhava uma ponteira de ferro afiada que lhe enfiou na orelha.

– Eu faço devagarinho! – murmurou o traficante e encostou-lhe o membro ao rabo. Sentiu-se perdido, desejando a morte, quando sentiu a cabeça da marreta do preto a enfiar-se-lhe pelas nádegas.

– Dobra-te um pouco para a frente, vou passar sabão para entrar melhor.

Bazófias submeteu-se. Nem força tinha para reagir. O tipo que abraçava o corpo nu contra o seu era o Talismã, um dos homens mais temidos na cadeia, conhecido pela força e pela crueldade. E rendeu-se. Entre a vida e uma enrabadela não havia escolha nem protestos de honra. Encostou a cabeça à parede, cerrou os dentes e apenas se escutou um gemido sufocado quando Talismã o penetrou.

– Que caralho, Santo Deus! – gemeu Bazófias.

O outro não percebeu que havia dor naquele desabafo. Quis que fosse prazer e o pau tornou-se num êmbolo agitado, que rasgava o burlão.

– Gostas, não é? Tu gostas. Toma. Toma.

A excitação de Talismã contrastava com a submissão do violado, esmifrado de auto-estima, lágrimas escondidas na água que espirrava do duche, dores de carne misturadas com dor de alma, e o negro, qual herói de todas as batalhas da prisão, bombando, entusiasmado, o cu de Bazófias. Não sabe quanto tempo durou. Perdera as forças e só estava de pé porque as manápulas do violador o agarravam rijamente pelos quadris. Recorda-se de ter ouvido um ronco e de terem parado os esticões.

O negro arfava quando retirou o marsapo dentro dele. Bazófias caiu no chão do chuveiro, contorcendo-se numa sensação estranha e contraditória de dor e alívio. Talismã deu-lhe uma palmada na nádega.

– Tens um bom cuzinho. É pena saíres amanhã com a condicional que tratava de ti mais uma vez.

Nessa noite, Bazófias não dormiu. Cada vez que ouvia passos na direcção da sua cela rezava um padre-nosso, por ele inventado, pois nunca fora dado a devoção nem súplicas ao divino. Porém, pela primeira vez jurava um compromisso perante Deus que queria cumprir até ao resto dos seus dias. Nunca mais cometeria actos que o pudessem levar à cadeia. Acabara naquele instante qualquer propósito de negociar mulheres ou vigarizar com o paco, gamar chatas ou vender o vigésimo premiado. Ali se declarava inteiro e puro, disposto a trabalhar, a respeitar otários e, caso fosse necessário, a afugentá-los de burlões como ele. Apenas pedia em troca que o filho da puta do traficante que o violou morresse na cadeia e que, antes do passamento, alguém lhe cortasse o membro com que despedaçara a sua virgindade anal.

Deus foi quase justo na sua clemência. Deixou que Talismã sobrevivesse depois de Bazófias estar em liberdade. Talvez porque, na sua infinita sabedoria, reconhecia que o volumoso pénis do negro fizera mais pela reinserção social de Bazófias do que catorze anos de prisão. É verdade que não perdera hábitos antigos. Era o príncipe da mentira. Um verdadeiro joalheiro na arte de manipular quem estava à sua volta, com particular cuidado para protecção da honra da sua Almerinda. Contudo, não se pode pedir a um homem que caminha para os cinquenta que, por causa de um único acidente anal, renegue um passado construído de patifarias atrás de patifarias.

Fosse como fosse, tinha razão no desabafo que fez sobre Pardal Oliveira. Um polícia patife peca a dobrar. Acumulava dois graves defeitos numa só pessoa. E perdera a dignidade. Em vez de prestar contas ao seu comando, submetia-se aos desígnios de Diana. Como era agora o caso.

– Desculpa o abuso, mas passei por aqui para te dizer que o caso é meu. Podes estar descansada – explicava submisso e cúmplice.

– Fizeste bem, Oliveira. E quais são os resultados da tua investigação?

– Parece ter sido falso alarme. Um telefonema anónimo para a esquadra. Coisas de miúdos. Ninguém se queixou.

– O país está inundado de boatos. Gente que se procura vingar da porca da vida embirrando com inocentes.

– Deve ser isso. Boatos. Seja como for, talvez não fosse mau alguém dar uns puxões de orelhas a quem usa armas por tudo e por nada. Um dia há um sarilho e dos grandes com tanta arma nas mãos de jovens impacientes – redarguiu Pardal Oliveira.

– És capaz de ter razão. Alguém deveria fazer isso – comentou ela com secura.

– Bom, vou indo. Tenho os meus colegas à espera – fez uma pausa e avisou-a com ar grave:

– Tem cuidado, Diana. Não tens muitos amigos lá na minha esquadra.

Diana sorriu.

– Eu sei que és a minha excepção favorita. Espera um momento.

Procurou a carteira e retirou um molho de notas. Enfiou-lhas na algibeira da gabardina e segredou-lhe:

– Compra uma prenda à tua mulher. Não gastes o dinheiro em cerveja.

– És uma amiga do peito. Fica descansada com o Francisquinho. Eu atiro com isto para o cesto dos papéis.

Despediram-se. Porém, Diana não ficou tranquila. Batman contara-lhe o que acontecera e, mais cedo ou mais tarde, mesmo que a polícia ignorasse o caso por falta de queixosos, haveria de aparecer alguém à procura de desforra. Havia uma justiça clandestina, feita de vinganças e ajustes de contas, do outro lado da lei. Não tinha juízes, nem advogados. Era ditada pelo impulso do coração e pela corrente de solidariedade que envolvia vítimas e agressores. Diana discutiu a sua preocupação com Batman. Era preciso saber quem eram os dois toxicodependentes baleados pelo Francisquinho.

– A Manuela é quem os fornecia. Ela deve saber.

– Perguntei-lhe e disse-me que era a segunda vez que lhe apareciam – respondeu Batman.

– Olho atento. Se são primos, parentes ou têm qualquer laço com alguém de um bando de marados, vamos ter bailarico do rijo. A Manuela e o Francisco que fiquem escondidos até sabermos quem são os tipos.

Diana ditava ordens e sabia que era obedecida. Ao longo de mais de uma década que conduzia a matilha pela selva urbana, atravessando mil perigos e escapando com poucos danos nas investidas que faziam contra a cidade.

A regra não era procurar viver. Apenas era suficiente sobreviver. Transformar cada assalto, cada carga de cocaína e de heroína, em passos por mais um dia sem fome e sem uma bala que levasse qualquer dos seus para sempre.

Este recolher obrigatório que ela ordenara deixou Francisquinho numa situação difícil. Era do seu trabalho que a família dependia, e ele arrastava-se, impaciente, pela casa, escutando os lamentos do mestre Chico.

– Não posso sair, pai. Até novas ordens, tenho de estar aqui. A coisa aqueceu. Aqueceu mesmo.

Mestre Chico arrastava-se na cadeira de rodas, gemendo desalentos.

– Nem dinheiro tenho para comprar um maço de cigarros. Vida de merda a minha!

– É aguentar, pai. Há problemas. Apareceram dois ladrões querendo roubar a Manuela. Dei um tiraço em cada um deles e foram abanando. Se a bófia não chatear, logo de manhãzinha vou vender umas doses. O primeiro dinheiro que ganhar vai ser para os seus cigarros. Pode ter a certeza de que é isso mesmo que vou fazer.

– Queres que o pai te ajude?

– Deixe-me ver como está o ambiente. Se precisar de ajuda, eu chamo por si. A mãe saiu?

– Anda no papelão, coitada! O que ganha nem dá para a bucha. Só eu não faço nada, preso a esta maldita cadeira.

A voz embargou-se. Francisquinho correu a abraçá-lo e beijou-lhe a testa.

– Não se preocupe. Eu trato de tudo. Sempre tratei e não é agora que vou faltar. Vou vender cinquenta doses, custe o que custar. Você vai ver.

– És bom rapaz, Francisquinho. Se precisares do pai, faço o que for possível. Mataste os tipos?

– Não. Furei-os. Saíram daqui a guinchar com o chumbo que levaram no lombo. Pareciam dois porquinhos a grunhirem de dores.

Riam os dois, mestre Chico sentiu orgulho no filho e uma lágrima assomou-lhe nos olhos.

– Francisquinho!

– Sim, pai.

– Quando disparaste a pistola, fizeste como eu te ensinei? A mira no correr do olho?

– Foi em cheio, pai. Saíram a guinchar.

Finalmente o telemóvel tocou. Era Batman. Fizera uns contactos e ninguém conhecia os dois janados que ele baleara. Francisquinho podia regressar à labuta. A Manuela estava melhor e já fora vender, ajudando o Necas, o Tosta Mista e o Zé Cigano. Ficou entusiasmado com a notícia e gritou para o mestre Chico:

– Pai, pai! Vou à vida. O Batman tem produto para mim e vou vender. Daqui a pouco já lhe dou cigarros. O primeiro dinheiro que ganhar é para o seu tabaco.

A maioria dos janados vinha aos pares. Nem precisavam de perguntar. Um olhar, a nota numa mão e o panfleto passava sorrateiramente para a outra. Era o negócio mais volátil e discreto de Lisboa e, se havia saldos, era sinal de que o pó estava marado. Toma lá, dá cá e só aceitamos notas ou ouro. Siga a marinha e chegue-se o próximo cliente. Os pares subiam, ansiosos, e cruzavam-se com os que desciam, mais confortados. Conforto aparente. Em cada um deles vivia uma dor imensa, que ia e vinha por aquela ladeira, que doía em gente de todas as idades, desfalecida pela ressaca, escrava da necessidade, dona de uma liberdade pequenina que se realizava plenamente na satisfação do vício.

Foi o Tosta Mista quem reparou primeiro no grupo de três rapazes que subia a encosta. Conhecia o mais forte, o Maltês, célebre pelas tatuagens que lhe cobriam os braços e as pernas. Acompanhava os outros dois, que atacaram Manuela e que Francisquinho chinara. O mais franzino coxeava, o mais alto segurava com um lenço encardido um braço ao peito. Na sujidade das roupas adivinhavam-se manchas de sangue seco.

Necas seguiu o olhar do Tosta Mista e reconheceu o Maltês. Tinham passado um ano juntos no reformatório. O Necas por ser ladrão, o outro por ser assassino. Aos quinze anos contava duas mortes. O pai e um polícia, que, uma noite, embirrou com ele por conduzir sem capacete. Ficara internado até aos dezoito e passado um ano já estava na prisão dos mais velhos por ter violado uma inglesa. Saíra ao fim de três anos e, agora, Necas percebia que vinha ali para ser a desforra dos dois lingrinhas.

– Maltês, meu irmão, há que tempos não te via! – saudou-o Necas.

– Oi, mano. Tudo bem?

– Na maior. E tu?

– Estou passado, meu. Um filho da puta fodeu a asa do meu primo e mandou para o galheiro a pata deste chavaleco. Vieram ao pó e levaram chumbo. Não é justo, mano.

– Tens a certeza de que foi aqui? Não ouvi puto.

– Vai haver sangue, mano. Ninguém esburaca o meu primo e fica a rir.

O primo e o amigo amparavam-se, frágeis, tremendo de febre. Necas observou-os por instantes e tornou ao Maltês.

– Sangue, não. A bófia põe-te a assar vinte anos, se voltas a matar.

– Que se foda a bófia. Ninguém rebenta com o meu primo e fica a rir. Tu conheces-me, mano.

Necas viu a caçadeira de canos serrados debaixo do blusão do fato de treino e percebeu que o Francisquinho estava a dois passos da morte. Maltês não sabia pensar. Tosta Mista também pressentiu o perigo e avançou:

– Eu sei quem fez isso ao teu primo. Vem comigo, mas esses panfletos ficam aí. Lutas de morte são entre tipos com eles no sítio. Os queixinhas não têm lugar.

Maltês hesitou, desconfiado.

– Quem é o animal?

– Vem comigo.

– E como tenho a certeza de que é o pintas e não outro qualquer?

– Tu é que sabes – respondeu Tosta Mista e, encolhendo os ombros, rematou: – Eu só quis ajudar.

O rapaz olhou o primo, depois o Necas. Ainda hesitava.

– Se me enganas, ó preto de merda, faço-te em postas.

– Não engano. Anda daí.

Tosta Mista meteu-se por uma azinhaga que ladeava a colina e se enfiava pelo denso canavial pejado de lixo e cruzado por águas de esgoto a céu aberto. Necas ficou preocupado, de vigia aos dois ofendidos, vendo-os a penetrar naquele caminho onde os viciados de heroína se abrigavam para se injectarem e curtir. Temia por Tosta Mista e Francisquinho, embora tivesse ficado alerta com a disponibilidade do negro em dar o amigo à morte. Quando avançava pelo túnel de canas, Tosta Mista sentiu nas costas a arma de Maltês. Parou e perguntou:

– O que é isso? Eu não te fiz mal nenhum.

– Dás-me uma banhada e vais de cona – rosnou Maltês e perguntou: – Onde está o pintas?

– Eu digo-te – confessou, submisso. – Eu também não gramo o gajo. Posso ir em frente?

Respondeu empurrando-o com a caçadeira, sem se aperceber de que Tosta Mista já empunhava a sua pistola e, de repente, o negro voltou-se e disparou duas vezes à queima-roupa. Os dois tiros entraram directamente no peito de Maltês que caiu pela ribanceira, desaparecendo o corpo entre a folhagem espessa do canavial. O negro pegou na caçadeira de canos serrados e observou-a com atenção. Estava negra da ferrugem. Olhou com desprezo o sítio por onde rebolara o corpo de Maltês. Não tinha consideração por quem tratava as armas com tal descuido. Agarrou-a pelos canos e lançou-a com força para perto do falecido dono. Ali ninguém descobriria nem o Maltês, nem a sua inditosa arma. Se o cheiro piorasse devido à putrefacção, julgaria, quem ao longe o sentisse, que eram os esgotos cada vez mais degradados. Por ali perto só circulavam janados e não queriam saber de odores. Bastava-lhes qualquer coisa, mesmo fedorenta, para meter na veia.

Quando regressou à ladeira, Tosta Mista disse aos dois putos:

– O Maltês matou o tipo que vos meteu o chumbo no corpo e fugiu. Tão depressa não aparece por causa da bófia. E vocês nunca mais voltam a pôr aqui os calcantes porque serei eu quem vos enche de chumbo. E será na corneta para vos arrefecer o céu da boca mais depressa. Toca a andar!

Afastaram-se assustados, apoiando-se um ao outro. Necas perguntou num sussurro, enquanto observava os janados e afastarem-se:

– Fizeste-lhe a folha?

– Está com os anjos dentro do esgoto, no meio do canavial. Ninguém entra nestas ruas para matar os meus amigos.

Quando Necas contou a Francisquinho o que acontecera entre o Tosta Mista e o Maltês reagiu com indiferença:

– É natural. Eu também mataria quem viesse fazer mal ao preto – e acrescentou, excitado: – Vou dar uma prenda ao meu pai.

Correu para o café, deparando-se-lhe Clara, que curtia na esplanada. Sentou-se a seu lado e gritou para o interior.

– Bazófias, Um SG e uma cervejola!

Clara agarrou-se às orelhas, cambaleando.

– Francisquinho, os meus ouvidos. Não podes gritar mais baixo?

Respondeu-lhe com uma gargalhada.

– Mais baixo? Como se grita mais baixo? O pó é que te está a lixar os abanos, não são os meus gritos.

– Os teus gritos são estrondos na minha cabeça!

– Larga o pó, minha. Faz como eu. Passava o dia a snifar. Olha como fiquei. O meu corpo salta, o pó deu-me cabo dos nervos. Salto. Estou sempre aos saltos.

– Não é assim tão fácil. Dói tudo.

– Eu sei o que custa. Mas não há coisa melhor do que nos safarmos disso. Eu nem percebo como o Necas anda contigo e não te ajuda. A droga mata, miúda. Mata mesmo.

– Francisco, não chateies, tá?

Bazófias aproximou-se com o tabaco e a cerveja. Vinha com uma expressão de poucos amigos.

– Ontem, depois de disparares contra os pintarolas, deste corda aos calcantes e recuaste. A chibaria chegou logo a seguir, de nariz no ar, a perguntar o que tinha acontecido. O Oliveira, tás a ver?

– E depois? – perguntou Francisquinho.

– E depois nada. Foram com as mãos a abanar e umas cervejolas no bucho que eu ofereci e que tens de pagar.

Francisquinho olhou-o, indignado.

– Eu? Pagar cervejas à bófia? Tás passado?

– Querias que fosse eu? Safava-te da pildra e pagava a despesa. Ganha juízo, pá!

– Visto por esse ângulo está certo. Põe na minha conta. Vou levar os cigarros ao meu pai – disse Francisquinho e, de repente, levantou-se e correu para casa.

– Bom rapaz, este miúdo. Bandido, mas bom rapaz!

Clara não lhe respondeu. Dormia a sono solto, com a cabeça sobre o tampo da mesa da esplanada. Bazófias olhou-a por momentos, hesitando se a acordaria ou não. Suspirou com tristeza. Pegou na garrafa que Francisquinho bebera e foi para o interior do Águias.


4
UMA DESCOBERTA E A ALEGRIA DO CIALIS

Diana passou os dias e as noites em alvoroço, repartida entre listas telefónicas, o velho livro de actas e o computador. Jurara a si própria que não descansaria enquanto não soubesse quem eram e onde paravam os grandes demónios a quem atribuía o desenho do destino por onde caminhava desde os catorze anos. Era uma certeza ditada pelo coração. A segunda metade da sua vida fora determinada por aqueles homens poderosos, que nunca vira, cujos rostos eram um mistério, capazes de destruir vidas com uma simples ordem. E destruir famílias, indiferentes aos sonhos desfeitos, ao pranto e ao sofrimento. Estava próxima a hora de os obrigar a responder pela soberba no tribunal dos esquecidos e Diana sabia antecipadamente a sentença. Morreriam às suas mãos e queria que essas mortes assassinassem todos os fantasmas e pesadelos que a atormentavam pela calada da noite e nas ruas escuras da cidade, onde, assalto após assalto, golpeava a espessa solidão que a acompanhava desde aqueles dias terríveis de há catorze anos. Era como se tivesse caminhado por uma estrada luminosa, ladeada de papoilas e batida por um sol ameno, até àquela idade em que desembocara num abismo negro por onde se despenhava incessantemente, em rodopio, sem sentido e sem qualquer pontinha de luz, nem de estrela, nem de lua, apenas a escuridão total que enlutava a sua alma de menina.

Nicha, já sonolenta, entrou cautelosamente no quarto e quase segredou:

– Não vais dormir?

– Quando descobrir quem são os tipos que mandaram o meu pai para a morte.

A amiga fez um gesto contrariado e lamentou:

– Essa fixação tão antiga acabará por dar cabo de ti. A vingança é coisa ruim.

– Coisa ruim é a fome – respondeu com secura.

– Passou tudo há tanto tempo. Esquecer é um dos mais belos dons da memória.

– E não esquecer é ainda mais prodigioso. Uma pessoa sem memória é um cão que perdeu o sentido da vida – reagiu Diana, ainda mais azeda.

Nicha desistiu. Conhecia os muros de frieza em que a amiga se refugiava. Por vezes, atemorizava-a aquela implacável determinação. Quando Diana escolhia um objectivo, tornava-se um rochedo de granito. Fez-lhe uma festa no cabelo e despediu-se:

– Vou dormir. Até amanhã.

Não respondeu. Folheava febrilmente o livro de actas da Ferral que o Necas roubara para si. Procurava o nome completo do presidente do conselho de administração da empresa que assinara a ordem de despedimento do seu pai. Acreditava que, com essa informação, rapidamente descobriria quem era entre as centenas de nomes próprios iguais que surgiam nas páginas das várias redes de telemóvel e telefone.

Entretanto, àquela mesma hora, alguns dos seus amigos mais próximos viviam outros dramas. Como era o caso de Bazófias. Ao deitar-se, procurou Almerinda que, de imediato, lhe ofereceu o corpo nu e rijo. Beijou-a com ansiedade e prazer. Os seios redondos, os lábios carnudos, as coxas esculpidas a cinzel, as longas pernas torneadas, e Almerinda gemia, lasciva, contorcendo-se contra o corpo do carteirista, que resfolegava e gania, mãos trementes afagando a pele doce dela. Por fim, exasperado, largou-a.

– Não dá! São os nervos. Só podem ser os nervos – desabafou, irritado. Almerinda, surpreendida com a brusquidão de Bazófias, reagiu mal.

– Desculpas-te sempre com os nervos. Afinal de contas, para que queres tu uma mulher? Fizeste uma fita dos diabos por causa do Tosta Mista e, afinal, não pegas de maneira nenhuma.

– Não me fales desse gajo! – gritou, furioso. – É por causa dele que estou neste estado. É a vergonha.

– Conversa da treta, Ernestinho. Queres lá tu saber do Tosta Mista, ou de mim, ou seja de quem for, desde que os teus prazeres estejam satisfeitos?

– Tu não comeces, Almerinda. Já basta o que aconteceu.

– O teu problema é exactamente esse. É que não sabes o que está a acontecer. Para além de ti e do Benfica, não sabes mais nada.

– Tu sabes que eu não era assim, mas agora é isto. Não sei o que se passa. Só podem ser nervos. Desculpa-me – terminou, de cabeça baixa, envergonhado com a impotência.

– Não desculpo nada. Para mim, amor não é só carinho e compreensão. Eu não tenho idade para dormir com um boneco de papelão que não ata nem desata e nem sabe o que é a ternura, quanto mais o amor.

– Ó Almerinda, pela tua rica saúde! – agora a súplica era evidente. A falta de piedade da mulher era um punhal cravado na masculinidade dele, mas ela, vestindo as cuecas, disparou, irritada.

– Inventa! Vai ao médico, vai à farmácia. Inventa! Não vou ficar o resto dos meus dias a pão e água porque tens as molas frouxas.

– Pronto! Pronto. Eu vou ao médico – e gemeu: – Mas, por favor, não me deixes.

– Para que me queres? Agora quase estou proibida de ir ao café, porque os teus fregueses olham para mim e tu não gostas. Chegas aqui e, mesmo que gostes, não és capaz...

– Isso são os nervos, já te disse. O Benfica está a perder pontos no campeonato e eu ando nervoso.

– Não quero saber do Benfica, nem dos teus nervos. Ou te decides ou decido-me eu – e, provocando-o, rematou com acidez: – Ainda não esqueci o tratamento do Tosta Mista. Esse não tem nervos. É só nervo.

Bazófias encontrara-a quando ela começou a atacar no Campo de Santana. Ele saíra da prisão há poucos meses e não descobrira uma mulher a seu gosto. Quando lhe apetecia sexo, ia às compras, como costumava dizer. Com o dinheiro arrecadado durante uma vida inteira a vigarizar otários e a sacar carteiras, conseguira comprar o trespasse do Águias. A maioria da clientela eram velhos do bagaço e ladrões sem rumo certo, porém ganhara o estatuto de comerciante e, se jogasse à defesa, teria ali sustento com alguma decência. Bastava fazer de conta que não via e não ouvia. Quando a chibaria aparecesse a fazer perguntas que pusessem o negócio em perigo, bastava responder:

– Não vi, senhor guarda. Não ouvi, senhor agente. Bem gostaria de o ajudar, que sou um ex-preso devidamente reinserido, mas não vi nem ouvi a ponta de um corno!

Se bem que não suportasse polícias, uma raça maldita que, por dá cá aquela palha, lhe dera a cana vezes sem conta, também não nutria particular admiração por mulheres. Embora ainda não tivesse cinquenta anos, dentro de si habitava um velho patriarca, que considerava o sexo feminino como uma sequela. Eram uma mera necessidade. Deviam parir, abrir as pernas quando um homem tivesse vontade, tratar da roupa, dos afazeres domésticos e levar umas lambadas nas trombas quando tentassem falar de igual para igual com um macho. Vinha na Bíblia. Eram semente do pecado e pouco dadas ao trabalho. Bastava ver as cadeias. Por cada mulher presa, havia dez homens detidos. Essa mania das igualdades era coisa de maricas e de tipos que não os tinham suficientemente pretos.

Mulher mais parecida com homem, amiga de um copo e de discutir futebol, de falar de cus de gajas e gostar de petiscos era coisa difícil de encontrar, e Bazófias contentava-se em ir às compras quando os calores apertavam. Engatava semanalmente entre o Campo de Santana e, descendo os Capuchos, a Rua das Pretas. Andava numa dessas noites à procura de mercadoria e ficou embasbacado quando encontrou Almerinda caçando cabritos. Parecia que tinha saído de uma fita do Olympia. À primeira vista, julgou tratar-se da Nicole Kidman. Alta, com curvas bem feitas e peitos levantados, os olhos de esmeralda e os cabelos castanhos encaracolados, brilhantes, eram adornos de tão formidável escultura. Os lábios carnudos pediam beijos e Bazófias não conseguiu conter o melhor piropo que lhe veio à cabeça:

– Santo Deus, és toda boa! Nem pareces puta.

Era verdade. Não possuía, ainda, qualquer sinal de degradação física, as olheiras não tinham chegado nem o rosto fora vergastado pelos traços que contavam madrugadas e brutalidades. Foi a Delfina, puta com vinte anos de ataque, quem o avisou:

– A Almerinda é fresquinha. Fui eu quem a trouxe para a vida ainda não há seis meses. Portanto, trata-a bem e paga melhor. Vai contigo por setenta e cinco euros.

– Tás marada, Delfina? A droga comeu-te os miolos? Isso não é preço de puta de rua.

– Se fosse para um clube de ricos cobrava três vezes mais. Eu é que não deixo, jurei à mãe dela que a guardava como se fosse minha filha. Queres comer bife do lombo largas setenta e cinco aerius e o quarto é à parte. Queres carne de vaca velha e eu despacho-te por uma nota de vinte. É pegar ou largar.

Não teve tempo para regatear. Aproximava-se outro cabrito interessado e, pelo sorriso baboso, percebia-se que levava a miúda por qualquer preço. Bazófias, ainda que com um aperto no coração, pagou. No entanto, deu graças a Deus pelo dinheirão que gastou. Almerinda estava verde e entregava-se. Desconhecia os truques da prostituição experimentada e entregava-se! Há muitos anos que Bazófias não comia um manjar tão delicado e nessa noite dormiu com Almerinda na cabeça. Precisava de voltar a vê-la e abraçá-la contra si. Sentir os seus espasmos e gemidos e viajar pelo seu corpo qual marujo com vento de feição. Repetiu a visita e não conseguiu discutir o preço. Queria-a. Desejava aquela pele fina, acetinada, que sabia a mel e rosas e era um verdadeiro céu para os dedos suaves de um carteirista a preceito. Tornou a sonhar com ela e, finalmente, a sentir ciúmes por saber que, ao preço de setenta e cinco euros, um ranhoso qualquer se esvaía naquele corpo de deusa. Teve de admitir. Não estaria apaixonado, porém, Almerinda tinha-o agarrado, como a coca faz aos que snifam a brincar. Foi frontal na proposta:

– Não passo de um bandido reformado. Exploro o café Águias e preciso de uma mulher. Alguém que trate das bifanas e da loiça. Vens comigo e juro que não te dou porrada. Não sou muito dado a violência e preciso de companhia. Tu deixas de ser puta e não quero saber do teu passado. Eu estou usado. Tu estás usada, mas em bom estado. E, mesmo que sejamos dois vadios que demos uns pontapés nos bons costumes, não nos fica mal procurarmos quem nos conforte sem precisar de alugar afectos durante uma hora. Exijo uma única coisa. Que não me encornes e tu contarás sempre com o meu respeito. Acabou-se o putedo, se quiseres vir comigo.

Bazófias atingiu-lhe o coração pela sinceridade e Almerinda aceitou. Foram viver juntos, acreditando que não seriam infelizes para sempre. No entanto, dois anos depois deste entendimento de conveniência, onde nunca existira a palavra amor, Bazófias começara a desatinar. Cada vez era mais um proprietário do que um amante. Os primeiros sinais chegaram sob a vestimenta do ciúme. Bastava que captasse um olhar fortuito de qualquer homem apreciando as curvas da mulher e ele amuava. Impunha-lhe medidas de coacção, como se de um juiz se tratasse. «Quando fulano entrar no café, vais para a cozinha, que o animal come-te com os olhos; não venhas servir com essas calças tão justas; guarda-me essas mamas, pela tua rica saúde, numa camisola decente.» A verdade é que, conforme a repressão crescia, os silêncios entre ambos eram cada vez mais frios e as noites minguaram de prazer. Ela reclamava atenção, ele exigia obediência e, quer um quer outro, foram caminhando pelos degraus da indiferença até que Tosta Mista a apertou contra si. E agora, passado o episódio que trouxera mais amargura, Bazófias procurava-a com a fúria de um macho ferido e ela entregava-se, como se pedisse desculpa ou acreditasse que os velhos tempos de companheiros haviam regressado. Contudo, Almerinda percebia que esses dias tinham passado e jogava com ele. A exigência sexual que lhe impunha era um desafio. Onde falta a força da ternura, qualquer outra força, ou falta dela, é apenas uma tentativa efémera que Bazófias era incapaz de entender. A mulher estava a ficar cansada da solidão e, quando se percorre um caminho assim, nem o sexo mais viril consegue curar feridas que doem sem cessar.

Entretanto, Diana não dormira. Nicha preparava um café quando um grito a sobressaltou. Correu a espreitar e ficou surpreendida. Os olhos da amiga brilhavam de excitação e de insónia. Nas mãos segurava um papel.

– Encontrei, Nicha! Encontrei-os todos.

– Quem? – perguntou.

– O trio de canalhas que destruiu a minha família.

– Foram três?

– O Luís Felisberto era o presidente! – olhou o papel e leu com avidez: – Deodato Gonçalves e Simões Carrapato eram os administradores. É a acta da reunião em que decidiram o despedimento do grupo de trabalhadores que incluía o meu pai. Está aqui a lista. Mais de cento e cinquenta infelizes.

Nicha não respondeu. O transtorno de Diana era evidente. Sentava-se, levantava-se, agitava o papel com fúria e explodia em ameaças difusas contra a vida daqueles três indivíduos.

– Juro-te, vou dar cabo deles. Um a um, vão beber do fel de que me tenho alimentado ao longo destes anos todos. Obrigo-os a provarem cada mágoa, cada lágrima, cada dor que vivi. Não me escapam. Juro-te que não me escapam.

– Já passou tanto tempo, Diana! Não era melhor esqueceres essas mágoas? Temos a vida que Deus nos destinou – contemporizou Nicha.

Diana espumava de revolta.

– Que vida?! Isto é viver? Não existe nada nesta casa que não seja roubado. Não usas uma única moeda que não tenha pertencido a alguém que foi forçado a entregá-la. No dia em que pararmos de roubar e de vender pó, acabou-se a nossa vida e resta a fome. A fome, Nicha! É esta a cor do futuro. Negro e esfomeado. Estes ordinários decidiram que ia ser assim. Não foi Deus. E tudo se passou com três reles assinaturas, fechados num gabinete qualquer, indiferentes à sorte dos infelizes que despediram. Que lhes importa isso quando discutiram lucros? Que importância tem para estes bandidos a sorte e o destino de quem perde a esperança? E tu vês. Eles são os bons, os tipos a quem nada falta, e nós somos os maus. Achas justo? Diz-me que achas justo as coisas serem assim.

Nicha hesitou antes de responder. Conhecia aquela raiva antiga. Como um luto revoltado que umas vezes se manifestava em longos e pesados silêncios ou que, tal como agora, emergia como lava de vulcão irado, capaz de devastar florestas e transformar rios em escoadouros de sangue e morte.

– Não, não é justo – respondeu por fim e acrescentou: – Mas a dor que te atormenta não resolve nada. Nem os teus pais ressuscitam, nem com a morte desses três pulhas o mundo muda. Haverá sempre quem disponha da vida dos outros e nunca deixarão de existir bandidos como nós.

– Mas eu faço justiça àqueles que amo. A minha justiça.

Nessa manhã nem tomou o pequeno-almoço. Determinada, pegou num casaco e saiu, rápida. Nem cumprimentou Francisquinho, que, àquela hora, já vendia pó aos ressacados. O rapaz estranhou a pressa de Diana, mas não ligou muito. Deveria estar a preparar um golpe para essa noite. A ideia animou-o. Serviu dois clientes de pastilhas de ecstasy e decidiu ir beber a cervejola da manhã com dois dedos de conversa ao Bazófias, que, ao contrário do habitual, abrira a tasca já o Sol ia bem alto.

Encontrou Zé Cigano e convidou-o para a mini. Sentaram-se na esplanada e repararam que havia alguma animação no largo. Todos os meses, o Travanca das toalhas chegava, abria os taipais da camioneta e apresentava ao mulherio as toalhas bordadas para mesas, lencinhos com flores, lençóis, cobertores e conjuntos de toalhas turcas. Vendia fiado, a prestações que eram pagas ao mês, e dizia-se que mais barato porque ia comprar às fábricas. Zé Cigano desconfiava e todos os meses repetia a mesma piada quando o observava a regatear preços ou a desvendar as preciosas qualidades da mercadoria às mulheres que cercavam a camioneta.

– Eu ainda andei na escola e sei o que é um verbo. O Travanca baralha-os. Desconfio de que devia dizer: vou gamar às fábricas em vez de comprar. Tem pinta de ladrão.

Francisquinho embirrava com este juízo. Achava o Travanca apenas baril.

– Tem pinta de ladrão, porquê? O que temos nós de especial para que alguém possa olhar e dizer: este tipo é gatuno!? Deixa-te de lérias, meu. O Travanca é um bacano, sem categoria para ser ladrão a sério, meu. É o nosso caso. Ladrões a sério, meu. O Travanca está atrasadinho, meu. É capaz de gamar nos trocos e daí não passa. É apenas um bacano baril.

O cão escanzelado que deambulava por ali aproximou-se, sonâmbulo, atraído pela vozearia das mulheres tecendo comentários às toalhas. Observou-as por alguns instantes e desinteressou-se. Enroscou-se debaixo da camioneta, aproveitando a sombra amena, e adormeceu.

Bazófias aproximou-se dos rapazes. Vinha carrancudo e perguntou, mal-disposto:

– São duas minis?

Francisquinho olhou-o, desconfiado.

– Estás bem, meu? Hoje abriste tarde a espelunca.

– Fui ao médico. Ando aqui à volta com uma coisa de nervos.

– É da crise, man. Ninguém liga ao que eu digo, mas é da crise. Uma pessoa não dá conta, mas os nervos abanam por todo o lado. Um man abana todo. A crise é assim mesmo. Veio para abanar o país, abanar as pessoas, abanar os nervos. É a crise, meu.

Bazófias suspirou, preocupado. Na verdade, estava mesmo combalido.

– Não sei se é da crise, se é o Benfica que não está a jogar nada, mas a coisa não funciona.

– Qual coisa? – perguntou Zé Cigano, sem perceber.

O carteirista sobressaltou-se.

– Eu disse coisa? Sim, a minha saúde. Tomei agora o primeiro comprimido que o doutor me receitou. Vamos lá ver se funciona.

– É para o coração? – insistiu o Cigano.

Bazófias reagiu, irritado.

– Sei lá se é para o coração, se é para a tosse. É para os nervos. Algum de vocês sabe onde são os nervos? Estão no corpo todo, portanto é um comprimido para o corpo. Qual coração, qual caralho!

E foi buscar as cervejas, resmungando imprecações.

– Perguntei alguma coisa de mal para o gajo ficar assim tão irritado?

– Não – respondeu Francisquinho ao amigo, e adiantou a sua interpretação do mau humor do taberneiro. – Ninguém acredita em mim, mas eu é que tenho razão, meu. A crise vai dar cabo dos nervos de toda a gente e o euro vai arruinar todos os negócios. Até os nossos, meu. Tu vais ver, meu. O Bazófias é a primeira vítima, mas outros se seguirão. É já cota, o cabedal não aguenta tanto. Por isso, este país vai deixar de ter gente. Vai ser só nervos. Nervos por todo o lado, meu. Maralhal zangado, tipos a pendurarem-se pelo pescoço, outros a darem tiros na corneta e o resto tomando comprimidos para os nervos. Vais ver, meu.

Quando trouxe as cervejas aos dois rapazes, aparentava estar mais calmo e Zé Cigano tornou a perguntar:

– Isso está mais calmo? O comprimido já começou a fazer efeito?

A resposta de Bazófias foi inesperada e violenta:

– Se fosses à merda, hã? E se fosses à merda? – e voltou-lhe as costas, a galope.

Os dois rapazes ficaram atónitos. O Bazófias era tudo menos o tipo explosivo que agora parecia ser. Aliás, um burlão, e ele tinha sido um excelente burlão, nunca perde a cabeça. Domina o jogo de fio a pavio com presença de espírito para encontrar a resposta mais conveniente. Aquela tirada de assaltante à mão armada não casava com o seu perfil, e Francisquinho confirmou as suas suspeitas.

– A crise vai rebentar com os nervos de toda a gente. Não há hipótese de salvação. Isto vai ser um mar de nervos, meu. Um mar de nervos.

– Se for como tu dizes, temos de gamar mais. A Diana não tem nada preparado? – quis saber Zé Cigano.

– Não sei. Hoje passou por mim e ia a duzentos. Deve estar a organizar alguma coisa grande. Isto está perigoso, meu. Se os nervos chegam aos gatunos, morremos à fome. Esse é que é o problema. Morrer vá que não vá, mas o estômago colado à espinha é morte de cão. Não há coisa pior, man.

Francisquinho acertara, sem saber, nos desígnios de Diana. Nem ela sabia do golpe quando saiu de casa para ir encontrar-se com o Gusmão, velho amigo de misteriosas origens, que vivia numa luxuosa vivenda no Restelo e que era o seu mais fiel contacto com o mundo social das páginas das revistas e colunas cor-de-rosa. O engenheiro Artur Gusmão, como era conhecido, era um sessentão de bom aspecto, sorridente, cujo corpo bronzeado contrastava com o farto e bem penteado cabelo branco. Vestia com distinção e ganhara fama de conquistador e encantador. Diana levantara-o da cama com o telefonema que lhe fizera umas horas antes e o encontro ficou marcado para o Piazza di Mare, junto ao rio.

Folheou os papéis que ela lhe apresentou. Leu com atenção perante a impaciência da rapariga. Finalmente, informou-a:

– Conheço os três. Este Simões Carrapato morreu o ano passado. Uma doença qualquer.

– E os outros dois? – perguntou Diana, sem esconder a contrariedade.

– O Felisberto e o Gonçalves andam por aí na administração de empresas.

– Conhece-os há muito tempo?

– Talvez há uns sete, oito anos. Não sei. Qual é o seu interesse nesses tipos? São apenas mais dois idiotas dos muitos que se divertem a ganhar dinheiro fácil a expensas do Estado.

– Para mim, são um pouco mais do que isso. Tenho contas pessoais a ajustar com esses dois pulhas – afirmou com determinação.

Gusmão soltou uma gargalhada bem-disposta. Os dentes eram alvos. Talvez fosse uma dentadura postiça, mas pareciam naturais e eram perfeitos.

– A menina está a chamar-me pulha?

– A si? Deus me livre. É um dos meus amigos e confidentes.

– É que, se essas criaturas apagadas, que não cometeram outro crime a não ser aproveitar-se das cunhas, são pulhas, o que serei eu?

– Um homem bom. Apenas isso – defendeu, com sinceridade, e tornou ao motivo do telefonema: – Preciso de conhecê-los, de saber onde moram, onde trabalham.

Artur Gusmão olhou-a com atenção, enquanto bebericava o café. A determinação que havia no rosto de Diana não lhe escapou.

– Essa expressão preocupa-me. Cheira a vingança.

– Digamos que tenho uma factura antiga para apresentar aos dois. Tem catorze anos de atraso. Ficar-lhe-ei eternamente grata se me ajudar a sair deste pesadelo que me atormenta há tantos anos.

O suposto engenheiro ficou em silêncio por instantes, enrolando a saqueta vazia de açúcar, e o sorriso que lhe iluminava o rosto foi mirrando até que ficou com um ar grave. Olhou-a fixamente e disse:

– Ajudo-a com duas condições. Não quero saber nada sobre as tais facturas que quer apresentar a esses dois patetas.

– Compreendo. Assim não há compromisso nem cumplicidade. E qual é a outra condição?

Olhou em volta. Depois, perdeu-se, observando, distraído, dois navios que se cruzavam rio abaixo, rio acima. Por fim, confidenciou:

– Tenho um cliente em Rabat que encomendou Mercedes da classe trezentos ou acima, e o navio parte depois de amanhã. Não sei como satisfazer o pedido em tão pouco tempo.

– São quantos Mercedes? Três ou quatro?

– Doze! – respondeu, como se estivesse a confessar uma traquinice, e acrescentou, como que pedindo desculpa: – Claro que pago cinco mil euros por cada um. Em notas.

Diana não fez comentários. Seria difícil arranjar uma quantidade tão grande de automóveis daquele tipo em tão pouco tempo, embora o amigo pagasse uma boa maquia. Respondeu com uma pergunta:

– Quando me mostra os indivíduos de quem lhe falei?

– Tem muita pressa?

– Estou à espera há tantos anos que, agora que os encontrei, tenho a mesma urgência que o senhor nos seus Mercedes.

Retornou ao silêncio melancólico dos poetas. O engenheiro Gusmão chegara à titulatura académica com a pá de cimento na mão. Começara aos sete anos como servente do seu pai, pedreiro afamado para as bandas de Torres Vedras, e cedo percebeu que era trabalho para o matar. Não há projecto de riqueza nos carregamentos de baldes pesados de cimento. Apenas dor e esgotamento no final de cada dia. Aos quinze anos, com calos velhos nas mãos, decidiu partir à aventura para Lisboa. Naquele tempo, com o currículo que acumulara, foi promovido a pedreiro e integrou a legião de operários que construía a Cova da Piedade. Aprendeu muito, ajudando a fazer crescer andares em monumentais blocos de apartamentos mais pequenos do que o quintal onde a sua mãe criava galinhas e a preços que engasgavam de espanto. Cada barraco pintado de fresco, com casa de banho apertadinha e cozinha estreitinha, mas com varanda, era vendido por dez vezes o seu custo. Decidiu arriscar. Um fiscal da câmara conhecia a palmo todos os terrenos que podiam ser urbanizados e entenderam-se. Gusmão entrou com um empréstimo ao banco e o fiscal mexeu os cordelinhos para as autorizações necessárias. Ficaria com dez por cento do lucro e o candidato a empresário sentiu-se roubado. Contudo, ou aceitava o desafio ou estava condenado à pá de pedreiro para o resto da vida.

– Confia em mim. Começas com duas vivendas. Aqui só existem caixotes de dez andares sem espaço para uma pessoa espirrar. Mete-lhe uma garagem e dois palmos de jardim onde passam plantar umas couves e criar uns coelhos e ainda não acabaste e já estão vendidas.

Aceitou o desafio. Não queria continuar a dormir na camarata da obra, passar a vida a comer sardinhas de conserva e resumir os tempos livres aos copos de três que, pelo fim da tarde, consumia na conversa com os companheiros de trabalho. Sair daquela escuridão em que se albergava, e o esperava nos dias futuros, transformou-se numa obsessão e seguiu a orientação do sócio. Passados quatro meses, o dia iluminou-se. Tinha acabado de fechar o telhado da segunda vivenda e o betão não tivera tempo para secar. O sócio apresentou-lhe dois possíveis clientes, que nem pediram tempo para pensar. Ao preço a que Gusmão vendia, queriam aquelas e mais uma dúzia com o mesmo modelo. E deixavam já sinal com a contrapartida de colocar em ambos uma placa da empresa que representavam. O cheque que recebeu pagava o empréstimo e sobrava dinheiro. Nesse momento, arrependeu-se de ter decidido um lucro de seiscentos por cento. Fora tão fácil o negócio que o fiscal teve de explicar o feliz evento.

– Quem te comprou isto foi uma imobiliária. Os otários compram a estes amigos e assim toda a gente lucra com o negócio. Aquilo que ganhaste hoje é muito mais importante do que o lucro que obtivemos. Conquistaste uma encomenda. Agora, não vais ao banco. Pedes um avanço de compromisso à imobiliária e depois destas vivendas outras virão.

Passaram alguns anos para descobrir que o fiscal era também sócio da empresa que lhe comprava as vivendas. Ele e o seu director, que aprovava projectos à velocidade da luz. Chamavam-lhe o esquema. Toda a gente ganhava com o negócio e, caladinhos, seriam felizes para sempre. Quando concluiu a trigésima quinta vivenda, Gusmão já vivia no Restelo, numa que fizera para si, e não se poupara na construção. Era um verdadeiro palácio e foi então que decidiu juntar ao seu cartão-de-visita o título de engenheiro. E fez bem. O cartão abriu-lhe portas a outros negócios e a outra gente para lá do mundo dos patos-bravos. Aquele negócio dos carros de luxo para Marrocos fazia parte do lote dos mais fáceis. Dois telefonemas e uma quadrilha a roubar para si. Nem precisava de sair da sua luxuosa sala para lhe caírem nas mãos pequenas fortunas.

– Muito bem! – disse, por fim. – Este fim-de-semana apresento-lhe o Gonçalves. Vai comigo a uma festa onde ele estará. Uma recolha de fundos para uma obra social organizada por um grupo de gente bondosa, que gosta de mostrar que ajuda os pobrezinhos. Mas há uma condição, Diana. O homem não vai morrer.

Diana esboçou um gesto de contrariedade e perguntou:

– E o Felisberto?

– Esse conheço-o de vista e é um importantão mais sabido do que um rinoceronte.

– Está combinado.

Gusmão tornou a mostrar o sorriso brilhante que o tornava tão fascinante entre as mulheres.

– E os Mercedes? A nossa conversa é um negócio.

Diana levantou-se, decidida.

– Fale com o seu cliente marroquino. Depois de amanhã, os seus Mercedes irão a caminho de Rabat. Logo à noite, combinamos pormenores e traga metade do dinheiro, como é habitual.

De repente, a busca de anos começava a dar frutos e trazia trabalho associado. O mais difícil era enfrentar Gonçalves e cumprir a obrigação de não o matar que fizera com Gusmão. Era uma barreira que não esperava e confiou que haveria de arranjar outra solução. Porém, Diana acreditava que o caminho se abria para conseguir resolver pesadelos e amarguras tão velhas que antecipava o sabor da liberdade para os próximos tempos. Chamou os dois rapazes da sua maior confiança e disse-lhes:

– Temos uma pessoa que precisa de doze Mercedes até ao meio-dia de depois de amanhã.

– Isso é impossível! – exclamou Batman. – Os sistemas de segurança dos Mercedes não se desmontam com facilidade.

– O Necas trata disso – respondeu Diana. – Ele é o mágico da electrónica.

– Mas doze?! – protestou ainda Batman.

– São sessenta mil euros e têm de ser da classe trezentos para cima. De qualquer modelo. Eu prometi que trataríamos do assunto – e, voltando-se para Necas, perguntou: – Não dizes nada?

– Para gamarmos essa quantidade de Mercedes temos que fazer dois ou três standes de usados. É mais rápido. Eu conheço um, mas não haverá mais de quatro Mercedes para vender.

– Falem com o Zé Cigano e com o Francisquinho. Devem conhecer. Quase todas as semanas sacam um carro.

– Mas gamam micharia – comentou Batman com algum despeito, pois considerava-se o melhor do grupo a fazer automóveis.

Diana terminou a reunião de forma pragmática.

– Pouco importa. Descubram os sítios onde podemos fazer o serviço que eu organizo o plano e trato dos sessenta mil euros.

Na verdade, Francisquinho conhecia a cidade como ninguém. Não admirava. Inquieto e vivo, corria todos os recantos onde pudesse passar doses de coca e comprimidos. Discotecas, bares nocturnos, centros comerciais eram por ele passados a pente fino. Porém, nessa tarde procurava resolver um mistério, o que estava a abalar as rotinas do largo que era a sua casa. O Águias fechara as portas pela hora do almoço e não houve bicas nem bagaços, e do Bazófias nem sinal. Zé Cigano e Manuela participavam nas diligências para perceber a que se devia aquela monumental anormalidade.

– Ele foi ao médico logo pela manhã e disse-nos que tomou um comprimido – recordou Zé Cigano.

– Mesmo que esteja docente, a Almerinda abriria o tasco – retorquiu Francisquinho, intrigado com a situação, e aclarou o seu juízo: o Bazófias gosta tanto de dinheiro que perder o lucro de uma bica é uma tragédia para ele.

– Terá ido para o hospital e a Almerinda foi com ele? – perguntou Manuela, preocupada.

Zé Cigano desvalorizou a questão.

– Se fosse assim, toda a gente sabia. Que comprimido terá sido aquele?

O Bazófias queixou-se dos nervos.

– Estarão os dois mortos dentro do estaminé? – desafiou Francisquinho, com a curiosidade a impeli-lo a arrombar a porta.

– Estás doido? E quem os matava?

– Um ao outro. Todos nós já vimos as cenas de ciúmes que ele faz. Podem ter desatado à estalada e pronto. Deu-lhes o ámoque.

Naquele momento, na esplanada já tinha aumentado o grupo de curiosos, com destaque para os velhotes que ali costumavam jogar às cartas, e cada um avançava a hipótese mais à mão.

– Fizeram qualquer serviço e a bófia veio buscá-los.

– Se metesse bófia, tinham dado espectáculo.

– Talvez tivesse ido visitar algum parente.

– Meu, imaginas o Bazófias fazer visitas de cortesia e a perder dinheiro?

– É o que eu digo. Estão mortos.

– E se arrombássemos a porta?

– Estou há mais de uma hora à espera do bagaço. Isto assim não dá.

– Ele foi sempre coirão e ela nunca foi amiga de trabalhar.

– Lá isso...

– Que comprimido seria aquele?

– Um homem, quando vai para os cinquenta, tem de se pôr a pau e a Almerinda, para além de ter menos vinte anos do que ele, é rapariga de muito alimento.

Esta avaliação das mulheres irritava Manuela.

– De muito alimento, porquê? A pobre da rapariga farta-se de trabalhar e de aturar o feitio dele. É um machista ordinário como todos os homens daqui.

– Tás-me a dizer que ela não é de alimento? Com um corpinho daqueles?

– O que tem uma coisa a ver com a outra? As mulheres não gostam de sexo. Preferem fazer amor. Para vocês desde que haja uma rata têm o problema resolvido.

– Não é bem assim.

– Claro que é assim. Palermas!

Manuela estava furiosa com as bocas foleiras que os clientes não paravam de mandar. A discussão parou subitamente. A porta do Águias abriu-se e um Bazófias sorridente, cabelo ainda molhado do banho, observou a plateia que se juntara na esplanada.

– Desculpem o atraso, mas estive a resolver assuntos há muito tempo adiados.

– A Almerinda está bem? – perguntou Manuela, com alguma ansiedade.

– Do melhor – e não conteve o orgulho: – Depois do tratamento que levou, está a dormir como um anjinho.

Alguns não perceberam a fanfarronada e, enquanto se instalavam, Francisquinho procurou esclarecer que tratamento levara a Almerinda.

– Deste-lhe um enxerto de porrada – alvitrou. – Não faças mal à miúda. É uma tipa baril.

Bazófias soltou uma gargalhada bem-disposta e havia orgulho incutido na voz.

– Há muito tempo que devia ter ido ao médico. Os nervos dão cabo da gente. Um homem não tem cabeça, nem vontade para nada. Foi só um comprimido e os reactores de uma pessoa atingem a potência máxima. Levou duas seguidas. Duas! Ficou satisfeita da Silva. Olarila! Está a dormir que nem um anjinho. Foi Deus quem inventou aquele comprimido. Só pode ter sido Deus!

– És muito porco – protestou Manuela.

– É verdade – concordou o velho Jeremias, batendo com a bengala repetidamente no chão: – Este Bazófias é um ordinário. Quem não respeita a mulher com quem dorme, é mesmo ordinário!

Porém, a vaidade do carteirista era tal que não conseguia escutar as palavras de censura e continuava a narrar a sua odisseia, enquanto tirava cafés à pressão.

– Limpinho, limpinho. Até tomei banho e tudo. Só vos digo. A Bíblia está incompleta. Deus não fez a Terra em sete dias. Acabou o trabalho quando inventou o comprimidinho amarelo. Deixei-a de rastos. Está a dormir a sesta.

Francisquinho ia atacar as bocarras do Bazófias, mas Necas chamou-o da porta do Águias. Zé Cigano seguiu-o.

– Conta aí, meu. Há trabalho?

– E grande. Precisamos de entregar doze Mercedes amanhã à noite – murmurou Necas.

– Isso é muita fruta. Não podem ser Saxos? Ponho-os a trabalhar com um clipe – informou o Cigano.

– Não, não podem. O Batman lembrou-se de que uma quantidade destas só se encontra num stande de usados. Ele foi confirmar quantos há num que ele conhece.

– Eu sei de um stande que tem uns trinta – avançou Francisquinho, entusiasmado, e voltando-se para o Necas avisou: – Mas ou és tu quem os põe a trabalhar, ou não vai dar mesmo. São inteligentes para cacete. Quando fecham, fica tudo morto. Motores, rodas, portas, tudo morto. Mais mortos do que o Bazófias sem comprimido amarelo.

Necas quis ir confirmar. Decidiram ir de metro. Era para os lados da Expo e viajaram à borla. Passaram por dois polícias na entrada de Entrecampos, que olharam desconfiados para os três rapazes. Não lhes ligaram e enfiaram-se no primeiro comboio que apareceu.

Era um enorme parque que expunha viaturas usadas. De todas as marcas e modelos, envolvidos por uma rede sólida, que Zé Cigano tocou com os dedos.

– Tenho um alicate que corta esta rede como se fosse manteiga.

– Onde guardarão as chaves? Estão aqui mais de quinhentos – quis saber Necas.

– É naquele pavilhão lá ao fundo, meu! – esclareceu Francisquinho: – Já aqui estive bué de vezes, mas nunca gamei, meu. Só para admirar.

De facto, na parte norte da exposição encontravam-se os escritórios, onde, de longe, se podiam ver várias pessoas que entravam e saíam ou tagarelavam próximo.

– Os Mercedes estão ali. Vamos vê-los de perto?

Necas recusou. Se iam fazer o serviço naquele espaço, quanto menos gente os visse, melhor.

– Fiquem aqui. Eu vou ver os Mercedes.

