Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BEIJO DE PRATA / Annette Curtis Klause
O BEIJO DE PRATA / Annette Curtis Klause

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

        A garganta dela começou a pulsar com vida perto de sua boca e ele sentiu-se atordoado com o aroma suave e quente. Tratou de controlar-se, mas não pôde: ela estava muito perto, disponível. As presas saíram de sua boca.

        - Acredite nisto – suspirou e beijou-lhe a nuca brandamente. - E nisto, e nisto.

        Então ela recebeu o beijo agudo, o beijo de prata, rápido, verdadeiro, tão cortante como uma navalha e ele se impregnou do calor dela. Sentiu como ela entrava em seu corpo, cálida e doce.

 

 

 

 

     A casa estava vazia. Sofia soube no momento em que entrou. Somente o tic tac do relógio na cozinha desafiava o silêncio.

     O temor apoderou-se dela de novo. Mami, pensou, como se fosse uma criança. Será que ela está de novo no hospital ou piorou? Deixou a bolsa da escola no corredor e, esquecendo-se de que a porta estava aberta, dirigiu-se lentamente à cozinha, com medo de ver a mensagem que a esperava. Havia um bilhete no refrigerador:

 

“Estou no hospital. Não se preocupe. Prepare comida para você. Volto quando puder.

Amo você, Papai.

P.S. Não me espere acordada.”

 

     Amassou o bilhete e o atirou na lata de lixo, mas não acertou o arremesso. Bufou, com raiva. Parecia que, ultimamente, todas as conversas com o pai tinham um ímã de geladeira na forma de uma banana como intermediário. O ímã fala, pensou ela. Defendia o refrigerador e evitava que ela o abrisse. De todas as formas, não podia comer.

     Chamavam-na Sofia, o pássaro, no colégio. Sempre havia sido magra, mas agora se viam seus ossos, e os pulsos e juntas refletiam sua angústia. Parecia tão fraca como a mãe, que estava no hospital, tomada pelo câncer. Morte por identificação, pensou ela, meio de brincadeira, meio a sério. Afinal de contas, sempre a tinham comparado com sua mãe. Tinha os mesmos olhos cinza, o cabelo comprido e negro com um leve ondulado e uma pele incrivelmente pálida, que se ruborizava ante qualquer estímulo. Não seria irônico se ela também morresse, desaparecendo ao mesmo tempo que sua sósia?

     Sofia saiu da cozinha sem saber o que fazer. Como podia lavar os pratos ou cuidar da limpeza sem saber o que ocorria com sua mãe no hospital? Tirou o casaco e o deixou sobre uma cadeira. Seu pai insistia em que tudo estava bem, mas, e se algo acontecesse? Ela não estaria ao lado da mãe simplesmente porque o pai não era capaz de admitir que a esposa estava morrendo?

     Ela esticava o casaco, mexia no cabelo - as mãos não deixavam de mover-se. Já deveria estar acostumada, pensou. Levavam mais de um ano nesta situação: longas temporadas no hospital, curtas estadias em casa, semanas de esperança para depois vê-la recair, e ainda havia os tratamentos, que eram piores do que a própria enfermidade. Mas acostumar-se à situação não seria correto, pensou ela. Antinatural. Acostumar-se, seria como render-se.

     Deteve-se na cozinha, cuja mobília resumia-se a uma antiga mesa dobrável e assentos quase todos combinando, mas as paredes eram uma exposição em honra à sua mãe. Exibiam um amplo conjunto de óleos grandes, alegres e chamativos, pintados por Anne Sutcliff: quadros carregados de uma emoção intensa, cheios de gente rindo, que saltava, rodopiava e cantava. Como minha mãe, pensou Sofia. Era nisso em que se diferenciavam, porque Sofia escrevia poesia cheia de silêncios, escuridão e perguntas. Além disso, não é boa, pensou ela. Eu não tenho talento, ela tem. Eu deveria ser a doente; ela tem muito mais para oferecer, muito mais vida. “Você é sombria”, dizia sua mãe às vezes, surpreendida. “Você é um mistério.”

     Quero ser como eles, pensou, quase numa súplica, enquanto tocava a pintura para sentir as pinceladas e tratar de absorver um pouco de seu calor.

     A sala era fresca e cheia de sombras. Os reflexos de luz no teto, que via através da janela, pareciam luzes brincando na água, e as cores esmaecidas recordavam mundos submersos. Talvez encontrasse um pouco de paz ali, e recostou-se no sofá.

     Concentre-se somente no espaço físico, disse a si mesma. Este mesmo espaço, que sempre esteve aqui e sempre estará – isso não mudou. Vou fazer de conta que tenho cinco anos; mamãe está preparando o jantar mais cedo porque eles vão a uma festa, e Sarah virá cuidar de mim. Logo irei brincar com minha casa de bonecas.

     Claro que isto não durou, então, decidiu abrir os olhos e alongar o corpo. Seus dedos agarraram o jornal, que ainda estava jogado no sofá. Folheou as páginas com pouco interesse, mas o título gritava: MÃE DE DUAS CRIANÇAS FOI ENCONTRADA MORTA. Seu estômago contorceu-se. Uma mãe encontrada morta, pensou, amargamente. Poderia ser a mãe de qualquer um. Não pôde evitar seguir lendo. A garganta da vítima fora cortada, dizia o artigo, sem deixar vestígios de sangue.

     _ Isto é absurdo – disse em voz alta. Seus dedos apertaram o papel com raiva. Atirou o jornal para longe. Levantou-se com dificuldade e foi para o quarto.

     O telefone tocou antes que chegasse às escadas. Hesitou um instante, mas correu para o aparelho e atendeu. Ouviu uma voz familiar, mas não era seu pai.

     _ Sofia, é horrível. – Lorraine, sua melhor amiga, gritava na linha, com aquele típico e familiar tom dramático. Deveria sentir-se reconfortada.

     _ O que é horrível? – perguntou Sofia, com a voz entrecortada e o coração pulsando com força. Será que o hospital ligara para Lorraine por não tê-la encontrado?

     _ Vamos embora.

     _ O quê? _ Houve um momento de confusão.

     _ Papai conseguiu o trabalho no Oregon.

     _ Oregon? Por Deus, Lorraine. É como ir para outro planeta.

     _ Quase.

     Sofia sentou-se na cadeira que havia ao lado da mesa do telefone. Não era seu pai. A morte não a chamava, mas…

     _ Quando? – perguntou.

     _ Em duas semanas.

     _ Tão rápido? – Sofia enrolava e desenrolava o fio do telefone. Isto não está acontecendo, pensou.

     _ Precisam dele imediatamente. Viaja esta noite. Pode acreditar nisso? Vai procurar uma casa assim que estiver lá. Quando cheguei em casa, Diane estava pesquisando companhias de mudança.

     _ Mas você disse que seu pai não havia decidido.

     _ Isso mostra o quanto estou por fora das coisas aqui em casa, não acha? Diane sabia de tudo.

     Sofia pensava em alguma coisa para dizer. Poderia impedir? Não estava assustada com o fato de tudo estar acontecendo rápido demais?

     _ Ah, e ela acha que a mudança é genial. Não há risco de contaminação nuclear e ela ainda vai poder cultivar hortaliças. Acredita nisso?

   _ O que sua mãe disse?

     _ Ela pouco se importa se ele vai para a Austrália, mas está bastante aborrecida por estar me levando com ele.

     _ Não pode ficar com sua mãe? _ Por favor, por favor, Sofia suplicava, em silêncio.

     _ Você sabe que é uma batalha perdida. Eu atrapalharia seu estilo de vida.

     _ Lorraine! Ela não é tão terrível.

     _ Ela foi embora, não foi?

     Era perda de tempo insistir no assunto, pensou Sofia.

     _ Oregon – disse, suspirando.

     Lorraine gemeu.

     _ Eu sei! É horrível, porque, além disso, é como viver no campo. Eu não estou pronta para viver no campo. Poderia ficar com você – acrescentou, esperançosa.

     _ Vou perguntar – respondeu Sofia, mas ambas sabiam que neste momento seria impossível.

     _ Tudo bem.

     O que vou fazer?, pensou Sofía.

     _ Sempre pode me visitar. – Soava como uma sugestão patética.

     _ Grande coisa!

     _ Eu sei. _ Pode vir aqui? – perguntou Lorraine.

     _ Não. É melhor eu ficar aqui.

     _ Oh! Aconteceu alguma coisa ruim?

     _ Ela está novamente no hospital.

     _ Maldição.

     Agora, ela vai ficar calada, pensou Sofia. Por que não podemos falar do assunto? Por que tem que se afastar de mim cada vez mais? É minha melhor amiga, droga, não é como os idiotas do colégio que ficam constrangidos só de olhar para mim. Tentou continuar a conversa e, assim, manter Lorraine na linha.

     O silêncio aprofundou-se.

     _ Escute – Lorraine começou _, você não está realmente com vontade de falar, eu sei. Quando tiver notícias, me avise, de acordo?

     Não, é você que não quer falar, pensou Sofia, mas, ao invés de desabafar, disse: _ Ok.

     _ Está bem. Falamos depois. – Entretanto, não desligou. _ Sofia? Sabe que adoro você. Como se fosse minha irmã. – Ela falou atropeladamente, para disfarçar o acanhamento. _ Me liga.

     _ Claro. – Sofia sorriu, fazendo uma careta. Não falariam a respeito. _ Até mais.

     _ Até logo. Força, amiga _ sussurrou Lorraine, antes de desligar.

     Sim, eu sei que ela se importa, Sofia falou para si mesma. Simplesmente não sabe lidar com isso. E quem é que sabe? Mas, de qualquer forma, Sofia estava aborrecida. Antes sempre conversavam. Geralmente era Lorraine que escolhia o tema, mas podiam falar uma com a outra. Agora, Lorraine iria partir. Por acaso era o fim do mundo?

     Sempre foram amigas. Que mal tinha deixar as coisas como estavam? Por que você tem que mudar tudo? Queria gritar para um Deus que ela sequer estava certa de que existia. Está me castigando? O que foi que eu fiz?

     Tudo aquilo a deixava exausta. Preciso dormir, decidiu.

     Subiu as escadas, consciente de que o sono tinha substituído sua alimentação ultimamente. Deitou-se sobre o edredom para descansar e desligar-se da realidade por um momento.

     Despertou de um salto, lutando com os sonhos. Reconheceu ruídos de uma porta sendo fechada, que podiam vir da porta principal ou de sua própria porta. Levantou-se ainda cansada e desceu as escadas. Escutou sons vindos da cozinha. Entrou e encontrou seu pai preparando uma tigela de cereal. Estava pálido e tinha olheiras.

     _ Por Deus, Sofia, a porta estava aberta!

     _ Desculpe-me. Certamente esqueci. Não havia ninguém. Acabei me assustando e encontrei o bilhete. _ Como fui esquecer a porta?

     _ Não pode simplesmente deixar as portas abertas, Sofia. Santo Deus, leia os jornais.

     Jornais?, pensou ela. Estava falando do artigo? Por que a incomodava com aquilo? Ele não se importava com nada.

     _ Eu estava aqui.

     _ Sim, eu sei. Vi sua bolsa. Revistei seu quarto. – Sua voz se acalmou. _ Dormindo outra vez, Sofia? Não está dormindo à noite?

     Ela não respondeu. Se ele passasse um pouco mais de tempo em casa, saberia.

     Ver o cereal deu-lhe fome, finalmente. Vasculhou a geladeira e encontrou uma caçarola com atum, que Carol, a amiga de sua mãe, tinha deixado fazia três dias, e que seguia intacta, com as beiradas começando a estragar. Carol era uma pessoa querida e generosa, mas não sabia cozinhar. Sofia guardou o atum e sentou-se com seu pai para comer o cereal. Pensou que poderia engolir o cereal, pelo menos.

     Seu pai a olhava. De repente, arrependeu-se por ter se aborrecido. Ele estava triste e não era culpa dele se tinha que passar tanto tempo no hospital, ou no trabalho, para poder pagar um quarto particular. Talvez fosse mais fácil para ele, se toda a família não estivesse na Califórnia. Poderia me deixar ajudar mais, pensou, mas sabia o que ele ia responder: pode ajudar evitando que sua mãe se preocupe.

     _ Como está mamãe? – atreveu-se a perguntar.

     _ Não muito bem desta vez, amor. Continua tratando de manter o ânimo, mas se debilita cada vez mais.

     _ Ela vai ficar lá? – Por favor, diga que não, pensou Sofía.

     _ Sim, algumas semanas. Talvez mais.

     Sofia viu a expressão de dor em seu rosto e as lágrimas que tratava de esconder. Talvez para sempre, pensou ela. Sim, desta vez é para sempre, mas ele não é capaz de me dizer isso.

     Os dois comeram em silêncio, mecanicamente. Não aproveitavam, de fato, aquele momento, agiam como quem cumpre uma obrigação. Seu pai convertera-se novamente em Harry Sutcliff, o homem cuja esposa morria pouco a pouco e que havia esquecido que tinha uma filha.

     Várias vezes ela ensaiou falar, mas as palavras ficavam presas em sua garganta.

     _ Pai? – conseguiu dizer, com esforço.

     _ Humm? – Seu olhar era distante.

     _ Sobre Lorraine...

     _O que aconteceu? Tiveram alguma briga? – respondeu vagamente.

     Não estou na escola primária, queria berrar, mas falou em tom suave e cuidadoso:

     _ Está se mudando.

     E, então, ela estava quase chorando. Tudo o que queria era que a abraçasse, porque necessitava tanto de conforto…

     _ Ora, isso é emocionante – ele disse, sem entender o que se passava com ela. Continuou sorvendo o leite, sem se dar conta.

     Ela conseguiu conter as lágrimas. Um nó apertava sua garganta, sufocava. Onde estava o pai que a teria escutado e tentado compreender? Ele nem sempre a entendia como sua mãe, mas, ao menos, tentava. Imagino que está aí, em algum lugar, pensou ela. Não disse mais nada; a vida de seu pai já estava bastante destruída para que ela acrescentasse mais problemas.

     Mamãe, sim, saberia o que fazer, pensou Sofia, inclusive agora. Se apenas a deixassem ficar com ela por mais tempo. Parecia que, no exato momento em que ordenava o pensamento e decidia o que falar, sempre mandavam que se retirasse. Ninguém a escutava.

     _Vou sair um pouco para caminhar – disse ela, abruptamente. Se não saísse dali, perderia o controle. Pegou a jaqueta do closet. – Até logo!

     _ Não demore – disse seu pai.

     Será que não percebe como é tarde?, perguntou a si mesma, enquanto caminhava. Quase dez horas. Não se preocupa com as notícias dos jornais?

     A noite estava límpida, doce como as maçãs. Uma lua cheia pendia do alto, gorda e brilhante. Dirigiu-se para o parque mais próximo. Era um terreno na esquina da rua, com algumas árvores e uma grossa massa de arbustos perto do centro. Havia balanços, um carrossel, uma gangorra e três maltratados animais sobre molas, nos quais as crianças se podiam mover para frente e para trás como se estivessem bêbadas, até que seus traseiros estivessem muito doloridos para continuar sentadas neles.

     Sofia adorava vir à tarde e percorrer o parque, principalmente depois que os pequenos frequentadores iam para casa. Esperava que não chegasse o momento em que, em favor da segurança, fossem colocadas luzes para iluminar melhor a área. Ela gostava do jeito que estava agora, com os poucos pontos de luz formando piscinas douradas nas sombras misteriosas.

     Tinha três bancos inteiros para escolher e se acomodou em seu favorito. Ficava voltado para a estrutura localizada exatamente no centro do parque. O pequeno e belo quiosque sempre a fascinara. Estava rodeado por escadas, como um carrossel, e as laterais permanentemente abertas simulavam paredes. Sempre pintado de branco, lembrava um diminuto palácio indiano. Ela tinha escutado que, anteriormente, uma banda tocava ali, nas tardes de domingo; agora, os meninos usavam-no como refúgio, quando chovia. Conte-me sua história, pensou ela.

     A luz da lua iluminou o quiosque, enfeitando-o com um tom prateado, mas havia uma sombra, que não fazia parte das sombras naturais do lugar, escondida em seu interior. E a assustou. Agarrou-se à borda do banco e se inclinou para frente, para mais perto da escuridão, tentando compreender o que seus olhos viam. Viu alguém dentro do quiosque.

     Uma figura isolada em meio às sombras. Sentiu a boca seca. Mãe encontrada morta, pensou. Caminhou até lá e colocou-se sob a claridade, no lado mais próximo; por um momento, pensou em correr. Depois, viu seu rosto.

     Era jovem, mais um menino do que um homem, magro e pálido, parecendo um ser sobrenatural sob a luz do luar. Ele a observou e ficou paralisado, como um cervo diante de um rifle. Ficaram estáticos, olhando-se fixamente. Os olhos dele eram negros, cheios de mundos e de estrelas, mas tinha a face pálida, quase tanto quanto os cabelos, muito claros.

     Sofia notou, quase com desespero, que era bonito. As lágrimas que apareceram em seus olhos romperam o encanto, e ele saiu correndo, enquanto ela chorava por todas as coisas perdidas.

 

Simon limpou o sangue da ratazana da boca. Não o satisfazia tanto quanto o sangue humano, mas, por hora, era suficiente. Não havia encontrado comida no parque, exceto a menina, é claro. Ficara surpreso e não gostava de surpresas; mas, agora, lembrava-se da forma como ela sustentara seu olhar e do sutil ambiente de medo que pairava no ar noturno.

Ficara vinte minutos agachado no beco, atrás de um conjunto de lojas, emboscando e caçando. Agora eles estavam escondidos, os ratos. Sabiam que algo estava acontecendo; um gato grande, pensou ele, e um sorriso apertado e radiante surgiu em seus lábios.

Tinha que continuar. Levantou-se e esticou os braços finos e musculosos para o céu. Vestia somente uma camiseta, apesar da noite de outono estar fresca. A camiseta era negra como seus jeans. Ele gostava da cor preta. Sombras, pensou. Noite. Sentia-se bem vestido de preto, entretanto os cadarços de seus sapatos eram vermelhos. Sangue, ele sussurrara esta noite na loja, quando seus dedos se recusaram a recolocá-los no suporte. Entregou uma moeda de dez centavos à mulher que o observava receosa e correu para o beco, onde agora se encontrava, para colocá-los nos sapatos.

Aonde iria agora? Ao parque? Talvez a menina já houvesse ido embora, talvez não. Deveria ir de qualquer forma, pensou, e sorriu de novo, o mesmo sorriso de antes. Ela era bonita, obscura como a noite, mas magra, como se algum membro da irmandade já tivesse se alimentado dela. Simon franziu e relaxou o cenho. Não. Esse aroma não fazia parte dela. No entanto, havia algo voluptuoso a respeito da garota que o fazia recordar a morte. Seios grandes também, pensou, e sorriu para si mesmo ante suas peculiares preferências humanas.

Ela o assustara. Ele havia encontrado esse parque há duas semanas e ninguém passava por ali àquela hora da noite. Havia baixado a guarda; algo perigoso, tolo.

Não, não iria ao parque, decidiu. Poderia esperar. Ela se sentara no banco com muita familiaridade, como se fosse um hábito. Certamente, voltaria a vê-la.

       Em vez disso, visitaria a casa. Não era longe para ir andando dali e veria o que tramava o menino.

Simon saiu cuidadosamente do beco. Não era bom que o vissem aqui frequentemente e, além disso, era um local excelente para ir à caça; não queria perdê-lo. Caminhou pela calçada com os ombros curvados e as mãos dentro dos jeans, como se estivesse combatendo o frio. Quem sabe quem estaria olhando? Teria que conseguir um casaco.

A rua pela qual estava caminhando cruzava a rua Chestnut. Virou à direita e, na quinta casa, deteve-se, ao final de um pátio comprido.

Não havia luzes na parte traseira da casa, mas a lua iluminava o pátio. Simon se deslocou de uma sombra à outra, entre árvores e arbustos, como se ele mesmo fosse uma sombra, ou uma nuvem encobrindo a lua.

Chegou à casa feita de tijolos toscos e aproximou-se da árvore que ficava na esquina, na qual subiu, com a facilidade de um gato, para acomodar-se sobre um galho. Apenas moveu as folhas de outono que ainda pendiam dos ramos.

Podia ver a habitação e parecia sem identidade. As paredes estavam nuas, nada sugeria a personalidade do ocupante; mas havia, sim, um ocupante, deitado sobre a cama: um menino de seis ou sete anos sustentando um livro, lendo à luz do luar, com um urso de pelúcia ao lado. Você vai estragar seus olhos, menino, pensou Simon, e sorriu perversamente. O livro era mais grosso do que alguém esperaria para um menino dessa idade, e a curiosidade para saber o título estava deixando Simon louco.

Ocasionalmente, o menino abafava uma risada e sacudia a cabeça, movendo seu delicado cabelo branco sob a claridade da lua.

A porta se abriu. O ouro substituiu o prateado, quando a luz do corredor alagou o quarto. Uma moça estava à porta, sorrindo ao ver que o menino escondia o livro sob o lençol.

– Christopher – disse-lhe, brandamente –, é um pouco tarde para estar brincando. É quase meia-noite. Relaxe e vá dormir.

– É pra já – respondeu o menino, abraçando o travesseiro. A mãe mandou-lhe um beijo e fechou a porta ao sair.

Simon viu que o menino continuou acordado, desafiando o sono, ainda sorrindo. Havia um uivo preso na garganta de Simon, que ele mal conseguia conter e que o estava sufocando.

Desceu da árvore antes de denunciar-se. Não era nem o local nem o momento.

Abaixo, ouviam-se ruídos na cozinha. Estavam guardando pratos, e duas vozes sonolentas falavam. Aproximou-se da janela para escutar.

– … já deveria estar dormido – dizia uma voz de homem.

– Mas é difícil para um menino – respondeu a mulher – ajustar-se a um novo lar.

– Já se passou um mês.

– Sim, mas depois de um ano na casa anterior, e Deus sabe onde antes…

– Sim, creio que você tem razão.

– É um menino doce.

– Um pouco calado.

– Oh, será um gênio. Você verá.

O homem riu.

– Já tem tudo planejado, não é?

– Claro. Prêmio Nobel.

Ele riu de novo.

– Vamos para cama. – A luz se apagou.

– Tudo vai ficar bem, acredite – disse a mulher. – Não se pode esperar perfeição quando se adota uma criança mais velha.

– Sim, que pena ele também ter aquela pele delicada.

– Muito sensível. Talvez se nós… – Sua voz perdeu-se no interior da casa.

Simon sentou-se entre os arbustos por um longo instante.

Inspirou a essência da noite, fez planos e os abandonou. Não havia movimento na casa, os sonhos ressonavam nas janelas; exceto em uma, onde a fome escura o chamava.

Finalmente, quando Simon escutou o primeiro pássaro da manhã, levantou-se com um único e ágil movimento. Seu corpo não se queixou ante a interrupção da vigilância. Era como se apenas alguns segundos antes ele se houvesse sentado para observar. Em silêncio, abandonou o pátio da mesma forma como havia chegado e, acompanhado pelos pássaros que despertavam, retornou ao que era sua casa nesta semana: um colégio abandonado na Rua Jennifer.

Retirou uma tábua de madeira e deslizou, através de uma janela quebrada, para o escritório do reitor. O quarto, sujo de pó e teias de aranhas, fora, em tempos passados, o inferno para os alunos de sexto grau, mas tudo o que restava agora era um velho arquivo, onde somente uma gaveta funcionava, e uma mesa com a borda oxidada e sem assento. Uns suportes presos à parede completavam o quarto, e o piso de madeira já havia visto dias melhores. Uma mala muito gasta repousava sobre um dos suportes.

Ao colocar a tábua de volta em seu lugar, o quarto ficava escuro.

O amanhecer conseguia entrar pelas frestas aqui e ali, finos raios que iluminavam alegres montinhos de pó, mas não penetravam a escuridão. Isto não incomodava Simon, porque ele não precisava de muita luz para enxergar. Pegou a mala, colocou-a sobre a mesa e a abriu. Dentro, havia uma pequena pintura, um retrato, com moldura dourada. A pintura mostrava uma família: um homem, uma mulher com um bebê nos braços e um menino pequeno. O óleo estava velho e rachado. Na parte inferior da pintura havia terra, terra seca e negra, quase volátil como os montículos de pó no quarto. Simon acariciou a tela com os dedos e suspirou.

Este era seu sonho; a terra de sua pátria. A terra onde ele teria descansado eternamente - se tivesse morrido de verdade - ainda possuía o poder de lhe transmitir um pouco de paz. Era, talvez, uma prova dessa morte o que o renovava. Sem isso, se perderia no infinito e se converteria em uma coisa murcha, sem possibilidade de movimentar-se, alimentar-se; mas, ao mesmo tempo, sem poder morrer. Um inferno em vida.

Aproximou a pintura dos lábios e a beijou brandamente, devolveu o retrato à mala, fechou-a e trancou os cadeados. Necessitava descansar, mas não aquele transe comatoso que muitas vezes o dominava. Sempre sabia quando iria acontecer, pois ocorria depois de uma intensa sessão de alimentação; depois de alimentar-se de um humano. Agora, só precisava de um período de letargia para recarregar as forças, por assim dizer. Levantou a mala da mesa e a empurrou para o interior do vão no qual se deitou em seguida. Abraçou-a como se fosse um tesouro.

Permaneceu ali por um momento, com os olhos abertos, olhando para o outro lado do quarto e para o colégio. Antes de dormir, pensou, por um instante, novamente na menina. Bonita, sussurrou, pálida como a morte, magra, pungente como a dor; minutos mais tarde, elevou-se em direção às estrelas.

 

     Sofia saiu da biblioteca cedo. Não tinha sentido ficar sentada sem fazer nada, exceto fitar a parede, a janela, o relógio - tudo menos escrever. Sua folha de caderno fora preenchida com uma série de esboços de começo. Naquele ritmo, não teria nada para mostrar à Sra. Muir na aula de amanhã.

     Quero escrever sobre minha mãe, pensou, mas tudo parecia tão comum, e ela sabia disso. Queria escrever algo importante para jogar na cara da morte. O problema era que ela não queria que a Sra. Muir se inteirasse sobre sua mãe. Não queria que ela dissesse: ­­“pobre menina”, ou algo horrível sobre o destino que Deus nos reserva, como a vizinha fizera, de modo que não conseguiria ser totalmente honesta, e poesia sem sinceridade não funcionava. A questão é que, se não puder escrever sobre minha mãe, não posso escrever nada mais, pensou Sofia. Ela é o mais importante! Deus! Realmente estou descuidando do colégio.

     O estudo livre era o que havia de mais próximo à aula perfeita, mas, se continuasse assim, desperdiçaria o trimestre. Não posso ir mal nos estudos, pensou, mamãe já tem preocupações suficientes.

     _ Maldição! – grunhiu, rangendo os dentes, enquanto brigava com seu armário.

     Era sempre assim. Pensou em chutá-lo; entretanto, ficou somente olhando.

     _ Não vai se desintegrar, não importa o quanto olhe para ele – disse uma voz a seu lado.

     _ Lorraine! Não a vi chegar.

     _ Deve-se andar em silêncio quando se falta a tantas aulas como eu.

     _ Outra vez?

     _ Para quê? De toda forma, vou me mudar, não é? Bem na metade do semestre. E vou começar em outro lugar justo na metade do semestre. Para isso, posso esperar até depois do Natal. De qualquer modo, valeu a pena ver como usava sua visão de raio X.

     Sofia sorriu, mas, ao mesmo tempo, ficou triste, enquanto observava Lorraine abrir o fecho do armário. Quem a faria rir quando Lorraine já não estivesse mais ali? Quem mais ignoraria de maneira descarada seu pedido de paz e silêncio e a obrigaria a ir a uma festa?

    _ Venha ao banheiro comigo – disse-lhe Lorraine, enquanto colocava seus livros dentro do armário e retirava o almoço. _ Estamos no intervalo, então podemos respirar um pouco. – Procuraram o que se encontrava mais perto da cafeteria.

     _ Sinto muito sobre ontem à noite – disse Lorraine, passando pelas portas giratórias.

     _ Não há por que se desculpar – disse Sofia, surpresa.

     Poderia ser tão otimista a ponto de pensar que Lorraine estava pronta para falar? Pararam em frente ao espelho, e Lorraine pegou uma escova para tentar arrumar o cabelo crespo e rebelde de cor castanha.

     _ Já era hora de trocarem estes benditos espelhos – disse, zangada. _ Estão todos rachados.

     Finalmente, deixou a escova e encarou Sofia, que viu a expressão de sua amiga mudar subitamente. Ai, Deus…pensou Sofia.

     _ Sofia, não quero me mudar – disse Lorraine, quase chorando. _ Não terei amigos, terei que começar de novo.

     As esperanças de Sofia desapareceram. Pensou que iriam falar dela e quase chorou também, mas abraçou Lorraine e disse:

     _ Calma, calma. _ Estava perdida. Em silêncio, pensou, como posso te ajudar se não posso ajudar a mim mesma? Isto é incrível. Supunha que Lorraine era a mais forte. Mas ela não se comportava assim. O mundo estava invertido de novo.

     _ Sinto muito – disse Lorraine, com a voz entrecortada, depois de um momento. _ Não tenho direito de me sentir assim. Eu apenas vou me mudar, mas você… _ Chorou de novo.

     Não consegue falar, pensou Sofia. Ambas sabiam o que ela queria dizer, mas não era capaz. Não quero sua piedade, pensou, e quase soltou a amiga, mas conteve-se. Lorraine, sim, gostava dela e não tinha culpa se as pessoas não sabiam como falar a respeito da morte. Nem o pai, nem os vizinhos, nem os amigos de mãe. O companheiro da morte é o silêncio. A emoção da amiga superou a frustração.

     _ Boba. Sabe que sempre pode me contar o que sente. Geralmente ninguém, e isso me inclui, pode deter você.

     _ É que me sinto tão egoísta.

     Sempre foi, pensou Sofia, mas nunca de propósito. Assim era Lorraine. Sofia podia contar com isso. Sacudiu brandamente sua amiga.

     _ O que vou fazer sem você?

     Isso trouxe mais lágrimas.

     _Vou sentir tanta saudade, Sofia.

     Abraçaram-se por um momento. Era incomum que Lorraine permitisse que a vissem tão frágil. Depois que a mãe fora embora, sempre sentira medo de desaparecer para sempre. Ou isso foi o que Sofia deduzira ao observá-la. Teremos outra coisa em comum, pensou Sofia, mas você ao menos poderá visitar sua mãe. Havia amargura neste pensamento. Sofia acariciou o cabelo do Lorraine, tratando de afastar o mau pensamento. Devia aproveitar aquele momento. Eu também estou assustada, preparou-se para dizer, tenho medo porque minha mãe vai morrer, meu pai vai chorar para sempre e eu estarei só, porque você também vai partir.

     Entretanto, nesse instante, soou uma campainha em algum lugar, avisando que o almoço começava. Droga, droga, droga, pensou Sofia.

     As portas abriram-se, e um grupo de meninas entrou intempestivamente, distribuindo cigarros. Lorraine soltou Sofia e rapidamente molhou o rosto. Uma loira com excesso de maquiagem ficou olhando as duas, sustentando o cigarro aceso em uma das mãos, em posição cuidadosamente estudada.

     _ Por acaso vocês são esquisitas? – perguntou, em tom de brincadeira.

     _ Pare, Morgan – disse Lorraine, abraçando Sofia com um gesto protetor. _ Sabe, pode quebrar o pulso segurando o cigarro desse jeito. – E Sofia sentiu que a retiravam do banheiro.

     As coisas voltavam à normalidade. Na cafeteria, sentaram-se à mesa de sempre, perto da porta traseira.

     _ Vou pegar um hambúrguer da morte – disse Lorraine, depois de mexer na carteira e erguer-se num movimento súbito. _ Guarde o lugar.

   Sofia sorriu afetuosamente diante do ímpeto de Lorraine.

     Justo no momento em que Lorraine se foi, duas meninas, que Sofia identificou como colegas da aula de física, sentaram-se no outro extremo da mesa. Desembrulharam sanduíches e começaram a falar, entre uma e outra mordida. Sofia sentiu-se culpada por escutar a conversa, mas era impossível não fazê-lo, estando tão perto. Ocorreu-lhe uma ideia para um poema _ algo acerca de um garoto mágico sob a luz da lua _, quando a palavra assassinato chamou sua atenção.

     _ Era prima da Sheila – disse a de cabelos negros dramaticamente, ao aproximar-se mais da mesa.

     _ De verdade?!

     _ Sim, encontraram-na degolada.

     A mais alta estremeceu.

     _ Deus, é como Jack, o Estripador, ou algo assim.

     _ Ugh! – disseram em uníssono.

     Lorraine retornou com o almoço, e a conversa ficou em segundo plano.

     _ Tem lido o jornal ultimamente? – perguntou Sofia a Lorraine.

     _ Não. Quem é que tem tempo pra isso? Por quê?

     Sofia olhou para as meninas na ponta da mesa, que ainda estavam entretidas com os detalhes do crime.

     _ Ah, acho que havia alguma notícia importante. Vi a manchete, mas não li. Pensei que você soubesse.

     _ Não, não sei. Chamam-me a senhorita esquecida – disse Lorraine, imitando a voz dos desenhos animados da manhã de sábado.

     Sofia riu para disfarçar o desapontamento. Era verdade.

     _ Esquece.

     À saída do colégio, seu pai aguardava. Viera buscá-la.

     _ Entre. Vamos ao hospital – disse, e foi a única conversa em todo o trajeto. Dirigiu totalmente concentrado, como se tivesse acabado de tirar a carteira, como se uma coisa pudesse bloquear todas as outras. Sofia o observava intensamente, esperando ouvir alguma notícia, mas nada. Queria dizer algo, o que fosse, para quebrar o gelo, mas não lhe ocorreu nada e, então, tinham chegado.

     As pessoas odiavam o cheiro dos hospitais, mas à medida que foram subindo, Sofia pensou que aquele não cheirava tão mal. Este pensamento a irritou, porque não podia acreditar que houvesse qualquer coisa agradável ali. Terminou destruindo um pedaço de papel que tinha no bolso.

     Ao chegar à porta, hesitou por um momento, com medo. Perguntou-se como estaria sua mãe desta vez. Seu pai abriu a porta e ela não teve escolha, a não ser entrar. A garganta de Sofia fechou-se ao ver a mãe, uma figura doente e frágil, com os braços mais feridos do que nunca por conta das agulhas e dos tubos.

     _ Mamãe? – disse, com voz quase embargada.

     As pestanas se agitaram e sua mãe abriu os olhos. Sorriu debilmente, e a pele, seca como um velho pergaminho, reclamou do esforço.

     _ Sofia – sussurrou em resposta, a voz vacilante. _ Querida... – A cama rangeu, à medida que ela se acomodava para poder sentar-se.

     O olhar da Sofia percorreu rapidamente o quarto. Detestou novamente as paredes com a típica cor verde, cuja decoração resumia-se à cena de uma paisagem, representando um bosque, e a um cronograma indicando os turnos de médicos e enfermeiras. O nome de sua mãe estava em cima da cama, para que cada turno soubesse quem ela era. O estojo de primeiros socorros, o armário, as gavetas e a cômoda estavam pintadas de branco, tão fáceis de limpar quanto o pálido piso de azulejo. Uma televisão esquecida inclinava-se para a janela.

     Seu pai a empurrou suavemente para a frente. Ela começou a sentar-se e, de repente, não estava muito segura. Olhou o pai, que lhe disse que sim, com um movimento da cabeça; então, sentou-se em uma cadeira perto da cama. Seu pai mostrava-se muito inquieto ao redor de sua mãe, ajeitando os lençóis, todo sorrisos, brincalhão. Sofia perguntou-se onde estaria o homem calado que a havia trazido até ali.

     Quando ficou satisfeito, concluindo que sua paciente estava confortável, ele acomodou-se na cadeira do outro lado do quarto, dando às duas espaço para conversar. Parecia encolher-se quando a esposa não o estava olhando. Sentou-se comodamente, com as mãos no fundo dos bolsos, e encarou Sofia com perguntas silenciosas que a preocuparam. Ela teria preferido que lhe perguntasse diretamente.