Entrou no recinto. Parecia-lhe um enorme parque de estacionamento, com intermináveis filas de carros alinhados conforme as marcas, com um papel no vidro dianteiro indicando o preço e a garantia. As viaturas de maior valor alinhavam-se numa zona privilegiada e Necas experimentou a primeira contrariedade. Eram protegidas por câmaras de videovigilância. Pelo menos havia duas e uma terceira à porta do escritório. Não tinha tempo para descobrir onde se encontrava a central que geria o dispositivo, pois um vendedor, engravatado e sem casaco, observou-o com desconfiança.

Respondeu-lhe com um sorriso e o outro aproximou-se:

– O amigo precisa de alguma coisa? Não vem comprar, pois não?

Devolveu outro sorriso ao questionário agressivo e explicou-lhe, com a simplicidade de um gesto.

– Tem razão. Não venho comprar. Era só para ver.

– Se é assim, espreite lá de fora. Aqui trabalha-se.

– Desculpe, se pareço um intruso, mas até preciso de um conselho. Estou a terminar o décimo segundo ano e os meus pais prometeram-me um carro usado se entrasse para a universidade – assumiu o ar mais cândido do mundo e murmurou, quase envergonhado: – Eu sei que vou entrar. Estou com média de dezoito.

O vendedor distendeu a expressão e, de carrancudo, passou, num ápice, à simpatia mais radiosa.

– Sendo assim, fique à vontade e pergunte o que quiser. É para isso que aqui estou e com muito prazer por poder ser útil a um brilhante aluno. Tem alguma ideia de quanto os seus pais querem gastar?

Olhou para a fila de Mercedes e afagou aquele que estava mais perto. Eram mais de vinte estacionados lado a lado e gracejou:

– Um destes não é com certeza. Uma coisa aí para doze mil, quinze mil euros.

O vendedor abriu o livro. Para esses preços tinha uma panóplia tão variada de oferta que as palavras desabavam em catadupa, descrevendo virtudes das várias marcas e o bom estado de conservação, rematando glorioso:

– Para essa marca temos aí dois ou três que não chegaram aos vinte mil quilómetros. Foi só a rodagem.

E passava a outro modelo com entusiasmo, fora dos limites de velocidade, orgulhoso de poder mostrar àquele jovem candidato a automobilista que era muito mais do que um vendedor. Era um sábio! E dissertava sobre embraiagens e suspensões em profundo delírio, enquanto Necas, com aparente atenção, o levava pela fileira dos Mercedes majestosamente exposta. Por fim, faltava-lhe ver o interior do escritório e tentar descobrir onde estaria o imenso chaveiro de todos aqueles automóveis, assim como a central de videovigilância. E perguntou:

– Está a fazer-se tarde e amanhã tenho o último teste. Foi tão simpático comigo que me atrevo a pedir-lhe um dos seus cartões para entregar aos meus pais e eles falarem consigo.

– Com certeza, jovem. Venha comigo ali ao escritório. Como disse que se chamava?

– Daniel. O meu nome é Daniel.

O homem era, agora, todo delicadeza. Entraram e Necas deu-se conta de um segundo obstáculo. Os monitores de videovigilância tinham um segurança de olhar fixo em todos os movimentos do parqueamento. O chaveiro não o incomodou. Era um enorme armário de alumínio articulado, com portas de correr, encostado ao longo de uma das paredes. Tornou a olhar os monitores com atenção, pois o vendedor ficara preso numa chamada telefónica. Era evidente que a vigilância não baixava durante as vinte e quatro horas e, por outro lado, tendo em conta o escasso tempo para encontrar outro stande, aquele era o sítio ideal para sacar doze Mercedes de uma só vez.

Confrontou Diana com a situação, rabiscando um esboço da planta da exposição com a localização do escritório. Ficou preocupada. Era uma manobra demasiado arriscada, que obrigava a anular o segurança.

– E tem ainda outro problema – reflectiu em voz alta.

– Qual?

– Mesmo que leve a Nicha connosco, não somos capazes de retirar os Mercedes de uma só vez. No máximo, levamos seis. Não conseguiremos regressar para ir buscar os restantes. Só se... calou-se, como se uma ideia lhe tivesse surgido naquele momento.

Necas ficou a olhá-la, sem perceber.

– O que foi?

– Vamos precisar de reforços. Os nossos sessenta mil euros talvez tenham de ser encurtados.

Ligou para um número que o rapaz não percebeu e disse:

– Bom dia. Temos de falar. Prepare as coisas para daqui a uma hora!

Desligou e tornou a olhar o rascunho.

– Há algum ponto morto na vedação?

Necas apontou o dedo.

– Aqui, ao lado do escritório, mas tem de ser feito com muito cuidado porque o segurança pode ouvir. O Zé domina bem o alicate.

– Muito bem. Chama o grupo. Partimos daqui ao anoitecer. Eu vou resolver o problema que falta.

Gusmão já esperava por ela. Encostado a um carro, fumava melancolicamente, observando as gaivotas que passeavam sobre o Tejo. Vista dali, a Ponte 25 de Abril tinha um ar imponente, e o ruído contínuo provocado pelo trânsito entregava-lhe voz própria, ronronando continuamente. Diana estacionou atrás dele e foi encostar-se a seu lado, também com os olhos postos no rio.

– Deu-me pouco tempo e só consegui recolher vinte e cinco mil euros. Temos negócio? – perguntou Gusmão.

– Temos, se me ajudar. Perdoo-lhe os cinco mil que faltam, se me arranjar seis tipos que saibam conduzir...

Gusmão sorriu, satisfeito. A convicção da rapariga dizia-lhe que Rabat ia receber os automóveis.

– Até arranjo mais. Mas porquê? A sua gente está a cortar-se...?

– A minha equipa não falha. Nunca lhe falhámos! – respondeu, ríspida.

– Não se zangue, não me interprete mal.

– O serviço tem de ser feito com rapidez. Precisamos de arranjar doze condutores e eu só tenho seis.

– Conseguiu os doze? Você é brilhante!

– São doze, topo de gama, embora usados. Preciso que os condutores estejam a cem metros do armazém. Vamos entregando carros e eles levam-nos para as suas instalações no porto.

– É só dizer o local. Eles estarão lá.

– Daqui por três horas junto à antiga torre da Galp. Quando o serviço terminar, vou ter consigo. Tenha o resto do dinheiro pronto!

Dirigiu-se ao carro e parou, olhando-o com frieza.

– Oiça, é um golpe demasiado arriscado para ter falhas. Que nenhum dos seus condutores seja tonto, porque não porei a minha gente em perigo por causa de coirões.

Gusmão esboçou um sorriso apaziguador.

– Os seus ladrões são-lhe assim tão queridos?

– São a minha vida!

E Diana partiu sem mais explicações.


5
UM ASSALTO PERFEITO
E OUTRO IMPERFEITO

Quando a noite caiu, começaram a juntar-se na esplanada do Bazófias. Era um velho ritual. A matilha reunia-se antes da caçada, trocando lugares-comuns, reservando a adrenalina para os momentos decisivos, quando atacassem a presa, e cumpriam a regra de ouro que cimentava a segurança do bando. Quem entrava num serviço mantinha segredo de confissão, quem não era escolhido por Diana estava proibido de perguntar. Ela treinava-os repetidamente.

– Há limites para o risco. Quem o ultrapassa é louco ou precisa de salvar a vida. Portanto, só tem informação quem dela precisa. Mais ninguém. É perigoso saber de mais e ainda mais perigoso saber de menos.

Compreendiam a regra. Se não soubessem, mesmo que a polícia os espancasse, não teriam respostas, por outro lado, se apanhassem algum daqueles que intervinham no assalto sabiam que tinham de garantir o silêncio sobre os seus actos mesmo que jorrasse sangue por toda a esquadra. Para Diana, a traição tinha um preço. Todos sabiam o que aconteceu a Perdigoto, um gatuno de quinze anos que se juntara ao grupo. Seis meses depois, a bófia agarrou-o num trabalho em que fora com Batman. Deu à língua e este esteve em preventiva, na penitenciária, durante quatro meses. Só não foi condenado porque o Perdigoto apareceu enforcado. Disseram os peritos que fora suicídio por causa da depressão que padecia devido ao vício da coca. Porém, a quadrilha sabia que pagara a factura por ter chibado um bandido, seu companheiro de ofício. Diana era assim. Impiedosa e clemente. Fria na vingança, quente no afecto. Inteligente e segura na acção. A chefe em quem todos confiavam.

Na esplanada, já estavam Francisquinho e Necas. Bebiam café. Clara sentou-se, snifou uma linha de coca que fizera no pulso e deixou descair a cabeça, gozando a viagem. Francisquinho olhou o céu estrelado e esfregou os braços, reagindo ao arrepio de frio que a brisa lhe provocou.

– Isto está mau, meu – lamuriou. – O país bateu no fundo. Até os janados poupam no pó. Hoje vendi oito panfletos, meu. Oito! Onde já se viu? O ano passado, por esta altura, no mínimo eram vinte e agora oito. O país está marado, meu. Nem se pode ser um drogado a sério. É tudo a cortar-se.

Clara abraçou Necas com languidez, procurando beijá-lo. Empurrou-a suavemente e comentou:

– Eu não sei se é a crise, se é outra coisa. Hoje, o Choné, do grupo do Jorge, andava a vender na paragem dos autocarros.

– Tás a sério, meu? Eu mato o Choné. Dou-lhe dois tiros, man. Dois tiros na carola! Percebia-se que o Choné invadira o território que Francisquinho considerava sua pertença. Os gritos dele enervavam Necas, que empurrou novamente Clara, mas ela não desistia de o beijar.

– Larga-me, pá! Vai curtir para outro lado.

– Anda cá. Abraça-me.

– Larga-me, já disse! Não aturo tipas pedradas – tornou a afastá-la com rispidez. Francisquinho atalhou o conflito com meiguice pouco habitual.

– Anda comigo, miúda. Senta-te aqui ao pé de mim e curte bué – e, voltando-se para Necas, censurou-o: – Não podes tratar assim a chavala. Ela grama-te bué e está pedrada. É preciso paciência, meu.

Aconchegou-a contra si. Clara era docemente frágil e Francisquinho sentia pena dela. Tosta Mista chegou nesse instante e o rapaz continuou a lamúria:

– A vida tá ruim, meu. Pra vender vinte doses, vejo-me aflito. A culpa disto é da Alemanha. São os alemães que mandam na gerigonça toda e a nós mandam-nos à fava.

Tosta Mista gritou:

– Bazófias, uma cerveja! – e o outro continuou a defender a sua tese europeia.

– É o que eu te digo. Estão a conquistar a Europa outra vez. Mandam em tudo, até na coca. A malta está micha. Por cada dose que vendemos aparecem dois marados a pedir borlas. O que é isto, meu? O Governo não olha para a miséria dos que mais precisam e a Alemanha não quer saber. Estão a vingar-se da trepa que o Hitler levou. É isso, man. Isto é uma vingança.

Bazófias surgiu com a cerveja do Tosta Mista, servindo-o com indiferença, e saudou os outros com veneno velhaco.

– Estão a juntar-se. Esta noite vai haver caçada! – e, cúmplice, perguntou: – Algum javali gordo ou gamanço da treta?

Necas reagiu com frieza.

– O que tens tu a ver com isso?

– Não precisas de te enxofrar. Era só uma pergunta. Não ofendi, pois não?

– Mete o nariz na tua vida e desampara a loja.

Bazófias calou-se. Levantou as chávenas de café e afastou-se. Conhecia o Necas. Era o mais amistoso da quadrilha. Capaz de brincar com ele sem se tornar insolente. Porém, o carteirista sabia sempre quando ia haver um assalto pela mudança do seu temperamento. Necas antecipava o golpe e ficava hirto, crispado pela tensão do jogo em que ia participar, e Bazófias respeitava esse estado de alma. Também ele, na véspera de grandes momentos, sentia o coração à solta, apertando-lhe o peito, obrigando-o a respirar fundo para que o ar lhe entrasse nos pulmões.

Necas olhou o relógio. Faltava meia hora para a partida e decidiu:

– Vou tomar mais um café. A noite vai ser comprida.

Quase tropeçou no senhor Inácio, pai da Manuela, que saía do Águias com uma bebedeira que o fazia cambalear e rosnar impropérios. Olhou os rapazes de soslaio, lamuriou alguns insultos incompreensíveis e continuou a cambalear.

– O pai da Manuela é uma besta, meu. Um verdadeiro animal. Não sei como a Dona Carolina atura um estafermo deste tamanho – observou Necas.

– Tens razão. É um estafermo grande – concordou Tosta Mista.

– Dá-lhe porrada, man. Enxerta-as por tudo e por nada. Então quando vai assim, acelerado com o briol, é a lascar. Um filho da puta, meu.

Zé Cigano chegou. Antes de se sentar gritou para o interior do café.

– Bazófias, uma bica escaldada! – juntou-se ao grupo e esfregava as mãos de contente. – Está quase na hora. Vou conduzir o meu primeiro Mercedes.

– Teu, salvo seja. Quando o gamares já tem dono.

– Enquanto o conduzir, é meu! – e, esfregando as mãos de satisfação, perguntou: – Viram a bebedeira que levava o pai da Manuela? Que grande cadela, Santa Maria!

Na verdade, na casa de Inácio, cada noite, antes de ele chegar, viviam-se expectativas dramáticas, ora em lamentos ansiosos ora em promessas de coragem que nunca se realizavam. Carolina, que passava doze horas por dia agarrada à caixa registadora de um supermercado, limpava as lágrimas de medo e desabafava com a filha.

– Não sei o que fiz numa outra vida para merecer castigo assim. Como virá ele hoje, minha Nossa Senhora?

– A mãe tem culpa disto. Ele bate-nos e a gente fica-se. É o come e cala – respondeu-lhe Manuela, revoltada com aquele choro submisso.

– E o que queres que eu faça? Vou à polícia queixar-me?!

– É o que devia fazer. A prisão é o lugar dele.

– É o teu pai, minha filha. Agora ia queixar-me do teu pai?

– É por confiar nesse silêncio que ele se embebeda todos os dias e nos trata a pontapé. A mãe bem sabe que, se não fosse o dinheiro que trago para casa, o ordenado dele mal chegava, por causa dos copos. Um pai não é isto. Um marido não é isto – sublinhou com firmeza.

– Não sabes o que dizes, minha filha. É a nossa cruz, mais nada.

Manuela não suportava a servidão da mãe, que, quanto mais maltratada era, mais submissa se tornava.

– A nossa cruz? Porquê, mãe? Porque havemos nós de transportar uma cruz como Cristo? Nós não viémos ao mundo para salvar a humanidade. O pai não é Deus e, se alguma coisa existe dentro dele, foi-lhe dado pelo Diabo.

– Não digas essas blasfémias, pela tua rica saúde.

Carolina estremecia de medo das coisas que a filha dizia e da forma como as dizia, não escondendo o rancor e a revolta.

– Não temos nada que nos conformar. Juro-lhe! Só não fugi daqui por sua causa. Tenho medo que um dia a mate ou nos mate às duas – gritou, revoltada. – Já viu que vida é a minha? Em vez de ter um pai que gostaria de amar, o meu mete-me medo. Medo por si e por mim. É um monstro!

A fúria de Manuela era tal que não se apercebeu de que Inácio entrara em casa e escutara as últimas palavras dela. Carolina ainda gritou, mas já era tarde. A mão sapuda e gordurosa do homem esbofeteou-a com violência.

– Vadia. Não passas de uma vadia! – rosnou.

Carolina correu a proteger Manuela, abraçando-a, e a fúria do ébrio aumentou. Empurrou-a e desferiu-lhe um pontapé nas costas.

– Não lhe batas. Deixa a miúda em paz.

– Deixa-me. É por tua causa que saiu uma cabra! Sai a ti. Vadia como tu.

E espancava uma e outra, indiferente aos gritos. Por fim, Carolina desgrenhada e arfante, afastou-se e apostrofou-o.

– Só um homem sem dignidade bate em mulheres. Bêbado! Ordinário!

Inácio avançou para ela com os punhos cerrados. Naquele momento, o delírio alcoólico provocava-lhe desejos de a matar. Assestou-lhe um murro na cabeça, enquanto urrava:

– Tu não me chamas bêbado, porca. Eu bebo o que quiser. Cabra. São duas cabras!

O segundo murro deitou a mulher ao chão e ele saltou-lhe em cima, pronto a continuar a tortura. Manuela cegou com aquele quadro. Pegou numa cadeira e desferiu-a com toda a sua força na cabeça do pai. A pancada foi de tal modo certeira que ele desmaiou, rolando por cima do corpo de Carolina. A mulher empurrou-o e levantou-se arquejante. Sangrava do nariz e de uma orelha. Ao vê-lo estendido, perguntou com algum alívio:

– Está morto?

– Não sei! – respondeu Manuela, segurando-se à mesa enquanto procurava recuperar forças.

A resposta deu-a Inácio. Soltou um gemido, virou-se no soalho, encostou a cabeça ao braço e desatou a ressonar, profundamente adormecido. A cólera de Manuela fez estremecer Carolina.

– Vou matá-lo, mãe. Ele não nos volta a bater.

A mulher transfigurou-se com o medo. Debulhada em lágrimas, soluçou súplicas, agarrada aos braços da rapariga.

– Pela tua rica saúde, minha filha. Sai daqui. Vai ter com os teus amigos e não penses nessa maldade tão grande. Sai daqui!

– Se não o matar, é ele que nos vai matar.

– Não, não, mil vezes não. Deixa-o. Está a dormir. Amanhã não se lembra de nada. Vai ter com eles. Peço-te por tudo, minha filha!

Manuela respirou profundamente. A aflição da mãe quebrou-lhe a fúria.

– Um dia vai acontecer, minha mãe. Ou fugimos dele, ou a morte vai aparecer por aqui!

Saiu, apressada. Não queria que Carolina a visse a chorar, e a mãe foi limpar as feridas enquanto Inácio dormia. Sentia-se estranhamente tranquila. O dia chegara ao fim. Sem mais dor.

Manuela já não encontrou os rapazes. Na esplanada estavam outros homens a conversar e pensou para consigo que os amigos tinham partido para o trabalho. Desejou estar com eles, entusiasmada com o assalto, em vez de se sentir como que desorientada, perdida no seu próprio bairro. Decidiu ir ao encontro de Clara. Deveria estar a dormir na casa abandonada, quartel-general do grupo. Enfiou pela travessa escura que se abria à esquerda do Águias. As lâmpadas da iluminação pública estavam todas partidas e no silêncio escuro apenas se escutavam os seus passos apressados. Fez-lhe bem a marcha. A aragem fresca amainou-lhe as emoções, embora não hesitasse na certeza de que, um dia, a morte na sua violência maior visitaria a sua casa. Procurou não fazer ruído ao abrir a porta. Por um enorme buraco aberto numa parede que ruíra, lobrigou Clara, que dormia sobre um monte de palha, embrulhada num cobertor. Deitou-se a seu lado e abraçou-a pela cintura. Uma estranha sensação de conforto invadiu-a no calor do abraço amigo. E foi então que as lágrimas rebentaram, lavando-lhe o rosto.

Entretanto, Diana chegara com o bando às traseiras do parque de carros usados. Ordenou que ninguém saísse da carrinha. Apenas o Zé Cigano avançou, armado com um alicate. Ao longe, conseguiu ver o vulto do rapaz e os gestos cautelosos com que cortava a rede que enclausurava a imensidão de viaturas, as quais, à noite, iluminadas pelas luzes amarelas do parque, pareceram a Francisquinho um enorme cardume de peixes em sossego. Zé Cigano fez o sinal combinado e Diana disse:

– O Zé já abriu a rede. Tosta Mista, vai. Tratem do guarda, mas não quero mortes.

O negro saltou, ligeiro, e correu na direcção do amigo. Rapidamente entraram e desapareceram no interior. Francisquinho não se conteve e murmurou:

– Se o guarda dá estrilho, o Tosta Mista china-o.

– Schiu! – foi a resposta imperativa de Diana.

Necas apreciou a Gare do Oriente. À noite, iluminada, fazia-lhe lembrar uma nave espacial que aterrara no Parque das Nações. Uma aranha extraordinária, com mil patas, imponente, a vigiar o casario. A divagação foi curta. O vulto de Zé Cigano voltou a surgir, tornando a acenar, e o resto do bando saiu da carrinha, enfiando nas cabeças gorros que lhe escondiam os rostos. Penetraram no recinto e Necas correu ao escritório para desmontar a central de videovigilância e recolher as chaves, mas Francisquinho estatelou-se. Não reparou no corpo do guarda, manietado, pés ligados e mordaça na boca, que gemia, estirado no chão. Levantou-se, rápido, e disse sem pensar:

– Desculpe-me. Não o vi.

Necas não perdeu tempo. Espatifou a central, atirando-a ao chão, e com a ajuda da lanterna começou a abrir os armários, aos quais, antecipadamente, Zé Cigano arrombara os cadeados. Havia pequenos rótulos por marcas de automóveis. Procurou aquele que dizia Mercedes. Encontravam-se entre o rótulo da Opel e o da Ford. Sorriu com satisfação. As chaves tinham uma fitinha com a matrícula de cada viatura. A organização dos vendedores poupara-lhes pelo menos meia hora de procura.

– Estão aqui as chaves. Podemos começar – sussurrou para Diana.

– Vamos a isto. Ninguém liga as luzes dos automóveis enquanto estivermos aqui dentro. Eu vou arrombar o portão e espero por vocês.

Dito isto, começou a distribuir chaves. Nicha, Batman, Zé Cigano, Necas, Tosta Mista e Francisquinho correram para as primeiras seis viaturas. Diana voltou a sair, saltou para a carrinha e arrancou, torneando o parque. O portão principal estava fechado com uma grossa corrente e um sólido cadeado. Percebeu que não seria difícil de abrir. Aliás, adivinhara que ia ser assim. Nos vários trabalhos que já tinha executado descobrira que a preocupação com o fecho dos portões era igual ao desleixo com as dobradiças, que iam envelhecendo, enferrujando, tornando-se cada vez mais frágeis. Fez a manobra com a carrinha e apontou a traseira aos espigões onde eles giravam. Acelerou e ao primeiro embate caíram com um estrondo seco. Desligou o motor imediatamente e olhou, vigilante, à sua volta. Era uma zona de empresas e não viu acender-se qualquer luz. Por sms disse a Batman que podiam partir. Sentiu prazer ao observar o profissionalismo da sua tropa, pois de um exército se tratava quando chegava a hora de cumprir. Os Mercedes começaram a sair ordeiramente, entraram na rua, acenderam as luzes e seguiram em direcção ao ponto de encontro. Diana seguiu o último a abandonar o recinto. Deu por si a rezar para que os homens que Gusmão se comprometera a arranjar estivessem no local combinado. Eram cerca de cem metros de percurso. Para não aumentar o risco da operação era forçoso que a sua gente entregasse rapidamente a primeira meia dúzia de automóveis, tornasse a entrar na carrinha e regressasse ao stande para conduzir os restantes até ao porto.

Suspirou de alívio quando viu Necas, que guiava o primeiro veículo, sair e dar lugar a outro indivíduo. Gusmão acertara na escolha. O grupo que os esperava ia dispersando em direcção aos Mercedes, substituindo-se à quadrilha e partindo de imediato. Abriu a porta das traseiras da carrinha e quando entrou Francisquinho, motorista do último carro, Diana alertou:

– Demorámos dois minutos. Vamos regressar e vocês seguem-me com os outros seis Mercedes até ao porto. Se aparecer a bófia, eu aviso e abandonam de imediato os automóveis.

Desta vez, conduziu a carrinha até junto dos Mercedes. Quando curvou perto do escritório, os faróis iluminaram o segurança, que, apesar de imobilizado, conseguira pôr-se de pé. Era evidente que não esperava segunda visita e, ao ver aproximar-se a carripana, tornou a deixar-se cair no chão. Diana não lhe ligou. Interessava-lhe sair dali quanto antes. A quadrilha já investira contra a segunda meia dúzia. Quando chegou ao portão viu pelo retrovisor os seis carros em marcha, seguindo-a em direcção à saída. Olhou o cronómetro e sorriu satisfeita. Menos de minuto e meio. Fez mentalmente as contas e chegou à conclusão de que, em menos de cinco minutos, o seu bando fizera a maior colecta de Mercedes de que havia memória em Lisboa. De uma coisa tinha a certeza: no dia seguinte o segurança e a sua história fantástica seriam notícia em todas as televisões. Porém, a essa hora todos os carros estariam no alto mar, a caminho de Marrocos, sem rasto e nenhum indício que os ligasse ao assalto.

A viagem até ao porto foi tranquila. Largaram os veículos no armazém de Gusmão e voltaram a entrar na carrinha. Abandonaram-na em Entrecampos, perto da esquadra da Polícia. Assim, a chibaria não precisaria de procurar muito quando os donos participassem o furto.

Como era hábito separaram-se e seguiram para o Estrela Polar. Com excepção de Diana. Tinha encontro marcado com Gusmão junto à praia da Torre, para receber o dinheiro que faltava. Deixara o seu carro num parque discreto da Avenida 5 de Outubro e arrancou na direcção de Monsanto. A rapidez do golpe fez com que chegasse antes da hora. Aguardou serenamente. O mar visto daquela praia de Oeiras, banhado pelo luar, ganhava um esplendor fascinante. Um enorme porta-contentores navegava rumo ao oceano e deu consigo a imaginar que no seu bojo seguia o contingente de Mercedes que haviam roubado em cinco minutos. Não tinha dúvidas. Nem o Dragão da Brandoa, nem Talibã da Curraleira, famosos pela audácia dos seus assaltos, chefiavam um grupo tão eficaz como o seu. Se quisessem, poderiam tomar Lisboa deixando a bófia pregada ao chão por força da surpresa.

Gusmão estacionou atrás dela e rapidamente entrou para o lugar do pendura. Abriu os braços e o sorriso deixou que o luar lhe iluminasse os dentes.

– Foi perfeita. Deixe-me abraçá-la.

Diana estava demasiado contente para não aceitar o abraço. Sentiu-lhe o corpo rijo e musculado para a idade e deixou-se ficar por instantes contra ele. Por fim, segredou:

– Temos contas para acertar e já são quatro da manhã.

Gusmão afastou-se dela, mas ficara perturbado. Tacteou o casaco e, finalmente, lembrou-se da pasta. Retirou um envelope volumoso, que lhe entregou.

– Não fiz nenhum abatimento por causa dos homens que arranjei.

Diana contou os maços de notas e Gusmão não se cansava de repetir:

– Este golpe deveria ser escrito. Foi perfeito. Perfeito!

– Não tinha tanta graça, se não fosse segredo! – respondeu ela e, terminando a contagem, confirmou: – Está certo. Trinta e cinco mil ao todo. Obrigado.

– Não me agradeça. Você é uma mulher extraordinária. Não quero perdê-la de vista.

– Sabe como contactar-me e temos encontro marcado para eu conhecer o Gonçalves. É bom que não se esqueça do nosso compromisso.

– Deixe-me abraçá-la outra vez.

Diana reagiu, contrariada:

– Não. Chega de abraços. Estou cansada.

Gusmão mudou de atitude, tentando agarrá-la.

– Despertou os meus sentidos. O desejo por si. Você é única...!

– Largue-me! – empurrou-o com firmeza e desferiu um murro no peito dele. Gusmão tombou desmaiado e Diana sobressaltou-se. – Oiça, acorde... vá lá... Acorde! – gritava, enquanto lhe dava palmadas no rosto até que ele, subitamente abriu os olhos.

– O que foi. Hã? Onde estou...?

– Desculpe-me, acho que fui demasiado bruta...

Gusmão recompôs-se. Massajou o peito e, finalmente, conseguiu sorrir.

– Se calhar, eu é que fui demasiado parvo. Grande murro, sim, senhor.

Deu-lhe um beijo fugidio e despediu-se do traficante.

– Boa noite, senhor Gusmão. Vá com cautela. Esta noite ganhou uma fortuna.

– É verdade. E um valente murro, que me pôs a dormir. Abençoada! Abençoada...

No dia seguinte, a quadrilha dormiu até tarde. Apenas Manuela se levantou cedo e com cautela para não acordar Clara. Queria ver a mãe depois da terrível noite que ambas tinham vivido e antes de ela partir para o supermercado. Ficou surpreendida ao encontrá-la pronta a sair, com um lenço envolvendo-lhe o rosto.

– Levas um lenço? Com este calor? – perguntou, surpreendida.

– Levo – respondeu secamente a mãe, e foi colocar a chávena de café no lava-loiça, escondendo o rosto.

Manuela desconfiou. Aproximou-se e voltou-a para si.

– Ele deixou-te marcada, não foi? Voltou a bater-te?

– Não, não. Dormiu toda a noite ali no chão. Saiu para o trabalho sem se arranjar. Nem o vi.

Havia tanta tristeza no rosto da mulher que Manuela agarrou-a contra si, afagando-lhe a cabeça.

– Querida mãe, minha querida mãe. Gosto tanto de ti.

– E eu de ti, minha filha – afastou-se e disse-lhe: – Nunca mais voltas a dizer à minha frente que queres matar o teu pai. Nem pensar em semelhante coisa. Esta noite não dormi a pensar na tua fúria. Não juntes mais sofrimento àquele que já temos de suportar.

– Ele é mau.

– Quando está bêbado. Sem álcool é uma pessoa normal e gosta muito de ti.

– Não vou discutir consigo. Não sei se ele gosta ou não de mim. Aquilo que mais me magoa é perceber que a mãe gosta cada vez menos de si.

Carolina fez um trejeito com a cabeça e respondeu, laconicamente:

– Talvez tenhas razão. Vou sair, senão perco o autocarro. Ficou sopa no frigorífico.

E saiu dando um beijo rápido a Manuela, que se deixou cair numa cadeira. Sentia-se perdida naquele mundo bizarro, tão ofendida com a violência do pai, como com a passividade conformada da mãe. Não era assim que entendia o destino de um casal. Imaginava o amor como uma partilha, um vínculo que reforça a alegria e conforta nas horas de maior tristeza. Embora não tivesse outra experiência que não fosse um namorico com o Gaiola, que entretanto fora preso, pondo fim à relação, acreditava que, embora tivesse dezasseis anos, conhecia o amor melhor do que a sua mãe. Uma coisa tinha como certa: o primeiro homem que lhe batesse não se ficaria a rir. Ninguém nasceu para ser assim tão dominado pelo outro. Até a servidão tem limites, costumava dizer a Diana, e concordava com ela.

Decidiu ir tomar banho. Sentia-se suja por dentro e por fora. Talvez os amigos já andassem pelo largo vendendo pó. Enganava-se. Francisquinho e Zé Cigano tomavam o primeiro café do dia. A noite fora longa e gozavam as delícias do assalto triunfante que fizera desaparecer doze Mercedes de uma assentada. De súbito, Francisquinho deu um salto na cadeira. Estendeu o jornal ao Zé Cigano.

– Olha-me para isto. Uma velha deixou uma fortuna de doze milhões de euros a um cão!? É doida. Só podia ser doida!

– A um cão...?

– Tá aí no papagaio. Lê. Tinha noventa anos. Morreu sem ninguém e deixou os bens ao seu cão. Até diz o nome do animal. Não me importava nada de ser o cão da velha.

Bazófias chegou para recolher as chávenas e comentou:

– Estás a divertir-te por causa do cão que recebeu a herança.

– Tu leste, Bazófias? Doze milhões, meu. Um comboio de dinheiro, meu!

– Li. Doze milhões é muita fruta, sim, senhor. Se os tivesse, trocava a minha Almerinda por duas menos sabichonas.

– Para que quer o cão doze milhões de euros? – perguntou Zé Cigano.

Bazófias esclareceu:

– Já tinha lido uma coisa dessas há tempos, mas com um gato. A dona deixou-lhe uma herança brutal. Um contentor de notas.

– A um gato? – o cigano estava embasbacado.

– Esta deixou o guito a um cão, meu... doze milhões! Isto parte-me todo – insistiu Francisquinho.

– Só a mim ninguém deixa nada. Nem uma tia rica, nada! – lamentou-se Bazófias, que perguntou: – Vocês tomam mais alguma coisa?

– Duas cervejolas. Se eu fosse cão, nunca mais bulia. Era cão, mas era rico.

Zé Cigano, que já lera duas vezes a notícia, perguntou de repente:

– Francisquinho, e se nós raptássemos o cão?

– Este? O Caruso?

– Pedíamos uma data de massa pelo animal...

– E pedíamos a quem? Nem sabemos onde está o cão.

– Deve ser num canil.

Bazófias regressou com as cervejas e incendiou os dois rapazes.

– Soubesse eu onde está guardado o raio do cão e ia tratar dele.

– Para quê? A quem pedias o caroço? – repetiu Francisquinho.

– Meu caro, eu não sou ladrão nem chantagista. Não sou nada, mas fui burlão. Um burlão faz a coisa menos à bruta! – exclamou com solenidade.

– E como faz um burlão? – quis saber o cigano.

– Punha o animal a ser meu amigo. Visitava-o, levava-lhe miminhos, fazia-lhe festas. Ao fim de quinze dias, bastava assobiar e não me largava. Passava a ser meu e eu o gestor da sua fortuna. Aprende. Isto é que é um golpe! Mais seguro e não precisamos de ser brutos, como certa gente que conheço – concluiu intencionalmente.

Os rapazes ficaram em silêncio, por momentos, e Francisquinho comentou:

– Não dá. O tratador do canil desconfiava. A única forma é raptá-lo. Temos de sacar a merda do cão.

– Nem sei se esse crime existe. Rapto de cão. Acho que podemos roubar cães à vontade que a polícia não chateia.

– Doze milhões, meu! Sacamos o cão e ficamos ricos. Contamos à Diana? – Francisquinho vibrava com a antevisão do golpe.

– Vai chamar-nos malucos.

– Maluca é a velha que deixa uma herança deste tamanho a um rafeiro! Vai ser a primeira vez que vamos roubar sem ter a polícia à perna. – Soltou uma gargalhada e fez um aviso solene: – Juro-te. Isto corre bem com o nosso amigo Caruso e nunca mais mexo uma palha. Sou o primeiro reformado do mundo com apenas dezoito anos!

Saíram, entusiasmados. Mesmo que Diana achasse a ideia extravagante, estava decidido que actuariam por sua conta e risco.

Um cão que vale doze milhões era o animal mais rico do mundo, de certeza. Nem precisavam de tratá-lo mal, como, às vezes, eram obrigados a fazer aos tipos que se armam ao pingarelho quando são assaltados. Aliás, o animal nem perceberia que estava a ser raptado. Bastava-lhe uma casota cheia de comida enlatada e ossos de fazer-de-conta para ser um artista feliz.

Diana tinha saído. Porém, a excitação era tanta que Francisquinho mostrou a notícia ao Batman e contou-lhe a decisão que haviam tomado.

– Raptar um cão? – Batman não queria acreditar naquilo que lia.

Zé Cigano contra-atacou:

– Não é um cão qualquer. Herdou doze milhões. A dona dele, uma velha, deixou-lhe a fortuna!

– Doze milhões, meu. O cão vale doze milhões! – Francisquinho pulava à volta do amigo, mas Batman continuava céptico.

– Rapta-se o cão e a quem se pede dinheiro?

– Não sei...

– A alguém. Quem leu o testamento foi uma pessoa e não o cão! Há-de existir alguém que trata dos doze milhões do animal e vai dar sinal de vida assim que ele desaparecer. No dia a seguir, está o pedido de ajuda em todos os papagaios da cidade.

– Deve ser o advogado da velhota – respondeu Batman, pensativo.

– Que agora deve ser o advogado do Caruso, tás a ver, meu?

– Do Caruso?

– É o nome do cão...

– Doze milhões? – Batman resistia a acreditar.

– Doze. Assim, sem mais nem menos!... Comparado com isto, os Mercedes de ontem à noite são trocos, meu. Trocos!

Batman desfolhou o jornal. Parecia-lhe inacreditável aquela história, mas tinha de admitir que nenhum jornalista, por mais fantasista que fosse, inventaria uma notícia tão extraordinária.

– Vão procurar o cão. Eu digo à Diana e falo com o advogado para saber se existe crime por rapto de cão.

– O problema é saber qual o canil onde o deixaram.

– Pois é. Mas vamos procurar em todos, na cidade. A gente há-de encontrar esse milionário.

– Se fosse a vocês, começava pela casa da velha – sugeriu Batman, e justificou-se: – Não se mete uma fortuna de doze milhões num canil. Não diz a rua, mas informa que ele morava na Encarnação e tem a fotografia da vivenda. Descobrem-na, encontram o cão.

Partiram abraçados ao enigma da descoberta do cão rico. Francisquinho estugou o passo e puxou pelo outro.

– Dá à perna, cigano de uma figa. Isto vai ser um acto verdadeiramente revolucionário, meu. Acabar com a exploração do homem pelo cão. Nem mais!

Enquanto Francisquinho e Zé Cigano partiam, numa loja da Avenida de Roma Diana experimentava um vestido negro, comprido, que lhe realçava as formas do corpo. Era bela, sem dúvida. Os seios esculpidos no fato ganhavam maior sensualidade e as ancas, bem desenhadas pelo recorte negro, davam-lhe um ar de estrela de cinema.

– O que achas? – perguntou a Nicha.

– Fica-te bem, embora essa racha na perna seja descarada de mais.

Referia-se a uma longa abertura que, quando andava, revelava a longa perna de Diana.

– Tenho umas boas pernas. De vez em quando, devo mostrá-las.

Nicha não percebeu e com algum despeito sentenciou:

– Depende de quem vai vê-las.

Reviu-se outra vez ao espelho e sorriu misteriosamente.

– É para um homem especial – disse por fim.

– Não te vais apaixonar outra vez. Bem sabes o que sofreste com o Afonso – contestou Nicha, na iminência de amuar.

Diana soltou uma gargalhada.

– Estás com ciúmes.

– Não quero falar sobre isso – respondeu a outra, que, visivelmente incomodada, acrescentou: – O Afonso ia dando cabo da tua vida. Se não tivesse sido obrigado a fugir, destruiria tudo o que conquistámos.

– Mas não destruiu. Agora é diferente. Quero que um homem se apaixone por mim.

– Que conversa estranha, Diana.

– Depois perceberás – mudou de tom e rematou: – Vou levar o vestido. Ele vai beijar o chão que eu piso.

Nicha amava-a. Um amor dedicado e simples, sem esperar outra coisa que não fosse o afecto de Diana. Haviam crescido juntas depois de se conhecerem na quadrilha do Bifanas e, desde sempre, lhe entregara o lugar mais terno do coração. A paixão crescera muito mais do que ambas e Nicha decidira que era mais fácil servi-la do que estar longe dela. Tornou-se, por vontade própria, na sombra de Diana, a vigilante leal, a eterna confidente e o silêncio cúmplice de todos os momentos da sua vida.

Sentaram-se no Centro Comercial Roma para tomar café e Diana percebeu que a amiga continuava amuada. Não gostava de a ver assim e resolveu contar-lhe do vestido.

– Vou conhecer o Gonçalves e quero que ele se apaixone por mim.

– O Gonçalves? – Nicha não se recordava do nome.

– Um dos homens que procurei toda a vida. E agora prometi que não o matava.

Nicha estremeceu. Já compreendia a exigência com o vestido.

– Fico contente por teres feito essa promessa.

– Mas não fiquei eu. Era mais fácil despachá-lo.

A conversa terminou ali. Nunca compreendera aquela obsessão da amiga, embora reconhecesse que os terríveis acontecimentos que marcaram a sua infância lhe tivessem deixado feridas dolorosas. Diana terá adivinhado os seus pensamentos porque, sem razão aparente, começou a falar num tom de monólogo e Nicha ficou a escutá-la.

– Eu sei que este ódio é ruim. Fez-me perder o direito ao sonho e, quando fecho os olhos para dormir, tremo de medo pelo pesadelo que o sono me vai trazer. Há sangue e fantasmas no meu sonho e o rosto vencido do meu pai abraçado à minha mãe. Choram os dois pelo infortúnio e eu acordo com os olhos rasos de água, dia após dia, como se estivesse condenada ao eterno sofrimento por os ter perdido. Às vezes dou por mim a pensar que não fiz o luto. Que estou doente e os pesadelos são manifestação do mal de que padeço. Até já li alguns livros sobre o luto e julgo que não sofro dos sintomas daqueles que não conseguem separar-se das pessoas que amam e já não tornarão a ver. Sinto uma grande saudade dos dois, mas é serena, uma espécie de aperto de mão invisível nas mãos de quem já não tocas. A minha raiva vem de outro sítio. De um outro qualquer lugar do coração, que me diz que não pode suceder a outros. Todos os dias acontece aquilo que aconteceu aos nossos pais. Não sei explicar isto. Não sou capaz de compreender como meia dúzia de poderosos tratam milhões de pessoas como coisas. Vem nos jornais todos os dias. Baixaram os lucros da empresa tal, por isso é preciso despedir duzentas ou trezentas almas. O trabalho devia ser o valor mais sagrado de uma sociedade que se respeita. E não é. Tu sabes que não é. O dinheiro ganhou o estatuto de Deus e por ele todos os senhores poderosos são capazes das coisas mais vis. Nós fazemos o mesmo, mas com regras. Não roubamos nem desgraçamos a vida de gente faminta e sem amparo. Foi a razão por que naquele tempo matei o Bifanas. Não se faz sofrer quem já sofre tanto. Ajuda-se. É verdade que esses palhaços do Gonçalves e do Luís Felisberto não são os piores vampiros, são apenas mais dois de uma legião deles, contudo são os dois que infernizam as minhas noites, me provocam a revolta de todos os meus dias, e agora, que se aproxima o ajuste de contas final, não sei qual das razões me atrai para eles. Se a vingança das dores antigas se, afinal de contas, apenas preciso de dormir em paz e ter direito a sonhar. Nem que seja só um sonho para descobrir nele um rasto de esperança que me alerte porque a nossa vida não poderá ser sempre assim. Um deserto sem esperança.

Ficaram as duas em silêncio. Nicha estava emocionada. Diana, de olhar fixo na mesa, girava freneticamente o anel que usava na mão esquerda. A aliança de casamento da mãe. Por fim, Nicha falou:

– Vamos embora. Está calor aqui dentro.

E partiram as duas em silêncio.

Àquela hora, Francisquinho e Zé Cigano já tinham calcorreando várias vivendas no Bairro da Encarnação. Olhavam a fotografia do jornal e comparavam com a moradia que tinham à sua frente e sentenciavam:

– Não é esta!

E continuavam a pesquisa. Até que, junto ao Centro Recreativo, o coração começou a bater mais forte. Chamou-lhes a atenção uma mulher, com farda de governanta, que tratava das roseiras do jardim da vivenda. Pararam excitados comparando a foto e a vivenda. Iguais! Era aquele o lar do cão milionário. Zé Cigano não se conteve:

– Vê bem o que é ser um animal rico. Tem criada para lhe tratar o jardim.

– Com farda e tudo – confirmou Francisquinho e, como a excitação aumentava a impaciência, decidiu-se: – Deixa comigo, meu. Vou saber do nosso cão. Fica aqui.

Zé Cigano estava tão nervoso que voltou as costas a Francisquinho e ficou a olhar as pessoas que chegavam e partiam da paragem de autocarros situada no largo fronteiro. Achou curioso não ver gente mal vestida e com aspecto desleixado, como era a maioria dos habitantes do Estrela Polar, e havia muitas crianças na rua, que saíam de um colégio próximo.

Aquele cão podia ajudar a mudar a sua vida e a de muita gente do seu bairro. Mesmo que não trouxesse a alegria que via ali, pelo menos as roupas seriam tão bonitas como as daqueles meninos. Também admitia que não sabia o que eram doze milhões de euros. O máximo de notas que tivera nas mãos não chegava a dez mil euros. Pressentiu os passos acelerados de Francisquinho e voltou-se, ansioso. O outro tremia de entusiasmo.

– Yeesss...! Yeesss...! – desabafou, esticando os dois polegares para o céu.

– O que foi?

– Disfarça, disfarça. O cão está em casa. É o advogado que o vem passear todas as tardes. Em cheio, meu! Foi em cheio. Já viste? O advogado passeia doze milhões de euros pela trela. É do caraças, meu. Doze milhões... Ali! Pela trela.

Francisquinho esfregava as mãos, abria e fechava as pernas, todo em tumulto com a informação que acabara de recolher.

– É muita fruta! – suspirou o Cigano.

– É nosso! Basta esperar pelo passeio do Caruso e fazemos o serviço.

De súbito, Zé Cigano ficou sério e enfrentou o amigo:

– Ouve lá. Qual é a marca do cão?

– A marca? Não é nenhum automóvel, é um cão! Não tem marca.

– Tu sabes o que quero dizer. É grande, é pequeno? É mau...?

Francisquinho olhava-o, surpreendido, sem perceber aquela alteração repentina de entusiasmo.

– Mau, como?

– Sei lá. Que tipo de animal de estimação tinha a velha? A raça... é bera?

– Não sei. Nem sei a cor.

– Então como vamos saber se do prédio sai um cão rico ou outro cão que é apenas cão?

A pergunta atrapalhou Francisquinho.

– Pois. Só sei que o advogado da velha vem buscá-lo para o passear pelo bairro.

– E como sabemos que é advogado? Os advogados não usam farda.

O interrogatório do Cigano vinha muito em cima da hora, embora tivesse razão. Cães há muitos, mas rico só existia o Caruso, e não podiam ocorrer erros que deitassem doze milhões a perder. Francisquinho concordou.

– Lá isso é verdade. Vou voltar a falar com a governanta. Ela não desconfia. Disse-lhe que era jornalista e que queríamos fotografar o cão mais rico do país, se calhar, do mundo.

– Vai. E já agora pergunta se é manso.

A excitação dos dois rapazes contrastava com a tristeza de Manuela, que, com Clara, contava o dinheiro do pó vendido naquele dia. Não tinha sido grande a procura e sobraram bastantes panfletos no saco. Pela colina subiam mulheres cansadas, carregadas com sacos de compras e de pernas doridas. Era sempre um regresso melancólico a casa e nem olhavam para as duas raparigas, sentadas na enorme pedra à entrada da rua principal, que levava ao largo do Estrela Polar. Manuela olhou, distraída, para a cidade que se abria aos seus pés e, ao longe, para as bandas do Barreiro, surgia uma enorme fitinha de velas brancas que mais pareciam pontinhos brancos pintados no rio.

– Gostava de fugir daqui. Se tivesse um veleiro daqueles que se vêem no Tejo, ia para bem longe.

– Não era capaz. Aqui sinto-me segura – respondeu Clara.

– Posso fazer-te uma pergunta?

– Podes.

– Porque fugiste de casa? – perguntou Manuela.

Clara encolheu os ombros e não respondeu. Fixou o olhar na fila de veleiros que desciam o rio. Só passado algum tempo adiantou, sem convicção.

– Não sei bem. Os meus pais discutiam muito. A única certeza que tenho é que saí de casa para me esconder. Pensava que, se os assustasse, acabavam os gritos e as discussões.

– E depois?

– Fiquei escondida e ninguém apareceu à minha procura. Não se importaram e eu andei muito tempo por essas ruas até que encontrei o Necas, que me trouxe para aqui.

– Já snifavas?

– Comecei com onze.

– Há três anos.

– Pois. Deve ser.

Aumentava o número de carros que passava na estrada e um velho autocarro gemia a caminho do bairro.

– Gostava de fugir daqui – repetiu Manuela.

– Para onde? – perguntou Clara. – Ao menos aqui há gente que gosta de nós.

Manuela tornou a olhar o movimento de pessoas e automóveis na estrada e respondeu:

– Eu não acredito que a tua mãe não te tenha procurado na noite em que te escondeste. As mães nunca se esquecem dos filhos.

– Não sei.

Manuela reagiu, indignada:

– Não, não esquecem! Ela foi à tua procura, mas noutro sítio qualquer. Ainda hoje deve andar a querer saber onde estás.

Clara abraçou os joelhos e encostou a cabeça. A conversa incomodava-a. Nunca falara sobre a sua fuga com ninguém. Nem com o Necas. Tinha oito anos quando tudo acontecera e seis anos depois dessa noite nunca recebera um sinal que indicasse que fazia falta em sua casa. Passava muitas vezes pelos quiosques dos jornais, ou espreitava a televisão, procurando um simples alerta pelo seu desaparecimento, e conforme foram passando os dias, depois os anos, habituou-se a viver na rua. Dormira em todos os cantos escuros da cidade e, muitos dias, alimentara-se das sobras que encontrava nos contentores do lixo. Era um nenúfar belo, mas desprendido, que flutuava no rio de gente que se agitava em turbilhão pelas ruas e pelas praças.

– Lembras-te onde era a tua casa? – quis saber Manuela.

– Era num sítio chamado Moscavide. Não sei o nome da rua.

– É do outro lado da cidade. Estamos bem longe.

– Não sei. Andei por muitos caminhos até chegar aqui.

Clara era loira, olhos da cor do Tejo e magrinha. Parecia que a coca lhe comera a carne. Não fossem as olheiras cinzentas seria uma linda menina. Daquelas que são princesas nos contos de fadas, pensava a amiga. Como se tivesse acordado, levantou a cabeça e disse:

– A varanda era em frente a uma estação de comboios e havia uma roseira que trepava pelo prédio. A minha mãe gostava de ver os comboios que chegavam e partiam, esboçou um sorriso alegre e confessou: – Eu também gostava.

Soltou um uivo, como se fosse o apito de um comboio e tornou a pousar a cabeça nos braços. Manuela sacudiu-a entusiasmada.

– Tá decidido. Um destes dias, vamos descobrir a tua casa. Uma casa com uma roseira ao pé da estação de Moscavide não será difícil de encontrar.

– Não sei se quero.

– Claro que queres – reagiu energicamente. – Vais dar uma grande alegria à tua mãe.

– Duvido. Já se esqueceram de mim.

– És tontinha. O pó deu-te volta ao miolo.

Manuela levantou-se, puxando a outra pela mão e dirigiram-se ao Águias.

Naquela altura do dia, perto de Moscavide, na Encarnação, as longas horas de espera atiçavam a impaciência de Francisquinho e Zé Cigano. O advogado do cão milionário tardava em chegar. Ainda pensaram em desistir, mas a empregada fora sincera:

– Todas as tardes o senhor doutor vem buscar o Caruso para dar uma volta pelo bairro.

Francisquinho ainda tentara precipitar o rapto.

– E a senhora não o leva a dar um passeio? Para nós basta-nos um minuto, só preciso da fotografia para o jornal.

Que não. Que estava proibida. Que o cão era uma fortuna e, se viesse um carro e o atropelasse, seria uma tragédia. Que os hábitos do Caruso eram muito rigorosos. Foram tantos argumentos que o rapaz desistiu e decidiu esperar pelo advogado. Haviam passado quatro horas desde essa malfadada decisão. Porém, começava a entardecer e já não valia a pena desistir. Caruso haveria de aparecer antes de o Sol desaparecer para lá do aeroporto.

– O advogado já devia estar aí, para passear a porcaria do bicho – suspirou Francisquinho.

Para passar o tempo, Zé Cigano perguntou:

– Como fazemos? Não vamos dar um tiro no homem. O animal ainda se assusta e morde na gente...

– Eu pego-lhe ao colo, dou um esticão e tu entreténs o advogado.

– Como? – perguntou o cigano, sem perceber.

O outro encolheu os ombros com irritação.

– Como? Sei lá. Inventa!

– Os doze milhões de euros estão a cegar-te. Dás um esticão na trela e foges. E eu? – tornou a perguntar.

– Agarras o advogado, um encontrão, qualquer coisa. Correr com um cão ao colo não é fácil, meu. Tens de me deixar ganhar avanço. – De repente, apontou: – Olha ali. Aquele que vai entrar. Deve ser o advogado...

Na realidade, um homem quarentão, vestido com alguma distinção e segurando uma pasta, acabava de entrar no jardim da casa e abriu a porta. Zé Cigano suplicou:

– Pela tua rica saúde, segura-me o animal. Desde pequeno que tenho medo de cães.

Francisquinho concentrou-se e ordenou então com firmeza:

– Esquece o cão. Atira-te ao homem. Preciso de ganhar tempo...

– Ao homem faço o que for preciso desde que o bicho esteja longe. E corre com cuidado, porque levas doze milhões ao colo.

– Não te preocupes. Trato-o como se fosse uma rosa – e sussurrou: – Olha o ricaço. Estão a sair. Vamos!

Caruso mostrava-se. Vaidoso e simpático. Olhava o advogado, que o segurava pela trela, e depois puxava-o, como se tivesse pressa de chegar a algum lado. O homem procurou refrear o passo e a fogosidade do bicho, quando um violento encontrão o fez estatelar-se no chão. Quando deu por si, estava embrulhado no Zé Cigano, que tentava libertar-se das pernas dele.

– O que é isto? – perguntou o advogado, perplexo.

– O que é isto quero eu saber. Porque me atirou ao chão? Eu não fiz mal nenhum – protestou, zangado, o rapaz. O homem não sabia o que havia de dizer.

– Eu... Eu ia...

E, de repente, deu um salto:

– Onde está o Caruso?

Zé Cigano sacudia a roupa e enfrentava-o com grande indignação.

– Qual Caruso? Você fez de propósito. Eu devia chamar a polícia. Olhe as minhas calças.

Porém, o advogado, aflito, gritava, desvairado olhando na direcção das ruas que ali desembocavam.

– Caruso!... Caruso!... Mas onde anda o raio do cão...? Caruso...!

Alguns populares aproximaram-se, atraídos pelos gritos do homem. Zé Cigano resmungou, ainda com ar zangado, para os curiosos que paravam a olhar a cena.

– É doido. O homem é doido. Atira comigo ao chão e desata a gritar pelo Caruso.

– Está ferido? – perguntou um espectador, mais preocupado.

– É só um arranhão no joelho e rasguei as calças. Tudo por causa deste doido.

Observava o advogado, que corria por uma das ruas, completamente transtornado, chamando pelo cão. Zé Cigano ficou aliviado. O Francisquinho fugira com a fortuna pelo largo em direcção a uma travessa que lhe era oposta. Meteu-se ao caminho para regressar ao Estrela Polar e ainda ouviu um dos populares comentar:

– Eu vi tudo. O desgraçado do cigano até vinha a andar devagar, e com a cabeça baixa, quando, de repente, aparece aquele maluco que ali vai aos gritos e se atira para cima do rapaz. Deve ser um desses filhos da puta que embirram com ciganos. É assim mesmo. Eu vi tudo!

Zé Cigano corria agora para o autocarro. Queria regressar quanto antes e fervia de alegria. Era dono de uma fortuna. Aquela seria a última viagem de transportes públicos escapando ao controlo da polícia. A miséria e o sobressalto estavam a chegar ao fim. Pareceu-lhe durar anos aquela hora de viagem, impaciente para celebrar com os amigos, com destaque para Francisquinho, o formidável golpe de doze milhões de euros.