     _ Tem uma grande vista do estacionamento – falou ela.

     _ Alegro-me de que goste.

     Sofia surpreendeu-se do quão débil soava a voz de sua mãe, apesar do tom irônico. Tocou-lhe a mão e notou que a pele ao redor de seus olhos retesava-se _ isso significava dor. Da mesma forma, a outra mão de sua mãe torcia o lençol. Sofia não queria presenciar aquilo, doía vê-la assim.

     _ Está se alimentando? – perguntou a mãe.

     _ E você? – indagou Sofia, num tom firme, observando a bandeja de comida, que mal havia sido tocada.

     _ Touché.

     _Volta logo pra casa, mãe. Sofia sentiu que a mãe apertava sua mão brandamente.

     _ Tentarei, querida. Tentarei.

     Os olhos da Sofia ficaram marejados. Por favor, não chore, pediu a si mesma. Não faça com que se preocupe.

     _ Adivinha – disse, procurando um tema para conversar, _ a roseira ao lado da cerca ainda está florida.

     Sua mãe sorriu.

     _ Incrível. Não parece possível nesta época do ano, não acha?  

     Ficaram em silêncio por um momento. Sofia exasperava-se com o modo como os hospitais faziam você esquecer tudo o que queria dizer. Já é bastante ruim deixarem as portas abertas para que as enfermeiras possam entrar e sair, pensou ela, e meu pai ainda se comporta como se fosse uma espécie de porteiro.

     _ Só precisava te ver – disse sua mãe, finalmente.

     _ Tudo bem.

     _ Precisa comer mais, meu bem, e maquiar-se.

     Sofia sorriu e, soluçando, retrucou:

     _ Lembro-me de quando limpou meu rosto com uma toalha porque usava maquiagem e, agora, diz para eu usar. Estou tão mal assim?

     _ Claro que não, mas já tem a idade adequada. Além disso, deveria cortar o cabelo de uma maneira mais moderna.

     Sofia acariciou uma mecha do cabelo curto de sua mãe.

     _ Igual ao seu?

     _ Bom, meu estilo punk não foi exatamente escolhido – e sorriu. _ E é um pouco pretensioso para uma mulher velha como eu.

     _ Mas você não está velha – disse Sofia, com voz trêmula.

     _ Tenho sede – disse sua mãe, ainda hábil em evitar desastres. _ Sirva-me um copo de água, por favor.

     No momento em que Sofia foi apanhar a jarra, uma enfermeira apareceu no quarto e fez um aceno com a cabeça para o senhor Sutcliff, que as interrompeu.

     _ É suficiente por hoje – disse, sustentando os ombros de Sofia com firmeza e beijando-lhe a cabeça.

     _ Harry, não! – protestou a esposa, tratando de sentar-se na cama.

     _ Você sabe o que disse o médico – respondeu-lhe, inflexível.

     Estão me afastando de novo, pensou Sofia amargamente, mas aproximou-se e beijou a bochecha que a mãe aproximou dela.

     _ Não me levam a sério – disse sua mãe, quase pedindo desculpas.

     Fora do quarto, seu pai tratou de lhe dar dinheiro para o táxi e um pouco mais para a comida.

     Sofia não queria aceitar, mas o pai insistiu, fechando-lhe firmemente a mão com a sua, grande e áspera, ao redor das notas.

     _ O que disse o médico? – perguntou, encarando-o.

     Ele olhou de um lado para outro, como se tivesse medo de olhar para ela.

     _ Disse que suas visitas cansam sua mãe. Não quer que venha com tanta frequência, nem que fique tanto tempo.

     _ Papai! – saiu como um uivo.

     _ Sinto muito. As enfermeiras estão advertidas. Têm suas ordens – respondeu, fracamente.

     _ Não pode fazer nada? – perguntou.

     Finalmente, olhou em seus olhos.

     _ Sofia, acredito que suas visitas são boas para sua mãe, mas ele é o médico. Faremos do jeito dele por um tempo. Quero o melhor para ela.

     _ Então, está de acordo com ele…

     Ele conteve seus protestos, pousando-lhe carinhosamente um dedo sobre os lábios.

     _ Compre uma pizza e convide Lorraine para comerem juntas. Ela fará companhia a você – ordenou. _ Eu ficarei um pouco mais.

     Afagou-lhe a face e saiu, deixando-a no corredor.

     Que tal se eu começasse a gritar e a chorar e fizesse um alvoroço? Que tal se tivesse um chilique e implorasse para não me impedirem de vir?, pensou. Mas sabia que não podia fazer nada disso. Mordeu o lábio e se foi.

     Do lado de fora, encontrou um dos táxis que sempre estão atrás de passageiros. No caminho de casa, concentrou-se em quanto iria deixar ao motorista de gorjeta, para não ter que pensar na mãe, para não ter que pensar em mais uma noite sozinha.

     Pagou ao motorista diante de casa, mas, quando chegou, a porta não quis abrir. Colocou a chave no bolso da jaqueta. Não posso enfrentar este silêncio agora, pensou. É sufocante.

   Foi ao parque e ficou observando as crianças até o fim do entardecer, quando despediam-se do parque, próximo à hora do jantar. Era uma companhia que não exigia nada. Alguns tipos solitários vieram desafiar a noite, mas, à medida que as sombras faziam-se mais intensas e as luzes se acendiam, mesmo eles foram chamados de volta às suas camas quentes, em casas cheias de pais, irmãos, irmãs e televisões ligadas.

     Quem dera eu tivesse um irmão ou uma irmã, pensou ela. Alguém que se encarregasse das coisas. Eu não quero ter que ser responsável. Odeio lavar roupa. Odeio ter que recordar meu pai de que a conta de telefone precisa ser paga. Mamãe sempre cuidou de nós. A velha frustração reapareceu. Bateu levemente no joelho com a mão, na tentativa de acalmar-se.

     Acreditava já ter conseguido superar a raiva. Mas não. Não é culpa dela, disse Sofia a si mesma. É ridículo pensar isso. Não é que ela queira partir, mas papai se tornará um vegetal. Quem vai cuidar de mim?

     Uma brisa fria atravessou o parque, e as nuvens toldaram a lua. Sofia apertou mais a jaqueta contra o corpo. Tiraria os casacos mais pesados dos armários. Subitamente, sentiu um frio intenso, como se gelo estivesse descendo por suas costas.

     _ É uma bela noite – disse uma voz suave perto dela.

     Ela virou-se, com o coração batendo tão forte como se fosse desprender-se do peito. Um homem jovem sentara-se ao seu lado.

     A luz da rua o delineava contra os arbustos atrás como um anel de neblina em torno da lua. Sorriu para ela como faz um gato, escorregadio, sorrateiro.

     _ Assustou-me – sussurrou ela, com raiva.

     Quem era aquela criatura que invadia seu banco?

     _ Sinto muito – desculpou-se, embora seu olhar não expressasse consternação.

     Nesse momento, ela o reconheceu: era o mesmo garoto da noite anterior. Como se ele percebesse, disse:

     _ Estamos empatados. Você também me assustou.

     _ Por que você estaria assustado? – perguntou ela, irritada. _ É você quem se aproxima das pessoas e as assusta.

     _ Por que se assustou? – questionou ele.

     Sofia respondeu na defensiva:

     _ Não gosto de conversas evasivas.

     _ Você gosta de algum tipo de conversa?

     _ Não. Quero ficar sozinha.

     _ Acredito que já está sozinha.

     Fez menção de tocar sua mão, mas ela a puxou e pôs-se de pé. Como se atrevia a adivinhar a verdade e depois se aproveitava disso?

     Ele pareceu surpreender-se por um momento, mas, em seguida, seu sorriso reapareceu, e um olhar sonhador surgiu em seu rosto.

     _Por favor, fique _ disse-lhe, em um tom de voz que era quase um sussurro.

     Ele tinha olhos grandes, escuros e gentis. Sofia hesitou por um instante, ele parecia tão compreensivo. Não conseguia ver problema em falar com ele, mas, imediatamente, sentiu raiva de novo. Idiota manipulador, pensou.

     _ Não sei o que quer – falou ela _, mas pode procurar em outro lugar.

     Deu volta e se foi.

     _ Parece-me – disse ele, mostrando-se um pouco aborrecido – que garotas que se sentam sozinhas em um parque, à noite, é que estão procurando algo.

     Estava tão furiosa que queria gritar. Quase retornou, mas, não, pensou ela, isso é o que ele quer. Seguiu caminhando furiosa e, quando se deu conta, tinha chegado em casa. Por mais estranho que parecesse, sentia muita fome e, pela primeira vez em muitas semanas, comeu tudo. Enquanto comia, por um breve instante, foi acometida de um sentimento de medo.

     Ele seria perigoso? Será que a teria machucado? Não. Parecia um anjo de uma pintura renascentista. Poderia a beleza machucar?

     Simon observou a garota, enquanto ela se afastava com uma nuvem de raiva em torno dela. Estava confuso, porque ela não respondeu, como esperava que fizesse; esperava ter alguma ideia sobre ela, e ela o interrompeu com sua raiva. Interessou-se por ela e a seguiu.

     Deixou-se deslizar até um estado de desvanecimento, muito próximo da névoa. Era fácil, quase como sonhar, simplesmente soltar o corpo e flutuar. Sua consciência mantinha as moléculas unidas entre si, em uma cadeia de sonhos. Misturou-se às sombras e tornou-se parte do ar. Ela nunca o veria. Ele voou abaixo das árvores, resvalou   pelas paredes e procurou atalhos entre as flores mortas de outono. Não a perdeu de vista. Ela caminhava rapidamente, quebrando o ar frio com sua respiração.

     Geralmente, vinham até ele quando os olhos dele adquiriam a suavidade do luar, a voz soava como veludo. Permitiam que as acariciasse, inclinavam a cabeça para trás e perdiam-se nas estrelas, enquanto ele beijava seus pescoços expostos e se vangloriava de sua conquista. Algumas vezes as deixava ir e permitia-lhes pensar que tudo havia sido um sonho. Ele partia antes que o encanto desaparecesse de seus olhos, para deixá-las confusas e cambaleantes no frio da madrugada. Outras vezes, a fome era muito grande e ele as abraçava, cravando as presas bem fundo na carne macia de suas vítimas para alimentar-se do caldo grosso e quente que as mantinha vivas. Perdia-se no êxtase palpitante que se apoderava dele ao sentir o pulso do sangue e a vida esvaindo-se, até que o sangue, o terror e vida propriamente dita se enfraqueciam, e ele abandonava os restos da caça, seguindo ao encontro da escuridão dos sonhos.

     Ele deteve-se na cerca de madeira, vendo a garota entrar por uma porta verde com janelas em forma diamante. Ele tremia de desejo. A luz iluminou a casa. Ele moveu-se em torno da edificação, olhando pelas janelas como um voyeur, a quem se nega o prazer. Absorveu o calor das coisas que nunca teria: um tapete oriental, um armário antigo, azulejos de cor creme na cozinha e um quadro onde meninas riam, contentes. Seus olhos entristeceram-se. As meninas da pintura olhavam para ele.

     É apenas uma pintura, repreendeu-se, mas se sentiu enganado, e uma raiva interna ecoou em sua garganta.

     As luzes embaixo apagaram-se e uma outra se acendeu no andar superior. Ela vai dormir, pensou, e invejou o descanso que ele próprio não teria.

     Caminhou pelo jardim _ preparado para fugir, se fosse necessário _, examinou as janelas do porão e as portas da garagem. Ele não podia entrar sem ser convidado, mas gostava de conhecer as entradas e saídas, caso precisasse usá-las.

     O animal estava próximo à superfície hoje.

     Recordava-se da primeira vez em que se modificara, quando percorreu as matas como uma fera, durante o que pareceu ser uma eternidade, sem se importar como surpreendia as pessoas. Pedaços do passado retornaram-lhe à mente, embora a maior parte fosse vaga: imagens impactantes às vezes, cenas envoltas na luz esverdeada e silente da floresta, corpos de animais ou pessoas drenados barbaramente entre as folhas caídas, as cabeças precariamente presas ao pescoço. Naquela época, Simon não podia controlar-se, e seu ataque era mais brutal, subjugado pelo próprio medo. Precisou de muito tempo para recuperar a capacidade de pensar e ainda mais tempo para abandonar a floresta; porém, a floresta nunca o deixou. Seu eco podia ser ouvido nesta noite, bem como o grito de uma coruja e as castanheiras movendo-se ao vento.

     Ele marcou seu território como um lobo e urinou nas escadas dos fundos. Isso ajudou um pouco. Agora eu sei onde você mora, pensou. Começou a andar sem parar, dominando, a cada passo, a raiva. Os subúrbios tranquilos e adormecidos cediam lugar às movimentadas ruas urbanas. Aqui, estas se iluminavam com os bares das esquinas e pizzarias, as casas de jogos e lojas de discos que, aparentemente, não fechavam. Os rapazes paravam para sussurrar nos ouvidos das garotas vestidas com saias de couro _ promessas que elas sabiam serem falsas. Grupos de indivíduos solitários amontoavam-se na escuridão.

     Sentia uma certa proximidade com eles, pois também estava excluído, como eles, do convívio com as demais pessoas. Ninguém o viu. Ele se parecia muito com os moleques desnutridos e mal vestidos de rua, que sempre estavam pedindo dinheiro a quem passava.

     Um grupo de garotos corria pela calçada, rindo, um deles acenando com a camisa rodando acima da cabeça, embriagado e com o peito nu.

     As meninas olhavam as lojas de roupas, com seus cabelos pintados e seus olhares provocadores, escondendo o medo de serem rejeitadas. Logo, o frio exigiria que todos estivessem abrigados, por isso, desfrutavam o que restava do verão.

     Simon seguiu pelas ruas mais escuras cantarolando, com perfeição, uma canção que tinha ouvido ao caminhar. Era uma daquelas músicas agressivas de que gostava. Marcava o ritmo batendo na coxa, enquanto andava. Ocasionalmente, lembrava-se da letra e cantava uma frase inteira.

     Ele cruzou o calçamento irregular em frente a uma fileira de casas com a pintura desgastada, mas com escadas bem conservadas. Através de uma janela sem cortinas, viu um homem sentado em uma poltrona já gasta e uma mulher em seu colo. Riam, assistindo a um programa na televisão. Ele poderia ficar ali por horas sem que eles notassem. De repente, tinha vontade de quebrar a janela e gritar: “Olhem para mim!” Queria ser notado. Queria ser visto, e este desejo era louco e perigoso, mas ele tinha medo não existir. De vez em quando, alguém o reconhecia e tinha que morrer. Se não morresse, bem ... Seria tolice não pensar em proteger-se.

     Não havia ninguém que o conhecesse, ninguém que dissesse seu nome.

     Virou uma esquina e assustou um cachorro. Hesitaram ambos, grunhiram um para o outro, e o cão saiu correndo. Simon continuou andando e encontrou um terreno baldio cheio de ervas daninhas, cujo único habitante era um carro abandonado. Sentou em uma parede em ruínas e olhou para a lua.

     _ Ei, cara, você aí! _ Uma voz veio do alto muro em frente. Uma perna surgiu por cima do muro e um garoto de uns 16 anos apareceu, ficando em pé, com as pernas afastadas. Cara, Simon pensou, sarcasticamente. Sorriu, com expectativa.

     _ Sim, você! _ disse uma voz mais profunda. Outro adolescente, talvez um pouco mais velho, saiu de trás do carro. Era um tipo rude, vestindo jeans e camisa de lenhador. Um terceiro, com expressão zombeteira, jaqueta de couro, vinha em seguida.

     _ Este terreno é nosso _ disse, tropeçando na pronúncia do 's'.

     Ele tinha na mão uma garrafa de bebida meio vazia e caminhava sem firmeza. Sua mão direita luziu com um brilho prateado. Simon viu que se tratava de uma faca e ele não gostava de coisas pontiagudas, porque o deixavam nervoso. Simon não gostava de ficar nervoso.

     A luta era iminente. Os garotos o cercaram. Simon levantou-se lentamente, os músculos tensos. Os jovens avançaram.

     _ De onde você é?

     _ Não é daqui.

     _ Aqui ninguém te conhece.

     _ Sim _ disse aquele que escalou o muro. _ E se ninguém te conhece, você não é ninguém _ riu, uma risada aguda e nervosa, enquanto limpava as mãos na camisa esfarrapada.      Ninguém. Até aquele imbecil o chamava assim. Ninguém. Simon aproximou-se do perigo, entrando na rede. Pegaram um tubarão desta vez, ele sorriu.

     _ Muito macho, hein? – disse o mais velho, dando uma gargalhada.      O rapaz com a jaqueta de couro colocou a garrafa entre dois tijolos.

     _ Parece tonto, você quer dizer. – Ele passou a faca de um lado para outro._ Você é retardado ou coisa parecida?

     _ Sim. É estúpido demais para ter medo.

     Simon virou as costas para o terceiro rapaz, aquele que tinha falado por último. Esse era uma ovelha. O maior era um idiota, mas o que usava roupa de couro era perigoso. Estava enlouquecido. Simon podia sentir o cheiro da maconha: ele fedia a plástico queimado. Além disso, a droga destruía o cérebro.

     Haviam pessoas que pensavam que não podiam morrer.

     _ Este é nosso playground, amigo.

     _ Claro, quer brincar?

     Simon finalmente falou.

     _ Foi isso que disse à sua mãe ontem à noite?

     _ Filho da p ... – o maior lançou-se com os punhos fechados. Simon esquivou-se rapidamente. O outro caiu, confuso. Em seguida, levantou-se novamente, como um urso irritado, e atacou.

     Simon afastou-se pela segunda vez. Seu adversário respirava com dificuldade. Simon sorriu. Se ganhasse do maior, os outros correriam, mas tinha que vigiar o louco. Nunca se podia ter certeza.

     Eles dançavam uma valsa estranha no terreno e a fúria do garoto crescia. Finalmente, Simon parou e o outro o alcançou. Ele pensou que não seria capaz, mas, para sua surpresa, conseguira apanhar sua vítima. Respondeu com um grunhido profundo e sorriu. Prendera o braço de Simon em uma posição dolorosa, enquanto preparava o golpe. Mas, Simon, que não chegava à altura da mandíbula do agressor, agarrou-o pelo cinto com a mão livre e o ergueu no ar. O rapaz agitava as mãos como um inseto e gritava de medo. O que vestia a jaqueta de couro proferiu um xingamento, mas ficou paralisado. O outro garoto tremia e também não podia mexer-se. Neste momento, Simon lançou seu oponente a uma distância impossível. O corpo do jovem voou por um instante e caiu em um monte de lixo.

     O barulho quebrou o encanto, e Simon ouviu o terceiro correr.      O que tinha a faca riu. Aproximou-se, o aço brilhando na luz da rua. Certamente participara de algum confronto ocasional, Simon pensou. Mas, se vencera, fora por conta da agressividade, não por habilidade. Seria melhor manobrá-lo como um gato faz com um rato: em vez de enredá-lo, matá-lo rapidamente.

     O rapaz esperava outra dança e não que sua vítima se aproximasse de imediato. Hesitou por um momento, estava enfrentando uma loucura maior que a sua. Viu algo no olhar de Simon que o fez se atirar para frente. Arremessou a faca dominado pelo medo, mas era tarde demais. A arma voou para longe, seu braço, detido por um momento, caiu inutilizado. Deu um passo para trás.

     Foi a vez de Simon rir, um riso escuro e diabólico. Com um golpe, jogou o garoto contra o carro. Enquanto deslizava para o chão, Simon delicadamente o alcançou e tornou a jogá-lo de encontro ao automóvel. O terceiro golpe deixou-o inconsciente, e Simon teve o prazer da vitória.

     _ Você disse que não sou ninguém? _ sussurrou, com as presas à mostra.

     _ Você disse que não sou ninguém? _ gritou, quase sentindo dor.

     Ele ergueu sua vítima e abriu-lhe o pulso com um corte selvagem dos dentes. Pegou o braço machucado e, com o sangue que saía aos borbotões, escreveu, em letras instáveis, sobre o teto do carro: EU SOU ALGUÉM.

     O cheiro escuro e cru do sangue o intoxicava. Abraçou o corpo inerte e levou o punho ferido à boca. Superficialmente, em algum lugar dentro dele, sentiu-se sujo. Um eco distante gritava que parasse, mas o apelo do sangue era mais forte. Sua boca estava quase tocando o sangue, quando ouviu as sirenes muito perto.

     Afastou-se do corpo, mas parecia que este não queria soltar-se. Por um instante, sentiu-se atrapalhado, então, finalmente, o rapaz caiu no chão; porém, em meio ao pânico, foi dominado por um capricho perverso. Ele começou a remover a jaqueta, lutando com o peso de sua vítima, manchando de sangue o forro, rasgando a bainha, até conseguir retirá-la completamente. Aquele era seu prêmio. Ele agarrou a jaqueta e poupou a vida de seu dono.

     Logo, ele estava correndo. Passou por seu primeiro atacante, que agora o fitava com o rosto pálido e cheio de pânico, atravessou escombros de casas abandonadas e adentrou a noite. Continuou correndo pelas ruas, até chegar ao silencioso pátio de uma casa com porta de cor verde.

     Ele vestiu a jaqueta e sentou-se debaixo de um arbusto, olhando para a janela até o amanhecer.

 

     Sofia parou na porta, as mãos apertadas contra a boca. Com os dentes, mordia as juntas dos dedos. Anne Sutcliff estava deitada de lado, na cama de hospital, e seus ombros sacudiam-se. Os sons eram inconfundíveis.

     _ Pai – disse Sofia, pegando seu braço. _ Está vomitando.

     O medidor de soro soava furioso.

     A amiga da mãe, Carol, que tinha vindo com eles, pegou Sofia pelos ombros.

     _ Não se preocupe, querida. Já chamei uma enfermeira.

     O pai de Sofia a tirou do caminho e percorreu em dois passos a distância que o levava à cama da esposa.

     _ Tudo vai ficar bem, amor. Está tudo bem – acariciou-lhe o cabelo delicadamente, retirando-o do rosto dela.

     _ Sinto muito – disse Anne, entre espasmos.

     Quando seu pai alcançou, impaciente, o botão que estava ao lado da cama, Sofia viu que uns fios do cabelo negro da mãe haviam-se colado aos seus dedos. Ele conseguiu jogá-los no lixo, que estava cheio de embalagens de agulhas e gazes manchadas.

     O odor do quarto era insuportável. Ela saiu, com náuseas. Seu coração pulsava com força. Queria correr para sua mãe, mas não era capaz de vê-la assim. As mães devem ser fortes, pensou ela. Supõe-se que deveria ser ela a cuidar de mim.

     Uma enfermeira passou apressada por ela.

     Sofia sabia que o tratamento deixava sua mãe muito mal, mas nunca havia imaginado encontrá-la assim, tão fraca que não podia chegar sozinha ao banheiro. Sofia sentia-se horrível, envergonhada, como se estivesse espionando o que não devia, invadindo algo alheio.

     Carol tratou de abraçá-la, mas ela se afastou.

     Deveria ir até minha mãe, disse Sofia a si mesma. Ela precisa de mim. Mas não era capaz de entrar no quarto e olhar para a mulher doente. Recostou-se contra a parede do corredor, suando frio e tremendo. Carol manteve-se por perto, com um olhar dolorido e ansioso.

     Isso é estúpido, pensou Sofia. Queria fazer alguma coisa, provar que podia realmente ajudar, ali estava sua oportunidade. Sua mente dava-lhe razões lógicas, mas o corpo recusava-se a se mover.

     Finalmente, começou a aproximar-se da porta. Posso pegar-lhe as mãos pelo menos, pensou, e tranquilizá-la. Devo isso a ela. Antes que ela pudesse chegar até a mãe, seu pai saiu e a abraçou.

     _ Está um pouco melhor agora – disse. _ Acredito que poderá dormir – soava exausto. Ela o abraçou também, contente porque a decisão não cabia a ela, porque precisava que alguém a consolasse, mas ele se apartou muito rápido.

     _ Vamos – falou. _ Eu a levo para casa.

     _ Eu fico, Harry – disse Carol. _ Quero ficar _ sorriu para Sofia. _ Não deixe de me chamar, querida, está certo? Se necessitar algo, sabe que pode me chamar.

     Sofia assentiu vagamente _ a intenção de Carol era boa _ e seguiu seu pai, feliz por ir-se dali e envergonhada por isso.

     No silencioso trajeto de volta para casa, começou a sentir-se culpada. Se eu tivesse podido ajudar, pensou ela. Ele não me deu oportunidade de tentar.

     _ Vai voltar? – perguntou ela.

     Ele disse que sim com um movimento da cabeça.

     _ Imaginei – era como se não quisesse compartilhar com ela.

     Carol também permanecera no hospital. Deslizou no assento e pôs as mãos nos bolsos. Estou tendo um chilique, pensou. Mas não me importo. No entanto, sabia que parecia uma idiota. Ele sempre tinha sido um pai excelente e a amava também. É que já não fazemos nada juntos, pensou ela, inclusive, não estamos tristes juntos. Toma decisões sem me consultar, como se eu fosse uma criança pequena.

     Sua mão encontrou um pequeno objeto no bolso. Ela o descobrira nas escadas dos fundos naquela manhã, ao retirar o lixo, jogado ali, pontiagudo e brilhante. Sofia, o pássaro, tinha-o recolhido, atraída por seu brilho. Mas estava atrasada para o colégio, então, colocou-o no bolso da jaqueta, enquanto ia pegar seus livros, e esquecera-se dele. Puxou o objeto do bolso novamente para observá-lo, alisando-o entre os dedos. As pequenas pontas espetavam. Parecia uma pequena estrela. É curiosa a forma como as coisas aparecem, pensou ela. Vamos, pergunte-me o que é isto, pensou, desafiando seu pai em silêncio, mas ele não se deu conta. Então, ela voltou a enfiá-lo no bolso.

     _ Deixe-me na casa de Lorraine, por favor – pediu-lhe, quando entraram no bairro.

     Jogou o caderno para o banco trás antes de sair do carro. Também não tinha tido tempo de ler para a mãe hoje, e ela era quem mais se recriminava por isso.

     – Pego o caderno depois – disse ela. _ Adeus.

     Ele apenas sorriu e se foi, concentrando-se imediatamente em chegar ao hospital.

     Lorraine se alegrou ao ver Sofia.

     _ Olá, So. Chegou bem na hora. Estava pensando em sair.

     Lorraine vai entender, pensou, e isso foi o que bastou para que ela começasse a chorar, porque realmente sentia-se insegura. Deixou-se cair no sofá, e Lorraine ajoelhou-se na frente dela, pondo-lhe uma mão sobre o joelho, esperando que se acalmasse. Quando Sofia conseguiu se controlar, explicou:

     _ Sinto muito – disse. _ Não pude evitar.

     Contou a Lorraine o que acontecera no hospital, numa versão curta e simples. Não mencionou a vergonha de não ter sido capaz de reagir.

     Lorraine apertou-lhe a perna.

     _ Irá lá de novo e será melhor da próxima vez.

     _ Sim – Sofia secou os olhos com um lenço que Lorraine ofereceu. _ Sou tão covarde – disse ela. _ Parece que estou sempre chorando.

     Lorraine sorriu e deu um tapa suave e carinhoso no ombro de Sofia.

     _ Escute, papai me deu algum dinheiro porque está sentindo-se culpado. Sugeriu que eu comprasse algumas roupas para impressionar meus novos amigos, quando chegar lá – acompanhou este comentário com uma careta. _ Vamos às compras?

     _ Não sei.

     _ Oh, vamos. Merece sair um pouco.

     Sofia retirou o cabelo do rosto com um movimento rápido e tenso, como se estivesse pensando.

     _ Bom, de qualquer forma tenho que sair antes que Diane volte – continuou Lorraine. _ Está furiosa porque não recebeu dinheiro também. Ficou sapateando de lá pra cá como uma louca a manhã inteira. Por favor, por favor, por favor!

     _ De acordo – disse Sofia, e deixou de franzir o cenho, embora se sentisse um pouco desconfortável. Não parecia correto fazer compras como se tudo estivesse normal.

     Lorraine pegou o casaco e saíram.

     _ Pena que você não sabia que íamos fazer compras, poderia ter pedido dinheiro a seu pai também.

     _ É impossível pedir dinheiro para roupas agora – disse Sofia, tratando de não dar importância ao assunto. _ Muitas contas.

     _ Ao menos um jeans decente _ disse Lorraine. _ Ei, ande mais devagar!

     Sofia reduziu a velocidade e respirou fundo. Vamos, disse a si mesma, acalme-se.

     _ Não há nada de errado com uma Levi’s velha – retrucou, e empurrou Lorraine, num convite à descontração.

     Lorraine sorriu e topou a brincadeira, mas, quando Sofia girou na esquina para entrar em uma loja de departamentos, Lorraine a deteve.

     _ Aí, não – falou Lorraine. _ Sejamos hedonistas e vamos ao shopping – disse, dirigindo-se ao ponto de ônibus. _ Só preciso estar de volta às sete, porque tenho um encontro com Neil.

     _ Ah, que ridículo – brincou Sofia.

     Lorraine entrou na fila. Ficaram implicando uma com a outra em tom de brincadeira até o ônibus chegar.

     Quando alcançaram o shopping, seu plano de ação já estava traçado.

     _ Jeans novos, algumas blusas e um par de sapatos – decidiu Lorraine, finalmente. Arrastou Sofia ao Jean Jar, depois ao Muggles, passando pelo Finders e, por último, ao Edge. No caminho, compraram um par de enormes suéteres de cores berrantes e uma regata cara, de algodão, num modelo que se estava usando muito naquele outono. Lorraine teve que experimentar muitos modelos de calças para encontrar uma que caísse bem. “Muito boa para os meros mortais”, vangloriava-se, enquanto se olhava no espelho do provador.

     A princípio, Sofia sentiu-se distante, como se estivesse em outro planeta, mas era difícil resistir ao entusiasmo de Lorraine. Embora houvesse momentos de dúvida, Sofia acabou desfrutando o momento.

     _ Vamos às lojas punk que estão do outro lado – disse, sabendo que isto agradaria à amiga.

     _ Não sei, não – respondeu Lorraine, com um ar gozador. _ Já tenho uma calça de pele de leopardo, sapatos, camisas, roupa íntima e absorventes.

     De toda forma, terminaram indo até lá, riram das estampas das camisetas e desafiaram-se mutuamente a comprar laquê colorido.

     _ Sai com a primeira lavagem do cabelo – sussurrou Lorraine.         _ Vamos. Você vai ficar genial com uma mecha arroxeada.

     _ Ninguém usa mais essa cor – disse Sofia. _ Prefiro uma camiseta que diga DANEM-SE OS RICOS.

     Tentou rir discretamente para não ofender os vendedores muito altos e muito esnobes, que pareciam levar-se muito a sério.

     _ Ouça, comprarei um presente de despedida para você – disse Lorraine.

     Sofia sentiu seu estômago estreitar-se.

     _ Prefiro que não.

     _ Não seja boba – disse Lorraine. – Pode escolher entre uma camiseta ou este colar – mostrou um lindo e pequeno crucifixo sobre uma fita de tom vermelho intenso.

     Como pode falar em partir com tanta tranquilidade?, pensou Sofia. Disse que não queria ir e agora está comprando um presente de despedida. Como pôde mudar tão depressa?

     _ Parece tão estranho – disse, em voz alta.

     _ Não, se observar as pessoas que trabalham aqui. Todos usam. Só depende de como vai usá-lo.

     _ Eu gosto da fita, mas, não sei dizer por que parece uma combinação esquisita. Minha avó acharia que estou louca.

     _ Considerando que sua avó vive na Europa, não acredito que a veja frequentemente com o colar.

     Lorraine aproximou-se da caixa registradora. Comprou o colar e um pouco de tintura para o cabelo.

     _ Por que não? – disse Sofia. Assim poderei ameaçar meu pai: quando se comportar mal, digo que irei a um almoço de trabalho com o cabelo pintado.

     Do lado de fora, entregou o pacote a Sofia: _ Aqui está.

     Estranhamente, sentia-se incomodada. Sofia guardou o embrulho no bolso do casaco e ruborizou-se. Lorraine, não tem que me dar presentes para que eu me lembre de você. Não usarei isso, pensou ela. Eu não gosto.

     _ Sapatos! – gritou Lorraine, de tal maneira que os que estavam por perto voltaram-se para olhar.

     Que modo sutil de evitar os sentimentos, pensou Sofia, entre cansada e divertida.

     Lorraine começou um monólogo, enquanto chegavam à loja de sapatos mais próxima. “Adoro comprar sapatos, especialmente se sou atendida por um vendedor. Olham seus pés, correm para trazer os sapatos, calçam você. Deus, isso me dá uma incrível sensação de poder.”

     Depois da última compra, comeram pizza na Roma e reconheceram alguns meninos do colégio.

     _ Peter Ziegler – gemeu Lorraine. _ Espero que eu não tenha nada entre os dentes.

     _ Não acredito que tenha importância, pois, com certeza, não virá até aqui _ Sofia brincou.

     _ Desmancha-prazeres! Ouça, ele está com aquele Keith, com quem você saiu na primavera passada. O que tinha de errado com ele, mesmo? Não me lembro.

     Sofia suspirou.

     _ Não havia nada errado com ele. Sei lá. Acredito que simplesmente não havia química.

     _ Quando é que você vai gostar de alguém, So, pelo amor de Deus? Quero dizer, já tem quase 17 anos.

     _ Já sei, já sei – Sofia brincava com um pedaço de pizza, aborrecida por ter que discutir aquele tema novamente. Lorraine acreditava que todos deveriam ter os mesmos hormônios hiperativos que ela.

     _ Sinto muito, aborreci você, não é? Não falo mais disso.

     Sofia precisava admitir que foi um raro momento de percepção por parte de Lorraine. Seus olhares encontraram-se em um acordo de paz silencioso e comeram, compartilhando essa breve tranquilidade.

     Rapazes, pensou Sofia, por que não estou tão enlouquecida por eles como Lorraine? Pelo visto, somos diferentes, sorriu, ante o ridiculamente óbvio comentário, mas parece que eles gostam de mim, então, imagino que não sou um tipo grotesco ou extravagante, decidiu. Lembrou-se, de repente, do menino pálido do parque: uma imagem surpreendentemente clara, destacando-se sob a luz da lua. Tratou de dominar sua emoção com um surto de raiva. Pelo visto, deveria sentir-me lisonjeada.

     _ Vejamos um filme – disse Lorraine, limpando boca. _ Há um filme de terror no Cinema Três. Ninguém fica vivo por dois dólares e vinte e cinco.

     _ Acho que não – disse Sofia, um pouco mais rápido do que gostaria. Viu como Lorraine se chateou diante da negativa. Sentindo-se mal por ela, acrescentou: _ Há um filme francês novo de que todos estão falando. Talvez pudéssemos ver esse.

     Lorraine relaxou:

     _ Não faz o meu gênero. De qualquer forma, quando vejo um filme com legendas, no final, tenho a impressão de que as legendas ficam me perseguindo por horas. É estranho.

     _ Qual é o outro?

     _ Oh, é uma comédia sobre a rotina de uma manhã de sábado.

     _ Que horror!

     _ Eu que o diga!

     Decidiram esquecer o filme e pegar o ônibus de volta a Oakwood. Sofia sentiu-se melhor. Não acreditava que suportaria ver um filme, por melhor que fosse. Quando desceram do ônibus, em Oakwood Village, já não havia claridade, e as luzes da rua estavam acesas. À medida que o mundo era tomado pela escuridão, o ânimo de Sofia fez o mesmo. Como pude sair e me divertir?, pensou.

     Como se tivesse lido os pensamentos da Sofia, Lorraine segurou seu braço por um instante.

     _ Ouça, foi divertido, não foi? Você precisava de uma mudança.

     _ Sim. _ Sofia precisava admitir que a amiga tinha razão, mas devia voltar para casa. Talvez tivesse deixado de atender uma ligação importante, enquanto estava fora. Entretanto, agora que estava chegando, não queria entrar, tinha muito medo de atender o telefone.