Não cabiam em si de contentes quando se abraçaram e a eles se juntaram as duas raparigas. Zé Cigano, com os olhos brilhantes de entusiasmo, perguntou:

– Onde está o ricaço?

– Lá dentro. Estivemos a fazer-lhe festinhas para se habituar a nós – respondeu Manuela.

Entraram os quatro na casa abandonada. Caruso estava preso pela trela e abanou o rabo de contente ao perceber que tinha companhia. Os olhos eram grandes, negros, doces, e a pelagem comprida parecia seda. Francisquinho afagou-lhe as longas orelhas felpudas e soltou uma risada.

– Este saco de pulgas é nosso. É o nosso campeão. É o nosso mealheiro. Rapazes, somos ricos. Somos ricos!

E desatou a dançar em volta de Caruso, que abria e fechava as narinas como se quisesse cheirar a quantidade de juízo de Francisquinho.

– Ele é tão giro! – exclamou Clara, definitivamente apaixonada pelo cão.

Manuela encolheu os ombros.

– É um cão como os outros.

– É manso! É a sua melhor qualidade – garantiu o Zé Cigano, depois de o observar a alguma distância.

Todas estas opiniões fizeram Francisquinho protestar.

– Vocês falam do animal como se não passasse de um animal. É muito mais do que isso. É um herdeiro. Melhor do que um campeão, é um herdeiro! Aí preso a essa trela estão doze milhões de euros porque uma velha maluca decidiu que o bicharoco havia de ser herdeiro.

– E agora? – perguntou um dos outros.

– Agora tratamos do animal com muito mimo. Até cerveja lhe vou dar.

– Os cães bebem cerveja?

– Não bebem porque não sabem pedir, meu. Só ladram! Quem não gosta de uma cervejola?! Hã...??

– Mas não chega – reagiu Manuela: – Vamos fazer dele cão de guarda ou trocá-lo pelo dinheiro?

– Qual cão de guarda? – reagiu Francisquinho – ... Aqui, no Estrela Polar, para cão de guarda já chega o Bazófias atrás da Almerinda.

Nesse preciso momento, entrou Tosta Mista. Vinha esbaforido à procura da quadrilha. Viu o bicho, que se esforçava por ser simpático, e sorriu. Era raro o Tosta Mista sorrir.

– É um chevalier king Charles spaniel.

– O que disseste? – perguntou Zé Cigano,

– É a raça do cão. Eu sou preto, tu és cigano, aqueles são brancos e ele é um chevalier king Charles spaniel. Embora seja branco listado de preto, é esta a raça dele. Está claro?

Francisquinho encolheu os ombros com desprezo.

– Não liguem ao man, meus. É cão e rico. O resto é treta do Tosta Mista. Ninguém se esqueça. Estamos em frente de uma das maiores fortunas do país.

– E agora? – voltou a perguntar Manuela.

Todos se viraram para Francisquinho como se fosse o único que tivesse resposta para a pergunta e que esfregou as mãos de contente. Era raro merecer a atenção do grupo. Respondeu com um sorriso velhaco.

– Agora é preciso ter calma. Aposto singelo contra dobrado que amanhã vem tudo certinho no papagaio!

– No jornal? – Clara não compreendia o raciocínio do rapaz.

– Yesss! Com fotografia e tudo, aqui do herdeiro, prometendo recompensa a quem o encontrar. Vale uma aposta?

Francisquinho ganharia, se alguém tivesse aceitado o desafio, mas o dia seguinte seria uma amarga desilusão. Batman tomava café com o doutor Luís, o advogado, quando ele e o Zé Cigano chegaram à esplanada do Águias. Percebeu na expressão grave dos dois que havia novidade e deu um pulo quando leu o anúncio impresso no jornal aberto em cima da mesa.

– Isto é um roubo! Oferecem quinhentos euros a quem aparecer com o cão? O Caruso vale doze milhões.

– Eu topei logo que o advogado era um gatuno. Tirei-lhe a pinta. Mais gatuno do que a gente.

– Quinhentos euros? É uma vergonha. Gatuno, filho da puta. Eu desanco-o.

Batman procurou serenar os ânimos.

– Calma. Há-de haver uma solução para isto. Não passa de um mal-entendido, de certeza absoluta.

– Tem de ser solução rica, pois Caruso manda pastel que se farta! Mas que grande ladrão. Quinhentos euros repetiu Francisquinho.

– És capaz de estar calado por um minuto? Doutor Luís...

Luís era filho do Travanca, das toalhas vendidas a prestações e que faziam as delícias das mulheres do Estrela Polar. O pai pô-lo a estudar e fez um percurso académico sempre com distinção. Formou-se em Direito e tornou-se advogado. Desde então, aquilo que fora uma carreira promissora transformou-se num calvário, sem clientes, com uma turba de colegas atirando-se como gato a bofe a tudo o que mexia por esses tribunais. Por fim, quando a vida começou a dar sinais de que, para comer, teria de regressar à casa do pai Travanca, dedicou-se às defesas oficiosas, mas os pagamentos em atraso, as contas a pingarem regularmente, estrangularam-no a tal ponto que quando Diana o convidou para ser seu conselheiro legal, nem olhou para trás. E ali estava a dar conselhos aos bandidos.

– Eu não sei. Posso falar com o meu colega, tentar chegar a um acordo.

– Mas coisa gorda! – reagiu Francisquinho: – Ou vem a massa a sério ou o cão fica comigo. Ao menos, protege-me desse bandido. A diferença é que, em vez de ter vida de rico, passa a ter vida de cão.

– Para que queres tu o animal? És choné, pá! Tu és choné – protestou Zé Cigano.

Batman tornou a impor ordem na mesa.

– Ninguém discute mais. O doutor Luís vai negociar com o colega e depois se verá. Até lá, tratem o bicho como deve ser. E nada de lhe dar cerveja: isso é uma parvoíce!

Foi fácil contactar o advogado de Caruso. O telemóvel vinha publicado no anúncio que prometia alvíssaras. O doutor Luís ligou e, de imediato, alguém atendeu do outro lado. Era evidente que havia aflição. Propunham o encontro imediatamente. Quando desligou, informou os presentes.

– É o advogado do cão. Encontramo-nos daqui a meia hora.

– Nós vamos consigo. Esse moinante vai saber onde lhe enfio os quinhentos euros – garantia Francisquinho.

– Não. Eu vou sozinho. Isto é um negócio, não é um combate! – afirmou com profissionalismo o causídico do gangue. Levantou-se, pegou na pasta e despediu-se: – Eu não demoro com notícias.

De repente, toda a euforia estava dissolvida na frieza de uma discussão jurídica, na qual se dirimiam argumentos em vez de se discutir a vida e a fortuna que, com tanta audácia, lhes caíra nas mãos.

– Já não há gente séria, meu. É que já não há mesmo – vociferava Francisquinho, pontapeando um barril de cerveja vazio que o Bazófias deixara à porta.

Correra mais de um quilómetro com o Caruso ao colo e, quando lhe faltavam as forças, olhava o animal e tornava a ganhar coragem para mais um esforço. Não roubara um cão, carregava uma fortuna, e continuou a correr até sentir que as pernas já morriam de cansaço. E agora tudo se resumia a uma conversa de gentinha com punhos de renda.

O advogado de Caruso chamava-se Alberto. Pelo menos, assim se identificava no anúncio, e foi com júbilo que cumprimentou o seu colega Luís.

– Foi um alívio receber o seu telefonema, tenho corrido a cidade à procura do Caruso.

Luís olhou-o, surpreendido.

– Do tenor?

O outro riu e era um riso de conforto. Queria explicar-se.

– O verdadeiro Caruso já morreu. Do cão! Foi uma coisa esquisitíssima: choquei com um tipo, acho que tropecei noutro, uma confusão que não percebi. A trela do animal soltou-se e, quando dei por mim, estava no chão e o bicharoco desapareceu. Onde está ele?

– De boa saúde e em segurança.

– Não o trouxe? – perguntou, contrariado. – Tenho quinhentos euros da recompensa para lhe dar.

O doutor Luís tinha uma expressão enigmática e armou-se de gestos brandos e palavras amenas.

– Obrigado, mas não posso aceitar. De certa forma, estou aqui a representar quem tem o cão à sua guarda. Digamos que eles acham a recompensa muito pequena, tendo em conta a fortuna do animal.

Alberto olhou o colega com surpresa e desconfiança. Perguntou, com cautela:

– Tem a certeza de que é advogado?

– Formei-me em Lisboa e não percebo o que parece querer dizer.

– Se bem entendo, os seus clientes raptaram o cão e estão a pedir um resgate.

O doutor Luís distendeu-se com um sorriso. Era um dos jogos que gostava na sua profissão. As fintas entre um gato e um rato.

– Agora sou eu que duvido da sua formação. Como sabe, não há raptos de cães.

– Chantagem.

– As palavras pouco importam. A verdade é que os meus clientes só devolvem o cão por metade da fortuna que herdou. Seis milhões de euros! – atirou com frieza.

– É impossível! Nem existe tanto dinheiro.

– Não existe? – vacilou o doutor Luís. – Mas o jornal...

– O jornal deu a notícia de que a minha falecida cliente deixou uma fortuna de milhões de euros, mas não explicou que eram prédios, acções, títulos do tesouro. Dinheiro, dinheiro, não haverá mais do que dez ou quinze mil euros!...

– Está a falar a sério? – sentiu um rubor de humilhação a subir-lhe às faces e mal ouviu o que o outro lamuriava:

– Eu mostro-lhe o inventário dos bens. Seis milhões é uma loucura! Os seus clientes não sabem o que pedem.

Estava na hora de fugir. Levantou-se e cumprimentou o colega. O Dr. Luís não tinha mais nada para negociar. Despediu-se.

– Assim o caso muda de figura. Eu contacto consigo amanhã.

– E o cão? – perguntou Alberto, aflito.

– Está bem. Quanto a isso, esteja tranquilo.

Francisquinho esperara no largo. Decidira não sair dali sem que o advogado chegasse com o cheque de seis milhões de euros. Foi como se o Caruso o tirasse mordido, dolorosamente surpreendido quando foi informado do resultado das negociações.

– Não tem dinheiro? Como não tem dinheiro, meu? O papagaio dizia doze milhões de euros. E agora não tem? – recusava-se a acreditar na terrível novidade.

– É o valor dos imóveis. Prédios, andares. Dinheiro, notas, não irá para além dos quinze mil euros, sem descontar os impostos que o Estado cobra na sucessão.

– Não acredito nisto! Não é possível, meu. Eu corri com aquele animal ao colo mais de um quilómetro. Ainda estou desasado da força que fiz nos braços, ainda me doem as costas. Como não há dinheiro, meu? Como?

Quando a roda da sorte começa a desandar, como dizia o Bazófias, uma desgraça nunca vem só. No largo, entrou Zé Cigano. Vinha a correr lívido. Desatou a gritar quando o viu.

– Francisquinho, Francisquinho!...

– O que foi? – perguntou este, assustado.

– Uma desgraça. O cão fugiu!

Esqueceu o doutor Luís e as dores nas pernas, desatando a correr na direcção da casa abandonada. O cigano voltou pelos mesmos passos atrás dele. Clara chorava, agarrada à trela de Caruso.

– Desculpa, Francisquinho. A culpa foi minha. Sou parva, não passo de uma parva...

– Mas o Caruso? O que aconteceu? – perguntava ele, ainda sem acreditar.

– Estava a fazer-lhe festinhas. É tão docinho que se aconchegava contra mim. Tirei-lhe a coleira para se sentir mais confortável. Queria dar-lhe um abracinho e depois... Enfim... Depois...

– E depois, o quê, Clara? – o rapaz não conseguia disfarçar a irritação.

– Foi só sentir-se solto, desatou a fugir. Desapareceu.

– Passou por mim quando vinha para aqui. Parecia um foguetão! – esclareceu Zé Cigano, ainda não refeito da surpresa. Francisquinho perdeu a compostura.

– Porra, Clara! És mesmo uma totó... coitadinho! Era fofinho, amiguinho. O caraças, Clara! Não era um animal, era uma fortuna que deixaste fugir em cima de quatro patas!

– Desculpa...

– Qual desculpa, qual caraças, minha. Vamos procurar a porra do cão. Temos de o encontrar, custe o que custar. Avisem os outros.

A questão da antiga casa de Clara foi adiada. Partiu a quadrilha pelo bairro e pela cidade dentro. Alguns assobiavam. Outros chamavam por Caruso, todos espreitavam travessas, becos e sítio que cheiravam a podre onde se acoitavam foragidos. Até parecia que Caruso se evaporara. Ninguém sabia informar, não se ouvia um único latido na cidade. Até lhes parecia que os cães vadios tinham emigrado. Nada. Milhões de pessoas, ainda houve quem visse gatos, milhares de pombos e, contudo, nem um único cão. Muito menos um chevalier king Charles spaniel simpático.

Quando regressaram de mãos vazias, tão pobres e vazias, como em todos os dias das suas curtas vidas, o cansaço mandava na vontade. Cada um dos gatunos partiu para as suas moradas. À casa abandonada regressaram Clara, Zé Cigano e Francisquinho, que queriam acreditar que Caruso voltara ao ventre donde se escapara. Estava deserta. Apenas a trela estendida pelo chão térreo. O último alento de esperança morreu e, desfalecidos, deixaram-se cair no monte de palha e nos colchões espalhados pelo chão. Pelo enorme buraco do tecto entrava a luz das estrelas e, confortado, Zé Cigano gemeu:

– Estou todo partido. Corri mais de cinquenta ruas. Doem-me os pés.

– E eu rouco de gritar pelo raio do cão. Um vadio! Um ingrato! – respondeu Francisquinho, ainda amuado, e Clara lamentou-se:

– Eu nem sei como vos hei-de pedir desculpa. Fui eu quem armou esta confusão toda.

– Tu nem fales, tu nem fales. Se não fosses tão tenrinha, não nos tinha fugido uma fortuna a ladrar por aí fora.

– É o que eu digo. Uma coisa destas precisava de ter sido comandada pela Diana. Somos uns totós – lamentou-se o cigano.

– Não é bem assim, meu. Não é bem assim. A coisa não corria pelo melhor. Não haveria muito dinheiro, mas podíamos ser proprietários – explicou Francisquinho.

– E eu estraguei tudo! Estúpida, mil vezes estúpida... – lamentou-se Clara

Ficaram em silêncio. Olhavam as estrelas e, de algures, vinha o som da música. Parecia um tenor. Talvez fosse o verdadeiro Caruso, que cantava num rádio com as goelas mais abertas. De repente, Francisquinho falou:

– Vendo mais de perto, não sei.

– O quê? – quis saber Zé Cigano.

– Nós, proprietários? Era capaz de ser um trabalhão. Ter de reparar andares, obras, aturar inquilinos...

– Sobretudo se os inquilinos fossem rufias como nós – condescendeu o outro.

– Pois é. Era capaz de dar muita dor de cabeça, meu. Que se lixe. No fim de contas, o Caruso queria ser tão livre como nós. Estava farto de coleiras...

– Farto de donos e de trelas...

– Quer isso dizer que já não estão zangados comigo? – interveio Clara.

– Pensando bem, fizeste uma boa ação. Nós somos como o Caruso. Também não gostamos de andar pela trela. Ninguém gosta. É por isso que eu sou pela revolução – concluiu Francisquinho, já conformado.

– Qual revolução? – quis saber a rapariga.

– Qualquer revolução me servia desde que no final não houvesse trelas nem açaimes para ninguém. Seríamos livres como aquelas estrelas que brilham no céu – e tornaram a olhar o firmamento.

Uma lua cheia, farta, espreitava devagarinho pelo buraco da casa abandonada. Nas suas nervuras, Francisquinho quis ver a silhueta de Caruso de olhos ternos e pêlo suave. Talvez fosse ele, lá longe, a brincar na Lua. E adormeceram serenamente.


6
ENGATE DE MORTE
E A CARIDADE DE FRANCISQUINHO

O ambiente era de um conto de príncipes e princesas encantadas. O enorme salão, ricamente adornado, apelava à boa disposição e os enormes lustres, decorados com milhares de cristais, faziam saltar chispas de luz, que tornavam os convivas mais belos. Diana entrou com Gusmão e estava magnífica. Os homens voltavam a cabeça à sua passagem e as mulheres cochichavam despeitos. Ao sensual vestido negro juntara um colar de brilhantes, e era uma verdadeira estrela que caminhava por entre as mesas, provocando silêncios de espanto e sorrisos corteses, que disfarçavam inveja e fascínio. Rapidamente correu que era a nova paixão do engenheiro Gusmão e vários fotógrafos de colunas sociais procuraram o magnífico par. Evitavam a imortalidade da fotografia. Nem um nem outro ambicionavam reconhecimento público. Era um casal de ratos que ganhava vida na clandestinidade dos intestinos da cidade. Por mais exuberante que fosse a atracção pela visibilidade pública em acontecimentos de fantasia, como era o caso, estavam obrigados a cuidados especiais. Um deles era a discrição que a beleza de Diana contrariava, chamando as atenções de quem a olhava.

Gusmão tratara das coisas para ficarem sentados na mesma mesa de Deodato Gonçalves, e foi com espanto e deleite que ele cumprimentou Diana. A formosura e a voluptuosidade da mulher deixaram-no febril de espanto. Era um cinquentão bem-parecido. Alto, magro, cabelo grisalho, puxado para trás agarrado à cabeça, faiscava com as miríades de luz que jorravam dos lustres e o smoking emprestava-lhe um ar distinto. Diana cumprimentou a esposa, baixa e anafada, e foi perfeita:

– Tem uns olhos lindíssimos e essa pulseira foi feita para uma deusa.

Amélia, assim se chama, ficou encantada com o elogio e abriu-se um sorriso amistoso.

– Não sei onde o Gusmão encontra mulheres tão bonitas. É um bafejado pela sorte.

Diana respondeu com um sorriso ao cumprimento.

– Desta vez foi ao contrário. Eu é que o encontrei. É meu tio.

O bandido estremeceu, no seu smoking de bom corte, com o atrevimento da companheira, e pisou discretamente o pé de Diana. Deu largas à imaginação no curto improviso de apresentação:

– É filha do meu irmão, que vive em Guimarães. São os reis dos têxteis. Veio a Lisboa em negócios e convidei-a para a nossa festa de caridade – e rematou com o seu trabalhado sorriso: – A quem tem muito dinheiro é que os pobres como nós temos de recorrer, não é verdade? As nossas criancinhas merecem e agradecem.

Sorrisos de concordância circularam pela mesa, aprovando as sábias palavras do tio Gusmão, que, agora, sentia a retaliação da rapariga, que lhe devolvia a pisadela. Diana conseguiu ficar sentada entre Gonçalves e o seu tio de ocasião. Percebeu que a proximidade o perturbava e, por mais de uma vez, apanhou-o a olhar, guloso, o seu decote.

Diana observou os convivas e uma revolta surda obrigava-a a preocupar-se com o sorriso. Faziam de um jantar requintado, faustoso, o contributo displicente para crianças carenciadas que não conheciam e que desprezariam, se as encontrassem nas ruas com a mão estendida à esmola. Sentiu nojo daquela gente. Ricos, ou fazendo de ricos, felizes, ou representando a felicidade, pusilânimes na dádiva, egoístas por formação. A todos enojaria o seu bairro e a sua gente, caso se encontrassem, e causar-lhes-iam repulsa infinita. De repente, deu consigo a pensar quantos dos presentes não teriam sido roubados pela quadrilha ou pelo engenheiro Gusmão, e teve de conter uma gargalhada, quando se apercebeu de que naquele salão requintado a aristocracia endinheirada acolhia dois dos maiores gatunos de Lisboa, reconhecendo-os como seus pares. Percebeu que aquela encenação suportava uma farsa de caridade onde todos eram actores. Afinal, tudo se resumia a um vestido que salientava as formas e a um smoking de bom corte.

Deodato Gonçalves era falador e comandava a conversa na mesa. Porém, Diana sentia que ele procurava impressioná-la e fez com que acreditasse que estava fascinada. Prestava-lhe toda a atenção que ele pedia e ensaiou as primeiras palavras de cumplicidade.

– Estive em Veneza na semana passada. Está a tornar-se insuportável, com a multidão de turistas que vagueia entre a Praça de São Marcos e a Ponte de Rialto. E aquele Grande Canal começa a transformar-se numa enxovia de embarcações. Conhece Veneza?

– Quando lá fui de férias, com os meus pais, achei a cidade linda – mentiu puerilmente, e Gonçalves, que desejava que ela o ouvisse, continuou:

– De facto, é bela, mas estão a deixá-la degradar-se. É o problema da Grécia. Com excepção de uma ou outra ilha, o país foi invadido pelo exército mais terrível do mundo: o turismo sem controlo e desvairado. Não admira que tenham as economias arruinadas. Os mercados paralelos e clandestinos crescem conforme aumenta o turismo de magotes de gente vinda de todo o mundo, e as receitas do Estado caem. Conhece a Grécia?

Foi a altura de lançar o isco.

– É um dos meus grandes sonhos desde menina – e era um sorriso guloso e nostálgico que lhe oferecia.

– A sério?

– É verdade. Conheço quase toda a Europa e o país que guardo no coração nunca o vi. Apenas em fotografias e aquelas manifestações horríveis contra o Governo, que mostram na televisão. É a Praça Syntagma, não é? De tanto falaram nela até fixei o nome. Adorava conhecer a Grécia.

Gonçalves ficou em silêncio. Por momentos, tamborilou os dedos na mesa e, colocando a voz num registo que só ela podia ouvir, murmurou:

– Quer vir comigo? O seu tio não se zanga?

Diana fez um trejeito de satisfação e respondeu ao cúmplice:

– A sua esposa é que se pode zangar.

– A minha mulher contenta-se com uma festa social como esta uma vez por semana, e odeia viajar de avião.

Levou a flûte de champanhe à boca e encostou a perna à dela. Diana correspondeu enquanto, por cima da mesa, cruzava as mãos e olhava com atenção o conjunto musical, que se preparava para actuar em honra dos beneméritos e das criancinhas que eles se propunham ajudar. Sentiu o coração gelado quando percebeu que aquele galã decadente lhe dera mais conversa durante o jantar do que o tempo que desperdiçara para despedir o seu pai. Não passava de um carrasco bem vestido. A banda arrancou com o Summertime e Diana aproveitou conhecer a cantiga para dar um toque de erudição.

– O Gershwin compôs isto para a ópera Porgy and Bess. É lindo, mas foi com a interpretação de Billie Holiday que fiquei definitivamente apaixonada.

A tirada fora completamente roubada a Tosta Mista, o seu homem de mão com o coração mais quente e a cabeça mais fria, que passava a vida a escutar música por aborrecimento com as conversas das pessoas. Gonçalves concordou:

– É lindo!

E Diana sentiu o calor da mão dele a afagar-lhe a perna. Ouviu-o suspirar e entreabriu-as como se lhe dissesse: são tuas!

O salão silenciara, embevecido com o tema musical. Amélia limpou uma lágrima emocionada e Gusmão foi o único que percebeu a manobra que se desenrolava debaixo da mesa. Porém, continuou atento à música, como se nada tivesse visto. A exploração das pernas de Diana terminou quando chegou a hora dos aplausos e ela se levantou.

– Preciso de ir. Amanhã tenho uma reunião bem cedo – desculpou-se.

– Já? – perguntou Gonçalves, sem esconder a frustração.

– Sou uma dorminhoca – gracejou.

O engenheiro Gusmão continuou a representar de forma soberana.

– Eu levo-te ao hotel.

– Obrigada, tio. Eu apanho um táxi.

Gonçalves levantou-se:

– Pelo menos aceita que eu a acompanhe até à porta. Faço questão.

Cruzaram o salão e novamente um bando de olhares fascinados pousou sobre a espectacular Gata Borralheira. Despediu-se dela com dois beijos no rosto, que apanharam a ponta dos lábios, e meteu-lhe discretamente um cartão-de-visita nas mãos.

– Amanhã procura-me. Estou ansioso por ir contigo à Grécia.

Acenou afirmativamente e despediu-se, passando a língua languidamente pelos lábios, sugerindo mil aventuras. Tinha-o agarrado. Agora faltava o segundo passo e uma conversa breve de Amélia, que ele procurava desviar, dera-lhe o mote. Anunciava aos restantes convivas que, nessa mesma semana, iria festejar as bodas de prata do seu casamento com Gonçalves e convidava-os para a festa a realizar em sua casa. Era o momento ideal para a desforra. E que Gusmão não lhe viesse implorar mais tolerância. Deixá-lo com vida tinha sido uma cedência ainda difícil de engolir. Aquele animal merecia o castigo que lhe bailava na cabeça. Sentiu pressa de chegar a casa e lavar-se. Sobretudo as pernas, onde sentia vestígios da mão dele. Deodato Gonçalves ia saber quanto dói o sofrimento. Entrou na cozinha e tremia de raiva. O corpo, liberto do constrangimento da representação durante o jantar, parecia descontrolado. Encheu um copo de água e bebeu-o, procurando acalmar-se, quando Nicha entrou. Estranhou a perturbação de Diana e perguntou:

– O jantar correu mal?

Soltou uma gargalhada nervosa e tornou a beber mais água.

– Pelo contrário. Tenho-o na mão. Catorze anos depois, consegui descobrir um dos homens que destruíram a minha vida. Vou matar-lhe a honra, já que prometi que não lhe enfiava uma bala entre os olhos.

– Foi o Gonçalves que conheceste?

– Foi. O livro de actas da empresa revela que era o responsável pelo pessoal. Foi ele quem propôs o despedimento do meu pai. Ainda por cima julga-se sedutor, aquele porco. Porco nojento!

Nicha ficou inquieta com o desvario da amiga. Não parava sossegada e espumava da boca, denunciando a excitação interior que a atormentava.

– Fico preocupada quando te vejo assim tão inquieta, Diana. Às vezes tenho medo de que essa fúria te transtorne.

Diana ficou furibunda com o comentário.

– Ainda mais transtornada do que tem sido a nossa vida? Nicha, nós somos duas ladras! Desde pequeninas, desde o dia em que despachei o Bifanas, dirijo um bando de traficantes e ladrões. Não se passa um único dia sem fazermos um assalto e tu tens medo de que eu fique mais transtornada?! A minha vida é um transtorno, um disparate, desde esse dia em que perdi a segurança que sentia e passei a viver assustada. Fui obrigada a roubar para comer e dar de comer à minha mãe até ela morrer. E agora encontrei o animal que despediu o meu pai, que nos atirou para a miséria. Tu sabes o que é a fome. Passámos fome juntas. Não me fales em raiva, Nicha! Há tantos anos que durmo com ela que a conheço por dentro e por fora. Raiva contra injustiça, contra a crueldade, contra o desespero que matou o meu pai. Medo, desespero e fome. Tenho todos esses dias marcados a ferro dentro de mim. Este foi um dos canalhas que deram cabo da minha vida e que se dedicam a festas de caridade para ajudar criancinhas. Não existe hipocrisia maior. É verdade. Estou eufórica por tê-lo encontrado e vou despedaçá-lo.

A determinação era tão evidente na energia com que desabafava a sua fúria que Nicha não teve coragem para a contradizer. Chegou a sentir pena do homem. Não tinha dúvidas de que Diana iria dar cabo dele.

De súbito, ouviu a sirene de uma ambulância rasgar a noite. Estava perto da casa e, intrigada, Nicha foi à janela do primeiro andar, espreitar para o largo. Uma pequena multidão juntava-se em torno de um homem caído no chão. Não conseguia distingui-los. Eram apenas vultos que gesticulavam em volta do sujeito e que se afastaram para permitir que a ambulância se aproximasse. Que teria acontecido? Não ouvira tiros nem barulho de qualquer rixa. Um dos vultos saiu do grupo e abandonava o largo, dirigindo-se à rua que fazia esquina com o prédio onde ela morava com Diana. Não se conteve e abriu a janela, perguntando o que acontecera. Respondeu-lhe uma risada:

– Mais uma bebedeira do Inácio. Caiu por causa da tosga e não se mexe. Chamaram os bombeiros.

Era o pai da Manuela. Era raro o dia em que não se embriagava, e Nicha fechou a janela, contristada pela vida da rapariga e da sua mãe, condenadas a aturarem um bêbado impenitente e violento. Por outro lado, assistindo ao mesmo quadro a partir da esplanada do Águias, acompanhado de Almerinda, o antigo burlão lamentava-lhe a sorte.

– Desgraçado do Inácio. O bagaço transformou-lhe o fígado num torresmo – proclamou Bazófias, em tom piedoso. A mulher não gostou e reagiu, ríspida.

– É um bruto! Não gosto dele.

– Porquê? Não é mau homem. Pelo menos não é vadio como alguns dos teus amiguinhos e, ainda por cima, é um bom cliente.

– É o pior de todos os bandidos que aqui vêm. Bate na mulher e às vezes deixa-a toda negra.

– Nunca ouviste dizer que entre marido e mulher ninguém mete a colher? – perguntou Bazófias judiciosamente.

– Baboseiras! Baboseiras de babosos como tu – voltou-lhe as costas, com evidente irritação, e foi para o interior do café.

A ambulância partiu levando a bebedeira de Inácio e o grupo de curiosos começou a dispersar. Era raro o dia em que os bombeiros não iam ali, transportando para o hospital toxicodependentes em overdose, bêbados em coma, tipos esburacados em rixas com facas e pistolas e velhos doentes incapazes de suportarem a solidão.

No dia seguinte, na esplanada do Águias comentavam-se as peripécias da noite anterior e o álcool começava a escorrer novamente pelas goelas dos clientes, preparando os dramas da nova noite que se aproximava. Todavia, aquela manhã trouxe novidades que quebraram as notícias. Clara e Francisquinho já bebiam cerveja quando ela gritou:

– Olha para ali. É o senhor padre e dois escuteiros.

– É peditório, de certeza! Andam ao mesmo que nós, a ver se esmifram algum – comentou Francisquinho com algum desdém.

– Deve ser para uma obra de caridade – condescendeu a rapariga.

– Não me interessa. De mim, não levam nenhum. Façam como eu. Vão gamar.

Bazófias surgiu à porta do Águias no momento em que o padre Ganhão se aproximava. Tinha admiração por aquele sacerdote baixo, rosado, com um sorriso simpático. Só um homem muito próximo da santidade teria paciência e estômago para conduzir aquele miserável rebanho de Deus, sempre tresmalhado por caminhos ínvios. Clara, que gostava muito dele, levantou-se para lhe dar um beijo e o sacerdote fez-lhe uma festa na cabeça. Bazófias cumprimentou-o efusivamente.

– Senhor padre, bons olhos o vejam!

O sorriso do sacerdote alargou-se com a afectuosidade do cumprimento.

– Bom dia! Como vai, senhor Ernesto? Andamos a fazer um peditório para o nosso centro social. Os nossos velhotes precisam da ajuda de todos nós.

O burlão levou, de imediato, a mão à algibeira e entregou uma nota de dez euros.

– E fazem muito bem! Se todos ajudarmos, não custa nada! – e, voltando-se para os clientes que ocupavam as mesas da esplanada, exortou-os:

– Vá lá, pessoal. Se há dinheiro para copos, também tem de haver para ajudar os velhotes aqui do senhor padre.

Clara ofereceu a única moeda que possuía e os restantes contribuíram com pequenos donativos. Apenas Francisquinho, fazendo um gesto de quem não tinha dinheiro, se furtou à dádiva. Bazófias percebeu e atacou com ironia:

– O senhor padre tem de aparecer mais vezes. Há muitos pecadores por aqui...

Padre Ganhão sorriu, bem-disposto, contente com a atenção dos presentes, e rematou:

– É boa gente, com a graça de Deus! Apareça na igreja que terei muito gosto em vê-lo por lá.

– Irei, senhor padre. Irei – garantiu, com pouca convicção.

– Um resto de bom dia a todos e muito obrigado pelas vossas dádivas.

O sacerdote e os escuteiros já se afastavam e o taberneiro garantiu em voz alta.

– Passe bem, senhor padre. Boa sorte com o peditório. No domingo, vou à igreja com a minha Almerinda.

Francisquinho não resistiu e gritou mais alto:

– Não o queira lá. Vai roubar a caixa das esmolas – e, com um sorriso velhaco, piscou o olho a Bazófias.

Este não encaixou a piada e reagiu, irritado:

– Não roubo porra de caixa nenhuma, não sou um estafermo como tu! Foste o único que não deu nada. Eu vi, Francisquinho. És um somítico.

– Estou teso, meu! Teso, assim só com as mãos. Nada nos bolsos, nada, meu. Teso! – protestou o rapaz.

– Este padre é um porreiro. Até merece ser ajudado e tu ficaste nas encolhas. Não passas de um gatuno sem princípios morais.

Clara interrompeu-o:

– Tu és católico?

Bazófias não esperava a pergunta e estrebuchou. Recompôs-se e conseguiu montar uma resposta.

– Eu? Então, não havia de ser? Baptizado e tudo. Não sou lá muito de missas, lá isso não, mas respeito é respeito, quer dizer, fica sempre bem, e este padre é bom homem. Merece que a gente o ajude.

– Achas que sou somítico, mas tenho cá uma ideia do cacete para ajudar o senhor padre – interrompeu Francisquinho.

– O quê? – quis saber Clara.

O rapaz abriu os braços e anunciou a ideia.

– Um arraial! A malta organizava-se, fazia uma quermesse, um concerto, coisa rija. O dinheiro que se arranjasse era para o centro social!...

– Boa. Grande ideia! – e a rapariga desatou a bater as palmas. A fé de Bazófias arrefeceu:

– Isso dá muito trabalho. Não sei, não. Dá um trabalhão que nem queiram saber. Comigo não contem. Uma gorjeta vá lá, agora alombar com um arraial, não. Não calha com o meu feitio.

– Esse é o teu problema! – reagiu Francisquinho, exaltado. – Fala-se de trabalho e tu desanimas. Tu e trabalho zangaram-se há muito tempo.

– Não digas mais disparates. A verdade é que um arraial dá um trabalhão e, no fim, é toda gente a gamar. Não dá.

– Mas vamos fazer. Quer queiras, quer não. E digo-te mais. Vai ser um arraial do cacete! – teimou o rapaz.

– Não dá. Desiste dessa, pá. Aqui não dá. Não há decência para uma coisa a sério.

– Dizes tu, mas tu és o Bazófias, meu. E não vais voltar a chamar-me somítico, tu vais ver, meu! Vai ser uma festa do caneco, digo-te eu, do caneco! – e, voltando-se para Clara, propôs: – Anda. Vamos ter com os outros!

As ideias de Francisquinho eram como um rastilho. Quando acendiam e inebriavam o resto da quadrilha, todos avançavam como se fossem um só corpo.

Na casa abandonada, escondidos num dos quartos mais recatados, Zé Cigano, Tosta Mista, Necas e Manuela dividiam, em pequenas doses, a cocaína que Batman trouxera para vender aos janados. Era um trabalho meticuloso, separando o pó linha a linha e enrolando-o em papel de mortalha. No entanto, estavam tão habituados à tarefa que o trabalho prosseguia com evidente desembaraço.

– O teu pai ficou no hospital? – perguntou Zé Cigano a Manuela, que fez uma expressão contrariada e respondeu com secura:

– Mandaram-no embora quando a bebedeira passou. Hoje ficou em casa a dormir porque lhe doía muito a cabeça.

Necas interrompeu a conversa. Procurava contar as doses que haviam conseguido preparar.

– Já chegamos às quinhentas?

– Estamos quase – respondeu Manuela, querendo fugir à conversa sobre o pai. Necas continuou a embrulhar panfletos.

– O Francisquinho é um artista. Escapa-se sempre ao trabalho que precisa de paciência – comentou o Zé Cigano.

– A paciência nunca foi o seu forte – concordou ela.

Nesse preciso momento surgiram Francisquinho e Clara, e o cigano anunciou:

– Aí vem o impaciente. Agora que o trabalho está quase no fim, eis que chega, armado em campeão.

Contudo, ele, vinha demasiado entusiasmado para acusar as bocas dos outros, e declarou em brasa com a antevisão da ideia:

– Manos, tivemos uma ideia genial. Vamos fazer um arraial!

– Não se passa nem um dia em que não armes um arraial – respondeu-lhe o Zé Cigano com secura.

– Estou a falar a sério, meu. Mesmo a sério. O padre anda a recolher dinheiro para obras no centro social e nós podemos ajudar, animando o bairro. Um arraial! Quermesse, concertos, foguetes, tudo. O que sobrar da despesa é para o centro. Enquanto falava, dava saltos de exaltação. Clara veio em seu auxílio.

– A ideia é espectacular. Também estou aos pulos. Mas por dentro!

– Ajudar a obra social da igreja é bacano – admitiu Necas, e Francisquinho contrapôs:

– E eu sei onde vamos gamar os foguetes.

– A quermesse obriga a embrulhar muitos papelinhos e a ter prémios – Manuela ainda não aderira à ideia e o rapaz desfez a dúvida.

– Para quem embrulha tanta coca em panfletos, enrolar rifas é como limpar o cu a meninos. Além de que gama-mos os prémios para oferecer a quem as compra. Sai à borla. O Necas rapa a electricidade à EDP e comemos adereços e luzinhas nas lojas dos chineses. Têm merda dessa aos molhos, meu.

– E o dinheiro? Quem controla o dinheiro? Se fores tu, não alinho – agora era o Zé Cigano a meter areia na engrenagem.

– Estás a chamar-me ladrão? E tu, o que és? Mas há uma regra no grupo. Ninguém gama, ninguém! Jamais te gamaria, man, jamais!

– Seja como for. Tem de ser o Batman ou a Diana a tratar do dinheiro. Os mais sérios de nós todos. E a música? – lembrou, de repente, o Necas.

– A música?! – Manuela não percebeu a preocupação do amigo.

– Qual música? – insistiu Clara.

– Não estavam a falar de concerto e de um baile? Temos de arranjar um conjunto. Assim um daqueles do tipo Rock in Rio...

– Esses custam uma fortuna...! – reclamou Francisquinho.

– Os Green Day...! Os Chemical Romance...!

– Estão doidos! – desabafou Zé Cigano, e Clara reforçou a ideia dele.

– O Bieber. É bué da giro!

– Não dá. Tem de ser coisa baratucha, tipo banda de garagem. Vocês estão marados? Não há caroço para pagar a esses mangas.

– Primeiro têm de escolher a música, depois escolhe-se a banda – esclareceu Tosta Mista. O bando voltou-se para ele com surpresa.

– Tosta Mista!? Tu falaste! – exclamou Necas.

– O Tosta Mista é especialista em matar gajos e em música. É o Mozart da pistola – ironizou Francisquinho.

– O Mozart? Quem é? Algum conjunto? – perguntou Zé Cigano.

– É um músico. Um dos maiores de sempre – informou o Necas.

– Esse então deve ser muito caro...

Clara decidiu pôr termo às conversas cruzadas, sem sentido, e fez uma proposta concreta.

– Uma banda de rock! Tem de ser rock para a malta saltar.

– Eu também acho. Rock a sério é o que a malta grama – concordou Manuela.

– Também gramo rock – Francisquinho estava pelos ajustes.

– Qual rock?

A pergunta de Tosta Mista teve o condão de voltar a lançar a confusão quando se vislumbrava concórdia. Francisquinho não resistiu a fazer novo espalhafato.

– Falaste outra vez, man? Milagre! Milagre! O Tosta Mista já falou duas vezes num só dia.

– O que queres tu dizer, Tosta Mista? Qual rock? Rock é rock! – Necas tornava a ficar desconfiado.

– Não é, não. Há roots rock, o pop rock, o folk rock, o rock psicadélico, o rock progressivo, o punk rock, o jazz rock, o hard rock, o rock cristão e por aí fora...

Fez-se um silêncio de espanto. Acabavam de assistir a uma verdadeira carga de cavalaria com tanta novidade que hesitavam entre a admiração por Tosta Mista e a desorientação geral.

– Meu Deus! Tu és um sábio – conseguiu finalmente balbuciar Manuela.

– Não tenho palavras. Estou seco! – Francisquinho ficara sem forças perante tanta eloquência, e o negro voltou à carga:

– Ainda há o rock de garagem, o blues rock. Os Rolling Stones são blues rock. O David Bowie é glam rock. O Bruce Springsteen é heartland rock...

– E os Nirvana? – perguntou Clara com evidente ansiedade. Era o seu grupo favorito.

– São grunge e os My Chermical Romance, rock alternativo!

– Grunge! – exclamou embevecida, e manifestou o seu apreço ao rapaz: – Tosta Mista. Eu não tenho palavras. Tu...tu... és o maior, pá! Sabes tudo.

Necas não conseguia esconder a admiração pelos muitos saberes do amigo e isto fez crescer o despeito de Francisquinho.

– Sabe tudo, mas não passa de uma treta, meu. Para que sabe ele tanto se não diz qual é a banda que trazemos ao arraial? Hã? Porque não dizes? O Bruce Springsteen? Os Blondies...?

– Não confundas. Os Blondies são new wave – rectificou Tosta Mista, e a chamada de atenção irritou o outro.

– Quero lá saber o que são, man. Precisamos de um desses rocks, mas baratucho e tu dizes nomes que valem o peso em ouro...

O Zé Cigano deu uma palmada na perna com verdadeiro entusiasmo.

– Já sei. Os Estricnina!...

– Estricnina? Mas isso não é um veneno? – Clara revelava alguma repugnância pelo anúncio do conjunto musical.

– Há uma banda célebre que tem nome de veneno. São os Anthrax! – confortou-a Manuela.

– Mas os Anthrax são trash-metal. Tem muito pouco a ver com rock! – elucidou o negro.

Já não era sapiência. Para Francisquinho era o amigo a embirrar e a tentar boicotar o arraial que tão fulminantemente inventara.

– Estou-me nas tintas que sejam venenosos desde que toquem e toquem barato! – Voltando-se para o Zé Cigano perguntou: – Conheces os Estricnina?

– Por acaso conheço. Sou amigo do vocalista.

– Tá decidido. Falamos com os Estricnina. Tosta Mista, concordas? – quis saber respeitosamente o Necas. Ficou surpreendido.

– Eu?

– Pá, de nós todos és quem mais sabe de rock.

O negro encolheu os ombros com desdém, enquanto voltava a colocar os headphones nos ouvidos.

– Qualquer coisa serve. No que respeita a música, vocês são uns bárbaros. Não me interessa.

Francisquinho ficou passado com a indiferença dele e engrossou a voz, impondo a ordem onde Tosta Mista lançara o caos.

– Já sabia. O Tosta Mista está armado ao pingarelho porque é especialista. Não interessa, meu. Não interessa. Os bárbaros decidem. Quem vota nos Estricnina levanta o braço!

A quadrilha obedeceu, apenas o especialista em rock ficou insensível escutando o seu Ipod.

– Está decidido – decretou Manuela: – Minhas senhoras e meus senhores, os Estricnina são o grupo eleito.

O entusiasmo só acalmou quando Necas começou a separar as doses de coca e impôs alguma calma no bando, com um sério aviso.

– Maralhal! Toca a vender pó. Duvido de que a Diana apoie qualquer arraial com os janados a precisarem desta marmelada para a ressaca. Vamos a eles.

Cada um dos membros do bando pegou no seu lote de doses e partiram para o negócio. Já era tarde. Àquela hora muitos dos clientes andariam ansiosos à procura de qualquer coisa para meter na veia ou enfiar nas ventas. Nem que fosse pó de talco ou gesso a fazer de conta que era uma dose. Quando se está ressacado, não se escolhe.

Para Diana também aquela manhã estava a ser fora do comum. Bem cedo ligou ao Gonçalves. Agradeceu-lhe a gentileza e do outro lado respondeu-lhe um vulcão de desejo: não dormira toda a noite pensando nela. Ele não viu o sorriso de triunfo da rapariga quando lhe respondeu que também não conseguira dormir e, ao ouvir esta confissão, Gonçalves perdeu a cabeça. Por força que tinham de se encontrar nesse dia, a paixão era de tal forma extraordinária que não podiam esperar pela Grécia. Na verdade, muito embora só tivessem estado perto um do outro poucas horas, a sua longa experiência como homem dizia-lhe que era o exemplo típico de amor à primeira vista. A prova do que afirmava estava nos seus dedos. Ainda lhe sentia a macieza das pernas.

Diana explorava o machismo exacerbado do homem, ora torneando as expectativas dele, ora incrementando-as até à irracionalidade das emoções mais animalescas.

– Apenas sinto remorsos porque gostei muito da sua mulher.

Gonçalves derrapava. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Estava casado porque assinara um papel. Um mero contrato que não podia escravizar o coração de ninguém. E o seu pertencia a Diana desde a noite anterior. Não lhe interessava mais ninguém. Só ela vivia no seu coração. Ela carregou na sedução.

– É um poeta. Nunca imaginei que um bom administrador de empresas pudesse ser poeta. Foi esse aspecto que me fascinou.

Gonçalves rebolava-se dentro do seu próprio umbigo, como um ratinho numa roda de uma qualquer gaiola. Que era verdade: muitas vezes pensava em abandonar as empresas para se dedicar à filosofia e ao estudo da metafísica. A sua vida era uma monotonia de números e palavras circunstanciais quando a sua alma o impelia para a procura do eterno e do amor, como verdadeira essência da existência, e fora ao vê-la e senti-la que surgira a revelação da sua verdadeira vocação. Diana era tudo. Tão formidavelmente perfeita que só nela conseguia pensar. Era a razão fundamental para se encontrarem imediatamente e trocarem o afecto que Deus destinara aos seres humanos.

Ele chegara ao ponto, ajuizou Diana. Reconheceu estar com muita vontade de o ver, que tornaria a ligar daí a pouco, e desligou enviando um grande beijo. Queria que o desespero do macho o levasse a não pensar muito a não ser sobre a expectativa de possuí-la rapidamente. Embora não fosse uma mulher com uma intensa experiência sexual, conhecia os efeitos da testosterona nos machos quando pressentem, ou julgam perceber, o cio das fêmeas. Sabia que, ao esticar a entoação daquele grande beijo, poria a sua presa sem controlo sobre as suas acções. Estaria, então, em condições de ser feita em pedaços. Diana chamou Batman.

– Há uns meses, durante um serviço que fizemos nos Restauradores para sacar computadores, tu trouxeste uma chave de carro que era uma câmara de filmar. Lembras-te? Até me disseste que era usada por espiões.

– Lembro.

– Ainda a tens?

– Tenho. Precisas dela?

– Ensinas-me como trabalha?

Era, na verdade, pouco maior do que uma chave automática de ignição. Até tinha gravados os símbolos de fechar e abrir, que eram o disfarce do on e do off da câmara. A extremidade lisa era uma potente objectiva com um minimicrofone incorporado, ligada a uma pen. Experimentaram em casa. Batman descarregou as imagens para um computador e eram perfeitas para as necessidades de Diana.

– Vais montar uma armadilha a um tipo – arriscou Batman. Diana não respondeu e o rapaz mudou de conversa. – Acho que o nosso pessoal entrou em devaneio. Querem fazer um arraial no largo para ajudar a obra social do padre Ganhão.

– É uma boa ideia e tão estapafúrdia que só pode ter saído da cabeça do Francisquinho. O padre Ganhão merece a ajuda de toda a gente. Se houvesse muitos como ele, talvez a Igreja não passasse pelas dificuldades em que vive. Está minada por velhacos e ambiciosos que agem em nome de Deus, mas apenas se servem do Seu Nome. Ajuda-os e diz-lhe que também alinho no arraial – e, mais enigmática, concluiu: – Até nos pode dar jeito essa festa.

O entusiasmo em torno da iniciativa era grande, mas estava a suscitar conflitos paralelos. Era o caso do Bazófias, que mostrava quanto estava ofendido a Francisquinho e a Manuela, enquanto, na sua esplanada, comiam tremoços e pevides e emborcavam minis.

– Tenham lá paciência. Vocês podem fazer aquilo que quiserem sem me passar cartucho. Gamar, arraiais, fumar brocas, vender brocas, tudo! Não tenho nada a ver com isso. Mas marchas?! Peço perdão, mas de marchas, sei eu! Desci aquela avenida não sei quantas vezes e de balão. Nos tempos em que os balões eram balões – Bazófias estava indignado e reivindicava o seu estatuto de especialista em folclore urbano. O rapaz riu, cínico.

– És só língua, meu! És todo língua e linguaradas, meu! Que sabes tu de marchas, que sabes tu? – e voltando-se para Manuela perguntou: – Já alguma vez te falou das marchas onde entrou? Tretas, meu. Tretas! Marchar, marchavas para a cadeia com os pasmas a acertarem-te o passo.

– Tretas, o tanas! – Bazófias ia protestar, mas o rapaz não deixou. Atacou, sabendo que não haveria argumentos a contrapor: – Não me dês música, meu. Olha, começa logo por aí. Onde é que o bairro arranjava uma banda para acompanhar a marcha? Tu és o único músico que anda por aqui e ninguém falou em folclore. Estás lixado com a gente porque te obrigámos a descobrir que não passas de um sovina de merda.

– Vai-te lixar, pá. Eu dei dez aeurius, ouviste?

– Esses dez aerius são uma desculpa, meu. O arraial dá um trabalho do escafandro que não se paga com uma nota manhosa.

Zé Cigano estava a passar pó a dois clientes, no meio do largo, e foi alertado pela discussão que crescia na esplanada do Águias. Quando despachou os viciados, aproximou-se do palco da contenda e comentou:

– A confusão vai grande – e, dirigindo-se ao taberneiro: – Em vez de gritares por marchas vai buscar uma mini.

– Ouviste, meu? O Bazófias quer criar uma marcha aqui do bairro. Quer dizer, quer e não quer. Se formos nós a alancar e ele a mandar bitaites, quer. Se for ele a dobrar as molas, não quer – explicou Francisquinho.

– Eu não disse isso. O que eu disse é que, se houvesse marcha, eu podia dar uns toques.

O velho burlão começava a recuar e Francisquinho carregou:

– O grande problema é que todos os teus dentes sabem mentir. Que marchavas, que marchaste na avenida, que és o maior das marchas, que sabes tudo sobre balões do antigamente, e tudo, man, e tudo! Não ouviste, Manuela...?

– Já viram isto? Mas já viram isto? – Bazófias espumava e o cigano contemporizou:

– Não percebo esta zaragata. Se o Bazófias quer organizar uma marcha, deixem o homem em paz fazer o que entender. Até fica bem desfilar no arraial...

– Eu não quero nada. O Francisquinho é que armou esta confusão!

O rapaz soltou uma gargalhada gozona. Estava feliz por ver Bazófias embaraçado e reforçou o ataque:

– Eu já sabia que tinha a culpa. Que não queres fazer nada, sei eu. É só palheta, língua... olha aqui, língua... treta...! – e mostrava-lhe a língua. Por fim, veio a provocação final: – Eu não me esqueço do que me chamaste, meu. Mas tu é que és o verdadeiro somítico, meu. Pior, que somítico. És somitiquíssimo!

– Quer dizer que vai haver marcha – procurou saber Manuela.

– Pergunta ao Bazófias. Marchas é com ele, não foi o que disse? Pergunta-lhe, que eu vou marchar daqui, tenho muito panfleto para vender e falta de paciência para aturar burlões.

Francisquinho afastou-se, triunfante. Sentia que a desforra sobre o outro tinha sido uma vitória em toda a linha.

– Este tipo põe-me atordoado. Se não fosse tão maluco, dava um burlão do caneco – suspirou Bazófias.

Zé Cigano desatou a rir. Não conseguia imaginar o amigo a trabalhar um otário. Tinha os nervos à flor da pele e rapidamente começaria aos estalos.

– O Francisquinho não tinha paciência. Desatava aos gritos com o otário. E a minha cervejola, ó Bazófias? Acabou-se o produto?

Bazófias afastou-se e o cigano baixou a voz. Manuela aproximou-se dele.

– Estamos com um problema – murmurou o Zé.

– Não me assustes. Aconteceu alguma coisa?

– Falei com o vocalista dos Estricnina. O conjunto musical só vem se lhe pagarmos à cabeça. Têm medo de que a gente falhe.

– Meu Deus! É muito dinheiro?

– Mil euros. Onde vamos inventar mil euros? – de súbito, suspendeu a conversa e levantou-se rápido, exclamando: – O concurso de motas!

E desatou a correr pelo largo, perante a estupefacção da rapariga.

Cruzou-se com Batman, que lhe ia dizer qualquer coisa, mas afastou-se, sem parar de correr, e gritou-lhe:

– Agora não posso. Vou gamar uma mota!

Batman não percebeu a pressa e foi à procura dos outros para lhes contar que Diana gostara da ideia do arraial. Estes comportamentos da chefe do bando eram perturbadores. Noutros tempos, Batman alinhara com outros grandes ladrões e nunca encontrara quem tivesse preocupação com o bem-estar dos vizinhos. Aquilo que se roubava não era para partilhar para além do grupo que assaltava. Haviam conquistado os novos pertences com astúcia e coragem. Não eram de mais ninguém, muito menos dos seus legítimos proprietários. Todavia, com Diana estava sempre presente essa preocupação com os mais abandonados. A primeira fatia da partilha, e por sinal a maior, era destinada a quem estava em aflição no Estrela Polar. Por isso, estranhava esta atitude da ladra e traficante mais arrojada e também mais solidária que alguma vez conhecera, e já era ladrão há mais de quinze anos.

Porém, naquele momento, Diana estava concentrada na sua obsessão doentia: o segredo que apenas partilhava com Nicha e habitava nas profundezas da alma. Tornou a ligar a Gonçalves em cima da hora de almoço. Atendeu logo. No telemóvel ouvia-se a respiração ofegante do homem. Sim, ela tinha conseguido organizar os seus afazeres em Lisboa e que se podiam encontrar ao final da tarde. Ele ainda protestou, sugeriu à hora de almoço, pois teriam mais tempo, e Diana percebeu que a sua presa utilizava estas pausas para resolver as suas aventuras sexuais e foi firme. Tinha apenas uma hora disponível entre as seis e as sete da tarde e fizera tudo aquilo que estava ao seu alcance para inventar esse tempinho só para eles, pois não viera de férias a Lisboa, mas para tratar de assuntos do pai. A hesitação foi breve e a decisão, rápida. Fosse ela ter com ele ao endereço que lhe pedia que apontasse, mas chegasse mesmo à hora marcada para aproveitarem todos os minutos, pois estava a passar um dia de tormento com saudades dela. Diana olhou para o relógio. A presa ficara pronta para a matança. Tinha tempo de ir ao cabeleireiro e preparar-se a preceito para o conduzir para a armadilha. Procurou a localização do endereço que Gonçalves lhe enviara e foi com surpresa que descobriu onde era o encontro: na própria residência do homem, e sentiu-se nauseada. Compreendia porque não tivera ele consideração pelo seu pai e todos os outros que despedira. Até a família desconsiderava, o que a deixou satisfeita. Era mais do que justa a sentença que decidira aplicar ao animal. Pegou nas chaves do carro e meteu-se a caminho do cabeleireiro. Cruzou-se com Zé Cigano no largo da estação e acenou-lhe com um sorriso. Ele correspondeu e continuou a caminhar. Tinha ido até longe para vender pó, pensou Diana, mas estava enganada. O rapaz observava com atenção um grande conjunto de motos de alta cilindrada, enfileiradas em cima do passeio. Escolhia com o olhar e hesitava entre várias com ar imponente e robusto. Não havia ninguém por perto e aproximou-se devagar, mãos nas algibeiras, examinando uma a uma. O coração deu-lhe um baque quando percebeu que a quarta moto que o maravilhou tinha a chave na ignição.

Era uma Kawasaki e o velocímetro indicava que podia chegar aos duzentos e cinquenta quilómetros por hora, ou seja, a máquina certa para poder ganhar o concurso que a malta da Charneca estava a organizar. Tornou a olhar em volta. Embora fosse hora de almoço, havia poucos transeuntes e passavam distraídos. Com toda a naturalidade montou-se. Ligou a ignição. A Kawasaki roncou, transmitindo-lhe uma grande sensação de poder e arrancou sem grande aparato. Sentia-se de tal forma feliz por domar um galgo com tão potente cilindrada que nem reparou que atrás de si ia ficando um minúsculo, mas visível, rasto de óleo.

Quando entrou no largo do Estrela Polar, o velho Leandro, sapateiro remendão que trabalhava à porta, saboreando a sombra amena do casario, deixou de martelar no sapa-to que reparava. Nunca tinha visto uma moto daquele tamanho. Duas galinhas fugiram a cacarejar, assustadas com o barulho, e o cão vadio acordou da sua sesta habitual. A Ti Mariana do lugar da fruta também espreitou e Francisquinho e Manuela correram ao seu encontro. O rapaz exclamou:

– Ganda máquina, meu! Onde a gamaste?

– Não interessa. Gostam? Com esta bomba vou ganhar parte do dinheiro para pagarmos aos Estricnina. Vou sacar os quinhentos euros de prémio do concurso que o Bigornas está a organizar na Charneca. Nem os deixo levantar o cu do selim.

– Julgava que era só uma taça – confessou o Francisquinho.

– Uma taça e quinhentos aerius.

Francisquinho desatou aos saltos.

– Tens de ganhar, Zé. Tens mesmo de ganhar, meu. É metade do que custam os Estricnina e o Bigornas até vai andar de lado. E tu estás treinado? Aceleras, meu? Aceleras mesmo para os comer? Tens de treinar, meu.

Manuela pediu, entusiasmada.

– Leva-me a dar uma volta?

– Salta aqui para trás – e, voltando-se para o amigo, perguntou: – Ninguém está a fazer rifas para a quermesse?

– O Necas e a Clara. O resto da malta anda a passar pó – e tornou a admirar a moto.

– É bué de grande, Zé. É mesmo bué de grande!

As galinhas tornaram-se a assustar-se. Mal sabiam as pobres aves que estava para chegar um arraial com muito mais barulho, com destaque para os foguetes e as guitarras amplificadas dos Estricnina.

Necas e Clara tinham parado de enrolar rifas. Havia, ao lado deles, uma caixa de papelão, onde já se viam algumas centenas de papelinhos embrulhados e dobrados.

Beijavam-se encostados ao Datsun do Necas. Ele afagou os cabelos louros da rapariga e murmurou:

– Um dia havemos de casar.

Clara fez uma careta.

– És um tonto. Casar para quê?

– Para estarmos ainda mais juntos. Tu vais vestida de branco, com um longo véu, grinalda no cabelo e jóias a enfeitar esse pescoço lindo – Necas imaginava a cena, visivelmente bem-disposto.

– E tu de smoking. Todo elegante, vestido de preto, um laço branco de cetim, e há música na igreja.

– Mas não dos Estricnina – emendou o rapaz, soltando uma gargalhada.

– Não. Daquele compositor célebre que eles falaram ontem quando discutíamos o arraial.

– Do Mozart...

– Do Mozart. E a música leva-nos, como se tivéssemos asas, até ao altar.

Necas abraçou-a com ternura.

– É como se fôssemos príncipes encantados, e viveremos felizes para sempre.

O momento idílico foi interrompido pela chegada tonitruante de Zé Cigano com Manuela, que entraram com a Kawasaki tão acelerada que fazia estremecer as paredes.

– Grande máquina! – exclamou Necas.

– É o máximo, não é? É com esta bomba que vou arranjar dinheiro para os Estricnina!

– Como?

– O Bigornas organiza uma corrida de motas. Vou papá-los todos!

– É espectacular andar nisto. Bué da fixe! – gritou Manuela, entusiasmada, enquanto saltava do motociclo.

– Posso experimentar? – quis saber Necas.

Clara montou-se no banco traseiro.

– Eu vou contigo.

Necas ligou a chave. Porém, o motor não respondeu. Tentou outra vez e ouviu apenas um estalido metálico. Franziu a testa, desconfiado. Repetiu a operação e a Kawasaki nem pestanejou.

– Então, não quer pegar...?!

– Tenta outra vez. Há bocado fez o mesmo, mas arrancou, embora com um som estranho – sugeriu o cigano.

Voltou a tentar a ignição.

– Não dá mesmo. O que será?

Saiu de cima do veículo e observou o motor com cautela. Foi então que percebeu. Bolhas de óleo queimado fervilhavam em volta dele.

– Meu Deus! – exclamou.

– O que foi? Não me assustes – Zé Cigano aproximou-se, procurando ver o que tanto assustava o Necas, que explicou.

– O motor não tem óleo. Gripou. Está em brasa!

– Está em brasa, como? Vinha a trabalhar.

– E morreu! – esclareceu o rapaz, acrescentando: – Com esta não ganhas corridas nem ao Bigornas, nem a ninguém. Acabou.

Zé Cigano levou as mãos à cabeça, procurando conter o choro. A euforia fora tão grande que a notícia que o outro lhe dava era um verdadeiro coice no peito.

– Eu vi logo que era fácil de mais. Tinha a chave na ignição. Era a única e parecia que estava à minha espera. Estou passado, pá, mesmo passado. Eu ganhava a massa ao Bigornas. Juro que ganhava.

– Onde gamaste a mota? – perguntou o Necas.

– Ali na Rua Ventura, no largo da estação. Estavam lá cinco ou seis e fui logo roubar esta, a avariada. É galo. É mesmo galo!

– Na Rua Ventura? Quando se vem da estação...?

– Aí mesmo.

– Zé, isso é uma oficina que repara motas. Eu conheço o homem. É um tipo bacano.

– Numa oficina dessas, é natural que estivesse para reparar, não é? – constatou Clara, em tom de censura.

– Não me apercebi. Gamei uma mota avariada.

– E deste cabo do resto. Agora só um motor novo.

Necas castigava-o com as notícias e o cigano estava completamente fora de si. Pusera tanta fé na corrida das motos que não se conformava.

– Lá se vai o concurso do Bigornas e o dinheiro para o conjunto – lamentou-se.

Para agravar ainda mais a situação, entrou Francisquinho, furioso.

– Eu sabia que os vinha encontrar aqui. Deixaste-me a secar, meu! Queria experimentar a mota e tu, baldas, a dar ao lamiré. Eu sabia. Tinhas de vir mostrar, e eu na seca. Não tens respeito, meu. Não tens mesmo!

– Francisquinho, a mota morreu. Pifou! – anunciou Necas. O rapaz não queria acreditar no que ouvia.

– O quê? A mota...

– Não ouviste? A mota esticou o pernil! – repetiu o cigano.

– Vocês estão a falar a sério? E a corrida...?

Zé Cigano desatou aos gritos.

– Não há corrida para ninguém. Não há nada. E agora o que faço eu com isto?

Necas respondeu-lhe com um encolher de ombros, desdramatizando a questão, pois a morte de uma moto não dá direito a velório.

– Nada. Eu falo com o homem da oficina, invento uma história qualquer e ele vem buscar a máquina. Não há mais nada a fazer.

O riso sarcástico de Francisquinho pôs o frustrado participante na corrida motociclística a ferver. O outro gozava-o sem piedade.

– Gamaste a mota de uma oficina de reparações? Foi mesmo?

– Não me gozes. Tu não me gozes, estás a ouvir?

Francisquinho deixou-se cair no chão, agarrado à barriga, rindo descontroladamente.

– De uma oficina de reparações?

Clara e Manuela, contagiadas pelo riso histérico do rapaz, desataram a rir às gargalhadas, um riso sem sentido, que, como se fosse uma epidemia, se pegou aos queixos de Necas, o qual se encostou à parede, incapaz de compor um ar sério. Zé Cigano não compreendia onde estava a graça da sua desdita e saiu amuado em passadas largas. Eles que embrulhassem as rifas da quermesse.

Entretanto, Diana saía do carro mesmo em frente à casa de Gonçalves. Ao contrário da quadrilha, que só trabalhava bem quando era dirigida, ela desdobrava-se e, tal como agora, transformara-se numa caçadora furtiva, qual chita, silenciosa e rápida, cravando os dentes nas goelas das suas presas. Caminhava segura, apesar dos saltos altos, e dois homens que tagarelavam no passeio calaram-se, mudos de espanto, quando ela passou. As longas pernas, que o vestido curto mostrava generosamente, marcavam a imagem. Tocou à campainha. Era uma mansão robusta, dos meados do século passado, ladeada de muros altos sobre os quais caía a folhagem espessa de dois imponentes carvalhos. Uma empregada fardada veio abrir a porta da cancela, dando-lhe passagem. Percebeu que era esperada.

– O senhor doutor vai recebê-la.

Acompanhou-a até ao enorme salão da entrada e Diana reparou no bom gosto de quem ali morava. As paredes estavam forradas de quadros, alguns deles que ela conhecia de revistas, e uma soberba escadaria de mármore rosado dava acesso ao primeiro andar.

A empregada conduziu-a por um corredor amplo, que se abria pela esquerda do salão, deixando-a num escritório enorme, confortável, com vários conjuntos de sofás, muitos livros, uma colecção de relógios valiosos e esculturas, que rodeavam as paredes. Reparou num quadro mais pequeno, ligeiramente descaído, e teve uma palpitação. Estava ali um cofre escondido na parede.

– É só um momento. Vou chamar o senhor doutor.

Saiu e fechou a porta. A primeira conclusão que tirou foi simples. Aquela casa guardava tesouros que mereciam ser roubados. Depois, escolheu o espaço para a montagem do drama. Colocou a pequena máquina de filmar em cima do tabique que debruava a lareira, apontando-a ao enorme sofá que estava à sua frente, e ligou o dispositivo. Quase de seguida, a porta abriu-se e surgiu Gonçalves. Olhou-a e caminhou para ela de braços abertos. Deixou-se abraçar, porém fê-lo rodopiar por forma a ficarem no plano que a máquina podia captar.

– Minha querida. Estava ansioso à tua espera...

– A tua mulher não aparece? – e afastou-se mostrando inquietação, mas ele respondeu-lhe como um general a César depois de uma grande vitória.

– Não. Tratei de tudo. Foi às compras com alguém da minha confiança. Só regressará quando eu der sinal. Esta casa é nossa.

– E a empregada? – tornou Diana. Queria que ele falasse, que se expressasse, e aceitou o novo abraço e os beijos sôfregos que ele distribuía pelos ombros e pelo pescoço. Empurrou-o.

– Espera. Não me respondeste. A empregada pode vir aqui.

Gonçalves soltou uma risada e acariciou-lhe os seios.

– Desapareceu por artes mágicas e já não volta. Anda cá. Estava doido por tocar-te. Para sentir-te nos meus braços.

Deixou-se abraçar, não resistiu aos beijos, puxou-lhe a camisa para fora das calças, encostando-se com voluptuosidade. Gonçalves, desgrenhado, estava numa outra dimensão de luxúria. Subitamente, ela afastou-o e, arfando, disse:

– Chega, meu amor...

Gonçalves não conseguiu perceber a recusa, tal era o desvario, e tornou a tentar abraçá-la.

– Mas eu amo-te, desejo-te...

Diana, entretanto, recuperara a firmeza, afastou-se, deixando-o sozinho dentro do plano do filme que continuava a gravar.

– Não. És casado e não me envolvo com homens casados na sua própria casa!

Gonçalves reagiu mal. Não esperava que aquela presa tão fácil e tão apetitosa lhe estivesse a escapar por entre os dedos.

– Quero lá saber da minha mulher e do meu casamento. Quero-te a ti!

Diana empurrou-o com frieza e gritou com secura:

– Não! Aqui não!

O administrador de empresas começava a ficar desesperado e suplicou:

– Diana, tu não te vais embora.

– Convidaste-me para estar contigo e não para uma sessão de sexo. Ainda por cima na casa onde vives com a tua mulher.

Dito isto, pegou na falsa chave de automóvel e no casaco, encaminhando-se para a porta. Ele ainda tentou a última súplica.

– Desculpa, perdi a cabeça. Escuta.

No entanto, Diana já não o ouvia. Caminhava para a rua com um sorriso frio no rosto e a falsa chave bem guardada na mão fechada. Tinha consigo o cutelo com que ia despedaçar o monstro que abraçara. Não tinha dúvidas: Deus existia.

Não havia trânsito quando regressou a casa. Foi um alívio, pois ansiava confirmar se as imagens recolhidas estavam em condições. Ligou ao Batman para se encontrarem em casa dela e voou, cortando por Monsanto, enquanto sentia uma mágoa crescente dentro de si. Não sabia porquê, mas apetecia-lhe chorar, como se um impulso inexplicável lhe impusesse que se escondesse na toca, como um animal ferido que procura conforto. Este conjunto de sentimentos difusos, os quais cruzavam ódio e saudade, solidão e luta, terminavam na mesma necessidade. As imagens tinham de estar boas, pois obrigara-se a respirar o nojo que nutria por si própria ao sentir ainda as mãos e os lábios daquele homem a queimarem-lhe o corpo.

Batman já estava à espera quando Diana chegou, e ela entregou-lhe o sofisticado aparelho de recolha de imagens.

– Descarrega isto no computador, mas peço-te que não vejas. São imagens de que me envergonho e tu não irias compreender.

– É grave? Posso ajudar-te?

– Não. Ninguém me pode ajudar. É um problema pessoal.

Viu-a tão perturbada que não se atreveu a perguntar mais nada. Raramente Diana expunha as suas fragilidades. Apenas Nicha conhecia os seus pesadelos.

A quadrilha recolhia dela a imagem de uma mulher que liderava sem hesitações, corajosa, capaz das acções mais audazes para levar ao êxito um golpe ou proteger qualquer deles, e sempre afirmara uma posição de distanciação em relação ao grupo no que respeitava aos seus sentimentos mais íntimos. Sentou-se ao computador, com ansiedade, e pediu ao rapaz:

– Espera aí um bocadinho. Preciso de te perguntar uma coisa.

Batman afastou-se de modo a ficar de frente para ela, com a máquina a separá-los, e desatou a falar.

– O pessoal está todo animado com o arraial. A notícia espalhou-se e há mais gente a querer ajudar. Desconfio de que a ideia do Francisquinho vai resultar.

– Boa – respondeu Diana e o rosto iluminou-se pela primeira vez com um sorriso desde que entrara na casa do Gonçalves. Desatou a bater palmas e exclamou: – É isto. É isto mesmo!

O rapaz não reagiu. Gostava mais de a ver assim contente e descontraída do que com o ar transtornado de há pouco. Rapidamente Diana controlou as emoções e disse:

– Vamos aproveitar esse entusiasmo para fazermos um serviço que encontrei hoje. É uma casa cheia de jóias. Tenho a certeza de que vi um cofre por detrás de um quadro na parede.

– Quando é?

– Brevemente.

– Quem queres levar?

– Levo o Necas e o Tosta Mista...

– Eu não vou?

– Mostra-te no largo e leva a Nicha. Quase toda a gente sabe que quando saio daqui à noite vais na minha companhia. Assim pensam que ando por aí, no arraial. Eu estarei dentro da casa para ajudar. Convidaram-me para uma festa que lá vai acontecer e aproveitamos o momento para despachar aquela chausa toda.

– Vamos gamar os convidados?

– Não. Vamos fazer a casa enquanto os donos estão distraídos com os convidados.

– Percebi – respondeu o rapaz, e acrescentou: – Há outra coisa.

– O quê?

– Os Estricnina não tocam se os rapazes não lhe pagarem primeiro. O Zé e o Francisco estavam a pensar em fazer qualquer coisa para arranjarem o dinheiro.

– Quanto levam os Estricnina?

– Mil euros!

– Por esse preço não devem valer nada.

Batman encolheu os ombros com um sorriso triste e concordou com ela.

– Imagina que o Zé Cigano tinha escolhido um conjunto ainda mais barato. A desafinação matava-nos.

Riram os dois, bem-dispostos.

– Diz-lhes que estejam quietos. Eu pago aos Estricnina...

Batman acenou afirmativamente, embora cheio de dúvidas.

– Eles não devem merecer. Pelo menos, eu nunca ouvi falar de tal banda.

– Mas merece a nossa gente. Ao menos que haja um dia com música e menos tristeza.

Despediu-se dele e correu a rever as imagens. Valera a pena. Estava tudo gravado. Até a conversa entre os dois. Só faltava mais um passo: fazer chegar o pequeno filme às mãos da infeliz Amélia. Ligaria a Gusmão. Era o par ideal para a acompanhar às bodas de prata do casal Gonçalves.

Não dera pelas horas passarem. Olhou pela janela e viu vários homens e mulheres compondo o largo com fitinhas, enquanto, mais ao longe, outro grupo montava um palco. Agradeceu ao Francisquinho a ideia do arraial. O Estrela Polar estava diferente quando ganhava entusiasmo e não havia tanto sofrimento exposto, como se uma manápula gigante esmagasse todas as esperanças. Deu consigo a pensar no Bazófias. Iria ser um dos grandes beneficiados da festa que o povo preparava em louvor da obra social da Igreja. Hesitou se o deveria forçar a contribuir com um donativo maior, ou se o deixaria ganhar mais uns cobres nesse dia de folguedo. Porém, desistiu da ideia. Estava demasiado contente com o resultado da sua operação junto do Gonçalves para impor fosse o que fosse, e decidiu que não lhe diria nada. Mal sabia Diana que Bazófias vivia numa profunda angústia por causa do arraial.

Encostado ao balcão, com o livro de registos à frente, interpelava Almerinda, que, entretanto, servia os clientes.

– Encomendo quinze ou trinta grades de cervejas? Se vier muita gente ao arraial, vinte grades não chegam.

– Encomenda vinte e cinco – sugeriu-lhe a mulher.

– E se não vem ninguém? Talvez quinze. O que achas? É um investimento carote em cerveja. Talvez trinta, se a noite estiver quente.

– As noites têm vindo frias.

– Pois. O frio é lixado para a cerveja. Se calhar aí umas doze grades. O que achas?

Almerinda perdeu a paciência com as hesitações dele e disparou, já irritada.

– Acho que és um medricas. Um cagarola!

– Almerinda?! Estou a falar do negócio – protestou.

– Sei lá do teu negócio, sei lá quantas cervejas, sei lá se está frio! Já disseste não sei quantos números... doze, trinta, vinte, quinze... Entre o doze e o trinta é a distância da tua indecisão e queres a minha opinião para quê? Para nada. Vou mas é dormir, que estou cansada. Fica tu a aturar estes bêbados.

– Não percebo essa gritaria. Eu só perguntei.

– E eu não respondo, pronto! Compra as cervejas que quiseres – atirou com o avental para cima de uma pipa de vinho e foi-se embora, indiferente aos apelos do Bazófias.

– Almerinda?! Espera – suspirou, resignado, abanando a cabeça, e desabafou: – É preciso uma paciência para aturar esta mulher!

Suspirou profundamente e tornou ao livro, preocupado, reflectindo em voz alta:

– Vamos cá ver. Mesmo com frio, vinte grades é capaz de estar certo. Se estiver calor é o caraças. – De repente, tomou a decisão: – Ela tem razão. Vou encomendar vinte e cinco caixas.

A noite estava animada de clientela. A adesão de gente que vivia encostada pelas esquinas, desempregados ou apenas moinantes, assim como muitas mulheres que trabalhavam nos preparativos do arraial, animava o largo, e o Águias registava uma afluência fora do comum. Foi nesse momento que Clara e Necas entraram no café. Bazófias foi directo ao assunto.

– Vou encomendar vinte e cinco caixas de cerveja para o arraial.

– Fazes bem. Quanto maior o número de bebedeiras, mais rija é a festa. Duas minis e tremoços.

O casal sentou-se na única mesa vazia e Clara massajou a ponta dos dedos.

– Doem-me as mãos de enrolar tanta rifa.

– Também sinto cãibras nos dedos.

– Mas estou preocupada, Necas. Fizemos mais de duas mil rifas e não temos prémios para dar. Nem uma caneca.

– Esse é o problema que o Francisquinho tem de resolver. Ou vai pedir ou vai gamar.

Bazófias regressou com as cervejas e os dois calaram-se.

– Ainda pensei em trinta grades, mas desisti. Vocês não são de confiança e sei lá se isto não vai ser um fiasco.

Necas reagiu mal.

– E tu? És de confiança? Vais ganhar uma porrada de dinheiro à nossa pala e ainda te armas ao pingarelho?

– Não é bem assim, não é bem assim – recuou Bazófias, e desculpou-se: – A crise está a dar cabo do comércio. Aqui no bairro havia cinco tascas há dois anos e agora somos dois. Um investimento mal medido e vai tudo para o catano.

Outros clientes chamavam por ele e afastou-se. Clara voltou à carga no momento em que Francisquinho se dirigia à mesa.

– Ainda bem que chegaste. Temos as rifas prontas e não há prémios.

– Estou a tratar desse problema. Já gamei umas coisas foleironas e, mais uns dias, fica tudo resolvido. No centro comercial de Benfica há mais prémios do que rifas já embrulhámos. Até tem uma loja de chineses que dá para gamar às mãos-cheias.

– Gamamos os prémios todos?

Francisquinho retorquiu, mal-disposto:

– Como queres fazer, minha? Comprar? Pedir? A este bando de tesos ainda mais miseráveis do que nós? – soltou uma gargalhada bem-disposta: – Não vai ser gamanço. Podemos dizer que o centro comercial apoia o arraial. Vim aqui porque, enquanto vocês estão nos copos, ainda há quem trabalhe – rematou com supremo sarcasmo.

– O que queres dizer, ó chavalo? perguntou Necas.

– Que fui com o Zé Cigano às compras. Fanámos trezentos foguetes e precisamos de uma carrinha para os trazer.

– E porque não fizeram a carrinha?

– Porque há limites, meu. Há um limite. Não andamos a fanar para a gente, meu. É para a obra da Igreja e Deus é capaz de nos perdoar os trezentos foguetes, mas não sei se desculpará muito mais. Um tipo com estas merdas do céu e do inferno tem de se pôr a fanques. Além de que sei que tu e o Batman têm sempre uma carreta à disposição.

– Okay. Eu trato disso. Quem vai comigo?

– O cigano. As minhas manhãs têm de ser dedicadas à publicidade.

Dito isto, levantou-se e saiu, apressado. Clara não resistiu a comentar.

– Ele, às vezes, parece passado dos carretos.

– O Francisquinho é passado dos carretos – assegurou Necas, e noutro tom de voz, mais doce, avisou-a: – E tu, se não páras com o pó, vais pelo mesmo caminho.

– Foi a droga que o pôs assim?

– Começou aos dez anos e só conseguiu parar aos quinze. Esteve a morrer com uma overdose. Quando regressou, vinha limpo, mas a bater mal dos carretos. Vai para três anos. Nunca mais consumiu, mas também nunca mais foi o puto Francisquinho. Ficou assim, meio chanfrado. Pára com a merda da coca, Clara. Essa porra dá cabo dos miolos.

– Se eu fosse capaz. Já tentei, mas não dá.

– Claro que dá. Eu também estive agarrado e saí. Tudo se passa aqui na tola. Tenta não consumires durante um dia. Depois outro. E mais outro. Quando deres por ti já passaram uma data de dias. Assim que estiveres aflita corres para perto de mim e eu ajudo-te a esquecer a ressaca. Um dia de cada vez, Clara. É assim.

A rapariga encostou a cabeça ao ombro dele e afagou-lhe o braço. Talvez o rapaz tivesse razão. A verdade é que não queria ficar marada como o Francisquinho.

– Necas – murmurou.

– Sim?

– Gosto de ti.

E Necas beijou-lhe suavemente os cabelos.


7
UM ARRAIAL DE MORTE

A agitação crescia à medida que se aproximava o dia do arraial. O largo estava irreconhecível, decorado com papelinhos de cores garridas, multiplicando-se em mil luzinhas alimentadas por uma baixada de electricidade feita directamente dos cabos da EDP, que, sem saber e graças ao talento de Necas, se transformara numa das principais empresas patrocinadoras do evento. O pessoal que subia a colina em busca de cocaína ficava espantado com tal modificação e os passadores faziam a divulgação do evento, destacando-se o frenesi de Francisquinho.

– É para o fim-de-semana, não se esqueçam! Vai haver quermesse, baile, concerto e fogo-de-artifício. Têm de vir à nossa festa! Temos cá os Estricnina. São bué de porreiros.

– Há pó?

– Pó? Perguntas-me se há pó, meu? Podes snifar, embebedar-te, morrer de overdose... o que quiseres, man...! Há de tudo... espalhem a notícia... digam à malta para vir. É tudo para curtir!

E continuava a passar a palavra, enquanto vendia os drunfos, verdadeiro missionário do arraial do Estrela Polar, espalhando a fé na festa.

– Já sabes que vai haver arraial no fim-de-semana aqui no largo? Vem e traz os teus amigos. Mete quermesse, baile, concerto e fogo-de-artifício e tocam os Estricnina!

Para essa tarde estava combinado entre ele, o Necas e o Zé Cigano a recolha de mais prémios para a quermesse, enquanto os restantes faziam as últimas rifas. O largo fervia de excitação, esquecendo gemidos de fome e cansaços, e o velho Jeremias comovia-se ao ver a sua gente transformada em alegria.

– Parece que voltámos aos velhos tempos, quando isto era terra de gente pobre, mas honrada – repetia, batendo com a bengala no chão e pedindo mais bagaço ao Bazófias.

Circulavam muitas pessoas pelas ruas, as conversas, o tom do lamento, ou da raiva, e até havia mais polícias por ali, desconfiados por tão inesperada alteração de humores. Contudo, embora olhassem, não viam. Ainda não havia muito tempo que uma carrinha com matrícula falsa passara em frente a uma patrulha, conduzida por Necas, levando Francisquinho e Zé Cigano. Até lhes deram dois dedos de conversa.

– Vamos às compras para a quermesse.

– Onde arranjaram o dinheiro? – perguntou um agente, desconfiado. Necas emendou rapidamente.

– Comprar é uma forma de dizer. Fizémos um peditório à nossa maneira pelas lojas de alguns supermercados e centros comerciais, e toda a gente ajudou. Uns mais do que outros, mas é gente boa, sim, senhor.

O polícia ficou satisfeito com a resposta e partiram, apressados. Até à noite tinham de encher a carrinha de prémios graças à bondade involuntária das suas vítimas, que iriam involuntariamente apoiar a festa.

As lojas de chineses eram as preferidas por causa da variedade de bugigangas. Zé Cigano e Necas ficaram com a responsabilidade de fintar os chineses, que, sendo discretos, eram desconfiados. Gamar um dedal obrigava a artes de ilusionista. Francisquinho atacou no supermercado situado ao lado deste comércio dos pobres.

Em menos de três horas a quermesse estava visivelmente reforçada. Zé Cigano arrumava na carrinha lotes de canecas, pratos, bonecas, pulseirinhas da sorte e guardanapos bordados. Além de uma boa mão-cheia de isqueiros e esquálidos cães de porcelana.

Francisquinho apareceu vergado ao peso da carga. Largou-a, aliviado, nas traseiras do carro, e o cigano não conteve a surpresa.

– Presunto? Chouriços?

– Vocês foram gamar para os chineses e a mim calhou-me a zona dos talhos. Vocês trouxeram bonecas, pelúcias, a mim calhou-me presunto e chouriços. Mete aí!

– Um presunto numa rifa? É uma quermesse rica...

– Posso ir buscar outro reforço, man. Eu adoro comer isto em lascas.

– Já chega. O Necas traz dois cabazes cheios de livros.

– Livros, man?! O Necas é um animal de cultura. De cultura à séria. Com chouriços e livros. Vai ser uma grande quermesse. É bacano, meu. Um livro fica bem em qualquer sítio. O meu tio tem uma estante cheia de livros. Tira-se um livro e pimba! Está lá escondida uma garrafa de vinho. É mesmo bacano, meu. Quem vê a estante, fica convencido de que ele é um tipo culto. Quem abre os livros, descobre que é um bêbado.

Enquanto se desenrolava esta colecta de bens em favor da quermesse e do serviço público, as raparigas e Tosta Mista enrolavam papelinhos. Até que, por fim, Manuela fez cálculos a decidiu:

– Tosta Mista, já chega de rifas!...

A música nos ouvidos não o deixou ouvir a ordem. Retirou os headphones e perguntou, distraído:

– O quê...?

– Não precisamos de enrolar mais rifas. Já chega...

– Não ouvi.

– Tu não ouves nada do que a gente diz, pois não? – perguntou Clara, enquanto arrumava as folhas de papel que tinham sobrado.

– Oiço música!

– É por isso que sabes tanto sobre rock – comentou a outra.

– Não sei. Entendo melhor a música do que as pessoas.

– Não é possível. A música é... música!

– Olha este exemplo. Quando a música discute, violinos contra trompetes, o resultado é música. Quando a gente discute uns com os outros, o resultado são gritos. Entre os gritos do Francisquinho e a música não há escolha possível! – tornou a colocar os auscultadores nas orelhas e Manuela observou-o durante algum tempo, com curiosidade:

– Este Tosta Mista está cheio de mistérios, não está?

– É o assassino mais sensível do mundo! – comentou Clara, sorridente.

A chegada da carrinha atafulhada de presentes para a quermesse motivou o aplauso geral e os mirones aproximaram-se para ajudar na descarga. Eram cerca de duas dezenas de populares entusiasmados, que os iam entregando a um grupo de mulheres, liderado por Manuela, encarregado de arrumar os prémios na barraca montada nos dias anteriores. Necas soltou um assobio para chamar a atenção da assistência. Apoiado no estribo da viatura, avisou com voz forte:

– Oiçam. Avisem toda a gente que, se houver alguém que se atreva a gamar um palito que seja da quermesse, pode ter a certeza de que fica com o céu da boca frio quando começar o arraial.

Respondeu-lhe um coro de concordância, com aplausos. Nem o mais ordinário dos gatunos se atreveria a roubar a festa do povo. Francisquinho estava cansado e correu ao Águias para refrescar a garganta. Bazófias recebeu-o com condescendência paternal.

– Sim, senhor, vocês estão a conseguir. Vamos mesmo ter arraial. Quer dizer, eles conseguiram, tu bebes cervejas.

– Não viste o que eu fiz? Claro que não viste. És ceguinho. Fui eu quem pôs as luzes todas. E agora alombei com dois presuntos, que me partiram todo. E tu, man? O que fizeste? Nada, man. Nada! Até a Almerinda ajuda e tu aí de braços cruzados a olhar a tropa. E dizes que és católico. Se todos os católicos fossem como tu, a obra social da Igreja morria, meu. Dei o litro. Agora é que o povo começa a saber quem é o somítico. Se sou eu, ou se és tu, man.

– Francisquinho, deixa-te de tretas. Pareces um despertador... ronron... ronron... pões a cabeça de Deus em água, quanto mais a minha.

– Deus não tem cabeça, man!

– O quê?

– É só espírito. Não tem cabeça. Ao contrário de ti, que tens cabeça, mas não espírito.

O momento mais sensível da organização informal acontecia no preciso momento em que os dois discutiam a anatomia de Deus. Diana afrontava o vocalista e líder dos Estricnina e o rapaz estava desconfiado. Ela entregou-lhe quinhentos euros.

– Mas não foi isso que combinei com o Zé. O concerto custa mil euros.

– E vais receber mil euros à minha maneira. Isto é um sinal. Quando montarem a vossa aparelhagem no palco recebem mais quinhentos e no final do concerto entrego-te mil. Tudo em notas para que as finanças não embirrem convosco.

– Não confia em mim? Nós somos uma banda a sério. Até fomos convidados para irmos à televisão.

– Não me impressionas com esse convite. Não há cão nem gato que não vá à televisão. Até o Bazófias lá foi uma vez explicar como surripiava as carteiras aos otários, no tempo em que exercia a profissão. E fica a saber ainda outra coisa. Ou os Estricnina vão mesmo tocar, ou, se estragam o arraial por causa da bebedeira ou porque fizeram uma pedrada séria, nunca mais voltam a actuar.

– Porquê? – perguntou em tom de desafio. – Mata-nos?

– Mato.

O vocalista ficou assustado. A forma como ela respondeu, a secura do verbo e, sobretudo, a expressão baça do olhar transmitiram-lhe a certeza de que os Estricnina, para salvar a pele, teriam de fazer o concerto das suas vidas. Recolheu os quinhentos euros sem dizer palavra. Foi-se embora em silêncio e cheio de medo. Lembrava-se dos avisos dos pais quando lhes comunicara que tinha uma banda. Acautelaram-no contra as incertezas da profissão e ele encolhera os ombros com indiferença. Agora era obrigado a reconhecer que era uma actividade em que se corria o risco de morte.

Diana desinteressou-se. Estava na hora de combinar com Gusmão a entrada na festa das bodas de prata do Gonçalves. Faltavam poucas noites para que os Estricnina actuassem no arraial e a animação que crescia no largo poderia funcionar a seu favor, se precisasse de um álibi.

Gusmão apareceu-lhe intrigado com a teimosia dela em irem juntos à festa das bodas de prata e percebeu que, se lhe contasse a verdade, o velho burlão recuaria.

– Quero oferecer uma prenda à mulher dele. Foi muito simpática comigo.

A desconfiança aumentou com a resposta.

– Não a percebo. Quando quis conhecê-lo, falou-me de uma vingança. Obriguei-a a prometer que não havia mortes pelo meio, e, agora, quer oferecer uma prenda à Amélia?

Diana encolheu os ombros com um sorriso vago. Desde muito cedo que se treinava para esconder as suas verdadeiras emoções.

– Não haverá mortes, Gusmão. Confie em mim.

Por fim, depois de muito rezingar ele aceitou acompanhá-la.

– Bom, despertou-me a curiosidade. Quero ver a prenda que vai oferecer à tonta da Amélia.

– Nunca mais a irá esquecer – mudando de tom, perguntou-lhe: – E o seu amigo Luis Felisberto? Não me ajuda a encontrá-lo?

– Conheço-o, mas não somos tão próximos como o Gonçalves. Sei que trabalha ali para os lados da Praça de Londres. Dirige uma empresa de transportes. Pouco mais sei dele a não ser que a mulher é tão feia que qualquer dos hipopótamos do Jardim Zoológico lhe ganharia num concurso de beleza.

Riram os dois. Diana ficou em silêncio por uns momentos. Era uma boa indicação e repetiu em voz alta.

– Na Praça de Londres.

– Foi ele quem me disse, uma vez que nos cumprimentámos na Mexicana. Eu tratava dos meus negócios e não liguei muito.

Já anoitecia quando Diana regressou a casa. Gusmão era um bom amigo e admitia que ele sentia prazer em seguir os projectos de vingança. Embora vivesse entre a riqueza e o luxo, a velha costela de bandido conduzia-o à solidariedade activa para com outros bandidos, que procuravam sobreviver na selva de abandonos e de sonhos vazios que polvilhavam a cidade. Dava-lhe informação aos poucos. Começara assim com Gonçalves até concordar em acompanhá-la às bodas de prata para onde haviam sido vagamente convidados. Agora oferecera-lhe o primeiro sinal sobre Felisberto e deve ter estranhado a indiferença dela. Porém, fora calculada. Com este, o principal responsável pela morte do seu pai, não haveria promessas. A morte só se paga com a morte, jurara. Além de que, com o nome dele e sabendo que dirigia uma empresa de transportes, não seria difícil encontra-lo, pois a Praça de Londres não era assim tão grande.

O dia seguinte começou torto. A quadrilha vendia panfletos, não alterando as rotinas por ser véspera de arraial. Quem consome com regularidade não quer saber de festas nem de arraiais. Consumir é uma necessidade. É saciar uma fome antiga e desesperada, por mais breve que seja a ressaca que obriga de novo à exigência, ao produto pronto e disponível, quando os primeiros sinais de desejo começam a roer os músculos e a doer no estômago.

Francisquinho estava empenado. Lesionara-se. A carga de presuntos para a quermesse deixara-o de rastos. E guinchava.

– Estou feito, meu. Todo partido. Os presuntos mararam-me as costas. São os nervos. Só podem ser os nervos que entortaram.

– Com uma snifadela isso passa – sugeriu Necas.

– Não sei, man. Não sei. Acho que é o coração, tás a ver? O coração não desacelera o suficiente. Qualquer dia caio prò lado. Tu vais ver! Caio prò lado e já não me levanto. Isto desacelera mal. É o coração! E ataca-me nas costas. Estou marado, meu.

– O Firmino – recordou o outro: – Lembras-te do Firmino? A mãe dele é peixeira no mercado.

– Conhecia. Já deu o baque.

– Quando estava a fazer uma ourivesaria. O coração estoirou e caiu para o lado.

– Não foi a bófia? Ouvi dizer que foi a bófia – comentou Francisquinho, massajando as costas contra uma esquina do prédio.

– Tretas do maralhal ignorante. Quando a chibaria chegou já o Firmino tinha esticado o pernil. O coração gripou ali mesmo em frente a não sei quantos quilos de ouro. Olha quem está a chegar...

– O Bexiga!

Necas falou para os outros.

– A patroa não fia mais pó, enquanto o Bexiga não pagar. Alguém o apalpe para ver se tem alguma nota.

Tosta Mista saltou do pedregulho onde estava acocorado a vender panfletos e dirigiu-se ao homem, um quarentão alquebrado pelo vício, que sorria, alucinado de satisfação, na direcção dos rapazes. O amante de música não o cumprimentou quando o toxicodependente lhe abriu os braços disposto a apertar o traficante contra o peito, num processo de sedução desvairado que lhe entregasse a dose à borla. Tosta Mista disparou uma sequência de socos na barriga e no rosto de Bexiga, que, quase de imediato, o deitou por terra. Pontapeou-o com força na cabeça e nas costas fazendo-o rolar pelo chão poeirento.

As pessoas passavam indiferentes ao que se passava. Conheciam situações iguais, que se repetiam com frequência, sendo já normal ver alguém a ser espancado pelo bando. Bexiga sangrava da boca e do nariz, inerte no chão, quando o rapaz parou e de dedo espetado contra o peito lhe disse qualquer coisa que os outros não perceberam.

Depois, ergueu-se, limpou as mãos, uma na outra, e disparou um último pontapé à cabeça do Bexiga. Regressou tranquilamente para junto dos outros, voltou a acocorar-se no pedregulho e informou:

– Tá combinado. Vai roubar hoje para amanhã pagar o que deve.

A animação regressou depois daquele contrato assinado com o sangue do Bexiga. O arraial ia ser um êxito e a chegada da camioneta com o material de som dos Estricnina trouxe nova tempestade de curiosidade. Até o Batman, sempre fugidio, foi espreitar, para grande satisfação de Bazófias, que, da esplanada do Águias, observava os movimentos da praça.

– Que é feito de ti, Batman? É raro apareceres. Não falas com os amigos. Que se passa contigo, homem? – perguntou, apertando-o contra si.

– É a vida. Não dá para distracções – respondeu, lacónico.

– Porra pá, fomos companheiros de infortúnio pelo menos duas vezes. Uma foi em Vale de Judeus e a outra em Coimbra, não foi? Quando te conheci, na Mata Linda, eras um gaiato. Ainda não tinhas barba.

– Foi em Pinheiro da Cruz.

– É isso. Estava a confundir. Pinheiro da Cruz! Por acaso, foi a cadeia onde o tempo me custou menos a passar.

– Passavas os dias a ensinar os outros a roubar carteiras e a sacar-lhe cigarros – recordou Batman com um sorriso.

– Pois, tinham de pagar as aulas. Belos tempos. Agora reformei-me. Há anos que não faço um otário. As mãos já tremem, não dá...

– Agora gamas os putos que vêm aqui para os copos.

Bazófias fez uma expressão de zangado. Depois, desatou a rir.

– Não gamo nada. Eles é que armam aqui cada trinta e um que, se não fosse por consideração à Diana, já os tinha corrido. E a tua vida? Estás sozinho ou continuas com aquela miúda que te ia visitar à cadeia?

– Isso acabou há muito tempo.

– Um homem da tua idade sem mulher? Ó Batman, tu não viraste panila, não é verdade?

– Virar, como? – perguntou, sem perceber.

– Sei lá. Gostar de abafar a palhinha. Dar em larilas. Gostar de sardos, ter comichão na peidola, ser paneleiro, pronto!

– És doido! – Batman ia afastar-se aborrecido com a sugestão, mas o outro agarrou-o, prazenteiro.

– Não te zangues comigo, pá. Só perguntei. Somos amigos, irmãos de cativeiro, irmãos até à morte. Desculpa se te ofendi.

Batman cedeu. Conhecia a língua trapalhona do carteirista. Tinha a fama e o proveito da merecida alcunha que lhe puseram. Bazófias assumiu, então, uma atitude paternal.

– Tens uma vida de bicho, pá. Tens de gozá-la. Uns copos, umas miúdas. Só gamar, gamar. O que fazes a tanto dinheiro, se morreres? Para que serve essa tua vida, sempre fugido à polícia e sem gozares nada...?

– É a necessidade...

– A necessidade de quê? Para quê? – insistia Bazófias.

– Ajudar os meus pais.

– Vives com os teus pais?

– Não. Eles estão no Norte. Numa aldeia perto de Braga. Desde pequeno que nunca tive cabeça e aos dezasseis anos fui preso a primeira vez. Os meus pais sofreram um desgosto de morte. Jurei que nunca mais os faria passar por aquela vergonha e ainda não decorrera um ano já estava preso outra vez.

– Porra! – filosofou Bazófias.

– Quando saí de Pinheiro da Cruz, não tive coragem de voltar a casa, envergonhado e sem cara para pedir desculpa, Éramos quatro irmãos. Devo ser o único que durante dez anos nunca os visitou. Nem pelo Natal.

As palavras, emocionadas, saíam-lhe em torrente, como se tivesse renascido a velha solidariedade entre presos, junto do antigo companheiro de cárcere, que o censurou:

– Também é de mais. Os nossos pais são os nossos pais. Perdoam tudo, pá!

Batman controlou a comoção, pensativo, hesitando em concordar com Bazófias. Por fim, aceitou o argumento.

– Tens razão, mas descobri isso muito tarde. Foi há dois anos. Enchi-me de coragem e fui visitá-los. Bati à porta e apareceu-me uma velhinha de cabelo branco, toda curvada e eu nem a conheci.

– A tua mãe.

Agora era Bazófias que se comovia com a história. As lágrimas dançavam-lhe nos olhos. Batman concordou com um gesto de cabeça e continuou:

– E em casa, numa cadeira de rodas, com umas rugas muito fundas, estava o meu pai. O que me ficou na memória foi o olhar dos dois. Nunca tinha visto tanta tristeza – a voz de Batman embargou-se quando confessou: – Descobri nesse dia que já não tinha irmãos, morreram sem que eu soubesse de nada.

– Que porra, Batman! Coitados dos velhotes. Mas que grande porra!

Limpava os olhos aos punhos da camisa e, curioso, quis saber o resto da história. Batman desabafou:

– Menti-lhes. Disse-lhes que tinha um bom emprego em Lisboa e que me ia encarregar deles. Procurei o melhor lar que existe no Norte. Tem piscina, hidromassagem, tudo, e foram para lá. Custa uma fortuna, mas que se lixe! Não quero saber e todos os meses vou visitá-los. Agora já sabes para onde vai o meu dinheiro.

Ficaram os dois calados, observando a montagem da aparelhagem dos Estricnina e o crescente número de curiosos que rodeava o trabalho dos músicos electricistas. Por fim, Bazófias declarou:

– É bonito, sim senhor. Sai-te do pêlo, mas é bonito. Continuas a ser o tipo fixe que conheci em Pinheiro da Cruz. Ladrão, mas fixe. E os teus pais? Agora estão bem?

– Pelo menos, são bem tratados. Quem está mal sou eu. Não se passa um dia, um único dia, em que não sinta remorsos por todos os meus disparates, que tanta aflição lhes causaram.

– Compreendo. Fiquei sem palavras, Batman. Desculpa lá aquela ideia do larilas.

Batman estava aliviado com a confissão. Encolheu os ombros, sorrindo.

– Somos uns merdas. Chamaste-me maricas e fiquei lixado. Chamaste-me ladrão e eu aceitei como se fosse um elogio. Não passamos de uns merdas.

– Pois. A vida é filha da puta, Batman. Às vezes trocamos tudo e já nem sabemos o que somos.

Diana acenou-lhes de longe. Saía de casa e entrou no automóvel. Corresponderam à saudação e Bazófias comentou:

– A Diana está cada vez mais bonita. Quanto mais amadurece, mais gostosa fica.

– Estás bem servido, Bazófias. A tua Almerinda faz tremer as pedras da calçada.

O humor dele mudou subitamente, e perguntou, desconfiado:

– O que queres dizer com isso? A minha Almerinda não é para aqui chamada, ouviste?

– Calma, Bazófias. Não disse nada de mal – respondeu Batman, embaraçado.

O confidente de há pouco olhou-o, carrancudo, e voltou-lhe as costas, amuado, indo para o café. Batman deixou escapar um sorriso. O carteirista teria dado um grande actor, pensou. E aproximou-se da pequena multidão que, mais de perto, assistia, maravilhada, à montagem do som dos formidáveis Estricnina.


8
OBRAS DE ARTE E O DATSUN

A velha garagem cheirava a mofo e a óleo ressequido. As paredes encardidas por fumos de motores ainda conservavam ganchos e enormes parafusos que, noutros tempos, teriam fixado tornos e máquinas de soldar. O chão estava coberto de um pó sujo e grosso, acomodado em camadas de porcaria que, ao longo dos anos de abandono, se transformara numa massa rija e malcheirosa. E as janelas eram frinchas por onde entravam fracos raios de luz. O grande buraco que se formara num dos topos devido à queda de parte do telhado servia a melhor claridade ao barracão quando o portão estava fechado. Foi por essa enorme ferida no tecto que Necas fez a ligação eléctrica directa com que se dedicava ao seu passatempo preferido – reparar um velho carro que comprara num sucateiro, perante a surpresa do seu grupo de amigos. Automóveis era a coisa mais fácil de gamar. Havia-os aos milhares espalhados pela cidade e Necas era, de todos eles, o melhor em ligações eléctricas e conhecimentos de electrónica. Devemos ser mais precisos. Todos reconheciam a superior inteligência de Necas e ninguém tinha dúvidas de que, se houvesse um problema que obrigasse Diana a afastar-se do comando da quadrilha, seria ele o seu sucessor natural.

Nessa manhã, a alcateia recebeu instruções para não se dedicar aos preparativos do arraial. A notícia correu entre eles com um misto de desilusão e ansiedade. Ainda havia muito para fazer. Enfeitar o largo com papelinhos, decorar a quermesse e o palco, entre muitas coisas. Por outro lado, a ordem que o Batman trouxera significava que Diana estava a preparar um serviço, e deveria ser grande porque era raro ficar todo o grupo em alerta. Dispersaram nas rotinas dos dias normais. Alguns foram vender doses, outros decidiram ficar, contemplativos, na esplanada do Bazófias, admirando o trabalho em construção no largo. Podia ser uma grande festa. Só havia um receio comum a todos. Que qualquer bando de javardos, vindo de outro bairro, provocasse estragos em todo o trabalho que tinham realizado para que o arraial fosse um grande acontecimento. Já não era apenas a procura de dinheiro para ajudar o centro social do padre Ganhão. Aquela imensa dádiva que dera uma nova configuração ao largo mexera no orgulho de cada um, provocara um imenso prazer individual. Afinal de contas, os bandidos eram capazes de abraçar e construir projectos de solidariedade que congregavam a alegria colectiva. Necas enfiou-se na garagem, mergulhando a cabeça nos mistérios do motor da velha carripana, e Zé Cigano e Francisquinho vieram visitá-lo, curiosos por tanta azáfama.

– Tu não te cansas de passar tantas horas enfiado nessa lata velha? Precisas que eu vá gamar um carro para ti? – perguntou o cigano.

– Esse é o principal problema, meu. O nosso, do país todo, inteirinho de alto a baixo. O Necas é que tem razão. É o nosso problema – sentenciou o Francisquinho.

– Qual problema? – quis saber Zé Cigano confuso.

Francisquinho exaltou-se.

– Não tás a ver, man? Tu não tás mesmo a ver. És um ceguinho, man. É tudo a consumir, tudo a consumir e a deitar fora, meu. Consome, deita fora e vai comprar mais.

– Mas isto não é automóvel, não é nada.

– Tem quatro rodas e um motor, não tem? Olha aqui. Olha o Necas a meter os garfos no motor.

– Não anda. Isto não anda, meu! – Zé Cigano dava pontapés na carripana.

Por fim, Necas largou o trabalho e interveio:

– Quando era puto tive dois sonhos. O primeiro foi ser padre!

Francisquinho soltou uma gargalhada.

– Bué de baril, man. Tu, padre! Bué de baril, man.

– A sério – continuou Necas. – Ajudava na missa e tudo. Depois, quis ser mecânico de automóveis. Assim uma espécie de médico que cura carros doentes. Devolver vida aos motores, genica à direcção, energia às rodas. Afinal, acabei bandido!

Fez-se silêncio e Necas, pensativo, acariciou a viatura com as mãos, repetindo:

– Bandido. Se respondesse por todos os crimes que cometi, apanhava mil anos de prisão – depois, animou-se e rematou: – Talvez nunca seja padre, mas hei-de consertar esta lata velha, custe o que custar!

Francisquinho bateu com a palma da mão contra a perna. Estava entusiasmado com a teimosia do amigo.

– Isso mesmo, Necas. A tua teimosia é um acto revolucionário, meu. Contra a sociedade de consumo e todos os consumistas em geral!

– Estás enganado, Francisquinho. Não percebo nada daquilo que dizes.

– Não percebes? Também tu, Necas? O tipo mais esperto do grupo não sabe o que é consumismo?! Não me desiludas, man.

– Então, qual é a causa para tanta teimosia? – perguntou Zé Cigano, cada vez mais intrigado.

Necas hesitou e, por fim, confessou:

– Por uma razão de coração. Este carro foi do meu pai.

Uma nuvem de comoção ensombrou os olhos azuis do rapaz e os outros perceberam. Um silêncio perturbador caiu sobre a garagem. Sabiam que Necas era órfão desde criança. Crescera na rua, perto de Diana, seguidor fiel desde o tempo em que ela matara o Bifanas e assumira a liderança da quadrilha. Batman entrou na garagem, quebrando o embaraço que a confissão de Necas provocou.

– Necas, a Diana quer falar contigo.

Voltando-se para Francisquinho e Zé Cigano, perguntou:

– E vocês? Já passaram todas as doses do dia?

Embaralharam-se nas respostas. O olhar frio de Batman não admitia mentiras nem desculpas esfarrapadas. Francisquinho foi o primeiro a escapar-se.

– Estou no fim, Batman. Meia dúzia de panfletos, meu. Falta-me vender meia dúzia.

Zé Cigano seguiu-lhe os passos, sem abrir a boca, e o braço-direito de Diana ficou sozinho a observar o velho carro que tanto preocupava o Necas. Lembrava-se daquela marca. O Datsun 1200 era um dos automóveis da moda quando entrou Batman naquela vida. Era rápido, seguro e o grande competidor do Toyota Corolla, primeira máquina que gamou. É certo que, na altura, os chulos e os intrujas preferiam o Ford Capri. Era foçanhudo e o motor roncava grosso. As garinas gramavam o estilo, mas, para ele, aquele Datsun era o príncipe que fascinava qualquer ladrão de automóveis, e envelhecera com aquela mágoa. Nunca roubara nenhum.

Tornou a olhar a velharia com nostalgia e saiu da garagem... Agora já era tarde. Aquele modelo da Datsun estava fora do mercado.

Entretanto, Diana conduzia Necas pelas ruas da cidade, enquanto lhe explicava o serviço.

– Vamos gamar quadros? Pinturas? Não sabemos nada disso – replicou, como se tivesse ouvido mal. Diana encolheu os ombros e respondeu, despreocupada:

– Não é necessário que saibas. Tenho uma lista de encomendas. Preciso apenas de que estudes o sistema de segurança da galeria que vais visitar.

– Eu?

– Vais visitá-la que eu espero por ti. Não te preocupes com os quadros. Ficam por minha conta.

– Temos de carregar muitos?

– Apenas dez. São meio milhão de euros.

Necas ficou embasbacado. Era uma fortuna! Não resistiu a perguntar:

– Quanto nos calha?

– Dez por cento. Cinquenta mil euros.

A galeria situava-se numa avenida movimentada, encafuada entre prédios gigantes. Se fossem apanhados no interior, não haveria hipótese de fuga. Comentou isto com Diana, que tornou a encolher os ombros e respondeu, lacónica:

– Não te preocupes. Eu não deixarei que isso aconteça!

Necas saiu do carro e dirigiu-se ao local da exposição. Ia tranquilo. Sabia que ela tinha uma larga experiência de resolver situações delicadas. Era a sua marca de água. Quando o perigo crescia e o medo começava a tomar conta dos sentidos, Diana transformava as ameaças numa serenidade tensa que lhe permitia organizar o pensamento e decidir com frieza sobre os melhores destinos para si e para o seu grupo. Salvara-se e salvara a sua gente dezenas de vezes, mesmo quando a polícia já cantava vitória na iminência de triunfantes capturas. Diana jamais permitira essa apoteose policial e a vantagem dela decorria do método meticuloso que impunha a si e ao grupo – nunca fazia um serviço que não fosse minuciosamente preparado.