     _ De volta à Terra, Sofia! Responda, por favor!

     Sofia a fitou assustada.

     _ Eu dizia – continuou Lorraine _ que tenho que ir à farmácia.

     _ Ah, então espero aqui – disse Sofia, parando em frente a uma livraria. _ Mudaram a vitrine.

     _ De acordo.

     Lorraine saiu trotando pela calçada até a drogaria do outro lado do beco que dividia as fileiras de lojas em duas partes. Havia menos gente na rua, porque àquela hora todos se dirigiam a seus lares, para jantar com a família. O vento de outono ficava mais forte e Sofia notou uma gota de água na face. Percebia-se um leve aroma de madeira queimada no ar, e isto sempre fazia com que Sofia se sentisse sozinha, ao imaginar as chaminés acesas, enquanto ela se encontrava fora de casa, imersa na noite.

     Examinou o conteúdo da vitrine. Adorava livrarias: eram um vício. Até os livros que nunca leria tinham seu encanto, quando estavam organizados. Um livro chamado A Vida Secreta dos Vegetais chamou sua atenção. Ficou curiosa. Imaginou se seria sobre descobertas botânicas recentes ou uma novela erótica, quando escutou a voz de Lorraine.

     Ao procurar a amiga, viu que ela falava com um menino pequeno e pálido, de cabelos brancos, que estava parado na extremidade do beco. De sua mão esquerda, pendia um urso de pelúcia. Parecia frágil, com uns seis anos, pensou Sofía. O que está fazendo aqui sozinho a essa hora? Aproximou-se deles. O menino disse algo, e Lorraine estendeu a mão para ele, então, o menino ofereceu-lhe um largo sorriso, mas, ao ver Sofia, o sorriso desapareceu.

     _ Está bem – disse, numa voz aguda. _ Já lembrei – e saiu correndo pela rua, em direção a Chestnut.

     _ Monstrinho adorável – disse Lorraine, embora parecesse confusa. _ Disse que estava perdido. É albino, eu creio. Queria que o ajudasse a encontrar sua mãe lá embaixo – assinalou o final do beco.

     Sofia vasculhou a escuridão.

     _ Por que estaria lá?

     Lorraine encolheu os ombros.

     _ Não sei. Quase tive vontade de ajudá-lo – ficou olhando com tristeza a livraria. _ Ouça, isso me fez lembrar que meu pai mandou uma lista de livros para eu ler na escola nova. Fantástico, não? – revirou os olhos. – Acha que assim vou me adaptar com mais facilidade. Fico só pensando como vai ser.

     Sofia ficou tensa.

     _ Escute, por que não vai para casa? A loja estará aberta até tarde hoje e quero dar uma olhada. – Sentiu-se mal por suas palavras soarem falsas e distantes.

     Lorraine fitou Sofia aborrecida, mas sua voz manteve-se neutra.

     _ As livrarias me deixam nervosa.

     _ Eu sei – o tom de Sofia foi mais gentil. _ Então, vá, tem que se arrumar para Neil, a Fera.

     Lorraine entendeu a indireta.

     _ Ok. Ligo amanhã para contar os detalhes.

     _ Por favor, não.

     _ É a única maneira de você aprender alguma coisa, do jeito que está indo – Lorraine falou em voz alta, enquanto se afastava.

     Sofia despediu-se, fingindo impaciência.

     _ Saia daqui – tentou emprestar um tom jovial à voz. Não quero escutar nada sobre sua estúpida escola nova, pensou. Não quero saber de seu estúpido encontro e não quero voltar para casa.

     Não vai funcionar. Não existe mágica, disse Sofia a si mesma, enquanto entrava na livraria. Só porque não estou lá para escutar, não significa que não acontecerá. De qualquer forma, preferia retardar sua chegada em casa. Foi diretamente à vitrine, mas o título que a tinha intrigado terminou sendo um livro de culinária. Olhou ao redor durante meia hora, até que o som de sirenes aproximando-se atraíram-na, e também aos demais, para a frente da loja.

     Entrou em pânico por um momento. Lorraine. Mas, naturalmente, Lorraine já tinha ido. Como Sofia odiava as sirenes! Uivavam até chegar ao lugar da emergência, como fadas famintas e de mau agouro, e só deixavam um terrível vazio para trás.

     Um homem calvo entrou na loja com o rosto pálido, a expressão assombrada:

     _ Encontraram um corpo no beco. Briggs, o sujeito da farmácia, encontrou – disse a todos, e a ninguém em particular.

     _ Briggs saía do trabalho – continuou dizendo o homem. _ Sua bicicleta estava no beco, e ele quase caiu sobre a mulher, que estava degolada.

     As pessoas olhavam umas para as outras, aterradas. “Outro”, sussurrou alguém. Sofia se lembrou de ter visto o homem calvo organizando as prateleiras no supermercado.

     Mais gente se reuniu do lado de fora; clientes retardatários, pessoas a caminho de casa, outros saindo para a noite. Atraídos pelo sangue como moscas, pensou Sofia, e sentiu um calafrio. Tinha que chegar em casa.

     Conseguiu livrar-se da aglomeração, passar pelo homem calvo e sair. O sino da porta soou alegremente. Um casal afastou-se e, ao sair, ela encontrou-se ao lado de uma barreira policial implantada às pressas. Justo nesse momento, pôde ver que enfiavam na ambulância algo embrulhado em um lençol.

     _ Pelo visto, acaba de acontecer – ouviu uma mulher dizer, num sussurro.

     Sentiu-se febril e doente.

     _ Com licença, com licença. – Tinha que chegar em casa. Espremeu-se entre os curiosos na calçada estreita. _ Com licença, com licença. – De onde vinham? Moscas. Estava suando. Sentia-se apanhada em uma armadilha. As pessoas empurravam-se para poder ver melhor, enquanto ela lutava para andar.

     Finalmente, estava fora da multidão, recostada contra a vitrine do supermercado, os olhos fechados, tentando respirar.

     Uma mão fria e suave acariciou seu rosto, fresca, reconfortante.

     _ É a morte – escutou um sussurro.

     Seus olhos abriram-se de repente.

 

     Viu a garota de cabelo negro sair do meio da aglomeração, como se estivesse se afogando, e recostar-se contra o supermercado, num esforço evidente para respirar. Aproximou-se dela indefeso, desarmado, atraído por seu pavor. Não pôde evitar tocá-la para sentir o sabor do medo.

     _ É a morte – disse, querendo explicar.

     Os olhos dela se abriram subitamente, capturando-o com um olhar enviesado.

     _ É a morte o que te assusta tanto.

     Ele mesmo sentia um pouco de medo agora. Esta era a segunda vez que ela sustentava seu olhar. Combinado com o aroma de medo que se desprendia dela, era quase mais do que ele podia suportar.

     _ Sim – ela falou, piscando, relaxando, rompendo o encanto. A mão dele deixou de tocá-la e reteve-se num enfeite brilhante da jaqueta. _ Sinto muito. Estou sempre assustando você – não queria romper a conexão, ainda não. Incomodava-o quando o olhar dela o capturava assim, aquilo causava-lhe uma emoção que não podia explicar, algo que não era normal para ele; e queria descobrir o que era.

     _ Como sabe? Sobre a morte, quero dizer – ela o tinha perdoado.

     _ Vi seu efeito em outras pessoas antes.

     Os olhos de Sofia abriram-se cheios de preocupação por ele, enquanto adivinhava sua tragédia. Era tão fácil, pensou Simon. Podia contar-lhe toda a verdade e deixar que ela se desculpasse por ele. Ela seria muito educada para perguntar qualquer coisa diretamente e, então, interpretaria a história à sua maneira. O momento era propício. Ela precisava apoiar-se em outra pessoa, distanciar-se de seu medo. Mas... por que se importava tanto? Ela tinha o sangue cálido e saboroso, mas não era somente isso. Ou era?

     _ Sinto muito – ela disse. _ Eu não fui muito amável – sorriu para ele, levemente.

     Para si mesma, adivinhou ele.

     _ Parece perturbada. Posso acompanhá-la até sua casa? – ofereceu seu braço, mas lembrou que era um costume antigo e conteve-se.

     Estava insegura. Ele percebeu.

     _ Por favor – pediu.

     Conseguiu passar no exame.

     Abandonaram as lojas e caminharam devagar, inicialmente em silêncio. Gostava de tê-la a seu lado.

     _ Está atrasada para o jantar – ele disse, finalmente.

     _ Não.... não há ninguém em casa.

     Ele se deu conta de que ela imediatamente se arrependeu de ter dito aquilo. Seus lábios se apertaram por alguns segundos. Está se sentindo estúpida, pensou. Não é algo que se deva admitir para um estranho. Dê segurança a ela.

     _ Que pena. Hoje é uma dessas noites em que qualquer um gostaria de chegar em casa para compartilhar uma boa comida – viu que os lábios dela tremiam, escondendo um sorriso. _ Disse algo engraçado?

     Nesse momento, ela mostrou o sorriso.

     _ Sinto muito, mas você não parece… quero dizer… bom, a forma como fala. Não é como esperaria que falasse uma pessoa com uma jaqueta de couro.

     Será que ele se atrapalhara? Não falava muito com as pessoas, porque era uma tentação. Eram alimento. Não é sensato falar com a comida, ou aprender com a comida costuma expressar-se. Tudo mudava tão rápido, enquanto ele continuava igual, vendo o mundo passar nas cores faiscantes da noite. Não. Ela sorria. De alguma maneira, aquela contradição a divertia. Fazia com que se sentisse mais relaxada.

     _ Foi um capricho – ele disse, acariciando o couro.

     _ Fica bem em você.

     Ela não me quer ofender, pensou. Isso o deixava contente. Parecia tolo que se sentisse assim.

     _ Mora perto? – ela perguntou.

     _ Perto.

     _ Verdade?

     _ É temporário.

     _ Seus pais estão procurando uma casa permanente em Oakwood?

     _ Meus pais estão mortos.

     Ficou aterrada diante de seu equívoco. Levou a mão à boca.

     _ Está tudo bem. Estive sozinho durante muito tempo – ele pegou a mão dela e a abaixou suavemente. Ela também estava sozinha, ele imaginou, por isso lhe importava tanto. Sua mão era suave e magra; apertava a dele de maneira agradável. Ela retirou a mão e ele soube que ela sentira o mesmo. Não insistiu.

     Ela ficou em silêncio de novo. Seguiram caminhando e, em um dado momento, pareceu que se preparava para falar, como se estivesse pronta para dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Teria gostado que ela falasse, porque queria ouvi-la. Queria saber dela. Esta não é minha natureza, pensou ele. A besta não é assim, mas, durante aquele breve instante, ele sentia que a besta desprendia-se dele em um sopro de vento fresco. Pensava em maneiras de animá-la para que falasse, quando chegaram ao muro. Moveu-a para que ela pudesse passar, sentindo-se decepcionado porque a caminhada havia terminado.

     Ela parou em frente à porta principal e se voltou para olhá-lo com firmeza. Simon entendeu a mensagem. Eu chego até aqui.

     _ Espero que se recupere logo – ele disse, reconhecendo a barreira.

     A postura dela relaxou, quando percebeu que ele aceitava a barreira.

     _ Obrigada por me acompanhar. Fiquei impressionada como o incidente. Imagino que conheceremos os detalhes amanhã.

     _ Sim.

     _ Meu nome é Sofia – disse, quase como proferindo um pensamento em voz alta.

     _ Sofia – repetiu ele, brandamente.

     _ Qual é o seu?

     Olhou para ela e, novamente, foi aprisionado por seu olhar. Sentiu o impulso, mas a voz ficou presa na garganta. Não dizia seu nome havia tanto tempo que lhe parecia muito íntimo para revelá-lo, como se estivesse dando de presente uma parte de si mesmo. Entretanto, o olhar de Sofia transmitia a sensação de intimidade, de querer entrar nele e abrir portas que estavam fechadas.

   Suspirou, enquanto pronunciava seu próprio nome:

     _ Simon.

     _ Boa noite, Simon – disse ela brandamente, e virou-se.

     Ele a reteve, com urgência:

     _ Espere.

     Ela parou e deu volta para olhá-lo, a preocupação marcando suas feições.

     Ele se acalmou.

     _ Se vier vê-la, vai me convidar a entrar?

     Observou-o por um momento, avaliando-o.

     _ Sim, acredito que sim.

     Ele podia sorrir agora e, talvez, por isso, ela ainda hesitava.

     Ela estava muito perto. Ele se aproximou mais, os lábios separados para inalar seu aroma. Seriam as veias escuras cheias de sangue que o atraíam, ou seus suaves lábios? Ele não sabia. Sentia-se atordoado.

     Ela quase se inclinou para encontrá-lo, seu olhar roubando-lhe a respiração, afogando-o, mas ela corou e se virou para a porta outra vez.

     _ Boa noite.

     _ Até a próxima – sussurrou ele, enquanto ela fechava a porta.

     Caminhou rumo às lojas e viu o menino com a mãe.

     Tinham parado para que ela pudesse ajustar o cachecol ao redor de seu pescoço. Eu gostaria de apertá-lo, pensou Simon, e deslizou para as sombras.

     _ Christopher – disse a mãe _, já veio várias vezes à loja. Não entendo como pôde se perder. Quando vi todos esses policiais, preocupei-me muito. Por favor, não volte a se distrair dessa maneira.

     Começaram a caminhar de novo, e Simon os seguiu. O menino olhava ao redor, como se pudesse sentir algo, então, Simon aumentou a distância entre eles.

     _ Teremos que nos agasalhar melhor amanhã, quando formos ao colégio. Você se queimou. Sua pobre pele. É tão delicada.

     O menino não parecia dar-lhe atenção, ao contrário, espiava o entorno, como procurando algo.

     _ Dormiu bastante hoje – continuou a mulher. _ A Sra. Cohen me disse que custou a despertar. É um dorminhoco. Deveria dormir durante a noite, como um bom menino. Talvez um pouco de leite quente o ajude esta noite.

     O menino fez uma careta. O primeiro sinal de que a havia escutado. Dobraram a esquina.

     _ Comprei um fígado delicioso para o jantar. Você gosta, não é?

     Simon deixou-os ir. O menino estava ocupado. Ele voltaria depois.

     Percorreu as ruas. Examinou a lavanderia que ficava aberta 24 horas, mas agora estava deserta. Finalmente, foi ao 7- Eleven e encostou-se em uma das paredes para ver as pessoas passarem.

     Os adolescentes chegavam em seus carros usados mas adorados, com o som a todo volume, para comprar um pacote de Marlboro e seis cervejas. Um marido chegou correndo para conseguir o leite do dia seguinte e se foi, com uma Playboy cuidadosamente escondida sob o casaco.

     Rapazes jovens, que depois se perdiam na noite em suas máquinas novas, discutiam sobre o jogo de futebol à luz das vitrines cheias de avisos, que anunciavam cachorros quentes por noventa e nove centavos. Um bêbado, com jeito de caipira, reclamava sobre o troco que devia receber de sua nota de cinco dólares. Uma garota suplicava a alguém no telefone público e sapateava de frustração ou de frio, ele não conseguiu saber.

     Ele inventava histórias sobre eles: o que diria se falasse com eles, aonde iriam. O estoque diversificado e multicolorido estava à mostra, e ele era o único espectador.

     Algumas vezes, afastava-se do presente, recordando histórias anteriores que tinha visto ou das quais havia participado. Naquele instante, em que recordava uma dessas ocasiões, avistou as costas de uma menina de cabelo comprido e preto junto ao balcão. Sofia, pensou, vítima de uma ilusão; mas, quando ela se voltou, não era Sofia.

     Quando a menina saiu, seguiu-a de todas as maneiras, através da noite. Afinal, não havia nada mais a fazer.

 

     Sofia despertou com o som do telefone. Tocava sem parar. Como seu pai não atendeu, levantou-se, ainda meio sonolenta, e foi até o quarto dos pais. A porta estava aberta e a cama, desarrumada. Pegou o telefone. Era seu pai e, por um momento, ficou confusa.

     Finalmente, ao estar totalmente acordada, lembrou-se. Haviam-no chamado tarde da noite ao hospital.

     _ Olá, So _ disse. _ Então, conseguiu voltar a dormir?

     _ Sim. _ Ficou vermelha, sentindo-se culpada por ter respondido daquela maneira.

     _ Sinto muito, mas mamãe não está bem. Ficarei aqui, mas não é necessário que você venha, entendeu? Não há nada que possa fazer. Ouça, ligarei pra você novamente, no final da tarde ou depois da escola, para contar como vão as coisas.

     Ele pensa que sou uma inútil, pensou ela. Só porque travei quando mamãe passou mal.

     _ Tudo bem?

     _ Sim, tudo bem.

     Mentiroso, pensou ela.

     _ Virá para casa mais tarde?

     _ Talvez não. Saberei depois.

     _ Pai, se ela estiver melhor essa manhã...

     _ Não posso falar disso agora. Cada coisa a seu tempo. De acordo?

     Sempre havia uma desculpa para mantê-la afastada.

     _ De acordo _ Sofia respondeu, entre dentes. Sempre me coloca de lado. As mãos apertaram o telefone com força.

     _ É uma boa garota. Cuide-se.

     _ Adeus _ disse, e finalizou a conversa. Desligou o telefone.

     No silêncio que se seguiu, escutou o alarme do rádio disparar em seu quarto. Não podia voltar a dormir. Precisava arrumar-se para a escola. Desligou o som horrível.

     Sofia estava procurando os sapatos debaixo da cama, quando o telefone voltou a tocar. Derrubou o aparelho ao pegá-lo. Será que seu pai havia mudado de opinião? Mas era Pat Reynolds, a dona da galeria onde a mãe expunha suas obras.

   _ Teremos uma exposição amanhã à noite _ falou. – Talvez queira vir. Quero dizer, sei que Harry está ocupado. Pensei que você gostaria de sair um pouco.

     _ Não sei, Pat _ respondeu Sofia. – Eu me sentiria deslocada sem minha mãe.

     _ Virão pessoas conhecidas.

     Mas todos os presentes ao evento seriam amigos de seus pais. Todos a cumprimentariam com prazer, para depois ficar em silêncio, sem ter nada para dizer. Ela odiava esse tipo de silêncio. Com certeza, iria sentir-se mal.

     _ Posso pensar?

     _ Claro, Sofia, ligue para mim. Cuide-se. – Ambas sabiam que ela não iria.

     Saiu mais cedo para o colégio, a fim de evitar outras ligações, mas talvez tenha sido um erro. Normalmente, a caminhada até a escola significava uma oportunidade para pensar, e, hoje, ela não queria pensar. Seria perfeito se Lorraine estivesse com ela, porque Lorraine tinha o dom de fazê-la se sentir bem, mas ela tinha aula de direção às oito e já havia saído uma hora atrás. Era o único curso ao qual ela não faltava.

   O ritmo de seus passos a lembrou de outra caminhada. Quem era aquele rapaz, Simon? Teria fugido de casa, ou o quê? Não era dali, pois tinha um sotaque diferente. A reação dele ante a morte dos pais era muito tranquila. Estaria mentindo, ela se perguntava, ou será que acontecera havia tanto tempo que a ferida já não doía mais? Seria possível acostumar-se? Então, talvez ele lhe pudesse ensinar como sobreviver. Não conseguia entendê-lo. Por um momento, parecia muito seguro de si, logo em seguida, aparentava justamente o contrário. Engraçado, todo o tempo imaginou que o conduzia, mas, agora que olhava para trás, deu-se conta que ele não hesitou nem por um instante, como se já conhecesse o caminho. Idiota, pensou. Isso era impossível.

     Sofia mantinha o olhar na grama que invadia as divisões da calçada, enquanto andava, levantando os olhos apenas para não trombar com algum pedestre ocasional ou para atravessar um cruzamento. Pisar em uma fenda é sinal de má sorte, pensou ela, recordando uma crença infantil. Depois, irracionalmente, começou a parar na metade de cada placa do calçamento, evitando as divisões entre elas, tratando de coordenar suas passadas para evitar as fendas. Tinha que saltar de vez em quando para corrigir seu ritmo e, à medida que avançava, aumentava a velocidade. Finalmente, chegou a uma esquina e se deteve por causa do tráfego.

     Poderia realmente fazer um feitiço?, pensou. Se eu vir passar um carro de cor prata antes que o sinal mude, minha mãe não vai morrer. O semáforo mudou imediatamente, e ela controlou a vontade de chorar. Sou uma criança, pensou. Uma criança estúpida. Por isso só me deixam vê-la por alguns instantes.

     Havia apenas algumas pessoas do lado de fora do colégio, porque ainda faltava bastante tempo para soar o sinal. Sofia sentou-se no semicírculo de cimento que estava em frente à bandeira para esperar, mas, quando repassou o dia que teria pela frente, percebeu que deixara o livro de cálculo em casa. Imaginou que todo o material que precisava estaria no armário da escola, mas agora lembrava ter visto o livro sobre a geladeira. Talvez tenha tempo de ir buscá-lo. Não. Se fosse agora, não retornaria à escola hoje.

     A ideia a agradou de imediato. Para que ir? Era impossível se concentrar. Por que não? Lorraine faz isso o tempo todo, ela pensou, e ninguém descobre. E se eu fizer? Eu tenho uma desculpa. Um suspiro amargo saiu de seus lábios. Sim. Quem pode me culpar?

     Decidiu. Levantou-se imediatamente e abandonou o colégio.

     Aonde iriam as pessoas quando faltavam à escola?

     Seriam detidas pela polícia por mau comportamento? Ela já havia faltado a algumas aulas, mas nunca o dia inteiro. Retornou pelo mesmo caminho que viera, porém passou por sua casa e foi para o parque.

     Era muito cedo para mães e bebês, mas o parque não estava vazio. Alguns adolescentes desleixados puxavam os balanços e os atiravam para frente e para trás. De seus velhos jeans, saíam fiapos, que se assemelhavam a estranhas plumagens gastas e manchadas. Três balanços já estavam enrolados ao redor da trave superior. O vandalismo chega a Oakood, ela pensou, com desaprovação. Só esperava que não tivessem destruído o pavilhão do parque.

     Não adiantava ficar ali. Não tinha nenhuma vontade de ficar respondendo a toda uma série de investidas do tipo “Ei, gata”, dos idiotas de jeans rasgados e roupas de couro. Um deles tinha a aparência de quem havia participado de uma briga. Maldição, pensou. Outro lugar onde não posso vir. Justo o que eu precisava. Um grupo de amantes de rock pesado invadindo o meu parque.

     Isso era injusto. Simón vestia-se com roupas de couro e parecia decente. Lembrou-se dele, parado na frente dela, os dedos nervosos movendo-se sem parar, desconfortável, do mesmo jeito que ela se sentira muitas vezes. Compreendeu o tipo de empatia que os aproximara. Ela vira o objeto que ele trazia nas mãos e com o qual brincava o tempo todo. Ela pegou aquele que tinha no bolso e o observou. Era uma estrela _ idêntica à que estava nas mãos de Simon _, aquela que ela havia encontrado na escada dos fundos, em sua casa.

     A raiva e o medo sacudiram-na. Nada era sagrado. Absolutamente nada. Tampouco podia voltar para casa. Sentia-se desrespeitada. Quase o vira como um amigo. Preciso de minha mãe, pensou.

     O ônibus chegou _ como se ela o tivesse chamado _ mal parou no ponto. Não podia voltar atrás. Àquela hora o movimento era fraco e havia muitos lugares vazios.

     No hospital, seguiu direto para a recepção sem se anunciar. É meu direito, disse a si mesma. Ela é minha mãe. Tenho o direito de estar aqui. Modificou a fisionomia, dando a impressão de que tinha assuntos a resolver.

     O elevador demorou muito a chegar e, quando chegou, demorou tanto a descer que ela imaginou que ia gritar. Acredito que não queiram causar um enfarte a ninguém, pensou, enquanto passava o pé sobre o aviso da Otis que se via no piso do elevador. Quando o elevador finalmente parou, notou seu coração acelerar-se. O que vai acontecer se ela estiver doente como da vez anterior? No entanto, ela prosseguiu.

     Virou na esquina da sala das enfermeiras e seguiu caminhando. Pelo canto do olho, viu a enfermeira levantar-se num salto, mas ela não ia ficar esperando para um interrogatório. Nada ia impedi-la. Tinha que falar com sua mãe. Sabia que a enfermeira a estava seguindo por causa do barulho do uniforme, então, acelerou as passadas e abriu a porta de repente.

     Seu pai a olhou assustado, sustendo ainda as mãos de sua esposa contra o peito. A enfermeira chegou em seguida.

     _ O que está acontecendo?

     _ É minha filha _ respondeu Harry Sutcliff, quase como se fizesse um esforço para lembrar-se disso.

     Nossa Filha, pensou Sofia. Ela ainda não está morta.

     _ Desculpe-me _ a enfermeira disse –, é que ela parecia tão esquisita. Está tudo bem?

     Ele respondeu que sim com um aceno de cabeça, e a enfermeira se foi, deixando a porta semiaberta.

     _ Sofia, o que aconteceu? _ perguntou o pai. Ele parecia estar procurando razões para explicar sua presença ali.

     A casa explodira? Houvera um terremoto?

     Uma voz rouca vindo da cama o distraiu.

     _ Por que não está na escola? _ a mãe tinha um sorriso maroto no rosto, meio divertido, meio angustiado.

     As palavras de sua esposa deram-lhe alguma coisa para dizer.

   _ Por que não está na escola? _ repetiu para Sofia, como um eco.

   _ Harry, está tudo bem, de verdade _ sua mãe disse, com a voz rouca. – Que diferença faz um dia a mais ou a menos? _ Os tubos moviam-se delicadamente enquanto ela tentava minimizar a importância do fato.

     Sofia viu que seu pai lutava para não estender o assunto. Ele sempre fora muito rigoroso em questões como aquela.

     _ Mas, quantos dias? – fitou Sofia acusadoramente. _ Não tenho tempo para me preocupar em saber onde você está a todo momento, sabe disso, Sofia.

     _ É a primeira vez, pai. Eu prometo.

     _ Bem, você nos assustou _ isso foi dito com alguma raiva. Ela não estava mentindo, e ele sabia. _ Você deve pensar em sua mãe.

     _ Harry _ a mulher reclamou.

     _ Eu penso em você, mãe _ disse Sofia. _ O tempo inteiro. Sinto saudades, mas, quanto mais eu sinto sua falta, menos eu posso te ver.

     Contornou a cama para ficar ao lado da mãe e pegou-lhe a mão. Nunca tinha visto um ser humano com aquela cor de pele, azulada, quase cinza. Sua mãe parecia ter mais tubos do que nunca, perdida no meio daquela confusão. Oh, Deus. Como posso contar do rapaz?, pensou ela. Sua mãe não tirou os olhos dela desde que entrara no quarto, mas agora desviara o olhar, envergonhada.

     – Sinto muito, Sofia _ sussurrou.

     _ Veja o que fez. _ O semblante de seu pai franziu-se, enquanto esticava os lençóis com um gesto nervoso.

     Sua mãe o deteve com um gesto.

     _ Ok, Harry. Você se preocupa demais. Fiquei feliz com a presença dela. Realmente. Vá e traga-me um pouco de suco. Quero conversar com minha filha.

     _ Ficará bem? _ perguntou-lhe.

     _Sim _ ela sorriu, mas seu sorriso não tinha vida, era um sorriso seco, repuxado.

     Como um colegial a quem incumbem de uma tarefa, saiu, ansioso para agradar.

     Sofia sentou-se.

     _ Então, me diga _ disse sua mãe _, o que está acontecendo no mundo real? _ sua voz era mais fraca do que quando o marido se fora, como se sua firmeza não passasse de uma encenação para tranquilizá-lo. De novo, Sofia pensou, não posso preocupá-la com histórias de adolescente sem sentido. Mas será que meu pai vai ouvir?.

     _ O que há entre você e seu pai?

     Sofia ficou tão surpresa que arqueou as sobrancelhas.

     _ Nada _ não, isso era tolice. Mas não deixava de ser verdade.

     _ Nada?

     _ Sério, de verdade. _ Sofia escorregou no banco, mordendo os lábios, enquanto pensava no que dizer.

     _ Desabafe.

     Sofia respirou fundo.

     _ Nunca falamos. Ele nunca está e, quando está, diz que se sente cansado. É como conviver com um robô. Vocês estão aqui, eu lá. Não há ninguém com quem falar. _ Deus, soava tão egoísta: não há ninguém com quem conversar..., queixas, queixas.

     Sua mãe desviou os olhos nervosamente, brincando com um lenço.

     _ Não falam sobre mim?

     _ Ele diz que vai dar tudo certo ou que falaremos mais tarde. Realmente, mãe _ saiu como um vulcão _, não sinto que tudo vai ficar bem.

     A mãe a olhou como se quisesse dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Ficou em silêncio por um tempo, os olhos fechados, até que Sofia pensou que ela adormecera.

     _ E onde anda Lorraine? _ finalmente perguntou.

     _ O quê?

     _ Por que não conversa com ela?

     _ Oh, mãe, você não sabe _ e tudo saiu muito rápido: a mudança, a possibilidade de nunca mais voltar a ver a amiga, como sentiria falta dela.

     Uma enfermeira entrou e injetou algo no soro, enquanto Sofia olhava aflita em outra direção. Só voltou a falar depois que a enfermeira saiu.

     Os olhos de sua mãe fecharam-se de novo, mas ela apertava a mão de Sofia de vez em quando para mostrar que a estava ouvindo. Sentia-se tão bem. Uma vez disse: “Sinto muito, meu amor”_ como se estivesse desligando-se –, vou falar com seu pai sobre isso”. E dormiu profundamente.

     Sofia a observou, a tristeza formando um bolo em sua garganta. Parecia tão pequena, frágil e exausta. Ela sempre teve consciência da possibilidade de sua mãe morrer. Pessoas com câncer morriam. Sofia se preocupava, imaginara aquilo milhões de vezes, mas, até aquele momento, era algo muito remoto. Sempre tinha uma tênue esperança. Agora, olhando para ela, tão transparente e miúda, soube, pela primeira vez, que era inevitável.

     Seu pai voltou e juntou-se a ela para velar o sono da esposa em silêncio. Ela virou-se para ele: os olhos dele possuíam muita ternura. Segurava o copo de suco como se carregasse o elixir da vida. Talvez eu esteja errada, pensou Sofia. Talvez ela seja mais forte quando ele está perto, por causa da força do seu amor.

     _ Vou descer com você _ disse ele, abraçando-a. Eles caminharam sem falar, mas ela estava acostumada.

     Embaixo, no primeiro andar, ele indicou um grupo de bancos: "Vamos sentar um pouco”. Cerrou os olhos e apertou o nariz com os dedos; finalmente falou.

     _ Não vou te dar um sermão por não ter ido à escola hoje. Deus sabe que as coisas não tem sido fáceis para você neste momento, mas gostaria que você continuasse seguindo como sempre, embora nós não estejamos lá. É uma coisa a menos para me preocupar.

     Ótimo, pensou. E quanto às minhas preocupações? Será que ele acha que não estou preocupada? Por que ele não vê que preciso estar aqui?

     No entanto, ele continuou falando.

     _ E, da próxima vez que queira vir, talvez fosse melhor se nos avisasse, certo?

     A frustração foi crescendo dentro dela. Por que estava sendo deixada de fora?

     _ Não, não está certo. É como se você a quisesse só pra você, e não permite que eu esteja junto dela. É como se quisesse que eu não existisse, assim seu tempo com ela não é interrompido. Estou me questionando até que ponto você queria me ter _ sentiu-se horrível por dizer aquilo. Ela sabia que estava sendo injusta, mas, às vezes, sentia-se assim de verdade e, agora, já estava dito.

     Seu pai a olhou confuso. Ela nunca havia gritado antes. Envergonhou-se ao ver a dor estampada no rosto dele e também pelo sentimento de rancor em seu peito, que não podia evitar.

     _ Mas, minha querida _ ele disse –, está totalmente errada. Como pode pensar isso? Não queremos que você sofra, isso é tudo. Sua mãe odeia não ver você; é por isso que deve ficar mais com Lorraine, para se distrair.

     A compaixão abrandou sua raiva, então, ela falou com todo cuidado, como se estivesse falando com uma criança.

     _ Como acha que me sinto esperando por notícias em casa? Sem saber nada. Esperando o telefone tocar. Isto não é uma coisa banal, uma coisa em que não se pensa, não é como uma prova no colégio, ou mesmo uma consulta ao dentista _ suas mãos estavam fixas dos lados, as juntas brancas, mostrando o quanto se controlava para não expor ainda mais seus sentimentos. – Não me entenda mal, mas tenho que fazer parte disto. Eu sou parte disto. Acha que ela não precisa de mim? _ espantou-se ao ouvir o tremor em sua voz.

     Seu pai suspirou.

     _ Eu sei que ela precisa de você, o tempo todo, mas, às vezes, ela não suporta que a veja assim. Então, venha visitá-la quando ela desejar, por favor, Sofia, em respeito à dignidade de sua mãe, venha só se ela quiser.

     Sofia se lembrou do pedido de desculpas de sua mãe, ela parecia constrangida. É, ela não me quer aqui, pensou, sentindo-se péssima.

     _ Não gostam mais de mim? _ ela disse.

     Notou um leve sinal de dor na fisionomia do pai.

     _ Não faz sentido continuar essa discussão _ ele falou, afagando-lhe os ombros.

     Sofia desvencilhou-se da carícia.

     _ Tem razão _ levantou-se do banco e se dirigiu às portas de saída. Não conseguira nada com aquela visita. Não poderia ver a mãe quando quisesse e, droga, não lhe contara sobre Simon.

     Só fiz piorar as coisas, disse a si mesma durante todo o trajeto de volta para casa, no ônibus. Só queria perguntar o que devia fazer e piorei tudo. Pobre papai. Ele nem sabia que eu estava chateada até que lhe disse. Agora, não vão me deixar voltar.

     A casa mostrou-se fria, desconfortável, insegura A roseira ao lado da cerca estava murcha e pálida.

     Novamente, pensou em magia, enquanto estava deitada em sua cama, olhando para o teto. Se conhecesse algum tipo de magia que pudesse evitar a morte de sua mãe. Fazer as coisas voltarem ao normal, do jeito que estavam antes. Se..., falou para si, em tom de brincadeira, e sentou-se na cama. Quem você pensa que é?Deus?.

     Mas a história da magia mexeu com alguma coisa dentro dela. Pegou o caderno na gaveta e começou a escrever furiosamente com caneta preta. Organizaria tudo depois. Queria apenas que as palavras fluíssem. A seguir, voltou a ler o texto para modificar, eliminar, acrescentar. Deu forma a seus pensamentos: o feitiço, o ritmo da escrita, a magia, a vida. Ao final, estava satisfeita.

     Tinha criado um poema: “Feitiços contra a morte”.

     Adormeceu sobre o edredom, abraçada ao caderno.

     Quando acordou, surpreendeu-se como o tempo havia passado. Já eram três horas da tarde. Pensou em comer algo e desceu as escadas.

     Depois de verificar a janela de trás da casa, abriu o refrigerador. Não havia leite, de modo que não podia comer cereal, contentou-se, então, com um iogurte. Foi até a sala e sentou-se para comer no sofá, com os pés recolhidos sob ela, enquanto via desenhos animados na televisão, com o som desligado.

     Meia hora mais tarde, o telefone tocou: era Lorraine.

     _ Por que não foi ao colégio hoje?

     Sofia não estava com nenhuma disposição para dar explicações.

     _ Não estava passando bem.

     Lorraine não questionou.

     – Hoje não pude te ver _ falou. _ É minha vez de empacotar e marcar as embalagens para a mudança. O pessoal da mudança vem amanhã. Alguns dias dormindo no chão, em colchonetes, e vamos embora.

     Sofia não gostou. Lorraine estava começando a soar entusiasmada.

     _ É a única coisa que você tem para falar? _ disse, antes que pudesse evitar.

     Produziu-se um silêncio total do outro lado da linha. Suas bochechas arderam de vergonha, e isso a deixou ainda mais aborrecida.