Medir o risco, calcular a ameaça, controlar todos os pormenores do ataque e, depois, executar disciplinadamente o plano. Quando regressou da galeria, o Necas trazia boas notícias.

– Ao princípio não se percebe, mas aquilo é fácil de fazer – informou o rapaz.

– Percebeste os alarmes?

– Toda a segurança da galeria é comandada por uma caixa exterior, que está mais ou menos escondida por cima da porta, do lado de fora. Basta subir, desligar os fios, arrombar o cadeado e os quadros são nossos.

– De que precisas para desligares os fios?

– Um escadote e cinco minutos. Depois é só aviar.

Diana ficou em silêncio. Observava as ruas e cruzamentos que ficavam em volta do objectivo escolhido para essa noite. Eram ruas largas, com várias escapatórias, que desembocavam nas avenidas da República e dos Defensores de Chaves. Seria fácil fugir, se disparasse qualquer outro alarme de que o Necas não se tivesse apercebido. Gravou mentalmente o desenho de arruamentos que a cidade lhe oferecia e disse ao amigo:

– Vamos embora. Precisamos do Batman e do Tosta Mista.

Quando chegaram ao Campo Pequeno, tomaram a direcção da Praça de Espanha. Ainda não era hora de ponta, mas o trânsito começara a aumentar, transformando-se num rio preguiçoso onde os semáforos eram diques que retiam os veículos e aumentavam a lentidão da imensa caravana. Diana pensava na mulher que lhe encomendara os quadros e sentia algum desconforto. Deveria ter exigido um adiantamento, mas rompera os procedimentos, seduzida pela conversa de Lizete, e agora inquietava-se. A quadrilha iria arriscar um assalto sem garantia de que os quadros fossem passados a dinheiro. Conhecera a negociante de arte através do Gusmão, numa festa em Cascais, organizada para apoiar qualquer coisa sobre animais aleijados, e ele segredara-lhe:

– Chama-se Lizete. Compra e vende arte por encomenda. Tem clientes poderosos e pode ser uma pessoa que te interesse conhecer.

Respondeu-lhe divertida:

– Não percebo nada de arte.

– Acho que ela também não – retorquira Gusmão com ironia, reconhecendo: – Mas gosta de dinheiro como nós.

Artur Gusmão, o velho burlão, era fino. De golpe em golpe conseguira penetrar nos círculos mais exigentes da aristocracia política e financeira e conhecia os currículos e os cadastros daquela gente que habitava nas colunas sociais cor-de-rosa. Assim, passado algum tempo, Lizete e Diana eram amigas. Uma amizade estudada e construída por pequenos sinais de curiosidade e confirmação da confiança. Até que chegara o dia do negócio.

– Preciso de dez quadros que estão numa galeria que conheço. Valem mais de meio milhão de euros e pago cinco por cento a quem os for buscar.

– Isso é exploração de mão-de-obra escrava. Dás vinte e cinco mil euros a quem te dá meio milhão.

– Estes negócios não são assim. Arte roubada desvaloriza sessenta por cento e os riscos que vou correr são bem maiores do que aqueles que te peço.

– Faço por cinquenta mil.

– É muito! – regateou a receptadora, que propôs: – Quarenta mil!

– Cinquenta ou vais ter de contratar outra gente – ripostou Diana com firmeza.

Ficou assim, Lizete pagaria na entrega dos quadros, mas, agora quando o assalto estava iminente, preocupava-a a hipótese de levar uma banhada. Não repartiu as suas preocupações com Necas. Haveria de encontrar uma solução, se a ameaça se concretizasse.

Cruzaram o bairro e Diana reparou que havia mais homens no largo. Jogavam ao chinquilho ou conversavam pelos cantos. A multidão de desempregados crescia, o dinheiro era cada vez mais escasso e a fome começava a instalar-se. Sentia-a na expressão dos rostos que a cumprimentavam e temia o seu poder. Um homem com fome ou que sente as lágrimas da fome à sua volta é capaz de tudo. O seu pai pendurara-se numa corda por vergonha da sua inutilidade involuntária. Ainda hoje não sabia o que a magoara mais. Se a desistência dele, que abandonara a energia necessária para resistir às dificuldades, se a indiferença desumana da administração da empresa, que o pusera na rua sem uma explicação e sem se preocupar com o seu destino. Mas nem todos os homens eram como ele. Sobretudo ali, onde a fronteira entre o bem e o mal era tão difusa, carregada de zonas cinzentas, onde crescia o desespero, podia nascer a traição, e um daqueles que ela ajudara facilmente esqueceria esse pedaço da memória, deixando-se levar pelas cantigas de embalar da polícia e comprometendo-se:

– Quanto me pagam, se eu der à morte a Diana e o seu bando?

Estavam por ali abandonados, sem esperança. Vários amigos, alguns da idade do seu pai, que poderiam dar-lhe o beijo de Judas. O Zé da Silvina, que, noutros tempos, roubara com o grupo. O Delfim, estivador, a quem comprara, durante anos, caixas de munições para o seu armamento e dos seus. O Caleidoscópio, velho ladrão reformado, e agora desempregado dos estaleiros, que roncava de inveja dos seus sucessos como ladra e traficante. A fome rebenta com as fronteiras do medo. É coisa ruim, que devora como um cancro os vínculos do afecto e da lealdade e, conforme os meses passavam, maior era o número de gente sem esperança, enxotada de fábricas e serviços, desabrigada da vida, sem conseguir tactear o destino. Jurou a si própria que, se o serviço da galeria corresse bem, distribuiria a parte que lhe coubesse do assalto, pelos infelizes que sentia mais aflitos. Particularmente, entre aqueles que poderiam ser uma ameaça para si e para os seus.

Batman e Francisquinho tinham cumprido as ordens dela e já tinham gamado a carrinha. Estava escondida. Quando Diana e Necas se juntaram a eles e ao Tosta Mista, este perguntou:

– Vai ser preciso matar alguém?

Diana olhou-o, surpreendida.

– Porque fazes essa pergunta?

– Quando me chamas é porque o serviço precisa de mortos.

– Que disparate, Tosta Mista!

– Pronto. Só perguntei.

O plano era simples. Necas anularia os sistemas de segurança, o Batman arrombaria a porta a pé-de-cabra e, enquanto carregassem os quadros, Diana, ao volante da carrinha, ficaria de olho, vigiando os acessos e a vizinhança. A rapariga entregou a lista com a colocação dos quadros que interessavam à Lizete.

A noite avançou rápida e a quadrilha estava serena. Apesar de ser a primeira vez que atacavam obras de arte, não passava de mais um assalto. Batman percorreu a lista de nomes e perguntou:

– Quem é o Matisse?

O Necas encolheu os ombros e respondeu com outra pergunta:

– Anda a roubar com quem?

– É pintor. E o Renoir? – quis saber Francisquinho.

– Não sei, mas pelo nome cheira-me a francês – retorquiu Necas.

– Valem um colhão de dinheiro. Estes gajos estão ricos! Enriquecem com umas pinceladas e nós no gardanho, sempre a bulir, sempre tesos. Não é justo – sentenciou Batman.

Francisquinho não se conteve e explodiu.

– Claro que é justo, meu. Claro que é justo. Esse Matisse e esse Renoir são tolas, meu. Tolas, miolos, sabes o que isso é? Não sabes, man. São grandes tolas, man. Merecem o dinheiro que ganham à pala dos pincéis. Então não merecem, meu!?

Perante aquele entusiasmo do rapaz, Batman insistiu:

– Tu sabes quem são o Matisse e o Renoir?

– Toda a gente sabe! – respondeu, indignado. – Toda a gente sabe. O Matisse e o Renoir são do cacete. Do cacete, meu!

– Mas porquê? – teimava Batman.

– Porque são pintores. Não estás a ver? Os chavalos pintam coisas como deve ser. Sei lá, coisas como deve ser. Com nomes esquisitos, mas pintam, man, e o maralhal gama aquilo, pois é bué da fixe.

O Necas começou a impacientar-se. Olhou o relógio. Diana tinha-os deixado com a promessa de regressar à meia-noite e ainda faltavam duas horas, que, suspeitava, seriam passadas a aturar o circo montado por Francisquinho.

– Talvez fosse melhor irmos dar uma volta, antes que o Francisquinho invente mais coisas sobre esses pintores.

– Inventar? Eu? Tu não tás a ver, meu? Mete-se pelos olhos. Assim, mesmo pelos olhos. O Matisse e o Renoir...

– És só tretas. O Necas tem razão. Estás só a armar-te ao pingarelho – atirou-lhe Batman.

– Eu?! Mas já vos expliquei. Aparecem na televisão e tudo. Tou-te a dizer. Eu tou-te a dizer – argumentava solenemente.

Tosta Mista entrou na discussão.

– Na televisão não os podes ter visto. O Renoir morreu a seguir à Primeira Guerra Mundial e o Matisse oito ou nove anos depois da Segunda Guerra. Nessa altura ainda não havia televisão em Portugal. E, mais importante do que isto: ainda não éramos nascidos.

As cabeças voltaram-se todas para Tosta Mista. Interessadas e surpreendidas.

– Tu sabes quem são? – perguntou novamente Batman.

– Mais ou menos. Foi por causa do cinema que me interessei por pintura. Encolheu os ombros com indiferença e finalizou:

– É pouco importante que o Renoir seja um impressionista e o Matisse um dos precursores do pós-modernismo. É para gamar, não é? Pouco importa aquilo que eu sei e que o Francisquinho faz de conta que sabe.

Nem o rapaz que garantia ver o Matisse e o Renoir na televisão abriu a boca. Tosta Mista tinha razão. Era pouco importante que gamassem trabalhos de grandes artistas. Naquela noite, esses quadros iriam ser iguais às televisões, aos frigoríficos, a um saco de coca ou a um automóvel, utensilagem sem alma que era passada a dinheiro. Os objectos a que se dá a martelada, seja por arrombamento, seja por esticão, têm significado para a vítima, mas não qualquer valor para quem rouba. Não inscrevem memórias, nem afectos, nem saudades e muito menos esperança. É uma nota verde ou cor-de-rosa. Ou ainda melhor, muitas notas de cem e de quinhentos. Era o caso. Necas talvez fosse o único que parecia perceber a transmutação do valor das coisas e, agora, o sorumbático Tosta Mista deixava a mesma ideia no ar, embora fosse quase inacreditável que o negro, o mais feio e silencioso criminoso do grupo, pudesse alimentar este tipo de preocupações. Era estranho, o Tosta Mista! Estava na quadrilha há cerca de quatro anos e agora, com dezanove anos e oito homicídios, mal se lhe conheciam as palavras. Naquela noite já falara mais do que durante toda a semana. Os headphones ocupavam-lhe a cabeça com música, longe das zaragatas do Francisquinho ou dos planos de qualquer assalto. Apenas largava o iPod para saber aquilo que tinha de fazer e, sem mais perguntas, regressava à música. Imóvel. Somente os olhos mexiam no rosto impenetrável de Tosta Mista e, quando suspeitava de que alguém o olhava com atenção, baixava timidamente a cabeça e entretinha-se a limpar a sua sete sessenta e cinco com a mesma minúcia de um joalheiro.

Diana foi pontual. Entraram na carrinha e Francisquinho reparou num monte de panos de flanela.

– É com este tecido que são feitas as ceroulas que o meu pai usa.

– É flanela – explicou a chefe da matilha: – Serve para proteger os quadros uns dos outros.

Era uma explicação, pensou Francisquinho. Se a flanela macia protegia do frio as pernas do pai, melhor protegeria pinturas inertes e carcomidas pelo tempo.

O largo fronteiro à galeria estava deserto. Apenas se viam longas filas de automóveis, que pernoitavam encostados aos passeios. Ela estacionou a carrinha, desligou as luzes e murmurou:

– Necas, vai. Está livre. Vocês deitem-se nos bancos para que não vos vejam.

Ficou um estranho silêncio quando Francisquinho, Tosta Mista e Batman se baixaram, tensos, atentos às ordens de Diana.

A destreza de Necas sempre a impressionara. Subia pela tubagem, cravada na parede do edifício, com a agilidade de um macaco. O corpo musculado e ágil alapou pelo tubo acima até à caixa que concentrava a rede eléctrica de suporte à galeria. Libertou uma das mãos, segurando-se com a força das pernas num jeito acrobático, e com a chave de fendas atacou o dispositivo. Visto da carrinha, parecia o Homem-Aranha colado contra a parede, uma imagem que valia uma fotografia, pensou Diana. Porém, o instinto levou-a a levantar mais os olhos. Qualquer coisa estranha acontecia dois andares acima da cabeça de Necas. A janela de uma das varandas estava aberta e saía uma luz minguada, cinzenta, emitida por um ecrã de televisão, e, recortada, de costas para a rua, surgia a silhueta de um homem, que olhava com atenção para o interior, atento à televisão, e fumava. O alerta fê-la cerrar os lábios para conter a contrariedade. Bastava que o homem se voltasse, se debruçasse sobre a varanda, movimento típico dos fumadores, e olhasse para baixo e o serviço corria logo perigo.

Encolheu-se contra o banco da carrinha e segredou:

– Precisamos de silêncio completo. Há um tipo a espreitar numa varanda.

Reparou que Necas descia o tubo e voltou-se outra vez para trás.

– Vão.

Os três gatunos saíram com passadas cautelosas de leopardo a aproximarem-se da presa antes do ataque decisivo. O homem acabara de regressar ao interior do aposento, saindo da janela. Diana esperava ansiosamente que ele fechasse a janela, recolhendo-se definitivamente, e o coração pulava-lhe no peito. Um passo em falso, um barulho excessivo no arrombamento com o pé-de-cabra e o tipo poderia espreitar, pondo fim a um trabalho que poderia valer cinquenta mil euros e era irrepetível. O alarido que provocaria a notícia de uma tentativa de assalto poria mil olhos da polícia em cima da galeria de arte, deixando dormir em bom recato a mostra de pintura de autores célebres que, durante dois meses, estaria exposta em Lisboa.

Sobressaltou-se com o barulho do pé-de-cabra. Batman era um mestre a trabalhar com o apoio e ao primeiro esticão a porta cedeu. Ganiu como se tivesse sido violada. Um estalido agudo que atravessou o largo. O grupo entrou de imediato e, quase de seguida, o homem tornou a surgir na varanda. Olhou com atenção o largo e as entradas dos prédios em volta. Parecia visivelmente desconfiado. Começou a observar as fileiras de viaturas estacionadas junto ao passeio, aquelas que estavam no outro lado do largo, e Diana escorregou pelo assento, observando-o pela nesga que se abria por baixo do volante.

Não podia avisá-los de que não saíssem da galeria. Deviam estar a escolher os quadros sinalizados e a operação não demoraria mais do que uns minutos. Deu por si a rezar em voz baixa, suplicando a Deus que os recordasse do aviso que lhes fizera. Bastava que mostrassem a cabeça e o curioso, excitado como estava, desataria aos gritos, a berrar pela polícia. De súbito, o homem precipitou-se para o interior da residência. Que iria fazer? Suspeitou de que seria telefonar à polícia, o que era uma boa ideia. Enquanto se ocupasse nas mil explicações que lhe iriam pedir antes de accionar um serviço de emergência, teriam tempo de se pôr a salvo. Convicta de que o intruso iria proceder desse modo, voltou a atenção para a porta da galeria. Agora, suplicava mentalmente pressa ao grupo. Sabia que seleccionavam os quadros e cada par de homens transportaria cinco dos escolhidos, envoltos nas flanelas. Para encurtar o tempo, tomou uma decisão não planeada. Sem ligar os faróis, pôs a carrinha a trabalhar sem grande aceleração, deslocando-se para um lugar de estacionamento muito perto da porta arrombada. Era um movimento arriscado, mas que valeria a pena, se o seu raciocínio estivesse correto. Iria arrumar com a traseira do veículo apontada ao passeio, retirando tempo ao trabalho de recolha dos quadros e à recuperação dos seus homens, enquanto imaginava o outro a fornecer pormenores daquilo que ouvira à central da polícia. Bastava que encontrasse de serviço um guarda mais céptico e choveriam mil perguntas sobre a natureza do ruído metálico que o denunciante escutara.

A decisão que tomou, ainda que não planeada, alertou-a para um possível erro de precisão do seu juízo sobre a conduta do homem. Na escuridão da frontaria do prédio, acendeu-se a luz de uma escada. Pelos cálculos rápidos que fez, não teve dúvidas de que dava acesso ao andar onde habitava o homem-silhueta. Decidira investigar por sua conta e risco. Diana saiu, ligeira, da carrinha e escondeu-se entre dois automóveis no preciso momento em que ele chegou à rua. Era robusto, agitado, e fumava, inalando o fumo em espasmos profundos. Usava um bigode farto. Tornou a olhar em volta, sentinela vigilante da segurança do largo, e a atenção focou-se na galeria. Deveria saber que a famosa exposição era sua vizinha e calculado que fora dali que surgira tão inusitado barulho. Naquele instante em que já não era possível fugir ao confronto, a memória da mãe atravessou o pensamento de Diana a propósito de uma frase com que ela costumava repreendê-la quando, em criança, se tornava mais bisbilhoteira: «Não espreites aquilo que estou a fazer. A curiosidade mata!»

Nunca percebera o significado daquela expressão da mãe e, agora, vendo aproximar-se o vigilante, compreendia-a no seu sentido mais radical. O homem estava a escassos metros de distância quando do interior da galeria saíram Tosta Mista e Batman com a primeira colecção de quadros. Fitou-os embasbacado e depois, engrossando a voz atirou com força para que todo o casario despertasse.

– Ladrões! São ladrões!

Não teve tempo para mais. Diana, rápida, passou por cima do carro mais próximo e, com uma saraivada de pontapés na nuca, deitou-o por terra. Tinha a arma na mão e correu à carrinha. Abriu a porta das traseiras e disse para Francisquinho, que, entretanto, saía com Necas.

– Guardem a mercadoria. Depressa.

Tornou a correr para junto do homem, que, entretanto, procurava recompor-se, e acertou-lhe com uma violenta coronhada no rosto, provocando-lhe novo desmaio. Mas era tarde. Aos gritos dele começavam a acender-se luzes nas janelas, sinal de que o alerta chegava a outros ouvidos e homens e mulheres, em pijama ou envoltos em robes, espreitavam e testemunhavam a ponta final da azáfama do assalto, o vizinho estendido no chão, e gritavam num coro desafinado o socorro da polícia. O largo ganhou ecos por tanto grito de alerta e foi sob esta apoteose tonitruante que a carrinha arrancou, luzes apagadas, em alta velocidade. Batman conduzia. Optou por um circuito de defesa. Sabia que a esquadra que ia reagir era a das Avenidas Novas. Conduziu em direcção ao Saldanha, ganhando tempo nos semáforos. Quando acometia pela Avenida da República, teve de travar para dar passagem a um carro do piquete da polícia, que, com os pirilampos e as sirenes ligadas, se dirigia à galeria de arte. Sorriu, satisfeito. Seguiu atrás da autoridade sabendo que a polícia nunca imaginaria que os bandidos estariam nas suas costas, julgando-os invariavelmente à sua frente. Francisquinho, liberto da tensão do assalto, não conteve uma gargalhada.

– Isto é de filme. Somos nós quem persegue a chibaria em vez de ser ao contrário.

Diana deitou-lhe um olhar severo, que o silenciou. Um assalto só termina quando tudo está a salvo e em trabalho não se brinca. Durou pouco a viagem. Perto do Campo Pequeno, o carro da polícia entrou rápido por uma das laterais enquanto Batman, cumprindo os limites de velocidade, mergulhou calmamente no túnel que os levaria ao Campo Grande e ao esconderijo onde ficariam a salvo.

Quando abandonaram a carrinha e os quadros já estavam escondidos, Necas quebrou o silêncio.

– Mataste o pintas?

– Acho que não. Só o adormeci para que não se lembrasse de nós.

– Gostei do pontapé que lhe deste nas trombas. Foram os dois muito felizes. Ele pôs as fuças a jeito e tu colocaste o chispe a preceito. Um belo pontapé. Se fosse num espectáculo, eram os dois aplaudidos.

Francisquinho ria. De qualquer bocadinho da vida recolhia um sinal de prazer e estava encantado pelo modo como Diana despachara o tipo que fora meter o bedelho onde ninguém o chamara. Foi Batman quem trouxe seriedade à conversa.

– Um gamanço de quadros de pintores consagrados vai ser a notícia de todas as televisões amanhã, e a bófia não vai dar descanso. É preciso largar a chausa quanto antes.

– Amanhã mesmo falo com a nossa cliente – atalhou Diana, e ordenou: – Ninguém abre o bico e ninguém sabe daquilo que se passou. Se der na televisão, o Bazófias vai logo atirar o anzol à procura de peixe. Cuidado com ele. Até amanhã.

A chefe afastou-se rapidamente e Necas comentou:

– Esta noite salvou-nos. Se não fosse a genica da Diana a esta hora íamos na ganga da moina a caminho do xelindró.

– É a maior, meu! – exclamou Francisquinho. – Com a Diana até sou capaz de roubar a coroa da cabeçorra da rainha da Inglaterra.

Estavam cansados e não lhe deram corda. Ficaria para outro dia saber como chegaria ele à coroa da anciã rainha.

– Vou dormir na garagem. Amanhã tenho de pôr aquele carro a trabalhar. Está podre – disse o Necas.

– Podes crer. Aquele já deu o peido mestre – garantiu Francisquinho, querendo mais conversa.

– Vais ver se não anda!

Necas voltou-se para Tosta Mista e perguntou:

– Onde dormes?

– Por aí – e afastou-se sem mais palavras, atento à música que os headphones lhe enfiavam pelos ouvidos.

Batman tinha razão. O assalto à galeria foi abertura de todas as televisões e na tasca do Bazófias a curiosidade estralejava no ar. Quando Francisquinho se sentou na esplanada, o burlão quase lhe caiu em cima.

– Grande golpe! Foram vocês, não é verdade? Até um Cézanne marchou.

Francisquinho olhou-o, desconfiado.

– Tás bem da tola, meu? Quem é esse pintas?

– O Cézanne? É um pintor. Esta noite comeram uma galeria e levaram dez quadros que valem uma pipa de massa. Não se fala noutra coisa. Anda espreitar a televisão. Eu vi logo que tinham sido vocês.

O rapaz olhou-o, continuava desconfiado.

– Tás-te a passar, é? Ia roubar esse Cézanne sem o homem me ter feito mal nenhum?! Tás com falta de óleo nos carretos.

Bazófias ficou crispado e reagiu:

– Não me dês música, Francisquinho. Ainda usavas fraldas e já eu metia os garfos em tudo o que é otário, arrecadando chatas à fartazana. Em Lisboa, não há mais do que duas ou três quadrilhas capazes de tanta audácia e vocês fazem parte do grupo.

Nesse mesmo instante, Almerinda surgiu na esplanada com cervejas, que serviu a dois clientes. A minissaia, quando se debruçou, mostrou umas cuecas azuis com rendas e as pernas torneadas, altas, embasbacavam os clientes. Quando se voltou, Francisquinho sorriu de prazer. O decote era generoso e a blusa branca, quase transparente, que mostrava os seus seios rijos e redondos, fora seguramente oferta de Deus. Aproveitou-se da dádiva divina para picar os ciúmes de Bazófias.

– Se esse tal Cézanne apanhasse a paisagem que estou a gozar, faria o melhor quadro do mundo.

O outro perguntou, intrigado:

– Paisagem, qual paisagem?

E Francisquinho respondeu:

– Bazófias, digo-te o que Jesus disse a Lázaro. Volta-te e vê!

Deparou-se-lhe a mulher e foi ódio o que lhe embaciou o olhar ao perceber que todos os clientes da esplanada tinham esquecido as minis e as favas fritas e pecavam por pensamentos e palavras, gulosos, admirando a escultural Almerinda. Dirigiu-se a ela, espumando raiva, e ordenou:

– Vais despir-te imediatamente!

Almerinda não percebeu. Encostou-se o corpo ao dele, lânguida e beijou-o suavemente.

– Agora? És tão romântico, meu querido! Mas há tantos clientes.

A reacção da rapariga enervou-o ainda mais.

– Não é nada disso que estás a pensar. Aliás, não pensas noutra coisa.

– Eu? Tu é que me mandaste despir – defendeu-se Almerinda.

– Já disse. Vai pôr uma roupa decente. Apareces aos fregueses de mamas à mostra e pernas ao léu e eu sou gozado a torto e a direito.

As lágrimas espreitaram nos olhos dela.

– Tens vergonha de mim, é? Tu tens vergonha de mim.

– Não é nada disso. Tu já olhaste bem para os teus preparos? Veste umas calças, uma blusa que te cubra o peito. É para teu bem. Assim ainda te constipas, percebes?

Almerinda olhou as nuvens e afagou os braços, preocupada.

– Achas? – e Bazófias atacou pelo lado da gripe.

– Então não hei-de achar? Faz esse favor ao teu Ernestinho, está bem? Não te quero ver doente.

– Se é por te preocupares com a minha saúde, fico contente. Já não esperava isso de ti. És um amigo! Eu vou mudar de roupa.

O taberneiro suspirou de alívio e Francisquinho começou a bater palmas.

– És o maior tangas de Lisboa. Não. De Portugal – e imitando-o: – Assim, ainda te constipas. Bazófias, és o maior, embora uma só perna da tua Almerinda valha mais do que tu.

– Não me chateies, ouviste? Tu não me chateies! – pôs ao ombro o pano com que limpava as mesas e foi para o interior do café, irritado e humilhado.

Aquela relação com a rapariga era doentia. Francisquinho estava convencido de que era um desequilíbrio mental. O burlão não a entendia nem como mulher, nem como amiga, nem como companheira. Era uma coisa que lhe pertencia. Assim como se fosse um relógio de pulso ou a fotografia do Eusébio autografada, que ostentava orgulhosamente sobre os cartões das rifas que vendia no café. Por outro lado, reconhecia Francisquinho, era o melhor pretexto para transtornar o Bazófias e afastá-lo das perguntas curiosas que não se cansava de repetir. Como era agora o caso do assalto à galeria de arte.

Porém, se o rapaz conseguira desenvencilhar-se com alguma habilidade do carteirista, as piores suspeitas de Diana confirmavam-se. A conversa com Lizete, à beira-Tejo, numa esplanada que espreitava a Trafaria, no outro lado do rio, tinha os meandros de uma montanha-russa. Diana recuperara as suas defesas e apenas aceitava o jogo que a outra embaralhava à espera do momento de desferir o golpe final. Por fim, perguntou:

– Afinal de contas, como vai ser? Já foste confirmar se o material é aquele que pediste?

Aspirou profundamente o fumo do cigarro e disse:

– O teu Batman mostrou-me a mercadoria. Os quadros são aqueles, mas eu não posso pagar mais de vinte mil euros.

Diana soltou uma gargalhada e respondeu com ironia:

– A seguir vais dizer-me que a crise chegou aos negociantes de obras de arte. Sobretudo aos que movimentam arte roubada.

Lizete enervou-se com o chiste. Apagou com firmeza o cigarro e foi seca:

– Não é uma desculpa! Apenas não consegui arranjar todo o dinheiro que te ofereci.

Ficaram as duas em silêncio, olhando o Tejo. Esperava a resposta de Diana e denunciava alguma ansiedade. Não só baixava o preço do negócio, como, depois de saber onde estavam os quadros, preparava uma banhada, se a chefe do bando não aceitasse a proposta. Diana conhecia este truque há muito tempo e começou a jogar.

– É uma pena. Gosto do mar. Acalma-nos e é lindo! – comentou, como se aquela conversa fosse uma divulgação sobre doces lembranças do passado.

Lizete descontrolou-se e deu o passo seguinte:

– Também gosto. Posso ir buscar a encomenda?

– Não, não podes. Quando tiveres os cinquenta mil euros, fala comigo – respondeu com firmeza, não percebendo se a aflição de Lizete era uma mistificação ou era verdadeiramente sentida.

– Juro-te. Não tenho mais dinheiro.

Diana deixou cair uma nota de cinco euros junto aos cafés que o empregado lhes trouxera e levantou-se da mesa com indiferença.

– Paciência. Quem não tem dinheiro, não tem vícios.

Agora, Lizete estava mesmo aflita, ao perceber que a conversa chegara ao fim.

– Diana, ouve. Tenho clientes à espera, preciso de levar os quadros e ...

Diana interrompeu-a com firmeza.

– Já nos conhecemos há tempo de mais para fazermos estas fitas. Adeus, apareces com o dinheiro ou então não apareças nunca mais! – olhou o relógio e determinou: – Daqui a duas horas estás aqui com o dinheiro, ou então puxo fogo àquela pintura toda. Não arrisquei a vida dos meus homens para agora quereres dar-nos uma esmola. Vou passear junto ao rio, à espera do teu telefonema.

Afastou-se da esplanada em direcção ao carro, onde Batman vigiava. Falou-lhe pela janela.

– Vais com o Necas imediatamente mudar os quadros do sítio onde os mostraste àquela mulher que estava comigo.

– Há problemas? – quis saber.

– Ou vamos ser roubados ou vamos ter a polícia a bater-nos à porta. Eu vou apertar com ela para ver se lhe dou a volta.

Batman acelerou, apressado, e Diana sorriu quando, de soslaio, observou Lizete, muito nervosa, a procurar qualquer coisa na mala e nas algibeiras do casaco. Regressou em passo lento até ela, que, naquele momento, discutia freneticamente com o empregado que as servira. Quando reparou em Diana, dirigiu-se-lhe, aflita.

– Perdi o meu telemóvel. Tu não o viste?

– Foi por isso que voltei para trás. É tão parecido com o meu que o meti na minha bolsa. Está aqui. Desculpa o susto que apanhaste.

Agarrou-o com um misto de satisfação e desconfiança. Por fim, exclamou, surpreendida:

– Não tem bateria.

Diana olhou o relógio e sorriu.

– Vai ter. Daqui a dez minutos.

– O que estás a querer dizer-me? – perguntou Lizete, desconfiada.

– Não quero dizer nada. Neste momento represento o papel de um anjo. Sou uma espécie de teu anjo-da-guarda.

– O quê? – quanto mais doce era a voz de Diana, mais desconcertada ficava a traficante de arte.

– Poderias ser tocada pelos pensamentos negros do Demónio e telefonares a alguém para ir onde julgas que ainda estão os quadros, e esse alguém ter o atrevimento de os ir roubar.

– Diana! – balbuciou a outra estupefacta. – Eu jamais faria uma coisa dessas!

– Eu sei, minha querida. O Demónio é que nos prega algumas partidas muito feias.

Lizete não sabia como sair daquele embaraço e atirou:

– Julgava que éramos boas amigas.

– E somos. Fazemos parte da irmandade universal das mulheres ladras e intrujas.

– Eu não sou ladra! – reagiu Lizete com rispidez.

– És receptadora. Embora fina, és intruja. Ladrões e receptadores são irmãos siameses. Sem um deles a vida do outro não fazia sentido.

Lizete, que continuava sem perceber onde Diana queria chegar, procurou adivinhar na entoação de voz o destino último de toda aquela conversa.

– És capaz de me dizer quando me vais dar a bateria do telemóvel?

Nesse mesmo instante, tocou o aparelho de Diana. Atendeu, rematou a conversa com um lacónico «está bem» e desligou. Meteu a mão no bolso e entregou a bateria a Lizete.

– Toma. Podes fazer as chamadas que quiseres. Os quadros já estão escondidos noutro lugar.

Lizete levantou a cabeça, com evidente irritação.

– Então era isso. Meteste na cabeça que eu ia roubar-te.

– Não vamos fazer uma cena, minha querida. Começamos a discutir e ainda chamamos a atenção de algum polícia. Vá lá, portemo-nos como pessoas civilizadas e, já agora, só mais um pormenor. O nosso serviço já não vale o preço combinado. Agora está nos sessenta mil euros. Até logo, meu anjo!

Acariciou-lhe o rosto e, sorrindo, afastou-se. Lizete. tinha de admitir a derrota. Diana pensara mais rápido e atirara por terra os planos que ela preparara para essa tarde. Se a chefe da quadrilha do Estrela Polar tivesse caído no engodo, ficar-lhe-ia com os quadros apenas por menos de metade do preço. Gusmão bem a avisara.

– Toma cuidado, Lizete. A nossa amiga Diana é a rainha dos bandidos de Lisboa. Tem a astúcia de uma leoa e uma inteligência de cristal. Tentar enganá-la é a mesma coisa do que procurar iludir Deus com os pecados que não quisemos confessar.

Agora, ou aceitava as condições impostas pela outra, ou perderia um negócio que lhe valeria uma grossa maquia. Tinha a certeza de que Diana não encenara a ameaça e iria mesmo queimar obras valiosíssimas apenas para deixar um sinal para o futuro. Que não a tentassem enganar, pois destruiria fosse aquilo que fosse, antes que alguém a intrujasse num negócio. Contrariada, Lizete fez o telefonema que não previra. Foi irritada que falou para quem a escutava.

– Prepara sessenta mil euros e o carro para irmos buscar a mercadoria. Já te disse, são sessenta e não cinquenta mil. Se estou a gritar, é porque me apetece. Faz o que te disse e não há mais conversa.

Desligou o telefone e, num acesso de fúria, atirou-o ao Tejo. Foi, então, que de súbito, lhe voltou à cabeça a conversa do velho Gusmão. Talvez conseguisse esconder os seus pecados de Deus se Lhe garantisse como uma verdade do coração que pagara mais do que o combinado para salvar da fogueira alguns dos génios da pintura universal. Do lugar do céu donde lhe acenassem, Cézanne, Renoir, Matisse e outros mais seguramente que a abençoariam por tanto amor à arte. Na verdade, uma criminosa sensível poderá um dia deixar de ser criminosa, mas jamais abandonará a sua sensibilidade. Deus teria isso em conta no dia do Juízo Final. Com este conforto foi buscar o dinheiro que a sua amiga Diana lhe exigiu.

No entanto, se no céu dos artistas os grandes impressionistas rejubilavam com a generosidade de Lizete, também no Estrela Polar um frenesi de excitação cruzava o largo. Necas concluíra a sua obra de arte e apresentava-a ao público em geral. O Datsun 1200 trabalhava. E movia-se! A entrada no largo foi triunfal. O ladrão que subia paredes como o Homem-Aranha e tratava por tu qualquer sistema eléctrico conduzia com orgulho o velho carro. A seu lado, Clara, a eterna namorada, dançava ao som da música que explodia no ar e ribombava nas paredes do casario circundante.

O povo parou, estupefacto, e os pardais, assustados, voaram dos beirais. Francisquinho e Manuela abandonaram a venda de panfletos e correram para eles. Os desempregados que jogavam chinquilho desconcentraram-se. Zé Cigano aproximou-se, desconfiado, e os bêbados que se encharcavam de cerveja na esplanada do Bazófias calaram-se, mudos de espanto. Até as velhas que cochichavam pelas esquinas desistiram do diz que disse e o cão vadio que deambulava por ali sentou-se nas patas traseiras, com a língua de fora, expectante perante aquele estranho carro, que roncava, fumegava, estremecia e vomitava música do Justin Bieber em golfadas sonoras.

Francisquinho sondou Necas com indisfarçável exuberância.

– Bué da fixe, meu! Puseste o animal a trabalhar.

– É tão giro, Necas! – exclamou Manuela de mãos cruzadas em sinal de prece agradecida, e confiou: – Fizeste um milagre. Esta carcaça a trabalhar é um milagre.

– É uma lata velha. Tanta conversa e parece uma lata velha. Ao menos davas-lhe uma pintura para disfarçar a ferrugem – observou. Zé Cigano, que não partilhava do entusiasmo geral. Necas reagiu com firmeza:

– Estava na sucata e foi reparado por mim. Oiçam-me esta música! – e voltando-se para Manuela: – Meti-lhe um rádio que gamaste e me ofereceste quando fiz anos.

– Quero ir dar uma volta – interrompeu Francisquinho. – Eu quero experimentar o Datsun.

– Eu também! – concordou Manuela.

Foi então que Clara diminuiu o volume do rádio e puxou o namorado pelo braço.

– Necas, o motor parou.

Não queria acreditar e observou os monitores do automóvel.

– Parou? Parou como? Não podia parar.

– Deixou de trabalhar! – disse ela, docemente.

Desesperado, Necas rodava a chave da ignição, mas o motor ficava indiferente, como se estivesse amuado com o banzé que se tinha gerado.

– Deve ser a bateria. Pessoal, dêem aí um empurrão – pediu o jovem mecânico.

Quem estava por perto empurrou, qual equipa de bombeiros reanimando um moribundo, o Datsun estrebuchou e, de repente, o motor recuperou a entoação roufenha e irregular.

– Venham, venham! – gritou Clara, entusiasmada, e Francisquinho e Manuela correram para o banco traseiro.

– Vão, vão. Não é o filho da minha mãe que entra numa lata dessas! – escusou-se o Zé Cigano.

– Anda. Não sejas tonto – insistiu Clara.

Zé Cigano deu dois passos atrás, acenando com as mãos e com uma expressão preocupada.

– Não. Tenho medo disso.

Bazófias, com ar de gozão, aproximou-se da chinfrineira e perguntou ao cigano:

– Onde inventou o Necas esta geringonça? Mas que raio de automóvel.

Zé encolheu os ombros sem entusiasmo.

– Numa sucata. Há meses que anda a repará-lo. Acho que era do pai.

A voz do gatuno sumiu-se na sequência de estrondos e fumos de diversas origens produzidos pelo Datsun quando arrancou. Uma galinha, de asas abertas, transtornada com o barulho, cacarejava, desorientada, no meio do largo.

– Parece um daqueles carros que os talibãs usam no deserto. Só lhe falta a metralhadora em cima.

– Por acaso, não é má ideia. Deves falar nisso ao Tosta Mista – admitiu o outro.

Bazófias respondeu à sugestão com um resmungo em voz baixa.

– Tás maluco? Vocês já têm a fama que se sabe, e se aparecem de metralhadora vai o bairro todo para a cadeia.

A conversa foi interrompida porque naquele momento o carro do Necas regressava, arquejante e estrondoso, ao convívio das testemunhas que o viram partir. O motor parecia ter catarro e o Datsun avançava aos solavancos, enquanto Francisquinho, definitivamente encantado acenava, pela janela, aos espectadores.

De súbito, o motor deixou de arfar e parou exactamente no mesmo local. Lembrava um burro teimoso, e Necas desesperava, tentando resolver o novo problema. O taberneiro burlão mandou o chiste.

– Grande máquina, sim, senhor. Quando for grande quero ter uma igual a essa.

A ironia irritou o rapaz, que se atarefava na descoberta do motivo que levava o Datsun a não querer andar, e disparou:

– Em vez de mandares bocas foleiras, era melhor que viesses ajudar.

Com excepção do Necas, os restantes passageiros saíram e começaram a empurrar o velho automóvel, mas nem assim pegou.

– Então, pá?! Empurrem – gritava Necas do interior.

– Não dá! O Datsun desistiu – informou Manuela, cansada e coberta de fumo. Porém, Necas estava febril de irritação. Saiu do carro e gritou para Clara:

– Vai para o volante, que eu empurro.

A miúda olhou em volta, atarantada. Nunca conduzira um carro.

– Eu? Não sou capaz, faz-me confusão! – titubeou.

– É a bateria. Só pode ser a bateria! – sentenciou Francisquinho, correndo em volta do velho automóvel.

Bazófias decidiu vestir a pele de carrasco e decretou:

– É tudo! O carro está todo podre. Bateria, motor, carburador, está tudo morto.

Necas gritou, desesperado.

– Importam-se de empurrar esta cena? O carro tem rodas, tem de andar. Vá lá! Um, dois, três... força!

A força dos quatro amigos pôs o Datsun a deslizar, enquanto Bazófias, Zé Cigano e o resto dos espectadores observavam de braços cruzados. Por fim, o companheiro da Almerinda disparou com acidez:

– Antigamente havia o dois-cavalos. Este é o quatro cavalgaduras e tem uma vantagem. Não gasta gasolina!

Zé Cigano achou que Bazófias fora longe de mais. Embora não nutrisse grande amor por automóveis, sobretudo por aquela velharia comida pela ferrugem, não podia deixar de reconhecer o esforço de Necas para o fazer renascer, e defendeu o amigo.

– Gostas de gozar com o esforço dos outros, não é? O Necas tem dado cabo do canastro para pôr aquilo a andar. É um trabalhador enquanto tu gostas de dar música a quem rebenta com os couratos no batente.

– Qual é o problema, hã? Qual é o problema?

– Não tens respeito por ninguém. É por isso que a Almerinda te encorna, ou ainda não percebeste?

Bazófias mudou de cor. A cólera tornara-o vermelho. Zé Cigano sorriu, divertido.

– Não percebo porque ficaste zangado. Aprende o que é considerar os outros e vais ver que a vida será mais tua amiga.

– Agora és padre? – perguntou, apenas para dominar a irritação.

– Sou gatuno e vendo pó, mas sei o que este carro vale para o Necas. Se tivesses alguma decência, procuravas saber o que, para um grande ladrão de automóveis, vale aquela lata toda roída pelos ratos. Sê homenzinho, Bazófias. Já tens idade! Eu vou tratar dos janados.

Afastou-se e o taberneiro ficou desorientado. Acabara de ser zurzido pelo raio do cigano e era obrigado a admitir que não sabia nada sobre aquela paixoneta entre o Necas e o Datsun. Até porque havia uma coisa que o Zé não tinha razão. Ele estimava o Necas. Por várias razões, embora as principais fossem o facto de ele não se fazer à sua Almerinda. Tratava-a com respeito. A segunda qualidade que lhe apreciava era a inteligência. Era, sem dúvida, o melhor ladrão da quadrilha.

Hesitou. Uma ligeira centelha de remorsos acendeu-se no peito de Bazófias. Custava-lhe a admitir, mas o raio do cigano era capaz de ter razão. Hesitou ainda quando olhou na direcção da garagem. Depois, sem saber porquê, dirigiu-se para lá.

Necas examinava o motor do carro com minúcia e preocupação. Mandara os amigos embora para se poder concentrar e, surpreendido quando viu o Bazófias aproximar-se, fez uma expressão de contrariado, mas continuou a observar em silêncio a viatura. O burlão também espreitou e comentou:

– O animal não obedece...

– Não sei o que se passa. A bobina está boa e a bateria também.

Bazófias olhou com mais atenção o motor e verificou a correia da ventoinha e disse:

– Agora sem gozo. Queres um conselho? Atira fora esse chasso. Está velho e, como qualquer velho, está cheio de esclerose e ferrugem. Sei do que falo. Em duas das vezes que estive preso trabalhei nas oficinas da cadeia e percebo quando um carro dá o peido mestre...

Necas respondeu com irritação excessiva:

– Este não pode dar. Não pode!

– Mas porquê este? Há para aí tanto carro em segunda mão que até a Diana te oferecia um de bom grado e sem ser gamado!

Bazófias calou-se, estupefacto, ao ver duas lágrimas grossas escorrerem pelas faces do jovem ladrão.

– Este era o carro do meu pai – balbuciou Necas, envergonhado da emoção.

– Do teu pai? Ele morreu há muito tempo...!

– Eu sei. Quando morreu, eu tinha seis anos e cada vez que me lembro dele é com este carro. É a imagem que recordo do meu pai. Um homem a sorrir e a acenar-me ao volante deste automóvel.

Passou a mão pelo rosto, como se tivesse vergonha da confissão que lhe saíra de forma tão espontânea, e Bazófias emocionou-se:

– Mesmo que o ponhas a trabalhar, o teu pai não ressuscitará.

– Eu sei. Mas há bocado, quando fui dar a volta, senti uma alegria tão grande! Era como se ele estivesse a ver-me do céu, orgulhoso por ver o filho a conduzir o seu Datsun.

– Tens muitas saudades dele, não é verdade? Nunca perdemos as saudades dos nossos pais – Necas acenou afirmativamente. Recompunha-se devagar da comoção.

– A minha mãe morreu quando nasci. Não me lembro dela. O meu pai é a única lembrança de afecto que tenho – limpou os olhos e, enérgico, rematou: – Já passou. Eu tenho de pôr este estafermo a andar.

– No fundo, no fundo não és mau rapaz, mas, quanto a mecânica... Queres a minha opinião? A coisa só lá vai com um transplante cardíaco.

– Estás maluco? Um coração? – Necas ria outra vez e Bazófias ficou contente por vê-lo assim.

– Exactamente. Só lá vai com um motor novo.

O rapaz hesitou.

– Tu achas?

Bazófias fez um sinal de despedida.

– Vai por mim. Ah, e outra coisa.

– O quê?

– Não é vergonha chorares com saudades do teu pai. Às vezes também me acontece o mesmo. Só a bófia é que não chora, mas não são pessoas. São chibaria.

Necas debruçou-se, pensativo, sobre o motor. Talvez estivesse mesmo desfeito pelo reumático ou pela ferrugem. De repente, fechou o capô. Estava decidido. Iria desmontá-lo peça a peça e, se tivesse mesmo morrido, seguiria o conselho de Bazófias e compraria outro em qualquer sucateiro. O Datsun haveria de trabalhar como nos velhos tempos.

Nesse instante, entrou, esbaforido, o Francisquinho. Mostrou-lhe uma mão-cheia de notas.

– Necas, meu! A Diana já sacou o caroço daquelas pinturas manhosas. Espera por ti para te entregar a parte que te cabe.

Um sorriso iluminou-lhe o rosto.

– Vou mesmo comprar outro motor, se este não funcionar.

– Deixa-te de merdas, meu. Tu não vais gastar um tusto nesta geringonça velha.

– Não sabes o que dizes. Esta vai ser a minha verdadeira obra de arte.

Necas saiu, apressado, e Francisquinho ficou sem perceber de que arte falava o amigo. Encolheu os ombros e deixou-se cair no chão, contra a roda do Datsun, contando as notas que lhe renderam o Renoir e o Matisse. De facto, admitia, satisfeito, gamar franceses rendia mais do que meter os garfos nos bolsos tesos de um portuga qualquer. E tomou uma decisão dramática. Se a quermesse do arraial não corresse como pretendiam, metade daquela massa iria entrega-la ao padre Ganhão. Haveria de calar o tretas do Bazófias com a calúnia que pusera a circular de que ele era somítico.


9
BODAS DE PRATA QUE TERMINAM A TIRO

Diana e Gusmão foram recebidos pela mesma empregada, agora com farda azul-escura, gola e punhos brancos arrendados, que ela conhecera na primeira vez que entrara na residência do Gonçalves. A esposa deste veio ao encontro deles radiante e radiosa. Transpirava felicidade e fez as honras da casa.

– Engenheiro Gusmão, a sua sobrinha está lindíssima. Obrigado por terem vindo. É uma alegria ter tantos amigos nas nossas bodas de prata.

– A Amélia merece e deixe-me que lhe diga que está lindíssima – galanteou o velho ladrão.

Na verdade, havia muita gente no salão, alguns que Diana vira na festa de caridade, e saudou-os com um ligeiro aceno de cabeça. Decidira que não iria ficar ali muito tempo. Queria deixar a pen com o vídeo nas mãos de Amélia e sair logo que os rapazes terminassem o assalto. Porém, mudou bruscamente de opinião quando viu um retroprojector dirigido a uma tela e escutou a conversa de um dos convidados com Gonçalves, que, de costas para ela, ainda não a vira.

– Isto quer dizer que vamos ter filme?

– Acho que não. Para filme já bastam as nossas vidas. Julgo tratar-se de uma surpresa que um grupo de colaboradores da minha empresa preparou.

O outro redarguiu, com ironia:

– Seja como for, chegar à bodas de prata já é tempo suficiente para fazer um grande filme.

– Aí tem razão. Vinte e cinco anos de casados dão um grande drama – e, soltando uma gargalhada, rematou: – Ou uma grande comédia.

Diana viu a pen onde estaria a tal surpresa enfiada no computador. Tinha uma cor diferente daquela que levava, mas decidiu fazer a troca. Talvez os responsáveis não se apercebessem. Aproximou-se de um grupo de mulheres, que bajulavam Amélia junto da máquina. Enquanto trocavam elogios, fez discretamente a substituição.

– Estás lindíssima. Essas jóias são o máximo – dizia uma delas a Amélia.

– Foi oferta do meu marido quando estivemos em Nova Iorque, no mês passado.

– Se eu descobrisse um marido assim tão apaixonado, casava-me outra vez. Das quatro vezes que casei, só mais tarde vim a descobrir que estavam todos falidos.

Diana associou-se à risada do grupo. Porém, foi nesse momento que reparou em Gonçalves. Olhava para ela com uma palidez acinzentada, medrosa. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo.

– Muitos parabéns, senhor doutor. Tem uma bela e merecida festa.

– Que estás a fazer aqui? Tu não vês que... – interrompeu o que estava a dizer, olhando em volta. O choque com a presença de Diana era tal que não conseguia articular palavras.

– Vim dar-te os parabéns.

– Por favor, vai-te embora – suplicou, a transpirar de ansiedade. Diana sorriu e mudou de tom.

– Tens medo de que arme um escândalo? Não me conheces. Goza as tuas bodas de prata que eu vou gozar esta festa. Parabéns, a tua casa está lindíssima.

A mulher afastou-se e as pernas de Gonçalves tremiam. Diana dirigiu-se a um dos empregados que serviam as bebidas.

– Por favor, onde é a casa de banho...?

– Ao fundo, à esquerda.

Afastou-se no momento em que a orquestra, no fundo do salão, arrancou com a valsa. Amélia foi buscar o marido para dançar. Só quando lhe puxou o braço pela segunda vez é que ele despertou do torpor.

– Estás bem, meu querido? – perguntou-lhe.

– Eu? O quê? Claro que estou, minha querida. Talvez um pouco cansado, só isso.

Amélia conduziu-o nos primeiros passos de dança, encantada, olhando-o com ternura.

– Diz-me que, passados vinte e cinco anos, continuas a amar-me como no dia do nosso casamento.

– Claro que te amo. Duvidas?

Beijou-o nos lábios, atitude que arrancou uma salva de palmas entre os convidados, que também começavam a dançar. Encostou-se ao peito dele.

– Fazes de mim a mulher mais feliz do mundo!

Diana não chegou a entrar na casa de banho. Quando saiu do campo de visão dos convivas, rapidamente correu a abrir a janela do fundo do corredor. Necas e Tosta Mista estavam à espera e seguiram-na até ao escritório onde ela estivera a filmar a cena com o Gonçalves.

– Vamos, depressa – ordenou em voz baixa.

Apontou as estatuetas, um móvel atulhado de relógios e dirigiu-se ao quadro por detrás do qual supunha esconder-se o cofre. Tinha uma fechadura com dois segredos e sorriu. Conhecia a forma de abrir aqueles burros, com ligeiros movimentos dos dedos. Ensinara-lhe o ti Januário, velho arrombador que uma bronquite despachara em três meses, o que a bófia, embora o tivesse arrecadado durante vinte anos, nunca conseguira fazer. Era uma questão de tacto e concentração. Uma ligeira folga na roda dos botões e estava em condições de abrir. Rapidamente puxou do seu molho de gazuas e soltou a fechadura. A porta abriu-se, silenciosa, mostrando maços de notas e muitas jóias. Não se demorou a olhá-las.

– Deixem as estatuetas. Levem os relógios e o que está no burro. Têm três minutos e fujam pela janela. Fico a vigiar.

Saiu rapidamente, enquanto Necas e Tosta Mista começavam a meter no saco o conteúdo do cofre. Diana mostrou-se à festa, copo na mão a bebericar um sumo, apreciando o baile. Gusmão aproximou-se.

– Ainda não percebi qual era a sua vingança ou era visitar Gonçalves durante as bodas de prata? – questionou, ironicamente.

– Aguarde um pouco mais. Não sei quantas vezes se vai arrepender de me ter apresentado como sua sobrinha. Sempre poderá desculpar-se, dizendo que não é responsável pelos meus actos.

Deu-lhe um beijo, bem-disposta, e aplaudiu a peça musical que, entretanto, chegara ao fim.

– E, de facto, não sou – Gusmão estava desconfiado com aquela repentina boa disposição.

– Uma pequena mentirinha não lhe fica mal. Só é responsável pelos golpes que me encomenda. Sobre aquilo que vai ver a seguir é um inocente dos mais puros que existem no Evangelhos. É agora. Veja e afaste-se de mim.

Inquieto, Gusmão avançou apressadamente para o grupo que se juntava em torno de um dos convidados, que ela desconhecia. Os seus rapazes já deviam ter fugido da residência e Diana, devagar, começou a aproximar-se da porta sem descolar o olhar do grupo que escutava o homem, transformado no centro das atenções.

– E agora, meus caros, uma prenda especial que quisemos oferecer a este casal fabuloso que hoje celebra as bodas de prata. Para Gonçalves e Amélia, uma salva de palmas! – o salão aplaudiu com entusiasmo. Fez sinal para que o ruído baixasse e continuou. – Procurámos resumir vinte e cinco anos de felicidade dos nossos amigos e fizemos um pequeno filme, que vos oferecemos. Esperamos que gostem. Clicou no rato e, em tom de brincadeira, gritou:

– Acção!

Diana ainda viu o arranque das imagens e apreciou os primeiros segundos do silêncio de morte, apenas interrompido por um prato ou um copo que se estilhaçava, caído das mãos dos mais boquiabertos. Os diálogos pareciam arrancados de um filme dos anos cinquenta, com Gonçalves e Diana a contracenarem no melhor estilo dramático.

Gusmão encolhia-se, envergonhado, e com o olhar procurava furtivamente Diana. O choque era tal que passar por seu tio, naquele momento, era transformá-lo em cúmplice do escândalo que ali se desenrolava. O salão transformara-se num silencioso túmulo faraónico, esquecido nas profundezas da terra. Sem ser capaz de articular palavra, o organizador do espectáculo procurou o rato. As mãos tremiam-lhe, o que dificultava parar o filme onde Gonçalves era o grande protagonista. Uma espécie de Humphrey Bogart, despenteado e camisa amarfanhada, contracenando com Lauren Bacall. Finalmente, conseguiu apagar a imagem e esbracejou. Era um verdadeiro mocho juvenil a ensaiar os primeiros movimentos para voar e balbuciou:

– Isto é – tossiu para ganhar tempo e descobrir palavras. – Quer dizer, isto só pode ser um mal-entendido.

Afastou-se, atarantado. O infeliz não percebia como o seu diaporama, tão apologético das virtudes dos Gonçalves, se tornara num enorme pesadelo que o humilhava e rebentava com uma festa que prometia ser uma apoteose de felicidade e que já se desmoronava em estilhaços. Estremecia com enorme culpa por estoirar com as bodas de prata do seu chefe directo e, assim, sem qualquer clemência divina, transformara-se na mais infeliz e inocente das criaturas, mas que todos tomariam por carrasco daquele feliz casamento.

Um rugido formidável quebrou o constrangedor silêncio que se instalara no salão, onde a multidão de convidados inquieta aguardava o milagre que dissipasse aquela atmosfera de indignação.

– Põe-te na rua!

Quem assim berrava era Amélia, transfigurada. Colérica, espetando o dedo enérgico para a porta.

– Amélia...

E rugiu novamente:

– Rua, meu grande filho da puta!

Aquela não era a linguagem dos salões que os convidados daquelas bodas de prata costumavam ouvir, e um murmúrio de espanto percorreu a assembleia. Gonçalves, embora aflito, foi mais sereno na réplica.

– Vamos para o escritório esclarecer isto. Não passa de um mal-entendido, como já foi aqui dito.

A invejável e doce Amélia, por qualquer fenómeno inexplicável de transubstanciação, convertera-se numa quadrilheira.

– Mal-entendido, o raio que te parta, grande ordinário.

Em passo firme, encaminhou-se para o escritório, seguida do cambaleante marido. A festa era agora um ruído desorientado de comentários e perplexidades, e o maestro, achou que devia fazer qualquer coisa para amainar os efeitos devastadores do filme e, marcando compasso com o pé, arrancou com o Moonlight Serenade, de Glenn Miller.

Conforme ele fechou a porta, a mulher deixou-se cair no sofá, mergulhada em lágrimas. Gonçalves desesperava de aflição.

– Amélia... peço-te pela tua rica saúde. Tens de falar comigo...

– Não tenho nada para te dizer. Fizeste-me passar a maior humilhação da minha vida. Não tinhas esse direito. Não tinhas.

– Mas é tudo falso. Eu posso explicar tudo... eu...

A raiva regressou quando ele proclamou a falsidade do que tinham acabado de ver.

– Não há nada para me explicar! Nada!

– Escuta-me, por favor – implorou.

– Traíste-me, humilhaste-me à frente dos nossos amigos. Que mulher é aquela que te fez desprezar vinte cinco anos de casamento? Diz-me!

– Nem eu sei bem quem é. É sobrinha do Gusmão e mal a conheço. Apareceu. Atirou-se a mim, fez aquela cena e desculpa-me, Amélia! Dava a minha vida para que isto não tivesse acontecido.

Subitamente, reparou no quadro fora do lugar, revelando o cofre aberto e a mesa dos relógios vazia, e gritou:

– O quadro?! Desapareceu o que estava no cofre e os meus relógios. Fomos roubados.

– Foi pena os ladrões não te terem levado também. Vadio, não passas de um vadio – respondeu-lhe com indiferença.

– Levaram tudo. Dinheiro, as jóias.

À palavra jóias, Amélia deu um salto no sofá.

– As minhas jóias?

– Olha! – e mostrava-lhe o cofre vazio.

– As minhas jóias – gemeu em pranto, e desmaiou.

As bodas de prata chegaram ao fim no momento em que deviam começar. Pegou no telemóvel e ligou para a polícia. Era o pior dia da sua vida e continuava sem perceber qual a razão que levara Diana a obrigá-lo a passar por aquela sucessão de humilhações, que o faziam sentir a mais desgraçada das criaturas. No dia seguinte, seria objecto de chacota da melhor sociedade lisboeta, e anos de trabalho e sucesso eram, sem glória, atirados para o contentor do lixo.

A polícia não demorou. Vários peritos fotografavam o escritório, procurando vestígios da passagem dos ladrões com uma cautela que provocava nervosismo. Examinavam a janela, por onde eles entraram e saíram, e viam se havia pegadas no corredor. Um dos inspectores – chamava-se Augusto – dava indicações aos peritos, exigindo mais este e mais aquele pormenor. Deveria ter cerca de quarenta anos. Era alto, encorpado e um olhar inquieto. Ficou impressionado com o valor guardado no cofre. Quatrocentos mil euros em jóias e dinheiro. Era coisa rara. Foi directo ao assunto.

– Senhor doutor, tem algum seguro para os bens que estavam no cofre?

– Não, não tenho seguro.

– Como é possível? Os cem mil euros em notas, ainda compreendo, mas trezentos mil em ouro, e jóias valiosas guardadas em casa?! Se tivesse algum seguro, qualquer polícia ficava convencido de que era um golpe congeminado por si.

Estava demasiado desfeito para discussões sobre teorias de investigação criminal. Fez um gesto cansado.

– A culpa é da minha mulher. Muda de jóias e de vestido três vezes ao dia.

O inspector mordeu as palavras que lhe vieram à boca e escreveu qualquer coisa no bloco de apontamentos. Naquele momento, entrou Amélia. Vinha acompanhada de um polícia. Parecia que tinha envelhecido naquelas horas, desde o início da festa. Caminhava trôpega, procurando apoio nos móveis e paredes.

– Fui com a senhora a todas as dependências da casa. Não desapareceu mais nada – informou o agente, e retirou-se.

Augusto olhou o casal e a frieza escondia dores mais profundas do que a perda dos bens. Tinha a certeza de que o doutor não contara tudo ao telefone. Decidiu prosseguir a rotina. Havia tempo para descobrir que outros mistérios esmagavam a vida do casal.

– A festa das bodas de prata durou quanto tempo?

– Não sei... talvez uma hora – respondeu, vacilante, o marido e Amélia afirmou, determinada:

– Uma eternidade!

Teve a certeza que a festa provocara aquela frieza distante, perto do ódio, entre ambos.

– Não percebo. Uma hora ou uma eternidade?

– Não ligue, senhor inspector. Não durou mais do que uma hora para, de repente, se tornar num pesadelo.

Amélia levantou-se, com um impulso de energia que não esperava de uma pessoa no estado deprimido em que se encontrava. Estava furibunda.

– No meu pesadelo! Foi a festa da pouca-vergonha do meu marido e eu descobri o debochado com quem vivi durante vinte e cinco anos. Ainda por cima, fui roubada! Quer a minha opinião, senhor inspector? Depois do escândalo que eu vivi esta noite, o principal suspeito é ele! – apontava o dedo ao marido.

– Amélia! Tu não te atrevas...

– Sim, és tu! Roubaste-me as jóias para não entrarem nas partilhas do divórcio.

– Divórcio? – o doutor Gonçalves encolheu-se no sofá.

– Divórcio? – perguntou Augusto, sem perceber.

– Claro que é o divórcio. Faça-o confessar, senhor inspector. Eu regressarei com o meu advogado para tratar do que é preciso.

Amélia saiu quase a correr perante o inspector, atónito. Voltou-se para o marido.

– É capaz de me explicar o que está a acontecer? Não havia aqui uma festa enquanto assaltaram o vosso escritório?

– Começou como uma festa, mas terminou num escândalo, que promete arruinar a minha vida, quando alguém projectou isto naquele ecrã. Tome. Está na pen.

– Um filme? – insistia Augusto, sem perceber.

– Em que sou o principal actor – respondeu, contendo as lágrimas desesperadas que lhe embargavam a voz.

Augusto abriu o portátil e injectou o ficheiro que o outro lhe entregara. Ao ver as imagens percebeu, então, a confusão onde tinha caído. Fora chamado por causa de um assalto banal a uma residência e estava dentro de um drama de faca e alguidar. Tornou a rever as imagens e despertou-lhe particular interesse a mulher. Repetiu frame a frame e ficou ainda mais intrigado quando a reconheceu. Era Diana, do Estrela Polar. Ficou pensativo e muito intrigado.

– Sabe quem é esta mulher?

– Julgava que conhecia, mas agora já não sei – disse-me que se chamava Diana.

– Pelo menos disse-lhe o nome verdadeiro – pensou em voz alta.

– Conhece-a? – perguntou Gonçalves, com indisfarçável curiosidade.

– Mais ou menos. Ela não lhe pediu dinheiro? Não prestou atenção a que tivesse roubado nada quando aqui esteve consigo?

– Não. Nada. Fui eu quem a trouxe para o escritório e nunca esteve sozinha. – Posso saber do que se está a rir?

– Nada. Nada de especial. A única coisa que não encaixa para eu lhe dizer já quem é o cabecilha do assalto é o facto de o filme ter sido exibido. É um belíssimo objecto para fazer chantagem consigo.

– Continuo sem perceber.

– Nem eu, senhor doutor. Bate tudo certo menos a sessão pública do seu ataque a Diana.

– Acha que foi ela quem gravou estas imagens? Mas como? Ela não trazia nada consigo nem levou nada daqui!

Gonçalves desconfiava agora dos juízos e conjecturas exagerados do inspector da PJ, que lançava hipóteses que nada tinham a ver com os factos que ele próprio testemunhara sobre os comportamentos de Diana. Augusto levantou-se e guardou consigo a pen.

– Não temos nada mais para fazer aqui. Puxe pela cabeça e vá ao seu passado. Procure descobrir se, alguma vez, teve um problema grave com alguém directa ou indirectamente relacionado com a sua amiga Diana. Se lhe vier alguma coisa à cabeça, por mais disparatada que lhe pareça, ligue-me. Tem aqui o meu cartão.

Entregou-lhe um cartão-de-visita e saiu apressado. A conversa fora tão estranha e tão sem sentido que Gonçalves achou que nada tinha para recordar que o levasse a suspeitar da rapariga. Só a conhecia há uma semana. Tentara engatá-la, embora sem grande sucesso, e fora tão usada quanto ele para provocar o escândalo que o desfizera. Ainda por cima, Amélia estava disposta a transformar aquela hecatombe em separação definitiva.

Diana sentia a boca seca e o estômago ácido quando entrou em casa. Serviu-se generosamente de uísque e ficou debruçada sobre a mesa, de olhar parado, ausente, mordendo os lábios. O escândalo que provocara nas bodas de prata sabia-lhe a fel ao pressentir que errara o alvo. Não era Gonçalves quem iria sair humilhado daquela bronca monumental. Os sorrisos cúmplices que ainda observara nos rostos de vários convidados revelavam-lhe cruelmente que a verdadeira vítima da armadilha acabou por ser Amélia, e não encontrava um único motivo para humilhar a infeliz mulher, que, agora, era confrontada com o vexame de uma vingança por algo que não fizera. Deu um murro furioso na mesa. Não conseguia suportar a ideia dos risos sarcásticos, que agora o uísque ajudava a imaginar, de Gonçalves com os amigos, reinventando a história que tinham visto projectada na tela. As lágrimas e a vergonha ficariam para Amélia. Entre os homens reconhecia-se o direito à conquista do par de pernas que estivesse mais à mão e Diana colocara-se nessa posição. Um homem não é de pau, era o argumento machista que mais cedo aprendera e com o qual mais embirrava, porque reduzia cada mulher à coisificação do prazer do pau do homem que não era de pau. Percebia claramente que o seu objectivo falhara. A vida narrada no masculino haveria de repor a ordem dos machos. Amélia transformar-se-ia no lugar onde se cuspiria o desprezo.

Esta visão transfigurou-a com o ódio que sentia crescer, contra si e contra Gonçalves. Sem perder muito tempo, emborcou o que restava do copo e, decidida, foi buscar uma arma, tornando a meter-se no carro. Que se lixasse a promessa feita a Gusmão. Tinha de fazer o que devia ser feito. Quando Gonçalves abriu a porta e sorriu descaradamente para ela, a decisão estava tomada. Enfiou-lhe o cano da arma na boca e fê-lo recuar até ao centro do salão. O disparo saiu surdo embora Diana tivesse ficado toda ensanguentada com a explosão da cabeça do homem. Olhou para ele estatelado, com a pistola enfiada na boca, esvaindo-se em sangue. Voltou-lhe as costas, com desprezo, e saiu. Pareceu-lhe um instante a viagem até casa. Tomou um banho quente. E dormiu tranquilamente toda a noite.

O chefe Ravara era meão de altura. Tinha uma testa grande, que a calvície exagerava, e olhos de mocho. Negros, redondos e grandes. Parados e penetrantes. Vestia de negro e os gestos eram calmos. Observava o cadáver desfigurado de Gonçalves. A rigidez cadavérica fixara com solidez a pistola na boca e a mancha de sangue coalhado, que se estendia pelo salão, irradiava directamente da cabeça esfrangalhada. Um dos peritos virou-o e do chão recolheu uma bala com uma pinça. Era uma massa de ferro disforme e informou:

– É um projéctil de uma seis trinta e cinco. Entrou pela boca e saiu pelos parietais. Deve ter os miolos feitos num oito.

Ravara não fez qualquer comentário. Olhava com descrença os dactiloscopistas. O salão fora palco de uma festa. Devia estar cheio de vestígios de dedos que não estariam relacionados com aquela morte. Do interior da residência surgiu Augusto.

– As camas estão feitas e a empregada não sabe dela desde que saiu daqui à procura de um advogado. A mulher não dormiu em casa – e acrescentou como hipótese de trabalho: – Voltou aqui depois de eu me ter ido embora, despachou o maridinho e voltou a sair em bicos dos pés para não incomodar.

– Não sei – disse, por fim, Ravara.

– Eu vi-a, chefe. Estava em brasa com o tipo.

– Acredito. Mas como lhe enfiava a arma pela boca e disparava? Uma discussão obriga a que haja distância. Se foi alguém que disparou, estava praticamente junto a ele.

– Suicídio?

– É outra hipótese e mais compatível com aquilo que estamos a ver.

Ficaram os dois em silêncio a observar os peritos que agora depositavam o cadáver numa maca da polícia. Tinha o rosto tumefacto, arroxeado, e no chão ficaram restos de massa encefálica e esquírolas dos ossos da cabeça.

– Peçam ao médico-legista que faça o teste da parafina. Quero saber se tem pólvora nas mãos.

O cortejo saiu e Ravara observou-os sem grande atenção. De súbito, mediu com o olhar a distância do cadáver até à porta. Recuou alguns passos e tornou a calcular o intervalo. Depois, contou as passadas até ao local onde Gonçalves caíra.

– Quatro passos!

Tornou a observar o trajecto e, agora, havia brilhozinho nos olhos enormes. Augusto observava, intrigado, aquela manobra.

– Alguma pista, chefe?

Não respondeu logo. Colocava-se em várias posições tendo a porta como o centro em relação ao qual fazia os seus cálculos. Por fim, disse a Augusto:

– Vou sair. Quando eu tocar à campainha, vá abrir.

O outro acenou afirmativamente, embora não compreendesse que reconstituição ia na cabeça do inspector-chefe. Quando ouviu o toque procedeu como o outro lhe pedira. Ia morrendo com o choque. Ravara, de arma empunhada, apontada ao seu rosto, agarrou-o pelo casaco. Instintivamente recuou e o chefe contou:

– Um, dois, três, quatro. Pum!

Largou Augusto, ainda não refeito da surpresa.

– Porra, chefe. O senhor assustou-me.

– O mesmo susto que este infeliz Gonçalves deve ter sentido, caso não se tenha suicidado.

– Porque acredita que foi assim?

– Por uma razão muito simples. Ninguém admite que lhe enfiem uma arma na boca a não ser com coacção, e não há sinais de luta para admitir esta hipótese, ou de surpresa. Quem o abateu veio da rua para o interior e a distância percorrida é o balanço da fúria do agressor e do recuo apavorado da vítima.

Passou a mão pelos cabelos, num gesto lento, como se acariciasse as ideias, e rematou:

– Ou foi suicídio ou foi assim. Não existe outra explicação.

Agora fazia sentido para Augusto esta reconstituição e acrescentou:

– Se o chefe tiver razão, não foi a mulher quem o matou. Haveria vestígios da discussão ou de luta.

– É verdade.

– A Diana era capaz de uma agressão com esta genica – disse Augusto, entusiasmado com a ideia.

– Ou algum dos tipos que assaltaram o escritório durante a festa – sugeriu, por seu turno, Ravara, concluindo com um suspiro: – A verdade é que esta conversa não passa de conjecturas. Mas concordo consigo. A Diana pode estar metida nisto.

Olhou-o, surpreendido. Ravara tinha chegado há pouco tempo dos Açores e era a primeira vez que trabalhava em Lisboa.

– Conhece-a? – perguntou.

– Ouvi falar tanto dela e do seu bando que tive curiosidade em ler o processo. E é intrigante.

– São maus como as cobras – desabafou Augusto, e existia rancor nas palavras dele: – Há anos que ando doido para lhes deitar a mão. São a pior corja que Lisboa pariu.

– As emoções por vezes toldam a razão – havia um tom de censura nas palavras de Ravara. Depois emendou o sermão: – Mas tem razão. São perigosos e inteligentes. Quando li o processo, fiquei com a ideia de haver um fio estranho, invisível, até diria trágico, que liga as vidas daqueles rapazes e raparigas à própria vida de Diana. Sabe que ela perdeu os pais muito nova?

– Sabia que era orfã.

– O pai suicidou-se e a mãe morreu semanas depois vítima de cancro – e acrescentou: – E talvez de fome.

– Como soube?

Augusto estava surpreendido com o chefe Ravara. É verdade que trouxera consigo uma áurea de detective brilhante, autor de investigações difíceis e com uma carreira de sucessos notável. Falava-se muito dele quando fora da Brigada do Crime Organizado, porém, atribuía muita dessa louvaminha à compaixão pela tragédia que Ravara carregava. As mortes da mulher e do filho num acidente de viação haviam consternado a polícia, e em sua volta criara-se um ambiente de solidariedade implícita, que ainda persistia. Contudo, começava a perceber agora, por trabalharem juntos, que fazia jus à sua apregoada competência. Ravara voltou ao seu raciocínio sobre o bando do Estrela Polar.

– Embora não tenhamos provas para os metermos na cadeia, existem indícios bem explícitos dos caminhos da quadrilha. Há um cimento sinistro que liga os factos que lhe são imputados, e esse cimento chama-se vingança.

– Como? – perguntou Augusto, estupefacto.

– Vingança pela morte dos pais. Vingança de todos eles pelas suas orfandades reais e aparentes, vingança contra o sofrimento, vingança contra a injustiça, vingança contra a ausência de esperança. Todos os crimes que cometem nascem deste caldo de revoltas, e a inteligência superior de Diana comanda tudo isto com tal habilidade que nunca fomos capazes de lhes deitar a mão. Diana é louca, mas brilhante.

– Maluca, uma doida sem escrúpulos – reforçou Augusto.

– Não se iluda. Há uma ordem ética, que nada tem a ver com os nossos padrões, nas suas determinações. Os desígnios deles estão inscritos numa outra dimensão moral que, na verdade, não é a nossa. Não a considere sem escrúpulos. É um erro de avaliação que torna mais difícil deitar-lhe a mão. É louca, mas genial. Desequilibrada, mas inteligente. Audaz, mas calculista.

Augusto ficou calado. Para ele sempre fora uma reles gatuna com sorte, mas tinha de reconhecer que era sorte a mais. A quadrilha assaltava, roubava e até matava, escapando sempre sem deixar grandes rastos dos crimes cometidos. Como parecia ser agora o caso do doutor Gonçalves.

– Hoje há um arraial no Estrela Polar. O chefe não quer passar por lá, para a conhecer?

– Um arraial? É um sítio para encontrarmos esta senhora sem a assustar muito. Vamos.

Na verdade, desde a hora de almoço que o largo abarrotava de gente curiosa, que ia e vinha, apostando na quermesse, emborcando cervejas, admirando o palco onde aconteceria o grande concerto.

Manuela e Clara, com a ajuda de outras mulheres, controlavam os prémios que iam saindo e, de vez em quando, aparecia Francisquinho, que perguntava, ansioso:

– Ainda não saiu nenhum presunto, pois não?

Tornava a afastar-se, confortado por continuar a vê-los pendurados, juntando-se aos amigos que impingiam panfletos e rifas.

Bazófias rejubilava. As grades de cerveja desapareciam a olhos vistos, embora temesse que a noite resfriasse e o entusiasmo da multidão fosse caindo aos poucos.

– É uma pena que essa rapaziada tenha contratado esses Estricninas – criticava ele, olhando as cervejas ainda por vender. – Para meter umas minis com uns chouriços assados, não há nada como uma fadistice.

– Essa malta nova só gosta de gritaria – reagiu Inácio, já com a voz arrastada devido à embriaguez. Arrotou, bebeu o resto da cerveja e sentenciou: – Não prestam, esta geração não vale nada.

– Um faduncho! – teimava o Bazófias. – Uma coisa a puxar ao sentimento dá mais ambiente e a cerveja escorre melhor.

A resmunguice não tinha apenas a ver com o negócio das bebidas. Ver tanta gente concentrada no largo deixara-o nervoso. As imagens das suas romarias a Fátima, das noites de enchente na Luz e em Alvalade, onde multidões se acotovelavam, recordavam-lhe os seus territórios de caça. Passavam-lhe rentes ao nariz dezenas de carteiras distraídas com a quermesse e com os foguetes, fazendo tempo para assistir ao concerto, e o coração de Bazófias palpitava de saudade. Não sabia se ainda seria capaz. Dedos de seda, rápidos como uma gazela, aliviando num piscar de olhos o otário que estivesse mais à mão. A ideia de voltar a experimentar a arte atormentava-o. Procurou afastar os tão antigos desejos, que agora bailavam na sua cabeça, e lamentou-se:

– Um faduncho. Entre os Estricnina e um fado a preceito não há escolha!

Nem reparou em Nicha, que lhe acenou um cumprimento enquanto furava entre os curiosos, apressada na direcção de casa. Sentia-se orgulhosa por levar a grande notícia a Diana. Conseguira-a sozinha, palmilhando vezes sem fim a Praça de Londres, perguntando aqui e ali. Quando lhe estendeu o papel, não cabia em si de vaidade.

– O que é isto? – perguntou Diana, sem perceber.

– O sítio onde trabalha o tal Luís Felisberto que procuras há tanto tempo. Está lá neste momento. Fui eu quem descobriu – sorriu provocadora, o desejo pela outra à flor da pele.

Acabara de lhe oferecer o presente mais desejado, o ponto final numa raiva tão antiga quanto decisiva nas escolhas que Diana fizera.

– Tens a certeza de que ele está lá?

– Nunca sai antes das nove da noite, quando já mais ninguém está a trabalhar.

Diana empalidecera, as narinas abertas puxando o ar que lhe faltava nos pulmões, o corpo crispado. Abraçou Nicha com força e beijou-lhe os cabelos.

– Obrigada, minha boa amiga. Muito obrigada.

Sentiu-lhe o corpo como um mar de carícias, recompensada, lasciva, desejando que não terminasse. Diana entendeu-a e, com ternura, beijou-lhe os lábios, sussurrando:

– Não sei o que seria a minha vida sem ti.

Nicha voltou a abraçá-la. Pairava a felicidade naquele céu que conquistara para servir o grande amor da sua vida. De repente, Diana afastou-a.

– Hoje é o dia ideal para dar cabo dele. A festa justifica todas as presenças e disfarça qualquer ausência.

Nicha despertou do sonho em sobressalto.

– O que queres fazer?

Não respondeu. Consultou o relógio e quedou-se num silêncio tenso. Se não perdesse tempo, resolveria o caso numa hora. Ninguém notaria a sua ausência e, possivelmente, a noite do arraial seria a primeira que dormiria sem qualquer fantasma a seu lado.

Pegou na mala e dirigiu-se, determinada, para a porta.

– Se alguém perguntar por mim, estou por aí, na festa.

– Diana, eu vou contigo.

– Não. É trabalho que preciso de fazer sozinha.

Ninguém reparou nela quando escapou, no automóvel, por uma das ruas com menos movimento. Desceu a colina e apontou na direcção de Sete Rios. Havia pouco trânsito para o interior da cidade e pela memória escorriam imagens do tempo que queria limpar da memória. O pai cabisbaixo, sentado à mesa da cozinha, escondendo as lágrimas, soluçando baixinho, e as palavras últimas que lhe escutou: «Perdoa-me, minha filha. Perdoa-me, mas isto não é viver!» Precisara de crescer para compreender aquela dor e aquelas palavras esmagadas pela amargura. Assim como os olhos fundos da mãe, assustada e cada vez mais frágil, já sem lágrimas, consciente do seu futuro breve. O homem de quem ia ao encontro, do alto da sua indiferença, assinara, com uma rubrica negligente, o destino fatal do seu pai. E o de Diana.

Viu o prédio ao longe. Era alto, bicudo, com janelas sem varandas, ombreando com outros mais baixos e sem ruas a dividi-los. A porta era única, pesada, de ferro trabalhado. Precisava de subir ao oitavo andar. Contou os pisos e reparou que não estavam iluminados. Talvez tivesse saído mais cedo ou o gabinete onde trabalhava não se via da praça. Experimentou a porta. Estava trancada e decidiu que não tocaria a qualquer campainha. Hesitava agora sobre qual o caminho a tomar quando viu a luz translúcida do elevador a chegar ao rés-do-chão. Retrocedeu, calculou rapidamente o tempo e, de novo, dirigiu-se à entrada. Um casal de velhotes saía e ela segurou a porta com um sorriso. Agradeceram-lhe a gentileza e Diana correu ao elevador. Dispunha de pouco tempo para resolver a situação. A morte, quando está decidida, destrói os nervos, caso não aconteça. É rápida e clandestina. Uma contrabandista de almas. A cada piso que subia, ecoavam-lhe nos ouvidos as palavras soluçadas. Isto não é viver, isto não é viver, e a voz do pai, que ouvia em todos os sonhos, ganhava agora mais ressonância, percorrendo-lhe o corpo como se fosse um eco que ondulava dentro de si. Respirou fundo e tocou à campainha. Ouviu um ruído qualquer vindo do interior e aguardou. Na mão segurava uma seis trinta e cinco igual à outra com que desfizera o Gonçalves. Era o Tosta Mista quem lhe alimentava o arsenal de pistolas. Cada vez que ia à feira de Carcavelos, trazia-lhe sempre meia dúzia. Serviam para o bando e para gozo pessoal de Diana. Possuía um estranho fascínio por armas de pequeno calibre, confrontada com o paradoxo de uma munição do tamanho de um feijão conseguir expropriar a grandeza da vida de qualquer corpo. Era uma antinomia perfeita! Surgiu-lhe um homem calvo, magro, envelhecido e de expressão cansada. Retirou os óculos e aproximou o rosto para ver melhor.

– Por favor? – perguntou com gentileza.

– Doutor Luís Felisberto? – Diana mostrava um sorriso plástico.

– Sim, sou eu – respondeu tranquilamente.

– Trago-lhe uma mensagem do senhor António Vicente.

– Quem? Não conheço.

– Por isso mesmo. Devia tê-lo conhecido antes de o matar.

O tiro, à queima-roupa, entrou junto ao nariz e o homem foi atirado contra a porta, escorregando devagar, enquanto o sangue espirrava ao bater do coração.

Diana apanhou as escadas, numa descida à desfilada. O som da explosão do tiro fora amplificado pela ressonância no poço do elevador e teria, de certeza, alertado gente que habitava ou trabalhava noutros andares do edifício. Acabara de ultrapassar o segundo piso quando escutou o primeiro grito. Desatou a saltar os degraus aos três e quatro e, quase de seguida, juntou-se outro, seguido, de imediato, por um coro estranho de gritos cada vez mais estridentes. Precisava de chegar à porta. Bastava que uma das primeiras testemunhas decidisse vir à janela dar azo ao horror que acabara de presenciar e a Praça de Londres enfrentaria Diana. Alguém espreitou para as escadas e gritou:

– Vai ali. Vai ali o assassino!

Desceu o último lanço de escadas quando o alvoroço já sacudia o prédio. Susteve a respiração ofegante, controlando-se, abriu a porta tranquilamente e esgueirou-se junto à parede.

Atravessava a avenida quando começaram a abrir-se janelas e desencontrados gritos de socorro escutaram-se pela praça. Acelerou o passo. Aproximou-se de um grupo de pessoas que caminhava em direcção à igreja. Alguns ainda voltaram a cabeça para o prédio donde vinha o clamor de vozes pedindo ajuda. Também olhou. Pareceram-lhe duas mulheres, que berravam a plenos pulmões, agitando os braços na direcção da porta. Afastou-se. Deixara o carro nas traseiras do Filipa de Lencastre e ia leve, com vontade de regressar ao arraial e dançar pela noite fora, sem parar. Passou por um contentor, onde largou a arma, entrou no carro e partiu.

Uma estranha alegria crescia dentro de si. Cumprira o desejo maior que lhe marcava os dias e os pesadelos, sentindo que fora o braço de uma justiça que ia para lá da vontade dos homens. Matara quem deveria matar, um acto de piedade pela alma desesperada do seu pai, tão injustamente maltratado pela insensibilidade de cães que usavam o poder com a irracionalidade das feras perante as suas presas. Agora, sim, estava em condições de lançar a sua matilha para grandes voos, longe das tormentas que a perseguiam e que acabara de enviar para as profundezas do inferno.

Da Casa da Moeda à Avenida da República são dois minutos. A partir daí, seria um pequeno passo até casa. Não foi tão rápido como imaginara. Viu-se aflita para estacionar o automóvel, tal era a multidão que atafulhava o Estrela Polar. Deixou-se levar no mar de gente e estava feliz. Apetecia-lhe abraçar os rapazes por permitirem que a festa regressasse àquele chão macerado pelo sofrimento e pelo desprezo, e sentia o coração liberto, tão livre que não compreendia os gritos alucinados daquelas mulheres que, há poucos minutos, gritavam apavoradas com a morte do canalha. Encontrou Batman e o entusiasmo arrefeceu.

– Atenção, a bófia está no arraial – berrou para que ela o entendesse no meio do barulho ensurdecedor que os Estricnina tinham armado no largo.

Engoliu em seco. A chibaria não estava ali por acaso, embora não tivesse tempo de saber que matara o velho inimigo há momentos, na Praça de Londres. Vislumbrou-os junto à quermesse. Era o Augusto, que já conhecia, e o Ravara, o homem-mistério celebrado entre os polícias. Falava com Manuela, enquanto desembrulhava um monte de rifas.

– O dinheiro das rifas é para quê?

– Para pagar as despesas do arraial. Aquilo que sobrar é para o centro social da Igreja.

– E tens-te portado bem? – quis saber Augusto.

– Acha que isto é portar-me mal? Ajudar os velhotes que não têm ninguém?

– Claro que não. Até vos fica muito bem. É uma atitude meritória – acorreu Ravara, pondo água na fervura.

– E a Diana? Não está cá? – tornou Augusto

– Acho que sim. Deve andar por aí.

Diana decidiu revelar-se.

– Precisa de mim, senhor inspector?

A pergunta apanhou Augusto de surpresa. Ravara voltou-se e observou-a com atenção minuciosa. O olhar dele penetrava, e Diana sentiu um calafrio. Aquele homem era perigoso, tal como lhe indicavam os seus pressentimentos.

– Desculpa, não te vi. Este é o nosso inspector-chefe Ravara.

– Boa noite, senhor inspector-chefe. Uma visita de trabalho ou só distracção?

– Como vai, minha senhora? – era o primeiro polícia que a tratava por senhora: – Nada de trabalho. Apenas curiosidade. O barulho dos Estricnina ouvia-se do outro lado da auto-estrada. Terminámos um serviço e viemos espreitar a festa. Aliás, já estamos de partida, não é verdade, Augusto?

– Sim, sim. Já é tarde. Boa noite. Porta-te bem Diana.

– Boa noite a todos – cumprimentou-os com um gesto de cabeça e os dois homens afastaram-se.

Fez sinal a Batman que os seguisse. Ravara parou para acender um cigarro e Augusto avisou-o.

– Deixou lá as rifas.

– Foi de propósito. Ela vai perceber que fomos ver o bando e a Diana esta noite fez um trabalhinho qualquer. Deve ter chegado e foi à nossa procura, para sermos o seu álibi.

Augusto duvidou das certezas do chefe.

– Hoje? Na noite em que a sua vara de porcos organizou um arraial tão ordinário como eles?

– Tinha luvas e estavam sujas nas palmas das mãos. Ninguém vai para uma festa ao ar livre de luvas, com este tempo. Muito menos se estão sujas.

Enfiaram-se no carro e partiram. O concerto estava no auge. Multiplicavam-se as bebedeiras, os abraços viris, gente que pulava ao som dos estrondos que saltavam dos instrumentos dos Estricnina. Até Nicha dançava, imaginando-se ainda nos braços de Diana. A cerveja do Bazófias desaparecia à velocidade da luz, e Francisquinho, junto ao palco, tocava uma guitarra imaginária e esperneava ao som do rock, que fazia estremecer os vidros das janelas e parecia dar murros no peito de quem festejava. Foi nesta euforia que Zé Cigano se aproximou do balcão da quermesse e abraçou Manuela.

– Conseguimos. É uma festa a sério. Parabéns!

Ela retribuiu o abraço e, subitamente, procuraram os lábios um do outro. Beijaram-se longamente. Depois, o Zé afastou-lhe o rosto, segurando-o entre as mãos e exclamou, feliz:

– Meu Deus, gosto tanto de ti!

– E eu de ti, Zé Cigano – respondeu-lhe com o olhar brilhante de alegria.

Tornaram a beijar-se com paixão. Foi Clara quem quebrou o encanto, tocando no ombro da amiga.

– O teu pai está a olhar para vocês.

Largaram-se e Manuela olhou para Inácio. Cambaleava, perdido de bêbado, com o olhar vazio passeando pela multidão. Parecia que ia cair, depois reequilibrava-se e dava a sensação de que, mais tarde ou mais cedo, tombaria. E babava-se.

– No estado em que ele está, não vê nada.

Zé Cigano já se afastara e ela voltou à venda das rifas. O concerto aproximava-se do final, pois os Estricnina não se limitavam a desafinar. A voz do vocalista era cada vez mais sumida, o que obrigava a maior banzé das guitarras e bateria. Num ou noutro sítio rebentava uma rixa, pelo chão rolavam garrafas de cerveja vazias e cada vez eram mais os toxicodependentes pedrados que dormiam a sono solto ou curtiam, deitados junto às paredes dos prédios. Diana pediu a Batman que fosse ajudar a controlar o dinheiro da quermesse. Restavam poucos prémios e, em volta, o chão estava atulhado com papelinhos de todas as cores. Um dos presentes continuava a dominar o expositor, porém, haviam desaparecido as canecas e os ursinhos, os ganchos para o cabelo e os copinhos para licor.

Quando a actuação do conjunto terminou, uma formidável salva de palmas foi o sinal da debandada. O largo parecia ter sido palco de uma batalha, com o ambiente impregnado de um estranho odor ácido e azedo. Bazófias, cujas cervejas esgotaram antes da apoteose, fechou a porta e, impante da satisfação, desatou a tirar carteiras dos bolsos das calças. Conseguiu resistir à tentação até desaparecer a última grade de minis. Depois, a nostalgia foi mais forte e meteu-se pela multidão. Em menos de meia hora depenara seis otários. Se lhe dera satisfação o saque, agora era com indignação que fazia o balanço do resultado.

– Olha-me para isto. Seis chatas e ao todo cinquenta euros! Cartões de crédito, de multibanco, de débito. Dinheiro, nada! Cinquenta euros ao todo. Assim não se pode ser carteirista, é uma profissão em vias de extinção?! Não conheço nada disto. Eles são cartões de crédito, os Estricnina. Está tudo de pantanas. Este já não é o meu reino.

– E porque foste às carteiras, se esta noite o negócio correu tão bem? – censurou-o Almerinda.

– É o vício. Este maldito vício. Vi a primeira e pensei, deixa lá ver se ainda sou capaz. Meti os baios e a estália veio na ganga da moina. Entusiasmei-me com aquilo e fui sacando. Por acaso, não lhe perdi o jeito, mas é uma miséria. Cinquenta euros!

– Vais ser ladrão toda a vida.

– Ladrão, ponto e vírgula. Artista! É uma arte, um número de circo e o teu homem, no seu tempo, foi mestre de circo, mas agora!? Como se pode ser mestre no meio desta miséria? Cinquenta euros, minha Nossa Senhora!

Na quermesse também se faziam contas. Batman organizava as notas e as moedas, pondo em envelopes, conforme as poucas despesas realizadas. Manuela e Zé Cigano iam conferindo facturas e Francisquinho observava o trabalho, carregando o presunto ao ombro.

– Este foi só para mostrar, meu. Este é para nós paparmos. Grande festa, meu!

Zé Cigano declarou:

– As despesas estão todas pagas. Deve ter sobrado algum.

– Vendemos as rifas quase todas... – esclareceu a Manuela.

– Foi quase tudo à borla. Gostei, meu, um grande concerto e um belo presunto.

– É verdade. Uma grande festa! – Manuela abraçou Zé Cigano com ternura e ele retribuiu com um beijo. Batman, entretanto, terminou as contas.

– Sobram novecentos e vinte euros!

– Yeesss! Yeess! – gritou Francisquinho, exibindo o presunto como se fosse uma guitarra.

– Quase mil euros. Bué da baril! – exclamou Batman.

– Bué de baril!

– Amanhã, entrego o dinheiro ao senhor padre Ganhão.

Ainda Bataman não acabara a frase, Clara soltou um grito. Voltaram-se para perceber o que se passava. Um grupo de oito rapazes com coletes de cabedal preto entrou no largo e avançava para a quermesse. Francisquinho gritou:

– É o bando do Bigornas! Vêm roubar.

– Esconde o dinheiro, Batman. Vai haver porrada – avisou Zé Cigano, arrancando um pau do expositor para se armar para o combate, e a rapariga desatou aos gritos.

– Acudam! Socorro. Querem roubar-nos. Socorro!

O bando do Bigornas avaliou mal a situação. Julgavam ir defrontar os gatunos de Diana, mas foi um bairro inteiro que saiu em defesa do dinheiro do centro social. De todas as casas do largo saltaram homens e mulheres, que arremeteram contra os invasores. Até Almerinda alinhou no concerto de pancadaria, e bastaram poucos minutos para pôr os intrusos em fuga, corpos vergados de tanta pancada. Os feridos do bando, Zé Cigano e Necas, recolheram ao Águias. O primeiro ferido na cabeça e Necas com um arranhão no pulso. Bazófias estava furioso.

– Tinha de acabar assim. Festa aqui no bairro sem porrada, não é festa e o meu café torna-se enfermaria. É sempre o mesmo.

Necas não ligou ao resmungo. Excitado da refrega desatou a rir, enquanto Clara lhe tratava do pulso.

– Levaram uma coça valente! Tão depressa não aparecem para roubar...!

Almerinda limpava a ferida de Zé Cigano.

– Coitadinho do Zé! Coitadinho...

– Qual coitadinho. Esse tipo é cigano, tem carne de cão – resmungou Bazófias, ciumento.

– E tu carne de boi!

– Queres que te ponha na rua? Queres?

Bazófias começava a ficar ao rubro. O facto de estarem ali, no seu café, a receber tratamento expunha-o à fúria de Bigornas, um meliante com pêlo na venta, que dominava a Charneca. Tinha fama de impiedoso e o ex-carteirista não queria inimigos desse calibre. Fechou o estaminé, tornou a contar o dinheiro, para confirmar que nenhum dos feridos o gamara, e preparava-se para dormir, gemendo com dores nos pés, cansado e trôpego, quando outro grito, mais parecido com um uivo de dor, ecoou pelo largo. Almerinda ergueu-se, assustada.

– O que foi isto? Eu vou ver.

– Esta gente não sabe o que é descanso. Não há forma de um homem sossegar – desabafou Bazófias, irritado, aconchegando-se para dormir. Passados instantes, Almerinda regressou ao quarto e a sua aflição era sincera.

– Ai, Ernestinho, que grande desgraça! Está o largo cheio de ambulâncias e polícias. O Inácio matou a mulher à facada e fugiu.

Levantou-se de um salto e seguiu-a, espreitando pela porta entreaberta. Não era bem como a mulher contara, mas via-se no largo uma ambulância e um carro da polícia com os pirilampos ligados. Várias pessoas concentravam-se junto à casa de Manuela e o burlão, ainda espantado, exclamou:

– O Inácio? Não é possível. Vais buscar-me as calças que eu vou dar uma vista de olhos à coisa. Não acredito nessa história do Inácio.

Almerinda correu ao quarto, sem protestar, e Bazófias continuou a espreitar. Alguns curiosos, que ainda não descansavam depois da festa e da sessão de pancadaria, juntavam-se no local, indignados, conformados, bisbilhoteiros, e os comentários cruzados de exorcismo da morte ali tão perto não tinham rumo certo.

– Eles discutiam muito. A filha é uma vadia.

– O Inácio é que é um bêbado.

– Umas estaladas para a pôr na ordem vá que não vá. Mas matar...

– Eu cá às vezes ouvia gritos, mas sou assim. Entre marido e mulher ninguém mete a colher.

– Coitada da vizinha Carolina. Era tão boa pessoa.

– Este bairro tem bêbados a mais e pessoas decentes a menos.

– Olha quem fala. Ainda esta noite, no arraial, te vi emborcar não sei quantos bagaços.

– Dizes tu.

– Eu é que sei. Eu é que sei.

Alguns polícias saíram de casa. Um deles era Augusto, que avistou Bazófias. Disse aos bombeiros:

– Podem levantar o corpo e levá-lo para a morgue.

– Então, senhor inspector, grande azar. O Inácio até não era má rês. Coitado!

– Falas assim porque não eras tu quem levava nas trombas. O gajo não presta. Nem tomates teve para enfrentar a justiça. Fugiu.

Bazófias sobressaltou-se e mudou radicalmente de posição.

– Fugiu mesmo? Esse filho da puta fugiu?

– É um cobardolas como tu. Qual é a admiração?

– Deixou-me entalado com uma pipa de massa. Bebia fiado. Ainda esta noite quase despejou uma garrafa de brandimel e meia dúzia de cervejas, e pediu que apontasse que pagaria no fim do mês.

– Tens de aguentar. Ladrão que rouba ladrão.

Calaram-se. Os bombeiros transportavam o corpo da infeliz Carolina na maca, com um lençol por cima. No peito, o pano fazia um alto permitindo imaginar o cabo da faca que lhe pusera fim a anos de maus tratos. Algumas mulheres choravam em silêncio e Augusto olhou os presentes e depois em volta. Pelo chão, dormiam mais de uma dezena de janados, indiferentes aquilo que estava a acontecer. Num deles, aconchegara-se o velho cão escanzelado que por ali vegetava. Por fim, proclamou, misterioso:

– Eu desejava ser mosca, Bazófias.

Percebeu que a conversa ia descambar e rapidamente assumiu a sua condição de manipulador. Comentou, irónico:

– Mosca? Vossa excelência. Com uma mosca? Ficava-lhe melhor um bigode. A mosca no queixo, quando uma pessoa se baba, fica húmida. Vai ver o jogo de Portugal, hoje? Temos de ganhar e... gostou do nosso arraial?

– Quanto te paga ela, Bazófias? – cortou o inspector.

– Perdão? Ela quem?

– Para deixares os traficantes venderem droga nesta esplanada, quanto recebes?

Atirou-se de cabeça. Que ele embirrasse com o Inácio, tudo bem, mas o Águias era o seu negócio. A sua vida.

– Senhor inspector, pela sua rica saúde! O meu café está limpo dessas porcarias. Ali não. Quem quiser beber uns canecos, pode embebedar-se à vontade, que até gosto de ver um tipo entornado, mas porcaria, não. Este é o melhor café do bairro e faço questão. A ASAE já cá veio três vezes e nem uma multa. Da última vez, o inspector seu colega até me disse, Bazófias, se todos os cafés do país fossem como o teu, a ASAE fechava e eu ficava sem emprego. Disse ele, e é mais ruim do que o senhor, que por acaso, não desfazendo, deve ser um grande polícia.

– E tu és um grande músico! Adeus, Bazófias. Um dia, um dia destes, vais contar-me os segredos que este bairro esconde.

Sorriu com ingenuidade de anjo.

– Segredos? É gente simples, pobre, mas simples, senhor inspector. Aqui não há segredos a não ser sobre o modo de tirar imperial, mas esse não conto a ninguém – e, contristado, concluiu: – E muita miséria, senhor inspector. Parece que Deus se esqueceu de nós.

Augusto afastou-se com os colegas e a ambulância partiu. O grupo de mirones começou a recolher às suas casas e Bazófias regressou ao Águias resmungando raivas contra o Inácio.

– Filho da puta. Se soubesse que ias chinar a garina e não seria eu quem te fiava a porra do brandimel. Caloteiro ordinário!

Reparou que, mais afastados, Necas e Francisquinho procuravam consolar o Zé Cigano. Ainda se sentiu tentado a ir ter com eles, para escutar a conversa, mas estava demasiado cansado. Trabalhara que nem um cão todo o dia e, agora, desejava desesperadamente dormir com a ideia de ter gamado umas carteiras com êxito. Sabia-lhe bem não ter perdido o jeito, e a porcaria dos cinquenta euros ajudava a abater o calote que o Inácio lhe pregara. Acenou aos rapazes e foi deitar-se.

– Este merdas não tem perdão. Não merece. Matou a mãe e ainda pode matar a filha. Vou dar cabo dele. Juro que não descanso enquanto não lhe rebentar as tripas – vociferava Zé Cigano, limpando a navalha de ponta e mola às calças. Francisquinho segurou-o pelos ombros e olhou-o com firmeza.

– Não vais nada, meu. Eu vou, tu não vais. É assim, man. Tu ficas com a Manuela. O Tosta Mista já o procura, eu também vou procurá-lo.

– Eu preciso de matar esse animal! – rugiu o rapaz.

– Não matas nada. Tu não podes matar o pai da tua namorada. A gente mata-o por ti, está descansado, meu! Nós encontramos e matamos o tipo. Juro-te. Está jurado, ele vai morrer. Não podia fazer isto à Manuela. Não podia, mesmo. É jura sagrada, meu. O homem está morto.

Necas abraçou o cigano, procurando confortá-lo, pois o rapaz chorava, inconsolável com a dor que sentia na alma de Manuela, e disse:

– Vai ter com a Manuela. Ela precisa de ti. Está com a Diana, mas é bom ver-te.

– É o que lhe estava a dizer. Queria ir atrás do Inácio. Não pode matar o pai da Manuela, não é? E depois, o que lhe dizia. Manuela, matei o teu pai. Não pode, não pode mesmo – repetiu o Francisquinho.

– A culpa foi minha. Viu-me beijar a filha e vingou-se na desgraçada. A culpa foi minha – lamentou-se o Zé Cigano.

– Não sejas tonto. Claro que não tens culpa de o homem ser um animal. Vá, eu levo-te à casa de Diana – insistiu Necas.

– E eu vou caçar. Vou apanhá-lo. Juro-te! – prometeu Francisquinho e afastou-se.

Tinha a certeza de que o criminoso não estava longe. O álcool não é um acelerador de fugas. Pelo contrário, pede sono e bem pesado.

Quando chegaram à sala, Diana confortava Manuela, que soluçava em pranto. Nicha, encolhida noutro sofá, embebia as lágrimas num lenço amarrotado.

– Foram anos de sofrimento. As minhas primeiras recordações de menina foi vê-lo a bater na minha mãe, e eu não entendia porque era assim. Às vezes pensava que ele o fazia porque era normal. O marido da nossa vizinha Micaela também batia na mulher porque era normal. E quando comecei a crescer, passámos a levar as duas pancada, sem sabermos porquê, e era normal. Estragava tudo. O Natal, a Páscoa, o dia de anos de qualquer um. Foi então que comecei a perceber que não era normal. Às vezes bastava que a minha mãe cumprimentasse outro homem para ficar logo de trombas, e já se sabia que quando chegássemos a casa ia dar-lhe uma sova, mas a minha mãe calava-se por medo. Um medo que me doía tanto que só me apetecia matá-lo ou fugir de casa. Anos a fio.

Limpou as lágrimas, suspirou profundamente e concluiu, esmagada pela dor:

– Eu não fugi de casa para a proteger e, afinal, não valeu de nada. Minha pobre mãe!

Diana estava comovida. Abraçou-a com carinho e beijou-lhe a testa. O ambiente era de consternação. Batman e Clara, que se haviam juntado ao grupo, permaneciam calados, cabisbaixos e tristes. Não existem palavras de consolo que impeçam a devastação implacável que a morte provoca. Um vendaval impiedoso, que reduz a nada o sítio por onde passa, indiferente à dor e ao pranto, a qualquer gesto. Seja qual for a dimensão afectiva da palavra, são inúteis e vãos rituais para imporem a tranquilidade perdida. Todos sentiam a inclemência da morte, que os obrigava ao silêncio recolhido, deixando-a partir com os defuntos que levava nos braços.

Amanhecia quando, depois de muito espreitar em vales e sarjetas, em jardins e casas em ruínas, Tosta Mista lobrigou Inácio esticado, dormindo a sono solto, num banco de uma paragem de autocarros. Subiu-lhe ao peito uma enorme satisfação e acordou-o.

– Ei, ti Inácio. Vamos embora.

Ainda estava bêbado e não reconheceu o rapaz. Soergueu-se cambaleante.

– O que foi?

– Venha comigo. Levo-o para um sítio mais abrigado e onde pode descansar. Se a polícia o vê aqui, vai de cana.

A palavra polícia sobressaltou o homem, embora nem ele soubesse porquê, e, invulgarmente solícito, apoiou-se no rapaz. Começaram a dirigir-se para um barracão que se encontrava num baldio para lá da auto-estrada. Ainda caiu duas vezes durante a marcha, mas Tosta Mista, qual amigo do peito, amparou-o na caminhada.

Era um armazém velho, fedorento, onde se amontoavam batatas podres e um monte de sacos de serapilheiras velhas. Deixou-o cair sobre elas e ligou o telemóvel.

– Já o descobri. Venham ter comigo.

Deu as indicações do local e foi sentar-se à entrada, depois de ter escolhido umas quantas músicas do iPod. Francisquinho foi o primeiro a chegar. Passara a noite à procura do rasto do bandido e vasculhava na mata de Monsanto quando recebeu a chamada do amigo.

– Porque o trouxeste para aqui, meu? Isto cheira pior do que tasca do Bazófias. Cheira mesmo a merda, meu, ou foste tu que te abriste?

– Guardavam mercadorias aqui e está um monte de batatas bué de podres ali dentro. Vamos despachá-lo já?

– Estás passado, meu? Estás passado? – Francisquinho mostrava-se deveras indignado. Esse animal não pode morrer bêbado. Não sentia o que tem de sentir, meu. É pior que um animal, meu. É um monstro!

– Disseste aos outros?

– Ao Necas. Ficou de contar ao Zé Cigano. Vêm os dois. Isto também não pode ser espectáculo. É justiça à séria e sou eu quem a vai fazer, meu. A Manuela não merecia este desgosto e a Dona Carolina era uma santa, meu. Uma santa casada com um monstro, mas acabou-se. Vai terminar tudo e é daqui a bocado. Tu vais ver se não vai.

O Sol erguera-se, preguiçoso, sobre Lisboa, mas ainda não havia trânsito na auto-estrada que passava perto do local onde estavam. Repararam que Inácio se erguera. Tossia convulsivamente e, quando olhou em volta, ficou espantado. Foi então que viu os dois rapazes. Olhou-os com rancor.

– O que é isto? Que estão a fazer aqui? – perguntou, sobranceiro, entre dois ataques de tosse.

– Estamos de olho em ti, filho de uma cadela. Vais pagar o que fizeste à tua filha e à tua mulher – respondeu, desafiador, Francisquinho, empunhando a pistola.

– Eu não fiz nada.

– Não fizeste, o caralho! O caralho, meu. Mataste a desgraçada sem mais nem menos e agora vais pagar, meu. Não matas mais ninguém.

Inácio tornou a deixar-se cair no monte de sacos. A cabeça rodopiava com a ressaca e não conseguia lembrar-se do que acontecera. Sentiu sede e uma grande necessidade de beber qualquer coisa que lhe pusesse os miolos a funcionarem. Mas era impossível aquilo que o rapaz lhe dizia. Como podia ter despachado o raio da mulher se não se lembrava de nada? A única coisa de que se recordava era da garrafa de brandimel que sorvera ao Bazófias e de uma música, que era mais tipo algazarra, que o pusera irritado. Tornou a tosse cavernosa, aguda, e deixou-se cair sobre os sacos. No mesmo instante, surgiram Necas e Zé Cigano. Vinham com tal velocidade que Francisquinho agarrou cada um por um braço. Zé Cigano sacudiu-o e, colérico, avançou para Inácio.

– Larguem-me. Eu não lhe vou fazer mal.

– Não podes, meu. Tu tem calma, meu – recomendou Francisquinho.

– Eu tenho! Juro que não dou cabo dele. Larguem-me.

Aproximou-se de homicida, que limpava a boca a um lenço sujo. Respirou fundo para controlar a ira, cruzou os braços e perguntou-lhe em desafio:

– Porquê? Estou a falar contigo, animal! Mataste a desgraçada, porquê? Porque ela abriu a boca? Porque respirou? Fala comigo, assassino. Eu quero saber porquê. A tua filha quer saber porquê.

As perguntas eram verdadeiros rugidos e o homem atemorizou-se frente ao grupo de bandidos que o cercavam.

– Não sei. Não me lembro de nada.

Zé Cigano desatou a rir com gargalhadas histéricas, punhos fechados, controlando a vontade de o matar naquele momento.

– Não se lembra. O animal não se lembra. Já viram como é um cobarde? Foste mau com as mulheres, és um borradinho de medo com os homens!

– Um porco, pior do que um porco! Quem bate em mulheres é mais do que um porco, quem as mata é muito mais, meu! – cortou Francisquinho, cuja cólera também crescia.

– Vocês não entendem. Ninguém entende – gemeu, medroso. Zé Cigano perdeu as estribeiras e deu-lhe um empurrão, enquanto berrava:

– Não há nada para entender. Nada! Matar tem sempre uma razão e tu batias nela e na tua filha sem razão nenhuma. Bandido, mataste-a sem razão...!

Atirou-se a Inácio, apertando-lhe o pescoço. Francisquinho e Necas acorreram em auxílio do assassino, empurrando Zé Cigano.

– Chega! Não pode ficar vivo, mas eu é que trato disso. Ouviste, Zé? Eu é que trato da coisa. Jurei que o despachava e despacho com prazer – garantiu Francisquinho.

– Vocês não me vão entregar à polícia? – perguntou Inácio, já suficientemente sóbrio, por não gostar do rumo da conversa. Francisquinho riu.

– Vais pagar e é agora! Querias que te entregássemos à bófia para dares duas tretas ao juiz e vires cá para fora matar a tua filha – e, voltando-se para os outros, perguntou: – Como vai ser? Morre devagarinho ou depressa? – e disparou um tiro para o ar com vontade de começar a despedaçar o bêbado.