     _ Quero dizer, você só fala de si mesma.

     _ Sofia, eu liguei para saber como você está _ Lorraine respondeu, com amargura.

     _ Oh, pensei que você tinha ligado apenas para falar de sua maravilhosa mudança.

     _ Bom, se eu soubesse que se comportaria como uma imbecil não teria telefonado _ disse Lorraine. – Telefono mais tarde, talvez _ e desligou.

     Sofia pôs o fone no lugar com as mãos trêmulas, ainda ouvia o barulho que Lorraine fizera ao desligar o telefone. Por que fiz isso? Que diabos está acontecendo? As lágrimas queimavam sua pele.

   A casa parecia ainda mais vazia e tenebrosa. Vou comprar leite, decidiu. Preciso de ar fresco.

     O passeio não a fez sentir-se melhor. Eu adoraria fazer alguma coisa drástica, decidiu, e chutou uma pedra pela calçada. Algo que os obrigue a aceitar minha presença.

     No mercado, comprou cereal e leite, bem como sacos para o aspirador de pó. Ao sair, ficou surpresa por se dar conta do quanto havia escurecido.

   Estava exatamente no lugar onde tinham encontrado aquela mulher. Estremeceu. De repente, lembrou-se do menino parado no fim do beco, pedindo ajuda a Lorraine.

     A mulher era a mãe do menino? A idéia a petrificou. Mas, se elas o tivessem acompanhado, teriam evitado o que aconteceu? E o assassino haveria fugido ao escutá-los? Ou já seria muito tarde? Ela caminhou pelo beco pensando nos “Feitiços contra a morte”. Já era muito tarde para aquela mulher, a mãe do menino. E para a mãe dela? Seria muito tarde também?

     O beco dava acesso a outro, que percorria as lojas pelos fundos e terminava exatamente na rua existente ao final da fileira de lojas. Um atalho, disse a si mesma, mas estava mais escuro do que imaginara. A morte não bate duas vezes, pensou, para tranquilizar-se, enquanto sua mandíbula se retesava e ela apertava mais a bolsa com as compras contra o corpo.

     A morte tinha estado ali, mas ela seguiria pelo atalho e mostraria o que pensava dela, aquela ladra covarde. Manteve a cabeça erguida, mas acelerou o passo.

     O beco cheirava a umidade e lixo. Um aglomerado de caixas produzia sombras estranhas à luz de uma lâmpada que iluminava uma porta nos fundos. Seria ali que a haviam encontrado? Tratou de não procurar manchas escuras no chão.

     O que aconteceria se alguém estivesse escondido naquele instante? Será que a atacaria? Seria o bastante, então? A morte deixaria sua mãe livre? Precisaria apenas de um Sutcliff, sem se importar com a idade ou o sexo?

     Ela tentou rir da própria argumentação, com medo de aprofundar-se nesse tipo de pensamento. Mas o movimento atrás de uma lixeira interrompeu sua distração. Virou na esquina, as passadas suaves batendo delicadamente no chão de concreto. O que restava do beco estava imerso na escuridão, mas havia uma luz ao fim, a cálida luminosidade da rua Elm. Então, algo maior do que ela moveu-se nas sombras, adiante, para a direita, pelas escadas do porão.

     Dirigiu-se para a esquerda. O que seria? Podia sair correndo? Seria somente um movimento da luz que estava ao lado das escadas? Sim, era isso. A mente era capaz de criar coisas perversas. Acercou-se o mais que pôde da parede do lado esquerdo.

     Uma lata de lixo passou por ela. Saiu voando, vazia, sem peso, rompendo o silêncio, paralisando seu coração. As sombras saltaram também das escadas para a luz.

     Um jovem encontrava-se agachado ali, tremendo, os olhos tão grandes como a noite. Sua face estava untada de sangue. Tinha em suas mãos um punhado de plumas, que gotejavam.

     _ Simon _ ela sussurrou.

     A tristeza deformou o rosto dele.

     Ela deu meia volta e correu.

 

Com uma faca grande, Simon cortava com força o cabo de uma vassoura. Roubara a faca essa noite, de um armazém, pouco tempo depois de ter tomado uma decisão. Murmurava consigo mesmo, com raiva, enquanto trabalhava, as pernas cruzadas, no piso empoeirado da antiga sala de aula.

_ Agora não me deixará entrar. Não voltará a falar comigo. Preciso de alguém – uivava uma voz dentro dele. _ Maldita garota – cuspiu, quando a faca entrou de maneira profunda e cortou outro pedaço da madeira.

O que ela fazia ali, afinal? O que a havia feito caminhar pelo beco àquela hora? Menina estúpida.

         Por acaso não sabia como era perigoso caminhar por becos escuros à noite? Estava procurando problemas? E eu, sim, precisava de alguém com quem falar, sussurrou, seus olhos umedecendo-se por um momento. Mas o momento passou, e seus olhos voltaram a brilhar como pedras escuras e sólidas, à medida que ajustava os últimos pedaços de madeira até deixar uma ponta perversa.

Já tenho o suficiente, pensou, batendo o cabo da vassoura na palma da mão. Esperei demais. Levantou-se e sacudiu a imundície que manchava sua roupa. O pó das tumbas parecia segui-lo onde quer que ele fosse.

_ Mas nunca a morte – disse, entre dentes _, não para mim, e nunca, nunca o amor.

Como uma sombra, só podia viver à margem da vida das pessoas, sem ser tocado e sem tocar nada, exceto arrastar com ele um calafrio, como uma nuvem sobre o sol, como uma mortalha sobre um cadáver. A única coisa que podia tocar era a morte, entretanto não havia outra maneira de provar que estava vivo.

Eu sei quem me aprisionou neste inferno, eu sei com o sangue de quem vou limpar esta raiva que há em meu coração e que me permitirá dormir amanhã, Simon disse a si mesmo.

Chegou às sombras dos arbustos na Rua Chestnut a tempo de ver o menino sair pela janela de seu quarto. O menino estava vestido com um macacão sobre a roupa folgada. Tinha calçado um tênis. Então, Christopher vagaria esta noite. Um sorriso fulgurante e apertado estampou-se no rosto do Simon, enquanto acariciava a madeira pontiaguda que segurava.

O menino caminhou ao lado da janela e deslizou pela calha com a facilidade de um artista de circo. Tinha um volume amarrado às costas. Quando chegou ao chão, desamarrou algo, cheirou o ar como se o estivesse provando e colocou o volume sob o braço. Simon escondeu-se ainda mais entre as sombras. No momento em que o menino ultrapassou os arbustos, Simon se levantou para fundir-se melhor com a noite. Seguiria o garoto até algum lugar mais espaçoso, onde um grito solitário não iluminaria as janelas no meio da noite.

Christopher caminhava com destino certo, desde o momento em que chegou à rua. Mantinha-se no canto da calçada, longe das luzes, mas fazia menos esforço do que se esperaria de um menino daquele tamanho que está fora de casa, tarde da noite. As ruas estavam quase desertas, mas, do lado de fora de uma cabana, um homem idoso se deteve ao abrir a porta da cerca e dar com o garoto. Ficou olhando para Christopher, preparado para fazer algum comentário. Simon, que estava do outro lado da rua, não pôde ver a expressão de Christopher para o velho, mas notou que o homem desistiu de fazer a pergunta que tinha na garganta. Ele atravessou a rua, dando de ombros.

Algumas vezes caminhavam por quarteirões escuros, os dois simples pontos na vastidão da noite. As casas estão muito próximas, pensou Simon, mas devo alcançá-lo logo. O menino parava de vez em quando e olhava ao redor, confuso, como se estivesse procurando algo. Mova-se, mova-se, dizia Simon a si mesmo, e misture-se com a noite. Mas não muito, advertiu-se, ou perderá seus pensamentos também.

Perdeu-se uma vez dessa mesma maneira, sabe-se lá por quanto tempo. Afastou-se e se manteve à deriva até que uma rápida mudança na corrente de ar o fez reorganizar-se e o lançou, nu, justo no meio de uma fogueira.

Refugiou-se no bosque, seguido pelos gritos dos que acampavam, um deles gritando Ave-Marias a plenos pulmões.

         Simon estremeceu com a lembrança da horrível queimadura que sofreu na perna e que o impediu de caçar durante semanas. Seria pior, pensou, enquanto passava de árvore em árvore, converter-se em uma nuvem inconsciente, sem poder voltar nunca para a forma corpórea.

Christopher subiu por uma parede de alvenaria. Simon o seguiu a uma distância segura, com dificuldade devido à madeira que levava. Agachado na parte de cima da parede, viu que o menino desviou-se da rua e cruzou à esquerda na Rua Old Market, rumo à estação de trem. Como Christopher não o via, não se apressou, mas saltou para a calçada e aterrisou com destreza animal, sustentando a madeira acima da cabeça. A estação de trem era agradável e silenciosa a esta hora da noite. Acelerou para não perder sua presa.

Christopher deteve-se na entrada da passagem subterrânea, um túnel mal iluminado, pavimentado com ladrilhos, que conduzia até a plataforma do outro lado. As escadas que levavam ao túnel eram torcidas e angulosas, e as lâmpadas muitas vezes estavam queimadas, deixando muitos espaços escuros. No entanto, a entrada estava bem iluminada, e o volume que Christopher carregava, agora, parecia um urso de pelúcia, que pendia de uma de suas pequenas mãos.

Simon acomodou-se no cimento áspero, no trecho onde as luzes da rua não chegavam. Muito iluminado aqui, pensou. Talvez ele desça as escadas, vibrou com emoção.

         Mas ouviu passos à distância. Uma mulher caminhava sozinha, o casaco vermelho e elegante balançando no ritmo de seus movimentos, a carteira bem agarrada à mão. Talvez estivesse voltando para casa depois de um encontro. Ou se houvesse desentendido com seu companheiro. O importante é que estava sozinha, aproximando-se da passagem. Simon praguejou. Agora, não. Ela parou quando viu Christopher. Simon escutou o tom interrogativo de sua voz, forte mas amável. Christopher respondeu com um chiado, e ela levantou um dedo para ralhar com ele. O garoto ofereceu a mão e ela a tomou, sem disfarçar um sorriso. Deram meia volta e desceram as escadas do túnel.

Simon soltou um palavrão. Golpeou o ar com a madeira e correu para a boca do túnel. Escutou vozes adiante, ao redor das escadas, e as seguiu, enquanto bloqueava seus sentidos contra a umidade e o fétido odor de urina.

Os sapatos da mulher produziam um eco no frio da noite. Suas vozes propagavam-se no ar. O último trem passara fazia uma hora, de maneira que não havia mais o ruído ensurdecedor das rodas. Simon moveu-se silenciosamente atrás deles. A estação já tinha fechado. Os únicos que possivelmente ainda estavam por ali eram os adolescentes com suas latas de spray, que expressavam amor eterno nas paredes adormecidas ante a ausência de espectadores.

Simon girou à direita para descer para o segundo pavimento. Este estava escuro, a lâmpada, quebrada. Adiante, podia ver a mulher e o menino, no túnel, em uma piscina de luz que parecia não poder trespassar a imundície. Estavam perto do final das escadas que seguiam à direita, para a plataforma. O túnel atravessava até o outro lado dos trilhos e até a outra escada em curva, que parecia ser o final. Tinha-se a impressão de que chovera, mas não havia caído uma gota de água durante dias. O piso tinha trechos mofados. Partes da parede estavam pegajosas, dando a sensação de que, se uma pessoa as tocasse, o braço afundaria até o cotovelo.

De repente, o menino caiu. Gritou de susto. A mulher deixou escapar uma exclamação, olhando ao redor com asco, mas ajoelhou-se no chão sujo _ tomado dos mais variados tipos de dejetos em todo o entorno _, pondo a carteira ao lado do urso. Simon observou a cena com uma expressão divertida, as mãos apertando com firmeza a madeira.

O menino chorava. Levantou seus braços para a mulher e esta o abraçou para tranquilizá-lo. Ele se afundou no casaco, procurando se aquecer, enquanto ela lhe acariciava as costas. Sua cabeça descansava na curva da garganta da mulher. Seus braços rodearam-lhe a nuca com firmeza.

Ela tentou soltar-se. Seus olhos se arregalaram. Puxava para trás os braços que a apertavam, mas não conseguia libertar-se. Tentou com mais força. Eram como um ímã. Empurrava a cabeça do garoto, mas ele não se movia. Estava obcecado por sua nuca. Ela começou a gritar. “Besta asquerosa!, Sujo, fedido!”

Os braços da mulher sacudiam-se em desespero, suas pernas chutavam, mas não pôde tirá-lo de cima dela. Quis girar, mas ela a mantinha presa com uma força anormal. O menino a agarrou pelo cabelo para posicionar sua cabeça mais para trás, e ela começou a gritar de novo, mas o grito se converteu em um som abafado, à medida que o sangue lhe saía pelo nariz.

O menino movia seu queixo sobre o pescoço da mulher em movimentos rítmicos, como se a estivesse ordenhando. As pernas dela apenas se mexiam agora. Os braços jaziam mortos dos lados. A vida fluía rápido de suas veias para o pequeno sanguessuga que a tinha apanhado.

Simon sentiu-se doente. Quase podia ouvir os ruídos da gula do Christopher. Ele não as possuía com gentileza. Não podia tomar o que necessitava e deixar o resto, deixar um resto de vida. Tinha que tomar cada gota e destruí-las no processo. Não ficava satisfeito com o sangue. Precisava alimentar-se do medo de sua vítima. De qualquer forma, aquela mulher não sofrera tanto. Simon era testemunha de que Christopher podia ser muito pior.

As pernas da mulher fizeram um último movimento e, finalmente, ficaram quietas. Um braço ergueu-se e caiu com força. Christopher afastou a cabeça da garganta dela. Estava de costas para Simon.

Agora, pensou Simon, enquanto está enfastiado com o sangue. Desceu as escadas, mal-encarado. Levantou a estaca pontuda com ambas as mãos, ao nível da cintura, e começou a avançar cuidadosamente pelo túnel.

Christopher procurou algo no bolso da calça.Tirou uma faca e rapidamente cortou a garganta da mulher, para esconder as marcas de suas presas. Limpou a faca no casaco dela, fazendo uma grande mancha no punho. Levantou-se, dando de costas, e limpou a boca.

Simon aproximou-se mais e mais.

Christopher chutou a mulher no peito e grunhiu, com satisfação.

Simon se acercava. Estava muito concentrado em seu objetivo para ver a carteira que deslizou pelo piso, no momento em que Christopher golpeou a mulher. Simon deteve-se, apavorado. Christopher virou-se para encará-lo.

_ Simon – ele disse, e ficou surpreso por um momento, mas logo se recompôs, para mostrar um tom de agradável surpresa. _ Que bom ver você de novo, querido. E tão bem preparado – riu, com uma risada irritante.

Sua roupa começou a sacudir-se, a inchar-se e despencar. Seu rosto desapareceu. A risada tornou-se um chiado agudo. De repente, só havia um amontoado de roupas no chão.

Simon lançou-se para agarrá-lo, mas uma figura negra saiu do meio das roupas e voou para o alto. Simon atirou a estaca, mas o animal revoou ileso para fora do túnel, ainda chiando.

Simon amaldiçoou a situação em todos os idiomas que conhecia. Levantou o macacão e voltou a jogá-lo, sentindo-se frustrado. O maldito garoto podia ter transformado sua roupa também. Os de sua classe podiam alterar as moléculas daquilo com que tinham contato próximo. Deixara a roupa para atormentá-lo. Simon cuspiu. Era melhor que não se retardasse ali, com aquele cadáver. Deu uma olhada na mulher, estremecendo diante da máscara de morte que exibia. Havia algo debaixo dela.

Apesar de sua repulsa, aproximou-se para investigar.

Era o urso de pelúcia, agora manchado de sangue. Simon o recolheu. Era rijo ao toque e percebia-se que tinha pequenos vultos em seu interior, muito diferente de um ursinho de brinquedo. Havia um rasgo sob um dos braços e alguma coisa espalhou-se no chão: terra. Simon sorriu, depois um riso abafado chegou a seus lábios. Terra.

Pum! De repente, havia estrelas em sua cabeça. Escuridão. Tombou no solo.

_ Esqueci algo – disse uma voz pequena e enérgica, e o urso foi arrancado das mãos do Simon. _ Obrigado pela estaca – disse a voz, de longe.

Sua visão clareou antes que terminassem as ondas de náusea.

         A roupa não estava mais lá, mas a madeira continuava onde havia caído depois do golpe. Quando a ânsia de vômito seco se apaziguou, Simon se pôs de pé, apoiando-se na parede mofada. Não podia permanecer ali.

         A cabeça doía-lhe terrivelmente quando se mexia, mas moveu-a para todos os lados. Precisava encontrar um lugar para se esconder. Ao menos descobrira um fato importante: se Christopher carregava a terra, é porque era o que o fixava. Temia perdê-la, e esse era seu ponto fraco.

Teria muitas noites de insônia caso a perdesse, e seria muito difícil recuperar sua terra natal. Ficaria fraco a cada vez. Muitas coisas podiam acontecer nesse meio tempo. Se alguém conseguisse retirar essa terra dele…

Mas agora que Christopher sabia que ele estava perto, o infeliz estaria mais alerta. Seria mais difícil do que nunca enganá-lo, quase impossível. Enquanto isso, ele faria planos para seguir adiante. Era tão injusto. Com tudo o que tinha feito, ele nunca pagaria por isso.

Estou absolutamente sozinho, pensou com tristeza. Estarei sozinho sempre. Não tenho com quem compartilhar este peso e torná-lo mais leve. Pensou em Sofia e no sopro de vida que, graças a ela, brilhara nele, e que ele pensara ter desaparecido para sempre. Era inevitável. Não voltaria a acontecer. A besta nele não permitiria, mas ainda assim ele a desejava.

_ Se apenas… _ suspirou.

 

     Sofia não se deu conta de que era Halloween, até aparecerem as primeiras fantasias. No momento em que soou a campainha, abriu a porta, confusa, só para ver-se frente a frente com um grupo de duendes e bruxas. Um homem sorridente esperava junto ao muro. Todos os garotos teriam supervisão este ano.

     _ Um momento – disse ela, tratando de dissimular o espanto, e correu para procurar o pacote de chocolates Three Musketeers.

     As barras de chocolate e as bolachas que encontrou esquecidas na cozinha só deram para a primeira turma de vagabundos, monstros e vampiros. Agora só tinha três frascos cheios de moedas, que tirou do armário de seu pai.

     Recebeu alguns olhares hostis pelas moedas. Tranquilizou-se, porque os garotos eram pequenos esta noite, ou certamente seria recompensada com algumas travessuras.

     Entre um grupo e outro, ela pôs um vestido preto de noite, que pertencia à sua mãe, e arranjou os cabelos negros ao redor do rosto. Espero que minha aparência os distraia das aborrecidas moedas, pensou. De toda forma, ainda faltava algo. Dirigiu-se ao closet do corredor e tirou a pequena caixa onde estava o crucifixo que Lorraine lhe dera. Pegou o objeto e o colocou ao redor do pescoço, com a fita vermelha. O que viu no espelho a agradou, mas ela tocou o pingente com pesar.

     Não se tinham falado em dois dias. Pior, Sofia a encontrara uma vez no corredor do colégio e Lorraine deu meia volta e seguiu adiante. Realmente, foi um alívio. Ela não saberia o que dizer, como explicar.

     Devo pedir desculpas, disse a si mesma, como fizera repetidas vezes ontem. Mas não importava quantas vezes repetisse, não conseguia fazê-lo.

     _ Sou uma estúpida – disse, de repente, em voz alta, e tomou o telefone. O número começou a chamar automaticamente e ela esperou, prendendo a respiração. Responderam no terceiro toque.

     _ Alô?

     _ Diane – um alívio, pensou. É agora ou nunca. _ Lorraine está?

     _ Oh, sinto muito, Sofia. Ela vai passar a noite com a mãe – a voz dela não soava triste. _ Não voltará até amanhã pela manhã.

     _ Ok, obrigada, Diane, talvez possa ligar para lá.

     _ Não acredito que seja uma boa ideia, Sofia. É a última noite que estarão juntas por bastante tempo, sabe. Mônica certamente irá querer ficar sozinha com Lorraine. Tente entender, querida.

     Como se você se importasse, pensou Sofia.

     _ Bom, de acordo. Obrigada.

     _ Não tem de quê. Adeus. – Diane desligou.

     _ Sim, claro – murmurou Sofia. Agora, onde estava a agenda? Encontrou-a na gaveta e procurou até achar o número, mas, então, pensou duas vezes. Podia ser que Diane tivesse razão, pela primeira vez. Talvez fosse imprudente telefonar. Certamente, não voltarei a vê-la, pensou. Não posso deixar que vá enquanto estamos brigadas. Mas Lorraine não estaria passando o Halloween com sua mãe, se eu não tivesse agido de forma imatura, decidiu Sofia. Ela provavelmente não quer falar comigo. Fechou a agenda de um só golpe.

     Desde já, começava a sentir horrivelmente a falta de Lorraine.

     Não quero ficar sozinha, pensou. Reabriu a agenda numa tentativa de achar alguém mais para ligar. Deu-se conta de que a maioria das meninas naquela lista eram mais amigas de Lorraine, ela não mantinha contato com elas e, de toda maneira, qualquer pessoa normal já teria planos. Enquanto passava as páginas, encontrou o número de Carol. Podia telefonar para a amiga de sua mãe. Carol é muito querida e eu a levei a mal da última vez que a vi, disse a si mesma; mas o telefone estava ocupado. Fechou a agenda de novo e a jogou na gaveta.

     Sofia estava revisando os discos de seus pais, procurando música fúnebre, ao som de órgão, quando chegou o grupo seguinte. Entre eles, havia uma menina em uniforme de enfermeira, que mostrou a língua ao ver as moedas entrando em sua bolsa. Ao menos, está recebendo algo, pensou Sofia. É isto ou pipoca de milho e já sei qual eu iria preferir. Encontrou o disco que procurava depois que eles se foram.

     A campainha soou de novo e Sofia entregou mais moedas.

     A música do órgão estava surtindo efeito: os olhos piscavam e as bolsas eram oferecidas com temor. Para dar um toque final, recitava um trecho de Macbeth. Isto era muito mais interessante do que as moedas. O segundo frasco de moedas estava pela metade e os grupos chegavam mais e mais afastados uns dos outros. Sofia encheu-se da música de órgão e, por isso, desligou o som.

     A campainha soou de novo, e Sofia abriu a porta.

     Simon.

     Fechou a porta em seguida. Seu coração pulsava no peito com toda força.

     Ele bateu na porta desta vez.

     _ Vá embora!

     _ Por favor – ela o escutou dizer, com dificuldade: o som ficava abafado pela madeira da porta. _ Por favor, deixe-me entrar.

     _ Vá embora ou chamarei a polícia – deu o dobro de voltas na chave da porta, tremendo.

     _ Por quê? – disse ele, a voz mais forte.

     _ Você sabe por quê – ela se recostou contra a porta, como que tentando assegurar-se de que permaneceria fechada. Oh, Deus, queria que Lorraine estivesse aqui, pensou ela.

     _ Já teria contado à polícia sobre mim, se quisesse.

     _ Como sabe que não contei? – claro que não o havia feito. O que ia dizer? _ e sentiu-se ruborizar _, que estupidamente tinha caminhado por um beco escuro na noite em que ocorrera um assassinato e fora testemunha de como um rapaz devorava um pássaro? Se era suficientemente louca para estar lá, acreditariam no que tinha visto?

     _ Como sabe que não estão esperando que eu os chame e lhes diga que está aqui?

     _ Sofia, tenho vivido a mentira mais sombria de todas – sua voz era triste. _ Posso reconhecer uma.

     Por que ela acreditaria nele?

     _ Posso chamá-los agora – procurava desesperadamente uma razão. _ Direi que está tentando entrar aqui.

     _ Mas não posso entrar a não ser que você me convide.

     Havia algo estranho em sua voz, algo como angústia. Não impediu que ela se dirigisse ao telefone. Seu comentário fora absurdo.

     _ Era só um pássaro, Sofia. Estou certo de que você pôde ver as penas – dava a impressão de que estava ajoelhado ao nível da fechadura, porque sua voz era mais clara.

     Ela congelou. Ele sabia exatamente o que a incomodava, como se lesse sua mente. Lembrou-se de seu belo rosto coberto de sangue. Sim, lembrou-se das penas. Não viu nenhum corpo, nenhum corpo humano, só as plumas destroçadas.

     _ Tinha fome – seu tom era dolorido.

     Ela estremeceu. Que tipo de pessoa come pássaros vivos? Poderia estar tão desesperado e faminto? Estaria tão abandonado e necessitado para fazer isso? Seu asco era apaziguado pelo pesar. Ou estaria de verdade doente, doente da cabeça? O pesar desapareceu e ela tremia de novo. Tinham encontrado outro corpo mais tarde aquela noite, em outro lugar. Lera a respeito no jornal do dia seguinte. Sua boca estava desesperadamente seca.

     _ Se estiver suficientemente doente para fazer isso, também pode fazer outras coisas. Você pode ser o assassino que procuram – pronto, havia dito. Que ele soubesse o que pensava. Deu meia volta, abraçou-se e encostou as costas na porta.

     _ Esse não sou eu! – soou indignado.

     _ Talvez não – embora não estivesse segura disso _, mas você é esquisito.

     _ Isso eu posso aceitar – disse, em voz baixa.

     Fez-se um longo silêncio, por tempo suficiente para que ela pensasse que ele partira. Ela virou-se e cuidadosamente se agachou para olhar pela fechadura.

     _ Sei quem é o assassino.

     Sofia se levantou de um salto, sustendo a respiração.

     Era ele? Estava brincando com ela?

     _ Conte à polícia, então.

     _ Não acreditariam em mim.

     _ Então, por que quer me contar?

     _ Não sei ainda. Pensei que você poderia ajudar.

     _ Ajudar em que, por favor? A entregá-lo à justiça?

     _ Tenho que fazê-lo – sua voz soava rouca pela emoção.

     Foi surpreendida pela intensidade de seus sentimentos. Lentamente, abaixou-se do outro lado da porta, tentando entender a confusão que sentia. Faz um minuto pensava que ele era um assassino louco; agora, perguntava-se se não era um vigilante lunático. Não imaginava o que o comoveria daquela maneira. Estaria delirando?

     _ Por que se importa tanto? – perguntou-lhe, justo antes de dar-se conta que estava falando em voz alta.

     _ Ele matou minha mãe – falou.

     Cristo, pensou Sofia. Acredito nele. Não quero, mas acredito.

     _ Ele é o culpado por minha solidão.

     As lágrimas ardiam nos olhos de Sofia.

     _ Mas você esteve me espionando – maldito, ela não se sentiria triste por ele; ele era perigoso e louco. _ Esteve nas escadas dos fundos da minha casa. Por quê?

     Tampouco Simon tentou negar.

     _ Porque você falou comigo e me senti uma pessoa novamente. Talvez quisesse vê-la através da janela. Talvez você pudesse sair e poderíamos conversar de novo. Não sei. Talvez, porque, estando ao seu lado, me senti seguro, real. Sofia, por favor, me deixe entrar. Preciso de você.

     Ela sentia sinceridade em sua voz. Se lhe desse as costas, seria outro ato de covardia, outro quarto de hospital que não podia cruzar?

     Ergueu-se e tirou o trinco. Oh, Deus, pensou ela, estou permitindo que um louco entre em casa, um louco que come pássaros. Abriu lentamente a porta.

     Ele era alto e magro. Sob os jeans apertados e a jaqueta de couro, ela podia imaginar músculos bem formados e poderosos. Ali parado, mas cheio de energia, era como um bailarino, num intervalo antes de iniciar o próximo movimento. Suas roupas negras enfatizavam a palidez de sua pele delicada, e os cabelos sedosos, de um matiz prateado puxado para o cinza, pareciam ter a consistência do ar. Ela tinha a impressão de estar diante de um ser elemental transformado em fera selvagem. Seus olhos cintilavam como os detalhes em metal de sua jaqueta. Não podia saber se era apenas o efeito da luz, ou se ele teria lágrimas nos olhos. Mas ele retrocedeu, como se a luz da casa fosse muito intensa, e desviou o olhar antes de que ela pudesse saber com certeza. Foi quando notou que ele trazia algo sob o braço. Parecia ser uma pintura.

     Ofereceu-lhe a mão, mas não fez nenhuma menção de entrar.

     _ Você tem que me convidar – ele disse. _ Não posso entrar, se você não me convidar – esperou sua resposta com o olhar baixo.

     Ela decidiu que provavelmente havia um nome para este tipo de comportamento nos livros de Psicologia.

     _ Pode entrar, Simon.

     Um sorriso iluminou-lhe o rosto, embora parecesse muito tímido para encará-la. Este rosto poderia partir um coração, pensou ela. De repente, era difícil pensar nele como assassino.

     _ Será melhor que se sente – disse ela, mas não sabia onde levá-lo. Conduziu-o à sala e ele olhava para todos os lados, enquanto a seguia. _ Você gostaria de tomar alguma coisa? – não se sentia segura em seu papel de anfitriã.

     Ele a fitou e sorriu levemente.

     _ Fui alimentado no seio da morte, e nenhum outro alimento me poderia manter de pé.

     Ela riu nervosa.

   _ Isso é um sim ou um não? – Deus, acuda-me, pensou. Que poético.

     _ Sinto muito – ele falou, desconfortável. _ É algo que escrevi faz tempo. Nunca pensei que teria a possibilidade de dizê-lo e não pude resistir.

     Ele escrevia? Suas sobrancelhas se levantaram levemente.

     _ Não sou analfabeto – ele disse, zangado por sua expressão de surpresa. _ E não quero nenhuma de suas bebidas.

     _ Bom, eu quero – e foi buscar uma coca.

     Está tão nervoso quanto eu, pensou ela. Atrasou-se na cozinha, tratando de acalmar os nervos e respirar fundo várias vezes.

   Quando voltou, ele estava brincando com o rádio. Havia colocado a pintura sobre o sofá. Encontrou uma emissora de rock de que gostou e foi colocar-se ao lado dela, em frente ao retrato de moldura dourada. Ele ainda não a encarava e isso estava começando a incomodá-la.

     Ele esticou o braço para abraçar-lhe os ombros, e ela esquivou-se precipitadamente.

     _ Não – disse, parecendo ansioso para transmitir-lhe segurança. _ Só quero seu colar.

     Ela se perguntava por que ficou quieta, enquanto os dedos dele agilmente desamarravam o nó e liberavam o crucifixo de seu pescoço. Simon segurou o objeto cuidadosamente pela fita, com o braço estendido e, pela primeira vez desde que entrou, olhou-a de frente. Sem tirar os olhos dela, depositou o crucifixo em um vaso sobre a mesa lateral, com incrível precisão.

     _ A roupa está ótima, mas essa coisa não a favorece.

     Estava com raiva, mas não queria protestar. Deixe o crucifixo onde está. Não vale a pena brigar por isso. E correu a sentar-se em uma das poltronas, deixando a mesa entre eles. Para sua tranquilidade, ele não a seguiu, mas sentou-se no sofá e olhou ao redor. Acomodou-se sobre as almofadas relaxado, todo o nervosismo superado. Parecia especialmente interessado nos quadros da parede. Esfregou as mãos como se as estivesse esquentando na lareira.

     _ Eu também tenho uma pintura – disse, desnecessariamente.

     Os Ramones encheram o ar em torno deles com sua música estridente.

     _ Adoro rock – disse ele. _ Apaixonei-me desde o início. Há algo elementar nele. Como a pulsação do sangue nas veias. Antes, havia os blues, o jazz; eu também gostava, mas não da mesma maneira. Nenhum deles agita meu coração como o rock. Não permitiam música no lugar onde eu vivia, sabe, mas tive suficiente tempo para ir à forra.

     _ Psicoterapia. Psicoterapia – dizia a letra.

     Girou para olhar a pintura que depositara sobre o sofá, o olhar sonhador.

     _ Queria que visse isto.

     Paciência, Sofia, pensou.

     _ Venha olhar – animou-a ele.

     A curiosidade fez com que ela se movesse. Ajoelhou-se no chão, diante do sofá, empurrando a pequena mesa para o lado com os pés. A moldura estava gasta e deteriorada pelo tempo e tinha uma quina quebrada. A pintura era muito antiga. O retrato mostrava uma família: um homem severo, com trajes negros sob o colarinho alto e branco, estava de pé ao lado de um assento onde se acomodava uma mulher, igualmente vestida de branco, com um bebê nos braços. Um menino de uns seis anos aparecia, orgulhoso, parado na frente do pai, com as mesmas roupas severas. Lembrava alguém conhecido. A pintura estava cheia de sombras. Os móveis eram modestos e as expressões dos rostos, sombrias. Bom, talvez não a da mulher. É como se estivesse fazendo um esforço para não sorrir; seus olhos brilhavam como se estivessem muito contentes para ficarem sérios por muito tempo.

     Sofia olhou Simon com um ar de interrogação.

     _ Minha família – disse ele.

     _ Quer dizer, seus antepassados?

     _ Meus pais e meu irmão.

     Sofia franziu o cenho. Não estava certa de que queria entender.

     _ Como essas fotos antigas que se fazem agora? – perguntou ela. _ Com roupas de cawboys ou algo assim?

     Simon virou a pintura e a entregou a ela. Na parte de trás, havia letras desbotadas em tinta de tom café: uma data – 1651 – e palavras que se inclinavam de forma inesperada. Edmund Bristol Gentleman e sua esposa, senhora…(esta parte não se podia ler), seus filhos… (de novo ilegível).

     _ Foi o ano em que o Velho Rowley retornou com o exército escocês – disse Simon.

     Ela ficou olhando para ele.

     _ Tornou-se Carlos II – ele explicou _, mas não nesse ano. Cromwell o mandou a Worcester.

     Sofia o fez calar, impaciente.

     _ O que isso prova? Pode-se falsificar coisas como essa.

     Ele tomou a pintura de novo e a girou. Olhou-a com ânsia.

     _ Este sou eu – disse, assinalando o bebê.

     Oh, não, pensou ela.

     _ E este é seu assassino – continuou, apontando o outro menino. _ Meu irmão, Christopher.

     _ Como pode pretender que eu acredite nisso? – gritou ela. E começou a levantar-se.

     Ele a agarrou firmemente e a manteve ali, enquanto, com dificuldade, deslizava a pintura entre a mesa lateral e o sofá. Isto era um engano, pensou ela, um estúpido engano.

     _ Ele espera em lugares escuros – prosseguiu Simon.

     Oh, não, não é você. Por favor, não é você, suplicava Sofia, em silêncio.

     _ Ele diz às mulheres que está perdido e depois se aproveita de sua bondade. – Os olhos de Simon ardiam, assustando-a. _ Ele as guia a cantos escuros, tira suas vidas de forma atroz e depois lhes corta a garganta – a pressão da mão dele aumentava conforme a intensidade das palavras. _ Parece um menino, mas é tão velho como o pecado, e está tomado de imundície e corrupção. Elas pensam que ele é só um menino.

     Sofia sentia o frio apoderando-se dela, cada vez mais, como se o frio da mão de Simon estivesse entrando por seu corpo. Viu, novamente, o menino falando com Lorraine, no início do beco. “Estou perdido”, havia-lhe dito o garoto. Ela tremeu. Está enganando-me de algum jeito, pensou ela. Mas não, não tinha contado a ele. Como ele podia saber? Por Deus, Lorraine poderia ter sido atirada no chão e morta. Não, não era certo.

     _ Ele matou minha mãe – dizia Simon. _ Ela estava encantada de tê-lo outra vez, mas ele matou sua própria mãe da maneira mais asquerosa. E ele sabia quem era ela. Segui-o por muito tempo e agora o encontrei. Mas falhei, Sofia. Tentei matá-lo e falhei. O que posso fazer agora?

    Deixe-me ir!, ela queria gritar.