– Não podes fazer-me isso. Não podes! – agora Inácio estava aterrado.

– Posso e quero. Como é, pessoal? – perguntava Francisquinho, eufórico.

– Devagarinho, tem de sofrer antes de a morte o levar. Começas por furar-lhe as pernas. Depois na barriga – explicou Necas.

Zé Cigano precisava de passar das palavras aos actos e puxou da arma, apontando às pernas do homem. Francisquinho empurrou-o.

– Não. Eu faço. Tu não podes, meu. Tu não podes!

Porém, Zé Cigano estava passado.

– Posso e quero! Quero vê-lo a escorrer em sangue como um javali. É um javali!

– Perdoem-me. Eu peço perdão – chorava Inácio.

– Eu mato-o devagarinho. Tu vais ver! – garantiu Francisquinho, que apontou lentamente às pernas dele, mas Tosta Mista gritou:

– Espera...!

– O que foi? – perguntou Francisquinho.

Zé Cigano estava desconfiado.

– Tosta Mista, tu não vais dizer que...

– Se o queres matar, tem de parecer suicídio – afirmou o negro.

– Mas é injusto! – refilou Francisquinho.

– Não há outra solução, se não queres ficar com a polícia à perna. Suicida-o que é melhor para todos.

Inácio seguia a conversa, cada vez mais atordoado. Francisquinho insistia.

– Matar é matar. Quero lá saber se a polícia nos vai cair em cima. Chibaria é chibaria.

– Eu quero a polícia – gritou Inácio em pânico. – Eu quero a polícia!

– Para te safares, não é? Não! Daqui sais esticado – avisou-o o Zé.

– Não, não. Pela vossa rica saúde! – implorava o bêbado, de joelhos perante os rapazes.

Francisquinho, desorientado com a gritaria, os gemidos e os conselhos de Tosta Mista, perguntou:

– Como se suicida um tipo?

– Nunca suicidei nenhum! – respondeu Necas.

– Dá-se um tiro na corneta do animal e acabou! – interveio Zé Cigano.

– Não. Peço-vos perdão. Não. Eu juro que não bato em mais ninguém. Juro! – choramingou Inácio.

A confusão era enorme. Parecia a barulheira do arraial da noite anterior. Francisquinho tornou a disparar para o ar. Voltou o silêncio e ele berrou, desorientado.

– São capazes de estar calados? Não consigo pensar com vocês todos aos berros. Tosta Mista, ensina-me. Matar, eu sei. Agora diz-me: como suicido esta besta?

Zé Cigano estava impaciente e ordenou:

– Ensina-lhe como se faz, Tosta Mista. Já estou farto de ouvir o animal a zurrar. Um cobarde de merda.

Tosta Mista levantou-se com a arma na mão e dirigiu-se, decidido, a Inácio.

– É assim!

Encostou-lhe a pistola à cabeça e disparou. O homem tombou morto e Francisquinho soltou um grito de indignação.

– Não!!! – gritou, desesperado.– Era eu, man. O homem era meu. Eu jurei, man!

Indiferente aos saltos do amigo, Tosta Mista continuou a tratar do suicídio. Colocou a arma na mão do cadáver, premiu-lhe os dedos para que fizesse um novo disparo e explicou:

– Assim a chibaria vai encontrar-lhe pólvora queimada na mão e fica devidamente suicidado.

Os outros aprendiam, agora, a lição com atenção. Tosta Mista deixou-lhe a arma na mão e afastou-se para estudar o quadro. Sorriu satisfeito.

– Está certo.

– Está suicidado? – perguntou o cigano.

– Exactamente. Suicidou-se.

Terminaram a faina. Em menos de doze horas, Manuela transformara-se numa órfã e a quadrilha, saciada, abandonou o armazém.


10
UMA LIMUSINA INSPIRADORA

O assalto à residência do doutor Gonçalves, assim como a sua morte, para além dos distúrbios no final do arraial, libertaram uma multidão de polícias subitamente inquietos. Diana não resistira ao impulso vingativo e fora longe de mais. Não se rouba e não se mata um administrador de uma empresa pública como se fosse um tendeiro ou qualquer vadiola. A imprensa não abandonava a notícia e a bófia metia o nariz em todos os cantos da cidade, mesmo nos mais lúgubres, farejando o rasto de ladrões e assassinos. Diana aproveitou para sair de Lisboa, levando Nicha consigo. Por várias vezes o engenheiro Gusmão lhe oferecera a vivenda que possuía, em Vilamoura, para gozar o mar e, agora, aproveitava o turbilhão de polícias devassando casas e procurando suspeitos para se afastar.

Batman ficou responsável pela actividade dos rapazes, que pressentiam a polícia a rondar por perto e, na verdade, a quadrilha sossegou. A esplanada do Águias tornou-se no centro de convívio ou deambulavam pelo largo, alimentando-se de conversas sobre feitos passados e vigiando algum pasma mais atrevido. Porém, uma estranha indolência crescia entre os rapazes. Estavam viciados em adrenalina e a paragem forçada provocava um nervoso miudinho de impaciência, que, mais cedo ou mais tarde, teria de encontrar um escape.

Francisquinho dedicava-se ao seu desporto habitual: provocar o Bazófias e fazer análise política diariamente. Era o caso, naquela tarde, quando bebia cervejas com Zé Cigano e Clara. O taberneiro sentara-se numa mesa próxima, devorando um jornal desportivo, e fez um comentário optimista:

– Esta época temos Benfica à Benfica. Estes dois reforços argentinos são duas máquinas. Umas máquinas, a sério!

O rapaz disparou, indignado:

– Mas qual Benfica, meu? Quem quer saber dessas tretas do Benfica, do Sporting e dessas coisas, meu?

– Eu quero. Gosto de saber.

– Porque és um alienado, meu. Vives no mundo do não te rales, meu. O país está nas lonas, a fome manda mais do que as mães e tu vens discutir os reforços do Benfica. Mas qual é a tua, meu? Qual é a tua?

– Falei, pá. Um homem tem de falar de qualquer coisa, não é? Não era preciso ficares tão enxofrado.

– O Francisquinho tem essa virtude. Preocupa-se de mais com a política e depois dão-lhe estes ataques – atalhou o cigano.

– Ataques, meu? Falo do futuro e tu achas que são ataques, meu? Agora estou mesmo zangado.

– Eu gramo bué as conversas do Francisquinho. É intelectual – elogiou Clara.

– Intelectual, uma porra! O Benfica... – ia começar o Bazófias, mas Francisquinho, arrebatado pelo elogio da rapariga, cresceu para ele.

– Acabou, Bazófias! Comigo não falas do Benfica. Discuto a inflação, o PIB, essas coisas da nossa vida.

– Francisquinho, desde quando sabes o que é a inflação ou o PIB? Hã? Desde quando? – agora era o cigano quem o provocava.

– Eu não sei – confessou a rapariga.

– Toda a gente sabe. É o que dá a toda a hora na televisão. A toda a hora. Uma pessoa ouve e aprende, não é...?

– Mas o que é o PIB? – insistiu o Zé.

– Eu sei o que é o PDI. Tenho os ossos feitos em cacos – admitiu Bazófias.

– O PIB é a mesma coisa, mas não se aplica aos ossos. É ao país, meu. Tá-se mesmo a ver, meu. É a doença do país – explicou Francisquinho.

– Do país? – Bazófias olhava-o, incrédulo.

– Tá-se mesmo a ver que não percebes, meu. Para ti só há Benfica e os teus ossos. Sabes quantos ossos há no país? E quantos ossos iguais aos teus?

– Isso concordo. Uma porrada deles. Toda a gente tem ossos – afirmou Zé Cigano.

– Diz-se ossos ou ossadas? – perguntou Clara com candura.

A pergunta ficou sem resposta, pois o espanto, subitamente, apoderou-se da clientela do Águias. Uma limusina negra, brilhante e imensa, acabava de entrar majestosamente no largo.

– Mas o que é aquilo? – perguntou Bazófias embasbacado.

– Já vi no cinema. É um carro com distensão muscular! – os olhos de Zé Cigano estavam arregalados de assombro.

– Cum escafandro, meu! – foi o que o Francisquinho conseguiu dizer.

E o espanto redobrou quando o enorme veículo parou frente à esplanada do café e do interior saiu Necas fardado de motorista. Cumprimentou-os rapidamente.

– Oi, pessoal!

– Necas?

– Necas!?

– Necas! – Clara aplaudiu-o e, maravilhada com a farda do namorado, gritou: – Estás lindo!

– Está visto. O Necas roubou em demasia. Oh, Necas, isto é carro a mais, pá. Não podias ter gamado uma coisa mais pequena? – Bazófias escondia a admiração por detrás do sarcasmo.

Nunca vira um carro tão portentoso. Ainda por cima, estacionado à sua porta.

– Não é gamado. Agora sou chófer!

– Motorista? Tu?

– Estou farto de não fazer nada. Continuo à espera do motor do meu Datsun e respondi a um anúncio. Precisavam de um motorista. Fui lá e contrataram-me. Já viram este cenário? – perguntou, mostrando o fato.

– Ficas bué da giro. Lindo! – repetiu Clara. E o Zé Cigano decidiu atacar a situação numa perspectiva mais interessante.

– O gajo que te contratou deve ter guito como o cacete.

– Vive num palácio. Ainda por cima sozinho.

– Vamos agarrá-lo, meu. É proibido alguém ser tão rico que compra uma baleia como esta, com quatro rodas, e não ser gamado. Vem na Constituição da República. Precisa de ser gamado! – exultou Francisquinho, mas Necas foi firme.

– Ninguém vai roubar o homem. Ainda só entrei ontem ao serviço e não quero broncas.

A determinação de Necas esfriou os ânimos e ficaram fascinados, olhando o automóvel. Por fim, Bazófias comentou:

– Desta vez o Francisquinho tem razão. É mesmo uma baleia com quatro rodas. Lá isso.

– Podemos ir dar uma volta? Só uma voltinha? – perguntou, de súbito, Clara, dirigindo-se ao automóvel. O motorista hesitou.

– Não sei...

– Claro que sabes. Vamos aproveitar. Nunca entrei numa coisa dessas – reforçou o cigano, abrindo uma das portas traseiras.

– Eh pá, se é só para experimentar sem ir para o gamanço, eu também quero – gritou Bazófias, retirando o avental que usava habitualmente. Perante tanto entusiasmo, Necas cedeu, mas com um aviso.

– Só cinco minutos – e voltando-se para Francisquinho perguntou-lhe: – Não queres experimentar?

– Nem pensar. Isso é o símbolo máximo do capitalismo selvagem e da exploração do povo. Experimentamos cinco minutos e o capitalista senta aí o cu os minutos que lhe apetecer. Convida-me para fanar essa treta.

Necas pôs o carro em movimento e os passageiros instalaram-se no enorme habitáculo. Zé Cigano deitou-se num dos bancos, cruzou as pernas e comentou:

– Bué da baril!

Espantavam-se com os equipamentos luxuosos. O telemóvel. O bar, do qual Bazófias se serviu logo, agarrando numa garrafa de uísque velho.

– Tem tudo. É um apartamento! – exclamou Clara, encantada.

– E televisão para o Bazófias ver o Benfica – riu o Zé.

– Isto é uísque como deve ser. Divino. Sinto-me rico!

Bazófias já bebia generosamente da garrafa e Zé Cigano gritou pela janela interior, que dava acesso à dianteira da limusina:

– Necas. O Bazófias está a beber o uísque do teu patrão.

– Esse gajo é um gatuno – gritou o motorista.

Bazófias encolheu os ombros, indiferente ao insulto, tornou a emborcar a garrafa e, depois de limpar a boca, confessou:

– Se eu tivesse material deste para me aquecer, não precisava da minha Almerinda.

– Não me importava de viver aqui dentro. É bué da giro! – tornou Clara, deslumbrada com o conforto da viatura, e Zé Cigano, que descobrira sacos de frutos secos e comia-os, deitado no banco, tornou a gritar:

– Isto cheira a dinheiro, Necas. Acelera. A baleia vai devagar!

Bazófias ergueu a mão liberta da garrafa, em sinal de acalmia.

– Assim é que vai bem, com calma. Que pinga, Santo Deus! Isto merece um fado.

– Só se fores tu a cantar – provocou o rapaz, e Clara ficou entusiasmada.

– É isso, Bazófias canta um fado!

Pigarreou para aclarar a voz. Bebeu novo gole de uísque e desafinou com raça fadista.

Gosto de pinga, da bela pinga

Passa à goela e dá-nos beijos na boca

Vai mais um copo, mais dois ou três

Já estou de rastos, com a cadela atada ao cinto

Venha mais um, mais dois ou três

Pois não me importo que ele seja branco ou tinto.

Houve aplausos quando acabou a tirada musical. E críticas.

– Cantas mal como o caraças – disse o cigano.

– Eu gostei – contrapôs a rapariga.

Porém, Bazófias já não os ouvia. O uísque provocara-lhe uma euforia desmedida e garantia, no seu jeito fanfarrão:

– Cá o artista pode dizê-lo, meus amigos. Eu estive na Grande Noite do Fado. Há sei lá quantos anos! Pus o Coliseu a aplaudir de pé.

– Não cantes mais dentro do carro. Deixas tudo cheio de cuspo – avisou-o Necas.

– Eu...? Eu...? – Bazófias não queria acreditar na reprimenda.

Porém, o motorista reforçou:

– Sim, tu. E acho que já estás bêbado.

– É mentira. Isso é mentira!

Durante a altercação com o fadista, Necas distraiu-se, deixando a limusina descair para a direita abalroando uma viatura estacionada. Rapidamente deu uma guinada para o meio da estrada. No interior da limusina, os passageiros desequilibraram-se, caíram, e o Zé, pressentindo problemas, desatou aos gritos.

– Foge, Necas, foge! Ninguém vai acreditar que viemos experimentar o carro e a bófia leva-nos.

– É isso. Foge! – gritou também Bazófias, alarmado. – Vai dar merda. Isto vai dar merda.

– Raios! Está um tipo a tirar a matrícula do carro! – desabafou Necas, furioso, enquanto espreitava pelo retrovisor, e acelerou.

Zé Cigano olhou pelo vidro. Estava visivelmente assustado. De facto, um homem observava a limusina a afastar-se e escrevia num papel.

– Não vem ninguém atrás – informou ele –, mas o pintas tirou a matrícula.

– Eu sabia. Isto só podia dar confusão. Eu sabia! – começou Bazófias a lamentar-se, mas sem largar a garrafa.

– Sabias, como? – perguntou Clara.

– Com vocês é tudo uma confusão. Por mais que um homem se esforce para alinhar, a coisa dá sempre esterco.

Necas não suportou a lamúria. Estava demasiado irritado com o percalço. Travou bruscamente o veículo e ordenou, vermelho de cólera:

– Põe-te na rua!

– Eu? Mas estamos longe e... – Bazófias acalmou repentinamente, surpreendido com uma ordem tão ríspida. O outro berrou novamente:

– Rua!!!

– Não ouviste? Rua! – repetiu Zé Cigano enquanto o empurrava com os pés para fora do carro.

Decidiu aceitar a ordem para evitar mais confusão, porém não largou a garrafa de uísque.

– Pronto, pronto. Acabou-se a discussão.

O automóvel arrancou rijo e Bazófias, visivelmente entristecido, ficou a vê-lo afastar-se. Só deu um salto de macaco quando um outro carro apitou com impaciência perto de si. Olhou em volta, mas não conseguia descortinar onde estava. Durante o passeio concentrara-se mais na garrafa do que na paisagem. Perguntou a um transeunte:

– Por acaso, sabe onde estamos?

O outro olhou-o, desconfiado, reparando na garrafa que Bazófias empunhava e na roupa descuidada. Recuou antes de responder.

– Eu sei. Está perdido?

– Confesso que me sinto um bocado desorientado – balbuciou, esbugalhando os olhos, pois parecia que a rua se estava a inclinar perigosamente para a esquerda. O interlocutor já se pusera em guarda, preparado para reagir ao assalto, e afirmou com agressividade:

– Estamos nas Laranjeiras. Se for por aqui abaixo, vai ter ao Jardim Zoológico. Fugiu de lá?

Ficou tão desiludido que nem percebeu a ironia. O homem afastou-se rapidamente e Bazófias, sem forças nas pernas, encostou-se à parede. O uísque estava a produzir efeito com muita rapidez. Todavia, a informação permitiu-lhe fazer dois juízos claros: que não era para baixo que devia seguir, mas sim para cima, e que, por estar sem dinheiro, tinha de palmilhar mais ou menos oito quilómetros para regressar ao Águias. Olhou a garrafa. Devorara mais de metade do conteúdo e avisou-a solenemente:

– Tens de me arranjar forças para dar corda aos sapatos. Temos de fazer companhia um ao outro por mais de uma hora – e começou a andar, trôpego, na direcção do Colégio Militar.

Se tinha pela frente uma tarefa árdua, os seus amigos não estavam mais confortáveis. Necas apressara-se a estacionar a limusina na velha garagem, ao lado do Datsun, e correu a analisar os danos sofridos no embate. Para seu espanto, não havia chapa amolgada, no entanto, o pára-choques da imponente carripana tinha desaparecido. Ficou transtornado.

– Sou um estúpido, um estúpido! Como fui atrás da vossa conversa!? O pára-choques soltou-se e agora onde é que arranjo um? Onde? Raios de vida! Raios!

– Acalma-te, meu querido – pediu a rapariga, consternada com a aflição dele.

– Como, Clara? Como posso acalmar-me? Tenho emprego há dois dias, o patrão mandou-me lavar o carro, vim mostrá-lo e agora é isto. Ainda por cima com o javardo do Bazófias a cantar o fado vadio. Dou em doido! Não há pára-choques, não há. Vocês não o viram cair? – perguntou.

– Não – admitiu Clara.

– Quando bateste no outro carro eu desequilibrei-me e fiquei no fundo da limusina sem ver nada – explicou Zé Cigano.

– E agora, Santa Maria? – lamentou-se Necas.

Durante algum tempo houve um silêncio constrangido entre os três amigos. Nem mesmo num ferro-velho se consegue arranjar com facilidade aquela peça para um automóvel de tamanhas dimensões. Por fim, Zé Cigano quebrou o silêncio.

– Só vejo uma saída. O teu patrão tem os teus documentos?

– Eu ia levá-los amanhã para fazer o contrato.

– Não levas os documentos, ficamos com o carro e assaltamos-lhe a casa.

– Tás doido, Zé?!

– Estou? Então, inventa um pára-choques, a ver se és capaz. Chegas lá com a carripana nesta figura e estás despedido. Acabou-se o carro, acabou-se a farda, acabou-se o luxo. Gamamos o homem e vais ver que tudo é mais fácil. Além de que tu não és motorista. És um gatuno e, por acaso, um bom gatuno!

Zé Cigano não suportava aquele Necas motorista, fardado, cheio de delicadeza e coração mole. Saiu da garagem convicto da justeza da proposta que apresentara ao amigo. Além de que se tinham passado mais de duas semanas desde o último serviço e a procura de pó caíra. Talvez com excepção de Diana e de Batman, estavam michos e o dono da limusina deveria viver empanturrado de notas. Aliás, aquelas férias forçadas fizeram-no pensar nos desempregados que agora enchiam o largo e deambulavam pelas ruas, almas perdidas sem caminho para escolher, sobrevivendo de biscastes e outros negócios de ocasião. Fugiam à frente da fome e o cigano teria esse destino. Saudou Tosta Mista, que, junto ao lavadouro do bairro, passava panfletos a três viciados. Estava com sorte. Vender três doses de uma só vez significava três euros na algibeira sem grande trabalho. Afastou-se. Quando algum deles estava a vender, era obrigação dos outros não atrapalharem. Além de que contar as suas preocupações ao negro não adiantava. Continuaria a escutar música pelos headphones sem ligar puto aos projectos do Zé. Necas falara pouco, mas descaíra-se com Sintra. Conhecia a zona e recordava-se das muitas casas apalaçadas junto à estrada que cruzava a serra. Se fosse por aí o casarão do dono da limusina, até seria fácil, longe de olhares curiosos. Confortou-se quando avistou Francisquinho. Tinha terminado a venda e, na companhia de Manuela, dirigia-se para o largo. Chamou-os e em poucas palavras explicou-lhe porque estava bera com o Necas. O rapaz foi entusiasticamente solidário.

– Isso é uma grande ideia, meu! O Necas não aceitou? Tá passado, meu. É o que te digo. Tá passado, meu...!

– E o Bazófias? – quis saber a Manuela.

– Vem a pé...

– Coitado do Bazófias – apiedou-se a rapariga.

– Gamou a garrafa do uísque que estava no carro – queixou-se o Zé.

– E fez muito bem. Roubar um capitalista é um acto revolucionário. O Bazófias está a fazer a revolução, meu – defendeu-o Francisquinho.

– Eu acho que ele está a embebedar-se, mas enfim.

O outro não aceitou tal conformismo e defendeu-o com maior insistência.

– É assim mesmo, os ricos que paguem a crise! O Necas tem de alinhar. Tem mesmo. Assaltamos a casa e trazemos o produto da exploração dos operários. Abaixo os capitalistas! Viva a revolução!

Manuela, agastada com aquela obsessão do Francisquinho, protestou:

– Isso é um disparate. Nós não somos revolucionários. Não somos nada. Nem os revolucionários querem saber de nós.

– Fala por ti, fala por ti, mas, se visses cinema, sabias que em todas as revoluções os ricos são assaltados. Podemos ser ladrões revolucionários – sugeriu, procurando apoios, no entanto, Zé Cigano começou a ficar exasperado com os saltos e gritos do Francisquinho.

– Tu não sabes falar sem estares aos pulos e a dares aos braços? Já estou com a cabeça à roda com tanto salto revolucionário.

– Não interessa! Importante é o Necas dizer onde mora o patrão. Vamos todos naquela baleia com rodas. Até a Almerinda vai roubar com a gente.

Manuela não conteve uma gargalhada. Não conseguia imaginar a mulher do Bazófias, de saltos altos e calças pretas, metida num assalto. Parecia-lhe uma boneca de porcelana sempre em equilíbrio instável. Foi então que escutaram uma cantoria desafinada que provinha da rua oposta, a qual dava acesso ao largo. Chamou-lhes ainda mais a atenção o facto de verem Batman a dirigir-se a quem assim cantava. E surgiu Bazófias. Numa das mãos tinha a garrafa vazia e, na outra, vinham pendurados os sapatos. Caminhava descalço, cambaleando, eufórico e cantava.

– Os meus pés são trambolhos, dois trambolhos. Os meus pés são dois trambolhos...

Batman deu-lhe a mão, aparando-o e, deveras surpreendido, exclamou:

– Bazófias. Olha o teu estado?!

Respondeu aos gritos e o espalhafato foi tanto que toda a gente que passava se voltou para ele. Uns divertidos, outros espantados.

– Viva a República...! Almerinda! Ajuda o teu homem, que está a ser atacado por um maricas. Almerinda...!

– Fala baixo, pá. Parece que te estão a violar e não sou nenhum maricas. Sou eu, o Batman, teu antigo companheiro de prisão.

– Pior do que violado. Olha! – e mostrava a garrafa vazia – era uma pinga extraordinária. Não tem nada a ver com nada. Viva a República!

Do Águias saiu Almerinda, correndo sobre os seus sapatos altos, uma corrida picadinha, mãos cruzadas de aflição. Batman entregou-lhe a prenda:

– Vai deitá-lo que esta cadela precisa de dormir para se ir embora.

– Ernestinho, que falta de juízo!

– Almerinda, meu anjo-da-guarda...

– Estás bêbado. É uma vergonha – censurou a rapariga.

– Não estou nada. O problema são estes dois trambolhos que não me cabem nos sapatos.

– O problema é a tua cabeça. Porque não vieste no carro com os outros?

– Fui saneado. Sanearam-me por causa de cantar o fado...Viva o fado!

– Vais deitar-te e depois escaldar os pezinhos. E conduziu-o para o café perante a multidão que assistia ao caminhar titubeante do desgraçado. Este parou e olhou em volta, empertigando-se:

– Deitar-me? E deixo-te sozinha no meio desses lobos maus? Almerindinha, tu ainda não percebeste que és o meu Capuchinho Vermelho e que os lobos maus querem é papar-te?

– Só sou o Capuchinho Vermelho quando me apetece e tu cala-te e anda, meu sem-vergonha.

– Tens razão, Capuchinho. Sou mesmo um infeliz. Andei não sei quantos quilómetros à pata, a garrafa está no fim e tenho os pés transformados em trambolhos. Sou um trambolho. Não passo de um trambolho. Morte aos trambolhos! Viva o Capuchinho Vermelho!

Com a ajuda de dois clientes, Almerinda conseguiu que ele entrasse no café. O velho Jeremias bateu com a ponta da bengala no chão quando Bazófias passou por ele, e saudou-o:

– Parabéns, pá. É preciso estar de boa saúde para apanhar uma carraspana desse tamanho e ficar de pé.

Zé Cigano mordeu os lábios e baixou a cabeça. O estado em que viu chegar o burlão deixou-o deprimido. Talvez tivessem ido longe de mais, abandonando-o a tão grande distância do Estrela Polar. Apesar de ser rezingão e intrometido, Bazófias era um daqueles amigos em quem se podia confiar numa aflição. Sabia por experiência própria. Quando o pai fora preso e ele ficara perdido e assustado, querendo esconder-se da polícia e da assistência social, que pretendiam lavá-lo dali, fora ele quem o fora buscar, escondendo-o nas traseiras do café. De vez em quando, recordava-se desse dia. O pai a ser espancado pelos polícias ao recusar-se a aceitar as algemas, e a mulher grande e gorda, que gritava, procurando pelo menino. E Zé Cigano, escondido debaixo da cama, engolia as lágrimas e o medo até que alguém respondeu à mulher-gigante:

– Deve ter fugido!

E ela saiu como se fosse à caça de uma fera. O Zé tinha oito anos. Os homens que levaram o pai fecharam a porta com estrondo e o rapaz desconfiou do silêncio. Imaginava as manápulas da assistente social, abertas como se fossem torniquetes à espera de que ele se mexesse para o agarrarem pelo pescoço e o levarem para a Protecção de Menores. Respirava lentamente, para não revelar nem um único sinal da sua presença, de ouvidos atentos a todos os ruídos da casa. Ficou imóvel tantas horas que achava que foram dias, até sentir novo sobressalto no meio da escuridão. Ouviu passos pausados e o coração acelerou. Alguém chamava por ele em voz baixa.

– Zé! Zé! – era o Bazófias.

O tom da voz não era rude e o Zé menino confiou. Pôs a cabeça de fora e disse:

– Estou aqui.

Bazófias agachou-se a seu lado e fez-lhe uma festa na cabeça. Sorriu, amistoso.

– Gostas de sandes de torresmos?

– Gosto.

– Vem. Ficas na minha casa enquanto essa chibaria da assistência social quiser ganfar-te. Eu arranjo-te uma sandes de torresmos.

Devia-lhe a liberdade. Jurou a si próprio que, quando lhe passasse a bebedeira, iria pedir-lhe desculpa por ter deixado o Necas expulsá-lo da limusina. Francisquinho interrompeu-lhe os pensamentos.

– Então como é, meu? Vamos convencer o Necas a fazer o patrão?

Os dois amigos dirigiram-se à velha garagem. Zé Cigano voltou a colocar o problema e Necas tornou a reagir mal.

– Não sou capaz. O homem foi um porreiraço comigo. Deu-me trabalho e agora vou gamá-lo?

– Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão – sentenciou judiciosamente Francisquinho.

– Quem te disse que o homem é ladrão?

– E não é, meu? Com um carro deste tamanhão? Tem de ser, meu. Não rouba à bruta, mas rouba à fina, meu. Tem de ser ladrão.

– Francisquinho, o homem de quem estás a falar tem quase noventa anos e anda de cadeiras de rodas. Até para mijar tem de ir ao colo de um empregado. Não tem ninguém e é um infeliz.

O quadro dramático que Necas desenhou não foi suficientemente forte para convencer o outro. Até reforçou os argumentos.

– Desculpa lá, meu, mas um gajo que tem um tipo para o levar ao colo para ir mijar, não é rico. É riquíssimo! Eu farto-me de mijar e nunca ninguém me levou ao colo. Tem paciência, meu.

O cigano não resistiu ao sarcasmo depois desta tirada do Francisquinho e replicou:

– Porque és um revolucionário e um revolucionário não se mija pelas pernas abaixo.

– Hoje estás a embirrar comigo, não estás? Já alguém te levou ao colo para mijar? Já? – Francisquinho não gostou da ironia do outro.

Clara ficava em cuidados quando a picardia entre os rapazes começava a ser mais ácida. Tentou deitar água na fervura.

– Quando estou apertada, faço em qualquer lugar. É bué de aflitivo.

Aquela necessidade de Clara de apaziguar uma discussão mais rija sempre irritara Manuela. Foi com secura que retomou à conversa essencial e que os preocupava.

– Esta treta não vai a lado nenhum. Quando começam a discutir fico sem paciência. O problema é outro: roubamos ou não roubamos o velho?

– Tenho pena dele, Manuela – respondeu o Necas.

– Olha que ele não deve ter pena de ti. Saíste há tantas horas que já deve ter participado à polícia o furto desta coisa. Como se chama?

– Limusina...

– A Manuela tem razão – reforçou Zé, e repetiu: – Qua-se de certeza que telefonou.

Francisquinho estava danado com a piedade cristã de Necas e quis ser cruel no seu juízo.

– Não telefonou, meu. Quem tem um empregado para o pôr a mijar, também tem outro para telefonar, meu. São assim, os ricos, meu. Mas temos pena, meu. O homem até é bacano, até é velhinho. Coitadinho...

– Pois é. Coitadinho! – contristou-se Clara, sem perceber o cinismo do rapaz, mas ele não desarmou:

– Quantos gajos bacanos já roubámos? Hã? Quantos? Mil? Dois mil? Isto é fita, meu. Tudo fita. Bacano é o Bazófias e vocês puseram-no a dar corda aos sapatos até aqui ao bairro. Esse, sim, é corno e bacano. Esse é que é coitadinho...!

– Afinal como vai ser? – perguntou Manuela, impaciente.

Necas parecia um gamo rodeado de cães da pradaria, rosnando ameaçadoramente.

– Vocês acham que ele participou à polícia?

– Duvidas? – reagiu Zé Cigano. – Tens a chibaria atrás de ti, mano. Vais de cana por teres gamado a porra da limusina. Tão certo como eu chamar-me Zé e ser cigano.

Necas deu-se por vencido. O desaparecimento do pára-choques deitava por terra as suas expectativas de ser motorista. O patrão não iria compreender que, ao segundo dia de trabalho, ainda sem uma relação de confiança, se apresentasse com a limusina sem pára-choques. O despedimento era certo e justo. Por outro lado, já tinham passado demasiadas horas para justificar a lavagem do carro. Era claro que não havia alternativa. Uma força invisível empurrava-o para os braços da quadrilha e para cumprir um destino que inexoravelmente os colocava dentro de uma ordem que a maioria desconhecia. Talvez fosse o único do grupo que sonhava deixar aquela vida de bandido, mas, por cada tentativa para seguir o outro trilho, surgia um imprevisto, qualquer contrariedade, que lhe impunha o regresso àquele sombrio destino. Estava decidido. Iriam gamar o velho. Francisquinho pisou o cigarro com o pé e avisou solenemente.

– Estamos combinados. Vou pôr o Batman no circuito.

Não chegou a sair. Uma outra surpresa aguardava a equipa de gatunos. Diana regressava de férias e foi procurá-los. Foi uma algazarra e confusão de beijos e abraços efusivos. Embora só fosse oito ou nove anos mais velha do que a maioria deles, haviam criado laços afectivos tão intensos que pareciam um bando de pintainhos em torno dela. Até Tosta Mista, sempre esquivo, apareceu de olhar brilhante, sorrindo, à porta da garagem com incontida satisfação. O abraço foi emotivo e Diana não conseguia conter a alegria pelo reencontro.

– Tinha saudades vossas.

– Ainda bem que chegaste! – rejubilou Francisquinho. – Temos um serviço do catano para fazer. Uma coisa do camano. Do escafandro, mesmo.

– O que é? – perguntou, recuperando a sua proverbial postura fria e ponderada.

O rapaz contou minuciosamente os acontecimentos daquele dia, desde a pomposa chegada de Necas, na limusina, até à entrada imperial de Bazófias no Águias, descalço, e sob os cuidados de Almerinda, assim como a decisão de gamar o efémero patrão. Diana ficou pensativa. Organizava a informação que lhe fora transmitida, enquanto os malfeitores aguardavam em silêncio. Por fim, deu as indicações.

– O Necas não vai convosco.

– É impossível. Ele é o único que conhece a casa.

– Explica como podem entrar e sair. Para já, vai devolver a limusina, pedir desculpa e despedir-se.

– Mas então o velho não vai despedi-lo? – Clara não entendia o raciocínio.

– O Necas não permite. Toma a dianteira. É preciso que não o liguem a vocês. Deixem passar uns dias e logo fazem o serviço.

Era bem pensado. O motorista passaria por um jovem consciencioso, que não perdoava a si próprio uma negligência tão grande como a perda do pára-choques. Deixava a ideia de uma pessoa decente e, já agora, faria um reconhecimento da segurança do palacete para não haver risco em excesso. Mais tarde, Batman comandaria a expedição.

Diana deixou-os e um sentimento de conforto espalhou-se pela quadrilha. Com ela a dirigir as operações pressentiam que eram invencíveis, pois tornava-se tudo tão simples que não poderia correr mal. No entanto, esta sensação de segurança não reproduzia o estado de espírito da mulher. Desde que o tal chefe Ravara entrara em campo para investigar a morte de Gonçalves que estava intranquila. Pressentia que uma grande ameaça pairava sobre as suas vidas. Partira com essa inquietação, e agora, que voltara, tal sensação persistia, sem conseguir libertar-se dela. Precisava de saber quem era aquele homem tão seguro e tão sereno, que tanto a perturbava. A bebedeira de Bazófias obrigava-a a alterar as diligências que trazia na cabeça. Marcou encontro com Oliveira numa esplanada perto do Estádio da Luz.

– Esse Ravara é má rês. Põe-te a pau com ele, Diana. Chegou há pouco tempo dos Açores e foi chefiar o crime organizado. Perdeu a mulher e o filho num acidente de automóvel e tomou a PJ por amante – informou-a o velho polícia.

– Procura saber mais coisas sobre ele.

– Tem de ser com cautela, Diana. O gajo é mais desconfiado do que um rato – Oliveira estava visivelmente incomodado.

– Os ratos fogem, não nos atacam – gracejou ela enquanto discretamente, por baixo da mesa, lhe passava um maço de notas, e segredou: – Esta massita vai dar-te alento. É feio ver um polícia com medo. Vai. Fico à espera de notícias.

O incómodo de Oliveira, raposa batida e velhaca, consolidou os seus temores. Precisava de saber tudo sobre esse chefe Ravara. No dia seguinte, procurou o Bazófias. Estava sentado na esplanada, olhando para o chão, e ela ouvi-o dizer:

– Era capaz de jurar que ontem estes sapatos não me serviam.

Diana fez-se anunciar com uma risada e deixou-se cair numa cadeira ao lado dele.

– Bazófias, agora falas sozinho?

– Diana. Não me digas nada. Ontem apanhei uma cadela que me partiu todo. Estou com uma ressaca que até a luz do Sol me provoca tonturas.

– E o que tem a copofonia a ver com os sapatos? Falavas com eles.

– Não sei. Acho que inchei todo. Ontem, os calcantes não me cabiam nos sapatos – olhou-a de soslaio, maldisposto, e censurou-a:

– Os teus rapazinhos foram os culpados. Puseram-me fora da limusina e tive de vir a pé. Acho eu que vim a pé – concluiu, cheio de dúvidas.

– Não te fazem mais patifarias porque a limusina vai ser entregue. Acabaram-se os passeios. Já ouviste falar de um chefe da bófia chamado Ravara?

– Ravara, Ravara. Esse nome diz-me qualquer coisa.

A ressaca ainda não deixava Bazófia pensar em condições.

– Conhece-lo...? – insistiu Diana.

– Não, acho que não, mas o nome não me é estranho. Espera. Não foi esse Ravara que, aqui há uns anos, perdeu a mulher e o filho num acidente de automóvel?

– Julgo que sim.

– É esse mesmo. Ravara! Veio nos jornais. Sei que não é de Lisboa. Trabalhava lá em cima. Ou em Coimbra, ou no Porto, ou em Braga. Não sei. Porquê? Anda a chatear-te?

– Não. Ouvi falar dele. Era só curiosidade. Vou indo.

– Não tomas nada?

– Tenho que fazer. Depois passo por cá. Beijinhos!

Diana afastou-se, mas ainda o ouviu, intrigado, tal como no início da curta conversa, comentar:

– Esta é boa! Se os sapatos hoje me servem porque não me serviam ontem?

O tempo estava a mudar. O vento surgia em esticões breves e transportava, do lado de Sintra, nuvens grandes, negras, em cachões, que prometiam abrir-se em chuva a qualquer momento.

Não eram más notícias para o Estrela Polar. A chuva lavava a poeira das ruas e caminhos, desentupia as sarjetas, lavava os escoadouros dos esgotos a céu aberto e, por algum tempo, afastava os cheiros fétidos que habitavam na atmosfera do lugar. Havia menos gente nas ruas do que o habitual e pelos telhados lobrigavam-se dois ou três homens estendendo oleados, tapando buracos de telhas quebradas pela degradação, evitando que a chuva pudesse fazer mais estragos nas casas encardidas pelo tempo. Também a quadrilha se refugiara numa das divisões mais abrigadas da casa abandonada, escutando as indicações de Necas.

– Não tem nada que enganar. Entra-se no palacete, é logo o corredor, à direita, e o quarto é a última porta, à esquerda.

– E se as jóias do explorador do povo estão noutro quarto? – quis saber Francisquinho.

– Têm de procurar. Vai ser complicado porque são muitas divisões. Mas estão, de certeza, no quarto. É onde existe segurança.

– Fazemos a coisa de noite ou de dia? – perguntou Batman.

– De dia. Os alarmes são ligados quando chega a noite.

– Tem de se aproveitar um momento em que o teu patrão saia – sugeriu Manuela.

– Sai pouco.

Zé Cigano não gostou da informação.

– Se é para ficarmos de vigilância já sei que me calha gramar horas escondido à espera de que o velho saia da casa – explicitou a inquietação que também atemorizava Francisquinho. Ficar de vigia era função que lhe rebentava os nervos.

– Querem saber a minha opinião? Querem? Isto não é um assalto, é um acto revolucionário contra o imperialismo. Vamos armados, como se fôssemos para a guerra e...

– Armas, não! – atalhou Batman. – A Diana não quer. Temos de pensar noutra coisa. Já te despediste?

– Não tive coragem. Deixei a limusina com um papel a pedir desculpa e vim-me embora – respondeu Necas.

– Por aí, não há problema. O homem vai pensar que te sentiste envergonhado.

– Uma coisa é certa. Vá para onde for, esteja onde estiver, os dois seguranças nunca o largam. Mais próximos ou mais afastados andam sempre por ali. Um deles conduz a cadeira de rodas e o outro vigia – explicou o Necas.

Este era o problema do serviço. Tornava quase impossível qualquer hipótese de êxito sem recurso a armas que, pelo menos, pusessem em sentido os dois guardas pessoais do homem. Mesmo uma aproximação silenciosa em direcção à porta das traseiras não resultaria e um arrombamento faria sempre barulho, que despertaria a atenção dos dois mastins.

De súbito, Zé Cigano puxou o esboço da planta do palacete que o Necas tinha feito e perguntou:

– O portão do jardim abre directamente para a estrada?

Necas acenou afirmativamente.

– E onde termina a estrada?

– A outra, mais larga vai para a vila. A primeira segue sempre pela floresta e é estreita. Não dá para grandes velocidades.

– A que distância fica o palacete desse cruzamento?

– Não sei. Talvez cinco, seis quilómetros.

Voltou a fixar-se no esboço, pensativo, enquanto o restante grupo discutia em grande confusão as dificuldades do assalto. Sem armas, num sítio ermo, uma casa sob protecção de dois gorilas era um quebra-cabeças. Procurar dominar os dois em simultâneo à força de socos e de braços daria um estrilho dos diabos. Como já se pensara, arrombar outra porta armaria ainda mais alarido até porque poria em alerta as empregadas que tratavam da casa. A única solução passava pela surpresa e rapidez. Era aqui que residia o enigma. Zé Cigano voltou a perguntar:

– O jardim é apenas relvado com flores?

– Perto da residência. Mas é enorme e está cercado por um arvoredo muito denso, o qual não permite que o palacete seja visto da estrada, embora, quando o patrão está, o portão fique aberto.

Zé Cigano sorriu. Acabara de descobrir a solução daquele problema.

Batman olhou-o, desconfiado:

– Estás a rir-te do quê?

– É uma ideia maluca. Tão maluca que vai dar resultado. Só precisamos de gamar uma bicicleta para sacarmos o tesouro do velho. Deixem-me pensar e vão ver a caldeirada que eu vou arranjar.


11
QUANDO O TRABALHO É COISA SÉRIA

Zé Cigano entrou no jardim do palacete. Gamara a bicicleta junto ao Centro Comercial Colombo, enfiara-a no jipe conduzido por Batman e seguiram para Sintra. Manuela e Tosta Mista acompanharam-nos. Passaram a vila e começaram a subir a serra, conforme as indicações de Necas. A estrada esgueirava-se entre pinheiros e carvalhos, ladeada por muros feitos de pedras cobertas de musgo. Encontraram a bifurcação e tomaram pelo novo caminho, ainda mais ingreme e estreito. Embora não fosse alcatroado, estava bem cuidado, coisa que agradou ao cigano. As boas condições do piso facilitavam o plano que ele tinha engendrado e o restante grupo aprovado. Junto ao palacete, os muros de pedra eram mais elevados e confirmaram outra indicação de Necas. O portão de acesso estava aberto, sinal de que o objectivo deles se encontrava em casa.

Batman conseguiu estacionar numa pequena clareira quase escondida pelo arvoredo e erva alta. Quem passasse por ali, precisava de ir com atenção redobrada para descortinar o jipe camuflado pela vegetação. O grupo dirigiu-se ao muro lateral do jardim, com Zé Cigano levando a bicicleta pela mão. Era fácil de escalar. As pedras sobrepostas formavam buracos e revelavam saliências que eram seguros pontos de apoio. Tosta Mista subiu em poucos segundos, espreitou o espaço com cautela e sussurrou:

– Mal se vê a casa. É só arvoredo. Venham. Dá para nos escondermos à vontade.

Saltou para o jardim. Manuela começou a escalada e Batman foi na sua peugada. Rapidamente chegaram ao cimo, Batman estendeu o polegar na direcção de Zé Cigano e ocultaram-se na vegetação. Este montou-se na bicicleta e deu várias pedaladas que ajudaram a máquina a ganhar velocidade. Teve de meter travões, e quase caiu ao derrapar na curva antes de entrar no jardim. Era bonito. Ladeado pelo denso arvoredo, onde os amigos estavam escondidos a observar os seus passos. Albergava canteiros coloridos com rosas de um vermelho intenso e margaridas com a alvura da Lua. Entre elas abria-se uma alameda debruada por bucho bem tratado, verde-pálido, que desembocava em frente ao amplo espaço onde se encontrava a monumental residência do ex-patrão de Necas. Viu-o no caramanchão localizado à esquerda e saltou da bicicleta. Era efectivamente muito velho. Parecia um boneco mirrado, cravejado de rugas, e as raras cãs brancas acentuavam-lhe a palidez. Zé Cigano cumprimentou com um sorriso gentil, mas o velho, embevecido com a xícara de leite, continuou de cabeça baixa, sentado na cadeira de rodas. Estava ladeado por dois gigantes engravatados, com ar ameaçador. Um deles, colocou-se rapidamente entre o rapaz e o velho, perguntando com rudeza:

– Quem te autorizou a entrar aqui? Põe-te lá fora imediatamente.

Zé Cigano compôs a sua melhor representação de cordeiro e suplicou, com doce humildade.

– Perdoe-me. Entrei, porque estou perdido e aflito. Preciso da vossa ajuda.

A voz era um balido e o homenzarrão baixou a guarda, interessado na aflição do rapaz.

– O que te aconteceu?

– Venho a pedalar desde a vila para me encontrar com os meus amigos que estão no Castelo dos Mouros. Vamos descer a serra de bicicleta até Colares e acho que me perdi. Estou cansado e sem saber para onde ir.

Os dois seguranças entreolharam-se e o que estava mais perto do velhote encolheu os ombros, com condescendência. O outro começou então a explicar os caminhos que ele deveria tomar até corrigir a direcção e chegar ao Castelo dos Mouros. Zé afirmava, com acenos de cabeça, que compreendia a explicação. Quando o homem terminou a dissertação sobre estradas, veredas e atalhos da fabulosa floresta, o rapaz reagiu, contente.

– Já sei onde me perdi. Obrigado, meu senhor. Sou um desatento. Posso pedir-lhe um copo de água, antes de partir?

Dirigiu-se ao jarro de água colocado sobre a mesa, debaixo do caramanchão, e foi o momento decisivo. Deu um salto, ficou agarrado à cadeira de rodas e, de seguida, desatou a correr, empurrando o velho pela alameda em direcção ao portão. A surpresa que provocou foi tanta que os dois seguranças perderam tempo a reagir. Já lhes ganhara vinte metros de distância. Ao entrarem na larga avenida ladeada de flores e bucho um deles escorregou no saibro e desequilibrou-se, fazendo com que aquele que lhe vinha no encalço tropeçasse nele e caísse. Quando recomeçaram a perseguição, Zé Cigano ganhara trinta metros e a cadeira de rodas fez a curva de acesso à estrada como um bólide disparado para a meta. O velhote gemia de medo, as rodas da cadeira guinchavam, os seguranças ao longe gritavam e Zé Cigano, embalado na descida, voava. Foi então que Batman ordenou:

– Vamos. É agora.

Saíram do arvoredo e correram na direcção do palacete. As portas estavam abertas, e Batman, Tosta Mista e Manuela voaram em direcção às divisões da casa onde Necas garantira que estavam os tesouros. Tinham de ser rápidos antes que os seguranças regressassem, capazes de matar, ou outro empregado desse o alerta. Batman puxou do pé-de-cabra que levava no cinto e começou a arrombar as gavetas do escritório do velho sem cuidar de saber o que continham. Tosta Mista e Manuela seguiam-no, fazendo as buscas. Quanto a Zé Cigano e, com grande surpresa sua, a distância em relação aos perseguidores aumentava. A cadeira de rodas puxava-o vertiginosamente pela descida e era com dificuldade em controlar tamanha aceleração que atacava as curvas apertadas do caminho. As pernas corriam mais velozes do que a sua vontade. No palacete, os amigos desesperavam. As gavetas ofereciam-se vazias ou com materiais sem merecimento para serem roubados. Cada vez que Tosta Mista ou Manuela falavam era um desalento.

– Nada.

– Esta também não tem nada.

– Vazia.

– Nada.

Foi em desespero que passaram ao quarto do velho e, logo ao entrar, Manuela viu um pequeno baú debaixo da enorme cama de pés altos.

– Olhem ali.

Tosta Mista mergulhou e empurrou a caixa. Não conseguiu movê-la. Ergueu-se, empurrou a cama e o baú ficou a descoberto.

Estava fechado a cadeado, todavia o pé-de-cabra de Batman era mágico. Aprendera o golpe certo depois de centenas de golpes. Ouviu-se um estalido, o cadeado voou e o burro abriu as entranhas, mostrando a chausa. Eram lingotes de ouro!

– Barras de ouro – Manuela levou as mãos à cabeça. – Nunca vira coisa igual.

Tosta Mista pegou num deles e teve de o segurar com as duas mãos.

– É muito pesado. Que fazemos? – e olhou para Batman.

– Levamos dois cada um.

– Mas a caixa está cheia – reclamou Manuela.

– Que importa isso, se formos presos? Cada um deles vale uma fortuna. Vamos embora.

Cada um pegou em dois lingotes e fugiram. A rapariga percebeu, quando entrava na alameda, que Batman tinha razão. O peso das barras de ouro fê-la ficar para trás na corrida em direcção ao jipe. Porém, estavam satisfeitos. Não havia sinal dos seguranças, nem de outro pessoal. Escaparam-se pelo portão, trôpegos com a sobrecarga de ouro e, agora, bastava entrar no carro e ir buscar o Zé, caso não tivesse sido apanhado.

Não foi. Já estava bem longe do palacete quando a estrada começou a subir ligeiramente e, de súbito, percebeu o enorme peso que lhe prendia as pernas cansadas. Já não era a cadeira de rodas que o acelerava, era ele que necessitava de mais esforço para a empurrar. E o velhote adormecera ou desmaiara durante a louca corrida. A cabeça alva pendia sobre o ombro e abanava, perdida, a cada solavanco. Pior ainda era a ameaça que ouvia atrás de si. Os seguranças ganhavam terreno, aproximavam-se rapidamente.

Esforçou-se para tentar fazer o ponto da situação. Estaria a cerca de três quilómetros da residência do ex-patrão do Necas e os seguranças, ao regressarem, teriam de empurrar a cadeira de rodas sempre a subir. Levariam, pelo menos, quinze minutos. Chegava. Era o tempo suficiente para os amigos resolverem o serviço.

Olhou para trás e assustou-se. Os seus perseguidores estavam a cerca de dez metros dele e da cadeira de rodas. Vinham esbaforidos, mas furiosos, e fez o número que imaginara, com uma breve prece para que tivesse razão. Largou a cadeira mecânica e desatou a correr com raiva. Era o momento decisivo, pois a energia de que dispunha não bastaria para escapar. Por alguns segundos ainda julgou ouvir passadas velozes atrás de si, mas rapidamente compreendeu que era o barulho dos seus próprios passos e arriscou olhar para trás. Soltou uma gargalhada, que lhe saiu como um soluço, e abrandou – os dois homens rodeavam o ancião, dobrados sobre ele, ofegantes mas aliviados. Tinham cumprido a sua missão, resgatando o seu patrão, e Zé Cigano continuou, agora somente em passo acelerado, dirigindo-se à bifurcação onde combinara o reencontro com os companheiros. Quem o visse, julgaria que o rapaz acabara de sair da água, tal era a transpiração que o organismo lhe exigira para o arrefecer.

De repente, começou a escutar o ruído abafado de um motor. À cautela saiu da estrada e escondeu-se entre o arvoredo. O barulho tornou-se mais nítido e Zé, por entre a folhagem espessa, tentou descobrir que viatura seria. Era o jipe de Batman e o rapaz abandonou o esconderijo. Os outros chegavam perto de si quando o extremo cansaço ameaçava o desmaio. A cabeça rodopiava de tonturas quando o carro parou, e uma mão amiga agarrou-o e ajudou a subir.

Ficara com a vaga ideia de que Manuela sorria para ele e contava algo que a fazia gesticular com entusiasmo. Pouco lhe importava. A sensação de conforto por estar sentado era tal que adormeceu ou desmaiou. Nenhum deles sabia explicar. O resultado do plano do cigano fora de tal modo extraordinário que merecia descansar em paz. Vivo, desmaiado ou mesmo morto. Os heróis devem merecer todo o respeito.

Se Diana pudesse adivinhar as consequências do serviço que aqueles quatro membros do seu bando acabavam de realizar talvez não estivesse tão preocupada com Rodolfo, um intruja que há seis meses lhe ficara com quase um quilo de ouro de um serviço feito por ela, Necas e Francisquinho, numa ourivesaria da Baixa. Que sim, estava praticamente vendido, no dia seguinte entregar-lhes-ia o dinheiro, o atraso devia-se ao facto de o interessado ter pedido mais uma semana. Contudo, depois, o receptor, pusera uma pedra sobre o assunto, não atendendo qualquer telemóvel.

– Só há duas maneiras de resolver isto – confessou aos dois rapazes. – Ou vamos lá buscar o ouro de armas na mão, ou damos-lhe uma banhada.

– Matamos o pintas – afirmou Francisquinho, peremptório.

– A morte dele não nos traz a urina de volta – contrariou Diana, e explicou: – Eu conheço-o. É rijo e não vai lá à bruta. Será mais fácil endrominá-lo do que forçá-lo. É ganancioso e gente assim é mais fácil acenar-lhe com um isco. Precisamos de alguém com lata, do tipo treta fácil, para lhe dar a volta:

Necas desatou a rir.

– Estavas a fazer o desenho do intruja e eu a pensar no Bazófias.

Francisquinho protestou a sua discordância.

– O Bazófias? É só goela, meu. Muito linguarudo, mas dobrar as molas, niente. Não nasceu para trabalhar, meu. É só tretas.

– Foi um grande burlão no seu tempo. Tinha fama – admitiu Diana.

– Um tretas, minha. É pintas para se deixar dormir à espera do intruja. Até para servir um café é um sarilho. Leva tempo e tempo, meu.

– O Bazófias, se quisesse, era o homem ideal – insistiu ela.

– Queres que eu fale com ele? – perguntou Necas.

– Sonda-o. Ele é guloso por dinheiro. Fala-lhe em mil euros.

Francisquinho continuava céptico em relação à descoberta do homem ideal para fanar o intruja do Rodolfo.

– Ele não vai aceitar, meu. É um erro. O Bazófias não passa de uma treta com duas pernas.

Na verdade, não reagiu da melhor maneira à abordagem de Necas – respondeu com indignação.

– Estás a convidar-me para ser um gatuno igual a vocês? Mas já chegamos à Madeira? Eu posso ser teu pai, rapaz. Respeitinho, respeitinho.

Necas apressou-se a contrapor.

– Mas não é nenhum assalto. Isso fica por nossa conta. Tu apenas tens de fazer o número. Convencer o intruja de que compras o ouro. Tens de passar por estrangeiro ou coisa assim...

– Negociante de ouro? Eu? Querem abarbatar um quilo de urina a um otário, é?

– Vai dar uma pipa de massa. Se der certo levas aí uns mil! – atirou o Francisquinho, sabendo como lhe tocar as cordas sensíveis do coração, e Bazófias vibrou como um diapasão.

– Mil? Em notas?

– Em cheque não dava muito jeito – brincou Necas. O ex-burlão ficou em silêncio, muito sério. Mil euros por uma tanga era negócio. Porém, Francisquinho não compreendeu o mutismo e desatou a desancá-lo.

– Eu não te disse que ele não aceitava, meu? É só tretas! Se alguém lhe esticasse a língua dava para fazer uma ponte do tamanho da Vasco da Gama.