     Ele afrouxou o aperto sobre Sofia. Deslizou a mão pelo braço dela em direção ao ombro. Ela tratou de mover-se para trás mas, contrariamente, moveu-se para frente. Distinguiu um vislumbre de tormenta de verão em seus olhos: o mesmo calor intenso que sentiu no dia em que ele a acompanhou até em casa. Ele precisava dela. Após várias semanas sentindo-se desnecessária, era uma mudança agradável. Os lábios dele tocaram os seus _ frios, suaves, quase exploradores. Não posso acreditar que esteja fazendo isto, pensou ela. Ele suspirou levemente, como se fosse seu primeiro beijo, negado há muito tempo, e ela se entregou a ele enquanto a abraçava. A boca de Sofia se abriu. Ele lhe mordiscou o lábio inferior.

     _ Ai! – ela separou-se dele.

     Os olhos dele eram grandes, escuros e compulsivos. Ele piscou e, de repente, ela sentiu como se estivesse despertando de um sonho. Ele estava envergonhado.

     _ Sinto muito – falou. _ Fiz com que me beijasse. Não era minha intenção. Queria que viesse para mim livremente. Mas senti que te perdia. Tive medo de desperdiçar qualquer oportunidade de estar com você.

     _ Isso é absurdo – Sofia retrucou, indignada. _ Você não me obrigou a beijá-lo – seu coração pulsava a toda velocidade e seu lábio ardia onde ele a tinha mordido. _ O que o faz pensar que pode fazer esse tipo de coisa?

     _ Não sou como você – ele respondeu. _ Eu já não sou humano, ou, ao menos, acredito que não.

     Ela enrugou a testa. Não queria que a recordassem de sua estranheza; queria que ele a abraçasse e a fizesse esquecer de tudo. Nunca tinha recebido um beijo como aquele. Sentou-se a seu lado no sofá, mas, constrangida ante sua necessidade de ser beijada, ela sabia que não podia encará-lo. Sem se dar conta, ela tocou a própria boca, e sua mão ficou manchada de sangue. Ele se aproximou e, brandamente, lambeu-lhe o lábio. Ela sentiu que se derretia, mas ele estremeceu, como se tivesse frio. Ela se retraiu, temendo sua própria reação.

     _ Vou contar uma história – disse ele, com um leve tremor na voz _, e, depois, você acreditará em mim.

 

     Simon desligou o rádio. Nenhuma distração agora, pensou ele, não importa o quanto eu goste da música. Motorhead foi abruptamente silenciado. Recostou-se no sofá junto a Sofia e começou sua história.

     _ Nasci em uma vila nos subúrbios do Bristol, localizada a oeste da Inglaterra. Meu pai era dono de uma boa quantidade de terra, onde criava ovelhas e vendia a lã. Mas ele era ambicioso.

     Simon viu que Sofia acomodara-se relaxada nas almofadas, concentrada na história.

     _ Naqueles dias, o Parlamento reinava. O antigo rei estava morto, e o futuro rei ainda estava no exílio. Eram momentos difíceis, onde a mínima demonstração de prazer era condenada. O tradicional baile entre casais _ onde cada um segura uma das fitas atadas à parte superior de um poste para dançar, girando e entrelaçando as fitas, que formam figuras ao redor do mastro _ foi proibido, e o Natal só era permitido para jejuar. Isto fazia a vida difícil para minha mãe, porque ela era alegre por natureza e gostava da dança e do baile, mas se via forçada a usar cores escuras e a manter uma expressão solene em público. Todavia, em sua casa, cantava para os filhos à noite, sem se importar com o que os vizinhos dissessem. Tinha uma risada alegre, e todos aqueles que a conheciam diziam que era difícil não unir-se a ela.

     Simon acariciou a moldura da pintura, por cima do braço do sofá, tão suavemente quanto falava. Era tudo o que ficara dela.

     _ O negócio de meu pai começou a prosperar quando eu ainda era pequeno, por isso mandou fazer este quadro, como registro de sua boa fortuna. Foi pouco depois disto que Wulfram Von Grab apareceu em nossas vidas.

     As costas do Simon ficaram tensas. Sofia se deu conta e, então, ele tratou de se acalmar.

     _ Meu pai sempre dizia que, apesar dos outros defeitos da lei puritana, abriram-se mais possibilidades de comércio na Europa do que com qualquer dos reis Stuart. Os comerciantes que tivessem uma boa noção de política recebiam oportunidades de ouro para triunfar, e meu pai ia cada vez mais à cidade. Em uma dessas ocasiões, conheceu Von Grab. Este lhe afiançou que podia ajudá-lo a aproveitar o florescente mercado têxtil britânico no continente, em troca de uma percentagem, naturalmente. Como ele tinha contatos dos quais meu pai podia beneficiar-se, meu pai o levou para casa, para que pudessem discutir mais a fundo.

     Simon viu a pergunta de Sofia antes que ela mesma tivesse oportunidade de fazê-la. Como ele podia saber tudo aquilo?

     _ Naturalmente, eu só vim a saber disto quando estava maior e por partes, mas reuni suficiente informação para conseguir completar a história.

     “Von Grab era um homem alto, pálido, com uma cabeleira negra e basta _ havia rumores de que usava uma peruca _ e olhos ainda mais escuros. Movia-se elegantemente e acentuava sua conversa com animados gestos das mãos longas e elegantes. Portava-se como um convidado agradável e, muito rapidamente, ganhou a confiança de minha mãe com piadas e canções. Ele, por sua vez, ficou impressionado com meu irmão Christopher.

     “Não importava quanto meus pais achassem Von Grab agradável, os empregados o consideravam estranho. Seja porque era do continente, ou porque era realmente excêntrico, eles não podiam decifrá-lo. Além disso, em um tempo em que as pessoas se levantavam de madrugada, ele dormia até depois do meio-dia, e, enquanto a família se deitava não muito depois do entardecer, eles sabiam que ele ficava acordado até bem tarde da noite. Mas tinha muito dinheiro e, certamente, faria de meu pai um homem rico, de maneira que sua estranheza era tolerada.

     “Ademais,Von Grab raramente se aventurava a sair, mas sentava perto da lareira após o jantar, contando histórias, e até os poucos criados valiam-se das sombras do salão para escutá-lo sem serem vistos.

     “Eles contaram que Christopher estava hipnotizado pelo homem. Sentava-se aos pés do visitante ou em seus joelhos e pedia que contasse outra e outra história. Enquanto minha mãe olhava encantada, Von Grab ria e brincava com o cabelo castanho-claro e macio de Christopher, chamava-o seu anjo encantador, seu pequeno Fledermaus. Christopher passava com ele todo o tempo que fosse possível. Minha mãe o considerava um homem carinhoso e o repreendia brandamente por não ter esposa.”

     Sofia se movia impaciente, e Simon indicou que ficasse quieta.

     _ Já vou chegar à razão de minha história.

     “Uma noite, o criado de meu pai estava a caminho de visitar, secretamente, a empregada que lavava as roupas da casa, quando escutou vozes suaves no quarto acima das escadas. Subindo sem ser visto, avistou Von Grab na porta de seu quarto, falando com Christopher, que estava parado ali, em seu pijama, pequeno e assustado. O criado assumiu que o menino tinha tido um pesadelo e fora procurar seu amigo, para que o tranqüilizasse, e, então, afastou-se. Não convinha que soubessem que ele estava percorrendo a casa naquela hora.

     “Talvez Von Grab se tenha dado conta de que o tinham visto e pensava que as sementes da suspeita estavam semeadas, ou simplesmente, não podia esperar mais. Não tenho certeza. Mas, na noite seguinte, foi-se depois que todos estavam dormindo, levando somente uns quantos pertences em seu cavalo negro, e ninguém percebeu até a manhã seguinte, quando todos procuravam por Christopher.

     “Nessa manhã, a cama vazia do menino foi descoberta por uma empregada e, apesar de procurarem, não o encontraram. Finalmente, ao ver minha mãe dominada pelo pânico e toda a casa em tumulto, o criado de meu pai teve que pôr de lado a vergonha e dizer o que tinha visto. Meu pai bateu na porta de Von Grab, mas ninguém respondeu, e a porta abriu-se facilmente para um quarto vazio. A cama estava intacta. Wulfram Von Grab havia partido, levando Christopher com ele.”

     Sofia se aproximou de Simon. Sua expressão era séria e intensa. Ele a tinha capturado com a história.

     _ Meu pai escreveu cartas desesperadas aos homens que Von Grab havia mencionado como seus associados e as enviou, pelos criados, ao posto de correio seguinte. Depois, seguiu até Bristol para ir ao pequeno hotel onde ele conhecera Von Grab. Mas ninguém sabia de seu paradeiro, e a busca por Bristol foi inútil. Meu pai teve que voltar, desanimado, a seus negócios, e confiar em suas cartas e em Deus.

     “Um por um, seus mensageiros voltavam sem notícias e, quando as respostas a suas cartas chegaram, ele caiu em desespero total. Nenhum daqueles homens sequer sabia quem era Von Grab. ‘Como pode ser isto?’, perguntava-se meu pai uma e outra vez. Foi muito inocente para suspeitar dos cuidados de um homem para um menino. Era impossível imaginar o que se passou depois.

     “Não tendo outra alternativa, gradualmente a casa retornou à sua rotina normal, mas, na realidade, nunca mais seria igual. Meu pai anunciou que tínhamos que superar a tragédia e entregou-se totalmente a seu trabalho. Seu negócio floresceu, e até um dos supostos associados de Von Grab se ofereceu para patrociná-lo no continente, ao escutar a triste história. Meu pai enriqueceu cada vez mais, mas, cada vez que alguém viajava, dava ordens de procurar Christopher.

     “Minha mãe nunca deixou de chorar. Sorria cada vez menos e se tornou muito nervosa, alterando-se até com o leve toque de um ramo contra a janela.”

     Simon queria tanto visualizar sua mãe, mas já não podia ver seu rosto, exceto quando olhava a pintura, embora recordasse sua suavidade e calor. Suspirou.

     _ Ela apegou-se a mim com tão desesperada ferocidade, que, ainda um menino pequeno, por vezes, sentia-me sufocado. Não protegera o mais velho, de modo que nunca me deixava sozinho. Talvez, Deus a estivesse castigando, ela não sabia. Quando os outros habitantes da vila começaram a sussurrar que devia ser o pecado da família o que nos levara àquela tragédia, ela deixou de ir à igreja aos domingos. Voltou-se contra Deus.

     “Depois, quando eu tinha quatro anos, ela começou a ver Christopher aparecendo na janela, escondendo-se nas sombras de um quarto escuro, ou parado do lado de fora, à luz da lua. ‘Aí está’, gritava ela. A princípio, meu pai saltava a olhar, ou um criado corria para fora a procurar, mas nunca havia ninguém. Então, simplesmente sacudiam levemente a cabeça. Meu pai lhe acariciava o cabelo com tristeza e tratava de tranquilizá-la, mas ela ficava mais histérica ainda, ao ver que não acreditavam nela.

     “Uma das poucas e mais claras lembranças que tenho de minha mãe é vê-la sentada, na cadeira de meu pai, uma certa noite. ‘Seja um bom menino.’ Ainda posso escutá-la. ‘Fique aqui. Não me demoro.’ Estava sorridente, acredito. Recordo-o, porque era muito incomum. Ela abriu uma janela e chamou alguém de fora; depois se foi, e me deixou com a brisa fria da noite. Nunca mais voltei a vê-la.”

     Simon se deu conta de que se protegia desse antigo frio. Mas esse frio agora estará sempre comigo, pensou.

     _ Encontraram-na depois, no jardim, degolada.

     Sofia ficou sem respiração e colocou a mão em sua própria garganta. Simon viu o que ela fez e baixou-lhe o braço. Os olhos dela estavam grandes e cheios de compaixão. É estranho, surpreendente e triste contar esta história a alguém como ela, após tanto tempo, e ver que se importa, pensou ele. Queria tanto tocar-lhe o rosto, mas se controlou. Não a distrairia de sua história.

     _ Todos me mimavam e me abraçavam, e eu não podia entender o porque das lágrimas, mas percebi, depois de muitas noites, quando chamava minha mãe, e ela não respondia. Ela foi uma mulher doce e terna, com um espírito alegre; não merecia morrer assim.

   “Pouco depois, meu pai mudou-nos para a cidade de Bristol. Não podia mais suportar viver naquela casa. Obteve um bom ganho na venda da terra e ampliou seu negócio. Eu sempre estava sob o cuidado de criados _ tínhamos mais deles agora _ e quase nunca via meu pai. Lembro-me de ficar irritado com ele por deixar minha mãe partir, mas talvez eu estivesse com mais medo de que ele próprio não voltasse. Quem sabe? O fato é que não nos unimos mais depois disso.

     “Não ficamos em Bristol muito tempo. Em meu oitavo aniversário, o mesmo ano em que morreu Cromwell, meu pai decidiu que era melhor para seu negócio se nos mudássemos para Londres. Estávamos nos organizando em nossa nova casa, na Rua Ewskin, ao mesmo tempo em que o novo rei se organizava em Whitehall.

     “À medida que eu crescia, e lutava com os clássicos, com um tutor rigoroso, Londres se afastava drasticamente do que tinha sido sob a Commonwealth. A primavera chegou à cidade, e a população tirava as roupas negras e brancas e florescia com cores brilhantes. Quando a praga e o Grande Incêndio nos deixaram ilesos, meu pai decidiu que, talvez, Deus nos permitisse um pouco de paz.

     “Mas, à medida em que me convertia em um homem adulto, meu pai não conseguia me entender. A roupa que ele usava seguia sendo da mesma tonalidade conservadora cinza e café, embora dos melhores tecidos. Eu, entretanto, aceitava as novas tendências e gastava minha ampla mesada em sedas brilhantes e laços, que, novamente, haviam-se tornado artigos cobiçados. Eu sempre estava preparado para comprar uma liga para me adornar a panturrilha.”

     Sofia sorriu. Simon prosseguiu.

     _ Ignorei todas as súplicas de meu pai sobre continuar meus estudos ou fazer parte de seus negócios. ‘Você já fez dinheiro’, dizia eu. ‘Precisa de mim para quê?’

     “Comecei a frequentar Covent Garden e o Royal Exchange, que era aonde iam os galantes e vaidosos para obter a amizade de algum cavalheiro. Imagino que me chamassem de arrivista e filho de comerciante pelas costas, mas eu era engenhoso e tinha dinheiro para pagar a bebida, de forma que me tratavam com carinho no momento em que chegava.

     “Existia uma taverna onde meus amigos gostavam de passar a noite. Chamava-se As hortênsias, mas, de galhofa, nós chamávamos o lugar por outro nome: As donzelas _ porque ali se encontravam jovens damas dispostas a compartilhar nossa comida e algo mais. Eu ficava por lá até bem tarde da noite e chegava em casa, muitas vezes, em mau estado, por causa da bebida. Isto incomodava meu pai e tínhamos muitas brigas, situação que me animava mais e mais a sair de casa. Felizmente, ele nunca teve coragem de retirar minha mesada, embora várias vezes ameaçasse me deserdar. Eu era malcriado e não sabia. Parecia-me que ele sempre tinha mais tempo para seus negócios do que para mim. Imagino que era sua maneira de evitar a dor, mas eu acreditava que ele não me amava. Se minha mãe tivesse estado conosco, tudo teria sido diferente.

     “Nesses dias, só uns poucos lampiões iluminavam a rua e não era seguro caminhar sozinho à noite, mas, por umas moedas, podia-se alugar um pajem, que prestava o serviço de iluminar o caminho para casa. Alguns deles mantinham-se fora da taverna esperando clientes. Eu os usava frequentemente. Mas havia um, um patife pálido, mais jovem do que o resto, e novo nesse trabalho, que tinha o costume de me observar. Eu não sabia por quê, mas ele me punha nervoso e eu o evitava.”

     Simon se deteve por um momento e enrugou a testa. Queria lembrar-se de tudo. Tinha ocorrido havia tanto tempo, que, às vezes, parecia mais como um sonho. Sofia tomou um gole de seu refrigerante.

     _ Continue _ ela disse.

     Ele levantou um cinzeiro que estava na mesa e o passou de uma mão para outra, buscando as palavras.

     _ Uma noite, quando saí do bar, bêbado, como sempre, havia uma rixa na esquina. Dois pajens brigavam. O mais velho saiu correndo e o outro se aproximou com uma lanterna. ‘Precisa que o ilumine, meu senhor?’ Ri ante seu atrevimento, muito alcoolizado para ser exigente, e disse-lhe com a mão que se aproximasse, enquanto balbuciava a direção. Dava tropeções, caminhando atrás dele, e, mais de uma vez, parei para urinar contra a parede. Uma vez caí e bati com força contra um poste, praguejando como um marinheiro, uma habilidade da qual me orgulhava.

     “A neblina ficou mais espessa, mas eu estava muito bêbado para sentir frio. ‘É muito jovem para este trabalho, rapaz’, falei. ‘Sou mais velho do que pareço, meu senhor’, disse-me. Logo, a neblina ficou tão densa que a lanterna do menino mal iluminava a escuridão. Uma repentina chuva me molhou e devo ter me queixado, porque o rapaz deu meia volta para me olhar. ‘Sente-se bem, senhor?’, perguntou-me.”

     Simon depositou o cinzeiro sobre a mesa com um golpe. Sofia assustou-se e o afastou.

     _ Sinto muito _ ele murmurou. E continuou:

     _ Mas sei que não foi somente a bebida que me fazia sentir mal. Ele provocava algum efeito sobre mim. Sentia um mal-estar no estômago e a cabeça quente. Os olhos do menino eram esferas que giravam e pareciam projetar-se, enquanto seu corpo retrocedia. Consegui deixar de olhá-lo e olhei a meu redor. Não estava certo de onde estávamos. ‘Está doente, senhor’, falou, tomando minha mão em seu pequeno punho. ‘Há um senhor que conheço e que vive aqui perto. Poderá hospedá-lo’.

   “Ele começou a me guiar, e eu o segui, querendo, mais que tudo, deitar-me.‘Onde estamos?’, perguntei, mas já havíamos chegado, e comecei a me sentir nauseado. Lembro-me vagamente de que a porta se abriu, o garoto falou com uma empregada em roupas de dormir, e, em seguida, uns fortes braços me enlaçaram. Alguém deve ter-me posto na cama, porque a única coisa de que me recordo é do pesadelo.

     “Minha cabeça dava voltas. Algo zumbia ao meu redor: uma mosca gigante. Eu a espantava, mas não se afastava. Continuava roçando meu rosto com bigodes negros, mordia-me e cheirava a carniça.

     “Despertei várias vezes, com uma terrível comichão ao redor da nuca e dos ombros, mas me sentia tão débil que não podia manter os olhos abertos. Uma vez, vi um homem a meu lado, sombrio mas bonito, como nosso rei, com um bigode negro e uma longa peruca.     Tinha a face muito pálida. Eu estava mais consciente e tratei de falar, mas a única coisa que saiu de meus lábios foi um ruído. ‘Calma, calma’, disse ele, numa voz estranhamente tranquilizadora, apesar de seu tom gutural. Acariciou-me a cabeça com dedos longos. ‘Tem febre.’ Fez um gesto, e o pajem entrou em minha linha de visão. ‘Meu ajudante te dará caldo para que te recuperes.’

     “Eu estava confuso. Era o garoto um vagabundo ou o criado deste homem? Mas meu entusiasmo com o caldo eliminou minhas perguntas e o ingeri como uma criança assustada. A sopa aliviou-me a garganta. ‘Meu pai?’, finalmente pude perguntar. ‘Enviamos uma mensagem’, disse o homem. ‘Lembra-se de que deu o endereço ao garoto? Ele virá quando puder.’ Não recordava de nada, mas tampouco acreditava que meu pai correria para estar a meu lado. Certamente viram a expressão irônica em minha cara. ‘O trabalho de um homem é importante’, proferiu, e deixou o quarto, como que tomando seu próprio exemplo.

     “Observei sangue nos lençóis. ‘Certamente arranhou-se durante seu delírio’, disse o garoto, seguindo meus olhos. ‘Quase tive que amarrar-lhe as mãos.’

     “Pedi minhas roupas, mas, de repente, senti-me sonolento e voltei a dormir.

     “Não sei quanto tempo estive ali, mas, certamente, foram dias. Os sonhos me atormentavam, porém o pajem sempre estava perto quando eu despertava. Uma vez vi o homem entrar e gritar como se o tivesse apanhado de surpresa. Deu um bofetão no garoto e esparramou sopa por todo o quarto. Antes de ficar inconsciente, escutei-o dizer: ‘Nada mais de sopa.’ Mas tomei isso como um sonho também, porque o menono vinha frequentemente me alimentar e, quando o fazia, eu sentia-me mais forte.”

     Simon tomou as mãos de Sofia e ficou com elas, como se através dos dedos pudesse convencê-la da veracidade da história.

     _ Por fim, uma noite, pude interromper meus sonhos por um momento.

     À medida que falava, apertava-lhe mais as mãos.

     _Encontrei-me abraçado contra o peito de meu elegante anfitrião.

     Não a podia olhar, enquanto narrava a história, porque não queria ver refletido em seu rosto o asco que ele mesmo sentia.

     _Tinha uma dor aguda em minha garganta, onde estava sua cabeça. Tentei brigar e fazer ruído, ao me equivocar na interpretação de suas ações, pois senti minha virilidade ofendida. Retirou-se e me agarrou. Estava furioso. Não era a expressão de um homem são. Seu rosto estava ruborizado, seus olhos, vermelhos, e o sangue sujava-lhe a boca. Logo percebeu o pavor em mim, e seus lábios se separaram em uma careta de satisfação: nesse momento vi as presas amareladas gotejando.

     Sofia soltou as mãos de Simon com um chiado de surpresa, e esfregou os dedos. Ele olhou as próprias mãos surpreso, mas continuou falando.

     _ ‘Talvez tenha sido muito agressivo esta noite’, disse o homem, sua raiva transformando-se em diversão. ‘Há suficiente dentro de ti para várias noites, prefiro não arruiná-las.’ Deixou-me gritando, furioso, mas muito fraco para me mover e, finalmente, devo ter desmaiado.

     “Acordei para ver o garoto ao meu lado. Apartei-me de um salto. ‘A sopa te recuperará, mas só por um tempo’, disse ele, tranquilamente, ‘e esse tempo já passou. Se deseja escapar de meu amo, então são necessárias ações adicionais.’

     ‘‘ ‘Quê?’, sussurrei-lhe, pensando, de novo, que havia esperança. Mas ao mesmo tempo suspeitava. ‘Por quê?’, perguntei.

     “ ‘Porque me pegou. Porque não me permite o que mais desejo. Porque o odeio. É suficiente? Estou cansado de fazer seu trabalho sujo e de trazer presas, como você, até sua casa, porque ele está tão cansado e velho que a ele mesmo aborrece-lhe fazê-lo.’

     “Ia salvar-me a vida, então, aceitei, e o menino me contou seu plano. ‘Não pode alimentar-se dos seus. Mesmo que goste, não poderá matar.’

     “Não acreditei que pudesse me sentir mais doente do que já estava, mas meu estômago se revolveu.”

     Simon fez uma careta de nojo ante a lembrança.

     _ Lutei para me levantar. ‘Não!’ Tratei de gritar, mas soou como um chiado de pânico. ‘Quer morrer?’, sussurrou-me com fúria. ‘É sua única oportunidade.’ Eu não podia falar. ‘Não é tão horrível’, disse ele. ‘Não tem que ser uma besta como ele. Ele me fez, e eu não sou horrível, não é?’ Afastei-me dele o mais que pude na pequena cama. Estendeu-me os braços ansiosamente. ‘Não tem que se alimentar de humanos, os animais são suficientes. De qualquer maneira, já os come.’ Tratei de me liberar dele, mas me sujeitou com mais firmeza. ‘É nossa única oportunidade’, insistiu. Acariciou minha fronte úmida e sorriu. ‘Eu poderia transformar-te, se quisesse, contra tua vontade, mas não o farei. Não quero te forçar. Quero te salvar a vida.’ Repetidas vezes me acariciou o rosto, seduzindo-me, e eu relaxei, e, tolamente, deixei-me convencer. ‘Quero te salvar a vida’, repetiu. ‘Ele o matará!’

     “E, Sofia, eu estava tão assustado, tão débil, e temia tanto morrer, que ignorei a voz que me gritava por dentro e acreditei em suas mentiras. Que Deus me ajude, disse que sim.”

     Simon sentiu a mão cálida de Sofia na dele e se deu conta de que estava longe, em outro lugar. Focou-se em Sofia e sentiu-se envergonhado da compaixão que via em seu rosto.

     Precisou de um momento para poder continuar.

    _ Abriu minha camisa. Eu não sabia o que ia fazer. Rapidamente cortou meu peito com uma unha que parecia uma garra. Soltei um soluço, logo vi suas presas e soube que estava perdido. Estava me torturando: ele era como o outro. Mas, habilmente, cortou seu pulso e o juntou ao meu peito. Nosso sangue se misturou, enquanto eu olhava perplexo. ‘Para nos assegurar’, disse-me e aproximou seu pulso da minha boca. Olhei sem entender. ‘Chupe’, ordenou. Afastei minha cabeça com um movimento agressivo. Mas ele me agarrou pelo cabelo com uma força maior do que a de um garoto e me obrigou a girar a cabeça.

     “ ‘Por sua vida’, grunhiu entre dentes. E controlando meu desejo de vomitar, tomei seu sangue, enquanto ele lambia o meu diretamente de meu peito. Chupei até que ele retirou seu pulso.

     “Assim é como nascemos nós, Sofia. É necessário o intercâmbio de sangue. Nossas vítimas, quando ficam sem sangue, simplesmente estão mortas. Não revivem. Exceto se, em sua debilidade final, compartilham sangue com um dos condenados.

     “Enquanto eu olhava aterrorizado, o garoto me mostrou sua mão para que eu visse como seu sangue se secava. Sua pele se regenerou novamente com vontade própria, o talho se fechou e a cicatriz desapareceu. ‘Ninguém poderá te machucar agora.’

     “É a verdade, Sofia. Não importa o que me aconteça agora, a única cicatriz que tenho é a que ele me deixou.”

     _ Mostre – pediu Sofia, desafiando-o.

     Simon sorriu com tristeza. Tirou a jaqueta, fazendo ranger o couro, e retirou a camiseta, despenteando-se.

     Sofia percorreu com o dedo a cicatriz acima do mamilo esquerdo até as costelas do lado direito. Ele fechou seus olhos, pois sentia que, ao tocá-lo, ela queimava-lhe deliciosamente a pele fria, e seus mamilos se endureceram. Ela o fez até mais consciente do frio que o rodeava. Atraiu-a para ele. Afaste o frio de mim, pensou ele, esquente meu corpo outra vez. Ela tremia, e ele pensou que, talvez, não fosse de medo, mas, sim, porque nunca havia abraçado um homem cujo peito estivesse nu. Contudo, ela o abraçou. Quanto tempo faz, pensou ele, que uma mulher bonita treme por mim somente e não por minha capacidade de hipnotizá-la. Continuou sua história, com ela em seus braços, protegendo-o do frio.

     _Caí em um sonho escuro e vazio, daqueles em que se perde contato com a própria existência. Acredito que, nesse momento, eu já estava morto.

     “Quando despertei, tinha mudado. Senti como se um sol frio brilhasse dentro de mim e se fazia cada vez maior. Isto também significou poder. Durante todo esse dia a raiva cresceu em mim, à medida que me fortalecia. O animal dentro de mim despertava. Finalmente, fiquei deitado, quieto, olhando o teto e esperando por meu torturador, sem saber ainda o que faria, aterrorizado com minha própria ira.

     “A porta, por fim, abriu-se, e eu simulei estar dormindo, não sabia mais que fazer. O homem aproximou-se e escutei sua respiração rouca e ansiosa, ao inclinar-se para mim. Seu peso sobre a cama fez com que eu deslizasse para ele. Quando pôs sua horrível cara contra minha nuca, eu estava preparado para estrangulá-lo, mas suas presas afundaram em minhas veias e fiquei paralisado por um momento. Imediatamente depois ele se retirou e cuspiu. Grunhiu e levantou-se da cama com tanta força que rompeu o estrado e lançou-me contra a parede. ‘Garoto!’, gritou, dando meia volta para ficar de frente para a porta. ‘Garoto! O que você fez?’ Com muito esforço, consegui erguer-me da cama destroçada no momento em que o pajem entrou abruptamente, com um olhar de alegria em seu rosto. ‘Cão desprezível’, disse meu captor. ‘Como se atreve a desafiar-me?’ Lançou-se sobre o menino, e a besta despertou em mim.”

     Simon viu aquele quarto de novo e sentiu o ódio ressurgir nele.

     _ Procurei com desespero ao meu redor, por alguma arma, e agarrei o que estava à mão. Ergui-me cambaleando e joguei-me contra ele com uma lasca da cama, com a qual o atravessei.

     Simon notou que Sofia estremecia e fez um ruído de desgosto.

     _ Ele caiu no chão, em convulsões, contraindo-se. Sua peruca escura caiu, deixando ver o cabelo grisalho. Sua pele empalideceu. Encolheu-se e se retorceu. Finalmente, ficou quieto, uma coisa inútil, dificilmente parecendo humano.

     “O garoto chutou o corpo e sorriu. ‘Muito inteligente’, disse. ‘Muito melhor do que eu tinha planejado.’ Eu tremia tanto que apenas me dava conta do que ele dizia.”

     Simon fez uma pausa, atento ao abraço intenso da Sofia.

     _ ‘Sou rico agora’, disse o garoto. ‘O parvo me deixou todos os seus bens, pois, naturalmente, nunca pensou que eu os herdaria. Os criados se encarregarão do corpo, prometi uma boa recompensa por sua lealdade. Passaremos um excelente tempo juntos, Simon.’

     “Era a primeira vez que usava meu nome. Não me recordava de haver-lhe dito como me chamava. ‘Por que eu?’

     “E me respondeu: ‘Quando se tem a aparência de um menino, necessita-se alguém que te proteja, uma pessoa que seja seu guardião ante os olhos de outros. Quem melhor do que meu próprio irmão?’ ”

     Sofia soltou Simon e se sentou:

     _ Christopher! – exclamou.

     Ele respondeu que sim com um movimento da cabeça.

     _ Eu imaginei. – Entretanto, mostrava-se surpresa.

     _ Sim, o quebra-cabeças ficou completo: quem era o homem, quem era o menino _ sentiu como se profanasse a palavra “menino”. Odiaria ainda mais contar-lhe o resto da história.

     Colocou as mãos suavemente sobre a mesa e continuou, com a cabeça baixa, sentindo que o gelo se levantava, de novo, dentro dele.

   _‘Ficará mais forte’, disse-me Christopher. ‘Mas sua cor se desvanecerá à medida que seu sangue mudar. Seu coração deixará de pulsar, mas o sangue seguirá percorrendo suas veias. Inalará ar por simples hábito, pois o necessitará somente para falar, mas não para viver. E evitará o dia e seus raios solares que queimam, porque o dia é para os vivos, e o sol te rejeita. Viverá de noite, mas que poder você terá! O poder de extrair dos outros a essência da vida e dobrá-los a teus desejos. Viverá um longo, longo tempo, suficiente para acumular riquezas e ter meios para muitos prazeres. Seremos fenomenais juntos, Simon. Não será como mamãe.’

     “ ‘O que você quer dizer?’, exigi que me explicasse, embora temesse a resposta.

     “E Christopher me contou: ‘Wulfram queria que eu a matasse para provar que lhe era fiel. Eu não gostava muito da ideia e dei a ela uma oportunidade, mas me rejeitou. Já não me queria.’

     “ ‘Mamãe?’, perguntei calmamente a princípio, embora estivesse apavorado. ‘Você matou nossa mãe?’, indaguei, usando um tom mais alto. Depois, gritei: ‘Mamãe!’ ”

     Sofia se retirou de um salto. A mesa se quebrou e o vidro parecia ter purpurina na borda. Simon tremia.

     _ Lancei-me sobre ele, mas ele me atirou ao chão. Não esperava isso de alguém com seu tamanho. Sorriu e se vangloriou: ‘Como já lhe disse, ficará mais forte, mas ainda não. Eu sou o mais forte agora, e deu meia volta. Ah, quem quer para seu primeiro jantar?’, perguntou, em tom casual, por cima do ombro, enquanto se afastava. ‘Quer que te traga sua garota favorita da taverna que frequentas?’

     “Levantei-me do chão: ‘Você disse animais.’

     “ ‘Menti’, disse, através do vão da porta. Fechou-a e colocou uma tranca adicional por fora. Nesse instante, entendi o que eu tinha feito.

     “Caminhei de um lado a outro do quarto, procurando uma maneira de sair, mas não encontrei outras saídas. Arranquei as cortinas, para escapar por uma janela, mas avistei só paredes. Empurrei a porta com meus punhos inúteis e com meu ombro, mas, de novo, nada. Tentei cavar o chão com uma colher, mas observei que o quarto devia ser subterrâneo, escavado na rocha. Rendi-me, exausto, e me atirei sobre a cama destroçada. Tinha sido apanhado e condenado, com um horrível cadáver por companhia. Foi nesse momento, talvez, que comecei a enlouquecer.”

     De repente, Simon viu a mesa e retirou suas mãos. Não estavam cortadas.

     _Trouxe-me nessa noite uma garota, pequena, baixinha. Recusei-me a me aproximar. ‘Você o fará.’ Ele soltou uma gargalhada e a levou.

     “Entretanto, noite após noite, eu me recusava, e ele se punha mais furioso. Mas eu me debilitava e, cada vez que me acenava com a oferta, era mais difícil resistir. Então, trouxe-a amarrada e a degolou com uma faca de cozinha para que o sangue corresse livremente. Ele tomou sua parte, até que a tentação foi muita, e o aroma de sangre fresco me enlouqueceu. Sujei tudo, enquanto Christopher ria e ria, como se tudo fosse uma grande piada. Mas o último a rir fui eu, ele me dera o poder para dominá-lo. Para sua surpresa, tombei-o a um lado e saí correndo do quarto, daquela detestável casa para as ruas.

     “Corri e corri.

     “Lembro-me de vomitar em um beco, limpando a boca com a camisa destroçada e cheia de sangue. Depois disso, minha mente se desintegrou pela culpa e pelo asco.

     “Consegui chegar até os subúrbios da cidade, aos campos e aos bosques. Não sei como sobrevivi. Não me pergunte o que fiz porque tenho poucas lembranças dessa época. Tornei-me um animal ensandecido. Dava-me conta de que Christopher tinha razão. A gente pode sobreviver usando os animais por um tempo, mas nunca é suficiente, a fome não fica totalmente saciada, nunca te deixa, e isso dói. Eu sei que matei pessoas, quando as pude encontrar, e qualquer outra coisa, quando não as encontrava.

     “Passaram anos antes que meus sentidos se normalizassem e eu pudesse sair ao mundo dos homens. Por esse tempo, já estava acostumado a matar, mas não me habituava ao asco que se seguia. Quando recuperei minha memória, jurei vingar-me de Christopher, por minha mãe, por mim.

     “Segui-o durante muitos anos.”

     _ Como fez para encontrá-lo, depois de todo esse tempo? – perguntou Sofia.

     Simon sorriu com pesar.

     _ Foi realmente fácil. Segui as informações de certo tipo de violência: meninas desaparecidas ou mutiladas. Três vezes cheguei a estar cara a cara com ele. Uma vez quase o consigo pegar em Londres, em1880, mas conseguiu escapar.

     _Como chegou aqui?

     _ Vim nos anos 30. Li, no jornal, sobre um assassinato em um navio, e essa foi minha pista. Estive enjoado na travessia o tempo inteiro.

     Sofia sacudiu sa cabeça.

     _ Não, quero dizer, quando chegou a esta cidade?

     _ Oh… houve uma série de estranhas mortes em um orfanato. Tinha perdido sua pista um ano antes. Sempre deixava uma quantidade imensa de pistas óbvias de pornografia infantil, como se me estivesse atormentando, até que, de repente, não encontrei mais evidências; as pistas simplesmente desapareceram, justo quando me estava aproximando. O orfanato foi a primeira.

     “Fui ao lugar. Tive dificuldade a princípio, mas, por ser parecido com Christopher, finalmente, um dos administradores falou comigo. Não sei que história ele havia contado, mas eu disse que a Corte nos tinha separado e que ele fugira da casa adotiva. Expliquei-lhe que ele nem sempre dizia a verdade, mas que se simplesmente me deixasse vê-lo, podíamos esclarecer tudo. Foi amável e firme. Isso era impossível; ele já estava em uma casa, e, sem papéis para provar o que eu dizia, não havia nada que se pudesse fazer. Por que não pedia à assistente social encarregada de seu caso que se encontrasse com ele? Não sei o que pensou ela que eu queria, mas estou seguro de que não acreditou em mim.

     “Fiquei destroçado, mas ela me havia dito que eu poderia voltar, de modo que, nessa noite, retornei. Entrei por uma fresta da janela e li os arquivos. Averiguei onde vivia e, então, vim para cá.

     “Estive observando-o, Sofia. Vi o que faz. Não quero que ande rondando pelas ruas livremente. Ele toma o sangue de suas vítimas, Sofia.

     _ Como você?

     _ Mas, Sofia, não é necessário matá-las. Não assim.

     _Nunca matou ninguém? – seus olhos eram penetrantes.

     Simon recolheu a camiseta e a torceu em suas mãos.

     _ Disse que o fiz. Sabe que o fiz – pegou-lhe uma das mãos. _ Mas não tenho que fazê-lo. Posso controlar. Ele nem tenta. Ele aprecia matar.

     Sofia lhe tirou a camiseta e a esticou em sua saia. – Você pode se controlar?

   _ Sim, tenho-o feito. Induzo minhas presas para uma suave névoa e as sugo brandamente, depois as deixo com vida.

     Não mencionou as vezes que, devido à abstinência de sangue humano, não podia se controlar e se deixava cair nessa mesma névoa, junto com suas vítimas, onde ficava flutuando, despertando horas depois com um corpo frio e vazio em suas mãos. Era sempre mais satisfatório até o final e, muitas vezes, perguntara-se se os de sua espécie alimentavam-se tanto dos moribundos como de seu sangue. Christopher parecia desfrutar mais o moribundo do que o sangue.

     _ O que aconteceu com o crucifixo? – perguntou Sofia. _ Estava machucando você?

     _ Oh, não – arranhou o braço, sentindo-se culpado, procurando uma desculpa para não ter que olhá-la. _ Só uma velha mania. Não pode acreditar em tudo que lê. Simplesmente não ficava bem em você, é o que acontece. _ Acreditou que podia confiar nela. De qualquer maneira, sentia-se estupidamente assustado em conceder a alguém uma arma que pudesse usar contra ele.

     _ Simon? – Sofia lhe tocou a mão. _ Onde estão suas presas?

     Ela o olhou como se ainda sentisse compaixão por ele. Será que ainda o considerava um menino faminto da rua?

     _ Não podem simplesmente aparecer. Têm que ser estimuladas pelo aroma ou pela promessa de sangue. Quer que te mostre? – disse, meio de brincadeira.

     Aproximou-se dela e viu uma faísca de medo em seus olhos. Isto o animou a continuar. Ah, ela acreditava um pouco, pensou. Ela aproximou-se também e apoiou sua cabeça no ombro dele. Acariciou seu braço. Doce calor. Doce e fogoso calor.

     _ Pobre Simon. O que posso pensar?

     A garganta dela começou a pulsar com vida perto de sua boca, e ele sentiu-se atordoado com o aroma suave e quente. Tratou de controlar-se, mas não pôde: ela estava muito perto, disponível. As presas saíram de sua boca.

     _ Acredite nisto – suspirou, e beijou-lhe a nuca brandamente. _ E nisto, e nisto.

     Então, ela recebeu o beijo agudo, o beijo de prata, rápido, verdadeiro, tão cortante como uma navalha, e ele se impregnou do calor dela. Sentiu como ela entrava em seu corpo, cálida, doce e cálida.

   Ela deu um pequeno grito e tentou afastá-lo, mas acariciou seu cabelo. Não te machucarei, pensou ele, pequeno pássaro, minha querida. Não te machucarei. Ela gemeu e o abraçou. Era o suave êxtase dos beijos que ele podia transmitir-lhe com seu abraço. Pulsava em seus dedos, seus braços, seu peito, como o sangue nas veias dela. Pulsava num ritmo que compartilhou com ela. Ela suspirou, sua respiração se voltou mais intensa, e ele sentiu que não podia controlar-se. Devo parar agora, pensou ele, mas não posso fazê-lo. Aproximou-a mais, como se nunca pudesse deixá-la ir. Não podia deixá-la ir. Entretanto o fez. Ofegando, separou-a dele. Olharam-se confusos.

     _ Posso parar, se quiser – sussurrou-lhe, rouco.

     Ela ruborizou, tocou a nuca e viu as gotas de sangre em seus dedos, sem entender.

     _ Mas foi… quero dizer, não foi horrível. Foi… não sei.

     Ele queria beijá-la de novo.

     _ Pode ser terrível. Ele o faz de forma terrível. Eu posso fazer com que seja doce – ele tomou-lhe a mão, e as palpitações começaram de novo dentro dele. Posso me controlar, pensou, enquanto tratava de aproximá-la dele.

     O telefone tocou. Os dois saltaram.

     Sofia o afastou e foi responder.

     _ Minha mãe – disse, pedindo desculpas.

     Ele escutou quando Sofia pegou o telefone no corredor.

     Respondeu como se estivesse assustada, mas, em seu tom, havia um toque de surpresa.

     _ Lorraine! Olá! Ah, sim? Ela te disse? Uh-huh. Sim. – havia um tom de dúvida em sua voz. _ Sim, acredito que estava. Se estava tranquila? Não, estava ocupada. Sim. Os meninos pedindo doces – sua voz soava quente, como se estivesse pronta para falar muito mais, mas deve ter se lembrado dele. _ Escute, há algo que tenho que terminar. Posso te ligar mais tarde? De acordo. Adeus – desligou.

     Quando ela voltou, ele notou que a magia do momento tinha desaparecido. Mas o que o surpreendeu foi o susto dela ao responder o telefone. Ela deve ter adivinhado seus pensamentos. Seus lábios se apertaram, seu olhar estava baixo.

     _ Pensei que era sobre minha mãe – falou. _ Está morrendo.

     Era uma confissão vazia, talvez em resposta à sua própria história complicada. Estavam compartilhando a morte, pensou ele, amargo.

     _ Escute – disse ela _, acredito que é melhor que se vá. Não sei a que horas meu pai volta. Não poderia explicar sua presença. Já será bastante difícil explicar isto – assinalou a mesa.

     _ Deixou cair algo sobre ela – sugeriu-lhe.

     _ Por Deus, o quê? Uma bomba?

     De qualquer forma, ele não permitiria que ela se desfizesse dele tão rápido.

     _ Deixará que eu volte?

     _ Por quê? – sua mão tocou a garganta.

     Fazia-o sentir envergonhado. Deteve-se para recolher sua camiseta.

     _ Para conversar – respondeu. _ Só conversar.

     _O que temos para falar? – soava como uma negativa.

     Decidiu arriscar-se.

     _ Da morte – respondeu.

     Os olhos dela viam-se grandes e feridos, mas assentiu com a cabeça.

     _ Sim.

     Ele não pôde evitar o sorriso. Dissimulou com a camiseta.

     _ Voltarei logo. Sofia, não sabia que necessitava tanto disto – agarrou-a e deu-lhe um beijo curto e agressivo.

     Mas, novamente, a amargura despertou. Ele era um fracasso até nesta farsa em que ele mesmo se convertera.

     Passou anos pensando que elas eram pessoas sem cérebro, criaturas estúpidas que não mereciam viver, para que fosse mais fácil usá-las; agora, ele tinha permitido que uma delas se tornasse real. O que vou fazer?, pensou, não poderei voltar para caçar. Murcharia e se retorceria, nunca morreria, e sempre sentiria aquela horrível sensação de fome. A imagem de si próprio, acabado e quase louco, arrastando-se em um beco escuro, fazia-o estremecer.

     Ela tocou seu rosto, seus olhos incrivelmente humanos mostrando mais preocupação do que ele merecia.

     _ O que houve?

     _ Nunca conseguirei me vingar – disse. _ Christopher é muito inteligente para mim. Será melhor que simplesmente saia correndo enquanto posso e me esconda dele. Tentar construir algum tipo de vida vazia em outro lugar. Sempre fui um idiota. Um fracassado. Ele continuará matando e fugindo de mim. Ele ganhará.

     _ Não. Não pode – surpreendeu-o a centelha que viu nela.

     Simon colocou o retrato sob o braço e a jaqueta sobre o ombro. Ela o acompanhou até a porta.

     _ Ele ganhará, sabe, porque, embora eu o mate, seguirei vivendo eternamente, odiando cada segundo.

     _ Não fale assim – disse ela. _ Você merece mais.

     _ Não, eu não.

     Ela deixou sair um pequeno grito de protesto, de dor.

     _ Sinto muito. Vemo-nos depois, então.

     Ela fechou a porta devagar, como se não confiasse nele, em seu momento de desespero; logo, ele perdeu-se de novo na escuridão.

     Esgueirou-se pelas ruas até seu esconderijo, para tratar de entender o que sentia. O rapaz jovem e desgrenhado que o seguiu, próximo ao parque, foi um problema menor. Perdeu-se dele rapidamente pelos escuros pátios traseiros.

     À luz do amanhecer, enroscou-se em seu esconderijo empoeirado e deixou o pensamento de lado, em favor do profundo sonho que tinha sabor de sangue.

 

     Sofia sentou-se à luz da lua, que deslizava, líquida, através de sua janela. Havia um poça de claridade sobre o travesseiro onde sua cabeça estivera minutos antes. A luminosidade prateada penetrou suas pálpebras como se fossem transparentes, afastando-a do sonho.

     Dizem que os que dormem sob a luz do luar tornam-se lunáticos, pensou ela, e sorriu. Mas é muito tarde. Já estou lunática.

     Subiu as pernas para abraçá-las, sentindo o edredom embaixo dela, o edredon ornado com margaridas de algodão, de alguma primavera passada. Lá fora, a grama brilhava com a geada, e a noite inteira convidava à fantasia.

     Pensava em Simon. Tinha-a tomado em seus braços com tanto cuidado e seus beijos foram tão doces que ela queria mais. Ele acariciara sua nuca com suspiros. Percebeu quando as presas penetraram sua garganta _ foi como se borbulhas prateadas subissem de seus seios e esplodissem em sua cabeça, como champagne, seu corpo respondendo e surpreendendo-a pela aceleração de sua respiração. Ruborizou ao pensar na forma como o havia devorado. O que foi mesmo que ele disse?, perguntou-se. Era como se estivesse bêbada.

   Deveria sentir asco, pensou. Mas não, não foi repugnante, agora que pensava, embora, sim, assustador. Você poderia correr para sua própria morte sem saber, convidando-a, desfrutando o êxtase do momento, queimando-se em sua luz ardente. Ela não queria que ele parasse.

     Seria algo que Simon fazia de propósito, perguntava-se, ou seria parte daquela embriaguez dos sentidos, um tipo de compensação para a vítima, tal como o efeito anestésico de um veneno? E, no entanto, Christopher gostava de sentir o medo de sua vítima.

     Por Deus, pensou ela. Se Simon pôde controlar assim seus sentidos, o que lhe faria Christopher? O ar dentro do quarto tornou-se gelado, e ela se abrigou melhor com o edredom.

     O que Simon fazia era difícil de acreditar no princípio, mas o sangue que ela limpou da garganta e as feridas das perfurações em sua nuca, que sararam muito rápido, fechando-se em questão de horas para deixar somente um pequeno machucado, eram bem reais. Ainda se sentia enjoada e débil, porém estranhamente estimulada.

     A temperatura de Simon se elevara cada vez mais à medida que ele sugava seu sangue, ela sentira o tremor do corpo dele. Essa reação a excitou mais que qualquer outra coisa. E fora causada por ela. Mas Simon se controlara, verdade? Podia confiar nele. Apesar de suas dúvidas, foi a solidão dele que a convenceu disto finalmente. Ele só precisa de alguém com quem falar, pensou, como eu, isso é tudo.

     Uma figura escura no pátio abaixo chamou-lhe a atenção, e seu coração deu um pequeno salto. Mas era só um gato passando. O que a assustava?, pensou, um menino, talvez, entrando clandestinamente em minha casa?

     Mas por que Simon tinha medo de Christopher? O que podia fazer-lhe Christopher que Simon não podia fazer a Christopher? Por que se estava rendendo?

     Deixe de ser tão covarde, queria gritar-lhe, sentindo a raiva em seus poros, você, sim, pode fazer alguma coisa.

     Afrouxou os punhos. Deus, era ridículo incomodar-se com alguém que nem estava ali. Mas, de toda forma, ultimamente ela se mantinha sempre furiosa. Ah!, expirou. Esquecera-se de telefonar para Lorraine. Terei que fazê-lo amanhã, pensou, e logo suspirou. Estaria extenuada amanhã, se não descansasse um pouco. Esfregou os olhos e tratou de conciliar o sono. É melhor voltar para a cama, decidiu.

     Fechou as cortinas para proteger-se da claridade da lua.

 

     Uma chuva contínua e triste batia no guarda-chuva de Sofia, enquanto ela corria para o ponto de ônibus. Cada poça fazia com que com a umidade molhasse mais a barra de sua calça, de modo que o tecido endurecia e colava-se às panturrilhas. Os carros passavam velozmente, seus condutores ignorando a água que salpicava para a calçada. As luzes traseiras dos veículos deixavam reflexos vermelhos pela rua. Na calçada, a iluminação da rua envevoava o ar.

     Sua mãe certamente não sabia que estava chovendo assim tão forte. Nunca a teria chamado, se soubesse que Sofia teria que sair correndo em uma noite como aquela, mas ela a chamara. Sofia sempre esperava anciosamente que a mãe pedisse para ir vê-la, mas isso quase não acontecia nos últimos tempos. “Venha me visitar”, disse a voz rouca. “Papai está trabalhando esta noite e estarei sozinha”. Sofia colocou rapidamente o casaco de sua mãe, apanhou o guarda-chuva vermelho que estava no armário do corredor e saiu correndo pela noite, assegurando-se apenas de ter dinheiro suficiente para o ônibus no bolso da calça. Quem se importa com a chuva, pensou, sorrindo. Sentia-se uma pessoa diferente, muito distante da garota que estivera cansada demais par ir ao colégio hoje.

     Logo, o ruído de passos correndo na chuva anunciou que alguém vinha atrás dela. Aproximava-se rapidamente. Ela se deteve, mais curiosa do que assustada. Virou-se justo quando o corredor a alcançava.

     _ Sofia – disse Simon, parando de repente e estendendo-lhe a mão.

     Ela se perguntou por que ele não ofegava e tomou sua mão automaticamente, como se sempre o tivesse feito. Seguiram caminhando, e ela posicionou o guarda-chuva de lado para cobri-lo, mas ele não pareceu notar.

     _ Aonde vai? – ele sacudiu o cabelo molhado para trás, retirando-o dos olhos e espalhando gotas de água em sua bochecha.

     _ Ao hospital.

     Seus olhos registraram surpresa, preocupação, talvez.

     _ Está doente?

     _ Não, tivemos que internar minha mãe.

     _ Oh!

     Deixaram a calçada para cruzar a rua. Ela viu como ele se alterou ao saltar sobre o córrego que corria pelo asfalto.

     _ Está tudo bem?

     _ Água corrente – explicou ele. _ É um problema para mim.

     _ O que quer dizer?

     _ A água rejeita os mortos. Um cadáver flutua na superfície da água, não importa quanto tempo fique ali.

     Não posso acreditar que esteja conversando sobre isto, pensou ela, é assustador.

     _ É que não tenho uma boa relação com a natureza – continuou ele. _ E toda a natureza trabalha para me recordar disso. O sol me queima e, quando atravesso uma correnteza, sinto que quer me levar e me tirar da face da terra. Revolve-me o estômago.

     Com razão esteve doente durante todo o trajeto desde a Inglaterra, pensou ela, isto é certo. Apertou a mão dele, e isso o fez sorrir. Chegaram ao ponto de ônibus, e ele viu o sinal vermelho e branco.

     _ Posso ir com você? – soltou-lhe a mão e procurou em seus bolsos, mas não encontrou o que procurava.

     _ Tenho o bastante para você também – respondeu ela. Que viesse. Sentia que não estava fazendo nada errado.

     As mãos dele deixaram de procurar e relaxaram dentro dos bolsos da jaqueta.

     _ Não se importa em dividir comigo seu tempo com ela?

     _ Não _ ela gostou que ele tivesse pensado nisso. _ Será bom para ela. Quase não sai ultimamente. Gosta de gente diferente. Passará momentos maravilhosos tentando entreter você.

     _ Você a ama muito – não era uma pergunta. _ É um momento difícil para você.

     _ Sim, é – seus lábios torceram-se em um sorriso triste.

     _ Praticamente não testemunhei a morte natural. Do que sua mãe está morrendo?

     Sofia incomodou-se. Como podia soar tão frio?

     _ Tem câncer. Eu não chamaria isso de natural.

     _ Sinto muito, não quis parecer insensível, mas comparada ao tipo de morte que tenho visto, parece natural. Quero dizer, em relação às leis da vida.

     O ônibus chegou. Sofia subiu as escadas, fechou o guarda-chuva e colocou suficiente dinheiro para os dois. Ele falava como se sua mãe fosse só mais uma. Não se incomodou em saber se ele a seguia. Sentou-se na metade do ônibus, quase vazio, do lado oposto da porta traseira, e depositou o guarda-chuva molhado no chão. Quando se endireitou, viu que ele se apoiava no respaldar do assento da frente para rodeá-lo e sentar-se ao lado dela. Tinha a fisionomia preocupada.

     _ Não foi minha intenção banalizar a morte de sua mãe. Sei que é importante. Toda morte importa.

     Ficaram em silêncio por um momento, enquanto o ônibus avançava na noite.

     _ No princípio – disse ele finalmente _, você pensa, você tem esperança de que seja um sonho. Que você vai acordar e terá sido só um pesadelo.

     Sofia voltou-se para olhá-lo com firmeza. Estava debochando dela? Mas seu olhar estava longe, muito longe.

     _ Você pensa que ela estará ali – continuou ele _, abrindo as cortinas para que o sol entre, dizendo bom dia.

     _ Sim, como sabe?

     Seus olhos tornaram a entrar em foco, absorvendo a luz como um vidro quebrado.

     _ Que tipo de filho seria, se não soubesse?

     Ela corou, sentindo-se estúpida, e não encontrou uma posição natural para colocar as mãos. Ele também havia perdido a mãe.

     _ Sim, claro.

     _ Esqueceu-se – ele falou, num tom mais suave.

     Respondeu-lhe que sim com um movimento da cabeça, envergonhada.

     _ Mas eu também me sinto assim. Você quer que tudo não passe de uma piada cruel, quer que alguém chegue e diga que nada daquilo é verdade.

     _ Depois, vem a raiva – continuou ele, como se fosse inevitável. _ Raiva contra ela, por haver partido.

     _ Por arruinar nossas vidas – acrescentou Sofia.

     _ Contra Deus – disse ele.

     _ Cotra todo mundo que nos rodeia, por não entender, porque não aconteceu com eles.

     Simon afirmou que sim, com a cabeça.

     _ Contra mim também, por não ter tido idade suficiente para entender, ou, talvez, para salvá-la.

     _ Penso, às vezes, que me estão castigando – disse Sofia _, mas não sei por que. Comecei a procurar coisas que me fizessem reparar minha suposta culpa.

     Uma mulher próxima à parte da frente do ônibus virou-se para olhá-los, e Sofia deu-se conta de que a conversa tinha subido de volume. Baixou o tom de sua voz.

     _ Agora penso que não há recompensas, não importa quão bom você seja. Ninguém vai recompensá-lo. Não é como tirar boas notas na escola, não há lógica nem prêmios.

     Ele suspirou.

     _ Dói-me ouvi-la falar assim. Tão jovem e com tanta amargura.

   Ela se surpreendeu.

     _ Mas você tambem é assim, não é? Depois de todo este tempo, Depois de tudo o que viveu?

_ Sim, é verdade, mas tive mais tempo para me tornar assim e, de qualquer forma, não se espera que façamos o que é certo, pelo simples fato de ser certo, embora não haja nenhum prêmio no final? – soltou uma leve risada. _ Mas do que estou falando? O que sei a respeito do que é certo e do que não é certo? Venho justificando o errado por tanto tempo que acredito não mais saber a diferença. Parece que a autopreservação é a motivação maior para todos.

     Sofia notou que passavam do hospital.

     _ Droga! – saltou para tocar a campainha, para que o ônibus parasse. O ônibus parou e conseguiram descer. Pelo menos, a chuva tinha cessado; isso era bom, pois ela esquecera o guarda-chuva.

     Caminhando para a entrada, Simon pôs o braço ao redor de seus ombros. Ele deveria estar morto, pensou ela, faz 300 anos, e, entretanto, está aqui, apoiando-me. Não faz sentido.

     _ Sofia – ele falou, quando estavam chegando _, não permita que sua raiva afaste as pessoas. Não desconte nas pessoas que te querem bem. Eu me distanciei de meu pai e olhe o que me passou. Tortura-me pensar como podia ter sido. Eu devia reconhecer sua maneira de lutar e ter ficado ao lado dele. Nós dois juntos poderíamos ter combatido Christopher. Podíamos ter vencido. Fui um tolo.

     Sofia o abraçou mais forte.

     _ Não temos o benefício de voltar atrás em nossas decisões, muito menos após 300 anos.

     Em segredo, ela pensou, eu os estou afastando? Não, são eles. Mas as palavras dele a perturbaram; ainda não tinha conversado com Lorraine.

     Chegando ao edifício, Simon deteve-se. Olhou para cima para medir a altura do prédio, como Jack frente ao gigante. Ela parou diante das portas de vidro e duvidou de que ele quisesse mesmo entrar. Por que alguém ia querer sentar-se ao lado de uma moribunda que não conhecia?

     _Tem certeza de que quer vir? – perguntou.

     _ Sim – disse ele, mas estava assustado, inseguro.

     _ Poderia esperar aqui fora.

     _ Não.

     Entretanto, não se moveu, então, ela entrou primeiro. Ele seguiu-a como um menino quando vai ao dentista. Seus olhos piscavam constantemente, e ela estava certa de que qualquer ruído repentino lhe provocaria um enfarte, se é que isso era possível. Quase pulou quando alguém passou no corredor. Chamaram a atenção de várias pessoas, mas aquilo era um hospital. Eles provavelmente pensam que o estou levando à unidade psiquiátrica, imaginou ela.

     _ Não estou acostumado à luz – ele falou, explicando-se.

     Quando as portas do elevador se fecharam, Sofia percebeu que deveria ter seguido pelas escadas por causa dele.

     Podia sentir seu pânico, como vibrações cortando o ar.

     Felizmente, estavam sozinhos, porque ela não acreditava que ele tivesse suportado a presença de mais gente.

     _ O problema é que – disse ele, e podia ouvir-lhe o movimento da língua na boca ressecada –, em meu tipo de trabalho, sempre deve haver uma rota de fuga – conseguiu esboçar um sorriso nervoso, mordendo o lábio.

     Sofia sorriu amavelmente para a enfermeira do andar. A enfermeira sorriu de volta.

     _ Qual é o quarto?

     _ Quinhentos e doze.

     _ Ah, sim, a Sra. Sutcliff. Ela disse que estava esperando sua filha.

     _ Sou eu.

     _ Então siga adiante, querida. Imagino que conhece o caminho – olhou duvidosa para Simon, mas não disse nada.

     Ele sustentou o olhar da mulher, como um jovem rebelde, seus mecanismos de defesa em ação.

     Sofia o agarrou pela manga.

     _ Vamos. _ O que ele tinha em mente? Fazer uma cena?

     Ele interrompeu o contato visual com clara indiferença.

     Um ator, pensou ela, recordando seu medo momentos antes. Já podia ouvir os comentários no salão de enfermeiras: é o estresse, diriam. Transforma-os em demônios. Está andando com tipos indesejáveis para chamar a atenção. Faziam-na rir. Se soubessem. O sorriso desvaneceu-se ao chegar à porta do quarto e não obter resposta ao bater.

     As luzes estavam baixas, e sua mãe era um vulto encolhido na cama. O susto a fez correr para ela, mas sua respiração constante a tranquilizou. Sentou-se em uma cadeira. As pantufas de sua mãe estavam sob a cama, vazias e solitárias. Pelo visto, não haverá conversação esta noite, pensou ela.

     Simon sentiu-se bem na luz pálida e aproximou-se, acomodando-se em um assento a seu lado. Olhou a mãe de Sofia com interesse. Todo o nervosismo desaparecera de seu rosto.

     _ Agora entendo de onde vem sua beleza, Sofia.

     _ Ela era linda.

     _ Ainda é.

     Não sabia como responder, então ficou calada.

     Poderia sacudi-la, despertá-la. Quase o fez, mas sua mãe parecia tão em paz. Sofia apertou sua própria coxa com a mão que queria tocá-la. Deixe-a dormir, consolou-se. Precisa disso. Tem que se agarrar ao que possa. Mas os lábios da Sofia estavam apertados de desapontamento. Por que me chamou, se estava cansada? Acreditei que me queria aqui.

     Simon continuou fitando a mãe de Sofia. Era impossível saber o que estava pensando. Eles fazem um estranho par: os moribundos e os que não podem morrer. Será que ele queria morrer também?, pensou ela. Ele estava sendo obrigado a viver, tanto como estavam obrigando sua mãe a morrer?

     De repente, veio-lhe um pensamento. Ele poderia mudar sua mãe? Poderia dar-lhe seu sangue, assim como Christopher fizera com ele? Certamente, poderiam encontrar uma maneira de dar sangue a ela sem ter que matar ninguém. Ela teria tempo para sua arte, para a família, todo o tempo do mundo. Mas ele faria isso?

     _ Simon – sussurrou _, se uma pessoa doente se transformasse em vampiro, sararia?

     Ele girou para olhá-la, com horror no rosto.

     _ Desejaria isso para alguém?

     _ Só me diga – pediu ela.

     _ Desde que me transformei, mantive-me jovem, sem crescer, sem envelhecer. Todas as feridas, desde então, curaram rapidamente, curam-se e eu fico como estava antes – tentava manter o tom de voz controlado, mas a raiva ia aumentando à medida que falava, dificultando-lhe as palavras. _ Se alguém se transformasse com câncer dentro de seu corpo, imagino que o corpo não mudaria muito. O câncer ainda estaria ali, mas o corpo ficaria curado, enquanto o câncer avançaria. Para falar a verdade, a pessoa certamente viveria o resto de sua vida com dor. O que você pensa que isso faria à mente de uma pessoa?

     Sofia sufocou um grito com a mão. As lágrimas começaram a chegar a seus olhos.

     A voz dele se suavizou.

     _ A mudança pode fazer coisas horríveis a uma pessoa, Sofia. Não é natural. Olhe para Christopher. Ao menos, eu tive a possibilidade de crescer primeiro, mas ele estará para sempre encerrado no corpo de um menino e com o temperamtento de menino. Seu corpo sussurra segredos que ele nunca compreenderá, porque não consegue escutá-los. Por isso, acredito que ele mata com tanta brutalidade. Eu nunca poderia converter alguém em algo assim deliberadamente.

     Ele tinha razão. Ela sabia. Nesse momento, porém, parecia sua última possibilidade, mas ela a descartou rapidamente. E ali estava ele, falando de Christopher de novo.

     _ Se ele é tão horrível, por que não o detém? – perguntou ela, com desespero.

   Surpreendeu-o.

     _ Mas eu tentei.

     Seus sussurros cheios de raiva recordaram-lhe que devia baixar o tom de voz.

     _ Então, tente de novo.

     Seguiram conversando em sussurros agressivos.

     _ Ele é mais forte do que eu. Sempre sai na dianteira.

     _ O que é que te dá tanto medo? O fato de que é seu irmão mais velho? Você é maior do que ele. Estou certa de que é mais forte.

     Simon apertou os punhos.

     _ Por que se preocupa tanto com meus problemas? – disse ele, entre dentes.

     _ Seus problemas? – Sofia ergueu-se sem notar. _ Você veio a mim, recorda? Você fez com que me preocupasse. Mas não é só seu problema, é de todos. Você o estaria impedindo de matar outros. Christopher traz a morte. Isto aqui é a morte – apontou para a sua mãe. _ Você pode evitar a morte.

     Sua mãe se queixou e moveu-se por um instante, situação que fez com que Sofia congelasse por um momento. Sua mãe havia despertado? Teria escutado? Mas o corpo dela voltou a tomar o ritmo do sono de novo, de maneira que Sofia relaxou e sentou. Simon arrumou o lençol cuidadosamente ao redor da mulher adormecida, com a mesma suavidade que usaria se fosse sua mãe. A morte também a tinha levado, Sofia lembrou. Não, não a morte, Christopher.

     _ Tem que detê-lo, Simon. Por sua mãe.

     Ele olhou para as próprias mãos.

     _ Tenho medo, Sofia. Ele poderia matar-me. Sabe como fazê-lo.

     Sofia ficou surpresa.

     _ Você tem medo de morrer?

     Simon elevou os ombros.

     _ Não importa o quanto se viva, a ideia de não existir mais ainda assusta. Não importa o quanto esteja cansado da vida, viver ainda é melhor do que enfrentar o desconhecido.

     _ Mas não tem o que perder – fitou sua mãe. Sofia não podia evitar a morte dela, mas, sim, podia lutar contra quem levara a mãe dele. Ela podia lutar contra Christopher. _ O que aconteceria se eu o ajudasse?

     Foi a vez dele ficar surpreso.

     _ Você me ajudaria?

     _ Sim, porque sei que pode fazê-lo.

     Simon tomou a mão dela.

     _ Como posso permitir que se ponha em perigo?

     _ Me deixe ajudá-lo – disse ela _ , ou juro que o farei eu mesma – e nesse momento ela sentia que podia.

     Ele soltou uma gargalhada, e seus olhos se iluminaram.

     _ Nunca recebi uma oferta semelhante – disse com voz suave. _   Como poderia falhar com você a meu lado?

     _ Melhor irmos – disse ela, desde já assustada com as próprias palavras. _ Tenho que fazer uma ligação. Antes de sair, tirou um papel dobrado do bolso do casaco, abriu-o e o pôs debaixo da mão de sua mãe. Era um poema: “Feitiços contra a morte”.

 

     Estava muito frio para os amantes e era muito tarde. O frio vento noturno de novembro sacudia os arbustos, surpreendendo as azaléias e fazendo com que as alfenas assobiassem. Mas Simon não sentia o frio – o gelo que é beijado pelo gelo não se congela – e tampouco suava, enquanto cravava a pá roubada uma e outra vez na terra sólida. A borda da trincheira já chegava aos joelhos.

     A jaqueta de couro estava pendurada sobre o galho de um arbusto. Um dos braços da jaqueta balançava, instável, cada vez que um volume de terra era jogado contra o tronco do arbusto que a sustentava. Os músculos de Simon se moviam e eram forçados em ritmo implacável, à medida que ele abria outra cicatriz na terra.

     As nuvens cobriam o céu, mas ele não precisava de luz para enxergar, sobretudo se a fada da lua estivesse lá em cima para ajudar. Ele tinha olhos de animal, e o avanço contínuo de seu trabalho era como a marcha do lobo, que correria por toda a noite até encontrar sua presa.

     A borda já chegava à sua cintura. Pensou em Sofia enquanto cavava, e o pensamento o estimulou a prosseguir: a tortura de sentir sua pele, sua respiração humana, as sombras de seus olhos, seus ossos frágeis e toda a beleza efêmera que se desvaneceria e morreria antes de que ele tivesse uma ruga no rosto. Eu poderia sustentar um de seus doces seios, pensou ele, e, antes que o prazer deixasse de correr por minhas veias, ela já teria partido.

     Não podia permitir-se desejá-la. Tinha passado mais tempo sentindo saudades do que conhecendo-a. Mas era um milagre que ele tivesse vivido todo aquele tempo sem amar, ou seria um milagre o simples fato de que ele pudesse amar? Quem saberia? Ele ria ante o pensamento de que a idade trazia conhecimento. A idade só trazia novas surpresas.

     Era triste que a mãe da Sofia estivesse morrendo e ainda mais triste que Sofia, desde já, sentisse saudades. Eu poderia dizer-lhe, não é tão horrível, não é tão horrível, pensou ele, sua vida é curta. Não há muito tempo para sentir saudades de alguém. Mas ela não acreditaria. Era tudo o que tinha. Uma vida inteira era uma vida inteira, não importa quantos anos que durasse.

     A cova estava suficientemente funda. Não era uma obra-prima, longe disso, mas possuía profundidade suficiente. Puxou a ponta de um lençol comido pelas traças, que havia posto ao lado, e o jogou dentro do buraco. Os toques finais costumam ser demorados. Atirou fora a pá e, com força sobrenatural, saltou para trás, desafiando a gravidade. Lançou um grunhido agressivo de satisfação.

     Quanta tristeza causei?, perguntou-se, enquanto arrumava umas tábuas em cima da trincheira. Alguém sentirá saudade das pessoas que matei para prolongar minha vida miserável? Ele nunca pensou nelas como pessoas cuja ausência viesse a ser sentida por alguém. Pensou na crueldade de lhes tirar a vida, preocupou-se com a dor que sentiriam, mas jamais lhe ocorreu que causaria desconsolo aos que ficavam. Como sou estúpido, pensou. Estou condenado a ser um jovem fútil e vazio para sempre, como Christopher está condenado a ser um garoto petulante? Que desperdício de anos, nunca aprendi com eles, nunca cresci. Tudo tinha tão pouco sentido, mas tudo era parte da mesma maldição.

     Estendeu o lençol sobre a trama de madeira que havia assentado na trincheira e começou a cobri-la com folhas mortas, que revestiam e escondiam as raizes dos arbustos.

     O aroma úmido e penetrante recordou-lhe outro outono, quando conseguira chegar a casa de seu pai, muito tarde. Ele olhara através do vidro em forma de diamante, como um ladrão, para um homem enrugado e grisalho, que mostrava a tristeza e a dor em sua fisionomia como uma teia de aranha. Não havia ninguém que apoiasse o pobre velho, enquanto ele dava voltas e mais voltas em sua cama, nenhum filho para lhe dar a mão em seu leito de moribundo. Um criado trouxe-lhe algo para beber, apagou a luz e se retirou, sem dizer uma palavra.

     Simon esteve ali a noite inteira, olhando através do vidro. Não havia ninguém que o convidasse a entrar. Só podia esperar e fitar seu pai com ansiedade, consciente de que, embora o destino lhe oferecesse uma porta, ele nunca poderia entrar, nunca poderia contar a seu pai no que se havia convertido. Melhor deixá-lo sofrer com a ignorância do que infligir-lhe a incalculável dor de saber que seus dois filhos estavam condenados.

     Preso do outro lado da janela, capturado pela escuridão, Simon sabia agora que estariam separados para sempre, sem importar quem estava vivo, morto ou morrendo.

     Ele partira antes do amanhecer, o coração inchado de dor como se tivesse sido espancado. Mal tinha deixado de ser um animal e recordado que alguma vez fora humano, quando foi obrigado a pôr de lado essa verdade, negar que tinha um coração, para deter a dor.

     Ficou nos arredores de Londres, mas preferiu não retornar para olhar, e, ao inteirar-se da morte do pai, foi o dinheiro roubado a um bêbado que comprou o retrato da família de um lacaio ladrão, quando não tinham passado nem três horas do enterro. Os únicos a quem ele podia amar estavam mortos. Não voltaria a amar ninguém nunca mais, e ninguém iria amá-lo.

     Mas importou-se com Sofia, pensou, enquanto atirava umas últimas folhas na cova. Disse que me ajudaria. Ninguém me ajudou antes; entretanto, sabendo o que sou, ela se dispôs a ajudar-me. Pulou uma grade quebrada e começou a preencher o buraco com a terra. Sim, ainda havia surpresas.