– Não é bem assim, não é bem assim! Quer dizer que pingam mil euros.

O rapaz não desarmava e atacava a fundo.

– Não é? Não te enxergas, meu? Tu não te enxergas, meu. Gostas muito de contar as histórias do tempo em que eras burlão, mas são histórias, tretas! Em língua és o maior. Aí, sim! O resto é zero, estás a ouvir? Zero!

– Não chateies, ó Francisquinho, sabes o que tu és? Um nervoso! Não passas de um nervoso, sempre aos saltos como as pulgas. Não pensas, nem deixas um homem pensar.

Afastou-se para atender dois clientes recém-chegados e o rapaz viu neste movimento o sinal de desistência.

– Eu sabia. É só goelas e o olho em cima da Almerinda para ela não o encornar. Mas até aí falha que ela põe-lhos a torto e a direito.

– Tem calma. Ele ficou enervado com a ideia de receber umas massas – murmurou Necas.

– Um tretas, man! Até lhe acho graça, mas é só goela.

Bazófias aproximava-se outra vez. Agora vinha tamborilando os dedos sobre a bandeja.

– Falaste em mil palhaços.

– Mais ou menos.

– E quem me garante que vocês não me gamam o caroço? Vou trabalhar e fico a seco.

– Pensas que somos gatunos como tu? – insurgiu-se Francisquinho.

– São piores, muito piores.

– Se correr bem, a Diana paga. Nunca deixou de pagar.

Bazófias mudou de atitude quando ouviu o nome da rapariga.

– Ah, bom! Se o negócio é com ela, a coisa muda de figura.

– Quer dizer que alinhas – admitiu Necas.

– Vou pensar.

– Não te vais abrir com a tua Almerinda! – alertou Francisquinho.

– Julgas que sou gaiato como tu? Eu sou profissional. Sei quando devo falar e quando devo estar calado. Ao contrário de ti, que és um fala-barato.

– Mas estás a bater válvulas, meu. Essa de ires pensar, é cagaço. Ficaste com os pêlos do cu a bater castanholas de medo. Mil euros, Bazófias! Há quanto tempo não vês tanto caroço junto? Vais pensar, o caraças. Vais esconder-te, meu.

– O Francisquinho tem razão numa coisa. Não há tempo para pensar. Ou vais ou não vais!

– Calma, calma. Vamos tirar alguém da forca? Calma! Bem, há algum adiantado? – perguntou, candidamente.

– Estás a gozar!? – Agora era o Necas quem levantava a voz.

– Perguntei, pronto. Perguntar não ofende, não é? Então, expliquem-me lá como deve ser feita a coisa.

– Diana é que conhece o animal. Anda comigo.

Rodolfo era um prestigiado comerciante. Geria duas ourivesarias e as peças que expunha atraíam a melhor clientela da cidade. Tinha olhos de cherne, uma papada por baixo do queixo, que lhe dava uma cara de boneco de banda desenhada, e a sua avidez por dinheiro era tal que o tornava capaz de atravessar a cidade por um negócio que lhe desse meia dúzia de euros. As suas mãos pareciam um mostruário de exuberantes anéis e era ardiloso. Desconfiado como um javali, ao mínimo erro de Bazófias fugiria a sete pés de qualquer negócio da treta. Era, para além desta imagem pública, um dos maiores receptadores de ouro de Lisboa, e com tal arte que a bófia não o cheirava.

– Muito bem – concluiu Bazófias. – Se bem percebo, tenho uma lontra para caçar que vos gamou quase um quilo de fios de ouro. É o que te digo, Diana. Meteste-te com este bando de tansos e levas banhadas de um quilo. Como contacto com o animal?

– Tens de ser tu a ligar. Ele não atende. Mesmo que fale de outro telemóvel, conhece-me a voz e desliga. Diz-lhe que vais da parte do Afonso.

– Do teu ex-marido? – perguntou, surpreendido.

– Foi ele quem nos apresentou há uns anos, antes de ter de fugir para o Brasil. Está aí o número.

Bazófias mergulhou num torpor que era um exercício de concentração. Com a cabeça encostada à parede, os olhos semicerrados, movia o corpo ligeiramente para trás e para a frente. Francisquinho observava-o, desconfiado. Não levava nada daquilo a sério. Se fosse necessário tanto trabalho de preparação para fazer um assalto, não ganhavam para a bucha. O homem despertou e, decidido, marcou o número do intruja.

– Alô, Monsieur Rodolfo? Sou François Ivanoff, amigo do Afonso.

Os dois rapazes ficaram aturdidos. Aquele homem de sotaque francês, de palavras polidas, não era o Bazófias que conheciam das bocas foleiras e das discussões com a Almerinda. Até a voz mudara e a conversa seguia com uma cortesia desconhecida no Estrela Polar.

– O homem é um senhor! – foi a única coisa que um embasbacado Necas conseguiu dizer.

Desligou.

– Está feito. Daqui a duas horas, na esplanada do Vavá. Só tenho tempo de mudar de cenário. Conta comigo, Diana. Vou comê-lo.

– Não precisas de ajuda?

– Deixa por minha conta. A trabalhar na profissão sempre fui um lobo.

Antes de sair da casa, tornou a perguntar:

– São mil aerius, não é verdade?

Diana acenou afirmativamente e ele saiu, compenetrado da missão, sem dirigir palavra a Necas e a Francisquinho. Os rapazes estavam estupefactos.

– Não dá para acreditar, meu. Não dá mesmo – disse por fim.

O Francisquinho, entre outros defeitos, tinha e alimentava o da ignorância. Se conhecesse a história da sua profissão saberia que o taberneiro ordinário, que distribuía larachas pelos clientes do Águias, fazia parte de uma geração de burlões de engate e carteiristas de nível europeu. Verdadeiros mestres de engano, armados apenas com a língua e as virtudes de inventar histórias. Ainda muita gente se recordava de feitos que, a serem realizados num país a sério, estavam registados no Guinness. Não se encontrariam no mundo muitos talentos capazes de vender a frota da TAP ou a Ponte 25 de Abril com elegância e perfeição de alguns dos maiores mestres nacionais. O Chicória, o Avelino, o Língua de Veludo, e também o Camone – que conseguia vender marcos do correio a tuta e meia pela cidade de Paris a emigrantes desprevenidos – e o Bazófias sentavam-se num panteão de memórias efusivas do crime nacional. A vertigem do tempo, a rápida mudança de hábitos e, sobretudo, a idade e o massacre policial, obrigaram-nos a pôr fim às suas brilhantes carreiras. O Chicória desapareceu da circulação. Dizia-se que estava de tal maneira rico que mudara de nome e que construíra a burla mais perfeita. Agora era o engenheiro Gusmão, figura essencial de todas as vernissages e festas sociais de Lisboa. O Avelino apagou-se na cadeia. O coração não resistiu ao desgosto que lhe causou a falta de reconhecimento do juiz, que o mandou para dez anos de cativeiro. Deu o baque enquanto dormia e a sua morte foi momento de forte emoção e homenagem de todos os carteiristas e burlões do mundo inteiro, em particular da União Europeia, na qual somos todos irmãos. Quanto ao Língua de Veludo, desaparecera. Diziam os mais chegados que vivia na Alemanha, onde fizera carreira como especulador financeiro. Agora fazia parte de uma coisa chamada mercados e abichanava milhões a países arruinados.

Bazófias estava irreconhecível. Fato escuro às riscas, um lenço de seda branca na algibeira e um lenço vermelho a adornar o pescoço. O cabelo puxado para trás, brilhante, transformara o trambiqueiro num aristocrata. Segurava uma pasta rija e, de mão estendida, entrou a matar sobre o intruja que o aguardava, desconfiado, na esplanada mais célebre de Lisboa. Ali reuniam-se, há décadas, gerações de elites do país, discutindo política, cultura e os destinos ínvios do mundo. Porém, nessa manhã, com deferência, cederam o lugar aos dois vigaristas.

– Senhor Rodolfo? Como está? Sou François Ivanoff, muito prazer...!

Olhou para o carteirista de raspão, vigiando a avenida e medindo as palavras. Por fim, observou-o com atenção.

– Russo? Francês? – roncou.

Bazófias abriu-se num sorriso bem-disposto e gesticulou para o outro lhe ver o relógio de ouro.

– Nem uma coisa, nem outra. Português...!

– Português? Com esse nome?

O riso do burlão era agora de grande franqueza. Precisava de manter o outro sempre em contrabalanço, não lhe permitindo que pensasse enquanto lhe enfiava a milonga pelas goelas abaixo.

– É estranho, não é? Mas não tem nada de complicado. O meu pai era funcionário da antiga Embaixada da União Soviética em Lisboa e conheceu a filha do então embaixador de França. Acabaram por casar. Sou um dos dois filhos do casal. Estive em Lisboa até aos doze anos e, nessa altura, o meu pai foi destacado para Nova Iorque, onde acabou por morrer, coitado. A minha mãe regressou a Paris, mas sempre com Lisboa no coração. Contagiou-me com a sua paixão e a nossa capital tornou-se um dos centros do meu negócio.

Despejou de rajada o triunfal currículo. Ou comia o otário de entrada ou, se o deixasse pensar, a história que inventara corria o risco de não ter sucesso.

– Vive em Paris, portanto...?

Percebeu que o intruja ia interrogá-lo sobre Paris, e rapidamente fez duas fintas de corpo, passando-lhe a bola por entre as pernas.

– Vou lá visitar a minha mãe com regularidade. Já está muito velhinha, coitada, mas os meus escritórios são em Londres. Uma vida de saltimbanco. Tenho três filhos. O François, Francisco em português, vive em Bruxelas. A Clara está a estudar história no Vaticano, em Roma, e o Joseph vive no Rio de Janeiro. Uma família espalhada por esse mundo, e o meu amigo? – parecia sincera a preocupação inclinando-se, atento, sobre Rodolfo.

– Vivo por aqui. A minha casa é o sítio onde se fazem os negócios – respondeu, evasivo, o que reforçou, ou parecia reforçar, o entusiasmo do novel François Ivanoff, que exclamou calorosamente:

– Ora aí está uma resposta de um homem inteligente, portanto vamos ao que interessa. Sei que sabe de alguém que tem ouro para vender. O nosso comum amigo Afonso garantiu-me que é um verdadeiro cavalheiro nos negócios.

– Talvez. Depende do que lhe interessa.

– Tudo! É para derreter. Os meus clientes são as melhores ourivesarias da baixa de Londres e têm clientes que pedem peças por encomenda. O príncipe Carlos ofereceu à Camila Parker um anel feito do meu ouro. Olarilas! Ouro do François Ivanoff.

– Gente de massa.

Viu-se o primeiro brilho no olhar do intruja e Bazófias compreendeu que a ganância começara a trabalhar na cabeça do interlocutor. Resolveu resfriar-lhe a cachola.

– Que são os mais forretas. Compram com as unhas cortadas mesmo rentinhas, tá a ver? Não interessa. Pronto, amanhã à tarde, preciso de dez quilos.

– Dez quilos? – Rodolfo mexeu-se pela primeira vez e as banhas da papada estremeceram, era a primeira vez que alguém lhe fazia uma proposta tão audaz.

Bazófias fez que não percebeu o espanto e concretizou com naturalidade, e a simplicidade poética tocou no fundo da fome de dinheiro fácil que vivia nos bolsos do intruja.

– Oh, François, nem Portugal inteiro tem esse ouro. Estamos na ruína! Talvez o meu amigo consiga arranjar um quilo, talvez quilo e meio e mesmo assim...

O suposto François não conseguiu esconder o desapontamento e a pequena tontura que o fez levar a mão à cabeça.

– Só? Oh, Diable...! Oh, God...!

– Sente-se bem?

– É curto, muito curto. Isso obriga-me a alterar os planos. Já não posso ir para Londres. Obriga-me a passar primeiro por Madrid para saber se o meu fornecedor está mais abonado. É impressão minha ou rouba-se pouco em Portugal?

– Rouba-se bem, mas é clínica geral. Vai tudo a eito.

– Pois, percebo. Seja como for, posso contar com um quilo? Pago o preço de mercado menos vinte por cento. Okay? Não discuta comigo, pois sei que por cá a coisa vai nos quarenta por cento!

Ivanoff tinha razão. Rodolfo ficara no ponto, amarradinho, com a sequência de estocadas. Passou-lhe a pasta que trazia. Baixou a voz quando lhe explicou o truque.

– Esta mala tem um fundo falso. Meta lá o ouro. Amanhã, de manhã, estou aqui com uma pasta igual com o dinheiro e fazemos a troca, okay?

Bazófias levantou-se e Rodolfo acenou.

– Até amanhã, François!

– E ponha-me os ladrões a roubar a sério. Quem rouba de tudo, nada lhe faz proveito. É por isso que Portugal está como está. Maus ladrões, maus gestores, maus políticos. Ânimo. Preciso de ânimo!

Afastara-se quatro passos, quando Rodolfo o chamou:

– François!

Voltou-se, sorridente, mas o coração pulava de tensão.

– Yes?

– O nosso amigo Afonso tem um sinal de nascença no rosto. Recorda-se se é na face direita, ou é na face esquerda?

Franzia a testa, como se estivesse a pensar. O intruja queria confirmar a bondade do contacto, no entanto ficara em desvantagem. Bazófias estivera preso com o ex-companheiro de Diana e conhecia-lhe bem o rosto e as artes de assaltante à mão armada.

– Não tem qualquer sinal no rosto. O meu amigo deve estar a fazer confusão. Tem uma mulher nua tatuada no braço.

– Tem razão. É uma mulher nua. Até amanhã!

«Estás agarrado, meu intruja de merda. És meu», pensou Bazófias, enquanto descia a Avenida de Roma em direcção à estação do metropolitano. Tinha boas recordações daquele local. Gamara dezenas de carteiras na viagem entre o Rossio e o Areeiro. O povo apinhado nas carruagens, procurando agarrar-se a qualquer varão que os apoiasse nos solavancos, os casacos abertos eram um verdadeira floresta de bolsos à espera dos baios. Fisgava o otário e aproximava-se. A mesma expressão cansada. O mesmo abatimento no rosto, igual em todos os passageiros. A mesma tolerância indiferente ao encontrão, ao apertão e à pisadela. Depois, os dedos médio e indicador avançavam com subtileza da serpente. Silenciosos, breves, e a carteira caía nas mãos do muleta que estava atrás de si. Depois as rotinas de sempre. O muleta saía apressado na paragem Roma e Bazófias em Alvalade, e ficava à espera de que o outro chegasse com a chata. Dividiam a massa e regressavam ao Rossio para tornar aos comboios atulhados em hora de ponta.

Entrou no Águias pela porta das traseiras. Não queria que ninguém o visse naqueles preparos. Todo o bairro ficaria a saber que ele regressara às lides. E não queria essa fama. Enviou um sms ao Necas: «Já cá estou. Correu bem», e foi mudar de roupa, apertando o avental seboso com que servia em torno da cintura.

Quando entrou no café, Almerinda olhou-o com desdém e retirou-se. Estava amuada. Vira-o vestir-se, até banho tomara, sem lhe dirigir palavra.

– Fica à frente da tasca que eu não me demoro.

Fora-se embora sem mais explicações, andara na vadiagem mais de duas horas, obrigando-a a escutar os escarros do velho Jeremias e as conversas gritadas dos clientes habituais em torno das minis. Não tinha dúvidas. O seu Bazófias fora ter com uma puta qualquer.

Necas e Francisquinho já o esperavam com impaciência. Chegara a hora de mostrar como valia os mil euros combinados. Transpirava vaidade.

– Vocês não estão bem a ver a cena. Eu parecia o Clark Gable no filme E tudo o Vento Levou. Só me faltava o cigarro entre os lábios. O Rodolfo nasceu para ser otário. Intruja foi erro de profissão – Francisquinho gostou da ideia e riu, bem-disposto.

– Essa foi boa, meu. Otário em vez de intruja.

– E caiu? – quis saber o Necas.

A pergunta não caiu bem. Bazófias ficou indignado com tal suspeita e reagiu, altaneiro.

– Tu perguntas-me se caiu...? Se caiu? Não tinha outro remédio senão cair e foi de queixos. O François Ivanoff não faz por menos.

– Quem é esse?

– Sou eu! Ou julgas que chegava ao pé do otário e lhe dizia: olhe eu sou o Bazófias do Estrela Polar e quero comprar-lhe o ouro roubado que você tem?! François Ivanoff é aqui o je. A primeira vez que usei este nome foi há mais de trinta anos e comi um relógio a um desgraçado qualquer em Santa Apolónia! E aqui o François pôs logo o Rodolfo à vontade. Viagens pelo mundo, pai russo, mãe francesa. Até os meti ao barulho...

– A nós...? Mas, Bazófias... – Necas sobressaltou-se.

– Não te melindres, garoto. Estás a falar com um campeão. O François era o meu filho que trabalha em Bruxelas, estás a ver? A insinuar a União Europeia... da Clara fiz uma estudante de história, no Vaticano, e o Joseph, não podia dizer-lhe que é o Zé Cigano, não é verdade? O Joseph vive no Rio de Janeiro. Meti tudo... até uma mãe que vive em Paris...

Francisquinho e Necas hesitavam entre a desconfiança e a admiração. Ou era uma grande galga do Bazófias ou uma história de absoluto descaramento.

– E ele comeu isso tudo?

Francisquinho ainda não estava em si. Jamais lhe passaria pela cabeça uma história tão rocambolesca para gamar um tipo qualquer.

– E ainda queria comer mais treta quando soube que eu procurava dez quilos de ouro.

– Dez quilos?!

– Não podia ficar com a fama de pelintra, não é? Dez quilos! Mas também comprava quinze.

– Quinze?! És doido, meu.

– Ficou no ponto! Um verdadeiro caramelo de açúcar. Ali, no ponto!

– Bazófias, és o maior!

Francisquinho começou a aplaudir. Estava deveras fascinado com a operação levada a efeito. Reconhecia que era demasiado complicado para a sua cabeça e, pela primeira vez, sentiu algum respeito pelo taberneiro.

– É para que saibas! Ficou com a pastinha para meter o ouro e amanhã lá está na hora marcada para vocês tratarem da coisa, e façam o favor de a fazer bem feita! Não estou para dar o litro para vocês estragarem tudo e o Rodolfo ficar a rir-se dos meus filhos.

– Filhos? Quais?

– Não ligues. São vocês. O François, o Joseph e a Clara. – esclareceu o Necas, com uma gargalhada sonora, e Bazófias carregou em cima do outro por causa da desatenção.

– É o que eu digo. Nessa cabeça não tens miolos, tens um caroço de pêssego!

A conversa foi interrompida por Manuela, que, de expressão carregada, chamava os dois rapazes, da porta do café. Saíram apressados, provocando algum despeito no Bazófias, que recolhia o reconhecimento possível do seu espectáculo.

– Correu mal o assalto? – inquietou-se Necas.

– Não. O Zé está mal. Correu tanto com a cadeira de rodas que está mais morto do que vivo.

– A Diana já sabe?

– O Batman foi chamá-la.

Correram na direcção da casa abandonada. Zé Cigano estava deitado sobre o velho colchão e a quadrilha observava os movimentos de Diana, que, segurando-lhe a cabeça, o fazia bebericar água com açúcar.

– Está desidratado e estoirado. Vão preparando a água com açúcar e procurem sal.

– Sal? – Clara fez uma careta de repugnância.

– O açúcar e o sal ajudam a reter os líquidos. Despachem-se. Ele vai ficar bom.

Manuela e Necas desapareceram para satisfazer os pedidos dela. O plano do cigano para assaltar o palacete fora de mestre, todavia, deixara-o quase à beira da morte. No entanto, era evidente que estava a recuperar, pois já tinha força para gemer das dores que sentia pelo corpo. Francisquinho observava-o, preocupado.

– Já guincha. É bom sinal, meu – e voltou-se para Batman: – Correu bem o assalto ao reduto do capitalismo selvagem?

– Seis lingotes de ouro. Dos grandes.

Batman não conseguia disfarçar a satisfação.

– Yesss! Yesss!

Diana mandou-os calar.

– Não é sítio para gritos. O Zé precisa de descansar. Um de vocês chama a Nicha. Nós duas tratamos dele.

Afastaram-se rapidamente. Ela era a presença omnipotente nas circunstâncias mais delicadas. O colo protector e olhar atento às aflições de cada um. Naquele bairro velho, feito de miséria e abandonos, de casario órfão e andrajoso, Diana era uma alma luminosa, que cuidava daqueles que amava, gente sem rumo num bairro que as aranhas e os ratos haviam tomado, como se o Estrela Polar fosse coisa de bichos e não de homens.

Bazófias estranhou ver a quadrilha tão sorumbática. Quando se encontravam na esplanada do Águias, havia sempre gritos ou gargalhadas, discussões ou algum deles saltava a correr para esmurrar um viciado mais atrevido que procurava dose à borla. Francisquinho estava inquieto, sentava-se e levantava-se, como se fosse impelido por uma mola que repetidamente se abria e fechava. Por fim, afastou-se com Manuela, enquanto Necas e Clara continuavam sisudos, mergulhados nos seus pensamentos. De súbito, sentiu um estremecimento ao olhar a televisão. Reconheceu a limusina sem pára-choques donde fora expulso. Encontrava-se entre o palacete e o jornalista que fazia o directo para o canal televisivo. Precipitadamente, aumentou o volume para saber o que acontecera. O directo estava quase no fim, no entanto, conseguiu saber que ninguém de casa prestava informações, mas o repórter sabia que a tentativa de rapto do industrial de calçado fora abortada pelos seus empregados e que a vítima estava de boa saúde. Talvez fosse o instinto, não sabia explicar, mas associou o estado de espírito da quadrilha àquele rapto frustrado. Aproximou-se do casal, assobiando baixinho, ardendo de curiosidade. Perguntou em voz baixa:

– Necas, o que faz o teu antigo patrão? Qual é a vida dele?

O rapaz não esperava a pergunta e disse, desconfiado:

– Acho que tinha fábricas de malas e calçado. Porquê?

Bazófias desatou a rir, de mansinho e velhaco.

– A televisão está a dar o rapto.

– Qual rapto? – Necas fez que não compreendia a conversa carregada de sarcasmos e malandrice.

– Está lá a televisão. Tentaram raptar o teu patrão, mas a coisa correu mal. O homem safou-se.

– Não sei de nada. Como sabes que era o meu patrão?

– Conheci a limusina. Mas pronto! Pensei... julguei... comecei a somar aquelas contas que um homem faz de cabeça.

– Bazófias, só dizes disparates – insurgiu-se o Necas: – Estás a pensar, por causa de uma notícia que ouviste na televisão, que eu raptei o meu patrão? Passei aqui o dia...

– Adorava entrar num rapto. Ser raptada como a Fiona do Shrek – exclamou Clara, sonhadora.

– Pois. Se calhar sou eu que ando a ver muitos filmes. De facto, não saíste daqui. Ou saíste, quando fui fazer o Rodolfo?

– És doido pá! Completamente doido.

Bazófias recolheu-se.

– Está desconfiado – sussurrou Clara entre dentes.

Embora tivesse de reconhecer que o rapaz não estava a mentir, a notícia vinha mesmo a calhar com as trombas que eles exibiam.

– Mas não percebe. É esperto, mas não chega lá. A Diana fez bem em não me ter deixado ir.

– Ela é a mais esperta de todos. Mais do que Bazófias.

– Muitos anos de experiência. Foi a primeira rapariga a chefiar um grupo de rapazes. Ouvi contar histórias dela que são de arrepiar. Ninguém lhe põe a mão em cima. Nem a bófia!

Francisquinho aproximava-se, bem-disposto. O Zé Cigano, já muito melhor, estava sentado e a comer. Uma fome do catano, por sinal, e tudo batia certo. No dia seguinte, iriam sacar a urina ao intruja e o assalto ao palacete fora um sucesso. Estava impante de satisfação e decidiu estrear uns óculos escuros que abichanara na loja dos chineses.

– Francisquinho! Tens uns óculos novos! – exclamou Clara.

– É para disfarçar o contentamento. Estou em estado de graça, minha. Hoje demos um grande golpe no capitalismo e em todas as formas de exploração. Foi do cacete o serviço no palacete. O Batman contou-me. O Zé Cigano a correr com o explorador do povo por ali fora, os dois seguranças atrás dele e os nossos a gamarem. Deviam ter levado roupa com bolsos mais fundos para roubar mais. Ficaram para trás não sei quantas barras de ouro.

– A televisão está a dar e só fala do rapto – informou-o a rapariga. Francisquinho exaltou-se, saindo em defesa dos amigos.

– Qual rapto? Foi apenas um truque. É o que eu digo, tudo manipulação. São uns manipuladores, meu! Rapto?? É de mais, man. Passo-me com isto, man...

– Coitado do velhote. Gostava dele – proferiu Necas sem ligar à fita que Francisquinho fazia.

– Porque és um manipulado! Deixas-te comer por esses papalvos da desinformação. De quem eu tenho pena é do Zé Cigano, meu. Ficou com as pernas todas maradas de correr tanto, empurrando o velho. Está roto, meu. Já bebeu seis litros de água e aquilo não passa. Um herói. O cigano é um verdadeiro herói!

Se o rapaz pudesse adivinhar os acontecimentos que se desenrolaram na brigada do chefe Ravara, a euforia não seria tão grande. Nenhum dos assaltantes, nem o próprio Necas, sabia explicar como, no meio da serra de Sintra, um palacete isolado se dava ao luxo de manter os portões abertos durante a maior parte do dia. A resposta estava nas mãos de um dos inspectores, que entregava uma pen ao chefe.

– O que é isto, Carlos?

– As imagens captadas pela câmara de videovigilância, que grava todas as entradas e saídas da residência da vítima. Infelizmente só se distingue nitidamente uma pessoa. Uma mulher. Os rostos são vultos.

– Uma mulher?

Carlos não teve tempo para responder. O inspector Augusto entrou como um furacão no gabinete. Vinha vermelho de entusiasmo.

– Já viu as imagens, chefe? Já viu?

– Não.

– Então veja. Apanhámos a Manuela, do bando da Diana. Está ali, perfeitinha, e vamos pelo menos sacar o tipo que raptou o velho. Os dois seguranças garantem que o reconhecem.

Carlos injectou a pen no computador. Abriu o ficheiro e fez correr as imagens até ao momento da estrada do Zé Cigano, de bicicleta. Via-se de costas e a pedalar descontraidamente. Abria-se à polícia o caminho para dar um golpe rude na quadrilha, muito provavelmente conseguir destruí-la. O filme e o testemunho dos seguranças no reconhecimento do suposto raptor eram um motor poderoso para arriscar um golpe a sério contra toda a matilha.

– Isto é a chegada do raptor. Disse aos seguranças que andava perdido em busca do caminho para o Castelo dos Mouros – explicou Carlos, enquanto avançava com o cursor. Parou novamente e pôs as imagens em movimento normal. – Aqui aparece o pintas a fugir com o velhote na cadeira de rodas e, reparem, ali à esquerda, mal saem do jardim os seguranças. Três tipos a correrem em direcção à casa.

– É um movimento combinado – disse Ravara.

Até ali a câmara permitira reconstituir o crime, mas era incapaz de identificar alguém. Era tudo sombras, silhuetas esbatidas, sem contraste.

– Avança para o momento em que eles fogem de casa com os lingotes de ouro – pediu Augusto, com alguma impaciência. O colega fez-lhe a vontade.

Os ladrões saíram os três em corrida. Vinham na direcção do portão e era claro que traziam nas mãos qualquer coisa que pesava tanto que os obrigava a um esforço suplementar. A rapariga atrasava-se em relação aos dois homens. É no preciso momento em que passa o portão que Manuela, em esforço, levanta a cabeça permitindo que, na curta distância, a câmara lhe capte o rosto de forma precisa. Carlos fez um paralítico da imagem e o colega exultou:

– Ela aí está, chefe. Esta é a Manuela! E sou capaz de jurar pela alma da minha mãezinha que o raptor tem um destes nomes: Francisco, Necas, Zé ou Batman!

Ficou em silêncio a olhar as imagens, atento, sem alinhar no entusiasmo dos seus subordinados. Era uma sucessão de crimes que não encaixavam uns nos outros. Por fim, esboçou um sorriso.

– O rapto só serviu para desviar a atenção dos seguranças. É isso!

– Não estou a perceber. O rapto, o quê?

– Simularam o rapto. O grande objectivo era o assalto à residência. Enquanto um dos cúmplices empurrava a cadeira de rodas pelos caminhos da serra, com os dois homens no seu encalço, os outros aproveitaram para realizar o assalto. Tem a certeza de que eles vão reconhecer o tipo que lhes surripiou o patrão?

– Eles garantiram-me que sim.

Deu alguns passos atrás da secretária. Procurava organizar tacticamente as diligências. Tinha a sensação de que este caso poderia ser o princípio do fim do bando de Diana e o encerramento de um capítulo de desastres na vida da polícia, que estivera sempre um passo atrás dos ataques da matilha.

– Quando vêm cá os seguranças?

– Amanhã. São substituídos por dois colegas para o velhote não ficar sozinho e estão à nossa disposição.

– Muito bem. Vamos fazer assim.


12
QUALQUER HISTÓRIA
É UM CONTO DE FADAS

O dia de Necas, Francisquinho e Zé Cigano começou na esplanada do Águias. Bazófias não os largava, dando instruções sobre o método para sacar a mala com o ouro do Rodolfo. Da intervenção dos rapazes dependia o seu salário. Mil euros era muito dinheiro para ignorar qualquer pormenor que pusesse em risco o golpe contra o intruja.

– Não há nada que enganar. O tipo é gordo e grande. Mesmo assim: grande e gordo. Não deve cagar numa sanita normal que um cu daqueles é mais coisa de bisonte do que de pessoa, e vocês devem atacar no sentido da Avenida de Roma. Ele nem se move, vocês vão ver. Tem uma pança igual à daqueles deuses dos chineses que eles vendem nas lojas. Como se chama aquele deus, pá? Um gajo sempre sentado, com uma barriga maior do que o Pai Natal e mal vestido?

– Buda.

– Esse mesmo. É desse feitio. Gordo e grande. Se vocês atacarem pelo sítio certo...

– Bazófias! – interrompeu Francisquinho. – Chega de treino. És burlão e carteirista, meu. Tudo bem. Nada a opor. Mas nós somos ladrões. Não te metas na nossa especialidade que nós não nos metemos na tua. Acabaram os treinos, meu. Acabaram!

O tom peremptório do rapaz fê-lo calar-se. Na verdade, ele tinha razão. Estava a falar do que não sabia. Qualquer daqueles putos com menos de metade da sua idade tinha uma experiência de assaltos tão grande como a sua a vender vigésimos premiados. Necas perguntou-lhe:

– Porque não voltas às vidas? Tens lábia, experiência, és um verdadeiro mestre.

Abriu os braços num gesto de lamento, carregava naquela expressão uma dor aguda de saudades dos velhos tempos.

– O coração foi-se, pá! Dantes fazia um serviço como o de ontem por dia. Agora é um desastre. Esta noite vi-me aflito para me deixar dormir. Fechava os olhos e o corpo tremia todo. O coração já não bomba energia. É uma porra ter a máquina sem batimento. É onde reside tudo. Um tipo com a idade vai-se abaixo das canetas.

– Sei bem do que falas – concordou o Zé Cigano. – Ontem corri tanto com o raio do velho na cadeira de rodas que hoje tenho as pernas todas torcidas.

Olhou o relógio e franziu a testa, surpreendido.

– É estranho. A Manuela já devia ter chegado. Vocês viram-na?

Ninguém ainda a tinha visto. Necas fez sinal aos outros rapazes. Afastaram-se da esplanada do Águias e dos ouvidos coscuvilheiros do Bazófias. Quando se sentiram a salvo, disse em voz baixa:

– Se o golpe ao intruja correr bem, juntando o assalto de ontem, ficamos com dez quilos de ouro. Dividindo por todos é mais de um quilo para cada um. É suficiente para deixarmos esta vida.

Zé Cigano e Francisquinho ficaram mudos de espanto.

– Que ideia é essa, Necas? E vamos para qual vida? Não conheço outra – retorquiu Zé Cigano.

– Há muitas vidas na vida de uma pessoa.

– Não entendo aquilo que queres dizer.

– Filosofias do Necas. Não interessa, meu. Em vez de filosofia, anda daí que temos um intruja para fazer – atalhou Francisquinho, azedo com o rumo da conversa.

– Disse alguma coisa de mal? – reagiu Necas.

– Não sei. Eu gosto de ser ladrão. Vamos embora.

Francisquinho puxou-o pelo braço e Zé Cigano viu-os afastarem-se, ainda intrigado com a outra vida que Necas lhe sugeria quando lhe voltou Manuela à cabeça. Não costumava atrasar-se tanto. Decidiu ir a casa dela. Quando saiu do largo viu um casal que o olhava de soslaio. Não ligou. Devia ser gente à procura de panfletos. Trataria deles mais tarde. Passou pela carrinha do homem que diariamente ia vender pão pelas ruas do bairro e não deu atenção aos cochichos das mulheres que rodeavam a padaria ambulante, muito embora percebesse que falavam de si. Estava preocupado com a namorada. Desde os terríveis acontecimentos que a deixaram órfã sentia algum desequilíbrio no modo de agir. Por vezes, ficava horas a fio sem falar, embrulhada em pensamentos que o inquietavam.

– Se não fosses tu, já tinha dado um tiro na cabeça – confessara-lhe certa noite em que as lágrimas romperam, incontinentes e magoadas.

Abraçara-a contra si com ternura e falou-lhe de esperança e da dor que os lutos provocam. Mas eram palavras, pensos rápidos em feridas profundas. Tocou à porta e ainda ficou mais intrigado ao perceber que estava aberta. Empurrou com cautela e perguntou:

– Manuela?

Não obteve resposta. Foi com o coração em sobressalto que entrou. Deu por si a rezar e a estremecer de medo. Entrou na cozinha, passou pelos quartos, espreitou na casa de banho e sentiu um profundo alívio. Ela não estava e não havia sinais de que qualquer coisa de anormal tivesse acontecido. Decidiu ir outra vez para a esplanada do Águias. Fora o sítio combinado no dia anterior para se encontrarem. Continuava a sentir o corpo dorido por causa do assalto da véspera, e regressou pelo mesmo caminho. O casal de namorados estava agora dentro do automóvel estacionado à entrada do largo, e ele acariciava os cabelos da mulher. Aquele gesto fê-lo sentir saudades de Manuela. Também lhe apetecia afagar-lhe o rosto triste e fazê-lo sorrir.

Bazófias acenava-lhe com agitação fora do normal e estugou o passo. Talvez houvesse novidades da namorada.

– O que foi?

O taberneiro estava intrigadíssimo e cheio de curiosidade.

– Esteve aqui a Nicha à vossa procura. A Diana quer falar convosco imediatamente. – Ficou sobressaltado. Ter-se-ia passado alguma coisa com a Manuela?

Esqueceu as dores e correu até à casa dela. Apareceu-lhe Nicha, transtornada, que o empurrou para o interior.

– Anda depressa. Temos um problema bem sério entre mãos.

Não teve tempo de perguntar o que acontecera. À sua frente estava Diana, lívida de fúria, que lhe estendeu um papel.

– Tu sabias disto?

Olhou o papel sem perceber o motivo do alarme. Estava assinado por Batman. Tornou a olhar para a Diana.

– O que foi?

– Lê.

Foi então que viu Tosta Mista. Estava sentado no sofá, entretido a meter balas no carregador da pistola. Começou a ler. Não percebeu as primeiras duas linhas e voltou ao princípio. As pernas tremiam-lhe e sentiu que as forças lhe fugiam. Deixou-se cair no sofá ao lado do amigo.

Batman despedia-se. Que os pais precisam dele, não queria continuar a roubar e pedia muita desculpa a todos por não abraçar cada um dos seus amigos, mas sabia que lhe faltariam as forças. Levaria consigo um dos lingotes de ouro que haviam esmifrado ao ex-patrão do Necas, não queria mais nada. Sentia-se recompensado por tantos anos de trabalho em conjunto e pedia que compreendessem a sua decisão. Terminava, aconselhando-os a procurarem outros caminhos, ou, se quisessem continuar unidos, desejava-lhes as maiores felicidades do mundo. Quando terminou, incrédulo, o cigano balbuciou:

– O Batman pisgou-se!

– Ontem à noite. Roubou-nos e fugiu – Diana estava desvairada e jurava mil vinganças contra a traição.

– Ele falou-te nalguma coisa?

– Não – Zé Cigano ainda não acreditava no que lera e avançou com a sua primeira inquietação.

– A Manuela também desapareceu. Não sei dela.

Nicha cruzou as mãos e gemeu:

– Ai, meu Deus! Terá fugido com ele?

– Não – respondeu Zé com firmeza. – Estamos apaixonados e não faria uma coisa dessas sem me avisar.

Diana sentia um turbilhão de sentimentos contraditórios, que procurava organizar com dificuldades. Batman era o seu braço-direito, o estrategista competente com quem discutia os pormenores dos golpes que decidia fazer, o único a quem confiava o produto dos assaltos. De súbito, perguntou:

– O Francisquinho e o Necas?

– Foram tratar do intruja.

– Tens a certeza de que a bófia não está no bairro?

O cigano encolheu os ombros. Não vira nada de anormal enquanto se juntara aos amigos. O Bazófias estava nervoso, mas o motivo era bem peculiar. Esperava que Francisquinho e Necas tivessem sorte no esticão ao intruja para receber os seus mil euros. Estava tudo normal, com excepção da despedida de Batman e de não saberem onde se encontrava a rapariga.

– Não estará com a Clara? – sugeriu o Tosta Mista.

A pergunta aliviou os presentes. Era muito possível que se tivessem encontrado e estivessem juntas. Esta nova esperança fez Zé Cigano levantar-se e dirigir-se a Diana.

– Posso ir procurá-las?

– Vai. Avisa-me quando o Necas e o Francisquinho chegarem. Ainda hoje vamos atrás do Batman. Ninguém nos rouba e se despede com uma carta pedindo desculpa.

Gritava o desespero. Aquela partida silenciosa do seu ajudante mais próximo era um rasgão na alma feito de forma impiedosa. A matilha era o seu porto de abrigo e, mesmo que não manifestasse os afectos de maneira exuberante, amava cada um deles como se fossem sua pertença. Uma dor profunda dilacerava-a. Partira um ente querido e era uma ausência pior do que a morte. Despedira-se com infidelidade e sem a coragem que apreciava no seu grupo.

A inquietação do rapaz aumentou quando avistou Clara. Estava sozinha e não sabia do paradeiro da amiga. Também achava estranho ela não ter dado sinal de vida. Acompanhou-o ao Águias. Bazófias continuava as suas rotinas. Arrumava copos e zaragateava com Almerinda. Que não, ali não estivera e, deixando a mulher a ralhar sozinha, perguntou, interessado:

– O Francisquinho e o Necas já chegaram? Se tudo correr bem, a esta hora devem estar a aparecer com a urina do intruja. Diz à Diana que o François Ivanoff está à espera dos mil eurocas.

Nem o ouviram. A preocupação com o desaparecimento de Manuela dominava-o. Combinaram que Clara ia até à entrada do bairro pela estrada do canavial e Zé tornaria a casa da rapariga. Separaram-se no meio do largo. Foi, então, que ele estranhou ver o casal de namorados no mesmo sítio. Agora fora do automóvel. Observando com mais atenção, verificou que não tinham pinta de toxicodependentes. Sentiu um forte sobressalto quando imaginou quem poderiam ser, mas era tarde. Agarraram-no discretamente e ordenaram, enquanto o algemavam:

– Entra no carro. Rápido!

Arrancaram discretamente, sem qualquer alarido. Nem o grupo de mulheres, que ainda tagarelava na rua, se apercebeu da captura. E foi então que Zé Cigano soube onde estava Manuela. A polícia caçava-os um a um, em silêncio, sem o estardalhaço do costume. Nenhum dos putos vigilantes que avisavam o bairro das invasões da chibaria fora alertado pela incursão tão silenciosa como uma faca a cortar manteiga. Sentiu falta de ar quando se lembrou dos dois amigos que deveriam estar de regresso para alívio de Bazófias. Iam ser feitos com o ouro do intruja nas mãos. Era o flagra perfeito e deu por si a rezar que o golpe tivesse falhado. O que Zé Cigano não sabia, nem podia adivinhar, é que, naquele preciso momento, Francisquinho, Necas e Rodolfo estavam a entrar, algemados, nas instalações da Judite.

O plano que Ravara tinha traçado na noite anterior seguia em velocidade de cruzeiro. Chamara todos os inspectores sob as suas ordens, apresentando uma planta do Estrela Polar com algumas bolas verdes sinalizando locais.

Fez um prólogo para contextualizar o que lhe ia na cabeça.

– O bando do Estrela Polar tem um grande sucesso por duas razões principais. Imprevisibilidade e segurança. O bairro é uma espécie de castelo de Diana. Era capaz de apostar que paga ou dá prendas a centenas de vizinhos, sobretudo a miúdos para que vigiem qualquer ameaça.

– É possível – comentou o Carlos, mas o chefe continuou o raciocínio, cortando-lhe a palavra.

– E são imprevisíveis. Fora do seu território tanto assaltam ourivesarias como profanam igrejas. Matam por ajuste de contas ou para defender o território. Sabe que a Diana comprou a casa onde os pais viveram e morreram? – perguntou, virando-se para Augusto.

– É natural, não é? Com tanta massa que tem roubado é natural. Até a deve ter pago a pronto.

– Acha? Ficou órfã ainda menina, teve de se dedicar ao crime para sobreviver e, quando cresceu e ganhou muito dinheiro, não se afastou do local que tanto sofrimento lhe provocou?

– Pois. Lá isso. Uma rapariga normal, com dinheiro, fugiria dali a sete pés – concordou o inspector.

– Mas ela não fugiu. O pai suicidou-se ali, a mãe morreu de cancro ali! Sofreu muito, ali, naquela casa. Porque não a largou? E descobri outra coisa. Os homens que despediram o pai, fazendo com que tivesse a depressão que o levou ao suicídio, foram assassinados.

– Está a falar a sério? – Os inspectores mostravam-se surpreendidos com a revelação.

– E matou-os, ou mandou matá-los, há pouco tempo. Um deles foi o caso onde nos conhecemos. O doutor Gonçalves. Lembra-se?

Augusto acenou afirmativamente. Estava perplexo com a informação de que Ravara dispunha e apresentava, sendo claro que trabalhava afincadamente no caso.

– Neste momento, estamos em condições de destruir o bando. Com um pouco de sorte, metemo-los a todos na cadeia – tossiu para aclarar a voz, olhou os seus homens de relance e compreendeu que estavam ansiosos por terem o privilégio de terminar com aquele pesadelo que há anos os perseguia.

– Vamos agir como eles. Pensar como eles e apanhá-los um a um. Temos prova contra a Manuela. Prendemo-la ao nascer do Sol. Sem barulho. Os dois seguranças garantem que reconhecem o tipo que empurrou a cadeira de rodas. Prendemo-lo com discrição. Se for do bando, como julgo que é, passamos à vigilância directa de cada um dos outros. Quase invisíveis. Quando avançarmos para as buscas para saber onde estão os lingotes de ouro, já deveremos ter connosco boa parte da quadrilha para isolar a Diana. Eles são a família dela e os braços armados da sua vingança contra aqueles que considera responsáveis pelo seu infortúnio.

Dirigiu-se à planta que tinha ficado na parede. Os locais assinalados a verde estavam identificados como as várias moradias utilizadas pela gente de Diana, e Ravara distribuiu tarefas. A prisão do cigano significava que havia sido reconhecido como raptor. Era um jogo dramático, de sorte e de azar, onde não havia lugar a compromissos. Ravara apostava tudo numa nova orfandade de Diana para a desequilibrar e, desta forma, induzi-la a cometer erros. Deixara de ser um gato e um rato no eterno jogo de cálculo e perseguição. Era o confronto decisivo, aceitando o sortilégio resultante da decisão. Ravara perdeu uma das batalhas do amanhecer e ganhara a outra. A equipa que procurava Batman não o encontrou. O paradeiro onde dormia estava vazio. Ou mudara de esconderijo ou fugira. Porém, conseguira arrecadar a Manuela e filar o Zé Cigano. E houve um sucesso inesperado: às equipas que vigiavam Necas e Francisquinho acabou por lhes sair o grande prémio da roda da sorte. Assistiram ao ataque que os rapazes fizeram à mala de Rodolfo e, sem saber que mistério lá escondiam, prenderam os dois gatunos em flagrante, depois de uma corrida breve. Quando abriram a pasta e viram cerca de um quilo de ouro em fios e pulseiras, aconteceu o milagre. Rodolfo, a vítima, transformou-se em Rodolfo, o receptador.

A sorte parecia proteger a polícia. Os ataques desferidos de forma tão imprevisível conseguiram reduzir para metade o bando que suportava os objectivos de Diana. O chefe fez contas rapidamente. Com Batman desaparecido, restavam quatro, sendo que no grupo estava a frágil Clara. Pela rádio ordenou:

– Avancem na busca.

De súbito, vários automóveis despertaram, acelerando em direcção ao largo. Bazófias viu dois deles a passarem velozmente defronte do Águias e mirrou de tristeza.

– Foi por água abaixo o trabalho de François Ivanoff.

Almerinda, que estava perto, não compreendeu o lamento e perguntou:

– O que disseste?

– A coisa borregou, deu o baque. Olha, mil euros para o catano!

– Qual coisa?

Reagiu irritado.

– Deixa-te de perguntas parvas. Toma conta do café que eu tenho que fazer.

Esgueirou-se para o interior, sem responder a mais perguntas. Se aquela presença tão grande da bófia era por causa do ouro do Rodolfo, ele seria chamado à pedra para recordar aquelas histórias sobre filhos em vários países e escritórios de negócios por essa Europa fora. Foi à cozinha e abriu o boião onde guardava grão-de-bico. Apressado retirou o maço de notas lá escondido, semeando a cozinha de grãos. As economias que amealhara governando os destinos do Águias. Espreitou pela porta das traseiras e, não vendo qualquer perigo, fez-se ao caminho em passo acelerado.

As viaturas da polícia cercaram a residência de Diana. Preparavam-se para a busca. No largo, não se via vivalma e toda a gente se recolheu à passagem veloz dos automóveis. Esperavam escapar às vagas de polícias que, como habitualmente, varriam ruas e praças, identificando pessoas, atulhando carrinhas com aqueles que considerava suspeitos – a maioria deles apenas suspeitos de odiarem a polícia. Fartos de lhes ser imposta a ordem da força autoritária. De serem obrigados a submeterem-se a invasores de arma na mão e algemas na cintura, que não traziam um pingo de humanidade e humilhavam os seus apenas porque, na hora, decidiam a desconfiança, tendo como prova o olhar de soslaio ou a tentativa de fugir à arbitrariedade.

Clara foi abordada por dois agentes. Olharam para o cartão de identidade e para o rosto dela, macerado pela droga. O mais velho ficou surpreendido:

– Só tens catorze anos?

– É verdade.

– Onde moram os teus pais?

Clara estava tão assustada que não foi capaz de dizer que não sabia.

– Moro em Moscavide, ao pé da estação.

O polícia voltou-se para o colega e comentou:

– Não tem idade para a levarmos. Metam-na num carro e entreguem-na aos pais. Faremos o relatório para a Protecção de Menores tratar da miúda.

Na verdade, desta vez a vaga de bastões e ordens gritadas tardava. Indicações e decisões discretas, sem o mínimo de alarido. Só o ruído dos automóveis que cercaram a casa de Diana pelo lado norte. Os restantes veículos, que cruzavam a rua lateral, nem se ouviram.

Augusto tocou à campainha. Atrás dele, cinco outros inspectores preparavam-se para a busca. Ninguém respondeu. Tornou a tocar, impaciente, e só quando gritou:

– Ou abrem ou arrombamos a porta! – uma janela do piso superior abriu-se e Nicha espreitou.

– O que foi? – perguntou para ganhar tempo.

– É a polícia. Temos mandados de busca. Abra a porta!

– Só um momento.

– Carlos aproximou-se de Augusto e sugeriu em surdina.

– Desconfio de que esta demora deve-se ao facto de estarem a fazer desaparecer a cocaína pela sanita.

O outro meneou a cabeça.

– Não. A malta da droga já lhe fez não sei quantas buscas e nunca encontrou um grama de pó. Se a esconde em casa, está em sítio tão seguro que confia que não chegaremos lá.

De súbito, ficaram alerta. No interior rebentou uma confusão de gritos e ruído de móveis, palavras surdas, tensas, incompreensíveis, e pelas escadas parecia descer uma avalanche de pedras a ribombar contra os degraus.

Augusto gritou:

– Afastem-se!

Não houve tempo para mais do que um salto para trás. A porta abria-se e surgiu Tosta Mista de arma empunhada. Disparou contra o inspector que estava mais perto. O estampido do tiro rasgou o silêncio e o polícia rodou sobre si próprio, caindo desamparado. Disparou outra vez e um segundo inspector embateu com estrondo na viatura, devido ao impacto do projéctil. O ataque de surpresa parecia surtir efeito e Tosta Mista ainda conseguiu ultrapassar o primeiro grupo de inspectores. Apontava a um outro elemento mais afastado quando a reacção policial pôs termo à aventura. Uma saraivada de tiros obrigou Tosta Mista a recuar, a recuar cada vez mais até cair de costas junto à porta de Diana. A vida escapava-se-lhe rapidamente pelos três buracos que sangravam no peito. E os headphones caíram-lhe da cabeça.

Augusto e Carlos, seguidos dos inspectores que restavam, entraram de rompante de armas empunhadas. A morte de um colega e outro ferido com gravidade punha um ponto final no respeito pelo direito. A raiva era maior do que a norma que o Estado lhes impunha. Não existe lei que comande a desordem irracional. Os homens criaram-na para ser aceite por pensamentos adequados ditados pela razão. O direito não conhece o campo de batalha nem a explosão de emoções que rebenta como fogo-de-artificio de mil cores, que é medo e ódio, pranto e crueldade, forma de morte e de vida intensa, emergência libidinosa de possuir a vida do antagonista, varando-o a tiro, como se o violasse, até sentir o odor da morte e da pólvora enchendo a atmosfera.

Nicha percebeu essa fúria homicida quando eles surgiram em turbilhão pela sala. Largou o lingote de ouro e levantou os braços em sinal de rendição perante a exaltação assassina daqueles homens. Estava dentro de um filme, pensou, e só se assustou a sério quando viu Augusto de arma apontada a Diana. Então, Nicha tornou-se numa leoa esfomeada. Atirou-se a Augusto, mordendo-o e tentando arranhá-lo. O inspector afastou-a com uma coronhada violenta e procurou, com a arma, salivando de prazer, a cabeça de Diana. Ela escapava-se por uma janela das traseiras, abraçada a outra barra de ouro. A mulher ficou imóvel a olhar o orifício negro da arma que o polícia lhe apontava. Foram fracções de segundos em que viu no olhar dele o mesmo brilho de lascívia que sentira nos seus de cada vez que retirara a vida a alguém. Ele desejava a dela, possuí-la, colocar-lhe o pé sobre o cadáver, como se fosse um troféu de caça. Nesse momento, Diana sentiu medo. Descobriu que não queria morrer, porém nem força tinha para suplicar clemência. Carlos tocou com o ombro no outro, enquanto baixava a arma.

– Pára. Matá-la não resolve nada.

Augusto não ouviu. Estava demasiado faminto de morte e o colega viu o dedo dele premir o gatilho. Só teve tempo de lhe empurrar a arma e o projéctil perdeu-se algures numa estante com livros. A mulher, com o choque, caiu de joelhos, cabeça baixa, à espera da execução. Carlos interpôs-se entre os dois e gritou, colérico, com o companheiro de trabalho:

– Não somos iguais a eles. Não podemos ser!

Carlos correu para Diana, agarrou-a pelo pescoço e deitou-a no chão. Ela largou a peça de ouro, quando o polícia a algemou. Augusto ainda a tinha na mira e arfava de fúria assassina.

– Pára, Augusto!

– Ela não merece justiça! – gritou.

– Muito menos merece que te tornes num assassino. Baixa a arma – ordenou Carlos.

– Afasta-te! – retorquiu o outro inspector, desvairado.

– Não! – e Carlos cobriu-a com o corpo. – Se a quiseres matar, tens de me abater primeiro. Larga a arma!

A discussão ia sendo fatal. Quando Carlos percebeu o movimento, era tarde. Apenas o instinto o salvou de piores danos ao esquivar-me do punhal com que Nicha procurou mais uma vez atingi-lo para salvar a vida da sua amada de sempre. Anulou o ataque com um pontapé no rosto da mulher. Augusto sangrava do braço e baixou a arma.

O seu olhar cruzou-se com o de Carlos. A cumplicidade reforçava-se em momentos tão decisivos como aquele que acabavam de viver. Sabiam que nenhum dos dois tornaria a falar sobre o vendaval de emoções que envolvera a captura das duas mulheres. O silêncio é seguramente o melhor recanto da alma que alimenta o esquecimento.

Passaram-se muitos meses desde esse dia de morte e infortúnio para o bando de Diana. Era agora um conto. Uma história fantástica, que mirrava ou empolava conforme o entusiasmo do narrador. Os contos são mesmo assim. Vivem associados ao tempo e à paixão do contador. Por vezes, breves. De outras vezes, quase infinitos.

Neste caso, o seu melhor narrador era Bazófias. Quando amainou a tempestade, teve consciência de como a matilha lhe era dedicada e afeiçoada. Nenhum deles confessou à polícia que o célebre traficante de ouro François Ivanoff não passava de um velho burlão reformado que vendia minis no Águias do Estrela Polar. Regressou e expulsou Almerinda, que se juntara com o Dragão, rapaz rijo de braços e viril, e assaltante à mão armada, que conhecemos no início desta história. Ela adorava homens com tatuagens no corpo.

Ficou sozinho à frente do café. Por vezes, sentia saudades do bando de patifes que transformaram o bairro no melhor supermercado de panfletos e drunfos que houvera na cidade. Agora era a matilha do Dragão que comandava os destinos do Estrela Polar. Mais cruéis e com menos qualidade comercial. Começou a surgir droga marada e os janados passaram a procurar outras paragens.

Quando o Águias murchava de actividade, sonolento e preguiçoso, Basófias sentava-se, nostálgico, ao lado do velho Jeremias e contava o conto de fadas em que transformaram os dias de Diana e do seu bando. E tratava-a sempre por rainha dos desvalidos.

 

 

                                                                  Francisco Moita Flores

 

 

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