     À medida que o céu ficava prateado, antes que o vermelho intenso do sol nascente riscasse o horizonte, Simon chegou à janela vedada com madeira de seu esconderijo. Foi então que recebeu uma surpresa diferente, ruim.

     O medo golpeou seu peito, sugando o ar roubado que respirava. Uma folha de papel se agitava em uma tábua de madeira, presa por um prego, branca como um cadáver. Arrancou-a com dedos trêmulos e leu a letra torpe.

 

           “Sei onde você está.”

 

     Os dedos do Simon apertaram-se convulsivamente, rasgando um dos cantos. Conseguiu abrir a carta, para continuar lendo.

 

“Estou cansado deste jogo. Você me aborrece. Eu posso te seguir e você nunca saberá. Posso te matar, e não terá nenhuma chance. Chega desse jogo de gato e rato. Nada mais de irmão gentil e amável. Você é um inseto, um mosquito. Ninguém sentirá sua falta. Ninguém se dará conta. Ninguém se importará.

Corra, Simon, corra. Você está morto.

     Tinha assinado Christopher.

 

     _ Muito tarde – disse Simon, entre dentes _, muito tarde, e amassou o papel em suas mãos. Evitava que tremessem. Talvez na semana passada tivesse corrido, pensou ele, mas não agora. Tenho uma arma que não conhece, Christopher.

     Então, seus olhos se arregalaram com um pensamento horrível.

     Sofia! Saberia a respeito de Sofia? De repente, Simon quis correr para ela, adverti-la. Ou, talvez, devesse afastar-se dela, esconder-se, nunca mais se aproximar. Deu meia volta, indeciso, quase em pânico, e viu que o horizonte estava rosado.

     Não posso ir a nenhum lugar, percebeu, com um temor intenso. Não há nada que possa fazer. Estou preso novamente por conta de minha maldita doença.

     Tirou uma tábua para poder deslizar, rasgando o jeans.

     Mas ele tampouco podia sair, Simon tranquilizou-se, não sem supervisão, e não durante o dia. Christopher estava tão aprisionado quanto ele e, embora pudesse chegar até ela, não teria muita força sob o sol. Depois, outro pensamento o atormentou. Sou um idiota, disse, e colocou a tábua em seu lugar, atrás dele. Ninguém sentirá sua falta, escrevera Christopher. Ninguém se dará conta. Ele não sabia dela.

     Mas, quando Christopher o tinha seguido? Foi por acaso, na noite após o ataque, ou alguma das noites seguintes?

     Simon passou a mão pelo cabelo uma e outra vez, inconscientemente, tirando-o do rosto. Se apenas soubesse.

     Mas se Christopher o tivesse visto com ela, certamente teria jogado isso em sua cara, ameaçaria Sofia para atormentá-lo. Assim agia Christopher. Sim, pensou ele, sentindo-se mais tranquilo.

     Era assim que ele agia. Então, ele me seguiu uma noite em que não estive com ela, ou me viu depois, Simon decidiu, ele realmente não sabe que ela existe.

     Simon tirou a mala de debaixo da mesa e acariciou a superfície cuidadosamente, obtendo força de sua terra natal. Dormirei, pensou, dormirei e me fortalecerei. E depois veremos.

     Mas o medo o atormentou, enquanto tentava descansar. E se eu estiver equivocado? E se ele sabe e só me está enganando? E se a machucar?

     Torturado por seus pensamentos, não viu o primeiro raio do sol esgueirar-se pela ranhura onde a tábua não alcançava.

 

     Ela estava saindo da casa de Lorraine. Estavam retirando uma maca, e a mãe de Sofia estava deitada nela, com os olhos fechados e o rosto pálido, mas falou para ela: “esqueci o quadro. Pode ir buscar, querida? Eu quero levá-lo.” Levaram-na até a ambulância. Sofia queria ir atrás do quadro antes que a ambulância partisse.

     Atravessou as portas do hospital.

     O elevador era pequeno. Quando ela entrou, uma porta de metal fechou-se automaticamente com um eco. Estava presa. O elevador tremeu violentamente enquanto subia, lento, agonizantemente lento. Depressa, depressa. Não reconhecia nenhum dos andares onde parava. O elevador parou de novo, mas as portas continuaram trancadas. Os andares começaram a cair um a um. O medo fechou sua garganta. Agarrava-se às paredes de aço, rezando para que o elevador não despencasse. Ia cair, esmigalhar-se contra os andares e terminar como um boneco sem vida, no chão de concreto do porão.

     As portas abriram, mas o elevador não havia chegado. Lutou para escalar a parede de tijolo e deslizou por uma fresta, respirando com dificuldade. Foi recebida por luzes brancas, que cegaram seus olhos.

     Estava sentada sobre um muro alto, na rua. A ambulância, mais abaixo, estava indo embora. Não vá! O pavor que a dominava somente permitia que ela se arrastasse sobre o muro, segurando-se dos lados para não cair no vazio. O vento uivava acima dela.

     Passou as pernas por cima do muro para alcançar a ambulância. No princípio, a única certaza que tinha era da morte. Imensos pedaços do edifício saíam voando ao toque de sua mão. Sentiu que os dedos dos pés encontravam apoio e tentou equilibrar-se, mas escorregou. Escorregou e gritou, antecipando a colisão abrupta, mas de novo encontrou um apoio. Machucada e arranhada, chegou ao chão.

     A ambulância seguia seu caminho. Correu atras dela, mas suas pernas eram lentas, como se o ar fosse pesado. As lágrimas molhavam seu rosto.

     Lorraine estava junto dela e lhe ofereceu um quadro. Sofia explodiu, num momento de raiva, e agarrou o quadro. “Está tudo bem”, disse Lorraine. “Só está indo para o Oregon. Pode ir visitá-la”.

     Sofia começou a sentir uma onda de tranquilidade e pegou o quadro. Mostrava um menino com cabelo prateado, vestido em cores chamativas, sorrindo.

 

     Sofia piscou diante da luz pálida da madrugada que atravessava as cortinas do quarto. Moveu a cabeça ligeiramente para assegurar-se de que Lorraine ainda dormia no chão, no colchonete.

     O sonho grudou-se nela como névoa pegajosa. “Só está indo para o Oregon. Pode ir visitá-la”. Ainda podia sentir a sensação de tranquilidade. Estava brava com Lorraine. Ela a estava confundindo: no final, as duas iam partir. Não sua culpa dela, nenhuma das duas tinha culpa. Talvez estivesse descontando nela.

     Estudou o rosto adormecido de Lorraine. Tenho que memorizar seu rosto, pensou.

     Ao redor do colchonete, onde Lorraine estava deitada, viam-se fotografias espalhadas e também anuários, jornais, poesia: recordações acumuladas dos anos de amizade. O toca-discos seguia girando lentamente. Tinham esquecido dele por completo, enquanto conversavam na cama, muitas horas depois que o último disco deixara de tocar.

     Lorraine ia embora hoje. Isso é o que fazia esta manhã tão diferente das demais que tinham compartilhado. Graças a Deus a chamei, pensou Sofia. Ou, então, não teria tido nem isto. Não me dei conta de que o momento se aproximava tão rápido.

 

     Lorraine tinha-se comportado como se tivesse dúvidas, ontem à noite; no princípio, quase tímida, muito diferente do que era. Queria agradá-la. Talvez devesse me zangar com mais frequência, pensou Sofia, em vez de deixar que me dominasse.

     _ Está pálida – havia dito Lorraine, momentos após chegarem. _ Não está doente, está?

     Sofia sorriu diante da preocupação da amiga. Sentia-se bem em ser o centro das atenções.

     _ Não. Só que tenho… umas coisas na cabeça, eu acho.

     _ Verdade? – Lorraine sacudiu a cabeça. _ E eu que pensava que você fosse a mais extrovertida das duas – mas o sarcasmo em sua voz não correspondia a seu comportamento: ela não sabia se subia suas coisas para o quarto de Sofia ou não, pedia para ir ao banheiro, quase como se nunca houvesse dormido ali antes.

     Nunca pensei que fosse insegura, pensou Sofia, mas dou uma resposta grosseira, e ela reage como se a amizade fosse acabar para sempre.

     Sofia viu-se tentando transmitir segurança a Lorraine através de coisas pequenas, detalhes bobos na realidade, como rir de alguma coisa sem muita graça ou deixando-a decidir o que iriam comer, e, logo, Lorraine estava agindo como sempre. Muito contente, conseguiu convencer Sofia a preparar uma panela inteira de espaguete e fez com que comesse uma boa porção, enquanto se queixava de como estava engordando.

     _ Mentira – disse Sofia. _ Você tem um corpo fantástico, não é como eu.

     Lorraine respondeu:

     _ Você pode ser magra, mas seu sutiã é maior que o meu. Melhor comer um pouco mais, ou quando levantar, vai cair com o peso dos seios.

     Riram, imaginando a cena, até que tiveram que secar as lágrimas.

     Estavam preparando-se para lavar os pratos, quando chegou Harry Sutcliff. Lorraine flertou com ele abertamente, como sempre, e conseguiu convencê-lo a comer também. Sofia gostou de ver seu pai sorrindo um pouco e comendo melhor do que fazia há bastante tempo. É Lorraine, pensou.

     Há tanta vida nela, é contagiosa.

     Sofia não se sentiu tão preocupada como se sentira nas vezes anteriores, por seu pai desculpar-se e se retirar para o quarto com a pasta, para trabalhar. Tampouco ele disse que baixassem o tom de voz, como fizera em outras ocasiões. Sofia não sabia se sentia alívio ou irrritação. Continuava esperando ouvir sua voz.

     Ficaram acordadas até tarde, como que evitando o inevitável, tentando fazer com que a noite durasse para sempre. Comeram batatas com molho, escutaram música e riram de piadas bobas, como se estivessem em uma festa de pijamas do quinto ano novamente.

     Entretanto, havia momentos de silêncios perigosos, quando se aproximavam do irremediável.

     Finalmente, Lorraine falou sobre a mãe. As palavras saíram atropeladamente.

     _ Não é justo. Já me estava acostumando a visitá-la e agora quase não poderei fazer isso. _ Ficou em silêncio e começou a rever os álbuns, como se estivesse procurando algo.

     Sofia sabia que a morte iminente de sua mãe era o que impedia Lorraine de expor seus temores e suspirou. Às vezes acredito que ela é egoísta, mas não é verdade, não realmente, entendeu Sofia, é injusto com ela. Lorraine também está perdendo sua mãe. Este último pensamento tomou Sofia de surpresa. Tinha estado tão imersa em sua dor que não tinha visto as coisas desta maneira.

     _ Lorraine – falou, em voz baixa, interrompendo um silêncio desconfortável, quando já não aguentava mais _, sinto muito por ter sido tão antipática.

     Lorraine lhe atirou a tampa de uma garrafa.

   _Você já disse isso ontem à noite – mas olhou a amiga com a expressão cansada, sentindo que havia mais. _ Mas, de toda forma, continuo sendo antipática, se não permito que fale comigo. Não vou me despedaçar se você falar de sua mãe. Sinto muito se fui egoísta, se fiz com que se sentisse mal – percebeu que ruborizava.

     Lorraine virou as costas para ela.

     Deus, eu a perturbei, pensou Sofia, confundida. Os ombros de Lorraine tremiam. Não, pior. Ela a fizera chorar.

     Sofia desceu da cama e se arrastou para aproximar-se da amiga, insegura quanto ao que fazer. Tenho que tomar cuidado, pensou ela, justo no momento em que sua mão caiu diretamente no molho de bacon e cebola das batatas.

     _ Ugh!

     Lorraine virou-se, com lágrimas nos olhos, viu a mão de Sofia e soltou uma exclamação, começando a rir. Era impossível não unir-se a ela.

     _ Terá que lavar isso ou lamber – disse Lorraine, entre risos _, toma, coma as batatas.

     _ Cale-se, ou vai engasgar.

     Ataque de riso de novo.

     No caminho até o banheiro, Sofia disse:

     _ Imagino que agora, sim, podemos falar, não?

     Lorraine respirou fundo.

     _ Acredito que sim.

     Mas havia algo de que Sofia não podia falar.

     O que posso dizer?, pensou, em dado momento, tem esse garoto que me atrai e que gosta de beber sangue? Vai pensar que enlouqueci.

 

     Frequentemente, tocava a nuca e acariciava as marcas que estavam desaparecendo. Tinham passado três noites; as feridas sararam rápido. Já eram apenas marcas amareladas. Disse que o ajudaria, mas como podia fazer isso? O que estava pensando para dizer tal coisa? Foram seus beijos.

     O que aconteceria se estivessem enganados? E se alguém saísse terrivelmente machucado?

     Deu voltas na cama, sem pegar no sono, mesmo depois que Lorraine adormeceu tranquilamente.

     Mas agora era de manhã, e os primeiros raios de sol iluminavam o cabelo de Lorraine, destacando a cor dourada que nem sempre se via. Podia ter sido Lorraine naquele beco, se é que Simon dizia a verdade. Não era razão suficiente para ajudá-lo? Decidiu aproveitar o momento e afastar o pensamento anterior. Sempre será assim, pensou Sofia, concentrando-se nisso com toda força. Nunca mudará. Foi sempre assim a cada manhã em que Lorraine passou a noite aqui, dormindo no chão, e eu sempre lembrarei dessas manhãs, de agora em diante. Não há nenhum vampiro triste, com beijos de tirar o fôlego, esperando lá fora, em algum lugar, no frio.

     Lorraine se endireitou-se e piscou. Levantou-se para começar o dia, as horas escoavam-se sem trégua.

     Era a última vez que correriam para o chuveiro, a última vez que decidiriam juntas o que iriam vestir, a última vez que Lorraine roubaria um pouco do perfume favorito de Sofia, a última vez que brigariam por uma melhor posição no espelho. Bem, não de fato. Visitariam uma à outra, é claro, mas não seria igual. Embora, e Sofia não podia evitar o pensamento, se Christopher levasse a melhor, tampouco teriam isso. Estremeceu.

    Lorraine fez ovos mexidos com bacon para o café da manhã. Cantarolava enquanto cozinhava, como se ter dasabafado a tivesse inspirado a cantar.

     _ Será uma esposa insuportável algum dia – disse Sofia.

     Harry Sutcliff sentiu o aroma vindo da cozinha, ao entrar, e sentou-se à mesa.

     _ Surpreende-me que tenha encontrado algo para cozinhar.

     Lorraine soltou uma gargalhada.

     _ Não encontrei nada aqui. Eu trouxe tudo. Alguém tinha que abastecer a geladeira.

     _ Bom, pois saiba que é uma grande cozinheira – disse ele, apanhando um prato com torradas.

     Lorraine passou-lhe a manteiga.

     _ Chama-se sobreviver. Sabe que Diane não tem a menor ideia do que fazer na cozinha. De qualquer modo, esta é a forma mais eficiente de chegar ao coração de um homem, sabe como é. Estou praticando com você – e piscou.

     Sofia espantou-se ao ver seu pai corar.

     Ele sorriu timidamente, baixando o olhar para o prato, e isto o fez parecer anos mais jovem. Um pouco frívola, a paquera de Lorraine, entretanto, tirou-lhe o peso do coração por alguns intantes.

     Talvez fosse o que restara do rapaz que se havia apaixonado por sua mãe, aquele que ela conhecera. Se eu aprendesse a fazê-lo sorrir, pensou ela, seria mais fácil para os dois.

     Saiu imediatamente após o café, porque queria trabalhar um pouco antes de ir ao hospital. As meninas limparam tudo com calma.

     _ Trabalha tanto – disse Lorraine.

     _ Sim. Contas, contas, contas – a voz da Sofia era suave. Sentia mais compaixão pelo homem que viu por um momento esta manhã, muito diferente do estranho inflexível das últimas semanas.

     Lorraine lavava, enquanto Sofia secava. Seus últimos minutos terminavam, e Sofia ainda não contara seu segredo à sua melhor amiga.

     Esta é minha última oportunidade, pensou. Mas o que vou dizer? Lorraine, conheci um vampiro e disse a ele que o ajudaria a matar o irmão, que também é um vampiro. É aquele menino com quem falou. Que quase assassinou você. Oh, não, não sei como vamos fazer. Isso depende dele. Se lhe contar isso, acreditará que estou louca.

     De qualquer modo, o que Lorraine poderia fazer? Ela estava partindo hoje. Não podia dizer a Diane que não iria, não por essa razão. Diane mandaria internar as duas. Lorraine enlouqueceria de preocupação durante toda a viagem. Sofia não podia fazer isso.

     Mas o que vou fazer quando ele voltar? Dizer que mudei de opinião?

     _ Sonhando acordada, Sofia?

     Sofia se assustou.

     _ Acredito que sim.

     _Com um garoto? Oh, não se surpreenda tanto. Posso reconhecer um beijo apaixonado na nuca quando o vejo.

     Sem poder conter-se, uma vez mais a mão da Sofia foi até a nuca. Ruborizou-se.

     _ Eu…

     _ Sei – interrompeu Lorraine. _ Conheceu um cara bonito e, antes que pudesse evitar, deixou que lhe mordiscasse a nuca, embora mal o conheça, e não foi capaz de me dizer, porque se sentiu uma garota fácil. Tive que me controlar todo o tempo, ontem à noite, para não perguntar. De verdade, Sofia, eu não acredito que seja errado. Somente se vive uma vez. É um cara legal?

     Sofia disse que sim, com um movimento da cabeça.

     _ Vai vê-lo de novo?

     _ Sim.

     _ Por favor, não fale. Vai me enlouquecer, se não calar a boca. Não importa. O que me incomoda é que não tenha me contado. Mas te conheço. Quando tiver conseguido superar, irá me contar, só que, desta vez, terá que escrever – de repente, Lorraine ficou solene. _ Prometa que escreverá, Sofia.

     _Claro que sim, boba – Sofia sacudiu brandamente o ombro da amiga, respirando mais tranquila pela mudança de tema. _ Cartas enormes, sobre absolutamente tudo.

     Lorraine suspirou.

     _ Vejo que terei que comprar um dicionário.

     _ Só está indo para o Oregon – disse Sofia, divertindo-se com sua piada particular. _ Posso te visitar.

     Guardaram os pratos, Lorraine recolheu suas coisas e caminharam até a casa dela, onde Diane a esperava. Percorreram o caminho devagar, de mãos dadas, como faziam quando tinham oito anos.

     Ao chegarem, tudo aconteceu muito depressa. O automóvel estava cheio, o que fez Diane reclamar com Lorraine, aborrecendo Sofia; mas as duas ajudaram a pôr as últimas malas no carro. Diane fez um espetáculo sobre acomodar seu violão com cuidado. O humor de Lorraine piorou.

     _ O bom é – sussurrou para Sofia, do outro lado do Toyota _ que não pode tocar o maltido violão enquanto dirige.

     Percorreram a casa para assegurar-se que não haviam esquecido nada e confirmar que tudo estava empacotado. Finalmente, não puderam mais evitar a despedida. Diane sentou-se no carro, mexendo as chaves, impaciente, e Lorraine teve que entrar no veículo.

     _ Temos uma longa viagem pela frente – disse Diane. _ Adeus, Sofia. Foi um prazer te conhecer.

     Lorraine lançou um olhar feroz para a madrasta e agarrou a mão de Sofia pela janela.

     _ Ligarei assim que possa.

     O carro saiu da garagem para a tranquila rua, no caminho para a estrada. Sofia ficou vendo-o desaparecer quando virou na esquina seguinte. GZN 256, disse, como se estivesse presenciando um carro fugindo de um acidente.

     Voltou para casa, olhando para trás e vendo o que agora seria “a antiga casa de Lorraine”, onde não entraria jamais. Sozinha, pensou. Não, não exatamente. Tinha um encontro. Fez uma careta de riso ao abrir a porta principal e entrar na casa silenciosa.

     Quando seu pai chegou, à noite, veio ao seu quarto. Ela estava lendo, sentada na cama. Sofia sorriu e o convidou a sentar-se ao lado dela. Ele aceitou e acomodou-se, então, respirou fundo, como que preparando-se para dizer algo que o assustava. Ela se contraiu.

     _Sinto muito pelo outro dia – falou, tocando-lhe o queixo, nervoso. _ Sua mãe e eu o discutimos bastante ultimamente. Tem razão. Não confiei em você. Depois de tudo, ainda teve que se cuidar sozinha ultimamente e não se queixou. Se isso não for maturidade, não sei o que será. Só queríamos te proteger, mas já lhe disse isso.

     Sofia sentiu-se envergonhada por seu pai estar se desculpando, mas, ao mesmo tempo, ficou feliz. Entretanto, não estava certa do que devia fazer. Queria que ele a abraçasse, mas sentia pena dele, ao mesmo tempo.

     _Conversei com um homem no hospital. Sua mãe me convenceu. É um terapeuta. Aparentemente, têm grupos de apoio para famílias de… pacientes.

     Sofia sabia ao que se referia: pacientes terminais. Mas ele ainda não era capaz de dizê-lo.

     _Teve muito sensibilidade; surpreendeu-me realmente. Não sei por quê. Pensei que eu era o único que estava passando por isto. Mas, realmente, acertou em alguns comentários a respeito de como me sentia, quero dizer – olhou na direção da parede, como se assim fosse mais fácil falar. _ De toda forma _ seu olhar passou para o tapete, ainda evitando o olhar dela _, pensei que talvez quisesse vir comigo da próxima vez. Na próxima semana, de repente. Poderia ajudar-nos neste processo. Não sei. Deus sabe que necessitamos ajuda. Eles têm grupos de apoio, esse tipo de coisas.

     Passou as mãos pela calça, nervoso. Ela estendeu a mão para tocar a mão inquieta do pai. Quem quer que fosse o tal homem no hospital, conseguiu fazer seu pai reagir. Talvez houvesse esperança em tudo isto.

     _Eu gostaria de tentar.

     Olhou para ela e sorriu, como se tirasse um peso dos ombros.

     _ Está definido, então – colocou a mão no joelho, como se fosse o martelo de um juiz. Então, seu sorriso se desvaneceu.

     _ Ela não se sentirá muito bem amanhã, porque tem outra sessão do tratamento. Mas queremos que venha depois de amanhã, Sofia, para que possamos falar como deve ser, sobre tudo, sobre tudo que quiser. Acredito que todos precisamos e pode ficar o tempo que desejar.

     _Eu gostaria muito disto – disse ela, atrevendo-se a se sentir melhor.

     Ele tomou a mão da filha.

     _ Não queremos te afastar. Nunca quisemos fazê-lo.

     Sofia lhe apertou a mão.

     _Eu sei, mas, bem, tenho me sentido tão mal – não pôde evitar as lágrimas. Droga, pensou, não quero fazê-lo sentir-se mal de novo. Não quero afastá-lo.

     Mas seu pai a abraçou e acariciou suas costas. Ele está tentando de verdade, pensou ela, e isto a fez chorar ainda mais. Estava se comportando como seu pai de novo. Ele cuidaria dela e faria que tudo ficar bem.

     Quando ela finalmente deixou de chorar, ele a apartou.

     _ Por que não dorme um pouco? – beijou-lhe a testa e se foi, fechando a porta.

     Sofia apagou o abajur e se acomodou para dormir.

     Deveria ser mais fácil agora, porque sentia que lhe haviam tirado um peso de cima. Mas se lembrou de Simon, e o peso ressurgiu. Quando voltará?, pensou ela, no que me meti?

     Mas seu pai estava falando com ela agora, mais aberto, então, talvez, entenderia e a ajudaria a sair daquilo de alguma maneira. Não. Se pensava que Lorraine não acreditaria nela, por que seu pai o faria?   Ele tem que acreditar, pensou ela. Eu não minto. Ao menos, ele acreditaria que ela conhecera um jovem perigoso e faria alguma coisa. Talvez chame a polícia, em vez de deixá-la sozinha.

     Decidiu levantar-se e ir ao quarto de seu pai. Bateu levemente na porta. Não houve resposta. Abriu a porta e olhou para dentro. Ele estava deitado na cama arrumada, completamente vestido. A maleta estava fechada. Ele franzia o cenho e roncava brandamente, a respiração, como a de um menino, soava como um assobio. Está extenuado. Entendeu o injusto que seria contar-lhe, totalmente absurdo desejar que ele acreditasse. Não posso despertá-lo, pensou ela, e voltou para seu quarto. Depende de mim agora.

     Dormiu até tarde no dia seguinte e seu pai já não estava quando acordou. Talvez tivesse ido para o trabalho ou para o hospital, não sabia. Esquecera de deixar um bilhete.

     Passou um tempo lendo um livro grosso de ficção científica, parte de uma série, no sofá da sala. Mas seguia lendo o mesmo parágrafo repetidas vezes e não conseguia entender o que lia. Seus pensamentos desviavam-se para o que poderia acontecer mais tarde. Ele virá esta noite? Finalmente, decidiu largar a leitura e desceu ao porão para pôr roupa na máquina de lavar, depois, pegou o aspirador.

     À tarde, sentou-se à mesa da cozinha com seu caderno e uma caneta, tentando escrever um poema.

 

Poema

No coração da noite

Procuro o solitário

Que espera à luz da lua

Seus olhos mudam do gelo à cor das nuvens

Estrelas

Sobre os jeans desbotados

Sobre o cabelo de prata

Brilha o couro negro

Selvagem

Ligeiramente raivoso

Surpreendido pelo tempo

Aprisionado à noite

Enquanto espreita

Pode ser que um ruído se

Transforme em um raio de luar

E ele partirá.

 

     Escutou um barulho na porta dos fundos. Deteve-se, pôs a caneta sobre a mesa e deu meia volta. As pequenas janelas refletiam a escuridão, mas ela podia ver uma sombra lá fora. A chave que estava na porta girou de maneira impossível, a maçaneta cedeu, e a porta se abriu suavemente, por si só.

     Simon saiu da noite para dentro de sua casa.

     _ Só precisa me convidar uma vez.

     _Não tem que ser tão melodramático – falou ela, voltando a respirar.

     Com o olhar envergonhado, ele se sentou e apanhou o caderno. Leu, enquanto ela o fitava. Esqueci como é bonito, pensou ela, surpresa.

     _E se meu pai estivesse aqui? – perguntou.

     _Eu sabia que estava sozinha – ele sorriu à vista dos versos e tocou sua bochecha com os dedos gelados. _ Esperei por você durante séculos.

     Por um momento, ela flertou com a ideia de fugir com ele de mãos dadas, afastando-se de todos os problemas do mundo. Aproveite a noite, sussurrou-lhe uma voz interna, mas ela expulsou o pensamento.

     _Tem algum plano? – sentiu-se horrível ao notar o tremor da própria voz. Confiava em que ele não o tivesse notado.

     Simon depositou o caderno sobre a mesa.

     _ Tenho um plano.

     Ela viu sua outra mão, que ele parecia tentar esconder. Ele a pôs sob a mesa, mas ela a agarrou. Ele recusou-se a mostrá-la, mas, no final, cedeu. Estava queimada. Tinha uma bolha vermelha.

     _ Fiquei fora muito tempo – disse ele, simplesmente.

     _ O sol? – perguntou ela.

     _ Tinha pressa de entrar e me abrigar; sentia muito sono. Não me certifiquei de que as madeiras cobriam bem as janelas, e a luz do sol deve ter-se infiltrado por alguma fresta. A dor me despertou.

   Ela soltou um murmúrio de compaixão.

     Ele sorriu.

     _ Sim, dói muito, mas logo passará.

     _ Mas como Christopher faz para fingir que é um menino normal, se também não pode sair durante o dia?

     _Podemos suportar a luz do sol, se os raios não estiverem muitos fortes, ou durante um certo período, em dias nublados. Eles pensam que ele é albino. Cobrem-no bem e evitam que fique sob a luz forte, para proteger sua ‘delicada pele’. De qualquer forma, ele não vai querer enfrentar o sol diretamente – Simon fez uma careta, como se apreciasse a ideia.

     Albino. Sofia pensou no menino do beco novamente e estremeceu. Sim, era ele. Sentiu raiva. Não podia permitir que ameaçasse a vida de outra menina como Lorraine.

     Simon lhe soltou a mão e ergueu a caneta.

     _ Posso usar seu caderno?

     Respondeu-lhe que sim. Sentia-se mais segura agora que havia tomado a decisão.

     Ele procurou uma página limpa e desenhou um octógono.

     _ Esta é a estrutura do parque.

     _O quiosque – disse ela, entre dentes, e ele confirmou.

     Ele desenhou um círculo em um lado.

     _ Isto é uma trincheira, do lado oposto de seu banco. Cavei ontem à noite.

     _ Mas certamente alguém a terá visto hoje de manhã.

     _ Disfarcei o lugar.

     _ Simon, o que aconteceria se alguém caísse?

     _ Ninguém caminha por esse lado. Ninguém sensato sairia por aí nesse clima.

     Ele não se importava se outros se machucassem. Isso a assustava, porque o fazia menos humano.

     _ Por que uma trincheira?

     _ Há estacas no fundo. Quero que o leve até lá. São muito afiadas; acredito que será o suficiente.

     O estômago de Sofia contorceu-se.

     _ Sempre me perguntei por que funcionavam. Refiro-me aos filmes. Sendo que se supõe que vocês são invulneráveis.

     _ Temos que ser atravessados por completo – explicou, sentindo-se desconfortável. _ Não simplesmente machucados, mas empalados. Sustenta o corpo durante tempo suficiente para que a alma escape. A alma que esteve presa e atormentada. Nesse momento, pode acontecer a morte verdadeira.

     Ela questionou o egoísmo do corpo que podia acorrentar sua própria alma. O que faria Christopher a alguém que o ameaçasse?

     _ O que acontece se me pegar?

     _ Eu estarei lá, Sofia. Não permitirei que nada te aconteça. Estarei observando. Ele não suspeitará de você, então, poderá enganá-lo. Se fosse eu, ele não me seguiria tão facilmente. Se ele descobrir, imediatamente saltarei e o distrairei. Conseguirei que passe em cima do buraco.

     _ Mas como farei para que me siga?

     _ Passaremos pela casa onde ele mora. Eu sei a hora em que sai. Ele tem que esperar que a família esteja dormindo. Ele a seguirá com certeza, você é bonita e estará sozinha.

     _ Quando saímos?

     _ Faltam algumas horas.

     _ Isso é muito tempo.

     _ Tenho algumas coisas para te contar, sobre a terra de que ele precisa, sobre seu urso. Coisas que a ajudarão – sua voz tornou-se suave e animada. _ Pensei que me deixaria te beijar de novo.

     Ela olhou para o outro lado, nervosa, sua mão dirigindo-se à garganta.

     _ Não – sussurrou ele. _ Só um beijo. Um beijo de verdade.

     Enquanto Sofia tirava o casaco do closet, Simon esperou na porta principal, chutando o portal.

     _ Pare com isso – pediu ela. _ Eu também estou nervosa.

     Ele a olhou, mas ficou claro que estava forçando-se a fazê-lo.

     _ Há uma possibilidade de que ele saiba a seu respeito – falou rápido.

     Ele saiu para a rua.

     Ela correu atrás dele, os nervos gritando.

     _ Do queue está falando?

     Ele parou, a cabeça baixa, mãos nos bolsos.

     _ Entenderei, se não quiser ir.

     Sofia sentiu-se empalidecer.

     _ Não iria me contar isso, não é certo?

     _ Não.

     _ O que o fez mudar de opinião?

     _ Seus malditos beijos – e mostrou-lhe o papel.

     Ela leu a carta infantil, surpreendendo-se pouco a pouco.

     _ Mas, Simon, não diz nada sobre mim.

     _ Não, mas ele é do tipo rancoroso. Seria típico dele me fazer acreditar que você está bem.

     Ele está paranoico, isso é tudo, pensou ela. Está vendo além do que existe. Não poderia prosseguir sem me dizer, depois de tudo, embora esteja desesperado.

     _ Tem que ter fé em você alguma vez – falou, com ternura, apesar do nó na garganta. _ O risco não é mais alto que antes, e eu não poderia ficar mais assustada.

     À meia-noite, caminhou pela rua silenciosa, pronta para tentar.

     Simon estava ali, ela sabia, observando-a, mantendo-a segura. Ela tinha que acreditar que ele podia mantê-la segura. Entretanto, suas mãos suavam, e sua boca estava seca. Pendurou o crucifixo que   Lorraine lhe dera de presente debaixo do casaco. O objeto a fazia sentir-se melhor, sem importar o que Simon dizia. Não era bobagem se precaver.

     Suas pernas estavam cobertas com meias, mas a noite estava fria, então, fechou mais o casaco e se forçou a caminhar devagar. Queria dar suficiente oportunidade a Christopher de vê-la.

     Sofia percebeu quando Christopher começou a segui-la, embora não o escutasse. A textura do ar mudou. Talvez, a parte que Simon deixara em seu sangue pudesse sentir isso.

     Ela caminhou para o parque sob uma noite cheia de estrelas, limpa e fria, logo que se atreveu a respirar.

 

     Simon observava Sofia, escondido nas sombras. Deslizava de uma árvore para um arbusto, o mais perto que podia, mas sempre mantendo distância.

     Como suas pernas são lindas, pensou ele. Seu cabelo escuro é tão bonito, como Bess naquele poema. Entretanto, abandonou rapidamente esse pensamento, ao recordar como Bess tinha morrido para salvar seu amor. Fez com que se sentisse inquieto. Não obstante, ela despertava a poesia que havia dentro dele. Ela é a beleza andante, sussurrou. Sorriu. Um carro passou lentamente e ele se converteu em neblina.

     Ela girou na esquina, e ele a seguiu, atravessando um pátio. Sentia-se impreciso, como sempre acontecia quando se dissolvia. Era difícil concentrar-se dessa maneira. Não posso me dar ao luxo de desaparecer esta noite, decidiu ele, e se concentrou para recolher suas moléculas e tornar-se um jovem pálido com movimentos elegantes atrás de um muro gradeado.

     Depois, soube que Christopher estava ali, diante dele.

     Não podia ver o menino a princípio e começou a entrar em pânico.

     Logo, um movimento nas árvores chamou sua atenção: um morcego, acima, onde ela não o veria. Os morcegos usavam radar. Lançou uma maldição em silêncio e se desvaneceu novamente. Não o apanhariam agora. Só espero que não fique assim por muito tempo, pensou Simon, enquanto a apatia aumentava.

     Sentiu que os passos de Sofia se aceleravam. Ela sabe. Não vá tão rápido porque ele se dará conta. Caminhe mais devagar. O último pensamento ficou preso dentro dele, e Simon começou a seguir mais lentamente, começou a desvanecer-se. Ah, a noite estrelada. Por que não deslizo na direção das estrelas? Não. Devo segui-la. Seguir quem? A menina. Que menina? Acredito que vou desaparecer e brilhar como a geada. Não, a voz da razão o chamou de longe. Christopher, sussurrou uma lembrança distante. A advertência correu de molécula em molécula e as uniu outra vez, com o mesmo propósito. Tomou a forma humana novamente.

     Escondeu-se atrás de um Volvo que estava estacionado.

     Colado ao pára-choque, Simon podia ver o parque do outro lado da rua. Dois jovens passaram fumando e empurrando um ao outro, por diversão. Desapareceram na seguinte próxima. Adiantara-se em relação a Sofia, mas podia vê-la avançando, do outro lado da rua. Esperava que Christopher não tivesse captado a névoa suspeita em apenas uma metade da noite.

     Se Sofia pudesse guiar Christopher ao parque, tudo estaria bem. Se só pudesse levá-lo até o outro lado da trincheira, parar como se estivesse sonhando, para seduzi-lo e aproximá-lo dela. Oh, pobre menino, ela podia dizer e fazer com que caminhasse por cima da armadilha, até sua morte.

     Uma forma negra voou embaixo dos lampiões da rua e, ainda, sobre a cabeça da Sofia. Ela não olhou para cima, mas Simon viu como titubeou ao ver a sombra na calçada. Não olhe. Não permita que ele saiba. Os punhos dela estavam fechados, mas não olhou para lá. Simon podia ouvir os silvos que Sofia não captava, os chiados agudos que ricocheteavam no ar e captavam movimentos e figuras na noite. Ele não se atreveu a mover-se, para não atrair a atenção de Christopher.

     Logo, o morcego estava diante da Sofia. Escondeu-se ao redor de uma árvore e desapareceu. E, no parque, um menino pequeno saiu dos arbustos e para a calçada. Levava uma bolsa pendurada no ombro, e um urso apontava a cabeça sob uma correia solta. O menino aguardava Sofia com antecipação no rosto.

     Simon arreganhou ou dentes e soltou um grunhido baixo. Maldito. Não podia esperar mais? Não podia segui-la mais adiante? Será que ele sabia?

     Sofia chegou ao parque e Christopher caminhou até ela, a bolsa golpeando sua coxa. Sofia se assustou. Não deixe que ele saiba, suplicou Simon, lembre que ele é somente um menino para você. Levou uma das mãos à boca. Maldição! Maldição! Maldição!

     Eles conversaram. Simon não podia ouvir o que diziam, ainda com ouvidos feitos para caçar. Estava muito longe para escutar as palavras, e isso o estava tornando louco. Talvez as palavras do Christopher o denunciassem. Talvez, sim, conhecesse Sofia. Sofia não poderia adivinhar, mas Simón sim… se pudesse ouvi-los.

     Sofia entrou no parque com Christopher, oferecendo-lhe sua mão. Boa menina. Menina valente. Seu sorriso parecia forçado para ele, mas Simon suspeitava que Christopher não se importava com os humanos o suficiente para reconhecer entre um sorriso autêntico e um falso.

     Simon seguiu-os cuidadosamente, mantendo distância, enquanto percorriam o caminho para o centro do parque. Foram na direção correta, e Simon atreveu-se a sentir confiança. Mas detiveram-se na sombra de uma árvore grande. Aí não, Simon pedia em silêncio. Não pare aí.

     A luz da lua não penetrava as sombras, e ele só podia ver figuras escuras. Não o olhe nos olhos, pensou. Lembre-se do que eu te disse. Vai apanhar você se fizer isso. Saia daí. Ande. Entretanto, permaneceram na escuridão, por isso, a espera parecia uma eternidade, e Simón queria gritar.

     Aquilo não estava indo nada bem; ele tinha que ajudá-la. Resolveu arriscar-se e se esgueirou noite adentro. Se consigo me aproximar, posso surpreendê-lo, pensou ele.

     As figuras estavam mais nítidas à medida que ele se acercava. E ele viu a pequena silhueta do garoto mostrando algo à menina.

     Depois, estava perto o suficiente para escutar o que dizia a voz infantil. “Este é Teddy. Ele também está perdido. Beije Teddy para que se sinta melhor”.

     Sofia se ajoelhou diante do menino, aproximando-se mais e mais do alcance das mãos ansiosas. Agarraria o cabelo dela, para expor-lhe a garganta, ela seria dele. Simon preparou-se para saltar.

     _ Oh, que urso tão lindo – exclamou Sofia, e o arrancou de Christopher. Ele cambaleou para trás e Simon ficou paralisado. O que ela estava fazendo?

     _ Devolva meu urso – disse Christopher, recuperando-se.

     Sofia manteve o brinquedo longe dele.

     _ Só estou olhando.

     _ Me dê meu urso – disse Christopher, com insistência.

     Ela soltou uma gargalhada. Que soou forçada pra Simon.

     _ O que há com você? Não suporta uma brincadeira? – ela deu uns passos para trás, e Christopher avançou com os punhos cerrados.

     _ Quero que me devolva isso – quase usou um tom de exigência, mas controlou-se, fingindo ser um menino.

     _ Vamos, não quer brincar? – perguntou ela, avançando para trás mais rapidamente. _ Se o quiser de volta, venha pegá-lo – ela deu meia volta e saiu correndo das sombras, sustentando à frente o urso maltratado.

     Christopher lançou um grito de raiva e correu atrás dela, com pânico no rosto.

     Simon sorriu e golpeou o ar, com entusiasmo. Vamos, Sofia, vamos, talvez possa conseguir. Ele queria celebrar.

     Ela se dirigiu para o quiosque.

     _ Vamos – disse ela. _ Você não é divertido.

     Simon ria. Christopher não se atrevia a arrancar o urso de Sofia, porque, então, seria descoberto. Ele ainda pensava que tinha uma chance. Não sabia. Fingia ser um menino pequeno e desamparado, correndo detrás de seu urso, indignado porque o estavam aborrecendo. Simon esperava que o rasgo não estivesse costurado e, assim, a preciosa terra cairia e se espalharia pelo chão.

     Simon seguiu os dois, animando-os com sua torcida. Seus hábitos silenciosos não requeriam esforço e logo ele ficou ousado. Dado que Christopher só tinha olhos para seu urso de brinquedo, algumas vezes Simón atravessava a luz da lua, brilhando contra a noite por instantes. Queria manter o ritmo.

     Sofia correu ao redor do quiosque, subiu as escadas por um lado e desceu pelo outro. Havia quatro grupos de escadas: usou todas, exceto as do lado da trincheira. E Christopher a seguia freneticamente, aumentando a velocidade, gradualmente deixando de lado seu pretexto.

     Logo estaria muito aborrecido para que se importasse. Lançou a um lado a mochila que o detinha. Era um parque escuro, era tarde na noite; morderia a garota rapidamente e abandonaria aquele jogo.

     Sofia respirava com dificuldade, e seu rosto estava branco como se a geada tivesse rasgado sua garganta. Esquivando-se aqui, agachando-se ali. Diminuindo a velocidade. E Christopher, com suas pernas curtas e gordas, movia-se mais rápido, saltando de escada em escada, atravessando pranchas de madeira, sem a fadiga marcando sua fisionomia, só raiva e desejo de sangue.

     _ Não me pode apanhar! – gritou Sofia, a respiração ofegante, e seguiu, atravessando o quiosque de novo para o outro lado; o lado a que não tinha chegado. O lado onde estava a armadilha.

     Simon correu por entre os arbustos, quase totalmente agachado, e atirou-se sobre as folhas secas. Podia ver dali.

     Sofia chegou à extremidade das escadas com um impulso perfeito, mas, de repente, estava voando pelo ar.

     Oh, Sofia, que seu salto não seja muito curto. Uma imagem dela, ferida e atravessada pelas estacas passou por sua mente. Tapou a boca com as mãos para conter o horror.

     Christopher estava no topo das escadas, Sofia voava pelo ar, e Simon se sentia congelado no tempo.

     Quase se levantou.

     Christopher, preparado para descer as escadas e possuí-la, deteve-se. Viu um movimento. Seus olhos estreitaram-se, e ele encontrou Simon, posicionado, meio agachado, meio erguido, a uma pequena distancia do chão. Sofia caiu sem se machucar, enquanto Simon e Christopher olhavam-se fixamente.

     Simon surpreso, Christopher com desdém. Simon levantou-se devagar, deixando que seus pés tocassem o piso. Sofia estava no chão, com o urso agarrado ao corpo, como se fora um talismã.

     _ Qual é seu truque, Simon? – disse a voz do menino claramente, mas soando mais forte do que a de um menino. _ Tem algo planejado? É a sua prostituta? – soltou uma gargalhada, ao ver a ira nos olhos do Simon . _ Sim, que tolo fui. Devo estar ficando velho. Aonde quer me levar, Simon?

     Simon relaxou um pouco internamente, não permitiria que Christopher soubesse.

     _ Isso você terá que descobrir – Christopher não sabia da trincheira que estava a alguns metros de distância. Havia esperança.

     _ Devo perguntar à garota? – as presas de Christopher brilhavam, enquanto ele olhava de esguelha.

     Simon queria machucar aquela cara, cortá-la, rompê-la. Seu irmão despertava uma ira irracional nele. Fervia por dentro e tinha dificuldade para pensar. Capturado nessa ira, não viu a mudança de imediato.

     _ Você me aborrece – disse seu irmão. A voz de Christopher estava mais aguda, trêmula, como se sua laringe se estivesse distorcendo. _ Devia ter matado você faz muito tempo – sua voz se converteu em um chiado.

     Com a velocidade de uma bala, um morcego negro se lançou sobre a cara do Simon, atravessando a trincheira, atravessando o buraco cheio de estacas que deveria causar sua morte. Umas garras afiadas tentaram cortar os olhos de Simon, e ele saiu dos arbustos, cobrindo o rosto. O morcego avançou de novo. Simon se agachou, mas o morcego se transformou em menino e atirou Simon contra o chão.

     Brigaram furiosamente. Simon procurou freneticamente afastar-se, rolando, da trincheira que podia ser sua própria morte também, e Christopher, sem saber, empurrava-o para mais perto.

     Christopher tinha uma força sobrehumana, mas Simon também, e Simon era maior, situação que lhe dava vantagem. Entretanto, Christopher não tinha o sentimento de humanidade que controlava Simon.

     Ele mordia, arranhava. Armado com garras, buscou a garganta de Simon e conseguiu agarrá-lo até quase estrangulá-lo.

     _ Não me pode matar – ofegou Simon. _ Não tem com que me matar.

     _ Posso te mutilar – grunhiu Christopher. _ Posso te aleijar e deixá-lo desprotegido, enquanto encontro uma maneira – cravou os dentes no braço do Simon e rompeu sua jaqueta.

     Depois cortou a pele.

     Simon gritou, mais de raiva do que de dor.

     _ Maldito seja! – agarrou com força a garganta de seu irmão, mas Christopher se livrou, rodou e fez com que Simon ficasse embaixo dele. A cabeça do Simon estava na borda da trincheira.

     Um galho dobrou, e as folhas moveram-se. Simon podia escutar a terra escorrer ao lado de sua orelha, enquanto o peso de Christopher o dominava. Não cedam, suplicava aos galhos mortos. Ou, então, ele saberá. E me empurrará para baixo.

     _ Simon! – gritou Sofia. Ele se tinha esquecido dela. Ela parou sobre os irmãos e batia em Christopher com um galho seco.

     Christopher ria com sua risada de menino, que Simon odiava tanto. O galho se rompeu e as lágrimas rolaram pelas faces da Sofia. Christopher começou a estrangular Simon de novo, esmagando sua traqueia.

     Logo, outra voz.

     _ Agora sim, linda.

     Christopher soltou Simon.

     _ Que diabos…? – agachou-se, preparado para brigar ou para voar.

     Simon virou-se e ficou surpreso ao ver dois rapazes correndo do outro lado do parque: um grande e levemente familiar, o outro, um pouco mais jovem, atrás. Detiveram-se diante de Simon. Christopher retrocedeu cuidadosamente.

     _ Está incomodando esse menino, pervertido? – disse o mais novo.

     Simon viu que Christopher mudou de opinião quanto a sair correndo, um brilho de interesse nos olhos.

     O maior dos dois avançou.

     _ Kenny quer que lhe devolva a jaqueta, idiota.

     O outro o apoiou.

     _ Sim. Ele mesmo viria por ela, mas ainda está no hospital.

     Simon, furioso diante do colapso de seu plano, com raiva frustrada, aproximou-se dos rapazes, seus olhos cheios de fogo. Christopher podia ir quando quisesse agora. Para onde iria?

     Quantos anos mais necessitaria para encontrá-lo?

     O maior puxou uma faca do cinto; uma faca barata de caça, como a borda tão afiada que chegava a parecer frágil.

     Simon deteve-se. Reconheceu o rapaz agora. O tolo. O que o fazia pensar que desta vez se sairia melhor? Mas o cheiro do álcool respondeu sua pergunta. Estavam-no caçando, não? Caçando o caçador?

     O moço pensou que Simon tinha parado por medo. Avançou, ameaçando Simon com a faca. Ele deixou que continuasse, a raiva aumentando dentro dele. O jovem com camisa de lenhador estava justamente diante dele agora, mas Simon não se acovardou. O outro não sabia o que fazer. Tinha esperado qualquer coisa, menos aquilo. Atirou a faca, esperando que Simon se esquivasse, mas ele não o fez e a faca cortou seu rosto. Simon exibiu um sorriso estranho, e as presas saíram-lhe das gengivas. Lambeu o próprio sangue.

     O rapaz deu um passo para trás, a boca aberta. Olhou a faca e o rosto de Simon novamente, como se não pudesse acreditar no que estava vendo. Depois, arregalou os olhos, e sua língua saiu para fora como se fosse um idiota. Simon percebeu a pele esticar-se outra vez e sabia o que o outro vira antes de voltar-se e sair correndo.

     Simon se virou para enfrentar o outro garoto, que se havia colocado atrás dele durante a briga, esperando surpreendê-lo pelas costas. O jovem escancarou a boca de assombro, ao ver a cortina de sangue que cobria a cara de Simon, seu olhar endemoninhado e a pele voltando a seu aspecto original. Deu um passo para trás, emitiu um som terrível, como uma besta ferida. Seguiu recuando, um passo mais. De repente, seus braços se moveram violentamente e ele escorregou. Houve um baque e um grito. Desapareceu dentro da trincheira, o buraco destinado a Christopher.

     _ Pensou que podia enganar-me com isso? – Christopher debochou.

     Simon avançou para ele. Quase consegui, bastardo, pensou.

     Sofia se desfez do casaco, como se estivesse queimando.

     _ Vou escapar – disse Christopher, entre dentes. _ Mas primeiro vou apanhar sua garota.

     Saltou para Sofia, as presas à mostra. Mas havia algo na mão dela: um crucifixo. Ele se deteve e grunhiu, levantando as mãos, e começou a mudar de forma. Asas de couro se desprenderam de seus braços.

     _ Não o deixe ir – gritou Simon.

     Ela olhou para ele, sem entender a que se referia.

     _ Detenha-o!

     A cara de Christopher inchou e explodiu. Seu nariz girou para cima e ele começou a emitir um chiado de brincadeira.

     Simon não podia olhar diretamente para Sofia. A luz que vinha de sua mão erguida machucava seus olhos. Entretanto, correu para ela e lhe arrebatou a cruz com um grito de dor. Lançou-a para a criatura em que Christopher se transformara, à medida que este se içava no ar. A fita se enredou no morcego e os chiados se converteram em gritos.

     O menino emergiu do morcego com a fita ao redor da cabeça, a cruz amarrada a seus olhos. Seu rosto estava queimado e ele arrancava a pele como se tentasse parar a dor. Feridas abriram-se em suas bochechas, enquanto lutava na grama. Não podia ver por onde seguia o caminho. Cambaleou cegamente. Cambaleou para muito longe e encontrou a trincheira. Uivou, e um golpe surdo encheu o ar onde ele havia estado fazia um momento.

     Simon atirou-se sobre a borda do buraco para olhar. Escutou Sofia atrás dele emitir um ruído de puro terror e retirar-se.

     Christopher sacudia-se sobre duas estacas que o tinham apanhado. Fumaça podre saía de sua forma borbulhante. Seu corpo, ao morrer, tentou tomar formas anteriores para escapar, mas não pôde fazer a mudança. Uma sequência de formas estranhas se sucederam e se retorceram nas estacas, cuspindo sangue; menino com cabeça de morcego, lobo com braços de menino, porco com cara de menino trocando de pele.

     E encolhido a um canto, milagrosamente ileso, o rapaz magro soluçava e chupava as mãos, muito assustado para gritar. Simon o segurou com uma mão e o puxou para cima, arremessando-o pelo ar. Ele rolou na grama, levantou-se e fugiu.

     Christopher, um menino novamente, torcido como um anão, desinflou-se como um inseto esfolado e, finalmente, ficou quieto como uma múmia.

     Sofía não falava. Simon não quis olhar para ela. Imaginou o asco em seu rosto e não a queria ver sua expressão.

     _ Deixe-me – suspirou, a voz rouca, contendo as lágrimas geladas. _ Deixe-me, coração valente. Irei procurar você. E te direi como estou. Devo cobrir o buraco e pensar.

     Não a viu nem a escutou partir. Tampouco viu o urso sujo, que estava abandonado no chão. O vazio o alagou, e encontrou-se diante da interrogação assustadora com que já se confrontara antes: o que vou fazer agora?

 

     Sofia observou o próprio reflexo no espelho da penteadeira de sua mãe. Nas mãos, sustentava um colar de pérolas contra o pescoço. Brilhavam contra o moletom negro que vestia. Sua delicada nuca não mostrava nenhum sinal, como se o menino não tivesse existido jamais, mas ela sabia que ele estava lá fora, em algum lugar. Seus dedos tremiam, ao sentir de novo o sabor amargo da loucura.

     Ao chegar em casa, na noite anterior, apenas tivera tempo para tirar a roupa, enquanto entrava no banheiro vomitando. Encolheu-se no chão, de pijama, apoiando a testa suada contra o piso frio, gemendo depois de cada onda de vômito. O ruído contínuo do vaso sanitário intrigou seu pai, que se aproximou, batendo discretamemte na porta. Ela o deixou entrar, e ele acariciou suas costas, ficou ali tentando confortá-la, até que ela esteve suficientemente bem para levantar-se e voltar para seu quarto.

     _ Algo que comi – explicou ela.

     Ele soltou uma gargalhada triste.

     _ Você come tão pouco que isso soa injusto.

     Ela tentou sorrir.

     _ Sim. Geralmente sou eu que não se entende com a comida e não o contrário.

     O sono foi inquieto. Uma vez, despertou de um salto, suando frio, mas não se lembrava do que tinha sonhado. Tinha medo de dormir outra vez, até lutou para manter-se desperta, mas o sono a dominou, apesar de seus esforços. Levantou-se de manhã com o estômago embrulhado e olheiras escuras sob os olhos.

     _ Não vá ao colégio hoje, meu amor – disse seu pai antes de sair para o trabalho. _ Apanho você aqui quando for ao hospital.

     Sofia não tinha intenção de ir ao colégio, mas tampouco conseguiria ficar sem fazer nada. Por fim, dirigiu-se ao quarto dos pais e à caixa de joias de sua mãe.

     Sempre adorara brincar com as joias da mãe quando era pequena, e sua mãe utilizava isso para sua própria conveniência, todas as vezes que queria um pouco de silêncio. Revistar as pequenas gavetas trouxe-lhe a paz da infância. Ali estava a estrela barata que tinha dado à sua mãe em um Natal e o brinco de sua avó. Havia uma ordem na fila de anéis colocados no mostruário de veludo, lembranças antigas expostas na forma da curiosa variedade de objetos, acomodados em seus nichos.

     Mas as velhas lembranças não podiam apagar as lembranças da noite anterior e da feroz e terrível caçada. Realmente, chegou a acreditar que Christopher mataria Simon e não haveria nada que ela pudesse fazer. Eu queria protegê-lo, pensou. Mas como se protege a alguém disso? A loucura era opressiva.

     E quem eram aqueles garotos? Ela estremeceu. Garotos estúpidos. Guardou as pérolas novamente no estojo. Soaram como dentes rangendo. Nunca alguma coisa irá me assustar mais do que ter visto Christopher naquele buraco, decidiu. Seu estômago se apertou, ainda não imune à lembrança. Fechou a tampa da caixa.

     Simon matou seu próprio irmão. Isso deve doer, mesmo sendo seu irmão quem foi. O que sentiria ele agora? Sua vida inteira, se é que assim a podia chamar, tinha transcorrido perseguindo aquele objetivo específico. O que faria agora?

     Se ele se fosse, poderia ir com ele? perguntava-se ela. Eu poderia viver assim? Ela sabia que podia viver na noite, mas e o sangue? Não, isso não podia suportar.

     Seu olhar procurou o retrato de sua mãe, que estava pendurado em cima da cama.

     _ Ele está tão só – disse à pintura, como se pedisse à mãe que a entendesse.

     Encolheu-se na cama dos pais, acariciando o edredom familiar, e dormiu sob o retrato, sob o olhar vigilante de sua mãe. Dormiu um sono profundo e exausto.

     Seu pai chegou e a encontrou ainda dormindo. Ela lavou o rosto e entrou no carro ainda com os olhos pesados de sono.

     Só quando chegaram ao hospital despertou realmente. Anne Sutcliff estava sentada na cama, vestida com uma linda camisola que tinha comprado em Londres fazia anos. Estava pálida e fraca, mas sorridente.

     _ Vou tomar um refrigerante – disse Harry, e saiu do quarto.

     Sofia sentou-se perto da cama. Sentia-se frágil.

     _ Soube que esteve estragando os móveis.

     Sofia pensou rápido e agarrou prontamente a mesma desculpa que havia dado a seu pai.

     _ Oh, sim. Pousei a xícara de café diretamente sobre o móvel. Sempre me avisou, não é?

     Sofia se tranquilizou ao ver a expressão divertida da mãe.

     _ Fique tranquila, ninguém vai brigar, boba. Mas estou certa de que uma xícara não teria feito tanto dano.

     _ Bom, definitivamente foi uma surpresa – Sofia sentiu que seu rosto corava.

     _ Sofia, não me importa o que aconteceu, de verdade. Tem direito a estar zangada.

     Deus, acredita que o fiz de propósito, pensou Sofia.

     _ Antes eu tinha tanta raiva – disse sua mãe. _ Agora não tanto.

     Sofia lembrou-se de como, no princípio, quando sua mãe adoeceu, explodia com a coisa mais simples.

     _ Porque você estava assustada – disse.

     _ Sim. Em parte – a mãe sorriu. _ Mas não pode manter tudo isso guardado ou vai sucumbir. Por isso sugeri, você sabe, o terapeuta a seu pai. Quando você disse que ele não estava falando.

     _ Ele foi – disse Sofia.

     _ Você também, ok? Vão precisar um do outro.

     Quando eu tiver partido, pensou Sofia, com tristeza, terminando a frase por ela. Sua mãe tomou-lhe a mão, apertou-a e falou brandamente:

     _ O mundo não vai acabar, Sofia – ela parecia saber sempre como Sofia se sentia. _Todos temos que morrer – sussurrou sua mãe, fechando os olhos, como que admitindo que aquilo demandava muito esforço.

     Sofia se encolheu como se lhe tivessem dado uma bofetada. Não fale disso, suplicou em silêncio. Não quero falar disso. Não importava quantas vezes dissessem que sua mãe estava morrendo, era horrível ouvi-la dizer isso. Baixou o olhar para seus jeans, com medo de olhar para frente.

     A mãe apertou sua mão com mais força.

     _ Não deixará de acontecer apenas porque decidiu ignorar a realidade. Não há feitiços contra a morte, Sofia.

     Sofia obrigou-se a olhar para sua mãe. Sim, há, queria dizer. Feitiços sombrios, negros. Eu conheço um. Mas sabia que não podia.

     _ Está desistindo. Se disser coisas como essa, está permitindo que aconteça.

     Sua mãe negou com um movimento da cabeça.

     _ É só que já não estou tão assustada. Isso não é permitir que aconteça. Sofia, seu pai vai necessitar muita ajuda. Você tem que cuidar dele.

     Sofia olhou na direção da porta automaticamaente. O que aconteceria se ele estivesse escutando?

     Sua mãe viu a preocupação em seu rosto e suspirou.

     _ Sinto muito impor-lhe isto. É injusto, eu sei. Não é certo pedir-lhe que seja você a transmitir força a seu pai.

     Os punhos de Sofia se apertaram. Ela tinha razão, era injusto.   Toda a coisa era injusta. Finalmente, fez a pergunta que seguia fazendo a si mesma desde que tudo começou.

     _ Por que você, mãe?

     Sua mãe tomou um gole de água.

     _ Acontece com todo mundo, todo o tempo, por que não comigo? Eu não sou especial. Não, não fale! – tocou seus lábios. O gesto exigiu esforço. _ Eu sei. Para você. Mas não no esquema geral das coisas.

     Sofia olhou sua mãe com orgulho. Ela é muito melhor que eu, pensou. Ela é valente.

     _ Eu não sei se posso pensar assim.

     _ Bom, os jovens de sua idade não acreditam que podem morrer.

     Sua mãe ficou em silêncio por um momento. Sofia não sabia se estava descansando ou pensando. Uma enfermeira passou com um carrinho pela porta. Alguém, em outro lugar do corredor, chamava a enfermeira.

     _ Imagino que ainda estou um pouco chateada – disse, finalmente. _ Há coisas que queria fazer. Alguma vez te disse que queria uma casa no campo com muitos gatos e um estúdio com claraboias imensas?

   _ Muitas vezes.

     Sofia recordava, sentada na cozinha, depois da escola, quando sua mãe descansava um pouco, fazendo um intervalo em sua pintura. Enquanto tomavam chá, a mãe descrevia em detalhes seu almejado estúdio. Não se cansava de planejar. Sua mãe nunca poderia viver a vida de Simon, sempre à noite, nenhum dia glorioso e brilhante, nenhum grande plano, apenas sobrevivendo.

     Teria se esvaecido, murchado, teria se transformado em alguém que não seria ela mesma. “Que vida tão medíocre”, Sofia a imaginava dizendo, e sorriu.

     Sua mãe a olhou com curiosidade.

     _ Algo engraçado?

     _ Humor sobrenatural.

     _ Humm – não insistiu. _ Falando do sobrenatural, gosto dessa ideia de reencarnação. Eu gostaria de voltar como um gato e que meu dono fosse alguém como eu.

     Sofia respirou fundo. Talvez se tornasse mais fácil se falassem mais do tema. Tentaria, por sua mãe.

     _ Uma pessoa como você certamente se casaria com alguém como o pai, que é alérgico.

     O sorriso de sua mãe desapareceu.

     _ Não posso me imaginar sendo nada. Dá-me um sentimento de pavor por dentro.

     Isso foi o que disse Simon, percebeu Sofia.

     Anne Sutcliff queixou-se, cerrou os olhos com força, e o estômago da Sofia deu um salto. Não iria morrer agora, verdade? Na frente dela? Mas sua mãe se endireitou.

     _ Não posso continuar com esta dor.

     De novo, Sofia pensou em Simon.

     _Tinha medo de que, vendo-me assim, todas as boas lembranças que têm de mim se apagariam. Que somente se rocordariam de mim desse jeito. Não permita que isso aconteça. Lembra-se quando… - lançou-se em uma das histórias favoritas da infância da Sofia.

   Sofia sentou-se e sorriu, e realmente não escutou. Pensou no que sua mãe havia dito. Se ela pode administrar o que está acontecendo, eu também tentarei. Mas não tenho que gostar disso.

     Seu pai chegou e apresentou seu lado da história.

     Depois, ela estava contando sua própria versão, e todos riam, e ela era parte deles de novo.

     _ Não se permita perder sua vida também – a mãe sussurrou-lhe ao ouvido, justo antes que se fosse com seu pai. _ Viva-a em toda a intensidade enquanto a tenha.

     Não, sua mãe nunca poderia viver na noite, na escuridão.

     _ Alegra-me que tenha vindo – falou seu pai no carro.

     Ainda existia esse fio entre eles. Só tenho que ter paciência, entendeu ela. Permitir que ele chorasse sua perda à sua maneira. Com o tempo, voltará para mim.

     Deixou-se hipnotizar pelas lâmpadas que iluminavam a rua, envoltas em halos de fina geada. Estava cheia de felicidade e tristeza ao mesmo tempo. Meu pai ainda precisa de mim, pensou. E quanto a Lorraine, só porque está um pouco mais longe não significa que não se importe comigo. Isso não a retira de minha vida para sempre. Ela voltará para mim, também, de certo modo. Não importa quem conheça por lá, nossa história é uma parte muito importante de nossas vidas. Espero que me telefone logo.

     As coisas mudam, entendeu ela. A gente cresce, e muda. Algumas vezes se encerra em si mesma; outras, sai em busca de novos caminhos, pessoas. Lembrou-se do abraço de Simon. Como seria se nada mudasse?, perguntou-se. Estagnaria: congelada, decadente, horrível. Mas por que tinha que doer tanto, toda aquela mudança? Por que tinha que significar a perda das pessoas que amamos?

     Nesse momento, chegaram em casa.

     Havia um bilhete em sua cama, escrito em um pedaço de papel de seu caderno. “Encontre-me no parque, às 12”. Estava assinado com a letra “S”.

     Ela dobrou e redobrou o bilhete enquanto pensava nele. Havia enganado a morte, sim, mas estava forçado a viver uma vida que odiava. Sempre estava afastado de tudo, não podia querer nada e estava escravizado ao horror por sua necessidade de sangue. Estremecia ao pensar nas pessoas que deveria ter matado e se sentia um pouco suja, sabendo que tinha permitido que a beijasse.

     Mas ela se sentia diferente quando estava com ele, quando podia ver a solidão em seu rosto. Não importa o que tivesse feito, parecia inocente a respeito, como um animal selvagem. Agora que tivera sua vingança, só lhe restava a dor. Ele era muito bom para não se sentir mal por ser obrigado a fazer o que fazia para sobreviver. A morte seria melhor do que viver assim. Algumas vezes existiam momentos certos para a morte.

     Pensou em sua mãe. Talvez sempre houvesse uma boa razão, embora não pudéssemos vê-la, e era um crime contra as leis da natureza negar a mudança. De repente, o mais humano seria matar Simon, concluiu.

     Ninguém mais o conhecia. Talvez fosse sua responsabilidade, por ele, e pelos outros também. Sentia-se horrível ante o pensamento. Mas se havia estado preparada para matar Christopher, se pôde fazê-lo uma vez, por que não uma segunda?

     Na parte coberta do jardim, encontrou um amontoado de madeira em um canto. Três estacas afiadas tinham sido preparadas para enfeitar o jardim. Suas extremidades estavam escurecidas pela terra. Pegou uma e brincou com ela em suas mãos. Esta funcionaria bem. Seus lábios tremeram, e o estômago revirou. Atacaria Simon pela frente, para ver a expressão de traição em sua face, ou pelas costas, como uma covarde? Teria a força física necessária para atravessá-lo por completo?

     Atirou a estaca com um grito agudo e, ao cair, o golpe ecoou na terra. Simon não era como Christopher. Ela não podia fazer aquilo.

     Sofia foi ao seu encontro, depois que seu pai adormeceu no sofá. O que devo fazer?, pensou ela. Passou por uma parede arruinada no caminho para encontrar Simon, onde algum poeta das ruas tinha escrito: “a vida é uma ilusão que dura muito pouco.”

     Ele estava sentado em seu banco, com a cabeça baixa e os olhos fechados, como um menino de coral de igreja. Sua beleza translúcida sempre a surpreendia. Nunca se recordava de seu rosto com exatidão, e a visão dele sempre lhe tirava o fôlego. Ao lado dele, no banco, estava o quadro e, do outro lado, a mala velha cor de café.

     Levantou a cabeça e seus olhos se abriram para encontrar os dela.

     _ Boa noite – falou ele, brandamente. _ Venha, sente-se a meu lado – pôs a mala no chão para que ela se sentasse, tomou-lhe a mão e a beijou. _ Lembra-se de seu poema, Sofia? Desta vez, eu me tornarei um raio de sol.

     Ela ficou confusa e começou a temer por ele.

     _ Fique comigo até o amanhecer, Sofia.

     Os olhos dela se abriram, ao entender o que ia acontecer.

     _ Não. Melhor não – apesar de sua decisão anterior, sentiu-se angustiada, foi tomada pela ânsia de impedi-lo, tentar salvá-lo daquilo. Não podia suportar perdê-lo também. Ela alcançou sua outra mão e a apertou. Ela não tinha que dizer; não tinha que oferecer. Ele sabia.

     _ Não, Sofia. Você é doce e generosa, mas não funcionaria. Cabe a mim decidir, não acha?

     Ela sabia que ele tinha razão.

     _ Eu vivi muito tempo. A morte é a forma natural das coisas – desviou o olhar. _ Eu não sou natural.

     Era como se os pensamentos dele todo o tempo estivessem correndo paralelos aos dela e dessa maneira se completassem. Ela se aproximou para beijá-lo na bochecha, mas ele se moveu levemente e beijou seus lábios delicadamente.

     _ O que tenho feito, Sofia? Por que existi?

     _ Você deteve Christopher e Von Grab. Tudo valeu a pena.

     Ele soltou uma gargalhada curta de prazer.

     _ Você é tão generosa. É a única pessoa no mundo que sabe e se importa, e eu só posso te oferecer tristeza.

     Soltou as mãos dela.

     _ Ultimamente, é como se você fosse o único que sabe que eu existo. Breve já não terei ninguém.

     Ele ficou surpreso.

     _ Mas tem a si mesma. Uma pessoa boa, doce, forte e valente. Foi você quem me deu ânimo.

     Ele se levantou e colocou a mala no banco; abriu-a e mostrou a terra cinza e seca. Agarrou um punhado e o lançou no ar.

     Ela percebeu o forte aroma. Era sua vida espalhando-se.

     _ Ajude-me, Sofia. Não tenho alternativa.

     Ela hesitou. Então, levantou-se também. Às vezes, quando as coisas não mudam, temos que forçar a mudança. Pegou um pouco da terra, timidamente, e deixou que deslizasse entre seus dedos, mas sentia vida em cada grão.

     _ Não. Atire _ exigiu ele.

     Ela agarrou uma quantidade grande e a jogou no ar, o mais longe que podia, protegendo os olhos da visão. Está permitindo-se ir, eu deveria estar contente, mas me dói.

     Ele estava enviando a terra para qualquer lado. Começou a rir, como se se estivesse tirando um peso de cima. Atirou a terra mais e mais rápido. Ela tentou igualar seu ritmo.

     Furiosamente, a terra saía voando, espalhando-se no quiosque, no caminho, deslizando por entre as tábuas de madeira dos bancos. Não posso suportar isso, pensou ela.

     Logo, não restavam mais que migalhas. Simon tomou a mala e, com um último grito, atirou-a longe, para os arbustos. Sentou-se exausto no banco, e Sofia acomodou-se ao lado dele, e agarrou sua mão.

     _ Por favor, fique com a pintura, Sofia. Quero que a tenha.

     Ela tocou a moldura dourada em resposta, aceitando o presente, uma parte dele para sempre. Ficaram em silêncio um longo instante. Ocasionalmente, um automóvel passava na distância, a luz dos faróis perdendo-se na noite.

     Uma máscara de frio colava-se às bochechas de Sofia.

     _ Estou assustado – disse ele, finalmente.

     Ela o abraçou e ficou assim, transmitindo-lhe sua força e seu amor. Isto é tudo que minha mãe quer, entendeu ela.

     A noite estava fria, mas ele não tremia por isso. De vez em quando a beijava e se afastava, suspirando. Algumas vezes, acariciava e beijava sua nuca, e recostava a cabeça em seu seio. Em um dado momento, ela viu lágrimas em seus olhos.

     Os pássaros começaram a cantar e o céu assumiu um tom cinza perolado. Ela se lembrou de Christopher e estremeceu.

     Aguentaria ver tudo aquilo novamente? Entretanto, continuou abraçando-o. Não ia decepcioná-lo.

     O sol começou a sair. Soltaram-se. Simon dava a impressão de que ia pular do banco e correr. Ela esticou os braços para ele, e ele quase se afasta para não tocá-la, mas virou-se e tomou sua mão de novo.

     Ficou quase paralisado.

     Não se atreveram a olhar para nenhum outro lado, exceto um ao outro, enquanto o sol subia. Ele curvou-se. Ela deixou de respirar.

     Então, subitamente, ele estava sorrindo. Sua face foi iluminada pelo dia pela primeira vez em 300 anos e também pela felicidade. Não se queimou.

     Sofia queria rir, mas não se atrevia a romper o encantamento.

     Contrariamente ao que esperava, ele começou a desvanecer-se. Ela o apertou mais, a felicidade convertendo-se em espanto. Os dedos dela escorregaram através dele como se ele fosse neblina.

     Mas sua expressão emocionada não se modificou.

     _ Acredito que estou livre – sussurrou ele. _ Tudo o que tinha que fazer era ir por minha própria vontade.

     Ela apenas podia distingui-lo agora. Ele era uma miragem, como uma nuvem de calor levantando-se em uma estrada longa e erma. As lágrimas dela não se detinham. Continuaram muito depois que não havia nada ali, exceto a lembrança de sua voz suave.

     _ Te amo, Sofia.

     Agora depende de mim, pensou ela. Mas por algum motivo já não sentia medo.

 

                                                                               Annette Curtis Klause 

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades